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Iniciativas culturais e possibilidades de crítica aos
processos urbanos: considerações sobre o projeto
Arte/Cidade em São Paulo
Gabriel Girnos Elias de Souza1
1. Introdução
Os anos noventa marcaram uma inserção mais ampla do Brasil na rede globalizada
da economia mundial, assim como na tendência neoliberal de redução dos papéis
desempenhados pelo Estado na sociedade; a cidade de São Paulo, por sua vez, foi um dos
principais centros dessa mudança no país. Para a maior e mais complexa cidade da
América do Sul, a década passada foi marcada tanto por administrações problemáticas e
cortes institucionais quanto por grandes investimentos privados; falava-se da integração da
cidade à concorrência global por investimentos financeiros entre os grandes centros
urbanos de negócios e serviços (cidades mundiais, na denominação de autores como
Saskia Sassen). Desde os anos 80, tal disputa teria entre suas características grandes planos
de reestruturação urbana de áreas decadentes, visando constituir marcos urbanoarquitetônicos e pólos de serviços para divulgar internacionalmente o nome das cidades,
atrair o turismo e empresas internacionais.2
Nessa expansão de marketing urbano, a dimensão cultural desempenharia o principal
papel: seja com a valorização do patrimônio, identidade e “genius locci” de locais da
cidade, seja pela proliferação de equipamentos culturais e de lazer, de grandes eventos
1
Universidade de São Paulo (USP), Escola de Engenharia de São Carlos (EESC)
Programa de Pós-Graduação do Departamento de Arquitetura e Urbanismo: [email protected]
•
2
Tais estratégias ocorreram em metrópoles como Londres, Paris, Barcelona e Los Angeles, entre outras.
artísticos, de mega-exposições itinerantes ou de grandes museus de renome internacional.
Essa lógica de propaganda, por sua vez, possuiria com freqüência um caráter socialmente
excludente; certas reestruturações urbanas de áreas degradadas e recuperações de
patrimônio em decadência tornavam-se operações de “higienização” social de áreas
urbanas valorizáveis, afastando delas populações “menos desejáveis” para negócios
(processo denominado por vários autores como gentrification). Longe de resolver as
tensões sociais, operações com tais características as deslocavam e mascaravam. Assim,
São Paulo (e outras grandes cidades do Brasil) assistiu nos anos noventa à emergência de
vários novos equipamentos e iniciativas culturais, de ações de valorização e recuperação
do áreas urbanas; mas a década também viu um sensível agravamento de problemas
sociais, particularmente da criminalidade e da presença de estratos informais da população
— os moradores de rua, favelados, camelôs, subempregados.
Na crescente imbricação de cultura, propaganda e investimentos assinalada acima, a
concepção de cultura que se disseminaria possuiria uma inclinação pluralista e pouco
crítica. Classicamente encarada como instrumento civilizador, vetor de humanização e
autonomização, a cultura tenderia agora muito mais ao entretenimento e ao espetáculo —
lógicas privadas e de consumo — do que a uma perspectiva mais pública de crítica ou de
reflexão a respeito da realidade. Diante do contexto introduzido aqui, quais seriam as
possibilidades de manifestações críticas em iniciativas culturais? O quanto estas poderiam
fugir às tendências de simples comercialização e de estetização da vida? A partir desta
indagação, este texto se propõe a comentar um exemplo particular de empreendimento
cultural: o projeto Arte/Cidade, ocorrido em São Paulo entre os anos de 1994 e 2002.
Compreendendo quatro eventos até agora, o Arte/Cidade não é algo simples de se
definir. Explicado por sua coordenadoria como um projeto de intervenção urbana,
caracterizou-se de maneira geral pela ocupação e intervenção em espaços da cidade de São
Paulo (abandonados ou apenas problemáticos) e por uma ampla participação de diferentes
profissionais e variados tipos de artistas. Embora possam ser vistas dentro da categoria
generalizante de “eventos culturais”, as quatro edições do Arte/Cidade também foram mais
que apenas grandes exposições de arte “para sítios específicos”; em sua sucessão,
poderiam ser consideradas também como propostas de discussão específicas, abordadas de
maneiras e em aspectos diferenciados por uma variedade de agentes. O aspecto mais
interessante para este texto, porém, é o desenvolvimento do projeto no decorrer do tempo:
por um lado, foi uma realização de uma instituição governamental que se tornou trabalho
de um grupo independente; por outro, iniciou-se como projeto puramente cultural,
dedicado a uma discussão artística, e gradativamente voltou-se mais para um debate e
reflexão sobre a cidade, o urbanismo e políticas urbanas.
Este artigo foi basicamente extraído de minha pesquisa de mestrado, Percepções e
intervenções na metrópole: a experiência Arte/Cidade em São Paulo (1994-2002). Devido
às dimensões de um trabalho desta natureza, não é possível aprofundar a análise do rico
assunto dos significados artísticos e das muitas intervenções do Arte/Cidade, assim como
de seus desdobramentos conceituais. O texto concentra-se, portanto, em questões mais
gerais de sua trajetória e relação com a cidade: as transformações na organização,
implantação e no discurso do projeto. Em anexo seguem imagens que ilustram obras e
lugares aqui apresentados.
2. Arte/Cidade na Secretaria de Estado da Cultura
A Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo possuiu um período promissor na
gestão de Ricardo Othake (1992-1994); mesmo em meio ao enfraquecimento de
instituições de Estado a partir do governo Collor, tal gestão foi um momento importante de
abertura a novas propostas de atividade. Nesse contexto é que o filósofo Nelson Brissac
Peixoto, assessor para o audiovisual3 de Othake, veio em 1993 com a proposta que se
tornaria o projeto Arte/Cidade: um evento artístico e midiático, ocupando e intervindo em
locações da cidade, a ser realizado em três etapas diferentes. As edições idealizadas
possuíam temas distintos, ainda que amplos e relacionados; nomeadas depois como Cidade
sem Janelas, a Cidade e seus Fluxos e a Cidade e suas Histórias, cada uma implicaria em
diferentes situações urbanas e questões próprias.
O projeto surgiu em um momento em que a cidade tornava-se foco de discussões em
diferentes áreas de conhecimento4. Havia uma tônica de crítica dos ideais modernistas de
urbanismo, e apareciam em São Paulo discussões sobre ruínas e decadência urbana — que
aconteciam internacionalmente, dada à globalização do processo de desindustrialização e
flexibilização de capital. Naquele momento, “várias iniciativas afirmavam a urgência de
tratar dos problemas da cidade, e em particular do centro histórico de São Paulo, que vem
3
Segundo Agnaldo Caldas Farias em entrevista concedida ao autor em 18/11/2004, o próprio fato do
secretário de cultura colocar assessores para áreas específicas era em si uma novidade na política da
Secretaria.
