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REVISTA DA
SOCIEDADE DE PSICOLOGIA
DO RIO GRANDE DO SUL
SEÇÃO 3 - PREMIADOS
Música e Psicanálise:
o vento vai dizer*
Music And Psychoanalysis:
wind will tell
Autora: Carolina Silveira Campos**
Resumo: A música é capaz de levar a distintas
emoções já que representa experiências
emocionais inconscientes. Por meio da
música, é possível acessar significados e
observar o que há de mais profundo no
mundo interno de um artista. Tanto a música
como a psicanálise partilha de um contato
intuitivo e temporário, mas real. Entretanto,
somente na psicanálise há o retorno ao
consciente. Este artigo tem por objetivo
compreender e descrever os resultados de
um estudo do tipo descritivo/exploratório,
com abordagem qualitativa através da
análise de conteúdo, conforme estabelecido
por Bardin (1988). Para tanto, utilizou-se a
música O Vento, escrita por Rodrigo
Amarante, composta em 2005. As
semelhanças e diferenças observadas através
da música explorada e de conceitos da
psicanálise permitiu estabelecer três
categorias: inconsciente, sonho e tempo.
Discute-se a variabilidade de significados e
sentidos expressos na letra da música.
Abstract: Music is able to lead to distinct
emotions as it represents unconscious
emotional experiences. Through music, it's
possible access meanings and observe what
is deepest in the inner world of an artist. Both
music and psychoanalysis share an intuitive
and temporary contact but real. However,
only in psychoanalysis there is a return to
consciousness. This ar ticle aims to
understand and describe the results of a
descriptive/explorator y study, with a
qualitative approach through content
analysis, as established by Bardin (1988).
Therefore, it was used the song O Vento,
written by Rodrigo Amarante, composed in
2005. The similarities and differences
observed through the explored music and
psychoanalysis concepts allowed to establish
three categories: unconscious, dream and
time. The variability of meanings and senses
expressed in the lyrics was discussed.
Keywords: music, content analysis,
psychoanalysis.
Palavras-chave: música, análise de
conteúdo, psicanálise.
* 2º lugar no III Prêmio Recém-Formados da SPRGS
**Psicóloga, Pontifícia Universidade Católica (PUCRS). E-mail: [email protected].
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
Há um longo caminho construído entre Psicanálise e Cultura.
A possibilidade de pensar sobre o inconsciente pode ser
vislumbrada desde dados arqueológicos, civilizações egípcia,
helênica e na sua sucessora, romana, até se deparar com
Shakespeare, para chegar à forma moderna descrita por Freud.
Conforme Eizirik (2000), a Psicanálise funda-se em uma cultura
bastante definida ligada à realidade de Viena, e conversa com os
padrões vigentes, também de modo a subvertê-los.
É variada a definição de cultura. Bueno (1996) a explica como
um desenvolvimento intelectual, um saber; já em entendimento
mais orgânico, como aproveitamento industrial de produtos
naturais e, por fim, como valores e costumes de uma sociedade.
Essa última ideia de Bueno é endossada por Francisco, Meurer e
Machado (2000), de modo que esses autores, pensando
especificamente no homem, referem ser a cultura constituída
pelas mais variadas maneiras de expressão artística, costumes,
crenças, modos de produção, mitos ou, dito de outra forma, como
os grupos vivem em suas épocas históricas.
É possível, então, compreender a arte como possibilidade de
manifestação dos conflitos humanos. Isso fica explicitado por
Cruz (2007), quando refere que as vivências emocionais podem
encontrar continência e significado, através de sonhos, escritos,
esculturas, danças, músicas.
Com o intuito de trabalhar com a forma artística musical,
recorre-se a Fetter (2007), para quem a comunicação musical é
meio de expressão com funções social e psicológicas marcantes.
Existente nas civilizações desde seus primórdios, a música pode
servir como continente e ferramenta elaborativa dos conflitos do
homem, sendo uma arte sem elemento palpável. Segundo
Resnik (1954), dentre as manifestações de arte, é na música que
se colocam as fantasias mais iniciais e os conteúdos pré-verbais
mais antigos. Andrade (1967) pontua que, mesmo sendo bastante antiga, a música foi a última das artes a se assinalar como
tal, pois precisou de disposição técnica, sons determinados e escalas. Schwarz (1997) destaca que é possível analisar a intenção
do criador através dos tons de uma música, visto que ela seria um
caminho para a realidade interna tanto do compositor como daquele que o escuta. Logo, seria mais que uma linguagem ou som.
