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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA REVISTA DA AC A D E M I A DE LETRAS DA BAHIA Julho de 2013, nº 51 ISSN 1518-1766 Copyright © by Academia de Letras da Bahia, 2013 ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA Avenida Joana Angélica, 198, Nazaré 40050-000 – Salvador, Bahia, Brasil Telefax (71) 3321-4308 www.academiadeletrasdabahia.org.br [email protected] Revista Anual de Literatura, Artes e Ideias Ficha Catalográfica Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 51. jul. 2013 Salvador: Academia de Letras da Bahia, 2013. 484 p. Anual INSN 1518-1766 1. Literatura brasileira -- Periódicos – CDU 860.0(05) IMPRESSO NO BRASIL Sumário ARTIGOS E ENSAIOS 11 Castro Alves: lições de poesia, lições de contemporaneidade EVELINA HOISEL 31 O teatro infantil de Adroaldo Ribeiro Costa ARAMIS RIBEIRO COSTA 49 La Vorágine - o romance amazônico da Colômbia WALDIR FREITAS OLIVEIRA 67 Gerações literárias na Bahia CYRO DE MATTOS 79 Poesia em tempos de boemia literária FLORISVALDO MATTOS 91 Jorge Amado, Centenário JOACI GÓES 105 A obra pioneira de José Américo de Almeida CONSUELO PONDÉ DE SENA 109 Um sermão magnífico do acadêmico Cônego José Cupertino de Lacerda JOÃO EURICO MATTA 121 Viagem a Israel EDIVALDO M. BOAVENTURA 137 A saga do Rei Vesgo HÉLIO PÓLVORA 159 Virgolino, Cícero, José e Antônio: Beatos e Cangaceiros, Apenas? MAURÍCIO MELO JÚNIOR 181 A cena familiar em contos de Judith Grossmann CÁSSIA LOPES 191 Florisvaldo Mattos: poeta de memórias SILVÉRIO DUQUE 199 A vida da lembrança: Zélia Gattai Amado ANTONELLA RITA ROSCILLI 205 Travessia de oceanos: Vozes poéticas da Bretanha e da Bahia DOMINIQUE STOENESCO 207 Vozes poéticas da Bretanha MAX ALHAU 211 Vozes poéticas da Bahia RITA OLIVIERI-GODET POESIA 221 Conversa com Francisco Otaviano RUY ESPINHEIRA FILHO 228 O banquete das musas MYRIAM FRAGA 233 Poemas FERNANDO DA ROCHA PERES 238 Poemas JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO 244 Poemas MANUEL ANASTÁCIO 250 Voz del mar AARÓN RUEDA 252 Poemas ALAIN SAINT-SAËNS FICÇÃO 259 O pastor dos bosques ANTONIO MAURA 265 O mar do menino CYRO DE MATTOS 277 Maré alta GLÁUCIA LEMOS 285 Sob a chuva lá fora FLAMARION SILVA 289 Os botões de madrepérola HERCULANO ASSIS DISCURSOS 295 A Academia de Letras da Bahia de 2011 a 2013 ARAMIS RIBEIRO COSTA 305 Inauguração da estátua de Góes Calmon na ALB FRANCISCO SENNA 311 Discurso de recepção da Biblioteca do Prof. Dr. A. John Russell-Wood CONSUELO NOVAIS SAMPAIO 321 Discurso de posse na Cadeira nº 5 da ALB CARLOS RIBEIRO 339 Saudação a Carlos Ribeiro, um escritor exemplar ALEILTON FONSECA 347 Discurso de posse na Cadeira nº 37 da ALB DOM EMANUEL D’ABLE DO AMARAL, OSB 365 Discurso de posse na Cadeira nº 14 da ALB GLÁUCIA LEMOS 375 Discurso de posse na Cadeira nº 35 da ALB LUÍS ANTONIO CAJAZEIRA RAMOS 393 Discurso de posse na Cadeira nº 9 da ALB JOÃO UBALDO RIBEIRO 397 Discurso de posse: membro correspondente da ALB DOMINIQUE STOENESCO 405 Saudação a Dominique Stoenesco ALEILTON FONSECA 413 Discurso de posse: membro correspondente da ALB ANTONIO CARLOS SECCHIN 419 Saudação a Antonio Carlos Secchin ALEILTON FONSECA 425 Discurso de posse: membro correspondente da ALB ANTONELLA RITA ROSCILLI 437 Saudação a Antonella Rita Roscilli EDIVALDO M. BOAVENTURA DIVERSOS 443 Efemérides 2011 452 Efemérides 2012 463 Quadro social da ALB 473 Endereços dos Acadêmicos ARTIGOS E ENSAIOS R EVISTA 10 DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Castro Alves: lições de poesia, lições de contemporaneidade Evelina Hoisel As questões que pretendemos abordar na poesia de Castro Alves1 dizem respeito ao jogo intertextual que prolifera em seus textos. Através de múltiplas referências à tradição literária e a outros códigos culturais, registramos na obra do poeta romântico um projeto de criação poética que se constitui a partir do diálogo constante com outros textos. E a noção de texto, em Castro Alves, é bastante abrangente, à medida que o próprio mundo aparece como uma escrita que é lida e decifrada pelo poeta. Desse modo, assinalam-se na poesia de Castro Alves diversos níveis de intertextualidade, à proporção que modelos são retomados, histórias são recontadas, textos são reescritos. Afirma-se que o ato de escrever nasce da leitura do mundo e de outros sistemas linguísticos. A opção explícita pelo diálogo com outras produções discursivas, literárias ou não, pode ser vista como uma das marcas da atualidade da poesia de Castro Alves e concilia-se com o que 1ALVES, Castro. Obra Completa, org., fixação do texto, cronologia, notas e estudo crítico por Eugênio Gomes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1960. 906 p. Todas as citações neste trabalho se referem a essa edição. A partir desta nota, após cada citação serão colocadas apenas as abreviaturas das obras referidas – EF:Espumas flutuantes; OE: Os escravos – e o número da página onde o poema está localizado. 11 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 nele há de mais romântico: a concepção do poeta como inspirado, do poeta vidente, da poesia nascendo em momentos de êxtase e de arrebatamento. Há uma tendência predominante nos estudos literários contemporâneos de ler o texto a partir de suas relações com outros textos. Esta perspectiva é suscitada pela própria literatura, que assume a tarefa de recodificar os diversos signos da cultura e da tradição literária. Este procedimento acompanha a criação poética em diversas épocas, mas ganha um estatuto especial quando, no campo das ciências humanas, se repensa a problemática da linguagem, do signo e da interpretação. Nessa repensagem afirmase que o texto nasce de uma leitura. A leitura deflagra o aparecimento de outras linguagens. Assim, o texto literário é, segundo Mikhail Bakhtine (1981), “um mosaico de citações”. De acordo com Julia Kristeva (1974), é a absorção e a transformação de outro texto, e, para Jacques Derrida (1971), todo texto “cita e recita” outros textos, criando o seu sistema de raízes. Nessa perspectiva teórica, o que anteriormente era visto como uma relação de dependência, de dívida de um texto em relação ao seu antecessor, passa a ser compreendido como um movimento da literatura e, de maneira mais ampla, da própria linguagem. Como explicita Roland Barthes (1974), a intertextualidade “é a impossibilidade de se viver fora do texto infinito, isto é, da própria linguagem”. Desse modo, as noções de imitação e cópia perdem seu caráter pejorativo, porque a retomada de um texto por outro não é inocente. A repetição, a citação, a reinscrição dos signos estão impregnadas de uma intencionalidade: ou se quer dar continuidade, ou se quer modificar e subverter o outro texto. O processo de citação e inserção de um texto no outro é uma prática que acentua a sua produtividade de sentido, atualizando também o sentido do texto “original”. A literatura se edifica sobre os parâmetros da intertextualidade, a partir da reconvencionalização dos modelos prévios. Todavia, o 12 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 que pode diferençar a tradição da contemporaneidade é a maneira de tratar esta questão. Na tradição literária podemos sumariamente assinalar que, nessas relações, o que prevalecia era a noção de continuidade, de semelhança entre os textos. Um texto cita e recita outros para ratificar o seu sentido, disseminá-lo, atualizá-lo. Na apropriação operada pela contemporaneidade, o que predomina é a descontinuidade, a diferença entre os textos relacionados. Na poesia de Castro Alves, a forma mais evidente de se assinalar o apelo à intertextualidade está na utilização das epígrafes. Vários poemas vêm epigrafados, alguns possuem até mais de uma epígrafe. Dentre os principais autores citados, encontramos Dante, Byron, Virgílio, Alfred de Musset, Álvaro de Azevedo, Shakespeare, Victor Hugo, Fagundes Varela, John Milton, José de Alencar, Virgílio, Junqueira Freire, apenas para referenciar os autores presentes em Espumas Flutuantes, de onde extraímos as principais questões abordadas na configuração dessas lições de poesia, lições de contemporaneidade. Através dessas epígrafes, Castro Alves nos fornece programaticamente os primeiros indícios de filiação de sua escrita, estabelecendo uma espécie de genealogia literária. As ramificações genealógicas são diversas: autores de distintas procedências e nacionalidades comparecem e preenchem a antecena da escrita, possibilitando que, na transparência de um texto sobre o outro, se produza outro sentido, reinstalando-se ainda o sentido anterior. Subjacente a essa utilização, está também o princípio de universalidade dos temas poetizados. O que é sentido pelo sujeito lírico, ou aquilo que é por ele verbalizado, já faz parte de um estoque de escritas e lhe serve apenas de pretexto para proferir a palavra poética. A escrita nasce assim de uma leitura, mas nasce porque o texto que é lido – a própria epígrafe –, ainda que esteja plena de significação, uma vez que já está consagrada pela tradição, está também carente de sentido. Conforme teorizado por Jacques Derrida (1971), o texto insemina-se e dissemina-se longe do olhar paterno. A poesia de 13 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Castro Alves nos propõe esta questão teórica, ao se construir a partir de um jogo intertextual. Sua poesia insemina-se de signos prévios, disseminando-os. E, paradoxalmente, ao procurar explicitar suas raízes genealógicas reafirma o texto órfão, desfiliado, conforme está expresso no poema “Dedicatória”, quando se refere ao livro, isto é, à sua obra, como “pobre orfão”. (EF. p. 75) Na poesia de Castro Alves a problemática da escrita originando-se de textos prévios é bastante ampla, uma vez que o próprio mundo aparece como um texto – um conjunto de signos – que é decifrado pelo poeta. O poeta lê e ouve os sons da natureza, que comparece como um imenso poema, como uma pintura ou escultura que ele interpreta, decodificando e recodificando os seus diversos signos. No poema “Murmúrios da tarde”, encontramos: ONTEM à tarde, quando o sol morria, A natureza era um poema santo, De cada moita a escuridão saía, De cada gruta rebentava um canto, Ontem à tarde, quando o sol morria. [...] Larga harmonia embalsamava os ares! Cantava o ninho – suspirava o lago... E a verde pluma dos sutis palmares Tinha das ondas o murmúrio vago... Larga harmonia embalsamava os ares. Era dos seres a harmonia imensa, Vago concerto de saudade infinda! “Sol – não me deixes”, diz a vaga extensa, “Aura – não fujas”, diz a flor mais linda; Era dos seres a harmonia imensa! (EF. p. 150) 14 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Da natureza, que em alguns poemas aparece como manifestação artística de um Criador supremo, o poeta capta sua fala, retraduzindo para outra linguagem, e encontra a harmonia capaz de lhe inspirar o sentido de uma utopia. No poema “Ao romper d’alva”, do livro Os Escravos, a geografia física da América, pintura e poema do Criador, é manchada pela geografia social, onde a ação do homem – a escravidão – funciona como elemento de distúrbio, também percebido pelo poeta: Oh! Deus! não ouves dentre a imensa orquestra Que a natureza virgem manda em festa Soberba, senhoril, Um grito que soluça aflito, vivo, O retinir dos ferros do cativo, Um som, discorde e vil? Senhor, não deixes que se manche a tela Onde traçaste a criação mais bela De tua inspiração. O sol de tua glória foi toldado... Teu poema da América manchado, Manchou-o a escravidão. (OE. p. 216-217) O conceito de inspiração aparece aqui associado à leitura que o poeta faz dos signos do mundo tornados mais audíveis quando mediatizados pela palavra poética, que os rearticula em uma outra linguagem. Por outro lado, há também, no que se refere à escrita do mundo, uma falta que necessita ser suprida, um sentido que precisa ser desvelado. Esse desvelamento pode ser empreendido pelo gesto singular do ato criador. Na concepção de Castro Alves, que reafirma noções já pertencentes à tradição literária, a criação é um processo alquímico, que metamorfoseia o objeto que toca. A atividade poética, como o trabalho do estatuário e do ator, no poema “Ao ator Joaquim Augusto”, é uma alquimia secreta que 15 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 imprime a significação precisa das coisas. “Ao ator Joaquim Augusto” é uma metapoema que define a atividade criadora a partir de uma correlação entre o trabalho do poeta, do estatuário e do ator. O poeta é – o moderno estatuário Que na vigília cria solitário Visões de seio nu! [...] Como Gluck nas selvas aprendia Ao som do violoncelo a melodia Da santa inspiração, Assim bebes atento a voz obscura Do vento das paixões na selva escura Chamada – multidão. Gargalhadas, suspiros, beijos, gritos, Cantos de amor, blasfêmias de precitos, Choro ou reza infantil, Tudo colhes... e voltas co’as mãos cheias, – O crânio largo a transbordar de ideias E de criações mil. Então começa a luta, a luta enorme, Desta matéria tosca, áspera, informe, Que na praça apanhou. Teu gênio vai forjar novo tesouro... O cobre escuro vai mudar-se em ouro, Como Fausto o sonhou! Glória ao Mestre! Passando por seus dedos, Dói mais a dor... os risos são mais ledos... O amor é mais do céu... Rebenta o ouro desta fronte acesa! O artista corrigiu a natureza! O alquimista venceu! (EF. p. 167-168) 16 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 A dicção lírica de “Ao ator Joaquim Augusto” enfatiza o aspecto laboratorial do processo criador, o seu lado apolíneo, mas refere-se também ao lado dionisíaco e não premeditado desse processo. Através do diálogo intertextual, Castro Alves compara a atividade poética à atividade do escultor, no sentido de evidenciar a importância do trabalho artesanal na feitura do poema. A arte nasce de um estado de vigília e de uma luta incessante entre o criador e o material com que trabalha, oriundo da inspiração. Todavia, a matéria colhida pela “santa inspiração” necessita ser transformada pelo laboratório da escrita para que dela brote outra realidade, como do mármore bruto surge a estátua. O poema convoca o leitor para uma reflexão sobre as etapas do processo criador, flagrando os movimentos em jogo na elaboração artística: o labor, que transforma o cobre escuro em ouro, e o inconsciente, ou seja, “a voz obscura” como uma referência aos dados não premeditados, “a selva escura”, a ser submetida ao labor artístico. Outros textos elaboram a concepção dionisíaca da literatura, como “O vidente”, “O voo do gênio”, “Aves de arribação”, “A Boa Vista”, “Hino ao sono”, privilegiando a embriaguês, o sono, o êxtase, o inconsciente, a inspiração como fontes da elaboração poética. Em “O voo do gênio”, a criação é uma dádiva divina, simbolizada pela aparição de um anjo, que conduzirá o voo do poeta pelo infinito. Coloca-se o motivo da inspiração como algo transcendente, e o papel da imaginação criadora delineando uma nova realidade. O voo da imaginação permite o trânsito por espaços ainda não percorridos, a vivência e a recuperação de um lugar paradisíaco, transformando assim o poeta em uma espécie de arcanjo anunciador. A percepção de uma realidade diferente daquela que é experimentada cotidianamente instala o desejo de utopia, que se tornará um dos temas centrais na construção poética de Castro Alves. 17 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Um dia, em que na terra a sós vagava Pela estrada sombria da existência, Sem rosas – nos vergéis da adolescência, Sem luz d’estrela – pelo céu do amor; Senti as asas de um arcanjo errante Roçar-me brandamente pela fronte, Como o cisne, que adeja sobre a fonte, Às vezes toca a solitária flor. E disse então: “Quem és, pálido arcanjo! Tu, que o poeta vens erguer do pego? Eras acaso tu, que Milton cego Ouvia em sua noite erma de sol? Quem és tu? Quem és tu?” – “Eu sou o gênio”, Disse-me o anjo “vem seguir-me o passo, Quero contigo me arrojar no espaço, Onde tenho por c’roas o arrebol”. “Onde me levas, pois?...” – “Longe te levo Ao país do ideal, terra das flores, Onde a brisa do céu tem mais amores E a fantasia – lagos mais azuis...” E fui... e fui... ergui-me no infinito, Lá onde o voo d’águia não se eleva... Abaixo – via a terra – abismo em treva! Acima – o firmamento – abismo em luz! “Arcanjo! arcanjo! que ridente sonho!” – Não, poeta, é o vedado paraíso, onde os lírios mimosos do sorriso Eu abro em todo seio, que chorou, Onde a loura comédia canta alegre, Onde eu tenho o condão de um gênio infindo, Que a sombra de Molière vem sorrindo Beijar na fronte, que o senhor beijou...”[...] (EF. p. 104-105) 18 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 A referência ao poeta “Milton cego” e ao comediógrafo Molière traz para o poema a citação de duas figuras da história da literatura, exibindo-se mais uma vez o repertório de leituras de Castro Alves, inscrito no espaço textual. No poema “Aves de arribação”, aparece a ideia da noite como momento propício para a inspiração, que fará o poeta também viajar por espaços anteriormente habitados: Viajar! viajar! A brisa morna Traz de outro clima os cheiros provocantes. A primavera desafia as asas, Voam os passarinhos e os amantes!... [...] É noite! Treme a lâmpada medrosa Velando a longa noite do poeta... (EF. p. 183-184) Imaginação e fantasia circunscrevem-se neste poema como a encenação dos traços armazenados na memória do sujeito. A cena lírica constitui-se aqui como espaço de recordação, como presentificação e atualização de situações passadas que podem ser recuperadas e revividas através da escrita literária, reconstituindo-se, através do imaginário, o passado idílico vivenciado miticamente pelo eu lírico. “Aves de arribação” exemplifica de maneira concisa a noção freudiana de fantasia, conforme definida no seu artigo “Escritores criativos e devaneios” (1974). Nesse ensaio, Freud considera a fantasia como tendo origem no presente, em decorrência de um estado de carência que desperta a lembrança de um momento passado, onde a falta não existia. A fantasia está em estreita relação com o desejo, e este está articulado na fantasia, que é o lugar das operações defensivas. Os traços mnésicos acionados pela ação imaginante – da fantasia, dos devaneios e da obra artística – constroem outra realidade, um espaço de utopia, em que a carência 19 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 é suprida e, por intermédio dessa encenação do desejo, recuperase a plenitude perdida. “Aves de arribação” estabelece a oposição entre o presente e o passado, correlacionando-os respectivamente com tempo de carência e tempo de plenitude. Em relação ao presente, afirma-se: Hoje, a casinha já não abre à tarde Sobre a estrada as alegres persianas. Os ninhos desabaram... no abandono Murcharam-se as grinaldas de lianas. Que é feito do viver daqueles tempos? onde estão da casinha os habitantes? (EF. p.185) O passado idílico pode, contudo, ser atualizado pela contemplação lírica do sujeito, “na longa noite do poeta”, que, pela viagem imaginária, isto é, pela fantasia poética, reconstrói a cena original, recuperando, ainda que temporariamente, a plenitude perdida: Um dia Eles chegaram. Sobre a estrada Abriram à tardinha as persianas; E mais festiva a habitação sorria Sob os festões das trêmulas lianas. [...] Sei que ali se ocultava a mocidade... Que o idílio cantava noite e dia... E a casa branca à beira do caminho Era o asilo do amor e da poesia. (EF. p. 182-183) No poema “O vidente”, o próprio título é sugestivo da temática desenvolvida: o poeta é um ser vidente. É o inspirado que, em 20 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 momentos de êxtase, penetra numa outra realidade. A criação poética nasce da ação do poeta de ver e ouvir a natureza. A poesia é a construção de um espaço utópico, porque nela estão as marcas de uma realidade plena que o sujeito vivencia e atinge pela imaginação e pela fantasia. Como no poema “O voo do gênio”, as marcas da utopia enquanto imaginação e fantasia, presentes no texto literário, acenam para a possibilidade de uma utopia existencial. Pelo que podemos depreender da abordagem desse poema, o ser inspirado, que na poesia de Castro Alves define-se também pela palavra gênio, é aquele que tem a capacidade de penetrar em territórios subjetivos e objetivos que ultrapassam os limites estabelecidos, que pode habitar, ainda que temporariamente, outros espaços. O ser inspirado é, por excelência, o ser desterritorializado, a demarcar novos territórios. Nesses poemas, que tratam da imaginação, da fantasia e da inspiração como força geradora da poesia, disseminam-se as metáforas do infinito, do voo, da viagem, constituindo um corpus imagístico que delineia duas realidades distintas: a realidade imaginária, metaforizada pelo alto, pelo infinito, pela luz, pelo espaço da plenitude, e a realidade objetiva, cotidiana, espaço de treva e de carência. Se no poema “O voo do gênio” o anjo, isto é, a inspiração, fará com que o poeta voe e, em “Aves de arribação”, a viagem através da memória/imaginação recupera a plenitude perdida, em “O vidente” a inspiração arrasta o poeta para o infinito e, distanciado da realidade opressora, ele tem uma percepção nítida dos acontecimentos que o cercam. A partir de então, poderá a poesia assumir uma função de denúncia e tornar-se um instrumento de transformação da realidade social, onde a ação humana aparece como elemento de distúrbio ou desarmonia: a poesia é a possibilidade de construção de um espaço-tempo ideal. O recurso da intertextualidade alimenta a estruturação do poema, retomando o modelo bíblico da terra prometida e fazendo do poeta um arauto da liberdade. A epígrafe retirada 21 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 do livro de Isaías – “Virá o dia de felicidade e justiça para todos” – serve de mote a esse poema, que procura despertar na humanidade a recordação da “grande profecia”, resgatada arqueologicamente pelo inconsciente mítico do poeta, a partir da leitura do livro de Isaías: [...] Ouço o cantar dos astros no mar do firmamento; No mar das matas virgens ouço o cantar do vento, Aromas que s’elevam, raios de luz que descem, Estrelas que despontam, gritos que se esvaecem, Tudo me traz um canto de imensa poesia, Como a primícia augusta da grande profecia; Tudo me diz que o Eterno, na idade prometida, Há de beijar na face a terra arrependida. [...] E, ouvindo nos espaços as louras utopias Do futuro cantarem as doces melodias, Dos povos, das idades, a nova promissão... Me arrasta ao infinito a águia da inspiração... Então me arrojo ousado das eras através, Deixando estrelas, séculos, volverem-se a meus pés... Porque em minh’alma sinto ferver enorme grito, Ante o estupendo quadro das telas do infinito... Que faz que, em santo êxtase, eu veja a terra e os céus, E o vácuo povoado de tua sombra, ó Deus! [...] Eu vejo a terra livre... (OE. p. 260-261) Ratificando o código literário dos poetas românticos, já definido por Byron, Lamartine, Hugo e Vigny, “O vidente” verbaliza a missão do poeta como o guia, o profeta, o revelador do desconhecido, o antecipador da realidade vindoura e o transmissor de verdades inefáveis. Mas o poeta é, principalmente, aquele que está constantemente a decodificar e a recodificar signos do mundo – o cantar dos astros, o cantar dos ventos, o cintilar 22 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 das estrelas que despontam, os gritos que se esvaecem, os cantos de utopias – e os signos da cultura, como o texto de Isaías. Desse entrelaçamento de signos, nasce o poema, fornecendo ao seu leitor um retrato do autor como leitor.2 É interessante observar que, nos poemas “O vidente” e “Aves de arribação”, são demarcados dois espaços distintos. O espaço da fantasia, do sonho, do imaginário, que expressa o signo da plenitude, e o da realidade cotidiana, marcado pela carência e pela dor. Na última estrofe dessa longa viagem, que é também transcendente e divina – uma vez que a “sombra de Deus” recobre o imenso itinerário do poeta –, a realidade opressora corta o fluxo da produção desejante, reinstalando a viagem de regresso, o contato com os acontecimentos que constituem a história social na qual se situa o eu lírico. A estrofe recorta um tema nuclear da poesia de Castro Alves, situando-o cronologicamente na história do Brasil e na tradição romântica como o poeta dos escravos, o poeta abolicionista: Mas, ai! longos gemidos de míseros cativos, Tinidos de mil ferros, soluços convulsivos, Vêm-me bradar nas sombras, como fatal vendeta: “Que pensas, moço triste? Que sonhas tu, poeta?” Então curvo a cabeça de raios carregada, E, atando brônzea corda à lira amargurada, O canto de agonia arrojo à terra, aos céus, E ao vácuo povoado de tua sombra, ó Deus! (OE. p. 262-263) A identidade do sujeito criador – do poeta – é um dos fios da tessitura lírica e é o tema de textos como “Ahasverus e o gênio”, “Mocidade e morte”, “Poesia e mendicidade”, “A Boa Vista”, “A Luís”. Lidos conjuntamente, esses textos delineiam uma 2 Referência ao texto de Evando Nascimento “Retrato do autor como leitor”, conferência pronunciada na Academia de Letras da Bahia, a ser publicado na revista norte-americana Portuguese Literary & Cultural Studies, n. 26, Lusofonia and its Futures. 23 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 figura do poeta, reafirmando modelos que são trazidos à cena pelo processo intertextual recorrente na poesia de Castro Alves. A apropriação de modelos míticos, históricos e literários estabelece uma linhagem familiar à qual o sujeito lírico pretende se filiar. Nestes textos, a fotografia subjetiva, social, histórica desse ser é a de um sujeito sem pátria, nômade, solitário e anônimo. Implicitamente, com esses paradigmas, vemos traçado um retrato do poeta romântico muito difundido na época de Castro Alves, mas que tem constituído, também, uma das faces da identidade do artista ao longo da história da literatura. A retomada dos arquétipos com os quais ele se identifica reforça esse caráter de universalidade da concepção, desvinculando-a de uma visão ideológica exclusivamente romântica. Nessa perspectiva, uma correlação pode ser delineada: o trânsito livre por regiões imaginárias e transcendentes da fantasia tem como equivalente, ao nível da realidade social e histórica do sujeito criador, a metáfora do itinerante, do estrangeiro, do mendigo, do banido, do nômade que está constantemente a percorrer novos espaços, a demarcá-los, para em seguida abandoná-los. Cada poema é um território que pode ser habitado temporariamente para, logo após, prosseguir em busca de outras regiões, ou seja, de outra palavra poética. Cada poema é a possibilidade de lhe conferir um território, de lhe consagrar no reino das palavras. Em “O fantasma e a canção”, a poesia é o único lugar capaz de acolher os esquecidos da história. Nesse poema, reconstituise a tragédia do Rei Lear, de Shakespeare, dramatizando-se a errância do Rei banido, que procura pouso sem encontrá-lo. Lear, cujo nome não aparece explicitamente grafado, é uma projeção do poeta que só encontra morada – só pode territorializar-se – no espaço literário. O Rei-fantasma banido é acolhido pelo poema de Castro Alves, que o consagra, restituindo-lhe o trono perdido: “– Entra, pois! Sombra exilada, Entra! O verso – é uma pousada 24 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Aos reis que perdidos vão. A estrofe – é a púrpura extrema, Último trono – é o poema! Último asilo – a Canção!...” (EF. p. 97) Em “Poesia e mendicidade”, ao reconstituir a história social dessa classe de indivíduos, Castro Alves recorre a uma galeria de escritores – Homero, Ossian, Dante, Camões, Hugo –, encontrando nos diversos momentos dessa cronologia um paradigma metafórico através do qual o poeta pode ser descrito historicamente, expresso de forma sintética no verso: “Gênio e mendigo!... vede... o abismo de irrisões!”. A referência ao judeu errante Ahasverus tem, na poesia de Castro Alves, uma dupla correlação: traduz, de maneira abrangente, um aspecto da identidade do poeta e, de uma forma mais particular, é o signo que singulariza a história do eu lírico, traçando sua biografia, dando-lhe um sentido mais trágico. O motivo da viagem pela imaginação e fantasia ou através da errância do eu maldito e solitário encontra em “Mocidade e Morte” a explicitação de sua causa: a doença, a tuberculose, “o mal terrível” que lhe “devora a vida”. A presença da morte provocada pela tuberculose tece a trama dos motivos da lírica de Castro Alves como um tema que fundamenta a concepção do poeta, definido como um ser sensível, apaixonado, um ser de exceção, além de eterno viajante. A dramatização é um dos procedimentos importantes na construção da poesia de Castro Alves, e ela se infiltra na cena lírica quer seja a partir de um diálogo entre dois personagens, quer seja pela presença de um forte tom dramático que enfatiza e exacerba a situação vivenciada pelo eu lírico. Em poemas já referidos anteriormente, como “O voo do gênio” e “O vidente”, introduzem-se pequenos diálogos através dos quais se dramatiza o processo criador, definindo-o como captação de outra voz, 25 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 tornando-o mais concreto a partir do realce que se dá através da movimentação cênica da escrita, que faz do poeta o receptáculo de uma voz inaudita. A este aspecto se associa uma forte tendência para uma configuração plástica pelo uso constante de uma imagística visual, o que tem sido estudado por diversos críticos de Castro Alves, como David Salles, que o define como uma imaginação preponderantemente pictórica, visual e até cinematográfica. A dramatização é um recurso frequente na construção da lírica amorosa do poeta baiano, e ela é também sustentada pelo jogo intertextual. São vários os personagens com os quais o eu se identifica e se projeta para reconstituir a sua vida amorosa. Da mesma forma, o objeto de desejo se traveste em múltiplas personae, assumindo feições distintas de acordo com o tipo de relação que se estabelece no enunciado do poema. Em “Os três amores” o sujeito se identifica como Tasso, Romeu e D. Juan e a amada se metamorfoseia em Eleonora, Julieta e Júlia, a Espanhola. As identificações que se estabelecem são significativas do tipo de relação amorosa que se dá entre os amantes. Iniciando com uma imagem onírica, sublimadora, representada por Tasso e Eleonora, termina por teatralizar a relação carnal e voluptuosa de D. Juan e Júlia, a Espanhola. “Boa-noite” apropria-se da cena amorosa entre Romeu e Julieta, parodiando o texto shakespeariano, que aparece também como epígrafe do poema. Há uma mudança do cenário, agora configurado pela paisagem local, e a noção de sensualidade se torna mais forte, adequando-se a essa paisagem. A encenação do desejo realiza-se em uma espécie de delírio alucinante, em que os significantes que traduzem o objeto amoroso se alternam gradativamente na cena do enunciado. O processo de substituição do nome superpõe e identifica Maria-Julieta-Consuelo. Boa-noite, Maria! Eu vou-me embora. A lua nas janelas bate em cheio. 26 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Boa-noite, Maria! É tarde... é tarde... Não me apertes assim contra teu seio. [...] É noite, pois! Durmamos, Julieta! Recende a alcova ao trescalar das flores, Fechemos sobre nós estas cortinas... – São as asas do arcanjo dos amores. [...] Como um negro e sombrio firmamento, Sobre mim desenrola teu cabelo... E deixa-me dormir balbuciando: – Boa-noite! –, formosa Consuelo!... (EF. p. 123) Em “Os anjos da meia-noite”, cujo subtítulo é “Fotografias”, o movimento de reconstrução da biografia amorosa faz detonar os fantasmas do passado, isto é, “os Anjos de amor [...] que desfilando vão...”. A recuperação arqueológica desses rastros, efetuada pela imaginação, faz irromper na cena textual “os Anjos alvos [...] em longa procissão”, que encorpam simultaneamente o vulto da mulher amada e o modelo arquetípico através do qual ela é percebida. O poema se constrói das ruínas do passado – das sombras – numa tentativa utópica de recomposição da história amorosa. São oito sombras movimentando-se plasticamente na vigília do poeta vidente que teatraliza o longo retorno ao passado, no intuito de reencenar a plenitude perdida. Então... nos brancos mantos, que arregaçam Da meia-noite os Anjos alvos passam Em longa procissão! E eu murmuro ao fitá-los assombrado: São os Anjos de amor de meu passado Que desfilando vão... Almas, que um dia no meu peito ardente Derramastes dos sonhos a semente, Mulheres, que eu amei! 27 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Anjos louros do céu! Virgens serenas! Madonas, Querubins ou Madalenas! Surgi! aparecei! Vinde, fantasmas! Eu vos amo ainda; Acorde-se a harmonia à noite infinda Ao roto bandolim... (EF. p. 171) E ao desfilar a primeira sombra – Marieta – a situação idílica é recomposta pela mediação do texto shakespeariano, que já serviu de matéria aos poemas anteriores: Afoga-me os suspiros, Marieta! Ó surpresa! ó palor! ó pranto! ó medo! Ai! noites de Romeu e Julieta!... (EF. p. 171) Este último verso registra como o jogo intertextual da poesia de Castro Alves não se efetua apenas entre textos de poetas distintos, mas ele é, também, um jogo intratextual. Isso significa que o poeta baiano foi, também, um leitor de sua própria poesia. E este traço é mais um componente de sua atualidade, ou melhor, de sua contemporaneidade literária e artística nas suas lições de poesia. REFERÊNCIAS ALVES, Castro. Obra Completa. org., fixação do texto, cronologia, notas e estudo crítico por Eugênio Gomes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1960. 906 p. BAKHTINE, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense, 1981. 28 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 BARTHES, Roland. O prazer do texto. Lisboa: Edições 70, 1974. DERRIDA, Jacques. La dissemination. Paris: Seuil, 1971. FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneios In:______. Gradiva de Jensen e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. IX). KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974. (Debates) NASCIMENTO, Evando. “Retrato do autor como leitor”. In: Revista Portuguese Literary & Cultural Studies, nº 26, Lusofonia and its Futures, ISNN: 1521-804X. (no prelo). __________ Evelina Hoisel é ensaísta, Pesquisadora do CNPq, Professora Titular de Teoria da Literatura na Universidade Federal da Bahia; tem diversos artigos e livros publicados. Desde 2005, ocupa a cadeira nº 34 da Academia de Letras da Bahia. Este artigo foi apresentado na Academia de Letras da Bahia, no Curso Castro Alves 2011, em 29 de setembro de 2011. 29 R EVISTA 30 DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 O teatro infantil de Adroaldo Ribeiro Costa Aramis Ribeiro Costa O teatro infantil de Adroaldo Ribeiro Costa começa em fins de 1941, no exato momento em que ele teve a ideia de teatralizar o conto de Monteiro Lobato A Menina do Narizinho Arrebitado. O teatro infantil. Porque o teatro começa antes, em Santo Amaro da Purificação, em 1938. Naquele ano ele era professor de História e Português do Ginásio Santamarense e, sendo também o encarregado das atividades recreativas, resolveu conseguir uma banda de tambores que puxasse os alunos nos desfiles cívicos pelas ruas da cidade. Como a diretoria não tinha disponibilidade financeira para a compra dos instrumentos, reuniu os estudantes e propôs discutirem juntos os meios de conseguir recursos. Entre outras sugestões, surgiu a de se encenar uma peça de teatro. Adroaldo era um leitor contumaz de peças de teatro, havia sido, durante o curso da Faculdade de Direito da Bahia, e ainda era, um assíduo frequentador das companhias do Sul que se apresentavam em Salvador, e colaborava com jornais escrevendo crítica teatral. A ideia, por conseguinte, foi aceita com grande entusiasmo, e em pouco tempo estava criado o Grupo Cênico do Ginásio Santamarense, que durante três anos encenaria em Santo Amaro, com direção dele, peças de Raimundo Magalhães Jr., de 31 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Joraci Camargo e de Eurico Silva, além de sketches de autoria do próprio Adroaldo. Uma dessas apresentações, em 1940, foi em Salvador, no auditório do Ginásio da Bahia, com o apoio da Secretaria de Educação, cujo titular era o professor Isaías Alves de Almeida. O ano de 1941 foi terrível para ele. Tinha vinte e quatro anos de idade. Preparava-se para casar e faziam, ele e a noiva, uma jovem santamarense, os exames pré-nupciais – um costume da época –, quando se descobriu que ela era portadora de anemia hemolítica, já em estado avançado. Foram vários meses de luta inútil pela sua sobrevivência, ocorrendo a morte em outubro daquele ano. A perda deste sonho, o sonho da vida a dois, foi que certamente o levou a agarrar-se a outro: o sonho de Narizinho, que tinha origem num encantamento da infância. A história do primeiro encontro com esse livro está contada numa das crônicas que selecionei para o volume Páginas Escolhidas/200 crônicas e dois contos, editado pelo Conselho Estadual de Cultura da Bahia em 1999, dentro da Coleção Memória, a crônica “Os Livros e um Livro”. Foi aos seis anos de idade, na casa da tia Lindinha, irmã mais velha do pai e residente em Salvador, em frente ao Campo do Barbalho, no qual ainda não haviam construído o Instituto Normal da Bahia, numa das esquinas da Ladeira do Funil. A porta estava aberta. Adroaldo ia saindo em direção ao largo, onde meninos jogavam bola, quando, no corredor, avistou um livro sobre uma cadeira. Na capa dura, além de vários desenhos engraçados, havia um maior, no centro, onde um peixinho, de casaca, cartola e guardachuva, conversava com um besouro, ambos em pé no rosto de uma menina que, de olhos fechados, parecia dormir. O título, já sabem, era A Menina do Narizinho Arrebitado. Mais tarde Lobato modificaria esse conto, fundindo-o a outras histórias, e transformando-o no primeiro volume da sua saga infantil, com o nome Reinações de Narizinho. Mas, em 1923, com o título A Menina do Narizinho Arrebitado, era ainda o conto inicial, da 32 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 menina que, à semelhança de Alice no País das Maravilhas, dorme e sonha à beira do riacho e, no sonho, visita o Reino das Águas Claras na companhia do Príncipe Escamado Lambari de Prata, um príncipe que, na verdade, era o rei daquele reino encantado. Adroaldo apanhou-o imediatamente e, esquecendo a rua, o largo, o jogo de bola e tudo o mais, leu-o de um fôlego. Quando acabou a leitura, estava extasiado. De todos os livros que leu na infância, e foram muitos, pois se tornou leitor muito cedo, esse foi o que mais o impressionou. Naquele final de 1941, amargurado, mergulhado na tristeza pela morte da noiva, voltou a pensar no livrinho que, depois daquela primeira vez, lera muitas e muitas vezes, agora no exemplar da quinta edição que o irmão mais moço Aldegar ganhou de presente de aniversário. E, como a sua paixão era o teatro, pensou em teatralizá-lo. Mas não podia fazer a adaptação nem a encenação, sem o consentimento do autor da história original. Lobato era, àquela altura, o mais festejado dos autores brasileiros. Os seus livros, sobretudo os infantis, eram vendidos aos milhares, rara era a casa que não possuía a sua obra completa encadernada, lida e relida. Era também o intelectual mais visado pela imprensa. As suas opiniões, as suas entrevistas, eram disputadas avidamente pelos jornalistas, o que ele dizia ou fazia virava manchete, vendia jornais. Que importância daria o grande escritor ao desconhecido professor baiano, que tinha a pretensão de adaptar o seu livro para o teatro? Adroaldo escreveu-lhe uma carta no dia 7 de janeiro de 1942, e tinha tão pouca esperança de obter uma resposta, que nem guardou uma cópia, do que se arrependeu para o resto da vida. Considerando o tempo gasto pelos Correios, a resposta de Monteiro Lobato foi imediata, pois chegou com data de 15 daquele mês, ou seja, apenas oito dias depois, e não apenas autorizava a teatralização do conto, como mostrava grande entusiasmo pelo projeto. Eis a carta: 33 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 S. Paulo, 15.1.942 Prezado Sr. Ribeiro Costa: Em mãos sua gentilíssima carta de 7, na qual confessa a sua irresistível inclinação para o teatro, coisa infinitamente mais desejável que a vocação para reordenar o mundo a ferro e fogo daquele Adolfo germânico. Essa ideia de teatralizar as façanhas do povinho do Picapau Amarelo tem me ocorrido várias vezes — mas as decepções da vida me vieram tantas que já não me resta ânimo para coisa nenhuma. Daí meu interesse em que alguém o faça. Aprovo, pois, com o maior prazer, a sua ideia, e pela amostra que sua carta me dá de seu espírito tenho a certeza de que ninguém o fará melhor. E se puder mandar-me uma cópia da teatralização, muito satisfeito ficará este seu amigo agradecido e admirador Monteiro Lobato. Adroaldo ainda não havia escrito a opereta, apenas feito um esboço, a lápis, no próprio livro, mas saiu imediatamente e comprou cadernos para dar início ao trabalho. Tinha duas dificuldades pela frente: primeiro transportar uma ação que ocorrera na ilimitada imaginação do autor, para os rígidos limites da cena; segundo transformar em diálogo tudo o que, no livro, era narração. Naturalmente isto envolveria um trabalho de recriação, muitas vezes de criação, e tudo isso teria de agradar ao autor da história original. Emília era a sua maior preocupação. Nos livros seguintes Lobato a transformaria na principal personagem do Sítio do Picapau Amarelo, sendo a sua preferida e até confundida com ele próprio. Mas, naquele primeiro conto, era apenas uma bruxa de pano, muda e imóvel, como qualquer 34 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 boneca, que apenas adquiria movimento na cena do Escorpião Negro. O Escorpião invade o Reino das Águas Claras durante a visita de Narizinho e é derrotado pela boneca, que lhe enfia nos olhos o espeto de assar de Tia Nastácia. Essa é a única movimentação de Emília no conto original. Adroaldo teria de dar-lhe vida e movimento, e, mais do que isto, criar falas interessantes para a bonequinha, tudo dentro do espírito lobatiano, com o humor e a irreverência que haviam se tornado as marcas inconfundíveis e preciosas da personagem. Imaginou logo o início da opereta: após a protofonia, o prólogo, com a apresentação musicada e visual da história e dos personagens. Em seguida se abriria a primeira cortina, e entraria Narizinho cantando, com a bruxa de pano carregada. Foi tal a sua alegria em receber a autorização de Lobato que, naquela mesma tarde, enquanto tomava banho, a água caindo fresca e vivificadora do chuveiro sobre o corpo, compôs, letra e música, essa canção que Narizinho entra cantando, a “Ária de Narizinho”. A letra é a síntese de um conto de fadas: “Era uma vez uma rainha / Que tinha inveja da enteada / Porque era linda a pobrezinha / Foi na floresta abandonada... / Vovó contou / Que a linda princesinha / Sofreu, chorou / Mas acabou rainha / Feliz reinou / Num palácio dourado / Pois se casou / Com um príncipe encantado”. Curioso que, ao conceber a teatralização d’A Menina do Narizinho Arrebitado, a forma opereta fosse, de pronto, a escolhida. É que não havia nenhuma experiência similar, não se tinha sequer notícia de algo parecido feito por e para crianças. Entretanto, pareceu-lhe que, para motivar os atores e espectadores mirins, e fazer dos limites do palco um irresistível mundo da fantasia, teria de utilizar-se e largamente de todos os recursos cênicos: a música, o canto, a dança, o figurino, o cenário, as luzes, as cortinas. Queria que ocorresse às crianças o que lhe ocorrera ao ler o conto na infância, quando não apenas lera o livro, mas vivera a história. Queria que elas não apenas representassem ou assistissem, mas fizessem a viagem de Narizinho ao Reino das Águas Claras. A 35 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 música, em particular, seria de fundamental importância para causar esse efeito. Algumas ele já havia composto nas suas horas de lazer em Santo Amaro da Purificação, pelo simples prazer de compor, sem que tivesse, para elas, qualquer objetivo, como “A Cigarra e a Formiga”, uma adaptação musicada da fábula de Esopo que La Fontaine também adaptou, e a “Canção do Sofrê”, inspirada no canto do curioso pássaro das matas brasileiras. Havia criado também, este com o objetivo de abrir as audições caseiras de um trio amador que ele formava com os dois irmãos, o “Hino das Águas Claras”, que, evidentemente, ao ser composto não tinha este nome. As outras músicas foram nascendo à medida que ia escrevendo o texto, ao sabor das sugestões da história. Compunha ao piano e fixava na memória, porque, apesar de tocar muito bem de ouvido, não escrevia música. Era necessário pôr tudo aquilo no pentagrama, criar as partituras para os instrumentos, fazer a harmonização da orquestra. Foi então que decidiu incluir no projeto Agenor Gomes. Conhecera-o em Santo Amaro da Purificação em 1938, quando Gomes ali exerceu, por pouco tempo e muito a contragosto, a função de gerente de um banco. A contragosto, porque o único interesse da sua vida era a música. Tendo nascido na cidade baiana de Valença e passado rapidamente por Santo Amaro, Gomes residia em Salvador. Músico versátil, conhecedor dos recursos dos instrumentos e dos segredos do arranjo, da instrumentação e da regência, seria a pessoa ideal para colocar aquelas músicas na pauta e, depois, reger a orquestra. O projeto rapidamente empolgou Gomes, que não se satisfez em copiar as músicas que Adroaldo ditava, quis também compor algumas, ser o coautor da parte musical da opereta. Assim é que Narizinho acabou tendo, musicalmente, dois autores, Adroaldo Ribeiro Costa e Agenor Gomes, cada um deles responsável por praticamente o mesmo número de composições. Vale lembrar, entre as composições de Gomes para Narizinho, a “Dança das Sombras”, a “Sinfonia do Marido-é-Dia” e a “Valsa Real das Águas Claras”, enquanto de 36 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Adroaldo podem ser destacadas a própria “Ária de Narizinho” – com seus desdobramentos “Fantasia da Ária” e “Ária em Acalanto” –, a “Dança dos Tangarás” e a “Dança das Libélulas”. A “Protofonia”, composta por Gomes, aproveita trechos melódicos das várias composições da opereta, tanto dele próprio quanto de Adroaldo. No total, vinte e cinco músicas, duas ou três delas não ainda na primeira versão da opereta. Concluídos os trabalhos de texto e música, era intenção de Adroaldo partir imediatamente para a encenação. Mas como? Do papel ao palco havia a enorme distância de todas as dificuldades. Precisava arregimentar crianças para o elenco, ensaiá-las, obter recursos para a confecção do guarda-roupa e do cenário, também para o pagamento da orquestra, contar com uma equipe técnica numerosa e eficiente, enfim, um mundo de providências e de recursos materiais e humanos dos quais ele, absolutamente, não dispunha. Foi quando ocorreu uma mudança em sua vida que acabou favorecendo o projeto. Até 1942, ele vivia entre Santo Amaro da Purificação e Salvador, ensinando no Ginásio Santamarense e no Colégio Nossa Senhora da Vitória, dos Irmãos Maristas. Mas, em 1943, sentindo que Santo Amaro da Purificação guardava, com mais intensidade, as lembranças da noiva perdida, e cedendo finalmente à vontade do pai, que insistia em “que ele vencesse na capital”, resolveu fixar-se definitivamente em Salvador. Poucos meses depois, em 25 de julho, iniciou a Hora da Criança. Surgida como um programa de rádio aos domingos pela manhã, na PRA-4, Rádio Sociedade da Bahia, àquele tempo órgão da poderosa organização Diários e Emissoras Associados, de Assis Chateaubriand, numa época em que, além do jornal impresso, o rádio era o único veículo de comunicação de massa, com imensa audiência, a Hora da Criança, que trazia a chancela da Secretaria de Educação e atuava sobre bases pedagógicas, logo se transformou num movimento artístico de vulto. Desse programa, realizado em auditório, participavam dezenas de crianças e 37 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 também dezenas de adultos, que aos poucos iam se aproximando e acabavam por se incorporar com entusiasmo à equipe de trabalho. Seu hino, que ficou famoso, música de Gomes e letra de Adroaldo, era cantado por todo o elenco na abertura e no encerramento das audições e era uma síntese do programa: “Os meninos da Bahia, / Nesta Hora da Criança, / A mensagem da esperança / Vêm trazer com alegria. / Que, na terra em flor, / haverá amor; / que, nos céus de anil, / haverá esplendor; / que, enquanto nós cantarmos, / haverá Brasil”. Foi o início de uma nova e extraordinária experiência para Adroaldo, que passou a conviver diariamente com crianças de diversas idades, nos ensaios e nas apresentações do programa radiofônico. Para esse programa foi criado todo um repertório, sempre ajustado ao elenco. As audições, apresentadas ao vivo pelo próprio Adroaldo, utilizavam-se amplamente da música – que era sempre de Adroaldo, de Gomes ou de ambos, em parceria –, mas também do rádio-teatro, com sketches, monólogos e adaptações de histórias infantis de sua autoria, que eram representados e interpretados com grande facilidade e um evidente encantamento, tanto do elenco que realizava essas apresentações, quanto do imenso público, da capital e do interior, que ouvia e acompanhava semanalmente. Observando o comportamento e as reações das crianças diante do microfone e no auditório, Adroaldo consolidou a teoria que vinha elaborando sobre a importância do teatro como instrumento de educação complementar, tanto na educação formal quanto na doméstica, aumentando a sensibilidade artística, estimulando a imaginação, proporcionando a vivência da fantasia, tão necessária para as mentes infantis. Havia também a vantagem de desinibir, habituando a criança ao microfone, ao palco e ao público, o que lhe seria de grande proveito para toda a vida, em qualquer profissão a que se destinasse. Por outro lado, o numeroso grupo de meninos e meninas que participavam do programa já constituía um elenco em potencial para a opereta. Dessa forma, longe de 38 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 eclipsar o sonho de Narizinho, a Hora da Criança deu-lhe maiores justificativas para insistir no empreendimento, passando a vê-lo como o início de um teatro infantil permanente, que não se esgotava ao fim de uma temporada, mas, pelo contrário, apresentava uma atividade contínua cujos resultados podiam ser avaliados em temporadas sucessivas, o que também era, na época, algo inédito. E ele deu início aos ensaios. Havia dois obstáculos a serem vencidos: local para os ensaios e dinheiro para a montagem. O primeiro pôde ser superado, mas não o segundo. Só em 1947, com Anísio Teixeira na Secretaria de Educação, foi conseguido um semipatrocínio, porque de fato a verba integral prometida para o custeio de toda a montagem jamais foi paga, e Narizinho foi encenada. Foi um trabalho de muitos, mas será justo lembrar Aldegar Ribeiro Costa, irmão de Adroaldo e administrador financeiro do empreendimento; Agenor Gomes, coautor musical, orquestrador, ensaiador e regente; Álvaro Zózimo, encarregado do figurino e da montagem; Nady Stavola de Menezes, responsável pelo canto e pela contrarregragem; Odete Franco, a coreógrafa; Dulcelino França Monteiro, o criador das mágicas; e Noêmia Rocha da Silva, a coordenadora do guardaroupa – confecção e camarins –, comandando uma equipe de senhoras voluntárias, a maioria mães das crianças do elenco. Adroaldo ficou na direção geral. Na noite de 22 de dezembro de 1947, abriram-se as cortinas do antigo Teatro Guarani, na Praça Castro Alves, para que cento e dez crianças no palco, e outras dezenas na plateia, vivessem o sonho de Narizinho. No teatro superlotado encontravam-se autoridades, intelectuais, jornalistas, o governador da Bahia, Octavio Mangabeira, o secretário de Educação, Anísio Teixeira, e o próprio Monteiro Lobato, autor do texto original que servira de base a Adroaldo para a adaptação. Lobato estava doente, cansado e desiludido, mas viajou de São Paulo para Salvador apenas para presenciar aquela estreia. Naquele momento, naquele teatro e na Bahia não apenas se apresentava Narizinho, mas algo inteiramente novo: a opereta 39 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 infantil, o teatro infantil, o Teatro Infantil Brasileiro – que, pelo menos naqueles moldes, do grande teatro voltado para o grande público, nasceu em Salvador, naquela noite. As notícias registradas pela imprensa da época, as opiniões escritas de pessoas que assistiram ao espetáculo, as opiniões emitidas pelo próprio Lobato, em cartas a Adroaldo e seus colaboradores, as entrevistas que ele concedeu aos jornais do Sul do país, comprovam não apenas o êxito da apresentação, mas também o impacto causado pela novidade de um teatro infantil daquela qualidade, encenado por crianças, para crianças e adultos. Registro aqui, a título de curiosidade, uma opinião de Lobato que eu não sei se o próprio Adroaldo soube, e que me foi transmitida pela atriz baiana Jurema Pena. Após o espetáculo, ainda emocionado, o autor do Sítio do Picapau Amarelo disse a um grupo, que dele se acercou: – Agora eu posso morrer. Vi minha Emília falar. Narizinho voltaria à cena, sob a direção de Adroaldo, em mais quatro temporadas: 1951, 1956, 1961 e 1972, sendo sempre reescrita e adaptada ao novo elenco, até a sua concepção definitiva, a de 1972, na qual Adroaldo suprimiu o quarto ato, concluindo o sonho da menina Narizinho após o baile, no terceiro ato, quando o Príncipe Escamado e o Escorpião Negro lutam, e Escamado é salvo por Emília. Após o pedido de casamento do príncipe, ouve-se a voz de Tia Nastácia, o pano desce, e Narizinho, despertando do seu sonho à beira do riacho, deixa suavemente a ribalta a cantar a “Ária”. A montagem teatral seguinte, em 1950, foi uma revista. Tanto quanto a opereta, a revista infantil constituía-se uma experiência inédita. E Adroaldo escreveu e encenou Infância. No primeiro e no segundo atos, há uma sucessão de quadros onde é retratada a vida na infância, com larga utilização de folclore, cantigas de roda, cançonetas, pequenas histórias e brincadeiras. No segundo há uma apresentação declamada e cantada de “Meus Oito Anos”, de Casimiro de Abreu, e o terceiro ato é uma pequena peça em 40 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 homenagem a Monteiro Lobato, escrita logo após a morte do escritor, intitulada “Festa no Sítio”, na qual Narizinho, Emília, Pedrinho, Tia Nastácia, Dona Benta e o Visconde recebem, para uma festa no Sítio do Picapau Amarelo, os principais personagens da literatura infantil universal, como Cinderela, a Bela Adormecida, Branca de Neve, João e Maria, e muitos outros. A mensagem dessa revista é a beleza e o encanto das manifestações ingênuas e puras, a graça espontânea das tradições populares infantis, a lembrança da aurora da vida, a crença na perpetuidade da vida, o amor à vida. Mensagem de saudade e carinho, de alegria e esperança, mensagem de amor à criança. Infância foi encenada ainda em 1958 e em 1973. Nesta última apresentação o cenário e o figurino foram de Ada Brito, e a temporada fez parte das comemorações do sesquicentenário da Independência na Bahia. No gênero revista infantil, houve duas outras realizações do teatro de Adroaldo Ribeiro Costa: Enquanto Nós Cantarmos, em 1953, revista comemorativa dos dez anos de existência da Hora da Criança, e Nossa Árvore Querida, em 1959. Enquanto Nós Cantarmos foi uma revista em quatro atos. No primeiro era apresentada a história “O Menino Vadio na Floresta” – adaptação de uma fábula – e canções coreografadas como a “Cantiga de Verão” e a “Valsa da Chuva”, encerrando com a “Rapsódia Brasileira nº1”. No segundo ato havia as cantigas de roda, cantadas e dançadas. No terceiro a teatralização de “Navio Negreiro”, de Castro Alves. E finalmente, no quarto ato, uma suíte dos melhores momentos de Narizinho. Nossa Árvore Querida foi uma revista em três atos. No primeiro havia sketches, monólogos, cançonetas e cantigas de roda. No segundo a “História da Margarida”, desenvolvimento musicado de uma cantiga de roda, e uma sucessão de quadros, entre eles “O Geniozinho e a Mendiga”, que introduz na revista infantil a forte preocupação social, que é uma das marcas do teatro infantil de Adroaldo, e “Os Meninos do Mundo”, apresentando canções 41 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 folclóricas do Brasil e de outros países. E, finalmente, no terceiro ato, a apresentação da peça “O Largo”, pela turma jovem, a chamada turma J. Nossa Árvore Querida não era outra, aliás, senão a própria Hora da Criança, e a música da apoteose dizia isto: “No solo generoso da Bahia, / a semente foi lançada... / No coração generoso da Bahia, / dia, após dia, / a plantinha cresceu... / Virou árvore, esgalhada, / florida / enfrutecida, / onde pássaros, em bando, / vêm cantando, / cantando, alegremente, pousar...” Essa árvore, “esgalhada, florida e enfrutecida”, era a Hora da Criança, e os pássaros que nela pousavam eram os milhares de meninos que passavam pelo seu elenco. E acabou sendo, na verdade, um canto de louvor à Hora da Criança e aos seus ideais, reafirmando: “Vamos levar nosso canto / de esperança e de alegria, / vamos levar nosso canto / ao coração da Bahia!”. Voltando ao gênero opereta, depois de Narizinho, Adroaldo escreveu a opereta infanto-juvenil Monetinho, que foi encenada em 1955. “Monetinho” era como o sobrinho Adernil pronunciava, em criança, a palavra “molequinho”: “Eu sou o monetinho do dindo...” Era uma peça em três atos, tendo como tema e mensagem a advertência para a criança abandonada no próprio lar e nas ruas. Tratava-se de uma nova experiência, pois era um drama, um teatro de tese. Sendo teatro infanto-juvenil, essa conotação não podia ser percebida pelas crianças que representavam ou que assistiam ao espetáculo, que nele viam apenas a fantasia e a beleza da história. O drama e a tese dirigiamse unicamente ao público adulto. No palácio de ouro e marfim, o Rei Radalbérico I e a Rainha Lurialinda entediam-se. A rainha só pensa na própria beleza, o rei só pensa em caçar e divertir-se, e nenhum dos dois pensa no filho, o príncipe Monetinho, que, apesar de ter dois quartos cheios de brinquedos, vive triste e abandonado pelos pais. O tédio dos monarcas é tão grande, que o rei manda chamar os dois conselheiros, o Conselheiro Bonifácio e o Conselheiro Malefício. Bonifácio aconselha que os reis trabalhem para a felicidade do 42 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 povo e deem atenção e amor ao filho. Só assim conseguirão espantar o tédio. Porém o Conselheiro Malefício apresenta aos soberanos um licor mágico, capaz de trazer ao rei uma emoção nova a cada dia, e fazer com que a rainha fique sempre jovem e bela. Com isto, estaria eliminado, para sempre, o tédio das suas vidas. Entusiasmados, Radalbérico I e Lurialinda bebem o licor. Então Malefício diz que também pensou em Monetinho. E dálhe uma caixa, onde cada vez que Monetinho entrar encontrará um brinquedo novo. E Monetinho entra na caixa. Assustado, o Conselheiro Bonifácio exige que Malefício abra a caixa. Quando a caixa é aberta, Monetinho desapareceu dentro dela. Então a Felicidade, que já vivia abandonada, sente-se expulsa do palácio, e sai chorando pelo mundo, felicidade perdida, procurando o caminho de volta. Todos a abandonam, menos a Esperança. Em seu caminho pelo mundo, a Felicidade vai dar no Vale Profundo, onde vivem os meninos perdidos. Mas eles viram as costas para ela, não a conhecem, jamais conheceram a felicidade... Finalmente, graças a um estratagema dos amigos de Monetinho, com a ajuda da Rainha das Fadas, o rei e a rainha lembram-se do filho e do povo, e a Felicidade retorna. Na parte musical, foi repetida a experiência de Narizinho, também utilizada nas revistas e no repertório radiofônico da Hora da Criança: as músicas foram de autoria, umas de Adroaldo, outras de Gomes. Monetinho foi a peça que obteve, numa única temporada, o maior número de representações, nada menos de vinte e duas, com casa lotada no Teatro do Instituto Normal, de mil e setecentos lugares, e a que atraiu o maior número de visitantes do Sul do país. Voltou à cena, sob a direção de Adroaldo, sem precisar ser reescrita, em 1975, no Teatro Castro Alves, e é atualíssima, infelizmente cada vez mais atual, porque cada vez a criança parece estar mais abandonada em seus próprios lares e nas ruas. A opereta seguinte e última foi Timide, encenada em 1957, também no Teatro do Instituto Normal. Adroaldo escrevera 43 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Monetinho para o sobrinho e afilhado mais velho, achou que devia escrever uma peça também para o sobrinho e afilhado mais novo. “Timide” era como a sobrinha Araíma, ainda bem pequenininha, chamava o irmão, que seria o intérprete do papel título. Timide foi a mais ousada de suas realizações cênicas. Conseguira a adaptação teatral de um conto famoso, fizera a revista infantil, com larga utilização do folclore, realizara, com êxito, o drama de tese. E resolveu tentar a tragédia. Aparentemente era um absurdo, trazer a tragédia para o teatro infantil. Entretanto, ele trabalhava mais uma vez com o conhecimento já tantas vezes testado de que a arte e a literatura infantis podem ter duas leituras, a da criança e a do adulto. Foi assim, por exemplo, com A Chave do Tamanho, de Monteiro Lobato, onde as crianças que leem o livro sequer percebem a tremenda e amarga filosofia que Lobato ali expressa, apenas interessadas na magia e no encantamento da história. Fora assim com Monetinho. E assim foi com Timide. Inspirada em episódios familiares e outros presenciados pelo autor, mas, sobretudo, motivada pela revelação do Departamento Nacional da Criança, de que, naquele ano de 1957, morriam duas mil crianças por dia no Brasil, a opereta ou fantasia Timide é a luta da Fada Saúde contra a Fada Doença, e desenvolve-se em dois planos: o quarto do menino Timide, que vai dormir com saúde e amanhece enfermo, precisando ser internado num hospital, e VilaVida, onde as crianças brincam felizes, e que também é invadida pelos exércitos da Fada Doença. O menino Timide transformase num símbolo, salvá-lo será salvar todas as crianças. Uma tragédia que, por ser infantil, desviou-se para o final feliz e apoteótico. Para as crianças do palco e da plateia, tratava-se de uma divertida brincadeira, com a fantasia, a magia encantatória do teatro, a música, a dança, as luzes, o movimento, as cores, as histórias, o humor. Para os adultos, ali estava a preocupante mensagem. Mais uma vez, a autoria musical dividiu-se entre Adroaldo e Gomes. Se Narizinho foi a peça musicalmente mais rica, se Infância conseguiu os melhores efeitos de montagem, se Monetinho teve o 44 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 melhor texto literário, certamente Timide foi a de mais difícil e mais elaborada realização cênica. Na cena do pânico, por exemplo, no terceiro ato, duas dezenas de crianças entravam correndo no palco, aparentemente de modo desordenado, e paravam bruscamente, imobilizando-se na posição em que estavam, para, em seguida, irem caindo, uma a uma, a cada badalada do sino. Era a representação cênica e dramática da mortalidade infantil da época. Na apoteose, foram colocadas no palco, de uma só vez, duzentas crianças. À semelhança de Enquanto Nós Cantarmos e Nossa Árvore Querida, Timide jamais voltou à cena. O teatro infantil de Adroaldo Ribeiro Costa não ficou limitado ao palco do teatro, nas grandes peças. Era realizado também no programa de rádio da Hora da Criança, diante do microfone, em shows, em discos, chegou à televisão e ao teatro de títeres. Embora os seus espetáculos atraíssem e comovessem uma multidão de espectadores pela qualidade cênica, o seu objetivo principal era educar. Educar por meio da arte, o que contemporaneamente tem sido denominado de arte-educação. Dessa forma, o teatro tornava-se um meio, não um fim. Apoiava-se em bases e diretrizes pedagógicas e colocava a criança acima de qualquer outro interesse. As bases e diretrizes foram bem fundamentadas no livro que Adroaldo deixou sobre a sua experiência com a Hora da Criança e o teatro infantil, intitulado Igarapé — História de uma Teimosia, editado pela Empresa Gráfica da Bahia em 1982. Ali está, com muita clareza, a forma como eram criados e distribuídos os papéis, realizados os ensaios do elenco, e, principalmente, como se sentiam as crianças ao praticar essas atividades, que para elas curiosamente não passavam de um grande brinquedo. Apesar disso, e apesar da chancela das diversas Secretarias de Educação ao longo da atuação do movimento, do apoio maciço de pais, professores, pedagogos, imprensa e do grande público, que jamais deixou de prestigiá-lo, encontrou dificuldades e sérios obstáculos. O primeiro e principal deles, foi, sem dúvida, a falta de uma sede própria. No início dos anos 70, graças à bilheteria da temporada 45 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 de Narizinho em 1972, uma sede provisória pôde ser alugada e equipada no bairro de Santo Antônio Além do Carmo. Mas a falta de uma sede própria, ou mesmo de um local apropriado para o desenvolvimento das atividades, obrigou o movimento a trabalhar em diversos e inapropriados locais. O mais duradouro e satisfatório deles, foi o Instituto Central de Educação Isaías Alves, com suas salas por debaixo da caixa do teatro, onde podiam ser guardados materiais importantes como cenários, figurinos, arquivos, etc., serem confeccionados guarda-roupas e cenários, sobretudo realizados ensaios com a meninada. No imenso teatro desse grande colégio, do qual Adroaldo foi professor catedrático de História Geral, mais conhecido como Teatro do Instituto Normal, foram apresentadas várias temporadas da Hora da Criança nos anos 50 e início de 60. Isso antes que existisse o Teatro Castro Alves, no qual também houve três temporadas. Mas ocorreram igualmente obstáculos de outra ordem, que atrapalharam bastante o movimento, como eliminação do programa radiofônico pelas emissoras, primeiro a Rádio Sociedade, após vinte e cinco anos de audições semanais ininterruptas, depois a Rádio Cultura, após seis anos nas mesmas condições, ambas sob a alegação de que as emissoras adotariam nova grade de programação, de seu maior interesse comercial; e como o incidente com a Justiça de Menores, em 1951, que a imprensa denominou o “Caso Narizinho”, a obter grande repercussão, até mesmo fora da Bahia, desdobrando-se numa sessão pública promovida pelo Instituto Melo Matos no salão nobre do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, presidida pelo professor Estácio de Lima, com a participação de professores, pedagogos, pediatras, psiquiatras, juízes e outros representantes da Justiça, tudo documentado pela imprensa, em torno das questões dos efeitos do teatro infantil na mente e na formação da criança, da apresentação de crianças no palco e, principalmente, sobre o horário dessas apresentações. Essas discussões, nas quais o criador da Hora da Criança defendeu suas ideias, trouxeram à 46 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 tona a visão obsoleta de certos artigos do Código de Menores à época, resultando em mais uma contribuição de Adroaldo e do seu teatro à arte e à educação infantis, bem como à própria lei do menor, posteriormente reavaliada e atualizada. Tanto tempo decorrido, esse teatro, que mobilizou milhares de crianças durante quatro décadas sob a direção de Adroaldo, influindo decisivamente em sua formação, que envolveu e impressionou tantas pessoas, oferece farto material para estudo em várias áreas da formação infantil, principalmente porque as crianças que ontem participaram são hoje pessoas maduras, com sua trajetória de vida grandemente cumprida, e ainda podem ser tomadas como exemplo e mesmo depor sobre o assunto. Isso, aliás, tem sido feito com frequência, de forma sincera, espontânea e emocionada que gratificaria e comoveria o criador da Hora da Criança, se ele pudesse ver e ouvir, tanto tempo depois, as consequências do seu trabalho. Dez anos após a morte de Adroaldo, o governo do Estado da Bahia, mediante acordo entre a Sociedade Civil Hora da Criança e a Secretaria de Educação, que incluiu negociação do terreno anteriormente doado à Sociedade Civil, na Avenida Juracy Magalhães Jr, em Salvador, e prestação permanente de serviços, construiu o tão sonhado teatro-sede pelo qual Adroaldo tanto lutou. Nessa sede, que guarda arquivos e documentos importantes para a história do movimento, o teatro infantil de Adroaldo Ribeiro Costa permanece. __________ Aramis Ribeiro Costa é médico pediatra, também graduado em Letras pela Universidade Católica do Salvador. É escritor. Foi presidente da Sociedade Civil Hora da Criança no mandato 1884-1985. É membro efetivo do Conselho Estadual de Cultura da Bahia. É autor de vários livros, como O fogo dos infernos (2002), Os bandidos (2005), Reportagem urbana (2008) e Contos reunidos (2011). Desde 1999 ocupa a Cadeira nº 12 da ALB. Atual presidente da ALB, exerceu a gestão 2011-2013, sendo reeleito para a gestão 2013-2015. 47 R EVISTA 48 DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 La Vorágine - o romance amazônico da Colômbia Waldir Freitas Oliveira H á 90 anos, um advogado recém-formado pela Faculdade de Direito e Ciências Políticas da Universidade Nacional de Bogotá, José Eustasio Rivera, iniciava uma das mais extraordinárias viagens já realizadas em seu país. Nomeado membro de uma Comissão encarregada de efetuar a demarcação das fronteiras entre a Colômbia e a Venezuela, partiu para o sul do seu país, seguindo um roteiro que poderá, em nossos dias, ser considerado absurdo, mas que era, em sua época, o mais viável – desceu, até a sua foz, o rio Madalena, que corre para o norte, na direção do mar das Antilhas, seguiu, daí, ao longo do litoral do Caribe, na direção do leste, passou por Port-of-Spain, em Trinidad, e chegou à foz do Orenoco, por ela tendo penetrado e subido o curso deste rio, até sua confluência com o rio Meta, situado na fronteira, pelas bandas do sul, desses dois países, e seguiu, então, para a cidade de San Fernando de Arabapo, ainda mais ao sul, de onde começou a percorrer as terras banhadas pelo rio Inírida, na província colombiana de Guaínia. E quando decidiu regressar a Bogotá, dali retornou ao Orenoco, por ele tendo navegado até o canal de Cassiquiare, que o liga ao rio Negro, principal afluente brasileiro do Amazonas, havendo sido este rio 49 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 por ele percorrido até sua foz; dali tendo seguido, já sobre águas do oceano Atlântico, acompanhando a linha da costa, na direção do mar das Antilhas, indo alcançar, mais uma vez, o rio Madalena, de onde partira, em sua viagem de ida, e por ele de novo navegado, dessa vez subindo o seu curso, a fim de chegar de volta à capital da Colômbia. De tudo o que viu e ouviu, ao longo dessa sua viagem, resultou a redação de um dos mais extraordinários romances da literatura latino-ameriana – La Vorágine (1924) –, havendo sido José Eustasio Rivera o primeiro escritor a revelar as torpezas e injúrias sofridas pelos seringueiros na floresta amazônica, antecipandose, pois, ao falar desse assunto, ao romance que iria, seis anos depois, aparecer, escrito por Ferreira de Castro – A Selva – , este, no entanto, com sua estória a desenvolver-se na Amazônia brasileira. E mesmo que a ação dos personagens de La Vorágine se desenvolva tanto nos llanos como na selva, daremos, aqui, realce à parte do texto onde e quando a mata se torna cenário privilegiado para a narrativa, desempenhando o papel de algoz e, mais que isso, assumindo o caráter de “voragem” e abismo. A selva sádica y vírgen..., a vista e idealizada por Rivera, acabou por devorar Arturo Cova, o principal personagem do romance, e os seus companheiros. E sendo este o narrador da estória, e havendo sido também fundamental o seu desempenho, agindo como condutor dos acontecimentos, torna-se Arturo Cova peça essencial para a compreensão do romance; tendo sido através de sua voz que, como afirmou Montserrat Ordóñez1, aprendeu o século XX “a imaginar e descrever a selva”; de modo igual, “a interpretar a relação entre o homem e a natureza”; e finalmente a entender o seu relacionamento com o próprio mundo interior, condicionado pela presença e influência de “uma natureza mítica, personificada e carnavalizada.”2 E como resultado da presença simultânea, no romance, do autor e do narrador por ele criado, e aqui seguindo o rumo tomado pela apreciação de Montserrat Ordóñez, irá Rivera, aos poucos, 50 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 desaparecendo como pessoa relacionada com sua obra, com sua biografia e com os fatos pitorescos de sua vida, que passam a ser dados de interesse mais histórico que literário, enquanto a voz de Cova, fragmentada e enigmática, nela se mantém e cresce. Razão pela qual, torna-se essa sua voz, a versão autorizada e descomprometida da selva americana, a do testemunho da atroz perseguição dos caucheros, a do homem enlouquecido no interior da selva, cárcere verde e locus terribilis. E em La Vorágine, enquanto a voz de Rivera, no curso da sua narrativa, vai desaparecendo, a de Arturo Cova, apesar de sua condição de personagem contraditório e pouco confiável, nela irá permanecer, mantendo-se, mesmo despedaçada, colocada por Rivera, como “a chave do êxito do livro, a possibilidade de sua sobrevivência”.3 Arturo Cova é um homem da cidade grande, com boa formação em estudos literários, que foge para a região de Casanare, na parte oriental do país, embrenhando-se em seus llanos 4, tendo chegado às matas do sul, em companhia de Alicia, uma jovem que abandonara sua casa, em Bogotá, e com ele partira, por não querer casar-se, forçada pela família, com um rico fazendeiro, pelo qual não sentia qualquer afeição. Não a amando, no entanto, Arturo Cova, de modo tal que pudesse justificar essa fuga e a ela tendo sido levado, em verdade, por seu espírito aventureiro. Outro personagem possui no romance voz explícita, e será através dela que iremos saber muito do que nele foi dito sobre os indígenas que habitavam a região das matas e acerca de quem eram e como viviam os caucheros – a de Clemente Silva –, que somente aparece na segunda parte do romance, surgindo, então, como um elo entre a civilização e a floresta, nela inclusos os seus habitantes, tornando-se, a partir de então, muito importante no contexto da narrativa, embora haja sido colocado, do ponto de 51 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 vista cultural, mais perto do branco que do indígena, tanto por seus valores como pelo seu comportamento. Como vemos, Rivera fala valendo-se de vozes várias, sabendo delas utilizar-se nos momentos exatos em que delas necessita, a fim de permitir aos seus leitores entenderem como funcionam os laços que unem os que foram levados a conviver na selva que os domina e quase sempre os anula, o branco, o caboclo e o índio, categorias distintas no conjunto humano de sua narrativa, todos subjugados pelo poder imenso da mata e forçados a ceder, uns aos outros, partes de si mesmos, para que consigam ali sobreviver. E como afirma Montserrat Ordóñez, a voz de Clemente Silva é “a da sabedoria e da sobrevivência”, mostrando-se capaz de expressar a ética dos brancos – a de que “os fins justificam os meios”. Surgindo a selva, nessa sua fala, habilmente identificada pelo autor, com seu personagem, a partir de quando lhe deu o sobrenome – Silva –, tendo surgido, de forma inesperada, em plena selva, frente aos homens conduzidos por Arturo Cova, passando a sua aparição a assinalar a tomada, pela estória, de um novo rumo. Clemente Silva havia vivido durante dezesseis anos nas montanhas do país. Ele trabalhara como cauchero em suas matas e encarna toda a sabedoria obtida com sua experiência de vida; tornando-se, conforme vimos, o elemento de ligação entre a selva e o mundo civilizado, entre os indígenas e os brancos, ou seja, entre os que antes nela viviam e os que para ali chegaram, destinados ao trabalho da extração da borracha. E será ele quem dirá a Arturo Cova e aos seus companheiros quem foram esses recém-chegados, de que modo agiram naquelas matas, tanto quanto como nelas, desde então, se passaram as coisas. Esclarece, a seguir: 52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Cada dono de seringal tem caneys que servem de moradia e de armazém. (...) Esses depósitos ou barracas jamais estão vazios, porque neles se guarda a borracha com as mercadorias e as provisões, e os capatazes moram ali com suas amantes. E em sua narrativa prossegue, falando dos que trabalham nos seringais: O pessoal dos trabalhadores se compõe, em sua maioria, de indígenas e contratados que, segundo as leis da região, não podem mudar de dono antes de dois anos. Cada indivíduo possui uma conta na qual são anotadas as bugigangas que lhes são empurradas – as ferramentas, os alimentos e a borracha extraída, que nela é registrada por um preço irrisório, determinado pelo patrão. Nunca um seringueiro sabe quanto custa o que recebe nem quanto lhe está sendo pago pela borracha que entrega, pois o segredo do dono do seringal está no fato de esconder o modo pelo qual o trabalhador continuará a ser seu devedor. E essa nova forma de escravidão atravessa todo o curso de vida desses homens e se transmite aos seus herdeiros. Diz, ainda, que, pelo seu lado, os capatazes inventam diversas formas de espoliação, roubam a borracha dos seringueiros, tiram-lhes as filhas e as esposas, mandam-nos para o trabalho em caños paupérrimos, onde não poderiam tirar a borracha que lhes é exigida, e isso dá motivos para insultos e castigos executados a chicote, quando neles não se envolvem tiros de Winchester. E bastará dizer depois que fulano se picureou ou que morreu de febres, para que tudo se arrume. 53 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 E acrescenta: Não se devendo esquecer onde entram a traição e o dolo. Nem todos os peões são pombas brancas. Alguns deles pedem para ser contratados somente para roubar o que recebem, ou ir para a mata, a fim de matar um inimigo, ou para ludibriar seus companheiros e acabar por vendê-los para outras barracas.5 Acaba declarando que viveu em tais condições, naquelas terras, durante dezesseis anos, que foram por ele considerados “anos de miséria”; desde que a escravidão que ali é imposta, pelos donos dos seringais, aos que neles trabalham, valendo-se da indiferença, a respeito, das autoridades do país, nunca, em verdade, se extingue. A voz de Rivera soa, então, forte e em alto tom, através da fala de Clemente Silva. Por ela são confirmados, inclusive, os desmandos e o arbítrio mantido por Julio Cesar Arana sobre as terras do Putumayo, desde que o velho peão declara haver ali trabalhado em seus seringais e relata o que por lá se passava. E ao voltar a falar pela voz de Arturo de Cova, Rivera considera a selva como sádica e somente encontra uma solução para dela escapar – a fuga, que ele, contudo, não conseguiu efetuar. Brada, a seguir, desesperado, que “o homem civilizado é o paladino da destruição”. Afirma, no entanto, existir “um valor magnífico na epopeia desses piratas que escravizam os seus peões, exploram os índios e lutam contra a selva”. E explica que, atropelados pela infelicidade, provindos do anonimato das cidades, lançaram-se nos desertos buscando alcançar um final qualquer para suas vidas estéreis. Delirantes de paludismo, despojaram-se da sua consciência e co-naturalizados com cada risco corrido, sem qualquer outra arma que a Winchester e o machadinho, sofreram as mais atrozes necessidades, ansiando prazeres e abundância, arrostando os rigores das intempéries, 54 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 sempre famintos e até mesmo desnudos, pois as suas roupas haviam apodrecido sobre a carne dos seus corpos.6 E, a seguir, de forma irônica e perversa, revela como esses homens chegaram, um dia, à beira de um penhasco, à margem de um rio qualquer da região, e se declararam, simplesmente, sem qualquer escrúpulo, “donos de empresa”. E mesmo que houvessem entendido ser a selva sua principal inimiga, eles demonstraram ali não saber a quem ou como combater; e por isso acabaram sendo por ela vencidos e destroçados. Tendo sido através da voz de Balbino Jacome, outro velho seringueiro, que Rivera revelara, pouco antes, a amargura de vida dos que para ali se dirigiram, quando pede ao Visitador que havia chegado ao seringal onde se encontrava que, quando ele pisasse “terra cristã”, pagasse uma missa em sua intenção; valendo essa missa, também, pela “esperança que perdemos”. Revelando, então, àquela pessoa que se apresenta frente a ele, como uma autoridade maior, que “o crime maior” a ser ali por ele apurado não estava na selva, mas nos livros de escrituração dos seringais; e afirma: Se Sua Senhoria os conhecesse, encontraria muito mais leitura no Deve que no Haver, já que muitos homens são lesados na conta por simples cálculo, segundo o que informam os capatazes. Acharia, contudo, dados vergonhosos: peões que entregam quilos de borracha por cinco centavos e recebem tecidos de vinte pesos, índios que trabalham há seis anos, e ainda aparecem devendo o mañoco do primeiro mês; crianças que herdam dívidas enormes, procedentes do pai que mataram, da mãe que forçaram, das irmãs que violentaram, dívidas que não saldariam em toda sua vida, porque, quando chegarem à puberdade, só os gastos de sua infância lhes darão meio século de escravidão. 7 Seu tom de denúncia é forte e eloquente. E nela chega a envolver a participação conivente das autoridades do Governo da Colômbia, nos crimes ali praticados, quando põe o Visitador a falar, passando, então, a perguntar : 55 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Que ganharíamos com a evidência de que fulano matou sicrano, roubou mengano, feriu beltrano? (...) Deus nos livre de que se comprove algum crime, porque os patrões conseguiriam realizar o seu maior desejo: a criação de prefeituras e de cadeias, ou melhor, a iniquidade dirigida por eles mesmos. E ao acrescentar: (...) o presidente da República não disse que enviou o general Velazco para licenciar tropas e guardas no Putumayo e no Caquetá, como resposta muda ao pedido de proteção que os colonizadores dos nossos rios lhes faziam diariamente? Paisano, paisaninho, nós estamos perdidos! E o Putumayo e o Caquetá também estão sendo perdidos!8 Voltando a falar dos indígenas da mata colombiana, deles nos diz Rivera, agora através da voz de Arturo Cova, serem eles povos “rudimentares e nômades” que não possuem “deuses, nem heróis, nem pátria, nem pretérito nem futuro”; não havendo dúvida sobre o fato de ele próprio considerar-se superior aos indígenas; mas tornando-se, pelo que conclui Montserrat Ordóñez, falando a seu respeito, “o grande defensor do índio explorado nas caucherias”, sendo, no fundo de si mesmo, “um triste remendo do conquistador e colonizador europeu”; ainda mais, tomando por base o que sobre eles disseram, no curso do romance, o próprio autor e os seus personagens Arturo Cova e Clemente Silva, sendo no romance reconhecido o fato de serem os índios “o grupo humano mais explorado”, pois que “devem entregar suas mulheres e suas filhas, se acham escravizados por dívidas impossíveis de ser pagas e são torturados e assassinados sem piedade ou por simples diversão”. 9 Tratemos, finalmente, da selva como abismo voraz dos homens que a penetram, levando consigo a ilusão de poder dominá-la, 56 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 segundo a visão do próprio José Eustasio Rivera, expressa através das vozes de Arturo Cova e Clemente Silva. Segundo eles, como informou Montserrat Ordóñez, “a selva é cárcere e inferno, escura e úmida, sexual e imunda, abismo antropófago, boca que engole os homens e causa da sua crueldade”. Tornando-se claro que, para o homem civilizado, estar na selva não é cousa que ele possa desejar; pelo que ele somente deverá cuidar de atravessá-la, em viagens imprescindíveis, a fim de explorá-la, ao tentar vencê-la, mas nunca para nela viver em harmonia. Ideia que vem a ser confirmada, ao final do romance, quando em seu “Epílogo” encontramos registrada a notícia enviada pelo Cônsul da Colômbia em Manaus, ao Ministro do seu país, a respeito da presumida morte de Arturo Cova e seus companheiros: “Há cinco meses que Clemente Silva os busca em vão. Nenhum rastro deles. A selva os devorou!”10 De todo oportuno, será, então, a transcrição de dois trechos colhidos do romance de José Eustasio Rivera, através dos quais o autor-poeta assume o lugar do autor-novelista, e em prosa repleta de poesia, fala, em primeiro lugar, da selva e, a seguir, compõe um hino em louvor aos seringueiros. Aparecem esses textos como aberturas, respectivamente, para a segunda e terceira partes do livro; e sua beleza singular revela o poeta que convivia com o ficcionista colombiano. No primeiro, o canto em louvação da selva soa, a um só tempo, triste e grandioso, dando à mata uma vida própria e uma alma que a transforma em ser mágico que encanta os que a penetram e os que nela buscam abrigo: Tu és a catedral da amargura, onde deuses desconhecidos falam a meia-voz, na linguagem dos murmúrios, prometendo longevidade às árvores imponentes, contemporâneas do paraíso, que já eram as mais velhas quando as primeiras tribos ali apareceram e hoje aguardam, impassíveis, a submersão nos séculos que virão. Teus vegetais formam sobre a terra uma poderosa família que nunca se atraiçoa. O abraço que tuas 57 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 ramadas não podem dar, umas às outras, levam-no, unindo-as, as trepadeiras e os cipós; e és solidária até na dor da folha que cai. Tuas vozes multíssonas formam um só eco a chorar e escorrer pelos troncos que tombam, e em cada brecha da mata os novos gérmenes apressam suas gestações. Tens a austeridade da força cósmica e encarnas um mistério de criação. Apesar disso, meu espírito se ajusta por completo com o teu caráter instável, desde que ele suporta o peso de sua perpetuidade e, mais que ao carvalho de galho robusto, ele aprendeu a amar a lânguida orquídea, por ser ela fugaz, como o homem, e por murchar, como uma ilusão.11 Enquanto no segundo, falando através da voz de Clemente Silva, encontramos o elogio trágico de quem, desiludido, vítima da ilusão por ele próprio criada, brada, em desespero, convencido de que nunca deixará de ser um seringueiro: Quem estabeleceu o desequilíbrio entre a realidade e a alma insaciável? Para que nos deram asas para voar no vazio? A nossa madastra foi a pobreza; o nosso tirano, a aspiração! Por olhar para o alto, tropeçamos nas asperezas do chão; para atender as necessidades do ventre misérrimo, fracassamos no espírito. A mediocridade nos presenteou com a angústia. Nunca fomos senão os heróis medíocres! E, em tom patético, exclama: Sonhos irrealizados, triunfos perdidos! Por que sois fantasmas de memória, como se desejásseis envergonhar-se de vós próprios? Vede onde foi deter-se o sonhador que feriu a árvore inerme, para enriquecer os que não sonham, a suportar desprezos e vexames em troca de uma migalha recebida a cada anoitecer (...) Escravo, não te lamentes da fadiga; prisioneiro, não te queixes da prisão: ignores a tortura de vagar soltos no interior de um cárcere como a selva, cujas abóbadas verdes têm como fossos rios imensos.(...) Eu, porém, não me compadeço daquele que 58 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 não protesta. Um tremor nas galhadas não é rebeldia que me inspire afeição. Por que não ruge toda a selva e nos esmaga como répteis para castigar–nos pela exploração vil? Aqui não sinto tristeza, e sim desespero! (...) Fui cauchero, sou cauchero! E o que fizeram as minhas mãos contra as árvores, podem elas fazer contra os homens!12 Não encerraremos, contudo, essa nossa apreciação sobre La Vorágine, sem registrar o que disse desse romance Federico Carlos Sainz de Robles, em seu Ensayo de un Diccionario de la Literatura, no verbete – RIVERA, José Eustasio: Sua única novela, La Vorágine (1924), tornou-o famoso em todo o mundo. Para a grande maioria dos críticos, ela é a novela mais for mosa e patética que produziram as letras hispanoamericanas.13 Nem deixar de mencionar, em conclusão, como foi por ele registrado, havê-lo considerado Julio A. Leguizamón, em sua Historia de la literatura hispanoamericana (Buenos Aires, 1949), um romance excepcional, ao afirmar que nele José Eustasio Rivera narra e descreve, com poderosa força de criação. Seu realismo é de uma extraordinária capacidade evocativa... Mas a maestria do novelista se revela pela criação desse clima de força telúrica, realidade e presença da selva... Ali palpita e estremece um terror biológico e impera uma crueldade selvagem, incomparável e inflexível como a dura lei do triunfo do mais forte”. Nem, de modo especial, a opinião de José Maria Salaverria (1873-1940), a respeito do romance, incluída nesse mesmo verbete, quando afirmou que La Vorágine: é o triunfo da árvore, a apoteose da mata impenetrável, a exaltação de uma Natureza incrivelmente 59 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 vigorosa que cria e mata com assombrosa inexorabilidade. E frente a essa Natureza sublime e monstruosa, o homem refinado da cidade, o poeta José Eustasio Rivera, sente-se arrebatado por uma mescla de terror e entusiasmo, e escreve, afinal, o livro das matas virgens que em nossa literatura de língua espanhola estava ainda por ser escrito.14 La Vorágine foi, sem dúvida, o primeiro protesto, com caráter de denúncia, feito contra as condições de vida dos que, nas matas da Amazônia, na Colômbia, no Peru ou no Brasil, forçados ao trabalho na condição de escravos, caboclos ou índios, se esforçaram ao máximo de suas forças, com o sacrifício, muitas vezes, de suas próprias vidas, para criar a riqueza fraudulenta dos civilizados que ali chegaram, fossem eles estrangeiros ou naturais desses países. Quanto ao colombiano José Eustacio Rivera, autor da novela La Vorágine, publicada em 1924, cuja ação se desenvolve nas florestas do seu país de origem, nasceu em Neiva (hoje denominada Rivera, em sua homenagem), a 19 de fevereiro de 1888, havendo falecido nos Estados Unidos, em 1928, em New York, antes de completar 40 anos. Algo importante estabelece, porém, a diferença entre La Vorágine e A Selva. Em A Selva, o seu autor, o português Ferreira de Castro, viveu, realmente, as situações de vida de Alberto, seu principal personagem; havendo sido, de fato, um seringueiro; enquanto José Eustasio Rivera, o autor de La Vorágine, foi, tão somente, um viajante que colheu, tanto quanto lhe foi possível, informações a respeito das penosas circunstâncias que envolviam a vida dos seringueiros nas matas colombianas, quando as percorreu, na região de Guaínia, província, como registramos, situada nas proximidades do alto curso do rio Negro, afluente brasileiro do Amazonas, na condição de integrante da Comissão do Governo colombiano encarregada dos trabalhos de demarcação das fronteiras entre a Colômbia e a Venezuela. Não chegaria La Vorágine a alcançar os mesmos índices de aprovação 60 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 com que os críticos literários da época iriam receber, anos depois, A Selva, de Ferreira de Castro, publicada em 1930. Podendo isto ser comprovado pela pronta aparição, a partir da primeira edição deste romance, de sucessivas edições em línguas estrangeiras, numa sequência que se iniciou com a da sua tradução, em 1933, para o alemão, o inglês, com edições nos Estados Unidos, no Canadá e na Inglaterra; para o italiano, em 1934, e o francês, em 1938; a essas havendo se seguido outras edições, em espanhol, romeno, checo, croata, holandês, sueco, norueguês, búlgaro e eslovaco, tornando-se o romance de Ferreira de Castro uma das obras mais traduzidas em todo o mundo. La Vorágine, publicada em 1924, foi igualmente traduzida para várias línguas: para o francês e o alemão, em 1934, para o inglês, em 1935, com edição em New York, para o italiano, em 1941, para o holandês, em 1948, e, a seguir, a partir dos anos 50, para o búlgaro, o checo, o esloveno, o chinês, o romeno e o sueco; podendo com isso comprovar-se o interesse que despertou no mundo intelectual dessa época.14 Lembramos que La Vorágine foi editada cinco vezes, entre 1924 e 1928 – a primeira vez, em novembro de 1924, na Colômbia, pela Editorial Cromos, a segunda e a terceira, em 1925 e 1926, ainda na Colômbia, pela Editorial Minerva; havendo a sua quarta edição sido, em verdade, uma reimpressão da terceira, desde que em pouco dela difere. Havendo, a seguir, surgido, em 1928, as edições de New York, publicadas pela Editorial Andes, aqui identificadas como sendo a quinta e a sexta, e, a seguir, a sétima, a oitava e a nona, em 1929; todas elas, contudo, a partir da sexta, devendo ser consideradas reimpressões da quinta, a que foi revista e corrigida pelo próprio autor.15 O romance continuou a ser traduzido, após a morte de José Eustasio Rivera, em 1928, em vários países do mundo, alcançando o número de suas edições em países estrangeiros quase o mesmo das de A Selva, havendo sido editado em alemão e francês, em 1934; em inglês e russo, em 1935; e, nas décadas dos anos 40 e 61 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 50, em búlgaro, checo, esloveno, holandês, romeno, italiano e chinês; e, finalmente, como registramos, em português, no Brasil, em 1982, ou antes, talvez, sem que tenhamos tido a oportunidade de comprovar essa ocorrência. Da edição de que nos valemos para a releitura do romance, publicada em 2006, sendo ela, provavelmente, a mais recente, consta, organizada por Montserrat Ordoñez, uma coletânea de textos expondo um considerável acervo de informações, tanto sobre José Eustasio Rivera, como acerca do seu romance; da qual destacamos a secção apresentada sob o título Historia de la crítica de ‘La Vorágine’, cuja leitura se torna extremamente útil para conduzir-nos à compreensão da novela. Nele, as conclusões dos seus autores indicam que: como poucas obras, La Vorágine se presta a estudios interdisciplinares, a reflexiones sobre cultura e história, a estudios sobre la fragmentación, la incoherencia, el engaño y el sujeto descentrado, a las nuevas lecturas de contradicciones, ambivalencias y ambigüedades, dentro de una perspectiva de valoración de la historia y de los relatos envolventes, y dentro de una persspectiva de la lectura como proceso de construcción de la obra.16 E convém registrar que, ao redigir o texto “Ciclo nortista”, secção constante do capítulo “O regionalismo na ficção” em A Literatura no Brasil, obra monumental publicada sob a direção de Afrânio Coutinho, no Rio de Janeiro, pela José Olympio Editora e pela Universidade Federal Fluminense, em 1986, Peregrino Junior, autor, por sinal, de Pussanga, um dos mais belos livros de contos já escritos sobre a Amazônia, afirmou, a nosso ver, com justas razões e demonstrando quanto o romance do colombiano o havia impressionado, que José Eustasio Rivera, em La Vorágine, traz-nos da paisagem e da vida amazônica um quadro belo e poderoso: aquela floresta agressiva, áspera, esmagadora: aquelas 62 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 águas, numerosas e traiçoeiras; aqueles homens bárbaros e tristes, perdidos na selva sádica y virgen... Ele também denuncia, como Ferreira de Castro, as torpezas e os crimes que a floresta esconde. O seu livro é um libelo, é protesto, é denúncia e grito de revolta contra o abandono do homem – aquele pária jogado à mercê dos aventureiros, exploradores e frios tiranos sem entranhas, criminosos e rapaces, que exploram os seringais da Amazônia.17 Diferem, porém, de modo sensível, os dois romances, quanto ao modo como são considerados, pelos seus autores, os indígenas habitantes da floresta, tornando-se necessário acentuar a importância dessa diferença, desde que se, tanto em um como no outro, os índios aparecem como seres inferiores, quando são colocados em confronto com os civilizadores, em La Vorágine, José Eustasio Rivera ergue a sua voz para defendê-los; o que não acontece em A Selva, onde os parintintins – a única tribo mencionada em seu romance, por Ferreira de Castro, nos são mostrados como sendo o terror dos seringueiros, apontados como possuidores de uma enorme crueldade, capazes de realizar festas macabras, durante as quais dançam em torno de varas, no topo das quais se acham espetadas as cabeças decapitadas de seringueiros por eles atacados, tidos, portanto, pelo autor, como uma ameaça constante para esses seringueiros, que então se mostravam com a disposição de exterminá-los a bala.18 La Vorágine foi, sem dúvida, o primeiro protesto, com caráter de denúncia, feito contra as condições de vida dos que, nas matas da Amazônia, na Colômbia, no Peru ou no Brasil, viram-se forçados ao trabalho, na condição de escravos, caboclos ou índios, esforçando-se, ao máximo de suas forças, com o sacrifício, muitas vezes, das próprias vidas, para criar a riqueza fraudulenta dos civilizados que ali chegaram, fossem eles estrangeiros ou naturais desses países. La Vorágine continuará, pois, a nosso ver, a destacar-se como um dos pontos mais altos já alcançados pela literatura latino 63 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 americana, em favor da dignidade humana violentada e ultrajada pela civilização. NOTAS E REFERÊNCIAS MONTSERRAT ORDOÑEZ (1941-2001), nascida em Barcelona, de pai castelhano e mãe colombiana, residiu na Colômbia durante quase toda a sua vida, ali tendo lecionado na Universidad de Los Andes e na Universidad Nacional de Colômbia. Foi a editora da 6ª edição de La Vorágine, de José Eustasio Rivera, lançada, em 2006, pelas Ediciones Cátedra Fernandez Ciudad, S.L., España. 2 MONTSERRAT ORDÓÑEZ. “El narrador: uma voz rota” in RIVERA, José Eustasio. La Vorágine.Fernandez Ciudad S.L.: Cátedra. Letras Hispânicas, 2006. p. 21. 3 Idem, p. 24/25. 4 Essa região foi mencionada pelo geógrafo francês Jean Gottmann em 1949, 25 anos depois da publicação de La Vorágine, como ainda sendo – un pays vide d´hommes, onde viviam tribos indígenas afastadas da civilização; estando, segundo ele, a sua exploração e cartografia ainda a serem efetuadas. esclarecendo o autor do presente trabalho haver consultado a terceira edição dessa obra, a lançada em 1960. (Cf. GOTTMANN, Jesn; L´Amérique.Paris:Hachette, 1949, p. 369). 5 MONTSERRAT Ordóñez. Opus cit., p. 250/251. 6 Idem, p. 297. 7 Idem, p.276. 8 Idem, p. 277. 9 MONTSERRAT ORDÓÑEZ. “Los indígenas: brasas entre las espumas” e “En las caucherias: llamaradas crepitantes” in RIVERA, José Eustasio. Opus cit., p. 38 e 48. 10 RIVERA, José Eustasio. Opus cit., p. 385. 11 RIVERA, José Eustasio. Opus cit., p. 189/190. 12 Idem, p. 288/289. 13 ROBLES, Federico Carlos Sainz de. Ensayo de un Diccionario de la Literatura. Tomo II. Escritores españoles e hispanoamericanos”. Madrid: Bolaños y Aguilar S.L.,1949, p. 1398/1399. 14 Idem, p. 288/289. 1 64 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Apud ROBLES, Federico Carlos Sainz de. Opus cit., pp, 1398/1399 Informamos não haver conseguido localizar a Historia de la literatura hispanoamericana, de autoria de Julio A. Leguizamón, citada no referido verbete, nem a obra citada, sem referência ao seu título, de José Maria Salaverria, nelas encontrando-se as menções feitas por esses autores a La vorágine, registradas por Federico Carlos Sainz de Robles. 16 Cf. “Traducciones de ´La Vorágine`” in RIVERA, José Eustasio. Opus cit., p. 67/68. Consta desse texto, referência a uma tradução brasileira, que teria sido feita por José César Borba, no Rio de Janeiro, em 1945, que não conseguimos localizar. Logramos, contudo, encontrar uma tradução da novela, de autoria de Reinaldo Guarany, editada no Rio de Janeiro, em 1982, pela Editora Francisco Alves, da qual não consta, no entanto, qualquer indicação sobre a edição em espanhol, que lhe serviu de base. 17 Cf. “Historia editorial de La Vorágine” in RIVERA, José Eustasio. Opus cit, p. 14/16. 18 RIVERA, Jose Eustasio.”Historia de la critica de La Vorágine” in Opus cit .p. 16. 17 Peregrino Junior. “Ciclo nortista” in “O regionalismo na ficção”. In COUTINHO, Afrânio (Diretor) A Literatura no Brasil. Era realista. Era de transição. Vol. 4. Rio de Janeiro: José Olympio Editora/ Universidade Federal Fluminense. UFF-EDUFF, 1986, p. 246. E quanto à expressão sádica y virgen, por ele referida, ela aparece no texto La Vorágine, na edição por nós utilizada, à página 297, no parágrafo que se inicia desse modo – Esta selva sádica y virgen procura al ánimo la alucinacón del peligro... 18 Cf. CASTRO, Ferreira de. Opus cit., p.114/115, 117/119, 101. Cabendo notar que, em 1995, o antropólogo John Hemming, em seu livro Amazon Frontier: Defeat of the Brazilian Indians (Edição brasileira: HEMMING, John. Fronteira Amazônica: A derrota dos índios brasileiros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, p. 372/373) confirmou que os índios parintintins, no curso do ciclo de exploração da borracha, foram temidos e que, portanto, “despertaram o medo e a fúria dos seringueiros”. 15 Waldir Freitas Oliveira é historiador, ensaísta e conferencista; é professor da Universidade Federal da Bahia e tem vários artigos e livros publicados. Desde 1987 ocupa a Cadeira nº 18 da ALB. 65 R EVISTA 66 DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Gerações literárias na Bahia Cyro de Mattos Para alguns analistas o vocábulo geração é um conceito poveitoso, que se faz necessário. Não é tarefa simples estabelecer a noção, os limites e o esclarecimento do vocábulo. Outros acham que a discussão sobre o tema parece relegada ao plano teórico superado, pois nada oferece de produtivo. A ideia de inscrever determinadas gerações na história literária vem do século XIX, mas remonta a idade pré-cristã a referência contida no termo. Heródoto em seus estudos históricos já havia dividido o século em três gerações (aetates). O conceito de geração pertence ao grupo de termos que se aplica à história literária e sua respectiva didática. Aí se incluem a noção de era, época, período, fase, movimento, tendência ou corrente. É de Friederich Schlegel em 1815 uma das primeiras tentativas de identificar e caracterizar gerações, ao destacar três momentos singulares de escritores alemães no século XVIII. Deve-se a W. Dilthey, outro filósofo alemão, uma das primeiras reflexões teóricas sobre o conceito de geração. Em estudo dedicado a Novalis (1865), discute a aplicação do conceito, sem se deter ao critério da idade na sua formulação. Fidelino de Figueiredo, numa das primeiras tentativas portuguesas de fazer história crítica da literatura, divide essa 67 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 história em épocas. Não deixa de considerar, por exemplo, em História da Crítica Literária em Portugal (1910), que existiu uma geração de 1870. Na Espanha o primeiro a se debruçar sobre a questão foi o filósofo Ortega y Gasset, em El Tema de Nuestro Tiempo (1923). Segundo o autor de Desumanizacion de la Arte: As variações de sensibilidade vital que são decisivas em história se apresentam sob formas de geração. Uma geração não é um punhado de homens egrégios, nem simplesmente uma massa: é como um novo corpo social íntegro, com sua minoria seleta e sua multidão, que foi lançado sobre o âmbito da existência com uma trajetória vital determinada. (El Tema de Nuestro Tiempo, p. 7/8). A história caminha e avança na sua travessia através de gerações. Conceito importante da História, por assim dizer é o fulcro em torno do qual executa seus movimentos e manifestações. Tal geração afirmar-se-á se conseguir formar uma corrente, movimento ou tendência de pensamento marcante no progresso social, nos costumes civilizacionais, nas políticas culturais ou na educação literária dos indivíduos. O grau de combatividade de uma geração está naturalmente na dependência do estado atual das coisas com relação ao momento em que se afirma o desejo coletivo de mudança. Seja qual for a importância que se atribua ao tema e o conceito preconizado, a noção de geração pode levar a pressupor, de modo equivocado, que as gerações se sucedem de forma linear no curso da história. Na verdade pertencem à mesma geração, como é comum, indivíduos nascidos próximos e dotados de afinidades culturais. Pode ocorrer que indivíduos pertençam a várias gerações numa mesma época. Ou acontecer discrepância de idade, e nem por isso deixam de situar-se na mesma geração, como no caso de Machado de Assis, nascido em 1839, e Aluizio Azevedo, em 1857. 