estudos urbanos
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REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional E REGIONAIS ISSN 1517-4115 REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS Publicação semestral da ANPUR Volume 5, número 1, maio de 2003 EDITOR RESPONSÁVEL Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes (UFBA) COMISSÃO EDITORIAL Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ), Maria Flora Gonçalves (Unicamp), Norma Lacerda (UFPE), Roberto Monte-Mór (UFMG) CONSELHO EDITORIAL Ana Fernandes (UFBA), Carlos Bernardo Vainer (UFRJ), Carlos Roberto M. de Andrade (USP/São Carlos), Circe Maria da Gama Monteiro (UFPE), Clélio Campolina Diniz (UFMG), Flávio Magalhães Villaça (USP), Frank Svensson (UnB), Frederico de Holanda (UnB), Jan Bitoun (UFPE), Lícia Valladares (IUPERJ), Marcus André B. C. de Melo (UFPE), Marta Ferreira Santos Farah (FGV/SP), Martim Smolka (UFRJ), Maurício Abreu (UFRJ), Milton Santos (USP) in memorian, Tania Bacelar (UFPE), Tânia Fischer (UFBA), Wilson Cano (Unicamp), Wrana Panizzi (UFRGS) COLABORADORES DESTE NÚMERO Ana Cristina Fernandes (UFSCar), Eloísa Petti Pinheiro (UFBA), Élvia M. Cavalcanti Fadul (UFBA), José Antônio Fialho Alonso (FEE), José dos Santos Cabral Filho (UFMG), José Tavares Correia de Lira (USP), Lilian Fessler Vaz (UFRJ), Lúcia Cony Faria Cidade (UnB), Paola Berenstein Jacques (UFBA), Pedro Abramo (UFRJ), Raquel Rolnik (PUCCampinas), Ricardo Toledo Silva (USP), Sônia Marques (UFRN), Tamara Benakouche (UFSC), Virgínia Pontual (UFPE) PROJETO GRÁFICO João Baptista da Costa Aguiar CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO Ana Basaglia REVISÃO Fernanda Spinelli ASSISTENTE DE ARTE Priscylla Cabral FOTOLITOS Join Bureau de Editoração IMPRESSÃO GraphBox Caran Indexado na Library of Congress (E.U.A.) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.5, n.1, 2003. – : Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editor responsável Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes : A Associação, 2003. v. Semestral. ISSN 1517-4115 O nº 1 foi publicado em maio de 1999. 1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional). II. Gomes, Marco Aurélio A. de Filgueiras 711.4(05) CDU (2.Ed.) 711.405 CDD (21.Ed.) UFBA BC-2001-098 REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional E REGIONAIS S U M Á ARTIGOS R I O DE J ANEIRO – UMA AVALIAÇÃO DAS AÇÕES DO PRODESPOLUIÇÃO DA BAÍA DE GUANABARA – Ana Lucia Britto GRAMA DE 9 O E STADO E A E XCEÇÃO – O U E XCEÇÃO ? – Francisco de Oliveira O E STADO DE RESENHAS 15 FAVELAS NO M UNICÍPIO DE S ÃO PAULO – E S TIMATIVAS DE P OPULAÇÃO PARA OS ANOS DE 1991, 1996 E 2000 – Eduardo Marques, Haroldo da Gama Torres e Camila Saraiva 31 A 81 Regiões e cidades, cidades nas regiões. O desafio urbano-regional, de Maria Flora Gonçalves, Carlos Antônio Brandão e Antônio Carlos Galvão – por Pedro P. Geiger POLÍTICA DE PRODUÇÃO HABITACIONAL – C ONSTRUINDO A LGUMAS Q UESTÕES – Cibele Saliba Rizek, Joana Barros e Marta de Aguiar Bergamim 85 A cidade da informalidade: o desafio das cidades latino-americanas, de Pedro Abramo – por Ana Clara Torres Ribeiro 47 D AS – – Alexandre 88 Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade, de Paola Berenstein Jacques – por Thais de Bhanthumchinda Portela 63 IMPLANTAÇÃO DE INFRA-ESTRUTURA DE SANEAMENTO NA R EGIÃO M ETROPOLITANA DO R IO 91 De Nova Lisboa a Brasilia: L’invention d’une capitale (XIXe- XXe siècles), de Laurent Vidal – por Luís Octávio da Silva POR MUTIRÕES AUTOGERIDOS ECONOMIAS DE AGLOMERAÇÃO ÀS EX - TERNALIDADES DINÂMICAS DE CONHECIMENTO POR UMA RELEITURA DE S ÃO PAULO Tinoco ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL – ANPUR GESTÃO 2001-2003 PRESIDENTE Maria Cristina da Silva Leme (FAU/USP) SECRETÁRIA EXECUTIVA Suzana Pasternak (FAU/USP) DIRETORES Heloísa Soares de Moura Costa (UFMG) Leila Christina Dias (UFSC) Rainer Randolph (UFRJ) Sarah Feldman (USP/São Carlos) CONSELHO FISCAL Eva Machado Barbosa Samios (UFRGS) Paulo Castilho Lima (UnB) Virgínia Pitta Pontual (UFPE) GESTÃO 2003-2005 PRESIDENTE Heloisa Soares de Moura Costa (IGC/UFMG) SECRETÁRIO EXECUTIVO Roberto Luis de Melo Monte-Mór (CEDEPLAR/UFMG) SECRETÁRIA ADJUNTA Jupira Gomes de Mendonça (NPGA/EA/UFMG) DIRETORES Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ) Ana Fernandes (UFBA) Brasilmar Ferreira Nunes (UnB) CONSELHO FISCAL Carlos Roberto Monteiro de Andrade (USP/SC) José Antônio Fialho Alonso (FEE) Sonia Marques (UFRN) Apoios EDITORIAL Os desafios colocados ao planejamento e a imperiosa necessidade de repensarmos teorias e práticas, presentes no tema central do XX Encontro Nacional da Anpur, ocorrido em Belo Horizonte, MG, entre 26 e 30 de maio de 2003, balizaram as opções da Comissão Editorial para a organização desta edição da Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. Através de um conjunto de textos elaboradas com rigor conceitual e metodógico e diversidade de tratamentos disciplinares, construímos um panorama que traz para os nossos leitores questões cruciais referentes ao planejamento e à realidade urbanoregional do Brasil contemporâneo, vistas, sobretudo, através de dois casos paradigmáticos – São Paulo e Rio de Janeiro. De uma maneira geral, todos os artigos remetem aos desdobramentos sobre a cidade e o território – e em particular o planejamento – do avanço neoliberal, reestruturação produtiva, globalização e redefinição do papel do Estado. Neste sentido, o artigo de Francisco de Oliveira com que abrimos esta edição, originalmente apresentado como conferência na abertura do XX Encontro Nacional da Anpur, baliza de forma instigante a discussão sobre as relações entre o Estado e o urbano no Brasil de hoje, colocando centralmente em cheque o papel do planejamento diante das metamorfoses por que ele passou nas últimas décadas: da busca da normatividade à racionalização da exceção, como define o autor. O quadro de carências sociais e precariedade habitacional que caracteriza as metrópoles brasileiras está presente em duas das contribuições reunidas neste número. O artigo de Eduardo Marques, Haroldo da Gama Torres e Camila Saraiva dá continuidade e aprofunda a contribuição publicada anteriormente na RBEUR, buscando rever as estimativas da população favelada em cada um dos distritos da capital paulista entre 1991 e 2000. Ao fazê-lo, não só contribui para o debate sobre as metrópoles brasileiras, marcadas pelo aumento do desemprego e do emprego informal e, conseqüentemente, pelo desenvolvimento de territorialidades precarizadas, mas constitui também subsídio para a definição de políticas públicas na área da habitação. Outra contribuição desse estudo situa-se na possibilidade de se utilizar a metodologia desenvolvida pelos autores em estudos semelhantes sobre outras cidades. Já o artigo de Cibele Saliba Rizek, Joana Barros e Marta de Aguiar Bergamim discute mudanças recentes na política de produção habitacional por mutirão autogerido, destacando a trajetória que leva essa prática – do caráter emancipatório que lhe era atribuído nos anos 70, a elemento importante no campo das políticas oficiais nos anos 80 e 90 – no quadro de desresponsabilização do Estado e de desmonte das políticas públicas e dos direitos sociais. Nesse percurso, as autoras resgatam a história das chamadas assessorias técnicas (e, por extensão, a do debate sobre o papel social da arquitetura), retomam indagações pioneiras de Francisco de Oliveira em Crítica da razão dualista e analisam detidamente as diversas formas que tomou a prática recente dos mutirões, os conflitos que os atravessam e os limites que lhe são impostos. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 5 O artigo de Alexandre Tinoco explora uma dupla perspectiva, ao desenvolver uma reflexão teórica sobre o conceito de aglomeração no campo da economia regional e urbana, e ao apropiar-se dela para elaborar uma releitura da Região Metropolitana de São Paulo, baseada no papel que o ambiente metropolitano pode desempenhar no processo inovativo das empresas nela localizadas, o que leva o autor a identificar aí a existência de diferentes dinâmica industriais. Finalmente, o artigo de Ana Lúcia Britto discute outro aspecto central na problemática urbana brasileira atual – o da degradação ambiental –, procedendo a uma minuciosa avaliação do Programa de Despoluição da Baía da Guanabara, mostrando os problemas, em sua concepção e execução, que o impedem de atender aos objetivos a que se propunha, com destaque para aqueles que se referem aos processos de avaliação e decisão, às tecnologias empregadas e às relações entre capacidade dos sistemas instalados e ampliação das redes. Na seção de Resenhas, são apresentados quatro importantes lançamentos editoriais recentes: Regiões e cidades, cidades nas regiões; o desafio urbano-regional, organizado por Maria Flora Gonçalves, Carlos Antônio Brandão e Antônio Carlos Galvão, obra que nos fornece um rico e multifacetado panorama da realidade urbano-regional do Brasil contemporâneo; A cidade da informalidade: o desafio das cidades latino-americanas, organizado por Pedro Abramo, a partir de agora referência importante para a discussão da regularização fundiária e das múltiplas faces da pobreza urbana em países periféricos; Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade, em que sua organizadora, Paola Berenstein Jacques, nos brinda com uma coletânea de textos dos situacionistas, importante movimento que entre os anos 50 e 60 formulou uma dura crítica ao urbanismo funcionalista; e De Nova Lisboa à Brasília: l’invention d’une capitale; XIXè-XXè siècles, de Laurent Vidal, que em boa hora vem enriquecer a historiografia brasileira sobre cidades novas. Estas obras foram resenhadas, respectivamente, por Pedro Pinchas Geiger, Ana Clara Torres Ribeiro, Thais de Bhanthumchinda Portela e Luís Octávio da Silva, a quem agradecemos a valiosa contribuição. Finalmente, gostaria de registrar a participação de recursos do CNPq e da Finep para a produção deste número e o apoio estratégico, também sempre fundamental, do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, onde a REBEUR encontra-se sediada desde maio de 2001. MARCO AURÉLIO A. DE FILGUEIRAS GOMES Editor Responsável 6 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 A RTIGOS O ESTADO E A EXCEÇÃO OU O ESTADO DE EXCEÇÃO? FRANCISCO DE 1 OLIVEIRA Os oprimidos sabem do que se trata Walter Benjamin.Teses sobre a História. R E S U M O O texto discute o papel do Estado hoje no Brasil e em particular o do planejamento. Se historicamente as relações entre o Estado e o urbano pautaram-se por um esforço de normatividade da relação capital-trabalho, cabendo ao planejamento enquadrar a exceção e transformá-la em norma, transformações radicais recentes na economia e sociedade brasileiras sugerem que a exceção parece ter enquadrado o planejamento. Às desigualdades históricas da sociedade brasileira vieram juntar-se aquelas advindas da reestruturação produtiva e da globalização, reformatando o mercado, funcionalizando a relação Estado–capital, transformando políticas sociais em antipolíticas de funcionalização da pobreza, erigindo em norma o que antes dela se afastava, pontuando um esforço teórico que transitou da busca da normatividade para a racionalização da exceção. PA L AV R A S - C H AV E sigualdade social; Brasil. Relações Estado–urbano; planejamento urbano; de- UMA BREVE HISTÓRIA DO TEMPO PERDIDO Num passado que pode ser localizado no século XX – o breve, segundo Hobsbawm – as relações entre o Estado e o urbano, o Estado e o planejamento podiam ser caracterizadas, ainda que toscamente, como o de um enorme esforço de normatividade para lograr estabelecer a relação capital–trabalho, promover as condições gerais da produção para a industrialização, utilizando, para tanto, até o limite, a coerção estatal como substituto do mercado, e finalmente, no capítulo da relação com o planejamento, inventar uma política que metamorfoseasse o conflito de classes numa “convergência de contrários”, sem jogo de soma zero, anti-schmittiana no sentido de eliminar a relação amigo–inimigo. A cidade era o teatro dessas operações e todas as formas de planejamento de alguma maneira buscavam funcionalizá-la – na maior parte das vezes almejando-se ingenuamente a supressão do conflito – para uma nova divisão social do trabalho e novas relações de classe. Numa palavra, ainda que com métodos excepcionais, tais relações tinham como norte paradigmático enquadrar a exceção e transformá-la em norma. Seria longo, fastidioso e pretensioso resumir o intenso processo de transformações que alterou radicalmente a economia e a sociedade brasileiras, fazendo a industrialização, urbanizando-a totalmente, tutelando o conflito de classe, utilizando a coerção estatal como força propulsora e ordenadora tanto do aprofundamento do capitalismo quanto de suas relações sociais de produção, o que quer dizer, em geral, planejando. Mas tais transformações e seus métodos não lograram normatizar o excepcional, enquadrando a exceção. Parafraseando uma frase de Paul Baran, dita há muito tempo, não foi o planejamento que enquadrou a exceção, mas foi a exceção que enquadrou o planejamento. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 9 1 Este texto foi preparado como base para a conferência de abertura do X Encotro Nacional da ANPUR – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, Belo Horizonte, 26.5.2003. O E S T A D O E A E X C E Ç Ã O No fundo desse processo, jaz a enorme desigualdade que marca a sociedade brasileira. Toda a transformação ocorrida fundou outra desigualdade, qualitativamente diferente sobretudo quando vista sob a ótica da liberdade, e quantitativamente maior se observadas as distâncias entre os muito ricos e os muito pobres. Mas a nova diferença quantitativa obriga os dominados a um esforço descomunal para superá-la, o que introduz uma nova qualidade na desigualdade, que, se já não é a completa ausência de liberdade, é a quase completa ausência de horizonte de superação. De fato, embora continuemos a ser uma sociedade racista, na semântica social e nas relações sociais o escravismo foi superado. Mas superar a desigualdade capitalista supõe poder superar o próprio capitalismo, o que é uma tarefa de titãs. Seria fácil dizer que a herança escravista foi sempre o grande obstáculo para a igualdade, com o que se estará dizendo uma meia-verdade: o Sul dos Estados Unidos foi tão ou mais escravista que o Nordeste brasileiro – lá chegou-se até à fazenda de criação de escravos – o que sugere que Casa grande & senzala é o nosso E o vento levou. Deixo de graça essa sugestão para o novo cinema brasileiro, já que as reconstituições da Globo não conseguem criar o clima de nostalgia de um temps perdu, que é a chave do apelo do romance e do charmoso filme. Mas o Sul norte-americano, sob a pressão hegemônica do Norte industrializado, finalmente venceu a barreira escravista, cujo epílogo foi a brava campanha de direitos civis da segunda metade do século XX. Nossa cordialidade, que resolveu a abolição sem sangue – de novo, os escravos sabiam o que queria dizer isso – não foi capaz de impor ao Norte – nos adverte Evaldo Cabral de Melo que Nordeste é uma invenção do século XX – escravista a ética do Sudeste industrializado. A coerção estatal também foi característica de todos os capitalismos tardios, entre os quais se sobressaem a Alemanha e a Itália. Mas os dois países “excepcionais”, justamente onde a besta nazi-fascista sentou suas patas sujas de sangue, transformaram-se em democracias exemplares e varreram com a desigualdade, de forma que hoje comparecem entre os mais igualitários, sob o forte impulso de crescimento do capitalismo nos Trinta Anos Gloriosos. Conhecemos as regressões que a Itália vem experimentando, mas nada comparável ao país semi-feudal que o neo-realismo retratou. A forma autoritária e muitas vezes ditatorial também não é argumento suficiente, embora necessário, para explicar o caso brasileiro. Não foi ausência de crescimento capitalista o que explica a profunda desigualdade: pelo contrário, o intenso crescimento durante um século talvez esteja, paradoxalmente, entre suas causas mais importantes. Sob as tenazes do excepcional crescimento, combinado com a herança escravista e a poderosa coerção estatal, o estatuto da força de trabalho rebaixado para tutela estatal produziu a extorsão da plus-valia mais avantajada e uma distribuição da renda que se iguala à dos mais pobres países da África, onde “capitalismo” é somente força de expressão. Essa compactação de tempo histórico, no século XX, em que parece que toda a letargia do livre-cambismo do século precedente, que obstaculizou a industrialização, foi acelerada até o limite, chamou para regimes de exceção, na longa “via passiva”. Se o nazismo durou apenas doze anos na Alemanha e o fascismo, no máximo vinte na Itália, nossas ditaduras na segunda metade do século XX alcançaram a invejável (?) marca de 35 anos, igualando-se a Franco e Salazar. A desigualdade brasileira mora aí. A progressão da relação salarial foi coartada no começo dos anos oitenta do século passado pela combinação da reestruturação produtiva com a globalização; isto forneceu as bases para um enorme avanço da produtividade do trabalho que jogou para as calen10 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 F R A N C I S C O D E O L I V E I R A das a possibilidade e/ou necessidade da relação formal de trabalho: pelo contrário, o que se chamou no passado de “informalidade” tornou-se a regra. Pede-se ao trabalhador formal os atributos do “informal”: flexibilidade, polivalência, iniciativa. Tais atributos encontram-se nos camelôs dos centrões de nossas cidades. Aparece aí o primeiro elemento da exceção: o mercado de trabalho foi virado pelo avesso. A revolução molecular-digital atuando sobre um mercado de trabalho mais flexível que as canas do deserto de que falava São João – o das festas juninas, não o evangelista – pavimenta a flexibilização, de modo a produzir o espantoso fenômeno de que os vendedores ambulantes de refrigerantes e cerveja nas portas dos estádios duas vezes por semana – lembram Milton Nascimento: “Brasil vazio nas tardes de domingo/isto é o país do futebol” – tornaram-se funcionais para o capital financeiro. O formidável ataque ideológico neoliberal formatou um consenso pelo avesso: tudo que era sólido desmancha-se no ar. Emprego estavel é privilégio, regras de previsibilidade foram traduzidas como burocracia. A financeirização das economias e principalmente dos orçamentos públicos retira autonomia do Estado; produz-se uma autonomização do mercado, que é o outro pilar da exceção. Mas a contradição está em que tornado supérfluo pela autonomização, o Estado se funcionaliza como uma máquina de arrecadação para tornar o excedente disponível para o capital. E a exceção está em que as políticas sociais não têm mais o projeto de mudar a distribuição da renda – que foi lograda ao longo da experiência do Welfare, não tenhamos o falso pudor de não admiti-lo, como os partidos comunistas não quiseram reconhecer o papel do reformismo social-democrata – e se transformaram em antipolíticas de funcionalização da pobreza. O que estou descrevendo é o Ornitorrinco, com maísculas, porque tornou-se o novo “modo de produção” da periferia capitalista. Capital financeiro na cabeça, informatização em todos os meios de produção e de consumo, dívida externa que representa um adiantamento de não menos que 40% sobre o PIB e porcentagem mais alta para a dívida interna, setor financeiro com 9% do PIB, proporção que nem os USA e o UK, principais centros financeiros do capitalismo globalizado alcançam, altíssima informalidade que beira os 60% da PEA, pobreza na qual vegetam 70 milhões – 41% da população – abaixo da linha dos US$ 2/per capita/dia (em 1998, segundo o PNUD) e que é concomitante e provocada pela digitalização-molecularização do capital. Isto é, mamífero com bico e patas de pato, semi-aquático, cujas mamas são pêlos, e... que se reproduz oviparamente, modo barroco de dizer: bota ovo. As cidades são os lugares por excelência dessas exceções, e o conjunto delas é a administração da exceção. Trata-se de um Estado de Exceção, na medida justa da teoria schmittiana, pois o soberano é o que decide a exceção: quem é o soberano? O mercado, não como abstração, mas precisamente o que coloca 41% abaixo da linha da pobreza. Pensemos: o subdesenvolvimento não era a exceção, era uma singularidade histórica, que assinalava precisamente que ele havia sido produzido pelo capitalismo em expansão, o qual, montando-se sobre sociedades criadas ou apropriadas para produzir o excedente que na verdade criou o capitalismo mercantil, não poderia, jamais, reproduzir o original. Roberto Schwarz mostrou isso magnificamente em sua interpretação de Machado de Assis, a chamada originalidade da cópia, título que FHC apropriou para responder às críticas sobre a “teoria” da dependência. O Ornitorrinco é a exceção permanente, porque já não é singularidade: ele contém todos os elementos do original desenvolvido, já não há espaços pré-capitalistas, já não há R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 11 O E S T A D O E A E X C E Ç Ã O fronteiras de expansão do capital. O alto desemprego – 20% em São Paulo – não é sinal de desocupação de fatores – obrigado, neoclássicos – por insuficiência de capital, mas, o contrário, por excesso de capitalização. É a cópia do original que causa o desemprego e a péssima distribuição de renda, que se agravará na medida em que o desenvolvimento é retomado, e o será, de forma intermitente, mas sem sustentabilidade. Uma vez mais, convoco ao exame empírico: as políticas chamadas de emprego e renda são a exceção do desemprego; elas aprofundam o desemprego, ou o mantém, com o propósito de combatê-lo! As políticas de mutirões para satisfazer a demanda por habitação são a cidade como exceção; é a desmercantilização da força de trabalho sob a forma de trabalho virtual que prepara o enorme exército “informal” – utilizo o termo apenas porque é do nosso jargão, para economizar, mas ele já não tem poder explicativo – para as portas dos estádios de futebol, ou os arredores dos formosos teatros, ou as bancárias e banqueiras ruas dos centros de nossas cidades. O Fome Zero é o marketing como política. Mesmo uma “política” contra a qual ninguém pode colocar-se, a cópia brasileira das políticas chamadas afirmativas, de que as cotas para os negros na universidade pública – a UERJ no Rio é a pioneira – é uma política de exceção que revela a derrota do projeto de integração. A síntese é a dependência financeira externa do Estado, que come 9% do PIB como serviço da dívida, equivalente a mais da metade do coeficiente de inversão. É a exceção do Estado ou o Estado como exceção. A consequência das exceções parciais, que forçamos a barra para pensá-las ainda no paradigma da normatividade porque nos assusta pensar na exceção totalizadora, é que o “normal”, a norma, é puxada para baixo pelo “anormal”: esta é a síntese que faz a exceção. A enorme desigualdade obriga a pensar que se faz necessário baratear as escolas, para aumentar o número de incluídos: a consequência é planejarmos escolas pobres para pobres. A arrogância do caos do trânsito – já uma transgressão semântica porque se trata de um problema de transporte e não de trânsito – obriga-nos a planejar zonas azuis, a exceção para os que têm automóveis, rodízio de automóveis, zoneamento que preserve os bairros ricos da contaminação com os pobres, a “revitalização” dos centros – alguém perguntou a uma conhecida urbanista, olhando do alto de um dos prédios do Anhangabaú se lá em baixo não havia gente ou aquilo era um formigueiro – para nos livrar da deterioração causada não pela invasão dos pobres, mas pela especulação que criou sucessivamente a avenida Paulista, deslocou-se para a Faria Lima, transferiu-se para o eixo da Berrini, em falando da capital de São Paulo. Mas a “revitalização” faz-se necessária, teorizou outra urbanista, porque putas, rufiões, bêbados e desempregados “privatizaram” o espaço público! Hanah Arendt se debateu ferozmente no túmulo quando ouviu tamanha “exceção”! As empresas se assenhoream das políticas sociais, e a exceção do mercado se impõe como critério das políticas, porque precisa-se de eficiência e produtividade nas políticas sociais, e o resultado é maior exclusão. O planejamento urbano, com suas regras de utilização do solo, corredores de tráfego, corredores comerciais, camelódromos, barraquinhas coloridas para disfarçar a precariedade, quais outras Catarina da Rússia, legalização de perueiros e ônibus clandestinos forçada pela chantagem, é a cidade como exceção: ele busca se compatibilizar com as piores tendências de concentração da renda e da sociabilidade indesejável quase obrigatória das classes que voltaram a ser chamadas de “perigosas”, como são conhecidas as que foram uma vez “laboriosas”. No Rio, cuja geografia não consegue separar ricos e pobres, há um clamor pela policialização total da cidade, e na mistura de tiros que já não se sabe de 12 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 F R A N C I S C O D E O L I V E I R A onde provêm, as balas perdidas deixaram de ser exceção à regra: ao contrário, a exceção é quem nunca correu esse risco. O summa cum laudae é a criminalidade, em todas as suas formas. A mais ostensiva é hoje a do narcotráfico: que é a exceção do mercado de trabalho, pois, como na Colômbia, Bolívia e Peru, não há como as atividades “normais” competirem com os rendimentos proporcionados pela produção e comercialização dos entorpecentes, nem pelo emprego – pode-se chamar isso de emprego? – dos pequenos “aviões” pelo narcotráfico. A foto mais dramática dos episódios do Rio que se intensificaram às vésperas do carnaval era – provavelmente no O Globo – de um imenso cordão de esfarrapados, cujo fashion era composto de uma miserável bermuda e um par de chinelos de dedo, cópia da famosa Havaiana, descendo o morro, aprisionados. O humorista que é hoje o melhor sociólogo-antropólogo do Brasil, Zé Simão, satirizou com soda cáustica: “O elemento procurado é pardo, traja bermuda e sandália tipo Havaiana. Tão procurando o Brasil!” (Folha de S.Paulo, data indeterminada). O retrato sem retoques de uma sociedade derrotada. O alto lucro é diretamente proporcional ao alto risco, isso já se sabia, e neste caso a ligação interna-externa se dá porque o grande consumidor está nos paises desenvolvidos: é a nossa nova “dependência”. Mas o lado menos ostensivo da criminalidade, que não aparece sob este rótulo, está nas taxas de homicídios, a segunda causa- mortis na cidade de São Paulo, que devasta a faixa etária masculina entre os 15 e os 24 anos. Todos sabemos que a maior parte dos crimes se dá entre conhecidos e até entre membros do grupo familiar. Como mostram algumas excelentes pesquisas antropológicas e sociológicas, é a promiscuidade por ausência de relação mercantil que detona os conflitos, e leva aos homicídios. Essa ausência tem um nome: desemprego. Na tentativa de conter a avalanche, a policialização da sociedade, a segurança elevada ao valor maior, o pedido de transformar as Forças Armadas em polícia urbana, uma guerra civil mal disfarçada. A morte da pólis é a morte da política e a negação da negação: todo espaço público deve ser privatizado, deve estar sob o olhar panóptico, porque o perigo é o público. Até no futebol a exceção já se instalou, porque no carnaval ele já é a regra: a recente Lei do Torcedor manda instalar câmaras em todos os estádios, para conter o vandalismo e flagrar os violentos. Não há mais política: há tecnicidades e dispositivos foucaultianos que se impõem com a lei da necessidade. Adequamos nosso discurso para reconhecer a “realidade” e em nome dela, planejar a exceção. Reconheçamos: nosso esforço teórico transitou da busca da normatividade para a racionalização da exceção, que nossa prática cotidiana já leva a cabo faz tempo. Porque do nosso horizonte já sumiram as transformações. Sejamos pragmáticos, já é tempo e já estamos na idade, ora bolas, de abandonar as utopias! A B S T R A C T The text looks at the role played by the State in Brazil today and in particular the role of planning. If, historically, the relationships between the State and the urban were based on an effort to ease the relationship between capital and labor, planning to control the exception and to transform it into the rule, recent radical changes in the Brazilian economy and society suggest that the exception has itself curbed planning. To the inequalities typical of Brazilian society were added those stemming from the productive re-structure promoted by globalization, which re-shaped the market, re-purposing the relationship between State and capital, while turning social policies into anti-policies of poverty, transforming into R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 13 Francisco de Oliveira é professor titular aposentado do Depto. de Sociologia da FFLCH/USP e coordenadorcientífico do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – CENEDIC/USP. Artigo recebido para publicação em junho de 2003. O E S T A D O E A E X C E Ç Ã O the rule what beforehand was considered a deviation from it and promoting a theoretical effort the aim of which is to rationalize the exception and turn it into the norm. KEYWORDS Brazil. 14 Relationship State-urban; urban planning; social; inequality; R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 FAVELAS NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO ESTIMATIVAS DE POPULAÇÃO PARA OS ANOS DE 1991, 1996 E 2000 EDUARDO MARQUES HAROLDO DA GAMA TORRES C A M I L A S A R A I VA R E S U M O Em muitas cidades brasileiras as favelas representam a principal alternativa habitacional para as populações de baixa renda há várias décadas, mas na cidade de São Paulo esta solução habitacional não merecia destaque até os anos 70. A sua importância, entretanto, cresceu muito, recentemente, pela insuficiência das políticas estatais e devido à redução da presença relativa dos loteamentos clandestinos. Se a importância do problema é consensual, o seu tamanho tem sido objeto de debate. Este artigo objetiva rever as estimativas de população favelada em São Paulo. Desenvolvemos uma nova metodologia de baixo custo, potencialmente aplicável em outros contextos urbanos. O método se baseia em sistema de informações geográficas, permitindo estimar a população ao comparar as cartografias da Prefeitura de São Paulo com os setores censitários dos Censos Demográficos (IBGE). PA L AV R A S - C H AV E bitação; espaço urbano; São Paulo. Favelas; estimativas populacionais; políticas de ha- As favelas se fazem presentes em muitas cidades brasileiras, mas na cidade de São Paulo esta modalidade habitacional não merecia destaque até os anos 70. Sua importância, entretanto, cresceu muito nas últimas décadas pela insuficiência das políticas estatais, e também devido à redução da presença dos loteamentos clandestinos, seja pela menor oferta de terras, seja pela pauperização de uma parte expressiva da população. Se a importância do problema é consensual, sua dimensão tem sido objeto de debate. A prefeitura de São Paulo realizou um Censo de Favelas em 1987. Esse estudo foi atualizado por procedimentos amostrais em 1993 pela Fipe/USP. Segundo este último levantamento, a população total residente em favelas teria atingido aproximadamente 19% da população do município. Mais do que isto, a população teria crescido à espantosa taxa de 15,2% ao ano entre 1987 e 1993. Este artigo objetiva rever as estimativas de população favelada em São Paulo. Ao comparar as informações de 1987 e 1993 aos dados dos Censos Demográficos (IBGE) relativos aos setores censitários subnormais de 1991 e 2000, desenvolvemos uma nova metodologia de baixo custo, potencialmente aplicável em outros contextos urbanos. O método se baseia em sistema de informações geográficas e permite estimar a população ao comparar os desenhos das favelas (da prefeitura) com aos setores censitários (IBGE). Com essa metodologia pretendemos tirar proveito das melhores características dos dados administrativos municipais (e sua definição de favela) e, ainda, do trabalho de campo do IBGE nos censos demográficos. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 15 F A V E L A S N O M U N I C Í P I O D E S Ã O P A U L O INTRODUÇÃO 1 Certamente a questão da periferia é também parte deste debate. No caso do Rio de Janeiro, cidade em que a questão das favelas se fez presente mais precocemente, as favelas já entraram e saíram do centro da cena, associadas ou não à questão periférica – ver, por exemplo, o clássico Voltar a pensar em favelas por causa das periferias (Santos, 1975). No caso de São Paulo a importância das periferias sempre mereceu grande atenção. No entanto, neste artigo, trataremos apenas da questão das favelas. 2 Por sua vez, Taschner (2000) trabalha com a categoria de favelas em situação de risco, de modo a caracterizar demográfica e ambientalmente um dramático aumento da população vulnerável no município de São Paulo. 3 A edição de 31 de março de 1995 do Diário Oficial do Município de São Paulo traz uma edição especial (n. 101 – Edição Especial C), intitulada “Favelas na Cidade de São Paulo”. Tal documento, baseado em estudo realizado pela Fipe, traz informações relativas à população e ao número de domicílios localizados em favelas, para o ano de 1993. No contexto metropolitano brasileiro, a questão da vulnerabilidade socioeconômica tem como um de seus temas centrais a questão das favelas.1 Este tipo de aglomeração urbana, amplamente disseminada pelas metrópoles do País, concentra domicílios com elevado grau de carências socioeconômicas, tanto em termos de oferta de serviços públicos, como relativas à infra-estrutura urbanística e à renda pessoal dos moradores. Além disso, muitas destas áreas estão localizadas em encostas sujeitas a deslizamentos e em fundos de vale expostos a inundações, ou seja, em zonas de risco ambiental. Não por acaso, estimativas da população favelada ganharam um papel relevante no debate sobre as metrópoles brasileiras, tendo sido utilizadas como indicadores da direção e do significado das mudanças metropolitanas recentes no País. Assim, apesar do aumento da oferta de serviços públicos e da melhoria de vários indicadores sociais ocorridos no Brasil nos anos 80 e 90, informações relativas a favelas têm sido usadas como indicadores da precarização das condições de vida nos grandes centros urbanos. No caso de São Paulo, autores como Kowarick (2001), por exemplo, alegam que a situação social da região metropolitana se agravou sobremaneira, devido a uma combinação de aumento do desemprego e do emprego informal, com um forte crescimento da violência e da população favelada.2 Grande parte destes argumentos é baseada nas estimativas de população e de número de domicílios localizados em favelas, realizadas por prefeituras. No caso do município de São Paulo, tais estimativas têm por base o chamado “Censo de Favelas”, realizado em 1987, e atualizado por meio de procedimentos amostrais para 1993, em estudo realizado pela Fipe.3 Segundo este estudo, a população total residente em favelas em 1993 atingiu o montante de 1,9 milhão de pessoas, ou aproximadamente 19% do total da população do município em 1991. Mais do que isso, a população teria crescido à espantosa taxa de 15,16% ao ano entre 1987 e 1993. Diante da importância do debate e à dimensão dos números envolvidos, tentamos discutir, em artigo anterior (Torres & Marques, 2001), as estimativas de população favelada para o município de São Paulo, utilizando diferentes fontes de dados. Naquele trabalho, além de comparar os dados do Censo de Favelas (1987 e 1993) aos dados dos Censos Demográficos de 1991, 1996 e 2000, relativos aos chamados setores censitários subnormais, estimamos a população em tal condição habitacional por meio do uso de Sistemas de Informações Geográficas (SIG) para o ano de 1996. Para tal, utilizamos cartografia oficial das favelas paulistanas (produzida pela prefeitura), comparando-a ao desenho de setores censitários (do IBGE), por meio do recurso de overlay, ou sobreposição de cartografias. Neste exercício, no entanto, utilizamos informações demográficas da Contagem Populacional de 1996 e uma base cartográfica relativamente desatualizada das favelas do município de São Paulo. O objetivo do presente trabalho é aprofundar tal exercício de estimativa, utilizando as informações demográficas dos Censos de 1991 e de 2000 do IBGE e uma cartografia de favelas corrigida e atualizada, tanto para 2000, quanto recompondo a informação relativa a 1991. Esse exercício nos permitirá estimar a população favelada em cada distrito da Capital para cada uma daquelas duas datas. Como resultado, a estimativa total de população favelada é bastante consistente com os dados censitários. Como essa estimativa é calculada para os dois pontos do intervalo intercensitário, será possível avaliar também as taxas de crescimento da população favelada em cada parte da cidade e no seu conjunto. 16 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 E . M A R Q U E S , H . D A G A M A T O R R E S , C . S A R A I VA A exemplo do artigo anterior, na primeira seção discutimos e comparamos os conceitos e dados envolvidos no Censo de Favelas e na população residente em setores subnormais dos censos demográficos, de forma a construir um terreno conceitualmente sólido comum. Na segunda seção, partimos para estimativas alternativas de população e domicílios em favela por meio das técnicas de SIG em cada distrito para os dois anos censitários, apresentando de forma concomitante a metodologia utilizada. Ao final, tentamos refletir a respeito do significado dos resultados apresentados para o debate sobre a questão metropolitana. SETORES SUBNORMAIS E CENSO DE FAVELAS Apesar de ser um fenômeno onipresente na cena pública brasileira, a definição do que é favela não deixa de ser complexa, particularmente quando tratada do ponto de vista do sistema de produção de dados estatísticos. No caso do Censo Demográfico, os chamados setores censitários subnormais – utilizados muitas vezes como substitutos do conceito de favelas –, são definidos antes da realização do Censo propriamente dito, sendo inclusive objeto de pagamento diferenciado por entrevista, devido às dificuldades operacionais de acesso a estes locais. Como o setor censitário é uma unidade administrativa do Censo, pensada como a área a ser percorrida por um único entrevistador, a utilização do chamado setor censitário subnormal como definição de favela pode acarretar uma série de conseqüências relevantes do ponto de vista da produção de uma estimativa de população favelada: 1 a qualidade da estimativa depende do grau de atualização da cartografia utilizada para o planejamento do Censo. Muito provavelmente, a qualidade de tal cartografia depende da colaboração entre o IBGE e outros órgãos públicos, tais como prefeituras e secretarias de Estado, que atualizam a cartografia com fins tributários e para o planejamento de políticas públicas; 2 isto faz que a precisão da estimativa de população favelada varie entre os vários municípios, sendo mais atualizada para os municípios com cartografia de favelas mais recente. De forma similar, a qualidade de tais estimativas tende a variar bastante ao longo do tempo, dependendo do grau de atualização dos setores considerados subnormais realizada antes de cada Censo. Por esta razão, a utilização da informação mesmo para um determinado município em dois momentos no tempo pode gerar erros de tamanho não desprezível; 3 favelas muito pequenas tendem a não ser consideradas como setores subnormais, pois não tem tamanho suficiente para servir como área pesquisada por um entrevistador.4 Em outras palavras, mesmo com cartografias atualizadas, a população favelada pode ser subestimada. Como conseqüência geral destes elementos, na maior parte das vezes os dados de setores subnormais implicam números subestimados da população favelada. Como essa subestimação não é nem mesmo estável no tempo, o cálculo de taxas de crescimento pode levar a valores muito baixos ou muito altos. Tal fenômeno tende a provocar clara contestação dos dados censitários por parte de gestores públicos locais e de movimentos sociais. Em alguns casos trata-se de um mero questionamento do conceito. Em outros, isto implica formas alternativas de medir o problema por meio de fotos aéreas e de levantamentos locais. