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Revista Trasgo
Edição 10
Editorial #10
Créditos
Madrinhas e Padrinhos
· Contos ·
O Menino Jaguar e o Escudo do Sol
Chamado à Razão
Ruínas no Horizonte
Essa é a nossa história. Você vai adorar
Pindá
Noturno deserto
· Galeria e entrevistas ·
Galeria: Fabio Alencar
Entrevista: Fabio Alencar
Entrevista: Claudia Dugim
Entrevista: Marco Rigobelli
Entrevista: Rafael Dias Canhestro
Entrevista: Caroline Policarpo Veloso
Entrevista: Vilson Gonçalves
Entrevista: Rodrigo Rahmati
· Patrocinado ·
Brasiliana Steampunk
CabulosoCast
Envie o seu conto
Padrim Trasgo
EDITORIAL #10
Chegamos à décima edição e temos muita coisa bacana para compartilhar
com vocês. Fizemos recentemente uma campanha mais efetiva de captação
de contos e recebemos mais de cem textos para avaliação. Os textos serão
lidos com calma e selecionados para as próximas edições. E você sabe,
quanto maior o volume de submissões, mais incríveis os contos que traremos
para cá!
Nesta edição, ilustrada por Fabio Alencar, trazemos seis contos de
autoras e autores brasileiros. Abrimos com “O Menino Jaguar e o Escudo do
Sol”, um conto de Claudia Dugim inspirado em lendas da cultura Maia.
“Chamado à Razão”, de Marco Rigobelli, parece um conto fantástico de
temática medieval, mas logo descobrimos camadas mais profundas
escondidas entre as linhas. “Ruínas no Horizonte”, de Rafael Dias Canhestro,
é um conto um pouco mais voltado ao horror do que costumamos publicar
aqui na Trasgo, uma FC apocalíptica clássica.
“Essa é a nossa história. Você vai adorar” é o título do conto de Caroline
Policarpo Veloso, e sim, você vai adorar. Sem revelar muito, digo apenas que
um escritor recorre à magia de uma bruxa, antiga e poderosa, para satisfazer
suas ambições literárias. Em seguida conhecemos “Pindá”, de Vilson
Gonçalves, uma jovem da tribo das abayukás destinada a provar o seu valor a
qualquer custo. Encerramos com “Noturno Deserto”, de Rodrigo Rahmati, um
conto sobre deuses, seus caprichos e consequências.
Como sempre, todos os autores e autoras foram entrevistados para
apresentar um pouco mais de suas obras. Esta edição é a primeira que
fazemos graças aos nossos padrinhos e madrinhas. Muito obrigado mesmo
pelo apoio, estamos caminhando a passos largos para nos
profissionalizarmos. Seja nosso apoiador no Padrim, leia e compartilhe a
revista, você não imagina o quanto um simples link nos ajuda a crescer.
Agora, um pouco dos bastidores: estamos elaborando a primeira Revista
Trasgo impressa, que incluirá as edições 1 a 4, além de contos inéditos
escritos pela equipe. A lojinha da Trasgo também está quase pronta, com
camisetas, canecas e pôsteres com essas capas lindonas.
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novidades e coisas bacanas da literatura nacional compartilhadas por lá!
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mais! Como sempre, você encontra imagens em alta para postar em seu blog
em trasgo.com.br/imprensa.
Muito obrigado, a Trasgo cresce a cada edição graças a vocês.
Aproveitem, essa edição está fantástica!
Rodrigo van Kampen e equipe da Trasgo
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O MENINO JAGUAR E O ESCUDO DO SOL
Claudia Dugim
C
omo escriba não acrescentei realidade ao meu mundo, assim parto para
o pós-vida. Os papiros virarão cinzas e as pedras, selvas, quando o sol
se pôr no último dia do último ciclo. Isso eu sei, pois Pakal me disse, há
muitos anos atrás.
“Nós, que nascemos do barro no 13º dia da criação e reverenciamos o sol
da cor de milho, somos gratos a Pakal e oferecemos a ele no dia de sua
ascensão sacrifícios de escravos, crianças e virgens, jogos e festas.” Em
9.9.2.4.8 5 Lamat 1 Mol, na província de Palenque, o Escudo do Sol tornou-se
o maior governador Maia em todos os gloriosos ciclos em que nossa
civilização existiu.
No começo daquela manhã, no entanto, o pequeno jaguar ainda resistia à
ideia de governar seu povo.
— Eu não quero governar, mãe Sak — disse K’inich Janahb Pakal.
A grande Sak Kuk, que administrou longos anos depois da morte de seu
marido, o governador de Palenque, e continuaria conselheira do futuro
governador, parou de cantar e se autoflagelar, rituais necessários antes da
cerimônia de ascensão do filho, e pôs o menino em ordem:
— Sei que você não gosta de muitos enfeites, jaguarzinho, mas eles
servem para mostrar ao povo a beleza do escolhido pelos deuses. Escrava
Oe, coloque os brincos — apontou a lâmina de obsidiana que usou para o
ritual sem levantar do divã onde se recostava. — Desse jeito as pontas das
orelhas nunca vão chegar aos ombros, filho. Já tem doze anos e elas não
estão nem no meio do pescoço!
K’inich, o menino jaguar, segurou a mão de Oe.
— Não. Pare, escrava Oe. Eu quero ser jogador de pelota, como Muluc, o
grande, mãe Sak. Não quero me vestir para ser governador. — O menino
chorou, porque ainda era só uma criança mimada.
— O QUÊ?! — Exaltou-se a governadora sentando-se no divã e largando a
lâmina de obsidiana. — Continue Oe.
Muitas escravas da aldeia de Oe foram mortas por motivos tão fúteis como
baunilha demais ou de menos no curau. Não sabendo a quem obedecer, se
ao menino jaguar ou a sua mãe, ela largou o brinco de turquesa e coral e virou
estátua de pedra.
Sak Kuk, a mãe do pequeno deus do milho, agora andava, gesticulava e
gritava pelo quarto.
— Muluc! Muluc foi um escravo que foi jogador por míseros 5 anos e
perdeu o jogo e a cabeça! Menos do que um ciclo de chuvas! Você é um rei e
governará por centenas de ciclos, quando o escriba desenhar a data da sua
morte no seu túmulo até o nove será passado. O nove! — Fez questão de
reforçar o número que marcava o último ciclo de todos os ciclos.
A boa líder arara, Sak Kuk, apreciava exageros. Deixou a cidade sagrada
de Palenque mais colorida ao assumir o governo depois da morte do marido, a
hegemonia das cores nos quatro cantos da cidade — azul, amarelo, vermelho
e branco — foi substituída por uma mistura de todas elas incluindo até o
sagrado verde. Passear pelos templos, pelo estádio e pelo centro comercial
era uma festa para os sentidos. Nos dias que antecederam o ritual de
passagem de pequeno jaguar, as construções ganharam mais vida. Flores
enfeitavam as portas e janelas; colunas de rosas, papoulas, flores de maio,
chuvas de ouro enchiam os olhos tanto dos locais quanto dos visitantes que
vieram para a passagem e ascensão do novo governador. Espalhavam-se
pelas calçadas os vendedores de milho e suas pedras de assar. Os doces de
maracujá, mel e o aroma da baunilha. Tomates assados com pimenta. Ao
perfume agradável das flores e especiarias misturavam-se o cheiro dos
incensos e do sangue dos sacrifícios.
Sak Kuk comia muito bem, se vestia requintadamente: turquesa, peles e
corais dos pés à cabeça. Mantinha o pulso firme nas decisões de Estado, os
conselheiros mais guardavam as ideias do que opinavam. Sequestrava e
torturava moderadamente os rivais, só até conseguir um acordo justo entre as
partes. “Meu segredo de temperança é uma faca bem afiada, dizia aos amigos
que riam até cair. Guardou a temperança, ou melhor, a falta dela, pelo período
que antecedeu a ascensão, só usou a lâmina em si mesma como pediam os
deuses. O rito de passagem do filho exigia mais abstinência e paciência do
que poderia suportar, então excedia em advertências ao filho e escravos. Não
era tanto o sentimento de que perderia seu poder em breve, mas um temor
mais terreno, que caberia em qualquer mãe. Seu pequeno K’inich seria em
breve engolido pela jiboia no ritual de passagem, mandado para o mundo
inferior de A-hau Kin, para que o Deus do Inframundo cuidasse dele. Era
direito do Deus escolher o destino do menino, se fosse para ser um adulto e
encontrar a imortalidade, quando abrissem a barriga da cobra, o Deus teria
matado o pequeno jaguar e dado a luz a Pakal, o governador de Palenque. No
entanto, a segunda opção deixava inquieto seu coração de mãe: não era raro
acontecer dos meninos morrerem na barriga da jiboia antes de serem
retirados. Tallvez seu jaguarzinho não fosse digno da honra de ser governador.
Sak Kuk não teria mais a companhia do carinhoso menino, que dormia em
sua cama nas noites de tempestade. Todas as emoções que poderia sentir
ocupavam o mesmo espaço: medo, orgulho, tristeza, ansiedade. Sak Kuk era
assombrada tanto pela glória quanto pela solidão.
— Mas para que por toda esta roupa em cima de mim se a cobra vai me
engolir nuzinho, mãe Sak?
Foi a gota d’água, os tijolos do palácio do governador saíram do lugar com
os berros de Sak Kuk.
— K’inich! Ainda sou a governadora, ainda sou sua mãe, por isso ordeno
que cale essa sua boca, jaguarzinho, quando for governador deixo você
mandar em mim... um pouco. Oe, acabe de vestir o menino.
Oe virou de carne e osso novamente, pois agora sabia a quem obedecer.
Sak Kuk saiu do quarto, não queria mais discussões, chamando-me para a
sala do trono. Segui-a obediente. O dia estava chuvoso e sem sol, a luz que
entrava pelas janelas estreitas não iluminava mais que um vaga-lume. Tochas
acesas nos corredores estreitos aumentavam a sensação de calor e, com
ajuda dos incensários, roubavam quase todo ar fresco.
Na sala majestosa com imensas colunas e quase sem janelas, protegida
do tempo e dos inimigos, Sak Kuk sentou-se na pele de coelho que cobria o
trono e acariciou os pelos brancos com a ponta dos dedos. Bonita ela não era,
mas o poder tem aquele quê de sensualidade que põe fogo na palha molhada
e espalha fumaça pelo consciente. Olhou para mim com os mesmos olhos
grandes e negros do filho e disse:
— Itzamná, escreva para esculpir que o dia estava ensolarado, que Ahau
apareceu no horizonte neste equinócio para celebrar a ascensão de Pakal.
Escreva e desenhe também o escravo, grande conselheiro de Petén, que será
degolado. Use todo o seu refinado estilo, grande escriba. Nada de falar da
teimosia do menino. Sei que gosta de ser prolixo, mas guarde as verdades
inúteis para seus escritos pessoais. Quero me deslumbrar com sua
maravilhosa arte, não me aborrecer.
E foi determinando o que deveria ou não constar nos totens, nas paredes,
nos papiros, intercalando suas ordens com elogios. Ela sempre me adulava,
talvez para provar a si mesma que eu era melhor que o escriba mestre do
governador de Tikal.
Havia vários bons escribas escultores por todo o Palenque. Meus glifos de
linhas econômicas e elegantes não agradavam ao rebuscado governador de
Tikal, rival de Palenque, que gostava de contrastes e espirais. Sai da província
vizinha, trouxe meus aprendizes para cá e fui reconhecido.
A história de Pakal durará por séculos, eu sei, como ele mesmo me
contou. A verdade, no entanto, esvaneceu-se no ar rarefeito dentro das
paredes do palácio real. Enfeitarei a vida de Pakal desenhando cada sílaba e
símbolo nos glifos, e esta será a sina deles, serão só enfeites até o fim do
nove.
— Estou pronto, pronto, pronto. — Disse o emburrado menino de olhos
vermelhos e nariz escorrendo, em todo o seu paramento. A governadora
descruzou as pernas e desceu do trono, despedindo-se do cargo que ocupara
com tanta propriedade. Agora seria só a mãe e conselheira.
Uma chuva torrencial veio para arruinar os arranjos de flores que foram
feitos para enfeitar a calçada por onde passaria o futuro governador. O povo,
tomado pelos encantos da papoula, cantava e dançava levantando as mãos
aos céus para que o Deus Milho protegesse o menino. Centenas de milhares,
vindos de todas as partes da província para a posse de K’inich, saudavam o
menino que se encolhia na chuva. O dossel da liteira pouco o protegia do
temporal. Aproveitou as gotas que escorriam pelo seu rosto para chorar. Ao
passar pelo campo de pelota, chorou um pouco mais.
A procissão parou na frente ao templo em forma de pirâmide onde o
sacerdote cantaria a história dos ancestrais de K’inish Janahb Pakal.
— Pakal, o Escudo do Sol, já se mostra mais poderoso que o firmamento,
cobrindo-o com as nuvens. A sagrada serpente, irmã do trovão, Ix Tub Tun o
saúda. Nós o saudamos.
E neste momento a Deusa do Trovão se pronunciou: o sacerdote viu o raio
arrebentar segundos antes e aproveitou para chamar a saudação que veio em
estrondo, para delírio do povo. Todos ganiam enaltecendo o poder das
palavras do sacerdote, que tinha um chapéu de pele com a cabeça de um
cachorro. E o sacerdote foi de totem em totem contando o tempo e os feitos
dos ancestrais de K’inish, durante quase três horas.
Entediado, o menino jaguar ajeitava o pesado chapéu que insistia em
tombar para os lados, o cone em formato de espiga de milho, feito de palha,
pele, linho, plumas e penas. Oe estava ao seu lado, mas não podia tocá-lo
para ajeitar a vestimenta, ninguém podia, nem a sua mãe. O sangue de duas
crianças órfãs misturou-se com a água e escorreu pela escadaria até o último
degrau. K’inish,que esperava na depressão feita na pedra no sopé da escada,
observava os pés serem cobertos por uma poça de lama, sangue e chuva.
Três dos meus ajudantes apoiaram a minha liteira no espaço reservado de
onde podia me cercar de tudo o que acontecia, tentaram em vão me proteger
da chuva segurando as placas de palha trançada contra o vento, já que não
podia me servir da cortina de tecido, pois, segundo a tradição, tinha que
escrever o que via. Na prática, tão forte era a tempestade que mal conseguia
segurar o espeto e a folha, e, mesmo que escrever fosse possível, nada do
que visse seria esculpido ou lembrado. Passaria dias refazendo os desenhos
até que a história ganhasse os contornos que os sacerdotes e o governador
determinassem. A tinta borrava no papiro, a chuva tratava de apagar a História.
Os degraus da pirâmide estavam escorregadios e o menino jaguar, eu e
sua mãe, subíamos com dificuldade. Quando alcançávamos um degrau
embaixo do qual supostamente havia sido enterrado um dos ancestrais do
menino, os quatro sacerdotes, representantes dos pontos cardeais,
lembravam novamente os feitos do morto e alucinavam sobre a sua vida após
a morte no mundo inferior de A-hau Kin. Assim levamos mais de duas horas
para subir. Chegando ao topo, a chuva havia se acalmado e o sol ainda
inconstante e cercado de nuvens refletia na poça de sangue, K’inish observava
o reflexo da chama viva do sol, chama incensária cintilando no meio de sua
testa. “Seria um bom ou mau sinal?” Queria saber o menino jaguar.
Os sacerdotes prepararam dois velhos escravos para o sacrifício na pedra.
Ambos tiveram seus tórax abertos enquanto ainda vivos e seus corações
bateram por alguns segundos depois de arrancados. A alegoria do ciclo da
vida foi celebrada com a histeria coletiva do povo de Palenque: choro, risos e
cantos, autoflagelação e palavras ininteligíveis. Duas virgens seriam mortas e
seu sangue espalhado pela terra para alimentar o deus da fertilidade.
Anunciando o caminho para o mundo inferior, o corredor que levava ao
altar dentro da pirâmide era estreito, escuro, úmido, sem ar. O conselheiro da
província de Petén que esperava agachado no chão carmim do sangue dos
que foram mortos antes dele agradeceu a honra de ser imolado na frente do
futuro grande governador.
— A honra que me coube é a maior de todas. Vida longa a Pakal, o
Escudo do Sol, meu senhor nesta vida e na próxima.
Então K’inich Pakal, que deveria ficar em silêncio fez sua última
observação enquanto ainda era criança:
— Se ele está tão honrado assim, por que os braços dele estão
amarrados?
A pergunta foi sussurrada para mim, ele me achava um sábio. Eu era só
um artista, que iria reproduzir as joias do chefe sacrificado, seu chapéu e sua
tanga ricamente adornados e as cordas que o prendiam ao seu destino. Ix Sak
Kuk estava totalmente tomada pelos alucinógenos e nem percebeu a pergunta
ingênua do filho, perdeu a chance de repreendê-lo, amanhã não poderia mais
fazê-lo.
Então o menino jaguar, conservado lúcido até aquele momento, bebeu o
chá de ervas. Esquecido de que não tinha coragem para tanto e com ajuda do
sacerdote, cortou a cabeça do homem de Petén.
K’inich tomou mais chá e foi despido de suas vestes e adornos. A cobra
faminta foi esticada, para que não se enrolasse na presa e quebrasse seus
ossos, como fazia na natureza. Abriram a boca da jiboia e o jarguarzinho foi
sendo engolido: primeiro os pés e as pernas, depois a cintura; a cobra coleava
e empurrava o menino para suas entranhas.
Desenhei duas colunas para o palácio, encimadas por uma boca de jiboia,
aberta em forma de “Ca”, e a cabeça de espiga de milho do jaguarzinho
saindo pela bocarra.
Então o pequeno sumiu totalmente dentro da cobra. As orações e canções
continuaram por alguns minutos, até que a barriga foi rasgada pelos
sacerdotes com facas de obsidiana e Pakal retirado.
— Quantos ciclos se passaram? Por que demoraram tanto?
Foram as primeiras palavras do Rei Escudo do Sol como adulto.
Estavam todos em transe, os sacerdotes, Ix Suk Hak, os escravos que
abriram a barriga da jiboia, menos eu, pois tinha que me concentrar no que
acontecia e reproduzir o que os olhos deste mundo viam, enquanto todos
procuravam por Pakal no mundo dos sonhos.
— Meu rei, Pakal, Escudo do Sol, foram só alguns minutos.
— Não, escriba! Foram muitos e muitos dias. Dias no passado e no
Inframundo. Dias no futuro sombrio que espera meu povo.
Mesmo sabendo que jamais poderia repetir as palavras do grande Pakal,
guardei um papiro com seu relato até a minha morte. A experiência que levou
meu senhor de menino para homem poderia um dia ser confirmada, se a
ignorância dos homens não prevalecesse.
Quatro noites depois de sua posse, Pakal chamou-me em seu quarto,
sentado na estreita janela, estava sério e selvagem. Nu, sem adornos. A
deusa Ix Chel, a lua cheia, iluminava a copa das árvores e o rosto de Pakal. O
pequeno representante do Deus Milho chorava.
— Não há futuro, sábio escriba.
— Viu a sua própria morte, senhor do sol, na jornada pelo Inframundo?
— Sim, mas isso não me incomodou.
Fechou os olhos, abaixou a cabeça e disse minguando para dentro de si:
— Itzamná, eu vi a morte de todo meu povo e não há nada que possa fazer.
Eis o que me contou:
Quando K’inich entrou no corredor escuro que levava ao Inframundo, não
foi A-hau Kin que o guiou, o deus sol jazia longe nos céus internos, ofuscado
pelo Passado. Foram os antigos deuses, os gêmeos Xbalanque e Hunahpu
que o abraçaram e fizeram troça para recepcionar o pequeno jaguar.
Xbalanque segurava seu machado de guerra. Hunaphu, o corpo coberto de
manchas negras. K’inich mal pôde acreditar que seus deuses favoritos
estavam com ele. Antes de ser engolido pela cobra, o menino pedia todas as
noites para a mãe repetir as aventuras dos deuses gêmeos.
— Peça o que quiser, Escudo do Sol — disse Xbalanque.
— Nem todo o querer é divino — completou Hunahpu.
O confiante jaguarzinho tinha o desejo já escapando pela boca.
— Quero ser jogador de pelota. — Seu sonho se realizaria no Inframundo.
Em um piscar de olhos estavam vestidos para jogar pelota, os deuses
gêmeos com suas raquetes encantadas e seus poderes de iludir.
O mundo inferior não é cercado de crocodilos como o superior, não é
possível ver-lhe a cerca, como diziam. Nos primeiros tempos, K’inish foi só um
jogador, parceiro de Xbalenque e Hunahpu. Campeão, cujas mãos e pés
nunca tocavam a pelota e a pelota guiada pelos remexer de seus ombros e
quadris sempre acertava o alvo. Pelas cidades onde passou, o céu era verde
claro, o sol fulgurava translúcido, as paredes dos templos e as ruas
serpenteavam cobertas de peles de coral, em listas vermelhas e negras.
K’inish jogou tanta pelota que se cansou, do jogo e das cidades
engendradas em miríades de calçadas, templos e arenas sem fim. Desejava
outra coisa e pediu sem vergonha, pois também era deus, o menino Deus do
Milho:
— Levem-me para suas caçadas.
Os deuses gêmeos eram conhecidos pela habilidade com a zarabatana,
nunca voltavam de mãos vazias. As aves sentiam-se gratas quando eram
espetadas pelo dardo venenoso dos dois, pois a morte era rápida e sem dor.
Através da densa floresta negra, foram os três em busca de caçar a deusa
Vukub Cakix, a ave de dentes de esmeralda. No Inframundo era possível
reviver toda a criação e aprender o conhecimento escondido dos homens.
Portanto, os gêmeos decidiram derrotar a ave como fizeram seus avós antes
deles.
— Esta é a sua zarabatana, K’inich, precisa praticar antes de usar. —
Disse Xbalanque.
— Mesmo quando a usar, pequeno jaguar cabeça de milho, pode encontrar
seu próprio veneno em sua ponta. — Completou Hunahpu.
Ao pegar a zarabatana, no entanto, ela imediatamente se tornou uma
serpente e picou as costas de sua mão. K’inich pulou e praguejou. Os dois
irmãos riram até se acabarem.
— Tenha cuidado, jarguarzinho. Eu te avisei. — Disse Hunahpu.
Recuperado o fôlego perdido com as gargalhadas, puxou o pulso do menino e
sugou o veneno da mão de K’inish.
— Segure a zarabatana com confiança — aconselhou Xbalanque. — Você
é o pequeno Deus do Milho, não é?
K’inich soltou a mão da boca do deus e no lugar onde o deus sugou
nasceu uma pústula negra como as de Hunahpu. Sem hesitação e sem se
incomodar com a ferida, K’inich respondeu confiante:
— Sou.
— Cada vez que se ferir neste mundo, pequeno jaguar, uma mancha podre
aparecerá. Se não tomar cuidado, ao sair daqui não será nada mais do que
um cadáver putrefado. — Riu Hunahpu.
Os deuses da cor de barro e rabo de macaco levaram K’nish para a
floresta negra. Tão densa e escura que as folhas não tinham cor, nem os
galhos, os troncos ou raízes.
— Essa deusa mentirosa, acha que é o Sol e a Lua. Nós somos o Sol e a
Lua, não Hunahpu?
— Nós somos o Deus Sol e a Deusa Lua assim como Pakal é o Deus do
Milho. É tudo o que posso dizer.
Na trilha que seguiram para encontrar Cakix o chão era de espinhos, o que
feriu os pés de Pakal. Como haviam avisado ao menino, seus pés ficaram
cobertos de pústulas negras. Para fugir dos espinhos, eles se transformaram
em grandes macacos, e Xbalenque carregou Pakal, cujos pés doíam muito,
nas suas costas. Com ajuda dos longos rabos, os gêmeos foram pulando de
árvore em árvore até encontrar aquela onde Cakix comia. Esconderam-se na
árvore vizinha à da deusa, tomando o cuidado para não serem vistos.
Os deuses, grandes caçadores, acreditaram que Cakix era um alvo fácil:
grande e gorda. Ela ainda tinha como sobrepeso a vaidade, joias incrustadas
ao redor dos olhos e nos dentes, armaduras cobriam suas grandes asas.
Estava comendo a cabeça de um roedor, apoiada com um pé no galho da
árvore e o outro pé segurando o corpo do bicho. Só precisariam atingi-la de
leve para que despencasse sobre os espinhos.
