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Revista Trasgo Edição 10 Editorial #10 Créditos Madrinhas e Padrinhos · Contos · O Menino Jaguar e o Escudo do Sol Chamado à Razão Ruínas no Horizonte Essa é a nossa história. Você vai adorar Pindá Noturno deserto · Galeria e entrevistas · Galeria: Fabio Alencar Entrevista: Fabio Alencar Entrevista: Claudia Dugim Entrevista: Marco Rigobelli Entrevista: Rafael Dias Canhestro Entrevista: Caroline Policarpo Veloso Entrevista: Vilson Gonçalves Entrevista: Rodrigo Rahmati · Patrocinado · Brasiliana Steampunk CabulosoCast Envie o seu conto Padrim Trasgo EDITORIAL #10 Chegamos à décima edição e temos muita coisa bacana para compartilhar com vocês. Fizemos recentemente uma campanha mais efetiva de captação de contos e recebemos mais de cem textos para avaliação. Os textos serão lidos com calma e selecionados para as próximas edições. E você sabe, quanto maior o volume de submissões, mais incríveis os contos que traremos para cá! Nesta edição, ilustrada por Fabio Alencar, trazemos seis contos de autoras e autores brasileiros. Abrimos com “O Menino Jaguar e o Escudo do Sol”, um conto de Claudia Dugim inspirado em lendas da cultura Maia. “Chamado à Razão”, de Marco Rigobelli, parece um conto fantástico de temática medieval, mas logo descobrimos camadas mais profundas escondidas entre as linhas. “Ruínas no Horizonte”, de Rafael Dias Canhestro, é um conto um pouco mais voltado ao horror do que costumamos publicar aqui na Trasgo, uma FC apocalíptica clássica. “Essa é a nossa história. Você vai adorar” é o título do conto de Caroline Policarpo Veloso, e sim, você vai adorar. Sem revelar muito, digo apenas que um escritor recorre à magia de uma bruxa, antiga e poderosa, para satisfazer suas ambições literárias. Em seguida conhecemos “Pindá”, de Vilson Gonçalves, uma jovem da tribo das abayukás destinada a provar o seu valor a qualquer custo. Encerramos com “Noturno Deserto”, de Rodrigo Rahmati, um conto sobre deuses, seus caprichos e consequências. Como sempre, todos os autores e autoras foram entrevistados para apresentar um pouco mais de suas obras. Esta edição é a primeira que fazemos graças aos nossos padrinhos e madrinhas. Muito obrigado mesmo pelo apoio, estamos caminhando a passos largos para nos profissionalizarmos. Seja nosso apoiador no Padrim, leia e compartilhe a revista, você não imagina o quanto um simples link nos ajuda a crescer. Agora, um pouco dos bastidores: estamos elaborando a primeira Revista Trasgo impressa, que incluirá as edições 1 a 4, além de contos inéditos escritos pela equipe. A lojinha da Trasgo também está quase pronta, com camisetas, canecas e pôsteres com essas capas lindonas. Acompanhe a gente no Twitter, Facebook ou pela Newsletter, sempre tem novidades e coisas bacanas da literatura nacional compartilhadas por lá! Gostou, não gostou? Fale com a gente, queremos opiniões, reviews e tudo o mais! Como sempre, você encontra imagens em alta para postar em seu blog em trasgo.com.br/imprensa. Muito obrigado, a Trasgo cresce a cada edição graças a vocês. Aproveitem, essa edição está fantástica! Rodrigo van Kampen e equipe da Trasgo Acompanhe a Trasgo Revista: trasgo.com.br Padrim padrim.com.br/trasgo Newsletter: trasgo.com.br/news Twitter: twitter.com/revistatrasgo Facebook: fb.com/revistatrasgo O MENINO JAGUAR E O ESCUDO DO SOL Claudia Dugim C omo escriba não acrescentei realidade ao meu mundo, assim parto para o pós-vida. Os papiros virarão cinzas e as pedras, selvas, quando o sol se pôr no último dia do último ciclo. Isso eu sei, pois Pakal me disse, há muitos anos atrás. “Nós, que nascemos do barro no 13º dia da criação e reverenciamos o sol da cor de milho, somos gratos a Pakal e oferecemos a ele no dia de sua ascensão sacrifícios de escravos, crianças e virgens, jogos e festas.” Em 9.9.2.4.8 5 Lamat 1 Mol, na província de Palenque, o Escudo do Sol tornou-se o maior governador Maia em todos os gloriosos ciclos em que nossa civilização existiu. No começo daquela manhã, no entanto, o pequeno jaguar ainda resistia à ideia de governar seu povo. — Eu não quero governar, mãe Sak — disse K’inich Janahb Pakal. A grande Sak Kuk, que administrou longos anos depois da morte de seu marido, o governador de Palenque, e continuaria conselheira do futuro governador, parou de cantar e se autoflagelar, rituais necessários antes da cerimônia de ascensão do filho, e pôs o menino em ordem: — Sei que você não gosta de muitos enfeites, jaguarzinho, mas eles servem para mostrar ao povo a beleza do escolhido pelos deuses. Escrava Oe, coloque os brincos — apontou a lâmina de obsidiana que usou para o ritual sem levantar do divã onde se recostava. — Desse jeito as pontas das orelhas nunca vão chegar aos ombros, filho. Já tem doze anos e elas não estão nem no meio do pescoço! K’inich, o menino jaguar, segurou a mão de Oe. — Não. Pare, escrava Oe. Eu quero ser jogador de pelota, como Muluc, o grande, mãe Sak. Não quero me vestir para ser governador. — O menino chorou, porque ainda era só uma criança mimada. — O QUÊ?! — Exaltou-se a governadora sentando-se no divã e largando a lâmina de obsidiana. — Continue Oe. Muitas escravas da aldeia de Oe foram mortas por motivos tão fúteis como baunilha demais ou de menos no curau. Não sabendo a quem obedecer, se ao menino jaguar ou a sua mãe, ela largou o brinco de turquesa e coral e virou estátua de pedra. Sak Kuk, a mãe do pequeno deus do milho, agora andava, gesticulava e gritava pelo quarto. — Muluc! Muluc foi um escravo que foi jogador por míseros 5 anos e perdeu o jogo e a cabeça! Menos do que um ciclo de chuvas! Você é um rei e governará por centenas de ciclos, quando o escriba desenhar a data da sua morte no seu túmulo até o nove será passado. O nove! — Fez questão de reforçar o número que marcava o último ciclo de todos os ciclos. A boa líder arara, Sak Kuk, apreciava exageros. Deixou a cidade sagrada de Palenque mais colorida ao assumir o governo depois da morte do marido, a hegemonia das cores nos quatro cantos da cidade — azul, amarelo, vermelho e branco — foi substituída por uma mistura de todas elas incluindo até o sagrado verde. Passear pelos templos, pelo estádio e pelo centro comercial era uma festa para os sentidos. Nos dias que antecederam o ritual de passagem de pequeno jaguar, as construções ganharam mais vida. Flores enfeitavam as portas e janelas; colunas de rosas, papoulas, flores de maio, chuvas de ouro enchiam os olhos tanto dos locais quanto dos visitantes que vieram para a passagem e ascensão do novo governador. Espalhavam-se pelas calçadas os vendedores de milho e suas pedras de assar. Os doces de maracujá, mel e o aroma da baunilha. Tomates assados com pimenta. Ao perfume agradável das flores e especiarias misturavam-se o cheiro dos incensos e do sangue dos sacrifícios. Sak Kuk comia muito bem, se vestia requintadamente: turquesa, peles e corais dos pés à cabeça. Mantinha o pulso firme nas decisões de Estado, os conselheiros mais guardavam as ideias do que opinavam. Sequestrava e torturava moderadamente os rivais, só até conseguir um acordo justo entre as partes. “Meu segredo de temperança é uma faca bem afiada, dizia aos amigos que riam até cair. Guardou a temperança, ou melhor, a falta dela, pelo período que antecedeu a ascensão, só usou a lâmina em si mesma como pediam os deuses. O rito de passagem do filho exigia mais abstinência e paciência do que poderia suportar, então excedia em advertências ao filho e escravos. Não era tanto o sentimento de que perderia seu poder em breve, mas um temor mais terreno, que caberia em qualquer mãe. Seu pequeno K’inich seria em breve engolido pela jiboia no ritual de passagem, mandado para o mundo inferior de A-hau Kin, para que o Deus do Inframundo cuidasse dele. Era direito do Deus escolher o destino do menino, se fosse para ser um adulto e encontrar a imortalidade, quando abrissem a barriga da cobra, o Deus teria matado o pequeno jaguar e dado a luz a Pakal, o governador de Palenque. No entanto, a segunda opção deixava inquieto seu coração de mãe: não era raro acontecer dos meninos morrerem na barriga da jiboia antes de serem retirados. Tallvez seu jaguarzinho não fosse digno da honra de ser governador. Sak Kuk não teria mais a companhia do carinhoso menino, que dormia em sua cama nas noites de tempestade. Todas as emoções que poderia sentir ocupavam o mesmo espaço: medo, orgulho, tristeza, ansiedade. Sak Kuk era assombrada tanto pela glória quanto pela solidão. — Mas para que por toda esta roupa em cima de mim se a cobra vai me engolir nuzinho, mãe Sak? Foi a gota d’água, os tijolos do palácio do governador saíram do lugar com os berros de Sak Kuk. — K’inich! Ainda sou a governadora, ainda sou sua mãe, por isso ordeno que cale essa sua boca, jaguarzinho, quando for governador deixo você mandar em mim... um pouco. Oe, acabe de vestir o menino. Oe virou de carne e osso novamente, pois agora sabia a quem obedecer. Sak Kuk saiu do quarto, não queria mais discussões, chamando-me para a sala do trono. Segui-a obediente. O dia estava chuvoso e sem sol, a luz que entrava pelas janelas estreitas não iluminava mais que um vaga-lume. Tochas acesas nos corredores estreitos aumentavam a sensação de calor e, com ajuda dos incensários, roubavam quase todo ar fresco. Na sala majestosa com imensas colunas e quase sem janelas, protegida do tempo e dos inimigos, Sak Kuk sentou-se na pele de coelho que cobria o trono e acariciou os pelos brancos com a ponta dos dedos. Bonita ela não era, mas o poder tem aquele quê de sensualidade que põe fogo na palha molhada e espalha fumaça pelo consciente. Olhou para mim com os mesmos olhos grandes e negros do filho e disse: — Itzamná, escreva para esculpir que o dia estava ensolarado, que Ahau apareceu no horizonte neste equinócio para celebrar a ascensão de Pakal. Escreva e desenhe também o escravo, grande conselheiro de Petén, que será degolado. Use todo o seu refinado estilo, grande escriba. Nada de falar da teimosia do menino. Sei que gosta de ser prolixo, mas guarde as verdades inúteis para seus escritos pessoais. Quero me deslumbrar com sua maravilhosa arte, não me aborrecer. E foi determinando o que deveria ou não constar nos totens, nas paredes, nos papiros, intercalando suas ordens com elogios. Ela sempre me adulava, talvez para provar a si mesma que eu era melhor que o escriba mestre do governador de Tikal. Havia vários bons escribas escultores por todo o Palenque. Meus glifos de linhas econômicas e elegantes não agradavam ao rebuscado governador de Tikal, rival de Palenque, que gostava de contrastes e espirais. Sai da província vizinha, trouxe meus aprendizes para cá e fui reconhecido. A história de Pakal durará por séculos, eu sei, como ele mesmo me contou. A verdade, no entanto, esvaneceu-se no ar rarefeito dentro das paredes do palácio real. Enfeitarei a vida de Pakal desenhando cada sílaba e símbolo nos glifos, e esta será a sina deles, serão só enfeites até o fim do nove. — Estou pronto, pronto, pronto. — Disse o emburrado menino de olhos vermelhos e nariz escorrendo, em todo o seu paramento. A governadora descruzou as pernas e desceu do trono, despedindo-se do cargo que ocupara com tanta propriedade. Agora seria só a mãe e conselheira. Uma chuva torrencial veio para arruinar os arranjos de flores que foram feitos para enfeitar a calçada por onde passaria o futuro governador. O povo, tomado pelos encantos da papoula, cantava e dançava levantando as mãos aos céus para que o Deus Milho protegesse o menino. Centenas de milhares, vindos de todas as partes da província para a posse de K’inich, saudavam o menino que se encolhia na chuva. O dossel da liteira pouco o protegia do temporal. Aproveitou as gotas que escorriam pelo seu rosto para chorar. Ao passar pelo campo de pelota, chorou um pouco mais. A procissão parou na frente ao templo em forma de pirâmide onde o sacerdote cantaria a história dos ancestrais de K’inish Janahb Pakal. — Pakal, o Escudo do Sol, já se mostra mais poderoso que o firmamento, cobrindo-o com as nuvens. A sagrada serpente, irmã do trovão, Ix Tub Tun o saúda. Nós o saudamos. E neste momento a Deusa do Trovão se pronunciou: o sacerdote viu o raio arrebentar segundos antes e aproveitou para chamar a saudação que veio em estrondo, para delírio do povo. Todos ganiam enaltecendo o poder das palavras do sacerdote, que tinha um chapéu de pele com a cabeça de um cachorro. E o sacerdote foi de totem em totem contando o tempo e os feitos dos ancestrais de K’inish, durante quase três horas. Entediado, o menino jaguar ajeitava o pesado chapéu que insistia em tombar para os lados, o cone em formato de espiga de milho, feito de palha, pele, linho, plumas e penas. Oe estava ao seu lado, mas não podia tocá-lo para ajeitar a vestimenta, ninguém podia, nem a sua mãe. O sangue de duas crianças órfãs misturou-se com a água e escorreu pela escadaria até o último degrau. K’inish,que esperava na depressão feita na pedra no sopé da escada, observava os pés serem cobertos por uma poça de lama, sangue e chuva. Três dos meus ajudantes apoiaram a minha liteira no espaço reservado de onde podia me cercar de tudo o que acontecia, tentaram em vão me proteger da chuva segurando as placas de palha trançada contra o vento, já que não podia me servir da cortina de tecido, pois, segundo a tradição, tinha que escrever o que via. Na prática, tão forte era a tempestade que mal conseguia segurar o espeto e a folha, e, mesmo que escrever fosse possível, nada do que visse seria esculpido ou lembrado. Passaria dias refazendo os desenhos até que a história ganhasse os contornos que os sacerdotes e o governador determinassem. A tinta borrava no papiro, a chuva tratava de apagar a História. Os degraus da pirâmide estavam escorregadios e o menino jaguar, eu e sua mãe, subíamos com dificuldade. Quando alcançávamos um degrau embaixo do qual supostamente havia sido enterrado um dos ancestrais do menino, os quatro sacerdotes, representantes dos pontos cardeais, lembravam novamente os feitos do morto e alucinavam sobre a sua vida após a morte no mundo inferior de A-hau Kin. Assim levamos mais de duas horas para subir. Chegando ao topo, a chuva havia se acalmado e o sol ainda inconstante e cercado de nuvens refletia na poça de sangue, K’inish observava o reflexo da chama viva do sol, chama incensária cintilando no meio de sua testa. “Seria um bom ou mau sinal?” Queria saber o menino jaguar. Os sacerdotes prepararam dois velhos escravos para o sacrifício na pedra. Ambos tiveram seus tórax abertos enquanto ainda vivos e seus corações bateram por alguns segundos depois de arrancados. A alegoria do ciclo da vida foi celebrada com a histeria coletiva do povo de Palenque: choro, risos e cantos, autoflagelação e palavras ininteligíveis. Duas virgens seriam mortas e seu sangue espalhado pela terra para alimentar o deus da fertilidade. Anunciando o caminho para o mundo inferior, o corredor que levava ao altar dentro da pirâmide era estreito, escuro, úmido, sem ar. O conselheiro da província de Petén que esperava agachado no chão carmim do sangue dos que foram mortos antes dele agradeceu a honra de ser imolado na frente do futuro grande governador. — A honra que me coube é a maior de todas. Vida longa a Pakal, o Escudo do Sol, meu senhor nesta vida e na próxima. Então K’inich Pakal, que deveria ficar em silêncio fez sua última observação enquanto ainda era criança: — Se ele está tão honrado assim, por que os braços dele estão amarrados? A pergunta foi sussurrada para mim, ele me achava um sábio. Eu era só um artista, que iria reproduzir as joias do chefe sacrificado, seu chapéu e sua tanga ricamente adornados e as cordas que o prendiam ao seu destino. Ix Sak Kuk estava totalmente tomada pelos alucinógenos e nem percebeu a pergunta ingênua do filho, perdeu a chance de repreendê-lo, amanhã não poderia mais fazê-lo. Então o menino jaguar, conservado lúcido até aquele momento, bebeu o chá de ervas. Esquecido de que não tinha coragem para tanto e com ajuda do sacerdote, cortou a cabeça do homem de Petén. K’inich tomou mais chá e foi despido de suas vestes e adornos. A cobra faminta foi esticada, para que não se enrolasse na presa e quebrasse seus ossos, como fazia na natureza. Abriram a boca da jiboia e o jarguarzinho foi sendo engolido: primeiro os pés e as pernas, depois a cintura; a cobra coleava e empurrava o menino para suas entranhas. Desenhei duas colunas para o palácio, encimadas por uma boca de jiboia, aberta em forma de “Ca”, e a cabeça de espiga de milho do jaguarzinho saindo pela bocarra. Então o pequeno sumiu totalmente dentro da cobra. As orações e canções continuaram por alguns minutos, até que a barriga foi rasgada pelos sacerdotes com facas de obsidiana e Pakal retirado. — Quantos ciclos se passaram? Por que demoraram tanto? Foram as primeiras palavras do Rei Escudo do Sol como adulto. Estavam todos em transe, os sacerdotes, Ix Suk Hak, os escravos que abriram a barriga da jiboia, menos eu, pois tinha que me concentrar no que acontecia e reproduzir o que os olhos deste mundo viam, enquanto todos procuravam por Pakal no mundo dos sonhos. — Meu rei, Pakal, Escudo do Sol, foram só alguns minutos. — Não, escriba! Foram muitos e muitos dias. Dias no passado e no Inframundo. Dias no futuro sombrio que espera meu povo. Mesmo sabendo que jamais poderia repetir as palavras do grande Pakal, guardei um papiro com seu relato até a minha morte. A experiência que levou meu senhor de menino para homem poderia um dia ser confirmada, se a ignorância dos homens não prevalecesse. Quatro noites depois de sua posse, Pakal chamou-me em seu quarto, sentado na estreita janela, estava sério e selvagem. Nu, sem adornos. A deusa Ix Chel, a lua cheia, iluminava a copa das árvores e o rosto de Pakal. O pequeno representante do Deus Milho chorava. — Não há futuro, sábio escriba. — Viu a sua própria morte, senhor do sol, na jornada pelo Inframundo? — Sim, mas isso não me incomodou. Fechou os olhos, abaixou a cabeça e disse minguando para dentro de si: — Itzamná, eu vi a morte de todo meu povo e não há nada que possa fazer. Eis o que me contou: Quando K’inich entrou no corredor escuro que levava ao Inframundo, não foi A-hau Kin que o guiou, o deus sol jazia longe nos céus internos, ofuscado pelo Passado. Foram os antigos deuses, os gêmeos Xbalanque e Hunahpu que o abraçaram e fizeram troça para recepcionar o pequeno jaguar. Xbalanque segurava seu machado de guerra. Hunaphu, o corpo coberto de manchas negras. K’inich mal pôde acreditar que seus deuses favoritos estavam com ele. Antes de ser engolido pela cobra, o menino pedia todas as noites para a mãe repetir as aventuras dos deuses gêmeos. — Peça o que quiser, Escudo do Sol — disse Xbalanque. — Nem todo o querer é divino — completou Hunahpu. O confiante jaguarzinho tinha o desejo já escapando pela boca. — Quero ser jogador de pelota. — Seu sonho se realizaria no Inframundo. Em um piscar de olhos estavam vestidos para jogar pelota, os deuses gêmeos com suas raquetes encantadas e seus poderes de iludir. O mundo inferior não é cercado de crocodilos como o superior, não é possível ver-lhe a cerca, como diziam. Nos primeiros tempos, K’inish foi só um jogador, parceiro de Xbalenque e Hunahpu. Campeão, cujas mãos e pés nunca tocavam a pelota e a pelota guiada pelos remexer de seus ombros e quadris sempre acertava o alvo. Pelas cidades onde passou, o céu era verde claro, o sol fulgurava translúcido, as paredes dos templos e as ruas serpenteavam cobertas de peles de coral, em listas vermelhas e negras. K’inish jogou tanta pelota que se cansou, do jogo e das cidades engendradas em miríades de calçadas, templos e arenas sem fim. Desejava outra coisa e pediu sem vergonha, pois também era deus, o menino Deus do Milho: — Levem-me para suas caçadas. Os deuses gêmeos eram conhecidos pela habilidade com a zarabatana, nunca voltavam de mãos vazias. As aves sentiam-se gratas quando eram espetadas pelo dardo venenoso dos dois, pois a morte era rápida e sem dor. Através da densa floresta negra, foram os três em busca de caçar a deusa Vukub Cakix, a ave de dentes de esmeralda. No Inframundo era possível reviver toda a criação e aprender o conhecimento escondido dos homens. Portanto, os gêmeos decidiram derrotar a ave como fizeram seus avós antes deles. — Esta é a sua zarabatana, K’inich, precisa praticar antes de usar. — Disse Xbalanque. — Mesmo quando a usar, pequeno jaguar cabeça de milho, pode encontrar seu próprio veneno em sua ponta. — Completou Hunahpu. Ao pegar a zarabatana, no entanto, ela imediatamente se tornou uma serpente e picou as costas de sua mão. K’inich pulou e praguejou. Os dois irmãos riram até se acabarem. — Tenha cuidado, jarguarzinho. Eu te avisei. — Disse Hunahpu. Recuperado o fôlego perdido com as gargalhadas, puxou o pulso do menino e sugou o veneno da mão de K’inish. — Segure a zarabatana com confiança — aconselhou Xbalanque. — Você é o pequeno Deus do Milho, não é? K’inich soltou a mão da boca do deus e no lugar onde o deus sugou nasceu uma pústula negra como as de Hunahpu. Sem hesitação e sem se incomodar com a ferida, K’inich respondeu confiante: — Sou. — Cada vez que se ferir neste mundo, pequeno jaguar, uma mancha podre aparecerá. Se não tomar cuidado, ao sair daqui não será nada mais do que um cadáver putrefado. — Riu Hunahpu. Os deuses da cor de barro e rabo de macaco levaram K’nish para a floresta negra. Tão densa e escura que as folhas não tinham cor, nem os galhos, os troncos ou raízes. — Essa deusa mentirosa, acha que é o Sol e a Lua. Nós somos o Sol e a Lua, não Hunahpu? — Nós somos o Deus Sol e a Deusa Lua assim como Pakal é o Deus do Milho. É tudo o que posso dizer. Na trilha que seguiram para encontrar Cakix o chão era de espinhos, o que feriu os pés de Pakal. Como haviam avisado ao menino, seus pés ficaram cobertos de pústulas negras. Para fugir dos espinhos, eles se transformaram em grandes macacos, e Xbalenque carregou Pakal, cujos pés doíam muito, nas suas costas. Com ajuda dos longos rabos, os gêmeos foram pulando de árvore em árvore até encontrar aquela onde Cakix comia. Esconderam-se na árvore vizinha à da deusa, tomando o cuidado para não serem vistos. Os deuses, grandes caçadores, acreditaram que Cakix era um alvo fácil: grande e gorda. Ela ainda tinha como sobrepeso a vaidade, joias incrustadas ao redor dos olhos e nos dentes, armaduras cobriam suas grandes asas. Estava comendo a cabeça de um roedor, apoiada com um pé no galho da árvore e o outro pé segurando o corpo do bicho. Só precisariam atingi-la de leve para que despencasse sobre os espinhos. — Acerte o dardo com veneno assim que eu mandar, Pakal. Vou dar volta e pegá-la por trás. — disse Hunahpu. Pakal agachou-se preparando a zarabatana. Xbalenque descansava deitado num galho, tão simples a empreitada parecia. Isto só provou aos dois irmãos que a vaidade não era atributo apenas de Cakix, pois