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 17 4 No Censo de 2000, um entrevistador cobria, em média, mil pessoas na Região Metropolitana de São Paulo. F A V E L A S 5 Esse tipo de irregularidade, ou as “facilidades” construídas para solucionar a situação, tem sido uma das principais fontes da corrupção miúda e disseminada nas administrações municipais brasileiras. N O M U N I C Í P I O D E S Ã O P A U L O Em termos operacionais, tem-se lançado mão intensamente de levantamentos diretos e/ou amostrais, que nem sempre produzem os resultados mais adequados do ponto de vista técnico. O tipo de levantamento mais comum, as contagens de barracos realizadas por assistentes sociais do poder público local ou de empresas contratadas, não substituem uma efetiva aferição da população residente uma vez que podem existir barracos de uso comercial, barracos vazios, de uso ocasional e/ou situações de dupla declaração de residência (a questão do residente temporário). As discrepâncias comumente presentes nas informações obtidas dessa forma decorrem do fato que secretarias municipais de Habitação não são necessariamente boas produtoras de dados, e tendem a gerar números populacionais díspares. Entretanto, se os números produzidos diretamente pelo poder público tendem a ser frágeis, há a possibilidade de alcançar indiretamente a dimensão fundiária partindo da definição administrativa de favela, desde que as informações administrativas sejam utilizadas criativamente. No caso específico do município de São Paulo, trabalha-se com uma definição de favelas associada à propriedade da terra. A catalogação de uma dada área como favela é feita após a existência de um processo de ocupação, por moradores, de uma área pública ou particular. O processo de identificação de um núcleo de favela pode se dar de três formas. Quando a área é pública, o processo de identificação se inicia com a abertura de um processo administrativo interno à prefeitura por um agente vistor notificando a Secretaria da Habitação (Sehab) e o Departamento de Patrimônio (Patri) que vistoriou uma área pública e a encontrou ocupada. Internamente à Sehab, essas informações são direcionadas e processadas pelo setor de planejamento da Superintendência de Habitação Popular (Habi). Quando ocorre uma ocupação em área particular, a Administração Regional é chamada a realizar a desocupação, respondendo a processo judicial de reintegração de posse, o que também gera um processo administrativo de notificação da Sehab e de Patri. Uma terceira forma de identificação de novos núcleos favelados tem origem na própria burocracia técnica da Sehab que, em suas vistorias de rotina, localiza um novo núcleo e notifica o setor de planejamento da Habi. Ao longo do tempo, essas informações foram consolidadas em um banco de favelas, em papel, com os perímetros das favelas marcados em cópias do Mapa Oficial da Cidade (MOC), assim como em tabelas, inicialmente em papel e depois em meio eletrônico. Em todos os casos, o elemento definidor da favela é a ilegalidade na propriedade da terra, ou seja, o fato de os moradores ocuparem terra que não é de sua propriedade. Vale destacar que existem vários tipos de irregularidade possíveis, classificáveis em quatro grupos: quanto à legislação edilícia; quanto ao uso do solo; quanto ao parcelamento do solo; e quanto à propriedade. Os dois primeiros tipos estão presentes em toda a cidade, inclusive nas áreas habitadas pela população de alta renda, ocorrendo, por exemplo, quando uma edificação não respeita os recuos laterais e quando uma butique se localiza em uma rua de uso estritamente residencial (no caso de São Paulo, uma Z1). Nenhuma das duas impede o registro da propriedade fundiária, embora possam ser gerados conflitos com o poder público municipal que redundem em multas e dificuldades na regularização da edificação (no Registro de Imóveis ou na prefeitura com o “habite-se”) ou da atividade econômica (“alvará”).5 A terceira forma de ilegalidade diz respeito ao descumprimento da legislação sobre parcelamento do solo. Em termos concretos isso significa que o agente responsável pelo parcelamento (loteador ou incorporador) não levou até o final o processo de aprovação do par18 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 E . M A R Q U E S , H . D A G A M A T O R R E S , C . S A R A I VA celamento nos órgãos públicos responsáveis (no caso de São Paulo, o Departamento de Parcelamento do Solo – Parsolo/Sehab e as Administrações Regionais). Se o loteamento foi produzido antes de 1979, os moradores podem ter conseguido o registro de sua propriedade no Registro de Imóveis mas, se foi posterior, não registraram seus terrenos, visto que a legislação federal (Lei Lehman – 6766/79) passou naquele ano a considerar, como pré-requisito para o registro de propriedade, a aprovação prévia do parcelamento pelas prefeituras municipais. Assim, quando ocorre esse tipo de irregularidade, temos um loteamento irregular que pode até mesmo ser clandestino, caso o loteador não tenha iniciado o processo de aprovação. Nesses casos, os moradores não têm título de propriedade, mas têm como provar que pagaram por ela, sendo, para o Judiciário, os proprietários legítimos dos terrenos. O quarto tipo de ilegalidade é o que está associado ao tema deste artigo. Quando um conjunto de pessoas ocupa uma gleba ou terreno – para além de possíveis descumprimentos das legislações edilícias (porque as casas são construídas fora do Código de Obras), de uso do solo (porque o parcelamento não obedece aos parâmetros da lei) –, há um problema associado à propriedade da terra. É nesses casos que a literatura sociológica e de políticas públicas localiza os núcleos de favelas, delimitando corretamente um fenômeno único, mas gerando sérios problemas de mensuração. Em meio a esta complexidade metodológica e conceitual, são gerados números impressionantes, como os produzidos pelos chamados “Censos de Favelas”, realizados periodicamente pela prefeitura de São Paulo. Entre os Censos de 1987 e 1993, a população favelada teria passado de 800 mil para 1,9 milhão de habitantes, mais do que dobrando em seis anos. Em 1993, data da última atualização do Censo de Favelas da prefeitura, a população favelada corresponderia a quase 20% da população total do município, tendo crescido à espantosa taxa de 15,2% ao ano entre 1987 e 1993 (Diário Oficial de São Paulo, 1995). Os dados dos Censos Demográficos, porém, contam uma outra história. A chamada população residente em setores subnormais, o conceito de favelas do IBGE, nunca teria ultrapassado 900 mil, tanto nos Censos de 1991 e de 2000, quanto na Contagem Populacional de 1996. De forma similar, apesar de apresentar trajetória crescente, os ritmos de crescimento da população residente nestes locais seriam superiores à da população total, embora muito mais moderados do que o diagnosticado pela prefeitura municipal. Segundo o IBGE, entre 1980 e 2000, a população em setores subnormais apresentou uma taxa de crescimento anual de 4,5% ao ano, contra 1,0% ao ano da população total. Entre 1991 e 2000, essa taxa seria de 3,7% ao ano, contra 0,9% ao ano da população total. A Tabela 1 resume estes resultados. Tabela 1 – População favelada segundo os Censos Demográficos e Censos de Favelas. São Paulo, 1980-2000 Anos 1980 1987 1991 1993 1996 2000 População – Censos Demográficos Total Setores subnormais 8.493.226 9.209.853* 9.646.185 9.722.856* 9.839.066 10.434.252 375.023 530.822* 647.400 686.072* 748.455 896.005 Censo de Favelas Diferença (%)** 815.450 1.434.134* 1.901.892 - 53,6 121,5 172,2 - * Dados interpolados geometricamente. ** Calculada como (Censo de Favelas – subnormais)*100/subnormais. Fontes: IBGE e Prefeitura Municipal de São Paulo. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 19 F A V E L A S N O M U N I C Í P I O D E S Ã O P A U L O Em suma, se existem, por um lado, muitas razões objetivas para supor que os dados de setores subnormais impliquem uma subestimação da população favelada, fica claro, por outro, que o Censo de Favelas – ao menos na forma como foi realizado em São Paulo, em especial em 1993 – pode implicar uma dramática sobrestimação dos dados populacionais. De fato, para aceitar uma taxa de crescimento de 15% na população favelada entre 1987 e 1993 requer imaginar que a população não-favelada do município de São Paulo decresceu substancialmente em termos absolutos, já que o acréscimo na população total teria sido inferior a 100 mil habitantes entre 1991 e 1993 (Tabela 1). Embora regiões do centro expandido de São Paulo tenham perdido população efetivamente, nada se compara ao volume do movimento populacional que teria que ocorrer para viabilizar tal estimativa de população favelada. Por mais que seja possível argumentar que estaria existindo uma crise social entre 1987 e 1991, os números simplesmente não fecham. Com o objetivo de testar a consistência de tais números, realizamos (Torres & Marques, 2002) uma primeira tentativa de estimar a população favelada em São Paulo. Naquele primeiro exercício, produzido com base nas informações da Contagem Populacional de 1996 e de uma versão preliminar do banco de favelas da prefeitura de São Paulo, chegamos a números bastante distantes dos apontados pela pesquisa da Fipe. A estimação tentou combinar as informações de mais alta qualidade de nossas duas fontes – os dados censitários das contagens do IBGE e a delimitação das favelas produzida pela prefeitura de São Paulo. Para a realização deste exercício foram utilizados os mapas digitais dos setores censitários de 1996, bem como a cartografia oficial de favelas do município de São Paulo, que serviu como base para as coletas de dados do Censo de Favelas de 1987 e de 1993. A Cartografia de Favelas foi produzida e é atualizada periodicamente pela Habi/Sehab. Recentemente um convênio de cooperação entre a Habi e o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) permitiu a digitalização dessa base, cujo último esforço concentrado de atualização ocorreu em 1993. Naquele primeiro momento, portanto, utilizamos a base sem proceder a nenhuma forma de atualização. Como veremos, o presente exercício já utiliza a base atualizada para o ano de 2000 (em fotos aéreas) e vistorias de campo realizadas em 2002. As estimativas de população foram produzidas então por meio do uso do Sistema de Informações Geográficas (SIG), com o qual o desenho de favelas (da prefeitura) foi comparado ao desenho de setores censitários (do IBGE) por meio do recurso de overlay, ou sobreposição de cartografias. Uma representação visual do significado deste instrumento pode ser observada na Figura 1. 20 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 E . M A R Q U E S , H . D A G A M A T O R R E S , C . S A R A I VA Figura 1 – Setores censitários e favelas. São Paulo, trecho de Jardim Ângela. Podemos observar que o desenho das favelas da prefeitura e o desenho dos setores subnormais apresentavam diferenças muito significativas. Embora existissem favelas totalmente sobrepostas a setores subnormais, havia também favelas sobrepostas a setores normais e setores subnormais não registrados como favelas da prefeitura. Vale destacar que este último elemento contraria o senso comum, pois para a maior parte dos analistas, o IBGE tende sistematicamente a reduzir o universo das favelas e da população favelada, pelo caráter restritivo da sua definição de trabalho, que fixa um limite mínimo de porte para a consideração de um aglomerado como um setor subnormal. Em outras palavras, o que a informação cartográfica mostra é que a mera afirmativa ad hoc de que o desenho dos setores subnormais não registra favelas de menor porte (o que é verdade) não necessariamente significa que o IBGE (ao menos no caso de São Paulo) sub-registra o número de residentes em favelas. Os Censos de Favelas da prefeitura, que levam em conta apenas o desenho oficial das favelas, também não contaram a população em diversos trechos considerados subnormais para o IBGE. Como os contornos das favelas eram efetivamente distintos, é possível afirmar que tanto um tipo de levantamento quanto o outro provocam sub-registro nas áreas não-coincidentes.6 De forma agregada, os resultados quantitativos da sobreposição cartográfica do mapa de favelas ao mapa de setores censitários de 1996 indicam uma área total dos setores de 1,5 mil km2, enquanto a área de favelas é de 22,2 km2. Em outras palavras, a área das favelas, segundo o mapa oficial utilizado para o planejamento dos Censos de Favela da prefeitura para 1987 e 1993 correspondia a apenas 1,5% da área total do município. Nestas circunstâncias, boa parte dos setores existentes não tinha qualquer sobreposição com favelas. Nesse grupamento, com quase 1,2 mil km2, residiam 6,8 milhões de pessoas ou 70% da população de São Paulo, em 1996. No restante do município, onde residia 30% da população, o grau de sobreposição do setor censitário à área de favelas era obviamente variável, oscilando entre 0,1% e 100%. Em termos agregados o grau de coincidência espacial entre os dois tipos de área é superior a 80% em menos de 20% da área total de favelas. Nos setores com tal grau de sobreposição reside menos de 2% da população total do município. Em outras palavras, a crítica ao conceito de setor subnormal parece fazer sentido, quando comparamos a cartoR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 21 6 A maior parte dos estudos relativos à subenumeração na área demográfica (como os clássicos estudos que indicam a subenumeração de crianças com menos de um ano) trabalham com a perspectiva de que os levantamentos se referem a uma mesma unidade geográfica de análise. F A V E L A S N O M U N I C Í P I O D E S Ã O P A U L O grafia de favelas utilizada para fins de planejamento urbano e políticas de habitação e a cartografia de setores subnormais. Aceitar esta crítica não implica, no entanto, validar qualquer estimativa de população de favelas realizada de modo alternativo. ESTIMANDO A POPULAÇÃO FAVELADA 7 Não se trata de produzir aqui uma estimativa determinística do tamanho populacional dos trechos de favela, mas de especificar estimativas máximas e mínimas da população favelada, estabelecendo uma faixa de variação em que seria mais provável – a partir da informação demográfica disponível – encontrar o tamanho populacional real. 8 Vale observar que a base cartográfica utilizada por nós é virtualmente idêntica à usada pela Fipe, tendo sido apenas digitalizada. Portanto, as áreas de favela são iguais, exceto por pequenas correções efetuadas no momento da digitalização. 9 Dados retirados dos sites da Secretaria de Planejamento do Município de São Paulo e do Instituto Pereira Passos da prefeitura carioca. Decidimos como estratégia analítica para a geração da estimação da população favelada a utilização das densidades dos setores com alta sobreposição cartográfica entre favela e setor subnormal (Torres & Marques, 2001). Consideramos quatro diferentes hipóteses de densidades demográficas médias para os trechos de favelas. Cada hipótese implica um tamanho populacional diferente, com importantes conseqüências para o debate sobre a questão.7 Discutimos em detalhe cada hipótese e seu significado em termos de estimativa populacional. Hipótese 1. Nesta hipótese, a densidade das favelas presentes num dado grupo de setores foi considerada igual à densidade média do grupo onde ela se encontra. De modo geral, os softwares com recursos de overlay, como o Maptitude, assumem automaticamente esta hipótese que, no entanto, tende a subestimar o número de favelados, uma vez que estas aglomerações apresentam muitas vezes densidades claramente superiores às das áreas que lhe são adjacentes. Nesta hipótese, o número total de favelados seria de 525 mil pessoas em 1996, inferior ao dado pelos setores subnormais do IBGE (686 mil habitantes). Hipótese 2. Nesta hipótese, a densidade das áreas de todas as favelas foi considerada igual à do grupo em que existe 100% de sobreposição entre os setores censitários e as favelas (36.700 habitantes por km2 ou 367 habitantes por hectare). Geramos, assim, uma estimativa de 812 mil habitantes (8,3% do total), acima da estimativa do IBGE para 1996, mas muito inferior à da prefeitura. Trata-se de um número aparentemente razoável, mas existem grupamentos de setores onde a densidade populacional é mais elevada. Hipótese 3. Nesta hipótese, a densidade de todas as áreas de favelas foi considerada igual à do grupo em que existe entre 80% e 89,9% de sobreposição entre os setores censitários e as favelas (48.700 habitantes por km2 ou 487 habitantes por hectare). Em outras palavras, trata-se da maior densidade demográfica observada entre todos os grupos de setores censitários já considerados. Geramos, assim, uma estimativa de 1,08 milhão de habitantes (11% do total), novamente acima da estimativa do IBGE, mas ainda muito inferior à da prefeitura, que atinge quase 20% da população municipal. A rigor, esta parece ser a estimativa máxima permitida por exercícios deste tipo. Hipótese 4. Nesta hipótese, tratamos de calcular qual densidade seria necessária para atingirmos o tamanho de população favelada estimado pela prefeitura para 1993. Seria necessária uma densidade de quase 150 mil habitantes por km2 (1.500 habitantes por hectare), três vezes superior à densidade máxima observada para os grupamentos de setores censitários já considerados. Além disso, para esta hipótese se realizar, praticamente todos os grupos de setores considerados anteriormente, com exceção dos dois primeiros, teriam que ter 100% de sua população vivendo nos segmentos de favela.8 Apenas para termos um padrão de comparação, no ano de 2000 a densidade demográfica bruta de bairros cariocas como o Leme e a Tijuca estava em torno de 170 habitantes/ha, e Copacabana tinha 360 habitantes/ha. Os distritos paulistanos de maior densidade eram a Bela Vista e Sapopemba com 240 e 210 habitantes/ha, respectivamente.9 Em vista dos elementos apresentados, concluímos que o mais razoável seria conside22 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 E . M A R Q U E S , H . D A G A M A T O R R E S , C . S A R A I VA rar o tamanho da população das áreas das favelas oficiais da prefeitura como um número intermediário entre as hipóteses 2 e 3, isto é, oscilando entre 0,9 e 1,1 milhão de habitantes ou entre 8% e 11% da população total do município para 1996 (Torres & Marques, 2001). Nota-se que a população subnormal do IBGE implica de fato algum subregistro em relação a esta estimativa, enquanto a população do Censo de Favelas de 1993 implica grosseiro sobre-registro. Evidentemente, tais estimativas assumem densidades médias que podem induzir a distorções importantes. Para o exercício realizado aqui, utilizamos as informações demográficas dos Censos de 1991 e 2000, assim como a base cartográfica de favelas da prefeitura de São Paulo. Essa última, entretanto, foi atualizada de maneira detalhada, usando fotos aéreas de 2000 (cerca de 8.400 fotos, analisadas uma a uma) e um grande número de vistorias em campo (superior a 800 vistorias), em um esforço conjunto entre a Habi/Sehab e o CEM. A atualização da base indicou um intenso processo de crescimento dos perímetros de favela em certas partes da cidade, mas alguns episódios importantes de desfavelização em outras. A Figura 2 apresenta a cartografia de favelas para uma parte específica do município, destacando as áreas objeto de crescimento dos perímetros e de surgimento de novos núcleos.10 10 O número total de favelas passou de 2.000, embora esse número não tenha praticamente nenhuma utilidade analítica, já que é muito influenciado pela forma como a própria população, na construção de suas identidades, divide a favela. Assim, núcleos contíguos ou mesmo indivisíveis em termos territoriais podem ser cadastrados com vários nomes distintos. Além disso, do ponto de vista do número, favelas com 30 ou com 10.000 moradores são iguais e representam a unidade. Por esta razão, não consideramos o número de favelas no estudo. Figura 2 – Favelas da prefeitura. São Paulo, trecho de Sapopemba. A Figura 3 apresenta a superposição das duas cartografias para a mesma região da cidade apresentada na Figura 1. Como podemos ver, o ajuste entre setores censitários e perímetros de favela tende a ser melhor do que em 1991. Isso se deve em grande parte à atualização do desenho dos setores realizada pelo IBGE para organizar o trabalho de campo do último Censo, mas também está ligada à atualização dos perímetros do banco de dados da prefeitura. Testamos várias formas de estimação, a exemplo do exercício anterior. Como queríamos nesse caso estimar as populações por distrito, não podíamos utilizar a mesma metodologia, visto que em alguns distritos o número de favelas é relativamente pequeno, fazendo que as estimativas de densidade populacional variem de forma substancial.11 Decidimos então trabalhar com as densidades médias e medianas dos setores subnormais R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 23 11 Na verdade, alguns distritos não dispunham sequer de um único setor subnormal. F A V E L A S 12 O principal problema de tal procedimento é imaginar que – por alguma razão operacional – o Censo Demográfico sub-registre sistematicamente a população favelada, fazendo que os dados de densidade aqui considerados sejam subestimados. A rigor, não temos nenhuma razão a priori para assumir esta hipótese, sobretudo devido à consistência entre as estimativas de 1991 e 2000. De qualquer modo, tal hipótese merece maior aprofundamento. 13 As áreas das favelas apresentam-se corrigidas. A base de setores censitários do IBGE tem o mapa dos eixos de ruas como base (já que cobre todo o território municipal), enquanto o mapa de favelas é digitalizado sobre o mapa de quadras. Como conseqüência, mesmo quando há superposição completa entre um setor e uma favela, o desenho da favela é ligeiramente menor, já que se afasta do setor ao longo de todo o perímetro em metade da largura da rua. Assim, somamos às áreas das favelas a parcela correspondente a estas faixas, utilizando ruas de 12 metros em média (e 6 metros em meia rua). Aproximando a favela a um polígono de muitos lados, o fator de correção utilizado foi igual a 2 (12m área+36) para cada favela. Quem nos chamou a atenção para esse problema foi o arquiteto da prefeitura José Carlos Lima, a quem os autores agradecem. 14 O número de habitantes por domicílio do conjunto do município é de 3,6 em 2000. 15 Vale observar que se aplicássemos a taxa de crescimento obtida (2,97% ao ano entre 1991 e 2000) ao intervalo encontrado em Torres & Marques (2001) para o período 1996-2000, obteríamos entre 1.010 e 1.215 mil habitantes em favela, novamente compatível e próximo do número encontrado aqui – apenas 47 mil habitantes distante do ponto médio do intervalo anterior (4%). N O M U N I C Í P I O D E S Ã O P A U L O por distrito, substituindo-as pela de distritos próximos e similares no caso de distritos onde não houvesse subnormais. Em outras palavras, tomamos como indicador dos Censos a densidade demográfica das áreas subnormais e não a sua população. Embora relativamente simples, tal procedimento permite ao planejador gerar dados agregados de população relativamente robustos, ainda que sempre seja necessário produzir contagens diretas quando se deseja conhecer a população para uma dada favela.12 Figura 3 – Setores censitários e favelas. São Paulo, trecho de Jardim Ângela. Como as médias eram muito influenciadas pelos valores extremos, sendo pressionadas para cima ou para baixo nos distritos onde o número de subnormais era pequeno, acabamos por escolher as densidades medianas como parâmetro principal para a estimativa. A Tabela 2 (em anexo) apresenta as densidades e as áreas faveladas13 por distrito e os resultados do exercício para os anos de 1991 e 2000 por distrito, tanto para a população, quanto para o número de domicílios. Como podemos ver, o número total estimado de habitantes em favelas em 1991 e 2000 é de 0,89 e 1,16 milhões, respectivamente. Os números de domicílios foram estimados em 196 e 287 mil para as duas datas censitárias, o que resultaria em densidades domiciliares de 4,5 e 4 habitantes por domicílio.14 Em termos relativos, a população favelada teria alcançado 11,1% da população do município, superior à proporção de 9,1% de 1991. A área total de favelas do município teria crescido de 24,7 km2 para 30,6 km2, o que é compatível com a área da base de 1987, – de 22,2 km2.15 A taxa de crescimento da população favelada entre 1999 e 2000 ficaria em 2,97% ao ano, bem superior à taxa de crescimento do conjunto da população do município, que foi de 0,87% ao ano no período, mas muito inferior à prevista pela estimativa da Fipe já discutida. Vale registrar que a taxa de crescimento da população em setores subnormais foi de 3,7% ao ano na década. Essa taxa mais elevada provavelmente se deve à precária atualização da classificação dos setores subnormais para o Censo de 1991 (prévia, como vimos na primeira seção), gerando possivelmente o segundo problema citado na primeira seção deste artigo. A diferença entre as populações dos setores subnormais e da presente estimativa reforça essa hipótese, já que caiu de 38% em 1991 para 29% em 2000. 24 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 E . M A R Q U E S , H . D A G A M A T O R R E S , C . S A R A I VA SIGNIFICADO DOS RESULTADOS OBSERVADOS Esperamos que estimativas mais convergentes à realidade do fenômeno da população favelada permitam, por um lado, a proposição de um debate mais informado em termos analíticos e, por outro, a geração de políticas públicas apropriadas. Favelas são problemas reais que devem ser considerados, de nosso ponto de vista, como prioridades de políticas públicas tanto devido aos seus aspectos sociais quanto a seus extensos aspectos ambientais. A publicação e a disseminação da pesquisa da Fipe provocaram um debate importante, mas pouco denso em termos acadêmicos, sobre o processo de favelização em São Paulo. A questão central talvez esteja ainda no debate que veio a ser conhecido como o da “década perdida”, no interior do qual inúmeros autores discutiram o aparente paradoxo da melhora dos indicadores sociais nos anos 80 de forma concomitante com a dinâmica negativa da economia brasileira. Para alguns, este aparente paradoxo seria explicado pela ação dos movimentos sociais nos anos 70 e 80, mas para outros seria fruto, principalmente, do caráter inercial das políticas públicas de corte social e urbano (e suas agências estatais) implantadas durante o regime militar.16 Se fizermos o exercício de atualizar esse debate, a dinâmica de melhora se torna ainda mais interessante analiticamente, tendo em conta que, ao longo da década de 1990, o mercado de trabalho e a estrutura de rendimentos do mundo do trabalho no Brasil foram ainda mais impactados que nos anos 80, enquanto os indicadores mostram que a situação social melhorou, ao menos em termos médios e nos grandes números. Embora o assunto seja muito complexo, para os interesses analíticos específicos do presente texto, basta destacar que alguns autores utilizaram as informações sobre o crescimento vertiginoso da população favelada em São Paulo gerados pelos números da pesquisa da Fipe para sugerir que, apesar da melhora de inúmeros indicadores sociais no período recente, o saldo do mesmo período tem sido negativo em termos sociais, principalmente pela reestruturação do mercado de trabalho com a precarização dos vínculos trabalhistas e polarização da estrutura de ocupações e salários. Aos números do crescimento da população favelada devemos destacar como evidência ressaltada por essa literatura as informações disponibilizadas pela pesquisa da Fipe sobre a precarização das condições ambientais e de ocupação vivenciada pelas favelas paulistanas no período recente. Então o que podemos concluir a partir dos números apresentados por nossa estimativa? Em primeiro lugar, é possível afirmar que a proporção da população paulistana que vive em favelas e seu crescimento no período recente foram muito inferiores ao que considera a literatura. Desse ponto de vista, portanto, as evidências rejeitam fortemente a existência de uma explosão da população moradora de núcleos de favela em São Paulo. As informações apresentadas aqui confirmam, de maneira geral, os resultados do exercício anterior sobre 1996. Por outro lado, a população favelada de São Paulo tem crescido a taxas superiores às da população do município, o que equivale a dizer que sua proporção se elevou na última década. Os dados de setores subnormais, embora subestimados, apontam para um importante crescimento da população favelada entre 1991 e 2000, numa taxa de 3,7% ao ano, quatro vezes superior à média da metrópole. Nossa estimativa indica uma taxa mais reduzida – 2,97% a.a., mas muito superior à taxa de crescimento da população total – 0,9% a.a. Esse crescimento se deu principalmente pela elevação da área total de favelas (que cresceu 24% na década), mas também pelo aumento da densidade média das favelas (que subiu de 360 para 380 habitantes por hectare – 6% de aumento). Os dados aponR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 25 16 Cf., entre outros, Faria (1992); Silva et al. (1992); Marques & Najar (1995); Torres (1997). F A V E L A S Eduardo Marques é professor do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/ Cebrap). Haroldo da Gama Torres é pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/ Cebrap). Camila Saraiva é estudante de graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e bolsista da Fapesp no Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap). Artigo recebido para publicação em setembro de 2002. N O M U N I C Í P I O D E S Ã O P A U L O tam, portanto, para um importante processo de favelização no município de São Paulo na década de 1990. Esse processo dá alguma substância ao argumento – produzido por diversos autores, como Kowarick (2001) – relativo ao agravamento das condições sociais da metrópole ao longo dos últimos vinte anos, mas em um patamar muito mais baixo do que o descrito pela literatura com base nas estimativas da Fipe. Um outro ponto importante não pode ser avaliado no estágio atual das estimativas, mas diz respeito à situação social nas favelas que, para a literatura já citada, teriam piorado. No atual momento das estimativas realizadas no âmbito do CEM, nada podemos afirmar sobre a dinâmica social recente das favelas e de seu moradores, mas informações pontuais ou não-sistematizadas de outros trabalhos em andamento indicam que tenha ocorrido uma melhora dos patamares médios dos indicadores para o universo das favelas (o que é confirmado pela queda da densidade domiciliar de 4,5 para 4), mas uma piora sensível nas piores favelas, visível apenas com a desagregação por favela ou por região das informações gerais. Em outro trabalho (Torres & Marques, 2001), destacamos que, observando a dinâmica social por setor censitário no município de Mauá, é possível delimitar setores ou grupos de setores que apresentam um nível de precariedade muito elevado, que combina indicadores sociais muito precários com vários tipos de risco urbano cumulativamente. Para o conjunto das favelas, entretanto, esta hipótese deve ainda ser testada. Um segundo campo em que a alteração dos números da população favelada causa impacto está ligado diretamente às políticas públicas de habitação. Para o planejamento e a elaboração de políticas, faz uma diferença muito grande enfrentar um problema que atinge quase dois milhões de habitantes ou tentar solucionar uma questão ligada a pouco mais de um milhão. Se considerarmos os custos médios de urbanização de favelas usualmente utilizados para planejamento desse tipo de política – de 3.500 a 4.000 dólares por família, a urbanização de todas as favelas da cidade alcançaria, considerando os números apresentados aqui, cerca de 1,100 milhão de dólares, algo como 3,5 bilhões de reais (ao câmbio de janeiro de 2003). Ainda utilizando nossa estimativa, se considerarmos a proporção que tais programas utilizam como proporção da população que tem que ser removida para a instalação da infra-estrutura urbana e a solução das situações de risco (15%), tal esforço de urbanização geraria uma demanda de 44 mil novas unidades habitacionais. O custo da construção de tais unidades poderia alcançar cerca de 1,1 milhão de reais, se consideramos o custo médio de 25 mil reais por unidade. O custo total da solução do problema envolveria, portanto, cerca de 4,6 bilhões de reais. Como o orçamento municipal em São Paulo gira hoje em torno de 10 bilhões de reais, o direcionamento de 4% do orçamento resolveria o problema em torno de 12 anos. Em termos de custo, portanto, a solução dos problemas das favelas do município é plenamente factível. As dificuldades para solucionar o problema, para um governo que decida enfrentar a questão, são de operacionalização de um programa capaz de executar ao mesmo tempo a urbanização de algo como 24 mil unidades em favela e 3,7 mil unidades novas ao ano. Como a favela média teria algo como 150 habitações em São Paulo (considerando o número de 2.000 núcleos da base da prefeitura), tal programa teria que operar em cerca de 160 favelas ao mesmo tempo. Como a maior parte dessas apresenta porte muito pequeno, a construção de tal estratégia é factível, mas pressupõe a construção de capacidades estatais na área, assim como da implantação de um “ritmo fordista” à política. Esse esforço considerável não pode ser enfrentado com estruturas administrativas adaptadas e com improvisação e depende da construção de agências estatais de porte e complexidade razoável e que sejam geridas de forma técnica, criativa e eficiente. 26 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 E . M A R Q U E S , H . D A G A M A T O R R E S , C . S A R A I VA Tabela 2 – Estimativas de população e domicílios em favelas para 1991 e 2000 Distrito Água Rasa Área Dens. favelada população domicílios lação 0 Alto de Pinheiros 6.036 Dens. Popu- Domi- Área Dens. cílios favelada população domicílios lação Dens. Popu- Domicílios – – 0 0 0 – – 0 0 0,098 0,028 594 170 5.367 0,087 0,001 466 126 Anhanguera* 25.734 0,030 0,007 783 180 92.762 0,029 0,007 2.694 667 Aricanduva 116.238 0,054 0,012 6.221 1.404 82.972 0,045 0,010 3.710 791 Artur Alvim 185.388 0,019 0,004 3.482 701 187.862 0,039 0,010 7.291 1.869 Barra Funda 83.423 0,057 0,014 4.756 1.166 0 0,049 0,011 0 0 Bela Vista* 2.363 0,107 0,027 253 63 0 – – 0 0 Belém 7.305 0,107 0,027 781 195 14.204 0,139 0,036 1.978 513 Bom Retiro* 11.202 0,057 0,014 639 156 11.921 0,128 0,034 1.523 400 Brás* 5.352 0,107 0,027 572 143 0 0 0 Brasilândia 861.482 0,036 0,008 31.209 6.859 1.093.458 0,042 0,011 45.802 1.629 Butantã* 27.155 0,119 0,026 3.233 11.957 0,055 0,014 660 Cachoeirinha 568.744 0,053 0,012 30.068 6.587 449.438 0,062 0,015 27.745 6.909 Cambuci 0 – – 0 0 0 – – 0 0 Campo Belo 182.424 0,046 0,010 8.391 1.855 138.570 0,028 0,006 3.829 897 Campo Grande 108.682 0,080 0,017 8.688 1.828 117.553 0,027 0,006 3.118 722 702 169 Campo Limpo 696.149 0,032 0,007 22.336 4.834 883.503 0,040 0,010 35.608 9.076 Cangaíba 223.709 0,035 0,008 7.867 238.293 0,074 0,018 17.566 4.254 1.782 Capão Redondo 1.520.609 0,032 0,007 49.111 11.184 1.788.078 0,032 0,008 57.427 4.757 Carrão* 13.533 0,107 0,027 1.448 362 23.636 0,139 0,036 3.292 853 Casa Verde* 10.660 0,024 0,007 256 70 1.034 0,060 0,016 62 17 Cidade Ademar 642.441 0,032 0,007 20.814 4.443 1.140.814 0,039 0,010 44.651 1.871 Cidade Dutra 941.058 0,032 0,007 30.475 6.702 880.219 0,039 0,009 34.497 8.228 Cidade Líder 212.375 0,024 0,005 5.080 1.061 229.267 0,041 0,010 9.381 2.247 Cid. Tiradentes 187.822 0,011 0,003 2.159 477 257.078 0,023 0,006 5.873 1.417 Consolação 0 – – 0 0 0 – – 0 0 Cursino 97.293 0,062 0,014 6.077 1.355 60.933 0,037 0,009 2.269 568 E. Matarazzo 234.172 0,056 0,013 13.098 2.978 627.811 0,057 0,014 35.706 8.968 Freguesia do Ó 148.544 0,042 0,009 6.265 101.348 0,060 0,016 6.080 1.770.268 0,030 0,007 53.326 11.659 3.459.511 0,027 0,007 93.619 2.761 Grajaú 1.374 1.619 Guaianases 51.785 0,020 0,004 1.027 219 126.346 0,058 0,014 7.293 1.742 Iguatemi 129.203 0,044 0,009 5.691 1.159 141.480 0,033 0,009 4.695 1.229 50 Ipiranga 7.194 0,029 0,007 209 1.299 0,108 0,030 140 39 Itaim Bibi 138.770 0,079 0,019 10.945 2.670 23.897 0,004 0,001 86 23 Itaim Paulista 217.434 0,032 0,007 6.927 1.419 427.302 0,034 0,008 14.411 3.592 Itaquera 165.988 0,030 0,007 5.003 1.113 134.436 0,041 0,010 5.454 Jabaquara 440.847 0,038 0,007 16.781 3.168 520.744 0,046 0,012 24.186 6.225 Jaçanã 176.560 0,029 0,006 5.054 1.067 403.729 0,035 0,004 14.205 3.507 Jaguara 21.071 0,086 0,020 1.803 428 28.246 0,065 0,017 1.829 Jaguaré 301.820 0,050 0,011 15.000 3.431 192.603 0,066 0,017 12.784 3.341 Jaraguá 313.747 0,023 0,005 7.360 675.451 0,028 0,007 19.208 4.674 Jardim Ângela 970.245 0,039 0,008 37.689 8.105 2.258.166 0,033 0,008 74.424 8.395 1.530 1.369 482 Jardim Helena 233.378 0,010 0,002 2.410 555 254.982 0,025 0,007 6.324 1.688 Jardim Paulista 0 – – 0 0 0 – – 0 0 (continua) R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 27 F A V E L A S N O M U N I C Í P I O D E S Ã O P A U L O Distrito Área Dens. Dens. Popu- Domi- Área Dens. Dens. Popu- Domi- Jardim São Luís José Bonifácio Lajeado Lapa* Liberdade Limão Mandaqui Marsilac* Moema* Mooca* Morumbi Parelheiros Pari* Pq. do Carmo Pedreira Penha Perdizes Perus Pinheiros* Pirituba Ponte Rasa Rap. Tavares República Rio Pequeno Sacomã Santa Cecília* Santana Santo Amaro* São Domingos São Lucas São Mateus São Miguel São Rafael Sapopemba Saúde Sé Socorro Tatuapé* Tremembé Tucuruvi* Vila Andrade Vila Curuçá Vila Formosa Vila Guilherme Vila Jacuí Vila Leopoldina favelada 992.050 19.596 846.918 3.097 0 152.138 135.292 25.647 7.257 2.686 121.093 437.612 7.774 135.072 701.426 100.903 0 528.648 5.140 346.205 117.001 212.279 0 384.903 1.584.683 8.821 65.016 16.610 160.174 99.355 310.839 131.217 144.002 653.726 24.599 0 62.871 30.888 318.140 13.600 1.453.820 368.447 7.082 6.580 1.008.780 62.477 população 0,035 0,010 0,016 0,050 – 0,057 0,028 0,029 0,062 0,107 0,034 0,029 0,057 0,029 0,024 0,027 – 0,030 0,098 0,032 0,030 0,055 – 0,047 0,044 0,057 0,046 0,013 0,050 0,075 0,045 0,037 0,040 0,052 0,062 – 0,061 0,107 0,073 0,042 0,019 0,032 0,042 0,042 0,032 0,024 domicílios 0,008 0,002 0,004 0,011 – 0,013 0,006 0,006 0,014 0,027 0,008 0,006 0,014 0,006 0,005 0,006 – 0,007 0,028 0,007 0,006 0,012 – 0,011 0,010 0,014 0,011 0,002 0,011 0,016 0,009 0,008 0,008 0,011 0,014 – 0,016 0,027 0,014 0,009 0,005 0,007 0,008 0,009 0,007 0,005 lação 35.034 192 13.956 154 0 8.623 3.851 755 452 287 4.088 12.875 443 3.855 16.863 2.709 0 16.077 506 11.034 3.532 11.604 0 18.149 69.861 503 3.016 220 8.068 7.424 13.842 4.841 5.689 34.078 1.532 0 3.863 3.304 23.117 574 28.010 11.756 294 278 32.248 1.476 cílios 7.801 40 2.981 35 0 1.917 759 160 102 72 929 2.725 109 815 3.685 592 0 3.701 144 2.455 751 2.497 0 4.292 16.049 123 693 39 1.830 1.586 2.910 1.027 1.199 7.510 344 0 996 825 4.417 126 6.684 2.407 57 61 6.782 325 favelada 1.342.436 66.162 1.025.531 3.760 0 118.252 38.784 10.103 0 3.541 114.341 484.778 4.943 123.459 898.681 104.787 0 754.520 0 549.186 78.760 200.239 0 353.009 1.032.068 24.935 13.360 10.640 211.359 78.351 342.685 127.651 810.369 1.025.301 14.844 0 78.037 27.187 323.973 13.131 864.334 409.873 5.865 8.335 1.002.111 21.951 população 0,039 0,050 0,032 0,066 – 0,061 0,073 0,030 – 0,139 0,029 0,030 0,049 0,042 0,037 0,033 – 0,029 – 0,033 0,027 0,043 – 0,055 0,057 0,049 0,019 0,004 0,063 0,037 0,044 0,032 0,024 0,046 0,073 – 0,052 0,139 0,023 0,060 0,034 0,034 0,045 0,015 0,035 0,012 domicílios 0,010 0,012 0,007 0,017 – 0,015 0,016 0,008 – 0,036 0,006 0,008 0,011 0,010 0,009 0,009 – 0,007 – 0,008 0,007 0,011 – 0,014 0,015 0,011 0,000 0,001 0,016 0,010 0,010 0,007 0,006 0,011 0,018 – 0,014 0,036 0,006 0,016 0,009 0,008 0,010 0,004 0,009 0,003 lação 52.135 3.293 32.449 250 0 7.194 2.827 302 0 493 3.301 14.491 242 5.217 32.859 3.428 0 21.914 0 18.223 2.112 8.542 0 19.479 59.181 1.221 254 38 13.335 2.905 14.970 4.068 19.105 47.314 1.082 0 4.061 3.787 7.418 788 29.703 13.921 265 127 35.527 267 cílios 2.963 784 7.538 65 0 1.809 639 78 0 128 742 3.746 54 1.263 8.165 916 0 5.426 0 4.361 519 2.206 0 4.996 5.329 272 71 10 3.459 751 3.536 895 4.923 1.177 264 0 1.119 982 1.842 210 7.777 3.229 61 36 8.818 66 (continua) 28 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 E . M A R Q U E S , Distrito Vila Maria H . D A Dens. G A M A Área Dens. favelada população domicílios lação 303.160 0,054 0,011 Popu- T O R R E S , C . S A R A I VA Domi- Área Dens. cílios favelada população domicílios lação 206.430 0,050 16.242 3.399 Dens. 0,012 Popu- Domicílios 10.374 2.556 Vila Mariana 42.062 0,074 0,017 3.115 736 16.285 0,054 0,012 874 196 Vila Matilde 7.946 0,027 0,006 213 47 0 – – 0 0 Vila Medeiros 82.194 0,026 0,006 2.169 489 89.965 0,050 0,011 4.513 1.005 Vila Prudente 81.487 0,085 0,021 6.891 1.690 81.193 0,116 0,029 9.389 2.355 Vila Sônia 319.826 0,032 0,007 10.135 2.277 422.460 0,041 0,010 17.466 4.169 Total 24.709.340 0,036 0,008 891.673 196.389 30.624.227 0,038 0,009 1.160.590 289.142 * Densidades retiradas de distritos com favelas de características semelhantes para elaboração da estimativa para 1991 e/ou 2000. Fontes: IBGE e Prefeitura Municipal de São Paulo. 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The method is based in geographic information systems, allowing us to estimate the population through the comparison between the administrative cartographies of the Municipality of São Paulo and the census tracts of the census bureau (IBGE). KEYWORDS São Paulo. 