RevistaJurídica Ano IV - N.4 ? Outubro de 2014

Transcrição

RevistaJurídica Ano IV - N.4 ? Outubro de 2014
Revista Jurídica
Estácio | UniSEB
Ano IV - Nº 4 - Outubro 2014
ISSN 2317-2681
CONSELHO EDITORIAL
O Conselho Editorial da Revista Jurídica Estácio/UniSEB é composto por
docentes convidados do Centro Universitário Estácio/UniSEB e outras
instituições de ensino superior, bem como por profissionais da área jurídica.
André Luiz Carrenho Geia
César Augusto Ribeiro Nunes
Elizabete David Novaes
Giovanni Comodaro Ferreira
Karina Prado Franchini Bizerra
Luciana Lopes Canavez
Paulo Henrique Miotto Donadeli
Reginaldo Arthus
Romualdo Gama
Sérgio Ricardo Vieira
Sérgio Roxo da Fonseca
EXPEDIENTE
A Revista Jurídica Estácio/UniSEB é uma publicação anual do curso de
Direito do Centro Universitário Estácio/UNISEB – Estácio Participações
S.A.
KARINA PRADO FRANCHINI BIZERRA
M. Reitora – Estácio/UniSEB
ANGELA MASSAYO GINBO
Pró-Reitora Acadêmica – Estácio/UniSEB
ELIZABETE DAVID NOVAES
Pró-Reitora Acadêmica de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão – Estácio/
UniSEB
PAULO HENRIQUE MIOTTO DONADELI
Coordenador do Curso de Direito – Estácio/UniSEB
CÉSAR AUGUSTO RIBEIRO NUNES
Coordenador da Revista Jurídica – Estácio/UniSEB
Editor Responsável
Profa. Karina Prado Franchini Bizerra
Rua Abrahão Issa Halack, nº 980
Bairro Ribeirânia, Ribeirão Preto-SP
CEP 14096-160
* Opiniões expressas pelos autores em seus trabalhos, artigos e entrevistas não refletem, necessariamente,
a opinião do Centro Universitário Estácio/UniSEB, da Estácio Participações S.A., de seus mantenedores,
diretores, coordenadores, docentes, discentes e membros do Conselho Editorial.
Por terem ampla liberdade de opinião e de crítica, cabe aos colaboradores da Revista Jurídica Estácio/UniSEB
a responsabilidade pelas ideias e pelos conceitos emitidos em seus trabalhos.
** Não serão devidos direitos autorais ou qualquer remuneração pela publicação dos trabalhos na Revista
Jurídica Estácio/UniSEB. O autor receberá gratuitamente um exemplar da Revista (versão impressa) em cujo
número seu trabalho tenha sido publicado.
ACEITAMOS PERMUTA – EXCHANGE DESIRED
INTERCÂMBIO DESEÓ – ÉCHANGE DESIRÉ
Ficha Catalográfica
R281
Revista Jurídica Estácio/UniSEB / Centro Universitário Estácio/
UniSEB. Ano 1. n.1 (nov. 2011) -.- Ribeirão Preto, SP : UNICOC,
2011. Ribeirão Preto, 2011.
Ano 4. n. 4 (out. 2014)
Anual
ISSN: 2317-2681 (versão impressa)
1. Ciências Jurídicas. 2. Direito Nacional. 3. Direito Internacional.
4. Doutrina. 5. Jurisprudência. I. Centro Universitário UniSEB. II.
Revista Jurídica.
CDD 340
SUMÁRIO
A FALÁCIA DA INEXISTÊNCIA DA PRISÃO PERPÉTUA NO BRASIL – POR
UMA NOVA VISÃO DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA ........................................13
Paulo José Freire Teotônio e Bruna Carolina Oliveira e Silva
FASHION LAW - O DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL E A INDÚSTRIA
DA MODA .......................................................................................................................25
Rafaela Ferreira Cabrera e Caíque Tomaz Leite da Silva
A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O DIREITO DE APRECIAÇÃO DA
QUALIDADE, EFICIÊNCIA E SEGURANÇA DOS SERVIÇOS PELOS
CIDADÃOS .....................................................................................................................39
Mário Frota
A INFLUÊNCIA DO ILUMINISMO NA DECLARAÇÃO DE DIREITOS DO
HOMEM E DO CIDADÃO DE 1789 ............................................................................51
Fernando Antônio Turchetto Filho
AS LICITAÇÕES ADMINISTRATIVAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO: UMA VISÃO GERAL DO INSTITUTO ..............................................63
Raisa Duarte da Silva Ribeiro
O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A AUTONOMIA DA
VONTADE NOS REALITY SHOWS ............................................................................75
Jardy Elizabeth Milani Bezerra
DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL EM KARL LOEWENSTEIN E NO INÍCIO DO
SÉCULO XXI – PRINCIPAIS SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ..........................87
Luana P. Nogueira
CRÍTICA AO PÓS-POSITIVISMO NA QUESTÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS: UMA REFLEXÃO PAUTADA NA BUSCA PELA
ADEQUAÇÃO DA CIÊNCIA DO DIREITO À SOCIEDADE PÓS-MODERNA ...99
Pedro Guilherme Borato
A INTERCONSTITUCIONALIDADE DA UNIÃO EUROPEIA: TENDÊNCIAS DE
UM CONSTITUCIONALISMO PÓS-NACIONAL ...............................................109
Francielle Vieira Oliveira
O FATCA E OS ASPECTOS SOBRE EXTRATERRITORIALIDADE DA LEI FISCAL
NORTE-AMERICANA ................................................................................................119
Thiago Silva Nogueira
LA EPIGENÉTICA COMO ELEMENTO MODIFICADOR DE LA PROTECCIÓN
DE DATOS GENÉTICOS .............................................................................................131
Miguel Vieito Villar
A CRISE DO ENSINO JURÍDICO, OS CURRÍCULOS HISTÓRICOS E
SUAS VINCULAÇÕES COM OS PAPÉIS SOCIAIS DOS BACHARÉIS EM
DIREITO .......................................................................................................................141
André Gonçalves Fernandes
O DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO PARA PESSOA COM
DEFICIÊNCIA FÍSICA .................................................................................................163
Geysa Corrêa D´Almeida
O MÍNIMO NECESSÁRIO NO CENÁRIO INTERNACIONAL COMO
PARÂMETRO PARA A ATUAÇÃO ESTATAL EM RELAÇÃO AO DIREITO A
SAÚDE ...........................................................................................................................175
Beatriz Rigoleto Campoy
POLÍTICA EDITORIAL DA REVISTA JURÍDICA Estácio/UniSEB .....................193
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
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APRESENTAÇÃO
Em mais uma publicação do periódico produzido pela Coordenação do curso
de Direito do Centro Universitário Estácio/UniSEB, agora em sua quarta edição
(Ano IV – Número 4, outubro de 2014), apresentamos a comunidade acadêmica
da cidade de Ribeirão Preto-SP, assim como aos demais juristas e profissionais
de direito que têm acesso a Revista, uma seleção de obras científicas dedicadas a
diversos temas das ciências jurídicas e sociais, aprovadas após o exame sempre
atento e rigoroso de um grupo de professores e de colaboradores pertencentes ao
Conselho Editorial qualificado de nossa IES. A cada ano temos recebido mais artigos
para análise, fato este que revela não só a qualidade dos trabalhos anteriormente
publicados, sem dúvidas a melhor e mais eficiente propaganda que poderíamos
ter do periódico, mas também o prestígio que o mesmo tem recebido de estudantes
e leitores que tomam contato com os textos e autores aqui apresentados. Em muito
nos honra, portanto, o interesse despertado por diversos juristas e pesquisadores
que submetem trabalhos inéditos e de altíssima qualidade durante todo o prazo
estabelecido para recebimento de artigos ao longo do ano.
Conhecedores deste destaque que a revista tem recebido nos meios
acadêmicos e profissionais, encontramos maiores e melhores motivações para
continuar desenvolvendo o trabalho meticuloso e comprometido de receber,
avaliar e retornar aos autores com os respectivos pareceres, elaborados a partir
de uma leitura criteriosa dos artigos que nos são enviados. De fato, é respeitando
sempre a Política Editorial da Revista e reconhecendo o valor dos trabalhos que
recebemos que conseguimos produzir uma obra de referência para nossa Instituição
e, principalmente, para nossos alunos do Centro Universitário Estácio/UniSEB.
É fundamental registrarmos ainda um fato institucional de destacado
valor para nossa Faculdade. A edição deste ano de 2014 é a primeira que se realiza
depois da incorporação do Centro Universitário UniSEB no Grupo Estácio. Esse
destaque que fazemos diz respeito aos grandes momentos que se abrem a partir
da união desses dois grupos de educação e suas respectivas influências no Ensino
Superior do Brasil. Nossa experiência prática e profissional, certamente, recebe um
incremento significativo de excelência administrativa e de referência de qualidade
de ensino. É com motivação extra que estamos conhecendo os novos colegas de
trabalho, assim como as novas estruturas administrativas e pedagógicas a serem
aproveitadas do Grupo Estácio. Mais uma vez, portanto, vivemos um especial
momento histórico de crescimento e desenvolvimento do nosso curso de Direito, o
que nos autoriza imaginar que as perspectivas que se apontam para 2015, somadas
as medidas já implementadas de sucesso na IES, formam a base para um projeto
de educação sólido e que, certamente, produzirá muitos benefícios aos alunos aqui
alocados.
O projeto de uma Revista Jurídica como esta compõe precisamente um
modelo de formação profissional e acadêmica de excelência. Fomentando a
pesquisa e a produção teórica, alcançamos um dos objetivos mais fundamentais
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Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
da formação superior, qual seja: a produção do conhecimento científico. É nesse
ponto que pautamos o trabalho de docência, de coordenação e de atuação nas
demais atividades acadêmicas do Centro Universitário Estácio/UniSEB. Buscamos
enriquecer a relação de aprendizado entre alunos e professores com a incorporação,
em sala de aula, de estudos orientados, trabalhos de pesquisa, formação de grupos
de estudos, entre outras práticas, provocando o debate produtivo de ideias e,
consequentemente, a produção de conhecimento na área de ciências jurídicas e
sociais. Ao final desse processo, tem sido perceptível o aumento do número de
alunos interessados em escrever artigos e outros trabalhos acadêmicos.
Por fim, como última nota de apresentação desta 4ª edição da Revista
Jurídica Estácio/UniSEB, gostaríamos de registrar a enorme satisfação que tivemos
após receber contribuições de autores que atuam fora do país, mais especificamente
em Portugal e na Espanha. É identificando nessas situações o alcance e a dimensão
que os trabalhos publicados por nossa Revista alcançam que fazemos questão de
mencionar, ainda que de forma genérica, um agradecimento especial a todos os
autores aqui selecionados. Todos os trabalhos aprovados nesta edição deverão
despertar o interesse da comunidade profissional e acadêmica a qual se destina,
uma vez que aprofundam os debates mais contemporâneos e relevantes de nossa
ciência jurídica.
Complementarmente, não poderia deixar de agradecer, novamente, o
apoio incondicional da equipe que compõe a Mantenedora do Centro Universitário
Estácio/UniSEB, assim como a figura especial da Reitora desta Unidade, Profa. Ms.
KARINA PRADO FRANCHINI BIZERRA. Continuaremos animados e convictos
que o trabalho de publicação deste periódico perdurará por muito tempo.
César Augusto Ribeiro Nunes
Coordenador da Revista Jurídica - UniSEB
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
DOUTRINA
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Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
A FALÁCIA DA INEXISTÊNCIA DA PRISÃO
PERPÉTUA NO BRASIL – POR UMA NOVA VISÃO
DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA
Paulo José Freire Teotônio 1
Bruna Carolina Oliveira e Silva 2
Resumo
A presente digressão busca abordar a aplicação do instituto da medida de segurança no
Estado democrático, principalmente sobre o enfoque da proporcionalidade e razoabilidade
constitucional, problematizando a eficácia da aplicação do instituto, o qual, por diversas
vezes (ou quase sempre), não alcança sua finalidade, ou seja, a cura do agente para
sua reintegração no convívio social. A legislação penal brasileira, antiquada e fora dos
parâmetros constitucionais, não impõe um prazo máximo para o cumprimento da medida
de segurança, limitando-se a estabelecer que estará livre o agente inimputável quando for
comprovada a cessação de sua periculosidade. Assim, apesar da ausência de culpabilidade,
o infrator inimputável por doença mental pode sofrer uma indevida e duradoura sanção
penal, disfarçada pelo tratamento médico-ambulatorial, que pode acarretar em privação
eterna de sua liberdade.
PALAVRAS-CHAVE: Medida de segurança; Doença mental; Periculosidade; Prisão
perpétua.
Introdução
A aplicação da medida de segurança no bojo do sistema jurídico brasileiro
tem dado constantemente ensejo a diversos estudos quando a constitucionalidade.
O instituto visa (ou deveria visar) a recuperação médico-social do agente
inimputável, considerado perigoso, que tenha cometido delito, sendo necessária
a existência de pressuposto básico para sua aplicação, qual seja, a denominada
periculosidade.
Desta forma, ao inimputável que tenha praticado infração penal, em regra,
será aplicada a medida de segurança e não pena corporal propriamente dita, já que
não possui capacidade de discernir o caráter ilícito de seus atos e tão pouco possui
noção de sua periculosidade. A periculosidade do agente inimputável, conforme
exposto, é o pressuposto para a aplicação do instituto da medida de segurança,
visando o afastamento do indivíduo do meio social, para garantir a segurança da
sociedade, além de possibilitar o desejável tratamento do sujeito (autor de infração
penal), com o propósito de que não venha a reincidir em ato ilícito.
Para verificação da imputabilidade do agente, contudo, necessária à
realização de exame médico-legal. É justamente a partir da comprovação do estado
do agente, por meio do precitado exame, que surge a necessidade de defesa da
1
Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), Pós-graduado (especialização) pela Faculdade de Direito Municipal
de Franca. Mestre pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP-SP). Foi Coordenador dos Cursos de Direito das Faculdades Unificadas de
Barretos (UNIFEB) e do Instituto Municipal de Ensino de Bebedouro (IMESB-VC). Atualmente, é Promotor de Justiça do Ministério Público do
Estado de São Paulo, na Comarca de Ribeirão Preto, ministrando aulas nos Cursos de Direito da UNAERP e UNISEB.
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Advogada, Pesquisadora e Bacharel em Direito da Faculdade Laudo de Camargo da UNAERP/RP.
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sociedade, ficando o agente submetido à internação para tratamento médico, afim
de que se proteja a sociedade e inicie-se um tratamento para sua reabilitação em
sociedade, visando a não reincidência em condutas ilícitas.
Em tempos de hipertrofia da capacidade médica e gerencial do Estado, no
entanto, necessário levar em consideração a ineficácia dos tratamentos obtidos
na prática, através da medida de segurança aplicada, quando os agentes passam
tempo indeterminado em manicômios judiciários e continuam com o mesmo
quadro mental, quando não pioram.
O objetivo da internação, com efeito, é a cura pelo tratamento médico, uma
vez que foi a própria periculosidade do agente, somada à sua insanidade, que
acarretou na aplicação da medida de segurança. Com tal parâmetro, contudo,
imperioso repensar a aplicação da medida de segurança, dado o caráter excepcional
da sua aplicação, proveniente de anterior absolvição, não dando direito, a
posteriori, ao salutar benefício da progressão, sendo de se considerar, ainda que as
pessoas consideradas inimputáveis, a par de falta de estrutura da organização do
Estado, são internadas em estabelecimentos que não avançam quanto à cura dos
internados.
Princípios e fundamentos da aplicação das Medidas de Segurança
Imperiosa a contextualização histórica das medidas cautelares e preventivas
em face dos regramentos penais, como pressuposto básico a alusão do tema das
medidas de segurança, máxime pela intenção de confronto com os fundamentos e
princípios constitucionais agora vigentes.
Para o direito romano, os então conceituados “loucos”, que não pudessem
ser contidos por sua própria família, eram encarcerados. Em meados do século
XVI, todavia, iniciou-se a aplicação de medida de segurança de correção a
vagabundos e mendigos, sendo que a pena de prisão era imposta sob a forma de
casas de trabalho e correção dos indivíduos. Em 1860, a Inglaterra foi o primeiro
país a aplicar o tratamento psiquiátrico de criminosos doentes mentais, a partir
do Criminal lunatic asylum act, que determinava o recolhimento dos indivíduos
que praticassem algum delito a um asilo de internados, desde que eles fossem
penalmente irresponsáveis, e do “Trial of Lunatic Act”, em 1883. Foi também na
Inglaterra, em 1800, que surgiu o primeiro manicômio judiciário, casuisticamente
em decorrência do fato do rei Jorge III ter sido vítima de uma tentativa de homicídio,
praticada por insano mental.
O Código penal italiano de 1889 (conhecido como Código Zanardelli), que
iria exercer grande influência na Europa e na América Latina, notadamente no
Brasil, também incorporava disposições de medidas de segurança propriamente
ditas, tais como a internação de alienados que praticassem fato previsto como
crime. Foi à escola positivista italiana, que surgiu na última terça parte do século
XIX, entretanto, a responsável pelo desenvolvimento da medida de segurança,
uma vez que foi a partir de Ferri, Garofalo e Lombroso que se voltou uma atenção
especial ao estudo dos delinquentes, classificando-os em natos, loucos, ocasionais,
entre outros, e o estudo da vítima, para que, assim, ocorresse uma melhor
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individualização da pena.
As medidas de segurança só vieram obter verdadeira sistematização com
o anteprojeto do Código Penal suíço de 1893, elaborado por Karl Stoss (CUELO
CALÓN, apud. PRADO, 2013). O anteprojeto continha disposição sobre a internação
dos multi-reincidentes, aplicada em substituição a sanção penal, e previa também
a internação facultativa em casa de trabalho e o asilo para ébrios contumazes.
O surgimento do primeiro sistema completo de medidas de segurança
ocorreu, porém, na Itália, em 1930. O projeto inicialmente elaborado por Ferri, em
1921, fracassou, cabendo a Arturo Rocco a elaboração do novo Código Penal, que
inspirou o legislador brasileiro de 1940. As tentativas de elaboração do primeiro
Código Penal republicano iniciaram a partir de 1893, mas as medidas de segurança
só vieram a obter sistematização com o anteprojeto de Virgílio de Sá Pereira, em
1927 (ANDRADE, 2004), que continha a previsão para o semi-inimputável o
cumprimento cumulativo de pena e de medida de segurança.
O Código Penal de 1940 acolheu como critério de verificação de
responsabilidade penal a capacidade de o indivíduo entender o caráter criminoso
do fato e, a partir daí, determinar sua culpabilidade. Flávio Augusto Monteiro de
Barros (BARROS, 2006) sustenta que tanto a pena quanto a medida de segurança
são espécies de sanção penal, que integram o sistema jurisdicional na luta contra
a criminalidade, visando à defesa social e reafirmação da atuação do Estado,
quando da violação da norma penal. A medida de segurança, assim, é a reação do
ordenamento jurídico diante da periculosidade penal revelada pelo agente de ato
ilícito, com caráter preventivo, com o objetivo de impedir que o indivíduo volte a
delinquir.
Embora sejam espécies de sanção penal, distinguem-se nitidamente,
quanto ao fundamento, limite e sujeitos. A medida de segurança baseia-se na
periculosidade do agente e não na culpabilidade, uma vez que o doente mental,
ao praticar um ato contrário ao ordenamento, torna-se uma ameaça ao convívio
da sociedade. No que se refere ao limite das sanções, a pena limita-se à gravidade
do delito praticado, enquanto a medida à intensidade da periculosidade, sendo
aplicada aos inimputáveis necessitados de especial tratamento curativo. A medida
de segurança, com seu caráter preventivo, têm como fim evitar delitos, sendo vista
como tratamento, destinado a evitar que o agente inimputável, que apresenta
perigo à sociedade, volte a delinquir.
Quanto à natureza jurídica do instituto, há discussões se teria caráter
jurídico penal ou se estaria enquadrado no direito administrativo, uma vez que
não se baseia na culpabilidade do agente, tratando-se de medida preventiva e não
repressiva. No entanto, a medida encontra-se encaixada como gênero de sanção
penal, ao lado da pena propriamente dita, não podendo ser considerada como
exercício da atividade administrativa (ANDRADE, 2004).
O Código penal brasileiro, em seu artigo 96 e incisos, traça as modalidades
de medidas de segurança, prevendo uma espécie detentiva e outra restritiva. As
medidas de natureza pessoal ou patrimonial foram abolidas da legislação atual.
A medida de segurança detentiva é a que consiste na internação em hospital de
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custódia e tratamento psiquiátrico, conforme prevê o artigo 96, inciso I. A medida
restritiva, por sua vez, é tratada pelo inciso II do mesmo artigo, que consiste na
sujeição ao tratamento ambulatorial.
Assim, no final do procedimento, na fase de sentença, o juiz deverá, tratandose de agente inimputável, absolver o réu, impondo-lhe a medida de segurança, daí
decorre a denominação de sentença absolutória imprópria, uma vez que o agente
é absolvido e, ao mesmo tempo, imposta à aplicação da medida de segurança.
O artigo 97 do Código penal também traz o modelo legal para aplicação da
medida nos crimes puníveis com detenção. A internação em hospital de custódia e
tratamento psiquiátrico, prevista do inciso I, do artigo 96, tem natureza detentiva,
uma vez que priva o indivíduo de sua liberdade, devendo este ser submetido
ao devido tratamento. O internado será obrigatoriamente submetido ao exame
psiquiátrico e os demais exames necessários ao tratamento, conforme previsto no
artigo 100, da Lei de Execução Penal.
O tratamento ambulatorial, também previsto no artigo 96, inciso II,
do Estatuto Repressivo, é medida de segurança restritiva, já que compete ao
sentenciado comparecer em hospital de custódia e tratamento psiquiátricos, nos
dias determinados pelo médico, a fim de ser submetido à modalidade terapêutica,
de acordo com o artigo 101 da lei nº. 7.210, de 1984.
O tratamento ambulatorial, contudo, poderá ser convertido em internação,
conforme dispõe o artigo 97, parágrafo 4º, do Código Penal: A conversão será
realizada quando o agente revelar incompatibilidade com a medida anteriormente
aplicada.
Os crimes puníveis com reclusão ou detenção, quando praticados por
agentes considerados doentes mentais, podem ser apenados com a aplicação da
medida de segurança, sendo sempre bom lembrar que imprescindível, como não
poderia deixar de ser, a aplicação do princípio do devido processo legal, posto só
poder ser imposta medida de segurança em fase de sentença, dita absolutória, de
forma imprópria.
Antecedente lógico, prefacialmente, para que o agente fique sujeito à
qualquer espécie de sanção penal, é o de praticar ato tido como ilícito pela
legislação, ou seja, fato tipificado no Estatuto Repressivo, uma vez que a própria
medida de segurança não se esquiva do princípio da legalidade ou também
denominado princípio da reserva legal. O princípio da legalidade, desta forma,
constitui uma limitação ao poder de punir do Estado, uma vez que nenhuma pena
criminal, incluída a medida de segurança, pode ser aplicada sem que, antes da
ocorrência desse fato, exista uma lei definindo-o como crime.
Quando da imposição da medida de segurança, transitada em julgado a
sentença, o juízo da instrução deverá ordenar a expedição de guia para execução,
sendo esta remetida à autoridade administrativa incumbida da execução, uma vez
que à execução das medidas de segurança deve seguir as regularidades contidas
nos artigos 171 a 174 da Lei de Execução Penal.
O Estatuto Repressivo, contrariando o preconizado pelo princípio da
legalidade, não faz qualquer menção a prazo máximo da aplicação de medida de
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segurança. Contudo, quando da imposição dos limites máximos da pena corporal,
em seu artigo 75, o legislador estabeleceu que o cumprimento das penas privativas
de liberdade não pode ser superior a trinta (30) anos, restando indagar se, no
caso da medida de segurança, o prazo se subordina ou não ao limite previsto no
artigo 75 do Código Penal, ou, contrário senso, pode perdurar enquanto presente
a periculosidade do agente, uma vez que os procedimentos para verificação
da cessação da periculosidade são regulados pelos artigos 175 a 179, da Lei de
Execução Penal.
Conforme adverte Bobbio (1994, p. 21-22), contudo, uma norma jurídica
não existe sozinha, isolada do sistema, estando sempre inserta no bojo do conjunto
do ordenamento, pelo que, na falta de previsão legislativa, deve o jurista socorrerse do sistema jurídico, melhor dizendo, por suas próprias palavras:
(...) se pode falar de Direito somente onde haja um complexo de normas
formando um ordenamento, e que, portanto, o Direito não é uma
norma, mas um conjunto coordenado de normas, sendo evidente que
uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras
normas com as quais forma um sistema normativo.
A observação de que algumas normas têm prevalência sobre outras é que
propicia a solução de incongruências entre elas. Assim, as normas constitucionais
devem prevalecer com relação às legais, as posteriores prevalecem sobre as
anteriores, as legais sobre as regulamentares etc., o que implica na conclusão de que
o prazo máximo permitido para a internação a que é submetido o doente mental,
a quem foi aplicada medida de segurança, é de trinta (30) anos, ante a vedação
constitucional da prisão perpétua. A Lei Maior, com efeito, prescreve a rigorosa
obediência das demais normas aos seus cânones, na medida em que descreve os
requisitos que a norma legal deve satisfazer, os fundamentos que deve seguir, os
preceitos em que deve se fundar, os paradigmas que a devem nortear.
Resta claro, diante dos dispositivos legais, ademais, que a medida de
segurança somente se impõe a agentes inimputáveis ou semi-inimputáveis,
incapazes de determinar o caráter ilícito de seus atos, e se não totalmente incapazes,
com parcial entendimento. Assim, inviável a aplicação de qualquer espécie de
medida de segurança a criminoso, tido por “normal” pela sociedade. O indivíduo,
em suas condições normais, é capaz de reconhecer e entender o caráter ilícito de
suas condutas.
O Código Penal, em seu artigo 26, trata de agentes inimputáveis, os quais
são isentos de pena ou, quando menos, podem ainda sofrer uma redução da
reprimenda. Para melhor entendimento do tema, necessário o esclarecimento
quanto à inimputabilidade do agente. No que se refere à doença mental, deve-se
atentar às manifestações de anomalias do pensamento, sentimento e conduta do
agente. Desta forma, a alteração qualitativa da mente, leva à perda da identidade
pessoal do indivíduo. Este já não possui discernimento de seus atos e desconhece
a própria doença.
Já nos casos de retardamento mental, há a lentidão no desenvolvimento
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intelectual, gerando uma alteração quantitativa da mente. Acompanhada de
transtornos de aprendizagem, adaptação social, amadurecimento. Também nesse
caso o agente é incapaz de compreender a ilicitude de sua conduta, afastando,
dessa forma, sua culpabilidade, que é o pressuposto para aplicação de pena.
Conforme observado, a culpabilidade, pressuposto para aplicação de pena,
é elemento de ligação do agente à punibilidade. No caso de um inimputável, não
há como lhe ser imputada a culpabilidade de uma infração penal, já que o próprio
agente é incapaz de reconhecer sua conduta como ilícita. O incapaz não realiza
atos com pleno discernimento, pelo contrário, trata-se de um indivíduo que, pela
ausência total de entendimento do caráter ilícito do fato, realiza uma conduta
criminosa e, por esta razão, é submetido à internação em hospital especializado ou
submetido a tratamento ambulatorial.
Desta forma, sendo o crime fato jurídico culpável e a sanidade mental
pressuposto da culpabilidade, não há como ser atribuída ao agente inimputável
a responsabilidade por infração penal, posto que impossível atribuir ao agente
a culpabilidade, uma vez que este não possui meios de discernir a ilicitude de
seus atos. No caso do parágrafo único, do artigo 26 do Código Penal, o agente
tem parcialmente diminuída sua capacidade de entendimento, pelo que não há a
exclusão de imputabilidade, sendo possível tão somente a redução da pena, posto
que tais agentes possuem parcial entendimento de suas condutas.
O artigo 98 do Código Penal trata da possibilidade aplicação da medida
de segurança em caso de crime praticado por agente semi-inimputável. Assim, ao
agente semi-inimputável que pratica infração penal, será aplicada sanção penal
com a redução de pena, conforme previsão do artigo 26, parágrafo único, do
mesmo Código.
Os direitos do internado são mencionados no artigo 99 do código penal. O
agente submetido à medida de segurança não poderá cumpri-la em estabelecimento
prisional comum, ainda que em compartimento separado. O condenado deverá ser
recolhido a estabelecimento especializado, afim de que seja efetivamente submetido
ao tratamento necessário, o qual não pode ser aplicado em um estabelecimento
prisional comum. Desta forma, procura-se evitar que o inimputável seja recolhido
ao presídio comum, para que possa receber o tratamento psiquiátrico necessário
em hospital ou local com dependência médica adequada.
A periculosidade do agente inimputável, contudo, tradicionalmente,
é realizada de forma subjetiva, por meras presunções. O infrator que não se
enquadra nas regras de comportamento social carece de controle, a sociedade o
julga como um indivíduo que não está apto ao convívio social, não se preocupando,
guiada pelo preconceito, ao contrário do que seria desejável, com o real grau de
periculosidade do agente. Em razão do comportamento classificado como anormal
pela sociedade, em razão de transtorno mental, a ideia de loucura não tem sido
dissociada da ideia de periculosidade. Com base nesse entendimento, o doente
mental infrator é tido como perigoso, não possuindo outra saída que não seja o seu
afastamento da sociedade. No entanto, nem sempre uma doença mental poderá
levar seu portador a práticas criminosas que ameacem a sociedade. A generalização
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quanto à periculosidade e doença mental, por consequência, traz uma redução de
direitos e garantias, sendo a medida de segurança utilizada apenas como meio de
punição (coerção) ou exclusão daqueles indivíduos discriminados pela sociedade,
em razão de uma suposta periculosidade, o que transforma a medida, por vezes,
em instrumento de preconceito, de coerção indevida.
Como já exposto, a medida de segurança justifica sua aplicação no
tratamento terapêutico direcionado ao agente inimputável, visando à possibilidade
de sua reabilitação no meio social. No entanto, as instituições de tratamento hoje
existentes não tem alcançado o real objetivo da medida de segurança que, através
do tratamento médico-ambulatorial, visa à cura do louco infrator.
Em regra, o doente mental encontra-se automaticamente submetido à
exclusão do convívio social pelo próprio preconceito sociedade, ficando o agente
inimputável submetido à internação em estabelecimento fechado, com duvidosas
condições hospitalares e terapêuticas, sendo apenas privado de sua liberdade.
A ausência de tratamento adequado para os indivíduos sujeitos à medida
de segurança, por oportuno, faz com que o propósito para o qual ela esta destinada
não seja aplicado, uma vez que sem o tratamento devido, a medida de segurança
implica apenas mais uma forma, quase sempre injusta, desproporcional e
despropositada de punir o agente infrator, com a exclusiva diferença de que estará
em estabelecimento diverso do sistema prisional comum, com o intuito, quase
nunca efetivo, de que seja curado e reabilitado para o convívio na sociedade.
A utilização indiscriminada do instituto da medida de segurança, vinculada
à periculosidade do agente, possibilita a prisão perpétua, circunstância vedada
expressamente pelo artigo 5º, inciso XLVII, alínea b, da Constituição Federal vigente.
Desta forma, a norma penal entra em confronto com exposto na Constituição
Federal, uma vez que é inadmissível e inaceitável a aplicação de prisão perpétua,
até mesmo pelo postulado central da dignidade da pessoa humana, o norte maior
dos postulados constitucionais. Assim, o doente mental infrator encontra-se em
desvantagem perante aos agentes considerados imputáveis, uma vez que seus
direitos e garantias, concedidos em âmbito constitucional, são desconsiderados.
A medida de segurança, também tida como espécie de sanção penal, não
deveria estar diferenciada das penas privativas de liberdade, mormente no que
tange ao prazo indeterminado de sua aplicação, o que, constantemente, na prática,
provoca a exclusão eterna do doente mental. Assim, atualmente a medida nada
mais consegue ser do que uma pena com nome diverso, sendo o infrator punido
simplesmente em razão daquilo que é ou do suposto perigo que representa à
sociedade.
A não fixação de prazo máximo quanto à internação dos agentes submetidos
à medida de segurança, como não poderia deixar de ser, pela incoerência legislativa,
é motivo de críticas, pela absoluta indeterminação de prazos de duração de
internação do agente. Com reflexão, conclui-se pela necessidade de composição
entre as duas soluções propostas, não aderindo de forma completa nenhuma das
duas, afim de que seja estipulado o prazo máximo de internação de forma razoável
e respeitando a ordem constitucional quanto à proibição de prisão perpétua.
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Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
Nesse contexto, entendemos valer a pena o estabelecimento de quadro
comparativo com a legislação portuguesa, estabelecendo a dicotomia com a nossa
legislação vigente. A medida de segurança é tratada no Código Penal português
em seu capítulo VII, artigo 91 e seguintes, que tratam do internamento dos
inimputáveis.
Além da previsão de internação, o artigo 91 também trata do período
mínimo em que deve o inimputável permanecer internado, de tal forma que, o
Código Penal português, diferentemente da legislação brasileira, estabelece um
parâmetro entre o tipo de crime e a pena a ele atribuída, dispondo sobre o período
mínimo de internação a que o condenado deve ser submetido.
A legislação portuguesa, de forma simétrica a nacional, estabelece que
a internação do inimputável também será encerrada quando cessado o estado
perigoso que deu origem à aplicação da internação. Contudo, Portugal dispõe que
no crime cuja pena aplicada seja superior a oito anos, cumulado com o perigo de
novos fatos de mesma espécie, a internação será prorrogada até o momento em
que for constatada a cessação do perigo que agente representa. Desta forma, tanto
no território brasileiro como em Portugal, o doente mental infrator submetido à
medida de segurança ficará excluído do convívio social enquanto perdurar a sua
periculosidade.
Diferentemente do Código Penal brasileiro, todavia, o Código português
traz a revisão do estado do inimputável, com a possibilidade de liberdade, quando
o agente possa comprovar que a finalidade da medida de segurança pode ser
alcançada em liberdade. No Brasil, o único motivo capaz de conceder ao infrator
a liberdade, seja ela definitiva ou condicionada, é a comprovação da cessação do
estado perigoso.
A possibilidade de concessão de liberdade, mediante requerimento para
revisão da situação do internado, é incompatível com a nossa legislação, que não
prevê meios de prova pra liberdade do indivíduo. No direito penal português, o
agente inimputável pode ser colocado em liberdade quando comprovada causa
justificada.
No sistema judicial brasileiro, assim que proferida a sentença absolutória,
dita imprópria, nos casos de aplicação do instituto da medida de segurança, o
indivíduo fica submetido à internação ou tratamento ambulatorial, que será
repassado ao juiz de execução penal para cumprimento do estipulado na sentença,
assim como ocorre na aplicação de pena privativa de liberdade, não trazendo,
nosso diploma legal, no entanto, o prazo máximo para que seja executada a
sentença, como ocorre no artigo 96 da legislação penal portuguesa. Além do prazo
para cumprimento da medida de segurança ora imposta, o artigo tipificada a
possibilidade de reforma da decisão que submete o inimputável à internação.
A forma de execução, tanto das penas como da medida de segurança,
no Estado português, esta tipificada no artigo 99 da legislação penal vigente.
A legislação portuguesa, contudo, é mais flexível quanto às razões que podem
colocar o agente inimputável em liberdade. O artigo 99 preconiza que a medida de
segurança, embora aplicada somente ao doente mental infrator, caminha de forma
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sincronizada com a pena privativa de liberdade imposta ao agente que praticou
ato ilícito, mesmo que a medida de segurança tenha fins diversos da aplicação de
pena privativa de liberdade.
Diante da previsão do artigo 99 do Código Penal português, a aplicação
da medida de segurança pode ser cumulativa com a pena privativa de liberdade,
sendo que a aplicação da instituição se faz antes da aplicação da pena propriamente
dita. A pena privativa de liberdade, em tal sistema, pode ser imposta depois de
decorrido certo período de internação do indivíduo.
Desta forma, ante a possibilidade de cumulação da medida de segurança
com a pena privativa de liberdade ao agente inimputável, observamos a
aplicação do sistema do duplo binário, que era aplicado no Brasil até 1984, sendo
hoje substituído pelo sistema vicariante, que é aquele em que o sujeito recebe
alternativamente pena privativa de liberdade ou a medida de segurança, sendo a
sanção imposta de aplicação alternativa.
Para o Estado português, ademais, há a possibilidade da substituição da
medida de segurança pela prestação de serviços à comunidade, sendo que tal
substituição somente seria possível no Brasil nos casos puníveis como penas
privativas de liberdade, posto que, em nosso sistema, além da cessação da
periculosidade, não há qualquer meio que possa colocar o indivíduo em liberdade.
Considerações Finais
O presente trabalho, em linhas gerais e sem maiores pretensões acadêmicas,
teve como escopo investigar a medida de segurança, uma das duas espécies de
sanção penal atualmente aplicadas no Brasil. O objetivo da medida de segurança
era, a princípio, o de constituir um instituto que fosse capaz de preservar a segurança
social, afastando aqueles que apresentavam uma ameaça potencial à sociedade,
por serem portadores de doença mental, possibilitando, com o afastamento do
agente inimputável da sociedade, a internação para o devido tratamento médicoambulatorial, para fosse alcançada a cura, não vindo o então reabilitado a reincidir
em novo ato ilícito.
Observa-se, atualmente, entretanto, o desaparecimento do propósito ou da
eficácia das medidas de segurança, uma vez que, conforme demonstrado neste
estudo, o indivíduo submetido à aplicação da medida de segurança apenas se
mantém privado de liberdade, sem receber qualquer meio efetivo de tratamento,
sequer ficando internado em estabelecimento adequado à anomalia que apresenta.
O sistema, embora tenha previsão formalmente bem elaborada, não
se apresenta mais como adequado. Para aplicação da medida de segurança, a
princípio, imperioso ocorrer à existência de dois pressupostos: o fato ilícito e a
periculosidade do agente. Hodiernamente, contudo, para o sistema judiciário
brasileiro, a insanidade mental tem caminhado de mãos dadas com a periculosidade,
fundindo-se muitas vezes perante o Magistrado, razão pela qual os doentes mentais
são submetidos à disfarçada sanção penal privativa de liberdade, na espécie de
medida de segurança. A insanidade mental, conforme é de conhecimento notório,
nem sempre é sinônimo de periculosidade, podendo muitas vezes ser meramente
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acidental, devido a fatores circunstanciais. Desta forma, sem a realização de real
análise do estado mental do agente, um inimputável não portador de periculosidade,
pode ser submetido à medida de segurança, com internação desnecessária, o que
só acarreta a regressão da saúde mental do inimputável.
O excesso de preocupação com a eficácia de defesa social fez com que
o legislador permanecesse obscuro, vez que submete a aplicação do instituto a
pressupostos irreais. Os sujeitos condenados à medida de segurança passam a
viver privados de sua liberdade, sem um limite de prazo, delimitados a uma análise
de cessação de uma periculosidade, que sequer pode concretamente existir, não
recebendo, na maioria ou quase totalidade das hipóteses, o tratamento adequado,
para que pudesse, oportunamente, estar apto a reintegração social, ficando a mercê
da aplicação de uma verdadeira, embora disfarçada, prisão perpétua, correndo o
risco de definhar em um verdadeiro estabelecimento prisional.
Falta aos operadores do direito, lastimavelmente, um verdadeiro interesse
científico para enfrentar a real e efetiva aplicação da medida de segurança, com o
fito de que alcance seu propósito efetivo, ou seja, o devido tratamento e a eventual
cura, sendo necessária, para tanto, conforme preconizam os doutrinadores, urgente
a alteração legislativa. É dever do jurista, aliás, impor freios à atividade legislativa
sempre que ela se mostre desviante da realidade social e da vontade da maioria
da população.
Em relevante assertiva sobre o tema, com efeito, Perlingieri (2002, p. 03)
enfatiza que até no período nazifascista o legislador encontrou limites à sua
produção legislativa por parte do Poder Judiciário, ressaltando que:
Na época do nazismo, uma parte da jurisprudência italiana e alemã,
algumas vezes, soube colocar um freio, ainda que limitado, à atividade
do Poder Legislativo, aplicando restritivamente algumas normas –
aquelas, por exemplo, que se inspiravam na distinção das pessoas com
base na raça – ou interpretando extensivamente alguns princípios que
ainda existiam, até então, de maneira apenas formal no ordenamento.
O ordenamento jurídico só pode ter eficácia e, principalmente, legitimidade,
quando estiver em consonância com os anseios da população, devendo ser rejeitada
a norma que não atender os postulados básicos de determinada coletividade.
O intérprete, mais precisamente aquele investido pelo Estado do poder/
dever de ditar o Direito ao caso concreto, ou seja, o Juiz, deve rejeitar o diploma
emanado do legislativo, não estando a ele sujeito, quando houver desatendimento
por parte do Poder Legislativo de um mínimo de respeito ao preceito maior da
dignidade da pessoa humana. Não se pode aceitar, sob pena de perecimento dos
paradigmas que norteiam o ordenamento constitucional, a imposição de oblíqua
prisão perpétua, disfarçada de medida de segurança, que sequer dá direito ao
cidadão, ferindo a sua dignidade humana, ao sistema de progressão de regime ou,
pior, ao efetivo tratamento para minoração de sua patologia mental, simplesmente
privando-o de liberdade, conceito, dentre outros, essencial à obtenção de dignidade.
Exige-se dos julgadores, diante das falhas do sistema atual e da omissão do
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legislador, a busca de interpretação que se coadune com os fundamentos e princípios
da Lei Maior. A hermenêutica, desta forma, ao contrário do que tradicionalmente
vem acontecendo, não deve ser atividade meramente mecânica, mas profundamente
intelectual, lógica, coerente e com escopo definido, propiciando ao homem o que
lhe é mais essencial, a dignidade, de modo a amoldar os paradigmas da norma ao
Estado Democrático de Direito.
Cabe ao intérprete, pois, corrigir a rota dos desmandos ou ineficácia do
legislativo, construindo as formas interpretativas, de forma a rechaçar injustiças,
como é o caso da disfarçada prisão perpétua através da aplicação de medidas de
segurança, de acordo com os mandamentos fundantes da Carta Magna.
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FASHION LAW - O DIREITO DE PROPRIEDADE
INTELECTUAL E A INDÚSTRIA DA MODA
Rafaela Ferreira Cabrera 1
Caíque Tomaz Leite da Silva 2
Resumo
Atualmente um novo ramo do direito, denominado de “fashion law”, visa suprir a
carência de leis específicas para a regulamentação normativa da indústria da moda, que
hoje representa, além de um setor da economia, um ramo do direito. O “fashion law”
atua preventivamente para que os negócios sejam feitos com segurança, e também oferece
subsídios para a soluções dos conflitos inerentes a essa atividade multidisciplinar que
cada vez mais carece da tutela jurisdicional para a proteção de diversos interesses. Um
dos temas centrais dessa discussão é o direito de propriedade intelectual, que tem como
finalidade proteger as criações do intelecto humano, impedindo a exploração indevida
de um produto e de uma ideia. A pesquisa desenvolvida tem como objeto de estudo a
importância do direito da propriedade intelectual e sua aplicabilidade no mundo da moda,
tomando como referência a análise de um caso.
PALAVRAS-CHAVE: Fashion Law; Moda; Direito; Propriedade Intelectual.
Introdução
O crescimento dos litígios, a agressiva competição do mercado e a falta de
leis específicas fomentaram a criação de um novo ramo do direito, intitulado de
“fashion law”. Há importantes estudos sobre o tema na Europa e Estados Unidos.
No Brasil, a discussão ainda está em fase embrionária. Contudo, com a velocidade
da informação e o crescimento dos litígios, as diretrizes normativas que regem
esse nascente ramo do direito tendem a se projetar sobre o estudo do direito
privado pátrio. Um dos principais temas discutidos no “fashion law” é o direito
de propriedade intelectual. Segundo Marcelo Augusto Scudeler (2008, p. 16), a
propriedade intelectual pode ser entendida como:
(...) o conjunto de bens oriundos do intelecto humano, quais sejam, a
criação artística, científica, e literária, definida como direito do autor,
e a criação industrial, para a aplicação na indústria e no comércio,
conceituada como propriedade industrial. Destarte, a propriedade
intelectual é o gênero do qual a propriedade industrial é sua espécie,
assim como o direito autoral.
Existem dois direitos que decorrem da propriedade intelectual: os direitos
1
Pesquisadora do grupo de pesquisa “Estado, Direito e Sociedade”. Bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]
Doutorando em Direito Público (fase de dissertação) e Pós-Graduado em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (POR). Especialista
em Direito Civil e Direito Processual Civil (summa cun laude). Banca Examinadora da American University (USA). Bolsista do Curso de Direito
Internacional Humanitário (Ius Gentiun Coninbrigae, Instituto de Direitos Humanos da Universidade de Coimbra). Professor Convidado do
IGC-Universidade de Coimbra. Membro do grupo de trabalho encarregado da versão luso-brasileira da obra “Understanding Human Rights”, da
Universidade de Coimbra. Professor das Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo (BRA). Professor da Escola Superior da Advocacia
(ESA). Coordenador das Jornadas Luso-Brasileiras de Direitos Humanos e Direito Internacional Público (Universidade de Coimbra). Coordenador das Jornadas Luso-Brasileiras sobre Garantismo Constitucional-Penal (Instituto Superior Byssaia Barreto). Advogado e Parecerista. Email:
[email protected]
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de caráter patrimonial, que consistem na exploração das vantagens econômicas
oferecidas pela criação, e o direito não patrimonial de ser reconhecido como autor
da obra. A proteção dos direitos intelectuais é o que agrega valor econômico ao
produto criado, incentivando a continuidade da pesquisa para novas criações. No
sentir de Bittar Filho (2002, p. 109):
(...) um dos fenômenos mais significativos do mundo empresarial de
nossos dias é o da utilização maciça de criações intelectuais em produtos
industriais, como resultado de uma política de atração do consumidor
pelo belo que, engastada e lapidada no desabrochar da atividade
artesanal, vem assumindo, nos tempos modernos, formas e moldes
atraentes e convidativos, de sorte a sensibilizar o público ao primeiro
contato, arrebatando-lhe a preferência.
Nesse contexto, a lei protege as criações e assegura o monopólio, temporário,
para a sua exploração, desde que comprovado a originalidade. A produção da
indústria da moda deve ser tutelada de acordo com as leis de proteção intelectual,
pois há atividade inventiva para a produção de novos acessórios e peças de
confecção, que, destarte, também são consideradas como uma modalidade de
expressão artística. Contudo, quanto à resolução de conflitos de interesses, os
litígios que envolvem a produção artística no mercado da moda são objeto de
regulamentação distinta em comparação com as outras formas de expressão
artística da personalidade criativa.
Nos conflitos entre empresas de moda deve-se levar em consideração as
peculiaridades desse setor, haja vista que a apreciação do valor econômico do
produto e de sua originalidade em relação a um concorrente pode ser realizado
tomando como parâmetro um caractere que, para a tutela de outro produto
intelectual, seria irrelevante. Assim, por exemplo, enquanto a cor de um produto
é insignificante num litígio que envolva patente, pode ser um fator de absoluta
relevância na apreciação de um conflito que tenha por objeto a “paternidade” ou
a originalidade de determinado produto ou acessório no mundo da moda. Vejase, portanto, que há vicissitudes que fundamentam e justificam a apreciação, num
âmbito normativo separado, dos interesses no mundo da moda. Enquanto não
se consolida, contudo, tal autonomia normativa, necessário se faz compreender
quais são as regras de direito intelectual que devem ser utilizadas e as adaptações
necessárias para a captação das peculiaridades nesta seara.
Relevância da indústria da moda para a economia
Vive-se, na segunda década do século XXI, uma crescente expansão da
indústria da moda alimentada pela sobrevalorização da aparência como fator
distintivo da personalidade humana. O que se veste é, também, um caractere
que determina a posição do indivíduo na estratificada organização social. Dados
demonstram a importância desse segmento para a economia. Nos Estados Unidos,
o mercado da moda movimenta mais de 200 bilhões de dólares por ano. Tal valor
supera a arrecadação obtida pela indústria cinematográfica e literária (ERICA S.
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SCHWARTZ, 2012, p. 279). De acordo com Jimenez, autor do primeiro livro sobre
o “fashion law”: “The fashion and apparel sector has become one of the largest and most
dynamic in the global economy, accounting for nearly four percent of the total global GDP,
a sum now in excess of $1 trillion per year”. (GUILLERMO JIMENEZ, 2010, p. 6)
No Brasil esse fenômeno não é diferente. Em nenhum país o mercado de
moda cresce tanto quanto no brasileiro. Segundo dados divulgados pela revista
EXAME, de Janeiro de 2014:
Em nenhum país, esse setor cresce tanto quanto no Brasil. Nos últimos
dez anos, o faturamento quadriplicou, e chegou a 140 bilhões de reais
em 2013, segundo a consultoria Euromonitor. Nesse período, o mercado
brasileiro saiu da décima quarta para oitava posição entre os maiores
do mundo- está prestes a passar o italiano, terra de grifes consagradas,
como Prada, Gucci e Armani. (EXAME, 2014, p. 36)
Fonte: Exame, 2014, p. 39.
Há uma explicação para o fenômeno. O crescimento econômico
experimentado nos últimos anos possibilitou a ascensão social impulsionada pelo
aumento do poder aquisitivo das classes mais baixas promovido por inúmeros
programas de assistência social. Segundo dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) (EXAME), a cada degrau que sobem na escala de
estratificação social, as pessoas dobram seus gastos mensais com moda. Dessa
forma, com o crescimento do país, a indústria da moda foi a que mais se beneficiou
em termos percentuais, já que a cada degrau galgado na pirâmide das classes há
um incremento de 100% dos gastos familiares com moda. Observa-se, ainda, que
a dotação do orçamento familiar em favor desse tipo de despesa satisfaz uma
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necessidade psicológica de incorporar o status da nova classe social, satisfeita, no
mais das vezes, por aquilo que se tem no guarda-roupa.
De acordo com Ana Luiza Leal, em reportagem publicada pela revista
EXAME (2014, p. 36):
Quem mais ajudou nessa expansão recente foram às mulheres. Mais
de 11 milhões delas entraram para o mercado de trabalho na última
década, o que impulsiona o setor por dois motivos. Primeiro, é
mais óbvio, porque têm mais dinheiro no bolso e, como mostram as
estatísticas do IBGE, mais disposição para gastar. Segundo, porque elas
passam a ter a obrigação de andar mais bem vestidas no dia-a-dia. Esse
tipo de mudança teve impacto direto nos nichos como o de produtos
para cabelo. E está se repetindo no vestuário. Segundo pesquisas da
consultoria Data Popular, as mulheres das classes D e E têm em média
nove pares de sapatos em casa. Nas classes A e B a média sobe para 20.
Com o crescimento do poder aquisitivo, que, conforme salientado, se projeta
sobre a indústria da moda, as empresas se ampliaram para absorver tal impacto
tanto em termos quantitativos como em termos qualitativos. A venda de roupas
se concentra mais em pequenos ateliês ou boutiques de luxo, com representação
local, sendo ainda crescente o número de lojas com variedades de produtos, assim
como os grandes centros de compras. Segundo dados de consultoria do setor têxtil,
citados por Ana Luiza Leal (EXAME, 2014, p. 38):
(...) a fatia do mercado de boutiques de bairro caiu de 44% para 37% nos
últimos seis anos. Enquanto isso, foram erguidos 160 shoppings no país
na última década. Diversas empresas souberam aproveitar essa onda.
O número de redes de franquias de moda avançou 259% no período.
Elas cresceram não só em número, mas em tamanho. As redes de moda
feminina Farm e Animale, que se uniram em 2010, cresceram 35% ao
ano e faturaram 850 milhões de reais. A Malharia catarinense Malwee,
que vendia só para lojas de bairro, abriu mais de 100 pontos de vendas
desde 2011. O grupo M5, dono da M. Officer, já tem 180 lojas. A rede de
moda jovem TNG tem 180 lojas, todas próprias. Especialistas no setor
calculam que existem perto de 50 empresas com faturamento de pelo
menos 500 milhões de reais e que poderiam valer até um bilhão de reais
caso fossem vendidas.
Se, em 1991, com a abertura das importações durante o governo Collor,
Eliana Tranchesi tinha dificuldades em comercializar produtos de luxo em face da
resistência das grandes marcas, aliada ao preconceito em relação ao consumidor
brasileiro, hoje, as principais grifes do mundo globalizado disputam um espaço
nos grandes centros brasileiros, que se tornou a primeira opção para as empresas
desse setor, haja vista que, dos países do BRIC, o Brasil é o único com um mercado
de moda consolidado. Adicionalmente, importantes marcas estão sendo vendidas
inclusive em cidades como Curitiba, Recife e Brasília, dando origem ao fenômeno
de descentralização do eixo Rio-São Paulo, fato este que aumenta a concorrência
para as empresas brasileiras.
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O fenômeno inverso também ocorre. As empresas brasileiras estão
conquistando mercados internacionais, conforme observa Ana Luiza Leal (EXAME,
2014, p. 45):
(...) a mais antiga é a joalheria H.Stern, que começou a abrir lojas fora
do Brasil no fim da década de 40 e hoje tem 30% de sua receita vinda do
exterior. A outra é a Alpargatas, que acelerou o crescimento nas vendas
das sandálias Havaianas com uma agressiva estratégia de abertura de
lojas. De 2010 à 2013, foram 92 lojas fora do Brasil, em mais de 60 países.
Os sinais mais recentes, porém, mostram que as demais empresas
brasileiras renovam suas ambições globais. O crescimento do mercado
nacional nos últimos anos e a associação com fundos de investimentos
ajudam a explicar essa nova fase. A grife carioca Osklen, comprada em
2012 pela Alpargatas tem oito lojas em cidades como Tóquio e Nova
York (no Brasil, são 69), mas foi apontada por seus novos donos como
peça central em sua expansão global no mercado de luxo. A fabricante
de sapatos femininos Carmen Steffans, voltada para o público AB, já
tem 45 lojas fora do Brasil. A Chilli Beans abriu 25 pontos de venda no
exterior nos últimos dois anos.
O mercado da moda é hoje um dos maiores e mais dinâmicos da economia
global, tendo uma participação de 4% do PIB mundial, superando a marca de
um trilhão de dólares ao ano (JIMENEZ, 2010, p. 2). Em “The Law, Culture and
Economics of Fashion”, os professores da Escola de Direito de Harvard, C. Scott
Hemphill e Jeannie Suk (2012 p. 2), argumentam que não existe uma área da
vida social que a moda não faça parte: “The desire to be “in fashion”- most visibly
manifested in the practice of dress- captures a significant aspect of social life, characterized
by both the pull of continuity with others and the push of innovation toward the new”.
(Hemphill&Suk, supra note 2, at 1149).
Diante do exposto, fica clara a importância da moda para a economia global,
sendo que tal setor contribui, em termos expressivos, para o desenvolvimento
econômico. Além das elevadas cifras que o setor movimenta, a universalidade
do consumo leva a uma valorização de sua importância para a economia global
em face do aparelhamento do mercado para atender a necessidade universal
de consumo. Relevante é, também, observar que a universalidade do consumo
é acompanhada por uma estratificação já em relação ao tipo de produto que se
consome, o que estimula a atividade criativa animada pela necessidade de que
a distinção do produto seja um signo da distinção da estratificação social que o
mercado da moda vende. Essa estratificação depende da distinção do produto,
que, por sua vez, reclama uma proteção jurídica das criações como condição da
manutenção da individualidade do produto.
A Relação direito e moda
A expansão do mercado anteriormente sublinhada vem acompanhada
de agressiva e, muitas vezes desleal, competição entre os agentes econômicos
envolvidos nas relações jurídicas que envolvem o mercado da moda. É crescente
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o número de empresas que disputam o mesmo setor do mercado consumeirista
e o número de trabalhadores intelectuais que disputam o financiamento de
seus produtos. A união desses dois fatores - crescimento do setor e competição
agressiva – gera consequências jurídicas. Atualmente um novo ramo do direito
é discutido entre os juristas de todo o mundo. Intitulado de “fashion law”, visa
suprir a carência de estudos e de leis específicas para o ramo da moda com o
escopo de garantir a segurança dos agentes envolvidos nos processos criativos e de
produção, a lealdade da competição entre os agentes econômicos que participam
do processo, e os critérios para a resolução de conflitos de interesse que envolvam
suas expectativas e interesses.
Tal ramo jurídico já possui grande relevância na Europa e Estados Unidos,
onde é possível encontrar cursos sobre essa nova área. A Universidade de Fordham
Law, em Nova York, é a pioneira no desenvolvimento de um curso sobre o tema. O
Fordham Law Fashion Institute, (http://law.fordhamedu/fashion-law-institute/
fashionlaw.htm): “will provide legal services for design students and designers, train the
fashion lawyers and designers of the future, and offer information and assistance on issues
facing the fashion industry”.
O crescimento do setor fez com que aumentasse a necessidade de advogados
especializados detentores de entendimento a respeito de como funciona a indústria
da moda e suas peculiaridades, para defesa dos interesses dos agentes envolvidos
no processo de produção e comercialização de bens de consumo produzidos pela
indústria da moda. De acordo com Guillermo C. Jimenez (2010, p. 8): “lawyers with
an understanding of the fashion world are needed to look at specific ethical concerns and
develop codes of conduct related to the treatment of factory workers and other processes
involved in the creation of products”. Guillermo (2010, p. 12) acredita que: “the best
legal advice comes from attorneys with a solid grasp of their clients businesses”. No
mesmo sentido, Cory Greenberg (2011, p. 73), defende que:
Lawyer is one who not only understands the law, but who takes
the time to understand the world in which her client lives. At times,
attorneys, especially attorneys early on in their legal careers, may try
a one-size fits all approach when servicing clients—and it is true, there
are legal tenets that must be addressed regardless of sector. Take, for
instance, a contract between two parties where one party is providing
services for the other; perhaps a motion picture production company is
entering into agreements with various artists to create sets, costumes, a
musical score, and other creative components. To be sure, each contract
between the production company and any individual artist will have a
standard laundry list of terms, but to truly help and protect their clients,
the lawyers negotiating the contracts would be well served to have an
understanding of the industry to make sure that they are asking their
clients the right questions, and that the clients are having a thorough
dialogue with each other. For example, in the case of a costume
designer, in addition to “standard terms” it would be important for the
contract to specify whether the materials to be used in constructing the
designs must be machine washable—that fact alone may change how
the designer creates the costumes.
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31
O advogado especializado em “fashion law” deve estar preparado para
lidar com muitas questões de cunho jurídico que apresentam uma perspectiva
especialíssima quando envolvem os agentes participantes das relações jurídicas no
mundo da moda. Assim, por exemplo, a propriedade intelectual, licenciamentos,
contratos, propaganda, importações e exportações, atendendo não só empresas,
mas também designers, agências de modelos, fotógrafos, editores de moda,
distribuidores, dentre outros temas e agentes.
Moda e propriedade Intelectual
Segundo Gabrielle Coco Chanel: “in order to be irreplaceable one must always
be different”. Essa citação da icônica estilista que revolucionou a moda na década
de 20 nunca foi tão verdadeira. A moda depende da criatividade dos estilistas
que concentram seu conhecimento no desenvolvimento de coleções exclusivas. A
esses estilistas a proteção das suas criações será um dos fatores essenciais para o
sucesso de suas marcas, pois a exclusividade do design sobrevaloriza o produto
comercializado. Além do valor da matéria-prima utilizada para sua confecção, o
consumidor indiretamente remunera a criatividade do designer que oferece, em
contrapartida, a quase personalíssima característica do produto comercializado.
É o que agrega valor a um produto e move o lado financeiro do mundo da moda.
A ausência de um regime jurídico específico, contudo, enseja diversos problemas
relacionados à propriedade intelectual, marcas, patentes e desenho industrial.
A moda é uma indústria dinâmica. Há tendências que são passageiras,
mas existem produtos que se tornaram atemporais graças à proteção intelectual
que recebem. São exemplos: o tailleur Chanel criado em 1930, a bolsa Kelly da
grife Hermès, a camisa polo Ralph Lauren, o óculos de sol Ray Ban, dentre outros.
Essas empresas se esforçaram e investiram em proteção para evitar as imitações e
desgastar seus negócios já que os preços oferecidos pelas cópias são menores do
que os produtos originais que se limitam a um grupo restrito de compradores.
(Erica S. Schwartz, 2011, p. 280)
The fashion industry is driven by creativity and by intellectual capital
invested in it. Protecting that intellectual capital in the form of propriety
intellectual assets serves boost income trough sale, licensing, and
commercialization of differentiated new products, to improve market
share, raise profit margins, and to reduce the risk of trampling over the
propriety intellectual rights of others. Good management of propriety
assets in a business or marketing plan helps to enhance the value of
an enterprise in the eyes of investors and financing institutions (World
IntellectualPropertyOrganization, supra note 1, at 19). (Citado por Cory
Greenberg).
