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Transcrição

Pulsional 166.Artcolor.p65
> clinicando
Patrícia Bentes Diniz
Borderline – uma psicopatologia em questão*
O presente artigo trata de uma abordagem
sobre borderline. O diagnóstico deriva da
clínica psiquiátrica como transtorno de
personalidade e nas últimas décadas vem
freqüentar a psicopatologia psicanalítica.
Neste trabalho, extraído da dissertação
“ Borderline – uma psicopatologia em
questão”, do Mestrado Interinstitucional
em Psicologia Clínica PUC-SP-UFPA, faremos algumas correlações entre a freqüência dos casos-limite em mulheres ao
que subjaz um tempo refratário de plena
transição, da elaboração quanto aos coletivos papéis identitários e experiências
subjetivas anteriormente apropriados por
gerações, em sobredeterminação às exi-
*> Trabalho apresentado na I Semana de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental, em abril de 2002,
em Belém do Pará.
pulsional > revista de psicanálise >
ano XVI, n. 166, fev./2003
This article deals with the concept of borderline as found in Adolf Stern and other
contemporary authors. Also discussed is Freud’s text on Fetishism, of 1927, with a
brief interpretative construction regarding the pathos of the contemporary condition
of women, and borderline conditions.
The movie “Girl, Interrupted” and the character Susanna Kayseen are used as material
for analyzing the above points.
Key words
>Key
words: Borderline, psychopathology, contemporary life, fetishism
clinicando > p. 49-63
No presente artigo investigamos a concepção de borderline segundo Adolf Stern e outros
autores contemporâneos. Acerca da obra freudiana, recorremos ao texto sobre
“Fetichismo”, de 1927, fazendo uma breve construção interpretativa acerca do pathos da
condição das mulheres na contemporaneidade e o borderline.
O filme “Garota, interrompida” e o personagem Susanna Kaysen constam como material
de análise ao referido acima.
Palavras-chave
>Palavras-chave
Palavras-chave: Borderline, psicopatologia, contemporaneidade, fetichismo
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gências valorizadas da mulher moderna.
A mulher, alvo da explícita repressão sexual de outrora, não carrega na atualidade tal fardo socialmente, no entanto, vive
ainda nesses dias um paradoxo vigente
para muitos e para muitas quanto aos vários
estímulos de expressão da sexualidade,
da autonomia, da realização
profissional, da satisfação pessoal, que
coabitam com requisições de antigos papéis identitários. Estes aspectos se dissimulam no contexto desses dias sendo possível pensá-los ocorrendo no privado
mental enquanto transtornos afins com
as mudanças do último século, configurando patologias do narcisismo, da identidade e dos ideais do eu.
Importante ressaltar que essa veia da cultura
ocidental, e enfim do social, não vem no
sentido de apontar as causas da patologia
em questão, mas sim no de evocar algumas
imbricações das nuances acima citadas.
Neste segmento, lancei mão do filme Garota interrompida como material de análise. A escolha deveu-se não só por trazer
à tona o borderline, como principalmente por inserir-se a personagem, Susanna
Kaysen, em contornos ilustrativos dos rumos interpretativos sobre a investigação
da psicopatologia aqui abordada.
Em primeiro lugar, o recalque da histeria,
a forclusão da psicose e a recusa da perversão colocam-se em questão diante do
borderline, que apresenta alternadamente
tais mecanismos e ainda recorrentes estados de depressão.
Há, portanto, primeiramente um problema, uma querela que se impõe acerca do
seu funcionamento mental e do conflito
indefinido.
As faces observáveis desses pacientes são
consideradas assim: estados freqüentes
de desespero, autolesão, podendo chegar
ao suicídio, impetuosidade exacerbada,
raiva como afeto preponderante, sexualidade geralmente promíscua, episódios
freqüentes de despersonalização e intensa necessidade de amparo por quem estabelecem laços mais significativos. Mudanças abruptas de humor, tendência à
delinqüência e à drogadição, crônica
sensação de vazio, falta de objetivo ou de
capacidade em cumpri-los, angústia de
aniquilação e insegurança constante são
outras predominâncias sem contudo serem notados o estabelecimento de delírio
estruturado.
Para a psicanálise interessa identificar o
borderline enquanto pacientes que apresentam preponderantes defesas primitivas – denegação, identificação projetiva,
clivagem.
Elucidando-as, são pontualmente:
Denegação – Rejeição de um pensamento enunciado. Identificação projetiva –
Expressão introduzida por Melanie Klein
para designar um mecanismo de expulsão
e introdução de conteúdos psíquicos no
interior do outro objeto para o lesar ou
para o controlar. A identificação projetiva
é um mecanismo de comunicação inconsciente muito mais sutil e invasivo que a
projeção. Clivagem:
Expressão usada por Freud para designar o fenômeno muito particular que ele vê operar sobretudo no fetichismo e nas psicoses – da coexistência no seio do ego de duas atitudes psíquicas para com a realidade exterior quando
esta contraria uma exigência pulsional. Uma
leva em conta a realidade e a outra a nega e coloca em seu lugar uma produção do desejo.
Estas duas atitudes persistem lado a lado sem
se influenciarem mutuamente (Laplanche e
Pontalis, 1999).
