FORMATOS DE PROGRAMAS DE TV E SUA

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FORMATOS DE PROGRAMAS DE TV E SUA
FORMATOS DE PROGRAMAS DE TV
E SUA PROTEÇÃO: UTOPIA OU
REALIDADE?
Gustavo Heitor Piva Luiz de Andrade
2005
FORMATOS DE PROGRAMAS DE TV
E SUA PROTEÇÃO: UTOPIA OU REALIDADE?
1) Introdução
A indústria da televisão nos dias atuais é extremamente competitiva. Na
intensa disputa pela preferência do telespectador, reality shows, quiz shows,
game shows e talent shows têm assumido um papel cada vez mais relevante
na programação das emissoras.
Seguindo esta tendência, empresas de todo o mundo vêm buscando inserir
programas do gênero em suas grades e optam muitas vezes pelo
licenciamento de formatos de programas já testados em outros países.
O licenciamento de formatos de programas televisivos é uma indústria que
atualmente movimenta muitos milhões de dólares. Programas como Who
Wants to Be a Millionaire?1, da inglesa Celador Productions, Survivor, da
também inglesa Castaway Television Productions, e
Big Brother2, da
holandesa Endemol, já tiveram seus formatos licenciados para emissoras de
dezenas de países, transformando-se em extraordinárias fontes de renda para
seus respectivos idealizadores.
E a receita auferida não se limita ao licenciamento em si. Atualmente, muitos
destes programas são acompanhados de forte carga de merchandising e são
decididos pelo público por meio de ligações, o que maximiza ainda mais o
enorme valor comercial dos seus formatos.
Um mercado de tal magnitude, claro, atrai a atenção de concorrentes que,
muitas vezes, ao invés de optarem pelo licenciamento dos formatos e pagarem
os royalties correspondentes, desenvolvem programas semelhantes que
passam a concorrer diretamente com os programas originais.
Tal conduta naturalmente colide com os interesses das empresas produtoras
dos formatos e dos seus licenciados, sendo precisamente nesse contexto que
surge um dos temas mais atuais e controversos da área de propriedade
intelectual: a proteção dos formatos de programas de televisão.
Com efeito, até onde vai a idéia e começa a expressão? Até que ponto um
programa baseado nos mesmos elementos do programa de um concorrente é
uma infração e, como tal, deve ser reprimida pelos aplicadores do direito?
O objetivo do presente trabalho é examinar a questão da proteção dos
formatos de programas de TV e de todas as dificuldades a ela inerentes. Como
1
Who Wants to Be a Millionaire? já teve seu formato licenciado para emissoras de nada menos
que 106 países. Fonte: BBCbrasil.com, 12/04/2005.
2
O formato do Big Brother já foi licenciado para emissoras de 31 países. Fonte:
www.endemol.com, 02/05/2005.
1
veremos, tribunais de diversos países têm hesitado em reconhecer que
formatos de programas estão inseridos no rol das obras intelectuais legalmente
protegidas. Outros tribunais, contudo, recentemente se posicionaram de
maneira distinta, aquecendo ainda mais a já grande discussão sobre a matéria.
Pode o formato ser protegido? Caso positivo, em quais circunstâncias? Por
meio de quais instrumentos legais? Estas são algumas das perguntas a que
nos propomos responder.
2) Por que formatos são comercializados?
Como salientamos, o comércio de formatos existe e vem crescendo a cada
ano, independentemente de todas as incertezas em relação à sua proteção.
Mas por que isso acontece? Por que empresas concordam em pagar por um
produto, cuja possibilidade de apropriação vem sendo fortemente questionada
nos tribunais?
Simplesmente porque, sob o ponto de vista comercial, uma emissora de TV
corre muito menos riscos em lançar um programa cujo formato já foi testado e
aprovado em diversos países, do que se tivesse que investir em um programa
totalmente novo, cujo formato não foi nem sequer testado na televisão.
Ao optar pelo licenciamento do formato, a empresa também tem acesso a todo
o know-how relativo ao programa, o que, embora possa não ser decisivo para o
sucesso do mesmo, certamente contribui para o seu bom desenvolvimento no
mercado local.
Ademais, como o formato equivale a uma estrutura a ser seguida pelo
programa, ele pode ser adaptado às mais diferentes culturas. Exatamente por
isso que se obtém uma licença do formato do programa e não do programa
propriamente dito.
Tomemos como exemplo os reality shows. Ninguém duvida que um programa
feito com participantes do país em que ele está sendo veiculado tem muito
mais chances de sucesso do que um programa produzido em outro país que
tenha sido simplesmente importado. Certas estratégias comerciais, outrossim,
funcionam em um país e não funcionam em outro. Brincadeiras, atrações,
assuntos de interesse, hábitos televisivos. Praticamente tudo varia de um país
para outro.
Apesar disso, caso estejamos falando de um formato, o respectivo programa se
baseará na mesma estrutura e, portanto, terá o mesmo “look and feel”,
independentemente de onde ele estiver sendo produzido.
Ser um produto com relativa garantia de sucesso e que possa se adaptar às
características dos mais diversos países e culturas. Este é, sem dúvida, o
grande atrativo dos formatos.
2
3) A definição de formato
Nenhum país do mundo possui legislação com uma definição de formato de
programa televisivo. Logo, para se atingir uma definição razoavelmente
satisfatória, é necessário examinar as considerações de alguns estudiosos que
se debruçaram sobre o tema.
A FRAPA – Format Recognition and Protection Association3, associação com
sede em Colônia, Alemanha, os define como:
“The programme format is much more than a mere idea for a serial
television programme. When such a “format package” is offered, in
addition to the continually improved creative concept, it also include a
tried and tested production plan. Moreover, it contains records of the
ratings among the targeted groups in the “ratings bible”. Logos,
emblems, and designs for backdrops have been drafted. Music and
sound have been recorded. Episodes have been filmed, and
excerpts can be shown as prototype. (…) All this is not a conclusive
catalogue. It is merely a list of examples of what can be contained in
such a format package when the rights to use a programme format
are offered on the international market”4. (grifo nosso)
Albert Moran, catedrático da área de mídia na Universidade de Griffith,
Brisbane, Austrália, diz que:
“A format can be used as the basis of a new program, the program
manifesting itself as a series of episodes, the episodes being
sufficiently similar to seem like installments of the same program and
sufficiently distinct to seem like different episodes (…). Thus, from
one point of view, a television format is that set of invariable
elements in a program out of which the variable elements of an
individual episode are produced. Equally, a format can be seen as a
means of organizing individual episodes”5. (grifo nosso)
No Brasil, Fábio Ulhoa Coelho, um dos maiores comercialistas da nova
geração, ensina que:
“Formato de programa de televisão, no sentido empregado no meio
empresarial televisivo, é um conceito muito mais largo, que não
abrange só a idéia central do programa, mas compreende um
extenso conjunto de informações, técnicas, artísticas, econômicas,
3
A FRAPA é uma associação formada por mais de 100 empresas da indústria do
entretenimento, em sua maioria emissoras e produtoras de televisão. Além de fazer lobby pela
proteção dos formatos, ela oferece os serviços de registro de formatos e de mediação de
disputas envolvendo formatos de programas televisivos. www.frapa.org.
4
Format Protection in Germany, France and Great Britain, “Economic and Legal Aspects of
International Development and Marketing of TV Formats”, págs. 21/22.
5
The Wit, The Format Business: Desperately Looking For Zero Risk, in: European Broadcasting
Union, Srategic Information Service Briefing, no. 44, November, 2001.
3
empresariais...O formato de programas televisivos não é apenas a
idéia do programa, é a idéia e muito mais”6. (grifo nosso)
Ao se examinar os trechos acima, de pronto percebe-se a dificuldade em se
chegar à uma definição estática, totalmente conclusiva, do que vem a ser um
formato.
Apesar disso, todas os três autores são unânimes no sentido de que o formato
é um pacote, isto é, um conjunto de diversos elementos, informações e
características sobre os quais o programa se baseia e se operacionaliza. Em
outras palavras, é a estrutura que descreve e possibilita não só a efetiva
realização do programa, como também a sua própria adaptação para a
televisão.
Pela sua própria essência, portanto, os formatos não possuem uma definição
conclusiva e ostentam um universo de elementos que obviamente varia de um
programa para outro.