a estocada de Pakal pegou no maxilar da deusa, fazendo cair dois de seus dentes e Hunahpu errou o golpe. Cakix, que mal sentiu o dardo da zarabatana, assustou-se com o vulto de Hunahpu e escorregou do galho. Rápida, agarrou o braço de Hunahpu para não cair, prendendo-o numa forquilha entre dois galhos, mas seu o peso arrancou o braço do deus, deixando-o muito irritado. Perdido o apoio, a grande deusa ave caiu e deu de cara com o chão coberto de espinhos, furando os olhos. Quase cega e com o queixo dormente, saiu correndo pela mata carregando o braço de Hunahpu. — Ai! Ai! — Reclamou o deus a perda do braço. — Não chore, fomos displicentes. Não fomos, Pakal? — Perguntou Xbalenque. — Fomos sim. — Respondeu o menino, cabisbaixo. — Nunca subestime seu inimigo. Use sua fraqueza em benefício próprio, mesmo que a princípio tenha que fazer concessões ou passar-se por trouxa. Entendeu? — Sim, Hunahpu. — Vamos então à segunda parte do plano e recuperar o braço do meu irmão. — Disse Xbalenque transformando-se em velho com ares de sábio. — Vou ter que me transformar em velho? — Perguntou Pakal. — Você será você. Haverá sempre aqueles que se passarão por sábios, Deus do Milho, quando for preciso. Mesmo que a sabedoria nunca os tenha visitado. — Explicou Hunahpu, também transformado em ancião. Cakix, desgostosa de sua aparência, com muita dor nos olhos e nos dentes, estava escondida dentro de um oco de árvore feito toca de tatu, coberta de folhas para que ninguém a visse. Quando os anciões bateram no tronco e solicitaram uma audiência, ela os rechaçou: — Não posso olhar para ninguém, meus olhos doem. — Sou médico, posso curá-la. Ó grande Deusa do Sol e da Lua! — Disse Xbalenque. — Não quero que ninguém olhe para mim. — Eu sou dentista. Nós dois restauraremos a sua beleza. Ó Deusa do Sol e da Lua. — Disse Hunahpu. — Aceitamos o braço de macaco que está segurando, grande Cakix, como pagamento. Estamos famintos. — Pakal apontou para o braço de Hunahpu que Cakix segurava. — Somos só dois anciões que cuidam de um jovem órfão e vamos fazer a deusa mais radiante que as estrelas do céu. Cakix saiu da toca e Xbalenque deu-lhe papoula como anestésico, tratou seus olhos, e ela pode ver de novo, mas retirou todas as joias colocando nos buracos pedaços de barro duro que desmanchariam na primeira chuva. Hunahpu, por sua vez, arrancou o resto dos dentes de Cakix, alegando que era necessário e no seu lugar colocou milho branco. Ainda sob o efeito da papoula, Cakix entregou aos irmãos o braço de Hunahpu. Os anciões agradeceram muito e foram embora com Pakal. Quando, no dia seguinte, Cakix se olhou no lago e viu que sua beleza havia sido arrancada e que seu rosto estava todo deformado, enfiou-se novamente na toca de tatu e deixou-se morrer de vergonha. Os gêmeos e Pakal comemoraram com um banquete de milho e tomates. Durante anos, assim pareceu ao pequeno jaguar, ele se aventurou com os gêmeos em suas troças aos novos deuses e antigos governadores. Todos que tentavam matá-los, ou por causa do que fizeram a Cakix ou por outros desmandos, falhavam, pois os gêmeos eram muito espertos. Pakal aprendeu valiosas lições com os dois, sobre estratégia e política. Lições que levou por toda a vida. A despeito da passagem do tempo, pois milhares de dias se passaram, o menino jaguar continuava criança. Intrigado com o fato de não envelhecer, indagou aos irmãos o porquê numa tarde em que preguiçosamente lambiam mel roubado de uma colmeia. — Os Maias nunca serão um povo adulto. — Explicou Xbalenque. — Permanecerão esquecidos por muitos ciclos. E será o melhor. Pakal protestou. Como podiam falar um absurdo desses? — Não, não serão. Se assim for os deuses também serão esquecidos. Vocês nos sonharam, sonharam que nós sonhávamos com vocês e no nosso sonho vocês nos criaram para adorá-los. Não existimos sem vocês assim como vocês não existem sem nós. — Ele está pronto para ver o futuro. Não acha, Hunahpu? — Você verá o futuro, pequeno jaguar, mas ele não verá você ou o nosso povo. Os deuses gêmeos se despediram de Pakal chorando, pois sentiriam saudades, e o mandaram atravessar a porta para o reino de Xibalba e seguir viajem sozinho. O Inframundo também permeia o mundo dos vivos, entre as doenças e as frestas sujas, nos bichos peçonhentos ou famintos. Todos conhecem os perigos e seus reflexos, tanto os mortos quanto os vivos, disso eu sei, todos sabem, pois já vi os olhos dos mortos espreitando pelas sombras. Pakal seguiu sem medo pelo caminho coberto de escorpiões, pois o cheiro das pústulas sobre seus pés espantava os machos e tornava a pele insensível aos ferrões das fêmeas. Chegou à margem do rio que circulava pelo Inframundo. Um vento frio empurrou-o da borda para dentro do rio de sangue e pus. Pakal reconheceu seus antepassados boiando aqui e ali, mais pelos enfeites que usavam do que pela podridão que cobria seus rostos. A grande cidade dos mortos o esperava na margem oposta do rio, mas Pakal a ignorou. Procurava o pai entre os cadáveres para pedir conselhos. Em princípio, deixou-se levar pela corrente para longe da cidade. Engoliu muito sangue e pus, boiava no caldo denso e quente, confortado do frio intenso de Xibalba, mas não achou seu pai. O rio serpenteava por entre a floresta negra, iluminado pelo rosto disforme de Cakix, cujo espírito foi morar na Lua. Então, entre um largo tronco caído na margem direita e a praia coberta de escorpiões na margem esquerda viu erguer-se o corpo de sua mãe, Sak Kuk, velha e morta ela estava, os olhos tomados por dois buracos, a boca cheia de vermes. Ela lhe disse: — Querido jaguarzinho, veja o que aconteceu com nosso povo. Não deixe que nos esqueçam. Por favor. Por favor. Sak Kuk sumiu na névoa negra e o rio, antes morno e fedorento, ficou gelado e pegajoso. Então secou como as feridas costumam curar-se e virou uma crosta roxa quase negra. Rio-serpente que volta ao ponto de partida comendo sua própria cauda e o menino deus reviu a grande cidade na margem oposta, coroada pela Lua e Vênus, exibindo sua imensa Pirâmide. O pequeno jaguar caminhou sobre a crosta do rio pisando nos corpos secos de seus antepassados meio enterrados na grande cicatriz que circundava o Inframundo. Jaguares famintos o aguardavam do outro lado, nas calçadas da cidade de Xibalba, centenas deles rosnavam e mostravam suas garras e seus dentes. Pakal não se intimidou, reconheceu seus irmãos e se fez seu Eei: — Eu sou Pakal, o Escudo do Sol, o Deus do Milho, o Rei Jaguar feito homem. Saiam do meu caminho ou me sigam. Não aceito que me desafiem! — Gritou com bafo de sangue, pus e passado. Reconhecendo seu deus, os jaguares ficaram mansos como gatinhos e o seguiram até a entrada da pirâmide no centro da cidade. Neste local sem vento ou chuva. Ouvia o som dos seus próprios passos na pedra fria da cor de nada em que pisava, tudo o mais era silêncio. Esperou na frente da pirâmide, seus irmãos deitados no chão, a dormir como gostam os felinos. Pakal olhava seus pés e lembrou-se da tarde em que ascendera. Talvez tivesse ascendido para a morte e não para o trono. Dali jamais sairia. Pois sua mãe já estava morta e provavelmente todos os que conhecera, inclusive eu que escrevo e desenho esta história. Olhava seus pés e queria sentir de novo a chuva e a lama, cheirar as rosas e comer curau com mel e baunilha. Os deuses de Xibalba, que estavam escondidos avaliando a coragem de Pakal e para pegá-lo de surpresa, mandaram o silêncio embora partindo a pirâmide em milhares de escadas que levavam por caminhos ambíguos, sem fim ou começo, alto ou baixo. A armadilha surtiu efeito. Pakal, achando-se destemido por amansar os jaguares, foi circular por elas, mas o medo estava escondido e a dúvida acendeu uma pequena fagulha, suficiente para despertar os mortos das catacumbas do Inframundo. Os que quase não tinham mais pele sobre os seus esqueletos, armados de zarabatanas, chicotes e facas de obsidiana. Sem nada a perder, pois nada tinham, atacaram obstinadamente o pequeno jaguar paralisado. Desciam os degraus ferozes como lobos famintos estalando seus ossos na pedra. O objetivo dos deuses era dar fim ao Deus do Milho e assim matar de fome a humanidade, arrependidos que estavam de tê-la criado. Mas os deuses eram como Cakix, vaidosos. Os homens só existiam para adorá-los. Por mais que fossem venerados, por mais oferendas que recebessem, por mais sangue dos sacrificados que escorresse na terra para sua glória, jamais estavam satisfeitos. Pakal lembrou-se de Hunahpu e de sua sabedoria. O gêmeo havia lhe dito: — Será guiado para a grandeza só quando estiver frente à morte. Quando os zumbis estavam tão próximos que Pakal sentia o cheiro dos resto de medula dentro de seus ossos. Ele, que havia aprendido os encantos da transformação com os deuses gêmeos, virou jaguar, o Rei Jaguar, de três metros de altura, patas do tamanho da cabeça de um crocodilo. Rosnou para acordar seus irmãos e juntos atacaram a horda de esqueletos com a fúria de treze deuses. Derrubou-os das escadas como se fossem papiro, quebrou os gravetinhos secos que eram seus ossos, esmagou seus crânios que estalavam, cascas de besouro. Com suas presas partia-os ao meio e engolia-os inteiros ou em partes. Quando um de seus irmãos era atacado ou ferido, outros cinco se juntavam a ele, não oferecendo chance aos mortos, ou aos deuses que os comandavam. As lascas de ossos espalhavam-se sobre a pirâmide e ao rugido dos jaguares juntava-se o bafo frio dos mortos. Usukan, o deus serpente, odiava a humanidade e, covarde, se escondia no fundo da pirâmide. Ele havia insuflado os deuses do Inframundo contra o representante dos homens. Vendo que seu exército estava sendo aniquilado, e poucos esqueletos restavam em pé. Saiu de seu esconderijo para enfrentar Pakal, o Deus Milho, Rei Jaguar. Pakal decidiu enfrentá-lo como homem. Usukan gargalhou quando o poderoso jaguar transformou-se novamente em menino de doze anos, magrinho e pequeno. — Mosquitinho! Mosquitinho! — Usavava palavras como a primeira arma para atacar o Pakal, enfraquecendo sua auto estima. Pakal, que aprendeu com Hunahpu e Xbalenque o poder da troça, não ligou para as palavras de Usukan. Sacou a zarabatana e disse: — Mosquitinho com veneno das vespas! — Assoprou o dardo com tanta força que furou o único olho da Serpente Deus. Cega e desorientada, foi comida viva pelos irmãos de Pakal. Usukan também cometeu o erro de subjugar por vaidade, de odiar por intolerância. De achar que sua alta posição no panteão dos deuses não pareava com o jaguarzinho. Pakal havia conseguido vencer grandes obstáculos. “Conquistei o Inframundo. Meu povo não será esquecido”, pensou. Estava errado. As escadas se viraram para dentro da pirâmide, formando cavernas, o avesso do mundo virou do avesso. Pakal descia e subia, ora por passagens tão estreitas que precisava arrastar-se, ora por imensas galerias, altas como o firmamento ou profundas a ponto de, debruçado na borda dos degraus, Pakal conseguir enxergar milhares de metros abaixo, o 13º nível do Inframundo, o fundo de toda a existência. Os degraus das escadas sussurravam frases sem sentido, confundiam a mente de Pakal, que desorientado caminhava pelos seus meandros em forma de caverna. Ou seriam as cavernas as próprias palavras? Na essência os deuses eram formados de palavras e sabem que seu poder se concretiza na mente dos fracos para o mal e na dos fortes para o bem. O milho estará no ponto de colheita quando alcançar o último degrau. Ix Tub Tun mandou presentes barulhentos, estão no fim deste caminho. Venha, pequeno jaguar, Hunahpu te espera no topo da escada. Pakal era levado de um lado para outro, nunca chegando ao sopé ou ao topo de escada nenhuma. Quando percebeu que estava preso pelo ritmo das palavras, que elas estavam jogando com ele, fazendo-o perder o rumo, tapou os ouvidos com força e invocou a sabedoria dos ancestrais para guiá-lo. As escadas e cavernas sumiram como a fumaça de um cachimbo. Estava de volta ao topo da pirâmide, cercado pelo céu de fogo do Inframundo. “Que mal teria feito?” Perguntou-se ao perceber ser vítima das troças dos deuses antigos. Estaria sendo punido pelas mentiras que disse aos sacerdotes? Pelas travessuras com os amigos? Ou as teimosias com a sua mãe? Se pedisse perdão, poderia voltar a conviver com os vivos, só talvez. Se abaixasse a cabeça seria de novo o menino com os pés cobertos pela água da chuva, brincando na poça de lama e sangue. Criança de novo, correria livre feito pássaro, voaria pelos céus e iria até o limite, pousar nas costas do crocodilo no lago do mundo inteiro. Suas asas seriam azuis, seu bico amarelo, a crista vermelha, o corpo negro. Cantaria para as estrelas de noite e para as florestas de dia. Faria seu ninho entre as flores cercado do veludo e do perfume das pétalas. Estava ali, porém, longe de tudo. Pakal espantava as memórias passadas e as ilusões. Jamais voltaria a olhar o chão como um vassalo. Determinou a si mesmo que não obedeceria a ninguém e sairia dali para guiar o povo de Palenque durante os mais frutíferos anos da civilização maia. As fragrâncias de flores que circulavam pela sua lembrança foram substituídas por um cheiro podre de pestilência sob o sol invertido do equinócio de verão. O esqueleto de Yum Kimil, o deus do último patamar do Inframundo, o que come as carnes dos mortos, surgiu no céu de fogo, fumando seu cachimbo. Tabaco e podridão. Chacoalhando seu colar feito dos olhos abertos e conscientes dos pecadores a quem não é permitido esquecer os erros. — Quer voltar, jaguarzinho? Sem um pingo de medo. Pakal olhou diretamente para os dois buracos negros no rosto de Yum Kimil. Ao invés de responder à pergunta do Deus, como Deus que também era, ordenou. — Mande-me de volta para o mundo superior, agora. Yum Kimil sugou com força, acendendo o tabaco dentro do cachimbo, puxou o fumo e a fumaça circulou por dentro de seu esqueleto e então ele soltou uma baforada na cara de Pakal, que permaneceu inabalado. Ali estava um deus morto, Pakal era um deus vivo, era três deuses, não um. — Não posso. — Disse o deus maligno. — Vou pô-lo a caminhar para o Futuro de cabeça para baixo, deusinho jaguar cheio de pústulas. Quando o trouxer do Futuro não vai querer nada além de se embalar nos meus braços e do calor do rio de sangue. Pakal olhou para os próprios braços e pernas, não havia notado até aquele momento que seu corpo se deteriorava, a carne sobre os joelhos não existia mais, a rótula estava aparente, assim como os nós dos dedos. Sangue e pus pingavam de sua pele. O frio que sentia era da falta de seu casaco da carne. Sem gordura, a pele que lhe sobrara grudava aos ossos. — Não me trará do Futuro, Yum Kimil. Eu serei o Futuro. Yum Kimil gargalhou e amarrou os pés do menino deus. Pendurou-o de ponta cabeça no firmamento e o mandou para o oceano vermelho. Pakal viu grandes canoas feitas de muitos troncos cruzando o oceano, vindas de além do limite do mundo, empurradas pelo vento que inflava gigantescas peças de linho, um desenho de cruz as adornava. Barcos cheios de deuses de peles claras e pelos grossos. Observava-os Pakal, de cima, como o pássaro que sonhou poder ser, encoberto pela sombra da morte. Ninguém podia vê-lo, ele via tudo através de seu manto vermelho. Aqueles deuses não eram deuses, afinal, pois também oravam e obrigavam aos poucos dos maias que estavam nas praias de Yucatan a esquecer seus próprios deuses e orar para uma cruz, o deus único deles. Sua crueldade era tão grande que faria Yum Kimil sentir-se pequeno. Tanto sangue derramaram em nome desse deus que o rio do Inframundo é só um fio de água barrenta formado pela chuva. Os que foram sacrificados em fogueiras e pregados em cruzes não reconhecem o caminho para o Inframundo, os que sobrevivem não sabem mais da sua existência. Não irão para Xibalaba, as picadas de escorpião não farão pústulas em seus braços. Perderão o respeito do Deus Jaguar, do Deus do Milho e de Ahau Kin. “Onde estão as cidades de pedra e seus templos de 366 degraus? Onde estão Uzmal, Edzna, Tikal, Palenque?” A selva as cobriu dos olhos do mundo, seus descendentes vagam sem eira nem beira. Do topo das árvores que escondem as antigas construções, Pakal lembrou-se dos campos de milho a perder de vista, densas florestas abocanharam o milho e todas as cores das pedras e todos os seus escritos. Os maias que restaram ainda pediam proteção aos quatro cantos cardeais, mas já estavam cansados de sacrifícios e de sangue. Fugidos das cidades, mortos pela fome e falta de esperança, viviam de catar, caçar e pescar, quando os deuses assim o permitiam. Dos dez milhões de fiéis, restavam menos de cinquenta mil. “Onde estão os homens de milho, criados para adorar aos deuses?” Chilam Balan, que se escreveu no tempo dos homens da cruz, os recordaria: “Dispersados serão pelo mundo, as mulheres que cantam e os homens que cantam e todos os que cantam... Ninguém se livrará, ninguém se salvará... Muita miséria haverá nos anos do império da cobiça. Os homens se farão escravos por nada. Triste estará o rosto do sol... Se despovoará o mundo, será pequeno e humilhado...” (*) Muito antes dos homens do além-mar desembarcarem nas praias de Yucatan, o povo de Tikal e Palenque foi torturado pelos Senhores da Guerra. Altas muralhas e fossos profundos em volta das cidades não foram capazes de detê-los. Por dois séculos os maias lutaram uns contra os outros por uma liberdade que não existia, esqueceram de olhar as estrelas e cuidar das colheitas, esqueceram também que os sacrifícios valem tanto quanto observar o que está escrito na natureza. Pakal via tudo sem poder fazer nada a não ser orar, a palha seca do milho pegando fogo por quilômetros sem fim, chorava e pedia chuvas e raios a Ix Tub Tum. Implorava pela volta das tempestades que estragavam suas brincadeiras de criança e das quais sempre reclamava. Nada, nem uma única gota. Cakix no céu se cobria com o véu negro do esquecimento. Em Tikal, via a Senhora da Guerra insuflar seu exército de moscas contra o povo, contra cidades sem exércitos. Antes os governadores obedeciam aos antepassados, fazendo troça dos rivais, negociando a liberdade dos sequestrados ou matando o sobrinho preferido do chefe da cidade vizinha em sacrifício. Então acordos eram feitos e depois quebrados e laços reatados e desfeitos. Foi assim que o futuro governador havia aprendido com seus professores e com sua mãe. Como as estações, como o tempo seguindo a ordem cíclica. Pakal procurava, mas não encontrava os sinais de civilidade. O sangue de seu povo havia sido absorvido pelo chão de terra, longe das pedras sacrificiais, longe das promessas dos deuses. Escoou pelo Inframundo, mas não encheu o rio de Xibalba, continuou até o negro nada onde repousam os mortos sem honra. Pés dormentes e mãos cruzadas na frente do corpo, de ponta cabeça, Pakal voou para a Palenque de antes da queda. Antes que Muwaan Mat, a dama dos seis céus, a Senhora da Guerra chegasse com seu exército de moscas famintas e devorasse o mundo. Palenque estava ainda mais majestosa do que na infância de Pakal, mais organizada e vívida, cheia de flores e de cores, o palácio do governador três vezes maior. No topo da pirâmide ele se viu ancião a conversar com os sacerdotes, em roupas suntuosas e ricas, cabeça coberta por um chapéu de palha de milho e enfeitado com os deuses gêmeos Xbalenque e Hunahpu. Governando seu povo com a mente no agora, pois o amanhã não existiria. Precisava voltar, mas Yum Kimil também morrera no Futuro. Sem ter nenhum deus a quem chamar, Pakal orou sozinho em busca de um que ainda estivesse vivo, e foi ouvido por Itzamná, o deus criador que fez o povo maia. Ele desatou seus pés, colocou carne sobre seu corpo e o ajudou a voltar para o seu casulo de cobra. Naquela triste noite de lua cheia, Pakal me contou o que viu no Inframundo e no Futuro. Eu, o escriba, que tenho o mesmo nome do criador, pois ele também era escriba, encerro meu relato com o fim de nossa conversa: — Vi sim minha morte, Itzamná. Os homens da cruz acharão minha história um dia, por isso esculpa-a bem fundo na rocha, as linhas bem traçadas e limpas. Eles verão meu rosto, minha cabeça de Deus do Milho. Mais que isso, a gloriosa Civilização Maia em todo o seu esplendor será admirada por sua beleza, cultura e sabedoria. Enfeite bem minha vida, pois sobrará muito pouco do que fomos, só restarão as pedras pálidas. — Para provar que tudo que escrevo neste papiro é verdade, eu gostaria, nobre Pakal, de deixar registrada alguma data que meu senhor se recorde. Algum acontecimento no futuro, talvez. — Irei morrer, segundo os homens da cruz em 683 d.C. — Quando seria isso, senhor? Não entendi. — Próximo ao fim de todos os ciclos eles entenderão nossas palavras. Nós nunca entenderemos as deles. Xbalenque e Hunahpu choraram quando os espanhóis queimaram os papiros com a história da passagem de Pakal pelo Inframundo e pelo Futuro, escrita pelo grande escriba Itzamná. Notas: (*) Chilam Balan são textos que recordam os preceitos maias na região de Yucatan, século XVII. Tradução para o espanhol de Alfredo Barela Vasques. Tradução para o português Eric Nepomuceno em Memórias do Fogo I — Nascimentos — Eduardo Galeano (Ed. Paz e Terra) Nascida em São Paulo quando ainda garoava, Claudia Dugim é adoradora de grandes cidades. Cursou colégio técnico de Artes Gráficas e posteriormente graduou-se em Letras e Pedagogia; é professora de inglês como segunda língua. Escreve desde pequena, fã de histórias de todo tipo: filmes, quadrinhos, livros, vídeogame, RPG. Lançou um livro de poesias nos anos 90 e parou, voltou a escrever em 2011 e lançou O Caminho do Príncipe em 2013, em fase de reedição. Tem contos publicados na Revista Trasgo, nos Contos Sonoros, nas antologias Piratas (Editora Catavento), Boy’s Love e Contos do Dragão (Editora Draco). Coordenadora do Grupo de Escritores "Singularidades", cujo primeiro projeto foi lançado em 2015, "Cobaias de Lázaro". O segundo projeto, "Retrônicos" será lançado ainda este ano. Dá aulas como voluntária em Oficinas Literárias dentro do projeto Vai (Gibiteca Balão) da prefeitura de São Paulo. Leia a entrevista que fizemos com a autora. CHAMADO À RAZÃO Marco Rigobelli A s pernas curtas procuravam no resto do corpo algum motivo para continuarem no ritmo que estavam havia algumas horas. Os braços doíam do movimento intenso e repetitivo que era tão necessário ao equilíbrio. No peito o palpitar que se esforçava para manter as ordens dadas pelo cérebro aos membros exaustos lutava para não falhar. Os olhos não enxergavam mais nada além do destino à frente, eles não precisavam funcionar tão bem quanto o resto do corpo, a vida estava na capacidade de correr o mais rápido que o corpo de uma criança fosse capaz. O pânico se misturava ao cansaço e já não era mais possível saber se o frio subia a espinha por causa do medo ou porque o corpo já se dava por vencido. Talvez também em dúvida, a voz não encontrou saída na primeira vez em que tentou