As empresas, conscientes da necessidade de proteção, estão investindo
cada vez mais capital para garantia de exclusividade de seus produtos e proteção
de seus agentes criativos. Os dois maiores problemas enfrentados na concretização
dessa tarefa compreendem a proteção contra a cópia ou réplica dos produtos,
32
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vendidos como se fossem originais; e a proteção contra a produção de novos e,
em tese, distintos produtos, baseados em produtos já existentes. O primeiro dos
problemas enseja responsabilidade jurídica civil e penal, pois a ilicitude da conduta
é facilmente perceptível. O segundo, contudo, é mais adequado à órbita do direito
econômico-empresarial, que não dispõe, contudo, de regulamentação específica
quanto à proteção intelectual na indústria da moda, dando ensejo a um número
elevado de litígios entre as marcas, para o que se faz necessário estabelecer novas
formas de soluções mais afinadas à proteção da propriedade intelectual no mundo
da moda.
É comum, contudo, o argumento de que a ausência de proteção à
propriedade intelectual, no mundo da moda, é fundamental para incentivar o
processo criativo, que, ao invés de destruir os produtos originais, incentivará a
criação de novos produtos. Esse argumento, contudo, não é digno de ser acolhido
por inúmeras razões. Além de não reconhecer e remunerar adequadamente a
criatividade do inventor e o investimento da indústria, não há nenhuma razão
substancial que justifique a distinção de tratamento entre a forma de expressão
da criatividade dirigida à produção de moda e a criatividade direcionada a
outros setores da economia. Além disso, deve-se ponderar que a preocupação (e
apreciação pecuniária) da exclusividade na indústria da moda é muito maior que
em inúmeros outros tipos de criações. O agente criativo, ainda, seria penalizado
por direcionar sua criatividade para esse tipo de invento.
Apesar da sublinhada importância dos direitos de propriedade intelectual
para a moda, a regulamentação jurídica, mesmo em países que têm indústria da
moda consolidada, como o Brasil, é deficiente. Não são eficazes para a solução de
conflitos inerentes a essa atividade econômica. Existe proteção para a indústria
cinematográfica, musical e artística, mas não existe proteção específica para moda,
consoante explica Kelly Grochala (2014, p. 2):
Is illegal to download a song without paying the Singer, or buy a piece
of artwork without paying the artist, why can’t fashion designers
protect the fruits of their labor from cheap imitations when creators
of artistic expression in other mediums can?! The problem is that
Intellectual Property Law does not extend to articles of clothing. There
is an apparent reluctance by legislators to acknowledge the fashion
industry as a conduit of artistic expression on par with other industries
such as publishing music, movies and art. This oversight leaves fashion
designers with very few options when someone infringes upon their
work. The laws reflect a now archaic view of the fashion world, which
is that imitation and copying one another drives innovation, ultimately
benefitting consumers and the industry as a whole. The reality however,
is that now consumers gain access to the knock off goods before the
original is even on the market. A designer will create a collection to
debut on the runway in September, and because of the time it takes to
manufacture these pieces for sale in their stores, generally six months,
there is plenty of time for copies to be made 6. All it takes is one person
with a camera phone to be backstage at a fashion show, and the prototype
for a design can be in a factory overseas within moments. Technological
advances to the means of textile and garment production, as well as
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
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increases in the number of distribution channels and the availability
of cheap labor in emerging economies have enabled those who would
copy these designs to do so quickly and inexpensively.
Diante do exposto, conclui-se que o direito de propriedade intelectual
é de suma importância para a indústria da moda e deve gozar da mesma
proteção conferida aos autores de produção literária e cinematográfica. O atual
regime jurídico é deficiente e não supre as necessidades do mercado, haja vista
a quantidade de litígios que surgem corriqueiramente. É necessário a criação de
normas de propriedade intelectual levando em consideração as peculiaridades do
setor a fim de que se tornem eficientes na solução dos litígios.
Análise de caso
Para melhor compreensão do tema em estudo, faz-se necessário a análise
de casos. Dentre os diversos litígios envolvendo propriedade intelectual, dos quais
figuram como partes grandes empresas da moda, destaca-se a recente disputa
judicial entre os designers Christian Louboutin e Yves Sant Laurent.
Em 1992, o designer Christian Louboutin deu início a comercialização de
sapatos que possuíam como característica distintiva a cor vermelha de suas solas.
Àquela altura, a sola de um sapato não era considerada pelos estilistas como um
elemento de valorização ou de distinção entre os produtos, e por isso seus caracteres
não despertavam nem absorviam a atividade criativa dos designers. Durante
anos Louboutin investiu muito esforço e dinheiro na promoção da sua marca,
que apresentava como elemento distintivo o solado vermelho. De 1992 a 2000, as
vendas cresceram constantemente, com um explosivo crescimento em 2007. A sola
vermelha se tornou um elemento tão distintivo que no mundo da moda os sapatos
de Louboutin eram conhecidos como “o sapato do solado vermelho”, pois “no
other designer has used red on the out soles of shoes in the same way consistently”
(Plantiff’s Amended Memo, supra note 98, at 2).
De acordo com Rhojonda Cornett:
On January 1, 2008, the USPTO issued a trademark registration for
Louboutin’s lacquered red soles on “WOMEN’S HIGH FASHION
DESIGNER FOOTWER” (the Red Sole Mark). Louboutin approached
YSL in 2011 regarding four shoes from YSL’s 2011 Cruise collection allred shoes bearing red soles, which Louboutin thought used a red that
was too similar to its Red Sole Mark. After YSL refused to remove the
challenged shoes from market, Louboutin filed suit in the United States
District Court for the Southem District of New York, alleging, among
other things, trademark infringement in violation of the Lanham Act.
Louboutin sought a preliminary injunction to prevent YSL from selling
its red-soled shoes while the action was pending, and that preliminary
injuction is the subject of the district court and circuit court opinions
described below. (CORNETT, 2014 p. 55)
O tribunal estabeleceu que, para que Louboutin obtivesse a tutela
pretendida, deveria demonstrar as razões pelas quais a “sola vermelha” deveria
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ser protegida e que o uso da sola vermelha por YSL seria suficiente para causar
confusão aos consumidores, causando danos à Louboutin:
The Court recognized color had been protected in fashion trademarks
in the past but noted that this protection had only been extended to
color in specific designs or combinations, citing decisions concerning
Louis Vuitton’s rainbow monogram and Burberry’s plaid check marks.
(Louboutin I, 778F. Supp. 2d 445, 448-49 S.D.N.Y. 2011).
O tribunal afirmou que Louboutin não poderia ter o monopólio de uma cor,
o que restringiria a atividade criativa dos demais designers de sapatos. O tribunal
comparou o carácter distintivo da cor na moda com as artes plásticas, e ponderou
que não se pode dizer que Monet plagiou Picasso em razão da utilização da mesma
tonalidade de cor. Concluiu que a cor não pode assumir o aspecto de marca na
indústria da moda, independentemente de ter adquirido uma função secundária
em relação ao produto, porque ela sempre será necessariamente funcional:
The court also found that the Red Sole Mark was functional because
it affected the price of the shoes. It contended that applying the red
lacquer was more costly and made the shoes more exclusive, increasing
the cost of the shoes. These finding regarding the functionality of the
Red Sole Mark were the crux of the district court’s analysis. The district
court denied Louboutin’s motion for preliminary injunction finding that
there was no likelihood that it would succeed on its claims of trademark
infringement under the Lanham Act because the Mark violated the
aesthetic functionality doctrine. Ultimately, the court adopted an
unprecedented blanket rule, holding that single colors can never act as
trademark in the fashion industry, regardless of whether the color had
acquired secondary meaning because color will always necessarily be
functional in that industry. In so holding, the court attempted to revive
the now-defunct color depletion and shade confusion theories and
argued that recognition of the Red Sole Mark would lead to “fashion
wars” over color.(Louboutin I, 778F.Supp. 2d, 2011)
Louboutin recorreu da decisão alegando que houve um equívoco da corte ao
determinar que uma única cor não pudesse agir como uma marca e que nenhuma
lei deu suporte a decisão.
The Second Circuit correctly rejected the district court’s sweeping
holding that trademarks consisting of color alone are never valid in
the fashion industry because this holding is at odds with the Supreme
Court’s holding in Qualitex. The Court spent a significant amount of
time addressing the aesthetic functionality doctrine, devoting more
than one fourth (about six pages of twenty-three) of the opinion to
discussion of the doctrine, because it found that the district court’s
erroneous holding was based upon an incorrect understanding of that
doctrine. Despite this treatment of the doctrine, however, the Second
Circuit declined to apply the doctrine to the facts of the case. Ultimately,
although the court reversed the district court as to its holding regarding
color trademarks in the fashion industry, it partially upheld the district
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35
court’s denial of Louboutin’s preliminary injunction on other grounds.
(Louboutin I, 778F.Supp. 2d 2011).
Dessa forma, o tribunal concedeu a Louboutin o direito de marca da cor
vermelha utilizada nas solas dos sapatos. Yves Sant Laurent poderia, contudo,
utilizar a solado vermelho no caso de sapatos monocromáticos, ou seja, quando
todo o sapato fosse vermelho. Diante do caso exposto é de se concluir o equívoco
cometido pelo tribunal em primeira instância, ao analisar o “fato em si” não se
atendo às peculiaridades da indústria da moda.
Assim como afirma, Rhojonda Cornett:
Rather than showing proper deference to this statutory presumption of
validity and considering evidence offered by YSL as to the invalidity of
Louboutin’s Mark, the district court determined that the Red Sole Mark
was invalid based off its own analogy to a hypothetical dispute between
Picasso and Monet over the color indigo. The analogy is inapt because
neither artist ever claimed the color indigo as a trademark signifying the
source of his painting as Louboutin does here with its Red Sole Mark.
Further, neither the Lanham Act nor controlling precedent supported
the district court’s determination. The district court also relied on
antiquated theories in determining the validity of the Mark, suggesting
that recognition of its validity would lead to color depletion and shade
confusion. Because the Supreme Court laid these theories to rest in
its Qualitex decision in 1995, the district court’s reliance upon them
was wholly misplaced. Finally, the court misapplied the functionality
doctrine and mischaracterized the Red Sole Mark, in deciding the
validity of the Mark, as discussed more fully below. The purpose of
trademark law is to protect the public from deceit and confusion and to
protect producers right to enjoy the business they earn through building
their reputations, and Louboutin’s Mark deserved to be protected.
Desse modo, o tribunal superior corrigiu a decisão anterior de modo parcial.
Reconhecendo o solado vermelho como sendo marca distintiva de Louboutin,
porém tal cor poderia ser utilizada por outros estilistas desde que em produtos
monocromaticos.
Considerações Finais
Os dados são concisos ao expressar o crescimento da indústria da
moda, correspondendo a um relevante percentual no PIB dos principais países
desenvolvidos. Sendo um fenômeno global, ocorre também no Brasil, com grande
destaque. Em nenhum outro país a indústria da moda cresceu tanto quanto no
Brasil. Isso se explica por um conjunto de fatores, entre eles pode-se destacar:
participação das mulheres no mercado de trabalho, aumento da renda familiar e
ascensão de um novo status social. Além disso, as empresas brasileiras estão cada
vez mais conquistando consumidores no exterior.
A expansão do setor originou um mercado extremamente competitivo,
dando origem a um novo ramo do direito, conhecido como “Fashion Law”. Tal
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estudo visa o entendimento e criação de leis específicas para o ramo da moda.
Os advogados especializados nesse setor deverão enfrentar diversos problemas
relacionados com direito de propriedade intelectual, licenciamento, contratos,
propaganda, importações, dentre outros.
A propriedade intelectual é um dos institutos mais importantes da moda,
pois a exclusividade é o que agrega valor a um produto. É ela quem move o lado
financeiro da indústria. Com a propriedade intelectual, é possível a proteção
de criações contra copiadores e falsificadores, gerando mais exclusividade ao
produto e a possibilidade de sua perpetuação. Porém, como as normas atuais
não são totalmente eficazes, devem ser modificadas ou interpretadas levando em
consideração as peculiaridades desse setor, interpretação feita pelo “Fashion Law”.
Litígios envolvendo grandes empresas do setor ocorrem diariamente, o que
só faz aumentar o interesse e a necessidade de discussão do tema. Um dos casos
mais comentados e emblemáticos ocorreu entre Louboutin e Yves Sant Laurent,
litígio que envolvia a disputa pelo uso do solado vermelho nos sapatos. A solução,
após muitos recusos, pode-se dizer favorável para ambos. Louboutin teve sua
patente confirmada, porém, Yves poderia continuar utilizando o solado vermelho
em sapatos monocroáticos vermelhos. Um exemplo de que a lei foi interpretada
em consideração às peculiaridades do mercado.
Diante do exposto, pode-se dizer que o direito de propriedade intelectual
é de extrema importância para o mercado da moda, pois a proteção das criações
impede os concorrentes de desenvolverem produtos semelhantes aos que
são oferecidos como exclusivos. O “Fashion Law” deve ser entendido como
decorrência do processo de globalização, como uma necessidade de acompanhar
as necessidades que surgem dos novos conflitos de interesse no mundo da moda,
regulamentando as agressivas disputas entre concorrentes desse setor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Autorais nas Atividades Empresariais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
CORNETT, Rhojonda. Seeing Red: A Critical Analysis of Christian Louboutian S.A.V
Yves Saint Laurent America, INC. 65Alabama Law Review, 2013.
FORDHAM LAW FASHION INSTITUTE. Disponível em http://law.fordhamedu/
fashion-law-institute/fashionlaw.htm
GREENBERG, Cory. Fashion Law: A Guide for Designers, Fashion Executives and
Attorneys. Fairchild Books, 2011.
GROCHALA, Kelly. Intellectual Property Law: Failing the FashionIndustry and Why
the “Innovative DesignProtection Act” Should be Passed. Student Scholarship.
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em:
<http://scholarship.shu.edu/cgi/viewcontent.
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HEMPHILL, Scott C.; SUK, Jeannie. The Law, Cultureand Economics of Fashion. 61
Stanford Law Review, 2012.
JIMENEZ, Guillermo, e KOLSUN, Barbara. Fashion Law: A Guide for Designers,
Fashion Executives and Attorneys. Fairchild Books, 2010.
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LEAL, Ana Luiza. Citação na Revista Exame. Janeiro de 2014.
SCHWARTZ, Erica S. Red With Envy: Why The Fashion Industry Should Embrace ADR
as a Viable Solution To Resolving. 14 Cardoso Journal of Conflict Resolution, 2011.
SCUDELER, Marcelo Augusto. Do Direito das Marcas e da Propriedade Industrial.
Campinas-SP: Servanda, 2008.
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Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O DIREITO DE
APRECIAÇÃO DA QUALIDADE, EFICIÊNCIA E
SEGURANÇA DOS SERVIÇOS PELOS CIDADÃOS
Mário Frota 1
Resumo
O Código de Procedimento Administrativo, em vigor em Portugal, consigna ao cidadão um
sem-número de direitos no seu relacionamento com os serviços e departamentos públicos,
estabelecendo um leque de princípios a que a administração se adscreve, a saber: o da
legalidade; o da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses
dos cidadãos; o da igualdade e o da proporcionalidade; o da justiça e o da imparcialidade;
o da boa fé; o da colaboração da Administração com os particulares; o da participação; o
da decisão; o da desburocratização e da eficiência; o da gratuitidade; o do acesso à justiça.
A qualidade dos serviços da administração é essencial a um relacionamento livre de
escolhos, de acrescidas dificuldades, atenta a posição de que o cidadão desfruta no quadro
da administração. E a qualidade é susceptível de percepção e de apreciação pelo cidadãoconsumidor, que detém o legítimo interesse e o direito de reivindicar dos poderes públicos
uma postura distinta, uma administração eficiente ao serviço de cada um e todos. Ao
cidadão é conferido o direito de elogiar, sugerir alterações em ordem a uma mais adequada
prestação do serviço, reclamar de um serviço em que haja uma quebra de qualidade. É
disso que se trata! Consigna-se neste artigo o regime em vigor em Portugal, com destaque
para o LIVRO DE RECLAMAÇÕES NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. Um tal
modelo é susceptível de ser exportado para países onde se pretenda uma administração
moderna, sem mordaças nem constrangimentos de qualquer ordem. Uma administração
dominada pela eficácia, eficiência, pela qualidade, como hodiernamente se impõe. Já que,
como defendem os tratadistas, “a qualidade é função da exigência do consumidor”. E os
cidadãos-consumidores são, afinal, a coluna vertebral de um sistema que se erige em razão
das necessidades a que cumpre atender na tecitura social.
Generalidades
Em Portugal ter-se-á observado, nos anos 90 do século passado, notável
empenho de políticos e dirigentes da própria administração em ordem a um
mais adequado perfil da administração pública e do reconhecimento de direitos
aos administrados, normalmente constrangidos pelos actos administrativos que
os atingem, nas suas relações com os distintos serviços e órgãos. E com picos de
simplificação burocrática, algo significativa, na primeira década do século que
transcorre, como é unânime e geralmente reconhecido, até na esfera e nos círculos
internacionais.
A versão primeira do denominado Código de Procedimento Administrativo
remonta a 1991. De momento, em curso se acham, em Portugal, os trabalhos
preparatórios de um novo Código, em decorrência da Lei 42/2014, de 11 de Julho
de 2014, que confere ao Governo a necessária autorização legislativa para que
edite formal e substancialmente uma versão que se crê mais actualizada e mais
protectiva.
1
Presidente da associação portuguesa de Direito do Consumo.
40
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De entre os princípios gerais no Código plasmados figuram, nomeadamente:
- o da legalidade2;
- o da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e
interesses dos cidadãos3;
- o da igualdade e o da proporcionalidade4;
- o da justiça e o da imparcialidade5;
- o da boa fé6;
-.o da colaboração da Administração com os particulares7;
- o da participação8;
- o da decisão9;
- o da desburocratização e da eficiência10;
- o da gratuitidade11;
2
Cfr. O artigo 3º. do CPA – Código de Procedimento Administrativo: “Os serviços e organismos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes
lhes forem conferidos; 2 - Os actos administrativos praticados em estado de necessidade, com preterição das regras estabelecidas neste Código,
são válidos, desde que os seus resultados não pudessem ter sido alcançados de outro modo, mas os lesados terão o direito de ser indemnizados
nos termos gerais da responsabilidade da Administração.
3
Cfr. O artigo 4º. do CPA – Código de Procedimento Administrativo -, como segue: Artigo 4º. Princípio da prossecução do interesse público e da
protecção dos direitos e interesses dos cidadãos: Compete aos órgãos administrativos prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos
e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
4
Cfr. O artigo 5º. do CPA – Código de Procedimento Administrativo – que reza o seguinte: Princípios da igualdade e da proporcionalidade:
1 - Nas suas relações com os particulares, a Administração Pública deve reger-se pelo princípio da igualdade, não podendo privilegiar, beneficiar,
prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever nenhum administrado em razão de ascendência sexo, raça, língua, território
de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social; 2 - As decisões da Administração que
colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e
proporcionais aos objectivos a realizar.
5
Cfr. o artigo 6º. do CPA – Código de Procedimento Administrativo – que prescreve imperativamente: Artigo 6º. Princípios da justiça e da imparcialidade: No exercício da sua actividade, a Administração Pública deve tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação.
6
Cfr. O artigo 6º.- A do CPA – Código de Procedimento Administrativo –, aditado em 1996, que consagra, aliás, de forma elementar algo que
nem sequer careceria de se traduzir em norma, mesmo num sistema de direito positivado: Artigo 6º.-A. Princípio da boa fé: 1 - No exercício da
actividade administrativa e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as
regras da boa fé; 2 - No cumprimento do disposto nos números anteriores, devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em
face das situações consideradas, e, em especial: a) A confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa; b) O objectivo a alcançar com a
actuação empreendida.
7
Um tal princípio consignado se acha no CPA - Código de Procedimento Administrativo -, no seu artigo 7º., como segue: Princípio da colaboração da Administração com os particulares: 1 - Os órgãos da Administração Pública devem actuar em estreita colaboração com os particulares,
procurando assegurar a sua adequada participação no desempenho da função administrativa, cumprindo-lhes, designadamente: a) Prestar aos
particulares as informações e os esclarecimentos de que careçam; b) Apoiar e estimular as iniciativas dos particulares e receber as suas sugestões
e informações. 2 - A Administração Pública é responsável pelas informações prestadas por escrito aos particulares, ainda que não obrigatórias.
8
Princípio plasmado no artigo 8º. do ainda vigente CPA, do teor seguinte: Princípio da participação: Os órgãos da Administração Pública devem assegurar a participação dos particulares, bem como das associações que tenham por objecto a defesa dos seus interesses, na formação das
decisões que lhes disserem respeito, designadamente através da respectiva audiência nos termos deste Código.
9
O “princípio da decisão” tem a sua consagração no artigo 9º., como segue: Artigo 9º. Princípio da decisão: 1 - Os órgãos administrativos têm,
nos termos regulados neste Código, o dever de se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhes sejam apresentados pelos
particulares e, nomeadamente: a) Sobre os assuntos que lhes disserem directamente respeito; b) Sobre quaisquer petições, representações, reclamações ou queixas formuladas em defesa da Constituição, das leis ou do interesse geral. 2 - Não existe o dever de decisão quando, há menos de
dois anos contados da data da apresentação do requerimento, o órgão competente tenha praticado um acto administrativo sobre o mesmo pedido
formulado pelo mesmo particular com os mesmos fundamentos.
10
Já a desburocratização, que se tem como exigência maior da pós-modernidade administrativa, vê a sua entronização no artigo 10º. do CPA
– Código de Procedimento Administrativo -, para além do da eficiência, umbilicalmente conectados, como segue: Artigo 10º. Princípio da desburocratização e da eficiência: A Administração Pública deve ser estruturada de modo a aproximar os serviços das populações e de forma não
burocratizada, a fim de assegurar a celeridade, a economia e a eficiência das suas decisões. A gratuitidade é a regra. A onerosidade a excepção.
Mas a onerosidade tem de obedecer a critérios de razoabilidade por forma a que não exceda a necessária proporcionalidade. O que tudo tem de
ser feito com conta, peso e medida. Registe-se então o princípio na sua modelação normativa:
11
Artigo 11º. Princípio da gratuitidade: 1 - O procedimento administrativo é gratuito, salvo na parte em que leis especiais impuserem o pagamento de taxas ou de despesas efectuadas pela Administração; 2 - Em caso de comprovada insuficiência económica, demonstrada nos termos da
lei sobre o apoio judiciário, a Administração isentará, total ou parcialmente, o interessado do pagamento das taxas ou das despesas referidas no
número anterior.
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41
- o do acesso à justiça12;
Mecanismos de Participação e Audição
Elogios e Sugestões
O diploma legal original - O DL 135/99, de 22 de Abril - definiu os princípios
gerais de ação a que devem obedecer os serviços e organismos da Administração
Pública na sua actuação face ao cidadão. Tal diploma reuniu de forma sistematizada
as normas vigentes no quadro da modernização administrativa que constituíra
marcante objectivo do Governo de então. O enunciado decreto-lei acaba de ser
reformulado pelo DL 73/2014, de 13 de Maio.
A Lei de Defesa do Consumidor, reformulada em 1996, consigna num dos
seus dispositivos - o n.º 2 do seu artigo 2.º - a regra segundo a qual se:
Consideram incluídos no âmbito da presente lei os bens, serviços e
direitos fornecidos, prestados e transmitidos pelos organismos da
Administração Pública, por pessoas coletivas públicas, por empresas de
capitais públicos ou detidos maioritariamente pelo Estado, pelas regiões
autónomas ou pelas autarquias locais e por empresas concessionárias
de serviços públicos.
Ora, dentre os direitos constitucionalmente conferidos aos consumidores,
avultam os da qualidade, eficácia, eficiência e segurança dos produtos e serviços.
Neles cabe obviamente o direito de apreciação de cada um dos direitos, o direito de
reclamação, o direito de queixa, o direito de impugnação das medidas impostas…
No que tange aos serviços da administração surge, num primeiro passo, o
direito de reclamação, ulteriormente reconvertido em elogiar serviços, organismos,
funcionários e agentes, se for caso disso, e sugerir alterações que conduzam à
eficiência de processos e métodos e seus resultados com vantagem manifesta para
os cidadãos-consumidores.
Pressuposto de base: portais e sítios na Rede
Mas em jeito de infra-estrutura tecnológica de base, importa se confira
O acesso à justiça administrativa é uma emanação do princípio constitucional consagrado, entre nós, no artigo 20º. da Constituição da República,
do direito ao direito e o do acesso aos tribunais: “Artigo 20º. (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva): 1. A todos é assegurado o acesso
ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência
de meios económicos; 2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar
por advogado perante qualquer autoridade; 3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça; 4. Todos têm direito a que uma
causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo; 5. Para defesa dos direitos, liberdades e
garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva
e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”
Direito Fundamental a que uma Lei do Parlamento – a Lei nº. 34/2004, de 29 de Julho, modificada pela Lei 47/2008, de 28 de Agosto, dá resposta
no seu artigo 6º., a saber: Artigo 6º. Âmbito de protecção: 1 - A protecção jurídica reveste as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário;
2 - A protecção jurídica é concedida para questões ou causas judiciais concretas ou susceptíveis de concretização em que o utente tenha um interesse próprio e que versem sobre direitos directamente lesados ou ameaçados de lesão; 3 - Lei própria regulará os sistemas destinados à tutela dos
interesses colectivos ou difusos e dos direitos só indirecta ou reflexamente lesados ou ameaçados de lesão; 4 - No caso de litígio transfronteiriço,
em que os tribunais competentes pertençam a outro Estado da União Europeia, a protecção jurídica abrange ainda o apoio pré-contencioso e os
encargos específicos decorrentes do carácter transfronteiriço do litígio, em termos a definir por lei.”
12
O princípio de acesso traduzido no CPA – Código de Procedimento Administrativo – reza o que segue: Artigo 12º. Princípio do acesso à justiça:
Aos particulares é garantido o acesso à justiça administrativa, a fim de obter a fiscalização contenciosa dos actos da Administração, bem como
para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, nos termos previstos na legislação reguladora do contencioso administrativo.
42
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relevância aos portais e similares que a lei prevê se edifiquem. Atente-se no que a
lei estabelece a tal propósito13:
A Administração Pública deve conceber e criar, facultando-os aos
cidadãos e aos agentes económicos, portais e ou sítios na Rede Mundial
(Internet) com o fito de: - prover à difusão da informação básica e de
cidadania, sobre direitos, obrigações e procedimentos, na relação que
uns e outros estabelecem com a Administração Pública; - garantir a
simplicidade, celeridade e fiabilidade da informação administrativa que
o cidadão ou grupos específicos de cidadãos necessitam no seu dia-adia; - permitir a identificação e o acesso a bases de dados especializadas,
de forma a dar respostas a questões definidas pelo seu especial recorte,
bem como permitir a criação de subsistemas de informação destinados a
servir cidadãos e operadores económicos distintos; - facultar e facilitar,
gradualmente, o contacto interactivo com simulações e prestações
de serviços concretos, através das tecnologias de informação e de
programas específicos com real utilidade para o cidadão.
A informação devidamente estruturada pela Administração Pública tem
de estar disponível, importando que seja permanentemente actualizada, de modo
a não defraudar as expectativas nem dos cidadãos nem dos agentes económicos.
E sob pena de não servir efectivamente os objectivos em causa. Neste particular
convém se assevere que se nos afigura preferível o nada ao resultado de qualquer
projecto defeituosamente posto em prática...
Os sítios e portais na Internet devem ser concebidos e actualizados de modo
a cumprir e a seguir as melhores práticas no que tange à acessibilidade e à sua
fiabilidade.
Os serviços e organismos do Estado, em que os da Administração Pública se
incluem, devem comunicar à Autoridade de Modernização Administrativa os sítios
na Internet que lhes respeitem, devendo a Autoridade desenvolver e actualizar o
cadastro de tais sítios. Cumpre-lhes ainda manter a Autoridade permanentemente
informada de todos os veículos disponíveis a este propósito.
13
Eis o modo por que a lei o define: Artigo 47º. Portais e sítios na Internet da Administração Pública: 1 - Todos os serviços e organismos da
Administração Pública devem disponibilizar aos cidadãos e aos agentes económicos portais e ou sítios na Internet que têm como objetivos: a)
Disponibilizar para o público a informação básica e de cidadania, sobre direitos, obrigações e procedimentos, na relação que estabelece com a
Administração Pública; b) Garantir a simplicidade, rapidez e fiabilidade da informação administrativa que o cidadão ou grupos específicos de
cidadãos necessitam no seu dia-a-dia; c) Permitir a identificação e o acesso a bases de dados especializadas, de forma a dar respostas a questões
mais específicas, bem como permitir a criação de subsistemas de informação destinados a servir clientes específicos; d) Possibilitar e facilitar,
gradualmente, o contacto interativo com simulações e prestações de serviços concretos, através das tecnologias de informação e de programas
específicos, que tenham real utilidade para o cidadão; 2 - A informação devidamente organizada pelos serviços e organismos da Administração
Pública deve ser atualizada com frequência, de modo a não defraudar as expectativas dos cidadãos e dos agentes económicos.
3 - Os sítios e portais na Internet devem ser concebidos e atualizados de modo a observar as melhores práticas em matéria de acessibilidade e
usabilidade; 4 - Todos os serviços e organismos do Estado devem comunicar à AMA, I. P., e mantê-la informada de todos os sítios na Internet
públicos que tenham a seu cargo, devendo a AMA, I. P., desenvolver e atualizar o cadastro dos sítios na Internet do Estado; 5 - A AMA, I. P., é
responsável por identificar os sítios na Internet do Estado que estejam descontinuados e comunicá-lo aos respetivos serviços e organismos, bem
como às entidades responsáveis pelos arquivos digitais do Estado e pela preservação de conteúdos disponíveis na Internet nacional; 6 - Os portais
e sítios na Internet referidos no nº. 1 devem estar acessíveis através de hiperligação nos portais de entrada na Administração Pública, geridos pela
AMA, I. P; 7 - Todos os portais e sítios na Internet do Estado devem ter uma hiperligação visível para os portais de entrada na Administração
Pública referidos no número anterior.
Contém as alterações dos seguintes diplomas:
- DL nº. 73/2014, de 13/05
Consultar versões anteriores deste artigo:
- 1ª versão: DL nº. 135/99, de 22/04
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43
A Autoridade de Modernização Administrativa é responsável por
identificar os sítios na Internet do Estado que estejam descontinuados e comunicálo aos respectivos serviços e organismos, bem como às entidades responsáveis
pelos arquivos digitais do Estado e pela preservação de conteúdos disponíveis na
Internet nacional.
Os portais e sítios na Internet de que se trata devem estar acessíveis através
de hiperligação nos portais de entrada na Administração Pública, cuja gestão
compete à Autoridade de Modernização referenciada. Os portais e sítios na
Internet, que ao Estado pertencem, devem ter uma hiperligação visível para os
portais de entrada na Administração Pública.
A lei impõe ainda, no que tange a meios de divulgação, um outro comando,
a saber:
Os serviços públicos devem, sempre que possível, promover meios de
divulgação multimédia das suas atividades, nomeadamente através das
plataformas gratuitas de divulgação vídeo online, com o objectivo de
esclarecer os cidadãos sobre o seu funcionamento.
Eis o que a lei ora refere, no seu artigo 35-A, em tema de SUGESTÕES E
RECLAMAÇÕES DOS CIDADÃOS, sob a epígrafe “mecanismos de audição e
participação”.
Sistema de elogios, sugestões e reclamações dos utentes
Os elogios, sugestões e reclamações dos cidadãos aos serviços prestados pela
Administração Pública e aos agentes que o prestem, e bem assim a procedimentos
adoptados pela administração, são registados online em plataformas próprias na
Internet. A divulgação de tais sítios deve fazer-se nos serviços públicos (inclusive
nos que se estabelecem online), de forma bem visível, legível e inteligível.
A Autoridade de Modernização Administrativa, que se criou, entretanto,
para o cumprimento deste feixe de missões, facultará o acesso a uma plataforma
na Rede Mundial por forma a acolher elogios, sugestões e reclamações da actuação
da Administração Pública que não tenham algo de análogo específico para o efeito.
A tais plataformas se aplicarão as garantias em termos de protecção de
dados pessoais consignadas nas exigentes leis em vigor14. Facultar-se-á, sempre que
possível, aos cidadãos o acesso a meios informáticos que lhes permitam apresentar
online, no local de atendimento, a impressão acerca dos serviços, lavrando, se for
o caso, os protestos que entendam adequados.
Nos locais de atendimento disponibilizar-se-á, subsidiariamente, a caixa de
sugestões e elogios, bem como o livro de reclamações, a que se recorrerá apenas
quando se torne impossível ou inconveniente a sua apresentação online.
No que tange aos programas de recepção (acolhimento) dos cidadãos nos
14
Rege neste particular a Lei nº. 67/98, de 26 de Outubro, que transpõe para a ordem jurídica portuguesa a Directiva nº. 95/46/CE, do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que tange ao tratamento dos dados pessoais e
à livre circulação de tais dados no Espaço Económico Europeu e alhures.
44
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espaços próprios da Administração Pública, especial alusão ao que o diploma e
vigor estabelece a tal propósito, algo que cumpre ser enaltecido neste passo:
Os serviços devem melhorar continuamente os níveis de acolhimento
aos cidadãos, de acordo com o seu âmbito de acção, intervindo, em especial, em
determinados domínios, como segue:
- Superação das disposições legais desactualizadas (e substituição por
regras ajustáveis ao tempo actual e suas exigências) e estudo da racionalização e
simplificação de formalidades;
- Franca melhoria das instalações, adequando-as aos objectivos que visam
servir e às intrínsecas necessidades dos cidadãos, com especial destaque para as
acessibilidades;
- Formação de atendedores de público;
- Beneficiação dos equipamentos que constituam infra-estruturas aos
serviços de atendimento;
- Adopção de sistemas, métodos e técnicas inovadores que potenciem uma
pronta resposta às pretensões (solicitações) legítimas suscitadas pelos cidadãos;
- Avaliação da qualidade e do impacte dos serviços prestados pela
Administração Pública, como relevante passo para uma permanente preocupação
de bem servir.
No que tange aos “elogios e sugestões dos cidadãos”, a lei rege como
segue, no seu artigo 36:
- A audição (espontânea) dos cidadãos, com vista a aferir a qualidade dos
serviços públicos, concretiza-se através de:
- Elogios e opiniões em torno da avaliação pormenorizada pelo cidadão do
atendimento dispensado - se expedito se moroso - da qualidade do atendente, da
adequação face à pretensão carreada, do eventual custo do serviço prestado pela
Administração e dos mais elementos pertinentes;
- Sugestões que visem concretas propostas susceptíveis de concorrerem
para a beneficiação dos métodos e procedimentos adoptados nos serviços públicos
em termos de celeridade, eficácia, eficiência, segurança e não onerosidade;
- Demais contributos para a modernização da administração, pela denúncia
de métodos e praxis adoptados em oposição a princípios consagrados ou de
todo imperativamente a observar, de procedimentos impostos e das exigências
anacrónicas eventualmente feitas à revelia das directrizes estabelecidas, do modo
de prestação de determinado serviço ou ainda de formalidades ou exigências
supérfluas decorrentes de lei ou regulamento que devam ser naturalmente
removidas.
Os serviços e organismos devem, sempre que possível, acolher as sugestões
formuladas e as opiniões emitidas por cada um dos cidadãos, de molde a melhorar a
sua gestão e funcionamento ou, sempre que as circunstâncias o impuserem, propor
a quem de direito as medidas legislativas adequadas a simplificar procedimentos e
a superar, se for o caso, os estrangulamentos do sistema15.
15
Cfr. o artigo 36 na sua formulação hodierna, em decorrência do que prescreve o DL 73/2014, de 13 de Maio: Artigo 36º. Elogios e sugestões dos
utentes: 1 - A audição dos utentes, com vista a aferir a qualidade dos serviços públicos, concretiza-se através de: a) Elogios e opiniões, por meio
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45
Reclamações
No que se prende, porém, com as reclamações deduzidas pelos cidadãos
contra os serviços, órgãos, funcionários ou agentes nas distintas plataformas ou no
livro em suporte papel, como noutro passo se deixou impressivamente consignado,
registe-se o que a tal propósito se estabelece, de resto, na sequência do que já se
legislara no recuado ano de 1999, no artigo 3816 na formulação ora oferecida:
As reclamações apresentadas em relação aos serviços públicos online são
feitas exclusivamente nas plataformas previstas por lei e a que se alude
noutro passo, aplicando-se-lhes, com as devidas adaptações, o que se
prescreve para o livro de reclamações em suporte físico (papel).
Os serviços e organismos da Administração Pública obrigam-se a divulgar
aos cidadãos, nos locais afectados ao atendimento ao público, de forma visível,
legível e inteligível, o livro de reclamações.
O livro de reclamações tem de ser autenticado: a autenticação compete
ao dirigente máximo do serviço ou organismo, em exercício de funções à data
da abertura do livro, competência que pode ser delegada, nos casos de serviços
desconcentrados, nos dirigentes que por tais serviços respondam. O modelo do
livro de reclamações é definido por portaria do membro do Governo responsável
pela Administração Pública.
O livro de reclamações estrutura-se em três exemplares: o de arquivo,
indestacável do livro, que a ele fica preso, um outro num tom de amarelo e o
terceiro na cor azul. A cópia amarela da reclamação deve ser enviada directamente
pelo serviço ou organismo reclamado para a Autoridade de Modernização
Administrativa, acompanhada da informação prestada pelo serviço acerca do
tema em causa, sendo logo que possível enviada cópia da resposta oferecida ao
cidadão reclamante.
das quais se pretende conhecer o que o utente pensa do modo como é atendido e da qualidade, adequação, tempo de espera e custo do serviço
que lhe é prestado pela Administração; b) Sugestões, através das quais se pretende que o utente faça propostas concretas de melhoria a introduzir
no funcionamento dos serviços públicos; c) Outros contributos escritos para a modernização administrativa, por meio dos quais o utente possa
manifestar o seu desacordo ou a sua divergência em relação à forma como foi atendido, como lhe foi prestado determinado serviço ou ainda como
a lei ou regulamento lhe impõe formalidades desnecessárias; 2 - [Revogado]; 3 - [Revogado]; 4 - Os serviços e organismos devem, sempre que
possível, dar acolhimento às sugestões e opiniões emitidas pelos utentes, no sentido de melhorar a sua gestão e funcionamento ou, quando caso
disso, sugerir medidas legislativas adequadas a simplificar procedimentos.
16
Cfr., pois, o que dispõe o dispositivo referenciado: Artigo 38º. Reclamações: 1 - Nos termos do disposto no artigo 35º.-A, os serviços e organismos da Administração Pública devem divulgar aos utentes de forma visível a existência de livro de reclamações nos locais onde seja efetuado atendimento ao público; 2 - A autenticação do livro de reclamações compete ao dirigente máximo do serviço ou organismo, em exercício de funções
à data da abertura do livro, competência que pode ser delegada, nos casos de serviços desconcentrados, nos respetivos responsáveis; 3 - A cópia
azul do livro de reclamações deve ser enviada pelo serviço reclamado ao gabinete do membro do Governo competente, acompanhada de informação sobre a reclamação, donde constem as medidas corretivas adotadas; 4 - A cópia amarela da reclamação deve ser enviada diretamente para
a AMA, I. P., acompanhada da informação referida no número anterior, sendo logo que possível enviada cópia da resposta dada ao reclamante;
5 - Independentemente da fase de tramitação em que se encontrem as reclamações na base de dados da AMA, I. P., cabe a cada serviço reclamado
dar resposta ao reclamante, acompanhada da devida justificação, bem como das medidas tomadas ou a tomar, se for caso disso, no prazo máximo
de 15 dias; 6 - Se para além da resposta dada pelo serviço, a reclamação for objeto de decisão final superior, esta será comunicada ao reclamante,
preferencialmente por via eletrónica, pelo serviço ou gabinete do membro do Governo responsável e dada a conhecer à AMA, I. P; 7 - Se for caso
disso, o membro do Governo que tutela a Administração Pública deve diligenciar no sentido da realização de auditorias, nos termos legalmente
previstos; 8 - O modelo do livro de reclamações é definido por portaria do membro do Governo responsável pela Administração Pública; 9 - O
disposto nos números anteriores aplica-se com as devidas adaptações às reclamações apresentadas nas plataformas previstas no artigo 35º.-A,
sendo o envio das cópias amarelas e azuis substituído pelo reencaminhamento automático e digital da reclamação apresentada no sítio na Internet; 10 - As reclamações apresentadas em relação aos serviços públicos online são feitas exclusivamente nas plataformas previstas no artigo 35º.-A,
aplicando-se-lhes, com as devidas adaptações, o disposto no presente artigo; 11 - A transmissão à AMA, I. P., da informação prevista nos números
anteriores é precedida de remoção dos dados pessoais dos reclamantes.
46
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A transmissão pelo serviço ou organismo reclamado à Autoridade de
Modernização Administrativa da informação a que a lei alude é precedida de
remoção dos dados pessoais dos reclamantes para preservação da privacidade de
cada um e todos.
A cópia azul do livro de reclamações deve ser enviada pelo serviço reclamado
ao gabinete do membro do Governo competente, acompanhada de informação
sobre a reclamação, donde constem as medidas correctivas eventualmente
adoptadas.
Tais disposições aplicam-se com as devidas adaptações às reclamações
apresentadas nas plataformas legalmente previstas: a remessa das cópias amarelas
e azuis é substituída pelo reencaminhamento automático e digital da reclamação
apresentada no correspondente sítio na Internet.
Independentemente da fase de tramitação em que se encontrem as
reclamações na base de dados da Autoridade de Modernização Administrativa,
cabe a cada um dos serviços reclamados dar resposta ao reclamante, com a devida
justificação, bem como das medidas tomadas ou a tomar, se for caso disso, no
prazo máximo de 15 dias.
Se para além da resposta oferecida pelo serviço, a reclamação for objecto
de decisão final superior, comunicar-se-á, preferencialmente por via electrónica,
o teor da decisão ao cidadão reclamante, pelo serviço ou gabinete do membro
do Governo responsável, com conhecimento à Autoridade de Modernização
Administrativa.
O membro do Governo com a tutela da Administração Pública, se for caso
disso, ante as reclamações deduzidas pelos cidadãos, deve diligenciar por que se
desencadeiem auditorias, nos termos legalmente previstos, aos serviços visados.
A Resposta ao Cidadão: Poder-dever da Administração Pública
O povo di-lo, na linguagem corrente, fruto de uma sabedoria milenar,
decerto não tecida de lições hauridas em manuais de etiqueta ou de cortesia: “toda
a carta tem resposta”…
A lei (DL 135/99, de 22 de Abril, com as modificações introduzidas pelo
DL 73/2014, de 13 de Maio - artigo 46) verte esse mesmo brocardo para o seu
conteúdo ao sufragar um conjunto de ditames do teor seguinte:
OBRIGATORIEDADE DE RESPOSTA
Toda a correspondência, designadamente sugestões, críticas ou pedidos de
informação cujos autores se identifiquem, dirigida a qualquer serviço, será
objecto de análise e decisão, devendo ser objecto de resposta com a maior
brevidade possível”
Sem prejuízo do disposto na lei, no prazo de 15 dias deve ser dada resposta na
qual seja comunicada:
a) A decisão final tomada sobre as questões suscitadas pelo autor da
correspondência, quando a sua complexidade e a carga de trabalho do serviço
não o impeçam;
b) Informação intercalar sobre o estado em que se encontra a análise da
comunicação apresentada; ou
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47
c) A rejeição liminar da comunicação apresentada, quando a lei assim o
determine.
Não se admite, pois, que a administração se refugie num pecaminoso
silêncio, numa intolerável sobranceria, de tal sorte que “nem sequer”, como diz
o povo também, “é de se dar confiança aos cidadãos”. E a violação desta regra
elementar é susceptível de acarretar, por óbvio, para funcionários e agentes
responsabilidade funcional e disciplinar.
O cidadão tem o direito de obter uma resposta à sua pretensão nesse lapso
de tempo, devendo reagir sempre que a administração o olvide e lhe negue um tal
direito. No limite, deve recorrer ao Ombuds (Provedor de Justiça) para provocar
uma reacção mais adequada do sistema…
Avaliação pelos Cidadãos
Para além da outorga aos cidadãos de um direito de reclamação e da adopção
de um sistema congruente de gestão de reclamações no seio da Administração
Pública, o ordenamento projecta criar mecanismos de avaliação que terão no seu
cerne os próprios beneficiários.
Com efeito, no artigo 39-A, ora introduzido pela reforma de 13 de Maio
pretérito, se define um sem-número de passos, a saber:
1 - Criação de mecanismos de avaliação automática pelos cidadãos (e,
quiçá, dos agentes económicos) dos locais e linhas de atendimento ao
público, bem como dos portais e sítios na Internet com a chancela da
Administração Pública.
2 - A avaliação pelos cidadãos é objecto de publicitação (de forma
adequada, por conseguinte, visível) nos respectivos portais e sítios na
Internet bem como nos locais de atendimento ao público.
3 – Criação de um sistema de classificação baseado na avaliação
pelos cidadãos, devidamente publicitado nos portais de entrada na
Administração Pública, geridos pela Autoridade de Modernização
Aministrativa: a Autoridade procederá à ordenação dos locais e linhas
de atendimento ao público, bem como dos portais e sítios na Internet
da Administração Pública em função da aludida avaliação processada
pelos cidadãos.
4 - Regulamentar-se-á o sistema electrónico de avaliação automática
e ainda o de classificação, pelos cidadãos, dos locais e linhas de
atendimento ao público, bem como dos portais e sítios na Internet da
Administração Pública, por meio de resolução do Conselho de Ministros.
Trata-se de mais uma ferramenta susceptível de conduzir a
Administração a permanentes níveis de eficácia e eficiência e de
satisfação dos cidadãos, ao serviço de quem, em princípio e, de resto, a
Administração Pública tem de estar inequivocamente.
Modelo a explorar
O Livro de Reclamações, no quadro das relações jurídicas de consumo,
constitui, em Portugal, relevante passo em ordem à afirmação dos direitos dos
cidadãos-consumidores e valioso meio de resolução dos litígios em que os sujeitos
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de direito se enredem. No entanto, a Administração Pública age, por vezes, como
se não se lhe antepusessem quaisquer limites, age designadamente não só praeter,
como sobretudo contra legem.
E há que impor limites, de que o princípio da legalidade é indispensável
baliza. Mas força é que haja mecanismos expeditos de comunicação entre os
cidadãos e a Administração, não só para recriminar, reverberar procedimentos
menos adequados, condutas sinuosas, actuações não conformes, irregulares,
ilegais, como inclusivamente para louvar, elogiar interessantes posturas de
funcionários e agentes, como de serviços e organismos da Administração Pública.
Que a Administração é estruturada para servir os cidadãos que não a inversa: o
cidadão ao serviço da administração. Que os regimes vigentes são personalistas,
que não transpersonalistas, como as autocracias de pendor fascizante, o nacional
socialismo ou os de socialismo ou pretenso socialismo científico.
Onde a Administração, em sufocante burocracia, coarcta os cidadãos dos
seus direitos, a despeito das afirmações em contrário, há que outorgar ao cidadão
direitos de audição e participação cada vez mais alargados.
Que tal, no Brasil, um sistema análogo nas administrações federal,
estadual e municipal? Que tal? Que cada um responda a tão elementar questão…
Eis um alvitre em decorrência deste despretensioso trabalho, que é sobretudo
de divulgação. Praza a Deus que desperte consciências e provoque reflexões e
reacções… A mais se não aspira!
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50
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
A INFLUÊNCIA DO ILUMINISMO NA
DECLARAÇÃO DE DIREITOS DO HOMEM E DO
CIDADÃO DE 1789
Fernando Antônio Turchetto Filho 1
Resumo
O presente artigo pretende abordar as características essenciais do período histórico
denominado iluminismo, relacionando-as com determinados artigos da declaração dos
direitos do homem e do cidadão de 1789, no intuito de expor as principais mudanças
ocorridas na política e no direito europeu dentro deste contexto.
PALAVRAS-CHAVE: Iluminismo; Declaração Francesa de 1789.
Introdução
Durante o final do século XVII até o final do século XVIII o homem
desenvolveu outra forma de enxergar o mundo a sua volta no ocidente, redefinindo
a maneira de interpretar fenômenos tais como a natureza, a sociedade, a religião,
em suma: o conhecimento remodelava-se sobre uma perspectiva que não a grega
ou cristã de modo estrito, mas sobreduto racional.
O período é considerado pela academia como um divisor de águas na
história, pois a razão humana seria então a iluminação (daí o nome do movimento)
capaz de esclarecer. No entanto, é imperioso fazer-nos o questionamento do que
seria o iluminismo. Em resposta, o filósofo Imannuel Kant explica que:
Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é
culpado. [...] É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade
que para ele se tomou quase uma natureza. Até lhe ganhou amor e é por
agora realmente incapaz de servir do seu próprio entendimento, porque
nunca se permitiu fazer semelhante tentativa […]2.
A intuição fundamental deste movimento intelectual é um convite ao ser
humano a pensar, ou seja, buscar o entendimento do mundo ao seu redor não de
maneira mística ou fantasiosa, porém apoiando-se da característica peculiar que o
difere dos demais animais, a sua racionalidade, a “ousadia pelo saber”, sendo esta
a palavra de ordem à iluminação, resumida em latim pelo termo: Sapere AudeI3.
Mesmo que vários estudiosos especifiquem o surgimento e o fim do
iluminismo, não há consenso quanto à exata datação, havendo uma tendência em
adotar-se o início século XVIII como marco de referência. O término do período é,
1
Advogado, especialista em direitos fundamentais pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e especialista em direitos humanos pelo Ius
Gentium Conimbrigae da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
2
KANT, Immanuel: “Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento?”, há tradução alternativa para português de Portugal: Immanuel Kant, “Kant
e a «Resposta à Pergunta O Que São as Luzes»”, Edição, apresentação, tradução e notas a cargo de José Esteves Pereira, Cultura, História e Filosofia,
vol. III, Lisboa, INIC / Centro de História da Cultura da UNL, 1984, pp. 153-168.
3
Ibid.
52
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por sua vez, habitualmente assinalado em coincidência com o início das Guerras
Napoleônicas (1804-1815).
O movimento começava a nascer com a revolução gloriosa de 1668 na
Inglaterra, graças à insatisfação popular, principalmente da burguesia. A assinatura
do rei Guilherme 3º de Orange da “Bill of Rights” (declaração de direitos de 1689),
seguido da aprovação pelo parlamento acabou com as tentativas de instauração
do absolutismo monárquico, ao circunscrever os poderes do rei subordinado ao
Parlamento4. Não obstante do seu surgimento no Reino Unido, o iluminismo
intensifica-se na França, pois não chegou a haver consenso entre a burguesia e o
rei, o que viria a desembocar na revolução francesa.
Ainda que o período seja lembrado por revoluções europeias, o legado do
iluminismo é a revolução no pensamento, no entendimento humano do mundo
demonstrado pelos filósofos da época, ao qual veremos a seguir algumas das
principais características.
Características do Iluminismo:
a) Liberalismo:
Historicamente, o liberalismo surgiu gradativamente como uma forma de
oposição às monarquias absolutas e ao seu correspondente regime econômico; o
mercantilismo. O regime mercantilista pressupõe a existência de um Estado, seja
ele representado por uma monarquia ou por um governo republicano, com poderes
para intervir na economia a fim de promover o desenvolvimento e distribuir a
renda5.
Devemos ter em mente que até o século XVIII, a produção mercantil
organizada dependia de uma concessão do monarca, dos “favores do rei”, que
desta forma determinava quem iria produzir o que e qual a região a ser abastecida
por aquele produtor. Vale relembrar a frase do ministro da Fazenda ao rei francês
Luís XIV para conter a crescente insatisfação popular: “laisser faire, laissez passer”,
ou seja, não impeça os outros de produzir, não impeça a circulação de mercadorias.
Em suma: não conceda privilégios6.
Desta feita, considera-se como liberalismo um sistema baseado na liberdade.
A liberdade, a propriedade e a paz, são, por assim dizer, os pilares sobre os quais
se assenta a doutrina liberal7:
Liberdade econômica, liberdade de iniciativa, entendida como o
direito de entrada no mercado para produzir os bens e serviços que
os consumidores, os usuários, desejam. É a liberdade de contrato
representada pelo estabelecimento de preços, salários e juros sem
restrições de qualquer natureza. É a aventura e o risco de alguém só ser
4
Revolução Gloriosa marcou início da democracia parlamentar europeia, por Matthias von Hellfeld. DW. Disponível em: <http://www.dw.de/
revolu%C3%A7%C3%A3o-gloriosa-marcou-in%C3%ADcio-dademocracia-parlamentar-europeia/a-4233327-1> Acesso: 08 de Fev. de 2014.
17’’22’.
5
STEWART JR, Donald. O que é liberalismo. Instituto Liberal. 1995. Página 13. Disponível em: <http://www.libertarianismo.org/livros/dsjoqueeliberalismo.pdf.> Acesso em: 19 de Fev. 19’15’’.
6
7
Ibid. Pág. 20
Ibid. Pág. 73
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
53
bem sucedido se produzir algo melhor e mais barato. Liberdade política,
além da liberdade de expressão, de locomoção, de crença, de reunião,
é a consciência de que deve haver liberdade para escolher as pessoas
que irão exercer as funções de governo e que, portanto, irão deter o
comando do aparato de coerção e compulsão. Necessita de ser imposto
pela persuasão e pelo argumento, pela explicação de suas vantagens
para a sociedade como um todo e para cada um em particular8(g.n).
Dentro da esteira do iluminismo, a ideia de liberdade surgia não só no campo
econômico, porém, aprofundava-se no comportamento do ser humano, ao qual
foi fundamentada com maior propriedade por Imannuel Kant. Equânime status
moral, o liberalismo não admite diferenças de natureza política ou legal entre os
seres humanos. É essa concepção do homem e da sociedade que dá ao liberalismo
uma identidade que transcende a sua enorme diversidade e complexidade9:
[...] Liberalismo é suprema forma de generosidade; é o direito que
a maioria concede a minoria e, portanto, é o grito mais nobre que já
ecoou neste planeta. É o anúncio da determinação de compartilhar a
existência com o inimigo, mais do que isso, com um inimigo que é fraco.
É incrível como a espécie humana foi capaz de uma atitude tão nobre,
tão paradoxal, tão refinada e tão antinatural [...]10.
Portanto, o liberalismo é uma doutrina voltada para a melhoria das condições
materiais do gênero humano. O pensamento econômico e a experiência histórica
não conseguiram, até hoje, sugerir outro sistema social que seja tão benéfico para a
sociedade quanto o liberalismo.
b) Empirismo
No decorrer da história da filosofia, muitos filósofos defenderam a tese
empirista, porém os mais conhecidos são os filósofos ingleses dos séculos XVI ao
XVIII, Francis Bacon, John Locke, George Berkeley e David Hume. Na verdade, o
empirismo é uma característica muito marcante da filosofia inglesa11.
Contrariamente aos defensores do racionalismo, os empiristas afirmam
que a razão, a verdade e as ideias racionais são adquiridas por nós através da
experiência sensível. Antes desta, dizem eles, nossa razão é como uma “folha em
branco”, onde nada foi escrito; uma “tábula rasa”, onde nada foi gravado. Somos
como uma cera sem forma e sem nada impresso nela, até que a experiência venha
escrever na folha, gravar na tábula, dar forma à cera12. David Hume afirma que:
[...] Quando se pergunta: qual é a natureza de todos os nossos raciocínios
8
9
Ibid. Pág. 73
Ibid. Pág.14
10
ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião Das Massas. Tradução Herrera Filho. Ed. Eletrônica Ridendo Castigat Mores. Versão para Ebook. 2001.
Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/ortega.html> Acesso em: 20 de Fev. de 2014. 17’’43’.
11
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Ed. Ática. São Paulo. 2000. Pág. 88. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/convite.pdf Acesso
em: 13/02/2014> Acesso em: 24 de Fev. de 2014 16’’05’.
12
Ibid. Pág. 88
54
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
sobre os fatos? A resposta conveniente parece ser que eles se fundam na
relação de causa e efeito. Quando se pergunta: qual é o fundamento
de todos os nossos raciocínios e conclusões sobre essa relação? Pode-se
replicar numa palavra: a experiência [...]13.
As percepções originais, isto é, os elementos primitivos da experiência, são
as “impressões”. As “ideias”, por seu turno, que afloram à consciência, quando
pensamos ou raciocinamos, são fracas imagens das impressões. As ideias não são,
portanto, como para os platônicos, os arquétipos de tudo que existe e nem, como
para os cartesianos, inatas, pois unicamente as impressões são inatas14.
Para o autor, as ideias são “[...] as faculdades de combinar, de transpor, aumentar
ou de diminuir as matérias que nos foram fornecidas pelo sentido” (HUME, 1999, p. 36).
Na esteira deste pensamento, o filósofo iluminista descreve com precisão acerca da
experiência humana como formadora de conhecimento:
As percepções originais, isto é, os elementos primitivos da experiência,
são as “impressões”. As “ideias”, por seu turno, que afloram à
consciência, quando pensamos ou raciocinamos, são fracas imagens das
impressões. As ideias não são, portanto, como para os platônicos, os
arquétipos de tudo que existe e nem, como para os cartesianos, inatas,
pois unicamente as impressões são inatas15.
Desta feita, Hume critica o filósofo francês Renné Descartes, que
resumidamente afirmava o conhecimento, da mesma forma que algumas verdades
e princípios universais, já estariam impressos na nossa alma ao nascermos. Ao
contrário desta definição cartesiana, se a verdade e os princípios fossem impressos
na alma deveriam ser verdades universais e, consequentemente, conhecidas por
todos. Para os empiristas, a capacidade é inata, mas o conhecimento adquire-se
apenas com a experiência.
c) Criticismo
O iluminista Imannuel Kant forneceu resposta específica a praticamente
todas as grandes correntes filosóficas de seu tempo. O criticismo propôs uma
crítica à teoria do conhecimento fundamentada apenas nas impressões de base
sensível, criticando assim o empirismo radical de John Locke e outros ingleses16.
Outrossim, criticava o racionalismo de Descartes, haja vista as ideias inatas
não ampliarem o conhecimento e como consequência, não fundamentarem ciência
alguma. Ao analisar o racionalismo de Descartes e o empirismo dos ingleses, Kant
não descarta ambas as concepções, todavia não prioriza alguma17, mas divide-as:
13
Versão eletrônica do livro “Investigação Acerca do Entedimento Humano”. Autor: David Hume. Pág. 26 Tradução: Anoar Aiex. Disponível em:
<http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/ensaio.pdf> Acesso em: 13 de Fev. de 2014. 13’’15’.
14
15
16
Ibid.
Ibid.
Jesiel Soares Silva Intersecções Epistemológicas: A Binaridade De Saussure, A Usiologia De Aristóteles e o Cientificismo De Kant. Anthesis:
Revista de Letras e Educação da Amazônia Sul-Ocidental, ano 01, 2012, nº 02 Pág. 08. Disponível em: <http://www.periodicoseletronicos.com.
br/index.php/anthesis/article/view/70/60> Acesso em: 20 de Fev. de 2014. 18’’21’.
17
Ibid. Pág. 08.
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
55
No tempo, pois, nenhum conhecimento precede a experiência, todos
começam por ela. Mas se é verdade que os conhecimentos derivam da
experiência, alguns há, no entanto, que não têm essa origem exclusiva,
pois poderemos admitir que o nosso conhecimento empírico, seja
um composto daquilo que recebemos das impressões e daquilo que
a nossa faculdade cognoscitiva lhe adiciona (estimulada somente
pelas impressões dos sentidos); aditamento que propriamente não
distinguimos senão mediante uma longa prática que nos habilite a
separar esses dois elementos. Surge desse modo uma questão que
não se pode resolver à primeira vista: será possível um conhecimento
independente da experiência e das impressões dos sentidos? Tais
conhecimentos são denominados “a priori”, e distintos dos empíricos,
cuja origem é a posteriori”, isto é, da experiência18.
Neste sentido, o conteúdo do conhecimento parte das impressões sensíveis,
ao qual denomina conhecimentos a posteriori. Todavia, sua organização e
ordenamento estão processados na consciência em uma estrutura lógica dentro do
ser, aos quais Kant denomina de conhecimentos a priori. Estes semelham-se aos
que os racionalistas denominam de ideias inatas, capazes de serem formados sem
a necessidade da experiência e não derivando de outras, sendo concebidas por si
mesmas como necessárias, portanto universais:
[...] A necessidade e a precisa universalidade são os caracteres evidentes
de um conhecimento “a priori”, e estão indissoluvelmente unidos. [...]
