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Maria Cristina Ramalho
A questão da transferência:
a experiência psicanalítica
Por meio de breves comentários sobre a entrada em cena, na psicanálise, do conceito
de transferência, avaliaremos, no ponto de apoio da experiência de análise, a
transfenomenologia do campo transferencial enquanto apresentação repetida de vividos
infantis numa perspectiva acentuada de atualidade.
> Palavras-chave: Psicanálise, transferência, repetição, temporalidade transfenomenal
Depois, haverá outras transferências: amaremos, trabalharemos, “sublimaremos”. Em
suma, nós nos sentiremos menos dominados e mais aptos a localizar as marcas de nossa
servidão, e, assim, a responder ao velho desejo freudiano, mais capazes de diferenciar o
presente do passado, isto é, de acolher o presente como um dom, mais do que como uma
sobrevivência. Mas a transferência agida, experimentada na análise, produzida por ela, não
se transfere. Inutilmente será esquecida, como o sonho, nos movimentos que a percorreram – sua escanção de queixas, prantos, ressentimento e prazer, seus altos e baixos – ela
é inesquecível no acontecimento, no advento que ela foi. Tal é a sua força de atração.
J.-B. Pontalis, A força de atração, p. 111-12
A evolução da prática clínica de Freud
pode nos orientar no interesse de reencontrar a trama de conceitos psicanalíticos que ainda hoje guiam nossa prática.
Essa construção de conceitos começa,
curiosamente, numa época diretamente
anterior à invenção da psicanálise. É que
Freud não conseguiu, com seu trabalho
no terreno da neurobiologia, responder
às questões levantadas quanto à correspondência anátomo-clínica e começa a
fazer algumas descobertas advindas do
pulsional > revista de psicanálise > artigos > p. 23-31
ano XVI, n. 168, abr./2003
Through brief comments on the appearance of the concept of transference in
psychoanalysis and on the support of psychoanalytical practice, this paper is intended
as an evaluation of the transphenomenology of transference as a repeated
presentation of childhood experiences from the present-day perspective.
> Key words: Psychoanalysis, transference, repetition, transphenomenal temporality
>23
artigos
pulsional > revista de psicanálise >
ano XVI, n. 168, abr./2003
>24
discurso dos pacientes e o que deles ele
pôde ouvir graças aos progressos sustentados por seu próprio percurso pessoal.
Essa “audaciosa complicação”1 impede a
concepção da metapsicologia da técnica
como a elaboração pura e simples da pesquisa de modelos conceituais distantes
da prática clínica e o que ela impõe ao
analista. Foi assim que Freud, ainda numa
época dominada pela tradição anátomoclínica, e orientado por essa dificuldade
epistemológica, vai junto a Charcot,
Bernheim, Breuer e Janet, desenvolver
uma paixão pelo “invisível”, já que apenas
o “visível” não oferecia sustentação para
o desvio que a cena histérica autenticava.
O fato é que, ainda hoje, a medicina tem
o interesse de exercer um domínio sobre
a doença e uma vontade de compreender
completamente as implicações psicopatológicas de certas perturbações e de exigir
que toda observação crie um procedimento científico através da padronização
e da classificação, basta pensar no efeito
da ortodoxia da prática das neurociências
e seu adestramento de idéias. Podemos,
acompanhando Freud, avaliar o acompanhamento médico que à sua época era
dispensado às histéricas:
Com o rótulo de histeria pouco se altera, portanto, a situação do doente, enquanto que para
o médico tudo se modifica. Pode-se observar
que este se comporta para com o histérico de
modo completamente diverso que para com o
que sofre de uma doença orgânica. Nega-se a
conceder ao primeiro o mesmo interesse que
dá ao segundo, pois não obstante as aparências, o mal daquele é muito menos grave. Mas
acresce outra circunstância: o médico que, por
seus estudos, adquiriu tantos conhecimentos
vedados aos leigos, pode formar uma idéia da
etiologia das doenças e de suas lesões, como,