30 Shantytowns; population estimates; housing policies; urban space; R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 A POLÍTICA DE PRODUÇÃO HABITACIONAL POR MUTIRÕES AUTOGERIDOS CONSTRUINDO ALGUMAS QUESTÕES CIBELE SALIBA RIZEK JOANA BARROS M A RTA D E AG U I A R B E RG A M I M R E S U M O Este artigo busca discutir a produção de habitação social através dos chamados mutirões autogeridos, pondo em relevo a constituição e a mudança do caráter por que passou este tipo de política, entre os anos 80 e 90. Trata-se de tematizar como – a partir de um ideário emancipatório que apostou na autonomia dos movimentos sociais e da sociedade civil diante de políticas sociais centralizadas no Estado, urdidas no período da ditadura militar – chega-se a uma política cujas dimensões da autonomia mudam de caráter, legitimando ou podendo legitimar ações assentadas no uso do trabalho gratuito dos futuros usuários, que produzem unidades habitacionais financiadas por fundos públicos alinhados com as dimensões de uma gestão das precariedades. PA L AV R A S sociais. - C H AV E Mutirão autogerido; política habitacional; direitos UMA QUESTÃO E SUA HISTÓRIA Duas discussões parecem ser importantes no quadro desta problematização dos chamados mutirões autogeridos como forma de produção de habitação social. A primeira diz respeito às formas como, desde os anos 70, a crítica ao desenvolvimentismo mudava os rumos da reflexão e do pensamento social no Brasil. A segunda diz respeito às formas pelas quais esta crítica, a exemplo do que ocorrera com o nacional-desenvolvimentismo e suas variantes, repercutiria em outros campos da produção intelectual e estética, vinculando áreas diversas entre si, tais como a discussão da arquitetura, de seu lugar social, de suas possibilidades de democratização e a compreensão dos movimentos e lutas sociais e urbanas. Estas dimensões se cruzam, como se verá, em um conjunto de heranças que se constituiriam, nos anos 80, no âmbito das questões e das lutas pela democratização, dos atores e movimentos sociais, da afirmação de sua autonomia e do tema da “autogestão”. O tema da autogestão em relação aos movimentos de moradia pressupõe, em tese, a gestão autônoma dos recursos provenientes dos fundos públicos para o financiamento da produção habitacional, a autogestão do trabalho de produção em canteiro e a autogestão do projeto de moradias, a ser discutido com os movimentos por habitação e futuros trabalhadores/usuários. Esta dimensão foi importante no seu contraponto às políticas do BNH e COHAB que espalharam conjuntos habitacionais de péssima qualidade e com altos custos, nas periferias longínquas das cidades, encarecendo o custo da infra-estrutura R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 31 A 1 Pesquisa em curso sob a coordenação da Usina – Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado do Cenedic – Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da FFLCH/USP. Marta Bergamin foi bolsista de aperfeiçoamento da pesquisa, e Joana Barros, pesquisadora da rede, contribuiu com seu trabalho e sua experiência com os mutirões, tanto na elaboração do projeto como no trabalho de campo. A pesquisa foi financiada pela Finep e pelo CNPq. 2 A idéia de uma escola de arquitetura paulista – a “escola paulista” – tem origem na figura de Vilanova Artigas e de suas idéias e práticas fundadoras no âmbito da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo. Além do chamado “brutalismo paulista”, proposta estética de Artigas, que teve uma importante vinculação política e que lhe valeu a cassação durante a ditadura, bem como de todo um conjunto de discussões no âmbito da arquitetura moderna brasileira. Seu papel fundador nesta vertente paulista, para além da caracterização desta arquitetura como escola, é indiscutível. Esta arquitetura, que aposta na técnica como eixo de expressão, ainda que combinada com formas artesanais de trabalho, foi questionada em seus princípios éticos e políticos pela chamada “arquitetura nova”. Ver especialmente Buzzar (2002). 3 Trata-se da discussão que, diante do quadro político da ditadura militar, desfazia velhas esperanças na possibilidade do desenvolvimentismo e da hegemonia burguesa que redundaram na eclosão da ditadura militar e no inequívoco apoio das classes dominantes a este regime político. 4 Cf. depoimento de Sérgio Souza Lima, fevereiro de 2002. 5 Interessante notar que a discussão “paulista” incorporou desde os anos 60 e 70 as dimensões do trabalho no interior da produção da arquitetura. Esta questão é ainda mais importante por induzir a uma forma que pretendia discutir e problematizar a mão do trabalhador e seus vestígios nas obras, assim como os processos pelos quais, ao contrário das expectativas anteriores, a construção civil permanecia como atividade artesanal, “arcaica”, distante da transformação industrial e da produção em série que estava suposta e indicada pelas esperanças desenvolvimentistas. P O L Í T I C A D E P R O D U Ç Ã O H A B I T A C I O N A L urbana e contribuindo para os processos de segregação socioespacial das cidades. No processo de investigação em curso Procedimentos Inovadores de Produção de Habitação para População de Baixa Renda,1 observou-se que os sentidos produzidos por um processo de autogestão são bastante plurais, de modo que há processos assim denominados que incluem a participação de construtoras e grandes escritórios; há processos em que a população tem menos acesso ao controle e gestão dos recursos; e há casos, considerados mais virtuosos, em que estão presentes dimensões de autogestão em todos os momentos do processo, como aconteceu em pelo menos dois conjuntos construídos por mutirão em São Paulo – União da Juta e Cazuza. No âmbito da formação das experiências e, posteriormente, das políticas de mutirão, é preciso ressaltar a construção de um repertório que se encontra na origem de um dos atores sem os quais os mutirões estariam confinados às práticas espontâneas de ajuda mútua na construção de habitações precárias e periféricas. Este repertório e as dimensões emancipatórias a ele associadas estão, assim, na origem da constituição das assessorias técnicas aos movimentos por habitação. Um conjunto de trabalhos recentes procura discutir a trajetória que constitui estes atores, no âmbito da história da produção habitacional brasileira, e do que se pode designar – ainda que de forma problemática – de “escola paulista” e seus sucessores, parcialmente alheia ou esquecida pela historiografia oficial da arquitetura e da cultura no Brasil2 (Buzzar, 2002). Trata-se do que os próprios participantes denominaram de Arquitetura Nova, cuja constituição passou pelos grupos de estudo onde se encontravam, entre outros, Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre, Flávio Império, por um lado, e Francisco de Oliveira, Roberto Schwarz e outros intelectuais que fizeram parte dos grupos de discussão sobre o marxismo e as obras de Marx ou suas releituras, para além de formas mais ou menos canônicas da sua recepção no Brasil.3 Aí se entreteciam as críticas ao desenvolvimentismo, aos processos de modernização, à própria face brasileira da modernização.4 Aí também tem lugar a crítica e, ao mesmo tempo, a continuidade da discussão que vinculava arte, técnica, ética e estética, referindo-as a outras figurações do “povo” brasileiro, que comparecia no interior desta reflexão, principalmente em relação ao caráter, ao lugar e às formas do trabalho.5 Das dimensões do trabalho e do seu lugar também foi possível iniciar uma reflexão no âmbito da produção sobre as dimensões econômicas e sociopolíticas brasileiras que, trinta anos depois, ainda inquieta e incomoda: a produção de habitação popular por mutirão comparece em um texto já clássico – A crítica da razão dualista – em algumas de suas indagações. Vale a pena recuperar percursos e argumentos de Francisco de Oliveira sobre a produção de habitação, a dinâmica da urbanização e suas especificidades, lidas à luz de uma teoria da acumulação do capital, o que permitiu problematizar não apenas as dimensões atrasadas ou arcaicas, mas sobretudo aquelas que, modernas, se imbricavam na reprodução mesma daquilo que, em um momento anterior, se supunha em regressão ou em extinção. Em entrevista concedida a uma das autoras deste texto, a inserção da questão da habitação se esclarece, como caminho de duas mãos. Eu tive a sorte, naqueles anos, de andar metido com escolas de arquitetura (...) Quando na verdade, eu fiquei conhecido de um grupo de arquitetos da FAU: Rodrigo Lefèvbre, Sérgio Ferro... (...) Eu dei um curso lá na FAU, quando Juarez Brandão quis me levar para lá. O curso foi basicamente sobre economia brasileira. E eu tinha conhecido Sérgio Ferro e, nesta ocasião – foi 1971 – todos descemos para Santos, onde se criou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Na verdade, foi o Bolafi que assumiu e passou para mim [a disciplina] de 32 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 C . S . R I Z E K , J . B A R R O S , M . D E A . B E R G A M I M Fundamentos Econômicos da Urbanização. Aí estava Rodrigo que dava aula de projeto, estava Sérgio Ferro, enfim... Estava Maiyumi de Souza Lima, Sérgio de Souza Lima, estava o Heck, uma turma grande (...) E eles tinham feito uma pesquisa, Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvbre coordenaram uma pesquisa sobre mutirões na Baixada Santista. E eles me deram um rolo de questionários (...) Quando aquilo caiu na minha mão, eu tive um estalo de Vieira. Estava lá. Tinha uma pesquisa de orçamento familiar, devia ser tosca do ponto de vista estatístico, eu não sei bem como eles fizeram. Mas você vê que estas coisas têm pouca importância. Aí bateu nas minhas mãos e para enorme surpresa deles todos, e minha também, a maioria [dos entrevistados] tinha casa própria. Casa própria ganhava “de lavada”, ali nos piores lugares da Baixada Santista, nos lugares mais pobres de Santos. Evidentemente, a semântica burguesa chama um barraco de casa própria. Pela qual, evidentemente, não pagavam nada (...) E eles que eram apaixonados, sobretudo Rodrigo, pelo tema da construção popular e da moradia popular e das formas, dos processos de trabalho que a classe dominada, proletária, ainda dominava... Eles eram apaixonados por esta história, trabalho da construção, da autoconstrução... o saber popular [de uma técnica de construção], como que se transmite, como é que ainda é preservado – por esta razão, eles tinham no questionário questões referentes a como tinha sido feita a casa: se contratada, se comprada, se Caixa Econômica, todas as formas – e a forma mutirão apareceu e ganhava “de lavada”. Eu disse: aqui está a chave! Isso aqui é o custo de reprodução da força de trabalho. A chave desse mostrengo tem uma peça que está aqui; foi dada assim, de graça, e eu recebi nas mãos e isso está incluído na Crítica à razão dualista como um dos exemplos de rebaixamento do custo de reprodução.6 No texto em questão os temas habitação autoconstruída e a cidade são conformados do modo que se segue: As cidades são, por definição, a sede da economia industrial e de serviços. O crescimento urbano é, portanto, a contrapartida da desruralização do Produto e, neste sentido, quanto menor a ponderação das atividades agrícolas no Produto, tanto maior a taxa da urbanização. Portanto, em primeiro lugar, o incremento da urbanização no Brasil obedece à lei do decréscimo da participação da agricultura no Produto total. Sem embargo, apenas o crescimento da participação da indústria ou do setor Secundário como um todo, não seria o responsável pelos altíssimos incrementos da urbanização no Brasil. Esse fato levou uma boa parcela dos sociólogos no Brasil e na América Latina a falar de uma urbanização sem industrialização e do seu xipófago, uma urbanização com marginalização. Ora, o processo de crescimento das cidades brasileiras (...) não pode ser entendido senão dentro de um marco teórico onde as necessidades da acumulação impõem um crescimento dos serviços horizontalizado, cuja forma aparente é o caos das cidades. Aqui, uma vez mais é preciso não confundir “anarquia”com “caos”; o “anárquico”do crescimento urbano não é “caótico” em relação às necessidades da acumulação: mesmo uma certa fração da acumulação urbana, durante o longo período de liquidação da economia pré-anos 30, revela formas do que se poderia chamar, audazmente, de “acumulação primitiva”. Uma não insignificante porcentagem das residências das classes trabalhadoras foi construída pelos próprios proprietários, utilizando dias de folga, fins de semana e formas de cooperação como o “mutirão”. Ora, a habitação, bem resultante dessa operação se produz por trabalho não pago, isto é, supertrabalho. Embora aparentemente esse bem não seja desapropriado pelo setor privado da produção, ele contribui para aumentar a taxa de exploração da força de trabalho – de que os gastos com habitação são um componente importante – e para deprimir os salários reais pagos pelas empresas. Assim, uma operação que é, na R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 33 6 Entrevista concedida a Cibele Saliba Rizek, em fevereiro de 2001. A 7 Ver, sobre este ponto de vista, Pedro Arantes (2000), Ana Paula Khoury (1999) e Miguel Buzzar (2002). 8 Para além das questões colocadas pelo texto, é possível identificar aí um caráter de manifesto que sacrifica qualquer precisão teórica destas questões. A mistura entre cultura popular e erudita no quadro de uma nova cultura de massas indica algo desta confusão bem detectada por Buzzar (2002). 9 As primeiras experiências de produção de habitação por mutirões oficiais datam dos anos 80 em São Paulo, no governo municipal de Mario Covas. Quando o Partido dos Trabalhadores passa a governar a cidade de São Paulo, o Funaps (Fundo de Financiamento de Habitações) é rearticulado e passa a abrigar várias linhas de financiamento habitacional, que receberam o nome de Funaps Comunitário e Funaps Vertical, constituindose em política para mutirões autogeridos, Funaps Favelas e Funaps Cortiços (este último o que menos pôde avançar). Em toda negociação entre o movimento de moradia e o poder público a contrapartida oferecida foi o trabalho que viabilizaria a produção de unidades habitacionais de melhor qualidade com baixos custos, assim como a adaptação dos projetos de arquitetura às demandas dos moradores. 10 Algumas matrizes de reflexão sobre a prática e o saber da arquitetura, bem como sobre suas possibilidades de democratização, também foram fundamentais. Estas matrizes se constituíram no encontro entre outras experiências latinoamericanas, especialmente uruguaias (experiência que se constituiu a partir das cooperativas habitacionais dos sindicatos), nas contribuições de Turner (1977), na assimilação de novas dimensões técnicas e estéticas, que se articularam nos chamados Laboratórios de Habitação, em especial no curso de Arquitetura da Belas Artes, em São Paulo. 11 Segundo os dados levan- P O L Í T I C A D E P R O D U Ç Ã O H A B I T A C I O N A L aparência, uma sobrevivência de práticas de “economia natural” dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho. (Oliveira, 1972, p.31.) Para além da dimensão que antecipa a discussão da lógica da desordem urbana, tal como se configura no livro São Paulo 1975, crescimento e pobreza (Brandt et al. 1979), o texto citado deu origem a uma polêmica que ainda vive e que paira como sombra sobre o caráter virtuoso desta forma de produção da habitação social, mesmo que seja possível supor uma alteração de seus termos. Por um lado, as dimensões críticas em relação aos processos de modernização no Brasil se espraiavam, questionando as posições assumidas pela hegemonia do desenvolvimentismo e das teorias da modernização em suas múltiplas faces.7 Nasciam as discussões que colocavam as formas de cooperação e o saber popular como laboratório do futuro, pensado como possibilidade de uma nova sociedade. Todo um novo modo de conceber as relações entre o trabalho físico e o intelectual, assim como de repensar as suas hierarquias no interior do processo produtivo, toda um crítica da divisão social do trabalho, inspirada nas concepções de Marx e, posteriormente, de Gorz, ganhavam corpo como uma espécie de experimento emancipatório a se realizar nos processos de trabalho da construção civil. Na produção intelectual dos arquitetos é possível encontrar os temas da autoconstrução em mutirão na chave das práticas de participação e democratização da habitação e da cidade. O tema vai sendo assim construído em conjunto com a questão do engajamento do arquiteto e a democratização da arquitetura, com uma nova estética, diversa daquela que valorizava a indústria e a industrialização das construções como meio de democratizar a habitação, seu vínculo com a cultura popular e com um outro projeto de construção da nação, para além da aposta nas dimensões virtuosas da hegemonia industrial, moderna e burguesa (Arantes, 2000, p.52). Qual é o espectro de condições desta transição em que a autoconstrução como germe do futuro fazia sentido como democratização das práticas da arquitetura, como pedagogia e como autonomia em face de uma política habitacional de baixa qualidade e insuficiente, centralizada no Estado? A resposta é inequivocamente relativa às condições de transição para o socialismo, em que novas condições de vida e de produção deveriam ser inventadas (Arantes, 2000, p.53). Cultura rural em transição e encontro com a cultura urbana, formação de uma nova cultura, ao mesmo tempo popular, artesanal, solidária e científica, industrial e de massas,8 na reinvenção dos sujeitos, sociedade, espaços, natureza e cidades, tais eram os sentidos desta proposta investida de conteúdos utópicos claramente denominados como tais. Um longo percurso acabou por transformar este ideário em política oficial, ainda no interior da década de 1980,9 retirando-lhe porém as dimensões relativas à autogestão e às possibilidades de emancipação futura. Ao mesmo tempo, neste mesmo período, várias experiências tiveram lugar, retomando ou mesmo ampliando esta pauta na busca da diferenciação entre os programas oficiais e os discursos e práticas emancipatórias empreendidas pelos movimentos por habitação e suas ocupações, os laboratórios de habitação e este mix de práticas profissionais combinadas às práticas militantes de arquitetos e estudantes de Arquitetura pelos territórios das periferias das grandes cidades, especialmente em São Paulo.10 As dimensões desta experiência, vista e vivida como inovadora, colada aos movimentos por moradia, às ocupações que ao longo dos anos 80 tiveram lugar,11 ainda estão por ser avaliadas à luz dos processos posteriores. Mas é interessante perceber como estas di34 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 C . S . R I Z E K , J . B A R R O S , M . D E A . B E R G A M I M mensões e práticas se imbricavam no universo dos anos 80, com suas lutas pela democratização, com a discussão dos movimentos sociais, com as questões relativas à autonomia dos movimentos perante o Estado, com a cena de uma sociedade civil que se articulava em processos de democratização que tiveram os sindicatos e suas lutas como momento fundador. Também não é demais lembrar a importância e a centralidade do movimento sindical neste processo de organização e mobilização do que cada vez mais se considerava como o novo lugar da política: as relações sociais, as práticas cotidianas, os chãos de fábrica, as lutas pelo acesso aos transportes, por moradia, creches, saúde, os clubes de mães, os movimentos e as lutas das mulheres, todo um conjunto de demandas que de um modo ou de outro se combinavam com os anseios e movimentos pela democratização do País.12 No interior deste processo alguns atores se constituem como elementos de articulação, por um lado, e de politização, por outro, nos movimentos por moradia e em seus fóruns. Trata-se do processo de formação das assessorias aos movimentos que acabam por ocupar um lugar central não apenas na produção de habitação social por mutirões autogeridos, mas também como eixo de um conjunto de transformações desta forma de produção de habitações em política ao mesmo tempo oficial e alternativa, especialmente durante o governo municipal de Luíza Erundina.13 Este tipo de produção de moradias tangenciava e se transformava em programas oficiais de habitação de múltiplas formas: por um lado, há programas federais, estaduais e municipais; e, ao mesmo tempo, preservavam-se os resquícios de sua constituição nos marcos de um ideário de autonomia em relação ao Estado, marcado pelas práticas dos movimentos de moradia, que se supunham e se queriam emancipatórias. Entretanto, na passagem dos anos 80 para os anos 90 algumas transformações acabaram por demarcar as mudanças das cenas urbana e política, e por alterar de forma significativa seus sentidos. Assim, é preciso notar como, ao longo das duas últimas décadas, se desvaneceram algumas das críticas contundentes tanto à assimilação do mutirão como política oficial, como às dimensões que a ele se associaram de modo cada vez mais integrado. Os mutirões promovidos pela CDHU na gestão Mario Covas (1994-2001), que assumiu o papel de “Pai dos Mutirões”, não conservaram os traços de autogestão que marcavam o início deste programa. Retirou-se a possibilidade de projetos elaborados pelas assessorias técnicas, produzindo conjuntos próximos aos construídos pelo Programa Empreitada Global, também da CDHU.14 Reproduziram-se, assim, algumas características clássicas da produção da habitação, inclusive seu uso como forma de cooptação política, de atualização das formas de clientelismo,15 de política que avaliza formas especulativas com reservas de mercado para algumas empresas etc. Por outro lado, nos mutirões que se mantiveram como autogeridos, até mesmo aqueles que conseguiram quebrar as propostas da CDHU, acabaram por desenvolver “programas de geração de emprego e renda”, eles também elevados à condição de política oficial através de parcerias e cooperações de todos os tipos (as formas de “cooperação internacional”, parcerias entre Estado e ONGs, entre agências diferentes ou programas diversos que criam e/ou atendem “comunidades” de sem-teto, favelados, população de risco, mutirantes, encortiçados etc.), o que acabou por ampliar os sentidos e o espectro “pedagógico” do mutirão, e por ocultar algumas de suas características, seja porque a produção de conflitos não é contemplada pela literatura, seja porque novas formas de justificativa deslocaram a crítica que tinha como centro a articulação das formas de produção arcaicas e modernas, sua problematização com base no lugar do trabalho e nas formas de acumulação que fazem da cidade seu território privilegiado.16 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 35 tados por Pedro Arantes, entre junho de 1981 e maio de 1984 “ocorreram 61 ocupações envolvendo 10 mil famílias, a maior delas na Fazenda Itupu”, em São Paulo. Estas ocupações ocorreram com o apoio das pastorais que abriram espaço para ações cada vez mais planejadas. Note-se também que, para alguns autores, estes arquitetos que atuavam nos movimentos populares acabaram por ser considerados “intelectuais orgânicos” do movimento. Arantes (2000, p.63). 12 Ver a este respeito Eder Sader (1990). 13 O programa habitacional por mutirão e autogestão municipal é herdeiro da elaboração dos movimentos e Laboratórios de Habitação da Belas Artes e da Unicamp. O Programa UMM da CDHU – Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de responsabilidade do governo do Estado, foi um programa habitacional de autogestão discutido com o governo do Estado (gestão Fleury) pela UMM (União dos Movimentos de Moradia) e assessorias técnicas a partir de 1991, quando os movimentos estavam fortalecidos por dois anos de gestão municipal petista. 14 Através do Programa Empreitada Global, a CDHU contrata empreiteiras para construção de habitação popular. Usualmente, são prédios de quatro andares sobre pilotis, com unidades habitacionais de 42m2, totalmente construídos e geridos pelas empresas. O Programa de Mutirão viabiliza a construção de unidades habitacionais por mutirão através de contrato firmado entre a CDHU e a associações de moradores. Os recursos são gerenciados por estas associações, mas, em parte dos conjuntos, notadamente aqueles apelidados de "paliteiros" cujas associações têm práticas políticas pouco autônomas, o projeto e a obra têm um sistema construtivo fixo, fornecido por poucas empreiteiras, o que engessa o orçamento da A obra. Além disso, o acompanhamento da obra é feito por um escritório de arquitetura que não necessariamente tem qualquer relação com os movimentos de habitação. À associação cabe a responsabilidade legal pelo financiamento e o trabalho em mutirão no canteiro. 15 Em visita recente para realização de trabalho de campo da pesquisa mencionada em Fortaleza, um caso especialmente chamou atenção: trata-se de um mutirão autogerido, pelo menos em tese, próximo ao centro de Fortaleza, cuja principal liderança recebe uma “ajuda de custo”, de R$ 300,00 por mês, além de ter pagas as prestações de seu carro zero km, por uma deputada estadual, por sua vez, madrinha do mutirão. Essa líder comunitária é contratada pela prefeitura há 14 anos para fazer a supervisão e gerenciamento dos problemas das associações de “mutirantes”. 16 Pedro Arantes, por exemplo, assim como muitos outros autores vinculados organicamente à produção de habitação por mutirão, evita ou apenas contorna a difícil discussão do trabalho pouco problematizado dos mutirantes. Algumas das conseqüências deste tipo de uso do trabalho serão discutidas posteriormente, mas o mote “mais autogestão, menos mutirão” parece apontar para o reconhecimento das dimensões dilemáticas e problemáticas desta questão – a incorporação necessária de trabalho não-pago. Ver Arantes (2002). 17 Algumas diferenças, é bom enfatizar, supõem a presença ativa não apenas da demanda, mas dos movimentos organizados por moradia, a mediação das assessorias técnicas comprometidas com estes movimentos, a produção conjunta do desenho, a decisão de contratar ou não serviços externos, a gestão independente e transparente dos recursos públicos que financiam a obra. Apesar de todos estes elementos é bom ainda frisar que há um enorme potencial de confli- P O L Í T I C A D E P R O D U Ç Ã O H A B I T A C I O N A L Desaparecem assim os argumentos que, partindo das dimensões da acumulação do capital e de suas especificidades na periferia do mundo capitalista, serviram para fazer a crítica dos processos de modernização e de seu ideário. Como em um passe de mágica, a “autogestão” dos recursos financeiros obtidos pelos programas oficiais e a duríssima gestão do trabalho no canteiro (gestão que, diga-se de passagem, se articula com base nos conhecimentos técnicos e de produção das assessorias, introduzindo uma hierarquização inquestionável no processo de trabalho) passa a ser vista como capaz de eliminar as formas pelas quais produção e consumo se articulam na dinâmica da reprodução ampliada do capital e de suas formas específicas de acumulação no Brasil. Se é preciso diferenciar os mutirões realizados pelos programas oficiais dos chamados mutirões autogeridos,17 também é necessário reconhecer os limites destes processos e mecanismos de autogestão, tanto nas conformações do trabalho no canteiro, como na administração autônoma de recursos financeiros insuficientes para a produção das unidades de moradia.18 Da autonomia caminha-se para uma forma consentida e vista como virtuosa de gestão da precariedade, da necessidade, da falta da casa – elemento estruturador das possibilidades de acesso à cidade –, assim como para a produção de territórios urbanos caracterizados por uma mistura entre mutirões autogeridos e mutirões oficiais, que demarcam com clareza uma outra forma, bastante específica, de intervenção e produção do espaço urbano pelo Estado. Também é importante notar algumas outras dimensões deste processo. A primeira diz respeito à transformação de assessorias e escritórios de arquitetura que, nos anos 80, nasciam vinculadas a laboratórios de habitação que se desenvolviam em faculdades de Arquitetura e Universidades, em organizações não-governamentais, seguindo a tendência de “onguização” dos atores sociais (Dagnino, 2002). A segunda é a natureza dos vínculos entre as diferentes esferas e articulações dos movimentos de moradia e estas ONGs em um duplo movimento que englobam, ao mesmo tempo, as atividades militantes e as parcelas nada desprezíveis do mercado de trabalho que se forjam na produção de habitação por mutirões autogeridos. A terceira é a natureza dos territórios urbanos produzidos por este processo. Trata-se de perguntar se estas dimensões resultantes da precarização da vida não acabam por constituir, nas fímbrias da cidade, onde estas práticas se viabilizam quer por ocupação, quer pelo preço dos terrenos, territórios que se constituem pelo seu isolamento e encapsulamento, territórios em que as moradias autoconstruídas não estão integradas no tecido e nos serviços da cidade, apesar de se tornarem “patrimônios” individuais e familiares em longas amortizações, freqüentemente incompatíveis com os parcos rendimentos de seus habitantes.19 Chama ainda a atenção o uso de recursos que se constituem como fundos públicos nesta produção da face precária das cidades, ou ainda o uso oficial da construção de moradias por mutirões – autogeridos ou não – como forma de produção de novas segregações socioespaciais, tal como parece acontecer quando este expediente acaba por fazer parte da política de modernização e gestão do município ou do Estado, como em Fortaleza.20 Estes processos parecem ser paradigmáticos e talvez sirvam, pelo seu sucesso, como um bom parâmetro para a discussão das formas de organização e mobilização da “sociedade civil”, resultantes dos virtuosos impulsos por autonomia, democratização e emancipação que tiveram lugar nos anos 80. No que se transformaram? Como pensar, duas décadas depois, os esforços que tinham lugar na constituição do que denominávamos, então, sociedade civil? Como entender o percurso deste conceito, assim como o de seus correlatos, cidadania, espaços e esferas públicas, e seu contrário, as dimensões privatizan36 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 C . S . R I Z E K , J . B A R R O S , M . D E A . B E R G A M I M tes que caracterizaram as formas de mando, as várias faces do controle e do poder, assim como as relações entre sociedade civil e Estado no Brasil? Como pensar os territórios e práticas urbanas nas dimensões de um emprego declinante, de novos modos de intervenção do Estado, de novas políticas que se vinculam a parcerias, à filantropia empresarial, à farta emergência de ONGs, à construção de atores que – comprometidos com práticas virtuosas – acabam por se envolver nos mecanismos de administração e gestão de precariedades de todo tipo, às voltas com o Estado e com complexos programas de cooperação internacional imbricados nos padrões de eficiência e produtividade das inversões de capital das agências mundiais? Estas parecem ser questões difíceis, talvez mesmo insolúveis a curto prazo, ainda que atualizem e recomponham o lugar da reflexão acadêmica como lugar da crítica, de sua urgência e necessidade (Rizek, 2003). CAZUZA E UNIÃO DA JUTA – CONFLITO E VIRTUDE No quadro das experiências consideradas virtuosas de conjuntos construídos por mutirões autogeridos, estas duas experiências se destacam, tanto por sua qualidade de projeto quanto pela possibilidade de construção verticalizada por mutirão, ou ainda por seu caráter de autogerido.21 A primeira experiência – o Cazuza – localiza-se em Diadema e foi construída em duas etapas: entre 1990 e 1992 e entre 1994 e 1998. A primeira etapa foi financiada pelo Prohap Comunitário, com recursos do FGTS/Caixa Econômica Federal; a segunda, pela Prefeitura de Diadema e pela poupança privada dos mutirantes. Hoje o conjunto conta com 280 unidades habitacionais e a associação de moradores continua organizada ainda que com importante aglomerado de problemas relativos ao próprio estatuto da construção por mutirões. Uma das questões relevantes parece apontar para as dificuldades relativas ao próprio agente financiador. O Cazuza juntamente com a Associação de São Bernardo foram os primeiros e únicos mutirões financiados pela CEF através do Programa Prohap Comunitário. Seu financiamento foi conquistado como resultado de diversas caravanas a Brasília promovidas pela UMM, no intuito de pressionar o governo federal a abrir linhas de crédito para habitação popular. Foi com este programa que, pela primeira vez, configurou-se uma política pública na qual o movimento foi nomeado em um contrato público para execução de unidades habitacionais por autogestão. O contrato com a CEF designava como “contratado” a associação de moradores do Cazuza, estando sob sua responsabilidade a gestão integral dos recursos a serem aplicados na construção das unidades habitacionais, bem como a contratação de sua assessoria técnica para acompanhamento e gerenciamento dos trabalhos em canteiro e desenvolvimento dos projetos. Era atribuição da associação, prevista em contrato, dispor através de seus sócios da mão-de-obra para a construção destas unidades – mão-de-obra não-remunerada, que trabalhava organizada em mutirão ou ajuda mútua. Neste contrato também figurava a assessoria técnica como “interveniente”, com responsabilidade técnica diante do CREA e demais órgãos fiscalizadores da construção civil, mas cujo vínculo de trabalho ficava estabelecido única e exclusivamente com a associação, responsável também por remunerar este trabalho. Importa salientar que, embora o programa Prohap Comunitário não tenha financiado nenhum mutirão além destas duas experiências, ele se tornou paradigmático na monR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 37 tos dos moradores com os órgãos financiadores, entre si e com as assessorias. A problematização dos resultados destes mutirões, para além de todas as discordâncias entre movimentos e assessorias sobre o significado da autogestão, é necessária como reflexão para que se possa detectar os múltiplos sentidos destas práticas, assim como seus deslizamentos recentes. 18 Em seminário recente de desenvolvimento do projeto relativo à pesquisa intitulada “Procedimentos Inovadores de Produção de Habitação para População de Baixa Renda”, que reunia assessorias que trabalhavam com mutirões autogeridos em Fortaleza, Belo Horizonte e São Paulo, ficava clara a falta de consenso a respeito do que cada assessoria entendia como autogestão. Esta dimensão é extremamente relevante na mesma medida em que é a autogestão que supostamente diferencia os mutirões produzidos pelos programas oficiais daqueles que continuam vinculados às práticas emancipatórias e supostamente autônomas. 19 Na citada pesquisa em curso, pelo estudo de alguns casos, mesmo os exemplos mais virtuosos se caracterizam pela emergência de conflitos importantes entre mutirantes e órgãos financiadores, entre mutirantes entre si, entre as bases e as lideranças do movimento e da associação. Estes conflitos, aliados ao desemprego e a dificuldades decorrentes de baixas rendas familiares, têm conduzido a uma grande evasão de moradores de conjuntos como, por exemplo, a União da Juta, em São Paulo, ou o Mutirão 50, em Fortaleza, considerados entre as mais bem-sucedidas experiências de autogestão. 20 Esta informação foi obtida por depoimento de um exmembro de uma assessoria de mutirões. 21 As duas experiências citadas foram assessoradas diretamente pela equipe da Usina – Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado, em momentos diferentesde sua história. A 22 A associação é proprietária da gleba inteira, e cada um dos associados-moradores quando ingressa na associação e no mutirão paga uma cota para quitar esta despesa. O terreno inteiro foi hipotecado como bem para garantia do financiamento das primeiras cem unidades no contrato com a CEF. Sem a regularização fundiária não é possível suspender a hipoteca do terreno e encerrar definitivamente o contrato. Para regularização é também necessária a quitação dos débitos com o INSS. Dentro deste imbroglio jurídico a associação de moradores busca hoje regularizar a situação fundiária do conjunto e conseqüentemente a propriedade das casas. Deste esforço estão participando a prefeitura, CEF, a associação e sua equipe de assessoria técnica. P O L Í T I C A D E P R O D U Ç Ã O H A B I T A C I O N A L tagem de programas habitacionais autogeridos posteriores, por configurar o “tripé de parceria” entre poder público, movimento e assessoria técnica como sujeitos independentes e “autônomos”. Além disto, a experiência de construção de prédios de apartamentos por mutirão foi saudada como uma grande vitória dos movimentos de moradia, signo de sua capacidade técnica e de sua potencialidade como agente credenciado na produção em escala de habitação social. A segunda etapa de construção do Cazuza foi resultado de um hibridismo de financiamento que misturava fundos de financiamento municipal e poupança particular das 180 famílias envolvidas. Esta etapa, que ficou conhecido como “os 180”, pode ser lida como uma conquista progressiva na casa, resultado das portas fechadas da negociação com o governo federal e da decisão política de lideranças do movimento regional de não ingressar com um pedido de financiamento ao governo do Estado, para continuar pressionando a CEF a reabilitar, deste modo, o Prohap Comunitário. Sua construção foi viabilizada por pequenos contratos com a prefeitura municipal de Diadema para a execução de partes do conjunto, incluído aí até a prática de remessa de material pela prefeitura para o tradicional mutirão. Enfim, um contrato maior com a administração municipal viabilizou a construção das casas, finalizadas em dezembro de 1998. A contraparte da associação era constituída pelo trabalho em mutirão e poupança das famílias para “inteirar” o que faltava dos recursos. No Cazuza dos “100”, uma pendência com o INSS indica a invisibilidade social desta forma de trabalho cooperado – o trabalho em mutirão – bem como a dimensão conflituosa e tensa da transformação de uma prática de trabalho em ajuda mútua, considerada resquício arcaico da nossa tradição rural, em política pública que cobra o reconhecimento desta forma de trabalho como elemento passível de enunciação social e pública. Houve dificuldades de reconhecer o estatuto jurídico do trabalho dos mutirantes e a impossibilidade de formalização nos órgãos públicos, como o INSS, acarretaram problemas posteriores para a regularização do conjunto. O episódio aponta para a dificuldade de reconhecimento deste trabalho em mutirão como objeto sobre o qual seja possível o arbítrio coletivo, estabelecendo regras e medidas de sua inserção nos programas de financiamento público. Aponta também para o não-reconhecimento deste trabalho como atividade que possa ser nomeada e contada no arbítrio da previdência e seguridade pública, como parte fundamental da produção social de habitação. O círculo de não-reconhecimento do caráter contratual e contabilizável do trabalho de mutirão se completa no contrato individual de financiamento que, em nenhuma cláusula, traz qualquer referência ao trabalho dos mutirantes na obra, nem mesmo no pagamento das parcelas do financiamento. Este trabalho também não pode ser transformado inteiramente (a não ser como diminuição de custos) em compensação financeira com a diminuição dos valores pagos pelas famílias dos mutirantes-moradores. Ainda às voltas com pendências e controvérsias jurídicas, a diretoria da associação de moradores está hoje empenhada em regularizar o conjunto, para transformá-lo em condomínio. Os moradores do conjunto já estão pagando IPTU regularmente mas no cálculo da área a pagar estão computadas as áreas verdes, áreas institucionais, ruas internas e passagens de pedestres, uma vez que a gleba inteira não foi desmembrada e, portanto, as áreas não-residenciais não foram doadas ao poder público.22 Por um lado, os moradores reconhecem que é injusto pagarem imposto por uma área que, em verdade, não é só deles, mas de uso coletivo. Por outro, a preocupação com as possíveis ocupações das áreas livres deixa-os receosos e em estado de alerta contra qualquer eventualidade (ocupações por ou38 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 C . S . R I Z E K , J . B A R R O S , M . D E A . B E R G A M I M tras parcelas da população). Além disso, a manutenção da área livre ficaria prejudicada, segundo eles, se permanecer sob responsabilidade do governo municipal. Esta tensão permanente entre o reconhecimento de uma dimensão pública presente e necessária na vida do conjunto e a percepção da incapacidade do poder público em responder a suas demandas legítimas, diante da invisibilidade daquele pedaço da cidade, monta um cenário no qual as dimensões “privatistas e privatizantes” se encrustam na vida coletiva, ganhando vulto, legitimando-se como forma possível de contraposição da população às agruras cotidianas. Neste processo, ganha destaque um discurso “comunitarista”que corrói por dentro a legitimidade das representações políticas, bem como as questões e fóruns com perspectiva de universalização de direitos e medidas públicas. Acresce-se a esta teia de tensões o fato de Diadema estar no ABCD paulista, berço do movimento operário organizado, da face pública da classe trabalhadora, fato que reverbera na própria composição da associação de moradores. Percebemos nestes coletivos os vestígios de trajetórias de vida marcadas pela presença de emprego industrial e de uma atividade sindical mais enraizada na prática e na história de parte significativa dos mutirantes. As mutilações nos corpos resultantes do trabalho fabril, o “tô encostado no INPS”, as histórias de sindicatos, as greves de categoria nas conversas do almoço, que também transparecem nas falas dos mutirantes nas assembléias e reuniões revelam o enraizamento de uma experiência de organização sindical e política que estrutura a maneira como a associação e seus membros se relacionam com os outros sujeitos em sua história de conquista da casa própria. Arriscaríamos dizer, inclusive, que estrutura a forma “mais independente” de se relacionar com os agentes de assessorias técnicas. Indício disto é a ausência da reclamação constante de abandono da assessoria técnica com o fim da obra, queixa muito presente em outras obras como, por exemplo, a União da Juta. No Cazuza podemos ouvir no discurso da organização autônoma os ecos de uma experiência sindical que se combina com a presença tensa de uma outra experiência, que, em nome do direito público à moradia, acaba por ser capturada por aspectos privatizantes que a tornam invisível. Na União da Juta, por sua vez, é possível apreender uma estranha combinação entre um discurso de reivindicação do direito à moradia, e, portanto, um forte acento político da atuação desta associação e sua forma de expressão pública, e uma prática de associativismo comunitário que transforma por dentro a face pública da construção de espaços coletivos, excluindo aqueles que construíram os equipamentos comunitários, os mutirantes-moradores, do acesso ao seu uso e gestão. A União da Juta é um conjunto de 160 apartamentos financiados pelo governo do Estado através do Programa UMM, localizado na Fazenda da Juta, zona leste de São Paulo. À época de seu início, a Fazenda da Juta era o “fim do mundo”, terra onde ninguém do movimento queria morar, ainda mais quando comparado com outro conjunto em negociação no mesmo período, localizado ao lado da estação Belém do metrô.23 Nesta “terra de ninguém” que era a Juta, hoje estão localizados mutirões financiados pelo governo estadual, conjuntos resultantes de empreitada global, os “paliteiros”, os mutirões da prefeitura, enfim, uma diversidade de experiências habitacionais que foram sendo construídas lado a lado naquele terreno vazio, sem infra-estrutura urbana nem equipamentos públicos. A diretoria da associação de moradores da União da Juta, durante toda a construção do conjunto, manteve uma atitude que buscava integrar aquele conjunto, ainda em formação, com o entorno. Desde a ocupação dos prédios vizinhos por um grupo de sem-teto sem ligações com a UMM, o relacionamento da União da Juta com seus vizinhos procurava integrar-se ao bairro, entendendo que era preciso construir laços entre os futuros R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 39 23 O texto de Edson Miagusko e Joana Barros (2000) recupera, em detalhes, a história da União da Juta e da Fazenda da Juta. A 24 Na Fazenda da Juta se instalou uma rede bastante grande de crimes, notadamente roubo e desmanche de carros e tráfico de drogas. Muitos crimes, acertos de conta entre traficantes e mesmo enfrentamentos com a polícia, acontecem cotidianamente. Os moradores da União da Juta, mas não só eles, referem-se a esta situação como algo que está fora do seu universo de relações, quando, na verdade, constata-se uma permeabilidade grande entre estes "dois mundos", inclusive alguns dos moradores da União têm passagem pela polícia e envolvimento com crime, sobretudo com consumo e pequeno tráfico de drogas. 