Ora, é fácil demonstrar que no conhecimento humano existem realmente
juízos de um valor necessário, e na mais rigorosa significação universal;
por conseguinte, juízos puros, “a priori”. Se se quer um exemplo da
própria ciência, basta reparar em todas as proposições da Matemática.
Se se quer outro tomado do bom senso, pode bastar a proposição de que
cada mudança tem uma causa. [...] Também se poderia, sem recorrer a
esses exemplos, para provar a existência de princípios “a priori” em nosso
conhecimento, demonstrar que são indispensáveis para a possibilidade
da mesma experiência, sendo, portanto, uma demonstração “a priori”19.
Nesta seara, o conhecimento a priori Kant denomina em juízos analíticos
(afirmativos ou explicativos) e o conhecimento a posteriori de juízos sintéticos
(extensivos)20. O conhecimento a priori ou analítico implica necessidade e
universalidade, não necessitando da experiência para que seja formado. Por outro
lado, todo o conhecimento a posteriori é sintético, ou seja, amplia o conhecimento
a partir da experiência sensível.
Destas afirmações, sabia Kant que os juízos sintéticos que traziam
conhecimento novo podiam ser encontrados ou demonstrados a priori (sem recorrer
à experiência)21. Portanto, em termos kantianos, havia “juízos sintéticos a priori”,
18
KANT, I. Versão Eletrônica do Livro: “Crítica da razão pura”. Pág. 03. Trad. J. Rodrigues de Merege. Disponível em: <http://www.psb40.org.
br/bib/b25.pdf> Acesso em: 16 de Mar. de 2014. 12’’34’.
19
20
21
Ibid. Pág. 04.
Ibid. Pág. 07.
Ibid. Pág. 09.
56
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
sendo estes os formadores de conhecimento. Utilizando verdades necessárias
e universais das quais se extraem ou foram extraídas da experiência sensível,
surge à possibilidade de proposições sintéticas a priori. O juízo é sintético pela
necessidade da experiência sensível desenvolver outros conhecimentos. Porém,
antes desta experiência, este juízo parte a priori, pela capacidade de todos os seres
humanos conseguirem sistematizar, organizando as informações causadas pelo
sensível.
Com isso, Kant reconhece, por exemplo, que existe em nós um conceito
puro e sintético sobre a existência de Deus, da mesma forma como existem
também os juízos sintéticos a priori da matemática e da física. Entretanto, os
objetos destas últimas encontram total concordância com a percepção que temos
do mundo natural. Já no caso da metafísica, os objetos (Deus, alma, universo) são
transcendentes e por não pertencerem ao mundo conhecido pelo homem, eles
ultrapassam o limiar da nossa capacidade cognitiva22:
Há uma coisa ainda mais importante que o que precede: certos
conhecimentos por meio de conceitos, cujos objetos correspondentes não
podem ser fornecidos pela experiência, emancipam-se dela e parece que
estendem o círculo de nossos juízos além dos seus limites. Precisamente
nesses conhecimentos, que transcendem ao mundo sensível, aos quais
a experiência não pode servir de guia nem de retificação, consistem as
investigações de nossa razão, investigações que por sua importância nos
parecem superiores, e por seu fim muito mais sublimes a tudo quanto
a experiência pode apreender no mundo dos fenômenos; investigações
tão importantes que, abandoná-las por incapacidade, revela pouco
apreço ou indiferença, razão pela qual tudo intentamos para as fazer,
ainda que incidindo em erro. Esses inevitáveis temas da razão pura são:
Deus, liberdade e imortalidade. A ciência cujo fim e processos tendem à
resolução dessas questões denomina-se Metafísica23.
A partir deste juízo, é reconstruído o posicionamento da metafísica no
campo do conhecimento, pois o pensamento grego não serve mais, bem como o
conhecimento cristão não convém. As ideias da metafísica, mesmo transcendendo
a experiência sensível, são condições indispensáveis para natureza humana, desta
forma não há como descartá-las. O fato do homem ser um ente moral para Kant
demonstra a realidade metafísica24:
Também deve haver conhecimentos sintéticos “a priori” na Metafísica,
ainda que só a consideraremos como uma ciência em ensaio; mas que,
não obstante, torna indispensável à natureza da razão humana. […]
Assim, pois, a Metafísica consiste, pelo menos segundo seu fim, em
proposições puramente sintéticas “a priori”25.
22
23
24
Ibid. Pág. 05.
Ibid. Pág. 05.
Jesiel Soares Silva Intersecções Epistemológicas: A Binaridade De Saussure, A Usiologia De Aristóteles e o Cientificismo De Kant. Anthesis:
Revista de Letras e Educação da Amazônia Sul-Ocidental, ano 01, 2012, nº 02 Pág. 09. Disponível em: <http://www.periodicoseletronicos.com.
br/index.php/anthesis/article/view/70/60>
25
KANT, I. Versão Eletrônica do Livro: “Crítica da razão pura”. Pág. 09. Trad. J. Rodrigues de Merege. Disponível em: http://www.psb40.org.
br/bib/b25.pdf - Acesso em: 20 de Fev. de 2014. 12’’21’.
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57
Indispensável à natureza humana, a Metafísica regeu todo o comportamento
da sociedade no ocidente. Mas como todos esses objetos são absolutamente
independentes da experiência e do mundo fenomenal, eles permanecem
incognoscíveis a qualquer ser que possua a mesma capacidade cognitiva dos seres
humanos26.
Deste modo, a Metafísica pura não pode ser formadora do conhecimento
como afirmavam os gregos no passado. Ora, tal afirmação retirava a legitimidade
do poder de origem divina, bem como reexaminava a forma de relacionamento
entre governantes e governados. Isto gerou, consequentemente, inquietações na
nobreza e no clero, mormente na França, pois a resistência do rei Luís XVI ao ceder
o poder ao povo, somado a diversos fatos sociais que não serão tratados aqui,
desembocaram na revolução francesa.
A revolução remodelou a estrutura de governo francês, desmantelando
o absolutismo monárquico e o poder da igreja, consolidando um rol de direitos
ao qual julgaram como universais, pautados na liberdade, na igualdade e na
fraternidade, ao qual chamaram de a Declaração de Direitos do Homem e do
Cidadão, no ano de 1789.
A Declaração de Direitos dos Homens e do Cidadão de 1789
Conforme descrito no capítulo anterior, os direitos alicerçados nesta
declaração tinham o escopo de garantir direitos corolários aos ideais iluministas,
de cunho universal por se basearem na liberdade e na igualdade dos homens e
cidadãos. Neste espeque, o artigo 6º da Declaração nos remete diretamente a este
objetivo:
A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito
de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a sua
formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja
para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente
admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos,
segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas
virtudes e dos seus talentos.
Tangente à segunda parte do artigo, o criticismo de Imannuel Kant descreve
como a dignidade moral se diferencia do entendimento grego antes entendido,
pois se a moral fosse o talento natural (as virtudes/talentos) não haveria igualdade.
Como a moral não é o talento natural, mas o uso da razão sobre o que fazer com
estes, somos todos iguais consequentemente27.
A moral decorre da liberdade de escolher o que fazer com estas virtudes,
sendo esta a razão na vida prática. Esta capacidade existe em todos os seres
humanos, o que faz de todos iguais aos outros seres humanos e é o que o difere dos
outros animais. Assim, o conceito de liberdade alicerça a construção da filosofia
26
Caius Brandão - Como são possíveis os juízos sintéticos a priori – Disponível em: <http://www.academia.edu/1086110/Como_sao_possiveis_os_juizos_sinteticos_a_priori> Acesso em: 23 de Fev. de 2014. 13’’23’.
27
A dignidade moral em Kant. Clóvis de Barros Filho. Disponível em: <http://vimeo.com/79256872> Acesso em: 06 de Mar. de 2014. 18’’28’.
58
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kantiana, constituindo-se como princípio regulador da razão, atuando no uso
prático da razão, fundamento de razão pura para a escolha livre das contingências
empíricas28.
Influenciada também pelo filósofo Jean Jacques Rosseau, a primeira parte
do artigo corresponde à ideia de interesse comum do povo sobre o interesse
privado, seja do rei, seja da aristocracia. Rosseau explica que a vontade ou é geral,
ou particular, sendo ou a vontade do povo, ou somente de uma parte:
A primeira e mais importante consequência dos princípios antes
estabelecidos é que somente a vontade geral pode dirigir as forças do
Estado segundo a finalidade de sua instituição, que é o bem comum: se a
oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento
das sociedades, é a concordância desses mesmos interesses que o tornou
possível. O que há de comum nestes diferentes interesses é que forma o
vínculo social; se não houvesse algum ponto no qual todos os interesses
se conciliam, nenhuma sociedade poderia existir. Ora, é somente a partir
deste interesse comum que a sociedade deve ser governada29 (g.n).
Seria a lei a vontade da maioria, respeitado o direito da minoria. No
primeiro caso, essa vontade declarada seria um ato de soberania, de sorte que viria
a constituir-se em lei. Dentro da vontade particular, em um governo republicano,
quando muito, esta poderia ser um decreto30.
De certa maneira, a antropologia de Rosseau e a moral em Kant foram às
condições filosóficas da ideia de humanidade explícita nos artigos da Declaração
Francesa, direção contrária aos governos despóticos, monárquicos e aristocráticos,
elevando o ideal democrático francês. Além destes filósofos, o iluminista francês
conhecido como barão de Montesquieu também ressalta que a vontade do soberano
deve estar no povo, criando amplamente a perspectiva de direito político:
Quando numa república, o povo como um todo possui o poder
soberano, trata-se de uma Democracia. Quando o poder soberano está
nas mãos de uma parte do povo, trata-se de uma Aristocracia. O povo,
na democracia, é, sob alguns aspectos, o monarca; sob outros, o súdito.
O povo só poder ser monarca pelos sufrágios, que constituem suas
vontades. A vontade do soberano é o próprio soberano31.
Se o povo só pode ser o monarca pelos sufrágios, conforme afirma
Montesquieu, a vontade, não do indivíduo, mas do povo em maioria, é tratado
pelo termo democracia. Esta ideia de “vontade geral” proporcionada também
por Rosseau, nos emite uma ideia de igualdade em direitos. Explicitamente
demonstrado que a soberania encontra-se na nação e não mais em um indivíduo,
28
Marcelo Kokke Gomes. O ser humano como fim em si mesmo: imperativo categórico como fundamento interpretativo para normas de imperativo hipotético. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/5175/o-ser-humano-como-fim-em-si-mesmo> Acesso em 29 de Mar. de 2014. 20’’32’.
29
30
31
ROUSSEAU. Jean Jacques. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2003. Pág. 42.
Ibid.
MONTESQUIEU, Do Espírito das Leis, Clássicos Garnier. Trad. Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. 1962. 1º Vol. Pág. 42.
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59
as ideias de Montesquieu diretamente são aderias pelo artigo 3º da Declaração
Francesa, senão vejamos: “O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na
nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane
expressamente”.
Desta forma, fica claro que os franceses abominariam de uma vez por
todas a monarquia em prol da liberdade política do povo. Contudo, um regime
democrático não traduz ao povo fazer o que quer, pois a liberdade política não
consiste nisso; independência e liberdade são termos distintos. A liberdade é o
direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o
que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros teriam tal poder32.
Com efeito, o artigo 4º vai refletir de maneira similar esta definição ideal de
Montesquieu, ao qual teria a lei como limite, senão vejamos:
A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o
próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não
tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da
sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser
determinados pela lei.
Além dos iluministas citados neste capítulo, a influência de John Locke,
Adam Smith, David Hume e outros ingleses também se aplicam na Declaração,
pois a liberdade que consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo
(liberdade jurídica, liberdade de expressão, liberdade de opinião, liberdade de
comunicação) e o direito à propriedade são descritas nos artigos segundo, décimo,
décimo primeiro e décimo sétimo:
A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos
naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a
propriedade, a segurança e a resistência à opressão.
Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões
religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública
estabelecida pela lei.
A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos
direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever,
imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta
liberdade nos termos previstos na lei.
Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela
pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente
comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia
indenização.
Com isto, podemos afirmar que a maneira racional de interpretar o mundo
relaciona-se diretamente com o surgimento da declaração francesa. Graças aos
32
Ibid. Pág. 36
60
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
inúmeros filósofos modernos (aos quais demos maiores importância neste artigo
a John Locke, David Hume, Rosseau, Montesquieu e Kant) fora desenvolvido um
novo valor ideal humano.
Portanto, a mudança na legitimidade na relação entre governantes e
governados (assente, sobretudo, no consentimento liberal, racional e não mais
nas virtudes ou na origem divina) refletiu diretamente no direito, anteriormente
natural, tornando-se jusracional.
Conclusão
Parece-nos não ser possível abordar o estudo do Direito e do Estado, sem
se ter certo conhecimento prévio da história da Filosofia geral. Não basta conhecer
os problemas; é preciso conhecer também a história deles33. O iluminismo
proporcionou um rompimento do jusnaturalismo até então fundamentado
metafisicamente, donde as pessoas obedeciam apenas porque acreditavam em
certos direitos naturais de cada um para direitos racionais declarados pelo Estado
francês, o que viria futuramente a garantir uma certa dose de autonomia para os
ordenamentos jurídicos ocidentais futuros, albergando aumento de segurança
jurídica.
Todavia é importante ressaltar que esta evolução não implicou
necessariamente no afastamento ou descrença divina, pois Metafísica jamais fora
descartada como supracitado no criticismo de Kant, atuando no comportamento
humano e em sua própria racionalidade prática, sua moralidade, de sorte que o
preâmbulo da declaração francesa explicitamente reconhece e declara os direitos
sob os auspícios do Ser Supremo.
Esta ideia de racionalidade como fonte de legítima do direito foi o
impacto do pensamento iluminista no ocidente, obtendo tamanha transformação
das sociedades e que viria a sofrer inúmeras críticas até o momento presente,
principalmente pela tentativa de universalização moral do direito baseado na
ética, na razão e na liberdade iluminista.
Inobstante as teorias futuras que se desenvolveram após o período
moderno, o legado da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789
foi a noção de universalidade e humanidade deixadas pelo iluminismo, servindo
de base para novos catálogos de direitos humanos que foram se desenvolvendo
em determinados contextos futuros até o período atual, na tentativa infindável de
garantir o bem-estar dos indivíduos na sociedade como um todo.
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62
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
AS LICITAÇÕES ADMINISTRATIVAS NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: UMA
VISÃO GERAL DO INSTITUTO
Raisa Duarte da Silva Ribeiro 1
Resumo
A licitação consiste em um processo administrativo, realizado pela Administração
Pública, com a finalidade de selecionar a proposta mais vantajosa, por meio de critérios
objetivos, como pré-requisito para a celebração de contratos administrativos. Este processo
administrativo se traduz em um instrumento necessário para a consagração de princípios
constitucionais, assegurando a isonomia e a impessoalidade na escolha administrativa,
vedando o favorecimento de determinadas pessoas ou empresas. O presente trabalho
se objetiva a fazer uma análise geral do instituto da licitação, verificando os seus
fundamentos, os seus princípios norteadores, as suas principais fontes normativas, as
suas fases internas e externas, bem como as modalidades licitatórias existentes em nosso
ordenamento jurídico.
PALAVRAS-CHAVE: Licitação; Princípios constitucionais; Modalidades licitatórias.
Introdução à licitação
Conceito
De acordo com Carvalho Filho, a licitação consiste em um:
(...) procedimento administrativo vinculado por meio do qual os entes
de Administração Pública e aqueles por ela controlados selecionam a
melhor proposta entre as oferecidas pelos vários interessados, com dois
objetivos – a celebração de contrato, ou a obtenção do melhor trabalho
técnico, artístico ou científico (CARVALHO, 2014, p. 238).
Desmembrando o conceito acima exposto, podemos notar que a licitação
não se trata de um ato isolado, mas de um processo administrativo, com várias
fases, que serve de instrumento para a celebração de contratos pela Administração
Pública. Observa-se, ainda, que a finalidade da licitação é a escolha da proposta
mais vantajosa. Note que o doutrinador não falou em proposta economicamente
mais vantajosa, mas em melhor proposta. Isso porque nem sempre a proposta
economicamente mais vantajosa, ou seja, mais barata, é a que melhor se coaduna
com os objetivos prioritários da Administração Pública.
A Administração Pública se rege, dentre outras normativas, pelo princípio
da eficiência, conforme podemos visualizar no caput do artigo 37 da Constituição
da República Federativa do Brasil2. E nem sempre o que é mais barato é o mais
1
Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Especializada em Direitos Humanos pelo Instituito Ius Gentium Conimbrigae da
Universidade de Coimbra. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense e Professora Auxiliar do Departamento de Teoria do Estado da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Email: [email protected] ou [email protected].
2
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)
64
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eficiente. Existem outros critérios que podem se fazer mostrar essencialmente mais
importantes de serem verificados do que o próprio critério do preço. Atualmente,
por exemplo, se fala muito em licitações que tenham como critério a proteção
ambiental, consagrando a denominada licitação verde.
Prova disto, inclusive, são os tipos de julgamento que constam no artigo 45
da lei 8.666/933. O primeiro dele é o critério do menor preço, consagrando vencedor
aquele que ofertou a melhor proposta de preço. Mas há outros três critérios que
podem ser utilizados, quais sejam: melhor técnica, técnica e preço, menor lance ou
oferta, o que corrobora a tese acima exposta. Ainda, complementando este conceito,
podemos acrescentar que a licitação se guia “por meio de critérios objetivos e
impessoais” (OLIVEIRA, 2013B, p. 343).
A Constituição da República Federativa do Brasil, ainda em seu artigo 37,
caput, prevê o princípio da impessoalidade. Através deste princípio, impõe-se
a necessidade de que a escolha do contratado seja feito de forma a preservar a
igualdade, formal e material, sem que haja outros motivos, de cunho pessoal, que
favoreçam a escolha.
Objetivos fundamentais
Passada a questão do conceito, cabe expor que a licitação se guia por
três objetivos fundamentais, estampados no artigo 3º da lei 8.666/93. São eles:
a garantia da isonomia, a busca da proposta mais vantajosa e a promoção do
desenvolvimento nacional sustentável.
O princípio da isonomia, como já exposto anteriormente, está previsto no
caput do artigo 37 da CRFB e mencionado na lei nº 8.666/93 como um dos objetivos
da licitação. De acordo com Di Pietro, o princípio da igualdade constitui: “(...) um
dos alicerces da licitação, na medida em que esta visa, não apenas permitir à Administração
a escolha da melhor proposta, como também assegurar igualdade de direitos a todos os
interessados em contratar” (DI PIETRO, 2013, p. 278).
Este princípio se desdobra nas suas dimensões formal e material.
Formalmente, a Administração Pública deve dispensar tratamento igualitário e
não discriminatório aos seus participantes. Todavia, quando os participantes
encontrarem-se em situação de desigualdade fático-jurídica, a Administração
Pública deverá tratá-las com a devida proporcionalidade, destinando tratamento
diferenciado, por exemplo, as MEE e EP, consagrando assim a isonomia aristotélica
na sua vertente material.
A busca da proposta mais vantajosa, como também já analisada
anteriormente, se traduz em um desdobramento do princípio da eficiência
3
Art. 45. O julgamento das propostas será objetivo, devendo a Comissão de licitação ou o responsável pelo convite realizá-lo em conformidade
com os tipos de licitação, os critérios previamente estabelecidos no ato convocatório e de acordo com os fatores exclusivamente nele referidos, de
maneira a possibilitar sua aferição pelos licitantes e pelos órgãos de controle.
§ 1o Para os efeitos deste artigo, constituem tipos de licitação, exceto na modalidade concurso:
I - a de menor preço - quando o critério de seleção da proposta mais vantajosa para a Administração determinar que será vencedor o licitante que
apresentar a proposta de acordo com as especificações do edital ou convite e ofertar o menor preço;
II - a de melhor técnica;
III - a de técnica e preço;
IV - a de maior lance ou oferta - nos casos de alienação de bens ou concessão de direito real de uso.
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65
estampado no caput do artigo 37 da CRFB. Além disto, está prevista no artigo
3º da lei 8.666/934 como uma das finalidades da licitação, conjuntamente com a
isonomia e com a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.
Por fim, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável trata-se de
finalidade associada ao fato que a licitação deve priorizar, em primeiro lugar, o
desenvolvimento do próprio país. Como desenvolvimento deste objetivo, podemos
observar, por exemplo: os critérios estipulados para o desempate, quando estiver
envolvida empresa nacional, dando a esta a preferência; o institutos da margem
de preferência5; o empate ficto e presumido quando envolverem empresas de
pequeno porte (EPP) ou microempresas (ME)6.
Princípios norteadores da licitação
Além dos princípios constitucionais que norteiam a Administração
Pública7, a licitação é regida por princípios específicos, tais como os princípios
da competitividade, da vinculação ao instrumento convocatório, do procedimento
formal e do julgamento objetivo.
O princípio da competitividade traduz a ideia de que a licitação deve
possibilitar a participação do maior número possível de interessados. De acordo
com Rafael de Oliveira (2013B, p. 22), quanto maior for o número de interessados,
maior será o número de propostas e, consequentemente, maior será a chance de se
alcançar a proposta mais vantajosa.
O princípio da vinculação ao instrumento convocatório significa que os
participantes e a própria Administração Pública devem observar o que dispõe o
edital ou a carta-convite, conforme o caso, sendo estas a lei interna da licitação. Este
princípio está expressamente previsto no artigo 41 da lei 8.666/93, que dispõe que:
“a Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha
estritamente vinculada”, bem como no artigo 43, V, que determina que o julgamento e
a classificação das propostas sejam realizadas nos termos dos critérios de avaliação
constantes do edital.
Conforme salienta a ilustre doutrinadora Di Pietro (2013, p. 387): “quando
a Administração estabelece, no edital ou na carta-convite, as condições para participar da
licitação e as cláusulas essenciais do futuro contrato, os interessados apresentarão as suas
propostas com base nestes elementos”.
Assim, se houve descumprimento do princípio da vinculação ao instrumento
convocatório, haverá a violação de diversos outros princípios associados com
4
Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a
administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios
básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
5
A margem de preferência consiste na adjudicação da empresa nacional, quando esta apresentar uma proposta dentro das percentagens legais,
próxima a empresa que apresentou a melhor proposta, conforme o artigo 3º da lei 8.666/93.
6
O empate presumido ou ficto consiste na presunção de empate, quando envolver EPP ou ME, para oportunizar a apresentação de nova proposta
por estas para o Poder Público, que sejam melhores do que a proposta tida como vencedora, para então serem adjudicadas como vencedoras da
licitação, conforme previsão na LC 123/06.
7
O artigo 37, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil prevê como princípios expressos norteadores da Administração os da
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
66
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a licitação, tais como a segurança jurídica, a isonomia, a publicidade, a livre
competição e o julgamento objetivo com base nos critérios fixados no edital. E, por
isso, havendo descumprimento das regras traçadas no instrumento convocatório:
“o procedimento se torna inválido e suscetível de correção na via administrativa ou judicial”
(CARVALHO, 2014, p. 248).
O princípio do procedimento formal, por sua vez, traduz a ideia de que os
procedimentos adotados na licitação são formais e devem observar o que as normas
legislativas dispõem acerca deles. Cumpre observar que, conforme salienta Rafael
de Oliveira (2013B, p. 24) o princípio do procedimento formal não significa excesso
de formalismo, mas observância às finalidades necessárias para a consecução da
finalidade específica de celebração do contrato administrativo.
Por fim, o princípio do julgamento objetivo significa que a conduta dos
licitantes deve ser pautada pelos critérios objetivos elencados na legislação. Não
se pode utilizar critérios subjetivos para o julgamento das propostas, por expressa
contrariedade à isonomia e à impessoalidade. Este princípio, previsto no artigo 45
da lei nº 8.666/938: “almeja, como é evidente, impedir que a licitação seja decidida sob o
influxo do subjetivismo, de sentimentos, impressões ou propósitos pessoais dos membros da
comissão julgadora” (DE MELLO, 2008, p. 529).
Principais fontes normativas da licitação
A licitação está expressamente prevista como regra para a celebração dos
contratos administrativos no artigo 37, XXI da CRFB9. Assim, a licitação é a regra e
as hipóteses de dispensa são a exceção e devem ser tratadas de formas excepcionais.
A lei 8.666/93 em seus artigos 17, 24 e 25 trata de hipóteses de contratação direta.
O artigo 17, inciso II, da lei 8.666/93 traz hipóteses de licitação dispensada,
tratando de casos que envolvem a alienação de bens públicos da Administração
Pública que poderão ser realizados através de contratação direta. O artigo 24 da
lei 8.666/93 trata da dispensa de licitação ou licitação dispensável, elencando um
rol de hipóteses em que a contratação direta será possível. Dentre elas, podemos
destacar as hipóteses de licitação frustrada, ou seja, quando, havendo interessados
em participar da licitação, nenhum deles é considerado apto para tanto; licitação
deserta, ou seja, quando não existem interessados para participar da licitação; em
razão do valor do contrato administrativo a ser celebrado ser menor que o gasto
que se teria com a realização do certame; quando existirem situações emergenciais
ou de calamidade; quando o contrato for firmado com outros entes públicos.
Por sua vez, o artigo 25 da lei 8.666/93 prevê, em rol exemplificativo, a
inexigibilidade de licitação, que ocorre quando não há viabilidade de contratação
ou quando for impossível realizar a escolha através de critérios objetivos. Assim,
8
Art. 45. O julgamento das propostas será objetivo, devendo a Comissão de licitação ou o responsável pelo convite realizá-lo em conformidade
com os tipos de licitação, os critérios previamente estabelecidos no ato convocatório e de acordo com os fatores exclusivamente nele referidos, de
maneira a possibilitar sua aferição pelos licitantes e pelos órgãos de controle.
9
Art. 37 (...) XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo
de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento,
mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
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67
a licitação se impõe como regra constitucional como procedimento administrativo
prévio a celebração de contratos pela Administração Pública.
A Constituição da República Federativa do Brasil também dispõe que a
competência para legislar sobre licitação é privativa da União. Cumpre observar que
o artigo 22, XXVII, CRFB, dispõe que a União Federal possui competência privativa
para legislar sobre normas gerais sobre licitações e contratos administrativos. A
contrario sensu, todos os entes federativos possuem competência autônoma para a
elaboração de normas específicas.
A CRFB dispõe, ainda, em seu artigo 173, §1º, III, que o legislador deve
elaborar o Estatuto próprio das estatais econômicas, o qual conterá regras próprias
de licitações e contratos administrativos. No entanto, até o presente momento,
ainda não houve a edição legislativa do mencionado Estatuto, sendo que, cada
estatal, se vale de regras próprias de licitação e contratos, o que vem trazendo
discussão doutrinária sobre o tema.
Somado aos mencionados dispositivos constitucionais, há diversas
normas infralegais que dispõem sobre licitações e contratos. A lei 8.666/93 é a
mais conhecida sobre o tema, por trazer normas gerais de licitações e contratos,
aplicáveis a todos os entes federados. A doutrina e o STF são pacíficos no sentido
de que a lei 8.666/93 possui natureza híbrida, por trazer normas gerais, aplicáveis
a todos os entes federados, mas também conter normas específicas, aplicáveis
apenas e estritamente à União Federal.
Entre as diversas normas infraconstitucionais que tratam do tema da
licitação, podemos destacar algumas: a lei 10.520/02, que trata do pregão; lei
9472/97, que instituiu a ANATEL e previu a consulta como modalidade de
licitação, aplicável as agências reguladoras; a LC 123/06, que trata da ME e EPP,
trazendo normas específicas sobre licitação; a lei 12.462/11, que instituiu o Regime
Diferenciado de Contratação Pública.
Fases da licitação
A licitação, que possui natureza jurídica de processo administrativo, ao
elencar uma série organizada de atos, que se dirigem para a finalidade específica
de celebrar um contrato administrativo, é constituída por fases internas e externas.
A fase interna ocorre dentro da própria Administração Pública, quando esta
observa a necessidade de contratação de bens, serviços ou obras para a consecução
dos interesses públicos.
Conforme salienta Carvalho Filho (2014, p. 283), a licitação: “se inicia com a
instauração do processo administrativo, que deverá ser autuado, protocolado e numerado,
para a garantia de todos os intervenientes”.
Com a instauração do processo administrativo, a primeira etapa da fase
interna se inaugura com a requisição do objeto necessário. Além da requisição do
objeto, conforme salienta o supramencionado doutrinador (CARVALHO FILHO,
2014, p. 283), deve haver, de imediato, a autorização para o certame e a menção
aos recursos próprios para a despesa futura. Após a requisição do objetivo, a
Administração Pública realiza uma pesquisa de preços, para saber qual é a média
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de valores praticados pelo mercado dos bens, serviços ou obras que pretende
contratar. Em seguida, passa-se a realização dos atos orçamentários necessários,
como a efetuação de empenho prévio dos valores estimados. Encerrando a fase
interna, deve-se ser analisada previamente a minuta do instrumento convocatório
e a minuta do contrato a ser celebrado pela assessoria jurídica.
A fase externa se inaugura com a publicação do instrumento convocatório
no Diário Oficial ou em outro meio hábil a dar publicidade para o processo
licitatório. O instrumento convocatório, dependendo da modalidade, pode ser o
edital ou a carta-convite. Nos dizeres do ilustre e saudoso Hely Lopes Meirelles
(1992, p. 110), o edital se caracteriza por ser “a lei interna da concorrência e da tomada
de preços”. E, conforme já salientado, todas as fases da licitação ficam vinculadas
ao instrumento convocatório.
Após a publicação do instrumento convocatório, as etapas costumam
se modificar um pouco, de modalidade para modalidade. Todavia, tomando
como o procedimento regra da modalidade concorrência, após a publicação do
instrumento convocatório, passa-se para a fase da habilitação. Na habilitação serão
medidos cinco aspectos dos candidatos: habilitação jurídica, técnica, econômica e
financeira, regularidade fiscal e trabalhista.
A habilitação jurídica é aquela que se destina a analisar a capacidade de
contratar do participante. Traduz-se na regularidade formal do candidato; referese, sobretudo, na sua personalidade jurídica. Além disto, analisa-se, neste aspecto,
também a questão da possibilidade jurídica do candidato participar do certame. A
habilitação técnica é aquela que observa se o interessado possui condições técnicas
para a realização do objeto contratado. Ou seja, consiste no meio de se averiguar
a aptidão profissional e operacional do candidato para a execução do objeto que
será contratado.
De acordo com Carvalho Filho (2014, p. 288), esta habilitação pode ser
genérica, específica ou operativa. Será genérica quando se relacionar com a
inscrição do candidato em determinado órgão de classe; será específica quando
houver a comprovação de que o candidato já realizou serviços idênticos a terceiros;
e será operacional quando o candidato comprovar que a estrutura da empresa é
compatível com o vulto e a complexidade do objeto a ser executado.
Na de capacidade econômica e financeira, exige-se a apresentação de
documentos que demonstrem a solvência do interessado e certidões, tais como, de
negativa de falência, de balanço patrimonial, de garantias, entre outros. Em outros
termos, consiste no conjunto de provas que fazem presumir que o candidato possui
“capacidade para satisfazer os encargos econômicos decorrentes do contrato”
(MEIRELLES, 1993, p. 130).
Na regularidade fiscal, por sua vez, objetiva-se verificar se o interessado
está em uma situação regular com o fisco, em âmbito federal, estadual e municipal.
E, por fim, na de regularidade trabalhista, verifica-se se o interessado possui
trabalhadores em condição regular de trabalho, o que pode ser comprovado, por
exemplo, através da certidão negativa de débito trabalhista.
Depois da fase de habilitação, ocorre o julgamento da proposta mais
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vantajosa para a Administração Pública. Segundo CARVALHO FILHO (2014,
p. 294), neste momento é necessário verificar a razoabilidade de preços e a
compatibilidade das propostas com as exigências do instrumento convocatório.
Nesta etapa do julgamento, se impõe os tipos de licitação previstos no artigo 45 da
lei 8.666/93, quais sejam, menor preço, melhor técnica, técnica e preço e de maior
lance ou oferta.
Após o julgamento, ocorre a classificação, que consiste no: “ato administrativo
vinculado mediante o qual a comissão de licitação acolhe as propostas apresentadas nos
termos e condições do edital ou carta-convite” (GASPARINI, 1992, p. 362). Além
disto, a Administração irá ordenar as colocações dos candidatos de forma que a
proposta mais vantajosa ocupe o primeiro lugar e, assim, sucessivamente. Com
o julgamento realizado e a classificação efetuada, a comissão irá expedir um ato
administrativo declaratório, declarando que o procedimento licitatório chegou ao
seu final e divulgando a lista dos colocados.
Após, a próxima etapa será a homologação da licitação, que consiste na
verificação da legalidade de todo procedimento licitatório e do atestado de que a
contratação ainda é necessária para a Administração Pública. Ao ser homologado
o resultado, presume-se que a Administração ainda possui interesse na atividade
a ser contratada. Por fim, se faz a adjudicação, que consiste na entrega do objeto
da contratação para o licitante vencedor. E, a partir de então, passa-se a aplicar as
regras relativas às contratações públicas ao longo de toda a execução do contrato.
Modalidades de licitação na lei 8.666/93
O artigo 22 da Lei 8.666/93 prevê cinco modalidades de licitação: a
concorrência, a tomada de preços, o convite, o concurso e o leilão. Senão vejamos:
As três primeiras modalidades servem para a contratação de bens, serviços
e obras; enquanto que o concurso serve para a aquisição de obras artísticas,
técnicas ou científicas mediante a instituição de prêmio ou remuneração ao
licitante vencedor e o leilão consiste na modalidade licitatória para a venda de
bens públicos móveis inservíveis para a Administração Pública.
Concorrência
A concorrência é a modalidade de licitação utilizada para as contratações
públicas de bens, obras e serviços de valor alto. As obras e serviços podem ser
ou não de engenharia. E considera-se valor alto, de acordo com o artigo 23 da lei
8.666/93, os valores superiores a R$650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais),
quando as obras e os serviços não forem de engenharia, e a R$1.500.000,00 (hum
milhão e quinhentos reais) quando forem de engenharia.
Além disso, conforme o parágrafo terceiro do mencionado dispositivo,
a concorrência será a modalidade de licitação utilizada, independentemente do
valor do objeto, para a compra ou alienação de bens imóveis pela Administração
Pública; para a concessão de direito real de uso; e para as licitações internacionais.
A concorrência, ainda, será a modalidade de licitação utilizada nos procedimentos
licitatórios destinados a celebrar contrato administrativo de concessão comum
70
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ou concessão precedida de obra pública, conforme determina o artigo 2º da lei
8.987/9510. E, também, para a celebração de contrato administrativo de parceria
público privada, nos termos do artigo 10 da lei 11.079/0411.
Qualquer interessado poderá participar da concorrência, desde que
preencha os requisitos mínimos de qualificação exigidos no edital e manifestem
o seu interesse de participar da licitação até o termo final do prazo de inscrição
previsto no instrumento convocatório.
A concorrência, por envolver vultosos investimentos ou por ser a
modalidade de licitação necessária para a contratação de objetos de grande
complexidade e de importante tutela estatal, se traduz em um procedimento mais
moroso e demorado, com a finalidade de garantir a certeza e a segurança de que
a contratação realizada foi a mais vantajosa para a Administração Pública e que
resguardou os princípios fundamentais.
Tomada de Preços
A tomada de preço consiste na modalidade licitatória destinada para as
contratações públicas de bens, obras e serviços de valor médio. Entende-se como
valor médio, de acordo com o artigo 23 de lei 8.666/93, até R$1.500.000,00 (hum
milhão e meio de reais), quando envolver obras e serviços de engenharia, e de até
R$650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais), nos demais casos.
A participação na tomada de preços é limitada aos cadastrados ou
cadastráveis que cumprirem o prazo para apresentação de documentos de
cadastramento12. O cadastramento consiste no procedimento realizado pelo Poder
Público para cadastrar antecipadamente interessados em participar em futuras
contratações públicas, sendo uma forma de suprir a fase morosa da habilitação,
trazendo celeridade ao procedimento licitatório.
Convite
O convite, por sua vez, também consiste em uma modalidade licitatória
para as contratações públicas de bens, obras e serviços. No entanto, somente
poderão se submeter a esta modalidade licitatória, os objetos de valores baixos,
assim entendidos aqueles que não ultrapassem R$80.000,00 (oitenta mil reais) ou
R$150.000,00 (cento e cinquenta mil reais), se forem obras ou serviços de engenharia.
O instrumento convocatório no convite se chama carta-convite, e somente
poderão participar do convite os escolhidos e convidados e também os cadastráveis
10
Art. 2o Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se: (...)
II - concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência,
à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado;
III - concessão de serviço público precedida da execução de obra pública: a construção, total ou parcial, conservação, reforma, ampliação ou
melhoramento de quaisquer obras de interesse público, delegada pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à
pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para a sua realização, por sua conta e risco, de forma que o investimento da
concessionária seja remunerado e amortizado mediante a exploração do serviço ou da obra por prazo determinado;
11
12
Art. 10. A contratação de parceria público-privada será precedida de licitação na modalidade de concorrência (...)
Art. 22 (...) § 2o Tomada de preços é a modalidade de licitação entre interessados devidamente cadastrados ou que atenderem a todas as condições exigidas para cadastramento até o terceiro dia anterior à data do recebimento das propostas, observada a necessária qualificação.
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que cumprirem o prazo para apresentação de documentos de cadastramento13.
A carta-convite e o cadastramento, assim como ocorre na tomada de preços,
servem para tornar mais célere o procedimento licitatório, suprimindo a etapa da
habilitação.
Cumpre observar que sempre que for cabível o convite, poderá ser utilizada
a tomada de preços ou a concorrência. Assim como sempre que for cabível a
tomada de preços, poderá ser utilizada a concorrência. Sempre a modalidade mais
formal poderá ser utilizada no lugar da modalidade menos formal. O inverso, no
entanto, nunca pode ocorrer.
Concurso
O concurso é a modalidade licitatória destinada à escolha de trabalho
técnico, científico ou artístico, dentre quaisquer dos interessados participantes,
mediante a instituição de prêmio ou remuneração, conforme os critérios constantes
no edital14.
Cumpre ressaltar que nesta modalidade licitatória, o licitante vencedor não
será contratado pelo Poder Público. O que ocorre é que o licitante vencedor cederá
o seu trabalho e os direitos autorais sobre o seu trabalho para o Poder Público,
que poderá utilizá-lo da maneira que melhor satisfaça seus interesses, em troca do
recebimento de um prêmio ou remuneração previsto previamente no instrumento
convocatório.
Leilão
A última modalidade licitatória prevista na lei 8.666/93 é o leilão, que possui
como objeto a aquisição ou alienação dos bens móveis inservíveis da Administração
Pública. A fase de julgamento desta modalidade licitatória, necessariamente,
deverá se valer do tipo maior lance ou oferta, nos termos do artigo 22, parágrafo
quinto, da lei 8.666/9315.
Outras modalidades de licitação
O artigo 22 da lei 8.666/93 cria as cinco modalidades de licitação já
mencionadas. E em seu parágrafo veda a: “criação de outras modalidades de licitação
ou a combinação das referidas neste artigo”. Uma leitura superficial e estritamente
gramatical do dispositivo poderia nos levar a pensar que somente poderão existir
essas cinco modalidades de licitação, que nenhuma outra modalidade poderá ser
criada pelo legislador.
13
Art. 22 (...) § 3o Convite é a modalidade de licitação entre interessados do ramo pertinente ao seu objeto, cadastrados ou não, escolhidos e
convidados em número mínimo de 3 (três) pela unidade administrativa, a qual afixará, em local apropriado, cópia do instrumento convocatório e
o estenderá aos demais cadastrados na correspondente especialidade que manifestarem seu interesse com antecedência de até 24 (vinte e quatro)
horas da apresentação das propostas.
14
Art. 22 (...) § 4o Concurso é a modalidade de licitação entre quaisquer interessados para escolha de trabalho técnico, científico ou artístico,
mediante a instituição de prêmios ou remuneração aos vencedores, conforme critérios constantes de edital publicado na imprensa oficial com
antecedência mínima de 45 (quarenta e cinco) dias.
15
Art. 22 (...) § 5o Leilão é a modalidade de licitação entre quaisquer interessados para a venda de bens móveis inservíveis para a administração
ou de produtos legalmente apreendidos ou penhorados, ou para a alienação de bens imóveis prevista no art. 19, a quem oferecer o maior lance,
igual ou superior ao valor da avaliação.
72
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Todavia, esta limitação se refere apenas ao administrador, que não poderá
utilizar outra modalidade licitatória que não esteja prevista na lei, em consonância
com o princípio da estrita legalidade. O administrador deve se ater as modalidades
existentes, tendo margem de escolha na aplicação da modalidade mais adequada
para a contratação necessária, observando os requisitos legais.
O artigo 22, XXVII, da CRFB, dispõe que compete à União Federal legislar
sobre normas gerais sobre licitação e contratos administrativos. Os demais entes
podem editar normas específicas. Assim sendo, o legislador federal, ao editar a lei
8.666/93, não exauriu sua competência para editar normas gerais, podendo trazer
novas normativas, inclusive, disciplinando novas modalidades de licitação.
Assim, além das cinco modalidades de licitação expressamente previstas
na lei 8.666/93, o legislador criou outras modalidades, quais sejam: a consulta e o
pregão. Mais recentemente, a lei nº 12.462/11 instituiu o Regime Diferenciado de
Contratações Públicas (RDC).
Consulta
A consulta consiste em uma modalidade licitatória destinada à aquisição
de bens e serviços não comuns pelas Agências Reguladoras. Esta modalidade
licitatória foi prevista, pela primeira vez, pela lei 9.472/97, conhecida como Lei da
ANATEL, nos seus artigos 54, parágrafo único16, e 5817.
Pregão
O pregão é uma modalidade licitatória, prevista na lei 10.520/02, que
traduz, atualmente, uma tendência no procedimento licitatório, em razão da sua
celeridade. Esta modalidade licitatória possui como objeto a aquisição de bens e
serviços comuns, independente do valor. Nota-se que o objeto do pregão traduz
um conceito jurídico indeterminado. Em regra, a doutrina tem entendido que bens e
serviços comuns são aqueles em que podem ser facilmente encontrados no mercado
e descritos quantitativamente e qualitativamente no instrumento convocatório.
O pregão não se aplica nos casos de locação imobiliária e de alienações em
geral. Quanto à possibilidade de utilização do pregão para a contratação de bens
e serviços de engenharia, há grande divergência doutrinária. O Decreto 3.555/00,
em seu artigo 5º do Anexo I18, veda expressamente o pregão para obras e serviços
de engenharia. Posteriormente, o Decreto 5450/05, em seu artigo 6º19, proibiu
apenas o pregão para a contratação de obras de engenharia.
Uma corrente, de cunho minoritária, entende que deve-se admitir o pregão
para as obras e serviços de engenharia, desde que sejam comuns. Já a corrente
16
Art. 54. A contratação de obras e serviços de engenharia civil está sujeita ao procedimento das licitações previsto em lei geral para a Administração Pública.
Parágrafo único. Para os casos não previstos no caput, a Agência poderá utilizar procedimentos próprios de contratação, nas modalidades de
consulta e pregão.
17
18
Art. 58. A licitação na modalidade de consulta tem por objeto o fornecimento de bens e serviços não compreendidos nos arts. 56 e 57.
Art. 5º A licitação na modalidade de pregão não se aplica às contratações de obras e serviços de engenharia, bem como às locações imobiliárias
e alienações em geral, que serão regidas pela legislação geral da Administração.
19
Art. 6o A licitação na modalidade de pregão, na forma eletrônica, não se aplica às contratações de obras de engenharia, bem como às locações
imobiliárias e alienações em geral.
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majoritária entende que o pregão não é possível para as obras, mas pode ser
utilizado para os serviços comuns de engenharia. Neste mesmo sentido, vem
entendendo o Tribunal de Contas da União, conforme entendimento sumulado20.
A lei 10.520/02 traz duas modalidades de pregão: a presencial e o eletrônico.
O pregão presencial é a exceção, sendo aquele realizado em ambiente físico, com
a presença dos interessados; já o pregão eletrônico, que é a regra, é executado em
ambiente virtual, através da internet.
O pregão possui algumas peculiaridades com relação às outras modalidades
licitatórias, como, por exemplo, não existe a constituição de uma comissão de
licitação, mas haverá a presença de um pregoeiro, que deverá ser agente público,
e de sua equipe para a condução do procedimento licitatório. Além disso, a lei
10.520/02 traz a famosa inversão de fases, em que as fases da habilitação e julgamento
são invertidas, assim como as fases da homologação e da adjudicação.
A fase do julgamento, que necessariamente deve ocorrer através do critério
do menor preço, ocorre antes da fase da habilitação. Assim, ao invés de verificar
todas as habilitações dos licitantes interessados, abrir prazo para a correção de
vícios e para recursos, para só então fazer o julgamento; no pregão faz-se primeiro
o julgamento e só se habilita o licitante vencedor, o que garante maior velocidade e
racionalidade ao procedimento licitatório. Na fase do julgamento, podemos ainda
citar que o pregoeiro deverá julgar as propostas escritas, estabelecendo a ordem de
classificação, para depois admitir lances verbais, na tentativa de diminuir o preço.
Além disso, o pregoeiro ainda pode negociar com o licitante vencedor para que
seja obtido preço melhor.
A adjudicação também ocorre antes da homologação. Assim, primeiro se
concede o objeto da licitação ao vendedor, para depois se homologar o processo
licitatório.
Regime Diferenciado de Contratações (RDC)
A lei nº 12.463/11 institui o Regime Diferenciado de Contratações (RDC),
aplicável somente para os casos de contratações administrativas no âmbito dos Jogos
Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, constantes da Carteira de Projetos Olímpicos a
ser definida pela Autoridade Pública Olímpica (APO); da Copa das Confederações
da Federação Internacional de Futebol Associação - Fifa 2013 e da Copa do Mundo
Fifa 2014; obras de infraestrutura e de contratação de serviços para os aeroportos
das capitais dos Estados da Federação distantes até 350 km (trezentos e cinquenta
quilômetros) das cidades sedes dos mundiais; ações integrantes do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC); as obras e serviços de engenharia no âmbito do
Sistema Único de Saúde e dos estabelecimentos penais e unidades de atendimento
socioeducativo.
Este procedimento específico prevê novamente várias inversões de
fases, observando uma tendência em prol da desburocratização, da celeridade
do certame e da eficiência. O RDC abarca, sucessivamente, as seguintes fases:
20
Súmula 257/2010: O uso do pregão nas contratações de serviços comuns de engenharia encontra amparo na Lei nº 10.520/2002.
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preparatória, publicação do instrumento convocatório, apresentação de propostas
ou lances, julgamento, habilitação, fase recursal e encerramento do certame. Na
fase do julgamento, observa-se também a introdução de diferentes tipos, quais
sejam: menor preço ou maior desconto, técnica e preço, melhor técnica ou conteúdo
artístico, maior oferta de preço e maior retorno econômico.
Conclusão
Assim, a licitação consiste em um processo administrativo, prévio
a celebração dos contratos administrativos, que se rege pelos princípios
administrativos expressos e implícitos, com a finalidade de selecionar a proposta
mais vantajosa para a Administração Pública, com a observância de critérios
impessoais e objetivos de julgamento. A licitação possui fundamento constitucional
e é regulada por leis infralegais, que instituíram as modalidades de licitação que
deverão ser observadas tendo em vista cada caso concreto.
A licitação é um instrumento para a consecução de princípios fundamentais
e traz segurança jurídica, devendo ser observada em todos os casos de contratação
pública, com exceção as ressalvas constitucionais e legais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23ª edição.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27ª edição. São Paulo:
Atlas, 2013.
GARCIA, Flávio Amaral. Licitações e contratos administrativos. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2010.
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 1992.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
16ª edição. São Paulo: Dialética, 2014.
__________. Pregão: comentários à legislação do pregão comum e eletrônico. 6ª
edição. São Paulo: Dialética, 2013.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 21ª Edição. São Paulo:
Editora Atlas, 1993.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22ª edição.
São Paulo: Malheiros, 2008.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos. 2ª ed.,
São Paulo: Método, 2013A.
_____________________. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Método, 2013B.
PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Comentários à lei das licitações e contratações da
Administração Pública. 7ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA E A AUTONOMIA DA VONTADE NOS
REALITY SHOWS
Jardy Elizabeth Milani Bezerra 1
Resumo
Atualmente, diante dos índices de audiência apresentados, não há duvidas da aceitação
da população mundial aos programas do gênero reality show. Contudo, em face da
busca por essa audiência, em diversas situações, nota-se que direitos constitucionalmente
protegidos são violados. A ideia de princípios constitucionais surgiu após os resultados
da segunda guerra mundial, em que se percebeu a necessidade de conferir às normas uma
carga valorativa, a fim de se garantir maior proteção aos direitos já existentes. Discutese, portanto, a possibilidade de interferência por parte dos Estados na autorização dos
participantes dos reality shows realizarem quaisquer tipos de atividades, ainda que
violadoras de direito, sob o fundamento da supremacia da autoridade do princípio da
autonomia privada.
PALAVRAS-CHAVE: Reality shows; Princípios constitucionais; Colisão.
Introdução
O princípio da dignidade da pessoa humana tem como origem a Declaração
de Direitos Humanos da ONU de 1948, logo após o desfecho da segunda guerra
mundial e dos momentos emblemáticos na história da humanidade violadores
de direitos. Como consequência, diversos tratados e constituições passaram a
prever a dignidade da pessoa humana como um direito fundamental diante de
sua valoração.
Destarte, não restam dúvidas de que esse princípio deve ser respeitado por
todos os ramos do direito, a fim de que o ser humano seja colocado no centro de
toda a ordem jurídica. Deste modo, avalia-se se o exercício da autodeterminação
do indivíduo em decidir acerca de sua participação em reality shows, garantido
pelo princípio da autonomia da vontade, é por si só capaz de definir quando é
que há ou não violação à dignidade da pessoa humana ou se cabe ao Estado,
em sua qualidade de parens patriae, o dever de interferir nas decisões privadas,
“defendendo” os indivíduos de suas próprias vontades e decisões não interferentes
aos direitos de terceiros.
O cerne desta pesquisa encontra-se nesse determinado ponto, tendo em
vista que a cada dia mais programações desse gênero são criadas sem que seja
estabelecido qualquer tipo de regularização sobre o conteúdo apresentado.
Os Reality Shows
Explorando a imagem dos participantes em decorrência de sua beleza,
juventude, ingenuidade, vulnerabilidade, fama, sentimentos, os realitys shows, a
1
Advogada, Bacharel em direito pelo Centro Universitário de Araraquara e pós-graduada em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra.
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cada dia, vêm ganhando mais aceitação pelo público. O sucesso da programação
do gênero ora em análise deve ser atribuído ao baixo investimento para sua
produção, ausência de sindicalização dos participantes, a aceitação pela massa e
ainda a ausência de legislação trabalhista e fiscalizadora específica.
Numa abordagem individual de cada subespécie do gênero reality show,
temos os programas de sobrevivência, que se encontram intimamente relacionados
ao “direito de ser machucado” (The right to be hurt testing the boundaires of consente –
Vera Bergelson). Tais programas tiverem como grande precursor o mundialmente
conhecido Survivor da televisão norte americana. Sendo que, como exemplo, temos
o programa brasileiro Hipertensão que segue esta mesma linha. Estes utilizam do
consentimento de participantes plenamente capazes, como forma de autorização
para possíveis danos físicos ou psicológicos que eles possam estar sujeitos.
Juntamente com o programa Survivor, ao Big Brother foi atribuído o motivo
da verdadeira explosão na audiência dos reality shows. Sob esse fundamento é que a
escritora e produtora Pamela Berger igualou a criação de um reality show ao Princípio
da Incerteza de Heisenberg, visto que quanto mais foco e cuidado é colocado no
programa, maior interferência existirá no próprio “realismo” do show. Assim, para
se extrair o melhor do show, cabe aos produtores permitirem quanto mais possível,
a incerteza e a insegurança, ampliando o conteúdo do contrato firmado (Signing In
Glitter Or Blood?: Unconscionability And Reality Television Contracts, Catherine Riley,
2013, p. 113).
Muito comum atualmente nas programações, há ainda os reality shows que
envolvem trabalho infantil, tendo como exemplo: Supernanny, Here comes Honey
Boo Boo, Kid Nation, Jon and Kate Plus 8, Keep up with the Kardashians.
Assim, ao acolher tais alegações, as crianças que participam dessas
programações acabam se tornando vulneráveis a riscos de segurança, explorações,
obrigações contratuais e problemas financeiros (The real world: child labor and reality
television, Areil Tacher, 2014, p. 403).
Exemplo de exploração infantil em reality show foi a realização do polêmico
programa Kid Nation pela televisão norte americana em que o acordo celebrado
entre os produtores, os pais e as crianças participantes previa obediência das
crianças a todas as ordens emanadas da produção, sob pena de expulsão, com
prescrições expressas de inexistência de vínculo empregatício e, consequentemente,
inexistência de proteção conferida por leis trabalhistas.
O contrato previa ainda a aceitação de riscos dos quais as crianças
estavam sujeitas, como: exposição a condições térmicas extremamente altas ou
baixas, aventurar-se em ambientes perigosos e insalubres, se exporem a doenças
sexualmente transmissíveis, gravidez, crimes contra a honra, dentre outras espécies
de exposição.
Situações como estas apresentadas nos traz indagações de quais os efeitos
jurídicos e morais do consentimento dado por participantes de reality shows ou de
seus responsáveis? Alguém tem um direito ilimitado de autorizar outra pessoa a
machucá-la? Deve o Estado processar um delito privado entre dois adultos mesmo
após o consentimento de uma pessoa legalmente competente e capaz para tanto?
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(BERGELSEN, 2007, p. 167, tradução do autor). Em relação à publicidade que gira
em torno dos participantes, vemos diariamente aspirantes a músicos, atores ou
modelos, assinarem contratos de cessão de direitos de sua imagem a longo termo
ou até mesmo de caráter perpétuo (The Inalienable Right of Publicity, Jennifer E.
Rothman 2012, p. 188).
Princípios Constitucionais
Com o surgimento da fase originada pelos ideais pós-positivistas
novos valores foram sendo inseridos nos ordenamentos jurídicos dos Estados,
influenciando a aplicação de normas com estes valores nos casos concretos:
“Os princípios são oxigênio das constituições na época do pós-positivismo. É graças aos
princípios que os sistemas constitucionais granjeiam a unidade de sentido e auferem a
valoração de sua ordem normativa” (PAULO BONAVIDES. Direito Constitucional,
p. 259).
Tal assertiva, embora possa demonstrar a superioridade e hegemonia, tanto
formal, quanto material dos princípios na pirâmide normativa, não deve possuir
tal interpretação. Isso porque, os princípios não se encontram acima ou além do
Direito, já que não são considerados metajurídicos, fazendo, tão somente, parte
de uma visão que supera as concepções tradicionais e absolutistas das fontes
normativas do ordenamento jurídico, convivendo com as regras e orientando sua
produção (CRUZ e GOMES, 2006, p. 11).
Sobre essa ausência de hierarquia, o entendimento do Ministro do Supremo
Tribunal Federal Brasileiro, Luís Roberto Barroso: “isso não impede, todavia, que
normas de mesma hierarquia tenham funções distintas dentro do ordenamento” (Luís
Roberto Barroso. Interpretação e Aplicação da Constituição, p. 142).
Essa ausência de hierarquia se dá ante as diferentes funções conferidas aos
princípios fundamentais, normas constitucionais, bem como pela carga valorativa
originada por estes. Em razão de suas funções, esses princípios expressam os
valores fundamentais que foram utilizados como inspiração ao constituinte na
elaboração da Carta Magna.
Já as normas constitucionais, extraídas dos enunciados normativos, têm
como papel reduzir o grau de abstração e generalidade, pois em determinadas
hipóteses descrevem situações fáticas e prescrevem condutas intersubjetivas, de
modo que fazem com que conflitos sejam resolvidos na dimensão da validade.
Destaca-se que, como cediço, os valores inseridos, principalmente nas constituições
de todas as nações, têm como papel fundamental priorizar, não mais a letra fria da
lei, mas sim a compreensão da norma e da vontade do legislador e de quem este
representa, ou seja, vai muito além de seu texto escrito.
Sobre os princípios constitucionais, estes devem ser considerados como
mandamentos que informam e dão apoio ao direito, sendo utilizados como base
para a integração e criação de novas normas jurídicas, sendo, na lição de Orlando
Gomes o “espírito da ordem jurídica” que se manifesta por meio de “valoração da
camada dirigente” (GOMES, ORLANDO. Introdução ao Direito Civil, 18ª edição.
Rio de Janeiro. Editora Forense, 2001 apud PAIVA, EDUARDO. Princípios gerais
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de Direito e princípios constitucionais. Série aperfeiçoamento de magistrados 11 –
Curso Constitucional – Normatividade Jurídica).
Assim a existência de princípios constitucionais se dá na medida em
que o Direito, fruto muito mais da razão humana e da sistematização de suas
experiências, não pode esgotar-se em textos mutáveis, sujeitos a revogações.
Atualmente, quando analisados sob a égide de sua carga valorativa, os princípios
assumem um papel importante e vital nos ordenamentos jurídicos e cada Estado,
pois norteiam através de seus prestígios e destaques peculiares a interpretação,
aplicação e mutação do Direito pelos tribunais.
Em suma, princípios constitucionais são conceituados como normas
jurídicas caracterizadas pela sua abstração e generalidade, inscritos em textos
constitucionais, e que têm por escopo estabelecer valores e indicar a ideologia
fundamental de determinada sociedade e de seu ordenamento jurídico, sendo a
partir deles que as demais normas serão criadas, interpretadas e aplicadas. (CRUZ
e GOMES, 2006, p. 19).
Princípio da dignidade da pessoa humana
Reconhecido, principalmente pela sua alta carga valorativa, o princípio
da dignidade da pessoa humana implica na adoção da ideia de que o indivíduo
deve ser aquilo que há de mais importante e merecedor de amparo pelo mínimo
existencial em prol de uma vida digna, a fim de se evitar que este seja, a qualquer
momento ou situação, coisificado. Isso porque foi reconhecido a todos os seres
humanos qualidade de sujeitos de direitos e não objeto destes.
A dignidade da pessoa humana, que tem suas raízes no direito constitucional
alemão, no século XVII e XVIII através de Immanuel Kant que concebia a dignidade
a partir da autonomia ética do ser humano, tem sua sacralidade proclamada em
diversas constituições como um dever absoluto de respeito e proteção que recai
sobre todas as autoridades públicas (PATTO, 2003). Esse princípio encontra seu
espaço na integridade moral que deve ser assegurada a todas as pessoas, tão
somente diante de sua existência no mundo, representando a ideia do mínimo
existencial.
Ingo Wolfgang Sarlet conceitua o princípio como:
[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e
da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos
e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e
qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe
garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,
além de propiciar e promover a sua participação ativa e coresponsável
nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais
seres humanos (INGO WOLFGANG SARLET. A eficácia dos Direitos
fundamentais, 2ª edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.
60).
Complementando, Paulo Bonavides:
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Toda a problemática de poder, toda a porfia de legitimação da
autoridade e do Estado no caminho da redenção social há de passar, de
necessidade, pelo exame do papel normativo do princípio da dignidade
da pessoa humana. Sua densidade jurídica no sistema constitucional há
de ser, portanto máxima, e se houver reconhecidamente um princípio
supremo no trono da hierarquia das normas, esse princípio não deve
ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da personalidade
se acham consubstanciados. Demais disso, nenhum princípio é mais
valioso para compendiar a unidade material da Constituição [...]
(PAULO BONAVIDES. Prefácio do livro Dignidade da pessoa humana
e direitos fundamentais, de Ingo Sarlet).
Destarte, entende-se que o princípio da dignidade da pessoa humana
deve ser tido como um fundamento e um fim da sociedade e do Estado, sendo
um núcleo básico e informador de qualquer ordenamento jurídico, funcionando
como um critério para valoração e interpretação, bem como de compreensão de
um sistema legal e constitucional (PIOVESAN, 1997, p. 58). Não se olvida do valor
supremo conferido pelo princípio ora estudado, visto que atrai o conteúdo e unifica
todos os direitos fundamentais do homem, pois sua positivação nas constituições
o destaca como o principal norteador e orientador de um ordenamento jurídico,
sendo representado ainda pelo mínimo existencial; entretanto, sua importância
não pode ser banalizada. A dignidade da pessoa é o fundamento e o fim do Estado
democrático de Direito.
Diante dessas afirmativas, a dignidade da pessoa humana confere a todos
a qualidade de centro nos ordenamentos jurídicos, e por consequência, um valor
insusceptível de ponderação com outros igualmente constitucionais, além de ser
irrenunciável e incondicional (PATTO, 2003).