por exemplo, nos casos de apoplexia ou de tumor cerebral, idéia que até certo ponto deve
ser exata, pois lhe permite compreender os
pormenores do quadro mórbido. Em face, porém, das particularidades dos fenômenos histéricos, todo o seu saber e todo o seu preparo
em anatomia, fisiologia e patologia deixam-no
desamparado. Não pode compreender a histeria, diante da qual se sente como um leigo,
posição nada agradável a quem tenha em alta
estima o próprio saber. Os histéricos ficam,
assim, privados de sua simpatia. Ele os considera como transgressores das leis de sua ciência, tal como os crentes consideram os
hereges: julga-os capazes de todo mal, acusaos de exagero e de simulação, e pune-os com
lhes retirar seu interesse. (1910, p. 15)
A vontade de fazer calar a doença fazia
com que toda doença que a medicina
não conseguisse acessar por meio de seu
catálogo, por escapar àquilo que era cientificamente codificável, fosse cultivada
por necessidade de pesquisa. Foi assim
com Charcot, para quem os esforços iam
na direção da precisão diagnóstica e da
experimentação, fazendo com que a fala
do histérico produzisse fontes de informação para a ciência mais o alienando
dos efeitos de verdade que ela poderia
produzir. O teatro da histeria se vê reduzido ao sintoma corporal, mas a fala que
a dramatização produz não é levada em
conta e a idealidade anátomo-clínica e
seu instantâneo fotográfico vão dar su-
1> Fédida (1989) vai dispor desta nomenclatura adjetiva para comentar a metapsicologia da técnica como
correlativa de uma metapsicologia dos processos psíquicos do analista durante o tratamento, enquanto
implicação na atividade de pensamento metapsicológico do analista.
Os impulsos inconscientes não desejam ser
recordados da maneira pela qual o tratamento quer que o sejam, mas esforçam-se por reproduzir-se de acordo com a atemporalidade
do inconsciente e sua capacidade de alucinação. Tal como acontece aos sonhos, o paciente encara os produtos do despertar de seus
impulsos inconscientes como contemporâneos
e reais; procura colocar suas paixões em ação
sem levar em conta a situação real. O médico
tenta compeli-lo a ajustar esses impulsos
emocionais ao nexo do tratamento e da história de sua vida, a submetê-los à consideração
intelectual e a compreendê-los à luz de seu valor psíquico. Esta luta entre o médico e o paciente, entre o intelecto e a vida pulsional,
entre a compreensão e a procura da ação, é
travada, quase exclusivamente, nos fenômenos
da transferência. É nesse campo que a vitória
tem de ser conquistada — vitória cuja expressão é a cura permanente da neurose. Não se
discute que controlar os fenômenos da transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não se deve esquecer que
são precisamente eles que nos prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifes-
artigos
uma causalidade para o visível, mas aposta no paradoxo que permeia a ontogênese dos símbolos, símbolo como o que representa uma situação traumática e o
fato de se livrar dela, símbolo como gênese do objeto e sua equivalência erótica e
erógena. Foi só fazendo o percurso entre
a anatomia e a sua representação imaginária inscrita na linguagem, que Freud
pôde se aventurar numa outra via, uma
via que privilegia esse “entre o somático
e o psíquico”, “entre o visível e o invisível”. Para aquele que sofre em seu corpo
e em seus pensamentos, o analista testemunha, pela sua presença, a intemporalidade e o caráter alucinatório do inconsciente:
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porte aos procedimentos utilizados com
o interesse de dar conta do visível e do
descritível, do fenômeno. O visível será
capturado pela exibição e repetição da
cena traumatizante, objetivando uma verificação para fins didáticos e o discurso
fica engessado à guisa de confissão, impossibilitando que a dimensão de verdade ganhe sentido através da aparência da
“mentira”. Na medicina, o sintoma é apenas um sinal, uma mensagem enviada
como alarme, tem valor indicativo e
introdutório da patologia.