Analisemos o Who Wants to Be a Millonaire?7. Em apertada síntese, trata-se
de um quiz show no qual o apresentador faz perguntas ao participante e este
vai acumulando determinada quantia em dinheiro na medida em que as acerta.
Sob uma perspectiva mais ampla, todavia, o formato do programa contempla
uma série de características e regras que, juntas, fazem com que ele seja
simplesmente um dos maiores sucessos da televisão mundial.
São elas: os participantes são sorteados; no próprio programa, eles passam
por outro sorteio que determina quais participantes efetivamente terão a
chance de responder às perguntas; uma vez escolhido, o participante fica de
6
Trecho retirado da sentença proferida pela 4ª Vara Cível da Comarca de Osasco/SP, Brasil,
Caso TV Globo Ltda e Endemol Entertainment International B.V. vs. TVSBT – Sistema
Brasileiro de Televisão, Processo no. 2315/01 e 2543/01, 16/06/2003, pág. 06.
7
4
costas para a platéia e de frente para o apresentador e um monitor eletrônico;
um computador baseado num sistema aleatório escolhe a pergunta e a coloca
no monitor, juntamente com quatro possibilidades de resposta dentre as quais
apenas uma é correta; na medida em que o participante responde
corretamente, as perguntas vão adquirindo um grau cada vez maior de
dificuldade; da mesma forma, o participante vai acumulando cada vez mais
dinheiro, podendo chegar à cifra máxima que geralmente corresponde a um
milhão de unidades da moeda do país em que o jogo está sendo realizado;
caso o participante não saiba a resposta, ele pode, por um número limitado de
vezes, optar por não responder e simplesmente “pular” a pergunta;
alternativamente, ele pode pedir a ajuda de um grupo formado por alguns
intelectuais, de um amigo ou tentar eliminar algumas das respostas erradas por
meio de algum sistema baseado na sorte; caso o participante decida responder
a pergunta e escolha a alternativa errada, ele é eliminado e perde toda a
quantia que acumulou, o que cria o dilema entre continuar no jogo e tentar
ganhar mais ou simplesmente sair dele com o que já se ganhou; naturalmente,
a produção é toda voltada para criar um clima de apreensão; o rosto do
participante é focalizado; jingles de suspense são reproduzidos; o apresentador
pergunta reiteradas vezes se aquela é a resposta final do participante; enfim,
tudo é direcionado para aumentar a expectativa em torno do jogo e,
conseqüentemente, o grau de interesse do telespectador.
Embora a descrição acima não consubstancie uma lista exaustiva, ela
demonstra as principais características e detalhes do programa, possibilitando
que ele se diferencie dos demais quiz shows do mercado.
Logo, apesar de o programa se basear no tradicional conceito de quiz show e
certamente se inserir no gênero de mesmo nome, ele possui elementos que lhe
são próprios e que o transformam num bem passível de comercialização.
Tanto é assim que Who Wants to Be a Millionaire?, como salientado, já teve
seu formato licenciado para nada menos que 106 países8, não havendo como
negar que se trata de um produto amplamente comercializado no mercado
internacional.
Outro exemplo interessante são os reality shows. Muitos deles são programas
que se baseiam na idéia central de isolar pessoas em um determinado lugar e
filmá-las de modo a revelar todos os conflitos e situações decorrentes daquela
convivência. Ora, ninguém dúvida que a idéia de isolar pessoas em
determinado lugar e as ficar observando é muito antiga. Existem registros, por
exemplo, de que Jean Paul Sartre já a explorou na peça teatral “Huis Clos”, em
maio de 1944.9
8
9
No Brasil, tal programa foi produzido e veiculado sob a denominação Show do Milhão.
“Théatre”, págs. 115/166, Gallimard, 1947, 150° edição.
5
Ainda assim, nos dias atuais, um programa baseado na mesma idéia de
isolamento, como Survivor10, consegue ser um verdadeiro “arrasa-quarteirão”
nos quesitos faturamento e popularidade, não se podendo questionar o
sucesso do seu respectivo formato.
Por estas razões, existe um relativo consenso de que o formato situa-se entre a
idéia e o programa propriamente dito. É mais do que a idéia, uma vez que à ela
foram acrescidos diversos elementos. E é menos do que o programa, pois
pode ser adaptado e modificado.
A grande questão é saber se este meio-termo é legalmente protegido,
devendo-se, primeiro, especificar os elementos do próprio formato e determinar
o que, de fato, foi ou está sendo licenciado.
Feito isso, o intérprete deve analisar a parcela dos elementos que está sendo
eventualmente copiada para, depois, utilizar-se dos possíveis instrumentos
legais aplicáveis para determinar se existe ou não infração.
4) Os possíveis instrumentos legais de proteção
A indústria dos formatos de programas de TV, como salientado, movimenta
muito dinheiro. Substanciais investimentos são feitos na área, tanto por
empresas idealizadoras de formatos, quanto pelas próprias emissoras de
televisão.
O principal argumento daqueles que advogam pela proteção dos formatos,
portanto, se baseia na máxima universal de que ninguém pode “colher aonde
não plantou” e se enriquecer injustamente às custas de outrem.
A tão almejada proteção visa, pois, resguardar os investimentos da indústria
dos formatos, proporcionando-lhe um mínimo de segurança jurídica e
garantindo que cada vez mais novos investimentos sejam realizados.
10
6
Em última instância, alegam eles, isto beneficia o próprio telespectador, que
tem à disposição programas de cada vez mais qualidade e uma variedade cada
vez maior de formatos que efetivamente chega à televisão.
De outra banda, aqueles que defendem a impossibilidade de se conferir
proteção ao formato argumentam que, pelo fato de o mesmo consistir num
mero sistema sobre o qual o programa se baseia e se operacionaliza, não é
possível garantir ao seu idealizador um direito de exclusividade.
Do contrário, criar-se-ia um privilégio injusto que, além de violar o princípio da
livre iniciativa, afronta os legítimos direitos de qualquer concorrente produzir,
veicular e explorar comercialmente um programa baseado no mesmo conceito.
Como corolário, o próprio telespectador é o grande prejudicado pois tais
“direitos de exclusividade’’ acabam restringindo a oferta de programas no
mercado e impedindo uma sadia concorrência entre as emissoras.
Ambos os lados, como se vê, se amparam em argumentos relevantes, ficando
evidente, desde já, uma enorme tensão de princípios constitucionais e infraconstitucionais entre as duas linhas de argumentação. De forma geral, a busca
pela proteção dos formatos tem sido efetuada mediante a aplicação de três
institutos, a saber:
Ø direitos autorais;
Ø concorrência desleal; e
Ø direto contratual.
Logo, para decidir conflitos envolvendo formatos, tribunais de todo o mundo
necessariamente enfrentam peculiaridades relativas a estas áreas do direito e
suas inevitáveis inter-relações. Faz-se, pois, necessário efetuar um detido
exame de cada um desses institutos e dos obstáculos que, de uma forma ou de
outra, acabam dificultando sua respectiva aplicação na seara dos formatos de
programas de televisão.
4.1) Direitos Autorais
Os direitos autorais são espécie do gênero propriedade intelectual e visam
conferir aos autores de obras intelectuais um privilégio temporário de uso e
gozo por terem contribuído para o desenvolvimento das artes e do progresso
científico da humanidade.
A proteção a tais direitos encontra, pois, duas justificativas de natureza diversa:
i) premiar os autores com a prerrogativa de perceber os frutos do seu trabalho,
garantido-lhes o direito exclusivo de utilizar, publicar e reproduzir suas obras; e
7
ii) promover o desenvolvimento das artes e da ciência em busca do bemcomum almejado pela sociedade.
Como forma de propriedade intelectual que são, os direitos autorais são
reconhecidos e encontram proteção em diversos tratados internacionais e em
praticamente todos os ordenamentos jurídicos do mundo.
Dada a importância de tais direitos, muito países chegam a incluí-los no rol dos
direitos e garantias fundamentais previstos na própria Constituição. Este é o
caso do Brasil, país cuja Constituição Federal contém o seguinte dispositivo:
Art. 5 – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização,
publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros
pelo tempo que a lei fixar.
Para mereceram proteção autoral, as obras devem ser originais e ser
expressas ou fixadas em qualquer meio ou suporte. Independentemente de
qual seja o sistema em questão (droit d’auteur ou copyright), estes são
basicamente os dois requisitos para que determinada criação se qualifique
como uma obra intelectual legalmente protegida.