68 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Quando um homem nasce, se vê numa circunstância concreta, em que tem de viver e que é social em uma de suas dimensões, por consequência histórica. Nos passos de Ortega e Gasset, o filósofo Julián Marias admite que a geração não é um conceito biológico e sim histórico, porque decisivo não é a idade biológica que cada homem tem, mas sim sua inserção numa determinada dimensão de mundo. Não se desprezando o fator biológico, relevase a importância do ser histórico correspondendo ao seu lugar e à sua época. Geração seria um conjunto de indivíduos pertencente a varios grupos de idade ou não, portadores de conteúdo determinado e cujas atividades, anseios, tendências, perspectivas e alcances norteiam-se no sentido de uma afirmação, que é a sua afirmação geracional. Conforme Julián Marias: O homem está vinculado a uma circunstância determinada, a um aqui e um agora em que lhe coube viver. Sua historicidade é um modo de cativeiro ou servidão; ser é ser isto e não aquilo, viver é estar numa circunstância e nela fazer determinadas coisas com exclusão de todas as outras. Mas, como no homem atuam as demais circunstâncias em que já esteve e tudo aquilo que lhe aconteceu e que ele fez, só quando se conhece isto se pode tomar posse de si mesmo, se é dono de si mesmo e por conseguinte se é livre. O homem se evade de sua historicidade mediante a história como saber, isto é, se afirmando radicalmente nela. A história permite ao homem trasmigrar hermeneuticamente de sua circunstância para outras, e dessa maneira as fazer suas; só com a história toma inteiramente posse de si mesmo e sai da estreiteza de sua circunstancialidade e das interpretações tradicionais recebidas, para alcançar a própria realidade, além de todas as interpretações. Só com a razão histórica – com a razão que é a própria história – pode o homem dar a razão de si mesmo e projetar livremente sua vida pessoal, a partir de sua realidade originária e irredutível. A história, o órganon da autenticidade. (Introdução à Filosofia, p. 342). 69 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 A geração seria assim a unidade concreta da cronologia histórica autêntica. Pelo exposto até aqui, a realização da vida nos remete a duas faixas de questões: o horizonte histórico de nosso viver e o fundo pessoal de nós mesmos, configurado pelo fato da vocação. É a travessia com a nossa vocação, idêntica aos que pertencem ao grupo de indvíduos, que incide em nossa afirmação e faz da vida humana individual um acréscimo importantíssimo em nosso destino de seres gregários, entre o pensamento e o sentimento, atributos que são pertencentes a nós mesmos. A Bahia literária do século XX reuniu em suas hostes grupos de prosadores e poetas expressivos. Os rapazes das revistas da Nova Cruzada e Annaes desempenharam o papel de disseminadores do simbolismo no primeiro decênio do século XX. Foram figuras que destoavam do ambiente cultural da velha Salvador de Bahia, ainda cultivando na província o baile decadente da belle époque, o qual foi transplantado de Paris para o Rio de Janeiro, no fim do século XIX e início do XX. De 1901 até cerca de 1914, atuou na velha Salvador numeroso grupo de poetas e prosadores com qualidades literárias significativas, com destaque para Pethion de Vilar, Artur de Sales, Pedro Kilkerry, Arnaldo Damasceno Vieira, Francisco Mangabeira e Carlos Chiachio. Ao ambiente de tradicionalismo intocado, buscou impor seu perfil aliciado pelos propósitos da Semana da Arte Moderna, em São Paulo, uma geração de intelectuais formada por Eugênio Gomes, Hélio Simões, Eurico Alves e Pinto de Aguiar. Salienta o crítico Assis Brasil: Cada um dos integrantes desse grupo inicial de 1928 busca seus caminhos próprios, mas, de um modo geral, é possível sentir para além dos traços individualizadores uma certa preocupação consciente de traduzir espírito associativo e sobretudo identificação com os processos formais de temática modernista da primeira hora. ( A Poesia Baiana no Século XX, p. 17). 70 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Costuma-se dizer que o movimento modernista só chegou a Salvador vinte ou vinte e cinco anos depois de eclodir em São Paulo. O crítico Cid Seixas observa que há um exagero injusto nessa afirmação, porque, em 1925, um jovem poeta baiano, Godofredo Filho, então desconhecido, publicava seus primeiros trabalhos no suplemento literário do jornal A Tarde, dando conta que aqui já pousara o espírito renovador das letras e das artes. Com o ingenuo propósito de publicar seus primeiros textos, nascia Arco & Flecha, revista de feição provinciana, que causava estranheza aos meios culturais impregnados de passadismo. Aos 14 anos, na velha capital da Bahia, Jorge Amado começou a trabalhar em jornais e a participar da vida literária. Foi um dos fundadores da Academia dos Rebeldes, grupo de jovens que, juntamente com os do Arco & Flecha e do Samba, desempenhou importante papel na renovação das letras baianas. Comandados por Pinheiro Viegas, figuraram na Academia dos Rebeldes, além de Jorge Amado, os escritores João Cordeiro, Dias da Costa, Alves Ribeiro, Edison Carneiro, Sosígenes Costa, Walter da Silveira, Aidano do Couto Ferraz e Clóvis Amorim. Vasconcelos Maia, nascido em Santa Inês, Bahia, a 20 de março de 1923, e falecido em Salvador a 14 de julho de 1988, integrou a conhecida geração de autores da revista Caderno da Bahia, que consolidou o modernismo em nosso Estado, entre a segunda metade dos anos 40 e o início dos anos 50. O surgimento, em 1948, dessa revista, editada por Darwin Brandão, Cláudio Tuiuti Tavares, Wilson Rocha e pelo próprio Vasconcelos Maia, teve importância fundamental na progressão das letras da Bahia. Em alguns Estados brasileiros há certos correpondentes quando se fala em uma geração 40 ou 45. Na Bahia a atuação de muitos poetas, nesse período, está inserida na revista Caderno da Bahia (1948-1951). Desse tempo os poetas Jorge Medauar e Wilson Rocha alcançaram o circuito nacional, enquanto Jair Gramacho caiu no esquecimento. Jacinta Passos foi notada pelo crítico Antonio Candido, enquanto Camillo de Jesus Lima, colaborador 71 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 da revista Caderno da Bahia, produziu uma obra poética respeitável. Para o ensaísta e romancista Assis Brasil, os poetas itabunenses Firmino Rocha, Walker Luna, Valdelice Pinheiro, Telmo Padilha, a soteropolitana Helena Parente Cunha, o santamarense Fred Sousa Castro e o soteropolitano Jeová de Carvalho são nomes que podem ser filiados a esse período. Entre 1957 e 1959, surgem em torno da revista Mapa poetas que irão ocupar lugar de destaque nas letras baianas: Florisvaldo Mattos, dotado de grandes recursos formais e compromisso solidário no conteúdo do seu discurso poético; o lírico, irônico, de linguagem transgressora, Fernando da Rocha Peres; o aedo e singular rapsodo Carlos Anísio Melhor, e o sempre louvado sonetista Silva Dutra. Ligado à revista Mapa e às Jogralescas, estas encenadas no Colégio da Bahia (Central), sob a direção de Glauber Rocha, merece ser citado o poeta e contista João Carlos Teixeira Gomes, que se tornaria tempos depois um sonetista de fatura exemplar. Myriam Fraga, uma das vozes vigorosas da poética baiana, com obra densa e volumosa, e Afonso Manta, o lírico ingênuo de Poções, capaz de fazer poemas metrificados e rimados com muita facilidade, sem cair no vulgarismo, mesclados de sentimentos ricos, em nível de uma linguagem simples, que alcança ritmo encantatório de pura beleza. Também esses poetas podem ser vinculados ao citado período literário, de viva inquietação intelectual, na velha Bahia de Todos-os-Santos. Nos anos 60, Glauber Rocha, inteligência privilegiada, formava com seus companheiros de geração um grupo de jovens intelectuais irrequietos, que na época agitavam os meios culturais de Salvador. De notória atuação, nesse grupo liderado pelo criador do Cinema Novo, estavam, entre outros, Paulo Gil Soares, dramaturgo e cineasta, Othon Bastos, ator, Helena Inês, atriz, Calasans Neto, artista plástico, Ângelo Roberto, desenhista, Carlos Nelson Coutinho, ensaísta marxista, Florisvaldo Mattos, poeta de Reverdor, Sonia Coutinho e João Ubaldo Ribeiro, contistas que faziam sua estreia nessa época com o livro Reunião, ao lado de 72 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 David Salles e Noênio Spínola. Juntem-se a esses nomes os do já citados poetas da revista Mapa. Paralelalmente, não se pode deixar de considerar nessa época os que compareceram nas páginas da revista Ângulos, do Centro Acadêmico Rui Barbosa, da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Fundada por Adalmir da Cunha Miranda, em 1950, consta entre seus editores, na década 60, o nome representativo de João Eurico Matta. Veículo de teor jurídico-cultural, a revista contemplou em suas edições textos do professor Antonio Luís Machado Neto, Marcelo Duarte, Florisvaldo Mattos, Glauber Rocha, Joaci Góes, David Salles, Edivaldo M. Boaventura, Nemésio Sales, Noênio Spínola, João Ubaldo Ribeiro e outros. Atuando sempre como professor, Hélio Rocha freq uentou também o meio intelectual baiano, durante as décadas de 50 e 60, produzindo a Revista Afirmação (1959/60/61), da qual foi editor. A publicação tinha como colaboradores professores, profissionais liberais e estudantes que se tornariam grandes nomes representativos da Bahia no cenário nacional: o poeta e compositor José Carlos Capinan, o cantor e compositor Caetano Veloso, o deputado federal Haroldo Lima, o cineasta Orlando Sena, que se tornou integrante do governo Lula no Ministério da Cultura, o escritor Ildásio Tavares, o cientista social Carlos Nelson Coutinho, entre outros. A Revista Afirmação recebeu ainda colaborações dos jovens intelectuais João de Góes Berbert, Noênio Spínola, Naomar Alcântara, Elsior Alves, Renato Prata e este articulista. Com a dispersão da talentosa geração de Glauber Rocha, em 1964, outras gerações iriam despontar nos meios culturais de Salvador. A chamada Geração Revista da Bahia acontece nessa época. Seus jovens integrantes já demonstravam ser possuidores de certo instrumental crítico para a discussão dos temas literários. Outro grupo que despontava naqueles idos era o de poetas liderados por Antonio Brasileiro e Ruy Espinheira Filho, que iria gravitar em torno das Edições Cordel e revista Serial. Esses dois jovens poetas 73 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 baianos não demorariam para entrar no circuito nacional com seus livros e conquistas de prêmios literários importantes. Este articulista fez parte da Geração Revista da Bahia, ao lado de Alberto Silva, Marcos Santarrita, Adelmo Oliveira, Oleone Coelho Fontes, Olney São Paulo, Fernando Batinga, Ildasio Tavares, Ricardo Cruz, Fernando Kraychete, o desenhista Nacif Ganem e o artista plástico Francisco Liberato, entre outros. Todos nós, iniciantes no fazer literário, liderados pelo crítico e poeta Carlos Falck, o guru espiritual do grupo, pretendíamos deixar nossa impressão digital nas letras baianas da época. Alguns, como Ildásio Tavares e Marcos Santarrita, romperam as fronteiras estaduais, porque de fato elaboraram anos depois uma obra significativa no corpo das letras brasileiras. Geração Revista da Bahia. Levava esse nome porque o corpo redacional da Revista da Bahia, órgão cultural da Imprensa Oficial, era formado pelos jornalistas Alberto Silva e Marcos Santarrita. A revista emprestava seu nome para denominar uma geração de promissores escritores. Recebia em suas páginas colaborações desses novíssimos intelectuais, que tinham nos ombros o peso de susbstituir a fulgurante geração de Glauber Rocha, a qual havia sido dispersa pelo regime militar de 64. Era tarefa difícílima a de uma nova geração substituir com o mesmo brilho intelectual aquela outra liderada pelo criador do Cinema Novo, que deixou pontos elevados na progressão da vida cultural da velha capital. Sempre com o apoio dos dois Diretores da Imprensa Oficial, Germano Machado e José Curvelo, a Revista da Bahia foi para os artistas da geração 60, segundo Juarez Paraíso, responsável pela direção artística, o que significou os seis números da revista Cadernos da Bahia, de 1948 a 1952, para os primeiros modernistas. Com Juarez Paraíso a revista passou a ter um planejamento gráfico mais solto e moderno. Os números publicados sob a sua responsabilidade artística foram enriquecidos com reproduções e ilustrações dos artistas Antônio Rebouças, Jamison Pedra, Hansen Bahia, Ângelo Roberto, Edsoleda Santos, Nacif Ganem, 74 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Leonardo Alencar, Henrique Oswald, Riolan Coutinho, Edízio Coelho, Betty King, Francisco Liberato, Calazans Neto, Juarez Paraíso, José Maria, Sílvio Robatto, Genaro de Carvalho, Carlos Bastos, Raimundo Oliveira e outros. Levando-se em consideração a idade biológica e afinidades culturais, o elenco de jovens intelectuais, contistas e poetas, que formava a Geração Revista da Bahia, pode ser ampliado com os nomes de Luís Carbogini Quaglia, louvado contista do mar, Maria da Conceição Paranhos, poeta e ensaísta, Fernando Ramos e Guido Guerra, promissores romancistas, José de Oliveira Falcón, o poeta de Canudos, o cineasta Orlando Sena e outros. Na visão do ensaísta Cid Seixas, o mais importante lançamento de poesia na Bahia, no período compreendido entre 1964 e 1974, aconteceu com o livro ABC-reobtido, de Maria da Conceição Paranhos. O discurso da jovem poetisa, com bases em pesquisa e atualização estética, rejeitava os limites de certa retórica ornamental. Outro jovem intelectual baiano que despontava nas letras daquele período era Guido Guerra. Escritor de formação jornalística, ele trazia para a sua prosa de ficção os atritos e rupturas do homem cotidiano. E assim começava a dar andamento a uma obra literária marcada pelo texto rápido e conciso, capaz de deflagrar o exato momento em que o universo dos personagens desenvolve-se como o centro de um sistema nervoso, que lateja emoções no engajamento sensitivo do autor e o mundo. A geração Revista da Bahia enfraqueceu com a ida de Alberto Silva, moderno crítico de cinema e jornalista de um texto primoroso, para o Rio de Janeiro, em 1967, e logo a seguir a de Marcos Santarrita. Junta-se a isso o falecimento de Carlos Falk. Eu fui para Itabuna, onde exerceria a advocacia durante muitos anos. Permaneceram em Salvador aquelas outras jovens vozes vocacionadas para fazer da vida um consistente projeto literário. Os sobreviventes da Geração Revista da Bahia, dispersos, sem contar com a força aglutinadora de Carlos Falck, presenças de Alberto Silva, Marcos Santarrita e este articulista, se quisessem, 75 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 já não tinham a mesma motivação para se encontrar na Biblioteca Pública, localizada na Praça Tomé de Sousa, nos botecos e bares da Rua da Ajuda, durante noites de sábado, ou na livraria Civilização Brasileira, na rua Chile, em final de tarde, na semana. Quando então se discutiam as questões de literatura atual, muitas vezes com veemência, em torno de Kafka, Sartre, Brecht, Pessoa, Proust, Joyce e Faulkner. Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Adonias Filho. Drummond, Jorge de Lima e Cecília Meireles. Marx, Lukacs, Ortega y Gasset e outros. A Coleção dos Novos, projeto editorial da Fundação Cultural do Estado da Bahia, sob a coordenação de Myriam Fraga, pode ser assinalada, em termos cronológicos, como uma Geração 80, na Bahia, constituída de poetas e prosadores. É de 1996 a participação de Marcos Ribeiro na coletânea poética Oitenta, organizada por Aleilton Fonseca e Carlos Ribeiro, dois expoentes desse grupo, para comemorar 15 anos da Coleção dos Novos, ao lado do próprio Aleilton Fonseca, Mirella Márcia, Roberval Pereyr, Iderval Miranda, Washington Queiroz e outros. Fundada em 1998, tendo como editores Aleilton Fonseca e Carlos Ribeiro, Iararana, revista de arte, crítica e literatura, divulgou em suas páginas nomes da Geração 80, valores emergentes e autores do porte de Aramis Ribeiro Costa, Gláucia Lemos, Gerana Damulakis, Antonio Torres, Antonio Brasileiro, Myriam Fraga, Ívia Alves, Capinan e outros. Nos dois números iniciais, a revista teve a colaboração do poeta Elieser César como coeditor. Mais adiante, contou também com a participação efetiva do poeta Luís Antonio Cajazeira Ramos, que, além de publicar poemas e artigos, colaborou com a editoria. A partir do número 9, a revista passou a contar com um terceiro coeditor, o poeta e promotor cultural José Inácio Vieira de Melo, como representante da nova geração. Mais prosadores, poetas e ensaístas estão chegando para imprimir suas vozes no corpo literário e cultural da Bahia. O projeto editorial da Fundação Casa Jorge Amado, através de certame literário que promove anualmente, vem revelando 76 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 autores inéditos com boas qualidades. Além disso, projetos poéticos acontecem em bares, restaurantes de Salvador e espaços culturais do interior. Funcionam como instrumentos de resistência nos tempos de hoje, quando já não mais existem suplementos literários, fala-se no fim do livro, crise da escrita e falência da leitura. Percebe-se sem esforço que a Literatura está sendo alimentada por ridículos releases na imprensa, pela publicidade de uma subliteratura fabricada nos Estados Unidos e enviada para cá nessa enxurrada de livros com enredos superficiais, que não se preocupam em mostrar o homem diante de suas verdades essenciais. REFERÊNCIAS GASSET. José Ortega y. El tema de nuestro tiempo. Revista de Ocidente, Madri, 1960. MARIAS, Julián. Introdução à filosofia, Livraria Duas cidades, São Paulo, 2ª. Edição, 1966. SEIXAS, Cid. Triste Bahia, Oh quão dessemelhante! Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, Coleção Letras da Bahia, 1996. BRASIL, Assis. A poesia baiana no século XX. Rio de Janeiro: Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1999. MATTOS Cyro de. O mar na rua Chile e outras crônicas. Ilhéus: EDITUS, Editora da UESC, 1999. (Finalista do Prêmio Jabuti.) Cyro de Mattos é poeta, contista, cronista e autor de livros infanto-juvenis. Já foi premiado no Brasil e no exterior. Recebeu o Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, pelo livro de contos Os brabos. Seus textos têm sido publicados em Portugal, Itália, Alemanha, Dinamarca, Rússia, México e Estados Unidos. É membro fundador da Academia de Letras de Itabuna e membro correspondente da Academia de Letras da Bahia. 77 R EVISTA 78 DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Poesia em tempos de boemia literária Florisvaldo Mattos Houve um tempo nesta Cidade do Salvador em que, mais que uma forma de convívio entre amigos, as tertúlias eram um refúgio de que frequentemente se valia a boemia literária, para fruir o intercâmbio cordial das ideias, que muitas vezes desaguava em desafio, em torneios de emulação, quando não em contenda rude, açulando a curiosidade de uma audiência, que as acompanhava avidamente, de perto ou à distância. E nelas muito de criação literária e artística se divulgava, para depois ganhar o mundo. Essa distração intelectual com o tempo se esvaneceu, perdeu a antiga feição de urbanidade, para quase completamente sumir das práticas culturais, passando a compor um vasto anedotário. Em 1958, já não mais se falava dessa espécie de concurso civilizado, mas ocorreu que, em um bar da Rua da Ajuda, no curso de uma tertúlia boêmia, que reunia poetas, literatos e jornalistas, dois sonetos deixariam de ser remotos estados de ânimo e sutileza mental, para cumprir um trajeto que pertence a todos os que viajam pelo terreno dos símbolos. A partir dos anos 1940, quando profundas alterações ocorrem na ordem social e econômica, com fortes reflexos na cultura, a Bahia, que era a terra do “já foi”, toma outra configuração demográfica e urbana, impulsionada pela descoberta do petróleo 79 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 no Recôncavo e a consequente deflagração de um processo de industrialização modernizador, livrando-se da dependência do comércio agroexportador, que tinha sua robustez centrada no cacau; nova dinâmica advinda das transformações no sistema de transportes rodoviário e aeroviário torna mais rápida a relação entre o Sul rico e o Nordeste pobre, aproximando centros de consumo e fornecimento de bens e mercadorias; por fim, ocorrem mudanças no panorama cultural, desde a gestão liberal de Anísio Teixeira na Secretaria da Educação e Cultura, no Governo Mangabeira (1947-1951), acentuadas pela revolução que o reitorado de Edgar Santos imprimirá na Universidade da Bahia, nos anos 1950, criando novas escolas de arte e institutos especializados, além de reformular unidades já existentes. Todos, quase em uníssono, querendo elevar o bem-estar dos baianos. Tais sucessos vão se refletir diretamente no desenvolvimento da Cidade do Salvador, que, cansada e envergonhada do velho perfil provinciano, começa então a sonhar-se cosmopolita. Num primeiro momento, as letras e as artes entram em agitação, na ânsia de se libertar das amarras do conservadorismo imperante, com a presença e a ação de jovens artistas plásticos (Mário Cravo Júnior, Carlos Bastos, Carybé, Genaro, Jenner Augusto, Rubem Valentim), ficcionistas e poetas (Vasconcelos Maia, José Pedreira, Wilson Rocha, Jair Gramacho), espraiando-se para outros campos (arquitetura e mundanismo, de incursão até na política), ao sopro dos ventos liberalizantes da Constituição de 1946. O entrelaçamento entre a vida intelectual mundana e universitária faz surgir, então, com tinturas existencialistas, o primeiro pouso aconchegante da boemia literária na cidade, o Bar Anjo Azul, na Rua do Cabeça, que se tornaria doravante um emblema local, um marco no gênero. Era a vibrante interseção na cidade da Geração Caderno da Bahia, empenhada em fazer vingar o ideário estético do modernismo, cuja adoção plena o academicismo rotundo e insensível travara por dois decênios. 80 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Neste momento, uma coceira mental me traz à lembrança um poema evocativo que escrevi muitos anos depois, repercutindo as emoções e o ambiente urbano, com que me defrontei, a partir da noite em que pisava pela primeira vez o asfalto da cidade. Sob o título de “Tempos de Arlequim”, composto de versos cadenciados, mas sem rimas, integra o livro Mares anoitecidos, que publiquei no ano 2000, como parte de coletânea alusiva aos 500 anos do Descobrimento. Não me envergonha reproduzi-lo. Salvador é Carnaval. Quando cheguei, / Em noite de Segunda-Feira Gorda, / As cores da cidade feiticeira / E os meus olhos na praça fumegavam. // Havia corso e blocos veteranos / (Nomes claros que hoje fazem sonhar). / Sobem os Inocentes em Progresso, / Descem os Mercadores de Bagdad. // No Bob’s Bar, que depois será Cacique, / Param o som travesso e a peraltice / Da guitarra elétrica na Fobica; / Uma estrela desponta e, com a luz dela, // A multidão que pula e agita ramos / (A prévia tosca da mamãe-sacode) / Canta, dança, grita, bebe cerveja. / Eu ali que faço? Acompanho o passo. // Batalhas de confete e serpentina, / Pierrôs, lança-perfume, colombinas, / Estrelejando o chão da Rua Chile, / Onde desfilam afoxés. (A brisa // É mais um concorrente da folia, / E eu, olhos postos em longínqua trama / De sonhos dando voltas num salão / E numa rua, espelho do infinito). // Avança por meu tempo de incertezas / A máscara sedutora do passado, / Blocos de rancho fecundando auroras / E o entardecer de etéreas batucadas. // Súbito são morenas de um cordão; / Arlequim invasor da madrugada / Agarra-se à cintura de uma delas / E sobe a praça rumo à Sé que ferve. É nessa atmosfera de sonho e esperanças que desembarco em Salvador, em fevereiro de 1952, numa noite de Segunda-Feira Gorda de Carnaval, vindo de Itabuna, para estudar no paradigmático Colégio da Bahia e depois cursar universidade. E é a partir da Faculdade de Direito, já publicando poesia na revista Ângulos, então prestigiosa publicação do Centro Acadêmico Ruy Barbosa, da Faculdade de Direito (CARB) que venho integrar o grupo nuclear de jovens, adiante dito Geração Mapa, que borbulhava entre o sucesso e o escândalo, com as apresentações 81 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 de seus espetáculos de poesia dramatizada no auditório do Colégio da Bahia, rotulados de Jogralescas, por volta de 1956/57. Glauber Rocha à frente, e já se insinuando líder, por lá transitava uma irrequieta malta de declamadores composta de poetas, artistas plásticos, teatrólogos, cineastas, atores e futuros jornalistas (Fernando da Rocha Peres, João Carlos Teixeira Gomes, Paulo Gil Soares, Calasans Neto, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto, Fernando Rocha, Carlos Anísio Melhor, Fred Souza Castro, Antônio Guerra Lima, Anecy Rocha, cito alguns), protegidos da sanha proibitiva e coercitiva da pressionada direção do colégio pelo professor Ruy Simões, um fervoroso apoiador e defensor desses anseios juvenis. Recordo o encontro que me lançaria nessa caudal de sonhos, com moldura exótica, senão cômica. Em fins de 1956, o Nº 11 da revista Ângulos publicava o meu poema “Composição de ferrovia”, quase um hino telúrico à State of Bahia South Western Railway Company, antigo nome da depois mítica E. F. I. C. (Estrada de Ferro de Ilhéus a Conquista), que civilizou e desenvolveu a Região do Cacau, permitindo o surgimento de vilas, que logo seriam cidades e municípios, e o consequente desenvolvimento da produção, gerando riqueza. Foi quando certa manhã, eu sentado num dos bancos do hall da faculdade, vêm me avisar que indagavam por mim na portaria. Saio para o umbral e me deparo com cinco rostos quase imberbes. Logo, um deles me saúda e, dizendo falar em nome dos outros, exclama, enfático: “Viemos aqui para conhecer o autor do poema “Composição de ferrovia”, para nós o melhor poeta modernista da Bahia”. Ouvi desconfiado, mas, entre assustado e incrédulo, agradeci o hilário gesto. Nome do excêntrico porta-voz: Glauber Rocha, que, em seguida, me convida a ir à sua casa, na Rua General Labatut, Nº 13, 1º andar, onde, diziame, costumava se reunir com os companheiros, para discutir uma quase infinita pauta de inquietações, aspirações e planos modernistas. 82 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 A entrada de Glauber Rocha no cenário sugere novo parêntese para evocar episódio de conotação ainda mais cômica, produto de uma viagem que fez ao Nordeste, em 1960, acompanhado de João Carlos Teixeira Gomes, durante a qual este sofreu um acidente, ao descer de um ônibus, forçando-o a passar o restante do trajeto com o pé enfaixado. Com a cabeça atulhada de projetos, buscava Glauber, nesta viagem, colher subsídios e inspiração que iriam compor os roteiros de duas de suas obras-primas cinematográficas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. A certa altura da excursão, pararam em Recife e, nas andanças por lá, se encantaram com o poeta Ascenso Ferreira, um dos ícones do primeiro modernismo, ao lado de Manuel Bandeira, outro pernambucano. Impressionados com a histriônica figura, resolveram convidá-lo a visitar a Bahia. Pouco depois, com seus dois metros de altura, 120 quilos de peso, chapéu panamá de aba larga, terno branco e gravata, o poeta de Catimbó e Cana Caiana, desembarca em Salvador, onde o cercam de homenagens e rapapés, faz conferências, assiste a peças teatrais, passeia e, principalmente percorre e frequenta bares e restaurantes, comendo e bebendo, com as honrarias que se devem a visitantes ilustres ou boêmios consagrados, demorando-se em Salvador por cerca de um mês. Na véspera de voltar ao Recife, Glauber e os mais assíduos nas estripulias resolveram fazer uma despedida, convocando a imprensa para uma entrevista com o pernambucano. Em clima de festa, conversa regada a cerveja e acepipes já chegando ao fim, um jornalista pergunta ao poeta: “Ascenso, durante todos esses dias que por aqui passou, o que mais o impressionou e agradou na Bahia? Ascenso parou, franziu a testa, olhou sorridente e bonachão para o jovem e, lembrando talvez o que fazia naturalmente nas ruas, quando, pouco sóbrio, disparou: “A liberdade de mijar”. Associei-me ao grupo e me engajei na saga de suas aventuras editoriais e artísticas, refletida numa vasta gama de ações, 83 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 envolvendo literatura, teatro, cinema, artes plásticas e jornalismo. E logo começariam a surgir, em torrente, livros com o selo das Edições Macunaíma; projetos cinematográficos pela nascente Iemanjá Filmes; pinturas, esculturas e gravuras, em galerias de arte, que se montavam então; variadas peças levadas no espaço da jovem Escola de Teatro, dirigida pelo pernambucano Martim Gonçalves; logo, também, uma revista, a Mapa, e o inesquecível SDN, o suplemento literário dominical editado pelo Diário de Notícias, de Assis Chateaubriand, rematavam um vertiginoso leque de aspirações inovadoras. Aos nomes citados, vale lembrar outros aderentes, como eu: Myriam Fraga, João Ubaldo Ribeiro, Sônia Coutinho, David Salles, Valdeloir Rego, além do então apenas dentista, depois professor e autoridade em antropologia cultural, Vivaldo da Costa Lima. Neste contexto, não se deve esquecer a singular, solidária e entusiástica presença de um antes experiente livreiro, Zitelmann de Oliva, ora à frente da empresa Artes Gráficas, então operando na Rua do Saldanha, cujo apoio permitiu não apenas a realização dos projetos editoriais do grupo, com o lançamento dos primeiros livros de poesia e ficção, como ainda a edição de álbuns de gravura e dos três únicos números da revista Mapa, entre 1957 e 1958. Como então os tempos de franca liberdade se casavam com a vida boêmia, febris cogitações e intensos debates exigiam que a geografia da cordialidade se estendesse por diversos pontos, onde as tertúlias se tornariam habituais. Eram então os mais frequentados: a Sorveteria Cubana, ainda hoje lá na parte alta do Elevador Lacerda; o Bar e Restaurante Cacique, na Praça Castro Alves, mas ainda à época chamada de Largo do Teatro; o Bar Anjo Azul e o Restaurante Porto do Moreira; o Bar Brasil e o Chez Bernard, novidade que se instalara no terraço inaugural do Edifício Themis, ambos na Praça da Sé; e, às vezes, o Colón, na Piedade. E, nos fins de noite, com tudo fechado, o romântico Zé do Esquife, um variado e iluminado tabuleiro de iguarias caseiras, que se abria à voracidade boêmia, a uns dez metros da estátua de Castro Alves, junto à balaustrada. 84 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Desse hoje para muitos um urbano paraíso perdido, repositório de sensações e conquistas inauditas, todos teriam histórias prazerosas a contar, mas, de todos esses lugares, talvez seja o Porto do Moreira o que, pela qualificação e variedade da clientela, mais guarde a memória de casos dignos de registro. Fundado em 1938 pelo português José Moreira (o Sêo Moreira), e facultando a seus clientes um assíduo quanto vasto cardápio de pratos caseiros de inspiração lusa e baiana, tornou-se desde cedo uma casa de pasto cujas mesas reuniam diariamente a nata da inteligência e da burocracia, representada por escritores, poetas, artistas plásticos, professores, jornalistas, profissionais liberais, membros da magistratura, além de políticos, funcionários públicos e comerciários, que lhe davam cor local, como até hoje ocorre neste ameno quase octogenário recanto. Além da cordialidade e simpatia do dono, virtudes saudavelmente transferidas aos filhos, Antônio e Francisco, que, na condição de herdeiros, ainda hoje mantêm o famoso lugar como um ícone de prazeres gustativos na geografia da cidade. Muito de histórias passadas lá permanece no imaginário dos remanescentes de uma fiel clientela. Evoquemos uma delas quase ao acaso, narrada por Carlos Coqueijo Costa, conceituado dublê de jurista do Trabalho, cronista, compositor musical e animador cultural. Com o restaurante funcionando já no atual endereço, no Largo do Mucambinho, mais conhecido como Largo das Flores, na Rua Carlos Gomes, entre os garçons do serviço havia um mulato magro, calmo, atencioso e simpático, apelidado de Popó. Atendido por ele, certo dia, na hora do almoço, com preguiça de ler o cardápio escrito à mão, um freguês lhe pergunta: “Popó, que temos de bom hoje, aqui na casa, para comer?”. Solícito, lhe responde Popó, suavemente: “Tem galinha de molho pardo, galinha de ensopado, fígado acebolado, ensopado de carneiro, porco assado, salada de bacalhau, filé a cavalo, moqueca de miolo e moqueca de carne”. Fez uma pequena pausa e concluiu: “E, de sobremesa, goiabada com queijo e banana pessoalmente”. 85 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Coqueijo contou este curioso diálogo numa das crônicas que então escrevia, às segundas-feiras, no jornal A Tarde, cujo recorte ainda hoje, emoldurado, está afixado na parede do restaurante, à vista dos fregueses. A noite era realmente criança e aconselhava outros pousos e outros desempenhos, que ninguém é de ferro, a começar pelas casas de mulherio, como o “Meia-três”, na Ladeira da Montanha, a casa de “China”, na Rua da Gameleira, a de “Maria da Vovó” e a de “Cymara”, ambas em transversais da Ladeira da Praça; gafieiras (Churrascaria Ide, Metrô, Rumba Dancing, Belvedere, Marajó); inaugurais boates (Carijó, XK Bar, Manhattan, Pigalle) e, para os mais abonados, o Cassino Tabaris, de cujas noites perdulárias restaram histórias memoráveis, não só as antigas de coronéis do cacau. E aqui nova urticária mental me induz a outro parêntese, para lembrar episódio tão cômico quanto surrealista, protagonizado por alguns de nossa turma numa dessas noites de boemia peralta. Em meados de outubro de 1958, um mês depois de fundado, o Jornal da Bahia fazia o primeiro pagamento dos que compunham a sua primeira equipe de Redação, e lá fomos receber no guichê da gerência o que nos cabia, como atores dessa façanha – eu, Paulo Gil Soares, Joca (João Carlos Teixeira Gomes) e Fernando Rocha (Bananeira), na reportagem geral, Calasans Neto, na programação visual, e Glauber Rocha, editor da seção de Polícia. Pegamos o dinheiro curto no caixa e, à noite, com a aderência de mais alguns, alegres e felizes, marchamos todos para o Tabaris, onde na ocasião se apresentava um balé argentino, composto de dançarinas loiras e morenas, de corpo torneado e maiô, dançando o repertório musical da moda, bolero, mambo, rumba, conga e tango, ao som de uma afinada e buliçosa orquestra de sopro. Era comum nos intervalos, como parte da atração, elas, as bailarinas, virem às mesas, conversar, beber e até dançar com frequentadores. Nesta para nós noite inaugural, mulheres na mesa, e bebendo, saímos alguns a dançar, inclusive com as moças do balé. É quando, 86 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 por volta da meia-noite, Glauber, um protestante de devoção arredia, abstêmio total, subitamente inquieto mais que o normal, passa a censurar os protagonistas da cena e a protestar contra aqueles excessos. Cenho fechado, mais que de repente, sobe na mesa e, em pé, põe-se lá de cima a bradar, possesso: “Isto é um absurdo! Tirem daqui essas mulheres de Babilônia!” E, em tom de execração bíblica, repete mais de uma vez a última frase – ”Tirem daqui essas mulheres de Babilônia!”–, aturdindo as moças e companheiros em volta, para então, entre o sério e o farsante, atendendo aos clamores e ostentando no rosto um sorriso frajola, descer da mesa, sob estrondosa gargalhada. Fora desses lugares que menciono e das cantinas de faculdade, davam-se ainda os encontros nas sessões dominicais do Clube de Cinema da Bahia, capitaneadas pelo misto de advogado trabalhista e crítico de cinema Walter da Silveira, em salas de espera dos cinemas, portas de livraria e hall de faculdades. A cidade tranquila era assim intensa e ludicamente vivida, dia e noite, em transações que varavam as madrugadas. Volto ao começo, à história dos dois sonetos nascidos de uma remota tertúlia literária, no lusco-fusco de um bar, em anos de boemia e jornalismo romântico. Narro a excentricidade. Noite de primavera, dias depois do surgimento do Jornal da Bahia, na Rua Virgílio Damásio, nº 3, uma transversal da Rua Chile, numa das mesas de tampo de mármore do Bar Nogueira, então um dos mais concorridos da Rua da Ajuda, vizinho ao famoso Café das Meninas, amigos estão sentados, dois deles poetas e dois tarimbados jornalistas. Poetas, eu, um mero iniciante, na poesia e na imprensa, e Jair Gramacho, já um dos mais prestigiados membros da Geração Caderno da Bahia, na qual disputava píncaros com o poeta Wilson Rocha, ambos ícones locais do modernismo. Os dois jornalistas eram Ariovaldo Matos, romancista e autor de Corta Braço, ficção pioneira inspirada numa invasão de terras ocorrida no bairro da Liberdade, e o contista e cronista Flávio Costa, este subsecretário de Redação, que acabara 87 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 de lançar Além das torres do Kremlin, relatos de viagem a Moscou, aquele experiente Chefe de Reportagem do novo jornal, que antes exercera com afã militante o mesmo cargo em O Momento, aguerrido jornal que funcionou na Ladeira de São Bento (19451957), pertencente ao Partido Comunista do Brasil, o Partidão, fundado e mantido por Aristeu Nogueira e João Falcão, este depois fundador do próprio Jornal da Bahia. Falava-se de literatura e política, como sempre, quando de repente, coisa de boêmios, surge um desafio, para saber-se quem dos dois poetas ali melhor escreveria um soneto. Não lembro o autor do repentino alvitre, tampouco o grau do efeito etílico, que, indulgente, o Ângelus da Igreja da Ajuda ali perto acalentava. Surpresos, os dois poetas se entreolharam, mediram o tamanho do repto, mas, feito o ajuste, bebericaram um pouco mais e se foram. Dois dias após, tal como combinado, voltamos os quatro ao mesmo bar, cada um dos poetas empunhando a sua Excalibur verbal: eu, com o soneto intitulado “A cabra”, de cândida inspiração rural, composto no clássico formato petrarquiano, com os catorze versos dispostos em dois quartetos e dois tercetos; ele, Jair Gramacho, com suntuosa joia lavrada no modelo shakespereano, de três quartetos integrados e um dístico, amplo de alusões panteístas e referências mitológicas, invocando lenda campestre em torno de Meleagro, herói de Calidônia; mas, tanto um quanto o outro, construídos em decassílabos de rimas emparelhadas ou entrelaçadas. Cumprindo o ritual e com a devida entonação, cada autor leu o seu soneto. Na postura de juízes, depois de ouvi-los e cotejá-los, em silêncio, os dois jornalistas concluíram sorridentes que os dois poemas mereciam publicação mais ampla, na edição dominical do Jornal da Bahia. Dito e feito. Dias depois, com verniz gráfico de prestígio, ambos os sonetos ocupavam as duas colunas ao lado direito da página literária, editada sob a batuta do historiador e cronista Luís Henrique Dias Tavares, mas sem uma linha sequer alusiva ao embate travado no bar da Ajuda. Publicados, cada soneto seria alvo de corporativista 88 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 acolhida: o meu, com recitação e elogios da presunçosa grei a que eu pertencia, enquanto o de Jair bem mais efusivamente louvado não apenas por nomes consagrados de sua geração. Em 1960, os dois poemas seriam ainda publicados na revista Ângulos (Nº 16), então comandada por Noênio Spínola (diretor) e Antônio Guerra Lima (Guerrinha), de redator-chefe, com João Ubaldo Ribeiro diretor de Cultura do CARB, mas cada uma das criações poéticas doravante com sorte diversa: “A cabra” iria compor o conjunto do meu primeiro livro, Reverdor (Edições Macunaíma, 1965), enquanto o primoroso soneto de Jair Gramacho, ao que sei, permanece até hoje inédito em livro. São eles que agora abaixo reproduzo, vindo em primeiro lugar, por direito inalienável, o do meu saudoso e insigne êmulo. SONETO OITAVO DE ATALANTA EM CALIDÔNIA JAIR GRAMACHO Nesta tarde o terreiro está vazio. Distante o laranjal se estende; a manga, A serra, o azul depois; tênue miçanga De açafrão tinge as fímbrias, o do estio Único resto. Esta tristeza é mais Que a da paisagem pobre e adormecente; Talvez por não ter rosas, não ter gente, E a solidão vagueie pelos currais. Mas, certo é que nesta hora, ressurrecto, O mito abandonado busca o luxo Antigo de existir; dispõe espectros Que em volta cirandeiam do repuxo... Ah! Mais que basta para o instante magro Galinhas ver – irmãs de Meleagro! 89 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 A CABRA FLORISVALDO MATTOS Talvez um lírio. Máquina de alvura Sonora ao sopro neutro dos olvidos. Perco-te. Cabra que és já me tortura Guardar-te, olhos pascendo-me vencidos. Máquina e jarro. Luar contraditório Sobre lajedo o casco azul polindo, Dominas suave clima em promontório; Cabra: o capim ao sonho preferindo. Sulca-me perdurando nos ouvidos, Laborado em marfim – luz e presença De reinos pastoris antes servidos – Teu pelo, residência da ternura, Onde fulguras na manhã suspensa: Flor animal, sonora arquitetura. ________ Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista e ensaísta. Publicou diversos livros, como Travessia de Oásis – A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa (2004); recentemente, lançou o livro Poesia Reunida e Inéditos (São Paulo: Escrituras, 2011). Desde 1995 ocupa a Cadeira nº 31 da ALB. Este é o texto da conferência pronunciada durante o seminário “Memórias Cruzadas da Cidade do Salvador”, promovido pela Fundação Pedro Calmon, sendo moderador seu presidente, o historiador Ubiratan Castro, em 18 de julho de 2012, no auditório da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, nos Barris, na parte circunscrita ao tema A Cidade da Boemia, tendo como foco “a boemia literária e o entrelaçamento da vida intelectual, mundana e universitária, que incubaram intensamente gerações de intelectuais transformadores e movimentos de vanguarda, na Salvador dos anos 50”. .90 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Jorge Amado, Centenário Joaci Góes Jorge Amado é o mais traduzido, o mais lido e o mais conhecido, dentro e fora do Brasil, entre os romancistas brasileiros, em todos os tempos. Foi o primeiro escritor brasileiro a viver exclusivamente dos direitos autorais dos seus livros. Sua obra já foi editada em mais de 50 países e traduzida, sem contar as edições em Braille e as gravadas, para os seguintes idiomas e dialetos, listados em ordem alfabética: albanês, alemão, árabe, armênio, azeri, búlgaro, catalão, chinês, coreano, croata, dinamarquês, eslovaco, esloveno, espanhol, esperanto, estoniano, finlandês, francês, galego, georgiano, grego, guarani, hebraico, holandês, húngaro, iídiche, inglês, islandês, italiano, japonês, letão, lituano, macedônio, moldávio, mongol, norueguês, persa, polonês, romeno, russo, sérvio, sueco, tailandês, tcheco, turco, turcomano, ucraniano e vietnamita. Ele é, também, o autor mais adaptado para a televisão, com memoráveis sucessos de audiência, com Tieta do Agreste, Gabriela Cravo e Canela, Teresa Batista Cansada de Guerra e Dona Flor e Seus Dois Maridos. Sua obra sofreu adaptações para o cinema, a televisão e o teatro, bem como para histórias em quadrinhos, no Brasil, em Portugal, na França, na Argentina, na Suécia, na Alemanha, na Polônia, na antiga Tcheco-Eslováquia, na Itália e nos Estados Unidos. Entre os diretores que adaptaram seus textos 91 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 para o cinema e a televisão se encontram Walter George Durst, Alberto D’Aversa, Marcel Camus, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Bruno Barreto, Aguinaldo Silva, Luiz Fernando Carvalho, entre outros diretores e roteiristas. Glauber Rocha e João Moreira Salles realizaram documentários sobre o escritor. Seus livros foram, também, usados como tema de músicas e de enredos de escolas de samba por todo o Brasil. Em número de exemplares vendidos, só o bruxo Paulo Coelho, 35 anos mais jovem, o superou. Na ficção, porém, sua liderança é incontestável. Resta a possibilidade de que a maior permanência de sua obra lhe devolva a liderança geral, com o passar do tempo. Com tantas credenciais, é natural que seja o mais premiado dos escritores brasileiros. No plano nacional recebeu os seguintes prêmios: Prêmio Nacional de Romance do Instituto Nacional do Livro,1959; Prêmio Graça Aranha,1959; Prêmio Paula Brito,1959; Prêmio Jabuti,1959 e 1995; Prêmio Luísa Cláudio de Sousa, do Pen Club do Brasil,1959; Prêmio Carmen Dolores Barbosa,1959; Troféu Intelectual do Ano,1970; Prêmio Fernando Chinaglia, Rio de Janeiro,1982; Prêmio Nestlé de Literatura, São Paulo,1982; Prêmio Brasília de Literatura, pelo Conjunto da obra,1982; Prêmio Moinho Santista de Literatura,1984; Prêmio BNB de Literatura, 1985. Do exterior, recebeu: Prêmio Stalin da Paz, Moscou, 1951, renomeado Lênin da Paz, quando Stalin caiu em desgraça; Prêmio de Latinidade, em Paris, 1971; Prêmio do Instituto Ítalo-Latino-Americano, Roma, 1976; Prêmio Risit d’Aur, Udine, Itália, 1984; Prêmio Moinho, Itália, 1984; Prêmio Dimitrof de Literatura, Sofia, Bulgária, 1986; Prêmio Pablo Neruda, Associação de Escritores Soviéticos, Moscou,1989; Prêmio Mundial Cino Del Duca da Fundação Simone e Cino Del Duca, 1990; e Prêmio Camões,1995. Em 1994, recebeu o Prêmio Camões, considerado o Nobel da língua portuguesa. Recebeu, ainda, os títulos de Comendador e de 92 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Grande Oficial, nas ordens da Argentina, Chile, Espanha, França, Portugal e Venezuela, além do de Doutor Honoris Causa por dez universidades no Brasil, Itália, Israel, França e Portugal. O último que recebeu, pessoalmente, já doente, em cadeira de roda, foi o de Doutor pela Sorbonne, na França, em 1998, em sua viagem de despedida da Paris que tanto amou. No vasto painel de seu enquadramento literário, a primeira fase de seu processo criativo integra a denominada segunda geração do modernismo regionalista brasileiro. Vista como um todo, porém, a obra de Jorge Amado, tendo em vista sua rica diversidade temática, faz dele o mais brasileiro dos escritores, insuceptível de enquadramento nas bitolas estreitas de certos confinamentos conceituais. O forte colorido sensual e tropical do seu texto, mais do que outro qualquer, é expressivo da alma brasileira, como vista pelos estrangeiros. No plano religioso, Jorge foi um pouco além do sincretismo predominante na Bahia, porque agregava o materialismo agnóstico ao candomblé, onde ocupava o posto de honra de Obá de Xangô no Ilê Axé Opô Afonjá, e ao cristianismo de sua formação familiar e educacional. Entre os muitos amigos que fez no candomblé, destacam-se as mães de santo Mãe Aninha, Mãe Senhora, Mãe Menininha do Gantois, Mãe Stella de Oxóssi, Olga de Alaketu, Mãe Mirinha do Portão, Mãe Cleusa Millet, Mãe Carmem e o pai de santo Luís da Muriçoca. O jornalismo foi a primeira experiência profissional através da qual Jorge extravasou sua indignação contra as injustiças sociais. Daí para a atuação política foi um passo natural, sendo desde muito cedo atraído pela militância comunista, como muitos de sua geração. Afinal de contas, era ainda muito recente a Revolução Russa, que prometia acabar com as desigualdades e as injustiças do mundo. A legendária emergência da liderança de Luís Carlos Prestes veio a calhar, levando-o a filiar-se ao Partido Comunista, aos 20 anos. Como jornalista e como escritor, seu envolvimento ideológico tornou-se imperativo, apesar da mescla com diferentes 93 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 temas como o folclore, a política, as crenças e tradições e a sensualidade do povo brasileiro. É inegável o valor de sua contribuição para divulgar o Brasil, ao levar ao conhecimento do mundo esses aspectos da vida nacional. O casal formado pelo Coronel João Amado de Faria e Eulália Leal teve quatro filhos: Jorge, Jofre, Joelson e o caçula James, também escritor. O primogênito Jorge Leal Amado de Faria nasceu no dia 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, distrito de Ferradas, no município de Itabuna, no Sul da Bahia, e faleceu no Hospital Aliança, em Salvador, no dia 6 de agosto de 2001, 4 dias antes de completar 89 anos. A zona do cacau, no início do Século XX, era marcada pela violência nascida da disputa pelas terras produtoras do ouro verde. Jorge ainda não completara 1 ano quando seu pai foi ferido numa tocaia dentro da própria fazenda. Um surto de varíola, que se seguiu, levou a família a mudar-se para Ilhéus, à beira-mar, lá permanecendo até 1917, quando retorna à faina da cacauicultura na Fazenda Taranga, no município de Pirangi, rebatizado Itajuípe. No ano seguinte, porém, aos 6 anos, e já alfabetizado pela mãe, Jorge retorna a Ilhéus, para cursar a escola da professora Guilhermina, que tinha no regular uso da palmatória um dos seus mais temidos atributos pedagógicos. A vocação para as letras brotou muito cedo. Aos 10 anos, Jorge cria A Luneta, pequeno jornal distribuído entre os vizinhos, amigos e familiares. Logo depois, segue para o internato do Colégio Antônio Vieira, em Salvador, sob a direção dos jesuítas, um dos quais, o Padre Luiz Gonzaga Cabral, impressionado com a redação que Jorge escreveu sobre o mar, passa a orientá-lo na leitura de grandes autores. Aos 14 anos, tão logo o pai se despediu, depois de deixá-lo no internato, de regresso das férias escolares, Jorge foge para Itaporanga, em Sergipe, indo ao encontro do avô paterno, José Amado. Dois meses transcorridos, é recambiado para Itajuípe. 94 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 De volta a Salvador, foi internado no Ginásio Ipiranga, no histórico prédio onde Castro Alves expirou, em 1871. Nesse momento, conhece Adonias Filho e edita o jornal do grêmio escolar, A Pátria, com o qual rompe, criando A Folha para combatê-lo. Aos 15 anos, sai do internato e passa a morar num dos casarões do Pelourinho, cenário que viria a ser uma das maiores fontes de sua inspiração. Emprega-se, sucessivamente, como repórter policial nos jornais Diário da Bahia e O Imparcial. Sua primeira incursão na poesia é publicada na revista A Luva, sob o título Poema ou Prosa. Nessa época conhece o pai de santo Procópio, que o nomeia ogã, o primeiro de inúmeros títulos que o candomblé lhe daria, vida afora. Passa a pertencer à Academia dos Rebeldes, grupo de jovens literatos que se reuniam sob a liderança do poeta e jornalista Pinheiro Viegas. Clóvis Amorim, Guilherme Dias Gomes, João Cordeiro, Dias da Costa, Alves Ribeiro, Edison Carneiro, Aydano do Couto Ferraz, Sosígenes Costa e Walter da Silveira fazem parte da álacre patota. A Academia, que se orientava pela “arte moderna sem ser modernista”, segundo Jorge, fazia oposição aos grupos Arco & Flecha e Samba e publicava os trabalhos dos seus afiliados nas revistas Meridiano e O Momento, fundadas por eles. Esses três grupos, Os Rebeldes, Arco & Flecha e Samba exerceram marcante influência na renovação do movimento literário baiano. Em 1929, de parceria com Dias da Costa e Edison Carneiro, Jorge publica, em O Jornal, a novela Lenita, sob o pseudônimo de Y. Karl. Em 1930, aos 18 anos, vai morar no Rio, onde faz amizades duradouras com personalidades do mundo intelectual, entre as quais os jovens Vinícius de Moraes e Otávio de Faria. A novela Lenita é editada em livro, por A. Coelho Branco. Simultaneamente ao ingresso na Faculdade de Direito, em 1931, tem publicado o seu primeiro romance, O país do carnaval, com prefácio de Augusto Frederico Schmidt e tiragem de 1000 exemplares. Sucesso de crítica e de público. Em 1932, muda-se para Ipanema, dividindo 95 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 um apartamento com o futuro diplomata e poeta Raul Bopp, autor de Cobra Norato, quando conhece o sergipano Amando Fontes, o pernambucano Gilberto Freire, o carioca Carlos Lacerda, o paraibano José Américo de Almeida e a cearense Rachel de Queiroz, que intermediou sua aproximação com o Partido Comunista, a que se filiou nesse mesmo ano. Sai a 2ª edição, agora de 2000 exemplares, de O país do carnaval. Seguindo o conselho de Gastão Cruls e Otávio de Faria, Jorge desiste de publicar o romance Ruy Barbosa nº 2, por entenderem que nada mais era que uma reprodução do bem sucedido O país do carnaval, e viaja para o Sul baiano com o propósito de colher subsídios para escrever Cacau, em que denuncia a desumana exploração dos trabalhadores que tanto contribuíam para o comércio exportador do País. A primeira edição de 2000 mil exemplares, com capa de Santa Rosa, se esgota em um mês, ensejando nova, já agora de 3000 cópias. Entre uma e outra, fica impressionado com o romance Caetés, de Graciliano Ramos, que leu nos originais, por empréstimo de José Américo de Almeida, encarregado de encontrar editor. Jorge desloca-se até Maceió, só para conhecer tão surpreendente escritor, de quem seria amigo a vida inteira. Anos mais tarde, James, o irmão caçula de Jorge, desposaria uma filha de Graciliano, Luiza Ramos Amado. Nessa mesma época, conhece Aurélio Buarque de Holanda, Jorge de Lima, José Lins do Rego e ascende a redator-chefe da revista Rio Magazine. Com apenas 21 anos, casa-se em Estância, Sergipe, com Matilde Garcia Rosa, com quem escreve o livro infantil Descoberta do Mundo. O romance Suor vem a lume em 1934. Aos 22 anos, Jorge Amado já é um nome notório no mundo das letras nacionais. Em 1935, nasce a filha Eulália Dalila Amado, enquanto conclui o curso jurídico. Jorge jamais exerceria a advocacia. Como repórter de A Manhã, jornal da Aliança Libertadora Nacional, é designado para cobrir a visita de Getúlio Vargas ao Uruguai e à Argentina, onde Cacau é lançado em espanhol. Ainda em 1935, Cacau e Suor são lançados na Rússia e Jubiabá é publicado, com grande 96 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 repercussão, fato que lhe ensejou evoluir de nome notório para celebridade nacional, aos 23 anos de idade, conquista sem rival entre os prosadores brasileiros. Nesse momento, empreende uma longa viagem pelo Brasil, países da América do Sul e Estados Unidos, enquanto escreve Capitães da areia. Preso no seu retorno, tão logo libertado, muda-se, em 1938, para São Paulo, passando a dividir um apartamento com o cronista capixaba Rubem Braga. Em 1939, quando da publicação de Jubiabá, em francês, Albert Camus escreveu um artigo altamente elogioso ao livro. Sendo comunista, toda essa evidência tornou-o alvo preferencial da polícia repressora da ditadura de Vargas, que o prendeu algumas vezes e proibiu a venda dos seus livros, cerca de 1000 exemplares dos quais a polícia da ditadura queimou em praça pública, em 1936. Em compensação, Dorival Caymmi compôs a famosa canção “É doce morrer no mar”, inspirado em Mar Morto, que acabara de ser publicado. A partir daí, Jorge Amado se transformou numa fábrica de best-sellers, como se pode ver da cronologia de suas publicações, adiante listadas. Paralelamente às suas atividades como escritor, continua atuando na imprensa, tendo sido redator-chefe da revista carioca Dom Casmurro, em 1939, e colaborador, quando esteve exilado entre o Uruguai e a Argentina, nos anos de 1941-42, de periódicos dos dois países. Foi nesse período que escreveu O Cavaleiro da Esperança, publicado inicialmente em espanhol. Retornando ao Brasil, redigiu a seção “Hora da Guerra”, no jornal O Imparcial, 1943-44, em Salvador, depois do que muda-se para São Paulo, onde passa a dirigir o diário Hoje, enquanto se prepara para concorrer a uma vaga nas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, sendo eleito. Já em 1944 separou-se de Matilde, pondo fim a um casamento de 11 anos. No ano seguinte, em 45, conheceu Zélia Gattai, sua leitora voraz, quando trabalhavam em favor da anistia dos presos políticos. Logo passaram a viver juntos, numa união de sólida parceria, por toda a vida, tendo os filhos João Jorge e Paloma. Zélia, quatro anos mais jovem do que Jorge, 97 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 trouxe um filho, Luis Carlos, do seu primeiro casamento com o intelectual comunista Aldo Veiga. João Jorge nasceu no Rio, em 1947, onde o casal passou a morar, em função dos novos deveres parlamentares do deputado federal Jorge Amado. Em seguida, juntamente com Luís Carlos Prestes e todos os eleitos pelo Partido Comunista Brasileiro, Jorge foi cassado pela reação anticomunista que se instalou no poder. Para desanuviar o espírito, aproveitou-se de seu prestígio no exterior, sobretudo nos países socialistas, para visitar a Europa e Ásia. Na França, onde a família permaneceu por três anos, até 1950, Jorge é informado da morte da filha Eulália, de mal súbito, em 1949. A longa estada em Paris ensejou a Zélia fazer cursos de civilização francesa, fonética e língua francesa na Sorbonne, quando também aprendeu a fotografar, passando a viver, em seguida, na Checolosváquia, onde nasceu a filha Paloma, em 1951, só retornando ao Brasil em 1952. Jorge saiu da França para a Checoslováquia, porque o governo francês, pressionado pelo governo brasileiro, o expulsou por razões políticas. Entre os grandes nomes da cena mundial com quem conviveu em Paris, estão Picasso e Jean Paul Sartre. Ao retornar ao Brasil, Jorge lança Os subterrâneos da liberdade e, em 1956, funda o semanário Para todos, dirigindo-o até 1958. Ainda em 1956, deixa o Partido Comunista, diante da crítica demolidora que Nikita Kruschev fez a Stalin, no 20° Congresso do Partido Comunista. Stalin foi revelado pelo novo líder como um verdadeiro monstro, ao invés da imagem do semideus patrocinada pela propaganda partidária. Com Gabriela Cravo e Canela, em 1958, JA dá início a um novo ciclo em sua novelística. Liberto de compromissos ideológicos, sua literatura, a partir de agora, prenhe de crítica e humor satírico contra os costumes vigentes, grandemente pejados de convencionalismos hipócritas, cresceu. O amor do soldado é também de 1958, A morte e a morte de Quincas Berro D’água e De como o mulato Porciúncula descarregou seu defunto vêm em 59, e Os velhos marinheiros, em 1961. 98 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Em 1963, a família Amado muda-se definitivamente para Salvador, passando a viver na aconchegante casa do Rio Vermelho, frequentada por toda a intelectualidade da Bahia e do Brasil, inclusive pela jovem promessa João Ubaldo Ribeiro. Foi nessa casa onde, paralelamente ao contínuo trabalho de datilografia e revisão das obras de Jorge, Zélia deu início, aos 63 anos, à sua produção literária, constante dos 17 seguintes títulos: Anarquistas Graças a Deus, 1979 (memórias) Um Chapéu Para Viagem, 1982 (memórias) Pássaros Noturnos do Abaeté, 1983 Senhora Dona do Baile, 1984 (memórias) Reportagem Incompleta, 1987 (memórias) Jardim de Inverno, 1988 (memórias) Pipistrelo das Mil Cores, 1989 (literatura infantil) O Segredo da Rua 18, 1991 (literatura infantil) Chão de Meninos, 1992 (memórias) Crônica de Uma Namorada, 1995 (romance) A Casa do Rio Vermelho, 1999 (memórias) Cittá di Roma, 2000 (memórias) Jonas e a Sereia, 2000 (literatura infantil) Códigos de Família, 2001 Um Baiano Romântico e Sensual, 2002 Memorial do amor, 2004 Vacina de sapo e outras lembranças, 2006 Sem dúvida, não faltaram a Zélia credenciais para receber o reconhecimento da crítica e do público, em nível suficiente para legitimar o seu ingresso nas maiores academias do País, inclusive na Brasileira de Letras, para ocupar a vaga deixada pelo seu duplamente amado marido morto, com quem só veio a formalizar a união em 1978, 33 anos depois de iniciada. Retornando à produção de Jorge. Os pastores da noite e O compadre de Ogum foram publicados em 1964. O romance Dona Flor e seus 99 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 dois maridos, de 1966, foi seguido por Tenda dos milagres, em 1969, e Tereza Batista Cansada de Guerra, em 1972. A história infantil O gato malhado e a andorinha Sinhá, de 1976, foi acompanhada de Tieta do Agreste, em 1977, e de Farda fardão camisola de dormir e do livro de contos Do recente milagre dos pássaros, em 1979. Três anos depois, sai o livro de memórias O menino grapiúna. O livro infantil A bola e o goleiro e o romance Tocaia grande são de 1984. Quatro anos depois vem O sumiço da santa, seguido, também com espaço de quatro anos, do livro de memórias Navegação de cabotagem, de 1992. O romance A descoberta da América pelos turcos, de 1994, foi sucedido pela fábula O milagre dos pássaros, de 1997. Em 2008 ocorreu a publicação póstuma do livro de crônicas Hora da Guerra. Em 1961, aos 49 anos, sucedendo ao tribuno e estadista Otávio Mangabeira, baiano como ele, JA foi eleito para ocupar a cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras, que tem como patrono José de Alencar e Machado de Assis como fundador, fato que não o impediu de escrever a notável obra satírica Farda, fardão, camisola de dormir, em que vergasta o anacrônico formalismo da entidade e a presunção senil de alguns de seus membros. Saudado por Raimundo Magalhães Júnior, seu discurso de posse na casa de Machado de Assis é considerado um dos mais belos ali proferidos. Jorge publicou: 25 romances, dois livros de memórias, duas biografias, duas histórias infantis e muitos outros trabalhos, entre contos, crônicas e poesias. Suas obras foram publicadas na seguinte ordem cronológica: O País do Carnaval, romance (1930) Cacau, romance (1933) Suor, romance (1934) Jubiabá, romance (1935) Mar morto, romance (1936) Capitães da areia, romance (1937) A estrada do mar, poesia (1938) ABC de Castro Alves, biografia (1941) 100 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 O cavaleiro da esperança, biografia (1942) Terras do Sem-Fim, romance (1943) São Jorge dos Ilhéus, romance (1944) Bahia de Todos os Santos, guia turístico (1945) Seara vermelha, romance (1946) O amor do soldado, teatro (1947) O mundo da paz, viagens (1951) Os subterrâneos da liberdade, romance (1954) Gabriela, cravo e canela, romance (1958) A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, romance (1961) Os velhos marinheiros ou o capitão de longo curso, romance (1961) Os pastores da noite, romance (1964) O Compadre de Ogum, romance (1964) Dona Flor e Seus Dois Maridos, romance (1966) Tenda dos milagres, romance (1969) Tereza Batista cansada de guerra, romance (1972) O gato Malhado e a andorinha Sinhá, infanto-juvenil (1976) Tieta do Agreste, romance (1977) Farda, fardão, camisola de dormir, romance (1979) Do recente milagre dos pássaros, contos (1979) O menino grapiúna, memórias (1982) A bola e o goleiro, literatura infantil (1984) Tocaia grande, romance (1984) O sumiço da santa, romance (1988) Navegação de cabotagem, memórias (1992) A descoberta da América pelos turcos, romance (1994) O milagre dos pássaros, fábula (1997) Hora da Guerra, crônicas (2008) O conjunto de sua vasta produção, que compreende mais de cem mil páginas, inclusive a correspondência epistolar que manteve com personalidades do mundo inteiro, ora em processo de catalogação, encontra-se sob os cuidados da Fundação Casa de Jorge Amado, em Salvador, sob a regência da poeta Myriam 101 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Fraga, que adverte: “Jorge escreveu que somente cinquenta anos após sua morte esse material devia ser aberto ao público”. Entre as personalidades mais conhecidas com quem Jorge se correspondeu, destacam-se os brasileiros Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Monteiro Lobato, Gilberto Freyre e Juscelino Kubitschek. Entre os estrangeiros, Pablo Neruda, Gabriel García Márquez, José Saramago e François Mitterrand. O conteúdo dessa correspondência e de textos com e sobre Jorge Amado representa rico manancial de pesquisa para a compreensão do papel que representava na sociedade do seu tempo, segundo a expectativa dos seus leitores e admiradores. Vejamos alguns exemplos: O cineasta Glauber Rocha escreve a Jorge Amado, em 1980, sobre o seu filme A idade da terra: “Comecei o dia chorando a morte de Clarice (Lispector). Está sendo feito como você escreve um romance. Cada dia filmo de dois a sete planos, com som direto, improvisado a partir de certos temas. … Estou, enfim, tendo a sensação de ‘escrever com a câmera e com o som’, tentando um caminho que fundiu a cuca do Jece (Valadão).” Quando da publicação de Mar Morto, em 1936, Mário de Andrade, após elogiar a “realidade honesta” e a “linda tradição de meter lirismo de poesia na prosa”, presentes na obra, conclui dizendo que “acaba de se doutorar em romance o jovem Jorge Amado, grande promessa do mundo intelectual”. Nada mau para um autor com apenas 24 anos de idade receber tamanho elogio do papa do modernismo. Sobre o mesmo livro, escreveu Monteiro Lobato: Li-o com a mesma emoção trágica que seus livros sempre me despertam”, e revela que, ao visitar o cais do porto de Salvador, havia “previsto” que a obra seria escrita: “Qualquer dia o Jorge Amado presta atenção e pinta os dramas que devem existir aqui. Adivinhei.” O Nobel chileno, Pablo Neruda, num bilhete escrito à mão, indaga a Jorge, como a pedir a ajuda do amigo: “Será que no Brasil eu poderia fazer um ou dois recitais pagos?”… “Haverá algum empresário interessado em organizar com seriedade essa turnê?” 102 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 No crepúsculo da vida, já inteiramente liberto do mais remoto laivo do socialismo dos primeiros tempos, Jorge perdeu muito de sua tradicional respeitabilidade política ao assinar manifesto de apoio ao senador Antônio Carlos Magalhães, flagrado no conhecido episódio da violação do painel do Senado. Adversários políticos do senador por ele impiedosa e furiosamente massacrados, como era do conhecimento de Jorge, sentiram-se ultrajados e desfizeram-se dos seus livros e dos de sua esposa Zélia Gattai. Vítima de igual reação popular, a grande cantora Gal Costa chegou a ser vaiada, entrando em declínio na preferência popular. Na perspectiva da história, porém, esse momento infeliz não compromete sua biografia como um dos grandes mestres na arte de contar histórias. Quanto ao mais, a sabedoria romana já ensina há séculos que mors omnia solvit, ou, se preferem, tudo passa sobre a terra. REFERÊNCIAS SALEMA, Álvaro. Jorge Amado, o homem e a obra, presença em Portugal. Lisboa: Europa-América, 1982. GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. Brasil Best Seller de Jorge Amado. São Paulo, Companhia das Letras, 2003. AGUIAR, Josélia. Reportagem para a Revista Entre Livros, Ano 2, nº 16. FRAGA, Myriam. Jorge Amado. (Crianças famosas). FRAGA, Myriam. Jorge Amado, 2003 (Mestres da literatura). Joaci Góes é empresário, político e ensaísta, publicou os livros A Inveja nossa de cada dia, como lidar com ela (2001), Anatomia do ódio (2004) e A força da vocação para o desenvolvimento das pessoas e dos povos (2009). Desde 2009 ocupa a Cadeira nº 7 da ALB. 103 R EVISTA DA 104 ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 A obra pioneira de José Américo de Almeida Consuelo Pondé de Sena Há livros sobre os quais lemos referências ou ouvimos falar, sem que jamais nele deitemos os olhos. Não são obras facilmente encontradas, nem fazem parte do acervo de muitas bibliotecas. Era o que acontecia comigo em relação à obra de José Américo de Almeida, A Bagaceira. Entretanto, quando, no Carnaval 2008, estive uns dias em casa da amiga Gabriela Martin, no Recife, deparei-me com um precioso exemplar publicado pelo Governo do Estado da Paraíba, comemorativo do centenário de nascimento do autor. Para minha alegria, a querida amiga ofereceu-me o exemplar da preciosa edição da obra, publicada pela José Olympio, em 1987. Político e administrador, José Américo foi uma personalidade invulgar nas múltiplas atividades que exerceu. Na literatura nacional, considerado o iniciador do Regionalismo, com a publicação de A Bagaceira, o escritor paraibano também foi um inovador no campo da linguagem. Grande mérito deve-lhe ser conferido por ter preservado a linguagem do povo, que reproduziu, com fidelidade. Inaugurou, assim, a Escola Regionalista, na qual se destacaria também seu conterrâneo, o escritor José Lins do Rego. 105 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Fiel à sua matriz sertaneja, descreveu a saga dos retirantes da seca, reproduzindo expressões populares, algumas arcaicas, de origem portuguesa, dos séculos XVII e XVIII. Fugiu, por consequência, do modelo de outros autores, que se utilizaram de neologismos, de cuja vertente é maior representante o romancista mineiro João Guimarães Rosa. O próprio Rosa reconhece-lhe o pioneirismo ao declarar: “José Américo de Almeida (...) abriu para todos nós o caminho do moderno romance brasileiro”. Com efeito, o escritor paraibano foi um inovador da prosa brasileira. Foi um autor preocupado em denunciar “desajustes socialmente dramáticos” e de assim fazer por sentir-se “parte de um de nós regionalmente brasileiro”, como sublinhou Gilberto Freyre. Sobre A Bagaceira assim se expressou M. Cavalcanti Proença: “Era uma denúncia. E só o desmedido talento do romancista poderia ter conseguido fazê-lo, antes de tudo um verdadeiro, um grande romance que, na época, foi impacto violento na literatura brasileira, ainda engatinhando nos caminhos do Modernismo.” Inspirando-se nas tradições, na história, na linguagem e no passado da sua gente, José Américo repete os passos de grandes vultos da literatura universal, a exemplo de Homero. Com efeito, o poeta grego, que viveu entre os séculos X ou XI a.C., havia bebido nas fontes do passado e da tradição do seu povo, construindo uma obra que tem atravessado séculos. Nascido, no engenho Olho d‘Água, em Areia (PB), a 10 de janeiro de 1887, José Américo passou a primeira infância em contacto com a vida do interior – do brejo ao sertão, nas propriedades familiares. Levou os primeiros anos da vida em contacto direto com a vida e a gente do interior. Com o falecimento de seu pai, quando contava 11anos, foi viver em Areia, na casa do tio padre Odilon Benvindo, homem rígido e exigente, destituído, porém, de maiores conhecimentos. Aos 14 anos, impuseram-lhe o Seminário da Paraíba, onde permaneceu apenas três anos. Não tinha vocação religiosa. Em 1904, 106 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 ingressou na Faculdade de Direito do Recife, diplomando-se aos 21 anos, em 1908. Entretanto, sua vocação literária se revelara desde os tempos de estudante, do mesmo modo com que se sentia atraído para a política. Tanto é que, em 1908, antes de concluir a Faculdade de Direito, filiou-se ao partido político chefiado pelo Senador Gama e Melo, de oposição a seu tio e então presidente do Estado, Monsenhor Walfredo Leal. Seduzido pelo jornalismo e pela política, jamais deixou de lado a leitura, revelando pendor para os estudos de sociologia, economia e geografia humana, leituras que o levaram a escrever um importante livro, A Paraíba e seus problemas, e o conduziu a redigir outros trabalhos sobre o Nordeste. Soledade, a heroína do seu romance, contrasta com o “herói”, Lúcio. Isto porque ela representa a “força viva” do sertão, a mulher que infringe a norma, que desestrutura os padrões do estudante sonhador. O próprio nome da heroína, de Sol e edade , solidão e saudade tem tudo a ver com as restrições que lhe eram impostas pela condição de mulher e de tabaroa. Sob certos aspectos, o livro retoma o tema de Euclides da Cunha, enriquecido de outros elementos relacionados com “o brejo” e os “brejeiros”, estes colocados abaixo dos “mestiços neurastênicos do litoral”. No pai de Soledade, Dagoberto, o escritor traduziu o “mandonismo” do senhor de engenho, autoritário e dominador, que não aceita o destino da filha. Bem, não vou contar como se desenrola a instigante trama, nem dizer qual o final da história. Afinal, não sou desmancha prazer. Além do que, acho simplesmente detestável alguém narrar o desenvolvimento e o fim de um livro ou filme. Consuelo Pondé é historiadora e ensaísta, presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Desde 2002 ocupa a Cadeira nº 28 da ALB. Este artigo foi publicado no jornal Tribuna da Bahia , em 20.10.2010. 107 R EVISTA DA 108 A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Um sermão magnífico do acadêmico Cônego José Cupertino de Lacerda João Eurico Matta É notório entre nós que, no arquivo e documentação de nossa Academia de Letras, como em sua biblioteca, há poucos registros, e nenhum impresso, seja livro ou mesmo opúsculo, de autoria do Fundador da Cadeira nº 26, Cônego JOSÉ CUPERTINO DE LACERDA, que tem como Patrono o sacerdote maragojipano D. ANTÔNIO DE MACEDO COSTA (1830-1891), e cujo atual titular, Acadêmico de número, é o Professor Doutor ROBERTO FIGUEIRA SANTOS. Nosso saudoso confrade historiador da Casa, Renato Berbert de Castro, notabilíssimo colecionador de livros e publicações de autores baianos, passou à glória celestial com a por ele a mim declarada frustração de nunca ter encontrado texto impresso do Padre Cupertino de Lacerda, acostumando-se Renato – pela fixação, um daqueles “mecanismos de defesa do Ego contra frustrações” que Anna Freud, eminente filha e Antígona, catalogou e que, nesse caso específico de Berbert, foi gerada por décadas de procura e garimpagem – a invectivar a memória do confrade sacerdote Fundador com a suspeita, sempre bem-humorada, de que este teria sido “um dos poucos que ingressaram nesta Companhia sem ter deixado publicação” e, “no caso, só com a grande fama de orador sacro primoroso”. 109 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Como Fundador, Pe. Cupertino de Lacerda tomou posse em 1917, com a instalação da Academia criada pelo Engenheiro Arlindo Fragoso, de modo solenemente colegial e, portanto, sem discursos. Tão santamarense de nascimento quanto o nosso confrade, também orador sacro primoroso, Monsenhor Gaspar Sadock da Natividade (aliás hoje, aqui e agora, ali sentado, honrando-nos com sua presença nesta sessão, para ouvir a comunicação que leio), sabemos que o Cônego Lacerda nasceu em Santo Amaro da Purificação, Bahia, em 18 de setembro de 1850, e que faleceu em 8 de janeiro de 1927, na então Vila de Bonfim de Feira, depois distrito de Feira de Santana, Bahia. Nesta cidadezinha encantadora foi bem-amado Vigário por muitos anos. Ali fez edificar, no topo da colina mais alta e vistosa, e em lugar da capela antiga, uma monumental matriz dita do Senhor do Bonfim, onde estão sepultados seus despojos, sob lápide com respeitosa inscrição. Ali também, à entrada da vila, em sítio de amena ecologia, lago e pasto para animais, construiu sua morada por alguns anos, um chalé de fino gosto, que ainda lá se encontra, neste ano de 2000, como a mais bela residência do lugar. Uma gentil parenta de terceira geração, Vanda de Carvalho Moura Costa, em livro memorialístico intitulado Histórias que a Vida conta (Bahia, Contemp Editora Ltda., 1988, pág. 73), recordando a família nos anos 1930 de sua infância, registra o seguinte: Bonfim de Feira, pequena cidade do interior baiano, foi onde nasci e nasceram meu pai e seus irmãos. Lá residimos durante alguns anos; morava também nessa cidade a minha tia Maria Cristina (tia Pomba), irmã mais velha de meu pai. A sua casa era um bonito chalé, localizado na entrada da cidade, bem no alto de uma colina... Existia um grande pomar na subida da colina, em frente e em volta da casa, muitas árvores frondosas e jardim com várias flores que embelezavam e perfumavam o local. Na entrada, ou seja, na escada que dava condução até a porta da rua, havia um lindo caramanchão com muitos estefanotes que, além de enfeitar aquele lugar, dava 110 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 um toque de amor e poesia. A casa era mobiliada com móveis de jacarandá, estilo bem antigo. Possuía tudo do melhor... Como até aquela época eu não conhecia muitas cidades, comparava a casa de minha tia a um belo castelo de conto de fadas. Essa casa foi construída pelo Cônego José Cupertino de Lacerda, que, durante algum tempo, lá residiu e foi Padre da cidade. Esse Vigário foi amigo e pai adotivo do meu avô paterno, Sósthenes, e seus irmãos, porém não tive o privilégio de conhecê-lo: o mesmo faleceu antes do meu nascimento. Com muito bom gosto, Padre Lacerda decorou a citada residência, que com o seu passamento passou a pertencer (não sei explicar a razão) à família dessa tia. Os irmãos de Sósthenes, referidos, eram João Barbosa – negociante que comprou a Farmácia Agrário, em Feira de Santana, de um avô de nosso confrade Edivaldo Boaventura – e um certo Jaime e duas irmãs. Além de Jorge, – pai da citada memorialista D. Vanda, – e da sua “tia Pomba” (a primogênita mencionada, Maria Cristina), outros filhos do “adotivo” Sósthenes foram as “tias” Marina, as solteironas Margarida e Candinha, D. Regina (que se casou com o maestro da famosa Filarmônica 25 de Março, de Feira) e o Dr. Theódulo Carvalho Barbosa, de saudosa memória, pai do júnior Teódulo, do falecido fazendeiro Décio e das irmãs Vera, Sônia e Maria Zilda, esta que foi, faz alguns anos, esposa do nosso saudoso confrade Luiz Monteiro da Costa, e é hoje consorte do eminente causídico, Acadêmico de Letras Jurídicas e ex-Conselheiro estadual de Cultura, Virgílio da Motta Leal, por sua família caríssimo amigo de meu pai Edgard Matta e de nossa família. Homenageio essas pessoas, citando-as nominalmente, pela curiosa razão de que, sendo o próximo dia 18 de setembro de 2000 data do sesquicentenário, ou por óbvio 150 anos, de nascimento do nosso imortal Acadêmico Fundador da Cadeira nº 26, Cônego Cupertino de Lacerda, creio que seja justo e verdadeiro recordar que o Dr. Theódulo Carvalho Barbosa costumava, sorrindo de afeição, dizer à socapa que “sei de muitas 111 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 coisas, pois sou neto de padre!” Isto a mim não espanta, porque, afinal, “o cearense José de Alencar era filho de padre, como o foi o baiano Theodoro Sampaio” –, lembrou-me recentemente o engenheiro Paulo Segundo da Costa, recente revelação de pesquisador histórico, por seu livro Hospital de Caridade (São Cristóvão/Santa Izabel) da Santa Casa de Misericórdia da Bahia – 450 anos de funcionamento (1549-1999), ( Salvador, Contexto e Arte Editorial, 1ª. ed., 2000). O que a mim espantou – de admiração pela superior beleza literária, pelo encantamento retórico deste documento impresso de oratória sacra, que estou doando hoje à Academia, e pelo vigor e atualidade da mensagem moral que veicula – foi a leitura que fiz, pela primeira vez em 1956 e nos 45 anos seguintes em sucessivas releituras e tresleituras, desta quase centenária peça parenética, que este Sermão pregado pelo Revmo. Cônego José Cupertino de Lacerda, por ocasião de uma das Festas da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel em 2 de julho, na Igreja da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, em princípios do presente século, opúsculo com esse título editado pela Tipografia de S. Francisco, Baía, 1939. Podem os confrades e os visitantes conferir a autenticidade deste exemplar, que lhes apresento, com o despacho datado de 12 de dezembro de 1939, do Monsenhor Ápio Silva, Vigário Geral da Arquidiocese de Salvador, ao censor ad hoc, Cônego Rubem Mesquita, seguido do nihil obstat do Censor e do IMPRIMATUR do Vigário Geral, datados do dia seguinte, 13 de dezembro de 1939. Recebi esse documento impresso, naquele 1956, por empréstimo cercado de cuidados, como relíquia de estima muito pessoal, do meu então futuro sogro, Francisco Rodrigues da Silva, hoje aos 93 anos, plenamente lúcido. É mera e engraçada coincidência que ele tenha o mesmíssimo nome do ilustre médico e Diretor, no século XIX, da Faculdade de Medicina da Bahia, Doutor FRANCISCO RODRIGUES DA SILVA, Patrono ou Epônimo da Cadeira nº 27 da nossa Academia de Letras da Bahia, 112 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 cujo Fundador, em 1917, foi o Acadêmico FREDERICO DE CASTRO REBELO e cujo atual titular é o escritor JAMES AMADO. Por seu turno, meu sogro é o sertanejo euclideanamente forte da região de Irecê, nascido em 1907 do clã dos Marques Dourado, e que muito jovem, depois de miliciano convocado para tropa de combate à Coluna Prestes, se radicou na vila de Bonfim de Feira de Santana, de 1927 até 1955, ali se estabelecendo como industrial de panificação e próspero comerciante, tendo contraído núpcias com minha sogra, a bonfinense D. Alice Santos Silva, e ali tendo sido, por duas décadas, dedicado empreendedor, por iniciativa privada, de termoeletrificação urbana, de instalação de radiofonia e inauguração local de cinema e, por consequência, eficaz Administrador do Distrito de Bonfim, por nomeação de sucessivos Prefeitos do município de Feira. Tais referências, façoas para que se compreenda a mensagem manuscrita que um solícito cristão, o então Vigário (sucessor do Revmo. Cupertino de Lacerda) de Bonfim em 1940, Padre Tancredo Barbosa, presidente da Comissão da festa anual do Padroeiro da cidade, apôs na capa do opúsculo e que é, aliás, se aqui lida, autoexplanatória, a saber: Ao Sr. Francisco Rodrigues da Silva, DD. Tesoureiro da Festa: Nosso Senhor do Bonfim bate-lhe à porta do seu generoso coração pedindo uma esmola para a sua Festa, que se realizará no dia 27 de Abril do corrente ano (1940 ). N.B. Pede-se a fineza de enviar a esmola com a máxima brevidade, a fim de que possa a Comissão fazer o orçamento da Festa. Pois na data de hoje, 60 anos depois daquela “Festa”, Senhor Acadêmico Presidente Cláudio Veiga, através de mim, meu sogro oferece em doação a esta Academia, para o Arquivo e Biblioteca dos Imortais confrades, um exemplar do opúsculo impresso original do Sermão magnífico, do Cônego José Cupertino de Lacerda, nosso confrade falecido em 1927, que me propus, hoje, apresentar e comentar, lendo-lhe alguns excertos. 113 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 De imediato chamo a atenção dos confrades, na iconografia do impresso, para as duas fotografias, uma do próprio Cônego sermonista, nesta creio que perto dos 77 anos com os quais morreu, em 1927, e a outra da Matriz do Senhor do Bonfim em dia de festa, talvez na inauguração do prédio novo do santuário que o Padre Cupertino de Lacerda mandou construir, a julgar pela multidão e os quatro prelados à frente. Bem como para o pequeno texto, dois parágrafos apenas, embora muito expressivos, que parece prefaciar a edição do Sermão e que não apresenta autoria, mas posso especular, em face da erudita sentença inserida – “Defunctus, adhuc loquitur” (“mesmo falecido, continua eloquente”) –, que talvez seja da lavra do seu amigo e futuro sucessor na nossa Academia, Monsenhor Francisco de PAIVA MARQUES, eleito em 17 de julho de 1935 para a Cadeira nº 7, mas a seu pedido no mesmo dia permutada para a Cadeira nº 26 com Aloysio de Carvalho Filho (este, eleito em 1931, ainda não tinha tomado posse em 1935), todavia, por motivo de saúde, só pôde PAIVA MARQUES ser empossado em 24 de setembro de 1940 (o opúsculo foi impresso em 1939). Prefiro esta hipótese à de que tenham os dois parágrafos introdutórios, que transcrevo a seguir, sido redigidos pelo próprio então Vigário de Senhor do Bonfim, o Padre Tancredo Barbosa nos seus 30 anos, porque não é provável que este tenha ouvido sermões do falecido, além do que seria cabotina a recomendação de “amparo” ao seu vicariato, como se lê no breve introito, que cito: Foi o Cônego José Cupertino de Lacerda o príncipe dos oradores sacros da Baía (sic, sem o h). Ainda soam aos ouvidos que tiveram ensejo de ouvi-lo, as suas palavras arrebatadoras, quentes de inspiração. Defunctus, adhuc loquitur. Este opúsculo, que encerra um dos seus mais belos sermões, é um brado de su’alma sacerdotal em prol da sua querida Matriz. Escutem-no os seus admiradores. E amparem a atividade do atual Vigário, seu sucessor. 114 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Seja a Matriz do Bonfim da Feira o monumento que recorde aos pósteros a figura inconfundível do grande orador, Mestre do púlpito baiano. E também logo desejo determinar o ano em que foi pronunciado ou “pregado” o Sermão sob glosa, uma vez que a capa da brochura impressa em dezembro de 1939 informa “em princípios do presente século”, deixando claros ou explícitos a ocasião e o dia festivos, bem como o lugar da pregação, assim: “por ocasião de uma das Festas da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel em 2 de Julho, na Igreja da Santa Casa de Misericórdia da Baía”. Recorri a préstimos dos Irmãos dessa Santa Casa, de cuja Mesa Administrativa fui Escrivão por quatro anos, desde 1972, eleito a convite do então Provedor Victor Gradin, e de cujo Definitório sou membro eleito Definidor faz 24 anos, e tanto o atual Provedor Álvaro Lemos, quanto dois servidores de alto escalão da Irmandade, os escritores músico Antônio Ivo e cronista histórico Paulo Segundo da Costa, me conduziram à nossa competente arquivologista, Neuza Rodrigues Esteves, chefe (também a convite do empresário professor Victor Gradin) do precioso Arquivo documental da Santa Casa de Salvador, e ela, em três horas de pesquisa, levantou, no LIVRO 106 – De Correspondência, na gestão da Provedoria Manoel de Souza Campos, a seguinte correspondência, em manuscrito: Bahia, 27 de junho de 1906. A Mesa Administrativa convida os seus Irmãos, suas Exmas. Famílias e o público para assistir, na Capela Central, à festa da padroeira Santa Isabel, segunda-feira, 2 de Julho próximo. Ao Evangelho é orador o Cônego José Cupertino de Lacerda: a orchestra, dirigida pelo notável maestro Major Esmeraldo Carneiro das Virgens. A festa começará às 11 horas. (Assignado) O Diretor João Morais de Faria.” Assim datado de 2 de julho de 1906, nosso Sermão parece exigir, aqui, algumas referências a seu autor feitas por Acadêmicos 115 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 que o conheceram. Entretanto, sabe-se que o discurso de posse (setembro de 1940) de Monsenhor PAIVA MARQUES mal começou a ser lido, o orador desistiu da leitura e o pôs na algibeira da batina, preferindo falar de brilhante improviso. Nunca se viu publicada, na Bahia, essa peça oratória – tal como aconteceu com o discurso de recepção ao poeta Carvalho Filho pelo Acadêmico Hélio Simões. Por isso recorramos ao discurso da Acadêmica Edith Mendes da Gama e Abreu, daquele setembro de 1940, saudando Mons. Marques e que é, porém, quase todo dedicado ao elogio do novo Acadêmico, reservando pouco espaço para o Fundador da Cadeira, Cônego Cupertino de Lacerda, falecido em 1927,– mas lembremos que o cachoeirano ALBERTO Moreira RABELO, eleito sucessor de Pe. Lacerda em 15 de fevereiro de 1928, faleceu em julho daquele ano, sem tomar posse. Escreve (e diz) Edith, no sexto parágrafo do seu discurso de saudação: ...Vejo o longo perpassar de um lustro pela cátedra deserta em que só agora, Mons. Paiva Marques, ides assentar-vos. E no mundo interior da fantasia que criamos, às vezes, para consolarmo-nos da falibilidade dos nossos planos, encontro um sentido airoso para esse tardio preenchimento. ...É que o destino, na bateia do tempo, quis peneirar as areias de ouro de vossos méritos, e com o buril da cultura relapidar a feição de vosso espírito para tornar-vos digno de substituir Cupertino de Lacerda. Assim, sem as brumas da dúvida vemos ressurgido na vossa realeza intelectual o vulto majestoso daquele com quem mantendes tão expressivas afinidades no duplo sacerdócio da Religião e das Letras... Extraordinário preço: essa moeda foi a de grande orador.” (Revista da Academia de Letras da Bahia, ANOS XI e XII – 1940 e 1941, Números 14 e 15, pág. 155): nas págs. seguintes, 156-157, as últimas referências ao antecessor Fundador: 116 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Entre os zelos educativos de meu pai - recordo-os tanto! - devo incluir aquele empenho em fazer-me admirar o magno pregador a quem, por graça dos bons fados, aqui estais a suceder, ilustre recipiendário. Levara-me ainda cedo a escutá-lo, quando a mente apenas em alvorada mal podia descobrir-lhe, por sob a neve dos cabelos brancos, as doiradas cintilações do magnífico cérebro. ...Uma frase a mim mostrada por meu pai: “Escrever é fácil; escrever o que mereça ser lido é difícil; mais difícil e meritório é fazer o que mereça ser escrito” – conduzia-me a procurar, sedenta das belezas em promessa através dela, a obra de Lacerda, para a homenagem do meu culto. Morreu PAIVA MARQUES em dezembro de 1955, em junho de 1956 tendo sido eleito seu sucessor um ilustre médico, professor e intelectual, Dr. CÉSAR Augusto DE ARAÚJO, empossado em 11 de outubro do mesmo ano de sua eleição, Nessa solenidade de 1956 o novo Acadêmico produziu um discurso longo, de estilo admirável, primoroso, com minuciosa apologia do antecessor, mas que se celebrizou pelo que disse sobre a Cadeira 26, que chamou de santuário. E o cito: ...A herança que recebo..., além de uma poltrona acadêmica, é, também, um santuário, de cuja volta adejam, e adejarão sempre, três sombras sagradas: D. Antônio de Macedo Costa, Cônego Cupertino de Lacerda e Mons. Francisco de Paiva Marques. D. Macedo Costa, (...), o grande bispo do Pará e arcebispo da Bahia, um predestinado em tudo...; Cupertino de Lacerda, o primeiro donatário, também raro e formoso concerto de talentos e virtudes preclaras, sermonista fascinante, pregando uma doutrina vestida de ouro e púrpura, aedo de delicado estro, político sem nódoa, honra e florão do clero baiano; e o Marques, a quem sucedo... 117 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Seguem-se 39 páginas de merecido panegírico a Mons. Paiva Marques, inclusive seu talento brincalhão de imitador, até revelando o seguinte: D. Ranulfo Farias, em palestra, acentuou a perfeição com que ele mimetizava Cupertino de Lacerda em toda a sua ‘maneira’ de pregar... Fidelíssimo... E em trechos e mais trechos corridos... E grandes louvores aos sermões do Mons. Marques na Igreja da Misericórdia, em vários 2 de Julho – sem alusão, todavia, ao Sermão do 2 de Julho de 1906, de Lacerda, que era desconhecido, seu impresso inclusive, do Dr. César de Araújo. Este prefere declarar, ao final, com bom humor talvez inspirado no do Mons. Marques, que esta Cadeira pede uma hagiografia. Três sacerdotes, ou melhor, três santos, abençoam e guardam seu destino: o padroeiro, o fundador e o último donatário. ( ... ) E o hagiológio da Cadeira 26, agora interrompido, ... poderá recomeçar. ( ... ) Não macularei este santuário... Na curta e brilhante oração de recepção a Dr. Araújo, o Acadêmico FRANCISCO Peixoto de MAGALHÃES NETO lembra que o novo confrade era também celebrado como bemhumorado epigramista, mas prefere acentuar amenidades do tipo: “Impenitente pecador que sucede a um santo, tendes, pelo menos, com o vosso antecessor uma afinidade: Sois, como ele, um orador de prol !” E perora: “As reverberações de vosso talento reforçarão as luzes do santuário!” (Revista da Academia de Letras da Bahia, vol. XVIII, 1957, págs. 120-121). Ao Acadêmico ROBERTO FIGUEIRA SANTOS, sucessor de Araújo em solenidade de 10 de agosto de 1971, coube a opção, igualmente bem-humorada, de louvar genericamente o dito “santuário”, dizendo de si estar carregando “Santos no nome”, ao admirar “os três primeiros grandes nomes da Cadeira 26.” 118 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Convido-os agora a ler o texto, de 1906, desse exemplo que é, de meditação cristã e de eloquência sacra, o Sermão do Cônego Cupertino de Lacerda pronunciado em data tão sagrada e solene para a tradição das Santas Casas de Misericórdia do mundo inteiro, a da visitação de Maria a Isabel, ainda mais particularmente na Bahia, pois por óbvio entre nós recai no 2 de Julho do desfile patriótico dos Caboclos. Essa peça da sermonística baiana é um esplendor de figuras de linguagem, de fraseado de ritmada eufonia, permeado de metáforas, símiles e hipérboles, anáforas e apóstrofes, um sem-fim de figuras de retórica de bom gosto, imagens e prestidigitações com a arte de repetir sincopadamente e com profundo conteúdo reflexivo. Tudo isso para fazer o elogio da mulher cristã, como logo na primeira página, através de dísticos com as palavras BEATA – bem-aventurada a mulher, BEATUM – bem-aventura o gesto ou o comportamento cristão, BEATUS – bem-aventurado o homem que pode contar com as virtudes da mulher cristã, e BEATI – bem-aventurados todos os seres humanos que podem contar com as virtudes da mulher cristã, aquela que dá o título latino, exclamatório ou admirativo, ao sermão: “Tu és bem-aventurada, porque tiveste crença com fé cristã!”, “Beata, quae credidisti!” Podemos passear por todo o texto, desde a página primeira até a página oitava, pinçando ou garimpando qualquer segmento, até a veemente defesa que o pregador faz das prostitutas, desde que se lhes propicie o caminho do cristianismo. Uma defesa tão empolgante, que nos faz lembrar o momento crítico do diálogo shakespeariano entre Otelo, envenenado por Iago, e Desdemona, inocente: “You are a whore!” – “Você é uma meretriz!”, diz o mouro Otelo, ao que ela responde: “No, as I am a Christian!” – “Não, pois eu sou cristã!” Leiamos/ouçamos apenas três sentenças do pregador, págs. 6, 9 e 12: (...) Izabel, Maria e a mulher das turbas, formando com a voz do Eterno um coro de harmonia, uniformes no dizer e no sentir, como o harpejo de três cordas caprichosamente afinadas; o céu e a terra, Deus e os homens, publicando una voce as glórias de Maria, 119 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 cujas virtudes não escaparam ao conhecimento do último mortal, e subiram ao trono daquele que vive dessa vida perfeitamente simultânea e simultaneamente perfeita. Jesus Cristo disse que aquelas mulheres eram bem-aventuradas, porque aceitam e observam a palavra de Deus: Beati, qui audiunt verbum Dei, et custodiunt illud. (...) Com o cristianismo cessou para a mulher o estado de ignomínia e de angústia, de degradação e de suplício em que a manteve o paganismo. Com o cristianismo reivindicou todos os direitos que lhe são devidos, conforme as intenções primitivas do Criador. De vil instrumento dos prazeres do homem, tornou-se sua companheira e sua igual; de ignóbil máquina de produzir filhos, tornou-se mãe; de escrava na família, tornou-se a senhora diante da qual tudo se inclina e à qual tudo obedece. (...) Jesus Cristo não condenou a pecadora, para que também não a condenemos hoje; pois que nenhum de nós sabe a que peso de infortúnio ou de miséria sucumbiu a mesquinha criatura. Em vez de condená-la, talvez para lembrar-nos que a corrupção do coração nem sempre está na razão da corrupção do corpo, Jesus Cristo absolve-a, e despede-a com aquelas palavras de suavíssimo conforto e de poderoso estímulo para a reconquista da virtude: não peques mais. (...) Senhores da Misericórdia, (...) estendei a vossa caridade à regeneração das pecadoras por essa mesma fé cristã que confere a bem-aventurança aos que perseveram na justiça, como aos que persistem no arrependimento. “Beata, quae credidisti.” __________ João Eurico Matta é administrador, professor emérito da UFBA, crítico e ensaísta. Ocupa a Cadeira nº 16 da ALB. Comunicação a propósito de doação, ao Arquivo e à Biblioteca da Academia, de raro opúsculo impresso, feita em palestra na sessão ordinária da Academia de Letras da Bahia de 10 de agosto de 2000. 120 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Viagem a Israel Viajar é descobrir, o resto é simples encontrar. José Saramago Edivaldo M. Boaventura Tendo participado de um seminário sobre Israel e o Oriente Médio, na Universidade Hebraica de Jerusalém, desenvolvi as atividades de viajante na procura de tempos passados e de espaços futuros. Desejo, agora, compartilhar as impressões da estada em um país moderno, democrático, com notável desenvolvimento científico e tecnológico e muita determinação política. Quem viaja descobre, encontra e reencontra para depois talvez contar. A viagem desperta a imaginação, permite o confronto do real com o imaginário. Goethe, que nos legou um dos belos relatos de viagem, da sua tão desejada ida à Itália, confirma: “Por mais que tenhamos ouvido falar de uma coisa, sua peculiaridade somente se nos apresenta de fato mediante a observação direta”. E o grande Comenius atribuía uma importância fundamental às viagens. O objetivo era complementar os estudos na universidade. Na sua Pampaedia, dedicada às universidades e academias, são destinadas várias páginas ao tema da apodemia, isto é, aprendizagem através de viagens ao exterior. Mas Comenius aconselhava a começar as viagens pela terra pátria, “para que os que são topeiras em casa não procurem ser águias em outro lugar”. As viagens, todavia, não deveriam ser empreendidas por motivos fúteis, mas “para consolidar a sabedoria em si e nos demais, 121 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 portanto, com o espírito predisposto a aprender e a ensinar”, é como a professora checo-brasileira Bohumila Araújo resume a pedagogia das viagens do Mestre das Nações. Eis o nosso itinerário. Vejamos, primeiramente, a progressão da nação judaica ao Estado de Israel, depois, iremos rapidinho ao norte, à verde Galileia, e também em direção ao árido sul, passando pela Judeia, para, enfim, chegarmos a Jerusalém, adentrando-a, para nos alojarmos na Universidade Hebraica de Jerusalém. Da nação judaica ao Estado de Israel Israel se afirma pelo seu passado bíblico. De Abrahão a David Ben Gurion já lá vão 4.000 anos de existência como nação. Nação que se formou ao longo do tempo com patriarcas, juízes, reis, dominações, exílios, cativeiros e diásporas. A nação judaica é secular, o Estado israelense é moderno. Era o exemplo didático que tínhamos para distinguir Nação de Estado. Na cidadela de David, assisti a um deslumbrante espetáculo de luz, cor e fala. Foi bem o lugar para se sentir a sucessão das etapas passadas e sofridas. O primeiro Templo, centro nacional e espiritual do povo judeu, construído pelo rei Salomão, foi destruído, e a maioria dos judeus é exilada para a Babilônia. Expressa o Salmo 136: Às margens dos rios de Babilônia, Nos assentávamos chorando, Lembrando-nos de Sião. Nos salgueiros daquela terra, Pendurávamos, então, as nossas harpas. Antes, os assírios tinham conquistado o reino israelita do norte. Com os persas, os judeus retornaram e construíram o segundo 122 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Templo. À dominação helênica antecedeu a romana. O vassalo romano, Herodes, governou a Terra de Israel e reformou o Templo. Anos depois, os romanos destruíram Jerusalém e o segundo Templo, em 70 da era comum, mas restou o Muro Ocidental, que chamamos Muro das Lamentações. Depois chegaram os muçulmanos. Os cruzados estabeleceram o Reino Latino de Jerusalém por um século. Os otomanos ergueram as atuais muralhas. Com a queda do império turco, começou o Mandato Britânico e em seguida a proposta da ONU dos dois estados, árabe e judeu. A nação judaica se encontrou com o Estado de Israel, em 1948. O espetáculo luminoso termina com uma mensagem: Pray for the peace of Jerusalém. Com a volta do povo judeu à Terra de Israel, começaram, então, as lutas pela afirmação da independência com guerras e tratados de paz. O reconhecimento dos direitos históricos do povo judeu, pela ONU, há 60 anos, confirmou a sua tradição de cultura, máxime da música, a inclinação para a ciência e a tolerância religiosa pela convivência com diferentes crenças e povos. A bíblica nação retornou ao seu território e tornou-se um Estado soberano e próspero. País que assegura uma política de bem-estar social, com infraestrutura de serviços básicos e, sobretudo com segurança. Anda-se livremente de dia e de noite sem receio de assalto, tanto na high tec cidade de Tel-Aviv, como na antiga, bela e harmônica Jerusalém, especialmente no convidativo bairro árabe e no mercado judeu. A modernidade igualou efetivamente os gêneros com as mulheres fazendo o serviço militar e policial, gozando de uma real e visível equiparação. O país moderno, ladeado por uma sociedade tradicional, encontra-se em uma encruzilhada de três continentes. Vendose o mapa, percebe-se logo a confluência da Europa, da Ásia e da África com a turística cidade de Eilat no Mar Vermelho. Aqui foi onde desembarcou a rainha de Sabá em sua visita histórica ao rei Salomão. 123 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Com os palestinos surgem os desafios para a paz. Como resolvê-los? Há possibilidades e opor tunidades de encaminhamentos na West Bank (Cisjordânia). Com a Faixa de Gaza a situação continua muito tensa. Não obstante a segurança, os foguetes lançados alcançam a cidade de Sderot. Sderot é uma cidade israelense, localizada no distrito Sul, perto da Faixa de Gaza. Foi declarada cidade em 1996. A sua proximidade com Gaza, distante apenas 2,5 km, faz com que seja alvo fácil dos foguetes Kassams. Crianças e adultos foram atingidos e mortos. O governo israelense constrói abrigos nos pontos de ônibus, nas creches, nos edifícios de apartamentos e nas casas. Há escolas construídas como se fossem abrigos. O Estado de Israel constituiu-se desde a declaração de independência. Uma democracia parlamentar tem à frente o Knesset, o parlamento israelense de uma só câmara, com 120 deputados, que retirou nome e número da assembleia convocada por Esdras e Nehemias, no século V (a. E. C.). Orna-lhe o saguão o extraordinário painel tríptico do pintor judeu-russo Marc Chagall: a evocação do Êxodo, uma visão do fim dos dias e o retorno a Sion. A inspiração vem de Isaías: “Então o lobo será hóspede do cordeiro, a pantera se deitará ao pé de cabrito, o touro e o leão comerão juntos [...]” Aparece o rei David envolto em manto vermelho púrpura tocando flauta. Pela democracia israelense se compreende o respeito e o acatamento às diversas culturas e religiões: árabes muçulmanos, beduínos, que constituem aproximadamente 10% da população árabe, árabes cristãos, drusos. Há inúmeras denominações religiosas, como os judeus messiânicos, que admitem Cristo, armênios, primeiro povo que aceitou o cristianismo, cristãos católicos, evangélicos, mórmons e outras denominações. Iremos começar a segunda etapa: da verde Galileia à Judeia. 