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BIODIVERSIDADE
Conteúdo
SUSTENTO E CULTURAS
EDITORIAL
1
Biodiversidade, sustento e culturas é uma publicação trimestral de informação e debate
sobre a diversidade biológica e cultural para
apoio às comunidades e culturas locais. O
uso e conservação dos recursos genéticos, o
impacto das novas biotecnologias, patentes e
políticas públicas são parte de nossa cobertura. Inclui experiências e propostas na América Latina, e busca ser um vínculo entre aqueles que trabalham pela gestão popular dos
recursos genéticos, especialmente as comunidades locais: mulheres e homens indígenas e
afroamericanos, camponeses, pescadores e
pequenos produtores.
Ajuda em sementes, agroempresas e crise alimentar
Fome e transgênicos
Fluxo de alimentos e Tratados de Livre Comércio
3
8
9
Número 58, outubro de 2008
UMA PANORÂMICA E MUITAS VISTAS
10
No futuro será imprescindível produzir alimentos próprios
O Brasil e seus bois multinacionais
18
Meatrix: o negócio da carne
23
Organizações coeditoras
Acción Ecológica
[email protected]
Acción por la Biodiversidad
[email protected]
Campanha de Sementes
da Vía Campesina – Anamuri
[email protected]
Centro Ecológico
[email protected]
GRAIN
[email protected]
Grupo etc
veró[email protected]
Grupo Semillas
[email protected]
Red de Coordinación en Biodiversidad
[email protected]
REDES-AT Uruguai
[email protected]
ATAQUES, POLÍTICAS, RESISTÊNCIA, RELATOS
24
Comitê Editorial
Ma. Eugenia Jeria, Argentina
Carlos Vicente, Argentina
Ciro Correa, Brasil
Maria José Guazzelli, Brasil
Germán Vélez, Colombia
Alejandra Porras (Coeco-at), Costa Rica
Silvia Rodríguez Cervantes, Costa Rica
Camila Montecinos, Chile
Francisca Rodríguez, Chile
Elizabeth Bravo, Equador
Ma. Fernanda Vallejo, Equador
Silvia Ribeiro, México
Magda Lanuza, Nicarágua
Juan Martin Drago, Uruguai
Carlos Santos, Uruguai
Administração
Ingrid Kossmann
[email protected]
Edição
Ramón Vera Herrera
[email protected]
Design e diagramação
Daniel Ortega, Claudio Araujo
[email protected]
Amanda Borghetti (Brasil)
[email protected]
Edição em português
Centro Ecológico
[email protected]
issn: 07977-888X
não querem transgênicos na África, não?/ Brasil: financiando a contaminação/ os jeitinhos da Monsanto no México/ Equador: O governo, a constituição,
os indígenas e as mineradoras/ as paralisações antimineradoras prosseguirão/ carta aberta sobre a nova constituição/ assassinam defensor de direitos
humanos na Colômbia/ dendê em Chiapas: paramilitar?/ Estados Unidos se
posicionam na Guatemala/ Argentina: perseguição aos camponeses/ Honduras: mais um assassinato em nome da suposta proteção das áreas protegidas
Ecos da Quinta Conferência da Via Campesina
Crise ou soberania alimentar?
32
Declaração do Encontro Nacional:
Crise Alimentar na Colômbia - Ações Sociais
para a Defesa da Soberania e da Autonomia Alimentar
36
Solidariedade e denúncia
40
A série de fotos deste número é de Jerónimo Palomares e foi tirada no estado de
Puebla, México. As ilustrações que acompanham a revista e o caderno de biodiversidade número 25 provêm do livro El diseño indígena argentino, de Alejandro
Eduardo Fiadone, La Marca Editora, 2006, e são desenhos pré-hispânicos de diversas culturas indígenas assentadas no que hoje é a Argentina. Agradecemos a
sensibilidade do autor em permitir a utilização das imagens sempre e quando seja
com fins artísticos e sem lucro. Nesse caso, nossa publicação sem finalidade de
lucro, além de ter fins artísticos, visa documentar, divulgar e conservar a tradição
de desenho indígena do continente (e do mundo) e servir de fonte secundária para
que as pessoas tenham acesso a obras de sistematização como a de Alejandro
Eduardo Fiadone.
Biodiversidade, sustento e culturas é uma revista trimestral (quatro
números por ano). As organizações populares, as ONGs e as instituições
da América Latina podem recebê-la gratuitamente. Por favor, enviem
seus dados com a maior precisão possível para simplificar a tarefa de
distribuição da revista.
As organizações populares e as ongs da América Latina podem receber gratuitamente a revista. Contatar REDES-AT Uruguai: [email protected]/[email protected]
Convidamos a que se comuniquem conosco e nos enviem suas experiências, sugestões e comentários.
Dirigir-se a Ingrid Kossman: [email protected]. Os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. O material aqui reunido pode ser divulgado livremente, mas agradecemos se
a fonte for citada. Por favor nos enviem uma cópia para nosso conhecimento.
Os dados necessários são:
País, organização, nome e endereço completos:
endereçamento postal (CEP), cidade e estado.
(Correio eletrônico, telefone e/ou fax, se houver.)
Agradecemos o apoio da SwedBio e da Cooperación al Desarrollo de la Consejería de la
Vivienda y Asuntos Sociales del Gobierno Vasco. Agradecemos o apoio da Heifer
Internacional Programa Brasil e Argentina para a publicação da edição em português.
código
de
Enviem, por favor, sua solicitação a BIODIVERSIDAD, REDES-AT, San José
1423, 11200 - Montevidéu, Uruguai. Telefones: (598 2) 902 23 55/908 2730.
[email protected]/[email protected]
Editorial
O
trabalho no campo, a colheita e a coleta. Plantadores de batatas: velhos
chapeludos bem camponeses, homens de idade madura um pouco mais
urbanos, jovens e gurizada com pinta de que estiveram “no Norte”, nas
cidades norte-americanas: todos prontos para carregar. As fotos que acompanham este número vêm do estado de Puebla, no México, e nos conduzem a um
campo que não deixa suas antigos maneiras e que já é, há anos, obrigado a plantar ao modo industrial. É o contraste entre as tradições antigas - que solucionavam a vida com o cuidado daqueles que sabiam que cultivar é vida plena, e não
só trabalho rentável - e as formas novas, “empresariais”, que exigem mais agrotóxicos, mais créditos, mais pacotes tecnológicos, e nem com isso o solo rende,
desgastado depois de tantos anos de traição e droga aplicada a cada safra. Um
debate entre os que vão à cidade ou aos Estados Unidos e os que ficam para ver
o que mais pode ser feito com a terra. No México, o plantio da batata representa
tudo isso. Rapidamente se tornou um cultivo para vender, para ter dinheiro vivo,
e começou a fluir pelos circuitos que intermediam a comida do campo para a cidade do México. Nesses circuitos, há sujeitos chamados por todo mundo de
“coiotes” (por que será?). Nas fronteiras de Puebla, já perto da cidade, eles “atacam” os caminhões carregados para comprar suas cargas por preços muito abaixo dos designados, com ameaças e maus modos.
E, ainda que sejam apenas um dos muitíssimos fatores que criam uma situação
de fome tão devastadora, esses coiotes contribuem para a especulação, o monopólio e a má distribuição de alimentos. Este número de Biodiversidade, sustento
e culturas trata dos fatores que formam uma crise alimentar, mas também de que
esta é somente parte de um ataque mais geral que o capitalismo renova, cada vez
que se mete em encrencas, para se readaptar e lucrar de novo. E, nesse meio tempo, leva de arrasto povos e comunidades rurais, bairros urbanos repletos dos
excluídos de sempre.
É a eles, os dos bairros urbanos, que a crise alimentar, e agora essa recessão
econômica mais generalizada, mais total, atingirá com toda a sua violência, porque são os mais desprotegidos de todos os mortais.
É sintomático que aqueles que têm seus próprios alimentos defendam-se mais,
porque além de comida têm uma dignidade da qual não precisam vangloriar-se
porque vem ao natural de uma vida desde sempre, de uma vida à margem, mas
com horizonte histórico, coisas a respeitar e um senso do sagrado no mundo.
E
nquanto elaborávamos este número, recebemos, com profunda preocupação,
notícias que nos confirmam que as elites pretendem erradicar os povos indígenas, as formas de vida camponesas, suas estratégias que propiciam liberdade e
consciência de horizonte. Esse é o drama boliviano que hoje espalha a inquietude
e a esperança por toda a América Latina. Hoje, os povos marcham para defender
o projeto de sua nova Constituição, e para defender a possibilidade de ter um país
onde as rançosas aristocracias – nesse caso, proprietários de terras, fascistas e
plantadores de soja – não mandem, não decidam, ao menos mais que os demais,
que são maioria e que estão desde sempre nessas terras. É uma demonstração
importante. Em setembro, as juventudes fascistas e bandalheiros, ajuntados em
pelotões de choque, atacaram os indígenas da chamada Media Luna, em Santa
Cruz, Pando, Beni e Tarija, tentanto fazer o conflito evoluir para uma guerra civil,
a partir de emboscadas e metralhamentos por parte de mercenários armados.
Sabe-se de pelo menos 30 indígenas assassinados nesses dias cruentos.
O momento é difícil para a América Latina. Esta atravessa inquietudes de toda
sorte. As alianças de proprietários de terras de uma direita continental alçam vôo
com os aristocratas de Santa Cruz, Guayaquil, Paraguai, mais os fazendeiros argentinos e brasileiros com pretensões de estabelecer uma “república unida da
soja” onde o modelo agroindustrial seja mais importante do que as vidas e os
territórios, onde o trabalho escravo seja a norma, onde não importe a contaminação transgênica, e nem a devastação de grandes extensões de floresta.
O sinal de alerta mais recente vem da Colômbia, onde, após anos de guerra suja,
os povos indígenas, as comunidades camponesas de todo país, decidiram se manifestar em oposição às tentativas de fazê-los desaparecer. As Forças Armadas e a
polícia reprimiram a sangue e fogo os civis desarmados. Os meios de comunicação justificam o massacre acusando falsamente os indígenas de estarem sendo
controlados e infiltrados pela guerrilha.
Na mobilização, as representações indígenas de Cauca, molestadas, expressam
uma verdade que está no coração do que este número de Biodiversidade quer
trasmitir: “As demandas legítimas são ignoradas. O exercício de direitos e liberdades é negado, o território é entregue a transnacionais, a guerra suja assassina
membros da comunidade e líderes, os meios de comunicação enganam e promovem o terror e a manipulação, as leis despojam, o Plano Colômbia converte territórios em palco de operações ; o governo, respaldado pelos Estados Unidos, fecha
o espaço para o conflito político civilista e promove a guerra para, a seguir, tachar
de terroristas os que protestam. O governo promove a insurgência, fabrica-a,
instiga-a. O resultado disso é que o movimento indígena e popular, cansado, encurralado, digno, se mobiliza em uma ação de fato para dar a conhecer sua agenda e exigir que ela seja respeitada. A resposta é marcar-nos como terroristas,
atacar-nos como se atacaria um exército, e, enquanto fazem isso, apresentam um
discurso democrático e civilista como se não tivessem obrigado os povos ao desespero. O que quer o governo? Que voltemos silenciosamente a ser vítimas da
guerra suja a nos deixar despojar e assassinar, sem protestar, a deixar nos meterem em uma guerra contra nós mesmos?”
Em Biodiversidade estamos com os povos indígenas e daqui seguimos atentos
para que possam fazer ouvir sua voz e sua versão dos fatos.
biodiversidade
Ajuda em sementes,
agroempresas e crise alimentar
grain
A crise alimentar mundial, que os que estão
no poder apressaram-se a definir como
um problema de insuficiência na questão
da produção, converteu-se em um Cavalo
de Tróia para introduzir sementes, fertilizantes
e, sub-repticiamente, sistemas de mercado
nos países pobres. O que parece uma “ajuda
em sementes” pode, no curto prazo, mascarar
o que na realidade é a “ajuda ao agronegócio”
em longo prazo. Trazemos uma panorâmica
sobre o que está ocorrendo.
No início do ano, os dirigentes
políticos e econômicos, induzidos pelos meios de comunicação
empresariais, apressaram-se em
explicar a atual crise alimentar
mundial como uma “perfeita
tempestade” de vários fatores:
problemas meteorológicos, o
desvio de cultivos para os biocombustíveis, aumentos do preço do petróleo e alguns pobres
que se tornam menos pobres e
consomem mais produtos animais. Querem nos fazer acreditar que a crise alimentar originou-se em um problema de
produção. Muitas vozes rebateram esse argumento e demonstraram que as atuais políticas
econômicas, focadas no comércio mundial, e a desregulamentação são as responsáveis. Sem
dúvida, empresas, governos e
organismos internacionais promoveram a falsa solução de aumentar a produção, principalmente conseguindo sementes
“de maior rendimento” para os
agricultores.
Quais sementes? De onde? Que
impacto terão sobre as comuni-
dades vulneráveis e sobre a biodiversidade local? É difícil encontrar dados confiáveis, mas existe
o grave risco de que essa resposta
simplista à crise mundial – e que
evita formular as perguntas que
na verdade lançam desconfiança
sobre as políticas – provoque uma
nova onda de erosão genética e
insegurança nos meios de vida e
de sustento, pois subjuga os sistemas locais de sementes das comunidades. As conseqüências para a
sobrevivência das famílias rurais
de todo o mundo, e para a produção de alimentos, poderiam ser
extremamente desastrosas.
O “coro perfeito”. Grandes so-
mas de dinheiro são prometidas
para enviar, com urgência, sementes e fertilizantes aos países do Sul
afetados pela crise alimentar. Em
maio, o Banco Mundial (bm) colocou em operação um fundo de
financiamento de 1,2 bilhões de
dólares, destinado a mobilizar
apoio financeiro “para o rápido
fornecimento de sementes e fertilizantes aos pequenos agricultores”. Durante a reunião de cúpula
do Grupo dos Oito países mais
ricos do mundo, realizada no Japão, no início de julho, o presidente do bm, Robert Zoellick,
disse a essas pessoas poderosas
que uma das principais prioridades da luta contra a crise alimentar mundial é “dar aos pequenos
agricultores, especialmente na
África, acesso a sementes, fertilizantes e outros insumos básicos”.
Nas instâncias prévias da reunião,
o presidente da Comissão Européia, José Manuel Barroso, ofereceu 1 bilhão de euros em “fertilizantes e sementes para ajudar os
agricultores pobres dos países em
desenvolvimento”. O presidente
dos Estados Unidos, George Bush,
anunciou 1 bilhão de dólares em
dinheiro para a crise alimentar e
declarou que convenceria outros
dirigentes do mundo a tomarem
medidas para aliviar a fome “aumentando os embarques de alimentos, de fertilizantes e de sementes aos países necessitados”.
Duas semanas antes, o secretário
geral das Nações Unidas, Ban KiMoon, levou esta mensagem à
Assembléia Geral, em Nova Iorque: “Devemos agir imediatamente para estimular a produção
agrícola. A forma de fazê-lo é fornecendo, urgentemente, as sementes e fertilizantes necessários
para as próximas safras, especialmente para os 450 milhões de
agricultores em pequena escala de
todo o mundo”. Imaginem! Bilhões de dólares desembolsados
repentinamente para distribuir
sementes aos agricultores mais
pobres do planeta – um grupo
cujas necessidades nunca antes figuraram entre as preocupações
prioritárias desses dirigentes.
Previamente, a Organização das
Nações Unidas para Alimentação
e Agricultura (fao) havia lançado
sua própria iniciativa dirigida a
“demonstrar que incrementando
o fornecimento de insumos agrícolas chave, sementes e fertilizantes, os pequenos agricultores serão
capazes de aumentar rapidamente
a produção alimentar”. A iniciativa da fao já inclui 35 países, na
ordem de 21 milhões de dólares,
enquanto outros 54 países são
apoiados de forma semelhante no
âmbito do Programa de Cooperação Técnica, ao custo de 24 milhões de dólares. A iniciativa também se propõe a “encorajar os
doadores, instituições financeiras
e governos nacionais a apoiar a
dotação de insumos em maior escala”. Organizações, que vão da
Fundação Bill & Melinda Gates à
Cruz Vermelha, sobrepõem-se
para formular programas destinados a fornecer sementes e fertilizantes em resposta à crise alimentar atual.
Lições da “ajuda” em sementes.
O impacto da ajuda em sementes
– que significa fornecer sementes
a zonas em crise – é um assunto
de árduo debate há vários anos.
Freqüentemente, os programas de
desenvolvimento têm-se focado
em substituir o que consideravam
“variedades locais de baixo rendimento” por algumas sementes
chamadas de alto rendimento,
obtidas em laboratório. Os organismos de auxílio, que em situações de emergência distribuíam
ajuda em sementes, em geral seguiram pelo mesmo modelo. Não
se fez quase nenhum esforço para
compreender as variedades locais:
por que os agricultores as selecionaram e por que continuam utilizando-as. Hoje, as vantagens das
variedades locais são mais evidentes. Reconhece-se que, entre
outras coisas, tendem a dar melhores respostas em condições de
baixo uso de insumos, a resistir às
pressões locais, a oferecer outros
produtos além do grão (como palha para forragem), a ter rendimentos estáveis, com baixo risco
ao longo do tempo, e a ter melhor
sabor ou melhores condições de
cozimento. Em outras palavras,
são apropriadas cultural e agronomicamente.
Também cresce o consenso sobre as desvantagens de introduzir
sementes de fontes estranhas. Há
alguns meses, Louise Sperling,
David Cooper e Tom Remington
apresentaram um relatório que
ressalta o que os críticos vêm dizendo há anos*: “Com freqüência, não é necessário introduzir
sementes de fontes externas, já
que, em geral, os sistemas locais
de sementes dispõem de sementes,
mesmo em períodos de crise. A
distribuição direta de sementes
não é muito eficaz, já que os agri*(ver http://www.ciat.cgiar.org/
newsroom/pdf/moving_towards_more_
effective_seed_aid_april_2008.pdf)
cultores tendem a preferir suas
próprias fontes de sementes. Caso
se repita, a ajuda em sementes
pode provocar dependência, fazer
ruir os sistemas locais de sementes
e erodir as sementes locais.”
Essa mudança de pensamento
provocou uma mudança de política no Afeganistão, onde as mais
destacadas organizações de ajuda
adotaram um código de conduta
para a distribuição de sementes
em casos de emergência, que estabelece que elas devem ser produzidas localmente, que todo o fornecimento de emergência não deve
distorcer os sistemas locais de sementes, e que estas devem se
adaptar ao ambiente local. Não
há razão para duvidar que as
ongs pequenas ou independentes
atualmente envolvidas em projetos de ajuda em sementes como
resposta à crise alimentar estejam
adotando esse critério. Mas a história pode ser diferente com aqueles organismos de ajuda maiores,
pagos para assumir o encargo de
fornecer sementes aos governos.
Funcionários da fao asseguraram ao grain que os projetos de
ajuda em sementes que elaboraram em resposta à crise mundial
atual orientam a fornecer sementes locais de mercados e comerciantes locais, e que evitam híbridos e variedades transgênicas.
Mas os comunicados da própria
fao enviam uma mensagem diferente e mais arrepiante. Falam de
“uma caravana de caminhões carregados com mais de 500 toneladas de sementes” que partiu da
capital da Mauritânia para o interior e que “distribuíram entre os
agricultores empobrecidos de
Burkina umas 600 toneladas de
variedades de sementes melhoradas”. Há, portanto, uma discrepância entre a retórica oficial e o
que ocorre de fato em algumas zonas. No longo prazo, a situação é
ainda mais preocupante. Com os
bilhões de dólares lançados a or-
ganismos humanitários para distribuir com urgência sementes e
fertilizantes aos agricultores em
nome da crise alimentar, com a
fao, que faz um chamado ao “fornecimento de insumos em uma escala muito maior”, e com as mensagens, oriundas de dirigentes e
instituições financeiras do mundo,
de que é tempo de levar as novas
tecnologias aos pequenos agricultores para aumentar sua produção, os sistemas locais de sementes
dos agricultores podem se ver
ameaçados em várias partes do
mundo.
vados e de companhias nacionais
de sementes com conexões políticas. As sementes são agora um
grande negócio.
Os organismos internacionais
que ainda alegam ter um mandato “público”, como a Aliança por
uma Revolução Verde na África
(agra, por sua sigla em inglês) e o
Grupo Consultivo de Pesquisa
Agropecuária (cgiar), cada vez
mais são coalizões público-privadas com vínculos diretos com as
multinacionais. Seus programas
de pesquisa são parte das estratégias de crescimento das empresas
E o setor privado? Há vinte
e adotam mais e mais elementos
de modelos comerciais. Hoje,
quando se fala de sementes e não
se especifica que são sementes locais ou de camponeses, está implícito que se trata de sementes
privadas (que os camponeses têm
que comprar, e que chegam com
estritas restrições quanto ao seu
uso).
Em nível nacional, onde a ajuda
em sementes traduz-se em novos
programas de governo, é óbvio o
vínculo entre as respostas oficiais
à crise alimentar e a agenda das
agroempresas. As iniciativas para
impulsionar a produção de alimentos em Benin e nas Filipinas
ante a crise são pouco mais do
anos atrás, a ajuda em sementes
teria se apoiado, em grande parte,
no setor público: as sementes seriam oriundas dos sistemas públicos de fitomelhoramento, de produção e de distribuição, talvez a
troco de nada, e os camponeses
que as recebessem teriam podido
guardar sementes de seus cultivos
e compartilhá-las com seus vizinhos. Agora o setor público está
dividido, cercado, privatizado.
Um punhado de empresas multinacionais de agrotóxicos controla
mais da metade do mercado mundial de sementes e seu controle
estende-se através de uma crescente rede de intermediários pri-
que programas de subvenções
para as empresas de sementes e de
fertilizantes. A Indonésia aposta
que as sementes híbridas do setor
privado resolverão suas necessidades de arroz no longo prazo.
Apesar de anos de fracasso com o
arroz híbrido no país e sem estudos válidos que respaldem os argumentos que alegam rendimentos
maiores,
o
governo
subvenciona a importação e a
venda de sementes híbridas de arroz e utiliza seus programas politécnicos agrícolas para promovêlas. Os poucos magnatas locais e
empresas estrangeiras que controlam o mercado de sementes
híbridas de arroz no país são os
únicos cujos lucros estão garantidos.