Na psicanálise, ao contrário da medicina,
o percurso inventado pela formação do
sintoma tem peso. É como se fabricou
este percurso que vai do conteúdo latente, “a verdade”, ao conteúdo manifesto,
“a mentira”, essa trama psíquica com sua
cadeia de representações, suas insistências
e entrecruzamentos que vai mobilizar
Freud. Já passados alguns anos, a escuta
e a leitura de Freud vão se dispor ao invisível que sustenta o sintoma e tratá-lo,
no caso da histeria, como nada mais do
que os fantasmas inconscientes que, por
“conversão”, encontraram uma forma figurada e, à medida que são sintomas somáticos, muito freqüentemente são emprestados ao domínio das mesmas sensações sexuais e das mesmas inervações
motoras que, na origem, acompanharam o fantasma quando ele ainda era
consciente. A concepção do sintoma, em
psicanálise, vai sair do campo objetivo
justamente quando ela não se limita a
transpor uma causalidade orgânica para
uma causalidade psíquica. A idéia de causalidade não tem lugar no pensamento
psicanalítico e só está vencida quando se
dispõe a trilhar um percurso que não reconhece um destino único, explicativo e
>25
tos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos
do paciente. Pois, quando tudo está dito e feito, é impossível destruir alguém in absentia
ou in effligie. (1912, p. 143)
Podemos perceber a clareza com que
Freud apresenta aqui o fenômeno da
transferência como sendo, sem nenhuma
ambigüidade, a continuidade do sonho, e
possibilitando vivenciar o mesmo presente real que faz com que o sonhador dê
crédito ao que vive no sonho, com a diferença que aqui o sonhador está acordado. “A situação analítica pode ser descrita como um lugar, caso estejamos de
acordo para reconhecer-lhe uma organização cênica cujo paradigma é o sonho”
(Fédida, 1991). Vai ser, portanto, tomando
a situação analítica como um lugar, um
sítio, onde a inquietante estranheza emerge na “transparência e na trans-sonância”
do invisível, que a transferência vai se
ocupar de um lugar de desterritoriolização e de um tempo entre o passado e o
futuro, o tempo do acontecimento, e pela
mobilização e a reanimação da vida psíquica abre possibilidades de irrupção do
inesperado, do desesperado.
imagens do nomadismo pela via da apresentação de dois aspectos que se sobressaem no estilo e nas formas de arte nômades: “... o ideal fundamental, segundo o
qual toda vida, experiência e existência
não têm limites e fronteiras” e “a idéia básica de não se glorificar um desempenho
em termos de territórios e de recursos”
(p. 174 ). O nomadismo serve de referência às experiências fragmentadas e descontinuadas, que pressupõem uma estética de vida errante onde as flutuações de
forma e conteúdo lhe dão passe livre nessa viagem sem contornos estanques. Citando Deleuze e Guattari (1983, 1987) ele
os apresenta como “sido particularmente
influentes neste contexto, não apenas
sobre a sua discussão sobre o ‘pensamento nômade’ e a ‘arte nômade’, mas graças
também a sua crítica geral sobre as categorias e as identidades fixas e sua celebração de um retorno às formas précognitivas da experiência e seu conceito
de fluxos”. Ele acrescenta também que a
valorização dessa perspectiva da experiência nômade como constitutiva da subjetividade se apresenta desde o século XVIII e sua
valorização faz referências a ideais estéticos de
movimento.
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Transferência e Temporalidade
>26
Na situação psicanalítica nossa navegação
no tempo toma aspectos inusitados, tudo
parece um rodamoinho. A direção e a espessura do tempo se evaporam, como se
a memória pudesse sofrer um aplainamento no tempo e no espaço.
Esse “modo de navegação”, em que a complexidade e a fluidez tomam assento, engendra referenciais onde as metáforas de
nomadismo apresentam-se como características da condição da situação analítica.
Featherstone (1997) vai perspectivar as
A Temporalidade Transfenomenal
Nosso interesse é apresentar uma forma
de compreensão da transferência através
de uma temporalidade em que esses ideais
estéticos de movimento são sua gênese.
Vamos chamar a essa temporalidade de
transfenomenal. A temporalidade transfenomenal é essa temporalidade onde a dinâmica da transferência é pensada para
além dos fatos, pela via dos acontecimentos.
Para falar de acontecimento será necessário, por oposição, falar de fatos. Podemos
Esta necessidade de apreender aquilo que, de
uma certa maneira já se sabe, pode evocar o
que diz Proust do modo como “conheceu” a
morte de sua avó, quando um detalhe familiar
e surgido de improviso (o fato de inclinar-se
sobre as botinas) acabava de restituir qualquer
coisa de sua presença: “Foi nesse instante exato por causa deste anacronismo que tão freqüentemente impede o calendário dos fatos de
coincidir com o dos sentimentos – que eu acabava de saber que ela estava morta (…) que eu
a havia perdido para sempre.
