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REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL SEÇÃO 3 - PREMIADOS Música e Psicanálise: o vento vai dizer* Music And Psychoanalysis: wind will tell Autora: Carolina Silveira Campos** Resumo: A música é capaz de levar a distintas emoções já que representa experiências emocionais inconscientes. Por meio da música, é possível acessar significados e observar o que há de mais profundo no mundo interno de um artista. Tanto a música como a psicanálise partilha de um contato intuitivo e temporário, mas real. Entretanto, somente na psicanálise há o retorno ao consciente. Este artigo tem por objetivo compreender e descrever os resultados de um estudo do tipo descritivo/exploratório, com abordagem qualitativa através da análise de conteúdo, conforme estabelecido por Bardin (1988). Para tanto, utilizou-se a música O Vento, escrita por Rodrigo Amarante, composta em 2005. As semelhanças e diferenças observadas através da música explorada e de conceitos da psicanálise permitiu estabelecer três categorias: inconsciente, sonho e tempo. Discute-se a variabilidade de significados e sentidos expressos na letra da música. Abstract: Music is able to lead to distinct emotions as it represents unconscious emotional experiences. Through music, it's possible access meanings and observe what is deepest in the inner world of an artist. Both music and psychoanalysis share an intuitive and temporary contact but real. However, only in psychoanalysis there is a return to consciousness. This ar ticle aims to understand and describe the results of a descriptive/explorator y study, with a qualitative approach through content analysis, as established by Bardin (1988). Therefore, it was used the song O Vento, written by Rodrigo Amarante, composed in 2005. The similarities and differences observed through the explored music and psychoanalysis concepts allowed to establish three categories: unconscious, dream and time. The variability of meanings and senses expressed in the lyrics was discussed. Keywords: music, content analysis, psychoanalysis. Palavras-chave: música, análise de conteúdo, psicanálise. * 2º lugar no III Prêmio Recém-Formados da SPRGS **Psicóloga, Pontifícia Universidade Católica (PUCRS). E-mail: [email protected]. Sistema de Avaliação: Double Blind Review Há um longo caminho construído entre Psicanálise e Cultura. A possibilidade de pensar sobre o inconsciente pode ser vislumbrada desde dados arqueológicos, civilizações egípcia, helênica e na sua sucessora, romana, até se deparar com Shakespeare, para chegar à forma moderna descrita por Freud. Conforme Eizirik (2000), a Psicanálise funda-se em uma cultura bastante definida ligada à realidade de Viena, e conversa com os padrões vigentes, também de modo a subvertê-los. É variada a definição de cultura. Bueno (1996) a explica como um desenvolvimento intelectual, um saber; já em entendimento mais orgânico, como aproveitamento industrial de produtos naturais e, por fim, como valores e costumes de uma sociedade. Essa última ideia de Bueno é endossada por Francisco, Meurer e Machado (2000), de modo que esses autores, pensando especificamente no homem, referem ser a cultura constituída pelas mais variadas maneiras de expressão artística, costumes, crenças, modos de produção, mitos ou, dito de outra forma, como os grupos vivem em suas épocas históricas. É possível, então, compreender a arte como possibilidade de manifestação dos conflitos humanos. Isso fica explicitado por Cruz (2007), quando refere que as vivências emocionais podem encontrar continência e significado, através de sonhos, escritos, esculturas, danças, músicas. Com o intuito de trabalhar com a forma artística musical, recorre-se a Fetter (2007), para quem a comunicação musical é meio de expressão com funções social e psicológicas marcantes. Existente nas civilizações desde seus primórdios, a música pode servir como continente e ferramenta elaborativa dos conflitos do homem, sendo uma arte sem elemento palpável. Segundo Resnik (1954), dentre as manifestações de arte, é na música que se colocam as fantasias mais iniciais e os conteúdos pré-verbais mais antigos. Andrade (1967) pontua que, mesmo sendo bastante antiga, a música foi a última das artes a se assinalar como tal, pois precisou de disposição técnica, sons determinados e escalas. Schwarz (1997) destaca que é possível analisar a intenção