A Convenção de Berna e a legislação autoral de diversos países contém uma
lista exemplificativa das criações que se qualificam como obras protegidas11.
Até onde sabemos, todavia, nenhum país contém disposição expressa
incluindo os formatos de programas de TV no rol exemplificativo das criações
legalmente protegidas.
Assim, para determinar se o formato se qualifica, o intérprete deve examiná-lo
e dizer se, pela organização ou disposição do seu conteúdo, ele constitui uma
criação de espírito advinda do intelecto. Ao mesmo tempo, deve checar se o
formato não se enquadra em nenhum dos exemplos que a lei expressamente
exclui da proteção, sendo precisamente nesse momento que surge o
problema.
4.1.1) A dicotomia idéia/expressão em relação aos formatos
Tanto o sistema franco-romano, quanto o sistema anglo-saxônico, consagram o
axioma de que idéias, métodos, sistemas e conceitos não são passíveis de
proteção. Isso significa que as idéias, métodos, etc., em si, não podem ser
11
A Convenção de Berna traz tal lista exemplificativa em seu artigo 2, item 1.
8
apropriados, devendo sua disseminação se manter livre e afastada de
qualquer tipo de restrição.
Este é um dos princípios mais universais que regem o sistema de direitos
autorais e se baseia na premissa de que, caso as idéias e métodos pudessem
ser objeto de exclusividade, em pouco tempo os autores não mais teriam o que
criar ou desenvolver12.
O resultado seria a total obstrução do progresso das artes e da ciência, ou
seja, justamente o contrário do que o sistema de proteção aos direitos autorais
visa estimular.
Direitos de autor, portanto, recaem não sobre as idéias e métodos em si, mas
sim, e tão somente, sobre a sua respectiva forma de expressão13. Em termos
práticos, isso quer dizer que o autor possui direitos somente sobre a específica
materialização da sua obra, não sobre a idéia, método ou conceito sobre os
quais ela se baseia.
Como conseqüência, qualquer um pode trabalhar uma idéia, sem que isso
implique em violação aos direitos daquele que primeiro a explorou. Só existirá
infração se houver reprodução, cópia ou plágio da própria forma de
expressão14.
12
Sobre o tema, vale transcrever preciosa lição de Eliane Y. Abrão, In “Direitos de Autor e
Direitos Conexos”, 1ª Ed., pág. 18, 2002: “E há um campo de verdadeira imunidade a qualquer
proteção de caráter autoral: é o das idéias, dos conceitos, dos métodos, dos sistemas, dos
cálculos. Toda obra parte de uma idéia, de um conceito, de uma sinopse, contém um método,
um cálculo. Isso é só o ponto de partida. Para se chegar à obra concretizada, há um longo
caminho a percorrer, partindo da materialização da idéia à produção da obra até a sua
disponibilização ao público. A idéia, ponto de partida, não se confunde com a obra. O resultado
sensorial dessas idéias, métodos, conceitos, isto é, a forma ou expressão fixada em base
corpórea, ou incorpórea, é que é protegida pela lei autoral, e não as idéias, os métodos, os
cálculos em si ou que nelas se incrustam. Exemplifica-se: o livro de ensino de matemática é de
criação de determinado autor, mas não os cálculos utilizados em cada exercício. O mesmo
ocorre com o livro de ficção que se utiliza do triângulo amoroso, ou das relações sociais
diferenciadas que permeiam a trama, temas de obras literárias, desde a Antiguidade até o
Terceiro Milênio.”
13
A Suprema Corte Norte-Americana decidiu: “The primary objective of copyright is not to
reward the labor of authors, but to ‘promote the Progress of Science and useful Arts’. Art. I, 8,
cl.8. (…) To this end, copyright assures authors the right to their original expression, but
encourages others to build freely upon the ideas and information conveyed by a work (…). This
principle, known as the idea/expression dichotomy or fact/expression dichotomy, applies to all
works of authorship. As applied to a factual compilation, assuming the absence of original
written expression, only the compiler’s selection and arrangement may be protected; the raw
facts may be copied at will. This result is neither unfair not unfortunate. It is the means by which
copyright advances the progress of science and art (…)”. (Feist Publications, Inc. v. Rural
Telephone Service, 499 U.S. 340, 111 S.Ct. 1282, 1991)
14
“Copyright does not preclude others from using the ideas or information revealed by the
author’s work. It pertains to the literary, musical, graphic or artistic form in which the author
express intellectual concepts. It enables him to prevent others from reproducing his individual
expression without his consent. But anyone is free to create his own expression of the same
concepts, or to make practical use of them, as long as he does not copy the author’s form of
th
expression.” (Copyright, Cases and Materials, Gorman & Ginsburg, 6 edition, pg. 12, 2002)
9
Transportando tais noções para o ramo dos formatos, torna-se absolutamente
imperativo para aqueles que defendem sua proteção provar que o formato é
mais do que uma mera idéia, método, sistema ou conceito. Do contrário, a
proteção via direitos autorais será certamente prejudicada.
Diversas são as decisões judiciais que negaram proteção autoral aos formatos
por entenderem que eles não passavam de uma idéia. No Brasil, uma das
primeiras ações do gênero foi julgada em 199515 e tratava-se de um caso no
qual a parte Autora (Sra. Marizete Kuhn) havia registrado um formato de
programa perante o órgão brasileiro responsável pelo registro de direitos
autorais.
O formato explicitava um programa intitulado O Povo é o Juiz que se baseava
numa estória sobre tema polêmico e atual, para aguçar o interesse e a
curiosidade dos telespectadores que, ao final, eram instados a se manifestar
sobre o fim da trama.
Ao tomar conhecimento de que a maior emissora de televisão do país (TV
Globo Ltda) estava veiculando um programa semanal intitulado Você Decide
que também se baseava numa estória polêmica, cujo final também era decidido
pelos telespectadores, a parte Autora a acionou alegando que este se tratava
de um plágio daquele. Decidiu o juiz:
“De fato, não se pode vislumbrar a prática de apropriação de criação
artística, tanto mais porque os roteiros diferem em suas dinâmicas,
como admite a própria autora, embora ressalvando que a supressão
do debate entre cinco convidados não afeta, no essencial, o
programa que idealizou, muito menos a alteração do título para
“Você Decide”, que ela qualifica de sinônima do seu “O Povo é o
Juiz”. Os pontos de contato é que num e outro programa cogita-se
da narrativa de um fato polêmico, interrompido pelo apresentador,
que conclama os telespectadores a opinarem sobre o
comportamento decisivo do personagem central da estória. (...) Tal
como se expôs, o que transparece é que a requerente discute a
apropriação de um esboço de programa, sem qualquer
desenvolvimento ou detalhamento, que lhe dessem maior
concretude, afastando-se do campo teórica das idéias. Ora, o
programa atacado é uma obra completa e acabada, com estrutura
definida, não se podendo nele vislumbrar aspectos de plágio. Na
verdade, aquilo que a autora exibe é uma mera idéia, carecida de
materialidade, somente possível diante de um programa concreto”.
(...) Concluindo, diria inspirado na regra do art. 6°, da Lei n°5.
988/73, que a obra intelectual protegida é a criação do espírito, de
qualquer modo exteriorizada. Daí que não se protege idéias e sim a
15
Processo n° 17.289/94, 28a Vara Cível, Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro,
Juiz Jairo Vasconcelos do Cammo, sentença proferida em 30/06/1995. Decisão confirmada em
sede de apelação – Apelação Cível n° 5.731/95, 6ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro. Rel. Des. Mello Serra, 17/04/1996.
10
sua manifestação real, ou seja, a criação de uma nova forma de
expressá-las, perceptível aos sentidos. (...)”.
Como se vê, entendeu o julgador que não houve cópia de elementos
concretos, consistindo o formato da Autora num mero esboço de programa,
sem qualquer desenvolvimento ou detalhamento. Tratava-se, pois, apenas de
uma idéia ainda sem forma de expressão efetivamente materializada.
Note-se que o formato da Autora ainda não havia sido adaptado para a
televisão, o que impossibilitou o juiz de fazer uma comparação entre dois
programas completos e acabados.