Neste exemplo proustiano podemos nos
dar conta de que não é só de uma realidade perceptiva que se trata aqui, mas
para além da visão das botinas é com ela
e por meio dela que se produz na realida-
de psíquica esse processo de subjetivação
ancorado na temporalidade transfenomenal, “este desatamento da alma em retorno: constitui o atrás como uma potência
de linguagem em cuja presença a fala se
relembra vendo voltar a ação do acontecimento ‘esquecido’” (Fédida, 1996, p. 84).2
Entre o passado e o futuro
A dinâmica transferencial pensada pela
via de uma temporalidade transfenomenal vai se fazer através de movimentos,
no espaço e no tempo, que vão tecer a
trama dessa história. Esses movimentos
obrigam o sujeito a tecer e a(o) destecer
a trama dessa história, num incessante
impacto de tradução de fatos em acontecimentos, e oferecem continuamente ao
presente a possibilidade de um encontro
com o passado e a abertura de um futuro não implicados com um determinismo
temporal impeditivo de transformações,
mas retirado das aparências ou com as
aparências enquanto tais – “nem com a figura nem com a posição” como estão dadas aos nossos sentidos –, mas apenas
com as aparências enquanto afetam nosso “estado interno” no qual determina “a
relação das representações, relações pelas quais tornamos presente o que fenomenicamente está ausente. Aqui nem o
passado determina o presente e este determina o futuro e nem só no futuro se
decide e se constrói o destino do passado. Nas óticas deterministas de temporalidade o tempo presente é empobrecido:
de um ponto de vista ele nada mais é do
2> Podemos acompanhar Fédida mais profundamente neste texto, onde ele faz uma leitura de H. Maldiney desse tempo implicado que é o tempo da transferência, onde a anacronia dos fatos reverbera a presença do ausente e a ausência da presença.
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distinguir o tempo em vários níveis, quais
sejam: o tempo dos processos físicos
(tempo cósmico), o tempo dos processos
biológicos (tempo das vivências) e o tempo da história das coletividades. Esses
tempos são factuais na medida em que se
apresentam ao sujeito como uma vivência,
é o tempo do modo de funcionamento
dos aparelhos perceptivos, que impõe uma
temporalidade baseada no ritmo do contato com o chamado do mundo exterior.
O tempo da existência é um tempo que se
faz acontecimento para o sujeito, acontecimento como potência de ação do tempo, em que o fato é admitido ao processo existencial de temporalização.
Schneider (1993, p. 99), para nos falar
com clareza do processo de “admitir, reconhecer, adotar em si” (Annaηme), recorre a Proust:
>27
que decorrência do passado e nele nada
de inesperado pode acontecer, e do outro modo é o futuro que decide o sentido do passado, que é o presente hoje e
que, portanto, se encontra também aprisionado nessa rotina referencial.
O Tempo da Agoridade
Ele tem dois antagonistas: o primeiro
empurra-o para trás a partir da origem. O
segundo veda o caminho à frente. Ele luta
com ambos. Na verdade, o primeiro lhe dá
apoio na luta contra o segundo, pois ele quer
empurrá-lo para frente; e, da mesma forma, o
segundo apóia-o na luta contra o primeiro,
pois ele empurra-o para trás. Mas isso é
assim apenas teoricamente. Pois não
somente os dois antagonistas que estão lá,
mas também ele; e quem conhece realmente
suas intenções? Todavia, o seu sonho é que
num momento de desatenção – e isto, é
preciso admitir, exigiria uma noite tão escura
como nenhuma já foi – ele pulasse para fora
da linha de batalha e, graças a sua experiência
em lutar, fosse promovido à posição de
árbitro na luta de seus adversários entre si.
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Kafka, coleção de aforismos: Ele
>28
É no nomadismo do tempo presente com
a possibilidade de irrupção do inesperado e do desesperado (cf. Comte-Sponville,
2001, p. 120-8) , do surpreendente que se
anuncia o acontecimento. O acontecimento é o tempo do aqui e agora embalado por essa estética nômade que o levaria do presente, presente sempre a exigir
e sofrer traduções, ao passado e ao futuro. O acontecimento é o hoje fazendo
história e neste processo mudando,
transformando a rota da temporalização,
é a conjunção de um tempo estático e de
um tempo dinâmico aceitando essa nomadização paradoxal de constante e fecun-
da reversibilidade.
O acontecimento se expressa na nomadização temporal, nesse percurso onde a
coexistência do passado pela memória, e
do futuro por um projeto se atualizam num
agora onde descontinuidades e diferenças
não são descartadas. Podemos pensar a
trajetória temporal transfenomenal como
o tempo da agoridade (cf. Ramalho,
1998), uma construção a partir desse interjogo de retrospecção através da memória (passado) e de prospecção através
do projeto (futuro).