do criador através dos tons de uma música, visto que ela seria um caminho para a realidade interna tanto do compositor como daquele que o escuta. Logo, seria mais que uma linguagem ou som. Fetter (2007) entende que, na modernidade, tanto a ciência como as expressões culturais, como literatura e música, vão tomando o lugar dos mitos, que em sua oralidade e marcas repetitivas, vinham a simbolizar conflitos e significar angústias da humanidade. Wisnik (1989) historia que a música, à época do romantismo, era a arte que manifestava os sentimentos através dos sons, diferente da época classicista, em que se variavam temas para comprovação de diversidade musical. No romantismo, se expressa possibilidades de variações de sentimentos. A música tem diferentes funções, seja ela como mantenedora da cultura e da integração social – signo –, ou como comunicadora emocional e estética – símbolo. É a arte que possibilita a forma simbólica ao signo (Swanwick, 2003). Antes mesmo dele, Langer (1989) já apontava que, por sua forma dramática, a música é uma maneira de significação capaz de expressar o que a palavra não conseguiria. Fetter (2007) afirma que, quanto mais perto do simbólico, maior a possibilidade de comunicar-se algo e, por isso, maior mutação cultural. Pensando sobre o que comunicaria, Galimany (1993) enfatiza ser possível, por meio da música, acessar significados que não puderam ser encontrados por aqueles com falhas de desenvolvimento, fazendo surgir, mesmo que pela música, o sujeito falante. Entretanto, nem o músico, nem quem o escuta, têm real noção de seu papel, pois a experiência de simbolização toca a todos e é capaz de transportar, atuando como continente para cada um. Schwarz (1997) discorre que, tanto o compositor, como os músicos e as notas, dão o significado à música; é o ouvinte, todavia, que traz a maior contribuição para a interpretação dessa. Fetter (2007) entende a música como favorecedora de alteração do psiquismo, pela presença da subjetividade e da reflexão. Traz consigo a linguagem pré-verbal simbólica recheada de sentimentos e, por isso, é comunicadora. Pensando nisso, é possível relacionar a música com a Psicanálise. Kohut (1957) já afirmava que a música seria um dos caminhos para a catarse ou mesmo para a transferência, ou seja, a experiência emocional estaria defendida pela música; a atividade de criá-la passaria por um exercício de domínio, como no brincar, e a música em si seria a expressão de regras a que se deve submeter. Assim sendo, Fetter (2007) marca que, tal como associação livre na Psicanálise, a música não tem leis, a não ser as da sensação e, nessa perspectiva, Sandler (2000) aporta que, assim como na música há uma penetração sensorial dos sons, na Psicanálise haveria uma penetração de uma música latente e, nesse sentido, ambas se unem, pois exigem de quem as observa tolerar parado-xos que podem não ter resolução. Tanto a música quanto a Psicanálise podem ser entendidas como ciência, de modo que en-globam a realidade e a individualidade. Além disso, para o autor, música e Psicanálise partilhariam do contato intuitivo e tem-porário, mas real. Vale destacar, entretanto, que o autor marca uma diferença entre ambas: somente na Psicanálise há o retorno ao consciente, visto que a música facilitaria o sight e não o insight. Conforme Sekeff (2005), é evidente a aproximação entre a música e a Psicanálise, pois ambas abarcam investimento inconsciente que possibilita a expressão das emoções. Para tornar consciente o processo inconsciente projetado em uma música, é possível lançar mão da metodologia da análise qualitativa do conteúdo. Tendo em vista os aspectos acima mencionados, será explorada a música O Vento, do autor Rodrigo Amarante, composta no ano de 2005. Desta forma, buscar-se-á compreender tal música a partir de categorias pré-estabelecidas, observando se elas foram corretamente determinadas. Diaphora | Porto Alegre, v15(1) | Jan/Jul2015| p. 61 Método O estudo é do tipo descritivo/exploratório, com abordagem qualitativa. Segundo Gil (2002), estudos exploratórios proporcionam ao pesquisador familiaridade com a área de estudo de interesse. Ainda, para esse autor, as pesquisas descritivas permitem a descoberta, ou não, da existência de associações entre determinadas variáveis. Por último, para Minayo (2000), a abordagem qualitativa oportuniza trabalhar com a significação oculta ou manifesta, bem como as crenças