.. . se referem aos direitos do adulto aos prazeres sexuais e narcísicos, enquanto as angústias psicóticas ameaçam o sentido da identidade corporal e da própria vida. Os temores neuróticos se referem ao corpo erógeno, enquanto que as ansiedades psicóticas estão mais relacionadas ao terror narcísico a propósito do
self total, físico e mental. Os casos-limite, em
clinicado
característicos dessa psicopatologia foram gerados anteriormente a fase
edípica, e que o analista deverá assumir a
função de objeto transicional, um objeto
que sirva a possibilitar relações objetais.
Abstraindo tal assertiva, nos diz possível
redimensionar no espaço psíquico, o vazio em continente, ressaltando o objeto
como revelador da pulsão e que, para
isso, o ambiente suficientemente bom,
derivado dos conceitos de Winnicott, se
dá como uma tarefa imprescindível frente ao que nomeia narcisismo negativo,
afim com a pulsão de morte. Esse trabalho objetalizante, como diz ele, é
substrato a um aprendizado/vivência
condicional às intoleráveis traduções da
linguagem inconsciente e do sentido da
castração para pacientes gravemente
perturbados.
O capítulo de Joyce McDougall (1997)
tendo como principal fonte os textos de
seu livro As múltiplas faces de Eros, inclui-se aqui, no que tange à sexualidade
arcaica, visto que a dissociação psiquesoma nos processos de somatização ocorrem quando no início da vida impressões
de erotismo e violência (mortido e libido)
permanecem como fixações protegidas de
acesso, em forclusão, atuando com a
eminência muitas vezes da ruptura ou cisão do ego.
As angústias neuróticas, nos recorda
McDougall,
???
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Tais defesas comparecem nas relações
acarretando transferências turbulentas.
É no final da década de 1930 que a concepção de Borderline se insere na literatura da psicanálise enunciada por Adolf
Stern. Ele assinala que pacientes considerados limítrofes entre a neurose e a psicose, traziam dificuldades extremas tanto
ao diagnóstico, como ao laço transferencial e ao método da psicanálise clássica
em tratá-los. É bom lembrar que este ensaio de Stern é praticamente inaugural
sobre o tema.
O mesmo ressalta que os conflitos em torno da libido objetal eram nesses casos insuficientes, a técnica psicanalítica não os
afetava praticamente e as reações terapêuticas negativas observadas mesclavam-se
à idealização projetada no terapeuta.
Sobre o narcisimo, Stern utiliza analogia
da desnutrição e cita a depressão difusa,
ou seja, não com a clássica tristeza aparente, mas enquanto incidência crônica
de sensação de vazio e dificuldade em
definir seus sentimentos e a si mesmos.
André Green, outro autor que percorremos, examina o borderline observando a
necessidade de que a simbolização de sua
problemática maldefinida, não esteja tão
somente sob a égide do recalcado, quando podem tornar-se apropriadas verdades, desejos e conflitos. Nestes casos-limite nos diz Green (1990) no livro Metapsicologia dos limites de suas conferências brasileiras, a problemática gira
em torno de simbolizar o enredamento
das angústias duplas de castração (perda/separação) e de intrusão (ameaça/
despersonalização), em que está fixada a
dinâmica psíquica do borderline.
Tratando acerca do narcisismo negativo,
Green sustenta a idéia de que os sintomas
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determinados aspectos de seu funcionamento
mental, estão mais próximos das organizações
psicóticas do que das neuróticas.
Otto Kernberg, nosso último autor consultado propõe a organização borderline
enquanto funcionamento peculiar e distinto. A intensa angústia em que sobrevive o ego deriva da clivagem onde, para o
raciocínio teórico e clínico das relações
objetais, estão afastados os aspectos gratificantes e frustrantes dos objetos externos como também assim não integrado e
imaturo acha-se o self. Segundo o autor,
pode-se identificar em três níveis de gravidade os pacientes borderline. Um em
que predominam conflitos edípicos muito intensos e a depressão patológica os
acomete de maneira intermitente, o outro
grupo aqueles apresentando excessivos
mecanismos de projeção e formação
reativa, um terceiro grupo, nota-se pela
preponderância do funcionamento
paranóide e notória dissociação do pensamento e dos afetos.
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“Garota Interrompida”
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Anunciando ser baseado em fatos reais,
aqui discorremos sobre a personagem
protagonista de um filme do cinema americano, cujo título é o mesmo acima escrito. A escolha deveu-se não só por trazer à tona o diagnóstico borderline como,
principalmente, por inserir-se tal personagem em contornos ilustrativos dos rumos interpretativos sobre a investigação
da psicopatologia que abordo.
A jovem Susanna Kaysen, imersa em graves sintomas e confusões sobre si mesma,
passa um ano em Claymore, um hospital/
sanatório, interrompendo o ciclo obscuro que poderia levá-la à morte. Naquele
lugar, alia-se a Lisa, também internada e
tendo condutas e relacionamentos de caráter perverso. O desligamento do conluio
patológico entre Susanna e Lisa pôde ser
experienciado em uma outra relação,
essa terapêutica, estabelecida com a enfermeira e, então, no processo analítico.
Do começo ao fim
A primeira cena do filme retrata Susanna
e Lisa apáticas; no mesmo ambiente estão
Polly e Georgina. Todas são pacientes da
ala feminina em Claymore. Este momento
irá reaparecer quase no fim da película,
havendo, a partir de então, uma retrospectiva da trajetória de Susanna.