25 A expressão é de Francisco de Oliveira (1999). P O L Í T I C A D E P R O D U Ç Ã O H A B I T A C I O N A L e antigos moradores. Um traço solidário também se sobressaía no apoio às lutas dos outros grupos que aí se instalavam, na contramão de uma atuação política marcada pela tentativa de constituição de uma posição hegemônica por parte deste movimento de moradia sobre outros grupos e/ou outros possíveis moradores. Talvez esta solidariedade esteja vinculada à percepção da necessidade de se aproximar daqueles “invasores” e dos “malandros”24 que vieram com a ocupação gradativa da Juta, que figuraram nas falas dos mutirantes e das lideranças como uma ameaça constante e estrangeira, advinda dos envolvidos com o crime, como o espectro responsabilizado pela violência e pela insegurança. Ainda que permeável à entrada e ao convívio com os “outros”, “os de fora", a União da Juta é quase um implante naquele imenso terreno da antiga fazenda. Graças a financiamentos de cooperação internacional, da Igreja e de convênio com o poder público municipal, a associação conseguiu viabilizar o funcionamento de alguns equipamentos comunitários. O conjunto tem hoje uma creche conveniada, uma padaria comunitária, atende jovens em programas de formação profissional, crianças em recreação, além de abrigar as atividades da própria associação, ainda que, hoje, em menor volume. Todas estas atividades são desenvolvidas nos edifícios construídos com mão-de-obra mutirante durante a obra do conjunto e com recursos que os moradores pagarão nos seus financiamentos individualizados. Estes edifícios, três galpões que foram ampliados posteriormente, abrigaram durante a obra as atividades da associação, as assembléias, as reuniões de coordenação, as festas coletivas e algumas dos próprios mutirantes (batizados, casamentos). Nos galpões também funcionavam toda a administração da associação e da obra, a cozinha comunitária nos fins de semana e a creche do mutirão. Todas estas atividades “extras” sempre foram discutidas e negociadas com os associados da União da Juta, mas não sem tensões. Alguns dos moradores, desde a obra, reclamavam da intensa atividade comunitária desenvolvida pela associação e do “privilégio dos de fora” em usufruir destes equipamentos que os mutirantes estavam construindo. Com o final da obra e a mudança dos moradores para o conjunto estas tensões aumentaram, chegando a ser espacializadas por uma grade – colocada pelos próprios mutirantes – entre a área comunitária onde se desenvolvem estas atividades e a parte residencial propriamente dita. Na esteira da desresponsabilização do Estado e do desmanche das políticas públicas e dos direitos sociais em curso no País ao longo dos anos 90, o discurso de autonomia popular em relação ao poder público revela tragicamente uma visão de “desnecessidade do público”25 e, em última instância, do Estado. Este discurso é ratificado pela experiência concreta dos trabalhadores e revela ainda a idéia segundo a qual a população poderia fazer tudo por si mesma. A teia de financiamentos internacionais e da Igreja dão sustentação e comprovação empírica ao sentimento de “desnecessidade do público”, uma “subjetividade antipública” no seio da população pobre, bem como deslegitima toda e qualquer participação política que não a de orientação “basista e assembleísta”, desconsiderando e descredenciando as formas de representação política. As práticas e experiências de autonomia e de solidarismo dos movimentos sociais encontram, depois de duas décadas, sua face perversa e seu avesso. Os projetos sociais financiados pelo Estado, e programas comunitários de todos os tipos para populações em situação de risco são saudadas e premiadas (simbolicamente e também financeiramente), sem que a crítica a este processo de anulação da política encontre lugar entre os próprios sujeitos políticos (movimentos sociais, suas assessorias, parte da Igreja comprometida com estes movimentos, partidos de esquerda e mesmo intelectuais) para sua expressão. Este conjunto de práticas diante da miséria, 40 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 C . S . R I Z E K , J . B A R R O S , M . D E A . B E R G A M I M carências e necessidades da população trabalhadora se justificam e se dramatizam, mas tem como preço a impossibilidade da emergência legítima de conflitos no interior das próprias experiências em curso e a impossibilidade de configuração de uma cena pública na qual a esfera das necessidades possa ser discutida como algo que diga respeito ao conjunto da sociedade e ao conjunto da esfera da política. POLÍTICA HABITACIONAL E DEMOCRATIZAÇÃO: ENCONTROS ENTRE SOCIEDADE CIVIL E ESTADO As questões acima formuladas nos remetem à análise dos contextos recentes em que se discutem as articulações, mobilizações e práticas que se encontram hoje no território das concepções e articulações reunidas sob o conceito ou noção de sociedade civil no Brasil.26 Algumas das noções e idéias presentes nestas reflexões podem ajudar a compreender as relações entre políticas de habitação centralizadas no Estado, as práticas que as contestaram no horizonte da autonomia e das dimensões emancipatórias, assim como seus mecanismos de absorção pelo âmbito das políticas oficiais, de um lado, e suas práticas de construção das formas de pertencimento, de novos eixos de sociabilidade, de dimensões que politizam a questão da habitação social, por outro. Trata-se de um feixe complexo de processos de sentidos múltiplos, com inscrições diversas no tempo e no espaço, isto é, diversas entre os anos 70, 80 e 90; e diversas em contextos urbanos distintos, de acordo com a composição e articulação de seus atores. O primeiro elemento importante nesta problematização destaca um tema clássico da reflexão brasileira, passível de ser reconhecido pelo menos desde Sérgio Buarque de Holanda. Trata-se de um conjunto de relações bastante complexas e recentemente instabilizadas, entre Estado e Sociedade Civil. Alguns autores, entre os quais Dagnino, caracterizam estas relações a partir da noção de encontro, cujo cenário se constitui desde os processos de democratização que marcaram os anos 80. Também é nesta década que teria tido lugar uma revitalização da sociedade civil – “com o aumento do associativismo, a emergência de movimentos sociais organizados, a reorganização partidária” inseridos no debate sobre a natureza e as possibilidades da democracia no Brasil – assim como pela própria democratização do Estado, marcados pela Constituição de 1988. Há, assim, como pressuposto, a idéia de que as tensões e antagonismos entre Estado e Sociedade Civil, característicos do período da ditadura militar, teriam cedido lugar para “uma postura de negociação” para “uma aposta na possibilidade de uma atuação conjunta, expressa paradigmaticamente na bandeira da ‘participação da sociedade civil”. Ainda que apontando para as diversidades que perpassam campos que se constituem por e nesta postura de negociação, tanto no âmbito do Estado como no da sociedade civil, trata-se de um pressuposto de democratização real das relações sociais e de suas dimensões de poder, que instala heterogeneidades importantes no âmbito “dos atores, interesses e posições políticas” (Dagnino, 2002, p.13). Os anos noventa trariam a possibilidade de uma atuação conjunta entre Estado e Sociedade Civil, inédita na história brasileira, cuja avaliação não parece tarefa de simples execução. Ora, é possível considerar que os mutirões autogeridos são um destes momentos de “encontro” entre os atores – mais ou menos organizados em movimentos por habitação –, entre suas articulações e assessorias, por um lado, instituições e órgãos de financiamento público e instâncias governamentais, por outro. A produção de moradias e de territóR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 41 26 Uma boa amostra destes processos pode ser encontrada no livro de Evelina Dagnino (2002), publicado recentemente, como resultado de um trabalho conjunto que atravessa campos e objetos de investigação diversos entre si. A P O L Í T I C A D E P R O D U Ç Ã O H A B I T A C I O N A L rios da cidade, baseada na autogestão de recursos escassos, ainda presos portanto na esfera da necessidade, se articularia com o processo de politização da carência e com a autonomização crescente do processo de construção “comunitária”, novas relações sociais, formas de solidariedade e de trabalho cooperativo, formas de pertinência aos movimentos e, finalmente, novos modos de ler e de viver a cidade. Algumas questões se colocam a partir destes processos considerados virtuosos. A primeira questão é questionar se o argumento da Crítica da Razão Dualista ainda está de pé em todas as suas conseqüências. Um percurso por seus pressupostos, assim como por algumas de suas decorrências parece assim ser necessário, mais uma vez, no mínimo como exercício crítico. Se é verdade que a crítica empreendida por Francisco de Oliveira às formas sociológicas e econômicas de pensar e problematizar a modernização, inspiradas no desenvolvimentismo, tem por base uma teoria da acumulação do capital em suas especificidades nas periferias do capitalismo, também é fato que o autor estava preocupado em aproximar ou reaproximar as esferas econômicas e políticas em suas injunções. Assim, por redesenhar o cenário brasileiro a partir das dimensões da acumulação, a questão do trabalho e de suas formas, e seus modos de combinação são centrais no interior desta reflexão, mas também fora dela. Isto é, as dimensões do trabalho e de suas formas de cooperação aparentemente herdadas dos modos arcaicos de produção, do trabalho tal como de fato se constituía em suas formas arcaicas e modernas, teriam inspirado toda a reflexão sobre o saber popular, a “desierarquização” das práticas que se conformavam com a divisão do trabalho, a imagem do mutirão como laboratório-escola ou como laboratório do futuro. As novas formas de legitimação destes encontros entre atores (associações de moradores e assessorias) e Estado, ainda que “autogeridos” e, nesta medida, mais autônomos em relação às políticas e programas oficiais, ao destituir a crítica, deslocam ou nublam tanto as injunções provenientes da dinâmica da reprodução e acumulação do capital como as dimensões do trabalho. Quais seriam seus resultados, quando suas práticas se descolam das dimensões de emancipação para a da provisão de habitação, na forma de mutirões autogeridos? Algumas indicações bibliográficas permitem afirmar, apesar da necessidade de novas verificações empíricas, que o trabalho de construção por mutirão, mesmo nos casos em que se contrata trabalho externo à “comunidade”, além de supor o uso de recursos destinados pelo Estado, isto é, fundos públicos (embora em alguns casos, haja também verbas advindas da cooperação internacional) se estrutura de modo estritamente hierárquico, dependendo dos saberes técnicos das assessorias que determinam a estrutura, o modo, o ritmo, a divisão das tarefas a serem cumpridas, nos limites da escassez, elemento determinante do uso do trabalho dos futuros moradores. Além disso, apesar de freqüentemente estes mutirões se localizarem em territórios ocupados pelos movimentos de moradia, eles acabam por ratificar a produção de habitações em territórios periféricos, distantes dos serviços urbanos, localizados nos limites das cidades, onde ainda é possível encontrar terrenos disponíveis. O exemplo das injunções e problemas advindos do uso do trabalho gratuito na construção de um dos conjuntos analisados parece atestar o que se pode denominar como a “nulidade pública” desta atividade e de seus tempos, na medida da impossibilidade de seu reconhecimento formal e institucional por não ser contabilizável, impedindo qualquer cálculo para efeito de recolhimento do INSS que a ele corresponderia. Este trabalho invisibilizado, opaco, não-contabilizado pelo ângulo de seu reconhecimento, entretanto, é parte do cálculo do Estado, que viabiliza a construção de moradias para 42 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 C . S . R I Z E K , J . B A R R O S , M . D E A . B E R G A M I M a população de baixa renda, pelo uso de seu próprio tempo e de sua própria força de trabalho, calculada, por um lado, e invisível, por outro. Ainda é possível acrescentar uma das importantes dimensões do caráter autogerido na produção de moradias: trata-se das dimensões de controle social do uso dos fundos públicos no interior da política e dos investimentos em habitação social.27 Note-se porém que esta dimensão não é inseparável do uso do trabalho dos mutirantes-moradores, como atesta a idéia de reforçar a autogestão economizando, sempre que possível e na medida do possível, o uso do trabalho gratuito. Também não é incomum a dissolução dos laços constituídos no período de mobilização e engajamento, assim como no período da construção que se esfacelam em um conjunto importante de conflitos internos, em territórios isolados, violentos e murados, com problemas de inadimplência em relação aos órgãos financiadores, assim como com problemas internos que chegam a impedir a continuidade da organização dos moradores para as tarefas e os espaços comuns. Obviamente estes processos de “desmanche” dos vínculos e formas de pertinência, bem como das práticas que teriam constituído as redes de sociabilidade que conformam as “comunidades” são solidários com as novas formas do trabalho e do desemprego, oculto e aberto, assim como com as especificidades deste outro momento de financeirização do capital, dos novos modos de intervenção do Estado nos territórios urbanos, de novas formas de gestão e de controle destas populações, de novas formas de trabalho e de mercado de trabalho para as assessorias, elementos-chave para este tipo de produção, o que redunda freqüentemente em substituição dos movimentos pelas assessorias, quando não em roubo da fala dos movimentos e associações pelos técnicos. Mais uma vez, apesar da presença de instâncias e formas de negociação entre setores organizados da sociedade civil e Estado, pode-se questionar o conteúdo democratizante destes encontros, e de seus resultados, que superam a provisão de habitação de custos reduzidos graças ao trabalho dos moradores que obtiveram parcelas de fundos públicos para sua execução. Trata-se de perguntar ainda sobre a natureza da relação destes territórios com a cidade, em particular com a metrópole e seu poder de diluição, dispersão. A questão é tão mais relevante quanto mais se questionam as dimensões de urbanidade e do acesso à cidade e à ordem urbana – em particular na cidade de São Paulo – e quanto mais se pode, por hipótese, supor que apesar de todas as dimensões emancipatórias e autônomas que são reafirmadas pelos movimentos de moradia e pelas assessorias, investidas do caráter de ONGs, não se acaba por gerar outra forma de combinação entre ação do Estado e mercado (de terrenos, de trabalho, como ação que ratifica e/ou aprofunda a estratificação socioespacial) sobre a cidade, ação cujo potencial de diluição das dimensões públicas e urbanas é enorme e, acima de tudo, passível de legitimação e aceitação pelos atores envolvidos. Assim, é possível que, para além das “boas práticas”, tanto os mutirões resultantes dos programas e políticas oficiais como os mutirões autogeridos possam iluminar aspectos interessantes deste movimento que, na passagem dos anos 80 para os 90, transformaram as promessas de democratização em novas formas de fusão entre controle, gestão, mercado e Estado. Também seria preciso perguntar sobre as dimensões virtuosas destes instrumentos, práticas e territórios. Talvez aqui também, possam ser elaboradas algumas de suas dimensões. Pode-se afirmar com boa margem de certeza que a maior parte do déficit habitacional brasileiro diz respeito às camadas que têm renda familiar de zero a cinco salários mínimos.28 Sabe-se também que, a partir de 1995 houve uma importante migração de R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 43 27 Ver, a este respeito, Will Robson Coelho, 2002. Neste trabalho, o autor mostra, com base nos dados da Fundação João Pinheiro, um crescimento impressionante do déficit habitacional no Sudeste, entre os anos 1990 e 2000. Este número passou de 1.889.899 em 1991 para 2.339.954 em 2000, apesar dos vultosos investimentos em habitação popular, pelo menos no Estado de São Paulo. Esclareça-se que mais da metade do déficit, como se sabe, se concentra na faixa de renda de zero a cinco salários mínimos. 28 Cf. dados da Fundação João Pinheiro, citados por Will Robson Coelho (2002). A P O L Í T I C A D E P R O D U Ç Ã O H A B I T A C I O N A L recursos do FGTS para a moradia de camadas médias da população brasileira, tendência que segue os padrões de investimento das construtoras e incorporadoras. De fato, a questão da moradia ganha dimensões inusitadas, de modo que a transformação das demandas sociais por moradia à luz dos direitos – o direito à moradia digna – acabou ficando com parcelas de recursos que buscaram compatibilizar a produção de moradias com as baixas rendas de camadas importantes da população, vulnerabilizadas por situações de desemprego e trabalho temporário, ou precário, configurações cada vez mais freqüentes do mercado de trabalho, ao longo dos anos 90. A questão da moradia ganha então contornos de uma importante demanda e de eixo central da sobrevivência pessoal e familiar nas grandes cidades. É nestas dimensões que todo um conjunto de políticas se articulou, produzindo: 1) habitação de baixa renda, que, em uma combinação bastante inusitada, capturou parcelas inteiras dos movimentos por moradia para a esfera da política estatal combinada com novas formas de clientelismo e de favor e com poderosos mecanismos de mercado – fundiário e das indústrias da construção civil, dos grandes conglomerados de vendas de materiais de construção; 2) territórios da cidade, por um momento constituídos por comunidades de referência e de pertencimento, que em seguida se dissolvem em meio às dificuldades de pagamento da amortização, às dificuldades de manutenção da moradia e dos espaços comuns, aos conflitos entre moradores, à ausência das assessorias, ao enfrentamento direto e individual entre os moradores e as agências de financiamento. Mesmo assim, nesta combinação entre carências e escassez de recursos, não é possível menosprezar nem os movimentos de moradia, nem a produção de habitação social por mutirão, ainda que seja necessário perceber e analisar criticamente suas dimensões e seus resultados. O mote “ter uma casa é melhor do que não ter nenhuma” permite circunscrever os mutirões autogeridos na esfera das carências e das necessidades e na fugacidade das “comunidades de pertinência”, que se constituem tanto nos movimentos reivindicatórios, como nos processos de construção das moradias, o que acaba por justificar todas estas práticas, remetendo-as ao fato de que talvez esta fosse a única forma de provisão possível de habitação social para as camadas de baixa renda (com renda familiar até cinco salários mínimos). Também é possível perceber em alguns casos os índices de uma experiência de politização e de organização em lideranças, ou mesmo entre setores “da base” da associação de moradores, o que permite antever um conjunto de sentidos que não vale a pena descartar de antemão, já que, tendo como berço a construção de comunidades de referência constituídas pela falta, permitem a construção de trajetórias que alçam à esfera da política um conjunto de militantes dos movimentos. Não sem dilemas, nem sem ambigüidades, é possível que toda uma gama de participantes de alguns partidos políticos, como o Partido dos Trabalhadores, tenha se constituído com a criação destas “comunidades” de referência, que acabam por se configurar em canais que conduzem da experiência imediata à politização e publicização da ação. Talvez este elemento não seja suficiente para caracterizar o “caráter virtuoso” e democratizante dos mutirões autogeridos – e, menos ainda, dos territórios que eles constituem, que se caracterizam por um caráter periférico e precário, hábil e legitimamente administrados, lugares onde o acesso e o direito à cidade estão garantidos pela propriedade de uma unidade habitacional em amortização. Talvez seja ainda possível apontar a natureza destas práticas como síntese de longos processos – a democratização da sociedade brasileira ao longo dos anos 80; as novas formas e relações entre Estado e sociedade civil, neste caso visivelmente “onguizada” pela mediação de assessorias; o uso de recursos oriundos de fundos públicos, financiando novas formas de intervenção do Estado no tecido urbano; as práticas de produção das mo44 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 C . S . R I Z E K , J . B A R R O S , M . D E A . B E R G A M I M radias, que passam por uma intensificação e extensão da jornada semanal ou mensal de trabalho; a produção do trabalho no canteiro propriamente dito; os chamados programas de “geração de emprego e renda”, que freqüentemente acompanham a produção das unidades habitacionais; a gestão autônoma da escassez de recursos, assim como os expedientes que permitem, caso a caso, que ela seja driblada; a possibilidade de democratização do desenho e do projeto; a economia de custos da produção de habitação social; o fazer e o desfazer das “comunidades” que se ordenam em associações de moradores; todos estes elementos podem conduzir à riqueza de dimensões, de sentidos, de suas transformações, em uma “síntese negativa”, cuja crítica emudeceu, diante da urgência da sobrevivência, diante da calamidade da necessidade e diante de formas de articulação que apontam para novos modos de administração e de controle destas populações e de seus movimentos e articulações. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Interessa ainda buscar articular de que modo estes processos, que se plasmam nos mutirões autogestionários, característicos dos momentos aparentemente democráticos e supostamente virtuosos, podem estar repondo as velhas formas da sociabilidade política brasileira, assentada no favor e na proximidade, ainda que desprovidas do caráter integrador do passado e do desejo de autonomia dos movimentos sociais, característico dos anos 80. Trata-se de fato de um “encontro” entre sociedade civil e Estado através desta constelação de atores em rede ou em parceria? O que sobra das comunidades que se constituem na construção e uso destas habitações? Curiosamente, as esferas de interlocução e negociação, assim constituídas, se articulam e se conformam como sociedade civil, ou talvez como “encontros” virtuosos entre a sociedade civil e o Estado, o que permite questionar a noção mesma de sociedade civil tal como se desenha, isto é, como lugar e como articulação democrática e horizontalizada dos vários fóruns e atores pelo associativismo e ativismo civil. Quando as esperanças do desenvolvimentismo chegaram ao fim, ao longo dos anos 70, as perspectivas da democratização brasileira começaram a se desenhar pela constituição de uma sociedade civil que se fundava não a partir do associativismo civil, nem de organizações não-governamentais investidas da roupagem virtuosa da capacitação técnica e política, mas da presença surpreendente de uma novidade que tinha no movimento sindical seu principal protagonista, problematizando no centro desta cena pública as figuras e as formas do trabalho e a presença dos trabalhadores. O que marca a discussão dos anos 90, paradoxalmente, é o desaparecimento destas formas e destas figuras do trabalho, substituídas pelo ativismo e associativismo, pelo “comunitarismo”, pelas parcerias e por todo um conjunto de novos modos de interlocução e negociação que podem democratizar e publicizar processos, ao mesmo tempo que conformam outras formas de controle e de gestão, crescentemente legitimadas por seu caráter virtuoso, de administração das esferas da necessidade que aparecem como a única alternativa, que se desenham como espaços democráticos e democratizantes, ali mesmo onde a política (pensada como dissenso, como reinvenção de lugares e de falas, como ação que desafia as prescrições consagradas) crivada de competências técnicas e de cálculos de eficiência, pode ter deixado de existir. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 45 Cibele Saliba Rizek é professora do Departamento de Arquitetura da EESC-USP e pesquisadora do Cenedic/ USP. Joana Barros é mestranda em Sociologia na FFLCH/ USP. Marta de Aguiar Bergamin é mestre em Sociologia pela FFLCH/USP. Artigo recebido para publicação em setembro de 2003. A P O L Í T I C A D E P R O D U Ç Ã O H A B I T A C I O N A L REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANTES, P. “Arquitetura Nova. Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre”. Trabalho de Graduação apresentado à FAU/USP. 2000. (Mimeo.) BRANDT, V.; KOWARICK, L. et alli. São Paulo 1975, crescimento e pobreza. São Paulo: Edições Loyola, 1979. BUZZAR, M. A. Rodrigo Lefèvre e a idéia de vanguarda. 2002. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. COELHO, W. R. O déficit das moradias: instrumento para avaliação e aplicação de programas habitacionais. 2002. 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E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 DAS ECONOMIAS DE AGLOMERAÇÃO ÀS EXTERNALIDADES DINÂMICAS DE CONHECIMENTO 1 POR UMA RELEITURA DE SÃO PAULO ALEXANDRE TINOCO R E S U M O Ao reconstituir o debate sobre especialização/diversificação setorial como motor do desenvolvimento urbano, este artigo retraça a construção dos conceitos de externalidades dinâmicas MAR e Jacobs e os reutiliza para o estudo dos processos inovativos das empresas industriais da Região Metropolitana de São Paulo. Com isso, busca aprofundar o debate teórico e a interpretação da realidade econômica paulistana da década de 1990, de um enfoque baseado nas estratégias dos agentes econômicos aí presentes. Para tanto, é necessário compreender as estratégias de inserção a redes de informação para o processo inovativo, com base na construção de um portfolio setorial de fontes. P A L A V R A S - C H A V E Economias de aglomeração; externalidades de conhecimento; inovação; especialização; diversificação. INTRODUÇÃO “Aglomeração”. Palavra de vários significados e de utilização comum que podemos encontrar no uso diário de qualquer pessoa que esteja a circular pela rua. Rua essa que é parte integrande de uma aglomeração. Aglomeração de pessoas, de capitais, de empresas, de consumidores, de fornecedores e – por que não? – de informações e de idéias. Entre os vários significados do termo, talvez o mais imediato é o de produto ou resultado de uma ação de juntar, reunir, acumular ou amontoar. Antes de tudo, porém, o termo significa uma ação, seja coletiva ou individual, mas sempre realizada como uma construção. Jamais uma tendência natural, uma lei universal e imutável, mas ação intencional construtiva, que evidencia a existência de agentes. E é justamente a existência desses agentes que nos permite uma análise das racionalidades que eles aplicam à construção de uma aglomeração. Neste trabalho, tentaremos definir tais racionalidades, analisando a construção do conceito de aglomeração na teoria econômica, notadamente na economia regional e urbana, e no caso de uma aglomeração específica, a aglomeração metropolitana de São Paulo. Com isso, pretendemos nos distanciar dos usos rotineiros do termo “aglomeração”, nos distanciar da rua, apesar de continuarmos a circular nela. Em economia, o estudo de aglomerações toma a forma do estudo das cidades, no caso da economia urbana; das regiões, no caso da economia regional; e das chamadas aglomerações industriais (denominadas clusters por uns e distritos industriais por outros), no caso das teorias dos sistemas produtivos locais. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 47 1 Agradeço enormemente as críticas e sugestões recebidas em diversas ocasiões. Adrián Gruza Lavalle teve papel fundamental na construção de uma primeira versão, e a ele agradeço especialmente; Ana Cristina Fernandes e Haroldo Torres contribuíram sobremaneira com suas sugestões e críticas quando da defesa final de paper do Programa de Formação de Quadros Profissionais do Cebrap do biênio 1999/2000 e, por último, agradeço a Alain Rallet e Mauro Borges Lemos pelas preciosas contribuições à última versão deste texto, apresentada no X Encontro Nacional da Anpur em Belo Horizonte, maio de 2003. D A S 2 Principal receptor dos novos investimentos durante o processo de desconcentração relativa da indústria nacional. E C O N O M I A S D E A G L O M E R A Ç Ã O Neste trabalho, colocamo-nos o desafio de efetuar uma releitura da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) baseada no papel que o ambiente metropolitano pode desempenhar perante os agentes econômicos que aí se localizam. Para tanto, iremos reconstruir o debate que transformou as chamadas economias de aglomeração (a racionalidade econômica da ação de aglomerar) em externalidades dinâmicas de conhecimento. Sejam de origem marshaliana, economias de aglomeração, de especialização setorial, posteriormente chamadas de economias de localização; sejam de economias de urbanização do tipo Jacobs, economias provenientes da diversificação setorial metropolitana. No entanto, a originalidade deste trabalho não se encontra na revitalização da ambigüidade desse conceito, mas sim na forma como buscaremos construir instrumentos empíricos que nos possibilitem acessar essas teorias econômicas. Não nos serviremos dos argumentos das famosas funções de produção. Este não é um trabalho de especificação dos termos de uma função de produção de cunho neoclássico onde avaliaríamos a potencialidade de um ou de outro argumento. Apesar de essa avaliação ser importantíssima, não podemos nos contentar com isso. Afinal, trabalhos desse tipo não são capazes de compreender a diversidade das estratégias de coordenação econômica que podemos encontrar em um ambiente metropolitano. Diversidade essa que recorre a diferentes tipos de racionalidades aglomerativas para a construção ativa de uma aglomeração. Para efetuar essa releitura, estudaremos o processo inovativo das empresas paulistas2 com o intuito de analisarmos diferenças setoriais de racionalidade de aglomeração no tocante aos processos inovativos. Sendo a inovação a principal atividade econômica da empresa, é de suma importância a forma, a racionalidade, com que os agentes econômicos inovam. A pergunta é: os setores industriais inovam da mesma maneira? A resposta parece ser negativa. E as diferenças setoriais podem se relacionar com diferentes trajetórias regionais? É aqui que proporemos uma taxonomia bidimensional para os setores da indústria de transformação do Estado de São Paulo e mostraremos que os setores mais concentrados e inovadores dão extrema relevância para economias de urbanização tipo Jacobs, enquanto setores menos concentrados e menos inovadores dão muita importância para economias de aglomeração tipo marshalianas. Não é à toa que são os setores que mais fortemente atuaram no processo de desconcentração relativa da indústria no Brasil, em busca de outras formas de aglomeração, não necessariamente metropolitanas. DAS DECISÕES DE LOCALIZAÇÃO AO PROCESSO DE APRENDIZADO ENFOQUE ESTÁTICO O conceito de economia de aglomeração é amplamente utilizado por várias correntes de pensamento dentro da economia regional e urbana, tanto de tradição neoclássica, como de diversas tradições heterodoxas, entre elas o pós-keynesianismo de Kaldor e vertentes neo-schumpeterianas. Em várias correntes econômicas, é um dos conceitos que justificam economicamente a existência de cidades. Como salientado por Catin (1994), a origem do conceito não pode ser unicamente atribuída unicamente ao trabalho primordial de Marshall. Nele, encontramos a consolidação do conceito de economias externas como forma de compatibilizar, no plano teórico, a existência efetiva de retornos crescentes no âmbito da indústria e a necessidade de retor48 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 A L E X A N D R E T I N O C O nos constantes no âmbito da firma para a possibilidade de existência de um equilíbrio único de mercado em concorrência perfeita. Conforme Marshall, a atividade industrial pode, sob determinadas condições, apresentar tanto economias de escala internas à firma, o que chama de economia de escala microeconômica, como economias de escala externas às firmas, ou, economias macroeconômicas. A primeira levaria à concentração de capital, à formação de oligopólios e à diferenciação de forças entre as firmas – em suma, a uma economia desigual na relação de forças dos agentes econômicos. A segunda, por sua vez, levaria à concentração da atividade econômica em regiões específicas, em detrimento de outras que, por diversos motivos, começaram com atraso a atividade industrial. É essa segunda forma de retornos crescentes que nos interessa aqui. A segunda fonte de inspiração para a constituição do conceito de economia de aglomeração pode ser encontrada na obra de Weber (1929) sobre a localização industrial, em que as economias referentes à localização de mão-de-obra mais barata e as economias provenientes de um determinado processo aglomerativo devem ser levadas em consideração para determinar a localização ótima de uma firma. No entanto, é apenas com o trabalho de Hoover (1936), de ênfase eminentemente empírica, e, fundamentalmente, com as formalizações teóricas de Isard (1956), que a economia espacial ganha corpo teórico e o conceito de economias de aglomeração adquire densidade. Para Isard, as economias de aglomeração são definidas como, em alusão direta a Marshal, economias de escala externas à firma que podem se apresentar como internas a uma indústria (setor) em uma certa região, recebendo o nome de economias de localização; ou podem ser externas à firma e também externas à indústria, atuando no conjunto das atividades de uma determinada região, e são chamadas de economias de urbanização. Não podemos esquecer que estamos aqui em um mundo onde a maximização de lucro é a racionalidade dominante dos agentes econômicos. O estudo da localização industrial obedece a essa racionalidade e a localização de uma empresa em uma cidade e não em outra só pode ser explicada pelo fato de que sua atual localização é a que a empresa entende como a que lhe pode proporcionar a maximização de seus lucros em relação a outras localizações. Ou seja, se observamos uma aglomeração de indústrias (seja uma aglomeração tipo distrito, seja uma aglomeração urbana), é porque a ação de se colocar com as outras empresas foi uma escolha que visava tal maximização. Como essas aglomerações são relativamente perenes, a escolha é considerada melhor em relação a outras localizações possíveis. Se a empresa tomou essa decisão é porque espera ter um lucro maior em uma determinada localização que em outra. E é justamente esse diferencial de lucro (em relação à ação de não aglomerar) que podemos chamar de economias de aglomeração. Mais precisamente, entendemos como economias de aglomeração todo ganho de produtividade do agente advindo de sua colocalização com outros agentes – como definido por Polèse (1994). Mas que tipo de agentes? Aqui, retomamos a distinção entre economias de localização e economias de urbanização. Os ganhos de produtividade externos à firma que derivam de relações (localmente situadas) com outras firmas da mesma indústria (concorrentes, fornecedores e parceiros, fundamentalmente) são as chamadas economias de localização. São economias provenientes da especialização de certa região em determinada indústria. São os ganhos de produtividade existentes nos chamados distritos industriais, como o próprio Marshall já apontava. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 49 D A S E C O N O M I A S D E A G L O M E R A Ç Ã O Mas outros ganhos de produtividade são possíveis. Para a economia espacial, fatores como concentração do mercado consumidor, indivisibilidade dos bens públicos (meio de transporte e educação, por exemplo) e presença de atividades terciárias podem gerar ganhos de produtividade do tipo economias de urbanização. Teríamos, portanto, não apenas uma e sim duas racionalidades articulando a ação de aglomerar. Uma racionalidade que busca a especialização, a concentração de empresas da mesma indústria, como forma de busca por maximização, e outra racionalidade que, buscando o mesmo objetivo, procuraria localizações capazes de concentrar uma boa oferta de infra-estrutura e diversidade da atividade econômica. A primeira racionalidade seria típica das aglomerações industriais tipo Terceira Itália (o renascimento dos distritos marshalianos); a segunda racionalidade, típica das aglomerações industriais metropolitanas. Apesar de forte apelo conceitual, a utilização do arsenal de economias de aglomeração sempre foi muito complicado para a economia regional e urbana. Seja pelo fato de que cada autor escolhe um determinado aspecto como relevante para preencher empiricamente o conceito em questão (transformando-o em uma explicação ad hoc), seja pelo fato de que este enfoque não possui uma dimensão temporal de análise, restringindo sua aplicabilidade a modelos de análise estática, modelos de localização industrial, em geral. Um modelo que explica os motivos de uma empresa se localizar numa localidade ou noutra não chega a ser capaz de explicar a dinâmica subseqüente desta empresa (isso é dado como hipótese: afinal, a escolha é sempre racional e se a empresa não estivesse localizada no melhor lugar possível, ela mudaria. A instrumentalização deste conceito é tão problemática que encontramos uma verdadeira desconstrução dele – ver, por exemplo, Catin (1991; 1994). No entanto, a partir do início da década de 90, a situação começa a mudar. ENFOQUE DINÂMICO Pode-se dizer, com certa segurança, que a grande recuperação do conceitual das economias de aglomeração para a Economia Urbana (de inspiração ortodoxa) ocorreu a partir do trabalho de Glaeser et al. (1992), que tem como preocupação principal e declarada lançar luz (“to shed light”, 1992, p.1.134) sobre as teorias de crescimento do tipo de Romer (1990), que se baseiam na existência de externalidades de conhecimento para construir uma teoria de crescimento endógeno de longo prazo. Poderíamos dizer que, na realidade, esse trabalho busca refazer a roupagem conceitual da economia urbana de forma a ser coerente com os trabalhos inspirados em Romer (1986) e Lucas (1988). Para explicar que as externalidades do crescimento endógeno possam levar à diferenciação espacial, os autores se dedicam a dar um sentido dinâmico ao conceito de economias de aglomeração (Kallal et al., 1992). Não é mais o estudo da localização industrial que interessa. Mas sim o estudo do crescimento das cidades e das indústrias que aí se localizam. As economias de aglomeração passam a não ser mais responsáveis apenas por atrair empresas a se localizar em uma cidade. Muito mais que isso, são responsáveis (não os únicos, obviamente) pelo dinamismo e pela capacidade de crescimento das empresas que aí se instalaram. Elas não afetam mais apenas uma decisão locacional, mas afetam a performance de longo prazo dos agentes que tomaram aquela decisão de localização (ainda importante, no entanto). A questão é: como esse salto foi possível? A resposta tem dois atos. Primeiro, precisamos dos fatores dinamizadores da atividade empresarial; segundo, é preciso verificar como as economias de aglomeração influem nesses fatores. 50 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 A L E X A N D R E T I N O C O Sem dúvida nenhuma – e sem querer, no entanto, buscar um schumpeterianismo nato em autores de filiação tão distante – podemos dizer que a inovação vem a ser o fator dinamizador da atividade econômica que irá propulsionar o crescimento das cidades. Glaeser et al. (1992) recorrem à Bairoch (1988) e Jacobs (1969) para construir o grande fato estilizado sustentador do trabalho propondo que “a maioria das inovações ocorrem em cidades” e que "uma visão dinâmica das cidades como essa combina bem com os trabalhos recentes de crescimento econômico” (1992, p.1.127 T.A.), estabelecendo uma relação direta evidente entre Jacobs (1969) e sua forma de entender o desenvolvimento das cidades com as teorias de crescimento endógeno.3 O conceito que lhes permite fazer essa ponte é justamente o das externalidades, especialmente as externalidades de conhecimento, tão caras a Lucas (1988) e a Romer (1986) e formalizadas inicialmente por Dasgupta & Stiglitz (1980). Não vale aqui uma recuperação dos trabalhos de Lucas e Romer, uma vez que não avaliaremos a adequação do trabalho desenvolvido por Glaeser et al. (1992) em relação aos seus objetivos mais diretos. O que nos interessa é estudar como esse trabalho pioneiro influenciou o debate subseqüente sobre a dinâmica das cidades e em que ele pode nos ser útil. No entanto, o que mais nos interessa neste texto é a forma como os autores dão consistência teórica e dinâmica à noção de economias de aglomeração. Para preencher os “microfundamentos” das externalidades de conhecimento, os autores recorrem a três arsenais teóricos distintos. Um primeiro arsenal, numa vertente muito próxima de sua tradição, recupera as idéias iniciais de Marshall sobre economias de aglomeração e acrescenta os resultados teóricos do trabalho de Arrow (1962) e Romer (1986) sobre os ganhos de produtividade e crescimento advindos de externalidades de conhecimento. A esse primeiro chamam de externalidades tipo MAR (de Marshall, Arrow e Romer, que dão, respectivamente, o senso de economia externa, ligada ao aprendizado e como base do crescimento econômico). Para essa primeira categoria de externalidade dinâmica, o fator gerador de spillovers numa indústria determinada é sua especialização urbana. Empresas do mesmo setor, localizadas próximas umas das outras, seriam responsáveis pela geração de externalidades que possam vir a ser apropriadas pelo conjunto dessas empresas. Bem ao estilo dos distritos marshallianos, em que as “idéias pairam no ar”, disponíveis para apropriação. Um segundo arsenal se baseia em Porter (1990) e recupera, do ponto de vista do debate especialização x diversificação, os mesmos argumentos do tipo MAR. Sua grande diferença é que, contrariamente ao tipo MAR, as externalidades tipo Porter surgem em um contexto de altíssima concorrência empresarial. Quanto mais concorrencial for o ambiente econômico, mais as externalidades tecnológicas entre firmas do mesmo setor ocorrerão. Para a hipótese do tipo MAR, um certo grau de monopólio tem que persistir a fim de incitar a inovação. Por incrível que pareça, uma análise do tipo MAR se aproxima muito mais da tradição schumpeteriana do que a hipótese do tipo Porter, apesar de este último ser extremamente vinculado com essa tradição. Nas próprias palavras dos autores em questão: “A teoria MAR prevê, da mesma forma que Schumpeter (1942), que, localmente, monopólio é melhor do que competição para o crescimento” (Glaeser et al., 1992, p.1.127 T.A.). O contrário do que acontece com a hipótese Porter, que talvez esteja pensando muito mais no processo de difusão da inovação e não na indução propriamente dita. O terceiro arsenal se baseia em Jacobs (1969) e podemos encontrar argumentos econômicos muito fortes em sua análise da dinâmica das cidades. Em seu riquíssimo The Economy of the cities, Jane Jacobs apresenta uma leitura extremamente original e inovadora sobre o desenvolvimento e funcionamento das cidades. Com uma fundamentação hisR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 51 3 Especialmente as de Romer (1986) e Lucas (1988). D A S E C O N O M I A S D E A G L O M E R A Ç Ã O tórica realmente incomum para economistas, aponta que o dinamismo das cidades (até mesmo sua eficiência) estaria ligado muito mais à diversidade do trabalho que podemos encontrar num ambiente urbano. A partir daí, Glaeser et al. (1992) constroem a hipótese de externalidades tipo Jacobs, que aponta para a diversidade urbana, geradora de fertilizações cruzadas, como fator dinamizador das externalidades de conhecimento necessárias ao processo inovador. Do ponto de vista da estrutura da concorrência, que aqui não será tratada, a hipótese Jacobs segue na mesma direção da hipótese Porter, apontando a necessidade de um ambiente altamente concorrencial capaz de favorecer o processo de difusão de tecnologia. Em comum, esses três arsenais têm a propriedade de transformar o debate de localização, entre economias de localização e economias de urbanização, estático e dicotômico, como vimos anteriormente, em um debate de crescimento econômico, dinâmico, portanto, apoiado sobre uma nova dicotomia (bem mais complexa) entre externalidades dinâmicas advindas da especialização setorial, seja MAR ou Porter, ou externalidades dinâmicas advindas da diversificação urbana, do tipo Jacobs. De acordo com Massard & Riou (2001), essa transformação torna complexo e enriquece o debate com a introdução de três fatores: primeiro, e mais importante, a introdução da variável tempo, visto que a análise se faz em termos de crescimento e não mais em termos de localização; segundo, ao levar em consideração relações não-mercantis, não reduzíveis ao mundo bidimensional neoclássico tradicional, relações essas que são fortes fontes de externalidades e, portanto, fundamentais para o crescimento localizado pois são, em geral, localmente restritas; e, por último, por incorporar as relações entre regiões como fonte de crescimento, uma vez que podem ocorrer externalidades de conhecimento com amplidão um pouco mais larga do que o âmbito de uma cidade. Massard & Riou (2001) apontam justamente que a chamada Nova Economia Geográfica seria uma boa forma de aprofundar essa análise. Em resumo, para Glaeser et al. (1992), a estrutura da concorrência e as externalidades de conhecimento são fatores-chave para explicar a capacidade inovadora e, conseqüentemente, de crescimento, de uma cidade. Entre os possíveis arranjos entre estes dois fatores, temos as três hipóteses por eles construídas (MAR, Porter e Jacobs). Para a continuidade deste artigo, como só nos interessa a discussão entre especialização e diversificação como fundamentos de racionalidades aglomerativas, determinantes da dinâmica de uma cidade, podemos abrir mão da hipótese Porter, que, neste quesito, é altamente creditícia de Marshall. Com isso, nosso debate se reduzirá a estudar a economia de São Paulo, no que tange ao processo inovativo, a partir da chave explicativa MAR/Jacobs. É útil explicar aqui porque consideramos o livro de Jacobs (1969) fundamental. A autora não faz apenas um relato do que considera importante para uma cidade vencer e conseguir desencadear um processo virtuoso de crescimento numa economia globalizada. Na noção de cidade, ela efetivamente funda a principal tecnologia produtiva já desenvolvida pelo homem. E é ambiciosa ao fazê-lo. Se Marshall baseia a noção de eficiência produtiva numa divisão de trabalho smithiniana, em que a especialização da atividade produtiva leva ao crescimento da produtividade da empresa, Jacobs questiona a fundo essa filiação. Ela aponta mesmo que a divisão do trabalho verdadeiramente importante é completamente outra. Ao invés da fragmentação do processo de trabalho, com especialização das atividades humanas, seja numa empresa, seja numa indústria (como a famosa fábrica de alfinetes), a divisão social do trabalho que realmente levaria ao desenvolvimento econômico seria o surgimento de novas atividades. Lembremos nosso bom e velho caçador ideal, que caçava aves e mamíferos, precisando de armas e habilidades diferentes para ca52 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 A L E X A N D R E T I N O C O da atividade. Em Smith, ele se especializaria em um dos animais, naquele sobre o qual ele teria maior destreza de caça (e no qual poderá desenvolver melhor suas qualidades ao se ocupar apenas dele), trocaria seu excedente por outro tipo de animal e, socialmente, teríamos maior abundância. Em Jacobs teríamos um outro tipo de racionalidade. Aquele caçador não deixaria de caçar nenhum tipo de animal. O que ele buscaria fazer é diferenciar-se dos outros caçadores; uma das formas mais eficientes seria, por exemplo, oferecer a ave já cozida no mercado. Assim nasceria um novo tipo de trabalho e, com o tempo, ele poderia até deixar de caçar e dedicar-se a um restaurante. Surgiria assim uma nova atividade, diversificando a economia. Temos aí um tipo de divisão social do trabalho completamente diferente do que encontramos em Marshall, apoiada numa apropriação parcial da divisão social do trabalho como proposta por Smith. Ela dá uma racionalidade microeconômica muito forte para a atividade econômica. Não é questão aqui, nem em nenhum outro lugar, verificar quem tem razão. Mas sim apontar que um processo de externalidade dinâmica do tipo Jacobs pressupõe um processo de divisão do trabalho muito coerente e inovador, em relação ao estabelecido por Smith e reaproveitado por Marshall. A grande originalidade de Jacobs foi a de perceber que esse tipo de externalidade só pode acontecer em um ambiente urbano. Uma vez que a criação de novos trabalhos (como ela os chama) só pode acontecer com a troca e o fluxo de idéias que são potencializadas pelo contato diário face a face e pelo processo de concorrência. Seria anacrônico tachar Jacobs de schumpeteriana. Ela teve todas as possibilidades de reclamar essa alcunha. Mas não seria despropositado enriquecer as análises schumpeterianas sobre o urbano com base em seus resultados conceituais. Isso porque ela utiliza noções e conceitos muito caros a essa tradição. Impressionante quando compara as cidades de Manchester e Birgmingham da perspectiva de uma discutível eficiência urbana. Mas o conceito de eficiência que utiliza é absolutamente schumpeteriano. É a cidade que tem a maior capacidade de diversificação, de diferenciação do trabalho nela realizado. Acreditamos que essa autora pode muito bem ser reconhecida como base de uma economia urbana schumpeteriana (ainda a ser construída). E sua nova forma de pensar a divisão social do trabalho nos é de muita utilidade na compreensão de um certo tipo de racionalidade dos agentes que aí se aglomeram. Uma vez evidenciada a origem do debate especialização/diversificação, faremos aqui um breve resumo da trajetória em que ele vem se desenvolvendo, de seus primórdios até seus mais recentes desdobramentos. Massard & Riou (2001) apontam que o nascimento deste debate, no início da década de 1990, deve-se fundamentalmente à convergência entre os trabalhos da economia geográfica de Krugman, entre outros, e as teorias de crescimento endógeno. Essa síntese economia geográfica–crescimento, do estilo, por exemplo, de Martin & Ottaviano (1999), foi capaz de introduzir uma análise dinâmica no processo de diferenciação regional que em Krugman (1991) e Krugman & Venables (1995), por exemplo, é absolutamente estático. Como bem salientam Massard & Riou (2001), já em Krugman poderíamos encontrar certa preferência pela diversidade como fator dinamizador das economias regionais4 através de uma função utilidade do consumidor que apresentaria uma preferência pela diversidade dos produtos consumidos. As localidades com maior diversidade atrairiam mais consumidores que, por sua vez, aumentariam o tamanho do mercado, reforçando um processo de rendimentos crescentes das empresas que aí atuam. No entanto, esse modelo explica apenas (e por isso é estático) a distribuição de uma capacidade econômica já dada. Nada é dito quanto ao processo de acumulação de capital e de crescimento. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 53 4 O que o relativizaria para o estudo de aglomerações urbanas especializadas. D A S 5 Encontramos em Krugman & Venables (1995) uma versão mais refinada do argumento. A diversidade ativa passa a ser a diversidade dos bens intermediários. Ao abandonar a hipótese de bens homogêneos, introduz a possibilidade de diminuição de custos de transporte, se a empresa se localizar na região que apresenta a maior diversidade de bens intermediários. Essa diminuição de custos é fator determinante no processo de crescimento retroalimentado e da diferenciação regional. Mas, infelizmente, ainda estamos longe da diversificação criativa de Jacobs. 6 De Englmann & Walz (1995); Walz (1996); Baldwin & Forslid (2000); Martin & Ottaviano (1999); Baldwin, Martin & Ottaviano (2001). E C O N O M I A S D E A G L O M E R A Ç Ã O Outro problema é que essa não é exatamente a diversidade que aqui está em discussão, a diversidade proposta por Jacobs.5 Esse debate torna-se complexo e ganha interesse a partir de uma série de trabalhos6 que, segundo Massard & Riou (2001), realizam a síntese entre os trabalhos de Krugman, da Nova Economia Geográfica, e as teorias de crescimento endógeno, ao modelar, ao mesmo tempo, a inovação como motor de crescimento da economia; a polarização da atividade econômica e a coexistência de externalidades pecuniárias e de conhecimento (esta última presente apenas em desejo na Nova Economia Geográfica). Tomando como exemplo Martin & Ottaviano (1999), numa economia de dois setores – um produzindo um bem homogêneo em concorrência perfeita, outro produzindo bens diversificados, num ambiente de concorrência monopolística – advindos do processo inovativo, cuja eficiência é uma função crescente da diversidade já existente de produtos no qual encontramos externalidades localizadas, em tal arranjo teremos o crescimento localizado e a diferenciação espacial quanto mais especializada for uma região no setor diversificado. Ou seja, o modelo tem tal arranjo que a relação entre especialização e diversificação deixa de ser apenas dicotômica, complicando-se enormemente. Se uma região se especializa no diverso, ela terá uma taxa de crescimento mais elevada do que uma diversificada em termos de setores. No entanto, como salientam Massard & Riou (2001), o fator dinamizador para os modelos desse tipo continua sendo a diversificação, mesmo que ainda uma diversificação intersetorial, como gostaria Jacobs, e sim uma diversificação interna a um único setor. O QUE ESSE DEBATE PODE REPRESENTAR DO PONTO DE VISTA EMPÍRICO PARA A RMSP? 7 Iniciado por Glaeser et al. (1992), foi posteriormente aperfeiçoado por Henderson, Kuncoro & Turner (1995) e por Henderson (1997; 1999), mas, no entanto, como apontado por Desrochers (2001), não chega a lidar efetivamente com as externalidades de conhecimento. Suas variáveis explicativas se resumem a emprego, produtividade e salários, variáveis macroeconômicas reduzíveis a preço e quantidade. Foi apenas com os trabalhos da Geografia da Inovação, lançados por Feldman (1994), que o processo inovativo é estudado mais profundamente; o debate sobre especialização/diversificação diretamente sobre o processo inovativo pode ser encontrado em Jaffe, Trajtenberg & Henderson (1993), e, para o caso francês, em Combes (2000), entre outros. O debate empírico sobre especialização/diversificação7 tende a associar o caráter diversificado às grandes cidades, geralmente metrópoles; e o caráter de especialização, geralmente às pequenas cidades, de antiga ou recente experiência de industrialização, mas que costumam apresentar um “perfil” mais direcionado para um tipo de atividade ou outro. Os índices utilizados para a avaliação do grau de diversificação/especialização de uma cidade são, em geral, muito simples e baseiam-se na comparação da participação setorial de uma cidade com a participação deste setor em nível nacional. É, portanto, um jogo de soma zero. Haverá sempre cidades especializadas e outras não, sabendo-se que a participação nacional é uma média ponderada das participações municipais. O que nos interessa no próximo tópico é efetivamente levar esse debate para o núcleo da discussão sobre processos inovativos das empresas industriais de São Paulo. Iremos avaliar a constituição de redes de informação para o processo inovativo industrial a partir das fontes utilizadas (e suas respectivas importâncias) para obtenção de informações necessárias ao processo inovativo. Consideramos aqui que as fontes de informação para o processo inovativo são verdadeiras proxys da estrutura das redes de informação em que os agentes buscam se situar a fim de se apropriar das externalidades de conhecimento presentes em seu ambiente produtivo. Evidentemente, é com o estudo das estratégias dos agentes em se situar nestas redes (que são verdadeiros vetores de spillovers tecnológicos) que buscaremos evidenciar os tipos de racionalidades presentes e relevantes para a economia metropolitana. 54 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 A L E X A N D R E T I N O C O O PORTFOLIO SETORIAL DE FONTES DE INFORMAÇÃO PARA O PROCESSO INOVATIVO CONSTRUÇÃO DA TIPOLOGIA8 O que buscamos aqui é diferenciar os setores industriais do Estado de São Paulo (ESP) tendo como argumento sua maior ou menor aproximação de uma ou de outra das racionalidades aglomerativas apresentadas anteriormente. Uma racionalidade do tipo especialização, das externalidades dinâmicas tipo MAR, e uma racionalidade de diversificação, fundada nas externalidades dinâmicas tipo Jacobs. Evidente que, ao apontar uma racionalidade da ação de aglomerar do tipo Jacobs, estamos apontando para setores que apresentariam fortes restrições a localizar-se fora das regiões metropolitanas mais avançadas. De outra parte, ao apresentarmos setores que se aproximam de uma racionalidade tipo MAR, apontamos para setores que necessitam de aglomeração para seu desenvolvimento, mas não necessariamente de uma aglomeração metropolitana (o que não quer dizer que, por outros motivos, eles não possam estar fortemente presentes nas regiões metropolitanas brasileiras). Foi com esta orientação que examinamos os dados empíricos. A primeira pergunta foi: será que as empresas industriais do Estado de São Paulo inovam? Os dados da Pesquisa da Atividade Econômica Paulista (Paep) nos dão respostas muito contundentes para a questão. Contundentes na intensidade e na forma como as empresas inovam.9 Ao analisarmos as 41.193 empresas industriais do ESP, para o triênio 1994-1996, 24,8% delas afirmaram ter realizado algum tipo de inovação, seja de produto, seja de processo. No entanto, quando analisamos as empresas com mais de trinta empregados (as 10.624 maiores, produtoras de 91% do valor adicionado do ESP), vemos que essa intensidade alcança 42,40%. É óbvio que essa intensidade média não é igualmente distribuída entre os setores. Temos setores, como Fabricação de Máquinas e Equipamentos de Informática, em que 81,56 % das empresas se dizem inovadoras e, no outro extremo, a Indústria Extrativa, na qual apenas 14,99 % o são. É claro também que uma magnitude de mais de 80% das empresas se dizendo inovadoras suscita algumas questões quanto ao que a empresa considera inovação. O primeiro e mais óbvio caminho a seguir foi regredir os dados sobre intensidade setorial de inovação (X) com os de concentração regional setorial na RMSP (Y). Com um modelo linear simples, chega-se a uma equação do tipo: Y = 0,89 X + 0,21; R2 = 0,4064 3,51 1,77 O que nos mostra uma relação econométrica suficientemente forte para sugerir a existência de uma relação real entre essas duas dimensões. Poderíamos dizer que, grosso modo, a localização e a intensidade de inovação se explicam mutuamente em 40% dos casos. Outro ponto importante é a sugestão (gráfica) de existência de três padrões muito diferentes desta relação entre as duas dimensões. Observamos claramente que os setores mais inovadores são altamente concentrados. A eles denominamos de urbano-dependentes 10. Vemos também que os menos inovadores são os menos concentrados, os urbano-indiferentes 11, e uma grande quantidade de setores que são quase tão pouco inovadores como os urbano-indiferentes e, ao mesmo tempo, quase tão concentrados como os urbano-dependentes. A eles demos o nome de urbano-contingentes.12 Contingência essa que detalharemos mais adiante. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 55 8 Resume-se aqui, brevemente, a tipologia apresentada em Tinoco (2001a; 2001b). 9 Para uma descrição detalhada das diferenças setoriais do processo inovativo ver Quadros, Furtado & Bernardes (1999). 10 Urbano-dependentes – cinco setores: Máquinas de Escritório e Equipamentos de Informática; Instrumentos de Automação; Eletrônica e Aparelhos de Comunicação; Materiais Eletrícos; Produtos Químicos. 11 Urbano-indiferentes – cinco setores: Alimentos e Bebidas; Extração Mineral; Refino de Petróleo e Álcool; Couro e Calçados; Minerais Não-Metálicos. 12 Urbano-contingentes – sete setores: Papel e Celulose; Produtos Têxteis; Borracha e Plásticos; Produtos de Metal; Vestuário e Acessórios; Metalurgia Básica e Edição; Impressão e Gravação. D A S 13 Importância que é atribuída pelas empresas numa escala de zero a cinco. 14 Em grande contraste com, por exemplo, a estrutura de fontes da indústria francesa, onde, em média, 30,33% das empresas se utilizam de fontes internas (57% de seus laboratórios de P&D) e apenas 15,33% delas se utilizam de fontes externas não-púbicas, conforme Boyer & Didier (1998). 15 Esse índice é uma média ponderada entre o grau de uso de cada tipo de fonte para as empresas inovadoras de um determinado setor e as respectivas notas de importância. Poderia ser no máximo 1, se todas as empresas inovadoras utilizassem todas as fontes daquela classificação, atribuindo-lhes a nota máxima 5. Assim, buscamos um índice que nos forneça a importância média de cada classificação de fonte, para que possamos comparar, setor a setor, fontes diferentes de inovação. Isto não poderia ser feito fonte a fonte, uma vez que, isoladamente, não têm significado econômico. Universidade é uma fonte importante, mas não é determinante por si só. O índice do conjunto das fontes Jacobs nos fornece um indicador de quanto, na média, instituições como universidades, institutos de pesquisa, consultorias etc. são importantes para o processo inovador, mesmo que, internamente à média, haja enorme variância. Formalmente temos: Ii = (Σj (Gj x Nj))/5J , Onde Ii é o índice para cada grupo de fonte; J é a quantidade de fontes em cada grupo; Gj é o percentual de empresas inovadoras em cada setor; e Nj é a nota média de cada fonte. E C O N O M I A S D E A G L O M E R A Ç Ã O No entanto, isso nos diz muito pouco sobre o que essas empresas entendem por inovação e as diferentes estratégias de coordenação em vistas ao processo de obtenção de informação para o processo inovativo. Como vimos, esse processo se fundamenta cada vez mais na interação de diversas fontes de informação e na constituição de competências específicas desse processo. Na realidade, o fundamento da tipologia apresentada é o estudo do portfolio de fontes de inovação setorial para o processo inovador. Lembrando Pavitt (1991), se cada setor tem uma trajetória tecnológica diferente, com núcleos de competência específicos, é plausível esperar que possuam balanços diferentes entre as diversas fontes de informação possível, uma vez que cada tipo de fonte pode ser associado com tipos de competências diferentes; que tenham, na realidade, diferentes estratégias de coordenação com vistas à inovação. E as diferenças de portfolio de fontes podem ser entendidas como parte integrante dessa diferenciação de estratégias de coordenação. Como são, portanto, as diferentes formas de inovação? Será que a tipologia aqui proposta pode ser capaz de diferenciar esses diversos comportamentos? Os dados da Paep referem-se a treze diferentes fontes, agrupáveis em quatro grandes tipos (cujos percentuais se referem a todos os setores da RMSP juntos): 1 Fontes internas: P&D interna; outros departamentos; e outras empresas do grupo. Com utilização média de 29,72% das empresas com importância média de 3,04.13 2 Fontes externas públicas: universidades e institutos de pesquisa. Com utilização média de 28,09% das empresas com importância média de 2,49. 3 Outras fontes externas: fornecedor de materiais; consultorias; clientes; competidores; fornecedores de bens de capital. Com utilização média de 37,20% das empresas com importância média de 3,08. 4 Informações gerais: conferências públicas; licenças; e feiras e exposições. Com utilização média de 33,35% das empresas com importância média de 2,86. A primeira constatação é a de que as fontes externas não-públicas são as mais utilizadas e as mais importantes para o geral dos setores paulistas. Essa ênfase nas fontes externas caracteriza um tipo de inovação relativamente distante daquela que imaginamos nascer nos laboratórios de pesquisa e desenvolvimento. Caracteriza uma economia em que as empresas muito mais adotam e difundem tecnologia do que realmente uma capacidade de induzir a novas tecnologias.14 Resultado que nos lembra que o conceito de inovação como processo de busca de diferenciação perante a concorrência está longe de poder ser reduzido ao resultado de investimentos em P&D. A estratégia de coordenação que visa a diferenciação pode apresentar-se de diversas formas. E é justamente essa diversidade que buscamos. Para tanto, reorganizamos as fontes de acordo com os tipos de externalidades dinâmicas com as quais elas podem ser associadas e calculamos um índice de importãncia média para cada um dos três tipos:15 • Economias de escala internas à empresa: para o processo inovativo, têm relação com os ganhos de diversificação (que é o padrão para a economia schumpeteriana, no lugar da produtividade da economia neoclássica) advindos de esforços preponderantemente internos: as fontes internas. • Externalidades tipo MAR: são os ganhos de diversidade advindos das relações externas à firma, mas internas à indústria. Advindos de um ambiente especializado. Quais sejam, as fontes externas não-públicas, retirando-se consultorias. • Externalidades do tipo Jacobs: são os ganhos de diversidade advindos das relações de coordenação com agentes externos à firma e, também, externos à indústria. Advindos 56 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 A L E X A N D R E T I N O C O de um ambiente diversificado que inclui as fontes públicas, as consultorias e as de informações gerais.16 Ao definirmos as fontes desta forma, estamos também definindo três racionalidades do processo dinâmico (ou da ação de aglomerar, para estudos estáticos) ligadas ao processo inovativo. No primeiro caso, se o que conta para o processo de diversificação são apenas os esforços internos, a empresa teria uma grande independência de qualquer tipo de aglomeração (do ponto de vista do processo inovativo), seja ela urbana ou não. O que caracterizaria sua indiferença de localização metropolitana, tendo-se em vista apenas o processo inovativo. No segundo caso, a ação de aglomerar necessária, seguindo-se a racionalidade do processo de diferenciação, será do tipo aglomerações industriais não necessariamente metropolitanas. Do tipo distritos industriais ou clusters. Isso não quer dizer que não possam se encontrar concentradas em regiões metropolitanas, mas sim que essa relativa concentração é uma contingência de sua ação, podendo, do ponto de vista do processo inovativo, estar ou não concentradas em regiões metropolitanas como a de São Paulo. O que as atrai para regiões metropolitanas não é a diversidade dessas regiões, a razão de ser metropolitana, mas sim o fato de que, devido ao tamanho da concentração, o diversificado também pode ser especializado do ponto de vista de uma indústria. Mas não podemos confundir os motivos pelos quais esses setores se encontram nas metrópoles. O terceiro tipo dos ganhos de diversificação advindos da utilização das fontes ligadas a economias de urbanização define uma racionalidade de aglomeração do tipo metropolitana. Seriam setores que teriam suas performances estreitamente vinculadas com a razão de ser, segundo Jacobs, de uma metrópole, sua diversificação, sua capacidade de criar novas atividades e novas formas de trabalho. O que pudemos notar é que os setores urbano-dependentes inovam não apenas mais que os outros tipos, mas de maneira diferente, dando mais importância relativa às fontes externas de informação para o processo inovador ligadas a serviços urbanos, tipo universidades, institutos de pesquisa, feiras e exposições e consultorias, que o restante dos setores, indicando uma forte necessidade de localização urbana para a manutenção de seu alto grau inovador. Em média, esses setores apresentam um diferencial de importância das fontes ligadas a externalidades Jacobs, relativamente à importância que dão para suas fontes ligadas a externalidades MAR (as principais para todos os setores), da ordem de 36% acima dos setores urbano-contingentes e da ordem de 21% acima dos setores urbanoindiferentes. Este diferencial caracteriza um grupo de setores extremamente dependente, para suas performances econômicas inovadoras, da proximidade tipicamente metropolitana de relações que extrapolam o simples contato comercial entre os agentes. Analisando os diferenciais do ponto de vista das externalidades MAR, de aglomerações não necessariamente vinculadas ao aspecto metropolitano, saltam aos olhos os setores urbanocontingentes, não tão inovadores, porém concentrados, que atribuem maior importância relativa às fontes MAR, não necessariamente de grandes metrópoles, como clientes, fornecedores e competidores, em relação à importância das fontes internas da ordem de 38% maiores que os urbano-dependentes, e da ordem de 15% maiores que os urbano-indiferentes. Caracterizam a forte hipótese de que são setores que se concentram em regiões urbanas apenas porque o sistema produtivo brasileiro impede o desenvolvimento das demais regiões, ou seja, como uma contingência do tipo de desenvolvimento urbano brasileiro. Já os urbano-indiferentes se caracterizam não apenas como pouco inovadores e não concentrados, mas como os que dão maior importância relativa às fontes internas de inovação, P&D, outros departamentos e outras empresas do grupo, caracterizando um grupo R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 57 16 Note-se que aqui a especialização se dá em toda a cadeia produtiva de um determinado setor. Mesmo que as informações venham de um fornecedor de um outro setor, é uma informação que faz parte dessa cadeia produtiva. Diferentemente das informações advindas, fundamentalmente, do setor terciário, que definem um ambiente diversificado. D A S E C O N O M I A S D E A G L O M E R A Ç Ã O de setores que, para o pouco que inovam, são-lhes quase suficientes seus investimentos em P&D. Se tivessem a necessidade de serem mais inovadores, por uma maior concorrência, por exemplo, talvez tivessem que buscar os centros urbanos para poderem adequar-se ao padrão de adoção de tecnologias. Teriam que se aparelhar melhor na busca de novas tecnologias fora de seus domínios. Ou seja, de acordo com essa tipologia, aqui apresentada de forma sintética, teríamos, na RMSP, dado o elevado grau de concentração tanto dos setores urbano-dependentes e urbano-contingentes, a coexistência de duas externalidades dinâmicas. Tanto uma racionalidade do tipo MAR, para a qual a especialização é extremamente relevante, como uma racionalidade do tipo Jacobs, para quem a diversificação tem um papel fundamental na atração das empresas e para o processo de crescimento. O que queremos apontar é que a RMSP, longe de passar por um processo de “desindustrialização”, tem ainda uma forte dinâmica industrial. Mais ainda, tem várias dinâmicas industriais. Possui uma dinâmica em que se apresenta como o local fundamental para o desenvolvimento dos setores urbanodependentes (característica que pode muito bem vir a repartir com outras regiões metropolitanas), dinâmica essa de local privilegiado para a troca de informações relativas ao processo inovativo. Espaço fundamental para o enfrentamento da crescente concorrência com que esses setores se defrontam. Mas também apresenta fôlego significativo para os setores urbano-contingentes (apesar de serem esses os mais atingidos pelo processo de delocalização) mais competitivos. No entanto, em relação a esse tipo de dinâmica, a ação de se aglomerar na RMSP é apenas uma entre outras várias opções de localização. A escolha não apenas é entre São Paulo e as outras regiões metropolitanas brasileiras. Como esses setores na realidade não são tão dependentes da diversificação urbana, a ação de aglomerar é muito mais sensível a outros fatores e o processo de desconcentração regional se torna aí mais plausível. IMPLICAÇÕES CONCEITUAIS E METODOLÓGICAS PARA O ESTUDO DA METRÓPOLE Tivemos aqui, simultaneamente, duas trajetórias. Uma empírica e outra teórica. Ao mesmo tempo que buscávamos novos instrumentais teóricos e empíricos que nos permitissem novas abordagens da realidade econômica de São Paulo, procuramos requalificar o conceitual das economias de aglomeração, recuperando o debate especialização/diversificação como motor do desenvolvimento das aglomerações industriais. Do ponto de vista teórico, verificamos que o debate especialização/diversificação tornou-se enormemente complexo nos últimos anos e que se apresenta como uma revitalização dinâmica de um arsenal estático amplamente utilizado pela economia regional e urbana. Os conceitos de externalidades dinâmicas MAR e Jacobs definem dois mecanismos de crescimento (fundados no aprendizado industrial e na inovação) que encontram paralelo estático nas economias de localização e de urbanização para as teorias de localização industrial. Do ponto de vista empírico, conseguimos apontar que essas duas racionalidades econômicas se encontram na cidade de São Paulo. As duas atuam simultaneamente no processo de aprendizado das indústrias metropolitanas. Ao mesmo tempo que conseguimos mostrar que São Paulo ainda possui dinâmicas industriais (não mais no singular) próprias, e que a distinção MAR/Jacobs faz sentido do ponto de vista dos processos inovativos empresariais. 58 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 A L E X A N D R E T I N O C O Mostramos que, para todos os setores presentes na RMSP, as externalidades tipo MAR são, em termos absolutos, as mais importantes. Se tivéssemos que responder à ingênua pergunta sobre qual externalidade é mais importante, diríamos, sem dúvida, que são as do tipo MAR. Os dados da Paep são convincentes. No entanto, e no sentido da complexidade dessa dicotomia, verificamos que, para alguns setores, justamente os mais inovadores, as externalidades Jacobs são relativamente mais importantes do que para outros setores.17 A relação entre o fato de serem mais inovadores (e concentrados) e de darem mais importância relativa às externalidades Jacobs nos sugere que os setores que se defrontam com processos concorrenciais mais acirrados (mais inovadores, portanto) devem recorrer a todos os recursos disponíveis. Para inovar não lhes basta externalidades MAR. Elas são necessárias, mas não suficientes. A condição de suficiência é dada pelas externalidades Jacobs. E uma relação de necessidade–suficiência é muito mais complexa do que uma dicotomia entre essas duas fontes de crescimento dinâmico das cidades. Poderíamos dizer que, para os setores maduros tecnologicamente, com produtos massificados, controlados por grandes empresas, pouco concorrenciais (no sentido schumpeteriano), a inovação MAR (processo de inovação fundado nas externalidades dinâmicas MAR) é necessária e suficiente. No entanto, para os setores de alta tecnologia, de produção flexível e altamente concorrencial, o que dá a condição de suficiência é um processo de inovação Jacobs, porém a inovação MAR continua necessária. É o que mostramos em nossa tipologia. Os setores urbano-dependentes18 são na realidade setores que necessitam de inovações Jacobs para se desenvolverem. Necessitam do caráter metropolitano da diversidade de Jacobs para suas possibilidades de crescimento. Esses setores dificilmente serão deslocados para aglomerações industriais não-metropolitanas. No entanto, para os setores urbano-contingentes, que dão pouca importância para inovações Jacobs, podemos esperar uma maior facilidade no sentido de um equilíbrio regional, tendo mesmo como alvo aglomerações industriais não necessariamente metropolitanas. Não é à toa que são os setores que mais diminuíram sua participação regional na RMSP nas últimas décadas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARROW, K. J. “The economic implications of learning by doing.” Review of Economic Studies, 29, 155-173, 1962. BAIROCH, P. Cities and economic development: from the dawn of history to the present. Chicago: University of Chicago Press, 1988. BALDWIN, R.; FORSLID, R. “The Core-periphery model and endogenous growth: stabilizing and destabilizing integration.” Economica, 67, 307-324, 2000. BALDWIN, R., MARTIN, P.; OTTAVIANO, G. I. P. “Global income divergence, trade and industrialization: the geography of growth take-offs.” Journal of Economic Growth, 6, 5-37, 2001. BOYER, R.; DIDIER, M. 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A B S T R A C T Reconstructing the debate on the specialization/diversification of the economic activity as the engine of the urban development, this article retraces the construction of the concepts of dynamic externalities MAR and Jacobs and reuses them for the study of the innovative processes of the industrial firms of the Metropolitan Region of São Paulo. Therefore, it searches to deepen the following debates: one in the field of the theoretical construction and other in the field of interpretation of economic reality of São Paulo in the decade of 1990. The empirical instruments for such are based on the construction of an industry portfolio of sources for the innovative process. K E Y W O R D S Economies of agglomeration; externalities of knowledge; innovation; specialization; diversification. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 61 IMPLANTAÇÃO DE INFRA-ESTRUTURA DE SANEAMENTO NA REGIÃO METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO UMA AVALIAÇÃO DAS AÇÕES DO PROGRAMA DE DESPOLUIÇÃO DA BAÍA DE GUANABARA ANA LUCIA BRITTO R E S U M O Este trabalho apresenta alguns resultados de pesquisa em desenvolvimento sobre a implantação e gestão das infra-estruturas e serviços de saneamento na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). Nele analisamos, com base no mais importante macroprograma em desenvolvimento, o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), se ele vem contribuindo para uma ampliação do acesso aos serviços nas áreas carentes da RMRJ. Nossa análise mostra que o desenvolvimento do programa tem sido extremamente lento e que, apesar do volume importante de recursos aplicados por agentes financiadores externos, o PDBG ainda não logrou seus objetivos de ampliar o acesso e melhorar significativamente a qualidade desses serviços em áreas carentes da região. P A L A V R A S - C H A V E Saneamento ambiental; meioambiente; Região Metropolitana do Rio de Janeiro; Baía de Guanabara; infra-estrutura urbana; gestão urbana; serviços urbanos. INTRODUÇÃO Iniciado em 1994 e financiado pelo Banco Mundial e pelo JIBIC (Japan Bank for International Cooperation), o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara tem por objetivos gerais recuperar os ecossistemas presentes no entorno da Baía de Guanabara e resgatar gradativamente a qualidade das águas da Baía e dos rios que nela deságuam, através da construção de sistemas de saneamento adequados em municípios situados no entorno da Baía. Nossa análise procura demonstrara que o PDBG não tem alcançado os objetivos propostos. Buscaremos discutir neste artigo o processo de implementação do programa e verificar os impasses gerados, avaliando por que, apesar do volume importante de recursos investidos, resultados limitados têm sido obtidos no que concerne à ampliação do acesso aos serviços de saneamento nas áreas carentes da RMRJ e à melhoria da qualidade do ambiente urbano da região. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 63 I M P L A N T A Ç Ã O D E I N F R A - E S T R U T U R A HISTÓRICO E CARACTERÍSTICAS DO PROGRAMA O Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG) apresentou-se inicialmente como o maior conjunto de obras de saneamento dos últimos vinte anos no Estado do Rio de Janeiro, tendo por objetivos gerais recuperar os ecossistemas ainda presentes no entorno da Baía de Guanabara e resgatar gradativamente a qualidade das águas e dos rios que nela deságuam, através da construção de sistemas de saneamento adequados. A recuperação dos ecossistemas e da qualidade das águas são resultados a serem esperados a muito longo prazo, pois o objetivo real do programa é a construção de um cinturão de saneamento no entorno da Baía. A proposta original do projeto era tratar, até 1999, 47% do esgoto despejado diariamente na Baía de Guanabara, pois quando iniciado o projeto apenas 15% do esgoto produzido no entorno da Baía recebia tratamento. Na cidade do Rio de Janeiro, os bairros do Centro e da Zona Norte são responsáveis pela produção de um quarto de todo o esgoto que polui a Baía. O resto provém dos municípios da Baixada Fluminense e das regiões de São Gonçalo e Niterói. O programa prevê a implantação de 1.248 quilômetros de rede de esgoto. A estimativa é de que, após a conclusão do projeto, 239 toneladas de carga orgânica deixarão de ser despejadas na Baía de Guanabara todos os dias. O despejo de 211 toneladas de esgoto ainda sem solução com as obras programadas deve entrar em uma nova etapa do PDBG a ser negociada com os agentes financiadores. Mesmo não havendo uma recuperação total da qualidade das águas da Baía de Guanabara, as obras previstas no PDBG são fundamentais, pois possibilitarão melhorar a qualidade de vida em partes da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, onde a situação dos serviços de saneamento e a qualidade ambiental ainda são precárias, como na região da Baixada Fluminense, e no município de São Gonçalo. Cumpridas as metas anunciadas no programa, haverá um aumento significativo das taxas de cobertura e da qualidade dos serviços de abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de resíduos sólidos nestas áreas. O PDBG deveria inserir-se em uma linha de continuidade na política de saneamento para a Região Metropolitana, pois muitas das ações previstas nesse programa deveriam vir a complementar ações realizadas pelo programa Reconstrução Rio, desenvolvido entre 1990 e 1996 e financiado pelo Banco Mundial, que incluía entre suas ações obras voltadas para os esgotamento sanitário na região da Baixada Fluminense. Além disso, estas ações viriam a ser complementadas por outras de caráter local, desenvolvidas dentro do Programa Baixada Viva, programa voltado para a urbanização de bairros localizados em municípios da Baixada, formulado durante o governo Marcelo Alencar (1995-1998), e que teve continuidade nos governos Antony Garotinho (1999 até abril 2002) e Benedita da Silva. Quando começamos a analisar os objetivos do PDBG, verificamos que o processo de degradação das águas da Baía de Guanabara vem ocorrendo desde os primórdios da ocupação da região. Segundo Elmo Amador, a capacidade de autodepuração das águas da Baía de Guanabara é ultrapassada no período do Brasil Império, nas últimas décadas do século XIX, quando a população da bacia contribuinte ultrapassa quinhentos mil habitantes (Amador, 1992, p.227). No início do século XX, obras de drenagem, dragagens, retificações e canalizações dos rios localizados na região da Baixada Fluminense – iniciadas pela Comissão de Estudos e Saneamento da Baixada, e continuadas por diversas comissões e empresas de saneamento, transformadas posteriormente na década de 1930 no Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), tiveram como conseqüência a des64 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 A N A L U C I A B R I T T O truição de ecossistemas fluviais e um forte assoreamento da Baía. Com o advento da aviação comercial a partir de 1925, aterros de grandes proporções foram realizados para a construção dos aeroportos de Manguinhos (1928-1930), Santos Dumont (1934), Galeão (1949), e Internacional do Rio de Janeiro (1977). Os aterros roubaram, em seu conjunto, cerca de 13 km2 da superfície da Baía, destruíram importantes ecossistemas periféricos e alteraram significativamente o padrão de circulação e sedimentação. A chamada região do “fundo da Baía” foi particularmente afetada pelos aterros do Galeão e Internacional do Rio de Janeiro. A década de 1950, quando se acentua o processo de desenvolvimento urbano-industrial da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, é considerada marco no processo de poluição e degradação da Baía. Os aterros que acompanharam a abertura da avenida Brasil, conjugados à expansão das indústrias poluidoras, principalmente químicas, farmacêuticas e de refinaria, e ainda ao espetacular crescimento populacional e expansão urbana levaram a uma mudança radical na qualidade das águas, flora, fauna e balneabilidade das praias e ao declínio da pesca. Os efluentes industriais, cada vez em maior escala, passaram a contaminar as águas com óleo, metais pesados, substâncias tóxicas e carga orgânica. A expansão urbana e populacional, sem o acompanhamento de serviços adequados de esgotamento sanitário, passou a responder, por sua vez, pela poluição por esgoto doméstico não-tratado, que gradualmente foi tornando as praias do interior da Baía impróprias para o banho. Esta degradação vem sendo objeto de preocupação governamental há muitos anos. Projetos ditos de recuperação da Baía de Guanabara são bastante antigos. Excetuando ações pontuais, o primeiro projeto objetivo mais abrangente foi formulado na década de 60 pela antiga Sursan, durante o Governo Carlos Lacerda (…) O que seria a intervenção na poluição da Baía de Guanabara resultou no que foi denominado Cais de Saneamento, um conjunto de aterros que subtraiu vastas áreas da Baía ao longo da Av. Brasil, incluindo as praias de Maria Angu e Ramos e extensos manguezais. Estes aterros seriam utilizados por vários quartéis, indústrias e o Mercado São Sebastião. Esta concepção sanitarista de recuperação da Baía, com seu sepultamento por aterros, não era nova e teria prosseguimento nos projetos que seriam posteriormente formulados. (Amador & Lima, 1998, p.10.) Nos anos 70 a questão da poluição e da ocupação das margens da Baía continua sendo objeto de preocupação dos poderes públicos. O Projeto Rio, programa do governo federal lançado em 1979 para a urbanização do conjunto de favelas que hoje compreende o Complexo da Maré, situado no entorno da Baía, retirou as palafitas construídas sobre o espelho d'água, mas promoveu a construção de novos aterros. Além destes aterros terem eliminado extensas superfícies e modificado drasticamente o estuário do rio Meriti, seus reflexos não demorariam a ser sentidos, com o aumento do assoreamento na região dos estaleiros do Caju e do cais do Porto, na piora do quadro ambiental da região e no agravamento das cheias na bacia dos rios Faria Timbó e na avenida Brasil. Juntamente com o Projeto Rio foi formulado pelo então Ministério do Interior um programa para despoluição da Baía, que envolvia a construção de estações de tratamento de esgoto dotadas de tratamento secundário, a dragagem e a correção de assoreamentos em focos localizados e a desativação de aterros sanitários na orla da Baía. No entanto estas ações não foram realizadas. Na mesma época a Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema), criada em 1975, desenvolveu uma série de levantamentos e estudos para definir um plano R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 65 I M P L A N T A Ç Ã O D E I N F R A - E S T R U T U R A de despoluição da Baía. Em 1987 foi elaborado o Programa para Despoluição Gradual do Ecossistema da Baía de Guanabara, que passou a constituir, já na ocasião, uma prioridade da administração estadual. Esta prioridade, no entanto, não se concretizou em ações que conseguissem uma efetiva melhora das condições das águas. Ao contrário, como mostram diferentes estudos analisados nessa pesquisa, a qualidade das águas foi piorando progressivamente. Na Baía de Guanabara, desde 1975 o declínio da qualidade das águas tem sido substancial e generalizado, como mostra a tabela 1. 1 Parâmetros: DBO, demanda bioquímica por oxigênio, estima os níveis de oxigênio que são consumidos na oxidação biológica da matéria orgânica de um sistema aquático; quanto maior a DBO, maior será o teor de matéria orgânica nos corpos d’água. Tabela 1– Processo de deterioração da Baía de Guanabara 1975/19921 Elementos DBO (mg/l) Clorofila (µg/l) Coliforne total (MPN/100) Período 1975 secas 2,5 1992 4 chuvas 2,3 6,3 secas 3,7 38,7 chuvas 4,8 40,8 chuvas 788 3.000 Fonte: Sosp, 1997. 2 Os níveis médios referentes ao rio Sarapuí são: DBO: 26/mg/l; OD: 0,7/mg/l; e colifornes fecais: 17.500/ MPN/100ml. No lado oeste da Baía, o mais afetado pela poluição, a água está morta, quase sem transparência, com baixos níveis de oxigênio, superfície oleosa, e altos níveis de plâncton. Isto porque tanto esta área como o conjunto da Baía recebem um volume importante de dejetos industriais e esgotos domésticos. Dos rios que deságuam na Baía os que contribuem com maior carga poluidora estão localizados na sub-bacia oeste, que compreende parte do município do Rio de Janeiro e parte dos municípios de Nilópolis, São João de Meriti e Duque de Caxias. Nesta bacia os rios Canal do Mangue, Canal do Cunha, Canal da Penha, Irajá e São João de Meriti estão fortemente poluídos pelos esgotos domésticos. Na extensão da Baía próxima a Bacia Oeste os segmentos mais críticos em termos de poluição encontram-se entre o continente e a Ilha do Governador e a Ilha do Fundão. Nestes locais encontram-se os mais altos níveis de concentração de carga orgânica. O nível de transparência das águas é bastante baixo, e a superfície das águas, poluída por óleo e lixo. Logo a seguir, no que concerne ao lançamento de carga poluidora, estão os rios da sub-bacia Noroeste, que compreende os municípios de Nilópolis, São João de Meriti, Belford Roxo, Duque de Caxias. Nesta sub-bacia os rios com maior carga poluidora são o Sarapuí e o Iguaçu, que se unem pouco antes desaguar. Entre os dois, o Sarapuí é o mais poluído2. O rio Iguaçu, apesar de bastante poluído devido ao grande volume de óleo e outros poluentes lançados principalmente por indústrias (refinarias), apresenta condições de qualidade da água um pouco melhores, porque tem maior fluxo e melhor capacidade de diluição da carga poluidora que recebe. Os rios da sub-bacia leste, que abrange os municípios de São Gonçalo e Niterói, estão em terceiro lugar em termos de contribuição de carga poluidora para a Baía. Os principais são os rios Alcântara, Bomba e Canal do Canto do Rio, alguns deles com níveis de poluição bastante próximos aos da sub-bacia nordeste. Os únicos rios da bacia da Baía de Guanabara que ainda apresentam condições de qualidade da água mais aceitáveis são os localizados na sub-bacia nordeste, que compreende os municípios de Guapimirim, Itaboraí, e parte dos municípios de São Gonçalo e Niterói. Considerando o conjunto da Baía, a tendência mais preocupante tem sido o rápido crescimento dos níveis de algas, e sua contribuição cada vez maior para a carga global 66 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 A N A L U C I A B R I T T O de poluição orgânica, ameaçando a qualidade da água e os recursos ecológicos e de pesca no lado nordeste, na foz dos rios Guapimirim e Caceribu. A questão da poluição da Baía volta à ordem do dia no início dos anos 90. Em outubro de 1990 a Superintendência de Captação de Recursos da cidade do Rio de Janeiro, preocupada com a preparação da Eco-92, reuniu um conjunto de projetos de obras e de atividades relacionados com a precariedade urbana do Rio de Janeiro e com os impactos ambientais resultantes dessa precariedade. A superintendência era, na ocasião, o órgão coordenador, no âmbito da prefeitura, do Programa Reconstrução – Rio, programa financiado pelo Banco Mundial para a recuperação após as violentas enchentes ocorridas em fevereiro de 1988. Naquele início de década, via-se aquele conjunto de obras e serviços como uma conseqüência e desdobramento ambiental do precedente programa do Banco Mundial. A cidade não tinha recursos próprios e o próprio país vivia os resultados de uma década que para a América Latina ficou conhecida como a década perdida. Assim, o novo conjunto de obras e serviços preparatórios para a Eco-92 só poderia ser executado se obtivesse financiamento internacional. E só poderia obter financiamento se aceitasse os condicionamentos dos organismos internacionais. Ao serem contatados, os técnicos do BID no Brasil, que estudavam projetos de saneamento básico para o país e para o estado do Rio de Janeiro, viram no conjunto de obras e atividades apresentados pela superintendência uma possibilidade de interação entre meio ambiente e desenvolvimento. (Sanchez, 2000, p.5.) Segundo Manuel Sanches, o Banco, sob o efeito das pressões dos ambientalistas internacionais, necessitava um projeto que criasse empregos e melhorasse o ambiente, dentro da linha de desenvolvimento e ecologia que era tema e título da conferência a ser realizada em 1992. No final de 1990, Leonel Brizola é eleito para o governo do Estado do Rio de Janeiro. Isto permitiu uma identidade de políticas governamentais entre o Estado e o município, cujo prefeito era Marcelo Alencar, então do Partido Democrático Trabalhista (PDT), mesmo partido que Brizola. Estava assim montado o acordo político para viabilizar a negociação do programa com o Banco. A proximidade da ECO 92 mobilizou o governo estadual, que criou a Comissão de Gerenciamento de Projetos Especiais para a Bacia da Baía de Guanabara, substituída em dezembro de 1991 pelo Grupo Executivo da Despoluição da Baía de Guanabara (Gedeg). Foi mobilizado também o governo federal que, em agosto de 1991, se comprometeria com o programa através de decisão da Comissão Interministerial de Financiamentos Externos (Cofiex). O governo do estado, apresentou ao BID, em Washington, a primeira proposta do programa, no valor de 4 bilhões de dólares, divididos em quatro etapas e com uma previsão de realização em 15 anos. A análise do BID restringiu-se à primeira etapa desta concepção global, eliminando os componentes de resíduos industriais e reflorestamento e englobando-os no que foi designado como projetos ambientais complementares. As questões sanitária e urbana foram privilegiadas ficando o programa limitado a cinco componentes: saneamento, limpeza urbana, macrodrenagem, mapeamento digital e coleta fiscal, e programas ambientais complementares. A impossibilidade do estado entrar com uma contrapartida alta imediatamente fez com que parte dela fosse transferida ao município do Rio de Janeiro, que afinal realizou contratos separados com o BID. Outra parte da contrapartida exigida pelos órgãos multilaterais foi transferida a Cedae, que arrecada diretamente as taxas de água e esgoto a serem usadas como pagamento e que teria a maior parte do financiamento. A garantia maior contudo continuava R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 67 I M P L A N T A Ç Ã O D E I N F R A - E S T R U T U R A sendo, como o fora no passado, o aval da União. A partir da impossibilidade do governo estadual participar com uma maior contrapartida, o BID resolveu diminuir os seus riscos incluindo o governo japonês, através da OECF (The Overseas Economic Cooperation Fund) do Japão, e posteriormente do JBIC (Japan Bank for International Cooperation), na negociação, e o governo do estado resolveu transferir parte de seu desembolso para os últimos anos do programa, concentrando-o no contrato das obras com recursos japoneses. (Sanches, 2000, p.8.) Durante a Conferência Mundial das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, no Rio de Janeiro, em junho de 1992, o governo do Estado, o BID e o OECF anunciaram o compromisso de despoluir a Baía da Guanabara, através do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG). CARACTERÍSTICAS DO PROGRAMA Em termos de recursos o PDBG mobilizou inicialmente 793 milhões de dólares, sendo este valor posteriormente corrigido para 860,5 milhões de dólares. A distribuição dos recursos por fonte de financiamento é a seguinte: US$ 236,7 milhões do JBIC; US$ 350 milhões do BID; e US$ 273,80 milhões do Governo do Estado do Rio de Janeiro/Cedae. A distribuição dos recursos mobilizados pelo programa por fonte de financiamento encontra-se na tabela 2. Tabela 2 – Tipo de custos por fonte de recursos (US$ milhões) – custos iniciais em abril de 1994 Tipo/Fonte BID Engenharia/ Custos Administração Diretos Op. Crédito Op. Especiais JBIC Estado Total Custos Concorrentes Juros e Imprevistos Total 300,0 220,9 8,3 70,8 10,3 35,0 4,0 0,7 50,0 13,5 169,7 53,5 236,7 Governo 8,5 128,8 1,9 10,2 149,3 Cedae 22,0 30,8 5,8 65,9 124,5 48,2 568,5 20,0 155,7 860,5 Fonte: Grupo Executivo para a Despoluição da Guanabara – 1996. O PDBG trabalha com uma concepção ampla de saneamento, que podemos considerar próxima de uma perspectiva de saneamento ambiental, englobando diferentes componentes: esgotamento sanitário e tratamento de efluentes, abastecimento de água, resíduos sólidos, macrodrenagem, controle da poluição industrial e educação ambiental. Ele envolve, no planejamento e na execução das ações, diferentes organismos de governo: a Cedae, responsável pelos componentes esgotamento sanitário e abastecimento de água; a Serla, responsável pela macrodrenagem; a Sosp, pelo componente resíduos sólidos; a Feema, pelos programas ambientais complementares. Salientamos, todavia, que a elaboração do programa se fez sem participação dos municípios, e que não está explicitada no escopo do projeto o formato da participação municipal na gestão e execução do projeto. O centro do programa é o esgotamento sanitário, componente que concentra a maior parte dos investimentos (51,2%), em relação ao qual estão previstas ações que viriam a criar o cordão sanitário no entorno da Baía de Guanabara, através das seguintes obras: construção de cinco novas estações de tratamento de esgotos (Sarapuí, Pavuna, 68 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 A N A L U C I A B R I T T O Alegria, Paquetá, e São Gonçalo); reforma e ampliação das estações de tratamento da Penha, da Ilha do Governador e de Icaraí; ampliação da rede de coleta e das ligações domiciliares (1.200/km de rede e 139.000 ligações domiciliares), notadamente nos municípios da Baixada e São Gonçalo, onde os sistemas de esgotamento eram, até o início do programa, praticamente inexistentes3. Estavam também previstas obras para a implantação de sistemas de esgotamento em 27 favelas situadas no entorno da Baía. No município do Rio de Janeiro as intervenções em favelas passaram a articular-se com as ações do Programa Favela Bairro, desenvolvido pela prefeitura. No que diz respeito à dimensão técnica, isto é às escolhas relativas à concepção, à construção, à manutenção, dos sistemas verificamos que o PDBG não introduz grandes inovações. O componente esgotamento sanitário trabalha essencialmente com sistemas tradicionais, propondo estações de tratamento primárias de grande porte. A concepção original do programa previa a construção de estações de tratamento de nível secundário, de maior eficiência com relação à remoção de carga orgânica, mas que implicam maiores custos de implantação e manutenção. No entanto, foi priorizada a aplicação dos recursos financeiros disponíveis na construção de uma extensão maior de rede de coleta, o que traria um benefício mais imediato a um número maior de população. Os projetos executivos das estações de tratamento foram elaborados considerando a possibilidade do tratamento secundário, que poderá ser alcançado em uma segunda fase do programa. Concluída a primeira fase do programa, chegaríamos a uma redução pela metade dos quase 20.000 l/s de esgotos lançados nas águas da Baía. Cabe ressaltar que o programa, quando concluído, não vai efetivamente despoluir a Baía de Guanabara, mas reduzir a carga de poluentes lançados. Não estão previstas para nesta primeira fase ações específicas para limpeza do espelho d'água. Ainda no componente saneamento, o PDBG visa também equilibrar a oferta e a demanda de água na Baixada Fluminense e em São Gonçalo, através da construção de reservatórios e novas linhas de distribuição, e da adoção de mecanismos para o controle de gastos e perdas de água, entre os quais destaca-se a hidrometração. Este componente envolve 37% dos recursos mobilizados pelo programa. Nestas áreas, notadamente na Baixada, o sistema funciona de forma precária pois não existe uma separação física entre adução e distribuição, o que significa a ausência de reservatórios e de uma setorização do sistema de distribuição. Uma série de usuários capta água diretamente das linhas de adução, sendo estas ligações, em grande parte, clandestinas. Isto provoca falta de água ou distribuição irregular em diversos pontos, e ainda ocasiona pressão excessiva em outros. Essa situação conduz ao aumento de vazamentos que provocam danos às tubulações e grande desperdício. As sucessivas ampliações da produção e da adução de águas não chegaram a gerar um volume suficiente para abastecer a região da Baixada Fluminense. Ressaltamos ainda que tanto na região da Baixada como em São Gonçalo estas ampliações foram feitas sem a construção de reservatórios e sem a definição de suas áreas de influência, levando a um sistema com alto grau de incertezas, que funciona precariamente, baseado em permanentes manobras de água. Cabe lembrar que a questão da setorização do abastecimento de água na Baixada já havia sido prevista no governo Moreira Franco (1987-1990), quando foi formulado o Plano de Setorização de Abastecimento de Água da Baixada Fluminense, que no entanto só foi implantado parcialmente. No campo dos resíduos sólidos, componente que deveria ser desenvolvido pela Sosp, o programa previa a melhoria da qualidade dos serviços prestados pelos municípios, através de apoio institucional às prefeituras e do fornecimento de equipamentos visando a R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 69 3 Sobre os sistemas existentes, ver Britto & Cardoso, 2000. I M P L A N T A Ç Ã O D E I N F R A - E S T R U T U R A melhoria dos serviços de coleta, e a recuperação de aterros existentes, com o controle e tratamento de chorume produzido no aterro de Gramacho no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, que recebe grande parte do lixo coletado na RMRJ. O chorume é um dos fatores de poluição da Baía de Guanabara. Estava também prevista a construção de três complexos de destinação final de resíduos, cada qual dotado de uma usina de reciclagem e compostagem, um aterro sanitário e um incinerador de lixo hospitalar em São Gonçalo, Niterói e Magé. Essas obras viriam a complementar ações do programa Reconstrução Rio, que previa a construção de três complexos de destinação final. Estes deveriam se localizar em Nova Iguaçu (Vila de Cava), em Queimados (Santo Expedito) e em Belford Roxo (Nova Aurora). No que concerne ao apoio institucional às prefeituras, as ações desenvolvidas visavam: a modernização do sistema de coleta de lixo atual, com ênfase na terceirização dos serviços nas áreas urbanizadas, onde o acesso com caminhões coletores e compactadores é possível; a orientação das prefeituras para que se capacitassem a fim de implantar sistemas alternativos de coleta em áreas onde as vias de acesso são precárias; o treinamento de equipes locais de gerenciamento e operação de sistemas de coleta e também das usinas e aterros sanitários; o apoio às equipes técnicas das prefeituras no detalhamento da política tarifária a ser implantada, visando compatibilizar custos reais dos serviços implantados e capacidade de pagamento da população. O PDBG inclui ainda, no componente resíduos sólidos, o Programa de Promoção Social dos Catadores de Lixo em Niterói e São Gonçalo, que tem por objetivos integrar formalmente os catadores no mercado de trabalho, aproveitando-os na operação de usinas e aterros. Ao final do programa esperava-se alcançar um percentual de 90% do volume de resíduo produzido adequadamente recolhido; dar solução à destinação final do lixo coletado e equacionar a questão dos resíduos hospitalares. O PDBG inclui ainda o componente drenagem, de responsabilidade da Serla, que mobiliza 2,14% dos recursos, com obras de canalização e retificação de cursos de água na bacia do rio Acari, que complementam as ações desenvolvidas pelo Projeto Reconstrução Rio. O programa prevê ainda a implantação de uma rede hidrometereológica, instalação de uma Central de Informações conectada a trinta estações de medição e transmissão automática de dados climatológicos localizadas em pontos estratégicos da bacia da Baía de Guanabara. Com isso será possível manter informados os órgãos competentes a respeito das variações dos níveis de precipitação pluviométria, dos níveis dos rios e dos canais, possibilitando a previsão de riscos de enchentes. Por último, o programa propunha ações nas áreas de arrecadação tributária, controle e monitoramento da qualidade ambiental da bacia hidrográfica, mapeamento digital, educação ambiental, e apoio institucional. Os componentes mapeamento digital e apoio institucional, de responsabilidade da Fundação Cide, compreendem a implantação de um Sistema de Informações Geo-referenciadas em prefeituras de 12 municípios localizados na bacia hidrográfica da Baía de Guanabara, o que permitiria às prefeituras um conhecimento mais detalhado do território, possibilitando um aumento da arrecadação tributária referente a IPTU, ISS e tarifas de serviços públicos, e também um melhor planejamento urbano-ambiental, através de um maior controle e conhecimento do uso dos solo. Os programas ambientais complementares envolvem reforço institucional do Sistema Ambiental para tornar mais eficiente o controle da poluição ambiental e o monitoramento da qualidade ambiental da área de abrangência da bacia da Baía de Guanabara, 70 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 A N A L U C I A B R I T T O sob responsabilidade da Feema. Neste componente o aspecto central é o controle da poluição industrial. No que concerne aos dejetos industriais, verificamos que existem na região da Bacia hidrográfica 14.304 mil empresas industriais, sendo os tipos predominantes as indústrias alimentícias, químicas e metalúrgicas. Do total de indústrias, seis mil são poluidoras, sendo responsáveis pelo lançamento de 64 t/dia de carga orgânica além de óleos e metais pesados. Entre as industrias poluidoras destacam-se 455 empresas, responsáveis por 90% da poluição industrial. Destas 455 empresas, cinqüenta estão assim distribuídas: 18 no município do Rio de Janeiro; 13 em Duque de Caxias; sete em São Gonçalo; quatro em Niterói ; três em Nova Iguaçu; duas em Magé; uma em Itaboraí; uma em Nilópolis; uma em São João de Meriti, e são responsáveis por 60% da carga poluente. Estima-se que 7 t/dia de óleo são lançadas na Baía pela refinarias de petróleo, pelos terminais marítimos, portos comerciais, postos de serviços de combustíveis estaleiros e outras fontes. A maior responsável pela poluição por óleo é a Reduc, refinaria de Duque de Caxias. O PDBG incluía ainda o desenvolvimento de um programa de educação ambiental, o desenvolvimento de um Plano Diretor de Recursos Hídricos da Bacia da Baía de Guanabara, e a implantação de Unidades de Conservação da Natureza (Parque Serra da Tiririca e Estação Ecológica de Paraíso). ANÁLISE DO DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA GOVERNO BRIZOLA (1991-1994) O PDBG tem a peculiaridade de estar atravessando quatro governos estaduais consecutivos. Até o final do governo Brizola o projeto encontrava-se em fase de licitação da primeira etapa. Na realidade, o programa já começou com uma polêmica sobre o processo de licitação que resultou na demissão, em abril de 1993, do presidente do Grupo Executivo de Despoluição da Baía de Guanabara, pelo governador Leonel Brizola. Este afirmou ter sido exonerado por não aceitar a dispensa de licitação na escolha da empresa consultora e gerenciadora do projeto. Entretanto, a licitação exigida pelo BID foi feita. As idas e vindas do processo de licitação fizeram que, até o final do governo Brizola, nenhuma obra tivesse começado. GOVERNO MARCELO ALENCAR (1995-1998) Em março de 1995 Marcelo Alencar assume o governo do Estado. Iniciam-se as primeiras obras, mas em ritmo extremamente lento. De fato até hoje algumas obras que pelo cronograma já deveriam estar concluídas nem haviam sido iniciadas. Em dezembro de 1995 o BID passa a cobrar do governo do Estado uma multa por ele não ter usado toda a verba disponível. Já em 1996, um ano depois do início das obras, o governo do Estado tinha pouco a comemorar. O atraso no andamento das obras do PDBG custou caro ao Estado, na medida em que era obrigado a pagar um percentual sobre a quantia emprestada e não utilizada. A soma chegou a R$ 2,8 milhões ao BID. Diante das pressões do BID, o governo do Estado decide acelerar as obras. No final do governo (dezembro de 1998) haviam sido aplicados no PDBG cerca de US$ 400 milhões dos recursos previstos. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 71 I M P L A N T A Ç Ã O D E I N F R A - E S T R U T U R A CONTRATO BID O contrato com o BID, assinado em novembro de 1993 e liberado a partir de 1994, se desenvolveu quase que completamente entre 1995 e 1998, cobrindo todos os componentes, as obras relativas ao abastecimento de água e parte do tratamento de esgotos. No que tange o abastecimento de água, estavam previstas para serem realizadas na primeira fase as subadutoras, a rede tronco e os reservatórios, visando a setorização e a regularização da oferta de água na Baixada Fluminense dentro dos sistemas de abastecimento denominados Lote XV, Retiro Feliz, Palmira, Parque 25 de Agosto, Coelho da Rocha e Édem. Até outubro de 1998 haviam sido instalados 220.282 m de rede e oito mil das trinta mil ligações domiciliares previstas (26,6%). As obras de construção dos reservatórios foram dadas como concluídas no final de 1998. No entanto, devido a problemas no sistema de adução para a Baixada, os reservatórios permanecem vazios e as redes instaladas não levam efetivamente água à população. Este problema é crucial pois, sem a solução da questão da reservação, não se resolve o problema da descontinuidade do abastecimento. Hoje o abastecimento da região se faz através de manobras no sistema, o que implica que determinadas áreas nunca têm um abastecimento contínuo. A solução passa necessariamente por uma ampliação do sistema de adução para Baixada. Também estavam previstas obras em favelas da Ilha do Governador, localizadas na Baia de Guanabara, e obras na Zona Sul do Rio de Janeiro, na região às margens da Baía. No final do governo Marcelo Alencar as obras ainda não haviam sido concluídas. No que concerne a melhoria dos sistemas de abastecimento em São Gonçalo, foram instaladas redes, mas os reservatórios não foram concluídos, impossibilitando o acesso dos moradores a uma melhoria dos serviços. No campo dos resíduos sólidos, na Baixada Fluminense, estavam previstas obras de reforma e adequação de duas estações de transferência de lixo localizadas em Nilópolis e São João de Meriti e a construção de postos de apoio a coleta de lixo (nove em Duque de Caxias, seis em São João de Meriti). Até outubro de 1998, apenas uma parte das obras ainda não havia sido concluída. A questão da destinação final dos resíduos, no entanto não foi resolvida pois as usinas de Queimados, Belfort Roxo, e Nova Iguaçu, projetadas pelo Programa Reconstrução Rio, para onde deveria ser levado o lixo coletado encontravam-se desativadas. É importante notar que a operação das usinas cabe aos municípios, que consideram o custo operacional muito alto. De fato cada tonelada de lixo tratado custa quatro vezes mais que o despejo feito em aterro sanitário. As usinas previstas para os municípios de Niterói, São Gonçalo e Magé, a serem construídas com recursos do PDBG, ainda encontravam-se em fase inicial de obras. Vale ressaltar que a operação destas usinas, quando concluídas, também deverá ficar a cargo dos municípios. Ainda com relação ao contrato com o BID, estavam previstas obras para implantação de sistemas de esgotamento em Niterói (Icaraí) e São Gonçalo, nas favelas e nas Ilhas do Governador e Paquetá. Com relação ao esgotamento foram feitos investimentos em ampliação da capacidade de estações de tratamento da Ilha do Governador (de 200 para 525 l/s) e de Icaraí, que operava em sobrecarga. Esta última que faz tratamento secundário de esgoto e está ligada a um emissário submarino teve sua capacidade de tratamento ampliada de 700 l/s para 1.000 l/s. No que concerne ao município de São Gonçalo, as obras para implantação de sistema de esgotamento encontravam-se em andamento, mas com o cronograma atrasado. Verificamos que em São Gonçalo foi iniciada a implantação de rede de esgotamento. Foi construída uma nova estação de tratamento em Paquetá. Hoje no entanto a ilha encon72 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 A N A L U C I A B R I T T O tra-se cortada por valas negras e o esgoto transborda nos bueiros por falhas no funcionamento do sistema. As obras relativas à implantação de sistemas de esgotamento nas favelas da Ilha do Governador e de Niterói encontravam-se em andamento. Durante o governo Marcelo Alencar foram feitas ampliações no escopo do programa, aproveitando sobras nos recursos do BID, graças a preços menores obtidos nas licitações e a diferenças de câmbio. Esta ampliação concerne à reformulação do sistema de coleta e destinação final de esgotos do Centro do Rio, envolvendo os bairros do Centro, Catete, Glória e Santa Tereza, cujos efluentes eram lançados in natura na praia junto a Marina da Glória. O projeto prevê instalação de uma rede coletora que leve os esgotos destes bairros para o interceptor oceânico de Ipanema. O contrato com o BID envolvia ainda outros componentes. No componente drenagem foram iniciadas obras na Bacia do Rio Acari. Não foram porém concluídas todas as obras previstas. O mapeamento digital foi concluído, com o levantamento aerofotogramétrico, a elaboração de cartas digitais, a distribuição do material e de equipamento de informática às prefeituras dos municípios situados na área da bacia da Baía de Guanabara, e o treinamento de técnicos das prefeituras para trabalhar com os programas fornecidos. Este componente deveria tornar os municípios capazes de operar um sistema de mapeamento informatizado com informações sobre a cobertura de serviços nos municípios da Baía de Guanabara, o que viria a subsidiar ações das prefeituras referentes a desenvolvimento urbano municipal. No entanto segundo avaliação da direção do Cide, órgão estadual que coordenou o desenvolvimento deste componente do programa, está havendo um desperdício do investimento pela maior parte das prefeituras, que não estão utilizando os equipamentos fornecidos, que permanecem ociosos. Também foi relatado que os técnicos treinados para operar os equipamentos foram deslocados para outras funções. CONTRATO OECF E CONTRAPARTIDA DE OBRAS DO GOVERNO DO ESTADO O outro contrato, com o JBIC, assinado em 1994, e iniciado em 1995, incluía apenas a construção dos sistemas de tratamento de esgotos (estação, interceptores, troncos e elevatória) de Alegria, no município do Rio de Janeiro, Sarapuí e Pavuna-Meriti, ambos na Baixada Fluminense, e a ampliação do sistema da Penha, no Rio de Janeiro. Este contrato encontrava-se ainda em desenvolvimento no final de 1998. Dentro do cronograma de desembolso previsto para a primeira fase do PDBG, as redes de coleta e transporte do esgoto seriam realizadas com recursos do governo do Estado. Examinando a situação da Baixada verificamos que na bacia do Sarapuí, deveriam ser construídos 303 km de redes e troncos coletores de esgoto, 12 linhas de recalque, seis elevatórias e uma estação de tratamento, com capacidade para vazão de 1m3/s. Na bacia do Pavuna, onde não existe sistema organizado de esgotamento sanitário, deveriam ser construídos 403 km de redes e troncos coletores de esgoto, 12 linhas de recalque, dez elevatórias e uma estação de tratamento, com capacidade para vazão de 1m3/s. A análise das ações realizadas nos mostra que, até o final de 1998, no final do governo Marcelo Alencar, as duas estações de tratamento a serem construídas (Pavuna e Sarapuí) não haviam sido sequer licitadas. No que concerne às obras a serem realizadas com recursos do governo do Estado, verificamos que não foi implantado pelo Programa um só metro de rede de esgotamento. No Rio de Janeiro, a estação de tratamento de Alegria chegou a ser inaugurada, mas as obras não estavam realmente concluídas. A estação não podia operar, pois a construção R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 73 I M P L A N T A Ç Ã O D E I N F R A - E S T R U T U R A do sistema de coleta e transporte (tronco/rede) que levaria o esgoto para a estação de tratamento, e que deveria ser feita com a contrapartida do governo do Estado, não foi realizada. De fato, e é importante salientar, durante o governo Marcelo Alencar não foi aplicado nenhum centavo de recursos do governo do Estado no programa. É importante ainda fazer uma breve análise da participação da sociedade civil nas discussões e no desenvolvimento do programa, avaliando como se deu no governo Marcelo Alencar o controle social. Observamos que nos documentos de base, em que é apresentada a estrutura do programa, não há nenhuma referência a instrumentos participativos. Tentando romper com a estrutura centralizadora que norteava o programa, entidades ambientalistas fizeram pressão na Assembléia Legislativa do Estado e, em 1995, foi aprovada a lei estadual que prevê a instalação do Fórum de Acompanhamento do PDBG (Fadeg), cujo objetivo era garantir a transparência do programa. O Fórum teria a participação de 15 prefeitos, empresários, ecologistas, ONGs, governos estadual e federal. Este Fórum, no entanto, nunca chegou a funcionar, pois a lei não chegou a ser regulamentada pelo governo estadual. No que concerne às ONGs, verificamos que algumas entidades, como Os Verdes, a Fase e o Baía Viva buscaram acompanhar o desenvolvimento do programa, mas relataram dificuldades para obter informações do governo estadual. As mesmas dificuldades foram enfrentadas por entidades do movimento popular organizado, como o Comitê Político de Saneamento da Baixada Fluminense, que congrega federações de associações de moradores da região. De fato não existiram ao longo do desenvolvimento do programa canais permanentes de interlocução com a sociedade. As informações eram divulgadas ou pela grande imprensa ou em eventos esporádicos promovidos pela coordenação do programa. Por conta dos gastos considerados exorbitantes, e da baixa efetividade do programa, em abril de 1998, a deputada estadual Miriam Reid (PDT) pediu a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para acompanhar o andamento dos trabalhos do programa, que no entanto não chegou a se constituir. Em fins de 1998, quando estava terminando o governo Marcelo Alencar foi feita a primeira proposta de adiamento do término das obras, que ficou marcado para dezembro de 1999. Em 1999 com o início do governo Garotinho, ocorreram mudanças na gestão no programa e as obras sofreram paralisações. Depois de marchas e contramarchas, diante da ameaça de cancelamento do programa por inadimplências do governo anterior que impediam que o