— Acerte o dardo com veneno assim que eu mandar, Pakal. Vou dar volta
e pegá-la por trás. — disse Hunahpu.
Pakal agachou-se preparando a zarabatana. Xbalenque descansava
deitado num galho, tão simples a empreitada parecia. Isto só provou aos dois
irmãos que a vaidade não era atributo apenas de Cakix, pois a estocada de
Pakal pegou no maxilar da deusa, fazendo cair dois de seus dentes e
Hunahpu errou o golpe. Cakix, que mal sentiu o dardo da zarabatana,
assustou-se com o vulto de Hunahpu e escorregou do galho. Rápida, agarrou
o braço de Hunahpu para não cair, prendendo-o numa forquilha entre dois
galhos, mas seu o peso arrancou o braço do deus, deixando-o muito irritado.
Perdido o apoio, a grande deusa ave caiu e deu de cara com o chão coberto
de espinhos, furando os olhos. Quase cega e com o queixo dormente, saiu
correndo pela mata carregando o braço de Hunahpu.
— Ai! Ai! — Reclamou o deus a perda do braço.
— Não chore, fomos displicentes. Não fomos, Pakal? — Perguntou
Xbalenque.
— Fomos sim. — Respondeu o menino, cabisbaixo.
— Nunca subestime seu inimigo. Use sua fraqueza em benefício próprio,
mesmo que a princípio tenha que fazer concessões ou passar-se por trouxa.
Entendeu?
— Sim, Hunahpu.
— Vamos então à segunda parte do plano e recuperar o braço do meu
irmão. — Disse Xbalenque transformando-se em velho com ares de sábio.
— Vou ter que me transformar em velho? — Perguntou Pakal.
— Você será você. Haverá sempre aqueles que se passarão por sábios,
Deus do Milho, quando for preciso. Mesmo que a sabedoria nunca os tenha
visitado. — Explicou Hunahpu, também transformado em ancião.
Cakix, desgostosa de sua aparência, com muita dor nos olhos e nos
dentes, estava escondida dentro de um oco de árvore feito toca de tatu,
coberta de folhas para que ninguém a visse. Quando os anciões bateram no
tronco e solicitaram uma audiência, ela os rechaçou:
— Não posso olhar para ninguém, meus olhos doem.
— Sou médico, posso curá-la. Ó grande Deusa do Sol e da Lua! — Disse
Xbalenque.
— Não quero que ninguém olhe para mim.
— Eu sou dentista. Nós dois restauraremos a sua beleza. Ó Deusa do Sol
e da Lua. — Disse Hunahpu.
— Aceitamos o braço de macaco que está segurando, grande Cakix, como
pagamento. Estamos famintos. — Pakal apontou para o braço de Hunahpu
que Cakix segurava.
— Somos só dois anciões que cuidam de um jovem órfão e vamos fazer a
deusa mais radiante que as estrelas do céu.
Cakix saiu da toca e Xbalenque deu-lhe papoula como anestésico, tratou
seus olhos, e ela pode ver de novo, mas retirou todas as joias colocando nos
buracos pedaços de barro duro que desmanchariam na primeira chuva.
Hunahpu, por sua vez, arrancou o resto dos dentes de Cakix, alegando que era
necessário e no seu lugar colocou milho branco.
Ainda sob o efeito da papoula, Cakix entregou aos irmãos o braço de
Hunahpu. Os anciões agradeceram muito e foram embora com Pakal.
Quando, no dia seguinte, Cakix se olhou no lago e viu que sua beleza havia
sido arrancada e que seu rosto estava todo deformado, enfiou-se novamente
na toca de tatu e deixou-se morrer de vergonha.
Os gêmeos e Pakal comemoraram com um banquete de milho e tomates.
Durante anos, assim pareceu ao pequeno jaguar, ele se aventurou com os
gêmeos em suas troças aos novos deuses e antigos governadores. Todos que
tentavam matá-los, ou por causa do que fizeram a Cakix ou por outros
desmandos, falhavam, pois os gêmeos eram muito espertos. Pakal aprendeu
valiosas lições com os dois, sobre estratégia e política. Lições que levou por
toda a vida.
A despeito da passagem do tempo, pois milhares de dias se passaram, o
menino jaguar continuava criança. Intrigado com o fato de não envelhecer,
indagou aos irmãos o porquê numa tarde em que preguiçosamente lambiam
mel roubado de uma colmeia.
— Os Maias nunca serão um povo adulto. — Explicou Xbalenque.
— Permanecerão esquecidos por muitos ciclos. E será o melhor.
Pakal protestou. Como podiam falar um absurdo desses?
— Não, não serão. Se assim for os deuses também serão esquecidos.
Vocês nos sonharam, sonharam que nós sonhávamos com vocês e no nosso
sonho vocês nos criaram para adorá-los. Não existimos sem vocês assim
como vocês não existem sem nós.
— Ele está pronto para ver o futuro. Não acha, Hunahpu?
— Você verá o futuro, pequeno jaguar, mas ele não verá você ou o nosso
povo.
Os deuses gêmeos se despediram de Pakal chorando, pois sentiriam
saudades, e o mandaram atravessar a porta para o reino de Xibalba e seguir
viajem sozinho.
O Inframundo também permeia o mundo dos vivos, entre as doenças e as
frestas sujas, nos bichos peçonhentos ou famintos. Todos conhecem os
perigos e seus reflexos, tanto os mortos quanto os vivos, disso eu sei, todos
sabem, pois já vi os olhos dos mortos espreitando pelas sombras.
Pakal seguiu sem medo pelo caminho coberto de escorpiões, pois o cheiro
das pústulas sobre seus pés espantava os machos e tornava a pele insensível
aos ferrões das fêmeas. Chegou à margem do rio que circulava pelo
Inframundo. Um vento frio empurrou-o da borda para dentro do rio de sangue e
pus. Pakal reconheceu seus antepassados boiando aqui e ali, mais pelos
enfeites que usavam do que pela podridão que cobria seus rostos. A grande
cidade dos mortos o esperava na margem oposta do rio, mas Pakal a ignorou.
Procurava o pai entre os cadáveres para pedir conselhos.
Em princípio, deixou-se levar pela corrente para longe da cidade. Engoliu
muito sangue e pus, boiava no caldo denso e quente, confortado do frio
intenso de Xibalba, mas não achou seu pai. O rio serpenteava por entre a
floresta negra, iluminado pelo rosto disforme de Cakix, cujo espírito foi morar
na Lua. Então, entre um largo tronco caído na margem direita e a praia
coberta de escorpiões na margem esquerda viu erguer-se o corpo de sua
mãe, Sak Kuk, velha e morta ela estava, os olhos tomados por dois buracos, a
boca cheia de vermes.
Ela lhe disse:
— Querido jaguarzinho, veja o que aconteceu com nosso povo. Não deixe
que nos esqueçam. Por favor. Por favor.
Sak Kuk sumiu na névoa negra e o rio, antes morno e fedorento, ficou
gelado e pegajoso. Então secou como as feridas costumam curar-se e virou
uma crosta roxa quase negra. Rio-serpente que volta ao ponto de partida
comendo sua própria cauda e o menino deus reviu a grande cidade na
margem oposta, coroada pela Lua e Vênus, exibindo sua imensa Pirâmide. O
pequeno jaguar caminhou sobre a crosta do rio pisando nos corpos secos de
seus antepassados meio enterrados na grande cicatriz que circundava o
Inframundo.
Jaguares famintos o aguardavam do outro lado, nas calçadas da cidade de
Xibalba, centenas deles rosnavam e mostravam suas garras e seus dentes.
Pakal não se intimidou, reconheceu seus irmãos e se fez seu Eei:
— Eu sou Pakal, o Escudo do Sol, o Deus do Milho, o Rei Jaguar feito
homem. Saiam do meu caminho ou me sigam. Não aceito que me desafiem!
— Gritou com bafo de sangue, pus e passado.
Reconhecendo seu deus, os jaguares ficaram mansos como gatinhos e o
seguiram até a entrada da pirâmide no centro da cidade. Neste local sem
vento ou chuva. Ouvia o som dos seus próprios passos na pedra fria da cor de
nada em que pisava, tudo o mais era silêncio. Esperou na frente da pirâmide,
seus irmãos deitados no chão, a dormir como gostam os felinos. Pakal olhava
seus pés e lembrou-se da tarde em que ascendera. Talvez tivesse ascendido
para a morte e não para o trono. Dali jamais sairia. Pois sua mãe já estava
morta e provavelmente todos os que conhecera, inclusive eu que escrevo e
desenho esta história. Olhava seus pés e queria sentir de novo a chuva e a
lama, cheirar as rosas e comer curau com mel e baunilha.
Os deuses de Xibalba, que estavam escondidos avaliando a coragem de
Pakal e para pegá-lo de surpresa, mandaram o silêncio embora partindo a
pirâmide em milhares de escadas que levavam por caminhos ambíguos, sem
fim ou começo, alto ou baixo. A armadilha surtiu efeito. Pakal, achando-se
destemido por amansar os jaguares, foi circular por elas, mas o medo estava
escondido e a dúvida acendeu uma pequena fagulha, suficiente para despertar
os mortos das catacumbas do Inframundo. Os que quase não tinham mais
pele sobre os seus esqueletos, armados de zarabatanas, chicotes e facas de
obsidiana. Sem nada a perder, pois nada tinham, atacaram obstinadamente o
pequeno jaguar paralisado. Desciam os degraus ferozes como lobos famintos
estalando seus ossos na pedra.
O objetivo dos deuses era dar fim ao Deus do Milho e assim matar de fome
a humanidade, arrependidos que estavam de tê-la criado. Mas os deuses
eram como Cakix, vaidosos. Os homens só existiam para adorá-los. Por mais
que fossem venerados, por mais oferendas que recebessem, por mais sangue
dos sacrificados que escorresse na terra para sua glória, jamais estavam
satisfeitos.
Pakal lembrou-se de Hunahpu e de sua sabedoria. O gêmeo havia lhe dito:
— Será guiado para a grandeza só quando estiver frente à morte.
Quando os zumbis estavam tão próximos que Pakal sentia o cheiro dos
resto de medula dentro de seus ossos. Ele, que havia aprendido os encantos
da transformação com os deuses gêmeos, virou jaguar, o Rei Jaguar, de três
metros de altura, patas do tamanho da cabeça de um crocodilo. Rosnou para
acordar seus irmãos e juntos atacaram a horda de esqueletos com a fúria de
treze deuses.
Derrubou-os das escadas como se fossem papiro, quebrou os gravetinhos
secos que eram seus ossos, esmagou seus crânios que estalavam, cascas de
besouro. Com suas presas partia-os ao meio e engolia-os inteiros ou em
partes. Quando um de seus irmãos era atacado ou ferido, outros cinco se
juntavam a ele, não oferecendo chance aos mortos, ou aos deuses que os
comandavam. As lascas de ossos espalhavam-se sobre a pirâmide e ao
rugido dos jaguares juntava-se o bafo frio dos mortos.
Usukan, o deus serpente, odiava a humanidade e, covarde, se escondia no
fundo da pirâmide. Ele havia insuflado os deuses do Inframundo contra o
representante dos homens. Vendo que seu exército estava sendo aniquilado, e
poucos esqueletos restavam em pé. Saiu de seu esconderijo para enfrentar
Pakal, o Deus Milho, Rei Jaguar.
Pakal decidiu enfrentá-lo como homem. Usukan gargalhou quando o
poderoso jaguar transformou-se novamente em menino de doze anos,
magrinho e pequeno.
— Mosquitinho! Mosquitinho! — Usavava palavras como a primeira arma
para atacar o Pakal, enfraquecendo sua auto estima.
Pakal, que aprendeu com Hunahpu e Xbalenque o poder da troça, não
ligou para as palavras de Usukan. Sacou a zarabatana e disse:
— Mosquitinho com veneno das vespas! — Assoprou o dardo com tanta
força que furou o único olho da Serpente Deus. Cega e desorientada, foi
comida viva pelos irmãos de Pakal.
Usukan também cometeu o erro de subjugar por vaidade, de odiar por
intolerância. De achar que sua alta posição no panteão dos deuses não
pareava com o jaguarzinho. Pakal havia conseguido vencer grandes
obstáculos. “Conquistei o Inframundo. Meu povo não será esquecido”, pensou.
Estava errado.
As escadas se viraram para dentro da pirâmide, formando cavernas, o
avesso do mundo virou do avesso. Pakal descia e subia, ora por passagens
tão estreitas que precisava arrastar-se, ora por imensas galerias, altas como o
firmamento ou profundas a ponto de, debruçado na borda dos degraus, Pakal
conseguir enxergar milhares de metros abaixo, o 13º nível do Inframundo, o
fundo de toda a existência.
Os degraus das escadas sussurravam frases sem sentido, confundiam a
mente de Pakal, que desorientado caminhava pelos seus meandros em forma
de caverna. Ou seriam as cavernas as próprias palavras? Na essência os
deuses eram formados de palavras e sabem que seu poder se concretiza na
mente dos fracos para o mal e na dos fortes para o bem.
O milho estará no ponto de colheita quando alcançar o último degrau.
Ix Tub Tun mandou presentes barulhentos, estão no fim deste caminho.
Venha, pequeno jaguar, Hunahpu te espera no topo da escada.
Pakal era levado de um lado para outro, nunca chegando ao sopé ou ao
topo de escada nenhuma. Quando percebeu que estava preso pelo ritmo das
palavras, que elas estavam jogando com ele, fazendo-o perder o rumo, tapou
os ouvidos com força e invocou a sabedoria dos ancestrais para guiá-lo. As
escadas e cavernas sumiram como a fumaça de um cachimbo. Estava de
volta ao topo da pirâmide, cercado pelo céu de fogo do Inframundo. “Que mal
teria feito?” Perguntou-se ao perceber ser vítima das troças dos deuses
antigos. Estaria sendo punido pelas mentiras que disse aos sacerdotes?
Pelas travessuras com os amigos? Ou as teimosias com a sua mãe? Se
pedisse perdão, poderia voltar a conviver com os vivos, só talvez. Se abaixasse
a cabeça seria de novo o menino com os pés cobertos pela água da chuva,
brincando na poça de lama e sangue. Criança de novo, correria livre feito
pássaro, voaria pelos céus e iria até o limite, pousar nas costas do crocodilo
no lago do mundo inteiro. Suas asas seriam azuis, seu bico amarelo, a crista
vermelha, o corpo negro. Cantaria para as estrelas de noite e para as florestas
de dia. Faria seu ninho entre as flores cercado do veludo e do perfume das
pétalas. Estava ali, porém, longe de tudo.
Pakal espantava as memórias passadas e as ilusões. Jamais voltaria a
olhar o chão como um vassalo. Determinou a si mesmo que não obedeceria a
ninguém e sairia dali para guiar o povo de Palenque durante os mais frutíferos
anos da civilização maia.
As fragrâncias de flores que circulavam pela sua lembrança foram
substituídas por um cheiro podre de pestilência sob o sol invertido do
equinócio de verão. O esqueleto de Yum Kimil, o deus do último patamar do
Inframundo, o que come as carnes dos mortos, surgiu no céu de fogo,
fumando seu cachimbo. Tabaco e podridão. Chacoalhando seu colar feito dos
olhos abertos e conscientes dos pecadores a quem não é permitido esquecer
os erros.
— Quer voltar, jaguarzinho?
Sem um pingo de medo. Pakal olhou diretamente para os dois buracos
negros no rosto de Yum Kimil. Ao invés de responder à pergunta do Deus,
como Deus que também era, ordenou.
— Mande-me de volta para o mundo superior, agora.
Yum Kimil sugou com força, acendendo o tabaco dentro do cachimbo,
puxou o fumo e a fumaça circulou por dentro de seu esqueleto e então ele
soltou uma baforada na cara de Pakal, que permaneceu inabalado. Ali estava
um deus morto, Pakal era um deus vivo, era três deuses, não um.
— Não posso. — Disse o deus maligno. — Vou pô-lo a caminhar para o
Futuro de cabeça para baixo, deusinho jaguar cheio de pústulas. Quando o
trouxer do Futuro não vai querer nada além de se embalar nos meus braços e
do calor do rio de sangue.
Pakal olhou para os próprios braços e pernas, não havia notado até aquele
momento que seu corpo se deteriorava, a carne sobre os joelhos não existia
mais, a rótula estava aparente, assim como os nós dos dedos. Sangue e pus
pingavam de sua pele. O frio que sentia era da falta de seu casaco da carne.
Sem gordura, a pele que lhe sobrara grudava aos ossos.
— Não me trará do Futuro, Yum Kimil. Eu serei o Futuro.
Yum Kimil gargalhou e amarrou os pés do menino deus. Pendurou-o de
ponta cabeça no firmamento e o mandou para o oceano vermelho.
Pakal viu grandes canoas feitas de muitos troncos cruzando o oceano,
vindas de além do limite do mundo, empurradas pelo vento que inflava
gigantescas peças de linho, um desenho de cruz as adornava. Barcos cheios
de deuses de peles claras e pelos grossos. Observava-os Pakal, de cima,
como o pássaro que sonhou poder ser, encoberto pela sombra da morte.
Ninguém podia vê-lo, ele via tudo através de seu manto vermelho.
Aqueles deuses não eram deuses, afinal, pois também oravam e
obrigavam aos poucos dos maias que estavam nas praias de Yucatan a
esquecer seus próprios deuses e orar para uma cruz, o deus único deles. Sua
crueldade era tão grande que faria Yum Kimil sentir-se pequeno. Tanto sangue
derramaram em nome desse deus que o rio do Inframundo é só um fio de
água barrenta formado pela chuva. Os que foram sacrificados em fogueiras e
pregados em cruzes não reconhecem o caminho para o Inframundo, os que
sobrevivem não sabem mais da sua existência. Não irão para Xibalaba, as
picadas de escorpião não farão pústulas em seus braços. Perderão o respeito
do Deus Jaguar, do Deus do Milho e de Ahau Kin.
“Onde estão as cidades de pedra e seus templos de 366 degraus? Onde
estão Uzmal, Edzna, Tikal, Palenque?” A selva as cobriu dos olhos do mundo,
seus descendentes vagam sem eira nem beira. Do topo das árvores que
escondem as antigas construções, Pakal lembrou-se dos campos de milho a
perder de vista, densas florestas abocanharam o milho e todas as cores das
pedras e todos os seus escritos. Os maias que restaram ainda pediam
proteção aos quatro cantos cardeais, mas já estavam cansados de sacrifícios
e de sangue. Fugidos das cidades, mortos pela fome e falta de esperança,
viviam de catar, caçar e pescar, quando os deuses assim o permitiam. Dos
dez milhões de fiéis, restavam menos de cinquenta mil. “Onde estão os
homens de milho, criados para adorar aos deuses?” Chilam Balan, que se
escreveu no tempo dos homens da cruz, os recordaria:
“Dispersados serão pelo mundo, as mulheres que cantam e os homens
que cantam e todos os que cantam... Ninguém se livrará, ninguém se
salvará... Muita miséria haverá nos anos do império da cobiça. Os homens se
farão escravos por nada. Triste estará o rosto do sol... Se despovoará o
mundo, será pequeno e humilhado...” (*)
Muito antes dos homens do além-mar desembarcarem nas praias de
Yucatan, o povo de Tikal e Palenque foi torturado pelos Senhores da Guerra.
Altas muralhas e fossos profundos em volta das cidades não foram capazes
de detê-los. Por dois séculos os maias lutaram uns contra os outros por uma
liberdade que não existia, esqueceram de olhar as estrelas e cuidar das
colheitas, esqueceram também que os sacrifícios valem tanto quanto observar
o que está escrito na natureza. Pakal via tudo sem poder fazer nada a não ser
orar, a palha seca do milho pegando fogo por quilômetros sem fim, chorava e
pedia chuvas e raios a Ix Tub Tum. Implorava pela volta das tempestades que
estragavam suas brincadeiras de criança e das quais sempre reclamava.
Nada, nem uma única gota. Cakix no céu se cobria com o véu negro do
esquecimento.
Em Tikal, via a Senhora da Guerra insuflar seu exército de moscas contra o
povo, contra cidades sem exércitos. Antes os governadores obedeciam aos
antepassados, fazendo troça dos rivais, negociando a liberdade dos
sequestrados ou matando o sobrinho preferido do chefe da cidade vizinha em
sacrifício. Então acordos eram feitos e depois quebrados e laços reatados e
desfeitos. Foi assim que o futuro governador havia aprendido com seus
professores e com sua mãe. Como as estações, como o tempo seguindo a
ordem cíclica. Pakal procurava, mas não encontrava os sinais de civilidade. O
sangue de seu povo havia sido absorvido pelo chão de terra, longe das pedras
sacrificiais, longe das promessas dos deuses. Escoou pelo Inframundo, mas
não encheu o rio de Xibalba, continuou até o negro nada onde repousam os
mortos sem honra.
Pés dormentes e mãos cruzadas na frente do corpo, de ponta cabeça,
Pakal voou para a Palenque de antes da queda. Antes que Muwaan Mat, a
dama dos seis céus, a Senhora da Guerra chegasse com seu exército de
moscas famintas e devorasse o mundo.
Palenque estava ainda mais majestosa do que na infância de Pakal, mais
organizada e vívida, cheia de flores e de cores, o palácio do governador três
vezes maior. No topo da pirâmide ele se viu ancião a conversar com os
sacerdotes, em roupas suntuosas e ricas, cabeça coberta por um chapéu de
palha de milho e enfeitado com os deuses gêmeos Xbalenque e Hunahpu.
Governando seu povo com a mente no agora, pois o amanhã não existiria.
Precisava voltar, mas Yum Kimil também morrera no Futuro. Sem ter
nenhum deus a quem chamar, Pakal orou sozinho em busca de um que ainda
estivesse vivo, e foi ouvido por Itzamná, o deus criador que fez o povo maia.
Ele desatou seus pés, colocou carne sobre seu corpo e o ajudou a voltar para
o seu casulo de cobra.
Naquela triste noite de lua cheia, Pakal me contou o que viu no Inframundo
e no Futuro. Eu, o escriba, que tenho o mesmo nome do criador, pois ele
também era escriba, encerro meu relato com o fim de nossa conversa:
— Vi sim minha morte, Itzamná. Os homens da cruz acharão minha
história um dia, por isso esculpa-a bem fundo na rocha, as linhas bem
traçadas e limpas. Eles verão meu rosto, minha cabeça de Deus do Milho.
Mais que isso, a gloriosa Civilização Maia em todo o seu esplendor será
admirada por sua beleza, cultura e sabedoria. Enfeite bem minha vida, pois
sobrará muito pouco do que fomos, só restarão as pedras pálidas.
— Para provar que tudo que escrevo neste papiro é verdade, eu gostaria,
nobre Pakal, de deixar registrada alguma data que meu senhor se recorde.
Algum acontecimento no futuro, talvez.
— Irei morrer, segundo os homens da cruz em 683 d.C.
— Quando seria isso, senhor? Não entendi.
— Próximo ao fim de todos os ciclos eles entenderão nossas palavras. Nós
nunca entenderemos as deles.
Xbalenque e Hunahpu choraram quando os espanhóis queimaram os
papiros com a história da passagem de Pakal pelo Inframundo e pelo Futuro,
escrita pelo grande escriba Itzamná.
Notas: (*) Chilam Balan são textos que recordam os preceitos maias na região de Yucatan,
século XVII. Tradução para o espanhol de Alfredo Barela Vasques. Tradução para o
português Eric Nepomuceno em Memórias do Fogo I — Nascimentos — Eduardo Galeano
(Ed. Paz e Terra)
Nascida em São Paulo quando ainda garoava, Claudia Dugim é adoradora de grandes
cidades. Cursou colégio técnico de Artes Gráficas e posteriormente graduou-se em Letras e
Pedagogia; é professora de inglês como segunda língua. Escreve desde pequena, fã de
histórias de todo tipo: filmes, quadrinhos, livros, vídeogame, RPG. Lançou um livro de
poesias nos anos 90 e parou, voltou a escrever em 2011 e lançou O Caminho do Príncipe
em 2013, em fase de reedição. Tem contos publicados na Revista Trasgo, nos Contos
Sonoros, nas antologias Piratas (Editora Catavento), Boy’s Love e Contos do Dragão
(Editora Draco). Coordenadora do Grupo de Escritores "Singularidades", cujo primeiro
projeto foi lançado em 2015, "Cobaias de Lázaro". O segundo projeto, "Retrônicos" será
lançado ainda este ano. Dá aulas como voluntária em Oficinas Literárias dentro do projeto
Vai (Gibiteca Balão) da prefeitura de São Paulo.