gritar. — Mãe! — Foi o som rouco que conseguiu se libertar. — Eu vi um dragão! Um dragão! A silhueta o preencheu como mágica. O frio na espinha continuava lá, mas o coração parecia ter nascido de novo. Imundo com a mistura de lágrimas, suor e poeira, agarrou-se à barra da saia e desabou, engasgando enquanto tentava redescobrir o ar. Ela olhou despreocupada e deu no filho um abraço que só deixou tudo pior. Pela primeira vez ele queria ficar o mais longe da mãe que pudesse. Os olhos do menino eram só lágrimas, suas calças sujas e molhadas, a angústia fugia com as palavras entre soluços. Os joelhos finos tremiam, guiando o resto do corpo no horror que não tinha controle. — Ele era grande e fedia! Tinha um rabo enorme, asas e olhos assustadores. Mãe, eu tenho medo! Afundou no abraço frio dela para tentar conter os soluços. Apertou com os bracinhos de graveto, fechou as mãos nas costas dela em um beliscão doído e, por um instante, desejou sufocar naquela segurança. Quando estava quase perdendo o ar, o medo súbito de não ver mais aquela mulher obrigou-o a afastar o rosto e olhar em volta. Sentia que a fera estava por ali e, se não estivesse, chegaria em breve. Os cachos escuros dela fizeram cócegas no nariz do filho quando os braços rechonchudos o afastaram. Seu rosto era só sorrisos, o que fez seu filho se acalmar. — Vai ficar tudo bem, querido — disse, bagunçando os cabelos do menino. — Dragões não existem — a voz dela correu os ouvidos e matou a sede do filho por paz, ainda que o medo continuasse sendo maior. — Existem sim! Eu vi um! E ele... Ele vem pra cá! Está atrás de mim! Ela não o levava muito a sério. — Por que um dragão estaria atrás de você? Não temos nada que pudesse interessar a ele. — Ele não queria ser acordado — resmungou. — Mas eu acordei ele! Foi sem querer, mãe! Não quero morrer, não quero que você morra! O menino não notou que a expressão da mãe permaneceu a mesma, apenas a soltou e correu na direção da estrada, sem olhar para trás. “Devia mandar mamãe se esconder”, era tudo o que ele pensava naquele momento. Mas algo o dizia que não adiantaria, ou que não poderia. O melhor que poderia fazer era pedir ajuda a sir Johann, o herói local, e torcer para que ele fosse capaz de vencer o dragão. Foi o que fez. — Vou salvar a todos nós, mamãe! Não vai chorar por mim como chora pelo meu pai, vai ver! — Gritou. O garoto não lembrava do caminho até a capital ser da maneira que foi, nem que os guardas tivessem tão pouco critério permitindo a entrada de estranhos pelos portões, mesmo que fossem crianças. Mas ele acreditava que aquilo era a ajuda de Deus, que sempre chegava nos momentos certos e necessários, como o Padre Marthell costumava dizer. O mercado recepcionava todos os visitantes da cidade, enchendo as ruas com pessoas, tendas e a mistura do cheiro de comida, terra e tinta. O menino imaginava como passaria entre toda aquela gente e entendia por que sua mãe preferia viver longe daquele lugar. Eram estátuas móveis que dançavam umas entre as outras com alguns esbarrões. Mais do que os produtos, o pagamento por eles tinha a principal atenção de todos, com vendedores e compradores deixando a altura da voz decidir o que acabaria sendo acertado. Capangas armados eventualmente facilitavam as coisas para um dos lados. Ele se espremia entre a multidão, esquivando, parando, girando, abaixando e esbarrando em cestas e barracas. E mesmo assim ninguém percebia sua presença, ou não se importavam. Algumas pessoas mexiam a boca, mas não tinham voz — essas em especial chamaram sua atenção. Era esquisito, mas ele acabara de ver um dragão, imaginava que poderia ser algum tipo de feitiço, e temia por isso, pois até então ninguém nunca havia visto um deles. Quem seria capaz de retirar esse encantamento além da própria criatura? Isso não teria importância se no final ele e todos os outros estivessem mortos. Primeiro chamaria sir Johann, depois pensaria em se livrar do feitiço. A multidão era ideal para causar enganos e levar a erros de julgamento. Por isso a guarda da cidade evitava o mercado, deixando os crimes e problemas por conta dos mercenários que eram pagos pelos mercadores. Graças a isso, as áreas nobre e eclesiástica — quase um oásis além daquele deserto de moedas — eram tomadas por guardas, todos fortemente armados e sempre alertas. Estranhamente, estes, assim como os outros, pareciam não perceber a presença do jovem, que de primeira tentou olhar para dentro das casas a procura do cavaleiro, mas logo se deu conta de que não conseguia lembrar onde ele morava e se o procurasse dessa maneira, demoraria a vida toda. A solução era vencer o medo que sempre teve desses homens de armaduras incômodas. — Senhor, pode me dizer onde encontro sir Johann? — Perguntou com toda a educação dada por sua mãe, esticando o tecido vermelho da calça que o soldado vestia por baixo de sua armadura. — Quem? — Respondeu o guarda, entre todos ali o que parecia ser mais amigável. — Como assim, quem? — Respondeu o menino. — Sir Johann, filho de Lorde Gallund e noivo da princesa Emily. Comandante das tropas do Norte e futuro rei de todas essas terras! O homem desatou a rir como se fosse morrer disso. Apontou para o soldado ao lado, que assim como os outros parecia não ter percebido a cena, tentou recuperar o fôlego e disse: — Ei, Lorde Gallund! — A frase toda soou como uma piada. — Esse garoto está procurando pelo seu filho! Gallund desceu a cabeça até encontrar os olhos do garoto, que parecia não entender o que significava. Aquele homem jamais teria condições de ter um filho com a mesma idade de Sir Johann. — Filho? Que filho? — Este jovenzinho diz que precisa falar com seu filho, o futuro rei ou algo assim. Talvez ele precise dos favores reais — debochou o guarda. — Que história é essa? — Gallund se abaixou para o menino. — Não tenho filho nenhum, ao menos que eu saiba, nem mesmo um título de nobreza! Talvez esteja procurando outra pessoa, mas posso garantir, ela não é dessa região, sou o único Gallund por aqui. — Não pode ser. Eu me lembro de sir Johann! Ele me prometeu, bem ali no pátio central, que ensinaria como lutar com espadas — o menino apontou para um enorme pátio de frente para a igreja no qual a nobreza e a burguesia se encontravam e os soldados gastavam seu tempo de descanso. Ao ouvir o nome de sir Johann, o semblante do soldado se contorceu. Seus olhos quase saltaram das órbitas enquanto balançava a cabeça garantindo que ninguém havia ouvido aquele nome. — Merda! — Gallund praguejou e se aproximou ainda mais do garoto, agora cochichando. — O que quer com ele? — Eu... Eu vi um dragão. E ele está vindo para cá! Precisamos encontrar ele antes que seja muito tarde — respondeu o menino que gesticulava como se Gallund falasse outra língua. — Só ele pode nos ajudar! O soldado fez uma careta de surpresa e descrédito. Então sussurrou no ouvido do menino. — Sei onde sir Johann está. Mas a partir de agora não diga mais o nome dele em voz alta, pode ser perigoso! Você tem muita sorte por Nicholas ser novo demais pra reconhecer o nome — Gallund então se levantou, olhou para um soldado descansando à distância e gritou: — James! James! Você pode tomar meu lugar aqui? Só por alguns minutos. Esse garoto tem uma mensagem importante a entregar, preciso escoltá-lo até o castelo. — A resposta foi afirmativa. O homem pequeno se levantou, desajeitado, e correu até seu posto temporário. Gallund e o menino foram na direção do castelo e, assim que saíram do campo de visão de James, mudaram o caminho. — Esqueci de perguntar, qual seu nome, menino? — Erick, senhor. Gallund então parou; virou-se e olhou para baixo, o garoto quase trombou com ele. — Então, Erick, como conhece meu pai? — Seu pai? — Ele se surpreendeu. Não fazia sentido, sir Johann não tinha filhos, não ainda, pelo menos. — Como assim seu pai? — Meu pai, oras! Sir Johann é meu pai, pelo menos é o que ele sempre me disse. Tanto que tenho o nome de meu avô. — Mas, ele não tinha filhos. — Ele não tem filhos, tem um filho — respondeu Gallund, atento ao caminho e visivelmente aborrecido; mas não mais do que Erick, que não tinha palavras e tentava entender o que estava acontecendo. Coisa muito difícil para uma criança. Na cabeça dele, por algum motivo fazia mais sentido aquele jovem ser pai do lendário sir do que um filho. — Merda. Vamos até ele, talvez consiga explicar — o soldado puxou o menino pelo braço e ambos se esgueiraram através dos becos da cidade, cada vez se afastando mais do centro por um conjunto de vielas que ia aos poucos se estreitando em becos malcheirosos habitados por todos aqueles que a cidade não suportava encarar. Estavam na periferia da cidade, conhecida como Gueto do Vale. Dizia-se que, depois de certo horário, não era aconselhável zanzar por lá sem pelo menos quinze soldados bem armados. Mas a passagem deles foi bastante pacífica, algumas daquelas pessoas até acenavam para Gallund, o que deixava Erick ainda mais assustado. — Até chegarmos à casa de meu pai, não faça nenhum barulho, apenas me siga e obedeça cada palavra minha. O menino ainda tentava entender todo aquele lugar a sua volta. Não se lembrava de ter visto nada daquilo antes. Em sua memória aquele lugar todo era um cortiço, sim, mas dos mais bonitos, com soldados, ferreiros, mercadores e açougueiros. Não fazia sentido mudar daquilo para esse pedaço de loucura em menos de uma semana, alguma coisa não estava certa. “É magia do dragão, com toda a certeza!”, dizia a si mesmo. Ele acreditava que criaturas como essas eram capazes de absolutamente tudo, só precisavam querer. Gallund só parou quando chegaram a um beco sem saída, formado por sobrados tortos de alvenaria, onde os andares mais altos abriam bocarras que engoliam a luz enquanto avisavam que ninguém deveria se aproximar. O beco era cheio de vida à sua maneira, habitado por velhos, escória, escravos alforriados e ex-condenados. — Chegamos — anunciou Gallund. — Como assim, “chegamos”? Chegamos aonde? — Erick puxou a manga do soldado. — Na casa do meu pai. Era a maior casa naquele lugar, que sozinha tomava dois andares e parecia estar sendo sempre vigiada pelos sobrados ao seu redor, como se quem morasse lá fosse mais importante que seus vizinhos. A expressão de Gallund saltou do receio para a mais profunda vergonha. Ele ficava extremamente desconfortável naquele lugar, e sempre que ali estava, a única coisa na qual pensava era em ir embora. Diferente estava o rosto de Erick, que podia ser interpretado como a mais pura decepção, com sinais de preocupação e medo que faziam brotar rugas profundas, nada comum em crianças. — Casa do seu pai? Por que o maior herói que essa terra já viu estaria morando aqui e não no castelo? — Está difícil acreditar que você não seja maluco. Meu pai não é esse herói do qual fala há mais de quinze anos — o soldado desviava o olhar da casa o quanto podia. — Afinal, que história é essa de dragão? Erick tentava fazer tudo aquilo se colocar em ordem na sua cabeça da maneira que podia, por isso demorou um tempo até responder: — Eu estava caçando pedras na praia, quando vi uma diferente, saindo da areia, ela tinha uma cor esquisita, parecia uma noite de céu estrelado. Não era tão grande e tinha letras engraçadas que nunca vi na vida. Foi a primeira coisa que li. Enquanto o menino contava a história, os olhos de Gallund saltaram, sua pele ficou pálida, suas mãos encresparam, por um instante não sentiu as próprias pernas, até seus cabelos se ouriçaram e alguns que lá estavam poderiam jurar que também ficaram grisalhos. Era como se a realidade, por uma fração de segundos, o socasse no rosto e lhe ajoelhasse no estômago. Seu corpo inteiro reagiu. E tudo no que ele conseguia pensar era “não Deus, por favor, ele não.” — Então eu li. Alguma coisa me obrigou a dizer as palavras em voz alta, mas não entendia. A única coisa que ainda consigo me lembrar é Cthulhu fhtagn. E essas palavras não saem da minha cabeça desde aquela hora, repetindo, martelando, me irritando. Então eu vi o dragão saindo do mar. E é tudo do que me lembro — De sua morada em R’lyeh, Cthulhu morto espera sonhando — disse Gallund sem controle de seus lábios. Era quase possível ver sua alma se retirando do corpo em puro terror. Para ninguém ali as palavras eram estranhas, mesmo para quem nunca as ouvira. E todos ficaram aterrorizados com elas, mesmo sem saber por quê. O mundo parecia tremer, o céu escurecer e então tornar-se rubro, para ficar claro como uma manhã ensolarada e novamente se cobrir de breu. — Ph'nglui mglw'nafh Cthulhu R'lyeh wgah'nagl fhtagn — disse Erick, sem perceber sua boca mexendo. O som dessas palavras matou dois idosos, causou o aborto de uma jovem, rasgou a razão de três pessoas e trouxe os dois idosos de volta a vida, seguidos do choro abafado do feto abortado que então tornou-se um urro gutural que fez a mãe gritar em loucura e verter sangue em lugar de lágrimas. Essas palavras pertenciam tão pouco ao mundo que o cérebro as interpretava como qualquer outra coisa semelhante, mas não encontrava um significado. Então as transformava em sussurros indistinguíveis que mesmo assim se faziam entender, gelando a espinha. Gallund puxou a criança pelo braço para dentro da casa de Johann, sua expressão de temor passou para o desespero, sabia que nada mais poderia ser feito, mas é da natureza humana sempre acreditar que há uma saída. Ela poderia estar em seu pai. — Meu pai está aqui porque descobriu sobre essa pedra e O Inominável. Tentou alertar a todos junto com um dos jovens soldados mais leais a ele. Ambos foram chamados de loucos e expulsos. Tentou viver normalmente por três anos, conheceu minha mãe. Ela morreu no meu parto — sangue escorria no lugar das lágrimas e cada soluço do choro arrancava a vida do rosto de Gallund. — A meu pai foi dado o perdão e permitido viver novamente na cidade, desde que esquecesse isso tudo. Mas o soldado que estava com ele voltou e o carregou para essa loucura novamente. Eu cresci vendo meu pai enfiado em livros, sem sair de casa por meses, apenas estudando maneiras de prever a chegada daquela coisa. Mas ele morreu antes de conseguir. — Como assim morreu? Sir Johann morreu? — O menino puxado pelo braço não conseguia se soltar ou parar de acompanhar o soldado. — Se ele morreu, para onde você está me levando? Pode responder? Você me ouve? Me solta! Erick só conseguiu se soltar quando chegou ao quarto de Johann, onde supostamente ele deveria estar. O fedor azedo que empesteava o ar servia para preparar quem entrasse naquele lugar às coisas que veria ali. Tudo o que restava eram livros ensebados, cheios de poeira e traças, espalhados por toda a parte. Em um canto, jogado, estava um cadáver quase sem pele, com a carne escura descolando dos ossos, unhas, barba e cabelos em tamanhos descomunais ao lado de uma espada arruinada e vestindo o que um dia deve ter sido uma armadura. — Boa tarde, Erick — a voz cavernosa regida pelas batidas das mandíbulas ósseas vinha do que foi a boca de sir Johann. Era grotesco, mas fazia o menino sentir uma vontade incontrolável de rir. — Ou devo dizer boa noite? Sabe, quando Ele acorda, já não conseguimos mais entender a passagem do tempo. Nem precisamos, na verdade. Já sabemos que não nos resta muito dele. — G-Gallund... — Erick olhou para o lado e tombou com o susto, o soldado jovem agora era um monte de carne podre com um rosto sem olhos, estatelado no chão, os dedos se desprendiam e caíam e a roupa estava mal colocada, já que não havia mais volume para vestir. — Receio que devamos agradecer tudo isso a você — o que sobrou de sir Johann gargalhou e começou a bater palmas para o menino. O ruído seco que as mãos esqueléticas produziam fez Erick tremer dos pés a cabeça e deixar escapar um suspiro desesperado. A gargalhada e as palmas se prolongaram. Primeiro por um espaço de tempo que pareceu horas, que então se tornaram dias, que duravam meses, com o martírio de anos. E todo esse ruído ressoava na cabeça do menino que, ao tentar tampar os ouvidos, sentiu barba no próprio rosto. As palmas cessaram junto com o som de ossos se quebrando. Seus olhos outra vez abriram para a verdade. Todos os dias começavam da mesma forma: quando criança, correndo atrás da segurança da mãe e jurando protegê-la ao invés de matá-la, como realmente aconteceu. Todas as vezes tomava sua mente e seu corpo um impulso monstruoso de permanecer ali, abraçado a ela assistindo o que aconteceria; mas o subconsciente sempre o puxava para o mesmo lugar, para o homem cuja vida destruiu, para a realidade que ajudou a criar, para todas as vidas que arruinou. No começo, quando se viu sozinho em um mundo enlouquecido, tentava se acalmar chorando, mas as lágrimas secaram ou a mente já não aguentava mais aquilo e passou a tentar se enganar num misto de desejo e sonho que arrastava-se para um pesadelo. Porque a realidade era muito dolorosa; e mesmo assim, nada disso é tão aterrorizante e enlouquecedor quanto ver Ele com os próprios olhos. Quanto saber que Ele acordar é culpa sua. Nascido há 27 anos na capital paulistana, Marco Rigobelli já desenhou, já teve banda e no fim não continuou com nenhuma dessas coisas. Mentiroso profissional, escreve para o papel, para as telas, para os palcos e para as caixas de som. Gosta de contar histórias e de falar sobre contar histórias. Leia a entrevista que fizemos com o autor. Publicidade Um podcast de Leitura, Literatura e Entretenimento Acesse agora e ouça! leitorcabuloso.com.br RUÍNAS NO HORIZONTE Rafael Dias Canhestro N inguém soube como aconteceu. O fato é que a Névoa Rubra recuou e revelou ruínas no horizonte. Não mais a paisagem imutável; de um lado o vazio sem fim nem começo, de outro o vermelho estático, mas uma novidade a encher os olhos da gente miserável que por ali sobrevivia. E todos se amontoaram pelas ruelas dos vilarejos, subiram em telhados e passaram a fitar enfeitiçados aquilo que só conheciam de histórias contadas pelos mais velhos, mas que se tornava realidade, algo palpável, se vencessem as distâncias, se ousassem a travessia do inferno. Houve rebuliço. A visão dos prédios era esperança, mesmo que pequena. Falavam da possibilidade de haver alimento. A terra do vilarejo não dava nada. Era poeira e pedras enterradas. Nenhuma raiz que tivesse condição de crescer no futuro. E a pouca comida que havia tinha de ser regrada. As reservas escasseavam. Já eram insuficientes. E pessoas morriam. Caíam duras no chão, entregues, cansadas demais para resistir. E as que viviam enlouqueciam. Ainda era recente o caso do menino que morrera esvaído em sangue. Fora mordido na garganta por um homem e o rasgo fora fundo. Não tivera remédio. Morreram os dois; o menino e o homem, o segundo executado em nome de uma tal justiça tão moribunda quanto a humanidade. Reuniram os líderes da pequena nação. Confabularam durante horas e os roncos do estômago decidiram a contenda. Enviariam exploradores para vasculhar as ruínas. O tempo rugia. Não podiam esperar mais. A sombra da fome crescia de tamanho e ameaçava eclipsar a todos que ali viviam. Dois rapazes foram escolhidos. Ainda tinham músculos que lhes mantinham de pé, ao contrário dos outros, farrapos a beira de ser extintos. Partiram durante o começo de uma manhã, sob a vigília de seu povo, almas crentes de recomeço. Era o que lhes restava. 2 Antes que a noite caísse eles acamparam. Dali viam as construções como dedos erguidos na paisagem, acusativos, como que a condenar alguma criatura invisível pela decadência que os consumia. A imaginação vagueava por aquele território e pintava quadros, situações de uma hipotética existência. Pensavam se o tom desbotado dos prédios não era apenas disfarce, se no interior das entranhas de concreto não havia gente, aquelas pessoas sorridentes das quais os antigos tanto falavam com aqueles olhares distantes; prisioneiros de reminiscências. Sonhar não arrancava pedaço e era um exercício gostoso. O mero ato de considerar a possibilidade de algo além do vilarejo já os deixava excitados, embora receosos. Pois o desconhecido não só os fascinava, mas também os horrorizava, como os pesadelos mais incoerentes têm a capacidade de fazer. Alfredo — o rapaz mais novo, com seus vinte anos — sentia-se dividido, duas entidades em conflito pelo destino de um espírito. Ele ouvia o chamado e sentia a urgência de ir, de ver e tocar naquelas estruturas, mas a razão o impedia de arriscar-se no ventre da escuridão desértica. Ele temia um encontro com um andarilho, daqueles de que se ouvia falar volta e meia no vilarejo, quando crianças teimavam em não dormir. Homens sem rumo, que matavam e comiam qualquer coisa que se movesse. O outro rapaz — cujo nome era Ricardo — remoía reflexões tenebrosas. Era mesmo possível alguém ter sobrevivido ao ar venenoso da Névoa Rubra? E se houvesse, que tipo de vida haveria? Pensava em seus conterrâneos, aquelas faces aniquiladas pelo sofrimento. Lembrou-se do menino com a garganta rasgada, morto, como uma presa abatida pela fera. Ainda resistiam como civilização, amparavam-se em regras de convivência, mas nem assim eram capazes de evitar a loucura. E lá, nas ruínas, aquele lugar há tanto oculto debaixo da densa cortina vermelha? Há tanto abandonado pela luz do sol… “Estamos mesmo desesperados para tentar a sorte em um lugar desses”, pensou, não conseguindo conter o estremecimento de seu corpo diante dessa agourenta reflexão. — Fico pensando… Tem alguém lá? — Perguntou Ricardo, quase para si mesmo. — Talvez — respondeu o outro. — Não sei, mas… Acho que tô com medo. — Medroso! — Você não tem? — Um pouco. — E se fossemos para lá? Eles não iam ficar sabendo — disse Ricardo, apontando o dedo para oeste e além. — Deve ter coisa melhor praquele lado. Tem de ter. Lá, nos prédios, é que não tem. — Se nos prédios não tem, para lá é que não vai ter. Não lembra? É só deserto. Pra todo lado. A nossa única esperança está lá. Tem de estar. — respondeu Alfredo e fechou os olhos. Ricardo encarou as construções por mais alguns minutos, num silêncio cheio de especulações. Logo ele também fechava os olhos e adormecia e sonhava com vultos de antigas cidades. 