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BIODIVERSIDADE Conteúdo SUSTENTO E CULTURAS EDITORIAL 1 Biodiversidade, sustento e culturas é uma publicação trimestral de informação e debate sobre a diversidade biológica e cultural para apoio às comunidades e culturas locais. O uso e conservação dos recursos genéticos, o impacto das novas biotecnologias, patentes e políticas públicas são parte de nossa cobertura. Inclui experiências e propostas na América Latina, e busca ser um vínculo entre aqueles que trabalham pela gestão popular dos recursos genéticos, especialmente as comunidades locais: mulheres e homens indígenas e afroamericanos, camponeses, pescadores e pequenos produtores. Ajuda em sementes, agroempresas e crise alimentar Fome e transgênicos Fluxo de alimentos e Tratados de Livre Comércio 3 8 9 Número 58, outubro de 2008 UMA PANORÂMICA E MUITAS VISTAS 10 No futuro será imprescindível produzir alimentos próprios O Brasil e seus bois multinacionais 18 Meatrix: o negócio da carne 23 Organizações coeditoras Acción Ecológica [email protected] Acción por la Biodiversidad [email protected] Campanha de Sementes da Vía Campesina – Anamuri [email protected] Centro Ecológico [email protected] GRAIN [email protected] Grupo etc veró[email protected] Grupo Semillas [email protected] Red de Coordinación en Biodiversidad [email protected] REDES-AT Uruguai [email protected] ATAQUES, POLÍTICAS, RESISTÊNCIA, RELATOS 24 Comitê Editorial Ma. Eugenia Jeria, Argentina Carlos Vicente, Argentina Ciro Correa, Brasil Maria José Guazzelli, Brasil Germán Vélez, Colombia Alejandra Porras (Coeco-at), Costa Rica Silvia Rodríguez Cervantes, Costa Rica Camila Montecinos, Chile Francisca Rodríguez, Chile Elizabeth Bravo, Equador Ma. Fernanda Vallejo, Equador Silvia Ribeiro, México Magda Lanuza, Nicarágua Juan Martin Drago, Uruguai Carlos Santos, Uruguai Administração Ingrid Kossmann [email protected] Edição Ramón Vera Herrera [email protected] Design e diagramação Daniel Ortega, Claudio Araujo [email protected] Amanda Borghetti (Brasil) [email protected] Edição em português Centro Ecológico [email protected] issn: 07977-888X não querem transgênicos na África, não?/ Brasil: financiando a contaminação/ os jeitinhos da Monsanto no México/ Equador: O governo, a constituição, os indígenas e as mineradoras/ as paralisações antimineradoras prosseguirão/ carta aberta sobre a nova constituição/ assassinam defensor de direitos humanos na Colômbia/ dendê em Chiapas: paramilitar?/ Estados Unidos se posicionam na Guatemala/ Argentina: perseguição aos camponeses/ Honduras: mais um assassinato em nome da suposta proteção das áreas protegidas Ecos da Quinta Conferência da Via Campesina Crise ou soberania alimentar? 32 Declaração do Encontro Nacional: Crise Alimentar na Colômbia - Ações Sociais para a Defesa da Soberania e da Autonomia Alimentar 36 Solidariedade e denúncia 40 A série de fotos deste número é de Jerónimo Palomares e foi tirada no estado de Puebla, México. As ilustrações que acompanham a revista e o caderno de biodiversidade número 25 provêm do livro El diseño indígena argentino, de Alejandro Eduardo Fiadone, La Marca Editora, 2006, e são desenhos pré-hispânicos de diversas culturas indígenas assentadas no que hoje é a Argentina. Agradecemos a sensibilidade do autor em permitir a utilização das imagens sempre e quando seja com fins artísticos e sem lucro. Nesse caso, nossa publicação sem finalidade de lucro, além de ter fins artísticos, visa documentar, divulgar e conservar a tradição de desenho indígena do continente (e do mundo) e servir de fonte secundária para que as pessoas tenham acesso a obras de sistematização como a de Alejandro Eduardo Fiadone. Biodiversidade, sustento e culturas é uma revista trimestral (quatro números por ano). As organizações populares, as ONGs e as instituições da América Latina podem recebê-la gratuitamente. Por favor, enviem seus dados com a maior precisão possível para simplificar a tarefa de distribuição da revista. As organizações populares e as ongs da América Latina podem receber gratuitamente a revista. Contatar REDES-AT Uruguai: [email protected]/[email protected] Convidamos a que se comuniquem conosco e nos enviem suas experiências, sugestões e comentários. Dirigir-se a Ingrid Kossman: [email protected]. Os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. O material aqui reunido pode ser divulgado livremente, mas agradecemos se a fonte for citada. Por favor nos enviem uma cópia para nosso conhecimento. Os dados necessários são: País, organização, nome e endereço completos: endereçamento postal (CEP), cidade e estado. (Correio eletrônico, telefone e/ou fax, se houver.) Agradecemos o apoio da SwedBio e da Cooperación al Desarrollo de la Consejería de la Vivienda y Asuntos Sociales del Gobierno Vasco. Agradecemos o apoio da Heifer Internacional Programa Brasil e Argentina para a publicação da edição em português. código de Enviem, por favor, sua solicitação a BIODIVERSIDAD, REDES-AT, San José 1423, 11200 - Montevidéu, Uruguai. Telefones: (598 2) 902 23 55/908 2730. [email protected]/[email protected] Editorial O trabalho no campo, a colheita e a coleta. Plantadores de batatas: velhos chapeludos bem camponeses, homens de idade madura um pouco mais urbanos, jovens e gurizada com pinta de que estiveram “no Norte”, nas cidades norte-americanas: todos prontos para carregar. As fotos que acompanham este número vêm do estado de Puebla, no México, e nos conduzem a um campo que não deixa suas antigos maneiras e que já é, há anos, obrigado a plantar ao modo industrial. É o contraste entre as tradições antigas - que solucionavam a vida com o cuidado daqueles que sabiam que cultivar é vida plena, e não só trabalho rentável - e as formas novas, “empresariais”, que exigem mais agrotóxicos, mais créditos, mais pacotes tecnológicos, e nem com isso o solo rende, desgastado depois de tantos anos de traição e droga aplicada a cada safra. Um debate entre os que vão à cidade ou aos Estados Unidos e os que ficam para ver o que mais pode ser feito com a terra. No México, o plantio da batata representa tudo isso. Rapidamente se tornou um cultivo para vender, para ter dinheiro vivo, e começou a fluir pelos circuitos que intermediam a comida do campo para a cidade do México. Nesses circuitos, há sujeitos chamados por todo mundo de “coiotes” (por que será?). Nas fronteiras de Puebla, já perto da cidade, eles “atacam” os caminhões carregados para comprar suas cargas por preços muito abaixo dos designados, com ameaças e maus modos. E, ainda que sejam apenas um dos muitíssimos fatores que criam uma situação de fome tão devastadora, esses coiotes contribuem para a especulação, o monopólio e a má distribuição de alimentos. Este número de Biodiversidade, sustento e culturas trata dos fatores que formam uma crise alimentar, mas também de que esta é somente parte de um ataque mais geral que o capitalismo renova, cada vez que se mete em encrencas, para se readaptar e lucrar de novo. E, nesse meio tempo, leva de arrasto povos e comunidades rurais, bairros urbanos repletos dos excluídos de sempre. É a eles, os dos bairros urbanos, que a crise alimentar, e agora essa recessão econômica mais generalizada, mais total, atingirá com toda a sua violência, porque são os mais desprotegidos de todos os mortais. É sintomático que aqueles que têm seus próprios alimentos defendam-se mais, porque além de comida têm uma dignidade da qual não precisam vangloriar-se porque vem ao natural de uma vida desde sempre, de uma vida à margem, mas com horizonte histórico, coisas a respeitar e um senso do sagrado no mundo. E nquanto elaborávamos este número, recebemos, com profunda preocupação, notícias que nos confirmam que as elites pretendem erradicar os povos indígenas, as formas de vida camponesas, suas estratégias que propiciam liberdade e consciência de horizonte. Esse é o drama boliviano que hoje espalha a inquietude e a esperança por toda a América Latina. Hoje, os povos marcham para defender o projeto de sua nova Constituição, e para defender a possibilidade de ter um país onde as rançosas aristocracias – nesse caso, proprietários de terras, fascistas e plantadores de soja – não mandem, não decidam, ao menos mais que os demais, que são maioria e que estão desde sempre nessas terras. É uma demonstração importante. Em setembro, as juventudes fascistas e bandalheiros, ajuntados em pelotões de choque, atacaram os indígenas da chamada Media Luna, em Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija, tentanto fazer o conflito evoluir para uma guerra civil, a partir de emboscadas e metralhamentos por parte de mercenários armados. Sabe-se de pelo menos 30 indígenas assassinados nesses dias cruentos. O momento é difícil para a América Latina. Esta atravessa inquietudes de toda sorte. As alianças de proprietários de terras de uma direita continental alçam vôo com os aristocratas de Santa Cruz, Guayaquil, Paraguai, mais os fazendeiros argentinos e brasileiros com pretensões de estabelecer uma “república unida da soja” onde o modelo agroindustrial seja mais importante do que as vidas e os territórios, onde o trabalho escravo seja a norma, onde não importe a contaminação transgênica, e nem a devastação de grandes extensões de floresta. O sinal de alerta mais recente vem da Colômbia, onde, após anos de guerra suja, os povos indígenas, as comunidades camponesas de todo país, decidiram se manifestar em oposição às tentativas de fazê-los desaparecer. As Forças Armadas e a polícia reprimiram a sangue e fogo os civis desarmados. Os meios de comunicação justificam o massacre acusando falsamente os indígenas de estarem sendo controlados e infiltrados pela guerrilha. Na mobilização, as representações indígenas de Cauca, molestadas, expressam uma verdade que está no coração do que este número de Biodiversidade quer trasmitir: “As demandas legítimas são ignoradas. O exercício de direitos e liberdades é negado, o território é entregue a transnacionais, a guerra suja assassina membros da comunidade e líderes, os meios de comunicação enganam e promovem o terror e a manipulação, as leis despojam, o Plano Colômbia converte territórios em palco de operações ; o governo, respaldado pelos Estados Unidos, fecha o espaço para o conflito político civilista e promove a guerra para, a seguir, tachar de terroristas os que protestam. O governo promove a insurgência, fabrica-a, instiga-a. O resultado disso é que o movimento indígena e popular, cansado, encurralado, digno, se mobiliza em uma ação de fato para dar a conhecer sua agenda e exigir que ela seja respeitada. A resposta é marcar-nos como terroristas, atacar-nos como se atacaria um exército, e, enquanto fazem isso, apresentam um discurso democrático e civilista como se não tivessem obrigado os povos ao desespero. O que quer o governo? Que voltemos silenciosamente a ser vítimas da guerra suja a nos deixar despojar e assassinar, sem protestar, a deixar nos meterem em uma guerra contra nós mesmos?” Em Biodiversidade estamos com os povos indígenas e daqui seguimos atentos para que possam fazer ouvir sua voz e sua versão dos fatos. biodiversidade Ajuda em sementes, agroempresas e crise alimentar grain A crise alimentar mundial, que os que estão no poder apressaram-se a definir como um problema de insuficiência na questão da produção, converteu-se em um Cavalo de Tróia para introduzir sementes, fertilizantes e, sub-repticiamente, sistemas de mercado nos países pobres. O que parece uma “ajuda em sementes” pode, no curto prazo, mascarar o que na realidade é a “ajuda ao agronegócio” em longo prazo. Trazemos uma panorâmica sobre o que está ocorrendo. No início do ano, os dirigentes políticos e econômicos, induzidos pelos meios de comunicação empresariais, apressaram-se em explicar a atual crise alimentar mundial como uma “perfeita tempestade” de vários fatores: problemas meteorológicos, o desvio de cultivos para os biocombustíveis, aumentos do preço do petróleo e alguns pobres que se tornam menos pobres e consomem mais produtos animais. Querem nos fazer acreditar que a crise alimentar originou-se em um problema de produção. Muitas vozes rebateram esse argumento e demonstraram que as atuais políticas econômicas, focadas no comércio mundial, e a desregulamentação são as responsáveis. Sem dúvida, empresas, governos e organismos internacionais promoveram a falsa solução de aumentar a produção, principalmente conseguindo sementes “de maior rendimento” para os agricultores. Quais sementes? De onde? Que impacto terão sobre as comuni- dades vulneráveis e sobre a biodiversidade local? É difícil encontrar dados confiáveis, mas existe o grave risco de que essa resposta simplista à crise mundial – e que evita formular as perguntas que na verdade lançam desconfiança sobre as políticas – provoque uma nova onda de erosão genética e insegurança nos meios de vida e de sustento, pois subjuga os sistemas locais de sementes das comunidades. As conseqüências para a sobrevivência das famílias rurais de todo o mundo, e para a produção de alimentos, poderiam ser extremamente desastrosas. O “coro perfeito”. Grandes so- mas de dinheiro são prometidas para enviar, com urgência, sementes e fertilizantes aos países do Sul afetados pela crise alimentar. Em maio, o Banco Mundial (bm) colocou em operação um fundo de financiamento de 1,2 bilhões de dólares, destinado a mobilizar apoio financeiro “para o rápido fornecimento de sementes e fertilizantes aos pequenos agricultores”. Durante a reunião de cúpula do Grupo dos Oito países mais ricos do mundo, realizada no Japão, no início de julho, o presidente do bm, Robert Zoellick, disse a essas pessoas poderosas que uma das principais prioridades da luta contra a crise alimentar mundial é “dar aos pequenos agricultores, especialmente na África, acesso a sementes, fertilizantes e outros insumos básicos”. Nas instâncias prévias da reunião, o presidente da Comissão Européia, José Manuel Barroso, ofereceu 1 bilhão de euros em “fertilizantes e sementes para ajudar os agricultores pobres dos países em desenvolvimento”. O presidente dos Estados Unidos, George Bush, anunciou 1 bilhão de dólares em dinheiro para a crise alimentar e declarou que convenceria outros dirigentes do mundo a tomarem medidas para aliviar a fome “aumentando os embarques de alimentos, de fertilizantes e de sementes aos países necessitados”. Duas semanas antes, o secretário geral das Nações Unidas, Ban KiMoon, levou esta mensagem à Assembléia Geral, em Nova Iorque: “Devemos agir imediatamente para estimular a produção agrícola. A forma de fazê-lo é fornecendo, urgentemente, as sementes e fertilizantes necessários para as próximas safras, especialmente para os 450 milhões de agricultores em pequena escala de todo o mundo”. Imaginem! Bilhões de dólares desembolsados repentinamente para distribuir sementes aos agricultores mais pobres do planeta – um grupo cujas necessidades nunca antes figuraram entre as preocupações prioritárias desses dirigentes. Previamente, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (fao) havia lançado sua própria iniciativa dirigida a “demonstrar que incrementando o fornecimento de insumos agrícolas chave, sementes e fertilizantes, os pequenos agricultores serão capazes de aumentar rapidamente a produção alimentar”. A iniciativa da fao já inclui 35 países, na ordem de 21 milhões de dólares, enquanto outros 54 países são apoiados de forma semelhante no âmbito do Programa de Cooperação Técnica, ao custo de 24 milhões de dólares. A iniciativa também se propõe a “encorajar os doadores, instituições financeiras e governos nacionais a apoiar a dotação de insumos em maior escala”. Organizações, que vão da Fundação Bill & Melinda Gates à Cruz Vermelha, sobrepõem-se para formular programas destinados a fornecer sementes e fertilizantes em resposta à crise alimentar atual. Lições da “ajuda” em sementes. O impacto da ajuda em sementes – que significa fornecer sementes a zonas em crise – é um assunto de árduo debate há vários anos. Freqüentemente, os programas de desenvolvimento têm-se focado em substituir o que consideravam “variedades locais de baixo rendimento” por algumas sementes chamadas de alto rendimento, obtidas em laboratório. Os organismos de auxílio, que em situações de emergência distribuíam ajuda em sementes, em geral seguiram pelo mesmo modelo. Não se fez quase nenhum esforço para compreender as variedades locais: por que os agricultores as selecionaram e por que continuam utilizando-as. Hoje, as vantagens das variedades locais são mais evidentes. Reconhece-se que, entre outras coisas, tendem a dar melhores respostas em condições de baixo uso de insumos, a resistir às pressões locais, a oferecer outros produtos além do grão (como palha para forragem), a ter rendimentos estáveis, com baixo risco ao longo do tempo, e a ter melhor sabor ou melhores condições de cozimento. Em outras palavras, são apropriadas cultural e agronomicamente. Também cresce o consenso sobre as desvantagens de introduzir sementes de fontes estranhas. Há alguns meses, Louise Sperling, David Cooper e Tom Remington apresentaram um relatório que ressalta o que os críticos vêm dizendo há anos*: “Com freqüência, não é necessário introduzir sementes de fontes externas, já que, em geral, os sistemas locais de sementes dispõem de sementes, mesmo em períodos de crise. A distribuição direta de sementes não é muito eficaz, já que os agri*(ver http://www.ciat.cgiar.org/ newsroom/pdf/moving_towards_more_ effective_seed_aid_april_2008.pdf) cultores tendem a preferir suas próprias fontes de sementes. Caso se repita, a ajuda em sementes pode provocar dependência, fazer ruir os sistemas locais de sementes e erodir as sementes locais.” Essa mudança de pensamento provocou uma mudança de política no Afeganistão, onde as mais destacadas organizações de ajuda adotaram um código de conduta para a distribuição de sementes em casos de emergência, que estabelece que elas devem ser produzidas localmente, que todo o fornecimento de emergência não deve distorcer os sistemas locais de sementes, e que estas devem se adaptar ao ambiente local. Não há razão para duvidar que as ongs pequenas ou independentes atualmente envolvidas em projetos de ajuda em sementes como resposta à crise alimentar estejam adotando esse critério. Mas a história pode ser diferente com aqueles organismos de ajuda maiores, pagos para assumir o encargo de fornecer sementes aos governos. Funcionários da fao asseguraram ao grain que os projetos de ajuda em sementes que elaboraram em resposta à crise mundial atual orientam a fornecer sementes locais de mercados e comerciantes locais, e que evitam híbridos e variedades transgênicas. Mas os comunicados da própria fao enviam uma mensagem diferente e mais arrepiante. Falam de “uma caravana de caminhões carregados com mais de 500 toneladas de sementes” que partiu da capital da Mauritânia para o interior e que “distribuíram entre os agricultores empobrecidos de Burkina umas 600 toneladas de variedades de sementes melhoradas”. Há, portanto, uma discrepância entre a retórica oficial e o que ocorre de fato em algumas zonas. No longo prazo, a situação é ainda mais preocupante. Com os bilhões de dólares lançados a or- ganismos humanitários para distribuir com urgência sementes e fertilizantes aos agricultores em nome da crise alimentar, com a fao, que faz um chamado ao “fornecimento de insumos em uma escala muito maior”, e com as mensagens, oriundas de dirigentes e instituições financeiras do mundo, de que é tempo de levar as novas tecnologias aos pequenos agricultores para aumentar sua produção, os sistemas locais de sementes dos agricultores podem se ver ameaçados em várias partes do mundo. vados e de companhias nacionais de sementes com conexões políticas. As sementes são agora um grande negócio. Os organismos internacionais que ainda alegam ter um mandato “público”, como a Aliança por uma Revolução Verde na África (agra, por sua sigla em inglês) e o Grupo Consultivo de Pesquisa Agropecuária (cgiar), cada vez mais são coalizões público-privadas com vínculos diretos com as multinacionais. Seus programas de pesquisa são parte das estratégias de crescimento das empresas E o setor privado? Há vinte e adotam mais e mais elementos de modelos comerciais. Hoje, quando se fala de sementes e não se especifica que são sementes locais ou de camponeses, está implícito que se trata de sementes privadas (que os camponeses têm que comprar, e que chegam com estritas restrições quanto ao seu uso). Em nível nacional, onde a ajuda em sementes traduz-se em novos programas de governo, é óbvio o vínculo entre as respostas oficiais à crise alimentar e a agenda das agroempresas. As iniciativas para impulsionar a produção de alimentos em Benin e nas Filipinas ante a crise são pouco mais do anos atrás, a ajuda em sementes teria se apoiado, em grande parte, no setor público: as sementes seriam oriundas dos sistemas públicos de fitomelhoramento, de produção e de distribuição, talvez a troco de nada, e os camponeses que as recebessem teriam podido guardar sementes de seus cultivos e compartilhá-las com seus vizinhos. Agora o setor público está dividido, cercado, privatizado. Um punhado de empresas multinacionais de agrotóxicos controla mais da metade do mercado mundial de sementes e seu controle estende-se através de uma crescente rede de intermediários pri- que programas de subvenções para as empresas de sementes e de fertilizantes. A Indonésia aposta que as sementes híbridas do setor privado resolverão suas necessidades de arroz no longo prazo. Apesar de anos de fracasso com o arroz híbrido no país e sem estudos válidos que respaldem os argumentos que alegam rendimentos maiores, o governo subvenciona a importação e a venda de sementes híbridas de arroz e utiliza seus programas politécnicos agrícolas para promovêlas. Os poucos magnatas locais e empresas estrangeiras que controlam o mercado de sementes híbridas de arroz no país são os únicos cujos lucros estão garantidos. No Senegal, o presidente Abdoulaye Wade lançou sua “Grande Ofensiva Agrícola