No Senegal, o presidente Abdoulaye Wade lançou sua “Grande
Ofensiva Agrícola para a Nutrição
e a Abundância” (goana, por sua
sigla em francês) em resposta à crise atual, visando a uma auto-suficiência alimentar do país para
2015, incentivando principalmente a produção de alimentos básicos. Dos 792 milhões de dólares
norte-americanos que o governo
diz que investirá no projeto, 443
milhões serão para subsidiar a
compra de fertilizantes, 120 milhões para sementes, e 30 milhões
para agrotóxicos. As companhias
produtoras e distribuidoras desses
insumos, muitas delas propriedade de capitais estrangeiros, serão
as primeiras a se beneficiar, dado o
investimento radical e as desregulamentações fiscais que acompanham o plano goana. A principal
organização de agricultores do Senegal, o Conselho Nacional de
Acordo e Cooperação Rural
(cncr), que não foi consultado a
respeito da Ofensiva, disse que os
agricultores correrão o risco de
não poderem devolver o crédito
assumido para comprar os insumos, mesmo com os subsídios,
porque o projeto não reverte os
antigos problemas estruturais que
impedem os agricultores de obter
no mercado um preço justo por
seus cultivos.
No Mali, a Coordenação Nacional de Organizações Camponesas
(cnop) foi excluída do processo
com o qual o governo responde à
crise alimentar mundial – a Iniciativa Arroz -, que objetiva duplicar
a produção nacional de arroz em
poucos anos. Como no Senegal,
trata-se de subsidiar as sementes
“de alto rendimento” e os fertilizantes. A cnop lamenta que isso
signifique que os benefícios irão
parar nos bolsos dos comerciantes
de insumos. Em numerosos países
da África Ocidental, a ênfase está
colocada na produção e na distribuição rápida de sementes do arroz Nerica™, desenvolvido pelo
cgiar, e não nas variedades nativas.
Na África, os programas nacionais de crise alimentar, orientados
a fornecer rapidamente sementes
novas e produtos químicos agrícolas para os agricultores, fundem-se
perfeitamente com a estratégia da
agra e do cgiar para o continente. Esses grupos têm se apresentado como salvadores, com a solução ideal para aumentar a
produção. À margem da conferência de cúpula da fao sobre a crise
alimentar, foi firmado um acordo
entre a agra e todos os organismos com sede em Roma que tratam de alimentos, no qual a agra
terá um papel crucial no desenvolvimento e na promoção de novas
sementes e em estabelecer um setor comercial de sementes na África. Uma semana após, a agra firmou outro acordo, desta vez com
a Corporação do Desafio do Milênio, para “oferecer tecnologias,
infra-estrutura e financiamento
aos agricultores da África”. Na
mesma linha, a farm, uma iniciativa multimilionária da presidência da França e de algumas empresas francesas – entre elas a gigante
de sementes Vilmorin e o Grupo
Casino, a potência em supermercados, com alcance mundial -, colocou em marcha projetos, em
Burkina Faso e Mali, que buscam
fazer frente aos efeitos da crise auxiliando as organizações de agricultores a financiar a compra de
fertilizantes e de sementes. A farm
tem o mandato específico de ajudar os países pobres a obter acesso
aos “benefícios” da tecnologia
agrícola européia, como as sementes.
As agroempresas se beneficiam.
Para compreender realmente
como as atuais medidas de verticalização destinadas a fornecer
sementes aos agricultores estendem um tapete vermelho ao agronegócio - para que ingresse nos
países em desenvolvimento e ganhe muito dinheiro rapidamente
- é necessário olhar o cenário de
mudança da atividade empresarial no sistema alimentar. O aumento dos preços dos produtos
agrícolas básicos desencadeou
uma febre no mundo dos grandes
negócios para ter um maior controle de toda a cadeia alimentar.
As companhias e as redes multinacionais de varejo do ramo alimentício têm aprofundado sua
inserção na produção de alimentos, principalmente na agricultura por contrato, para reduzir os
custos de contratação e as garantias. Preocupados com o impacto
de longo prazo dos altos preços
dos alimentos na segurança alimentar nacional, os governos de
países com forte liquidez, como a
China e a Arábia Saudita, estão
trabalhando lado a lado com os
setores comerciais nacionais e
com programas de investimento
recém criados para terceirizar a
produção de alimentos. E o capital especulativo concentrado nos
centros financeiros mundiais,
cambaleando pelo impacto da
contração de crédito, vê os pro-
dutos básicos agrícolas e as terras
de cultivo como âmbito para lucros rápidos. Isso significa que o
controle sobre a agricultura está
passando das mãos dos agricultores para as salas das diretorias. E
os executivos das agroempresas
têm prioridades muito diferentes:
querem controlar um fornecimento uniforme de sementes para
produzir cultivos que sejam introduzidos nos mercados mundiais de produtos agrícolas básicos; não estão interessados nas
sementes locais e nem na preservação dos sistemas alimentares
biodiversos.
Duas das maiores empresas asiátias de alimentos – Sime Darby,
da Malásia, e Charoen Pokphand,
da Tailândia – agora se voltam
para a produção de arroz, como
parte das respostas que seus países de origem dão a essa crise
mundial. Lançam a produção e a
comercialização de suas próprias
sementes híbridas de arroz, desenvolvidas com o apoio do setor
público. O investimento estrangeiro chinês na produção de arroz no Laos e em Camarões baseia-se, invariavelmente, em
variedades chinesas híbridas de
arroz, pouco testadas e introduzidas mediante acordos bilaterais
de ajuda.
Repentinamente, a África Subsaariana converteu-se em um imã
para essa invasão agroindustrial.
Entretanto, cerca de 90% das sementes usadas na África são variedades locais camponesas, que
não são adequadas ao agronegócio. Assim, o investimento empresarial depende da introdução
e disseminação de variedades que
sirvam às necessidades empresariais – o equivalente à soja Rondup Ready, que abriu o caminho
para que o agronegócio colonizasse rapidamente o Cone Sul da
América Latina. Os sistemas locais de alimentos dependem do
oposto: da diversidade. Por isso,
as sementes e os programas de
ajuda em sementes que nascem
da atual crise alimentar estão no
centro de uma luta fundamental
entre modelos opostos de produção de alimentos: um sistema alimentar industrial globalizado e
controlado pelas empresas versus
uma diversidade de esforços para
conservar, desenvolver e expandir a soberania alimentar.
A polarização das respostas.
Dos ministros de agricultura ao
Banco Mundial, essa luta fundamental sobre quem controla os
alimentos está camuflada por um
discurso “ignorante” que diz que
“os agricultores não têm sementes” [ou não têm sementes
“boas”]; que para fornecer aos
agricultores sementes “boas” é
necessário que os governos adotem as estruturas comerciais corretas, em especial os sistemas de
certificação de sementes, normas
fracas em matéria de biossegurança e regimes de propriedade
intelectual. A ênfase colocada
sempre na superioridade das sementes “boas” tem um sentimento quase eugenicista: as sementes
“boas” são variedades híbridas,
transgênicas, certificadas ou melhoradas, e todas elas são as “únicas” seguras de dar altos rendimentos, a “única” maneira de
resolver a crise alimentar atual; as
sementes “ruins” (ou sementes
“imperfeitas”, como as chamaram em Gana aspirantes a dirigentes da indústria) são as sementes dos agricultores, sementes não
certificadas, variedades camponesas, tudo o que não passou pelo
laboratório ou não obteve um
selo governamental de aprovação.
Dizer “precisamos aumentar a
produção!” para enfrentar a crise
alimentar mundial leva a desviar
da profunda e imperativa discussão política acerca do caos em
que estamos e como chegamos a
ele. Essa resposta só origina respostas refletidas – que as maiores
potências do mundo derramem
bilhões de dólares na distribuição
de sementes novas, “melhoradas”, a centenas de milhões de
pequenos agricultores. Respostas
que permitem que o capital privado, ainda que mediante o investimento puramente especulativo,
aproprie-se do que se costumava
chamar de desenvolvimento agrícola e o transforme em desenvolvimento agroempresarial. A menos que se detenha essa invasão,
os supostos beneficiários, os pequenos agricultores, acabarão
sendo as vítimas. l
A versão completa, com a indicação
das fontes pesquisadas, pode ser
consultada em Seedling, outubro de
2008, ou em www.grain.org
Fome e transgênicos
Silvia Ribeiro*
A
s agroempresas transnacionais, as que mais lucraram com a crise alimentar e estão
entre os principais causadores das mudanças climáticas, aproveitam a conjuntura
para promover agressivamente os cultivos e árvores transgênicos como solução para as
crises. O espectro de argumentos, falsos, mas encampados por vários governos e instituições internacionais, inclui que os transgênicos aumentariam a produção; que os agrocombustíveis seriam mais eficientes; que farão cultivos resistentes aos efeitos das mudanças
climáticas, e que as árvores transgênicas produzirão celulose (para agrocombustíveis ou
papel) sem competir com alimentos. Mas esses argumentos são falsos e implicam novos
perigos. O problema não é a produção de alimentos, mas sim o acesso injusto aos meios
para produzi-los. Além disso, os transgênicos produzem menos do que as variedades convencionais. Vários estudos de organizações da sociedade civil e de pesquisadores independentes (Amigos da Terra, Charles Benbrook), ou de universidades e órgãos oficiais (Universidade de Kansas, Universidade de Nebraska, Departamento de Agricultura dos Estados
Unidos), mostram que a soja transgênica, principal cultivo transgênico plantado no mundo, produz, em média, até 11% menos, e que o milho, o algodão e a canola – que junto
com a soja representam 99% da produção mundial de transgênicos – produzem o mesmo
ou menos. A semente transgênica é mais cara, e com a resistência que esses cultivos geram
em ervas adventícias e insetos, requerem muito mais agrotóxicos.
A promoção de cultivos “resistentes ao clima”, segundo um informe do Grupo etc, esconde que as empresas de transgênicos (Monsanto, Syngenta, DuPont, basf...) acumularam mais de 530 patentes, em trâmite ou aprovadas, sobre caracteres genéticos de cultivos,
resistentes à seca, inundação, salinidade, etc., para produzir plantas transgênicas e monopolizar o mercado. É um roubo da engenhosidade camponesa (esses caracteres dos cultivos
foram desenvolvidos por camponeses e camponesas em todo o mundo) e procura impedir
que, ante as mudanças climáticas, floresçam soluções locais, descentralizadas e não comerciais.
A promoção de novas gerações de agrocombustíveis (incluindo árvores) para produzir
etanol celulósico continuará competindo por terra, água e nutrientes com os cultivos alimentares, porque é um negócio lucrativo e está sendo subsidiado – com dinheiro, no Norte,
e área e mão de obra barata, no Sul. Mas será pior que a primeira geração: não é possível
processar a celulose com certa eficiência energética sem usar microorganismos transgênicos
ou, pior ainda, micróbios produzidos pela biologia sintética, construindo, artificialmente,
do zero, parte ou todo o organismo, com riscos novos e imprevisíveis.
As árvores transgênicas virão aumentar os monocultivos devastadores, que criam desertos verdes, ressecam e esgotam os solos em poucos anos, deslocam agricultores, destroem
fauna e flora locais. Além disso, provocariam a pior contaminação transgênica jamais
vista, ao contaminar com pólen transgênico centenas de quilômetros, durante toda a vida
da árvore.
As transnacionais “oferecem” que, para conter a contaminação e os novos riscos dessas
árvores e cultivos manipulados, pode-se aplicar a tecnologia Terminator, que as torna
estéreis. O Terminator nunca funcionará totalmente, como cientistas têm demonstrado.
O problema da esterilidade se somará à contaminação e fará com que, todos os anos, seja
necessário adquirir sementes novas das empresas.
O que realmente querem conseguir com os transgênicos é aprofundar a dependência
com as transnacionais, invadindo espaços do mundo onde não conseguiram entrar (como
a África e as áreas camponesas de todos os continentes) para destruir suas formas de vida
e de sustento, passando assim a controlar as bases da alimentação mundial. l
*Pesquisadora do Grupo etc
Fluxo de alimentos e
Tratados de Livre Comércio
grain
U
m dos inapeláveis dogmas dos tratados de livre
comércio é que não se pode controlar e nem
condicionar o fluxo internacional de mercadorias.
Assim, normalmente, não chama à atenção que os
acordos firmados com os Estados Unidos e a União
Européia incluam cláusulas como a seguinte:
Nenhuma das Partes poderá adotar ou manter qualquer proibição ou restrição à importação de qualquer mercadoria da
outra Parte ou à exportação ou venda para exportação de
qualquer mercadoria destinada ao território da outra Parte,”
Tratado de Livre Comércio entre os Estados Unidos e a América Central, Art. 3.8.
Os negociadores governamentais sempre souberam
que a regra anterior inclui os alimentos. Ou seja, ao
assinar os tratados de livre comércio, os governos
sabem que renunciam à sua capacidade de controlar
as exportações de alimentos. No caso dos tratados
com os Estados Unidos, mantém-se uma pequena
exceção no acordo da omc, aplicável somente em
caso de “extrema escassez”, por um período limitado e sujeito à aprovação dos Estados Unidos, que
seguem pressionando para que a exceção seja cada
vez mais restrita.
A União Européia (ue) vai mais além. Ainda que o
acordo firmado com o Chile permita a este restringir
as exportações em caso de escassez aguda de alimentos (sujeito à aprovação da ue), no acordo mais recente com os países do Caribe a exceção já não existe, como tampouco existe na proposta de acordo
entre a União Européia e a Costa Rica.
Esse tipo de medidas foi proposto pela primeira vez
pelos Estados Unidos ao iniciarem-se as negociações
que levaram à formação da Organização Mundial
do Comércio (omc). A proposta causou tal escândalo e indignação que os Estados Unidos, oficialmente,
tiveram que retirá-la, mas não a esqueceram. A proposta foi retomada com força nas fracassadas negociações da alca e durante as negociações de tratados
bilaterais em todo o mundo.
Os governos latino-americanos submeteram-se servilmente a essa exigência. Nenhum dos países signatários com a União Européia ou com os Estados Unidos exigiu uma exceção clara aos alimentos. O
México, através do Grupo dos 20, tem inclusive
pressionado para que a fraca e limitada exceção no
acordo da omc torne-se ainda mais restringida.
Na primeira vez que os Estados Unidos apresentaram esse tipo de exigência, seus representantes foram brutalmente francos: o texto que queriam negociar dizia que não se podiam restringir as
importações e as exportações de alimentos, nem sequer em caso de guerra ou de fome. Quando as mobilizações sociais contra os tlc insistiram que esse
tipo de cláusula pode ser utilizado como arma de
guerra e/ou de extorsão, os governos acusaram os
movimentos sociais de paranóia.
A crise alimentar atual mostra que não foi paranóia, mas sim capacidade para ver que a avidez de
lucro do capital não tem limites. O concreto é que
os governos que restringirem a exportação de alimentos, para assegurar níveis mínimos à sua população, podem ser levados a litígio comercial, caso
seus países tenham firmado acordos de livre comércio (como é o caso do Haiti e da Malásia), e é muito provável que sejamos testemunhas do absurdo
de que um país que tente proteger o alimento de sua
população seja submetido a sanções comerciais ou
obrigado a pagar multas multimilionárias.
Um dos efeitos mais conhecidos dos tratados de
livre comércio é a ruína dos sistemas agrícolas e
alimentares locais, que não podem competir com as
importações de alimentos. A impossibilidade de
controlar as exportações é apenas o outro lado da
moeda, e seu efeito é que à ruína da agricultura local soma-se a impossibilidade de defender-se de
seus efeitos.
Salta aos olhos, uma vez mais, que a crise alimentar não é um acidente de percurso do capitalismo
globalizado, mas sim uma situação construída por
ele, e que os tratados de livre comércio são um instrumento fundamental para isso. l
Outubro de 2008
Uma panorâmica e muitas vistas
No futuro será
imprescindível
produzir alimentos
próprios
10
Com a finalidade de entender
as alternativas reais que têm os povos
ante a crise alimentar que se instala
no mundo, reunimos experiências,
vozes, reflexões, técnicas e propostas
de organizações, comunidades,
pesquisadores e pessoas que têm
colocado sua atenção em novas formas
de entender soluções que funcionam
há séculos para núcleos camponeses
(esses para os quais cultivar a terra
não é um trabalho, mas sim um modo
pleno de vida e cuidado do mundo),
soluções que talvez resultem como
as únicas capazes de nos garantir
um futuro como humanidade.
A produção camponesa é imprescindível para alimentar o mundo. A agricultura camponesa susten-
tável com sua soberania alimentar consome até oitenta vezes menos energia do que a agricultura
industrial.
A soberania alimentar implica dar primazia ao emprego dos recursos locais para produzir alimentos,
minimizando a quantidade e o transporte de matérias-primas importadas para a produção. A comida
assim produzida se consome localmente. Não é lógico comer na Europa aspargos provenientes do Altiplano, ou vagens frescas procedentes do Quênia.
Na história da agricultura, os camponeses e camponesas e os povos que habitam os centros rurais
obtiveram de suas terras agrícolas a energia para
atender as suas necessidades cotidianas. As famílias
camponesas estão usando óleo de coco ou de girassol, biogás, lenha, vento ou água para gerar eletricidade para seu uso local. Esses métodos são sustentá-
veis e integrados dentro do ciclo de produção de
alimentos em suas terras.
É imperativo desenhar e adotar atitudes responsáveis no consumo de alimentos e ajustar nosso modo
de nos alimentar, sabendo que o modelo industrial
de produção e consumo é destrutivo, enquanto o
modelo baseado na produção camponesa utiliza
práticas energéticas responsáveis.
O campesinato de todo o mundo tem experimentado os efeitos devastadores das políticas de livre comércio e da omc em suas vidas e na produção local
de alimentos. Por isso, defendemos o direito de cada
país de proteger seus mercados locais, de apoiar a
agricultura familiar sustentável e de comercializar os
alimentos no lugar onde são produzidos.
Não entendemos como o G8 pretende solucionar a
crise alimentar com mais livre comércio, se a liberalização da agricultura e dos mercados de alimentos é
o que está nos levando à crise atual. Nossa luta é
contra o poder das grandes empresas transnacionais
e os sistemas políticos que as apóiam. A crise energética não deveria ser vista como um problema isolado, mas sim como parte de toda a crise do atual modelo de desenvolvimento, onde os benefícios têm
prioridade sobre as pessoas.
Apoiamos uma agricultura de pequena escala, diversificada, centrada nas pessoas, nos mercados locais e modos de vida saudáveis, usando menos energia e com menor dependência de recursos externos.
As famílias camponesas sustentáveis cumprem a
missão fundamental da agricultura: alimentar as
pessoas. Para nos proteger da instabilidade dos mercados mundiais, a população deve consumir comida
local, de mercados locais. Não necessitamos de mais
comida importada. Os camponeses e pequenos produtores de alimentos produzimos a maior parte dos
alimentos do planeta. Via Campesina, “El campesinado produce alimentos, los agrocombustibles generan hambre y pobreza” , julho de 2008.
Da milpa [a roça] se vê o mundo inteiro. A maior
ameaça ao milho nativo é que já é pouco cultivado.
Semear milho e outros cultivos soberanos nos permite uma brecha para não pedir permissão a ninguém para SER, impulsionando então uma resistência comunitária – real, política, social, econômica,
de saberes, dignidade e justiça – contra o capitalismo e seus megaprojetos.
Alguém que perde a semente tem muito mais riscos
de necessitar migrar do que quem ainda a tem. Há
que se manter boa semente para si mesmo, para a
comunidade, para a terra a que se tem acesso. Uma
semente que responda às necessidades e gostos de
cada povo. Se os gostos são uniformizados ou as ne-
11
cessidades niveladas, se perde a qualidade das sementes: sua diversidade.
Um povo que não tem diversidade é um povo que
se torna dependente. As novas leis querem obrigar os
camponeses, os indígenas, a se tornarem dependentes. Mas temos que nos perguntar o que necessitamos para cuidar, para conservar a vida, com permissão ou sem permissão da lei.
A criação do milho ser coletiva é o que tem mantido a sua riqueza. Não somente trocamos sementes,
mas também saberes. Existem sementes diversas
porque há saberes diversos. O conhecimento, o sabemos aos pedaços, e somente entre muitos ele se torna
um grande saber. A riqueza de variedades não acaba
nunca. Cada pessoa, família ou comunidade pela
qual passa uma variedade lhe agrega ou altera alguma coisa. Não há que se esquecer, jamais, que TODOS sabemos. Quando aceitamos que alguém nos
trate como ignorantes, que não sabemos, que não
temos idéias, estamos aceitando que se percam saberes sobre as sementes.
É indispensável tentar, o mais possível, sair fora da
economia do dinheiro, dos mercados. Produzir para
vender e comprar para comer nos faz perder a soberania alimentar, a soberania do trabalho dos povos
do milho.
Um povo que compra semente e que compra comida é um povo que não pode mandar em si mesmo.
Temos que nos orgulhar de semear milho para que
coma a família, a comunidade, fortalecendo os saberes dos mais velhos e as novas técnicas integrais
que concordam com esses saberes e os complementam. É importante que tudo o que as comunidades
produzam seja consumido, para que a comunidade
entenda que podemos produzir nosso próprio sustento. Casifop, El maíz y la vida en la siembra, testimonios indígenas del maíz y la autonomía, México, 2005.
As guardiãs das sementes. Na distribuição de pa-
péis nas famílias camponesas, a mulher é quem preserva a semente orgânica, originária, nativa, crioula,
como a queiramos chamar. É ela que, todos os anos,
na colheita, se encarrega de guardar, limpar e proteger para o próximo plantio. Então, de alguma maneira, sempre dizemos que a mulher é guardiã dessa
semente originária, sã e orgânica. Com mais razão
agora, nesta situação, da produção em nível mundial, a mulher tem que trabalhar fortemente essa
função de guardiã, que cada vez se torna mais difícil,
porque nossas sementes sãs estão sendo contaminadas pelas transgênicas, que se semeiam por toda parte. É todo um processo de proteção e intercâmbio.
Inclusive, nesses encontros, também ocorrem situações de trocas de sementes, de intercâmbio de saberes, sobre a produção.