Decisões como esta demonstram que, para atrair proteção autoral, o
idealizador do formato não pode se limitar a fazer uma simples descrição da
idéia sobre a qual ele se baseia, como se isso já fosse suficiente para lhe
conferir o status de uma obra intelectual.
Isto foi constatado pela própria FRAPA – Format Recognition and Protection
Association, que diz16:
“The most common mistake made by creators of formats is to submit
a rudimentary paper version of their idea. The more detailed a
creative concept for a television programme is, the more chance it
has of attracting copyright protection. Copyright may help, but it
cannot protect a mere idea. It can only protect the expression of an
idea. The idea needs to be elaborated if it is to be protected by
copyright. Therefore, my first advice is to develop all aspects of the
programme concept in as much detail as possible before giving it to
anyone.”
Descrever o formato nos seus mais mínimos detalhes. Este é, portanto, o
primeiro passo para desvencilhar o formato do abstrato mundo das idéias e
trazê-lo para o mundo das obras intelectuais legalmente protegidas.
4.1.2) A possível inserção dos formatos no rol das obras protegidas
Como já salientamos, para gozarem de proteção autoral, as obras devem ser
originais e ser expressas ou fixadas em qualquer meio ou suporte.
O requisito da originalidade exprime-se pela necessidade de a obra não ser
uma cópia ou reprodução de outra obra pré-existente. Para ser original, a obra
há de reunir um mínimo de criatividade, de modo a resultar numa criação de
espírito advinda do intelecto.
16
General Guide to Format Protection – http://www.frapa.org/guideformatprotection.html
11
O requisito da fixação, por sua vez, resulta da necessidade de a obra ser
concretizada e resultar numa forma de expressão efetivamente materializada
em algum suporte tangível ou intangível.
Para satisfazer o primeiro requisito, o formato do programa há de ser criativo e
englobar uma série de elementos que, no conjunto, em função da sua
organização e disposição, resultem numa criação intelectual.
Quanto mais original e criativo for o resultado, e quanto mais detalhes este
resultado contiver, maiores serão as chances de o formato se qualificar como
uma criação de espírito merecedora de proteção17.
Para satisfazer o segundo requisito, o formato há de ser descrito e delineado,
em pormenores, pelo seu idealizador. Deve, pois, adquirir uma forma de
expressão, o que evidentemente só é possível mediante sua fixação, seja
através do papel, seja através da sua própria adaptação para a televisão.
O fato de o formato já ter sido adaptado para a televisão, aliás, pode ser
extremamente importante, pois, nesse caso, seu idealizador já poderá fornecer
a respectiva obra audiovisual como parâmetro concreto de comparação para o
julgador.
Feito isso, deve-se examinar a legislação do país em que se está pretendendo
fazer valer direitos e determinar se o formato ali pode ser enquadrado como
uma obra intelectual.
Um dos primeiros casos que se tem notícia envolvendo a proteção de formatos
foi decidido na Inglaterra em 1989 (Green vs. Broadcasting Corporation of New
Zealand)18. Hughie Green, apresentador e idealizador do programa inglês
Opportunity Knocks, tentou impedir a veiculação de um programa similar na
Nova Zelândia.
Seu programa era um talent show que possuía certas características como um
“clapômetro” para medir a popularidade do participante com a platéia; o
apresentador se utilizava de algumas frases peculiares para atrair a atenção do
público; todas elas copiadas pelo programa neozelandês que adotou, inclusive,
o mesmo título.
A corte inglesa, todavia, entendeu que faltava ‘’suficiente unicidade” ao formato
do Opportunity Knocks, o que, segundo ela, fazia com que o formato não se
17
Sobre a questão, vale transcrever passagens do artigo “Europe: Protection of Businnes
Concepts”, de Knud Wallberg, in Trademark World, n° 132, 2000: “TV formats are used as
describing new entertainment programmes for television. The description then covers the
amalgamated knowledge about the editorial, scenografic, technical, economic and other
conditions, which have to be fulfilled to be able to produce such programmes. (…) The common
and characteristic feature of these phenomena is that they are not isolated subjects but, on the
contrary, products or services consisting of several different elements. (…) When assessing the
distinctiveness of a concept it must be considered whether the idea behind the concept is
original and whether the single elements in the concept are an expression of an independent
innovative effort.”
18
Green vs. BCNZ (1989) 2 AII ER 1056 ff.
12
enquadrasse em nenhuma das obras protegidas pela lei de direitos autorais
inglesa (obra dramática ou argumento literário). Em outras palavras, adotou a
linha de que o formato nada mais era do que um conglomerado de idéias e lhe
negou a respectiva proteção.
Embora tal decisão venha norteando toda a jurisprudência sobre formatos
naquele país, alguns representantes da doutrina vêm sugerindo que ela não
põe um ponto final na discussão19, uma vez que o formato do Opportunity
Knocks era demasiadamente simples.
Atualmente, de fato, existem programas cujos formatos são infinitamente mais
detalhados, o que aumenta em muito suas chances de atrair proteção autoral
nas jurisdições dos diversos países em que são veiculados.
O Brasil é um excelente exemplo. A Lei de Direitos Autorais brasileira (Lei n°
9.610/98) dispõe em seus artigos 7° e 8° que:
Art. 7° - São obras intelectuais protegidas as criações de espírito,
expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte,
tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais
como:
I – os textos de obras literárias, artísticas ou científicas;
XIII – as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários,
bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou
disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual.
Art. 8° - Não são objeto de proteção como direitos autorais de que
trata esta Lei:
I – as idéias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos
ou conceitos matemáticos como tais.
Para que o formato se enquadre como obra literária, é fundamental que ele
seja fixado por escrito, devendo necessariamente existir um roteiro ou
argumento com uma detalhada descrição dos elementos sobre os quais o
formato se baseia e se operacionaliza.
Já com relação ao inciso XIII, deve-se demonstrar que o formato efetivamente
é o resultado de uma seleção organizada de diversos elementos, constituindo,
por isso, uma obra intelectual merecedora de proteção.
Ao mesmo tempo, como em qualquer lugar, o formato não pode ser a mera
representação de uma idéia, sistema, método ou procedimento normativo.
19
Charlotte McConnel, in “I’m a production company...get me a format right”, Copyright World,
Fevereiro/2003, pág. 22; e Ben Challis e Jonathan Coad, in “Format Fortunes: Is There Legal
Recognition for the Television Format Right?”, Music Business Journal, Agosto/2004
http://www.musicjournal.org/04formatfortunes.html.
13
Ao aplicar as disposições acima na seara dos formatos, os tribunais brasileiros
têm sido receptivos em conferir-lhes proteção, não obstante o fato de um dos
leading cases (Você Decide) tê-la negado.
A mudança de orientação ocorreu em 1998, por meio de ação intentada pela
TV Globo Ltda e Tokyo Broadcasting System (TBS) em face de TVSBT, sob a
alegação de que esta última copiou quadros do programa humorístico
Olimpíadas do Faustão. A ação foi julgada procedente e confirmada por
maioria em segunda instância, nos seguintes termos20:
“Se a legislação autoral sempre procurou assegurar a primazia da
criação intelectual, não se pode excluir dessa proteção a criação de
programas lúdicos, apresentados na televisão, que também,
merecem o agasalho da Lei n° 5.988/73, bem como da recente Lei
n° 9.610, de fevereiro de 1998, que altera, atualiza e consolida a
legislação sobre direitos autorais. No caso dos autos, a proteção
envolve a realização de uma idéia original, criativa, fruto de um
trabalho criativo de criação intelectual. Não se trata de uma simples
‘idéia’, porque, na verdade, um programa de televisão, um quadro
humorístico, uma cena de novela, uma sala de entrevistas levada ao
ar, um telejornal, enfim cada número, ou cada atração, ou
representação na tela de TV, constitui uma criação artística, ou
genericamente um trabalho intelectual, protegido pela lei. A ‘idéia’
poderia residir na origem do planejamento, da preparação inicial, dos
primeiros contatos e estudos sobre a oportunidade, a pertinência ou
viabilidade de sua realização. Mas quando se passa da idéia ao ato,
à realização concreta, às providências práticas, à montagem de
cenários, escolha de personagens, participantes, figurantes,
técnicos, equipe de retaguarda, já não se trata de uma ‘idéia’, mas
sim da realização de um projeto, prestes a ser concluído e levado ao
ar”.