para a Nutrição e a Abundância” (goana, por sua sigla em francês) em resposta à crise atual, visando a uma auto-suficiência alimentar do país para 2015, incentivando principalmente a produção de alimentos básicos. Dos 792 milhões de dólares norte-americanos que o governo diz que investirá no projeto, 443 milhões serão para subsidiar a compra de fertilizantes, 120 milhões para sementes, e 30 milhões para agrotóxicos. As companhias produtoras e distribuidoras desses insumos, muitas delas propriedade de capitais estrangeiros, serão as primeiras a se beneficiar, dado o investimento radical e as desregulamentações fiscais que acompanham o plano goana. A principal organização de agricultores do Senegal, o Conselho Nacional de Acordo e Cooperação Rural (cncr), que não foi consultado a respeito da Ofensiva, disse que os agricultores correrão o risco de não poderem devolver o crédito assumido para comprar os insumos, mesmo com os subsídios, porque o projeto não reverte os antigos problemas estruturais que impedem os agricultores de obter no mercado um preço justo por seus cultivos. No Mali, a Coordenação Nacional de Organizações Camponesas (cnop) foi excluída do processo com o qual o governo responde à crise alimentar mundial – a Iniciativa Arroz -, que objetiva duplicar a produção nacional de arroz em poucos anos. Como no Senegal, trata-se de subsidiar as sementes “de alto rendimento” e os fertilizantes. A cnop lamenta que isso signifique que os benefícios irão parar nos bolsos dos comerciantes de insumos. Em numerosos países da África Ocidental, a ênfase está colocada na produção e na distribuição rápida de sementes do arroz Nerica™, desenvolvido pelo cgiar, e não nas variedades nativas. Na África, os programas nacionais de crise alimentar, orientados a fornecer rapidamente sementes novas e produtos químicos agrícolas para os agricultores, fundem-se perfeitamente com a estratégia da agra e do cgiar para o continente. Esses grupos têm se apresentado como salvadores, com a solução ideal para aumentar a produção. À margem da conferência de cúpula da fao sobre a crise alimentar, foi firmado um acordo entre a agra e todos os organismos com sede em Roma que tratam de alimentos, no qual a agra terá um papel crucial no desenvolvimento e na promoção de novas sementes e em estabelecer um setor comercial de sementes na África. Uma semana após, a agra firmou outro acordo, desta vez com a Corporação do Desafio do Milênio, para “oferecer tecnologias, infra-estrutura e financiamento aos agricultores da África”. Na mesma linha, a farm, uma iniciativa multimilionária da presidência da França e de algumas empresas francesas – entre elas a gigante de sementes Vilmorin e o Grupo Casino, a potência em supermercados, com alcance mundial -, colocou em marcha projetos, em Burkina Faso e Mali, que buscam fazer frente aos efeitos da crise auxiliando as organizações de agricultores a financiar a compra de fertilizantes e de sementes. A farm tem o mandato específico de ajudar os países pobres a obter acesso aos “benefícios” da tecnologia agrícola européia, como as sementes. As agroempresas se beneficiam. Para compreender realmente como as atuais medidas de verticalização destinadas a fornecer sementes aos agricultores estendem um tapete vermelho ao agronegócio - para que ingresse nos países em desenvolvimento e ganhe muito dinheiro rapidamente - é necessário olhar o cenário de mudança da atividade empresarial no sistema alimentar. O aumento dos preços dos produtos agrícolas básicos desencadeou uma febre no mundo dos grandes negócios para ter um maior controle de toda a cadeia alimentar. As companhias e as redes multinacionais de varejo do ramo alimentício têm aprofundado sua inserção na produção de alimentos, principalmente na agricultura por contrato, para reduzir os custos de contratação e as garantias. Preocupados com o impacto de longo prazo dos altos preços dos alimentos na segurança alimentar nacional, os governos de países com forte liquidez, como a China e a Arábia Saudita, estão trabalhando lado a lado com os setores comerciais nacionais e com programas de investimento recém criados para terceirizar a produção de alimentos. E o capital especulativo concentrado nos centros financeiros mundiais, cambaleando pelo impacto da contração de crédito, vê os pro- dutos básicos agrícolas e as terras de cultivo como âmbito para lucros rápidos. Isso significa que o controle sobre a agricultura está passando das mãos dos agricultores para as salas das diretorias. E os executivos das agroempresas têm prioridades muito diferentes: querem controlar um fornecimento uniforme de sementes para produzir cultivos que sejam introduzidos nos mercados mundiais de produtos agrícolas básicos; não estão interessados nas sementes locais e nem na preservação dos sistemas alimentares biodiversos. Duas das maiores empresas asiátias de alimentos – Sime Darby, da Malásia, e Charoen Pokphand, da Tailândia – agora se voltam para a produção de arroz, como parte das respostas que seus países de origem dão a essa crise mundial. Lançam a produção e a comercialização de suas próprias sementes híbridas de arroz, desenvolvidas com o apoio do setor público. O investimento estrangeiro chinês na produção de arroz no Laos e em Camarões baseia-se, invariavelmente, em variedades chinesas híbridas de arroz, pouco testadas e introduzidas mediante acordos bilaterais de ajuda. Repentinamente, a África Subsaariana converteu-se em um imã para essa invasão agroindustrial. Entretanto, cerca de 90% das sementes usadas na África são variedades locais camponesas, que não são adequadas ao agronegócio. Assim, o investimento empresarial depende da introdução e disseminação de variedades que sirvam às necessidades empresariais – o equivalente à soja Rondup Ready, que abriu o caminho para que o agronegócio colonizasse rapidamente o Cone Sul da América Latina. Os sistemas locais de alimentos dependem do oposto: da diversidade. Por isso, as sementes e os programas de ajuda em sementes que nascem da atual crise alimentar estão no centro de uma luta fundamental entre modelos opostos de produção de alimentos: um sistema alimentar industrial globalizado e controlado pelas empresas versus uma diversidade de esforços para conservar, desenvolver e expandir a soberania alimentar. A polarização das respostas. Dos ministros de agricultura ao Banco Mundial, essa luta fundamental sobre quem controla os alimentos está camuflada por um discurso “ignorante” que diz que “os agricultores não têm sementes” [ou não têm sementes “boas”]; que para fornecer aos agricultores sementes “boas” é necessário que os governos adotem as estruturas comerciais corretas, em especial os sistemas de certificação de sementes, normas fracas em matéria de biossegurança e regimes de propriedade intelectual. A ênfase colocada sempre na superioridade das sementes “boas” tem um sentimento quase eugenicista: as sementes “boas” são variedades híbridas, transgênicas, certificadas ou melhoradas, e todas elas são as “únicas” seguras de dar altos rendimentos, a “única” maneira de resolver a crise alimentar atual; as sementes “ruins” (ou sementes “imperfeitas”, como as chamaram em Gana aspirantes a dirigentes da indústria) são as sementes dos agricultores, sementes não certificadas, variedades camponesas, tudo o que não passou pelo laboratório ou não obteve um selo governamental de aprovação. Dizer “precisamos aumentar a produção!” para enfrentar a crise alimentar mundial leva a desviar da profunda e imperativa discussão política acerca do caos em que estamos e como chegamos a ele. Essa resposta só origina respostas refletidas – que as maiores potências do mundo derramem bilhões de dólares na distribuição de sementes novas, “melhoradas”, a centenas de milhões de pequenos agricultores. Respostas que permitem que o capital privado, ainda que mediante o investimento puramente especulativo, aproprie-se do que se costumava chamar de desenvolvimento agrícola e o transforme em desenvolvimento agroempresarial. A menos que se detenha essa invasão, os supostos beneficiários, os pequenos agricultores, acabarão sendo as vítimas. l A versão completa, com a indicação das fontes pesquisadas, pode ser consultada em Seedling, outubro de 2008, ou em www.grain.org Fome e transgênicos Silvia Ribeiro* A s agroempresas transnacionais, as que mais lucraram com a crise alimentar e estão entre os principais causadores das mudanças climáticas, aproveitam a conjuntura para promover agressivamente os cultivos e árvores transgênicos como solução para as crises. O espectro de argumentos, falsos, mas encampados por vários governos e instituições internacionais, inclui que os transgênicos aumentariam a produção; que os agrocombustíveis seriam mais eficientes; que farão cultivos resistentes aos efeitos das mudanças climáticas, e que as árvores transgênicas produzirão celulose (para agrocombustíveis ou papel) sem competir com alimentos. Mas esses argumentos são falsos e implicam novos perigos. O problema não é a produção de alimentos, mas sim o acesso injusto aos meios para produzi-los. Além disso, os transgênicos produzem menos do que as variedades convencionais. Vários estudos de organizações da sociedade civil e de pesquisadores independentes (Amigos da Terra, Charles Benbrook), ou de universidades e órgãos oficiais (Universidade de Kansas, Universidade de Nebraska, Departamento de Agricultura dos Estados Unidos), mostram que a soja transgênica, principal cultivo transgênico plantado no mundo, produz, em média, até 11% menos, e que o milho, o algodão e a canola – que junto com a soja representam 99% da produção mundial de transgênicos – produzem o mesmo ou menos. A semente transgênica é mais cara, e com a resistência que esses cultivos geram em ervas adventícias e insetos, requerem muito mais agrotóxicos. A promoção de cultivos “resistentes ao clima”, segundo um informe do Grupo etc, esconde que as empresas de transgênicos (Monsanto, Syngenta, DuPont, basf...) acumularam mais de 530 patentes, em trâmite ou aprovadas, sobre caracteres genéticos de cultivos, resistentes à seca, inundação, salinidade, etc., para produzir plantas transgênicas e monopolizar o mercado. É um roubo da engenhosidade camponesa (esses caracteres dos cultivos foram desenvolvidos por camponeses e camponesas em todo o mundo) e procura impedir que, ante as mudanças climáticas, floresçam soluções locais, descentralizadas e não comerciais. A promoção de novas gerações de agrocombustíveis (incluindo árvores) para produzir etanol celulósico continuará competindo por terra, água e nutrientes com os cultivos alimentares, porque é um negócio lucrativo e está sendo subsidiado – com dinheiro, no Norte, e área e mão de obra barata, no Sul. Mas será pior que a primeira geração: não é possível processar a celulose com certa eficiência energética sem usar microorganismos transgênicos ou, pior ainda, micróbios produzidos pela biologia sintética, construindo, artificialmente, do zero, parte ou todo o organismo, com riscos novos e imprevisíveis. As árvores transgênicas virão aumentar os monocultivos devastadores, que criam desertos verdes, ressecam e esgotam os solos em poucos anos, deslocam agricultores, destroem fauna e flora locais. Além disso, provocariam a pior contaminação transgênica jamais vista, ao contaminar com pólen transgênico centenas de quilômetros, durante toda a vida da árvore. As transnacionais “oferecem” que, para conter a contaminação e os novos riscos dessas árvores e cultivos manipulados, pode-se aplicar a tecnologia Terminator, que as torna estéreis. O Terminator nunca funcionará totalmente, como cientistas têm demonstrado. O problema da esterilidade se somará à contaminação e fará com que, todos os anos, seja necessário adquirir sementes novas das empresas. O que realmente querem conseguir com os transgênicos é aprofundar a dependência com as transnacionais, invadindo espaços do mundo onde não conseguiram entrar (como a África e as áreas camponesas de todos os continentes) para destruir suas formas de vida e de sustento, passando assim a controlar as bases da alimentação mundial. l *Pesquisadora do Grupo etc Fluxo de alimentos e Tratados de Livre Comércio grain U m dos inapeláveis dogmas dos tratados de livre comércio é que não se pode controlar e nem condicionar o fluxo internacional de mercadorias. Assim, normalmente, não chama à atenção que os acordos firmados com os Estados Unidos e a União Européia incluam cláusulas como a seguinte: Nenhuma das Partes poderá adotar ou manter qualquer proibição ou restrição à importação de qualquer mercadoria da outra Parte ou à exportação ou venda para exportação de qualquer mercadoria destinada ao território da outra Parte,” Tratado de Livre Comércio entre os Estados Unidos e a América Central, Art. 3.8. Os negociadores governamentais sempre souberam que a regra anterior inclui os alimentos. Ou seja, ao assinar os tratados de livre comércio, os governos sabem que renunciam à sua capacidade de controlar as exportações de alimentos. No caso dos tratados com os Estados Unidos, mantém-se uma pequena exceção no acordo da omc, aplicável somente em caso de “extrema escassez”, por um período limitado e sujeito à aprovação dos Estados Unidos, que seguem pressionando para que a exceção seja cada vez mais restrita. A União Européia (ue) vai mais além. Ainda que o acordo firmado com o Chile permita a este restringir as exportações em caso de escassez aguda de alimentos (sujeito à aprovação da ue), no acordo mais recente com os países do Caribe a exceção já não existe, como tampouco existe na proposta de acordo entre a União Européia e a Costa Rica. Esse tipo de medidas foi proposto pela primeira vez pelos Estados Unidos ao iniciarem-se as negociações que levaram à formação da Organização Mundial do Comércio (omc). A proposta causou tal escândalo e indignação que os Estados Unidos, oficialmente, tiveram que retirá-la, mas não a esqueceram. A proposta foi retomada com força nas fracassadas negociações da alca e durante as negociações de tratados bilaterais em todo o mundo. Os governos latino-americanos submeteram-se servilmente a essa exigência. Nenhum dos países signatários com a União Européia ou com os Estados Unidos exigiu uma exceção clara aos alimentos. O México, através do Grupo dos 20, tem inclusive pressionado para que a fraca e limitada exceção no acordo da omc torne-se ainda mais restringida. Na primeira vez que os Estados Unidos apresentaram esse tipo de exigência, seus representantes foram brutalmente francos: o texto que queriam negociar dizia que não se podiam restringir as importações e as exportações de alimentos, nem sequer em caso de guerra ou de fome. Quando as mobilizações sociais contra os tlc insistiram que esse tipo de cláusula pode ser utilizado como arma de guerra e/ou de extorsão, os governos acusaram os movimentos sociais de paranóia. A crise alimentar atual mostra que não foi paranóia, mas sim capacidade para ver que a avidez de lucro do capital não tem limites. O concreto é que os governos que restringirem a exportação de alimentos, para assegurar níveis mínimos à sua população, podem ser levados a litígio comercial, caso seus países tenham firmado acordos de livre comércio (como é o caso do Haiti e da Malásia), e é muito provável que sejamos testemunhas do absurdo de que um país que tente proteger o alimento de sua população seja submetido a sanções comerciais ou obrigado a pagar multas multimilionárias. Um dos efeitos mais conhecidos dos tratados de livre comércio é a ruína dos sistemas agrícolas e alimentares locais, que não podem competir com as importações de alimentos. A impossibilidade de controlar as exportações é apenas o outro lado da moeda, e seu efeito é que à ruína da agricultura local soma-se a impossibilidade de defender-se de seus efeitos. Salta aos olhos, uma vez mais, que a crise alimentar não é um acidente de percurso do capitalismo globalizado, mas sim uma situação construída por ele, e que os tratados de livre comércio são um instrumento fundamental para isso. l Outubro de 2008 Uma panorâmica e muitas vistas No futuro será imprescindível produzir alimentos próprios 10 Com a finalidade de entender as alternativas reais que têm os povos ante a crise alimentar que se instala no mundo, reunimos experiências, vozes, reflexões, técnicas e propostas de organizações, comunidades, pesquisadores e pessoas que têm colocado sua atenção em novas formas de entender soluções que funcionam há séculos para núcleos camponeses (esses para os quais cultivar a terra não é um trabalho, mas sim um modo pleno de vida e cuidado do mundo), soluções que talvez resultem como as únicas capazes de nos garantir um futuro como humanidade. A produção camponesa é imprescindível para alimentar o mundo. A agricultura camponesa susten- tável com sua soberania alimentar consome até oitenta vezes menos energia do que a agricultura industrial. A soberania alimentar implica dar primazia ao emprego dos recursos locais para produzir alimentos, minimizando a quantidade e o transporte de matérias-primas importadas para a produção. A comida assim produzida se consome localmente. Não é lógico comer na Europa aspargos provenientes do Altiplano, ou vagens frescas procedentes do Quênia. Na história da agricultura, os camponeses e camponesas e os povos que habitam os centros rurais obtiveram de suas terras agrícolas a energia para atender as suas necessidades cotidianas. As famílias camponesas estão usando óleo de coco ou de girassol, biogás, lenha, vento ou água para gerar eletricidade para seu uso local. Esses métodos são sustentá- veis e integrados dentro do ciclo de produção de alimentos em suas terras. É imperativo desenhar e adotar atitudes responsáveis no consumo de alimentos e ajustar nosso modo de nos alimentar, sabendo que o modelo industrial de produção e consumo é destrutivo, enquanto o modelo baseado na produção camponesa utiliza práticas energéticas responsáveis. O campesinato de todo o mundo tem experimentado os efeitos devastadores das políticas de livre comércio e da omc em suas vidas e na produção local de alimentos. Por isso, defendemos o direito de cada país de proteger seus mercados locais, de apoiar a agricultura familiar sustentável e de comercializar os alimentos no lugar onde são produzidos. Não entendemos como o G8 pretende solucionar a crise alimentar com mais livre comércio, se a liberalização da agricultura e dos mercados de alimentos é o que está nos levando à crise atual. Nossa luta é contra o poder das grandes empresas transnacionais e os sistemas políticos que as apóiam. A crise energética não deveria ser vista como um problema isolado, mas sim como parte de toda a crise do atual modelo de desenvolvimento, onde os benefícios têm prioridade sobre as pessoas. Apoiamos uma agricultura de pequena escala, diversificada, centrada nas pessoas, nos mercados locais e modos de vida saudáveis, usando menos energia e com menor dependência de recursos externos. As famílias camponesas sustentáveis cumprem a missão fundamental da agricultura: alimentar as pessoas. Para nos proteger da instabilidade dos mercados mundiais, a população deve consumir comida local, de mercados locais. Não necessitamos de mais comida importada. Os camponeses e pequenos produtores de alimentos produzimos a maior parte dos alimentos do planeta. Via Campesina, “El campesinado produce alimentos, los agrocombustibles generan hambre y pobreza” , julho de 2008. Da milpa [a roça] se vê o mundo inteiro. A maior ameaça ao milho nativo é que já é pouco cultivado. Semear milho e outros cultivos soberanos nos permite uma brecha para não pedir permissão a ninguém para SER, impulsionando então uma resistência comunitária – real, política, social, econômica, de saberes, dignidade e justiça – contra o capitalismo e seus megaprojetos. Alguém que perde a semente tem muito mais riscos de necessitar migrar do que quem ainda a tem. Há que se manter boa semente para si mesmo, para a comunidade, para a terra a que se tem acesso. Uma semente que responda às necessidades e gostos de cada povo. Se os gostos são uniformizados ou as ne- 11 cessidades niveladas, se perde a qualidade das sementes: sua diversidade. Um povo que não tem diversidade é um povo que se torna dependente. As novas leis querem obrigar os camponeses, os indígenas, a se tornarem dependentes. Mas temos que nos perguntar o que necessitamos para cuidar, para conservar a vida, com permissão ou sem permissão da lei. A criação do milho ser coletiva é o que tem mantido a sua riqueza. Não somente trocamos sementes, mas também saberes. Existem sementes diversas porque há saberes diversos. O conhecimento, o sabemos aos pedaços, e somente entre muitos ele se torna um grande saber. A riqueza de variedades não acaba nunca. Cada pessoa, família ou comunidade pela qual passa uma variedade lhe agrega ou altera alguma coisa. Não há que se esquecer, jamais, que TODOS sabemos. Quando aceitamos que alguém nos trate como ignorantes, que não sabemos, que não temos idéias, estamos aceitando que se percam saberes sobre as sementes. É indispensável tentar, o mais possível, sair fora da economia do dinheiro, dos mercados. Produzir para vender e comprar para comer nos faz perder a soberania alimentar, a soberania do trabalho dos povos do milho. Um povo que compra semente e que compra comida é um povo que não pode mandar em si mesmo. Temos que nos orgulhar de semear milho para que coma a família, a comunidade, fortalecendo os saberes dos mais velhos e as novas técnicas integrais que concordam com esses saberes e os complementam. É importante que tudo o que as comunidades produzam seja consumido, para que a comunidade entenda que podemos produzir nosso próprio sustento. Casifop, El maíz y la vida en la siembra, testimonios indígenas del maíz y la autonomía, México, 2005. As guardiãs das sementes. Na distribuição de pa- péis nas famílias camponesas, a mulher é quem preserva a semente orgânica, originária, nativa, crioula, como a queiramos chamar. É ela que, todos os anos, na colheita, se encarrega de guardar, limpar e proteger para o próximo plantio. Então, de alguma maneira, sempre dizemos que a mulher é guardiã dessa semente originária, sã e orgânica. Com mais razão agora, nesta situação, da produção em nível mundial, a mulher tem que trabalhar fortemente essa função de guardiã, que cada vez se torna mais difícil, porque nossas sementes sãs estão sendo contaminadas pelas transgênicas, que se semeiam por toda parte. É todo um processo de proteção e intercâmbio. Inclusive, nesses encontros, também ocorrem situações de trocas de sementes, de intercâmbio de saberes, sobre a produção. Este evento (”Mulheres do campo em luta pela soberania alimentar. Construindo propostas frente às mudanças climáticas”) é parte de um processo de formação onde se busca particularmente a participação e o protagonismo das companheiras camponesas, um envolvimento nas temáticas fortes que hoje estão afetando nossas famílias, como são as mudanças climáticas, as políticas dos Estados e reforçar nossa luta pela soberania alimentar. María de los Ángeles, MoCaSe Vía Campesina, entrevista com a Agência de Notícias BiodiversidadLa. 