Leia a entrevista que fizemos com a autora.
CHAMADO À RAZÃO
Marco Rigobelli
A
s pernas curtas procuravam no resto do corpo algum motivo para
continuarem no ritmo que estavam havia algumas horas. Os braços
doíam do movimento intenso e repetitivo que era tão necessário ao
equilíbrio. No peito o palpitar que se esforçava para manter as ordens dadas
pelo cérebro aos membros exaustos lutava para não falhar. Os olhos não
enxergavam mais nada além do destino à frente, eles não precisavam
funcionar tão bem quanto o resto do corpo, a vida estava na capacidade de
correr o mais rápido que o corpo de uma criança fosse capaz. O pânico se
misturava ao cansaço e já não era mais possível saber se o frio subia a
espinha por causa do medo ou porque o corpo já se dava por vencido. Talvez
também em dúvida, a voz não encontrou saída na primeira vez em que tentou
gritar.
— Mãe! — Foi o som rouco que conseguiu se libertar. — Eu vi um dragão!
Um dragão!
A silhueta o preencheu como mágica. O frio na espinha continuava lá, mas
o coração parecia ter nascido de novo. Imundo com a mistura de lágrimas,
suor e poeira, agarrou-se à barra da saia e desabou, engasgando enquanto
tentava redescobrir o ar. Ela olhou despreocupada e deu no filho um abraço
que só deixou tudo pior. Pela primeira vez ele queria ficar o mais longe da mãe
que pudesse.
Os olhos do menino eram só lágrimas, suas calças sujas e molhadas, a
angústia fugia com as palavras entre soluços. Os joelhos finos tremiam,
guiando o resto do corpo no horror que não tinha controle.
— Ele era grande e fedia! Tinha um rabo enorme, asas e olhos
assustadores. Mãe, eu tenho medo!
Afundou no abraço frio dela para tentar conter os soluços. Apertou com os
bracinhos de graveto, fechou as mãos nas costas dela em um beliscão doído
e, por um instante, desejou sufocar naquela segurança. Quando estava quase
perdendo o ar, o medo súbito de não ver mais aquela mulher obrigou-o a
afastar o rosto e olhar em volta. Sentia que a fera estava por ali e, se não
estivesse, chegaria em breve.
Os cachos escuros dela fizeram cócegas no nariz do filho quando os
braços rechonchudos o afastaram. Seu rosto era só sorrisos, o que fez seu
filho se acalmar.
— Vai ficar tudo bem, querido — disse, bagunçando os cabelos do menino.
— Dragões não existem — a voz dela correu os ouvidos e matou a sede do
filho por paz, ainda que o medo continuasse sendo maior.
— Existem sim! Eu vi um! E ele... Ele vem pra cá! Está atrás de mim!
Ela não o levava muito a sério.
— Por que um dragão estaria atrás de você? Não temos nada que pudesse
interessar a ele.
— Ele não queria ser acordado — resmungou. — Mas eu acordei ele! Foi
sem querer, mãe! Não quero morrer, não quero que você morra!
O menino não notou que a expressão da mãe permaneceu a mesma,
apenas a soltou e correu na direção da estrada, sem olhar para trás. “Devia
mandar mamãe se esconder”, era tudo o que ele pensava naquele momento.
Mas algo o dizia que não adiantaria, ou que não poderia. O melhor que
poderia fazer era pedir ajuda a sir Johann, o herói local, e torcer para que ele
fosse capaz de vencer o dragão. Foi o que fez.
— Vou salvar a todos nós, mamãe! Não vai chorar por mim como chora
pelo meu pai, vai ver! — Gritou.
O garoto não lembrava do caminho até a capital ser da maneira que foi,
nem que os guardas tivessem tão pouco critério permitindo a entrada de
estranhos pelos portões, mesmo que fossem crianças. Mas ele acreditava que
aquilo era a ajuda de Deus, que sempre chegava nos momentos certos e
necessários, como o Padre Marthell costumava dizer.
O mercado recepcionava todos os visitantes da cidade, enchendo as ruas
com pessoas, tendas e a mistura do cheiro de comida, terra e tinta. O menino
imaginava como passaria entre toda aquela gente e entendia por que sua mãe
preferia viver longe daquele lugar. Eram estátuas móveis que dançavam umas
entre as outras com alguns esbarrões. Mais do que os produtos, o pagamento
por eles tinha a principal atenção de todos, com vendedores e compradores
deixando a altura da voz decidir o que acabaria sendo acertado. Capangas
armados eventualmente facilitavam as coisas para um dos lados.
Ele se espremia entre a multidão, esquivando, parando, girando, abaixando
e esbarrando em cestas e barracas. E mesmo assim ninguém percebia sua
presença, ou não se importavam. Algumas pessoas mexiam a boca, mas não
tinham voz — essas em especial chamaram sua atenção. Era esquisito, mas
ele acabara de ver um dragão, imaginava que poderia ser algum tipo de
feitiço, e temia por isso, pois até então ninguém nunca havia visto um deles.
Quem seria capaz de retirar esse encantamento além da própria criatura? Isso
não teria importância se no final ele e todos os outros estivessem mortos.
Primeiro chamaria sir Johann, depois pensaria em se livrar do feitiço.
A multidão era ideal para causar enganos e levar a erros de julgamento.
Por isso a guarda da cidade evitava o mercado, deixando os crimes e
problemas por conta dos mercenários que eram pagos pelos mercadores.
Graças a isso, as áreas nobre e eclesiástica — quase um oásis além daquele
deserto de moedas — eram tomadas por guardas, todos fortemente armados
e sempre alertas. Estranhamente, estes, assim como os outros, pareciam não
perceber a presença do jovem, que de primeira tentou olhar para dentro das
casas a procura do cavaleiro, mas logo se deu conta de que não conseguia
lembrar onde ele morava e se o procurasse dessa maneira, demoraria a vida
toda. A solução era vencer o medo que sempre teve desses homens de
armaduras incômodas.
— Senhor, pode me dizer onde encontro sir Johann? — Perguntou com
toda a educação dada por sua mãe, esticando o tecido vermelho da calça que
o soldado vestia por baixo de sua armadura.
— Quem? — Respondeu o guarda, entre todos ali o que parecia ser mais
amigável.
— Como assim, quem? — Respondeu o menino. — Sir Johann, filho de
Lorde Gallund e noivo da princesa Emily. Comandante das tropas do Norte e
futuro rei de todas essas terras!
O homem desatou a rir como se fosse morrer disso. Apontou para o
soldado ao lado, que assim como os outros parecia não ter percebido a cena,
tentou recuperar o fôlego e disse:
— Ei, Lorde Gallund! — A frase toda soou como uma piada. — Esse garoto
está procurando pelo seu filho!
Gallund desceu a cabeça até encontrar os olhos do garoto, que parecia
não entender o que significava. Aquele homem jamais teria condições de ter
um filho com a mesma idade de Sir Johann.
— Filho? Que filho?
— Este jovenzinho diz que precisa falar com seu filho, o futuro rei ou algo
assim. Talvez ele precise dos favores reais — debochou o guarda.
— Que história é essa? — Gallund se abaixou para o menino. — Não
tenho filho nenhum, ao menos que eu saiba, nem mesmo um título de
nobreza! Talvez esteja procurando outra pessoa, mas posso garantir, ela não é
dessa região, sou o único Gallund por aqui.
— Não pode ser. Eu me lembro de sir Johann! Ele me prometeu, bem ali
no pátio central, que ensinaria como lutar com espadas — o menino apontou
para um enorme pátio de frente para a igreja no qual a nobreza e a burguesia
se encontravam e os soldados gastavam seu tempo de descanso.
Ao ouvir o nome de sir Johann, o semblante do soldado se contorceu.
Seus olhos quase saltaram das órbitas enquanto balançava a cabeça
garantindo que ninguém havia ouvido aquele nome.
— Merda! — Gallund praguejou e se aproximou ainda mais do garoto,
agora cochichando. — O que quer com ele?
— Eu... Eu vi um dragão. E ele está vindo para cá! Precisamos encontrar
ele antes que seja muito tarde — respondeu o menino que gesticulava como
se Gallund falasse outra língua. — Só ele pode nos ajudar!
O soldado fez uma careta de surpresa e descrédito. Então sussurrou no
ouvido do menino.
— Sei onde sir Johann está. Mas a partir de agora não diga mais o nome
dele em voz alta, pode ser perigoso! Você tem muita sorte por Nicholas ser
novo demais pra reconhecer o nome — Gallund então se levantou, olhou para
um soldado descansando à distância e gritou: — James! James! Você pode
tomar meu lugar aqui? Só por alguns minutos. Esse garoto tem uma
mensagem importante a entregar, preciso escoltá-lo até o castelo. — A
resposta foi afirmativa. O homem pequeno se levantou, desajeitado, e correu
até seu posto temporário.
Gallund e o menino foram na direção do castelo e, assim que saíram do
campo de visão de James, mudaram o caminho.
— Esqueci de perguntar, qual seu nome, menino?
— Erick, senhor.
Gallund então parou; virou-se e olhou para baixo, o garoto quase trombou
com ele.
— Então, Erick, como conhece meu pai?
— Seu pai? — Ele se surpreendeu. Não fazia sentido, sir Johann não tinha
filhos, não ainda, pelo menos. — Como assim seu pai?
— Meu pai, oras! Sir Johann é meu pai, pelo menos é o que ele sempre
me disse. Tanto que tenho o nome de meu avô.
— Mas, ele não tinha filhos.
— Ele não tem filhos, tem um filho — respondeu Gallund, atento ao
caminho e visivelmente aborrecido; mas não mais do que Erick, que não tinha
palavras e tentava entender o que estava acontecendo. Coisa muito difícil para
uma criança. Na cabeça dele, por algum motivo fazia mais sentido aquele
jovem ser pai do lendário sir do que um filho.
— Merda. Vamos até ele, talvez consiga explicar — o soldado puxou o
menino pelo braço e ambos se esgueiraram através dos becos da cidade,
cada vez se afastando mais do centro por um conjunto de vielas que ia aos
poucos se estreitando em becos malcheirosos habitados por todos aqueles
que a cidade não suportava encarar.
Estavam na periferia da cidade, conhecida como Gueto do Vale. Dizia-se
que, depois de certo horário, não era aconselhável zanzar por lá sem pelo
menos quinze soldados bem armados. Mas a passagem deles foi bastante
pacífica, algumas daquelas pessoas até acenavam para Gallund, o que
deixava Erick ainda mais assustado.
— Até chegarmos à casa de meu pai, não faça nenhum barulho, apenas
me siga e obedeça cada palavra minha.
O menino ainda tentava entender todo aquele lugar a sua volta. Não se
lembrava de ter visto nada daquilo antes. Em sua memória aquele lugar todo
era um cortiço, sim, mas dos mais bonitos, com soldados, ferreiros,
mercadores e açougueiros. Não fazia sentido mudar daquilo para esse pedaço
de loucura em menos de uma semana, alguma coisa não estava certa. “É
magia do dragão, com toda a certeza!”, dizia a si mesmo. Ele acreditava que
criaturas como essas eram capazes de absolutamente tudo, só precisavam
querer.
Gallund só parou quando chegaram a um beco sem saída, formado por
sobrados tortos de alvenaria, onde os andares mais altos abriam bocarras que
engoliam a luz enquanto avisavam que ninguém deveria se aproximar. O beco
era cheio de vida à sua maneira, habitado por velhos, escória, escravos
alforriados e ex-condenados.
— Chegamos — anunciou Gallund.
— Como assim, “chegamos”? Chegamos aonde? — Erick puxou a manga
do soldado.
— Na casa do meu pai.
Era a maior casa naquele lugar, que sozinha tomava dois andares e
parecia estar sendo sempre vigiada pelos sobrados ao seu redor, como se
quem morasse lá fosse mais importante que seus vizinhos. A expressão de
Gallund saltou do receio para a mais profunda vergonha. Ele ficava
extremamente desconfortável naquele lugar, e sempre que ali estava, a única
coisa na qual pensava era em ir embora.
Diferente estava o rosto de Erick, que podia ser interpretado como a mais
pura decepção, com sinais de preocupação e medo que faziam brotar rugas
profundas, nada comum em crianças.
— Casa do seu pai? Por que o maior herói que essa terra já viu estaria
morando aqui e não no castelo?
— Está difícil acreditar que você não seja maluco. Meu pai não é esse
herói do qual fala há mais de quinze anos — o soldado desviava o olhar da
casa o quanto podia. — Afinal, que história é essa de dragão?
Erick tentava fazer tudo aquilo se colocar em ordem na sua cabeça da
maneira que podia, por isso demorou um tempo até responder:
— Eu estava caçando pedras na praia, quando vi uma diferente, saindo da
areia, ela tinha uma cor esquisita, parecia uma noite de céu estrelado. Não era
tão grande e tinha letras engraçadas que nunca vi na vida. Foi a primeira coisa
que li.
Enquanto o menino contava a história, os olhos de Gallund saltaram, sua
pele ficou pálida, suas mãos encresparam, por um instante não sentiu as
próprias pernas, até seus cabelos se ouriçaram e alguns que lá estavam
poderiam jurar que também ficaram grisalhos. Era como se a realidade, por
uma fração de segundos, o socasse no rosto e lhe ajoelhasse no estômago.
Seu corpo inteiro reagiu. E tudo no que ele conseguia pensar era “não Deus,
por favor, ele não.”
— Então eu li. Alguma coisa me obrigou a dizer as palavras em voz alta,
mas não entendia. A única coisa que ainda consigo me lembrar é Cthulhu
fhtagn. E essas palavras não saem da minha cabeça desde aquela hora,
repetindo, martelando, me irritando. Então eu vi o dragão saindo do mar. E é
tudo do que me lembro
— De sua morada em R’lyeh, Cthulhu morto espera sonhando — disse
Gallund sem controle de seus lábios. Era quase possível ver sua alma se
retirando do corpo em puro terror.
Para ninguém ali as palavras eram estranhas, mesmo para quem nunca as
ouvira. E todos ficaram aterrorizados com elas, mesmo sem saber por quê. O
mundo parecia tremer, o céu escurecer e então tornar-se rubro, para ficar claro
como uma manhã ensolarada e novamente se cobrir de breu.
— Ph'nglui mglw'nafh Cthulhu R'lyeh wgah'nagl fhtagn — disse Erick, sem
perceber sua boca mexendo. O som dessas palavras matou dois idosos,
causou o aborto de uma jovem, rasgou a razão de três pessoas e trouxe os
dois idosos de volta a vida, seguidos do choro abafado do feto abortado que
então tornou-se um urro gutural que fez a mãe gritar em loucura e verter
sangue em lugar de lágrimas. Essas palavras pertenciam tão pouco ao mundo
que o cérebro as interpretava como qualquer outra coisa semelhante, mas não
encontrava um significado. Então as transformava em sussurros indistinguíveis
que mesmo assim se faziam entender, gelando a espinha.
Gallund puxou a criança pelo braço para dentro da casa de Johann, sua
expressão de temor passou para o desespero, sabia que nada mais poderia
ser feito, mas é da natureza humana sempre acreditar que há uma saída. Ela
poderia estar em seu pai.
— Meu pai está aqui porque descobriu sobre essa pedra e O Inominável.
Tentou alertar a todos junto com um dos jovens soldados mais leais a ele.
Ambos foram chamados de loucos e expulsos. Tentou viver normalmente por
três anos, conheceu minha mãe. Ela morreu no meu parto — sangue escorria
no lugar das lágrimas e cada soluço do choro arrancava a vida do rosto de
Gallund. — A meu pai foi dado o perdão e permitido viver novamente na
cidade, desde que esquecesse isso tudo. Mas o soldado que estava com ele
voltou e o carregou para essa loucura novamente. Eu cresci vendo meu pai
enfiado em livros, sem sair de casa por meses, apenas estudando maneiras
de prever a chegada daquela coisa. Mas ele morreu antes de conseguir.
— Como assim morreu? Sir Johann morreu? — O menino puxado pelo
braço não conseguia se soltar ou parar de acompanhar o soldado. — Se ele
morreu, para onde você está me levando? Pode responder? Você me ouve?
Me solta!
Erick só conseguiu se soltar quando chegou ao quarto de Johann, onde
supostamente ele deveria estar. O fedor azedo que empesteava o ar servia
para preparar quem entrasse naquele lugar às coisas que veria ali. Tudo o que
restava eram livros ensebados, cheios de poeira e traças, espalhados por toda
a parte. Em um canto, jogado, estava um cadáver quase sem pele, com a
carne escura descolando dos ossos, unhas, barba e cabelos em tamanhos
descomunais ao lado de uma espada arruinada e vestindo o que um dia deve
ter sido uma armadura.
— Boa tarde, Erick — a voz cavernosa regida pelas batidas das
mandíbulas ósseas vinha do que foi a boca de sir Johann. Era grotesco, mas
fazia o menino sentir uma vontade incontrolável de rir. — Ou devo dizer boa
noite? Sabe, quando Ele acorda, já não conseguimos mais entender a
passagem do tempo. Nem precisamos, na verdade. Já sabemos que não nos
resta muito dele.
— G-Gallund... — Erick olhou para o lado e tombou com o susto, o soldado
jovem agora era um monte de carne podre com um rosto sem olhos,
estatelado no chão, os dedos se desprendiam e caíam e a roupa estava mal
colocada, já que não havia mais volume para vestir.
— Receio que devamos agradecer tudo isso a você — o que sobrou de sir
Johann gargalhou e começou a bater palmas para o menino. O ruído seco que
as mãos esqueléticas produziam fez Erick tremer dos pés a cabeça e deixar
escapar um suspiro desesperado.
A gargalhada e as palmas se prolongaram. Primeiro por um espaço de
tempo que pareceu horas, que então se tornaram dias, que duravam meses,
com o martírio de anos. E todo esse ruído ressoava na cabeça do menino que,
ao tentar tampar os ouvidos, sentiu barba no próprio rosto. As palmas
cessaram junto com o som de ossos se quebrando.
Seus olhos outra vez abriram para a verdade.
Todos os dias começavam da mesma forma: quando criança, correndo
atrás da segurança da mãe e jurando protegê-la ao invés de matá-la, como
realmente aconteceu. Todas as vezes tomava sua mente e seu corpo um
impulso monstruoso de permanecer ali, abraçado a ela assistindo o que
aconteceria; mas o subconsciente sempre o puxava para o mesmo lugar, para
o homem cuja vida destruiu, para a realidade que ajudou a criar, para todas as
vidas que arruinou. No começo, quando se viu sozinho em um mundo
enlouquecido, tentava se acalmar chorando, mas as lágrimas secaram ou a
mente já não aguentava mais aquilo e passou a tentar se enganar num misto
de desejo e sonho que arrastava-se para um pesadelo.
Porque a realidade era muito dolorosa; e mesmo assim, nada disso é tão
aterrorizante e enlouquecedor quanto ver Ele com os próprios olhos.
Quanto saber que Ele acordar é culpa sua.
Nascido há 27 anos na capital paulistana, Marco Rigobelli já desenhou, já teve banda e no
fim não continuou com nenhuma dessas coisas. Mentiroso profissional, escreve para o
papel, para as telas, para os palcos e para as caixas de som. Gosta de contar histórias e de
falar sobre contar histórias.
Leia a entrevista que fizemos com o autor.
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RUÍNAS NO HORIZONTE
Rafael Dias Canhestro
N
inguém soube como aconteceu. O fato é que a Névoa Rubra recuou e
revelou ruínas no horizonte. Não mais a paisagem imutável; de um lado
o vazio sem fim nem começo, de outro o vermelho estático, mas uma
novidade a encher os olhos da gente miserável que por ali sobrevivia. E todos
se amontoaram pelas ruelas dos vilarejos, subiram em telhados e passaram a
fitar enfeitiçados aquilo que só conheciam de histórias contadas pelos mais
velhos, mas que se tornava realidade, algo palpável, se vencessem as
distâncias, se ousassem a travessia do inferno.
Houve rebuliço. A visão dos prédios era esperança, mesmo que pequena.
Falavam da possibilidade de haver alimento. A terra do vilarejo não dava nada.
Era poeira e pedras enterradas. Nenhuma raiz que tivesse condição de
crescer no futuro. E a pouca comida que havia tinha de ser regrada. As
reservas escasseavam. Já eram insuficientes. E pessoas morriam. Caíam
duras no chão, entregues, cansadas demais para resistir. E as que viviam
enlouqueciam. Ainda era recente o caso do menino que morrera esvaído em
sangue. Fora mordido na garganta por um homem e o rasgo fora fundo. Não
tivera remédio. Morreram os dois; o menino e o homem, o segundo executado
em nome de uma tal justiça tão moribunda quanto a humanidade.
Reuniram os líderes da pequena nação. Confabularam durante horas e os
roncos do estômago decidiram a contenda. Enviariam exploradores para
vasculhar as ruínas. O tempo rugia. Não podiam esperar mais. A sombra da
fome crescia de tamanho e ameaçava eclipsar a todos que ali viviam. Dois
rapazes foram escolhidos. Ainda tinham músculos que lhes mantinham de pé,
ao contrário dos outros, farrapos a beira de ser extintos. Partiram durante o
começo de uma manhã, sob a vigília de seu povo, almas crentes de
recomeço. Era o que lhes restava.
2
Antes que a noite caísse eles acamparam. Dali viam as construções como
dedos erguidos na paisagem, acusativos, como que a condenar alguma
criatura invisível pela decadência que os consumia. A imaginação vagueava
por aquele território e pintava quadros, situações de uma hipotética existência.
Pensavam se o tom desbotado dos prédios não era apenas disfarce, se no
interior das entranhas de concreto não havia gente, aquelas pessoas
sorridentes das quais os antigos tanto falavam com aqueles olhares distantes;
prisioneiros de reminiscências. Sonhar não arrancava pedaço e era um
exercício gostoso. O mero ato de considerar a possibilidade de algo além do
vilarejo já os deixava excitados, embora receosos. Pois o desconhecido não só
os fascinava, mas também os horrorizava, como os pesadelos mais
incoerentes têm a capacidade de fazer.
Alfredo — o rapaz mais novo, com seus vinte anos — sentia-se dividido,
duas entidades em conflito pelo destino de um espírito. Ele ouvia o chamado e
sentia a urgência de ir, de ver e tocar naquelas estruturas, mas a razão o
impedia de arriscar-se no ventre da escuridão desértica. Ele temia um
encontro com um andarilho, daqueles de que se ouvia falar volta e meia no
vilarejo, quando crianças teimavam em não dormir. Homens sem rumo, que
matavam e comiam qualquer coisa que se movesse.
O outro rapaz — cujo nome era Ricardo — remoía reflexões tenebrosas.
Era mesmo possível alguém ter sobrevivido ao ar venenoso da Névoa Rubra?
E se houvesse, que tipo de vida haveria? Pensava em seus conterrâneos,
aquelas faces aniquiladas pelo sofrimento. Lembrou-se do menino com a
garganta rasgada, morto, como uma presa abatida pela fera. Ainda resistiam
como civilização, amparavam-se em regras de convivência, mas nem assim
eram capazes de evitar a loucura. E lá, nas ruínas, aquele lugar há tanto
oculto debaixo da densa cortina vermelha? Há tanto abandonado pela luz do
sol… “Estamos mesmo desesperados para tentar a sorte em um lugar
desses”, pensou, não conseguindo conter o estremecimento de seu corpo
diante dessa agourenta reflexão.
— Fico pensando… Tem alguém lá? — Perguntou Ricardo, quase para si
mesmo.
— Talvez — respondeu o outro.
— Não sei, mas… Acho que tô com medo.
— Medroso!
— Você não tem?
— Um pouco.
— E se fossemos para lá? Eles não iam ficar sabendo — disse Ricardo,
apontando o dedo para oeste e além. — Deve ter coisa melhor praquele lado.
Tem de ter. Lá, nos prédios, é que não tem.
— Se nos prédios não tem, para lá é que não vai ter. Não lembra? É só
deserto. Pra todo lado. A nossa única esperança está lá. Tem de estar. —
respondeu Alfredo e fechou os olhos.
Ricardo encarou as construções por mais alguns minutos, num silêncio
cheio de especulações. Logo ele também fechava os olhos e adormecia e
sonhava com vultos de antigas cidades.