Fetter (2007) entende que, na modernidade, tanto a ciência
como as expressões culturais, como literatura e música, vão
tomando o lugar dos mitos, que em sua oralidade e marcas
repetitivas, vinham a simbolizar conflitos e significar angústias
da humanidade. Wisnik (1989) historia que a música, à época do
romantismo, era a arte que manifestava os sentimentos através
dos sons, diferente da época classicista, em que se variavam
temas para comprovação de diversidade musical. No romantismo, se expressa possibilidades de variações de sentimentos.
A música tem diferentes funções, seja ela como mantenedora da cultura e da integração social – signo –, ou como comunicadora emocional e estética – símbolo. É a arte que possibilita a
forma simbólica ao signo (Swanwick, 2003). Antes mesmo dele,
Langer (1989) já apontava que, por sua forma dramática, a
música é uma maneira de significação capaz de expressar o que a
palavra não conseguiria.
Fetter (2007) afirma que, quanto mais perto do simbólico,
maior a possibilidade de comunicar-se algo e, por isso, maior
mutação cultural. Pensando sobre o que comunicaria, Galimany
(1993) enfatiza ser possível, por meio da música, acessar
significados que não puderam ser encontrados por aqueles com
falhas de desenvolvimento, fazendo surgir, mesmo que pela
música, o sujeito falante. Entretanto, nem o músico, nem quem o
escuta, têm real noção de seu papel, pois a experiência de
simbolização toca a todos e é capaz de transportar, atuando
como continente para cada um. Schwarz (1997) discorre que,
tanto o compositor, como os músicos e as notas, dão o significado
à música; é o ouvinte, todavia, que traz a maior contribuição para
a interpretação dessa.
Fetter (2007) entende a música como favorecedora de alteração do psiquismo, pela presença da subjetividade e da reflexão.
Traz consigo a linguagem pré-verbal simbólica recheada de sentimentos e, por isso, é comunicadora. Pensando nisso, é possível
relacionar a música com a Psicanálise. Kohut (1957) já afirmava
que a música seria um dos caminhos para a catarse ou mesmo
para a transferência, ou seja, a experiência emocional estaria
defendida pela música; a atividade de criá-la passaria por um
exercício de domínio, como no brincar, e a música em si seria a
expressão de regras a que se deve submeter. Assim sendo, Fetter
(2007) marca que, tal como associação livre na Psicanálise, a
música não tem leis, a não ser as da sensação e, nessa perspectiva, Sandler (2000) aporta que, assim como na música há uma
penetração sensorial dos sons, na Psicanálise haveria uma
penetração de uma música latente e, nesse sentido, ambas se
unem, pois exigem de quem as observa tolerar parado-xos que
podem não ter resolução. Tanto a música quanto a Psicanálise
podem ser entendidas como ciência, de modo que en-globam a
realidade e a individualidade. Além disso, para o autor, música e
Psicanálise partilhariam do contato intuitivo e tem-porário, mas
real. Vale destacar, entretanto, que o autor marca uma diferença
entre ambas: somente na Psicanálise há o retorno ao consciente,
visto que a música facilitaria o sight e não o insight.
Conforme Sekeff (2005), é evidente a aproximação entre a
música e a Psicanálise, pois ambas abarcam investimento
inconsciente que possibilita a expressão das emoções. Para
tornar consciente o processo inconsciente projetado em uma
música, é possível lançar mão da metodologia da análise
qualitativa do conteúdo.
Tendo em vista os aspectos acima mencionados, será
explorada a música O Vento, do autor Rodrigo Amarante,
composta no ano de 2005. Desta forma, buscar-se-á compreender tal música a partir de categorias pré-estabelecidas,
observando se elas foram corretamente determinadas.
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Método
O estudo é do tipo descritivo/exploratório, com abordagem
qualitativa. Segundo Gil (2002), estudos exploratórios proporcionam ao pesquisador familiaridade com a área de estudo de
interesse. Ainda, para esse autor, as pesquisas descritivas
permitem a descoberta, ou não, da existência de associações
entre determinadas variáveis. Por último, para Minayo (2000), a
abordagem qualitativa oportuniza trabalhar com a significação
oculta ou manifesta, bem como as crenças e os valores que dizem
respeito à subjetividade.