Este evento (”Mulheres do campo em luta pela soberania alimentar. Construindo propostas frente às
mudanças climáticas”) é parte de um processo de
formação onde se busca particularmente a participação e o protagonismo das companheiras camponesas, um envolvimento nas temáticas fortes que
hoje estão afetando nossas famílias, como são as
mudanças climáticas, as políticas dos Estados e reforçar nossa luta pela soberania alimentar. María de
los Ángeles, MoCaSe Vía Campesina, entrevista
com a Agência de Notícias BiodiversidadLa.
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dar, proteger e conservar todo o nosso território, que
é sagrado - incluindo as pradarias, as montanhas, as
florestas e áreas úmidas grandes ou pequenas, lagos
e nascentes, fontes e lençóis produtores de água, as
bacias hidrográficas, as grandes e pequenas rochas
onde estão nossos deuses e os espíritos que nos protegem e nos dão vida, e as zonas onde habitamos e
produzimos nosso sustento -, para que continue sendo um patrimônio coletivo sob nossa responsabilidade e cuidado.
Todas as terras do território misak serão destinadas
prioritariamente a suprir as necessidades do ciclo de
vida e identidade misak. Aquelas aptas para a produção deverão ser destinadas, em primeiro lugar, a incrementar e melhorar a produção de alimentos saudáveis para consumo, com a finalidade de melhorar
a nutrição, a saúde e o bem estar geral dos misak. Os
cultivos comerciais e industriais não poderão deslocar a produção de nossos alimentos. Cabildo de
Guambia e a Autoridade Ancestral do Povo Misak,
Misak Lei pela Defesa do Direito Maior, Patrimônio
do Povo Misak.
Cultivar, guardar, cuidar e trocar livremente sementes próprias, nativas, que não temos por que
Somos os primeiros povoadores filhos e cultivadores de água deste continente, e para os povos
que o habitamos não há espécie silvestre, nem espaço baldio, porque milenarmente temos sido conhecedores e sabedores na convivência com a natureza,
por isso somos autoridade ambiental... O saqueio e
a apropriação da riqueza biológica de nossas montanhas e florestas, das águas, dos minerais e dos saberes, orientam-se pelo controle sobre o território
– o espaço e seus povoadores -, suplantando nossa
autoridade, autonomia e autodeterminação e destruindo nossas culturas milenares.
É dever do povo misak e de suas autoridades cui-
certificar nem registrar ante ninguém, porque as temos desde antes que existisse o Estado mexicano, é
um direito inalienável que ninguém irá nos tirar e
que seguiremos exercendo de maneira autônoma.
Essas sementes são a esperança do futuro de todos.
Estamos contra os projetos biopiratas que a Monsanto faz com organizações agrícolas e acadêmicas
para roubar milhos nativos e saberes através do
Projeto Mestre de Milhos Mexicanos...
Opomo-nos à certificação e ao registro de sementes e os denunciamos como mais uma forma de privatizar as sementes para controlar os povos.
Rechaçamos a promoção, a difusão, a experimentação, o cultivo, a comercialização e o consumo das
sementes transgênicas. Essas sementes atentam contra o ambiente e põem em perigo a saúde e a soberania alimentar de milhões de mexicanos.
Exigimos o respeito ao direito à soberania alimentar que parte de nossa autonomia, costumes, culturas, tradições e práticas agrícolas.
Exigimos que se detenha a criminalização da forma
de vida camponesa que é levada a cabo através da
legislação que protege os interesses empresariais.
Continuaremos defendendo a autonomia de nossos
povos, a comunidade, as assembléias e o seu autogoverno, cuja base fundamental é o território e o cultivo
do milho nativo como parte de nossa vida. Rede em
Defesa do Milho Nativo, México df, 10 de julho de
2008.
O que estamos fazendo tem a ver com um grito,
com um gesto festivo, de festa e dor, de luta. Nosso
objetivo é lançar uma mensagem de alerta, de risco,
de grave risco, que estamos tendo pelo monocultivo
da soja e por um manejo pretensamente liberal, de
mercado livre, em mãos de uns poucos, que depois
não é “livre”. Não somos livres, porque não somos
livres para manejar os alimentos dos argentinos,
que são manejados por 8 grandes multinacionais e
seus cúmplices, e seus subordinados que são os pequenos, médios e grandes empresários. De produtores não têm nada, produtores são os que sobem no
trator e trabalham com ele.
Sou dessa experiência, muito indígena, andina e
amazônica, de que “o que se quer esconder, cedo ou
tarde, aparece”. Então, o grito que essa gente deu
sobre as retenções da soja, de que “não demonizemos a soja”, tarde ou cedo vai decantar, vai acalmar
o “polvorosal” que suas arrogantes e virulentas intervenções deixaram, e as pessoas vão refletir. E o
fato de que eles se mostraram tais como são, assim,
com essa arrogância de fechar estradas, de “serem
ilegais”, de que “não lhes podem reprimir nem tocar”, vai se tornar um bumerangue. Não se deve
subestimar o povo argentino, por nada. Não se deve
subestimar nenhum povo da história humana.
Pouco a pouco, e tarde ou cedo se irá fazer aparecer na mesa argentina o debate de fundo: “a soja e
o monocultivo”, mais aprofundadamente “os agronegócios e a agroexportação”. Queremos ser um
país na divisão internacional do capitalismo? Um
país meramente exportador de matéria-prima para
o benefício das indústrias dos 8 países mais poderosos da terra? Ou queremos ser um país soberano,
independente. Ángel Strapazzón, MoCaSe, Via Campesina, entrevistado pela Agência de Notícias BiodiversidadLa
rios. As hortas podem proporcioná-los? Bem, durante a Segunda Guerra Mundial, as hortas familiares (chamadas de a “vitória”, porque pareciam
cruciais para obtê-la) proporcionaram 40% das
hortaliças que os norte-americanos comiam.
Além do mais, começaríamos a estreitar a brecha
entre o que pensamos e o que fazemos; tecer novamente em uma só identidade nossas facetas de consumidores, produtores e cidadãos. É provável que
isso nos leve a empreender novas relações com os
vizinhos, porque a idéia é produzir, presentear, trocar, emprestar ferramentas e pedi-las emprestadas...
Grandes coisas ocorrem quando alguém cultiva a
sua própria horta, algumas relacionadas com as
mudanças climáticas, outras indiretas. Esquecemos
que cultivar nossa comida obedece à tecnologia solar original: mediante a fotossíntese, produzem-se
calorias. Há alguns anos, a mentalidade da “energia
barata” descobriu que se podia produzir “mais comida com menos esforço” substituindo a luz do sol
por fertilizantes e agrotóxicos baseados em combustíveis fósseis, e o resultado foi que a caloria típica de
energia alimentícia requer umas 10 calorias de energia fóssil. Do jeito que deixamos que outros nos alimentem, a conta soma pelo menos uma quinta parte dos gases de efeito estufa. Michael Pollan,
“Straight to the Source”, The New York Times, 20
de abril de 2008.
Cultivar na cidade mesmo que seja uma pequena
parte de nossos próprios alimentos é, como pro-
pôs Wendell Berry há trinta anos, uma dessas soluções que impulsionam de imediato mais soluções,
ao invés de provocar mais problemas (como inevitavelmente provocam as “soluções” do etanol ou a
energia nuclear). Não é somente seqüestro de carbono: cultivar, ainda que seja um tanto de nossa comida, impulsiona muitos e valiosos hábitos. Podemos
deixar de depender dos especialistas no cuidado
com nós mesmos. Podemos descobrir que nosso
corpo continua sendo útil para algo, e que esse algo
é nosso próprio sustento. Se os especialistas estão
certos, se o petróleo e o tempo se esgotam, em breve
essas habilidades e hábitos serão cruciais. E é muito
provável que alimentos nos sejam muito necessá-
A terra sempre é jardim, farmácia, área de caça ou
de pastoreio para alguém (ou todas essas coisas
juntas). Se parece “subutilizada” é, talvez, devido à
sua fragilidade ou ao papel que desempenha na proteção dos ecossistemas. Aqueles que propõem um
uso mais intensivo ou diferente da terra em questão
podem prejudicar os modos de vida e a sobrevivência de outros.
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Há brasileiros que insistem em que se podem selecionar áreas marginais da Amazônia para transformá-las em áreas de produção de cana-de-açúcar
para etanol (mas nada dizem da expansão da soja
em áreas ecologicamente sensíveis como o cerrado e
a caatinga). Sem dúvida, comunidades indígenas,
como os ka’apor e os tembe, no Brasil, os chacoba,
na Bolívia, e os panare, na Venezuela, usam de 20 a
50% das espécies de árvores para se alimentar, e
outros 10 a 30% para medicamentos. Essa realidade da Amazônia repete-se em florestas, savanas e
planícies semiáridas em todo o mundo. Os migrantes, do México à Indonésia, buscam estabelecer-se
para plantar milho ou arroz, ou criar gado, mas
também buscam calorias adicionais e nutrientes vitais nas florestas circundantes. É comum que essas
famílias levem consigo espécies muito valorizadas
para adaptá-las às novas terras, mas, de qualquer
modo, a floresta é sua fonte direta de alimentos e
medicamentos, é seu reservatório genético para melhorar os parentes domesticados de seus cultivos.
Mesmo famílias camponesas bem estabelecidas em
lugares como a Suazilândia e a Tailândia vêem as
florestas que as rodeiam como importante fonte de
alimentos depois de seu cultivo principal. Como
exatamente as mulheres e as crianças consomem regularmente alimentos não cultivados, um estudo
entre adultos da África Oriental e do Sul mostrou
que a chamada “colheita oculta” de alimentos “silvestres” é vital à segurança alimentar familiar. As
florestas e savanas produzem vitaminas e minerais
essenciais que não se podem cultivar nem comprar.
O uso dessa colheita oculta varia a cada estação. Há
famílias que durante semanas dependem quase que
totalmente dos alimentos silvestres que obtêm durante os meses ou semanas anteriores à colheita. Os
alimentos coletados das “terras marginais” aportam
de um terço à metade das necessidades nutricionais
dos mais pobres da população rural. Em tempos de
fome ou altos preços da comida, o acesso a essas
terras marginais é a diferença entre a vida e a morte.
Pat Mooney, Ciao fao, outra cúpula para revisar os
erros de sempre, comunicado do Grupo etc, junho
de 2008
Uma forma de romper a distância entre produtores
e os chamados consumidores pode se achar nos ar-
redores da cidade de Genebra, Suíça. Ali funcionam
os Jardins de Cocagne, que são uma cooperativa genebrina de produção e de consumo de hortaliças de
cultivo orgânico. Cada um dos sócios paga uma espécie de contribuição, em dinheiro (de acordo com
seu salário) ou em trabalho, para conseguir que, a
cada semana, se produza e se distribua uma ampla
variedade de hortaliças. A diferença fundamental
com quase todas as associações entre camponeses e
consumidores é que, aqui, os “consumidores”, além
de terem uma relação direta com os horticultores,
não pagam um preço pelo que recebem, porque isso
implicaria em deixar o risco aos camponeses. Ao
contrário, o que fazem é contribuir com o fundo que
permite a produção, assumindo conjuntamente com
os camponeses os riscos e as bonanças de uma boa
ou má temporada, através de decisões compartilha-
das e igualitárias. Pareceria pouca coisa, mas essa
diferença, e a possibilidade de contribuir com trabalho para a produção, são um dos experimentos mais
interessantes em autogestão de plantio, que apaga a
diferença entre “produtores e consumidores” e, melhor ainda, abre uma espécie de formação permanente de mais e mais pessoas nas atividades próprias
do plantio e da colheita.
Por sua vez, as pessoas dos Jardins de Cocagne
“defendem a idéia da soberania alimentar, de uma
agricultura viável, sã, ecológica e de proximidade”.
Evidentemente, os Jardins vinculam-se com o movimento camponês, na Suíça, na Europa e em nível
mundial, e contam com projetos de extensão, em
comunidades pobres da Europa e na África. A idéia
central, além da visão libertária, é a análise profunda de que a cidade e o campo “se retroalimentam”,
se “reencontram”. Les Jardins de Cocagne, www.
cocagne.ch
Amanhece em El Colorado, povoado de uns 13 mil
habitantes, do interior de Formosa, província do in-
terior argentino. É sábado, bem cedo, mas já se vê
gente na praça; esperam a chegada dos quase cem
“pequenos” produtores da “Associação de Feirantes de El Colorado” que trazem seus produtos para
vender ou trocar: abóboras, feijões, milho, verduras
em geral, frutas, mandioca, batata, leite, queijo, ricota, ovos, cabritos, porcos, perus, galinhas, etc.
Antes do meio da manhã, nenhuma das quase 30
bancas da feira tem produtos, vendeu-se tudo. Assim ocorreu todas as semanas enquanto durou o
pico dos fechamentos das estradas e o resultante desabastecimento alimentar local, provocado pela
“Paralização dos fazendeiros”.
Essa iniciativa havia surgido no calor da crise de
2001-2002. Nos primeiros anos, soube ser uma alternativa frente aos problemas da população urbana
para ter acesso aos alimentos. Na feira, encontravam-se produtos que tinham como preço máximo
uns 20% menos do que no comércio. Pouco a pouco, o comércio do mercado formal se recompôs
como a principal forma de gastos em alimentos na
localidade, oferecendo produtos provenientes dos
complexos agroalimentares controlados por grandes
empresas agroindustriais. Isso fez com que a feira
fosse perdendo seu ímpeto inicial e centralidade.
Tanto na sua origem como em seu atual e breve
reverdecer, a feira dos pequenos produtores, dos
camponeses, aparece como alternativa aos circuitos
dominantes. Quando o “sistema” não responde,
afloram, como “ruínas emergentes”, essas estratégias “de baixo”, forjadas pelos mesmos camponeses,
baseadas no cara a cara com os consumidores e vizinhos, à margem das cadeias concentradas e centralizadas de produção, de processamento e de distribuição de alimentos.
Não é um caso isolado. No Chaco, Misiones, Corrientes e Santiago del Estero, existem experiências
desse tipo, protagozinadas principalmente por exprodutores de algodão ou fumo, reconvertidos. É
provável que ali, da mesma forma que em El Colorado, as crises ou momentos de suspensão da provisão
alimentar via cadeias agroindustriais tenham sido
oportunidades para a emergência e a expansão daquelas cadeias agroalimentares “alternativas” ou
“camponesas”. Diego Domínguez, “Ruínas emergentes”, Página 12, 19 de setembro de 2008
Localizada atualmente às margens da economia
mundial, há no mundo gente que quando desafia,
na teoria e na prática, os pressupostos econômicos,
encontra apoio nas tradições de sociedades e de culturas antigas. Em todo o mundo há experiências de
comunidades que não se encaixam nas classificações
distorcidas pelos óculos dos economistas.
15
Essa gente vê sua resistência como um modo de
reconstituir criativamente suas formas básicas de
interação social, a fim de se libertar das correntes
econômicas. Cria assim, em suas vizinhanças, povoados e bairros, novos âmbitos de comunidade, que
lhe permitem viver em seus próprios termos.
São os herdeiros de comunidades e, inclusive, de
culturas completas que foram destruídas pela forma
econômica industrial de interação social. Depois da
extinção de seus regimes de subsistência, trataram
de adotar diversas formas de adaptação à forma industrial. O não a terem conseguido, foi uma precondição para reinventar seus âmbitos, com o estímulo
adicional da crise de desenvolvimento.
Depois de igualar sua comida com as atividades
técnicas de produção e consumo, vinculadas à intermediação do mercado ou do Estado, careciam de
ganhos suficientes e sofriam escassez de alimentos.
Agora, estão regenerando e enriquecendo suas relações entre si e com o meio, nutrindo novamente sua
vida e suas terras. No geral, conseguem lidar bem
com as carências que ainda lhes afetam, às vezes
severamente – em conseqüência do tempo e esforço
exigido para remediar os danos causados pelos métodos desenvolvimentistas. Não é fácil fugir das colheitas comerciais, ou livrar-se do vício do crédito,
ou dos insumos industriais: mas o cultivo intercalado, ao qual muitos começam a regressar, regenera a
terra e a cultura e com o tempo melhora a nutrição.
Apesar da economia, as pessoas comuns, à margem,
têm sido capazes de manter viva outra lógica, outro
conjunto de regras. Em contraste com a economia,
essa lógica se encontra inserida no tecido social. Resumo e fragmentos de “Mitos e realidades do desenvolvimento sustentável”, de Gustavo Esteva, junho
de 1996.
16
Uma história recente da generosidade e visão indígenas na conservação e no fortalecimento das
sementes ancestrais é a de Caracol Zapatista de
Oventic, em Chiapas, que, como outros povos do
México, revitaliza seu milho nativo ao trocar sementes, de maneira mais consciente, por seus canais
de confiança. O novo é que agora os camponeses
tsotsiles da zona, agrupados em seu projeto de autonomia, decidiram começar a enviar sementes zapatistas para onde quer que sejam solicitadas. Agora, na África, enquanto as grandes fundações e os
governos e organismos como a fao procuram estabelecer mecanismos para introduzir pacotes tecnológicos e sementes de laboratório, híbridas e transgênicas, os zapatistas já estão enviando sementes
ancestrais nativas, livres de contaminação transgênica, a populações no Mali e no Quênia. Para algumas das comunidades que as receberam no Mali, as
sementes eram tão boas que, ao invés de consumir
a primeira colheita depois de completar seu ciclo,
separaram uma boa quantidade, que já começa a
ser distribuída a outros locais na África. Mais informações em [email protected]
Há uma relação inversa entre o tamanho de uma
unidade de produção e a quantidade de cultivos
produzidos por hectare. Quanto menores elas são,
maior é o rendimento. Isso foi descoberto pelo economista Amartya Sen, em 1962, e dezenas de estudos posteriores o confirmam.
Em alguns casos, a diferença é enorme. Um estudo
recente de agricultura na Turquia encontrou que as
propriedades de menos de um hectare são vinte vezes
mais produtivas que as de mais de 10 hectares*. As
observações de Sen foram comprovadas na Índia,
Paquistão, Nepal, Malásia, Tailândia, Java, Filipinas, Brasil, Colômbia e Paraguai. E parecem sustentar-se em toda parte. A descoberta surpreenderá
qualquer indústria, porque chegamos ao ponto de
*Fatma Gül Ünal, outubro de 2006. Small Is Beautiful: Evidence
Of Inverse Size Yield Relationship In Rural Turkey. Policy
Innovations.http://www.policyinnovations.org/ideas/policy_
library/data/01382)
associar eficiência com escala. Na agricultura, essa
controvérsia faz saltar chispas, porque na visão da
indústria ela parece muito estranha, já que o comum
é que os pequenos produtores não contem com maquinaria própria, tenham menos capital ou acesso a
créditos e não estejam por dentro das técnicas mais
recentes.
Alguns pesquisadores argumentam que essa relação inversa entre tamanho e rendimento é o resultado de um artifício estatístico: os solos férteis sustentam maiores populações do que as terras desgastadas,
pelo que os tamanhos aparentemente pequenos das
unidades produtivas seriam resultantes da produtividade alta. Estudos posteriores mostraram que tal
relação inversa mantém-se em diversas terras férteis. Ainda mais, funciona em países como o Brasil,
onde as grandes propriedades agrícolas são as que
se apoderaram das melhores terras.
A explicação mais plausível é que os pequenos
agricultores investem mais trabalho por hectare do
que os grandes agricultores. Essa força de trabalho
consiste, em grande parte, de suas próprias famílias,
o que significa que seus custos trabalhistas são menores que nas grandes propriedades, com melhor
qualidade de trabalho. Com mais trabalho, os camponeses podem cultivar sua terra mais intensamente: passam mais tempo terraciando ou construindo
sistemas de irrigação; plantam logo em seguida à
colheita; plantam muitos cultivos diferentes no mesmo campo.
A Revolução Verde propunha o contrário: quanto
maiores as propriedades, mais acesso a crédito teriam, e poderiam investir em novas variedades e expandir seus rendimentos. Mas, conforme essas novas variedades se disseminaram entre os pequenos
agricultores, viu-se que não era bem isso.
Se os governos fossem sérios quanto a alimentar o
mundo, deveriam acabar com as grandes propriedades e redistribuí-las entre os pobres, através de uma
reforma agrária séria, e concentrar seus investimentos e seus financiamentos no apoio às pequenas propriedades. Há muitas razões para defender os pequenos agricultores dos países pobres. Os milagres
econômicos da Coréia do Sul, Taiwan e Japão surgiram de seus programas de reforma agrária. O mesmo ocorre na China, apesar de o seu despontar terse atrasado 40 anos devido à coletivização.
O crescimento baseado nas pequenas unidades de
produção tende a ser mais eqüitativo do que o crescimento que surge das indústrias alimentadas com
muito capital. O impacto ecológico das pequenas
propriedades é muito menor, apesar de a terra ser
utilizada com mais intensidade. Onde as pequenas
propriedades são absorvidas pelas grandes empresas,
os desalojados movem-se para outras terras e apenas
conseguem sobreviver. Uma vez segui uns camponeses expulsos do Maranhão, no Brasil, e fui testemunha de como despedaçaram a terra dos yanomami a
mais de 3 mil quilômetros de distância.
Mas o preconceito contra pequenos agricultores é
inexorável. Dá margem a um dos mais estranhos insultos em inglês: quando se chama alguém de camponês, se está acusando-o de autosuficiente e produtivo.
Os camponeses são igualmente odiados pelos capitalistas e pelos comunistas. Ambos sempre tentaram se
apoderar de suas terras e têm a idéia fixa de menosprezá-los e demonizá-los. Em seu perfil da Turquia, o
país onde os camponeses são 20 vezes mais produtivos do que os grandes proprietários, a fao diz que
“como resultado de ter muitas propriedades pequenas, os rendimentos agrícolas... mantêm-se baixos”.
A ocde afirma que “é indispensável frear a fragmentação da terra” na Turquia “e consolidar propriedades maiores para elevar a produtividade agrícola”*.
Nem a fao e nem a ocde fornecem qualquer prova.