Na decisão acima, o tribunal primeiramente deixou claro que não se pode
excluir da proteção autoral os programas lúdicos apresentados na televisão.
Depois, foi enfático no sentido de que o programa humorístico era sim fruto de
um trabalho coletivo de criação intelectual e que, portanto, merecia a respectiva
tutela.
Note-se, outrossim, que, para afastar o programa da noção de idéia, o tribunal
reconheceu a existência de uma série de elementos que, juntos, transformava
a realização num projeto passível de proteção.
20
Apelação Cível n° 60.906-4/9 – Primeira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo. Acórdão proferido em 01/12/1998.
14
Outro caso extremamente importante e que só veio a confirmar esta tendência,
foi o recém-julgado Big Brother vs. Casa dos Artistas21.
A Endemol, empresa holandesa titular do formato do Big Brother22, entrou em
negociações com uma emissora local, TVSBT, para licenciar o formato do
programa no Brasil. Durante estas negociações, diversas informações foram
transmitidas à TVSBT que acabou decidindo não adquirir a licença do formato.
Com isso, a Endemol passou a negociar com outra emissora, a TV Globo Ltda,
que adquiriu a licença. Antes mesmo do lançamento do programa, contudo, a
TVSBT lançou o programa Casa dos Artistas23, reality show do mesmo gênero
do Big Brother que, em poucos dias, se transformou na maior sensação da
televisão brasileira.
21
Processos nos. 2315/01 e 2543/01, 4a Vara Cível, Comarca de Osasco/SP. Sentença
proferida em 16/06/2003.
22
23
15
Com isso, a Endemol e a TV Globo Ltda acionaram a TVSBT alegando que o
programa exibido por esta última era um flagrante plágio do formato do Big
Brother e requerendo a cessação da veiculação do programa, além de
indenização.
Ao examinar se formatos de programas televisivos são ou não passíveis de
proteção à luz da legislação brasileira, destacou o magistrado:
“Como já foi dito, o formato de um programa não se limita a sua idéia
central. Efetivamente, o artigo 8°, I, da Lei n° 9.610/98 dispõe que
não são passíveis de proteção autoral idéias, todavia, é de
meridiana compreensão que a idéia mencionada no dispositivo legal
é aquela que não passou do campo subjetivo (...). A idéia, fruto de
um trabalho coletivo ou individual de criação que se materializa e se
personifica através de escritos, formatos manuais, gravações, deve
ter, e tem, na nossa legislação, proteção”.
Em seguida, passou ele a examinar o formato do Big Brother propriamente dito:
“(...) o formato do programa “Big Brother” não se limita a espiar
pessoas trancafiadas em uma casa e ponto final, ele vai muito além
disso. O formato contempla um programa com início, meio e fim,
com minuciosa descrição, não só dos ambientes em que as pessoas
residirão por um período, mas também dos locais onde câmeras são
colocadas. Constam do formato detalhes como a utilização de
microfones no corpo dos participantes, ligados 24 horas por dia, tipo
de música, a forma como os participantes terão contato com o
mundo exterior, atividade, entre outros. (...) Estes elementos são
apenas alguns dos que dão personalidade própria ao formato do
programa “Big Brother”, diferenciando-o de outras experiências que
se valeram de expiação de pessoas por câmeras. (...) Todavia, o
formato não contempla apenas a forma como se desenvolve o
programa em si, tem ele roteiro com orientação técnica, econômica,
comercial e operacional.”
Novamente, para desvencilhar o formato da idéia, o julgador fez questão de
descrever os detalhes e características que dão vida própria ao formato,
diferenciando-o das demais experiências que se valeram da idéia de espiar
pessoas enclausuradas em determinado lugar.
De acordo com o magistrado, tais detalhes e características são justamente o
que tornam o formato uma obra única e original, merecedora da tutela
conferida às criações intelectuais.
Embora o caso ainda se encontre em sede de apelação perante o Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, é inegável que a decisão acima constitui um
importantíssimo precedente para a indústria dos formatos, eis que reconhece
16
expressamente a possibilidade de os formatos serem protegidos via direito
autoral.
4.1.3) A difícil caracterização da infração
É sabido que, para prevalecer numa ação que envolva direitos autorais, o autor
deve provar: i) que é titular de direitos sobre uma obra intelectual legalmente
protegida; e ii) que aqueles direitos foram de alguma forma infringidos.
Tratam-se, pois, de dois requisitos distintos e cumulativos, cuja presença é
absolutamente necessária para se afastar uma suposta violação. Logo, uma
corte pode perfeitamente reconhecer que o formato é sim uma obra
devidamente protegida, mas, por outro lado, entender que a outra parte não se
apropriou de tantos elementos de modo a caracterizar a infração.
A obtenção da declaração de que o formato é passível de proteção, portanto,
não é o fim da batalha, mas apenas a metade dela.
Para comprovar a efetiva existência da infração, o titular do formato original
deve provar que um dos seus direitos sobre a obra (em especial o de
reprodução) foi usurpado.
A questão, todavia, torna-se particularmente complicada no ramo dos formatos,
pois, na confecção do seu programa, o infrator certamente não reproduzirá
todo o formato original, mas apenas alguns dos seus elementos24.
Em função disso, o intérprete terá que determinar o que é original e o que é
comum em ambos os formatos, tarefa que definitivamente não é simples
quando se está diante de programas que exploram a mesma idéia, tema ou
conceito.
Outra dificuldade advém do demasiado detalhamento do formato original.
Como salientamos, para distanciar o formato da mera idéia e
conseqüentemente atrair proteção autoral, o titular deve descrever o formato
nos seus mais mínimos detalhes.
Isso, contudo, pode trazer complicações no momento da caracterização da
infração, pois, se por um lado, o extremo detalhamento ajuda a atrair proteção
para o formato, por outro, ele torna mais fácil que um programa similar dele se
diferencie.
24
Isso foi também foi contatado pela FRAPA: “It is obvious that the adaptation and the original
will not be exactly the same, as no imitator would be so stupid to make an identical remake. An
imitator with skill and experience will use the original format as a source of programme
possibilities. In addition, the original set of elements and their combination may have to be
varied to fit production resources, channel image, buyer preference, national television culture,
and so on. The original will not be completely imitated but rather serves as a general guide
within which it is possible to introduce various changes to the original”. (General Guide to
Format Protection – http://www.frapa.org/guideformatprotection.html)
17
O titular do formato, portanto, se vê verdadeiramente entre a “cruz e a espada”,
podendo garantir uma declaração de que seu formato é passível de proteção,
mas sem, contudo, conseguir o seu principal objetivo que é cessar a veiculação
do programa tido como infrator.
Como o sistema de direitos autorais não coíbe a mera semelhança – até para
possibilitar o livre trânsito de obras baseadas nas mesmas idéias e conceitos –,
a noção de plágio torna-se fundamental para o exame do conflito entre dois
formatos de programas televisivos.
De acordo com a melhor doutrina, plágio é o “apoderamento ideal de todos ou
de alguns elementos originais contidos na obra de outro autor, apresentandoos como próprios”.25 Sua configuração “ocorre com a absorção do núcleo da
representatividade da obra, ou seja, daquilo que a individualiza e corresponde
à emanação do intelecto do autor”.26
Embora o plágio muitas vezes não esteja expressamente inserido nas
legislações como uma violação ao direito de autor, a doutrina e a jurisprudência
assim o vêm reconhecendo quando a obra plagiada é protegida pelo direito
autoral27.
A figura do plágio, portanto, necessariamente envolve a apropriação de
elementos originais da obra e exige uma deliberada intenção do infrator de
copiar ou de se aproveitar do núcleo da criação. Do contrário, o resultado é a
não ocorrência da infração, conforme atesta o seguinte julgado28:
“Direito Autoral. Plágio de programa divulgado em rede de televisão.
Inexistência de prova inequívoca de que a obra do autor era do
conhecimento dos réus. Para se configurar o plágio literário ou
musical há de existir a intenção de copiar ou de se aproveitar da
obra de outrem. Temas semelhantes retratando questões
ecológicas. Trabalho teatralizado e de ficção, que explora o tão
conhecido tema de conservação do verde e das árvores. Fatos
noticiados em jornais diversos no Rio, Porto Alegre e outras cidades
(...) explorando a preservação da natureza e a manutenção das
árvores. Improvimento do recurso”. (grifos nossos)
25
Delia Lipszyc, in Derecho de Autor y Derechos Conexos. Argentina: Ediciones
Unesco/Cerlac/Zavalia, p. 567, 1993.