Este trabalho utiliza a análise de conteúdo de conforme
estabelece Bardin (2009). Inicialmente, foi realizada a escolha de
uma música específica. Após, identificou-se questões que
permitissem categorizar um conceito, ou seja, buscou-se
identificar o significado de determinados termos. A autora e sua
supervisora definiram o que consideravam e o que não
consideravam significativo dentro do referencial psicanalítico na
letra da música. O objetivo foi o levantamento das questões a
partir das temáticas encontradas.
A análise de conteúdo se desenvolve em etapas sucessivas,
que, de acordo com Bardin (2009), compreende três fases: a préanálise, a exploração do material e o tratamento dos resultados.
A pré-análise começa pela leitura flutuante. Tem por objetivo
familiarizar a pesquisadora com a letra da música, permitindo
que essa seja envolvida por impressões e orientações, promovendo a emergência das primeiras categorias. O segundo passo
da análise de conteúdo – a exploração do material – constitui o
estabelecimento de unidades temáticas de significado, isto é,
palavras que se referem a um tema em uma categorização muito
próxima da literatura psicanalítica referente àquele assunto. Tais
categorias iniciais serão depois agrupadas em outras mais
abrangentes. A terceira fase, de tratamento dos resultados, visa à
interpretação dos mesmos. Operacionaliza-se através da
inferência, processo segundo o qual a investigadora procurará
deduzir símbolos e valores a partir da análise das categorias, por
meio da interpretação. A síntese resultante deve ter coerência
com o suporte teórico eleito para embasar a pesquisa.
Nesse trabalho, foram estabelecidas categorias a priori.
Moraes (1999) refere que, quando as categorias são determinadas a priori, a validade ou pertinência – características necessárias a uma categoria –, podem ser construídas a partir de um
embasamento teórico; no caso desse artigo, o referencial
psicanalítico. Ainda de acordo com esse autor, uma categorização
válida precisa ser análoga aos conteúdos trabalhados no
material, sendo, portanto, uma representação adequada e
pertinente desses conteúdos. Ainda para Moraes (1999), a
análise de conteúdo permite caracterizar e interpretar o conteúdo
de um texto. Utilizar esse método auxilia na reinterpretação das
mensagens, atingindo uma maior compreensão dos significados
e dos significantes que vai adiante de uma simples leitura.
Conhecendo a música que se pretende trabalhar no futuro
artigo, pensou-se em três categorias pré-determinadas:
inconsciente, sonho e tempo.
Segundo Catapano (2006), é possível observar que uma das
primeiras análises de conteúdo na área da música foi realizada na
Suécia, ao redor de 1640, com hinos religiosos. O objetivo do
estudo era identificar se uma amostra de 90 hinos poderia ter
"efeitos nefastos" nos luteranos. Para tanto, foi realizada análise
de conteúdo dos diferentes temas e símbolos religiosos, assim
como de outras variáveis de interesse.
Discussão e apresentação de resultados
Os dados para essa análise foram aqueles obtidos através dos
versos da letra da música trabalhada. Assim, os elementos
analisados foram inicialmente classificados em três categorias
temáticas que nortearam a análise. Será apresentada a estrutura
geral das categorias, sua ocorrência e os elementos que a
compõem, seguida de sua descrição.
Tabela 1- Categorias
CATEGORIA
OCORRÊNCIA
Inconsciente
10
Sonho
14
Tempo
19
ELEMENTO
-Sem acesso à
consciência
-Constituinte do
aparelho psíquico
-O não-saber
-Manifestação de desejo realizável ou não
-Imagens oníricas
-Passagem do tempo
-Acesso consciente
Categoria 1: Inconsciente
O inconsciente, na primeira tópica de Freud (1900), seria
onde os afetos, suas representações e derivados das pulsões
estariam reprimidos, ou seja, sem acesso à consciência. Anos
mais tarde, Freud (1915) entende que essa explicação já não era
suficiente para abarcar o conceito de inconsciente, criando,
assim, a segunda tópica: o inconsciente é agora uma qualidade
conferida às instâncias psíquicas, visto que ego e superego
teriam, além de partes conscientes, partes inconscientes, e o id
seria inteiramente inconsciente.
Segundo Freeman (2000), a música é capaz de levar a
distintas emoções, além de modulá-las, já que representam
experiências emocionais inconscientes. Dessa forma, recorre-se
a Freud (1930), em seu texto Mal-Estar na Cultura, para pensar
no homem e sua inserção na cultura. O autor pensa o processo
civilizatório como semelhante ao desenvolvimento psicossexual.