3
Despertaram com o alvorecer e retomaram a caminhada. Nas garrafas
ainda restava água, mas eles não sabiam se era em quantidade suficiente
para o restante do trajeto. Os prédios dominavam cada vez mais a paisagem,
mas parecia uma proximidade ilusória, como miragens de oásis para homens
sedentos. A temperatura fazia o suor se esvair pela pele, quente e viscoso, e
fazia rolar ondas de calor pelo ar.
Ricardo tentava vencer o cansaço, as dores presentes com doses de
passado, aquela saudosa época em que o deserto era lenda e toda a sua vida
se resumia aos corredores estreitos do subterrâneo; os quartos comprimidos
em fileiras de pares e ímpares. Época em que o mundo exterior era um sonho
recorrente nas noites de criancice, motivo para perguntas que não podiam ser
proferidas perto de ouvidos adultos. Queria conhecer o lado de fora, na sua
ingenuidade de infância, cansado daquela realidade de lâmpadas artificiais e
máquinas que rugiam.
Mas o sonho se tornara pesadelo quando o computador central do
Complexo 43 entrou em curto e toda a sociedade desmantelou-se nos
incêndios e correrias que se seguiram. O que era tédio se transformou em
terror, e o garoto irrompeu para a superfície para ser recebido pelo toque
abrasador de um admirável mundo novo. Tarde demais para sentir saudades,
para sentir-se arrependido. Chegara o tempo da sobrevivência e até que as
coisas se estabilizassem com o surgimento do vilarejo, ele via cadáveres aos
punhados, de amigos e vizinhos, ossos semeados no deserto.
Beberam da água, até restar uma miséria no fundo da garrafa. Felizmente,
estavam perto. Pararam a alguns metros das ruínas, as encarando como se
estivessem diante de gigantes, uma raça desconhecida de criaturas. Alfredo
olhou para o céu e viu a tarde declinando, as cores vibrantes de uma manhã
dando lugar ao laranja do entardecer. A noite viria logo, e nela os horrores
rastejantes ganhavam corpo.
— Temos de andar mais rápido. A noite não demora.
— Não é melhor acampar? Aqui mesmo. Continuar… Pode ser perigoso! E
se escurece com a gente lá… — Respondeu Ricardo.
— Não dá. Eles estão esperando.
— Mas e se houver alguma coisa por lá? Monstros! Não lembra? Dizem
que na Névoa vivem monstros! E se...
— É um risco que temos de correr.
— Tem certeza?
— Não percebeu? A água tá acabando. Se não formos agora, vamos ter de
voltar de mãos vazias. E eles não vão gostar disso. Nem um pouco.
Calou-se. Não tinha argumentos. Alfredo estava certo; mais um gole e não
sobraria nada. Ele pensou na manhã seguinte, quando o sol nasceria forte. Ou
concordava em se arriscar a ser alcançado pelas trevas, ou se condenava a
encarar horas intermináveis de sede. Havia ouvido dizer que uma pessoa
consegue ficar mais de uma semana sem se alimentar, mas sem água... A
morte era certa.
— Você está certo.
— Sabia que entenderia — respondeu Alfredo, caminhando na direção das
ruínas.
4
Um silêncio pesado pairava pelo lugar. Caminhavam por ruas abarrotadas
de lixo como duas crianças fascinadas. Olhavam para as janelas rachadas
querendo absorver a história guardada por suas vidraças judiadas, ansiando
pelo vislumbre de uma sociedade morta e enterrada por debaixo de
escombros. A imaginação trabalhava firme, fazendo-os enxergar as pessoas
que por ali andavam durante as manhãs e tardes de um tempo quando a
esperança ainda não era uma tolice; a loucura dos vivos.
Carcaças de veículos despontavam pela rua, alguns amassados contra
postes, paredes, outros apenas apodrecendo ao relento, esperando pelo dia
em que deixariam de ter formas e se transformariam em meros pedaços de
metal em eterno enferrujar. Ricardo olhava para aquelas coisas e resmungava
pragas contra tudo. Por que nascer para sofrer? Se ao menos tivesse nascido
em outra época, em outro ventre...
Uma embalagem passou voando, e só não foi levada para o deserto por
causa dos dedos ágeis de Alfredo, que a agarraram no ato. Havia uma mulher
de avental desenhada no pacote e ela apontava com ambas as mãos para um
delicioso pedaço de carne, ainda quente, pelo menos era o que sugeriam os
rolos de fumaça que subiam em espiral do alimento. Comida. Os mais velhos
contaram que antes era fácil consegui-la. Bastava uma volta por um quarteirão
e lá estava ela, entregue ao seu predador, à mercê de uma mordida. Um
sonho… Olhou ao redor e viu as fachadas de antigas lojas e comércios.
Dentro de um dos prédios, ele pôde ver os pés descalços de um defunto
apontando para o vazio, secos, se desfazendo como papiro devorado por
traças. Morte.
Pararam em frente a um amontoado de destroços que fechavam a rua. Ao
lado, na entrada escancarada de um prédio, trevas profundas, de onde
qualquer tipo de criatura poderia estar lhes observando. Ou se arriscavam a
entrar ali ou davam meia volta e retornavam para o deserto. A barriga de
Ricardo roncou, e o ruído foi alto, ecoou pelos becos entulhados e reverberou
por cada parede e vão. A fome estava ali e fungava em seus cangotes.
— Ainda vai demorar um pouco mais para escurecer — disse Alfredo,
olhando para o céu. — Que acha de entrarmos ali? Deve ter alguma
passagem que vai dar em outro canto.
— Talvez. Mas e se...
— Não tem outro caminho. Acho que não. Vai ter de ser por ali. —
Respondeu Alfredo, caminhando na direção da entrada do prédio. Respirou
fundo e entrou.
Nada viam. Caminharam às cegas, até sentirem com a ponta dos dedos a
frieza da pedra. Um parede. Deram os braços e seguiram juntos. Na medida
em que avançavam, formas iam surgindo, uma por uma, sombras e vultos que
clareavam, tomando consistência. Logo enxergariam, mas saber disso não os
aliviava. Temiam o que poderia se esconder por debaixo do manto de
escuridão, à espera, a vigiar os seus passos inseguros. E se houvesse
mesmo algo a ser visto? Alguma coisa como os andarilhos, os monstros
descritos em noites de conversas sussurradas à beira de fogueiras? E se?
Temiam o pensamento e, automáticos, se obrigavam a seguir. Era tarde
demais para voltar. As pernas não obedeceriam. Eram escravas da tal
curiosidade, que de olhos arregalados não dava mostras de que voltaria a
dormir.
Entraram em um largo corredor. Um raio de luz se infiltrava pelo teto e
permitia que vissem um pouco do chão arruinado, cheio de buracos e tingido
por um rastro vermelho, que seguia serpenteando até uma porta aberta. Um
cheiro horrível fluía de lá, e um ruído baixo ecoou pelo gesso mofado que
recobria as estruturas. Um rosnado… Não estavam mais sozinhos. Alfredo
recuou alguns passos, com cuidado, não querendo fazer barulho, tampouco
atrair a atenção para si. O companheiro descuidou e topou com um parafuso
de bom tamanho, que se deslocou até bater de encontro a uma parede. Houve
um estrondo e um berro inumano respondeu ao chamado. Era feito de raiva e
uma fome surda, tão antiga quanto o pó que recobria superfícies.
— Corre! — Gritou e o outro obedeceu.
Correram pelo extenso corredor, passando na frente da porta onde
terminava o rastro de sangue, e de cujo interior se ouviu soando um grito
humano e selvagem em um só tempo. Viram uma silhueta pulando lá de
dentro e um vulto seguiu em seus rastros, um borrão que berrava e fazia
estalar as unhas contra o piso carcomido. Um raio de luz que vinha do teto
revelou seu rosto inchado, de olhos opacos e leitosos, os dentes se
arreganhando num arco de presas amareladas, ansiosas por desfrutarem do
gosto da carne humana. Um instante depois as suas formas foram encobertas
pelas trevas e o que restou foi um vulto a lhes perseguir, gritando e urrando,
assassinando o silêncio que fora a tônica das ruínas.
Viraram em uma dobra de corredor e avistaram uma silhueta humana mais
adiante, que acenava e indicava um roteiro de fuga. Seguiram na esteira do
sujeito, dobrando corredores e subindo escadas, até toparem com uma porta
de madeira escura que se fechou assim que passaram por ela. Alfredo
respirava com dificuldade, ainda recuperando o fôlego, e Ricardo se mostrava
um tanto mais recomposto, embora os olhos estivessem arregalados,
pulsantes de terror.
Encarou a face do sujeito que havia lhes salvado. Nas trevas amenas dali,
ele pôde ver que não havia rosto, e sim uma máscara de gás e olhos vítreos
que encaravam. “Há algo de errado com ele”, pensou, apesar de não saber de
onde vinha essa súbita constatação. Esperava que estivesse enganado.
— Obrigado... Você nos salvou. Salvou sim. Obrigado — disse Alfredo,
aliviado.
— Comida... — Murmurou o estranho da máscara. Encarava Ricardo
fixamente, a refleti-lo naqueles olhos vítreos.
— Você tem? Pode nos dar? Estamos famintos.
— Tem alguma coisa errada aqui, Alfredo — disse Ricardo, levando a mão
até a maçaneta da porta, enquanto os pés dançavam no assoalho, tentando
topar com algo duro, alguma coisa que pudesse ser usada como arma.
— Do que você está falando? — Perguntou Alfredo, o fitando como se
estivesse diante de um doido. — Desculpa, mas o meu amigo está um pouco
nervoso. É que...
— Comida... — Murmurou o sujeito da máscara de gás uma vez mais, e
tudo aconteceu.
Um assobio cortou o ar e Alfredo caiu ao chão com uma picareta fincada
em sua nuca, espirrando sangue por todos os cantos, pintando o rosto de
Ricardo de vermelho. Ele tentou reagir, mas assim que se virou na direção do
sujeito da máscara, algo pesado foi de encontro ao seu rosto e houve uma dor
explosiva na têmpora direita e uma sensação de estar se perdendo, sumindo...
Caiu para trás, e antes que sentisse o chão, já não havia mais mundo no qual
se firmar.
5
O horizonte se abria diante de seus olhos e ele podia ver o vilarejo adiante.
Um grupo de pessoas estava reunido em frente a ele, e acenavam na sua
direção e esboçavam sorrisos. Esperavam pelo seu retorno, com a certeza de
que o rapaz carregava a solução para a fome dentro da sua mochila. Procurou
por Alfredo, por alguém com quem pudesse compartilhar sua glória, e o viu
caminhando bem próximo, a fitá-lo com olhos que sangravam, a picareta
ainda agarrada em sua nuca, entranhada na fundura do crânio. O amigo
sorria, mas naquele sorriso não havia alegria, apenas desespero e morte.
Morte.
Ele desviou o olhar daquela coisa e olhou novamente para o vilarejo,
esperando ver aquelas pessoas respondendo aos seus acenos, mas o que viu
foi fumaça subindo no rumo do céu e chamas se espalhando pelas casas,
brasas devorando tudo; o mundo. Ele tentou berrar, mas a voz não saiu e...
Abriu os olhos e sentiu o cheiro que se espalhava pelo quarto. Não era de
coisa queimada, e sim de algo assando. Olhou para o lado e viu um homem
de pernas cruzadas, o rosto uma forma terrível, devorado por alguma doença
que havia desfigurado seus traços e o transformado num mosaico de pústulas
que cuspia um corrimento escuro. Uma máscara de gás descansava por entre
as suas pernas cruzadas.
Ele não teve tempo para pensar a respeito. Desmaiou e se perdeu.
6
Quando acordou estava mais escuro. Esperou por alguns minutos,
enquanto a vista se acostumava com a falta de luz e aprendia a distinguir
formas. Olhou para a direita, apesar de estar amarrado a uma corda, e viu pela
janela que a noite seguia alta, desnuda de estrelas. Olhou para a esquerda e
teve de reprimir um grito. O rosto de Alfredo estava voltado para a sua direção,
o seu corpo jogado feito trapo, uma poça de sangue enorme secando ao seu
redor. Estava caído de lado, e era possível ver a sua barriga, que jazia aberta
como a de um porco, as vísceras pendendo inúteis no vazio. Ricardo respirou
fundo, segurando a vontade de vomitar, o ímpeto de gritar e... tudo aquilo
passou, e o que restou foram os seus olhos voltados na direção do cadáver. A
picareta ainda estava presa na nuca dele.
Olhou para outra direção e avistou o sujeito sem a máscara, dormindo em
um canto mais afastado, ressonando alto, e havia mais um mascarado, este
voltado para outro lado, também deitado. Sabia que eles não dormiriam para
sempre, e sentiu urgência em agir. Começou a rolar de um lado para o outro,
na esperança de que o movimento fosse capaz de afrouxar a corda. Fez isso
por alguns minutos, os olhos fixos nos captores, estremecendo a cada vez que
eles se moviam um pouco, a cada resmungo que atravessava a barreira dos
sonhos.
Um laço se desfez, depois outro... o seu braço direito se soltou, tornando
fácil libertar o restante do corpo. Levantou-se e deu um passo adiante. Olhava
para o amigo, para o que havia sobrado dele.
Alfredo estava sem uma das pernas, e o que havia sobrado dela
despontava queimado entre as cinzas de uma fogueira. Ricardo desviou os
olhos da atrocidade e, com a ponta dos dedos, fez o morto dormir. Atravessou
a sala em passos miúdos, na direção de um pedaço de cano que jazia
ancorado contra a parede. Armou-se com ele e voltou-se para um dos
mascarados, o seu rosto transformado pelo ódio, os dedos cerrados no metal,
ansiosos por usá-lo. Estava perto, já podia estender o braço e acertá-lo, mas
ele despertou antes e lhe encarou, os olhos negros cheios de uma inteligência
perigosa, doentia.
— Comida... — a coisa murmurou, enquanto sorria com seus lábios
feridos.
— Me deixa em paz! Você matou o meu amigo! Desgraçado! Doido! Você
é louco!
— Fome... Comida — respondeu o sujeito, levantando-se e cutucando o
comparsa com a ponta de sua bota gasta. O outro acordou e também olhou
para Ricardo.
— Vocês só podem estar loucos... — Disse, afastando-se com passadas
para trás, seus olhos nunca abandonando aquelas duas formas de pesadelo.
O rapaz virou-se para a porta. Passos continuavam a ecoar às suas costas
enquanto ele agarrava a maçaneta e a girava de lá para cá, suores se
derramando pelo rosto, um grito a escalar os interiores da garganta. Uma mão
o agarrou num dos ombros e com um safanão ele a repeliu e com um puxão
desesperado escancarou a porta e por ali se enfiou e correu aos tropeços pelo
corredor, enquanto ouvia aquelas coisas vindo e repetindo a ladainha; a eterna
súplica por comida. Tateou por paredes, dobrou corredores, até sair em uma
escadaria que descia para profunda escuridão. E logo atrás vinham os
mascarados, rindo alucinados, como se estivessem achando graça de alguma
piada, algo extremamente engraçado.
Tropeçou em um degrau e bateu com o ombro em algo sólido. Berrou de
dor, mas não parou de correr, pois podia ver adiante a saída, na crença de que
outro caminho o levaria ao lugar certo. Comida. Por ali não havia, a não ser
que quisesse voltar ao esconderijo daqueles homens e dividir com eles uns
pedaços de carne bem passada. Pensou no cheiro de gordura quente e
borbulhante que pairava pelo quarto e seu estômago chegou a desejá-la por
um instante. Por que não se entregar ao desejo? Vivia em um mundo sem
sentido, onde o pecado era virtude, então por qual motivo simplesmente não
entrava na dança? Não se arriscou a pensar a respeito, apenas correu,
querendo livrar-se das risadas daqueles homens, fugir para longe e sentir o
vento quente do deserto em seu rosto.
Passou pela porta dupla e saiu do prédio, chorando e rindo ao mesmo
tempo, abraçando um poste enferrujado como um náufrago abraçaria um
pedaço de seu navio afundado em pleno oceano. Olhou para trás, para as
profundezas negras da construção, e ouviu gritos reverberando por lá. Eram os
mascarados. Alguma coisa os havia farejado, e um berro selvagem serviu para
confirmar essa suspeita. Ricardo deu as costas para os gritos que se
seguiram e correu em direção ao deserto. Era melhor vagar por lá
eternamente do que passar os próximos minutos ali, naquele cemitério onde
os mortos apodreciam e os vivos sobreviviam de restos.
Ele correu, correu e correu, até sentir o pulmão ardendo em brasas, a
respiração tornar-se fogo. Caiu na terra seca do deserto e vomitou o nada que
havia em sua barriga. Ao terminar, levantou-se cambaleante e olhou para trás,
para a escuridão. Em algum lugar naquele horizonte negro estavam as ruínas
de uma civilização; prédios se deteriorando com o tempo, cadáveres se
decompondo em abandono. E também a loucura. Sim, ela caminhava por
aquelas ruas cheias de entulho, visitava os corredores escuros das
construções e cumprimentava os farrapos humanos que insistiam em querer
sobreviver. Homens ou animais? Fazia diferença? Evitou essa nova pergunta e
seguiu no rumo do vilarejo.
7
Foram dois dias de caminhada, dois dias de fome. Ao avistar o vilarejo no
horizonte ele suspirou aliviado e se permitiu correr, a despeito do cansaço de
seu corpo, das dores que sentia, mas não foi muito longe. A esperança
zombou de sua cara e lhe deu as costas, e o que restou foi o negrume da
fumaça, a ganhar os céus e corromper os tons de azul fosco. Espalhava um
cheiro acre e... de coisa assada. Sim, como no seu pesadelo, como no quarto
dos mascarados; o mesmo odor que havia partido dos restos esfumaçados do
seu amigo. Apressou o passo.
Chegou mais perto e a sua desconfiança tornou-se concreta. Havia uma
grande fogueira acesa no centro do vilarejo e ao redor dela se viam homens e
mulheres de bocas pintadas de vermelho, observando a carne girar em
espetos enquanto babavam de fome. Era obsceno, mas o cheiro era tão
delicioso... Ricardo também queria um pouco! Nem que fosse apenas uma
mordida, só para sentir o gosto, calar de uma vez por todas a maldita fome,
que não se cansava de gritar do meio de suas entranhas. Haveria luta por
comida, selvageria, mas ele não se importava. Não havia mais nada que lhe
provocasse repulsa. Não depois do que viu nas ruínas.
Aquele era o mundo no qual vivia, e nele não havia nenhuma embalagem
hermeticamente fechada com algo delicioso dentro, nenhum carro que
pudesse levá-lo para outras paragens. Tudo o que havia era o deserto
interminável e a loucura, aquela dama travessa. Sim, o cheiro era
maravilhoso! Agachou e procurou por uma pedra pesada e encontrou uma
com uma das pontas afiadas. Olhou na direção do vilarejo e apertou o passo.
Estava morrendo de fome.
Enquanto isso, as ruínas fitavam o vilarejo de longe. Observavam a queda
de outro refúgio humano, o surgimento de novas ruínas no horizonte.
Rafael Dias Canhestro tem carreira recente como escritor, com dois contos publicados: "A
menina e a banheira", na antologia Horas Sombrias, da Andross, e "Cadáver", selecionado
no concurso promovido pela editora AMCGuedes, e publicado em maio desse ano. Ainda
publicou o livro "A casa", pela editora Multifoco.
Leia a entrevista que fizemos com o autor.
ESSA É A NOSSA HISTÓRIA. VOCÊ VAI
ADORAR
Caroline Policarpo Veloso
-T em certeza de que quer fazer um feitiço tão poderoso? — Perguntou a
mulher. — Se o que procura é inspiração para seu trabalho, eu poderia
fazer algo menos arriscado.
— Aceito os riscos. Quero o melhor, não importa qual o preço. — Insistiu.
Estava lá porque aquela mulher era capaz de conseguir coisas que ninguém
mais conseguiria, e não iria embora com menos. Não tinha medo dos
fantasmas e demônios que assombram as histórias. Conhecia-os bem.
— Como quiser — concordou ela. Ao contrário das charlatonas idiotas que
existiam aos montes pela cidade, sabia que magia séria sempre envolvia
riscos, mas o cliente pagava bem e tinha noção do que estava fazendo.
Lembrava-se bem da primeira visita daquele homem. Na época ele era um
rapaz universitário, com menos dinheiro para esbanjar e cheio de perguntas.
O escritor também se lembrava perfeitamente da bruxa. Quando jovem,
buscava inspiração para suas histórias de horror em lugares supostamente
assombrados. Morou em casas decadentes e isoladas, conheceu médiuns e
videntes. Aquela mulher lhe proporcionara uma das experiências mais
interessantes em seus anos de procura. Confiava em sua competência.
Precisava dela.
— Estou pronto. Fale logo, o que é preciso?
— Primeiro, diga exatamente o que quer. Pense com cuidado. Preste
atenção, escolha bem as palavras, seja exato.
O escritor sorriu. Escolher bem as palavras era sua principal atividade há
mais de dez anos.
— Não seja presunçoso, lembre-se de que está aqui para conseguir
palavras, afinal. Tenha cuidado.
— Para conseguir as palavras perfeitas. As mais intensas e envolventes.
Um texto inesquecível, algo que faça o leitor se sentir incapaz de parar de ler.
É isso que desejo. — Disse, irritado pelo aviso.
A bruxa olhou-o, franzindo as sobrancelhas.
— Pois que seja. Posso conseguir isso. Feche os olhos.
A bruxa o seguiu e notou sua ansiedade ao entrar no carro. As notas altas
que recebera pelo serviço bastavam para custear sua vida sem luxos por
meses. Era muito mais do que o valor habitual, e o sujeito tinha oferecido
espontaneamente, mas ela se sentia incomodada.
— Eu cobro meu preço, mas a magia tem o dela também. — Avisou outra
vez. — O dinheiro não pode pagar o preço da magia.
Mas os vidros do carro já estavam se fechando.
Enfiou a chave na porta de casa, com vontade de correr para o quarto e
não sair da escrivaninha até terminar o trabalho. Embora acreditasse que nada
poderia atrapalhá-lo durante sua sessão de escrita, preparou um café forte,
esvaziou a bexiga e até tomou uma chuveirada rápida na água fria. Não queria
ter que interromper-se para nada no mundo depois de se sentar diante do
papel. Confiava no poder da bruxa, embora fosse uma velha chata com medo
de usá-lo.
Abriu o livro sobre a escrivaninha. Não era seu. Nem era exatamente um
livro, não tinha nenhuma palavra escrita, nem na capa nem nas grossas folhas
brancas.
Respirou fundo, apertando a caneta entre os dedos, preparado pra ficar
sentado ali até o amanhecer. Mesmo que a casa estivesse desmoronando,
que a energia elétrica acabasse e bombas explodissem na rua, nada o faria
parar.
A historia não era de todo original. Os personagens já figuravam em alguns
de seus contos e romances, o que deixou o escritor ainda mais satisfeito. As
palavras escapavam de seus dedos sem que precisasse — ou conseguisse —
pensar nelas. Sendo autor das personagens, não parecia uma trapaça ter
precisado da ajuda da bruxa para esta que, tinha certeza, seria a melhor de
suas narrativas.
Histórias dentro de histórias. Personagens contando que foram escritos,
mas falando de si como pessoas reais. Uma velha queimada viva. Uma garota
violentada. Um homem deformado com corpo desproporcional que mal
conseguia andar. Um garoto que todas as noites sonhava com a própria morte,
sempre de forma diferente. Um rapaz imortalizado em forma de estátua que
continuava consciente, com fome, com sede, sono e necessidades
fisiológicas cada vez mais insuportáveis. Uma menina presa em um labirinto
sem saída.
O escritor estava assustado. Aquilo soava cruel. O efeito gerado pela
admissão que as histórias haviam sido escritas tornava-as reais demais.
Personagens admitindo-se personagens, mas existindo fora das histórias nas
quais foram criados, sofrendo por elas.
— Temos uma chance de vingança agora. O que vamos fazer, matá-lo? —
Propôs o rapaz-estátua.
— Aquele covarde maldito vai pagar. Mas acho muito melhor que prove do
próprio veneno. — Disse a velha coberta de queimaduras. — Que o autor vire
personagem.
— Tenho ideias de uma história para ele. Por favor, quero começar. —
Pediu a garota.
O escritor sorriu. Aquilo estava ficando muito divertido. Tinha uma pitada de
humor somada à dureza do texto. O que quer que a bruxa tivesse feito para
plantar essa ideia, estava funcionando maravilhosamente.
