Posição no coito e outras posições
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Posição no coito e outras posições
Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto Posição no coito e outras posições O autor expõe alguns trechos de três casos clínicos nos quais a posição sexual é claramente referenciada pelos pacientes. Esses discursos são interpretados com o auxílio das associações dos pacientes de maneira que sua singularidade pode ser apontada. Finalmente, o autor chega às idéias freudianas sobre o complexo de castração e às especulações de Ferenczi acerca do coito como desejado retorno ao corpo da mãe. Palavras-chave >Palavras-chave Palavras-chave: Coito, psicanálise da relação sexual, clínica psicanalítica, sexualidade. pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 161, set./2002 artigos > p. 8-13 The author presents excerpts from three clinical cases in which sexual positions are clearly mentioned by the patients. These references are interpreted in the light of the patients’ associations, so that their singularity can be pointed out. The author also takes up some ideas of Freud’s regarding the castration complex and speculations by Ferenczi that see coitus as a (wished for) return to the mother’s body. >Key words: Coitus, psychoanalysis of sexual relationships, psychoanalytical clinic, sexuality >8 Não pretendo aqui buscar generalizações. Trata-se apenas de teorizar a clínica como uma necessidade da própria clínica. Por teorizar, entendo abstrair, retirar e separar qualidades do empírico, o que já tem certo grau de generalidade, mas o grau aqui proposto não é muito mais do que o alinhamento de três casos por um aspecto que eles têm em comum. A posição (ou conjunto de posições) ou do homem ou da mulher durante o coi- to tem sentido no plano das relações de poder e dominação. Isso, na verdade, é um clichê e não necessita muita demonstração, embora requeira aprofundamento. Sendo ou não um lugar comum, homens e, sobretudo, mulheres investem essa idéia seja de maneira ideológica, seja no plano de um simbólico desejante. No trabalho analítico, vi poucos pacientes que não a trouxessem por sua própria conta e que não visassem exprimir algo com Júlio (38 anos), pequeno comerciante,1 procurou-me, pressionado pela esposa, para um trabalho psicoterápico, depois de um evento de exibicionismo pedófilo dentro da própria casa. Seu discurso é monótono, circular, e centrado no relato da ação dos outros, sobretudo na da esposa. Desvelando um pouco a monotonia que sinto no plano contratransferencial, Júlio conta-me que a esposa o agride sempre e todo o tempo. Trata-o como se fosse um soldado e aos filhos: manda, determina comportamentos, põe todos para dormir. De noite, na cama, quer sexo, exige. Por vezes ele “cede”, mas como é esse ceder? Ela vira de lado, virada para ele ou não, ele faz. Bem assim, diz ele, como quem dissesse “dessa maneira ridícula”. Monotonia, cansaço, sentimen- 1> A maioria dos dados objetivos dos pacientes foram totalmente alterados, evitando qualquer possibilidade de identificação. 2> E sobre o exibicionismo em nota de 1920 a “Três ensaios sobre a sexualidade” (p. 143, nota 26). Não creio que seja interessante moldar casos ao texto freudiano ou a qualquer outro texto. O texto é o que apenas inspira nossa prática. Entretanto, creio que não seja inútil reproduzir aqui a nota de Freud. Diz ela: “A análise revela nesta perversão (o exibicionismo) — assim como a maioria das outras — uma inesperada multiplicidade quanto a seus motivos e significações. A compulsão exibicionista, por exemplo, depende também estreitamente do complexo de castração; insiste repetidamente na integridade dos próprios genitais (masculinos) e repete a satisfação infantil pela falta do membro nos da mulher”. artigos Clínica to de ser obrigado, de ser agredido, de fazer o que não quer. Mas, sobretudo, ele me enrola. Diz o que acha que eu quero ouvir, fala monotonamente, repetitivamente, mas o tempo todo e concorda com tudo que digo. É preciso apenas que a mulher saiba que ele “está” na psicoterapia. Portanto, também “enrola“ — vai levando e rolando — a mulher. Enrola-a também na cama, faz que está não estando. Talvez