12 dar, proteger e conservar todo o nosso território, que é sagrado - incluindo as pradarias, as montanhas, as florestas e áreas úmidas grandes ou pequenas, lagos e nascentes, fontes e lençóis produtores de água, as bacias hidrográficas, as grandes e pequenas rochas onde estão nossos deuses e os espíritos que nos protegem e nos dão vida, e as zonas onde habitamos e produzimos nosso sustento -, para que continue sendo um patrimônio coletivo sob nossa responsabilidade e cuidado. Todas as terras do território misak serão destinadas prioritariamente a suprir as necessidades do ciclo de vida e identidade misak. Aquelas aptas para a produção deverão ser destinadas, em primeiro lugar, a incrementar e melhorar a produção de alimentos saudáveis para consumo, com a finalidade de melhorar a nutrição, a saúde e o bem estar geral dos misak. Os cultivos comerciais e industriais não poderão deslocar a produção de nossos alimentos. Cabildo de Guambia e a Autoridade Ancestral do Povo Misak, Misak Lei pela Defesa do Direito Maior, Patrimônio do Povo Misak. Cultivar, guardar, cuidar e trocar livremente sementes próprias, nativas, que não temos por que Somos os primeiros povoadores filhos e cultivadores de água deste continente, e para os povos que o habitamos não há espécie silvestre, nem espaço baldio, porque milenarmente temos sido conhecedores e sabedores na convivência com a natureza, por isso somos autoridade ambiental... O saqueio e a apropriação da riqueza biológica de nossas montanhas e florestas, das águas, dos minerais e dos saberes, orientam-se pelo controle sobre o território – o espaço e seus povoadores -, suplantando nossa autoridade, autonomia e autodeterminação e destruindo nossas culturas milenares. É dever do povo misak e de suas autoridades cui- certificar nem registrar ante ninguém, porque as temos desde antes que existisse o Estado mexicano, é um direito inalienável que ninguém irá nos tirar e que seguiremos exercendo de maneira autônoma. Essas sementes são a esperança do futuro de todos. Estamos contra os projetos biopiratas que a Monsanto faz com organizações agrícolas e acadêmicas para roubar milhos nativos e saberes através do Projeto Mestre de Milhos Mexicanos... Opomo-nos à certificação e ao registro de sementes e os denunciamos como mais uma forma de privatizar as sementes para controlar os povos. Rechaçamos a promoção, a difusão, a experimentação, o cultivo, a comercialização e o consumo das sementes transgênicas. Essas sementes atentam contra o ambiente e põem em perigo a saúde e a soberania alimentar de milhões de mexicanos. Exigimos o respeito ao direito à soberania alimentar que parte de nossa autonomia, costumes, culturas, tradições e práticas agrícolas. Exigimos que se detenha a criminalização da forma de vida camponesa que é levada a cabo através da legislação que protege os interesses empresariais. Continuaremos defendendo a autonomia de nossos povos, a comunidade, as assembléias e o seu autogoverno, cuja base fundamental é o território e o cultivo do milho nativo como parte de nossa vida. Rede em Defesa do Milho Nativo, México df, 10 de julho de 2008. O que estamos fazendo tem a ver com um grito, com um gesto festivo, de festa e dor, de luta. Nosso objetivo é lançar uma mensagem de alerta, de risco, de grave risco, que estamos tendo pelo monocultivo da soja e por um manejo pretensamente liberal, de mercado livre, em mãos de uns poucos, que depois não é “livre”. Não somos livres, porque não somos livres para manejar os alimentos dos argentinos, que são manejados por 8 grandes multinacionais e seus cúmplices, e seus subordinados que são os pequenos, médios e grandes empresários. De produtores não têm nada, produtores são os que sobem no trator e trabalham com ele. Sou dessa experiência, muito indígena, andina e amazônica, de que “o que se quer esconder, cedo ou tarde, aparece”. Então, o grito que essa gente deu sobre as retenções da soja, de que “não demonizemos a soja”, tarde ou cedo vai decantar, vai acalmar o “polvorosal” que suas arrogantes e virulentas intervenções deixaram, e as pessoas vão refletir. E o fato de que eles se mostraram tais como são, assim, com essa arrogância de fechar estradas, de “serem ilegais”, de que “não lhes podem reprimir nem tocar”, vai se tornar um bumerangue. Não se deve subestimar o povo argentino, por nada. Não se deve subestimar nenhum povo da história humana. Pouco a pouco, e tarde ou cedo se irá fazer aparecer na mesa argentina o debate de fundo: “a soja e o monocultivo”, mais aprofundadamente “os agronegócios e a agroexportação”. Queremos ser um país na divisão internacional do capitalismo? Um país meramente exportador de matéria-prima para o benefício das indústrias dos 8 países mais poderosos da terra? Ou queremos ser um país soberano, independente. Ángel Strapazzón, MoCaSe, Via Campesina, entrevistado pela Agência de Notícias BiodiversidadLa rios. As hortas podem proporcioná-los? Bem, durante a Segunda Guerra Mundial, as hortas familiares (chamadas de a “vitória”, porque pareciam cruciais para obtê-la) proporcionaram 40% das hortaliças que os norte-americanos comiam. Além do mais, começaríamos a estreitar a brecha entre o que pensamos e o que fazemos; tecer novamente em uma só identidade nossas facetas de consumidores, produtores e cidadãos. É provável que isso nos leve a empreender novas relações com os vizinhos, porque a idéia é produzir, presentear, trocar, emprestar ferramentas e pedi-las emprestadas... Grandes coisas ocorrem quando alguém cultiva a sua própria horta, algumas relacionadas com as mudanças climáticas, outras indiretas. Esquecemos que cultivar nossa comida obedece à tecnologia solar original: mediante a fotossíntese, produzem-se calorias. Há alguns anos, a mentalidade da “energia barata” descobriu que se podia produzir “mais comida com menos esforço” substituindo a luz do sol por fertilizantes e agrotóxicos baseados em combustíveis fósseis, e o resultado foi que a caloria típica de energia alimentícia requer umas 10 calorias de energia fóssil. Do jeito que deixamos que outros nos alimentem, a conta soma pelo menos uma quinta parte dos gases de efeito estufa. Michael Pollan, “Straight to the Source”, The New York Times, 20 de abril de 2008. Cultivar na cidade mesmo que seja uma pequena parte de nossos próprios alimentos é, como pro- pôs Wendell Berry há trinta anos, uma dessas soluções que impulsionam de imediato mais soluções, ao invés de provocar mais problemas (como inevitavelmente provocam as “soluções” do etanol ou a energia nuclear). Não é somente seqüestro de carbono: cultivar, ainda que seja um tanto de nossa comida, impulsiona muitos e valiosos hábitos. Podemos deixar de depender dos especialistas no cuidado com nós mesmos. Podemos descobrir que nosso corpo continua sendo útil para algo, e que esse algo é nosso próprio sustento. Se os especialistas estão certos, se o petróleo e o tempo se esgotam, em breve essas habilidades e hábitos serão cruciais. E é muito provável que alimentos nos sejam muito necessá- A terra sempre é jardim, farmácia, área de caça ou de pastoreio para alguém (ou todas essas coisas juntas). Se parece “subutilizada” é, talvez, devido à sua fragilidade ou ao papel que desempenha na proteção dos ecossistemas. Aqueles que propõem um uso mais intensivo ou diferente da terra em questão podem prejudicar os modos de vida e a sobrevivência de outros. 13 14 Há brasileiros que insistem em que se podem selecionar áreas marginais da Amazônia para transformá-las em áreas de produção de cana-de-açúcar para etanol (mas nada dizem da expansão da soja em áreas ecologicamente sensíveis como o cerrado e a caatinga). Sem dúvida, comunidades indígenas, como os ka’apor e os tembe, no Brasil, os chacoba, na Bolívia, e os panare, na Venezuela, usam de 20 a 50% das espécies de árvores para se alimentar, e outros 10 a 30% para medicamentos. Essa realidade da Amazônia repete-se em florestas, savanas e planícies semiáridas em todo o mundo. Os migrantes, do México à Indonésia, buscam estabelecer-se para plantar milho ou arroz, ou criar gado, mas também buscam calorias adicionais e nutrientes vitais nas florestas circundantes. É comum que essas famílias levem consigo espécies muito valorizadas para adaptá-las às novas terras, mas, de qualquer modo, a floresta é sua fonte direta de alimentos e medicamentos, é seu reservatório genético para melhorar os parentes domesticados de seus cultivos. Mesmo famílias camponesas bem estabelecidas em lugares como a Suazilândia e a Tailândia vêem as florestas que as rodeiam como importante fonte de alimentos depois de seu cultivo principal. Como exatamente as mulheres e as crianças consomem regularmente alimentos não cultivados, um estudo entre adultos da África Oriental e do Sul mostrou que a chamada “colheita oculta” de alimentos “silvestres” é vital à segurança alimentar familiar. As florestas e savanas produzem vitaminas e minerais essenciais que não se podem cultivar nem comprar. O uso dessa colheita oculta varia a cada estação. Há famílias que durante semanas dependem quase que totalmente dos alimentos silvestres que obtêm durante os meses ou semanas anteriores à colheita. Os alimentos coletados das “terras marginais” aportam de um terço à metade das necessidades nutricionais dos mais pobres da população rural. Em tempos de fome ou altos preços da comida, o acesso a essas terras marginais é a diferença entre a vida e a morte. Pat Mooney, Ciao fao, outra cúpula para revisar os erros de sempre, comunicado do Grupo etc, junho de 2008 Uma forma de romper a distância entre produtores e os chamados consumidores pode se achar nos ar- redores da cidade de Genebra, Suíça. Ali funcionam os Jardins de Cocagne, que são uma cooperativa genebrina de produção e de consumo de hortaliças de cultivo orgânico. Cada um dos sócios paga uma espécie de contribuição, em dinheiro (de acordo com seu salário) ou em trabalho, para conseguir que, a cada semana, se produza e se distribua uma ampla variedade de hortaliças. A diferença fundamental com quase todas as associações entre camponeses e consumidores é que, aqui, os “consumidores”, além de terem uma relação direta com os horticultores, não pagam um preço pelo que recebem, porque isso implicaria em deixar o risco aos camponeses. Ao contrário, o que fazem é contribuir com o fundo que permite a produção, assumindo conjuntamente com os camponeses os riscos e as bonanças de uma boa ou má temporada, através de decisões compartilha- das e igualitárias. Pareceria pouca coisa, mas essa diferença, e a possibilidade de contribuir com trabalho para a produção, são um dos experimentos mais interessantes em autogestão de plantio, que apaga a diferença entre “produtores e consumidores” e, melhor ainda, abre uma espécie de formação permanente de mais e mais pessoas nas atividades próprias do plantio e da colheita. Por sua vez, as pessoas dos Jardins de Cocagne “defendem a idéia da soberania alimentar, de uma agricultura viável, sã, ecológica e de proximidade”. Evidentemente, os Jardins vinculam-se com o movimento camponês, na Suíça, na Europa e em nível mundial, e contam com projetos de extensão, em comunidades pobres da Europa e na África. A idéia central, além da visão libertária, é a análise profunda de que a cidade e o campo “se retroalimentam”, se “reencontram”. Les Jardins de Cocagne, www. cocagne.ch Amanhece em El Colorado, povoado de uns 13 mil habitantes, do interior de Formosa, província do in- terior argentino. É sábado, bem cedo, mas já se vê gente na praça; esperam a chegada dos quase cem “pequenos” produtores da “Associação de Feirantes de El Colorado” que trazem seus produtos para vender ou trocar: abóboras, feijões, milho, verduras em geral, frutas, mandioca, batata, leite, queijo, ricota, ovos, cabritos, porcos, perus, galinhas, etc. Antes do meio da manhã, nenhuma das quase 30 bancas da feira tem produtos, vendeu-se tudo. Assim ocorreu todas as semanas enquanto durou o pico dos fechamentos das estradas e o resultante desabastecimento alimentar local, provocado pela “Paralização dos fazendeiros”. Essa iniciativa havia surgido no calor da crise de 2001-2002. Nos primeiros anos, soube ser uma alternativa frente aos problemas da população urbana para ter acesso aos alimentos. Na feira, encontravam-se produtos que tinham como preço máximo uns 20% menos do que no comércio. Pouco a pouco, o comércio do mercado formal se recompôs como a principal forma de gastos em alimentos na localidade, oferecendo produtos provenientes dos complexos agroalimentares controlados por grandes empresas agroindustriais. Isso fez com que a feira fosse perdendo seu ímpeto inicial e centralidade. Tanto na sua origem como em seu atual e breve reverdecer, a feira dos pequenos produtores, dos camponeses, aparece como alternativa aos circuitos dominantes. Quando o “sistema” não responde, afloram, como “ruínas emergentes”, essas estratégias “de baixo”, forjadas pelos mesmos camponeses, baseadas no cara a cara com os consumidores e vizinhos, à margem das cadeias concentradas e centralizadas de produção, de processamento e de distribuição de alimentos. Não é um caso isolado. No Chaco, Misiones, Corrientes e Santiago del Estero, existem experiências desse tipo, protagozinadas principalmente por exprodutores de algodão ou fumo, reconvertidos. É provável que ali, da mesma forma que em El Colorado, as crises ou momentos de suspensão da provisão alimentar via cadeias agroindustriais tenham sido oportunidades para a emergência e a expansão daquelas cadeias agroalimentares “alternativas” ou “camponesas”. Diego Domínguez, “Ruínas emergentes”, Página 12, 19 de setembro de 2008 Localizada atualmente às margens da economia mundial, há no mundo gente que quando desafia, na teoria e na prática, os pressupostos econômicos, encontra apoio nas tradições de sociedades e de culturas antigas. Em todo o mundo há experiências de comunidades que não se encaixam nas classificações distorcidas pelos óculos dos economistas. 15 Essa gente vê sua resistência como um modo de reconstituir criativamente suas formas básicas de interação social, a fim de se libertar das correntes econômicas. Cria assim, em suas vizinhanças, povoados e bairros, novos âmbitos de comunidade, que lhe permitem viver em seus próprios termos. São os herdeiros de comunidades e, inclusive, de culturas completas que foram destruídas pela forma econômica industrial de interação social. Depois da extinção de seus regimes de subsistência, trataram de adotar diversas formas de adaptação à forma industrial. O não a terem conseguido, foi uma precondição para reinventar seus âmbitos, com o estímulo adicional da crise de desenvolvimento. Depois de igualar sua comida com as atividades técnicas de produção e consumo, vinculadas à intermediação do mercado ou do Estado, careciam de ganhos suficientes e sofriam escassez de alimentos. Agora, estão regenerando e enriquecendo suas relações entre si e com o meio, nutrindo novamente sua vida e suas terras. No geral, conseguem lidar bem com as carências que ainda lhes afetam, às vezes severamente – em conseqüência do tempo e esforço exigido para remediar os danos causados pelos métodos desenvolvimentistas. Não é fácil fugir das colheitas comerciais, ou livrar-se do vício do crédito, ou dos insumos industriais: mas o cultivo intercalado, ao qual muitos começam a regressar, regenera a terra e a cultura e com o tempo melhora a nutrição. Apesar da economia, as pessoas comuns, à margem, têm sido capazes de manter viva outra lógica, outro conjunto de regras. Em contraste com a economia, essa lógica se encontra inserida no tecido social. Resumo e fragmentos de “Mitos e realidades do desenvolvimento sustentável”, de Gustavo Esteva, junho de 1996. 16 Uma história recente da generosidade e visão indígenas na conservação e no fortalecimento das sementes ancestrais é a de Caracol Zapatista de Oventic, em Chiapas, que, como outros povos do México, revitaliza seu milho nativo ao trocar sementes, de maneira mais consciente, por seus canais de confiança. O novo é que agora os camponeses tsotsiles da zona, agrupados em seu projeto de autonomia, decidiram começar a enviar sementes zapatistas para onde quer que sejam solicitadas. Agora, na África, enquanto as grandes fundações e os governos e organismos como a fao procuram estabelecer mecanismos para introduzir pacotes tecnológicos e sementes de laboratório, híbridas e transgênicas, os zapatistas já estão enviando sementes ancestrais nativas, livres de contaminação transgênica, a populações no Mali e no Quênia. Para algumas das comunidades que as receberam no Mali, as sementes eram tão boas que, ao invés de consumir a primeira colheita depois de completar seu ciclo, separaram uma boa quantidade, que já começa a ser distribuída a outros locais na África. Mais informações em [email protected] Há uma relação inversa entre o tamanho de uma unidade de produção e a quantidade de cultivos produzidos por hectare. Quanto menores elas são, maior é o rendimento. Isso foi descoberto pelo economista Amartya Sen, em 1962, e dezenas de estudos posteriores o confirmam. Em alguns casos, a diferença é enorme. Um estudo recente de agricultura na Turquia encontrou que as propriedades de menos de um hectare são vinte vezes mais produtivas que as de mais de 10 hectares*. As observações de Sen foram comprovadas na Índia, Paquistão, Nepal, Malásia, Tailândia, Java, Filipinas, Brasil, Colômbia e Paraguai. E parecem sustentar-se em toda parte. A descoberta surpreenderá qualquer indústria, porque chegamos ao ponto de *Fatma Gül Ünal, outubro de 2006. Small Is Beautiful: Evidence Of Inverse Size Yield Relationship In Rural Turkey. Policy Innovations.http://www.policyinnovations.org/ideas/policy_ library/data/01382) associar eficiência com escala. Na agricultura, essa controvérsia faz saltar chispas, porque na visão da indústria ela parece muito estranha, já que o comum é que os pequenos produtores não contem com maquinaria própria, tenham menos capital ou acesso a créditos e não estejam por dentro das técnicas mais recentes. Alguns pesquisadores argumentam que essa relação inversa entre tamanho e rendimento é o resultado de um artifício estatístico: os solos férteis sustentam maiores populações do que as terras desgastadas, pelo que os tamanhos aparentemente pequenos das unidades produtivas seriam resultantes da produtividade alta. Estudos posteriores mostraram que tal relação inversa mantém-se em diversas terras férteis. Ainda mais, funciona em países como o Brasil, onde as grandes propriedades agrícolas são as que se apoderaram das melhores terras. A explicação mais plausível é que os pequenos agricultores investem mais trabalho por hectare do que os grandes agricultores. Essa força de trabalho consiste, em grande parte, de suas próprias famílias, o que significa que seus custos trabalhistas são menores que nas grandes propriedades, com melhor qualidade de trabalho. Com mais trabalho, os camponeses podem cultivar sua terra mais intensamente: passam mais tempo terraciando ou construindo sistemas de irrigação; plantam logo em seguida à colheita; plantam muitos cultivos diferentes no mesmo campo. A Revolução Verde propunha o contrário: quanto maiores as propriedades, mais acesso a crédito teriam, e poderiam investir em novas variedades e expandir seus rendimentos. Mas, conforme essas novas variedades se disseminaram entre os pequenos agricultores, viu-se que não era bem isso. Se os governos fossem sérios quanto a alimentar o mundo, deveriam acabar com as grandes propriedades e redistribuí-las entre os pobres, através de uma reforma agrária séria, e concentrar seus investimentos e seus financiamentos no apoio às pequenas propriedades. Há muitas razões para defender os pequenos agricultores dos países pobres. Os milagres econômicos da Coréia do Sul, Taiwan e Japão surgiram de seus programas de reforma agrária. O mesmo ocorre na China, apesar de o seu despontar terse atrasado 40 anos devido à coletivização. O crescimento baseado nas pequenas unidades de produção tende a ser mais eqüitativo do que o crescimento que surge das indústrias alimentadas com muito capital. O impacto ecológico das pequenas propriedades é muito menor, apesar de a terra ser utilizada com mais intensidade. Onde as pequenas propriedades são absorvidas pelas grandes empresas, os desalojados movem-se para outras terras e apenas conseguem sobreviver. Uma vez segui uns camponeses expulsos do Maranhão, no Brasil, e fui testemunha de como despedaçaram a terra dos yanomami a mais de 3 mil quilômetros de distância. Mas o preconceito contra pequenos agricultores é inexorável. Dá margem a um dos mais estranhos insultos em inglês: quando se chama alguém de camponês, se está acusando-o de autosuficiente e produtivo. Os camponeses são igualmente odiados pelos capitalistas e pelos comunistas. Ambos sempre tentaram se apoderar de suas terras e têm a idéia fixa de menosprezá-los e demonizá-los. Em seu perfil da Turquia, o país onde os camponeses