4
Nelson Brissac Peixoto seria um exemplo: ligado às correntes do pensamento francês (em particular,
expoentes do pensamento pós-estruturalista) interessava-se já há anos pelas especificidades da metrópole e da
percepção contemporâneas.
sendo abandonado pelas grandes instituições financeiras e comerciais em favor de áreas
mais periféricas recentemente valorizadas” (ANDREOLI e SANTOS, 2002, p.285).
Articulações da sociedade civil e empresas em torno da recuperação do patrimônio urbano
estavam se fortalecendo, e a Associação Viva o Centro (surgida em 1991) foi exemplo
significativo da direção tomada pela discussão e atuação na cidade de São Paulo. Embora
não estivesse relacionado diretamente às iniciativas de recuperação e valorização urbana,
Arte/Cidade vinha em momento propício e inseria-se na mesma discussão, ainda que em
outro tom.
A princípio a discussão de Arte/Cidade estava puramente no campo da cultura; São
Paulo em si não aparecia como assunto a ser debatido. A cidade seria um pano de fundo,
um pretexto para juntar profissionais de diferentes meios (artes plásticas, arquitetura,
cinema, fotografia, poesia, música) e, através uma “nebulosa conceitual” temática fazê-los
interagir em conjunto com a materialidade, espacialidade e força simbólica dos lugares5. O
objetivo principal do projeto seria retirar artistas dos ateliers e dos ambientes neutros e
“domesticados” dos museus e galerias, assim como romper com a “relativa clausura” em
que as várias linguagens se encontravam (FARIAS, 1994). O projeto retomava, de certa
forma, a antiga temática de aproximação entre arte e vida, cara às vanguardas artísticas; o
fazia, entretanto, despido do ânimo transgressor e anti-institucional que tal temática
costumou manifestar historicamente6. A cultura e a experiência estética, afinal, ainda
conservariam autonomia em relação à esfera da vida cotidiana.
2.1. Arte na cidade
Os dois eventos iniciais foram realizados em 1994, respectivamente em março e
setembro. O primeiro, Cidade sem Janelas, realizou-se no edifício praticamente
abandonado do antigo Matadouro Municipal, no bairro da Vila Mariana (que se tornaria a
sede da Cinemateca brasileira). Envolveu quinze artistas (entre eles Arnaldo Antunes,
Carmela Gross, Antônio Saggesi e Arthur Omar), e teve organização e curadoria de Nelson
5
De modo a evitar um tom de simples referência à cidade, a proposta da curadoria era trabalhá-la como
suporte, não como tema (FARIAS, 1994).
6
As referências para o Arte/Cidade partiam das experiências artísticas de intervenção e apropriação de
espaços não-institucionais, aparecidas nos anos 60; em especial, trabalhos como os de Robert Smithson e
Gordon Matta-Clark, que abordavam as ruínas da modernidade, o processo de decadência de centros urbanos
que caracterizou o final do século XX.
Brissac e Agnaldo Caldas Farias (na época assessor de artes plásticas da Secretaria de
Estado da Cultura). Esta primeira experiência procurou um caminho mais cauteloso e
realizável: lidar com um único edifício em ruínas e as questões que surgissem de seu
espaço e materialidade.
Circunscrita ao matadouro (a grande maioria das obras em seu interior), a exposição
resultou em algo que remetia mais à arquitetura do local e a uma cidade “imaginária”,
interior aos artistas, do que São Paulo propriamente dita. Por tratar-se de um espaço
basicamente interno e completamente apartado do quotidiano urbano, não era tão afastado
de um museu quando comparado às edições posteriores de Arte/Cidade. Mas o passo
inicial foi grande, e Cidade sem Janelas talvez tenha sido o evento mais bem recebido e
mais coeso em seu efeito poético geral. O ambiente fértil e opressivo, a fascinação da ruína
e a opacidade dos espaços trabalhados ou superpostos às obras dos artistas criaram um
conjunto esteticamente muito forte.
A segunda edição de Arte/Cidade, a Cidade e seus Fluxos, foi instalada no vale do
Anhangabaú — um dos locais mais emblemáticas do centro de São Paulo — em uma área
em torno do Viaduto do Chá. Tendo Nelson Brissac sozinho como curador, o evento
contou com vinte e um participantes (entre eles Regina Silveira, Abílio Guerra e Tadeu
Knudsen), ocupando locais em três edifícios antigos (da Eletropaulo, do Banco do Brasil e
o Edifício Guanabara) e no espaço público entre eles. A situação urbana era praticamente
oposta à do primeiro evento, e representava um desafio muito maior: uma paisagem
extremamente aberta e complexa, numa das regiões mais movimentadas da metrópole. O
evento não procurou estabelecer uma visão coesa do lugar: configurou-se como pontos
entre fluxos, uma “desterritorialização” (nos termos da própria curadoria) que exigia uma
perambulação pela área, à procura das obras lá presentes.
Embora tenha rendido alguns trabalhos excelentes — com destaque para o Detector
de Ausências de Rubens Mano e o Periscópio de Guto Lacaz — o resultado geral da
mostra foi mais irregular que o da anterior. Em relação à primeira edição, porém, havia
aqui uma certa mudança na relação que as intervenções estabeleciam com seu local: a arte
aqui se destinaria a provocar uma outra percepção do espaço urbano. O evento, então,
mostraria-se uma oportunidade de catalisar uma perambulação e fruição da cidade, uma
experiência de flanerie que descortinasse a imagem tão gasta do centro da cidade.
Apesar de um lugar de cruzamento intenso de tráfegos (pedestres e automotivos), o
Anhangabaú estava em situação de decadência e falta de investimentos. Enquanto o
matadouro passava despercebido por sua completa falta de uso, o caso aqui seria de algo
tão exposto que não era mais enxergado, uma “invisibilidade de superfície”: o peso
simbólico do Anhangabaú como que soterrado por seu cotidiano frenético e utilitário, pela
percepção fragmentária de quem está em fluxo. Naquele momento específico, em que as
iniciativas de “revitalização” do centro de São Paulo ganhavam força e evidência, um
evento como o Arte/Cidade foi muito bem recebido. Foi visto por muitos como uma
valorização simbólica e poética de São Paulo; a filósofa Olgária Matos, por exemplo,
escreveu que “por um mês, a cidade foi devolvida a seus habitantes, à distância da suposta
transcendência do poder e da eficácia da lei. (...) O evento reencantou a cidade depois de
um longo período de despoetização”.