124 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Da Galileia à Judeia Os objetivos para conhecer Israel são bem diversos. A situação, no Oriente Próximo, não elimina a vontade de visitar o Santo Sepulcro e as estações da Via Dolorosa. Os Santos Lugares e a modernidade de Israel são os polos da maior atração. Compreenda-se, assim, porque 93% do turismo para Israel é impulsionado pelos cristãos. Acrescente-se à curiosidade arqueológica e histórica o conhecimento das inovações que impactaram tanto o viajante. Concordo com Saramago que “todo o viajante tem o direito de inventar as suas próprias geografias. Se o não fizer, considere-se mero aprendiz de viagens, ainda muito preso à letra da lição e ao ponteiro do professor”. Desde a chegada ao aeroporto Ben Gurion que senti a inovação: a identificação pelas digitais e pelas pupilas. Digitalização aplicada à identificação. Todavia, uma vez instalado no hotel em Tel-Aviv, surgiu um probleminha tecnológico, o que não é peculiar somente a Israel. É o adaptador de tomadas (plug) para quem usa notebook. A tomada brasileira é diferente da israelense, da portuguesa e da chinesa. Atenção, há, pelo menos, seis tipos de adaptadores: Austrália e China, Estados Unidos, Reino Unido, Itália, França e Alemanha e outros países europeus, e Suíça. A tecnologia tem os seus caprichos nacionais. O primeiro contacto com a cidade foi no jantar à beira-mar, em um tablado de restaurantes. Como centro comercial, financeiro e cultural, Tel Aviv lidera a vida do país. De Tel Aviv saímos em direção ao norte para conhecermos as ruínas e o parque de Cesarea. Cesarea foi uma magnífica cidade, construída pelo rei Heroides, para recepcionar os romanos, composta de porto, teatro, palácio, hipódromo, aqueduto e banhos. A enseada de Caesarea forma um parque nacional, incluindo um castelo dos cruzados reconhecido pelos fossos. 125 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Em direção à Galileia, que é bem verde, em evidente contraste com o sul, que é bem seco, onde se encontram os desertos da Judeia e de Négrev, chegamos à Haifa. É o principal porto do país e de grande calado, que movimenta o comércio internacional. Em Haifa, a comunidade Bahá’i tem o seu centro mundial, com magníficos jardins que convidam à contemplação. Para o almoço, fizemos uma pausa em uma aldeia drusa, Deliat El Carmel. Os drusos, minoria árabe, separada do ponto de vista cultural e religioso, mantêm seus costumes e tradições. Encontram-se ao norte de Israel, no sul do Líbano e da Síria. Nas refeições, cultivam o colorido da mesa com a sua deliciosa culinária. Há um aspecto conhecido de sua filosofia de vida: pregação da completa lealdade ao governo do país onde vivem e trabalham. Praticam a taquiia. Aos poucos íamos nos aproximando da evangélica cidade de Nazaré, centro do maior interesse cristão, com a tríplice basílica da Anunciação, plena de peregrinos e de gente por toda parte. Na fachada, identifiquei a Ordem do Santo Sepulcro. É a maior cidade árabe de Israel, com intensa presença de turistas e com cerca de 30% de árabes cristãos. O árabe e o hebraico são línguas oficiais em Israel. O inglês é idioma corrente. A cidade está associada à infância e aos primeiros anos do ministério de Jesus. Além da enorme basílica, há outros monumentos, como a igreja grega do Arcanjo Gabriel, construída em cima de “O poço de Maria”, onde foi a sinagoga que Cristo recebeu ensinamentos e depois pregou, e a igreja franciscana de São José, construída em uma caverna, onde teria sido a sua oficina. Há ainda muito a ser conhecido no norte. A exemplo de Gamla, que lembra a revolta dos judeus contra os romanos, e as montanhas de Golan com a produção moderna de vinhos. Indo de Tel Aviv em direção ao sul, encontra-se a antiga cidade de Yafo (Jaffa), que Napoleão visitou e não gostou. Deixando Jerusalém à esquerda, seguimos a rota do bom samaritano, perseguido por Saul. Recorda ainda o nosso pai Abrahão com os seus rebanhos e tribos. 126 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 O nosso objetivo era Massada e o Mar Morto. Todavia, retenho um pensamento colhido em um hotel – “a vida de viagem não é destino, mas sim caminho”. Por aquele caminho iria até ao deserto de Négrev. Almoçamos no kibbutz de nosso guia Jony Limonic, e percebo que o ideal socialista dos primeiros anos vai cedendo espaço à tentação capitalista. O país se enriquece, visivelmente. Chegamos à Massada, fortaleza também construída por Herodes, como bastião de defesa, no deserto da Judeia e perto das margens do Mar Morto. A vista é deslumbrante e alcança as montanhas além Mar Morto e incita a conhecer Petra e a Jordânia, partes do antiga Judeia. Massada foi o último bastião judaico tomado pelos romanos, para tanto construíram longa rampa de acesso. Finalmente, quando lá chegaram, encontraram todos mortos. Os judeus praticaram o sacrifício pelo suicídio coletivo. Salvaram-se apenas duas mulheres e cinco crianças escondidas em uma cisterna, que depois testemunharam o fato, conforme o historiador Flávio Josefo. O cinema conseguiu fazer o marketing de Massada, comenta o guia Gil Regev, contudo existem outros lugares que ofereceram resistência aos romanos, como Gamla, ao norte, que não tem a mesma atração. Ao descermos de Massada, adquirimos produtos do Mar Morto. Visitamos as escavações de uma antiga comunidade de essênios que se abastecia por um curioso sistema hidráulico. Bem perto, estava o Mar Morto – Mar Salgado ou Mar de Asfalto – para os judeus antigos, que dele extraíam um produto e o vendiam aos egípcios para calafetar barcos e mumificar. O Mar Morto nos aguardava para o banho medicinal de lama em águas densamente salgadas. A lama produz cosméticos altamente apreciados para a pele. O problema é que as águas azuis do Mar Morto estão sumindo. O Mar Morto está morrendo. Era chegado o momento de subir à Jerusalém, como dizem os Salmos a Jerusalém terrestre. 127 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Chegada a Jerusalém Para entrar em Jerusalém, recorro ao Cântico das subidas (Salmo 121) dos peregrinos que se dirigem à cidade para as festas: Que alegria quando me vieram dizer: “Vamos subir à casa do Senhor...” Eis que nossos pés se estacam Diante de tuas portas, ó Jerusalém. Jerusalém, cidade tão bem edificada, Que forma um tão belo conjunto! Para lá sobem as tribos, as tribos do Senhor. Cidade harmônica, beje clara, feita de pedra e ornada com o verde dos ciprestes. Estende-se sobre as montanhas, encimada pela muralha otomana. Ingressamos, pois, pela porta Iafo e chegamos à torre que sobe como uma flecha. Jerusalém é a cidade do rei David, que depois de vencer os inimigos levou para lá a capital. David tornou de Jerusalém todo o seu império, que ia do Egito e Mar Vermelho até as margens do Eufrates. Sente-se a figura da humaníssima criatura, com altos e baixos, abatido com a morte trágica do filho e arrependido pelo pecado com Betsabé. Reprovado pelo profeta Natã, ele responde com o maravilhoso Miserere: “Lavai-me e me tornarei mais branco do que a neve.” O grande rei-poeta domina a Jerusalém terrestre: a torre de David, a tumba de David e o moderno King David Hotel, fora dos muros. Passamos em frente quando fomos ao Mamilla Center. Encontramos a estátua de David, na entrada de sua tumba, no Monte Sion. Não o David de Miguel Ângelo, nu, postado na entrada do Palácio de la Signoria, em Florença. O mestre italiano esculpiu um David ainda jovem adolescente, efebo grego, pastor de ovelhas, exímio atirador de seixos para proteger o seu rebanho, habilidade fundamental no combate a Golias. Mas o bronze é de 128 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 David adulto, homem feito, músico e rei, envolto em longo manto, com coroa e lira douradas, semelhante ao David de Chagall. O seu túmulo, coberto de roxo e dourado, é lugar de preces. Entrei, cautelosamente, meio assustado, naquele santuário e escutei as preces em hebraico. O lugar tão resguardado pelos judeus é venerado por cristãos e árabes, dizem. Penetramos na interioridade da cidade sagrada para os fiéis das três maiores religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Descemos as escadarias e fomos pelas ruelas dos peregrinos, plenas de lembranças a comprar e a barganhar. A indumentária preta e pesada dos sacerdotes ortodoxos judeus, gregos e russos pontua de preto o cenário da cidade santa seccionada secularmente pelos bairros dos judeus, árabes, cristãos, armênios. No Templo do Monte, destaca-se o domo dourado. A Mesquita da Rocha guarda a pedra em cima da qual Abraão preparou o sacrifício não consumado de Isaac. É também o lugar onde o profeta Maomé ascendeu ao céu, junto ao Muro Ocidental. Foi o que restou da segunda e definitiva destruição do Templo pelos romanos. Coloquei o quipá e pus as mãos na muralha. Orei. Uma vez dentro das muralhas erguidas pelos turcos, ouvimos as prédicas do Alcorão. Vimos o vai e vem dos ortodoxos de chapéus bizarros e sentimos o cheiro do incenso no ar. A atmosfera religiosa se mistura com o movimentado colorido das frutas, verduras, sementes, pães e tecidos dos mercados árabe e judeu. Nas ruas destacam-se as romãs como grandes bolas vermelhas, cujo suco colorido é mais bonito do que saboroso. Para os peregrinos cristãos, a maior atração é a Via Dolorosa com as estações da cruz: desnudamento, crucifixão, coroação de espinhos, suspensão na cruz, morte e ressurreição. Cristo morreu por volta das três e meia da tarde e deveria ser enterrado antes das seis, conforme o costume judaico. Justifica-se a intervenção de José de Arimateia, pedindo a Pilatos o corpo para repousar no sepulcro novo. O ponto central é o Santo Sepulcro. O ambiente é 129 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 por demais bizantino com lampadários dourados, ícones, turíbulos com milhares de devotos de todos as partes do mundo. Recordo Goethe, quanto à proximidade do real nas viagens, os Santos Lugares deixam-me mais perto de Cristo. Prossigo na peregrinação. No monte Sion, supostamente o local do palácio de David, se encontra a comunidade armênia com a bela cerâmica colorida. É o local da última ceia, e da instituição da eucaristia, no Cenáculo. Segundo o Novo Testamento, os apóstolos aí estavam reunidos, no momento de Pentecostes, com Maria. O Monte Sion tem um significado especial para os cristãos. A tumba de David e o Cenáculo estão bem perto, como está o Antigo do Novo Testamento. Muito próximo ao Cenáculo, que é hoje uma mesquita, erguese a basílica beneditina da Dormição de Maria, reconstruída pelo imperador Guilherme II da Alemanha, no final do século XIX. Viajei determinado a conhecer a basílica da Dormição, contando com ajuda do arquiabade Dom Emanuel d‘Able do Amaral. É um antigo culto milenar que vem do Oriente Ortodoxo. É mais conhecida entre nós pela invocação a Nossa Senhora da Assunção, da Glória ou da Boa Morte. A Dormição, na tradição teológica grega, liga-se à Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira. Esta irmandade conserva um antigo ícone, pelo qual Maria, deitada em sarcófago aberto, em face de Cristo, em pé, segura sua alma em suas mãos. Na cripta, existe uma imagem muito semelhante. O sarcófago de mármore vermelho sustenta a estátua de Maria, elevando-se, em mármore branco. Deveria ter me detido mais tempo na Basílica da Dormição, todavia saí pela porta Iafo (Jaffa Gate), atravessei o vale e cheguei ainda com claridade ao Jardim das Oliveiras. Ao anoitecer, no Jardim das Oliveiras, do outro lado, portanto, fora dos muros, lancei um derradeiro olhar sobre a Jerusalém terrestre, na hora meiga da tarde. Inesquecível aquele entardecer com toda Jerusalém estendida em minha frente. 130 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 O extraordinário progresso tecnológico de Israel convive com as manifestações de fé, garantindo a liberdade de culto e a segurança às diversas denominações religiosas. O Mamilla Center e a fabulosa escultura do indiano-britânico Anish Kapoor, na entrada do Museu de Israel, mostram a cidade rejuvenescida. Não me preparei devidamente para a visita ao Museu do Holocausto. Saí emocionado em lágrimas com a leitura de alguns escritos. O nazismo alemão liquidou um terço da população judaica, foram 6 milhões de um total de 18. Até, hoje, a população judaica não recuperou aquele número. Última etapa do viajante: a Universidade Hebraica de Jerusalém. A Universidade Hebraica de Jerusalém, concretude do conhecimento Entramos na cidade de David e nos albergamos na Universidade Hebraica de Jerusalém, no Monte Scopus, defronte do Monte das Oliveiras. Sempre que visito um país procuro conhecer as suas universidades. Fiz assim em Macau, em Berlim reconstituída e nos Estados Unidos cost to cost. Como participante do seminário sobre “Israel e o Oriente Médio”, promoção do Instituto Harry Trumann para o Progresso da Paz, não fui visitante da Universidade Hebraica de Jerusalém (HUJ), e sim seu convidado e hóspede, na Beit Maiersdort Guest House. A orientação do professor José Benarroch, um judeu português, foi fundamental para o programa, além de uma natural simpatia, a sabedoria vivida das culturas ibérica e hebraica. A Universidade Hebraica foi fundada em 1918, portanto 30 antes da criação do Estado de Israel. Na inauguração, em 1925, Chaim N. Bialik considerou que a verdadeira sabedoria é aprender com todos, para tanto as janelas estão abertas para que os melhores frutos produzidos pelo espírito humano em cada país possam ser recebidos. 131 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Outro fator que a distingue bastante é o reconhecimento de 7 Prêmios Nobel e 251 Prêmios Israel a seus ex-alunos e docentes. Entre os seus alunos estão os escritores David Grossman, A. B. Yeoshua, Aron Apperlfeld e Amós Oz. No ranking acadêmico das universidades no mundo, em 2009, obteve o 64º lugar. A comunidade científica classificou a Universidade Hebraica entre as seis melhores fora dos Estados Unidos, considerando-a como “o melhor lugar para se trabalhar em desenvolvimento da investigação científica”. E quem são os fundadores da Universidade Hebraica? Albert Einstein, cujo retrato preside o gabinete do reitor, Segismundo Freud, Martin Buber e Chaim Weizmann, biólogo famoso que foi o primeiro presidente de Israel. Possui mais de 1000 docentes de alto nível. A Universidade Hebraica tem, atualmente, 22.000 estudantes israelenses e mais alunos de 65 países. Concedeu até 2010 mais de 120.000 diplomas. Dispõe de 13 bibliotecas gerais e especializadas, 100 centros de investigação científica com mais de 4.500 projetos de pesquisa em curso. A larga tradição da cultura judaica confirma que a força criativa do saber de um país se encontra nas suas universidades. As universidades são organizações altamente estratégicas na construção do conhecimento. As atividades de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) envolvem as sete universidades israelenses, seus institutos, empresas civis e militares de investigação, centros médicos e campos de telecomunicação, produção de energia e administração de recursos hídricos. Estudos mostram que, internacionalmente, as universidades são as maiores detentoras de patentes. A quantidade de patentes das universidades israelenses demonstra a eficácia das relações com o setor industrial. O volume de patentes excede em muito o apresentado pelo ensino superior de outros países. Com relação à P&D, as universidades de Israel produzem mais do que o dobro de patentes das universidades norte-americanas e nove vezes mais do que as canadenses, segundo o Centro de Informação de Israel. 132 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 P&D é o que realiza o nosso confrade Roberto Santos com a Academia de Ciências da Bahia. Enquanto a inovação acontece na Universidade Hebraica, será que já alcançamos no Brasil a fase expressiva e madura das inovações patenteadas? Para Popper, conhecimento é descoberta. E a descoberta conduz aos achados, aos produtos e às patentes. A Universidade Hebraica, especialmente, lidera uma série de investigações e inovações. A construção do conhecimento pode e deve ser discutida, no caso ela é bem concreta. É a construção do conhecimento materializada em algo de concreto: as patentes. Em um inteligente folder, encontro dentre as informações acadêmicas básicas uma relação dos produtos para a saúde: Exelon, droga aprovada para o tratamento de Alzheimer e para a demência, comercializada mundialmente pela Novartis; Doxil, medicamento israelense para o câncer, que se encontra vendido a nível mundial pela Johnson & Jonhson e pela Schering Plough; Cherry Tomatoes, o famoso coquetel híbrido, produção em estufa com uma vida útil mais prolongada, com maior rendimento e melhor qualidade; Cationorm, um produto que oferece alívio de larga duração e conforto ótimo para os sintomas de olhos secos, produto da Novagali Pharma; Repel – CV, trata-se de uma película bioabsorvente, colocada na superfície do coração, ao término da cirurgia a coração aberto, que reduz a formação de tecidos nas cicatrizes. Tudo isso conduz, finalmente, ao singular desempenho científico israelense. Desde o começo, houve vontade de transformar a terra árida e infestada de doenças com aplicação da pesquisa científica e tecnológica. A investigação agrícola, que remonta ao final do século XIX, é um sucesso com o gotejamento. A pesquisa médica e especificamente em saúde alcançou a mais alta qualificação. As atividades P&D são realizadas por universidades e institutos, constituindo mais da metade da pauta de exportações industriais 133 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 de empresas civis e militares, nos setores prioritários das ciências naturais, engenharia, agricultura e medicina. O primeiro chip para computador foi desenvolvido pelo Dr. Dov Frohman, da equipe da Intel, nos anos setenta. Israel é líder mundial em fibras óticas e na energia solar. Comparando para terminar No final, uma comparação. Senti-me peregrino em Jerusalém, em Santo Tiago de Campostela, em Covadonga, nas Astúrias, em Fátima, ainda não fui a Lourdes. As comparações não são diplomáticas, ensinou-me Madame Benjamin, minha instrutora de francês técnico, no Instituto Internacional de Planificação da Educação (IIPE/UNESCO), mas sou tentado a lançar um ligeiro cotejo entre Jerusalém e Roma. Roma é por demais monumental, plena de fontes, palácios, basílicas, estátuas de papas e arcos de imperadores. Roma é papal e pagã, guarda o resíduo imperial nos templos convertidos em igrejas. Enquanto Jerusalém é visivelmente mística, religiosa, recatada, avalonada, ergue-se, horizontalmente, por sobre colinas, compactada dentro da muralha turca. Trescala religiosidade e ouvem-se preces continuamente. Por traz das muralhas, Jerusalém guarda a memória dos tempos bíblicos e evangélicos e do inesquecível Holocausto. Termino com o Rei David: Eis que nossos pés se estacam Diante de tuas portas, ó Jerusalém. (Salmo 121) A visita ao Estado de Israel foi um convite da Confederação Israelita do Brasil (Conib), com a participação de Jaime Spitzcovsky (Prima Página), que conheci em uma viagem anterior à China, e da Sociedade Israelita da Bahia, presidida por Maurício 134 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Kertzman Szporer, para participar de um seminário sobre Israel e o Oriente Médio, na Universidade Hebraica de Jerusalém, promoção do Instituto Truman, no campus Mount Scopus, de 18 de novembro a 01 de dezembro de 2010, juntamente com Alon Feuerwerker, do Correio Braziliense, Adriana Carranca, de O Estado de S. Paulo, Márion Strecker, diretora de conteúdo do UOL, e Ezequiel Gotlib (Zeka), gerente da comunicação da Federação Israelita do Rio Grande do Sul. REFERÊNCIAS ISRAEL: Insight Guides.www.insightguides.com ISRAEL, Ministério do Turismo. Para sus próximas vacaciones. Disponível em: www.goisrael.com.gov MEDIA CENTRA, Support & Services for Foreign Journalists Info Book: facts, figures and useful information about Israel. 2. ed. Jerusalem. www.m-central.org OCKMAN, Joan et al. Yad Vashen moshe safdie - The architecture memory. Baden, Switzerland: Lars Muller Publishers, 2006. REALIDADES DE ISRAEL. Jerusalém: Centro de Informação de Israel, 1999. __________ Edivaldo M. Boaventura é ensaísta, pesquisador, professor emérito da UFBA, autor de diversos livros de ensaios; ex-diretor geral de A Tarde, foi presidente da Academia de Letras da Bahia, de 2007 a 2011. Desde 1971 ocupa a Cadeira nº 39 da ALB. Este artigo foi apresentado em sessão ordinária da Academia de Letras da Bahia, em 8 de setembro de 2011. 135 R EVISTA DA 136 A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 A saga do Rei Vesgo Hélio Pólvora Depois de ouvir missa na igreja de Glória, cidade da Bahia nos limites com Pernambuco e Alagoas, o capitão Virgulino Ferreira da Silva, cabeça descoberta, sem arma de fogo, cai de joelhos, benze-se e em passo manco, sequela de uma bala, vai cumprimentar o padre Emílio Ferreira. Calmo, sorriso maroto, o sacerdote acolhe-o um tanto alvoroçado. “Estou mesmo diante do Rei do Nordeste?” “Para servir Vossa Reverência.” O padre havia recebido pouco antes, de um caixeiro-viajante, um mapa do Brasil, de um metro quadrado. Tem a ideia de desdobrá-lo sobre a mesa. “Pois então trace aqui o seu reino.” Munido de um lápis, capitão Virgulino, dito Lampião (havia adaptado um fuzil, para disparar mais rápido, e o cano avermelhava na escuridão) firma o olho bom, que era o esquerdo (o outro parecia um coágulo estagnado no centro de uma mancha branca, vazado que fora por um espinho) e inicia o traçado. Usado óculos brancos, sem aro, que pareciam aderir ao rosto comprido, ovalado. De Mossoró, a mão desce para Conceição do Piancó, no Rio Grande do Norte, atinge Poção e Pesqueira, em Pernambuco, atravessa Alagoas, invade Porto da Folha e Capela, em Sergipe, e 137 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 dali, via Itapicuru, entra na Bahia, rumo centro-oeste, via Riachão do Jacuípe e Morro do Chapéu, de onde se aventurou a Barra de Estiva e Rio de Contas. Flecha para cima, até Remanso, cruza a caatinga pernambucana, passa por Juazeiro do Norte, onde pontificava seu devoto Padre Cícero, e Caririaçu, no Ceará. Depois de Morada Nova, completa o circuito em Mossoró. O reino compreendia sete Estados brasileiros. Ao todo, 273 mil km2. O padre admira-se: “Territorialmente, seu reino faria inveja a muita cabeça coroada da Europa.” O Rei do Cangaço arreganha os dentes, vaidoso. Senhor absoluto O historiador Davis Ribeiro Sena transcreve em português correto, no livro As Revoltas Tenentistas que Abalaram o Brasil, trecho de um bilhete de Lampião ao governador de Pernambuco, Sérgio Loreto: “(...) Se o senhor estiver de acordo, devemos dividir os nossos territórios. Eu, que sou o capitão Virgulino Ferreira, governador do sertão, fico governando esta zona de cá, por inteiro, até as pontas dos trilhos em Rio Branco. E o senhor, do seu lado, governa de Rio Branco até a pancada da água do mar. Capitão Virgulino Ferreira, governador do sertão (...).” Cegos cantavam nas feiras, de pires estendido para a esmola; a literatura de cordel registrava: Sou senhor absoluto De todo esse sertão. Aqui quem quiser passar Precisa apresentar Licença do Capitão. Mais alguns anos e Getúlio Vargas amarraria o cavalo no Obelisco, perto do Palácio Monroe (demolido nos anos de 1970, 138 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 sob protestos), final da Av. Rio Branco, no Rio de Janeiro. A ditadura custou a desmantelar um dos vários focos de rebeldia armada contra o abandono dos sertões e injustiça de senhores de baraço e cutelo. Lampião reinou cerca de vinte anos com sua tropa a princípio escassa, depois de 30 a 50 cangaceiros, durante os anos 20 e 30 do século 20. Petimetre, da cabeça aos pés Se o sertanejo era, “antes de tudo, um forte” (Lampião tinha 1,79m de altura, carnes enxutas), como disse Euclides da Cunha em Os Sertões, um de seus produtos, o cangaceiro, era acima de tudo um vaidoso. Vingou-se do ostracismo ao criar para si uma indumentária no mínimo extravagante, mas que muito atiçou o imaginário popular e lhe rendeu temerosa admiração. Socialmente excluído, espezinhado, escravo de novos senhores feudais, instalou mostruário em que exibir-se, ancho e exultante. Ao contrário dos bandidos lendários de países ricos, que usavam roupas simples de cores esmaecidas, ele se pavoneava nas cores fortes, nas joias de ouro e prata, adornos florais, tecidos finos. Queria mostrar-se morgado e poderoso. Consta que, antes de se lançar no cangaço, costurava ele próprio suas roupas, com ademanes de estilista, e sabia bordar bem à maquina. Dadá, mulher de Corisco (Cristino Gomes da Silva Cleto), fixou em definitivo a moda desses outlaws nordestinos. Cabe-me aqui não a honra, mas apenas o ensejo de vos reapresentar a figura vulgarizada pelo cinema, folclore e literatura de cordel. Eis o cangaceiro típico: Chapelão de couro em estilo napoleônico, de aba dianteira larga, dobrada e alevantada, nela bordadas em couro branco três estrelas de oito pontas que semelham sóis, de mistura com moedas de ouro e prata. No pescoço, lenço comprido de seda inglesa ou tafetá francês, vermelho e verde, ou axadrezado. As pontas eram atadas com 139 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 anéis ou moedas valiosas sobre a camisa cáqui ou azul. A de Lampião era vermelha ou listrada, com botões de ouro. Calças de cintura alta, em geral curtas, porque a elas seguiamse perneiras de couro enfeitadas com ilhoses presos por fivelas. Sapatões de couro ou alpercatas de couro cru. Cartucheiras trespassadas para 120 balas. Fuzil Mauser modelo 1918, bandoleiras enfeitadas com moedas de prata e ilhoses brancos. Duas cintas laterais para sustentar os cantis. Anéis graúdos em quase todos os dedos (Lampião sempre trazia um, regalo de algum coronel catingueiro, que assim pagava o estipêndio da trégua). Acrescentem as luvas (as de Lampião eram bordadas), os cabelos compridos – e terão o tipo. Dadá, com o seu faro de modista digna da maison Dior ou griffe Hermès, muito contribuiu para essa indumentária, com enfeites, adornos e bordados, entre os quais as estrelas nos chapéus e os motivos florais. A revista Time-Life alinhou Maria Bonita entre as mulheres da moda. Até os cães viviam nos trinques: Dourado, o de Lampião, trazia coleira de ouro e prata, o danado. Meninos cantavam nas póvoas sertanejas: Minha mãe me dê dinheiro Pra comprar um cinturão Pra botar uma cartucheira Pra brigar pra Lampião. Conforme observou Constanza Pascolato em entrevista a Bia Lemos, Lampião, Maria Bonita e outros misturavam “riqueza, extravagância e barbárie”. Lançaram a moda do “banditismo de ostentação” e este encontrou terreno fértil. Viceja no Brasil. Cangaço, ontem e hoje Cangaço é mais do que o bagaço da uva pisada, como está em Moraes, 1831. É o aumentativo de canga, que significa jugo, domínio, opressão. Também é um dispositivo de madeira a que 140 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 são jungidos bois para transporte. De acordo com Beaurepaire Rohan, 1889, quer dizer o conjunto de armas portadas por um valentão, ou, ainda, trastes de gente humilde, segundo Domingos Vieira, do Porto, que remonta a 1872. Algo a ver, portanto, com pobreza e escravidão. Nas suas pesquisas semânticas, o folclorista Luís da Câmara Cascudo afirma que, para os sertanejos do Nordeste brasileiro, cangaço é a matalotagem do cangaceiro, “inseparável e característica”, ou seja: roupas, suprimentos de boca (em geral, alimentos secos), bornais, munições, armas, mezinhas consagradas pelo vulgo. Algo a ver com bandido, assaltante a mão armada, pistoleiro. No Brasil da República Velha, anota Cascudo no livro Flor de Romances Trágicos, a atividade do cangaço valia a pena. Ele próprio registra estes versos: Há quatro coisas no mundo Que alegram um cabra macho: Dinheiro e moça bonita, Cavalo estradeiro baixo, Clavinote e cartucheira Pra quem anda no cangaço. Ninguém nasce para ser cangaceiro, é claro. Mas quem tem a desventura de vir à luz nos sertões há de sofrer fatalmente os efeitos do meio. Além da terra adusta e semiárida, da vegetação raquítica e espinhenta, das pedras, dos rios e córregos temporários, das secas prolongadas que matam rebanhos, da água escassa, às vezes quase lama, o sertanejo pobre perde o feijão, o porco, a vaca e os legumes, passa fome. Uns migram; outros ficam à espera da chuva redentora. É natural que, em ambiência geográfica hostil, alguém perca a paciência. E, para aperrear ainda mais, há os donos da terra, a polícia a seu serviço, a justiça pronta a despachar em seu favor. 141 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Projetos de irrigação tardam; açudes com dinheiro público só para os poderosos, verbas desaparecem no ralo da corrupção. É uma verdade histórica. A civilização começou pelo litoral, gostou do mar e ali plantou-se com os seus luxos. De vez em quando o sertão ameaçava virar mar, como aconteceu via Antônio Conselheiro e seu bando esfarrapado de penitentes. O mar é que jamais quis ser sertão. Historiadores, romancistas e sociólogos se têm debruçado sobre o aspecto psicossocial do banditismo. Decerto a influência do meio ainda pesa, e muito, mas naqueles tempos bicudos ser ladrão e saqueador dava lucro, apesar das forças volantes das polícias estaduais, atiçadas pelos coronéis. Não tanto quanto hoje, com o narcotráfico, mas sempre alimentava e vestia. O cangaceiro surgia em geral por força de conflitos de família, de posse de terras e reses, de agressões da polícia, casos de amor desfeito, ofensas públicas. Desfeiteado, injustiçado até o fundo da alma, partia para uma vingança longa e generalizada. Foi o que se deu com Virgulino. Perdera o pai José Ferreira da Silva, assassinado pelo alferes José Lucena, comandante de volante, por instigação de um vizinho incômodo, José Saturnino, a quem Virgulino, vaqueiro da família, acusara de furtar bodes. Antes ou depois do pai, que jamais quis empunhar amas e revidar, a mãe Maria Lopes de Oliveira morreu de susto, durante um resguardo, ou quando mudavam de sítio na tentativa de evitar o pior. Por volta dos 20 anos, Virgulino meteu-se com os irmãos Antônio, Livínio e Ezequiel (os quatro irmãos restantes eram mulheres) no bando do cangaceiro Sinhô Pereira, que não demorou a liderar. De modo que não fundou o cangaço: apenas lhe deu galas e dele se fez rei. Seu antecessor mais famoso foi Jesuíno Alves Caiado, o Jesuíno Brilhante, primeiro da estirpe, temido na década de 1870. Livínio morreu em 1925, em refrega com a polícia; Antônio, quando o fuzil caiu e disparou, num acampamento; Ezequiel, o Ponto Fino, em combate, 1931. Tudo na vida de Lampião e sua 142 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 gente parecia fadado a tragédia. Assim teriam decidido os deuses imortais, ou as mouras. Raso da Catarina Nada a ver com anatomia feminina; tampouco com o baixoventre de alguma sertaneja arretada. O raso é uma região de cerca de 38 mil km2 , no centro-leste da Bahia, entre os rios Vasa-Barris, ao sul, e o São Francisco, ao norte. Área inóspita, de escassa água salobra e fundos solos arenosos. Hoje é reserva biológica em que se tenta, além de outros empreendimentos, preservar a bela arara azul. Terra extremamente árida, cobre-a uma vegetação espinhosa e cortante. Alguém chamou-a de sarçal ardente – e, afora o Conselheiro com o seu cajado e camisolão sujo, ninguém ali se materializa para ditar mandamentos. Predominam o xique-xique, as palmatórias, a macambira, os rabos-de-raposa. Tudo entrançado. Reses que ali entram são consideradas perdidas pelos vaqueiros mais afoitos, embora se assevere que onde passa lombo de cavalo passa o cavaleiro. Quando governos estaduais pressionados por grandes usineiros de açúcar e pecuaristas organizaram grupos militares e paramilitares para a caçada que se encarniçou nos últimos dez anos de estripulias do cangaceiro (o governo da Bahia chegou a oferecer 50 contos de réis, em 1930, a quem o prendesse ou matasse), o Rei Vesgo entrou com sua tropa no Raso da Catariana. Andava a fugir de uma jurisdição para outra. O raso revelou-se um esconderijo satisfatório. É certo que as forças volantes (os “macacos”, como eram chamados, porque saltavam como símios ante o silvo e ricocheteio das balas jagunças), conduzidas pelo legendário rastreador pernambucano Antônio Cassiano, seguiram as pegadas de Lampião. Mas este conhecia o Nordeste palmo a palmo, pedra a pedra, loca atrás de loca. Sabia onde e como acampar e vigiar. Tinha algumas estratégias de 143 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 guerrilha. Era um Napoleão encourado, com um tropicalista chapéu tricórnio de barbicacho, e que se dava ao luxo da companhia de sua Josefina – a Maria Bonita de quem se falará adiante. Ardis lhe sobravam. Por exemplo: mandar inverter os saltos e bicos dos sapatões ou alpercatas, para fazer crer que deixava o Raso, em vez de nele embrenhar-se; marchar em fila indiana, todos pisando nas mesmas pegadas, enquanto um, de costas, as desfazia com ramos de arbustos; ou então simulava a pegada de um caminhante único. Atacava e recuava para entrincheirar-se e atrair o inimigo. Sabia cavar e furar raízes de umbuzeiro para obter água, e tirá-la também do âmago de certas bromeliáceas. O escritor Ranulpho Prata descreve no livro Lampião a ambiência rude e quente, o faro do rastejador, as escaramuças, o acampamento desfeito num átimo, a fuga para outras virilhas do Raso da Catarina – um esconderijo bordejado pelas cidades e povoados de Paulo Afonso, Jeremoabo, Canudos e Mucuruté. Em Canudos, entre 1893 e 1897, tombaram trinta mil combatentes: soldados e fanáticos do visionário Antônio Conselheiro, adepto do regime monárquico. Canudos não se rendeu; acabou, como diz Euclides no fecho de Os Sertões. Aura romântica Quando invadia cidades e povoados, Virgulino Ferreira da Silva – perdão, capitão Virgulino, porque tinha patente, tal e qual o Vitorino Papa-Rabo de José Lins do Rego – costumava atirar moedas aos meninos. É o que reza o testemunho oral. Pobre remediado que tinha sido, antes de ter peças de ouro e prata na indumentária espaventosa, prendas nos bornais, anéis valiosos em quase todos os dedos, procurava captar as simpatias dos humildes. Perseguido pelos “macacos”, precisava de cobertura – espias e coiteiros. Esmerava-se em gentilezas desse tipo. Avaliado o saque, separava o necessário à sobrevivência do bando, durante certo 144 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 tempo – e distribuía o restante. Isso lhe assegurava recepção festiva quando voltasse, com direito a buchada de bode, vinho de jurubeba e outras iguarias. O imaginário romântico em torno dessa figura propicia a redenção que hoje mais a aproxima de um Robin Hood do que de um Al Capone. Diz um dos muitos historiadores do cangaço que ele pedia desculpa pelas violências: “Não sou industrial nem fazendeiro. Só me resta esta vida”. Esquecia-se das artes de arrieiro, mascate e pastor de gado. Da habilidade com que trabalhava o couro cru. Da máquina de costura em que era exímio. Dizem que, embora cabra macho, bordava melhor do que Maria Bonita. E lhe atribuem a criação da dança e ritmo do xaxado, muito embora talvez não passasse de divulgador e letrista, como em “Mulher Rendeira”, grande êxito de Vanja Orico, adaptado por Zé do Norte no filme O Cangaceiro, de Lima Barreto. Olê, mulher rendeira, Olê, mulher rendá. Tu m´ensina a fazer renda Q´eu te ensino a namorá. Tinha leituras, mostrava-se atilado. Admirador de Napoleão, a partir do chapéu, do qual, com a contribuição de Dadá, criou a variante com estrelas e medalhas, e chegado a igrejas e bênçãos de padres, porque na caatinga espinhenta o misticismo era um bálsamo antes dos teólogos da libertação e dos sem-terra do Sr. Lula da Silva; Lampião, o maior e o mais midiático dos nossos muitos bandidos, amava a visibilidade, o aparato dos ricos. Estaria explicada, assim, a opção pelo crime. Os trajes pomposos e fidalgos, de seda estrangeira, o ouro e a prata são a montra instalada para que os cangaceiros fossem vistos, admirados, entronizados. Vingavam-se também por esse lado da exclusão social no semiárido dos patriarcas e políticos esbulhadores. 145 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Servido uma vez por uma velha de 80 anos que havia abatido uma galinha, Lampião viu um companheiro que queria carne vermelha sair, voltar com uma cabra morta e gritar à hospedeira: “Prepare logo, velha”. “Ai”, chorou a velha. “Era a minha última, a do leite dos netinhos!” “Pague a cabra”, ordenou o chefe, de vista baixa sobre o ensopado de galinha. Irritado, o cangaceiro atirou umas moedas sobre a mesa. “Tome. Dou de esmola’’. “Pague a cabra”, insistiu o chefe, ainda a comer. “Mas já paguei, Lampião”. “Pagou não. Esse dinheiro foi de esmola. Você mesmo disse”. Dr. Plínio Sodré, médico baiano especializado em ultrassonografia, conta que Lampião entrou em Piritiba com um companheiro ferido. O médico mais próximo, Carlos Ayres, primo carnal do ministro Ayres Britto, que veio a ser presidente do Supremo Tribunal Federal, morava no povoado de França. Havia uma senhora gravemente enferma. Lampião mandou aviar cavalo com duas padiolas laterais e levar os dois, com recomendações de muito cuidado com a mulher. O rei do cangaço tinha um lado bom. Mas vê-lo à luz do puro maniqueísmo de palor romântico é um erro. Com ele conviviam o estuprador, o saqueador, o assassino que soltava presos, alinhava soldados e os fuzilava, tal e qual o Guevara do paredón cubano, por quem a esquerda brasileira tanto se apaixonou, com muitos civis. Se Lampião adotou táticas de guerrilha, não o fez instado por atitude ideológica. Apenas fugia das volantes que o caçaram até o ataque final na Grota do Angico. Neste episódio, a tropa do tenente João Bezerra da Silva – 48 meganhas com metralhadoras portáteis – e ele próprio portaram-se com uma selvageria em nada inferior à que o tempo tece sobre heróis e vilões. Desentranhar a verdade do aranzel 146 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 de lendas e fatos é carregar água em cesto. De qualquer modo, o cangaço prossegue com outro rótulo, e outras vestes, e polidos senhores proprietários de sesmarias e mansões. Maria Bonita Chamava-se Maria Gomes de Oliveira. Na intimidade, Maria de Déa. Lampião a tratava por Santinha. Era natural de Glória, segundo registram alguns historiadores; ou de Paulo Afonso, afirmam outros. Consta que, quando morava em Paulo Afonso, ouviu relatos das façanhas de Lampião e o admirava. Sendo a família coiteira do dito cujo, vieram a conhecer-se e, assim dizem, chegaram a trocar bilhetes. Ela queria entrar para o bando – e ele relutava. Talvez esperasse uma decisão concreta. Maria era casada com o sapateiro José Miguel da Silva. Talvez já não estivesse casada quando ele a levou. Foi a primeira mulher a juntar-se ao bando. Lampião teria deixado bilhete ao marido espoliado, desculpando-se. Ela ia por “vontade própria”. Bonita? É possível para os padrões de beleza sertanejos. O apelido fora ejetado por um ex-volante apaixonado – pegou na família e ganhou mundo na versalhada popular dos cordéis. Assim a descreve Wanessa Campos, um dos muitos exegetas do cangaço: “Baixinha, de pernas grossas e roliças. Seios pequenos, cabelos finos e olhos claros”. Tinha talhe de gente fina, feições regulares – enfim, uma espécie de serena beleza rústica. Pouco demonstrou da valentia que lhe atribuem, porque em geral as mulheres da quadrilha ficavam à margem dos tiroteios. Maria Bonita teve com Virgulino três gestações falhas e uma filha única, Expedita, entregue aos 21 dias a uma família de confiança, já com 11 filhos para criar. Impossível a vida familiar naquele ramerrão de caminhadas estafantes, fugas precipitadas, risco de traições, raras tréguas entrecortadas de temores. O choro de uma criança os denunciaria. A mulher do capitão não conheceu 147 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 a neta Vera Ferreira, que hoje lhe cultiva a memória. Mas visitou a filha três vezes, com Lampião – e a menina sabia de suas origens. Para as atividades cotidianas, Maria Bonita vestia-se de brim grosso, da cor da polpa da goiaba madura, engalonado e revestido de vermelho nos punhos. Há um desses, assim dizem, no Museu de História Natural, no Rio de Janeiro. Nos domingos e em festas apreciava os modelos cinza, com riscos de giz e enfeites de sinhaninha ver melha (fita ondulada ou em ziguezague). Era mais companheira, tal e qual as demais, à exceção de Dadá, que substituiu o seu homem quando ferido nos braços, do que combatente. Decerto sabiam atirar, e atiravam em caso de extrema necessidade – mas os cangaceiros as mantinham à parte. “Pouca gente sabe que de brava ela nada tinha”, atesta Vera, a neta. E completa as bondades da avó com os adjetivos agradável, carinhosa, bem-humorada, dada a brincadeiras e generosa. Sua presença no bando e a de outras mulheres há de ter contribuído para a redução de estupros e assassinatos de velhos e crianças. Durou nove anos o amor, sem contar o namoro na Fazenda Malhada da Caiçara, em Paulo Afonso. “Sem dúvida, Maria Bonita viveu um grande amor por Lampião”, assegura a neta. E brande nesse sentido um argumento de peso: somente um amor apaixonado forçaria a mulher casada (para uns) ou separada (dizem outros) a romper fortes preconceitos e costumes da época. Mito do herói maldito Quem se faz vilão justiceiro ou vilão bandoleiro jamais será por acaso; sempre haverá este ou aquele motivo forte. Mas nada impedirá o protagonista de vir a ser amado ou renegado, inclusive por si próprio. É fundamentalmente um solitário. Para desempenhar bem as tarefas que assume, no intuito às vezes inconsciente de ocupar o 148 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 vazio infernal na cabeça ou no coração, esse herói precisa desprender-se de compromissos, mesmo os de teor afetivo. Nada, ninguém deverá obstar-lhe ou estorvar-lhe as cavalgadas. No emblemático e carismático filme de George Stevens, o infeliz Shane (Alan Ladd), sozinho no mundo, cumprindo sentença de provável perseguido em permanente fuga, poderia eximir-se de um duelo a bala a que não era chamado. E ficar com o rancho de Starret (Van Heflin), com o menino Joey (Brandon De Wilde), que o idolatrava – e, melhor de tudo, com Marian (Jean Arthur), a mulher de Starret. Mas não. Mata o pistoleiro Wilson (Jack Palance) no armazém do povoado, leva um tiro e, curvado na sela, num entardecer sombrio, afasta-se para o seu destino de homem-sombra, talvez o vale da morte. Joey corre atrás: “Volte, Shane!” E, em última instância, confessa: “Mamãe te ama”. Eterno foragido (dos outros? de si mesmo? de um mundo que, conforme disse o poeta Auden, ele não fez, ele não quis?). A estrutura psíquica elementar dos velhos samurais de Akira Kurosawa lhe é idêntica: o protagonista vivido tão bem por Toshiro Mifune, a ponto de não mais se desgrudar da nossa lembrança, faz o que julga que lhe cabe fazer e retorna à estrada, a sacudir os ombros. Nos seriados de 12, 13 ou 15 episódios da nossa infância, os heróis, às vezes mascarados, repeliam os assédios explícitos e implícitos do amor. Alguns sequer tiravam a venda dos olhos, ante de partir. Vistos pelo prisma meramente ficcional, esses heróis ou bandidos, como queiram os leitores, entendem que a mulher e a família, com todos os seus ensejos de vida normal, costumam atrapalhar. Virá o filho, a necessidade imperiosa de construir e manter o lar, atividades rotineiras que destemperam o estofo da virilidade; conflitos que, comparados a tiroteios e outros enfrentamentos, empalidecem sob forma de aborrecidas picuinhas. Virgulino Ferreira da Silva rendeu-se ao amor. Engraçou-se de Maria Bonita (assim apelidada não por ele, mas provavelmente 149 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 por um desesperançado ex-policial das volantes). A família da musa o acoitava. Lampião dava-lhe lenços a bordar. Vem à tona, então, a pergunta que ainda se faz: o que atraiu tantas sertanejas ao cangaço? Algumas, como a Dadá, de Corisco, segundo na hierarquia do bando de Lampião, foram levadas à força, estupradas, sequestradas, trocadas por joias. O jornalista Antônio Amaury Corrêa de Araújo, citado por Manoel Severo, conta que Corisco, o Diabo Loiro, tivera uma noiva chamada Darvina, apelidada Dadá. A mulher inesquecível. Certa ocasião ele viu Sérgia Ribeiro da Silva passar no seu passo felino de jaguaretê (teria 13 anos) e achou-a parecida com a outra. Raptoua e apelidou-a Dadá. Simples, pois não? Dadá habituou-se e, de todas as cangaceiras, teria sido a única a participar, fuzil na mão, de tiroteios e arruaças. A maioria delas, claro, aprendera a atirar, para caso de necessidade extrema, mas Dadá entrava nas batalhas, substituiu Corisco enquanto este, chefe de bando dissidente de Lampião, sarava de ferimentos nos braços. Atividades à parte, continuavam amigos. Nem todos no bando aceitaram a presença de mulheres: Balão queixava-se que elas atrapalhavam nas retiradas, retinham o grupo, se grávidas, facilitavam o faro e as ouças dos rastejadores. Balão, com seu instinto insatisfeito de revoltoso, achava que mulher teria apenas de cozinhar, costurar e bordar aqueles trajes armoriais nordestinos ornados de moedas, estrelas e fitas, além de entregar-se aos requebros, ou “cochilos”, como disse Luiz “Lua” Gonzaga, do amor. Para a mulher, a vida nos sertões, àquela época do cangaço, era uma desventura completa. Se o homem sempre podia cair no oco do mundo, e virar renegado, a ela tocava povoar o vazio. De modo que o cangaço, com a figura meio napoleônica, meio mística, meio robinhoodiana de Lampião e seus comparsas, e a promessa de mais haveres e menos deveres, atraiu-as ao calor escaldante da caatinga, à água salobra, ao solo pedregoso, à entrançada vegetação espinhenta. Maria Bonita foi por puro amor. 150 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 É hora de dizer quem era de quem no bando de cangaceiros, com o devido crédito ao sumário do jornalista Rogério Pacheco Jordão e achegas de João Sousa Lima, historiador de Paulo Afonso e arredores: Dadá (de Corisco), Neném (de Luiz Pedro), Durvalina (de Moreno), Sila (de Zé Sereno), Lídia (de Zé Baiano), Inacinha (de Gato), Adília (de Canário), Cristina (de Português), Maria Jovina (de Pancada), Dulce (de Criança), Moça (de Cirilo Engrácia), Otília (de Mariano), Maroca (de Mané Moreno), Mariquinha (de Labareda), Maria Ema (de Velocidade), Enedina (de Cajazeira), Rosalina (de Chumbinho), Estrelinha (de Cobra Viva), Hortênsia (de Volta Seca), Lacinha (de Gato Preto), Iracema (de Lua Branca), Eleonora (de Azulão), Lili (de Moita Braba), Catarina (de Sabonete), Mocinha (de Medalha), Maninha (de Gavião), Maria Juriti (de Juriti), Dora (de Arvoredo), Marina (de Laranjeira), Dinha (de Delicado). Na Coluna Prestes também havia mulheres. E os meios de sobrevivência eram semelhantes: invasão, saques em fazendas, vilas, cidades. Bilhetes e ameaças Inteligência, além de seus significados exatos, ignifica trampolinagem. Indivíduos calmos, supostamente resignados ou omissos, de repente se desenroscam e picam: é o golpe peçonhento. Assim se entende ainda, e em proporção crescente, o dom da inteligência em todas as esferas sociais, agora reforçado pela tecnologia. Lampião foi inteligente, neste sentido. Socialmente excluído, revoltou-se ao ponto de banir-se ele próprio. Tinha pouca instrução, faltava-lhe fluência no discurso imperativo de”interventor” ou “governador” dos sertões. No entanto, sabia ser claro e contundente nas mensagens, conforme se depreende dos bilhetes em português tosco reproduzidos pelo historiador Oleone Coelho Fontes. 151 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 A um sargento comandante do destacamento de Juazeiro do Norte, Ceará, em 1926: “Ilmo sr. José Antonio – Eu lhe faço esta, até não devia me sujeitar a te escrever porem, sempre mando te avisar, pois, eu soube que vc., no dia que eu cheguei ahi na fazenda vc., esteve pronto para vir me voltar orem, eu sempre lhe digo que você crie juízo, e deixe de violências, apois eu venho chamando é por homem, e mesmo assim vc. Com zuada não me faz medo. Eu tenho visto, é, coisa forte, e não me assombra, portanto vc. Deve tratar de fazer amigos não para fazer como vc. Diz. Sempre lhe aviso, que é para depois vc. não se arrepender e nada mais, não se zangue, isto é um conselho que lhe dou. – Do Capitão Virgolino Pereira (?) da Silva”. Ao Sr. José Batista, Fazenda Porteira, Cumbe (atual Euclides da Cunha), sem data – Sua saudação não pacei em sua casa soubi que não estava mas tenho estaque é para vancê manda por este portado 5 contos de rs. “Olhi é para não deixar de mandar apois não mandando é pior para vancê apois aguardo sua resposta. “Sem mais do Capm. “Virgulino Ferreira Lampião”. Mais esta: “Sergipe. Ilmo Snr. João Apostolo Sua saudação Com todos lhe faço esta para o sr. Mandar-me Um conto de Rs. Apois não quero maçada faço esta com urgença Cp. Lampião”. E, para findar os exemplos, este aviso curto e grosso a José da Costa Dórea, outubro de 1932: “Seu Dora se aprepare para morrer Camp. Virgulino Ferreira Lampião”. Misticismo A credulidade do sertanejo – e, de resto, de outros segmentos incultos – é (ou era) espessa e opaca. Anda sempre com o nome de Deus na boca, a propósito de tudo e de nada. Engrossa uma 152 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 agenda de penúrias e expectativas de salvação que lhe endurece a alma, que o transforma em estoico extremado, sobretudo nas estiagens longas e advento da seca. Pelo menos até um passado recente, o sertanejo fazia-se alto credor do Reino dos Céus, sem dar prioridade ao reino na terra pregado pela Teologia da Libertação – uma dissidência pragmática no apostolado católico submisso ao instalado poder de mando, a cuja sombra viceja. Promessas repetidas de satisfatória vida eterna cansam; melhor antecipar a participação na mesa do consumo. É de lamentar-se, apenas, que tal mudança de rumo propicie a subida de notórios malfeitores sanguinários aos altares, para culto idólatra de setores de pensamento ideologicamente fanatizados. Seria este o caso do argentino-cubano Ernesto Guevara, em quem alguns exegetas ancoram o “guerrilheiro” Lampião, na qualidade de antecipador. Mas o Rei Vesgo, vale repetir, não tinha programa revolucionário em mente. Era protagonista de uma revolta inconsciente, indefinida, mais de natureza pessoal, familiar e comunitária. Agia instigado por injustiças econômicas e sociais flagrantes, mas, crédulo que era do perdão divino (e da história, convém frisar), absolvido que se sentia pela bênção de padres, comungou com gosto e fervor espiritual de missas paroquianas. Milagreiro, e em processo de santificação, Lampião desfrutou da amizade – e por que não dizer favores? – de alguns padres. O “Padim Ciço”, por exemplo, entregou-lhe a patente de capitão dos Exércitos Patrióticos, para que enfrentasse a Coluna Prestes – fato que só teria ocorrido uma vez, e antes. Nesse lance, Lampião julgara-se rastreado pela polícia. O padre Artur Passos chegava ao povoado sergipano de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo em lombo de burro, meados de agosto, para celebrar missas em louvor da padroeira. Hospedava-o Teotônio Alves Lima, o China, pessoa influente, de convidados à mesa, sabedor de sua amizade secreta com Lampião, sustentada pelo coiteiro Mané Félix. Lá pelas tantas, avisado e 153 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 fingidor, porque no púlpito combatia o cangaço, o padre sumiase a cavalo, com o recadeiro e uma provisão de aguardentes e alimentos. No acampamento confessava os cangaceiros, absolviaos e não desdenhava um baralho, durante horas, enquanto bebiam vinho de jurubeba e cachaça apurada. Segundo narra o cronista Rangel Alves da Costa, quando o fogo lhe subia às ventas Padre Artur danava-se a dedilhar uma sanfona. Do exposto até aqui transparece que o cangaço, mais que banditismo foi um meio de vida. O próprio Rei Vesgo teria dito ao padre Emílio Ferreira, em 1929: “Hoje em dia a vida só é boa para o soldado e para o bandido”. O Brasil penava uma fase dura de insegurança institucional, estava longe da industrialização ensaiada por Getúlio Vargas. A crise do café, maior bem de exportação, deve ser pesada na Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo. Museu do cangaço Focos de banditismo espocavam à farta na América Latina. O fenômeno do cangaço somente é brasileiro nas peculiaridades, guarda-roupa e cenografia. A neta de Lampião, Vera Ferreira, empenha-se em preservar a memória do avô e, alheia ao fato de ter sido ele malfeitor cruel ou justiceiro, cria o Museu do Cangaço com depoimentos, objetos e imagens – algo capaz de montar e sugerir um roteiro mais fiel do que a miscelânea de verdade e lenda. Teria Lampião cometido todas as barbaridades que lhe imputam?, ela pergunta, e com razão. Histórias cruéis se sucedem. Exemplos: a esposa de um proprietário rural, de resguardo de um parto, em Simão Dias, foi estuprada e veio a falecer. A fazenda Aurora, invadida em ato de vingança, virou pó: casa-grande, curral e cercas queimadas, 40 vacas abatidas. A um potentado, trancoulhe os testículos numa gaveta e foi-se com a chave, às risadas, deixando-lhe uma quicé afiada ao alcance da mão. Acusam-no de queimar o rosto de mulheres com ferro em brasa; de decepar orelhas e línguas; de arrancar olhos. 154 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Há outras facetas do rei do cangaço: o que ia ao cinema em Capela, Pernambuco, com Maria Bonita, para um seriado americano de que gostava e filmes de amor. Viram uns dez. Saíam antes do fim, se este não fosse feliz, amoroso. O que tinha o hábito de ler as revistas Fon-Fon, Noite Ilustrada e O Cruzeiro e inspirar-se em poses fotográficas de Greta Garbo e Rodolfo Valentino, além de figurinos, que discutia com Maria Bonita. O letrista de canções regionalistas. O sanfoneiro. Aquele que trescalava perfume Fleur d´Amour, arriscando-se a que o farejassem mais rápido na caatinga. O apreciador do uísque White Horse. O que não se desfazia da máquina de costura Singer. O que se adornava de ouro roubado às madames e coronéis. Esses pormenores levam certos intérpretes a vislumbrar e até mesmo ressaltar um vezo feminino no cangaço, porventura incitados pela moda atual de inclusão ampla de homossexuais, de quase pregação do homossexualismo e suas variantes. É fato – o acervo fotográfico atesta-o em parte – que os vaidosos cangaceiros usavam brincos e colares, enchiam os dedos de anéis, tinham lenços de seda importados. Os de Lampião traziam bordadas as iniciais CVFL (Capitão Virgulino Ferreira Lampião). O capitão do cangaço tolerava a mancebia, os afrescalhados, consentia de bom grado que um cabra lhe fizesse cafuné. Assim diz Daniel Lins, autor de tese de doutorado sobre Lampião, na Sorbonne. Nega-lhe, paradoxalmente, a condição de gay. Não seria de estranhar se afirmasse. Até Jesus Cristo já foi recrutado. O historiador Frederico Pernambuco de Melo ameniza sugestões de tal ordem. A seu ver, o cangaço antecipou no Brasil a onda feminista: pela primeira vez, acentua ele, homens dividiam com mulheres os serviços caseiros; pela vez primeira as saias subiam acima dos joelhos e o machismo cedia terreno. 155 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Grota do Angico Acompanhado de Maria Bonita e dez cangaceiros, o Rei Vesgo atravessou o Rio São Francisco, a vau, sujeitando-se a perder na água o “corpo fechado” que lhe atribuía a crendice popular, e acampou a 800 metros do lado sergipano, em terras da Fazenda Angico, município de Poço Redondo. Era mais um esconderijo a que o levava o coiteiro Pedro de Cândido. Estrategicamente, o sítio chamado Grota do Angico era recluso, mas com a desvantagem de encostas pedregosas. Entravase pelo arenoso leito seco de um córrego e, uma vez fechado o acesso, em baixo, a grota se converteria em armadilha. Raiava o dia 28 de julho, 1938. Às 5h30 o grupo ainda dormia quando a tropa alagoana do tenente Bezerra, com fuzis e três ou quatro metralhadoras, dispostos em quatro grupos, cercaram o grotão. O coiteiro Pedro de Cândido, vítima de denúncia, fora torturado à ponta de punhal pelos “macacos”, que lhe arrancaram as unhas, e cedeu. Durou 15 minutos a fuzilaria. Lampião, um dos primeiros a despertar, foi também o primeiro a tombar morto. O cangaceiro Luís Pedro teria furado o cerco e escapado, se não voltasse a chamado de Maria Bonita, que lhe lembrava a promessa de morrer ao lado do chefe. Havia mais quatro mulheres: Maria de Juriti, Dulce de Criança, Enedina de Cajazeiras e Sila de Zé Sereno. A rainha do sertão levou uma bala na cabeça, quando escalava uma encosta. Cortadas as cabeças dos cangaceiros, a tropa atirou-se ao saque. Na ânsia de arrebatar joias e dinheiro, decepou dedos e pulsos, conforme diz Ivanildo Silveira, de Natal, Rio Grande do Norte. O próprio Bezerra, autor do livro Como Dei Cabo de Lampião, é acusado de ter-se portado com extrema crueldade. Urubus cevaram-se nos corpos e morreram – o que levantou a hipótese de envenenamento prévio dos facínoras, mas é que tinham preservado os restos mortais com cal e creolina. As cabeças dos 11 mortos foram expostas nas escadarias de Piranhas, depois em 156 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Santana do Ipanema e Maceió. A macabra mostra itinerante durou anos, até as cabeças serem recolhidas ao Instituto Nina Rodrigues, em Salvador, e posteriormente sepultadas por pressão de intelectuais e do clero. Corisco Esta saga sertaneja – não apenas o cangaço sempre permeado de jagunços e pistoleiros de aluguel – é encerrada em 1940 pelo antigo lugar-tenente de Virgulino, o sedutor Corisco, alagoano de porte atlético e comprido cabelo loiro, inspirador do cineasta Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Passados cinco dias da degola no Angico, ele remete ao tenente Bezerra as cabeças de Domingos Ventura (ou seria Pedro de Cândido?) e mais quatro pessoas da família, instigado por Joca Bernardo, que os supunha denunciantes. Com o seguinte bilhete, segundo José Mendes Pereira: “Faça uma fritada. Se o problema é cabeça, aí tem em quantidade”. Pedro de Cândido morreu misteriosamente em 1940. O cangaço à Lampião estava disperso e desmotivado. O Diabo Loiro encerrou as atividades, reuniu pequena fortuna e enfurnouse com Dadá no interior da Bahia. Queria viver em paz. Vargas dera anistia aos cangaceiros remanescentes; no entanto, emboscado pelo coronel Rufino numa casa de farinha, em Barra do Mendes, ele optou pela resistência heroica. Baleada, Dadá teve de amputar uma perna – e sobreviveu. REFERÊNCIAS E NOTAS: ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa de. Assim Morreu Lampião. São Paulo: Editora Traço, 1982. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Brasília: MEC, Instituto Nacional do Livro, 1972. 157 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 ____ .Flor de Romances Trágicos. Rio de Janeiro, 1966, s/n. FONTES, Oleone Coelho. Lampião na Bahia. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 1988. GRUNSPUN-JASMIN, Élise – Lampião, Senhor do Sertão: Vida e Morte de um Cangaceiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. MACEDO, Nertan. Capitão Virgulino Ferreira Lampião. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1970, 3a edição, 233 p. MORAIS, Walfrido. Jagunços e heróis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. PRATA, Ranulpho. Lampião. Rio de Janeirto: Ariel, 1934. SENA, Davis Ribeiro. As revoltas tenentistas que abalaram o Brasil. Brasília: 2004. Nota: O autor consultou textos postados em blogs por autores citados ao longo deste ensaio. Também recorreu aos portais “São Francisco”, “Lampião Aceso” e “Sama Multimídia”, igualmente na internet. Hélio Pólvora é jornalista, crítico literário, ensaísta, tradutor e, principalmente, ficcionista; publicou recentemente os romances Inúteis Luas Obscenas (São Paulo: Casarão do Verbo, 2010) e Don Solidon (idem, 2012). Desde 1994 ocupa a Cadeira nº 29 da ALB. 158 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Virgolino, Cícero, José e Antônio: Beatos e Cangaceiros, Apenas? Maurício Melo Júnior O sertanejo, pelas crenças aprendidas no berço, é profunda- mente religioso, e também violentamente corajoso, uma necessidade da condição de isolamento em que vive ainda hoje. Sozinho diante do ermo foi obrigado a construir meios de sobrevivência com as próprias mãos, inclusive se defendendo de animais predadores – a suçuarana, a cascavel – e de salteadores – os cangaceiros, a própria polícia –, uma constatação, até certo ponto, óbvia reafirmada por Djacir Menezes. Para o pesquisador cearense foram essas condições sociais e climáticas que levaram essa gente ao fanatismo religioso e ao cangaço. Nem tanto a mar nem tanto à terra, diz o adágio. A partir de uma leitura de Luís Câmara Cascudo, sobretudo, o caráter social do sertanejo é bem mais amplo. Tanto o cangaço quanto o fanatismo religioso não têm sua origem e suas consequências somente, respectivamente, nas lutas sociais internas e na ignorância. Em outras palavras, e situando bem o problema, não foi apenas o desejo irreprimível de vingança que manteve Lampião por tantos anos no cangaço, como também não foi Canudos um ajuntamento de fanáticos enlouquecidos pelas pregações religiosas do Conselheiro. Enquanto Lampião via na resistência armada sua única maneira de se manter com vida, posto que, mesmo 159 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 depondo as armas, seria caçado até o fim, ou seja, defendia sua parcela de poder, pois se sabia o último remanescente de uma época, Antônio Conselheiro não buscava na Vila do Bom Jesus formar somente uma comunidade religiosa, mas tinha claras intenções de inaugurar uma nova vertente econômica e social no sertão. O caldo de cultura maturado pelo isolamento – novamente ele – foi que levou o sertanejo aos extremos do messianismo e da violência. Uma olhada, mesmo superficial, nas populações que formavam – e de certa maneira ainda formam – estas comunidades facilmente se percebe uma imensa maioria de desesperançados, de quase excluídos, de homens e mulheres com pouquíssimas oportunidades de sobrevivência que buscam na condição gregária uma maneira de permanecer no mundo. “As coletividades anormais” identificadas por Nina Rodrigues, antes de uma deformação do caráter, como queria o brilhante pensador, são mesmo uma deformidade social. Aliás, ele mesmo, Nina Rodrigues, sinaliza na influência do meio mesmo sem conseguir descartar o pressuposto da loucura como motivador das ações do Conselheiro. Antônio Conselheiro é seguramente um simples louco. Mas a sua loucura é daquelas em que a fatalidade inconsciente da moléstia registra com precisão instrumental o reflexo senão de uma época pelo menos do meio em que elas se geraram. (...) É examinada por este prisma que a cristalização do delírio de Antônio Conselheiro no terceiro período da sua psicose progressiva reflete as condições sociológicas do meio em que se organizou (RODRIGUES, 2006, p. 42-43). O cangaço – e isso é ponto pacífico entre os pesquisadores do fenômeno – nasceu ainda durante os tempos idos do isolamento mais intenso. Vivendo com a ausência de qualquer proteção estatal, os primeiros colonizadores da região, para defesa do parco patrimônio que tinham, formavam grupos de proteção de suas posse com homens armados e dispostos a combater os possíveis ladrões, inclusive os matando. Assim a violência, mais que o crime, 160 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 nascia de uma necessidade de resistência. E esta consciência ficou marcada como condicionante cultural daquela gente. O sertanejo não admira o criminoso mas o homem valente. Sua formação psicológica o predispõe para isso. Durante séculos, enquistado e distante das regiões policiadas e regulares, o sertão viveu por si mesmo, com seus chefes e milicianos. (CASCUDO, 2005, p. 166). Era o tempo e a convivência íntima que geravam as desavenças entre chefes e milicianos. Esses, os milicianos, não tinham uma segunda alternativa, partiam em busca de novos chefes, por vezes até inimigos figadais do primeiro. Muitos ficavam pelas estradas vendendo seus préstimos às necessidades de chefes tanto quanto fosse possível. Estava criado o cangaço, um fenômeno que, na forma primitiva, se manteve até 1938, ano em que Lampião foi assassinado na Gruta do Angico, em Sergipe. Hoje aqueles grupos estão transfigurados nas milícias pagas pelos senhores da terra – e já não apenas no sertão – para se defenderem, sobretudo, das muitas vezes justas reivindicações dos movimentos sociais organizados, como o Movimento dos Sem-Terra. Também é consequência do cangaço os matadores de aluguel contratados por poderosos das cidades e dos campos e já sem a motivação da defesa, mas primordialmente da reação à contrariedade de algum interesse. Esse é um fenômeno hoje tão urbano que toma conta das favelas do Rio de Janeiro, onde até ex-soldados e rapazes que prestaram o serviço militar obrigatório são recrutados pelos traficantes de drogas. A gênese do cangaço, certamente, fermentou em seus participantes a consciência da profissão. Em geral o cangaceiro se dizia um profissional, um homem que, por falta de outros recursos, alugava sua coragem. Muitos crimes precisavam acontecer e ele, o cangaceiro, trazia a disposição de executá-los, e disso não tinha remorsos. Ele, muitas vezes também um injustiçado, tomava para si as dores do mundo. E se orgulhava de 161 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 matar como parte de sua estratégia de sobrevivência, mas nunca roubava. Naturalmente que também roubava, saqueava vilas e fazendas, mas para a psicologia do cangaço estes atos eram confiscos de um bem que, de fato, já pertencia a ele, o cangaceiro. Vale lembrar novamente sua condição de injustiçado, de homem a quem tiraram quase todas as condições de sobrevivência. E mesmo que isso não fosse verdade, era assim que se sentiam os homens que corriam em bandos armados o sertão. O curioso era que as comunidades sertanejas de então temiam mais as volantes, as forças policiais, que os próprios cangaceiros. Daí a imensa rede de coiteiros que apagavam o rastro dos bandos de cangaceiros. A verdade é que a polícia se confundia com os cangaceiros. Vestiam-se iguais e tinham por base de qualquer ação a violência pura e simples. E na ânsia de cumprir sua missão e ganhar glória e até fortuna, eram, os soldados, bem mais violentos que os cangaceiros. Apesar de ganhar fortunas, o cangaceiro não tinha como usufruir desses bens. Muitos saíram com vida da profissão do cangaço, mas, talvez com exceção de Sinhô Pereira, todos estavam empobrecidos. Sinhô Pereira se fez exceção porque, no auge de seus sucessos, entregou o bando aos cuidados de Lampião e se refugiou, primeiro em Minas Gerais e depois em Goiás, onde viveu como fazendeiro até sua morte já na década de 1970. Chegou a tentar convencer Lampião a fazer o mesmo, mas Virgolino, talvez por questões de fórum íntimo, preferiu seguir sua sina. Cangaceiros afamados, como Antônio Silvino e Volta Seca, cumpriram toda sentença determinada pela justiça e deixaram a prisão para viver praticamente na miséria. Volta Seca ainda chegou a ser modesto servidor ferroviário no Rio de Janeiro, mas Antonio Silvino morreu morando de favor na casa de uma prima em Campina Grande, na Paraíba. A perda da fortuna pelos cangaceiros se deve, sobretudo, ao incentivo extra dado pelo governo aos soldados das volantes. Eles podiam ficar com tudo aquilo que estivesse em poder dos cangaceiros que matassem ou 162 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 prendessem. Há depoimento de soldado que com o dinheiro e as joias que tirou do embornal de apenas um cangaceiro comprou mais de uma fazenda e passou a criar a família como um próspero senhor de terra. Certamente não se pode falar no cangaço como uma guerra maniqueísta entre pobres injustiçados e ricos desumanos. Havia igualdade de funções nas comunidades sertanejas. Os homens do sertão, embora mantivessem o rigor da hierarquia – as terras tinham dono e o dono, empregados – conviviam com proximidade. Também não se pode falar no sentimento altruísta de tirar dos ricos para se dar aos pobres. O cangaceiro queria sua fatia de poder e, consciente ou não, sabia da força que trazia em sua arma e em sua coragem. O fenômeno surgiu, repita-se, com a justa descrença no poder institucional, e se firmou como uma tentativa de constituição de um poder paralelo – o poder da força. Aos poucos, pela própria necessidade do meio, este poder foi migrando dos senhores de terra para os chefes de bando. Isso faz do cangaço mais que um fenômeno social, um fenômeno de conquista e posse de poder. Vale alertar, não é outro o jogo que hoje se joga nas favelas cariocas. A força do medo, a lei das armas dominando comunidades inteiras. Voltando ao sertão, a gesta de Virgolino Ferreira Lampião exemplifica bem como se deu esse processo. Até 1916 Virgolino era um tangerino com grandes habilidades para trabalhar o couro e tocar sanfona. Nesta época, enquanto a família Ferreira viajava para o Juazeiro do Norte, numa visita de devoção ao Padre Cícero Romão Batista, um certo João Caboclo, morador da fazenda Pedreira, vizinha do sítio dos Ferreira e de propriedade de Saturnino Alves de Barros, conhecido por Zé Saturnino, roubou e matou umas cabras dos Ferreira. Virgolino descobriu o roubo, mas o ladrão, sob a proteção de Zé Saturnino, ficou impune. A pendenga foi parar nas mãos do Major Lucena, autoridade policial de Vila Bela (hoje Serra Talhada), que, enfim, 163 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 abriu a guerra matando José Ferreira dos Santos, o pai da família. A partir daí, junto com os irmãos Antônio e Levino, Virgolino entra para o bando de Sinhô Pereira, tornando-se Lampião, uma lenda, uma figura quase mítica. Lampião tinha um refinado senso para a luta. Ele renova a forma de combate ao estabelecer os ataques rápidos e surpreendentes às vilas sertanejas. Também os planejava mandando alguns de seus cabras disfarçados para conhecer a situação do ambiente que seria atacado. E, na caatinga, usava tática de guerrilha, dividindo seu bando em vários pequenos grupos que se multiplicavam para fugir e atacar os inimigos. Isso diminuía em muito o risco de suas ações e explica sua permanência por mais de vinte anos na profissão do cangaço. A capacidade de renovação e interferência de Virgolino no cangaço não ficou restrita ao combate. Para se diferenciar cada vez mais dos soldados das volantes, criou uma nova estética, com chapéus estrelados e roupas bordadas. Também venceu as resistências naturais do machismo ao admitir que mulheres entrassem para o bando e até participassem de combates. No entanto seu objetivo era a guerra e neste aspecto conseguia através de sua vasta rede de proteção armamentos modernos e potentes, muito superiores aos usados pelas forças oficiais. A morte de Lampião, assassinado pela volante do capitão João Bezerra, da polícia de Alagoas, somente foi possível depois de uma série de traições sofridas pelo chefe de bando. Daí nasceu a lenda. As histórias contadas misturam fatos reais com a fertilidade da imaginação popular. Apesar desse fator, é possível concluir que Lampião teve consciência de seu poder e de sua incapacidade de viver como foragido. Mesmo se estabelecesse um pacto para cumprir alguns anos de prisão, seria assassinado. Sua fama e os anos em que desmoralizou a polícia de todo o Nordeste legoulhe uma tão intensa força de inimigos, que nem mesmo o governo federal seria capaz de garantir sua vida. Mesmo que procurasse, a exemplo de Sinhô Pereira, viver anonimamente em Goiás. 164 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Com Lampião fechou-se o ciclo do banditismo errante, independente, no entanto sua cultura permaneceu. Durante os anos seguintes matadores de aluguel continuaram atuando sob a proteção dos poderosos e já não apenas no sertão. Na década de 1970 um dos escândalos políticos de Alagoas foi a descoberto de uma instituição estadual, o Sindicato do Crime, onde estes pistoleiros se reuniam até mesmo para estabelecer o preço para cada serviço. A macabra tabela era definida a partir da profissão e da importância da vítima. Já na década de 1990, no município de Camaragibe, na região do Grande Recife, Helinho, conhecido como Pequeno Príncipe, foi preso acusado de matar 65 bandidos a soldo dos comerciantes locais. Orgulhava-se de ser justiceiro de profissão e matar somente ladrões, chamados por ele de “almas sebosas”. Helinho foi assassinado na prisão. É a transferência do sistema de defesa dos sertões, inclusive com o mesmo orgulho de só matar ladrões, para o asfalto, as grandes cidades, e intensamente encrudelecida pela ausência da autodefesa e pela falta de um sistema policial eficiente. A outra face do caráter do sertanejo apontada por Djacir Menezes e secundada por outros tantos pesquisadores, como Rui Facó, também ainda sobrevive. O histerismo religioso pode ser facilmente encontrado nas igrejas milenaristas modernas, as igrejas messiânicas que prometem vida melhor não apenas no céu, mas também na terra – o milenar sonho da terra prometida, de Canaã, encorpada desde sempre no misticismo de todo o mundo, particularmente no nordestino. No entanto, como este fenômeno se estabeleceu nas comunidades sertanejas, sobretudo ao longo dos séculos XIX e XX? As pequenas e isoladas comunidades povoadoras dos sertões do Nordeste brasileiro, em suas carências religiosas, foram servidas por padres missionários. A chegada desses religiosos provocava festas de devoções onde era possível ajustar todas as contas com as coisas do além através das confissões, das novenas, das missas, dos casamentos, dos batizados. Durante o resto do tempo o sertão 165 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 ficava ao deus-dará, cumprindo de maneira quase independente as devoções sagradas. Isoladamente rezava-se nas datas consagradas aos santos que se tomavam para padrinhos seguindo as informações do Lunário Perpétuo. Esta devoção, digamos, meio independente ou plenamente desassistida, naturalmente gerou peculiaridades. É próprio da religiosidade sertaneja, ainda hoje, a prática de preceitos muito rígidos, de rituais que datam ao medievalismo. As imolações com cordões dotados de lâminas nas pontas constantemente jogados nas costas feridas dos penitentes ainda é comum na Semana Santa sertaneja. Muitos acreditam que esta é a mais eficiente forma de dialogar com o eterno e, assim, ser atendidos em seus pedidos. Os pedidos também seguem uma hierarquia na qual principalmente se reivindica melhor vida terrena. O sertanejo pede sempre um inverno suficientemente bom que lhe proporcione uma colheita farta. Quer possibilidade de trabalho, não esmola. Pede que o Divino lhe dê um lugar de fartura, como o mítico País de São Saruê descrito no folheto de cordel escrito pelo poeta Manoel Camilo dos Santos, onde os rios eram de leite e os barrancos de cuscuz. Na busca da Terra da Provisão é que está a raiz da migração nordestina, do êxodo rural. A perspectiva de melhores condições de sobrevivência levou estes homens a colonizarem a Amazônia, a enfrentar o frio, a falta de especialização e a indiferença em São Paulo da industrialização começada nos anos de 1920. No fim da viagem quase sempre há a sentença cruel dos versos de Patativa do Assaré. “Distante da terra tão seca, mas boa, / Exposto à garoa, / À lama e ao paú, / Faz pena o nortista, tão forte, tão bravo, / Vivê como escravo / Nas terra do Su” (ASSARÉ, 1978, p. 92). Todos os líderes messiânicos, não apenas no Nordeste, partem da promessa de uma nova Canaã, muitas dessas promessas feitas até de maneira inconsciente. É o que acontece com o Padre Cícero Romão Batista, polêmica figura sertaneja. Câmara Cascudo o enxerga de maneira dúbia, prenhe de contradições. 166 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Um ambiente de fanatismo irreprimível cerca-o. Riquíssimo proprietário, senhor feudal, o Padre Cícero deixou tudo quanto possuía para os Padres Salesianos. (...) Dominador de valentes, guia de guerrilhas, decididor de eleições, dono de riquezas, ficou vivendo sem fausto, e alarde, conservando-se em pureza eclesiástica. Sua vaidade era dizer-se influentíssimo em acontecimentos inteiramente acima de sua fama. Afirmava dever-lhe o Mundo a terminação da Guerra de 1914-1917, a continuação das Obras contra as Secas, a vitória da Revolução de 1930, o sucesso de chefes da Nação e administradores estaduais. Simples, afável, acolhedor, caritativo, nunca atuou como uma força civilizadora. Não educou nem melhorou o nível moral de seu povo. Antes, desceu-o a uma excitação febril, guardando segredos de perpétua irritação coletiva, para mais decisiva obediência geral (CASCUDO, 2005, p. 142 -143). Djacir Menezes, por seu turno, traça um excelente e revelador perfil do velho padre. Já por volta de [18]77, durante a seca, a ação do Padre Cícero Romão Batista atraía a atenção daquela gente ingênua e crédula. Iniciando o plantio da mandioca e maniçoba na Serra do Araripe, desenvolvendo atividade constante no seio das populações rurais, despreocupandose de dinheiro, conquistava rapidamente o espírito simples dos trabalhadores. Os que o visitaram longos anos depois, a título de estudá-lo um tanto apressadamente, como o ilustre pedagogo Lourenço Filho, procuraram descobrir-lhe, na fisionomia e na personalidade, algo que é apenas reflexo da leitura impressionante dos Sertões: “saliência de malares, prognatismo de lobo, rítus indisfarçável e sinistro, orelhas largas, abertas em leque, nariz quase recurvo...” Nesse retrato literário, pintado pelo escritor paulista, é realmente irreconhecível o velho que nós vimos, sem qualquer ação pessoal forte, sem nenhuma fácies de místico flamejante. Igual a qualquer padre velho do sertão (MENEZES, 1970, p. 100). A verdade é que o padre Cícero é o grande responsável pelo desenvolvimento social do sul do Ceará, o Cariri, uma região que 167 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 tem índice de desenvolvimento humano bem acima da média do restante do Nordeste, e até de muitas outras regiões do país. Ele conhecia em profundidade o Cariri cearense, pois, além de sua indiscutível inteligência, nasceu no Crato em 24 de março de 1844 e conviveu por toda a vida com a miséria de uma população cercada pelos latifúndios de criação de gado, embora estivesse no sopé da serra do Araripe, farta em água e capaz de promover a redenção econômica do lugar. Talvez sua pretensão fosse meramente religiosa, mas o fato é que interferiu economicamente e transformou o Juazeiro do Norte e seus arredores, senão no País de São Saruê, pelo menos numa terra de bem melhores condições de sobrevivência e de maiores oportunidades. Câmara Cascudo conta que o padre Cícero ordenou-se presbítero em 30 de novembro de 1870. Em 11 de abril de 1872 fixou-se no Arraial do Juazeiro, entre Missão Velha e Crato. O povoado tinha cinco casas de telha, trinta choupanas de palha e uma capelinha em ruínas. Em 1911 Juazeiro era vila, sede de município. Em 1914 cidade, com trinta mil almas (CASCUDO, 2005, p. 142). Como se deu esta explosão populacional? A tradição conta que o padre se instalou no Juazeiro depois de ter sonhado com o próprio Jesus Cristo o ordenando a tomar conta daquele modesto e miserável rebanho. E aquele, ainda segundo a tradição, não seria um rebanho comum. O povoado era pouso de tropeiro e todo tomado por bêbados, desordeiros e prostitutas. Logo o padre Cícero começa a ganhar fama de milagreiro com o trabalho de mudanças radicais na comunidade, que paulatinamente ganha um caráter pio. Muitos são os casos de conversão daquela gente ao catolicismo mais ortodoxo. A mais conhecida dessas conversões é a da prostituta Francisca Belmira, que vivia fazendo escândalos e cantando versos populares lascivos. Já no primeiro encontro que teve com o padre sofreu um surto de arrependimento e pediu 168 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 para ser confessada. Depois da confissão tornou-se uma mulher respeitável e religiosa. Morreu aos 85 anos, respeitada por todos e apontada como exemplo às prostitutas que chegavam ao Juazeiro. A fama de milagreiro se intensifica na seca de 1877. Multidões de desassistidos da sorte invadem o Juazeiro em busca de comida. O padre os encaminha para as terras férteis da chapada do Araripe. Famílias inteiras ali se instalam plantando macaxeira e cuidando de pequenas criações, o que salvou todo o povoado da fome e da miséria da seca. A sobrevivência, no entanto, foi creditada no rosário de milagres do padre. O mais difundido e polêmico “milagre” do padre Cícero Romão Batista, no entanto, teria acontecido em março de 1889. Ao dar a comunhão à beata Maria Madalena do Espírito Santo de Araújo a hóstia teria ficado vermelha. Para o povo era o sangue de Cristo que teria se materializado na boca da beata. Isso teria acontecido outras vezes, mas foi mantido em segredo e somente revelado dois anos depois, em 1891. Em abril de 1894, a própria Santa Sé julga o caso da beata. Nega o milagre e proíbe as medalhas que já haviam sido estampadas com a imagem de Maria de Araújo. E mais: padre Cícero tem dez dias para sair do Juazeiro, sob pena de excomunhão, sendo proibido de celebrar atos religiosos. Em obediência às determinações da Igreja, vai residir em Salgueiro, no estado de Pernambuco (JATOBÁ, 1996. p. 12). Até hoje se discute os milagres obrados pelo padre Cícero. A crônica popular enumera incontáveis casos, todos contestados pelas autoridades eclesiásticas. Também é a voz popular que pede sua canonização, algo bem mais complicado. Entre os empecilhos para a santificação do mais popular dos milagreiros nordestinos está o fato, este real, de sua liderança sobre o grupo de jagunços que, em 14 de março de 1914, sitiou Fortaleza e conseguiu depor 169 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 o governador Franco Rabelo. Esta revolta, na verdade, foi uma reação da população do Juazeiro, liderada pelo médico baiano Floro Bartolomeu, aos ataques promovidos pelo estado para acabar com a comunidade mística que dava imenso poder político ao padre Cícero. Quando morreu, no Juazeiro, em 20 de julho de 1934, padre Cícero, que fora prefeito da cidade, vice-presidente do Ceará e deputado federal – nunca foi ao Rio de Janeiro assumir o mandato – já não tinha tanto poder político. Os vitoriosos da Revolução de 30 sequer se deram ao trabalho de nomear um preposto do padre como interventor da cidade. No entanto até hoje a igreja local vive da verdadeira histeria religiosa que se criou em torno de sua imagem. E Juazeiro tornou-se o maior centro de peregrinação de todo o Nordeste, o que gera uma corrente turística responsável pela principal base de rendimento do Cariri como um todo. O misticismo sertanejo teve – talvez de maneira involuntária, repita-se – este espírito civilizador. E até revolucionário em muitos casos. O Caldeirão é um desses episódios. Em linhas gerais sua história começa com a chegada ao Juazeiro de José Lourenço Gomes da Silva. Vinha da Paraíba, onde trabalhava como alugado em latifúndios e não tinha qualquer perspectiva de prosperidade. Foi para o Juazeiro em busca da vida melhor oferecida pelo padre Cícero. Ganhou a confiança do padre e transformou-se no beato José Lourenço, que, aconselhado pelo reverendo, arrendou as terras do sítio Baixa do Dantas. Ali fundou uma comunidade com preceitos cooperativistas. Toda produção era dividida por todos, o excedente vendido e os lucros revertidos à própria comunidade. A prática despertou a atenção dos fazendeiros locais, já inquietos com a ascensão política do padre Cícero. Como o beato havia ganhado a guarda do boi Mansinho, que Delmiro Gouveia dera ao padre Cícero, intensificou-se o boato de que o animal era adorado como um Deus na Baixa do Dantas. Djacir Menezes 170 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 afirma que “o beato José Lourenço não duvidou em apresentar o boi como autor de milagres, revivescência de formas do pensamento animista das culturas sociais do Continente Negro” (Menezes 1970, p. 104). Floro Bartolomeu, o médico baiano que tinha forte influência sobre o padre do Juazeiro, inconformado com a situação, mandou matar o boi e prender o beato. Libertado por influência do padre Cícero, Lourenço foi instalado com sua comunidade pelo próprio padre na fazenda Caldeirão dos Jesuítas, na zona rural do Crato. Ali viveu em paz e em crescente prosperidade até a morte de seu protetor em 1934. Acusados de fanáticos, santarrões, os moradores do Cadeirão foram trucidados em uma guerra promovida pela Polícia Militar Cearense em conjunto com o Exército, que chegou a usar aviões para massacrar a comunidade. Acredita-se que tenham morrido no massacre mais de quatrocentas pessoas, enterradas numa vala comum aberta num local até hoje não revelado pelo Exército. Pelo menos três dos mortos – denominados de São Cosme, São Pedro e São Anastácio – foram macabramente expostos como exemplo nas ruas do Juazeiro. O beato José Lourenço conseguiu fugir ao cerco e morreu, em 12 de fevereiro de 1946, de peste bubônica, em Exu, sertão de Pernambuco. Sua difamação, no entanto, permanece. Em O Outro Nordeste Djacir Menezes, talvez por escrever tão próximo de todo o fenômeno (a primeira edição do livro é de 1937), oferece uma versão histórica deturpada, embora sua análise aproxime-se dos verdadeiros motivos formadores do Caldeirão. Este “penitente” negro desaparece algum tempo da cena caririense. Eis, porém, que reponta, inesperadamente, após a morte do Padre Cícero, como centro de atração de fanáticos, em pleno ano de 1936, no sítio Caldeirão, nas proximidades do município de Juazeiro, impressionando seriamente as autoridades do Estado. (...) 171 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 O beato vivia com algumas virgens, uma dezena, talvez. A convivência refletia algo da mítica africana, diluída nos candomblés caboclos: pais de santo e filhas de terreiro. (...) A polícia destruiu o povoado, que crescia, abrindo um parêntese na ordem pública. Parêntese de desordem? Não. Parêntese silencioso e ordeiro – mas diferente. Destruindo-o, não destruiu as raízes sociais que o geraram. Não eliminou as causas históricas e econômicas que criam o clima social em que se abrem as corolas de superstições retrospectivas de protestos. Porque não são fatores meramente psicológicos que as determinam. Nunca é demais insistir no estribilho ao correr destas páginas. Batemos a mesma tecla. O comportamento social do fanático é suscitado pelo estado de uma sociedade de retardamento cultural e desequilíbrio estrutural profundo: e na base emocional comum, amalgamam-se influências as mais díspares (MENEZES, 1970, p. 104 -105). Menezes claramente se apoia no discurso preconceituoso do momento em que escreveu seu livro – 1937 – para oferecer uma versão, repita-se, deturpada do fenômeno. Em 1986 o cineasta Rosemberg Cariry realiza um documentário – O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto – onde, a partir do depoimento de sobreviventes da época, consegue reconstituir a verdade histórica. O Caldeirão foi uma comunidade de orientação comunista – no sentido de organização social, não ideológico – massacrada pelo poder político e econômico dominante na época, temente de uma mudança radical na forma de produção tradicional da região. Este mesmo sentimento foi partilhado pelo escritor Cláudio Aguiar em seu romance Caldeirão, A Guerra dos Beatos, publicado em 1982. Assim chegamos a Canudos, que sofreu a mais trágica retaliação oficial – uma guerra real, um extermínio puro e simples de toda uma comunidade – e que, ainda hoje, resguarda toda uma pecha de preconceitos. E tudo ditado pelo discurso dos vencedores, sempre a tachar seu líder, Antonio Conselheiro, como um louco dado a surtos de intenso fervor religioso. Sequer o libelo escrito 172 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 por Euclides da Cunha – Os Sertões –, publicado em 1902, que alertou para a imensa distância entre o Brasil real – Canudos – e o Brasil oficial – as tropas regulares –, conseguiu restaurar toda a verdade em torno dos fatos. Uma leitura mais atenta dos documentos e escritos produzidos sobre o episódio abre uma nova porta de interpretação. O Belo Monte era uma vila ordeira e pautada pelos mais profundos preceitos religiosos. Em momento algum pode ser vista como um velhacouto de bandidos conduzidos ao bel-prazer de um louco enfurecido, um monarquista capaz de derrubar a nascente República, como diziam seus inimigos de então. O Conselheiro abrigava a todos – e aí não faltavam ordinários, bandidos mesmo que, por vezes, corriam em busca de perdões celestiais. Fato também é que a todos procurava regenerar com sua pregação escudada na moral e no que considerava os bons costumes. Ninguém vadiava. O trabalho era quase uma obrigação, segundo depoimento de Manuel Benício, o jornalista pernambucano que esteve no Belo Monte durante toda a contenda e publicou ainda 1899 um longo relato – O Rei dos Jagunços – em que faz certa justiça ao Conselheiro. O tesouro da comunidade engordava, em virtude do dízimo que cada um oferecia de seus lucros. (...) As margens frescas do rio eram cultivadas com plantações de diversos legumes, milho, feijão grugutuba, favas, batatas, melancias, jerimuns e melões, cana, etc. Nos terrenos arenosos viam-se milhares de matombos, grelando o talo tenso das mandiocas e outros com estacas de diversos tamanhos. Pela vizinhança, os pequenos cultores da terra, em Canudos, possuíam sítios, pomares, fazendolas de criação de bode, animais vacuns e cavalares, praticando em sofrível escala o cruzamento do asno com a égua ou jumenta com o cavalo. As mulheres não estavam inativas. As mais pobres e miseráveis fabricavam farinha de bró e parreira. Traziam das caatingas as linhas do uricuri – coqueiro – que depois de raspadas eram esmagadas a macetes e piladas no gral bojudo de madeira de lei. Em seguida 173 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 passava-se na urupema a massa úmida do pau pisado, a qual peneirada ia para o forno em farelo ou cuscuz. (...) As moças fabricavam redes de crauá, indo buscar nas caatingas feixes destas bromélias de que tiravam as fibras da casca verde, pilando-as e deitando-as em seguida ao sol para enxugar. Secas e desfiadas eram tecidas como algodão no fuso, seguindo daí para os teares. (...) Outras mulheres faziam sal da terra, preparando-o por um método rudimentar. Enchiam de terra salobra uma panela filtrada, por uns furos no fundo. Sobre a terra despejavam água que se escoava em pingos pelos furos, dentro de um tacho de bronze que ia ao fogo até ferver; fazendo evaporar-se parte da água enquanto a outra transformava-se numa massa alva que refinava. Estava feito o sal, em porção suficiente para o tempero, e para suprir os inúmeros curtumes que ladeavam a beira do Vaza Barris, e existiam nos tanques de pedras abertas pelas mãos da natureza, nas chapadas dos serros. Enquanto isto, o malho dos ferreiros, batendo nas bigornas e zunindo como um grito de araponga, anunciava que não havia falta de foice, faca, chuchos, machados, etc., no arraial. (...) Conselheiro dentro do Santuário meditava. Era tempo de meter mãos, com fervor, à grande obra que iniciara paliativamente. Havia no cofre dinheiro suficiente para a construção de dez igrejas e povo vadio e devoto para trabalhar por penitência, devoção e parco jornal. (Benício, 1997, p. 170 -174). A longa citação demonstra que havia efervescência também econômica em Canudos e que o Conselheiro sonhava com uma Canaã em pleno sertão. Como falava por parábolas, como qualquer orador de rígida formação religiosa, talvez sua frase mais famosa – o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão – retratasse esse desejo concreto. O sertão de seu tempo era o espaço natural das mazelas e do abandono, enquanto o mar, a praia, era onde se abrigava todo progresso, toda fartura. Pelo seu sonho de visionário – que, diga-se, estava concretizando – o sertão se tornaria uma terra de bonança, de promissão; enquanto o mar, pelo desajuste moral de sua gente, cairia em desgraça, se transformando em terra de ninguém. 174 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Ele até estipulava um prazo para que isso se concretizasse: “Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão; então o certão virará praia e a praia virará certão” (sic). (CUNHA, 2009, p. 164). Em sua visão messiânica – pois era essa sua linguagem – precisava de poucos anos para que tudo florescesse. Os “rebanhos mil” já, em parte, estavam no Belo Monte, e as possibilidades dessa migração aumentar em 1896 era uma verdade indiscutível. E ele, o Conselheiro, certamente sabia do que falava. Era um homem experiente. Em Quixeramubim, com a morte do pai, tentou, sem sucesso, erguer o pequeno comércio que lhe foi legado já à beira da falência. Sabendo ler e escrever, conseguiu se manter, mesmo precariamente, servindo a vários fazendeiros cearenses. Sua desdita de fato começou com um casamento errado. Brasilina, a esposa, o traiu e foi flagrada. Ele perdoou, mas não conseguiu segurar a vergonha e preferiu seguir a missão que tomou para si – pregar o evangelho, construir igrejas e cemitérios. Curioso é que toda esta sua andança sempre o levava para a Bahia. Ali chegou a ser preso e mandado de volta para o Ceará. Sem qualquer culpa, foi libertado e voltou às peregrinações. Novamente em direção à Bahia, onde, finalmente, fundou a comunidade de Belo Monte. Pelos relatos da época, repita-se, era uma comunidade próspera e que estava quebrando o modo de produção de toda a região. Produzia diversificadamente e com abundância capaz de suprir não só o arraial, mas também parte da região. Enfim, criava-se ali um centro produtivo que fugia do controle dos poderosos locais. Talvez aí o pecado real do Conselheiro. Ele produzia couro, grãos, fibras, ferragem. E ainda mantinha o povo ordeiramente sob seu absoluto controle. Ou seja, gerava fortuna e obediência como qualquer coronel. O diferencial é que partilhava, sempre atendendo à necessidade de cada um, entre todos a riqueza. Daí começaram as intrigas e as brigas políticas para acabar com os projetos do Conselheiro. Vem a guerra, que, é bom 175 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 lembrar, não partiu dos moradores de Belo Monte. Eles haviam comprado e pago em Juazeiro, na Bahia, uma carga de madeira de lei para a construção da igreja. A madeira não foi entregue. Na defesa de seu direito, Conselheiro mandou seus homens cobrar a madeira. Em conversa com o vendedor estipularam um prazo para a entrega do produto ou a devolução do dinheiro. E, claro, voltariam neste tempo para reaver o que lhe era de direito. O alerta foi divulgado às autoridades estaduais como ameaça de invasão da cidade. E quem terminou invadido foi o arraial do Belo Monte. A resistência se fez fera. Derrotadas as tropas estaduais, vieram as tropas federais, e já aí a guerra era em defesa da República, afinal dizia-se na época que o Conselheiro era monarquista e queria restituir o trono à família real. O fato, no entanto, é que o líder messiânico se voltou contra o estado laico, o estado que acabou com a obrigatoriedade do casamento religioso e estipulou o casamento civil. E também contra o regime que vinha extorquindo os sertanejos com uma nova política de impostos. Até incitado por padres regulares, era contra isso que ele lutava. No entanto prevaleceu a pecha de monarquista e enlouquecido. Pelos documentos e escritos não se pode asseverar que houve em Canudos um apelo sebastianista, como aconteceu na Pedra Bonita. Ao contrário, Canudos fez a própria redenção – ou pelo menos tentou – sem qualquer delírio de restauração do império português. Claramente Belo Monte foi a construção, a partir de um líder messiânico, de uma comunidade independente e próspera, uma sociedade alternativa para o modelo de produção do sertão nordestino de antanho. E não pode ser confundido com um movimento de celerados fanáticos. Um sonho comunitário esmagado pela mentira de um roubo velado e que a República nascente tomou como se tudo fosse um atentado à instituição da nova ordem. E Conselheiro, coitado, que da República repudiava sua constituição como estado laico, terminou por pagar muito caro toda a conta. 176 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Não se pode esquecer, no entanto, que aconteceram muitos casos de movimento messiânicos, nos quais apenas o fanatismo puro e simples deu a tônica das ações. Pedra Bonita foi o mais célebre desses casos e certamente deve ter sido muito citado e comparado com Canudos durante o transcurso das batalhas na Bahia. Só que há diferenças e distâncias quilométricas entre eles. Tudo começou no ano de 1836 no sertão pernambucano. João Antônio dos Santos, morador de Vila Bela, atual Serra Talhada, exibia à população duas pedras assegurando serem brilhantes encontrados em uma mina que lhe fora revelada por el-rei Dom Sebastião, o jovem rei de Portugal desaparecido durante a batalha de Alcácer-Quibir, quando tentava conquistar aos mouros, os infiéis, as chamadas terras santas. Segundo João Antônio, o próprio Dom Sebastião o levara em um cavalo encantado até um sitio à beira de uma rica lagoa e duas torres de um templo onde estaria a mina. Com isso conseguiu reunir uma legião de seguidores na Pedra Bonita, o sítio descrito pelo líder messiânico. No dia 25 de maio de 1838 o intendente de Flores, vila do Vale do Pajeú, Pernambuco, coronel Francisco Barbosa Nogueira Pais, mandava ao presidente da província ofício comunicando a reunião clandestina de um grupo de fanáticos sebastianistas no sítio Pedra Bonita. Em 18 de junho era a vez do vigário de Vila Bela, o padre Francisco José Correia, publicar no Diário de Pernambuco uma carta descrevendo os acontecimentos considerados por ele um terror. Foram as primeiras acusações formais contra João, que se casara com Maria Moça, contra a vontade dos pais dela, e conseguiu juntar dinheiro e riqueza com a promessa de que devolveria tudo em dobro quando desencantasse o reino de dom Sebastião. Dizia-se então príncipe do Primeiro Reinado da Pedra Bonita e pregava o fim de qualquer posse. Ninguém era dono de nada e tudo era de todos. Foi esta pregação contra o poder e a propriedade que incitou os fazendeiros da região, que começaram a se armar para reagir aos fanáticos da Pedra Bonita. João não esperou a guerra e fugiu 177 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 para o Ceará. Seu cunhado João Ferreira, autoproclamado rei, dois anos depois, retomou as pregações dizendo aos seguidores que dom Sebastião estava encantado num castelo que havia sob as duas imensas pedras. Conseguiu reunir cerca de trezentas pessoas em uma comunidade de hábitos enlouquecidos e sem qualquer propósito senão o puro fanatismo delirante. Era aquilo que Nina Rodrigues, prenhe de razão, chamava de anormalidade coletiva. Ali os homens podiam casar-se com várias mulheres, ninguém fazia qualquer higiene pessoal, sequer as roupas eram lavadas, e ninguém precisava trabalhar, pois entidades divinas e poderosas iriam supri-los em tudo. Comiam pouco e bebiam em abundância um vinho sagrado. Passavam o dia rezando, cantando e dançando na espera do grande acontecimento. A volta triunfal de Dom Sebastião. No dia 14 de maio de 1838, João Ferreira anunciou que Dom Sebastião estava em profundo desgosto com eles, pois eram homens incrédulos, fracos, falsos e sem coragem de regar o campo encantado, nem de lavar as duas torres da catedral do reino com sangue para quebrar o encantamento e dar a todos uma vida melhor. Dezenas de pessoas foram sacrificadas para que o sangue fosse usado para lavar as pedras na purificação dos fiéis. No dia 17 de maio os crentes decidem imolar o próprio João Ferreira, acabando de vez a confusão. Ao contrário de Canudos e Caldeirão, a Pedra Bonita foi um movimento de fanáticos sebastianistas que, sob a liderança de pessoas enlouquecidas e oportunistas, consumiu-se em si mesmo. Um forte exemplo de como os limites da miséria e da desesperança dos homens podem levá-los ao desespero profundo. Outros movimentos – se é que podem ser chamados de movimentos messiânicos – continuam ponteando pelo sertão. Todos buscam se valer da crença ingênua da população, mas muitos produzem mais ações ridículas, risíveis, que qualquer sentido trágico. Foi o caso dos Borboletas Azuis. No ano de 1977 Roldão Mangueira de Figueiredo começou a pregar a chegada de 178 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 um novo dilúvio no início da década seguinte. O mundo voltaria a se acabar sob as águas e apenas seriam salvos aqueles que o seguissem. Seus crentes chegaram a cerca de setecentas pessoas. Andavam todos vestidos em compridas túnicas azuis e brancas e rezavam em louvor aos santos católicos. Como o dilúvio não aconteceu na data prevista por Roldão, nem depois, o movimento caiu em descrédito e tudo acabou numa imensa piada. Em linhas gerais, é o desespero da miséria que leva o sertanejo para o messianismo e para o cangaço. Involuntariamente aluga sua fé e por falta de outra qualquer perspectiva vende sua coragem. As secas periódicas, sempre tratadas de maneira paliativa, ensinaram a essa gente que ela precisa lutar por si mesma. As ajudas governamentais nunca chegam à sua porta. A regra, aliás, foi batizada pela imprensa como indústria da seca. Ou seja, a elite local teria interesse na manutenção da desigualdade social, pois os programas de açudagem e perfuração de poços artesianos nunca chegam às comunidades mais pobres e verdadeiramente mais necessitadas, que, de sorte, permanecem na dependência política e econômica dos coronéis. A situação chegou ao ponto de levar muitas pessoas à busca do lucro fácil utilizando os programas de irrigação e perenização dos rios secos para o plantio de maconha, uma cultura que se adapta muito bem à região. Por outro lado, surge uma espécie de novo cangaço com bandos assaltando nas estradas desertas e saqueando pequenas comunidades. Hoje, enfim, resguardando sua fé e sua coragem, o sertanejo, no entanto, sobrevive, em parte, dos programas sociais do governo, que atuam com o repasse direto dos recursos, como o Bolsa Família, e que têm sustentado muitas comunidades carentes. Muitas prefeituras chegam a oferecer terrenos gratuitos a aposentados para que eles invistam o pouco que ganham no município. Há também programas de criação de cisternas comunitárias, quase sempre abastecidas com água das chuvas, que servem ao consumo humano e à sustentação de pequenas 179 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 hortas e criações. Além dos amplos sistemas de irrigação permanente que têm criado espaços de redenção em vários pontos, como Petrolina. Também as comunidades, muitas delas formadas no conceito rurbano, cunhado por Gilberto Freyre, com amplo acesso aos meios de comunicação de massa, criaram uma linha de independência à submissão plena aos seus líderes políticos e messiânicos. Enfim, há luz no fim desse imenso túnel. REFERÊNCIAS ASSARÉ, Patativa do. Cante Lá, Que Eu Canto Cá – Filosofia de um Trovador Nordestino. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1978. BENÍCIO, Manoel. O Rei dos Jagunços. Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 1997. CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. São Paulo: Global, 2005. JATOBÁ, Roniwalter. Juazeiro: Guerra no Sertão. São Paulo: Ática, 1996. CUNHA, Euclides da. Os Sertões – Campanha de Canudos. 3.ed. São Paulo: Ediouro, 2009. MENEZES, Djacir. O Outro Nordeste – Ensaio Sobre a Evolução Social e Política da “Civilização do Couro” e suas Implicações Históricas nos Problemas Gerais. 2.ed. Rio de Janeiro: Artenova, 1970. RODRIGUES, Nina. As Coletividades Anormais. Brasília: Senado Federal, 2006. Maurício Melo Júnior é jornalista e escritor. Dirige e apresenta o programa Leituras, da TV Senado, e escreve críticas literárias para o jornal Rascunho. 180 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 A cena familiar em contos de Judith Grossmann Cássia Lopes Em vários contos de Judith Grossmann, emerge o tema das relações familiares e seus desdobramentos críticos no tocante ao papel do escritor. Um primeiro nível de leitura refere-se a um enfoque que remonta à tradição machadiana e também borgiana: Joaquim Machado de Assis não deixou uma prole convencional, não teve filhos, e gravou isso na voz de um de seus personagens: “Não transmiti a nenhuma criatura o legado de minha miséria”. Já Borges não fez disso um assunto explícito de sua literatura, embora, sintomaticamente, não dedicasse sua atenção aos filhos de seus personagens, que parecem viver, à Quixote e Kafka, na imensidão de mundos solitários e de moinhos gigantes. Para trazer tal abordagem para o universo judithiano, recortemos dois contos em especial: “Ano de centenário” e “As tranças de Charlienne”. No primeiro texto, o personagem chamase Alexandre e retoma uma tradição de outros Alexandres que remonta aos anos de 1888. Aqui se encontra uma mônada familiar que se repete por várias gerações, mas também se vê questionada por este personagem; o sentimento de estranheza ganha realce nesse contexto: o prazer de viver entre outros anônimos, a liberdade de se saber livre de um imperativo familiar, a enorme satisfação de “não possuir o pouso de que se orgulhassem”. O nome Alexandre também remete, em silêncio, à sina do Alexandre Magno, uma das personalidades mais fascinantes da 181 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 história. Por ter sido responsável pela construção de um dos maiores impérios que já existiram, foi reconhecido por sua inteligência e por ser um homem com qualidades excepcionais que possibilitaram a ele o trono, o lugar de rei da Macedônia com apenas vinte anos de idade. Era um personagem bélico, temido por todos, mas também se notabilizava pelo seu repertório de leituras, trazido de sua sólida formação graças às aulas que teve com seu mestre Aristóteles. O conto de Judith refere-se alusivamente a esse personagem histórico em processo de questionamento. O personagem do conto judithiano não queria ser um grande homem, pois guardava a vontade de sentir-se livre desse mito: “Ele existia antes de qualquer cálculo ou premonição, errante, erradio e fixo”. A imagem do corte é eficaz e caro à literatura e, nesse contexto, o personagem nasce como homem-lâmina. Com a morte do último Alexandre, outros deixariam de existir, e uma herança seria cortada finalmente: “uma tradição de um século desde o tataravô, que chegara aos vinte e um anos, e aos vinte e dois vira nascer o bisavô, que aos vinte e dois vira nascer o avô, que aos vinte e dois vira nascer o pai, que aos vinte e dois o vira nascer, a ele, ao filho, assim se julgava para sempre, nada vira nascer, um filho se sentia”. Este Alexandre era “incondicionalmente o (ir)responsável pelo brusco corte”. A metáfora do homem-lâmina pode ser associada à imagem de uma faca só lâmina, inspirada na poética de João Cabral de Melo Neto. A palavra, quando pronunciada, corta a realidade e, ao mesmo tempo, desnuda seu emissor: é difícil usar uma faca sem cabo sem se ferir; analogamente, é impossível usar um discurso e não denunciar a si mesmo no manuseio das palavras; impossível não revelar seu elenco de valores nas linhas e períodos de um texto. Também a metáfora do corte remonta à ideia de ruptura de um fluxo contínuo para instaurar outro tipo de fluxo: o descontínuo, o do peregrino em terra estranha, pois “deixaria os sótãos e clãs familiares em troca de uma vida mais invisível e seu corpo seria uma denúncia disso: Dir-se-ia que iria tornar-se invisível, era assim que estrito se sentia, outra coisa não desejando”. 182 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 A questão exposta na literatura por Judith Grossmann faz refletir sobre paradigmas de comportamentos sociais, mas também remete ao fazer literário: não ter filhos passa a ser um gesto crítico de valores e também de afirmação de liberdade: “apenas limitar-se a existir”. O problema da herança é posto sobre a mesa: “de que amanhã está se falando?” Este é um ponto de partida para se pensar o crepúsculo de gerações que se anuncia com o corte desse Alexandre, fruto de uma travessia histórica, cujo inventário do peregrino constitui-se na travessia por bares a lanchonetes, por tardes e dias guardados em sua efemeridade. Sim, parece que este é também um item abordado por Judith no tema do périplo de Alexandre e do fazer literário: a angústia diante do efêmero. Freud, no ensaio “Sobre a transitoriedade”, trata deste tema tão bem abordado por Grossmann. Segundo a leitura freudiana, “a propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência pode dar margem a dois impulsos diferentes na mente, um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que outro conduz à rebelião pelo fato consumado” (FREUD, 1996, p. 317). Se o corpo humano é uma máquina de cálculos e repetições conscientes e inconscientes, se no conto o “Ano de centenário” representa também o marco de uma matemática que é interrompida, emerge o problema do incalculável e da alteridade que não pode ser pensada de forma inseparável da ideia de finitude e de um limite dado ao poder e à escrita. Aqui podemos cruzar várias vozes que se encontram para pensar o valor do finito como marco de uma modernidade e da literatura, de que Jorge Luis Borges será um grande exemplo. Se a biologia e a linguística surgiram como sintomas de um pensamento que se debruça sobre o limite da vida e da linguagem, também há uma literatura que toma isso como mote de sua escrita e faz da efemeridade condição necessária para se afirmar o homem e seu poder de invenção. O homem-lâmina é uma expressão dessa ideia de uma vida que se afirma no efêmero e que se alimenta do sumo dos dias e dos acontecimentos, naquilo que excede o previsível. Assim, o Alexandre descrito por Judith abre mão do mito para humanizar 183 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 se, é o homem que abandona o cálculo familiar para se dar a uma economia do desejo que prevê o cotidiano e o inusitado trazido pela contingência do acaso. A escritora deixa a perspectiva de abordagem do personagem baseada no crivo do transcendental para colocá-lo na ordem de outra necessidade: o de ser livre de uma ordem familiar e do mito, o de não ser o Grande Alexandre, pois se trata do homem que não quer mais ser notável, nem universal, mas apenas um sujeito comum, distante de uma soberania territorial, peregrino de um espaço em transição e transitório, como convém a um errante de si e das horas, com certa experiência de comunhão com todos: “Todos o olhariam e não veriam nada. Contava trinta e três anos, pelo seu corpo franzino e espigado não lhe saberiam determinar a idade, nem para mais, nem para menos. Sua roupa e calçado eram de uma neutralidade absoluta, a simples camisa, a calça comum, o sapato de amarrar. Dir-se-ia que iria tornar-se invisível, era assim que estrito se sentia, outra coisa não desejando”. Este é um problema que se coloca na literatura de Judith e acaba por ser um tema de ordem política: o que é ser um sujeito livre e de que forma a invisibilidade pode trazer, paradoxalmente, o exercício de liberdade, numa escrita que se faz anônima e, por isso mesmo, tão próxima a cada sujeito que a lê? Uma escrita desengajada no sentido de uma lógica didática e de pedagogia do olhar, adversa da perspectiva funcionalista da arte e do social, distante de toda e qualquer soberania do discurso, portanto uma escrita que advém por ser crítica dos determinismos sociais e de enquadramento histórico, pois apresenta um personagem que se faz lâmina para se mostrar em puro devir, um vir a ser “como perfeito amante, apaixonado de signos, quer comboios, quer passarelas, quer castiçais” (GROSSMANN, 2000, p. 50). Assim, há neste conto “Ano de Centenário” a reflexão política sobre a alteridade, que exige uma quebra, uma análise de padrões que oprimem o homem imerso no aparato servil de uma práxis de trabalho, de um código social e familiar que sacrifica completamente a existência humana. A herança que Alexandre 184 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 deixa é a do corte, é a de ser infiel a um destino já posto, a de ultrapassar o dogmatismo alicerçado sobre inúmeras famílias. A questão é como optar pela vida sem conservá-la, um personagem que abre mão das nostalgias e do culto à lembrança como força crítica de valores: como pensar a vida pela herança deixada pelo passado, e como trazer as heranças invisíveis que Alexandre, personagem de Judith, convida-nos a pensar. A interrupção de todos os Alexandres familiares, pertencente ao campo dos possíveis, da genética, do mesmo, dá-se para a emergência de um outro Alexandre anônimo, radicalmente diferente, irredutível e invisível, imerso no “o todo-outro ou a morte” (DERRIDA, 2004, p. 56). Parece que o conto de Grossmann traz esta possibilidade de crítica, como se o Alexandre operasse ainda por uma lógica excludente entre o máximo de visibilidade, contrapondo-se à invisibilidade, o mesmo Alexandre familiar, à definição de um suposto outro que se aproxima da morte. O conto leva-nos a interrogar sobre a certeza injustificável de um mundo apreensível do qual estariam presentes todos numa malha social e simbólica, que acabaria sendo um apoio para as verdades e interpretações legitimadas. Ao seguir a ordem do cálculo familiar em que a cada 22 anos nasceria um Alexandre, as perspectivas já se tornariam previsíveis e comuns, como fatos incorporados à gênese daquela história do nome, como se ali já residisse uma biografia visível, que tem já a sua verdade como condição de existência, numa relação de dependência entre sujeitos e signos inscritos em cada corpo que nasce. Alexandre interroga, portanto, essas certezas ditas naturais, assente na visibilidade de um nome, no sentido de sua permanência, que impede de deixar o homem só no mundo com seus pensamentos e entregue à própria arte. Alexandre questiona um nome que guarda uma história de troca de experiência e de poder que, de fato, não seria uma solução para dar conta de si, das ideias e das ações praticadas cotidianamente. O sentimento de solidariedade entre os Alexandres familiares seria forjado, produto de uma socialização familiar que se torna 185 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 opressora, quase como uma pergunta que reboa para outros arredores: o que é ser um Alexandre e, no seu sentido expandido, o que pensa o homem de si que o faz tão especial para os outros? “Em circunstâncias adversas não se transformaria o homem em um macaco? Ou no macaco do homem?” (p. 54). Alexandre traz uma tensão entre o desejo de autocriação e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de fugir completamente da história que seu nome carrega, quando as palavras guardam, nas suas relações de poder, quase um duelo entre o público e o privado. Refiro-me a uma tradição de autores a que também Judith Grossmann se filia; especialmente a Proust, cuja literatura valoriza uma vida autocriada, que interpela as dicotomias entre o público e o privado. A vertente do público e do privado vem sendo uma questão cada vez mais presente em debates acadêmicos e, ao mesmo tempo, em obras literárias. Lê-se, na tradição filosófica ocidental, que remonta desde Platão, seguindo por outros pensadores da vida política, a tentativa de fundir o público e o privado; um par que revela não só o gosto pelas antinomias, mas permite desabrochar, ainda hoje, um sério embate de teorias sobre o sujeito, considerando este eixo analítico. Alguns buscaram uma teologia, fazendo do homem um instrumento altruísta de comunhão social, com suas leis de pertencimento e de solidariedade. Outros teóricos, como Nietzsche, por exemplo, realçam a vontade de poder nos corpos e suas forças instintivas, melhor seria dizer, libidinais, com as quais se impede de ver a matéria humana de maneira tão racional e sujeita ao controle da razão, seja ela de ordem teológica, seja na perspectiva de sua relação com o social e com a heráldica familiar. Dessa maneira, os ideais que fazem do sujeito o fulcro da união entre o público e o privado, respectivamente entre o social e o familiar, mostram-se tímidos para permitir o abraço com os princípios de solidariedade. Assim, no cerne do conto de Judith Grossmann, o debate entre o público e o privado vem rever paradigmas que alicerçam conceitos como “natureza humana” ou se despedem de eixos 186 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 analíticos dos “eus profundos”, pensando as elipses dos movimentos, os esquecimentos dos álbuns de retratos da família, as névoas que nublam o sentido sempre lógico das razões que movem uma ação dita humana. Na travessia do personagem Alexandre, a questão, portanto, é rever a clivagem do corpo público e privado, não para produzir uma fusão à mercê do jogo político já cartografado entre o visível e o invisível, mas pensar justamente as fronteiras, o que significa habitar uma cidade, um país em que as tensões sociais invadem casas e instituições, impedindo que a noção de bem comum se instale como definitiva e facilmente negociável, pois a questão é como se dão os núcleos de persistência do mesmo, dos hábitos arraigados nas formas de conduzir vidas e sociedades e, ao mesmo tempo, entender a quebra dessa paralisia com a emergência do périplo de Alexandre: “Era um homem livre, ex-escravo, que muito bem saberia fazer coincidir o término dos seus recursos com a sua morte”. É nesse enfoque que surge a importância de se refletir sobre a estetização do cotidiano, a história humana autocriada em práticas artísticas e de deslocamento de conceitos e nomes que permitam às vidas de sujeitos diferenciados chegarem a produzir outros valores com os quais se põem em crise os modelos de hegemonia de gostos, de paradigmas de comportamento e façam emergir diferenças e autonomias. Para tanto, pede-se a revisão de um glossário familiar, impulsionado pela roda de generalidades em que situa o léxico social e o nome Alexandre. Para expandir a questão das relações familiares, o conto “As tranças de Charlienne” enfoca também este tema. A metáfora do cabelo trançado traz um imperativo de um pai que não aceitava ver a filha com os cabelos cortados, nem que esta os mantivesse despenteados. Diferentemente, a imagem especular da mãe contrapõe-se ao desejo do pai: é retratada como uma mulher de cabelos desordenados, livres “encapelados como o mar e o voo de certas aves”. A filha ficava nesse triângulo cuja trança seria desfiada em solidão, na imagem de liberdade dos cabelos da mãe e nas medidas 187 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 disciplinares do pai, cuja companhia também estimava. Mas era, sobretudo, no quarto da mãe, naquele espaço de intimidade, que Charlienne mais se encontrava, pelo fato de o cômodo guardar um tom de diferença em relação ao resto da casa, uma alcova da leitura. Nesse caso, a mãe era aquela que “estudara, sabia e lhe passava como alimenta a um cavalo. Alambique, açúcar, atafona... eram as chaves para as mil e umas noites.” A disposição do quarto de leitura, também intitulado de quarto do nada, traz uma simplicidade na sua forma descritiva numa espécie de caracterização por contraste pela riqueza de signos associada àquele lugar: apenas uma cadeira de balanço, um banquinho onde Charlienne sentava para ouvir as histórias da mãe, um divã verde de cabeceira regulável próximo a um armário de livros com portas de vidro, onde se encontravam as obras completas de Machado de Assis, mas havia, metaforicamente, uma janela que se abria para o mundo de onde se avistavam árvores que marcariam as páginas da memória daquela filha. O sorriso da mãe, ao fim de cada leitura, era seguido do diálogo com a filha numa linguagem sempre renovada, mistura de prazer e de entendimento entre as duas, e Charlienne então fotografava na memória os cabelos soltos da mãe, num espaço e tempo que excederiam aquela alcova. Judith Grossmann traz outro conceito de maternidade e, diferentemente do conto anterior, despede-se da mônada familiar opressora: estamos distantes de um campo em que a mãe não é uma figura centralizadora e mitificada, mas se oferece no desabrochar de outras possibilidades para Charlienne, que, mesmo com os cabelos presos, aprende uma maneira de sentir-se livre via o fazer literário O conto abre espaço para que se pergunte o que se chama de família, o que há de inalterável no decorrer de sua história marcada pelo laço da procriação. Aqui podemos dizer que Judith faz uma distinção entre criar e procriar: a procriação não leva necessariamente à criação, mas a uma perpetuação de valores e lugares de poder; mas a criação definese de maneira diversa e, na reescrita de si, imprime imaginários 188 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 insuspeitados e faz do homem um filho do mundo: cada um com seu nome secreto. Charlienne “não seria dessas que sofreriam as dores do parto” (p. 63). Assim como Alexandre do conto “Ano de centenário”, Charlienne não queria ter filhos: “Mas se por acaso viesse a ter algum, onde acharia a aceitação que tanto precisava? Iria discutir com o filho como o pai com a mãe? Ou a negaria ele próprio, interrogando-a, você é que é minha mãe?” (p. 62). Ela ficava entre o imaginário da mãe e as metas do pai, mas, um dia, soube que teria de escrever para ter acesso ao mundo da mãe, para “roubar o coração”. A escrita era a senha de acesso ao mundo materno, de seus cabelos soltos. A mãe dizia-lhe que se quisesse realmente agradá-la teria de “juntar duas sensibilidades, a de Machado e a de Tchekhov”. Assim vai se desenhando o destino de Charlienne rumo ao ofício de escritora, quando filha e mãe brincavam de palavras. O sentido manifesta-se na relação entre os textos e não apenas em um texto isoladamente, como uma entidade fechada em si mesma. Assim, há também nesse segundo conto a temática do corte: “para completar o processo, seu projeto era o de cortar os cabelos de fato, como arranca alguém um fruto de uma árvore. Entraria destemida no barbeiro do pai e com uma palavra resolveria tudo. Corte”. E mesmo com o pedido da tia para que lhe doasse as tranças, ela não sabia ao certo o que fazer com elas e talvez as guardasse junto aos pertences dos avós. Há, assim, em Judith Grossmann, a emergência de uma criação atrelada à ideia de corte e violência em relação ao processo da escrita. A personagem Charlienne, assim como Alexandre, reivindica que se abandonem as circunstâncias herdadas para se criarem as próprias contingências ou heranças, recriando as palavras mesmo que a partir de outras já usufruídas: assim “o livro onde tudo já estava escrito ficou de lado”. E Charlienne também estava aberta para o incalculável da cena, para alguma forma de liberdade: fazer da escolha uma forma de inventar o seu destino, tomando-o como seu, reinventando mesmo aquele que venha a ser um filho ou uma palavra, uma história ou um nome. 189 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Talvez, Charlienne tenha algo a ensinar a Alexandre, pois se este se destina, na radicalidade de sua diferença, à morte, ela engravida. No desfecho do conto, no final da tarde, a personagem escapou para dar uma volta de bicicleta: “Entre terror e gozo, penetrou no parque. Sentiu que mais de um a derrubara com violência da bicicleta. As tranças haviam sido podadas. Fluidos da tia. Apalpou-se. Não estava o colete. Não viu a bicicleta. Permaneceu sentada com as pernas ainda abertas, para o que quer que fosse a penetrasse mais fundo, envenenando-a de uma vez por todas, no contrariamento das ordens do pai.” No meio do jardim, povoado de frutas e flores, Charlienne mostrava-se grávida, se não fosse de um filho convencional, seria outra prole de livros à Machado de Assis, cuja obra habitava o armário da casa materna. “Ora, deixaria que por si mesmos descobrissem como um fenômeno outro, sem que jamais abrisse a boca. Também servem os que apenas esperam? Estava esperando”. Sim, os cabelos foram cortados, mas não a vida! REFERÊNCIAS DERRIDA, Jaques e ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã: diálogos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. FREUD, Sigmund. Sobre a transitoriedade. In: Obras psicológicas compeltas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XIV. p. 317-319. GROSSMANN, Judith. Pátria de histórias. Rio de Janeiro: Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2000. RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Cássia Lopes é cronista, ensaísta e professora adjunta de Teoria da Literatura do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas/UFBA e do Programa de Literatura e Cultura do ILUFBA. [email protected] 190 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Florisvaldo Mattos: poeta de memórias Silvério Duque Manhã de sábado. Rasgo um envelope que me destina o poeta Florisvaldo Mattos. Seu conteúdo não me é um mistério; sei que ali se encontra um exemplar de seu livro Poesia Reunida e Inéditos (São Paulo: Escrituras, 2010), mas isto não quer dizer que descobertas inumeráveis não se escondem de mim dentre essas páginas. Abro-o, então. Começo a lê-lo e nada mais parece importar. O fim de semana ajuda-me no degustar de cada palavra, cada verso, cada poema, sem que ninguém me interrompa, me atrapalhe ou me desconcentre. E, graças ao meu acaciano talento para perceber o óbvio, não demoro a descobrir que estou diante de um poeta cuja linguagem e ritmo particular fazem dele não só um dos maiores poetas baianos de sua geração, mas um poeta universal. Florisvaldo Mattos é abrangente, sua poesia se cobre dos mais diversos temas, formas e dicções; seus versos, ao mesmo tempo diretos, sintetizadores, aspirando ao raciocínio filosófico, onde nada além do necessário se mostra, são também de uma leveza muito rara e de grande força lírica que, parecem-me, à primeira vista – como deveriam parecer aos admiradores de outrora –, o mais puro produto das musas, da magia ou coisa parecida... mas é irresponsável pensar assim, que uma coisa tão desejada e tão bem elaborada se realize magicamente. Muito menos depois de ler seu enigmático A Cabra: 191 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Talvez um lírio. Máquina de alvura Sonora ao sopro neutro dos olvidos. Perco-te. Cabra que és já me tortura guardar-te, olhos pascendo-me vencidos. Máquina e jarro. Luar contraditório sobre lajedo o casco azul polindo, dominas suave clima em promontório; cabra, o capim ao sonho preferindo. Sulca-me, perdurando nos ouvidos, laborada em marfim – luz e presença de reinos pastoris antes servidos – , teu pêlo, residência da ternura, onde fulguras na manhã suspensa: flor animal, sonora arquitetura. Não se espera de um poeta que produz versos desta qualidade nada menos que a severa vontade de prover seus melhores meios de execução, e provê-los bem. Florisvaldo sabe disso, sabe que o prazer estético é também um prazer da razão e que a lei da mais pura e verdadeira arte é a lei do Ne quid nimis, como afirmara Ortega y Gasset, por isso mesmo sua lírica se apoia numa distribuição mística, mas sem perder as rédeas da razão e das formas que lhe ajudarão em seu próprio entendimento, de maneiras a que se associam unidades de sentido de natureza extremamente complexas. Também não é à toa que seus sonetos são o que de mais forte e verdadeiramente poéticos há em sua obra, garantindo a ele um lugar que se destina a poucos em nossa literatura; lugar onde se encontram também colegas seus de geração, como Ildásio Tavares, João Carlos Teixeira Gomes e Maria da Conceição Paranhos (geração, diga-se de passagem, que sabia o que era poesia, diferentemente a muitos desta atual geração de ditos “poetas” que não sabem – e nem querem saber –, por exemplo, a diferença entre Éros e porné, “prostituta”, ou pórnos, 192 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 “prostituído”, “depravado”, e seus derivados, ou seja, daquilo que se refere à prostituição, à obscenidade, às questões sexuais; em suma, de forma chula, baixa, o puramente fescenino, e propositalmente grosseira, muito comuns, como nos alertara Alexei Bueno, ao universo da poesia satírica e burlesca, a qual, aliás, nossos “novos” bardos tanto odeiam) e que se juntam a nomes como Emílio Moura, Carlos Pena Filho, Reynaldo Valinho Alvarez; aproximando-se, consequentemente, dos melhores: os excepcionais Jorge de Lima e Bruno Tolentino. Como prova disso, cito a beleza impregnada de erotismo, presente no soneto Passos e acenos, como exemplo, inclusive para nossas novas gerações – à guisa de seu aprendizado: Nada tens de ave. Fera lúcida, olho felino (pantera de Rilke entre grades) nunca indefesa, à espreita. Além dos olhos, bebo teu corpo, teu cabelo (franja dos dias) – o mais dardeja. Também és elástica e macia: braços, pernas de roliça cogitação. Vais, vens. De pé, agitas os vaporosos membros, ao calor da voz que atordoa o vento. Sentada, as formas se acomodam, urdem rútilo desenho. É quando, pasmo, ouço o marulho do sexo, ávido. Bem que mereço essa onda, ronda de garras que me acenam, me buscam pela tarde. A frequência com que a forma fixa, principalmente o soneto, aparece na obra de Florisvaldo Mattos, só mostra o quanto que o poeta procura seu entendimento e depuração, porque nenhuma forma de poema exige um alto nível de concretude e de pensamento reflexivo como exige o soneto, porque não há maior propriedade em um soneto que o teor reflexivo, por maior que seja o lirismo que ele carregue. Escrever um bom soneto não é fácil. Especialmente um soneto que se queira moderno ou 193 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 contemporâneo, simplesmente. Nenhum movimento, por incrível que possa parecer, habilitou e reabilitou o soneto como o Modernismo – e, de lá, até agora. A natureza “moderna”, e, acima de tudo, a natureza poética dos sonetos, como dos demais poemas de Florisvaldo Mattos, encontram-se implícitas nas questões existenciais que ele suscita, metaforizadas, na grande maioria das vezes, em suas reminiscências. Minha afirmação, no entanto, não descarta a destreza e acuidade de sentido que este poeta grapiúna empresta aos seus poemas livres – que de livres não têm absolutamente nada –, nem àqueles que flertam com outras formas ou mesmo com a experimentação lírica – mal necessário, pelo que me parece, a todos os bardos que viram e viveram os anos 1960 e 1970. Todavia, é da própria natureza do soneto suprimir o supérfluo e o substituível em nome da beleza e sua perpetuidade. Assim sendo, Florisvaldo Mattos pode muito bem buscar aquela “essencialidade da expressão verbal”, de que fala João Carlos Teixeira Gomes, na apresentação de Poesia Reunida e Inéditos, sem se preocupar demasiadamente com labor formalista, nem se entregar desgraçadamente aos transbordamentos líricos tão comuns aos nossos poetas, mesmo os que se acham em melhor prestação. Se pensar é a maneira pela qual capturamos a realidade por meio de ideias, como dissera o autor de A Rebelião das Massas, o fazer poético é sem dúvidas uma maneira de construir realidades; o perseguir da verdade não pertence àqueles que fazem versos, se, ao fazê-los, criam ou recriam, os poetas, suas próprias verdades, seus próprios mundos para contê-los, para carregá-los... Florisvaldo sabe que um grande poeta precisa de tradição, precisa trazê-las consigo, expô-las, resumi-las, fazer com que se façam presentes em sua obra para, daí, esculpir o novo, o moderno, as formas renovadas de uma força e de uma essência que são sempre as mesmas ou estão sempre retornando ou se renovando, porque, diga-se de passagem, a poesia sempre foi, no melhor sentido do termo, cópia, roubo, apropriação indevida de cabedais, imitação 194 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 – como já afirmava o bom e velho Aristóteles – de Homero a Alberto da Cunha Melo, ou de Hesíodo a Guimarães Rosa é assim, e a transubstanciação do mundo físico para um mundo de subjetividades – que é, também, cópia – como bem nos alertou João Carlos Teixeira Gomes, não se faz valer com tanta perfeição em outras formas de arte como se fez através da poesia; e poucos são os poetas que a fazem como realmente precisa ser feita. A consciência do poeta a respeito de seu papel no mundo, de sua missão – pois sem missão não há poeta – é o passo mais importante à maturidade tanto do homem quanto de sua obra, e eu pude constatar que de Rio Remoto (primeiro poema, da primeira página, de seu primeiro livro) a Caminhos (até então, seus derradeiros versos) evidentemente (os títulos estão aí para provar que eu não estou mentindo) nos apresentam uma ideia de continuidade, de amadurecimento e de realização; estão aí para revelar a qualquer um dotado da mínima inteligência e sensibilidade estética que, ao grande poeta, há sempre uma busca incansável, graças a Deus, pela realização. E, pelo que muito li, entendi, gostei e tomei para mim mesmo, vejo que Florisvaldo Mattos não se utiliza de maior recurso rumo ao seu crescimento poético que não o da Memória. Não importa se esta memória é puramente pessoal – como no soneto Água Preta – ou, quiçá, histórica – como nos épicos versos de A domação das pedras; se, a ele, pertence ou se emprestada de outros poetas e vultos, como em poemas como O Tempo, o Lugar ou Duas Almas. A memória funciona como o meio mais preciso de emulação para que o poeta se atente ao tempo, compreenda-o, poetize-o e dele se faça livre, como afirmou, no pósfacio de Poesia Reunida e Inéditos, Alexei Bueno. E assim é, por exemplo, de seu Soneto do silêncio, de 1954: Marca o silêncio, todo aroma e exílio, uma incidência tal, terrena e vaga, que inviolada ternura a brisa molda de amadas que se foram sem retorno. 195 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Da inconstância da neblina salta quem o olhar esqueceu dentro do rio, para não ver a sombra de quem ama retornar ao caminho imprevisível. Há uma coroa de cantos e astros leves, sons e rumos previstos que se ocultam sob o manto de angústia decisiva. Há mesmo quem não saiba para onde vai; no entanto sua alma, seu mistério, no silêncio extra-humano deposita. ao soneto Tempo Belo, de 2007, pertencente ao livro Decifração de Cristais: Logo, fecho o caixão e fecho o tempo das almas arbitrárias que vivi. Amante e amado fui e conheci a dor que é de meu tempo passatempo. Rebenta, alma insensata, o teu passado e vai por outras dores comezinhas; segue por tua senda, a que caminhas, rio em que tua margem é o outro lado. Estás ausente em ti para o meu gesto, simples estado neutro de passar, de olhar, sentir e perceber funesto e súbito negar da primavera, mais que breve e raro, cumprimentar o prazer de passar que a vida era. e, entre um e outro, o belo exemplo de um soneto intitulado de Cegonhas em Trujilho: 196 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Para sempre serás pranto e ruínas guardadas pelas aves coniventes que do inverno se lançam repentinas a colher o que resta das sementes. Mas ocultas o cerne entre resinas de remoto sumir que já não sentes, se o tempo desafias, se ruminas o passado das coisas decadentes. Antes que a fome das sagradas aves a memória corrompa dos espelhos, descerras conubial os sítios graves a cavaleiros que manejam relhos, flagelando-se em coágulos de ausência junto aos muros que sangram resistência. Não tenho medo ou sequer receio de afirmar que toda a poesia de Florisvaldo Mattos gira em torno da memória, mas não aquela memória ingênua e confessional de que até Drummond se serviu demasiadamente, mas duma memória que é também construção, mundo a pulsar e a se fazer em cada verso do poeta, porque os acontecimentos vividos são efêmeros, todavia o que é lembrado não tem limites, perpetua-se, pode mudar ou renova-se, e, pelo que se pode julgar dos sonetos acima, a memória, necessariamente, não se precisa explícita ou presente. O homem que recorda se compõe como ser poético, porque a memória está sempre a criar impressões que são ela e a não são ao mesmo tempo – palavras de Walter Benjamim. Se a viagem é o tema mais recorrente na história da Literatura Universal, é a memória, por sua vez, o mais intenso e o que lhe renderá uma maior herança de expressões, formas e imagens. Fragmentário, cheio de falhas, impregnado de coisa passadas e do que se está vivendo, a memória constitui o principal recurso pelo qual o homem recorre para conferir significado às coisas, para reconhecer o que ali está e se constituir como sujeito tanto 197 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 histórico como sujeito de si próprio. Esse poder construtor da memória, como afirma Henri Bergson, parte da proposição de que não existe percepção que não esteja impregnada de lembranças, e, nesse caso, “a nossa vivência do presente torna-se, então, um acúmulo de detalhes, soma de pormenores vividos que se agarram às imagens imediatas dos nossos sentidos”, que, tendo afinidade com o poético, infiltrar-se-á de ambiguidades, sobrepondo-se a outros sentidos que acabam por deteriorar o anterior. O mundo refletido na poesia de Florisvaldo Mattos é sempre um mundo real, um mundo que parece saltar para a vida, ao invés de se afogar em ideais vazios, de uma simbologia que parece querer mais fugir às coisas do que a elas servir. Este mergulho que Florisvaldo faz na realidade é algo comum a todo grande escritor, e o bardo grapiúna não me parece uma exceção a esta regra. É preciso, todavia, lembrar que a grande obra poética é resultado das somas entre as generalidades abstratas do pensamento e a realidade concreta do mundo. Se Florisvaldo Mattos ficasse apenas numa destas coisas, sua obra estaria longe de ser considerada uma forma de arte; como consegue unir estas duas variantes em um mesmo processo e num resultado consistente, que se faz através da memória, é poeta. Por fim, é nesse território de instabilidade, em que os saberes mais diversos consagram o que se chama conhecimento humano, que se ergue uma poesia tão agraciada pela beleza e pelo amor à verdade... poesia que as gerações mais contemporâneas, inclusive as daqui, na Bahia, se desacostumaram a ver e por isso mesmo a apreciar; mas comum aos grandes poetas; e presentes nos versos de Florisvaldo Mattos. Candeias/Feira de Santana, setembro de 2011. Silvério Duque é professor (licenciado em Letras pela Universidade Estadual de Feira de Santana) e poeta, autor de A pele de Esaú (Via Litterarum, 2010) e Ciranda de Sombras (É Realizações, 2011). 198 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 A vida da lembrança: Zélia Gattai Amado Antonella Rita Roscilli L embrar de Zélia Gattai é lembrar de uma grande memorialista, de uma contadora de histórias como ela se definia, de uma grande mulher ítalo-brasileira que eu tive a honra de ter também como amiga e cuja obra continuo divulgando na Itália e em qualquer outro lugar do mundo. Conheci a obra dela há anos quando, em uma biblioteca em Roma, por acaso olhei o título de um livro: Anarchici grazie a Dio. O livro foi publicado na Itália em 1983 pela editora Frassinelli e foi reeditado pela editora Sperling & Kupfer no ano 2000, na coletânea “Continente desaparecido” dirigida pelo jornalista e escritor italiano Gianni Miná, grande estudioso da América Latina. Eu, naquela época, já amava profundamente o Brasil, já conhecia Jorge Amado, que me encantava através dos livros com as descrições da Bahia antiga. Mas aquele título me atraiu sem nem saber quem era a autora. Comecei a ler e mergulhei na leitura. Junto com a alma menina de Zélia vivi naquelas páginas que traziam à vida histórias dos italianos partidos no século XIX para encontrar um mundo melhor. Foi assim que comecei a me dedicar a Zélia Gattai Amado e a ouvir as harmonias da sua voz, como se ela mesma estivesse contando com suas palavras, e não através da escrita. Quando tive a honra de conhecê-la pessoalmente, pareceu-me encontrar 199 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 uma pessoa já conhecida, verdadeira, alegre, profunda, que transmite valores com simplicidade e otimismo. Foi por causa dela que cheguei um dia a Salvador e, a partir daquele ano, eu, que já viajava pelo Brasil inteiro e voltava à Itália para divulgar a cultura brasileira através dos meus escritos, não consegui viajar mais para outras cidades e estados brasileiros. Queria chegar somente a Salvador, Bahia, para ter o prazer de encontrar de novo Zélia. Desde então, com grande paixão, me dedico ao estudo e à divulgação da obra dela. A ideia de escrever um livro chegou de modo espontâneo. Zélia de Euá Rodeada de Estrelas, publicado em 2006 pela editora Casa de Palavra da Fundação Casa de Jorge Amado, foi uma homenagem aos seus noventa anos. Por 56 anos Zélia viveu com Jorge Amado, que foi seu marido, mestre e amor, como sempre costumava dizer. Nascida na terra do café, em 2 de julho 1916, seguiu com ele para a terra do cacau. Viveu com ele no exílio na Europa, que os viu unidos na França e na Tchecoslováquia com os filhos João Jorge e Paloma. Ajudouo na revisão dos seus textos. Mas Zélia brilhava muito por luz própria, por ser mulher forte, corajosa e cheia de ternura, ao mesmo tempo que conseguia olhar o lado bom da vida. “Continuo achando graça nas coisas, gostando cada vez mais das pessoas, curiosa sobretudo, imune ao vinagre, às amarguras, aos rancores”, dizia. Apesar disso, a vida também lhe reservou tristezas. Mas Zélia brilhava por aquela estrela que a protegia e de que sempre falava a mãe dela Angelina da Col. Aquela estrela estava dentro de Zélia, aquela estrela era ela mesma! Toda vez que eu tinha a possibilidade de estar com ela, escutava sempre suas histórias, simples, alegres ou tristes, mas todas igualmente importantes e densas de valores. E eu, italiana, a vi emocionar-se diante do livro ilustrado por Gustavo Doré, La Divina Commedia di Dante Alighieri. Aquele livro que eu trouxe de presente para ela da Itália lembrava-lhe a infância, porque fazia parte da estante da família Gattai, e ela, quando pequena, 200 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 costumava olhar o livro às escondidas, junto com as irmãs. Lembro que ela leu em voz alta e imponente os versos, e ainda se lembrava de uma página onde havia uma imagem da qual gostava. Quando a encontrou riu satisfeita e disse: “Sim, me lembro, é essa a imagem”. E me mostrou todos os detalhes daquela ilustração de Doré. Eu, através dela, aprendi provérbios do meu país em dialeto vêneto e toscano, saboreei pratos desconhecidos da região vêneta, conheci poesias de um poeta toscano do século XIX que se chama Renato Fucini, aliás Neri Tanfucio. Hoje na Itália são poucas as pessoas que conhecem as poesias deste autor, poesias lidas por Angelina da Col, operária anarquista, poesias que Zélia, com 90 anos, ainda decantava de cor. Os livros de memórias de Zélia hoje representam um precioso testemunho de uma época histórica do Brasil, um precioso testemunho da vida de um grande autor como Jorge Amado, junto aos 6.000 negativos das fotografias que ela tirou. Mas nos livros ela vai resgatando também a história da emigração italiana no Brasil tanto no social como no cultural, nas tradições, na cozinha. Através dela me encantei com a história da Colônia Cecilia, conheci o anarquista italiano Oreste Ristori, encontrei um mundo inteiro. Perguntei na Itália e lá algumas pessoas só conhecem a história da colônia experimental socialista “Cecilia” no Brasil porque leram os livros de Zélia Gattai. As lembranças de Zélia e da família Gattai têm um papel importante por evidenciar que no final do século XIX os italianos levavam na mala muitos sonhos e a vontade de participar socialmente do desenvolvimento do Brasil com o desejo de criar uma cultura operária. Levavam consigo uma consciência política. E tudo isso constitui para mim e para muitos italianos um motivo importantíssimo pelo papel que Zélia tem na reconstrução memorial da emigração italiana no Brasil. Zélia Gattai amava se definir sobretudo contadora de histórias. A arte da palavra, a arte de contar na Antiguidade pertencia inteiramente aos sábios, e hoje em dia ainda existem países onde 201 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 isso acontece. O escritor moçambicano Mia Couto, em uma confêrencia proferida na Itália em 30 de maio de 2001, na pública “Università degli Studi Roma Tre”, pronunciou estas palavras: No meu país os contadores de histórias mais que autores de histórias são depositários de sabedoria divina. Quem conta é um interlocutor que invoca histórias dadas pelas divindades ou pelos antepassados. Ele abre aquele antigo baú através de uma cerimônia em que pede permissão para entrar neste universo. Pega a história quase como se uma pessoa e diz: “Agora você, história, vai para casa”. Na oralidade a voz acompanha a exposição e revive os tumultos da alma através dos tons altos e baixos, os sentidos se acendem e trazem à vida as lembranças. Quando se consegue trasmitir tudo isso também através da escrita, estamos diante de um momento excepcional. Zélia Gattai, em várias entrevistas, declarou: “Quando escrevo sobre o tempo passado volto a sentir perfumes, vozes, cores. Rio e choro lembrando”. Nas obras dela a palavra se reveste de magia levando luz a um fio de ouro que cria maravilhosos desenhos: este fio de ouro chama-se lembrança. Ela consegue efetuar uma operação mágica na escrita, botando o sagrado da oralidade no texto. Para conseguir isto abre um espaço na escrita que permite a um elemento característico da oralidade de ultrapassar o texto para chegar direto do olho para o ouvido e o coração do leitor: estou falando da emoção. A emoção é a voz da alma, a força motriz que faz com que Zélia retire do seu íntimo os fatos da existência. “Mãe”, pediu um dia Paloma, “escreva para seus netos aquela história da sua infância que você sempre conta sobre o disco de Schubert quebrado”. Zélia escreveu e, quando mostrou a Jorge Amado, ele disse: Você que foi filha de imigrantes italianos, que viveu tantas coisas nos primeiros anos do século passado, você tem tanta coisa para escrever ainda. Mas escreva com a mesma simplicidade com que escreveu estas quinze páginas. Será um livro escrito com emoção, de dentro para fora, com o coração. 202 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Foi assim que ela mergulhou na memória, começou a escrever e não parou nunca mais. Foram onze livros de memórias, um romance, uma fotobiografia, três contos infantis. Zélia conseguia anular as distâncias entre oralidade e escrita mediando-as, tecendo-as, alternando-as graças à emoção. Criava uma ponte com o mundo da oralidade, originando a que eu gosto de definir fonegrafia, do grego foné (voz) e grafia (escrita), a “escrita da voz”, a capacidade de transmitir todas as caraterísticas ligadas ao mundo oral. Zélia bebia na fonte da divinidade grega Mnemosyne, a Memória, filha de Gea e de Urano, mãe das musas que inspiram poetas e cantores. Para ela, beber na fonte de Mnemosyne significava colher a essência da criatividade e da saudade para recuperar momentos do passado significativos do ponto de vista emocional. É assim que nasce a sacralidade da Vida da Lembrança e voltam passagens, pessoas, cheiros e cores em um tempo sem tempo, destinado a nunca se despedir graças à Memória, artífice e regeneradora de vida na obra de Zélia Gattai para sempre. NOTAS O livro Zélia de Euà, Rodeada de Estrelas de Antonella Rita Roscilli é uma obra na qual o leitor pode desvendar aspectos importantes da vida e da obra da escritora Zélia Gattai, que desde o momento em que se projetou na vida cultural brasileira vem fascinando e encantando seus muitos leitores com a riqueza e a simplicidade de seus relatos. O livro traz também uma longa entrevista com Zélia, que a autora realizou na sua viagem à Bahia em 2004, e um apêndice em que relata os provérbios italianos que, aos 90 anos de idade, decantava de cor. A supresa vem com o DVD que acompanha a obra em que Zélia lembra a história da sua familia de emigrantes italianos e diz provérbios em dialeto vêneto e toscano, traduzidos depois em italiano e português. Cf.: ROSCILLI, Antonella Rita. Zélia de Euà Rodeada de Estrelas. Salvador: Casa de Palavras, 2006. Antonella Rita Roscilli é italiana, jornalista, ensaísta e tradutora, dedica-se à divulgação das culturas do Brasil e países lusófonos africanos. Colabora em várias revistas italianas e internacionais. É membro correspondente da ALB. 203 R EVISTA DA 204 A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Travessia de oceanos Vozes poéticas da Bretanha e da Bahia Dominique Stoenesco Traversée d’Océans / Travessia de Oceanos Tradução e Organização: Dominique Stoenesco O intercâmbio cultural e universitário entre a Bretanha e a Bahia é antigo e fecundo. Esta antologia, cujo lançamento realizou-se em outubro de 2013, na Universidade Rennes 2, durante o colóquio internacional sobre Jorge Amado, é um exemplo ilustrativo disso. Prefaciado pelo poeta Max Alhau – a parte da 205 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Bretanha – e pela ensaísta Rita Olivieri-Godet – a parte da Bahia – Traversée d’Océans / Travessia de Oceanos (Paris: Lanore, 2012, edição bilíngue) apresenta 15 poetas bretões, selecionados por JeanAlbert Guénégan, e 15 poetas baianos, selecionados por Aleilton Fonseca. Os prefácios e os poemas foram publicados em francês e em português, e traduzidos por Dominique Stoenesco. A edição da antologia teve o apoio da Équipe de Recherches Interlangues “Mémoires, Identités, Territoires” da Universidade de Rennes 2 e do Institut des Amériques. Tão diferentes entre si, a Bretanha e a Bahia têm todavia em comum uma grande tradição poética, caracterizada pelo imaginário marítimo e pela cultura rural. Nestes territórios, a poesia se mostra ativa e dinâmica, sempre explorando novas formas de difundir sua produção. Os quinze poetas bretões e os quinze poetas baianos escolhidos para esta seleta, embora sejam contemporâneos, pertencem a diferentes gerações. Através das palavras e da imaginação, eles apreendem e celebram, cada qual à sua maneira, diversos aspectos da Bretanha e da Bahia. A partir dos poemas, os leitores, de ambos os lados do Oceano Atlântico, poderão descobrir ou redescobrir territórios imaginários que a paisagem afetiva da poesia consegue aproximar, transformando o Oceano que os separa fisicamente em um espaço poético compartilhado. Cada uma das vozes desse coro bilíngue é singular, e cada poema, ao mesmo tempo semelhante e diferente em sua escrita, sonda os enigmas do ser humano, revela e recria o real. Assim, a maioria dos autores reunidos nesta antologia estabelece sua singularidade, ao abordar temas seculares da poesia universal, como o amor, a morte, a condição precária do ser humano, assim como a reflexão sobre a criação poética. Dominique Stoenesco é francês, professor de português-língua estrangeira, ensaísta e tradutor, coedita a revista Latitudes Cahiers Lusophones, dedicada à divulgação das culturas lusófonas na França. Já publicou diversos artigos e entrevistas. Desde 2009, é membro correspondente da ALB. 206 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Vozes poéticas da Bretanha Max Alhau Tradução: Dominique Stoenesco Não serão os poetas os geógrafos da alma? Aqueles que percorrem um país – pequeno seja ele –, que o capturam com o olhar, contam a realidade que só a eles lhes pertence? Se o leitor não conhece a Bretanha, ou mesmo se ela lhe é familiar, leia o que escrevem estes quinze poetas, observadores de terras tão diferentes umas das outras, viaje em companhia deles, sem mapa, e, lentamente, vai adivinhar através das palavras e da imaginação as paisagens que vão despontando e que vão surgindo no desfiar dos poemas. Pois o que têm em comum estes poetas, todos bretões, claro, é um conhecimento perfeito desta região, uma terra de poemas, como já foi frequentemente mencionado, e todos desejosos de celebrar a peculiaridade, lembrar o apego à sua pequena pátria. No entanto, dizer apenas isso reduziria singularmente o valor destes textos ao mesmo tempo parecidos e diferentes na forma de escrita. Com efeito, cada uma das vozes deste coro é singular, cada uma restitui à sua maneira tal ou tal aspecto de uma Bretanha onde estes poetas moram, uma Bretanha que eles percorrem e celebram. Para eles, ser bretão é reivindicar uma pertença física e espiritual a este solo, é não hesitar em proclamar o orgulho de ser cidadão de uma terra rude e magnífica. Tal é a voz de Patrice 207 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Perron, que parece falar em nome de todos os bretões e afirma em voz alta: “Sou bretão/Minha alma embalada pelas lendas/ Meu corpo cansado de reumatismos/O itinerário da minha vida/ Guiado pela história dos Celtas”. Universo marinho e terrestre, assim é esta terra, e estes dois aspectos não escapam ao olhar dos poetas sensíveis a qualquer movimento, a qualquer variação de cor, de onde quer que ela emane. O mar, antes de tudo, é sem dúvida o elemento que seduziu, intrigou ou aterrorizou mais que um visitante. Aqui não há exeção nenhuma na apreensão de um elemento com simbologias diversas. Assim, Béatrix Balteg proclama com vigor a fusão que ocorre entre o corpo e o mar: “o mar que bate nos meus ossos/tem a forma de um pássaro”. Outro lugar continua a fascinar os poetas: as ilhas, metáforas de muitos aspectos da existência e dos sentimentos ligados a elas. O poeta Guénane, que se interroga acerca da ilha, da presença dela no mundo e da sua relação com o ser humano, pode escrever, numa bela concisão: “O que te diz a ilha?/Não procures mais/és tão/infinito/quanto o mar ou mais”. Não saberíamos celebrar tão bem a lição humana dispensada pela ilha. É portanto necessário percorrer esta terra composta também de charnecas e de pedras para desfrutar da sua beleza, e é também necessário, talvez, como nos convida Louis Bertholom: “No cântico dos ventos/beber a limonada dos deuses/no cálice dos areais” ou, seguindo o exemplo de Olivier Cousin, adivinhar que: “A árvore fala alto e claro a linguagem/ancestral dos gestos bem medidos” porque, para estes poetas, a presença de uma terra ancestral constitui uma riqueza à qual não poderiam renunciar. No entanto, ao ler estes textos, podemos transitar, para melhor desfrutar desta exploração, do geral ao particular, e assim conhecer as virtudes de tal ou tal região, de tal ou tal lugar bem preciso. O passeio torna-se então geográfico. A dimensão cósmica de Carnac e dos seus alinhamentos é restituída por Marie-Josée Christien, que vê estes “Círculos de pedras cercadas pela fuga dispersa das nuvens escurecendo o céu”. E também outros poetas são sensíveis às 208 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 ilhas que pontuam a orla: Jean-Claude Tardif convida o leitor a segui-lo no seu percurso e, a propósito da ilha de Bréhat, ele é sensível ao “seu azul maltratando o cor-de-rosa ao pé do farol do Paon”, enquanto que Jean-Albert Guénégan conhece as virtudes de Ouessant, propícias à metamorfose: “sopro que reaprendo, pálpebras pousadas no longínquo, afronta ao meu novo ser”. Mas a terra e as charnecas estão sempre presentes convidando-nos à reflexão. E os poetas, que também são exploradores, sabem desvendar a particularidade de cada uma destas terras. Os Montes de Arrée oferecem este aspecto selvagem que René Guyomard pincela com acerto: “Nuvens pesadas abafam o caminhar das cristas e o novelo das névoas tece a mortalha das horas”, em sintonia com Gilles Baudry, mais inclinado ao devaneio, à “saudade das grandes partidas”. Convém, portanto, ler os poemas destes quinze autores para entrar na Bretanha, para percorrer com eles estas paisagens cujas cores oscilam em função da luz que as acaricia, mas também para compreender, talvez, o que representa para eles esta terra, a deles, que ora celebram através de um tímido poema lírico, ora através de uma escrita simples, mas que nem por isso deixa de ser uma prova inferior de um profundo apego. Terra de contrastes, tal é a Bretanha, e assim são estes poetas apegados à sua terra por um forte sentimento que poderíamos chamar amor se o termo não fosse tão comum. E se Hélène Cadou escreve: “as palavras são brancas/na minha terra”, compreendamos que estas palavras de sal, mas também de tinta, estão aqui para nos dizer que a Bretanha nunca deixa de estar presente. E esta antologia não é, como podemos observar, a mínima forma de a abordar e de a visitar serenamente. _________ Max Alhau é francês (Paris, 1936), poeta e ficcionista, participa de várias revistas, e divulgou diversos poetas espanhóis e latino-americanos na França. Publicou vários livros, como: Du bleu dans la mémoire (2010, poesia), Aperçus – Lieux – Traces (2012, poesia), e Ailleurs et même plus loin (2012, contos). 209 R EVISTA DA 210 A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Vozes poéticas da Bahia Rita Olivieri-Godet Para inaugurar um diálogo entre culturas diversas a palavra poética é um lugar privilegiado. A Bretanha e a Bahia compartilham o fato de serem territórios de beleza incomum que deram origem a uma grande tradição poética, marcada pelo imaginário marítimo e pelas singularidades da cultura do campo. Nesses territórios, a poesia se faz presente de maneira viva e dinâmica, não hesitando em explorar novas formas de difusão e de veiculação de sua produção nos tempos globalizados da contemporaneidade. Esta antologia bilíngue contribui para manter a vitalidade dessa tradição, ao tomar a linguagem poética como mediadora da interação entre espaços geográficos e culturais distintos. Dos dois lados do Atlântico, poetas repetem incansáveis o mesmo gesto ancestral de refundar a linguagem para desvelar e recriar o real, buscando sondar os enigmas do ser humano : “Pela palavra o homem é uma metáfora dele mesmo”, escreve o poeta mexicano Octavio Paz. Em alguns textos dos quinze poetas baianos selecionados, que embora contemporâneos pertencem a gerações diversas, podese observar uma construção estética da paisagem. Nota-se que, para além das representações da paisagem, no sentido geográfico, as relações tecidas entre paisagens e afetos exploram uma “ego 211 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 geografia”, no dizer de Daniel-Henry Pageaux, “uma escrita espacializada de um eu”. Múltiplas metáforas marítimas desenham o contorno da intimidade amorosa e existencial, como no belo “Soneto da alvorada”, de Florisvaldo Mattos que canta a plenitude erótica “[...] Do mar que sondas,/resistindo na praia abandonada,/ alvorecem cavalos sobre as ondas”, ou nos poemas de Helena Parente Cunha, “Arco da ponte” e “Sob o sono” – texto que interroga a dimensão ilimitada do sentimento de incompletude humana, tomando o mar como cenário da alma : “quantas naus à espera de portos/além do mar que espreitamos/e de outros que nunca soubemos”. Entre os textos que evocam cidades, dois poemas antológicos se destacam, dedicados à cidade de Salvador da Bahia, objeto de homenagens em verso e prosa. O primeiro, “A Cidade”, de autoria da consagrada poeta Myriam Fraga, recusa o lirismo retórico para, através de um processo rigoroso de elaboração da linguagem, criar imagens poéticas originais que delineam a alma e a memória da cidade ao tempo em que evocam sua conformação topológica: “Foi plantada no mar/E entre corais se levanta./O salitre é seu ar,/Sua coroa, sua trança/de salsugem,/Seu vestido de ametista,/ Seu manto de sal/E musgo.” Seus poemas, de rara qualidade estética, alia composição formal e sensibilidade, inserindo-se numa vertente da poesia brasileira que faz confluir consciência poética e dimensão social. “Salvadolores” de Fernando da Rocha Peres – outro grande poeta dessa terra de poetas – opta por um tom confessional e nostálgico para evocar formas de habitabilidade do quotidiano da cidade que se perderam no tempo, num processo de construção da espacialização da experiência afetiva. Toma como ponto de partida a memória individual da infância do eu poético, entrelaçando-a com a memória da história coletiva: “Salvadolores que não é feita, nem se faz,/mas se desfaz, pois os homens que se metem/e a descoram e desfiguram, sempre/ transmudam a dita, de Luís Dias, há muito,/em lodaçal de problemas e marinas.” 212 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 A maior parte dos poemas dos autores baianos incluídos nesta antologia constroem a íntima singularidade do seu universo poético debruçando-se sobre temas multisseculares da poesia universal: o amor, a morte, a condição precária do ser humano, a reflexão sobre o fazer poético constituem os temas mais visitados. Todo poema inscreve-se como uma réplica no diálogo ancestral que a poesia trava através do tempo, revelando e desnudando, através de sua linguagem imprevisível, a relação do homem com o mundo, num movimento de incessante renovação. É próprio da poesia as infinitas possibilidades de dizer esses temas. Cada território imaginário, projetado nos textos aqui reunidos, dá o testemunho dessa profícua diversidade. Vários poemas evocam as múltiplas matizes do amor. Aludimos a dois movimentos extremos no tratamento do tema que nos remetem aos impulsos complexos e contraditórios de um sentimento “tão contrário a si”, como tão bem o (in) definiu Camões, um dos seus maiores exegetas. Uma das vertentes elabora a expressão eufórica da plenitude erótica em poemas como o já referido “Soneto da alvorada” de Florisvaldo Mattos e “Céus de agosto” de Washington Queiroz cujos versos finais reproduzimos: “em tua paisagem adunca, adula, pede/pele, luar, tato e toque:/ bote para o enlace. Encaixe:/bramidos ecoam na planície./Tudo se queda./Crianças planam à beira do mar”. No lugar do canto elegíaco aos prazeres do corpo e ao sentimento de completude que o ato amoroso, apesar de efêmero, proporciona, outros textos, integram a dimensão erótica, conjugando amor, dor e perda, num moto contínuo em que o amor, tal Fênix, renasce das próprias cinzas. A perfeita arquitetura sonora do soneto “Campo de Eros”, de Ruy Espinheira Filho, evoca a natureza contraditória do amor, que a potência emotiva da imagem final, bela e comovente, eleva ao paroxismo : “[...] E amor, amor, amor/por toda parte trucidado e em flor.” Num outro momento, em “Poema de novembro”, Ruy Espinheira Filho estabelece conexões entre imagens do amor e da morte, esquadrinhando, em tons baudelairianos, as 213 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 lembranças do amor perdido que sobrevivem na memória até que a morte, destino inexorável, tudo destrua, definitivamente: “A morte/que mata todas as mortes,/sepulta/para sempre/todos os mortos. Como/este, cadáver de amor/que me perfuma.” A ligação estreita entre amor e morte é uma das facetas privilegiadas pelo poeta para sondar os mistérios da existência. A evocação da morte relacionada ao tema da passagem inexorável do tempo e da precariedade da condição humana constitui uma temática recorrente na produção dos poetas baianos, como podemos observar na vocação metafísica da poesia de Antônio Brasileiro: “Um dia o mundo inteiro vai ser memória […]”, escreve Antônio Brasileiro no poema “Das coisas memoráveis”, para concluir com versos que remetem ao paradoxo entre o caráter efêmero do humano e perene da arte : “Eu, sentado aqui,/serei só estes versos que dizem haver um eu/sentado aqui.” A poesia contra a morte, escrever para domar a morte, para permanecer, num ato insano que encontra sua fundamentação no desejo vão de exorcizá-la, pela iluminação da palavra poética: “Mas justo porque o mundo é mesmo imenso/e imensa é a alma,/eis que escrevo e escrevo e escrevo e escrevo./Por certo, para nada. Sim. Por certo, para nada” (“Rutilância”). Acionando a memória individual para explorar poeticamente as reminiscências do passado, a subjetividade da persona lírica testemunha dolorosamente, em “Os retratos”, de Myriam Fraga, que “tudo que foi aqui está enterrado”, enquanto em “Cronologia”, de Fernando da Rocha Peres, a voz poética alude à brevidade da vida e recorda o percurso da infância à idade adulta, fazendo-o coincidir com o da perda das ilusões “em alameda que não tem saída”. Registro disfórico semelhante encontramos nos sonetos de Luís Antonio Cajazeira Ramos, que se constroem em torno da consciência solitária do ser: “Acresce a tantas faltas a mais certa :/o fim da solidão. Pois quando fores/seguir a todos mais, nenhum alerta:/a tua dor maior são essas flores/sorrindo sobre a tumba sempre aberta” (“Soneto do abandono”). O 214 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 sentimento de impotência diante da solidão manifesta-se no percurso intimista de sondagem existencial que o sujeito lírico inaugura nos seus poemas. É o caso de textos poéticos de Cajazeira Ramos que assumem claramente o diálogo com as vozes mais expressivas da vertente introspectiva da literatura de língua portuguesa, Fernando Pessoa, no soneto “O poeta em mim”, Clarice Lispector, no poema “Spector”: “Clarice, se eu fosse eu não faz sentido./É como se eu pudesse ser alguém./Pois nem ser eu sei ser, quanto mais quem/houvesse além de si haver havido.” O eco da longa tradição da poesia portuguesa no tratamento do tema do desdobramento do eu – dos versos renascentistas de Bernardim Ribeiro (“De mim sou feito alheio”) e Sá de Miranda (“Comigo me desavim”) à modernidade do magistral Fernando Pessoa (“Não sei quem me sonho”) – ressoa, igualmente, na produção de Roberval Pereyr. O que está em jogo na sua poesia são as múltiplas máscaras que habitam dilaceradamente o sujeito lírico: “A minha luta é banir-me/a partir mesmo dos ossos/da ossatura dos sonhos/com seus remorsos, rebanhos/de feras subtonadas” (“Ofício”). O ponto fulcral da poesia de Roberval Pereyr está assentado numa consciência em crise em busca do conhecimento de si e do mundo. O fazer poético desdobra-se numa perquisição obsessiva, explorando a intimidade intraduzível do eu em composições de “Quadros oníricos”. Por esse caminho, realiza a inscrição do sujeito no poema e expõe a diversidade dos eus que o habitam, como sugerem o título do poema “Nenhum e seis” e a densidade de seus versos : “sou da noite minhas unhas crescem/na noite inventei um destino/na noite:/ uma banda do ser interditada/a outra na festa/às vezes pergunto: quem sou ?”. A escrita das vozes interiores potencializa a função emotiva do poema. A interrogação que os poetas baianos realizam sobre o ser e o estar no mundo abrange a reflexão metadiscursiva sobre a natureza da própria linguagem poética. Essa vertente temática perpassa 215 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 um número expressivo de poemas, entre os quais podemos ainda destacar : “Momento”, de Washington Queiroz, no qual o poema se realiza em obediência ao misterioso impulso da criação, como experiência voraz das facetas contraditórias do humano; “Busca”, de Ruy Espinheira Filho, associa escrita do poema e interrogação sobre a identidade do eu poético, enquanto em “Estudo 165”, de Antônio Brasileiro, a escrita do poema se debruça sobre o desvelamento e a (re) invenção da própria condição humana como elemento fundador da identidade do ato de criação poética: “compor um homem/com seus soluços, gramáticas, teogonias/ – e recitá-lo perante os outros homens.” Os poemas “O(fí)cio”, “Poema” e “Praxis”, de autoria de Aleilton Fonseca, constituem um conjunto representativo dessa temática. Em “O (fí) cio”, o ato de criar é a um só tempo prazer e labor movidos por uma energia libidinal que transcende a esfera pragmática para fazer surgir a linguagem encantatória da poesia: “Há bigornas/ espalhadas/por todo espaço/e um fogo larva/que nasce em si mesmo magma/sem nenhuma preocupação com as horas/ Oficina – casa do ofício, ócio, cio/acima um aviso breve/ permitindo a entrada de pessoas estranhas/ao serviço/e martelos/ usados ou virgens/e muito ferro para fundir.” Memória literária e invenção original participam da atividade lúdica e dorida que faz emergir a palavra poética, ávida para compreender e reinventar o mundo. Enfim, o longo e belíssimo poema “O anjo no bar”, de Antônio Brasileiro, aplica-se em negar, ironicamente, a função que desempenha de procurar desentranhar o absoluto do real : “Não quero mais conhecer coisíssima nenhuma, o/fundo de coisa alguma, a outra face/do outro, o ser primigênio, a causa bêbada,/ o delírio do que lá seja – não, não quero.” A recusa justifica-se pelo desassossego que se apossa do eu lírico, pelo tumulto que o invade e o transforma em vítima da própria acuidade do olhar na percepção do mundo. No entanto, o poema se constrói e, ao fazê-lo, afirma o que está negando, acentuando o caráter 216 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 expressivo da linguagem: “Por que/tumultuarme?/Nenhuma verdade é paz; é só o inquietar-se./Conto de fadas contado por fadas para fadas.” A antologia que ora o leitor tem em mãos possibilita uma amostragem da diversidade da produção da poesia contemporânea da Bahia e da Bretanha. Um convite à descoberta ou à redescoberta de territórios imaginários que a paisagem afetiva da poesia aproxima, transformando o Oceano que os separa fisicamente em espaço poeticamente compartilhado. Nenhum discurso se substitui à poesia: “O poeta não quer dizer: ele diz”, escreve Octavio Paz. Então, deixemos a palavra com os poetas da Bahia e da Bretanha. Rita Olivieri-Godet é Doutora em Letras (USP), com Pós-Doutorado na França, é professora titular de Literatura Brasileira na Universidade Rennes 2 (França), tem diversos artigos e livros publicados no Brasil e na França, como Construções identitárias na obra de João Ubaldo Ribeiro (São Paulo: Hucitec, 2009), premiado pela UBE-RJ. Desde 2011 é membro correspondente da ALB. 217 R EVISTA DA 218 A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 POESIA 219 R EVISTA DA 220 ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 CONVERSA COM FRANCISCO OTAVIANO Ruy Espinheira Filho ILUSÕES DA VIDA Quem passou pela vida em branca nuvem E em plácido repouso adormeceu, Quem não sentiu o frio da desgraça, Quem passou pela vida e não sofreu, Foi espectro de homem – não foi homem, Só passou pela vida – não viveu. F. O. Desde adolescente sei de cor este teu poema, meu caro Francisco. Quem sabe de cor, como bem sabes, sabe de coração. E no coração embalei teu poema por muitos e muitos anos. (Mesmo com a dúvida de singular ou plural, branca nuvem ou brancas nuvens, 221 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 culpa tua por não o teres publicado em livro, permitindo a variação que venho encontrando em revistas, jornais, antologias. Seja como for, um belo poema. Ficarei com o singular, que um amigo erudito assegura ser a forma mais aceita, mesmo porque uma nuvem já é o suficiente, dá mais a ideia de paz do que várias nuvens). Fechado o parêntese, continuemos. Sim, que coisa mais inútil passar pela vida em branca nuvem! Que imperdoável alienação adormecer em plácido repouso! Que grandeza em enfrentar o frio da desgraça! Jamais ser espectro de homem – mas homem de verdade! Jamais passar apenas pela vida – mas vivê-la intensamente! Com o tempo, porém, fui cada vez mais admirando a branca nuvem. Em muitos instantes desejei estar noutro lugar, noutra situação, 222 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 de preferência em branca nuvem. Vivêssemos todos em branca nuvem, o mundo seria muito melhor. Em estado de branca nuvem, Aquiles não teria sido dominado pela ira. Nem Alexandre pelo delírio de conquistas. Nem os fanáticos da Inquisição teriam acendido suas ominosas fogueiras. Nem Hitler desejaria se vingar da humanidade, pois não sofreria seus complexos sexuais, nem de palhaço patético e pintor medíocre, abaixo de medíocre (e muito menos a Alemanha inteira, ou quase, apoiaria com entusiasmo o homunculóide sinistro). Aprendi, desde cedo, que os anjinhos gostam de brincar nas brancas nuvens. Certa vez, quando menino, ouvi, de uma empregada, que acabava de ver um anjinho passar de uma nuvem para outra. Olhei o céu, mas só vi brancas nuvens. A moça me explicou que ele estava escondido numa delas 223 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 e era muito mimoso, com asinhas como brancas nuvens. Passei então a olhar muito as nuvens, mas nunca vi um anjinho. Via as nuvens, dia após dias (dia empurrando dia, como escreveu Horácio). Fui cada vez mais me tornando vigilante de brancas nuvens. Gosto muito de olhar para elas. Se pudesse, teria uma, para poder ler em incomparável conforto. Ou amar. Ou dormir. O que seria dormir, sem dúvida, em plácido repouso. Que é, afinal, como se deve dormir. Sem sentir o frio da desgraça de um pesadelo, por exemplo. Aliás, se há algo que devemos sempre evitar é o frio da desgraça. Se o frio comum já pode ser um problema, imagine o frio da desgraça. Libera nos, Domine. Nada desses horrores, pois são eles que transformam o homem em espectro, que nos impedem de verdadeiramente viver. 224 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Pois é, Francisco, fui mudando com o tempo. Podes até me acusar de cinismo, o que não me incomodaria, pois muita gente boa já foi acusada de cinismo, como, por exemplo, Voltaire. Ainda sei de coração o teu poema, não se pode esquecer amores da juventude. Mas hoje, quando dele me lembro, não sinto mais aquela emoção. Sinto outra, como uma espécie de saudade de mim mesmo, daquele jovem que declamava teus versos intensamente possuído de poesia e convicção. Na verdade, não passei pela vida em branca nuvem. Não me foi possível. Não é possível a ninguém passar assim a vida. Há sempre muitos incômodos, muitas tentações. Mas, sinceramente, a tentação que cada vez me tenta mais é a branca nuvem. Que melhor lugar pode haver para 225 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 – dormindo ou acordado – estar em plácido repouso? E quem de nós não acha que merece um plácido repouso? Não, nada de frio da desgraça. Nada de sofrimento. Tais experiências podem ser boas para quem pretende trocá-las por milênios de prazeres em algum paraíso, como garantem certos corretores espirituais. Eu, não, não quero tanto, prefiro dois pássaros voando a um na mão. Mais: prefiro todos lá fora, no alto, longe de mãos. Não me limitei a apenas passar pela vida (mesmo porque ela não depende tanto de nós quanto arrogantemente supomos) em branca nuvem, como jamais me senti espectro. Às vezes até sonho em vir a ser espectro, no devido tempo, para visitar certas pessoas à meia-noite. Não, meu caro poeta, não estou brincando. Talvez divagando um pouco, mas a divagação faz bem à alma. Como lhe fazem igualmente bem uma branca nuvem e um plácido repouso. 226 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Enfim, continuo amando o teu poema, mas, nestas alturas, o que mais quero mesmo é vir a merecer uma branca nuvem para um plácido repouso final. Amém. Ruy Espinheira Filho é escritor, jornalista e professor da Universidade Federal da Bahia, é autor de dezenas de livros de poesia, ficção e ensaios, tendo recebido diversos prêmios nacionais. Recentemente lançou Estação infinita e outras estações, volume que reúne toda a sua poesia (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012). Desde 2000 ocupa a Cadeira nº 17 da ALB. 227 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 O BANQUETE DAS MUSAS Myriam Fraga Vinde fantasmas! Eu vos amo ainda. Antonio de Castro Alves Poesia, marulho e náusea, Poesia, canção suicida Poesia que recomeças De outro mundo, noutra vida. Carlos Drummond de Andrade IDALINA Água de anil na tarde, A roupa no varal Acena despedidas. Tua roupa lavada, Teu perfume, Cumplicidade de cheiros Mais secretos. 228 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 A poesia como linho Que se carda, como o puro Esmalte das tigelas, Onde a sopa Evola seus incensos. Quando chegares, A ceia estará posta. Teu doce favorito, Teu prato predileto, Frutas sobre a mesa E a nódoa De vinho na toalha. A lâmpada acesa a um canto E a luz mais forte Do poema que escreves, Enquanto a noite Desata seus cabelos sobre a cama. Esquecida no prato, a sopa, Coagulando lembranças, Como álibi. 229 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 EUGÊNIA Não te darei, Amor, Profundas mágoas, Mas indomada Paixão, Oceano de lavas. Não te direi Sou tua, Porque minto. Só em mim, Em mim mesma Pressinto O êxtase de pisar No risco que divide. Tumulto é minha voz Cintilando, nos palcos. Minha voz que é tua voz. Cicuta é meu veneno, Meu perfume, absinto. Adeus, para sempre, Adeus. No cálice a última gota. O mais é precipício. 230 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 LEONÍDIA Guardo comigo um trapo, Um fio de cabelo, Um farrapo de sonho E o resto de um retrato. Como um tesouro Escondido, Um filho morto que levo, Aos trambolhões, Comigo. Tantos anos a fio, Tantos fios Tecendo o que não foi, Um bordado esquecido E que ainda guardo No peito, Como parte de mim, Relíquia Do meu amor antigo. Um fardo que carrego, Como um homem carrega Sua infância esquecida. O cetim dos vestidos, A pesar-me nos ombros. E na testa a grinalda, Roxa, de boninas. 231 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 CONSUELO Tanto tempo perdido, Tanto tempo, Meu corpo como um cálice, Cristalino, intocado, À espera de tuas mãos, Em busca de um abraço Que não tive jamais. Nos teus olhos febris, Que ardem como brasas, Adivinho a ferida aberta Em tua sorte madrasta. Maligna febre esta febre Que te arrasta, Amante mais cruel E mais avara. Não sobrará mais nada Além da mancha No lenço E o sangue que se espalha. Sobre nós dois a lua Derrama sua prata. 232 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 POEMAS 1936 Fernando da Rocha Peres POESIA para João, garoto e neto Minha alma foi soprada pelos ouvidos e quando nasci em novembro chovia e ventava. Lembro de ouvir dizer sempre de luzes e vozes em sala branca onde um choro estridente brotou depois de uma palmada e dor quando comecei a sensoriar tudo os sons de palavras e rezarias aprendidas depois para escreviver suspiros e poemas do indizível historietas que todos carregam ora vejam só vocês que estão a ler este sopropoeta velho de setenta e cinco anos vividos desde então por vontades do Criador das gentes. (Salvadolores) 233 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 ARANEADA Fernando da Rocha Peres para Teresa, menina e neta Uma aranha tece e não esquece o inicio do fio infindável. A brisa passa e treme a trama tecida e leve e preso estou de olho fixo no risco aéreo da arquiteta atentíssima. Pronta estará a redefina se no laço tinir o primeiro inseto prisioneiro. 234 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Caça e comida debatendo-se são o sinal do repasto agonizante. Labiríntica cena para quem vê e sente prazer de esperar só o resultado. A calma que é na tardezinha com aranha operosa e sua obra até o chuvisco rasgar a renda entrelinhada de um bicho vencido ao crepúsculo. (Pedras do Rio) 235 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 PAISAGEM Fernando da Rocha Peres para Paula, mocinha e neta O vento, ventozinho, suave, brioso, traz prazer na pele de gentes e pelos e penas dos bichos, e muita poeira de sujidades que esvoaçam com as folhas e pólens e cheiros e beija-flores, leves, e lágrimas de velhos nos bancos da varanda mastigando o futuro, insosso, que tudo encurta e chega mais perto a cada domingo, a morte nas faces estriadas e secas 236 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 de mulher ou de homem seja estação do ano qualquer chuvosas ou solaradas, pois já anoitece e o tempo brisado retorna com vaga-lumes intocáveis que piscam, pisca, piscando para encanto da meninada e adolescentes que tagarelam de baixo das árvores sem poda restantes e enluaradas copas. Um poeta que sonha adiante fixa tudo na memória presente com palavras de muito guardadas. (Pedras do Rio) Fernando da Rocha Peres é escritor, historiador e professor da Universidade Federal da Bahia; é autor de dezenas de livros de poesia e ensaios. Desde 1988 ocupa a Cadeira nº 25 da ALB. 237 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 POEMAS ESCRITURAS José Inácio Vieira de Melo Eu chego no silêncio que acende as quatro ferraduras do tempo e encontro a inesgotável jazida, catedral do rubi que me habita. Na madrugada, sonho com os rumos, gesto que inventa o cristal das palavras, surpreendendo as pedras com a chuva a derramar a escritura sagrada. Agora, apenas ando com os pássaros a escutar as belezas desta terra e sustento as parábolas salvíficas com esta medula que me carrega. Escuta, dos confins do longo dia, a noite a chegar – cortina de versos que revelam as estrelas de abril aos meus olhos pasmos de tanto ver. 238 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 RASTRO DE TESEU José Inácio Vieira de Melo Distraído é que me perco e cruzo veredas outras envoltas em verossímeis labirintos da memória. Com o olhar perscrutador e com estas sete vidas dos meus vinte dedos é que sondo o mapa do mito. Como perdido entre nuvens sempre me encontras inteiro, danço no panavoeiro dos passarinhos ligeiros e reinvento os sentidos com o vento galopante e te ofereço esta nova paisagem de cada instante. 239 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 TEMPLO José Inácio Vieira de Melo Das palavras do poeta, as imagens que captam a multidão ao triunfo. De sua dimensão nasce o centauro, veículo e montaria dos mundos. A loucura das lâmpadas na mente e o pensamento inquieto, o poeta bebe e chora ouvindo as vozes do templo: elementos que o espírito alimentam. Combate a morte com a poesia. Violenta o pavor da cristandade. Seus versos, rebeladas orações, cânticos de louvor à liberdade. 240 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Na escada do templo, pensando o tempo: o mundo emergindo dos vastos ventos para os cascos velozes do centauro. O poeta é o próprio templo do tempo. Com os ímpetos dos céus, bebe o vinho. Indo ou vindo o poeta se embriaga e iluminado estende aos mercadores o ardor e o sabor de suas palavras. Dentro da noite selvagem e bruta, os lamentos da multidão que sangra. O poeta em seu plantão salga a carne, depois revela as fontes da emoção. Por dentro da nave do mundo existem rumos crescentes que esperam por gentes. O poeta entrou no templo, abriu as portas, acendeu a fogueira e dançou nos tempos. 241 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 SONATA DAS MUSAS ESCARLATES José Inácio Vieira de Melo Nos olores dos aloendros escarlates, as musas todas. O escarlate, em sua noite, cria a linguagem por dentro. Por dentro da madrugada, os gemidos escarlates de Cássia sobre a alfombra de folhas dos cajueiros. Os tempos extinguiram os corpos, distantes, mas os mares e os risos ainda estão envolvidos. Outrora, a água e a cidra, os barcos nos azulejos, outrora, por dentro do corpo da noite, recendiam os jasmins, outrora, Quitéria era infanta e se fazia escarlate ao cantar do galo. À noite, os vestidos de verbenas eram imortais. No mais, tudo era gozo e rito nas liturgias do céu. Às vezes, as borboletas fazem um culto à memória de Margarete e os ventos povoam as pedras dos jazigos daqueles anos azuis que jazem aqui, dentro do peito, e nos arrabaldes que vejo. E era Linda, com os olhos sombreados dentro da noite, e eu todo perdido nos aromas de avelã de sua volúpia, e sobre suas ancas escarlates estou, como o mar por dentro. 242 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 E, na noite do mar adolescente, Aliane e seus cheiros: nas pupilas das águas, no âmago das praias, envolvidos. O verde do mar e o sangue das verbenas, enredados no negror da noite. E eu ouvia Carla e me envolvia nas trepadeiras dos seus cabelos, no seu templo de música. E pelos céus da minha paixão desfilavam em flor e fogo os vultos de Vilma e de Vanessa – estandartes escarlates. Assim, Duíno Selvagem, breve como as águas do Sertão, estendo as musas escarlates que perenizam minha saga. José Inácio Vieira de Melo (1968), alagoano radicado na Bahia, é poeta, jornalista e produtor cultural. Publicou os livros Códigos do silêncio (2000), Decifração de abismos (2002), A terceira romaria (2005), A infância do Centauro (2007), Roseiral (2010), a antologia 50 poemas escolhidos pelo autor (2011) e Pedra Só (2012). Organizou Concerto lírico a quinze vozes – Uma coletânea de novos poetas da Bahia (2004), Sangue Novo – 21 poetas baianos do século XXI (2011) e as agendas Retratos Poéticos do Brasil 2010 (2009) e Retratos Poéticos do Brasil 2013 (2012). Participa de várias antologias no Brasil e no exterior. Edita o blog Cavaleiro de Fogo: www.jivmcavaleirodefogo.blogspot.com 243 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 POEMAS ELI ELI LAMA SABACHTHANI? Manuel Anastácio Promete não dizeres mais nada Entre os arcos desenhados pela minha voz. De nós, nada mais deve restar agora Que os dois num só, a sós. Promete não dizeres mais nada Enquanto durar a nossa constelação. Promete manter o céu em silêncio Até que venha a hora Em que peçam explicação, E remoam o espanto Perante o silêncio de água e sangue Que escorre dos meus flancos – Depois de ter gritado a última acusação Que ninguém compreenderá. Porque, nessa hora, não me terás abandonado, Mas aberto a porta Para que, enfim, retorne, e entre de novo em mim. 244 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 CREDO I Manuel Anastácio Creio num só corpo, Numa só onda, Numa só corda, Num só fim. Creio, acredito No sal bendito das lágrimas Na concreta nudez Da limpidez das águas Na urgência do florir da terra E em cobrir telas e folhas brancas Com as transparências em que acredito. Creio, Num só grito. Num só corpo, Numa só onda, Numa só corda. E, por fim, Num só múltiplo princípio. 245 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 LAMENTAÇÃO DA VIRGEM Manuel Anastácio Para a Maria Helena No horizonte, na ténue linha onde os gritos morrem E se cala o eco, As montanhas concentram-se num fractal Onde o bem e o mal tomam formas De insuportáveis dimensões. Antes do horizonte, insustentáveis, as coisas fogem ao olhar, E os sentidos obrigam a um só momento. Antes do horizonte não há memória nem pensamento, E a erosão destrói a história e qualquer outra ilusória narração. As imagens, oxidadas, envelhecem, veladas em poeira e abrasão. Os mantos abrem buracos por onde o coração das coisas vê as estrelas E Abraão, sem vê-las, planeia veredas. Mas antes do horizonte apenas seguem sendas e atalhos Cortados em retalhos sem limite. Antes do horizonte, os caminhos Esbarram na impossibilidade de atravessar o que a luz obriga. Dos mais curtos, dos prometidos, há pedaços. Há fragmentos de percursos interrompidos. Há farrapos de mera possibilidade. E, na verdade, perdidos, Somos rendidos nos caminhos pelos deuses que passam E nos trespassam com sonhos e promessas Que se esbatem no horizonte. A erosão corrói a cutícula do universo E há no seu inverso, a deposição, o mistério das coisas como elas são. 246 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 À ESPERA DO TORNADO (A partir do conto homônimo de Gláucia Lemos) Manuel Anastácio Um dia ainda escreverei a história de uma mulher que tinha um homem que a amava e que um tornado levou. Escreverei a história de quanto ela esperou. Contarei como o vento arranhou a face de quem o viu levando árvores, cães e telhados. E contarei o caso de, dos homens, só levar os apaixonados. O vazio no peito dos que não amaram nem amariam Não compensava o peso dos seus membros estéreis e apagados. Esses foram poupados. Poupados ao olho voraz do vazio em que o homem que amava aquela mulher lhe gritou Espera por mim, minha amada, Espera por mim. Um dia voltarei. E contarei como as mulheres abandonadas Seguiram, solitárias, pelas estradas, à procura. E contarei, ó como contarei, enquanto os meus olhos conseguirem disfarçar as lágrimas, como o rasto dos seus olhos se espalhava pelo chão, pelo duro bordo dos trilhos, pelo vermelho dos frutos do café, pelas ondas alvas do algodão e pelo verde das folhas com que o milho se vestia. Pudesse eu, e contaria, ó se contaria, 247 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Como os olhos verdes das que tinham olhos verdesse debotou enquanto o matagal oculto deles se tingia. Soubesse eu como fazê-lo, e contaria Como se tornaram mais negras as noites, Alimentando a sua escuridão com o negro dos olhos, Das que tinham olhos negros e os viram tornar cinza, apagando o seu negro brilho na ansiedade que perscruta as sombras. Todas seguiram os caminhos da esperança desolada. Todas, menos a mulher de quem contarei As horas gastas nos trabalhos em que persistia, Dia após dia, até ao momento em que, recolhida, Junto à janela, Novamente ouvia o vento em lamento melancólico e pirracento Que quezilento, em lento protesto lhe repetia Espera por mim, minha amada, Espera por mim. E, após o pedido, a promessa Um dia voltarei. E a mulher esperava, sob a areia prateada da noite, sob a curva abóbada dos nocturnos violões Tornados próximos pelo silencioso hálito de Deus, à noite, Assim esperava a mulher de quem contarei A espera, a esperança de que na dança dos elementos Também houvesse o passo da restituição. De quem contarei a bênção de acreditar Que não há vento nem maldição que não devolva O que seria de justiça não levar. 248 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Contaria, ó como contaria, Como trazia amarradas as dores do seu segredo sagrado. Contaria, pudesse eu entender o que mais dizem os galhos das amendoeiras Varados pelo vento, No seu lamento ao ledo e triste alento Da mulher que tinha um homem que a amava. E que, um dia, o vento levou. E por quem ela esperaria, Depois de esquecidos os sorrisos com que amarrara a dor aos dias, Presa ao milagre adiado com que o vento, rendido, o devolveria. __________ Manuel Anastácio. Natural de Guimarães, Portugal. Professor de Literatura, Ciências Naturais e Matemática pela Escola Superior de Santarém. É um dos organizadores da Wikipédia - Enciclopédia Aberta, em Português. Reside em Guimarães, onde exerce Magistério e escreve literatura e comentários de textos e de cinema no blog Da Condição Humana. 249 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 VOZ DEL MAR Aarón Rueda A Mónica Arias I El mar nace en el centro de una gota de agua, acumulándose crea oleajes de luz para formar un cuerpo de plata con venas de ríos y huesos de arena. El manto celeste yergue en voz el silbido etéreo de la gaviota y las raíces del manglar adornan los ojos con la luna llena. II La fragata se envuelve en el cuerpo de una nube junto y un par de rabihorcados que se sumergen en esta bajamar de intenso amanecer. Crecen las jóvenes marismas que esculpen la mañana cuando el mar atrapa relámpagos de sol para dibujar el horizonte. 250 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 III El vuelo del mar es diseminado por aves acostumbradas a sentir la canción de las olas. En el sendero marino una botella se alinea al rumbo del naufragio llevando en su vientre un crepúsculo para alimentar el canto luminoso de los marineros. IV El mar mezcla su anochecer con la lluvia para glorificar la llegada de los peces. Las caracolas florecen su danza ancestral recorriendo el salitre luminoso que despierta en los labios de la arena. V Los ojos ocultan la cara del coral, un pez le recita versos a los péndulos de agua que dejan las fragatas en su inmersión, la ola apuntala con besos de niebla que se fecunda en el centro de un pétalo. Aarón Rueda é natural de Choapas, Veracruz, México. Reside na cidade de Cárdenas, Tabasco. Já publicou poemas em diversas revistas no México, Colômbia, Chile, Espanha e Peru, tem participado de eventos literários em países como Colômbia, Cuba, México e Canadá. É o criador e diretor do Festival Iberoamericano de Poesia Salvador Díaz Mirón, e divulgador das Línguas Indígenas da América. Foi o ganhador do Prêmio Nacional de Poesia Rosario Castellanos, concedido pela Universidad Autónoma de Yucatán. 251 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 POEMAS LA ORUGA Alain Saint-Saëns En la ciudad a cántaros llueve. Sumergida en las aguas, se mueve En el suelo una oruga frágil; Chapotea y tiembla la mal ágil. Por el granizo mordidas En la calle hundida, Sus patitas torcidas Agarran la calzada. Patinando a su altura, Se da un camión prisa En el bordillo de la acera Y la oruga ¡ya pisa! ¡Trágico fin anunciado del a su destino abandonado! Pequeño insecto dañino, Ha muerto de la calle el niño. 252 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 NINGÚN GALLO VENDRÁ CANTURREAR Alain Saint-Saëns Ningún gallo vendrá canturrear Para la que debe guerrear Siempre para su supervivencia, De los suyos y la existencia Aguantar como perra de barrio Todo el horror diario. En los brazos niña asquerosa, Ella mendiga, vergonzosa, Un óbolo en el colectivo; Tosiendo en el polvo, Hambrienta, vuelve a la tardecita: ¿Adónde se fueron sus sueños de escuelita? Ya viene la noche de desgracia Con su exceso de caricia Prohibida y maldita Del padre a su nenita. Dios, escucha su ruego: Permite que su muerte cese luego. 253 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 ERA AYER Alain Saint-Saëns Mi joya de la madrugada, ¿Te recuerdas el pasado? En mis brazos, emborrachada De mí, corrías echarte. Por tu conmoción achispado, ¡Cómo supe papacharte! Gacela de mis veinte años, A tu juego me ofrecía, Bandera de mis himnos, De tu pena padecía. ¡Qué lo atestigüe Dios! Ese tiempo no es tan lejos. De Javier Teodoro, tu hijo, Hoy eres ya hecha La nodriza derecha. Vida ¡Extraño atajo! Siempre junco genuflexión Hace ante Pandora y su elección. 254 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 LA PEQUEÑA VECINA Alain Saint-Saëns Nueve primaveras y una trenza, Toda de sonrisa y terneza, Se acerca a escondidas En silencio de mi porche Para robar mejor mi leche O las riquezas mías ofrecidas. Tira piedras a los perros, Temor ni de nadie manifiesta. A su escuela a la siesta, Prefiere ella los senderos, La alegría de la indiferencia, Dulce milagro de la infancia. ¿Qué borracho, a fin de celebrar, Crucificando su juventud, Le vendrá en dos quebrar, Madre soltera, ya no moza, Ojos grandes con tristeza Sombrear y llenar de lasitud? __________ Alain Saint-Saëns é poeta, ficcionista, professor e ensaísta, de origem francesa e radicado em Assunção-Paraguai. É professor da Universidad del Norte, publicou diversos livros, como o drama Pecados de mi pueblo (2013). 255 R EVISTA DA 256 ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 FICÇÃO 257 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 O pastor dos bosques Antonio Maura Este é um lugar no qual um homem, qualquer homem poderia perder-se. Não sei de onde você vem. Talvez de uma grande cidade. Não é mesmo? Faz muito tempo, eu também vivi por ali: torres de concreto e avenidas de asfalto, túneis e semáforos. Veja, para mim, aquela paisagem já não interessa. E como cheguei a um lugar como este? Isso foi como lhe disse, faz muito tempo. Parece até que me canso rebuscando na minha memória essa recordação. Qual é minha profissão? Se lhe dissesse que era lenhador, mentiria, isto é, não lhe diria toda a verdade. Carpinteiro? Tampouco seria fiel à verdade. E então...? Adivinho seu assombro, sua desconfiança... Não, não sou nenhum vagabundo. E também não sou nenhum louco. Não. Ainda que não me importasse ter qualquer dos ofícios que lhe mencionei. Veja, se tivesse que definir o que sou, o que sinto ser, verdadeiramente, diria, exatamente: um pastor de árvores. Isso mesmo: um pastor de bosques. Não sorria não, por favor, que não sou nenhum idiota. O fato de que eu viva isolado e distante desse Mundo do qual você procede não quer dizer que tenha perdido a razão. A comunidade dos homens não é sempre a mais saudável. Você não está de acordo? Aconteceu alguma coisa? Por que me olha desse modo? Isso que chamam civilização é algo raro e doentio. Por isso me converti em pastor 259 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 de árvores: isso mesmo. O certo é que comecei sendo um simples carpinteiro. Fazia móveis: mesas para que nelas comesse toda uma família, cadeiras, camas para apaixonados... Faziam-me a encomeda e lá ia eu para dentro do bosque procurar a madeira para talhar os barrotes, a cabeceira, os pés... No princípio, aquilo era muito mais complicado do que se poderia imaginar e me assaltavam todo tipo de dúvidas. Que tipo de árvore devia cortar? Esse pinheiro que cresce na encosta ou aquele carvalho? Dizem que a madeira do carvalho é muito resistente... Mas, como escolher, como decidir? Ah! você não pode imaginar minhas angústias. Eu voltava muitas vezes para a minha cabana sem conseguir tomar nem uma única decisão. Ademais, e isto era o mais importante: como escolher o melhor para a pessoa que me tinha contratado? Imagine só: se era um pobre aleijado que necessitava de umas muletas, não lhe poderia valer qualquer tipo de madeira porque suas mãos tinham que sentir como seus pés que lhe faltavam e também não deviam deixar de ser mãos, suas mãos. A madeira teria que ser, portanto, flexível e suave ao tato e também firme porque teria que sustentá-lo como as nossas pernas fazem com você e comigo. Você me entende? Está seguro? Seu olhar às vezes é tão distante! E aquele casal de apaixonados? Eu sei que nenhum abeto é semelhante a outro, ainda que pertençam à mesma família do reino vegetal, como também nenhum amante é semelhante a outro. E digo isso porque lembro de uma mulher que durante muitos anos viveu uma vida bem monótona embora cheia de atividade, e mesmo assim não conseguia alcançar a plenitude: era escrava de si mesma, de seus filhos, de seu marido... E sua vida ia se perdendo em jorros sem ter sido capaz de vivêla, de sofrê-la ou de gozá-la: de senti-la. Notava que um vazio semelhante a um abismo se abria sob seus pés – me contava ela – na hora em que terminava as tarefas do seu dia a dia e a casa voltava a ficar silenciosa. Então, então, ela não sabia como saltar por cima daquele obstáculo e reconciliar-se com esse rio que subjaz em cada um por toda sua existência: isso ao que vocês 260 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 chamam de sonho. E aquela mulher, que ia contando tudo para mim, quase chorando, necessitava de uma cama, uma cama para dormir, uma cama que fosse como um pequeno ninho e também como um mundo em que ela pudesse ter habitado, e vivido, e sonhado. Como fazer uma cama assim! Você pode imaginar? Eu vinha para este lado do bosque e ficava olhando os galhos e as folhas. Talvez pudesse ser deste álamo branco tão delicado e, também, tão flexível. Não, não poderia ser esta a árvore da qual necessitava aquela mulher. Poderia então ser este choupo que se move à margem do riachuelo, que se derrama por ali... Pode vêlo?... Logo depois daqueles freixos, lá na encosta. Mas nenhum dos dois parecia a mim que servisse. Finalmente, construí um grande leito de ramagens e folhas, sem cabeceira nem pés. As árvores emprestaram-me sua grande sabedoria indicando-me que tipo de ramagens e quais as partes do tronco eu deveria podar. E não foi só um, nem sequer uma única espécie ou única família, senão todos: de um eu tirava uma folha, de outro um ramo e de um outro seu fruto. Todos colaboraram para que aquele leito pudesse reunir todos os aromas e experiências do bosque... E aquela mulher conseguiu conciliar seu sono e sonhar. Você não me acredita? Vem de uma lonjura tão grande, tão distante, onde algo deve ter acontecido, e pensa que encontrou aqui um louco. Talvez tenha razão. Faz muitos anos que ninguém mora nestas paragens. Aquela mulher de quem lhe falei já morreu. E morreu também aquele velho que me pediu que lhe fizesse uma cadeira para sentar-se à porta de sua casa para esperar a morte e saber então como recebê-la... Sim, morreram todos. Minha mulher também. Não lhe tinha dito? Estive casado e tive, inclusive, um filho. Vivíamos em uma cabana maior que esta que você vê. Quando tive que reconstruir a casa, fiz tudo à minha medida. Já não me faziam falta tantos quartos... Uma catástrofe? Não, o simples passar do tempo. Eu lhe contarei... Mas, de que lugar você vem e por que me olha assim? Por aqui não foi apenas você que se perdeu. Aqui todos se perdem. Não se preocupe por isso. Como lhe dizia, vivia 261 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 dos móveis que fazia para as pessoas do povoado, do outro lado do bosque. Elas me pagavam com o que tinham: ovos, legumes, pão, leite... Mas um dia tudo se tornou diferente. Na manhã daquele dia saí de minha casa e fui para o bosque. A luz tecia uma malha fina ao redor das folhas, como se fosse uma teia de aranha que pudesse prender em sua rede as ideias mais felizes. Recordo que me sentia como uma criança que descobre, pela primeira vez, a magia da natureza e quer gravar, naquela matéria luminosa, as autênticas imagens do seu sonho. Meus pés dançavam com uma alegria inocente e selvagem. Todo meu corpo cantava e minha voz quase não acompanhava aquele ritmo, aquela melodia que nenhum homem inventou e que deu origem a todas as músicas. Era a força da vida que me dominava, que eu bebia como licor naqueles raios luminosos. Talvez eu tivesse penetrado na floresta mais do que devia, talvez a energia que desbordava em mim me levasse até alguma paragem insólita, mas o certo é que dei com uma clareira, onde dois indivíduos, sentados um em frente ao outro, jogavam dados. Junto a eles se erguia um jequitibá centenário. Ainda que, em um primeiro momento, o aspecto daqueles dois homens não me parecia estranho, não tardei em perceber que aquele jogo deveria ter sido iniciado há muito tempo já que vestiam suas roupas de forma atrapalhada depois de trocar inúmeras vezes suas vestimentas. Se um se cobria com dois gorros, o outro mostrava dois cinturões de fivelas brilhantes e as calças e camisas não correspondiam aos corpos que as vestiam. Devo ter feito uma cara de espanto porque um deles, ao ver que me aproximava, apontou-me uma vagem de jequitibá que estava no chão. Tomeia e sem saber o porquê, levei-a à boca. Tinha um sabor amargo, mas surpreendeu-me a quantidade de sumo que se derramava, descendo por minha garganta. Logo, fiquei observando-os. Quando senti que já era tarde, fui buscar meu machado – tinha ficado apoiado no jequitibá – e descobri que seu cabo, de madeira, estava coberto de mofo. Fui andando para a minha casa achando 262 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 tudo aquilo muito estranho e encontrei-a despejada e destruída, não por causa de incêndio ou de algum acidente natural ou provocado, e sim por causa da intempérie mesmo. Teria eu permanecido no bosque uma década, um século, um milênio? Como poderia saber! Voltei à clareira do bosque, mas já não pude encontrar os jogadores que brincavam com seus dados como se fossem anos. Fui até o povoado e tampouco encontrei alguém ali. Ninguém! Você está me ouvindo? Ninguém, não havia ninguém! O Mundo estava desabitado. Só ficara eu com o meu machado mofado e minha barba de cor indefinível. Senti a perda de minha família como se fosse uma dor que, de tão antiga, já não dói. Senti minha solidão como o incomensurável que deveria habitar a partir dali. E me senti, a mim mesmo, como um desses troncos que, tendo alcançado uma altura satisfatória, crescem em espessura: me dilataria muito mais além de todo o tempo e espaço, em círculos concêntricos feitos de experiências. Desde então cuido do bosque. Nada mais posso dizer-lhe. Nada mais devo acrescentar. Eu me dispunha a ir à floresta para nutrir-me novamente de sua magia e de sua sabedoria, quando me encontrei com o senhor. De que terras vem? Há gente para lá das montanhas? Nada me responde. Será que o Mundo foi destruído e ficamos somente nós dois? Extraviou-se o senhor também e já não é capaz de contar os dias e os anos, as distintas jornadas do homem? Pelo que vejo não pode falar. Ou não quer. Acompanheme. A vida é como uma mancha e impregna tudo. Somente somos capazes de sobreviver. Minhas árvores e eu, seu pastor, sabemos disso... Por isso florescemos em todas as primaveras. Tradução: Maria Helena Leitão __________ Antonio Maura é espanhol (Bilbao, 1953), escritor, doutor em Filologia com tese sobre Clarice Lispector; divulgador da cultura brasileira, autor do livro de contos Piedra y ceniza e dos romances Voz de humo, Ayno e Semilla de Eternidad. É sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. 