Quase podia se esquecer de que era apenas uma história, afinal, e aquele
sofrimento todo não passava de literatura. Personagens não são pessoas, não
são reais. Ele não era aquela figura sombria a quem acusavam de sádico,
torturador e assassino.
Era?
Havia um personagem a mais no ambiente da conversa, revelado agora. O
único que não fazia parte de histórias anteriores. Era o escritor, autor de todos
os outros. Ele mesmo, portanto, inserido na história que estava escrevendo.
Começou a sentir-se mal com a raiva que era dirigida a seu eu
personagem, como se este funcionasse como um boneco daqueles de vodu.
Quis alterar um pouco o enredo, fazer o escritor-personagem argumentar em
defesa própria, mas algo o impedia de inseri-lo na conversa.
— Nós nunca tivemos voz para você. Você nunca se importou conosco,
nunca achou que fôssemos gente! Por que deveria ter chance de falar agora?
Eu não quero te ouvir! — Diz a garota.
O escritor-personagem enfrenta seus olhos coléricos, incapaz de falar ou
fugir.
O escritor real se arrepia. Quase pode ver a garota, sentir seu olhar.
Imaginava-a claramente. Magra demais, aparentando catorze anos, embora
tivesse alguns a mais, com os cabelos nos ombros, calçando chinelos. O
escritor se lembra da história. Ela não merecia sofrer tanto.
— Eu fiquei com tanto medo naquele labirinto… Não tinha ninguém
comigo, eu não sabia onde estava, e fazia tanto frio… — Disse a menina
pequena, choramingando, como se quisesse alguém para pegá-la no colo e
dizer que tudo ficaria bem. A garota mais velha abraça seus ombros.
— Era excitante pra você, descrever torturas? Seu desgraçado! Como seria
ser espancado e amarrado a uma estaca para queimar? Como seria sentir as
brasas em seus pés, saber que elas o devorarão e não ter como escapar? —
Acusou a velha.
Ele sentia o medo, sim, o desespero da menina perdida, sentia o calor
sufocante das brasas de uma fogueira imensa como se estivesse no meio
dela…
— Você é um covarde nojento — continuou ela. — Sempre protegido, do
outro lado da história… Achou que estaria seguro para sempre?
As acusações não paravam. Quantas personagens estavam ali? Dezenas?
Mais de uma centena? O escritor-personagem estava acuado, enlouquecendo
de medo e de horror, horror de si mesmo, de saber que as histórias de algum
modo eram reais o bastante para causar isso, saber que o sofrimento não
ficava no papel, fictício, nunca… Não aguentava mais ouvir as acusações, não
podia suportar nenhuma palavra mais… Mas não tinha saída, precisava
continuar.
O escritor real estava se assustando a sério. Aquela história era brilhante,
irresistível, mais real e mais viva do que podia querer… E também mais do
que o suportável para qualquer sanidade mental. A bruxa o havia colocado em
uma pegadinha? O que aconteceria com ele no final daquele texto? Não com
seu eu-personagem, não se importava com isso, mas será que ele corria
algum risco?
Nunca achou que fosse odiar não conseguir parar de escrever uma história
excelente. Nunca achou que fosse querer interromper uma escrita fluindo
bem. Mas estava acontecendo.
— Gostaria de pelo menos agradecer a chance, sabe? Fique sabendo que
é um prazer estar em igualdade de posição com você. Nós vamos escrever
sua história agora. Aliás, você vai nos fazer esse favor, já que está com a
caneta na mão. — Disse a garota. Não se dirigiu ao escritor-personagem.
O escritor tentou desesperadamente tirar a caneta do papel, mas seu
corpo não o obedecia. Sua consciência talvez não estivesse mais exatamente
— ou apenas — nele. Não sabia mais o que pertencia ao papel e o que era
vida real.
— O que está no papel também é real, idiota, será que ainda não
entendeu? Essa é a nossa história, escritor. Você vai adorar.
Caroline Policarpo Veloso publicou o livro de poemas Palavras Andarilhas (Editora
Penalux) no início de 2015. Gosta muito de relógios, mapas e calendários, embora relute
em confiar neles. Participou de algumas coletâneas, entre elas Poderes (Darda), King
Edgar Hotel, Utopia, Sonhos Lúcidos e Ponto Reverso (Andross). Já publicou na Trasgo, na
edição número 3. Não é verdade que tenha um dragão imaginário de estimação.
Leia a entrevista que fizemos com a autora.
PINDÁ
Vilson Gonçalves
P
indá aprumou-se e parou à entrada da oca de Akang.
— Ô de casa! — Pronunciou-se, com a voz clara e decidida de uma
jovem que nada tinha a temer.
Na mão direita levava o tacape; na esquerda, prova de sua habilidade
como caçadora: um tatu de bom tamanho. Visualizou-se mentalmente: alta e
parruda, uma belíssima guerreira abayuká, embora fosse apenas uma portaescudos de dezoito anos de idade e não pudesse casar ou comer a carne de
um inimigo abatido. Sequer podia pintar seu próprio símbolo no escudo; em
vez disso, sempre que saísse em combate, sua função seria cobrir a
retaguarda de uma mulher mais velha, uma guerreira de verdade, sua mãe-dearco. Akang.
Quando Akang saiu porta afora, toda a confiança de Pindá derreteu. Sua
mãe-de-arco, uma mulher imensa, lutara contra guerreiras hetá de Abayuká,
Iperu e Murená e contra os bárbaros da Mata Antiga ao longo de seus
sessenta anos de idade. Lutadora experiente, ostentava um belo cinto de
troféus, repleto de partes de inimigos conservadas em salmoura: orelhas,
narizes, testículos, dedos, uma mão inteira e uma mandíbula.
Diante de sua veterana, Pindá voltou imediatamente a ser a adolescente
desajeitada e gaga de sempre.
— Mãe-de-arco! Eu lhe trouxe! — Disse, chacoalhando o tatu pela cauda
diante da guerreira.
— A troco de que?
— É um agrado — disse Pindá, com a testa brilhando de suor. Como todas
as porta-escudos, tinha o cabelo curto; tranças e franjas bem cuidadas eram
para as guerreiras prontas.
— Escute aqui, sua pirralha de tipoia — respondeu Akang. — Sei que você
anda de olho no meu filho. Por acaso acha que eu trocaria meu filho por um
tatu?
Akang agarrou sua orelha e começou a torcê-la, fazendo a menina se
curvar de dor. Por um instante, Pindá pôde olhar para dentro da oca, onde o
objeto de seu desejo estava sentado calmamente, fiando algodão: Aperema.
Era um rapaz de bochechas grandes e empinadas, que parecia estar sempre
sorrindo. A boca era carnuda; os olhos miúdos e brilhantes eram valorizados
com linhas grossas de tintura preta; as sobrancelhas eram longas e
arqueadas, muito expressivas.
Ele passava algum tipo de óleo perfumado nos cabelos e no corpo, e
parecia ter a pele muito macia. Era parrudo, mas não anguloso nem barrigudo,
provavelmente seria um bom amante. Às escondidas, Pindá já escapulira com
vários rapazes para longe da aldeia, tanto magricelos quanto gorduchos, então
tinha certa experiência no assunto.
Quando Akang não estivesse por perto, Pindá e muitas outras mulheres
paravam para ver Aperema passar, quando trazia produtos da horta ou voltava
do banho de rio. Acompanhando seus movimentos de longe, Pindá se
perguntava por que a visão das costas e do traseiro do rapaz lhe causavam
um arrepio quente. “Por que Rudá faz isso?”
Rudá era o espírito do amor, da paixão e da manutenção da vida.
Mas Rudá não tinha lugar na casa de Akang. Akang tinha apenas um
marido, algo incomum para uma grande guerreira, e com ele tivera cinco belas
filhas e um único menino. Ela sabia que o garoto atrairia muitas pretendentes,
mas o mantinha dentro de sua casa. Aperema era valioso demais para deixar
que se casasse com uma qualquer: além de belo, era asseado, bom
cozinheiro, bom cantor, diligente, habilidoso na coleta do mel e das castanhas.
Pindá estaria louca se acreditava ser julgada um par adequado para ele.
— É só um presente, mãe-de-arco. Ouvi a senhora dizer que seu filho
gosta muito de carne de tatu — choramingou Pindá.
Algumas jovens que praticavam luta na praça central da aldeia haviam
parado para observar e rir da amiga.
— E vocês também, suas inúteis! — Gritou Akang. Soltou a orelha de
Pindá para fazer gestos ameaçadores às moças na praça. — Especialmente
você! Sim, você, bocuda! É com você que estou falando! Se eu voltar a ver
você tentando abordar o meu filho na horta, juro que vou costurar cada buraco
seu tão firme que você não vai conseguir copular nem com um fantasma!
As moças voltaram imediatamente à sua prática de luta, fingindo que não
sabiam do que a veterana estava falando. Akang continuou a repreender
Pindá:
— E além do mais, pirralha de tipoia, eu sequer te declarei guerreira!
Achou mesmo que eu deixaria uma porta-escudos entrar em minha casa para
cortejar meu filho?
Pindá, segurando a orelha dolorida, reuniu cada fiapo de confiança para
responder:
— Mãe-de-arco, eu já lutei em seis batalhas ao seu lado, e sempre fui uma
boa porta-escudo. A melhor de todas! Se a senhora possui alguma filha-dearco que merece ser nomeada guerreira ainda esse ano sou eu!
Akang se preparou para desferir um bofetão na jovem, mas parou no meio
do caminho. Pois a garota não estava mentindo. A guerreira a levava consigo
para batalhas todo início de verão, desde que fora confiada a ela por sua mãe
biológica, aos doze anos, para ser devidamente endurecida. Mesmo menina,
Pindá jamais fugira. Era ágil, robusta e boa arqueira.
Poucos meses antes, as mulheres da aldeia haviam se aventurado pela
Mata Antiga a fim de defender a fronteira dos bárbaros. Na batalha que se
seguiu, Akang teria sido trespassada por um dardo silencioso, disparado das
árvores, se o escudo ligeiro de Pindá não se colocasse no caminho. Era duro
para a veterana admitir que devia sua vida à novata, mas sua sinceridade não
lhe permitia dizer o contrário.
— Sim, sua cabeça de vento, você merece. — Retrucou Akang, muito
contrariada. — Mas eu sei que assim que for declarada guerreira, fará de tudo
para deitar seus dedinhos rápidos no meu filho!
— Mãe-de-arco, eu tenho nove dedos guardados, dos nove bárbaros que
matei este ano, prontos para serem pendurados no cinto que ainda não posso
usar! Quantas outras meninas dessa aldeia podem se gabar do mesmo?
Com efeito, nenhuma outra porta-escudos derrubara tantos homens na
última campanha, sem contar todos os inimigos abatidos em anos anteriores.
Outras jovens já haviam sido declaradas guerreiras por menos. Mas a decisão
era sempre da mãe-de-arco, e se ela decidia ser magnânima ou mesquinha,
isso era problema seu. Em um gesto especialmente ameaçador, Akang bateu
com o indicador estendido contra o peito de Pindá.
— Eu sou sua mãe-de-arco e de outras três daquelas palermas ali. Suas
mães confiaram vocês a mim porque sabem que eu sei como transformar
pirralhas de tipoia em mulheres de guerra. Eu decido quem pode se gabar.
Pindá finalmente cedeu, cabisbaixa.
— Está bem, mãe-de-arco.
Ela baixou a cabeça e se virou, pronta para voltar ao centro da praça
circular, onde as moças em formação dormiam nas noites secas de inverno.
Anoitecia, e uma de suas irmãs-de-arco já acendera a fogueira. Pelo menos
haveria um tatu inteiro para o jantar. Geralmente as porta-escudos só tinham
peixe defumado e pimenta para misturar com seus mingaus e bolos de
mandioca.
Estarrecida, Akang observou que a moça não tentara usar o argumento
mais óbvio, pelo menos não diretamente. “Eu salvei sua vida, sua montanha
de azedume com traseiro de anta gorda! Admita que sou boa o bastante”, teria
dito uma garota mais irascível. Ferozmente independentes, as tribos de
Abayuká desenvolveram uma cultura competitiva que valorizava a bravura
individual. Isso tornava a humildade uma virtude rara. Claramente a menina
não tinha medo de ser punida pela superiora; não assumira para si a salvação
dela porque realmente sentia que este era seu dever. A veterana não sabia se
admirava o valor da menina ou se a odiava por julgar-se digna de seu lindo
filho.
— Ei, pirralha, volte aqui — disse Akang.
Ela se virou e voltou timidamente. Era um poço de ressentimento, o que
não a impediu de tentar dar mais uma olhada para dentro da oca. O rapaz
continuava fiando algodão e cantarolando. Que voz linda ele tinha.
— Sim, mãe-de-arco.
— Eu vou te nomear guerreira. — Akang viu a centelha de esperança no
rosto da jovem. — Mas você precisa se provar uma vez mais.
Pindá sentiu vontade de chorar: a estação das batalhas havia acabado.
Teria de esperar até a chegada das chuvas. Oito luas, talvez? Até lá alguma
outra guerreira certamente já teria desposado Aperema. Havia pretendentes
até em aldeias vizinhas, e ele tinha dezesseis anos; nem mesmo o zelo da
mãe poderia segurá-lo para sempre dentro de casa.
— Traga-me meu amuleto de volta — disse Akang, em tom de desafio,
crente de que veria sua proposta ser recusada.
A porta-escudos estremeceu. As garotas na praça pararam ao ouvir a
proposta, incrédulas. A narrativa era bem conhecida por ela e todas as suas
irmãs-de-arco.
Quando Akang ainda era uma porta-escudos, três aldeias abayuká do
Oeste se uniram para enfrentar a horda bárbara do rei Paac ka Tul. Naquela
época fazia apenas dez anos que a nação abayuká se estabelecera; tendo
obtido seu território através da conquista. O rei bárbaro desposto, Tul, morreu
combatendo as invasoras. Seu filho, Paac, reuniu então um exército de dois
mil homens de quatro tribos para vingar o pai e apagar as aldeias hetá do
mapa. O combate que se seguiu foi tão feroz que ambos os lados precisaram
recuar, terminando em um impasse.
No calor da batalha, Akang viu sua mãe-de-arco tombada no chão,
trespassada por um dardo lançado por Paac. Akang pegou então o grande
arco negro do chão e lançou uma flecha contra o inimigo desatento. A flecha
atravessou a coxa do rei bárbaro, fazendo-o cair de joelhos. A jovem tentou dar
um segundo tiro, mas sua fúria fora tão grande que partiu o arco já danificado,
lançando uma flecha desgovernada no meio do caos.
Virando-se, o rei bárbaro viu, aterrorizado, a garota avançar de tacape em
riste. Ele estava armado à moda dos bárbaros da Mata Antiga, com uma
pesada armadura de couro de tapir, grevas, braceletes, saio e couraça.
Akang, por outro lado, trajava apenas sua pintura corporal negra, e as
poucas jóias que eram permitidas a uma porta-escudos. Entre elas, um
amuleto que ganhara ao nascer: um pequeno lagarto esculpido em jade, preso
ao pescoço em um cordão simples.
Ela desceu o tacape contra o inimigo, que aparou com seu escudo. O
choque partiu a arma e fendeu o escudo, quebrando também o braço atrás
dele. Paac gritou. Girou seu machado contra Akang, mas a dor roubava a
força de seu corpo e tornava seus movimentos lentos; ela se desviou
facilmente e desarmou-o, tomando o machado para si.
— Eu vou comer sua carne esta noite — disse ela, olhando-o nos olhos.
O rei resmungou algo incompreensível. Reunindo toda a força que lhe
restava, ele empurrou Akang e conseguiu se libertar. Atirando-se contra ela,
mordeu seu ombro com tal violência que a fez largar o machado. Os dentes
artificialmente afiados fecharam em torno da carne da guerreira como as
presas de uma fera e — pela única vez em sua vida — ela chorou de dor.
Akang caiu para trás, segurando o ombro ensanguentado; Paac mancou de
volta ao seu lado do campo, onde foi carregado por dois soldados. Com
perdas pesadas e nenhum sinal de vitória decisiva, ambos os lados deram
meia-volta.
E Akang percebeu que seu amuleto, o amuleto que recebera do pai
quando veio ao mundo, não estava em seu pescoço, nem no solo à sua volta.
Procurou-o futilmente em todos os lugares por onde passou, até aceitar: o rei
o levara junto com a flecha, o braço quebrado e o orgulho ferido.
Assim que o exército foi desfeito e as abayuká voltaram para suas aldeias,
Akang foi nomeada guerreira adulta pela chefe, já que sua mãe-de-arco
estava morta. Ninguém questionou: ela havia vencido um rei em combate; e
não importava que não tivesse arrancado dele nenhum troféu: não faltavam
testemunhas. Ela foi celebrada com um banquete de cauim, peixe, carne de
caça e inimigos mortos, mas a cerveja e a carne tinham um gosto amargo.
Paac ainda vivia e ela perdera seu amuleto.
Pindá estremeceu. Recuperar o amuleto? Como? Paac estava velho e
perdera a coragem, mas isso não significava que não era capaz de se
defender dentro de seu território. Atacar um inimigo refugiado em seu abrigo é
sempre mais difícil do que vencer em campo. E as abayuká temiam os
segredos da Mata Antiga, onde os bárbaros viviam em cidades sob a terra e
sobre as árvores.
Era um desafio calculado. “Ela pode ser valorosa, mas não é estúpida”,
pensou Akang.
— Se é o que quer, mãe-de-arco, é o que farei — retrucou Pindá, inflando o
peito.
Por um instante Akang e as garotas da praça permaneceram em
choque.“Ela aceitou. A cabeça de vento aceitou!”
A velha guerreira não podia voltar atrás. Palavra era palavra, e a proposta
fora aceita. Maldição. A menina jamais conseguiria atravessar o território
inimigo a salvo. Akang teria o sangue dela em suas mãos.
— E se, além do amuleto, me trouxer um presente, minha mãe permitirá
que você se case comigo — disse alguém. Era uma suave voz masculina.
Porta-escudos e mãe-de-arco ficaram surpresas ao ver que o belo rapaz
esticara a cabeça para fora da casa.
— Aperema — chiou Akang. — Não lhe disse que não deveria ouvir
conversas de guerreiras?
— Disse, mãe, mas também disse que eu teria voz quando chegasse a
hora de escolher a quem você me daria. — Aperema sorria com o canto da
boca. Aquele sorriso derretia o ímpeto de qualquer guerreira. — E você
sempre diz que Pindá é uma caçadora de primeira e será uma de nossas
melhores guerreiras no futuro.
Ouvir isso da boca do rapaz aqueceu a resolução vacilante de Pindá. Ela
conseguiria aquele amuleto.
— Aperema... — disse Akang, não em tom de reprimenda, mas de
desânimo, cobrindo o rosto com uma das mãos.
— Está bem, mãe, está bem. Se acha que me ofereci por pouco, farei uma
nova proposta — disse ele, acariciando o ombro da guerreira. — Pindá, volte
com o amuleto, um presente para mim e um bom troféu para o cinto de minha
mãe.
Pindá concordou e voltou-se alegremente para o centro da aldeia.
Precisava preparar suas armas e mantimentos.
— Ei! Me dê isso aqui! — Disse Akang. Alcançou-a e, puxando-a pelo
braço, tomou o tatu de sua mão.
Estava furiosa, não apenas com o filho desobediente e com a menina, mas
consigo mesma. Fizera a proposta esperando desencorajá-la e terminara
colocando sangue bom a caminho da morte certa. Não podia voltar atrás: a
palavra era tudo que uma guerreira tinha. Sentiu-se precipitada e estúpida,
mas não podia fazer nada a respeito agora.
As abayuká temiam a Mata Antiga, não apenas porque era habitada pelos
bárbaros da sombra — também conhecidos como tapuy arabé — mas porque
as próprias árvores e animais da floresta pareciam pouco amigáveis.
Pindá suspirou antes de cruzar o vale. Após meio dia de caminhada ela
entrava em território inimigo. As árvores de séculos de idade estendiam seus
ramos até o céu. O sol estava alto e ela se abrigou na dobra de uma raiz para
descansar e comer algo. Olhou para as trevas à sua frente enquanto
mastigava um pouco de farinha torrada. A vegetação só se adensava, a ponto
de ocultar o sol. Podia ouvir o estardalhaço de centenas de pássaros e bugios.
Certamente havia jaguares ali também.
— Isso está começando a parecer bem estúpido. — Ela sabia onde
encontraria o que procurava. A cidade maldita: Uuc, o ninho dos bárbaros.
Havia outras cidades escondidas nas entranhas da mata, muitas delas
maiores que Uuc, mas era de lá que haviam saído Tul e Paac, e as abayuká
do oeste haviam aprendido a vê-la como uma espécie de inferno na terra, um
buraco fedorendo que cuspia bárbaros constantemente. A curandeira
desdentada da aldeia explicou com todos os detalhes.
Pindá acordou a tempo de ver um guaxinim correr com o que restava de
seu embrulho de farinha. Teria gritado um palavrão, mas pensou melhor e se
calou. Não era bom chamar a atenção naquele lugar.
Claro, em termos de discrição, correr sobre o chão coberto de folhas e
saltar sobre troncos era tão ruim quanto gritar. Logo, seria detectada.
Uma pequena sombra negra passou diante de seus olhos, encravando-se
em um tronco. Um dardo fino com a ponta de bronze manchada: envenenado.
Velozmente, Pindá virou-se. Agachada, já tinha uma flecha encaixada na
corda de seu arco longo. Largando o arco, rolou para o lado enquanto outro
dardo batia no solo, enterrando-se onde ela deveria estar. O segundo inimigo,
que a atacaria por trás, segurando um grande machado com ambas as mãos,
perdeu o equilíbrio. A reação da invasora foi tão rápida que ele nada pode
fazer, Pindá ergueu a mão direita entre suas pernas, cravando a flecha em sua
virilha. O homem deixou o machado cair: berrou enquanto o sangue quente
escorria pelas coxas e berrou ainda mais quando Pindá arrancou a flecha, que
tinha ponta farpada.
Tudo ocorreu em um segundo. O bárbaro caiu convulsionando enquanto
ela se erguia para escapar de um terceiro dardo. O outro atacante apareceu
das sombras: não tinha mais projéteis à mão, então atacou com uma adaga
de bronze longa e curva. Pindá viu porque ele era responsável pelos disparos
e o outro pela arma de combate corpo-a-corpo. A posição de ataque era
completamente aberta, selvagem, ineficaz. Abaixando-se no momento certo,
Pindá fez uma finta, se esquivou e agarrou o braço da arma, torcendo-o.
Puxou o oponente pelo nó dos cabelos e desferiu uma joelhada em seu rosto.
Soltou-o.
— Senhora, fuja! Corra! Uuc...
Os gritos enfraqueceram até sumir. Pindá rugia enquanto espremia a vida
para fora de seu corpo. Quando o inimigo tombou ao solo, a porta-escudos viu
com quem ele tentava interagir.
A dez passos dali uma mulher baixa jazia sentada em uma cadeira
delicada apoiada sobre duas varas. A mulher tinha o crânio deformado e
tatuagens faciais. Seu cabelo estava arranjado em um penteado elaborado,
seguro por pentes de pedrarias e plumas verdes. Vestia uma ampla túnica
com desenhos complexos e sandálias de couro decoradas com lascas de
turquesa.
— Você vai me matar? — Disse a mulher bárbara.
— Você... — Pindá balbuciou, depois abriu e fechou a boca algumas
vezes, sem emitir som.
— Não, eu não falo sua língua, a língua boa, como vocês costumam dizer.
— Ela emitiu um riso de ressentimento. — Não acha pretensioso chamar sua
própria língua de “língua boa”, insinuando que todas as outras são... tapuy? É
essa a palavra, não é mesmo? Bárbaras.
— Mas, se você não fala minha língua...
— Como você me entende? — Ela sorriu. — Eu entrei na sua mente. Eu
ouvi dizer que as nações hetá não gostam de feiticeiros. Vocês os matam, não
é mesmo? Todos aqueles que mexem com o oculto. Nós, tuylum, por outro
lado, apreciamos muito o ofício da magia. Na verdade, ao contrário de vocês,
sequer temos palavras diferentes para “curandeiro” e “feiticeiro”.
Ela se levantou da cadeira e começou a caminhar pelo pequeno campo de
batalha.