enrole também a castração, bem no sentido de que nos fala Freud em “O fetichismo”,2 vai levando-a sem encarála, encarando-a com prazer ao mesmo tempo, como se ela não existisse existindo, como se a mulher — castrada — não existisse, mas “bem feito!”, ela existe e eis que a mulher, não tendo a capacidade de conduzir o coito, sai insatisfeita e impotente em todos os sentidos. Aliás, é interessante que a posição de lado tem bem isso de poder fazer o corpo rolar ao mínimo toque. No trabalho analítico, então, comporta-se como se eu não existisse existindo, enche a sala de palavras como se fosse uma Sherezade evitando a morte e o patíbulo. Evidentemente, o caso é muito mais complexo que isso e não se resume, suponho, em uma curta fórmula sobre a castração. Há muita agressividade, vinganças, infantilismos vários, etc. Apenas ressalto o discurso sobre a posição no coito en- pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 161, set./2002 isso. Ao contrário, o discurso sobre a posição no coito parece ir bem mais longe que o próprio coito, e mesmo mais longe que as relações de poder entre as pessoas e falar sobre outras posições: posição no mundo, posição frente à vida e à morte, posição diante do outro, posição no trabalho analítico e posição frente à própria sexualidade, essa última num sentido, que todos sabemos, excede de longe o simples coito. Trago alguns fragmentos de casos. >9 artigos pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 161, set./2002 >10 quanto importante elemento de expressão. Trago mais dois outros casos, agora femininos. Marilda, uma secretária de 24 anos, em meio a várias outras afirmações, contame que não gosta da posição por cima, ela por cima; relata que não sente absolutamente nada nessa posição. Vejamos como isso apareceu. Marilda me diz que, provocada por uma interpretação minha, na sessão anterior, de natureza sexual, na verdade genital, tem algo para dizer, mas que não consegue. Afirma ainda que já revelou-me o assunto outra vez, mas que agora precisa repetir e não consegue. Diz então que vai começar pelas bordas: “Sabe, eu sinto muito medo, angústia, pavor, com o que não posso controlar. Quando o Roberto (namorado) sai sozinho, eu deixo ele ir, mas fico apavorada se não posso encontrá-lo pelo telefone. Tudo eu preciso controlar porque tenho a impressão que algo vai acontecer”. Isso é irracional, exclama. Depois de algumas intervenções, diz que isso lembra-lhe seus cinco anos, logo após a morte de sua mãe, quando sente intenso temor de que todos os seus morressem e isso era “irracional”. Esse “irracional”, portanto, não o era tanto, pois há realidade histórica na perda. A perda da mãe parece colocá-la muito cedo de frente, de cara, com a tão real e tão “impossível” idéia de que a morte existe, inclusive a dos que ainda não morreram. Um confronto assim com a nudez do que é real, sem muitas intermediações, é o que podemos chamar de situação traumática.3 Se é assim, podemos entender a idéia de controle de que fala a paciente: repetir para dominar, um pouco na linha do fort-da de Ernst, o neto de Freud. E, se é assim, ainda, o controle se manifesta como angústia (do não controle), mas também como prazer. Marilda chega, então, ao que dissera estar rodeando: “Olha, eu não gosto de dominar (diz dominar, não diz controlar; em algum momento, chamo-lhe atenção sobre isso) a relação (sexual) com o Roberto, odeio ir por cima, não sinto nada. Mas tem uma coisa que me desespera: é se eu sinto que minhas mãos estão presas. Aí parto pra porrada, encho de chutes, etc.” De fato, ela já me falara dessa sua dificuldade e o fizera sem grandes problemas. Fico me perguntando o por quê de tanta dificuldade agora em contar o já contado e, inclusive, sua surpresa com essa dificuldade. É então que relata ter feito um “experimento”. Pediu ao parceiro que prendesse (prender é a palavra que usou) suas mãos e “fizesse” (ela por baixo). Passou então a sentir um extremo e surpreendente prazer. Até que, por um motivo insignificante, uma pequena escorregada do parceiro, diz, ficou furiosa e cortou. O prazer do medo, digo-lhe. — Acho que uma coisa de confiança, responde. Ao ouvir essa palavra, escolho assinalar o aspecto