Ao erigir a dignidade da pessoa humana à condição de princípio
fundamental, o legislador não estabeleceu uma hierarquia entre princípios, mas
apenas entendeu que em caso de colisão, a dignidade da pessoa humana não
cederia espaço a outros valores, ainda que constitucionalmente e igualmente
garantidos. Deste modo, todas as ações estatais devem estar voltadas ao bem da
coletividade em respeito a esse princípio.
Por fim, entende-se que o princípio em debate deve ser tido como um dos
principais objetivos de todos os Estados, tendo em vista que a dignidade é inerente
a qualquer ser humano, independentemente da consciência de seu titular.
Princípio da autonomia da vontade privada
Considerado pela filosofia individualista e pela doutrina econômica liberal,
como um princípio fundamental do direito contratual, o princípio da autonomia
da vontade privada é o poder de estipular livremente, o acordo de vontades, e
de disciplinar interesses individuais. Diante do voluntarismo perseguido por esse
direito, originaram-se três princípios, sendo eles o da liberdade contratual; o da
força obrigatória do contrato, mas conhecido como o pacta sunt servanda; e ainda, o
do efeito subjetivo relativo do contrato.
Ocorre que o princípio ora em análise tem sido objeto de grande
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questionamento na doutrina, sob o fundamento da existência de desigualdade
entre as partes contratantes, situação esta que pode ser tida como autorizadora
à possibilidade de restrições à liberdade de contratar através de leis de ordem
pública, econômica e social de direção e proteção, a fim de que fosse resguardado
o interesse social (FERREIRA, 2006, p. 165). Assim, entende-se que a autonomia da
vontade privada não pode ser compreendida de modo absoluto.
Nota-se que a autonomia privada é a espécie de um direito fundamental
mais amplo que o da autodeterminação, assegurada nas constituições por meio
da livre iniciativa. Vale ressaltar que a liberdade deve ser tida como um elemento
fundamental para se alcançar a dignidade da pessoa humana. Deste modo, sendo
a autonomia um fundamento da dignidade da pessoa humana, as atitudes das
pessoas passam a prescindir à intervenção do estado, sob a ótica de se garantir a
dignidade.
Immanuel Kant considera que o conceito de liberdade é a maneira de se
explicar a autonomia da vontade, uma vez que para se alcançar a dignidade do ser
humano é necessário o gozo de total liberdade:
A vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto
racionais, e liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela
qual ela pode ser eficiente, independentemente de causas estranhas
que a determinam; assim como necessidade natural é a propriedade
da causalidade de todos os seres irracionais de serem determinados
à atividade de influência de causa estranhas (IMMANUEL KANT.
Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: 70, 1986, p. 93).
Assim sendo, ao considerar a ideia de que o ser humano é um fim em si
mesmo suas atitudes devem ser interpretadas pelo Estado e pela sociedade como
produto da autonomia da vontade e, portanto, lei perante as outras pessoas, salvo
quando não interferir na dignidade da pessoa humana de terceiros (NICOLAO,
2010, p. 17).
Explica-se que a ideia de que a autonomia da vontade privada seria ilimitada,
atualmente foi superada, visto que esta por si só não é capaz de criar direito,
necessitando também que a atitude seja legitimada pela ordem pública, sendo
esta considerada como os interesses fundamentais tutelados pelos ordenamentos
jurídicos. Sendo assim, há certos limites que devem estar em consonância com os
valores fundamentais (NICOLAO, 2010, p. 18).
A autonomia privada é deste modo, a liberdade que cuida das relações
entre os seres humanos, um com os outros numa perspectiva relacional. Portanto,
o princípio em questão pode ser tido como a capacidade de autorregulamentação
do interesse individual presente nas relações humanas voluntárias.
A dignidade humana vai além de garantir a autonomia privada, pois traz
limitações à própria liberdade de agir, motivo pelo qual a sua relevância deve ser
avaliada diante do caso concreto. Dito isso, entende-se que a autonomia privada
é limitada pela lei e ordem pública, sendo que em casos de violações o indivíduo
estará incorrendo em um ilícito civil ou penal. Há ainda limites de ordem moral e
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vinculados aos bons costumes.
Ocorre que, não há consenso doutrinário sobre a definição de ordem pública,
no entanto, grande parte dos conceitos remete a interesses ou princípios gerais do
ordenamento jurídico. Em relação à moral e aos bons costumes, entende-se que
estes deverão ser delimitados de acordo com a sociedade que estiverem inseridos,
vez que tratam-se de conceitos imprecisos e de difícil delimitação.
Liberdade de Expressão e a Proibição da Censura
Surgindo historicamente como direito de primeira geração, cuja positivação
levou à chamada era das revoluções (período compreendido entre os anos de 1789
a 1848). É, portanto, um direito natural, inerente aos indivíduos e oponível ao
Estado, direito este de cunho defensivo, pois evita que o Estado realize um juízo
axiológico das opiniões de cada indivíduo. Fundamentalmente, é uma verdadeira
proteção contra a censura, desde que respeitados os limites de permissibilidade.
A liberdade de expressão possui um sentido amplo que abrange inclusive a
liberdade de informação, em outras palavras, é o direito de informar, se informar
e ser informado, situando-se, portanto, no campo dos direitos fundamentais. Esta
compreende no conjunto de direitos fundamentais que pertencem à categoria
genérica de liberdades comunicativas ou liberdades da comunicação (CANOTILHO
e MACHADO, 2003).
Em relação ao direito de liberdade de expressão, observa-se que tal
liberdade é a regra, sendo a restrição uma exceção, pois direitos, liberdades e
garantias não sujeitam-se a leituras morais subjetivamente consideradas melhores
(CANOTILHO e MACHADO, 2003).
Insta esclarecer que o direito à liberdade de expressão deve ser visto como
uma consequência do princípio da dignidade da pessoa humana. Entende-se que
o direito de expressão é, na verdade, um direito de criação, oponível ao Estado e a
todos que a ela trouxer ameaças de violação. A liberdade de programação constitui
o núcleo do que é considerado habitualmente como um direito fundamental ou
liberdade de radiofusão, ou ainda a liberdade de conformação com a programação2.
No que tange à possibilidade excepcional de restrição à liberdade de
expressão, esta pode se dar de duas formas: censura prévia ou responsabilidade
ulterior. Mas indaga-se se essa repulsa à censura prévia pode servir para afastar
por completo a necessidade de regulamentar os meios de comunicação da massa?
A censura e a liberdade de expressão devem conviver nos ordenamentos
jurídicos Estatais, na medida em que a liberdade de expressão é o melhor veículo
para uma liberdade maior, que é aquela entendida como a que constitui o cidadão
como um sujeito autônomo de suas escolhas.
2
Por todos, JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, O regime constitucional da actividade de televisão, Coimbra, 1998, págs. 42 e segs.; JÓNATAS
MACHADO, Liberdade de expressão – Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social, Coimbra, 2002, págs. 600 e segs.
82
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A colisão entre os Princípios Constitucionais da Autonomia Privada e o da
Dignidade da Pessoa Humana nos “Reality Shows”
Surgidos no ano de 1973 com o programa An American Family, que na
verdade era em sua essência um documentário, que apenas germinou a ideia de
que tanto as redes televisivas como o público em geral poderiam se interessar pela
intimidade da vida privada, os reality shows tiveram seu firmamento na televisão
apenas no ano de 1999, com o programa do produtor holandês John de Mol que
criou o então conhecido Big Brother.
O termo reality show sugeriu um novo formato televisivo sem roteiros,
tendo como protagonistas pessoas comuns dispostas a renunciar o exercício de
seus direitos fundamentais em busca de autopromoção e premiação em dinheiro.
Mister ressaltar também, que ante o caráter de irrenunciabilidade de direitos
fundamentais, é dado aos participantes a possibilidade de sair dos programas ou
não realizar as provas propostas a qualquer momento.
Contrários à exibição dessa modalidade de programação, o entendimento
da doutrina é no sentido de que os participantes são exibidos e estimulados
a despirem-se de seus medos, aflições, intimidade física e psicológica, a fim de
que sejam testados, julgados e ao final escolhidos, de modo que passam a ser
uma mercadoria atraente e desejável, sendo os promotores da mercadoria e as
mercadorias que promovem (BAUMAN, 2008, p. 13).
O entendimento de Luís Vasconcelos Abreu também é no mesmo sentido
ao afirmar que o estado tem a faculdade proibir uma atividade realizada em
uma discoteca que consiste em arremesso de anões, ainda que estes estejam de
acordo com a prática, uma vez que, intolerável à coisificação de pessoas. Há ainda
entendimento de parcela respeitável da doutrina que entende que a dignidade da
pessoa humana não pode ser invocada contra a liberdade.
Não se pode olvidar que qualquer interpretação legislativa, através de
princípios constitucionais, deve estar estritamente relacionada às necessidades
atuais de caráter social. De modo que não seja meramente formal, mas sim real,
humana e útil, cabendo ao aplicador do direito optar pela interpretação que mais
atende aos anseios da justiça e do bem comum.
Não há duvidas acerca da eficácia dos direitos fundamentais em relação
ao Estado e os particulares (eficácia vertical dos direitos fundamentais). Devendo
também haver aplicação dessa eficácia nas relações entre particulares (eficácia
horizontal dos direitos). Destarte, os direitos fundamentais têm como fim proteger
os indivíduos um das atitudes do Estado, além de garantir os interesses de cada
indivíduo um dos outros.
Considerações finais
Após a análise dos programas do gênero reality show, em que não apenas a
segurança e saúde dos participantes, como também a imagem e a honra destes são
indubitavelmente violados, sob a única justificativa de sua possibilidade decorrer
da autorização dada por estes, considerados como plenamente capazes, foi feita a
análise histórica e conceitual dos princípios constitucionais. A presente pesquisa
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
83
se situa no debate sobre a possibilidade de ponderação de princípios no caso de
colisão entre a autonomia privada e a dignidade da pessoa humana nos reality
shows.
Isso porque, ao permitir a liberdade nas relações entre particulares, os
sistemas constitucionais possuem a inequívoca intenção de proteger a liberdade e
não o contrário, sendo que, em tese, só seria possível a intervenção estatal quando
o indivíduo estivesse tentando abdicar de sua própria vida de maneira irreversível.
Ocorre que, quando os participantes de um programa do gênero em
questão dispensam de qualquer forma de proteção, não nos cabe dar um término
no assunto, na medida em que até mesmo a própria sociedade como espectadora
e possuidora de diversos valores, sejam eles de cunho moral ou não (o que torna a
matéria fundamentalmente objetiva), podem reclamar uma intervenção.
Deste modo, o que se deve analisar antes de decidir é se o consentimento
do participante seria inválido ou ineficaz, e a possibilidade de o estado proibir de
forma administrativa determinados programas de televisão, ante ao seu dever de
proteger o valor da dignidade da pessoa humana para toda a comunidade, o que
deixa de ser uma decisão individual de cada participante.
Há ainda a preocupação com a ideia de absolutismo de valores, que não
se deixa lugar para concepções diferenciadas nem para a livre decisão individual.
Há intuito de demonstrar a importância da matéria ante a existência de inúmeros
programas de reality shows que diariamente violam direitos constitucionalmente
garantidos aos indivíduos, sob o fundamento de que sua autorização dispensa
qualquer intervenção estatal.
Não raras vezes vemos reivindicações para criação de leis que regulem
a publicidade, a difamação, a imposição intencional de sofrimento emocional,
fraude, violação de marca registrada e de direitos civis nos programas televisivos.
A matéria deixa de ser de pacífica solução, na medida em que as modernas
sociedades rejeitam qualquer ideia de censura prévia que possa voltar a épocas de
ditaduras ou de governos autoritários e totalitários.
Em decorrência do explanado, deve considerar-se duas consequências
normativas para a questão, uma delas é que o consentimento do particular deve
ser sempre visto com reservas, uma vez que abrange apenas uma parte do dano,
ou seja, a violação de direitos do indivíduo.
Ademais, entende-se que o consentimento por si só não é suficiente para
justificar graves lesões a direitos fundamentais. Destarte, não se buscou na
presente investigação trazer solução ao tema em questão, mas apenas demonstrar
a necessidade de regularização e debate sobre a matéria, tendo em vista que a
possibilidade conferida ao particular de rejeitar o exercício de direitos fundamentais
em nome da busca por prêmios pecuniários e até mesmo pela fama, pode nos
levar a ideia de coação e ausência de limites, de modo que violações a direitos
fundamentais estivessem sempre acobertadas pelo manto da proibição da censura
e da autonomia da vontade.
84
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
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DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL EM KARL
LOEWENSTEIN E NO INÍCIO DO SÉCULO XXI –
PRINCIPAIS SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS
Luana P. Nogueira 1
Resumo
O presente trabalho busca relacionar a democracia constitucional descrita por Karl
Loewenstein e a atual cenário de democracia constitucional. Busca demonstrar as
relações de poder descritas pelo autor e sua influência para a constituição de um estado de
democracia constitucional.
PALAVRAS-CHAVE: Democracia constitucional; Karl Loewenstein; Século XXI;
Poder.
Introdução
O presente estudo visa analisar o modelo democrático constitucional
defendido por Karl Loewenstein em meados do século XX e traçar um paralelo
com o Estado democrático constitucional do século XXI. Contudo, antes de iniciar,
cumpre transcrever uma citação do autor que em muito resume ao que se debruça
o estudo de sua obra. Para ele “os três incentivos fundamentais que dominam a vida do
homem em sociedade e regem a totalidade das relações humanas são: o amor, a fé e o poder.
E é próprio do homem o amor ao poder e a fé no poder. Sendo a política exatamente a luta
pelo poder”2.
Por acreditar que o poder é o cerne da movimentação política de uma nação,
Loewenstein se dedicou a examinar o processo do poder que movia as sociedades,
detendo-se aos titulares de poder, grupos pluralistas e a relação do povo em geral
perante os mecanismos vigentes, para então traçar os liames de uma democracia
constitucional. Nesse contexto ele demonstra a importância do equilíbrio no
exercício do poder político e de um Estado pautado na soberania popular como
meio de efetivação da democracia.
A singularidade do legado deixado por Loewenstein torna-se evidente ao
se perceber que o autor foi muito a frente de seu tempo, classificando um sistema
democrático no século XX sob uma ótica que permanece na atualidade.
Democracia Constitucional em Karl Loewenstein
Para Karl Loewenstein, o constitucionalismo é parte integrante de um estado
democrático, contudo, ao longo de sua obra, o autor demonstra que muitos outros
são os requisitos que devem se agregar ao constitucionalismo para que realmente
seja possível falar em democracia. Para que um estado seja constitucional ele tem
1
2
Mestranda em Direito pela Universidade de Coimbra/PT. Advogada inscrita na OAB/RS sob nº 90.163. Email: [email protected].
LOEWENSTEIN, Karl, Teoría de la Constitución. 2ª Ed., coleción Demos, Editorial Ariel, Barcelona, 1976 (trad. Alfredo Gallego Anabitarte,
Verfassungslehre, 1959), p. 23.
88
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de ter uma constituição, a qual pode ser escrita ou baseada em costumes3.
Contudo, a simples existência de preceitos e formas não significa que o
clima político seja democrático. Dessa forma, aponta que o constitucionalismo,
desprovido de outros fatores, pode ser desvirtuado e utilizado de igual maneira
na configuração de governos totalitários e autoritários4. Segundo Loewenstein, o
cerne de todo o Estado democrático encontra-se na forma de distribuição e controle
do poder, uma vez que a sociedade é um sistema de relações de poder cujo caráter
pode ser político, social, econômico, religioso, moral, cultural ou de outro tipo.
Então, o elemento poder não apenas dominaria a relação entre seus os detentores
e destinatários, como condicionaria as relações entre os diferentes detentores de
poder.
O poder político seria o principal responsável por configurar um estado
como democrático ou não. Para o autor, todo o poder político não limitado ou
restringido pode incorrer em excesso e, consequentemente, se transformar em
tirania e arbitrariedade. Nesse sentido, Loewenstein manifesta a importância
do constitucionalismo como meio de limitar o poder político, ou seja, limitar os
detentores do poder. O constitucionalismo age como o acordo da comunidade sobre
uma série de regras fixas que obrigam tanto os detentores como os destinatários
do poder5.
Diante disso, aponta a existência de quatro titulares do poder político: o
governo, parlamento, povo e os tribunais. A população, no caso, é detentora e
destinatária do poder. E entre estes quatro detentores devem se operar meios de
limitação e controle do poder como forma de evitar o excesso por qualquer deles,
já que a democracia restaria configurada no equilíbrio do poder. Para ele só há
distribuição do controle do poder político quando, por exemplo, o parlamento
pode desconstituir o governo ou o governo pode dissolver o parlamento, cabendo
ao eleitorado a decisão final6.
Para realizar este equilíbrio de controle no poder, Loewenstein refere à
necessidade de um controle intraórgãos e interórgãos, os quais refletem o controle
horizontal e também a existência de um segundo mecanismo que seria o controle
vertical. Nesse sentido, no estado moderno constitucional e democrático a essência
do processo de poder consiste na intenção de estabelecer um equilíbrio entre as
diferentes forças pluralistas que se encontram dentro da sociedade estatal, sendo
garantida a devida esfera para o livre desenvolvimento da personalidade humana.
A distribuição do poder e seus quatro titulares
Como já mencionado, Loewenstein acredita que só se pode obter uma
classificação dos Estados através de uma análise da maneira e forma em que é
exercido e controlado o poder político na sociedade. A distinção entre a distribuição
do exercício do poder e o controle do poder político, bem como a concentração
3
4
5
6
Idem, p. 89.
Idem, p. 89 e 90.
Idem p. 29.
Idem, p. 33.
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89
do exercício do poder criam um quadro para a dicotomia entre um sistema
constitucional democrático ou autocrático.
O Estado constitucional se baseia no princípio da distribuição do poder. E
com este uma vez distribuído, o exercício do poder político está necessariamente
controlado. O constitucionalismo caracteriza uma sociedade estatal alicerçada na
liberdade e igualdade e que funciona como um Estado de Direito7. Já no Estado
autocrático, o sistema é oposto, só há um detentor do poder e o seu exercício não
está distribuído, mas concentrado, não havendo controle.
Diante disso, ele entende que o mecanismo mais eficaz para o controle do
poder político consiste na atribuição de diferentes funções estatais a diferentes
detentores de poder ou órgãos, pois a distribuição do poder entre diversos
detentores significa para cada um deles uma limitação e um controle através dos
freios e contrapesos8.
Na época de formação do constitucionalismo o controle era realizado
apenas entre o governo e parlamento. Posteriormente surgiu a relação triangular,
na qual o eleitorado passou a ser visto como detentor de poder. E, por conseguinte,
uma relação quadripartite, onde os tribunais também são tidos como mecanismos
de controle do poder. A função de controle se distribui assim entre todos os
detentores do poder: governo, parlamento, eleitorado e tribunais9.
Contudo, dentre estes quatro titulares, Loewenstein aponta o eleitorado
como o destinatário e detentor de poder supremo, pois afirma que em uma
democracia todo o poder deve emanar do povo e todo o exercício de poder só é
legitimo quando esta de acordo com a vontade popular.
Os meios de controle do poder
Karl Loewenstein divide os meios de controle do poder político em controles
horizontais e controles verticais. O primeiro é dividido em controle interórgãos e
intraórgãos.
Controles horizontais do poder político
Como mencionado, o controle denominado horizontal é formado pela
conjugação dos controles intra e interórgãos. Os controles intraórgãos são aqueles
que se desenvolvem dentro da organização de um único detentor do poder, já
os interórgãos são o controle exercido pelos diversos detentores do poder que
cooperam na gestão do Estado10.
Quanto ao conceito de controle intraórgão, o autor afirma que este se opera
no fato de que uma determinada função do processo político pode ser realizada
através de uma instituição constituída por uma pluralidade de membros. Ou seja,
o exercício de uma função está atribuído constitucionalmente a diversas pessoas
individuais, entre as quais está distribuído e por elas terá que ser realizado
7
8
9
Idem, p. 50.
Idem, p. 68/69.
Idem, p. 69 e 304.
10
Idem, p. 232.
90
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conjuntamente.
No sistema bicameral, por exemplo, a função legislativa está dividida
em duas assembleias separadas e independentes. A constituição autoriza ambas
as câmaras a debater e aprovar, separadamente, qualquer projeto de lei, mas
impõe a situação de limitar-se e controlar-se respectivamente. Também, quanto
aos tribunais, em que pese à independência do judiciário ser pilastra do Estado
constitucional, o reexame das decisões entre seus próprios órgãos é ato comum.
O conceito de controle interórgão, por sua vez, resta claro quando se tem
presente a estrutura da organização política da sociedade estatal. O processo do
poder consiste em um jogo entre os seus quatro detentores e são exatamente as
influências destes sob o processo do poder que constituem a categoria de controle
ora em analise.
O autor afirma que o constitucionalismo democrático apresenta quatro
classes de controles interógãos: (I) controle da assembleia frente ao governo; (II)
controle do governo frente à assembleia; (III) o controle dos tribunais frente à
assembleia e o governo; (IV) o controle do eleitorado frente a todos os detentores
do poder.
Exemplos evidentes desse controle são o veto presidencial à lei do Congresso;
a dissolução da Câmara pelo primeiro Ministro; a eleição pelo eleitorado de novo
governo através de eleições gerais; e a declaração de inconstitucionalidade de uma
lei pelo tribunal11.
Ocorre que, este sistema de controle apresenta algumas deficiências de
funcionamento. Para o autor só é possível o correto equilíbrio entre os poderes
quando estes estiverem realmente independentes. Diante disso, ele crítica a
teoria da separação dos poderes por acreditar que sempre há alguma relação de
dependência, ainda que velada, entre os órgãos, a qual impede que cada titular
do poder haja de forma livre. Nesse sentido, ele menciona a problemática com
relação ao poder designado aos tribunais quando a obtenção do cargo do juiz se
faz através da nomeação pelo governo; o problema na efetivação de uma correta
democracia quando a falta de honradez nas eleições e o uso da maquinaria da
propaganda eleitoral.
De acordo com o autor, por meio de suas faculdades de nomeação, o
governo pode montar um judiciário que permanecerá homogeneamente classista e
sociologicamente cerrado, conduzindo a uma atitude benevolente dos juízes frente
à política governamental, o que, por conseguinte, não enseja decisões realmente
transparentes e democráticas, uma vez que o juiz dificilmente desenvolverá uma
mentalidade de independência frente ao governo12.
No tocante ao sufrágio universal e a capacidade do eleitorado de agir
como detentor supremo do poder, o autor aduz que atitudes governamentais
ou parlamentarias no sentido de alterar em seu proveito o resultado das eleições
já conduz a uma quebra na democracia do sistema e na efetivação do controle
11
12
Idem, p. 233.
Idem, p. 302.
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91
do poder13. As campanhas eleitorais, que são mantidas a base da maquinaria da
propaganda e utilizadas por aqueles que maiores condições financeiras possuem
para pagar por elas, também conduzem a certa manipulação eleitoral, uma vez que
o eleitor seria por elas influenciado e, consequentemente, acabaria por “comprar”
uma opinião acreditando ser sua convicção pessoal.
Nesse sentido, para o autor14:
O sufrágio democrático e a observância fiel de todas as disposições
regulando o desenvolvimento mecânico do processo eleitoral não
garantem por si só a obtenção objetiva da vontade do eleitorado.
Através da manipulação do sistema eleitoral e das leis eleitorais, os
atuais detentores do poder podem falsear em sua origem ou dirigir
imperceptivelmente a vontade dos eleitores.
Tal ato incorreria na privação do exercício de controle do poder concedido
aos cidadãos.
Controles verticais do poder político
Os controles verticais se operam dentre aquelas ações e interações que
se produzem dentro do quadro da dinâmica política entre todos os detentores
do poder instituídos e a sociedade em sua totalidade. São eles o federalismo, os
direitos e garantias individuais e o pluralismo15.
Antes de proceder à exposição acerca destes mecanismos de controle,
cumpre referir que não se procederá à análise do federalismo, apenas mencionase que este consiste na existência de limites federais, os quais limitam o poder
do Estado federal em seu Estado membro e vice-versa. No tocante aos direitos e
garantias fundamentais, Loewenstein considera que o mais eficaz dentre todos os
limites impostos ao poder é o reconhecimento jurídico de determinados âmbitos
de autodeterminação em que não se pode penetrar16. Estes são, para o autor, o
núcleo essencial do sistema político da democracia constitucional e quanto mais
amplos esses âmbitos e mais extensa a sua proteção, menor será o perigo de que se
produza a concentração do poder.
O pluralismo, terceiro meio de controle vertical do poder, “está constituído
pela multiplicidade de grupos pluralistas que representam coletivamente a variedade infinita
de interesses dos membros da comunidade estatal”17. Estes grupos funcionam como
detentores invisíveis do poder uma vez que participam do processo econômico e
político.
O grupo pluralista, de forma geral, é a associação de homens que se uniram
de forma organizada devido a seus interesses em comum18. Geralmente estes
13
14
15
16
17
18
Idem, pp. 334 e 336/337.
Idem, p. 346.
Idem, p. 353.
Idem, p. 390.
Idem, p. 422.
Idem, p. 425.
92
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grupos buscam promover interesses influindo ou pressionando diretamente os
detentores do poder, motivo pelo qual o autor afirma que “qualquer grupo pluralista
organizado é também um grupo de pressão”19. A importância destes grupos no estado
democrático constitucional está demonstrada na política do governo de geralmente
consultar esses grupos sobre as medidas legislativas.
O autor considera como uma problemática do grupo pluralista a
incompatibilidade deste com a soberania do indivíduo. A pertença a um grupo
submete o cidadão ao código social, moral e poder disciplinar daquele. A liberdade
do indivíduo acaba por ser cerceada pelas diretrizes do grupo e ele acaba por
perder percentagem de sua autodeterminação individual20.
Muito comum a existência desses grupos no que diz respeito às classes
profissionais, contudo, para o autor o partido político é o mais importante de todos
os grupos pluralistas21.
Partidos políticos e sua influência para o sistema democrático
Os partidos políticos, como grupos pluralistas que são, correspondem a
uma associação de pessoas com as mesmas ideologias a que se propõe a realizar
ou conquistar ao participar do poder político. Estes se fazem necessários, para
não dizer indispensáveis, na organização e ativação da vontade política da massa
eleitoral, se constituindo como um elemento de união indispensável entre o
eleitorado e os membros do parlamento e governo22.
O autor afirma que a entrada dos partidos foi o marco de passagem de um
controle de poder oligárquico para a democracia constitucional moderna. Foi através
da representação que se criou o instrumento para institucionalizar a distribuição
do poder entre diferentes titulares. Dessa feita, considera que os partidos políticos
são a invenção mais importante no campo da organização política23. Ademais,
para Loewenstein dificilmente se pode duvidar que os partidos políticos possuam
o status de legítimos detentores do poder, pois eles são indispensáveis ao processo
político, seja em um estado constitucional ou autocrático. Entende que somente
através destes é possível mobilizar as massas e integrá-las no processo político24. Os
partidos seriam os principais responsáveis por incitar a manifestação de vontade
do eleitorado como detentor do poder.
O Estado do século XX é um estado de partidos, no qual o posto da soberania
popular tem sido ocupado praticamente pela soberania dos partidos.
Democracia constitucional no século XXI
Ao traçar um paralelo entre o conceito de democracia constitucional
defendido por Loewenstein e a sua atual conjuntura no século XXI, percebe-se
19
20
21
22
23
24
Idem, ibidem.
Idem, p. 440.
Idem, p. 425.
Idem, p. 93/94.
Idem, p. 94/95.
Idem, p. 414.
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93
que o autor numa visão bem a frente do seu tempo apresentou características que
continuam a identificar um Estado como democrático.
O’Donnell afirma que a democracia atual implica um sistema legal que,
apesar de suas deficiências, garante o direito ao cidadão de votar e ser eleito,
bem como outros direitos de ordem fundamental decorrentes da definição do
regime democrático. Ressalta o alto grau de efetividade dos direitos políticos
juntamente com várias medidas de reforço da participação do cidadão, bem como
os mecanismos de responsabilização dos governos, os quais são uma manifestação
da distribuição do controle do poder25.
Já Paulo Bonavides afirma que no cenário atual a democracia se elevou a
um direito de quarta geração e, como tal, é recomendada, postulada e exercitada.
Como um direito fundamental, se assenta sobre a concretude do binômio
liberdade-igualdade. É um direito do povo e se converte, para além de uma forma
de governo, em pretensão da cidadania à titularidade direta e imediata do poder26.
Nesse mesmo sentido John Keane refere que a democracia, apesar de
suas muitas formas, é em essência uma política que repousa sobre o princípio de
que o povo é a base da autoridade política. E que se traduz até os dias atuais
principalmente pela via da representação partidária27. Similar é a manifestação
de Canotilho, no sentido de que o Estado Democrático é uma ordem de domínio
legitimada pelo povo. Contudo, aduz que o cenário atual é marcado pelo Estado
de direito democrático, pois somente sendo democrático é possível ser Estado de
direito e vice-versa28.
Percebe-se que o estado democrático constitucional do século XXI é um
estado também de direito, marcado pela legitimidade do direito, dos direitos
fundamentais, do processo de legislação e pela efetiva participação dos cidadãos
nas decisões do Estado, seja de forma indireta, através da escolha de representantes
eleitos pelo voto popular, seja de forma direta, por meio de mecanismos de
exercício direto da participação popular, a exemplo do plebiscito, do referendo,
ações populares, iniciativa popular de projeto de lei, dentre outros. Mostra-se
também como um estado em que o poder é distribuído entre titulares que acabam
por operar em mutuo controle, contudo, enfatiza a permanência do povo como o
detentor supremo do poder.
A atual distribuição do poder e seus titulares
A configuração dos titulares de poder na democracia atual continua
centrada na figura do executivo, do legislativo, dos tribunais e do povo, os quais
continuam a ser os detentores visíveis do poder, conforme intitulou Loewenstein.
O poder executivo mantém-se na figura do poder do Estado que, nos moldes da
constituição, possui a atribuição de governar o povo e administrar os interesses
25
O’DONNELL, Guillermo A., Democracy, Law, ADN Comparative Politics. Disponível em: <http://download.springer.com/static/pdf/689/
art%253A10.1007%252FBF02687583.pdf?auth66=1399210969_fedc8a2c2797e87381f365102c142801&ext=.pdf>, acesso em: 02.05.2014, p.29.
26
27
BONAVIDES, Paulo, Teoria Constitucional da Democracia Participativa, Editora Malheiros, São Paulo, 2001, p. 160/161.
KEANE, John, Democracy in the 21st Century: Global Questions. Disponível em:< http://johnkeane.net/wp-content/uploads/2011/01/2010_
jk_21stcenturydemocracy.pdf>, acesso em: 01.05.2014.
28
CANOTILHO, J.J. Gomes, Estado de Direito, Cadernos Democráticos da Fundação Mário Soares, Gradiva, Lisboa, 1999, p. 27 e 30.
94
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
públicos de acordo com as ordenações legais. Já o legislativo é representado
pelos homens que devem elaborar as normas de direito e de abrangência geral ou
individual que são aplicadas a toda a sociedade. Este geralmente é constituído por
um sistema bicameral.
Aqui, cumpre referir à manutenção de sistemas parlamentares e
presidencialistas. Sendo a principal diferença de que no primeiro apenas os
membros do legislativo são diretamente eleitos pelo povo e no segundo ambos,
legislativo e executivo dependem da vontade da escolha popular.
No século XXI o povo se mantém como destinatário, mas também titular
de poder, tendo em vista sua capacidade de eleger uma assembleia constituinte ou
votar um texto da constituição, exercer seu poder por meio de eleições, referedum
ou iniciativa popular. No âmbito de um Estado democrático, o povo se apresenta
em diversos nexos e graus de operações legitimatórias: dependendo do ângulo
como povo ativo ou como destinatário, o que envolve o direito de resistência ao
Estado e de prestações por parte do mesmo29.
Os tribunais, por sua vez, apresentam-se como detentores do poder, mas
de acordo com Canotilho: “devem exercer a justiça em nome do povo”, e isso significa
a responsabilidade de preservação dos princípios de justiça constantes no texto
constitucional30.
Os meios de controle do poder político no século XXI
No que concerne aos meios de controle do poder elencados por Loewenstein,
se visualiza a mesma denominação dada pelo autor, percebendo-se a presença dos
controles horizontais e verticais. A subdivisão dos controles horizontais por ele
traçada ainda é percebida na atualidade. Segundo Canotilho a repartição horizontal
refere-se à diferenciação funcional, à delimitação institucional de competências
e às relações de controle e interdependência recíproca entre os vários órgãos de
soberania31.
No tocante aos controles intraórgãos cumpre mencionar o mesmo exemplo
utilizado pelo autor, uma vez que, além de esclarecedor, continua presente em
muitos Estados da sociedade atual, qual seja o sistema bicameral do legislativo.
Quanto aos controles interórgãos, controle realizado entre os titulares do
poder, este é evidente na composição do atual estado democrático constitucional.
A democracia atual é um sistema de governo em que os governantes são
responsabilizados por suas ações no domínio público e que o titular desse direito
de responsabilizar é o cidadão32. O eleitorado continua na posição de destinatário
e detentor de poder e as eleições podem ser vistas como uma espécie de sanção
ao governante, uma vez que permitem, quando possível, ao povo estender ou não
29
MÜLLER, Friedrich, Quem é o Povo? A questão fundamental da democracia, 3ª Ed., Editora Mas Limonad, São Paulo, 2003. (trad. Peter Neumann, Porto Alegre, 1998), p. 55 e 86.
30
31
32
CANOTILHO, J.J. Gomes, Estado de Direito, Cadernos Democráticos da Fundação Mário Soares, Gradiva, Lisboa, 1999, p. 26.
CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Ed., Almedina, Coimbra, 2003, p.556.
AARTS, Kees, THOMASSEN, Jacques, Satisfaction with democracy: Do institutions matter?. Disponível em: <http://ac.els-cdn.com/
S0261379407001072/1-s2.0-S0261379407001072-main.pdf?_tid=31140ef4-d214-11e3-872c-00000aab0f02&acdnat=1399047171_d86bfc90116d271d6dc5f8510fcf1ead>, acesso em: 02.05.2014, p. 06.
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
95
estender o mandato do governo.
O judiciário exerce o controle sobre os demais titulares do poder através, por
exemplo, do controle de constitucionalidade das leis, assim como há mecanismos
que permitem o controle entre governo e assembleia, tais como a responsabilidade
política do governo perante o parlamento; comissões parlamentares de inquérito;
veto político; dentre outros. Frisa-se que estes últimos mecanismos de controle
dependem da forma parlamentar ou presidencialista de governo.
Maria Lúcia Amaral aduz que limitado e moderado não é apenas o poder
que é disperso por diversos órgãos, mas também aquele que se vigia e se controla
mutuamente. E o atual sistema é uma malha densa de controles recíprocos que,
segundo a autora, se evidenciam na separação dos poderes que distribui o poder
entre o governo, assembleia e tribunais. E como também titular o povo, uma vez
que o seu consentimento é a condição de legitimidade do poder político33.
O princípio de separação e interdependência dos órgãos de soberania
tem, assim, uma função de garantia da constituição, pois os esquemas de
responsabilidade e controle entre os vários órgãos transformam-se em relevantes
fatores de observância da constituição34.
Relativamente aos denominados controles verticais, percebe-se que os
direitos e garantias fundamentais continuam a ser um ponto de controle do poder
no qual o Estado não pode penetrar. Como afirma O’Donnell, no cenário atual os
cidadãos aparecem como portadores de direitos frente ao Estado, direitos estes
que estão incluídos na definição de um regime democrático, ou seja, fala-se nos
direitos e garantias fundamentais35. Nesse sentido, Canotilho refere que os direitos
fundamentais dos cidadãos são elemento central do Estado e limitam o legislador,
uma vez que o obriga a respeitá-los e a observar o seu núcleo essencial, sob pena
de nulidade das próprias leis. Também, em virtude de sua impenetrabilidade,
acabam por controlar e limitar o poder do governo36.
Com relação aos grupos pluralistas, a sociedade atual é composta e orientada
pelo princípio do pluralismo de expressão e organização política democrática.
Pode-se afirmar que o Estado democrático é um Estado plural em virtude de sua
não identificação com qualquer sistema religioso ou ideológico37.
Se percebe muito presente o domínio dos “grupos”, isto é, aquelas associações
não estatais de opinião livre e provenientes da sociedade, as quais agem na defesa
dos interesses econômicos, sociais, culturais ou altruísticos dos seus membros
e que procuram influenciar os poderes públicos. Estes vão desde as igrejas até
os sindicatos e ordens profissionais. Não possuem o poder de representação no
mesmo grau que os partidos políticos, mas servem também como mecanismo
33
AMARAL, Maria Lucia, A Forma da República: Uma introdução ao Estudo do Direito Constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 156,
158 e 204.
34
35
CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Ed., Almedina, Coimbra, 2003, p. 889.
O’DONNELL, Guillermo A., Democracy, Law, ADN Comparative Politics. Disponível em: <http://download.springer.com/static/pdf/689/
art%253A10.1007%252FBF02687583.pdf?auth66=1399210969_fedc8a2c2797e87381f365102c142801&ext=.pdf>, acesso em: 02.05.2014, p.29.
36
37
CANOTILHO, J.J. Gomes, Estado de Direito, Cadernos Democráticos da Fundação Mário Soares, Gradiva, Lisboa, 1999, p. 25, 26 e 54.
AMARAL, Maria Lucia, A Forma da República: Uma introdução ao Estudo do Direito Constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 242
e 267.
96
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
de manifestação da vontade popular e são fatores importantes na efetivação do
conceito constitucional de democracia. Estes acabam por dividir certo espaço com
partidos políticos no tocante a representação da vontade do povo38.
A influência dos partidos políticos para o sistema democrático constitucional do
século XXI
A ideia de que a democracia atual tem como elemento chave a
representatividade e o fato de que governo deve ser eleito pelo povo acaba por
tornar os partidos políticos o meio para a efetivação da democracia. Estes são
grupos de cidadãos que se formam para esclarecer o povo e contribuir para o
exercício de suas liberdades e direitos políticos, concorrer para a titularidade dos
órgãos de poder e exercer o direito de oposição democrática39.
A eles compete a exposição dos ideais e convicções políticas para que o
cidadão, como eleitor, opte por aquele que melhor se enquadrar nas suas aspirações.
A comum intitulação dos grupos partidários como de esquerda ou direita colabora
a atingir determinado conjunto de indivíduos, os quais melhor se identificam com
estas ou aquelas ideologias40.
Os partidos assumem a função mediadora a qual é responsável por dar
forma, organização e expressão aos diferentes sentires plurais que brotam da
sociedade como um todo. Mediação entre sociedade e Estado41. Nesse sentido,
Francesc de Carreras Serra afirma que na democracia atual os partidos políticos
são meio para os cidadãos expressarem a sua vontade. Dessa forma, a função
dos partidos é canalizar a vontade dos cidadãos através de procedimentos legais,
ou seja, de acordo com a regra da maioria, convertem esse conjunto de vontades
em um ordenamento jurídico. Logo, os partidos são extremamente importantes
para a realização da democracia constitucional, uma vez que através deles é que
a vontade dos cidadãos se converte na vontade estatal. Eles são hoje elementos
imprescindíveis para o exercício do direito de participação política, uma vez que
sem eles não poderia existir um Estado democrático representativo42.
Contudo, em que pese o papel fundamental dos partidos no sistema de
representação, cumpre mencionar que estes se encontram desacreditados. Houve
um distanciamento entre o povo eleitor e os partidos políticos. Tal fato culmina
na constante diminuição do eleitorado, tendo em vista que o povo, diante da
descrença nos valores, ideais e conduta dos seus representantes políticos muitas
vezes se abstêm de exercer seu poder de controle mediante o voto, conduzindo a
38
39
40
Idem, p. 275, 276 e 278.
Idem, p.272.
DAHLBERG, Stefan, Does context matter – The impact of electoral systems, political parties and individual characteristics on voters perceptions
of party position. Disponível em: <http://ac.els-cdn.com/S0261379413000218/1-s2.0-S0261379413000218-main.pdf?_tid=ca2b9e20-d21b-11e3b3be-00000aab0f6c&acdnat=1399050434_3b642d631fad982785feb1732ad8368c>, acesso em: 02.05.2014.
41
AMARAL, Maria Lucia, A Forma da República: Uma introdução ao Estudo do Direito Constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 242
e 245.
42
SERRA, Francesc de Carreras, <Los Partidos em nuestra Democracia de Partidos>, in Revista Española de Derecho Constitucional, Ano 24, nº
70, 2004, p. 112/113.
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97
uma crise na democracia constitucional no século XXI.
Conclusão
Do presente conclui-se que os contornos da democracia constitucional
apresentados por Loewenstein em muito retratam a realidade do Estado
constitucional democrático do século XXI. Tanto para o autor como no cenário
atual, a concentração do poder põe em risco a democracia. O poder deve estar
distribuído entre os seus titulares e sobre ele devem incidir mecanismos de controle
que mantenham a balança dos freios e contrapesos, os quais devem pautar-se
naqueles exercidos pelos próprios titulares de poder entre si.
Contudo, determinados abusos de poder que se apresentam na sociedade
atual, principalmente nas relações partidárias, tem conduzido a um afastamento
do povo para com o sistema de representação, o que, consequentemente, gera uma
crise no sistema democrático. Fator que inclusive foi antevisto por Loewenstein.
Nesse diapasão, percebe-se que a necessária e real democracia ainda
encontra alguns obstáculos para sua efetivação. Contudo, o mínimo para sua
existência baseia-se em uma correta e equilibrada distribuição do poder político, a
qual deve ser pautada na soberania popular.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. Editora
Malheiros, São Paulo, 2001.
AMARAL, Maria Lucia. A Forma da República: Uma introdução ao Estudo do
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Almedina, Coimbra, 2003.
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Mário Soares. Gradiva, Lisboa, 1999.
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. 2ª Ed., Coleción Demos, Editorial
Ariel, Barcelona, 1976 (trad. Alfredo Gallego Anabitarte, Verfassungslehre, 1959).
MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? A questão fundamental da democracia. 3ª Ed.,
Editora Mas Limonad, São Paulo, 2003 (trad. Peter Neumann, Porto Alegre, 1998).
Artigos
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00000aab0f02&acdnat=1399047171_d86bfc90116d271d6dc5f8510fcf1ead>, acesso
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SERRA, Francesc de Carreras. <Los Partidos em nuestra Democracia de Partidos>, in
Revista Española de Derecho Constitucional, Ano 24, nº 70, 2004, pp. 91-126.
CRÍTICA AO PÓS-POSITIVISMO NA QUESTÃO
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: UMA
REFLEXÃO PAUTADA NA BUSCA PELA
ADEQUAÇÃO DA CIÊNCIA DO DIREITO À
SOCIEDADE PÓS-MODERNA
Pedro Guilherme Borato 1
Resumo
Encaramos, na atualidade, um cenário de grande inefetividade dos direitos fundamentais
e as teorias pós-positivistas são tidas como uma das grandes armas na busca por essa
efetivação. Podemos, frente ao corte epistemológico sugerido, inferir que quando falamos
das teorias jurídicas pós-positivistas estamos falando das Teorias da Argumentação.
São construções que se anunciam como superadoras, teorias que aparecem para inovar
o ambiente jurídico. Entretanto, como é o objetivo aqui, buscaremos refletir sobre isso,
sobre essa proposta “inovadora” desses pensamentos pós-positivistas, com o intuito de
utilizar da crítica e da reflexão para realmente analisar qual é o real papel dessas novas
teorias no campo jurídico e seu potencial de transformação.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia do direito; Teorias da Argumentação; Direitos
Fundamentais.
Introdução
Podemos, aqui, frente ao corte epistemológico sugerido, inferir que quando
falamos das teorias jurídicas pós-positivistas estamos falando das Teorias da
Argumentação. Essas teorias supracitadas consubstanciam-se em uma das mais
atuais reflexões do campo jurídico, mas, vale lembrar, a argumentação está presente
no Direito desde a Grécia antiga. São teorias neoaristotélicas, onde o direito é
resultado de um processo argumentativo baseado na Tópica e na Retórica.
São teorias que se anunciam como superadoras, teorias que aparecem para
inovar o ambiente jurídico. Entretanto, como é o objetivo aqui, buscaremos refletir
sobre isso, sobre essa proposta “inovadora” desses pensamentos pós-positivistas,
com o intuito de utilizar da crítica e da reflexão para realmente analisar qual é
o real papel dessas novas teorias no campo jurídico. Assim, utilizar-se-á de três
métodos básicos de pesquisa jurídica. O primeiro, o método dialético, com base
no materialismo histórico, tem a pretensão de demonstrar uma tese através da
contradição de ideias, partindo de uma visão geral, do todo, para chegar a uma
visão especifica, permitindo compreender a evolução e construção dos fenômenos
sociais (Pozzebon, 2004, p. 29). O método sistemático2 também será utilizado na
medida em que ele possibilita uma melhor comunicação entre os diversos sistemas
jurídicos e, por fim, o método dedutivo-bibliográfico, que consiste numa pesquisa
1
2
Mestrando em Direito pela Universidade Estadual Paulista e bolsista Capes. Email: [email protected].
Método debatido nas aulas do curso Fundamentos Metodológicos da Pesquisa Jurídica ministrado pelo Prof. Boucalt junto ao Programa de PósGraduação em Direito da UNESP no ano de 2013.
100
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
no campo teórico acerca de diferentes teorias já existentes, procedendo-se por meio
das deduções, a fim de analisá-las e compará-las.
As teorias da argumentação possuem um grande compromisso político
com a efetivação dos Direitos Fundamentais. Outro ponto que objetiva-se aqui a
alcançar é a reflexão sobre a possibilidade real de essas correntes contribuírem para
uma melhor e maior efetivação das garantias fundamentais. Essas teorias, que tanto
fundamentam o neoconstitucionalismo, são um dos instrumentos básicos para esse
objetivo trazido por esse novo movimento. A questão dos Direitos Fundamentais,
de primeira, segunda e terceira geração (para utilizar da sistematização de José
Afonso da Silva) é um dos temais mais atuais e controversos da Ciência do Direito.
A constante negação material e, a mais presente ainda, afirmação formal desse
grupo de direitos trás uma contradição que, cada vez mais, angustia aqueles
que lidam com esse campo jurídico, a de uma cada vez maior distância entre as
normas jurídicas (ou pelo menos, entre o que se concebe como Direito na nossa
contemporaneidade) e a realidade. O debate de vanguarda é aquele da teoria da
argumentação aplicada à teoria dos direitos fundamentais. Queremos contribuir
para o debate.
Positivismo, Normativismo, Kelsen e Hart
A corrente pós-positivista advém de uma das duas grandes correntes que
disputam a primazia quanto à compreensão sobre as diversas manifestações
ontológicas do direito: o jusnaturalismo e o positivismo jurídico. Elas se
consubstanciaram em um binário filosófico que, de certa maneira, tem aprisionado
toda a investigação da filosofia e da Ciência do Direito. Parece que, fora dessas
duas correntes, não tem sido possível refletir sobre o âmbito jurídico e sua Ciência.
Dessa maneira, tanto jusnaturalismo quanto o juspositivismo são, por assim dizer,
as duas principais vertentes do pensamento jurídico. A primeira se expressa
na forma de um idealismo abstrato ou metafísico. A segunda vêm se expor sob
uma espécie de empirismo, que dependendo da versão, apresenta-se como puro
empirismo lógico ou pode mostrar-se como um empirismo concreto ou sociológico
(Machado, 2009, p. 44).
A disputa entre essas duas correntes jusfilosóficas resultou em uma atual
predominância das ideias positivistas. Principalmente após a intervenção de
Kelsen no campo, os paradigmas do positivismo imperam na nação jurídica até
os dias atuais. Kelsen surge após o caos metodológico que é trazido pela escola
do Sociologismo Jurídico, onde direito é fato social e não mais lei escrita, como na
escola da Exegese. Kelsen irá surgir descobrindo a dimensão normativa do direito,
estabelecendo que direito não é fato social, não é lei escrita e, sim, norma posta.
Com isso ele consegue estabelecer um instituto que está entre o abstrativismo
do Jusnaturalismo e a rigidez formal da Exegese. É uma mutação, uma nova
corporificação da Escola da Exegese, mas estabelecendo um novo parâmetro de
conhecimento do jurista: a norma. É reconhecido que o Direito possui diversas
dimensões, mas ao jurista cabe apenas conhecer a norma, todas as outras dimensões
estariam incluídas nela. A norma jurídica é onde encerra-se todo o conteúdo do
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
101
direito, para Kelsen.
Assim, desenvolve-se a metáfora da moldura, onde pode-se pintar o que
se quiser, mas sempre dentro da moldura. Ou seja, o conteúdo da norma é de
infinitas possibilidades, desde que ela esteja incorporada ao sistema normativo. É
possível até que a moldura seja ampliada, caso uma decisão fora da moldura seja
formalmente confirmada, o que dá certa capacidade de absorção e integração ao
sistema. Decorrente dessa perspectiva, o método lógico-formal se impõe. Já que o
que importa é o sistema normativo, pois nele estaria contido todas as dimensões do
direito, essa é a metodologia que irá possibilitar esse “mergulho” nas formalidades
jurídicas.
Essa perspectiva ignora o fato de o direito ser um fenômeno ideológico,
ignorando as interferências políticas e, sobretudo econômicas que estão embutidas
nesse processo de produção das normas. Ou seja, a estruturação do direito a partir
da ótica normativista mascara a real intenção de dominação e de manutenção dos
modos de produção capitalistas que estão inseridos nesse plano de sistematização.
Como aponta Antonio Machado (2009, p. 43):
(...) uma vez materializada no processo produtivo, a ideologia da
classe hegemônica se projeta no ordenamento jurídico que cuida
imediatamente de formalizar aquela hegemonia política dominante,
fazendo-o por meio das leis que garantem a coesão e o consenso sociais
em torno dos projetos socioeconômicos da classe dirigente. Assim, o
ordenamento jurídico positivo confere ao projeto da classe dominante
um caráter legal que o torna, só por isso, um projeto legítimo e universal,
já que opera a completa abstração dos antagonismos sociais, absorvidos
ou “institucionalizados” pela ordem jurídica, como se esta fosse mesmo
uma legítima expressão objetiva e neutra do interesse geral.
O projeto de Kelsen criou uma lógica jurídica perfeita porque excluiu tudo
que não é norma e criou um sistema de derivação e fundamentação, a partir da
norma hipotética fundamental, criando um lógica com fulcro na formalidade que
torna-se inquestionável. Esse rompimento com a realidade, essa formalização,
transforma o direito em um órgão de manutenção da ordem vigente. A norma
aparece como filtro, pois supõem-se que toda a interferência política, econômica,
antropológica e etc., já foi depurada pelo legislador. O erro está em se esquecer
que o próprio legislador faz parte do jogo social de classes, ou seja, o problema é
anterior ao processo de produção normativa. Aqui escancara-se o vínculo genético
com a escola napoleônica (Exegese).
O normativismo elabora (ou reelabora) o quadrado paradigmático do
Positivismo e se mantém dentro dele, e assim, contribui para a manutenção da ordem
neoliberal burguesa. Cumpre ressaltar quais são os paradigmas do positivismo,
com o intuito de demonstrar e marcar muito bem onde e como opera esse sistema
e contribuir para a verificação se as correntes pós positivistas realmente rompem
com esse quadrado ou se não, apenas dão novas formas, apresentando como
novidade o que não é, dando apenas uma nova roupagem para o positivismo.
Para chegar aos paradigmas, necessários se fazem quatro questionamentos
102
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
fundamentais. O que seria o direito (ou seja, qual o objeto), como é que se conhece o
direito (qual o método), qual seria o fundamento do direito (qual é a validade dele) e
qual a finalidade do direito (qual é seu uso). A análise e verificação de tais paradigmas
é extremamente necessária para a pauta dos Direitos Fundamentais. Eles possuem
um grande problema de inefetividade, ineficácia, uma alta taxa retórica. Isso devese, predominantemente, ao fato de que a interpretação e a aplicação dos direitos
fundamentais está preso ao quadrado paradigmático do positivismo. Enquanto
o direito estiver ali circunscrito é impossível mudarmos o panorama atual dos
direitos fundamentais. Assim, devemos observar os direitos fundamentais sob
uma perspectiva crítica-realista, de observá-los como necessidades ou carências
fundamentais do homem. Objetivando fugir da “síndrome fossória” dos teóricos
que, perdidos em divagações metafísicas, resguardam-se em sua redoma de vidro,
esquecendo-se de aplicar suas reflexões na prática, no mundo real.
Pois bem, a primeira questão necessária para encontrar os paradigmas,
de qual seria o objeto do direito, no positivismo/normativismo é a norma. A
segunda questão, sobre o método, é o lógico-formal. A estruturação sistemática
acima exposta fundamenta tais respostas. Esses são os paradigmas científicos,
que dão a estrutura científica atual ao direito. O jurista, no normativismo, deve
estudar a norma e o método de conhecimento dela é o lógico-formal, analisando o
sistema, o ordenamento jurídico pelas suas regras de derivação e fundamentação.
Obviamente, acreditando que ali na norma estão contidas todas as interferências
das outras dimensões do direito. Os paradigmas externos, de dimensão política,
podem ser conhecidos pelas terceira e quarta perguntas. Assim, o paradigma
político do normativismo é o Liberalismo (ou o neoliberalismo para ser mais atual)
e o paradigma filosófico é o Analítico-cartesiano (pautado na dissecação da norma,
já que com a justificação desse paradigma, dever-se-ia separar cada parte do todo
para analisar e conhecer a realidade).
A partir desses paradigmas constrói-se o que poderíamos chamar de
cativeiro do positivismo, onde a grande maioria do que se produz em direito está
inserido. Interessante ressaltarmos a presença de Hart nesse contexto. Ele traz uma
novidade para o normativismo (mas ainda se mantém dentro dele), ele apresenta
as normas/regras primárias, que criam obrigações, as normas/regras secundárias,
o que poderia se apresentar como o direito material. Em Hart o direito possui um
vinculo necessário com a moral, e com isso ele reconhece a interferência da moral
no campo jurídico, com normas ideológicas e psicológicas. Isso é de demasiada
importância porque é através de Hart que começam a se desenvolver as Teorias da
Argumentação, ou seja, as teorias pós-positivistas.
Pós-Positivismo
As teorias que se agrupam dentro dessa nomenclatura “pós-positivismo”,
compõem hoje o que é tido como a vanguarda do pensamento jurídico.
Desdobramento do pensamento de Kelsen, especialmente orientada por Hart, em
que a grande novidade é reconhecer que o Direito não é somente Norma, o Direito
tem sim uma dimensão Valorativa, dimensão moral.
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
103
Há um avanço dentro do quadrado paradigmático: o direito está aberto
para a moral e isso vai impulsionar a ideia de que o direito é o produto de uma
argumentação. O método, portanto, é argumentativo. O direito é produto de uma
jurisprudência argumentativa. É o neopositivismo. São teorias que surgem após o
fracasso do jusnaturalismo e do colapso do positivismo jurídico. Um dos pontos
de maior destaque é a busca por consolidar os princípios jurídicos como itens
de caráter normativo. É aqui um dos pontos mais interessantes nessa tentativa
de conectar a moral com o mundo jurídico. Ao valorizar os princípios, ele busca
inseri-los nas cartas constitucionais no intuito de concretizar essa normativização
deles.
Pós-Positivismo surge então como uma designação provisória e genérica
de um ideário difuso. Na qual pode-se notar ideias de justiça compreendida
além do conteúdo normativo e igualdade material mínima para os sujeitos de
direito. Vinculados a uma reestruturação da teoria dos direitos fundamentais
e da redefinição da relação entre valores, princípios e regras, aspectos da nova
hermenêutica que devem estar em conexão com esse novo método argumentativo.
Ronald Dworkin é um dos maiores responsáveis por essas inovações relacionadas
aos princípios. Ao compreender regras e princípios dentro do gênero norma ele
passa a admitir influências extra-normativas no manuseio dessas normas. Ou seja,
ele passa a enxergar influências externas no momento de confecção normativa e
também no processo de uso dessas normas. Os princípios carregam forte carga
ética e moral, ao reconhecer os princípios como instrumentos normativos, admitese que essa carga passe a funcionar dentro dos sistemas. Segundo Dworkin (2007, p.
285), a Constituição funde questões jurídicas e morais, fazendo com que a validade
de uma lei ou norma dependa da resposta a problemas morais complexos, como
o problema de descobrir se uma determinada lei respeita a igualdade inerente a
todos os homens.
Outro interessante jurista que atua dentro do campo das teorias da
argumentação é Chaïm Perelman. Segundo ele, se uma ciência do direito pressupõe
posicionamentos, tais posicionamentos não serão considerados irracionais quando
puderem ser justificados de uma forma razoável, graças a uma argumentação cujas
forças e pertinência reconhecemos. É verdade que as conclusões de tal argumentação
nunca são evidentes, e que não podem, como a evidência, coagir a vontade de todo
ser razoável. Elas só podem incliná-la para a decisão mais bem justificada, aquela
que se pauta na argumentação com maior poder de convencimento, embora não
se possa afirmar que ela exclua absolutamente qualquer possibilidade de escolha.
Assim, a argumentação apela para a liberdade espiritual, embora seu exercício não
seja arbitrário. É através dela que podemos conceber um uso razoável da liberdade,
ideal que a razão prática se propõe em moral, em política, mas também em direito
(Perelmann, 1996, p. 480).
Ou seja, o primeiro reconhece a influência da moral na formulação e na
validade das normas jurídicas e o segundo demonstra claramente a transferência
metodológica pretendida, não basta apenas uma lógica formal perfeita, é necessário
que, através de um processo argumentativo, se demonstre a racionalidade de
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qualquer “operação lógica” no campo do direito.
As atuais teorias da argumentação possibilitam a identificação de três
objetivos de conhecimento. A Teoria da Argumentação pode ser concebida
como teoria de instruções normativas do procedimento do juiz, seria uma teoria
prescritiva da argumentação. Por outro lado, é possível concebê-la segundo o
critério de compreensão, interrogando-se então sobre o sentido da argumentação
jurídica em geral, uma teoria interpretativa da argumentação, ou ainda, é possível
entender tal teoria empiricamente. Nessa última forma, ela investiga de que modo
a argumentação jurídica se apresenta na prática jurídica (Schneider; Schroth, 2009,
p. 523).
Por fim, antes de terminar de fornecer essa ideia geral sobre o que seria
a teoria da argumentação, é necessário trabalhar com as construções de outro
importante expoente de tais ideias, Robert Alexy. Podemos, por exemplo, nos
apoiar em tal jurista para verificar a utilização dessas teorias na solução dos “hard
cases” ou casos difíceis. Para Alexy, a inclusão da moral no direito parece poder
resolver alguns problemas, realizando a pretensão de uma correção institucional
dentro do próprio direito. Um exemplo disso são os casos difíceis, concebendo a
moral como algo incluso ao direito, as razões morais podem e devem participar
na justificação das decisões jurídicas quando as razões normativas se esgotam.
Mas outros problemas como os limites do direito também poderiam receber a
contribuição da interferência da moral em sua solução (Alexy, 2008, p. 48).
Não é possível, neste breve ensaio, explanar com profundidade as ricas
teorias pós-positivistas. A nossa proposta aqui é demonstrar um mero esboço de
algumas mudanças que se operaram na concepção juspositivistas em seu interior.
Por exemplo, o reconhecimento da influência da moral no campo jurídico, a
utilização do método argumentativo, o reconhecimento da normatividade dos
princípios, ou seja, as diversas inovações que tais teorias trazem. Ainda compõe
essa ampla gama de competentes teóricos, pensadores como Luhmann e sua teoria
da legitimação pelo procedimento, onde o direito é o resultado de um processo
legítimo de argumentação, que tende a produzir resultados (decisões) legítimos.
Para atingir tal objetivo os argumentos devem ser razoáveis e os interessados
possuírem certa igualdade material.
Direitos fundamentais e pós-positivismo
A questão dos Direitos fundamentais é hoje um problema relacionado
à efetividades desse grupo de direitos. A fase de seu reconhecimento já foi
ultrapassada, e, pelo menos no mundo ocidental e dentro de nossa concepção
de direitos fundamentais, o reconhecimento está garantido dentro da maioria
das cartas constitucionais dos países. Entretanto, o mero reconhecimento não é
decisivo para sua real efetivação. Poderíamos aqui, junto a Oscar Correa, trabalhar
a questão do potencial subversivo dos direitos fundamentais, mostrando que a luta
pela sua efetivação acarreta uma luta contra a superação dos modos de produção
capitalista e também contra os paradigmas atuais da Ciência jurídica pautada no
juspositivismo. A não efetivação desse grupo de direitos faz parte da ontologia da
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105
nossa sociedade excludente atual. Nas sociedades capitalistas de mercado direitos
também são mercadorias, incluindo os direitos fundamentais.