são 20 vezes mais produtivos do que os grandes proprietários, a fao diz que “como resultado de ter muitas propriedades pequenas, os rendimentos agrícolas... mantêm-se baixos”. A ocde afirma que “é indispensável frear a fragmentação da terra” na Turquia “e consolidar propriedades maiores para elevar a produtividade agrícola”*. Nem a fao e nem a ocde fornecem qualquer prova. George Monbiot, “Small is Bountiful”, The Guardian, 10 de junho de 2008, www.monbiot.com A Rede Ecovida de Agroecologia, formada em 1998, compõe-se de aproximadamente 3.000 famílias de agricultores(as) familiares, reunidas em cerca de 200 grupos, além de 35 ongs e 10 cooperativas de consumidores, e tem por objetivo organizar, fortalecer e consolidar a agricultura familiar ecológica em 24 Núcleos Regionais, abrangendo em torno de 170 municípios, nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil. Os Núcleos Regionais promovem a capacitação de seus membros, a troca de informações e de alimentos, e asseguram a credibilidade do produto ecológico através do Sistema Participativo de Garantia (spg), que envolve ativamente agricultores(as) e consumidores. Como a comercialização tem sido um gargalo para a expansão da proposta, pelas dificuldades de se manter o mercado local abastecido durante todo o ano, com diversidade, quantidade e qualidade de produtos, idealizou-se uma alternativa a partir do trabalho coletivo da Rede Ecovida. Desde 2006, funciona o Circuito Sul de Circulação de Alimentos. O circuito funciona com base em sete Estaçõesnúcleos e dez Subestações. Há reuniões bimestrais para discutir as regras, os planos operacionais e o monitoramento das atividades, se negociam os preços e se revisam as contas das transações realizadas *http://www.new-agri.co.uk/00-3/countryp.html, e oecd Economic Surveys: Turkey, volume 2006 número, 15, p. 186 entre as organizações no período anterior. Há características que diferenciam o Circuito em relação aos mecanismos convencionais de acesso aos mercados. Para se integrar ao circuito, é necessário que os alimentos ofertados sejam ecológicos e que estejam certificados pelo Sistema Participativo da Ecovida. A economia dessa agricultura familiar é concebida como o somatório do abastecimento alimentar das próprias famílias mais os produtos trocados nos mercados, privilegiando a segurança alimentar de produtores e de consumidores, com critérios de justiça e de transparência. As organizações da Rede que vendem também se comprometem a comprar produtos de outras organizações do circuito, permitindo a ampliação da oferta de alimentos nos diferentes mercados (feiras, entregas em domicílio, pontos de venda, auto-abastecimento das famílias e grupos da própria Ecovida, mercados institucionais e outros). Isso favorece a redução dos custos com frete, já que os caminhões sempre viajam carregados entre as Estações-núcleos. A circulação de dinheiro é menor, já que em muitos casos os produtos são simplesmente trocados. Natal João Magnanti, Centro Vianei de Educação Popular, Santa Catarina http://www.ecovida.org.br/ l 17 O Brasil e seus bois multinacionais Sergio Schlesinger O mundo dos negócios, acostumado às aquisições de empresas da América Latina por grandes multinacionais, foi surpreendido pela recente investida do frigorífico brasileiro jbs-Friboi, além de dois outros de menor porte (Marfrig e Bertin), sobre diversas empresas desse segmento em países como Estados Unidos, Austrália, Argentina e Uruguai. Quem é o grupo jbs? Quem são seus proprietários? Que estratégias e interesses estão por trás desse comportamento? Essas são algumas das perguntas que estão hoje no ar, e sobre as quais buscamos aqui lançar alguma luz. 18 Brasil: mais gado do que gente. Com Mais da metade do mercado mundial de carne bovina, que movimenta 7 milhões de toneladas por ano entre exportações e importações, está hoje nas mãos de empresas brasileiras. uma população estimada oficialmente em 186 milhões de habitantes, o território brasileiro abriga um rebanho bovino ainda mais numeroso. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – ibge, este rebanho totalizava 206 milhões de cabeças, ao final de 2007. O Brasil é o segundo do ranking mundial nesse tipo de rebanho, suplantado apenas pela Índia. Dado que a Índia não se utiliza de seu gado bovino para fins comerciais, tendo em vista questões religiosas, o rebanho bovino brasileiro é considerado o maior rebanho comercial do mundo. Atualmente, as regiões Norte e Centro-Oeste, onde Produção mundial de carne bovina (em milhares de toneladas) País Estados Unidos 2004 11 261 2005 2006 11 317 11 897 2007(1) 12 168 Brasil 7 975 8 592 8 850 9 120 União Européia 8 007 7 770 7 880 7 880 China 6 759 7 115 7 500 7 910 Argentina 3 130 3 200 3 100 3 150 Índia(2) 2 130 2 250 2 375 2 500 México 2 099 2 125 2 175 2 200 Austrália 2 081 2 102 2 150 2 290 Rússia 1 590 1 525 1 460 1 380 Canadá 1 496 1 523 1 375 1 335 Nova Zelândia 720 705 650 690 Uruguai 544 600 635 650 Outros 3 535 3 550 3 464 3 444 Total 51 327 52 374 53 511 54 717 Fonte: usda (1) Estimativa (2) Inclui carne de búfalo se situam a Floresta Amazônica e o Cerrado, são as que apresentam as maiores taxas de expansão do rebanho bovino no Brasil. Segundo Smeraldi e May (2008), a pecuária brasileira vem registrando um crescimento espetacular. De 1990 a 2007, a produção de carne bovina mais que dobrou, passando de 4,1 para mais de 9 milhões de toneladas, com ritmo de crescimento bem superior ao de sua população e de seu consumo. Essa combinação de fatores permitiu que o Brasil se tornasse o maior exportador mundial, ultrapassando a Austrália, a partir de 2004. A investida dos frigoríficos brasileiros no exterior. Mais da metade do mercado mundial de carne bovina, que movimenta 7 milhões de toneladas por ano entre exportações e importações, está hoje nas mãos de empresas brasileiras. O que explica o fato é o movimento de internacionalização do setor, iniciado em 2005, que ganhou força em 2007, quando frigoríficos como jbs-Friboi, Bertin e Marfrig fizeram grandes aquisições no exterior, e prossegue em 2008. De acordo com Pratini de Moraes, presidente da Associação Brasileira da Indústria Exportadora de Carnes (abiec), as empresas brasileiras instaladas no território nacional e no exterior têm um potencial de exportação de 52% dessas 7 milhões de toneladas comercializadas anualmente nos mercados globais. Além disso, detêm 10% do mercado mundial de carne bovina, o que inclui o volume comercializado no âmbito doméstico dos diversos países. O Brasil já respondia, em 2007, por 33% das exportações mundiais de carne bovina, seguido de longe pela Austrália, que tinha 19% das vendas externas.1 A jbs-Friboi. Maior produtora e expor- tadora mundial de carne bovina, a jbsFriboi é uma empresa relativamente nova, que começou com apenas um açougue, em 1953. Entre 1970 e 2001, a jbs adquiriu plantas de abate e unida- Consumo mundial de carne bovina (em milhares de toneladas) País Estados Unidos 2004 2005 12 667 12 662 2006 2007(1) 12 800 13 024 União Européia 8 292 8 114 8 220 8 240 China 6 703 7 026 7 413 7 829 Brasil 6 400 6 774 6 935 7 180 Argentina 2 512 2 443 2 604 2 552 México 2 368 2 419 2 505 2 535 Rússia 2 308 2 503 2 285 2 270 Índia(2) 1 631 1 623 1 625 1 700 Japão 1 181 1 201 1 186 1 256 Canadá 1 057 1 106 1 067 1 059 Outros 2 921 3 006 3 019 3 027 49 874 50 770 51 509 52 580 Total 19 Fonte: usda (1) Estimativa (2) Inclui carne de búfalo des produtoras de carne industrializada, assim como investiu no aumento da capacidade produtiva das plantas preexistentes.2 Em 1997, inicia as exportações de carne bovina não processada. Em 2006, a capacidade de abate já era de 19,9 mil cabeças/dia, e a Companhia passou a operar um total de 21 plantas no Brasil e 5 na Argentina. Em janeiro de 2007, adquiriu 100% das ações da norte-americana sb Holdings, empresa do grupo Smithfield Beef, que controla as distribuidoras de carnes nos Estados Unidos, e suas subsidiárias, Tupman Thurlow, Astro Sales International e Austral Foods, uma das maiores distribuidoras de produtos industrializados de carne bovina no mercado norte-americano e detentora das marcas “Hereford”, “Mancopride” e “Rip n’ Ready”. Essas empresas proporcionam à jbs acesso direto ao mercado norte-americano de carne industrializada. Também em janeiro de 2007, a jbs adquiriu uma planta de abate em Berazategui, através da Swift Armour, Buenos Aires, com capacidade de abate de aproximadamente 1.000 cabeças de gado por dia. Em julho do mesmo ano, adquire 100% da companhia americana Swift Foods & Company, por US$ 1,4 bilhões, incluindo suas unidades nos Estados Unidos e na Austrália, tornandose a maior empresa de carne bovina em capacidade de abate e a maior multinacional brasileira do setor de alimentos. Com a aquisição de 50% da Inalca, 1 lda do Amaral Rocha, A “Frigoríficos do país já dominam exportações”. Valor Econômico, 14 de março de 2008. 2 www.investinfo.com.br. em dezembro de 2007, a jbs passou a ter mais 10 plantas na Itália. Com centros de distribuição na África, a Inalca abre um novo mercado para a empresa. Em março de 2008, deu-se a compra das empresas norte-americanas National Beef Packing, Smithfield Beef Group 20 3 Bob Burgdorfer, Novo gigante da carne nos eua, jbs enfrentará crivo antitruste. Reuters/Brasil Online, 5 de março de 2008. 4 Gabriel Giani Vasconcellos, Americanos e australianos temem presença do Friboi. 28 de março de 2008. www.peabirus.com.br. 5 P rodutores australianos temem avanços da Friboi no país. Agência Estado, 28 de março de 2008. e da australiana Tasman. A compra da Tasman já está concluída. As aquisições das norte-americanas aguardam ainda autorização do governo daquele país. Feito isso, a empresa passará a controlar 10% da oferta mundial de carne bovina e 32% da capacidade de abate da indústria dos eua. Além dessas aquisições internacionais, a jbs comprou recentemente o frigorífico Garantia, no Paraná, aumentando para 23 o número de plantas de abate de sua propriedade no Brasil. Quando as aquisições estiverem concluídas, a jbs espera ter receitas globais de US$ 21,55 bilhões, contra os atuais 12,7 bilhões.3 A empresa transformouse, assim, na terceira maior do Brasil em faturamento e a maior exportadora brasileira de carne bovina. A investida da jbs preocupa americanos e australianos. Segundo The Nor- th Platte Bulletin, uma coalizão de 72 grupos, incluindo produtores de bovinos, consumidores e líderes religiosos, está preocupada com os planos da jbs de se tornar o maior frigorífico dos Es- tados Unidos, através dessas aquisições. Essas organizações escreveram uma carta ao Departamento de Justiça dos eua, pedindo que seja considerada “fortemente a possibilidade de bloquear o negócio”.4 Afirmam que as compras prejudicariam os preços, as opções, a inovação e a competição na indústria de carne bovina. “Reduzir o número dos principais processadores de carne bovina de cinco para três provavelmente terá efeitos adversos para os consumidores, bem como para os produtores”, diz a carta. O setor agropecuário australiano também entrou em estado de alerta. Aos impactos das mudanças climáticas, sentidos pelos produtores nos últimos três anos de seca, e à ausência de novas fronteiras, soma-se um novo componente aterrador - as aquisições da jbs nos mercados dos Estados Unidos e da própria Austrália. “Estamos preocupados com essa movimentação”, admitiu Glen Feist, da Meat and Livestock Austrália (mla).5 Livre da febre aftosa sem vacinação, o rebanho de corte da Austrália alcança 26 milhões de cabeças, equivalentes a 13% do rebanho brasileiro. A estratégia de diversificação de clientes. A diversificação geográfica de suas unidades de produção concede à jbs acesso privilegiado aos mercados consumidores dos cinco continentes, permitindo superar problemas como barreiras fitossanitárias ao gado brasileiro, flutuações nas taxas de câmbio em todo o mundo e barreiras comerciais à exportação de carne bovina do Brasil e da Argentina. Atualmente, existem barreiras comerciais e sanitárias para exportação de carne bovina não processada produzida no Brasil e na Argentina para os Estados Unidos, Canadá, México, Coréia do Sul e Japão. Esses países representam aproximadamente 50% da importação de carne bovina não processada do mundo. As aquisições feitas pelos grandes frigoríficos brasileiros não ocorrem só no mercado externo. A Abrafrigo - Asso- ciação Brasileira de Frigoríficos, que reúne pequenos e médios estabelecimentos, apresentou, em agosto de 2008, denúncia de que os grandes frigoríficos estão praticando dumping, vendendo a carne a preço 10% inferior ao praticado no mercado interno, com o objetivo de provocar o fechamento e, portanto, o fim da concorrência dos pequenos e médios frigoríficos Há o agravante de que o dumping é realizado com dinheiro público, já que o bndes vem aportando recursos para estes grandes frigoríficos. Os grandes frigoríficos preparam o caminho para dominar não só o mercado consumidor, mas também o de produtores. Os pequenos criadores, que possuem pouca estrutura de acesso ao mercado, tendem a tornar-se cativos dos grandes, que passarão a pagar um preço menor, apropriando-se de suas margens de lucro. “Quando os pequenos e médios frigoríficos fecharem as portas, o produtor vai ficar à mercê de meia dúzia de empresas”, declarou o presidente da Abrafrigo.6 No setor de bovinos, a produção de carnes é a única onde não predomina a chamada produção integrada, em que os grandes frigoríficos dominam toda a cadeia de produção. Os porquês das multinacionais brasileiras de alimentos. A internacionali- zação das agroindústrias brasileiras tem se intensificado nos últimos anos. A valorização do real frente a outras moedas, somada à desvalorização do dólar em todo o mundo, tem tornado mais acessíveis aos capitais brasileiros algumas grandes e tradicionais empresas norte-americanas. Não é de hoje que empresas brasileiras do agronegócio mantêm um pé no Brasil e outro no exterior. Pioneiras, as processadoras de suco de laranja começaram a investir para além das fronteiras nacionais em 1992, comprando plantas no estado da Flórida, nos Estados Unidos. Evitam, assim, as barreiras comerciais norte-americanas às importações do suco de laranja brasileiro. Mais de uma década depois, o exemplo começou a ser seguido por grandes usinas de açúcar e álcool - desde 2004 já há conhecidos nomes nacionais do setor erguendo instalações no Caribe.7 No caso da cana-de-açúcar, a decisão é uma maneira de driblar os altos impostos incidentes sobre as exportações para os eua. O setor de aves é outro em que o Brasil se destaca e também se internacionaliza. Alguns anos atrás, dizia-se que a Tyson viria ao Brasil para comprar a Sadia ou a Perdigão, as duas maiores empresas brasileiras desse segmento. Atualmente, a Sadia está investindo US$ 100 milhões numa fábrica nos Emirados Árabes, e a Perdigão adquiriu a Plusfood, da Holanda. O apoio decisivo do governo brasileiro. A participação do bndes, institui- ção federal, nas aquisições da jbs deixa transparecer a contradição - econômica, social e ambiental - entre as opções financeiras e o slogan que a instituição estatal ostenta: “o banco do desenvolvimento de todos os brasileiros”.8 O presidente do bndes, Luciano Coutinho, classifica a intervenção como um exemplo da nova política industrial que o governo federal pretende adotar neste segundo mandato do presidente Lula, fundada no incentivo à internacionalização de empresas de setores competitivos. Diversas ongs brasileiras têm participado de encontros com o bndes para tratar desses temas. Neles, os representantes da sociedade civil insistem para que o banco dê maior transparência aos critérios sociais e ambientais que têm sido aplicados para a concessão de empréstimos e para que setores mais poluidores não sejam favorecidos. Essa política, contestam as ongs, ignora o poder de indução de iniciativas de grande porte que podem aumentar a pressão pelo desmatamento e pelo desrespeito aos direitos sociais nas fronteiras agrícolas. Saltando barreiras. O segmento de carnes é o mais afetado pela sobreposição de tarifas, quotas e barreiras sani- 6 ndréa Bertoldi, A “Grandes frigoríficos são denunciados por dumping”. Folha de Londrina, 15 de agosto de 2008. 7 Luciana Franco, “Conquista de territórios. Empresas nacionais investem em unidades fora do país para reforçar suas marcas no cenário global”. Revista Globo Rural, abril de 2008. 8 Maurício Hashizume. Investimento em frigorífico acende debate sobre atuação do bndes. 6 de julho de 2007. 21 22 9 aniella Camargos. “A D saga global dos caubóis de Anápolis”. Portal Exame, 20 de março de 2008. Bibliografia Food & Water Watch Europe, The Beef with Brazilian Beef: Cheap Imports threaten eu Farmers and Consumers, Berlim, 2007. jbs sa, Ata de Reunião Extraordinária do Conselho de Administração realizada em 04 de março de 2008. jbs, 2008. Smeraldi, r. y May P., O reino do gado: uma nova fase na pecuarização da Amazônia Brasileira. Amigos da TerraAmazônia Brasileira, São Paulo, 2008. União Brasileira de Avicultura, Relatório Anual 2007/2008, Brasília, 2008. Wilkinson, J. e Rocha, R., Uma análise dos setores de carne bovina, suína e de frango. senai/ufrj, 2005. Sergio Schlesinger é consultor da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (fase), com sede no Brasil, e da organização internacional Food and Water Watch, trabalhando temas de agricultura e comércio internacional tárias no comércio internacional. Alguns dos mais importantes mercados mundiais estão fechados para as exportações brasileiras, como é o caso dos eua para todos os segmentos de carnes (Wilkinson, 2005). A compra de frigoríficos internacionais promovida pela jbs é uma maneira de abrir as portas de mercados estratégicos que, em razão de recentes focos de febre aftosa no país, periodicamente impõem barreiras sanitárias às exportações brasileiras. Para as grandes empresas frigoríficas brasileiras, esse é um grande entrave ao crescimento. Com unidades de negócios nos Estados Unidos e na Austrália, a jbs resolve esse problema, obtendo acesso a 50% do mercado mundial que permanece fechado para o Brasil. Ou seja: a partir dessas novas unidades, ela poderá alcançar compradores nos Estados Unidos, no Canadá, na Coréia do Sul e no Japão, entre outros.9 Em fevereiro de 2008, a União Européia decidiu embargar as importações de carne vindas do Brasil, já que o governo brasileiro não cumpriu regras sanitárias acordadas desde 2007. Sem a garantia de rastreabilidade da origem do gado, não pode ser assegurado que a carne enviada à Europa não provém de áreas onde a venda para o bloco é proibida. Também em casos como esse, a aquisição por frigoríficos brasileiros de companhias situadas no exterior facilita muito o acesso ao mercado europeu. A internacionalização das indústrias frigoríficas brasileiras tem o objetivo, também, de evitar as barreiras comerciais impostas pelos países desenvolvidos a seus produtos. Adquirindo plantas no interior desses países, essas empresas passam a ter vantagens que vão além do acesso aos seus mercados consumidores. Passam a usufruir, também, das facilidades de exportação criadas pelos diversos acordos de livre comércio que os Estados Unidos e a União Européia vêm firmando pelos quatro cantos do mundo. Comer para não ser comido. Peculiari- dades de cada segmento à parte, a estratégia comum a esses grupos passa pela ambição de fortalecer sua marca no mercado internacional. “Quem quer crescer tem que seguir esse caminho, uma vez que na economia atual ou se é presa ou predador”, avalia José Vicente Ferraz, analista da empresa de consultoria Agrafnp. Em 2006, pela primeira vez no Brasil, uma empresa fez uma oferta pública para a compra de outra. Através dessa chamada “oferta agressiva”, a Sadia tentava adquirir a Perdigão. O objetivo era o de competir no exterior com gigantes do setor de aves e suínos industrializados, como a americana Tyson Foods, que até hoje ameaça chegar ao Brasil. Nas palavras do próprio presidente da Sadia, tratava-se de uma atitude de auto-defesa: a empresa vinha recebendo informações de que a Tyson, justamente, tentaria a aquisição da Sadia, então a maior processadora de frangos do Brasil. Comer para não ser comido, eis a lógica atual das grandes empresas, em todos os setores da economia global. Ser o maior dos tubarões, para não caber na boca dos demais. É esse o comportamento predador das empresas que produzem, hoje, os alimentos que comemos. l Meatrix: o negócio da carne Alberto Villareal* Existe uma grande lacuna entre as ilusões que nos querem vender a respeito de donde vem nossa comida e a contrastante e espantosa realidade da produção industrial de carnes, ovos e leite. Entre na Meatrix e descubra a verdade nua e crua sobre muitos alimentos de origem animal que ingerimos. Foram produzidos 3 desenhos animados de curta-metragem que são uma paródia aos filmes de Hollywood chamados Matrix. O primeiro desenho tem versões dublada ou legendada em português, o segundo pode ser visto dublado em espanhol e o terceiro, com legendas em espanhol. Nos desenhos, os personagens são três super-heróis, animais de granja: Leo, um porquinho que se pergunta sobre seu lugar no mundo, Tiquiti, uma jovem galinha defensora da agricultura camponesa e familiar, e Mufeus, o touro militante apaixonado por verdes pradarias. Eles nos mostram que, sem que a maioria de nós se desse conta, a agricultura camponesa que defendemos foi deslocada pelo agronegócio e pela agricultura sem camponeses, controlada por investidores e grandes latifundiários usurpadores de territórios. Eles nos mostram como funciona uma “fábrica” de produção intensiva de leite, nos revelam a industrialização da carne nos frigoríficos e os riscos desse modelo para a saúde do planeta e para nossas sociedades. Esses curtas-metragens - muito úteis para entender os problemas do capitalismo agrário e da criação intensiva de animais para produzir grandes quantidades de carne, leite e ovos - foram traduzidos para mais de 30 idiomas e foram vistos por mais de 20 milhões de pessoas. Os problemas da criação