George Monbiot, “Small is Bountiful”, The Guardian, 10 de junho de 2008, www.monbiot.com
A Rede Ecovida de Agroecologia, formada em
1998, compõe-se de aproximadamente 3.000 famílias de agricultores(as) familiares, reunidas em cerca
de 200 grupos, além de 35 ongs e 10 cooperativas
de consumidores, e tem por objetivo organizar, fortalecer e consolidar a agricultura familiar ecológica
em 24 Núcleos Regionais, abrangendo em torno de
170 municípios, nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil. Os Núcleos Regionais promovem a capacitação de seus
membros, a troca de informações e de alimentos, e
asseguram a credibilidade do produto ecológico
através do Sistema Participativo de Garantia (spg),
que envolve ativamente agricultores(as) e consumidores.
Como a comercialização tem sido um gargalo
para a expansão da proposta, pelas dificuldades de
se manter o mercado local abastecido durante todo
o ano, com diversidade, quantidade e qualidade de
produtos, idealizou-se uma alternativa a partir do
trabalho coletivo da Rede Ecovida. Desde 2006,
funciona o Circuito Sul de Circulação de Alimentos.
O circuito funciona com base em sete Estaçõesnúcleos e dez Subestações. Há reuniões bimestrais
para discutir as regras, os planos operacionais e o
monitoramento das atividades, se negociam os preços e se revisam as contas das transações realizadas
*http://www.new-agri.co.uk/00-3/countryp.html, e oecd
Economic Surveys: Turkey, volume 2006 número, 15, p. 186
entre as organizações no período anterior.
Há características que diferenciam o Circuito em
relação aos mecanismos convencionais de acesso aos
mercados. Para se integrar ao circuito, é necessário
que os alimentos ofertados sejam ecológicos e que
estejam certificados pelo Sistema Participativo da
Ecovida. A economia dessa agricultura familiar é
concebida como o somatório do abastecimento alimentar das próprias famílias mais os produtos trocados nos mercados, privilegiando a segurança alimentar de produtores e de consumidores, com critérios
de justiça e de transparência.
As organizações da Rede que vendem também se
comprometem a comprar produtos de outras organizações do circuito, permitindo a ampliação da oferta
de alimentos nos diferentes mercados (feiras, entregas em domicílio, pontos de venda, auto-abastecimento das famílias e grupos da própria Ecovida,
mercados institucionais e outros). Isso favorece a redução dos custos com frete, já que os caminhões
sempre viajam carregados entre as Estações-núcleos.
A circulação de dinheiro é menor, já que em muitos
casos os produtos são simplesmente trocados. Natal
João Magnanti, Centro Vianei de Educação Popular,
Santa Catarina http://www.ecovida.org.br/ l
17
O Brasil e seus bois
multinacionais
Sergio Schlesinger
O mundo dos negócios,
acostumado às aquisições
de empresas da América
Latina por grandes
multinacionais, foi
surpreendido pela recente
investida do frigorífico
brasileiro jbs-Friboi, além
de dois outros de menor
porte (Marfrig e Bertin),
sobre diversas empresas
desse segmento em países
como Estados Unidos,
Austrália, Argentina e
Uruguai. Quem é
o grupo jbs? Quem são
seus proprietários? Que
estratégias e interesses
estão por trás desse
comportamento? Essas são
algumas das perguntas
que estão hoje no ar, e
sobre as quais buscamos
aqui lançar alguma luz.
18
Brasil: mais gado do que gente. Com
Mais da metade do
mercado mundial de carne
bovina, que movimenta 7
milhões de toneladas por
ano entre exportações e
importações, está hoje nas
mãos de empresas
brasileiras.
uma população estimada oficialmente
em 186 milhões de habitantes, o território brasileiro abriga um rebanho bovino ainda mais numeroso. Segundo o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – ibge, este rebanho totalizava
206 milhões de cabeças, ao final de
2007. O Brasil é o segundo do ranking
mundial nesse tipo de rebanho, suplantado apenas pela Índia. Dado que a Índia não se utiliza de seu gado bovino
para fins comerciais, tendo em vista
questões religiosas, o rebanho bovino
brasileiro é considerado o maior rebanho comercial do mundo. Atualmente,
as regiões Norte e Centro-Oeste, onde
Produção mundial de carne bovina
(em milhares de toneladas)
País
Estados Unidos
2004
11 261 2005
2006
11 317 11 897 2007(1)
12 168 Brasil
7 975 8 592 8 850 9 120 União Européia
8 007 7 770 7 880 7 880 China
6 759 7 115 7 500 7 910 Argentina
3 130 3 200 3 100 3 150 Índia(2)
2 130 2 250 2 375 2 500 México
2 099 2 125 2 175 2 200 Austrália
2 081 2 102 2 150 2 290 Rússia
1 590 1 525 1 460 1 380 Canadá
1 496 1 523 1 375 1 335 Nova Zelândia
720 705 650 690 Uruguai
544 600 635 650 Outros
3 535 3 550 3 464 3 444 Total
51 327 52 374 53 511 54 717 Fonte: usda
(1)
Estimativa
(2)
Inclui carne de búfalo
se situam a Floresta Amazônica e o
Cerrado, são as que apresentam as
maiores taxas de expansão do rebanho
bovino no Brasil.
Segundo Smeraldi e May (2008), a
pecuária brasileira vem registrando um
crescimento espetacular. De 1990 a
2007, a produção de carne bovina mais
que dobrou, passando de 4,1 para mais
de 9 milhões de toneladas, com ritmo
de crescimento bem superior ao de sua
população e de seu consumo. Essa
combinação de fatores permitiu que o
Brasil se tornasse o maior exportador
mundial, ultrapassando a Austrália, a
partir de 2004.
A investida dos frigoríficos brasileiros no exterior. Mais da metade do
mercado mundial de carne bovina, que
movimenta 7 milhões de toneladas por
ano entre exportações e importações,
está hoje nas mãos de empresas brasileiras. O que explica o fato é o movimento de internacionalização do setor,
iniciado em 2005, que ganhou força
em 2007, quando frigoríficos como
jbs-Friboi, Bertin e Marfrig fizeram
grandes aquisições no exterior, e prossegue em 2008.
De acordo com Pratini de Moraes,
presidente da Associação Brasileira da
Indústria Exportadora de Carnes
(abiec), as empresas brasileiras instaladas no território nacional e no exterior
têm um potencial de exportação de
52% dessas 7 milhões de toneladas comercializadas anualmente nos mercados globais. Além disso, detêm 10% do
mercado mundial de carne bovina, o
que inclui o volume comercializado no
âmbito doméstico dos diversos países.
O Brasil já respondia, em 2007, por
33% das exportações mundiais de carne bovina, seguido de longe pela Austrália, que tinha 19% das vendas externas.1
A jbs-Friboi. Maior produtora e expor-
tadora mundial de carne bovina, a jbsFriboi é uma empresa relativamente
nova, que começou com apenas um
açougue, em 1953. Entre 1970 e 2001,
a jbs adquiriu plantas de abate e unida-
Consumo mundial de carne bovina
(em milhares de toneladas)
País
Estados Unidos
2004 2005 12 667 12 662 2006 2007(1)
12 800 13 024 União Européia
8 292 8 114 8 220 8 240 China
6 703 7 026 7 413 7 829 Brasil
6 400 6 774 6 935 7 180 Argentina
2 512 2 443 2 604 2 552 México
2 368 2 419 2 505 2 535 Rússia
2 308 2 503 2 285 2 270 Índia(2)
1 631 1 623 1 625 1 700 Japão
1 181 1 201 1 186 1 256 Canadá
1 057 1 106 1 067 1 059 Outros
2 921 3 006 3 019 3 027 49 874 50 770 51 509 52 580 Total
19
Fonte: usda
(1)
Estimativa
(2)
Inclui carne de búfalo
des produtoras de carne industrializada, assim como investiu no aumento da
capacidade produtiva das plantas preexistentes.2 Em 1997, inicia as exportações de carne bovina não processada.
Em 2006, a capacidade de abate já era
de 19,9 mil cabeças/dia, e a Companhia passou a operar um total de 21
plantas no Brasil e 5 na Argentina.
Em janeiro de 2007, adquiriu 100%
das ações da norte-americana sb Holdings, empresa do grupo Smithfield
Beef, que controla as distribuidoras de
carnes nos Estados Unidos, e suas subsidiárias, Tupman Thurlow, Astro Sales
International e Austral Foods, uma das
maiores distribuidoras de produtos industrializados de carne bovina no mercado norte-americano e detentora das
marcas “Hereford”, “Mancopride” e
“Rip n’ Ready”. Essas empresas proporcionam à jbs acesso direto ao mercado norte-americano de carne industrializada. Também em janeiro de 2007,
a jbs adquiriu uma planta de abate em
Berazategui, através da Swift Armour,
Buenos Aires, com capacidade de abate
de aproximadamente 1.000 cabeças de
gado por dia.
Em julho do mesmo ano, adquire
100% da companhia americana Swift
Foods & Company, por US$ 1,4 bilhões, incluindo suas unidades nos Estados Unidos e na Austrália, tornandose a maior empresa de carne bovina em
capacidade de abate e a maior multinacional brasileira do setor de alimentos.
Com a aquisição de 50% da Inalca,
1
lda do Amaral Rocha,
A
“Frigoríficos do país já
dominam exportações”.
Valor Econômico, 14 de
março de 2008.
2
www.investinfo.com.br.
em dezembro de 2007, a jbs passou a
ter mais 10 plantas na Itália. Com centros de distribuição na África, a Inalca
abre um novo mercado para a empresa.
Em março de 2008, deu-se a compra
das empresas norte-americanas National Beef Packing, Smithfield Beef Group
20
3
Bob Burgdorfer, Novo
gigante da carne nos
eua, jbs enfrentará crivo
antitruste. Reuters/Brasil
Online, 5 de março de
2008.
4
Gabriel Giani
Vasconcellos, Americanos e
australianos temem
presença do Friboi. 28 de
março de 2008. www.peabirus.com.br.
5
P
rodutores australianos
temem avanços da Friboi
no país. Agência Estado,
28 de março de 2008.
e da australiana Tasman. A compra da
Tasman já está concluída. As aquisições
das norte-americanas aguardam ainda
autorização do governo daquele país.
Feito isso, a empresa passará a controlar 10% da oferta mundial de carne
bovina e 32% da capacidade de abate
da indústria dos eua.
Além dessas aquisições internacionais, a jbs comprou recentemente o frigorífico Garantia, no Paraná, aumentando para 23 o número de plantas de
abate de sua propriedade no Brasil.
Quando as aquisições estiverem concluídas, a jbs espera ter receitas globais
de US$ 21,55 bilhões, contra os atuais
12,7 bilhões.3 A empresa transformouse, assim, na terceira maior do Brasil
em faturamento e a maior exportadora
brasileira de carne bovina.
A investida da jbs preocupa americanos e australianos. Segundo The Nor-
th Platte Bulletin, uma coalizão de 72
grupos, incluindo produtores de bovinos, consumidores e líderes religiosos,
está preocupada com os planos da jbs
de se tornar o maior frigorífico dos Es-
tados Unidos, através dessas aquisições. Essas organizações escreveram
uma carta ao Departamento de Justiça
dos eua, pedindo que seja considerada
“fortemente a possibilidade de bloquear o negócio”.4 Afirmam que as compras prejudicariam os preços, as opções, a inovação e a competição na
indústria de carne bovina. “Reduzir o
número dos principais processadores
de carne bovina de cinco para três provavelmente terá efeitos adversos para
os consumidores, bem como para os
produtores”, diz a carta.
O setor agropecuário australiano
também entrou em estado de alerta.
Aos impactos das mudanças climáticas, sentidos pelos produtores nos últimos três anos de seca, e à ausência de
novas fronteiras, soma-se um novo
componente aterrador - as aquisições
da jbs nos mercados dos Estados Unidos e da própria Austrália. “Estamos
preocupados com essa movimentação”, admitiu Glen Feist, da Meat and
Livestock Austrália (mla).5 Livre da
febre aftosa sem vacinação, o rebanho
de corte da Austrália alcança 26 milhões de cabeças, equivalentes a 13%
do rebanho brasileiro.
A estratégia de diversificação de
clientes. A diversificação geográfica de
suas unidades de produção concede à
jbs acesso privilegiado aos mercados
consumidores dos cinco continentes,
permitindo superar problemas como
barreiras fitossanitárias ao gado brasileiro, flutuações nas taxas de câmbio
em todo o mundo e barreiras comerciais à exportação de carne bovina do
Brasil e da Argentina. Atualmente, existem barreiras comerciais e sanitárias
para exportação de carne bovina não
processada produzida no Brasil e na Argentina para os Estados Unidos, Canadá, México, Coréia do Sul e Japão. Esses
países
representam
aproximadamente 50% da importação
de carne bovina não processada do
mundo.
As aquisições feitas pelos grandes frigoríficos brasileiros não ocorrem só no
mercado externo. A Abrafrigo - Asso-
ciação Brasileira de Frigoríficos, que
reúne pequenos e médios estabelecimentos, apresentou, em agosto de
2008, denúncia de que os grandes frigoríficos estão praticando dumping,
vendendo a carne a preço 10% inferior
ao praticado no mercado interno, com
o objetivo de provocar o fechamento e,
portanto, o fim da concorrência dos pequenos e médios frigoríficos Há o agravante de que o dumping é realizado
com dinheiro público, já que o bndes
vem aportando recursos para estes
grandes frigoríficos.
Os grandes frigoríficos preparam o
caminho para dominar não só o mercado consumidor, mas também o de produtores. Os pequenos criadores, que
possuem pouca estrutura de acesso ao
mercado, tendem a tornar-se cativos
dos grandes, que passarão a pagar um
preço menor, apropriando-se de suas
margens de lucro. “Quando os pequenos e médios frigoríficos fecharem as
portas, o produtor vai ficar à mercê de
meia dúzia de empresas”, declarou o
presidente da Abrafrigo.6 No setor de
bovinos, a produção de carnes é a única onde não predomina a chamada
produção integrada, em que os grandes
frigoríficos dominam toda a cadeia de
produção.
Os porquês das multinacionais brasileiras de alimentos. A internacionali-
zação das agroindústrias brasileiras
tem se intensificado nos últimos anos.
A valorização do real frente a outras
moedas, somada à desvalorização do
dólar em todo o mundo, tem tornado
mais acessíveis aos capitais brasileiros
algumas grandes e tradicionais empresas norte-americanas.
Não é de hoje que empresas brasileiras do agronegócio mantêm um pé no
Brasil e outro no exterior. Pioneiras, as
processadoras de suco de laranja começaram a investir para além das fronteiras nacionais em 1992, comprando
plantas no estado da Flórida, nos Estados Unidos. Evitam, assim, as barreiras
comerciais norte-americanas às importações do suco de laranja brasileiro.
Mais de uma década depois, o exemplo
começou a ser seguido por grandes usinas de açúcar e álcool - desde 2004 já
há conhecidos nomes nacionais do setor erguendo instalações no Caribe.7
No caso da cana-de-açúcar, a decisão é
uma maneira de driblar os altos impostos incidentes sobre as exportações
para os eua.
O setor de aves é outro em que o Brasil se destaca e também se internacionaliza. Alguns anos atrás, dizia-se que
a Tyson viria ao Brasil para comprar a
Sadia ou a Perdigão, as duas maiores
empresas brasileiras desse segmento.
Atualmente, a Sadia está investindo
US$ 100 milhões numa fábrica nos
Emirados Árabes, e a Perdigão adquiriu a Plusfood, da Holanda.
O apoio decisivo do governo brasileiro. A participação do bndes, institui-
ção federal, nas aquisições da jbs deixa
transparecer a contradição - econômica, social e ambiental - entre as opções
financeiras e o slogan que a instituição
estatal ostenta: “o banco do desenvolvimento de todos os brasileiros”.8 O
presidente do bndes, Luciano Coutinho, classifica a intervenção como um
exemplo da nova política industrial
que o governo federal pretende adotar
neste segundo mandato do presidente
Lula, fundada no incentivo à internacionalização de empresas de setores
competitivos.
Diversas ongs brasileiras têm participado de encontros com o bndes para
tratar desses temas. Neles, os representantes da sociedade civil insistem para
que o banco dê maior transparência
aos critérios sociais e ambientais que
têm sido aplicados para a concessão de
empréstimos e para que setores mais
poluidores não sejam favorecidos. Essa
política, contestam as ongs, ignora o
poder de indução de iniciativas de
grande porte que podem aumentar a
pressão pelo desmatamento e pelo desrespeito aos direitos sociais nas fronteiras agrícolas.
Saltando barreiras. O segmento de
carnes é o mais afetado pela sobreposição de tarifas, quotas e barreiras sani-
6
ndréa Bertoldi,
A
“Grandes frigoríficos
são denunciados por
dumping”. Folha de
Londrina, 15 de agosto
de 2008.
7
Luciana Franco, “Conquista de territórios. Empresas nacionais
investem em unidades
fora do país para reforçar
suas marcas no cenário
global”. Revista Globo
Rural, abril de 2008.
8
Maurício Hashizume.
Investimento em
frigorífico acende debate
sobre atuação do bndes. 6
de julho de 2007.
21
22
9
aniella Camargos. “A
D
saga global dos caubóis
de Anápolis”. Portal
Exame, 20 de março de
2008.
Bibliografia
Food & Water Watch
Europe, The Beef with
Brazilian Beef: Cheap
Imports threaten eu
Farmers and Consumers,
Berlim, 2007.
jbs sa, Ata de Reunião
Extraordinária
do Conselho de
Administração realizada
em 04 de março de 2008.
jbs, 2008.
Smeraldi, r. y May P., O
reino do gado: uma nova
fase na pecuarização da
Amazônia Brasileira.
Amigos da TerraAmazônia Brasileira, São
Paulo, 2008.
União Brasileira de
Avicultura, Relatório
Anual 2007/2008, Brasília,
2008.
Wilkinson, J. e Rocha, R.,
Uma análise dos setores
de carne bovina, suína
e de frango. senai/ufrj,
2005.
Sergio Schlesinger
é consultor da
Federação de Órgãos para
Assistência Social
e Educacional (fase),
com sede no Brasil, e da
organização internacional
Food and Water Watch,
trabalhando temas de
agricultura e comércio
internacional
tárias no comércio internacional. Alguns dos mais importantes mercados
mundiais estão fechados para as exportações brasileiras, como é o caso dos
eua para todos os segmentos de carnes
(Wilkinson, 2005). A compra de frigoríficos internacionais promovida pela
jbs é uma maneira de abrir as portas de
mercados estratégicos que, em razão de
recentes focos de febre aftosa no país,
periodicamente impõem barreiras sanitárias às exportações brasileiras. Para
as grandes empresas frigoríficas brasileiras, esse é um grande entrave ao crescimento. Com unidades de negócios
nos Estados Unidos e na Austrália, a
jbs resolve esse problema, obtendo
acesso a 50% do mercado mundial que
permanece fechado para o Brasil. Ou
seja: a partir dessas novas unidades, ela
poderá alcançar compradores nos Estados Unidos, no Canadá, na Coréia do
Sul e no Japão, entre outros.9
Em fevereiro de 2008, a União Européia decidiu embargar as importações
de carne vindas do Brasil, já que o governo brasileiro não cumpriu regras sanitárias acordadas desde 2007. Sem a
garantia de rastreabilidade da origem
do gado, não pode ser assegurado que a
carne enviada à Europa não provém de
áreas onde a venda para o bloco é proibida. Também em casos como esse, a
aquisição por frigoríficos brasileiros de
companhias situadas no exterior facilita
muito o acesso ao mercado europeu.
A internacionalização das indústrias
frigoríficas brasileiras tem o objetivo,
também, de evitar as barreiras comerciais impostas pelos países desenvolvidos a seus produtos. Adquirindo plantas
no interior desses países, essas empresas
passam a ter vantagens que vão além do
acesso aos seus mercados consumidores.
Passam a usufruir, também, das facilidades de exportação criadas pelos diversos
acordos de livre comércio que os Estados Unidos e a União Européia vêm firmando pelos quatro cantos do mundo.
Comer para não ser comido. Peculiari-
dades de cada segmento à parte, a estratégia comum a esses grupos passa
pela ambição de fortalecer sua marca
no mercado internacional. “Quem quer
crescer tem que seguir esse caminho,
uma vez que na economia atual ou se é
presa ou predador”, avalia José Vicente Ferraz, analista da empresa de consultoria Agrafnp.
Em 2006, pela primeira vez no Brasil,
uma empresa fez uma oferta pública
para a compra de outra. Através dessa
chamada “oferta agressiva”, a Sadia
tentava adquirir a Perdigão. O objetivo
era o de competir no exterior com gigantes do setor de aves e suínos industrializados, como a americana Tyson
Foods, que até hoje ameaça chegar ao
Brasil. Nas palavras do próprio presidente da Sadia, tratava-se de uma atitude de auto-defesa: a empresa vinha recebendo informações de que a Tyson,
justamente, tentaria a aquisição da Sadia, então a maior processadora de
frangos do Brasil.
Comer para não ser comido, eis a lógica atual das grandes empresas, em
todos os setores da economia global.
Ser o maior dos tubarões, para não caber na boca dos demais. É esse o comportamento predador das empresas
que produzem, hoje, os alimentos que
comemos. l
Meatrix: o negócio da carne
Alberto Villareal*
Existe uma grande lacuna entre as ilusões
que nos querem vender a respeito de donde
vem nossa comida e a contrastante e espantosa realidade da produção industrial de
carnes, ovos e leite. Entre na Meatrix e descubra a verdade nua e crua sobre muitos
alimentos de origem animal que ingerimos.
Foram produzidos 3 desenhos animados
de curta-metragem que são uma paródia
aos filmes de Hollywood chamados Matrix.
O primeiro desenho tem versões dublada
ou legendada em português, o segundo
pode ser visto dublado em espanhol e o terceiro, com legendas em espanhol. Nos desenhos, os personagens são três super-heróis,
animais de granja: Leo, um porquinho que
se pergunta sobre seu lugar no mundo, Tiquiti, uma jovem galinha defensora da agricultura camponesa e familiar, e Mufeus, o
touro militante apaixonado por verdes pradarias. Eles nos mostram que, sem que a
maioria de nós se desse conta, a agricultura
camponesa que defendemos foi deslocada
pelo agronegócio e pela agricultura sem
camponeses, controlada por investidores e
grandes latifundiários usurpadores de territórios.