O tempo da agoridade tira de cena o determinismo e impõe a construção livre do
sentido dos enigmas que se oferecem a
traduções e retraduções incessantes. Figueiredo (1996) retoma a noção de “transpassibilidade” da obra do filósofo H. Maldiney como sendo a passibilidade – o
que é passível ao inesperado, ao inacreditável, ao surpreendente –, o motor do
acontecimento. Ele acrescenta que as noções de acontecimento e de transpassibilidade é que vão dar o suporte a um presente onde algo de crítico e decisivo, fora
da trama tecida pelas representações e
pelas rotinas, possa emergir. Este tempo
referenciado por nós como tempo da
agoridade, é um tempo processando perdas e ganhos, inputs e outputs, memórias
e projetos, momento de um processo de
dar sentido, mesmo que imperfeitamente, visto que as traduções se sucedem ao
acontecimento.
O acontecimento – Interjogo na
transferência
Na fantasia infantil, é sem dúvida o estrangeiro que desempenha, por excelência, o papel de sedutor. O adulto, ou melhor, o mundo adulto é um mundo es-
de, estaria fundada neste tempo transfenomenal, que inaugura a agoridade. A
subjetividade se faria na posteridade desses encontros com o enigma de si mesmo
e da estranheza do outro. Esses encontros
desvelam partes não traduzidas e mesmo
intraduzíveis de si mesmo e do outro e
essa estrangeiridade que emerge sofrerá
expressivo e expansivo trabalho obrigando o sujeito a uma contínua tradução.
Ferenczi (1919-1926), “O problema da afirmação do desprazer”, nos oferece uma
importante contribuição. Neste artigo, ele
apresenta a construção de si mesmo e, do
outro, como um percurso entre o sentimento de onipotência e a afirmação do
desprazer, onde os “progressos no conhecimento do sentido de realidade”3 se fazem pela via da representação de objeto.
A assunção da representação de objeto se
materializa após sucessivas experiências
de prazer e desprazer, pelo reconhecimento do amor e do ódio, pelo reconhecimento de si mesmo e do outro, pelo reconhecimento do estrangeiro em si e no
outro, pelo desintrincamento pulsional
de que nos fala Ferenczi, ou seja, é o desprazer que “cria” o objeto e sua representação. Vai ser neste instável equilíbrio,
nesta ambivalência, com esta “espécie de
máquina de calcular cuja existência nos
põe diante de novos enigmas” que amorosidade e hostilidade, como um par de
oposição e de complementaridade, oferecem uma temporalidade capaz de gerar o
desintrincamento pulsional e, por conseqüência, a assunção do objeto e o que ela
oferece de estranheza e proximidade. Fe-
3> Ferenczi no artigo citado apõe este subtítulo “Progressos no conhecimento do sentido de realidade”
fazendo crer que é o desprazer que vai promover a distinção entre o sujeito e o meio circundante, entre
o sujeito e o outro.
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trangeiro para a criança, um mundo de
onde pipocam chamados, sugestões e invasões. A quantidade e qualidade dessa
invasão na economia psíquica infantil
“causa impressão e desaparece, levando
consigo o desejo que capturou. A ambigüidade de sua aparência faz com que ele
tome corpo no sonho e se esvaneça ao
despertar, mas alimentando uma expectativa de volta. Que a análise proporcione
uma reprodução imaginária de uma tal
cena não deve ser motivo de surpresa, tão
florescente foi a vida amorosa em seus
inícios, tendo ela também perecido tão
precocemente em uma terrível catástrofe” (Fédida, 1991, p. 59).