intensiva tornaram-se muito evidentes quando apareceu a doença da vaca louca, na Europa, nos anos 1980, em decorrência de alimentarem seu gado com rações à base de restos moídos de outros animais. Apesar de que ainda não existiam essas aberrações na América Latina e em outras regiões, começavam a se multiplicar as granjas de criação de aves que propiciaram a gripe aviária na Ásia. A criação intensiva, que ou integra verticalmente pequenos e médios produtores a um sistema capitalista de agricultura por contrato, ou está nas mãos de grandes empresas e investidores, começa a se instalar na criação para carne na América do Sul. A criação extensiva de gado ocupa grande parte de nossos territórios e constitui a base do poder político das elites que se apossaram das terras de todos. Em decorrência do aparecimento da doença da vaca louca na Europa e nos Estados Unidos, ao proibir-se o uso de restos animais nas rações, e usar o farelo de soja como fonte de proteína substituta para os animais na Europa e nos Estados Unidos, a situação piorou. A crescente demanda por soja, na Europa e Estados Unidos, e a expansão das exportações e dos monocultivos de soja, na Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Bolívia (cuja aristocracia de Santa Cruz, golpista, vive da soja), impactaram as principais zonas de produção de grãos, deslocando pequenos produtores, populações e outras atividades, avançando sobre solos de menor rentabilidade (que por não serem muito adequados à agricultura, eram dedicados à criação extensiva de gado). Hoje, essa criação de gado é deslocada para outras terras (como a Amazônia brasileira e as ilhas do Delta do Paraná, na Argentina) e gera pressão entre os criadores de gado que buscam capitalizar-se, investir e tirar mais carne em áreas cada vez menores. Surgem assim os sistemas de engorda de gado em confinamento (variante crioula dos feedlots mostrados no Meatrix). Na Argentina, mais da metade do gado que se destina a abastecer o mercado interno passa seus últimos meses em uma dessas fábricas, e já se registram conflitos devido à contaminação gerada. No Brasil, começa a haver uma concentração notória na sua integração vertical aos grandes frigoríficos brasileiros, que figuram entre os maiores do mundo (ver “O Brasil e seus bois multinacionais”, p. 18 desta edição). Se essas tendências seguirem a implacável lógica capitalista, o futuro será a criação de gado e a alimentação ficarem, cada vez mais, em menos mãos, em condições de muito maior contaminação. *Pesquisador do Food and Water Watch América Latina Os problemas da criação intensiva tornaram-se muito evidentes quando apareceu a doença da vaca louca, na Europa, nos anos 1980, em decorrência de alimentarem seu gado com rações à base de restos moídos de outros animais. Apesar de que ainda não existiam essas aberrações na América Latina e em outras regiões, começavam a se multiplicar as granjas de criação de aves que propiciaram a gripe aviária na Ásia. 1) Meatrix ht tp://www.themeatrix.com/ intl/brazil/dub/ 2) Meatrix II Revolting http://www.themeatrix2.com/ spanish/dub/ 3) Meatrix II½ http://www.moremeatrix.com/ spain/subtitled/ 23 Ataques, políticas, resistência, relatos Não querem transgênicos na África, não? Centro Africano para a Biossegurança/grain, Joanesburgo, África do Sul, 12 de setembro. Uma junta de ape- 24 lações criada pelo ministério de assuntos agrários e agricultura derrubou uma decisão crucial do processo sulafricano relacionado aos ogms, de não aceitar experimentos com sorgo, um precioso e ancestral cultivo africano. O conselho de investigação científica industrial (Council for Scientific Industrial Research, o csir) já deu sinal verde para prosseguir no desenvolvimento de um Super Sorgo, em instalações de nível três de contenção. A pesquisa é financiada pelo projeto “sorgo africano biofortalecido” [African Biofortifed Sorghum, ou abs] da Fundação Bill e Melinda Gates. A Fundação Gates também financia amplamente a Nova Revolução Verde na África, orientada para industrializar a agricultura do Continente. O Centro Africano para a Biossegurança (cab), que contestou a solicitação inicial da csir, condenou a decisão e reafirmou que os experimentos com sorgo transgênico inevitavelmente terão como resultado a contaminação do legado africano do precioso sorgo. Haidee Swanby, do cab, comenta: “O sorgo é um cultivo básico, crucial para mais de 500 milhões de pessoas no continente. Os riscos que o sorgo gm apresenta para os parentes silvestres não podem ser tolerados. Conceder essa permissão equivale a permitir que o legado da África se perca.” O cab reitera que o projeto do sorgo biofortalecido está sendo desenvolvido para sua liberação comercial e que o csir buscará, em breve, autorização para experimentos de campo. A objeção original do órgão regulador de ogm, emitida em junho de 2006, baseava-se na preocupação de contaminação da biodiversidade africana. A contenção em uma instalação de nível três não evita os riscos dos experimentos de campo, mantendo-se, assim, os riscos às variedades do continente. Elfrieda Pschorn-Strauss, responsável pelo programa grain-África, conclui: “Não cabe ao governo da África do Sul decidir, em nome do resto da África, a aprovação de um projeto industrial que causará a contaminação inevitável da surpreendente diversidade genética do sorgo no continente. Esse cultivo vem tendo o cuidado e o desenvolvimento dos camponeses por mais de 5 mil anos”. l Brasil Financiando a contaminação Rádio Mundo Real, 5 de setembro de 2008. Durante a safra 2007/2008, no Brasil, o dinheiro público destinado aos agronegócios representou a quase totalidade dos investimentos realizados no país para a produção agrícola, segundo dados oficiais divulgados pela Agência Pulsar. De acordo com informação do Estado brasileiro, foram destinados ao agronegócio cerca de 40 bilhões de dólares, o que supera em quase dez vezes o que foi destinado à agricultura familiar. O paradoxo é que a agricultura familiar proporciona os alimentos para o consumo interno. As pequenas empresas produzem 49% do milho, 79% do feijão, 54% do leite, e 40% dos produtos avícolas, enquanto as agroindústrias basicamente produzem para exportação. O enorme financiamento que as agroindústrias recebem do Estado veio à tona quando outra notícia alarmante foi revelada: as agroempresas brasileiras vêm utilizando, em seus agrotóxicos, componentes químicos proibidos nos países da União Européia, onde são produzidos, devido ao seu altíssimo nível de toxicidade. Esses agrotóxicos são utilizados em mais de duas dezenas de cultivos de grãos, verduras e frutas. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (oms), esses agrotóxicos poderiam causar problemas no sistema reprodutor, no sistema nervoso, e ser cancerígenos. Segundo a Radioagên- cia Notícias do Planalto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil (anvisa) estava investigando os perigos dessas substâncias, mas suas investigações foram suspensas pela pressão exercida pelos fortes interesses econômicos. Ante a denúncia e alerta da oms, a anvisa informou que reavaliará o registro de nove substâncias que são utilizadas na elaboração de 99 agrotóxicos. l Ataques, políticas, resistência, relatos Os jeitinhos da Monsanto no México De acordo com a pesquisadora mexicana Ana de Ita, “Para a Monsanto, o levantamento da moratória estabelecida há dez anos no México para o plantio de milho transgênico é uma prioridade” pois no momento atual, favorável às empresas, “conseguir o plantio de milho transgênico no México, onde cerca da metade da superfície agrícola é destinada ao milho, parece um negócio proveitoso”. Essa moratória terá seu fim “quando se liberar a primeira permissão de plantio experimental. Em questão de meses, o plantio comercial seria legal”. O mencionado momento favorável é visível no fato de que, mesmo com a moratória, “o México ocupa o quarto lugar nas vendas da Monsanto, uma vez que as companhias nacionais de sementes sucumbiram ante a concorrência feroz e a empresa estatal de sementes (a Pronase) foi extinta. Em escala mundial, a Monsanto triplicou seus lucros no primeiro trimestre de 2008, em decorrência de suas vendas de sementes de milho (transgênico e híbrido) e de herbicidas. O boom dos agrocombustíveis e o uso de milho para fabricação de etanol nos Estados Unidos aumentaram o valor de suas ações em 21%”. Além disso, acrescenta a pesquisadora, “A Monsanto contou com o apoio dos legisladores que aprovaram, a seu favor, a Lei de Biossegurança de Organismos Geneticamente Modificados (lbogm), e com o respaldo de funcionários das Secretarias de Agricultura e do Meio Ambiente, que publicaram a regulamentação da lei e tentam, por vias burocráticas, encerrar o Regime de Proteção Especial ao Milho” (ver “Granjeros modernos o siervos de Monsanto”, La Jornada del campo, número 8). Hoje, de acordo com informes de Lourdes Dias López (El Diario, 24 de setembro), “em Chihuahua, os chihuauenses são ‘cobaias’ com o plantio e o consumo de milho transgênico [pois] já se comprovou que está sendo plantado, sem que nem o produtor e nem o vendedor de sementes se dêem conta de que se trata de um produto geneticamente modificado”. Na mesma reportagem, Lourdes Dias recolhe o testemunho do deputado local Victor Quintana e do líder do movimento El Barzón, Gabino Gómez, no sentido de que “os resultados do levantamento de amostras de milho feito por um laboratório certificado a pedido do Greenpeace revelaram que não há somente 70 hectares plantados com esse tipo de semente, como divulgou o Serviço Nacional de Sanidade, Inocuidade e Qualidade Agroalimentar (Senasica), mas sim 25 mil hectares, em função do que se efetuou uma segunda amostragem da qual se esperam resultados em breve”. Victor Quintana, nessa ocasião, comentou: “Se fosse feita vigilância de acordo com o que determina a lei para a entrada de sementes, a comercialização e a planta em desenvolvimento, a Se- cretaria de Agricultura, Pecuária, Pesca, Desenvolvimento Rural e Alimentação (Segarpa) teria detectado, muito antes de nós, que em Chihuahua se está plantando milho transgênico. As autoridades da Segarpa querem se proteger dizendo que são 70 hectares e que estão dando atenção ao problema”. Apesar de que, enquanto a moratória ainda existir, “plantar milho transgênico pode dar de dois a dez anos de cadeia, além da multa de 15 mil a 150 mil pesos, de acordo com o estabelecido no artigo 420 do Código Penal Federal, e de acordo com o artigo 120 da Lei de Biossegurança de Organismos Geneticamente Modificados”, o certo é que em Chihuahua já é oficial que esse plantio ocorreu. O delegado da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Semarnat), Ignácio Legarreta Castillo, aponta “que em Chihuahua detectou-se o primeiro caso, em nível nacional, de plantio de milho transgênico, que já é investigado pelo ministério público federal (mpf), depois dos estudos do laboratório do Senasica, e será o mpf que determinará de quem é a responsabilidade, se do produtor, do vendedor de semente ou da aduana no momento da importação”. O estranho é que, em anos anteriores, “as autorizações para plantio experimental, canceladas por serem ilegais, eram para Chihuahua, Sonora, Sinaloa e Tamaulipas, e mesmo que os funcionários se esforcem em negar, nesses estados existe uma ampla diversidade de raças e variedades nativas de milho. Em Chihuahua, há 23 espécies catalogadas e teosinto, que também é registrado no Sinaloa”, insiste Ana de Ita. Tudo parece indicar que estamos diante de uma investida clandestina e ilegal para que o plantio de milho transgênico seja um fato consumado que permita avançar rapidamente para derrubar a moratória, a qual fragilmente continua impedindo uma avalanche irreparável de contaminação, com seus efeitos devastadores associados. l 25 Ataques, políticas, resistência, relatos Equador O governo, a Constituição, os indígenas e as mineradoras 26 Uns dias antes do referendo que aprovou a nova constituição equatoriana, a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) decidiu se adiantar ao referendo e expressou um “sim crítico” que evitou possíveis manipulações, por parte da oligarquia e de setores da igreja, de seu posicionamento de oposição. Essa constituição foi tecida em um árduo processo de diálogo entre a sociedade equatoriana, e o presidente Correa efetivamente impulsionou tal processo, ainda que a seguir, nas regulamentações, tenham sido desativados muitos de seus parágrafos mais incisivos (assunto que tem provocado a mais áspera crítica dos setores progressistas afins ou em oposição ao governo da “Revolução Cidadã”). Não obstante, era claro que praticamente durante todo o mês de setembro a população estivera considerando o sim ou o não e que a maior parte das pessoas propensas ao não eram ligadas aos grupos de direita, oligarcas e entreguistas, que não deixaram de provocar incidentes. Então, em que pese o movimento indígena independente continuar pressionando o governo de Correa a definir-se com maior clareza em favor da população, sabendo que o fator indígena seria chave, a Conaie expressou seu sim crítico. Foi uma decisão de serenidade e generosidade para com o Equador, apesar de suas grandes diferenças com Correa. Em 4 de setembro, o Conselho de Governo da Conaie afirmou que a nova Constituição não acolhe adequadamente suas propostas sobre “novos direitos das nacionali- dades e povos indígenas do Equador” e que seguirá lutando “até que haja um verdadeiro reconhecimento de nossas demandas no marco do novo Estado plurinacional”. Afirmou, também, que “em relação às propostas nacionais de ordem social, ambiental, econômica, cultural, participação cidadã, soberania nacional e reconhecimento do Estado plurinacional, há um avanço importante em comparação com as 19 constituições anteriores e em relação ao contexto internacional”. Portanto, em “seu papel histórico e luta permanente pela mudança real deste país, apóia com o sim crítico no referendo para aprovar o projeto da nova constituição e, dessa forma, enterrar de uma vez por todas a velha estrutura do Estado, a agonizante partidocracia e oligarquia do país, o colonialismo, o neocolonialismo e o modelo neoliberal injusto e desumano que tanto dano provocou ao país”. Por último, a Conaie reinvindicou ser independente do governo nacional e de seu movimento político, e que seu apoio era ao projeto da nova constituição, e não um respaldo ao governo de Correa. No final de setembro, e sendo coerentes com seus posicionamentos, a Conaie, a Ecuarunari e a Confenaie (Confederação de Nacionalidades Amazônicas do Equador) reuniram-se para discutir o papel do governo no que diz respeito às concessões de mineração. Concluíram que o governo deixa de cumprir os mandatos constituintes e favorece as empresas mineradoras que operam no país, razão pela qual resolveram exigir do regime a aplicação dos ditos mandatos e o respeito a seus territórios e recursos naturais. “Está claro que Correa não mudará o modelo econômico neoliberal. Ao contrário, as multinacionais estão se fortalecendo para a exploração de nossos recursos em seu benefício, o que preocupa as organizações, povos e nacionalidades”, disse Miguel Guatemal, vice-presidente da Conaie. Está se tornando claro que “a nova constituição não irá deter a ambição das empresas de petróleo, das mineradoras e das hidroelétricas, pelo que se torna necessário impulsionar ações desde nossas comunidades, a fim de deter essa política neoliberal do atual regime”, disse Domingo Ankuash, presidente da Confenaie. Poucos dias antes, foram assassinados dois membros da nacionalidade awa, da província de Esmeraldas, “pelos interesses econômicos e políticos das empresas mineradoras e do atual governo”, em função do que o encontro exigiu as investigações e sanções aos responsáveis pelos crimes. “Esse é um problema que se reproduz por todo o país e o governo não faz absolutamente nada. Ao contrário, juntamente com as empresas estrangeiras, faz parte dessa perseguição. Por isso, fazemos um apelo a todas as organizações sociais do país para avaliar e organizar as ações que sejam necessárias a fim de deter essa ambição externa e, sobretudo, obrigar o governo a suspender seu apoio às multinacionais e a garantir o respeito a todos os equatorianos”, disse Salvador Quishpe, dirigente de Zamora Chinchipe. l Ataques, políticas, resistência, relatos As paralisações antimineradoras prosseguirão Em setembro, dirigentes da Zamora Chinchipe e o coordenador da Frente de Resistência Sul à Mineração em Larga Escala (Fresmige) responsabilizaram o governo nacional e as empresas mineradoras canadenses pela onda de paralisações que diversas comunidades e organizações do sul do país impulsionarão no futuro. “A Assembléia Constituinte baixou o mandato mineiro em 18 de abril passado, mas o governo tem se esquivado dele e não o tem aplicado. Ao contrário, iniciaram a elaboração de uma Lei de Mineração com a participação dos representantes das próprias empresas mineradoras multinacionais, dando as costas ao povo equatoriano, e, seguramente, irão querer impor dita lei com o futuro congresso ilegal. Isso demonstra que o presidente Correa busca garantir o modelo econômico neoliberal e extrativista, contradizendo seu discurso de terminar com a longa noite neoliberal. Essa é a razão das ações de protesto que os povos estão impulsionando, donde o responsável por essa situação ser o próprio presidente Rafael Correa e seu governo”, afirmou Salvador Quishpe. Apesar disso, de novo, em uma amostra de sensatez e generosidade, Quisphe esclareceu que não haveria ações de protesto antes de 28 de setembro, data em que foi realizado o referendo. “Não vamos permitir que nossa luta seja mal interpretada por aqueles que permanentemente procuram desqualificar nossa legítima inconformidade com esse modelo extrativista que põe em risco a vida de nossos povos”. l Equador Carta aberta sobre a nova Constituição Ontem, a grande maioria do povo equatoriano pronunciou-se pelo sim à nova Constituição, obedecendo a uma aspiração perseguida pelas organizações, que há mais de trinta anos temos desejado ver o surgimento de um novo país. A maioria de nós tem contribuído com os princípios contidos na nova Constituição mesmo antes que esta começasse a ser elaborada. Construímos posicionamentos, argumentos, propostas, que foram acolhidos no processo constituinte. Por isso nos pronunciamos por um sim crítico. sim, porque reconhecemos que são momentos de síntese das propostas dos movimentos sociais, crítico porque tememos que nosso respaldo à Constituição seja visto como uma carta em branco para avalizar projetos neodesenvolvimentistas que implicarão em uma grande dívida social no curto prazo. O impulso ao iirsa e ao Eixo Manos-Manta (que se traduzirá na dragagem do rio Napo), a abertura petroleira, a insistência na mineração como nova atividade intensiva, as políticas agrárias que fomentam o consumo de agrotóxicos e de sementes certificadas e o fomento aos agrocombustíveis são alguns dos projetos que estão na agenda dos governos neoliberais e que têm sido freados pelas lutas dos movimentos sociais. Sem dúvida, esses mesmos projetos pairam como ameaças para nosso país. São projetos que têm um alto custo ambiental, e que, mesmo quando são justificados com o argumento de pagar a dívida social, construirão novas dívidas ecológicas. E o principal quanto a isso é que a dívida ecológica é dívida social, pois se deterioram as bases de subsistência, principalmente dos mais pobres, e se impede um verdadeiro desenvolvimento sustentável. Nenhum desses projetos poderia ser desenvolvido, ao menos na magnitude em que são propostos, se agimos de acordo com a nova Constituição, se utilizamos a Constituição como uma caixa de ferramentas para defender nosso patrimônio e o de nossos filhos. Cabe a nós estarmos atentos e articulados para defender o que é e tem sido uma proposta de mudança a partir das bases. Resgatar o momento político atual, evitar que a Constituição seja seqüestrada. A proposta ecologista não é senão a defesa das riquezas naturais, o respeito à vida e à biodiversidade, o cuidado com nosso futuro. A luta ecologista é uma luta por ideais e, principalmente, por conservar um espaço onde esses ideais se realizem. Por isso devemos fazer a nossa Constituição. l Ação Ecológica, Quito, Equador, 30 de setembro 27 Ataques, políticas, resistência, relatos Assassinam defensor de direitos humanos na Colômbia 28 O defensor de direitos humanos Ever González foi assassinado no sábado, 20 de setembro, ao meio-dia, por dois assassinos contratados que estavam em uma moto. Ele estava trabalhando na localidade de Guachicono, no município de Bolívar, e ponto de encontro entre os municípios de Sucre e Patía. Desde 1994, nosso líder camponês Ever González vinha apoiando a defesa integral dos direitos humanos dos habitantes do Maciço Colombiano, em especial dos do município de Sucre. Em 2000, foi vinculado ao sistema de proteção do Ministério do Interior, devido a múltiplas ameaças contra a organização social Cima, seus líderes e suas comunidades, pela reivindicação constante por vida digna, integração regional e desenvolvimento próprio. Da mesma forma, desde 2003 foi amparado pelas medidas cautelares que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos ordenou ao estado colombiano. Em maio de 2004, foi vítima da política de detenções e criminalizações massivas. Tal circunstância aumentou seus riscos e sua vulnerabilidade, devido às estigmatizações originadas a partir da aplicação dessa política. Em seu caso, demonstrou-se sua inocência, a montagem que lhe foi feita e sua liderança social camponesa. Atualmente, se encontrava apoiando o esclarecimento de uns casos de execuções extrajudiciais ocorridos no município de Sucre, em 2007, com a participação dos familiares das vítimas e da Defensoria da cidade de Cauca. A organização social camponesa Comitê de Integração do Maciço Colombiano (Cima) exige do Estado colombiano, das autoridades civis e militares, do Ministério Público, da Promotoria Geral da Nação e do Ministério do