Uma grande contribuição dos dois eventos iniciais estaria em seu processo de
organização e realização: o trabalho de conseguir o uso de um espaço não
institucionalizado — negociado cuidadosamente com seus proprietários — e de reunir
vários artistas para trabalhar em workshops para um tipo de situação na qual nenhum tinha
experiência.
A experiência de você sair do atelier e lidar com espaços não-convencionais pro trabalho — não
necessariamente para a exposição, mas pro trabalho — foi essencial. A gente fazia reuniões in loco.
Uma coisa que eu jamais voltaria a fazer. Reunia 40 artistas, no matadouro, no centro da cidade,
tardes inteiras alucinadas, divagações, brigas e tudo, e que no fundo foi uma experiência pessoal
inusitada para todo mundo.7
Uma grande qualidade dos eventos foi seu caráter efetivamente experimental e
aberto8, voltado não apenas para uma idéia de exposição e utilização de locais em
abandono, mas principalmente para uma proposta de produção. Diante do contexto de
propagandas e ações de “revitalização” urbana, a excelente recepção de a Cidade e seus
Fluxos faz pensar em possíveis ligações do evento com os interesses de investimento no
centro. O caráter experimental e efêmero de Arte/Cidade, porém, parece afastá-lo de um
envolvimento direto: tal atividade ainda seria muito nova e incerta para fazer parte de
políticas culturais ou estratégias comerciais.
3. Grupo de Intervenção Urbana e leitura da cidade
O fim da gestão de Othake em 94 e as reduções institucionais dos anos seguintes
impossibilitaram que a continuidade do projeto Arte/Cidade continuasse a depender de
7
Nelson Brissac em entrevista dada ao autor em 31/05/2004.
8
Agnaldo Farias falou do “direito de fracasso” que foi concedido aos organizadores. (FARIAS, 1994).
uma instância estatal como a Secretaria de Estado da Cultura9. Na mesma época, também
emergiam várias associações e organizações não-governamentais no Brasil e no mundo;
essas articulações da sociedade civil eram encaradas por muitos com otimismo, como
respostas novas e flexíveis para a diminuição crescente da presença do Estado e de suas
instituições — assim como para as deficiências deste.
Foi provavelmente nesse espírito que se formou em 1996 o Grupo de Intervenção
Urbana, autodefinido como uma “associação cultural ligada às questões da cultura e do
urbanismo”, que “cria, desenvolve e executa diferentes perfis e dimensões no âmbito das
artes e da arquitetura” (in LUDEMANN, 1997, p.12). Composto inicialmente por Nelson
Brissac, Giselle Beiguelman, Christine Mello, Danilo Santos de Miranda, George Ribeiro
Neto, Marta Bogéa, Ricardo Othake, Ricardo Ribenboim e Regina Meyer10, o grupo
destinaria-se a coordenar, organizar, negociar e captar recursos para a realização de
projetos como a terceira edição de Arte/Cidade e o Brasmitte (que será retomado mais à
frente no texto). A organização de Arte/Cidade ganhava autonomia e flexibilidade
(forçadas, de certo modo) mas ainda dependia dos recursos de instituições e empresas.
A terceira etapa de Arte/Cidade, a Cidade e suas Histórias (originalmente o evento
final), revelou-se a maior e mais complexa de todas. Embora já estivesse em estudo e
negociação desde 1995 (e pensada no princípio para acontecer nesse ano), só pôde ser
concretizada em outubro de 1997. O evento propunha uma excursão por ruínas industriais
ao longo de um trecho de cinco quilômetros do sistema ferroviário metropolitano (então
em processo de sucateamento). As áreas ocupadas por intervenções seriam duas “ilhas”
industriais abandonadas, cercadas pelas estradas de ferro: a área dos galpões das indústrias
Matarazzo — que já fora o maior parque industrial do Brasil — no bairro da Barra Funda;
e o edifício do antigo Moinho Central, no bairro do Bom Retiro. Tal qual Cidade sem
Janelas, o espaço visitado nesta etapa era uma ruína desconectada da cidade; a escala
assumida, porém, era realmente metropolitana, e ultrapassava qualquer possibilidade de
apreensão de uma totalidade pelo olhar ou pelo passeio individual. A discussão proposta
trazia para a cena a memória das estradas de ferro e do parque industrial paulistano, antes
orgulho e símbolo da modernização, agora ruína esquecida, imenso cadáver incrustado nas
entranhas da cidade. Ao fazer isso, deixa à mostra a entropia presente no desenvolvimento
9
Importante lembrar que as administrações municipais desses anos — de Paulo Maluf e Celso Pitta —
também não concediam apoio a atividades como o Arte/Cidade.
10
Arquiteta e urbanista, Meyer era então integrante da Associação Viva o Centro.
da metrópole: o abandono, a desconexão e fragmentação do espaço, a complexa
sobreposição de ordens urbanas.
As dimensões desta edição superavam as anteriores em número de participantes
(trinta e três, com artistas como Carlos Vergara, José Spaniol e Marcelo Dantas), e
especialmente em área abarcada e meios disponibilizados. Envolveu, entre outras coisas:
projetos de adaptação dos edifícios para receber o público; a reforma, adaptação e pintura
de vagões de trem (o “Kinotrem”, que incluía exibição de vídeos curta-metragem e com
informações sobre o evento); a reforma e uso exclusivo de vias ferroviárias — com
reorganização da própria circulação do sistema ferroviário metropolitano durante o trecho
de intervenção; acompanhamento e veiculação televisivos sistemáticos do evento e sua
montagem. Tal densidade estrutural implicou num esforço organizativo muito maior, com
muitas negociações com instituições — principalmente com a. Companhia Paulista dos
Transportes Metropolitanos (CPTM), a Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) e a
Ferrovia Paulista S.A. (FEPASA) — e com grande diversidade de patrocinadores e
realizadores — incluindo a Telecomunicações São Paulo S. A. (Telesp), a Ricci
Engenharia, e principalmente o Serviço Social do Comércio (SESC). Arte/Cidade tomava
feições de um evento de grande porte: a terceira etapa teria possuído um custo final de 4
milhões de dólares, em contraste com a primeira e a segunda, com gastos respectivos de
120 mil e 350 mil dólares.11
3.1. Escalas urbanas
A Cidade e suas Histórias marcou uma aproximação do projeto Arte/Cidade com
questões urbanísticas. O trabalho de planejamento e organização do evento (bem como do
Brasmitte) acabou por aproximar Brissac de arquitetos e urbanistas; não por acaso, o
terceiro Arte/Cidade tem a maior presença deles entre seus participantes (incluindo os
famosos Paulo Mendes da Rocha e Ruy Othake). A dimensão das áreas abordadas e a
complexidade da paisagem e da estruturação — com escolhas como a utilização do sistema
ferroviário da cidade (partindo da Estação da Luz) — obrigaram a organização a tornar-se
mais consciente das questões amplas envolvidas, para além da esfera artística e cultural.