3 Despertaram com o alvorecer e retomaram a caminhada. Nas garrafas ainda restava água, mas eles não sabiam se era em quantidade suficiente para o restante do trajeto. Os prédios dominavam cada vez mais a paisagem, mas parecia uma proximidade ilusória, como miragens de oásis para homens sedentos. A temperatura fazia o suor se esvair pela pele, quente e viscoso, e fazia rolar ondas de calor pelo ar. Ricardo tentava vencer o cansaço, as dores presentes com doses de passado, aquela saudosa época em que o deserto era lenda e toda a sua vida se resumia aos corredores estreitos do subterrâneo; os quartos comprimidos em fileiras de pares e ímpares. Época em que o mundo exterior era um sonho recorrente nas noites de criancice, motivo para perguntas que não podiam ser proferidas perto de ouvidos adultos. Queria conhecer o lado de fora, na sua ingenuidade de infância, cansado daquela realidade de lâmpadas artificiais e máquinas que rugiam. Mas o sonho se tornara pesadelo quando o computador central do Complexo 43 entrou em curto e toda a sociedade desmantelou-se nos incêndios e correrias que se seguiram. O que era tédio se transformou em terror, e o garoto irrompeu para a superfície para ser recebido pelo toque abrasador de um admirável mundo novo. Tarde demais para sentir saudades, para sentir-se arrependido. Chegara o tempo da sobrevivência e até que as coisas se estabilizassem com o surgimento do vilarejo, ele via cadáveres aos punhados, de amigos e vizinhos, ossos semeados no deserto. Beberam da água, até restar uma miséria no fundo da garrafa. Felizmente, estavam perto. Pararam a alguns metros das ruínas, as encarando como se estivessem diante de gigantes, uma raça desconhecida de criaturas. Alfredo olhou para o céu e viu a tarde declinando, as cores vibrantes de uma manhã dando lugar ao laranja do entardecer. A noite viria logo, e nela os horrores rastejantes ganhavam corpo. — Temos de andar mais rápido. A noite não demora. — Não é melhor acampar? Aqui mesmo. Continuar… Pode ser perigoso! E se escurece com a gente lá… — Respondeu Ricardo. — Não dá. Eles estão esperando. — Mas e se houver alguma coisa por lá? Monstros! Não lembra? Dizem que na Névoa vivem monstros! E se... — É um risco que temos de correr. — Tem certeza? — Não percebeu? A água tá acabando. Se não formos agora, vamos ter de voltar de mãos vazias. E eles não vão gostar disso. Nem um pouco. Calou-se. Não tinha argumentos. Alfredo estava certo; mais um gole e não sobraria nada. Ele pensou na manhã seguinte, quando o sol nasceria forte. Ou concordava em se arriscar a ser alcançado pelas trevas, ou se condenava a encarar horas intermináveis de sede. Havia ouvido dizer que uma pessoa consegue ficar mais de uma semana sem se alimentar, mas sem água... A morte era certa. — Você está certo. — Sabia que entenderia — respondeu Alfredo, caminhando na direção das ruínas. 4 Um silêncio pesado pairava pelo lugar. Caminhavam por ruas abarrotadas de lixo como duas crianças fascinadas. Olhavam para as janelas rachadas querendo absorver a história guardada por suas vidraças judiadas, ansiando pelo vislumbre de uma sociedade morta e enterrada por debaixo de escombros. A imaginação trabalhava firme, fazendo-os enxergar as pessoas que por ali andavam durante as manhãs e tardes de um tempo quando a esperança ainda não era uma tolice; a loucura dos vivos. Carcaças de veículos despontavam pela rua, alguns amassados contra postes, paredes, outros apenas apodrecendo ao relento, esperando pelo dia em que deixariam de ter formas e se transformariam em meros pedaços de metal em eterno enferrujar. Ricardo olhava para aquelas coisas e resmungava pragas contra tudo. Por que nascer para sofrer? Se ao menos tivesse nascido em outra época, em outro ventre... Uma embalagem passou voando, e só não foi levada para o deserto por causa dos dedos ágeis de Alfredo, que a agarraram no ato. Havia uma mulher de avental desenhada no pacote e ela apontava com ambas as mãos para um delicioso pedaço de carne, ainda quente, pelo menos era o que sugeriam os rolos de fumaça que subiam em espiral do alimento. Comida. Os mais velhos contaram que antes era fácil consegui-la. Bastava uma volta por um quarteirão e lá estava ela, entregue ao seu predador, à mercê de uma mordida. Um sonho… Olhou ao redor e viu as fachadas de antigas lojas e comércios. Dentro de um dos prédios, ele pôde ver os pés descalços de um defunto apontando para o vazio, secos, se desfazendo como papiro devorado por traças. Morte. Pararam em frente a um amontoado de destroços que fechavam a rua. Ao lado, na entrada escancarada de um prédio, trevas profundas, de onde qualquer tipo de criatura poderia estar lhes observando. Ou se arriscavam a entrar ali ou davam meia volta e retornavam para o deserto. A barriga de Ricardo roncou, e o ruído foi alto, ecoou pelos becos entulhados e reverberou por cada parede e vão. A fome estava ali e fungava em seus cangotes. — Ainda vai demorar um pouco mais para escurecer — disse Alfredo, olhando para o céu. — Que acha de entrarmos ali? Deve ter alguma passagem que vai dar em outro canto. — Talvez. Mas e se... — Não tem outro caminho. Acho que não. Vai ter de ser por ali. — Respondeu Alfredo, caminhando na direção da entrada do prédio. Respirou fundo e entrou. Nada viam. Caminharam às cegas, até sentirem com a ponta dos dedos a frieza da pedra. Um parede. Deram os braços e seguiram juntos. Na medida em que avançavam, formas iam surgindo, uma por uma, sombras e vultos que clareavam, tomando consistência. Logo enxergariam, mas saber disso não os aliviava. Temiam o que poderia se esconder por debaixo do manto de escuridão, à espera, a vigiar os seus passos inseguros. E se houvesse mesmo algo a ser visto? Alguma coisa como os andarilhos, os monstros descritos em noites de conversas sussurradas à beira de fogueiras? E se? Temiam o pensamento e, automáticos, se obrigavam a seguir. Era tarde demais para voltar. As pernas não obedeceriam. Eram escravas da tal curiosidade, que de olhos arregalados não dava mostras de que voltaria a dormir. Entraram em um largo corredor. Um raio de luz se infiltrava pelo teto e permitia que vissem um pouco do chão arruinado, cheio de buracos e tingido por um rastro vermelho, que seguia serpenteando até uma porta aberta. Um cheiro horrível fluía de lá, e um ruído baixo ecoou pelo gesso mofado que recobria as estruturas. Um rosnado… Não estavam mais sozinhos. Alfredo recuou alguns passos, com cuidado, não querendo fazer barulho, tampouco atrair a atenção para si. O companheiro descuidou e topou com um parafuso de bom tamanho, que se deslocou até bater de encontro a uma parede. Houve um estrondo e um berro inumano respondeu ao chamado. Era feito de raiva e uma fome surda, tão antiga quanto o pó que recobria superfícies. — Corre! — Gritou e o outro obedeceu. Correram pelo extenso corredor, passando na frente da porta onde terminava o rastro de sangue, e de cujo interior se ouviu soando um grito humano e selvagem em um só tempo. Viram uma silhueta pulando lá de dentro e um vulto seguiu em seus rastros, um borrão que berrava e fazia estalar as unhas contra o piso carcomido. Um raio de luz que vinha do teto revelou seu rosto inchado, de olhos opacos e leitosos, os dentes se arreganhando num arco de presas amareladas, ansiosas por desfrutarem do gosto da carne humana. Um instante depois as suas formas foram encobertas pelas trevas e o que restou foi um vulto a lhes perseguir, gritando e urrando, assassinando o silêncio que fora a tônica das ruínas. Viraram em uma dobra de corredor e avistaram uma silhueta humana mais adiante, que acenava e indicava um roteiro de fuga. Seguiram na esteira do sujeito, dobrando corredores e subindo escadas, até toparem com uma porta de madeira escura que se fechou assim que passaram por ela. Alfredo respirava com dificuldade, ainda recuperando o fôlego, e Ricardo se mostrava um tanto mais recomposto, embora os olhos estivessem arregalados, pulsantes de terror. Encarou a face do sujeito que havia lhes salvado. Nas trevas amenas dali, ele pôde ver que não havia rosto, e sim uma máscara de gás e olhos vítreos que encaravam. “Há algo de errado com ele”, pensou, apesar de não saber de onde vinha essa súbita constatação. Esperava que estivesse enganado. — Obrigado... Você nos salvou. Salvou sim. Obrigado — disse Alfredo, aliviado. — Comida... — Murmurou o estranho da máscara. Encarava Ricardo fixamente, a refleti-lo naqueles olhos vítreos. — Você tem? Pode nos dar? Estamos famintos. — Tem alguma coisa errada aqui, Alfredo — disse Ricardo, levando a mão até a maçaneta da porta, enquanto os pés dançavam no assoalho, tentando topar com algo duro, alguma coisa que pudesse ser usada como arma. — Do que você está falando? — Perguntou Alfredo, o fitando como se estivesse diante de um doido. — Desculpa, mas o meu amigo está um pouco nervoso. É que... — Comida... — Murmurou o sujeito da máscara de gás uma vez mais, e tudo aconteceu. Um assobio cortou o ar e Alfredo caiu ao chão com uma picareta fincada em sua nuca, espirrando sangue por todos os cantos, pintando o rosto de Ricardo de vermelho. Ele tentou reagir, mas assim que se virou na direção do sujeito da máscara, algo pesado foi de encontro ao seu rosto e houve uma dor explosiva na têmpora direita e uma sensação de estar se perdendo, sumindo... Caiu para trás, e antes que sentisse o chão, já não havia mais mundo no qual se firmar. 5 O horizonte se abria diante de seus olhos e ele podia ver o vilarejo adiante. Um grupo de pessoas estava reunido em frente a ele, e acenavam na sua direção e esboçavam sorrisos. Esperavam pelo seu retorno, com a certeza de que o rapaz carregava a solução para a fome dentro da sua mochila. Procurou por Alfredo, por alguém com quem pudesse compartilhar sua glória, e o viu caminhando bem próximo, a fitá-lo com olhos que sangravam, a picareta ainda agarrada em sua nuca, entranhada na fundura do crânio. O amigo sorria, mas naquele sorriso não havia alegria, apenas desespero e morte. Morte. Ele desviou o olhar daquela coisa e olhou novamente para o vilarejo, esperando ver aquelas pessoas respondendo aos seus acenos, mas o que viu foi fumaça subindo no rumo do céu e chamas se espalhando pelas casas, brasas devorando tudo; o mundo. Ele tentou berrar, mas a voz não saiu e... Abriu os olhos e sentiu o cheiro que se espalhava pelo quarto. Não era de coisa queimada, e sim de algo assando. Olhou para o lado e viu um homem de pernas cruzadas, o rosto uma forma terrível, devorado por alguma doença que havia desfigurado seus traços e o transformado num mosaico de pústulas que cuspia um corrimento escuro. Uma máscara de gás descansava por entre as suas pernas cruzadas. Ele não teve tempo para pensar a respeito. Desmaiou e se perdeu. 6 Quando acordou estava mais escuro. Esperou por alguns minutos, enquanto a vista se acostumava com a falta de luz e aprendia a distinguir formas. Olhou para a direita, apesar de estar amarrado a uma corda, e viu pela janela que a noite seguia alta, desnuda de estrelas. Olhou para a esquerda e teve de reprimir um grito. O rosto de Alfredo estava voltado para a sua direção, o seu corpo jogado feito trapo, uma poça de sangue enorme secando ao seu redor. Estava caído de lado, e era possível ver a sua barriga, que jazia aberta como a de um porco, as vísceras pendendo inúteis no vazio. Ricardo respirou fundo, segurando a vontade de vomitar, o ímpeto de gritar e... tudo aquilo passou, e o que restou foram os seus olhos voltados na direção do cadáver. A picareta ainda estava presa na nuca dele. Olhou para outra direção e avistou o sujeito sem a máscara, dormindo em um canto mais afastado, ressonando alto, e havia mais um mascarado, este voltado para outro lado, também deitado. Sabia que eles não dormiriam para sempre, e sentiu urgência em agir. Começou a rolar de um lado para o outro, na esperança de que o movimento fosse capaz de afrouxar a corda. Fez isso por alguns minutos, os olhos fixos nos captores, estremecendo a cada vez que eles se moviam um pouco, a cada resmungo que atravessava a barreira dos sonhos. Um laço se desfez, depois outro... o seu braço direito se soltou, tornando fácil libertar o restante do corpo. Levantou-se e deu um passo adiante. Olhava para o amigo, para o que havia sobrado dele. Alfredo estava sem uma das pernas, e o que havia sobrado dela despontava queimado entre as cinzas de uma fogueira. Ricardo desviou os olhos da atrocidade e, com a ponta dos dedos, fez o morto dormir. Atravessou a sala em passos miúdos, na direção de um pedaço de cano que jazia ancorado contra a parede. Armou-se com ele e voltou-se para um dos mascarados, o seu rosto transformado pelo ódio, os dedos cerrados no metal, ansiosos por usá-lo. Estava perto, já podia estender o braço e acertá-lo, mas ele despertou antes e lhe encarou, os olhos negros cheios de uma inteligência perigosa, doentia. — Comida... — a coisa murmurou, enquanto sorria com seus lábios feridos. — Me deixa em paz! Você matou o meu amigo! Desgraçado! Doido! Você é louco! — Fome... Comida — respondeu o sujeito, levantando-se e cutucando o comparsa com a ponta de sua bota gasta. O outro acordou e também olhou para Ricardo. — Vocês só podem estar loucos... — Disse, afastando-se com passadas para trás, seus olhos nunca abandonando aquelas duas formas de pesadelo. O rapaz virou-se para a porta. Passos continuavam a ecoar às suas costas enquanto ele agarrava a maçaneta e a girava de lá para cá, suores se derramando pelo rosto, um grito a escalar os interiores da garganta. Uma mão o agarrou num dos ombros e com um safanão ele a repeliu e com um puxão desesperado escancarou a porta e por ali se enfiou e correu aos tropeços pelo corredor, enquanto ouvia aquelas coisas vindo e repetindo a ladainha; a eterna súplica por comida. Tateou por paredes, dobrou corredores, até sair em uma escadaria que descia para profunda escuridão. E logo atrás vinham os mascarados, rindo alucinados, como se estivessem achando graça de alguma piada, algo extremamente engraçado. Tropeçou em um degrau e bateu com o ombro em algo sólido. Berrou de dor, mas não parou de correr, pois podia ver adiante a saída, na crença de que outro caminho o levaria ao lugar certo. Comida. Por ali não havia, a não ser que quisesse voltar ao esconderijo daqueles homens e dividir com eles uns pedaços de carne bem passada. Pensou no cheiro de gordura quente e borbulhante que pairava pelo quarto e seu estômago chegou a desejá-la por um instante. Por que não se entregar ao desejo? Vivia em um mundo sem sentido, onde o pecado era virtude, então por qual motivo simplesmente não entrava na dança? Não se arriscou a pensar a respeito, apenas correu, querendo livrar-se das risadas daqueles homens, fugir para longe e sentir o vento quente do deserto em seu rosto. Passou pela porta dupla e saiu do prédio, chorando e rindo ao mesmo tempo, abraçando um poste enferrujado como um náufrago abraçaria um pedaço de seu navio afundado em pleno oceano. Olhou para trás, para as profundezas negras da construção, e ouviu gritos reverberando por lá. Eram os mascarados. Alguma coisa os havia farejado, e um berro selvagem serviu para confirmar essa suspeita. Ricardo deu as costas para os gritos que se seguiram e correu em direção ao deserto. Era melhor vagar por lá eternamente do que passar os próximos minutos ali, naquele cemitério onde os mortos apodreciam e os vivos sobreviviam de restos. Ele correu, correu e correu, até sentir o pulmão ardendo em brasas, a respiração tornar-se fogo. Caiu na terra seca do deserto e vomitou o nada que havia em sua barriga. Ao terminar, levantou-se cambaleante e olhou para trás, para a escuridão. Em algum lugar naquele horizonte negro estavam as ruínas de uma civilização; prédios se deteriorando com o tempo, cadáveres se decompondo em abandono. E também a loucura. Sim, ela caminhava por aquelas ruas cheias de entulho, visitava os corredores escuros das construções e cumprimentava os farrapos humanos que insistiam em querer sobreviver. Homens ou animais? Fazia diferença? Evitou essa nova pergunta e seguiu no rumo do vilarejo. 7 Foram dois dias de caminhada, dois dias de fome. Ao avistar o vilarejo no horizonte ele suspirou aliviado e se permitiu correr, a despeito do cansaço de seu corpo, das dores que sentia, mas não foi muito longe. A esperança zombou de sua cara e lhe deu as costas, e o que restou foi o negrume da fumaça, a ganhar os céus e corromper os tons de azul fosco. Espalhava um cheiro acre e... de coisa assada. Sim, como no seu pesadelo, como no quarto dos mascarados; o mesmo odor que havia partido dos restos esfumaçados do seu amigo. Apressou o passo. Chegou mais perto e a sua desconfiança tornou-se concreta. Havia uma grande fogueira acesa no centro do vilarejo e ao redor dela se viam homens e mulheres de bocas pintadas de vermelho, observando a carne girar em espetos enquanto babavam de fome. Era obsceno, mas o cheiro era tão delicioso... Ricardo também queria um pouco! Nem que fosse apenas uma mordida, só para sentir o gosto, calar de uma vez por todas a maldita fome, que não se cansava de gritar do meio de suas entranhas. Haveria luta por comida, selvageria, mas ele não se importava. Não havia mais nada que lhe provocasse repulsa. Não depois do que viu nas ruínas. Aquele era o mundo no qual vivia, e nele não havia nenhuma embalagem hermeticamente fechada com algo delicioso dentro, nenhum carro que pudesse levá-lo para outras paragens. Tudo o que havia era o deserto interminável e a loucura, aquela dama travessa. Sim, o cheiro era maravilhoso! Agachou e procurou por uma pedra pesada e encontrou uma com uma das pontas afiadas. Olhou na direção do vilarejo e apertou o passo. Estava morrendo de fome. Enquanto isso, as ruínas fitavam o vilarejo de longe. Observavam a queda de outro refúgio humano, o surgimento de novas ruínas no horizonte. Rafael Dias Canhestro tem carreira recente como escritor, com dois contos publicados: "A menina e a banheira", na antologia Horas Sombrias, da Andross, e "Cadáver", selecionado no concurso promovido pela editora AMCGuedes, e publicado em maio desse ano. Ainda publicou o livro "A casa", pela editora Multifoco. Leia a entrevista que fizemos com o autor. ESSA É A NOSSA HISTÓRIA. VOCÊ VAI ADORAR Caroline Policarpo Veloso -T em certeza de que quer fazer um feitiço tão poderoso? — Perguntou a mulher. — Se o que procura é inspiração para seu trabalho, eu poderia fazer algo menos arriscado. — Aceito os riscos. Quero o melhor, não importa qual o preço. — Insistiu. Estava lá porque aquela mulher era capaz de conseguir coisas que ninguém mais conseguiria, e não iria embora com menos. Não tinha medo dos fantasmas e demônios que assombram as histórias. Conhecia-os bem. — Como quiser — concordou ela. Ao contrário das charlatonas idiotas que existiam aos montes pela cidade, sabia que magia séria sempre envolvia riscos, mas o cliente pagava bem e tinha noção do que estava fazendo. Lembrava-se bem da primeira visita daquele homem. Na época ele era um rapaz universitário, com menos dinheiro para esbanjar e cheio de perguntas. O escritor também se lembrava perfeitamente da bruxa. Quando jovem, buscava inspiração para suas histórias de horror em lugares supostamente assombrados. Morou em casas decadentes e isoladas, conheceu médiuns e videntes. Aquela mulher lhe proporcionara uma das experiências mais interessantes em seus anos de procura. Confiava em sua competência. Precisava dela. — Estou pronto. Fale logo, o que é preciso? — Primeiro, diga exatamente o que quer. Pense com cuidado. Preste atenção, escolha bem as palavras, seja exato. O escritor sorriu. Escolher bem as palavras era sua principal atividade há mais de dez anos. — Não seja presunçoso, lembre-se de que está aqui para conseguir palavras, afinal. Tenha cuidado. — Para conseguir as palavras perfeitas. As mais intensas e envolventes. Um texto inesquecível, algo que faça o leitor se sentir incapaz de parar de ler. É isso que desejo. — Disse, irritado pelo aviso. A bruxa olhou-o, franzindo as sobrancelhas. — Pois que seja. Posso conseguir isso. Feche os olhos. A bruxa o seguiu e notou sua ansiedade ao entrar no carro. As notas altas que recebera pelo serviço bastavam para custear sua vida sem luxos por meses. Era muito mais do que o valor habitual, e o sujeito tinha oferecido espontaneamente, mas ela se sentia incomodada. — Eu cobro meu preço, mas a magia tem o dela também. — Avisou outra vez. — O dinheiro não pode pagar o preço da magia. Mas os vidros do carro já estavam se fechando. Enfiou a chave na porta de casa, com vontade de correr para o quarto e não sair da escrivaninha até terminar o trabalho. Embora acreditasse que nada poderia atrapalhá-lo durante sua sessão de escrita, preparou um café forte, esvaziou a bexiga e até tomou uma chuveirada rápida na água fria. Não queria ter que interromper-se para nada no mundo depois de se sentar diante do papel. Confiava no poder da bruxa, embora fosse uma velha chata com medo de usá-lo. Abriu o livro sobre a escrivaninha. Não era seu. Nem era exatamente um livro, não tinha nenhuma palavra escrita, nem na capa nem nas grossas folhas brancas. Respirou fundo, apertando a caneta entre os dedos, preparado pra ficar sentado ali até o amanhecer. Mesmo que a casa estivesse desmoronando, que a energia elétrica acabasse e bombas explodissem na rua, nada o faria parar. A historia não era de todo original. Os personagens já figuravam em alguns de seus contos e romances, o que deixou o escritor ainda mais satisfeito. As palavras escapavam de seus dedos sem que precisasse — ou conseguisse — pensar nelas. Sendo autor das personagens, não parecia uma trapaça ter precisado da ajuda da bruxa para esta que, tinha certeza, seria a melhor de suas narrativas. Histórias dentro de histórias. Personagens contando que foram escritos, mas falando de si como pessoas reais. Uma velha queimada viva. Uma garota violentada. Um homem deformado com corpo desproporcional que mal conseguia andar. Um garoto que todas as noites sonhava com a própria morte, sempre de forma diferente. Um rapaz imortalizado em forma de estátua que continuava consciente, com fome, com sede, sono e necessidades fisiológicas cada vez mais insuportáveis. Uma menina presa em um labirinto sem saída. O escritor estava assustado. Aquilo soava cruel. O efeito gerado pela admissão que as histórias haviam sido escritas tornava-as reais demais. Personagens admitindo-se personagens, mas existindo fora das histórias nas quais foram criados, sofrendo por elas. — Temos uma chance de vingança agora. O que vamos fazer, matá-lo? — Propôs o rapaz-estátua. — Aquele covarde maldito vai pagar. Mas acho muito melhor que prove do próprio veneno. — Disse a velha coberta de queimaduras. — Que o autor vire personagem. — Tenho ideias de uma história para ele. Por favor, quero começar. — Pediu a garota. O escritor sorriu. Aquilo estava ficando muito divertido. Tinha uma pitada de humor somada à dureza do texto. O que quer que a bruxa tivesse feito para plantar essa ideia, estava funcionando maravilhosamente. Quase podia se esquecer de que era apenas uma história, afinal, e aquele sofrimento todo não passava de literatura. Personagens não são pessoas, não são reais. Ele não era aquela figura sombria a quem acusavam de sádico, torturador e assassino. Era? Havia um personagem a mais no ambiente da conversa, revelado agora. O único que não fazia parte de histórias anteriores. Era o escritor, autor de todos os outros. Ele mesmo, portanto, inserido na história que estava escrevendo. Começou a sentir-se mal com a raiva que era dirigida a seu eu personagem, como se este funcionasse como um boneco daqueles de vodu. Quis alterar um pouco o enredo, fazer o escritor-personagem argumentar em defesa própria, mas algo