Eles nos mostram como funciona uma “fábrica” de produção intensiva de leite, nos
revelam a industrialização da carne nos frigoríficos e os riscos desse modelo para a
saúde do planeta e para nossas sociedades.
Esses curtas-metragens - muito úteis para
entender os problemas do capitalismo agrário e da criação intensiva de animais para
produzir grandes quantidades de carne, leite
e ovos - foram traduzidos para mais de 30
idiomas e foram vistos por mais de 20 milhões de pessoas.
Os problemas da criação intensiva tornaram-se muito evidentes quando apareceu a
doença da vaca louca, na Europa, nos anos
1980, em decorrência de alimentarem seu
gado com rações à base de restos moídos de
outros animais. Apesar de que ainda não
existiam essas aberrações na América Latina e em outras regiões, começavam a se
multiplicar as granjas de criação de aves
que propiciaram a gripe aviária na Ásia.
A criação intensiva, que ou integra verticalmente pequenos e médios produtores a
um sistema capitalista de agricultura por
contrato, ou está nas mãos de grandes empresas e investidores, começa a se instalar
na criação para carne na América do Sul.
A criação extensiva de gado ocupa grande
parte de nossos territórios e constitui a base
do poder político das elites que se apossaram das terras de todos. Em decorrência do
aparecimento da doença da vaca louca na
Europa e nos Estados Unidos, ao proibir-se
o uso de restos animais nas rações, e usar o
farelo de soja como fonte de proteína substituta para os animais na Europa e nos Estados Unidos, a situação piorou. A crescente demanda por soja, na Europa e Estados
Unidos, e a expansão das exportações e dos
monocultivos de soja, na Argentina, Brasil,
Paraguai, Uruguai e Bolívia (cuja aristocracia de Santa Cruz, golpista, vive da soja),
impactaram as principais zonas de produção de grãos, deslocando pequenos produtores, populações e outras atividades, avançando sobre solos de menor rentabilidade
(que por não serem muito adequados à
agricultura, eram dedicados à criação extensiva de gado).
Hoje, essa criação de gado é deslocada
para outras terras (como a Amazônia brasileira e as ilhas do Delta do Paraná, na Argentina) e gera pressão entre os criadores de
gado que buscam capitalizar-se, investir e
tirar mais carne em áreas cada vez menores.
Surgem assim os sistemas de engorda de
gado em confinamento (variante crioula
dos feedlots mostrados no Meatrix). Na
Argentina, mais da metade do gado que se
destina a abastecer o mercado interno passa
seus últimos meses em uma dessas fábricas,
e já se registram conflitos devido à contaminação gerada. No Brasil, começa a haver
uma concentração notória na sua integração vertical aos grandes frigoríficos brasileiros, que figuram entre os maiores do
mundo (ver “O Brasil e seus bois multinacionais”, p. 18 desta edição).
Se essas tendências seguirem a implacável
lógica capitalista, o futuro será a criação de
gado e a alimentação ficarem, cada vez
mais, em menos mãos, em condições de
muito maior contaminação.
*Pesquisador do Food and Water Watch
América Latina
Os problemas da criação
intensiva tornaram-se
muito evidentes quando
apareceu a doença da
vaca louca, na Europa,
nos anos 1980,
em decorrência de
alimentarem seu gado
com rações à base de
restos moídos de outros
animais. Apesar de que
ainda não existiam essas
aberrações na América
Latina e em outras
regiões, começavam a se
multiplicar as granjas de
criação de aves que
propiciaram a gripe
aviária na Ásia.
1) Meatrix
ht tp://www.themeatrix.com/
intl/brazil/dub/
2) Meatrix II Revolting
http://www.themeatrix2.com/
spanish/dub/
3) Meatrix II½
http://www.moremeatrix.com/
spain/subtitled/
23
Ataques, políticas, resistência, relatos
Não querem transgênicos na África, não?
Centro Africano para a Biossegurança/grain, Joanesburgo, África do Sul, 12 de setembro. Uma junta de ape-
24
lações criada pelo ministério de assuntos agrários e agricultura derrubou uma decisão crucial do processo sulafricano relacionado aos ogms, de não aceitar experimentos
com sorgo, um precioso e ancestral cultivo africano. O
conselho de investigação científica industrial (Council for
Scientific Industrial Research, o csir) já deu sinal verde
para prosseguir no desenvolvimento de um Super Sorgo,
em instalações de nível três de contenção. A pesquisa é financiada pelo projeto “sorgo africano biofortalecido”
[African Biofortifed Sorghum, ou abs] da Fundação Bill e
Melinda Gates. A Fundação Gates também financia amplamente a Nova Revolução Verde na África, orientada
para industrializar a agricultura do Continente.
O Centro Africano para a Biossegurança (cab), que
contestou a solicitação inicial da csir, condenou a decisão e reafirmou que os experimentos com sorgo transgênico inevitavelmente terão como resultado a contaminação do legado africano do precioso sorgo. Haidee
Swanby, do cab, comenta: “O sorgo é um cultivo básico,
crucial para mais de 500 milhões de pessoas no continente. Os riscos que o sorgo gm apresenta para os parentes
silvestres não podem ser tolerados. Conceder essa permissão equivale a permitir que o legado da África se perca.”
O cab reitera que o projeto do sorgo biofortalecido está
sendo desenvolvido para sua liberação comercial e que o
csir buscará, em breve, autorização para experimentos
de campo. A objeção original do órgão regulador de
ogm, emitida em junho de 2006, baseava-se na preocupação de contaminação da biodiversidade africana. A
contenção em uma instalação de nível três não evita os
riscos dos experimentos de campo, mantendo-se, assim,
os riscos às variedades do continente.
Elfrieda Pschorn-Strauss, responsável pelo programa
grain-África, conclui: “Não cabe ao governo da África
do Sul decidir, em nome do resto da África, a aprovação
de um projeto industrial que causará a contaminação inevitável da surpreendente diversidade genética do sorgo
no continente. Esse cultivo vem tendo o cuidado e o desenvolvimento dos camponeses por mais de 5 mil anos”.
l
Brasil
Financiando
a contaminação
Rádio Mundo Real, 5 de setembro de
2008. Durante a safra 2007/2008, no
Brasil, o dinheiro público destinado
aos agronegócios representou a quase
totalidade dos investimentos realizados no país para a produção agrícola,
segundo dados oficiais divulgados
pela Agência Pulsar.
De acordo com informação do Estado brasileiro, foram destinados ao
agronegócio cerca de 40 bilhões de
dólares, o que supera em quase dez
vezes o que foi destinado à agricultura familiar. O paradoxo é que a agricultura familiar proporciona os alimentos para o consumo interno. As
pequenas empresas produzem 49%
do milho, 79% do feijão, 54% do leite, e 40% dos produtos avícolas, enquanto as agroindústrias basicamente
produzem para exportação.
O enorme financiamento que as
agroindústrias recebem do Estado
veio à tona quando outra notícia
alarmante foi revelada: as agroempresas brasileiras vêm utilizando, em
seus agrotóxicos, componentes químicos proibidos nos países da União
Européia, onde são produzidos, devido ao seu altíssimo nível de toxicidade. Esses agrotóxicos são utilizados
em mais de duas dezenas de cultivos
de grãos, verduras e frutas. De acordo com a Organização Mundial da
Saúde (oms), esses agrotóxicos poderiam causar problemas no sistema
reprodutor, no sistema nervoso, e ser
cancerígenos. Segundo a Radioagên-
cia Notícias do Planalto, a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária do
Brasil (anvisa) estava investigando
os perigos dessas substâncias, mas
suas investigações foram suspensas
pela pressão exercida pelos fortes interesses econômicos.
Ante a denúncia e alerta da oms, a
anvisa informou que reavaliará o registro de nove substâncias que são
utilizadas na elaboração de 99 agrotóxicos. l
Ataques, políticas, resistência, relatos
Os jeitinhos
da Monsanto no México
De acordo com a pesquisadora mexicana Ana de Ita, “Para a Monsanto, o
levantamento da moratória estabelecida há dez anos no México para o
plantio de milho transgênico é uma
prioridade” pois no momento atual,
favorável às empresas, “conseguir o
plantio de milho transgênico no México, onde cerca da metade da superfície agrícola é destinada ao milho,
parece um negócio proveitoso”. Essa
moratória terá seu fim “quando se liberar a primeira permissão de plantio
experimental. Em questão de meses, o
plantio comercial seria legal”.
O mencionado momento favorável
é visível no fato de que, mesmo com a
moratória, “o México ocupa o quarto lugar nas vendas da Monsanto,
uma vez que as companhias nacionais
de sementes sucumbiram ante a concorrência feroz e a empresa estatal de
sementes (a Pronase) foi extinta. Em
escala mundial, a Monsanto triplicou
seus lucros no primeiro trimestre de
2008, em decorrência de suas vendas
de sementes de milho (transgênico e
híbrido) e de herbicidas. O boom dos
agrocombustíveis e o uso de milho
para fabricação de etanol nos Estados
Unidos aumentaram o valor de suas
ações em 21%”.
Além disso, acrescenta a pesquisadora, “A Monsanto contou com o
apoio dos legisladores que aprovaram, a seu favor, a Lei de Biossegurança de Organismos Geneticamente
Modificados (lbogm), e com o respaldo de funcionários das Secretarias
de Agricultura e do Meio Ambiente,
que publicaram a regulamentação da
lei e tentam, por vias burocráticas, encerrar o Regime de Proteção Especial
ao Milho” (ver “Granjeros modernos
o siervos de Monsanto”, La Jornada
del campo, número 8).
Hoje, de acordo com informes de
Lourdes Dias López (El Diario, 24 de
setembro), “em Chihuahua, os
chihuauenses são ‘cobaias’ com o
plantio e o consumo de milho transgênico [pois] já se comprovou que
está sendo plantado, sem que nem o
produtor e nem o vendedor de sementes se dêem conta de que se trata
de um produto geneticamente modificado”. Na mesma reportagem,
Lourdes Dias recolhe o testemunho
do deputado local Victor Quintana e
do líder do movimento El Barzón,
Gabino Gómez, no sentido de que
“os resultados do levantamento de
amostras de milho feito por um laboratório certificado a pedido do Greenpeace revelaram que não há somente 70 hectares plantados com
esse tipo de semente, como divulgou
o Serviço Nacional de Sanidade, Inocuidade e Qualidade Agroalimentar
(Senasica), mas sim 25 mil hectares,
em função do que se efetuou uma segunda amostragem da qual se esperam resultados em breve”. Victor
Quintana, nessa ocasião, comentou:
“Se fosse feita vigilância de acordo
com o que determina a lei para a entrada de sementes, a comercialização
e a planta em desenvolvimento, a Se-
cretaria de Agricultura, Pecuária,
Pesca, Desenvolvimento Rural e Alimentação (Segarpa) teria detectado,
muito antes de nós, que em Chihuahua
se está plantando milho transgênico.
As autoridades da Segarpa querem se
proteger dizendo que são 70 hectares
e que estão dando atenção ao problema”.
Apesar de que, enquanto a moratória ainda existir, “plantar milho transgênico pode dar de dois a dez anos de
cadeia, além da multa de 15 mil a 150
mil pesos, de acordo com o estabelecido no artigo 420 do Código Penal Federal, e de acordo com o artigo 120 da
Lei de Biossegurança de Organismos
Geneticamente Modificados”, o certo
é que em Chihuahua já é oficial que
esse plantio ocorreu. O delegado da
Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Semarnat), Ignácio Legarreta Castillo, aponta “que em
Chihuahua detectou-se o primeiro
caso, em nível nacional, de plantio de
milho transgênico, que já é investigado pelo ministério público federal
(mpf), depois dos estudos do laboratório do Senasica, e será o mpf que
determinará de quem é a responsabilidade, se do produtor, do vendedor de
semente ou da aduana no momento
da importação”.
O estranho é que, em anos anteriores, “as autorizações para plantio experimental, canceladas por serem ilegais, eram para Chihuahua, Sonora,
Sinaloa e Tamaulipas, e mesmo que os
funcionários se esforcem em negar,
nesses estados existe uma ampla diversidade de raças e variedades nativas de milho. Em Chihuahua, há 23
espécies catalogadas e teosinto, que
também é registrado no Sinaloa”, insiste Ana de Ita.
Tudo parece indicar que estamos
diante de uma investida clandestina e
ilegal para que o plantio de milho
transgênico seja um fato consumado
que permita avançar rapidamente
para derrubar a moratória, a qual fragilmente continua impedindo uma
avalanche irreparável de contaminação, com seus efeitos devastadores associados. l
25
Ataques, políticas, resistência, relatos
Equador
O governo, a Constituição,
os indígenas e as mineradoras
26
Uns dias antes do referendo que aprovou a nova constituição equatoriana, a Confederação de Nacionalidades
Indígenas do Equador (Conaie) decidiu se adiantar ao referendo e expressou um “sim crítico” que evitou possíveis
manipulações, por parte da oligarquia e de setores da
igreja, de seu posicionamento de oposição.
Essa constituição foi tecida em um árduo processo de
diálogo entre a sociedade equatoriana, e o presidente Correa efetivamente impulsionou tal processo, ainda que a
seguir, nas regulamentações, tenham sido desativados
muitos de seus parágrafos mais incisivos (assunto que tem
provocado a mais áspera crítica dos setores progressistas
afins ou em oposição ao governo da “Revolução Cidadã”). Não obstante, era claro que praticamente durante
todo o mês de setembro a população estivera considerando o sim ou o não e que a maior parte das pessoas propensas ao não eram ligadas aos grupos de direita, oligarcas e
entreguistas, que não deixaram de provocar incidentes.
Então, em que pese o movimento indígena independente
continuar pressionando o governo de Correa a definir-se
com maior clareza em favor da população, sabendo que o
fator indígena seria chave, a Conaie expressou seu sim crítico. Foi uma decisão de serenidade e generosidade para
com o Equador, apesar de suas grandes diferenças com
Correa.
Em 4 de setembro, o Conselho de Governo da Conaie
afirmou que a nova Constituição não acolhe adequadamente suas propostas sobre “novos direitos das nacionali-
dades e povos indígenas do Equador” e que seguirá lutando “até que haja um verdadeiro reconhecimento de nossas
demandas no marco do novo Estado plurinacional”. Afirmou, também, que “em relação às propostas nacionais de
ordem social, ambiental, econômica, cultural, participação cidadã, soberania nacional e reconhecimento do Estado plurinacional, há um avanço importante em comparação com as 19 constituições anteriores e em relação ao
contexto internacional”. Portanto, em “seu papel histórico e luta permanente pela mudança real deste país, apóia
com o sim crítico no referendo para aprovar o projeto da
nova constituição e, dessa forma, enterrar de uma vez por
todas a velha estrutura do Estado, a agonizante partidocracia e oligarquia do país, o colonialismo, o neocolonialismo e o modelo neoliberal injusto e desumano que tanto
dano provocou ao país”. Por último, a Conaie reinvindicou ser independente do governo nacional e de seu movimento político, e que seu apoio era ao projeto da nova
constituição, e não um respaldo ao governo de Correa.
No final de setembro, e sendo coerentes com seus posicionamentos, a Conaie, a Ecuarunari e a Confenaie (Confederação de Nacionalidades Amazônicas do Equador)
reuniram-se para discutir o papel do governo no que diz
respeito às concessões de mineração. Concluíram que o
governo deixa de cumprir os mandatos constituintes e favorece as empresas mineradoras que operam no país, razão pela qual resolveram exigir do regime a aplicação dos
ditos mandatos e o respeito a seus territórios e recursos
naturais. “Está claro que Correa não mudará o modelo
econômico neoliberal. Ao contrário, as multinacionais estão se fortalecendo para a exploração de nossos recursos
em seu benefício, o que preocupa as organizações, povos e
nacionalidades”, disse Miguel Guatemal, vice-presidente
da Conaie.
Está se tornando claro que “a nova constituição não irá
deter a ambição das empresas de petróleo, das mineradoras e das hidroelétricas, pelo que se torna necessário impulsionar ações desde nossas comunidades, a fim de deter
essa política neoliberal do atual regime”, disse Domingo
Ankuash, presidente da Confenaie.
Poucos dias antes, foram assassinados dois membros da
nacionalidade awa, da província de Esmeraldas, “pelos
interesses econômicos e políticos das empresas mineradoras e do atual governo”, em função do que o encontro
exigiu as investigações e sanções aos responsáveis pelos
crimes. “Esse é um problema que se reproduz por todo o
país e o governo não faz absolutamente nada. Ao contrário, juntamente com as empresas estrangeiras, faz parte
dessa perseguição. Por isso, fazemos um apelo a todas as
organizações sociais do país para avaliar e organizar as
ações que sejam necessárias a fim de deter essa ambição
externa e, sobretudo, obrigar o governo a suspender seu
apoio às multinacionais e a garantir o respeito a todos os
equatorianos”, disse Salvador Quishpe, dirigente de Zamora Chinchipe. l
Ataques, políticas, resistência, relatos
As paralisações antimineradoras prosseguirão
Em setembro, dirigentes da Zamora
Chinchipe e o coordenador da Frente
de Resistência Sul à Mineração em
Larga Escala (Fresmige) responsabilizaram o governo nacional e as empresas mineradoras canadenses pela
onda de paralisações que diversas comunidades e organizações do sul do
país impulsionarão no futuro. “A Assembléia Constituinte baixou o mandato mineiro em 18 de abril passado,
mas o governo tem se esquivado dele
e não o tem aplicado. Ao contrário,
iniciaram a elaboração de uma Lei de
Mineração com a participação dos
representantes das próprias empresas
mineradoras multinacionais, dando
as costas ao povo equatoriano, e, seguramente, irão querer impor dita lei
com o futuro congresso ilegal. Isso
demonstra que o presidente Correa
busca garantir o modelo econômico
neoliberal e extrativista, contradizendo seu discurso de terminar com a
longa noite neoliberal. Essa é a razão
das ações de protesto que os povos
estão impulsionando, donde o responsável por essa situação ser o próprio presidente Rafael Correa e seu
governo”,
afirmou
Salvador
Quishpe.
Apesar disso, de novo, em uma
amostra de sensatez e generosidade,
Quisphe esclareceu que não haveria
ações de protesto antes de 28 de setembro, data em que foi realizado o
referendo. “Não vamos permitir que
nossa luta seja mal interpretada por
aqueles que permanentemente procuram desqualificar nossa legítima inconformidade com esse modelo extrativista que põe em risco a vida de
nossos povos”. l
Equador
Carta aberta sobre
a nova Constituição
Ontem, a grande maioria do povo equatoriano pronunciou-se pelo sim à nova
Constituição, obedecendo a uma aspiração perseguida pelas organizações,
que há mais de trinta anos temos desejado ver o surgimento de um novo
país.
A maioria de nós tem contribuído com os princípios contidos na nova Constituição mesmo antes que esta começasse a ser elaborada. Construímos posicionamentos, argumentos, propostas, que foram acolhidos no processo constituinte. Por isso nos pronunciamos por um sim crítico.
sim, porque reconhecemos que são momentos de síntese das propostas dos
movimentos sociais, crítico porque tememos que nosso respaldo à Constituição seja visto como uma carta em branco para avalizar projetos neodesenvolvimentistas que implicarão em uma grande dívida social no curto prazo.
O impulso ao iirsa e ao Eixo Manos-Manta (que se traduzirá na dragagem
do rio Napo), a abertura petroleira, a insistência na mineração como nova
atividade intensiva, as políticas agrárias que fomentam o consumo de agrotóxicos e de sementes certificadas e o fomento aos agrocombustíveis são alguns
dos projetos que estão na agenda dos governos neoliberais e que têm sido
freados pelas lutas dos movimentos sociais.
Sem dúvida, esses mesmos projetos pairam como ameaças para nosso país.
São projetos que têm um alto custo ambiental, e que, mesmo quando são justificados com o argumento de pagar a dívida social, construirão novas dívidas
ecológicas. E o principal quanto a isso é que a dívida ecológica é dívida social,
pois se deterioram as bases de subsistência, principalmente dos mais pobres, e
se impede um verdadeiro desenvolvimento sustentável.
Nenhum desses projetos poderia ser desenvolvido, ao menos na magnitude
em que são propostos, se agimos de acordo com a nova Constituição, se utilizamos a Constituição como uma caixa de ferramentas para defender nosso
patrimônio e o de nossos filhos.
Cabe a nós estarmos atentos e articulados para defender o que é e tem sido
uma proposta de mudança a partir das bases. Resgatar o momento político
atual, evitar que a Constituição seja seqüestrada.
A proposta ecologista não é senão a defesa das riquezas naturais, o respeito
à vida e à biodiversidade, o cuidado com nosso futuro.
A luta ecologista é uma luta por ideais e, principalmente, por conservar um
espaço onde esses ideais se realizem.
Por isso devemos fazer a nossa Constituição. l
Ação Ecológica,
Quito, Equador, 30 de setembro
27
Ataques, políticas, resistência, relatos
Assassinam defensor
de direitos humanos
na Colômbia
28
O defensor de direitos humanos Ever
González foi assassinado no sábado,
20 de setembro, ao meio-dia, por
dois assassinos contratados que estavam em uma moto. Ele estava trabalhando na localidade de Guachicono, no município de Bolívar, e
ponto de encontro entre os municípios de Sucre e Patía. Desde 1994,
nosso líder camponês Ever González
vinha apoiando a defesa integral dos
direitos humanos dos habitantes do
Maciço Colombiano, em especial
dos do município de Sucre. Em 2000,
foi vinculado ao sistema de proteção
do Ministério do Interior, devido a
múltiplas ameaças contra a organização social Cima, seus líderes e suas
comunidades, pela reivindicação
constante por vida digna, integração
regional e desenvolvimento próprio.
Da mesma forma, desde 2003 foi
amparado pelas medidas cautelares
que a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos ordenou ao estado colombiano. Em maio de 2004,
foi vítima da política de detenções e
criminalizações massivas. Tal circunstância aumentou seus riscos e
sua vulnerabilidade, devido às estigmatizações originadas a partir da
aplicação dessa política. Em seu
caso, demonstrou-se sua inocência,
a montagem que lhe foi feita e sua
liderança social camponesa. Atualmente, se encontrava apoiando o esclarecimento de uns casos de execuções extrajudiciais ocorridos no município de Sucre, em 2007, com a
participação dos familiares das vítimas e da Defensoria da cidade de
Cauca.