Nesse evento há um passo significativo: a vontade de articular uma leitura da cidade
através de intervenções, inédita até então no Arte/Cidade. A etapa prévia, no Anhangabaú,
propusera uma experiência do urbano, mas não uma leitura objetiva deste; a situação
11
Tais dados de custo foram veiculados pelo jornal Folha de São Paulo de 25 de dezembro de 97.
desnorteante e violenta de a Cidade e suas Histórias, por outro lado, era difícil de elaborar
ou estetizar. Sua distância e desconexão fizeram a coordenadoria preocupar-se em traçar
pontos de referência que articulassem uma leitura possível (o que as obras de artistas não
estavam conseguindo fazer). Com essa intenção foi encomendada a Intervenção em Escala
Urbana, conjunto de intervenções marcando alguns elementos da paisagem do evento
(passarelas ferroviárias, viadutos de carros, as torres de escada). Projetada por estudantes
de arquitetura (Renata Motta, Paula Santoro e Elísio Yamada), tornou-se de certa forma
símbolo do evento12.
Embora possamos falar de um repertório de operações artísticas acumulado na
sucessão de eventos, e apesar da aproximação à questão urbana, esta edição mostraria-se
problemática no que toca às intervenções. A maioria das intervenções mostrou dificuldade
em responder aos locais ocupados:
A escala da mostra, a dimensão dos prédios, as marcas de seu funcionamento no passado e no
presente e, acima de tudo, sua relação com a cidade circundante colocaram uma série de questões
estéticas, mas também políticas, sociais e urbanas. Os sites eram realmente fortes, e o elemento
cidade suplantou o elemento arte. (ANDREOLI e SANTOS, p.290)
O efeito dramático dos próprios sítios de a Cidade e suas Histórias e sua situação
metropolitana se impunham, chocante e ruidosamente, sobre as intervenções artísticas. De
maneira geral, estas se viram subordinadas à presença monstruosa do local, não
conseguindo dialogar satisfatoriamente com ele. Ainda que diversos trabalhos tenham
elaborado bem as questões do local (como as de Nelson Félix e Laura Vinci), como um
todo o projeto assemelhou-se a uma simples exposição de obras, na qual o principal astro
foi o “museu” em si. A grande quantidade de participantes talvez tenha sido um fator
negativo, tornando a exposição demasiadamente aberta e plural; problemas decorrentes,
talvez, de uma “curadoria demasiadamente aberta” e da “ausência de um discurso público
articulado sobre a cidade de São Paulo” (Idem, p.291).
3.2. Sucesso e espetáculo
A esta altura, a ocupação artística de locais degradados da cidade não era mais uma
novidade em si; na verdade, depois do sucesso de público dos primeiros Arte/Cidade e da
12
A evidência da intervenção e o fato ter sido projetada por arquitetos ainda não-formados causou polêmicas
e atritos de vaidade; insinuações chegaram a ser feitas a respeito de possíveis influências do pai de Renata
Motta — Sérgio Motta, na época ministro de comunicações — no assunto.
imensa expectativa gerada em torno da terceira edição13, esse tipo de atividade estaria
mesmo passível de integrar-se à lógica de agitação cultural e marketing urbano que então
já ganhava dominância14. A própria formação de um grupo de intervenção poderia indicar
uma aposta no futuro desse tipo de operação cultural; o discurso dos organizadores,
entretanto, falava em princípio contra a lógica “turística”. Brissac enfatizara que
"Arte/Cidade não vai fazer um trajeto nostálgico, não vai ser um túnel do tempo, uma
Disneylândia de sucata. É um embate com uma situação muito tensa" (in CARVALHO,
1995.). A fala de Giselle Beiguelman também é significativa:
Uma das características mais interessantes do Arte/Cidade como um todo é a prática de dialogar
com espaços de indiscutível peso simbólico para a leitura da história da cidade sem ceder à
tentação de sucumbir à sua reificação. Uma reificação que só concorre efetivamente para esvaziar a
historicidade dos lugares, como antigas fábricas, estações de trem, mercados, que são travestidos
em shoppings ou centros culturais, com perfis absolutamente distantes das práticas sociais que
fundaram sua construção. As restaurações desse tipo tendem a acreditar que a cultura ocorre em um
lugar diferente da esfera pragmática da vida e por isso precisam colocar entre parênteses a
historicidade dos lugares de que se apropriam. (in LUDEMANN, 1997, p.93).
Ainda assim há interrogações: o porte imenso de a Cidade e suas Histórias, sua
presença constante na imprensa, os grandes custos e apoios privados envolvidos, a ampla
participação de grandes nomes das artes e da arquitetura brasileira e, em contraste a isso, o
resultado artisticamente desconexo, ainda que marcante. Tais fatores apontam para uma
tendência ao espetáculo que empreendimentos desse porte acabariam por tomar —
possivelmente mesmo para além da vontade de seus organizadores; afinal, vetores de uma
grande “reanimação cultural” paulistana eram buscados e celebrados pela imprensa, pelos
patrocinadores e até mesmo pelo público. Seja como for, o evento trouxe contribuição
substancial: possibilitou discussões e leituras da situação fragmentada e assustadora da
metrópole, aproximando o foco para a configuração, construção e decadência da cidade.
13
Muitas atividades paralelas relacionadas ao evento aconteceram, ampliando a repercussão do assunto. Em
96, houveram seminários de discussão sobre a cidade e a história da linha férrea, as discussões sobre o
Brasmitte e o lançamento de um documentário em vídeo e de um livro de Brissac — ambos com o nome
Paisagens Urbanas; em 97 ocorreram duas exposições sobre Arte/Cidade: no SESC Pompéia, entre 22 de
maio e 15 de junho, e na Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, de 9 a 30 de novembro.