Interior, a investigação, o esclarecimento e a condenação dos res- Dendê em Chiapas: paramilitar? Um sinal abominável de globalizar a guerra como programa de desenvolvimento é o incentivo que se começa a dar ao plantio de dendê em Chiapas. Na Colômbia, o esquema sinistro, há alguns anos, é deslocar os camponeses para promover amplamente o dendê (cinicamente chamado de palmeira sustentável) como insumo de agrocombustíveis, permitindo que grupos paramilitares expulsem a sangue e fogo os habitantes de um território. Sempre a serviço das agroindústrias e do governo, os paramilitares o convertem em monocultivo de dendê e se assumem como agricultores “legalizados” de “combustível” de dendê. O esquema implica um campo armado, com mercenários a serviço das transnacionais. O que ocorrerá em Chiapas, onde a paramilitarização cresce promovida pelos governos federal e estadual, apodera-se de mais e mais terras, desarticula os esfor- ponsáveis por esse crime cometido contra esse líder camponês defensor de direitos humanos. Chamamos as organizações defensoras de direitos humanos, nacionais e internacionais, para que se solidarizem em defesa da vida digna, tanto de suas comunidades como de seus líderes, e no direito de defender e fortalecer nossa organização social camponesa. Solicitamos o envio de cartas aos órgãos estatais e governamentais correspondentes exigindo o esclarecimento das ocorrências. Nossa gratidão, reconhecimento e memória eterna a Ever González e a nossos companheiros e companheiras camponeses assassinados em decorrência de nossa luta constante por vida digna, integração regional e desenvolvimento próprio do Maciço Colombiano. l Comité de Integración del Macizo Colombiano (Cima), Fundación Estrella Orográfica del Macizo Colombiano (Fundecima) ços de centenas de comunidades e semeia o terror em qualquer região ou localidade onde haja comunidades independentes ou opositoras ao governo? Por enquanto, seu freio real são os autogovernos autônomos zapatistas, que defendem sua autonomia, seus territórios, seus cultivos diversificados e suas sementes ancestrais, com grande equilíbrio, mas também com tática e organização de grande força. Entretanto, os funcionários começam a promover a expansão do tal dendê através dos maiores viveiros da América Latina (1.691.000 plantas), em várias regiões de Chiapas - Acapetahua, Mapastepec, Marqués de Comillas, Zamora Pico de Oro e Palenque, algumas delas com forte presença paramilitar. O coordenador geral do Instituto de Fomento à Agricultura Tropical (ifat), que faz parte da Secretaria do Campo, Salim Rodríguez Salomón, disse que, para o próximo ano, “se contará com 15 mil novos hectares para plantar dendê, totalizando 44 mil hectares e cinco mil produtores”. l Ataques, políticas, resistência, relatos Estados Unidos se Posicionam na Guatemala No final de setembro, o governo dos Estados Unidos, através do seu secretário de agricultura, Ed Schafer, ofereceu apoio à Guatemala para impulsionar seu desenvolvimento, informou o presidente guatemalteco, Rafael Espada. “Temos grandes planos para o futuro, na área do desenvolvimento agrícola, rural, camponês e do trabalho na Guatemala, e na exportação e intercâmbio de produtos, conhecimento e tecnologia entre os Estados Unidos e a Guatemala”, afirmou. Schafer encabeça uma comissão comercial e de investimento que busca mecanismos de participação mais ativa Argentina Perseguição aos camponeses Santiago del Estero. Às 8 horas da manhã do dia 6 de setembro, 33 policiais invadiram, intempestiva e ilegalmente, cinco residências da comunidade camponesa de uma paragem próxima à cidade de Pinto, e detiveram Luis Aguirre, seqüestraram uma motocicleta da família e o transladaram à Comissaria de Polícia de Pinto. Aguirre é filho de Cristina Loaiza e Pocholo Aguirre, os quais foram presos em três oportunidades. Em uma das detenções, encarceraram Cristina com seu bebê de 11 meses. O juizado de Añatuya, a cargo do juiz Mansilla, alegou que a detenção, com tão impressionante aparato, era pelo suposto roubo de um cavalo. Invasão sem ordem escrita de juiz competente, detenção violenta e sem ordem escrita, e num sábado, por um suposto furto de um cavalo? No dia 7 de setembro, em Pinto, os sojicultores realizavam uma recepção ao senador nacional Emilio Rached. No dia 19 de setembro, detiveram Sabino Chávez, em uma paragem vizinha a Pinto. Ele também é membro da Central Campesina de Pinto. Ainda está detido pelo mesmo juiz Mansilla que, em agosto, em uma entrevista com membros de uma comissão internacional de direitos humanos, disse que “em Santiago del Estero e na Argentina já não havia camponeses e indígenas”. Uma frase que expressa um plano sinistro de novo extermínio? Sabino estava realizando do setor privado no Tratado de Livre Comércio (tlc) entre os Estados Unidos, o Istmo e a República Dominicana (dr-cafta, por sua sigla em inglês). Schafer reuniu-se com os ministros da agricultura da América Central para explorar mecanismos de cooperação que permitam que o setor privado tenha maior participação no tlc. Funcionários de 17 empresas norte-americanas e 80 da Região reunir-se-ão para explorar e concretizar negócios, informou Schafer. São empresários norte-americanos interessados em promover o comércio e investimentos nos setores de produtos processados, bebidas, genética de gado, carne e frango, equipamentos agrícolas, produtos lácteos, fertilizantes e produtos orgânicos. l um trabalho com sua camioneta quando foi brutalmente retirado da mesma, sem nenhum tipo de ordem escrita, no meio de seu trabalho pacífico. Não andava atrás de ser detido, ninguém busca estar na cadeia. No dia 22 de setembro, no meio da noite, mais de 40 pessoas, civis uniformizados, alguns de polícia, policiais comandados por uma vereadora da cidade de Monte Quemado, chegaram violentamente com cinco camionetes e começaram a invadir, roubar, destruir bens das residências dos camponeses e camponesas da paragem El Quebradito, os quais são membros da Central Campesina de Produtores do Norte. Arrancaram da cama, no meio do pânico de crianças e idosos, Mercedes Farias, Matildo Ediverto Maldonado, Andrés Peralta e Ubaldo Peralta, roubaram-lhes dinheiro que haviam recebido pela venda de seus cabritos e vacas e, literalmente, roubaram a camionete e ferramentas de trabalho de Juan Orellana. Até a manhã do dia 24 de setembro, não se sabia o destino dos detidos quando, novamente, com a mesma metodologia, o mesmo grupo de 40 pessoas arrancou violentamente de suas casas o casal Olga Peralta e Juan Cisneros, deixando as crianças sem a presença de seus pais e no meio do pânico e terror. Quem pode dizer que se trata de imprudência de camponesas e camponeses? Podemos dizer que o governo da província desconhece esses atos que sua polícia e alguns de seus agentes políticos realizam amparados em seus cargos e foros? Onde está a capacidade de um governo que alardeia ter conseguido a paz e estar seguindo o caminho da justiça através das Mesas de Diálogos? Como Mocase-Via Campesina, temos recebido, como única resposta por parte do governo, que é necessário participar das Mesas de Diálogos para ter soluções. Trata-se de uma verdadeira perseguição política aos membros do Mocase-Via Campesina, que temos o direito, que nos outorga a Constituição, de participar ou não, se considerarmos que não se perde a dignidade.” l 29 Ataques, políticas, resistência, relatos 30 Honduras Mais um assassinato em nome da suposta proteção das áreas protegidas La Ceiba Atlántida, 25 de setembro de 2008. Ontem, a altas horas da noite (22h), oito pescadores da comunidade garífuna de Triunfo de la Cruz foram chamados, por elementos das Forças Armadas que cuidam da vigilância do refúgio de vida silvestre Cuero y Salado, enquanto estavam pescando em frente à área protegida. Segundo o testemunho dos pescadores, logo que foram detidos pelos militares, sem dizer palavra estes começaram a atirar, sendo assassinado o pescador Guillermo Norales Herrera, originário da comunidade de Triunfo de la Cruz, que recebeu impactos aparentemente causados por um fuzil M16, normalmente usado como arma de suprimento dos militares hondurenhos. Ao receber as rajadas de balas, os pescadores gritaram que haviam matado um deles, e os militares simplesmente se retiraram deixando-os por sua própria conta. Carlos Colón, outro dos pescadores, encontra-se hospitalizado, pois, ao atirar-se ao mar, foi ferido por uma arraia. O assassinato do pescador Guillermo Morales soma-se à série de violações dos direitos humanos perpetradas pelas Forças Armadas acantonadas em áreas protegidas. A população garífuna estabelecida em Cayos Cochinos tem uma amarga experiência em relação à repressão surgida como conseqüência da aplicação dos planos de manejo para essa zona. Por isso encaminhou uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pelas agressões com armas de fogo a que os pescadores garífunas têm sido submetidos. A costa norte de Honduras tem sofrido um saque sistemático dos recursos ictiológicos perpetrado pela frota pesqueira industrial da Isla de la Bahia, afetando o direito à alimentação dos pescadores artesanais – em sua maioria garífunas – os quais têm visto suas capturas caírem de forma vertiginosa, necessitando viajar a distâncias maiores de suas comunidades para obter o sustento de suas famílias. A criação de áreas protegidas, sem consulta, tem gerado tensões sobre o manejo dos recursos, desdenhando o conhecimento tradicional garífuna, o qual tem permitido a conservação da maioria dos territórios que ocupamos, a ponto de 28 das 46 comunidades que habitamos no país, encontrarem-se dentro das áreas protegidas ou de suas zonas de amortecimento. Cuero e Salado eram duas comunidades garífunas cuja população se viu forçada a emigrar no início dos anos 1990, como resultado da restrição do direito à alimentação que foi imposta quando a zona se converteu em refúgio de vida silvestre, causando uma expulsão silenciosa de 38 das 40 famílias que habitavam a área de terras úmidas. Cabe assinalar que a Fundação Cuero e Salgado foi a primeira entidade privada à qual se entregou o manejo de uma área protegida, sendo seus funcionários em muitas ocasiões apontados por sua mancomunação com a Standard Fruit Company, que possui uma fábrica de extração de dendê (Caisesa) em uma das cabeceiras hídricas do refúgio, e que vem contaminando com dejetos da usina de óleo tais áreas úmidas. As contradições que infestam o manejo das áreas protegidas em Honduras têm servido aos interesses de uns poucos e à repressão dos povos indígenas e das comunidades locais. A expulsão técnica das comunidades de Cuero e Salado foi repetida em Cayos Cochinos, onde, em um dado momento, os pescadores foram perseguidos enquanto se permitia à frota pesqueira industrial a extração irracional de crustáceos. Hoje em dia, os reality shows são uma amostra das inconsistências dos “ambientalistas” que, enquanto proíbem aos garífunas chegar perto de Cayo Paloma, convertem o local num cená- Ataques, políticas, resistência, relatos rio periódico para seus shows. A Bahía de Tela, área contígua ao refúgio Cuero y Salado, nos últimos anos tem sido um centro de conflitos raciais instigados por empresários e políticos que há mais de duas décadas vêm pretendendo a implementação de um megaprojeto turístico para a zona. Atualmente está sendo construído um grande empreendimento de turismo com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (bid). O projeto acarreta o aterro de 80 hectares de uma área úmida na qual, apesar de estar protegida pelo Convênio de Ramsar, pretendem construir um campo de golfe. Esse é outro caso em que a população garífuna agüentou atitudes repressivas por parte da entidade a cargo do cuidado do parque, deno- Forças Armadas. Basta recordar que os crimes cometidos pelos militares durante a década de 1980 permanecem impunes, lançando, dessa forma, uma fatídica advertência para o futuro. Os fatos ocorridos na noite de ontem em Cuero y Salado são mais uma amostra da política que existe contra os direitos do povo garífuna. Por aí se vê como, a cada dia, mais nossos territórios são reduzidos ao serem atomizados em nome de um suposto desenvolvimento que serve mais aos investidores e empresários que a nosso povo. Por outro lado, alguns operadores da justiça deixam de ser imparciais, colocando-se a serviço daqueles que querem nos ver abandonar as praias em que vivemos. minada Fundação para a Proteção de Lancetilla, Punta Sal e Texiguat (Prolansate), com o pressuposto de que estavam conservando a área úmida, quando era voz popular as aspirações ecocidas da elite do poder sobre as lagunas de Micos e Quemada. Por “casualidade” é que há dois anos foram assassinados os jovens garífunas Epson Andrés Castillo e Yino Eligio López, por mãos de membros das Forças Armadas. No julgamento efetuado foram sentenciados os soldados implicados e, claro, se omitiu fazer qualquer menção sobre o oficial a cargo das execuções. Aparentemente, no informe do legista excluiu-se a menção ao tipo de arma utilizada. Esse não é o primeiro caso em Honduras onde as autoridades protegem os oficiais e elementos das Fazemos um chamado às autoridades governamentais para efetuarem uma investigação exaustiva sobre os acontecimentos. E que caia o peso da lei sobre os militares assassinos. Além disso, que cesse a perseguição aos pescadores artesanais e sejam tomadas medidas necessárias para frear a destruição causada pela pesca de arraste da frota industrial, verdadeira causa do ecocídio que afeta a costa norte de Honduras. Também exigimos que se respeitem os direitos sobre os territórios ancestrais de nossas comunidades, incluindo o direito ao habitat funcional e o direito à alimentação do povo garífuna. l Miriam Miranda Organización Fraternal Negra Hondureña 31 Ecos da Quinta Conferência da Via Campesina Crise ou soberania alimentar? 32 Com o fantasma da nova Revolução Verde rondando sobre a África, a Via Campesina celebra sua Quinta Conferência Internacional em Maputo, capital de Moçambique, num momento em que, de todos os recantos do planeta, surgem vozes de alarme, mas também muitas propostas, diante da crise alimentar que o mundo atravessa, perante a qual os organismos internacionais, os governos e as fundações “humanitárias” promovem, com exagerada publicidade para todo o mundo, uma remediação que lhes dá oportunidade de promover mais privatização de terras, paco- contra a globalização do capitalismo e da miséria. Essa Quinta Conferência é, na realidade, “a assembléia principal da Via Campesina, que ocorre a cada quatro anos. É um espaço onde se adotam, de forma coletiva, as grandes decisões políticas e de organização”. Nessa assembléia, a organização anfitriã foi a União Nacional de Camponeses de Moçambique. Apresentamos, então, algumas das declarações importantes da Via Campesina nessa sua assembléia, que é o momento em que as delegações de tes tecnológicos com sementes de laboratório, mais agrotóxicos, maior subjugação da cadeia alimentar completa e novas estratégias para desmantelar a agricultura camponesa que continua independente de seu controle. Diante disso, “a Via Campesina oferece uma visão real e soluções à atual crise da alimentação. As e os pequenos agricultores de todo o mundo estão lutando pela sobrevivência. A crise no setor agrário, a atual crise financeira, as crises climática e do meio ambiente, a crise energética e a profunda crise social global são sintomas do mesmo modelo, o modelo neoliberal, que faz com que o conjunto da sociedade esteja organizado em função da obtenção do lucro”, diz um dos boletins para imprensa da Quinta Conferência. Hoje, a Via Campesina, com quinze anos de existência, mas com uma coleção de tradições alimentando seu que fazer atual, é a mais importante rede mundial de pessoas e coletivos dedicados à agricultura, sejam camponeses ou pequenos produtores. Sua voz “está cada vez mais presente na opinião pública internacional e em foros internacionais”, e sua autoridade moral fez com que ganhasse um lugar entre aqueles que lutam todos os continentes e muitos amigos desse tenaz movimento camponês reúnem-se para discutir o panorama geral que afeta a agricultura, mas também a justiça: um dos textos é seu boletim para imprensa no Dia da Alimentação, e o outro é a Declaração de sua Assembléia de Jovens. Em um mundo no qual, em certos momentos, o panorama pode parecer sombrio, a Via Campesina reivindica a história de luta do campesinato e sua lúcida visão do horizonte atual e, por isso, afirma: “As e os pequenos produtores do Sul e do Norte vêm, há muitos anos, lutando por um modelo de produção agrícola baseado em unidades produtivas familiares e por uma agricultura sustentável, opondo-se ao modelo agrícola orientado à indústria e à exportação, que conduziu à destruição dos meios de sustento das comunidades rurais, e do entorno natural. A atual crise deixa claro que um sistema alimentar baseado na importação e na chamada ‘Revolução Verde’ não é seguro, além de gerar fome e pobreza. Chegou o tempo da produção local de alimentos, de uma agricultura sustentável e de baixa intensidade na utilização de energias fósseis, e do empoderamento do campesinato e das e dos pequenos agricultores. oletim para imprensa B Podemos acabar com a Crise Alimentar Maputo, 16 de outubro de 2008. Somen- te é possível acabar com a crise alimentar através da soberania alimentar e da agroecologia. Assim enfatiza a Via Campesina, de Maputo, onde inicia seu Congresso com uma Assembléia de Jovens Rurais de todo o mundo. Há muitos jovens que querem se instalar na agricultura com modelos agroecológicos: produção sustentável e autônoma e venda em seu entorno. Entretanto, as políticas atuais os impedem e favorecem à agroindústria. Hoje, 16 de outubro, Dia Mundial da Alimentação da fao, a Via Campesina lança uma mensagem de esperança diante da crise alimentar mundial, decorrente de um modelo industrial agroexportador, às custas de milhões de pessoas camponesas e do conjunto da população em todas as partes do mundo. É possível acabar com dita crise, desde que se abandone esse modelo que elimina camponeses/as, destrói a biodiversi- dade e o meio ambiente e gera fome e miséria no mundo. A crise alimentar é o elo mais dramático da cadeia de crises que o sistema econômico neoliberal está gerando – crise climática, energética, financeira, da biodiversidade. É o momento de mudar de rumo, começando precisamente pela agricultura. A alternativa é a soberania alimentar, que permite aos povos desenhar suas próprias políticas agroalimentares, que favoreçam a produção e a distribuição camponesa local e sustentável para abastecer sua população. A Via Campesina lança essa mensagem em pleno processo de debate, por ocasião de sua V Conferência, em Maputo, que reúne mais de 600 representantes camponeses e camponesas de todo o mundo. Precisamente, cerca de 60% da comida que se consome em Moçambique é importada, e o problema da fome e desnutrição nesse país não cessa. Moçambique, como todos os países do mundo, precisa ser soberano em alimentação e impulsionar seu setor primário sustentável – com métodos respeitosos com a natureza para alimentar a sua população e acabar com a fome. Hoje, em Maputo, na Assembléia de Jovens, enfatiza-se que é necessário facilitar o acesso das novas gerações à agricultura e aos meios de produção. Nessa Assembléia, constata-se que há muitos jovens que querem instalar-se na agricultura com essa nova visão da agroecologia e ainda não podem. A Via Campesina solicita aos governos que facilitem a essas pessoas jovens o acesso à terra, ao crédito e aos auxílios para se instalarem, pois o futuro da agricultura e da alimentação dependem delas. Em outras palavras, não se poderá solucionar a crise alimentar enquanto não se tornar extensiva a instalação de jovens na agricultura com modelos agroecológicos e soberanos. 