e os valores que dizem respeito à subjetividade. Este trabalho utiliza a análise de conteúdo de conforme estabelece Bardin (2009). Inicialmente, foi realizada a escolha de uma música específica. Após, identificou-se questões que permitissem categorizar um conceito, ou seja, buscou-se identificar o significado de determinados termos. A autora e sua supervisora definiram o que consideravam e o que não consideravam significativo dentro do referencial psicanalítico na letra da música. O objetivo foi o levantamento das questões a partir das temáticas encontradas. A análise de conteúdo se desenvolve em etapas sucessivas, que, de acordo com Bardin (2009), compreende três fases: a préanálise, a exploração do material e o tratamento dos resultados. A pré-análise começa pela leitura flutuante. Tem por objetivo familiarizar a pesquisadora com a letra da música, permitindo que essa seja envolvida por impressões e orientações, promovendo a emergência das primeiras categorias. O segundo passo da análise de conteúdo – a exploração do material – constitui o estabelecimento de unidades temáticas de significado, isto é, palavras que se referem a um tema em uma categorização muito próxima da literatura psicanalítica referente àquele assunto. Tais categorias iniciais serão depois agrupadas em outras mais abrangentes. A terceira fase, de tratamento dos resultados, visa à interpretação dos mesmos. Operacionaliza-se através da inferência, processo segundo o qual a investigadora procurará deduzir símbolos e valores a partir da análise das categorias, por meio da interpretação. A síntese resultante deve ter coerência com o suporte teórico eleito para embasar a pesquisa. Nesse trabalho, foram estabelecidas categorias a priori. Moraes (1999) refere que, quando as categorias são determinadas a priori, a validade ou pertinência – características necessárias a uma categoria –, podem ser construídas a partir de um embasamento teórico; no caso desse artigo, o referencial psicanalítico. Ainda de acordo com esse autor, uma categorização válida precisa ser análoga aos conteúdos trabalhados no material, sendo, portanto, uma representação adequada e pertinente desses conteúdos. Ainda para Moraes (1999), a análise de conteúdo permite caracterizar e interpretar o conteúdo de um texto. Utilizar esse método auxilia na reinterpretação das mensagens, atingindo uma maior compreensão dos significados e dos significantes que vai adiante de uma simples leitura. Conhecendo a música que se pretende trabalhar no futuro artigo, pensou-se em três categorias pré-determinadas: inconsciente, sonho e tempo. Segundo Catapano (2006), é possível observar que uma das primeiras análises de conteúdo na área da música foi realizada na Suécia, ao redor de 1640, com hinos religiosos. O objetivo do estudo era identificar se uma amostra de 90 hinos poderia ter "efeitos nefastos" nos luteranos. Para tanto, foi realizada análise de conteúdo dos diferentes temas e símbolos religiosos, assim como de outras variáveis de interesse. Discussão e apresentação de resultados Os dados para essa análise foram aqueles obtidos através dos versos da letra da música trabalhada. Assim, os elementos analisados foram inicialmente classificados em três categorias temáticas que nortearam a análise. Será apresentada a estrutura geral das categorias, sua ocorrência e os elementos que a compõem, seguida de sua descrição. Tabela 1- Categorias CATEGORIA OCORRÊNCIA Inconsciente 10 Sonho 14 Tempo 19 ELEMENTO -Sem acesso à consciência -Constituinte do aparelho psíquico -O não-saber -Manifestação de desejo realizável ou não -Imagens oníricas -Passagem do tempo -Acesso consciente Categoria 1: Inconsciente O inconsciente, na primeira tópica de Freud (1900), seria onde os afetos, suas representações e derivados das pulsões estariam reprimidos, ou seja, sem acesso à consciência. Anos mais tarde, Freud (1915) entende que essa explicação já não era suficiente para abarcar o conceito de inconsciente, criando, assim, a segunda tópica: o inconsciente é agora uma qualidade conferida às instâncias psíquicas, visto que ego e superego teriam, além de partes conscientes, partes inconscientes, e o id seria inteiramente inconsciente. Segundo Freeman (2000), a música é capaz de levar a distintas emoções, além de modulá-las, já que representam experiências emocionais inconscientes. Dessa forma, recorre-se a Freud (1930), em seu texto Mal-Estar na