14
O jornalista Celso Fioravante chegou mesmo a falar que “um dos grandes hits das artes plásticas na cidade
em 97 será a intervenção urbana” (FIORAVANTE, 1996).
4. A radicalização do projeto
A situação dos anos entre 1997 e 2000 trouxe uma politização do discurso de Nelson
Brissac — e, conseqüentemente, do Arte/Cidade — a respeito da natureza das relações
entre arte, globalização e políticas urbanas. O Grupo de Intervenção Urbana passou por
alterações e crises; Brissac, figura central do projeto, rompeu com várias pessoas e adotou
uma posição mais pessimista e, ao mesmo tempo, mais abrangente e política frente à
situação urbana.
Num contexto de transição neoliberal e sob uma administração municipal
particularmente problemática (a de Celso Pitta, marcada por crises e constantes denúncias
de corrupção), São Paulo recebeu muitos investimentos e reestruturações através de
operações econômicas globalizadas. Ao mesmo tempo, cultura e arte consolidavam-se
como grande negócio: as “revitalizações” culturais tornaram-se fórmula comum, com a
multiplicação e expansão de centros de arte, cultura e lazer. A situação parecia acenar para
uma hegemonia irrestrita de grandes capitais privados e lógicas de mercado e propaganda
sobre as realizações culturais e sobre as transformações urbanas — hegemonia apoiada,
por sua vez, pelo próprio governo. Em contrapartida, nos meios intelectuais de esquerda
acirrava-se naquele momento a crítica a tais tendências, particularmente à sua dimensão
freqüente de exclusão social e apropriação privada do bem público15. Acontecimentos
como a mega-exposição Brasil 500 anos, empreendida no Parque do Ibirapuera por uma
empresa (hoje a Brasil Connects) eram saudados pela opinião pública geral como uma
possível salvação para a situação de ineficiência das instituições públicas em promover a
cultura; ao mesmo tempo, eram acusados por muitos como cooptação de instituições e
espaços públicos por interesses financeiros privados.
Os fins dados a algumas das locações Arte/Cidade eram indicativos das inclinações
de mercado do fim de século: a agência desativada do Banco do Brasil tornou-se o Centro
Cultural BB; o prédio da Eletropaulo virou o Shopping Center Light; a área das indústrias
Matarazzo transformou-se no Centro Empresarial Água Branca, “um megaprojeto da Ricci
Engenharia”.16 O próprio Brissac fez uma revisão e questionamento do papel que as três
etapas de Arte/Cidade poderiam ter dentro de uma lógica perversa de ligação entre
15
Mesmo os procedimentos relacionados ao Viva o Centro adquiriam caráter conservador e excludente.
(FRÚGOLI JR., 2000, p.92)
16
À exceção do Shopping, todas essas transformações já estariam previstas antes mesmo dos eventos
Arte/Cidade (PEIXOTO, 2002, p.319).
reestruturações urbanas e atividades artísticas; afinal, as intervenções ficaram na aparência
dos locais, não abordaram tais processos e conseqüências. A quantidade de recursos e
estruturas disponibilizados para o terceiro evento, porém, não permitiam que este fosse
interpretado meramente em termos de produção cultural; principalmente quando um de
seus realizadores — a Ricci Engenharia — lucrara muito com o local de intervenção.
O caso mais impactante dessa conjuntura provavelmente foram as articulações em
torno da São Paulo Tower a partir de 1999. Parceria de um empresário com a Maharishi
Global Development Fund, era uma proposta de reestruturação urbana de proporções
imensas a ser implantada no bairro do Pari (na zona leste) uma área central em decadência
mas dotada de infra-estrutura. SP Tower juntava especulação imobiliária e gentrification
descaradas, reestruturação “cenográfica” da paisagem urbana em larga escala e um amplo
apoio — moralmente questionável — por parte do poder municipal (FRÚGOLI JR., 2001).
A campanha de marketing vendia a operação como solução “serviços-lazer-cultura” para a
situação caótica da zona leste, bem como uma nova referência urbano-arquitetônica de
uma São Paulo em globalização. Embora não tenha sido realizada, o clima de certeza de
sua vinda na época certamente teve forte influência nos rumos de Arte/Cidade.
Se considerarmos que existiu um processo de transformação de proposta e discurso
na sucessão de edições Arte/Cidade — e que tal desdobramento também implicou em uma
maior imbricação com as questões urbanas — o período entre 1997 e 2000 estabeleceu
uma radicalização crítica de tal processo, cujo resultado seria o quarto evento em 2002
(não previsto na idéia original): Arte/Cidade Zona Leste.
4.1. Evento na Zona Leste
O embrião do quarto Arte/Cidade foi o Brasmitte, um projeto de intervenção artística
de aspiração internacional, organizado pelo Grupo de Intervenção Urbana e o Instituto
Goethe. Desenvolvido entre 1996 e 1999 — paralelamente ao Arte/Cidade — o projeto
envolvia os bairros do Brás, em São Paulo, e de Mitte, em Berlim, com a proposta de
discutir a globalização e a degradação urbana, características das mudanças econômicas da
contemporaneidade. Não se concretizou como acontecimento e intervenções, mas rendeu
uma série de discussões, seminários, estudos e diálogos com artistas, arquitetos e
intelectuais estrangeiros; tornou-se o primeiro contato com a área, as questões e alguns dos
participantes de Arte/Cidade Zona Leste, tendo certamente contribuído para um maior
envolvimento com a cidade.
A princípio o Brasmitte não possuía ainda ênfase crítica aos processos urbanos —
ainda estava ligado, de certa forma, a uma idéia histórica e identitária, do Brás como um
dos bairros tradicionais de São Paulo. Arte/Cidade Zona Leste, por sua vez, expandiu o
recorte de bairro para o de região — envolvendo os bairros do Pari, Mooca e Belenzinho,
além do Brás — procurando construir uma leitura estrutural desta. A aproximação às
questões de compreensão e leitura da cidade aumentara desde o evento anterior, de forma
que um levantamento extenso e detalhado da área foi realizado, buscando identificar
pontos estrategicamente propícios para articular intervenções.