A organização social camponesa
Comitê de Integração do Maciço Colombiano (Cima) exige do Estado colombiano, das autoridades civis e militares, do Ministério Público, da Promotoria Geral da Nação e do Ministério do Interior, a investigação, o esclarecimento e a condenação dos res-
Dendê em Chiapas: paramilitar?
Um sinal abominável de globalizar a guerra como programa de desenvolvimento é o incentivo que se começa
a dar ao plantio de dendê em Chiapas. Na Colômbia, o
esquema sinistro, há alguns anos, é deslocar os camponeses para promover amplamente o dendê (cinicamente
chamado de palmeira sustentável) como insumo de agrocombustíveis, permitindo que grupos
paramilitares expulsem a sangue
e fogo os habitantes de um território. Sempre a serviço das
agroindústrias e do governo, os
paramilitares o convertem em
monocultivo de dendê e se assumem como agricultores “legalizados” de “combustível” de dendê. O esquema implica um campo
armado, com mercenários a serviço das transnacionais.
O que ocorrerá em Chiapas,
onde a paramilitarização cresce
promovida pelos governos federal e estadual, apodera-se de mais
e mais terras, desarticula os esfor-
ponsáveis por esse crime cometido
contra esse líder camponês defensor
de direitos humanos. Chamamos as
organizações defensoras de direitos
humanos, nacionais e internacionais,
para que se solidarizem em defesa da
vida digna, tanto de suas comunidades como de seus líderes, e no direito
de defender e fortalecer nossa organização social camponesa. Solicitamos
o envio de cartas aos órgãos estatais e
governamentais correspondentes exigindo o esclarecimento das ocorrências. Nossa gratidão, reconhecimento
e memória eterna a Ever González e a
nossos companheiros e companheiras
camponeses assassinados em decorrência de nossa luta constante por
vida digna, integração regional e desenvolvimento próprio do Maciço
Colombiano. l
Comité de Integración del Macizo
Colom­biano (Cima), Fundación Estrella
Oro­gráfica del Macizo Colombiano
(Fundecima)
ços de centenas de comunidades e semeia o terror em
qualquer região ou localidade onde haja comunidades independentes ou opositoras ao governo? Por enquanto,
seu freio real são os autogovernos autônomos zapatistas,
que defendem sua autonomia, seus territórios, seus cultivos diversificados e suas sementes ancestrais, com grande
equilíbrio, mas também com tática e organização de grande força. Entretanto, os funcionários começam a promover a expansão do tal dendê através dos
maiores viveiros da América Latina (1.691.000 plantas), em várias
regiões de Chiapas - Acapetahua,
Mapastepec, Marqués de Comillas, Zamora Pico de Oro e Palenque, algumas delas com forte
presença paramilitar.
O coordenador geral do Instituto de Fomento à Agricultura Tropical (ifat), que faz parte da Secretaria do Campo, Salim Rodríguez Salomón, disse que, para o
próximo ano, “se contará com 15
mil novos hectares para plantar
dendê, totalizando 44 mil hectares e cinco mil produtores”. l
Ataques, políticas, resistência, relatos
Estados Unidos se Posicionam na Guatemala
No final de setembro, o governo dos Estados Unidos,
através do seu secretário de agricultura, Ed Schafer, ofereceu apoio à Guatemala para impulsionar seu desenvolvimento, informou o presidente guatemalteco, Rafael Espada. “Temos grandes planos para o futuro, na área do desenvolvimento agrícola, rural, camponês e do trabalho na
Guatemala, e na exportação e intercâmbio de produtos,
conhecimento e tecnologia entre os Estados Unidos e a
Guatemala”, afirmou.
Schafer encabeça uma comissão comercial e de investimento que busca mecanismos de participação mais ativa
Argentina
Perseguição aos camponeses
Santiago del Estero. Às 8 horas da
manhã do dia 6 de setembro, 33 policiais invadiram, intempestiva e ilegalmente, cinco residências da comunidade camponesa de uma paragem
próxima à cidade de Pinto, e detiveram Luis Aguirre, seqüestraram uma
motocicleta da família e o transladaram à Comissaria de Polícia de Pinto.
Aguirre é filho de Cristina Loaiza e
Pocholo Aguirre, os quais foram presos em três oportunidades. Em uma
das detenções, encarceraram Cristina
com seu bebê de 11 meses.
O juizado de Añatuya, a cargo do
juiz Mansilla, alegou que a detenção,
com tão impressionante aparato, era
pelo suposto roubo de um cavalo.
Invasão sem ordem escrita de juiz
competente, detenção violenta e sem
ordem escrita, e num sábado, por um
suposto furto de um cavalo? No dia 7
de setembro, em Pinto, os sojicultores
realizavam uma recepção ao senador
nacional Emilio Rached.
No dia 19 de setembro, detiveram
Sabino Chávez, em uma paragem vizinha a Pinto. Ele também é membro
da Central Campesina de Pinto. Ainda está detido pelo mesmo juiz Mansilla que, em agosto, em uma entrevista com membros de uma comissão
internacional de direitos humanos,
disse que “em Santiago del Estero e
na Argentina já não havia camponeses e indígenas”. Uma frase que expressa um plano sinistro de novo extermínio? Sabino estava realizando
do setor privado no Tratado de Livre Comércio (tlc) entre os Estados Unidos, o Istmo e a República Dominicana
(dr-cafta, por sua sigla em inglês). Schafer reuniu-se
com os ministros da agricultura da América Central para
explorar mecanismos de cooperação que permitam que o
setor privado tenha maior participação no tlc. Funcionários de 17 empresas norte-americanas e 80 da Região reunir-se-ão para explorar e concretizar negócios, informou
Schafer. São empresários norte-americanos interessados
em promover o comércio e investimentos nos setores de
produtos processados, bebidas, genética de gado, carne e
frango, equipamentos agrícolas, produtos lácteos, fertilizantes e produtos orgânicos. l
um trabalho com sua camioneta
quando foi brutalmente retirado da
mesma, sem nenhum tipo de ordem
escrita, no meio de seu trabalho pacífico. Não andava atrás de ser detido,
ninguém busca estar na cadeia.
No dia 22 de setembro, no meio da
noite, mais de 40 pessoas, civis uniformizados, alguns de polícia, policiais comandados por uma vereadora
da cidade de Monte Quemado, chegaram violentamente com cinco camionetes e começaram a invadir, roubar, destruir bens das residências dos
camponeses e camponesas da paragem El Quebradito, os quais são
membros da Central Campesina de
Produtores do Norte.
Arrancaram da cama, no meio do
pânico de crianças e idosos, Mercedes
Farias, Matildo Ediverto Maldonado,
Andrés Peralta e Ubaldo Peralta, roubaram-lhes dinheiro que haviam recebido pela venda de seus cabritos e
vacas e, literalmente, roubaram a camionete e ferramentas de trabalho de
Juan Orellana. Até a manhã do dia 24
de setembro, não se sabia o destino
dos detidos quando, novamente, com
a mesma metodologia, o mesmo grupo de 40 pessoas arrancou violentamente de suas casas o casal Olga Peralta e Juan Cisneros, deixando as
crianças sem a presença de seus pais e
no meio do pânico e terror.
Quem pode dizer que se trata de imprudência de camponesas e camponeses? Podemos dizer que o governo da
província desconhece esses atos que
sua polícia e alguns de seus agentes
políticos realizam amparados em seus
cargos e foros?
Onde está a capacidade de um governo que alardeia ter conseguido a
paz e estar seguindo o caminho da
justiça através das Mesas de Diálogos?
Como Mocase-Via Campesina, temos recebido, como única resposta
por parte do governo, que é necessário participar das Mesas de Diálogos
para ter soluções.
Trata-se de uma verdadeira perseguição política aos membros do Mocase-Via Campesina, que temos o direito, que nos outorga a Constituição,
de participar ou não, se considerarmos que não se perde a dignidade.”
l
29
Ataques, políticas, resistência, relatos
30
Honduras
Mais um assassinato
em nome da suposta proteção
das áreas protegidas
La Ceiba Atlántida, 25 de setembro de 2008. Ontem, a
altas horas da noite (22h), oito pescadores da comunidade garífuna de Triunfo de la Cruz foram chamados, por
elementos das Forças Armadas que cuidam da vigilância
do refúgio de vida silvestre Cuero y Salado, enquanto
estavam pescando em frente à área protegida. Segundo o
testemunho dos pescadores, logo que foram detidos pelos militares, sem dizer palavra estes começaram a atirar,
sendo assassinado o pescador Guillermo Norales Herrera, originário da comunidade de Triunfo de la Cruz, que
recebeu impactos aparentemente causados por um fuzil
M16, normalmente usado como arma de suprimento
dos militares hondurenhos.
Ao receber as rajadas de balas, os pescadores gritaram
que haviam matado um deles, e os militares simplesmente se retiraram deixando-os por sua própria conta. Carlos Colón, outro dos pescadores, encontra-se hospitalizado, pois, ao atirar-se ao mar, foi ferido por uma arraia.
O assassinato do pescador Guillermo Morales soma-se
à série de violações dos direitos humanos perpetradas
pelas Forças Armadas acantonadas em áreas protegidas.
A população garífuna estabelecida em Cayos Cochinos
tem uma amarga experiência em relação à repressão surgida como conseqüência da aplicação dos planos de manejo para essa zona. Por isso encaminhou uma petição à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos pelas
agressões com armas de fogo a que os pescadores garífunas têm sido submetidos.
A costa norte de Honduras tem sofrido um saque sistemático dos recursos ictiológicos perpetrado pela frota
pesqueira industrial da Isla de la Bahia, afetando o direito à alimentação dos pescadores artesanais – em sua
maioria garífunas – os quais têm visto suas capturas caírem de forma vertiginosa, necessitando viajar a distâncias maiores de suas comunidades para obter o sustento
de suas famílias.
A criação de áreas protegidas, sem consulta, tem gerado tensões sobre o manejo dos recursos, desdenhando o
conhecimento tradicional garífuna, o qual tem permitido a conservação da maioria dos territórios que ocupamos, a ponto de 28 das 46 comunidades que habitamos
no país, encontrarem-se dentro das áreas protegidas ou
de suas zonas de amortecimento.
Cuero e Salado eram duas comunidades garífunas cuja
população se viu forçada a emigrar no início dos anos
1990, como resultado da restrição do direito à alimentação que foi imposta quando a zona se converteu em refúgio de vida silvestre, causando uma expulsão silenciosa de 38 das 40 famílias que habitavam a área de terras
úmidas. Cabe assinalar que a Fundação Cuero e Salgado
foi a primeira entidade privada à qual se entregou o manejo de uma área protegida, sendo seus funcionários em
muitas ocasiões apontados por sua mancomunação com
a Standard Fruit Company, que possui uma fábrica de
extração de dendê (Caisesa) em uma das cabeceiras hídricas do refúgio, e que vem contaminando com dejetos
da usina de óleo tais áreas úmidas.
As contradições que infestam o manejo das áreas protegidas em Honduras têm servido aos interesses de uns
poucos e à repressão dos povos indígenas e das comunidades locais. A expulsão técnica das comunidades de
Cuero e Salado foi repetida em Cayos Cochinos, onde,
em um dado momento, os pescadores foram perseguidos
enquanto se permitia à frota pesqueira industrial a extração irracional de crustáceos. Hoje em dia, os reality
shows são uma amostra das inconsistências dos “ambientalistas” que, enquanto proíbem aos garífunas chegar perto de Cayo Paloma, convertem o local num cená-
Ataques, políticas, resistência, relatos
rio periódico para seus shows.
A Bahía de Tela, área contígua ao refúgio Cuero y Salado, nos últimos anos tem sido um centro de conflitos
raciais instigados por empresários e políticos que há
mais de duas décadas vêm pretendendo a implementação de um megaprojeto turístico para a zona. Atualmente está sendo construído um grande empreendimento de
turismo com financiamento do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (bid). O projeto acarreta o aterro de
80 hectares de uma área úmida na qual, apesar de estar
protegida pelo Convênio de Ramsar, pretendem construir um campo de golfe. Esse é outro caso em que a
população garífuna agüentou atitudes repressivas por
parte da entidade a cargo do cuidado do parque, deno-
Forças Armadas. Basta recordar que os crimes cometidos pelos militares durante a década de 1980 permanecem impunes, lançando, dessa forma, uma fatídica advertência para o futuro.
Os fatos ocorridos na noite de ontem em Cuero y Salado são mais uma amostra da política que existe contra
os direitos do povo garífuna. Por aí se vê como, a cada
dia, mais nossos territórios são reduzidos ao serem atomizados em nome de um suposto desenvolvimento que
serve mais aos investidores e empresários que a nosso
povo. Por outro lado, alguns operadores da justiça deixam de ser imparciais, colocando-se a serviço daqueles
que querem nos ver abandonar as praias em que vivemos.
minada Fundação para a Proteção de Lancetilla, Punta
Sal e Texiguat (Prolansate), com o pressuposto de que
estavam conservando a área úmida, quando era voz popular as aspirações ecocidas da elite do poder sobre as
lagunas de Micos e Quemada.
Por “casualidade” é que há dois anos foram assassinados os jovens garífunas Epson Andrés Castillo e Yino
Eligio López, por mãos de membros das Forças Armadas. No julgamento efetuado foram sentenciados os soldados implicados e, claro, se omitiu fazer qualquer menção sobre o oficial a cargo das execuções. Aparentemente, no informe do legista excluiu-se a menção ao tipo de
arma utilizada. Esse não é o primeiro caso em Honduras
onde as autoridades protegem os oficiais e elementos das
Fazemos um chamado às autoridades governamentais
para efetuarem uma investigação exaustiva sobre os
acontecimentos. E que caia o peso da lei sobre os militares assassinos. Além disso, que cesse a perseguição aos
pescadores artesanais e sejam tomadas medidas necessárias para frear a destruição causada pela pesca de arraste
da frota industrial, verdadeira causa do ecocídio que
afeta a costa norte de Honduras. Também exigimos que
se respeitem os direitos sobre os territórios ancestrais de
nossas comunidades, incluindo o direito ao habitat funcional e o direito à alimentação do povo garífuna. l
Miriam Miranda
Organización Fraternal Negra Hondureña
31
Ecos da Quinta Conferência da Via Campesina
Crise ou soberania alimentar?
32
Com o fantasma da nova Revolução Verde rondando
sobre a África, a Via Campesina celebra sua Quinta
Conferência Internacional em Maputo, capital de
Moçambique, num momento em que, de todos os recantos do planeta, surgem vozes de alarme, mas
também muitas propostas, diante da crise alimentar
que o mundo atravessa, perante a qual os organismos
internacionais, os governos e as fundações “humanitárias” promovem, com exagerada publicidade para
todo o mundo, uma remediação que lhes dá oportunidade de promover mais privatização de terras, paco-
contra a globalização do capitalismo e da miséria.
Essa Quinta Conferência é, na realidade, “a assembléia principal da Via Campesina, que ocorre a
cada quatro anos. É um espaço onde se adotam, de
forma coletiva, as grandes decisões políticas e de
organização”. Nessa assembléia, a organização anfitriã foi a União Nacional de Camponeses de Moçambique.
Apresentamos, então, algumas das declarações
importantes da Via Campesina nessa sua assembléia, que é o momento em que as delegações de
tes tecnológicos com sementes de laboratório, mais
agrotóxicos, maior subjugação da cadeia alimentar
completa e novas estratégias para desmantelar a
agricultura camponesa que continua independente
de seu controle.
Diante disso, “a Via Campesina oferece uma visão
real e soluções à atual crise da alimentação. As e os
pequenos agricultores de todo o mundo estão lutando pela sobrevivência. A crise no setor agrário,
a atual crise financeira, as crises climática e do
meio ambiente, a crise energética e a profunda crise social global são sintomas do mesmo modelo, o
modelo neoliberal, que faz com que o conjunto da
sociedade esteja organizado em função da obtenção do lucro”, diz um dos boletins para imprensa
da Quinta Conferência.
Hoje, a Via Campesina, com quinze anos de existência, mas com uma coleção de tradições alimentando seu que fazer atual, é a mais importante rede
mundial de pessoas e coletivos dedicados à agricultura, sejam camponeses ou pequenos produtores. Sua voz “está cada vez mais presente na opinião pública internacional e em foros
internacionais”, e sua autoridade moral fez com
que ganhasse um lugar entre aqueles que lutam
todos os continentes e muitos amigos desse tenaz
movimento camponês reúnem-se para discutir o
panorama geral que afeta a agricultura, mas também a justiça: um dos textos é seu boletim para
imprensa no Dia da Alimentação, e o outro é a Declaração de sua Assembléia de Jovens.
Em um mundo no qual, em certos momentos, o
panorama pode parecer sombrio, a Via Campesina
reivindica a história de luta do campesinato e sua
lúcida visão do horizonte atual e, por isso, afirma:
“As e os pequenos produtores do Sul e do Norte
vêm, há muitos anos, lutando por um modelo de
produção agrícola baseado em unidades produtivas
familiares e por uma agricultura sustentável, opondo-se ao modelo agrícola orientado à indústria e à
exportação, que conduziu à destruição dos meios de
sustento das comunidades rurais, e do entorno natural. A atual crise deixa claro que um sistema alimentar baseado na importação e na chamada ‘Revolução Verde’ não é seguro, além de gerar fome e
pobreza. Chegou o tempo da produção local de alimentos, de uma agricultura sustentável e de baixa
intensidade na utilização de energias fósseis, e do
empoderamento do campesinato e das e dos pequenos agricultores.
oletim para imprensa
B
Podemos acabar
com a Crise Alimentar
Maputo, 16 de outubro de 2008. Somen-
te é possível acabar com a crise alimentar através da soberania alimentar e da
agroecologia. Assim enfatiza a Via
Campesina, de Maputo, onde inicia seu
Congresso com uma Assembléia de Jovens Rurais de todo o mundo.
Há muitos jovens que querem se instalar na agricultura com modelos agroecológicos: produção sustentável e autônoma e venda em seu entorno.
Entretanto, as políticas atuais os impedem e favorecem à agroindústria.
Hoje, 16 de outubro, Dia Mundial da
Alimentação da fao, a Via Campesina
lança uma mensagem de esperança
diante da crise alimentar mundial, decorrente de um modelo industrial agroexportador, às custas de milhões de pessoas camponesas e do conjunto da
população em todas as partes do mundo.
É possível acabar com dita crise, desde
que se abandone esse modelo que elimina camponeses/as, destrói a biodiversi-
dade e o meio ambiente e gera fome e
miséria no mundo. A crise alimentar é o
elo mais dramático da cadeia de crises
que o sistema econômico neoliberal está
gerando – crise climática, energética,
financeira, da biodiversidade. É o momento de mudar de rumo, começando
precisamente pela agricultura.
A alternativa é a soberania alimentar,
que permite aos povos desenhar suas
próprias políticas agroalimentares, que
favoreçam a produção e a distribuição
camponesa local e sustentável para
abastecer sua população.
A Via Campesina lança essa mensagem em pleno processo de debate, por
ocasião de sua V Conferência, em Maputo, que reúne mais de 600 representantes camponeses e camponesas de
todo o mundo. Precisamente, cerca de
60% da comida que se consome em
Moçambique é importada, e o problema da fome e desnutrição nesse país
não cessa. Moçambique, como todos os
países do mundo, precisa ser soberano
em alimentação e impulsionar seu setor
primário sustentável – com métodos
respeitosos com a natureza para alimentar a sua população e acabar com a
fome.
Hoje, em Maputo, na Assembléia de
Jovens, enfatiza-se que é necessário facilitar o acesso das novas gerações à
agricultura e aos meios de produção.
Nessa Assembléia, constata-se que há
muitos jovens que querem instalar-se na
agricultura com essa nova visão da
agroecologia e ainda não podem. A Via
Campesina solicita aos governos que
facilitem a essas pessoas jovens o acesso
à terra, ao crédito e aos auxílios para se
instalarem, pois o futuro da agricultura
e da alimentação dependem delas. Em
outras palavras, não se poderá solucionar a crise alimentar enquanto não se
tornar extensiva a instalação de jovens
na agricultura com modelos agroecológicos e soberanos.
33
eclaração
D
Segunda Assembléia de Jovens da Via Campesina
O campo é nossa vida
A terra nos alimenta
Os rios correm em nosso sangue
Somos a juventude da Via Campesina
Hoje declaramos o início de um novo mundo
Viemos dos quatro cantos da Terra
Para nos unir com espírito de resistência
Trabalhar criando esperança
Conversar sobre nossas lutas
Aprender com o trabalho que realizamos
Inspirar-nos com nossas canções e histórias
Construir a solidariedade entre nossos movimentos
Unificar-nos como força para a mudança social.
Daqui voltaremos para todos os rincões do mundo
Levando conosco um espírito de revolução
Com a convicção de que outro mundo é possível
E o compromisso de lutar a favor da nossa maneira de viver
34
A crise no setor agrário,
a atual crise financeira,
as crises climática e
do meio ambiente, a crise
energética e a profunda
crise social global são
sintomas do mesmo
modelo, o modelo
neoliberal, que faz com
que o conjunto da
sociedade esteja
organizado em função
da obtenção do lucro
Lutaremos até a vitória, até que as jovens e os jovens de todo o planeta possam viver no campo, como camponeses, em paz e com prosperidade.
Quando os Estados tentarem nos reprimir, nos uniremos em solidariedade
para continuar a luta. Quando uma
companheira cair, a levantaremos.
Quando fizer frio, nos abraçaremos até
que o fogo de nossa luta nos aqueça o
coração. E a cada dia comprometeremos nossos corpos, nossas mentes e
nosso coração na linha de frente para
defender a vida e a luta pela Via Campesina.
Durante os dias 16 e 17 de outubro de
2008, jovens de mais de quarenta países
dos cinco continentes, campones@s de
distintos povos e culturas pertencentes
à Via Campesina, nos reunimos em Maputo, Moçambique, para celebrar nossa
segunda Assembléia Mundial de jovens
da Via Campesina. A juventude da Via
Campesina aqui presente, diante das
desigualdades e misérias que estão se
apropriando do mundo, somos e nos
sentimos o presente e o futuro de uma
nova sociedade que sustenta o mundo.