transferencial e digo: “Acho que 3> Que Freud, em “Além do princípio de prazer”, expressa como a impossibilidade ou dificuldade da “vesícula” psíquica de dominar estímulos que invadem de dentro e de fora (p. 24 sg.). sexualidade a girar sobre o vácuo do traumático, o que a fez optar pela vida, na ocasião de algumas tentativas de suicídio.4 Por último, trago o caso de Lia, uma enfermeira de 34 anos, que também escolhe falar sobre controle por meio da linguagem do coito. Na primeira entrevista, fala-me apenas de preço, mas, na seguinte, sem nenhum motivo aparente, diz-me que só consegue relacionar-se sexualmente se estiver por cima e se puder ir até o fim, gozar. Como se vê, ao contrário de Marilda; mas, como essa última, declara-se fóbica e embaraçada com sua extrema necessidade de controle. Penso que se ela só transa por cima, é justamente assim que está pedindo para que seja o trabalho terapêutico, que ela possa ficar pelo menos um pouquinho “por cima”, isto é, ter um pouco de controle sobre ele. É desse modo também que leio a sua “posição” de usar toda a primeira sessão para discutir preço. Oito meses após, fazemos férias e, na volta, deixa a terapia, alegando problemas de dinheiro; quinze dias depois disso, volta e retoma com bastante intensidade. Numa das novas sessões, revela o quanto está e estava zangada com o fato de ter tido que pagar as tantas sessões que faltou antes das férias. Na verdade, não houvera tempo de discutir essas faltas, eu simplesmente cobrei e ela pagou e saiu de férias. Pede-me, então, que não cobre o pagamento das faltas: “Se não houve a sessão, por que pagar?” Eu não falto por resistência, diz, é que meu marido gosta 4> Uma delas, a primeira, é significativa, ocorreu como vontade de se atirar do terraço de um edifício de vinte andares. pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XV, n. 161, set./2002 você, de algum modo está falando da nossa relação...”. Penso na dificuldade que está tendo em dizer o já dito. Faz um certo silêncio e retoma: — Vou confessar uma coisa que está me acontecendo há muito tempo e eu nunca disse. Muitas vezes, eu, aqui, tenho duas sensações bem fortes: eu me sinto presa no divã, como colada, e sinto tudo rodando. É muito estranho, comenta. — Isso lembra alguma coisa?, pergunto. — Roda gigante. Eis, portanto, o que me parece ser o prazer erótico do medo. É, talvez, como se eu estivesse prendendo suas mãos num coito imaginário, que é como está traduzindo o trabalho analítico nesse momento. É também esse prazer, aí, uma posição tomada frente ao trauma e ao traumático que lhe parece ser o nosso trabalho. O prazer aí parece ser justamente como uma roda, algo que circula insistentemente (a libido) em torno da fenda aberta pelo trauma e esse último associase fortemente à morte da mãe. Seria talvez ingênuo pensar que é com essa morte que ele — o trauma — se cria, mas é com ela que ele se expande, torna-se visível e ganha denominação. Isso faz lembrar algo que trabalhamos alguns meses antes, sobre a identificação de Marilda com a mãe: o prazer de estar morta e nessa posição sofrer o coito. Essa identificação é o que explica um pouco a depressão que a fez procurar ajuda e que continuou abatendo-a durante os primeiros meses de trabalho terapêutico. Foi por ventura esse prazer, esse quantum de >11 pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XV, n. 161, set./2002 >12 de me levar em viagem. Converso sobre isso, chamo a atenção sobre a constância etc., e sobre a resistência, sim. Rimos um pouco, ela é bastante bem-humorada. Na sessão seguinte, traz um sonho: que está tendo relações sexuais com o parceiro, mas nota que ela mesma tem um pênis, bem longo e fino. No decorrer da relação (ela por cima) é penetrada e “percebe” que esse pênis estranhamente desapareceu. Sua primeira associação é a de que esse pênis é algo de fortemente demonstrativo, mas não sabe de quê. Imagino que seja do seu desejo; é o que lhe digo à guisa de suposição. Como todo o discurso que vem antes do relato do sonho é sobre a sua terapia e sua resistência ao trabalho terapêutico, e a tantas coisas na vida, chamo a atenção sobre o aspecto transferencial do sonho ou, ao menos, de seu