Cultura, para pensar no homem e sua inserção na cultura. O autor pensa o processo civilizatório como semelhante ao desenvolvimento psicossexual. Sendo assim, é necessário que, gradualmente, o sujeito vá abdicando parcialmente de suas vontades individuais para fazer parte de tal processo. Assim como nas fases da psicossexualidade, precisa internalizar seus impulsos destrutivos e as restrições Diaphora | Porto Alegre, v15(1) | Jan/Jul2015| p. 62 sexuais impostas pela autoridade internalizada, dita superego. É por esse interdito que se limitam a agressividade e as pulsões sexuais, e é possibilitada a convivência com os demais indivíduos, instituindo-se, assim, a consciência moral. Como consequência, desenvolve-se, além da culpa, o ressentimento contra esse poder cultural, mesmo que inconsciente. Por esse conflito inevitável, se estabelece um nível de sofrimento detectável em todo ser humano. Para lidar com tal conflito, o autor postula, então, a necessidade do sujeito em deslocar, sublimar ou mesmo restringir tais impulsos agressivos e sexuais, entendendo tais movimentos como importantes protetores psíquicos (Freud, 1930). Cabe, neste artigo, destacar a sublimação, sendo ela o mecanismo que aparentemente não se relacionaria com a sexualidade. Freud (1940) entende que a energia e a capacidade de criação são provenientes da pulsão sexual, protegendo-a, portanto, em alguma atividade artística ou intelectual. Esclarece, também, que a energia disponível à sublimação é, consequentemente, oriunda de uma dessexualização. Já na visão de Klein, o que estaria posto em uma criação artística é aquilo que há de mais profundo no mundo interno de um artista. Quando está estabelecida a posição depressiva, há necessidade de criação de um novo mundo, e ele mostra-se simbolicamente na arte. Dito de outra forma, o criar parte de marcas inconscientes harmônicas da posição esquizoparanoide, mas que foram reconhecidamente destruídas na posição depressiva (Segal, 1991). São versos representativos dessa categoria: Por que será? O que é impossível saber? Não sei mais E isso por quê? São parte de nós. E como será? Corvo (1999) parte da teoria de Freud e entende que o inconsciente forma um depósito de impulsos insatisfeitos, já repelidos pelo superego, que sofre constante pressão para atingir um gozo e que se mostra, portanto, sob forma camuflada. Sendo assim, o inconsciente viria como um delator daquilo que a consciência tenta esconder e, para isso, utiliza-se de uma linguagem decodificada que seria o sonho, os atos falhos e os lapsos; esses últimos bastante visíveis na livre associação de ideias. Versos que marcam tais ideias são: Mas o estrago que faz Não te dizer o que eu penso Que o esforço pra lembrar É a vontade de esquecer Categoria 2: Sonho Retomando a categoria anterior e a ideia de que o sonho seria uma manifestação do inconsciente, Meltzer (1984) vislumbra, portanto, a possibilidade de se pensar sobre experiências emocionais a partir dos sonhos. Seria viável, assim, significar a formação de símbolos, fantasias e pensamentos por cujos conflitos emocionais buscam solução. A partir disso, Cruz (2007) discute que, em diversos momentos da vida, os indivíduos se deparam com emoções e sensações tão intensas que afrontam a capacidade de pensar sobre elas. Segundo o autor, é como se houvesse uma inundação e um consequente esforço para dar conta de tantos estímulos. Para lidar com eles, é necessário conter tais sensações e propagálas em uma "história possível", como no fazer do psicanalista e dos escritores. O autor une tais profissões através da atividade onírica, que entende estar presente em ambos, sendo a função onírica base de todo trabalho criativo. Essa função é entendida como vital, pois significa experiências emocionais, favorecendo sua simbolização, e não apresenta limites estabelecidos, sendo comum, portanto, aos sonhos, devaneios, mitos, jogos infantis e à criatividade artística e científica. O mesmo autor, em anos anteriores, afirmava que aquilo que é sonhado pelo artista está distante daquilo que de fato mostrou, e isso independe da técnica utilizada para tal. Ainda assim, destaca que é admirável a maneira pela qual um artista é capaz de circular entre o espaço de sonho e realidade, fundindo-os com admirável liberdade (Cruz, 1999). São versos representativos: Vou pensar Sinto que é como sonhar Diz mais! Rir um do outro, meu bem Então o que resta é chorar