A região contemplada pelo evento era central, aberta e muito movimentada; mas
estaria longe de possuir espacialidade marcante ou a força simbólica de áreas como o
Anhangabaú. A zona leste era caracterizada por lugares e edifícios em degradação, espaços
desfigurados e desarticulados por viadutos e operações urbanas e, particularmente, pela
ocupação informal desses espaços — comércio de camelôs, catadores de lixo, favelados e
sem-teto — toda uma população nômade ou seminômade. A área trazia então muitas
situações completamente novas para o projeto; além de tais usos irregulares da cidade,
havia a forte presença de moradia (clandestina e regular) junto à área intervenção. Até
então, o mais perto que Arte/Cidade estivera de habitação e de informalidade foram os
resquícios da população marginal que compunha os então parcos moradores e “usuários”
do edifício do Moinho em a Cidade e suas Histórias.
De maneira inédita, a organização do evento levantou a gama de questões da área —
extremamente contemporâneas — e propôs-se a evidenciá-las e discuti-las: pobreza e
exclusão social, moradia e o trabalho informais, especulação imobiliária, desagregação do
tecido urbano, descaso das autoridades e apropriação generalizada do espaço público (seja
por camelôs ou por corporações).
Arte/Cidade propõe uma nova modalidade de intervenção urbana: partir de toda uma região,
compreendendo os processos de reestruturação urbana, os elementos arquitetônicos e as formas de
ocupação existentes e as operações previstas ou em andamento. (PEIXOTO, 2002-3)
Esta foi uma diferença em relação aos eventos pregressos: além da experiência da
cidade e da leitura de sua configuração espacial, a escolha dos locais de intervenção teve
ambição de instigar uma leitura dos processos urbanos.
4.2. Intervenções e polêmicas
Em Arte/Cidade Zona Leste, o Grupo de Intervenção Urbana (formado agora apenas
por Brissac, Giselle Beiguelman e o engenheiro Ary Perez), expressaria uma visão
negativa dos rumos que as iniciativas culturais pareciam tomar no Brasil e no mundo no
novo século. Mais do que qualquer outro Arte/Cidade, este evento tomou uma atitude de
criação de polêmica e mobilização de opiniões, buscando contrapor-se ao processo global
de “apropriação corporativa da arte e da cidade”.
Além das intervenções, os eventos Arte/Cidade sempre incluíram palestras, vídeos,
debates e publicações; em Arte/Cidade Zona Leste estas manifestações adquiriram, em
geral, um tom mais controverso17. Além de cultura e arte, foram colocadas em pauta
questões de urbanismo contemporâneo, incluindo especulações sobre novos instrumentais
de mapeamento da metrópole e de suas dinâmicas; discussões e exposição contaram com a
participação de artistas e arquitetos estrangeiros (uma novidade no Arte/Cidade), bem
como de uma “estrela” internacional — o holandês Rem Koolhaas, um dos arquitetos mais
famosos e influentes dos últimos anos. No todo, o evento resultante foi complexo,
conflituoso e desigual, mas com as aspirações mais críticas e abrangentes de todo o projeto
até então.
A exposição final de Arte/Cidade Zona Leste (de março a abril de 2002) possuiu
intervenções de vinte e oito participantes, das quais catorze estavam espalhadas por locais
da zona leste e doze concentravam-se na torre leste das edificações abandonadas da
Indústria Santista, transformadas em sede do SESC Belenzinho. A curadoria desta edição
provavelmente foi a mais direcionada do projeto Arte/Cidade; sua posição indicaria
também uma mudança de concepção e critério artísticos. Até a terceira edição, a arte era
considerada por um prisma de percepção, experiência e representação, algo que traria uma
nova relação simbólica e fenomenológica com a cidade:
aqui se explicita a relação entre arte e cidade: trata-se de despertar a experiência do mundo de que
toda arte é expressão. (...) Pois retornar às próprias coisas é voltar ao mundo anterior ao
conhecimento, ao qual este sempre remete e com relação ao qual qualquer determinação científica
é abstrata e dependente.(...) Retornar da geografia à paisagem.
A função da arte é construir imagens da cidade que sejam novas, que passem a fazer parte da
própria paisagem urbana. (PEIXOTO, 1996, p.13)
As práticas artísticas dos Arte/Cidade precedentes poderiam ser encaradas como
“ainda comprometidas com estratégias escultóricas em grande escala, percepção
17
Particularmente as duas publicações de Brissac de 2002: a “fotonovela sci-fi” as Máquinas de Guerra
contra os Aparelhos de Captura (revista de tom paródico, ácido e quase panfletário) e o texto Isto aqui é um
Negócio: operações de captura da arte e da cidade (que adota tom de denúncia às estratégias de
comercialização da cultura e da cidade e veicula acusações diretas a instituições e pessoas).
fenomenológica de objetos colocados no espaço”(PEIXOTO, 2002, p.319). Em
Arte/Cidade Zona Leste, colocar a arte na cidade não teria tanto interesse por si só; a
questão é tornar a arte um instrumento de leitura e de intervenção em processos, de
manipulação de percepções e significados visando explicitar problemas e fomentar debates
— intrometer-se, enfim, nas relações da vida “real” para além do jogo perceptivo. Os
artistas estrangeiros teriam sido convidados justamente por sua experiência em criar
controvérsias e trabalhar com processos.
O poder da produção artística pode ser colocado a serviço da dominação ou da emancipação. Aos
artistas cabe então elaborar defesas contra as estratégias de subordinação aos criadores. Máquinas
que funcionem como armadilhas, fazendo o público participar do processo, detonando uma cadeia
de discursos que engendre crítica. Inventar formas de ação inusitadas, operações que tenham um
papel de catalisador: a opinião pública é um campo de batalha e o artista é aquele capaz de criar
polêmica. Produzir intensos efeitos que rompam com as regras do jogo, muitas vezes pelo
escândalo, o instrumento por excelência da ação artística. Desenvolver contra-poderes, ações
simbolicamente eficazes e politicamente complexas, capazes de mobilizar uma força equivalente às
forças que buscam enfrentar. (PEIXOTO, 2002 – 2)
Foi visível uma certa polarização no evento: em um extremo, a concentração de
intervenções “internas” e mais formais no SESC Belenzinho (a maioria dos brasileiros); de
outro, as intervenções comunicativas ou processuais que foram para o espaço urbano (a
maioria dos estrangeiros), as quais aparentavam estar mais afinadas com o discurso da
coordenadoria18. Mais do que apenas chamar atenção para os problemas sociais da área,
alguns trabalhos como os de Krzysztof Wodiczko, de Vito Acconci e de Maurício Dias e
Walter Riedweg19 baseavam-se numa interlocução com os setores “informais”, excluídos
da sociedade e das lógicas tradicionais de atuação urbana. As intervenções eram muitas
vezes agressivas, suscitando estranhamento e muitas críticas.20
Muitas coisas saíram errado no evento, o mais “mundano e falível” do conjunto
Arte/Cidade (MESQUITA, 2002). Embora o evento tenha sido realizado em 2002, seus
projetos estariam prontos desde 2000; devido à falta de patrocínio, Arte/Cidade Zona Leste
18
As palavras de Nelson Brissac indicavam uma vontade de atualização da prática e discussão artística e
urbanística brasileira; em entrevista, Brissac falaria que convidar artistas e arquitetos estrangeiros para
trabalharem junto com os brasileiros também tinha como objetivo estimular um “aggiornamento
generalizado” por meio do choque entre as diferenças destes.