A voz de Susanna é ouvida em fundo preto indagando: — Você já confundiu sonho
com realidade? E então diz não saber se
esteve mesmo louca, se foram os anos
1960 ou se foi somente uma garota interrompida.
A cena seguinte traz Susanna sendo
entubada e medicada em emergência
hospitalar. Ela havia tomado um vidro inteiro de aspirina e ingerido bebida alcoólica. Tiraram-lhe um pano amarrado nos
pulsos. Susanna justifica que seus braços
estavam sem ossos.
Já recuperada do momento crítico,
Susanna então conversa com um psiquiatra. Ela diz a ele que lhe parece difícil ficar em um lugar só. O médico pede para
que explique e, irritada, Susanna questiona como explicar que as leis da física estão alteradas em sua mente, indo para
frente e para trás sem controle. O médico então exclama: Controle? Susanna: —
O quê?
A próxima imagem é uma comemoração
de aniversário do pai de Susanna, quando entra na casa, sua mãe a recebe co-
clinicando
planos no outono. Susanna diz que não
fez, que vai virar Hare Krishnas e logo em
seguida que estava brincando.
Toby, um jovem que viu Susanna no dia
da colação de grau, apresenta-se para ela.
Na seqüência, os dois surgem na tela deitados juntos e o assunto de Susanna é sobre fantasias de morte. Toby não se interessa em levar adiante o tema, conta-lhe
que a qualquer hora pode ser sorteado a
ir servir na guerra do Vietnã. Susanna não
se interessa e nem suporta os
contrapontos de Toby e o deixa sozinho,
apesar da relutância do mesmo para que
ela fique.
Lisa aborda Susanna. Avisa sobre os terapeutas, denegrindo-os. Susanna repete o
ato de Lisa que sopra fumaça no rosto de
uma senhora, como elas, também ali em
reclusão. A mesma revida verbalmente à
Susanna, entretanto, sequer piscou quando Lisa assim o fez. Susanna fica sem graça com o rompante da mulher e pede
desculpas timidamente. Evidencia-se que
as pessoas ali temem Lisa.
Melvin, o psiquiatra da instituição, recebe Susanna em uma entrevista. Ela não
reconhece ter tentado suicídio. Reclama
com Melvin a razão de estar em um lugar
onde só tem gente doida, mas diz quanto a voltar para casa que o problema é
que lá é a mesma coisa.
Dayse começa a fazer parte da história.
Enraivecida, ela pede laxante, mas não
recebe já que os toma abusivamente.
Susanna leva o que Dayse quer. Entra no
aposento particular de Dayse, seu quarto
que não dividia com ninguém e que geralmente ninguém freqüentava exceto
seu pai.
Na seqüência, a reunião entre Susanna,
seus pais e Melvin é o foco. O doutor in-
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mentando que sua roupa não está adequada. Susanna se desculpa. A mãe de
Susanna a apresenta aos convidados. Lá
encontra-se um homem com quem ela
teve um envolvimento sexual passageiro.
Volta a cena do encontro com o médico.
Ele faz perguntas sobre uso de drogas.
Susanna nega. Então pergunta-lhe como
se sente. Ela diz não saber. Ele sugere que
ela vá descansar em Claymore. Susanna
nota que isto já está previsto, sua ida para
o sanatório, pois viu sua mãe que a
aguardava, tirando uma mala de dentro
do carro. Um táxi foi chamado para levar
Susanna. Ela diz ao motorista que está
triste e que tem visões. Ele diz que John
Lennon também tem. Em Claymore,
Susanna instala-se compartilhando um
quarto com Georgina, na bagagem traz
cigarros diferentes, diz a Georgina que
são da resistência francesa.
Lisa é trazida no carro da polícia. A mesma, ao ver Susanna naquele quarto ocupado antes por Jamie, sua antiga amiga e
percebendo que Jamie não estava mais lá,
agride Susanna aos gritos. Lisa é contida
pelos enfermeiros, que aplicam-lhe um sedativo e a levam para sala de isolamento.
Polly relata a Susanna que Jamie se matou
por ficar triste com a ausência de Lisa.
Imagens da formatura vêm à mente de
Susanna. Os alunos são chamados individualmente para receberem o diploma na
tradicional formatura coletiva ao ar livre.
Os nomes são anunciados e é dito em que
universidade prosseguirão os estudos.
Susanna dorme quando é a sua vez. Ela
acorda sendo cutucada por um colega: —
Ei esquisita!
Outra lembrança é o foco, agora. A situação é uma pista de dança. Alguém se
aproxima e o papo informal é quanto a
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forma sobre o diagnóstico borderline. Diz
ser um transtorno de personalidade mais
freqüentemente acometendo mulheres
jovens. Susanna quer saber das causas,
subliminarmente acusando os pais. A mãe
dela chora e a reunião termina.
Durante a noite, dentro das dependências do
prédio, as moças escapam para um passeio e jogam boliche. Lisa exerce influência em
Susanna, com as outras é intolerante e rude,
mas o clima em geral é de diversão. Depois
do jogo elas vão para sala da Dra. Wick e lêem
seus prontuários distribuídos por Lisa.
Susanna ao ler a descrição diagnóstica
sobre borderline concorda: — Essa sou eu.
Porém, não admite a assertiva de sexo
promíscuo. As outras se entreolham.