Sendo assim, é necessário que, gradualmente, o sujeito vá
abdicando parcialmente de suas vontades individuais para fazer
parte de tal processo. Assim como nas fases da psicossexualidade, precisa internalizar seus impulsos destrutivos e as restrições
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sexuais impostas pela autoridade internalizada, dita superego. É
por esse interdito que se limitam a agressividade e as pulsões
sexuais, e é possibilitada a convivência com os demais indivíduos, instituindo-se, assim, a consciência moral.
Como consequência, desenvolve-se, além da culpa, o
ressentimento contra esse poder cultural, mesmo que inconsciente. Por esse conflito inevitável, se estabelece um nível de
sofrimento detectável em todo ser humano. Para lidar com tal
conflito, o autor postula, então, a necessidade do sujeito em
deslocar, sublimar ou mesmo restringir tais impulsos agressivos e
sexuais, entendendo tais movimentos como importantes
protetores psíquicos (Freud, 1930).
Cabe, neste artigo, destacar a sublimação, sendo ela o
mecanismo que aparentemente não se relacionaria com a
sexualidade. Freud (1940) entende que a energia e a capacidade
de criação são provenientes da pulsão sexual, protegendo-a,
portanto, em alguma atividade artística ou intelectual. Esclarece,
também, que a energia disponível à sublimação é, consequentemente, oriunda de uma dessexualização.
Já na visão de Klein, o que estaria posto em uma criação
artística é aquilo que há de mais profundo no mundo interno de
um artista. Quando está estabelecida a posição depressiva, há
necessidade de criação de um novo mundo, e ele mostra-se
simbolicamente na arte. Dito de outra forma, o criar parte de
marcas inconscientes harmônicas da posição esquizoparanoide,
mas que foram reconhecidamente destruídas na posição
depressiva (Segal, 1991). São versos representativos dessa
categoria:
Por que será?
O que é impossível saber?
Não sei mais
E isso por quê?
São parte de nós.
E como será?
Corvo (1999) parte da teoria de Freud e entende que o
inconsciente forma um depósito de impulsos insatisfeitos, já
repelidos pelo superego, que sofre constante pressão para atingir
um gozo e que se mostra, portanto, sob forma camuflada. Sendo
assim, o inconsciente viria como um delator daquilo que a
consciência tenta esconder e, para isso, utiliza-se de uma
linguagem decodificada que seria o sonho, os atos falhos e os
lapsos; esses últimos bastante visíveis na livre associação de
ideias. Versos que marcam tais ideias são:
Mas o estrago que faz
Não te dizer o que eu penso
Que o esforço pra lembrar
É a vontade de esquecer
Categoria 2: Sonho
Retomando a categoria anterior e a ideia de que o sonho seria
uma manifestação do inconsciente, Meltzer (1984) vislumbra,
portanto, a possibilidade de se pensar sobre experiências
emocionais a partir dos sonhos. Seria viável, assim, significar a
formação de símbolos, fantasias e pensamentos por cujos
conflitos emocionais buscam solução.
A partir disso, Cruz (2007) discute que, em diversos
momentos da vida, os indivíduos se deparam com emoções e
sensações tão intensas que afrontam a capacidade de pensar
sobre elas. Segundo o autor, é como se houvesse uma inundação
e um consequente esforço para dar conta de tantos estímulos.
Para lidar com eles, é necessário conter tais sensações e propagálas em uma "história possível", como no fazer do psicanalista e
dos escritores. O autor une tais profissões através da atividade
onírica, que entende estar presente em ambos, sendo a função
onírica base de todo trabalho criativo. Essa função é entendida
como vital, pois significa experiências emocionais, favorecendo
sua simbolização, e não apresenta limites estabelecidos, sendo
comum, portanto, aos sonhos, devaneios, mitos, jogos infantis e
à criatividade artística e científica.
O mesmo autor, em anos anteriores, afirmava que aquilo que
é sonhado pelo artista está distante daquilo que de fato mostrou,
e isso independe da técnica utilizada para tal. Ainda assim, destaca que é admirável a maneira pela qual um artista é capaz de
circular entre o espaço de sonho e realidade, fundindo-os com
admirável liberdade (Cruz, 1999). São versos representativos:
Vou pensar
Sinto que é como sonhar
Diz mais!