263 R EVISTA DA 264 A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 O mar do menino Cyro de Mattos O amigo do sobrado amarelo em frente era ilheense, estava morando em Itabuna há pouco tempo. O pai tinha sido transferido do banco em Ilhéus para uma agência de Itabuna. O amigo só andava mangando dele porque não conhecia o mar, que não ficava longe, estava ali perto na cidade vizinha de Ilhéus, rolando com as ondas. Não parava de falar sobre a beleza do mar e da praia perto da cidade. O mar chegava a doer nas vistas quando era iluminado pelo sol de verão. Ele só ficava falando do mar para mangar dele, que ouvia tudo calado, sem graça, com os olhos tristes. No mar tem jacaré? Com certeza o pai ou a mãe devia saber. Por que a água do mar é salgada? Ora, Deus quis assim. O mar? Era verdade, nunca ele tinha visto. No livro de geografia viu uma vez o Mar Vermelho, um pedaço pequeno na foto, no meio da página. Só que ali não valia nada o que os olhos viam, na página de um livro foto nenhuma serve para dar uma ideia perfeita do que seja o mar, por mais que a mente se esforce para imaginar e apreender a vastidão sem fim de suas águas. Na foto não dava para ver nem a cor das águas nem sentir o seu gosto. Não dava também para saber como eram os navios, de onde vinham e para onde iam. 265 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Só podia conhecer realmente o mar, se um dia fosse vê-lo de perto com os próprios olhos. Fosse tomar banho nas suas ondas, nadar nas suas águas à vontade. E todas as vezes que isso acontecesse, aos poucos ia descobrindo os seus segredos. Como havia acontecido com o rio da sua cidade, onde aprendera a nadar e mergulhar, de primeiro nos poços rasos, depois nos fundos e, finalmente, conseguindo atravessá-lo com as braçadas firmes, de uma margem à outra. Era cada susto esplêndido quando ia tomar banho ou pescar no rio. Tinha mais tempo nas férias para fazer as duas coisas. Gostava de saltar do barranco para o poço perto de uma ilha. Pescava com anzol ou rede pequena e pegava muito peixe. De que maneira poderia conhecer o mar um dia, não fazia a mínima idéia. Morava numa cidade que ficava distante cerca de trinta quilômetros do mar, como o pai informou. Verdade que a sua cidade tinha um rio que se tornava um mundo de águas nas cheias quando de repente virava um bicho brabo, estupidamente enorme, espumando e fazendo barulho nas corredeiras. Fazia até ondas nos trechos onde existiam muitas pedras grandes reunidas. Derrubava as casas pobres erguidas Deus sabe como nos barrancos. Formava grandes redemoinhos, carregava árvores e, lá na curva, depois da ponte velha, despedia-se das últimas casas ribeirinhas, prosseguindo rumo ao mar, no seu destino de rio. Um rio que no tempo de estiagem nem era grande, tinha muitos trechos com pedras de fora, ficando a água empoçada. Só servia para navegar nos trechos fundos por onde a canoa levava as pessoas de uma margem à outra. Mas afinal de contas o que era o mar? Com o que se parecia? Uma lagoa sem tamanho com as águas verdes e azuis onduladas pelos ventos? Uma vasta extensão de águas que corria por dentro da terra como o rio de sua cidade, se bem que para todos os lados? Fazia muito barulho como se dizia? Muito mais do que o rio de sua cidade quando descia cheio nos meses de chuva grossa nas cabeceiras? Queria um dia conhecer o mar, ah! seu coração 266 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 como queria, sonhava em ficar grande o mais rápido para ir até lá na cidade vizinha e acabar logo com essa agonia que vinha tirandolhe o sono há dias, às vezes fazendo-o aéreo no tempo como se estivesse sonhando acordado. Perguntou ao pai como era mesmo o mar. O pai respondeu que era uma grande quantidade de águas salgadas até onde a vista alcança. O mar rolava com ondas, que vinham de longe, muito longe, batidas pelo vento. Faziam grande barulho quando chegavam perto da praia. Ali, não paravam de rugir como um bando de leões com as suas jubas brancas, arrebentando-se e formando, num só tempo, ondas menores, que empurravam umas às outras até chegarem céleres à praia onde desenhavam colares de espuma. Perguntou à mãe o que era a praia. A mãe respondeu que era um banco de areia deixado pelo rio perto da margem depois de cada enchente. Não era isso o que queria saber. O que é a praia do mar, mãe? É a beira do mar sempre coberta de areia, estende-se até a terra onde os pescadores constroem suas casas. Segue a linha de coqueiros paralela até perder de vista. Claro que a quantidade de areia na praia do mar era muito maior do que a do rio, muito maior mesmo, nem tinha comparação, e mais alva, explicou paciente a mãe. Quando o mar enche, a praia fica menor e, quando seca, ela aumenta. E no mar tem peixe do tamanho de uma casa? Claro que no mar tem peixe do tamanho de uma casa, às vezes até maior do que um sobrado. De onde foi que esse menino tirou essas ideias para querer saber tanto sobre o mar? A mãe perguntava-se intrigada com aquela insistência do filho. O pai, que ouvira a conversa entre o filho e a mãe, nada quis comentar, foi saindo de mansinho para o corredor junto à sala e, após cruzar a porta, seguiu para o gabinete onde pretendia ali concluir a leitura do romance. A mãe pediu que ele fosse para o seu quarto, não ficasse acordado até tarde, preocupado com o mar. Rezasse o pai-nosso e a ave-maria, como era costume fazer todas as noites antes de dormir, e cuidasse logo de pegar no sono. Como era que o pai e a mãe sabiam aquelas 267 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 coisas sobre o mar? O pai era funcionário do banco do estado e, antes de se transferir para aquela cidade onde conheceu a mãe, morava numa cidade grande banhada pelo mar. Provavelmente o pai havia dito à mãe o que sabia sobre o mar da cidade onde ele nasceu. Era só o pai acabar de ler o jornal, depois do jantar, aproximavase devagar como se não estivesse querendo nada e, ali na sala, em poucos minutos, começava a fazer perguntas sobre o mar. O pai já estava ficando irritado com as perguntas que o filho vinha fazendo sobre o mar todos os dias. Ficou sério daquela vez, dizendo que, se ele quisesse, fosse até a estante, pegasse lá a enciclopédia e consultasse, que ficaria sabendo tudo sobre o mar. Depois de haver dado o conselho, o pai cobriu o rosto com o jornal, fez que estava lendo e sorriu. A enciclopédia podia explicar muita coisa sobre o mar, o pai estava certo, já devia ter pensado nisso. Apressado, caminhou pelo corredor até entrar no gabinete do pai. Ali viu o livro grosso na estante, com as letras grandes indicando na lombada: Nova Enciclopédia Brasileira. Com dificuldade retirou da prateleira o livro pesado, colocando-o em cima da escrivaninha. Nervoso começou a virar as páginas até chegar na letra M e encontrar a palavra que queria. Ali estava no alto da página: Mar, substantivo masculino, a massa de água salgada do globo terrestre. Notou até aí que a enciclopédia não trazia nada de novo sobre o que é o mar, não acrescentava coisa nenhuma. Isso ele já sabia. Correu os olhos mais abaixo, leu: Mar aberto, porção ampla de mar sem acidentes geográficos que lhe dificultem a navegação. Ficou confuso, o rosto avermelhou, controlou-se para não ter uma crise de raiva. Desceu mais os olhos à procura de encontrar alguma explicação detalhada e clara acerca do que era realmente o mar. Encontrou uma série de expressões, como mar alto, mar fechado, mar costeiro, mar interior, mar encapelado, mar de sargaço, mar de rosas, mar de leite, mar isolado e mar livre, cada uma delas com a sua explicação anotada. Não entendeu 268 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 nada do que queria significar cada expressão daquela, ficou ainda mais confuso e começou a chorar alto. A mãe foi acudi-lo logo que ouviu o berreiro, pensando preocupada que era algum mal que havia acometido o filho de repente. A mãe conseguiu a muito custo que ele abrisse a porta. Ele estava com os olhos vermelhos de tanto chorar, o livro grosso jogado no chão. Ele disse à mãe que o culpado de tudo era o pai, havia mandado ele procurar na enciclopédia o que era mesmo o mar. A droga daquele livro pesado não lhe esclareceu nada sobre isso, deixando-o mais confuso e aflito. A mãe procurou acalmá-lo, não chorasse mais nem ficasse aborrecido, daquela vez prometia falar com o pai para encontrar um jeito de levá-lo para conhecer o mar. Disse até que o mar não era uma coisa do outro mundo. Não ficava em outro planeta, estava ali perto da cidade onde moravam. O filho sossegasse, não ia demorar muito de conhecer o mar, para tudo na vida se dá um jeito, só não se tem jeito para a morte. Aí então ele deixou de chorar e soluçar, acreditando no que a mãe havia prometido, desejando logo que chegasse o dia para que ele fosse com o pai conhecer o mar de perto. O pai: – Levo você pra conhecer o mar, deixo até tomar banho nas suas ondas a manhã inteira, desde que faça um trato comigo. – Qual? – Passar no exame de admissão no final do ano. – Prometo. Nunca havia sido reprovado na escola, não ia acontecer dessa vez, embora os colegas andassem dizendo que o exame de admissão era muito difícil. Ser aprovado no exame de admissão e começar a cursar o ginásio significava ser olhado por pessoas importantes na cidade como um estudante especial. Não ia fazer outra coisa agora do que estudar, durante a semana toda, até nos domingos e feriados. Quando não estivesse na escola, ia ficar em casa sem tirar os olhos dos livros. 269 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Deixou de tomar banho no rio, jogar bola com a turma no campinho perto da feira velha, apanhar fruta madura nos quintais espalhados pela cidade. Passava até da hora de dormir, ficava no quarto estudando até as dez horas, a mãe reclamava, apague essa luz e vá dormir logo, pode não acordar amanhã cedo e chegar tarde na escola. As olheiras no rosto pálido e a falta de apetite deixavam a mãe preocupada. Que você estude muito até que entendo, não pode é ficar sem querer se alimentar direito, a ponto de pegar uma fraqueza e cair doente. Aí nem estudo, nem exame de admissão, nem conhecer o mar, nem nada. Na vida tudo tem limite! A mãe aconselhava. Até que chegou o fim do ano e foi fazer as provas do exame de admissão. Nunca viu provas tão fáceis. Somente a prova de matemática é que achou um pouco difícil. Mesmo assim não esgotou o tempo que era determinado para fazer cada prova. Em menos de uma hora, entregou as quatro folhas de papel pautada com todas as questões resolvidas ao homem de bigode aparado e óculos de lente escura, encarregado de fiscalizar os candidatos na sala. O resultado não podia ser diferente, deixou o pai orgulhoso, a mãe cantarolava por entre os cômodos da casa quando não estava sorrindo com a alegria que o filho lhe dera. Havia sido aprovado em primeiro lugar no exame de admissão, agora queria que o pai fizesse a parte dele no trato que os dois tinham firmado. Queria conhecer o mar, nadar e mergulhar nas suas águas salgadas, cheias de brilho, cortar de frente ou de lado suas ondas grandes e pequenas. Quando era que o pai ia cumprir o que havia prometido? O pai falou que era no próximo domingo, a mãe já havia até comprado um calção azul para ele vestir no seu primeiro banho de mar. Iriam de marinete até a cidade de Ilhéus, onde se dizia estavam as praias mais lindas do mundo. Tinha que acordar bem cedo, a marinete sairia da estação de manhãzinha, cheia de torcedores que iriam assistir naquele domingo a seleção de futebol de Itabuna jogar contra a de Ilhéus. 270 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Todas as vezes que havia uma partida de futebol entre as seleções das duas cidades vizinhas era como se fosse uma guerra, os torcedores ficavam exaltados, ninguém queria sair derrotado. Saía bate-boca, xingamento e até briga entre os torcedores. Quando o jogo acabava, torcedores de Ilhéus jogavam pedras na marinete que retornava a Itabuna com a comitiva dos visitantes. O pai adiantou que em Ilhéus iam almoçar na Pensão de Dona Cora, que ficava nas imediações do estádio de futebol. Lá ele ia tomar banho de água doce para tirar o sal quando retornasse da praia. Depois de fazer a refeição do almoço, o pai queria ir logo para o estádio de futebol comprar os ingressos para na arquibancada os dois assistirem o jogo. Segundo o pai, aquele estádio de futebol era um dos orgulhos do povo de Ilhéus. O gramado era todo coberto de uma grama tratada, parecia um tapete onde a bola rolava macia. Não era como o da sua cidade, cheio de buracos, todo pelado no lugar do goleiro. O estádio de Ilhéus tinha uma marquise que cobria a arquibancada. Pista ao redor do campo para corrida de atletismo. Era um estádio de futebol moderno, muito bonito, mais bonito que o estádio de futebol da Capital. Ele não ligou para o que o pai disse, o que interessava mesmo era conhecer o mar, tomar banho nas ondas azuis e verdes, nadar e mergulhar como um peixe, só de pensar nisso ficava inquieto, demorava em pegar no sono, o coração queria sair pela garganta de tanto bater acelerado.. No início da viagem, os torcedores foram cantando o hino da cidade de Itabuna e de vez em quando se esgoelavam no refrão, que sacudia a marinete: Um, dois, três, Ilhéus é freguês! Um, dois, três, Ilhéus é freguês! 271 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Começaram a cantar o hino da cidade a todo pulmão quando a marinete fez a primeira parada na Vila do Salobrinho, as palavras saindo das gargantas inflamadas com a força das bombas grandes que explodiam no São João. Dessa vez, quando acabavam de cantar o hino da cidade, o refrão dizia da guerra fácil de ser vencida: Ilhéus é uma canja, É canja de galinha, Arranje outra defesa Pra jogar com a nossa linha! É canja, é canja de galinha... Nem ligava para o que os torcedores estavam cantando, nem com o barulho que a batucada fazia dentro da marinete. Claro que queria que a seleção de futebol de sua cidade fosse a vencedora da partida. Só que naquele momento nem ia se preocupar se o centroavante Baé, o grande goleador, estava contundido, se ia ou não participar da partida. Não lhe interessava saber sobre a situação do salvador da seleção de sua cidade com os seus gols incríveis em mais de uma partida já dada como perdida. Desejava que o domingo fosse azul com um sol esplêndido de verão. Como um daqueles que era comum acontecer quando era verão de sua cidade quando então, de calção e peito nu, saía correndo por aí como o filho do vento, o sol feito uma flor brilhante acesa no peito. Pela janela da marinete, olhou para o céu brilhando feito um espelho e sorriu da sorte que o dia lhe dava. Viu nuvens passarem ligeiras no céu banhado de azul. Periquitos como manchas verdes e velozes na direção das serras azuis. O rio como cascata por entre as pedras. Jaqueiras carregadas de frutas grandes e pequenas. Na viagem inteira, a marinete seguia aos solavancos, levantando poeira na estrada esburacada. O motorista botava fogo pelas narinas, cuspia cobras e lagartos, os passageiros davam gritos e assovios. 272 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Depois do pontilhão, ele sentiu o ar salgado entrar pelas narinas, os cabelos arrepiaram, a testa franziu, inquieto mexeu o corpo na cadeira dura. Observou as árvores que saíam da lama, vejam, que coisa esquisita, tinham as raízes de fora pelas margens do rio. Um rio largo aquele, sem uma pedra de fora, manso na descida, deslizando preguiçoso feito cobra grande. Naquela descida lenta ia demorar de encontrar o mar. O cheiro de maresia ia ficando mais forte na medida em que a marinete aproximava-se da entrada da cidade. Apressado, abriu bem os olhos, colocou a cabeça fora da janela, tentando ver se enxergava algum pedaço do mar ali por perto. Não viu nada. Atento, acomodou-se na cadeira, concentrou-se para que os ouvidos captassem o barulho grande que o mar fazia, como o pai havia dito, e que de repente podia chegar até ele. Também não conseguiu ouvir nada. Ao entrar na cidade, a batucada tocou com tanto entusiasmo que o pessoal na marinete passou a cantar bem forte o refrão: Vencer, vencer, vencer, Uma vez Itabuna, Itabuna até morrer... A marinete parou numa pracinha próxima à Pensão de Dona Cora. O motorista pediu para que a batucada encerrasse a zoada e os passageiros fizessem silêncio, queria dar um aviso. Falou que depois do jogo acabar só ia esperar meia hora para partir de volta. Quem não chegasse no tempo marcado, fosse dormir na pensão, em casa de parente ou amigo, tentasse retornar para Itabuna na primeira marinete da manhã seguinte. Os passageiros devolveram a recomendação daquele aviso categórico com uma vaia misturada com assovios. O pai também apupou, apoiando a mangação que os passageiros fizeram com o motorista, dando boas risadas quando saiu da marinete. 273 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Horas depois, o coração começou a bater acelerado quando seguiu ao lado do pai na direção do mar.Teve um leve estremecimento e segurou a mão do pai quando ouviu os primeiros bramidos entrando pelo beco que ia dar na avenida em frente ao mar. Fez força nas pernas para firmar os passos e não tropeçar. O pai disse para ele fechar os olhos, só abrisse quando pisasse na areia da praia e ele desse a ordem. Aí então ele ia ver uma coisa bonita como jamais os olhos tinham visto. Toda azul e verde, brilhando para todos os lados, cheia de ondas, rugindo sem cessar. Quando os pés pequenos pisaram na areia morna, sentiu o pai tirar a mão que tapava os olhos, ouvindo-o dizer: “pode abrir agora”. Respirou fundo e tomou coragem para abrir os olhos. Perdeu a fala, ficou tonto, pensou que ia cair. Ali, diante dele, estava o mar, mundo de água azul que não parava de rugir, através das ondas que se quebravam na areia. Era o mar verdadeiro, que os olhos nunca tinham visto, com os banhistas na praia debaixo do guarda-sol, alguns tentando furar as ondas com os mergulhos, outros jogando bola na areia. Era o mar diante de seus olhos bem abertos, procurando lá longe um navio que se afastava lentamente, parecendo um brinquedo que se movia na imensidão das águas. Era o mar com inúmeros espelhos que brilhavam na manhã ensolarada, rolando numa imensa massa feita de águas salgadas, que se perdiam até lá onde o céu faz uma curva. O mar, agitado e ao mesmo tempo manso, iluminado pelo sol, ondulado pelo vento. O mar até onde a vista alcançava, guardando peixes de todo tamanho, viagens em todo tipo de embarcação, incontáveis tesouros. Correu até as ondas pequenas que morriam na praia. Chapinhou, chutando a água seguidas vezes. Deu o primeiro mergulho e saiu adiante com um sorriso vitorioso no rosto molhado. Foi encoberto pelas ondas no segundo mergulho e sentiu o gosto da água salgada. Sorriu outro sorriso bonito. Começou a nadar num trecho raso. Comparou aquelas ondas 274 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 pequenas que se quebravam na praia com a água agitada das corredeiras no rio da sua cidade. Quis enfrentar uma onda mais alta, que esbateu no seu corpo, causando-lhe um grande susto. Nem ouviu quando o pai gritou para que ele não se afastasse, era perigoso, com o mar não se brinca. Mais confiante começou a passar por algumas ondas mais fortes. Quanto mais nadava e mergulhava, não se cansava, o coração queria mais e bis e bis e bis. E, salpicado de verdes e azuis, perante o céu que tinha no mar um espelho que Deus deu, veio para a praia onde o pai estava em pé, atento a todos os seus movimentos. Veio numa carreira desabalada com aquela vontade enorme para abraçar o pai. Assim que retornasse à sua cidade, agora ia querer ver se o amigo do sobrado amarelo em frente mangaria dele porque não conhecia o mar. Bom também era a seleção de Itabuna ter vencido a de Ilhéus por um a zero, jogando no Mário Pessoa. O amigo ia ter que lhe engolir. Ele ia ter que suportar sua mangação na semana. Cyro de Mattos é contista, poeta, cronista e autor de livros infanto-juvenis. Publicou, entre outros, Os Brabos, Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, e Cancioneiro do Cacau, Prêmio Ribeiro Couto da União Brasileira de Escritores (Rio), e o Segundo Prêmio Maestrale Marengo d’Oro, Genova, Itália. Já publicou em Portugal, França, Itália, Alemanha, Dinamarca, Rússia, México e Estados Unidos. É membro correspondente da ALB. 275 R EVISTA 276 DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Maré alta Gláucia Lemos Foi entrando pela água adentro e alcançou a coroa. Sentou-se e esperou morrer. A maré estava baixa. No dia seguinte era março. À noite a maré subiu. Chegou até a coroa e cobriu o corpo da mulher. Os peixes roeram-lhe as pálpebras e os siris entraram-lhe pela boca. E nunca mais ninguém mariscou na coroa. Contam que quando ela atravessou a praia, ainda um filete de sangue escorria pelas suas pernas. E foi deixando um rastro vermelho pela água tranquila. Não era igual à mãe que nunca aquietava calada, não trocava camisa para brigar. E quando faltava de que reclamar, falava sozinha. Não era. Comia calada. Assuntava o que se passava em volta, mas calava. A mágoa crescia por dentro que nem maré de março. A mãe tomou conta da criança. Era um menino quieto que tinha nos olhos a expressão tranquila dos homens que passam a vida no mar. Diziam que era filho de um marinheiro que emprenhara a mulher e se fora. Ninguém sabia ao certo. Pureza era calada. Uma pomba sem fel – dizia a mãe, querendo engrandecer. Uma mosca morta – acrescentava, quando queria destratar. Ela não dizia nada. A barriga crescendo e ela calada. Ouvindo tudo sem opinião nem resposta. Ignorando as perguntas como se não fossem com ela. 277 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Mas que o menino tinha aqueles olhos cheios de paz, isso ele tinha. Jerônimo foi crescendo como os outros meninos. Comendo papa de farinha dada na boca pelos dedos da avó e arrastando a barriga cheia de lombrigas pelo chão batido do casebre. A cara suja de terra. Indo à praia enganchado na anca da avó, à cata de mariscos. Crescia acostumado com a velha que lhe cuidava sem muito carinho mas também sem maus tratos. Ás vezes, já grandinho, saía caminhando até o cais, ao anoitecer. Alguma coisa por dentro traindo um vazio. Uma necessidade estranha, uma angústia, e ficava sentado nas tábuas do cais, olhando a coroa ali próxima, ou o horizonte distante. E espantando os mosquitos das pernas encardidas. Horas a fio. Recolhido, calado, quieto. Depois a avó o procurava e vinha a bronca. – Tá de calundu outra vez. É que nem a mãe. Quando embirra de ficar calado ninguém arranca uma palavra. Outros diziam que era filho do prefeito. Pureza lavava para a família do prefeito e todo fim de semana lá ia levando a trouxa de roupa. Os olhos sempre úmidos e brilhantes. E a boca carnuda, que nem fruto de dendê maduro, sempre calada e sisuda. Quando dona Olga viajava para o sítio, ela entrava pela casa da patroa e recolhia a roupa suja das crianças. Fazia tanto tempo que lavava para eles, que era como se fosse da casa. Quando botou barriga alguns começaram a falar que bem poderia ser filho do prefeito. De alguma daquelas segundas-feiras em que se demorava na casa, recolhendo as roupas da semana. Ela não dizia nada. Caminhava normalmente pelas ruas, o vestido empinando na frente, levando e trazendo as trouxas, ou mariscando siri e papa-fumo pela praia, sem esconder a gravidez. De ninguém. Nem mesmo da mãe. Nem mesmo de Ernesto. A mãe brigando. Como brigava por tudo. – Tá prenhe. E quem é o pai? Não tem vergonha do marido paralítico em cima da cama? Penando que nem um desvalido há tantos anos? Pureza, calada. E a velha: 278 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 – Não tem mesmo é vergonha na cara. A mulher foi até a porta do quintal. Ergueu o ferro a carvão e soprou forte. As brasas estalaram e as faíscas saíram pela boca do ferro. Voltou à mesa de engomar. A velha continuava na ladainha. – Não pode viver sem homem, é? Ernesto é paralítico mas ainda não morreu, não. Não tem vergonha de passar na cara desse infeliz com a barriga de outro homem? Pureza esticou na mesa o vestido branco de dona Olga. Desfez uma ruga. Passou o ferro com cuidado. – Vai, descarada, diga aí. É do marinheiro? Bem feito que ele se picou no mundo. Agora, se não é do marinheiro, hein? Se é de seu Abílio... rum... Tá pensando que ele vai lhe dar alguma coisa? Vai dar mesmo é um pontapé na bunda pra tu tomar vergonha. Coitado de Ernesto, esse, sim, é um infeliz. A mulher, calada. O ferro indo e vindo em suas mãos, por cima da roupa da mulher do prefeito. Não levantava a vista do trabalho. Em seguida, arrumou as peças dentro de um lençol bordado e prendeu os lados com presilhas. A barriga grande, os movimentos lentos. O corpo pesado. Entrou no quarto onde Ernesto dormia. Olhou em cima do estrado o que restava do marido. Um corpo insensível, parado, sequer movia os braços, mal conseguia falar. Amara aquele homem, sim. Tinha-o amado muito. Tinha sido tempo bom, aquele. Moços os dois, cheios de vida. Depois, havia seis anos, ficara morrendo com ele na sua infelicidade. Acompanhando sua morte lenta em cima da enxerga. Ela, porém, estava viva! Viva! Será que a mãe não entendia isso? Por que teria que morrer junto com o homem? Estava viva! Viva! Deus do céu... O filho estremeceu na barriga. Olhou outra vez para o homem. E chorou. Não sabia bem por quê. Mas chorou naquela noite como nunca. O homem mais velho que a própria idade, nada tentava perguntar. Encolhido em seu estrado, as pernas mortas, como de 279 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 resto quase todo o corpo, enrolado na coberta de chitão lavadinha e remendada por Pureza. Reduzia-se à sua solidão de paralítico. Desde o desastre da Leste, havia seis anos, vivia ali, como um bicho de estimação. Pureza dava-lhe o alimento à boca e o banho no colo como se fosse um bebê. E o homem foi mirrando, murchando, como um maracujá que enruga. E parecia um ancião. As mãos encurvando, as pernas secando. Nada tentava perguntar à mulher. Para quê? Não tinha de que se queixar. Ninguém sabia se sentia ciúmes do vigor de Pureza nos seus trinta e oito anos cheios de sensualidade. Ninguém o sabia. Ele só olhava para ela longamente, e, quando seus olhos a surpreendiam alguma vez parada à porta dos fundos, os olhos na folhagem agitada do quintal ou no pedaço de mar que podia avistar, seu coração enchia-se de piedade pela mulher. Ainda moça, cheia de fogo, amarrada a ele que nada mais tinha a lhe dar. E, sem reclamar, calada como era e sempre fora. Viu a barriga da mulher crescendo, e ela sem alterar os seus hábitos, sem evitar encará-lo, sem diminuir seus cuidados e sem os aumentar. Como se nada estivesse acontecendo. O coração do homem enchia-se de angústia e ele fechava os olhos quando ela entrava no quarto e, quieta, como era seu jeito, banhava-o, alimentava-o, perguntava-lhe se precisava de alguma coisa. Solícita como antes, como sempre fora. Ele não tinha coragem de lhe perguntar por nada. De nada lhe cobrar. Seis anos... Era muito tempo. Quando Jerônimo foi crescendo, Ernesto ficava observando. O cabelo crescia clareando. E a pele morena igual à de Pureza, queimada ao sol e ao salitre, fazendo contraste com o cabelo claro, lisão, que nem cabelo de milho novo. Reparando mais, o cabelo era bem como o cabelo de seu Abílio, o prefeito. O marinheiro ele não conhecera. Diziam só que passara uns dias, poucos, e se fora, só falavam dos olhos calmos do menino, mas ele não tinha como comparar. E a mulher, teimosa do jeito de 280 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 um burro, nunca dissera nada. Morreu como viveu. Calada. Guardando só para si mesma, seus gostos e seus desgostos. O menino crescendo como os outros meninos, roubando mangas pelos sítios. Pulando do cais, nadando nas águas da bacia, fazendo carreto no porto, vendendo mariscos aos veranistas, em prato de esmalte. Do pai e da mãe não perguntava. Também, o tempo passando, o povo esquecendo. Ninguém se lembrava mais de comentar do prefeito ou do marinheiro. Só as mulheres mais velhas, olhando a coroa, de vez em quando falavam da mulher que procurara sua morada na areia do mar. Falavam em assombração, Ninguém mais mariscou na coroa, por isso. Por mais baixa que estivesse a maré. Um dia Ernesto morreu. Amanheceu morto. O corpo pequenino que se fora reduzindo pela longa paralisia. A velha fechou-lhe os olhos enquanto dizia: – Deus te tenha no seio da santa glória. E, noutro tom: – Descansou. Durante o velório, Jerônimo, quieto, de olhos compridos, ficou ainda mais calado. Não sabia por que, uma garra lhe apertava o peito. Nunca tinha visto uma pessoa morta. Nunca ligara muito para aquele homem enfurnado em um quarto que exalava cheiro morrinhento. A avó levava-lhe mingau, três vezes ao dia, lembrava-se bem. Mas, agora que morrera é que lhe parecia real. E fazia-o sentir que, um dia, também fora real a mãe que nunca vira. Que lhe fora, até então, como Deus, alguma coisa que sabia existir, mas sem noção exata, e sem se importar muito com isso. Ficou olhando Ernesto, de uma palidez arroxeada, naquele caixão de tábuas. A curiosidade foi despertando, e, pela primeira vez, perguntou à velha: – Vó, como foi que minha mãe morreu? A velha, numa surpresa, pôs no rosto do menino os olhos miúdos e demorou-se com o olhar sem brilho, para encontrar a palavra na voz cansada. Depois, segurou a mão do neto e 281 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 arrastou os chinelos até a porta do casebre. O braço esticado apontou a coroa. – Tá vendo ali? Onde ninguém quer ir mariscar? Foi ali. Quando ela sentiu a dor, era finzinho de fevereiro. Você demorou muito para nascer. Ali, naquele quarto, Ernesto chorava, coitado, soltando uns gemidos horríveis, de quem quer falar alguma coisa mas não consegue senão grunhir. Ernesto gostava muito de sua mãe. Toda vez que ela gemia, a cara dele ficava que nem a cara de um cão danado. No outro dia, você nasceu... Eu não quis mais nem olhar para a cara dela. Foi nessa hora que a mulher se levantou da cama onde tinha acabado de parir e entrou no quarto do homem. E viu a máscara de dor no rosto do marido. Seus olhos mais expressivos à medida que ia perdendo o uso da palavra não tinham mais a mansidão habitual, o ar de agradecimento e de resignação. Havia nos olhos de Ernesto uma mágoa tão funda e tão gritante que contraía os músculos da face e o tornava terrível de se ver. Com aqueles olhos transtornados ele olhou a mulher no rosto demoradamente. Mas a voz parada, sem poder falar mais nada. Que nem maré morta. Pureza sentiu a mágoa do marido no seu próprio peito. Dentro dela o coração cresceu, cresceu até que estourou. E ela cuspiu sangue. E seus olhos choraram sangue. Foi aí que Pureza saiu e foi andando até a praia e entrou na água. Era fim de fevereiro. Ficou sentada no alto da coroa até que chegou março e a maré cresceu e cobriu tudo. E ninguém viu mais nada. Jerônimo soltou a mão da avó e correu para a praia. A maré estava alta. O menino parou na fita de espuma onde o mar se encontrava com o pedaço de praia que a maré grande ainda deixava. A água fria lambendo seus pés maltratados, de unhas encardidas. Olhou para a água. Viu à sua frente um rastro de sangue que se mexia com o movimento do mar. Como uma estranha estrada que se abria e levava à coroa. 282 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Fitos os olhos modorrentos, resoluto o corpo raquítico jogouse à água, e seus braços magros começaram a nadar seguindo o rastro. Mais uma vez era março. E havia peixes e siris habitando a coroa. __________ Gláucia Lemos é bacharel em Direito, crítica de arte, poeta, contista e romancista; é autora de mais de trinta livros, entre literatura adulta e infantojuvenil, com destaque para as Aventuras do marujo verde. Recebeu vários prêmios nacionais. Seu romance Bichos de conchas (2008) foi vencedor do II Prêmio de Literatura da União Brasileira de Escritores-UBE/Scortecci 2007. Desde 2010 ocupa a Cadeira nº 14 da ALB. 283 R EVISTA DA 284 A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Sob a chuva lá fora Flamarion Silva A rua quieta. O carro vermelho parado bem rente ao muro vizinho. O gato “Lord” sobre o muro. Começou a chover fininho. O vento agitava com leveza as folhas da roseira branca de Lídia, que àquela noite ainda não voltara para casa. A chuva começou a cair mais forte e o ruído que fez sobre o carro vermelho parado bem rente ao muro vizinho não incomodou o sono de ninguém. A água da chuva fez um córrego bem no meio da rua. Um pedaço de papel foi levado pela água e foi se desviando de pequenos obstáculos. Destino trágico. A boca negra do bueiro o engoliu faminta. O vento ficou bravo de repente e deu um safanão na roseira branca de Lídia e ela esbateu-se contra o muro. Coitadinha. A luz cor de bronze do poste tremeluziu. De repente, a constatação: a casa do vizinho estava morrendo, de tristeza. Aquela, encostada à casa de Lídia. Suas paredes tão frias! Todo o tempo fechada e nenhuma voz a lhe humanizar. Morria sem gemidos, resignada. A casa de Lídia era amarela, na varanda havia plantas nos caqueiros e no teto balançava um bebedouro de passarinho. Sua borda era vermelha e florida. O portão da casa de Lídia era branco e de ferro. Quando aberto, emitia uma risada. 285 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Mas naquele momento ele estava com feição preocupada. Vez ou outra espichava os olhos para fora, ver se Lídia já vinha descendo a rua. Mas a maior parte do tempo ele preocupava-se mesmo era com a segurança da casa. O outro portão, o da casa colada à casa de Lídia, era de madeira e já não esperava ninguém. Outrora fora alegre e muito receptível. Nos vincos de sua madeira apodrecida, a memória de um senhor e uma senhora já velhos que mudaram de casa. Nunca mais voltariam. A partir daí teve início a morte lenta desse portão. – E esta chuva que não passa. Deus queira, Lídia tenha levado a sua sombrinha japonesa e automática que faz “flop!” quando se abre – o homem pensou – Lídia é prevenida. Marluce também toma lá os seus cuidados, mas a sua sombrinha não tem o mesmo espírito alegre que tem o da sombrinha de Lídia. Não se compara. Por esse momento um vulto surgiu crescendo na parede da sala, onde o homem se encontrava, encostado à janela. Era Marluce. – Você não vem dormir? O homem não se assustou com a presença furtiva da mulher. Não era raro ela invadir os seus pensamentos. – Olhe só esta chuva – ele disse. – Vou deitar – disse a mulher, e sua sombra foi-se escorregando pela parede, sumindo-se pelo corredor. Outra vez só, com seus pensamentos e aflições, o homem ansiava por ver Lídia descer a rua, abrir o portão e a porta de casa. Precisava ter a certeza de que ela chegaria bem. Minutos se passaram. O sono já lhe fechava os olhos. – Paciência – ele disse, já dando os primeiros passos em direção ao quarto, onde, com certeza, sua mulher já passeava por sonhos distantes. Mas algo lhe disse para esperar mais um pouco, pois logo Lídia surgiria lá em cima, talvez meio ensopada de chuva, e o portão se abriria com sua habitual risada. – Sim, sim – ele agora tinha certeza, Lídia descia a rua. A sombrinha pequena esforçava-se para proteger sua dona. Não era possível ouvir os passos de Lídia, mas dentro do coração do homem algo começou a bater mais forte. Lídia abriu o portão e ele sorriu. O homem escondido na janela também sorriu tranquilo. Poderia, enfim, ir dormir. Mas antes, olhou mais uma vez a rua. 286 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 A água da chuva começou a cair com mais intensidade. Um sentimento, que o homem não compreendeu, perpassou-lhe a alma. Pungentes gotas de chuva caíam sobre o vermelho metálico do carro encostado ao muro da casa defronte. Parecia haver se instaurado um tumulto na solidão das criaturas frias, quase mortas, daquela rua. __________ Flamarion Silva é escritor, natural de Barcelos do Sul, na Baía de Camamu. É graduado em Letras Vernáculas (UFBA), reside em Salvador. Estreou com livro de contos O rato do capitão (Salvador, EGBA, 2006). Publicou a novela O pescador de almas (São Paulo, Escrituras, 2010), finalista do prêmio SESC de Literatura 2007, publicado com o apoio da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, através da Fundação Pedro Calmon (FPC). 287 R EVISTA DA 288 A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Os botões de madrepérola (Homenagem a Sosígenes Costa) Herculano Assis Quando o sol, a destilar em desmaios o fôlego de sua íris no sopro das brisas, na vidraça da janela, a despir o ostensório das nuvens em cortinas de penumbra e caminhos de poeira. Num sobressalto, a cadeira da escrivaninha de cedro era arrastada pelo tabuado de putumuju. Como carícias numa fronte imaculada, os papéis rabiscados eram adormecidos no acalanto das gavetas, os murmúrios insones dos livros eram calados num golpe certeiro. A força do pensamento fecundara os delírios, cuja vida lhes cercara por instantes os suspiros. O coração batera-lhe venturoso em razão dum impulso mensageiro: – Filho, não tardas! Eis o horário ideal. Num rastro de ânsia, espelhar-se entre os delfins entalhados no cristal era a última obrigação do jovem fidalgo. Restaurara o penteado tal qual recriasse a fronte dum busto de alabastro com a ternura de um pincel chinês. Perfumar o corpo lânguido era mergulhar-se numa lagoa de feitiço. A calça de linho debruçara o ocre de sua têmpera na camisa de seda com seus botões de madrepérola. Ah! Os botões de madrepérola... Teu caminhar em brados de glória ganhara a avenida do rio mar. Houvera uma leveza em teus passos de marcha militar, como se não 289 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 os tocassem o chão, seguindo o cálido valsar duma batuta nas mãos do trovador, e na face o riso jovial e delirante dos homens singulares. Os olhares com auras de veneno seguiram-no pelo refúgio do horizonte e, quando a amargura invadira-lhes os lábios, os comentários explodiram em festim: – Onde é que esse engomado vai uma hora dessas? E logo: – Dizem que vai à praia todos os dias, no mesmo horário e sozinho! O leite da volúpia ardera às entranhas estagnadas da velha mulher, que dissera: – Ele é amasiado com quem? – É poeta! – respondera-lhe com o timbre ríspido e o rosto contraído de desdém. Sentado numa colcha de marfim, entre travesseiros de búzios, com o olhar vagante, quase melancólico, daqueles que sentenciam os lábios ao silêncio, para que o pensamento ganhe asas de tufão. Emprestara ao mar os seus sonhos para que as sereias se encantassem. Elas brotavam das espumas de açucenas com cabelos de algas, seios de corais e afagos de sal. Golcondas cirandavam sobre o bailar das ondas, e num milagre sonoro, os mistérios eram contemplados em vigília. Os ventos do norte cheiravam a cravo em uivos de mármore. Ele fincara-se de pé, os braços cruzados, num prelúdio de partida, quando os olhos cerrados fitaram um cortejo de pavões com caudas de opala abertas em ravenalas. Eles guarneciam os desejos de sua alma e apalpavam num carrossel de plumas os delírios do seu verso, embora desaparecessem num soluço de pólvora. Seus braços despencaram e em seus olhos orvalhados a lágrima azul cintilara. Seus passos, novamente, ganhavam a avenida, mas agora em direção ao porto do Jequitinhonha. Enquanto os lençóis das nuvens de algodão eram manchados de nanquim, as casas ganhavam os murmúrios dourados do ocaso. Os castelos de areia despencavam no menestrel das ostras. 290 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 As canoas acorrentadas nas pedras do cais, embaladas pela maré de barro, suplicavam agônicas as mãos do remo, numa prece de liberdade. Batelões cansados ancoravam abarrotados de sacas de cacau, que no lombo dos estivadores eram transportadas para o estômago dos armazéns. Nos bares ouvia-se o gorjeio das raparigas que deixaram os navios desérticos, conduzindo os marinheiros aos seus cuidados. A mata despira o jade de seus penachos e, vestida de ouro, irradiara nas águas do Jequitinhonha o berro brônzeo de sua quimera. A lira de sândalo das gaivotas despertara as candeias da cidade. Florões de lilases rasgaram as negras nuvens no pálio dos sobejos escarlates. E, num suspiro cadente, o horizonte desmanchara-se em névoas e adormecera no sudário das sombras. Em passos alados o jovem retornara a sua casa, atravessara a sala e seguira para o quarto. Isolara-se da seda que lhe cobria o palpitar do peito e cuidosamente removera os botões de madrepérola do ninho em que estavam aprisionados e aos clarins duma graciosa sonata, eram abrigados na pétala dum novo retalho que, no albor da alvorada, cobriria novamente os dragões de seu peito. Cessara o ritual perpétuo e seguira para o quintal com a órfã camisa desfalecida em suas mãos. Ele a mergulhara na velha bacia enrugada pela labuta, qual lago de água da fonte e espumas de alecrim. Enfim trancara-se em sua alcova de barcarolas, iluminado pelo candeeiro de porcelana. E antes que as brumas de nardo cobrissem o turíbulo das estrelas, ele adormecera no sono das ninfas. Belmonte-BA, setembro de 2011. Herculano Assis é natural de Itabuna (1980) e radicado em Belmonte-BA; é poeta, autor dos livros Alvorar (2007), Rua dos avessos (2011) e Cobra de duas cabeças (2011), que reúne inéditos de poesia e prosa de Sosígens Costa. 291 R EVISTA 292 DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 DISCURSOS R EVISTA 294 DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 A Academia de Letras da Bahia de 2011 a 2013 Aramis Ribeiro Costa Presidente da ALB 2011-2013 É regimental que ao término do mandato o presidente apresente um relatório de sua gestão. A exigência tem dois princípios incontornáveis: a prestação de contas aos confrades e à sociedade à qual pertence a Academia, e o registro histórico fundamental à própria história da Casa. Sem esses registros, consignados em nossos arquivos, mas, de preferência, também em nossa Revista, perderíamos grande parte de nossa memória. Eleita por unanimidade no dia 25 de novembro de 2010 para o mandato 2011-2013, tendo a mim, para honra minha, como seu presidente, a diretoria que hoje presta contas foi empossada no dia 24 de março de 2011. Cabe-me, antes tudo, agradecer aos companheiros de diretoria desse período, o apoio institucional e prático aos nossos trabalhos. São eles: Waldir Freitas Oliveira, vice-presidente; Cid Teixeira, 1º secretário; Gláucia Lemos, 2ª secretária; Consuelo Pondé de Sena, 1ª tesoureira; Paulo Ormindo David de Azevedo, 2º tesoureiro; Myriam Fraga, diretora da Revista; Dom Emanuel d’Able do Amaral, diretor da Biblioteca; Joaci Góes, diretor do Arquivo; e Carlos Ribeiro, diretor de Informática. Como conselheiros editoriais, tivemos Aleilton Fonseca, Evelina Hoisel e Ruy Espinheira Filho. Como conselheiros de contas e patrimônio, Geraldo Machado, João Falcão, substituído, por morte deste, por Francisco Soares Senna, e Paulo Costa Lima. A todos, muito obrigado. 295 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 A herança administrativa recebida diretamente do presidente Edivaldo Boaventura, e, mais remotamente, do saudoso presidente Cláudio Veiga, foi, sobretudo, de amor a esta Casa e ao que ela representa de mais alto para a cultura e as tradições da Bahia. Ao escolher a palavra Casa, para designar a Academia, faço-o propositadamente nos dois sentidos, o físico e o institucional, para nós indissociáveis, desde que conquistamos o privilégio de existir nas dependências deste vetusto e belo solar que transmudamos num Palácio de Cultura, por isso mesmo de portas abertas a essa mesma cultura. Casa antiga, nobre, deve ser vista como uma digna senhora que conserva e mesmo renova suas belezas oriundas dos valores e das sabedorias dos tempos antigos, mas que precisa de muitos e permanentes cuidados para se manter digna e útil. O privilégio de possuirmos este Palacete Góes Calmon vem implicado com a tremenda e onerosa responsabilidade de conservá-lo. Dos aspectos estruturais aos mínimos pormenores, da utilidade ao enfeite, tudo aqui é importante, tanto para as funções que desempenha quanto para a sua inquestionável vocação museológica, guardião que se faz, este belo palacete, de móveis, peças de arte e objetos outros de grande preciosidade, além do seu próprio valor arquitetônico. Ao assumirmos os trabalhos da Casa, e trabalho foi o compromisso maior em nosso pronunciamento de posse, nossa primeira preocupação foi com a casa mesma, a casa física, no sentido de consertá-la e arrumála para enfrentar uma nova etapa de atividades. Não houve um único cômodo, um único setor que não fosse alvo de nossa atenção e de nossa interferência. A começar por seu entorno de árvores frondosas e jardim que abriga o nosso panteon de esculturas. Renovamos as placas e os avisos de entrada, implantamos câmeras de segurança, restauramos o grande lampião que no alto e na quina das paredes antigas embeleza o pátio e o jardim; instalamos nova e necessária iluminação por toda a imensa área ajardinada e estacionamento, resgatamos as dependências dos fundos para a utilização como depósito de materiais, uma área que, no futuro, deverá ser reconstruída para melhor utilização. Mas a obra de maior vulto e mais importante para a manutenção do prédio, na parte externa, foi a substituição de mais de cinquenta colunas de sustentação das varandas, que já despencavam esfareladas pela ação do tempo. 296 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Imediatamente ampliamos o Escritório Financeiro e Administrativo, que amargava a dificuldade de instalações exíguas e insuficientes, triplicando, por meio de divisórias e equipamentos necessários como aparelhos de ar condicionado, informática e telefone, o seu espaço, aproveitando, para isso, uma passagem inutilmente larga após o antigo escritório. Da mesma forma rearrumamos os arquivos da Secretaria numa sala contígua à mesma Secretaria, e que se encontrava sem utilidade prática. Para isso, houve a necessidade de novas estantes e armários de aço. As câmeras de segurança foram também instaladas no interior do prédio, de modo que todos os compartimentos sejam permanentemente fiscalizados num único monitor, permanecendo os registros gravados para uma posterior averiguação, se isso se fizer necessário, queiramos nós que jamais seja. A iluminação no interior do prédio também foi objeto de cuidados, e aqui destaco, como registro de gratidão permanente da Casa, o belo lustre antigo de bronze, de dezesseis lâmpadas, posto no Salão de Entrada de nossa sede, magnânima doação do acadêmico Francisco Senna, juntamente com um formoso candelabro antigo, também de bronze, que passou a enfeitar nossa anterior mesa de reuniões, a da sede do Terreiro, recuperada pelo presidente Edivaldo Boaventura. As dezesseis lâmpadas acesas do lustre de bronze realçam o teto esmaecido de Presciliano Silva. Mas não ficamos nisso, no setor da iluminação: mantendo as luzes diretas e incandescentes dos lustres antigos, que nos remetem aos tempos dos nobres salões baianos, instalamos também iluminação indireta no alto de três salões, a Sala de Reuniões, a Sala dos Presidentes e o Salão de Entrada, realçando igualmente, por meio das lâmpadas frias acesas no alto, por detrás das calhas e dirigidas ao teto, a beleza e a importância desses compartimentos. Houve que cuidar da amplificação e modernização do som, pois queremos que nossas vozes e nossos discursos sejam ouvidos, nós que jamais nos omitimos na defesa e na propagação da cultura em nossa terra. Assim, a Sala de Reuniões ganhou um novo serviço de som com microfones sem fio, e este Salão Nobre, Auditório Magalhães Neto, teve o seu velho sistema de som inteiramente restaurado, com fios embutidos, duplicação de pontos de microfone na mesa alta, novos cabos e novos microfones. No capítulo dos aparelhos contemporâneos 297 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 e necessários, além de novos microfones, com e sem fio, cuidamos de adquirir aparelho de DVD e scaners portáteis, objetos indispensáveis ao nosso bom funcionamento. Ainda no capítulo dos equipamentos necessários, cunhamos cinquenta medalhas para os futuros membros correspondentes. Restauramos inteiramente a Sala da Presidência, que breve, num gesto de gratidão e reconhecimento, denominaremos Sala Presidente Cláudio Veiga, justa homenagem ao presidente que montou esta sede e no silêncio e na quietude daquela sala quase escondida, como numa complexa cabine de piloto, comandou-a por duas décadas e meia. Ali, houve que substituir os rodapés de madeira, também pedaços de portas e janelas, inteiramente destruídos pela ação dos cupins, repor vidros, restaurar a própria mesa onde Cláudio sóbria e dignamente cuidava dos interesses desta Casa. Inovação importante na Secretaria foi a colocação de dois corrimões de aço inox nas laterais da pequena escada de acesso da parte externa para a interna, projeto do acadêmico Paulo Ormindo David de Azevedo, o que garantiu a não desfiguração das linhas arquitetônicas do prédio, e contribui para a segurança física daqueles que, embora não tenham a pretensão de serem imortais também no físico, desejam, ao menos, a longevidade. A Biblioteca, administrada por nova bibliotecária, Bárbara Coelho, ganhou novas estantes e nova arrumação, não apenas física, mas também de seus acervos, cujas referências foram inteiramente digitadas. Um importante convênio com a instituição Cidade Mãe não apenas nos trouxe jovens estagiários, como colocou a Biblioteca da Academia na linha de frente dos projetos ressocializantes e educativos. Como extensão da Biblioteca, a auxiliar seus trabalhos e suas funções, montamos a Sala de Informática com oito computadores ligados à internet. O Arquivo ganhou novas estantes de aço, padronizadas conforme as especificações técnicas, uma nova arrumação e, principalmente um belo armário de madeira feito sob encomenda para abrigar DVDs e CDs, onde pretendemos arquivar as imagens e os sons dos nossos eventos, igualmente a palavra e as imagens dos nossos acadêmicos, para que, um dia, tenhamos um precioso arquivo de memória, não apenas da Academia, mas da própria Bahia, tão carente de bons arquivos de memória visual e auditiva. Dessa maneira partimos com força para um novo Arquivo, que não se limita ao livro, ao papel 298 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 e às fotografias em papel, mas conserva as imagens dos nossos tempos e dos nossos feitos. Uma atenção muito especial tivemos com a Sala de Reuniões, onde nos encontramos à volta da mesa comprida para as sessões ordinárias, para as eleições, os lançamentos de livros e os grandes debates, aqueles que às vezes atritam, por vezes contrariam, mas, ao final, sempre enriquecem. Além da nova iluminação indireta, do novo sistema de som e da câmera de segurança, a sala dos pratos brasonados de Jorge Calmon, antiga sala de refeições da família Góes Calmon, teve a sua vasta e preciosa madeira cuidadosamente restaurada, a grande mesa de reuniões encompridada, o piso submetido a rigorosa restauração, que incluiu substituição de madeira, raspagem e enceramento; o velho grupo estofado ganhou um novo forro, voltando ao branco de tempos antigos; os armários, com vidros e fechaduras recuperados, ganharam também novos forros, agora combinando com os estofados da cor das cadeiras, sendo enriquecidos, esses mostruários, com uma mimosa doação: a pequena coleção de pratos decorados que pertenceram ao governador J. J. Seabra, acadêmico fundador, e que passaram a enfeitar o armário do velho relógio de pêndulo de Góes Calmon. E ganhou também um delicado aparelho de chá e café. A pequena sala próxima a essa Sala de Reuniões parecia guardar, com a tenacidade das coisas óbvias, a vocação para sala auxiliar de serviços de copa, e dessa forma a fizemos: mesas de serviço, bebedouro, cafeteira, portas-copos, além da geladeira, que veio da administração anterior. E essa pequena e inútil sala, que era apenas uma passagem, tornou-se mais um recanto útil e agradável da nossa sede, onde se pode tomar uma água gelada, um cafezinho ou um chá, o chá que fortalece o imaginário das academias de letras. Contígua à Sala de Reuniões, a Sala dos Presidentes, também Sala de Exposições. Além da iluminação indireta e da câmera de segurança, esta sala de memória, homenagem e exposição teve seus mostruários restaurados, com madeira recuperada e novos forros no tom azul. Na sala das grandes pinturas, um novo tapete, bem maior, substituiu o velho e estragado que guarnecia a antiga mesa de reuniões, a do Terreiro. Na verdade essa sala ganhou um jogo de tapetes. Nessa mesma sala, foram recuperadas molduras e adicionado um precioso retrato de Castro Alves, um de nossos mais venerados patronos, doação do 299 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 acadêmico Edivaldo Boaventura, que também nos trouxe de Macau um belo vaso que pode ser visto na mesa redonda de centro da Sala dos Biscuits. Atenção especial também mereceu este Salão Nobre, Auditório Magalhães Neto, o palco obrigatório de nossas sessões solenes e públicas. Espaço dos grandes momentos, no qual recebemos solenemente nossos convidados, dos mais ilustres aos anônimos, todos importantes, este salão recebeu um minucioso tratamento, que teve início na recuperação urgente de sua porta de vidro, passando pela referida câmera de segurança e pela também referida modernização do sistema de som, à substituição das madeiras destruídas das portas e janelas, à recuperação do próprio piso, inteiramente raspado e encerado, à pintura. As velhas e desbotadas bandeiras do Brasil, da Bahia e da Academia foram substituídas por similares de seda bordadas a mão. A mesa alta teve a sua madeira inteiramente restaurada, o tablado ganhou um novo forro. E conquistamos, finalmente, nossa moderna e elegante tribuna de madeira, dignificada pela insígnia em aço escovado da Academia, peça que obedeceu fielmente ao desenho, realizado a nosso pedido, pelo arquiteto e acadêmico Paulo Ormindo David de Azevedo, para adequá-la ao conjunto deste salão, igualmente projeto desse dedicado confrade. Naturalmente a pequena sala anexa, que serve de apoio a este Salão, foi desocupada de sua despropositada função de depósito e adequada às suas novas funções auxiliares. Tudo foi visto nesta velha casa, do censor do elevador à recuperação dos mostruários de vidro da ante-sala deste auditório, das novas saboneteiras à pintura e recuperação das cadeiras do Auditório Pedro Calmon. Não houve um pequeno canto que não sofresse uma intervenção, uma melhoria. E o que não foi feito, ou o que ainda não foi feito, como, por exemplo, a pintura externa do prédio, de extrema necessidade e que nos aflige, foi por absoluta falta de recurso financeiro. A esse respeito, é importante dizer que, a despeito das nossas dificuldades financeiras, dos recursos insuficientes e de difícil aplicação, pudemos quitar todos os nossos compromissos, e hoje não devemos financeiramente nada a ninguém, o que poderá ser comprovado nos livros de nossa contabilidade. Mas a Casa é também sua função, ou é principalmente sua função, que a faz útil e respeitada e a coloca na linha de frente da cultura 300 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 baiana, guardiã do seu passado, promotora do seu presente, incentivadora do seu futuro. Com exceção dos pequenos e necessários períodos de recesso, nos quais, aliás, permanecem funcionando a administração, a secretaria, a biblioteca e o arquivo, tivemos, nesses dois anos de nossa gestão, uma programação intensa e bastante diversificada, não tendo sido poucas as vezes que atraímos um grande público e a atenção da imprensa. Foram sessões ordinárias, lançamentos de livros e revistas, sessões especiais comemorativas ou regimentais, eleições, posses de membros efetivos e correspondentes, concursos literários, premiações, cursos, colóquios, seminários, conferências, palestras. O relato de todos esses eventos encontra-se, com pormenores, nas Efemérides de 2011 a 2013, publicadas na Revista da Academia de Letras da Bahia nº51, já em processo de edição e que lançaremos breve, cumprindo, pelo segundo ano consecutivo, o compromisso de publicarmos o nosso periódico ao menos anualmente. A propósito, iniciamos o processo de digitalizar nossas revistas e disponibilizá-las no site da Academia e pretendemos que, ao final, todos os números lá estejam. Permitam-me apenas, e não pretendo estender-me, destacar algumas dessas realizações, por considerá-las de grande relevância para a gestão que ora finda. Entre as sessões especiais, destaco a comemoração dos cem anos do primeiro governo J. J. Seabra, coordenado pela acadêmica Consuelo Novais Sampaio; a comemoração dos duzentos anos da imprensa na Bahia, uma sugestão do jornalista Luís Guilherme Pontes Tavares, evento coordenado pelo acadêmico Carlos Ribeiro; os cem anos do jornal A Tarde, que teve como orador o acadêmico Edivaldo Boaventura; e o centenário de nascimento do acadêmico dom Avelar Brandão Vilela, com a presença do arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, Dom Murilo Krieger, e discurso da acadêmica Consuelo Pondé de Sena. Registro, como da mais alta importância, a criação do Curso Jorge Amado e do Colóquio da Literatura Brasileira, realizações que não seriam possíveis sem a parceria institucional da Fundação Casa de Jorge Amado e o esforço pessoal da acadêmica Myriam Fraga, grandemente assessorada pelos acadêmicos Aleilton Fonseca e Evelina Hoisel. E aqui é necessário que diga que os acadêmicos Aleilton Fonseca e Evelina Hoisel têm sido também os responsáveis pelo grande êxito do Curso 301 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Castro Alves, Colóquio da Literatura Baiana, e do Seminário de Literatura Baiana, realizações que contam com o apoio da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Estadual de Feira de Santana. No Seminário da Literatura Baiana, nos dois últimos anos, em concorridos encontros, estudamos Judith Grossmann e Ruy Espinheira Filho. O Curso Jorge Amado, que tem atraído professores e estudantes de letras de todo o País, fez parte, em 2012, das comemorações oficiais do Centenário de Jorge Amado, com a presença da presidente da Academia Brasileira de Letras, escritora Ana Maria Machado, acompanhada dos acadêmicos Murilo Melo Filho e Domingos Proença Filho, que testemunharam, juntamente com os filhos do escritor e confrade homenageado, Paloma e João Jorge, a colocação da placa “Biblioteca Jorge Amado”, a denominar a Biblioteca da Academia por decisão da maioria dos acadêmicos. De extraordinária importância para a gestão 2011-2013 foi a criação da Coleção Mestres da Literatura Baiana, em parceria com a Assembleia Legislativa da Bahia, que ensejou o estreitamento de laços entre as duas Casas, concretizado num convênio editorial de tão grande importância para a Academia e para as Letras Baianas, que nos levou a condecorar com a Medalha Arlindo Fragoso seu presidente, o deputado Marcelo Nilo. O primeiro volume lançado, A Bahia já foi assim, foi uma homenagem à Bahia e à autora da obra, nossa saudosa Hildegardes Vianna. Os dois volumes seguintes, que nos trazem Contos e Novelas Escolhidos, de Hélio Pólvora, em processo de edição, breve serão lançados. Destaco ainda, como de grande importância pelo ineditismo da realização, pelo interesse do público, pelo envolvimento dos diversos setores culturais da Bahia e pela repercussão na imprensa, o encontro que promovemos, neste auditório superlotado, com os candidatos a prefeito de Salvador, tendo como tema Uma Política Cultural para a Cidade do Salvador, uma sugestão do acadêmico, então recém-eleito, Luís Antonio Cajazeira Ramos. Nessa gestão, aqui recebemos, pela primeira vez, um prêmio Nobel de Literatura, o nigeriano Wole Soiynka, para uma palestra e lançamento de seu primeiro livro traduzido no Brasil, trazido à nossa Casa por meio do saudoso acadêmico Ubiratan Castro de Araújo; recebemos um jornalista da importância de Alberto Dinis, para nos fazer uma excelente palestra sobre Stefan Zweig; empossamos os membros correspondentes 302 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Rita Olivieri-Godet e Maria Beltrão; elegemos e empossamos o membro correspondente Antonella Rita Roscilli e o membro efetivo Luís Antonio Cajazeira Ramos; elegemos também, como membro efetivo, um dos grandes nomes da Literatura Brasileira, o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro. Quase ao final do último ano e também desta gestão, tivemos o prazer de empossá-lo, numa cerimônia que contou com a presença do governador da Bahia, Jaques Wagner, do presidente da Assembleia Legislativa, Marcelo Nilo, e do secretário de Cultura, Antônio Albino Rubim, entre outros secretários, autoridades, imprensa. O relatório minucioso de nossas atividades, nas Efemérides a serem publicadas brevemente na Revista da Academia de Letras da Bahia número 51, demonstra que a gestão 2011-2013 cumpriu inteiramente o compromisso de retribuir com amplos serviços culturais a verba que nos é destinada pela Secretaria de Cultura da Bahia. O trabalho do dia a dia da Academia, bem como o grande trabalho, aquele que começa nos bastidores, longe dos olhos do público, e se concretiza nos eventos bem sucedidos, não poderia ser realizado sem o empenho e a dedicação dos funcionários. Uma equipe pequena e dedicada, absolutamente integrada ao espírito da Academia, e que, temos certeza, ama esta Casa. Abraço-os a todos, com a gratidão que eles merecem. Senhores Diretores, senhores Conselheiros, senhoras e senhores Acadêmicos, senhoras e senhores: Este o relatório que o Regimento exige e apresento neste término de gestão e abertura de um novo ano acadêmico, exatamente no dia em que nosso sodalício completa noventa e seis anos de existência, 7 de março. Mas a Academia de Letras da Bahia, sem desprezar suas realizações passadas, muito pelo contrário, tem os olhos e as intenções voltados para o presente e para o futuro. Tanto o presente quanto o futuro serão sempre uma longa e bela história a escrever. Vamos escrevê-la. Discurso pronunciado pelo presidente Aramis Ribeiro Costa, no dia 7 de março de 2013, no Salão Nobre da ALB, na sessão de encerramento da gestão 20112013, abertura do ano acadêmico e posse da nova diretoria, gestão 2013-2015. 303 R EVISTA DA 304 A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Inauguração da estátua de Góes Calmon na ALB Francisco Senna O último quartel do século XIX, também conhecido universalmente como “fin de siècle” ou “belle epoque”, introduziu no Ocidente um novo padrão arquitetônico ou estilo identificado como ecletismo ou historicismo, seguido pelo estilo “art nouveau”, que se estenderam até os anos 20, quando o “art decò” e o modernismo passaram a imperar. Fruto de uma cultura enciclopedista, este pan-estilismo eclético teve, no Brasil, a sua grande expressão na chamada Primeira República (1889-1930), em substituição ao neoclassicismo, estilo oficial do Império e que se estendeu com os seus regionalismos ao longo de quase todo o século XIX. Primando pelo exagero decorativo, mistura de estilos e integração das artes, como a pintura, a escultura e os vitrais, o ecletismo recobria paredes, forros e pisos com elementos de gesso, lambris, mosaicos e “parquets”, ladrilhos hidráulicos e pastilhas. O ferro e o vidro permitiam a inserção de novos elementos, como: colunelos, marquises, claraboias e terraços em abobadilhas. Foram, também, introduzidos equipamentos sanitários, como água encanada e louça, luz elétrica e elevadores. Com o surgimento de uma nova burguesia, o tradicional sobrado, construído em lote urbano estreito, com parede-meia, tendeu a desaparecer, cedendo lugar a suntuosos palacetes, em centro de terreno, cercados por jardins que ostentavam, com seu paisagismo, o novo estilo. 305 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Reformas urbanas introduziram o transporte público: bondes, planos inclinados, elevadores e, finalmente, o ônibus e o automóvel, a partir de 1901, com o Painard Levasseur importado pelo mecânico Henrique Lanat. Nesse contexto histórico, a cidade do Salvador acompanhou os passos das grandes metrópoles e modernizou-se, seguindo os princípios da reforma urbana de Paris, realizada em 1851 por Haussmann, competindo no Brasil com as reformas do Rio de Janeiro, Recife e Belém, bem como com o apogeu do ciclo do café em São Paulo, que eclode como a grande metrópole brasileira do século XX. O ecletismo arquitetônico de Salvador tem sua especificidade, com a criação da Escola de Belas Artes, por Miguel Canizares y Canizares em 1877, cujo prédio, iniciado em 1878, foi depois transformado em sede do Senado Estadual, na Praça da Piedade. Contudo, a era José Joaquim Seabra, que se encerrou com o governo de Francisco Marques de Góes Calmon, foi a grande responsável pelo apogeu deste estilo, no bojo das grandes reformas urbanas, quando da abertura da Av. Sete de Setembro e da realização do grande aterro do Comércio, para a implantação de novo porto da Cia Docas da Bahia e a consequente abertura da Av. Jequitaia. A reforma da antiga Casa de Câmara e Cadeia, em 1887, realizada pelo eng. Francisco de Azevedo Caminhoá, e a reconstrução do Palácio Rio Branco, concluído em 1900, e da Faculdade de Medicina, em 1905, realizada pelo eng. Theodoro Sampaio, foram obras referenciais na cidade. As principais ruas do Comércio e da Cidade Alta foram alargadas, como a Rua Chile, a Rua da Ajuda e a Av. Sete de Setembro, onde surgiram novas edificações projetadas, em sua maioria, por engenheiros, arquitetos, mestres de obras, pintores, escultores e estucadores italianos. Destacaram-se, nesse período, dentre outros, os italianos: arquitetos Rossi Baptista, Orestes Sercelli, Thomas Rossi, Julio Conti, Antonio Virzi, o eng. Filinto Santoro, o escultor Pasquale De Chirico e o francoargentino Victor Dubugras. Dentre estes, radicaram-se na Bahia Rossi Baptista e Pasquale De Chirico. A formação de arquitetos na Bahia desenvolvia- se, como um curso ou departamento da Escola de Belas Artes, até o ano de 1959, quando foi emancipado com a criação da Faculdade de Arquitetura. Na Escola Politécnica havia também uma cadeira de arquitetura 306 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 ministrada pelo arq. José Nivaldo Allioni, considerado o introdutor do ecletismo na Bahia. Outra instituição que muito contribuiu foi o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, fundado em 1872, e responsável pela formação da mão de obra de nível técnico: carpinteiros, serralheiros, estucadores e outros artífices. O nosso ecletismo seguiu diversas tendências: o neogótico, o classicizante, o neomanuelino, o neocolonial, ou as mixagens compositivas, o que era mais comum, especialmente nos prédios comerciais e nos palacetes, sendo este o caso do Solar Góes Calmon ou Palacete do Caquende. Construído por Francisco Marques de Góes Calmon, foi solenemente inaugurado em 19 de março de 1919, há exatos 92 anos. Edificado em centro de terreno, em lote de esquina valorizado por pequena praça à frente, com for mosos jardins e acesso predominantemente lateral, este palacete possui escadaria e galeria em dois pisos, com colunata clássica e dois pavimentos acima do porão alto, à semelhança da Villa Catharino, inaugurada em 1912, e atualmente sede do Palacete das Artes Museu Rodin Bahia. O Solar Góes Calmon é imponente na sua volumetria e elementos secundários, apresentando uma rica composição eclética de mixagens compositivas, onde cada pavimento tem tratamento de vãos e modenaturas diferenciados. Embora acrescido de pavilhão ao fundo, que abriga a Biblioteca, o Solar conserva a sua aura de palacete. No jardim, destacam-se uma fonte e um chafariz de cantaria, além de bustos de vultos importantes das letras universal e baiana. Seus ambientes internos possuem rica composição mural em estuque de gesso, com preciosa pintura no teto do salão nobre, ou salão dourado, executada pelo renomado pintor baiano Presciliano Silva, além de cartelas, elegantes esquadrias e pisos em mármore e parquet. A antiga sala de jantar conserva sua original e rica composição de mobiliário e decoração, com painéis especialmente confeccionados para a exposição da coleção de porcelanas do seu antigo proprietário, atualmente abrigando a coleção de pratos brasonados doada pelo inesquecível acadêmico Jorge Calmon de Bittencourt. 307 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 O Palacete abrigou a família Góes Calmon, de 1919 a 1943, a antiga Pinacoteca e Museu do Estado, de 1946 a 1969, o Museu de Arte da Bahia, de 1970 a 1982, e, a partir de 7 de março de 1983, a Academia de Letras da Bahia, nossa Casa. Nada mais justo, nesta presente data, enriquecermos este PalaceteMuseu com a estátua do ex-governador Francisco Marques de Góes Calmon, seu idealizador e construtor, cuja evocação cabe em discurso ao ilustre Confrade-Presidente, acadêmico Edivaldo Machado Boaventura. Compete-nos, porém, apresentar o autor desta preciosa obra escultórica, cuja instalação ora se inaugura. O escultor italiano Pasquale De Chirico nasceu a 24 de maio de 1873, na cidade de Venoza, na Itália, e chegou ao Brasil aos 20 anos de idade, dedicando-nos 50 anos de sua vida. Estudou como bolsista no “Rial Instituto di Belli Arti di Napoli”, destacando-se entre os melhores discípulos de Achiles Dorsi, mestre que o impulsionou na arte. Chegando ao Brasil em 1893, estagiou em Santos e trabalhou em São Paulo, onde instalou uma fundição artística, única no gênero naquela época. Veio então para a Bahia, a convite do eng. Theodoro Sampaio, para executar o conjunto de esculturas para o novo prédio da Faculdade de Medicina da Bahia, realizando ali 12 obras. Lecionou na Escola de Belas Artes da Bahia como professor contratado, de 1918 a 1932, quando prestou concurso, tomando posse, como professor efetivo, na Cadeira de Escultura, a qual lecionou até 1942. Foi um grande mestre do desenho e da escultura e dentre os seus discípulos destacam-se o pintor Mendonça Filho, e os escultores Ismael de Barros, J. Rocha, Carlos Sepúlveda, Augusto Buck e Jair Brandão. Casou se com D. Maria de Chirico, com quem teve duas filhas, Cecília e Emília. Viveu da arte e foi grande na sua arte, embora pequeno na estatura, pois tinha apenas 1,55m de altura. Dentre suas obras, destacam-se bustos, hermas, medalhões, esculturas, inclusive funerárias, em bronze e mármore. Realizou também algumas peças autenticamente de arte, para satisfazer o seu anseio criador. Morreu trabalhando no seu atelier, em 1943, com as mãos sujas de barro, aos 70 anos de idade. Segundo Carlos Chiacchio; “Foi, sem contestação possível, o maior autor de monumentos da Bahia.” 308 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Dentre suas obras merecem destaque: – Conjunto de 12 esculturas da antiga Faculdade de Medicina, (Terreiro de Jesus). – Busto do Padre Manoel da Nóbrega – (1914), na Rua da Ajuda. – Estátua do Barão de Rio Branco – (1919), na Av. Sete de Setembro (S. Pedro). – Estátua de Tomé de Souza – (1919), em gesso – no Palácio Rio Branco. – Grupos escultóricos da fachada do Palácio Rio Branco – (1919), Praça Municipal. – Estátua de Jesus Cristo – (1920), na Av. Oceânica (Barra). – Busto do General Pedro Labatut – (1923), no Largo da Lapinha. – Estátua de Castro Alves – (1923), na Praça Castro Alves. – Busto de Julio David – (1926), no Largo do Rosário (Itapagipe). – Estátua do Conde dos Arcos – (1931), na Praça Conde dos Arcos (Comércio). – Estátua do Visconde de Cairú – (1932), na Praça Cairú (Comércio). – Monumento a Ernesto Carneiro Ribeiro – (1932), no Colégio Central (Bairro de Nazaré). – Busto do Irmão Joaquim do Livramento – (1936), na Av. Jequitaia (Comércio). – Estátua de D. Pedro II – (1937), na Praça Conselheiro Almeida Couto (Bairro de Nazaré). – Busto de D. Pedro Fernandes Sardinha, na Praça da Sé. – Estátua dos Irmãos Pereira, na Av. Lafaiete Coutinho (Preguiça). – Mausoléu de Júlio David, no Cemitério do Campo Santo (Federação). – Busto de Monsenhor Tapiranga, no Largo de Santo Antônio Além do Carmo. – Busto Artístico, na Escola de Belas Artes da Bahia (Canela). – Estátua de Francisco Marques de Góes Calmon – (1938), na Academia de Letras da Bahia (Bairro de Nazaré). 309 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Assim, o Solar Góes Calmon se enriquece pela história e pela arte, e a Academia de Letras da Bahia se enaltece pela responsabilidade intrínseca de resgatar e preservar a memória baiana, ao instalar, no seu jardim de sua imponente sede, a estátua do ilustre Governador Francisco Marques de Góes Calmon. Francisco Senna é graduado em Arquitetura e Urbanismo (UFBA, 1977), fez Especialização em Conservação e Restauração de Monumentos e Conjuntos Históricos na UFBA (1982) e em Florença-Itália (1985). Foi diretor da Fundação Gregório de Mattos (1997-2004), é professor da Faculdade de Arquitetura da UFBA e faz parte de conselhos de várias instituições. Desde 2000 ocupa a Cadeira nº 24 da ALB. Este discurso foi proferido na inauguração da estátua de Francisco Marques de Góes Calmon na sede da Academia de Letras da Bahia, em 22 de março de 2011. 310 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Discurso de Recepção da Biblioteca do Prof. Dr. A. John Russell-Wood Consuelo Novais Sampaio Aquele que possui uma biblioteca sabe bem como ela se apodera da sua alma. Vai-se formando e crescendo imperceptivelmente, seguindo os passos do dono. A cada passo um livro, e livro segue livro. Numa sucessão surpreendente vão pavimentando o caminho do dono; crescem conforme o ritmo, as curvas e saltos da caminhada. Quando esta se acelera, exigem a adição de nova estante. Com o passar do tempo esta estante exige outra, depois outra e mais outras, numa sequência que só para com o fim da vida. A Biblioteca do Prof. Dr. Anthony John Russell-Wood é muito rica no seu acervo, pois como professor de uma universidade norteamericana, a The Johns Hopkins University, ele não precisava comprar livros. Todos aqueles que quisesse para o trabalho a que se dedicava no momento vinham às suas mãos, assim como as estrelas foram às mãos de Einstein, para que ele escrevesse a Teoria da Relatividade, como afirma Ortega Y Gasset. Várias e muitas vezes, enquanto lá estudei sob a sua orientação, vi alunos que, após registrarem no balcão da Biblioteca Eisenhower dez ou mais livros que necessitavam, levavaos num carrinho de mercado para a sua residência. E caso a biblioteca da universidade não possuísse um dos livros desejados, este chegaria às suas mãos, em 24 horas, não mais de 30, conforme a dificuldade em obtê-lo, através do inter-library loan, sistema que lá funciona à perfeição. 311 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Com o incrível avanço tecnológico desta era, não sei como o sistema funciona hoje em dia. Sei apenas que quando me doutorei, em fins de 1979, todo o acervo da grande biblioteca de 5 andares havia sido computadorizado. Hoje, sabemos, podemos ter, em segundos, o livro que desejarmos. A biblioteca do professor Russell-Wood foi-se formando com aqueles livros que mais de perto atendiam à sua necessidade de informação e aos temas de pesquisa que no momento estivesse trabalhando. Quem analisar a sua biblioteca mergulhará no processo de formação da sua metodologia de trabalho e, possivelmente no desenvolvimento do seu próprio pensamento e ideias inovadoras. Assim, foi com admiração e respeito que conheci a biblioteca particular do professor Russell-Wood. Altas estantes em madeira de lei escura circundavam o seu gabinete e avançavam pelo amplo cômodo vizinho, fazendo com que todo o primeiro nível da sua bela casa fosse tomado por livros. Quem tem uma biblioteca sabe como os livros avançam, sem cerimônia, sem piedade, pelos cômodos da casa. Por isso, quando se começa a ver a vida do alto da última prateleira dessa biblioteca, em geral depois dos 70 anos, chega-se à conclusão de que está na hora de doá-la, para que não venha a ser decepada em muitas fatias por compradores ávidos. Foi o que pensei, numa decisão de quase desligamento vital, quando decidi doar a minha biblioteca particular para o Mosteiro de São Bento, em Salvador, através do seu Arquiabade Dom Emanuel d’Able do Amaral. Decidi ficar com apenas aqueles livros referentes a pesquisas que iria realizar. Confesso que me admirei quando constatei que, acima do umbral que dá acesso ao meu quarto de dormir, eu colocara um escaninho, no qual havia guardado, como se quisesse esconder de mim mesma, para não doá-la, uma coleção de clássicos da literatura mundial. Meus filhos, Andréa e Paulo Roberto, podem dizer que foram contagiados por minha bibliofilia, mas Paulo não pode atribuir a mim a bibliomania, um quase compulsivo amor aos livros, que o leva aos sebos dos lugares por onde passa. Não é de admirar que o vírus biblio tenha contagiado meus netos. O amor pelos livros fez com que o Prof. Russell-Wood deles se desfizesse somente após o seu falecimento, naquele 13 de agosto de 2010, antes dos 70 anos, que completaria no dia 11 de outubro seguinte. Queria doá-los. Mas a decisão foi difícil. Só no Brasil, as suas pesquisas 312 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 haviam-no levado a diversas unidades da Federação, especialmente a Minas Gerais e São Paulo. A excelência dos seus trabalhos fez com que fosse convidado, com certa frequência, para ministrar cursos, realizar conferências, participar de seminários nas universidades não só de Minas e São Paulo, mas também do Rio de Janeiro, Brasília, Pernambuco, Ceará, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, dentre outras unidades deste país. A decisão final de doá-la para a Universidade Federal da Bahia contou com o apoio da sua bem amada esposa Hannelore. Considerou que, sendo a Bahia, a matriz deste grande Brasil, os estudos sobre o Brasil Colônia poderiam ser impulsionados na UFBA. Além do mais, a Bahia foi o marco inicial dos seus estudos pioneiros. Aqui chegou, pouco depois de graduado na Universidade de Oxford – primeiro aluno na história desta secular instituição a receber o título de Bacharel em Língua e Literatura Portuguesa. Antes de vir à Bahia, recebeu convite para lecionar na então Universidade do Sul, na Rodésia, hoje Zimbabue. Decidiu ouvir Charles Boxer, o professor que maior influência exerceu na sua brilhante vida acadêmica. Boxer foi tachativo: Na Rodésia, você pode ter a chance de passar férias em Lourenço Marques (hoje Maputo, capital de Moçambique), disse ele, e na praia catar pedaços de porcelana Ming e Qing. Quem conheceu Sir Charles Ralph Boxer, ainda que através de uma das suas muitas publicações, sabe do seu refinado senso de humor, da brevidade e contundência de suas observações críticas, atributos que John Russell-Wood soube absorver, integralmente. Com Charles Boxer, ele havia estudado as Crônicas Portuguesas na Ásia, que mesclavam História e Literatura. Sem perceber, suas conversas com o mestre tornaram-se mais constantes, até ser contagiado pela paixão que ele devotava à História. Para satisfazer a esta paixão, Charles Boxer passou a dominar várias línguas orientais, e praticamente todas as europeias, além do latim. Talvez por esta influência linguística, John manifestoulhe o desejo de aprender mirandês, língua ancestral ainda falada nos confins da Galícia. Charles Boxer perguntou-lhe: Gosta de chuva? Sim, respondeu./ Todos os dias? (fez-se silêncio)./ Gosta de Caldo Verde? Sim./ Todos os dias? (silêncio). Fez-se breve pausa, e voltou a indagar: Gosta de sol? Sim./ Todos os dias? Sim! Então vá para a Bahia! 313 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Assim o jovem Anthony John Russell Russell-Wood chegou a Salvador, nas asas da Panam. Com minguados recursos financeiros, deu aulas de inglês para alguns empresários que lhe pagavam antecipadamente; escreveu alguns artigos para jornais, e encontrou apoio vital junto à nobre senhora Agnese Neeser que, na expressão do próprio Russell-Wood, foi a sua inspiração e estímulo constantes. Conduziuo à famosa biblioteca do Manu e apresentou-o aos expoentes culturais da época – Jorge Amado, Caribé, Kennedy e outros. Da pesquisa que realizou, com o auxilio de amigos que foi conquistando, especialmente do muito ilustre João da Costa Pinto Dantas Jr., então Provedor da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, surgiu a sua tese de doutorado, Fidalgos e Filantropos, a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, na qual revelou formas de ascensão social e de mobilidade na Bahia ao longo de dois séculos (1550-1755). Nela também examinou os meios através dos quais uma instituição privada exerceu funções que deveriam ser da responsabilidade da coroa ou da municipalidade. A sua devoção à pesquisa fez com que o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia lhe concedesse em 1966 o título de Sócio Correspondente; três anos depois o Instituto Histórico Brasileiro também fez dele Sócio Correspondente. Este é um dos seus mais importantes trabalhos. Publicado em inglês em 1968, no ano seguinte recebeu o ambicionado Herbert Eugene Bolton Prize, concedido pelo Cong resso de Historiadores Latino Americanos. Em 1971 tornou-se membro permanente da Royal Geographical Society em Londres. Em 1983, “pela excelência acadêmica” deste trabalho, recebeu o Arthur P. Whitaker Prize. Por este livro foi também distinguido com o título de Benemérito da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, em 1999, por sua contribuição ao conhecimento da História, distinção concedida pelo então Provedor Dr. Álvaro Conde Lemos, quando esta nobre instituição comemorou 450 anos de existência. A bela conferência que então pronunciou na Câmara Municipal está publicada em brochura. No ano de 2000 foi condecorado em Portugal com o título de Comendador da Ordem Internacional de Mérito das Misericórdias. A significativa contribuição desta sua tese para a historiografia (a versão portuguesa viria em 1982, 14 anos depois de publicada) fez com que John fosse prontamente admitido como professor, na 314 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 tradicional e muito exigente The Johns Hopkins University (JHU). Em uma das entrevistas concedidas ao professor Luciano Raposo Figueiredo, também publicada na Revista de História da Biblioteca Nacional, ele acentua o papel fundamental que sobre ele exerceu a universidade norte-americana, pela dinâmica atmosfera intelectual, marcada pela ênfase na metodologia, nos estudos comparativos e interdisciplinares – marca acadêmica da Johns Hopkins (Homewood Campus), que treina os estudantes para serem professores e pesquisadores profissionais. Observo que o Seminário Interdisciplinar da Hopkins é uma instituição centenária, famosa no meio acadêmico. Ele estimulou a segunda publicação do prof. Russell-Wood, em 1975, From Colony to Nation. Essays on the Independence of Brasil, da qual foi também editor. A produção intelectual de John Russell-Wood é fascinante, pela abrangência dos temas, enfoque multidisciplinar e abordagem comparativa. Para ele, além da Literatura, todas as áreas do conhecimento humano constituem fontes para a História – Sociologia, Antropologia, Ciência Política, Psicologia, Oceanografia etc. Seus trabalhos também revelam o alto valor que deu a mecanismos e objetos informais do conhecimento, que lhe permitiam estabelecer conexões e novas interpretações sociais, tais como o marfim de Goa, as louças de porcelana oriental, encontradas em São Luís do Maranhão; tapetes Guzerate da Índia, com a inscrição de uma caravela portuguesa, e assim por diante. Seus trabalhos também se distinguem pela supremacia que concede à dimensão humana nos feitos da História. Esta sua preocupação com a capacidade de realização e mudanças do homem levou-o também à elaboração de pequenas biografias como a de Manuel Francisco Lisboa, um Escultor na Idade de Ouro do Brasil, na qual desfez equívocos históricos que consideravam o pai do Aleijadinho, português de origem, carpinteiro e arquiteto, como se fosse o próprio Aleijadinho, homônimo do pai. A publicação em 1992 do livro Society and Government in Colonial Brazil, 1500-1822, deu-lhe a oportunidade de focalizar de perto três personagens da História: um estudante da Universidade de Coimbra no século XVII, nascido na Bahia; um potentado do sertão, no século XVIII, Manuel Nunes Viana; e Antonio Fernandes, um escravo que, sob julgamento em Salvador, sofreu muitas atribulações e sofrimentos. 315 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Todos três levantaram não só questões de identidade, mas também das relações colônia-metrópole, da avaliação do governo da coroa e do papel desempenhado por aqueles sem nome, los de abajo, que por ele foram elevados à dignidade de personagens da História, O peso do indivíduo na História também está presente em ensaios, como Woman and Society in Colonial Brazil, e em muitos outros entre os mais de 80 ensaios, artigos e capítulos de livros publicados. Para realizar os trabalhos que nos legou, John foi levado por seu indomável espírito aventureiro a pesquisar nos locais dos temas que estudava. Assim, palmilhou grande parte deste mundo. Além de várias cidades no Brasil e na Europa, pesquisou no antigo império IndoPortuguês, vasculhando Goa, que em 1961 tornou-se estado da Índia; também foi a Diu e Damão, agora territórios da Índia, além do antigo Ceilão, atual Sirilanka. Em tempos mais recentes, também vasculhou o Nepal, em pleno golpe militar, e não pensou em recusar ou adiar o convite que lhe fez a Universidade de Israel, para ali ministrar um curso de curta duração, numa circunstância histórica na qual a fronteira de Israel com a Palestina estava sendo iluminada por intensivo fogo cruzado, numa guerra sem fim, que já consumiu milhares de vidas. A grande, fascinante e inovadora produção historiográfica do Dr. Anthony John Russell Russell-Wood por certo despertará, com a doação da sua biblioteca particular à Universidade Federal da Bahia, a elaboração de estudos específicos. Aqui farei breve referência apenas a algumas de suas obras mais divulgadas. Além das já citadas,The Black Man in Slavery and Freedom in Colonial Brazil foi publicada em 1982, teve segunda edição em 1993, uma terceira bem ampliada em 2002, sendo finalmente traduzida para o português e publicada, treze anos depois de ser lançada (2005), com o título de Escravos e Libertos no Brasil Colonial. Na abertura dessa edição, após analisar as tendências historiográficas das últimas décadas, John registrou o seu agradecimento aos estudiosos brasileiros, especialmente baianos, que colaboraram com os seus trabalhos ao longo dos anos, destacando o saudoso Prof. Carlos Ott, o mestre Luís Henrique Dias Tavares, então diretor do Arquivo Público da Bahia (que hoje nos honra com a sua presença) e no qual encontrou grande apoio, o Dr. Álvaro Lemos e Antonio Ivo de Almeida, então Provedor e Diretor Executivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, o saudoso Erik Loeff, as professoras Ieda Pessoa de Castro e Maria 316 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Helena Flexor, os professores Cid Teixeira, João José Reis e Luis Mott, dentre outros. Na década de 1990, uma enxurrada de novos livros foram por ele lançados. Alguns ensaios, como Fronteiras no Brasil Colonial – Realidade, Mito e Metáfora e Portos do Brasil Colonial, atenderam ao desafio que ele se impôs de situar o Brasil no vasto contexto do mundo de influência portuguesa. Penso que esses ensaios foram prévias para os seus últimos livros monumentais. O Império Português, o Mundo em Movimento, um deles foi publicado em inglês em 1992 e, no Brasil, pela Difel sete anos depois. Introduzindo nesta obra o conceito de movimento, ele superou a vigente fragmentação da historiografia, livrando-se dos limites geográficos e cronológicos, ao tempo em que enfatizava a dinâmica e as interligações entre o Brasil, a África e a Ásia. Desenhou uma ampla e inovadora visão do Império Português, através da análise dos meios de transporte, produtos comercializados, tipos e atitudes de pessoas, seus estilos e ideias, estabelecendo pontos em comum e divergências. Por este fenomenal trabalho, recebeu neste mesmo 1992 da Comissão Nacional para as Comemorações das Descobertas Portuguesas o Prêmio Internacional Dom João de Castro, em reconhecimento pelo “melhor trabalho original no campo da História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa, do século XV ao XX”. Em seguida, (1996), o governo português concedeu-lhe o honroso título de Comendador da Ordem de Dom Henrique. Em outra obra fascinante, Portugal e o Mar, um Mundo Entrelaçado, publicado em 1998, simultaneamente em inglês, espanhol e português, John desenvolve inovadora teoria, segundo a qual o mar foi a força unificadora, o elemento decisivo de integração do vasto e disperso Império Português, e não fator de separação e de dificuldades, como registrava a historiografia tradicional. Outros livros sucederam-se: Local Governament in European Overseas Empires, 2v., em 1999, e Government and Governance of European Empires, 2v., no ano de 2000. Além desta grandiosa produção intelectual, o Dr. John Russell-Wood encontrou tempo para participar e organizar pelo menos nove grandes antologias, escrever mais de 80 artigos e 50 resenhas, ao lado de seminários, das inúmeras conferências em auditórios, rádio e televisão, além de vídeos etc. 317 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Não sei como encontrou tempo para ministrar tantos cursos nas mais diversas universidades para as quais foi convidado, inclusive no Japão, além das suas obrigações como professor na The Johns Hopkins University, atendendo a alunos da graduação e doutorandos, não sei. É para mim um mistério, que cresce quando me recordo que ao chegar à Johns Hopkins, e folhear o jornalzinho do Homewood Campus, arregalei os olhos quando deparei com a notícia de que o professor John RussellWood havia sido eleito pelos estudantes de graduação o melhor e mais popular professor de todo o Campus! Como meu professor, ele me parecia distante, de extrema exigência e impermeável a qualquer desculpa. Extraía do estudante tudo que podia e mesmo o que não sabia se podia. Mas, à medida que fui progredindo, essa máscara foi-se desfazendo, revelando um homem de personalidade extremamente generosa, gentil e agradável. Quando sabia que o estudante ia entregar-lhe a tese de doutorado no tempo por ele estipulado, juntava-se a ele e aos demais alunos no Grad Club, para conversas amenas, muitas risadas, sempre fertilizadas por um bom vinho. Invariavelmente, o seu grupo era dos últimos, senão o último, a deixar o clube. Devo registrar que, dentre os cerca de 3.000 livros, esta biblioteca contém pelo menos três enciclopédias: The Cambridge History Of Latin America em três volumes, a Encyclopedia of Latin American History and Culture, cinco volumes, e a Cambridge Encyclopedia. Oferece mais de 300 livros e 40 revistas referentes à História de Portugal e à expansão portuguesa, na África, Índia, Japão etc.; cerca de 165 livros e 70 brochuras sobre a expansão da Europa, inclusive da Rússia e sua relação com o negro. Inclui mais de 50 livros sobre a América Latina e, como seria de esperar, a grande maioria dos livros tem como tema o Brasil. Eles cobrem todos os assuntos de interesse do pesquisador e estudiosos do Brasil Colônia e Império, estando a grande maioria em português e inglês. Sir Charles Ralph Boxer, para citar apenas um autor, comparece com cerca de 40 livros, além de muitos manuscritos, artigos, brochuras. Sem medo de errar, posso afirmar que nenhuma outra biblioteca neste país possui as obras completas deste pioneiro da história do Brasil, que, pela importância da sua produção, recebeu da Rainha da Inglaterra o honroso título de Sir. Citarei em português apenas dois desses livros, para destacar a influência positiva que eles exerceram sobre o Prof. John Russell-Wood: Some literary sources for the history of Brazil in the XVIII 318 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Century (Fontes literárias para a história do Brasil) e Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia e Luanda, 1510-1800 (Conselhos Municipais de Goa, Macao, Bahia e Luanda,1510-1800). O primeiro acentua a importância da literatura para o estudo da História, e o segundo revela a importância dos estudos comparativos. John Russell-Wood dedicou ao mestre, em 1999, um estudo com o título de Charles Ralph Boxer, Teacher, Scholar and Bibliophile, e outro em 2005, Charles Boxer’s Use of Literary Sources in the Study of Race Relations in Colonial Brazil and the Maranhão. Alegra-me registrar que, quando esteve em Salvador, o prof. Charles Boxer foi conduzido pelas ruas desta cidade pelo nosso sempre governador Dr. Roberto Santos, por quem Russell-Wood tinha grande admiração. Em resumo, não é de admirar que o Prof. Russell-Wood tenha sido premiado e condecorado várias vezes. Além daqueles títulos e prêmios que citei ao longo desta apresentação, não posso me esquecer que em 1997 ele foi feito membro da Royal Historical Society, Londres, e que o Governo Brasileiro concedeu-lhe em 2002 a ambicionada Ordem do Rio Branco. Neste mesmo ano, ele foi feito Membro Correspondente da Academia de Letras da Bahia, onde proferiu duas belas conferências. Além da sua magnífica Biblioteca, o Dr. Russell-Wood doou à Universidade Federal da Bahia o seu acervo arquivístico, do qual constam muitos manuscritos, retratos, brochuras e outros escritos, inclusive o script de um filme, comissionado de Paris para a televisão, (1969) com o nome de Flor de São Miguel. O texto é de Hansen-Bahia, a música de Carlos Coqueijo Costa, e teve John Russell-Wood como assistente do scripte tradutor para o português e alemão. O tema gira em torno da pobreza, vício e injustiça social. Apesar de haver sido julgado de nível superior e de alto valor artístico, o filme não foi produzido, inclusive, confor me se argumentou, porque o desenvolvimento do tema desembocaria em protesto social, o que tornaria difícil a obtenção de licença para a sua realização, naqueles conturbados anos de 1968, 69. O material arquivístico que acompanha a biblioteca do prof. Russell-Wood é muito rico e bem volumoso, por isso ainda está sendo tratado por nossas incansáveis bibliotecárias. Em 2006 a Câmara Municipal de Salvador concedeu-lhe o título de Cidadão de Salvador. Quando do seu falecimento em 2010, a Academia de Letras da Bahia, assim como a Johns Hopkins e outras instituições, prestaram-lhe significativas homenagens. 319 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Muito mais teria a dizer para esboçar o perfil do Professor Dr. Anthony John Russell Russell-Wood, um homem raro, na sua dimensão humana e intelectual, realizador do irrealizável, de estrutura hercúlea, disciplina espartana, determinação inflexível e inteligência invulgar. A obra que lhe era mais cara, a sua Biblioteca Particular, foi por ele, por sua amada esposa Hannelore e filhos, doada à Universidade Federal da Bahia. Os filhos, Christopher e Karsten, aqui presentes, deixaram nos USA esposa, filhos e trabalho, para homenageá-lo, nesta cerimônia. Esta biblioteca está instalada na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, constituindo, com o acervo doado pela Professora Dra. Katia Queirós Mattoso, o Núcleo de Estudos Coloniais, uma nova unidade de estudo e pesquisa que, sem dúvida, contribuirá para a elaboração de trabalhos intelectuais, segundo o ritmo inovador do acontecer e do escrever História. Não posso terminar sem registrar que o catálogo do Núcleo de Estudos Coloniais, solicitado pela Magnífica Reitora Dra. Dora Leal Rosa à diretora da Edufba, Dra. Flavia Garcia Rosa, foi elaborado num tempo olímpico, graças ao interesse dos que estiveram nele envolvidos, destacando-se o diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Dr. João Carlos Salles, as bibliotecárias Marina da Silva, Hozana Maria C. Azevedo e Andréa Rita Silveira, através das quais agradecemos o trabalho beneditino de uma equipe de dez bibliotecárias. Estenda-se este agradecimento aos técnicos da Edufba, com destaque para Ângela Garcia Rosa e Susane Barros, que, sob a direção da competente e dedicada Dra. Flávia Garcia Rosa, fizeram com que ele chegasse até nós. Consuelo Novais Sampaio é historiadora, ensaísta e professora de História da Universidade Federal da Bahia. Foi Diretora do Centro de Memória da Bahia, da Fundação Pedro Calmon; tem diversos artigos e livros publicados, dentre os quais 70 Anos de Lutas e Conquistas: Liga Bahiana Contra o Câncer (2006). Desde 1992 ocupa a Cadeira nº 40 da ALB. Discurso proferido na ALB em 5 de setembro de 2012. 