Todas assistiam na TV a notícia do assassinato de Luther King quando Toby chega lá. Susanna e Toby encaminham-se
para o quarto dela, o casal iria manter relações sexuais se não fosse a checagem
da enfermeira em curtos espaços de tempo. Susanna é então liberada para sair
um pouco com Toby. Ele foi convocado
para servir na Guerra do Vietnã, mas pretende fugir do país. Diz que acha que a
ama e a convida a ir com ele. Insiste e diz
que Susanna não é louca como as outras.
Susanna se recusa a ir embora com Toby,
confirma que quer sair, mas não com
Toby, não naquele momento. Lisa os observa através da janela.
À noite Polly tem uma crise e vai para o
isolamento. Susanna e Lisa resolvem
entretê-la na madrugada tocando violão
e cantando em frente à porta do recinto
onde ela está e para que não sejam impedidas, Lisa dopa a enfermeira.
Susanna tenta falar com Polly. Lisa diz a
Susanna que se falar adiantasse, elas já
estariam fora dali. As duas cantam. Um
enfermeiro que tinha afeição por Susanna
vem adverti-las e ela o beija no chão.
Ao amanhecer, Valerie, a enfermeira, encontra Lisa e uma outra integrante da ala
feminina recostadas no corredor na companhia do enfermeiro e de Susanna, estes
últimos aconchegados um ao outro. Ao
enxergar Valerie, Susanna corre para seu
quarto, amedrontada. A enfermeira zangada abre a porta e avisa que vai
denunciá-la.
Mais tarde, Susanna é levada até a Dra.
Wick. No diálogo, a doutora chama atenção de Susanna de que seu progresso havia estacionado e põe em questão seu
comportamento, a amizade com Lisa e a
vontade de Susanna quanto a mudanças
de sua situação como um todo. Susanna
diz estar ambivalente. A doutora pergunta-lhe o que esta palavra quer dizer e
Susanna diz que não importa. A Dra. Wick
entã echo sheakspereano interpretando a palavra ambivalente com seus significados. Susanna paralisada e dividida em
duplas forças que coabitam sua mente.
Não surpreendia a resposta de que não se
importava, defesa de seu sofrimento,
como também ficar de braços dados com
Lisa. Além disso, Susanna expõe sua revolta quanto aos julgamentos de seu direito
em ter muitas transas, sendo que os homens não são por isso mal-vistos, enquanto mulheres são consideradas promíscuas. Ainda neste importante encontro, a Dra. Wick faz Susanna pensar em
seus “defeitos”, quais são, se são defeitos
mesmo. Após esta data, o enfermeiro e
Lisa foram transferidos daquela ala.
Susanna fica dias prostrada na cama, sem
interesse por nada. Polly traz um cartão
postal de Dayse, que agora mora sozinha
em um apartamento, e Susanna pergun-
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vez ouvida dizendo que ver a morte de
verdade faz entender que é ridículo sonhar com ela e que só há um jeito de sair:
falar.
Uma sessão com a Dra. Wick dá a entender que um período havia transcorrido.
Susanna no divã solicita passar o feriado
fora. Seus argumentos eram já bem mais
condizentes. Após essa data, em uma entrevista com toda equipe do hospital, ela
diz que arranjou um emprego de meio
período e que pensa em escrever.
Lisa é encontrada e trazida de volta. Parece mal e vai para o isolamento. Susanna
pergunta a ela se está bem. Susanna é avisada do horário com a Dra. Wick. Ela diz
a Lisa que precisa ir e que vai ter alta. Lisa
percebe sua mudança, apesar de ter dito
a Susanna que achava boa a notícia,
acompanha com os olhos cerrados o movimento de Susanna ao despedir-se dela.
A última noite de Susanna em Claymore
chega. Ela acorda e não vê a gata nem
Georgina. Sai a procura delas e escuta
Lisa lendo seu diário em voz alta, ela escreveu que está com a memória transformada. Susanna pergunta a Lisa o que está
fazendo, que responde: — Bancando a
vilã como você gosta. Por que assim vira
heroína. Lisa leu também o que Susanna
escreveu sobre Georgina e Polly.
Georgina, não gostando da interpretação
de Susanna, lhe faz ameaças. Susanna
pede para Lisa parar e diz que o diário é
propriedade dela. Ela corre atormentada,
Lisa a persegue nos subterrâneos do prédio. Lisa ordena Susanna a parar,
Susanna tenta fechar uma porta de ferro,
fere a mão, mas Lisa consegue vencê-la.
Continua a perseguição. Aos berros, Lisa
questiona se Susanna não gosta mais dela,
se pensa que agora é livre. Lisa diz que ela
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ta a Polly por Lisa. Valerie ao vê-la nesse
estado, após a indagação de Susanna
quanto ao paradeiro de Lisa, novamente
carrega Susanna e a joga numa banheira
de água fria. Susanna acusa o hospital e
é agressiva com Valerie por meio de palavras ofensivas. Esta remete Susanna ao
que estava fazendo consigo própria.
Lisa surpreende Susanna na calada da
noite, diz que recebeu choques e a confunde com Jamie. As duas fogem de
Claymore. Pretendem ir para o apartamento de Dayse e depois para Flórida, tomaram uma carona e foram parar em um
lugar underground onde cada uma já tinha um par. Lisa logo rouba uma carteira e saem sem ser pegas.
As duas conseguem ir até a casa de Dayse.