19
Respectivamente, um protótipo de veículos para catadores de lixo, uma estrutura arquitetônica de apoio
para moradores de rua e vídeos e estampas de camelôs em uma aglomeração destes.
20
A obra de Acconci foi particularmente muito criticada pela exposição a que submeteria os sem-teto.
ficou em espera durante dois anos21. Em razão das mudanças que seus sítios sofreram
durante o período, certas obras tiveram de ser repensadas ou relocadas meio que às pressas,
como a de Vito Acconci. Além disso, antes de 2000 o SESC não havia ocupado a torre
leste onde ocorreria o evento; em 2002 já iria convertê-la em parte da unidade Belenzinho.
A instituição exerceu então um relativo domínio sobre o evento, impondo medidas como
limitações no acesso do edifício e a presença de monitores para visitas guiadas às obras
espalhadas na cidade; isso acarretou em atrito com os organizadores22. A maioria dos
outros problemas foram conseqüências de lidar com um contexto dinâmico e agressivo
(como o cancelamento da proposta de Rem Koolhaas para o edifício São Vito devido ao
crime organizado que dominava o prédio).
De uma forma geral, a exposição foi a mais forte de Arte/Cidade; já de início teve o
mérito de fazer pessoas andarem pela vitalidade ofensiva da zona leste — principalmente
de trazer os costumeiros “consumidores de cultura” para uma área pela qual dificilmente
passariam. Foi também a que teve a recepção mais irregular pelo público (muitos nem
souberam que havia obras espalhadas pela cidade) e a que mais comprou brigas e gerou
debates. Apesar de tudo, as repercussões da experiência sobre os destinos da cidade
permanecem praticamente nulas.
5. Conclusão
Pela opção de constituir uma leitura essencialmente macro de um objeto tão
complexo, este texto acabou por se dedicar mais a propostas e discussões que à crítica dos
resultados. Isso periga dar ao Arte/Cidade uma aparência mais uniforme e coerente do que
a que ele talvez tenha possuído realmente: o projeto, para bem e para mal, foi marcado pela
multiplicidade e descontinuidade. Por sua estrutura aberta e variável, os eventos — com
seus participantes e realizadores — podem ser entendidos como uma conjunção complexa
de fatores, um “corpo difuso” gravitando em torno de alguns pontos e vetores, dos quais o
principal seria Nelson Brissac e suas propostas.
Em vista do que foi apresentado, parece claro que houve uma mudança significativa
nas concepções projeto Arte/Cidade, na qual o segundo termo do binômio ganhou cada vez
mais importância e centralidade. Seria razoável concluir também que essa imbricação
progressiva com os problemas urbanos assinalaria uma posição mais política, mais pública
21
Segundo entrevista dada por Brissac ao autor (já citada).
22
Idem.
por parte do evento; ainda assim, questões permanecem sobre os termos e a efetividade
dessa crítica.
Após vários Arte/Cidade, pode-se questionar se tais realizações, em sua condição de
eventos culturais, não estariam se transformando em algo mais seguro, previsível e
espetacular; se algo de seu potencial crítico estaria diminuído, mesmo com a adoção de um
discurso mais político e mais afastado da suposta neutralidade da “autonomia artística”.
Além disso, há a questão dos interesses envolvidos na concretização dos eventos: o
empreendimento ainda é dependente de patrocínios e apoios culturais — e mesmo evitando
a simples demonização das empresas, não poderíamos partir do princípio de que seu apoio
deve-se prioritariamente a interesses artísticos.
Em defesa do projeto, pode-se argumentar que este ainda estaria longe de ser uma
atividade estável — o fato de que ainda não foi possível lançar um catálogo de Arte/Cidade
Zona Leste por falta de fundos é significativo a esse respeito. O que foi exposto aqui
permite encará-lo como um conjunto de eventos cuja materialização dependeu
essencialmente da conjunção de fatores múltiplos e contingenciais, que realmente procurou
manter um caráter experimental. Não seria fruto tanto de estratégias de ocupação, mas de
inserções táticas em situações dadas — tanto culturais quanto urbanas. Mesmo no
momento em que o projeto se aproximou mais da lógica de um mega-evento — a terceira
etapa — ele ainda estaria longe de poder catalisar por si grandes negócios ou o “destino”
imobiliário dos locais ocupados, assim como dificilmente poderia ser um modelo
reproduzível e seguro.
Sua não-repetição é um dado importante. O fato de cada evento ser maior e diferente
do anterior, claro, não é por si indicador de uma intenção crítica; pelo contrário, é algo
perfeitamente compatível com a lógica produtiva de comércio e propaganda. O discurso
público e as intervenções, porém, apontam intenções que fogem à simples celebração da
cidade e da cultura. Além de apenas uma variação de locais e participantes, então, ocorreu
uma alteração de questões contempladas que está bem além de meras renovações temáticas
do circuito cultural.
A mudança de foco do Arte/Cidade poderia ser esquematizada assim: a primeira
edição teria a cidade como elemento de trabalho da arte; a segunda, a arte como presença
que acarreta uma experiência da cidade; a terceira edição teria a arte como intervenção
que provoca uma leitura da cidade; e a última, a arte como agenciamento de relações e
instrumento comunicativo de crítica à cidade23. O projeto gradativamente tornou-se menos
estético e expressivo e mais prático e propositivo; a questão não seria mais de “elaborar
estratégias para confrontar o espaço institucional e o consumo de arte” mas sim de
“encontrar um caminho para a arte lidar com a vida na era da globalização” (ANDREOLI e
SANTOS, p.285). Nesse caminho, o projeto se aproximaria efetivamente de uma
concepção mais pública e ativa de arte que, na generalização da cultura-consumo,
representaria algo muito positivo.