Mas temos problemas comuns que dificultam isso. O maior de nossos problemas é o sistema capitalista/neoliberal
que, com seus meios de repressão, extorção e propaganda, estendeu as desigualdades e injustiças pelo mundo todo.
Esse sistema impôs uma agricultura
produtivista que provoca o abandono
do meio rural, migrações entre regiões,
dificulta o acesso à terra e aos bens naturais e fomenta os transgênicos, a perda da soberania alimentar e novas formas de colonização como os
agronegócios. Esses problemas afetam
de forma especial aos jovens, mulheres
e à classe trabalhadora.
Diante dessa crua realidade, as e os jovens da Via Campesina, com força e
sentimento, apostamos em um novo
modelo social baseado na soberania alimentar dos povos através da reforma
agrária integral. E para isso propomos:
• Articulação de relações e alianças políticas, sociais e culturais entre jovens
do campo e da cidade, com vistas à
unidade dos jovens do mundo para a
mudança social e a conquista da soberania alimentar.
Para materializar essas propostas,
nosso plano de ação inclui: criar uma
comissão provisória de jovens, durante
a V Conferência, para dinamizar o trabalho de coordenação; realizar pelo menos um encontro de jovens por regiões
em 2009; realizar um acampamento internacional na Espanha, no final de
2009. Outros aspectos que trabalharemos nos próximos quatro anos são os
seguintes:
• Acesso à terra, com políticas de apoio
ao retorno e à fixação da juventude
no campo, para poder assegurar a alimentação e o futuro de nosso planeta.
• Luta e ação contra o modelo neoliberal, o imperialismo, as forças de ocupação, os tratados de livre comércio,
as políticas agrícolas impostas pela
omc, o fmi, o Banco Mundial, as
multinacionais, o consumismo, os organismos geneticamente modificados,
a criminalização das organizações sociais e das migrações de trabalho.
• Solidariedade entre as regiões como
movimentos sociais que estão levando a cabo modelos alternativos frente
ao sistema neoliberal, mediante princípios de integração com reciprocidade, complementaridade e cooperação
para superar desigualdades sociais.
• Formação política e ideológica integral da juventude. Educação popular.
Formação camponesa em técnicas
agroecológicas.
• Melhora da comunicação entre as e
os jovens de diferentes organizações e
culturas e criação de redes de comunicação alternativas como instrumento político e social para transformar
o modelo dominante.
• Aprofundamento e avanço no debate
sobre as causas das migrações e da
situação da classe trabalhadora.
• Fomentar a formação político-ideológica e técnica em cada região. Elaborar e socializar materiais informativos
ideológicos
ligados
às
reivindicações da Via Campesina.
Elaboração de uma lista de escolas de
formação política em nível internacional.
• Criar e melhorar a comunicação entre
nossas organizações, criar alianças
com outras organizações que lutem
por objetivos similares aos da Via
Campesina e abrir e socializar os conteúdos desta assembléia a outras organizações amigas e pessoas jovens. Nos
comprometemos a construir, desenvolver e fortalecer nosso espaço como
jovens nas organizações nacionais, regionais e internacionais da Via Campesina, pelo que pedimos a incorporação de dois jovens, um homem e uma
mulher, na Comissão Coordenadora
Internacional (cci).
35
A Via Campesina vem,
há muitos anos, lutando
por um modelo de
produção agrícola
baseado em unidades
produtivas familiares e
por uma agricultura
sustentável, opondo-se ao
modelo agrícola orientado
à indústria e à exportação,
que conduziu à destruição
dos meios de sustento
das comunidades rurais,
e do entorno natural
Mais informações com
Isabelle Delforge
[email protected]
www.viacampesina.org
Declaração do Encontro Nacional
Crise Alimentar na Colômbia,
Ações Sociais para a
Defesa da Soberania e da
Autonomia Alimentar
36
Procedentes de todos os recantos do país, membros de
organizações camponesas, indígenas, afrocolombianas,
urbanas, de mulheres, ambientalistas e não governamentais,
participamos com nossas sementes tradicionais, alimentos,
conhecimentos e sabedorias ancestrais – e a alegria de
trabalhar pela vida, pela terra e pela soberania alimentar –
deste Encontro Nacional em Bogotá, de 4 a 6 de setembro,
refletindo sobre a crise alimentar mundial que ameaça nossas
regiões, territórios coletivos, identidade, cultura, usos e
costumes, analisando como podemos assumir tarefas
conjuntas na defesa de nossos territórios coletivos, tradições
culturais alimentares e de uma vida digna para nossas
famílias e grupos sociais.
A
flige-nos saber que, enquanto há
cada vez mais alimento no mundo, seu preço sobe e cresce a fome, pois
a crise alimentar – que se expressa, em
primeiro lugar, como uma falta de
acesso à comida por parte dos mais pobres – se assenta sobre o controle oligopólico de 80% da produção de alimentos como o trigo e o milho por
parte de empresas multinacionais como
a Monsanto, a Cargill e a Bunge, que
também controlam a produção de sementes, de fertilizantes e de agrotóxicos. A crise inicia-se pela entrada dos
alimentos nos mercados agrícolas
mundiais e nas bolsas financeiras internacionais, que facilitam o enriquecimento especulativo de uns poucos, e se
intensifica pela concorrência entre a
produção de agrocombustíveis e a de
alimentos, com base no controle privado de bens comuns da humanidade
como a água, a terra e a biodiversidade.
Na Colômbia, enormes iniqüidades
históricas aprofundaram-se com a abertura econômica e a consolidação do
modelo dominante, excludente e privatizador, que gera destruição e saqueio
de nossos territórios, privatiza os bens
de uso comum e coletivo, aprofunda as
crises alimentares locais, regionais, nacionais e globais, derivadas da espoliação e concentração da terra por parte
de grandes proprietários de terra e de
capitais internacionais. É a privatização
do patrimônio natural e dos territórios
coletivos, o extermínio das comunidades indígenas ancestrais, afrodescendentes, urbanas e camponesas, e a destruição de suas formas de organização.
É o controle social, econômico, cultural
e político de seus territórios por parte
do Estado, suas forças armadas, e pelos
grupos guerrilheiros e paramilitares.
São as políticas contra a autonomia e o
controle local dos povoados, buscando
mercantilizar seu patrimônio natural e
cultural em favor das instituições financeiras e dos grandes capitais. É entregar
a soberania alimentar e territorial de
nossos povos através de tratados de livre comércio, da imposição de novos
modelos tecnológicos e produtivos de
monopolização, concentração e privatização dos sistemas de abastecimento
alimentar – da produção das sementes
ao consumo de alimentos.
Em nosso país [Colômbia], 57% dos
proprietários, que possuem menos de 3
hectares cada, controlam somente 1,7%
da área para uso agropecuário, enquanto 0,4% dos proprietários, que possuem
áreas maiores de 500 hectares, controlam 62,3% das terras cultiváveis. Apesar dessa iniqüidade, hoje em dia a produção das famílias camponesas,
indígenas e afrocolombianas contribui
com mais de 55% dos alimentos consumidos em nossas cidades, com uma importante e invisível participação das
mulheres em todas as fases do sistema
alimentar.
A concentração da terra, restabelecida
historicamente pelo conflito armado,
tornou-se mais aguda nos últimos anos,
junto com o deslocamento forçado de
mais de quatro milhões de pessoas dos
povoados rurais, aprofundando a espoliação dos territórios e destruindo a capacidade que ditas comunidades e as
populações urbanas historicamente associadas a seus processos têm de decidir
livremente sobre a produção e o consumo de alimentos.
Na Colômbia, a crise alimentar manifesta-se com cifras alarmantes: quase a
metade da população do país encontrase em condições de pobreza que impedem o adequado acesso econômico aos
alimentos e impõem uma situação crítica de fome a pelo menos 41% dos lares
colombianos. Para vergonha de nossos
governos, o ritmo de crescimento da
fome em nosso país é mais elevado do
que o da África Subsaariana; 45% das
mulheres gestantes na Colômbia têm
anemia, 58,2% das famílias rurais declaram que uma criança vai dormir sem
comer, e mais de 80% das crianças menores de cinco anos, em várias comunidades indígenas e afrodescendentes, so-
frem de desnutrição crônica.
Nosso país passou da auto-suficiência
na produção de milho, em 1990, a importar mais de 2,5 milhões de toneladas, ou seja, mais de 75% do consumo
nacional. É um absurdo que um país
como a Colômbia importe mais de oito
milhões de toneladas de alimentos, sendo que grande parte deles depende do
mercado global não regulado ou subsidiado nos países do norte, da especulação agrícola e dos preços fixados em
bolsas estrangeiras. Apesar disso, as
políticas e metas de produção agrícola
do governo, orientadas por organismos
internacionais como o Banco Mundial
e o Fundo Monetário Internacional,
concentram-se na produção de cultivos
para exportação e no plantio de três
milhões de hectares para agrocombustíveis.
Ante esse panorama, nos declaramos
em resistência e oposição frente aos
processos e políticas que tornam vulneráveis as formas tradicionais de produção, comercialização e intercâmbio de
sementes e de alimentos e, conseqüentemente, a autonomia alimentar das
comunidades e a soberania alimentar
do país; que expropriam o patrimônio
natural existente das comunidades rurais:
• Todas as formas de privatização da
vida, do conhecimento e dos bens comuns, públicos e coletivos (água, ar,
solo, florestas, biodiversidade, entre
outros).
• As políticas e leis ambientais, rurais e
urbanas do governo nacional emolduradas pela estratégia “Colômbia
2019”, que, além do mais, propiciam
a entrega da soberania dos povos e
territórios das comunidades ao capital
internacional e aos grupos de poder
econômico locais, nacionais e globais,
e promovem o controle, a monopolização e a certificação obrigatória das
sementes e das produções agroecológicas e pecuárias.
• O Estatuto Rural, uma das normas
mais agressivas na recente história do
país, com o qual se pretende aprofundar o modelo monopolista das trans-
37
A crítica situação de
fome atinge, na Colômbia,
pelo menos 41% dos
lares. Para vergonha do
governo, o ritmo de
crescimento da fome no
país é mais elevado do que
o da África Subsaariana;
45% das mulheres
gestantes na Colômbia
38
têm anemia, 58,2% das
famílias rurais declaram
que uma criança vai
dormir sem comer, e
mais de 80% das
crianças menores de
cinco anos, em várias
comunidades indígenas e
afrodescendentes, sofrem
de desnutrição crônica.
nacionais, de produção agroindustrial insustentável, e legalizar a
expropriação histórica das terras, por
parte de todos os atores da guerra e
dos grandes capitais que os estimulam.
• Todas as formas de guerra que a população colombiana enfrenta, qualquer que seja sua origem, e os processos de militarização que o governo
nacional promove.
• Os megaprojetos que, sem consulta,
são instalados nos territórios, ignoram o mandato do Direito Maior dos
povos indígenas e a autodeterminação das comunidades camponesas,
afrocolombianas e urbanas, violam
direitos territoriais coletivos e geram
impactos negativos ambientais, socioeconômicos e culturais. Particularmente, a Iniciativa de Infra-estrutura
Regional da América do Sul (iirsa),
que estimula modelos de desenvolvimento não sustentáveis e favorece interesses multinacionais.
• A imposição, produção e controle de
tecnologias baseadas no uso de agroquímicos, modelos agrícolas de monocultivos de transgênicos, agrocombustíveis e plantações florestais; as
explorações minerais, de petróleo e
energéticas geradoras de violência,
deslocamento de populações rurais e
urbanas e impactos ambientais e socioeconômicos sobre os territórios e a
qualidade de vida das comunidades,
que competem por componentes essenciais do nosso patrimônio natural
como a terra, a água e a produção nacional de alimentos.
• Os tratados de livre comércio da Colômbia com os Estados Unidos e a
União Européia, com os quais se pretende entregar a soberania dos povos
e a soberania alimentar às transnacionais de produção agrícola e de alimentos.
• A promoção da mudança da produção nacional de alimentos para agrocombustíveis, amparada em falsas
promessas de rentabilidade para os
pequenos produtores, suposta geração de emprego e falsa solução da
crise energética e das mudanças cli-
máticas mundiais.
• A perversão do uso da coca, de seus
valores espirituais, medicinais e de
uso alimentar, tanto por parte do governo colombiano, que a criminaliza,
como por aqueles que a prostituem,
cultivando e transformando com químicos nossa planta sagrada, para lesar a saúde humana e alimentar a
fome e a miséria de nossos povos.
• A erradicação química dos cultivos
de uso ilícito, que colocam em risco a
saúde e a segurança alimentar das comunidades, obedecendo às diretrizes
dos países que impõem as políticas de
controle do narcotráfico.
• A criminalização da palavra, do pensamento crítico e das ações de resistência das pessoas e organizações que
sustentam posicionamentos alternativos frente às políticas e ao modelo de
desenvolvimento econômico que o
governo nacional promove.
• O posicionamento do governo nacional sobre a suposta “blindagem” do
país frente à crise alimentar, e sua
promoção da “segurança” alimentar
da população, importando alimentos
ou estimulando programas assistencialistas que não detêm as causas estruturais da fome.
Continuaremos defendendo a soberania e a autonomia alimentar, com base
em:
• Os processos e organizações sociais e
o trabalho que, enquanto comunidades, estamos desenvolvendo dentro e
fora do país, na defesa da soberania e
da autonomia alimentar e frente aos
megaprojetos de desenvolvimento
existentes.
• Ações para a defesa integral de nossos territórios, do patrimônio coletivo natural e cultural, de todas as formas de vida e de produção das
comunidades indígenas, camponesas
e afrodescendentes. Essas ações devem incluir o incentivo a processos de
qualificação e de formação política e
organizacional das comunidades rurais e urbanas para proteger os saberes tradicionais, os territórios, a so-
berania e autonomia alimentar, e o
controle local que garanta a permanência desses conhecimentos para as
gerações futuras; estabelecer alianças
entre os diferentes setores sociais urbanos e rurais, para a sensibilização,
difusão e convergência de iniciativas
e ações de construção de propostas
alternativas frente aos modelos econômicos capitalistas e não sustentáveis.
• O apoio aos sistemas de produção
tradicionais e com enfoques agroecológicos, baseados na biodiversidade,
sementes nativas e conhecimento tradicional.
• O incentivo a diálogos e alianças entre populações camponesas e urbanas, com a finalidade de garantir uma
alimentação sadia e sustentável, que
elimine os monopólios na intermediação e fortaleça os mercados locais
e as diversas formas de intercâmbio,
como estratégias para se contrapor
aos modelos que destroem a economia camponesa.
• A identidade e pertença a nossos territórios, nossa cultura, usos, costumes e formas de produção, a sabedoria, os saberes e as práticas ancestrais,
como base essencial das estratégias
de defesa da soberania e da autonomia alimentar.
• A construção de conhecimento e de
tecnologias produtivas de acordo
com as necessidades, realidades e
possibilidades das comunidades rurais, de tal forma que nos permitam
romper as normas que impõem o
controle monopólico dos recursos e
as certificações que favorecem somente às grandes empresas.
• A reapropriação do público para garantir que os bens e serviços comuns,
coletivos e comunitários continuem
cumprindo sua função social.
• O apoio ao referendo de reforma
constitucional para consagrar o direito humano fundamental à água potável, um mínimo gratuito para atender
às necessidades vitais, a gestão pública indelegável e diretamente estatal
ou comunitária da água, e a proteção
especial dos ecossistemas essenciais
39
do ciclo hídrico.
• Planejamento de vida e de manejo coletivo de acordo com nossa cultura,
usos, costumes e realidades locais,
com equilíbrio ecossistêmico e espiritual da vida e com nossa visão do território, frente aos planos governamentais de ordenamento territorial
que buscam fragmentar a integralidade de nossos territórios.
• Desaprender o aprendido reivindicando o próprio, o que nos obrigaram a esquecer: a relação com a terra,
com a água, com o ar, a aprender fazendo, percorrendo e vivendo os territórios para construir novas formas
de vida. l
Bogotá, 6 de setembro de 2008
Declaração aprovada por 157 organizações
de base e ongs de todo o país
Apoiamos o referendo de
Reforma Constitucional
para consagrar o direito
humano fundamental à
água potável, um mínimo
gratuito para atender às
necessidades vitais, a
gestão pública indelegável
e diretamente estatal ou
comunitária da água, e a
proteção especial dos
ecossistemas essenciais do
ciclo hídrico.
40
Solidariedade e denúncia
O
s participantes do evento nacional Crise alimentar na Colômbia, ações sociais para a defesa da segurança, soberania e autonomia alimentar,
realizado em Bogotá, entre 4 e 6 de setembro de
2008, no qual participamos mais de 150 organizações indígenas, afrocolombianas, camponesas, organizações não governamentais e representantes de
dez organizações da América Latina, expressamos
nossa solidariedade a todas as vozes alternativas
que as estigmatizações criminalizadoras querem calar e, em especial, nossa solidariedade a Héctor
Mondragón, pesquisador e pacifista, defensor dos
direitos humanos dos camponeses, indígenas, com
um reconhecido respaldo nacional e internacional.
Igualmente nos solidarizamos contra as estigmatizações e perseguições que buscam enlamear, através
de artifícios, a organização de direitos humanos
minga, e as organizações indígenas do Cauca (acin
e cric), e a Associação de Camponeses do Vale do
Cimitarra (acvc), entre outras. Ditas estigmatizações conduzem à violação dos direitos fundamentais,
à espoliação de terras, aos deslocamentos forçados,
à criminalização da palavra e do pensamento crítico.
Essas pessoas e organizações são envolvidas em
obscuras campanhas de estigmatização por parte do
governo, e alguns meios de comunicação de massa
apóiam sem qualquer argumento crítico, apontando
supostos vínculos dessas pessoas, organizações e entidades com os atores armados do conflito nacional,
que paradoxalmente o governo empenha-se em desconhecer, mas que utiliza segundo suas necessidades
políticas conjunturais de relegitimação, dentro da
cada vez mais evidente crise do corrupto e obscuro
regime político nacional.
As organizações sociais e organizações não governamentais participantes deste encontro nacional, expressamos nosso repúdio à criminalização das rei-
vindicações e da construção de propostas alternativas,
apresentadas pelas organizações sociais e comunitárias pelo direito fundamental à vida, ao território,
aos recursos e bens públicos e coletivos e à soberania
alimentar dos afrocolombianos, indígenas e camponeses.
Não aceitamos que se criminalize a palavra, o direito à dissensão, a defesa dos direitos humanos, o direito de viver em paz e em harmonia com o meio
ambiente. Chamamos a defender ativamente todas
as vozes alternativas, a busca da paz, o direito à palavra e ao pensamento crítico na Colômbia. Reivindicamos o direito que temos todos os cidadãos de
nos defender das políticas e projetos governamentais
e do grande capital internacional – que buscam privatizar todos os recursos naturais e os territórios das
comunidades rurais.
Repudiamos as estigmatizações que o governo nacional e os meios de comunicação fazem a essas pessoas, organizações e entidades, as quais têm se destacado por sua responsabilidade pública com as buscas
nacionais de paz e de justiça social. Denunciamos
essa forma perversa de pretender manipular a opinião nacional e internacional, com atitudes que colocam em risco a vida e o trabalho daqueles que contribuem para o bem estar dos setores sociais na
Colômbia, em franca oposição às políticas oficiais de
exclusão social, de privatização e de mercantilização
dos recursos naturais, bens públicos e patrimônios
coletivos, como a água, a terra e a biodiversidade,
que são indispensáveis para a soberania e autonomia
alimentar.
Não criminalizem a palavra, não criminalizem a
luta pela soberania alimentar! l
Bogotá, 4 de setembro de 2008
BIODIVERSIDADE
Conteúdo
SUSTENTO E CULTURAS
EDITORIAL
1
Biodiversidade, sustento e culturas é uma publicação trimestral de informação e debate
sobre a diversidade biológica e cultural para
apoio às comunidades e culturas locais. O
uso e conservação dos recursos genéticos, o
impacto das novas biotecnologias, patentes e
políticas públicas são parte de nossa cobertura. Inclui experiências e propostas na América Latina, e busca ser um vínculo entre aqueles que trabalham pela gestão popular dos
recursos genéticos, especialmente as comunidades locais: mulheres e homens indígenas e
afroamericanos, camponeses, pescadores e
pequenos produtores.
Ajuda em sementes, agroempresas e crise alimentar
Fome e transgênicos
Fluxo de alimentos e Tratados de Livre Comércio
3
8
9
Número 58, outubro de 2008
UMA PANORÂMICA E MUITAS VISTAS
10
No futuro será imprescindível produzir alimentos próprios
O Brasil e seus bois multinacionais
18
Meatrix: o negócio da carne
23
Organizações coeditoras
Acción Ecológica
[email protected]
Acción por la Biodiversidad
[email protected]
Campanha de Sementes
da Vía Campesina – Anamuri
[email protected]
Centro Ecológico
[email protected]
GRAIN
[email protected]
Grupo etc
veró[email protected]
Grupo Semillas
[email protected]
Red de Coordinación en Biodiversidad
[email protected]
REDES-AT Uruguai
[email protected]
ATAQUES, POLÍTICAS, RESISTÊNCIA, RELATOS
24
Comitê Editorial
Ma. Eugenia Jeria, Argentina
Carlos Vicente, Argentina
Ciro Correa, Brasil
Maria José Guazzelli, Brasil
Germán Vélez, Colombia
Alejandra Porras (Coeco-at), Costa Rica
Silvia Rodríguez Cervantes, Costa Rica
Camila Montecinos, Chile
Francisca Rodríguez, Chile
Elizabeth Bravo, Equador
Ma. Fernanda Vallejo, Equador
Silvia Ribeiro, México
Magda Lanuza, Nicarágua
Juan Martin Drago, Uruguai
Carlos Santos, Uruguai
Administração
Ingrid Kossmann
[email protected]
Edição
Ramón Vera Herrera
[email protected]
Design e diagramação
Daniel Ortega, Claudio Araujo
[email protected]
Amanda Borghetti (Brasil)
[email protected]
Edição em português
Centro Ecológico
[email protected]
issn: 07977-888X
não querem transgênicos na África, não?/ Brasil: financiando a contaminação/ os jeitinhos da Monsanto no México/ Equador: O governo, a constituição,
os indígenas e as mineradoras/ as paralisações antimineradoras prosseguirão/ carta aberta sobre a nova constituição/ assassinam defensor de direitos
humanos na Colômbia/ dendê em Chiapas: paramilitar?/ Estados Unidos se
posicionam na Guatemala/ Argentina: perseguição aos camponeses/ Honduras: mais um assassinato em nome da suposta proteção das áreas protegidas
Ecos da Quinta Conferência da Via Campesina
Crise ou soberania alimentar?