Lisa vê vários cortes no braço da amiga e
“aproveita-se” dessas feridas, diz então
com sagacidade e sarcasmo a realidade
concretamente incestuosa que o pai mantinha com Dayse. Ao amanhecer, uma
canção desoladora soa ininterruptamente
do andar de cima em que Dayse se recolheu para dormir. Susanna encontra
Dayse pendurada no teto do banheiro,
morta. A visão de Dayse não afeta Lisa,
que a chama de idiota e diz a Susanna
que Dayse só queria um pretexto para fazer o que fez. Em seguida, rouba dinheiro dos bolsos da enforcada e chama
Susanna para deixar o local. Susanna não
vai com Lisa, avisa o hospital sobre o
ocorrido, espera buscarem o corpo e
volta com Melvin para Claymore levando
a gata da falecida.
Susanna fica abalada, deprimida. Polly
pede para cuidar da gata. Valerie conversa com Susanna.
Em cenas seguintes, Susanna pinta um
quadro e escreve. Sua voz depois é outra
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sim é livre e que há muitas feridas implorando para que sejam mexidas e então
grita chorando: — Por que ninguém mexe
nas minhas? Susanna responde: — Por
que você já é morta. Seu coração é gelado e diz que prefere estar no mundo que
ali com ela. Lisa tenta se injetar uma droga, Georgina pede que não o faça. Ela desiste. Todas se sensibilizaram em um contato sobre si próprias naquele momento.
Esta é aquela cena inicial do filme.
Na seqüência, Lisa então está amarrada
em uma cama quando Susanna a visita.
Lisa diz a Susanna que não está morta
realmente, Susanna afirma que sabe disso e que Lisa precisa retomar sua vida.
Novamente a voz de Susanna é ouvida.
Diz que fez as pazes com sua personalidade e que: ser louco é ser como eu ou
você ampliado e que perdeu um ano para
ganhar outros depois, que a maioria das
colegas de Claymore hoje, tempos depois,
já tinham suas vidas fora dali. Algumas
ela tinha encontrado outra vez, outras
não, mas não havia um dia que seu coração não as achasse.
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Sobre Susanna e a leitura de pathos
A moldura social dos anos 1960, quando
se passa o enredo, acontece sob mudanças significativas no mundo feminino e
não por acaso, ao final do século XX ,
Mauro Hegenberg (2000, p. 32) escreve
no livro de sua autoria – Borderline: “A
histérica freudiana dos fins do século XIX
deu lugar ao borderline de hoje, enquanto preocupação teórica e clínica”.
Daquela década, também como pano de
fundo, pairam os impactos revolucionários
do acesso a pílula anticoncepcional, num
tempo de muito sexo, drogas e rock’n
roll.
A ala feminina de Claymore é onde fica
internada a jovem Susanna Kaysen. Chega ali após a ingestão abusiva de um vidro
inteiro de aspirina e vodka devido a dor
de cabeça; de uma vez só, muito remédio
e ainda álcool. Esse disparate é notado
como evidente incongruência entre a
busca de alívio da dor (que dor?) e a atitude autolesiva – a dimensão desmedida,
louca, atentando a si mesma no ato
pseudo de aplacar incômodos. Algo de
insuportável aí desponta, avisa, sem
discernimento.
Um tipo de conflito ou problemática psíquica sobredeterminada é uma das manifestações imbricadas na multiplicidade
de discursos que hoje se ouve. Propagandas à liberalidade, ao consumo. O início mais exuberante dessa eclosão coincide com aquela época. Hoje, essa
multiplicidade e sofisticação de acessos
falantes se expandiram ainda mais; tem-se
a globalização gerindo os intercâmbios
não só econômico, mas também social.
Esse contexto para muitos corresponde a
um ideal de ego importado, inalcançável,
destituído de valores culturais, aqueles
que não estão no escopo da moral, ou
melhor, a ela não estão restritos, mas ao
que foi construído como bom e importante dentro de uma determinada concepção seja quanto às relações humanas,
ou qualquer outro enfoque.
O sujeito a que se atribui a psicopatologia
borderline cai imerso justamente a essa
diversidade de fronteiras exageradamente
maleáveis, cujos recursos defensivos que
garantem a integridade egóica encontram-se vulneráveis, não por esse ambiente de tantos estímulos, pois não foram,
não são e nem serão responsáveis pela
constituição precária de seus egos, narci-
O “estraga-prazer” referente a Susanna se
mostra na aparência de inadequações,
quando dorme durante a própria formatura e depois não continua para a universidade como fazem aqueles que usufruem
do empenho dos estudos. Não é só isso
que identifica o boicote, poderia haver
outros caminhos que não os convencionais dando a ser reconhecido um movimento de investimento na vida, porém
Susanna parece perdida no rumo, desejos... Um sujeito à deriva, num sintoma
clinicando
... não me parece correto entender estes movimentos de “estraga-prazer” como resultantes
da força do superego e da culpa, até porque é
discutível nestes casos que a estruturação psíquica tenha se organizado na forma clássica
proposta por Freud em sua segunda tópica.
maldefinido, no qual muitos conceitos
cabem, mas não traduzem essa alienação,
esse estado evanescente do psiquismo. É
a linguagem da psicopatologia, sua transferência. Evocativa sim, mas quase
inapreensível quanto ao sofrimento que
carrega. É assim que ouço Susanna no
momento inicial.