o impedia de inseri-lo na conversa. — Nós nunca tivemos voz para você. Você nunca se importou conosco, nunca achou que fôssemos gente! Por que deveria ter chance de falar agora? Eu não quero te ouvir! — Diz a garota. O escritor-personagem enfrenta seus olhos coléricos, incapaz de falar ou fugir. O escritor real se arrepia. Quase pode ver a garota, sentir seu olhar. Imaginava-a claramente. Magra demais, aparentando catorze anos, embora tivesse alguns a mais, com os cabelos nos ombros, calçando chinelos. O escritor se lembra da história. Ela não merecia sofrer tanto. — Eu fiquei com tanto medo naquele labirinto… Não tinha ninguém comigo, eu não sabia onde estava, e fazia tanto frio… — Disse a menina pequena, choramingando, como se quisesse alguém para pegá-la no colo e dizer que tudo ficaria bem. A garota mais velha abraça seus ombros. — Era excitante pra você, descrever torturas? Seu desgraçado! Como seria ser espancado e amarrado a uma estaca para queimar? Como seria sentir as brasas em seus pés, saber que elas o devorarão e não ter como escapar? — Acusou a velha. Ele sentia o medo, sim, o desespero da menina perdida, sentia o calor sufocante das brasas de uma fogueira imensa como se estivesse no meio dela… — Você é um covarde nojento — continuou ela. — Sempre protegido, do outro lado da história… Achou que estaria seguro para sempre? As acusações não paravam. Quantas personagens estavam ali? Dezenas? Mais de uma centena? O escritor-personagem estava acuado, enlouquecendo de medo e de horror, horror de si mesmo, de saber que as histórias de algum modo eram reais o bastante para causar isso, saber que o sofrimento não ficava no papel, fictício, nunca… Não aguentava mais ouvir as acusações, não podia suportar nenhuma palavra mais… Mas não tinha saída, precisava continuar. O escritor real estava se assustando a sério. Aquela história era brilhante, irresistível, mais real e mais viva do que podia querer… E também mais do que o suportável para qualquer sanidade mental. A bruxa o havia colocado em uma pegadinha? O que aconteceria com ele no final daquele texto? Não com seu eu-personagem, não se importava com isso, mas será que ele corria algum risco? Nunca achou que fosse odiar não conseguir parar de escrever uma história excelente. Nunca achou que fosse querer interromper uma escrita fluindo bem. Mas estava acontecendo. — Gostaria de pelo menos agradecer a chance, sabe? Fique sabendo que é um prazer estar em igualdade de posição com você. Nós vamos escrever sua história agora. Aliás, você vai nos fazer esse favor, já que está com a caneta na mão. — Disse a garota. Não se dirigiu ao escritor-personagem. O escritor tentou desesperadamente tirar a caneta do papel, mas seu corpo não o obedecia. Sua consciência talvez não estivesse mais exatamente — ou apenas — nele. Não sabia mais o que pertencia ao papel e o que era vida real. — O que está no papel também é real, idiota, será que ainda não entendeu? Essa é a nossa história, escritor. Você vai adorar. Caroline Policarpo Veloso publicou o livro de poemas Palavras Andarilhas (Editora Penalux) no início de 2015. Gosta muito de relógios, mapas e calendários, embora relute em confiar neles. Participou de algumas coletâneas, entre elas Poderes (Darda), King Edgar Hotel, Utopia, Sonhos Lúcidos e Ponto Reverso (Andross). Já publicou na Trasgo, na edição número 3. Não é verdade que tenha um dragão imaginário de estimação. Leia a entrevista que fizemos com a autora. PINDÁ Vilson Gonçalves P indá aprumou-se e parou à entrada da oca de Akang. — Ô de casa! — Pronunciou-se, com a voz clara e decidida de uma jovem que nada tinha a temer. Na mão direita levava o tacape; na esquerda, prova de sua habilidade como caçadora: um tatu de bom tamanho. Visualizou-se mentalmente: alta e parruda, uma belíssima guerreira abayuká, embora fosse apenas uma portaescudos de dezoito anos de idade e não pudesse casar ou comer a carne de um inimigo abatido. Sequer podia pintar seu próprio símbolo no escudo; em vez disso, sempre que saísse em combate, sua função seria cobrir a retaguarda de uma mulher mais velha, uma guerreira de verdade, sua mãe-dearco. Akang. Quando Akang saiu porta afora, toda a confiança de Pindá derreteu. Sua mãe-de-arco, uma mulher imensa, lutara contra guerreiras hetá de Abayuká, Iperu e Murená e contra os bárbaros da Mata Antiga ao longo de seus sessenta anos de idade. Lutadora experiente, ostentava um belo cinto de troféus, repleto de partes de inimigos conservadas em salmoura: orelhas, narizes, testículos, dedos, uma mão inteira e uma mandíbula. Diante de sua veterana, Pindá voltou imediatamente a ser a adolescente desajeitada e gaga de sempre. — Mãe-de-arco! Eu lhe trouxe! — Disse, chacoalhando o tatu pela cauda diante da guerreira. — A troco de que? — É um agrado — disse Pindá, com a testa brilhando de suor. Como todas as porta-escudos, tinha o cabelo curto; tranças e franjas bem cuidadas eram para as guerreiras prontas. — Escute aqui, sua pirralha de tipoia — respondeu Akang. — Sei que você anda de olho no meu filho. Por acaso acha que eu trocaria meu filho por um tatu? Akang agarrou sua orelha e começou a torcê-la, fazendo a menina se curvar de dor. Por um instante, Pindá pôde olhar para dentro da oca, onde o objeto de seu desejo estava sentado calmamente, fiando algodão: Aperema. Era um rapaz de bochechas grandes e empinadas, que parecia estar sempre sorrindo. A boca era carnuda; os olhos miúdos e brilhantes eram valorizados com linhas grossas de tintura preta; as sobrancelhas eram longas e arqueadas, muito expressivas. Ele passava algum tipo de óleo perfumado nos cabelos e no corpo, e parecia ter a pele muito macia. Era parrudo, mas não anguloso nem barrigudo, provavelmente seria um bom amante. Às escondidas, Pindá já escapulira com vários rapazes para longe da aldeia, tanto magricelos quanto gorduchos, então tinha certa experiência no assunto. Quando Akang não estivesse por perto, Pindá e muitas outras mulheres paravam para ver Aperema passar, quando trazia produtos da horta ou voltava do banho de rio. Acompanhando seus movimentos de longe, Pindá se perguntava por que a visão das costas e do traseiro do rapaz lhe causavam um arrepio quente. “Por que Rudá faz isso?” Rudá era o espírito do amor, da paixão e da manutenção da vida. Mas Rudá não tinha lugar na casa de Akang. Akang tinha apenas um marido, algo incomum para uma grande guerreira, e com ele tivera cinco belas filhas e um único menino. Ela sabia que o garoto atrairia muitas pretendentes, mas o mantinha dentro de sua casa. Aperema era valioso demais para deixar que se casasse com uma qualquer: além de belo, era asseado, bom cozinheiro, bom cantor, diligente, habilidoso na coleta do mel e das castanhas. Pindá estaria louca se acreditava ser julgada um par adequado para ele. — É só um presente, mãe-de-arco. Ouvi a senhora dizer que seu filho gosta muito de carne de tatu — choramingou Pindá. Algumas jovens que praticavam luta na praça central da aldeia haviam parado para observar e rir da amiga. — E vocês também, suas inúteis! — Gritou Akang. Soltou a orelha de Pindá para fazer gestos ameaçadores às moças na praça. — Especialmente você! Sim, você, bocuda! É com você que estou falando! Se eu voltar a ver você tentando abordar o meu filho na horta, juro que vou costurar cada buraco seu tão firme que você não vai conseguir copular nem com um fantasma! As moças voltaram imediatamente à sua prática de luta, fingindo que não sabiam do que a veterana estava falando. Akang continuou a repreender Pindá: — E além do mais, pirralha de tipoia, eu sequer te declarei guerreira! Achou mesmo que eu deixaria uma porta-escudos entrar em minha casa para cortejar meu filho? Pindá, segurando a orelha dolorida, reuniu cada fiapo de confiança para responder: — Mãe-de-arco, eu já lutei em seis batalhas ao seu lado, e sempre fui uma boa porta-escudo. A melhor de todas! Se a senhora possui alguma filha-dearco que merece ser nomeada guerreira ainda esse ano sou eu! Akang se preparou para desferir um bofetão na jovem, mas parou no meio do caminho. Pois a garota não estava mentindo. A guerreira a levava consigo para batalhas todo início de verão, desde que fora confiada a ela por sua mãe biológica, aos doze anos, para ser devidamente endurecida. Mesmo menina, Pindá jamais fugira. Era ágil, robusta e boa arqueira. Poucos meses antes, as mulheres da aldeia haviam se aventurado pela Mata Antiga a fim de defender a fronteira dos bárbaros. Na batalha que se seguiu, Akang teria sido trespassada por um dardo silencioso, disparado das árvores, se o escudo ligeiro de Pindá não se colocasse no caminho. Era duro para a veterana admitir que devia sua vida à novata, mas sua sinceridade não lhe permitia dizer o contrário. — Sim, sua cabeça de vento, você merece. — Retrucou Akang, muito contrariada. — Mas eu sei que assim que for declarada guerreira, fará de tudo para deitar seus dedinhos rápidos no meu filho! — Mãe-de-arco, eu tenho nove dedos guardados, dos nove bárbaros que matei este ano, prontos para serem pendurados no cinto que ainda não posso usar! Quantas outras meninas dessa aldeia podem se gabar do mesmo? Com efeito, nenhuma outra porta-escudos derrubara tantos homens na última campanha, sem contar todos os inimigos abatidos em anos anteriores. Outras jovens já haviam sido declaradas guerreiras por menos. Mas a decisão era sempre da mãe-de-arco, e se ela decidia ser magnânima ou mesquinha, isso era problema seu. Em um gesto especialmente ameaçador, Akang bateu com o indicador estendido contra o peito de Pindá. — Eu sou sua mãe-de-arco e de outras três daquelas palermas ali. Suas mães confiaram vocês a mim porque sabem que eu sei como transformar pirralhas de tipoia em mulheres de guerra. Eu decido quem pode se gabar. Pindá finalmente cedeu, cabisbaixa. — Está bem, mãe-de-arco. Ela baixou a cabeça e se virou, pronta para voltar ao centro da praça circular, onde as moças em formação dormiam nas noites secas de inverno. Anoitecia, e uma de suas irmãs-de-arco já acendera a fogueira. Pelo menos haveria um tatu inteiro para o jantar. Geralmente as porta-escudos só tinham peixe defumado e pimenta para misturar com seus mingaus e bolos de mandioca. Estarrecida, Akang observou que a moça não tentara usar o argumento mais óbvio, pelo menos não diretamente. “Eu salvei sua vida, sua montanha de azedume com traseiro de anta gorda! Admita que sou boa o bastante”, teria dito uma garota mais irascível. Ferozmente independentes, as tribos de Abayuká desenvolveram uma cultura competitiva que valorizava a bravura individual. Isso tornava a humildade uma virtude rara. Claramente a menina não tinha medo de ser punida pela superiora; não assumira para si a salvação dela porque realmente sentia que este era seu dever. A veterana não sabia se admirava o valor da menina ou se a odiava por julgar-se digna de seu lindo filho. — Ei, pirralha, volte aqui — disse Akang. Ela se virou e voltou timidamente. Era um poço de ressentimento, o que não a impediu de tentar dar mais uma olhada para dentro da oca. O rapaz continuava fiando algodão e cantarolando. Que voz linda ele tinha. — Sim, mãe-de-arco. — Eu vou te nomear guerreira. — Akang viu a centelha de esperança no rosto da jovem. — Mas você precisa se provar uma vez mais. Pindá sentiu vontade de chorar: a estação das batalhas havia acabado. Teria de esperar até a chegada das chuvas. Oito luas, talvez? Até lá alguma outra guerreira certamente já teria desposado Aperema. Havia pretendentes até em aldeias vizinhas, e ele tinha dezesseis anos; nem mesmo o zelo da mãe poderia segurá-lo para sempre dentro de casa. — Traga-me meu amuleto de volta — disse Akang, em tom de desafio, crente de que veria sua proposta ser recusada. A porta-escudos estremeceu. As garotas na praça pararam ao ouvir a proposta, incrédulas. A narrativa era bem conhecida por ela e todas as suas irmãs-de-arco. Quando Akang ainda era uma porta-escudos, três aldeias abayuká do Oeste se uniram para enfrentar a horda bárbara do rei Paac ka Tul. Naquela época fazia apenas dez anos que a nação abayuká se estabelecera; tendo obtido seu território através da conquista. O rei bárbaro desposto, Tul, morreu combatendo as invasoras. Seu filho, Paac, reuniu então um exército de dois mil homens de quatro tribos para vingar o pai e apagar as aldeias hetá do mapa. O combate que se seguiu foi tão feroz que ambos os lados precisaram recuar, terminando em um impasse. No calor da batalha, Akang viu sua mãe-de-arco tombada no chão, trespassada por um dardo lançado por Paac. Akang pegou então o grande arco negro do chão e lançou uma flecha contra o inimigo desatento. A flecha atravessou a coxa do rei bárbaro, fazendo-o cair de joelhos. A jovem tentou dar um segundo tiro, mas sua fúria fora tão grande que partiu o arco já danificado, lançando uma flecha desgovernada no meio do caos. Virando-se, o rei bárbaro viu, aterrorizado, a garota avançar de tacape em riste. Ele estava armado à moda dos bárbaros da Mata Antiga, com uma pesada armadura de couro de tapir, grevas, braceletes, saio e couraça. Akang, por outro lado, trajava apenas sua pintura corporal negra, e as poucas jóias que eram permitidas a uma porta-escudos. Entre elas, um amuleto que ganhara ao nascer: um pequeno lagarto esculpido em jade, preso ao pescoço em um cordão simples. Ela desceu o tacape contra o inimigo, que aparou com seu escudo. O choque partiu a arma e fendeu o escudo, quebrando também o braço atrás dele. Paac gritou. Girou seu machado contra Akang, mas a dor roubava a força de seu corpo e tornava seus movimentos lentos; ela se desviou facilmente e desarmou-o, tomando o machado para si. — Eu vou comer sua carne esta noite — disse ela, olhando-o nos olhos. O rei resmungou algo incompreensível. Reunindo toda a força que lhe restava, ele empurrou Akang e conseguiu se libertar. Atirando-se contra ela, mordeu seu ombro com tal violência que a fez largar o machado. Os dentes artificialmente afiados fecharam em torno da carne da guerreira como as presas de uma fera e — pela única vez em sua vida — ela chorou de dor. Akang caiu para trás, segurando o ombro ensanguentado; Paac mancou de volta ao seu lado do campo, onde foi carregado por dois soldados. Com perdas pesadas e nenhum sinal de vitória decisiva, ambos os lados deram meia-volta. E Akang percebeu que seu amuleto, o amuleto que recebera do pai quando veio ao mundo, não estava em seu pescoço, nem no solo à sua volta. Procurou-o futilmente em todos os lugares por onde passou, até aceitar: o rei o levara junto com a flecha, o braço quebrado e o orgulho ferido. Assim que o exército foi desfeito e as abayuká voltaram para suas aldeias, Akang foi nomeada guerreira adulta pela chefe, já que sua mãe-de-arco estava morta. Ninguém questionou: ela havia vencido um rei em combate; e não importava que não tivesse arrancado dele nenhum troféu: não faltavam testemunhas. Ela foi celebrada com um banquete de cauim, peixe, carne de caça e inimigos mortos, mas a cerveja e a carne tinham um gosto amargo. Paac ainda vivia e ela perdera seu amuleto. Pindá estremeceu. Recuperar o amuleto? Como? Paac estava velho e perdera a coragem, mas isso não significava que não era capaz de se defender dentro de seu território. Atacar um inimigo refugiado em seu abrigo é sempre mais difícil do que vencer em campo. E as abayuká temiam os segredos da Mata Antiga, onde os bárbaros viviam em cidades sob a terra e sobre as árvores. Era um desafio calculado. “Ela pode ser valorosa, mas não é estúpida”, pensou Akang. — Se é o que quer, mãe-de-arco, é o que farei — retrucou Pindá, inflando o peito. Por um instante Akang e as garotas da praça permaneceram em choque.“Ela aceitou. A cabeça de vento aceitou!” A velha guerreira não podia voltar atrás. Palavra era palavra, e a proposta fora aceita. Maldição. A menina jamais conseguiria atravessar o território inimigo a salvo. Akang teria o sangue dela em suas mãos. — E se, além do amuleto, me trouxer um presente, minha mãe permitirá que você se case comigo — disse alguém. Era uma suave voz masculina. Porta-escudos e mãe-de-arco ficaram surpresas ao ver que o belo rapaz esticara a cabeça para fora da casa. — Aperema — chiou Akang. — Não lhe disse que não deveria ouvir conversas de guerreiras? — Disse, mãe, mas também disse que eu teria voz quando chegasse a hora de escolher a quem você me daria. — Aperema sorria com o canto da boca. Aquele sorriso derretia o ímpeto de qualquer guerreira. — E você sempre diz que Pindá é uma caçadora de primeira e será uma de nossas melhores guerreiras no futuro. Ouvir isso da boca do rapaz aqueceu a resolução vacilante de Pindá. Ela conseguiria aquele amuleto. — Aperema... — disse Akang, não em tom de reprimenda, mas de desânimo, cobrindo o rosto com uma das mãos. — Está bem, mãe, está bem. Se acha que me ofereci por pouco, farei uma nova proposta — disse ele, acariciando o ombro da guerreira. — Pindá, volte com o amuleto, um presente para mim e um bom troféu para o cinto de minha mãe. Pindá concordou e voltou-se alegremente para o centro da aldeia. Precisava preparar suas armas e mantimentos. — Ei! Me dê isso aqui! — Disse Akang. Alcançou-a e, puxando-a pelo braço, tomou o tatu de sua mão. Estava furiosa, não apenas com o filho desobediente e com a menina, mas consigo mesma. Fizera a proposta esperando desencorajá-la e terminara colocando sangue bom a caminho da morte certa. Não podia voltar atrás: a palavra era tudo que uma guerreira tinha. Sentiu-se precipitada e estúpida, mas não podia fazer nada a respeito agora. As abayuká temiam a Mata Antiga, não apenas porque era habitada pelos bárbaros da sombra — também conhecidos como tapuy arabé — mas porque as próprias árvores e animais da floresta pareciam pouco amigáveis. Pindá suspirou antes de cruzar o vale. Após meio dia de caminhada ela entrava em território inimigo. As árvores de séculos de idade estendiam seus ramos até o céu. O sol estava alto e ela se abrigou na dobra de uma raiz para descansar e comer algo. Olhou para as trevas à sua frente enquanto mastigava um pouco de farinha torrada. A vegetação só se adensava, a ponto de ocultar o sol. Podia ouvir o estardalhaço de centenas de pássaros e bugios. Certamente havia jaguares ali também. — Isso está começando a parecer bem estúpido. — Ela sabia onde encontraria o que procurava. A cidade maldita: Uuc, o ninho dos bárbaros. Havia outras cidades escondidas nas entranhas da mata, muitas delas maiores que Uuc, mas era de lá que haviam saído Tul e Paac, e as abayuká do oeste haviam aprendido a vê-la como uma espécie de inferno na terra, um buraco fedorendo que cuspia bárbaros constantemente. A curandeira desdentada da aldeia explicou com todos os detalhes. Pindá acordou a tempo de ver um guaxinim correr com o que restava de seu embrulho de farinha. Teria gritado um palavrão, mas pensou melhor e se calou. Não era bom chamar a atenção naquele lugar. Claro, em termos de discrição, correr sobre o chão coberto de folhas e saltar sobre troncos era tão ruim quanto gritar. Logo, seria detectada. Uma pequena sombra negra passou diante de seus olhos, encravando-se em um tronco. Um dardo fino com a ponta de bronze manchada: envenenado. Velozmente, Pindá virou-se. Agachada, já tinha uma flecha encaixada na corda de seu arco longo. Largando o arco, rolou para o lado enquanto outro dardo batia no solo, enterrando-se onde ela deveria estar. O segundo inimigo, que a atacaria por trás, segurando um grande machado com ambas as mãos, perdeu o equilíbrio. A reação da invasora foi tão rápida que ele nada pode fazer, Pindá ergueu a mão direita entre suas pernas, cravando a flecha em sua virilha. O homem deixou o machado cair: berrou enquanto o sangue quente escorria pelas coxas e berrou ainda mais quando Pindá arrancou a flecha, que tinha ponta farpada. Tudo ocorreu em um segundo. O bárbaro caiu convulsionando enquanto ela se erguia para escapar de um terceiro dardo. O outro atacante apareceu das sombras: não tinha mais projéteis à mão, então atacou com uma adaga de bronze longa e curva. Pindá viu porque ele era responsável pelos disparos e o outro pela arma de combate corpo-a-corpo. A posição de ataque era completamente aberta, selvagem, ineficaz. Abaixando-se no momento certo, Pindá fez uma finta, se esquivou e agarrou o braço da arma, torcendo-o. Puxou o oponente pelo nó dos cabelos e desferiu uma joelhada em seu rosto. Soltou-o. — Senhora, fuja! Corra! Uuc... Os gritos enfraqueceram até sumir. Pindá rugia enquanto espremia a vida para fora de seu corpo. Quando o inimigo tombou ao solo, a porta-escudos viu com quem ele tentava interagir. A dez passos dali uma mulher baixa jazia sentada em uma cadeira delicada apoiada sobre duas varas. A mulher tinha o crânio deformado e tatuagens faciais. Seu cabelo estava arranjado em um penteado elaborado, seguro por pentes de pedrarias e plumas verdes. Vestia uma ampla túnica com desenhos complexos e sandálias de couro decoradas com lascas de turquesa. — Você vai me matar? — Disse a mulher bárbara. — Você... — Pindá balbuciou, depois abriu e fechou a boca algumas vezes, sem emitir som. — Não, eu não falo sua língua, a língua boa, como vocês costumam dizer. — Ela emitiu um riso de ressentimento. — Não acha pretensioso chamar sua própria língua de “língua boa”, insinuando que todas as outras são... tapuy? É essa a palavra, não é mesmo? Bárbaras. — Mas, se você não fala minha língua... — Como você me entende? — Ela sorriu. — Eu entrei na sua mente. Eu ouvi dizer que as nações hetá não gostam de feiticeiros. Vocês os matam, não é mesmo? Todos aqueles que mexem com o oculto. Nós, tuylum, por outro lado, apreciamos muito o ofício da magia. Na verdade, ao contrário de vocês, sequer temos palavras diferentes para “curandeiro” e “feiticeiro”. Ela se levantou da cadeira e começou a caminhar pelo pequeno campo de batalha. — Se você entrou na minha cabeça, por que não impediu que eu matasse seus guardas? — Questionou Pindá. — Meus guardas... — Disse a bárbara com desdém. Ao passar perto do homem que lançara os dardos, cuspiu sobre seu corpo. Caminhou até o outro, que ainda estrebuchava. — Porque eles me espionavam. Porque me levavam para estes passeios distantes na floresta quando meu marido estava cansado de mim. E porque este monte de lixo disse que uma mulher que fala com o marido do jeito que eu falo devia ser estuprada. Ela pisou sobre o rosto retorcido de dor do homem caído. — Disse que ele mesmo daria conta disso quando meu marido não estivesse olhando. — Por favor, senhora... — Balbuciou o homem. — Me cure... — Agora me chama de senhora. Pois eu quase sinto vontade de parar o sangramento e fechar a ferida, só para ver quanto tempo você suportaria viver sem seus ovos. — Gracejou a feiticeira, com uma nota de sadismo na voz. — Eu poderia zombar de você todos os dias: Zakuk, a lança sem ponta, a árvore do galho quebrado, o menino que perdeu seu brinquedinho. Você