Rir um do outro, meu bem
Então o que resta é chorar e, talvez
A gente vai saber
Sorrir em paz
Só de encontrar
Sharpe (1971) relata que tanto a linguagem poética quanto a
onírica têm sua fonte no inconsciente, e Cruz (1999) destaca que
a ligação entre mundo interno e realidade externa está muito
fundamentada nas imagens oníricas, concluindo que sonho e
arte são guardiões de uma relação essencial com o subjetivo. Os
versos que clarificam tal ideia são:
Assistir à onda bater
Bento de lágrimas
O vento vai dizer
Claro de um trovão
De acordo com Ungar (1999), é uma polaridade entre o caos
e o mundo aquilo que estabelece a criação. Para a autora, não há
criação sem que o caótico penetre e impressione e, assim, o
artista "fala dos sonhos para que outros possam escutar-se a si
mesmo" (p.564). Assim sendo, para Cruz (1999), manifestações
de arte e sonho dão forma a uma vivência emocional que, sem
eles, talvez fosse irrecuperável, visto que a obra criativa evidencia
as polaridades, como razão e emoção, sentimento e pensamento,
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infantil e adulto, objetivo e subjetivo, entre outras. Versos
significativos são:
Como pode alguém sonhar
Já é pensar em dizer
Categoria 3: Tempo
Por fim, a última categoria busca analisar o tempo na letra da
música trabalhada. No pensar da Psicanálise, Lombardi (2008)
refere o tempo em duas modalidades complementares. Fala na
esfera do conflito e sua defesa, que se encontram no nível
intrapsíquico em sua relação com o tempo; e na esfera mais
ligada à dinâmica. Nessa última, discorre que a percepção do
tempo é ativada, criando uma oportunidade para que ocorra um
tipo de revezamento estrutural do processo primário para o
secundário. Para ele, o tempo é uma fonte importante de
contenção dos afetos. Freud (1915) já destacava que os
mecanismos que dirigem o inconsciente são o deslocamento e a
condensação; além disso, estariam ausentes leis de lógica, noção
de tempo, espaço e causalidade, sendo todo seu funcionamento
regido pelo princípio do prazer. Seguem versos representativos:
A vida é curta pra ver
Se a gente já não sabe mais
Se tem que durar
Vem renascido o amor
Lento o que virá,
E se chover demais
Retomando Freud (1920), em Além do Princípio do Prazer,
quando o autor refere que a experiência sensorial permite acesso,
mesmo que em pequenas porções, ao intrapsíquico. Para ele, isso
é essencial para a passagem daquilo que está na atemporalidade
sem representação do inconsciente para uma experiência que se
coloque sob forma de representação. Sem essa temporalização,
não haveria nada além da indiferenciação, ou seja, do caos
primeiro, o qual não reconhece elementos e ordem. Então, o
tempo seria essencial para o funcionamento mental, e seu
reconhecimento tem papel decisivo no desenvolvimento e na
integração do psiquismo (Fink, 1993; Ginzburg e Lombardi,
2007). A saber, os seguintes versos:
Um século, um mês
Se as vidas atrás
Três vidas e mais
Um passo pra trás
O vento leva
Um século, três
Se alguém depois
Os padrões temporais e a capacidade de cada um de
temporalizar é resultado de vivências de sincronia e de ritmo
simultaneamente. A ausência de eventos que marquem a
existência do tempo gera um fenômeno diádico que não pode ser
descrito por uma única pessoa. É essa noção de díade que pode
promover uma gradativa diferenciação entre o eu e o outro, como
uma aquisição de identidade pessoal (Beebe na Jaffe, 1992).
Aberastury e Toledo (1984a) afirmavam: mesmo que a
criação artística nasça do vivido, não se explica apenas por ele – a
música é um símbolo que esconde fantasias inconscientes, ou
seja, é somente a forma, e essa é bem menos que seu verdadeiro
significado. Em outro de seus escritos, esses mesmo autores
discorrem sobre ser a música uma busca pela reedição da voz
primeira, ou seja, da voz materna. Para eles, música é preencher o
silêncio marcado pela posição depressiva, recuperando, assim, a
primeira relação total de objeto. Seria um jogo do tempo e do
som, que se encadeariam através da música, fazendo de partes
distintas um todo ordenado (Aberastury & Toledo, 1984b). Isso
parece evidenciado pelo claro uso do pronome "eu" nos versos:
Posso ouvir o vento passar
Eu pensei
Que quando eu morrer
Vou acordar para o tempo
E para o tempo parar
E isso, eu vi
Considerações Finais
Apresentadas e discutidas as categorias, parece relevante
recorrer ao que Sless (1986) destaca para tecer as ideias finais
desse artigo. Para o autor, não se pode afirmar que o compartilhar é uma característica intrínseca à comunicação, ou seja, o que
se projeta naquilo que se lê, ouve e vê, é uma imagem de seus
"outros". Desta forma, entende-se que, assim como o autor da
música trabalhada buscava emitir seus significados, a autora
discorreu sobre suas ideias a partir de suas simbolizações.