Logo após a recordação do encontro inicial com Toby na, festa de formatura,
Susanna recorda-se com ele em instantes
após o ato sexual, mostrando como o
mesmo acontece rapidamente sem praticamente nenhuma ou pouquíssima aproximação de intimidade, conhecimento,
relação de afeto ou outro vínculo. Algo
semelhante, digo nessa mesma rapidez e
inconsistência, repete-se desde um recente affair de Susanna e num próximo, no
decorrer da trilha.
A interpretação do funcionamento que
revela a inconstância com os parceiros é
que tal instabilidade nas relações traz a
dificuldade em levá-los ao reconhecimento de um outro, a não ser o de apoio ou
de puro uso. Sexualidade restrita em vazão pulsional que, ao contrário de plenitude ou gozo, leva a tropeçar não em culpa, mas em terrível sensação oca, quando a morte ou fantasiá-la mostra-se alternativa a expelir tal estado.
Susanna interroga o rapaz se ele já havia
pensado em se matar e de como o faria,
quando o mesmo sugere mudar de assunto e ingenuamente diz ser idiota pensar
nisso, Susanna se aborrece e o deixa.
Uma das nuances diferenciais do borderline é a de que quase sempre está o outro não na importância que daria o neurótico considerando a disputa narcísica
na qual, aliás, fica resguardado seu grau
de valor, digo de alguém diferenciado a
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sismo, e ideal de ego; esta variedade contemporânea vem ajustar-se, aninhar-se,
caber na fragilidade de referenciais escassos de identidade, de autonomia como
requisições e fantasmas em que o borderline encontra-se embaraçado e imaturo,
freqüentemente levando-o a sucumbir em
marasmo, cuja manifestação mais freqüente é a depressão difusa, vaga, inominável. Algumas vezes, entretanto, escapa
ao borderline a capacidade de conter
frustrações nesse estado de depressão latente. As defesas escasseiam e as mais
corriqueiras insatisfações tendem a ser
verdadeiramente traumáticas e intoleráveis levando até a sensação de confusão,
abruptas oscilações de humor, ou até
comportamentos autodestrutivos.
Susanna retrata essa face de borderline.
Parece a princípio uma melancolia. É o
que justifica a surra permanente e invisível de sabotagem porém, como faz pensar Luiz Cláudio Figueiredo (1999, p. 27):
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ser considerado senão como rival, quando lhe prestam o “devido” grau de consideração, mas enquanto outro integral,
podendo estar no seio amoroso; então
esse outro side by side do borderline possui um grau digamos inferior que o do
neurótico sobre a disponibilidade para os
relacionamentos, pois o borderline tem o
outro enquanto objeto indispensável,
anaclítico, numa dependência não necessariamente só como a do histérico, do
terror da perda pela substituição por um
outro objeto mais interessante, mais atraente. A dependência para eles esbarra também num flagelo distinto. O outro é convidado a assegurar a existência numa urgência anterior à ascensão da angústia da
castração, passagem decisiva do eu ideal
para o ideal do eu, pressuposto para que
possa haver experiência de castração. No
borderline, a básica auto-segurança é repetidamente tomada por meio de suprimentos para firmeza do incipiente ego
difuso, todavia, em permanente relação
de identificação projetiva, defesa pela
qual estão cindidos e expelidos na psique
externa os aspectos do eu e seus desejos.
Justamente no objeto que assume a função de o nomear, de o sustentar. Paradoxal garantia de sobrevivência/onipotência.
Susanna ao chegar em Claymore é interpelada por Lisa também ali internada, ou
melhor, que retornara depois de fugir por
alguns dias da instituição. Nessa ocasião,
de volta, Lisa a vê no quarto onde dormia uma companheira já ausente por ter
se enforcado após a fuga de Lisa. Depois
do primeiro susto, Susanna vai consolidando um laço com essa colega em que
parecia passiva apenas, durante as várias
subversões que cometem, entretanto, antecipando o desfecho da trama, esconde-
se numa sutileza nem por ela suspeita ou
conscientemente traçada. O pacto homossexual subjacente é de servidão recíproca como uma modalidade adictiva, quando os aspectos do objeto servem para
atenuar uma necessidade premente, configurando não ser esta uma escolha de
objeto homossexual e adulta.
Lisa, na pele de vilã, controla o grupo
quase sempre catalisando medo e embaraço sobre as demais, confundindo-as, até
mesmo quanto ao papel dos terapeutas
que as atendem – ridicularizando-os.
Sociopata no prontuário que leram as
moças em clandestinidade, Susanna esconde-se em Lisa, como já mencionado,
que atua sua agressividade, tomando emprestado a percepção de Susanna e sua
afetividade tangente. Apesar do já relatado quadro borderline, Susanna não sucumbe numa estupidez insensível ou radicalmente distante dos que lhe rodeiam,
ao contrário, capta o não-explícito e incumbe-se a interpretar e registrar em um
caderno suas percepções. Ademais, notese que se algum ideal de ego se evidencia
às projeções futuras, em Susanna é o de
ser escritora.
O progresso de Susanna vem aos poucos.