se tornaria uma companhia tão mais divertida! — Por favor... — Mas eu sou misericordiosa. Ela impôs as mãos sobre o corpo vacilante e sibilou como uma serpente. O homem sentiu o ferimento converter-se em uma fenda; a poça de sangue cresceu assustadoramente. Em segundos, toda a vida tinha abandonado seu corpo. Seu rosto empalidecido preservava uma carranca monstruosa de medo e decepção. — Sim, eu sou quem você suspeita — disse a feiticeira. — Eu sou Itzel, a esposa de Paac ka Tul, inimigo de seu povo. O homem que você deseja matar. — Eu não desejo matar Paac. Itzel revirou os olhos. — Não, só quer arrancar dele um amuleto que já carregava antes de se casar comigo, e que não tira do pescoço nem para se banhar ou fazer amor. E não é só isso que você quer. — Ela sorriu. Seus olhos cintilaram. — Você prometeu um presente a alguém, um destes troféus nojentos que vocês carregam. Francamente, querida, dá no mesmo que matá-lo. Você jamais sairá de Uuc com tudo isso se ele estiver vivo. E jamais conseguirá fazer isso sem minha ajuda. — Sua ajuda? — Pindá cruzou os braços, carregada de desconfiança. — Sim. Pois eu desejo ver aquele velho impotente morto. Todos os seus filhos mais velhos morreram lutando contra suas irmãzinhas. Pelas leis tuylum, eu me tornaria a governante de Uuc até nosso filho ter idade o bastante para governar, então eu poderia simplesmente manipulá-lo. E eu posso ajudá-la. — Como? — Como você já notou, minha querida, eu conheço feitiços que curam, que matam, que ocultam e entorpecem. Com mágica eu matei este miserável. Com mágica eu mantenho minha juventude. Com mágica eu transformo a vagem seca que meu marido tem entre as pernas em algo útil para uma mulher. Confie em mim e eu garantirei que você obtenha tudo o que precisa. Pindá, como a maioria das guerreiras abayuká, temia a magia. Por isso, fechou os olhos e se agachou quando viu que o tecido da veste de Itzel crescia e se desfiava, formando uma névoa multicor. A névoa estava ao seu redor, em sua boca e suas narinas. A textura era de água, mas o aroma era de floresta: pútrido e doce como as camadas de vida que se sobrepunham em troncos antigos, lianas, orquídeas, musgos e cogumelos. Sua boca estava seca, mas ela não ligava. Não ligava. Ela começou a correr, e miraculosamente seus pés desviavam sozinhos de toda pedra afiada, de toda coisa traiçoeira, e suas passadas eram silenciosas como se seus pés estivessem envoltos em tecidos. Ela carregava Itzel nas costas, como uma criança, mas não sentia peso algum. Viu a cidade maldita. As casas de tábuas e palha trançada ficavam empoleiradas nas árvores, em vários níveis. Sentiu o cheiro da comida rica em condimentos que preparavam e dos óleos perfumados que extraíam das árvores. Viu uma mãe amarrando pedaços de madeira à cabeça de um bebê e entendeu porque eles tinham crânios compridos. Viu um homem sendo tatuado por outro com um espinho de cacto e tinta preta. Viu um mercado na clareira central, onde negociavam produtos de terras distantes: cerâmica, bronze, esmeraldas e escravos. Calmamente, a abayuká andou pelo mercado, maravilhada com a variedade de joias, tecidos e alimentos. Ali os homens não precisavam usar suas pesadas armaduras de couro, vestindo apenas tangas, sandálias e joias, e Pindá viu que muitos eram tatuados dos pés à cabeça. — Ninguém me vê — disse a porta-escudo, incrédula. — Você é muito boa nisso. — Estou só começando. Do outro lado da clareira estava seu objetivo: o palácio de Paac, composto de salões, corredores e escadas escorados em uma sumaúma de sessenta metros de altura. Pindá jamais imaginou que um mortal vivesse em uma moradia tão luxuosa. Por mais impressionada que estivesse pela visão, julgou que tudo aquilo era uma monstruosidade e um desperdício. — Vamos, suba depressa — disse Itzel, puxando os cabelos da nuca da abayuká. — Suba logo. Atravessaram três lances de escadas e três salões, passando despercebidas pelos guardas. — Agora espere aqui — disse a feiticeira, descendo das costas de Pindá. Estavam na antessala dos aposentos reais. Ainda invisível e inaudível, Itzel impôs uma das mãos e disse algumas palavras, enquanto segurava um adorno de osso em seu cabelo. Os quatro guardas que protegiam a entrada caíram no sono. Atrás deles havia um luxuoso cortinado vermelho e dourado. Itzel rasgou sua própria túnica e se arranhou com as unhas. Atravessou o cortinado gritando. — Marido! Zakuk! Talac! Uma fera nos atacou na floresta! As lágrimas e o desespero pareciam genuínos. — Calma, pequena — disse Paac, acariciando seus cabelos enquanto se erguia de seu leito. O estrado de madeira com um acolchoado de algodão era decorado com chifres e peles de veado. Paac observou sua esposa em farrapos, que revelavam parcialmente sua nudez; um grande seio de mamilo escuro atraía sua atenção de tal maneira que ele prestou pouca atenção à história. Deu um beijo molhado na bochecha da esposa e começou a acariciar suas nádegas macias. — Ora, querida. Você sabe que a Mata sempre cobra um tributo de quem cruza seus limites. Fico feliz que não tenha sido você. — A carícia tornou-se um aperto firme. Pindá observou, enojada, o corpo nu e esquálido de Paac. As velhas tatuagens pareciam deformadas sobre a pele flácida. Perto dele, Itzel parecia uma escultura de pele suave e curvas cheias e firmes. — Foi culpa minha, marido. Eu que pedi que fôssemos mais longe. Eu queria conhecer a lagoa. Foi minha culpa, marido. Me puna. O velho Paac babava. Não resistia aos encantos da esposa. Com um toque dela, estava pronto para possuí-la. Jogou-a no piso de tábuas e terminou de rasgar sua veste, exibindo o corpo jovem. — Faça sua mágica, minha querida. Estava babando nos seios dela quando os velhos instintos de guerreiro o fizeram olhar para cima. A abayuká segurava um machado de bronze retirado da sua parede, seu machado. Ele não podia acreditar: a guerreira de anos atrás voltara para terminar seu trabalho. Ele abriu a boca aterrorizado. Abaixou a cabeça e olhou nos olhos da esposa. Ela ria. E continuou a rir quando o machado desceu, separando a cabeça do rei de seu corpo e o sangue lavou seu rosto. Pindá retirou o amuleto ensanguentado do pescoço destruído e o enfiou dentro da boca do falecido. Tinha o amuleto, o troféu e o presente. — Saia pela porta da frente — disse Itzel. — Confie em mim. A rainha gritou à medida que a algoz escapava. — Vocês dormiram em vez de defender seu rei! E agora a besta matou meu marido. Acordados repentinamente, os guardas viram as manchas horrendas de sangue e o corpo sem vida de seu senhor. Ouviram os berros erráticos da rainha e viram a assassina fugir, mas de início ficaram sem reação: ela não era humana. Um homem tomou coragem e interceptou seu golpe com o escudo. Ainda assim, vacilou diante da força do impacto e do rugido horripilante que ela emitiu. Cinco outros a cercaram, fazendo gestos amedrontados e proferindo palavras mágicas, tentando afastar o mal que ela representava. A criatura horrenda empunhando o machado do rei era como uma mulher, mas muito maior e coberta de escamas. Ela rugiu novamente, exibindo fileiras de dentes afiados. Seu hálito era pútrido; seus olhos eram amarelos. Os homens se alinharam para enfrentá-la, mas estavam enfraquecidos pelo pavor. Seus golpes não tinham efetividade, pois não conseguiam encará-la diretamente: perdiam a força, batiam em falso, tinham suas armas desviadas. Foram atropelados no ímpeto de sua passagem: um atingido pelo machado, outro por um rápido chute, outro escorregando espontaneamente; um afastouse, hesitante. — Levante-se, seu covarde! Kohol, não fuja! As ordens vieram do primeiro a atacar o monstro. Ele jogou o escudo partido e avançou, colocando-se entre ela e a saída. A criatura destruiu o rosto dele com sua garra esquerda. Pindá observou abismada. Como fora capaz de derrubar aquele guerreiro com tamanha facilidade? Como pudera afundar seu nariz com um mero soco? Não importava: os outros haviam sido postos para correr pela demonstração de força. — Kaauka! O rei foi morto pela Kaauka! — Gritou um deles, enquanto corria para fora da casa. O aviso ecoou pela clareira e as pessoas começaram a se fechar em suas casas. Primeiro o silêncio se abateu sobre Uuc; depois um murmúrio coletivo se ergueu de cada casa, como se todos sussurrassem orações para afastar o demônio invasor. Segurando consigo a cabeça decepada e o machado, Pindá correu para dentro das árvores centenárias sem que ninguém a confrontasse. Não parou de correr. “Não sei o que a rainha bárbara fez comigo que me faz tão assustadora, pensou, mas devo aproveitar enquanto isso durar”. No aposento real, Itzel chorava por fora e ria por dentro. — Pindá! Pindá voltou! — Disse uma menina, empolgada, largando o arquinho com que praticava tiro na praça central. Quando a menininha gritou, sua mãe deu-lhe um tabefe imediatamente. — Pare de mentir! — Mas é verdade, mãe! Olha lá! — A menina apontou com seu dedinho gorducho. A aldeia toda se reuniu. A jovem voltara, descabelada, suja e faminta, com os lábios rachados e os olhos turvos. — Farinha! Cerveja! — Rogou Pindá, pateticamente, pois não conseguia gritar com sua voz arranhada. — Não como nada há três dias! A curandeira ria e abraçava Pindá. Outras guerreiras vinham afagar seu cabelo e dar tapinhas em suas costas e braços. A enorme Akang abriu caminho no meio da confusão. Seu rosto era a própria expressão da incredulidade. — Rudá... — Balbuciou. — Rudá deve amar você, pirralha-de-tipoia. — Mãe-de-arco. O presente para seu filho, meu futuro marido — disse, entregando-lhe o machado de bronze. — E o seu troféu. Eu não sabia se preferia uma orelha, um nariz ou outra mandíbula, então trouxe a cabeça inteira. Akang segurou a cabeça de Paac pelos cabelos. Não havia dúvidas: sob as rugas ela ainda conseguia ver suas feições. Era legítima. O machado também era legítimo. Enquanto ela olhava a cabeça nos olhos, a boca se abriu. Dos dentes aguçados despencou o pequeno lagarto esculpido. Os olhos de Akang brilharam e ela riu como não ria desde a juventude. — Filho! Venha aqui! Sua futura esposa lhe trouxe um belo presente! Em Uuc, o pânico gerado pela aparição da Kaauka durou semanas. O povo aclamou Itzel como sua senhora quando ela saiu do palácio pintada de vermelho, segurando o cajado dos ossos. Seria conveniente uma feiticeira no comando: homens de guerra eram inúteis contra ameaças sobrenaturais. V. M. Gonçalves é natural de Ponta Grossa, onde atua na área de arte-educação. Graduado em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e mestre em Comunicação e Linguagens pela Universade Tuiuti do Paraná, é entusiasta da cultura nerd de forma geral, especialmente do cinema. Apaixonado por folclore e culturas antigas, especialmente as Pré-Colombianas, dedica seu tempo livre à criação de universos fantásticos feitos de ideias e tinta. Em 2014 publicou seu primeiro romance, A Canção de Quatrocantos: O Homem de Azul e Púrpura, pela Editora Buriti. Expandiu o universo de Quatrocantos com os ebooks independentes Guerreiras do Sol e da Lua, em 2015, e O Rei Amaldiçoado, em 2016. Leia a entrevista que fizemos com o autor. NOTURNO DESERTO Rodrigo Rahmati E les não têm esse direito. Não têm mesmo. Essa foi a primeira coisa que ela pensou, enquanto era levada ao salão das deliberações. A segunda foi a mesma que a primeira, e a terceira, e a quarta. Então, perdido no meio de todas essas repetições, um pensamento intruso: Lox irá me ajudar. Tenho certeza. Mas eles não têm esse direito. Não dizia nada, mas sua respiração pesada entregava tudo aos dois que a escoltavam. Estes também cumpriam suas obrigações em silêncio — mas um silêncio cheio de compreensão e amizade, ela sabia. Por fim, chegaram. O salão estava cheio. Todos estavam lá; é claro que não perderiam o espetáculo. De acordo com as regras — que ela mesma ajudara a escrever! — deveria cumprimentá-los, dizer algumas palavras… Mas não fez nada disso; apenas se sentou no banco dos réus. E pensar que estava certa de nunca mais estar naquela posição outra vez… Viu que sua atitude causara uma reação negativa em muitos deles, ainda que houvessem alguns que riram ou que a aprovaram abertamente. Viu Lox finalmente, e apesar da tristeza que ele mostrava, já foi suficiente para acalmá-la. O Ancião Nereu — que não era um desses que demonstravam coisa alguma — se levantou. — Você sabe, minha filha, por que está aqui — disse ele, eternamente cansado. Ela nada disse. — Que seja — suspirou ele. — De acordo com as regras, você está aqui, Gaia, para ser julgada pelo seu alegado mau uso do Livro das Sociedades. — Mau uso — repetiu Gaia, sorrindo. O que podiam dizer, eles, sobre regras? Eles, que foram expulsos, eles, que foram parar ali justamente por quebrar regras… — A vida transborda no mundo físico — disse ela. — A natureza está em equilíbrio. A teia da vida está perfeitamente balanceada em cada uma de suas ramificações. Aponte-me onde está o mau uso nisso. — Olhou para a audiência; os fiéis a Nereu se inquietaram, mas permaneceram calados. Isso mesmo, sigam as regras. — Gaia, nós decidimos isso há tanto tempo… — Nereu transbordava sua tristeza, mas não podia, realmente, fazer nada. — Eles têm que evoluir. Você há de concordar que o que você fez, por mais… bonito que seja, não pode ser considerado uma sociedade! Você poderá ficar com o Livro do Corpo, para dar prosseguimento aos seus… — Eu vou perder meu Livro…? — interrompeu ela, esquecendo-se de seu autocontrole. — Vocês já decidiram tudo?! — Sim, Gaia. Sabíamos que você não aceitaria bem nossas decisões, por isso a trouxemos apenas para ouvi-las. Gaia soltou o ar, sentindo suas energias se esvaírem de uma só vez. Tinha planejado toda a sua defesa de forma quase magistral, mas acabara de perceber que isso de nada adiantara. — Vou vê-los evoluir, então — riu ela. — Evoluir para o que nos tornamos. Para o que eles se tornaram, lá em… — Não, Gaia, não há por que nós… — Nereu desistiu. Movimentou alguns cristais de registro, no tablado, fingindo arrumá-los, e se concentrou em sua respiração e em seus próprios pensamentos. — Enfim, isso tudo já foi discutido. Exaustivamente — pontuou. — Separamo-nos daquela matéria para que possamos torná-los melhores… E nos tornarmosmelhores. E então você nos enganou. Não pode negar isso. Mesmo contra sua vontade, ela se viu forçada a assentir. — Já não temos escolha, Gaia — disse então Shaka, o Primeiro Conselheiro, levantando-se, à direita de Nereu. Em seus olhos claros, o conhecimento de eras podia ser entrevisto. Sua fala era pouco mais que um sussurro, mas ainda assim perfeitamente audível. — O que podemos fazer agora? O que poderíamos ser, se tudo continuasse assim? — O que poderíamos ser? Pela primeira vez, poderíamos deixar de ser uma coisa: egoístas. Egotistas. Egocentristas. — Gaia viu que sua fala abalara muitos deles… Mas, àquela altura, pouca diferença fazia. Pelo menos não sairia como a vilã da história, junto à… outra. — Sinto muito, mesmo, Gaia — encerrou o Ancião. Levantou-se, junto a Shaka e Rá, o Eleito. — Essa é a nossa decisão, e não é tão ruim quanto poderia ou deveria ser. Você perderá o Livro das Sociedades, que passará a Hubal, mas receberá o Livro do Corpo, que Prometeu concordou em dar-lhe após permitirmos que ele desenvolva uma nova espécie. — Essa é, então, a decisão? — perguntou ela, já com suas reações perfeitamente controladas. — Sim. Essa é a decisão. Muito bem. Que seja. — Você não votou a favor deles, não é? — perguntou Gaia, aninhada no ombro de Lox, à noite. Sabia que não conseguiria dormir, então nem tentava. — Claro que não — respondeu ele, acariciando seus cabelos. — Desde quando punidos podem punir seus semelhantes? — Ele chorava, mas ela não sabia disso. — Eles não têm direito de… de fazer isso. É o que eu acho. — Mas eles vão ver o erro que cometeram — disse Gaia. Gaia atirou-se do mundo etéreo em direção ao mundo físico, ignorando súplicas e lamentos. Pelo meio do caminho, em queda livre, suas lágrimas secaram, e ela jamais entendeu — e ninguém mais, nunca — o porquê de elas terem sido afetadas pela atmosfera; ela queria chorar, queria chorar mais ainda do que já chorara, porque nenhum sofrimento do mundo se compararia àquele que ela sentia, mas o momento da dor era passado, e assim ela assumiu seu primeiro maha, um pteranodonte, e logo se juntou a um bando deles que cruzava os céus. Seus belos filhos voadores logo a reconheceram e bailaram ao seu redor, subindo e descendo, mergulhando e girando, satisfeitos com a visita. A vista daquela alegria toda fez a deusa querer continuar chorando, inundar o mundo com lágrimas, mas aquela anatomia não permitia, aqueles seres não eram feitos para a tristeza. Como ela diria a eles que…? Como poderia? Os seus filhos? Gaia esteve a ponto de mudar de ideia, deixar que Hubal os evoluísse — os profanasse —, mas o ódio reassumiu seu bem-vindo lugar, fundo em seu coração, enquanto via o líder daquele grupo, puro como qualquer um dos outros, mergulhar nas águas e pescar um peixe, trazendo-o para ela, sua mãe, como um presente. Ela ficou grata por ter convivido por tanto tempo com Nemesis. Obrigada por me ensinar a vingança. Gaia agradeceu ao pteranodonte, usando o simples e eficaz sistema de comunicação sonora que os outros cismavam em criticar, mas que atingiam todos os objetivos necessários a todos — todos! — os seus filhos, e se despediu, sem olhar para trás, já rumando à terra. Pousando sobre uma formação rochosa, aquela configuração de Mahagaia farejou o ar e localizou outra espécie. Transmutou-se em microrraptor e adentrou as rochas, em busca da mãe que guarda os ovos no ninho. Naturalmente o pequeno ser assustou-se e imediatamente assumiu sua postura de ataque; Gaia se orgulhou profundamente daquilo, vendo que a mãe lutaria até a morte pela sobrevivência dos filhotes, mas, naturalmente, tal medida não seria necessária. Assim que foi reconhecida — e que cessou a torrente de cumprimentos —, a deusa juntou-se à mãe em sua vigília, Acompanhou-a em seus últimos momentos e nos últimos daqueles filhotes que jamais nasceriam, que jamais teriam tempo para ver crescer suas próprias penas, belas e furta-cor como as da mãe. Descendo das rochas, sentindo o ar gelado em suas narinas, Gaia mais uma vez reafirmou a si mesma como tudo aquilo era injusto. O ódio, a fúria, a revolta cresciam em sua alma na mesma medida que sua tristeza. Saltou para o ar e, antes que inspirasse mais uma vez aquele ar cheio de aromas, já era novamente um pteranodonte. Tinha decidido visitar cada espécie, cada uma que ajudara a criar, mas não aguentaria a dor; aquilo seria demais. Cruzou os céus numa distância que pteranodonte real nenhum teria conseguido, durante todo o resto do dia e durante toda a noite, até finalmente descer junto ao maior rebanho de seus preferidos — os ceratópsios. Tricerátopes, dicerátopes e torossauros conviviam pacificamente, e abriram caminho para que a deusa pousasse e assumisse, educadamente, uma forma intermediária entre todas aquelas espécies. Mesmo os titanossauros e parassaurolofos, ao longe, no vale, saudaram-na. Aqueles foram os últimos momentos de Gaia sobre aquele mundo físico, ali, entre eles. Até um tiranossauro, ao longe, mantendo seu respeito pelo território rival, urrou em respeito à deusa, e ela, em pensamento, desejou que qualquer um daqueles imbecis que a julgaram estivessem ali para ver — não como eles já “viam”, mas que pudessem realmente apreciar — toda a beleza e equilíbrio daquele mundo. O que quer que ela desejasse, contudo, naquele momento deixou de ter qualquer importância — Lox a havia contatado, dizendo-lhe que era finalmente chegada a hora. Ele conseguira roubar o Livro do Cosmos. E, mais incrivelmente ainda, localizar nele o que ela queria — ou não queria, mas que faria assim mesmo. Natlehi tentava, desesperadamente, dissuadir o marido Rá, mas era inútil. Ainda assim, contudo, tinha que tentar. — Caronte já está pronto?! — bradou ele ao primeiro que lhe apareceu. — Vou descer! — Já preparei o caminho, e os outros já estão aguardando — respondeu Anúbis. — Por favor, Rá, não vê que essa medida é… — É o quê, Natlehi?! — gritou Rá. — Desnecessária?! Exagerada?! Exagerado é o que Gaia planeja fazer, você não percebe isso?! Ela… A chegada de Lox forçou Rá a se interromper. — Ela está certa, Rá — disse Lox, e tinha o Livro do Cosmos na mão. — É desnecessária a sua descida lá. É tarde demais — acrescentou, estendendo o livro ao interlocutor. — Você será punido, Lox — cuspiu Rá, o Eleito. — Perderá seu Livro, mesmo que seja… — “A última coisa que eu faça” — completou Lox, sorrindo, mas com o olhar terrivelmente triste. — Não seria você se não dissesse isso. Eu sabia que perderia meu livro, mas não podia deixá-la sozinha. Não podia fazer o que vocês fizeram. Não sou como vocês. — Claro que não é — disse Rá. — Você é quase como ela — acrescentou, e Lox soube que o eleito não falava de Gaia, mas da outra, a excluída. — Acho que posso considerar isso um elogio, vendo agora por esse lado. Mas venham, não desejam ver o espetáculo? As palavras foram ditas, o caminho foi traçado; agora, só nos resta assistir. — E esse é um conhecimento que jamais me poderá ser tirado, pensou Lox. — Vou descer assim mesmo — sentenciou Rá. — Deve haver alguma coisa que… — Não! — interferiu Anúbis. — Não é, de fato… Bem; não creio ser seguro. — Rá imediatamente sentiu a força daquelas palavras comedidas. Se Anúbis receava alguma coisa… — Pois bem — disse então o Eleito, contendo sua fúria com um esforço quase físico. — Gaia ainda está lá, não é? — Lox não precisou responder. — Veremos o que ela fará a si mesma e ao nosso futuro, a maldita. — Pois vamos — disse Anúbis, já se preparando para todo o trabalho que teria muito em breve. — Tudo está prestes a começar… Ou a acabar. Vendo os admiráveis corpos celestes deslocando-se silenciosamente numa única direção, Lox esforçava-se para não sorrir. Apesar da tristeza, aprendeu a sentir o saboroso gosto da vingança, e seria, junto com aquela que lhe era a mais cara, um ótimo pupilo de Nemesis. Aqueles ao seu lado jamais imaginariam que não fora somente o Livro do Cosmos que ele roubara, mas também o Livro das Forças Fundamentais — e com a conivência de Poseidon, que deveria ser o seu guardião, mas que tinha muito a ganhar com tal ato. Com isso, ligou os próprios Livros do Destino à existência física. “Querem tanto uma civilização, não querem?”, dissera Gaia, febril, naquela manhã. “Que seja assim então. Que somente tenham acesso a eles quando sua civilização florescer! Que fiquem reféns de sua própria ambição, e que vejam o mundo levar uma Era inteira para se reerguer, sofrendo com isso tanto quanto eu.” A alma de Gaia se incendiou junto aos asteroides que adentraram a atmosfera por sua causa. Quisera ela ter sido incendiada, queimada, consumida literalmente, mas ao contrário do que Anúbis temera, nada lhe aconteceu por estar ali naquele momento — o