e, talvez A gente vai saber Sorrir em paz Só de encontrar Sharpe (1971) relata que tanto a linguagem poética quanto a onírica têm sua fonte no inconsciente, e Cruz (1999) destaca que a ligação entre mundo interno e realidade externa está muito fundamentada nas imagens oníricas, concluindo que sonho e arte são guardiões de uma relação essencial com o subjetivo. Os versos que clarificam tal ideia são: Assistir à onda bater Bento de lágrimas O vento vai dizer Claro de um trovão De acordo com Ungar (1999), é uma polaridade entre o caos e o mundo aquilo que estabelece a criação. Para a autora, não há criação sem que o caótico penetre e impressione e, assim, o artista "fala dos sonhos para que outros possam escutar-se a si mesmo" (p.564). Assim sendo, para Cruz (1999), manifestações de arte e sonho dão forma a uma vivência emocional que, sem eles, talvez fosse irrecuperável, visto que a obra criativa evidencia as polaridades, como razão e emoção, sentimento e pensamento, Diaphora | Porto Alegre, v15(1) | Jan/Jul2015| p. 63 infantil e adulto, objetivo e subjetivo, entre outras. Versos significativos são: Como pode alguém sonhar Já é pensar em dizer Categoria 3: Tempo Por fim, a última categoria busca analisar o tempo na letra da música trabalhada. No pensar da Psicanálise, Lombardi (2008) refere o tempo em duas modalidades complementares. Fala na esfera do conflito e sua defesa, que se encontram no nível intrapsíquico em sua relação com o tempo; e na esfera mais ligada à dinâmica. Nessa última, discorre que a percepção do tempo é ativada, criando uma oportunidade para que ocorra um tipo de revezamento estrutural do processo primário para o secundário. Para ele, o tempo é uma fonte importante de contenção dos afetos. Freud (1915) já destacava que os mecanismos que dirigem o inconsciente são o deslocamento e a condensação; além disso, estariam ausentes leis de lógica, noção de tempo, espaço e causalidade, sendo todo seu funcionamento regido pelo princípio do prazer. Seguem versos representativos: A vida é curta pra ver Se a gente já não sabe mais Se tem que durar Vem renascido o amor Lento o que virá, E se chover demais Retomando Freud (1920), em Além do Princípio do Prazer, quando o autor refere que a experiência sensorial permite acesso, mesmo que em pequenas porções, ao intrapsíquico. Para ele, isso é essencial para a passagem daquilo que está na atemporalidade sem representação do inconsciente para uma experiência que se coloque sob forma de representação. Sem essa temporalização, não haveria nada além da indiferenciação, ou seja, do caos primeiro, o qual não reconhece elementos e ordem. Então, o tempo seria essencial para o funcionamento mental, e seu reconhecimento tem papel decisivo no desenvolvimento e na integração do psiquismo (Fink, 1993; Ginzburg e Lombardi, 2007). A saber, os seguintes versos: Um século, um mês Se as vidas atrás Três vidas e mais Um passo pra trás O vento leva Um século, três Se alguém depois Os padrões temporais e a capacidade de cada um de temporalizar é resultado de vivências de sincronia e de ritmo simultaneamente. A ausência de eventos que marquem a existência do tempo gera um fenômeno diádico que não pode ser descrito por uma única pessoa. É essa noção de díade que pode promover uma gradativa diferenciação entre o eu e o outro, como uma aquisição de identidade pessoal (Beebe na Jaffe, 1992). Aberastury e Toledo (1984a) afirmavam: mesmo que a criação artística nasça do vivido, não se explica apenas por ele – a música é um símbolo que esconde fantasias inconscientes, ou seja, é somente a forma, e essa é bem menos que seu verdadeiro significado. Em outro de seus escritos, esses mesmo autores discorrem sobre ser a música uma busca pela reedição da voz primeira, ou seja, da voz materna. Para eles, música é preencher o silêncio marcado pela posição depressiva, recuperando, assim, a primeira relação total de objeto. Seria um jogo do tempo e do som, que se encadeariam através da música, fazendo de partes distintas um todo ordenado (Aberastury & Toledo, 1984b). Isso parece evidenciado pelo claro uso do pronome "eu" nos versos: Posso ouvir o vento passar Eu pensei Que quando eu morrer Vou acordar para o tempo E para o tempo parar E isso, eu vi Considerações Finais Apresentadas e discutidas as categorias, parece relevante recorrer ao que Sless (1986) destaca para tecer as ideias finais desse artigo. Para o autor, não se pode