O panorama agudo de vínculos escamoteados de pensar e sentir a si mesma vai
se dissipando a partir do suicídio de
Daisy, uma psicótica sem recursos internos e dentro de uma contingência perversa ou no mínimo impotente desde o
hospital – que fora dispensada, até o incestuoso assujeitamento ao pai, única família, ocorre precipitado por Lisa, pois
expõe a miséria que a mesma se encontrava refém. Daisy morre trazendo à
Susanna irrefutável confrontação entre a
vida, sua busca e a nudez da morte e da
clinicando
de perda ou frustração. Assim, o holding
encarnaria regressão e a preocupação
materna primária.
A outra excepcional intervenção da Dra.
Wick, é indagar a Susanna sobre seus defeitos, ou melhor, se iria entregar-se a
eles, se eram realmente defeitos?
Winnicott afirma que é o objeto, seu uso,
que define a pulsão. A carência mórbida
de Lisa foi desviada gradativamente principalmente através de Valerie. Tolerar a
agressão do border quer dizer remetê-lo
para a diferença, para a singularidade,
para o não-mãe da castração, tratando-o
no ensejo da interação mãe, este
engendramento psíquico contenedor,
frente à destrutividade e frente à
anobjetalidade, desligamento, triunfo da
pulsão de morte segundo Green (1988).
Uma das importantíssimas contribuições,
foi a inteireza sem afetação narcísica dos
ataques cuja violência, ainda que reconhecida, sem revide, então não pôde
inundar, prejudicar ou distanciar a relação estabelecida entre Susanna e a enfermeira Valérie. Ademais, remetendo uma
perspectiva para adentrar na terapia, sobre os sofrimentos ditos, as dúvidas, os
debates quanto ao desconhecimento da
doença, aproveitando a ignorância enquanto arcabouço ao tratamento.
Delouya (2000, p. 92), no livro sobre a depressão lembra desde Melanie Klein, que
“... o enquadre analítico, assim como a
análise, são de natureza depressiva – têm
uma função depressiva”.
Voltando para a obra de Freud (1981), em
1927 o trabalho sobre o fetichismo revela que o objeto-fetiche é o substituto do
falo para mulher cuja renúncia em
ajudicá-lo à mãe foi repudiada. Por outro
lado, ocorre também uma dualidade de
pulsional > revista de psicanálise >
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insanidade. Naquele momento, a borda
fronteiriça vida ou morte esgarça-se para
Susanna, colocando para ela e para aqueles que lhe tratam, o fundo da ambivalência e do impasse em questão.
O afastamento de Lisa mais uma vez faz
Susanna isolar-se em prostração; ela é
então “acordada” pela enfermeira que a
alerta para a situação prisioneira que se
auto-impunha perpetuando-se entregue
à doença e em embates, infligindo
desvalimento aos que dela se aproximam,
(inclusive a enfermeira Valerie) atacando-os
numa resistência de onipotência vingativa. Valerie ajuda Susanna a ir se desligando das molas iatrogênicas ali estabelecidas e da alienação. Em uma conversa, a
enfermeira toca ternamente o potencial
afetivo de sentir verdadeiro pesar e dor
(sorrow) pelo outro e por si mesma. Descongela-se redescoberta a capacidade
afetiva. Depois disso, o apontamento da
terapeuta (Dra. Wick) sobre o phatos
borderline parece ressoar elucidando o
impasse sobre seu conflito numa voz mais
audível que o próprio momento em presença da mesma, abrindo o espaço transferencial num segundo tempo de trabalho. A interlocução da Dra. Wick, foi a
respeito da ambivalência em ser ou não
ser louca, ficar ou sair dali, enquanto um
jogo de forças em que estava dividida,
quando Susanna responde que está ambivalente e depois que não se importa.
Fica em questão a aquisição de integrar o
self, esse, o maior desafio do tratamento,
a travessia, de cotejar a experimentação
de si mesmo, possível desde um não reagir excessivo por parte do objeto, pois
segundo Winnicott (2000), para pacientes graves, isso produziu ameaça de aniquilação e não qualquer outra angústia
>59
hostilidade e ternura para com os objetos
que estão no patamar do objeto-fetiche.
Segundo Freud, há assim duas correntes
paradoxais que estão incompatíveis na
vida psíquica, sendo uma corrente, a do
repúdio à realidade da castração, uma
manifestação da patologia psicótica.
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clinicando
Concluindo
>60
As considerações conclusivas vêm por
etapas. Sobre o borderline, seja uma organização psíquica estável (Kernberg) ou
não, o funcionamento mental de tais pacientes jaz no impasse de necessidades
primordiais da constituição do self. Tal
enredamento mostrou-se comprometedor para a ascensão e lugar no complexo
edípico.
O surto e a morte, humores e afetos
intempestivos, instabilidade nos relacionamentos e na auto-imagem rondam indefinidamente intensa angústia freqüentemente submergida em ameaça
aniquilidora instaurando primitivos mecanismos da sôfrega existência egóica. Sob
tais aspectos fenomenológicos, a resposta frente à castração no trajeto edípico, e
então no laço transferencial, surge como
indagação para psicanálise desde que vivências inaugurais na constituição do sujeito parecem ter sido subtraídas implicando em desorganização das possibilidades salutares à economia psíquica e à ascensão para genitalidade adulta.