320 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Discurso de posse na Cadeira nº 5 da ALB Carlos Ribeiro Senhores acadêmicos, senhoras e senhores, Sei como é ingrata, em nosso tempo e lugar, a condição do escritor. Vivemos num mundo de imagens, que celebra e manipula emoções fáceis, num universo complexo de pirotecnias audiovisuais carente de substância, universo ilusório de artifícios e virtuosismos, em que essência e aparência são muitas vezes confundidas. Eis aí, enfim, tudo o que se opõe à construção lenta, paciente, sofrida e meditada de uma obra literária – que por sua vez exige dos leitores o esforço que poucos, muito poucos, querem despender. Quem nos lê? Quem, de fato, nos lerá? Por isso, meus amigos, o prestígio dos títulos e dos rituais, por sua vez tão necessários, não deve se sobrepor ao que verdadeiramente importa. No caso dos escritores: a sua obra. E é ela, somente ela, que justifica não seu autor, mas a si própria. Só ela concede, de fato, não a imortalidade, mas alguma perenidade. Pois que, na verdade, todos, inclusive os Grandes, passarão. Se aqui estou, se justifico a minha presença neste espaço privilegiado das letras baianas, inserido numa linhagem na qual constam nomes como os de Afrânio Peixoto, Xavier Marques, Rui Barbosa, Carlos Chiacchio, Estácio de Lima, Walter da Silveira, Carlos Vasconcelos Maia, Godofredo Filho, Thales de Azevedo, Wilson Lins, Jorge Amado, Guido Guerra e Jorge Calmon, só para citar alguns dos nossos mais importantes ficcionistas, poetas, jornalistas e ensaístas, é porque devo acreditar que a minha obra, de alguma forma, me dá o seu aval. 321 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 É, portanto, em nome da minha atuação como jornalista e escritor que aceitei o convite de integrar esta Academia. Confesso que me é estranha a ideia de “imortalidade”, mesmo a sábia concepção que nos é dada por este sodalício: a de, através das sucessivas saudações de seus integrantes, preservar a memória dos antecessores, num ritual de presentificação. Agradeço aos meus prezados confrades, especialmente os queridos amigos que tomaram a iniciativa de indicar o meu nome para esta Academia – James Amado, Ruy Espinheira Filho, Florisvaldo Mattos, Luís Henrique Dias Tavares, Aleilton Fonseca – e a todos os demais membros desta Casa, sem esquecer os que, ao longo de minha trajetória, jamais deixaram de me dar generoso incentivo. Não poderia deixar de citar, com a mais elevada estima e gratidão, nomes como os das minhas queridas amigas Myriam Fraga e Evelina Hoisel, dos professores Edivaldo Boaventura e, in memoriam, Jorge Calmon, ambos grandes incentivadores da minha carreira jornalística; de Geraldo Machado, que, como diretor da Fundação Cultural do Estado da Bahia, no início dos anos 80, deu o impulso inicial para toda uma geração de autores, através da Coleção dos Novos, então dirigida por Myriam Fraga; de Aramis Ribeiro Costa, de quem fui sempre merecedor de atenção e simpatia; dos professores Waldir Freitas Oliveira e Cid Teixeira, a quem dedico grande respeito e consideração, e, em especial, do ilustre presidente desta Casa, professor Cláudio Veiga. E a tantos outros, a exemplo de Carminha, Genilda e do poeta Carlos Cunha, que me acolheram com tanta generosidade, agradeço, enfim, a honra de pertencer a esta instituição. De fora destes muros, não poderia jamais esquecer aqueles que, em diversos momentos de minha trajetória, exerceram valiosa influência. Em especial, para não me estender demasiadamente, a minha querida professora Almerinda, em cuja escola Santa Tereza, no Carmo, aos cinco anos de idade, garatujei minhas primeiras palavras, iniciandome no universo da escrita. Meus professores da Escola de Jornalismo da Universidade Federal da Bahia. Adinoel Motta Maia, incentivador dos então jovens escritores, ao final dos anos 70, através do Concurso Permanente de Contos do Jornal da Bahia e da revista Aqui Ficção. A querida amiga e orientadora Antonia Herrera, que, juntamente com Myriam Fraga, Evelina Hoisel e Judith Grossmann, promoveram o “I 322 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 e o II Encontro de Literatura Emergente, no início dos anos 80. As professoras Lígia Telles e Mirella Márcia Vieira Longo, que me prepararam, de forma sempre instigante, para estudar a obra de Rubem Braga, tema da minha dissertação de Mestrado e da minha tese de doutorado. Aleilton Fonseca e José Inácio Vieira de Melo, grandes amigos, com os quais compartilho um projeto literário vitorioso, a revista Iararana. Agradeço, portanto, o afeto e a generosidade de todos os que estão aqui presentes, neste momento de celebração. Celebração da cultura e das letras, das quais sou um representante. Um que é também diverso, na multiplicidade de vozes que povoam esta pessoa que vos fala, em suas personas de jornalista, escritor e professor; de marido, pai e amigo; de mestre e aprendiz, mas que, em essência, permanece o menino que formou sua personalidade num mundo especial: a cidade de Salvador, Bahia. * * * É nesta cidade privilegiada, nesta cidade que amo como se cada uma das suas curvas, pátios, varandas, colinas, sacadas, praias, dunas, árvores e esquinas, de alguma maneira misteriosa, fizessem parte de mim, que me flagro como alguém que subitamente percebe ter vivido muitas vidas. De cada uma delas pode-se trazer uma imagem: um quarto minúsculo e infinito, num velho apartamento do Centro Histórico, iluminado por réstias de luz, num remoto final de tarde, no qual um menino encontra-se, solitário, entre chuvas de flechas e répteis préhistóricos vagando entre as mobílias da sala de estar; um mar noturno, numa das 1001 noites míticas do bairro de Itapuã, de onde sopra um vento fresco que sacode os coqueirais numa noite qualquer dos anos 60; dunas alvas, tão remotas e improváveis, nas quais nós, heróis e príncipes de um reinado sem dono, nos lançávamos em aventuras mortais por entre túneis de mato e repastos de cajus e pitangas, mangabas e tamarindos. Eis, portanto, o espaço privilegiado de uma vida, que se aproxima lentamente do meio-dia de sua existência com ares de imortalidade, mas que hoje, neste momento mágico, entre as paredes deste venerável solar, tem mais do que nunca consciência de sua transitoriedade. De que sua vida nada mais é que um breve clarão na planície escura. São 323 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 os afetos, nossos insubstituíveis afetos, as tochas que carregamos para atravessar esta precária ponte suspensa sobre o abismo. De forma que acreditamos só poder reconstituir, verdadeiramente, nossa vida e uma suposta biografia, através de uma toponímia de afetividades. É em nome do afeto que evoco, especialmente, o bairro de Itapuã. Lugar ao qual quero dedicar esta noite. Ele representa tudo de belo e nobre que envolve a minha existência. Para isto, peço licença para evocar um silêncio profundo do qual nasce, como milagre, o vento que traz sons distantes, murmúrios e batuques, e que vem de remotas eras, como brisa noturna revestindo este espaço de imagens e evocações: lá está o mar de Itapuã, o Morro da Vigia, o Abaeté do Catu, a Pedra de São Thomé, com as marcas dos pés do santo e das patas do seu cachorro; o Buraco da Vovó, o Porto do Siri; os Contratos de Cima e de Baixo, a Lagoa das Trincheiras, de Dois-Dois; o Quebra-Resguardo, a Pedra que Ronca, ou que Aflora, os coqueiros com suas longas cabeleiras dançando na lua cheia, uma voz de lavadeira que canta uma canção imorredoura, e as dunas varridas pelo vento; os chafarizes, as fontes aterradas, em nome do falso progresso, que renascem: Ingazeiras, Pedras, Dendezeiro, Cacimba, Fonte do Boi, do Porto… e a canção entoada pelo pescador, no mar imenso, na noite mais profunda, que vence o esquecimento para ressurgir aqui, neste salão. Lá estão, meus amigos, os casebres de palha e as lamparinas de óleo de baleia, no tempo em que “o prato de xixarro era um tostão” e que “Itapuã era quase que uma família só”. Lá estão os saveiros do coco e da farinha, a senhora dona das águas; a última baleia pescada, em 1912, por Damásio; o Mestre Dão, que passou três dias perdido no mar, num temporal. Lá está, como disse o velho pescador Miguel Archanjo, de saudosa memória, a terra onde “os homens que têm direito a nome são esquecidos”. A gente anônima, sem medalhas e honrarias, que ocupou a costa do Brasil, lavrando a terra, lançando suas redes de pesca, adentrando o mar alto, enfrentando a fúria dos elementos, lutando o bom combate. Aquele que nos faz homens dignos de um nome. E é lá, naquela Itapuã que não mais existe, que vejo agora o quarto do menino. Do menino que, à janela que dá para o quintal, se deixa invadir por sonhos coloridos, e desejos, e amores, e temores. O mar é então um sussurro distante, e ele percebe que ali, naquele momento, 324 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 algo está se perdendo. Sereias e serpentes, macacos e peixes, baleias e calangros, jegues, sariguês, “papa-figos”, lobisomens. Todo um organismo vivo pulsando em flores e matos e brejos e areias. E um mar azul límpido, e canções, cirandas, sambas de roda. As cheganças, os ternos das Flores e da Espera. O Baile Pastoril, e as fontes puras nas quais se podia matar a sede. A nossa sede essencial. E o menino promete a si mesmo que nada daquilo se perderá. Que sua voz será, de uma maneira ou de outra, a voz da sua terra e do seu povo; será denúncia e celebração. É, pois, com a voz daquele menino, meus amigos, que me apresento aqui, nesta Casa. A todos os amigos queridos de Itapuã, pescadores, lavadeiras, ganhadeiras; operários, lavradores, comerciantes, educadores, à memória de dona Francisquinha, dona Áurea, Detinha, Badu e Nissu, veneráveis guardiãs da nossa cultura, à frente do grupo Mantendo a Tradição, à memória do dr. Nelson, meu tio e padrinho, que durante décadas atendeu gratuitamente, na Farmácia Cosme e Damião, a gente simples que o procurava para aliviar suas dores; a seu Menezes, nosso “mago dos transistores”, ao professor José Narciso do Patrocínio, diretor do nosso Colégio Lomanto Júnior, ao jogador Biriba, nosso grande craque dos gramados, às Ganhadeiras, aqui tão bem representadas, aos meus companheiros de luta da Associação dos Moradores de Itapuã, a valorosa AMI, a Eustáquio, negro velho, capinador exímio, com sua larga e generosa risada, à nossa querida Vitória, dos acarajés e quitutes, a todos que, tal como meus pais, Amadeu e Mira, já mortos e tão vivos em nosso coração, tios, primos, amigos, e aos meus queridos irmãos, Ailton, Tina e Amadeu, dedico o que de melhor há no que vocês, todos vocês, me possibilitam ser. * * * Senhores acadêmicos, Acredito, tal como Pirandello, que a arte literária, num sentido superior, deve assumir um valor universal. Para fazê-la, são necessários escritores cuja natureza é mais propriamente filosófica. Um autor é filosófico, diz ele, não porque traga um conteúdo filosófico que venha através de um discurso, mas, sim, uma sabedoria que está aderida à linguagem, que se revela na linguagem. Esta é a característica maior de um grande escritor brasileiro, Guimarães Rosa, para quem a arte é um 325 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 daqueles variados caminhos que levam do temporal ao eterno. Definia, assim, ao lado do seu ideal de estilo, de precisão micromilimétrica, o seu ideal de narrativa como fábula, como transcendência. Vivemos um tempo no qual a expressão literária é vazia de transcendência, carente de epifanias, desvinculada do sentido original de fábula. Um tempo em que se desacredita cada vez mais na linguagem expressiva como ato de revelação e alumbramento. Devo declarar a minha convicção de que retomaremos, mais cedo ou mais tarde, esse sentido de transcendência, a percepção de que, ao fim do sofrimento mais agudo, o homem há de retomar o sentido da redenção. É nela, como na prodigiosa novela de Leon Tolstoi A morte de Ivan Illitch, que se configura o sentido da condição humana. Há de vir um novo momento que surgirá, não desse modelo de urbanidade, hoje predominante nas nossas metrópoles, este labirinto vazio de heroísmo, mas do sertão, este desertão presente no íntimo de todos nós, mesmo os mais urbanos, este sertão que não morreu e que não morrerá. Para nele chegarmos, senhores, precisaremos, como demonstra uma cantiga das lavadeiras dos sertões do São Francisco e do Vale do Jequitinhonha, merecer beber a água da fonte: água tão doce, fonte tão bela. E a palavra tão carregada de significados virá em sua simplicidade, nem sempre submetida às normas cultas da linguagem erudita. Mas veículo de uma sabedoria que precede todas as gramáticas. Precisamos estar abertos para ela. Após tantos anos vagando no labirinto sem saída que é o absurdo da vida moderna, como bem o representou Franz Kafka, creio que, em meio à parafernália da vida pós-moderna, com seus computadores, com suas câmeras que tudo veem e registram, com seus microfones que tudo ouvem, com seus satélites que tudo devassam, com suas armas que tudo devastam, com a capacidade de desvendarmos as zonas mais remotas do mundo subatômico, de nos virtualizarmos ao ponto de nos tornarmos simulacros, projeções de algo que muitas vezes já nem sabemos o que é, em meio a tudo isto, senhores, retomaremos o sentido da transcendência, retomaremos, num patamar mais alto, os valores humanísticos perdidos, redescobrindo em nós o humano. Quem sabe não seja esta a mais nobre missão do escritor do século 21: a de reencantar o olhar para reencantar o mundo reificado dos pobres de espírito? Sim, precisamos recuperar a nossa aura. 326 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Essa aura, prezados senhores, está presente, conforme arguta observação do crítico francês George Steiner, no quadro Le philosophelisant, do pintor francês Chardin, do século 18. Nele, um homem lê um livro aberto – e, na postura mesma em que o lê, revela um conjunto de valores que nos parecem estar cada dia mais ausentes desta nossa sociedade fragmentária, superficial e instantânea. Que valores são estes? Diremos aqui, de forma resumida: em primeiro lugar, a formalidade e solenidade inerentes a um ato que é revestido de grande importância: “o leitor não vai ao encontro do livro em trajes informais ou em desalinho”. Ele vai ao encontro do livro levando a cortesia em seu coração, como quem recebe uma visita importante. Em segundo, a noção do tempo: a condição passageira do leitor (e do homem) em contraste com a longa sobrevivência dos (grandes) livros. “O tempo passa, mas o livro permanece. A vida do leitor mede-se em horas; a do livro, em milênios”, diz Steiner. Em terceiro, também relacionada ao tempo, é a consciência da brevidade do mundo material quando comparado com a longevidade das palavras. Verba volant, scriptamanent, “as palavras voam, a escrita permanece”, diz o antigo provérbio medieval, que se sustenta, mesmo nesta era de ditadura das imagens. Em quarto, a obrigação de resposta inerente ao ato da leitura. Leitura esta que, longe da concepção atual de entretenimento, configura-se como uma interação em níveis profundos da compreensão envolvida no ato de ler. Ler bem é “estabelecer uma relação de reciprocidade com o livro que está sendo lido; é embarcar em uma troca total”. E, por último, algo que envolve todos esses elementos presentes no quadro – o silêncio. Um silêncio que, na pintura, “se manifesta inequivocamente pela qualidade da luz, pela textura da composição”. A leitura é, para o leitor do século 18 representado na obra, um ato silencioso e solitário. “Trata-se”, diz Steiner, “de um silêncio vibrante de emoção e de uma solidão abarrotada de vida”. Aqui estão, de forma resumida, alguns elementos que trago comigo, ao ultrapassar o pórtico desta instituição: a cortesia no coração, também disposto ao entendimento e à confraternização; a reverência ao que representa a memória de todos os que por aqui passaram; a percepção de nossa efemeridade perante a permanência das grandes obras e das grandes realizações; a disposição de interagir, de participar, de contribuir para o engrandecimento desta Casa; a procura do silêncio como fonte 327 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 de inspiração para a celebração do que aqui temos como o nosso mais valioso patrimônio: o respeito à diversidade e a síntese dialética das diferenças traduzidas no bem. * * * Neste momento, portanto, em que passo a ocupar a Cadeira de número 5 desta Academia de Letras da Bahia, declaro, com satisfação, a afinidade e admiração que tenho a seus ocupantes anteriores, com destaque, entre eles, para o eminente médico José Silveira, para o ensaísta, poeta e cronista Carlos Chiacchio e o nosso saudoso amigo, o cronista, jornalista e ficcionista Guido Guerra. Este, talvez a mais irreverente personalidade literária que passou por esta venerável instituição, representa, de forma exemplar, o profissional das letras que se divide entre os fatos do dia a dia, que logo amarelecem no tempo, com o seu principal veículo, as páginas dos jornais, e aquela outra abordagem da realidade, talvez mais real, pois que perene, que é recriada através da subjetividade do escritor. Vejo, portanto, em Carlos Chiacchio e Guido Guerra, exemplos de jornalistas-escritores, que, graças ao seu imenso talento, escaparam da contingência dos fatos – e que permanecem. Homens que não temeram expor, publicamente, as suas ideias – e de deixarem assim gravadas em nossa história literária suas marcas. Homens que, como jornalistas, cumpriram a missão mais nobre desta profissão hoje tão desprestigiada: a de formar consciências, de denunciar imposturas, de incentivar talentos emergentes e de contribuir com a renovação da nossa cultura. Vejam que já me encontro cumprindo uma formalidade do discurso de posse dos acadêmicos: a de fazer o elogio dos antecessores. Do patrono da Cadeira nº 5, Luiz Antônio de Oliveira Mendes, peço compreensão por falar pouco, pois que dele pouco se sabe. Era, por volta de 1808, segundo informa o historiador Pedro Calmon, em sua História da Literatura Baiana, advogado e sócio da Academia de Ciências de Lisboa. Sabe-se que nasceu por volta de 1748, sendo, entretanto, desconhecida a data de sua morte. Informa-nos o Breviário desta Academia de uma carta escrita pelo eminente advogado e endereçada ao frei Joaquim de Sant´Anna, em 1814. Sinal de que viveu bastante, e esperamos que bem, o Sr. Luiz Antônio de Oliveira Mendes. 328 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Do seu fundador, o jornalista, poeta e crítico literário Carlos Chiacchio, afirmamos o contrário. Tão grande foi o impacto da sua atuação intelectual, que se torna impossível passar pela história cultural do nosso estado, no século 20, sem admirar-se com a amplitude de sua presença. Mineiro de nascimento, baiano por adoção e convicção, Chiacchio, nascido em 1884, em Januária, mudou-se com a família, em 1895, portanto aos 11 anos, para Salvador. Aqui, formou-se, em 1910, em Ciências Médicas e Cirúrgicas, pela Faculdade de Medicina. Mas, logo se manifestou, no jovem intelectual, sua diversidade de aptidões: foi professor de Filosofia, de Estudos Brasileiros e de Estética, em diversas instituições, conforme mostra Dulce Mascarenhas, em seu ensaio Carlos Chiacchio: homens e obras. Mas foi na seara da literatura, do jornalismo e da cultura que Chiacchio alcançou a plenitude da sua vocação: a de líder e agitador cultural de sua geração, ou, como definiu Dulce Mascarenhas, de “guarda-avançado da tradição intelectual baiana de cunho simbolista”. Na encruzilhada do novo com o velho, que foi a primeira metade do século 20, na Bahia, na qual conceitos e preconceitos profundamente arraigados ainda não haviam sido abalados pelo Modernismo já consolidado, desde 1922, no sul do país, ele desempenhou seu papel com desenvoltura, mas também com certa ambiguidade: o baiano de Januária, se me permitem o trocadilho, foi, ao seu modo, um modernista saudoso do espírito e das formas do simbolismo; como crítico, foi vigilante e mordaz na sua cruzada contra plagiários, impostores, pastichadores, pingapulhas, pilhapilhas, empalmafichas, açambarcadores, coribantes, cabotinos e engrola-turbas, para lembrar apenas alguns dos adjetivos usados pelo eminente jornalista preso ao legado romântico da crítica francesa do século 19. Inovador e conservador foi, entretanto, figura emblemática do intelectual combativo que tanta falta nos faz, neste início do século 21. Vale destacar, sobretudo, a atuação do enérgico e temido polemista na vanguarda da Ala das Letras e das Artes, movimento que ajudou a criar, e da revista Arco & Flecha (1928-1929), porta-voz dos primeiros modernistas em nosso estado. Há reservas à atuação de Chiacchio como crítico literário, mas, no cômputo geral, é altamente positiva sua atuação, de forma que seu nome persiste e persistirá como um dos grandes do seu tempo. 329 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 * * * A Chiacchio sucedeu o médico sanitarista Luís Antonio Cavalcante de Albuquerque de Barros Barreto. Dele, guarda-se o registro de uma atuação importante na área da saúde do nosso estado. Nascido no Engenho do Meio da Várzea, nos arrabaldes de Recife, em 11 de março de 1892, foi ele que, no governo de Góes Calmon, de quem, aliás, foi genro, tornou-se responsável pela modernização da Saúde Pública na Bahia. Orador fluente, segundo José Silveira, além de “excelente didata, expositor claro e objetivo”. Eleito membro deste sodalício em 11 de março de 1948, Barros Barreto usufruiu do convívio com seus pares por apenas seis anos, vindo a falecer em 26 de junho de 1954. Foi das lavras diamantinas que se originou o ocupante seguinte da cadeira nº 5, o juiz, estudioso dos problemas de Direito e poeta Carlos Benjamin de Viveiros. Nascido em 1889, na cidade de Lençóis, Viveiros publicou pouco. Dele é mais conhecida e festejada a tradução do poema teatral Salomé, de Oscar Wilde. Sua produção poética, de talhe parnasiano, foi publicada nos livros Taça, vinho e mulheres e Eros, este último em edição póstuma por ocasião do centenário do seu nascimento. Nele estão sonetos sobre os quais, nas orelhas do livro, Antonio Loureiro de Souza escreveu as seguintes palavras: “Viveiros tinha pássaros no coração. Por isso não foi outra coisa na vida senão poeta, à maneira de um Alberto de Oliveira, que lhe herdou a forma hierática na elaboração do verso. Toda a sua poesia se reveste, assim, de majestade. Sonetista, conservou-se no tempo como um parnasiano, vibrando, para lembrarmos Bilac, a lança em prol do estilo”. Com seu conhecimento jurídico, fraseado elegante e poética à maneira fidalga, como dele testemunhou Camillo de Jesus Lima, Viveiros tornou-se membro desta instituição a 6 de outubro de 1955. Morreu em 27 de março de 1970, embora, como declarou na primeira estrofe do poema Perenidade: Não morrerei, que a vida hei de deixar em cada Estrofe, que auroreça em minha mente, e estenda Pelo infinito o incêndio enorme da alvorada, Que acenda chispas de oiro em minha áspera senda. 330 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 O passo seguinte desta louvação, prezados senhores, é largo – e certamente estará aquém da sua importância o elogio que farei aqui do próximo ocupante desta Cadeira, o médico e cientista José Silveira. A história do eminente baiano nascido a 3 de novembro de 1904, em São Bento das Lajes, antigo povoado do município de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, é contada pelo próprio Silveira em suas memórias, publicadas com o título Vela Acesa, pela Editora Civilização Brasileira, em 1980. Neste livro, escrito numa linguagem simples, mas bastante viva e humana, como convém a uma boa autobiografia, o autor narra não apenas a sua trajetória pessoal – de menino pobre do interior a personalidade consagrada internacionalmente, no âmbito das ciências médicas –, mas, sobretudo, a da sua geração. Jorge Amado assinalou, com propriedade, esta característica da obra, quando disse, na apresentação do livro, intitulada “Mestre Silveira, da Bahia”, que “por vários motivos, a leitura de Vela Acesa se faz útil e necessária ao maior público possível. Primeiro, pelo prazer da leitura, simplesmente, pois Silveira, não sendo um profissional da escrita e, sim, um sábio, narra com uma deliciosa singeleza e uma força de verdade que fazem do romance dessa vida ardente leitura tão apaixonante como a dos mais atraentes livros de ficção. Segundo, pelos ambientes descritos e pelas figuras retratadas – a partir da infância, São Bento das Lajes, Santo Amaro, Feira de Santana, os tempos de ginasiano, seguindo-se os anos felizes e tão movimentados do estudante de medicina, o mundo dos padres e o mundo dos médicos; perfis esplêndidos de mestres e colegas, de uma quantidade de figuras ilustres e de outras infelizmente menores, de triste caráter e medíocre inteligência, cujos nomes o mestre silencia, pois esse homem de bem e de caráter é o exemplo maior de delicadeza. Sua sensibilidade se revela a cada página, a cada parágrafo”. De fato, o livro de Silveira nos remete a uma Bahia que se arrastava, lenta e penosamente, para fora da sua condição de província. Pelo menos, era esta a aspiração de uma reduzida elite letrada, oriunda de famílias mais abastadas, que lutava para garantir o seu lugar entre os muros, solidamente fortificados, de uma sociedade ciosa das suas diferenças de classe social, econômica e cultural. Além desses muros, como, aliás, ainda hoje acontece, estava a população desassistida da cidade – e além, mais além, os sertões. Os sertões brutos e ínvios, tão bem retratados por Euclides da Cunha. Lembremos que a Guerra de 331 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Canudos ocorrera apenas sete anos antes do nascimento de Silveira, e que a obra magna de Euclides fora publicada exatamente dois anos antes, no final de 1892. Não foram poucos os percalços encontrados no caminho pelo meu ilustre antecessor. Não poucas, segundo suas próprias palavras, foram as escaramuças e tramoias, desmandos e artimanhas, escusas sorrateiras para obrigá-lo a mudar de direção. Sobretudo quando, já formado pela tradicional Faculdade de Medicina da Bahia, atendeu à ordem do seu chefe e amigo Prado Valadares de trocar o ramo da radiologia, no qual já vinha se especializando, para dedicar-se à tisiologia. Diz Silveira, em suas memórias: “A tuberculose, doença contagiosa e fatal naqueles tempos, pelo sofrimento que causava às suas vítimas e condenação ao isolamento, obrigando-as a se separarem da sociedade e dos seus entes queridos, era a mais cruel das doenças; desprezada até pelos médicos, que pouco se interessavam pelo seu estudo.” Foi, portanto, a luta contra a tuberculose a grande bandeira sustentada pelo Alemão do Canela. Mais do que uma bandeira, segundo suas próprias palavras, sua grande obsessão. A fundação do Instituto Brasileiro para a Investigação da Tuberculose – o IBIT, em 21 de fevereiro de 1937, é um marco de altíssima importância no combate a um mal que, na época, era considerado um flagelo social. * * * Do ocupante posterior desta Cadeira, a memória é ainda muito recente. Por isto torna-se mais difícil saudá-lo com o devido distanciamento. Mesmo porque, a presença marcante de Guido Guerra permanece – e permanecerá, ainda, por muito tempo – em diversas instâncias da cultura no nosso estado: na Fundação Cultural, no Conselho de Cultura do Estado e nesta própria Casa, na qual exerceu, de forma exemplar, sua condição de acadêmico. Sim, porque ele aqui chegou para honrar esta Academia com a sua participação dinâmica e construtiva. Uma surpresa, sobretudo, para os que temiam aqui a presença de um rebelde. Nascido a 19 de janeiro de 1943, em Santaluz, no alto sertão baiano, Guido Guerra era um homem de paradoxos e contrastes. Magérrimo, de saúde frágil, enfrentou, com coragem e tenacidade, os generais que 332 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 se instalaram no poder no Brasil, após o Golpe de 1964. Irreverente e ferino, ao ponto de lhe terem dado, em tempos idos, as alcunhas de “Língua de Trapo” e “Papagaio Devasso”, foi homem de notável integridade moral, em todas as esferas da sua vida, a pública e a privada, como podem dar testemunho sua eterna mulher, Celi Guerra, sua única e adorada filha, Isadora, bem como todos os seus amigos – e, mesmo, os inimigos, que sempre o respeitaram. Guido foi um exemplo de ternura – a ternura dos fortes, à qual se referiu o médico-guerrilheiro argentino Ernesto (Che) Guevara. Jamais perdeu o sentimento de afeto e compreensão, dedicado, sobretudo, em sua vida e obra, aos humilhados e ofendidos. Por isso, como bem assinalou Isadora, em discurso nesta mesma Academia, “as suas histórias não nasciam em gabinetes cercados de livros”, mas sim “nas ruas, nos bares”. Em diversos volumes de contos, romances e crônicas, dentre os quais destacamos os títulos Lili Passeata, Ela se chama Joana Felicidade, Quatro estrelas no pijama, O último salão grená e Vila Nova da Rainha Doida, Guido exerceu, com maestria, a condição de “romancista dos deserdados de Deus e do Diabo”, conforme definição de Mário da Silva Brito. “A degradação que, por paradoxo, se aproxima da santidade”, segundo este crítico, é resultado de um trabalho duro e profundamente meditado. Mais do que meditado, vivenciado, pois que Guido jamais foi um burocrata das letras. Em suas páginas ficcionais, como bem observou Cid Seixas, “o universo das criaturas se desenrola como o centro de um sistema solar, a atrair o comprometimento emocional do criador”. É, portanto, em volta desse centro emocional que gravitam seus personagens, uma extensa e profusa multidão de tipos populares, a exemplo do seu tantas vezes referido Moleque Bololó, meio doido, com seu olhar vesgo e sorriso expressivo; a negra Zefa, xodó de garoto, que mesmo indo-se ficou, como bem irremediavelmente perdido; Joana Cacete, que morreu em pleno Carnaval; seu Cocônio, Bilau, Boca Rica, que perdeu o juízo; Vinte-e-um, homem de veneta, dona Rosa, a fogueteira, Martinha, doida mansa; Formiguinha Sabe-Tudo, para quem “mulher da vida não merece atenção”; Capenga, que morreu numa tarde de sol, sem ver concretizado seu maior desejo: ficar bom; Pé na Cova, da Funerária Help, “que enterra a Bahia com a maior delicadeza”, seu Zé Cheira Finado, Mestre Ventura, o Valoroso, Zé Comprido, Pulga 333 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Prenha, Juca Zarolho, Bananinha da Silva, seu Cacetão, Dudu Sorriso Colgate, Lito Ceroula, Lábia de Ouro, Antônio Cururu, Américo PapaDefunto, o senador Vavá Calçola, Tonico Piolho e tantos outros. Em sua incansável peleja de dar jeito pro sem jeito, Guido Guerra trouxe também para suas páginas figuras femininas combativas e transgressoras. Exemplo maior destas foi sua Lili Passeata, personagem complexo e multifacetado, exemplo maior do sonho de liberdade destruído naqueles tempos obscuros da ditadura militar. Outra faceta da sua arte é voltada para o interior do estado: vertente prolífica, que tem como microcosmo do Brasil a cidade fictícia de Mirantes dos Aflitos. Ruy Espinheira Filho refere-se à tradição humanística a que pertence o escritor Guido Guerra. “Tradição”, diz ele, “que está envolta na condição humana, estudando-a, criticando-a, revelando-a, denunciando-a, propondo-lhe novos caminhos, soluções”. E prossegue: “Não é de surpreender que tais artistas, com tais preocupações a tão altas quimeras, sejam perseguidos – perseguidos como fostes, Guido Guerra – pelos que desejam o homem sempre conformista, submisso, explorado, escravizado.” Não falarei mais aqui da arte do autor de Percegonho Céu Azul do Sol Poente, pois que dela já falaram, com bastante propriedade, críticos e escritores, tais como Jorge Amado, Torrieri Guimarães, James Amado, Cid Seixas, Carlos Cunha, Benício Medeiros, Hélio Pólvora, Bruna Becherucci, João Antonio e Mário da Silva Brito. Destacam, em sua prosa, qualidades como a densidade e humanidade, sua força e inventividade, sua linguagem ágil e flexível, sua concisão e imprevisibilidade, sua capacidade de “criar um ritmo que escande a dor da vida e a magia da morte”, sua ironia demolidora e sua ternura. Se podemos ter uma ideia dos interesses de Guido através de seus personagens, outras pistas nos dão as personalidades reais que compunham seu repertório afetivo. Neste caso, a frase “dizem-me com quem anda que direi quem és” se aplica, de forma bastante favorável, ao escritor. Jorge Amado, Raul Sá, Ariovaldo Matos, Carlos Anísio Melhor, Dom Timóteo Amoroso Anastácio, sempre citados por ele, representam o que tivemos de melhor dentre os homens que construíram a nossa história política e cultural no século 20. Homens aos quais podemos usar as mesmas palavras proferidas por Guido, em 334 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 seu discurso de posse, a respeito de Jorge Amado: aqueles que nos enriqueceram humanamente e nos ensinaram a colocar o ser acima do ter, a valorizar a esperança contra o desespero, a alegria contra a dor, o oprimido contra o opressor, a liberdade contra a tirania. Usamos estas mesmas palavras agora, aqui, Guido Guerra, para definir a vossa própria pessoa. Para incluí-lo nesta valorosa estirpe dos homens de caráter, de homens de bem. Vós, que adentrastes a carreira jornalística no momento mais rico da nossa imprensa, no Jornal da Bahia de João Carlos Teixeira Gomes, João Ubaldo Ribeiro, Ariovaldo Matos, Flávio Costa, José Gorender, David Sales, Paulo Gil Soares e Florisvaldo Mattos, entre outros, exercestes, também, em outros órgãos da imprensa, a exemplo de O Estado da Bahia e do Diário de Notícias, a resistência devida aos “caprichos da violência indiscriminada que se estendia das ruas aos cárceres, dos cárceres às salas de tortura à prova de som, de que não se excluíam as tentações dos paus de arara, do choque elétrico, das lavagens cerebrais, dos acidentes engenhosamente montados, dos desaparecidos atirados à vala comum dos cemitérios clandestinos”. Por isto – e por outras “atividades subversivas” mais prosaicas, como a de proferir, pela primeira vez, num programa de TV a palavra “porreta” – respondestes a 17 inquéritos e interpelações do regime militar. Devemos admitir, ao bem da verdade, que éreis, de fato, segundo a definição lapidar de Cid Seixas, um “irreverente guardião dos maus costumes”. * * * Senhoras e senhores, Já me aproximando do final deste discurso, quero realizar, conforme disse nossa querida confreira, a escritora Cleise Mendes, o meu ritual de agradecimento como ato solene de presentificação. Quero ressaltar, antes de tudo, minha profunda gratidão aos meus pais. Ele, Amadeu Alves Ribeiro, primogênito da tradicional família Ribeiro, do município de Conceição de Jacuípe, mais especificamente da localidade de Gameleira, no interior da Bahia. Ela, Maria Mirena, dona Mira, que, nascida na cidade de Pedrinhas, no interior de Sergipe, migrou, nos distantes anos 40 do século passado, para uma Salvador provinciana; uma Salvador na qual, muito diversamente da pressa que hoje nos 335 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 devora os dias, as horas se arrastavam, dolentemente, numa paisagem sépia, como a vejo, agora, retrospectivamente, cortada por bondes preguiçosos que hoje gemem em ruas distantes da memória. Professor de Português e Francês e vice-diretor do Colégio Estadual Governador Lomanto Jr, em Itapuã, meu pai, Amadeu Alves Ribeiro, foi um homem singular, de ideias avançadas para o seu tempo. Tive o privilégio de conviver com ele nos primeiros 14 anos de minha vida, até que o destino o colheu, naquela tarde de sábado de 7 de julho de 1973, num acidente de carro, em Amélia Rodrigues. Sete anos depois, em 1980, minha mãe também partiria, em consequência de uma cirurgia mal sucedida. Despedia-se de nós, prematuramente, aos 55 anos, uma mulher simples e amorosa, sem educação formal, mas excelente doceira, que soube transmitir para os seus filhos valores que soubemos preservar como um tesouro inestimável. Tive, portanto, meus prezados amigos, a felicidade de ter convivido com pessoas especiais – de duas famílias numerosas, cujos pilares, do lado paterno, estão bem representados nas figuras do meu avô Tranquilino e da minha avó Anália. Ele, um sertanejo severo, patriarca de duros gestos e infinita bondade; ela, de doces gestos e inesgotável ternura. E meus tios: Amâncio, que não conheci, Armando, Macedônio, João, Eulálio, Amado, Bela, Teresa, Nelson e América, minha madrinha. E, do lado materno, minhas queridas tias-primas, Rizo, Lurdes, Nicinha, Dalva, Austerclino, Lurdes, sergipana retada, com quem subia a ladeira do Carmo, em manhãs frias dos invernos d’antanho, enfrentando rajadas de vento, como o Capitão Scott em sua jornada para o Polo Sul, até a escola da professora Almerinda – lá, onde aprendi a juntar as primeiras letras deste discurso, que, vejam bem, já havia começado a escrever lá atrás. Sou, portanto, um pequeno afluente desses dois rios, que se encontraram, como mágica, na misteriosa alquimia que une a poderosa força da vida e o amor. Meus pais são os alicerces de um vasto território de afetividades. Nele, ocupam lugar privilegiado meus irmãos Ailton Ribeiro, biólogo, comerciante de peixes e plantas ornamentais, paisagista criativo, foi, desde quando me entendo por gente, meu grande mestre e instrutor. Tina Ribeiro, cantora talentosa, e Amadeu Alves, compositor e agitador cultural, ambos fiéis às nossas raízes, à Itapuã mítica e lendária que nos trazem, das sombras do esquecimento, através de suas canções. 336 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Lugar especial, neste inventário de afetividades, está reservado para a minha mulher, Terezinha Berber, e os meus filhos: Rodrigo, fruto de nossa comunhão física e espiritual, e Felipe, que conheci quando ele tinha apenas sete anos de idade – e que, hoje, aos 27, mostra-se motivo de orgulho e satisfação para mim, que sempre me esforcei para ocupar o vazio deixado pelo seu pai, o fotógrafo Wagner Berber, falecido em 1982. A Terezinha, devo a alegria de uma família, preservada, como um bom poema, com inspiração, mas também com esforço e determinação. A eles somam-se amigos com os quais tive o privilégio de conviver, desde a minha infância: Bira, Antonio e Flávio Silvane, meus grandes companheiros de sempre Raimundo Rocha e Geraldo Alves, Dimas, Aquino, Raimunda, nossa saudosa irmã de criação; Raimunda Pedro, amiga de todas as horas; Ney Sá, companheiro das longas caminhadas pelo interior baiano; Luiz Cláudio Marigo, Xando Pereira, Luís Trinchão e Carlos Rizério. E, em especial, meus amigos-irmãos, companheiros de longas viagens pelos territórios encantados de um sonho: o de construir a paz e a fraternidade universal. A estes, tão numerosos, que tornam impossível citar nomes sem cometer injustiças, mas representados, aqui, na doce e amorosa figura de Maria do Carmo Barreto, agradeço, imensamente, de coração, a honra de compartilhar este momento. * * * Lembro-me, meus amigos, de uma tarde distante do ano de 1975. Eu fazia uma redação, no Colégio Central, quando me veio um pensamento incomum: o de que não tinha mais o que aprender sobre a arte de escrever. Eu tinha 15 anos de idade e cinco mil anos de pretensão. De lá para cá vim encontrando, dia após dia, ano após ano, imensas dificuldades, tremendas limitações neste penoso ofício que me escolheu. Quantas vezes tiveram dificuldade para escrever um simples bilhete! Quanto suei para avançar em duas linhas numa reportagem, num conto, num artigo! Na minha atividade como jornalista ambiental, muitas vezes fui posto à prova na tentativa de expressar experiências e visões que estavam muito além das palavras. Afinal, como transmitir para as pessoas o êxtase proporcionado pela visão de um grande cardume de 337 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 cororocas desenvolvendo um balé subaquático sinuoso e sincronizado? Como descrever a sensação provocada pela observação do caminhar em fila indiana de meia dúzia de lagostas no solo marinho? Que recursos usar para transmitir a beleza majestosa de uma tartaruga verde nadando em direção ao litoral em um dia típico de verão para a postura de centenas de ovos a 70 centímetros do solo em uma noite recheada de estrelas? Aqui evoco imagens que marcaram, para sempre, minha experiência como jornalista: um pôr do sol e uma lua cheia nascendo, simultâneos, numa deserta praia de Jericoacoara dos anos 80; duas arraias gigantes, nadando, abaixo de mim, sobre os corais de Abrolhos; o voo lento e circular de um gavião peneira sobre as serras avermelhadas do Raso da Catarina. Uma ariranha deslizando sobre o tronco de uma samaúma para mergulhar nas águas escuras do lago Mamirauá, no Alto Amazonas. Aqui estão as paisagens grandiosas da Antártida, com suas geleiras, montanhas cinzentas coroadas de neve, catedrais de gelo mesclando verde, azul e branco em combinações fascinantes; icebergs deslizando no mar, focas, pinguins, estações científicas estrangeiras, navios e helicópteros na movimentada rota do fim do mundo. Observem a harpia traçando círculos no céu luminoso deste país que aprendi a amar, e as lamparinas ainda nos trazem, do fundo dos tempos, o cheiro doce do óleo da baleia; e o velho trem sacolejante que corta a noite do sertão – café-com-pão-bolacha-não, café-com-pão-bolacha-não – e ele passa banhado pelo luar, que “como este mió não há”, e que derrama sua luz leitosa sobre as barrancas, caatingas e falésias – e se estende para este salão, para este privilegiado território de afetividades. Sim, são os afetos, nossos insubstituíveis afetos, as tochas que carregamos para atravessar esta precária ponte suspensa sobre o abismo. __________ Discurso de posse, na Cadeira nº 5, proferido pelo escritor e jornalista Carlos Jesus Ribeiro, no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, em 31 de maio de 2007. O novo acadêmico foi recepcionado por Aleilton Fonseca, titular da Cadeira nº 20. 338 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Saudação a Carlos Ribeiro, um escritor exemplar Aleilton Fonseca Caríssimo escritor, amigo e confrade Carlos Jesus Ribeiro: A partir de hoje, a Academia de Letras da Bahia passa a contar com o seu nome na galeria dos eleitos, acrescentando aos seus quadros a seriedade, a inteligência e a cordialidade de um dos mais destacados escritores da nova geração. A praxe acadêmica prescreve que, neste discurso solene, eu o trate por “vós”, flexionando os verbos na segunda pessoa do plural, por cerimônia e formalidade. Entretanto, em se tratando de dois amigos fraternos, que convivem há 28 anos, com o respeito e o apreço de velhos companheiros de rua, peço licença para usar um pronome mais simples e cotidiano. E faço isso em nome desses anos de convivência e diálogo, nos caminhos da literatura, essa arte que nos tornou amigos e irmãos, e agora confrades. Somos amigos desde 1979, quando, mal chegando à casa dos 20 anos, éramos estudantes de graduação na UFBA, em Letras e Comunicação, respectivamente. E nos falamos pela primeira vez num encontro literário, realizado na Biblioteca Central dos Barris. Por uma iniciativa de Adinoel Motta Maia, ali se realizava a primeira reunião dos escritores que iriam criar o Clube da Ficção, naquele mesmo ano. Éramos apenas jovens aspirantes em seus passos iniciais, naquela fase em que assomam os primeiros escritos e, junto com eles, a enorme dúvida em torno da verdadeira condição. Seríamos mesmo escritores? 339 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 O Clube da Ficção foi então fundado e funcionou por um curto, porém fértil, período. Por feliz coincidência ou vaticínio, nós nos reuníamos justamente na Academia de Letras da Bahia, na antiga sede do Terreiro de Jesus. E aqui estamos, 28 anos depois, no seio da Academia, para confirmar nosso convívio, agora como membros desta Casa de escritores e intelectuais. Juntos aos nossos demais confrades e confreiras, vamos continuar nosso trabalho de escritores, em nome dos ideais e dos objetivos da Academia de Letras da Bahia. Senhoras e senhores: Carlos Ribeiro chega ao convívio acadêmico, eleito como candidato único, para ocupar uma cadeira que tem a marca do carisma e do afeto do titular anterior, nosso saudoso confrade Guido Guerra. O próprio escritor e jornalista Guido Guerra, que o tratava por “Carlinhos”, tal o apreço que lhe devotava, considerava que ele devia ser o próximo escolhido desta casa. Quis o destino que isso se cumprisse de forma que Carlos Ribeiro viesse justamente honrar a memória do saudoso amigo, tornado-se o seu sucessor. De fato, são muitos os méritos deste novo acadêmico. Nascido em Salvador, em 19 de agosto de 1958, Carlos Ribeiro é jornalista, ficcionista e professor. Graduado em jornalismo, é professor concursado da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Tem mestrado em Letras e, atualmente, conclui doutorado na UFBA. Carlos Ribeiro já enriqueceu a literatura baiana com seis livros publicados, além de participar de sete antologias e coletâneas. São seis títulos, enumerando uma produção que tem recebido as mais expressivas menções de apreço da crítica especializada, desde a estreia. Eis os seus livros: Já vai Longe o Tempo das Baleias, O Homem e o Labirinto, O Chamado da Noite, O Visitante Noturno, Caçador de Ventos e Melancolias: um estudo da lírica nas crônicas de Rubem Braga, e o mais recente, o romance intitulado Abismo. As antologias e coletâneas de que nosso autor participa são, desde as locais até as nacionais, em número de sete: Oitenta: poesia e prosa; Geração 90: Manuscritos de computador; Chico Buarque do Brasil; Antologia de contos e crônicas de autores baianos contemporâneos; Contos cruéis; Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa, e Antologia panorâmica do conto baiano – século XX. 340 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Como jornalista, são vários artigos publicados em periódicos de alto nível e credibilidade, além dos ensaios e resenhas publicados em revistas e suplementos literários. Fez, durante muitos anos, um excelente trabalho de divulgação científica, chegando a participar de expedições à Antártida, à região amazônica e, ainda, a diversas reservas naturais brasileiras. Como fundador e coeditor é responsável pelos treze números de Iararana – revista de arte, crítica e literatura, editada em Salvador, desde 1998. Contista premiado por esta Academia em 1988, Carlos Ribeiro estreou em 1981, com o livro Já vai longe o tempo das baleias, volume 3 da histórica “Coleção dos Novos”, então editada por Myriam Fraga, com o apoio editorial de Zilah Azevedo, quando era diretor da Fundação Cultural do Estado da Bahia Geraldo Machado. Nos contos do primeiro livro, alguns ambientados na paradisíaca Itapuã dos anos 60, palco da infância do escritor, já desponta o ficcionista de talento, cuja imaginação recobre os enredos com peripécias impressionantes, com uma técnica narrativa que se iria desenvolver e se firmar em contos notáveis e antológicos dos livros posteriores. Carlos Ribeiro é um escritor que se firmou através do conto e do ensaio e já marca forte presença também no romance. Seu nome figura entre os mais significativos da chamada geração 80-90, formada por jovens escritores que se encontram em fase de construção de sua obra e vêm sendo reconhecidos a cada livro que acrescentam ao panorama da literatura contemporânea. Jornalista de grande interesse e visão em torno das questões ambientais, homem que traz em sua formação pessoal mais profunda a natureza pródiga de mar, lagoa, verde e dunas de Itapuã, Carlos Ribeiro traz para a escrita literária a sua experiência visceral, levando seus personagens a confrontarem situações marcadas pelas tensões do mundo urbano e pela consciência dos problemas da natureza em face das transformações impostas pela lógica do mundo moderno. Hoje há um nascente interesse por uma literatura de viés ecológico, como campo a ser estudado e valorizado pelos estudos literários. Este escritor baiano é um nome importante nessa vertente, pois, desde seus primeiros contos, os seus narradores se posicionam em favor da natureza, valorizando seus seres, cores e formas, em ações e discursos contra os processos que a destroem. A velha Itapuã dos anos 60-70 é 341 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 seu paradigma inicial, logo ampliado para as Ilhas da Baía de Todosos-Santos, depois o Raso da Catarina, chegando, enfim, aos grandes cânions gaúchos, onde se desenvolve o enredo do romance Abismo. A literatura de Carlos Ribeiro dialoga de forma equilibrada com os conteúdos da realidade que lhe servem de estímulo e matéria. Como afirmei, num pequeno ensaio crítico, na sua ficção “o real, como ponto de partida e matéria-prima, não se constitui em entrave para a literariedade nem submete o texto a ‘realismos’ descartados. Por outro lado, a ficcionalidade não rapta ninguém para fora do mundo, ao contrário, torna a realidade mais palpável e mais contundente, pondo em alerta as consciências adormecidas pelos barulhos do cotidiano moderno”. O que este escritor busca em sua literatura é acenar com as possibilidades de restaurar, ainda que por um momento, aquela essência humana que às vezes parece perdida, mas que é cada vez mais necessária no cotidiano pesado dos tempos controlados pelo relógio e pelos índices do mercado. Depois do primeiro livro, Carlos Ribeiro, como muitos escritores, cumpriu uma temporada de aprendizagem, formação, leitura, vivências e indagações. Escreveu muitas reportagens ambientais para a prestigiosa Revista Geográfica Internacional e para os jornais, principalmente A Tarde. Viajou à Antártida, de onde escreveu artigos e produziu conhecimentos que depois propagou através de palestras; realizou diversas incursões pelo país, chegando até os ermos da Ilha de Marajó. Fez longas caminhadas por lazer, cultura e por necessidade existencial. O homem Carlos Ribeiro amadureceu. Viajado por cidades e paisagens; intrinsecamente urbano e profundamente embebido de natureza; eis que volta a publicar ficção em 1995, com a coletânea de contos, significativamente intitulada O homem e o labirinto. São contos em que convivem elementos do fantástico, a angústia da solidão urbana, a desumanização da vida moderna – paredes sem teto, que configuram o tecido urbano como um labirinto, em que o minotauro é invisível e onipresente, porque fascina, captura e devora a todos. São 31 textos que deslizam entre ficção e poesia, como uma prosa existencial, filosófica, poética – e ao mesmo tempo de uma clareza e simplicidade exemplares. Em 1997, essas questões reaparecem de maneira ainda mais vertical no romance O chamado da noite, publicado pela editora 7Letras, do Rio 342 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 de Janeiro. Nessa trama, marcada pelo fluxo da consciência de um narrador solitário, encravado numa noite insone, uma consciência perquire os sentidos das experiências vividas. As peripécias do cotidiano e da vida afetiva compõem um narrador autorreferenciado, que, de certa forma, revela uma imagem dos jovens dos anos 80, que sofreram os limites e a repressão impostos pela ditadura militar, vivenciaram os movimentos estudantis e buscaram se situar afetivamente em face da liberação da mulher e da superação de antigos valores, com a necessidade de se definirem um novo homem e uma nova mulher, numa era de maior liberalidade. Em O visitante noturno, uma coletânea de 21 contos, os narradores e personagens imergem no mundo da imaginação, do fantástico e, às vezes, do terror, vivendo situações entre o real e o nonsense, todos eles flutuando nas águas da condição do ser e estar no mundo, entregues aos perigos reais e imaginários que a todos rondam, assustam e ameaçam. Mais uma vez, Carlos Ribeiro se mostra atento às transformações do mundo contemporâneo, com profunda percepção crítica e domínio das tramas urdidas com técnica e talento singular. A realidade urbana em processo é a matéria-prima do ficcionista. Mas como afirmei, num pequeno estudo sobre esse livro “ele não se contenta com a simples transposição do real para a ficção. Recolhe as sugestões da realidade imediata e quebra sua lógica para expandir os sentidos ficcionais através da abordagem, dos diálogos e da linguagem. A feição e a atmosfera de seus contos se definem pelo ponto de vista do narrador, às vezes participante ativo, às vezes observador dos fatos. A forma de conduzir a história determina o tratamento temático e se torna fundamental para o leitor compreender as intenções e os efeitos dos enredos.” Carlos Ribeiro usa bem sua imaginação de ficcionista criativo e fecundo. Em sua prosa encontramos sempre o diálogo entre a vida e a realidade, numa busca de sentidos pessoais, transcendentes e universais. Suas indagações e perplexidades não se tecem somente em cima de fatos e aspectos objetivos da realidade, mas também se aprofundam no questionamento da vida, em busca das imagens de uma existência possível, apesar das amarras e limites do mundo real. Em 2001, veio a lume o livro Caçador de ventos e melancolias: um estudo da lírica nas crônicas de Rubem Braga, resultado da dissertação de 343 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 mestrado defendida na UFBA. Tivemos assim a oportunidade e o prazer de apreciar o ensaísta Carlos Ribeiro, em toda a sua força de análise e de percepção crítica. Com tirocínio de leitor, aparato teórico de estudioso e estilo de escritor, ele faz uma consistente apreciação da crônica como gênero na modernidade e explica brilhantemente os fundamentos líricos da obra do grande cronista brasileiro Rubem Braga. Finalmente, em 2004, a Editora Geração Editorial lançou o romance Abismo, no qual se descortina a saga de um jornalista em busca de um objeto sagrado, na região dos Aparados da Serra, no Rio Grande do Sul. Trata-se de uma empreitada que, muito além da aventura de uma viagem ao fundo de um cânion, é uma incursão no próprio ser, numa demanda existencial para encontrar o sentido fundamental da vida; aí simbolizado pela busca do “santo graal”. Uma jornada de aprendizagem, de superação do ceticismo, do convencimento filosófico, do crescimento intelectual. Uma ficção que se inscreve na simbologia das viagens e das travessias, quando, muitas vezes, o narrador encontra a si mesmo do outro lado, agora enriquecido com a experiência da própria busca. O sentido da vida, no fim da caminhada, é o abismo, o próprio abismo de viver. Assim é este escritor, este jornalista, este pesquisador, este professor. Um homem simples, de um falar manso e compreensivo, capaz de ouvir calmamente as certezas do interlocutor, para, numa frase quase solta e aparentemente despretenciosa, fazer com que ele enxergue o outro lado de suas verdades, as outras faces das circunstâncias, as outras versões de cada momento que se vive. A par de tudo isso, Carlos Ribeiro é um mestre. Um jovem mestre da vida e dos saberes simples da convivência e da natureza. Como tal, é reconhecido pelos seus irmãos de filosofia de vida, marcados pela força da União e da Solidariedade. Eis aqui um homem exemplar, que emprega a sua experiência e sua jovem sabedoria para não apenas enfrentar as dificuldades e vicissitudes que a vida a ele, como a nós todos, impõe, mas sobretudo para, com desprendimento e afeto, ajudar pessoas, com uma palavra de incentivo, com a escuta empenhada, com um conselho solidário. Caríssimo Carlos Ribeiro, sua presença nesta Casa nos honra e nos alegra, pois nos enriquece com a sua obra, o seu exemplo e sua juventude. Você vem se somar aos nossos diletos confrades e confreiras, 344 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 todos conscientes de que as tradições permanecem vivas quando se deixam animar pelo dinamismo e pela renovação. Na Academia, cada nova posse cumpre um ritual que imortaliza os nossos antecessores e aponta para os nossos futuros sucessores. Todos sabemos que a imortalidade consiste não só em preservar a memória e a tradição, mas também em alimentar o processo de renovação dos ideais e dos compromissos. Toda instituição precisa cumprir essa meta para se manter viva, atuante, produtiva e atualizada com a sociedade de seu tempo. Uma Academia de Letras, conquanto devota da tradição de suas origens, não se pode furtar às evidências do tempo. E é pela vontade e pelos esforços de seus membros, desde os mais experientes até os neófitos, que ela se mantém dinâmica, produtiva, atenta às demandas culturais da sociedade em sua volta. Ela será sábia se souber atualizar sua pauta, seus objetivos e seus procedimentos, para sustentar o elo entre tradição e renovação, estimulando o diálogo entre as diferentes gerações, contribuindo efetivamente para a criação e a circulação dos bens culturais, sobretudo a nossa literatura. Você agora faz parte desse propósito e desse ideal. Carlos Ribeiro, você recebe este colar acadêmico em reconhecimento aos méritos de escritor, jornalista e professor. E este ato é, antes de tudo, uma convocação. A Academia o convoca porque precisa de sua presença dinâmica e construtiva para, somando méritos e esforços com os demais membros que ora o recebem calorosamente, contribuir para elevarmos ainda mais a nossas tradições culturais, trabalhando com entusiasmo e dedicação pela valorização das letras baianas. Caríssimo confrade Carlos Ribeiro, seja bem-vindo a nossa convivência fraterna e produtiva. A Academia de Letras da Bahia é também sua Casa. Tome assento entre seus iguais, e trabalhe conosco, pelo engrandecimento da nossa cultura e das nossas letras. ________ Discurso de saudação ao acadêmico Carlos Ribeiro, proferido na solenidade de posse, no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, em 31 de maio de 2007, por Aleilton Fonseca, titular da Cadeira nº 20 da ALB. 345 R EVISTA DA 346 A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Discurso de posse na Cadeira nº 37 da ALB Dom Emanuel d’Able do Amaral, OSB Sinto-me honrado por ter sido eleito para essa distinta Academia de Letras da Bahia. Depois de quase quinze anos vivendo em Salvador, posso compreender o que significa para a Bahia esta casa de Arlindo Fragoso. Permitam-me, nesse instante, fazer uma breve recapitulação histórica, que em muito pode nos ajudar a entender o que celebramos por meio desse ato: a palavra Academia designava o jardim de Academo, herói ateniense, às margens do rio Cefiso, perto de Atenas, no qual Platão ensinava Filosofia. Em Paris surgiu, em 1570, a “Academia do Palácio”, como a primeira academia da história dos tempos modernos, com a intenção de cuidar do idioma e da literatura. No século XVI, entre os anos 1582 e 1583, foi fundada, na Itália, a Accademia della Crusca por cinco literatos florentinos. Eles reuniam-se com a intenção de proteger a língua italiana. Esses literatos tinham a intenção de purificar a língua italiana, isto é, fazer uma revisão do seu vocabulário. Na França, em 1635, foi fundada, pelo Cardeal Richelieu, sob o reinado de Luis XIII, A Academia Francesa, com duas finalidades: para o cultivo da língua, sobretudo para definição do vocabulário, e para o cultivo da literatura. Nessa ocasião, Richelieu escolheu quarenta intelectuais, que passaram a se reunir ordinariamente. A Academia Francesa era, na verdade, uma continuação da Academia do Palácio. Embora haja, numa poesia de Gregório de Matos, o Boca do Inferno, referência a uma Academia que existira na Bahia, no final do século 347 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 XVII, historicamente documentada outra surgiu em Salvador 89 anos após a fundação da Academia Francesa, no dia 7 de março de 1724, por iniciativa de Dom Vasco Fernandes Telles de Menezes, Conde de Sabugosa e 39º Governador da Bahia, que passou a se chamar Academia Brasílica dos Esquecidos. No Rio de Janeiro fundaram, por sua vez, a Academia dos Felizes, em 1736. Em Salvador fundaram, ainda, a Academia Brasílica dos Renascidos, revivendo a dos Esquecidos, de vida breve, em 1759. Finalmente vimos nascer a Academia de Letras da Bahia, fundada por Arlindo Fragoso, em 7 de março de 1917, que, na ocasião, cercou-se de vultos notáveis, a citar: Teodoro Sampaio, Ernesto Carneiro Ribeiro, Pirajá da Silva, Xavier Marques, Braz do Amaral, Carlos Chiacchio, Arthur de Salles, Gonçalo Muniz, Simões Filho, Prado Valladares, Octavio Mangabeira, Oscar Freire, Virgílio de Lemos, Afrânio Peixoto, João Américo Garcez Fróes, Filinto Bastos, Moniz Sodré, Miguel Calmon, Pinto de Carvalho, José Joaquim Seabra, Severino Vieira, Carlos Ribeiro, Aloysio de Carvalho (Lulu Parola), Campos França, Egas Muniz (Pethion de Villar), Torquato Bahia, Clementino Fraga, Almachio Diniz e Ruy Barbosa. Neste momento em que tomo posse na Cadeira nº 37, cujo patrono é João Batista de Castro Rebelo Júnior, que teve como fundador Almachio Diniz Gonçalves e como titulares Edith Mendes da Gama e Abreu e Antônio Carlos Magalhães, quero agradecer aos meus familiares que partilharam comigo a alegre convivência, até a minha entrada na Ordem de São Bento, com vinte anos de idade. De uma forma toda especial quero homenagear minha querida mãe, Catarina Lúcia d’Able do Amaral, falecida em 10 de setembro de 2008. Tendo perdido meu pai aos 11 anos, minha mãe foi quem zelou por minha formação humana e intelectual. Desde criança me introduziu no mundo do estudo e da cultura. Pude ter uma boa formação graças ao seu interesse e empenho, procurando matricular-me em excelentes colégios e adquirindo bons livros para minha leitura, na adolescência. Minha mãe trazia consigo a tradição do nordeste. Minha avó materna era natural de União dos Palmares, no Estado de Alagoas, e meu avô era de uma família de imigrantes franceses que chegaram em Recife no século XIX. No início do século XX meu bisavô Pedro Cardozo Toste d’Able, médico e escritor, publicou, em 1902, o livro A peste bubônica 348 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 desmascarada em Pernambuco. Minha mãe, por sua vez, estudou no internato da Academia Santa Gertrudes, das Irmãs Beneditinas de Tutzing, em Olinda, recebendo, através das religiosas alemãs, uma excelente formação, que a marcou por toda a vida. Seus vastos conhecimentos são fruto de um ensino de qualidade, que ela soube transmitir oportunamente aos seus filhos. Tendo nascido no bairro carioca de Santa Teresa, vivi minha infância ali e na cidade de Vassouras, cidade antiga dos barões, no Vale do Café. Minha adolescência, desenvolvida na cidade de Engenheiro Paulo de Frontin, também no Vale do Café, a oitenta quilômetros do Rio de Janeiro. Pude assim ter a experiência de duas realidades: o velho bairro de Santa Teresa, com suas construções antigas e seus inconfundíveis intelectuais e artistas, e, também, o Vale do Café, com suas belas fazendas, que ainda revelavam, embora decadentes, a grandeza de uma época. Recebi dois grandes presentes na minha adolescência: a graça de estudar no Colégio Marista São José das Paineiras, em Mendes, no Estado do Rio de Janeiro, e conhecer o monge historiador Dom Clemente Maria da Silva Nigra, que pertencia ao Mosteiro de São Bento da Bahia. Minha mãe, preocupada com minha formação, matriculoume como semi-interno no colégio dos irmãos maristas. No princípio achei estranho, mas, com o tempo, percebi o que aquilo significava e qual era a sua verdadeira intenção. Foi nesse colégio que entrei em contato pela primeira vez com a literatura brasileira. Tínhamos excelentes mestres, que eram os irmãos maristas. Alguns estavam na meia-idade e outros já eram idosos. Eram homens de grande cultura. A Sociedade de Maria, por muitos conhecida como Maristas, foi fundada na França, em 1817, por São Marcelino José Bento Champagnat. Ele iniciou essa congregação religiosa para educação da juventude, e seus membros, não sendo sacerdotes, dedicavam-se integralmente à educação. Conservo boas lembranças desse período. Recordo-me que, pela primeira vez em minha vida, tive nas mãos a Antologia da Língua Portuguesa de Domingos Pascoal Segalla. Nunca esqueci o aspecto físico desse livro. Era, na verdade, o nosso livro de cabeceira. Estudávamos não somente a língua portuguesa, mas os principais escritores brasileiros. Éramos obrigados a apresentar, aos sábados, trabalhos representativos: em geral, declamar uma poesia. Tínhamos que ler e 349 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 fazer o fichamento de um livro por mês, e a cada semestre havia uma reunião literária com todos os alunos do colégio. Cada estudante tinha que apresentar algo que demonstrasse um verdadeiro empenho pessoal. Lembro-me que fui incentivado pelo nosso professor de Português, Irmão Batista Santos, a declamar o poema José, de Carlos Drummond de Andrade. Minha mãe, querendo aprimorar ainda mais minha formação, trazia novos livros da capital do Estado. Recordo-me que li, com muito interesse, Barro Branco, de José Mauro de Vasconcelos. Tínhamos o costume, em família, de comprar e ler diariamente o jornal. O ambiente familiar e o escolar favoreceram para que eu me transformasse num verdadeiro leitor. Em maio de 1973, com quinze anos, conheci o monge historiador da arte Dom Clemente Maria da Silva Nigra. Conheci-o por acaso, quando fui à Paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Sacra Família do Tinguá, segundo distrito de Engenheiro Paulo de Frontin. Dom Clemente havia chegado de Salvador em dezembro de 1972, com sessenta e nove anos. Reconheço que foi um presente para mim ter partilhado da vida desse monge erudito durante quase cinco anos. Pude receber muitas informações de Teologia, História Geral e História da Arte. Conversávamos, na verdade, sobre vários assuntos. Dele aprendi o real significado da vida monástica e o amor pela arte. Hoje Dom Clemente Maria está sepultado no pequenino cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Sacra Família, na Serra do Tinguá, região antiga do Estado do Rio, onde ainda se encontra o traçado da Estrada Imperial e uma das mais antigas paróquias do Estado. Quando foi fundada, há alguns anos atrás, a Academia de Ciências, Letras e Artes de Engenheiro Paulo de Frontin, os intelectuais dessa novel Academia, conhecendo o grande valor de Dom Clemente, como intelectual e escritor, o homenagearam, colocando-o como patrono da cadeira 28. Mantive com ele uma verdadeira amizade. Celebrei minha primeira missa nessa paróquia e estive presente no seu funeral, que ocorreu a 30 de julho de 1987. Com certeza foi uma das melhores pessoas que conheci. 350 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Homem de grande cultura e de profunda bondade. Também, através dos seus ensinamentos e dos livros que dele recebi, pude me mover por alguns caminhos da História e pude compreender a importância da História da Arte no Brasil. Além destes dois presentes, já citados, posso afirmar que de 1973 até 30 de janeiro de 1978, dia em que entrei para o Mosteiro de São Bento de São Paulo, vivi um tempo que hoje considero especial da fase de adolescência. Venho de uma geração que viveu o período conhecido como “milagre brasileiro”, da década de setenta. Era criança quando aconteceu a Revolução de 1964. Tinha apenas seis anos. Não me recordo nem do Concílio Vaticano II, nem do Papa João XXIII. Lembro-me que, ainda como criança, vi aqueles antigos automóveis negros ou azuis, que tinham o motor acionado por uma manivela. Lembro-me, ainda, de ver o leiteiro fazendo entrega no bairro do Grajaú, na zona norte do Rio, com uma carroça puxada a cavalo. Porém, na década de setenta tudo mudou. Como morava perto do Rio de Janeiro, sempre ia para lá e sempre fazia férias aí, no bairro de Santa Teresa, no Hotel Santa Teresa, propriedade de minha família, assim como bairro do Flamengo. Desse período, de lembranças tão melancólicas, recordo-me de três pessoas ligadas à literatura, no Rio de Janeiro: o mineiro Carlos Dr umond de Andrade, a cearense Raquel de Queiroz e o pernambucano Austregésilo de Ataíde. Carlos Drummond de Andrade conquistou os cariocas com sua poesia. Era para o Rio de Janeiro o que foi Jorge Amado para a Bahia. Raquel de Queiroz também havia conquistado um grande nome na literatura, e todos os jovens a admiravam. Eu li O Quinze, e aquelas páginas vibrantes me fascinaram. Por outro lado, Austregésilo de Ataíde chamava a atenção por sua atuação como presidente da Academia Brasileira de Letras, pela presença constante na imprensa e pela permanência de mais de três décadas à frente da Academia-Mãe do Brasil. Afastando-me um pouco das reminiscências do passado juvenil, quero, neste momento, agradecer aos meus confrades beneditinos que me receberam na Ordem de São Bento, através do Abade Dom Joaquim de Arruda Zamith OSB, na Congregação Beneditina do Brasil, em 1978, porque muito contribuíram com minha formação intelectual. Nossa Ordem, fundada por São Bento no século VI (480-547), na 351 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Itália, muito contribuiu para a cultura humanística e para a difusão do pensamento cristão. Naquele mosteiro paulistano recebi formação básica para a vida monástica e estudei o biênio filosófico. De lá saí em 1981, para a fundação da Abadia da Ressurreição, em Ponta Grossa, no Estado do Paraná, onde estudei o quatriênio teológico, fazendo os votos monásticos solenes em 1984 e sendo ordenado sacerdote em 1985, na cidade de Engenheiro Paulo de Frontin, me tornando o primeiro sacerdote ordenado naquela paróquia. Fui enviado a Roma para fazer mestrado no curso de Teologia Bíblica no ano de 1987, na Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Gregoriana, da Companhia de Jesus, em Roma, excelente Universidade dos jesuítas. Foram anos felizes e que marcaram profundamente minha formação. A convivência com monges de diversas nações no nosso Colégio Santo Anselmo, na colina do Aventino, o estudo em uma grande Universidade como a Gregoriana e o contato com tantas obras de arte me levaram a ter outra visão mais ampla da vida e do próprio ser humano. Voltei de Roma em 1987. Fui preparado nessa Universidade para ser professor de Sagrada Escritura. A Gregoriana sempre preparou professores-pesquisadores. Tive a oportunidade de ter excelentes mestres, alguns já idosos, que eram considerados os melhores teólogos da nossa Igreja naquele período. Alguns foram, inclusive, teólogos no Concílio Vaticano II. Lecionei Sagrada Escritura durante cinco anos no Instituto de Filosofia e Teologia “Mater Ecclesiae”, na Diocese de Ponta Grossa. Em 1992, passei dois meses no Mosteiro de São Bento da Bahia, dando um curso de formação para o noviciado e colaborando no atendimento pastoral, na Basílica. Minha vida mudou totalmente quando fui eleito, dois anos depois, para abade da Bahia, em 22 de junho de 1994. Cheguei a Salvador na véspera da festa de São João Batista. Manifesto neste momento a minha gratidão aos monges dessa querida Arquiabadia de São Sebastião, que, sem me conhecerem muito, delegaram Dom Gregório Paixão para entrar em contato comigo, comunicando que tinham a intenção de me eleger para abade dessa comunidade. Foi também para mim uma grande honra ser eleito abade do mosteiro mais antigo do Novo Mundo, fundado em 1582. Ele foi 352 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 elevado à categoria de abadia em 1584, tornando-se “Arquicenóbio do Brasil” em 1596, quando suas duas fundações, Olinda e Rio de Janeiro, foram elevadas à categoria de Abadias. Desde o início, o Mosteiro de São Bento procurou cumprir sua tríplice missão, pedida pelos primeiros colonizadores do solo baiano: a administração dos sacramentos e a pregação do Evangelho na igreja de São Sebastião, a evangelização dos indígenas e o ensino às crianças e aos adolescentes da língua portuguesa, do latim e do canto. Estamos em Salvador, portanto, desde 1582. Nosso Mosteiro de São Bento foi fundado quando era rei de Espanha Filipe III, pois, naquele período, Portugal estava sob a coroa espanhola. Em 1624, os monges tiveram que fugir da abadia, pois o mosteiro foi invadido pelos holandeses, que o transformaram em quartel general, por causa de sua localização estratégica. Gabriel Soares, referindo-se ao Mosteiro de São Bento e à sua imponente construção, dominando a vista da Baía de Todos-os-Santos, chamava-o de “Castelo de São Bento”. Após a expulsão dos holandeses do mosteiro, os monges retornaram e continuaram com sua missão nessa cidade. Uma das primeiras providências foi elaborar o plano para a construção do novo mosteiro e a organização da biblioteca, pois os holandeses haviam destruído tudo o que pudesse atender pelo nome católico. Os monges em fuga levaram consigo o que puderam da antiga biblioteca, legando aos pósteros um dos maiores acervos de livros raros do país. Por isso, a biblioteca do Arquicenóbio da Bahia é considerada a segunda do país em obras raras. O livro mais antigo é datado de 1503. Desde o início da fundação, monges portugueses e espanhóis trouxeram livros do continente europeu. Contamos hoje com cerca de treze mil livros, escritos entre os séculos XVI e XIX. Possuindo a biblioteca cerca de 300.000 volumes, entre livros e periódicos. A biblioteca do Mosteiro reflete, portanto, o desejo de conhecimento que sempre foi marca indelével dos beneditinos. Nossa casa deu à sociedade, ao longo dos séculos, muitos intelectuais, que se destacaram e contribuíram para o desenvolvimento da cultura brasileira, seja como escritores, seja como pregadores. Nos séculos passados, quando Portugal ainda dominava o Brasil, muitos jovens das principais famílias de Salvador e do Recôncavo 353 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 entraram na Ordem e foram enviados para estudar na Universidade de Coimbra. Também nosso Mosteiro reuniu jovens monges de todo o Brasil, dando-lhes excelente formação monástica e acadêmica. Nos últimos anos, participei, como jovem abade, do Plano de Revitalização do Mosteiro de São Bento, iniciado em 1994. Chegando a Salvador com trinta e seis anos, pude tomar conhecimento desse Plano, que não era somente de restauração de paredes, mas de restauração das identidades históricas e culturais do Mosteiro. Encontrei dois grandes entusiastas desse projeto: Dom Gregório Paixão, monge da nossa comunidade e hoje bispo Titular de Fico e Auxiliar de Salvador, e o querido amigo de sempre, Dr. Norberto Odebrecht. Conheci também o incentivador desse plano no primeiro semestre de 1994, o senador Antônio Carlos Magalhães, assim como os governadores que se sucederam e que mantiveram a mesma orientação de apoio ao Plano de Revitalização: Dr. Antônio Imbassahy e Dr. Paulo Souto. Além da restauração da Basílica Arquiabacial de São Sebastião, inauguramos o novo Colégio de São Bento, o Museu São Bento e a Biblioteca, que foi aberta à comunidade universitária e aos pesquisadores do Brasil e do Mundo. Inauguramos também o Laboratório de Restauração de Livros Raros. Implantamos, ainda, o Memorial Diógenes Rebouças, a Sala de Exposições Frei Agostinho da Piedade e a Faculdade São Bento. Minha vinda para Salvador também foi, para mim, um presente de Deus. Aqui reencontrei muitos valores de minha infância e de minha juventude. Nós cariocas sempre admiramos a Bahia. Hoje, após quase quinze anos, posso afirmar que sou um verdadeiro baiano, não somente porque recebi o título honorífico de cidadão baiano, por proposta da ex-prefeita e hoje Deputada Federal Lídice da Mata, mas também porque passei a amar as pessoas deste Estado, sua história e suas manifestações culturais. Vindo para Salvador me reencontrei com a antiga cultura do nosso país, o chamado Brasil brasileiro, que é a fusão das três culturas: indígena, lusitana e africana. Quando criança e adolescente, vivendo no Rio de Janeiro e no interior do Estado, sobretudo no Vale do Café, vivi uma realidade cultural muito semelhante à que encontramos em Salvador e no Recôncavo. 354 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Em nenhum momento me senti estranho em Salvador. A cultura brasileira deve muito à Bahia, e ao Nordeste como um todo. Nós sabemos que a cultura brasileira nasceu no Nordeste, e do Nordeste passou ao Rio de Janeiro, e daí chegou a São Paulo e ao Sul do país. Os primeiros historiadores, como o ilustre Frei Vicente do Salvador, e poetas como Gregório de Matos, Junqueira Freire, o poeta monge, Castro Alves e o jurista Rui Barbosa foram baianos e o orgulho da boa terra. Pois bem, nesta noite festiva quero agradecer, de forma toda especial, aos imortais desta Academia de Letras da Bahia que me elegeram para a Cadeira nº 37 que teve como último titular o Senador Antônio Carlos Magalhães. Desde que cheguei a Salvador conheci alguns acadêmicos, com os quais sempre mantive contato. Aos poucos fui conhecendo as atividades desta Academia, participando de alguns eventos, como posses de imortais e também por meio da imprensa. Percebi logo de início o papel importante que esta exerce no cultivo da língua portuguesa e da literatura e cultura baianas. Por isso mesmo, passei a admirar a Academia de Letras da Bahia, assim como os seus acadêmicos. Aos poucos fui conhecendo outros imortais e foi aumentando ainda mais a minha admiração e o meu respeito por esses homens e por essas mulheres, incansáveis no cultivo das letras no Estado da Bahia. Infelizmente, não pude conhecer todos os imortais, seja por falta de oportunidade, seja até mesmo por motivo da enfermidade de alguns. Li, nos últimos meses, atentamente, o Breviário da Academia de Letras da Bahia, escrito pelo acadêmico Renato Berbert de Castro, e pude confirmar tudo aquilo que já imaginava: na sua diversidade, a Academia de Letras da Bahia conseguiu reunir várias tendências e temperamentos, seguindo a sua vocação inicial. Com certeza, se vivo estivesse, Arlindo Fragoso estaria muito contente com sua Academia e com os seus acadêmicos. Seguindo a genuína tradição da Academia Francesa, as Academias de Letras no Brasil escolheram como acadêmicos não somente escritores, mas expoentes dos diversos campos do saber ou da atividade cultural. Por isso mesmo, é comum nessas Academias encontrarmos eclesiásticos, políticos, militares, médicos, dentre outros. Embora o próprio Machado de Assis tenha dado um acento maior à escolha de escritores, a própria Academia Brasileira de Letras, que muitas vezes é 355 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 chamada de Academia Brasileira, seguiu a tradição da Academia Francesa. A nossa Academia de Letras da Bahia tem grandes desafios à frente. Ela é necessária para transmitir às novas gerações o cultivo da língua e da literatura nacionais, a preservação da memória cultural baiana e o estímulo às manifestações das artes e das ciências. Por isso, deve ser abraçada por toda a comunidade baiana, sobretudo por seus governantes e legisladores. Assim pensando, e no desejo de manter a tradição desta casa, quero homenagear o patrono da Cadeira nº 37, João Batista de Castro Rebelo Júnior, o fundador da cadeira Almachio Diniz Gonçalves, e os meus predecessores, Edith Mendes de Gama e Abreu e o senador Antônio Carlos Magalhães. João Batista de Castro Rebelo Júnior foi jornalista, político, embora tenha se destacado como poeta. Nasceu em Salvador, em 25 de novembro de 1853, filho do capitão João Batista de Castro Rebelo e D. Carlota Macedo de Castro Rebelo. Dentre seus sete irmãos destacaram-se Frederico de Castro Rebelo, fundador da cadeira número 27 desta Academia, médico notável e professor insigne da Faculdade de Medicina; e, ainda, Afonso de Castro Rebelo, fundador da cadeira 36, mestre também de outra doutíssima escola, a de Direito. Orador primoroso, quer como parlamentar quer como acadêmico, pois honrou sua passagem quer pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, quer nesta Academia de Letras. Castro Rebelo Júnior fez seus primeiros estudos na cidade do Salvador, indo mais tarde estudar na Faculdade de Direito de Pernambuco, na qual se diplomou em 1875. Homem de grande potencial literário, fundou, em 1896, o diário A Bahia, com os sócios Xavier Marques, Sá de Oliveira e Virgílio Lemos, a quem se associaram mais tarde Metódio Coelho e Odilon Santos. Entrou para o parlamento estadual e atingiu o posto de Secretário de Estado, no governo de Machado Portela. Sempre foi competente e refulgente nas suas atividades políticas e jornalísticas, porém nada pode superar sua vocação poética. Deixou-nos poemas que o imortalizaram: Poemas do Lar, Pseudo Realismo, Livro de Um Anjo, Ardentias e Loiros e Mirtos. Em 26 de novembro de 1953, Castro Rebelo foi homenageado na passagem de seu centenário pela acadêmica Edith Mendes da Gama e Abreu, que naquele noite citou diversas poesias do homenageado, encerrando a homenagem com algumas estrofes de Num Album: 356 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Pois tu que tens na vida essas manhãs doiradas Um sol de primavera, a luz de um paraíso... Edênico rosal que abelhas encantadas Exploram para encher-te os favos do sorriso... Tu que da infância ainda os matinais caminhos Vais prosseguindo alegre, e à sombra de folhagens Onde armam colibris aveludados ninhos, [...] Não queiras versos meus, são lágrimas ardentes, Podem crestar-te na alma as flores da esperança Não queiras enublar os dias inocentes Do virgem coração. Rasga-os, feliz criança”. E com o célebre soneto “Orientalis Visio”: Dessas ilhas em flor dos gregos mares, Do céu radiante e fúlgidas areias, Onde o incenso dos mortos e dos luares Se transformam no canto das sereias... De Cós, de Paros, de uma dessas ilhas, Edênicas regiões de humanas fadas, Onde da natureza as maravilhas têm a feição das coisas encantadas Talvez do ninho da mimosa Haydéa Cujo idílio de amor embala a idéia Deste mundo num sonho cambiante... Foi que ela veio um dia às nossas plagas, De manso abrindo o seio azul das vagas, Num bergatim de nácar do Levante. Faleceu Castro Rebelo Júnior a 20 de abril de 1912. O fundador da Cadeira, Almachio Diniz Gonçalves, nasceu em Salvador, na Bahia, em 7 de maio de 1880, e faleceu no Rio de Janeiro, 357 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 em 2 de maio de 1937. Com apenas quatorze anos ingressou na primeira série do curso jurídico social e diplomou-se no dia 16 de dezembro de 1899. Dedicou sua vida ao estudo da Filosofia do Direito. Foi um dos primeiros professores da Faculdade de Direito da Bahia. Almachio Diniz é conhecido como advogado, jornalista, catedrático de Direito Civil e de Filosofia do Direito. Foi também romancista, contista, teatrólogo, ensaísta e crítico literário, além de autor de vasta obra jurídica, destacando-se Filosofia do Direito: gênese hereditária do Direito, 1903; Ensaios Filosóficos sobre o mecanismo do Direito, 1906; Questões atuais de Filosofia e Direito, 1911; Curso de Filosofia elementar, 1912; O ensino do Direito na Bahia, de 1928, e Sociologia soviética, de 1934. Esse ilustre acadêmico teve sua carreira intelectual interrompida por morte, aos 57 anos! Era um grande admirador do escritor Coelho Neto. Pertenceu também à Academia Carioca de Letras. A segunda titular da Cadeira nº 37 foi Edith Mendes da Gama e Abreu. Nasceu em 13 de outubro de 1903 em Feira de Santana, neste Estado, e faleceu em Salvador em 20 de janeiro de 1982. Na infância e na adolescência, estudou com preceptores em sua própria casa, como era costume entre as famílias abastadas. Estudou no Colégio Nossa Senhora de Lourdes e na Escola Complementar, da professora Estefânia Mena. Em Salvador, cursou o pedagógico no Educandário dos Perdões. Estudou no Rio de Janeiro, na Bahia e na Europa, especializando-se em Filosofia, Literatura Geral, sobretudo a Brasileira e a Francesa, Ciências Sociais e canto. Teve a oportunidade de ter uma boa formação, sendo mulher de rara cultura. Tocava piano, cantava e falava fluentemente o idioma francês. Visitou diversos países da Europa, com real interesse por catedrais, museus, castelos, teatros e universidades. A imortal Edith Mendes da Gama e Abreu trabalhou intensamente pela emancipação da mulher e foi das que mais atuaram na luta pelo voto feminino no Estado da Bahia. Foi presidente vitalícia da Federação Baiana pelo Progresso Feminino, fundado a 9 de abril de 1931. Ao lado de Bertha Lutz, entregou-se à causa feminista, atuando contra as restrições ao voto feminino no anteprojeto do Código Eleitoral e contra o projeto de lei que vinculava o cargo público à mulher que possuísse, como o homem, a indispensável carteira de reservista. Foi candidata a deputada federal em 1934, sob a legenda “A Bahia ainda é a Bahia”, obtendo mais de dez mil votos e ficando como 358 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 suplente. A sua atuação intensa na vida literária e política a levou a candidatar-se a uma cadeira desta Academia. Assim como teve que lutar pela participação das mulheres na sociedade, também sua entrada para essa Academia gerou desconforto entre alguns acadêmicos, pois não queriam mulheres como imortais. Entretanto, foi eleita a 8 de agosto de 1938, tomando posse no dia 9 de novembro do mesmo ano, no salão nobre da Faculdade de Medicina, sendo saudada pelo acadêmico Carlos Gonçalves Fernandes Ribeiro. Literariamente, Edith Mendes da Gama e Abreu foi uma ensaísta renomada, principalmente por seus esclarecedores discursos. Dos seus livros, apenas um, A Cigana, é romance. Os demais: Problemas do Coração (1933), O Romance (1958) e O Que a Vida Me Tem Dito (1980), são ensaios de natureza evocativa, moral e histórica. Em 1946 foi candidata a deputada estadual e lutou pela solução de problemas de saúde pública, da educação popular, da fome, bem como dos incentivos ao trabalhador. Fez parte também dos quadros do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, onde ocupou os cargos de vice-presidente e oradora oficial. Esteve na presidência do Instituto durante nove meses, de 31 de março a 31 de dezembro de 1969, completando o mandato do seu antecessor, o professor Francisco Peixoto de Magalhães Neto, por ser a primeira vice-presidente. Dedicou toda a sua vida à educação e se aposentou como Inspetora do Ensino Secundário do Ministério da Educação e Cultura, junto aos ginásios da capital. Foi como professora catedrática e fundadora da Faculdade de Filosofia da Bahia que ocupou sua posição mais significativa na carreira docente. Finalmente, o último ocupante da Cadeira nº 37 foi o senador Antônio Carlos Peixoto de Magalhães. Filho de Francisco Peixoto de Magalhães e Helena Celestina de Magalhães. Nasceu em Salvador, no dia 4 de setembro de 1927, e faleceu em São Paulo, no dia 20 de julho de 2007, com 79 anos. Destacou-se no cenário nacional como político durante a segunda metade do século XX e início do XXI. Iniciou sua vida política como estudante, tendo sido presidente do grêmio estudantil do Colégio Estadual da Bahia, do Diretório Acadêmico da Faculdade de Medicina e do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal da Bahia. Formou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal da 359 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Bahia, em 1952, e logo ocupou o posto de professor assistente no ano seguinte. Foi eleito deputado estadual em 1954, pela União Democrática Nacional (UDN) e na mesma legenda para deputado federal, em 1958 e 1962. Foi um dos grandes amigos do presidente Juscelino Kubitschek. Reeleito deputado federal, em 1966, pertenceu à Arena (Aliança Renovadora Nacional). Foi nomeado prefeito de Salvador em 10 de fevereiro de 1967, pelo governador Luiz Viana Filho, renunciando ao cargo em 6 de abril de 1970. Meses depois foi indicado como governador da Bahia, pelo então presidente Emilio Garrastazu Médici, sendo referendado pela Assembleia Legislativa para um mandato de quatro anos. Teve como sucessor no Palácio de Ondina o ilustre acadêmico Dr. Roberto Santos. Depois de oito meses fora do poder, foi nomeado presidente da Eletrobrás pelo presidente Ernesto Geisel em novembro de 1975, cargo ao qual renunciou em 1978, a fim de ser indicado para o seu segundo mandato como governador da Bahia. Com a reformulação partidária, filiou-se ao PDS em fevereiro de 1980, mantendo incólume sua condição de líder político. Deixando de apoiar o candidato de seu partido, Paulo Maluf, apoiou Tancredo Neves, e esse apoio foi decisivo para a vitória oposicionista no Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985. Foi indicado por Tancredo Neves para Ministro das Comunicações, sendo confirmado no cargo por José Sarney. Foi o único ministro civil que permaneceu no cargo durante os cinco anos de governo do maranhense. Tomou posse no cargo ainda filiado ao PDS, visto que só ingressaria no PFL em 6 de janeiro de 1986. Em 1990 foi eleito, no primeiro turno, como governador da Bahia. Em 1994 foi eleito senador pelo Estado da Bahia. Foi eleito presidente do Senado Federal para o biênio 1997/1999. Reeleito presidente do Senado Federal para o biênio 1999/2001, ocupou a Presidência da República entre 16 e 24 de maio de 1998, em razão de uma viagem do titular ao exterior, visto que tanto o vicepresidente Marco Maciel, quanto o presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, estavam impedidos de assumir o cargo durante o período eleitoral, sob pena de inelegibilidade. Em 2002 foi eleito senador pela segunda vez, sendo empossado em 1º de fevereiro de 2003. Executivo dinâmico, Antônio Carlos 360 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Magalhães cercou-se de homens competentes e investiu muito na formação profissional de sua equipe na Prefeitura de Salvador, e sobretudo no Governo do Estado. Ao tomar posse como governador, em 15 de março de 1971, discursou: São palavras evangélicas: aquele a quem muito se entregou, muito mais se exigirá. Sei que recebo muito, diria mesmo que recebo tudo, e estou consciente de que os baianos poderão exigir de mim trabalho, seriedade no trabalho da administração, uma vida permanentemente voltada para o bem comum. Antônio Carlos Magalhães atuou durante a fase do “milagre econômico”. A Bahia entrava no processo acelerado de industrialização, com a instalação, em Camaçari, de indústrias no Polo Petroquímico. Na capital ACM realizou obras de grande impacto, abrindo as chamadas “avenidas de vale”, modernizando o tráfego da cidade e driblando a topografia acidentada da parte velha. O turismo recebeu dele grande incentivo, dando um salto de 400 apartamentos de hotel, em 1970, para 2400 no final de sua administração. Em 15 de março de 1979 tomava posse no seu segundo mandato como governador, numa clara continuidade da primeira administração. O imortal Antônio Carlos Magalhães, durante sua vida política, acolheu as manifestações culturais do Estado e deu grande incentivo aos artistas e aos intelectuais baianos. Percebeu, logo no início de sua carreira, que seu Estado tinha muito a oferecer ao Brasil e ao mundo com sua história, sua literatura e sua música. Era necessário “abrir” a Bahia ao mundo e dar apoio aos artistas e intelectuais, para que não mais partissem para o Rio de Janeiro. A Bahia passou, assim, a ser mais conhecida tanto no cenário nacional como internacional. Nesse período, as obras de Jorge Amado levaram a Bahia aos outros Estados do Brasil e também ao exterior. O Dr. Antônio Carlos Magalhães percebeu a importância que a Academia exercia para a identidade literária e cultural do Estado. Assim, em seu segundo mandato de governador, doou este Solar Góes Calmon para sede da Academia de Letras da Bahia. Encontramos o texto no discurso do saudoso acadêmico Jorge Calmon, proferido por ocasião dos 80 anos desta Academia 361 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 “No começo de sua série de mandatos, teve Cláudio Veiga a alegria de ver a Academia em sede nova e definitiva, graças ao amparo que lhe dispensou o Governador Antônio Carlos Magalhães; amparo que não se limitou à iniciativa da lei de doação deste belo e valioso imóvel, mas se estendeu à concessão dos recursos necessários à aquisição de todo o mobiliário. Com isso, a Academia se tornou uma das sociedades literárias do País mais dignamente instaladas.” “[...] Na sua terceira gestão, como chefe do Executivo, promoveu, junto à Assembleia Legislativa a aprovação da lei determinando a inclusão no Orçamento Geral do Estado, anualmente, verba destinada ao custeio desta Casa, assim como do Instituto Histórico. Hoje exercendo o mandato de Senador da República, e há pouco elevado à presidência da Câmara Alta, tem tido o cuidado de destinar à Academia parte da verba de subvenções e auxílios que lhe cabe aplicar.” “O eminente homem público age desse modo – creio eu – porque, bem lembrado do apreço que seu pai tinha pela Academia, a cujas sessões era dos mais assíduos e as quais sempre ilustrava com seus comentários, homem que era de saber enciclopédico; mas, também porque possui especial sensibilidade para as coisas da inteligência, consoante tem dado provas sobejas. Vem ajudando nossa Casa conduzido pela certeza de que ela é, atualmente, a instituição particular de cultura mais atuante em nosso meio”, conclui o acadêmico Jorge Calmon. O senador Antônio Carlos Magalhães foi eleito para a Cadeira nº 37 no dia 19 de abril de 1982. Tomou posse em 30 de novembro de 1983, sendo saudado pelo acadêmico Luiz Fernando Seixas de Macedo Costa. Na saudação endereçada ao novo imortal, Macedo Costa chama a atenção para dois aspectos na sua vida: o grande orador e a sua obra cultural como administrador. Coloca-o como sucessor dos grandes oradores da Bahia, que também foram acadêmicos: Antônio Muniz, José Joaquim Seabra e Otávio Mangabeira. Assim afirmou Macedo Costa naquela noite: É, pois, precedido por personalidades dessa estatura intelectual, e com a credencial de consagrado orador político, que chegais a esta academia, digno confrade, para preencherdes, aqui, espaços já ocupados outrora por notáveis protagonistas de nossa história e 362 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 de nossa cultura. Com ele tendes em comum a vocação para a causa política e o talento verbal. O acadêmico Antônio Carlos Magalhães, ao longo de sua vida pública, incentivou o trabalho de artistas e intelectuais e se preocupou com a restauração e a preservação dos bens culturais. Podemos citar alguns imóveis representativos restaurados nesse período: Solar do Ferrão, Quinta do Tanque, o Pelourinho, Rua Alfredo Brito, Igreja de São Francisco, Catedral Basílica, Rosário dos Pretos, Nossa Senhora dos Humildes, em Santo Amaro, Nossa Senhora das Oliveiras, em Oliveira dos Campinhos, distrito de Santo Amaro, e o Mosteiro de São Bento (Basílica, Colégio, Museu e Biblioteca). No livro de mensagens de autoridades que passaram pelo Mosteiro de São Bento, desta cidade, ao longo do século XX, encontramos o seguinte texto escrito e assinado pelo acadêmico Antônio Carlos Magalhães, em 11 de novembro de 1993: Deus me permitiu que eu visse um dos mais notáveis acervos do mundo, no Mosteiro de São Bento. As imagens, a prataria, os paramentos, os quadros, os móveis, a notável biblioteca, tudo isso atesta o notável trabalho dos beneditinos em tantos séculos de serviço à Bahia e ao povo de Deus. Como Governador me emocionei com o que vi e trabalharei para que todos os bahianos (sic) venham aqui ver e aplaudir o notável acervo, patrimônio de cultura da humanidade. O imortal Antônio Carlos Magalhães, com a intenção de manter viva a identidade cultural baiana, implantou os seguintes museus: Museu de Arte da Bahia, Museu Abelardo Rodrigues, no Solar do Ferrão, e o Museu do Recôncavo. Voltando-se para as artes, além de apoiar diversos artistas, restaurou o Teatro Castro Alves, criou a Orquestra Sinfônica da Bahia, o corpo de Ballet do Teatro Castro Alves, a implantação do Quarteto de Cordas e a edição de dezenas de obras literárias. Escreveu, ainda, os seguintes livros: Não era fácil ser revolucionário, O médico e a sociedade, Discursos parlamentares e Meu compromisso com o Nordeste. Recebeu também o título de benfeitor da Academia. Título concedido em 27 de abril de 1992 e entregue solenemente em 10 de março de 1993, quando foi saudado pelo Presidente Cláudio Veiga. 