— Se você entrou na minha cabeça, por que não impediu que eu matasse
seus guardas? — Questionou Pindá.
— Meus guardas... — Disse a bárbara com desdém. Ao passar perto do
homem que lançara os dardos, cuspiu sobre seu corpo. Caminhou até o outro,
que ainda estrebuchava. — Porque eles me espionavam. Porque me levavam
para estes passeios distantes na floresta quando meu marido estava cansado
de mim. E porque este monte de lixo disse que uma mulher que fala com o
marido do jeito que eu falo devia ser estuprada.
Ela pisou sobre o rosto retorcido de dor do homem caído.
— Disse que ele mesmo daria conta disso quando meu marido não
estivesse olhando.
— Por favor, senhora... — Balbuciou o homem. — Me cure...
— Agora me chama de senhora. Pois eu quase sinto vontade de parar o
sangramento e fechar a ferida, só para ver quanto tempo você suportaria viver
sem seus ovos. — Gracejou a feiticeira, com uma nota de sadismo na voz. —
Eu poderia zombar de você todos os dias: Zakuk, a lança sem ponta, a árvore
do galho quebrado, o menino que perdeu seu brinquedinho. Você se tornaria
uma companhia tão mais divertida!
— Por favor...
— Mas eu sou misericordiosa.
Ela impôs as mãos sobre o corpo vacilante e sibilou como uma serpente.
O homem sentiu o ferimento converter-se em uma fenda; a poça de sangue
cresceu assustadoramente. Em segundos, toda a vida tinha abandonado seu
corpo. Seu rosto empalidecido preservava uma carranca monstruosa de medo
e decepção.
— Sim, eu sou quem você suspeita — disse a feiticeira. — Eu sou Itzel, a
esposa de Paac ka Tul, inimigo de seu povo. O homem que você deseja
matar.
— Eu não desejo matar Paac.
Itzel revirou os olhos.
— Não, só quer arrancar dele um amuleto que já carregava antes de se
casar comigo, e que não tira do pescoço nem para se banhar ou fazer amor. E
não é só isso que você quer. — Ela sorriu. Seus olhos cintilaram. — Você
prometeu um presente a alguém, um destes troféus nojentos que vocês
carregam. Francamente, querida, dá no mesmo que matá-lo. Você jamais
sairá de Uuc com tudo isso se ele estiver vivo. E jamais conseguirá fazer isso
sem minha ajuda.
— Sua ajuda? — Pindá cruzou os braços, carregada de desconfiança.
— Sim. Pois eu desejo ver aquele velho impotente morto. Todos os seus
filhos mais velhos morreram lutando contra suas irmãzinhas. Pelas leis
tuylum, eu me tornaria a governante de Uuc até nosso filho ter idade o
bastante para governar, então eu poderia simplesmente manipulá-lo. E eu
posso ajudá-la.
— Como?
— Como você já notou, minha querida, eu conheço feitiços que curam, que
matam, que ocultam e entorpecem. Com mágica eu matei este miserável.
Com mágica eu mantenho minha juventude. Com mágica eu transformo a
vagem seca que meu marido tem entre as pernas em algo útil para uma
mulher. Confie em mim e eu garantirei que você obtenha tudo o que precisa.
Pindá, como a maioria das guerreiras abayuká, temia a magia. Por isso,
fechou os olhos e se agachou quando viu que o tecido da veste de Itzel
crescia e se desfiava, formando uma névoa multicor. A névoa estava ao seu
redor, em sua boca e suas narinas. A textura era de água, mas o aroma era de
floresta: pútrido e doce como as camadas de vida que se sobrepunham em
troncos antigos, lianas, orquídeas, musgos e cogumelos. Sua boca estava
seca, mas ela não ligava.
Não ligava. Ela começou a correr, e miraculosamente seus pés desviavam
sozinhos de toda pedra afiada, de toda coisa traiçoeira, e suas passadas eram
silenciosas como se seus pés estivessem envoltos em tecidos. Ela carregava
Itzel nas costas, como uma criança, mas não sentia peso algum.
Viu a cidade maldita. As casas de tábuas e palha trançada ficavam
empoleiradas nas árvores, em vários níveis. Sentiu o cheiro da comida rica em
condimentos que preparavam e dos óleos perfumados que extraíam das
árvores. Viu uma mãe amarrando pedaços de madeira à cabeça de um bebê e
entendeu porque eles tinham crânios compridos. Viu um homem sendo
tatuado por outro com um espinho de cacto e tinta preta. Viu um mercado na
clareira central, onde negociavam produtos de terras distantes: cerâmica,
bronze, esmeraldas e escravos.
Calmamente, a abayuká andou pelo mercado, maravilhada com a
variedade de joias, tecidos e alimentos. Ali os homens não precisavam usar
suas pesadas armaduras de couro, vestindo apenas tangas, sandálias e joias,
e Pindá viu que muitos eram tatuados dos pés à cabeça.
— Ninguém me vê — disse a porta-escudo, incrédula. — Você é muito boa
nisso.
— Estou só começando.
Do outro lado da clareira estava seu objetivo: o palácio de Paac, composto
de salões, corredores e escadas escorados em uma sumaúma de sessenta
metros de altura. Pindá jamais imaginou que um mortal vivesse em uma
moradia tão luxuosa. Por mais impressionada que estivesse pela visão, julgou
que tudo aquilo era uma monstruosidade e um desperdício.
— Vamos, suba depressa — disse Itzel, puxando os cabelos da nuca da
abayuká. — Suba logo.
Atravessaram três lances de escadas e três salões, passando
despercebidas pelos guardas.
— Agora espere aqui — disse a feiticeira, descendo das costas de Pindá.
Estavam na antessala dos aposentos reais. Ainda invisível e inaudível, Itzel
impôs uma das mãos e disse algumas palavras, enquanto segurava um
adorno de osso em seu cabelo. Os quatro guardas que protegiam a entrada
caíram no sono. Atrás deles havia um luxuoso cortinado vermelho e dourado.
Itzel rasgou sua própria túnica e se arranhou com as unhas. Atravessou o
cortinado gritando.
— Marido! Zakuk! Talac! Uma fera nos atacou na floresta!
As lágrimas e o desespero pareciam genuínos.
— Calma, pequena — disse Paac, acariciando seus cabelos enquanto se
erguia de seu leito. O estrado de madeira com um acolchoado de algodão era
decorado com chifres e peles de veado. Paac observou sua esposa em
farrapos, que revelavam parcialmente sua nudez; um grande seio de mamilo
escuro atraía sua atenção de tal maneira que ele prestou pouca atenção à
história. Deu um beijo molhado na bochecha da esposa e começou a acariciar
suas nádegas macias.
— Ora, querida. Você sabe que a Mata sempre cobra um tributo de quem
cruza seus limites. Fico feliz que não tenha sido você. — A carícia tornou-se
um aperto firme.
Pindá observou, enojada, o corpo nu e esquálido de Paac. As velhas
tatuagens pareciam deformadas sobre a pele flácida. Perto dele, Itzel parecia
uma escultura de pele suave e curvas cheias e firmes.
— Foi culpa minha, marido. Eu que pedi que fôssemos mais longe. Eu
queria conhecer a lagoa. Foi minha culpa, marido. Me puna.
O velho Paac babava. Não resistia aos encantos da esposa. Com um
toque dela, estava pronto para possuí-la. Jogou-a no piso de tábuas e
terminou de rasgar sua veste, exibindo o corpo jovem.
— Faça sua mágica, minha querida.
Estava babando nos seios dela quando os velhos instintos de guerreiro o
fizeram olhar para cima. A abayuká segurava um machado de bronze retirado
da sua parede, seu machado. Ele não podia acreditar: a guerreira de anos
atrás voltara para terminar seu trabalho.
Ele abriu a boca aterrorizado. Abaixou a cabeça e olhou nos olhos da
esposa. Ela ria. E continuou a rir quando o machado desceu, separando a
cabeça do rei de seu corpo e o sangue lavou seu rosto. Pindá retirou o
amuleto ensanguentado do pescoço destruído e o enfiou dentro da boca do
falecido. Tinha o amuleto, o troféu e o presente.
— Saia pela porta da frente — disse Itzel. — Confie em mim.
A rainha gritou à medida que a algoz escapava.
— Vocês dormiram em vez de defender seu rei! E agora a besta matou
meu marido.
Acordados repentinamente, os guardas viram as manchas horrendas de
sangue e o corpo sem vida de seu senhor. Ouviram os berros erráticos da
rainha e viram a assassina fugir, mas de início ficaram sem reação: ela não
era humana.
Um homem tomou coragem e interceptou seu golpe com o escudo. Ainda
assim, vacilou diante da força do impacto e do rugido horripilante que ela
emitiu. Cinco outros a cercaram, fazendo gestos amedrontados e proferindo
palavras mágicas, tentando afastar o mal que ela representava.
A criatura horrenda empunhando o machado do rei era como uma mulher,
mas muito maior e coberta de escamas. Ela rugiu novamente, exibindo fileiras
de dentes afiados. Seu hálito era pútrido; seus olhos eram amarelos. Os
homens se alinharam para enfrentá-la, mas estavam enfraquecidos pelo
pavor. Seus golpes não tinham efetividade, pois não conseguiam encará-la
diretamente: perdiam a força, batiam em falso, tinham suas armas desviadas.
Foram atropelados no ímpeto de sua passagem: um atingido pelo machado,
outro por um rápido chute, outro escorregando espontaneamente; um afastouse, hesitante.
— Levante-se, seu covarde! Kohol, não fuja!
As ordens vieram do primeiro a atacar o monstro. Ele jogou o escudo
partido e avançou, colocando-se entre ela e a saída. A criatura destruiu o rosto
dele com sua garra esquerda.
Pindá observou abismada. Como fora capaz de derrubar aquele guerreiro
com tamanha facilidade? Como pudera afundar seu nariz com um mero soco?
Não importava: os outros haviam sido postos para correr pela demonstração
de força.
— Kaauka! O rei foi morto pela Kaauka! — Gritou um deles, enquanto
corria para fora da casa.
O aviso ecoou pela clareira e as pessoas começaram a se fechar em suas
casas. Primeiro o silêncio se abateu sobre Uuc; depois um murmúrio coletivo
se ergueu de cada casa, como se todos sussurrassem orações para afastar o
demônio invasor. Segurando consigo a cabeça decepada e o machado, Pindá
correu para dentro das árvores centenárias sem que ninguém a confrontasse.
Não parou de correr. “Não sei o que a rainha bárbara fez comigo que me faz
tão assustadora, pensou, mas devo aproveitar enquanto isso durar”.
No aposento real, Itzel chorava por fora e ria por dentro.
— Pindá! Pindá voltou! — Disse uma menina, empolgada, largando o
arquinho com que praticava tiro na praça central.
Quando a menininha gritou, sua mãe deu-lhe um tabefe imediatamente.
— Pare de mentir!
— Mas é verdade, mãe! Olha lá! — A menina apontou com seu dedinho
gorducho.
A aldeia toda se reuniu. A jovem voltara, descabelada, suja e faminta, com
os lábios rachados e os olhos turvos.
— Farinha! Cerveja! — Rogou Pindá, pateticamente, pois não conseguia
gritar com sua voz arranhada. — Não como nada há três dias!
A curandeira ria e abraçava Pindá. Outras guerreiras vinham afagar seu
cabelo e dar tapinhas em suas costas e braços. A enorme Akang abriu
caminho no meio da confusão. Seu rosto era a própria expressão da
incredulidade.
— Rudá... — Balbuciou. — Rudá deve amar você, pirralha-de-tipoia.
— Mãe-de-arco. O presente para seu filho, meu futuro marido — disse,
entregando-lhe o machado de bronze. — E o seu troféu. Eu não sabia se
preferia uma orelha, um nariz ou outra mandíbula, então trouxe a cabeça
inteira.
Akang segurou a cabeça de Paac pelos cabelos. Não havia dúvidas: sob
as rugas ela ainda conseguia ver suas feições. Era legítima. O machado
também era legítimo. Enquanto ela olhava a cabeça nos olhos, a boca se
abriu. Dos dentes aguçados despencou o pequeno lagarto esculpido. Os olhos
de Akang brilharam e ela riu como não ria desde a juventude.
— Filho! Venha aqui! Sua futura esposa lhe trouxe um belo presente!
Em Uuc, o pânico gerado pela aparição da Kaauka durou semanas. O povo
aclamou Itzel como sua senhora quando ela saiu do palácio pintada de
vermelho, segurando o cajado dos ossos. Seria conveniente uma feiticeira no
comando: homens de guerra eram inúteis contra ameaças sobrenaturais.
V. M. Gonçalves é natural de Ponta Grossa, onde atua na área de arte-educação.
Graduado em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e mestre em
Comunicação e Linguagens pela Universade Tuiuti do Paraná, é entusiasta da cultura nerd
de forma geral, especialmente do cinema. Apaixonado por folclore e culturas antigas,
especialmente as Pré-Colombianas, dedica seu tempo livre à criação de universos
fantásticos feitos de ideias e tinta. Em 2014 publicou seu primeiro romance, A Canção de
Quatrocantos: O Homem de Azul e Púrpura, pela Editora Buriti. Expandiu o universo de
Quatrocantos com os ebooks independentes Guerreiras do Sol e da Lua, em 2015, e O Rei
Amaldiçoado, em 2016.
Leia a entrevista que fizemos com o autor.
NOTURNO DESERTO
Rodrigo Rahmati
E les não têm esse direito. Não têm mesmo. Essa foi a primeira coisa que ela
pensou, enquanto era levada ao salão das deliberações. A segunda foi a
mesma que a primeira, e a terceira, e a quarta. Então, perdido no meio de
todas essas repetições, um pensamento intruso: Lox irá me ajudar. Tenho
certeza. Mas eles não têm esse direito. Não dizia nada, mas sua respiração
pesada entregava tudo aos dois que a escoltavam. Estes também cumpriam
suas obrigações em silêncio — mas um silêncio cheio de compreensão e
amizade, ela sabia. Por fim, chegaram.
O salão estava cheio. Todos estavam lá; é claro que não perderiam o
espetáculo. De acordo com as regras — que ela mesma ajudara a escrever!
— deveria cumprimentá-los, dizer algumas palavras… Mas não fez nada
disso; apenas se sentou no banco dos réus.
E pensar que estava certa de nunca mais estar naquela posição outra
vez… Viu que sua atitude causara uma reação negativa em muitos deles,
ainda que houvessem alguns que riram ou que a aprovaram abertamente. Viu
Lox finalmente, e apesar da tristeza que ele mostrava, já foi suficiente para
acalmá-la. O Ancião Nereu — que não era um desses que demonstravam
coisa alguma — se levantou.
— Você sabe, minha filha, por que está aqui — disse ele, eternamente
cansado.
Ela nada disse.
— Que seja — suspirou ele. — De acordo com as regras, você está aqui,
Gaia, para ser julgada pelo seu alegado mau uso do Livro das Sociedades.
— Mau uso — repetiu Gaia, sorrindo. O que podiam dizer, eles, sobre
regras? Eles, que foram expulsos, eles, que foram parar ali justamente por
quebrar regras… — A vida transborda no mundo físico — disse ela. — A
natureza está em equilíbrio. A teia da vida está perfeitamente balanceada em
cada uma de suas ramificações. Aponte-me onde está o mau uso nisso. —
Olhou para a audiência; os fiéis a Nereu se inquietaram, mas permaneceram
calados. Isso mesmo, sigam as regras.
— Gaia, nós decidimos isso há tanto tempo… — Nereu transbordava sua
tristeza, mas não podia, realmente, fazer nada. — Eles têm que evoluir. Você
há de concordar que o que você fez, por mais… bonito que seja, não pode ser
considerado uma sociedade! Você poderá ficar com o Livro do Corpo, para dar
prosseguimento aos seus…
— Eu vou perder meu Livro…? — interrompeu ela, esquecendo-se de seu
autocontrole. — Vocês já decidiram tudo?!
— Sim, Gaia. Sabíamos que você não aceitaria bem nossas decisões, por
isso a trouxemos apenas para ouvi-las.
Gaia soltou o ar, sentindo suas energias se esvaírem de uma só vez. Tinha
planejado toda a sua defesa de forma quase magistral, mas acabara de
perceber que isso de nada adiantara.
— Vou vê-los evoluir, então — riu ela. — Evoluir para o que nos tornamos.
Para o que eles se tornaram, lá em…
— Não, Gaia, não há por que nós… — Nereu desistiu. Movimentou alguns
cristais de registro, no tablado, fingindo arrumá-los, e se concentrou em sua
respiração e em seus próprios pensamentos. — Enfim, isso tudo já foi
discutido. Exaustivamente — pontuou. — Separamo-nos daquela matéria para
que possamos torná-los melhores… E nos tornarmosmelhores. E então você
nos enganou. Não pode negar isso.
Mesmo contra sua vontade, ela se viu forçada a assentir.
— Já não temos escolha, Gaia — disse então Shaka, o Primeiro
Conselheiro, levantando-se, à direita de Nereu. Em seus olhos claros, o
conhecimento de eras podia ser entrevisto. Sua fala era pouco mais que um
sussurro, mas ainda assim perfeitamente audível. — O que podemos fazer
agora? O que poderíamos ser, se tudo continuasse assim?
— O que poderíamos ser? Pela primeira vez, poderíamos deixar de ser
uma coisa: egoístas. Egotistas. Egocentristas. — Gaia viu que sua fala abalara
muitos deles… Mas, àquela altura, pouca diferença fazia. Pelo menos não
sairia como a vilã da história, junto à… outra.
— Sinto muito, mesmo, Gaia — encerrou o Ancião. Levantou-se, junto a
Shaka e Rá, o Eleito. — Essa é a nossa decisão, e não é tão ruim quanto
poderia ou deveria ser. Você perderá o Livro das Sociedades, que passará a
Hubal, mas receberá o Livro do Corpo, que Prometeu concordou em dar-lhe
após permitirmos que ele desenvolva uma nova espécie.
— Essa é, então, a decisão? — perguntou ela, já com suas reações
perfeitamente controladas.
— Sim. Essa é a decisão.
Muito bem. Que seja.
— Você não votou a favor deles, não é? — perguntou Gaia, aninhada no
ombro de Lox, à noite. Sabia que não conseguiria dormir, então nem tentava.
— Claro que não — respondeu ele, acariciando seus cabelos. — Desde
quando punidos podem punir seus semelhantes? — Ele chorava, mas ela não
sabia disso. — Eles não têm direito de… de fazer isso. É o que eu acho.
— Mas eles vão ver o erro que cometeram — disse Gaia.
Gaia atirou-se do mundo etéreo em direção ao mundo físico, ignorando
súplicas e lamentos. Pelo meio do caminho, em queda livre, suas lágrimas
secaram, e ela jamais entendeu — e ninguém mais, nunca — o porquê de
elas terem sido afetadas pela atmosfera; ela queria chorar, queria chorar mais
ainda do que já chorara, porque nenhum sofrimento do mundo se compararia
àquele que ela sentia, mas o momento da dor era passado, e assim ela
assumiu seu primeiro maha, um pteranodonte, e logo se juntou a um bando
deles que cruzava os céus.
Seus belos filhos voadores logo a reconheceram e bailaram ao seu redor,
subindo e descendo, mergulhando e girando, satisfeitos com a visita. A vista
daquela alegria toda fez a deusa querer continuar chorando, inundar o mundo
com lágrimas, mas aquela anatomia não permitia, aqueles seres não eram
feitos para a tristeza. Como ela diria a eles que…? Como poderia? Os seus
filhos? Gaia esteve a ponto de mudar de ideia, deixar que Hubal os evoluísse
— os profanasse —, mas o ódio reassumiu seu bem-vindo lugar, fundo em
seu coração, enquanto via o líder daquele grupo, puro como qualquer um dos
outros, mergulhar nas águas e pescar um peixe, trazendo-o para ela, sua mãe,
como um presente. Ela ficou grata por ter convivido por tanto tempo com
Nemesis. Obrigada por me ensinar a vingança.
Gaia agradeceu ao pteranodonte, usando o simples e eficaz sistema de
comunicação sonora que os outros cismavam em criticar, mas que atingiam
todos os objetivos necessários a todos — todos! — os seus filhos, e se
despediu, sem olhar para trás, já rumando à terra.
Pousando sobre uma formação rochosa, aquela configuração de Mahagaia
farejou o ar e localizou outra espécie. Transmutou-se em microrraptor e
adentrou as rochas, em busca da mãe que guarda os ovos no ninho.
Naturalmente o pequeno ser assustou-se e imediatamente assumiu sua
postura de ataque; Gaia se orgulhou profundamente daquilo, vendo que a mãe
lutaria até a morte pela sobrevivência dos filhotes, mas, naturalmente, tal
medida não seria necessária. Assim que foi reconhecida — e que cessou a
torrente de cumprimentos —, a deusa juntou-se à mãe em sua vigília,
Acompanhou-a em seus últimos momentos e nos últimos daqueles filhotes
que jamais nasceriam, que jamais teriam tempo para ver crescer suas
próprias penas, belas e furta-cor como as da mãe.
Descendo das rochas, sentindo o ar gelado em suas narinas, Gaia mais
uma vez reafirmou a si mesma como tudo aquilo era injusto. O ódio, a fúria, a
revolta cresciam em sua alma na mesma medida que sua tristeza. Saltou para
o ar e, antes que inspirasse mais uma vez aquele ar cheio de aromas, já era
novamente um pteranodonte. Tinha decidido visitar cada espécie, cada uma
que ajudara a criar, mas não aguentaria a dor; aquilo seria demais. Cruzou os
céus numa distância que pteranodonte real nenhum teria conseguido, durante
todo o resto do dia e durante toda a noite, até finalmente descer junto ao maior
rebanho de seus preferidos — os ceratópsios. Tricerátopes, dicerátopes e
torossauros conviviam pacificamente, e abriram caminho para que a deusa
pousasse e assumisse, educadamente, uma forma intermediária entre todas
aquelas espécies. Mesmo os titanossauros e parassaurolofos, ao longe, no
vale, saudaram-na. Aqueles foram os últimos momentos de Gaia sobre aquele
mundo físico, ali, entre eles. Até um tiranossauro, ao longe, mantendo seu
respeito pelo território rival, urrou em respeito à deusa, e ela, em pensamento,
desejou que qualquer um daqueles imbecis que a julgaram estivessem ali
para ver — não como eles já “viam”, mas que pudessem realmente apreciar —
toda a beleza e equilíbrio daquele mundo.
O que quer que ela desejasse, contudo, naquele momento deixou de ter
qualquer importância — Lox a havia contatado, dizendo-lhe que era finalmente
chegada a hora.
Ele conseguira roubar o Livro do Cosmos.
E, mais incrivelmente ainda, localizar nele o que ela queria — ou não
queria, mas que faria assim mesmo.
Natlehi tentava, desesperadamente, dissuadir o marido Rá, mas era inútil.
Ainda assim, contudo, tinha que tentar.
— Caronte já está pronto?! — bradou ele ao primeiro que lhe apareceu. —
Vou descer!
— Já preparei o caminho, e os outros já estão aguardando — respondeu
Anúbis.
— Por favor, Rá, não vê que essa medida é…
— É o quê, Natlehi?! — gritou Rá. — Desnecessária?! Exagerada?!
Exagerado é o que Gaia planeja fazer, você não percebe isso?! Ela…
A chegada de Lox forçou Rá a se interromper.
— Ela está certa, Rá — disse Lox, e tinha o Livro do Cosmos na mão. — É
desnecessária a sua descida lá. É tarde demais — acrescentou, estendendo o
livro ao interlocutor.
— Você será punido, Lox — cuspiu Rá, o Eleito. — Perderá seu Livro,
mesmo que seja…
— “A última coisa que eu faça” — completou Lox, sorrindo, mas com o
olhar terrivelmente triste. — Não seria você se não dissesse isso. Eu sabia
que perderia meu livro, mas não podia deixá-la sozinha. Não podia fazer o que
vocês fizeram. Não sou como vocês.
— Claro que não é — disse Rá. — Você é quase como ela — acrescentou,
e Lox soube que o eleito não falava de Gaia, mas da outra, a excluída.
— Acho que posso considerar isso um elogio, vendo agora por esse lado.