Contudo, é importante não confundir aqui os argumentos com os acontecimentos:
pouco da discussão teórica e prática sobre a cidade de Arte/Cidade Zona Leste se
consolidou realmente. Além disso ainda há a questão do alcance de público: apesar da
grande abertura de todos os eventos, superando o elitismo social que costumeiramente
cerca a arte, é necessário perguntar-se o quanto é possível que a crítica seja absorvida
quando o próprio público em geral espera pouco mais do que espetáculo e consumo.
Houve certamente uma cota de espetáculo em torno das edições de Arte/Cidade, até
mesmo porque o sucesso de público e de mídia é uma condição da própria efetivação de
um empreendimento desta magnitude. O sucesso é que conquista investimentos,
patrocínios e negociações: diante desse fato, é pertinente questionar a condição do
Arte/Cidade para criticar o envolvimento entre arte e empresas, como fez no quarto evento,
se ele mesmo depende de investimentos empresariais. O sucesso e o espetáculo, porém,
também são portas para a visibilidade pública de uma crítica. Uma oportunidade de
choque, polêmica e reflexão ocorrera verdadeiramente — uma conquista notável numa
cena dominada por utilitarismo, alienação e insensibilidade em relação à realidade urbana
cotidiana. Mesmo tendo de enfrentar dificuldades e de ser mundana, irregular e falível, a
crítica é passível de ser construída no meio cultural; mais ainda, é necessária.
Bibliografia
ANDREOLI, Elisabetta, e SANTOS, Laymert Garcia dos. “Arte pública, cidade privada”.
In PEIXOTO, Nelson Brissac (org). Intervenções Urbanas: Arte/Cidade. São Paulo:
Editora SENAC São Paulo, 2002.
ARANTES, Otília. Urbanismo em Fim de Linha. São Paulo: EDUSP, 1998.
23
Me limitei apenas ao fator diferencial das etapas, mas todos estas possuíram trabalhos artísticos mais ou
menos enquadráveis nos conceitos das precedentes.
CARVALHO, Mario César. “O futuro do passado”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 29 de
outubro de 1995.
FARIAS, Agnaldo. “Arte/Cidade”. In SECSP - Secretaria de Estado da Cultura de São
Paulo. Arte/Cidade: Cidade sem Janelas (catálogo). São Paulo: Editora Marca D’Água,
1994.
FIORAVANTE, Celso. “Cidade terá intervenções”. Folha de São Paulo, São Paulo, 31 de
dezembro de 1996.
FOSTER, Hal. Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial
Paulista, 1996.
FRÚGOLI JR., Heitor. Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na
metrópole. São Paulo: Cortez/EDUSP, 2000.
Grupo de Intervenção Urbana. Arte/Cidade: a Cidade e suas Histórias (catálogo). São
Paulo: Editora Marca D’Água, 1997.
LUDEMANN, Marina (editora). Brasmitte: Intervenções Urbanas São Paulo – Berlim.
São Paulo: Goethe Institut/SESC, 1997.
MATOS, Olgária Chain. “Contemplações Invisíveis à Procura do Lugar”. In SECSP.
Arte/Cidade: a Cidade e seus Fluxos (catálogo). São Paulo: Editora Marca D’Água, 1994.
MESQUITA, Tiago. “Mais mundana e falível”. Reportagem, nº 32, maio de 2002.
PEIXOTO, Nelson Brissac (org). Intervenções Urbanas: Arte/Cidade. São Paulo: Editora
SENAC São Paulo, 2002.
_________. Paisagens Urbanas. São Paulo: Editora SENAC, 1996.
_________. Arte/Cidade: as Máquinas de Guerra contra os Aparelhos de Captura. São
Paulo: Gráfica Garilli, 2002 - 2.
_________. Como Intervir em Grande Escala? In pucsp.artecidade.com.br. 2002 -3
_________. Isto aqui é um Negócio: operações de captura da arte e da cidade. s/ed., 2002.
SECSP - Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Arte/Cidade: Cidade sem Janelas
(catálogo). São Paulo: Editora Marca D’Água, 1994.
_________. Arte/Cidade: a Cidade e seus Fluxos (catálogo). São Paulo: Editora Marca
D’Água, 1994.
Imagens
1. Cidade sem Janelas
Figura 1
Edifício do matadouro central
Fonte: SECSP, 1994
Figura 3
Lambe-lambe, de Arnaldo Antunes (fundo);
intervenção de Anne Marie Sumner (frente).
Fonte: PEIXOTO, 1996
Figura 2
Inferno, de Arthur Omar.
Fonte: SECSP, 1994
Figura 4
Intervenção de José Resende.
Fonte: PEIXOTO, 2002
2. A Cidade e seus Fluxos
Figura 5
Seqüência de imagens do Anhangabaú.
Fonte: www.pucsp.artecidade.com.br
Figura 6
Periscópio, de Guto Lacaz.
Fonte: PEIXOTO, 2002.
Figura 7
Viaduto do Chá (Vale do Anhangabaú)
Detector de ausências visível.
Fonte: PEIXOTO, 1996.
Figura 8
Detector de ausências, de Rubens Mano.
Fonte: SECSP, 1994.
3. A Cidade e suas Histórias
Figura 10
Intervenção de José Spaniol
Fonte: PEIXOTO, 2002.
Figura 9
Área das Indústrias Matarazzo
(a Intervenção em Escala Urbana sobre as
passarelas e o viaduto está visível).
Fonte: Grupo de Intervenção Urbana, 1997.
Figura 11
Área do Moinho Central (a Intervenção em Escala
Urbana sobre as torres de escada está visível)
Fonte: Grupo de Intervenção Urbana, 1997.
Figuras 12 e 13
Intervenções de Nelson e Félix e
Laura Vinci (interior do moinho)
Fonte: Fonte: PEIXOTO, 2002.
4. Arte/Cidade Zona Leste
Figura 14
Imagem do Brás (com o Edifício São Vito).
Fonte: Fonte: LUDEMANN, 1997.
Figuras 15 e 16
Favela e camelôs na zona leste
Fonte: www.pucsp.artecidade.com.br
Figuras 17 e 18
Intervenções de Angelo Venosa e de Avery
Preesman (locadas no SESC Belenzinho).
Figuras 19 e 20
Trabalhos de Maurício Dias com Walter
Riedweg e de Krzysztof Wodiczko
(locados na cidade)