que, infelizmente, lhe possibilitou assistir a tudo. A chuva de rochas espaciais atingiu o planeta em vários pontos simultaneamente. O ar queimou, tudo queimou. Queria ver a cara deles agora, pensou. Sentia-se tão desalentada que não teve reação quando viu os terremotos devastarem aquelas terras e matarem a maioria dos seus ceratópsios. O impacto dos maiores asteroides transformou rochas terrestres em meteoritos, subindo à atmosfera e caindo novamente. Seus répteis voadores não sabiam o que fazer; voavam às cegas, ignorando seus sensores magnéticos. Gaia mesmo se sentia desorientada. Não foi capaz de ajudar um pteranodonte que gritou por ela antes de ser atingido por um detrito vindo dos céus — como poderia? —, assim como não percebeu que estava em sua forma original e não mais como maha. Um tsunami varreu as rochas e inundou as cavernas onde aquela mãe microrraptor protegia seus ovos, e os parassaurolofos morreram na enchente de um rio que teve seu fluxo invertido em questão de segundos. Em menos de uma hora, mais da metade dos seus filhos estava morta, e o sol já não aparecia — aquele era, agora, um planeta de pó e fogo. O resto deles em breve pereceria de fome. Ela os matara, os próprios filhos, mas, ah!, o faria de novo antes de vê-los corrompidos pelas mãos daqueles que, por um infortúnio, eram seus iguais. Prometeu que criasse sua própria raça, no futuro, quando pudesse, quando aquele mundo voltasse a ser qualquer coisa mais que um deserto escuro. Ele que criasse monstros à sua semelhança, que repetiriam o que ele e aqueles como ele fizeram no passado. Mas a memória de seus filhos e de seu mundo em equilíbrio — Gaia sorriu, em meio ao calor do vulcão que explodia ao seu lado — ah, a memória de seus filhos e de seu mundo em equilíbrio, ninguém profanaria. Nunca. Que eles fossem apenas uma lembrança, para sempre. Rodrigo Rahmati se acha um escritor, desenhista meia-boca, pretenso dançarino de folclore árabe, karateka que apanha mais do que bate, pseudo-pintor, tentou aprender diversos instrumentos musicais sem sucesso, pensa que fotografa, adora heavy metal, fantasia e ficção científica. Em resumo, maluco. Leia a entrevista que fizemos com o autor. Publicidade Galeria: Fabio Alencar ENTREVISTA: FABIO ALENCAR Por Enrico Tuosto Fabio Alencar é formado em Design Digital e atua como ilustrador freelancer com foco em concept art. Além de matar Super Mutantes nas horas vagas, Fabio gosta de livros, filmes, séries, cachorros e chocolate. De onde veio a ideia para essa capa da Trasgo? Pessoalmente, eu sempre tive problemas com temas livres. Desde os tempos da escola, quando chegava aquela folha sulfite em branco na mesa e a professora falava "desenho livre", a única coisa que vinha na minha cabeça era "puts, e agora?" — são infinitas possibilidades! Por sorte, eu sou mais criativo hoje em dia do que naquela época e possuo uma maior bagagem de referências também. Para a capa, resolvi juntar três coisas que eu gosto: medieval, pós-apocalipse e máscaras de gás (porque elas são incríveis). Tenho uma relação de amor muito intensa com The Last of Us e Game of Thrones, joguei bastante Skyrim e agora estou no Fallout 4, a ideia foi fazer um mash up de tudo isso. Gostei bastante de como você retratou a personagem. Mesmo sem revelar seu rosto, a pose, o cabelo e as roupas dizem bastante sobre a personalidade dela. Pelo seu portfólio, dá para ver que você gosta bastante de desenhar personagens. Como é o processo de concepção delas? Gosto muito de desenhar personagens, especialmente personagens mulheres. Elas têm traços mais suaves, fluidos e cativantes, na minha opinião. Normalmente, eu trabalho com um tema de base. O que ela faz? Do que ela gosta? Como é sua personalidade? São conceitos bem básicos na criação de qualquer personagem, isso ajuda a definir uma pose interessante, expressão, acessórios, cores, etc. Sei que você já trabalhou com ilustração de livros educativos infantis. Que tipo de lições você aprendeu durante esse tempo e como elas refletiram no desenvolvimento da sua arte? Sim, durante dois anos. Foi uma experiência interessante porque eu tinha muita dificuldade em fazer um traço infantil: meu desenho era muito “adulto”, com proporções mais realistas. Hoje em dia é o contrário, muitas vezes eu me encontro infantilizando certas características mesmo quando eu não quero. Quem acompanha meu trabalho há bastante tempo sabe o quanto eu evoluí de uns anos pra cá. Sair da zona de conforto, estar ao lado de pessoas criativas, e, principalmente, DESENHAR TODOS OS DIAS fez com que eu melhorasse muito em um período curto de tempo. Comecei a experimentar novos estilos, técnicas tradicionais e a estudar constantemente. É engraçado pensar que há dois anos eu não conhecia mais de 5 ilustradores. Hoje em dia, posso dizer que grande parte dos meus amigos são artistas. Quais são seus artistas preferidos e que te influenciaram mais? Essa é sempre uma pergunta difícil de responder, citar nomes é complicado quando existem tantos artistas excelentes explodindo em todo canto. Apesar de não levar traços de mangá pras minhas ilustrações, não posso deixar de comentar do Akira Toriyama, esse japa que tornou a minha infância uma época feliz através de Dragon Ball Z. Inclusive, eu realmente percebi que gostava de desenhar nessa época da minha infância. Tenho pastas e pastas de desenhos de DBZ. Alguém lembra da revista Ultra Jovem? Pois é... Gosto muito da Disney também. Tarzan foi a primeira animação que eu assisti no cinema, foi um marco pra mim. O traço do Glen Keane tem uma fluidez invejável, é algo que eu espero conseguir aplicar com excelência no meu trabalho um dia. Elvgren, Mike Azevedo, Jason Chan, Johannes Helgeson, Dice Tsutsumi e tantos outros que não vão caber na resposta. Quais são suas principais fontes de inspiração? Não consigo desenhar sem ouvir música. Já li muitas vezes que o cérebro não se concentra nas duas coisas ao mesmo tempo, mas é algo que está além de mim. Uma boa trilha de filme ou simplesmente uma banda instrumental servem como grande fonte de inspiração. Quem nunca desenhou ouvindo a trilha da Amelie Poulain, por exemplo? (risos) Na maioria das vezes eu opto por uma pegada meio espacial... uma das minhas bandas preferidas para ouvir enquanto desenho é God is an Astronaut, fica a indicação. Pelo que percebi, você trabalha mais com pintura digital. Essa é sua técnica preferida ou existe alguma outra técnica que está desenvolvendo? Pintura digital é meu estilo preferido. No entanto, sou bem versátil em relação a isso, faço um pouco de tudo. Tenho bastante experiência com ilustração vetorial por causa do trabalho com materiais didáticos e também sou aspirante a animador. Quais são seus planos agora que está trabalhando como freelancer? Em quais projetos você anda trabalhando? Sair do emprego fixo pra virar freelancer foi uma decisão de risco, ainda mais na atual situação do Brasil. Resolvi arriscar por ainda ser novo e morar com a minha mãe, talvez eu não tivesse a mesma chance daqui a alguns anos. A parte boa de você não ter um trabalho fixo é que tempo se torna um recurso mais recorrente. Além de conseguir estudar com uma constância muito maior, sou capaz de trabalhar em alguns projetos pessoais. Atualmente, venho trabalhando em um jogo de cartas com tema folclórico e em um livro ilustrado com alguns amigos. Outros projetos, como a produção de um curta pessoal e o desenvolvimento oficial do meu TCC, permanecem engavetados por enquanto. Para quem se interessou pelo seu trabalho, onde podemos encontrar mais sobre você e entrar em contato? Vocês podem me encontrar no Facebook, Instagram, Tumblr e Behance como @fabioalencarart. Se alguém quiser bater um papo, é só chamar! Entrei recentemente para o Patreon também (patreon.com/FabioAlencarArt), é um site que funciona nos mesmos princípios do Padrim, você paga uma pequena quantia por mês para receber conteúdos exclusivos do criador que você apoia. Deem uma passada lá, e se alguém curtir o meu trabalho e quiser apoiar com o mínimo possível eu ficarei muito agradecido! E-mail pra contato é [email protected] Última pergunta: Fallout 4 ou Skyrim? Não sou capaz de opinar (risos). Depois de muitas flechadas no joelho e muitos ghouls me dando tapas na cara, só posso dizer que os dois jogos são excelentes. Me mandem prints por e-mail dos bugs que vocês encontrarem (risos)! Enrico Tuosto é escritor, revisor da Trasgo e rockstar fracassado. Também cuida das redes sociais e da newsletter da revista, mas o que ele gosta mesmo de fazer é jogar RPG. enricotuosto.tumblr.com/writing ENTREVISTA: CLAUDIA DUGIM Por Rodrigo van Kampen Nascida em São Paulo quando ainda garoava, Claudia Dugim é adoradora de grandes cidades. Cursou colégio técnico de Artes Gráficas e posteriormente graduou-se em Letras e Pedagogia; é professora de inglês como segunda língua. Escreve desde pequena, fã de histórias de todo tipo: filmes, quadrinhos, livros, vídeogame, RPG. Lançou um livro de poesias nos anos 90 e parou, voltou a escrever em 2011 e lançou O Caminho do Príncipe em 2013, em fase de reedição. Tem contos publicados na Revista Trasgo, nos Contos Sonoros, nas antologias Piratas (Editora Catavento), Boy’s Love e Contos do Dragão (Editora Draco). Coordenadora do Grupo de Escritores "Singularidades", cujo primeiro projeto foi lançado em 2015, "Cobaias de Lázaro". O segundo projeto, "Retrônicos" será lançado ainda este ano. Dá aulas como voluntária em Oficinas Literárias dentro do projeto Vai (Gibiteca Balão) da prefeitura de São Paulo. De onde surgiu a vontade de trabalhar com a mitologia Maia? Eu gosto muito da América Latina, sua cultura e história. Depois de ir a uma exposição na OCA, "Maias – Revelação de Um Tempo Sem Fim", fiquei realmente fascinada pela cultura do povo maia e quis saber mais. Você fez uma grande pesquisa para o conto? O que é derivativo da mitologia e o que é criação original? Foram dois meses de pesquisa, mais ou menos, entre leituras de livros e artigos, vídeos e fotos. Faz pouco mais de 20 anos que decifrou-se a combinação de glifos e letras que compõem a escrita Maia, portanto o que se conhece ainda é uma pequena parcela. De certa maneira o que está no conto é baseado em fatos reais (risos), poderíamos chamar de uma fantasia histórico-mitológica (risos). Existiu de fato um governador chamado K’inish Pakal, existiu de fato uma governadora Sak Kuk, os dois viveram na época áurea de Palenque. Os sacrifícios, as tumbas sob as pirâmides, a comida e mesmo a Senhora das Moscas são todos frutos de pesquisa na parte histórica. Para a jornada de Pakal pelo Inframundo tentei reunir visões de épocas diferentes das crenças Maias e montar um painel ao mesmo tempo conciso e interessante. A lenda de Cakix, a pirâmide de Xibalba e o rio de sangue constam da mitologia maia. O desafio foi colocar todas estas visões históricas e mitológicas dentro de uma lógica, e pensar em sequências de embate sem espadas ou machados, como é comum na fantasia. Os Maias desconheciam o metal, usavam lâminas de cerâmica endurecidas num processo ainda não desvendado, flechas e zarabatanas. Há no conto a figura do próprio narrador, o escriba. Isso traz a questão do narrador pouco confiável, necessário ao misticismo apresentado. Quais foram as suas principais referências para este conto e estilo de narrativa? A escolha e o estilo foi em homenagem ao historiador e escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor de "Memórias do Fogo - Nascimentos", um apanhado sobre histórias do período pré-colombiano e um dos meus livros favoritos ever. Os escribas eram os historiadores da época. No conto eu deixo claro que Itzamná fantasia sobre os fatos, criei assim um paralelo com minha própria intervenção fantasiosa sobre a História e Cultura Maia. Uma coisa que tomei muito cuidado foi em respeitar os valores desta cultura, não torcer em demasia acrescentando elementos caricatos ou estereotipados. Você nos trouxe agora algo bem diferente de "Gente é tão bom", publicado lá na primeira Trasgo. O que mudou ou evoluiu no seu processo de escrita nesses dois anos? Eu tenho estudado muito composição de texto, acho que minha técnica melhorou, o que é essencial para contar histórias longas. Mas ainda continuo escrevendo contos mais viscerais como "Gente é Tão Bom". O último pode ser lido no meu blog no link ali em baixo, uma distopia sobre a velhice: "O desejo se ser como um rio". Quando eu publiquei "Caminho do Príncipe", que ficou uma bosta (risos), estava voltando a engatinhar nesta coisa de escrever, fiquei 20 anos sem produzir nada. De dois anos para cá eu passei a me dedicar a construir um caminho sólido, participei de 5 concursos e fui escolhida em 4. Três dos meus contos foram publicados em editoras, dois na Draco e um na Catavento. Também editei a produção de uma obra coletiva junto com amigos escritores e estamos finalizando o segundo projeto. Terminei dois livros e reescrevi outro, além de contos, microcontos, poemas e roteiros de quadrinhos. Continuo apostando nos concursos em editoras como porta de entrada para a futura publicação de um livro. Espero que quando publicar um romance de fantasia ou ficção científica eu possa oferecer um trabalho legal, do qual me orgulhe. "Matando Gigantes" agora está disponível em Wattpad para quem quiser ler e criticar. Pode contar um pouco sobre sua produção independente e o que mais tem escrito que pode nos adiantar? Com um grupo de amigos eu publiquei a distopia "Cobaias de Lázaro", uma série de contos no mesmo universo ligados entre si, foi um projeto muito legal e muito bem cuidado. Está em e-book e logo será possível encontrar também o livro físico. Os links estão todos no wordpress, tanto para o Cobaias quanto para as outras obras que já publiquei nestes dois anos. Àqueles que querem conhecer melhor o seu trabalho ou bater um papo, qual o caminho? Para entrar em contato comigo podem me procurar no Twitter ou no Facebook ou no Wattpad fb.com/claudia.dugim twitter.com/claudiadugim wattpad.com/user/ClaudiaDugim Os links para os meus trabalhos publicados e onde comprar e os para a leitura gratuita estão aqui: claudiadu.wordpress.com/about/ Rodrigo van Kampen é escritor, editor da Revista Trasgo, redator publicitário e foge de moto nos fins de semana. Já publicou em coletâneas da Aquário, Draco e em publicações independentes. Mora em Campinas com sua esposa e uma vira-lata, escreve em viverdaescrita.com.br e pode ser encontrado no Twitter como @rodrigovk. ENTREVISTA: MARCO RIGOBELLI Por Rodrigo van Kampen Nascido há 27 anos na capital paulistana, Marco Rigobelli já desenhou, já teve banda e no fim não continuou com nenhuma dessas coisas. Mentiroso profissional, escreve para o papel, para as telas, para os palcos e para as caixas de som. Gosta de contar histórias e de falar sobre contar histórias. Há algumas interpretações possíveis para "Chamado à Razão" e sua estrutura cíclica, que vai desmontando a realidade camada por camada até o final. Mas qual foi a origem do conto, a fagulha inicial? Eu precisava contar a história de uma criança, em uma época bem diferente da nossa, despertando Cthulhu por acidente. As camadas foram aparecendo à medida que eu ia escrevendo o primeiro rascunho e continuou nas revisões. Então não foi uma fagulha, mas uma série delas. Porque primeiro pensei que poderia ser uma alucinação, então pensei que seria legal se essa alucinação tivesse um quê dos contos de cavalaria, porque provavelmente era uma coisa que o protagonista ouvia com frequência e provavelmente era para lá que sua mente fugiria. Pegaria retalhos da realidade e os enfeitaria para fugir do que aconteceu; sem de fato conseguir escapar. "Chamado à Razão" tem uma clara influência de H. P. Lovecraft. Como esse autor, e outros, influenciam o seu trabalho? Quais são seus favoritos? O próprio Lovecraft nunca foi uma influência direta, acho que fui mais influenciado pelo horror cósmico que ele criou e a cultura que se gerou em torno disso. Acho ele um escritor bastante instável, com obras incríveis como A cor que veio do espaço e outras nem tanto. As influências funcionam de várias formas. Assim como no conto Lovecraft pesou pela temática, a minha escrita é sempre assombrada por quem costumo ler, como Borges, Érico Veríssimo, Ítalo Calvino, Ursula Le Guin, Hemingway, Flaubert. Quando você escreve, é inevitável acabar costurando e procurando encaixes em características de autoras e autores diferentes que leu durante a vida. Principalmente quando se propõe a experimentar não só com gêneros, mas também com a linguagem. Quanto aos favoritos, me proponho a sempre ter como favoritos pessoas que ainda estão vivas e podem me surpreender ou produzir coisas novas. Atualmente são China Miéville e Luisa Geisler. Como é o seu processo de escrita? Ele varia de acordo com a origem da ideia. Às vezes tenho só um título, outras uma cena, outras tenho um tema pra trabalhar e preciso me virar pra tirar alguma coisa daí. Mas normalmente começa com um argumento breve da história, que serve como base para que eu possa saber o quanto vou (ou mesmo se vou) precisar pesquisar, então trabalhar o primeiro rascunho, fazer quantas revisões forem necessárias, mandar para um grupo de leitores beta que reuni pra irem lendo meus textos à medida em que vou produzindo e assim sempre escuto opiniões externas diversas para entender no que estou acertando e errando. Você, além de escrever, organizou a coletânea sobre Futebol da Draco. Qual as diferenças e semelhanças entre esses dois trabalhos? Não vejo muitas semelhanças, porque, embora os dois sejam trabalhos criativos, eles funcionam de maneira bem diferente: um processo é bem mais mecânico e colaborativo do que o outro. Talvez a única [semelhança] seja que ambos funcionam com negociações. Enquanto escrevendo você negocia consigo mesmo, com o narrador, com os personagens, com as ideias, com o texto e etc; organizando uma coletânea você negocia com os autores e com o próprio tema sobre as liberdades que se pode tomar sem, no entanto, fugir da proposta. Em que tem trabalhado ou para sair que pode nos adiantar? Atualmente estou com meu primeiro romance, chamado "Homo Solaris", entre revisões. Optei pelo processo paciente, então ainda não sei quando o livro estará pronto para começar a pensar em quais serão os passos para publicação. Recentemente terminei de escrever o texto para uma peça de teatro chamada "A vida segundo a Morte" que está naquele limbo chato de tentar viabilizar a produção. Para quem gostou do seu trabalho e quer conhecer mais, quais os endereços? Tenho textos que vão de ficção à reportagens, passando por resenhas, no medium.com/@marcorigobelli. Tenho também uma newsletter semanal chamada Scripta Manent (tinyletter.com/scriptamanent) onde escrevo sobre processo criativo, escrita e as mazelas da vida. E os contos publicados estão no site da Draco (editoradraco.com/?s=marco+rigobelli) e nas principais livrarias físicas e digitais. Rodrigo van Kampen é escritor, editor da Revista Trasgo, redator publicitário e foge de moto nos fins de semana. Já publicou em coletâneas da Aquário, Draco e em publicações independentes. Mora em Campinas com sua esposa e uma vira-lata, escreve em viverdaescrita.com.br e pode ser encontrado no Twitter como @rodrigovk. Publicidade ENTREVISTA: RAFAEL DIAS CANHESTRO Por Enrico Tuosto Rafael Dias Canhestro tem carreira recente como escritor, com dois contos publicados: "A menina e a banheira", na antologia Horas Sombrias (Andross), e "Cadáver", selecionado no concurso promovido pela editora AMCGuedes, e publicado em maio desse ano. Ainda publicou o livro "A casa", pela editora Multifoco. Ruínas No Horizonte é um conto pós-apocalíptico muito visual. O que te inspirou a escrevê-lo? A ideia surgiu da proposta de um concurso literário. O tema era algo sobre cidades lendárias, baseando-se num conto do Lovecraft, não me recordo o nome agora... Então pensei em desenvolver alguma coisa na linha terror/suspense com uma pitada leve de drama. Pensei: por que não fazer diferente? Ao invés de fazer o tradicional (exploradores descobrem ruínas de uma civilização antiga), quis encaixar a narrativa em um cenário moderno seguindo a premissa de que as nossas cidades de agora, todas essas fervilhantes de vida, um dia entrarão num processo de decadência, como toda e qualquer civilização, e haverão novas ruínas na paisagem, que as futuras gerações encararão como restos de um tempo perdido, de uma história findada. Quer dizer... Isso se houver alguém para fazê-lo. Os dois personagens principais na história encaram destinos terríveis. Se fosse para se colocar no lugar de algum deles, você preferiria ser Alfredo ou Ricardo? Nenhum deles. (risos) Pretende expandir o universo de "Ruínas no Horizonte" ou essa foi uma história avulsa? Faz parte de um universo maior. Tenho um projeto em fase de maturação, que chamo de "Terras Áridas" e que se passa nesse mesmo mundo apocaliptico. As únicas diferenças são geográficas e sociais. De resto... Quais são suas influências literárias? E o que mais te inspira, além da literatura? Tenho muito a agradecer ao mestre Stephen King. Ele me fez pegar gosto pela literatura. Ele é um sujeito que domina a técnica narrativa e todas as ferramentas que envolvem o processo. Por mais que queiram diminuí-lo, o cara se vira muito bem e hoje é um dos mais cultuados na cena da literatura de medo. E ele me ensinou uma coisa importante e que levarei para o resto da minha vida: o simples é bom. Outros autores que posso citar são Charles Bukowski e seu estilo irreverente de escrita, sem papas na língua e de uma poética seca e sem enfeites; Edgar Allan Poe e sua narrativa psicológica (que tem me inspirado em muitos de meus trabalhos); Nelson Rodrigues e sua capacidade de compôr diálogos que soam naturais, além de sua ficção trabalhar temas tabu, algo que me fascina; George Oswell e suas assustadoras distópias; Fernado Pessoa e sua poesia; Céline e seu humor mórbido e que recusa clichês; Clarice Lispector e a sua habilidade ímpar de transformar o banal em algo fantástico; e ainda Fernando Sabino e suas crônicas deliciosas de ler, prova de que literatura se faz do simples e dispensa preciosismos. Paisagens também me inspiram. O urbano, o selvagem, essas coisas permeiam a minha ficção. Você possui alguma rotina ou hábito de escrita que queira compartilhar? Costumo me sentar na frente do computador por umas três horas com um tema em mente e desenvolvê-lo de forma livre. Na medida em que a história ganha corpo, eu a vou direcionando para um desfecho, um significado. Não costumo me martirizar pensando: "Ah, não, está uma merda! Ah, não, é uma ideia estúpida!" Apenas escrevo. Se um sujeito quer ser escritor, ele tem de escrever, mesmo se for para produzir um texto ruim. Faz parte. Como ele vai saber o que funciona ou não, se tem medo de experimentar, ao menos tentar? Não sei se acrescenta, mas... Tomo copadas e mais