Destacada essa ideia, penso que poder unir pensamentos
psicanalíticos à arte permite uma analogia no que tange aos
processos de psicoterapia e música. Tal qual como no processo
psicoterápico, em que se busca pensar no passado para tentar
entender conflitos e elaborá-los, acredito que a música também
pode ser pensada nesse sentido. Dito de outra forma: a meu ver, a
música é também um misto daquilo que foi com aquilo que será.
O que busco trazer com esse pensamento é que a música
"foi" para aquele que a escreveu, e que "será" para todos que a
escutarem e a simbolizarem de maneira subjetiva. O que
oportuniza isso são as vivências de cada um: o inconsciente, seus
registros, a capacidade de identificação e sua integração de
temporalidade. Características essas que foram essenciais para a
criação de uma música e que permitiram ao autor dar o seu
sentido para aquilo que escrevia. Sentido esse, certamente
distinto daquele que será dado por outra pessoa, que imprimirá
suas representações para aquilo que lê.
Assim sendo, mesmo com uma separação nesse artigo, a
letra da música parece mostrar em seu conjunto como as três
categorias estão interligadas, e foram assim determinadas pela
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autora do artigo exatamente por esse fator. O inconsciente
mostra-se central, de onde partem as manifestações e a forma
desordenada e ordenada que isso acontece, representadas na
música trabalhada respectivamente pelo sonho e pelo tempo.
Em termos quantitativos, a ocorrência de cada elemento
componente das categorias, evidencia isso. O que está no
inconsciente, portanto de mais difícil acesso, com 10 (dez)
ocorrências. Uma forma de manifestação dessas marcas é através
dos sonhos, com 14 (quatorze) ocorrências. Por fim, o que fica
acessível à consciência, aquilo que ganhou uma temporarização/ordenação, representada na categoria tempo, com 19
(dezenove) ocorrências. O título da composição parece endossar
essa visão. O vento representaria exatamente a passagem do
tempo. Esse fator mostra-se essencial para que o inconsciente
possa se manifestar e, assim, por meio de representações e
associações, favorecer a construção de elaborações.
Como já discutido nesse artigo, há uma partilha entre música
e Psicanálise no que tange ao contato intuitivo e temporário e,
mesmo que somente na segunda haja um retorno ao consciente,
o relevante é poder usufruir também da música como meio de
subjetivação.
Em última análise, tal qual na Psicanálise nem sempre um
terapeuta compreende e interpreta corretamente tudo o que o
paciente fala, na música não se pode afirmar que as significações
que damos são as que o autor pretendia passar. Acredito,
entretanto, que esse não é o fator de maior relevância nem para
Psicanálise, nem para a música, mas sim quando aquilo que se
fala faz sentido para o outro e para nós mesmos. Se estamos
certos ou errados, é como dizem os versos finais da letra de O
Vento, "o vento vai dizer...a gente vai saber, claro de um trovão, se
alguém depois sorrir em paz, só de encontrar".
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Anexo
Posso ouvir o vento passar
Assistir à onda bater
Mas o estrago que faz
A vida é curta pra ver
Eu pensei
Que quando eu morrer
Vou acordar para o tempo
E para o tempo parar
Um século, um mês
Três vidas e mais
Um passo pra trás
Por que será?
Vou pensar
Como pode alguém sonhar
O que é impossível saber?
Não te dizer o que eu penso
Já é pensar em dizer
E isso, eu vi,
O vento leva
Não sei mais
Sinto que é como sonhar
Que o esforço pra lembrar
É a vontade de esquecer
E isso por quê?
Diz mais!
Se a gente já não sabe mais
Rir um do outro meu bem,
Então o que resta é chorar e, talvez,
Se tem que durar,
Vem renascido o amor
Bento de lágrimas
Um século, três,
Se as vidas atrás
São parte de nós.
E como será?
O vento vai dizer
Lento o que virá,
E se chover demais,
A gente vai saber,
Claro de um trovão,
Se alguém depois
Sorrir em paz
Só de encontrar
Diaphora | Porto Alegre, v15(1) | Jan/Jul2015| p. 66

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