33 eclaração D Segunda Assembléia de Jovens da Via Campesina O campo é nossa vida A terra nos alimenta Os rios correm em nosso sangue Somos a juventude da Via Campesina Hoje declaramos o início de um novo mundo Viemos dos quatro cantos da Terra Para nos unir com espírito de resistência Trabalhar criando esperança Conversar sobre nossas lutas Aprender com o trabalho que realizamos Inspirar-nos com nossas canções e histórias Construir a solidariedade entre nossos movimentos Unificar-nos como força para a mudança social. Daqui voltaremos para todos os rincões do mundo Levando conosco um espírito de revolução Com a convicção de que outro mundo é possível E o compromisso de lutar a favor da nossa maneira de viver 34 A crise no setor agrário, a atual crise financeira, as crises climática e do meio ambiente, a crise energética e a profunda crise social global são sintomas do mesmo modelo, o modelo neoliberal, que faz com que o conjunto da sociedade esteja organizado em função da obtenção do lucro Lutaremos até a vitória, até que as jovens e os jovens de todo o planeta possam viver no campo, como camponeses, em paz e com prosperidade. Quando os Estados tentarem nos reprimir, nos uniremos em solidariedade para continuar a luta. Quando uma companheira cair, a levantaremos. Quando fizer frio, nos abraçaremos até que o fogo de nossa luta nos aqueça o coração. E a cada dia comprometeremos nossos corpos, nossas mentes e nosso coração na linha de frente para defender a vida e a luta pela Via Campesina. Durante os dias 16 e 17 de outubro de 2008, jovens de mais de quarenta países dos cinco continentes, campones@s de distintos povos e culturas pertencentes à Via Campesina, nos reunimos em Maputo, Moçambique, para celebrar nossa segunda Assembléia Mundial de jovens da Via Campesina. A juventude da Via Campesina aqui presente, diante das desigualdades e misérias que estão se apropriando do mundo, somos e nos sentimos o presente e o futuro de uma nova sociedade que sustenta o mundo. Mas temos problemas comuns que dificultam isso. O maior de nossos problemas é o sistema capitalista/neoliberal que, com seus meios de repressão, extorção e propaganda, estendeu as desigualdades e injustiças pelo mundo todo. Esse sistema impôs uma agricultura produtivista que provoca o abandono do meio rural, migrações entre regiões, dificulta o acesso à terra e aos bens naturais e fomenta os transgênicos, a perda da soberania alimentar e novas formas de colonização como os agronegócios. Esses problemas afetam de forma especial aos jovens, mulheres e à classe trabalhadora. Diante dessa crua realidade, as e os jovens da Via Campesina, com força e sentimento, apostamos em um novo modelo social baseado na soberania alimentar dos povos através da reforma agrária integral. E para isso propomos: • Articulação de relações e alianças políticas, sociais e culturais entre jovens do campo e da cidade, com vistas à unidade dos jovens do mundo para a mudança social e a conquista da soberania alimentar. Para materializar essas propostas, nosso plano de ação inclui: criar uma comissão provisória de jovens, durante a V Conferência, para dinamizar o trabalho de coordenação; realizar pelo menos um encontro de jovens por regiões em 2009; realizar um acampamento internacional na Espanha, no final de 2009. Outros aspectos que trabalharemos nos próximos quatro anos são os seguintes: • Acesso à terra, com políticas de apoio ao retorno e à fixação da juventude no campo, para poder assegurar a alimentação e o futuro de nosso planeta. • Luta e ação contra o modelo neoliberal, o imperialismo, as forças de ocupação, os tratados de livre comércio, as políticas agrícolas impostas pela omc, o fmi, o Banco Mundial, as multinacionais, o consumismo, os organismos geneticamente modificados, a criminalização das organizações sociais e das migrações de trabalho. • Solidariedade entre as regiões como movimentos sociais que estão levando a cabo modelos alternativos frente ao sistema neoliberal, mediante princípios de integração com reciprocidade, complementaridade e cooperação para superar desigualdades sociais. • Formação política e ideológica integral da juventude. Educação popular. Formação camponesa em técnicas agroecológicas. • Melhora da comunicação entre as e os jovens de diferentes organizações e culturas e criação de redes de comunicação alternativas como instrumento político e social para transformar o modelo dominante. • Aprofundamento e avanço no debate sobre as causas das migrações e da situação da classe trabalhadora. • Fomentar a formação político-ideológica e técnica em cada região. Elaborar e socializar materiais informativos ideológicos ligados às reivindicações da Via Campesina. Elaboração de uma lista de escolas de formação política em nível internacional. • Criar e melhorar a comunicação entre nossas organizações, criar alianças com outras organizações que lutem por objetivos similares aos da Via Campesina e abrir e socializar os conteúdos desta assembléia a outras organizações amigas e pessoas jovens. Nos comprometemos a construir, desenvolver e fortalecer nosso espaço como jovens nas organizações nacionais, regionais e internacionais da Via Campesina, pelo que pedimos a incorporação de dois jovens, um homem e uma mulher, na Comissão Coordenadora Internacional (cci). 35 A Via Campesina vem, há muitos anos, lutando por um modelo de produção agrícola baseado em unidades produtivas familiares e por uma agricultura sustentável, opondo-se ao modelo agrícola orientado à indústria e à exportação, que conduziu à destruição dos meios de sustento das comunidades rurais, e do entorno natural Mais informações com Isabelle Delforge [email protected] www.viacampesina.org Declaração do Encontro Nacional Crise Alimentar na Colômbia, Ações Sociais para a Defesa da Soberania e da Autonomia Alimentar 36 Procedentes de todos os recantos do país, membros de organizações camponesas, indígenas, afrocolombianas, urbanas, de mulheres, ambientalistas e não governamentais, participamos com nossas sementes tradicionais, alimentos, conhecimentos e sabedorias ancestrais – e a alegria de trabalhar pela vida, pela terra e pela soberania alimentar – deste Encontro Nacional em Bogotá, de 4 a 6 de setembro, refletindo sobre a crise alimentar mundial que ameaça nossas regiões, territórios coletivos, identidade, cultura, usos e costumes, analisando como podemos assumir tarefas conjuntas na defesa de nossos territórios coletivos, tradições culturais alimentares e de uma vida digna para nossas famílias e grupos sociais. A flige-nos saber que, enquanto há cada vez mais alimento no mundo, seu preço sobe e cresce a fome, pois a crise alimentar – que se expressa, em primeiro lugar, como uma falta de acesso à comida por parte dos mais pobres – se assenta sobre o controle oligopólico de 80% da produção de alimentos como o trigo e o milho por parte de empresas multinacionais como a Monsanto, a Cargill e a Bunge, que também controlam a produção de sementes, de fertilizantes e de agrotóxicos. A crise inicia-se pela entrada dos alimentos nos mercados agrícolas mundiais e nas bolsas financeiras internacionais, que facilitam o enriquecimento especulativo de uns poucos, e se intensifica pela concorrência entre a produção de agrocombustíveis e a de alimentos, com base no controle privado de bens comuns da humanidade como a água, a terra e a biodiversidade. Na Colômbia, enormes iniqüidades históricas aprofundaram-se com a abertura econômica e a consolidação do modelo dominante, excludente e privatizador, que gera destruição e saqueio de nossos territórios, privatiza os bens de uso comum e coletivo, aprofunda as crises alimentares locais, regionais, nacionais e globais, derivadas da espoliação e concentração da terra por parte de grandes proprietários de terra e de capitais internacionais. É a privatização do patrimônio natural e dos territórios coletivos, o extermínio das comunidades indígenas ancestrais, afrodescendentes, urbanas e camponesas, e a destruição de suas formas de organização. É o controle social, econômico, cultural e político de seus territórios por parte do Estado, suas forças armadas, e pelos grupos guerrilheiros e paramilitares. São as políticas contra a autonomia e o controle local dos povoados, buscando mercantilizar seu patrimônio natural e cultural em favor das instituições financeiras e dos grandes capitais. É entregar a soberania alimentar e territorial de nossos povos através de tratados de livre comércio, da imposição de novos modelos tecnológicos e produtivos de monopolização, concentração e privatização dos sistemas de abastecimento alimentar – da produção das sementes ao consumo de alimentos. Em nosso país [Colômbia], 57% dos proprietários, que possuem menos de 3 hectares cada, controlam somente 1,7% da área para uso agropecuário, enquanto 0,4% dos proprietários, que possuem áreas maiores de 500 hectares, controlam 62,3% das terras cultiváveis. Apesar dessa iniqüidade, hoje em dia a produção das famílias camponesas, indígenas e afrocolombianas contribui com mais de 55% dos alimentos consumidos em nossas cidades, com uma importante e invisível participação das mulheres em todas as fases do sistema alimentar. A concentração da terra, restabelecida historicamente pelo conflito armado, tornou-se mais aguda nos últimos anos, junto com o deslocamento forçado de mais de quatro milhões de pessoas dos povoados rurais, aprofundando a espoliação dos territórios e destruindo a capacidade que ditas comunidades e as populações urbanas historicamente associadas a seus processos têm de decidir livremente sobre a produção e o consumo de alimentos. Na Colômbia, a crise alimentar manifesta-se com cifras alarmantes: quase a metade da população do país encontrase em condições de pobreza que impedem o adequado acesso econômico aos alimentos e impõem uma situação crítica de fome a pelo menos 41% dos lares colombianos. Para vergonha de nossos governos, o ritmo de crescimento da fome em nosso país é mais elevado do que o da África Subsaariana; 45% das mulheres gestantes na Colômbia têm anemia, 58,2% das famílias rurais declaram que uma criança vai dormir sem comer, e mais de 80% das crianças menores de cinco anos, em várias comunidades indígenas e afrodescendentes, so- frem de desnutrição crônica. Nosso país passou da auto-suficiência na produção de milho, em 1990, a importar mais de 2,5 milhões de toneladas, ou seja, mais de 75% do consumo nacional. É um absurdo que um país como a Colômbia importe mais de oito milhões de toneladas de alimentos, sendo que grande parte deles depende do mercado global não regulado ou subsidiado nos países do norte, da especulação agrícola e dos preços fixados em bolsas estrangeiras. Apesar disso, as políticas e metas de produção agrícola do governo, orientadas por organismos internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, concentram-se na produção de cultivos para exportação e no plantio de três milhões de hectares para agrocombustíveis. Ante esse panorama, nos declaramos em resistência e oposição frente aos processos e políticas que tornam vulneráveis as formas tradicionais de produção, comercialização e intercâmbio de sementes e de alimentos e, conseqüentemente, a autonomia alimentar das comunidades e a soberania alimentar do país; que expropriam o patrimônio natural existente das comunidades rurais: • Todas as formas de privatização da vida, do conhecimento e dos bens comuns, públicos e coletivos (água, ar, solo, florestas, biodiversidade, entre outros). • As políticas e leis ambientais, rurais e urbanas do governo nacional emolduradas pela estratégia “Colômbia 2019”, que, além do mais, propiciam a entrega da soberania dos povos e territórios das comunidades ao capital internacional e aos grupos de poder econômico locais, nacionais e globais, e promovem o controle, a monopolização e a certificação obrigatória das sementes e das produções agroecológicas e pecuárias. • O Estatuto Rural, uma das normas mais agressivas na recente história do país, com o qual se pretende aprofundar o modelo monopolista das trans- 37 A crítica situação de fome atinge, na Colômbia, pelo menos 41% dos lares. Para vergonha do governo, o ritmo de crescimento da fome no país é mais elevado do que o da África Subsaariana; 45% das mulheres gestantes na Colômbia 38 têm anemia, 58,2% das famílias rurais declaram que uma criança vai dormir sem comer, e mais de 80% das crianças menores de cinco anos, em várias comunidades indígenas e afrodescendentes, sofrem de desnutrição crônica. nacionais, de produção agroindustrial insustentável, e legalizar a expropriação histórica das terras, por parte de todos os atores da guerra e dos grandes capitais que os estimulam. • Todas as formas de guerra que a população colombiana enfrenta, qualquer que seja sua origem, e os processos de militarização que o governo nacional promove. • Os megaprojetos que, sem consulta, são instalados nos territórios, ignoram o mandato do Direito Maior dos povos indígenas e a autodeterminação das comunidades camponesas, afrocolombianas e urbanas, violam direitos territoriais coletivos e geram impactos negativos ambientais, socioeconômicos e culturais. Particularmente, a Iniciativa de Infra-estrutura Regional da América do Sul (iirsa), que estimula modelos de desenvolvimento não sustentáveis e favorece interesses multinacionais. • A imposição, produção e controle de tecnologias baseadas no uso de agroquímicos, modelos agrícolas de monocultivos de transgênicos, agrocombustíveis e plantações florestais; as explorações minerais, de petróleo e energéticas geradoras de violência, deslocamento de populações rurais e urbanas e impactos ambientais e socioeconômicos sobre os territórios e a qualidade de vida das comunidades, que competem por componentes essenciais do nosso patrimônio natural como a terra, a água e a produção nacional de alimentos. • Os tratados de livre comércio da Colômbia com os Estados Unidos e a União Européia, com os quais se pretende entregar a soberania dos povos e a soberania alimentar às transnacionais de produção agrícola e de alimentos. • A promoção da mudança da produção nacional de alimentos para agrocombustíveis, amparada em falsas promessas de rentabilidade para os pequenos produtores, suposta geração de emprego e falsa solução da crise energética e das mudanças cli- máticas mundiais. • A perversão do uso da coca, de seus valores espirituais, medicinais e de uso alimentar, tanto por parte do governo colombiano, que a criminaliza, como por aqueles que a prostituem, cultivando e transformando com químicos nossa planta sagrada, para lesar a saúde humana e alimentar a fome e a miséria de nossos povos. • A erradicação química dos cultivos de uso ilícito, que colocam em risco a saúde e a segurança alimentar das comunidades, obedecendo às diretrizes dos países que impõem as políticas de controle do narcotráfico. • A criminalização da palavra, do pensamento crítico e das ações de resistência das pessoas e organizações que sustentam posicionamentos alternativos frente às políticas e ao modelo de desenvolvimento econômico que o governo nacional promove. • O posicionamento do governo nacional sobre a suposta “blindagem” do país frente à crise alimentar, e sua promoção da “segurança” alimentar da população, importando alimentos ou estimulando programas assistencialistas que não detêm as causas estruturais da fome. Continuaremos defendendo a soberania e a autonomia alimentar, com base em: • Os processos e organizações sociais e o trabalho que, enquanto comunidades, estamos desenvolvendo dentro e fora do país, na defesa da soberania e da autonomia alimentar e frente aos megaprojetos de desenvolvimento existentes. • Ações para a defesa integral de nossos territórios, do patrimônio coletivo natural e cultural, de todas as formas de vida e de produção das comunidades indígenas, camponesas e afrodescendentes. Essas ações devem incluir o incentivo a processos de qualificação e de formação política e organizacional das comunidades rurais e urbanas para proteger os saberes tradicionais, os territórios, a so- berania e autonomia alimentar, e o controle local que garanta a permanência desses conhecimentos para as gerações futuras; estabelecer alianças entre os diferentes setores sociais urbanos e rurais, para a sensibilização, difusão e convergência de iniciativas e ações de construção de propostas alternativas frente aos modelos econômicos capitalistas e não sustentáveis. • O apoio aos sistemas de produção tradicionais e com enfoques agroecológicos, baseados na biodiversidade, sementes nativas e conhecimento tradicional. • O incentivo a diálogos e alianças entre populações camponesas e urbanas, com a finalidade de garantir uma alimentação sadia e sustentável, que elimine os monopólios na intermediação e fortaleça os mercados locais e as diversas formas de intercâmbio, como estratégias para se contrapor aos modelos que destroem a economia camponesa. • A identidade e pertença a nossos territórios, nossa cultura, usos, costumes e formas de produção, a sabedoria, os saberes e as práticas ancestrais, como base essencial das estratégias de defesa da soberania e da autonomia alimentar. • A construção de conhecimento e de tecnologias produtivas de acordo com as necessidades, realidades e possibilidades das comunidades rurais, de tal forma que nos permitam romper as normas que impõem o controle monopólico dos recursos e as certificações que favorecem somente às grandes empresas. • A reapropriação do público para garantir que os bens e serviços comuns, coletivos e comunitários continuem cumprindo sua função social. • O apoio ao referendo de reforma constitucional para consagrar o direito humano fundamental à água potável, um mínimo gratuito para atender às necessidades vitais, a gestão pública indelegável e diretamente estatal ou comunitária da água, e a proteção especial dos ecossistemas essenciais 39 do ciclo hídrico. • Planejamento de vida e de manejo coletivo de acordo com nossa cultura, usos, costumes e realidades locais, com equilíbrio ecossistêmico e espiritual da vida e com nossa visão do território, frente aos planos governamentais de ordenamento territorial que buscam fragmentar a integralidade de nossos territórios. • Desaprender o aprendido reivindicando o próprio, o que nos obrigaram a esquecer: a relação com a terra, com a água, com o ar, a aprender fazendo, percorrendo e vivendo os territórios para construir novas formas de vida. l Bogotá, 6 de setembro de 2008 Declaração aprovada por 157 organizações de base e ongs de todo o país Apoiamos o referendo de Reforma Constitucional para consagrar o direito humano fundamental à água potável, um mínimo gratuito para atender às necessidades vitais, a gestão pública indelegável e diretamente estatal ou comunitária da água, e a proteção especial dos ecossistemas essenciais do ciclo hídrico. 40 Solidariedade e denúncia O s participantes do evento nacional Crise alimentar na Colômbia, ações sociais para a defesa da segurança, soberania e autonomia alimentar, realizado em Bogotá, entre 4 e 6 de setembro de 2008, no qual participamos mais de 150 organizações indígenas, afrocolombianas, camponesas, organizações não governamentais e representantes de dez organizações da América Latina, expressamos nossa solidariedade a todas as vozes alternativas que as estigmatizações criminalizadoras querem calar e, em especial, nossa solidariedade a Héctor Mondragón, pesquisador e pacifista, defensor dos direitos humanos dos camponeses, indígenas, com um reconhecido respaldo nacional e internacional. Igualmente nos solidarizamos contra as estigmatizações e perseguições que buscam enlamear, através de artifícios, a organização de direitos humanos minga, e as organizações indígenas do Cauca (acin e cric), e a Associação de Camponeses do Vale do Cimitarra (acvc), entre outras. Ditas estigmatizações conduzem à violação dos direitos fundamentais, à espoliação de terras, aos deslocamentos forçados, à criminalização da palavra e do pensamento crítico. Essas pessoas e organizações são envolvidas em obscuras campanhas de estigmatização por parte do governo, e alguns meios de comunicação de massa apóiam sem qualquer argumento crítico, apontando supostos vínculos dessas pessoas, organizações e entidades com os atores armados do conflito nacional, que paradoxalmente o governo empenha-se em desconhecer, mas que utiliza segundo suas necessidades políticas conjunturais de relegitimação, dentro da cada vez mais evidente crise do corrupto e obscuro regime político nacional. As organizações sociais e organizações não governamentais participantes deste encontro nacional, expressamos nosso repúdio à criminalização das rei- vindicações e da construção de propostas alternativas, apresentadas pelas organizações sociais e comunitárias pelo direito fundamental à vida, ao território, aos recursos e bens públicos e coletivos e à soberania alimentar dos afrocolombianos, indígenas e camponeses. Não aceitamos que se criminalize a palavra, o direito à dissensão, a defesa dos direitos humanos, o direito de viver em paz e em harmonia com o meio ambiente. Chamamos a defender ativamente todas as vozes alternativas, a busca da paz, o direito à palavra e ao pensamento crítico na Colômbia. Reivindicamos o direito que temos todos os cidadãos de nos defender das políticas e projetos governamentais e do grande capital internacional – que buscam privatizar todos os recursos naturais e os territórios das comunidades rurais. Repudiamos as estigmatizações que o governo nacional e os meios de comunicação fazem a essas pessoas, organizações e entidades, as quais têm se destacado por sua responsabilidade pública com as buscas nacionais de paz e de justiça social. Denunciamos essa forma perversa de pretender manipular a opinião nacional e internacional, com atitudes que colocam em risco a vida e o trabalho daqueles que contribuem para o bem estar dos setores sociais na Colômbia, em franca oposição às políticas oficiais de exclusão social, de privatização e de mercantilização dos recursos naturais, bens públicos e patrimônios coletivos, como a água, a terra e a biodiversidade, que são indispensáveis para a soberania e autonomia alimentar. Não criminalizem a palavra, não criminalizem a luta pela soberania alimentar! l Bogotá, 4 de setembro de 2008 BIODIVERSIDADE Conteúdo SUSTENTO E CULTURAS EDITORIAL 1 Biodiversidade, sustento e culturas é uma publicação trimestral de informação e debate sobre a diversidade biológica e cultural para apoio às comunidades e culturas locais. O uso e conservação dos recursos genéticos, o impacto das novas biotecnologias, patentes e políticas públicas são parte de nossa cobertura. Inclui experiências e propostas na América Latina, e busca ser um vínculo entre aqueles que trabalham pela gestão popular dos recursos genéticos, especialmente as comunidades locais: mulheres e homens indígenas e afroamericanos, camponeses, pescadores e pequenos produtores. Ajuda em sementes, agroempresas e crise alimentar Fome e transgênicos Fluxo de alimentos e Tratados de Livre Comércio 3 8 9 Número 58, outubro de 2008 UMA PANORÂMICA E MUITAS VISTAS 10 No futuro será imprescindível produzir alimentos próprios O Brasil e seus bois multinacionais 18 Meatrix: o negócio da carne 23 Organizações coeditoras Acción Ecológica [email protected] Acción por la Biodiversidad [email protected] Campanha de Sementes da Vía Campesina – Anamuri [email protected] Centro Ecológico [email protected] GRAIN [email protected] Grupo etc veró[email protected] Grupo Semillas [email protected] Red de Coordinación en Biodiversidad [email protected] REDES-AT Uruguai [email protected] ATAQUES, POLÍTICAS, RESISTÊNCIA, RELATOS 24 Comitê Editorial Ma. Eugenia Jeria, Argentina Carlos Vicente, Argentina Ciro Correa, Brasil Maria José Guazzelli, Brasil Germán Vélez, Colombia Alejandra Porras (Coeco-at), Costa Rica Silvia Rodríguez Cervantes, Costa Rica Camila Montecinos, Chile Francisca Rodríguez, Chile Elizabeth Bravo, Equador Ma. Fernanda Vallejo, Equador Silvia Ribeiro, México Magda Lanuza, Nicarágua Juan Martin Drago, Uruguai Carlos Santos, Uruguai Administração Ingrid Kossmann [email protected] Edição Ramón Vera Herrera [email protected] Design e diagramação Daniel Ortega, Claudio Araujo [email protected] Amanda Borghetti (Brasil) [email protected] Edição em português Centro Ecológico [email protected] issn: 07977-888X não querem transgênicos na África, não?