Mas venham, não desejam ver o espetáculo? As palavras foram ditas, o
caminho foi traçado; agora, só nos resta assistir. — E esse é um
conhecimento que jamais me poderá ser tirado, pensou Lox. — Vou descer
assim mesmo — sentenciou Rá. — Deve haver alguma coisa que…
— Não! — interferiu Anúbis. — Não é, de fato… Bem; não creio ser seguro.
— Rá imediatamente sentiu a força daquelas palavras comedidas. Se Anúbis
receava alguma coisa…
— Pois bem — disse então o Eleito, contendo sua fúria com um esforço
quase físico. — Gaia ainda está lá, não é? — Lox não precisou responder. —
Veremos o que ela fará a si mesma e ao nosso futuro, a maldita.
— Pois vamos — disse Anúbis, já se preparando para todo o trabalho que
teria muito em breve. — Tudo está prestes a começar… Ou a acabar.
Vendo os admiráveis corpos celestes deslocando-se silenciosamente
numa única direção, Lox esforçava-se para não sorrir. Apesar da tristeza,
aprendeu a sentir o saboroso gosto da vingança, e seria, junto com aquela que
lhe era a mais cara, um ótimo pupilo de Nemesis. Aqueles ao seu lado jamais
imaginariam que não fora somente o Livro do Cosmos que ele roubara, mas
também o Livro das Forças Fundamentais — e com a conivência de Poseidon,
que deveria ser o seu guardião, mas que tinha muito a ganhar com tal ato.
Com isso, ligou os próprios Livros do Destino à existência física.
“Querem tanto uma civilização, não querem?”, dissera Gaia, febril, naquela
manhã. “Que seja assim então. Que somente tenham acesso a eles quando
sua civilização florescer! Que fiquem reféns de sua própria ambição, e que
vejam o mundo levar uma Era inteira para se reerguer, sofrendo com isso tanto
quanto eu.”
A alma de Gaia se incendiou junto aos asteroides que adentraram a
atmosfera por sua causa. Quisera ela ter sido incendiada, queimada,
consumida literalmente, mas ao contrário do que Anúbis temera, nada lhe
aconteceu por estar ali naquele momento — o que, infelizmente, lhe
possibilitou assistir a tudo.
A chuva de rochas espaciais atingiu o planeta em vários pontos
simultaneamente. O ar queimou, tudo queimou. Queria ver a cara deles agora,
pensou. Sentia-se tão desalentada que não teve reação quando viu os
terremotos devastarem aquelas terras e matarem a maioria dos seus
ceratópsios. O impacto dos maiores asteroides transformou rochas terrestres
em meteoritos, subindo à atmosfera e caindo novamente. Seus répteis
voadores não sabiam o que fazer; voavam às cegas, ignorando seus sensores
magnéticos. Gaia mesmo se sentia desorientada. Não foi capaz de ajudar um
pteranodonte que gritou por ela antes de ser atingido por um detrito vindo dos
céus — como poderia? —, assim como não percebeu que estava em sua
forma original e não mais como maha. Um tsunami varreu as rochas e
inundou as cavernas onde aquela mãe microrraptor protegia seus ovos, e os
parassaurolofos morreram na enchente de um rio que teve seu fluxo invertido
em questão de segundos.
Em menos de uma hora, mais da metade dos seus filhos estava morta, e o
sol já não aparecia — aquele era, agora, um planeta de pó e fogo. O resto
deles em breve pereceria de fome. Ela os matara, os próprios filhos, mas, ah!,
o faria de novo antes de vê-los corrompidos pelas mãos daqueles que, por um
infortúnio, eram seus iguais. Prometeu que criasse sua própria raça, no futuro,
quando pudesse, quando aquele mundo voltasse a ser qualquer coisa mais
que um deserto escuro. Ele que criasse monstros à sua semelhança, que
repetiriam o que ele e aqueles como ele fizeram no passado.
Mas a memória de seus filhos e de seu mundo em equilíbrio — Gaia
sorriu, em meio ao calor do vulcão que explodia ao seu lado — ah, a memória
de seus filhos e de seu mundo em equilíbrio, ninguém profanaria. Nunca.
Que eles fossem apenas uma lembrança, para sempre.
Rodrigo Rahmati se acha um escritor, desenhista meia-boca, pretenso dançarino de
folclore árabe, karateka que apanha mais do que bate, pseudo-pintor, tentou aprender
diversos instrumentos musicais sem sucesso, pensa que fotografa, adora heavy metal,
fantasia e ficção científica. Em resumo, maluco.
Leia a entrevista que fizemos com o autor.
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Galeria: Fabio Alencar
ENTREVISTA: FABIO ALENCAR
Por Enrico Tuosto
Fabio Alencar é formado em Design Digital e atua como
ilustrador freelancer com foco em concept art. Além de
matar Super Mutantes nas horas vagas, Fabio gosta de
livros, filmes, séries, cachorros e chocolate.
De onde veio a ideia para essa capa da Trasgo?
Pessoalmente, eu sempre tive problemas com temas livres. Desde os
tempos da escola, quando chegava aquela folha sulfite em branco na mesa e
a professora falava "desenho livre", a única coisa que vinha na minha cabeça
era "puts, e agora?" — são infinitas possibilidades! Por sorte, eu sou mais
criativo hoje em dia do que naquela época e possuo uma maior bagagem de
referências também. Para a capa, resolvi juntar três coisas que eu gosto:
medieval, pós-apocalipse e máscaras de gás (porque elas são incríveis).
Tenho uma relação de amor muito intensa com The Last of Us e Game of
Thrones, joguei bastante Skyrim e agora estou no Fallout 4, a ideia foi fazer
um mash up de tudo isso.
Gostei bastante de como você retratou a personagem. Mesmo sem
revelar seu rosto, a pose, o cabelo e as roupas dizem bastante sobre a
personalidade dela. Pelo seu portfólio, dá para ver que você gosta
bastante de desenhar personagens. Como é o processo de concepção
delas?
Gosto muito de desenhar personagens, especialmente personagens
mulheres. Elas têm traços mais suaves, fluidos e cativantes, na minha
opinião. Normalmente, eu trabalho com um tema de base. O que ela faz? Do
que ela gosta? Como é sua personalidade? São conceitos bem básicos na
criação de qualquer personagem, isso ajuda a definir uma pose interessante,
expressão, acessórios, cores, etc.
Sei que você já trabalhou com ilustração de livros educativos infantis.
Que tipo de lições você aprendeu durante esse tempo e como elas
refletiram no desenvolvimento da sua arte?
Sim, durante dois anos. Foi uma experiência interessante porque eu tinha
muita dificuldade em fazer um traço infantil: meu desenho era muito “adulto”,
com proporções mais realistas. Hoje em dia é o contrário, muitas vezes eu me
encontro infantilizando certas características mesmo quando eu não quero.
Quem acompanha meu trabalho há bastante tempo sabe o quanto eu evoluí
de uns anos pra cá. Sair da zona de conforto, estar ao lado de pessoas
criativas, e, principalmente, DESENHAR TODOS OS DIAS fez com que eu
melhorasse muito em um período curto de tempo. Comecei a experimentar
novos estilos, técnicas tradicionais e a estudar constantemente. É engraçado
pensar que há dois anos eu não conhecia mais de 5 ilustradores. Hoje em dia,
posso dizer que grande parte dos meus amigos são artistas.
Quais são seus artistas preferidos e que te influenciaram mais?
Essa é sempre uma pergunta difícil de responder, citar nomes é
complicado quando existem tantos artistas excelentes explodindo em todo
canto. Apesar de não levar traços de mangá pras minhas ilustrações, não
posso deixar de comentar do Akira Toriyama, esse japa que tornou a minha
infância uma época feliz através de Dragon Ball Z. Inclusive, eu realmente
percebi que gostava de desenhar nessa época da minha infância. Tenho
pastas e pastas de desenhos de DBZ. Alguém lembra da revista Ultra Jovem?
Pois é...
Gosto muito da Disney também. Tarzan foi a primeira animação que eu
assisti no cinema, foi um marco pra mim. O traço do Glen Keane tem uma
fluidez invejável, é algo que eu espero conseguir aplicar com excelência no
meu trabalho um dia. Elvgren, Mike Azevedo, Jason Chan, Johannes
Helgeson, Dice Tsutsumi e tantos outros que não vão caber na resposta.
Quais são suas principais fontes de inspiração?
Não consigo desenhar sem ouvir música. Já li muitas vezes que o cérebro
não se concentra nas duas coisas ao mesmo tempo, mas é algo que está
além de mim. Uma boa trilha de filme ou simplesmente uma banda
instrumental servem como grande fonte de inspiração. Quem nunca desenhou
ouvindo a trilha da Amelie Poulain, por exemplo? (risos) Na maioria das vezes
eu opto por uma pegada meio espacial... uma das minhas bandas preferidas
para ouvir enquanto desenho é God is an Astronaut, fica a indicação.
Pelo que percebi, você trabalha mais com pintura digital. Essa é sua
técnica preferida ou existe alguma outra técnica que está desenvolvendo?
Pintura digital é meu estilo preferido. No entanto, sou bem versátil em
relação a isso, faço um pouco de tudo. Tenho bastante experiência com
ilustração vetorial por causa do trabalho com materiais didáticos e também
sou aspirante a animador.
Quais são seus planos agora que está trabalhando como freelancer?
Em quais projetos você anda trabalhando?
Sair do emprego fixo pra virar freelancer foi uma decisão de risco, ainda
mais na atual situação do Brasil. Resolvi arriscar por ainda ser novo e morar
com a minha mãe, talvez eu não tivesse a mesma chance daqui a alguns
anos. A parte boa de você não ter um trabalho fixo é que tempo se torna um
recurso mais recorrente. Além de conseguir estudar com uma constância
muito maior, sou capaz de trabalhar em alguns projetos pessoais. Atualmente,
venho trabalhando em um jogo de cartas com tema folclórico e em um livro
ilustrado com alguns amigos. Outros projetos, como a produção de um curta
pessoal e o desenvolvimento oficial do meu TCC, permanecem engavetados
por enquanto.
Para quem se interessou pelo seu trabalho, onde podemos encontrar
mais sobre você e entrar em contato?
Vocês podem me encontrar no Facebook, Instagram, Tumblr e Behance
como @fabioalencarart. Se alguém quiser bater um papo, é só chamar!
Entrei recentemente para o Patreon também
(patreon.com/FabioAlencarArt), é um site que funciona nos mesmos princípios
do Padrim, você paga uma pequena quantia por mês para receber conteúdos
exclusivos do criador que você apoia. Deem uma passada lá, e se alguém
curtir o meu trabalho e quiser apoiar com o mínimo possível eu ficarei muito
agradecido!
E-mail pra contato é [email protected]
Última pergunta: Fallout 4 ou Skyrim?
Não sou capaz de opinar (risos). Depois de muitas flechadas no joelho e
muitos ghouls me dando tapas na cara, só posso dizer que os dois jogos são
excelentes. Me mandem prints por e-mail dos bugs que vocês encontrarem
(risos)!
Enrico Tuosto é escritor, revisor da Trasgo e rockstar fracassado. Também cuida das
redes sociais e da newsletter da revista, mas o que ele gosta mesmo de fazer é jogar RPG.
enricotuosto.tumblr.com/writing
ENTREVISTA: CLAUDIA DUGIM
Por Rodrigo van Kampen
Nascida em São Paulo quando ainda garoava, Claudia
Dugim é adoradora de grandes cidades. Cursou colégio
técnico de Artes Gráficas e posteriormente graduou-se em
Letras e Pedagogia; é professora de inglês como segunda
língua. Escreve desde pequena, fã de histórias de todo tipo:
filmes, quadrinhos, livros, vídeogame, RPG. Lançou um
livro de poesias nos anos 90 e parou, voltou a escrever em 2011 e lançou O
Caminho do Príncipe em 2013, em fase de reedição. Tem contos publicados
na Revista Trasgo, nos Contos Sonoros, nas antologias Piratas (Editora
Catavento), Boy’s Love e Contos do Dragão (Editora Draco). Coordenadora do
Grupo de Escritores "Singularidades", cujo primeiro projeto foi lançado em
2015, "Cobaias de Lázaro". O segundo projeto, "Retrônicos" será lançado
ainda este ano. Dá aulas como voluntária em Oficinas Literárias dentro do
projeto Vai (Gibiteca Balão) da prefeitura de São Paulo.
De onde surgiu a vontade de trabalhar com a mitologia Maia?
Eu gosto muito da América Latina, sua cultura e história. Depois de ir a
uma exposição na OCA, "Maias – Revelação de Um Tempo Sem Fim", fiquei
realmente fascinada pela cultura do povo maia e quis saber mais.
Você fez uma grande pesquisa para o conto? O que é derivativo da
mitologia e o que é criação original?
Foram dois meses de pesquisa, mais ou menos, entre leituras de livros e
artigos, vídeos e fotos. Faz pouco mais de 20 anos que decifrou-se a
combinação de glifos e letras que compõem a escrita Maia, portanto o que se
conhece ainda é uma pequena parcela. De certa maneira o que está no conto
é baseado em fatos reais (risos), poderíamos chamar de uma fantasia
histórico-mitológica (risos). Existiu de fato um governador chamado K’inish
Pakal, existiu de fato uma governadora Sak Kuk, os dois viveram na época
áurea de Palenque. Os sacrifícios, as tumbas sob as pirâmides, a comida e
mesmo a Senhora das Moscas são todos frutos de pesquisa na parte
histórica. Para a jornada de Pakal pelo Inframundo tentei reunir visões de
épocas diferentes das crenças Maias e montar um painel ao mesmo tempo
conciso e interessante. A lenda de Cakix, a pirâmide de Xibalba e o rio de
sangue constam da mitologia maia. O desafio foi colocar todas estas visões
históricas e mitológicas dentro de uma lógica, e pensar em sequências de
embate sem espadas ou machados, como é comum na fantasia. Os Maias
desconheciam o metal, usavam lâminas de cerâmica endurecidas num
processo ainda não desvendado, flechas e zarabatanas.
Há no conto a figura do próprio narrador, o escriba. Isso traz a questão
do narrador pouco confiável, necessário ao misticismo apresentado.
Quais foram as suas principais referências para este conto e estilo de
narrativa?
A escolha e o estilo foi em homenagem ao historiador e escritor uruguaio
Eduardo Galeano, autor de "Memórias do Fogo - Nascimentos", um apanhado
sobre histórias do período pré-colombiano e um dos meus livros favoritos ever.
Os escribas eram os historiadores da época. No conto eu deixo claro que
Itzamná fantasia sobre os fatos, criei assim um paralelo com minha própria
intervenção fantasiosa sobre a História e Cultura Maia. Uma coisa que tomei
muito cuidado foi em respeitar os valores desta cultura, não torcer em
demasia acrescentando elementos caricatos ou estereotipados.
Você nos trouxe agora algo bem diferente de "Gente é tão bom",
publicado lá na primeira Trasgo. O que mudou ou evoluiu no seu processo
de escrita nesses dois anos?
Eu tenho estudado muito composição de texto, acho que minha técnica
melhorou, o que é essencial para contar histórias longas. Mas ainda continuo
escrevendo contos mais viscerais como "Gente é Tão Bom". O último pode ser
lido no meu blog no link ali em baixo, uma distopia sobre a velhice: "O desejo
se ser como um rio".
Quando eu publiquei "Caminho do Príncipe", que ficou uma bosta (risos),
estava voltando a engatinhar nesta coisa de escrever, fiquei 20 anos sem
produzir nada. De dois anos para cá eu passei a me dedicar a construir um
caminho sólido, participei de 5 concursos e fui escolhida em 4. Três dos meus
contos foram publicados em editoras, dois na Draco e um na Catavento.
Também editei a produção de uma obra coletiva junto com amigos escritores e
estamos finalizando o segundo projeto. Terminei dois livros e reescrevi outro,
além de contos, microcontos, poemas e roteiros de quadrinhos. Continuo
apostando nos concursos em editoras como porta de entrada para a futura
publicação de um livro. Espero que quando publicar um romance de fantasia
ou ficção científica eu possa oferecer um trabalho legal, do qual me orgulhe.
"Matando Gigantes" agora está disponível em Wattpad para quem quiser ler e
criticar.
Pode contar um pouco sobre sua produção independente e o que mais
tem escrito que pode nos adiantar?
Com um grupo de amigos eu publiquei a distopia "Cobaias de Lázaro",
uma série de contos no mesmo universo ligados entre si, foi um projeto muito
legal e muito bem cuidado. Está em e-book e logo será possível encontrar
também o livro físico. Os links estão todos no wordpress, tanto para o Cobaias
quanto para as outras obras que já publiquei nestes dois anos.
Àqueles que querem conhecer melhor o seu trabalho ou bater um papo,
qual o caminho?
Para entrar em contato comigo podem me procurar no Twitter ou no
Facebook ou no Wattpad
fb.com/claudia.dugim
twitter.com/claudiadugim
wattpad.com/user/ClaudiaDugim
Os links para os meus trabalhos publicados e onde comprar e os para a
leitura gratuita estão aqui:
claudiadu.wordpress.com/about/
Rodrigo van Kampen é escritor, editor da Revista Trasgo, redator publicitário e foge de
moto nos fins de semana. Já publicou em coletâneas da Aquário, Draco e em publicações
independentes. Mora em Campinas com sua esposa e uma vira-lata, escreve em
viverdaescrita.com.br e pode ser encontrado no Twitter como @rodrigovk.
ENTREVISTA: MARCO RIGOBELLI
Por Rodrigo van Kampen
Nascido há 27 anos na capital paulistana, Marco Rigobelli
já desenhou, já teve banda e no fim não continuou com
nenhuma dessas coisas. Mentiroso profissional, escreve
para o papel, para as telas, para os palcos e para as caixas
de som. Gosta de contar histórias e de falar sobre contar
histórias.
Há algumas interpretações possíveis para "Chamado à Razão" e sua
estrutura cíclica, que vai desmontando a realidade camada por camada
até o final. Mas qual foi a origem do conto, a fagulha inicial?
Eu precisava contar a história de uma criança, em uma época bem
diferente da nossa, despertando Cthulhu por acidente. As camadas foram
aparecendo à medida que eu ia escrevendo o primeiro rascunho e continuou
nas revisões.
Então não foi uma fagulha, mas uma série delas. Porque primeiro pensei
que poderia ser uma alucinação, então pensei que seria legal se essa
alucinação tivesse um quê dos contos de cavalaria, porque provavelmente era
uma coisa que o protagonista ouvia com frequência e provavelmente era para
lá que sua mente fugiria. Pegaria retalhos da realidade e os enfeitaria para
fugir do que aconteceu; sem de fato conseguir escapar.
"Chamado à Razão" tem uma clara influência de H. P. Lovecraft. Como
esse autor, e outros, influenciam o seu trabalho? Quais são seus
favoritos?
O próprio Lovecraft nunca foi uma influência direta, acho que fui mais
influenciado pelo horror cósmico que ele criou e a cultura que se gerou em
torno disso. Acho ele um escritor bastante instável, com obras incríveis como
A cor que veio do espaço e outras nem tanto.
As influências funcionam de várias formas. Assim como no conto Lovecraft
pesou pela temática, a minha escrita é sempre assombrada por quem
costumo ler, como Borges, Érico Veríssimo, Ítalo Calvino, Ursula Le Guin,
Hemingway, Flaubert. Quando você escreve, é inevitável acabar costurando e
procurando encaixes em características de autoras e autores diferentes que
leu durante a vida. Principalmente quando se propõe a experimentar não só
com gêneros, mas também com a linguagem.
Quanto aos favoritos, me proponho a sempre ter como favoritos pessoas
que ainda estão vivas e podem me surpreender ou produzir coisas novas.
Atualmente são China Miéville e Luisa Geisler.
Como é o seu processo de escrita?
Ele varia de acordo com a origem da ideia. Às vezes tenho só um título,
outras uma cena, outras tenho um tema pra trabalhar e preciso me virar pra
tirar alguma coisa daí. Mas normalmente começa com um argumento breve
da história, que serve como base para que eu possa saber o quanto vou (ou
mesmo se vou) precisar pesquisar, então trabalhar o primeiro rascunho, fazer
quantas revisões forem necessárias, mandar para um grupo de leitores beta
que reuni pra irem lendo meus textos à medida em que vou produzindo e
assim sempre escuto opiniões externas diversas para entender no que estou
acertando e errando.
Você, além de escrever, organizou a coletânea sobre Futebol da Draco.
Qual as diferenças e semelhanças entre esses dois trabalhos?
Não vejo muitas semelhanças, porque, embora os dois sejam trabalhos
criativos, eles funcionam de maneira bem diferente: um processo é bem mais
mecânico e colaborativo do que o outro. Talvez a única [semelhança] seja que
ambos funcionam com negociações. Enquanto escrevendo você negocia
consigo mesmo, com o narrador, com os personagens, com as ideias, com o
texto e etc; organizando uma coletânea você negocia com os autores e com o
próprio tema sobre as liberdades que se pode tomar sem, no entanto, fugir da
proposta.
Em que tem trabalhado ou para sair que pode nos adiantar?
Atualmente estou com meu primeiro romance, chamado "Homo Solaris",
entre revisões. Optei pelo processo paciente, então ainda não sei quando o
livro estará pronto para começar a pensar em quais serão os passos para
publicação. Recentemente terminei de escrever o texto para uma peça de
teatro chamada "A vida segundo a Morte" que está naquele limbo chato de
tentar viabilizar a produção.
Para quem gostou do seu trabalho e quer conhecer mais, quais os
endereços?
Tenho textos que vão de ficção à reportagens, passando por resenhas, no
medium.com/@marcorigobelli. Tenho também uma newsletter semanal
chamada Scripta Manent (tinyletter.com/scriptamanent) onde escrevo sobre
processo criativo, escrita e as mazelas da vida. E os contos publicados estão
no site da Draco (editoradraco.com/?s=marco+rigobelli) e nas principais
livrarias físicas e digitais.
Rodrigo van Kampen é escritor, editor da Revista Trasgo, redator publicitário e foge de
moto nos fins de semana. Já publicou em coletâneas da Aquário, Draco e em publicações
independentes. Mora em Campinas com sua esposa e uma vira-lata, escreve em
viverdaescrita.com.br e pode ser encontrado no Twitter como @rodrigovk.
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ENTREVISTA: RAFAEL DIAS CANHESTRO
Por Enrico Tuosto
Rafael Dias Canhestro tem carreira recente como escritor,
com dois contos publicados: "A menina e a banheira", na
antologia Horas Sombrias (Andross), e "Cadáver",
selecionado no concurso promovido pela editora
AMCGuedes, e publicado em maio desse ano. Ainda
publicou o livro "A casa", pela editora Multifoco.
Ruínas No Horizonte é um conto pós-apocalíptico muito visual. O que
te inspirou a escrevê-lo?
A ideia surgiu da proposta de um concurso literário. O tema era algo sobre
cidades lendárias, baseando-se num conto do Lovecraft, não me recordo o
nome agora... Então pensei em desenvolver alguma coisa na linha
terror/suspense com uma pitada leve de drama. Pensei: por que não fazer
diferente? Ao invés de fazer o tradicional (exploradores descobrem ruínas de
uma civilização antiga), quis encaixar a narrativa em um cenário moderno
seguindo a premissa de que as nossas cidades de agora, todas essas
fervilhantes de vida, um dia entrarão num processo de decadência, como toda
e qualquer civilização, e haverão novas ruínas na paisagem, que as futuras
gerações encararão como restos de um tempo perdido, de uma história
findada. Quer dizer... Isso se houver alguém para fazê-lo.
Os dois personagens principais na história encaram destinos terríveis.
Se fosse para se colocar no lugar de algum deles, você preferiria ser
Alfredo ou Ricardo?
Nenhum deles. (risos)
Pretende expandir o universo de "Ruínas no Horizonte" ou essa foi
uma história avulsa?
Faz parte de um universo maior. Tenho um projeto em fase de maturação,
que chamo de "Terras Áridas" e que se passa nesse mesmo mundo
apocaliptico. As únicas diferenças são geográficas e sociais. De resto...
Quais são suas influências literárias? E o que mais te inspira, além da
literatura?
Tenho muito a agradecer ao mestre Stephen King. Ele me fez pegar gosto
pela literatura. Ele é um sujeito que domina a técnica narrativa e todas as
ferramentas que envolvem o processo. Por mais que queiram diminuí-lo, o
cara se vira muito bem e hoje é um dos mais cultuados na cena da literatura
de medo. E ele me ensinou uma coisa importante e que levarei para o resto
da minha vida: o simples é bom.