relato. Na sessão anterior, de fato tentara demonstrar alguma coisa, como num embate. Como já disse, tentara enfaticamente demonstrar que eu não devia fazê-la pagar pelas sessões que faltasse. Tentara justamente demonstrar o seu desejo, o seu ser, a sua vontade de controle ou, melhor, de participar ativamente desse controle/disputa. É por esse caminho que interpreto. Na semana seguinte, após a sessão do relato desse sonho, tem outro sonho: que sua irmã está com sangue na vagina e ela sente como se fosse nela mesma. Muitas interpretações são possíveis e muitas ainda virão. Todas as associações conduzem ao ciúme dessa irmã caçula que a “destronou/castrou”, mas, aquém dessa interpretação, é interessante notar que os dois sonhos formam uma frase: “Onde havia um pênis, há, agora, uma ferida sangrenta”. O que me fica desse ter e não ter um pê- nis, de estar por cima ou não, de disputar o poder é que esse jogo de fálica/castrada ainda vai durar muito tempo. Ele vem bem na direção do seu suposto principal sintoma, do qual diz ter sido curada por mim: o de não conseguir falar com o pai, devido à impossibilidade de dominar o ódio. Essa disputa agora está em outra cena, na cena transferencial. Pois bem, não vejo, aqui, grande necessidade de síntese, entretanto quero grifar esse deslizamento de significações da linguagem do coito para outras linguagens, se é que se pode assim falar das significações e contextos. Posição na cópula, mas também posição frente à vida e à morte, posição frente ao outro, posição frente à castração e, sobretudo, posição na transferência. Vale, finalmente, uma rápida anotação teórica. Comentário teórico Volto onde comecei: penso nas relações de poder. Não é preciso nenhuma teoria de política sexual para interpretar a posição no ato sexual como linguagem de poder. Os próprios pacientes falam disso. No entanto, o material exposto está nos mostrando que esse poder de que falam é bem menos poder sobre o outro, mas muito mais poder sobre a vida e a morte. Mesmo assim, quando falamos em discurso do inconsciente — ao falarmos em sonhos, em associações livres, em transferência —, a idéia de morte parece descabida. A morte é um conceito, e um conceito complexo, que gira em torno de ser e não ser. Teria o inconsciente, tal como o buscamos na prática analítica, em todo o seu primitivismo, a capacidade de imaginar o não ser, principalmente quando se tem a negatividade do não ser? Podemos pensar de outra maneira e supor a Artigo recebido em abril/2002 Aprovado para publicação em agosto/2002 Rua Dr. Homem de Mello, 446 05007-001 São Paulo, SP Fonefax: 3672-8345 / 3865-8950 / 3675-1190 e-mail: [email protected] artigos Referências FREUD , S. Tres ensayos de teoría sexual. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1991. v. VII _____ . Más allá del princípio de placer. In: Obras completas. Op. cit. v. XVIII. _____ . Inhibición, síntoma y angustia. In: Obras completas. Op. cit. v. XX. _____ . El fetichismo. In: Obras completas. Op. cit. v. XXI. FERENCZI, S. Thalassa; ensaio sobre a teoria da genitalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1990. Venha conferir as novidades de Psiquiatria e Filosofia na Livraria Pulsional A redação da Pulsional Revista de Psicanálise recebe até o dia 15 as notícias a serem veiculadas no mês subseqüente. O cumprimento deste prazo é essencial para a sua divulgação. pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 161, set./2002 morte e o não ser como substitutos da castração e da perda de amor, seguindo o caminho que enceta Freud em “Inibição, sintoma e angústia”. Mas também a castração e a perda de amor são negatividade, e a negatividade é raciocínio complexo. Não creio, pois, que a castração e a perda de amor e seus substitutos, como a morte, existam para o inconsciente, mas a ameaça e a dor sim, pois estas, antes de tudo, são absolutas e afirmativas: “Corto-te”, “Abandono-te”! Nesse sentido, fazer amor é uma forma lúdica de ter um falo. Se se troca o ter pelo ser (um falo), temos imediatamente a teoria de Ferenczi (em Thalassa) de que todo ato sexual, tanto para homens como para mulheres, é uma identificação ao falo e entrada no corpo da mãe como volta ao útero... >13