/ Brasil: financiando a contaminação/ os jeitinhos da Monsanto no México/ Equador: O governo, a constituição, os indígenas e as mineradoras/ as paralisações antimineradoras prosseguirão/ carta aberta sobre a nova constituição/ assassinam defensor de direitos humanos na Colômbia/ dendê em Chiapas: paramilitar?/ Estados Unidos se posicionam na Guatemala/ Argentina: perseguição aos camponeses/ Honduras: mais um assassinato em nome da suposta proteção das áreas protegidas Ecos da Quinta Conferência da Via Campesina Crise ou soberania alimentar? 32 Declaração do Encontro Nacional: Crise Alimentar na Colômbia - Ações Sociais para a Defesa da Soberania e da Autonomia Alimentar 36 Solidariedade e denúncia 40 A série de fotos deste número é de Jerónimo Palomares e foi tirada no estado de Puebla, México. As ilustrações que acompanham a revista e o caderno de biodiversidade número 25 provêm do livro El diseño indígena argentino, de Alejandro Eduardo Fiadone, La Marca Editora, 2006, e são desenhos pré-hispânicos de diversas culturas indígenas assentadas no que hoje é a Argentina. Agradecemos a sensibilidade do autor em permitir a utilização das imagens sempre e quando seja com fins artísticos e sem lucro. Nesse caso, nossa publicação sem finalidade de lucro, além de ter fins artísticos, visa documentar, divulgar e conservar a tradição de desenho indígena do continente (e do mundo) e servir de fonte secundária para que as pessoas tenham acesso a obras de sistematização como a de Alejandro Eduardo Fiadone. Biodiversidade, sustento e culturas é uma revista trimestral (quatro números por ano). As organizações populares, as ONGs e as instituições da América Latina podem recebê-la gratuitamente. Por favor, enviem seus dados com a maior precisão possível para simplificar a tarefa de distribuição da revista. As organizações populares e as ongs da América Latina podem receber gratuitamente a revista. Contatar REDES-AT Uruguai: [email protected]/[email protected] Convidamos a que se comuniquem conosco e nos enviem suas experiências, sugestões e comentários. Dirigir-se a Ingrid Kossman: [email protected]. Os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. O material aqui reunido pode ser divulgado livremente, mas agradecemos se a fonte for citada. Por favor nos enviem uma cópia para nosso conhecimento. Os dados necessários são: País, organização, nome e endereço completos: endereçamento postal (CEP), cidade e estado. (Correio eletrônico, telefone e/ou fax, se houver.) Agradecemos o apoio da SwedBio e da Cooperación al Desarrollo de la Consejería de la Vivienda y Asuntos Sociales del Gobierno Vasco. Agradecemos o apoio da Heifer Internacional Programa Brasil e Argentina para a publicação da edição em português. código de Enviem, por favor, sua solicitação a BIODIVERSIDAD, REDES-AT, San José 1423, 11200 - Montevidéu, Uruguai. Telefones: (598 2) 902 23 55/908 2730. [email protected]/[email protected] caderno 25 Crise Alimentar ou novos negócios às custas de nossa fome? biodiversidade Biodiversidade 58• outubro 2008 CadernO 25 • Biodiversidade ii Para todos que dependemos de comprar nossos alimentos nos mercados convencionais de provisões, está claro que, durante os últimos meses de 2007 e em todo 2008, desencadeou-se uma escalada nos preços dos alimentos, que nos obrigou a restringir a aquisição de alguns deles e a desembolsar mais dinheiro para levar os mesmos alimentos a nossas famílias. Como esse fenômeno repetiu-se em todas as partes do mundo, foi batizado de Crise Alimentar Mundial, e imediatamente os meios de comunicação e os governos começaram a se ocupar do tema. A Organização Internacional para Agricultura e Alimentação (fao) acaba de informar que, a partir da atual Crise Alimentar Mundial, o mundo tem 75 milhões de novos famintos, levando o número de pessoas em situação de fome a nada menos que 923 milhões. Mas a crise alimentar mundial não é um fenômeno natural, não é conseqüência de uma seca e nem de aumento da população. Tem sua origem em decisões humanas, algumas que são evidentes, e outras que se mantêm ocultas. Isso é o que procuramos compartilhar e explicar neste caderno. Cadernos de Biodiversidade é um folheto colecionável de Biodiversidade sustento e culturas, outubro de 2008 Ilustrações: desenhos pré-hispânicos de culturas indígenas que hoje se situam na Argentina, tiradas do livro El diseño indígena argentino, Alejandro Eduardo Fiadone, La Marca Editora, 2006. Organizações coeditoras Acción Ecológica [email protected] / Acción por la Biodiversidad [email protected] / Campanha de Sementes da Vía Campesina – Anamuri [email protected] / Centro Ecológico [email protected] / grain [email protected] / Grupo etc veró[email protected] / Grupo Semillas [email protected] / Red de Coordinación en Biodiversidad [email protected] / REDES-AT Uruguai [email protected] Comitê Editorial Ma. Eugenia Jeria, Argentina / Carlos Vicente, Argentina / Ciro Correa, Brasil / Maria José Guazzelli, Brasil / Germán Vélez, Colômbia / Alejandra Porras (Coeco-AT), Costa Rica / Silvia Rodríguez Cervantes, Costa Rica /Camila Montecinos, Chile / Francisca Rodríguez, Chile / Elizabeth Bravo, Equador / Ma. Fernanda Vallejo, Equador / Silvia Ribeiro, México / Magda Lanuza, Nicarágua / Martin Drago, Uruguai / Carlos Santos, Uruguai / Administração Ingrid Kossmann [email protected] / Edição Ramón Vera Herrera [email protected] / Desenho e formatação Daniel Ortega, Claudio Araujo [email protected] / Amanda Borghetti (Brasil) Biodiversidade • CadernO 25 • Dizem para nós que há crise porque… Aumenta o preço do petróleo? Isso em parte é verdade, pois o atual modelo de agricultura é absolutamente dependente do petróleo: tanto para trabalhar a terra como para o transporte dos alimentos, gastam-se enormes quantidades de combustíveis. A isso se deve somar o uso intensivo de agroquímicos, que são produzidos a partir da indústria petroquímica. Porém, podemos observar claramente que, quando o preço do barril de petróleo cai, não ocorre uma redução equivalente no preço dos alimentos. iii Terras são destinadas à produção de agrocombustíveis no lugar de alimentos? Isso também ocorre, em parte, já que a febre desenfreada para produzir agrocombustíveis durante os últimos anos está ocupando terras antes destinadas a produzir alimentos, para produzir agora combustíveis para os automóveis. Contudo, as terras que se destinam atualmente para produzir agrocombustíveis não justificam o incessante aumento dos preços de todos os alimentos. Os chineses comem mais carne? Essa é outra das razões que têm sido dadas para justificar o aumento dos preços dos últimos meses. Mas também representa uma falácia, já que, em boa medida, a China é auto-suficiente na produção de alimentos (salvo em relação à soja, que importa para alimentar seu gado) e, portanto, não pode causar esse impacto sobre os preços mundiais de alimentos. Todos esses fatores obviamente contribuem, mas não são suficientes para explicar o espetacular aumento dos preços dos alimentos. Não devemos esquecer que hoje se produzem no mundo alimentos suficientes para alimentar todas as pessoas. Ou seja, o problema dos milhões de pessoas que padecem – e das que padecerão – de fome tem uma causa importante na má distribuição de alimentos que as sociedades humanas promovem. • Por isso é evidente que... A principal causa da existência de crises alimentares se deve a haver gente cuja prioridade principal é produzir ganhos econômicos (aumentar o capital), ao invés de atender às necessidades humanas (que todos tenham acesso aos alimentos). • Porque... Hoje se produzem alimentos suficientes para alimentar toda a humanidade. Os camponeses e os povos indígenas continuam produzindo a maior parte dos alimentos em todo o planeta. • Mas... A Organização Mundial do Comércio (organismo internacional que se propõe a regular o comércio e a estabelecer as regras das transações) e o Fundo Monetário Internacional pressionaram os governos dos países em desenvolvimento a liberalizar o comércio agrícola. Isso quer dizer que se abriu a importação de alimentos e se proibiram as medidas que protegiam – mediante subsídios ou tarifas aduaneiras – a produção nacional de alimentos. As empresas estão decididas a controlar toda a cadeia de produção de alimentos, desde as sementes até a comercialização dos produtos elaborados. Um punhado de empresas agora controla a produção e venda de sementes, agroquímicos, e a comercialização de grãos. Começaram com a Revolução Verde, nos anos 1970 (sementes híbridas, fertilizantes e agroquímicos), e continuaram com a Revolução Biotecnológica dos anos 1990 (sementes transgênicas que devem pagar direitos de propriedade intelectual, com uso intensivo de agroquímicos). Crise Alimentar ou novos negócios às custas de nossa fome? CadernO 25 • Biodiversidade iv O México nos fornece um bom exemplo. Durante centenas de anos foi autosuficiente em milho, mas, ao assinar o Tratado de Livre Comércio da América do Norte, teve que permitir o ingresso de milho dos Estados Unidos. Esse milho era barato – pois lá sim é subsidiado – e prejudicou os agricultores mexicanos, que em poucos anos reduziram sensivelmente sua produção. Mas, durante 2007, o milho que chegava dos Estados Unidos era muito caro, e isso aumentou de forma terrível o preço da tortilla, o que gerou uma “explosão” social. A Argentina também nos apresenta um triste panorama. Esse país é reconhecido no mundo por suas excelentes carnes, e, até uma década atrás, era costume comer carne todos os dias, até nos lares mais pobres. Mas, claro, a expansão do agronegócio da soja ocupou as melhores terras do pampa para criar um deserto verde (17 milhões de hectares plantados com soja), e é difícil encontrar campos com vacas pastando. A carne que é produzida é exportada, e a que se vende no mercado interno é muito cara. Os pobres só podem comer carne assada ocasionalmente. A liberalização do comércio agrícola significa claramente estabelecer as regras que são convenientes às empresas para fazerem negócios. A comercialização de alimentos converteu-se em um negócio muito rentável. As empresas estão decididas a controlar toda a cadeia de produção de alimentos, desde as sementes até a comercialização dos produtos elaborados. Nas últimas décadas, elas se dedicaram a comprar empresas menores e a se associar entre as grandes, fazendo o controle da produção e venda de sementes, agroquímicos, e a comercialização de grãos ficar nas mãos de um punhado de empresas. Fizeram isso através da Revolução Verde, nos anos 1970 (sementes híbridas, fertilizantes e agroquímicos), e da Revolução Biotecnológica, nos anos 1990 (sementes transgênicas que devem pagar direitos de propriedade intelectual, com uso intensivo de agroquímicos). • E como os lucros nunca são suficientes... A comercialização de matérias-primas tem cotação em bolsas de valores, e se desenvolveu um mercado de vendas futuras. Realizam-se contratos nos quais se compram colheitas que recém estão sendo semeadas, e, com esses papéis de supostos grãos, realizam-se quantidades de negócios especulativos (contratos que especificam o preço e estabelecem que o bem não será pago até a data da entrega). As grandes empresas encontraram a maneira de ganhar sempre. Quando os preços estão altos, vendem colheitas que ainda não têm. Quando os preços estão baixos, guardam os grãos para oportunidades melhores. Quando os governos têm que conter as populações com fome e subsidiam os grãos, as empresas ganham ao vender a preços elevados. Quando as secas produzem más colheitas, as empresas não perdem nada, pois o contrato obriga o produtor a lhes entregar a produção. Se o produtor não entrega nada, lhe embargam a terra, e perde o produtor, e a empresa ganha. As empresas necessitam estradas ou vias navegáveis Crise Alimentar ou novos negócios às custas de nossa fome? Biodiversidade • CadernO 25 para transladar suas mercadorias, os governos tomam créditos e criam a infraestrutura necessária para que as empresas façam seus negócios e ganhem. Vejamos alguns exemplos concretos do que ocorreu com as empresas do agronegócio enquanto se desencadeava a crise alimentar. Comercialização de grãos. Em abril de 2008, a Cargill anunciou que os lucros que havia obtido com o comércio de produtos básicos de exportação no primeiro trimestre de 2008 aumentaram 86% em relação ao mesmo período do ano anterior. A Bunge, outra grande comerciante de alimentos, no último trimestre fiscal de 2007 teve um aumento em seus lucros de 245 milhões de dólares, ou 77%, em relação ao mesmo período do ano anterior. A adm, a segunda maior comerciante de grãos do mundo, experimentou um aumento de 65% em seus lucros em 2007, chegando a um recorde de 2,2 bilhões de dólares. Empresas de sementes. A Monsanto, a maior empresa de sementes do mundo, declarou que seus lucros gerais aumentaram 44% em 2007, em relação ao ano anterior. A DuPont, a companhia de sementes número dois do mundo, disse que seus lucros com a venda de sementes, em 2007, aumentaram 19% em relação a 2006. A Syngenta, a empresa número um de agrotóxicos e número três de sementes, obteve 28% a mais de lucros no primeiro trimestre de 2008. As grandes empresas encontraram a maneira de ganhar sempre. Quando os preços estão altos, vendem colheitas que ainda não têm. Quando os preços estão baixos, guardam os grãos para oportunidades melhores. Quando os governos têm que conter as populações com fome e subsidiam os grãos, as empresas ganham ao vender a preços elevados. Quando as secas produzem más colheitas, as empresas não perdem nada, pois o contrato obriga o produtor a lhes entregar a produção. Se o produtor não entrega nada, lhe embargam a terra, e perde o produtor, e a empresa ganha. • O que se passou nos últimos cinco anos? O mundo das finanças e das especulações, a bolsa de Wall Street, enfrentou e enfrenta uma profunda crise. A bolha criada com negócios imobiliários cresceu e chegou a seu ponto máximo, por isso explodindo, e muitos “capitais abutres” (grupos especulativos que põem seu dinheiro onde conseguem lucros bons e rápidos) abandonaram a área imobiliária e passaram à promissora área dos agronegócios. Esse deslocamento aumentou o nível de especulação e o jogo financeiro no mercado de alimentos. Hoje, as grandes agrocorporações obtêm lucros espetaculares especulando com a crise alimentar, aumentando seus lucros de forma impressionante enquanto nossos povos passam fome. • E o que nos propõem os governos e a onu para enfrentar a crise? A Cúpula Alimentar realizada em junho passado, em Roma, expôs que: “É urgente ajudar os países em desenvolvimento e os países em transição a aumentar sua Crise Alimentar ou novos negócios às custas de nossa fome? CadernO 25 • Biodiversidade As medidas propostas pela Cúpula de Roma somente aumentarão o controle das corporações sobre a agricultura, permitindo que elas continuem obtendo lucros vi espetaculares, enquanto cresce o número de famintos (que, para a onu, são cifras estatísticas, enquanto que, no dia a dia de cada um de nós, bem sabemos que se tratam de seres humanos – crianças, homens e mulheres – que sofrem, e aos quais está sendo negada qualquer possibilidade de uma vida digna). agricultura e a produção de alimentos, e a aumentar o investimento público e privado na agricultura, nas agroempresas e no desenvolvimento rural”. Também afirma que “Incentivamos a comunidade internacional a prosseguir em seus esforços de liberalização do comércio agrícola internacional mediante a redução dos obstáculos e das políticas que distorcem o mercado”, e acrescenta que essas medidas “darão aos agricultores, em particular nos países em desenvolvimento, novas oportunidades de vender seus produtos nos mercados mundiais e apoiarão seus esforços para aumentar a produtividade e a produção”. • O que isso significa?: * Mais Revolução Verde * Mais “Livre Comércio” * Mais poder ao Agronegócio * Mais transgênicos • É essa a solução para a crise? Definitivamente NÃO. Porque essas medidas somente aumentarão o controle das corporações sobre a agricultura, permitindo que elas continuem obtendo lucros espetaculares, enquanto cresce o número de famintos (que, para a onu, são cifras estatísticas, enquanto que, no dia a dia de cada um de nós, bem sabemos que se tratam de seres humanos – crianças, homens e mulheres – que sofrem, e aos quais está sendo negada qualquer possibilidade de uma vida digna). • Então, o que podemos fazer? Nossos povos resistiram por séculos ao embate dos poderosos mantendo sua cultura, seus territórios, suas formas de vida, sua agricultura e seus alimentos. Crise Alimentar ou novos negócios às custas de nossa fome? Biodiversidade • CadernO 25 Hoje continuam fazendo isso e demonstram que na vida e nas lutas camponesas é onde há um futuro para a humanidade. Podemos cultivar e conservar nosso direito de imaginar o mundo que desejamos. Fazemos o possível com base naquilo em que acreditamos. O possível, segundo nossa visão, é ir construindo relações diferentes com aqueles que nos rodeiam no aqui e agora. Construir e reconstruir o tecido social. Não esquecermos de nossa mútua interdependência e de que somos parte da natureza. Deixar de julgar-nos com os critérios daqueles que nos oprimem e estão destruindo o mundo. Reivindicar nossos próprios critérios. vii Lembrar que a economia é mais ampla que o dinheiro. É necessário começar a buscar como sair dos circuitos de mercado e começar a criar circuitos econômicos próprios. Aproximar e relocalizar processos e decisões. • Como se pode fazer isso? * Tomando consciência da situação geral e não nos enganando com enfoques parciais. * Construindo soberania alimentar na prática e nas comunidades locais. * Estabelecendo vínculos e alianças com os consumidores das cidades. * Defendendo nossas sementes e seu livre fluxo contra todas as tentativas de privatização e apropriação, assim como as práticas agrícolas tradicionais. * Lutando pelo controle e pela recuperação de terras e territórios. * Insistindo com os governos para que promovam e defendam o direito soberano de decidir quais alimentos cultivar, como e onde. Fazendo-os entender que a agricultura não pode estar sujeita às leis de mercado. * Resistindo ao modelo agroindustrial, aos agrotóxicos e aos transgênicos. * Denunciando o poder corporativo e seus impactos. * Atuando contra suas práticas destrutivas. * Desmantelando o poder das corporações do agronegócio. * Informando-nos e compartilhando essa informação com outros. * Organizando-nos. * Resistindo enquanto vamos criando. As mulheres da cloc-Via Campesina mais uma vez souberam indicar o rumo para encontrar uma saída: A soberania alimentar é um princípio de caráter político, que questiona o sistema capitalista em todas as suas expressões, busca a transformação da sociedade, expõe a necessidade de reforçar a luta contra as políticas neoliberais e pela defesa da terra e dos territórios. Portanto, devemos continuar lutando contra as transnacionais e os acordos de livre comércio, que têm destruído a agricultura camponesa, os territórios e os sistemas alimentares locais. Nossa luta continuará para impedir que se assinem novos tratados, e para que se anulem os já assinados. É, Crise Alimentar ou novos negócios às custas de nossa fome? CadernO 25 • Biodiversidade viii Podemos cultivar e conservar nosso direito de imaginar o mundo que desejamos. Fazemos o possível com base naquilo em que acreditamos. O possível, segundo nossa visão, é ir construindo relações diferentes com aqueles que nos rodeiam no aqui e agora. Construir e reconstruir o tecido social. Não esquecermos de nossa mútua interdependência e de que somos parte da natureza. Deixar de julgar-nos com os critérios daqueles que nos oprimem e estão destruindo o mundo. Reivindicar nossos próprios critérios. também, fundamental a luta contra a dívida externa, por ser mecanismo de opressão que atenta contra a soberania de nossos povos. Por isso nossos compromissos são para reforçar a luta pelos nossos direitos como mulheres e como povos, para continuar produzindo alimentos e proteger nossas terras e a natureza. Não somente é necessário garantir os alimentos para todos, mas também os direitos à água, à terra, às sementes e à defesa de nossos territórios. Nossos desafios são provocar mudanças profundas nos sistemas de produção, de consumo, e pela construção de novas relações de produção e de convivência. Somente mudanças radicais para colocar um fim ao capitalismo poderão trazer uma solução verdadeira. Estamos lutando contra os monocultivos, os transgênicos, os agronegócios, o latifúndio, a estrangeirização da terra e dos territórios. Estamos trabalhando pela articulação política em torno de um projeto de sociedade justa. Reforçaremos a articulação das lutas das mulheres e das organizações nos distintos países e buscaremos o diálogo entre campo e cidade, com o fim de fortalecer e divulgar nossas lutas e ações. Estamos convencidas de que devemos fortalecer as lutas por Reforma Agrária e por defesa da terra. Que nessa luta devemos continuar batalhando para que os direitos das mulheres à terra sejam garantidos, assim como o da água e dos bens da natureza. O acesso à terra e aos adequados meios de produção é fundamental, e seguiremos lutando até que seja realidade para homens e mulheres, sem discriminação nem condicionamentos em função do gênero. O nosso objetivo é conseguir que nossas terras e territórios sejam inalienáveis, e a água seja um bem natural inapropriável que todos devemos cuidar. Referências Bibliográficas fao, El hambre aumenta http://www.fao.org/newsroom/es/news/2008/1000923/index.html fao, Cumbre Alimentaria: prioridad máxima a la inversión agrícola http://www.fao.org/newsroom/es/news/2008/1000856/index.html Mujeres del campo en lucha por la soberanía alimentaria, http://www.viacampesina.org/main_sp/ index.php?option=com_content&task=view&id=554&Itemid=1 Crise Alimentar ou novos negócios às custas de nossa fome?