Outros autores que posso citar são Charles Bukowski e seu estilo
irreverente de escrita, sem papas na língua e de uma poética seca e sem
enfeites; Edgar Allan Poe e sua narrativa psicológica (que tem me inspirado
em muitos de meus trabalhos); Nelson Rodrigues e sua capacidade de
compôr diálogos que soam naturais, além de sua ficção trabalhar temas tabu,
algo que me fascina; George Oswell e suas assustadoras distópias; Fernado
Pessoa e sua poesia; Céline e seu humor mórbido e que recusa clichês;
Clarice Lispector e a sua habilidade ímpar de transformar o banal em algo
fantástico; e ainda Fernando Sabino e suas crônicas deliciosas de ler, prova
de que literatura se faz do simples e dispensa preciosismos.
Paisagens também me inspiram. O urbano, o selvagem, essas coisas
permeiam a minha ficção.
Você possui alguma rotina ou hábito de escrita que queira
compartilhar?
Costumo me sentar na frente do computador por umas três horas com um
tema em mente e desenvolvê-lo de forma livre. Na medida em que a história
ganha corpo, eu a vou direcionando para um desfecho, um significado. Não
costumo me martirizar pensando: "Ah, não, está uma merda! Ah, não, é uma
ideia estúpida!" Apenas escrevo. Se um sujeito quer ser escritor, ele tem de
escrever, mesmo se for para produzir um texto ruim. Faz parte. Como ele vai
saber o que funciona ou não, se tem medo de experimentar, ao menos tentar?
Não sei se acrescenta, mas... Tomo copadas e mais copadas de água
enquanto crio. Ou é isso ou são as cervejas, e como a grana tá curta... Vai
água mesmo!
Nos conte um pouco do seu livro "A Casa" e a experiência de escrevê-
lo.
Um livro escrito por um rapaz imaturo. Foi a minha primeira experiência
séria com a literatura. Mas foi importante em minha trajetória. Me ensinou
algumas lições, como não ter pressa. A verdadeira arte precisa de tempo para
desabrochar.
Lendo suas histórias, você acredita que o leitor passa a conhecer um
pouco da personalidade do autor?
Talvez. Algo da gente acaba respingando no texto. Eu pego muito do que
vivo e levo para a ficção. Mas confiar inteiramente nessa premissa é um
perigo. Basta lembrar de Fernando Pessoa. Quantas pessoas haviam dentro
daquele único homem? Acredito que pedacinhos do autor estejam espalhados
na tessitura narrativa, mas são apenas algumas peças que juntas não
completam o que de fato é o homem. Todos nós somos complexos demais
para a possibilidade de um entendimento pleno. Como cantava Raul Seixas:
"Cada pessoa é um universo."
Em quais histórias você está trabalhando? O que podemos esperar
para o futuro?
Atualmente, tenho me concentrado em concursos literários. Trabalho em
uma coletânea de contos que explora a loucura do cotidiano, a modernidade
que sufoca o homem. Em breve estará pronta. Já os romances... alguns em
andamento, mas todos incompletos. Precisam amadurecer.
Para quem gostou da sua escrita, onde podem te encontrar?
Tenho um blog que não atualizo há uma década:
canhestro.blogspot.com.br
Aviso que os contos publicados nessa página carecem de revisão. Fazem
parte da primeira leva. São os meus mais antigos esforços literários.
Deseja compartilhar algo mais com os leitores da Trasgo?
Compartilho a minha alegria pela oportunidade de ter um conto publicado
na Trasgo. É sempre bom ter o nosso trabalho valorizado.
Enrico Tuosto é escritor, revisor da Trasgo e rockstar fracassado. Também cuida das
redes sociais e da newsletter da revista, mas o que ele g osta mesmo de fazer é jogar
RPG. enricotuosto.tumblr.com/writing
ENTREVISTA: CAROLINE POLICARPO
VELOSO
Por Enrico Tuosto
Caroline Policarpo Veloso publicou o livro de poemas
Palavras Andarilhas (Editora Penalux) no início de 2015.
Gosta muito de relógios, mapas e calendários, embora
relute em confiar neles. Participou de algumas coletâneas,
entre elas Poderes (Darda), King Edgar Hotel, Utopia,
Sonhos Lúcidos e Ponto Reverso (Andross). Já publicou na
Trasgo, na edição número 3. Não é verdade que tenha um dragão imaginário
de estimação.
"Essa é a nossa história. Você vai adorar" é um conto fantástico um
tanto sombrio. De onde surgiu a ideia para escrevê-lo?
A ideia de personagens ganhando vida aconteceu primeiro, o restante do
conto foi se construindo para dar sentido ao final. Penso bastante na relação
entre realidade e ficção, é algo que estou tentando entender e explorar. No
conto, a realidade pode virar ficção, a ficção pode ser muito real, as fronteiras
se perdem. Mas será que precisa mesmo de magia pra isso? Eu acho que
não.
Eu não pude deixar de imaginar o destino do escritor da sua história e
pensar nas minhas próprias personagens. Se fosse você no lugar do
escritor, acha que suas personagens teriam motivo para vingança? (O
escritor com certeza teria, mas e as outras, de outras histórias?)
O objetivo da pergunta era me assustar? Ah, tenho que admitir que
algumas teriam, sim. Mas por que não pensar nas que teriam motivos para
gostar de mim? Se todas as minhas personagens existissem (ou se eu fosse
tragada para dentro de um conto), eu ficaria feliz em ganhar algumas
amizades — isso, é claro, se escapasse das personagens que não vão querer
ser minhas amigas.
É sua segunda aparição aqui na Trasgo. "Essa é nossa história..."
possui uma atmosfera muito diferente de "Feita de um Sonho", seu conto
que publicamos na Trasgo 03, embora ambas histórias sejam de fantasia.
O que você sente que mudou na sua escrita desde que publicou um conto
com a gente da última vez?
Tanta coisa! Esses quase dois anos parecem um infinito. Encaro a
literatura de forma completamente diferente agora. Ainda estou me
descobrindo, testando caminhos, mas tenho uma ideia mais clara — e mais
realista — do que quero alcançar com a escrita.
Qual o seu processo de escrita? Possui alguma rotina?
Gosto de escrever de manhã ou à noite, mas não é exatamente uma rotina.
Não tenho o hábito de escrever todos os dias. Quando estou em uma história
longa, tento arranjar tempo para ela e exigir compromisso de mim mesma,
mas nem sempre funciona. Não sou organizada o suficiente.
Já sabemos que você gosta de Clarice Lispector, Marian Keyes,
Douglas Adams, J. K. Rowling e Carlos Ruiz Záfon. Nestes últimos tempos
leu algum outro autor que te impressionou e influenciou sua escrita?
Com certeza! Comecei a ler mais Neil Gaiman, conheci Cesar Aira, Anne
Enright, Muriel Barbery. Leio mais poesia contemporânea, poderia citar
Angélica Freitas, Geruza Zelnys, Ana Martins Marques, e parar por aqui para
não estender muito a lista. Diria que são leituras que tocam, atingem, às vezes
tiram o chão, e por isso são transformadoras.
Você publicou um livro de poesias ano passado. Qual a diferença no
seu processo entre a escrita da poesia e a escrita de um conto?
Um poema quase sempre acontece de uma vez, ainda que esse "de uma
vez" seja o acúmulo de muitos fragmentos que demoraram a tomar forma, de
muitas tentativas fracassadas. Um conto pode demorar semanas ou meses
para ser escrito e geralmente precisa de mais ajustes no rascunho do que um
poema. Pra mim, quanto mais longo o texto, maior a dificuldade em fazer com
que tudo se encaixe bem. Não significa que eu ache mais fácil escrever
poesia, mas o esforço envolvido é diferente.
Da última vez que você esteve com a gente, comentou sobre um
romance juvenil chamado "Hírons". Como ficou essa história?
Ficou... no pen drive. Algumas coisas aconteceram, outras não
aconteceram, e acho que Hírons vai continuar no pen drive mesmo.
No que mais anda trabalhando? Nos conte as novidades.
Em breve pretendo apresentar a "Inventada", uma não-humana habitante
de um mundo chamado Fictício que se cansou de percorrer as longas
estradas de Fantasia, perder-se nas confusas ruas de Comédia e passar
noites nos assustadores castelos de Horror. Inventada encontrou o caminho
para um lendário mundo chamado Real, achando que lá sua vida seria
cômoda e fácil. Será que estava certa?
Quem gostar das suas palavras pode te procurar onde?
Tenho alguns poemas na Revista Subversa, que pode ser acessada em
canalsubversa.com. No mês passado saiu na coletânea "Poderes" (Darda) um
conto chamado "Sobrevivências", sobre uma mulher que precisa arriscar a
vida todos os dias para sobreviver, mesmo que isso signifique ferir a si
mesma. No fim de 2015 publiquei no projeto "O Corvo - um livro colaborativo",
uma ideia bacana da Empíreo em homenagem ao poema de Edgar Allan Poe,
o texto "O ponto de vista do Corvo". Como o título sugere, conto o que o pobre
corvo de nome Nunca Mais achou da situação relatada por Poe. Quem quiser
pode me acompanhar no Facebook para saber de novidades:
fb.com/Carol.policarpo.veloso
Última pergunta: como é voltar para a Trasgo depois de algum tempo?
É um prazer ainda maior do que estar aqui pela primeira vez. Conheço
mais a Trasgo, vi a revista acontecendo, crescendo. Estou em um momento
diferente da vida, tenho uma relação diferente com a escrita, enfim... Nunca se
volta exatamente ao mesmo lugar.
Enrico Tuosto é escritor, revisor da Trasgo e rockstar fracassado. Também cuida das
redes sociais e da newsletter da revista, mas o que ele gosta mesmo de fazer é jogar RPG.
enricotuosto.tumblr.com/writing
ENTREVISTA: VILSON GONÇALVES
Por Rodrigo van Kampen
V. M. Gonçalves é natural de Ponta Grossa, onde atua na
área de arte-educação. Graduado em Artes Visuais pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa e mestre em
Comunicação e Linguagens pela Universade Tuiuti do
Paraná, é entusiasta da cultura nerd de forma geral,
especialmente do cinema. Apaixonado por folclore e
culturas antigas, especialmente as Pré-Colombianas, dedica seu tempo livre à
criação de universos fantásticos feitos de ideias e tinta. Em 2014 publicou seu
primeiro romance, "A Canção de Quatrocantos: O Homem de Azul e Púrpura",
pela Editora Buriti. Expandiu o universo de Quatrocantos com os ebooks
independentes "Guerreiras do Sol e da Lua", em 2015, e "O Rei Amaldiçoado",
em 2016.
O que me chamou a atenção de imediato em "Pindá" foi a inversão de
papéis tradicionais de gênero. Qual foi a inspiração para esse conto?
Imaginei a sociedade matriarcal de Pindá a partir da fusão de duas
narrativas tradicionais. A primeira é o relato dos espanhóis sobre as mulheres
guerreiras encontradas no Amazonas (e a razão pela qual o rio recebeu este
nome), um relato que coincide com a narrativa folclórica das icamiabas,
utilizada por Mario de Andrade em Macunaíma.
A segunda é um mito muito comum entre as tribos aruaques, e que no Alto
Xingu foi incorporado por tribos de outras famílias linguísticas. O mito trata de
um momento anterior da história destes povos, quando os papeis de gênero
eram invertidos, algo que só mudou quando os homens roubaram as flautas
sagradas (chamadas jacuí no Xingu) e as tocaram, mudando artificialmente a
ordem das coisas. Por isso mulheres são proibidas de ver as flautas ou de
entrar na casa onde elas são guardadas, no centro da aldeia.
Há um contraste interessante entre as três mulheres principais da
história: Pindá, Akang e Itzel, cada uma com motivação particular. Com foi
escrevê-las?
Colocar carne no esqueleto nunca é fácil para mim (risos). Tentei pensar
cada personagem a partir do seu background e imprimir algumas
idiossincrasias, tanto quanto foi possível no espaço do conto.
Pindá e Akang são abayukás, criadas para a guerra. Elas cresceram em
uma sociedade na qual exige-se que mulheres sejam fortes e aceitem que a
violência é parte da vida e nada de valor pode ser obtido sem ela. Akang já é
uma guerreira idosa e respeitada, que venceu muitos inimigos. Ela é altiva,
impaciente, e exige de suas “filhas” toda a coragem e perícia que crê que ela
mesma possui.
Pindá ainda é jovem, precisa ganhar sua fama através das armas. Ela
sabe que tem potencial para ser uma grande guerreira, e por isso é ambiciosa,
otimista e não pensa muito antes de se lançar ao perigo. O que a motiva é o
que motivou guerreiros ao longo da história: reconhecimento da tribo, desejo
de se provar, luxúria e uma certa submissão à tradição.
Itzel, por sua vez, é uma mulher do povo tuylum, um povo antigo, recluso e
patriarcal. Apesar de ser uma pessoa de visão, que deseja governar sua
cidade, ela sabe que sua cultura vê as mulheres com desconfiança, por
considerá-las traiçoeiras e inclinadas à prática da magia, e que uma mulher só
pode chegar ao poder através de artimanhas. Gosto de pensar que ela é uma
governante capaz, mas, dadas as condições, precisa agir de forma cruel e
dissimulada para atingir objetivos – como muitos governantes reais fazem.
O conto pertence ao universo de "A Canção de Quatrocantos", cujo
livro "O Homem Azul de Azul e Púrpura" foi lançado pela editora Buriti.
Pode contar mais sobre esse universo e o livro?
Quatrocantos é um continente ficcional baseado na América anterior ao
contato com os europeus, especialmente as Américas Central e do Sul.
Assimilei também vários elementos de outras proveniências, especialmente
no que se refere a temas do folclore brasileiro que já carregam alguma
influência cristã, ibérica ou africana.
"A Canção de Quatrocantos – O Homem de Azul e Púrpura", narra a
primeira parte da jornada de um homem chamado Wayra através de
Quatrocantos. Foi a maneira que encontrei de apresentar meu universo.
Espero concluir a saga ao longo dos próximos dois ou três anos, talvez
mais. O primeiro livro revela minha inexperiência (risos): é muito descritivo e
passou para a versão final repleto de erros, então quero ser mais cuidadoso
com as continuações.
Como foi o trabalho de pesquisa para a criação desse universo?
Tudo começou nos tempos de faculdade, quando me apaixonei por
crônicas quinhentistas e arte pré-colombiana. Pouco a pouco isso me levou a
ler tudo que conseguia encontrar sobre antropologia, cultura material e
práticas religiosas dos povos da América Antiga. Paralelamente, em parte por
causa de discussões com colegas, comecei a me perguntar porque ninguém
havia pensado em criar um universo fantástico com esses elementos e por
que era tão raro que elementos oriundos do folclore indígena brasileiro
recebessem um tratamento mais sério. Decidi então encarar o esforço e
transformar esses questionamentos em uma proposta.
A partir daí, assisti uma pilha de documentários e li tudo que pude sobre
incas, astecas, tupinambás, marajoaras, anasazi e tantos outros povos
americanos. Queria que este mundo tivesse textura, dos vestuários, aos
costumes, ritos e alimentação. Este é um trabalho ainda em progresso e algo
novo aparece a cada dia.
Como é o seu processo criativo em geral?
Depende. Geralmente o gatilho é um tema, que me leva a ter vontade de
contar uma história em particular. A partir daí penso o contexto e vou
colocando carne no esqueleto. A primeira versão de Pindá, que partiu de uma
proposta bem clara (pois eu tinha essa vontade de escrever minha versão da
narrativa clássica de espada e feitiçaria, com um ponto de vista feminino e
com minhas influências), foi moldado em cerca de três dias. Outras narrativas,
que não surgem tão organicamente na minha cabeça, demandam uma pá de
tempo a mais, muitos copos de achocolatado e muitas paradas para o pão
com mortadela.
E quanto às inspirações, autores e obras favoritos?
Três autores me inspiraram a escrever: Eiji Yoshikawa (Musashi), T. H.
White (O único e eterno rei) e, por clichê que seja, J. R. R. Tolkien. Se encarei
a tarefa de criar e descrever um mundo para alguém, foi por influência destes
autores. Musashi, em particular, ainda é minha obra literária preferida e o
parâmetro que eu uso para julgar qualquer romance extenso, independente do
gênero.
Fora esses, aprecio muito o trabalho de Marilyn Hume (em especial a
trilogia Merlin), Eoin Colfer (da série Artemis Fowl), J. K. Rowling. De Bernard
Cornwell, sempre retorno à série Crônicas Saxônicas.
O que mais tem publicado, ou para sair em breve?
Além de "O Homem de Azul e Púrpura", tenho dois ebooks disponíveis na
Amazon: "O Rei Amaldiçoado" e "Guerreiras do Sol e da Lua". Ambos se
passam em Quatrocantos. Fora esses, escrevi com meu amigo, Fabio
Clavisso Fernandes, um paródia de poema épico chamada "A Saga de
Thorvald", também disponível na Amazon.
Para o futuro próximo, planejo uma novela intitulada "Manákotui – A Casa
das Vozes", que tratará de um aspecto de meu universo sobre o qual não
escrevi muito ainda: os gururetúk, um povo mágico, inspirado, entre outras
coisas, por mitos como o Curupira e o Yacy Yateré.
Para quem gostou do seu trabalho, qual o caminho para saber mais?
Convido a visitar a página de Quatrocantos no Facebook, onde posto
ilustrações e informações sobre o universo e publicações
(fb.com/acancaodequatrocantos). Estou sempre disposto a trocar ideias e
oferecer informações.
Rodrigo van Kampen é escritor, editor da Revista Trasgo, redator publicitário e foge de
moto nos fins de semana. Já publicou em coletâneas da Aquário, Draco e em publicações
independentes. Mora em Campinas com sua esposa e uma vira-lata, escreve em
viverdaescrita.com.br e pode ser encontrado no Twitter como @rodrigovk.
ENTREVISTA: RODRIGO RAHMATI
Por Lucas Ferraz
Rodrigo Rahmati se acha um escritor, desenhista meiaboca, pretenso dançarino de folclore árabe, karateka que
apanha mais do que bate, pseudo-pintor, tentou aprender
diversos instrumentos musicais sem sucesso, pensa que
fotografa, adora heavy metal, fantasia e ficção científica.
Em resumo, maluco.
Desenhista, dançarino, karateka, pintor e fotógrafo. Como foi que a
escrita se juntou a esse hall de habilidades tão diversas?
Eu sou uma criatura movida a artes! Eu comecei a me envolver com elas
através do desenho – tinha começado uma história em quadrinhos (que hoje
virou um capítulo do meu segundo romance), mas vi que não era bom o
bastante para quadrinhos; a história em formato de roteiro tinha ficado melhor
do que desenhada. Daí para tentar usar a prosa foi um pulo – e o ímpeto de
escrever foi consolidado quando o escritor Leonel Caldela me deu valiosas
dicas, ainda no finado Orkut. Já as outras artes foram sendo acrescentadas
por motivos diversos umas das outras, mas tudo o que representa a expressão
artística me interessa profundamente. Amo música também, mas não me vejo
indo por esse caminho, contudo. A escrita acabou sendo a que mais me
possibilita encontrar o que há de oculto na minha cachola.
Seu conto traz uma miríade de deuses de diferentes mitologias e
sugere que, nesse universo, a humanidade será criada em breve. Toda
essa construção de mundo foi feita apenas para esse conto ou isso faz
parte de algum projeto maior?
Esse conto se passa durante a Segunda Era de um planeta conhecido
como Acqua – e sim, é parte de um projeto maior. Meu primeiro romance –
que será publicado em breve! – se passa na Quarta Era desse mundo, que é
uma versão alternativa do nosso próprio. A Primeira Era seria então a Era dos
Deuses; a Segunda a Era dos Dinossauros; a Terceira o período conhecido
como A Noite dos Tempos; e a Quarta, a Era dos Homens. Existem, ainda,
outros projetos, que abarcarão outros momentos dessa história, mas serão
projetos futuros, depois de outras coisas mais “urgentes”.
Recentemente você teve vários contos lançados em eBook pela
Editora Draco, poderia nos falar mais sobre eles?
Sim, foram cinco contos lançados de uma vez só! Já que falei sobre as
Eras de Acqua, vou comentar primeiro o conto "My shadow plan": É um conto
de fantasia tecnológica, que é, na verdade, uma aventura extra dos
personagens do meu primeiro romance. O conto "Nil" é uma fantasia
tradicional completamente inspirada no trabalho do deus Neil Gaiman, e é o
mais curto de todos. O conto de terror "Kamerorkester! é um dos meus
preferidos, porque o achei bem inquietante e bem resolvido – um dos raros
casos que conseguimos pôr no papel exatamente o que está em nossa
cabeça. O conto "Paid in full" era para ser, também, relacionado ao romance,
mas virou um conto de ficção científica completamente diferente, onde eu dou
uma nova roupagem ao deslocamento temporal. Já o "Aquecimento global
(Em fogo alto)" é fantasia, mas tem uma pegada de comédia bem forte, e é
inspirado pelos mestres do humor inglês, da literatura e da televisão.
O que você tem na gaveta e quais os projetos futuros em que está
trabalhando?
Além do romance pronto para publicação, estou terminando sua
continuação única, que dá fim à história. Estou trabalhando também num
romance realista, sobre um fotógrafo; num outro livro de fantasia, inspirado em
música; em vários contos ao mesmo tempo; e, por último mas não menos
importante, numa novela que deverá sair numa coletânea vindoura muito
interessante – mas da qual não posso falar muito :)
Seu conto me parece uma fantasia com um pitada de ficção científica,
como você trabalha com esses gêneros? Você acha que é possível obter
resultados interessantes dessa mistura?
Uma das histórias que mais me cativou na vida foi a do game Final fantasy
VII, complementada pelo filme Advent children. Achei incrível aquela
atmosfera, onde magias e monstros folclóricos contrastavam com celulares e
aparatos tecnológicos – posso dizer até que foi isso o que me motivou a criar
o mundo de Acqua. Meu romance vindouro tem mais ainda dessa mistura,
descaradamente mesmo, e os leitores beta dele tiveram dificuldades em
categorizá-lo em um ou outro gênero. Isso muito me alegra! Acho cativantes
as histórias que mesclam ambos.
Quais são suas maiores influências literárias e como você se utiliza
delas em seu processo criativo?
Sem sombra de dúvidas são Neil Gaiman, Stephen King, Ray Bradbury,
Terry Pratchett, Haruki Murakami e, por que não?, Leonel Caldela. Neil
Gaiman me mostrou o que é, de fato, criar uma história, uma atmosfera, uma
magia através do texto. Stephen King me ensinou a usar nosso mundo como
base, e como o realismo brutal deixa as coisas mais tensas – além de criar
personagens tão reais que você pensa que pode encontrar na padaria da
esquina. Ray Bradbury me ensinou como usar a melancolia como ferramenta
poderosa. Terry Pratchett me ensinou a criticar o mundo através do humor, e
Haruki Murakami me mostrou que pode-se pegar tudo isso que já foi feito e
chacoalhar tudo num liquidificador e ainda acrescentar mais uma pitada de
estranheza – e criar sua história assim mesmo... porque sim. E sem a força de
Leonel Caldela eu talvez não tivesse chegado aqui.
Quais os meios para que os leitores conheçam mais sobre você e sua
obra?
O melhor meio para encontrar tudo o que eu já fiz é no meu blog,
rahmati.com.br; tem tudo linkado lá. Eu tenho ainda uma coluna no site
Monomaníacos (monomaniacos.com.br/coluna/orecortedodetalhe/) onde uso
bons e maus exemplos de textos publicados para dar dicas de escrita. E para
achar meus contos, é só pesquisar pelo meu nome na Amazon, Cultura,
Saraiva, Apple ou Google Livros.
Lucas Ferraz é um Consutor de TI que se meteu a escrever e não parou mais. Participa
dos podcasts CabulosoCast e Papo Lendário, sobre literatura e mitologia respectivamente.
Escreve crônicas e edita os contos do Leitor Cabuloso e participa da Trasgo como revisor.
lucasferraz.com | @ferraz_lucas
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Créditos da edição
Organização: Rodrigo van Kampen
Revisão: Lucas Ferraz e Enrico Tuosto
Ilustração: Fabio Alencar
Autores: Caroline Policarpo Veloso, Claudia Dugim, Marco Rigobelli, Rafael
Dias Canhestro, Rodrigo Rahmati e Vilson Gonçalves.
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Abril / 2016

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