363 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Senhores Acadêmicos: Depois de narrar as qualidades literárias e intelectuais do patrono desta cadeira e dos imortais que me precederam, quero agora manifestar minha gratidão aos que vieram participar desta solene celebração de posse na Academia. Quero manifestar minha estima e alta consideração pelos imortais desta Casa de Arlindo Fragoso e dizer que desejo ser um membro ativo das atividades literárias e culturais desta Academia. Venho de coração sincero, num desejo de aprender com os imortais desta casa. Sinto-me como se voltasse aos dias de noviço, com a mesma alegria e o mesmo coração aberto ao Bom, ao Belo e ao Eterno. O que celebramos nesta noite permanecerá para sempre guardado em meu coração e em minha memória. Que eu possa em todos os momentos de minha existência procurar viver o lema desta Academia: Honrar a pátria cultivando as letras, lembrando o que me foi ensinado pela milenar regra de São Bento, que nos pede para honrar todos os homens. Que Deus seja louvado e abençoe a todos! Muito obrigado! __________ Discurso de posse, na Cadeira nº 37 , proferido pelo Abade Dom Emanuel d’Able do Amaral, no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, em 28 de maio de 2009. O acadêmico foi recepcionado por Fernando da Rocha Peres, titular da Cadeira nº 25 da ALB. 364 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Discurso de posse na Cadeira nº 14 da ALB Gláucia Lemos Em sua obra A coragem de criar, o filósofo e terapeuta americano Rollo May afirma que o homem cria arte como ato de rebeldia, um desafio aos deuses imortais. Pela arte que realiza a Imortalidade se lhe torna possível, prerrogativa dos deuses que não lhe foi concedida. Aqui nesta Casa, onde se concentra o escol da cultura desta terra de tradições, alcança-se a Imortalidade mediante a aposição de um colar que se conquista pelo mérito da obra realizada, Contemplado este rito, porém, por um olhar especial de escritor de livros infantis, – alguém que sonha utopias e as expressa em palavras para encantamento de crianças –, esse mesmo ato solene ganha a vestimenta de um conto de maravilhas, que bem poderia ser intitulado A Lenda do Colar da Imortalidade. Narraria esta lenda a existência de um certo colar de ouro que deteria o poder de concessão da Imortalidade a quem o colocasse ao pescoço. Todos os mortais que padecessem angústia pela inaceitação do fim dos seus dias quereriam conquistá-lo. Isso significaria galgar penosamente uma escadaria infinitamente longa e eivada de tropeços, durante muito tempo, até alcançar, no cume, o Olimpo, onde estaria escondido o mágico colar de ouro. Essa escadaria de tão difícil escalada teria o sugestivo nome de Trabalho. Mas esta lenda, meus senhores, ainda não foi escrita e provavelmente eu nunca a escreverei, porque, ao invés de elaborá-la, eu a estou vivendo nesta noite, desde que há poucos momentos, vencida a longa escadaria dos 365 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 meus 30 anos de trabalho, alcancei o Olimpo e recebi o colar da minha Imortalidade, ali, frente àquela mesa, pelas mãos do senhor presidente desta Academia, professor Edivaldo Boaventura. Mas, é hora de acordar, descer do sonho literário e fazer a minha oração, com olhos voltados para a realidade deste momento. E vos dizer que ainda sendo o lugar-comum um dos inimigos do escritor, nem sempre dele podemos prescindir, pois de dois lugares-comuns neste discurso deverei socorrer-me. O primeiro deles é o expressar de minha emoção. Uma emoção que nunca se repetirá, porque a posse na cadeira de uma Academia de Letras só ocorre uma vez na vida de um escritor, posto que não se elege mais de uma vez o mesmo escritor para o mesmo Sodalício. Esta emoção estou a vivê-la em plenitude. O segundo lugar-comum é dizervos do agradecimento, esse que nos é imposto pelo figurino das boas maneiras. E muito mais que isso, sendo a expressão “muito obrigada” a mais corriqueira que repetimos a cada oportunidade diária, em horas como esta ela se reveste do sentimento de quem se sabe sobremaneira reconhecido pela seriedade com que opera o seu que-fazer e da felicidade por assim se saber. Permiti-me, senhores, dirigir um agradecimento particular àqueles que espontaneamente deliberaram demorar-se no meu nome para ocupar a Cadeira nº 14, levando a seus pares a informação do que tem sido minha obra, nestes 30 anos de atividade com a palavra. Eu vos digo, a todos, com minha sincera emoção, Muito Obrigada. Por me haverdes reconhecido uma operária do vosso ofício e me haverdes convocado a participar dos trabalhos deste templo, a viver o vosso convívio, a me tornar um de vós aqui dentro. Muitos serão chamados, meus senhores, poucos escolhidos. Ocorreme esta sentença ao iniciar a minha oração. Muitos são os inspirados pelo irresistível vocatus ao culto da palavra, poucos os escolhidos pelas circunstâncias; sejam sociais, geográficas ou culturais, para, atendendo à premência desse chamamento interior, dedicarem-se a exercitá-lo e aperfeiçoá-lo, mediante um labor tão intenso quão fascinante, qual seja o labor literário. Eu me reconheço uma escolhida. Trouxe comigo a vocação – que essa ninguém escolhe – e encontrei na vida as circunstâncias. Por graça e bênção dessa escolha é que estou aqui. 366 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Quer a praxe acadêmica que o empossado conheça e fale dos que o precederam. Começo pelo patrono da Cadeira nº 14, Francisco Gonçalves Martins, Visconde de São Lourenço, nascido em Santo Amaro, no ano de 1807. Estudou em Portugal, cursando Direito em Coimbra. Não se graduou, por ter-se engajado na luta pela princesa brasileira D. Maria da Glória contra seu tio D.Miguel. Foi jornalista e, anos mais tarde, recebeu de D. Pedro I o título de bacharel em Direito, como reconhecimento pelos serviços prestados à causa da princesa, o que lhe permitiu exercer a advocacia. De D. Pedro I também recebeu a comenda de Cavaleiro da Imperial Ordem de Cristo. O visconde, conquanto amasse a Bahia, abominava os poetas, aos quais atribuía pouca seriedade, e isso lhe atraiu a antipatia do mestre Machado de Assis. Foi fundador da Cadeira nº 14 o professor Bernardino José de Souza. Lecionou diversas disciplinas de nível fundamental, sendo também catedrático de várias matérias do ramo do Direito. Natural do estado de Sergipe, veio a revelar-se um benfeitor do ensino na Bahia. O professor Bernardino de Souza foi sucedido pelo médico Dr. Alberto Silva que era também professor e pesquisador de História da Bahia. Escreveu várias livros, merecendo especial menção sua obra Cidade do Salvador. Em seguida, foi eleito o Dr. Edgard Santos, fundador da Universidade Federal da Bahia, da qual foi reitor e a cuja obra dedicou o melhor do seu espírito empreendedor. Tornou a nossa universidade uma notável instituição do Saber, para o que abdicou do exercício da medicina, na qual se dedicava à cirurgia com sucesso reconhecido. Pelo falecimento do Dr. Edgard Santos, coube a cadeira ao professor Raul Batista que era um erudito, sobretudo no domínio das literaturas latina, grega e brasileira. Por sua morte, foi eleito o contista Carlos Vasconcelos Maia para a vacância. O contista envolvente, a pessoa carismática, o amigo afetuoso, assim é um ligeiro perfil de Vasconcelos Maia. Autor apaixonado pelo mar, tema constante dos seus contos admiráveis, sua importância para a Bahia ultrapassa a expressão literária de livros como O Cavalo e a rosa, O leque de Oxum, Cação de Areia e tantos outros que se encontram em traduções para obras internacionais, “cantando sua aldeia” para o 367 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 mundo. Também legou seu trabalho à frente da Secretaria de Turismo de Salvador; em sua gestão, e só então, Salvador começou a ter organizado seu turismo. Vasconcelos nos deixou sem anúncio, em uma festa de amigos. Todos os que lhe tínhamos afeto, sempre o lembraremos nas salas desta Academia, sereno, risonho, receptivo. Querem as circunstâncias que a mim, que muito o admirava, também caiba a honra de vir a ocupar a Cadeira por ele deixada, após tê-la merecido o poeta Epaminondas Costalima, meu antecessor mais próximo. Costalima, poeta que se interessou pela lírica desde a infância, foi profissional da Propaganda, tendo recebido o troféu Personalidade da Comunicação.Teve toda a sua vida dedicada aos que-fazeres da publicidade, sem jamais se negar, porém, à vocação de poeta cedo manifestada. Publicou Do simples viver, Retrato desfeito, Tempo e circunstância, A noite de glória de João da Silva, livros de poemas, em razão de cuja excelência foi sufragado para ocupar a vaga deixada por Vasconcelos Maia. O poeta pertenceu à Academia de Letras da Bahia de 1989 a 2010, e neste momento eu me sinto imbuída da responsabilidade de merecer a sucessão a tão ilustres nomes que me precederam nesta cadeira. Senhores acadêmicos, meus senhores, talvez neste momento, quando relato sobre os meus antecessores, estejais a perguntar: E vós, quem sois? De onde estais a vir? Eu vos direi: Meu pai, o sr. Ascânio Tasso Pinheiro de Lemos, oficial do Exército, foi homem excepcionalmente bom, sensato e firme de caráter. Responsável e amoroso para a família, tolerante e generoso com seus subordinados e com estranhos. Oficial graduado pela Academia Militar, morreu no posto de Major. Era da família Pinheiro de Lemos, oriunda de Portugal, cujo primeiro membro a vir para o Brasil no século XVII foi o Dr. João Pinheiro de Lemos, médico cirurgião do Exército. De sua vinda ocupa-se a Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia em edição dedicada a “Famílias ilustres vindas de Portugal”, que me foi presenteada pelo historiador prof. Dr. Cid Teixeira, que enriquece esta Academia com sua cultura. Minha mãe, a senhora Adília Silva de Lemos, uma pessoa que tinha por traço dominante o culto aos valores morais, era enfermeira, teve expressiva atuação à frente da enfermagem e da administração na fundação e funcionamento do Sanatório Bahia, tendo 368 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 sido mencionada elogiosamente pelo médico psiquiatra baiano Dr. George Alakija, em Comunicação por ele apresentada em Congresso Nacional. Fomos 3 filhos deste casal. Comigo, meu irmão já desaparecido e minha irmã, que é minha grande amiga. Tendo falecido meu pai quando eu tinha 3 anos de idade, minha mãe, viúva jovem, transferiu a família para a capital sergipana, onde tinha seus familiares. Lá estudei as primeiras letras no Colégio Senhora Santana. Recordo-me com veneração e saudade das minhas primeiras mestras. De sua competência e de seu carinho recebi a continuidade do estímulo a meu gosto pelo estudo e a meu interesse por aquisição de conhecimentos, o que já levava do ambiente familiar. Lá vivi uma infância alegre, muito rodeada de música e de livros, pois comecei a ler aos 4 anos de idade, a partir do que os livros passaram a ser o presente que mais me fazia feliz e o lazer que mais me interessava. Na pré-adolescência retornamos para Salvador. Aqui, no Instituto Normal da Bahia, completei meus estudos até o 2º grau, ao mesmo tempo cursando Desenho na Escola de Belas Artes, que ainda não era parte da Universidade. Mais tarde fiz Extensão em Desenho na Escola já ligada à UFBA e Arte em Série no Museu de Arte Moderna, no Solar do Unhão. Não vos cansarei a contar passo a passo da minha trajetória. Não difere muito do comum das famílias classe média que viviam obedientes a um esquema de rígida observação aos costumes, vigente quando a literatura era passatempo corriqueiro, e o estudo da música complemento indispensável à boa formação. Casei-me com o jornalista e advogado Altamirando Luquini Leal, homem muito voltado para o trabalho, amante dos clássicos da música e dos bons livros. Tivemos 5 filhos, com os quais aprendi o amadurecimento da responsabilidade de formar caracteres e lapidar corações, acertando às vezes, errando outras tantas, sempre na tentativa do melhor. Tenho duas filhas que estão casadas e dois filhos solteiros, todos profissionais liberais, todos pessoas direcionadas para o bem, como também o são os sete netos, dos quais recebo só carinhos e motivos de alegria. E nos meus três genros tenho também a continuidade da minha família, neles sentindo igual afeto, que nos une no mesmo círculo amoroso. Meus senhores, esta sou eu, este o meu perfil. É daí que venho, como vedes, muito centrada nos pilares da família. Em 1967 Deus 369 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 escolheu para anjo minha primeira filha, então com 12 anos. Eu vos asseguro, meus senhores, que dor maior alguém jamais conhecerá. Foi então que, ao lado da responsabilidade pelos outros filhos, o curso de Direito da Universidade Católica do Salvador significou a minha coluna de apoio e reequilíbrio. Saí na turma de 1972 e fiz a pós-graduação na UFBA, em 1981, em Crítica de Arte. Por esse tempo já vinha escrevendo em jornais. Colaborei no tabloide do jornal A Tarde, da praça Castro Alves, anos 60, quando tinha à frente o jornalista Claudir Chaves. Assinei a coluna Pelas Universidades, no Diário de Notícias, durante cinco anos, sendo meu editor o jornalista Clementino Heitor de Carvalho. Tive que me afastar em razão da regulamentação da profissão de jornalista, pois não me sindicalizara como haviam feito vários companheiros, e perdi assim meu direito às redações de jornal. Tinha, porém, sido picada pelo vírus do jornalismo, e voltei a publicar mais tarde, colaborando durante 8 anos na coluna de arte Painel, do prof. Herbert Magalhães, em A Tarde, assinando a coluna de arte Opinião, na Tribuna da Bahia, quando editada pelo jornalista José Antônio Moreno, e publicando ensaios de arte, resenhas e comentários críticos em A Tarde Cultural, aproveitando o viés que a lei me concedia, publicar sobre assuntos ligados à minha formação. Entre 1982 e 1984 organizei e coordenei o curso teórico na Escola de Belas Artes da Fundação Teatro Deodoro, em Maceió, no qual lecionei História da Arte e Iniciação à Estética, enquanto lá residimos por interesse profissional de meu marido. A saudade da Bahia era intensa, e o coração baiano todos os dias queria voltar. Aprendi o caminho desta Academia quando, em 1985, tendo retornado dos 3 anos de residência em Maceió, trouxe pronto o meu primeiro romance, O riso da raposa. Estavam abertas inscrições para o Prêmio Cidade do Salvador, para romances, nesta Academia. Era o meu primeiro romance. Eu o inscrevi sob pseudônimo de Tereza de Ávila, e a comissão composta pelas senhoras Myriam Fraga, acadêmica, Judith Grossmann, professora da Universidade, e sr. James Amado, também acadêmico, achou de justiça atribuir-lhe o prêmio. Era eu uma neófita, sem laços no ambiente cultural, tendo publicado um livro de contos em 1979 porque o saudoso professor e acadêmico Carlos Eduardo da Rocha lera meus contos no Jornal da Bahia, em um concurso de contos coordenado pelo jornalista e escritor Adinoel Mota Maia, 370 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 do qual também saíram outros escritores que são hoje acadêmicos, Aleilton Fonseca e Carlos Ribeiro, e ainda outros que lá fora continuam a laborar seu trabalho, como Ayeska Paulafreitas, Dalila Machado e Orlando Pereira dos Santos. O prof. Carlos Eduardo da Rocha, repito, procurara me conhecer através de uma amiga comum. Espontaneamente me encaminhara à Fundação Cultural do Estado, me oferecendo a primeira oportunidade para publicar um livro de contos. Assim mesmo, facilmente. As boas coisas da minha vida assim acontecem. Ainda bem, porque, das iniciativas que minha timidez não me permite tomar, uma delas é batalhar por algum interesse. Se as oportunidades não vierem a mim, eu não sei partir à procura delas. Não aprendi a litigar por coisa alguma. Acostumei-me a buscar o êxito no aprimoramento do que faço. Assim tenho vivido e não tenho de que me queixar; levo a vida a sério, e a vida, por sua vez, tem me respeitado. Esse primeiro prêmio de um primeiro romance foi também o meu primeiro laço com esta Academia. Despertou uma certeza de que escrever romances não me era impossível. Senti um grande estímulo para trabalhar no gênero, o que sempre fora meu desejo, desde que na adolescência conheci Dostoiévski, Camus, Thomas Mann, Liev Tolstói, Flaubert, Ernest Hemingway, Jorge Amado, Adonias Filho e também os contos de Maupassant e Tchecov. Descobrir personagens, rir e chorar com eles, encontrar situações, vivê-las, sofrê-las, acompanhar destinos que se criam e se resolvem em minhas próprias mãos. Tudo isso tem um fascínio particular que continua sempre igual, além do artesanato da palavra, a reescritura e as revisões, a busca da sonoridade da palavra, do ritmo que complete a musicalidade do texto. O fascinante universo da palavra, sem o qual a literatura não se realiza. Isto é o encanto que me faz entender que a vida vale a pena. Por esse tempo minhas filhas me deram os primeiros netos, e essa nova geração plenificou meu coração de um amor diferente, aquele amor que tem sabor de esperança e de graça. Essa esperança que não se define, talvez esperança em um futuro mais promissor para um país no qual todas as coisas àquela altura já estavam desmoronando e nunca mais foram reerguidas, desde a fragilidade dos costumes à decadência do ensino e demais atendimentos às carências populares. Nascia em mim, perante a nova geração, uma certa fé de que os novos que estavam 371 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 chegando fossem o socorro para nossa perdição. Talvez uma vaga esperança que vemos nos pequeninos olhos inteligentes dos nossos pequeninos, foi ela o que me inspirou meu primeiro livro infantojuvenil, o Coração de Lua cheia, cuja história dá conta de que todos os que têm um sonho partem em alegre viagem para realizá-lo em Jumaran. O utópico Jumaran, que é a esperança representada no anagrama dos meus primeiros netos, as primeiras sílabas dos nomes de Juliana, Marina e André. O livro saiu em 1986 pela Companhia Editora Nacional e está esgotado. Estou tentando negociá-lo em nova edição por outra editora. Assim começou minha jornada pela literatura infanto-juvenil, que conta hoje 20 títulos, alguns esgotados. Meus senhores, estaria sendo injusta se omitisse aqui um importante crédito a alguém que teve particular expressão na minha infância e na minha criação de livros infantis. Aquela babá, que, sem qualquer vínculo consanguíneo, foi para mim e meus irmãos mais que uma mãe amorosa, era a nossa Segunda Mãe, que, conquanto tivéssemos por perto nossa verdadeira mãe severa e vigilante, era ela quem nos mimava e cuidava, nos punha a dormir cantando e contando histórias envoltas em magia, que, tenho certeza, concorreram para estimular minha criatividade e constituíram uma sementeira para o surrealismo manifestado na obra infantil da autora que hoje sou. Onde estiver aquela estrela de bondade, que a ela chegue a luz da minha gratidão. Depois do primeiro infanto-juvenil, cresceu minha produção no gênero e se expandiu pelas escolas do Brasil, de tal modo, que a autora de livros adultos e a crítica de arte passaram a segundo plano, e meu nome definitivamente ficou associado a livros infanto-juvenis, tornando-se o referencial da literatura infanto-juvenil produzida na Bahia. Na esteira do êxito pesem premiações como da Secretaria de Cultura do Maranhão, da Academia Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil-SP, do Programa Nacional de Biblioteca na Escola, do Instituto Nacional do Livro – INL-RJ, do Bureau Internacional de Literatura Infantil e Juvenil e das muitas solicitações de editoras para inclusões de textos da autora em livros didáticos. Escrevo menos contos, é verdade, mas a paixão pelo romance não se deixou minorar. Mais três romances foram escritos e, cada um a seu tempo, também todos os três premiados: Secretaria de Cultura de Recife, aos 450 anos da fundação da cidade em 1988; Prêmio Graciliano 372 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Ramos, da União Brasileira de Escritores do RJ, em 1991, e prêmio O melhor Livro, da União Brasileira de Escritores de São Paulo, em 2007, prêmios que vieram a somar ao meu primeiro romance, premiado por esta mesma Academia, que, nesta solenidade, me confia uma Cadeira. Não poderia narrar a ordem em que meus livros foram produzidos ou publicados, não porei à prova a vossa tolerância, mas devo dizervos que estão em 34 títulos, entre os vários gêneros, incluindo participação em três antologias. Se pareço vaidosa a enumerá-los, peço seja relevada minha imodéstia, que manifesto sem a menor arrogância. Em 1996 morreu meu marido, presente na memória da família. Assim venho vindo, meus senhores. Parti há trinta anos da Fundação Cultural do Estado. Prossigo porque tenho convicção de que, tendo abandonado as lides jurídicas pela então aventura literária, eu que jamais entrei ou me arrisco em qualquer aventura, eu que sonho muito, mas jamais tiro do chão firme as solas dos meus sapatos, e que tenho muito medo de me decidir pelo desconhecido, resolvi fazer a única coisa que sou capaz de fazer acreditando nela, que é escrever. Só se faz com verdade uma coisa se nela se acredita. Por isso eu não poderia ser fiel a meu diploma de bacharel em Direito, por certo não teria sido a psicóloga que, por algum tempo, cogitei vir a ser – nem sequer comecei – não sei se fui a mãe que honestamente me esforcei para ser e para o que dei de mim tudo o que humanamente consegui tirar da minha possibilidade e do meu amor, por isso, senhores, um dia ainda hei de pedir que me perdoem os que acaso, silenciosamente, tenham guardadas minhas possíveis ineficiências. Não sei que faltas ou culpas involuntárias ainda tenha tido no meu percurso já um tanto longo, mas a realidade é que de tudo o que eu tenha sido incumbida, ou tenha assumido ou pretendido ser ou fazer, o que não fui, não fiz, foi por não ser capaz, confesso que só sei escrever. Se disso fosse impedida não saberia o que fazer dos meus dias. Nesta noite, cujas alegrias ofereço a meus filhos, meus netos e minha bisnetinha que ainda está chegando, realizo o meu ritual de passagem, convicta de que, se a Imortalidade continua a me ser inacessível fisicamente – e é por isso que desafio os deuses com minha arte, como quer Rollo May, – nas lembranças de infância e juventude das crianças e dos jovens que leem minhas histórias, o colar da lenda funcionará, minha Imortalidade magicamente acontecerá, assim como no meu 373 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 espírito se imortalizaram os contos escutados na minha infância, antes de dormir, e como em mim se imortalizou Dostoiévski, aos meus 14 anos, quando o li pela primeira vez, em Os Irmãos Karamázov, e, ingênua e pretensiosamente, eu o elegi aquele escritor que um dia eu gostaria de ser. Repito: ingênua e pretensiosamente. Sei que começo nesta Academia de Letras em etapa da vida em que muitos a têm deixado. Mas sou daqueles que acreditam ser possível driblar o tempo com nosso esforço, e que a cada nascer do sol a vida recomeça, como uma nova história a ser escrita, uma nova história a ser contada. Só é preciso descrer do tempo e acreditar na história a que estamos dando começo. Começo hoje a escrever minha história convosco, senhores acadêmicos, meus confrades. Enquanto vos agradeço a atenção, e a atenção de todos os presentes, eu vos prometo honrar e dignificar esta Academia, como tenho honrado e dignificado toda a minha vida, com as graças de Deus. Muito obrigada. S __________ Discurso de posse, na Cadeira nº 14, proferido pela escritora Gláucia Lemos, no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, em 21 de outubro de 2010. A acadêmica foi recepcionada por Waldir Freitas Oliveira, titular da Cadeira nº 18 da ALB. 374 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Discurso de posse na Cadeira nº 35 da ALB Luís Antonio Cajazeira Ramos Amantíssima senhora Mary Dias Cajazeira Ramos. Este seu filho querido acaba de tomar posse da Cadeira 35 da Academia de Letras da Bahia. A senhora sabe o que isto significa? Acredito que sim. Porque a senhora vê o sentido deste momento com o coração, ao absorver o brilho de meus olhos satisfeitos e felizes, pois seu peito infinito é o mais aconchegante leito para minhas emoções. Ademais, a senhora tem aquele atestado médico que comprova sua sanidade mental e que garante a mim, aos demais filhos e ao mundo que ninguém jamais a governará, não é verdade? Quem a vê cochilando seus mais de 90 anos diante da televisão talvez não perceba o mergulho nas orações à Virgem Maria e imagine que a senhora já não está conseguindo acompanhar a novela. Ah, tolos! Essa criaturinha saudável, ativa e tinhosa respira os filhos e os netos, suas conquistas e intrigas, cada sonho, cada aflição. Por isso, dona Mary, a senhora sabe o que este momento representa para nós todos — e para você e para mim. E mesmo assim, com muito prazer, eu lhe direi agora, tintim por tintim, o que é a Cadeira 35 da Academia de Letras da Bahia. Da Bahia. Ser da Bahia é ser baiano. Mas o que é ser baiano? O expresidente Itamar Franco nasceu em águas baianas e foi registrado em Salvador. De família mineira, criou-se nas Minas Gerais, de onde partiu com seu topete para governar o Brasil. Ele não era baiano. Para isso, é fundamental viver a Bahia. Então, baiano é quem nasce e produz na 375 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Bahia? Eis aí outra redução. Aos 23 anos, Dorival Caymmi pegou um ita do norte e foi pro Rio morar, e quase toda sua baianíssima música foi composta sob a regência do Cristo Redentor. Carybé nasceu na Argentina, teve infância italiana e adolescência carioca, vindo para a Bahia aos 27 anos, nos braços de Exu, para ser feito baiano e colorir esta terra, até morrer no colo de sua ialorixá. Se quem é da Bahia nasce na Bahia, levante-se daqui, Cleise Mendes! Se quem é baiano produz conosco, nem venha tomar assento, João Ubaldo Ribeiro! Mas esta Academia de Letras, baiana que é, portanto acolhedora e fraterna, decidiu estatutariamente que ser da Bahia é estar amarrado a esta terra, seja de berço ou de adoção, sem escapatória. Letras da Bahia. Expressão bem mais ambígua. Ela pode significar letras que falam da Bahia, ou a Bahia que fala por meio das letras. A Academia de Letras da Bahia está na segunda opção. Aqui, não é o tema Bahia, o coqueiro, a capoeira, o sertão, o linguajar, e sim o autor baiano. Ainda assim, letras da Bahia não é qualquer coisa escrita na Bahia. Porque o baiano escreve com a fala a crônica de seu viver; com o gesto, as cores de sua fala; com o corpo, a dança que vem da alma; com a voz, a música do coração; com as mãos, as formas de criar seu mundo; com os pés, os caminhos de sua jornada; e desde si mesmo, por inteiro, escreve um jeito de sofrer e de amar. Dessas escritas, as letras da Bahia são as escrituras, aquelas escrevinhadas no papel, as transcrições dos conhecimentos, experiências, emoções, vivências. Dizem que baiano não nasce, estreia. Então, as letras da Bahia são a fixação escrita de suas sucessivas estreias. Nesta nação baiana, que, do litoral ao interior, se manifesta com enorme riqueza ágrafa, as letras são uma exceção, um requinte, e isso lhes traz uma diferenciação. Academia de letras vai além: é uma distinção e um compromisso. Desde a escola de Platão nos jardins de Academo, passando pela instituição francesa dos notáveis, até a escola de samba e o ginásio de esportes, a academia é uma promotora de cultura. A academia de letras promove as letras — mas também aqui é preciso ter claros os conceitos. Interessa à academia de letras o cultivo da língua, da literatura, das humanidades. Tem espaço na academia o poeta, o ficcionista, o dramaturgo, o cronista, o ensaísta, o biógrafo, o memorialista, o crítico de literatura ou de arte, o musicólogo, o museólogo, o antropólogo, o sociólogo, o historiador, o jornalista, o jurista, o orador, o educador, o 376 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 teólogo, o filósofo, o filólogo, o linguista, o pensador. A academia de letras distingue quem se destaca em uma ou várias dessas áreas, mas quer de volta o compromisso com as letras e a sociedade. Se o acadêmico é uma obra que vale a pena se imortalizar, a academia de letras deve ser uma unidade plural, um corpo multifacetado, uma convivência cultural, com atuação criativa, participativa e permanente. Na Bahia, academia de letras era uma ideia com algumas tentativas de materialização. Em 1724, no rastro do movimento academicista que luzia a Europa, foi fundada a Academia Brasílica dos Esquecidos, que se sustinha num nativismo mais rancoroso do que autêntico e no ano seguinte feneceria. Em 1759, com pretensão de retomar os ideais nativistas da antecessora e escrever a história da América Portuguesa, foi criada a Academia Brasílica dos Renascidos, de vida ainda mais efêmera. No Brasil imperial de 1845, o Barão de Macaúbas idealizou o Instituto Literário da Bahia, que nascia como um grêmio estudantil de escritores e outros intelectuais. Em 1911, na Velha República, ao ser preterido pela Academia Brasileira de Letras na disputa com o também baiano Afrânio Peixoto, Almachio Diniz formou a Academia Baiana de Letras, que não vingaria, sendo extinta em 1917. Nesse mesmo ano, o engenheiro e secretário de estado Arlindo Fragoso, com apoio do governador Antônio Moniz, congregou os nomes proeminentes da vida política, social e cultural da capital baiana, para em seguida, juntos, inspirados no modelo francês, fundarem a Academia de Letras da Bahia. Cadeira, minha mãe, é cada um dos quarenta lugares ocupados pelos membros deste silogeu. Mas observe comigo: se há somente quarenta cadeiras, uma para cada acadêmico e seus sucessores, onde colocar confortavelmente e sem constrangimentos tantos imortais? Porque estão aqui presentes os quarenta patronos, como Frei Vicente do Salvador, Gregório de Mattos, José da Silva Lisboa e Castro Alves. Também os fundadores, como Afrânio Peixoto, Ruy Barbosa, Carneiro Ribeiro e Pethion de Villar. E todos os sucessores, como Edgar Santos, Thales de Azevedo, Orlando Gomes e Jorge Amado. Não vamos, pois, confundir o conjunto de cadeiras acadêmicas com o cadeiral deste auditório, no qual os acadêmicos tomam assento durante as cerimônias. As cadeiras acadêmicas, numeradas de 1 a 40 sem hierarquia, são o lugar imaterial onde se instalam os titulares e suas obras. Mas a senhora 377 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 não as veja como dinastias do saber, e sim como aquele seu nicho venerando, ou como os prosaicos sítios eletrônicos da digitália virtual, onde cabem todos, destacados do tempo. Então, dona Mary, voltemos ao início, agora com maior segurança, com mais propriedade e com o significado de cada palavra na ponta da língua, para eu lhe dizer de novo o que nos trouxe ao Palacete Góes Calmon nesta noite luminosa: seu filho acaba de tomar posse da Cadeira 35 da Academia de Letras da Bahia. A senhora está satisfeita? Está feliz? A cumplicidade que é só nossa me garante que sim, que a senhora está radiante de orgulho, que seu coração tão cedo não vai parar de sorrir. Eu também estou assim, com o peito em algazarra. Que honraria institucional maior do que ser honrado pela instituição mais honorável? E é em nome dessa honra que vamos serenar a alma, minha mãe, e aprumar o tino, e retomar o rumo, pois ainda temos muito a avançar. Nós dois ficamos por aqui, enquanto eu sigo em frente, para fazer o que já deveria estar fazendo: o discurso da posse. O qual, não por praxe, mas por disciplina e respeito, começa pela saudação aos anfitriões e aos visitantes. Excelentíssimo e dileto presidente desta Academia de Letras da Bahia, escritor Aramis Ribeiro Costa. Demais ilustres membros da mesa. Senhoras e senhores acadêmicos, meu respeito e admiração. Minhas senhoras. Meus senhores. A Cadeira 35 da Academia de Letras da Bahia ostenta como patrono Manoel Vitorino e abriga Antônio Pacífico Pereira como fundador. Manoel Vitorino Pereira nasceu em Salvador, em 1853, filho de um marceneiro português e uma brasileira. Formou-se na Faculdade de Medicina da Bahia, onde foi professor. Publicou obras dirigidas principalmente à saúde pública. Com a chegada do regime republicano, assumiu o governo da Bahia, disposto a empreender uma reforma do ensino, mas foi retirado do cargo pelo marechal Deodoro da Fonseca, que, num ato exemplar de nossa República, nomeou para a função seu irmão Hermes Ernesto da Fonseca. Manoel Vitorino foi vice-presidente do Brasil no governo de Prudente de Morais, exercendo a presidência por quatro meses, durante licença do titular. Abandonou a política e faleceu no Rio de Janeiro, em 1902, antes de seu cinquentenário. Antônio Pacífico Pereira, irmão de Manoel Vitorino, inaugurou a Cadeira 35. Soteropolitano de 1846, médico e catedrático de anatomia 378 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 geral e patológica, chegou a diretor da Faculdade de Medicina da Bahia. Era um estudioso da medicina e do ensino médico. Fundou a Gazeta Médica da Bahia e publicou diversas obras de cunho científico e didático. Faleceu em Salvador, em 1922. O segundo titular da Cadeira 35 foi Afonso Costa. Nascido em 1885 em Jacobina, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1923. Sem concluir o ensino fundamental, publicou obras de história, geografia e literatura. Foi diretor de jornais, membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Carioca de Letras, a qual presidiu. Faleceu na capital fluminense, em 1955. O terceiro titular, Rui Santos, nasceu em Casa Nova, em 1906. Formou-se na Faculdade de Medicina da Bahia, iniciando a carreira em Itapira, atual Ubaitaba. Exerceu a medicina, a docência, o jornalismo e a política, indo de intendente municipal a senador da República. Faleceu em 1985, deixando uma obra de ficção e de memórias, além de ensaios de história e de política. O quarto titular foi Rubem Nogueira. Nascido em 1913 na cidade de Serrinha, formou-se na Faculdade de Direito da Bahia. Foi advogado, procurador de justiça, consultor jurídico, professor de introdução ao direito, deputado estadual e federal e membro de várias instituições, como a Ordem dos Advogados do Brasil e a Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Falecido em 2010, seu maior legado são estudos jurídicos, em especial sobre a vida e a obra de Ruy Barbosa. O último titular da Cadeira 35 foi João Falcão, de curta permanência na casa e longa trajetória na vida. João da Costa Falcão nasceu em 1919, em Feira de Santana. Na adolescência, completou o estudo básico em Salvador. O ano de 1938 marcou eventos cruciais de sua vida: o ingresso na Faculdade Livre de Direito, a filiação ao clandestino Partido Comunista do Brasil e a fundação da revista Seiva, veículo partidário da luta contra a ditadura Vargas. Formou-se em 1942. Convocado para a guerra em 1943, foi condenado por atividade subversiva, expulso do Exército, preso, absolvido a seguir e anistiado em 1945. Nesse ano, fundou o jornal O Momento e concorreu à Câmara dos Deputados. Com nova cassação do PCB em 1947, ano de seu matrimônio, voltou à militância clandestina, fazendo a segurança de Luiz Carlos Prestes até 1949. Retornou para Salvador, onde desenvolveu atividade empresarial no ramo imobiliário. Em 1954, valendo-se do PTB, elegeu- 379 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 se deputado federal. Desligou-se do PCB em 1958, desgostoso com o stalinismo, após vinte anos de dedicação integral. Abandonada a lida partidária, João Falcão encarou com destreza o mundo dos negócios, diversificando os investimentos e assumindo a direção de empresas de comunicação, de setores da indústria e do sistema financeiro. O jovem militante comunista daria lugar ao empresário de sucesso, mas seu idealismo jamais iria esmorecer. Na primeira oportunidade, fundou um diário que viria a ser um dos mais atuantes veículos de nossa imprensa: o Jornal da Bahia. Com a experiência nos periódicos do partido, Falcão soube trazer os melhores para sua equipe, incluindo ex-companheiros e jovens intelectuais. Mas sua independência editorial provocou o rompimento com o prefeito e depois governador Antônio Carlos Magalhães. Em tempos do poder carlista na Bahia no contexto da ditadura militar, as páginas do jornal foram trincheiras da oposição. Sem nunca ceder à pressão política, mas tendo de enfrentar uma asfixia financeira devido à perda de anunciantes e patrocinadores, até sucumbir e ser extinto, o Jornal da Bahia será para sempre um símbolo maior da resistência democrática. A produção literária de João Falcão, publicada a partir de quase setenta anos de idade, avolumou-se em duas décadas com a edição de sete livros: O Partido Comunista que eu conheci (20 anos de clandestinidade); Giocondo Dias/A vida de um Revolucionário; A vida de João Marinho Falcão/ A vitória de uma vida de trabalho; O Brasil e a 2ª Guerra/Testemunho e depoimento de um soldado convocado; Não deixe esta chama se apagar/História do Jornal da Bahia; A história da revista Seiva/Primeira revista do Partido Comunista do Brasil; e Valeu a pena (Desafios de minha vida). Ao longo da vida de desafios, João Falcão recebeu títulos associativos e honoríficos que testificam sua dedicação ao trabalho e ao interesse público: sócio da Associação de Bancos da Bahia, da Associação Baiana de Imprensa e da Associação Brasileira de Imprensa, membro do Conselho Consultivo da Usina Siderúrgica da Bahia e do Conselho das Obras Sociais de Irmã Dulce, comendador da Ordem do Mérito de Feira de Santana e grão-mestre da Ordem do Mérito da Bahia. Por fim, a cátedra na Academia de Letras da Bahia, aos noventa anos, exercida com zelo extremado e gozada em plenitude. A estreia tardia de João Falcão deve ter favorecido a qualidade de seus textos, de linguagem precisa, acessível e convidativa. O homem 380 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 maduro se nos revela um acurado historiador, biógrafo e memorialista. Impressiona nos livros a riqueza de detalhes dos fatos narrados, dos personagens envolvidos, da ambientação histórica e das circunstâncias de toda ordem. E foram muitas as dificuldades enfrentadas pelo autor, pois os dias pretéritos não possuíam, no mais das vezes, mais do que seu próprio testemunho: as pessoas, em sua maioria, estavam mortas; os documentos haviam sido destruídos pela ausência de recursos de conservação, pela clandestinidade das lutas, pela repressão dos governos de exceção e pela falta de compromisso dos indivíduos, das famílias e da sociedade para com a memória; e o mundo estava muito transformado. Não cabe aqui, em breves palavras, tentar dimensionar o valor de sua obra, de sua luta, de suas ideias. Mas salta aos olhos que não se está diante de relatos de um jovem panfletário, cujo discurso pretensioso defina a verdade e conduza os rumos. Ao contrário, seus livros foram descansados na salmoura da maturidade, temperados com o equilíbrio da tolerância e condimentados pelo indissociável humor de uma vida bem realizada. O novo titular da Cadeira 35 é Luís Antonio Cajazeira Ramos, nome no registro civil, no batismo católico e na capa dos livros de poesia. Mas a família sempre me chamou de Cãe. Sou filho de Pedro e de Mary, ele comerciante e um convicto faz-tudo, ela professora e dirigente escolar. Nasci em Salvador, em 12 de agosto de 1956, um domingo, dia dos pais, após as 17 horas, de parto natural e doméstico, sem um ai de minha mãe. Cresci na casa de meus pais, juntamente com os sete irmãos, na ladeira do Paiva, onde permaneci por 30 anos. Em minha infância, ainda havia três das oito chácaras do entorno original da ladeira, que àquela altura já estava emoldurada por casas e sobrados, sólidos e espaçosos, sobre muros altos de pedra, em meio a jardins, pomares e quintais, numa vizinhança de mentalidade gregária, composta em grande parte por meus familiares maternos e paternos. Tive oportunidade de correr solto em chão de barro, subir em árvores, colher frutas no galho, caçar com pedra e badogue, beber do peito da vaca, jogar gude e furapé, empinar arraia, pegar picula, fazer guerrô, rodar ciranda, brincar de médico, zoar a doida da rua e fugir de assombrações. Minha lembrança mais remota talvez seja produto da imaginação: uma menina branquela e sardenta, dentro de uma blusa de mangas curtas e uma jardineira estampada em azul-claro e rosa-bebê, uma trança 381 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 ruiva atrás de cada orelha, chupando um pirulito caseiro, o vendedor de pirulitos a seu lado, muito magro, mulato, sorridente, mais jovem do que sua aparência, segurando a haste de uma tábua grossa e larga, que era pintada e talhada na forma de um galo de pescoço esticado e bico aberto em pleno canto, os pirulitos cônicos, finos e compridos enfiados nos incontáveis furos do galo e recobertos com um papel amanteigado e transparente, quase impossível de ser desgrudado do torrão doce. Logo atrás, um cata-vento desbotado girando lentamente, com uma paisagem vazia e indefinida mais ao fundo. Ou nada disso. Talvez a recordação mais antiga e verdadeira seja o despertar do infante de cueiros numa tarde mormacenta pensando que fosse de manhã, a falta de disposição acompanhando o confuso hálito das horas trocadas, e a melancolia chorosa avançando através da janela e tomando conta da paisagem de um dia que terminaria logo depois de começar. A infância seguiu. Fui alfabetizado por dona Inha na Banca Olavo Bilac, numa casa miúda dentro da chácara dos Lins Costa. A palmatória só era usada em situações de indisciplina. A falta de atenção era punida com uma reguada no braço e um carão. Os erros na sabatina de aritmética e na soletração da escrita vacilante eram corrigidos com uma pancada do lápis nos nós dos dedos, um daqueles lápis gordos de antigamente. O olhar terno de dona Inha sempre foi para mim, o pupilo preferido, com a tabuada afiada e boa caligrafia. Em sequência, fiz o curso primário na Escola Estadual Antônio Moniz, dirigida por duas tias e minha mãe. A escola funcionava na Chácara São Luís, de meu avô materno, no período entre o tombamento do imóvel, a posse pelo poder público, a contínua depredação e a demolição da casa, que veio depois de destruídos os jardins em louça de Macau. Dessa fase, a imagem dos colegas há muito se desfez, mas a de cada professora ainda está viva. E mantenho guardada a foto em preto e branco, sentado à mesa da mestra, os antebraços apoiados horizontalmente, as mãos uma sobre a outra, peito erguido, olhar firme, o atlas aberto à frente, o globo terrestre à direita, a pilha de livros à esquerda, em beca e gravata, todo importante, senhor do futuro. Não consegui trazer da infância a coleção de insetos guardados secos entre as folhas de um caderno; a de pedras coloridas dispostas numa pequena estante portátil; a de soldadinhos de chumbo e índios de plástico; a de álbuns de figurinhas completados; a de revistas de 382 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 super-heróis; a de livros de estórias com ilustrações de seres fantásticos. E não fixei de modo permanente a emoção das descobertas. Mas guardo a lembrança de um sonho: as sílabas iniciais de meu nome erguendo a Luanlândia, a cidade que eu planejaria e construiria, onde caberiam os irmãos, os primos, os amigos, crianças desconhecidas, os adultos, os personagens das estórias, os brinquedos, a diversão constante, numa festa para sempre comandada por mim. Bem como nunca esquecerei a admiração de dona Aparecida, porque seus filhos Paulinho, Zé e Fran, para correrem da chuva, ela dizia, atravessariam a rua com o livro protegendo a cabeça, mas eu não: eu colocara o atlas contra o peito, sob a camisa ainda seca, abraçado, abrigado, a salvo das águas, enxuto, com o conhecimento ali contido preservado intacto. Após o concurso de admissão, que era obrigatório em toda a rede pública e particular, fiz o curso ginasial no Colégio Militar de Salvador, encerrando-o com a medalha de ouro de primeiro da turma e a espada de capitão-aluno. Aos 15 anos, deixei a Bahia para estudar o colegial, submetendo-me, por vontade própria, ao internato na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Campinas, São Paulo, na primeira metade dos anos 70, nos tempos mais duros do regime militar. Experimentei naqueles mil dias a liberdade precoce de viver longe da família e as amarras do adestramento para uma vida de caserna com a qual eu jamais iria verdadeiramente me envolver. A adolescência me fez ver que eu não tinha disposição para ser atleta. Mas pude, mesmo sem tocar nenhum instrumento e sem ter a voz afinada, liderar uma inusitada banda de rock na rígida disciplina do quartel. Saí para a idade adulta sem experimentar todas as sensações nem solucionar os questionamentos, deixando para trás a vontade de conquistar o mundo. E vem de lá, dos primeiros dezoito anos, ou de antes, este jeito inquieto e irônico de estar ao mesmo tempo próximo e distante de todos e de tudo. Não fiz versos na infância nem na adolescência. Minha leitura de poesia sempre fora eventual, menos frequente do que a de ficção. Monteiro Lobato povoou de sonhos a infância. Jorge Amado excitou a puberdade. Hermann Hesse foi ídolo do adolescente. O jovem adulto passou pelas armadilhas de Machado de Assis. O retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, Cem anos de solidão de Gabriel García Márquez, O coração das trevas de Joseph Conrad e a obra completa de Dostoiévski gravaram 383 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 sua marca da vida inteira. Mas a literatura, não obstante a comoção estética que provocava, não era o principal de meus interesses. A curiosidade enciclopédica e o temperamento compulsivo fizeram com que eu me voltasse para diversas áreas do conhecimento e adiasse decisões quanto à carreira profissional. A certeza do menino de que seria arquiteto se dissipou na adolescência. Em 1975, aos 18 anos, embarquei numa longa travessia da universidade, de onde sairia somente 21 anos depois, no final de 1995, após viajar por engenharia elétrica, matemática, agronomia, educação física, medicina e direito, numa quase odisseia de diplomas de graduação e cursos abandonados. A atração por ciências formais somou-se em mim, paradoxalmente, com o desleixo no aprofundamento teórico, no aprimoramento técnico e no manejo de tecnologias. Nos cursos superiores sempre me atraíram mais as disciplinas básicas, os fundamentos epistemológicos, os postulados e teoremas, as formulações e demonstrações, os prolegômenos taxionômicos, a simplicidade do intrincado de conceitos e definições, os introitos prefaciais, os quadros esquemáticos, as legendas das ilustrações, os índices, os sumários, o conhecimento sumário. Nessa linha entre superficialidade e abrangência, fui buscar fora da universidade experiências e saberes filosóficos orientais, deixando-me envolver pelo cadinho místico hindu, pela sabedoria secular chinesa e pela sofisticação macrobiótica dos japoneses. Enfio aqui a lembrança de que perdi para meus primos, no pôquer caseiro, a coleção de vinis do rock progressivo dos anos 70 e passei a ouvir preferencialmente música erudita. E fui, assim, desenvolvendo aos poucos o sem retorno de querer expressar o inaudito amiúde e o gosto por manifestações artísticas e culturais distantes do popular. Dentre elas, lá adiante, a poesia. A vida acadêmica começou na engenharia elétrica da Universidade Federal da Bahia. Eu era tido como o crânio da matemática e das ciências exatas entre os alunos da UFBA, ao tempo em que folheava compêndios de filosofia e religião, mantinha a curiosidade por livros e mapas de história e geografia, ouvia música nas alturas e assistia a filmes de arte no cine Popular. Em 1978, no oitavo semestre do curso, faltando apenas dois para a formatura, desisti da Escola Politécnica e optei por disciplinas da graduação em matemática. Em janeiro de 1979, parti para uma extensão em funções analíticas no Instituto de 384 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Matemática Pura e Aplicada, no Rio de Janeiro. Com duas semanas, fugi para o mundo. Gastei o resto do ano em curtição e vida à toa entre o Rio, São Paulo e Salvador. Com a morte de Lucinha, esposa de meu irmão Zoza, eu comecei o ano de 1980 em Ilhéus. Somente aí, aos 23 anos, enquanto lia Dostoiévski, isolado na casa em que meu irmão viúvo não mais queria entrar, eu vim a escrever poemas, pela primeira vez na vida, dedicando-os à cunhada falecida, todos eles pueris. Esse rapto de poesia em Ilhéus, surgido após o rompimento com os estudos e um ano de esbórnia na selva urbana, iria evanescer sob a neblina outonal da Chapada Diamantina, em Barra da Estiva, na fazenda de meu irmão Rui, e depois numa confraria macrobiótica do Vale do Capão, onde tomei lições de relacionamento com a natureza e cultivo da terra. Os apelos de uma vida simples e telúrica me conduziram por matas e roçados, pastos e currais, estradas de barro e cascalho, até o curso de agronomia da UFBA, em Cruz das Almas, a partir de 1981. Lá, eu fui invadido pelas ciências biológicas e pelo estudo do solo. Mas eu ensaiaria aí uma segunda e mais forte convulsão lírica. Permanecendo mais na cidade interiorana do que em Salvador, morando numa pensão, depois numa república estudantil, em seguida na residência universitária e, finalmente, no quarto dos fundos da escola primária do campus, vivendo na zona rural e isolado em mim mesmo, imerso em delirante solidão e entorpecidas emoções, eu passei por uma nova fase de poesia incipiente e insipiente, porém apaixonada. E pela segunda vez abandonei um curso universitário muito próximo da conclusão. Um episódio ilustra bem a energia daquele período. A prestigiosa Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária estava promovendo um simpósio internacional sobre temas que já nem sei, para culminar num encontro cultural no auditório, com exposição de arte no saguão e espetáculo de música e poesia no palco, seguido de um coquetel para as autoridades acadêmicas, políticas, religiosas, empresariais e ornamentais. Os poetas inventaram de me convencer, de última hora, a participar da festa, dando-me a honra de encerrá-la. Subi ao palco e declamei meu poema Mentira, enquanto tirava a roupa até a nudez total. O espanto da plateia muda e arregalada só foi quebrado após uma criança apontar e gritar: “Mãe, ele tá nuelo!” Uma euforia apoderou-se dos estudantes. No tumulto, não houve coquetel. Como um astro pop, flutuando sobre o andor de tantas mãos, eu fui levado 385 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 ao campus para a festa da consagração madrugada adentro. E foram meses de uma cidade escandalizada e dividida: de um lado, a indignação dos olhares ameaçadores dos pais de família e as portas que se fechavam à minha passagem; do outro lado, a escolta vitoriosa da juventude, apoiada no sorriso compreensivo dos humildes e na disposição para me proteger e me idolatrar. A Embrapa nunca mais quis saber de poesia. E eu me transformei numa lenda cruz-almense. Antes de abandonar a agronomia e deixar Cruz das Almas, fiz um livro artesanal, Tudo muito pouco, lançado na praça central da cidade, num recital de colegas de faculdade e jovens nativos, quase todos sem dinheiro para a compra de um exemplar. De volta à casa paterna em Salvador, enfurnado entre o quintal e o pomar, no quarto dos fundos que fora de meu irmão Rui e passara a servir de depósito das ferramentas de meu pai e dos botijões de mel de outro irmão, Tonho, eu me isolei do mundo. Só recebia visitas de meu tio poeta, Walter Cajazeira, e escrevia sofregamente tudo o que o cérebro, o coração e demais vísceras me ditavam, envolto por uma nuvem de abelhas que nunca se prestaram a me desconcentrar. E li Augusto dos Anjos, li Fernando Pessoa, li Carlos Drummond de Andrade, e queimei, numa manhã inexata e nublada de 1984, sob a copa da mangueira, os exemplares azuis daquele livro nuelo, além dos versos nus que só as abelhas ouviram. Depois, arrefeci o ânimo da escrita por uma década. Fechado para balanço nos dois primeiros anos, segui comendo arroz integral, estudando o yin-yang, indagando horóscopos e oráculos, abandonando vícios, ingressando nas práticas do corpo, lendo os brasileiros, lendo os portugueses, enquanto morria meu pai, a maioria dos irmãos estava casada, a grande casa era vendida, e a vida se mudava para a Pituba. Em 1986, iniciei o curso de educação física na Universidade Católica do Salvador. No semestre de formatura, elaborei uma proposta de mudança do currículo, que foi aprovada e implantada. Em 1989, ingressei no quadro de professores da UCSAL. No mesmo ano, iniciei o curso de medicina na UFBA, mas desisti no segundo semestre. Chegando aos anos 90, passado dos 30 anos de idade, mas ainda montado numa motocicleta, agora como professor contratado por hora-aula na Faculdade de Educação Física, eu me rendi à obviedade de que sem dinheiro não dava para seguir. Prestei concurso e entrei para o serviço público como técnico da Receita Federal. Em 1991, 386 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 matriculei-me em direito na UCSAL. Em 1992, abandonei a curta docência e, por concurso, passando em primeiro lugar, mudei-me para o Banco Central do Brasil, onde estou há vinte anos. Em 1994, fui morar longe de minha mãe, à imensa distância de dois quarteirões. Adquiri apartamento, carro, eletrodomésticos, móveis, panos e amores. Fisgado, enfim, pela ilusão da posse do dinheiro, eu me convertia num devedor. O ano de 1995 talvez seja o mais importante de minha vida. Não exatamente pelo fato banal de comprar, no final de maio, meu primeiro computador. Inaugurei-o na noite de primeiro de junho, ao passar a limpo a dúzia de poemas feitos à mão em papéis soltos, guardados em quaisquer gavetas, entre 1985 e 1994. Nesses dez anos após a queima dos livros, em ocasos poéticos fortuitos, um aqui, outro bem adiante, eu cometia a inconfidência de uns poucos versos rascunhados ao acaso, abandonados à displicência e logo mergulhados no esquecimento. Mas o computador trouxe-os à tona. De manhã, imprimi e li os poemas em conjunto. E gostei do que li. E me emocionei. E cismei o dia inteiro. E acordei para a poesia em que hoje me reconheço. O dia seguinte foi um sábado de reencontro com alguém em mim que eu mal conhecia. À tarde, cercado por três milhões de sozinhos, eu escrevi o Soneto patético e me vi poeta, finalmente, definitivamente, às vésperas de completar meus 39 anos. No começo desse novo despertar para a poesia, o iniciante digitava os poemas recém-concluídos, discutia-os com colegas de trabalho mais próximos, como Emília Marques, Eduardo Nogueira, Vânia Ramos e Guto Ferraz, submetia-os à apreciação de outros amigos, como Georgeocohama, sendo incitado a mais e mais produzir. E aquele era eu. Com a sem timidez que me caracteriza em tudo o que eu abraço, passei a frequentar lançamentos de livros e outros eventos de escritores. Ganhei a amizade de poetas, o que facilitou a abertura das portas desse ambiente intelectualizado, exacerbado, suscetível e desafiador. Houve Maria da Conceição Paranhos, Carlos Cunha e quem mais que me tomasse como amigo desde a origem dos tempos e me apresentasse a todos como um poeta feito. E houve Ruy Espinheira Filho, Soares Feitosa e quem mais que me abrisse os arquivos de endereços e possibilitasse que leitores de fora da Bahia tivessem contato com minha poesia, que mal saía do nascedouro. Foram surgindo-me novos amigos 387 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 em Salvador, como Gláucia Lemos, novos interlocutores Brasil afora – e um país de poesia e literatura era descoberto por mim. A essa altura, eu já me sentia um poeta em meio a seus pares, pois a convivência com a comunidade literária me permitia, sim, brincar de poeta. Mas era a criação dos poemas em solitário, o prazer de ver o engenho brotar e a arte robustecer-se, a gana pela modelação de uma poética própria que me faziam reconhecer a poesia que há em mim, o poeta que sou. E eu não me inibi perante a poesia. Fiz um grande número de poemas naqueles dias hipnóticos e transidos de liberdade e disciplina criativas. Aos trancos, formei-me em direito no final de 1995, curso que, como os anteriores, eu iniciara de forma apaixonada, mas que não sabia mais do que se tratava. Só havia a poesia. Em nove meses, até o início de 1996, conjurei poemas suficientes para dois livros. Então, desacelerei a lírica e fui acumulando um terceiro volume, cada vez menos, até 2002. Nunca deixei de gostar do título Tudo muito pouco no livro imolado pelas chamas. Mas aqueles relâmpagos de gumes alucinógenos ficaram para trás. As alumiações do passado não eram as mesmas do vulcão cuja luz agora me envolvia. Em dezembro de 1996, a nova estreia em livro: Fiat breu, ilustrado por Vauluizo Bezerra, parceria mantida nos livros posteriores. O selo Edições Papel em Branco era uma invenção minha, e não uma editora comercial. Por vaidade ou insegurança, apoiei-me no exagero de três prefácios: do poeta carioca Alexei Bueno, da crítica baiana Gerana Damulakis e do filósofo português Manuel Sérgio. O lançamento foi num dos mais belos lugares de Salvador: o adro do convento de Santa Teresa, no Museu de Arte Sacra da UFBA. Embora desconhecido da mídia, eu tive apoio generoso da imprensa. Parentes, colegas, muitos outros amigos e alguns curiosos lotaram a festa. O estreante vendeu inacreditáveis 229 exemplares e pagou a edição. No início de 1997, carregando caixas do livro no porta-malas do carro, rumei para fora da Bahia. Até hoje me pergunto como um baiano novato e forasteiro atraiu ao lançamento Assis Brasil, Ivan Junqueira, Adriano Espínola, Paulo Henriques Britto no Rio de Janeiro e José Paulo Paes, Carlos Felipe Moisés, Orides Fontela, Nelson Archer em São Paulo, dentre outros escritores. De volta a Salvador, a vida literária me sorria. No final de 1998, porém, os ventos me sopraram para longe da poesia, que não encontrava ânimo para enfrentar um adversário 388 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 inesperado: a liderança sindical. Fortuitamente, ingressei no conselho dos servidores do Banco Central. Assumi a direção das relações externas, passando a ir a Brasília toda semana, na defesa de interesses da categoria perante os membros do Congresso Nacional, além de contato com órgãos de imprensa e reuniões com dirigentes do BC. Nessa atividade intensa de encontros, audiências e esbarrões, cheguei a ter o número do celular de uma centena de parlamentares, alguns no desfrute de chamar-me de Cajá. Transitei em muitos gabinetes e pude ver de perto o jogo político, que às vezes descamba para o vale-tudo e obedece à máxima anti-iluminista: o mau selvagem emerge do fundo de suas platitudes. A semana em Brasília, os fins de semana sumiam em reuniões no Rio de Janeiro e em São Paulo. Até saturar e voltar ao batente da repartição, cinco anos como caixeiro-viajante, mercando barganhas corporativas e afrouxando os vínculos, rumo ao sem destino. Antes do sindicato, eu acumulava dois livros inéditos. Um deles, Como se, pronto desde o início de 1996. O outro, Temporal temporal, quase finalizado àquela altura, ainda receberia uns poucos poemas até 2002. Em meados de 1998, os originais de Como se haviam recebido menção honrosa no Prêmio Cruz e Sousa, da Fundação Catarinense de Cultura, por decisão dos julgadores: Alexei Bueno, Iaponan Soares e Ivan Junqueira. Em seguida, foi aprovada a edição pelo conselho editorial da Fundação Cultural do Estado da Bahia, com parecer favorável do relator, o poeta Florisvaldo Mattos. O livro foi publicado com o selo estatal Letras da Bahia e orelhas assinadas por Antônio Houaiss e André Seffrin. O lançamento foi nesta Academia de Letras, em agosto de 1999. Mesmo sem lançamentos em São Paulo e no Rio de Janeiro, a repercussão de Como se foi maior do que a de Fiat breu, com resenhas em jornais principais do país. Mas eu já estava completamente mergulhado na atividade sindical e apenas mantinha as amizades no meio literário de Salvador e do Rio de Janeiro. Em 2000, o livro seguinte, Temporal temporal, ganhou o Prêmio Gregório de Mattos, da ALB, julgado por Antonio Carlos Secchin, Florisvaldo Mattos e Ruy Espinheira Filho, sendo publicado em 2002 pela editora carioca Relume Dumará, com quarta capa assinada por Hélio Pólvora e um alentado estudo crítico de Aleilton Fonseca no prefácio. Lancei-o na Câmara dos Deputados, a convite do presidente Aécio Neves, e não dei conta de autografar mais de 600 exemplares, 389 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 longa jornada noite adentro. Foi curioso ver deputados e senadores, alguns futuros governadores, disputando fila com assessores, funcionários da casa e dirigentes classistas. Mas o grande evento foi na Academia Brasileira de Letras, na presença de mais de 20 acadêmicos e muitos amigos. A Academia de Letras da Bahia foi representada por Hélio Pólvora e Waldir Freitas Oliveira em Brasília e no Rio de Janeiro, respectivamente, em razão do Prêmio Gregório de Mattos, cuja patrocinadora, a Copene, atual Braskem, teve de bancar nova tiragem para o lançamento em Salvador. Ainda fiz em Recife, no Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, um lançamento compartilhado com Ariano Suassuna. A vida sindical foi até 2004. Pensei que não voltaria a escrever. Sequer lia poesia. Em 2006, após quatro anos sem fazer versos e meses sem contato com poetas, recebi da escritora Kátia Borges um e-mail com seu poema Santiago. E a melancolia me deu um aceno. No sábado, um verso de Elizabeth Bishop, que traduzo como “a arte de perder não é difícil de dominar”, me fez escrever Bolha de sabão, um poema de perdas e saudade. No domingo, o filme O segredo de Brokeback Mountain, de Ang Lee, adaptado do conto de Annie Proulx, arrancou de mim versos sobre não sei quais idílios guardados e em guarda. Era a poesia de volta, à revelia, amorosa como nunca. Um sorriso de musa satisfeita com seus mistérios de sedução impregnava os ambientes e a solidão. Fiz vinte poemas em pouco mais de um mês. Juntei-os a uma seleta dos livros anteriores e celebrei meus 50 anos com a antologia Mais que sempre, publicada em 2007 pela editora carioca 7Letras, com orelhas de Antonio Carlos Secchin e quarta capa de Ruy Espinheira Filho. De lá para cá, tenho escrito pouco. Mas estou sempre revisando e burilando minha poesia, reescrevendo os livros publicados, zeloso de meus zelos, mestre e peão de uma oficina poética e editorial insatisfeita e incansável. Ao longo dos anos, minha poesia vem amealhando uma generosa fortuna crítica, como a dissertação de mestrado Luís Antonio Cajazeira Ramos – Um sísifo absurdo na poesia contemporânea, de Luciana Santos Oliveira, pela Universidade Estadual de Feira de Santana, elaborada sob a orientação de Aleilton Fonseca. Tenho poemas em antologias do Brasil, de Portugal e da França, em revistas como a da Academia de Letras da Bahia e em sítios na internet. Já participei de encontros literários em Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Fortaleza e 390 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 outras cidades, como palestrante ou mediador, em eventos de grande porte, como bienais do livro, ou pequenos saraus, como Com a palavra o escritor, da Fundação Casa de Jorge Amado. Já assinei apresentações e resenhas de livros de alguns autores, como Aleilton Fonseca, Carlos Ribeiro, José Inácio Vieira de Melo, Kátia Borges, Lima Trindade. Já publiquei crônicas e artigos de opinião na mídia impressa. E já escrevi dois ensaios, ambos publicados na revista Iararana. O primeiro, intitulado Transcendência inconsútil, sobre a poesia de Carvalho Filho. O segundo, denominado Força épica e vasto lirismo, quem sabe dê partida à dissertação de um sempre adiado mestrado sobre meu poeta Florisvaldo Mattos. Sou membro da Ordem dos Advogados do Brasil e nunca exerci a advocacia. Sou sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia sem uma atuação efetiva. Agora, sou membro desta Academia de Letras da Bahia, com a qual meus vínculos vão além das noites de autógrafos, da colaboração na revista e do Prêmio Gregório de Mattos. Meu namoro com esta casa, incentivado pelo poeta Carlos Cunha, começou em 1995. Reatamos em 2003, quando fui convocado pelo saudoso presidente Cláudio Veiga para tomar posse, em nome deste sodalício, do acervo autoral de Durval de Moraes, doado pela família do poeta simbolista baiano. Noivamos em 2009, quando passei a coordenar os Encontros Literários na ALB a convite do ex-presidente Edivaldo Boaventura. Aqueles encontros de escritores, críticos e público leitor, com minha mediação, foram momentos especiais da inserção acadêmica na vida cultural e de minha relação com o meio literário. Há sete dias, numa cerimônia pré-nupcial, coordenei um encontro dos acadêmicos com os candidatos a prefeito de Salvador e agentes culturais da cidade. Agora estamos casados, celebrando nosso matrimônio. Os acadêmicos e os funcionários são para mim uma família. E a Academia será sempre uma companheira. Vivo em Salvador e amo minha terra, embora eu seja imune a muitas manifestações de sua identidade cultural. Não tenho dúvidas de que herdei de nossa aldeia a alegria inescrupulosa e o prazer de estar preso à sintaxe comportamental da baianidade. A cidade, meu Bahia, a música de Beethoven e a poesia são territórios de minhas constâncias. O mais é imprevisível. Irreverência, intransigência e inconsequência provocam rompimentos, alguns ilusórios, outros duradouros. Este é meu jeito: 391 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 transpondo sempre as fronteiras da autopermissividade. Houve um tempo de seu Pedrito e dona Mary com os filhos Peta, Zoza, Rui, Graça, Tonho, Paloca, Cãe e Ná. E ainda sou ligado à família. Mas a vida conduz os destinos. O meu é sem Deus, sem pátria e sem remédio. Gosto dos amigos à minha volta em 12 de agosto, o dia mais feliz do ano. Afeito à perdição, meu porto seguro é Misso, meu filho eletivo. E a inspiração, o coração, a alma, a fortuna da casa é Laura Júlia, sua filha, minha afilhada, gerada e nascida em 1995, ano do abismo e da pedra preciosa, quando me transformei em poeta. Muito obrigado. __________ Discurso de posse, na Cadeira nº 35, proferido pelo poeta Luís Antonio Cajazeira Ramos, no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, em 2 de agosto de 2012. O acadêmico foi recepcionado por Fernando da Rocha Peres, titular da Cadeira nº 25 da ALB. 392 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Discurso de posse na Cadeira nº 9 da ALB João Ubaldo Ribeiro Senhoras e senhores, Antes de fazer o pequeno discurso de agradecimento que se seguirá, preciso dar uma explicação. Tenho ciência da prática de, no momento da posse, falar-se em louvor dos ocupantes anteriores da cadeira até então vaga. Mas, como pretendo homenagear a Bahia e os baianos, acredito que, louvando a Bahia, também os estarei louvando. Além disso, e mais importante, suas biografias e fortunas críticas hão de ser muito mais bem servidas nas mãos de literatos e historiadores habilitados, o que está longe de ser meu caso. Refiro-me ao patrono da Cadeira 9, Antônio Ferreira França, e aos ilustres confrades José Alfredo de Campos França, Edgard Ribeiro Sanches e Antônio Luiz Machado Neto, o último dos quais um pensador notável, de quem fui aluno e permaneço admirador. Abro, contudo, exceção para Cláudio Veiga. Com minha decisão de não falar sobre cada antecessor, ele seria o único a não ter seu nome e sua obra lembrados na posse de um sucessor, o que configuraria injustiça muito grave. No meu caso, mais grave ainda, porque, para alegria minha, conheci-o pessoalmente e me relacionei mais ou menos de perto, não só com ele, mas com outros membros de sua família, tantos deles conceituados intelectuais e educadores. Cavalheiro de maneiras e trato incriticáveis, era um homem de letras por excelência e um mestre apaixonado pelo que ensinava. Autor de ensaios, antologias e traduções modelares, dedicou-se por inteiro à sua vocação, cumprida com brilho e destaque, não apenas 393 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 aqui, mas também no exterior. Sua obra, não pequena, permanece importante e atual. À frente desta Academia, foi um trabalhador infatigável e devotado, que deixou um legado talvez inestimável. A meu amigo, o escritor Cláudio Veiga, antecessor que muito me honra, presto, portanto, minhas mais sinceras homenagens e reitero o preito de admiração que tive a enchança de manifestar-lhe em vida, mais de uma vez. Queridos conterrâneos e amigos, este é para mim, acima de tudo, um dia de extraordinária celebração, um dia de consagração e glória. Nada equivale ao que estou vivendo agora. Recebo hoje um prêmio que me exalta e enobrece mais que qualquer outro: a expressão do reconhecimento e da estima de meus concidadãos, o abraço da minha terra, o insubstituível sentimento de ver compreendido, e com tanta generosidade retribuído, o intenso amor que sempre lhe votei, e que transborda de tudo o que faço. Ingresso nesta Academia com grande orgulho. Recebo, através dela, mais do que mereço, mas nem por isso rejeito os louros. E a principal razão para que eu aja assim é que esses louros não são meus, são da Bahia, são de nossa singular civilização, são da força cultural que sempre nos distinguiu. Sou filho da Bahia, filho da Denodada Vila de Itaparica, filho do Recôncavo Baiano, filho dessa costa venerável cujas ondas testemunharam o nascimento da nacionalidade brasileira. Sou cria do Colégio Estadual da Bahia, Seção Central, o grande Central, verdadeira universidade pública, onde mestres e educadores inesquecíveis ministravam, através das aulas e dos exemplos, a melhor formação que se podia obter. Sou, ainda mais, cria da sempre celebrada Faculdade de Direito da Bahia, onde fui educado numa tradição humanista esclarecida, eloquente e libertária, entre juristas e pensadores de nível universal. Na faculdade, aprendi a ser cidadão, aprendi a escrever, aprendi que modelos admirar e adotar, incorporei valores básicos, convivi com espíritos eminentes, fiz discursos, escrevi artigos, disputei campanhas, perpetrei poemas, encenei peças. E, finalmente, sou cria do velho Jornal da Bahia, onde outros mestres também me formaram, na profissão que até hoje exerço. Na Bahia aprendi o encanto de andar de madrugada com as pedras das ruas molhadas pela chuva recente, vendo meus amigos, tanto os da minha idade quanto os mais velhos, parar, abrir os braços, apontar 394 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 os campanários ou o casario de Santo Antônio Além do Carmo, e recitar poetas do mundo todo, com quem nos sentíamos irmanados. Andei com pintores, escultores, cantores, mágicos de rua, jagunços, vagabundos, cafetinas lendárias, mulheres enigmáticas, anarquistas, stalinistas, trotskistas, fascistas, músicos loucos, ouvi todos os sotaques. Conheci gente mitológica, escutei e contei colhudas* e narrações de milagres portentosos, naveguei de saveiro pelas águas da baía, fiz samba de roda, saí de mulher num carnaval, participei de expedições de pesca, virei cozinheiro, sonhei com revoluções, marchei em passeatas e agitações nas praças, assinei manifestos vanguardistas, desfilei no Sete de Setembro, levei moças para conhecer o luar de Abaeté, tirei muitas vezes nota dez em redação, mas também já tomei zero, decorei Virgílio, pesquei em provas de Matemática, editei suplementos literários, li Sartre, frequentei a porta da Livraria Civilização Brasileira da Rua Chile, onde não conhecer as novidades culturais podia resultar em opróbrio, algumas vezes parei à meia-noite à porta da Catedral, junto com amigos, achando que ouvíamos o fantasma do padre Vieira lá dentro, esbravejando contra os hereges holandeses. Que mais me deu a Bahia, que mais nos deu, com que outras graças nos rodeou e nos criou? Bem mais fácil seria enumerar o que ela não nos deu. Quanto a mim, é impossível empreender esse inventário, sou devedor, não sou credor de nada. Não há como fazer a lista de tudo o que plasmou minha maneira de ver, sentir e expressar o mundo, de gente de todas as extrações que me ensinou alguma coisa e me tornou o que sou. Não é ufanismo bairrista dizer que a Bahia é um privilégio para quem nasceu nela, ou por ela foi adotado. Em nenhum outro país do mundo se deu a mistura de gente que sempre foi comum no Brasil e continua a ser. E, no Brasil, não há lugar onde essa mistura de corpos e mentes seja tão universalizada quanto na Bahia, onde faça parte tão entranhada da paisagem humana. Como se aqui se realizasse um intento do Criador, passamos por cima de todas as barreiras que foram criadas e ainda são criadas contra a integração da Humanidade. As culturas de origem africana trazidas para cá, em todas as suas manifestações, não morreram aqui, mas se transformaram e se revivificaram, e hoje, apesar * Ao ler o seu discurso, o acadêmico pronunciou o termo “mentira”em lugar de “colhuda”, que se encontra no texto original. 395 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 de às vezes não percebermos bem essa realidade, espantosa em qualquer outro país, são um exemplo para o mundo. Aqui se dissolveram, numa mistura esplendorosa e fecunda, original e única, raças, crenças, costumes, falas, hábitos, gostos e aparências – é difícil avaliar como isso é precioso e raro, forte e delicado ao mesmo tempo. Basta trazer à mente a História, pregressa e presente, de nossa espécie, para verificar como dificilmente, ou nunca, esse fenômeno acontece. Mas acontece aqui e assim se define nossa identidade. Somos os detentores – e temos o dever de também ser os guardiães – dessa magnífica singularidade. Não somos brancos, negros ou índios; somos baianos. Não pertencemos, no maior rigor da palavra, a nenhuma religião, nem mesmo somos ateus; somos baianos. Não pretendemos ser melhores que ninguém. Mas somos baianos. Encerro este agradecimento com algumas referências essenciais. Quero, em primeiro lugar, com amor, gratidão e saudade, lembrar meu pai, Manoel Ribeiro, minha mãe, Maria Felipa Osório Pimentel Ribeiro, e minha irmã, Sônia Maria Ribeiro Bandeira. Ressalto o apoio e a amizade de meu irmão, Manuel Ribeiro Filho. Agradeço a bênção que representam meus filhos, Emília, Manuela, Bento e Francisca. E, sobretudo, agradeço a minha mulher e companheira, Berenice, que, há mais de trinta anos, me deu a perene felicidade de aceitar meu nome. Muito obrigado. __________ Discurso de posse, na Cadeira nº 9, proferido pelo escritor João Ubaldo Ribeiro, no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, em 22 de novembro de 2012. O acadêmico foi recepcionado por Joaci Góes, titular da Cadeira nº 7 da ALB. 396 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Discurso de posse Membro correspondente da ALB Dominique Stoenesco Ao tomar posse como membro correspondente desta tão prestigiosa academia, quero exprimir a honra que este encargo representa para mim e a imensa alegria que sinto. Nós, franceses, por vezes somos acusados de sermos cartesianos. Mas hoje vou desmentir este preconceito soltando as rédeas dos meus sentimentos e concordando com esta afirmação de um dos nossos maiores pensadores, Montaigne: La passion nous commande plus vivement que la raison. Começarei recordando a primeira vez que aqui estive, no ano de 2000, com um grupo de professores de francês na França, para um encontro com professores e escritores baianos. Ficará sempre gravado na minha memória o primeiro encontro com o professor Cláudio Veiga, naquela altura presidente desta Academia. Impressionou-me logo de início seu humanismo, sua simplicidade e sua extrema generosidade. Como simples cidadão francês e amador das línguas e das literaturas, não poderia deixar de exprimir minha admiração pela obra do professor Cláudio Veiga sobre a literatura francesa, assim como seu amor pela nossa cultura. Não ficamos insensíveis à hospitalidade com que fomos recebidos, e foi para mim uma enorme satisfação poder travar conhecimento com novos autores baianos. Pois daí nasceu um intercâmbio cultural ativo e produtivo e desenvolveram-se laços de profunda amizade entre nós. Por isso, hoje, sinto-me bem nesta tão acolhedora Casa. Não por vaidade, mas porque tenho uma grande 397 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 paixão pela cultura baiana, pelas suas artes e literatura, e também porque amo a Bahia e seu povo. Há poucos dias, ao chegar à fronteira entre a Bolívia e o Brasil, após uma longa travessia do Peru e da Bolívia, de ônibus, tive que percorrer uns 300 metros a pé, de mochila nas costas, para ir pegar um coletivo, do lado brasileiro, que me levasse até Corumbá, a uns 10 quilômetros daí. Era ainda de manhã cedo, a parada do coletivo, um simples abrigo no meio de uma terra vermelha e poeirenta, estava rodeada de algumas palmeiras e de outras árvores exuberantes. Ora, esperando o ônibus, qual não foi a minha alegria ao ouvir cantar um bem-te-vi. Interpretei este canto como um sinal de boas-vindas e então pensei naquela frase de Jorge Amado: “Se for de paz, pode entrar.” E entrei, fiquei animado, pois não tinha dormido durante toda a noite por causa da desconfortável viagem. A França e o Brasil têm longos capítulos de história em comum. Mas nem sempre os franceses vieram aqui de paz. Por exemplo, a tentativa de Villegaignon de fundar neste país uma França Antártica, ou o sequestro da cidade do Rio de Janeiro pelo corsário DuguayTrouin foram momentos de violência e de morte. Felizmente, hoje, estes episódios não alimentam nenhum rancor e são outros fatos, bem mais pacíficos, como a vinda ao Brasil da Missão cultural francesa, no início do século XIX, que prevalecem na nossa memória coletiva. É para nós um grande orgulho saber quanto os brasileiros, e em particular os baianos, amam a França e sua história, sua cultura, seus autores, suas catedrais, seus castelos, sua gastronomia, etc. Porém, como professor de língua portuguesa na França e especialmente como passeur (passador) da cultura brasileira, preocupa-me saber se a reciprocidade existe e se nós, franceses, retribuímos com a mesma intensidade e fidelidade o interesse dos brasileiros pela nossa cultura. É, aliás, neste contexto que tentarei situar minha ação como membro correspondente da Academia de Letras da Bahia. Fiquei triste e revoltoso ao mesmo tempo quando na semana passada li no muro de uma faculdade baiana esta frase em forma de protesto: Vous parlez français? Não, eu não tenho professor! É pois urgente que a França e o Brasil unam suas energias para resolverem este tipo de carência. O ensino recíproco das nossas línguas, além de ser um elemento enriquecedor na educação e na 398 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 formação dos jovens, constitui uma das alternativas para escaparmos à uniformização total de um mundo cada vez mais globalizado. Não vou surpreender ninguém nesta conceituada agremiação literária citando, por entre os brasileiros mais conhecidos na França os nomes de Chico Buarque, Maria Bethânia, Vinicius de Moraes, Glauber Rocha, Walter Salles, Pelé, Sebastião Salgado ou Gilberto Gil. Vou surpreender ainda menos afirmando que, no mundo das Letras, o brasileiro mais conhecido, mais traduzido e mais lido na França é o tão saudoso escritor baiano Jorge Amado. Para sermos honestos, também devemos citar Paulo Coelho, cujos livros estão sempre expostos nos primeiros lugares das vitrines de qualquer livraria francesa. O Brasil é um país que sempre atraiu muito os franceses. Desde a década de 60, a música e a literatura brasileira têm sido muito difundidas na França. A bossa-nova e o cinema novo brasileiro foram os primeiros grandes impactos da cultura brasileira. Em literatura, como já dissemos, Jorge Amado teve, e continua tendo, um lugar de primeiro plano. Capitães da Areia, por exemplo, é por vezes lido e estudado nas escolas secundárias. Por entre os outros autores podemos citar Guimarães Rosa, que não é baiano mas fala do interior baiano na sua obra; Graciliano Ramos; João Ubaldo Ribeiro, que fez parte recentemente do programa de recrutamento de professores, com seu livro Viva o povo brasileiro; o Pe. Antonio Vieira, um dos grandes vultos da arte oratória, também traduzido em francês; Antonio Torres, com três livros traduzidos na editora parisiense Métailié, criada em 1979, e que atualmente mais autores brasileiros publica, numa coleção totalmente constituída por autores brasileiros. Podemos afirmar que esta editora inaugurou uma etapa importante nas mentalidades e na evolução da imagem do Brasil na França. Não podemos deixar de citar igualmente outros autores bastante estudados nos departamentos de português de algumas universidades francesas: Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, Clarice Lispector ou Moacir Scliar. Outro momento determinante para a promoção do livro brasileiro na França foi o primeiro salão das “Belles Étrangères”, em Paris, em 1987, que o Ministério da Cultura francês decidiu dedicar aos autores brasileiros. Em 1998, o Salão do Livro de Paris alcançou o maior sucesso de todos os tempos, em número de visitantes, tendo como convidado de honra o Brasil. Durante estes 399 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 dez últimos anos, outros eventos importantes também marcaram a presença brasileira na França, tais como: a exposição de arte barroca brasileira, no Grand Palais, um dos salões mais prestigiosos da capital francesa; no ano de 2000, no âmbito dos 500 anos do descobrimento do Brasil pelos portugueses, o jornal Libération publicou um dossiê especial sobre o Brasil, com artigos sobre música, ecologia e literatura; o jornal L’Humanité sobre “Les enfants de Bahia”; a revista semanal Le Point publicou um rico dossiê de 20 páginas intitulado “Brésil: um géant du XXIé. Siécle”. Ainda em 2000, aconteceu em Paris o “Festival de la Villette de Paris”, com a presença, principalmente, de Maria Bethânia, Gilberto Gil, Lenine, Paulinho da Viola; em 2005, ano do Brasil na França, dois grandes projetos, entre outros numerosos, foram realizados: o concurso sobre a cultura brasileira, organizado conjuntamente pelo Ministério da Educação Nacional francês e pela Associação para o Desenvolvimento dos Estudos Portugueses, Brasileiros, da África e da Ásia lusófonas, destinado aos alunos de todas as escolas secundárias, e o concerto “Oi Brasil!”, na sala Zénith, em Paris, com Lenine acompanhado por um coro de mais de mil alunos. Este concerto necessitou um trabalho preparativo e pedagógico nas escolas que durou em média 6 meses. Enfim, para não sermos exaustivos, lembremos que desde há doze anos se realiza em Paris o Festival du Cinéma Brésilien, organizado pela associação francesa Jangada. Podemos medir o interesse pela literatura lusófona, e principalmente brasileira, na França, através de dois ou três indicadores, como as traduções, os estudos de português ou os leitores. Como já foi evocado mais acima, as numerosas manifestações culturais apresentadas durante o ano do Brasil na França permitiram relembrar a longa e rica história que liga os dois países desde o século XVI, que se enriqueceu no século XIX e que não cessa de se desenvolver ainda hoje. A difusão do livro, e, no nosso caso, do livro traduzido, sendo um dos aspectos que mais nos interessa, vejamos num breve esboço alguns dados relativos à edição em língua francesa na França de autores brasileiros ou sobre o Brasil. Até a I Guerra Mundial, o ritmo de publicação do livro brasileiro na França era de 1 livro cada dois anos; entre as duas guerras este ritmo cresceu para 1 livro por ano, evoluindo rapidamente a partir de 1950, para atingir nos anos 80 o número de 20 títulos por ano. Comparando, 400 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 por exemplo, a situação na França com a situação nos países de língua inglesa, em 1994 a França traduziu três vezes mais. No entanto, em comparação com o espaço crescente que a edição francesa concede ao livro estrangeiro (lembremos que a França é o país onde se traduz mais livros estrangeiros), o Brasil ocupa ainda um espaço bem pequeno: em 1994, as editoras francesas adquiriram os direitos para 1.347 livros ingleses, 89 germânicos, 58 espanhóis e 14 da língua portuguesa. Paralelamente ao desenvolvimento da edição do livro brasileiro na França, a imagem do Brasil e o nosso olhar sobre este país evoluíram. Houve uma primeira fase em que predominava a imagem dos Descobrimentos, da terra dos Índios e do Canibalismo, temas que foram bastante abordados na França, ainda recentemente, pelos romancistas Patrick Grainville, Erik Orsenna e Jacques Ruffin, com o livro Rouge Brésil. Até o século XIX, a literatura brasileira (salvo Machado de Assis) não interessava aos franceses. Entre as duas guerras mundiais a edição francesa abre-se um pouco mais aos escritores brasileiros, sobretudo através de Blaise Cendrars, Benjamin Perret, Claude LéviStrauss e Roger Bastide. Para estes autores os dois polos de atração eram o Nordeste e a Amazônia. A vertente afro-brasileira, o sincretismo e a mestiçagem constituem igualmente uma fonte inesgotável de criação literária. Por exemplo, Benjamin Perret se interessa pelo quilombo de Palmares; outros autores exploraram a literatura de cordel. Essa atração favoreceu, no campo editorial, o aparecimento de dois “fenômenos”: a publicação da tradução de um romance de Jorge Amado, Bahia de Tous les Saints (1938) e a do livro Maîtres et Esclaves (1952). Porém, este entusiasmo tropicalista francês teve o seu lado negativo: para os franceses, a literatura brasileira não ia além do Rio de Janeiro, ignorando Belo Horizonte, São Paulo, Rio Grande do Sul. No entanto, a construção da nova capital brasileira, assim como o impacto do Fórum Social de Porto Alegre, trouxeram a cidade e o mundo urbano para a cena mundial e também editorial. Concluindo sobre esta questão da edição, podemos dizer que hoje o balanço é feito de contrastes. Por um lado, um trabalho notável foi desempenhado no domínio da prosa literária, como já vimos. E se adicionarmos as obras brasileiras e os romances franceses consagrados ao Brasil, os livros de arte ou sobre a arte, os manuais e os livros práticos, o total atinge uma média anual de 401 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 50 títulos. No entanto, ainda subsistem vários pontos de fraqueza: as grandes editoras, submetidas aos critérios comerciais, renunciam publicar setores importantes da cultura brasileira e ao mesmo tempo não se arriscam ou não ousam explorar a produção contemporânea. Este trabalho de sentinela velando pela renovação dos autores e das gerações, assim como pela consolidação do fundo clássico, é atualmente desempenhado apenas por pequenas ou médias estruturas, como Métailié, mas também Chandeigne, Corti, Rivages ou Eulina Carvalho, com todas as dificuldades que tal situação provoca para poder levar o livro até o leitor. Ora, este trabalho de sentinela é fundamental, pois estamos talvez numa fase em que os nomes dos autores que há pouco tempo se situavam em primeiro plano estão desaparecendo sem que os novos se tornem conhecidos pelo público, a não ser alguns nomes como Antonio Torres, Bernardo Carvalho ou Luiz Ruffato. Outro indicador que nos permite medir o interesse pela cultura brasileira, como anunciamos mais acima, é o ensino e o estudo da língua portuguesa na França, onde este ensino está enquadrado dentro dos mesmos regulamentos e currículos das outras línguas ensinadas no sistema educativo francês. Os alunos podem escolher os idiomas em qualquer nível do ensino fundamental ou médio, ou seja école primaire, collège e lycée. Os alunos que se orientam para as formações literárias podem estudar até 3 línguas. O português foi introduzido no sistema educativo francês nos anos 60 e oficializado nos anos 70, com a criação do concirso de recrutamento de professores do Secundário (o CAPES – Certificat d’Aptitude à l’Enseignement Secondaire), e depois, em 1974, com o concurso de mais alto nível, a Agrégation. Mas desde 1920 já existia, em algumas universidades, um professor de português. No início dos anos 70, quando este ensino se oficializou, ele se relacionava principalmente com a imigração portuguesa na França, que somava mais de um milhão de pessoas. Porém, com a independência dos países africanos de expressão portuguesa, depois da Revolução do 25 de abril em Portugal, e com a ascensão do Brasil no grupo das dez maiores potências econômicas mundiais, o ensino da língua portuguesa na França passou a ter uma dimensão mais diversificada, incluindo nos seus currículos estas novas realidades do mundo lusófono. Hoje aproximadamente 30 mil alunos aprendem a língua portuguesa, a maioria sendo franceses. Não podemos deixar de 402 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 lembrar duas figuras dos estudos lusófonos na França que realizaram um trabalho de pioneiros nos anos 70 e que tiveram um papel determinante na criação dos cursos de português no ensino secundário público francês: Solange Parvaux e Raymond Cantel. Montaigne: “Le voyage me semble um exercice profitable. L’ âme y a une continuelle exercitation à remarquer les choses inconnues et nouvelles, et je ne sache point meilleure école”. Muito obrigado. __________ Discurso de posse, proferido pelo ensaísta e tradutor Dominiques Stoenesco, no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, em 1º de setembro de 2009. 403 R EVISTA DA 404 A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Saudação a Dominique Stoenesco Aleilton Fonseca Prezado professor e tradutor Dominique Stoenesco: Seja bem-vindo. O senhor toma posse nesta Casa, como dileto membro correspondente, no ano em que nosso país fortalece os laços com sua pátria natal, comemorando o “Ano da França no Brasil”. Este ato representa, portanto, de modo especial para nós, uma prova e um registro de mais um gesto de aproximação de duas culturas parceiras, sobretudo a partir do século XIX e até os nossos dias. Num mundo contemporâneo e globalizado, em que as relações internacionais são cada vez mais tensas, e marcadas por diferenças políticas, econômicas e culturais aparentemente incontornáveis, cabenos refletir sobre o papel das interações simbólicas, no interior da cultura, como forma de gerar diálogos, reflexões e conhecimentos mútuos, capazes de criar condições de convivência, compreensão, aceitação e reconhecimento entre os povos, entre as nações, entre os estados, entre as pessoas de diferentes regiões do mundo. De fato, ainda mais do que o intercâmbio comercial, diplomático, científico e turístico, é a cultura, em sentido ainda mais amplo, aí destacando-se a língua, a literatura e as artes em geral, que fornece os elementos essenciais para as trocas simbólicas, como um fator fundamental da interação e integração entre os povos. 405 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Se isso é verdade, então a França é um dos países mais cosmopolitas que conhecemos. Ciosa de sua cultura e suas tradições, a França sempre enxergou as alteridades culturais e tenta compreendê-las e com elas dialogar. Assim, está sempre atenta ao conhecimento e ao estudo das culturas estrangeiras. Suas universidades mantêm cursos e grupos de pesquisa dedicados ao estudo das diversas comunidades e nacionalidades espalhadas pelo mundo. Por sua vez, o seu sistema de ensino oferece, nos seus Liceus, desde cedo, cursos de vários idiomas, para que os alunos escolham aprender alguns deles. A nossa língua portuguesa e suas diferentes culturas, reunidas sob a denominação geral de lusofonia, fazem parte desse universo, com um número significativo de alunos matriculados, segundo os registros oficiais. As grandes universidades mantêm departamentos de ensino de português e estudos lusófonos, com uma extensa programação anual de eventos, debates, mesas-redondas, palestras e cursos sobre temas e situações históricas e contemporâneas de países como Portugal, Brasil, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Trata-se de um trabalho de valorização de povos e suas culturas, num gesto de estado e nação amigos, que fomenta o conhecimento, diálogo e a admiração mútuos, contribuindo para a integração cultural, que é, com certeza, uma das bases sólidas para a conquista e manutenção da paz entre os povos. Como parte desses esforços, a cada dois anos têm vindo ao Brasil, e particularmente à Bahia, grupos de professores de português na França, sob a liderança dinâmica e sempre simpática do Prof. Dr. Michel Perez, para colher aqui, entre nós, informações, imagens, quadros, experiências, alargando os seus conhecimentos e seu juízo crítico sobre nossos diferentes traços materiais e culturais, incluindo a literatura, as tradições populares, as artes plásticas, a música, o teatro, a arquitetura, a história e demais campos da experiência humana. De volta às salas de aula, mais estarão enriquecidos e motivados para transmitir aos alunos as imagens locais e o interesse pela língua portuguesa e suas culturas. O senhor, Prof. Dominique, fez parte desse grupo – e nessa condição esteve na Bahia e em outros estados do nosso país, em missão didática e cultural. E foi nessa condição que conheceu esta Academia, no ano 2000, e dela se tornou um admirador e um amigo. 406 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 A Academia de Letras da Bahia se engrandece com sua presença em seus quadros de honra. Num momento em que a Casa busca uma maior abertura ao ingresso de intelectuais participativos, para além dos limites geográficos do Estado, e com a adoção de uma política de inserção cultural mais ampla no mundo das Letras, em diálogo com a comunidade universitária e entidades afins, o senhor é aqui acolhido como professor, editor de revista cultural e tradutor, com uma trajetória de amizade e admiração por nossas letras, nossa história e nossa cultura, o que o torna credor de nosso alto apreço e da nossa profunda gratidão. Senhoras e senhores: o Prof. Dominique Stoenesco é um intelectual laborioso, que vem dedicando sua vida à difusão da língua portuguesa na França, atuando na seara cultural, editorial e sindical, em defesa dos interesses da lusofonia na pátria de Victor Hugo e Charles Baudelaire. Nascido em 1944, é natural de Besançon (França), cidade de nascimento de Victor Hugo. Há pouco aposentou-se como professor de português do ensino público, depois de décadas de trabalho em prol da conservação do português como um dos idiomas ensinados e falados na França. Desde jovem, entusiasmado pelo idioma de Camões, Machado de Assis e Fernando Pessoa, Stoenesco resolveu estudar a língua lusitana como formação acadêmica e profissional. Assim, formou-se em Létres/ Portugais langue etrangére, na Université de La Sorbonne (Paris III). Realizou vários estágios pedagógicos, linguísticos e culturais em Portugal, no Brasil e em Cabo Verde. Participou da elaboração e da redação de manuais e de documentos didáticos e pedagógicos de português. Também trabalhou como intérprete e tradutor e foi professor de português jurídico durante 11 anos na Universidade de Paris XII – Val-de-Marne. Participou e continua a participar intensamente do movimento associativo português na França. Foi presidente do Rádio Clube Português, na região de Paris. É membro fundador e coeditor da revista Latitudes-Cahiers lusophones, criada em Paris, em 1997, com vários dossiês sobre autores e temas brasileiros, inclusive baianos. Também é redator da revista Les langues néo-latines (Paris) e colabora na revista de arte e literatura Iararana (Salvador da Bahia) e na revista Légua e Meia (da UEFS), na qual publicou um longo e importante artigo sobre os poetas de expressão portuguesa radicados na França e sua produção lírica de natureza diaspórica. Nesse artigo ele demonstra que, nos anos 1960-70, a emigração portuguesa 407 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 para a França constituiu uma verdadeira odisseia dos tempos modernos. Testemunhas diretas daquela época, os poetas portugueses residentes na França, populares ou eruditos, graças ao trabalho árduo de alguns, dão um contributo imprescindível para a salvaguarda de uma memória coletiva, através de sua poesia em torno da condição de membros da cultura de língua portuguesa vivendo e atuando na França. Em paralelo a sua atividade profissional, atua como secretário-geral da ADEPBA – Association pour le Développement des Études Portugaises, Brésiliennes, d’Afrique et d’Asie Lusophones – associação francesa fundada en 1973, que tem por objetivos principais a promoção e o desenvolvimento do ensino da língua portuguesa na França. Por seus serviços prestados à difusão e valorização da língua portuguesa e da literatura, cultura e artes lusófonas na França, foi condecorado pelo governo português. Além de dedicar sua vida profissional ao produtivo ensino do português nos Liceus e na Universidade, fundou e presidiu associações lusófonas, criou e até hoje coedita a revista Latitudes: Cahiers lusophones, já na edição nº 35. Além disso é um dos redatores da prestigiosa revista Langues Néo-latines, na qual tem publicado artigos sobre autores e temas brasileiros, portugueses e africanos de expressão portuguesa, além de recomendar e publicar artigos de autores dessas nacionalidades, sobretudo brasileiros. Na revista Latitudes: Cahiers lusophones, Dominique Stoenesco destaca-se por seus inúmeros artigos sobre autores brasileiros, resenhas de livros e notícias sobre fatos culturais, que deseja ver divulgados e conhecidos na França. Já publicou várias entrevistas com autores brasileiros e, sobretudo, baianos, como Jorge Amado, Antonio Torres, Antonio Brasileiro e Myriam Fraga. Entusiasmado pelo Brasil, Dominiques Stoensco já realizou cerca de 10 viagens ao nosso país. Por duas vezes veio como membro do grupo de professores franceses que visita o Brasil, em viagem de formação pedagógica e cultural, de dois em dois anos. Nessa condição, conheceu a Academia de Letras da Bahia e, encantado com sua beleza arquitetônica, registrou suas imagens em várias coleções de fotos, tendo, inclusive, publicado uma delas na revista Latitudes, em 2004. De outras vezes, Dominiques Stoenesco veio à Bahia liderando excursões de alunos e professores franceses, como um verdadeiro guia cultural, levando-os a conhecer a arquitetura, a história, a cultura, a literatura e 408 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 o ethos do univertso afro-baiano. Incansável divulgador da Bahia na França, Stoenesco tem feito divulgação de autores e obras, traduções de textos literários, além de palestras e exposições sobre o Brasil e sobre a Bahia, sua cultura e seus escritores, utilizando sua experiência profissional e as centenas de fotos que acumulou em suas viagens. Senhor professor Dominique Stoenesco: Esta tem sido a sua experiência: o contato direto do olhar com o sujeito-lugar de estudo e de referência, o ato de ver a língua acontecendo in loco, a língua e a cultura que lá ensina e divulga, aqui, ativa em pleno existir, e no existir cotidiano das pessoas, em sua diversidade de falares, entonações, nuanças, sotaques, musicalidades... significações. É, de fato, recolher, à memória das próprias retinas, as nossas paisagens, ruas, casas, edifícios, coisas, objetos, museus, obras, estradas, rios, árvores, frutas, bichos, pessoas, homens, mulheres – e daí levando, em si, vivas: a língua e a cultura que ensina em seu país, transmitindo aos jovens franceses e lusodescendentes a centelha do imaginar o Brasil, do pensar o Brasil, do vivenciar um país, inserindo-o à sua consciência, ao seu saber, ao seu afeto, como um lugar amigo, um lugar que vale a pena um dia visitar e conhecer. E isso amplia e dá novos sentidos a nós brasileiros, lusófonos, porque contribui para nos interessarmos ainda mais por nós mesmos, pela realidade francesa, por sua cultura em diálogo com a brasileira, e particularmente a baiana, o que aumenta mutuamente a nossa autoestima de cidadãos do mundo, projetando o desejo de novos diálogos, de novas parcerias, não só institucionais, mas também, em alguns casos, no campo estritamente pessoal. O senhor esteve aqui em 2000. E foi durante a visita que o grupo de professores franceses nos fizeram naquele ano que tive a feliz ocasião de conhecer e conversar com alguns dos ilustres visitantes. Ali nasceu um diálogo entre o senhor, Professor Dominique, o então presidente da Casa Prof. Dr. Claudio Veiga, o poeta Luís Antonio Cajazeira Ramos, o escritor Carlos Ribeiro. Tive a felicidade de também participar desses diálogos em que descobrimos interesses comuns: as relações entre a literatura francesa e a brasileira, o ensino de língua e literatura e – sobretudo – a publicação de livros e revistas – envolvendo a revista francesa Latitudes: cahiers lusophones e a revista baiana, Iararana, pelas quais éramos, respectivamente, corresponsáveis. 409 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Foi ali, portanto, que nasceu sua amizade com alguns escritores baianos e logo depois uma parceria cultural, que teve e vem tendo desdobramentos muito ricos para nossas vidas pessoais e profissionais. O senhor, Dominique Stoenesco, tornou-se colaborador efetivo de nossa revista literária Iararana, editada na Bahia desde 1998, e cujo nº 11, que saiu em setembro de 2006, é uma edição bilíngue português/ francês, em parceria com a revista Autre Sud, de Marselhe, publicando autores baianos e franceses. Antes, em 2003, as revistas Iararana e Latitudes publicaram um dossiê conjunto sobre “Poesia e sociedade”, com a participação de autores franceses, baianos e portugueses, tendo um lançamento conjunto na embaixada brasileira em Paris, do qual participei com muita satisfação. Como colaborador, além de publicar artigos na revista Iararana e traduzir outros textos para o mesmo fim, também publicou na revista Légua & Meia nº 3, da Universidade Estadual de Feira de Santana, um artigo sobre a presença da cultura portuguesa na França. Diversas vezes, na França, o senhor tem recepcionado, acolhido, guiado e orientado professores, escritores e estudantes brasileiros, sobretudo baianos, em suas viagens a Paris, com a colaboração de sua gentil esposa AneMarie Stoenesco, também professora de português como língua estrangeira. O Brasil e a Bahia o atraem, professor, sobretudo por sua diversidade cultural. De fato, somos uma cultura múltipla, em ebulição, inquieta e inventiva – que canta, dança, comemora, faz poesia, ficção, música, e que estuda, pesquisa, cria, escreve, inventa, produz, trabalha duro... e sonha. Sonha um dia ser melhor para os seus próprios cidadãos e, assim, ser melhor aos olhos de nossos visitantes e admiradores. Senhor Presidente Edivaldo Boaventura, senhores acadêmicos, senhoras acadêmicas, senhoras e senhores: Como testemunha de seu valioso trabalho de divulgação cultural, de ensaísta e articulista entusiasmado com a nossa cultura e a nossa literatura, conhecedor da cultura portuguesa, brasileira e africana, e do português como idioma de cultura e informação, temos certeza de que, enquanto membro correspondente, Dominique Stoenesco será um acadêmico ativo, prolífico e devotado, contribuindo para uma divulgação ainda maior da Bahia literária na França, em prol da valorização de nossos autores, obras, temas e realizações. 410 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Professor Dominique Stoenesco: o senhor, portanto, está em sua Casa. Seja bem-vindo, como membro correspondente, como amigo e como parceiro de nossa empreitada cultural. Muito obrigado. ________ Discurso de saudação ao acadêmico Dominique Stoenesco, proferido na solenidade de posse, no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, em 1º de setembro de 2009, por Aleilton Fonseca, titular da Cadeira nº 20 da ALB. 411 R EVISTA DA 412 A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Discurso de posse Membro correspondente da ALB Antonio Carlos Secchin Agradeço, extremamente honrado, a todos os titulares da Academia de Letras da Bahia a acolhida de meu nome para membrocorrespondente de vossa prestigiosa instituição. Agradeço, em particular, ao Presidente Acadêmico Edivaldo Machado Boaventura e ao Acadêmico Aleilton Fonseca, não só pelos discursos com que a seguir me receberão, como também pela iniciativa e empenho para que, com esta cerimônia, eu me tornasse efetiva e afetivamente ainda mais vinculado às letras baianas. Sim, porque a Bahia, em sua caleidoscópica diversidade cultural, me acompanha desde sempre. Leitor obsessivo, muito cedo concedi lugar de destaque, em meu panteão literário, à prosa de Jorge Amado e à poesia de Castro Alves. Na adolescência, deliciei-me com as aventuras de Gabriela e de Dona Flor, comovi-me com as desventuras dos escravos castro-alvinos. Pouco depois, ao iniciar os estudos universitários, tive por mestres, entre outros, os baianos Helena Parente Cunha, Eduardo Portella e Afrânio Coutinho. Eduardo Portella foi dos primeiros a incentivar minha criação literária, apoiando a publicação da novela Movimento, em 1976. A Afrânio Coutinho, meu orientador tanto no mestrado quanto no doutorado, devo o convite para ingressar no magistério superior. De algum modo, posso dizer que prolongo a linhagem dos estudos literários nas duas grandes Casas onde Afrânio atuou: a Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde, como o antigo mestre, sou professor titular de literatura brasileira, e a Academia Brasileira de Letras. 413 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Na Faculdade de Letras da UFRJ, no início da década de 1970, um ficcionista disputava com Guimarães Rosa a preferência de professores e de alunos: refiro-me a Adonias Filho. Meu contato com Memórias de Lázaro, Corpo vivo e Léguas da promissão foi inesquecível. Fascinei-me pela limpidez complexa de sua linguagem e pela requintada arquitetura de sua narrativa. No terreno da poesia, no ano de 1969, me dirigi com entusiasmo à Livraria São José para adquirir os sete volumes da monumental Obra poética de Gregório de Matos, louvável iniciativa de James Amado, que, corajosamente, devolveu à circulação a totalidade dos textos, inclusive os proscritos, atribuídos ao poeta. No ano seguinte, a mesma editora (Janaína) que lançara Gregório de Matos brindounos em dois volumes com a poesia completa de Junqueira Freire. Paralelamente, eu lia com grande interesse os artigos e as resenhas que, com regularidade, Hélio Pólvora publicava no Jornal do Brasil. Beneficiei-me igualmente, quando começava a constituir minha biblioteca particular, da profícua gestão de Herberto Sales à frente do Instituto Nacional do Livro, quando, em regime de coedições que barateavam substancialmente o preço final da obra, foram contemplados tanto os clássicos de nossas letras quanto os novos valores. Continuei atento à consistência da literatura baiana da geração seguinte. Heloísa Buarque de Holanda presenteou-me com Reverdor, de Florisvaldo Mattos, de 1965. Ainda no segundo grau, conhecera, no Rio de Janeiro, o poeta Ildásio Tavares. Li desde os primórdios a ficção de Antonio Torres. Editados pela Civilização Brasileira, descobri João Ubaldo Ribeiro e Ruy Espinheira Filho, tornando-me depois amigo de ambos. João Ubaldo apoiou minha candidatura à Academia Brasileira de Letras – quando, além de seu voto, também contei com os de Zelia Gattai e de Eduardo Portella. Tive a satisfação de integrar a banca de doutorado de Ruy Espinheira e de prefaciar um de seus livros. Para limitar-me ao domínio da poesia, observo que há muito acompanho, com atenção e proveito, os ensaios e traduções de Cláudio Veiga, a produção de Fernando da Rocha Peres, Myriam Fraga, José Carlos Capinan, Maria da Conceição Paranhos, Aramis Ribeiro Costa, João Carlos Teixeira Gomes, Antônio Brasileiro, Luís Antonio Cajazeira Ramos, José Inácio Vieira de Melo. No terreno do ensaísmo, escrevi, para o sesquicentenário de nascimento do poeta, em 1997, as “Memórias póstumas de Castro 414 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Alves”. Mais tarde, foi este o texto de abertura do meu livro Escritos sobre poesia & alguma ficção, de 2003. Ainda a propósito do autor de Espumas flutuantes, recordo que compareci a esta Academia em julho de 2003, proferindo a conferência “Duas faces do lirismo amoroso de Castro Alves”. Aqui ainda estive em quatro outras oportunidades: como representante da Academia Brasileira de Letras na cerimônia de posse do Acadêmico Aleilton Fonseca, em 2005; no lançamento da antologia Mais que sempre, de Luís Antonio Cajazeira Ramos, no ano de 2007; e duas vezes como jurado do Prêmio Nacional de Poesia da ALB, em 2000 e 2007, nas companhias de Florisvaldo Mattos, Ruy Espinheira Filho, Aleilton Fonseca e Carlos Ribeiro. Minhas pesquisas literárias não se restringem aos nomes consagrados pelo cânone. Procuro divulgar, em textos e palestras, autores de mérito que padecem de injusto esquecimento. Além do valor intrinsecamente literário, atrai-me também a bibliofilia, em dois níveis: o da beleza tipográfica do livro ou o da raridade da obra. Em ambos, a Bahia sempre esteve presente. No que toca à beleza, destaco o requinte tipográfico dos trabalhos de Pedro Maia e de Salvador Monteiro, cuja editora Alumbramentos é referência obrigatória no quesito das edições de arte. No que se refere a raridades, minha biblioteca dispõe de edições originais de muitos autores baianos do século XIX e das primeiras décadas do século XX, como Junqueira Freire, Moniz Barreto, Castro Alves, Melo Morais Filho, Pethion de Villar, Artur de Sales, Durval de Moraes, Eurico Alves e outros. * Na Bahia nasceu a poesia brasileira, seja na lira livre de Gregório de Matos, circulando apocrifamente em códices, seja na lira impressa de Botelho de Oliveira, com sua pioneira Música do Parnaso, de 1705. Além de expoentes como Gregório de Matos e Castro Alves, a literatura baiana também se revela pródiga em escritores de alto nível que foram postumamente consagrados. É o caso de Pedro Kilkerry, alçado à linha de frente de nosso Simbolismo pelo poeta e crítico Augusto de Campos, e de Sosígenes Costa, amorosamente reeditado por José Paulo Paes. 415 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Creio que igualmente deve ser resgatado o simbolista Francisco Mangabeira, sobre quem o crítico Andrade Muricy desse modo se expressou: “o poeta do Norte de mais alevantado e vigoroso estro, depois de Castro Alves”. Devo dizer que, à frente da Comissão de Publicações da ABL, programei a reedição, para 2010, da Tragédia épica, de 1900, considerada a mais importante obra do autor. Tratando de Canudos, Mangabeira, além de atingir grande qualidade literária, antecipa em dois anos o olhar lúcido de Euclides da Cunha, em Os sertões. O livro do poeta, que tem por subtítulo “Guerra de Canudos”, divide-se em 20 segmentos e se abre com a “Carta a um morto”, que, suponho, o próprio Euclides subscreveria. Cito um trecho, em que Francisco Mangabeira aponta como vítimas da tragédia “não só aqueles soldados que marchavam friamente para a morte, impassíveis e calmos entre o zunir das balas, até que finalmente rolavam pelo chão/.../mas também aqueles tabaréus, que lembravam leões, e que, das encostas calvas e abrasadas dos seus montes nus, resistiram com uma bravura louca até ao último instante, sem que jamais vergassem a espinha numa mesura de submissão e covardia”. Na esteira das comemorações literárias do centenário de morte de Euclides da Cunha, de que foi exemplo o bem elaborado romanceensaio O pêndulo de Euclides, de Aleilton Fonseca, convém não esquecer a voz do poeta Francisco Mangabeira, a favor não dos soldados ou dos revoltosos, mas em prol da humanidade, instância em que todos, supostamente, deveriam reconhecer-se como semelhantes. * Senhores: A vitalidade da Academia de Letras da Bahia, esta mais que nonagenária instituição, se patenteia sob vários aspectos. Na era da comunicação eletrônica, contabilizam-se mais de 380 mil registros de páginas a ela dedicadas nos mecanismos de busca da Internet. Os 48 volumes de sua Revista comportam matéria de grande interesse cultural e literário. Os prêmios por ela conferidos alcançam dimensão e reconhecimento nacionais. Mas seu maior patrimônio, decerto, é a qualidade do corpo acadêmico, tanto ao longo do filme da História, 416 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 quanto na fotografia de hoje. Orgulho-me de ingressar numa associação que conta com nomes de tal relevo, boa parte dos quais amigos de longa data. Como forma efetiva de agradecimento pela generosa acolhida que me foi dispensada, retrocedo, agora, o filme da História para o ano de 1924, e faço a doação, para a biblioteca da Casa, de um álbum que registra a passagem em Salvador, entre dezembro de 1924 e janeiro de 1925, de Margarida Lopes de Almeida, à época – sem dúvida – o maior nome do país na arte da declamação, arrebatando auditórios brasileiros e internacionais. Era filha do poeta Filinto de Almeida, membro fundador da ABL, e da ficcionista Júlia Lopes de Almeida. Abre o álbum uma foto coletiva, datada de 12 de dezembro de 1924, tirada no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, onde se veem, além de Margarida, Hermes Lima e Castro Rebelo Filho, entre outros. O documento, peça original e única, comporta textos autógrafos, partitura e desenhos de eminentes personalidades, algumas das quais acadêmicas, todas elas figuras importantes no âmbito da cultura e da arte baianas do início do século XX. Cito, sem ser exaustivo – para não deixar exausta a plateia – os manuscritos dos acadêmicos, na maioria fundadores, Teodoro Sampaio, Artur de Sales, Lulu Parola, Carlos Chiacchio, Prado Valadares, Rebelo Filho. E ainda as colaborações de Hermes Lima, Herman Lima, Godofredo Filho e Anísio Teixeira. É este o álbum que, a partir de hoje, passa a pertencer à vossa – e à minha – Academia de Letras da Bahia. Muito obrigado. __________ Discurso de posse, proferido pelo poeta e ensaísta Antonio Carlos Secchin, no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, em 18 de novembro de 2009. 417 R EVISTA DA 418 A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Saudação a Antonio Carlos Secchin Aleilton Fonseca C abe-me a honra, gentilmente cedida por nosso Presidente, de receber e saudar o confrade Antonio Carlos Secchin, neste ato em que ingressa no quadro de membros correspondentes desta Academia. Começo, pois, citando os versos de Cecília Meireles, os mesmos versos escolhidos por Secchin para iniciar seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. São este os versos: Como os poetas que já cantaram, e que ninguém mais escuta, eu sou também a sombra vaga de alguma interminável música. Cecília Meirelles Com esta epígrafe em pórtico, Antonio Carlos Secchin iniciou seu discurso de posse na Cadeira nº 19, da Academia Brasileira de Letras, na memorável noite de 6 de agosto de 2004. Sucedia a Marcos Almir Madeira e era recebido pelo acadêmico poeta Ivan Junqueira. Com essa epígrafe, definia sua trajetória como semelhante àquela da poeta, tocada pela voz imperiosa da vocação irresistível. O poeta entrega-se ao ofício das palavras, num elo de vozes que, ainda que não sejam escutadas, existem em si, como sombra vaga de alguma interminável 419 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 música que não pode calar. Eis o mister do poeta. Eis a vocação, o destino e o compromisso de Antonio Carlos Secchin, ao lado da corrente de poetas que já cantaram ou ainda cantam e continuarão cantando – a música da existência humana. Em boa hora esta Academia o empossa em seu quadro de membros correspondentes. E com a posse do poeta, ensaísta e crítico literário Antonio Carlos Secchin, esta Casa ainda mais se engrandece, com a presença de um dos mais produtivos intelectuais contemporâneos, que vem prestando uma valiosa e reconhecida contribuição à literatura brasileira. Nascido em 1952, no Rio de Janeiro, Secchin elegeu a poesia como seu mister principal. Fez sua profissão de fé nas Letras Vernáculas. Como poeta, estreou nos anos 70, com os livros de poesia, crítica e ensaios: A ilha (1971), ao qual seguiram-se Ária de estação (1973), Movimento (1976), Elementos (1983), Diga-se de passagem (1988), Poesia e desordem (1996), Todos os ventos (2002), Escritos sobre poesia e alguma ficção (2003), Guia de sebos (2003), 50 poemas escolhidos pelo autor (2006). O livro Todos os ventos (sua poesia reunida) recebeu os prêmios da Fundação Biblioteca Nacional, da Academia Brasileira de Letras e do PEN Clube do Brasil, considerado o melhor livro de poesia de 2002. Nos anos 70, enquanto se firmava como poeta, Secchin ingressava na carreira das Letras, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1973, concluiu o curso de Graduação em Letras, depois o Mestrado, em 1979, e o Doutorado em 1982, na mesma UFRJ, sob orientação do ilustre acadêmico baiano Afrânio Coutinho. Mais tarde, em 1996, fez o Pós-Doutorado na Universidade Federal do Pará. Atualmente, Secchin exerce o cargo de professor titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro, cadeira que pertenceu a Alceu Amoroso Lima e a Afrânio Coutinho. Poeta reconhecido e premiado, como ensaísta tem vários trabalhos publicados e é considerado o mais importante estudioso da obra poética de João Cabral de Melo Neto. Eleito e empossado na Academia Brasileira de Letras em 2004, tornou-se o mais jovem imortal da Casa de Machado de Assis, referência de um processo de renovação que começa a despontar nos horizontes acadêmicos nesta década inicial do século 21. 