McDougall (1997) menciona que estes casos difíceis são diferentes do neurótico
clássico por suscitarem, na transferência,
constante oscilação entre fusão e indiferença. É importante sua observação de
que eles experimentaram largamente o
terror da morte psíquica implícita no primeiro relacionamento parental e que, ao
mesmo tempo, sentiam satisfação megalomaníaca ao terem sensações de serem
extensões narcísicas ou libidinais nos primeiros vínculos, tendo como conseqüência a perpetuação de impulsos pré-genitais e arcaicos mais tarde, na idade adulta. Ódio e amor coincidem numa corrente dinâmica de investimento libidinal. A
criança inerentemente incestuosa irá encontrar então grandes dificuldades no
discernimento sobre si, seus próprios
sentimentos e desejos sufocados nas angústias de separação e de intrusão do outro em escala de terror. Nesse cenário, a
criação do sintoma como forma de garantia da sobrevivência psíquica, está
mais propensa às formas desviantes e
adictivas da sexualidade, dos distúrbios de caráter e dos sintomas
psicossomáticos. Em uma psicanálise de
longo tempo...
À medida que a relação terapêutica permita vivenciar e buscar palavras desses momentos
iniciais da vida psíquica, a imaginação erótica
vai se desligando da sombra semelhante à
morte, retomada então, com as forças da pulsão de vida, os pais podem ser reconhecidos
em sua individualidade, suas identidades sexuais separadas e sua complementariedade genital, a cena primária internalizada, em sua versão transformada, torna-se aquisição psíquica
que dá aos adultos-crianças o direito ao seu
lugar na constelação familiar, aos seus corpos,
a sua sexualidade.
Recordando o que reiteradamente
McDougall elabora, a sexualidade é o que
reforça o sentimento de existir.
Freud, em “ O eu e o Isso” , afirma que a
primeira identificação, aquela que é responsável pelo nascimento do ideal do eu,
é com o pai, e é o pai quem constitui a
fonte do ideal de eu. Por sua vez, Melanie
anos de 1998 e 1999 com grupos de mulheres no Hospital Bettina Ferro através
da supervisão de estágio em Psicologia
das Organizações da UFPA, posso concluir
que uma hipótese está lançada: para estes, como para Susanna, as transformações das últimas décadas encontram-se
em contraditórios e desordenados discursos, pois, no mundo psíquico, aspectos
não elaborados ou mesmo negados da
realidade, originários aos tempos das relações primárias e possivelmente mais
complexo no trajeto das identificações e
da sexualidade feminina estão no inconsciente como perdas não elaboradas e
chocam-se em grande parte as conquistas
dos desejos coletivos alcançados pelas
mulheres, refletindo uma desorganização
muito freqüente aos ideais do eu da
atualidade que segundo Laplanche e Pontalis (1999) considera-se:
O filme Garota interrompida abrange a
problemática borderline quanto ao diagnóstico, a demanda terapêutica e as transformações referenciais no mundo feminino das últimas décadas, cuja personagem
Susanna, ilustra claramente. A surpresa,
sobre a evolução e movimento de
Susanna, se deu por intermédio da terapêutica com a enfermeira, que ocasionou
a transição necessária às condições posteriores de insight pois tal relação propiciou tocar a experiência de si numa nova
dimensão (depressividade) a possibilitar a
experiência de castração e de contato
ainda não permitida somente enquanto
interpretação esvaída de sentido no pro-
clinicando
Instância de personalidade resultante da convergência do narcisismo (idealização do ego) e
das identificações com os pais, com seus substitutos e com os ideais coletivos.
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ano XVI, n. 166, fev./2003
Klein é quem desloca a necessidade da
ingerência da lei paterna para o vínculo
da mãe com o filho num corte mais precoce, entre um antes (mãe) e um depois
edipiano (pai); com isso, a representação
subjetiva atribuída ao Édipo se
redimensiona sem perder a essência de
sua finalidade.
Em uma outra etapa, sob o prisma da feminilidade, nada no plano psíquico é
mais próximo a este enigma que a histeria. A respeito da percepção do pênis,
como trata Freud, engendra na menina o
desejo de possuir um e no menino o
medo de perdê-lo. Travados em estado de
não experiência da realidade, realidade
da morte do pai e da castração feminina,
sendo este último aspecto focalizado
aqui, o borderline toma com radicalidade
a condição fálico-castrado. Ao mesmo
tempo outras vertentes ficam em questão,
a mais importante é a ambigüidade da relação materna e dos processos identificatórios.
A sexualidade feminina traz uma exigência mais complexa pelo duplo movimento da castração no trajeto das identificações, nesse ensejo considerando a constatação da diferença dos sexos e seus desdobramentos. No texto de 1927, sobre o
fetichismo, Freud revela o paradoxo assumido pelo objeto-fetiche quanto a aceitação da castração feminina e a recusa.
Não se trata de psicose e tampouco das
defesas neuróticas. Duas correntes coexistem em sobredeterminada apreensão
da realidade. Aqui há uma correlação entre o borderline e os tempos atuais ao que
se verifica do pathos contemporâneo das
mulheres.
Montando o caso do filme com as leituras
percorridas, aliadas à escuta durante os
>61
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clinicando
cesso analítico. A conclusão nesse sentido é de que a terapêutica psicanalítica,
nesses casos, inclui a significação do
enredamento da existência desses pacientes na elaboração não só do conflito
edipiano propriamente escrito por Freud,
mas concomitantemente às fixações primitivas do desenvolvimento e autonomia
do self e da sexualidade arcaica.
>62
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Artigo recebido em abril/2002
Aprovado para publicação em janeiro/2003
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ano XVI, n. 166, fev./2003
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