copadas de água enquanto crio. Ou é isso ou são as cervejas, e como a grana tá curta... Vai água mesmo! Nos conte um pouco do seu livro "A Casa" e a experiência de escrevê- lo. Um livro escrito por um rapaz imaturo. Foi a minha primeira experiência séria com a literatura. Mas foi importante em minha trajetória. Me ensinou algumas lições, como não ter pressa. A verdadeira arte precisa de tempo para desabrochar. Lendo suas histórias, você acredita que o leitor passa a conhecer um pouco da personalidade do autor? Talvez. Algo da gente acaba respingando no texto. Eu pego muito do que vivo e levo para a ficção. Mas confiar inteiramente nessa premissa é um perigo. Basta lembrar de Fernando Pessoa. Quantas pessoas haviam dentro daquele único homem? Acredito que pedacinhos do autor estejam espalhados na tessitura narrativa, mas são apenas algumas peças que juntas não completam o que de fato é o homem. Todos nós somos complexos demais para a possibilidade de um entendimento pleno. Como cantava Raul Seixas: "Cada pessoa é um universo." Em quais histórias você está trabalhando? O que podemos esperar para o futuro? Atualmente, tenho me concentrado em concursos literários. Trabalho em uma coletânea de contos que explora a loucura do cotidiano, a modernidade que sufoca o homem. Em breve estará pronta. Já os romances... alguns em andamento, mas todos incompletos. Precisam amadurecer. Para quem gostou da sua escrita, onde podem te encontrar? Tenho um blog que não atualizo há uma década: canhestro.blogspot.com.br Aviso que os contos publicados nessa página carecem de revisão. Fazem parte da primeira leva. São os meus mais antigos esforços literários. Deseja compartilhar algo mais com os leitores da Trasgo? Compartilho a minha alegria pela oportunidade de ter um conto publicado na Trasgo. É sempre bom ter o nosso trabalho valorizado. Enrico Tuosto é escritor, revisor da Trasgo e rockstar fracassado. Também cuida das redes sociais e da newsletter da revista, mas o que ele g osta mesmo de fazer é jogar RPG. enricotuosto.tumblr.com/writing ENTREVISTA: CAROLINE POLICARPO VELOSO Por Enrico Tuosto Caroline Policarpo Veloso publicou o livro de poemas Palavras Andarilhas (Editora Penalux) no início de 2015. Gosta muito de relógios, mapas e calendários, embora relute em confiar neles. Participou de algumas coletâneas, entre elas Poderes (Darda), King Edgar Hotel, Utopia, Sonhos Lúcidos e Ponto Reverso (Andross). Já publicou na Trasgo, na edição número 3. Não é verdade que tenha um dragão imaginário de estimação. "Essa é a nossa história. Você vai adorar" é um conto fantástico um tanto sombrio. De onde surgiu a ideia para escrevê-lo? A ideia de personagens ganhando vida aconteceu primeiro, o restante do conto foi se construindo para dar sentido ao final. Penso bastante na relação entre realidade e ficção, é algo que estou tentando entender e explorar. No conto, a realidade pode virar ficção, a ficção pode ser muito real, as fronteiras se perdem. Mas será que precisa mesmo de magia pra isso? Eu acho que não. Eu não pude deixar de imaginar o destino do escritor da sua história e pensar nas minhas próprias personagens. Se fosse você no lugar do escritor, acha que suas personagens teriam motivo para vingança? (O escritor com certeza teria, mas e as outras, de outras histórias?) O objetivo da pergunta era me assustar? Ah, tenho que admitir que algumas teriam, sim. Mas por que não pensar nas que teriam motivos para gostar de mim? Se todas as minhas personagens existissem (ou se eu fosse tragada para dentro de um conto), eu ficaria feliz em ganhar algumas amizades — isso, é claro, se escapasse das personagens que não vão querer ser minhas amigas. É sua segunda aparição aqui na Trasgo. "Essa é nossa história..." possui uma atmosfera muito diferente de "Feita de um Sonho", seu conto que publicamos na Trasgo 03, embora ambas histórias sejam de fantasia. O que você sente que mudou na sua escrita desde que publicou um conto com a gente da última vez? Tanta coisa! Esses quase dois anos parecem um infinito. Encaro a literatura de forma completamente diferente agora. Ainda estou me descobrindo, testando caminhos, mas tenho uma ideia mais clara — e mais realista — do que quero alcançar com a escrita. Qual o seu processo de escrita? Possui alguma rotina? Gosto de escrever de manhã ou à noite, mas não é exatamente uma rotina. Não tenho o hábito de escrever todos os dias. Quando estou em uma história longa, tento arranjar tempo para ela e exigir compromisso de mim mesma, mas nem sempre funciona. Não sou organizada o suficiente. Já sabemos que você gosta de Clarice Lispector, Marian Keyes, Douglas Adams, J. K. Rowling e Carlos Ruiz Záfon. Nestes últimos tempos leu algum outro autor que te impressionou e influenciou sua escrita? Com certeza! Comecei a ler mais Neil Gaiman, conheci Cesar Aira, Anne Enright, Muriel Barbery. Leio mais poesia contemporânea, poderia citar Angélica Freitas, Geruza Zelnys, Ana Martins Marques, e parar por aqui para não estender muito a lista. Diria que são leituras que tocam, atingem, às vezes tiram o chão, e por isso são transformadoras. Você publicou um livro de poesias ano passado. Qual a diferença no seu processo entre a escrita da poesia e a escrita de um conto? Um poema quase sempre acontece de uma vez, ainda que esse "de uma vez" seja o acúmulo de muitos fragmentos que demoraram a tomar forma, de muitas tentativas fracassadas. Um conto pode demorar semanas ou meses para ser escrito e geralmente precisa de mais ajustes no rascunho do que um poema. Pra mim, quanto mais longo o texto, maior a dificuldade em fazer com que tudo se encaixe bem. Não significa que eu ache mais fácil escrever poesia, mas o esforço envolvido é diferente. Da última vez que você esteve com a gente, comentou sobre um romance juvenil chamado "Hírons". Como ficou essa história? Ficou... no pen drive. Algumas coisas aconteceram, outras não aconteceram, e acho que Hírons vai continuar no pen drive mesmo. No que mais anda trabalhando? Nos conte as novidades. Em breve pretendo apresentar a "Inventada", uma não-humana habitante de um mundo chamado Fictício que se cansou de percorrer as longas estradas de Fantasia, perder-se nas confusas ruas de Comédia e passar noites nos assustadores castelos de Horror. Inventada encontrou o caminho para um lendário mundo chamado Real, achando que lá sua vida seria cômoda e fácil. Será que estava certa? Quem gostar das suas palavras pode te procurar onde? Tenho alguns poemas na Revista Subversa, que pode ser acessada em canalsubversa.com. No mês passado saiu na coletânea "Poderes" (Darda) um conto chamado "Sobrevivências", sobre uma mulher que precisa arriscar a vida todos os dias para sobreviver, mesmo que isso signifique ferir a si mesma. No fim de 2015 publiquei no projeto "O Corvo - um livro colaborativo", uma ideia bacana da Empíreo em homenagem ao poema de Edgar Allan Poe, o texto "O ponto de vista do Corvo". Como o título sugere, conto o que o pobre corvo de nome Nunca Mais achou da situação relatada por Poe. Quem quiser pode me acompanhar no Facebook para saber de novidades: fb.com/Carol.policarpo.veloso Última pergunta: como é voltar para a Trasgo depois de algum tempo? É um prazer ainda maior do que estar aqui pela primeira vez. Conheço mais a Trasgo, vi a revista acontecendo, crescendo. Estou em um momento diferente da vida, tenho uma relação diferente com a escrita, enfim... Nunca se volta exatamente ao mesmo lugar. Enrico Tuosto é escritor, revisor da Trasgo e rockstar fracassado. Também cuida das redes sociais e da newsletter da revista, mas o que ele gosta mesmo de fazer é jogar RPG. enricotuosto.tumblr.com/writing ENTREVISTA: VILSON GONÇALVES Por Rodrigo van Kampen V. M. Gonçalves é natural de Ponta Grossa, onde atua na área de arte-educação. Graduado em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e mestre em Comunicação e Linguagens pela Universade Tuiuti do Paraná, é entusiasta da cultura nerd de forma geral, especialmente do cinema. Apaixonado por folclore e culturas antigas, especialmente as Pré-Colombianas, dedica seu tempo livre à criação de universos fantásticos feitos de ideias e tinta. Em 2014 publicou seu primeiro romance, "A Canção de Quatrocantos: O Homem de Azul e Púrpura", pela Editora Buriti. Expandiu o universo de Quatrocantos com os ebooks independentes "Guerreiras do Sol e da Lua", em 2015, e "O Rei Amaldiçoado", em 2016. O que me chamou a atenção de imediato em "Pindá" foi a inversão de papéis tradicionais de gênero. Qual foi a inspiração para esse conto? Imaginei a sociedade matriarcal de Pindá a partir da fusão de duas narrativas tradicionais. A primeira é o relato dos espanhóis sobre as mulheres guerreiras encontradas no Amazonas (e a razão pela qual o rio recebeu este nome), um relato que coincide com a narrativa folclórica das icamiabas, utilizada por Mario de Andrade em Macunaíma. A segunda é um mito muito comum entre as tribos aruaques, e que no Alto Xingu foi incorporado por tribos de outras famílias linguísticas. O mito trata de um momento anterior da história destes povos, quando os papeis de gênero eram invertidos, algo que só mudou quando os homens roubaram as flautas sagradas (chamadas jacuí no Xingu) e as tocaram, mudando artificialmente a ordem das coisas. Por isso mulheres são proibidas de ver as flautas ou de entrar na casa onde elas são guardadas, no centro da aldeia. Há um contraste interessante entre as três mulheres principais da história: Pindá, Akang e Itzel, cada uma com motivação particular. Com foi escrevê-las? Colocar carne no esqueleto nunca é fácil para mim (risos). Tentei pensar cada personagem a partir do seu background e imprimir algumas idiossincrasias, tanto quanto foi possível no espaço do conto. Pindá e Akang são abayukás, criadas para a guerra. Elas cresceram em uma sociedade na qual exige-se que mulheres sejam fortes e aceitem que a violência é parte da vida e nada de valor pode ser obtido sem ela. Akang já é uma guerreira idosa e respeitada, que venceu muitos inimigos. Ela é altiva, impaciente, e exige de suas “filhas” toda a coragem e perícia que crê que ela mesma possui. Pindá ainda é jovem, precisa ganhar sua fama através das armas. Ela sabe que tem potencial para ser uma grande guerreira, e por isso é ambiciosa, otimista e não pensa muito antes de se lançar ao perigo. O que a motiva é o que motivou guerreiros ao longo da história: reconhecimento da tribo, desejo de se provar, luxúria e uma certa submissão à tradição. Itzel, por sua vez, é uma mulher do povo tuylum, um povo antigo, recluso e patriarcal. Apesar de ser uma pessoa de visão, que deseja governar sua cidade, ela sabe que sua cultura vê as mulheres com desconfiança, por considerá-las traiçoeiras e inclinadas à prática da magia, e que uma mulher só pode chegar ao poder através de artimanhas. Gosto de pensar que ela é uma governante capaz, mas, dadas as condições, precisa agir de forma cruel e dissimulada para atingir objetivos – como muitos governantes reais fazem. O conto pertence ao universo de "A Canção de Quatrocantos", cujo livro "O Homem Azul de Azul e Púrpura" foi lançado pela editora Buriti. Pode contar mais sobre esse universo e o livro? Quatrocantos é um continente ficcional baseado na América anterior ao contato com os europeus, especialmente as Américas Central e do Sul. Assimilei também vários elementos de outras proveniências, especialmente no que se refere a temas do folclore brasileiro que já carregam alguma influência cristã, ibérica ou africana. "A Canção de Quatrocantos – O Homem de Azul e Púrpura", narra a primeira parte da jornada de um homem chamado Wayra através de Quatrocantos. Foi a maneira que encontrei de apresentar meu universo. Espero concluir a saga ao longo dos próximos dois ou três anos, talvez mais. O primeiro livro revela minha inexperiência (risos): é muito descritivo e passou para a versão final repleto de erros, então quero ser mais cuidadoso com as continuações. Como foi o trabalho de pesquisa para a criação desse universo? Tudo começou nos tempos de faculdade, quando me apaixonei por crônicas quinhentistas e arte pré-colombiana. Pouco a pouco isso me levou a ler tudo que conseguia encontrar sobre antropologia, cultura material e práticas religiosas dos povos da América Antiga. Paralelamente, em parte por causa de discussões com colegas, comecei a me perguntar porque ninguém havia pensado em criar um universo fantástico com esses elementos e por que era tão raro que elementos oriundos do folclore indígena brasileiro recebessem um tratamento mais sério. Decidi então encarar o esforço e transformar esses questionamentos em uma proposta. A partir daí, assisti uma pilha de documentários e li tudo que pude sobre incas, astecas, tupinambás, marajoaras, anasazi e tantos outros povos americanos. Queria que este mundo tivesse textura, dos vestuários, aos costumes, ritos e alimentação. Este é um trabalho ainda em progresso e algo novo aparece a cada dia. Como é o seu processo criativo em geral? Depende. Geralmente o gatilho é um tema, que me leva a ter vontade de contar uma história em particular. A partir daí penso o contexto e vou colocando carne no esqueleto. A primeira versão de Pindá, que partiu de uma proposta bem clara (pois eu tinha essa vontade de escrever minha versão da narrativa clássica de espada e feitiçaria, com um ponto de vista feminino e com minhas influências), foi moldado em cerca de três dias. Outras narrativas, que não surgem tão organicamente na minha cabeça, demandam uma pá de tempo a mais, muitos copos de achocolatado e muitas paradas para o pão com mortadela. E quanto às inspirações, autores e obras favoritos? Três autores me inspiraram a escrever: Eiji Yoshikawa (Musashi), T. H. White (O único e eterno rei) e, por clichê que seja, J. R. R. Tolkien. Se encarei a tarefa de criar e descrever um mundo para alguém, foi por influência destes autores. Musashi, em particular, ainda é minha obra literária preferida e o parâmetro que eu uso para julgar qualquer romance extenso, independente do gênero. Fora esses, aprecio muito o trabalho de Marilyn Hume (em especial a trilogia Merlin), Eoin Colfer (da série Artemis Fowl), J. K. Rowling. De Bernard Cornwell, sempre retorno à série Crônicas Saxônicas. O que mais tem publicado, ou para sair em breve? Além de "O Homem de Azul e Púrpura", tenho dois ebooks disponíveis na Amazon: "O Rei Amaldiçoado" e "Guerreiras do Sol e da Lua". Ambos se passam em Quatrocantos. Fora esses, escrevi com meu amigo, Fabio Clavisso Fernandes, um paródia de poema épico chamada "A Saga de Thorvald", também disponível na Amazon. Para o futuro próximo, planejo uma novela intitulada "Manákotui – A Casa das Vozes", que tratará de um aspecto de meu universo sobre o qual não escrevi muito ainda: os gururetúk, um povo mágico, inspirado, entre outras coisas, por mitos como o Curupira e o Yacy Yateré. Para quem gostou do seu trabalho, qual o caminho para saber mais? Convido a visitar a página de Quatrocantos no Facebook, onde posto ilustrações e informações sobre o universo e publicações (fb.com/acancaodequatrocantos). Estou sempre disposto a trocar ideias e oferecer informações. Rodrigo van Kampen é escritor, editor da Revista Trasgo, redator publicitário e foge de moto nos fins de semana. Já publicou em coletâneas da Aquário, Draco e em publicações independentes. Mora em Campinas com sua esposa e uma vira-lata, escreve em viverdaescrita.com.br e pode ser encontrado no Twitter como @rodrigovk. ENTREVISTA: RODRIGO RAHMATI Por Lucas Ferraz Rodrigo Rahmati se acha um escritor, desenhista meiaboca, pretenso dançarino de folclore árabe, karateka que apanha mais do que bate, pseudo-pintor, tentou aprender diversos instrumentos musicais sem sucesso, pensa que fotografa, adora heavy metal, fantasia e ficção científica. Em resumo, maluco. Desenhista, dançarino, karateka, pintor e fotógrafo. Como foi que a escrita se juntou a esse hall de habilidades tão diversas? Eu sou uma criatura movida a artes! Eu comecei a me envolver com elas através do desenho – tinha começado uma história em quadrinhos (que hoje virou um capítulo do meu segundo romance), mas vi que não era bom o bastante para quadrinhos; a história em formato de roteiro tinha ficado melhor do que desenhada. Daí para tentar usar a prosa foi um pulo – e o ímpeto de escrever foi consolidado quando o escritor Leonel Caldela me deu valiosas dicas, ainda no finado Orkut. Já as outras artes foram sendo acrescentadas por motivos diversos umas das outras, mas tudo o que representa a expressão artística me interessa profundamente. Amo música também, mas não me vejo indo por esse caminho, contudo. A escrita acabou sendo a que mais me possibilita encontrar o que há de oculto na minha cachola. Seu conto traz uma miríade de deuses de diferentes mitologias e sugere que, nesse universo, a humanidade será criada em breve. Toda essa construção de mundo foi feita apenas para esse conto ou isso faz parte de algum projeto maior? Esse conto se passa durante a Segunda Era de um planeta conhecido como Acqua – e sim, é parte de um projeto maior. Meu primeiro romance – que será publicado em breve! – se passa na Quarta Era desse mundo, que é uma versão alternativa do nosso próprio. A Primeira Era seria então a Era dos Deuses; a Segunda a Era dos Dinossauros; a Terceira o período conhecido como A Noite dos Tempos; e a Quarta, a Era dos Homens. Existem, ainda, outros projetos, que abarcarão outros momentos dessa história, mas serão projetos futuros, depois de outras coisas mais “urgentes”. Recentemente você teve vários contos lançados em eBook pela Editora Draco, poderia nos falar mais sobre eles? Sim, foram cinco contos lançados de uma vez só! Já que falei sobre as Eras de Acqua, vou comentar primeiro o conto "My shadow plan": É um conto de fantasia tecnológica, que é, na verdade, uma aventura extra dos personagens do meu primeiro romance. O conto "Nil" é uma fantasia tradicional completamente inspirada no trabalho do deus Neil Gaiman, e é o mais curto de todos. O conto de terror "Kamerorkester! é um dos meus preferidos, porque o achei bem inquietante e bem resolvido – um dos raros casos que conseguimos pôr no papel exatamente o que está em nossa cabeça. O conto "Paid in full" era para ser, também, relacionado ao romance, mas virou um conto de ficção científica completamente diferente, onde eu dou uma nova roupagem ao deslocamento temporal. Já o "Aquecimento global (Em fogo alto)" é fantasia, mas tem uma pegada de comédia bem forte, e é inspirado pelos mestres do humor inglês, da literatura e da televisão. O que você tem na gaveta e quais os projetos futuros em que está trabalhando? Além do romance pronto para publicação, estou terminando sua continuação única, que dá fim à história. Estou trabalhando também num romance realista, sobre um fotógrafo; num outro livro de fantasia, inspirado em música; em vários contos ao mesmo tempo; e, por último mas não menos importante, numa novela que deverá sair numa coletânea vindoura muito interessante – mas da qual não posso falar muito :) Seu conto me parece uma fantasia com um pitada de ficção científica, como você trabalha com esses gêneros? Você acha que é possível obter resultados interessantes dessa mistura? Uma das histórias que mais me cativou na vida foi a do game Final fantasy VII, complementada pelo filme Advent children. Achei incrível aquela atmosfera, onde magias e monstros folclóricos contrastavam com celulares e aparatos tecnológicos – posso dizer até que foi isso o que me motivou a criar o mundo de Acqua. Meu romance vindouro tem mais ainda dessa mistura, descaradamente mesmo, e os leitores beta dele tiveram dificuldades em categorizá-lo em um ou outro gênero. Isso muito me alegra! Acho cativantes as histórias que mesclam ambos. Quais são suas maiores influências literárias e como você se utiliza delas em seu processo criativo? Sem sombra de dúvidas são Neil Gaiman, Stephen King, Ray Bradbury, Terry Pratchett, Haruki Murakami e, por que não?, Leonel Caldela. Neil Gaiman me mostrou o que é, de fato, criar uma história, uma atmosfera, uma magia através do texto. Stephen King me ensinou a usar nosso mundo como base, e como o realismo brutal deixa as coisas mais tensas – além de criar personagens tão reais que você pensa que pode encontrar na padaria da esquina. Ray Bradbury me ensinou como usar a melancolia como ferramenta poderosa. Terry Pratchett me ensinou a criticar o mundo através do humor, e Haruki Murakami me mostrou que pode-se pegar tudo isso que já foi feito e chacoalhar tudo num liquidificador e ainda acrescentar mais uma pitada de estranheza – e criar sua história assim mesmo... porque sim. E sem a força de Leonel Caldela eu talvez não tivesse chegado aqui. Quais os meios para que os leitores conheçam mais sobre você e sua obra? O melhor meio para encontrar tudo o que eu já fiz é no meu blog, rahmati.com.br; tem tudo linkado lá. Eu tenho ainda uma coluna no site Monomaníacos (monomaniacos.com.br/coluna/orecortedodetalhe/) onde uso bons e maus exemplos de textos publicados para dar dicas de escrita. E para achar meus contos, é só pesquisar pelo meu nome na Amazon, Cultura, Saraiva, Apple ou Google Livros. Lucas Ferraz é um Consutor de TI que se meteu a escrever e não parou mais. Participa dos podcasts CabulosoCast e Papo Lendário, sobre literatura e mitologia respectivamente. Escreve crônicas e edita os contos do Leitor Cabuloso e participa da Trasgo como revisor. lucasferraz.com | @ferraz_lucas PADRIM TRASGO O Padrim é um site que permite que você apoie os seus projetos favoritos por doações mensais. Tornando-se um padrinho ou madrinho da Trasgo, você colabora com a revista, torna as próximas edições possíveis e investe na ficção científica e fantasia brasileiras! Também tem acesso a benefícios exclusivos como vagas em cursos, sorteio de livros, acesso prévio à revista e até pode ajudar a montar as próximas edições. A Trasgo precisa do seu apoio. Acesse: padrim.com.br/trasgo e veja todos os benefícios! MADRINHAS E PADRINHOS Muito obrigado, de coração pelo apadrinhamento. 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Obrigado por ler a décima edição da Trasgo! Esperamos que tenha gostado. Conte para um amigo, visite o site trasgo.com.br, seja nosso padrinho ou madrinha e ajude-nos a tornar a revista um pouco mais popular. Créditos da edição Organização: Rodrigo van Kampen Revisão: Lucas Ferraz e Enrico Tuosto Ilustração: Fabio Alencar Autores: Caroline Policarpo Veloso, Claudia Dugim, Marco Rigobelli, Rafael Dias Canhestro, Rodrigo Rahmati e Vilson Gonçalves. Acompanhe a Trasgo Revista: trasgo.com.br Padrim: padrim.com.br/trasgo Newsletter: trasgo.com.br/news Twitter: twitter.com/revistatrasgo Facebook: fb.com/revistatrasgo Proibida a reprodução de qualquer conteúdo desta edição. Todos os direitos reservados à Revista Trasgo e aos respectivos autores e ilustradores. Abril / 2016