Se tomarmos por base a divisão proposta por José Afonso da Silva,
poderíamos classificar os direitos fundamentais por geração. Na primeira geração,
estariam os direitos base da luta da Revolução Francesa, ou seja, os direitos
individuais. Os direitos relacionados ao balizamento da atuação estatal, os direitos
políticos, entre outros. Na segunda geração, encontramos os direitos sociais, a
categoria supraindividual dos direitos, como por exemplo, os direitos trabalhistas,
os direitos relacionados ao Estado de bem estar social. E, por final, os direitos
fundamentais de terceira geração, os direitos difusos, como o meio ambiente
saudável e da correta administração da justiça. Não entraremos aqui na Teoria
da aplicabilidade de tal autor. Já que, aqui, consideramos que essas teorias tem
um viés extremamente conservador, castrador, fundamentador de um discurso
jurídico que conspira até contra a eficácia jurídica dos direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais tem uma grande carga valorativa, ética, política,
pois eles envolvem definição do papel do Estado, formas de organização da
sociedade, o papel das políticas públicas. Por isso, o processo de interferência de
aspectos ideológicos no campo dos direitos fundamentais pode ser considerado
como inevitável. O que há para se refletir, é que essa ideologização pode ser dar
para expansão e concretização dos direitos fundamentais ou para a sua supressão
e mesmo sonegação completa desse grupo de direitos.
Consideramos que devemos nos ater ao princípio da máxima eficácia dos
direitos fundamentais. Uma eficácia intensiva e universal que não é verificável
hoje em nossa sociedade, principalmente no ambiente latino americano, onde
observamos a concretização do absurdo, de uma realidade que em nada se
confunde com o explanado em nossas legislações. Com relação às teorias da
argumentação, percebemos que elas podem ser um importante instrumento para
a busca de efetivação de direitos fundamentais. Entretanto, sua atuação é limitada,
não sendo elas a “salvação” para a atual situação da inefetividade desses direitos.
Um local onde elas podem ser aproveitadas é na questão da colisão de direitos
fundamentais. Nenhum direito fundamental é absoluto (eles tendem ao absoluto),
eles podem colidir. Nos casos onde, por exemplo, encontramos a colisão entre o
direito à propriedade e o direito à moradia digna, essas teorias e sua metodologia
possuem um grande potencial de colaboração, especialmente através da utilização
dos princípios com poder de norma, já que eles são mandamentos de otimização e
devem ter efetivação alargada na maior medida possível. Mas, como é verificável
empiricamente, essas teorias não possuem um poder de efetivação geral, apenas
de uma efetivação fragmentada. Atuam apenas nos casos individualizados, não
possuindo uma força vinculativa de toda a ordem jurídica.
Essa nova hermenêutica proporcionada pelas teorias do pós-positivismo
é uma hermenêutica que está submetida ao paradigma filosófico racionalista,
submetida ao paradigma político do liberalismo. Derivada da hermenêutica
platônica, de caráter extremamente metafísico, e da hermenêutica filosófica de
Gadamer e de Schileiermacher configura-se como uma espécie ainda presa aos
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paradigmas positivistas (lembrando, é uma perspectiva pós-positivista e não antipositivista).
Portanto, apesar de ter um importante papel na resolução de alguns
problemas relacionados à colisão de direitos fundamentais, seu socorro ao
problema de inefetividade dos direitos fundamentais termina por aí. Atendendo
a demandas fragmentadas, essas decisões possuem efeitos politicamente banais.
Assim, essa nova hermenêutica é incapaz de garantir uma efetividade geral desse
grupo de direitos.
As Teorias da Argumentação são interessantes, mas são presas aos
paradigmas do positivismo. Como já exposto, a principal causa de inefetividade
desse grupo de direitos é a manutenção desse cativeiro, desses paradigmas. Se essas
teorias operam dentro desse sistema, então a possibilidade de uma revolução no
campo dos direitos fundamentais com base no pós-positivismo, é nula. Mais uma
vez verificamos o poder de reformulação desses paradigmas, eles se camuflam,
eles aparecem com novas vestimentas, de nova maquiagem, mas, internamente,
ontologicamente, continuam iguais.
Apesar de bem intencionado, esse grupo teórico não apresenta nenhuma
mudança capaz de possibilitar uma libertação. Não se nega o esforço e a riqueza
de tais teorias e, como já afirmado, nem sua possibilidade de colaboração com a
causa dos direitos fundamentais, no entanto não é uma reviravolta no universo do
direito. Continuamos no império do positivismo jurídico. Essa corrente se adapta,
modifica-se externamente, molda-se e remolda-se para atender aparentemente
demandas justas, mas não se modifica o suficiente a ponto de romper seus
paradigmas básicos. Verificamos isso na metamorfose da Escola da Exegese em
Normativismo e, atualmente, observamos o surgimento das teorias Pós-positivistas
que não inovam nem em sua nomenclatura, o que demonstra a aceitação desse
grupo aos ditames positivistas, ao conformismo do senso comum teórico dos
juristas que falava Warat.
Conclusão e Propostas
Como explana Boaventura de Sousa Santos (1998, p. 9): “a época em que
vivemos deve ser considerada uma época de transição entre o paradigma da ciência
moderna e um novo paradigma, de cuja emergência se vão cumulando sinais, e a que,
à falta de melhor designação, chamo ciência pós-moderna”. Devemos buscar o novo,
o que está fora dos padrões da modernidade, porque nem a modernidade está
sólida. A dialética está presente em tudo, com certeza o que foi produzido pela
modernidade de vantajoso será incorporado pela dialética, mas o que não for útil
será superado. Essa superação parte da constatação de diversos problemas trazidos
por certas assertivas, por algumas certezas, que não se demonstraram tão corretas
assim. Devemos começar a propor soluções para as sociedades pós-industriais que
estamos cada vez mais inseridos. O direito pode e deve contribuir para isso.
A cultura jurídica fornecida pelo normativismo que orientou todo o
pensamento jurídico liberal durante o Século XX, não obstante a obsolência de seus
paradigmas e a inadequação das práticas jurídicas dela resultantes, compõe o ethos
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cultural dos juristas, cujo viés positivista continua a mantê-los numa posição de
suposta neutralidade e equidistância em relação aos conflitos coletivos, que cada
vez mais vêm exibindo um conteúdo ético-político em razão dos antagonismos de
classe que normalmente estão na base de tais conflitos (Machado, 2009, p. 272). Ou
seja, uma das alterações necessárias para uma superação da atual situação caótica
passa também pela forma pela qual o próprio direito é transmitido e ensinado.
As teorias pós-positivistas forçam os limites do cativeiro do positivismo,
atentam contra algumas de suas mais importantes bases sólidas, como é o caso de
seu método lógico-formal, entretanto não conseguem romper com a situação que
realmente mantém a condição atual da inefetividade dos direitos fundamentais.
As teorias da argumentação utilizam de um largo arcabouço, a filosofia da
linguagem. No entanto o limite do conhecimento deve ser empurrado para além
do conhecimento linguístico, o limite pode ser o agir, a práxis.
Práxis aqui entendida como o agir consciente, o agir orientado a um fim.
Essa possibilidade de utilização de uma filosofia do agir, da práxis, pode ser uma
alternativa para a fuga desse cativeiro do positivismo jurídico. Junto com a luta
social e política, com a adoção da perspectiva dos vitimizados pela ineficácia dos
direitos fundamentais, de uma concepção materialista, pautada na realidade, com
os “pés no chão”. O direito não pode sozinho ser o protagonista de toda uma
alteração da realidade, mas detém o condão de contribuir para isso.
A mudança social da sociedade pós-moderna passa também pela alteração
do papel da Ciência nessa sociedade. A reflexão hermenêutica torna-se, assim,
necessário para modificar a ciência de hoje, de um objeto estranho, distante e
incomensurável com a nossa realidade, em um objeto familiar e próximo, que não
falando a linguagem de todos os dias, detém a capacidade de se comunicar, de
transmitir suas valências e seus limites, seus objetivos e o que consegue realizar
aquém e além deles. Que seja um objeto que ao se comunicar, seja concebido em
uma relação sujeito-sujeito e não mais em uma relação sujeito-objeto e que, dessa
maneira, se transforma em um parceiro da contemplação e transformação do
mundo (Santos, 1998, p. 11).
A Ciência do direito deve tomar conhecimento dessa realidade supracitada.
O formalismo jurídico, o distanciamento entre o que é dito nas normas e o que é
verificado na realidade, entre outras tantas coisas como a demora da prestação
jurisdicional, compõe o cenário de deslegitimação de uma Ciência do direito que
já não consegue mais oferecer respostas satisfatórias para as demandas sociais (se
algum dia realmente conseguiu). Um cenário de irracionalidade, principalmente
quando observamos a situação dos direitos fundamentais.
A práxis jurídica exigida pela nova legalidade vigente no Brasil implica
uma mudança de mentalidade jurídica, mudança que pode decorrer tanto da
própria prática dos juristas, pelo manejo de uma nova legalidade progressista
e democrática; quanto da substituição dos paradigmas tradicionais do ensino
jurídico, o normativismo/tecnicista e o método lógico-formal, que, como se
verificou, são paradigmas equivocados e inteiramente superados pela realidade
social e política de um país caracterizado por profundas injustiças sociais e pela
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ausência de uma democracia real3, ausência essa que o direito vem contribuindo
para existir, negando a efetividade alargada e real dos direitos fundamentais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. El concepto y la naturaleza del derecho. 1ª Ed. Madrid: Marcial Pons,
2008.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 2ª Ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2007.
MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2ª Ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2009.
PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São
Paulo: Martins Fontes, 1996.
POZZEBON, Paulo Moacir Godoy. As ciências humanas. In. POZZEBON, Paulo
Moacir Godoy. (Org.). Mínima metodológica. Campinas, SP: Editora Alínea, 2004.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. 5ª Ed. Porto:
Edições Afrontamento, 1998.
SCHNEIDER, Jochen; SCHROTH, Ulrich. Perspectivas da aplicação da norma jurídica:
determinação, argumentação e decisão. In: HASSEMER, Winfried; Kaufmann,
Arthur. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas.
Trad. Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbekian, 2009.
3
MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 277.
A INTERCONSTITUCIONALIDADE DA
UNIÃO EUROPEIA: TENDÊNCIAS DE UM
CONSTITUCIONALISMO PÓS-NACIONAL
Francielle Vieira Oliveira 1
Resumo
Este trabalho tem por objetivo investigar o processo de constitucionalização dos tratados
da União Europeia, por referência à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União
Europeia. Buscar-se-á destacar, nesta medida, o papel dos tribunais (nacionais e Europeu)
no processo de construção do constitucionalismo europeu – que deverá ser abordado, de
forma mais adequada, no âmbito de uma teoria da interconstitucionalidade. É a partir
de um contexto de interconstitucionalidade (interjusfundamentalidade) que se pretende
atribuir uma nova função ao constitucionalismo pós-nacional europeu.
PALAVRAS-CHAVE: Constitucionalismo da União Europeia; Tribunal de Justiça da
União Europeia; Interconstitucionalidade; Direitos fundamentais.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo testemunhou o
nascimento de um novo fenómeno político que estimula a cooperação e a integração
dos Estados. A partir de então uma nova configuração das Relações Internacionais
permitiu que outras formas de poder passassem a exercer maior importância no
cenário político-económico mundial (SILVA; COSTA, 2013, p. 7-8).
O constitucionalismo, seguindo esta tendência de transformação espacial
do poder – que antes se circunscrevia exclusivamente ao território de um Estado
–, passou também a ganhar relevo nos estudos académicos, principalmente no
que se refere ao seu papel após a desestabilização do modelo estatal vestefaliano.
Ora, se antes a Constituição organizava o poder de um Estado, o surgimento dos
sistemas jurídicos para além da esfera nacional e a difusão do poder para outras
instâncias de governo (não estatais) têm desafiado o constitucionalismo moderno
relativamente à sua função organizacional e integrativa.
A União Europeia (UE), representante desse novo paradigma, mudou
a órbita elíptica da teoria da constituição, que tradicionalmente gira em torno
do Estado, para passar a abranger outros novos atores sistémicos – de modo a
adaptar-se ao aparato/aparelho administrativo e judicial difuso da UE, que não
está concentrado em apenas uma única instância ou fonte de poder, mas conta
com a participação de vários núcleos parcelares de poder. O constitucionalismo
europeu não corresponde exatamente, nesta medida, à noção de uma Constituição
nacional – tanto que a tentativa de instituição de uma Constituição Europeia
verificou-se fracassada2.
1
Advogada; Doutoranda em Ciências Jurídicas Públicas pela Universidade do Minho (UM), com bolsa atribuída pela CAPES; Pesquisadora do
Centro de Estudos em Direito da União Europeia da Escola de Direito da UM; Mestre em Direitos Humanos pela UM; Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU); Especialista em Direito Empresarial e Graduada em Direito pela UFU. Email: [email protected].
2
O falhanço dos referendos em França e nos Países Baixos desarticulou qualquer iniciativa tendente à instituição de uma “Constituição Europeia”.
Dos 69,34% eleitores que participaram do referendo em França, 54,68% disseram não ao Projeto Constitucional Europeu. Em proporções semelhantes, nos Países Baixos, 63% dos eleitores que votaram, 61,6% recusaram aceitar a Constituição (DUARTE, 2012, p. 11).
110
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Muito embora a elaboração de uma “Constituição para a Europa” pudesse a
priori apresentar-se como marco concreto de construção de um constitucionalismo
europeu – ou, segundo Jürgen Habermas (2007, p.183-190), a possibilidade de
caminhar rumo a um “constitucionalismo pós-nacional”, há que se perceber que a
mera transposição de modelos – ou seja, o modelo de Constituição nacional – pode
não ser a medida apropriada para a estrutura institucional da União Europeia, que
não se confunde com um Estado dos Estados, nem com uma simples organização
internacional3.
O fato de não existir uma Constituição europeia nos moldes de
uma Constituição nacional não significa, no entanto, a inexistência de um
constitucionalismo europeu. Pese o Tratado de Lisboa (assinado após o chumbo
do Tratado Constitucional) tenha-se despido dos atavios constitucionais (Hino
à Alegria de Beethoven, a bandeira de fundo azul e estrelas douradas, o dia da
Europa e a divisa “unidade na diversidade”), ainda assim manteve em larga
medida as soluções vertidas no projeto de uma Constituição Europeia (DUARTE,
2012, p.13).
Mas não seria correto afirmar que o processo de constitucionalização
da União Europeia teve início propriamente dito com o Tratado de Lisboa. A
constitucionalização dos tratados da União Europeia, de acordo com Francis
Snyder (2003, p. 63), sempre envolveu uma extensa rede de atores, tais como as
instituições da União, os tribunais, os parlamentos e a administração pública
dos Estados-Membros; bem como os advogados, principalmente quando
interpretam o direito da União. Além desses atores, percebemos, no entanto, que a
jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) é que melhor tem
ilustrado a existência de um “direito constitucional europeu”. O reconhecimento
do processo de constitucionalização do direito da UE pelo TJUE deu-se, assim,
logo na apreciação de seus primeiros casos.
No caso Van Gend en Loos4, por exemplo, o TJUE estabeleceu pela primeira
vez os limites da soberania dos Estados-Membros, ou seja, determinou que a UE
(antes Comunidade Europeia) exerce poderes soberanos através dos quais afeta
tanto os Estados-Membros, quanto os seus cidadãos. O TJUE entendeu nesse caso
que uma leitura teleológica dos Tratados da União Europeia impunha que o direito
comunitário não constituísse um acervo de deveres para os particulares, mas que
também se encontrava na origem de direitos na sua esfera jurídica. Vejamos:
A Comunidade institui uma nova ordem jurídica de direito internacional,
em proveito do qual os Estados limitaram, se bem que em domínios
restritos, os seus direitos soberanos, e de que os sujeitos são não apenas
Estados-Membros mas igualmente os seus cidadãos (TJUE C-26/62 –
1963).
3
Na definição de Clive Archer (2001, p. 44-45), a UE assume a posição de uma nova realidade político-jurídica, incapaz de ser explicada somente
pelo direito interno ou pelo direito internacional, uma vez que a ordem jurídica seria intermediária, localizada entre a esfera jurídica interna e a
esfera jurídica internacional.
4
Processo C-26/62, de 5 de Fevereiro de 1963.
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111
Ora, como os Estados-Membros limitaram voluntariamente suas
prerrogativas soberanas em determinados domínios, a União viu-se então habilitada
a impor obrigações e a conferir direitos aos particulares, independentemente da
vontade dos Estados-Membros. A partir de então a ideia de Estado soberano e
a ideia de Constituição – que “atravessaram de mãos dadas durante toda a
modernidade” – passaram a ser confrontadas com uma nova fórmula política
pós-moderna, que representa uma diferente forma de agregação do poder político
para além do Estado (PIRES, 1997, p. 7). A primazia das Constituições nacionais
deixava naquele momento de ter o sentido de outrora, vez que uma “nova fonte de
poder” se impunha no espaço europeu (SILVEIRA, 2008, p. 43).
No caso Flamínio Costa c. ENEL5, o TJUE diferenciou a natureza do Tratado
de Roma dos demais tratados internacionais. De acordo com o entendimento
proferido nesse acórdão, a UE é uma ordem jurídica própria, ou seja, é uma
Comunidade (hoje uma União) de duração ilimitada, dotada de atribuições
próprias e, mais precisamente, de poderes reais decorrentes de uma limitação
de competências ou de uma transferência de atribuições dos Estados para a
Comunidade/União.
O TJUE clarifica-nos que os Estados-Membros, através dos tratados
constitutivos, criam uma ordem jurídica autónoma, cujos efeitos se dão no âmbito
interno dos Estados-Membros sem a sua intermediação (isto é, nas relações jurídicas
entre os Estados-Membros e o seus nacionais), diferentemente dos tratados
internacionais, cujas normas produzem efeitos jurídicos no plano internacional.
No caso Parti Ècologiste Les Verts6 o TJUE qualificou os tratados
constitutivos como a “carta constitucional de base” da então Comunidade e a
reconheceu como uma “Comunidade de Direito”, aludindo à expressão “Estado
de Direito”. Não se pretendia com isso sugerir que a então Comunidade (hoje
União Europeia) corresponde a um Estado, simplesmente se reconhecia a
existência de uma ordem jurídica fundamental vinculativa de todos os poderes
públicos europeus. A intenção do acórdão residia em vincular a União (e os
Estados-Membros quando aplicam o direito que dela emana) a um conjunto de
normas jurídicas fundamentais que condiciona e delimita o seu espaço próprio
de atuação. O princípio da “Comunidade de Direito” viria a funcionar como um
limite à atuação das instituições (e dos Estados-Membros) e como garantia dos
direitos dos particulares afetados pelas disposições europeias.
Importa frisar, todavia, que o constitucionalismo europeu não compreende
apenas a ordem jurídica supranacional europeia, mas é antes constituído por vários
sistemas jurídicos com fontes e legitimidades diversas. O processo de construção
do constitucionalismo europeu resulta, por isso, sobretudo, do diálogo entre todas
as Constituições dos Estados-Membros e os tratados constitutivos, produzindo,
como diria Miguel Poiares Maduro (2006), num constitucionalismo plural – entre
outras razões porque radica numa pluralidade de fontes constitucionais.
5
6
Processo C-6/64, de 15 de Julho de 1964.
Processo C-294/83 de 23 de Abril de 1986.
112
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Assim sendo, tanto a ordem jurídica nacional e a ordem jurídica europeia
definem e limitam o exercício do poder público, bem como atribuem um conjunto
de direitos e obrigações aos seus cidadãos (respectivamente cidadãos nacionais
e europeus). A União Europeia pode ser compreendida, por conseguinte, como
um sistema de poder dividido, no qual cada nível de governo – nacional ou
supranacional – reflete uma ou várias identidades políticas dos cidadãos que a
constituem, correspondendo cada uma destas identidades a um nível diferente
da sociedade (PERNICE, 1999, p. 703-750). O constitucionalismo europeu não
estabelece assim uma relação de imposição entre as suas ordens jurídicas, mas
provoca antes uma crescente influência (da base para o topo) na natureza da
ordem jurídica europeia, principalmente porque esta última ancora seus valores e
princípios nas tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros (MADURO,
2006, p. 290).
Esta ideia de pluralidade de constituições reporta a uma teoria proposta
nos anos noventa, que ficou conhecida como multilevel constitutionalism, atribuída
a Ingolf Pernice (1999, p. 703-750). Buscava-se a partir desta teoria descrever e
compreender o processo de estabelecimento de novas estruturas governativas –
complementares e sobrepostas às formas existentes. Em suma, o constitucionalismo
a vários níveis tinha, pois, o objetivo de entender a realidade europeia como um
sistema composto e complexo de autoridades constitucionais.
A fórmula do multilevel constitucionalism, entretanto, tem sido criticada
por alguns autores, entre eles Luigi D’Andrea (2009) e Leonard Besselink (2012).
Alegadamente porque, ao destacar a organização dos poderes públicos em níveis,
correspondendo então a uma hierarquização de poderes, esta fórmula do multilevel
constitutionalism não se adequa à ordem jurídica europeia. Em razão disso,
sugerem a compreensão do constitucionalismo europeu não por referência a um
constitucionalismo multinível, mas sim como um “constitucionalismo internível”
ou ”interconstitucional”.
José Joaquim Gomes Canotilho (2008) defende, neste sentido, que
o constitucionalismo europeu deve ser estudado a partir de uma teoria
da interconstitucionalidade, ou seja, a partir da existência de uma rede de
Constituições nacionais a conviverem no mesmo espaço político. Gomes Canotilho
vale-se da metáfora das redes para que seja possível perceber a articulação entre
as constituições e os poderes constituintes com fontes e legitimidades diversas –
algo que só uma teoria da interconstitucionalidade é capaz de captar, uma vez
que o direito constitucional nacional encontra-se em certa medida limitado para
responder aos desafios daí advindos.
O termo interconstitucionalidade foi introduzido na doutrina jurídica
portuguesa por Francisco de Lucas Pires que, com base em Peter Häberle, afirmava
que no desenvolvimento da história constitucional europeia está em causa mais a
osmose e a harmonização de princípios da ciência jurídica constitucional à escala
pan-europeia do que um verdadeiro direito comum. Segundo Lucas Pires:
Coloca-se a tónica mais numa espécie de teoria da interconstitucionalidade
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113
do que num novo constitucionalismo. Demanda-se uma adequada
correlação entre as várias Constituições. A unidade a decantar é só a de
uma cultura “jurídica” e “constitucional europeia”, não ainda a de uma
Constituição e de um Direito Constitucional próprios e unos (1997, p.
17-18).
A partir da teoria da interconstitucionalidade, José Joaquim Gomes Canotilho
visa então estudar uma forma específica de interorganização jurídica, política e
social, buscando compreender a dinâmica das relações interconstitucionais, ou
seja, da concorrência, da convergência, da justaposição e do conflito de várias
constituições e de vários poderes constituintes que coexistem em um mesmo
espaço político (CANOTILHO, 2008, p. 267-268). Neste contexto, os Tribunais
europeus – nomeadamente o TJUE e os Tribunais nacionais – são confrontados
com a questão de saber como os vários sistemas jurídicos se inter-relacionam, e
como eles próprios podem estabelecer relações mútuas enquanto aplicadores e
intérpretes das normas europeias.
Destaca-se, portanto, o papel dos Tribunais (nacionais e europeu) na
evolução contínua da relação entre as ordens jurídicas dos Estados-Membros e
a ordem jurídica europeia. Enquanto o TJUE zela pela ordem jurídica europeia,
determinando no caso concreto a aplicação de um conjunto de direitos e obrigações
decorrentes diretamente do ordenamento jurídico europeu, a garantia desses
direitos e obrigações resta assegurada, no entanto, pelos tribunais dos EstadosMembros.
Observa-se, assim, que ordem jurídica europeia não foi criada para
substituir a ordem jurídica dos Estados-Membros, visto que os tribunais nacionais
não perderam a sua tarefa de “guardiães das Constituições nacionais e dos direitos
nelas consagrados” (CANOTILHO, 2013, p. 526). O TJUE simplesmente surge para
assegurar a correta aplicação e interpretação do direito da União, com o escopo
de garantir a sua observância uniforme em todo o espaço jurídico europeu. Deste
modo, tanto o TJUE e os Tribunais nacionais não excluem o funcionamento um do
outro, mas todos possuem uma responsabilidade entrelaçada.
Ao decidir a compatibilidade do direito da União com as normas nacionais,
o TJUE determina, no entanto, a precedência do primeiro. Os Tribunais nacionais
são confrontados, nesta medida, com o seguinte conflito: têm de assegurar, em
última instância, que a ordem jurídica nacional é observada por todo o território
do seu Estado; e, ao mesmo tempo, espera-se que o direito da União seja observado
nos respectivos Estados-Membros sob as mesmas condições estabelecidas pela
ordem jurídica europeia. É esta atribuição de tarefa aos Tribunais nacionais, que
muito bem reflete a atual natureza da União Europeia, onde repousa o potencial
conflito entre normas nacionais e europeias (AMTENBRINK, 2012, p. 36-37).
Numa abordagem mais profunda do caráter complexo da relação entre
ordens jurídicas de fontes e legitimidades diversas, o foco do debate é deslocado,
entretanto. Ao invés de focar nos objetivos concorrentes e até mesmo conflitantes
entre os Tribunais nacionais e o TJUE, verifica-se que a atenção volta-se para questões
relacionadas à cooperação mútua e o diálogo entre os tribunais (AMTENBRINK,
114
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
2012, p. 37). Nesta perspectiva, a relação dos Tribunais nacionais com a ordem
jurídica europeia e o TJUE não deve ser definida em termos antagónicos, mas antes
deve referir-se a “um sistema de equilíbrio e cooperação, que não pode ser definido em
termos de hierarquia” (KIRCHHOF, 1999, p. 225-242).
Do exposto, pode-se afirmar que o constitucionalismo europeu não pode
ser visto isoladamente das ordens jurídicas constitucionais dos Estados-Membros,
pois estas últimas fazem parte inclusivamente da ordem jurídica europeia. Os
tribunais nacionais atuam neste contexto como tribunais da União – sem dúvida
descentralizados, mas em estreita cooperação com o TJUE. Neste sentido, conforme
preleciona Miguel Poiares Maduro:
As decisões judiciais nacionais sobre direito da União Europeia não
devem ser vistas como meras interpretações e aplicações nacionais das
normas europeias, mas sim como parte de um único sistema que requer
coerência e compatibilidade (2006, p. 292).
Uma das formas de aferir o grau de cooperação/diálogo entre os tribunais
nacionais e europeu pode ser feita através da frequência com que os primeiros
reenviam para o TJUE. Entende-se por reenvio prejudicial, nos termos do art.º 267.º
do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o mecanismo processual
através do qual o tribunal nacional, confrontado com uma questão de direito da
União, suspende a instância e solicita ao TJUE que se pronuncie sobre qualquer
destas questões (MACHADO, 2010, p. 575). A importância do reenvio judicial
reside na função do TJUE em garantir a aplicação e interpretação uniforme do
direito da União. Ora, numa União que se pretende de Direito como a União
Europeia, a ordem jurídica por ela instituída não seria verdadeiramente eficaz se
fosse aplicada diferentemente nos 28 Estados-Membros da União. Uma norma de
direito da União deve ser aplicada e interpretada, portanto, do mesmo modo tanto
em Portugal, como na Alemanha, na França, na Itália e em seus outros EstadosMembros.
No âmbito da aplicação de normas de direitos fundamentais, a regra é,
entretanto, consoante o disposto no art.º 53.ª da Carta dos Direitos Fundamentais
da União Europeia (CDFUE)7, àquela que ofereça um nível de proteção mais
elevado ao titular do direito em causa – ou seja, num contexto de pluralidade de
fontes normativas de direitos fundamentais, como por exemplo as Constituições
nacionais, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e a Convenção
Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) , os operadores judiciários dos EstadosMembros devem assimilar que num contexto de interconstitucionalidade não basta
solucionar o problema de direitos fundamentais à luz da Constituição nacional –
pois também integram o seu ordenamento jurídico normas não só nacionais, mas
também europeias e internacionais.
7
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia integra um protocolo anexo, com idêntica força jurídica à dos Tratados da União Europeia e caráter vinculativo, por remissão do artigo 6.º do Tratado da União Europeia. Neste sentido, veja: CUNHA, 2014, p. 150.
8
A União Europeia poderá aderir à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, mediante decisão unânime dos Estados e ratificação pelos
parlamentos nacionais (protocolo anexo n.º 5). Neste sentido, veja: CUNHA, 2014, p. 150.
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
115
Assim sendo, o TJUE ao analisar o reenvio que diz respeito à aplicação
e interpretação de uma norma de direito fundamental, produz uma espécie de
efeito erga omnes de ato interpretado, devendo ser aplicada, no mesmo sentido, por
todos os tribunais de todos os Estados-Membros. Deste modo, em decorrência do
precedente vinculativo, todos os cidadãos europeus podem beneficiar dos reenvios
feitos pelos Tribunais nacionais.
Importa ressaltar, contudo, conforme como nos alerta Alessandra Silveira, que:
Isso não significa que em Portugal é possível invocar disposições da
Constituição alemã ou belga nos litígios abrangidos pelo direito da
União; mas significa que a partir do momento em que o TJUE reconhece
que o nível de proteção mais elevado aplicável a uma dada situação
concreta é o da Constituição alemã ou belga, em Portugal, por força do
precedente vinculativo, todos beneficiam daquele padrão de proteção
considerado o mais elevado. Mas para atingir-se tal nível de proteção
mais elevado é desejável que todos os cidadãos europeus possam
efetivamente beneficiar das tradições constitucionais comuns que
venham ser reconhecidas como o padrão de jusfundamentalidade
aplicável pela ordem jurídica da União aos casos concretos. E por isso
é tão importante que os tribunais nacionais dialoguem com o TJUE
quando esteja em causa, no âmbito de aplicação do direito da União, a
invocação de um direito fundamental simultaneamente protegido pela
sua Constituição, pela CDFUE e pela CEDH” (2013, p. 442-443).
É no âmbito da interconstitucionalidade, portanto, que o constitucionalismo
europeu ganha legitimidade e pretende garantir o nível de proteção mais elevado
aos seus cidadãos. Os tribunais nacionais devem estar, por conseguinte, em
constante diálogo com o TJUE, para que em todo o espaço da União as normas de
direito fundamentais sejam aplicadas igualmente e de forma a garantir o melhor
padrão de interjusfundamentalidade para todos os cidadãos europeus.
Por todo o exposto, verificamos que o constitucionalismo europeu revelase essencialmente em um constitucionalismo de valores e princípios, indo de
encontro à nova função do constitucionalismo moderno. Conforme explica
Giacinto della Cananea, a nova função do constitucionalismo moderno, tal como o
constitucionalismo da União Europeia, reside em expressar valores:
[…] holding that national and EC institutions act within a coherent institutional
system, within which the power is divided among two or more levels, it should
not be forgotten, however, that although the task of limiting power certainly lies
at the heart of constitutionalism, modern constitutions fulfil other tasks, too,
notably that of expressing values (2010, p.285).
Os valores constantes nos tratados, na CDFUE, nas Constituições dos
Estados Membros e na CEDH – que preveem direitos fundamentais a serem
interpretados e garantidos, no nível de proteção mais elevado, pela rede de
tribunais nacionais e Europeu – caracterizam, portanto, o constitucionalismo pósnacional (ou a interconstitucionalidade) da UE.
116
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
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118
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
O FATCA E OS ASPECTOS SOBRE
EXTRATERRITORIALIDADE DA LEI FISCAL
NORTE-AMERICANA
Thiago Silva Nogueira 1
Resumo
O presente trabalho irá abordar os principais aspectos inerentes ao Foreign Account
Tax Compliance Act (FATCA), uma lei elaborada em conjunto pela Receita Federal e o
Tesouro norte-americano, a qual versa sobre a obrigatoriedade de instituições financeiras
estrangeiras disponibilizarem para os Estados Unidos dados detalhados de contas
bancárias dos contribuintes norte-americanos, os quais possuem ativos financeiros nos
países de residências dessas instituições e não os declaram, assim, os Estados Unidos
visam combater a evasão fiscal, evitando com que haja uma perda de receita, através de
fortes sanções a essas instituições, se utilizando de métodos que, muitas vezes, podem
transgredir a sua competência jurídica.
PALAVRAS-CHAVE: FATCA; Extraterritorialidade; Evasão Fiscal.
Introdução
Em 2010 foi aprovada uma lei fiscal extraterritorial nos Estados Unidos,
denominada de FATCA (Foreign Account Tax Compliance Act), para evitar que
contribuintes norte-americanos ocultem ativos financeiros mantidos em contas
no exterior, exigindo que sejam relatadas as movimentações de suas contas
bancárias que se localizem fora do país. Os Estados Unidos, diferente dos demais
países desenvolvidos, se utilizam de alguns critérios para cobrar imposto sobre
rendimento de seus cidadãos, não levando em consideração os princípios da
territorialidade, da universalidade, elementos de conexão de residência e fonte.
Os princípios da territorialidade e da universalidade são de extrema
importância quando se trata de tributação internacional, pois tais princípios
devem ser observados pelos Estados para que não cometam falhas, agindo por
mera ambição arrecadatória. Também serão abordados os elementos de conexão
de residência e de fonte, os quais deverão ser observados pelos Estados quando
tributarem contribuintes que auferirem renda em seus territórios.
A dupla tributação internacional é o fenômeno que ocorre quando da não
observância desses e de outros preceitos, ou seja, quando dois ou mais Estados
tributam o mesmo indivíduo e o mesmo fato gerador, gerando um ônus indevido
ao contribuinte. Assim, o que se tenta evitar com o FATCA é a evasão fiscal, quando
os contribuintes se valem de artifícios ilícitos para não pagarem impostos sobre o
rendimento a nenhum Estado tributante.
Os Estados Unidos não só tributam os contribuintes residentes em seu
território como também os contribuintes que residem em outras partes do mundo,
1
Advogado e Mestrando em Ciências Jurídico-Políticas, menção em Direito Fiscal, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra –
Portugal.
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Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
não observando os princípios da territorialidade, bem como os elementos de
conexão. Com a entrada em vigor do FATCA, os Estados Unidos preveem uma
redução de evasão de receitas por parte de seus contribuintes, porém surgirão
algumas consequências, dentre elas os custos para a implementação da lei, a fuga
de capitais, ou seja, instituições financeiras deixarem de investir nos Estados
Unidos, o risco com a privacidade dos correntistas, dentre outras.
Dessa forma, analisaremos a questão da legitimidade norte-americana para
a criação de uma norma obrigacional como o FATCA, uma vez que a nação se
vale do seu poderio econômico para fazer com que tal norma tenha um resultado
economicamente significativo.
Noções introdutórias
Considerando os princípios gerais e os conceitos do Direito Fiscal2, o
presente capítulo tem por objetivo traçar o caminho em âmbitos gerais para assim
chegar ao entendimento e também à análise da extraterritorialidade da lei fiscal
norte-americana e do FATCA. Partindo dos princípios escolhidos, que devem
ser observados na tributação internacional e por fim analisar as consequências
advindas da ambição dos Estados em arrecadar fora de suas fronteiras, quais
sejam o fenômeno da dupla tributação internacional do rendimento, bem como a
ocorrência da elisão e evasão fiscais.
Princípio da territorialidade e da universalidade
O princípio da territorialidade, para Schoueri (2005), se traduz na ideia da
delimitação da competência tributária de um Estado conforme o aspecto territorial
do fato gerador e não propriamente o território da entidade tributante. Assim,
fundado na soberania territorial, entende-se pelo citado princípio que a tributação
incidirá sobre fatos ocorridos em território de um determinado país ainda que
o beneficiário do rendimento seja não-residente, ou seja, que não resida em
determinado país permanentemente.
A territorialidade tornou-se uma exigência a um Estado, por mais que seja
soberano, pois aqui não se discute soberania, para que somente possa tributar
fatos que possuam um elemento de conexão com seu ordenamento. O elemento
de conexão é uma das principais ferramentas para a construção da estrutura
de conflitos. O mesmo é capaz de identificar determinada situação tributária,
determinando a aplicação das leis tributárias do ordenamento jurídico a que de
determinada nação. Nesse sentido, os elementos de conexão podem ser divididos
em duas categorias: subjetiva ou objetiva. A relação subjetiva refere-se às pessoas,
tal como a residência ou nacionalidade. A relação objetiva, no entanto, tem relação
direta às coisas e aos fatos.
Para o assentamento e a análise do princípio da territorialidade, segundo
Alberto Xavier (2009), pressupõe a diferenciação de três fatores, sendo estes
fundamentos basilares para a formulação do referido princípio, tais como:
2
Ver: NABAIS, José Casalta. Direito Fiscal. 7ª Ed. Editora: Almedina, Coimbra, 2012.
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
121
territorialidade em sentido positivo e em sentido negativo; territorialidade em
sentido material e em sentido formal.
Assim, o princípio da territorialidade em sentido positivo consiste na
aplicabilidade de leis fiscais a todos os indivíduos estabelecidos em território de
um determinado Estado, sendo nacionais ou estrangeiros, ou seja, em sentido
positivo consiste em afastar a nacionalidade para que esta não afaste ou não motive
a tributação. Por outro lado, o sentido negativo traduz a concepção de que as leis
fiscais de um Estado não podem ser aplicadas ou produzirem efeitos em outro
Estado, não sendo permitido o desencadeamento ou a produção de efeitos das
normas estrangeiras.
Assim, para Tôrres (2001), o sentido formal do princípio da territorialidade
significa que apenas no território da ordem jurídica em que se integra é que a
execução coercitiva da legislação tributária é suscetível. Portanto, na conclusão de
Tôrres (2001), a territorialidade somente é acordada quando há um efetivo contato
entre o fato-evento, seus elementos de conexão e o Estado, o qual pretende exercer
sua competência tributária.
Por sua vez, o princípio da universalidade ou da totalidade dispõe que não
importa ao fisco saber de onde ou como foram auferidos rendimentos passíveis
de tributação. O citado princípio autoriza o alcance da norma tributária a fatos
ocorridos fora do território do Estado que exerce sua competência tributária.
Diferencia-se do princípio da territorialidade, pois este último exige elemento
de conexão com o sujeito passivo. Dessa forma, Geraldo Neto & Valentim (2012)
explicam que fatos ocorridos fora do Estado podem ser tributados por este, nesse
sentido, qualquer país pode tributar fatos geradores praticados por não residentes
fora dos limites do seu território, desde que haja conexão com seu ordenamento.
Elementos de conexão: residência e fonte
O elemento de conexão residência significa que um Estado somente terá
competência de tributar o rendimento que teve origem em seu território, não se
confunde com o princípio da territorialidade, uma vez que aquele vincula seu
conteúdo à noção de território. Levando em consideração o elemento da fonte e o
princípio da territorialidade e havendo uma composição entre esses dois, permite
que um Estado tribute tanto o indivíduo/empresa residente, independendo da
localização da fonte, bem como, o rendimento, independendo a residência do
mesmo.
Neste azo, encontra-se uma dicotomia entre duas classificações de países,
os desenvolvidos e os em desenvolvimento, pois antigamente ocorria que os
Estados menos desenvolvidos eram o local da fonte e os mais desenvolvidos
eram o local da residência. Assim, segundo Geraldo Neto & Valentim (2012), os
países exportadores de capital passaram a adotar o critério da nacionalidade ou
residência para o exercício do poder de tributar, enquanto países importadores de
capital defendem o critério fonte de produção ou pagamento.
Nesse sentido, por exemplo, os países membros da OCDE (Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que é composta, em sua
122
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
maioria, por países desenvolvidos, adotam o regime de tributação da residência,
diferente do que ocorre com países da América Latina, tipicamente importadores
de tecnologias e investimentos, que tributam a fonte.
O fenômeno da dupla tributação internacional da renda
A dupla tributação internacional ocorre quando os Estados se utilizam
de leis que contenham elementos de conexão distintos para tributar causando
conflitos nas relações tributárias, ou seja, tributando a renda de um mesmo sujeito
simultaneamente. Nesse sentido, a OCDE conceitua dupla tributação como o
resultado da angariação de impostos idênticos em mais de um Estado, sobre o
mesmo fato gerador, sobre um mesmo contribuinte e período de tempo.
De tal forma, a OCDE distingue dupla tributação jurídica da dupla tributação
econômica, uma vez que aquela se refere à cobrança simultânea de tributos,
levando em consideração o aspecto das quatro identidades (sujeito, objeto, período
tributável e tributo), bem como para haver a dupla tributação econômica não é
necessário que haja a identificação de sujeitos, apenas que o objeto a ser tributado
seja um mesmo rendimento em determinado período de tempo por Estados
soberanos. Assim, para evitar a dupla tributação internacional da renda, os Estados
se valem das convenções internacionais, pois estas diminuem ou até impedem que
ocorra o fenômeno da dupla tributação da renda e, consequentemente, combatem
a evasão fiscal.
Os acordos internacionais para evitar a dupla tributação são basicamente
contratos entre os Estados, onde esses abrem mão de sua soberania a fim de que
esses acordos restem prevalecidos sobre as respectivas legislações internas dos
signatários. Por outro lado, pode haver também a chamada dupla não tributação
internacional de rendimentos, que, para Nabais (2013), essa situação ocorre
quando, por exemplo, há alguma circunstância impeditiva, seja por que haja uma
inexistência de regras tributárias sobre o assunto ou porque haja uma isenção, ou
ainda que exista algum acordo bilateral ou multilateral entre esses Estados fazendo
com que os mesmos não tributem determinadas situações fáticas.
No que tange aos tratados internacionais, esses, quando não contêm
cláusulas que estipulam que uma situação fática seja passível de tributação,
pode ter ocorrido uma falha na elaboração do acordo e omitido a situação ou,
simplesmente, ter sido esta falha intencional, demonstrando um caráter extrafiscal,
visando estimular determinado investimento, por exemplo. Dessa forma, além
de evitar a dupla tributação da renda, os tratados internacionais servem também
para minimizar a evasão fiscal, promover o investimento estrangeiro, promover
uma máxima igualdade na arrecadação dos Estados contratantes, dentre outros
aspectos.
Elisão e evasão fiscais
A Elisão Fiscal é uma forma lícita de o contribuinte conseguir reduzir a
sua carga tributária, também denominada de evasão fiscal lícita, aproveitando-se
de lacunas ou imperfeições da lei tributária, ou seja, oportunizam-se as situações
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
123
concretas em que a lei deixou uma margem para que o contribuinte se utilize de
uma economia fiscal, já que o legislador não pode ser oniprevidente deixando,
em consequência, malhas e aberturas no sistema tributário (Dória, 1971). Nesse
sentido, a elisão fiscal é uma forma de planejamento tributário, ou seja, caracterizase como uma forma preventiva de estudar os atos econômicos e jurídicos que o
agente econômico pretende realizar, o que é considerado lícito.
Assim, se o contribuinte tem o poder de escolher, dentre várias condutas,
aquela que, sob o aspecto fiscal, lhe seja menos onerosa, isto implica em liberdade
de eleger, entre várias formas ou estruturas lícitas de direito privado, a que
seja mais interessante sob o prisma da tributação (Prates, 1992). Dessa forma, o
planejamento tributário tem como finalidade a redução do valor a ser pago na
forma de tributos ao Estado, tributos esses que ainda não são devidos ao ente
tributante, com o objetivo de diminuir a carga tributária e, consequentemente,
maximizar os lucros (Nabais, 2013).
Ao contrário da elisão fiscal, a evasão fiscal é uma forma ilícita, pois ocorre
após a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, dessa forma já tendo
havido a incidência de algum tributo, ou seja, ocorre uma simulação de operações
com o dolo de evitar o pagamento do tributo devido ao fisco. Em sentido estrito,
evasão fiscal nada mais é do que uma fraude fiscal, em outras palavras, significa
dizer que há uma fuga ao pagamento dos impostos, que se concretiza num ato
ilícito e a fuga que consubstancie um abuso da liberdade fiscal própria de um
Estado fiscal, que alguma doutrina designa por elisão fiscal (Nabais, 2005).
Diante da inclusão do fato à norma tributária, Gubert (2002) explica que,
ocorrendo a hipótese de incidência, nasce a relação tributária, consubstanciada
na obrigação do contribuinte ou responsável em entregar aos cofres públicos
determinada soma em dinheiro. A situação do desrespeito (inadimplemento ou
pagamento a menor) gera a sanção pelo ato ilícito, a tomada coercitiva do valor
real do tributo pelo Estado.
Extraterritorialidade da lei fiscal norte-americana e o FATCA
Com a crise imobiliária que atingiu os Estados Unidos em 2008 ocorreu a
preocupação com o sistema financeiro, já que foi observada a sua fragilidade. Além
disso, com os valores anuais evadidos, que são atribuídos a algumas instituições
financeiras estrangeiras, servem de veículo off-shore e canalizam a evasão de
alguns contribuintes norte-americanos, portanto o Tesouro dos Estados Unidos e
o Internal Revenue Services (IRS – Receita Federal dos Estados Unidos) anunciaram
a intenção de criar uma lei com o objetivo de impedir a evasão fiscal3.
Assim, em 2010 entrou em vigor uma norma, conhecida como Foreign
Account Tax Compliance Act (FATCA), com a finalidade de combater a evasão fiscal
dos contribuintes norte-americanos ou de empresas por eles detidas, que residem
ou atuem fora do país, US persons, e que se utilizam das Foreign Financial Institutions
(FFI’s), ou seja, instituições financeiras não residentes nos Estados Unidos e,
3
Disponível em: <http://www.natlawreview.com/article/what-you-need-to-know-about-foreign-account-tax-compliance-act-s-fatca-impactnon-us>, acesso em 12 de abril de 2014.
124
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consequentemente, deixam de contribuir para com o Tesouro, o qual estima uma
perda anual de mais 345 bilhões de dólares por rendimentos não declarados desses
contribuintes.
Dessa forma, surgem diversas implicações que são geradas a partir da
aplicação do FATCA, uma vez que sendo ela uma lei de eficácia extraterritorial,
colide com a regulamentação nacional de outros países.
FATCA
Os Estados Unidos, ao contrário de muitos outros países desenvolvidos,
superam o critério da territorialidade fiscal e cobram imposto de renda de seus
cidadãos, até mesmo para aqueles que não residem em seu território. Assim,
os US persons são obrigados a declarar e pagar impostos sobre o rendimento de
todas as fontes. O FATCA foi introduzido como o Capítulo 4 do código da Receita
Federal (US Internal Revenue Code) que tem como objetivo prevenir, combater e
desencorajar a evasão fiscal de US persons que utilizam as Instituições financeiras
estrangeiras para camuflar os seus rendimentos e assim não contribuir com o fisco
dos Estados Unidos, através de relatórios avançados e fortes sanções.
Para alcançar este objetivo, a lei do FATCA trás imposições obrigacionais
às instituições financeiras e não financeiras estrangeiras de relatar às autoridades
norte-americanas informações de contas bancárias fora dos Estados Unidos
e outros ativos financeiros de US persons. A não adesão ao FATCA, por estas
instituições, passou a implicar, desde 1º Janeiro de 2014, uma penalização. Para
isso, as instituições deveriam ter-se registrado Internal Revenue Service até o dia
30 de junho de 2013, caso contrário, seriam consideradas “não participantes” e
teriam uma retenção na fonte de 30% (trinta por cento) a ser aplicada a todos os
seus rendimentos em ativos norte-americanos a partir de 2014, bem como para os
rendimentos das vendas desses ativos a partir de 20154.
A lei do FATCA exige que as instituições estrangeiras, para entrarem em
acordo com a Receita Federal dos Estados Unidos, identifiquem os correntistas e
divulguem os nomes dos titulares de contas, bem como seus endereços, balanços,
recibos e saques5.
É exigido das instituições financeiras estrangeiras, nos acordos com a
Receita Federal norte-americana, que identifiquem seus correntistas americanos
através da divulgação dos nomes, números de identificação de contribuinte,
endereços, extratos bancários, balanço das contas, recibos e saques efetuados. Os
pagadores, ou seja, os cidadãos que arcam com as despesas tributárias, fazem
pagamentos para as instituições financeiras estrangeiras, as quais são obrigadas a
reter 30% desses pagamentos brutos a título de condescendência. As instituições
financeiras estrangeiras, que são as próprias beneficiárias desses pagamentos, não
têm permissão de creditar ou reembolsar esses impostos retidos na ausência de um
tratado com os Estados Unidos6.
4
Disponível em: <http://www.natlawreview.com/article/what-you-need-to-know-about-foreign-account-tax-compliance-act-s-fatca-impactnon-us>, acesso em 12 de abril de 2014.
5
6
Disposto no art. 26 U.S. Code § 1471.
Disposto no art. 26 U.S. Code § 1474.
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125
Assim, esta penalização incide sobre qualquer rendimento fixo,
determinável, anual ou periódico (US FDAP)7 de origem norte-americana, que
inclui, entre outros, qualquer pagamento de juros, dividendos, rendas, prêmios
e salários, afetando não só os titulares de contas bancárias nessas instituições
financeiras que detenham ativos nos EUA, como a carteira de títulos e outros
ativos dessas instituições financeiras de origem norte-americana8.
São consideradas como instituições financeiras no âmbito do FATCA,
entre outras, as sociedades financeiras, seguradoras, os bancos, as entidades de
investimento (como sejam sociedades gestoras de fundos e outras sociedades
prestadoras de serviços) e organismos de investimento coletivo e outros veículos
de investimento.
Os US persons que detenham contas no exterior e que estas ultrapassem em
saldo o valor de UR$ 50.000 (cinquenta mil dólares), estarão sujeitos a preencher
um novo formulário e a não observância desta norma restará ao correntista o
pagamento de uma multa de 40% (quarenta por cento) sobre as subnotificações de
renda em um ativo financeiro que não é mantido em uma conta de custódia9.
O FATCA encerra uma brecha fiscal que os investidores estrangeiros tinham
usado para evitar o pagamento de impostos sobre os dividendos dos Estados
Unidos, convertendo a nomenclatura para “equivalentes a dividendos” através da
utilização de contratos de swap, que seria uma troca da taxa de juro utilizada, ao
invés de variável a taxa passaria a ser fixa. Assim, o FATCA é uma norma de eficácia
extraterritorial e conflita diversas vezes com o ordenamento jurídico de países
que possuem instituições financeiras que abrigam contas de US persons, contudo,
a Receita Federal norte-americana formulou um conjunto de atos de cooperação
com esses países a fim de se estabelecer uma interpelação intergovernamental que
diminuíssem as restrições legais inerentes aos países em que o FATCA traria um
choque no ordenamento jurídico, ou seja, atinente ao sigilo bancário e a proteção
de dados, uma vez que sucederia um reporte direto entre as autoridades fiscais de
cada um dos Estados e as autoridades fiscais norte-americanas.
Dessa forma, sérias implicações financeiras podem ocorrer caso uma
instituição financeira internacional, que abriga investimentos de contribuintes
norte-americanos, não anuir ao FATCA.
Execução internacional do FATCA
O FATCA, por ser uma norma de eficácia extraterritorial enfrenta obstáculos
legais, pois em alguns ordenamentos jurídicos estrangeiros a divulgação de
dados bancários de correntistas, por exemplo, pode ser ilegal. Assim, acordos de
cooperação internacional com os Estados Unidos para a aplicação do FATCA têm
sido assinados com alguns países, dentre eles França, Itália, Alemanha, Japão,
África do Sul, Suíça, Espanha e Reino Unido.
7
Conceito disponível em: <http://www.irs.gov/Individuals/International-Taxpayers/Fixed,-Determinable,-Annual,-Periodical-(FDAP)-Income>, acesso em 12 de abril de 2014.
8
9
Disposto no art. 26 U.S. Code § 1473.
Disposto no art. 26 U.S. Code § 6038D.
126
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
Contudo, as autoridades chinesas, por exemplo, expressaram que as
instituições financeiras do país não podem cumprir o FATCA diretamente, pois o
ordenamento jurídico da China não permite que os dados bancários de correntistas
abrigados no país sejam alvo de exposição10. Nesse sentido, os Estados Unidos
romperam negociações para a aplicação do FATCA com a Rússia, pois estes
exigem uma reciprocidade total nos dados fiscais, bem como, que haja a exclusão
da extraterritorialidade norte-americana antes de assinar o tratado de cooperação11.
Assim, a maioria desses acordos ainda não foi implementada, pois
necessitam, geralmente, passar por uma aprovação parlamentar dos países que
aderiram a ele, mas não necessitam dessa aprovação nos Estados Unidos, uma
vez que tais acordos são modelos pré-elaborados pelo país. O Tesouro norteamericano publicou acordos intergovernamentais (AGR) em modelos que seguem
duas abordagens. No Modelo 1, as instituições financeiras estrangeiras enviarão
um relatório de informações sobre as contas de US persons para a autoridade fiscal
do país onde residem e esta autoridade fiscal, em seguida, fornece as informações
para os Estados Unidos. Modelo 1 vem em uma versão recíproca, Modelo 1A, nos
moldes em que os Estados Unidos também vão compartilhar informações sobre os
contribuintes do país em que acordarem o Modelo 1 com o mesmo, e uma versão
sem reciprocidade, Modelo 1B.
No Modelo 2, as instituições financeiras estrangeiras se reportarão
diretamente a Receita Federal dos Estados Unidos, e o país onde elas residem
compromete-se a reduzir as barreiras legais para o envio dos relatórios. O Modelo
2 está disponível em duas versões: 2A sem Contrato de Permuta de Informações
Fiscais (TIEA) ou convenção de dupla tributação (CDT) necessário, e Modelo 2B
para países com uma TIEA ou CDT pré-existente12.
Dessa forma, países como Canadá, França, Alemanha e Espanha, por
exemplo, ratificaram o Modelo 1, onde obrigam as suas instituições financeiras
a enviarem relatórios das contas dos US persons às suas autoridades fiscais antes
dessas informações serem enviadas às autoridades norte-americanas. Países como
Holanda e Malta, por exemplo, ratificaram o Modelo 1A, no qual terão uma política
de reciprocidade de informações fiscais com os Estados Unidos. Ilhas Cayman
ratificaram o Modelo 1B, sem acordo de reciprocidade e, por fim, Suíça e Chile,
por exemplo, ratificaram o Modelo 2, onde as instituições financeiras desses países
se reportarão diretamente para com a Receita Federal norte-americana.
Com a anuência do Canadá, que foi o último país do G7 a ratificar o acordo
intergovernamental, todos os países do grupo são signatários de acordos que
diminuem as barreiras para a aplicação do FATCA. Em 2014, o Tesouro norteamericano anunciou a possibilidade de Estados que anunciaram agreements in
substance (acordos em substância) com os Estados Unidos, versando sobre as
10
Disponível em: <http://www.reuters.com/article/2012/11/28/us-asia-regulation-china-idUSBRE8AR0N720121128>, acesso em 13 de abril
de 2014.
11
Disponível em: <http://rbth.co.uk/news/2013/11/02/moscow_wants_tax_information_exchanges_with_us_to_be_mutual_balanced_31406.
html>, acesso em 06 de junho de 2014.
12
Disponível em <http://www.treasury.gov/resource-center/tax-policy/treaties/Pages/FAT.aspx>, acesso em 15 de março de 2014.
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127
condições de acordos intergovernamentais para a aplicação do FATCA, podem
ser considerados como tendo acordos até o final de 2014, permitindo que as
instituições financeiras alocadas nesses países, que incluem Brasil e Portugal,
tenham um prazo maior para aderirem ao FATCA13.
Limites no âmbito de eficácia do FATCA
Após a exposição do conceito e da execução internacional do FATCA, fica
o questionamento do limite ao âmbito de eficácia da lei do FATCA, uma vez que
as autoridades públicas de um país, no caso os Estados Unidos, podem ou não
exercer as suas prerrogativas de autoridade noutro país, ou seja, podem ou não
fazer intimações ou exigências tributárias ou até mesmo promover a execução de
créditos tributários do Estado a que pertencerem (Xavier, 2009). Portanto, cabe
aqui questionar até que ponto pode uma lei de um Estado produzir efeitos sobre
outro Estado violando, assim, a soberania deste, uma vez que a prática de atos no
território de outro Estado, como os que são propostos pelo FATCA, é vedada pelo
Direito Internacional Público (Xavier, 2009).
Nesse sentido, devido à economia norte-americana ser bastante
internacionalizada, coloca-se a questão do FATCA, onde contêm normas que
se traduzem em ordens proferidas pela autoridade administrativa dos Estados
Unidos, a fim de que sejam emitidas informações bancárias dos US persons (Xavier,
2009). Por isso, a questão se elucida no caso em que pessoas nacionais ou residentes
de um Estado e em que o objeto da ordem (norma em que a instituição financeira
estrangeira se obriga a enviar às autoridades norte-americanas informações fiscais
de contribuintes deste país) respeita a meios probatórios localizados em território
estrangeiros (Xavier, 2009).
Portanto, o FATCA refere-se a uma violação dos limites da soberania
territorial do Estado, uma vez que envolve violação de leis estrangeiras referentes
ao sigilo bancário, no qual sempre haverá um conflito entre o Estado em que detém
o poder de tributar sobre contribuintes que detêm contas no exterior e, além disso,
pode haver também limites impostos pela própria legislação interna do país em
que se exigem as informações fiscais, como é o caso da China (Xavier, 2009).
Aspectos desfavoráveis do FATCA
O governo norte-americano instituiu o FATCA, pois não tem autoridade
suficiente para impor a instituições financeiras estrangeiras tais determinações para
evitar a evasão fiscal. Com isso obrigou as instituições a relatar detalhadamente
as contas de US persons e as instituições que não aderirem aos acordos podem
perder certos privilégios com o governo norte-americano, como, por exemplo, a
retenção na fonte dos 30% sobre as receitas brutas. Contudo, isso deixa uma brecha
na legislação, uma vez que US persons podem abrir contas ocultas em um banco
estrangeiro que mantém apenas investimentos internacionais e não investimentos
nos Estados Unidos, isto é, iriam buscar instituições financeiras que não estariam
coagidas pelas sanções do FATCA.
13
Disponível em: <http://www.treasury.gov/press-center/press-releases/Pages/jl2343.aspx>, acesso em 06 de junho de 2014.
128
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Outro fator relevante de se ater, porém um pouco mais especulativo, é o dos
custos para a implementação da lei. O Tesouro norte-americano estima arrecadar
mais de 800 milhões de dólares por ano, contudo quem arcará com o ônus dessa
lei serão as instituições financeiras, pois um estudo afirma que haverá um custo de
UR$ 30 a UR$ 80 milhões de dólares por instituição14.
Com a sanção de reter na fonte 30% (trinta por cento) sobre receitas brutas
de ativos financeiros norte-americanos, isso abre uma possibilidade de uma fuga
de capitais, ou seja, as instituições financeiras poderiam deixar de investir em
ativos financeiros dos Estados Unidos, gerando um enorme prejuízo para a nação.
Com as diversas imposições do FATCA, as instituições financeiras se
tornariam extensão da Receita Federal dos Estados Unidos colocando em risco
a privacidade de nacionais de casa país. Além do mais, isso possibilitaria que
instituições financeiras se recusassem a abrir contas para US persons pelo grau de
complexidade que traria à instituição quando do envio do relatório obrigatório ao
IRS.
O FATCA afeta todos os cidadãos norte-americanos que residem tanto no
país como no exterior, até mesmo aqueles que não sabem que são considerados
cidadãos norte-americanos, como por exemplo, os nascidos fora dos Estados Unidos
que tem pais norte-americanos ou os que são casados com norte-americanos, por
esse motivo, tais cidadãos enfrentarão multas elevadas com o resultado da lei.
Os Estados Unidos são o único país desenvolvido que tributa cidadãos
que vivem no exterior e que não recebem quaisquer serviços ou benefícios norteamericanos, dessa forma, de 2008 a 2011 foi registrado um aumento significativo
de pessoas que renunciaram à cidadania norte-americana com o objetivo de fugir
da dupla tributação15. Com isso, estima-se que o FATCA produzirá uma média de
US$ 8,7 bilhões de dólares ao longo de 10 (dez) anos, qual seja um valor abaixo dos
US$ 40 bilhões de dólares ao ano almejados pela Receita Federal norte-americana16.
Conclusão
A necessidade dos Estados Unidos de implementarem uma política fiscal
para impedir e combater a evasão fiscal de seus contribuintes levou o Tesouro e
a Receita Federal norte-americana a criar o FATCA, uma lei fiscal extraterritorial
que obriga as instituições financeiras estrangeiras a disponibilizarem os dados
bancários dos US persons.
Contudo, existem algumas implicações geradas a partir da execução do
FATCA, no que diz respeito ao sigilo bancário dos contribuintes e a questão da
legitimidade norte-americana para exigir das instituições financeiras residentes
em outros países que disponibilizem os dados bancários dos contribuintes dos
Estados Unidos.