Ferenczi (1933) em “Confusão de língua
entre os adultos e a criança” nos fala da
“hipocrisia” presente no relacionamento
da criança com o adulto e a aproxima da
relação entre o paciente e o analista,
enfatizando que é a alteridade de si mesmo, do adulto e do analista, que propõe
essa “hipocrisia”, esse saber que não se
sabe, esse enigma de si mesmo do adulto,
do analista, que derrota as capacidades e
recursos simbólicos da criança e promove, nesse movimento, processos de construção de subjetividade e de alteridade. O
olhar ferencziano sobre a constituição
subjetiva inclui esse outro adulto também enigmático para si mesmo, que se
encontra com seus próprios enigmas a
decifrar, num eterno trabalho de tradução e retradução, posto que sempre precárias e vulneráveis. A gênese da construção da subjetividade estaria fundada na
emergência simultânea de si e da alterida-
>29
renczi (1919-1926, p. 397) assim apresenta
a percepção de objeto:
As coisas que nos amam sempre, ou seja, que
satisfazem constantemente todos os nossos
desejos, não tomamos conhecimento delas
como tais, incluímo-las simplesmente em
nosso ego subjetivo; as coisas que nos são e
sempre nos foram hostis, recalcamo-las
simplesmente; quanto às coisas que não estão
incondicionalmente a nossa disposição,
aquelas de que gostamos porque nos dão
satisfação e que detestamos porque não nos
obedecem em tudo, criamos para elas marcas
particulares em nossa vida psíquica, traços
mnêmicos aos quais se liga um caráter de
objetividade, e rejubilamo-nos quando as
reencontramos na realidade, ou seja, quando
podemos amá-las de novo. E quando odiamos
um objeto e não conseguimos recalcá-lo
suficientemente para poder negá-lo de maneira
duradoura, o reconhecimento de sua existência
prova que, na realidade, gostaríamos de amá-lo e só
a “maldade do objeto” nos impede disso.
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O Sítio do Estrangeiro
>30
O estranho pode ocupar um espaço potencial no “próprio lugar onde as pulsões
oscilam numa inscrição psíquica” bastando, para tanto, que como complementaridade ou oposição ele marque presença
no sujeito e no outro e sem indiferenciação, repúdio ou distância possamos nos
aproximar dele e promover um trabalho
de tradução, retradução e detradução
sempre incômodas porque referidas a
uma estética nômade, não fixadas e sempre móveis no tempo da agoridade e que
“leva a uma organização psíquica simbólica”. Gagnebin (1994), referindo-se à teoria da narração e da historiografia em
Benjamin nas teses “Sobre o conceito de
história”, apela para o que chama de “rup-
turas eficazes” onde as cesuras que quebram com a narração não são apenas e
simplesmente as marcas da desorientação
moderna ou o fim de uma visão universal
coerente, mas são, também, os indícios
de uma ruptura mais essencial da qual
pode emergir uma outra história, uma
outra verdade e da qual podem nascer
outras histórias, outras verdades. Por essa
perspectiva gostaríamos de fazer uma
aproximação deste pensamento benjaminiano com o tempo da agoridade onde a
temporalidade da transferência obedece
a essa “ruptura eficaz” por essa falha da
irrupção, no presente, de um processo de
significação inédito. O tempo da agoridade ou o tempo do acontecimento deixam
transparecer neste ineditismo da significação uma crítica a uma causalidade determinista. Este processo opera decisões
singulares proporcionadas pelos encontros do sujeito com a oposição e a complementaridade do outro e de si mesmo e
sua potência de interrogação.
O sítio do estrangeiro é, portanto, esse lugar
paradoxal onde a ambivalência se expressa
pela oposição e complementaridade com
que se defronta/confronta o sujeito pela
alteridade e pela diferença com a possibilidade de, afastado de ambições universalistas, dar vida a estas “rupturas eficazes”,
a essas intensidades e interrogações perturbadoras, advindas de uma implicação
audaciosa nossa, como psicanalistas, essa
ousadia de um saber que não se sabe.
Referências
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Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. XI.
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ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. XII.
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Janeiro: NAU, 1998.
SCHNEIDER, M. Afeto e linguagem nos primeiros
escritos de Freud. São Paulo: Escuta, 1993.
Artigo recebido em dezembro/2002
Aprovado para publicação em fevereiro/2003
PSICOWAY
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FÉDIDA , P. Modalidades da comunicação na
transferência e momentos críticos da contratransferência. In: Fédida, P. (org.). Comunicação e representação: novas semiologias em psicopatologia. São Paulo: Escuta, 1989.
_____ O sítio do estrangeiro. In: Nome, figura e memória. A linguagem na situação
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_____ O epos – o sítio. In: O sítio do estrangeiro: a situação psicanalítica. São Paulo:
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São Paulo: Martins Fontes, 1993.
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FIGUEIREDO, L.C. A questão da intersubjetividade,
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_____ ; M ALDINEY e F ÉDIDA . Derivações
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>31