420 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 É membro titular do PEN Clube do Brasil, desde 1995, e membro honorário da Academia Cachoeirense de Letras, de Cachoeiro de Itapemirim, desde 2004. E agora membro correspondente desta ALB. O escritor já recebeu quinze prêmios literários e quatro medalhas acadêmicas. Exatamente hoje completa cinco. Foi professor convidado em universidades estrangeiras, de Barcelona, Bordeaux, Lisboa, Mérida, México, Rennes, Roma, Nápoles e, mais recentemente, Paris-Sorbonne, em 2009. Secchin já produziu mais de 320 trabalhos, entre ensaios e artigos, muitos dos quais apresentados em congressos literários, publicados em livros, revistas e jornais. Já publicou cerca de 30 títulos, entre poesia, crítica, obras organizadas e ensaios literários. Entre seus livros de poesia, destaca-se a obra Todos os ventos (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002), que foi traduzido como Todos los vientos, tradução de Yhana Riobueno (Mérida: Ediciones Gitanjali, 2004). Integra várias antologias de textos de poesia e de ensaios. Participa do corpo editorial de dezenas de revistas, como Revista Letra (Rio de Janeiro), Poesia sempre, editada pela Biblioteca Nacional, além da revista Légua e Meia, da Universidade Estadual de Feira de Santana. Antonio Carlos Secchin ganhou maior notoriedade como ensaísta e crítico a partir da publicação do livro João Cabral: A poesia do menos, vencedor do Prêmio de ensaio do Instituto Nacional do Livro e do Prêmio Sílvio Romero, da Academia Brasileira de Letras. Depois, organizou a edição das poesias completas de Cecília Meirelles, no ano do centenário da autora, e resgatou o primeiro livro de poesia publicado por ela, intitulado Espectros, que estava desaparecido. Também estudou aspectos novos nas obras de Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar e de ficcionistas como Machado de Assis e Rubem Braga. Colecionador de livros raros, Secchin é um dos principais bibliófilos do país. Apaixonado por livros, tornou-se um grande expert em sebos, como atesta o seu livro Guia de sebos, de 2003, já com várias edições publicadas. Na sua requintada biblioteca pessoal, encontram-se verdadeiras relíquias literárias, como primeiras edições raríssimas, manuscritos e textos autógrafos de escritores como Manuel Bandeira, Drummond e Guimarães Rosa, entre muitos outros. 421 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Como crítico e ensaísta, Secchin é daqueles que se acercam de autores e das obras literárias com interesse, espírito crítico e, sobretudo, respeito intelectual. Suas opiniões primam pelo equilíbrio, pelos juízos críticos honestos, sempre em busca de demonstrar as qualidades e as vicissitudes dos textos, iluminando-os com uma abordagem teórica e interpretativa segura e confiável. No estudo da poesia e da ficção, não apenas os autores canônicos são objeto de sua leitura, mas também aqueles que estão ainda se firmando no panorama atual e que necessitam da atenção dos leitores. Como poeta, Secchin integra o quadro dos melhores criadores contemporâneos. Sua poesia é tessitura de palavras em movimento, em que um eu lírico atualíssimo maneja o verbo, levando-o a dobrarse e a desdobrar-se em sentidos inusitados, em rasgos de invenção imagética e ironias pós-modernas, sugestões e evocações intertextuais, em jogos de metáforas, ambiguidades e paródias, num concerto polifônico que envolve os temas e as palavras. Como afirma Alfredo Bosi, na apresentação do livro: Lendo Todos os ventos, assistimos ao encontro de uma acurada leitura da poesia brasileira de ontem e de hoje (Secchin é um dos nossos mais afiados leitores de poesia) com um ethos despojado e às vezes abertamente biográfico. Uma situação cultural e existencial pós-moderna, sem dúvida. Desse encontro nasceu a glosa paródica pela qual o eco de antigos significantes lastreia a inversão dos significados. Acontece que também a paródia satírica é gênero vetusto: daí o curioso revival moderníssimo de uma antiga forma de escarnecer palavras e coisas que a usura do tempo já desgastara. E conclui Bosi, a respeito de Todos os ventos: “Antonio Carlos Secchin sabe alcançar o nível raro da expressão singular, forte e desempenada.” Com efeito, estamos diante de um poeta elogiado por estudiosos de alta grandeza, como José Guilherme Merquior, Antônio Houaiss, José Paulo Paes, Benedito Nunes, Eduardo Portella, Alfredo Bosi, Sergio Paulo Rouanet, André Seffrin, Fábio Lucas e Ivan Junqueira, entre muitos outros. De fato, o poeta Antonio Carlos Secchin assim se afirma, nos versos de seu poema, quando esclarece a sua visão lírica: 422 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Revejo a luz gelada de manhãs perdidas e os sonhos que eu mandei para o endereço errado. Tanto azul me nauseia e nada se dissipa em meio ao mangue seco onde estanquei meu barco. Muitas sombras debatem-se à beira do quarto. Fantasmas nos lençóis da noite estreita e aflita esgueiram seus anzóis no meu silêncio farto de saber que eles são a única visita. Imóveis no sofá, me contemplam ferozes e cravam com desdém as garras da rapina. Espanto o pó e a dor que descem dessas vozes rolando sem parar pela memória acima. O espelho só me ensina a ruína do desejo. Sei que é meu esse olhar em que eu não mais me vejo. Eis o perfil do intelectual, poeta, ensaísta, acadêmico. Um homem talhado nas letras e para as letras, com fina sensibilidade lírica e escrita de alto valor crítico e estilístico. Mas é preciso frisar que há anos o poeta Antonio Carlos Secchin é um assíduo colaborador desta Academia de Letras da Bahia, como conferencista do Curso Castro Alves, como jurado de prêmios literários, ou, como visitante, representando a Academia Brasileira de Letras. Tratase de um homem generoso, um cavalheiro das Letras, de exemplar conduta intelectual, que se conduz nos debates de ideias com honestidade e afabilidade, com espírito democrático e irreprochável civilidade. E foi com esse espírito altivo e democrático que Secchin finalizou seu discurso de posse na ABL, afirmando sua predileção pelo convívio acadêmico, sob a ideia da pluralidade, da consciência das tradições e da constante busca do novo. O poeta afirma, encerrando seu discurso: Assim gostaria de entrar na Academia Brasileira de Letras: entendendo-a como fronteira franqueada ao livre trânsito de todas as temporalidades. De um lado, receptáculo de nossas mais fundas, atávicas, heranças; de outro, passagem para a paisagem do novo. Neste discurso, balizado por dois poetas, a primeira palavra, acolhendo o passado, foi de Cecília Meireles. Que a última seja de Carlos Drummond de Andrade: “Ó vida futura! nós te criaremos”. 423 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Assim, é notório que sua postura intelectual e sua importância literária o tornam apto a integrar esta Academia, mercê de seus méritos, que o fazem credor de todas as homenagens que se prestam aos grandes escritores. Poeta, crítico e Professor Doutor Antonio Carlos Secchin, seja bemvindo a esta Casa, para o enriquecimento de nosso convívio acadêmico. Para tanto, os seus méritos são vastos – e a honra desta solenidade é um emblema recíproco. Muito obrigado. ________ Discurso de saudação ao acadêmico Antonio Carlos Secchin, proferido na solenidade de posse, no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, em 18 de novembro de 2009, por Aleilton Fonseca, titular da Cadeira nº 20 da ALB. 424 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Discurso de posse Membro correspondente da ALB Antonella Rita Roscilli S enhor Presidente, senhores acadêmicos, queridos amigos, desejo iniciar esta fala expressando meu comovido agradecimento ao expresidente da Academia de Letras da Bahia, prof. Edivaldo Boaventura, pela indicação de meu nome. Tenho o prazer de compartilhar sua amizade há alguns anos. E muito tenho me beneficiado com este convívio. O professor Edivaldo é um grande intelectual e dedicado educador, professor, Mestre e Ph.D em Educação pela Pennsylvania State University. Ocupou já, por duas vezes, o importante cargo de Secretário de Educação e Cultura do Estado da Bahia. Trata-se de personalidade de exceção, culta, apaixonada pela sua terra. A Edivaldo Boaventura, portanto, dirijo meus agradecimentos. Faço também questão de sublinhar o importante apoio que meu nome e minha candidatura receberam da querida poeta e diretora da Fundação Casa de Jorge Amado, Myriam Fraga. Estendo a Myriam meu comovido agradecimento por este voto de confiança. Não posso omitir todos os membros ilustres desta Academia que tão generosamente aceitaram meu nome como membro correspondente desta notável instituição e ainda saudar com emoção e profundo respeito o atual Presidente desta venerável Academia, Aramis Ribeiro Costa. Só posso dizer para todos “muito obrigada, obrigadíssima”. Foi com grande emoção e muita alegria que recebi a notícia de minha eleição como membro correspondente da Academia de Letras da Bahia. Ver meu trabalho reconhecido por uma instituição que representa a comunidade intelectual da Bahia é, para mim, uma forma de me sentir sempre presente nessa terra del mio cuore, é como ter uma raiz bem plantada aqui. 425 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 A Bahia sempre foi para mim uma região fascinante por sua história, sua gente, sua vocação intelectual, berço de ilustres nomes de letras e da vida política. Terra de Castro Alves, de Luís Gama, Rui Barbosa, de Maria Quitéria, berço dos heróis João de Deus, Manuel Faustino, Lucas Dantas e Luís das Virgens. Terra do escritor Jorge Amado. Tenho uma honra imensa em estar aqui neste ano do Centenário dele. Poder participar dos eventos que o homenageiam é uma emoção profunda para mim, é um enriquecimento da minha alma poder estar aqui na Bahia. E assim reflito sobre a Bahia, o berço de toda a cultura desse imenso país do meu coração. O baiano é o herdeiro da grande construção nacional que começou em fins dos anos 500. Por suas mãos, desde os colonos que por aqui ficaram com Tomé de Souza, construindo famílias, engenhos, comércio, consolidando a vida na região, foi surgindo o Brasil, com a ajuda imprescindível de milhões de africanos que para cá foram trazidos, vivendo por muito tempo uma indigna condição de escravidão. Aqui lutaram contra a escravidão na Revolta dos Alfaiates (1798), aqui tinham lutado contra incursões francesas e holandesas. Foi aqui que mais se desenvolveu a cultura dos afrodescendentes brasileiros, foi aqui que chegaram os italianos comandados por um napolitano, Giovan Vincenzo Sanfelice, Conte de Bagnoli (título que lhe foi conferido quando, pela primeira vez, libertou a Bahia do domínio holandês). Foi um herói legendário, digno de um Emilio Salgari, que soube submeter um inimigo mil vezes superior a ele por recursos navais e militares. E com ele tiveram importante papel todos os napolitanos na árdua batalha que durou quinze anos para combater os holandeses em Salvador e em Recife. Mil e quinhentos italianos que com ele chegaram, e ele, como outros, ficou por aqui. E hoje ele está sepultado na Igreja do Carmo, pois decidiu viver na Bahia. Eu mesma fui pesquisar e li com orgulho e grande emoção a frase que o lembra na Igreja do Carmo. Chegou em 7 de julho de 1623 e até 1640 lutou para derrotar os holandeses. E ele é da minha região, do sul, lá na Itália. E lá, como aqui, eu procurarei honrar esse título honorário, continuando a assumir a tarefa de ponte, de mediadora entre duas culturas que me formaram e me levam a descobrir o mundo através de seus referentes culturais e identitários, às vezes complementares, muitas vezes contraditórios, experiência que me despertou muito cedo para a 426 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 ideia de que se pode viver com duas terras amadas dentro de si, podemse juntar dois idiomas que se amam, podem-se juntar duas comidas como “la pasta alla carbonara con il dendê” e que as modalidades de percepção do mundo podem ser múltiplas e diversas. Por isso tive que desconstruir e descarnar meu eurocentrismo. Aproximei -me do Brasil por acaso. Antes nunca havia viajado de avião, tinha até medo. Peguei o avião pela primeira vez e viajei 11 horas direto para conhecer uma terra longínqua, para a qual me haviam convidado. Naquela época ainda não sabia que ia encontrar um universo. Aquela primeira viagem foi a que mudou minha vida. Lembro ainda no interior da Bahia, no sul, perto de Canavieiras, o belo rosto de uma criancinha pobre, pequena, encontrada na rua; e minha vontade de levá-la comigo. Vi crianças abandonadas, muitas. Mas, igual a Alice nel Paese delle Meraviglie, me aproximei de uma natureza exuberante, terra vermelha, camponeses que iam trabalhar na madrugada. Perfume, sons, frutas. Não falava nem uma palavra de português, mas o som do idioma me fascinou e voltei para a Itália com um caderninho cheio de palavras que havia escrito, porque o som delas ressoava na minha alma. Começou tudo a partir de lá, e passei meu verão, la mia estate a Roma, com Jorge Amado, pois comprei todos os livros dele e mergulhei fundo na sua obra. Como jornalista já publicava artigos sobre a América Latina havia anos, mas focalizei o Brasil, mergulhei, estudei, me formei em Literatura e Língua brasileira e Literaturas afro-lusófonas e continuei meu caminho. Mia Couto diz, acerca da influência de Jorge Amado em sua vida e na vida de seu país: Jorge não escrevia livros, ele escrevia um país. E não era apenas um autor que nos chegava. Era um Brasil todo inteiro que regressava à África. Havia pois uma outra nação que era longínqua e não nos era exterior. E nós precisávamos desse Brasil como quem carece de um sonho que nunca antes soubéramos ter. Podia ser um Brasil tipificado e mistificado, mas era um espaço mágico onde nos renasciam os criadores de histórias e produtores de felicidade. Descobríamos essa nação num momento histórico em que nos faltava ser nação. O Brasil – tão cheio de África, tão cheio de nossa língua e de nossa religiosidade – nos entregava essa margem que nos faltava para sermos rio. (Mia Couto, em palestra proferida por ocasião do (re) lançamento da obra de Jorge Amado pela Companhia das Letras e 427 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 reproduzida na íntegra no Caderno2 - D9 do jornal O Estado de S. Paulo de 05/04/2008, sob o título: “... e fazer do nosso sonho uma casa”). As belas palavras do escritor moçambicano permitem diversas interpretações, porém é inegável a constatação de que a influência de Jorge Amado sobre o imaginário e, por conseguinte, sobre a vida da África de língua portuguesa foi além da conquista de leitores apaixonados por um estilo de escrever. O discurso de Mia Couto faznos considerar a incrível capacidade de a literatura (e a linguagem) narrar muito mais do que histórias, de ser instrumento para divulgação e conhecimento, além de poesia. Isso é para mim Jorge Amado, um Poeta Cavaleiro, lutador, sábio, corajoso, que mostrou o Brasil mais verdadeiro com um respeito profundo, corajoso e sincero, utilizando o instrumento da literatura. A Bahia, o Brasil viraram meu ponto de referência, um país cheio de beleza como também de grandes contradições... Fui também conhecendo Minas Gerais, as cidades históricas, o Rio. Respirando o ar, a comida entrava dentro de mim como se entrasse a alma da terra. Inúmeras vezes cruzei o Atlântico. A minha paixão pela literatura e pelo país brasileiro nasceram praticamente juntas e se confundiram num mesmo desejo de aventurar-me num espaço insólito, sempre fugindo dos estereótipos, dos lugares-comuns. Em 1994 estava no interior de Minas dançando quadrilha na festa de São João com os camponeses. Minha paixão pela literatura tem a ver com minha pessoal visão da literatura, visão que transparecerá neste discurso com o qual pretendo evocar meu percurso de pesquisadora, jornalista e escritora na Bahia e na Itália. E também de estudante, pois a UFBA me honrou aceitando meu projeto sobre os laços entre literatura e televisão através da análise da primeira obra literária de Zélia Gattai Foram as aulas de literatura brasileira do professor italiano Ettore Finazzi Agrò (Universidade La Sapienza) que amadureceram minha visão da literatura e a paixão para conhecer os Brasis dos quais é feito esse imenso Brasil. Pesquiso também a história negada do Brasil. E a emigração italiana é um capítulo para mim fascinante, orgulho para nós italianos. Com o espírito firme de divulgar o melhor que existe no Brasil, longe dos estereótipos restritos que infelizmente o país possui às vezes na Europa, comecei minha luta. Escrevi muito, publiquei não 428 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 sei mais quantos artigos. É esse o meu papel: fazer a ponte entre os dois países, sem isso não poderia mais viver, pois isso faz parte do meu próprio sangue há muitos anos. O Brasil é meu amor, um amor que passou pela fascinação, pela paixão, pela visão mais difícil, pelo amor maduro em que você pode discernir melhor as coisas negativas e positivas. E, de fundo, mais me distanciei, e mais me chamou. Nunca poderia casar com uma pessoa que não amasse o encontro com o Brasil, com respeito e dedicação, como eu. Já acabaram histórias de amor, por isso na minha vida, por eu não ter tempo e dever me dedicar à escrita e ao jornalismo. Ser jornalista é, de fato, ser detentor de um mandato público entre os cidadãos e a imprensa, exatamente para defender, de forma intransigente, os princípios democráticos, razão maior dos valores da liberdade e da cidadania. Considero que o exercício do jornalismo diário exige basicamente três pressupostos que transferem credibilidade ao profissional: independência em relação aos fatos e às circunstâncias; a ética; e o compromisso com a verdade. Nunca, em momento algum da minha já longa trajetória como jornalista, absolutamente dedicado, estabeleci objetivos. As coisas e os fatos aconteceram em minha vida simplesmente porque tiveram que acontecer, na maioria das vezes independente da minha vontade. Meus objetivos se situam em princípios que procuro trilhar da melhor forma possível, sempre aprofundando as minhas convicções, minhas dúvidas, e tendo como referência um dos grandes renomes italianos, escritor e jornalista Gianni Minà, meu mestre. Estou plenamente convencida de que esses princípios transformaram a minha vida, impulsionada pelo ritmo do coração e pelo sonho que me deu e me dá a força de continuar a divulgação do Brasil no meu país e na Europa. E mais agora, voando através da minha filha, que fundei e dirijo: a revista italiana Sarapegbe, sobre “Cultura e Società del Brasile, Africa e Altri Mosaici”. Não por acaso o símbolo é uma pluma azul, um pássaro que voa e pode atravessar o oceano, como um mensageiro que leva notícias de lá e para cá, ou uma pluma que com a ajuda do vento voa. Esse foi sempre, é e será sempre meu objetivo: levar notícias, abrir a imagem do Brasil, fora dos estereótipos, essa é minha luta há anos, para quebrar aquela limitação com que chega à Europa e à Itália a cultura brasileira. Uma cultura rica, ampla, complexa, feita de coisas boas com suas músicas, artes, livros... E um dia andando em uma Biblioteca, um 429 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 livro me chamou. Me chamou mesmo, e eu me aproximei e li um título muito estranho... Utilizo o fragmento da Teogonia de Hesíodo para falar agora das Musas. “Hineando alegram o espírito de Zeus no Olimpo / Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide. / Na Piéria gerou-as, da união do Pai Cronida, / Memória rainha nas colinas Eleutera, / para oblívio de males e pausa das aflições. (Transcrito de Hesíodo, Teogonia. A origem dos deuses. Edição revisada e acrescida do original grego. Estudo e Tradução de Jada Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 107. Nota do editor). Cantando rallegrano in Olimpo la mente di Zeus, Le muse Olimpie, figlie de Zeus Egioco. Le partori’ nella pieria, unitasi al padre Cronide, Mnemosyne, dei clivi di Eleutere Regina, Che fossero oblio dei mali e tregua alle cure Hesíodo (Teogonia, 51-55) A lembrança, “il ricordo si dice in italiano” é a arte de colocar em movimento a memória, que representa a síntese máxima entre a dimensão terrena e a espiritual. É doce e densa de poesia a história do nascimento da deusa Mnemosyne na civilização grega antiga. De fato, o poeta Hesíodo de Ascra (séc. VIII-VII a.C.), em Teogonia, poema sobre a origem do cosmos e dos deuses, narra que Terra primeiro pariu igual a si mesma Céu constelado, para cercá-la toda ao redor (...) Depois pariu do coito com Céu (...) Mnemosyne (...) E após com ótimas armas Crono, de curvo pensar. O mito, em sua desconcertante simplicidade, traça um laço indissolúvel entre Cronos (o tempo) e Mnemosyne (a memória) e mostra sua atração em um contínuo jogo de reciprocidade. O pensamento mítico-simbólico expresso em Teogonia permite entender a importância da divindade da Memória, bem como de suas filhas, as nove musas, deusas das artes e das ciências. A memória, pois, é apresentada não como um simples acúmulo de notícias, mas como arca e tesouro da consciência, capaz de produzir à sua volta outros conhecimentos, graças à ativação da lembrança. A lembrança é lembrança do vivido – é, pois, um tempo revivido. Mas este re-viver que acontece com o indivíduo vai além do tempo. De fato, a lembrança é filha do tempo, mas é também o momento da vitória sobre o tempo. Com efeito, a pessoa que consegue descer em 430 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 sua profundidade interior, diminuindo o fluxo dos simples eventos, leva uma vitória sobre o tempo, porque está apta, mediante a memória, a recolher as simples experiências separadas e descontínuas, para fazêlas correr em um fluxo unitário. O tema da memória foi objeto de reflexões em todas as épocas históricas, e o filósofo e literato italiano frade dominicano Giordano Bruno (1548-1600) chegou a identificar a memória com o divino. Para ele: [...] “as rotas da memória funcionam por magia, e tal memória é a memória de um homem divino, de um mago provido de poderes divinos, graças a uma imaginação presa à ação dos poderes cósmicos. Tal tentativa deve apoiar-se no pressuposto hermético de que a mens do homem é divina, porque ligada, na origem, aos comandos das estrelas, capazes de refletir ou dominar o universo”. A memória vem transposta em palavras através do ato de contar e conduzir, seja o narrador ou o ouvinte, a um local que anula a realidade circunstante e ofusca os contornos cotidianos. Talvez por isto, as narrações no passado eram feitas perto da lareira, à noite, quando as atividades terminavam. No tempo real é possível realizar a experiência em outro lugar, mas o tempo da narração é sempre um tempo excepcional, aquele da experiência única. Narrador é aquele que, através do ato narrativo, oferece e revive uma experiência. Narrando, ele é o testemunho, a memória oral do passado, ao tempo em que desmistifica a história oficial e lança as sementes da utopia. O narrador possui um repertório antigo e vivo de gestos e de sons, mas, para reencontrar aquela linguagem, deve reativar a memória do corpo, que possui um “alfabeto sensitivo” próprio, e assim recorda as experiências vividas no tempo. O olhar do narrador deve redescobrir. Olhando o mundo de um modo que evoca sem mostrar, o narrador envolve o ouvinte, que assume uma atitude cognitiva e perceptiva: o ouvido registra e sintetiza, o ouvido quer dizer tradição, lembrança e acúmulo de saber. Todas estas características constituem a arte da palavra, a arte de narrar, o valor da palavra que vivifica, que pode abrir o coração e pertence inteiramente ao mundo da oralidade. O tema da palavra tem sido, durante séculos, objeto de exploração e reflexão para a estética, no campo filosófico. O filósofo-político italiano Cícero (106-43 a.C.), na obra De Inventione, através de uma lenda sobre a origem da retórica, celebra a origem da palavra como potência civilizadora. O filósofo sofista Gorgia (490-390 a.C.), no Encomio di Elena afirma: 431 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 A palavra é um potente soberano, pois, com um corpo pequeníssimo e invisível conduz ao termo de uma obra profundamente divina. De fato, ela tem a virtude de enganar o medo, remover a dor, infundir a alegria, intensificar a compaixão. E com a sacralidade da Palavra, agora, se o senhor Presidente, senhores acadêmicos, queridos amigos permitirem, eu gostaria muito de contar uma história, como já fizeram muitos e ilustres contadores de histórias antes de mim. Escrito em Roma, 17 de junho de 2008. Ainda me lembro, como se fosse agora: estava na Biblioteca da RAI, em Roma, e senti que um livro estava me chamando. Meus olhos puseram-se sobre um título: Anarchici Grazie a Dio (Ed. Frassinelli, Milano,1983). Decidi ler aquele livro misterioso: uma história de anarquistas italianos no Brasil, uma história sobre a emigração italiana, escrito por uma mulher. Eu, italiana, brasilianista e jornalista, não podia encontrar nada melhor que isso. No livro encontrei acontecimentos incríveis, mas sobretudo encontrei uma autora maravilhosa. Somente depois descobri que ela era a esposa do grande escritor Jorge Amado: Zélia Gattai. Descobri a obra de Zélia Gattai na Itália. E foi por acaso. Depois, no Brasil, aprendi que nada na vida acontece por acaso, e agora acredito realmente nisso. Através do Anarquistas Graças a Deus descobri uma “menina atrevida” e ao mesmo tempo uma mulher que conseguia trazer de volta a vida da memória. Para não esquecer as emoções que o livro e a autora me trasmitiram, escrevi uma resenha, mas não podia publicá-la em nenhuma revista porque o livro estava esgotado e não se encontrava mais nas livrarias italianas. Ainda assim, alguns anos depois o que eu escrevi resultou ser muito útil porque saiu na Itália a nova edição de Anarquistas Graças a Deus (Ed. Sperling e Kupfer, Continente Desaparecido, coletânea dirigida por Gianni Miná) e assim eu tive a honra de ver publicada minha resenha na revista Latinoamerica e tutti i sud del mondo. Já estava pronta há vários anos! Me apaixonei pelos livros da autora e decidi escrever minha tese na faculdade sobre Zélia Gattai: mulher, memorialista, escritora e também grande fotógrafa. Ler e analisar os livros dela representou também a aproximação com uma parte da história do meu país que não conhecia: a dos italianos que deixaram a Itália no final do século XIX e 432 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 enfrentaram o oceano para encontrar uma vida melhor no Brasil, o “país da cocanha”, Il Paese della Cuccagna, il Paese dell’Avvenire. Aqueles italianos levaram nas malas sonhos e utopias, mas realmente com seus valores sociais e políticos ajudaram a costruir o novo país. Isso pode reforçar o orgulho de quem é italiano ou de quem é descendente de italianos, como Zélia. Zélia, paulista por nascimento, virou baiana de coração para viver com o Amor da sua vida: Jorge Amado. Eu me apaixonei por Um chapéu para viagem, Jardim de inverno, Vacina de sapo e outros, em que cada palavra é cheia de Amor para Jorge: seu marido, seu maestro, seu grande amor. Um amor imenso, verdadeiro e puro. Hoje em dia eu posso dizer com certeza que acredito que o Amor verdadeiro nesta vida pode existir porque existiram Zélia e Jorge. Foi com Zélia que aprendi que “Quando existe o Amor, nada é impossível”, “quando esiste il vero Amore niente é impossibile”. Quando falei com ela pelo telefone a primeira vez (linha RomaSalvador, Bahia), ela nem acreditou que eu estava preparando uma dissertação sobre sua obra, e depois veio aquela sua frase “…Sobre mim? Mas eu não mereço tanto!”. Foi ali, no tom sincero e maravilhado daquelas palavras que entendi o grande valor humano da pessoa com quem eu estava falando. Escrevi a primeira dissertação na Itália sobre Zélia Gattai e não sabia disso, enquanto escrevia. Anos depois no Brasil escrevi a primeira dissertação de Mestrado sobre Zélia Gattai e não sabia disso, enquanto escrevia. Foi por causa dela que cheguei um dia a Salvador e, a partir daquele ano, eu, que já viajava pelo Brasil inteiro e voltava à Itália para divulgar a cultura brasileira através dos meus escritos, não consegui viajar mais para outras cidades e estados brasileiros. Queria chegar somente a Salvador, Bahia. Quando eu e Zélia nos olhamos de perto pela primeira vez tive a certeza da grande carga humana dela, como a dos seus filhos João Jorge e Paloma. Junto com Zélia foi como iniciar um aprendizado sobre os valores importantes da vida, a simplicidade, a leveza, a ironia. Foi também sobre a história dos antepassados de uma Itália desconhecida. Conheci um grande poeta toscano: Renato Fucini. Conheci antigos provérbios em dialeto veneto e toscano. Conheci até comidas: a receita do ragu, “il radicchio alla veneta”. Tudo através de Zélia, memória viva, leve e inteligente, irônica, cheia de doçura e dignidade. Quando ela me contava 433 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 histórias do pai, da mãe o do seu amado Jorge, às vezes repetia os contos, mas eu gostava de ouvi-los novamente porque sabia que ela ia sempre acrescentar algum particular a mais. Muitas vezes acontecia que das janelas do 13° andar, onde ela morava, entrava um vento que parecia falar junto com sua voz e trazia de volta o passado, as pessoas. A memória e a história ajudam a criar a identidade de uma pessoa, como também criam a identidade de uma nação. “Não se pode viver do passado, mas as coisas boas e não boas do passado, muitas vezes, podem ajudar a viver melhor o presente”. Lembrar das próprias raízes é ser mais rico, e Zélia amava a mistura da sua cultura brasileira com a sua cultura italiana. Uma vez me disse: “Antonella Rita, sabe, eu me sinto bastante italiana, io mi sento abbastanza italiana”. Ela nunca morou na Itália, mas falava bem o idioma italiano: aprendeu tudo com seus pais e seus avós através da comida, da palavra, da música, da dança. Uma vez me levou ao Rio Vermelho e me mostrou aquela maravilhosa casa da rua Alagoinhas, 33, rica de objetos lindos e de lembranças e, na minha opinião, importantíssima para a valorização da cultura brasileira no exterior. Quantas pessoas na Itália nestes anos me perguntam se em Salvador está funcionando o Memorial Jorge Amado na casa do Rio Vermelho! Quantos italianos se aproximam do Brasil graças aos livros de Jorge Amado! Zélia contava sempre tantas coisas que eu comecei a escrever tudo em um caderno para não esquecer nada. E histórias, provérbios antigos italianos voltaram a viver dentro de mim pela primeira vez. Procurei para ela na Itália um livro de Renato Fucini, poeta toscano que eu conheci através dela. A ilustre edição da Divina Commedia de Doré da qual ela me contava foi outra pesquisa que eu fiz em Roma e levei para ela esse livro enorme e belíssimo. E qual foi a minha maravilha quando eu dei para Zélia e ela abriu na página onde se lembrava que estava a ilustração do inferno, purgatório e paraíso, e me falou: “Estou sentindo agora a mesma sensação que eu sentia quando pequena olhava para essas imagens.” Formidável, sagrado.... Assim, nasceu naturalmente em mim a ideia de escrever o livro Zélia de Euá Rodeada de Estrelas (Ed. Casa de Palavras), que apresentei na Fundação Casa de Jorge Amado na ocasião do aniversário dela, em 2006: uma homenagem a Zélia nos seus 90 anos. Foi assim que nasceu Da palavra à imagem: Anarquistas Graças a Deus de Zélia Gattai, em 2011. Em 2007, na 434 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Embaixada do Brasil em Roma, quem apresentou meu livro foi o embaixador do Brasil em Roma, Adhemar Gabriel Bahadian, e o jornalista e escritor italiano Gianni Miná. Naquela ocasião Zélia me enviou um recado belíssimo que Roberto Mascareñas, diretor do Centro de Estudos Brasileiros leu para a plateia. Nós apresentamos Zélia Gattai, cada um com sua própria experiência. Eu não sei o que aconteceu, mas no final, naquela sala, todas as pessoas estavam emocionadas, e eu percebi que a magia de Zélia tinha chegado até lá com sua Estrela. A Estrela sempre teve importância na vida de Zélia e, por coincidência, na minha vida também. Um dia na casa dela vi uma caixinha de madeira com uma estrela de prata belíssima. Ela me contou que em 2002, quando entrou na Academia Brasileira de Letras, fez um discurso oficial lembrando da mãe Angelina, que dizia sempre que Zélia tinha nascido com uma estrela, e agora a própria mãe tinha virado uma estrela após a partida. Lembrou também de uma outra estrela brilhante lá no céu, que era o Jorge Amado. Um dia após a posse, na casa dela, em Salvador, chegou um presente: era aquela caixinha de madeira com a linda estrela. Zélia nunca soube quem foi que enviou este presente e concluiu a história dizendo: “Sabe, quem me enviou esta caixinha eu não sei, mas sei que esta pessoa entendeu. Sabe, Antonella Rita, às vezes não precisa de palavras”! E uma outra Estrela, desta vez italiana, voltou em janeiro de 2008 através do presidente da República Italiana, que concedeu a ela o grau de Grande Ufficiale della Stella della Solidarietà Italiana. Através do embaixador da Itália, Michele Valensise, chegou à casa dela uma Estrela linda, desta vez de ouro e de prata. Momentos inesquecíveis na minha memória: ela vestida de branco, os olhos brilhantes e com esta Estrela no peito. Senti o vento chegar de novo e percebi que com certeza mamma Angelina, papà Ernesto, nonno Francesco Arnaldo e nonno Eugenio estavam todos ali em torno dela e olhavam orgulhosos aquela filha e neta. E agora eu, à noite, às vezes, quando levanto os olhos ao céu, procuro a estrela maior, a mais luminosa, a mais brilhante. …É Zélia de Euá, que foi rodeada de estrelas e no final virou ela mesma Estrela. Pela eternidade. Quero aqui agradecer publicamente a Ela, pois quem um dia me trouxe aqui foi Ela: Zélia Gattai Amado. __________ Discurso de posse, proferido pela jornalista e ensaísta Antonella Rita Roscilli, no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, em 21 de agosto de 2012. 435 R EVISTA 436 DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Saudação a Antonella Rita Roscilli Edivaldo M. Boaventura A tomada de posse de Antonella Rita Roscilli, italiana e brasilianista, confirma a funcionalidade do instituto da correspondência. Com a sócia correspondente Antonella, nos aproximamos mais da Itália, sobretudo da Toscana e do Vêneto. O grande Goethe, que escreveu um dos mais belos livros de viagem à Itália, considerava o dia em que chegou a Roma como a data do seu segundo nascimento. Um verdadeiro renascimento. Tenho o sentimento de que com Antonella estaremos mais perto de Roma. Pelo menos, pela Rádio e Televisão Italianas. O seu trabalho nesta mídia é marcado pela paixão latina a Zélia e Jorge Amado. Propositadamente, o seu ingresso na casa de Góes Calmon é mais uma celebração do centenário do nosso Jorge. Recordemos que Jorge, voltando a morar na Bahia, no início dos anos sessenta do século passado, reintegrou-se à vida da cidade, de sua gente, e ingressou nesta Companhia. Animou-se a suceder a Estácio de Lima. A sua entrada foi um sucesso. Ele deu atenção total à sua posse. Submeteu-se a usar um quente e desconfortável smoking, que o fez suar bastante quando lia a sua bem lançada fala. Seguiu em tudo o ritual. Trouxe toda a família e a coorte de amigos do Rio, de São Paulo, de todo o Brasil. A noite de 7 de março de 1985 foi bela e transfigurada. A agremiação o acolheu prazerosamente. Fincamos no chão da Academia o busto esculpido por Celita Vacanti. 437 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Que exemplo de respeito ao patrono e aos antecessores nos deu Jorge Amado! Para suceder a Jorge, a candidata natural foi Zélia Gattai: o enorme legado das memórias. A língua italiana aprofundou o relacionamento entre Zélia e Antonella, que se dedica com amor à Bahia, a Jorge Amado e Zélia Gattai. É biógrafa e pesquisadora de sua obra. Escreveu um excelente ensaio, Zélia de Euá rodeada de estrelas, pondo em evidência as memórias da escritora. Em Roma, onde vive e trabalha, Antonella dissemina pela mídia, em conferências e entrevistas, o Brasil e a África de expressão portuguesa. A vida intelectual e profissional de Antonella gira em torno dos objetivos culturais brasileiros, particularmente da Bahia, quer traduzindo autores nacionais, quer divulgando o Brasil pela rádio e pela mídia em geral. Desde o início, quando ainda estudava letras, na Faculdade de Humanidades na Universidade La Sapienza, interessou-se pela língua portuguesa e pela literatura brasileira. Escreveu, então, como trabalho acadêmico, a monografia “Zélia Gattai entre memórias de amor e de anarquismo”. Continuou a cultivar o português, no Centro de Estudos Brasileiros, e o espanhol, no Instituto Cervantes. Volta-se, então, para as vertentes das línguas latinas. Como jornalista, trabalha na Rádio e Televisão Italianas. A princípio, na redação do noticiário radiofônico, depois começou a desenvolver pesquisas para programas de televisão e preparação de pessoal. Colabora em publicações acerca de mídia e comunicação política. Ultimamente, redige artigos sobre a atualidade cultural, faz crítica literária de livros da América Latina publicados na Itália. “Jazz in FM” é um programa musical onde reconstrói a história do jazz pelos seus melhores intérpretes. Todos esses midiáticos facilitam o trabalho de divulgação da cultura brasileira que Antonella empreende com paixão. Conhecemos Antonella, na casa de Zélia Gattai, exatamente no dia em que o governo italiano condecorou a nossa memorialista. Convidamos Antonella a falar na nossa Academia de Letras. E falou bem sobre a magia da palavra escrita em Zélia. Magnífica comunicação com a música 438 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 do sotaque italiano, que graças a Deus conserva, mesmo falando bem o português. As línguas romances são irmãs, concertam-se. Mais recentemente, a Editora da Universidade Federal da Bahia (Edufba) publicou a sua dissertação de mestrado, na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom/UFBA): Anarquistas graças a Deus: da palavra à imagem, analisando os laços entre literatura e televisão. O êxito do livro de Zélia sobre os anarquistas italianos ultrapassou as fronteiras e as sucessivas edições chegaram à mídia televisiva. Antonella, como jornalista, analisou as relações entre a palavra e a imagem. Tomou conhecimento não somente do italiano, como também dos dialetos do Vêneto e da Toscana, falados por Zélia. Reconhecendo o seu compromisso intelectual com a Bahia, a presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Consuelo Pondé de Sena, a admitiu como sócia correspondente estrangeira. Antonella tem outros laços afetivos e institucionais com a Bahia. A Fundação Casa de Jorge Amado editou seu trabalho sobre Zélia e tem em Antonella uma colaboradora da obra amadiana. Por indicação de Myriam Fraga, Antonella participou do colóquio, no Centro Universitário Jorge Amado, sobre o livro Jubiabá, quando falou acerca de “Jorge Amado na Itália: o homem e a sua obra literária nos meios de comunicação e na opinião das pessoas”. Na sua pátria, a querida Itália, colabora sempre com a nossa embaixada em Roma. Antonella orienta estudantes italianos que desenvolvem pesquisas e dissertações sobre temas brasileiros. É também colaboradora do Instituto Ítalo-americano de Roma. Participa da redação de vários periódicos especializados em temas brasileiros e latino-americanos, como a revista italiana Latino Americana i tutti i Sud Del Mundo, dirigido pelo jornalista e escritor Gianni Miná. Escreve também para Pátria, Sagarana, Jornal de Bordo e para os jornais L´Unitá e Il Manifesto. Na revista Cinearte, ressalta a arte brasileira. Recentemente fundou a Revista Italiana Sarapegbe, de Cultura e Sociedade do Brasil. Somam-se ao estudo da obra de Zélia Gattai e Jorge Amado os prefácios, as traduções de autores brasileiros e o vivo acompanhamento de tudo que diga respeito ao Brasil. No ano passado, Myriam Fraga e nós propusemos a escritora Antonella Rita Roscilli para o quadro de sócio correspondente, em 26 de agosto de 2011, quando completei 40 anos de Academia. 439 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Aceita por unanimidade, efetiva o seu ingresso na nossa Companhia hoje, 21 de agosto, justo no momento em que festejamos os 100 anos de Jorge Amado. A presença de Antonella neste grêmio torna mais viva a lembrança da doce Itália e dá continuidade à generosidade de Jorge e Zélia. Seja bem-vinda, Antonella Rita Roscilli. Gratos a todos pela presença e mais ainda pela atenção. ________ Discurso de saudação à acadêmica Antonella Rita Roscilli, proferido na solenidade de posse, no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, em 21 de agosto de 2012, por Edivaldo M. Boaventura, titular da Cadeira nº 39 da ALB. 440 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 DIVERSOS 441 R EVISTA DA 442 A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Efemérides 2011 Março 17 — Sessão especial para homenagem póstuma ao acadêmico Manoel Pinto de Aguiar, com a seguinte programação: mesa redonda – Pinto de Aguiar: vida e obra, professor doutor Edivaldo M. Boaventura (ALB), professora Consuelo Pondé de Sena (IGHB), professor Aristeu Almeida (Fundação Rômulo Almeida), professor Osmar Sepúveda (Corecom), professor doutor Luís Guilherme Pontes Tavares (NEHIB) e acadêmico Joaci Góes. Lançamento do livro Pinto de Aguiar, audacioso e inovador, de Consuelo Novais Sampaio. 22 — Sessão especial para a inauguração da estátua do governador Francisco Marques de Góes Calmon. 24 — Sessão especial de abertura do novo ano acadêmico compreendendo a solenidade: 1) Pronunciamento do professor Edivaldo M. Boaventura, presidente da Academia de Letras da Bahia, com o tema “O Desempenho da Academia de Letras da Bahia de 2007 a 2011”. 2) Outorga da Medalha Arlindo Fragoso a acadêmicos e outros, pelo presidente Edivaldo M. Boaventura. 3) Premiação do vencedor do concurso Prêmio Brasken Academia de Letras da Bahia / Ficção 2010, Ronda: oratório malungo, do escritor Ordep Serra. 4) Posse da nova diretoria, biênio 2011-2013, assim constituída: presidente: Aramis de Almada Ribeiro Costa; vice-presidente: Waldir Freitas Oliveira; 1º secretário: Cid José Teixeira Cavalcante; 2º secretário: Gláucia Maria de Lemos; 1º tesoureiro: Consuelo Pondé de Sena; 2º tesoureiro: Paulo Ormindo David de Azevedo; diretor da biblioteca: Dom Emanuel D’Able do Amaral; diretor do arquivo: Joaci Fonseca de Góes; diretor da revista: Myriam de Castro Lima Fraga; diretor de informática: Carlos Jesus Ribeiro; conselho editorial: Aleilton Santana da Fonseca, Evelina de Carvalho Sá Hoisel, Ruy Espinheira Filho; conselho de contas e patrimônio: João da Costa Falcão, Geraldo Magalhães Machado, Paulo Costa Lima. 5) Discurso de posse do presidente Aramis Ribeiro Costa. 6) Outorga da Medalha Arlindo Fragoso, pelo presidente Aramis Ribeiro Costa, ao ex-presidente 443 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Edivaldo M. Boaventura. 7) Lançamento do Prêmio Braskem Academia de Letras da Bahia/Poesia 2011. 8) Lançamento do Prêmio Associação Comercial da Bahia 200 anos Academia de Letras da Bahia Eletrogoes. 9) Lançamento do livro Ronda: oratório malungo – ficções do escritor Ordep Serra. 29 — Luto oficial pela morte do acadêmico benfeitor e ex-presidente Cláudio de Andrade Veiga. 31 — Reunião da diretoria, com a participação dos demais acadêmicos. Abril 05 a 07 — 3º Curso Manoel Querino – Personalidades Negras. Coordenação do professor Jaime Nascimento. Palavras de abertura do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia. Palestra: Manoel Querino e as origens dos africanos na Bahia, professora Sabrina Gledhil (Pós-afro CEAO-Ufba /IGHB); palestra: Lya Nassê, professora doutora Lisa E. Castillo (Ufba); debate; palestra: Tranquilino Bastos, professor Jorge Ramos (IRDEB); palestra: Mestre Pastinha, professor José de Jesus Barreto (jornalista e escritor); debate; palestra: A Sociedade Monte Pio dos Artistas da Bahia, professora doutora Maria da Conceição da Costa e Silva (UNIME/MAB); palestra: Felisberto Sowzer e o Sistema Divinatório, professor doutor Júlio Braga (Uefs); palestra: Milton Santos: a crítica do mundo intelectual ao mundo globalizado, professora doutora Rosimere Ferreira (Uefs). 07 — Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Cid Teixeira, Aleilton Fonseca, Gláucia Lemos, Paulo Ormindo David de Azevedo, João Eurico Matta, Joaci Góes e convidados, para depoimentos informais dos acadêmicos e convidados sobre o acadêmico Cláudio Veiga. 20 — Sessão especial para o encontro com o poeta português Luis Serguilha, que na ocasião discorreu sobre poesia portuguesa contemporânea: novas linguagens. 28 — Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Joaci Góes, Myriam Fraga, Ruy Espinheira Filho, José Carlos Capinan, Aleilton Fonseca, Luis Henrique Dias Tavares, João da Costa Falcão, Edivaldo M. Boaventura, Gláucia Lemos e convidados, para a palestra do acadêmico Ruy Espinheira Filho: Trabalhos em andamentos, leituras de poemas inéditos. 444 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 29 — Sessão especial para o lançamento do livro: O senso religioso, de D. Luigi Giussian. Responsável pelo lançamento: doutor Otoney Alcântara, do Movimento Católico Comunhão e Libertação da Bahia. Maio 03 — Visita guiada à sede da Academia pelos alunos do Colégio Sagrado Coração de Maria. 11 a 13 — Sessões especiais para o Seminário Africanias, oficializando a instalação das Línguas Angolanas (kimbundo e kikoong o) no Cur rículo Acadêmico da Uneb. Parcerias institucionais: Academia de Letras da Bahia, Grupo Aldeia e Casa de Angola. Palavras de abertura do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia. 1ª sessão (11-03-2011), tema, a ser debatido pelos integrantes da mesa: A importância do ensino das línguas angolanas no currículo das universidades brasileiras. 2ª sessão (12-03-2011), tema: A inserção do ensino das línguas angolanas no sistema da Uneb – graduação e extensão. Conferencista: professora doutora Amélia Mingas, decana da Faculdade Agostinho Neto. Mediadora: professora doutora Yeda Pessoa de Castro, coordenadora do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-brasileiros em Línguas e Culturas da Proex-Uneb. Debatedores: professora Adriana Marmori, pró-reitora de Extensão da Uneb; professor doutor José Brites, pró-reitor de graduação da Uneb. 3ª sessão (12-03-2011), tema: A inserção do ensino das línguas angolanas no sistema de pós-graduação na Uneb. Conferencista: professor doutor Zanoni Ntondo, professor da Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto. Mediadora: professora doutora Jaci Menezes, coordenadora do Grupo Memória da Educação na Bahia – Uneb. Debatedores: professor doutor José Cláudio Rocha, pró-reitor de Pesquisas e Pós-Graduação da Uneb; professor doutor Camilo Afonso, diretor do Centro Cultural Casa de Angola. 19 — Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Waldir Freitas Oliveira, Consuelo Novais Sampaio, Ruy Espinheira Filho, Myriam Fraga, João Falcão, Joaci Góes, Edivaldo M. Boaventura, João Eurico Matta e convidados, para a palestra do acadêmico Joaci Góes: Obra inédita concluída. 445 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Junho 02 — Sessão especial para a homenagem póstuma ao acadêmico Cláudio de Andrade Veiga (1927-2011), sendo orador o acadêmico Edivaldo M. Boaventura. É declarada vaga a Cadeira número 9. 09 — Sessão ordinária, com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Gláucia Lemos, Consuelo Novais Sampaio, Waldir Freitas Oliveira, Roberto Santos, Carlos Ribeiro, Joaci Góes, João Falcão, Edivaldo M. Boaventura, João Eurico Matta e convidados, para palestra do acadêmico Waldir Freitas Oliveira, Celtas e missionários cristãos na Irlanda do passado. Julho 21 — Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Samuel Celestino, Francisco Senna, Florisvaldo Mattos, Paulo Costa Lima, Waldir Freitas Oliveira, Roberto Santos, Cid Teixeira, Myriam Fraga, Joaci Góes, Luís Henrique Dias Tavares, Consuelo Novais Sampaio, Ruy Espinheira Filho, Consuelo Pondé de Sena, Fernando da Rocha Peres, Paulo Ormindo David de Azevedo, Carlos Ribeiro, Edivaldo M. Boaventura, Geraldo Machado, Dom Emanuel d’Able do Amaral, João Eurico Matta, para indicação de sucessão do acadêmico Cláudio Veiga, Cadeira nº09, sendo eleito, já nessa sessão, conforme Regimento, o escritor João Ubaldo Ribeiro. 27 — Luto oficial pela morte do acadêmico João da Costa Falcão. Agosto 04 — Sessão solene e pública para a posse da escritora Rita OlivieriGodet, residente na França, como membro correspondente, com a presença do secretário de Cultura do Estado da Bahia Antônio Albino Canelas Rubim, sendo a nova correspondente saudada pelo acadêmico Aleilton Fonseca. 11 — Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Edivaldo M. Boaventura, Evelina Hoisel, Waldir Freitas Oliveira, Myriam Fraga, Cid Teixeira e convidados, para depoimentos informais dos acadêmicos e convidados sobre o acadêmico João da Costa Falcão. 446 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 18 – Sessão solene e pública para a posse da arqueóloga e escritora Maria Beltrão, residente no Rio de Janeiro, como membro correspondente, sendo saudada pelo acadêmico Edivaldo M. Boaventura. 22 a 26 – Curso Jorge Amado 2011 e I Colóquio de Literatura Brasileira, primeira edição desses eventos, ambos criações da presidência vigente da Academia de Letras da Bahia com a parceria institucional da Fundação Casa de Jorge Amado, ambos em caráter permanente e anual no calendário de eventos da Academia e da Fundação, a serem realizados em conjunto anualmente na sede da Academia, finalizando, no último dia, na sede da Fundação. Com a coordenação geral da acadêmica e diretora executiva da Fundação Casa de Jorge Amado, Myriam Fraga, teve como Comissão Organizadora os acadêmicos Aleilton Fonseca, Evelina Hoisel e Myriam Fraga. Programa: 22/08 — segunda-feira, 19 horas: abertura solene, palavras do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia, e da acadêmica Myriam Fraga, diretora geral da Fundação Casa de Jorge Amado; conferência da professora Ana Rosa Ramos, reitora da Universidade Federal da Bahia, Jorge Amado e o País do Carnaval. 23/08 — terça-feira, 14h30: sessões de comunicação (1 e 2); 17h conferência: Recepção crítica da obra de Jorge Amado, Claudius Armbruster (Universidade de Colônia/Alemanha). 17h40 mesa redonda: Identidade, mestiçagem e utopia em Jorge Amado, Rita Godet (Université Rennes/França); Ilana Goldstein (Unicamp): A construção da identidade nacional da literatura de Jorge Amado. Coordenação: Evelina Hoisel (Ufba/ALB). 24/08 — quarta-feira: 14h30: sessões de comunicação (3 e 4); 17h mesa redonda: Das terras do cacau aos caminhos do mundo, Maria de Lourdes Neto Simões (Uesc); Edilene Dias Mattos (Ufba) — Jorge Amado turista: um olhar poético a Latinoamérica. Coordenação: Rosana Ribeiro Patrício (Uefs); 25/08 — quinta-feira, 14h30: sessões de comunicação (5 e 6); 17h mesa redonda: O político e o histórico na visão de Jorge Amado, Luís Gustavo Rossi (Unicamp); Antonella Rita Roscilli (RAI) — O ideal sócio-político de Jorge Amado; Benedito Veiga (Uefs) — Jorge Amado e hora da guerra: o cidadão, o político e o artista. Coordenação Aleilton Fonseca (Uefs/ALB). 25/08 – 19h. Lançamento do livro Contos Reunidos, do acadêmico e escritor Aramis Ribeiro Costa. 26/08 — sexta-feira, na sede da Fundação Casa de Jorge Amado: 16h30 — sessão de comunicação (7): Bahia de Todos os Santos, Guia de Ruas e Mistérios, Rosa Borges dos 447 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Santos (Ufba); 17h depoimentos sobre literatura, cinema, TV e outras linguagens: Jorge Amado e as adaptações, Jorge Portugal; Um novo olhar sobre os Capitães da areia, Cecília Amado. Coordenação: Myriam Fraga (FCJA/ALB). Lançamento do livro Anarquistas, graças a Deus de Zélia Gatai: da palavra à imagem, de Antonella Rita Roscilli. Encerramento. Setembro 01 – Sessão especial, sob a coordenação do acadêmico Carlos Ribeiro e do professor Luís Guilherme Pontes Tavares, para a comemoração dos 200 anos da imprensa na Bahia, desde que foi instalada pelo empresário Manoel Antonio da Silva, em 14 de maio de 1811. Palavras de abertura do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia. Mesa redonda: Uma visão de dois jornais republicanos, Consuelo Novais Sampaio; As revistas modernas da Bahia, Waldir Freitas Oliveira; Memórias de um cronista no Jornal da Bahia, Luís Henrique Dias Tavares; Um breve passeio pela trajetória de A Tarde, Edivaldo M. Boaventura; Os dias seguintes aos 200 anos: o futuro da imprensa na Bahia, Joaci Góes. Mediação da mesa: acadêmico, jornalista e professor Carlos Ribeiro. 08 – Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Waldir Freitas Oliveira, Edivaldo M. Boaventura, Luís Henrique Dias Tavares, Roberto Santos, Dom Emanuel d’Able do Amaral, Aleilton Fonseca, Joaci Góes, João Eurico Matta, Cid Teixeira, Consuelo Pondé de Sena, Myriam Fraga, Consuelo Novais Sampaio e convidados, para a palestra do acadêmico Edivaldo M. Boaventura, Viagem à Israel. 14 – Lançamento do livro O destino do poeta: poesias e crônicas (faces criativas da palavra escrita), da escritora Ana Maria Silva. 15 – Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Joaci Góes, Aleilton Fonseca, Consuelo Novais Sampaio, Luís Henrique Dias Tavares, Waldir Freitas Oliveira, João Eurico Matta e convidados, para a palestra do acadêmico Waldir Freitas Oliveira, Lúcio Cardoso, o Corcel de Fogo. 28 a 30 – Curso Castro Alves 2011 e VI Colóquio de Literatura Baiana, constantes, em conjunto, do calendário anual de eventos da Academia de Letras da Bahia, incluso no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira 448 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 de Santana. Coordenação geral do acadêmico, professor, doutor Aleilton Fonseca. 28/09, quarta-feira: 14h30, sessões de comunicação; 17h, filme: Castro Alves, direção Sílvio Tendler; 18h palavras de abertura do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia. 18h30, conferência: As raízes libertárias de Castro Alves na vanguarda baiana; três exemplos: Glauber Rocha, Milton Santos e Carlos Mariguella, cineasta Sílvio Tendler. Coordenação: Carlos Ribeiro (Ufrb/ALB). 29/09, quinta-feira: 14h30, sessões de comunicação (4 e 5); 17h mesa redonda: Castro Alves: lições de poesia, Evelina Hoisel (Ufba/ALB); O impacto da alta e da baixa auto-estima de Castro Alves em sua poesia, Joaci Góes (ALB). Coordenação: Aramis Ribeiro Costa (ALB). 30/09, sexta-feira: 14h30, sessões de comunicação (6 e 7); 17h, conferência: Castro Alves: Hermano de los pobres, hijo de la tempestad, Maria Pugliese (Universidade Nacional de Luján/Argentina). Coordenação: Aleilton Fonseca (Uefs/ALB); Outubro 06 – Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Waldir Freitas Oliveira, Consuelo Novais Sampaio, Luís Henrique Dias Tavares, Ruy Espinheira Filho, Paulo Costa Lima, Fernando da Rocha Peres, Gláucia Lemos e convidados, para a palestra do acadêmico Fernando da Rocha Peres, Meus últimos escritos. 13 – Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Waldir Freitas Oliveira, Consuelo Pondé de Sena, Ruy Espinheira Filho, Luís Henrique Dias Tavares, Gláucia Lemos, Consuelo Novais Sampaio, Evelina Hoisel, Myriam Fraga, Florisvaldo Mattos, João Eurico Matta, Fernando da Rocha Peres, Joaci Góes, Geraldo Machado, Paulo Ormindo David de Azevedo, para conversa informal sobre candidatos à sucessão do acadêmico João da Costa Falcão, Cadeira número 35. 17 a 19 – Semana Franz Kafka, realização conjunta da Academia de Letras da Bahia, Goethe Institut, jornal A Tarde e Instituto de Letras da Ufba. 17/10, segunda-feira, 19hs: palavras de abertura do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia. 19h30, conferência: Franz Kafka, lá e cá, professora doutora Marlene Holzhausen. 19/10, quarta-feira, 19h, conferência: A eterna busca de Franz Kafka, professora Bohumila Araújo (UFBA). 449 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 20 – Sessão especial para homenagem aos centenários de nascimento dos acadêmicos Hélio Simões, Jorge de Faria Góes e Ivan Americano da Costa, sendo oradores os acadêmicos Edivaldo M. Boaventura e Aleilton Fonseca. 25 – Lançamento do livro Vinte e um poemas, do escritor e membro correspondente Cyro de Mattos. 27 – Lançamento do livro Poesia e memória: a poética de Myriam Fraga, organização da acadêmica Evelina Hoisel e da professora Cássia Lopes. Novembro 07 – Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Waldir Freitas Oliveira, Paulo Furtado, Florisvaldo Mattos, Luís Henrique Dias Tavares, Ruy Espinheira Filho, Joaci Góes, Dom Emanuel d’Able do Amaral, Aleilton Fonseca, Gláucia Lemos, Cid Teixeira, João Eurico Matta, Paulo Ormindo David de Azevedo, Fernando da Rocha Peres, Armando Avena, Cleise Mendes, Carlos Ribeiro, Edivaldo M. Boaventura, Evelina Hoisel, Gerson Pereira dos Santos, para indicação de candidatos à sucessão do acadêmico João da Costa Falcão, Cadeira nº35. 09 – Visita guiada à sede da Academia por 40 alunos do Colégio Estadual Severino Vieira. 17 – Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Waldir Freitas Oliveira, Aleilton Fonseca, Carlos Ribeiro, Roberto Santos, Evelina Hoisel, Myriam Fraga, João Eurico Matta, Ruy Espinheira Filho e convidados, para a palestra do acadêmico Fernando da Rocha Peres, A biografia: um gênero em questão. 18 – Lançamento do livro Cantos do Mundo e conferência: retrato do autor como leitor, de Evando Nascimento. 22 – Lançamento de livro de contos e de dicionário indígena de alunos do Fundamental II da Escola de Engenharia Eletromecânica da Bahia. 23 a 25 – Seminário Visitações “A obra literária de Judith Grossmann”, uma realização da Academia de Letras da Bahia com a parceria institucional do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia e da Fundação Casa de Jorge Amado, sob a coordenação geral da acadêmica, professora, doutora Evelina Hoisel. 23/11 — palavras 450 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 de abertura do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia. 17h30, mesa redonda: Visitações poéticas — exposição biobibliográfica. Palestras: Ler-ensinar: eis a questão!, Evelina Hoisel (Ufba); Fragmentos biográficos na construção ficcional: representações do professor em Nascida do Brasil Romance, Ligia Telles (Ufba); A inventiva de Judith Grossman em Todos os Filhos da Ditadura Romance, Antonia Herrera (Ufba). 19h às 21h30, lançamentos: Todos os Filhos da Ditadura Romance (Ufba), de Judith Grossmann, e O périplo de Judith Grosmann (Edufba), de Lígia Telles. 24/11 — 17h, mesa redonda: Visitações poéticas — exposição biobibliográfica. Palestras: A cena familiar em contos de Judith Grossmann, Cássia Lopes (Ufba); Da raiz ao rizoma: reflexões sobre o exílio em Geraldo, o belga, de Judith Grossmann, e Amy Foster, de Joseph Conrad, Fernanda Mota (Ufba); Virgínia, Clarice e Judith: Temáticas e poéticas, Luciano Lima (Uneb). 25/11 — 17h, mesa redonda: Visitações poéticas — exposição biobibliográfica. Palestras: A lírica de Judith Grossmann: outridade e heteronímia, Fernando Segolin (Puc/SP); Breve roteiro da vária navegação do Anjo Inconstante em busca do Infante Perdido, Myriam Fraga (FCJA). 18h30 — encerramento: Fausto Mefisto: Leitura dramática, direção Paulo Dourado (TEA). Dezembro 7 – Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Carlos Ribeiro, Evelina Hoisel, Francisco Senna, Gláucia Lemos, Paulo Furtado, Luís Henrique Dias Tavares, Waldir Freitas Oliveira, Ruy Espinheira Filho, Yeda Pessoa de Castro, Consuelo Pondé de Sena, Joaci Góes, Consuelo Novais Sampaio, Dom Emanuel d’Able do Amaral, Geraldo Machado, Edivaldo M. Boaventura, Paulo Costa Lima, Ubiratan Castro de Araújo, Cleise Mendes, Aleilton Fonseca, Myriam Fraga, José Carlos Capinan, João Eurico Matta e Samuel Celestino, para eleição de sucessão do acadêmico João da Costa Falcão, Cadeira número 35, não havendo eleito. 15 – Sessão especial para entrega do Prêmio Conjunto de Obra 2011 Academia de Letras da Bahia Eletrogoes à escritora Judith Grossmann. Confraternização de Natal entre acadêmicos e funcionários. 451 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Efemérides 2012 Março 08 - Sessão especial para a abertura do novo ano acadêmico, compreendendo a solenidade: 1) Pronunciamento do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia. 2) Pronunciamento do doutor Antônio Albino Canelas Rubim, secretário de Cultura do Estado da Bahia. 3) Lançamento do Anuário da Academia de Letras da Bahia, nº1, 2011. 4) Homenagem póstuma ao ex-funcionário e poeta Carlos Cunha, sendo orador o acadêmico Edivaldo M. Boaventura. 5) Lançamento da Revista da Academia de Letras da Bahia, nº50. 15 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Roberto Santos, Consuelo Novais Sampaio, Paulo Costa Lima, Florisvaldo Mattos, Aleilton Fonseca, Myriam Fraga, Geraldo Machado, Edivaldo M. Boaventura, Carlos Ribeiro, Joaci Góes e convidados, para a palestra da acadêmica Myriam Fraga, Leitura de textos. 22 - Sessão especial para a entrega do Prêmio Braskem Academia de Letras da Bahia/Poesia 2011. Lançamento do livro Mirantes, do escritor Roberval Pereyr, vencedor do prêmio. 29 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Roberto Santos, Evelina Hoisel, Carlos Ribeiro, Consuelo Pondé de Sena, Myriam Fraga, Aleilton Fonseca, Edivaldo M. Boaventura, Gláucia Lemos, Florisvaldo Mattos, Paulo Ormindo David de Azevedo, Joaci Góes e João Eurico Matta, para eleição dos membros correspondentes Antonella Rita Roscilli, escritora e jornalista italiana, e Antonio Dias Farinha, professor, doutor, escritor e pesquisador português, ambos indicados pelo acadêmico Edivaldo M. Boaventura. 452 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Abril 12 - Sessão especial em comemoração aos cem anos do primeiro governo de José Joaquim Seabra, sob a coordenação da acadêmica, professora e historiadora Consuelo Novais Sampaio. Palavras de abertura do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia. Mesa redonda: Uma Tarde com J. J. Seabra, pelo transcurso do centenário do seu 1º governo. Participação: procuradora Adélia Maria Marelin; jornalista Jorge Ramos; desembargador Edeilton Meirelles; historiadora Sílvia N. Sarmento; e historiadora e professora Consuelo Novais Sampaio. Lançamento do livro A águia e a raposa, de Sílvia N. Sarmento. 18 - Lançamento do livro Cobras de duas cabeças: poesia e prosa encontradas e inéditas de Sosígenes Costa, do escritor Herculano Assis, organizada por Gustavo Felicíssimo. 19 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Consuelo Pondé de Sena, Gláucia Lemos, Luís Henrique Dias Tavares, Consuelo Novais Sampaio, Evelina Hoisel, Waldir Freitas Oliveira, Joaci Góes, João Carlos Teixeira Gomes, Edivaldo M. Boaventura, Samuel Celestino, Geraldo Machado, Hélio Pólvora, Cleise Mendes, Fernando da Rocha Peres, Carlos Ribeiro, Paulo Costa Lima, para indicação de candidatos à sucessão do acadêmico João da Costa Falcão, Cadeira número 35. 25 - Lançamento do livro Histórias Dispersas de Adonias Filho, organizado e prefaciado pelo escritor e membro correspondente Cyro de Mattos. 26 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Waldir Freitas Oliveira, Luís Henrique Dias Tavares, Consuelo Novais Sampaio, Joaci Góes, João Eurico Matta e convidados, para a palestra do acadêmico Waldir Freitas Oliveira, Sobre a história das missões orientais do Uruguai. Maio 03 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Waldir Freitas Oliveira, Gláucia Lemos, Consuelo Pondé de Sena, Consuelo Novais Sampaio, Luís Henrique Dias Tavares, Joaci Góes, Evelina Hoisel, João Eurico Matta e convidados, para a palestra do acadêmico Joaci Góes, Os hábitos dos vencedores. Obs.: 453 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 devido ao grande número de presentes, mais de cem espectadores, a sessão foi transferida da sala de reuniões, habitual das sessões ordinárias, para o Auditório Pedro Calmon, no terceiro andar. 10 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Gláucia Lemos, Luís Henrique Dias Tavares, Carlos Ribeiro, Consuelo Novais Sampaio e convidados, para a palestra da acadêmica Gláucia Lemos, Contando o conto. 17 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Edivaldo M. Boaventura, Aleilton Fonseca, Consuelo Pondé de Sena, João Eurico Matta, Joaci Góes e convidados, para a palestra da professora doutora Terezinha Fernandes Spínola, Lafaiete Spínola, um escritor baiano. 21 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Luís Henrique Dias Tavares, Ruy Espinheira Filho, Gláucia Lemos, Waldir Freitas Oliveira, Florisvaldo Mattos, Edivaldo M. Boaventura, Hélio Pólvora, Joaci Góes, Cleise Mendes, Consuelo Pondé de Sena, Dom Emanuel d'Able do Amaral, Fernando da Rocha Peres, Geraldo Machado, Evelina Hoisel, Consuelo Novais Sampaio, Yeda Pessoa de Castro, Paulo Costa Lima, Carlos Ribeiro, Myriam Fraga, Aleilton Fonseca, João Eurico Matta e Gláucia Lemos, para eleição de sucessão do acadêmico João da Costa Falcão, Cadeira número 35, sendo eleito o poeta Luís Antônio Cajazeira Ramos. 24 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Dom Emanuel d'Able do Amaral, Fernando da Rocha Peres, Luís Antonio Cajazeira Ramos (acadêmico eleito), João Eurico Matta, Joaci Góes e convidados, para palestra do acadêmico Fernando da Rocha Peres, Trabalhar um documento eclesiástico. Junho 12 - Visita guiada à sede da Academia pelos alunos do Colégio Batista Brasileiro. Na ocasião os alunos entrevistaram longamente os acadêmicos Florisvaldo Mattos, Gláucia Lemos e Myriam Fraga. 14 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Consuelo Pondé de Sena, Roberto Santos, Evelina Hoisel, Dom Emanuel d'Able do Amaral, Edivaldo M. Boaventura, Luís Antonio Cajazeira Ramos (acadêmico eleito), Florisvaldo Mattos, Myriam Fraga, Paulo Ormindo David de Azevedo, Gláucia Lemos e 454 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 convidados, para palestra do acadêmico Edivaldo M. Boaventura, Elaborando um livro de viagem a Portugal. 28 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Consuelo Pondé de Sena, Paulo Ormindo de Azevedo, Luís Antonio Cajazeira Ramos (acadêmico eleito) e convidados, para exibição de alguns episódios, em DVD, de A vida como ela é, do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, em homenagem ao seu centenário de nascimento. Julho 03 - Reunião da comissão organizadora do encontro entre os candidatos a prefeito da Cidade do Salvador, com o tema Uma política cultural para a Cidade do Salvador. 10 - 2ª reunião da comissão organizadora do encontro entre os candidatos a prefeito da Cidade do Salvador. 12 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Fernando da Rocha Peres, Luís Antonio Cajazeira Ramos (acadêmico eleito), Paulo Ormindo David de Azevedo, João Eurico Matta, Florisvaldo Mattos, Dom Emanuel d'Able do Amaral e convidados, para a palestra do acadêmico Fernando da Rocha Peres, 1912 - O começo do fim de Salvadolores. 19 - 3ª reunião da comissão organizadora do encontro entre os candidatos a prefeito da Cidade do Salvador. 26 - Sessão especial aberta ao público e aos meios de comunicação, transmitida ao vivo pelo portal da internet do IRDEB (TV Educativa), presidida pelo doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia, coordenada e mediada pelo acadêmico eleito Luís Antônio Cajazeira Ramos, com a participação de personalidades representativas de todos os segmentos da cultura baiana, para o encontro com candidatos a prefeito da Cidade do Salvador, que foi também o primeiro encontro desses candidatos, com o tema Uma Política Cultural para a Cidade do Salvador. Participaram os candidatos Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM), Nelson Pelegrino (PT), Mário Kertész (PMDB), Márcio Marinho (PRB), Rogério da Luz (PRTB) e Hamilton Assis (PSOL). Além dos acadêmicos, dos representantes dos segmentos culturais, do numeroso público e da imprensa, estiveram presentes ao encontro o ex-governador da Bahia Paulo Souto, o ex- 455 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 ministro Gedel Vieira Lima, o ex-prefeito de Salvador Manoel Castro, o presidente da Câmara Municipal de Salvador Pedro Godinho, e a vereadora Olívia Santana. 31 - Visita guiada à sede da Academia pelos alunos do Instituto Federal da Bahia com o acompanhamento da professora Adna Couto. Agosto 02 - Sessão solene e pública, com a presença do secretário de cultura do Estado da Bahia, doutor Antônio Albino Canelas Rubim, para a posse do poeta Luís Antônio Cajazeira Ramos na Cadeira número 35, de que foi o último ocupante o acadêmico João Falcão e que tem como patrono Manuel Vitorino Pereira, sendo o novo acadêmico saudado pelo acadêmico Fernando da Rocha Peres. 07 - Visita guiada à sede da Academia pelos alunos da Escola Monsenhor Neiva com o acompanhamento da professora Adna Couto. 13 a 17 - Curso Jorge Amado 2012 e II Colóquio de Literatura Brasileira, atividades constantes, em conjunto, desde o ano anterior, do calendário anual de eventos da Academia de Letras da Bahia e da Fundação Casa de Jorge Amado, porém, neste ano, também incluídos no calendário oficial comemorativo do centenário de nascimento do escritor, recebendo, por isso, o subtítulo: "Jorge Amado, 100 anos escrevendo o Brasil". Coordenado pela acadêmica e diretora geral da Fundação Casa de Jorge Amado, Myriam Fraga, teve como Comissão Organizadora os acadêmicos Aleilton Fonseca, Evelina Hoisel e Myriam Fraga. 13/08, segunda-feira, 19h: Abertura oficial, constando a solenidade: 1) palavras de abertura do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia; 2) palavras da acadêmica Myriam Fraga, diretora geral da Fundação Casa de Jorge Amado; 3) conferência de abertura da presidente da Academia Brasileira de Letras, escritora Ana Maria Machado; 4) inauguração da placa "Biblioteca Jorge Amado", denominação que passa a ter, por proposição do acadêmico Edivaldo M. Boaventura e unanimidade de votação dos acadêmicos, a Biblioteca da Academia de Letras da Bahia, constando, esta particular solenidade, de: a) palavras do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia; b) descerramento da placa por Paloma Amado e João Jorge Amado, filhos de Jorge Amado; c) discurso do acadêmico Edivaldo M. Boaventura, orador oficial da 456 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 cerimônia; d) palavras de Paloma Amado. 14/08, terça-feira, 14h30: Sessões de comunicação (1 e 2). 17h: depoimento do acadêmico Murilo Melo Filho, da Academia Brasileira de Letras. 17h40: Mesa redonda, 100 anos escrevendo o Brasil: Permanência de Jorge Amado, Domício Proença Filho (ABL); Jorge Amado e a utopia racial brasileira, Eduardo Assis Duarte (Ufmg); e Diga aí, Jorginho, Paloma Jorge Amado. Coordenação da professora e acadêmica Evelina Hoisel. 15/08, quartafeira, 14h30: Sessões de comunicação (3 e 4). 17h: Depoimento, em filme, de Mãe Stella de Oxóssi. 17h40: Mesa redonda, Religiosidade e miscigenação: Miscigenação na obra de Jorge Amado, Jacques Salah (Ufba); Linguagem com sabor de dendê: marcas da africania na obra de Jorge Amado, Yeda Pessoa de Castro (ALB/Uneb); Jorge Amado: novas leituras, Ubiratan Castro de Araújo (ALB/FPC): Coordenação da professora doutora Rosana Ribeiro Patrício (Uefs). 16/08, quintafeira, 14h30: Sessões de comunicação (5 e 6). 17h: depoimento do professor Antônio Maura, com lançamento da revista Turia. 17h40, Mesa redonda, Jorge Amado e a critica: Anos 30: olhares da crítica sobre os romances de Jorge amado, Ana Rosa Ramos (Ufba); As relações de poder da crítica literária e os romances de Jorge Amado, Ivia Alves (Ufba); Jorge Amado no país dos Bruzundangas, Jorge Araújo (Uefs): Coordenação do professor, doutor e acadêmico Aleilton Fonseca (ALB/Uefs). 17/08, sexta-feira, na Fundação Casa de Jorge Amado: 16h: Apresentação musical da camerata da Orquestra Sinfônica da Bahia, Bahia Cordas. 17h: Depoimentos de Luís Henrique dias Tavares (ALB), João Jorge Amado, Florisvaldo Mattos (ALB), Claudius Portugal, Antonella Roscilli (RFI). Coordenação de Myriam Fraga. 19h: lançamento do livro Jorge Amado nos terreiros da ficção, organizado por Myriam Fraga, Aleilton Fonseca e Evelina Hoisel. Encerramento. 21 - Sessão solene e pública para a posse da escritora italiana Antonella Rita Roscilli como membro correspondente, sendo saudada pelo acadêmico Edivaldo M. Boaventura. 23 - Sessão especial para o lançamento da Coleção Mestres da Literatura Baiana e homenagem ao deputado Marcelo Nilo, presidente da Assembleia Legislativa da Bahia, constando a solenidade: 1) palavras de abertura do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia; 2) outorga da Medalha Arlindo Fragoso ao presidente da Assembleia Legislativa da Bahia, deputado Marcelo Nilo, por sua relevante contribuição à cultura baiana, em particular à 457 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Academia; 3) discurso do acadêmico Joaci Góes em louvor ao homenageado; 4) discurso do deputado Marcelo Nilo, presidente da Assembleia Legislativa da Bahia; 5) lançamento da Coleção Mestres da Literatura Baiana, uma realização conjunta da Academia de Letras da Bahia com a Assembleia Legislativa da Bahia, com o primeiro volume, A Bahia já foi assim, de Hildegardes Vianna, com prefácio de Aramis Ribeiro Costa. 28 - Lançamento do livro Cantos de Contar do escritor Alberto Cunha Mello, edição póstuma coordenada pelo escritor Gustavo Felicíssimo. Setembro 06 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Consuelo Pondé de Sena, Waldir Freitas Oliveira, Luís Henrique Dias Tavares, Consuelo Novais Sampaio, Luís Antonio Cajazeira Ramos, João Eurico Matta e convidados, para a palestra do acadêmico Waldir Freitas Oliveira, A morte como ornato de literatura de ficção: a morte de Clorinda em "Jerusalém libertada". 13 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), João Eurico Matta, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Gláucia Lemos, Edvaldo M. Boaventura, Paulo Ormindo David de Azevedo, Carlos Ribeiro, para a palestra do acadêmico Carlos Ribeiro, Academias de Letras no Brasil: algumas observações. 18 a 20 - Curso Castro Alves 2012 e VII Colóquio de Literatura Baiana, atividades constantes, em conjunto, do calendário anual de eventos da Academia de Letras da Bahia, com a parceria institucional da Universidade Estadual de Feira de Santana, dentro do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural, nesta edição homenageando os centenários de nascimento de Jorge Amado, Édison Car neiro e Camillo de Jesus Lima, sob a coordenação geral do acadêmico, professor, doutor Aleilton Fonseca. 18/09, terça-feira, Centenário de Camillo de Jesus Lima. 14h30: sessões de comunicação (1, 2, 3, 4 e 5). 17h, abertura: palavras do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia. Mesa redonda, palestras: Camilo de Jesus Lima: um poeta sem fronteiras, Esmeralda Guimarães Meira (Uneb); Revisitando Camillo de Jesus Lima, João Eurico Matta. Coordenação de Aramis Ribeiro Costa (ALB). 18h30: Lançamentos dos livros: 458 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Sonetos elementais, de Florisvaldo Mattos e Muito além das tardes nevoentas, de Esmeralda Guimarães Meira. 19/09, quarta-feira, Centenário de Édison Carneiro. 14h30: Sessões de comunicação (6, 7, 8, 9 e 10). 17h, mesa redonda, palestras: Castro Alves visto por Édison Carneiro, Consuelo Pondé de Sena (IGHB/ALB); Édison Carneiro, amigo e companheiro, Waldir Freitas Oliveira (ALB). Coordenação de Aramis Ribeiro Costa (ALB). 18h30, lançamentos dos livros: Fazedores de tempestades, de Carlos Ribeiro e Gira, gira, girou... o dia em que a terra parou, de Margot Lobo Valente. 20/09, quinta-feira, Centenário de Jorge Amado. 14h30: sessões de comunicação (11, 12 e 13). 17h: Sessão Especial Centenário de Jorge Amado, com comunicações de Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz (Uefs), Tatiane Almeida Ferreira (Uefs), Eliene da Fé Rabelo (Uneb), Silvânia Cápua Carvalho (Uefs) e Antônio Carlos M. Teixeira Sobrinho (Uneb). 18h30: Apresentação musical: Declamação musical de poemas de Sosígenes Costa, por Marcos Roriz. Encerramento. 27 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Gláucia Lemos, Consuelo Pondé de Sena, Paulo Costa Lima, Consuelo Novais de Sampaio, Joaci Góes, Luís Henrique Dias Tavares, Edvaldo M. Boaventura, Luís Antonio Cajazeira Ramos, João Eurico Matta e convidados, para a palestra da acadêmica Consuelo Pondé de Sena, Afrânio Coutinho e a Bahia, comemorativa do centenário de nascimento do crítico, acadêmico e professor baiano, ocorrido no ano anterior. Outubro 4 - Reunião da diretoria para prestação de contas financeira, administrativa e funcional relativa à gestão 2011-2013. 11 - Sessão especial com a presença dos proprietários e diretores do jornal A Tarde, da família do fundador do jornal, acadêmico Ernesto Simões Filho, e do secretário de Comunicação Social do Estado da Bahia Robinson Almeida, para homenagem ao centenário de A Tarde, contando a solenidade a seguinte programação: 1) palavras de abertura do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia; 2) conferência do acadêmico Edivaldo M. Boaventura, Simões Filho e A Tarde; 3) palavras do representante da Família Simões Filho e do jornal A Tarde, jornalista Ranulfo Bocayuva. 459 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 17 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Fernando da Rocha Peres, João Eurico Matta, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Florisvaldo Mattos e convidados, para depoimentos dos acadêmicos Fernando da Rocha Peres e Florisvaldo Mattos, e do professor da Ufba Paulo Fábio, sobre Carlos Nelson Coutinho, o amigo e o intelectual. 25 - Sessão especial para homenagem ao centenário de nascimento do acadêmico dom Avelar Brandão Vilela (1912-2012), com as presenças do arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, dom Murilo Krieger e do secretário de Estado Fernando Schmidt, sendo oradora a acadêmica Consuelo Pondé de Sena. Novembro 13 - Lançamento do livro Nuances, de Vladimir Queiroz. 19 - Seminário Novas Letras, promoção da Fundação Pedro Calmon com a Academia de Letras da Bahia: encontro com o escritor nigeriano Wole Soyinka, Prêmio Nobel de Literatura 1986, constando a solenidade: 1) palavras de abertura do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia; 2) conferência com tradução simultânea do escritor e Prêmio Nobel Wole Soyinka; 3) lançamento de O leão e a jóia, primeiro livro traduzido para o Brasil desse autor, com prefácio do acadêmico Ubiratan Castro de Araújo, diretor geral da Fundação Pedro Calmon. 21 - Sessão especial constante da semana Semana Stefan Zweig, promoção conjunta do Goethe Institut e Academia de Letras da Bahia, constituindo o encontro: 1) palavras de abertura do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia; 2) palestra: Stefan Zweig Está Vivo, pelo jornalista e biógrafo Alberto Dines; 3) debate aberto ao público. 22 - Sessão solene e pública, com a presença do governador do Estado da Bahia, Jaques Wagner, do presidente da Assembleia Legislativa da Bahia, Marcelo Nilo e do secretário de Cultura do Estado da Bahia, Antônio Albino Canelas Rubim, para a posse do escritor João Ubaldo Ribeiro na cadeira número 09, de que foi último ocupante o acadêmico Cláudio de Andrade Veiga e que tem como patrono Antonio Ferreira França, sendo o novo acadêmico saudado pelo acadêmico Joaci Góes. 460 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 27 - Palestra e lançamento do livro O poder erótico, diário e cartas de Cristina Vasa rainha da Suécia e do padre Antonio Vieira, do membro correspondente Glória Kaiser. 27 a 29 - Tempo e Poesia: Seminário Ruy Espinheira Filho, realização da Academia de Letras da Bahia com a parceria institucional do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia e do Prog rama de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de Santana, com a coordenação geral da acadêmica, professora, doutora Evelina Hoisel (ALB/Ufba), e do acadêmico, professor doutor Aleilton Fonseca (ALB/Uefs). 27/11, 17h: palavras de abertura do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia e da professora e acadêmica Evelina Hoisel, coordenadora do seminário. 17h30, mesa redonda: Na mesa o poeta Ruy Espinheira Filho. Participantes: Gerana Damulakis (crítica literária); Iacyr Anderson Freitas (poeta, contista e crítico literário); Carlos Ribeiro (professor, escritor e acadêmico); e Gabriela Lopes (pesquisadora). Coordenação e mediação da professora Antônia Herrera (Ufba). 28/11, 17h, mesa redonda: Os tempos da poesia. Palestras: As perdas luminosas: memória e finitude na poesia de Ruy Espinheira Filho, Iacyr Anderson Freitas (poeta, contista e crítico literário); Ruy Espinheira Filho: A poesia na marcha do tempo sucessivo, Florisvaldo Mattos (ALB/Ufba); Ruy Espinheira Filho: Arquitexturas do tempo e da memória, Alana de Oliveira Freitas El Fahl (Uefs); O passar dos meses notas sobre o tempo em Ruy Espinheira Filho, Sandro Ornellas (Ufba). Coordenação e mediação da professora Evelina Hoisel (ALB/Ufba). 29/11, 17h, palestra: Ruy Espinheira Filho: poesia como memória viva, Miguel Sanches Neto (Uepg). Coordenação e mediação do professor Aleilton Fonseca (ALB/Uefs). 18h: noite de autóg rafos. Encerramento. 30 - Sessão especial para mesa redonda com o tema Literatura de Canudos, com a participação de Reinaldo Fernandes (Ufpb); Lidiane Pinheiro (Uneb); Aleilton Fonseca (ALB/Uefs); Manoel Neto (Centro de Estudos Euclides da Cunha). Mediação: Suênio Campos de Lucena (Uneb). Lançamento do livro Mário Vargas Llosa: um prêmio Nobel em Canudos , de Rinaldo de Fernandes, com a coordenação do acadêmico Aleilton Fonseca. 461 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Dezembro 5 - Lançamento do livro Natal das crianças negras, com ilustrações de Calazans Neto, em seis idiomas, do escritor e membro correspondente Cyro de Mattos. 6 - Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Consuelo Novais Sampaio, Waldir Freitas Oliveira, Luís Henrique Dias Tavares, Fernando da Rocha Peres, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Gláucia Lemos, Paulo Costa Lima, Ruy Espinheira Filho, João Eurico Matta, Roberto Figueira Santos, Florisvaldo Mattos, Myriam Fraga, Geraldo Machado, para eleição da diretoria para o biênio de 2013-2015, tendo sido eleita a seguinte diretoria: presidente, Aramis de Almada Ribeiro Costa; vice-presidente, João Eurico Matta; 1º secretário, Evelina Hoisel; 2º secretário, Gláucia Lemos; 1º tesoureiro, Paulo Ormindo David de Azevedo; 2º tesoureiro, Luís Antônio Cajazeira Ramos; diretor da Revista, Florisvaldo Mattos; diretor da biblioteca, D. Emanuel d'Able do Amaral; diretor do arquivo, Joaci Góes; diretor de informática, Carlos Ribeiro. Conselho editorial: Fernando da Rocha Peres, Myriam Fraga, Ruy Espinheira Filho. Conselho de contas e patrimônio: Aleilton Fonseca, Paulo Costa Lima, Waldir Freitas Oliveira. 10 - Lançamento do livro Convivência acadêmica, do escritor e acadêmico Edivaldo M. Boaventura. Palavras de saudação do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia, e do acadêmico Joaci Góes. Palavras do acadêmico Edivaldo M. Boaventura. Comemoração, na mesma ocasião, do aniversário do autor e acadêmico. 13 - Sessão especial para entrega do Prêmio Conjunto de Obra 2012 Academia de Letras da Bahia Eletrogoes ao escritor e acadêmico Waldir Freitas Oliveira. Palavras do doutor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia, do acadêmico Joaci Goes, presidente da Eletrogoes, do acadêmico João Eurico Matta, vice-presidente eleito, do acadêmico Fernando da Rocha Peres e do escritor homenageado. Confraternização de Natal entre acadêmicos e funcionários. 2013 - Janeiro 3 - Luto oficial pela morte do acadêmico Ubiratan Castro de Araújo. 462 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 Quadro Social da ALB Cadeira 1 Patrono: Frei Vicente de Salvador Fundador: José de Oliveira Campos 2º Titular: Júlio Afrânio Peixoto, fundador da Cadeira 25, por transferência consentida pela Academia 3º Titular: José Wanderley de Araújo Pinho Titular atual: Luís Henrique Dias Tavares Posse em 14.06.1968 Cadeira 2 Patrono: Gregório de Mattos e Guerra Fundador: Aloysio Lopes Pereira de Carvalho, conhecido por Lulu Parola 2º Titular: Luis Viana Filho Titular atual: Paulo Ormindo David de Azevedo Posse em 20.06.1991 O quadro dos titulares da Academia de Letras da Bahia foi elaborado pelo acadêmico Renato Berbert de Castro (1924-1999). 463 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Cadeira 3 Patrono: Manuel Botelho de Oliveira Fundador: Arthur Gonçalves de Sales 2º Titular: Eloywaldo Chagas de Oliveira Titular atual: Anna Amélia Vieira Nascimento Posse em 26.03.1992 Cadeira 4 Patrono: Sebastião da Rocha Pita Fundador: Braz Hermenegildo do Amaral 2º Titular: João da Costa Pinto Dantas Júnior 3º Titular: Jayme de Sá Menezes Titular atual: Geraldo Magalhães Machado Posse em 31.10.2003 Cadeira 5 Patrono: Luís Antônio de Oliveira Mendes Fundador: Carlos Chiacchio 2º Titular: Antônio Luís Cavalcanti Albuquerque de Barros Barreto 3º Titular: Carlos Benjamin de Viveiros 4º Titular: José Silveira 5º Titular: Guido Guerra Titular atual: Carlos Jesus Ribeiro Posse em 31.05.2007 Cadeira 6 Patrono: Alexandre Rodrigues Ferreira Fundador: Manoel Augusto Pirajá da Silva 2º Titular: Thales Olímpio Góes de Azevedo 3º Titular: Dom Lucas Cardeal Moreira Neves Titular atual: Cleise Furtado Mendes Posse em 15.04.2004. Cadeira 7 Patrono: José da Silva Lisboa Visconde de Cairu Fundador: Ernesto Carneiro Ribeiro 2º Titular: Francisco Borges de Barros 3º Titular: Aloísio de Carvalho Filho. Eleito para a Cadeira 26, permutou esta, obtendo acordo da Academia, pela Cadeira 7, com monsenhor Francisco de Paiva Marques, quando ambos ainda não-empossados. 464 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 4º Titular: Nélson de Souza Sampaio 5º Titular: Pedro Moacir Maia Titular atual: Joaci Fonseca de Góes Posse em: 24.09.2009 Cadeira 8 Patrono: Cipriano José Barata de Almeida Fundador: Luís Anselmo da Fonseca 2º Titular: Francisco Peixoto de Magalhães Netto 3º Titular: Adriano de Azevedo Pondé 4º Titular: Ari Guimarães Titular atual: Paulo Costa Lima Posse em 17.12.2009 Cadeira 9 Patrono: Antônio Ferreira França Fundador: José Alfredo de Campos França 2º Titular: Edgard Ribeiro Sanches 3º Titular: Antônio Luís Machado Neto 4º Titular: Cláudio de Andrade Veiga Titular atual: João Ubaldo Ribeiro Posse em 22.11.2012 Cadeira 10 Patrono: José Lino dos Santos Coutinho Fundador: Antônio Muniz Sodré de Aragão 2º Titular: Altamirando Alves da Silva Requião Titular atual: Monsenhor Gaspar Sadoc Posse em 16.10.1990 Cadeira 11 Patrono: Francisco gê Acaiaba de Montezuma, Visconde de Jequitinhonha Fundador: Antônio Ferrão Moniz de Aragão 2º Titular: Otávio Torres 3º Titular: Oldegar Franco Vieira Titular atual: Yeda Pessoa de Castro Posse em 10.04.2008 465 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Cadeira 12 Patrono: Miguel Calmon, Marquês de Abrantes Fundador: Miguel Calmon du Pin e Almeida 2º Titular: Alberto Francisco de Assis 3º Titular: Afonso Rui de Sousa 4º Titular: Itazil Benício dos Santos Titular atual: Aramis de Almada Ribeiro Costa Posse em 25.11.1999 Cadeira 13 Patrono: Francisco Moniz Barreto Fundador: Egas Moniz Barreto de Aragão, literariamente conhecido por Pethion de Villar 2º Titular: Afonso de Castro Rebelo Filho 3º Titular: Walter Raulino da Silveira 4º Titular: Odorico Montenegro Tavares da Silva 5º Titular: Luís Fernando Seixas de Macedo Costa Titular atual: Myriam de Castro Lima Fraga Posse em 30.07.1985 Cadeira 14 Patrono: Francisco Gonçalves Martins, Visconde de São Lourenço Fundador: Bernardino José de Sousa 2º Titular: Alberto Alves Silva 3º Titular: Edgard Rego Santos 4º Titular: Raul Batista de Almeida 5º Titular: Carlos Vasconcelos Maia 6º Titular. Epaminondas Costalima Titular atual: Gláucia Maria de Lemos Posse em 21.10.2010 Cadeira 15 Patrono: Ângelo Moniz da Silva Ferraz, Barão de Uruguaiana Fundador: Otaviano Moniz Barreto 2º Titular: Hélio Gomes Simões Titular atual: João Carlos Teixeira Gomes Posse em 08.06.1989 466 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Cadeira 16 Patrono: José Tomáz Nabuco de Araújo Fundador: Eduardo Godinho Espínola 2º Titular: Orlando Gomes dos Santos Titular atual: João Eurico Matta Posse em 10.05.1989 Cadeira 17 Patrono: Antônio Ferrão Moniz Fundador: Gonçalo Moniz Sodré de Aragão 2º Titular: Leopoldo Braga 3º Titular: Carlos Eduardo da Rocha Titular atual: Ruy Espinheira Filho Posse em 15.09.2000 Cadeira 18 Patrono: Zacarias de Góes e Vasconcelos Fundador: José Joaquim Seabra 2º Titular: Augusto Alexandre Machado 3º Titular: Dom Avelar Brandão Vilela Titular atual: Waldir Freitas Oliveira Posse em 27.10.1987 Cadeira 19 Patrono: João Maurício Vanderley, Barão de Cotegipe Fundador: Severino dos Santos Vieira 2º Titular: Arlindo Coelho Fragoso. Fundador da Cadeira 41, criada em caráter provisório, transferiu-se para esta, após a morte de Severino Vieira, ocorrida a 27 de setembro de 1917, a fim de que fosse extinta a temporária. 3º Titular: Deraldo Dias de Morais 4º Titular: Guilherme Antônio Freire de Andrade Filho 5º Titular: Godofredo Rebelo de Figueiredo Filho Titular atual: Cid José Teixeira Cavalcante Posse em 25.03.1993 467 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Cadeira 20 Patrono: Augusto Teixeira de Freitas Fundador: Carlos Gonçalves Fernandes Ribeiro 2º Titular: Epaminondas Berbert de Castro 3º Titular: Lafayette Ferreira Spínola 4º Titular: Ivan Americano da Costa 5º Titular: Joaquim Alves da Cruz Rios Titular atual: Aleilton Santana da Fonseca Posse em 15.04.2005 Cadeira 21 Patrono: Francisco Bonifácio de Abreu, Barão da Vila da Barra Fundador: Filinto Justiniano Ferreira Barros 2º Titular: Estácio Luís Valente de Lima 3º Titular: Jorge Amado 4º titular: Zélia Gattai Amado Titular atual: Antonio Brasileiro Borges Posse em: 10.06.2010 Cadeira 22 Patrono: José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco Fundador: Ruy Barbosa 2º Titular: Ernesto Carneiro Ribeiro Filho 3º Titular: Aloísio Henrique de Barros Porto Titular atual: Clóvis Álvares Lima Posse em 08.05.1980 Cadeira 23 Patrono: Antônio Januário de Faria Fundador: João Américo Garcez Fróes 2º Titular: Jorge Calmon Moniz de Bittencourt Titular atual: Samuel Celestino Silva Filho Posse em 21.08.2008 Cadeira 24 Patrono: Demétrio Ciriaco Tourinho Fundador: Luís Pinto de Carvalho 468 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 2º Titular: Luís Menezes Monteiro da Costa 3º Titular: Renato Berbert de Castro Titular atual: Francisco Soares Senna Posse em 27.04.2000 Cadeira 25 Patrono: Pedro Eunápio da Silva Deiró Fundador: Júlio Afrânio Peixoto. Com o consentimento da Academia, transferiu-se para a Cadeira 1 após a morte de seu fundador, José de Oliveira Campos. 2º Titular: Francisco Hermano Santana 3º Titular: Raimundo de Sousa Brito 4º Titular: Luís Augusto Fraga Navarro de Brito Titular atual: Fernando da Rocha Peres Posse em 16.06.1988 Cadeira 26 Patrono: Dom Antônio de Macedo Costa Fundador: Padre José Cupertino de Lacerda 2º Titular: Alberto Moreira Rabelo, único membro da Academia que faleceu antes de tomar posse. 3º Titular: Monsenhor Francisco de Paiva Marques. Eleito para a Cadeira 7, permutou esta pela Cadeira 26, com Aloísio de Carvalho Filho, quando ambos ainda nãoempossados. 4º titular: César Augusto de Araújo Titular atual: Roberto Figueira Santos Posse em 10.08.1971 Cadeira 27 Patrono: Francisco Rodrigues da Silva Fundador: Frederico de Castro Rebelo 2º Titular: Antônio Gonçalves Vianna Júnior 3º Titular: Jaime Tourinho Junqueira Aires 4º Titular: Antônio Loureiro de Souza Titular atual: James Amado Posse em 26.04.1990 469 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Cadeira 28 Patrono: Luís José Junqueira Freire Fundador: Francisco Torquato Bahia da Silva Araújo 2º Titular: Homero Pires de Oliveira e Silva 3º Titular: José Calasans Brandão e Silva Titular atual: Consuelo Pondé de Sena Posse em 14.03.2002 Cadeira 29 Patrono: Agrário de Souza Menezes Fundador: Antônio Alexandre Borges dos Reis 2º Titular: Manços Chastinet Contreiras 3º Titular: Colombo Moreira Spínola 4º Titular: Jorge Faria Góes Titular atual: Hélio Pólvora de Almeida Posse em 08.03.1994 Cadeira 30 Patrono: Joaquim Monteiro Caminhoá Fundador: Antônio do Prado Valadares. Permutou a cadeira com Roberto José Correia, titular da 38. 2º Titular: Roberto José Correia 3º Titular: Alfredo Vieira Pimentel 4º Titular: Nestor Duarte Guimarães 5º Titular: Josaphat Ramos Marinho Titular atual: Paulo Furtado Posse em 24.04.2003 Cadeira 31 Patrono: Belarmino Barreto Fundador: Ernesto Simões da Silva Freitas Filho 2º Titular: José Luís de Carvalho Filho Titular atual: Florisvaldo Mattos Posse em 23.11.1995 Cadeira 32 Patrono: André Pinto Rebouças Fundador: Teodoro Fernandes Sampaio 2º Titular: Isaías Alves de Almeida 3º Titular: Zitelmann José Santos de Oliva 470 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Titular atual: Gérson Pereira dos Santos Posse em 28.11.1991 Cadeira 33 Patrono: Antônio Frederico de Castro Alves Fundador: Francisco Xavier Ferreira Marques 2º Titular: Heitor Praguer Fróes. Tomou posse em 15 de novembro de 1931, na Cadeira 34, transferindo-se para esta, após a morte de Xavier Marques 3º Titular: Waldemar Magalhães Mattos 4º Titular: Ubiratan Castro de Araújo Titular atual: Maria Stella de Azevedo Santos (ainda não empossada) Eleita em 25.04.2013 Cadeira 34 Patrono: Domingos Guedes Cabral Fundador: José Virgílio da Silva Lemos 2º Titular: Heitor Pragues Fróes. Transferiu-se para a Cadeira 33, depois do desparecimento de Xavier Marques 3º Titular: Adalício Coelho Nogueira 4º Titular: Walfrido Moraes Titular atual: Evelina de Carvalho Sá Hoisel Posse em 27.10.2005 Cadeira 35 Patrono: Manoel Vitorino Pereira Fundador: Antônio Pacífico Pereira 2º Titular: Afonso Costa 3º Titular: Rui Santos 4º Titular: Rubem Rodrigues Nogueira 5º Titular: João da Costa Falcão 6º Titular: Luís Antonio Cajazeira Ramos Posse em 02.08.2012 Cadeira 36 Patrono: Joaquim Jerônimo Fernandes da Cunha Fundador: Afonso de Castro Rebelo 2º Titular: Monsenhor Manuel de Aquino Barbosa 471 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , nº 51, 2013 3º Titular: Hildegardes Vianna Titular atual: José Carlos Capinan Posse em 17.08.2006 Cadeira 37 Patrono: João Batista de Castro Rebelo Júnior Fundador: Almachio Diniz Gonçalves 2º Titular: Edith Mendes da Gama e Abreu 3º Titular. Antonio Carlos Magalhães Titular atual: Dom Emanuel d’Able do Amaral Posse em: 28.05.2009 Cadeira 38 Patrono: Alfredo Tomé de Brito Fundador: Oscar Freire de Carvalho 2º Titular: Roberto José Correia. Permutou sua cadeira com Prado Valadares, fundador da Cadeira 30. 3º Titular: Antônio do Prado Valadares 4º Titular: Cristiano Alberto Müller 5º Titular: Wilson Mascarenhas Lins de Albuquerque Titular atual: Armando Avena Filho Posse em 28.04.2005 Cadeira 39 Patrono: Francisco de Castro Fundador: Clementino Rocha Fraga Filho Titular atual: Edivaldo Machado Boaventura Posse em 06.08.1971 Cadeira 40 Patrono: Francisco Cavalcanti Mangabeira Fundador: Otávio Cavalcanti Mangabeira 2º Titular: Manoel Pinto de Aguiar Titular atual: Consuelo Novais Sampaio Posse em 26.11.1992 Obs.: Cadeira 41 - Criada em caráter provisório para que Arlindo Fragoso, idealizador e organizador da Academia, não lhe ficasse de fora, devendo ser extinta com o falecimento de qualquer um dos 41 fundadores. Patrono: Manuel Alves Branco, Visconde de Caravelas (2º). Fundador Arlindo Coelho Fragoso. Com a morte de Severino Vieira, em 27 de setembro de 1917, para a sua Cadeira, de número 19, foi transferido Arlindo Fragoso, e supressa a cadeira provisória. 472 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 Endereços dos Acadêmicos LUÍS HENRIQUE DIAS TAVARES Rua do Ébano, 159, Edfº Henti Matisse, aptoº 802 Caminho das Árvores Salvador - BA - 41820-370 (71) 3245-3524 [email protected] PAULO ORMINDO DE AZEVEDO Rua João da Silva Campos, 1132, Itaigara Salvador - BA - 41840-060 (71) 3358-7571 [email protected] ANNA AMÉLIA VIEIRA NASCIMENTO Rua Cândido Portinari, 19, Barra Salvador - BA - 40140-680 (71) 3247-3312 [email protected] GERALDO MAGALHÃES MACHADO R. Edith Mendes da Gama e Abreu, nº300 Edfº. Port Saint James, aptoº1403, Itaigara Salvador - BA - 41815-010 (71) 3353-5350 / (71)9976-7033 [email protected] 473 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 CARLOS RIBEIRO Rua do Timbó, 680 Edf. Villa Etruska, aptoº503 Caminho das Árvores Salvador - BA - 41820-660 (71) 3011-7019/ (71) 8899-5864 [email protected] CLEISE MENDES Av. Araújo Pinho, 114/1301, Canela Salvador - BA - 40110-050 (71)3337 0312 [email protected] JOACI GÓES Av. Amaralina, 885 – Edf. Amaralina Center – Loja 9 Salvador -BA - 41900-020 (71) 3444-2308 / (71)8814-3631 [email protected]; [email protected] PAULO COSTA LIMA Rua Sabino Silva, nº282, Edf. Saint Mathieu, aptoº401 Jardim Apipema - Salvador -BA - 40155-250 (71) 8832-1545 /(71)3235-5676 [email protected] JOÃO UBALDO RIBEIRO Rua General Urquiza, 147/401 Rio de Janeiro - RJ - 22431-040 [email protected] YEDA PESSOA DE CASTRO Rua Rodrigues Dórea, Qd 23 Lt 3 - Jardim Armação Salvador -BA - 41750-030 (71) 3461-9033 [email protected] 474 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 MONSENHOR GASPAR SADOC Rua Crisipo de Aguiar, 12, aptº 102 Salvador - BA - 40080-310 (71)3336-0346 ARAMIS RIBEIRO COSTA Rua Piauí, 439, aptº 1103, Pituba Salvador - BA - 41830-280 (71)3240 4969 (71) 9984-1165 [email protected] MYRIAM FRAGA Rua Waldemar Falcão, 761, aptº 301, Brotas Salvador - BA - 40295-001 (71) 3356 4611 [email protected] GLÁUCIA LEMOS Rua Ceará, 853, apto. 203 - Pituba Salvador -BA 4l830-450 (71)3240-3688/(71)9147-9904 [email protected] JOÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES Rua Espírito Santo, 15, aptº 802, Pituba Salvador - BA - 41830-190 (71) 3240 1712 / (21) 2246-0790 JOÃO EURICO MATTA Rua Afonso Celso, nº301, Edf. Concórdia, aptoº302 - Barra Salvador - BA - 40140-080 (71) 3247-0869/ (71)8880-0869 [email protected] 475 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 RUY ESPINHEIRA FILHO Caixa Postal 10333 Salvador - BA - 41520-970 (71)3287 2225/ (71) 9973-8711 [email protected] WALDIR FREITAS OLIVEIRA Rua Tiradentes, 52, Abrantes Camaçari - BA - 42840-000 (71) 3623 1434 [email protected] CID TEIXEIRA Rua das Violetas, 85, Pituba Salvador - BA - 41810-080 (71) 3452 -7202 [email protected] ALEILTON FONSECA Rua Rubem Berta, 267, aptº 402, Pituba Salvador - BA - 41810-045 (71) 3345 1519 / (71)88761519 [email protected] ANTONIO BRASILEIRO Rua Alto do Paraná, 300 – Bairro Sim 44.042-000 Feira de Santana - BA - 44042-000 (75)3625-8512 [email protected] CLÓVIS LIMA Av. Sete de Setembro, 750, aptº 404, Mercês Salvador - BA - 40060-001 (71) 3329 4178 476 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 SAMUEL CELESTINO Rua do Ébano, nº159 - Edf. Henri Matisse Aptº.1301 Caminho das Árvores Salvador - BA - 41820-370 (71) 3341-4485 / 71- 3359-7741 [email protected] FRANCISCO SENNA Rua Prof. Milton Oliveira, nº73 Edf. Palazzo Anacapri, aptoº202 - Barra Salvador - BA - 40.140-100 (71)9967-0685 FERNANDO DA ROCHA PERES Av. Sete, 2901, ala norte, aptº 202, Ladeira da Barra Salvador - BA - 40130-000 (71)3336 3670 ROBERTO SANTOS Rua Basílio Catalã de Castro, Quinta do Candeal, quadra B, lote 19 Salvador - BA - 40280-550 (71) 3276 57549 [email protected] JAMES AMADO Rua Edith Gama Abreu, 53, aptº 1203 - Itaigara Salvador - BA - 41815-010 (71) 3358 5203 CONSUELO PONDÉ DE SENA Av. Princ. Leopoldina, 288, aptº 301, Graça Salvador - Ba - 40150-080 (71) 3336 6205 [email protected] 477 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 HÉLIO PÓLVORA Av. Sete de Setembro, 1862/1202, Corredor da Vitória Salvador - BA - 40080-004 (71) 3337 0169 [email protected] PAULO FURTADO Orlando Gomes, Costa Verde, Rua A, q. H, 1.3 Salvador - BA - 41650-120 (71) 3367 9481 [email protected] FLORISVALDO MATTOS Rua Sócrates Guanaes Gomes, 107, Aptº 1901, Cidade Jardim Salvador - BA - 40296-720 (71) 3353 9785 [email protected] GÉRSON PEREIRA DOS SANTOS Rua Dr. João Ponde, 86, aptº 501, Barra Salvador - BA - 40150-810 (71) 3264 3436 MARIA STELLA DE AZEVEDO SANTOS Rua Direta de São Gonçalo do Retiro, 557 Salvador - BA - 41110-200 (71) 3247 2967 EVELINA HOISEL Rua Mons. Gaspar Sadoc, 48, Jardim de Alá Salvador - BA - 41750-200 (71) 3343 5789 [email protected] 478 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 LUÍS ANTONIO CAJAZEIRA RAMOS Rua Érico Veríssimo, 34/401, Itaigara Salvador - BA - 41815-340 (71) 3345 6969 / 8861 1515 [email protected] JOSÉ CARLOS CAPINAN Rua Tamoios, 96, Rio Vermelho Salvador - BA - 41940-040 (71) 3345 2080 [email protected] DOM EMANUEL D’ABLE DO AMARAL Largo São Bento, 01 Centro Salvador - BA - 41205-220 (71) 2106-5272 /8151-1053 [email protected] ARMANDO AVENA Jardim Gantois, 346, Rua C, Piatã Salvador - BA - 41680-170 (71)3115 3694 [email protected] EDIVALDO M. BOAVENTURA Rua Dr. José Carlos, 99, aptº 801, Acupe Salvador - BA - 40290-040 (71)3276 1242 [email protected] CONSUELO NOVAIS SAMPAIO R. Catarina Paraguaçu nº02 aptoº805 - Graça Salvador - BA - 40150-200 (71)3331-3694/3012-1010/9976-4656 [email protected] 479 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 MEMBROS CORRESPONDENTES ANTONIO CARLOS SECCHIN Av. Atlântica, 2112, aptº801 Copacabana- 1 Rio de Janeiro - RJ - 22021-001 (21) 2236-1112 [email protected] ANTONELLA RITA ROSCILLI Rai-Radiotelevisione Italiana Bibliomediateca Direzione Teche, Viale Mazzini, nº 14 00195 Roma - Italia [email protected] [email protected] ÁTICO FROTA VILLAS-BOAS DA MOTA Rua Dr. Manoel Vitorino, 411 - Coité Macaúbas -BA - 46500-000 (77) 3473-1292 CYRO DE MATTOS Travessa Rosenaide, 40 / 101 – Zildolândia 45600-395 – Itabuna – BA (73) 3211-1902 /(73) 88461883 [email protected] DOMINIQUE STOENESCO 26 bis, allée Guy Mocquet - 94170 Le Perreux-sur-Marne - France (003133) 1 48 72 16 56 / (003133) 06 08 65 50 23 [email protected] FLANKLIN W. KNIGHT 2902 W. Strathmore Avenue Baltimore, Maryland 21209 - USA 480 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , nº 51, 2013 GLÓRIA KAISER Dr. Robert Siegerst, 15 A 8010 – Graz - Áustria HELENA PARENTE CUNHA Rua das Laranjeiras, 280/200 Rio de Janeiro- RJ -22240-001 ((21) 2285 2130 / (21) 9974 4119 [email protected] ISA MARIA CARNEIRO GONÇALVES Rua Milton Melo, 413 - Santa Mônica Feira de Santana -BA - 44050-560 (75) 3625-2416 [email protected] LUIS ALBERTO VIANNA MONIZ BANDEIRA Reilinger Strasse, 19, D - 68789 Deutschland– Alemanha MARIA BELTRÃO Rua Prudente de Moraes, 1179, COB. 01 Ipanema – Rio de janeiro – RJ - 22420-043 (21) 2247-4180 mcmcbeltrã[email protected] RITA OLIVIERI-GODET 24, Avenue Sergent Maginot 35000 Rennes - France 02 99 67 35 02 [email protected] VAMIREH CHACON Universidade de Brasília - Instituto de Ciência Política Brasília - DF - 70910-900 481 A Revista da Academia de Letras da Bahia nº 51 foi organizada e editorada em novembro de 2012, Ano do Centenário do acadêmico Jorge Amado, Ano do Centenário de Edison Carneiro, Ano do Centenário de Camillo de Jesus Lima, e foi editada em julho de 2013, Ano do Centenário de Rubem Braga, Ano do Centenário de Vinicius de Moraes, Ano do Centenário do acadêmico Antonio Loureiro de Souza, Ano do Centenário do acadêmico Rubem Nogueira * Direção FLORISVALDO MATTOS Editoração/produção editorial ALEILTON FONSECA Revisão ARAMIS RIBEIRO COSTA ALEILTON FONSECA LUÍS ANTONIO CAJAZEIRA RAMOS Arte Final de miolo e capa ELIMARCOS SANTANA Impressão VIA LITTERARUM