14
Disponível em: <http://www.financialtransparency.org/2011/09/28/you-do-the-math-adding-up-the-costs-of-complying-with-fatca/>,
acesso em 15 de março de 2014.
15
Disponível em: <http://world.time.com/2013/01/31/mister-taxman-why-some-americans-working-abroad-are-ditching-their-citizenships/>, acesso em 15 de março de 2014.
16
Disponível em: <http://www.fas.org/sgp/crs/misc/R40623.pdf >, acesso em 09 de junho de 2014.
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129
Assim, devem sempre ser respeitados os critérios de residência e fonte,
os quais expressam que nenhum país utilizará da sua soberania fiscal sem que
haja um elemento de conexão com seu ordenamento, bem como, o princípio da
territorialidade. Nesse sentido, o FATCA também pressupõe alguns aspectos
desfavoráveis levando a crer, por alguns especialistas, que a lei não é o melhor
caminho para que seja evitada a evasão fiscal.
O fato é que o FATCA já está sendo implementado e acordos internacionais
com diversos países já foram assinados, aguardando apenas a ratificação e a
entrada em vigor, bem como, o prazo dado para que as instituições financeiras
estrangeiras adiram ao FATCA sem que a penalidade imposta pela legislação seja
consumada.
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Almedina. 2009.
130
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
LA EPIGENÉTICA COMO ELEMENTO
MODIFICADOR DE LA PROTECCIÓN DE DATOS
GENÉTICOS
Miguel Vieito Villar 1
Resumo
La Protección de Datos de Salud ha influenciado al Derecho médico e, incluso, al ejercicio
mismo de la Medicina. Del mismo modo, las nuevas técnicas médicas han generado
nuevas preocupaciones para la privacidad, y nuevas formas de entenderla.
Esto acontece con el Derecho Genético. Las técnicas de cribado y análisis de ADN han
dado lugar a una práctica médica diferente seguida de cerca de una regulación jurídica
que evoluciona, en materia de consentimiento informado e información al paciente,
historia clínica y protección de la intimidad.
Las interacciones gen-ambiente, en este contexto, modificarán el paradigma de protección
de datos genéticos, de un modelo, el actual, basado en el código; a otro en el que la recogida
y tratamiento de datos ambientales obtendrán la misma protección jurídica que la cadena
de ADN en sí.
PALABRAS-CLAVE: Epigenética; Derecho genético; Salud; Derecho médico;
Protección de datos.
Ciencia y derecho genético: orígenes e influencia
Empezamos el presente trabajo ofreciendo una visión de principios sobre
la regulación del denominado Derecho Genético, definido este como la rama
específica del Ordenamiento Jurídico que se encarga de la regulación normativa
y las consecuencias jurídicas de los análisis genéticos, tanto en su vertiente clínica
como de investigación. Establecer un punto de partida y unas referencias nos
servirá para el desarrollo de los postulados subsiguientes.
Comenzaremos con unas proposiciones históricas. En este sentido,
debemos indicar que el fenómeno genético o de la manipulación genética no es
en absoluto novedoso. Es, por contra, muy anterior al momento en que el monje
austro-húngaro Gregor Mendel2 estableció sus conocidas leyes sobre la herencia.
Desde sus orígenes, el ser humano ha realizado, consciente o inconscientemente,
labores de selección genética. Veamos, como ejemplo, la enorme variedad de razas
caninas con las que contamos hoy en día: encontramos unas seleccionadas para el
pastoreo, otras hibridadas para conseguir tamaños minúsculos y otras, en cambio,
valoradas y seleccionadas por su fiereza como animales de defensa. No obstante,
la genética sí ha sido, hasta hace muy poco, algo desconocido en sus bases: no
1
Investigador en formación y perfeccionamiento en la Universidad de Santiago de Compostela: Licenciado en Derecho, colaborador del Grupo
de Investigación “Grupo de análisis jurídico-económico”. Correo electrónico de contacto: [email protected] / [email protected].
2
Su trabajo “Experimentos sobre hibridación de plantas” (Versuche über Plflanzenhybriden), sale a la luz en el año 1866. Se trata del primer estudio científico sobre los patrones de herencia entre generaciones. Mendel se centra en rasgos como el color, la forma de las vainas o el tallo de
plantas de guisante para explicar, por vez primera, su porqué así como el modo en que los diferentes rasgos se transmiten. Puede consultarse
mayo información sobre el origen de la genética a partir de Mendell en:http://education-portal.com/academy/lesson/gregor-mendel-geneticsexperiments-laws-discovery.html.
132
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entendíamos el fundamento bioquímico de las selecciones genéticas realizadas, el
porqué más allá de la mera observación.
No fue hasta bien entrado el siglo XIX cuando se empieza, muy tímidamente,
a estudiar el porqué de estos resultados3. Aun con todo, no es hasta la culminación
del Proyecto Genoma Humano4 que poseemos el libro que contiene buena parte de
las respuestas a nuestras preguntas. Y, llegado el año 2014, no podemos decir aun
que podamos entender todas y cada una de las letras y palabras de ese libro. ¿Qué
queremos decir con todo esto? La ciencia genética ha dado pasos impresionantes
en los últimos 10 años (más quizá que en los dos siglos anteriores), mas sigue
teniendo lagunas importantes: tenemos el libro, pero en ocasiones no sabemos
como leerlo o, en su caso, no desentrañamos por completo la trama.
La epigenética por su parte, como campo de estudio, es incluso más
novedosa. Si bien la creación del término se produce en 19425, es aun hoy en día
cuando se revela como un campo central de la investigación genética en seres
humanos, siendo una de las piedras de toque de la “medicina personalizada”. Así,
en los últimos años el número de estudios y ensayos centrados en epigenética se ha
disparado6, convirtiéndose, por derecho propio, en un campo de moda y con unas
potencialidades de futuro enormes.
El mundo del Derecho, por supuesto, se ha ocupado de la genética, pero
desde épocas muy cercanas en el tiempo. No será hasta el fin de la II Guerra
Mundial cuando el ánimo de regulación de las actividades de investigación
humana en general, y las genéticas en particular, se pongan de manifiesto en su
máxima expresión. Así, es el Código de Nuremberg7 el primero a nivel internacional
que abordará cuestiones bioéticas, y de influencia directa en la regulación actual
de la materia. A él debemos el reconocimiento de la figura del consentimiento
informado como mecanismo de salvaguardia de los derechos de los pacientes8 y
sujetos de investigación biomédica. Unos años más tarde, la Asociación Médica
Mundial aprobará la “Declaración de Helsinki”, que ahondará en los postulados
de Nuremberg9, creando principios básicos sobre ensayos clínicos, derechos de los
3
Los científicos Hugo de Vries, Carl Correns y William Bateson redescubren, entorno al año 1900, los trabajos de Mendel, aplicándolos, este
último, a la zoología y acuñando, entre otros, el término “genética”
4
El Proyecto se inicia en 1990, con una duración estimada de 15 años. No obstante su finalización se produce en el año 2003, coincidiendo con el
50 aniversario del descubrimiento de la estructura de doble hélice del ADN por Rosalin Franklin, James Watson, Francis Crick y Maurice Wilkins.
5
6
Si bien el concepto de “epigénesis” se remonta a Aristóteles, se atribuye al biólogo británico Conrad Hall Waddington la creación del término en 1942.
Bucando el término “epigenetics” en la base de datos de la Revista “Nature” no encontramos resultados para el año 2000, y solo encontramos 27
en 2001; en contraste, a la fecha de redacción del presente artículo (03/10/2014), encontramos un total de 560 referencias. Así mismo, las páginas
web dedicadas a la divulgación en materia epigenética han crecido en los últimos años. De este modo, podemos hoy consultar: http://www.
whatisepigenetics.com/www.epigenetica.es www.epigenetica.org www.epigeneticsandchromatin.com http://epigenome.eu/es , amén de otras
tantas webs de centros específicos de investigación epigenética o de publicaciones en tal campo.
7
En 1947 el Tribunal militar de Nuremberg establece los diez principios orientadores de las actividades de investigación biomédica en seres
humanos. Si bien no se trata de un Tratado Internacional, por lo tanto no firmado ni ratificado formalmente, sus postulados son de una influencia
decisiva en el panorama internacional.
8
La idea de recabar la aquiescencia del sujeto de la investigación o de la actuación médica no es original del Código de 1947. Ya encontramos
reflejo de la en la llamada “Primera Directriz Prusiana”, de 1891, antecedente del Código ético de Berlín de 1900. Así mismo, por su importancia
histórica, debemos señalar la creación del concepto de consentimiento informado por vía jurisprudencial. El Juez Benjamin Cardozo del Tribunal
Supremo de Nueva York dictamina en 1914 su famosa: Every human being of adult years and sound mind has a right to determine what shall be done with
his own body. No obstante, el Código de Nuremberg sí es el primer texto con un impacto más allá de las fronteras de un solo Estado.
9
Se trata de una suerte de “fusión” entre el Código de Nuremberg y la llamada “Declaración de Ginebra”, una propuesta de nuevo juramento
hipocrático, creada por la Asociación Médica Mundial en 1949.
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133
pacientes y participación de Comités Éticos de Investigación, cuya influencia se
deja notar aún hoy en día. Son, podríamos decir,las dos referencias fundacionales
de la bioética moderna.
Los textos a los que hemos hecho referencia son textos-marco, es decir, no se
ocupan en específico de la cuestión genética, si bien contienen precisiones a aplicar
en esta por analogía. Si existen textos específicos, si bien aparecen en el panorama
internacional aun con mayor retraso. El primero al que haremos referencia es, con
mucho, el texto más importante en materia bioética que se ha aprobado en los
últimos 50 años. Se trata del conocido como Convenio de Oviedo de 199710, en
cuyo Capítulo IV11 vemos ya referencias directas al fenómeno genético. El texto
nos aporta otra novedad respecto a los anteriores: aporta directrices en materia de
genética clínica o asistencial, más allá de la investigación. Así el referido Capítulo
IV, tras establecer el importante principio de no discriminación genética12, deja
fijados dos principios que se han repetido en las legislaciones europeas posteriores:
prohibición de selección de sexo (salvo para prevenir la aparición de patologías
ligadas al sexo) y la interdicción de las pruebas genéticas clínicas para finalidades
no terapéuticas.
El segundo de los textos específicos a mencionar es la Declaración sobre
datos genéticos13. Citamos este pues es, como veremos al tratar el fenómeno
excepcionalista, responsable del establecimiento de un régimen específico de
regulación de la confidencialidad de los datos genéticos. Además, y pese a que no
podemos referirnos por extensión a estas cuestiones, el texto aporta una regulación
esencial en materias tan importantes como el tratamiento de datos médicos, el
derecho a no saber por parte de los usuarios de lo Servicios de Salud o en consejo
genético (asesoramiento genético).
En definitiva y a modo de corolario diremos que el avance científico en
materia genética se ha acompañado, a nivel internacional, con una serie de textosmarco, de principios, que intentan dar unas normas de juego comunes a todos los
Estados. A mayores, existen una serie de normas con menciones expresas, pero
en términos aún así, demasiado laxos. Así, la regulación final del acto genético
y sus consecuencias jurídicas está, salvo excepciones mencionadas, en los textos
nacionales. Como puede haberse advertido no existe, en el panorama jurídico
internacional, una referencia directa al fenómeno epigenético.
La epigenética: como modificar los genes sin cambiar el código
¿Pero qué es exactamente la epigenética? ¿Qué esconde el término y por
qué debe interesar a un jurista? Bien, en este apartado intentáramos contestar
a la primera de las preguntas. El término en sí proviene de la unión de dos
10
El “Convenio para la protección de los derechos humanos y la dignidad del ser humano con respecto a las aplicaciones de la Biología y la
Medicina”, hecho en Oviedo el 4 de abril de 1997; entra en vigor para España el 1 de enero del año 2000.
11
12
13
El Capítulo referido lleva por título “Genoma Humano”.
Cfr art. 11 del Convenio.
Declaración Internacional sobre los Datos Genéticos Humanos, de 16 de octubre de 2003, de la Organización de las Naciones Unidas para la
Educación, la Ciencia y la Cultura (UNESCO).
134
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elementos: “epi-”, un prefijo griego que significa “sobre” o “por encima de”, y
“-genética”, es decir, referente a los genes; es decir, nos encontramos ante algo más
allá de la genética, algo más allá de los genes, un fenómeno que los trasciende.
Ofreciendo ya una definición técnica indicaremos que la epigenética “supone el
control genético por factores diferentes a la secuencia de DNA del individuo. Los
cambios epigenéticos pueden encender y apagar genes y determinar de qué modo
las proteínas son fabricadas14“. Esto es, factores extrínsecos al propio individuo
(factores ambientales, influencias de personas de nuestro entorno e incluso
comportamientos y conductas de nuestros ascendientes) pueden influir en la
expresión de sus genes y como estos funcionan.
¿Qué ocurre en los genes para que no se expresen, por influencia de factores
epigenéticos? Uno de los mecanismos de inactividad principal es la metilación15.
La interacción de un grupo metilo en la cadena de DNA impide al mecanismo
de transcripción hacer su labor, esto es, no puede haber posterior traducción del
mRNA en una proteína: el gen no se expresa, no “cumple su labor”16. Imaginemos
que el DNA es un libro que queremos leer. La metilación funciona como un clip
o una grapa entre varias páginas del libro: las letras siguen ahí, no hay alteración
del código pero aún así no podemos pasar las páginas para leerlas, es decir, no
podemos obtener la información que el clip encierra. Y esto puede ser determinante
y de una gravedad importante, habida cuenta de que ciertas patologías empiezan
a relacionarse, en este caso, con patrones de metilación. Para una mayor claridad
de la cuestión, ofreceremos algunos ejemplos de lo que implica la epigenética:
•
La epigenética es, en última instancia, el origen de la especialización
celular: todas nuestras células somáticas tienen la misma información, el mismo
ADN17 pero aún así unas son hepáticas, otras musculares y otras neuronales, con
una estructura y función determinada.
•
En cierto tipo de ratas se ha observado que las muestras de cuidado
de las madres a sus crías (a través de pequeños lametones) influyen en el modo
en que las crías, de adultas, reaccionan al estrés18. Del mismo modo, las crías que
han recibido tales cuidados, dan esos cuidados a sus crías: el comportamiento
“amoroso” produce cambios epigenéticos en las crías, cambios que no se han
transmitido ni por el óvulo ni por el espermatozoide que los originó.
•
La diabetes gestacional expone al feto a niveles altos de glucosa en
sangre. Si la descendencia fuese femenina, esa exposición sería la causa de una
mayor propensión a desarrollar, a su vez, diabetes gestacional19.
14
15
Simmons, D. (2008) Epigenetic influence and disease. Nature Education 1(1):6.
No es nuestra pretensión analizar todas las causas de cambios epigenéticos pero indicaremos que, además de la metilación, son causa de los
mismos la modificación de histonas y el ARN no codificante.
16
Para una mejor comprensión del funcionamiento bioquímico de la metilación, Vid: PHILIPS, T., The role of Methylation in Gene Expression,
Nature Education, 1(1): 116.
17
Si bien la aseveración no es del todo correcta: mutaciones o alteraciones en la transcripción del ADN en la división celular pueden causar ínfimas diferencias entre el ADN de una célula y el de sus progenitoras.
18
Vid. Fish, E.W et al. Epigenetic programming of stress responses through variations in maternal care. Annals of the New York Academy of Science
1036: 167-180.
19
Para mayor comprensión consultar: http://www.idf.org/sites/default/files/attachments/PB_EarlyOrigins_ES.pdf
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135
•
La epigenética explica también las diferencias existentes entre dos
gemelos idénticos (o monocigóticos)20. Ambos poseen exactamente el mismo ADN
pero podemos observar variaciones en su aspecto, en su comportamiento...
•
Un estudio de 2013 relaciona la exposición a la radiación ultravioleta
con la esperanza de vida en determinado tipo de diabetes21.
A modo de resumen podemos indicar que la epigenética es aquella
interacción gen-ambiente que puede provocar cambios en la expresión de un
genoma, sin haberse producido alteraciones en el código o la secuencia. Tiene
una incidencia enorme en la aparición de determinadas patologías (Síndrome
X-frágil o múltiples tipos de cáncer) y cada vez es mayor el número de estudios
que relacionan factores epigenéticos con patologías en las que antes se desconocía
tal influencia22.
La regulación española en materia genética
Hagamos un ligero impass. Hemos visto a grandes rasgos qué es la
epigenética y hemos dejado pendiente el contestar a qué importa esto a un jurista.
Para verlo en perspectiva, y para ofrecer una visión general a quien no posea
formación jurídica, veremos ahora como el Derecho español regula el fenómeno
genético. De este modo, estaremos en mejor posición de juzgar hasta qué punto las
interacciones gen-ambiente contribuirán a un cambio.
El Ordenamiento Jurídico español recoge los principios e ideas de los textos
internacionales, para hacerlas suyas23. Así la regulación del fenómeno bioético
tiene una serie de rasgos característicos, compartidos por la práctica totalidad de
las legislaciones del entorno cultural. El primero de ellos es una regulación general
del consentimiento informado, como herramienta más directa de salvaguardia de
los derechos y la autonomía de los pacientes24. El segundo de los rasgos, como
consecuencia del Derecho de la Unión Europea, es una legislación protectora de la
privacidad de los usuarios de servicios de salud25, a los que se otorga el máximo
nivel de protección previsto en la Ley. Por último, existe una importante presencia
de normas específicas, reguladoras de cuestiones conexas con la labor biomédica26.
20
21
Cfr. Fraga, M.F. et al. (2005) Epigenetic differences arise during the lifetime of monozygotic twins. PNAS, 102:10604-9.
E. DAVIS, G y E. LOWELL, W., Variation in ultraviolet radiation and diabetes: evidence of an epigenetic effect that modulates diabetics’ lifespan, Clinical Epigenetics, 2013, 5:5.
22
El Doctor Miguel Beato, director del Centre de Regulació Genómica de Barcelona afirmaba en 2011: “La genética y la biología molecular de los
próximos 20 años se centrarán en la epigenética”. Vid.: http://www.biocat.cat/es/noticias/epigenetica-para-entender-enfermedades-como-elcancer-la-leucemia-o-la-esclerosis-multiple
23
El art. 96 de la Constitución de 1978 indica que Los tratados internacionales válidamente celebrados, una vez publicados oficialmente en España, formarán parte del ordenamiento interno.
24
La norma de referencia, en materia de consentimiento informado, para España es la Ley 41/2002, de 14 de noviembre, básica reguladora de la
autonomía del paciente y de derechos y obligaciones en materia de información y documentación clínica.
25
La norma de origen española en materia de protección de datos es la Ley Orgánica 15/1999, de 13 de Diciembre, de Protección de Datos de
Carácter Personal; que traspone al Derecho Interno la Directiva Europea 95/46/CE del Parlamento Europeo y del Consejo, de 24 de octubre de
1995, relativa a la protección de las personas físicas en lo que respecta al tratamiento de datos personales y a la libre circulación de estos datos.
Debemos señalar que la normativa europea al respecto se encuentra en un proceso de revisión, estando en trámite al momento de redacción del
presente trabajo el Proyecto de Reglamento Europeo en materia de Protección de Datos.
26
Sirvan, a modo de ejemplo: Ley 14/1986, de 25 de abril, General de Sanidad; Ley 16/2003, de 28 de mayo, de cohesión y calidad del Sistema
Nacional de Salud; Ley 44/2003, de 21 de noviembre, de ordenación de las profesiones sanitarias; Ley 55/2003, de 16 de diciembre, del Estatuto
Marco del personal estatutario de los servicios de salud; Ley 29/2006, de 26 de julio, de garantías y uso racional de los medicamentos y productos
sanitarios; además de incontables normas de carácter técnico o instrumental.
136
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En lo que a la genética clínica se refiere, el Estado español ha creado
una buena cantidad de normas: existirá una normativa específica en materia de
concepción y reproducción27, una diferente para la protección de datos genéticos28,
otra en materia de historia clínica y otra más en cuanto a la regulación de la
especialidad de genetista clínico29. No obstante, la norma fundamental en materia
genética en España es la Ley de Investigación Biomédica30. Esta será la encargada
de establecer las peculiaridades de la práctica en nuestro país, regulando desde la
investigación en genética, hasta los screening o cribados genéticos, pasando por
una serie de especificidades en materia de consentimiento informado e información
previa a consentimiento y ciertas peculiaridades para menores y personas con
discapacidad; entre otros rasgos31.
Se trata de una Ley ciertamente heterogénea, y con una regulación confusa.
Sin que podamos detenernos a su análisis, indicaremos que su objeto es regular32:
• a) Las investigaciones relacionadas con la salud humana que impliquen
procedimientos invasivos.
• b) La donación y utilización de ovocitos, espermatozoides, preembriones,
embriones y fetos humanos o de sus células, tejidos u órganos con fines de investigación
biomédica y sus posibles aplicaciones clínicas.
• c) El tratamiento de muestras biológicas.
• d) El almacenamiento y movimiento de muestras biológicas.
• e) Los biobancos.
• f) El Comité de Bioética de España y los demás órganos con competencias en
materia de investigación biomédica.
• g) Los mecanismos de fomento y promoción, planificación, evaluación y
coordinación de la investigación biomédica.
A estas medidas legales de carácter nacional debemos añadir aquellas las
adoptadas por las Comunidades Autónomas, entes con competencia normativa en
sanidad e investigación, dentro del territorio español. A modo de ejemplo citaremos
la Ley de Andalucía 11/2007, de 26 de noviembre, reguladora del consejo genético,
de protección de los derechos de las personas que se sometan a análisis genéticos
y de los bancos de ADN humano; y la Ley de Galicia 12/2003, de 9 de diciembre,
de garantías de prestaciones sanitarias.
Como vemos, la regulación española en materia biomédica es, como ocurre
en muchos Estados, numerosa y dispersa; con un núcleo de normas generales
alrededor del que orbitan grandes cantidades de normas específicas y/o auxiliares.
27
28
29
Cfr. Ley14/2006, de 26 de mayo, sobre técnicas de reproducción humana asistida.
Vid. Ley Orgánica 15/1999, de 13 de diciembre, de Protección de Datos de Carácter Personal.
La especialidad de “Genética Clínica” no existía en España, con los problemas que esto suponía a efectos, por ejemplo, de lex artis, hasta la
aprobación del Real Decreto 639/2014, de 25 de julio, por el que se regula la troncalidad, la reespecialización troncal y las áreas de capacitación
específica, se establecen las normas aplicables a las pruebas anuales de acceso a plazas de formación y otros aspectos del sistema de formación
sanitaria especializada en Ciencias de la Salud y se crean y modifican determinados títulos de especialista.
30
31
32
Vid. Ley 14/2007, de 3 de julio, de Investigación biomédica.
Vid. CORBELLA i DUCH, J., Manual de Derecho Sanitario, Ed. Atelier, Barcelona, 2012, p.134 y ss.
Cfr art. 1.1 de la Ley.
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
137
De un análisis pormenorizado de la legislación en genética en España, podemos
extraer una reveladora conclusión: son regulaciones basadas en el código, en el
material genético tal y como se obtiene tras una secuenciación de laboratorio.
Es decir, es la secuencia de timina, guanina, citosina y adenina33 la que interesa
a nuestro Derecho Genético. Como ejemplos de lo afirmado apuntaremos, en
primer término, el artículo 159 del Código Penal español, que sanciona conductas,
únicamente, de alteración del genotipo; y no aquellas que alteren cualquier otra
circunstancia (ambiental, por ejemplo). Así mismo, los artículo 3.a y 3.j de la Ley
de investigación biomédica, al definir “análisis genético” y “dato genético”, hacen
solamente referencia al código, a los “segmentos de material genético” y “análisis
de ácidos nucleicos” respectivamente. Por último, el artículo 5.g del Reglamento
de Protección de Datos español34 recoge como datos de salud aquellos relacionados
con “información genética”, sin mayor indicación.
Epigenética e información genética. El ocaso del excepcionalismo
Ya tenemos elementos de juicio suficientes: conocemos cual es el origen de la
genética como ciencia, a la vez que somos conscientes de su naturaleza cambiante;
sabemos en qué momento histórico se produce la regulación internacional de la
bioética, en general, y la referida a la ciencia genética; conocemos también qué es la
epigenética como ejemplo de interacción gen-ambiente; y, por último, conocemos
cual es la legislación española, a grandes rasgos, en materia genética. Ahora
podemos establecer en qué puntos creemos que esta última deberá modificarse,
teniendo en cuenta los elementos precedentes.
El primer campo donde creemos que la epigenética y las restantes
interacciones gen-ambiente incidirán con mayor fuerza en el mundo jurídico, es
en el tratamiento de la información. Es este el frente donde harán patente que
el código no es, en ocasiones, más que una variable de la ecuación. Las posturas
filosóficas e incluso jurídicas actuales beben de los argumentos del artículo 4º de la
Declaración de la UNESCO de 2003, sobre información genética, que reza:
a) Los datos genéticos humanos son singulares porque:
i) pueden indicar predisposiciones genéticas de los individuos;
ii) pueden tener para la familia, comprendida la descendencia, y a veces para todo el
grupo al que pertenezca la persona en cuestión, consecuencias importantes que se perpetúen
durante generaciones;
iii) pueden contener información cuya relevancia no se conozca necesariamente en
el momento de extraer las muestras biológicas;
iv) pueden ser importantes desde el punto de vista cultural para las personas o los
grupos.
b) Se debería prestar la debida atención al carácter sensible de los datos genéticos
humanos e instituir un nivel de protección adecuado de esos datos y de las muestras
biológicas.
33
34
T-G-C-A son las piezas (bases nitrogenadas) básicas que forman nuestro ADN, son nuestro código genético.
Real Decreto 1720/2007, de 21 de diciembre, por el que se aprueba el Reglamento de desarrollo de la Ley Orgánica 15/1999, de 13 de diciembre,
de protección de datos de carácter personal.
138
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Se convierte así en el primordial argumento de posturas de “excepcionalismo
genético”, es decir, que defienden el hecho de proporcionar a los datos genéticos
(de código) un tratamiento especial en la Ley, de mayor protección que el previsto
para los restantes datos de salud. De este modo, y para estas posturas, los datos
de código se convierten en singulares, reveladores e incluso predictivos sobre
las condiciones de un sujeto; por lo que el Ordenamiento Jurídico debe prestar
especial atención a los mismos.
La epigenética, en este sentido, ofrece un argumento en contra de posturas
excepcionalistas. Es una muestra del relativismo con el que debemos considerar el
código como elemento aislado de toda influencia extrínseca. ¿Por qué da el Derecho
preponderancia a la secuencia sobre, por ejemplo, el ambiente en las patologías
multifactoriales o con factor ambiental? Creemos que la postura excepcionalista
tendrá menos defensores cuanto más avance el conocimiento epigenético, o de
interacciones gen-ambiente.
Por otro lado esta tendencia al abandono parece haberse materializado ya.
Buena prueba de ello es el texto “25 recomendaciones sobre las repercusiones éticas,
jurídicas y sociales de los tests genéticos”, realizado por la Comisión Europea en
2004, que dedica su Recomendación tercera a esta cuestión, afirmando: La sensación
de que los datos genéticos difieren de otros tipos de información médica («excepcionalismo
genético») es incorrecta. La información genética forma parte del espectro completo de
información sanitaria y no constituye, como tal, una categoría aparte. Todos los datos
médicos, incluidos los genéticos, merecen en todo momento los mismos niveles de calidad
y confidencialidad. No obstante, esta tendencia internacional no se ha materializado
aún en Derecho español, que sigue dispensando un tratamiento especial a los
datos del código genético.
La historia clínica y la epigenética: el nacimiento de un nuevo paradigma
El segundo de los campos en los que la epigenética irrumpirá e, incluso,
con más fuera que en la información será en la configuración de las historias
clínicas. En estas se recogen, en orden a conformar un registro completo de la
sintomatología del paciente, una serie de datos, tendentes a ayudar al profesional
a una correcta diagnosis y, en su caso, un mejor tratamiento de patologías35.
En España integran la historia clínica los análisis genéticos, que son
sufragados por el sistema público36, mas no se prevé, de modo sistemático, la
recogida de datos de ambiente: psicosociales, laborales, familiares, de polución
ambiental o de estrés entorno al paciente. La epigenética nos indica que todos
ellos son importantes y, en casos, determinantes en la aparición de patologías, por
lo que la regulación es imperfecta. Así, una buena cantidad de estudios clínicos
que relacionen un determinado factor epigenético con una determinada patología,
podría justificar, de seguro, un especial tratamiento en la historia clínica, una
35
36
El contenido mínimo de la historia clínica en el Sistema Nacional de Salud español puede consultarse en el art. 15.2 de la citada Ley 41/2002.
Tanto las actividades de consejo genético como las pruebas diagnósticas de laboratorio genético se encuentran recogidas en el Real Decreto
1030/2006, de 15 de septiembre, por el que se establece la cartera de servicios comunes del Sistema Nacional de Salud y el procedimiento para
su actualización.
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139
recogida de datos concreta entorno a tal extremo. Esto, en definitiva, correspondería
con una práctica médica correcta, es decir, ajustada a la lex artis ad hoc.
Pudiera pensarse que un estudio tan pormenorizado de cada paciente
puede devenir en utópico, por el tiempo que los profesionales de salud no tienen y
por la dificultad de análisis de tal volumen de datos. En este sentido, y abordando
la primera cuestión, no creemos que una recogida exhaustiva de datos sea necesaria
en todo caso, sino solamente en casos en que existan indicios de razonabilidad
para ello. No se trata de recogerlo todo de todos, como mecanismo por defecto;
sino de hacer un estudio lo más pormenorizado posible en caso de que exista razón
suficiente para ello, es decir, cuando lo aconseje el estado actual de la técnica.
En cuanto al segundo de los puntos, queremos hacer mención al
extraordinario impacto que el conocido como “Big Data” tiene y tendrá, en la
prestación de Servicios Sanitarios. El análisis de grandes cantidades de datos
permitirá a los profesionales médicos conocer elementos hasta ahora poco visibles
como hábitos y tendencias de consumo, riesgos de desarrollo de patologías por
zonas geográficas o análisis agregado de factores con influencia en una patología
concreta.
Conclusión
Las interacciones gen-ambiente y la epigenética entre ellas deben tomarse
en consideración a la hora de regular la protección de datos de salud, para dotarse
de un sistema racional. Debe, pues, desbotarse la idea generalizada de que el
código genético es algo excepcional y predictivo al 100% pues, científicamente,
esto es absurdo.
Creemos que una mayor formación del jurista y del legislador en materia
biomédica debiera conducir a modificaciones esenciales en cuanto a la privacidad
de datos genéticos. En primer lugar debe igualarse su regulación, a efectos de
protección de datos, a la de los restantes datos de salud o datos médicos. En segundo
término, debiera considerarse como datos susceptibles de protección aquellos
factores ambientales, que pueden influir en la salud del usuario de los Servicios
de Salud. Creemos también que deben eliminarse del Ordenamiento Jurídico las
menciones excepcionalistas, como las citadas de la Ley de investigación biomédica
y del Código Penal.
140
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A CRISE DO ENSINO JURÍDICO, OS CURRÍCULOS
HISTÓRICOS E SUAS VINCULAÇÕES COM OS
PAPÉIS SOCIAIS DOS BACHARÉIS EM DIREITO
André Gonçalves Fernandes 1
Resumo
Somos conscientes de que, desde o século XVIII, na cultura jurídica formalista dominante
nos países ocidentais, o ensino do Direito concebeu-se, com muita frequência, de maneira
“insular”, consumando-se numa espécie de positivismo juridicista, cujo principal
atributo reside na forte tendência de se operar em si mesmo e de maneira auto-referencial.
Sob o ângulo dos fins da escola de direito e da história do ensino jurídico nacional, o
positivismo sempre potencializou seu foco “pedagógico” numa formação puramente
teórica e imediatista, porque toda alteração curricular no ensino jurídico sempre procurou
guardar muito mais uma estrita relação e preocupação com o papel social dos profissionais
do direito, vigente em cada época histórica, do que com uma formação que privilegiasse
o Direito como um saber prático e, ao mesmo tempo, fortemente vincado num eixo de
formação fundamental. Essa tendência histórica, contudo, nos últimos anos e ao menos
curricularmente, parece ter sido refreada em prol de uma consciência pedagógica fundada
numa formação jurídica completa.
Pela educação jurídica é que uma sociedade assegura o predomínio
dos valores éticos perenes na conduta dos indivíduos e, sobretudo, dos
órgãos do Poder Público.
(SAN TIAGO DANTAS, 1955:452)
Homines dum docent discunt2.
(Sêneca)
Introdução
São inúmeras as críticas que são formuladas ao modelo de ensino jurídico
dominante no país. A atual crise do ensino do direito é assunto de muitas
discussões, tanto no âmbito acadêmico3 4, quanto no seio da opinião pública5, há,
1
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre e Doutorando em Filosofia e História da Educação pela
UNICAMP. Juiz de direito titular de entrância final. Pesquisador do grupo Paideia, na linha de ética, política e educação (DGP-Lattes) e ProfessorCoordenador de metodologia jurídica do CEU-IICS Escola de Direito. Coordenador do IFE Campinas. Articulista da Escola Paulista da Magistratura, da qual é também Juiz Instrutor, e do Correio Popular de Campinas, com especialidade na área de Filosofia do Direito, Deontologia Jurídica,
Estado e Sociedade. Experiência profissional na área de Direito, com especialidade em Direito Civil, Direito de Família, Direito Constitucional,
Deontologia Jurídica, Filosofia do Direito e Hermenêutica Jurídica. Membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP, da Escola do
Pensamento do IFE (www.ife.org.br), do Comitê Científico do CCFT Working Group (Diálogos entre Cultura, Ciência, Filosofia e Teologia), da
União dos Juristas Católicos de São Paulo, da Associação de Direito da Família e das Sucessões (ADFAS) e da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas. Autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos
científicos em revistas especializadas. Titular da cadeira nº 30 da Academia Campinense de Letras.
2
3
In Epistulae ad Lucilium, 7, 8. Em tradução livre, “ensinando, os homens aprendem”.
“Ensino jurídico na berlinda: MEC congela a criação de 100 novos cursos de Direito e estuda, em conjunto com a OAB, uma nova política regulatória para o ensino jurídico no país” (Jornal do Advogado da OAB/SP, São Paulo, abril de 2013, p.16-17).
4
Direito USP debate reforma curricular dos cursos. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,medicina-e-direito-da-uspdebatem-reforma-curricular-dos-cursos,1027077,0.htm. Acesso em 30 de abril de 2013. MEC interrompe abertura de novos cursos de direito para
mudar regras. Disponível em: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2013/03/mec-interrompe-abertura-de-novos-cursos-de-direito-paramudar-regras.html. Acesso em 03 de maio de 2013.
5
“Ensinar direito. Editorial. Folha de São Paulo. São Paulo, 18 mar 2013, p. A2. Sem contar com uma proposta acabada sobre o tema, o Ministério da Educação pôs em circulação nas últimas semanas algumas ideias para melhorar a qualidade das faculdades de direito no Brasil. O MEC
142
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pelo menos, uma década. A área jurídica corresponde à segunda maior demanda
acadêmica nacional e responde por 15% das matrículas do ensino superior. No ano
de 2013, chegamos à impressionante marca de 1.260 cursos espalhados pelo país,
com uma oferta de 215 mil vagas, das quais mais da metade está concentrada na
Região Sudeste6.
São números superlativos e que demonstram o peso do profissional
do direito na realidade institucional. É sabido que bacharéis mal formados
multiplicam-se e a grande maioria dos diplomados jamais exercerá uma profissão
jurídica, como professor-pesquisador, magistrado, advogado, promotor, delegado,
procurador ou defensor. Eles irão engrossar as estatísticas do desemprego ou
seguirão outros rumos profissionais. A disseminação e massificação das escolas de
direito no cenário nacional contribuíram em muito para o desprestígio das leis e
das profissões jurídicas, agravado ainda (ADORNO, 1988:157) pelo academicismo,
pedantismo verbal e apego ritualístico à noção de lei. Um retrato profissional
muito preocupante.
Platão, nas cidades-estado gregas e, mais tarde, Cícero, na República
Romana, pregavam um “governo de leis” no lugar de um “governo de homens”.
E foi sob o “império da lei”, de alguns séculos para cá, depois dos movimentos
constitucionalistas europeus, que o Estado de Direito teve seu complexo e pesado
edifício construído.
Se justamente são os profissionais do direito as pessoas capacitadas a
protagonizar os destinos de uma cidade assentada no império da lei, quando eles
são mal formados, os fundamentos de uma sociedade ficam seriamente ameaçados.
No lugar da isonomia, da legalidade e da aplicação da justiça com independência,
entrarão, pelas rachaduras das fundações desse edifício, a abusividade dos donos
do poder, a arbitrariedade da ideologia, o despotismo da maioria, o capricho
relativista vestido de direito subjetivo e a parcialidade das decisões judiciais.
Não é o melhor dos cenários sociais. Aquilo que a sociedade poderá vir
a ter como Direito repousará nas consciências desses profissionais. Logo, a
formação acadêmica dos estudantes de direito não só interessa à sociedade, como
divulgara, em fevereiro, que estudava alterar as regras para abertura de cursos jurídicos, limitando a expansão de vagas e direcionando novas instituições para regiões carentes de advogados, tal como pretende fazer com faculdades de medicina. Na semana passada, o ministro da Educação,
Aloizio Mercadante, anunciou que os estudantes de direito precisarão passar por estágio obrigatório, a ser cumprido em órgãos públicos, como
o Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria. É preciso, sem dúvida, buscar soluções para as deficiências dos cursos de direito, um problema
que persiste no país, sem sinais de melhora, há pelo menos uma década. Já em 2002, Carlos Miguel Aidar, então presidente da seção paulista da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), escreveu artigo nesta Folha no qual dizia haver correlação entre a expansão desenfreada de vagas
e a piora da instrução superior. ‘O futuro do ensino jurídico não nos parece claro ou promissor. O número de escolas é excessivo, a formação
dos alunos é precária’, dizia. Naquele ano, 81% dos candidatos foram reprovados no exame da OAB-SP. O pior resultado desde a instituição da
prova, em 1973. De lá para cá, o número de cursos jurídicos mais que dobrou, chegando a cerca de 1.200 em 2011. No último exame da OAB (hoje
unificado em todo o país), 83% foram incapazes de acertar metade das 80 questões e passar à segunda fase. Ante desempenho tão constrangedor,
não surpreende que a OAB só recomende 90 cursos de direito no Brasil, menos de 8% do total. Tudo leva a crer que o maior problema é mesmo o
crescimento desabalado de faculdades. Faria melhor o MEC se atuasse com mais rigor para frear a expansão dos cursos precários e descredenciar
instituições ineptas. Tais medidas teriam impacto positivo na qualidade do ensino e evitariam que jovens desperdiçassem tempo e dinheiro na
busca do diploma. Iniciativas polêmicas e de eficácia duvidosa, como o direcionamento de novas escolas e o estágio obrigatório, poderiam ser
postas em discussão num segundo momento. Por enquanto, tais ideias mirabolantes servirão apenas para tirar o foco da questão principal”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/1247649-editorial-ensinar-direito.shtml. Acesso em 29 de abril de 2013. O recente editorial,
em pese sua brevidade, acerta num ponto em concreto: sobram profissionais de direito e falta qualificação profissional, porque a imensa maioria
dos cursos de direito foi autorizada sem critério e ensina precariamente.
6
Segundo os dados do artigo “Proliferação indiscriminada”, publicado no “Jornal do Advogado da OAB/SP” (São Paulo, abril de 2013, p.17), o
qual relata que, “em 1960, o Brasil possuía 69 escolas de Direito. Em 1997, esse número sobre para 270. Em 2008, já eram 1.091. Em 2013, chegamos
à impressionante marca dos 1.260 cursos. (...) Há, hoje, no Brasil, mais de 730 mil advogados, existindo ao lado, aproximadamente, 1 milhão de
bacharéis reprovados no exame de estado ou não submetidos a tal aferição” (grifos nossos).
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143
é fundamental à própria experiência da mesma sociedade com o Direito. Por isso,
a educação jurídica, desde Roma (MARROU, 1998:271), influenciada, por sua vez,
pela leitura de Cícero do legado filosófico grego aplicado ao Direito, sempre gozou
– justificadamente – de uma maior atenção política.
Assim, a atual crise do ensino jurídico deve ser vista, globalmente, à luz de
um tempo presente em que os postulados da modernidade parecem indicar um
sinal de esgotamento em muitos âmbitos do saber científico e, analiticamente, à
luz de fatores escolares (curricular, pedagógico, docente e infraestrutural), legais
(política estatal) e governamentais (regulação, avaliação e supervisão dos cursos
jurídicos autorizados pelo Ministério da Educação).
Hoje, acreditamos não estarmos sob o pálio de um direito da pósmodernidade. Por outro lado, muitos autores que estudam a pós-modernidade
indicam que mudanças estão em curso, porém, sem consenso nos planos conceitual
e hermenêutico. Essa transição é um fenômeno que se manifesta em inúmeros
níveis do relacionamento humano e social e decorre justamente das profundas
alterações havidas nas matrizes dos valores que permeiam as ações individuais e
coletivas.
Nessa atmosfera transitiva, a crença irrefreada na ordem e no progresso,
segundo os postulados positivistas, foi abalada pela experiência contemporânea
da fome em vários continentes, do nenhum caráter ressocializante do sistema
carcerário nacional, da duvidosa eficácia dos resultados científicos em prol do bem
comum, dos totalitarismos e regimes autoritários, da má distribuição da renda
mundial, dos mandos e desmandos do sistema capitalista internacional, do pouco
apreço governamental à saúde e à educação, da busca cega pelo hedonismo e pelo
consumismo, da desagregação familiar e da trivialização das relações sociais.
O ideário positivista foi substituído pela noção de desenvolvimento
sustentável, pelos princípios de justiça restaurativa, pela ideia de função social da
propriedade dos bens, de justiça social e de diálogo entre ciência e religião, além
de uma maior aproximação institucional entre Estado e sociedade civil por via das
sociedades intermediárias.
Nesse contexto existencial, situa-se a questão da crise do ensino do direito,
o qual também estaria passando por mudanças, instabilidades e incertezas. Se o
modelo em que o direito foi sempre transmitido de geração em geração está em
crise paradigmática, será que a atual forma de ensino do direito é capaz de fazer
frente aos desafios dessa nova realidade brasileira?
Para essa importante pergunta, que deverá ser respondida por estudiosos
mais capazes, pretendemos tão somente fornecer alguns subsídios históricos
e sociológicos para o debate da crise do ensino jurídico, a fim de demonstrar
como o ensino do direito sempre andou, por muito tempo, de mãos dadas com
a vida política e as práticas burocráticas e institucionais e, de algumas décadas
para cá, em comunhão com as expectativas das elites da sociedade em relação à
importância dos currículos na formação do papel social dos bacharéis jurídicos.
Naquele primeiro momento histórico, deu-se mais apreço curricular à formação
humanística com vistas à composição dos quadros burocráticos e, no seguinte, à
formação profissionalizante, a qual perdura até os dias atuais.
A história do direito ensina que o Direito é (GILISSEN, 1986:11), no fundo,
144
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uma permanente história do homem em sua contínua interação social. O homem,
segundo a tradição grega (ARISTÓTELES, 2005:15), é um animal social. Ou seja,
por sua própria natureza, não pode viver fora da sociedade. E, por outro lado,
a sociedade não pode existir sem direito: ubi societas ibi ius7, sentenciaram, com
precisão, os romanos, povo dotado de um gênio prático, político e organizativo
sem paralelo na história das civilizações.
A vida social apresenta uma série de peculiaridades que surgem de maneira
muito variada ao longo do tempo e do espaço. Sobre alguns alicerces universais – a
natureza humana e a sociabilidade natural – assenta-se uma realidade jurídica e
social multifacetada. Não foi à toa que Isidoro de Sevilha8 (2009:389) afirmou que
“a lei deve ser honesta, justa, possível, conforme aos costumes pátrios, conveniente
ao lugar e ao tempo, a fim de atender ao bem comum dos cidadãos”.
Desde 1500 até 1822, a legislação portuguesa vigorava em nosso território
e toda rede judiciária metropolitana tinha uma natural extensão na colônia do
Além-mar. Com a proclamação da independência, foi outorgada a primeira Carta
Constitucional pátria (1824) e, ato contínuo, durante o regime imperial, foram
codificadas várias legislações civis e comerciais, ainda fortemente influenciadas
pelo legado jurídico português, de conotação positivista.
A criação dos cursos jurídicos no Brasil atendeu à várias finalidades:
consolidação dos quadros administrativos imperiais, fim da pressão metropolitana
sobre estudantes brasileiros que se formavam em Coimbra, formação das elites
políticas nacionais (adeptas dos movimentos liberais e constitucionais que se
sucederam às Revoluções Americana e Francesa) e autonomização cultural da
sociedade brasileira.
Durante os debates parlamentares que antecederam a promulgação da
Lei Imperial de 11 de agosto de 1827 (Anexo II), houve pouco interesse numa
discussão profícua sobre o ensino jurídico: currículo, finalidade pedagógica do
curso e metodologia pedagógica. A retórica parlamentar focou-se basicamente
nas questões ideológicas e geográficas (BASTOS, 1977:11-12, 48, 165, 175, 179 e
segs.,197, 213-214, 218, 221-222, 229, 236-237, 241, 245, 250, 254-256, 263, 269-271,
279, 282, 406-407, 413, 424, 434-435, 444, 452-456, 463-464, 475, 477, 481, 552 e 611).
Na primeira questão, a dúvida era se o curso jurídico deveria ser mais
voltado para a sociedade civil ou para o Estado, que refletia o embate político entre
a elite imperial conservadora, atrelada ao modelo político colonialista, e a elite
nacional civil, liberal e preocupada em atender à demanda social por profissionais
do direito (BASTOS, 1998:13). Prevaleceu a composição entre as duas facções
políticas, de sorte que os interesses foram acomodados legislativamente (BASTOS,
7
8
Onde há sociedade, há direito.
Isidoro (560-636), nascido em Sevilha, por ocasião da época visigoda, foi bispo nesta cidade entre os anos 600 e 636. É um dos responsáveis pela
transmissão da cultura greco-romana para a Idade Média. Sua obra Etimologias é uma espécie de enciclopédia que expressa a cosmovisão da época
e foi amplamente utilizada durante a Idade Média, como pode ser comprovado pelas inúmeras referências que Tomás de Aquino dela fez ao longo de sua Suma Teológica. O título, pouco usual para os dias atuais, é explicado pelo fato de o autor medieval, ao examinar uma questão qualquer,
analisar a etimologia das palavras envolvidas no problema, com o intuito de buscar informações sobre a própria realidade referida. A obra de
Isidoro compõe-se de vinte livros, cada um deles elucidando as etimologias das palavras de um determinado campo do saber: I. Gramática; II.
Retórica e Dialética; III. Matemática (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia); IV. Medicina; V. As leis e os tempos; VI. Os livros e os ofícios
eclesiásticos; VII. Deus, os anjos e os santos; VIII. A Igreja e outras religiões; IX. Línguas, povos, reinos, milícia, cidades e parentesco; X. Etimologia
de palavras diversas; XI. O homem e os seres prodigiosos; XII. Os animais; XIII. O mundo e suas partes (elementos, mares, ventos); XIV. A terra e
suas partes (Geografia); XV. As cidades, os edifícios e o campo; XVI. As pedras e os metais; XVII. A agricultura; XVIII. Guerra, espetáculos e jogos;
XIX. Naves, edifícios e vestimentas; XX. Comida, bebida e utensílios.
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145
1998:14), com maior pendor para o Estado.
Na segunda, a hesitação girou em torno da instalação da primeira faculdade
no Rio de Janeiro, em São João Del Rei, em Salvador, em Olinda ou em São Paulo
(BASTOS, 1998: 4-11). Venceu a proposta apresentada pela Emenda Paula e Sousa
e a Lei de 11 de agosto de 1827 contemplou Olinda e São Paulo com um curso
jurídico, uma vitória das elites civis regionais liberais (BASTOS, 1998:7).
Assim, a história da instalação dos cursos jurídicos no Brasil, que
começou com os debates na Assembleia Constituinte de 1823 e culminou com a
promulgação da legislação específica em 1827, é, (BASTOS, 1998:7) basicamente,
em primeiro lugar, a história das conciliações que se deram entre as elites imperiais
e determinadas frações das elites civis; e, em segundo lugar, a oscilação da fração
derrotada das elites sociais, que sempre esteve numa posição optativa entre a sua
proposta e as propostas oficiais da elite imperial ou as da sua fração que tinha
acesso direto ao Estado.
Como afirma Fiori (1998:33), os momentos de grande conciliação política
são invariavelmente momentos de grande mediocridade intelectual: o debate
de ideias sobre o ensino jurídico propriamente dito foi substituído pelo diálogo
pautado pelos interesses ideológicos e geográficos suscitados pela questão.
O artigo 10 da Lei de 11 de Agosto de 1827 dispunha que “os Estatutos do
Visconde da Cachoeira9 ficarão regulando por ora naquilo que forem aplicáveis e se
não opuserem à presente Lei. A Congregação dos Lentes formará quanto antes uns
estatutos completos, que serão submetidos a deliberação da Assembleia Geral”.
Apesar do teor do texto legal (e da ressalva nele contida expressamente),
a proposta curricular dos citados estatutos era substancialmente diferente do
currículo vitorioso nos debates parlamentares e aprovado pela Lei de 11 de agosto
de 1827, assim como dela divergirá também o estatuto de autoria dos lentes, que
será, doravante, conhecido como Regulamento de 1831. Independentemente da
linha adotada pelos Estatutos, é induvidoso que existia uma forte preocupação
curricular, metodológica e pedagógica para o curso de Direito e que se procurava
mesclar a formação de quadros tanto para a sociedade civil quanto para a
administração imperial.
O Estatuto do Visconde da Cachoeira, apesar da antinomia já referida em
relação à lei regente dos cursos jurídicos, tinha um minudente escrúpulo com a
metodologia de ensino, como pode ser visto na recomendação explícita para, no
ensino de Direito Natural, o professor “ser breve e claro nas suas exposições e (...)
tratar só de doutrina o que for necessário para a perfeita inteligência da matéria
que ensinar” (Anexo III).
Sobre o ensino das Institutas de Gaio, o estatuto dizia que a autoridade
desse texto legal não poderia impedir “o que foi sempre subsidiário e doutrinal,
que nunca teve autoridade extrínseca, como mui doutamente observam os autores
dos Estatutos da Universidade de Coimbra (...). O professor apontará aos seus
ouvintes os livros onde se acham as doutrinas que houver expendido, para irem
estudar com mais vastidão (...), relevando que os estudantes ouvem e aprendem
sempre com o fito na sua aplicação prudencial no foro” (Anexo III).
9
Anexo III (MELO, 1977:11-16).
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Novamente aos lentes, o estatuto recomendava o devido auxílio nas
explicações com o conhecimento de outros autores, sem que fossem “todavia,
escravos das ideias destes autores, mas escolhendo só deles e dos mais que
modernamente têm escrito sobre o mesmo objeto o que puder servir para dar aos
seus ouvintes luzes exatas, regras ajustadas e conformes aos princípios da razão e
justiça universal” (Anexo III).
Também deve ser observada a atenção dada para a estrutura curricular do
último ano do curso. Os alunos deveriam aprender técnicas de interpretação de
leis e prática forense, mediante a apreciação de leis romanas e a realização de uma
decisão prática a respeito, a fim de propiciar o perfeito conhecimento das leis pelo
método analítico (Anexo III). No ensino de prática forense, além do emprego de
uma obra jurídica, o estatuto lembrava “ao lente acrescer às suas observações o
que lhe ensinou a prática” e observar “os defeitos dos praxistas e erros do foro ou
confirmar a praxe nele seguida conforme a lei” (Anexo III).
No cotejo entre alguns trechos dos Estatutos (Anexo III) e os artigos da lei
regente dos cursos jurídicos (Anexo II), resta evidente a contradição entre o curso
jurídico que a Lei 11 de agosto de 1827 pretendia implementar e o curso jurídico
que os Estatutos do Visconde da Cachoeira (aprovado em 02 de março de 1825, nos
termos do Decreto Imperial de 09 de janeiro de 1825) tinha esboçado.
No que concerne à estrutura curricular, a lei regente suprimiu as disciplinas
de Direito Romano e de Hermenêutica Jurídica; os estatutos sempre as valorizaram,
justificando a necessidade, da primeira, para uma boa formação jurídica e, da
segunda, para o perfeito conhecimento das leis.
Em relação aos pressupostos epistemológicos do ensino, a lei regente
simplesmente foi silente a respeito, em consonância com os estatutos de Coimbra,
que já tinham uma índole positivista; os estatutos observaram a adoção, nos
estudos, dos princípios elementares do Direito Natural, em enfoque completamente
antípoda dos postulados positivistas.
No que toca à atuação do aluno no bojo da relação pedagógica e à sua postura
diante do saber transmitido, a lei regente novamente silenciou-se; os estatutos, por
sua vez, a contrario sensu ressalvaram que o currículo deveria formar bacharéis com
uma visão crítica do Direito. No que atine à metodologia pedagógica, a lei regente
nada mencionou; os estatutos centralizaram a transmissão do Direito na pessoa
do professor, auxiliado por um referencial bibliográfico, modulando a teoria
com a experiência da prática forense, sem prejuízo do cumprimento obrigatório
da disciplina de Hermenêutica Jurídica. Ou seja, nos estatutos, a proposição
substantiva vinha acompanhada de uma proposta formal para seu ensino.
Em relação à finalidade pedagógica, a lei regente nada dispôs a respeito; os
estatutos foram contundentes ao visar à formação não só de “peritos advogados
e sábios magistrados”, assim como de “dignos deputados e senadores”, mas de
“verdadeiros e hábeis jurisconsultos”, na melhor tradição romana.
Salta aos olhos que os Estatutos do Visconde da Cachoeira (de 02 de março
de 1825) tinham uma visão completa e integrada do ensino jurídico e, até a entrada
em vigor da Resolução 09/2004 do Conselho Nacional de Educação (Anexo I), foi
(BASTOS, 1998:41) um dos únicos documentos acadêmicos oficiais no Brasil que
insistiam na importância dos métodos e modos que deveriam os lentes utilizar na
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147
transmissão do conhecimento, chegando, inclusive, a detalhar as linhas de atuação
pedagógica e um panorama bibliográfico, para a época, de grande extensão e
percepção.
Nas palavras do próprio Visconde da Cachoeira (Anexo III):
é de forçosa e evidente necessidade e utilidade formar o plano dos
mencionados estudos; regular a sua marcha e método; declarar os anos
do mesmo curso, especificar as doutrinas que se devem ensinar em
cada um deles; dar as competentes instruções por que se devem reger
os professores e, finalmente, formalizar Estatutos próprios e adequados
para o bom regimen do mesmo curso, e sólido aproveitamento dos que
se detiveram nessa carreira. (...) De que serviriam bacharéis formados,
dizendo-se homens jurisconsultos, na extensão da palavra, se o fossem
só no nome? (...) Haveria em grande abundância homens habilitados
com a Carta somente, sem o serem pelo merecimento, que pretenderiam
os empregos para os servirem mal, e com prejuízo público e particular,
tornando-se uma classe improdutiva com dano de outros misteres (...)”.
O Regulamento de 1831 (Decreto Imperial de 07 de novembro de 1831),
cumprindo o mandamento da Lei de 11 de agosto de 1827 (artigo 10), suspendeu,
definitivamente, os efeitos provisórios dos Estatutos do Visconde da Cachoeira,
em vigor desde 11 de agosto de 1827, adaptando o currículo jurídico e o método
de ensino às exigências da legislação-base de 1827.
Nessa empreitada, em essência, o citado regulamento consolidou os
pressupostos epistemológicos de um ensino jurídico de cunho positivista, apegado
à transmissão do texto legislativo; sem espaço para uma visão crítica do aluno, que
criou o fenômeno, até hoje presente, do autodidatismo; sem preocupação com uma
finalidade pedagógica para o curso de Direito, diante do banimento das cadeiras de
Direito Romano e Hermenêutica Jurídica, nas quais o acento prudencial e reflexivo
é marcante, e com uma metodologia pedagógica de natureza reprodutivista das
estruturas jurídicas e sociais então existentes.
No dizer de Aguerrondo (2007:464), a racionalidade subjacente ao
planejamento é a da preocupação com a organização de processos que tornem
possível a implementação de novas políticas. Ainda que, nessa época histórica, não
se possa falar em planejamento propriamente dito, resta implícito que a legislação
imperial de criação dos cursos jurídicos no Brasil estabeleceu uma série de marcos
pedagógicos para o ensino jurídico com vistas à formação de bacharéis aptos,
sobretudo, à ocupação dos cargos da incipiente administração política imperial e
com forte acento humanístico, de viés utilitário, segundo a disposição curricular,
justamente em razão dessa finalidade.
Superada essa fase histórica, o ensino do Direito sofreu inúmeras outras
reformas curriculares, todas de natureza pontual, devido a grande dificuldade
na formação de consensos historicamente localizados acerca do perfil curricular,
dos fins da formação e da finalidade social do bacharel em direito, até a Reforma
Francisco Campos, que deu um giro copernicano nessas questões e, depois, até
a entrada em vigor da Resolução 09/2004 do Conselho Nacional de Educação
148
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(Anexo I), que procurou equilibrar as mesmas questões.
A Reforma Leôncio de Carvalho (Decreto nº 7.247 de 19 de abril de 1879)
preocupou-se em implantar a liberdade de ensino em todos os níveis e, para os
cursos jurídicos, estabeleceu uma grade curricular voltada para a preparação de
profissionais aptos para o preenchimento dos cargos administrativos do Império.
As preocupações legislativas destinaram-se à viabilização do ensino livre.
Nenhuma ideia foi apresentada acerca das questões pedagógicas ou curriculares.
Nessa esteira, a Reforma Benjamin Constant (Decreto Republicano nº 1.232
H de 02 de janeiro de 1891) apenas consolidou as bases do ensino livre e dividiu
as faculdades de Direito em três cursos: Ciências Jurídicas, Ciências Sociais e
Notariado, segundo o perfil de bacharel (advogados e juízes), de servidores públicos
e de notários respectivamente, no claro afã de atendimento, via especialização
pedagógica, da demanda estatal por essas ocupações.
Depois, o ensino jurídico veio a ser reorganizado pela Lei nº 314 de 30 de
outubro de 1895, a qual aumentou a duração para cinco anos, fez uma redistribuição
das disciplinas pelo currículo, com o acréscimo das matérias de “Diplomacia”,
“Direito Internacional Público”, “Ciência das Finanças e Economia Política”, além
de ter aumentado as exigências estruturais para a instalação das faculdades livres
de Direito. Todas as matérias acrescentadas são típicas de assuntos que envolvem
questões estatais.
Já consolidada a fase republicana de nossa história política, a Reforma
Rivadávia Corrêa (Decretos nº 8.659 e 8.662, ambos de 05 de abril de 1911) promoveu
nova alteração do eixo curricular: introduziu-se a disciplina “Introdução Geral ao
Estudo do Direito”, excluiu-se a matéria de “Direito Comparado” e a duração foi
majorada em um ano, com foco na prática forense.
A Reforma Maximiliano (Decreto nº 11.530 de 07 de setembro de 1915) surgiu
logo em seguida, revogou a reforma anteriormente feita e remanejou o estudo do
Direito Romano para o primeiro ano do curso (e não mais no terceiro ano do curso,
por força do Decreto Imperial nº 608 de 16 de agosto de 1851, o qual restaurou essa
disciplina no ensino jurídico brasileiro). Durante a Primeira República, o ensino
do Direito continuou na mesma linha curricular e pedagógica do Império, ou seja,
de forte matiz humanista utilitária e com vistas à formação de quadros altamente
capacitados para o exercício das profissões jurídicas públicas.
Por sua vez, a Reforma Francisco Campos (Decretos nº 19.851 e 19.852, ambos
de 11 de abril de 1931) reformulou o currículo do ensino jurídico, reestruturando-o
com um fulcro profissionalizante, precipuamente prático, com acentuada tônica
no estudo do direito positivo, a fim de se alinhar às demandas e necessidades
da economia brasileira e da crescente sociedade civil que, pela primeira vez na
história, externamente, tomava corpo, ao mesmo tempo em que, internamente,
começava a se especializar em diversos setores, como o agrícola e o industrial, o
acadêmico e o profissional liberal.
A Constituição de 1934 inovou ao lançar as bases para um plano nacional
de educação e, no campo jurídico, foram acrescentadas as disciplinas de Direito
Industrial e Direito do Trabalho. O Decreto-lei nº 2.639 de 27de novembro de 1940
dividiu a disciplina do Direito Público Constitucional em Teoria Geral do Estado
e Direito Constitucional, com o afã de provocar o estudo jurídico do Estado e da
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149
Sociedade, bem como das estruturas que os compõem.