afirmar que o compartilhar é uma característica intrínseca à comunicação, ou seja, o que se projeta naquilo que se lê, ouve e vê, é uma imagem de seus "outros". Desta forma, entende-se que, assim como o autor da música trabalhada buscava emitir seus significados, a autora discorreu sobre suas ideias a partir de suas simbolizações. Destacada essa ideia, penso que poder unir pensamentos psicanalíticos à arte permite uma analogia no que tange aos processos de psicoterapia e música. Tal qual como no processo psicoterápico, em que se busca pensar no passado para tentar entender conflitos e elaborá-los, acredito que a música também pode ser pensada nesse sentido. Dito de outra forma: a meu ver, a música é também um misto daquilo que foi com aquilo que será. O que busco trazer com esse pensamento é que a música "foi" para aquele que a escreveu, e que "será" para todos que a escutarem e a simbolizarem de maneira subjetiva. O que oportuniza isso são as vivências de cada um: o inconsciente, seus registros, a capacidade de identificação e sua integração de temporalidade. Características essas que foram essenciais para a criação de uma música e que permitiram ao autor dar o seu sentido para aquilo que escrevia. Sentido esse, certamente distinto daquele que será dado por outra pessoa, que imprimirá suas representações para aquilo que lê. Assim sendo, mesmo com uma separação nesse artigo, a letra da música parece mostrar em seu conjunto como as três categorias estão interligadas, e foram assim determinadas pela Diaphora | Porto Alegre, v15(1) | Jan/Jul2015| p. 64 autora do artigo exatamente por esse fator. O inconsciente mostra-se central, de onde partem as manifestações e a forma desordenada e ordenada que isso acontece, representadas na música trabalhada respectivamente pelo sonho e pelo tempo. Em termos quantitativos, a ocorrência de cada elemento componente das categorias, evidencia isso. O que está no inconsciente, portanto de mais difícil acesso, com 10 (dez) ocorrências. Uma forma de manifestação dessas marcas é através dos sonhos, com 14 (quatorze) ocorrências. Por fim, o que fica acessível à consciência, aquilo que ganhou uma temporarização/ordenação, representada na categoria tempo, com 19 (dezenove) ocorrências. O título da composição parece endossar essa visão. O vento representaria exatamente a passagem do tempo. Esse fator mostra-se essencial para que o inconsciente possa se manifestar e, assim, por meio de representações e associações, favorecer a construção de elaborações. Como já discutido nesse artigo, há uma partilha entre música e Psicanálise no que tange ao contato intuitivo e temporário e, mesmo que somente na segunda haja um retorno ao consciente, o relevante é poder usufruir também da música como meio de subjetivação. Em última análise, tal qual na Psicanálise nem sempre um terapeuta compreende e interpreta corretamente tudo o que o paciente fala, na música não se pode afirmar que as significações que damos são as que o autor pretendia passar. Acredito, entretanto, que esse não é o fator de maior relevância nem para Psicanálise, nem para a música, mas sim quando aquilo que se fala faz sentido para o outro e para nós mesmos. Se estamos certos ou errados, é como dizem os versos finais da letra de O Vento, "o vento vai dizer...a gente vai saber, claro de um trovão, se alguém depois sorrir em paz, só de encontrar". Referências Aberastury, A. & Toledo, L. (1984a). A música e os instrumentos musicais -1ª parte. In A. Aberastury & cols. (Org.) A percepção da morte na criança e outros escritos. Porto Alegre: Artes Médicas. p. 24-38. Aberastury, A. & Toledo, L. (1984b). A música e os instrumentos musicais -2ª parte. In A. Aberastury & cols. (Org.) A percepção da morte na criança e outros escritos. Porto Alegre: Artes Médicas. p. 39-54. Andrade, M. (1967). Pequena história da música. (7 ed.). São Paulo: Martins. Bardin, L. (2009). Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70. Beebe, B. & Jaffe, J. (1992). Mother-infant vocal dialogue. Infant Behavior and Development, v. 15. Bueno, F. S. (1996). Minidicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora FTD. Catapano, E. (2006). 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O vento vai dizer Lento o que virá, E se chover demais, A gente vai saber, Claro de um trovão, Se alguém depois Sorrir em paz Só de encontrar Diaphora | Porto Alegre, v15(1) | Jan/Jul2015| p. 66