26
Carlos Alberto Bittar, in Direito de Autor, 4a edição, pág. 150, 2003.
27
“O verdadeiro plágio é uma ofensa ética, e não legal; é do interesse de autoridades
acadêmicas e não dos tribunais. O plágio ocorre quando alguém – um estudante apressado,
um professor negligente ou um escritor inescrupuloso – falsamente reivindica como sua as
palavras de outrem, sejam elas protegidas pelo direito autoral, ou não. No entanto, se a obra
plagiada é protegida pelo copyright, a reprodução não autorizada é também uma forma de
violação de direito autoral.” (Copyright’s Highway, Harper, Collins, Canadá, 1994, pág.12)
(grifos nossos)
28
Apelação Cível n° 1992.001.05632, Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Brasil,
4ª Câmara Cível, j. 07/04/1993.
18
Em se tratando de formatos, a deliberada intenção de cópia torna-se ainda
mais relevante porque o formato é uma obra que resulta da reunião de diversos
elementos que, se considerados isoladamente, podem não ser passíveis de
qualquer tipo de proteção29. Logo, realmente deve existir uma reprodução de
vários daqueles elementos para se caracterizar a infração.
A pergunta é: quantos? Tal questão foi explorada no caso Castaway Television
Ltd & Planet 24 Productions Limited vs. Endemol (2004), recentemente julgado
pela Suprema Corte da Holanda. A Castaway e sua licenciada acionaram a
Endemol alegando que o formato do programa Big Brother é uma cópia
fraudulenta do formato do Survivor.
Após serem derrotadas nas duas primeiras instâncias, as autoras recorreram
para a Suprema Corte que, se valendo de uma boa dose de pragmatismo,
decidiu:
“A format consists of a combination of unprotected elements…An
infringement can only be involved if a similar selection of several of
these elements have been copied in an identifiable way. If all these
elements have been copied, there is no doubt. In that case copyright
infringement is involved. If only one (unprotected) element has been
copied, the situation is also clear: in that case no infringement is
involved. A general answer to the question of how many elements
must have been copied for infringement to be involved cannot be
given; this depends on the circumstances of the case”.
A Suprema Corte holandesa, como se vê, preferiu não responder a pergunta de
forma direta, apenas ressaltando que a quantidade de elementos a serem
copiados depende das circunstâncias de cada caso. E nesse aspecto,
confirmou a decisão do Tribunal de Recursos, atestando que a quantidade de
elementos em comum entre ambos os programas não era suficiente para
demonstrar que o formato do Big Brother é uma cópia fraudulenta do formato
do Survivor30.
Uma decisão no mesmo sentido já havia sido proferida pelo Tribunal de
Recursos de Paris no caso Sportissimo31, em que dois autores acionaram uma
emissora por veicular um programa que, segundo eles, era um plágio do seu
formato.
De acordo com o tribunal, tal formato realmente não se limitava a um
emaranhado de regras abstratas mas compreendia uma detalhada elaboração
da seqüência de diversos elementos que, para resultar no programa,
necessariamente demandava criatividade dos autores.
29
Existem elementos isolados que podem ser protegidos via aplicação de institutos da
propriedade industrial, ou seja, das marcas, patentes e desenhos industriais.
30
Apesar da negativa à pretensão das autoras, a decisão da Suprema Corte holandesa foi
bastante comemorada pela indústria dos formatos pois reconheceu expressamente a
possibilidade de eles serem protegidos pelo direito autoral.
31
CA Paris, Decisão de 27/03/1998 – “Sportissimo”, recueil Dalloz 1999, 28e Cahier, Juris., 417
19
O formato, portanto, foi examinado sob uma perspectiva de conjunto e não sob
seus elementos isolados, o que, de acordo com o tribunal, autorizava o
entendimento de que ele merecia proteção autoral. Isso, contudo, não
representou a vitória na ação pois, ao comparar ambos os formatos, a corte
constatou diferenças relevantes entre os mesmos e concluiu que o segundo
não era um plágio do primeiro.
Entendimento diverso adotou o magistrado brasileiro no caso Big Brother vs.
Casa dos Artistas. Neste caso, o juiz não só reconheceu a viabilidade de se
conferir proteção autoral ao formato do Big Brother, como entendeu que o
formato da Casa dos Artistas era “uma mal disfarçada e grosseira cópia” do
mesmo.
Nesse contexto, o fato de a TVSBT ter mantido negociações com a Endemol
no período que precedeu o lançamento da “Casa dos Artistas” foi decisivo para
a formação da convicção do juiz. E como se não bastasse a própria
semelhança entre os programas, trechos inteiros da descrição do formato do
Big Brother foram servilmente copiados na descrição submetida perante o juízo
como o formato da Casa dos Artistas. Vejamos um trecho da sentença:
“Ficou notório, com a exibição dos programas “Casa dos Artistas” e
“Big Brother”, pela TVSBT e TV Globo, a gritante semelhança
existente entre ambos, semelhança esta que não é fruto do acaso,
mas de uma mal disfarçada, e grosseira cópia, perpetrada pelos
Requeridos, do formato do programa “Big Brother”. (...) O plágio
perpetrado pelos Requeridos se torna evidente, entretanto, não na
incontestável identidade entre os programas que foram levados ao
ar, mas na presença de trechos inteiros, constantes na “obra
literária” de autoria de José Luiz Nascimento, consistente no formato
“Casa dos Artistas”, que constituem cópia literal do formato do Big
Brother. Por incompetência, ou na falsa certeza de impunidade, não
se preocuparam os Requeridos, em dizer as mesmas coisas com
outras palavras, ao copiar o formato do “Big Brother”.
No caso específico, portanto, entendeu o magistrado que tinha fortes e
irrefutáveis indícios de que a TVSBT copiou fraudulentamente o formato do
programa anterior e impediu a veiculação do programa Casa dos Artistas tendo
a violação ao direito de autor como o principal alicerce do julgado.
Além disso, condenou a ré a pagar uma indenização de R$ 6.000.000,00
(aproximadamente US$ 2.500.000,00) à TV GLOBO, de R$ 2.250.000,00 à
Endemol (aproximadamente US$ 1.000.000,00), mais lucros cessantes a
serem apurados em fase de liquidação de sentença.
Conclui-se daí que, não obstante as dificuldades encontradas mundo afora, a
proteção dos formatos via direito autoral já é uma realidade em algumas
jurisdições.
20
4.2) Concorrência desleal
A doutrina e os tribunais de praticamente todos os países são unânimes em
reconhecer a dificuldade de se definir a concorrência desleal, o que é explicado
pelo fato de o instituto abranger todos os atos contrários aos usos honestos em
matéria industrial ou comercial 32.
Não obstante a amplitude do tema, o fato é que todo ato de concorrência
desleal necessariamente envolve a noção de aproveitamento indevido do
esforço, ou de desvio fraudulento da clientela, de um concorrente.
Trata-se, pois, de um instituto que vem sendo cumulativamente aplicado – ou
tentando ser aplicado – pelas emissoras e idealizadoras de formatos em
praticamente todas as disputas envolvendo formatos de programas televisivos.
A maior dificuldade para a aplicação do instituto geralmente resulta da
discordância dos tribunais em proteger via concorrência desleal um bem que,
no seu entendimento, não é passível de proteção via direito de autor.
O raciocínio é de que se o bem não é protegido via direito autoral, ele pode ser
licitamente reproduzido. E se ele pode ser licitamente reproduzido, sua
reprodução não pode atentar contra as normas concorrenciais. Até agora, este
vem sendo o entendimento majoritário adotado pelos tribunais.
Já existem, contudo, julgados que impediram a veiculação de programas com
base no instituto da concorrência desleal, não obstante o entendimento de que
o formato original não se qualificava como uma obra protegida pelo direito de
autor.
Tais decisões decorreram especialmente da conduta ardil e maliciosa dos
idealizadores dos programas infratores, sendo extremamente importante
examinar o contexto de cada caso.