32
Declaração do Encontro Nacional:
Crise Alimentar na Colômbia - Ações Sociais
para a Defesa da Soberania e da Autonomia Alimentar
36
Solidariedade e denúncia
40
A série de fotos deste número é de Jerónimo Palomares e foi tirada no estado de
Puebla, México. As ilustrações que acompanham a revista e o caderno de biodiversidade número 25 provêm do livro El diseño indígena argentino, de Alejandro
Eduardo Fiadone, La Marca Editora, 2006, e são desenhos pré-hispânicos de diversas culturas indígenas assentadas no que hoje é a Argentina. Agradecemos a
sensibilidade do autor em permitir a utilização das imagens sempre e quando seja
com fins artísticos e sem lucro. Nesse caso, nossa publicação sem finalidade de
lucro, além de ter fins artísticos, visa documentar, divulgar e conservar a tradição
de desenho indígena do continente (e do mundo) e servir de fonte secundária para
que as pessoas tenham acesso a obras de sistematização como a de Alejandro
Eduardo Fiadone.
Biodiversidade, sustento e culturas é uma revista trimestral (quatro
números por ano). As organizações populares, as ONGs e as instituições
da América Latina podem recebê-la gratuitamente. Por favor, enviem
seus dados com a maior precisão possível para simplificar a tarefa de
distribuição da revista.
As organizações populares e as ongs da América Latina podem receber gratuitamente a revista. Contatar REDES-AT Uruguai: [email protected]/[email protected]
Convidamos a que se comuniquem conosco e nos enviem suas experiências, sugestões e comentários.
Dirigir-se a Ingrid Kossman: [email protected]. Os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. O material aqui reunido pode ser divulgado livremente, mas agradecemos se
a fonte for citada. Por favor nos enviem uma cópia para nosso conhecimento.
Os dados necessários são:
País, organização, nome e endereço completos:
endereçamento postal (CEP), cidade e estado.
(Correio eletrônico, telefone e/ou fax, se houver.)
Agradecemos o apoio da SwedBio e da Cooperación al Desarrollo de la Consejería de la
Vivienda y Asuntos Sociales del Gobierno Vasco. Agradecemos o apoio da Heifer
Internacional Programa Brasil e Argentina para a publicação da edição em português.
código
de
Enviem, por favor, sua solicitação a BIODIVERSIDAD, REDES-AT, San José
1423, 11200 - Montevidéu, Uruguai. Telefones: (598 2) 902 23 55/908 2730.
[email protected]/[email protected]
caderno 25
Crise Alimentar
ou novos negócios
às custas de nossa fome?
biodiversidade
Biodiversidade 58• outubro 2008
CadernO 25 • Biodiversidade
ii
Para todos que dependemos de comprar nossos alimentos nos
mercados convencionais de provisões, está claro que, durante
os últimos meses de 2007 e em todo 2008, desencadeou-se
uma escalada nos preços dos alimentos, que nos obrigou a
restringir a aquisição de alguns deles e a desembolsar mais
dinheiro para levar os mesmos alimentos a nossas famílias.
Como esse fenômeno repetiu-se em todas as partes do
mundo, foi batizado de Crise Alimentar Mundial, e
imediatamente os meios de comunicação e os governos
começaram a se ocupar do tema.
A Organização Internacional para Agricultura e Alimentação
(fao) acaba de informar que, a partir da atual Crise Alimentar
Mundial, o mundo tem 75 milhões de novos famintos,
levando o número de pessoas em situação de fome a nada
menos que 923 milhões.
Mas a crise alimentar mundial não é um fenômeno natural,
não é conseqüência de uma seca e nem de aumento da
população. Tem sua origem em decisões humanas, algumas
que são evidentes, e outras que se mantêm ocultas. Isso é o
que procuramos compartilhar e explicar neste caderno.
Cadernos de Biodiversidade é um folheto colecionável de Biodiversidade sustento e culturas, outubro de 2008
Ilustrações: desenhos pré-hispânicos de culturas indígenas que hoje se situam na Argentina, tiradas do
livro El diseño indígena argentino, Alejandro Eduardo Fiadone, La Marca Editora, 2006.
Organizações coeditoras
Acción Ecológica [email protected] / Acción por la Biodiversidad [email protected] /
Campanha de Sementes da Vía Campesina – Anamuri [email protected] / Centro Ecológico [email protected] /
grain [email protected] / Grupo etc veró[email protected] / Grupo Semillas [email protected] /
Red de Coordinación en Biodiversidad [email protected] / REDES-AT Uruguai [email protected]
Comitê Editorial Ma. Eugenia Jeria, Argentina / Carlos Vicente, Argentina / Ciro Correa, Brasil / Maria José Guazzelli, Brasil / Germán Vélez,
Colômbia / Alejandra Porras (Coeco-AT), Costa Rica / Silvia Rodríguez Cervantes, Costa Rica /Camila Montecinos, Chile / Francisca
Rodríguez, Chile / Elizabeth Bravo, Equador / Ma. Fernanda Vallejo, Equador / Silvia Ribeiro, México / Magda Lanuza, Nicarágua / Martin Drago,
Uruguai / Carlos Santos, Uruguai / Administração Ingrid Kossmann [email protected] / Edição Ramón Vera Herrera
[email protected] / Desenho e formatação Daniel Ortega, Claudio Araujo [email protected] / Amanda Borghetti (Brasil)
Biodiversidade • CadernO 25
• Dizem para nós que há crise porque…
Aumenta o preço do petróleo? Isso em parte é
verdade, pois o atual modelo de agricultura é absolutamente dependente do petróleo: tanto para
trabalhar a terra como para o transporte dos alimentos,
gastam-se enormes quantidades de
combustíveis. A isso se deve somar o
uso intensivo de agroquímicos, que
são produzidos a partir da indústria
petroquímica. Porém, podemos observar claramente que, quando o preço do barril de petróleo cai, não ocorre uma redução equivalente no preço
dos alimentos.
iii
Terras são destinadas à produção de agrocombustíveis no lugar de alimentos? Isso também ocorre, em
parte, já que a febre desenfreada para produzir agrocombustíveis
durante os últimos anos está ocupando terras antes destinadas a
produzir alimentos, para produzir agora combustíveis para os automóveis. Contudo, as terras que se destinam atualmente para produzir agrocombustíveis não justificam o incessante aumento dos preços de todos os alimentos.
Os chineses comem mais carne? Essa é outra das razões que têm sido dadas
para justificar o aumento dos preços dos últimos meses. Mas também representa
uma falácia, já que, em boa medida, a China é auto-suficiente na produção de
alimentos (salvo em relação à soja, que importa para alimentar seu gado) e, portanto, não pode causar esse impacto sobre os preços mundiais de alimentos.
Todos esses fatores obviamente contribuem, mas não são suficientes para explicar o espetacular aumento dos preços dos alimentos.
Não devemos esquecer que hoje se produzem no mundo alimentos suficientes
para alimentar todas as pessoas. Ou seja, o problema dos milhões de pessoas que
padecem – e das que padecerão – de fome tem uma causa importante na má distribuição de alimentos que as sociedades humanas promovem.
• Por isso é evidente que...
A principal causa da existência de crises alimentares se deve a haver gente cuja
prioridade principal é produzir ganhos econômicos (aumentar o capital), ao invés
de atender às necessidades humanas (que todos tenham acesso aos alimentos).
• Porque...
Hoje se produzem alimentos suficientes para alimentar toda a humanidade.
Os camponeses e os povos indígenas continuam produzindo a maior parte dos
alimentos em todo o planeta.
• Mas...
A Organização Mundial do Comércio (organismo internacional que se propõe a
regular o comércio e a estabelecer as regras das transações) e o Fundo Monetário
Internacional pressionaram os governos dos países em desenvolvimento a liberalizar o comércio agrícola. Isso quer dizer que se abriu a importação de alimentos
e se proibiram as medidas que protegiam – mediante subsídios ou tarifas aduaneiras – a produção nacional de alimentos.
As empresas estão
decididas a
controlar toda a cadeia
de produção
de alimentos, desde
as sementes até a
comercialização dos
produtos elaborados.
Um punhado de
empresas agora controla
a produção e venda de
sementes, agroquímicos,
e a comercialização de
grãos. Começaram com
a Revolução Verde,
nos anos 1970 (sementes
híbridas, fertilizantes
e agroquímicos),
e continuaram com a
Revolução
Biotecnológica dos
anos 1990 (sementes
transgênicas que devem
pagar direitos de
propriedade intelectual,
com uso intensivo de
agroquímicos).
Crise Alimentar ou novos negócios às custas de nossa fome?
CadernO 25 • Biodiversidade
iv
O México nos fornece um bom exemplo. Durante centenas de anos foi autosuficiente em milho, mas, ao assinar o Tratado de Livre Comércio da América do
Norte, teve que permitir o ingresso de milho dos Estados Unidos. Esse milho era
barato – pois lá sim é subsidiado – e prejudicou os agricultores mexicanos, que
em poucos anos reduziram sensivelmente sua produção. Mas, durante 2007, o
milho que chegava dos Estados Unidos era muito caro, e isso aumentou de forma
terrível o preço da tortilla, o que gerou uma “explosão” social.
A Argentina também nos apresenta um triste panorama. Esse país é reconhecido
no mundo por suas excelentes carnes, e, até uma década atrás, era costume comer
carne todos os dias, até nos lares mais pobres. Mas, claro, a expansão do agronegócio da soja ocupou as melhores terras do pampa para criar um deserto verde
(17 milhões de hectares plantados com soja), e é difícil encontrar campos com
vacas pastando. A carne que é produzida é exportada, e a que se vende no mercado interno é muito cara. Os pobres só podem comer carne assada ocasionalmente.
A liberalização do comércio agrícola significa claramente estabelecer as regras
que são convenientes às empresas para fazerem negócios.
A comercialização de alimentos converteu-se em um negócio muito rentável. As empresas estão decididas a controlar toda a cadeia de produção de
alimentos, desde as sementes até a comercialização dos produtos elaborados.
Nas últimas décadas, elas se dedicaram a comprar empresas menores e a se
associar entre as grandes, fazendo o
controle da produção e venda de sementes, agroquímicos, e a comercialização
de grãos ficar nas mãos de um punhado
de empresas. Fizeram isso através da
Revolução Verde, nos anos 1970 (sementes híbridas, fertilizantes e agroquímicos), e da Revolução Biotecnológica,
nos anos 1990 (sementes transgênicas
que devem pagar direitos de propriedade intelectual, com uso intensivo de
agroquímicos).
• E como os lucros nunca são suficientes...
A comercialização de matérias-primas tem cotação em bolsas de valores, e se
desenvolveu um mercado de vendas futuras. Realizam-se contratos nos quais se
compram colheitas que recém estão sendo semeadas, e, com esses papéis de supostos grãos, realizam-se quantidades de negócios especulativos (contratos que
especificam o preço e estabelecem que o bem não será pago até a data da entrega).
As grandes empresas encontraram a maneira de ganhar sempre. Quando os
preços estão altos, vendem colheitas que ainda não têm. Quando os preços estão
baixos, guardam os grãos para oportunidades melhores. Quando os governos
têm que conter as populações com fome e subsidiam os grãos, as empresas ganham ao vender a preços elevados. Quando as secas produzem más colheitas, as
empresas não perdem nada, pois o contrato obriga o produtor a lhes entregar a
produção. Se o produtor não entrega nada, lhe embargam a terra, e perde o produtor, e a empresa ganha. As empresas necessitam estradas ou vias navegáveis
Crise Alimentar ou novos negócios às custas de nossa fome?
Biodiversidade • CadernO 25
para transladar suas mercadorias, os governos tomam créditos e criam a infraestrutura necessária para que as empresas façam seus negócios e ganhem.
Vejamos alguns exemplos concretos do que ocorreu com as empresas do agronegócio enquanto se desencadeava a crise alimentar.
Comercialização de grãos. Em abril de 2008, a Cargill anunciou que os lucros
que havia obtido com o comércio de produtos básicos de exportação no primeiro
trimestre de 2008 aumentaram 86% em relação ao mesmo período do ano anterior.
A Bunge, outra grande comerciante de alimentos, no último trimestre fiscal de
2007 teve um aumento em seus lucros de 245 milhões de dólares, ou 77%, em
relação ao mesmo período do ano anterior.
A adm, a segunda maior comerciante de grãos do mundo, experimentou um
aumento de 65% em seus lucros em 2007, chegando a um recorde de 2,2 bilhões
de dólares.
Empresas de sementes. A Monsanto, a maior empresa de sementes do mundo,
declarou que seus lucros gerais aumentaram 44% em 2007, em relação ao ano
anterior.
A DuPont, a companhia de sementes número dois do mundo, disse que seus
lucros com a venda de sementes, em 2007, aumentaram 19% em relação a
2006.
A Syngenta, a empresa número um de agrotóxicos e número três de sementes,
obteve 28% a mais de lucros no primeiro trimestre de 2008.
As grandes empresas
encontraram a maneira
de ganhar sempre.
Quando os preços estão
altos, vendem colheitas
que ainda não têm.
Quando os preços estão
baixos, guardam
os grãos para
oportunidades melhores. Quando os governos
têm que conter as
populações com fome e
subsidiam os grãos,
as empresas ganham
ao vender a preços
elevados. Quando as
secas produzem más
colheitas, as empresas
não perdem nada, pois
o contrato obriga
o produtor a lhes
entregar a produção. Se
o produtor não entrega
nada, lhe embargam a
terra, e perde o produtor,
e a empresa ganha.
• O que se passou nos últimos cinco anos?
O mundo das finanças e das especulações, a bolsa de Wall Street, enfrentou e
enfrenta uma profunda crise. A bolha criada com negócios imobiliários cresceu e
chegou a seu ponto máximo, por isso explodindo, e muitos “capitais abutres”
(grupos especulativos que põem seu dinheiro onde conseguem lucros bons e rápidos) abandonaram a área imobiliária e passaram à promissora área dos agronegócios. Esse deslocamento aumentou o nível de especulação e o jogo financeiro no
mercado de alimentos.
Hoje, as grandes agrocorporações obtêm lucros espetaculares especulando com
a crise alimentar, aumentando seus lucros de forma impressionante enquanto nossos povos passam fome.
• E o que nos propõem os governos e a onu para enfrentar a crise?
A Cúpula Alimentar realizada em junho passado, em Roma, expôs que: “É urgente ajudar os países em desenvolvimento e os países em transição a aumentar sua
Crise Alimentar ou novos negócios às custas de nossa fome?
CadernO 25 • Biodiversidade
As medidas propostas
pela Cúpula de Roma
somente aumentarão
o controle das corporações
sobre a agricultura,
permitindo que elas
continuem obtendo lucros
vi espetaculares, enquanto
cresce o número de
famintos (que, para a onu,
são cifras estatísticas,
enquanto que,
no dia a dia de cada um
de nós, bem sabemos
que se tratam
de seres humanos
– crianças, homens
e mulheres – que sofrem,
e aos quais
está sendo negada
qualquer possibilidade
de uma vida digna).
agricultura e a produção de alimentos, e a aumentar o investimento público e
privado na agricultura, nas agroempresas e no desenvolvimento rural”. Também
afirma que “Incentivamos a comunidade internacional a prosseguir em seus esforços de liberalização do comércio agrícola internacional mediante a redução dos
obstáculos e das políticas que distorcem o mercado”, e acrescenta que essas medidas “darão aos agricultores, em particular nos países em desenvolvimento, novas oportunidades de vender seus produtos nos mercados mundiais e apoiarão
seus esforços para aumentar a produtividade e a produção”.
• O que isso significa?:
* Mais Revolução Verde
* Mais “Livre Comércio”
* Mais poder ao Agronegócio
* Mais transgênicos
• É essa a solução para a crise?
Definitivamente NÃO. Porque essas medidas somente aumentarão o controle das
corporações sobre a agricultura, permitindo que elas continuem obtendo lucros
espetaculares, enquanto cresce o número de famintos (que, para a onu, são cifras
estatísticas, enquanto que, no dia a dia de cada um de nós, bem sabemos que se
tratam de seres humanos – crianças, homens e mulheres – que sofrem, e aos quais
está sendo negada qualquer possibilidade de uma vida digna).
• Então, o que podemos fazer?
Nossos povos resistiram por séculos ao embate dos poderosos mantendo sua
cultura, seus territórios, suas formas de vida, sua agricultura e seus alimentos.
Crise Alimentar ou novos negócios às custas de nossa fome?
Biodiversidade • CadernO 25
Hoje continuam fazendo isso e demonstram que na vida e nas lutas camponesas
é onde há um futuro para a humanidade.
Podemos cultivar e conservar nosso direito de imaginar o mundo que desejamos.
Fazemos o possível com base naquilo em que acreditamos. O possível, segundo
nossa visão, é ir construindo relações diferentes com aqueles que nos rodeiam no
aqui e agora. Construir e reconstruir o tecido social. Não esquecermos de
nossa mútua interdependência e de que somos parte da natureza.
Deixar de julgar-nos com os critérios daqueles que nos oprimem e estão destruindo o mundo. Reivindicar nossos
próprios critérios.
vii
Lembrar que a economia é mais
ampla que o dinheiro. É necessário começar a buscar como sair dos circuitos de mercado e começar a criar circuitos econômicos
próprios. Aproximar e relocalizar processos e
decisões.
• Como se pode fazer isso?
* Tomando consciência da situação geral e não nos enganando com enfoques
parciais.
* Construindo soberania alimentar na prática e nas comunidades locais.
* Estabelecendo vínculos e alianças com os consumidores das cidades.
* Defendendo nossas sementes e seu livre fluxo contra todas as tentativas de
privatização e apropriação, assim como as práticas agrícolas tradicionais.
* Lutando pelo controle e pela recuperação de terras e territórios.
* Insistindo com os governos para que promovam e defendam o direito soberano de decidir quais alimentos cultivar, como e onde. Fazendo-os entender que
a agricultura não pode estar sujeita às leis de mercado.
* Resistindo ao modelo agroindustrial, aos agrotóxicos e aos transgênicos.
* Denunciando o poder corporativo e seus impactos.
* Atuando contra suas práticas destrutivas.
* Desmantelando o poder das corporações do agronegócio.
* Informando-nos e compartilhando essa informação com outros.
* Organizando-nos.
* Resistindo enquanto vamos criando.
As mulheres da cloc-Via Campesina mais uma vez souberam indicar o rumo
para encontrar uma saída:
A soberania alimentar é um princípio de caráter político, que questiona o sistema capitalista em todas as suas expressões, busca a transformação da sociedade,
expõe a necessidade de reforçar a luta contra as políticas neoliberais e pela defesa
da terra e dos territórios. Portanto, devemos continuar lutando contra as transnacionais e os acordos de livre comércio, que têm destruído a agricultura camponesa, os territórios e os sistemas alimentares locais. Nossa luta continuará para
impedir que se assinem novos tratados, e para que se anulem os já assinados. É,
Crise Alimentar ou novos negócios às custas de nossa fome?
CadernO 25 • Biodiversidade
viii
Podemos cultivar e
conservar nosso direito
de imaginar o mundo
que desejamos. Fazemos o
possível com base naquilo
em que acreditamos.
O possível, segundo nossa
visão, é ir construindo
relações diferentes com
aqueles que nos rodeiam
no aqui e agora.
Construir e reconstruir
o tecido social.
Não esquecermos de nossa
mútua interdependência e
de que somos parte
da natureza.
Deixar de julgar-nos
com os critérios
daqueles que nos oprimem
e estão destruindo
o mundo. Reivindicar
nossos próprios
critérios.
também, fundamental a luta contra a dívida externa, por ser mecanismo de
opressão que atenta contra a soberania de nossos povos.
Por isso nossos compromissos são para
reforçar a luta pelos nossos direitos como
mulheres e como povos, para continuar produzindo alimentos e proteger nossas terras e a
natureza. Não somente é necessário garantir os
alimentos para todos, mas também os direitos à
água, à terra, às sementes e à defesa de nossos
territórios.
Nossos desafios são provocar mudanças profundas nos sistemas de produção, de consumo, e
pela construção de novas relações de produção e de convivência. Somente mudanças radicais para colocar um fim ao capitalismo poderão trazer uma solução
verdadeira. Estamos lutando contra os
monocultivos, os transgênicos, os agronegócios, o latifúndio, a estrangeirização da
terra e dos territórios.
Estamos trabalhando pela articulação política em torno de um projeto de sociedade justa. Reforçaremos a articulação das lutas das
mulheres e das organizações nos distintos países e buscaremos o diálogo entre campo e
cidade, com o fim de fortalecer e divulgar
nossas lutas e ações.
Estamos convencidas de que devemos
fortalecer as lutas por Reforma Agrária e por defesa da terra. Que nessa
luta devemos continuar batalhando
para que os direitos das mulheres à
terra sejam garantidos, assim como o
da água e dos bens da natureza. O acesso à terra e aos adequados meios de
produção é fundamental, e seguiremos
lutando até que seja realidade para homens e mulheres, sem discriminação
nem condicionamentos em função do
gênero. O nosso objetivo é conseguir
que nossas terras e territórios sejam
inalienáveis, e a água seja um bem natural inapropriável que todos devemos cuidar.
Referências Bibliográficas
fao, El hambre aumenta
http://www.fao.org/newsroom/es/news/2008/1000923/index.html
fao, Cumbre Alimentaria: prioridad máxima a la inversión agrícola
http://www.fao.org/newsroom/es/news/2008/1000856/index.html
Mujeres del campo en lucha por la soberanía alimentaria, http://www.viacampesina.org/main_sp/
index.php?option=com_content&task=view&id=554&Itemid=1
Crise Alimentar ou novos negócios às custas de nossa fome?

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