Ministério Público desse o aval para o governo do Estado solicitar a prorrogação do contrato com o BID, as obras relativas às estações de tratamento com financiamento do OECF, e as ações com financiamento do BID foram retomadas. O último pedido de prorrogação data de outubro de 2000 e prevê que a primeira fase do programa deveria terminar entre 2000 e 2002, sendo sucedida de uma segunda fase que constituiria o PDBG II. Observa-se uma diferença de praticamente três anos, com relação ao cronograma inicialmente previsto GOVERNO ANTONY GAROTINHO (1999-2002) CONTRATO BID Garotinho retomou as obras de instalação de rede e ligações domiciliares de água, ações viabilizadas através dos recursos do BID. No entanto os reservatórios permaneceram vazios. A presidência da Cedae divulgou que o problema de falta de água nos reservatórios só seria solucionado através da construção de uma nova adutora para a Baixada Flu74 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 A N A L U C I A B R I T T O minense. A Baixada Fluminense deveria receber sete mil litros de água por segundo. No entanto, segundo técnicos da Cedae, dos sete mil litros que saem do Sistema Guandu, somente dois mil chegam de fato à região – devido aos vazamentos e às ligações clandestinas. A Cedae assumiu a realização da obra da nova adutora, que deverá ligar diretamente os municípios da Baixada ao Sistema Guandu, com cerca de 20 km de extensão. Esta obra, fundamental para que o projeto de melhoria do sistema de abastecimento de água proposto pelo PDBG venha a funcionar, só foi equacionada em 2001, o que revela um desconhecimento dos agentes envolvidos na formulação dos programas de saneamento da real situação dos sistemas existentes. Um outro problema relativo à formulação do programa veio à tona no governo Garotinho. Concluídas as redes e a estação de tratamento de esgotos de São Gonçalo, observou-se que o volume de esgoto que chegava à estação para ser tratado era muito menor do que o previsto, e que o problema de lançamentos de esgotos nos canais da região continuava. Foi verificado então que as ligações domiciliares dos esgotos à rede de coleta não haviam sido realizadas. Os planejadores e executores haviam previsto que estas ligações deveriam ser feitas pelos moradores. No entanto, a população da região, em sua maioria composta por famílias pobres, não estava disposta nem tinha recursos pra arcar com os custos das ligações (aproximadamente 120 reais em 2001). A solução dada pelo governo do Estado foi que a Cedae faria as ligações e seria cobrado um real por mês nas contas de água, até perfazer o custo total da ligação. A mesma solução será aplicada nos municípios da Baixada. Também foram identificados problemas na ETE de Icaraí, em Niterói, pois, concluída a obra, verificou-se que esta estação lança o esgoto praticamente in natura na Baía, já que o único processo pelo qual os efluentes passam não chega a ser tratamento primário completo. CONTRATO OECF E CONTRAPARTIDA DE OBRAS DO GOVERNO DO ESTADO Durante o governo Garotinho foram realizadas e concluídas as obras das estações de tratamento de esgotos da Penha e dos Sistemas Sarapuí e Pavuna, na Baixada Fluminense. As obras das redes de coleta e troncos que deveriam ser feitas com recursos da contrapartida do governo do Estado foram iniciadas, sendo mobilizados recursos do Fundo Estadual de Conservação Ambiental (Fecam)4. No entanto, o ritmo de andamento das obras foi muito lento. O relatório do programa de novembro de 2001 indica que no Sistema Sarapuí apenas 16% das redes previstas haviam sido instaladas; no Sistema Pavuna este percentual era de 6,8%. Continuamos, portanto, diante de uma situação paradoxal, em que as estações de tratamento não têm esgotos para tratar. A estação de tratamento de esgotos da Alegria também foi concluída, mas o percentual de rede e tronco implantados é de 23%. CONCLUSÕES Nossa análise do desenvolvimento do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara nos mostra que, diante do atraso nas obras e da ausência dos investimentos previstos pelo governo do Estado no programa, chegamos ao final de 2001 e concluímos que o PDBG teve uma efetividade muito baixa, sobretudo se considerarmos o volume de recursos investidos pelos agentes financiadores externos. Identificamos ainda problemas na concepção e execução do programa, entre os quais, destacamos: R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 75 4 O Fecam conseguiu arrecadar recursos das multas pagas pela Petrobras pelos sucessivos acidentes de derramamento de óleo na Baía de Guanabara. I M P L A N T A Ç Ã O D E I N F R A - E S T R U T U R A • a ausência de uma avaliação mais aprofundada dos sistemas existentes, o que implicou a construção de reservatórios e sistemas de distribuição de água na Baixada sem se verificar se o Sistema Guandu e as linhas de adução existentes seriam capazes de abastecer estes reservatórios; • a ausência de uma avaliação da capacidade das prefeituras de assumir as infra-estruturas e equipamentos construídos/fornecidos, o que implicou problemas de operação das usinas de lixo, e o não-aproveitamento dos resultados do componente mapeamento digital; • a ausência de uma real avaliação da capacidade financeira do governo do Estado de arcar com a contrapartida requerida, pois a falta de recursos financeiros foi a justificativa alegada pelos diferentes governos para não realizar as obras que lhes cabiam; • ausência de canais de interlocução com a sociedade que permitissem que o programa, na sua concepção e na sua execução, fosse discutido com entidades da sociedade civil, como associações de moradores dos bairros beneficiados, ONGs ambientalistas, universidades, entidades do setor de saneamento etc.; • falhas na concepção técnica de infra-estruturas projetadas, sobretudo no que concerne às estações de tratamento de esgotos. Ana Lucia Britto é professora do Prourb/UFRJ e pesquisadora do Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal. E-mail: anabritto@rionet. com.br Artigo recebido para publicação em setembro de 2003. Todos estes problemas, somados ao atraso nas obras e a falta de investimentos relativos a contrapartida do governo estadual, fizeram que, em áreas de extrema carência de serviços de saneamento como a Baixada Fluminense, o PDBG ainda não tenha logrado seus objetivos de ampliar o acesso e melhorar significativamente a qualidade desses serviços. Além disso, o objetivo de recuperar ecossistemas e melhorar a qualidade das águas da Baía de Guanabara ainda está muito longe de ser alcançado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMADOR, E. da S. ‘‘Baía de Guanabara: um balanço histórico’’. In: ABREU, M. Natureza e sociedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal, 1992. AMADOR, E. da S.; LIMA, S. R. Considerações e propostas dos movimentos ambientalistas Baía Viva e Os Verdes para a Fase II do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara. Rio de Janeiro: s.n., 1998. BRITTO, A. L.; CARDOSO, A. L. “Sustentabilidade e justiça ambiental na Região Metropolitana do Rio de Janeiro”. Trabalho apresentado no SEMINÁRIO INTERNACIONAL “LAS REGIONES METROPOLITANAS DEL MERCOSUR Y MÉXICO: ENTRE LA COMPETITIVIDAD Y LA COMPLEMNETARIEDAD”. 2000. Buenos Aires, Argentina, entre 28 de novembro e 1 de dezembro de 2000. GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado de Obras e Serviços Públicos. Documento de base para a formulação da fase II do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara. Rio de Janeiro, Adeg/Cedae, dez. de 1997. SANCHES, M. ‘‘Elites globais e cidadãos locais: quem ganha com a despoluição da Baía de Guanabara?’’ Trabalho apresentado no XXII CONGRESSO INTERNACIONAL DA LASA – LATIN AMERICAN STUDIES ASSOCIATION. 2000. A B S T R A C T This paper presents some results of a research that we are developing about the public polices concerning the extension of public services of water supply and sewage 76 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 A N A L U C I A B R I T T O for urban dwellers in the Rio de Janeiro’s metropolitan area. We will analyze this subject focusing on the most important program for the improvement of these services, which has been developed in the last years, The Guanabara Bay Pollution Abatement Program. Our study discusses whether this program has contributed or not to the improvement of urban dwellers to access water supply and sewage services, and it shows that the program’s development is being very slow and that, in despite of the important amount of financial investments made by multilateral agencies, The Guanabara Bay Pollution Abatement Program has not achieved many of its goals. K E Y W O R D S Sanitation; environment; Rio de Janeiro’s metropolitan area; Guanabara Bay; public polices; public services; urban administration. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 77 R ESENHAS REGIÕES E CIDADES, CIDADES NAS REGIÕES. O DESAFIO URBANO-REGIONAL Maria Flora Gonçalves, Carlos Antônio Brandão e Antônio Carlos Galvão (Orgs.) São Paulo: Anpur/Editora da Unesp, 2003. Pedro P. Geiger (UFRJ) Anpur e Editora da Unesp estão lançando importantíssima e volumosa obra, tratando do urbano e do regional no Brasil. Ela reproduz um longo seminário multidisciplinar que reuniu dezenas de grandes pesquisadores brasileiros. Dividido em sessões, ao longo dos anos de 2000 e 2001, o seminário se desenrolou em diferentes cidades brasileiras das cinco macrorregiões. Durante este período, diz Flora Gonçalves, os participantes tomaram conhecimento dos primeiros resultados do Censo de 2000 e foram incorporando-os aos trabalhos. Acompanhavam também as manifestações da opinião pública, anunciadoras das mudanças eleitorais de 2002. O livro contém detalhadas descrições do “território usado” brasileiro. Recorda a história do planejamento no País, especialmente a partir de 1988, nas diversas esferas de poder e escalas geográficas. O leitor encontrará também matéria teórica sobre espaço geográfico, regionalização e sobre a qualificação de espaços públicos. Fará passeios guiados por paisagens urbanas, como em Betim ou São Paulo, por praias catarinenses e nordestinas, e por outras paragens. Regra geral, os artigos enveredam pela apreciação política da gestão e do planejamento que foi ou que deva ser aplicada. Por tudo isso, e principalmente pela qualidade da obra, o leitor será tentado a cobri-la por inteiro. Obra deste porte alarga o debate sobre temas polêmicos e conduz a novos questionamentos. O espaço reservado para este comentário, porém, não permite maiores alongamentos. Apenas alguns tópicos serão debatidos. A omissão na citação de nomes de autores não contém qualquer conotação valorativa. Composição social e cultural. Regra geral, o trato da composição da população segue uma prática comum, que se restringe a classificá-la segundo categorias de renda ou de setor de atividade. Comportamentos e relações inter e intraclasses, que influem diretamente na vida regional e urbana, pouco aparecem. Os exce- lentes trabalhos de Itamar de Carvalho e de Jairo Amaral Filho são uma exceção. O último centra suas observações sobre as mudanças promovidas pela ascensão dos “jovens empresários”, que deslocaram do poder as tradicionais “oligarquias dos coronéis” do Ceará. Já o trabalho de Itamar sobre a Sudene é muito rico, e o seria ainda mais, caso incluísse o espectro dos atores sociais, seus comportamentos culturais e políticos e sua influência nas atividades da Superintendência. A questão cultural é aflorada, por exemplo, pelo saudoso prefeito Celso Daniel, ao atribuir a dificuldade de mobilizar recursos para a Agência de Desenvolvimento Econômico do consórcio municipal do Grande ABC, em parte, à inexistência, no setor privado, “de uma propensão tão grande quanto a existente em outros países, como os da Europa, a fazer mobilização de recursos em torno de interesses coletivos”. Bertha K. Becker, tratando de mudanças na Amazônia, se refere “aos grandes conflitos transformados em demandas organizadas por grupos sociais diversos, garimpeiros, indígenas, pequenos produtores e outros”. Antônio Flávio Pierucci faz um belo discurso teórico sobre “conflitos de interesse” versus “conflitos de valor”. Note-se que esta diferença explica a ausência de guerra armada entre Estados no interior do espaço da globalização, enquanto posturas radicais ocorrem nos espaços do fundamentalismo. Temas assim, trabalhados nas cidades “fragmentadas” brasileiras, certamente trarão valiosas contribuições. Ricardo Toledo Silva apresenta interessantes observações sobre diferenças culturais históricas entre o Brasil e os Estados Unidos e os seus rebatimentos sobre o funcionamento dos sistemas de regulação. Outras referências à questão cultural podem ser encontradas, como nas passagens ligeiras pela influência da migração estrangeira no Sul, em Pedro Bandeira. Contudo, na atualidade, o tema da formação econômica social, de suas características culturais, de suas relações com a estrutura da produção, com o fortalecimento das identidades estaduais, exige muito mais, em termos de abordagens específicas. Relações interestaduais. Wilson Cano, “como bom paulista”, se declara a favor do ICMS ser cobrado nos Estados da produção (e se cala sobre a exceção aplicada aos fluxos elétricos e do petróleo). É verdade, o setor produtivo urbano industrial paga altos tributos ao governo federal que pode redistribui-los em favor das regiões mais pobres. No entanto, caso ocorra R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 81 R mudança fiscal que, democraticamente, como nos países desenvolvidos, faça recair o imposto, não tanto sobre quem produz, mas sobre quem consome, a indústria e a economia paulista não seriam mais beneficiadas? O ICMS cobrado nos Estados do consumo não seria então a sua compensação? Se, de um lado, tendo em conta a dimensão continental do Brasil, a tese da concentração de recursos fiscais em escala estadual é posta em dúvida, por outro, é difícil aceitar a tese de Heloísa Soares Costa de favorecer, a priori, os investimentos em localidades de IDH mais baixo, ignorando as possíveis filtragens no espaço (“trickling down”). Questão merecedora de lembrança diz respeito à falta de estatísticas de “comércio interestadual por vias internas”, e que eram produzidas no passado. Tecnologia. Luciano Coutinho menciona a importância da questão, mas, o papel das instituições de pesquisa no desenvolvimento, por exemplo, ou o tema dos “meios técnicos”, de que tratava Milton Santos, são pouco abordados na obra. O nome popular de “brejo”, na Paraíba, é uma herança de quando a sociedade atuava em “meio natural”. O termo “Alta Sorocabana”, uma região de São Paulo, evoca a fase “técnica”, quando a ferrovia dava suporte ao avanço da “frente pioneira”. Qual a percepção popular de uma região formada na fase “científica/informacional” ou da globalização? “Costa do Sol” seria um exemplo? E os “eixos”, são passíveis de ser internalizados e ter seus nomes popularizados? Na cidade, o espaço em transformação na Paulicéia, descrito por Ana Fani A. Carlos, poderá ganhar uma designação própria? Que a questão tecnológica foi tratada abaixo do desejável é notado nos capítulos sobre o Centro-Oeste, nos quais a Embrapa foi contemplada com, talvez, cinco linhas. Seria desejável, também, mais trabalho comparativo entre as proposições políticas enunciadas nos planos e as realizações efetivas. Trabalhos de avaliação dos programas de gestão e planejamento, como o faz, em certa medida, Rosa Moura, ao contrastar o Programa de Desenvolvimento de Empresas (Prodec), de Santa Catarina, e o Fundo de Operações de Empresas (Fundoprem), do Rio Grande do Sul. Problema de “afinidades eletivas”. A utilização da expressão “agricultura itinerante”, atribuída a Celso Furtado no artigo de Wilson Cano, aponta para o problema de transferência de termos de uma ciência para 82 E S E N H A outra. Em Geografia Agrária, o termo se relaciona ao sistema de “rotação de terras” – que, aplicado em terras pobres, acaba em desertificação –, e não deve ser confundido com o avanço de uma “fronteira agrícola”, ou “frente pioneira”, que ocasionava o deslocamento para terras distantes da chamada “agricultura cabocla”, esta totalmente de subsistência. A distribuição geográfica da economia agrária é mais complexa do que a apresentada pelo autor, contendo aspectos que podem ser referidos à teoria de von Thünen. Grandes propriedades produtoras de cereais, as mais modernas em mecanização, se localizam no interior distante, enquanto atividades hortigranjeiras, leiteiras e frutíferas podem ser encontradas mais próximas dos grandes centros urbanos. O mercado urbano brasileiro se encontra bem abastecido em gêneros alimentícios, o que torna pertinente a análise da participação dos diversos tipos de empresa agrícola neste mercado. Entre perigos do mercado e privilégios do patrimonialismo. Boa parte dos trabalhos, redigida em tom polêmico, critica o governo federal por ter abdicado, nas últimas décadas, de suas responsabilidades de planejamento sistemático urbano/regional e propugna seu restabelecimento. Em geral, associa-se a idéia ao retorno do Estado a uma participação gerencial maior na economia. O chamado “Programa dos Eixos” do governo Fernando Henrique é desclassificado, devido a sua configuração espacial e por estar voltado aos interesses do capital. Já os autores que descrevem, e de certa forma sustentam, o Programa dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento evitam manter um debate polêmico. De qualquer forma, o cuidado de se evitar a reificação da região “fechada” pode ser entendido no excelente artigo de Lia Osório, que diferencia sistemas de fluxos e sistemas de lugares e suas configurações espaciais. A autora associa estes sistemas, respectivamente, a espaços de produção, mais “abertos”, e a espaços de reprodução social, mais “fechados”, que se encontram, porém, em perpétuas interações. Regiões se interpenetram (do mesmo que espaços urbanos e rurais) com zonas de transição em suas periferias. O estabelecimento de limites formais para as regiões resulta de atos institucionais. Além disso, sobre um mesmo território, é possível reconhecer diferentes regionalizações setoriais – regiões econômicas, regiões R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 R E S E N H A culturais, regiões políticas etc. –, e que não são exatamente conformes. Resulta que um planejamento multissetorial, aplicado a um único desenho regional, compósito, pode se tornar inadequado. O tema já vem sendo bastante debatido no Brasil, quanto à gestão metropolitana. É majoritária, hoje, a idéia de sistemas de gestão e recortes espaciais próprios para cada serviço, ou grupo de serviços. Modelo clássico é o agenciamento Port Authority da região metropolitana de Nova York, que administra sistema de transportes compreendendo o metrô, o sistema de ônibus intra-urbanos, os portos e os aeroportos. A região pode ser internalizada e percebida “de dentro”, ou pode representar, apenas, um recorte feito “de fora”, mesmo quando desprovida de população (por exemplo, a divisão da Antártica entre países concessionários). Quanto maior o desenvolvimento social, maior a “organização reflexiva”, na expressão de Anthony Giddens, e maior será a indução para a região assumir representação e ser vista “de dentro”. A redução do significado da macrorregião como unidade de planejamento e a ampliação do papel gestor de Estados e municípios, tese reconhecida praticamente em todos os artigos, é exemplo deste processo. Ele é devido à urbanização brasileira, acompanhada por um maior desenvolvimento social. Observe-se que a divisão regional oficial do Brasil, produzida pelo IBGE nos anos 40, era getulista, não ajustava as regiões aos limites estaduais (exceção para as macrorregiões e zonas fisiográficas). Durante os governos militares, porém, quando se atendeu tanto à perspectiva dos fluxos, criando-se as “regiões polarizadas”, como à dos lugares, criando-se as “regiões homogêneas”, os dois sistemas foram ajustados aos limites estaduais e municipais. Já os “eixos” do Avança Brasil, que, na verdade, compõem nove espaços “abertos”, cobrindo todo o território, não apresentam tais ajustes, provavelmente considerados irrelevantes. É curioso, também, observar que a geografia brasileira mostra a prevalência de uma configuração de extensos eixos, sobre os quais se localizam as principais cidades. O desenho decorreria de um empenho histórico, desde a Colônia, em assegurar o domínio do vasto território nacional. Exemplifica-se com as linhas Rio, Petrópolis, Três Rios, Juiz de Fora, Belo Horizonte; ou Rio, Governador Valadares, Vitória da Conquista, Feira de Santana, Salvador etc., sem men- cionar o “macroeixo” do vale do Paraíba do Sul. Poucos são os espaços sociais em forma de bacia, expressão de um conteúdo mais desenvolvido, do qual o Estado de São Paulo ou a região nordeste de Santa Catarina se aproximam. Quanto a recortes regionais para o planejamento, aparentemente, a conclusão seria de que não se pode estabelecer previamente uma diretriz única. Considerando-se a representação das linhas de tensão territorial que os recortes devem expressar, cada caso deve ser julgado de forma particular. Alerta-se para o risco de inoculação de ideologia (no sentido forte, segundo Leandro Konder) excessiva na questão. Não se duvida da necessidade de embutir estratégias espaciais no planejamento setorial federal e de articulá-las com as esferas estaduais e municipais. No entanto, a indispensabilidade de se trabalhar com regiões “fechadas” continua aberta. A objetividade no restabelecimento de um planejamento federal urbano/regional paralelo ao planejamento setorial não foi suficientemente esclarecida. No passado, quando a Universidade brasileira ainda não alcançava a sua dimensão atual, a atividade federal, em grande parte, compreendia a pesquisa espacial, que oferecia suporte à gestão setorial. Voltava-se, também, para a incorporação de grandes espaços geográficos, quando a “fronteira” ocupava fatia maior da economia. Era um planejamento “ofensivo” que incluía a criação de novos setores sociais e de atividades. Em 1940, a população urbana era de apenas 32%. A política getulista foi antes “fazer” a cidade do que “para” a cidade (no Rio e em São Paulo a Light cuidava disso). CLT, subsídios ao transporte urbano, criação de instituições classistas, às quais eram destinados conjuntos habitacionais, estimulavam a migração rural/urbana e continham objetivos políticos inspirados nos regimes fascistas europeus – formar massas de sustentação política do regime com a classe trabalhadora e a classe média que se ampliavam (inclusive com as “maria candelária”). No governo Juscelino, a proposição do “tripé” e da construção de Brasília revelam a perspectiva da incorporação de espaços. A própria criação da Sudene continha a idéia básica de transferência de camponeses nordestinos para o MeioNorte e Amazônia. No governo militar é que se institucionaliza um sistema específico de órgãos de planejamento urbano e regional, apoiado no desen- R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 83 R volvimento da chamada “ciência regional”. Cresce, então, o significado da atividade modernizadora para a acumulação capitalista, para a formação da burguesia nacional, para a difusão espacial do capitalismo e para o controle social centralizado. A história acima, porém, se fez com incrível aceleração do crescimento populacional. Em sessenta anos, a população passou de 40 para 170 milhões e a taxa de urbanização superou os 80%. Estabeleceu-se, sim, importante setor privado de indústrias de bens duráveis e não-duráveis de consumo, mas aquela condição contribuiu para a manutenção da profunda desigualdade social e das características de estamentos na sociedade brasileira. Na condução desta história, o Estado praticou diversas formas de “confisco” e foi aumentando a carga tributária, sobre setores produtivos e população, hoje entre as maiores do mundo. (Porém as “estatais” não contribuíam para o imposto de renda e diversas eram deficitárias.) O fato é que, ao mesmo tempo que ampliava o mercado nacional, o Estado foi perdendo o controle maior, se enredou em dívidas e escândalos, e foi perdendo capacidade gerencial. Neste quadro, a “fronteira” perdera peso como saída para a crise. Aliás, os espaços vazios passaram a ser mais objeto de proteção ambiental. O sistema rodoviário se deteriorou. Uma crise generalizada acabou se instalando com altas taxas de desemprego. A capacidade de arrancar impostos se encontra no limite. Entre 1992 e 2002, a renda do governo passou de 12% para 19% do PIB; a do capital se manteve, de 44% para 45%; enquanto a dos salários caiu de 44% para 36%. Tentando aliviar o setor automobilístico, com 170 mil veículos acumulados, cujos preços embutem até 40% de tributos, o governo estuda baixar os impostos agregados. Nesta posição “defensiva” do momento, certamente, não se trata de um simples retorno do Estado a um quadro passado. A questão é muito mais complexa. Um ângulo de síntese, de Flávio Villaça, encerra elegantemente a obra, reafirmando a valorização da espacialidade no pensamento contemporâneo. Contudo, suas idéias quanto à diferença entre cidades, regiões metropolitanas e aglomerações urbanas são questionáveis. Cidades são tão abstratas quanto regiões metropolitanas, e os problemas de delimitação são semelhantes. Edificações, pavimentações, arborização são objetos materializados, mas, em si, a cidade é 84 E S E N H A uma proposição abstrata, embora concreta. A cidade compreende atividades não-materiais e a quantidade de componentes que lhes dão suporte influi em seu desenvolvimento. Pode-se imaginar a Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, se expandindo sem telefone? Ou a cidade não se prover de salas de convenção para ganhar maior centralidade? No século XIX e primeira metade do século XX, o materialismo histórico e as “determinações históricas” magnificaram a temporalidade na análise social, enquanto a rejeição da “determinação geográfica” reduzia o prestígio da Geografia. Na modernidade mais recente, ou pós-modernidade, reconstruções filosóficas (por exemplo, a substituição do estruturalismo pelo neo-estruturalismo) reconduzem a importância de atores sociais e agenciamentos e relativizam as determinações. Filósofos estóicos têm sido evocados, por exemplo, por Gilles Deleuze, para a reintrodução do conceito de “semicausas” nos processos sociais. (Aliás, também a Física quântica tem alterado a idéia da determinação, uma das explicações recentes apelando para a teoria dos “mundos múltiplos”.) Estes desenvolvimentos não retiraram a importância da temporalidade nos entes, objetos e corpos, materiais ou abstratos. Todavia, trouxeram também a percepção de que a compreensão mais profunda das “coisas” necessita, igualmente, o conhecimento de suas espacialidades. Neste sentido é que a Geografia, ciência da sintaxe do espaço geográfico, passou a atrair um novo interesse no campo multidisciplinar da ciência social. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 R E S E N H A A CIDADE DA INFORMALIDADE: O DESAFIO DAS CIDADES LATINO-AMERICANAS Pedro Abramo (Org.) Rio de Janeiro: Livraria Sette Letras/Faperj/ Lincoln Institute, 2003. Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ) A coletânea A cidade da informalidades, organizada por Pedro Abramo, aparece num momento particularmente relevante. Existem, atualmente, novas perspectivas para a superação de mecanismos de natureza econômica e político-institucional responsáveis pela reprodução das faces mais cruéis da urbanização. Estas perspectivas decorrem da aprovação do Estatuto da Cidade e da criação do Ministério das Cidades. A coletânea contribui ao tratamento enriquecido de um dos temas centrais da atuação deste Ministério, a regularização fundiária, e para a apropriação social da legislação relativa aos direitos urbanos. Nas palavras de Edésio Fernandes: “a aprovação do importante Estatuto da Cidade consolidou a ordem constitucional quanto ao controle jurídico do desenvolvimento urbano, visando reorientar a ação do Poder Público, do mercado imobiliário e da sociedade (…) Sua efetiva materialização em leis e políticas públicas, porém, dependerá fundamentalmente da ampla mobilização da sociedade brasileira, dentro e fora do aparato estatal” (p.166-7). Por outro lado, o fato de a coletânea incluir textos de especialistas latino-americanos estimula a reflexão de fenômenos comuns aos países periféricos, tanto relacionados à história da urbanização quanto às formas de enfrentamento das carências sociais, sejam estas concebidas por cada sociedade/governo ou difundidas por agências multilaterais de desenvolvimento. Nesta direção, o livro apresenta uma tensa tessitura de informações e análises, em que a regularização emerge de mobilizações sociais, mas também como solução precária para as necessidades sociais ou, ainda, como estratégia acionada por diferentes atores políticos. Rompe-se, desta maneira, com interpretações da realidade urbana latino-americana que apresentam a regularização como estímulo seguro aos investimentos em habitação ou como “direito”, desacompanhado de projetos para o alcance da justiça social. A coletânea também indica, através de novos processos, a retomada da temática da oposição formal-informal, de longa presença no pensamento latino-americano dedicado ao urbano. Impossível seria, neste sentido, esquecer estudos que, já nos anos 60, demonstraram os limites político-analíticos desta categoria e, simultaneamente, a relevância dos processos por ela indicados, bastando citar, aqui, os nomes de Aníbal Quijano, José Nun, Paul Singer e Francisco de Oliveira. Grandes esforços teóricos e de análise histórica apoiaram estes estudos e neles tiveram origem. A valorização desta tradição, em diálogo com a coletânea, poderá estimular a reflexão dos rumos tomados pela modernização latino-americana e, especialmente, pelo desenvolvimento urbano. Esta reflexão é indispensável num momento em que a adesão às pautas modernas, como permite ver o artigo de Pedro Abramo sobre as trajetórias familiares de favelados, demonstra a falência (ainda que relativa) de estratégias associadas à educação e à preparação para o trabalho. Na atualização do pensamento crítico, será indispensável a análise dos vínculos entre o agravamento das condições urbanas de vida e características do capitalismo periférico, tão bem sugerida pelo estudo transescalar realizado por Susana Pastenack para o caso brasileiro. Será igualmente indispensável o conhecimento aprofundado da experiência urbana popular, como demonstra o artigo de Jane Souto de Oliveira, Denise Britz do Nascimento Silva, José Matias de Lima e Doriam Luis Borges de Melo. Nos anos 90, o diagnóstico da exclusão substituiu o da marginalidade socioespacial. Também neste período, a regularização fundiária adquiriu por vezes, como indicam Emilio Duhau e Maria Cristina Cravino, a anódina fisionomia de uma política pública que mal esconde o desinteresse dos governantes pela proposição de políticas habitacionais abrangentes e pelo controle do, sem exagero retórico, capitalismo selvagem. Como nomear de outra forma uma experiência urbana na qual, como afirma Martim Smolka, “muitos pagam muito pelo pouco que recebem, em contraste aos poucos que recebem muito pelo pouco que entregam” (p.123)? Neste contexto, existe a possibilidade de que a regularização fundiária alimente-se, como alerta Maria Cristina Cravino, dos discursos e práticas de uma conservadora ideologia comunitária, que esconde conflitos, despolitiza reivindicações e estimula táticas popu- R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 85 R lares subalternizantes. Há ainda a possibilidade, segundo Martim Smolka, que a regularização seja acionada por governos indispostos para o enfrentamento amplo e conseqüente da questão social. Em oposição a estas tendências, a coletânea A cidade da informalidade indica que a regularização fundiária e urbanística pode ser conduzida pela análise crítica das formas sociais dominantes (jurídicas e espaciais) e pela valorização da conquista diária da cidade. Deste último ângulo, trata-se de resistências e vitórias parciais que configuram a denominada, por Emilio Duhau, urbanização popular, conceito que reconhece a natureza coletiva da experiência da irregularidade. Nesta experiência, segundo dados citados por Martim Smolka, encontra-se envolvida, por vezes, mais da metade da população urbana, em precárias condições ambientais, reconhecidas por Alex Kenya Abiko e Fernando Cavallieri. Como denominar esta real estruturação popular da experiência urbana? Será suficiente indicar o seu afastamento da forma dominante, como propõem as noções de informalidade e irregularidade? Estas noções não estimulariam o cômodo esquecimento das múltiplas vivências populares da cidade, que incluem fatos tão distintos quanto favelas (antigas e novas, com diferentes dimensões), loteamentos clandestinos, ocupações de prédios, assentamentos populares e cortiços, além da experiência extrema da moradia na rua? Como reconhecer os processos econômicos e político-institucionais que unificam as formas urbanas populares, sem pieguismo e ocultamento da dominação e da espoliação? Como apreender, como propõe Pedro Abramo, a complexidade dos elos existentes entre a dinâmica interna das favelas, a dinâmica interfavelas e, ainda, com o entorno imediato de cada assentamento? Na coletânea, são identificáveis algumas respostas a estas perguntas na crítica de diretrizes para a política urbana que apenas reconhecem benefícios na regularização; na denúncia da omissão dos governos no delineamento de políticas habitacionais abrangentes; na crítica, como propõe Cláudia Pilla Damasio, a propostas que não incorporem a experiência urbana das classes populares. Estas respostas são indicativas da urgência com que precisam ser desenvolvidas análises estruturais da urbanização latino-americana, orientadas por compromissos com: a ruptura do círculo vicioso que une desigualdade, pobreza e ilegalidade urbana; 86 E S E N H A a democratização do acesso à terra; a garantia universal de condições básicas de vida urbana e o fortalecimento dos sujeitos populares, o que pressupõe muito mais do que a participação usualmente estimulada (e, até mesmo, exigida) nas políticas urbanas. Afinal, como também afirma Edésio Fernandes: “é essencial que se reconheça que em casos como o do Brasil, nos quais a ilegalidade deixou de ser exceção e passou a ser a regra, o fenômeno é estrutural e estruturante dos processos de produção da cidade” (p.139). Os artigos reunidos na coletânea resistem a propostas de regularização que a apresentam como uma inovadora panacéia para o drama social vivido nas metrópoles da América Latina, desconhecendo, como diz Cláudia Pilla Damasio, os seus vínculos com a indispensável humanização da experiência urbana. Com estes artigos, fica claro que a regularização é um conceito em disputa, que inclui o confronto entre concepções de política urbana. Por outro lado, verifica-se não ser aceitável a regularização como um fim em si mesma, já que os processos indicados por esta noção não geram resultados plenamente previsíveis e controláveis. Além disto, a coletânea permite afirmar que a desregulamentação e/ou a regulamentação simplista e simplificadora, ao gosto das diretrizes neoliberais, não constituem uma saída. De fato, tanto uma regularização resumida à legalização como o simples ajuste estratégico de normas “ao que existe” redundam, por estranhas sinonímias, na indesejável valorização da norma instituída frente a dinâmica da própria sociedade, como se a lei ditasse, por si só, comportamentos coletivos, garantindo a legitimidade aos governantes. Desta ótica, deixa-se de compreender o marco jurídico como construção política que garante direitos de cidadania, o que estreita a democracia e o espaço público. Porém, como desconhecer que a legalização pode colaborar na redução da violência, retendo a ação de grileiros e os despejos? O núcleo da problemática da regularização é a propriedade, este fundamento da (des)ordem urbana e real sustentáculo da versão dominante do Estado de Direito. Enfrentar este núcleo é também dispor de uma oportunidade para refletir/rever a experiência urbana e, ainda, a organização político-jurídica das relações Sociedade–Estado. O aproveitamento desta oportunidade poderá reaproximar o que décadas de neoliberalismo afastou, isto é, políticas urbanas socialmente justas e projetos dirigidos à inte- R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 R E S E N H A gração social, implementados nos diferentes níveis de governo. Não há dúvida de que os países periféricos encontram-se em mais uma encruzilhada. Nesta, os caminhos estão marcados por estratégias para a economia e por percepções de democracia. As políticas de regularização estão posicionadas nos termos desta encruzilhada, o que pode ser reconhecido, por exemplo, através de uma comparação entre o artigo de Julio Calderón Cockburn, dedicado à experiência peruana, e os textos de Emilio Duhau e Maria Cristina Cravina. A reflexão crítica dos erros cometidos em políticas de regularização colabora para que sejam superados o clientelismo existente em práticas de legalização e as formas especulativas de enfrentamento da pobreza, como a que agora busca associar, desconhecendo a cultura popular, o acesso à propriedade individual à ação dos bancos privados e ao crédito. No âmbito dos direitos urbanos, desconhecer culturas – como exposto por Julio Calderón Cockburn no que concerne aos registros de propriedade e, por Edésio Fernandes, com relação aos instrumentos jurídicos – significa impedir a formação de sujeitos sociais. Significa, ainda, conceber falsos projetos, que dispersam investimentos e anulam a face extremamente ativa da experiência popular, demonstrada no dinamismo do mercado informal de terras e moradias. Tal desconhecimento, como indica o texto de Julio Calderón Cockburn, é impeditivo da territorialização de direitos e da emergência de novas territorialidades, efetivamente democráticas. O mercado abstrato renega o mercado concreto, da mesma maneira que normas jurídicas abstratas rejeitam práticas sociais. Estes espelhos desfocados, presentes em políticas públicas estimuladas por agentes desterritorializados, estimulam uma cegueira ainda mais profunda. Esta cegueira impede o aprendizado com a experiência das classes populares urbanas dos países periféricos, que constroem cidades e desvendam recursos em ambientes marcados por carência e exclusão. Por que regularizar, apenas, os seus resultados materiais imediatos? Por que não reconhecer propostas latentes (e ainda subordinadas) na urbanização popular, inclusive no que concerne à renovação do direito e do urbanismo? Institucionalizar a carência ou reproduzir a estratégia de indutos e anistia é realmente muito pouco… Reconhecer a potência do “outro” é também admiti-lo na sua capacidade de propor novos universais e, assim, o que afinal é legítimo. As práticas solidárias observadas em favelas constituem elementos morais a serem refletidos no desenho de políticas urbanas, diante do estímulo ao individualismo. De fato, receitas e receituários ou, noutros termos, práticas curativas, no mínimo, não bastam. Os obstáculos existentes à regularização, analisados por Rosana Denaldi e Solange Gonçalves Dias, confirmam esta insuficiência. Também dizem dos limites da regularização, a sua indispensável associação com um plano muito mais abrangente de mudanças institucionais e administrativas. Há necessidade de uma nova sistematização (e apropriação) dos recursos concentrados nas metrópoles latino-americanas que transforme a própria idéia de regularização e apóie a territorialização de instrumentos jurídicos e urbanísticos. Para tal, é indispensável o diálogo interdisciplinar, valorizador da percepção de direitos originada na experiência popular e das estratégias intergeracionais de sobrevivência e mobilidade social, tratadas nos artigos de Julio Calderón Cockburn e Pedro Abramo. Nestes artigos, surge a indicação de que a experiência da pobreza – dos homens lentos de Milton Santos – resiste aos formuladores das políticas públicas, quando orientados por uma racionalidade que desconhece o tecido urbano. Este desconhecimento, aliás, explica o fracasso de intervenções calcadas numa participação popular, que, simplesmente, não acontece. Trata-se de afastamentos Sociedade–Estado que marcaram a urbanização periférica, com enormes custos sociais, redundando, como esclarece o artigo de Alex Kenia Abiko, em obstáculos financeiros para a administração pública. Há, realmente, esperança de que a radicalização da democracia integre a urbanização popular à estruturação dominante da cidade? A coletânea demonstra, claramente, que a dicotomia formal–informal precisará ser superada, como afirma Fernando Cavallieri ao indicar a sua simbiose orgânica, da mesma forma que deverá ser superado o recurso a técnicas estatísticas que desconhecem a dinâmica da pobreza. Existe a necessidade de (re)conhecimento profundo dos lugares e de sua intensa vitalidade, indicada no texto de Pedro Abramo e no artigo de Jane Souto de Oliveira, Denise Britz do Nascimento Silva, José Matias de Lima e Dorian Luis Borges de Melo. Deste (re)conhecimento dependerá a esperada renovação da R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 87 R política e a multiplicação das formas de vida aceitas e valorizadas, além da superação de barreiras – envolvendo concepções do direito e do urbanismo – até hoje preservadas entre economia e sociedade. Esta superação, exigida pelo conteúdo da coletânea, representa enorme desafio para as disciplinas inscritas no campo do planejamento territorial. E S E N H A APOLOGIA DA DERIVA: ESCRITOS SITUACIONISTAS SOBRE A CIDADE Paola Berenstein Jacques (Org.) Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. Thais de Bhanthumchinda Portela (UFRJ) O supra-sumo do espetáculo é o planejamento da felicidade. Raoul Vaneigem, 1961 No período entre guerras, o campo da arquitetura e do urbanismo presenciou o fortalecimento do discurso poético – na busca de soluções dos problemas sociais – e pragmático – no uso da racionalidade técnica para a reconstrução das cidades arrasadas pela guerra – propostos nos primeiros CIAMs (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna). Já no pós-guerra, em 1947, no retorno dos Congressos, a cada encontro passou a dominar a figura de Le Corbusier, com o discurso do funcionalismo separatista apresentado na Carta de Atenas (1933) e encaminhado por princípios racionais cartesianos. Em um contexto de grande destruição que gerava a necessidade de rápida reconstrução dos espaços urbanos e de grandes investimentos na habitação, aliado ao fortalecimento de uma produção industrial de modelo fordista – produção estandardizada, uso de carros, trabalho na fábrica com horários para a produção e para o descanso bem determinados etc. – fizeram que os princípios da Carta de Atenas para o funcionamento da cidade – trabalhar, circular, habitar e recrear – fossem utilizados em larga escala por todo continente europeu, sendo depois transformado em um grande modelo de construção de cidades em diversos países com pretensão a se “modernizar/desenvolver”. Este modernizar as cidades mundo afora seguindo a cartilha do funcionalismo racionalista cartesiano virou cânone, tanto na Academia quanto nos escritórios de projetos, marca do que viria a ser considerado a boa arquitetura e o urbanismo de qualidade. Além disso, na medida em que acontecia a modernização das cidades o Urbanismo fortalecia-se como disciplina, ganhando espaços nos poderes públicos e privados para projetar e planejar as cidades. Aliás, cidade que se prestasse, que fosse desenvolvida, era sinônimo de cidade bem planejada. 88 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 R E S E N H A Assim caminhava a história e, quando o mundo deu por si, descobriu que o movimento moderno havia se transmutado em modernismos (ismos, exacerbação de um movimento), havia matado as esquinas, o encontro, a história, a poesia... De “a grande solução” dos problemas urbanos, o movimento moderno passou para a categoria de “vilão”. Decretada sua morte, o mundo viu surgir uma nova safra de intelectuais, críticos ao movimento, entrando então em um mundo pós-moderno, contemporâneo, marcado pela preocupação com a história, com a política, o social e a economia local etc. Certo? Não. Isso não passa de um senso comum, ditado por uma leitura que privilegia um determinado pensamento que, com o passar do tempo, tornouse hegemônico no campo da história do urbanismo. Talvez pelo fato de que os cânones da arquitetura e do urbanismo modernos ajudaram, e muito, o fortalecimento do campo disciplinar do urbanismo e do planejamento urbano. Mas, o fato é que a crítica ao movimento moderno surgiu no mesmo momento histórico que o pensamento modernista. Isto é mostrado através da história e da vida de um grupo de intelectuais franceses que se denominavam Situacionistas. “Gravíssimo sinal de decomposição ideológica atual é ver a teoria funcionalista da arquitetura fundamentar-se nos conceitos mais reacionários da sociedade e da moral. Significa que, as contribuições parciais passageiramente válidas da primeira Bauhaus ou da escola de Le Corbusier, acrescenta-se em surdina uma noção atrasadíssima da vida e de seu enquadramento” (Guy Debord, 1957, p.50); e também por um outro grupo inserido no próprio movimento moderno e participante ativo dos CIAMs, o Team X. E é isso que o livro organizado por Berenstein vem apresentar. Nele, encontram-se coletados e organizados diversos textos produzidos pelo grupo dos Situacionistas. Mas afinal, quem são eles? Inspiração para grupos do movimento antiglobalização contemporâneo, como os grupo Black Blocks (aqueles tocadores de tambor que se vestem de preto e animam todos os encontros de protesto antiglobalização), do Reclaim the Streets (invasores de espaços públicos como ruas, praças etc. que, através de festas e manifestações perfomáticas, reclamam o espaço público como direito dos pedestres e cidadãos), entre outros. A Internacional Situacionista foi fundada a par- tir da fusão dos grupos do Mibi (Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista), do IL (Internacional Letrista) e da Associação Psicogeográfica de Londres (nome e associação inventados, durante este encontro de fundação, por Ralph Rumney),1 em 28 de julho de 1957, em um bar nos arredores de Cosio d’Arroscia. Pelo lugar de fundação do movimento pode-se tomar por entendido a informalidade e, por conseguinte, a vontade da não-institucionalização do grupo, o que não significava falta de rígidos princípios e conceitos. Por sinal, estes vão ser um dos principais motivos dos rachas constantes entre os Situacionistas, capitaneado principalmente por um de seus fundadores e principal intelectual, Guy Debord. Jovens agitadores, decididos a mudar o sistema através de uma revolução cultural, a International Situacionista produziu uma crítica ao urbanismo funcionalista racional, bebendo de diferentes fontes: da produção sobre a vida cotidiana de Henri Lefevbre, passando pelo grupo Cobra (constituído em 1948, em um café no Quai St. Michel, por um grupo que reclamava da superficialidade do debate do Centro Internacional para a Documentação da Arte de Vanguarda em Paris)2 ao S e B (Socialisme ou barbarie, publicação de militantes rompidos com o trotskismo que conduziu a um questionamento do marxismo, cujo principal teórico era Cornelius Castoriadis)3. Deste caldo surgiu a revolução proposta pelos Situacionistas: arte, política e filosofia voltadas para a descoberta de possibilidades de uso do ambiente urbano, induzindo a participação transformadora do cotidiano alienado e passivo da Sociedade do Espetáculo – principal teoria de Debord –, e propõe, então, o uso do urbanismo unitário: “emprego do conjunto das artes e técnicas, como meios de ação que convergem para uma composição integral do ambiente” (p.54). O urbanismo unitário é dinâmico, isto é, tem estreita ligação com estilos de comportamento. O elemento mais reduzido do urbanismo unitário não é a casa, mas o complexo arquitetônico – reunião de todos os fatores que condicionam uma ambiência, ou uma série de ambiências contrastantes, na escala da situação construída. O desenvolvimento espacial deve levar em 1 HOME, Stuart, Assalto à cultura: utopia subversão guerrilha na (anti)arte do século XX. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 1999, p.52. 2 Idem, ibidem, p.23. 3 Idem, ibidem, p.68. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 89 R conta as realidades afetivas que a cidade experimental vai determinar. Nos textos coletados por Berenstein estão descritas as principais atividades propostas pelo grupo: • psicogeografia: “estudo das leis exatas e dos efeitos precisos do meio geográfico, planejado conscientemente ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos” (p.39); • construção de situações: “construção de situações, isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional superior. Devemos elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos dos dois grandes componentes que interagem continuamente: o cenário material da vida; e os comportamentos que ele provoca e que o alteram” (p.54); • deriva: um dos recursos mais sólidos da psicogeografia. “A deriva é um modo de comportamento experimental numa sociedade urbana. Além de modo de ação é um meio de conhecimento, especialmente no que se refere à psicogeografia e à teoria do urbanismo unitário. Os outros meios, como a leitura de fotos aéreas e mapas, o estudo da estatística, de gráficos ou de resultados de pesquisas sociológicas, são teóricos e não possuem este lado ativo e direto que pertence à deriva experimental” (p.80). Com estas e outras propostas, os Situacionistas criaram atividades para combater o que, segundo eles, seria a pior característica do mundo do espetáculo: a alienação advinda de uma participação da sociedade como público espectador do mundo, sociedade como platéia e não como palco. Este pensar com paixão, pode ser lido de diferentes maneiras neste livro. A primeira é a linear. Como os textos estão organizados por ordem cronológica, e a Apresentação de Berenstein contextualiza a Internacional Situacionista no tempo e espaço, obtém-se um panorama de uma época que não é muito apresentada na história da arquitetura e do urbanismo. É através da apresentação que o leitor poderá entender as relações entre os Situacionistas e o Team X, e também entre outros grupos e intelectuais da época, como Henri Lefèvbre. Outra maneira. Esqueça a Apresentação e concentre-se nos textos situacionistas, absorvendo o máximo dos conceitos apresentados pelos diferentes autores: o desvio, deriva, espetáculo, psicogeografia etc., 90 E S E N H A voltando o pensamento para a produção da crítica feita às cidades nas últimas décadas. Parece que grande parte da crítica contemporânea já estava pronta lá atrás, só que de maneira muito mais radical. Depois disso, volte a apresentação, sem esquecer de ler as notas e se verá que é isso mesmo. A última possibilidade que apresento é a de fazer deste livro um jogo, e com ele produzir uma deriva própria para cada leitor. Como cada frase contém em si própria uma força propulsora à reflexão e ao conhecimento, abra o livro aleatoriamente e deixe reverberar pelo corpo as palavras lidas. O leitor “sentirá” que existem vários níveis a que estes textos remetem e que, com eles, poderá criar uma situação que lhe permitirá vislumbrar uma crítica à sociedade de consumo, um discurso manifesto apaixonado da vida urbana e, também um espaço de fruição que é mesmo da ordem do artístico, como se cada conceito fosse uma obra de arte mexendo com delicados tecidos sensoriais. É a participação em um encontro entre uma leitura do marxismo e da psicanálise. Depois aconselho a voltar para a apresentação e para uma leitura linear, para melhor compreensão do contexto apresentado. Enfim, pode-se supor que este tema não tenha nada de acadêmico no que diz respeito aos estudos urbanos e regionais. Entretanto, a revisão da história do urbanismo do ponto de vista de quem o critica em favor de uma vida urbana participante só pode enriquecer a própria história e saber do campo. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 R E S E N H A DE NOVA LISBOA À BRASILIA: L’INVENTION D’UNE CAPITALE (XIXE- XXE SIÈCLES) Laurent Vidal Paris: Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine, 2002. (Coleção Travaux & Mémoires de l’IHEAL, n.72). Luís Octávio da Silva (Universidade São Judas Tadeu) Pouco após o aniversário de quarenta anos de sua inauguração, a cidade de Brasília tem sua historiografia enriquecida pela publicação de uma obra de fôlego, construída com rigor acadêmico, perpectiva crítica e, sobretudo, engenharia criativa. Laurent Vidal é maître de conférences da Universidade de La Rochelle e pesquisador do Espace Nouveaux Mondes. É especialista em história urbana do Brasil e das Américas. Dirigiu a obra Histoire de l’Amérique Latine (da série Historiens et géographes, 2000-2001, n.371 e 374) e co-dirigiu, com Émile d’Orgeix, Les villes françaises du Nouveau Monde (Somogy, 1999). O livro em questão é uma retomada da tese de doutoramento intitulada Un projet de ville: Brasília et la formation du Brésil moderne, 1808-1960, defendida na Universidade de Paris III, em 1995, e orientada pelo professor Guy Martinière (da Universidade de La Rochelle). Posteriormente, o autor foi professor convidado da Universidade Federal de Goiás, no período de agosto-setembro de 2000, ocasião em que desenvolveu algumas perspectivas partes que, segundo ele, tornaram o livro significativamente diferente da tese de doutoramento. A obra nos propõe um mergulho que procura desvendar as razões sociais que levam ao ato de projetar, de imaginar e de desenhar cidades. “Para que serve uma cidade quando ela não existe? Ou pelo menos não ainda?” Brasília é o caso em questão. A justificativa central é a de que a grande maioria dos estudos que se debruçam sobre o projeto de cidades, o faz analisando de uma maneira muito restrita sua forma física. Nessa categoria, Vidal cita, como exemplos, Pierre Lavedan, Leonardo Benevolo, John Reps, ou ainda Manfredo Tafuri. Essa opção metodológica, segundo crítica de Jean-Claude Perrot, endossada por Vidal, se prestaria a todo tipo de amplificações, bastando para isso a incorporação do encadeamento cronológico de técnicas ou estéticas para que as pesquisas assumam um caráter histórico. Vidal propõe uma inversão desse procedimento: “como um projeto político e social toma forma de uma cidade?”. Dessa perspectiva, Vidal argumenta que o próprio conceito de projeto pressupõe uma problemática a ser resolvida. Numa nota de rodapé, reproduzindo a reflexão de Jean-Pierre Boutinet, o autor nos faz ver que etimologicamente, o termo “projeto” advém do particípio passado do verbo projectum (projicere) que, em latim, significa “jogar adiante”. Não existia, nessa língua, termo equivalente ao atual sentido da palavra “projeto”. Da mesma forma, do grego antigo, os termos balle in e proballein, significando respectivamente “jogar” e “jogar adiante”, são a origem da atual palavra “problema”. “Projeto” e “problema”, nessas duas diferentes línguas-mãe, têm o mesmo significado. Essa proximidade etimológica nos faz ver que não existe projeto sem problema e nem colocação de um problema que já não apresente uma certa intenção de resolução. Segundo Vidal, cada projeto de cidade remete a um contexto de referência devidamente problematizado. Ele usa como instrumento de análise a própria idéia de cidade que se diferencia do projeto físico. Enquanto o segundo se dá no âmbito da técnica e do desenho, o primeiro pertence à dimensão da filosofia, da literatura e da própria religiosidade. Desde a Idade Média há uma progressiva ênfase do componente projeto em detrimento do ideal, isto é, da dimensão extraurbana. O trabalho desenvolvido por Vidal procura, então, estabelecer vínculos entre as formas físicas e discursivas (os projetos urbanísticos, arquiteturais, argumentos e debates) com a dimensão simbólica e política. Em que um projeto de cidade traz subjacente um projeto de sociedade, de construção identitária? Essa é a questão central que Vidal procura responder. Todas as cidades são, em algum momento de suas histórias, objeto de projeto, parcial ou total. As cidades novas, entretanto, se prestam particularmente bem a esse tipo de abordagem. A própria tomada de decisão de construir uma cidade nova evidencia ambições, posições e opções: localização, partido arquitetônico-urbanístico, conflitos entre o corpo técnico e o político, bem como elementos mais do âmbito da antropologia, da filosofia, da semântica e da simbologia, por exemplo, os atos de fundação, a construção da história e da própria memória da cidade fundada. A escolha do caso de Brasília deu-se, também, pelas limita- R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 91 R ções na maior parte da historiografia existente, constituída principalmente por obras apologéticas e despojadas de metodologia científica. Esta obra de Vidal é de leitura fácil. Escrita em forma de ensaio, ela não é especialmente rica em termos iconográficos (algumas das reproduções deixam a desejar), mas apresenta as ilustrações essenciais. Com exceção do último, cada um dos capítulos tem como objeto um determinado período da história do País durante o qual emergiu a idéia de construção de uma nova capital. O argumento central do autor é de que essa idéia é sempre resgatada nos momentos de ruptura histórica e/ou de crise institucional. Comum a todas essas ocasiões existe o fato de que a idéia de fundação de uma nova capital funciona como um elemento aglutinador de um projeto identitário. Os capítulos seguem a ordem cronológica. Não se trata de um continuum, mas simplesmente de períodos “críticos”. Numa primeira parte, o autor procede a uma apresentação da conjuntura. A idéia da nova capital é, então, introduzida e contextualizada. Grupos de interesse e principais fatores em jogo são apresentados de forma crítica e com grande acuidade analítica. O projeto urbanístico só é discutido quando pertinente. Tudo isso tendo sempre como objetivo principal o estabelecimento de relações entre cada um desses elementos e as idéias de cidade e de sociedade que lhe são subjacentes. Justamente por se tratar de uma obra cujo público-alvo não é o brasileiro, todos os elementos históricos significativos e relevantes para a compreensão do contexto são devidamente apresentados. Isso é feito de forma sucinta, mas não simplista ou simplificadora. O que é um trunfo, pois além do argumento central, o livro possibilita ao leitor uma visão bastante crítica das principais passagens da história do Brasil. O primeiro período abordado (primeiro capítulo) é o da chegada da família real portuguesa, em 1808, e o conseqüente debate sobre qual cidade deveria abrigar a sede, não mais da colônia, mas de todo o império ultramarino português. Como forma de introduzir o leitor nos antecedentes dessa discussão, Vidal apresenta sucintamente o papel do Brasil no modelo colonial português: seu caráter extrovertido e de orientação marcadamente mercantil eram um condicionante determinante para que a capital da colônia tivesse sempre sido litorânea. A chegada da corte, entretanto, alterava esse quadro. Não se tratava mais de uma capital sim92 E S E N H A plesmente administrativa, mas sim de uma capital política para sediar um Estado. Apesar das pressões exercidas pelas elites soteropolitanas, os interesses ingleses, influentes aliados históricos dos portugueses, preferiam que a capital continuasse a ser o Rio de Janeiro, mais próxima da Argentina e do Uruguai, para onde os planos ingleses se voltavam. No contexto dessa discussão colocava-se, também, como alternativa, a fundação de uma nova capital. Essa idéia foi fruto, de um lado, de uma inquietação quanto à capacidade de o Rio de Janeiro desempenhar apropriadamente essa função, e, por outro lado, desenvolvia-se a necessidade de um novo modelo de apropriação territorial que desse sustentação a um projeto de integração nacional e de povoamento e que culmina com a idéia de que somente uma capital solidamente implantada no interior do País seria capaz de dar sustentação a esse empreendimento. Esse projeto vinha também ao encontro de dois dos principais mitos fundadores do país: o do Lago Dourado, onde se encontrariam as cabeceiras das principais bacias hidrográficas do território brasileiro, e um outro que evocava a existência de um certo “paraíso terrestre” idealizado no interior do País. Percebem-se aqui, de forma clara, os elementos que compõem a análise de Vidal: a idéia de uma capital interiorizada responde a preocupações estratégicas, geopolíticas, mas também a aspirações atávicas do âmbito do imaginário. O autor, entretanto, bastante centrado na análise do ideário, deixa o leitor sem elementos mais concretos que lhe possibilitem compreender por que todas essas idéias não chegaram a se materializar. Ele também incorre em equívocos já de longa data discutidos e esclarecidos, como, por exemplo, a afirmação de que os portugueses, nos primeiros anos de colonização, não teriam atribuído especial significação à criação de cidades novas (p.49), ou ainda, que os portugueses pouco se teriam importado com a dimensão simbólica do seu urbanismo colonial (p.25). O segundo capítulo tem como objeto o período da Independência. Também aí, a idéia de uma nova capital emerge como símbolo dessa ruptura institucional e do projeto de modernização da nação que acompanhou essa nova conjuntura. Nesse caso, o projeto político e a idéia de capital tiveram seu espelho num projeto urbanístico. Os dois primeiros foram protagonizados por José Bonifácio, que deu nome ao projeto de transformação (o chamado “projeto Bonifácio”). Já R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 R E S E N H A o projeto urbanístico da nova capital coube a Menezes Palmiro. Desde o momento que antecedeu o ato de independência, a representação brasileira no parlamento português já levantava a idéia da construção de uma nova capital, necessariamente no interior. Durante o processo de independência e de consolidação da nação, recorrentemente essa idéia veio à pauta com o objetivo estratégico de proteção da sede do País contra eventuais incursões estrangeiras e também como forma de povoar o território. Existe aí um aspecto, mencionado, mas não devidamente enfatizado por Vidal, exceto na “Conclusão”. Diz respeito a um paradoxo territorial e demográfico da jovem nação brasileira. Com o Tratado de Tordesilhas, a divisão legal dos domínios coloniais da América do Sul deu ao Brasil um território muitas vezes menor do que aquele efetivamente ocupado. A saga territorial brasileira foi, não só de defesa de um litoral extensíssimo, mas também do avanço e consolidação das fronteiras a oeste. A distribuição demográfica, por outro lado, concentrou-se ao longo da costa, isto é no extremo leste. O Tratado de Madrid e de San Ildefonso (1750 e 1777) deram legalidade à ocupação que já havia de fato. Entretanto, o vastíssimo território, de certa forma, surrupiado e não povoado sempre suscitou, no inconsciente coletivo da nação, fantasmas e inquietude. Consideramos esse contexto histórico fundamental para entender a recorrência das postulações de interiorização da capital. Isso talvez merecesse uma ênfase maior da parte de Vidal, sempre tão interessado nas aspirações e psicologia coletivas. O autor apresenta, com maestria, os fatores em questão e os blocos de interesses em jogo que resultaram na consolidação do Rio de Janeiro como capital, em detrimento da fundação de uma cidade nova no interior do País. Diferentemente dos outros países da América do Sul, o Brasil independente tornou-se um império, chefiado pelo próprio filho do monarca português. A opção geopolítica de confirmação da capital colonial como capital do novo império era reveladora do continuísmo de uma política de privilégios dos interesses da oligarquia rural em detrimento do projeto modernizador. O revés do projeto iluminista de José Bonifácio postergou a implantação de um regime de liberdades individuais, de igualdade de direitos civis e políticos, de abolição da escravatura, de laicização das instituições, bem como da implantação de uma nova capital que integrava o conjunto de aspirações do “pro- jeto Bonifácio”. A europeização estilística do Rio de Janeiro, principalmente protagonizada pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny, por outro lado, procurava garantir uma imagem de linhagem européia. O projeto urbanístico da nova capital, desenvolvido por Menezes Palmiro, é então analisado em detalhes. De forma bastante original, Vidal relaciona a forma urbana e os modelos arquiteturais propostos com o projeto social e político que lhe era subjacente. Diferentemente da sinuosidade e arquitetura barroca das cidades coloniais brasileiras, a cidade de Pedrália (em homenagem a D. Pedro I) era proposta em grelha ortogonal e arquitetura neoclássica. Também em contraste com a cidade colonial, onde a rua era desvalorizada e a arquitetura institucional não era objeto de destaque, em Pedrália, os espaços públicos tornar-se-iam espaços de prestígio, valorizados por jardins e conjuntos arquiteturais de impacto. Apesar de uma boa dose de continuidade durante a consolidação imperial, a idéia de uma nova capital adquiriu contornos significativamente diferentes daqueles existentes no período da Independência. Foi um época durante a qual as contradições, tão características desse país, já se apresentavam de forma bastante evidente. Se, por um lado, pode ser identificada uma busca de identidade nacional, por outro, a tentativa de definição dessa nacionalidade não se baseava exatamente numa oposição à antiga metrópole, muito pelo contrário. O projeto político hegemônico se via em continuidade à ação civilizatória portuguesa. Ao mesmo tempo que se difunde uma perspectiva romântica de idealização da “terra-mãe”, da questão regional, do sertanismo e da figura do índio, as elites identificam a nação como de filiação indubitavelmente européia. É nesse contexto contraditório que é relançada a idéia de uma nova capital. Também aqui ela deveria ser interiorizada, mais próxima da “alma do país”. O principal promotor dessa idéia foi, dessa vez, um historiador erudito, Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro. A capital por ele proposta chamar-se-ia “Imperatória”. Ela faria parte de um sistema mais amplo de subdivisão territorial em unidades geográficas de dimensões mais proporcionadas do que aquelas ora existentes. A localização de Imperatória deveria, então, atender a um requisito de certa eqüidistância entre as unidades. Esse projeto territorial incluía ainda o estabelecimento de colônias agrícolas e de uma rede de R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 93 R comunicações entre as regiões, de forma a garantir uma independência externa, principalmente no tocante ao abastecimento alimentar. Vidal insiste no fato de que esses projetos identitários teriam ocorrido sempre em momentos de ruptura. A proposição de transferência da capital foi apresentada em 1849. Segundo o autor, os anos de 1840 foram marcados por mudanças significativas no conceito de Brasil moderno e no de que seria uma ação modernizadora do Estado imperial brasileiro. Mas o projeto político de Varnhagen diferia muito do projeto libertário de Bonifácio. Além da matriz fisiocrata, o projeto do visconde era eminentemente elitista. Ele também tinha como referência matricial a teoria climática de Montesquieu e instrumentalizava-a com objetivos precisos: a nova capital deveria se localizar em clima ameno, a pelo menos 3.000 pés de altitude, que melhor conviria “à nossa raça”, isto é, aos descendentes europeus. Segundo essa visão, seria justamente o elemento europeu, engenhoso e industrioso, o agente de modernização do País. Muito dessa ideologia foi efetivamente posta em prática, durante o período imperial, através da política governamental de fomento à imigração branca, basicamente na região Sul. Em comparação com o projeto de Pedrália, Imperatória se presta menos às análises morfológicas. Vidal teve como obstáculo, nesse caso, o fato de as proposições de Varnhagem terem sido apenas esboçadas. A partir do período republicano, iniciado em 1889, a questão da transferência da capital adquiriu contornos bem mais conseqüentes. O projeto entrou efetivamente na agenda nacional através de dispositivos institucionais e da constituição de comissões técnicas para a definição da localização da nova cidade. Já no primeiro anteprojeto da constituição republicana, a questão da transferência estava explicitamente colocada. Na análise de Vidal, essas duas vertentes, pelas quais as aspirações de transferência da capital tomavam corpo (a jurídica e a técnico-científica), teriam sido uma conseqüência das duas principais lógicas que pautaram o debate político no início do período republicano. De um lado, com uma abordagem mais jurídica, comparecia o republicanismo liberal, porta-voz dos interesses da oligarquia agrária, conservadora e elitista. De outro, uma abordagem mais técnica provinha do republicanismo positivista, porta-voz das classes médias urbanas e do corpo de oficiais militares, partidá94 E S E N H A rios de uma visão cientificista e autoritária. Uma comissão científica chegou a desenvolver trabalhos de campo que resultaram na demarcação do que ficou conhecido como o “retângulo de Cruls”, nome do engenheiro que dirigiu a comissão de exploração. A delimitação “de Luís Cruls”, de forma aproximada, coincide com a indicação anteriormente feita por Varnhagen. Vidal procede, então, a uma análise bastante esclarecedora e muito bem problematizada e documentada dos interesses políticos que balizaram o desenrolar dos fatos: a clivagem Executivo/Legislativo; os interesses regionais versus as tendências centralizadoras; as limitações orçamentárias; e a histórica rivalidade entre paulistas e mineiros. Mas o cerne explicativo dos acontecimentos é aquele mesmo que perpassa o conjunto da obra: a função aglutinadora da idéia de uma nova capital resgatada sempre em momentos críticos da história do Brasil. Uma vez a República estabilizada, o dispositivo constitucional que estabelecia a transferência da capital foi deixado de lado. Ainda durante o período da Primeira República, a prática urbanística brasileira, bem como a própria discussão sobre a transferência da capital foram marcadas pela fundação de uma cidade nova para sediar o estado de Minas Gerais e pela a reforma da cidade do Rio de Janeiro. Esses dois eventos são também objeto da análise de Vidal. Nos derradeiros meses do período em questão (1930) foi publicado, como um encarte de um jornal editado no Rio de Janeiro, uma detalhada proposta de futura capital federal. Ela chamar-seia “Brasília” e teve como autor Theodoro Figueira de Almeida. O projeto, bastante detalhado, tomava forma de uma alegoria pedagógica da história brasileira. A cidade fora concebida, conforme explicação do próprio autor, em forma de “um grande cérebro (sic)”, alternando grelhas ortogonais de diferentes dimensões entremeadas por praças e algumas diagonais. Cada pedaço da cidade corresponderia a uma determinada passagem histórica. Os nomes das ruas, avenidas e praças corresponderiam a personagens e eventos geograficamente relacionados na planta da cidade. Se, por um lado, o ineditismo da documentação enriquece a obra de Vidal, por outro, sua análise fica bastante desarticulada em relação ao resto do livro. A descrição e o caráter peculiar do projeto envolvem o leitor, mas o deixam sem referências claras sobre que razões teriam levado Vidal a incluí-lo dessa forma em sua R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 R E S E N H A obra. O nome “Brasília” não era exatamente uma inovação. Não foi por nós aqui mencionado, mas ele já havia sido anteriormente aventado. Não fica clara que tipo de vinculação tinha Teodoro com grupos técnicos ou de interesses ora existentes. Tampouco se o projeto em questão suscitou algum debate ou se teve alguma repercussão. O regime político implantado a partir de 1930 significou o acesso ao poder da burguesia industrial e das classes médias urbanas. Uma nova divisão político-territorial entra na agenda do novo regime e com ela, uma vez mais, o projeto político de implantação de uma nova capital, se bem que esta última com bem pouca ênfase. Os anos que se seguiram foram marcados por uma nova concepção de modernização do país. A noção abstrata e idealizada de “progresso” foi substituída por uma consciência do caráter dual da nação, chegando-se mesmo à formulação da idéia da existência de dois Brasis, um moderno e outro atrasado. A urbanização e a vida urbana passaram a ser lidas como fatores de modernização, tomando assim o lugar da ideologia ruralista da Primeira República. O papel do Estado seria de integração dos dois Brasis, daí o resgate da idéia de uma “marcha em direção ao Oeste”. A primeira transposição em termos de planejamento urbano dessa nova ideologia teria sido, segundo Vidal, a fundação de uma nova capital para o Estado de Goiás, Goiânia, uma aplicação do modelo da cidade jardim, mas com uma tipicidade brasileira. O autor aponta uma diferença muito grande entre a nova capital e Belo Horizonte, criada algumas décadas antes. Fazendo uma ponte entre as ideologias hegemônicas nos dois diferentes momentos históricos, Vidal associa Belo Horizonte a um projeto que pretendia conduzir a sociedade com mão de ferro em direção ao progresso (p.171), enquanto Goiânia seria portadora de um projeto mais humanístico. Apesar do tom eloqüente, a interpretação destoa da clareza de raciocínio e do rigor documental e de argumentos que, no geral, a obra possui. Vidal, de maneira não explícita, comunga com uma visão bastante recorrente e consensual da historiografia urbanística brasileira que interpreta o projeto de Goiânia como um preâmbulo para Brasília. Logo após a passagem sobre Goiânia, o autor envereda sobre os principais marcos da constituição do modernismo brasileiro, assim como pela nova geração de debates, co- missões técnicas e parlamentares com vistas a uma nova capital, já em reta final para a materialização de Brasília. Ele ressalta, em relação à questão da localização, o conflito entre a escolha de um centro geográfico ou um centro demográfico. Em relação a outras questões, ele destaca os conflitos entre os parâmetros técnicos e os identitários, entre a visão autoritária e a liberal. Uma passagem especialmente interessante é a que trata do convite e “desconvite” a Le Corbusier para ser o autor do projeto da nova capital. Um capítulo inteiro é dedicado ao período de gestão presidencial de Juscelino Kubitschek durante o qual a decisão política foi efetivada e Brasília finalmente construída. Diferentemente das outras partes do livro que em proporção significativa tratam de passagens relativamente pouco exploradas da historiografia urbana brasileira, o capítulo específico sobre Brasília apresentava o desafio da originalidade. Vidal saiu-se bem. Após o já tradicional preâmbulo de análise e interpretação de conjuntura, o autor discute o concurso e os principais projetos selecionados. Dos 26 trabalhos apresentados foram traços em comum: a inspiração racionalista; a organização da cidade em quatro setores funcionais definidos pela Carta de Atenas; a ruptura com a rua tradicional; a prioridade aos espaços livres, às edificações isoladas e à regularidade geométrica. Emergiu, entretanto, uma clivagem de ordem política e filosófica: alguns arquitetos recorreram à monumentalidade como marca de uma capital; outros preferiram a discrição como forma de enaltecimento do regime democrático em oposição aos autoritários e à tradição absolutista. Vidal procura investigar em que o projeto de Lúcio Costa respondia às exigências sociais, econômicas, culturais e políticas então colocadas. São também objeto de análise a produção arquitetural de Oscar Niemeyer e paisagística de Burle Marx. Mas a principal marca desta obra de Laurent Vidal fica mesmo no último capítulo. Nessa passagem o autor procede a uma interpretação eminentemente semiótica e simbólica dos ritos que envolveram o nascimento da nova capital. Fazendo referência à cosmogonia e religiosidade que envolviam a fundação das cidades antigas, e em grande parte inspirado pela obra de Joseph Rykwert (The idea of a town), ele desvenda em detalhes todo o protocolo adotado para os atos de fundação (ritualmente celebrada através de uma missa em 3 de maio de 1957), de inauguração (21 de abril de R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 95 R E S E N H A 1960) e de historicização da nova capital, por meio de toda uma política de comunicação e de implantação de monumentos comemorativos referentes à própria saga da cidade que se estava fundando. O autor é aí brilhante e eloqüente. O capítulo é extremamente criativo, quase épico, sem cair na pieguice ou ufanismo. A principal crítica que poderia ser feita a essa obra, além daquelas já adiantadas ao longo deste texto, é o fato de que, de forma geral, falta a Vidal uma hierarquização da importância das passagens comentadas. Como todo e qualquer discurso ou evento se presta à análise e interpretação, especialmente o leitor menos familiarizado com o panorama brasileiro corre o risco de não perceber que fatos que recebem a mesma atenção e dedicação por parte do autor possuam importância e repercussão tão diferenciadas. De forma geral, os poucos deslizes anteriormente apontados concentramse sobretudo nos capítulos quatro e cinco, que são justamente dois dos três acrescentados à pesquisa doutoral. Isso talvez explique uns breves lapsos no rigor documental e de argumentação que caracterizam esse trabalho. Esses aspectos, entretanto, constituem apenas um detalhe. Como balanço geral, sem sombra de dúvida, pode-se afirmar que, definitivamente, trata-se de uma obra que constitui um marco não só para Brasília, mas para a própria historiografia urbana, pela operacionalização metodológica empreendida e por se apresentar como um exemplo das potencialidades das abordagens multidisciplinares. 96 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional E REGIONAIS NORMAS PARA PUBLICAÇÃO Todos os artigos recebidos serão submetidos ao Conselho Editorial, ao qual cabe a responsabilidade de recomendar ou não a publicação. Serão publicados apenas artigos inéditos. Os trabalhos deverão ser encaminhados em disquete (Word 6.0 ou 7.0, tabelas e gráficos em Excel, figuras grayscale em formato EPS ou TIF com 300 dpi) e em três vias impressas, digitadas em espaço 1.5, fonte Arial tamanho 11, margens 2.5, tendo no máximo 20 (vinte) páginas, incluindo tabelas, gráficos, figuras e referências bibliográficas, acompanhados de um resumo em português e outro em inglês, contendo entre 100 (cem) e 150 (cento e cinqüenta) palavras, com indicação de 5 (cinco) a 7 (sete) palavras-chave. Devem apresentar em apenas uma das cópias as seguintes informações: nome do autor, sua formação básica e titulação acadêmica, atividade que exerce, instituição em que trabalha e e-mail, além de telefone e endereço para correspondência. Os originais não serão devolvidos. Os títulos do artigo, capítulos e subcapítulos deverão ser ordenados da seguinte maneira: Título 1: Arial, tamanho 14, normal, negrito. Título 2: Arial, tamanho 12, normal, negrito. Título 3: Arial, tamanho 11, itálico, negrito. As referências bibliográficas deverão ser colocadas no final do artigo, de acordo com os exemplos abaixo: GODARD, O. “Environnement, modes de coordination et systèmes de légitimité: analyse de la catégorie de patrimoine naturel”. Revue Economique, Paris, n.2, p.215-42, mars 1990. BENEVOLO, L. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1981. Se houver até três autores, todos devem ser citados; se mais de três, devem ser citados os coordenadores, organizadores ou editores da obra, por exemplo: SOUZA, J. C. (Ed.). A experiência. São Paulo: Vozes, 1979; ou ainda, a expressão “et al” (SOUZA, P. S. et al.). Quando houver citações de mesmo autor com a mesma data, a primeira data deve vir acompanhada da letra “a”, a segunda da letra “b”, e assim por diante. Ex.: 1999a, 1999b, etc. Quando não houver a informação, use as siglas “s.n.”, “s.l.” e “s.d.” para, respectivamente, sine nomine (sem editora), sine loco (sem o local de edição) e sine data (sem referência de data), por exemplo: SILVA, S. H. A casa. s.l.: s.n., s.d. No mais, as referências bibliográficas devem seguir as normas estabelecidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Para citações dentro do texto, será utilizado o sistema autor-data. Ex.: (Harvey, 1983, p.15) A indicação de capítulo e/ou volume é opcional. Linhas sublinhadas e palavras em negrito deverão ser evitadas. As citações de terceiros deverão vir entre aspas. Notas e comentários deverão ser reduzidos tanto quanto possível. Quando indispensáveis, deverão vir em pé de página, em fonte Arial, tamanho 9. Os editores se reservam o direito de não publicar artigos que, mesmo selecionados, não estejam rigorosamente de acordo com estas instruções. 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E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 5 , N . 1 – M A I O 2 0 0 3 REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional E REGIONAIS ONDE ADQUIRIR ANPUR • Prédio do IGC – sala 217 Av. Antônio Carlos, 6627 Campus Universitário – Pampulha 31270-901 Belo Horizonte, MG Tel.: (31) 3499 5404 E-mail: [email protected] COPEC • Rua Curitiba, 832, sala 201 30170-120 Belo Horizonte, MG Tel.: (31) 3279 9145 [email protected] IPPUR • Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional / UFRJ Ilha do Fundão – Prédio da Reitoria, sala 533 21941-590 Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2598 1930 [email protected] LIVRARIA VIRTUAL VITRUVIUS • Al. Campinas, 51, Jardim Paulista 01404-000 São Paulo, SP Tel.: (11) 288 8950 [email protected] PROLIVROS EDUFAL • Editora da Universidade Federal de Alagoas Prédio da Reitoria – Campus A. C. 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