Logo, em todas as disputas envolvendo formatos, mesmo nos países em que a
proteção via direito de autor não vem sendo reconhecida, o titular do formato
original deve atentar para as específicas circunstâncias do caso pois a
proteção por meio do instituto da concorrência desleal pode ser viável33.
32
Clóvis da Costa Rodrigues, maior precursor do estudo da concorrência desleal no Brasil,
salientou: “Que é concorrência desleal? Qual a sua natureza e razão de ser no domínio do
direito? Defini-la em todo o rigor de sua apresentação jurídica é – confessam-no os tratadistas
– uma verdadeira e temerária dificuldade. E interpretá-la na imponderável extensão de suas
infinitas formas – impõe-se-nos abordar um dos mais latos problemas antepostos à moderna
análise sociológica” (...). In Concorrência Desleal, pág. 29, Ed. Peixoto, 1945.
33
A proteção dos formatos e outras obras via concorrência desleal, não obstante a ausência de
proteção autoral, vem sendo reconhecida, em circunstâncias excepcionais, por parte da
doutrina: “Copyright law protects the work and determines that it may not be imitated.
Competition law, on the other hand, does not protect the accomplishment as such, but judges
the conduct and asks whether the kind of imitation is anticompetitive, because the purpose of
competition law is to protect the rules of competition. Therefore, a supplementary protection
against imitation under competition law is only possible if there are additionally special
circumstances in the conduct of the imitator that cause the imitation to appear as
21
Um dos casos mais emblemáticos envolvendo a questão aconteceu na
Dinamarca, em 199934. A Celador, idealizadora do Who Wants to Be a
Millionaire?, licenciou o formato para a maior emissora local, a TV2, que
passou a produzir e veicular o programa naquele país.
Pouco depois, a DR, maior concorrente da TV2 no mercado dinamarquês,
desenvolveu o Double or Quits, programa com precisamente as mesmas
características do Who Wants to Be a Millionaire?.
A corte entendeu que ambos os programas tinham “strikingly much in common”
e ressaltou que todas aquelas semelhanças não adviam de uma mera
coincidência. Ademais, considerou o formato do Who Wants to Be a
Millionaire? uma criação única que, embora são se qualificasse como obra
protegida pela lei de direitos autorais do país, merecia proteção com base nas
normas de concorrência.
Para que uma decisão nestes termos fosse proferida, não há dúvida de que o
fato de o Who Wants to Be a Millionaire? já estar sendo veiculado localmente,
bem como existir uma feroz concorrência entre as empresas, foi fundamental.
Isso fez com que o juiz visualizasse os efetivos prejuízos causados à licenciada
do programa original e reconhecesse que a DR adotou uma conduta anticompetitiva ao desenvolver e veicular o seu próprio programa apropriando-se
dos elementos do programa concorrente.
Esta não foi a situação, por exemplo, do já citado caso Green vs. Broadcasting
Corporation of New Zealand. Ali, o titular do formato original veiculava seu
programa na Inglaterra e tentava impedir a produção e veiculação de um
programa com o mesmo título e características na Nova Zelândia.
Não existia, pois, concorrência direta entre os programas, o que levou o
julgador a rejeitar, inclusive, a tese de “passing off” desenvolvida pelo Sr.
Green. No direito anglo-saxônico, a doutrina do “passing off” inclui-se no largo
escopo da concorrência desleal e abrange especialmente situações em que o
consumidor é confundido por um ato fraudulento, sendo levado a adquirir um
produto por outro.
A corte inglesa entendeu que este não era o caso uma vez que os programas
em questão estavam sendo veiculados em países distintos e disputando,
conseqüentemente, audiências diversas. Em seu entendimento, portanto, a
tese só poderia ser aplicada se os programas estivessem sendo veiculados no
mesmo país.
Casos como estes da Dinamarca e da Inglaterra demonstram a grande
importância da concorrência direta entre as emissoras, sendo certo que sua
existência pode muitas vezes ser decisiva para o deslinde da questão.
anticompetitive conduct” (Format Protection in Germany, France and Great Britain, “Economic
and Legal Aspects of International Development and Marketing of TV Formats”, p. 46/47)
34
Celador & TV2 vs. RD (UFR 1999 1762)
22
No Brasil, o instituto da concorrência desleal vem sendo cumulativamente
aplicado em todas as disputas envolvendo formatos de programas televisivos
entre concorrentes35. A lei brasileira sobre o tema (Lei n° 9.279/96) dispõe que:
Art. 195 – Comete crime de concorrência desleal quem:
III – emprega meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou
alheio, clientela de outrem;
XI – divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de
conhecimentos, informações ou dados confidenciais, utilizáveis na
indústria, comércio ou prestação de serviços, excluídos aqueles que
sejam de conhecimento público ou que sejam evidentes para um técnico
no assunto, a que teve acesso mediante relação contratual ou
empregatícia, mesmo após o término do contrato.
Existem, pois, dois dispositivos que idealizadores de formatos e seus
licenciados podem se utilizar para reprimir ações desleais de concorrentes no
país.
O inciso III do artigo enumera o mais freqüente e abrangente ato de
concorrência desleal, pois são muitas as práticas que podem resultar no desvio
fraudulento de clientela, representada, no caso de programas televisivos, pelos
telespectadores e pelos anunciantes que alugam os espaços publicitários
correspondentes.
Mas o que seria o meio fraudulento ali descrito? Em que pesem as
divergências doutrinárias, entende-se que existe fraude em todo artifício ou
ardil utilizado para induzir alguém em erro36, o que certamente pode ocorrer
quando determinado agente se apropria indevidamente da criação de um
concorrente e a apresenta como própria.
O inciso XI, por sua vez, vislumbra a hipótese em que o infrator teve acesso a
informações ou dados confidenciais sobre o formato, situação que é bastante
comum nas negociações que precedem a aquisição da licença do mesmo.
Tais questões foram discutidas no já citado caso Big Brother vs Casa dos
Artistas. Como salientamos, a TVSBT negociou com a Endemol a aquisição da
35
Sobre a cumulação dos direitos intelectuais com a concorrência desleal no Brasil, é
elucidativo o comentário de Denis Borges Barbosa: “Uma questão interessante é se a
existência de direito exclusivo exclui as pretensões relativas à concorrência desleal; se o magis
da exclusividade exclui o minis da tutela à concorrência. Embora se encontrem eminentes
argumentos neste sentido, fato é que a concorrência desleal (técnica ou metaforicamente) se
acha corretamente cumulada na jurisprudência dos nossos tribunais. Tal se dá especialmente,
levando em conta os aspectos que excedem aos limites do direito exclusivo, ou como
agravante da lesão de direito abstrata.” (In Uma Introdução À Propriedade Intelectual, pág. 277,
2ª Edição, Editora Lúmen Júris)
36
Celso Delmanto, in Crimes de Concorrência Desleal, Ed. da Universidade de São Paulo, pág.
81, 1975.
23
licença do formato do Big Brother, tendo tido, com isso, acesso a diversas
informações e detalhes relativos ao programa.
Pouco tempo depois, ela lançou o programa Casa dos Artistas
desacompanhado de prévia divulgação, como se fosse apenas mais um quadro
de um programa de auditório. Ademais, passou a monitorar assiduamente a
possível tomada de medidas judiciais por parte da Endemol e da sua
licenciada.
Todos estes indícios foram apontados pelo juiz como provas da conduta
desleal da empresa, conforme se observa pelos seguintes trechos da sentença:
“No dia 28/10/2001 a TVSBT lançou o programa “Caso dos Artistas”
de surpresa, sem qualquer propaganda prévia, sem ter cotas de
patrocínio, como se fora um quadro lançado, de improviso, no
programa de auditório, atitude esta que não esconde o objetivo
visado, de não propiciar às Autoras a tomada das medidas cabíveis,
inclusive, para evitar a contrafação. Entretanto, sabedora de que não
ficariam as Autoras inertes, a TVSBT armou um singular aparato
para tentar neutralizar qualquer iniciativa que pudessem elas tomar.
(...) A desmedida preocupação da TVSBT retro gizada, por si só,
deixa transparecer a ilegalidade dos atos praticados por ela, em
conluio com os demais Requeridos, no sorrateiro lançamento do
programa “Casa dos Artistas”, pois nenhuma pessoa jurídica que no
desenvolvimento de suas atividades se pauta pela ética e
observância do ordenamento jurídico, tem a preocupação de armar
uma verdadeira operação de guerra para neutralizar, legítimas e
esperadas, reações dos concorrentes na defesa dos seus direitos.