No ano de 1961, surgiu a Universidade de Brasília, cujo currículo jurídico
vinculava estudos humanísticos preparatórios às disciplinas dogmáticas
e à formação jurisprudencial, dotada de disciplina própria, com um perfil
interdisciplinar, porque dispunha de disciplinas eletivas, inovando nesse sentido,
mas sem sucesso na implementação prática. A Lei de Diretrizes e Bases de 1961 (Lei
nº 4.024 de 20 de dezembro de 1961) deu sustento institucional para a adoção do
Parecer nº 215 de 15 de setembro de 1962, no qual o Conselho Federal de Educação
impôs o currículo mínimo do curso de bacharelado em Direito e que, na prática,
promoveu a articulação didática do conhecimento oficializado.
A Reforma Universitária de 1968 (Lei nº 5.540 de 28 de dezembro de 1968)
estabeleceu o processo de integração das faculdades de Direito às universidades,
tanto física quanto curricularmente, principalmente em relação ao cumprimento
das disciplinas básicas, na mesma toada da Reforma Francisco Campos, mas com
viés de abertura geográfica.
Assim, a Reforma Universitária liberou a expansão do ensino superior, por
meio de uma política menos rigorosa de autorização de funcionamento para a rede
privada de ensino, a fim de atender as demandas de uma economia em crescimento
e sem um claro comprometimento dessas instituições junto aos parâmetros da
Lei de Diretrizes e Bases (aspectos curriculares) e do Decreto nº 63.341 de 01º de
outubro de 1968 (expansão da rede superior de ensino privado em áreas remotas
do país).
O efeito dessa falta de compromisso institucional foi o crescimento
desmedido dos cursos de direito, a mercantilização do ensino e, em razão do baixo
nível docente, o ensino do Direito nada reflexivo e demasiadamente apegado ao
mero entendimento literal do texto legal.
Em outras palavras, um ensino jurídico ajustado às estritas demandas do
mercado e impregnado da técnica pela técnica, numa espécie de fim em si mesmo
retroalimentado e aliado ao culto da superficialidade, perfil pedagógico que, até
hoje, predomina na maioria das faculdades de Direito e, por isso, há quem compare
os conteúdos do ensino jurídico a um prato de fast food (GENTIL, 2011:76):
O ensino posto em prática nas instituições elege prioridades que,
há tempos, num limite não muito distante, acabam por se perder
em minúcias operacionais, servíveis apenas para uma teorização da
superficialidade, com a aparência científica. Trata-se da cultura de um
autêntico fast food jurídico.
Para corrigir essas distorções graves, o Conselho Federal de Educação
aprovou a Resolução nº 3 de 25 de fevereiro de 1972, a qual se pautou por uma
formação mais ampla do bacharel no ramo jurídico, com flexibilidade curricular e
abertura formativa a outros ramos do saber com afinidade ao Direito. Inovou ao
implantar a obrigatoriedade de estágio supervisionado e da interdisciplinaridade.
Em 1994, o Ministério da Educação e Cultura baixou a Portaria nº 1886 de
13 de julho de 1994, fixando novas diretrizes curriculares e metodológicas para os
cursos jurídicos: fortaleceu a interdisciplinaridade; criou mecanismos institucionais
150
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para o desenvolvimento do Ensino, da Pesquisa e da Extensão; aumentou a carga
horária do estágio supervisionado e indicou claramente a finalidade do curso
jurídico, a saber, a formação de um bacharel comprometido com sua formação
fundamental, sócio-política, técnico-jurídica e prudencial. Para tanto, dividiu as
disciplinas em duas partes: as de formação fundamental e as profissionalizantes,
tornando obrigatória a realização de uma monografia para os alunos concluintes.
Em 2004, o Conselho Nacional de Educação editou a Resolução nº 09
(Anexo I), dispondo sobre as diretrizes curriculares nacionais dos cursos jurídicos,
e estabeleceu que o ensino jurídico deve expressar-se por intermédio de seu projeto
pedagógico, abrangendo o perfil do formando, as competências e habilidades,
os conteúdos curriculares, o estágio curricular supervisionado, as atividades
complementares, o sistema de avaliação, o trabalho de curso como componente
curricular obrigatório do curso, o regime acadêmico de oferta e a duração do curso.
Sem prejuízo disso, foram permitidos outros aspectos que tornem
consistente o referido projeto pedagógico, como a interdisciplinaridade, a
integração entre teoria e prática e graduação e pós-graduação, além do incentivo à
pesquisa e à extensão.
Quanto ao perfil formativo do aluno, segundo a mesma resolução, o
ensino jurídico deve propiciar sólida formação geral, humanística e axiológica,
capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada
argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais,
aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a
aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício
da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania.
O curso de Direito, quanto aos fins e nos termos da referida resolução,
deve possibilitar a formação profissional que valorize as habilidades de leitura,
compreensão e elaboração de textos, atos e documentos jurídicos ou normativos,
com a devida utilização das normas técnico-jurídicas; interpretação e aplicação
do Direito; pesquisa e utilização da legislação, da jurisprudência, da doutrina
e de outras fontes do Direito; adequada atuação técnico-jurídica, em diferentes
instâncias, administrativas ou judiciais, com a devida utilização de processos,
atos e procedimentos; correta utilização da terminologia jurídica ou da Ciência
do Direito; utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de persuasão e
de reflexão crítica; julgamento e tomada de decisões e domínio de tecnologias e
métodos para permanente compreensão e aplicação do Direito.
O curso ainda deve contemplar, nos aspectos pedagógico e curricular, os
seguintes eixos interligados de formação:
a) Eixo de Formação Fundamental, com o objetivo de integrar o estudante
no campo teórico, estabelecendo as relações do Direito com outras áreas do saber,
abrangendo dentre outros, estudos que envolvam conteúdos essenciais sobre
Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e
Sociologia;
b) Eixo de Formação Profissional, abrangendo, além do enfoque dogmático,
o conhecimento e a aplicação, observadas as peculiaridades dos diversos ramos
do Direito, de qualquer natureza, estudados sistematicamente e contextualizados
segundo a evolução da Ciência do Direito e sua aplicação às mudanças sociais,
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151
econômicas, políticas e culturais do Brasil e suas relações internacionais, incluindose necessariamente, dentre outros condizentes com o projeto pedagógico,
conteúdos essenciais sobre Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito
Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Trabalho,
Direito Internacional e Direito Processual;
c) Eixo de Formação Prática, que objetiva a integração entre a prática e os
conteúdos teóricos desenvolvidos nos demais Eixos, especialmente nas atividades
relacionadas com o Estágio Curricular Supervisionado, Trabalho de Curso e
Atividades Complementares.
A resolução em vigor, ainda que seja objeto de reforma por uma nova política
regulatória10, parece caminhar no sentido de permitir a formação de profissionais
do direito com habilidade para não serem mais meros reprodutores do direito
oficial e fiadores de um superado positivismo normativista, lastreado num modelo
educacional dogmático, unidisciplinar (tecnicista), estritamente profissionalizante,
pouco humanista, descontextualizado da realidade circundante e completamente
avesso à reflexão, à prudência jurídica e ao ideal de justiça social.
A educação jurídica no Brasil, como se percebe nitidamente, evoluiu
lentamente. Toda regulação posterior sempre tomou, como ponto de partida, a
tradição anterior, por blocos ou itens de acomodação, sem que houvesse constantes
rupturas institucionais na condução dos destinos do ensino jurídico. Como
diz Barroso (2003:40), “os processos de regulação dão lugar (...) aos interesses,
estratégias e lógicas de ação de diferentes grupos de atores, através de processos
de negociação e recomposição de objetivos e poderes”.
Se até o final da Primeira República, o ensino jurídico foi sempre focado
numa formação humanística (de viés utilitário) e política do bacharel, percebese, claramente, que a partir da década de 1930 até a Resolução 09/2004 do CNE,
o ensino jurídico vai tomando uma coloração mais profissionalizante, porque
focado precipuamente na lógica da expansão econômica, de molde a se valorizar
mais o saber técnico, relegando-se ao ostracismo: a) uma formação integral do
bacharel, o que afeta o método de pensar e ensinar o Direito; b) uma balanceada
finalidade social do curso jurídico, questões que já estavam subjacentes nos debates
parlamentares da Assembleia Constituinte de 1823 e nos Estatutos do Visconde da
Cachoeira de 1825.
A Resolução 09/2004 do CNE procurou repensar a amplitude totalizante
da matriz profissionalizante e mercadológica de nosso ensino jurídico, cujos
efeitos mais contundentes, em nossa experiência docente, são a ausência de um
espaço para uma visão crítica do aluno, a estrita preocupação com uma finalidade
pedagógica de natureza tecnicista, o foco mais curricular e nada metodológico,
o hiato entre a ciência e a prudência do Direito e uma formação exclusivamente
focada para o mercado de trabalho e não para o mundo do trabalho, justamente
algumas das causas apontadas, no rol dos culpados, pelas autoridades políticas
e institucionais acerca da atual crise do ensino jurídico nacional e que, ao cabo,
explicam o que nossas escolas de Direito são e porque é que são as que existem.
10
“Ensino jurídico na berlinda: MEC congela a criação de 100 novos cursos de Direito e estuda, em conjunto com a OAB, uma nova política regulatória para o ensino jurídico no país” (Jornal do Advogado da OAB/SP, São Paulo, abril de 2013, p.16-17).
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A Resolução 09/2004 do CNE, ainda que esteja com alguns de seus efeitos
suspensos, foi capaz de apresentar uma proposta curricular essencialmente
humanística, prudencial e com abertura para todas as profissões jurídicas, a fim
de capacitar o bacharel em não mais ter seus destinos profissionais jungidos
estritamente às expectativas das elites sociais ou da classe política, mas em poder
contribuir para inserir, cada vez mais, independente do ramo profissional escolhido,
o Direito no seio da realidade social, ao contrário do histórico de planejamento
educacional pendular (formação de quadros burocráticos ou profissionalizante) e
verticalizado (do Estado para a sociedade) que sempre o caracterizou.
Aguardamos, com esperança, que, caso vingue, o novo marco regulatório
continue trilhando os caminhos da Resolução 09/2004 do CNE, na defesa da
educação, da própria sociedade e do indivíduo (JAEGER, 2003: I), “pois a educação
e a cultura não constituem uma arte formal ou teoria abstrata, distintas da estrutura
histórica objetiva da vida espiritual de uma nação”.
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SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Educação Jurídica e a Crise
Brasileira. In: Revista Forense. Rio de Janeiro, v.159, a.52, mai-jun 1955.
ANEXO I
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO - CÂMARA DE EDUCAÇÃO
SUPERIOR
RESOLUÇÃO CNE/CES N° 9, DE 29 DE SETEMBRO DE 2004
Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de
Graduação em Direito e dá outras providências.
O Presidente da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação,
no uso de suas atribuições legais, com fundamento no art. 9º, § 2º, alínea “c”, da
Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961, com a redação dada pela Lei nº 9.131,
de 25 de novembro de 1995, tendo em vista as diretrizes e os princípios fixados
pelos Pareceres CES/CNE nos 776/97, 583/2001, e 100/2002, e as Diretrizes
Curriculares Nacionais elaboradas pela Comissão de Especialistas de Ensino de
Direito, propostas ao CNE pela SESu/MEC, considerando o que consta do Parecer
CES/CNE 55/2004 de 18/2/2004, reconsiderado pelo Parecer CNE/CES 211,
aprovado em 8/7/2004, homologado pelo Senhor Ministro de Estado da Educação
em 23 de setembro de 2004,resolve:
Art. 1º A presente Resolução institui as Diretrizes Curriculares do Curso de
Graduação em Direito, Bacharelado, a serem observadas pelas Instituições de
Educação Superior em sua organização curricular.
Art. 2º A organização do Curso de Graduação em Direito, observadas as Diretrizes
Curriculares Nacionais se expressa através do seu projeto pedagógico, abrangendo
o perfil do formando, as competências e habilidades, os conteúdos curriculares,
o estágio curricular supervisionado, as atividades complementares, o sistema de
avaliação, o trabalho de curso como componente curricular obrigatório do curso, o
regime acadêmico de oferta, a duração do curso, sem prejuízo de outros aspectos
que tornem consistente o referido projeto pedagógico.
§ 1° O Projeto Pedagógico do curso, além da clara concepção do curso de Direito,
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com suas peculiaridades, seu currículo pleno e sua operacionalização, abrangerá,
sem prejuízo de outros, os seguintes elementos estruturais:
I - concepção e objetivos gerais do curso, contextualizados em relação às suas
inserções institucional, política, geográfica e social;
II - condições objetivas de oferta e a vocação do curso;
III - cargas horárias das atividades didáticas e da integralização do curso;
IV - formas de realização da interdisciplinaridade;
V - modos de integração entre teoria e prática;
VI - formas de avaliação do ensino e da aprendizagem;
VII - modos da integração entre graduação e pós-graduação, quando houver;
VIII - incentivo à pesquisa e à extensão, como necessário prolongamento da
atividade de ensino e como instrumento para a iniciação científica;
IX - concepção e composição das atividades de estágio curricular supervisionado,
suas diferentes formas e condições de realização, bem como a forma de implantação
e a estrutura do Núcleo de Prática Jurídica;
X -concepção e composição das atividades complementares; e,
XI - inclusão obrigatória do Trabalho de Curso.
§ 2º Com base no princípio de educação continuada, as IES poderão incluir no
Projeto Pedagógico do curso, oferta de cursos de pós-graduação lato sensu, nas
respectivas modalidades, de acordo com as efetivas demandas do desempenho
profissional.
Art. 3º. O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do graduando,
sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio
de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e
valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de
visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma
e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da
justiça e do desenvolvimento da cidadania.
Art. 4º. O curso de graduação em Direito deverá possibilitar a formação profissional
que revele, pelo menos, as seguintes habilidades e competências:
I - leitura, compreensão e elaboração de textos, atos e documentos jurídicos ou
normativos, com a devida utilização das normas técnico-jurídicas;
II - interpretação e aplicação do Direito;
III - pesquisa e utilização da legislação, da jurisprudência, da doutrina e de outras
fontes do Direito;
IV - adequada atuação técnico-jurídica, em diferentes instâncias, administrativas
ou judiciais, com a devida utilização de processos, atos e procedimentos;
V - correta utilização da terminologia jurídica ou da Ciência do Direito;
VI - utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de persuasão e de reflexão
crítica;
VII - julgamento e tomada de decisões; e,
VIII - domínio de tecnologias e métodos para permanente compreensão e aplicação
do Direito.
Art. 5º O curso de graduação em Direito deverá contemplar, em seu Projeto
Pedagógico e em sua Organização Curricular, conteúdos e atividades que atendam
aos seguintes eixos interligados de formação:
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I - Eixo de Formação Fundamental, tem por objetivo integrar o estudante no campo,
estabelecendo as relações do Direito com outras áreas do saber, abrangendo dentre
outros, estudos que envolvam conteúdos essenciais sobre Antropologia, Ciência
Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia.
II - Eixo de Formação Profissional, abrangendo, além do enfoque dogmático, o
conhecimento e a aplicação, observadas as peculiaridades dos diversos ramos do
Direito, de qualquer natureza, estudados sistematicamente e contextualizados
segundo a evolução da Ciência do Direito e sua aplicação às mudanças sociais,
econômicas, políticas e culturais do Brasil e suas relações internacionais, incluindose necessariamente, dentre outros condizentes com o projeto pedagógico,
conteúdos essenciais sobre Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito
Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Trabalho,
Direito Internacional e Direito Processual; e
III - Eixo de Formação Prática, objetiva a integração entre a prática e os conteúdos
teóricos desenvolvidos nos demais Eixos, especialmente nas atividades
relacionadas com o Estágio Curricular Supervisionado, Trabalho de Curso e
Atividades Complementares.
Art. 6º A organização curricular do curso de graduação em Direito estabelecerá
expressamente as condições para a sua efetiva conclusão e integralização curricular
de acordo com o regime acadêmico que as Instituições de Educação Superior
adotarem: regime seriado anual; regime seriado semestral; sistema de créditos
com matrícula por disciplina ou por módulos acadêmicos, com a adoção de prérequisitos, atendido o disposto nesta Resolução.
Art. 7º O Estágio Supervisionado é componente curricular obrigatório,
indispensável à consolidação dos desempenhos profissionais desejados, inerentes
ao perfil do formando, devendo cada instituição, por seus colegiados próprios,
aprovar o correspondente regulamento, com suas diferentes modalidades de
operacionalização.
§ 1º O Estágio de que trata este artigo será realizado na própria instituição, através
do Núcleo de Prática Jurídica, que deverá estar estruturado e operacionalizado
de acordo com regulamentação própria, aprovada pelo conselho competente,
podendo, em parte, contemplar convênios com outras entidades ou instituições
e escritórios de advocacia; em serviços de assistência judiciária implantados na
instituição, nos órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria
Pública ou ainda em departamentos jurídicos oficiais, importando, em qualquer
caso, na supervisão das atividades e na elaboração de relatórios que deverão ser
encaminhados à Coordenação de Estágio das IES, para a avaliação pertinente.
§ 2º As atividades de Estágio poderão ser reprogramadas e reorientadas de acordo
com os resultados teórico-práticos gradualmente revelados pelo aluno, na forma
definida na regulamentação do Núcleo de Prática Jurídica, até que se possa
considerá-lo concluído, resguardando, como padrão de qualidade, os domínios
indispensáveis ao exercício das diversas carreiras contempladas pela formação
jurídica.
Art. 8º As atividades complementares são componentes curriculares enriquecedores
e complementadores do perfil do formando, possibilitam o reconhecimento,
por avaliação de habilidades, conhecimento e competência do aluno, inclusive
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adquirida fora do ambiente acadêmico, incluindo a prática de estudos e atividades
independentes, transversais, opcionais, de interdisciplinaridade, especialmente
nas relações com o mercado do trabalho e com as ações de extensão junto à
comunidade.
Parágrafo único. A realização de atividades complementares não se confunde com
a do Estágio Supervisionado ou com a do Trabalho de Curso.
Art. 9º As Instituições de Educação Superior deverão adotar formas específicas
e alternativas de avaliação, interna e externa, sistemáticas, envolvendo todos
quantos se contenham no processo do curso, centradas em aspectos considerados
fundamentais para a identificação do perfil do formando.
Parágrafo único. Os planos de ensino, a serem fornecidos aos alunos antes do início
de cada período letivo, deverão conter, além dos conteúdos e das atividades, a
metodologia do processo de ensino-aprendizagem, os critérios de avaliação a que
serão submetidos e a bibliografia básica.
Art. 10. O Trabalho de Curso é componente curricular obrigatório, desenvolvido
individualmente, com conteúdo a ser fixado pelas Instituições de Educação
Superior em função de seus Projetos Pedagógicos.
Parágrafo único. As IES deverão emitir regulamentação própria aprovada por
Conselho competente, contendo necessariamente, critérios, procedimentos e
mecanismos de avaliação, além das diretrizes técnicas relacionadas com a sua
elaboração.
Art. 11. A duração e carga horária dos cursos de graduação serão estabelecidas em
Resolução da Câmara de Educação Superior.
Art. 12. As Diretrizes Curriculares Nacionais desta Resolução deverão ser
implantadas pelas Instituições de Educação Superior, obrigatoriamente, no prazo
máximo de dois anos, aos alunos ingressantes, a partir da publicação desta.
Parágrafo único. As IES poderão optar pela aplicação das DCN aos demais alunos
no período ou ano subsequente à publicação desta.
Art. 13. Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, ficando
revogada a Portaria Ministerial n° 1.886, de 30 de dezembro de 1994 e demais
disposições em contrário.
Edson de Oliveira Nunes
Presidente da Câmara de Educação Superior
ANEXO II
Lei Imperial de 11 de Agosto de 1827
Crêa dous Cursos de sciencias Juridicas e Sociaes,
um na cidade de S. Paulo e outro na de Olinda.
Dom Pedro Primeiro, por Graça de Deus e unanime acclamação dos povos,
Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os
nossos subditos que a Assembléia Geral decretou, e nós queremos a Lei seguinte:
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Art. 1.º - Crear-se-ão dous Cursos de sciencias jurídicas e sociais, um na cidade
de S. Paulo, e outro na de Olinda, e nelles no espaço de cinco annos, e em nove
cadeiras, se ensinarão as matérias seguintes:
1.º ANNO
1ª Cadeira. Direito natural, publico, Analyse de Constituição do Império, Direito
das gentes, e diplomacia.
2.º ANNO
1ª Cadeira. Continuação das materias do anno antecedente.
2ª Cadeira. Direito publico ecclesiastico.
3.º ANNO
1ª Cadeira. Direito patrio civil.
2ª Cadeira. Direito patrio criminal com a theoria do processo criminal.
4.º ANNO
1ª Cadeira. Continuação do direito patrio civil.
2ª Cadeira. Direito mercantil e marítimo.
5.º ANNO
1ª Cadeira. Economia politica.
2ª Cadeira. Theoria e pratica do processo adoptado pelas leis do Imperio.
Art. 2.º - Para a regencia destas cadeiras o Governo nomeará nove Lentes
proprietarios, e cinco substitutos.
Art. 3.º - Os Lentes proprietarios vencerão o ordenado que tiverem os
Desembargadores das Relações, e gozarão das mesmas honras. Poderão jubilar-se
com o ordenado por inteiro, findos vinte annos de serviço.
Art. 4.º - Cada um dos Lentes substitutos vencerá o ordenado annual de 800$000.
Art. 5.º - Haverá um Secretario, cujo offício será encarregado a um dos Lentes
substitutos com a gratificação mensal de 20$000.
Art. 6.º - Haverá u Porteiro com o ordenado de 400$000 annuais, e para o serviço
haverão os mais empregados que se julgarem necessarios.
Art. 7.º - Os Lentes farão a escolha dos compendios da sua profissão, ou os
arranjarão, não existindo já feitos, com tanto que as doutrinas estejam de accôrdo
com o systema jurado pela nação. Estes compendios, depois de approvados pela
Congregação, servirão interinamente; submettendo-se porém á approvação da
Assembléa Geral, e o Governo os fará imprimir e fornecer ás escolas, competindo
aos seus autores o privilegio exclusivo da obra, por dez annos.
Art. 8.º - Os estudantes, que se quiserem matricular nos Cursos Juridicos, devem
apresentar as certidões de idade, porque mostrem ter a de quinze annos completos,
e de approvação da Lingua Franceza, Grammatica Latina, Rhetorica, Philosophia
Racional e Moral, e Geometria.
Art. 9.º - Os que freqüentarem os cinco annos de qualquer dos Cursos, com
approvação, conseguirão o gráo de Bachareis formados. Haverá tambem o grào
de Doutor, que será conferido áquelles que se habilitarem som os requisitos que
se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e sò os que o obtiverem,
poderão ser escolhidos para Lentes.
Art. 10.º - Os Estatutos do VISCONDE DA CACHOEIRA ficarão regulando por
ora naquillo em que forem applicaveis; e se não oppuzerem á presente Lei. A
Congregação dos Lentes formará quanto antes uns estatutos completos, que serão
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submettidos á deliberação da Assembléa Geral.
Art. 11.º - O Governo crearà nas Cidades de S. Paulo, e Olinda, as cadeiras
necessarias para os estudos preparatorios declarados no art. 8.º.
Mandamos portanto a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da
referida Lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente,
como nella se contém. O Secretario de Estado dos Negocios do Imperio a faça
imprimir, publicar e correr. Dada no Palacio do Rio de Janeiro aos 11 dias do mez
de agosto de 1827, 6.º da Independencia e do Imperio.
Vossa Majestade IMPERADOR D. Pedro I, com rubrica e guarda.
(L.S.)
Visconde de S. Leopoldo.
Carta de Lei pela qual Vossa Majestade Imperial manda executar o Decreto da
Assemblèa Geral Legislativa que houve por bem sanccionar, sobre a criação de
dous cursos juridicos, um na Cidade de S. Paulo, e outro na de Olinda, como acima
se declara.
Para Vossa Majestade Imperial ver.
Albino dos Santos Pereira.
Registrada a fl. 175 do livro 4.º do Registro de Cartas, Leis e Alvarás. - Secretaria de
Estado dos Negocios do Imperio em 17 de agosto de 1827. – Epifanio José Pedrozo.
Pedro Machado de Miranda Malheiro.
Foi publicada esta Carta de Lei nesta Chancellaria-mór do Imperio do Brazil. – Rio
de Janeiro, 21 de agosto de 1827. – Francisco Xavier Raposo de Albuquerque.
Registrada na Chancellaria-mór do Imperio do Brazil a fl. 83 do livro 1.º de Cartas,
Leis, e Alvarás. – Rio de Janeiro, 21 de agosto de 1827. – Demetrio José da Cruz.
ANEXO III
Projeto de regulamento ou estatutos para o Curso Jurídico creado pelo Decreto
de 9 de Janeiro de 1825, organizado pelo Conselheiro de Estado Visconde da
Cachoeira, e mandado observar provisoriamente nos Cursos Juridicos de S.
Paulo e Olinda pelo art. 10 desta lei.
Visconde de Cachoeira
Tendo-se decretado que houvesse, nesta Corte, um Curso Juridico para nelle se
ensinarem as doutrinas de jurisprudencia em geral, a fim de se cultivar este ramo
da instrucção publica, e se formarem homens habeis para serem um dia sabios
Magistrados, peritos Advogados, de que tanto se carece; e outros que possam
vir a ser dignos Deputados e Senadores, e aptos para occuparem os lugares
diplomaticos, e mais empregos do Estado, por se deverem comprehenderem nos
estudos do referido Curso Juridico os principios elementares de direito natural,
publico, das gentes, commercial, politico e diplomatico, é de forçosa, e evidente
necessidade, e utilidade formar o plano dos mencionados estudos; regular a sua
marcha, e methodo; declarar os annos do mesmo Curso; especificar as doutrinas
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que se devem ensinar em cada um delles; dar as competentes instrucções, porque
se devem reger os Professores e finalmente formalisar estatutos próprios, e
adequados para bom regimento do mesmo Curso, e solido aproveitamento dos
que se destinarem a esta carreira.
Sem estatutos, em que se exponham, e se acautelem todas estas circumstancias,
não se poderá conseguir o fim util de tal estabelecimento. De que serviriam
Bachareis formados, dizendo-se homens jurisconsultos na extensão da palavra,
se o fossem só no nome? Não tendo conseguido boa, e pura cópia de doutrinas
da sã jurisprudencia em geral, por maneira que utilmente para si, e para o
Estado podessem vir a desempenhar os empregos, para que são necessários os
conhecimentos desta sciencia, que sob os principios da moral publica, e particular,
e de justiça universal, regula e prescreve regras praticas para todas as acções da
vida social, haveria em grande abundancia hmens habilitados com a carta sómente,
sem o serem pelo merecimento, que pretenderiam os empregos para os servirem
mal, e com prejuizo publico, e particular, tornando-se uma classe improductiva
com damno de outros misteres, a que se poderiam applicar com mais proveito
da sociedade, e verificar-se-hia deste modo o que receiava um sabio da França da
nimia facilidade, e gratuito estabelecimento de muitos lyceus naquelle paiz.
A falta de bons estatutos, e relaxada pratica dos que havia, produziu em Portugal
pessimas consequencias. Houve demasiados Bachareis, que nada sabiam, e
iam depois nos diversos empregos aprender rotina cegas e uma jurisprudencia
casuistica de arestos, sem jamais possuirem os principios, e luzes desta sciencia. Foi
entao necessario reformar de todo a antiga Universidade de Coimbra; prescrevelhe estatutos novos, e luminosos, em que se regularam com muito saber e erudição
os estudos de jurisprudencia, e se estabeleceu um plano dos estudos proprios desta
sciencia, e as fórmas necessarias para o seu ensino, progresso, e melhoramento.
Parecia portanto que á vista de taes estatutos, e das mais providencias, que depois
se estabeleceram ácerca das faculdades jurídicas; e tambem do proveito que destas
instituições tem resultado, sahindo da Universidade grandes mestres, dignos e
sabios magistrados e habilissimos homens d’Estado, que aos nossos olhos tem
illustrado e bem sevido a patria, não era necessario outro novo regulamento, e
bastava, ou pra melhor dizer, sobrava que se ordenasse, que o novo Curso Juridico
mandado estabelecer nesta Côrte, se dirigisse, e governasse pelos novos estatutos
da Universidade de Coimbra com as alterações posteriores.
Assim se persuadiram os autores do projeto de lei sobre as Universidades, que
se apresentou, e discutiu na extincta Assembléia Constituinte e Legislativa,
acrescentando que o Curso Juridico, que no referido projecto se mandava crear
logo, e ainda antes de estabelecidas as Universidades, se governasse por aquellas
instituições, e novos estatutos, até que pelo andar do tempo, e experiencia,
restringissem, ou ampliassem os Professores o que julgassem conveniente. Esta
persuasão fundava-se na facilidade e presteza, com que começava logo a pôr-se
em pratica a proveitosa instituição dos estudos juridicos.
Dado porém que se não possa negar, nem a sabedoria dos autores do referidos
estatutos, nem a demasiada cópia de doutrinas que elles contém, por maneira que
é de admirar que houvesse em Portugal naquelle tempo de desgraça, e decadencia
dos estudos em geral, e particularmente da jurisprudencia, homens de genio tão
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transcendente que soubessem com tão apurada critica, e erudição proscrever o
mão gosto dos estudos, substituir-lhes doutrina methodica, e luminosa, e crear
uma Universidade, que igualou, e a muitos respeitos excedeu as mais celebres da
Europa, todavia o seu nimio saber em jurisprudência, e demasiada erudição de que
sobrecarregaram os mesmos estatutos, a muita profusão de direito romano de que
fizeram a principal sciencia juridica, á exemplo das Universidade de Allemanha;
o muito pouco que mandaram ensinar da jurisprudencia patria, amontoando só
em um anno, e em uma só cadeira tudo que havia de theorico e pratico della; a
pobreza do ensino de direito natural, publico, e das gentes, (sem se lhe unir a parte
diplomática) e que devia ser ensinada em um só anno; a falta de direito maritimo,
commercial, criminal, e de economia politica, que não foram comprehendidas nos
estudos, que se deviam ensinar dentro do quinquennio, fazem ver que os referidos
estatutos, taes como se acham escriptos, não podem quadrar ao fim proposto de se
formarem por elles verdadeiros e habeis jurisconsultos.
Os mesmos autores dos referidos estatutos conheceram tanto que os estudos
de direito diplomatico, e de economia politica deviam entrar na faculdade de
jurisprudencia que declararam que os Professores dessem noticia delles aos seus
discipulos quando conviesse; mas nem isto era estabelecer estudo regular, nem
preceitos vagos podiam aproveitar.
A falta de estudos mais profundos de direito patrio foi supprida depois pelo
Alvará de 16 de janeiro de 1807, que deu nova fórma aos mencionados estudos,
e ao ensino da pratica do foro estabelecida pelos autores dos estatutos da
Universidade de Coimbra para o 5.º anno jurídico, ficando para o 3.º, e 4.º anno o
ensino do direito patrio, com o que mais aproveitados sahem os estudantes nestes
tempos modernos, quando anteriormente vinham totalmente hospedes nos usos
praticos, e sabendo mui pouco de direito patrio, e sua applicação, quando estes
eram os estudos em que deveriam ser mui versados, pois que se destinavam a ser
jurisconsultos nacionaes.
Se este deve ser considerado o fim primordial dos estudos juridicos, salta aos olhos
quão capital defeito era o pouco tempo que se empregava no estudo de direito
pátrio, e sua applicação ao foro. Posto que o estudo do direito romano seja uma parte
importante da jurisprudência civil, não só porque tem sido este o direito de quase
todas as nações modernas, mas principalmente porque nelle se acha um grande
fundo do direito da razão, pelo muito que os jurisconsultos romanos discorreram
ajudados da philosophia moral; tanto assim que deste copioso manacial tiraram
Thomasio, Grocio, e Pullendorfio o que depois chamaram direito natural, e os
celebres compiladores do Codigo de Napoleão confessaram ingenuamente, que ali
acharam em grande deposito a maior parte das regras que introduziram no mesmo
codigo; todavia é o direito romano subsidiário ou doutrinal, como em muitas partes
dos mesmos estatutos confessaram os seus ilustres autores, e não podia jámais ser
ensinado com tanta profusão e extensão á custa do direito patrio, por quanto ainda
que em grande parte as nossas leis sejam extrahidas dos romanos, principalmente
nos contractos, testamentos, servidões, etc.; ainda que seus compiladores eram
mui versados no estudo do direito romano; como tudo é o direito patrio um corpo
formado de instituições próprias deduzidas do genio, e costumes nacionaes, e
de muitas leis romanas já transvertidas ao nosso modo, e bastava por tanto, que
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depois do estudo das institutas se explicasse o direito patrio, e que nos lugares de
duvidas do direito romano trouxessem os Professores á lembrança o que se tivesse
ensinado nas ditas institutas, expondo tudo o mais que ocorresse daquelle direito,
e indicando as leis romanas, onde existe a sua principal doutrina.
Além do que fica dito cumpre observar que a nimia erudição dos autores dos
estatutos de Coimbra; a profusão com que a derramaram na sua obra, o muito e
demasiado cuidado com que introduziram o estudo de antiguidades e as amiudadas
cautelas que ensinaram para a intelligencia dos textos, e que só deveriam servir para
aclarar e alcançar o sentido dos difficeis, fizeram que os estudantes sahissem da
Universidade mal aproveitados na sciencia do direito patrio, e sobrecarregados de
subtilezas, e antiguidades, que mui pouco uso prestaram na pratica dos empregos
a que se destinaram. Os mesmos mestres e doutores, para se acreditarem de sabios
perante estudos de direito romano e antiguidades, e seguindo nelles a escola
Cujaciana, philosophavam muito theoricamente sobre os principios de direito, e por
fugirem o rumo da de Bartholo, Alciato, e mais glosadores e casuístas, ensinavam
jurisprudencia mais polemicado que apropriada á pratica da sciencia de advogar,
e de julgar. Não foi só o nimio estudo de direito romano a causa principal de se
não formarem verdadeiros jurisconsultos; foi tambem, como já dissemos, a falta
de outras partes necessárias da jurisprudencia, e que fundadas na razão, preparam
os animos dos que aprenderam para conseguirem ao menos os principios geraes
de tudo, que constitue a sciencia da jurisprudencia em geral, e cujo conhecimento
forma os homens para os diversos empregos da vida civil.
Se este é o fim, a que nos destinamos na instituição deste Curso Juridico, se a
experiencia já nos tem ensinado e convencido dos inconvenientes da pratica
seguida; se conhecemos que a jurisprudencia é filha toda da sã moral; se sabemos
que desde os primeiros elementos da ethica, e da moral nos vamos elevando como
por degráos ao cimo deste edificio; e se finalmente é da mais simples intuição
que as scinecias todas se enlaçam, maiormente as moraes, que, de mistura com as
instituições civis, são a base da jurisprudencia; porque não aproveitaremos estas
lições do saber, e da experiencia, para abraçarmos um novo methodo mais regular,
simples e farto dos conhecimentos necessarios e uteis, e que despido de erudições
sobejas, abranja o que é mais philosophico e justo? Deve-se, portanto, sem perder
de vista o que há de grande, e sabio em tão famigerados estatutos, cortar o que for
desnecessario, instituir novas cadeiras para as materias de que nelles se não fez
menção, as quaes são enlaçadas pelos mais fortes vinculos com a jurisprudencia
em geral, e de nimia utilidade para o perfeito conhecimento della, e dirigirmo-nos
ao fim de crear jurisconsultos brasileiros, enriquecidos de doutrinas luminosas, e
ao mesmo tempo uteis, e que pelo menos obtenham neste curso bastantes e solidos
principios, que lhes sirvam de guias nos estudos maiores, e mais profundos, que
depois fizerem; o que é o mais que se póde esperar que obtenham estudantes de
um curso academico.
Os autores dos mesmos estatutos, no Curso Jurídico que regularam, comprehenderam
o direito canonico, e por maneira estabeleceram a fórma de estudos de ambas as
faculdades juridicas, que os primeiros dous annos são inteiramente communs aos
estudantes dellas, ajuntando-se depois nos annos, e aulas, em que se ensinava o
direito patrio, e pratica de fôro. Considerada a necessidade de haver um curso
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de direito canonico, muito bem, se houveram prescrevendo aos alumnos que
se destinavam á faculdade de canones o conhecimento das institutas de direito
civil, e os das instituições de direito publico, ecclesiastico e de direito canonico
aos alumnos de direito civil, attenta a relação, e affinidade que ha em geral entre
estes estudos. Comtudo não entrará o ensino da faculdade de canones no Curso
Juridico, que se vai instituir. Esta sciencia, toda composta das leis ecclesiasticas,
bem como a theologia, deve reservar-se para os claustos e seminarios episcopaes,
como já se declarou pelo Alvará de 10 de Maio de 1805 § 6.º, e onde é mais próprio
ensinarem-se doutrinas semelhantes, que pertencem aos ecclesiasticos, que se
destinam aos diversos empregos da igreja, e não aos cidadãos seculares dispostos
aos empregos civis.
Como porém convenha a todo jurisconculto brazileiro saber os principios
elementares de direito publico, ecclesiastico, universal, e proprio da sua nação,
porque em muitas cousas, que dizem respeito aos direitos do chefe do governo
sobre as cousas sagradas e ecclesisaticas, cumpre saber os principios e razões em
que elles se estribam, convirá que se ensinem os principios elementares de direito
publico, ecclesiastico, universal e brazileiro em uma cadeira, cujo Professor com
luminosa e apurada critica e discernimento assignale as extremas dos poderes civil
e ecclesiastico.
Por estes ponderosos motivos, e dest’art se organizam os estatutos, que hão de
reger o Curso Juridico, que vai a ensinar-se nesta Corte, o qual abrangerá portanto
os conhecimentos que formam o todo da faculdade de jurisprudencia civil.
__________________________________________________________
FONTE: PROJETO de regulamento ou estatutos para o Curso Juridico creado pelo
Decreto de 9 de Janeiro de 1825, organizado pelo Conselheiro de Estado Visconde
da Cachoeira, e mandado observar provisoriamente nos Cursos Juridicos de S.
Paulo e Olinda pelo art. 10 desta lei.
O DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO
PARA PESSOA COM DEFICIÊNCIA FÍSICA
Geysa Corrêa D´Almeida 1
Resumo
A Constituição Federal de 1988 promoveu a emancipação plena do processo de cidadania
brasileira e, nos dizeres de José Afonso da Silva, a dignidade da pessoa humana tornou-se
o fundamento da própria democracia. Não é excessivo destacar que a Carta Magna foi
inspirada nas propostas humanistas de Jacques Maritain contidas no livro “Humanismo
Integral”. Noberto Bobbio retoma a temática e diz que o século XX foi o século dos direitos
humanos, sobre os quais não se importa nomear quais ou quantos são, mas sim garantirlhes a máxima eficácia, na esteira do raciocínio de Robert Alexy. Nesse sentido, busca-se
uma mudança de consciência em relação à pessoa portadora de necessidades especiais e ao
seu trabalho, de tal modo que existam possibilidades de se promover a oportunidade de o
deficiente físico concorrer no mercado de trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Trabalho; Deficiência física; Direitos humanos.
Introdução
Na era clássica, os povos de civilizações hebraicas, gregas e romanas
tinham sua sociedade regulada já por vasta legislação, podendo ser encontrados
muitos relatos acerca de pessoas que requeriam necessidades especiais para seus
mais diversos afazeres. Histórias estas nas quais a grande maioria conta sobre o
tratamento discriminatório dispensado àqueles que traziam algum tipo da assim
chamada “deficiência”.
Nas cidades de Atenas e Esparta o costume era que se eliminassem as
crianças nascidas que fossem consideradas “mal constituídas”. Certas cidades
gregas possuíam em sua legislação normas a fim de que se protegessem as pessoas
com necessidades especiais com regulamentações oficiais que conferiam aos
guerreiros feridos e aos seus familiares proteção e vantagens de diversas naturezas,
como a “Lei de Sólon” (640 a 558 a. C.). Esta norma destinava aos soldados feridos
gravemente e aos mutilados em combate o direito de serem alimentados pela
cidade (ALVES, 1992). Aristóteles, por sua vez, defendia as pessoas portadoras de
necessidades especiais no que tange ao direito ao trabalho, chegando a declarar
que é: “mais fácil ensinar um aleijado a desempenhar uma tarefa útil do que sustentá-lo
como indigente” (SILVA, 1986, p. 97).
Mesmo sendo a legislação grega de fundo assistencialista em relação aos
mutilados de guerra, foi nesse momento que nasceu a prática de reabilitação e
habilitação da pessoa com deficiência física para o trabalho. Afinal:
(...) entre criaturas semelhantes, o justo e o belo consistem em uma
espécie de alternativa e de reciprocidade; porque nisso está o que
constitui a igualdade e a paridade, ao passo que a desigualdade entre
1
Discente do curso de Direito do Centro Universitário Estácio/UniSEB. Email: [email protected].
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iguais e a diferença entre semelhantes são contra a natureza; ora, nada
daquilo que é contra a natureza poderia ser belo. (ARISTÓTELES, 1995,
ps. 135-136). Aristóteles propunha já naquela época dupla destinação para as pessoas com
necessidades especiais: a de se dar trabalho aos deficientes físicos com capacidade
de produção e trabalho e o “óbolo” àqueles que não tivessem condições de prover
seu sustento por meio do trabalho. Tais observações demonstram que já existia
correta iniciativa política nas atitudes sociais que buscavam aproveitamento e
integração das pessoas portadoras de necessidades especiais, pelo que se continua
a notar um caráter inicialmente assistencial.
No entanto, em diversas civilizações e ao longo de quase toda a Idade
Média, até o surgimento da psiquiatria e do desenvolvimento da Medicina, os
portadores de necessidades especiais foram vistos como “monstros”: uma espécie
de infração às leis da sociedade e, concomitantemente, das leis da natureza. O
“monstro” pode ser várias coisas: o deficiente físico, o mental, o portador de
patologias psiquiátricas, enfim, um vasto amálgama de personagens que pouca
relação tinha entre si, mas que, no limite, significavam a perversão das leis biológicas.
A eles, dependendo-se do tipo de monstruosidade aparente, seriam destinados os
mais diversos sentimentos ou mesmo atos: violência, aniquilação, extermínio,
cuidados médicos ou mera piedade (Foucault, 2002).
Somente com a institucionalização da Psiquiatria pode-se, afinal, classificar
os diversos tipos de sujeitos existentes dentro do que a sociedade considerava
anomalia, separando-se – pela via do discurso psiquiátrico totalizante dos séculos
XVII e XIX, como salienta Foucault – os perigosos portadores de morbidades mentais,
os deficientes mentais tidos como inocentes, inofensivos e, portanto, dignos de
pena, e as pessoas com necessidades especiais físicas, caso oriundas fossem tais
necessidades (ou “deformidades”) do nascimento.
Muito mais tarde, com o advento do fenômeno das ações afirmativas, de
inspiração nitidamente norte-americana, as sociedades modernas puderam firmar
a distinção entre igualdade formal e material: importa ao direito garantir esta última,
na esteira aristotélica de tratar os desiguais na medida de suas desigualdades,
equiparando-os no plano fático aos seus semelhantes que não passam pelo mesmo
grau de discriminação, quais sejam: as pessoas sem necessidades especiais.
Tais ações restringem-se a grupos perseguidos por razões de preconceito,
como ocorre com os negros. O Estado brasileiro, em sua função de indutor de um
processo de cidadania inclusiva, veio a ratificar as Convenções nº. 111 e 159 da OIT
(Organização Internacional do Trabalho), objetivando criar, no sistema nacional,
a obrigatoriedade da contratação, pelas empresas, de percentuais mínimos de
trabalhadores com necessidades especiais, consoante artigo nº. 93, da Lei nº.
8.213/91.
Igualmente, no âmbito do setor público, um determinado número de
vagas é sempre garantido a este grupo em concursos públicos, seguindo também
os ditamos das Convenções acima citadas. No entanto, longe se está desta plena
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igualdade, mesmo entre aqueles que possuem necessidades especiais e aptidão
ao trabalho: a deficiência dita física, assim como a sensorial (auditiva e visual), de
acordo com a análise dedutiva do estuário temático, assim como da investigação
indutiva acerca de acórdãos sobre o tema, demonstra que os assim denominados
portadores de necessidades especiais mentais não se encontram protegidos por nenhuma
medida específica, vez que o ordenamento jurídico brasileiro trata a “deficiência”
de maneira única quando, em verdade, ela comporta diversas variantes e naturezas
distintas. Praticamente não se vislumbra a contratação dos chamados deficientes
mentais, dando-se exclusiva preferência àqueles que detenham alguma necessidade
especial física ou sensorial.
Conclui-se, pois, por meio da análise hipotético-dedutiva do problema,
pela necessidade de aperfeiçoamento legislativo quanto ao grupo em estudo, de
maneira a reservar percentagens mínimas de contratação a cada subtipo de pessoas
com necessidades especiais.
Da mesma maneira, verifica-se que o termo deficiência encontra-se
ultrapassado: a deficiência se nota em qualquer pequeno problema como, por
exemplo, uma pessoa que não consegue retirar a lâmpada de determinado
local, pois necessita de escada. Deficiência seria a ausência de eficiência quanto
à determinada atividade, fato que poderá ser suprimido de maneira simples
com uma única solução: adequar o meio ambiente do trabalho às necessidades
especiais de quem lá presta seus serviços, como forma de tornar o “deficiente”,
tenha a necessidade especial que tiver, em trabalhador “eficiente”, apto a conferir
respostas às demandas de seus empregadores. Este é, portanto, um dos melhores
refinamentos conceituais práticos da proposição de José Afonso da Silva, qual
seja, de que a valorização da dignidade da pessoa humana é o fundamento da
própria democracia. Sem tais ações, a democracia se torna palavra vazia de sentido
e conteúdo.
Diante do exposto, o presente artigo tem o objetivo de demonstrar como
atualmente se encontra a questão das pessoas com necessidades especiais em
relação ao trabalho formal em seus aspectos jurídicos e sociológicos.
A Constituição Federal em face à pessoa com deficiência física
A Constituição Federal de 1988 promoveu o verdadeiro e indispensável
processo de emancipação da cidadania brasileira. Esta Constituição foi inspirada
na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Organização das
Nações Unidas, em 1948. É imperativo observar que, neste mesmo sentido, vamos
constatar a previsão dos mesmos direitos, pertinentes à dignidade da pessoa
humana, na Constituição Portuguesa de 1976 e na Constituição Espanhola de 1978.
O constitucionalismo democrático contemporâneo, portanto, tem o seu
paradigma na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que por sua vez
foi elaborada sob a inspiração das políticas publicas e sociais que defendiam a
integridade da dignidade da pessoa humana de forma pluridimensional, premissa
oriunda do pensamento do filósofo francês Jacques Maritain (1945), principalmente
no livro “Humanismo Integral”. Atualmente, não há como serem desconsiderados
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os valores mais sagrados para o efetivo respeito à pessoa humana. Aliás, Norberto
Bobbio identifica no pleno respeito aos direitos humanos a possibilidade do reino
da violência para o da não-violência.
Particularmente, no caso pertinente às pessoas portadoras de necessidades
especiais, a nossa Constituição Federal consagra o exercício de seus direitos com
claridade solar. Para tanto, a previsão tem o seu inicio no artigo 7º, inciso XXXI,
proibindo qualquer discriminação quanto a salário e critérios de administração do
trabalhador portador de deficiência.
O artigo 23, em seu inciso II, indica os cuidados referentes à saúde e
assistência pública, sobretudo no que está relacionado à proteção e à garantia
das pessoas portadoras de necessidades especiais. Por sua vez, o artigo 24, inciso
XIV, indica a proteção e integração social das pessoas portadoras de necessidades
especiais. Prosseguindo nesse diapasão, o artigo 37, inciso VIII, promove a
reserva de percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras
de deficiência, deixando as especificações técnicas pertinentes a critérios da
Administração. O artigo 203, inciso V, garante um salário mínimo de beneficio
mensal à pessoa com necessidades especiais. Já o artigo 227, § 2º, especifica normas
quanto à construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação
de veículos de transportes coletivos, com a finalidade de garantir entrada adequada
às pessoas com “deficiência”.
Finalmente, o artigo 244, nos termos orientadores do artigo 227, § 2º, prevê
a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de
transporte coletivo, atualmente existentes com a finalidade de garantir ingresso
adequado às pessoas portadoras de necessidades especiais, para os fins legais e de
direito.
Neste sentido, a Carta Magna brasileira promove todos os meios
constitucionais para o pleno exercício de seus direitos aos portadores de eventuais
necessidades especiais, as quais, no curso da História recente, receberam – e
ainda recebem – a nomenclatura de “deficiências”. Além de tais previsões de
exercício de direitos, na constatação efetiva de não-cumprimento dos dispositivos
constitucionais, a própria Constituição Federal prevê a garantia de exercício de
direitos, mediante a provocação da prestação jurisdicional, na conformidade com o
constado no artigo 5º, inciso XXXV, ora citado in verbis: “a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Portanto o caminho a ser seguido, na
eventualidade de qualquer prejuízo ao exercício de um dos direitos previstos na
Constituição Federal, sempre será buscar a prestação jurisdicional. Considerando a
não-previsão do exercício de direitos pertinentes à pessoa portadora de deficiência,
quer na Constituição ou em outra legislação infraconstitucional, assim mesmo, o
juiz de direito contará com o recurso previsto no artigo 4ª da Lei de Introdução
ao Código Civil brasileiro, principalmente em casos de omissão ou imprecisão,
conforme se constata pela citação in verbis: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o
caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
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O Direito fundamental ao trabalho
As transformações legislativas nas últimas três décadas trouxeram novas
perspectivas em relação à integração da pessoa com deficiência em todos os
aspectos da vida social e principalmente no que se refere ao mercado de trabalho.
Muitas foram as convenções e leis nacionais aprovadas, com o intuito da plena
integração dos grupos de portadores de necessidades especiais a vida cotidiana
como, por exemplo, normativas da ONU (Organização das Nações Unidas, em
1993), do CORDE (Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora
Deficiência Física, em 1997), e da OIT (Organização Internacional do Trabalho,
em 1997). Essas convenções, leis e outros incentivos tiveram papel importante no
estímulo para que as pessoas com deficiência se organizassem melhor em busca de
formas variadas de representação para atuar em busca dos novos direitos.
Alguns pressupostos constitucionais como o princípio da igualdade
(isonomia) que, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (apud GOMES, 2001a),
a igualdade entre os seres humanos é requisito e ao mesmo tempo um dos mais
relevantes direitos humanos, porque ele é base de tais direitos. Diz ainda Paulo
Bonavides que: “o princípio da igualdade é o centro medular do Estado social e de todos os
direitos de sua ordem jurídica” (2004, p. 376). Por fim, também Norberto Bobbio, em sua
obra “Igualdade e Liberdade”, considera o princípio da igualdade de oportunidades
ou de chances como um dos pilares do Estado de democracia social.
A Constituição Federal de 1988, por meio do caput do seu art. 5º, procurou
garantir a igualdade de maneira ampla, dispondo: “todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade [...]”.
No direito positivo brasileiro, o princípio genérico da igualdade vem
capitulado como direito individual: “todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza” (Art. 5º, caput, C.F/88); e como objetivo fundamental da
República: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, idade e quaisquer
outras formas de discriminação” (art. 3º, IV, CF/88).
A Constituição Federal deverá ser interpretada com base no princípio
da igualdade, que tem como seu objetivo atuar como regra matriz de toda a
hermenêutica constitucional e infraconstitucional. A igualdade jurídica, segundo
expressiva maioria dos doutrinadores pátrios, é analisada sob enfoque duplo: a
igualdade formal e a igualdade material. A igualdade formal é o princípio da
igualdade, em sua vertente formal (igualdade perante a lei), de maneira a referir-se
tão somente à aplicação do direito com relação à coletividade sem qualquer tipo de
distinção. Para Celso Bastos, a isonomia formal consiste no: “direito de todo cidadão
não ser desigualado pela lei senão em consonância com critérios albergados ou ao menos
não vedados pelo ordenamento constitucional” (BASTOS, 1999). Já
Siqueira
Castro pondera que:
A regra de que todos são iguais perante a lei, ou de que todos merecem
a mesma proteção da lei, entre outros enunciados expressivos da
isonomia puramente formal e jurídica, traduz, em sua origem mais
genuína, a exigência de simples igualdade entre os sujeitos de direito
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perante a ordem normativa, impedindo que se crie tratamento diverso
para idênticas ou assemelhadas situações de fato. Impede, em suma,
que o legislador trate desigualmente os iguais (apud SILVA, 1986, p. 37).
Para Fernanda Duarte da Silva (1986), a igualdade formal (igualdade
perante a lei) teria por destinatário exclusivo o aplicador da lei, isto é, a igualdade
haveria de ser observada pelo juiz e pelo administrador, ao fazer incidir lei em
uniformidade.
Quando se fala em igualdade formal (perante a lei) no que se refere à
pessoa com deficiência, assim como o que dispõe o artigo 5º, da Constituição
Federal de 1988, o artigo 7º inciso XXXI da CF/88, já supracitado, reitera o direito
ao trabalho para pessoas deficientes quando menciona acerca da “proibição de
qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador
de deficiência”.
O inciso acima citado precisa ser interpretado de forma que a pessoa com
deficiência física deva ocupar cargo ou função compatível com sua habilidade;
“discriminar”, pois, também envolve ter acesso adequado ao trabalho, a fim de que
não ocorra atribuição para a pessoa portadora de deficiência da chamada condição
de falta de capacidade, pois uma pessoa cega poderá, no entanto, ter habilidade
especial em relação ao tato, isto é, ter manejo apurado em relação a habilidades
manuais. O mesmo se diga, como exemplo, em relação a um cadeirante que exerça
função intelectual e não algo que lhe exija habilidade para locomover-se com as
pernas.
Desta forma, não se justificaria a discriminação no tocante a salário, pois
se parte do pressuposto de que o critério de admissão para o trabalho seria uma
aptidão em que o chamado deficiente esteja apto para desempenhar a função de
maneira eficiente, como critério que é exigido para uma contratação formal de
trabalho de forma geral. Constatada a discriminação, o empregador estará incurso
na figura típica prevista no inciso III, do art. 8º, da Lei n. 7.853, de 24 de outubro
de 1989, o qual dispõe, in verbis: “Constitui. crime punível com reclusão de 1(um) a
4(quatro) anos e multa: III – negar, sem justa causa, a alguém, por motivos derivados de
sua deficiência, emprego ou trabalho;”.
Assim sendo, o princípio da igualdade, em sua vertente formal, estabelece
que deve ser o mesmo aplicado de maneira que a pessoa portadora de deficiência
só possa ser impedida de postular o cargo quando sua deficiência constituir, de
forma clara e inequívoca, impedimento para o desempenho da função (MELO,
2004, p. 115).
No entanto, casos há em que se requer a aplicação da igualdade material
(igualdade na lei), aquela que assegura o tratamento uniforme de todos os homens,
resultando em igualdade real e efetiva de todos, perante todos os bens da vida.
Para Sandro Nahmias Melo:
A regra isonômica da igualdade perante a lei não se constitui em norma
de proteção, mas apenas de instituição de princípio democrático,
extensível a todos, inclusive aos portadores de deficiência, principio
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este que coloca o grupo protegido em condição de integração social.
Todavia, o que se pretende demonstrar, no momento, é a existência
de regras que, de fato, discriminam, protegem, colocam privilégios
imprescindíveis sob a ótica política do constituinte, para a equiparação
de certas situações ou grupos (2004, p. 19).
A proteção do Estado para com as pessoas portadoras de deficiência,
por meio de medidas discriminatórias positivas (as chamadas ações afirmativas),
é indispensável para que seja possível a integração daqueles que requerem
necessidades especiais ao meio social. A contemporaneidade das Constituições
tem feito do princípio da igualdade material (igualdade na lei) fundamento
indissociável da construção de uma sociedade justa e solidária.
A igualdade material, quanto ao direito ao trabalho das pessoas portadoras
de deficiência, surge no texto constitucional, principalmente, através das
vagas reservadas no serviço público (art. 37, VIII, da CF/88) e das garantias de
habilitação e reabilitação (art. 203, IV, da CF/88). Desta forma, a lei estabelecer
tratamento diferenciado para as pessoas diferentes é absolutamente constitucional,
especialmente no que tange a quotas legais para que as pessoas com necessidades
especiais tenham acesso ao trabalho, e por consequência, acesso a igualdade de
condições para uma vida digna enquanto cidadãos brasileiros (FILIPPINI, 2003,
p. 301).
São muitas as nuanças que cercam o acesso da pessoa portadora de
necessidades especiais ao mercado de trabalho (educação, qualificação, adequação
do ambiente de trabalho, etc.). A mera imposição de cotas rígidas exigida na
iniciativa privada (art. 93 da Lei nº. 8.213/91), isoladamente, pode-se entender,
não garante o direito ao trabalho das pessoas portadoras de deficiência. Esta é
inclusive uma constatação da OIT.
Quanto à contratação de “deficientes” (pessoas com necessidades
especiais) mentais, nota-se ainda um preconceito avassalador. A lei fala apenas
em percentuais mínimos de contratação, via concurso público ou em empresas,
de pessoas “portadoras de deficiência” (é esta a redação do artigo 93 da Lei nº.
8.213/91), mas não especifica quais são as supostas “deficiências”. Nota-se,
pois, nítida preferência em relação a quem tenha necessidades especiais do tipo
físico e/ou sensorial, mas tratamento excludente quanto àqueles que detenham
necessidades especiais mentais (os “deficientes mentais” habilitados ao trabalho).
Registre-se que a “deficiência mental” daqueles que possam trabalhar
comporta uma vasta gama de pessoas, incluindo pessoas superdotadas em
inteligência e que não se adaptam facilmente (MELO, 2004), pessoas com pouca
inteligência mas, mesmo assim, aptas a desenvolverem certos trabalhos (ex:
portadores da síndrome de Down), esquizofrênicos, psicopatas, enfim, pessoas
que mesmo em tratamento e, comprovadamente, sem oferecer qualquer risco ao
trabalho, estão marcadas pelo estigma que acompanham estas nomenclaturas
(psicopata ou esquizofrênico são exemplos nítidos disto).
Todavia, a histórica visão do trabalho como algo opressivo e degradante
contribuiu para que a ciência buscasse desenvolver, no trabalho, especializações
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funcionais e técnicas de aumento produtivo, investindo, todavia, “muito pouco na
busca de uma harmonização do homem no seu trabalho” (BORGES, 1997, p. 8889) com o fito de tornar tal atividade um processo de humanização do indivíduo
e das coletividades. E, no entanto, o trabalho faz reunir seres humanos e, em seu
ambiente executivo, obriga-os à interação solidária, tornando-se por tal razão
um ingrediente duplamente elementar para qualquer política preventiva ou de
promoção da saúde: além de fornecer mediante remuneração o instrumental
necessário para seus cuidados elementares, trata da necessária sociabilidade
humana.
No caso específico dos portadores de necessidades especiais e, em rigoroso
relevo, dos portadores de necessidades especiais mentais, o trabalho adquire esta
dupla função com grande intensidade. Em regra o compreender da “deficiência”
pelo “deficiente” induz à auto-imputação de uma identidade negativa, de forma
fazê-lo sentir-se inferior aos demais da sociedade. Neste sentido é que opera o
poder simbólico (BOURDIEU, 2005) do preconceito: até hoje a cultura social
procura a integração verdadeira apenas dos dominantes, e apregoa a fictícia da
sociedade como um todo, ocasionando a desmobilização de grupos vulneráveis
como o ora relatado. A igualdade torna-se, assim, uma quimera. No entanto, se
podemos considerar nossa sociedade como igualitária, isto ocorre justamente em
razão de ser uma sociedade de trabalhadores, já que é da essência do trabalho
nivelar os homens (ARENDT, 1981). Por isto a sociabilização dos portadores de
necessidades especiais alcançada pelo trabalho, por lograr tanto desconstruir
a representação social que se faz do portador, quanto por reconstruir sua autoidentidade, torna-se tão vital quanto a função de gerir a própria sobrevivência
física. É o real, único e possível conceito de saúde.
No mais, o que se faz no Brasil, como já dito, chama-se Ação Afirmativa.
É o que vem ocorrendo, mais recentemente, com a garantia de cotas a estudantes
negros ou indígenas nas Faculdades, com a luta dos portadores de necessidades
especiais de natureza mental em se verem amparados quanto ao seu direito
fundamental ao trabalho, ou como a Justiça do Trabalho tem, por sua própria
conta, entendido a demissão de empregados portadores de HIV como presunção
discriminatória, fazendo os empregadores reintegrá-los a seus empregos (desde
que não haja justa causa para o rompimento do contrato, obviamente), como bem
afirmam Elisa Maria Brant de Carvalho Malta e Vera Lúcia Carlos (2001, p. 82).