(...) O artigo 195, III, e XI, da Lei 9.279/96, dispões que comete crime
de concorrência desleal quem emprega maio fraudulento para
desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem, e quem
divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos,
informações ou dados confidenciais a que teve acesso mediante
relação contratual, mesmo após terminado o contrato. Os tipos
previstos no dispositivo legal acima destacado, refletem a atuação
dos Requeridos”. (grifo nosso)
Por tudo isso, depreende-se que, numa disputa envolvendo formatos, a relação
de concorrência entre as emissoras e os indícios de que uma adotou uma
postura desleal em relação à outra, são elementos extremamente importantes
que podem, e devem, ser utilizados para tentar se coibir a prática tida como
fraudulenta.
4.3) Direito Contratual
Além dos institutos supra examinados, a proteção para os formatos também
pode ser buscada via direito contratual, notadamente quando o titular e
24
idealizador do formato inicia negociações com uma produtora ou com a própria
emissora de televisão.
O contrato a ser celebrado com o possível futuro licenciado deve conter uma
cláusula de confidencialidade, de modo a garantir que as informações e o
know-how transmitidos durante as negociações preliminares depois não sejam
divulgadas ou simplesmente repassadas a terceiros, caso um contrato
definitivo não seja alcançado.
Deve conter, outrossim, uma cláusula obrigacional, pela qual a emissora de
televisão se comprometa a não utilizar as referidas informações para produzir,
veicular ou de qualquer forma auxiliar na produção de um programa baseado
no formato que lhe foi submetido.
No caso do contrato de licença propriamente dito, uma cláusula de
exclusividade e outra de não-concorrência são importantes para impor ao
licenciado restrições em relação à futura utilização do know-how após a
expiração do contrato.
Isso evita, por exemplo, que a emissora adquira a licença do formato, receba o
know-how e, no ano seguinte, já desenvolva um programa próprio sem pagar
royalties que substitua, ou que até mesmo concorra, com o programa do
formato original.
Uma vez celebrado, o contrato faz lei entre as partes, devendo elas cumprir
todas as obrigações que assumiram, sob pena de arcar com as respectivas
multas, sem prejuízo das indenizações cabíveis.
A maior vantagem do direito contratual no ramo dos formatos, portanto, é
garantir ao titular do formato uma segurança jurídica, independentemente da
proteção que a lei lhe confere.
Logo, se existe um contrato, a questão de o formato ser, de per se, passível de
proteção deixa de ser o ponto nodal da controvérsia, devendo o intérprete
atentar para as obrigações que foram assumidas pelas partes contratantes.
É importante notar, todavia, que o contrato não altera a sistemática de um
ordenamento jurídico em relação à questão do que é apropriável e do que não
é. Em outras palavras, não é porque existem estipulações contratuais que
idéias ou métodos passarão a ser objeto de proteção.
Deve ficar claro, portanto, que o contrato não cria normas autorais ou direitos
de exclusividade, mas sim, dele podem advir obrigações que, pelo princípio da
pacta sunt servanta, a parte contratante deve respeitar.
Ademais, como o contrato obriga apenas as partes contratantes, nada impede
que um terceiro estranho ao negócio jurídico se aproprie indevidamente de
elementos do formato e lance o respectivo programa. Neste caso, somente na
lei o titular do formato pode buscar algum tipo de proteção.
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Muitos são os casos envolvendo formatos que as partes litigantes tinham
algum vínculo contratual. A esse respeito, vale atentar novamente para o
emblemático caso Big Brother vs. Casa dos Artistas.
Durante a negociação relativa à licença do formato, a TVSBT e a Endemol
celebraram um protocolo de intenções que continha uma cláusula de
confidencialidade e uma cláusula obrigacional pela qual a TVSBT se
comprometeu a não utilizar as informações transmitidas, para qualquer fim. E
tendo a empresa lançado o programa Casa dos Artistas, não perdoou o juiz:
“Há que se repisar ter tido a TVSBT, como restou documentalmente
demonstrado, conhecimento do formato do programa “Big Brother”
quando, através de um protocolo de intenções, negociava sua
veiculação no Brasil. Não concretizada a negociação, por um dever
ético, moral e legal, não poderia a TVSBT utilizar-se das
informações obtidas da Endemol, sob o manto da confidencialidade,
expressamente prevista no instrumento firmado entre elas, além de
estar, a vedação, contida em legislação vigente. A toda evidência, o
disposto nas seções 7 e 10 do protocolo de intenções havido entre a
TVSBT e a Endemol, tinha como objetivo, entre outros, o de advertir
a TVSBT para que não se valesse ela dos dados e informações
obtidas no curso das negociações, para qualquer fim. E o termo
temporal de 01/10/2000 dizia respeito, expressamente, à vedação da
TVSBT de, até aquela data, desenvolver ou adquirir de terceiros
formato de programa do gênero novela da vida real. Não
autorizando, por evidente, a TVSBT a, verificado o termo, simular a
aquisição, de terceiros, de cópia do formato do “Big Brother” e lançar
no país o programa “Casa dos Artistas”.
Também sob o prisma obrigacional, destarte, o juiz vislumbrou ilicitude na
conduta da Ré, repelindo, sob todas as perspectivas, a apropriação e a
utilização de elementos do formato da empresa holandesa e sua licenciada.
5) Conclusão
Diante das considerações acima, depreende-se que a questão da proteção dos
formatos de programas de TV é uma seara propícia para calorosos e, às vezes,
intermináveis debates.
Vimos que o mercado do licenciamento de formatos não só existe como
movimenta muitos milhões de dólares, tornando-se absolutamente urgente
para a indústria que os tribunais lhe confiram proteção.
Tal proteção pode ser buscada mediante a aplicação de três institutos distintos
mas enfrenta sérios obstáculos legais. Direitos autorais não protegem idéias,
métodos ou sistemas. Do contrário, obstruiriam justamente aquilo que visam
estimular.
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Como resultado, o maior desafio para a inserção dos formatos no rol das obras
intelectuais legalmente protegidas é provar que ele não é apenas um método,
um sistema, mas sim, uma criação original passível de proteção.
Para tanto, o formato deve possuir uma detalhada descrição e ser dotado de
um tal grau de originalidade e criatividade que efetivamente se diferencie de
todos os seus congêneres no mercado.
Embora o approach majoritário adotado pelos tribunais ainda seja um tanto
quanto conservador, já existem decisões na Holanda, França e Brasil
reconhecendo a possibilidade de se conferir proteção autoral aos formatos.
Ultrapassada a primeira etapa (reconhecimento da proteção), o titular deve
comprovar a reprodução de diversos elementos do seu formato de modo a
caracterizar a efetiva existência da infração.
Na maioria das vezes isso não é fácil pois o infrator não copiará todos os
elementos, mas apenas alguns deles, tornando-se fundamental a noção de
plágio, ou seja, a apropriação indevida do núcleo representativo-intelectual da
obra.
O formato, ademais, há de ser examinado como um todo, devendo o intérprete
se ater ao conjunto da criação e não aos seus elementos isolados, os quais,
normalmente, não são passíveis de proteção autoral.
A existência de concorrência entre as partes também é um fator extremamente
relevante, podendo o instituto da concorrência desleal ser, muitas vezes, até
mais eficiente que o próprio direito de autor.
Isso sem contar a via contratual que, se bem delineada, constitui um importante
mecanismo de proteção pelo menos em relação às partes com as quais o
titular do formato celebrou algum contrato.
Por tudo isso, concluímos que não se pode negar, de pronto, qualquer tipo de
proteção aos formatos. Muito pelo contrário. O aplicador do direito deve sempre
considerar os detalhes do caso e pode, dependendo das circunstâncias,
encontrar satisfatórias formas de proteção e afastar a respectiva violação.
A questão, contudo, não pode ser resolvida de forma exata, como uma
equação matemática, uma vez que cada formato possui suas próprias
peculiaridades, podendo o resultado certamente variar de um caso para outro.
O fato é, portanto, que as discussões em torno do tema estão longe do fim,
não havendo dúvida de que a possibilidade de se proteger formatos de
programas de TV será uma questão cada vez mais abordada, e enfrentada,
pelos profissionais que militam na área de propriedade intelectual.
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