Há projetos de Lei tentando criar também percentuais mínimos de
contratação aos portadores do HIV/AIDS para que estas pessoas mostrem suas
faces, caso queiram, e, no ambiente do trabalho, passem a desconstruir o estigma que
a sociedade lhes impôs, sobretudo na década de 1980. Em razão das especificações
técnicas da legislação pátria, os soropositivos não podem ser considerados como
portadores de necessidades especiais (MUÇOUÇAH, 2010, p. 390).
De qualquer maneira as ações afirmativas, um fenômeno norte-americano,
são medidas que visam beneficiar determinados segmentos da sociedade, pela
razão de inexistirem iguais condições de competição em face de discriminação ou
injustiças históricas. Este instrumento, cada vez mais utilizado na promoção de
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políticas em relação às comunidades negras e pessoas portadoras de necessidades
especiais, traduz-se num instrumento altamente significativo para a educação em
direitos humanos. Diferentemente das políticas anti-discriminatórias repressivas:
“que se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos
jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto” (GOMES, 2001b, p. 1142),
ações afirmativas em relação aos soropositivos evitariam a discriminação em sua
forma já exposta.
No caso, cuida-se também de discriminar, mas no sentido da chamada
discriminação positiva, socialmente justificada, com vistas a atingir a verdadeira
igualdade entre os pares sociais. Assim, para colocá-los frente a frente,
soropositivos e soronegativos, favorecem-se os primeiros em detrimento dos
últimos na competição francamente desigual existente entre ambos pelo acesso a
determinado bem - no caso específico dos soropositivos, o direito integral à saúde,
por meio de condições diferenciadas de acesso ao trabalho.
Em se tratando dos portadores de necessidades especiais, as representações
sociais sobre o “ser deficiente”, ainda muito constantes na realidade histórica
deste grupo social, justificam a adoção da medida proposta. Não basta apenas a
repressão pura e simples à discriminação para fazer valer o direito que toda pessoa
“deficiente” (e o título deste artigo teve o tom proposital de provocar a reação à sua
leitura) tem em ver respeitada sua dignidade. Desta forma, o que antes era um
princípio jurídico passivo: “agora é um conceito jurídico ativo, vale dizer, de um conceito
negativo de condutas discriminatórias vedadas mudou-se para um conceito positivo de
condutas promotoras de igualação jurídica” (ATCHABAHIAN, 2004, p. 150).
Considerações Finais
Para a resolução efetiva e verdadeira do problema, trata-se de conciliar
as garantias já existentes com um processo de educação não apenas teórica, mas
também prática em direitos humanos, formada na vivência do dia-a-dia, que
permita uma concepção humanista, molde a recuperar e afirmar a dignidade da
pessoa com necessidades especiais, bem como o respeito à sua dignidade. Neste
processo, em que os atores principais são o Estado e a sociedade civil (DÍAZ, 2002),
a pedagogia liga-se à marcha pela conquista de uma prática e defesa dos direitos
humanos, assim como na proposta de convivência democrática de diferentes
formas de vida que, afinal, compreendem a diversidade humana (MUJICA, 2002).
Ora, o artigo 93 da Lei nº. 8.213/91, o qual trata dos percentuais mínimos
para contratação de pessoas portadoras de necessidades especiais, é exemplar
nesse sentido pedagógico: permitirá a plena visibilidade cotidiana e ativa daqueles
que se chamam “deficientes”, mostrando-os como verdadeiramente “eficientes”
quando o meio ambiente do trabalho encontram-se a eles adaptados de maneira
razoável (MELO, 2004, p. 157). A única crítica que se pode fazer à Lei é este
deixar, à discricionariedade do empregador, a escolha entre contratar pessoas
com necessidades especiais físicas (propriamente dita ou sensorial, como os cegos
e surdos), ou (e todo o problema radica-se neste “ou”) portadores de necessidades
especiais de natureza mental, fato que merece profunda investigação, face à quase
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inexistência destas pessoas, devidamente habilitadas, no mercado de trabalho.
A redação do artigo proposto deveria sublinhar com mais rigor a
obrigatoriedade de alocar-se pessoas com necessidades especiais mentais nos
ambientes do trabalho. Afinal, isto salientaria a necessidade de sociabilidade
democrática entre indivíduos, no rompimento com a tristeza e o isolamento aos
quais a identidade da denominada “deficiência” encaminha seus representantes.
Ademais, possibilitaria os citados acessos à remuneração e, por conseguinte,
à realização material da vida, mas não só. Levando as deficiências aos locais de
trabalho que lhes permitam ser eficientes, também será possível destruir todos
os signos relacionados às pessoas com necessidades especiais (como se fossem
verdadeiros inválidos), já que estas podem ser encontradas em todos os gêneros,
etnias, faixas etárias, orientações sexuais e classes sociais (MUÇOUÇAH, 2010);
ademais, pelos reflexos que os ambientes do trabalho produzem na comunidade a
ele vinculada, será possível construir, aos poucos, uma nova formação social para o
conceito de pessoa portadora de necessidade especial, rompendo-se enfaticamente
com o fantasma e estigma da palavra deficiência.
Por meio de ações afirmativas específicas a estes grupos, conjugadas com
ações repressoras da discriminação, será possível instaurar a completa pedagogia
da vivência fática dos direitos humanos. A educação neste caso, enquanto um
transformar de valores é um processo não de fora para dentro (como o Estado
impondo determinados valores aos seus cidadãos por meio de leis, por exemplo),
mas algo que se fundamenta no indivíduo, sendo este o responsável pela construção
de seu próprio aprendizado. A imposição legal já comentada é apenas a pedra de
toque neste processo que é individual e interior, não se confundindo, jamais, com
a própria pedagogia. No específico tema, lograria formar uma nova representação
do que é ser pessoa com necessidades especiais a quem não é, por permitir dar
uma identidade à pessoa: a aprendizagem de um novo conteúdo é uma atividade
de construção, pela qual a pessoa incorpora à sua experiência os signos de um
novo conhecer (MUJICA, 2002).
Recebendo orientações do Estado, da empresa, dos representantes dos
empregados e, por fim, das próprias pessoas com necessidades especiais, a
comunidade empregatícia fatalmente desconstruirá, pela necessária sociabilidade
ambiental do trabalho, as funestas representações sociais construídas e difundidas
acerca dos “deficientes” e de suas “deficiências”. Aqui entramos no segundo
passo da aprendizagem: reconhecendo a pessoa humana em sua dignidade, bem
como o fato de que o homem é um ser social, esta educação só encontra sentido na
interação de seres humanos com outros seres, em experiências individualizadas
ou coletivamente tratadas. E um dia, talvez, sequer seja necessário estabelecer
percentuais para a contratação mínima de pessoas com necessidades especiais...
por se tornar o instituto socialmente irrelevante!
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174
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
O MÍNIMO NECESSÁRIO NO CENÁRIO
INTERNACIONAL COMO PARÂMETRO PARA A
ATUAÇÃO ESTATAL EM RELAÇÃO AO DIREITO
A SAÚDE
Beatriz Rigoleto Campoy 1
Resumo
O presente trabalho problematiza os direitos econômicos, sociais e culturais na sociedade
atual, mais especificamente o direito à saúde. Diante dos recentes acontecimentos
econômicos e políticos que percebemos em escala mundial, passou-se a discutir até que
ponto os direitos acima citados podem ser sacrificados em situação de crise, tanto nos
Estados onde estes já foram implementados de forma satisfatória, quanto em Estados
onde ainda passam por um estagio progressivo de implementação, causando assim,
uma situação de risco social. Para garantir o respeito a este direito a saúde discute-se
a possibilidade de aplicação da teoria do mínimo necessário, ou essencial, que defende a
existência de um conteúdo mínimo de direitos econômicos, sociais e culturais essenciais à
garantia da dignidade da pessoa humana.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Direito a Saúde; Teoria do Mínimo
Necessário; Dignidade da Pessoa Humana.
Introdução
Muitos são os temas atuais relacionados aos direitos humanos, mas a
questão que deve ser colocada antes de qualquer abordagem é: o que podemos
considerar como fundamento destes direitos2? Referida questão pode parecer a
princípio eminentemente filosófica, mas na verdade está na raiz de toda a teoria
jurídica acerca dos direitos humanos, uma vez que, para a teoria geral do direito, o
fundamento de uma norma é o que verdadeiramente a legitima, dando-lhe assim
validade.
Ao longo da história surgiram teorias a respeito do fundamento dos
direitos, principalmente aqueles ligados às liberdades dos seres humanos. As
principais foram as justificações jusnaturalistas e positivistas. Segundo a primeira
corrente a justificação ética destes direitos estava ligada a questões divinas, ou
mesmo a relação com a própria natureza (estoicismo), mas em verdade superiores à
vontade e a criação humana3. A idade moderna, entretanto, rompe com esta ideia
1
Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente/SP, Especialista em Direitos Humanos e
Democracia pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal), Mestre em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). Email: [email protected].
2
“Temos, pois, que enquanto em Aristóteles princípio ou fundamento significa essencialmente a fonte ou origem de algo, na filosofia ética de Kant
passa a significar razão justificativa” (COMPARATO, F. K. 1997, p. 23). Disponível em http://www.iea.usp.br/artigos.
3
“Sem dúvida, o grande exemplo clássico de justificação ética da conduta humana, sem o recurso à divindade, encontra-se na filosofia estóica.
A moral dos estóicos, que muito influenciou os juristas romanos, tinha como princípio supremo “viver segundo a natureza” (Zenão). Na Idade
Média, o colossal esforço tomista de conciliação da razão humana com a intervenção divina, da sabedoria clássica com a iluminação cristã, deu
à lei natural uma posição eminente. Ela seria “a participação da lei eterna pela criatura racional” (COMPARATO, F. K., 1997, ps. 6-7) Disponível
em: http://www.iea.usp.br/artigos.
176
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divina de fundamentação das normas, prezando pelo racionalismo. Nasce, assim,
a doutrina positivista que defende como fundamento da norma a legitimidade
do seu processo de criação, ou seja, desde que esta seja criada por quem tenha
competência legítima para tanto e desde que siga o devido processo de criação,
também legítimo através de princípios anteriormente estabelecidos que tornam a
norma válida.
Hoje uma das grandes referências acerca dos Direitos Humanos tem sido a
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 19484. Esta norma afirmou em seu
artigo 1º que: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.
Cita este texto o que atualmente pode ser considerado o real fundamento dos
direitos humanos, qual seja, a dignidade da pessoa humana5.
Neste sentido, se o fundamento dos direitos humanos, atualmente reside
na dignidade do ser humano, como conceber que uma pessoa que não possui
condições materiais mínimas pode ser considerada detentora de dignidade, sendo
que esta última esta intimamente ligada com a capacidade de auto determinação
humana. Sem condições materiais mínimas não é possível afirmar que uma pessoa
pode se auto determinar e muito menos que esta possua dignidade. Daí a extrema
importância de garantir-se os direitos econômicos, sociais e culturais, que segundo
o raciocínio acima citado são a base para o fundamento dos direitos humanos, ou
seja, a dignidade do ser humano.
Ou seja, não é possível imaginar que um ser humano que sofra de desnutrição
crônica, que não possua acesso a água potável, nem uma moradia mínima possa
se auto determinar, tomar decisões coerentes e livres, e mais ainda, exercer seus
direitos com a capacidade de discernimento característica dos seres humanos, e
que os fazem seres detentores de dignidade. Além do que, sem os referidos direitos
não se pode conceber o exercício dos direitos civis e políticos, já que sem esta auto
determinação não é possível o exercício livre de qualquer direito.
Para garantir o respeito a estes direitos neste contexto, discute-se a
possibilidade de aplicação da teoria do mínimo necessário, ou essencial, que
defende a existência de um conteúdo mínimo de direitos econômicos, sociais e
culturais essencial à garantia da dignidade da pessoa humana e, consequentemente,
dos demais direitos humanos, inclusive os civis e políticos.
Embora partamos de uma premissa de que a implementação dos direitos
econômicos, sociais e culturais esteja estritamente ligada às características acima
citadas de cada Estado, defendemos que existe um mínimo sem o qual inexista
a dignidade da pessoa humana, ou seja, o próprio fundamento dos direitos do
homem. Neste sentido, por exemplo, a própria Organização das Nações Unidas,
através de pesquisas e estudos, chegou a um padrão considerado essencial à
4
“Artigo 1º Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para
com os outros em espírito de fraternidade” Declaração dos Direitos do Homem. ONU. 1948.
5
“O homem como espécie, e cada homem em sua individualidade, é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser trocado por
coisa alguma. Mas ainda: o homem é não só o único ser capaz de orientar suas ações em função de finalidades racionalmente percebidas e livremente desejadas, como é, sobretudo, o único ser cuja existência, em si mesma, constitui um valor absoluto, isto é, um fim em si e nunca um meio
para a consecução de outros fins. È nisto que reside, em última análise, a dignidade humana” (COMPARATO, F. K., 1997, ps. 26-27) Disponível
em: http://www.iea.usp.br/artigos.
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manutenção da dignidade da pessoa humana – Comentário Geral 14.
Trata-se de um parâmetro para que os países que ainda estão em fase de
implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais possam desenvolver
suas políticas neste sentido, jamais sacrificando este núcleo de direitos em qualquer
situação. Além disso, o documento serve de orientação para que os Estados onde
estes direitos já estão satisfatoriamente implementados não os reduza para aquém
destes limites em situações consideradas de crise.
Enquadramento Conceitual
Consideramos fundamental delimitar no presente trabalho quatro temas
a serem posteriormente relacionados: a teoria do mínimo necessário, as core
obligations, os Comentários Gerais e os jus cogens. Tais definições são de suma
importância para a compreensão do presente texto e por isso merecem uma
conceituação a priori.
A teoria do mínimo necessário, ou essencial, defende a existência de um
núcleo de direitos que garantem condições materiais mínimas e indispensáveis
à consagração da dignidade da pessoa humana, sem o quais esta não existe e os
quais devem ser o próprio fim do Estado a sua consagração e implementação6.
Basicamente sem eles é impossível garantir a dignidade do ser humano, próprio
fundamento dos direitos humanos, afetando assim a própria validade destas
normas.
Desta premissa surge outro conceito ligado à condição de interdependência
dos direitos humanos. Por vários motivos políticos estes direitos foram
historicamente divididos em grupos: o dos direitos civis e políticos e dos direitos
econômicos, sociais e culturais. Ocorre, porém, que contemporaneamente entendese não ser mais possível realizar esta separação, uma vez que os direitos humanos,
no sentido de garantidores da dignidade da pessoa humana, somente podem ser
concebidos conjuntamente.
Sem as condições materiais mínimas asseguradas pelos direitos econômicos,
sociais e culturais não há, como já asseverado, possibilidade do exercício pleno e
autônomo dos direitos civis e políticos, e sem os direitos civis e políticos não há
como se exigir a garantia dos direitos econômicos, sociais e culturais. Foi este o
posicionamento da Declaração de Viena de 1993, que estabelece a interdependência
destes direitos em seu artigo 5º7.
As core obligations correspondem a um conceito que surgiu na doutrina
dos direitos econômicos, sociais e culturais por volta dos anos 1980, e que foi
adotado pela ONU no Comentário Geral nº 3º8. Podem ser conceituadas como
uma obrigação dos Estados de prover direitos materiais mínimos sem os quais os
diretos humanos perdem sua essência, o seu significado. Além disso, a omissão
6
7
KELBERT, F. O. 2008.
Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam
ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os
direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais.
8
CHAPMAN, A. & RUSSEL, S., 2002, p.8.
178
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dos Estados em relação a estes direitos é considerada uma violação internacional
aos direitos humanos9.
Já os Comentários Gerais são documentos elaborados pelo Comitê de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, hoje considerados uma
importante fonte de interpretação do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais que complementam e integram seus artigos através de estudos
e pesquisas realizadas por especialistas das mais diversas áreas das ciências
jurídicas. Em relação ao direito à saúde o Comentário geral nº. 14, com o objetivo
de complementar o artigo 12 do Pacto, delimita conceitos e por fim estabelece as
core obligations acima conceituadas.
Por fim, um dos conceitos mais polêmicos nesta área tem sido o de jus cogens.
Segundo a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, jus cogens são
regras de Direitos Internacional Geral que, por sua vez, podem ser entendidas
como normas aceitas e reconhecidas pela comunidade internacional de Estados
como um todo como normas as quais não se permite derrogação10. Trata-se, pois,
de um conceito amplo e polêmico, cuja doutrina buscou complementar, através
de exemplos, sendo que neles sempre estão presentes os tratados a respeito de
direitos humanos11.
Perspectiva histórica dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
Antes de se fazer uma abordagem direta do tema, é relevante enquadrá-lo
em um sistema histórico, já que este nos faz compreender melhor sua importância
e abrangência. Desde já é de suma importância compreender que a presente análise
é feita com base nos acontecimentos históricos dos séculos XVIII, XIX e início do
século XX, o que não quer dizer que estes direitos não passaram por outros estágios
de evolução em outros períodos12.
A Revolução Francesa, assim como ocorreu com a independência dos
Estados Unidos, consolidou a queda do absolutismo monárquico e a ascensão de
uma nova ordem econômica e social conhecida como liberalismo. A população,
na época, dispunha de direitos declarados, porém com escassos instrumentos
de concretização, o que veio inevitavelmente a gerar uma dominação econômica
e social dos que detinham o poder econômico, ou seja, a classe burguesa, sobre
aqueles que possuíam meramente sua força de trabalho.
Embora este seja o quadro geral da sociedade dos séculos XVIII e XIX, não
quer dizer que os documentos considerados de cunho eminentemente liberais não
tenham sequer citado os direitos econômicos, sociais e culturais13. A Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão, em sua segunda versão de 179314, a Constituição
9
CHAPMAN, A. & RUSSEL, S., 2002, p.9.
10
Art. 53 Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados 1969: É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma
imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma
aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só
pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.
11
12
13
14
NASSER, S. H. 2007, p.53.
FILHO, M. G. F., 2008, p. 42.
FILHO, M. G. F., 2008, ps. 45-46.
Art. 21. Os auxílios públicos são uma dívida sagrada. A sociedade deve a subsistência aos cidadãos infelizes, quer seja procurando-lhes tra-
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179
Francesa de 184815, bem como a Constituição Brasileira de 182416 já faziam menção a
direitos econômicos, sociais e culturais, porém devido ao contexto, principalmente
econômico da época, estes não foram implementados.
O Estado absteve-se, reduziu-se à condição mínima de protetor da liberdade
e um quadro de extrema exploração e grande pobreza se formou. Surgiram, assim,
novas doutrinas que explicavam a crise e contestavam o modelo de estado liberal
como o anarquismo, o comunismo e o socialismo, doutrinas estas que, somadas
a outro fator proveniente do próprio ideal liberal, que vinha a ser o sufrágio
universal, fizeram surgir novos movimentos e partidos compostos pela classe
trabalhadora que pleiteava mudanças no campo social17.
Tal cenário deu origem a duas formas diferentes de se encarar a chamada
questão social: uma reformista, que defendia a “reconciliação” do proletariado
com as demais classes através da implementação de direitos econômicos e sociais,
e outra revolucionária, que defendia a extinção daquele status quo e a criação de
uma nova ordem.
O fato é que, visando a manutenção da ordem vigente, frente ao poder
político ascendente da classe trabalhadora, algumas medidas foram tomadas a fim
de se instituir certos direitos econômicos, sociais e culturais. Dentre os textos mais
relevantes deste período estão a Constituição de Weimar, de 191918, que consagrou
em sua Parte II os direitos e deveres fundamentais dos alemães que abrangiam os
direitos dos indivíduos à vida social, à religião e sociedades religiosas, à instrução
e estabelecimentos de ensino e à vida econômica. Ademais, o documento citava a
questão da função social da propriedade, a proteção dos trabalhadores, o direito
de sindicalização e à previdência social.
Além desta, a Constituição Mexicana de 1917 também trouxe algumas
inovações, tais como a questão do direito à reforma agrária. Não menos importante
o Tratado de Versalhes, de 1919, que em sua Parte XIII constituiu a Organização
Internacional do Trabalho visando a implementação de direitos aos trabalhadores
dos países signatários, bem como o reconhecimento de direitos sociais tidos como
fundamentais e obrigatórios.
Neste primeiro momento, do nascimento do estado liberal ao início da
balho, quer seja assegurando os meios de existência àqueles que são impossibilitados de trabalhar.
Art. 22 A instrução é a necessidade de todos. A sociedade deve favorecer tom todo o seu poder o progresso da inteligência pública e colocar a
instrução ao alcance de todos os cidadãos.
15
Art. 13. A Constituição garante aos cidadãos a liberdade de trabalho e de indústria. A sociedade favorece e encoraja o desenvolvimento do
trabalho, pelo ensino primário gratuito profissional, a igualdade nas relações entre o patrão e o operário, as instituições de previdência e de
crédito, as instituições agrícolas, as associações voluntárias e o estabelecimento, pelo Estado, os Departamentos e os Municípios, de obras públicas
capazes de empregar os braços desocupados; ela fornece assistência às crianças abandonadas, aos doentes e idosos sem recurso e que não podem
ser socorridos por suas famílias.
16
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e
a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. XXXI. A Constituição tambem garante os soccorros publicos.
XXXII A Instrucção primaria, e gratuita a todos os Cidadãos. XXXIII Collegios, e Universidades, aonde serão ensinados os elementos das Sciencias, Bellas Letras, e Artes.
17
“De fato, em face do quadro descrito, grosso modo duas orientações se formaram. Uma visava a reconciliar o proletariado com as demais classes
e com o Estado. Esta foi a postura reformista do positivismo, do socialismo democrático do cristianismo social. Foi ela que levou aos direitos
econômicos e sociais. Entretanto, posições opostas assumiram outros grupos que adotaram linha revolucionária. Para estes, só a extinção das
classes “exploradoras” do Estado “burguês”, para os socialistas radicais, de todas as classes e dos Estado para Marx e seus seguidores, para os
anarquistas, é que seria a solução” (FILHO, M. G., 2008. p. 44).
18
COMPARATO, F. K. 2003, p.185.
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segunda grande guerra mundial, pode-se dizer que foram estes os principais
marcos referentes aos direitos econômicos, sociais e culturais. Após este período
o mundo passou por uma reorganização político-econômica, o que influenciou os
rumos do entendimento em torno destes direitos. Pode-se dizer, conclusivamente,
que prevaleceu a ideia de Mirkine-Guétzévitch19, segundo a qual o Estado moderno
para reconhecer a independência política do indivíduo precisa, primeiramente,
garantir o mínimo de condições jurídicas que assegurem sua independência social.
No cenário político o fim da segunda grande guerra trouxe como principal
consequência a bipolarização política-econômica das potencias EUA e União
Soviética. Foi neste contexto que desenrolou-se a criação da Organização das Nações
Unidas, bem como suas primeiras negociações. Em 1946 foi criada a Comissão
de Direitos Humanos da ONU, na época presidida por Eleonor Roosevelt, uma
grande defensora da inserção dos direitos econômicos, sociais e culturais na gama
dos direitos humanos. Esta comissão, composta por 53 estados, reunia-se durante
a primavera com o intuito de discutir e delimitar os conceitos além de criar
mecanismos de proteção aos Direitos Humanos. Em 1948 a Declaração Universal
de Direitos Humanos reconheceu como tais os direitos econômicos, sociais e
culturais, sendo que em 1976 entrou em vigor o Pacto de Direitos Econômicos
Sociais e Culturais juntamente com o Pacto de Direitos Civis e Políticos.
Outros documentos no campo regional também implementaram a proteção
dos direitos econômicos, sociais e culturais na segunda metade do século XX. O
fato é que embora estes direitos tenham sido formalmente reconhecidos no plano
universal no mesmo período que os chamados direitos civis e políticos, seu
reconhecimento fático não se deu da mesma maneira20.
Não obstante, as potencias, enquanto mediam seu poder bélico em conflitos
pelo globo bem como na chamada “corrida nuclear”, usavam a Organização das
Nações Unidas como campo para a demonstração de poder político. Foi justamente
neste contexto que se deram as ratificações aos dois pactos o dos direitos civis
e políticos e dos direitos econômicos, sociais e culturais. Os EUA optaram por
posicionarem-se como defensores dos direitos civis e políticos, considerados
direitos de liberdade, enquanto a União Soviética colocou-se como defensora dos
direitos econômicos, sociais e culturais.
Estes posicionamentos tomados em plena Guerra-Fria tiveram várias
consequências na forma com que estes direitos são concebidos até hoje, sendo
certa as estigmatizações construídas por decorrência disto. Ainda hoje os direitos
sociais são chamados direitos caros, positivos, relativos enquanto os direitos civis
e políticos como direitos sem custos, negativos, absolutos. Nesse sentido criaramse os principais argumentos para que muitas nações implementassem os direitos
econômicos, sociais e culturais segundo conveniências econômicas e políticas,
tornando-os assim extremamente frágeis.
19
“O Estado Moderno não pode contentar-se com o reconhecimento da independência jurídica do indivíduo; ele deve ao mesmo tempo criar
um mínimo de condições jurídicas que permitam assegurar a independência social do indivíduo” (MIRKINE-GUÉTZÉVITCH, B. 1933, p.151).
20
BAEHR, R. P. 2001, ps. 32-34.
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181
Outros aspectos demonstram as diferenças de tratamento entre os direitos
econômicos sociais e culturais e os direitos civis e políticos, embora ambos os
Pactos tenham sido adotados no mesmo dia, no ano de 1966. Como visto, o Pacto
dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais somente veio a ganhar um Comitê
independente em 198521, além do que este documento apenas veio a obter um
instrumento de queixas individuais em 2009, o qual atualmente esta em fase de
ratificação22. Mudanças no sentido de reconhecer os direitos econômicos, sociais e
culturais em pé de igualdade com os direitos civis e políticos começaram a ocorrer,
efetivamente, em 1993, com a Declaração de Viena. Esta definiu a universalidade e
a interdependência dos direitos humanos23.
Neste contexto é especificamente a interdependência dos direitos humanos
que se coloca como algo extremamente importante, ou seja, não é possível garantir
as liberdades em uma sociedade que não garanta o mínimo social a seus cidadãos.
Também deve se admitir que não seja possível a uma sociedade pleitear direitos
econômicos, sociais e culturais se não houver a liberdade trazida pelos direitos
civis e políticos.
O fato é que, como já colocado, o fundamento dos direitos humanos é
a dignidade da pessoa humana e esta não existe sem um mínimo material que
garanta o exercício dos principais direitos de liberdade, e sobre esta perspectiva se
funda a dimensão da interdependência dos direitos humanos. Portanto, a partir do
reconhecimento equilibrado destes direitos por uma determinada sociedade é que
se observa em que grau estes direitos são respeitados24.
O Mínimo Necessário no cenário internacional em relação ao direito a saúde
A implementação dos direitos humanos no plano da administração interna
dos Estados depende de meios financeiros. Esta é a tese defendida por Stephen
Holmes e Cass R. Sunstein na obra The Cost of Rigths: Why Liberty Depends on
Taxes25. Segundo os autores, todo direito tem um custo, sejam aqueles considerados
negativos (civis e políticos), sejam os considerados positivos (econômicos, sociais
e culturais). Por isso a ideia de um Estado puramente liberal é insustentável, pois
pecaria ao não garantir os direitos mínimos essenciais a manutenção da dignidade
21
22
23
BAEHR, R. P. 2001, p.35.
ALBUQUERQUE, C., 2010, ps. 145-148.
The Vienna Declaration and Program of Action (VDPA) adopted at the 1993 World Conference for Human Rights expressly mentions that “[a]
ll human rights are universal, indivisible and interdependent and interrelated” and must be treated “in a fair and equal manner, on the same
footing, and with the same emphasis.”1 Despite this, at the national, regional, and universal levels, economic, social, and cultural rights have
been treated as poor relatives of human rights and perceived with caution, skepticism, or triviality. Currently existing at the international level
are different possibilities for filing communications in cases of torture, arbitrary detention, racial discrimination, discrimination against women,
and violations of freedom of speech or religion. However, in those cases where the victim “simply” suffers from chronic malnutrition, seriously
inadequate health care, total lack of educational opportunities, or a combination of all these phenomena, that victim does not have the right to
petition at the international level (ALBUQUERQUE, C., 2010, p.145).
24
“Assim, a concepção da dignidade da pessoa humana e do livre desenvolvimento da personalidade pode estar na origem de uma política de
realização de direitos sociais activa e comprometida ou de uma política quietista e resignada consoante se considere que, abaixo de um certo nível
de bem-estar material, social de aprendizagem e de educação, as pessoas não podem tomar parte na sociedade como cidadãos e, e muito menos,
como cidadãos iguais, ou se entenda que a “cidadania social” é basicamente uma “conquista individual”.De igual forma, a concretização destes
direitos é indissociável de dimensões histórico-sociais, como por exemplo, o enraizamento de associações e organizações de defesa dos direitos
sociais ( movimento operário, movimento cooperativo, movimento mutualista, formação de partidos laboristas)” (CANOTILHO, J. J. G., 2003,
ps. 473-474).
25
HOLMES, S. & SUSTEIN, C. R., 1999.
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da pessoa humana, sendo justificada a tese de que os meios econômicos são
importantes e decisivos na busca pela satisfação dos direitos mais básicos.
Ocorre que esta lógica suscita a seguinte questão: estariam os direitos
humanos vinculados pura e simplesmente à existência de recursos financeiros?
Como se nota, a questão é relevante e o contexto da indagação tem levado o
debate para o âmbito de duas teorias polêmicas a respeito disto, principalmente
dos direitos econômicos, sociais e culturais, quais sejam: as teorias da reserva do
possível e do mínimo necessário.
Num recorte histórico, lembramos que a questão da reserva do possível veio
a tona após uma decisão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha - BVerfG
33/301, segundo a qual ficou decidido que o Estado Alemão não era obrigado a
criar vagas nas Universidades à todos os cidadãos que quisessem nelas ingressar,
e que portanto os Numerus Clausus das Universidades eram constitucionais26. A
justificativa do tribunal foi que os direitos subjetivos dos cidadãos a uma prestação
estatal positiva estavam vinculados a possibilidade financeira do Estado e que
estes somente poderão exigi-los dentro de uma lógica de razoabilidade.
A crítica a esta teoria reside no seguinte argumento: se os direitos subjetivos a
uma prestação Estatal dependem dos recursos financeiros do Estado, estes direitos
poderiam ser violados sob a simples justificativa da falta de capacidade econômica
para implementá-los, o que fragiliza substancialmente sua eficácia. A violação neste
sentido esta no aspecto da implementação do direito, já que teoricamente estes estão
protegidos, tanto no plano nacional quanto no plano internacional. Desta crítica,
surge outra teoria, chamada de mínimo necessário. Os defensores dessa teoria
entendem que, embora os direitos estejam vinculados à capacidade financeira do
Estado, existe um núcleo essencial de direitos, considerado um “núcleo duro” que,
independentemente das circunstancias econômicas, financeiras, sociais políticas
ou de qualquer outra ordem, devam ser respeitados e implementados. Em resumo,
por essa teoria o “núcleo duro” de direitos consagra a dignidade da pessoa humana,
um padrão mínimo de segurança material garantidor das liberdades mais básicas
que uma vez ausentes dão ensejo a grandes violações inadmissíveis em qualquer
Estado comprometido em respeitar os direitos humanos.
Daí a necessidade de se estabelecer um padrão mínimo universalmente
aceito que embora não vincule completamente os Estados, levando em conta sua
capacidade econômica, exige destes uma postura ativa na tomada de decisões
relativas à garantia de um padrão material mínimo que garanta a dignidade do
ser humano, próprio fundamento dos direitos humanos. Trata-se de uma postura
cada vez mais importante, uma vez que o Estado do bem estar social passa hoje
por uma crise27.
Este novo cenário, segundo o autor Pedro Hespanha, gera desigualdades,
26
27
BIGOLIN, G. 2006. Disponível em http://www.revistadoutrina.trf4.gov.br/.
“Uma massa de trabalhadores espalhados pelo mundo que antes gozava de uma relação sólida de trabalho e de uma rede de amparo social,
bem como, do apoio do Estado em relação a seus direitos econômicos sociais e culturais, não se vêm mais inseridos nesta realidade devido a
flexibilização das relações de trabalho fruto da nova dinâmica econômica pós-moderna, já os realizadores das políticas sociais dos Estados, por
sua vez, dizem que este não suporta mais (economicamente) a política do “welfare state” na sua forma clássica devido também a esta nova relação
econômica mundial” (HESPANHA, P. in SANTOS, B. de S. [org.], 2002, p. 168).
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bem como marginalização e exclusão social28, fenômeno que é chamado de risco
social. Defende-se, portanto a universalização de políticas sociais que tendam
a reduzir este risco, criando uma certa estabilidade social, e diante de situações
onde os Estados são incapazes de prover o mínimo essencial ao desenvolvimento
digno de seus membros, segundo sua situação econômica, se faz necessário o
desenvolvimento de mínimos universais em relação aos direitos sociais, a fim de
evitar a marginalização de certas sociedades ou de certas parcelas da sociedade
pela simples justificativa econômica29.
Portanto, se a dignidade da pessoa humana é reconhecida atualmente
como fundamento dos direitos humanos e a ausência de condições materiais
mínimas impossibilita que qualquer ser humano goze deste estado de dignidade,
a existência de uma política internacional de proteção e garantia destes direitos se
faz indispensável. No entanto, sem ignorar que a implementação destes direitos
exige capacidade econômica dos Estados, é preciso que esta política seja no sentido
de exigir atitudes positivas dos Estados na garantia destes direitos e de estabelecer
um mínimo sem o qual não se possa negar a existência desta dignidade.
Quando aplicamos estas teorias a problemáticas específicas, encontramos
exemplos de como o Estado tem lidado com questões relevantes desta natureza.
Por exemplo, vejamos o caso da judicialização das políticas públicas na área da
saúde que ocorre no Brasil. Basicamente, devido à falta de um parâmetro que
respeite o que é essencial para o Estado prover na área da saúde, muitos tribunais
vêm tomando decisões desencontradas sobre o tema. Se analisarmos mais
profundamente descobrimos que a Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo
19630, garante o direito à saúde no sentido de que este é um direito de todos e dever
do Estado. Na mesma seção define como deve ser organizado o serviço público de
saúde. Porém, não há nada que estabeleça qual o mínimo deve ser provido por este
sistema de saúde público, universal e igualitário.
Diante disto várias questões chegaram aos tribunais brasileiros, com as
mais diversas reivindicações e não menos diversas decisões. Gustavo Amaral, em
sua obra Direito, Escassez e Escolhas31, cita uma série de decisões que ilustram
a problemática acima demonstrada. Por exemplo, o Agravo de Instrumento nº
28
Importa apreciar mais em detalhes os modos através dos quais a globalização interfere com a produção do risco social, ou seja, com a produção
de factores que alteram a probabilidade de ocorrência de desigualdades, de marginalização ou de exclusão social. Defendia-se acima que o agravamento do risco social num mundo globalizado deriva de menor capacidade de resposta das sociedades através dos seus sistemas institucionalizados de proteção social, mas deve igualmente ter-se em conta os fenómenos directos de maior exposição ao risco- os que fazem aumentar as
desigualdades, a marginalização e a exclusão (HESPANHA, 2002, p. 168).
29
O mais saliente é o de que, na ausência de direitos sociais mínimos universalmente garantidos, se perpetue a falta ou o atraso de cobertura
social em países persistentemente pobres. Sabendo-se como os países pobres têm dificuldade de proteger os seus cidadãos da predação operada
pelo comércio mundial e dos efeitos desastrosos das políticas de ajustamento estrutural que são forçados a subscrever, um tal risco é muito elevado, designadamente naquelas situações em que os padrões sociais ajustados às capacidades econômicas dos países não atingiram os mínimos
universais, com o efeito gozar de perverso de esse défice de cobertura passar a inteira legitimidade. Por outro lado, nos países mais ricos e com
um sistema de proteção avançado, o nivelamento por baixo torna-se uma exigência da competitividade a que os governos dificilmente podem
renunciar, tal a pressão para a reforma neoliberal do Estado Providencia. (SANTOS, 2000) (HESPANHA, 2002, p.180).
30
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Art. 197. São de
relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e
controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
31
AMARAL, G., 2001.p.39.
184
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
97000511-3, julgado no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, determinou que o
Estado de Santa Catarina custeasse o tratamento nos Estados Unidos, sem eficácia
comprovada, a um paciente que sofria de distrofia muscular progressiva, no importe
de US$ 163.000,00, sob o argumento de que o direito à saúde, constitucionalmente
previsto, se trata de um direito de primeira grandeza, ou seja, não pode ser
relativizado sob nenhum aspecto, muito menos financeiro.
Ocorre que em caso muito semelhante o Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo32, ao analisar o pedido de pessoas portadoras da mesma doença, posicionouse de forma diversa ao defender que não cabe ao judiciário realizar escolhas na
área da saúde que são de competência do poder executivo, prejudicando assim
toda uma ordem administrativa e financeira.
Sendo assim, no sentido de se evitar que decisões díspares levem a
desigualdades e a fim de garantir que este mesmo judiciário intervenha quando
necessário à manutenção do direito à saúde dos cidadãos de forma eficiente, é
preciso existir um parâmetro, um mínimo para que, a partir dele, se fundamentem
as decisões e se evitem desigualdades.
A ONU e o padrão de mínimo necessário em relação ao direito à saúde
Como visto, os direitos econômicos, sociais e culturais são direitos
fundamentais ao pleno desenvolvimento humano. Em 16 de Dezembro de 1966 foi
adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas o Pacto dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, sendo que este mesmo documento entrou em vigor em 3 de
Janeiro de 197633. Referido Pacto encontra-se dividido em cinco partes: a primeira
reconhece o direito à auto determinação; a segunda define a natureza geral das
obrigações dos Estados membros; a terceira elenca os direitos especificamente; a
quarta trata da implementação destes direitos no cenário internacional; e a quinta
contém providencias de natureza legal.
Em 1985 foi criado o principal órgão das Nações Unidas ligado aos direitos
econômicos, sociais e culturais denominado Comitê de Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais. Este tem a função de monitorar o empenho dos Estados membros na
implementação das obrigações contidas no Pacto. Inicialmente uma relatoria de
cada Estado era feita a cada dois anos e, atualmente, estes são elaborados de cinco
em cinco anos. O Comitê é composto por dezoito experts eleitos por quatro anos, e
sua principal atividade é a redação de comentários gerais, assim como a análise e
elaboração de conclusões finais a respeito dos relatórios enviados pelos Estados34.
Tais relatórios gerais são uma importante fonte de interpretação do Pacto,
além de estabelecerem as chamadas “core obligations” ou direitos mínimos que
devem ser garantidos pelos Estados membros mediante todos os seus esforços35.
32
33
34
TJSP, 2ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Alves Bevilacqua, Ag. Instr. nº 42.530.5/4, j. 11.11.1997.
STEYNER, E. J. & ALSTON, P., 1996, ps. 263-264.
“The principal U.N body concerned with economic,social and cultural rights is the Committee on economic,Social nad Cultural Rigths, established in 1987 to monitor the compliance of states parties with their obligations under the Convent (sometimes referred to as the ICESCR Committee)” (STEINER & ALSTON, 1996, p.264).
35
“The so-called general comments of the um Committee on Economic,Social and Cultural Rigths are na important source of interpretation. The
Convenant on Economic,Social And Cultural Rigths does not provide for the establishment of a supervisory committee, as is the case with the
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185
As chamadas “core minimum content” ou “core minimum obligations” apesar de já
constarem nas obras a respeito dos direitos econômicos sociais e culturais, surgiram
efetivamente no Comentário Geral nº 3 da Organização das Nações Unidas36.
Em relação ao direito à saúde, este encontra-se enquadrado conceitualmente
como um direito econômico, social e cultural, embora em muitos casos cause reflexo
nos direitos civis e políticos37, afinal o direito à saúde tem estreita relação com o
direito à vida, tanto que o Comitê de Direitos Humanos, responsável pelo Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos, definiu que a obrigação dos Estados de
proteção da vida humana estende-se a obrigação de eliminar epidemias, além de
estar estabelecido no próprio Pacto que ninguém poderá sem consentimento ser
submetido a experiências médicas ou científicas38.
Além disso, o direito à saúde aparece no Pacto Internacional para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, em seu artigo
5º, no Pacto Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher, de 1979, no artigo 12, na Convenção dos Direitos das Crianças, de
1989, no artigo 24, além da grande maioria dos documentos regionais de proteção
dos direitos humanos.
Tal preocupação com o direito à saúde é fruto da mudança da concepção
social acerca deste direito, pois nem sempre a saúde da população foi considerada
um direito oponível ao Estado. Historicamente foi tratado como uma questão
ligada a esfera privada da vida do cidadão e não pública, o que explica-se pela
falta de conhecimento científico a respeito das doenças e das formas de tratamento
das mesmas.
Com a evolução da medicina e da industria dos medicamentos, e com o
maior acesso da população a estas novas descobertas, passou a crescer a demanda
da população pelo acesso a estas novas técnicas e, consequentemente, pela busca
do amparo estatal39. A questão da saúde passou então definitivamente para a arena
pública com os estados do bem estar social que garantiam o acesso da população a
um sistema público de saúde, capaz de atender a princípio as necessidades básicas
da população, mas que posteriormente evoluiu para estágios mais avançados.
Ocorre que alguns Estados não evoluíram com esta prestação, permanecendo-se
inertes em relação a este direito e por suposto deixando sua população a mercê de
condições de saúde pública precárias.
A fim de reduzir estas desigualdades e preservar o direito saúde declarado
em tantos documentos, foi desenvolvido o Comentário Geral 14, relativo ao artigo
12 do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ou ao direito ao mais
alto padrão possível de saúde, que deve levar em conta tanto o indivíduo e sua
Convenant on Civil and Political Rights. The states parties to the Convenant must report to the Secretary-General of the United Nations on the
measures wich they have adopted and the progress made in achieving the observance of the rigyhs mentioned in the Convenant” (BAEHR, P.
R., 2001, p. 28).
36
“Minimum core content is often defined as the nature or essence of a rigth, that is, the essential element or elements without which it loses its
substantive significance as a human right and the absence of which a State party should be considered to be in violation of its international obligations” (CHAPMAN, A. & RUSSEL, S., 2002, p.8.
37
38
39
CHAPMAN, A. & RUSSEL, S., 2002, p.191.
Artigo 7º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
CHAPMAN, A. & RUSSEL, S., 2002, p.190.
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condição biológica além da situação sócio-econômica de cada Estado. Portanto o
direito à saúde deve ser compreendido com o direito ao acesso a uma variedade
de bens, serviços e condições que levem ao mais alto padrão possível de saúde40.
Cabe lembrar que o seu artigo 12 estabelece o Comentário Geral que segundo as
condições de cada Estado o direito à saúde deve conter os seguintes elementos
essenciais; acessibilidade, disponibilidade, aceitabilidade e qualidade.
Em relação à acessibilidade fica estabelecido que os bens e serviços de saúde
devem ser acessíveis a todos sem discriminação, devem ainda ter acessibilidade
física , econômica e à informação e prevenção.
Quanto a disponibilidade, esta deve existir dentro da capacidade econômica
de cada Estado, mas em seu mais alto padrão estende-se à disponibilidade de bens
e serviços de saúde, medicamentos essenciais, água potável, saneamento básico.
A aceitabilidade tem a ver com o respeito à ética médica, às diferenças culturais
e de gênero, o respeito à confidencialidade e a busca pela melhora na saúde de
cada paciente. Por fim a qualidade esta ligada a boa formação dos profissionais da
saúde, a boa qualidade dos equipamentos e medicamentos.
Estes elementos são essenciais para que sejam estabelecidas na Parte III do
Comentário Geral as obrigações dos Estados partes, estas por sua vez subdividemse em Obrigações Gerais, que vão do artigo 30 ao artigo 33, Obrigações Específicas,
do artigo 34 ao artigo 37, Obrigações Internacionais, do artigo 38 ao 42, e as Core
Obligations, do artigo 43 ao 45. Estas últimas são os direitos mínimos que devem
ser implementados pelos Estados partes41 como meio de garantia da dignidade da
pessoa humana.
São onze obrigações voltadas para os profissionais da área médica, bem
40
9. The notion of “the highest attainable standard of health” in article 12.1 takes into account both the individual’s biological and socio-economic
preconditions and a State’s available resources. There are a number of aspects which cannot be addressed solely within the relationship between
States and individuals; in particular, good health cannot be ensured by a State, nor can States provide protection against every possible cause of
human ill health. Thus, genetic factors, individual susceptibility to ill health and the adoption of unhealthy or risky lifestyles may play an important role with respect to an individual’s health. Consequently, the right to health must be understood as a right to the enjoyment of a variety of
facilities, goods, services and conditions necessary for the realization of the highest attainable standard of health. COMMITTEE ON ECONOMIC,
SOCIALAND CULTURAL RIGHTS, Twenty-second session,Geneva, 25 April-12 May 2000.
41
43. In General Comment No. 3, the Committee confirms that States parties have a core obligation to ensure the satisfaction of, at the very least,
minimum essential levels of each of the rights enunciated in the Covenant, including essential primary health care. Read in conjunction with more
contemporary instruments, such as the Programme of Action of the International Conference on Population and Development, (28) the Alma-Ata
Declaration provides compelling guidance on the core obligations arising from article 12. Accordingly, in the Committee’s view, these core obligations include at least the following obligations: (a) To ensure the right of access to health facilities, goods and services on a non-discriminatory
basis, especially for vulnerable or marginalized groups; (b) To ensure access to the minimum essential food which is nutritionally adequate and
safe, to ensure freedom from hunger to everyone; (c) To ensure access to basic shelter, housing and sanitation, and an adequate supply of safe
and potable water; (d) To provide essential drugs, as from time to time defined under the WHO Action Programme on Essential Drugs; (e) To
ensure equitable distribution of all health facilities, goods and services; (f) To adopt and implement a national public health strategy and plan of
action, on the basis of epidemiological evidence, addressing the health concerns of the whole population; the strategy and plan of action shall be
devised, and periodically reviewed, on the basis of a participatory and transparent process; they shall include methods, such as right to health
indicators and benchmarks, by which progress can be closely monitored; the process by which the strategy and plan of action are devised, as
well as their content, shall give particular attention to all vulnerable or marginalized groups. 44. The Committee also confirms that the following
are obligations of comparable priority: (a) To ensure reproductive, maternal (pre-natal as well as post-natal) and child health care; (b) To provide
immunization against the major infectious diseases occurring in the community; (c) To take measures to prevent, treat and control epidemic and
endemic diseases; (d) To provide education and access to information concerning the main health problems in the community, including methods
of preventing and controlling them; (e) To provide appropriate training for health personnel, including education on health and human rights. 45.
For the avoidance of any doubt, the Committee wishes to emphasize that it is particularly incumbent on States parties and other actors in a position to assist, to provide “international assistance and cooperation, especially economic and technical” (29) which enable developing countries to
fulfil their core and other obligations indicated in paragraphs 43 and 44 above.
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187
como para a elaboração de políticas públicas ligadas ao direito à saúde42. Em
relação aos primeiros destinatários determina-se que o acesso aos bens e serviços
de saúde deve ser feito de forma igualitária sem qualquer tipo de discriminação,
principalmente em relação aos grupos vulneráveis. Também delimita a necessidade
de cuidados especiais com a saúde de gestantes e crianças, e do treinamento
adequado dos profissionais na área da saúde. Quanto á elaboração de políticas
públicas requer medidas para o acesso da população ao saneamento básico e a
água potável, o acesso da população ao controle de epidemias e programas de
prevenção e etc. Trata-se, portanto, do referido núcleo duro, ou mínimo essencial,
sem o qual não se pode se falar em um status de dignidade.
Os tratados como normas de jus cogens e sua aplicação do ordenamento interno
dos Estados
Em primeiro lugar, ao tratarmos do tema acima abordado é preciso
conceituar o que são tratados e o que são normas de jus cogens. Jorge Miranda
assim se posiciona43:
Convenção de Viena de 1969 define tratado como um acordo
internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito
Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou
vários instrumentos conexos, seja qual for sua designação[ art.2º,nº1,
alínea a )].Mas logo a seguir esclarece que o facto de não se aplicar nem
aos acordos internacionais concluídos entre Estados e outros sujeitos
de Direito Internacional, nem aos acordos internacionais em forma
não escrita, não afecta o valor jurídico de tais acordos, nem a aplicação
a estes de todas as regras enunciadas na Convenção à qual estariam
submetidas independentemente dela, nem a aplicação as relações entre
Estados regidas por acordos internacionais dos quais sejam igualmente
parte outros sujeitos de Direito Internacional ( art.3.º).
Os tratados são, portanto, normas de direito internacional elaborados de
uma determinada maneira por determinados sujeitos de Direito Internacional.
Entretanto, é preciso reconhecer que o conceito de tratados não estabelece qual a
matéria que pode ser abordada por eles, levando a crer que estes são de conteúdo
abrangente, podendo abarcar qualquer tema de interesse dos sujeitos envolvidos
em sua criação, embora existam matérias vedadas pela Convenção de Viena,
sujeitas, caso tratadas, a nulidade. São estas matérias, segundo o artigo 53 da
Convenção de Viena, aquelas que se oponham com uma norma imperativa de
Direito Internacional Geral, ou seja, existentes de ius cogens44.
Pois bem, mas o que são normas de ius cogens? Esta questão não possui
uma reposta fácil, mas o que se pode delimitar é que as normas de ius cogens
42
43
44
CHAPMAN, A. & RUSSEL, S., 2002, ps.204-205.
MIRANDA, J., 2006, p.45 .
Artigo 53 É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins
da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional
dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito
Internacional geral da mesma natureza. Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados 1969.
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estão relacionadas à matéria de certos tratados que abrangem questão de direito
imperativo, cogente, segundo o próprio artigo 53 da Convenção de Viena. Duas
questões se colocam neste sentido; em primeiro lugar o conceito trazido pala
Convenção é extremamente amplo, e há certa dificuldade da doutrina em delimitálo, sendo que na maioria das vezes esta o faz com exemplos45.
Um ponto em comum entre estas normas é que são de extrema importância
para a manutenção da paz e da dignidade humana no cenário internacional. Jorge
Miranda (2006, p. 125), ao citar exemplos de normas de jus cogens, cita além da
Carta das Nações Unidas os tratados de direitos do homem46. A segunda questão
diz respeito ao significado de uma norma imperativa no Direito Internacional que,
sabe-se, depende do consenso dos Estados, mesmo considerando-se, teoricamente,
não ser possível impor uma norma que o Estado não reconhece47.
De fato, em uma ordem jurídica como a Direito Internacional, em que
a existência e o cumprimento das normas depende da vontade dos Estados,
soberanos sob última análise, é frágil a ideia de normas cogentes, imperativas, pelo
menos até este momento. O valor de se reconhecer uma norma como de jus cogens
além da possibilidade de ser declarada nula qualquer outra norma que a contrarie,
é a questão desta ser considerada hierarquicamente superior no plano do Direito
Internacional.
Sabe-se que estabelecer uma hierarquia normativa no cenário internacional,
assim como ocorre no ordenamento interno dos países, é complexo, uma vez que
falta uma lex maior. Porém devido á importância dada às normas de jus cogens
muitos tratados as consideram hierarquicamente superiores como a Carta das
Nações Unidas (art. 103)48.
O direito á saúde é considerado no cenário internacional uma norma de
ius cogens. Isto se explica, em primeiro lugar, por tratar-se de uma condição que
assegura a dignidade do ser humano próprio fundamento dos direitos humanos,
afinal não se pode conceber que uma pessoa sem acesso a bens e serviços de
saúde básicos, e entenda-se por eles não apenas leitos em hospitais e intervenções
cirúrgicas, mas acesso a água potável, a informação a respeito da profilaxia de
doenças e a imunizações, ou seja, que o indivíduo possa gozar plenamente de sua
condição de dignidade. Por conta disso este direito esta presente nos instrumentos
de proteção aos direitos mais relevantes, dentre eles o Pacto Internacional sobre os
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Um caso concreto pode ilustrar melhor esta situação; este envolve o embate
45
“Nos trabalhos elaborados acerca do tema as normas de ius cogens mais citadas são o princípio do pacta sunt servanda, a proibição do uso da
ameaça e da força, a proibição de atos que infrinjam a soberania dos Estados, a proibição do tráfico de seres humanos, a proibição do genocídio e
principalmente as regras inseridas nos regimes internacionais dos direitos humanos“ (NASSER, S. H., 2007, ps.52-53).
46
47
MIRANDA, J., 2006,p. 125.
A teoria do jus cogens, tal como aplicada pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, é francamente hostil à idéia do consentimento
como base necessária do Direito Internacional. Ali se pretende que, tal qual no domínio centralizado e hierarquizado de uma ordem jurídica
interna, regras imperativas - geradas pelo voto majoritário das assembléias ou noutro foro, o que pouca diferença faz - frustrem a liberdade
convencional dos países não aquiscentes, numa época em que o esquema de poder reinante desaconselha o Estado, cioso da sua individualidade
e dos seus interesses, a arriscar parte expressiva dos seus atributos de soberania num jogo em que as regras ainda se encontram em processo de
formação (MIRANDA, J., 2006, p. 126).
48
GOYOS, D. de N., 2007, p. 47.
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189
jurídico travado entre o Brasil e os Estados Unidos da América na questão das
patentes farmacêuticas no âmbito da Organização Mundial do Comércio. A
disputa ocorreu quando os Estados Unidos alegaram violação da legislação de
propriedade intelectual brasileira ao Tratado de Propriedade Intelectual da
Rodada Uruguai. O Brasil, em 2001, declarou estado de emergência em relação a
AIDS, sendo que a provável quebra de patentes de medicamentos necessários ao
coquetel utilizado para impedir a evolução da doença viria a seguir. Havia neste
momento um conflito entre o referido tratado e o artigo 55 da Carta das Nações
Unidas, que estabelece que os Estados devam promover soluções a problemas de
saúde e direitos humanos49.
Devido à pressão da opinião pública internacional o embate foi abandonado
pelos Estados Unidos e a quebra das patentes possibilitadas, mostrando assim uma
tendência à supremacia das normas de jus cogens no Direito Internacional.
Neste contexto as core obligations relacionadas ao direito à saúde, contidas
no Comentário Geral 14 elaborado pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, que por sua vez trata-se de um órgão ligado à implementação do Pacto
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, este último elaborado na forma de um
tratado, podem ser utilizadas como um mecanismo de suma importância para a
aplicação de uma norma de jus cogens, que vem a ser o direito à saúde no plano do
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Considerações Finais
A sociedade mundial passa hoje por um momento político, econômico e
social muito delicado, diante da crise econômica que assola o atual modelo de
produção. Nesse cenário são os direitos econômicos, sociais e culturais os primeiros
a serem sacrificados, tanto nas sociedades onde estes já são satisfatoriamente
garantidos e que sofrem um processo de redução, quanto naquelas em que sua
implementação tardia é estagnada diante de tal situação.
Partindo do pressuposto de que os direitos econômicos, sociais e culturais
são essenciais à manutenção dos direitos civis e políticos, como já citado no texto,
o respeito a uma parcela mínima destes direitos é primordial à manutenção de
um Estado democrático, sendo este o principal argumento a favor dos chamados
direitos mínimos universais, mínimo necessário ou mínimo essencial. Neste
sentido é extremamente relevante o papel da Organização das Nações Unidas,
que além de assegurar os direitos econômicos sociais e culturais através do Pacto
aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do Protocolo Facultativo ao Pacto
e dos Comitês que tratam destes direitos, criou através de várias pesquisas os
Comentários Gerais referentes a diversos direitos econômicos, sociais e culturais.
Esses documentos estabelecem um padrão mínimo de direitos que devem ser
respeitados a fim de que seja garantida a dignidade da pessoa humana.
Dessa forma podemos testemunhar o que ocorre em relação ao direito
à saúde. Através do Comentário Geral 14 a Organização das Nações Unidas
49
GOYOS, D. de N., 2007, ps. 80-81.
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estabeleceu um padrão mínimo que deve ser respeitado universalmente quanto ao
direito à saúde, não podendo os Estados onde estes direitos já são de certo modo
garantidos, em um momento de crise, reduzi-los a padrões inferiores a estes. E
ainda, devem os Estados que ainda estão em processo de implementação destes
direitos garantir este mínimo.
O direito internacional, neste sentido, apresenta-se como importante
fonte para a resolução deste tipo de conflito, oferecendo padrões, na medida do
possível universais a respeito do que poderia ser reconhecido como um mínimo
em relação ao direto à saúde. Propõe-se, assim, uma análise sistemática e integrada
da legislação internacional a respeito do direito à saúde bem como de sua possível
aplicação no plano interno como norma geral capaz de resolver questões polêmicas
a respeito, principalmente, do mínimo necessário a respeito do direito à saúde.
As tentativas de se proteger os direitos humanos em um plano prático
devem ser defendidas, ainda que em um primeiro momento não sejam capazes
de fazê-lo de forma plena. É o que ocorre com tais teorias, o ideal, o consagrado
nos textos legais protetores dos direitos humanos, é que estes sejam realizados
de uma forma plena, mas no plano pratico trata-se de algo complexo, portanto se
não é possível em um primeiro momento estender à proteção a uma gama maior
de direitos, melhor será que seja exigível em relação a um núcleo que garanta o
mínimo que permita a formação de uma sociedade politicamente crítica, capaz de
lutar pela aplicação total destes direitos.
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A apresentação formal do artigo deverá seguir as normas atualizadas da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT);
Os manuscritos deverão ser redigidos e digitados em programa de texto para computador
- Word for Windows – tendo como requisitos: fonte Arial, tamanho 12, espaço entre linhas
duplo, em folha formato A4. A numeração das folhas deve iniciar-se a partir da página de
rosto, que deverá corresponder à página número 1.
Na folha de rosto deverão estar contidos os seguintes elementos de identificação do
trabalho:
1 - Título e subtítulo (quando existir) do artigo, em até duas linhas, no idioma de origem e
em inglês;
2 - Nome completo de cada autor, por extenso, seguido por filiação institucional e
qualificações profissionais: titulações acadêmicas e cargo(s) que ocupam. Todos os dados
da titulação e filiação deverão ser apresentados por extenso, sem nenhuma sigla.
3 - Indicações dos endereços completos das universidades às quais estão vinculados todos
os autores;
4 - Indicação de endereço para correspondência com o editor para a tramitação do original
(incluindo fax, telefone e endereço eletrônico).
194
Revista Jurídica Centro Universitário Estácio/UniSEB
5 - Resumo e palavras-chave (no idioma de origem e em inglês). O resumo deve ter, no
máximo, 1 mil caracteres (considerando espaços), sem siglas. Já as palavras-chave, que
identificam o conteúdo do artigo, devem ser de no máximo cinco palavras. Para a redação
do resumo, observar as orientações da NBR-6028 - Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT).
CITAÇÕES E REFERÊNCIAS:
As citações no texto e as referências estão baseadas, respectivamente, nas da NBR’s 10520/
2002 e 6023/2002 da ABNT;
O sistema adotado pela REVISTA JURÌDICA ESTÁCIO/UniSEB é autor e data;
- Citações diretas ou literais: Toda citação textual desta modalidade deve subordinar-se à
forma: (Autor, data e página). Com até três linhas, as citações devem ficar entre aspas e sem
itálico. Com mais de três linhas, as citações devem seguir a seguinte regra: recuo de 04 cm
na margem, fonte 10, espaço simples, sem aspas e sem itálico.
- Citações indiretas: quando o autor estiver citado na frase, colocar somente autor e ano.
Se o sobrenome do autor estiver fora da frase e entre parênteses ficará também em letra
inicial maiúscula.
Todas as obras citadas no texto devem, obrigatoriamente, constar das referências
bibliográficas apresentadas ao final do texto, em ordem alfabética pelo sobrenome do
autor. São os elementos essenciais à identificação de um documento: autor, título, local,
editora e data de publicação.
INFORMAÇÕES COMPLEMENTARES:
No final do texto, após as referências bibliográficas, devem constar informações
complementares sobre o autor, como o nome completo, endereço, fone, fax e e-mail.
Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es).
AVALIAÇÃO DOS ARTIGOS:
A avaliação dos artigos é de responsabilidade do Conselho Editorial da Revista Jurídica
Estácio/UniSEB. O referido Conselho, após a análise do conteúdo do texto enviado para
avaliação (de acordo com o processo Blind Peer Review), poderá propor modificações para
a sua adaptação à política editorial da Revista. Os autores serão informados por e-mail
sobre o andamento da avaliação e a possibilidade de publicação.
* Opiniões expressas pelos autores em seus trabalhos, artigos e entrevistas não refletem,
necessariamente, a opinião do Centro Universitário Estácio/UniSEB, da Estácio
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Jurídica Estácio/UniSEB a responsabilidade pelas ideias e pelos conceitos emitidos em
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