- Fundação Res Publica

Transcrição

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“Quo Vadis”, Europa?
Eduardo Lourenço
Uma Nova Social-Democracia Moderna
Guilherme d’Oliveira Martins
As Regras de Oiro da Senhora Merkel
Fernando Pereira Marques
O Estado Social em Causa: Instituições Sociais,
Políticas Sociais e Movimentos Sociolaborais no Contexto Europeu
Elísio Estanque
Como a Reconstrução Ideológica
É Indispensável ao Projecto Social Europeu
José Nuno Lacerda da Fonseca
Rousseau, Trezentos Anos Depois
Joaquim Jorge Veiguinha
Alfredo Margarido, Um Pensador Livre e Crítico
Fernando Pereira Marques
Eduardo Lourenço – Prémio Pessoa:
O Interrogador de Labirintos
Guilherme d’Oliveira Martins
Eduardo Lourenço e João Martins Pereira:
Conversa com Abril em Fundo
Manuela Cruzeiro
O Impulso Documental e a Expressão Literária em Alves Redol
David Santos
A Mentira que Causa Deleite
João Soares Santos
Para Uma Ética Republicana
Fernando Pereira Marques
Catroga, Fernando – Ensaio Respublicano, FFMS, Lisboa, 2011
Joaquim Jorge Veiguinha
A CRISE DO EURO E O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU
Crise do Euro e Modelo Social Europeu
Glória Rebelo
E o Futuro do Modelo Social Europeu
“Quo Vadis”, Europa?
Eduardo Lourenço
As Regras de Oiro da Senhora Merkel
Fernando Pereira Marques
Rousseau, Trezentos Anos Depois
Joaquim Jorge Veiguinha
Eduardo Lourenço – Prémio Pessoa: O Interrogador de Labirintos
Guilherme d’Oliveira Martins
ISSN 0871-7982
Fundação Res Publica
Preço: 15€
Euro
A Crise do
73
Director: Eduardo Lourenço
1
DIRECTOR
Eduardo Lourenço
DIRECTORES-ADJUNTOS
António Reis
Fernando Pereira Marques
COORDENADOR
Joaquim Jorge Veiguinha
CONSELHO DE REDACÇÃO
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Martins, Filipe Nunes, João Soares Santos, José Medeiros Ferreira, Mónica Dias, Pedro Adão e Silva,
Pedro Delgado Alves, Pedro Nuno Santos, Rui Pena Pires
CONSELHO EDITORIAL
André Freire, António Coimbra Martins, António Vitorino, Augusto Santos Silva, Carlos Brito, Carlos
Gaspar, Carlos Zorrinho, Edite Estrela, Eduardo Ferro Rodrigues, Fernando Catroga, Francisco Assis,
Helena Roseta, João de Almeida Santos, João Cravinho, João Proença, Jorge Lacão, José Lamego, José
Maria Brandão de Brito, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Miguel Serras Pereira, Paulo Ferreira da Cunha,
Pierre Guibentif, Reinhard Naumann, Rui Namorado, Sérgio Sousa Pinto, Vital Moreira, Vitalino Canas
Título: Finisterra – Revista de Reflexão e Crítica n.º 73 – Primavera/Verão 2012
Design e Produção: Garra Publicidade, SA
Apoio à Redacção: Sofia Nascimento
Registo de Título nº 113 463
Depósito Legal nº 43 418/91
Editora: Fundação Res Publica, Lisboa, 2009
Redacção e Administração: Av. das Descobertas, 17 | 1400 Lisboa
Telfs.: 21 301 39 09 | Fax: 21 301 59 56
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2
ÍNDICE
A CRISE DO EURO E O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU
“Quo Vadis”, Europa?
Eduardo Lourenço
7
Uma Nova Social-Democracia Moderna
Guilherme d’Oliveira Martins
11
As Regras de Oiro da Senhora Merkel
Fernando Pereira Marques
19
Crise do Euro e Modelo Social Europeu
Glória Rebelo
27
O Estado Social em Causa: Instituições Sociais,
Políticas Sociais e Movimentos Sociolaborais no Contexto Europeu
Elísio Estanque
39
Como a Reconstrução Ideológica
É Indispensável ao Projecto Social Europeu
José Nuno Lacerda da Fonseca
81
IDEIAS
Rousseau, Trezentos Anos Depois
Joaquim Jorge Veiguinha
101
CULTURA
Alfredo Margarido, Um Pensador Livre e Crítico
Fernando Pereira Marques
137
Eduardo Lourenço – Prémio Pessoa: O Interrogador de Labirintos
Guilherme d’Oliveira Martins
139
Eduardo Lourenço e João Martins Pereira: Conversa com Abril em Fundo
Manuela Cruzeiro
145
O Impulso Documental e a Expressão Literária em Alves Redol
David Santos
159
A Mentira que Causa Deleite
João Soares Santos
169
3
LIVROS
191
Para Uma Ética Republicana
Fernando Pereira Marques
195 Catroga, Fernando – Ensaio Respublicano, FFMS, Lisboa, 2011.
Joaquim Jorge Veiguinha
4
COLABORAM NESTE NÚMERO
Eduardo Lourenço – Ensaísta
Guilherme d’Oliveira Martins – Jurista e Presidente do Tribunal de Contas
Fernando Pereira Marques –Professor Universitário
Glória Rebelo – Professora Universitária
Elísio Estanque – Professor Universitário
José Lacerda da Fonseca – Engenheiro Agrónomo
Joaquim Jorge Veiguinha – Ensaísta
Manuela Cruzeiro – Professora Universitária
David Santos – Director do Museu do Neo-realismo
João Soares Santos – Ensaísta
Carlos Brito – Cartoonista
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A CRISE DO EURO E O FUTURO DA EUROPA SOCIAL
“Quo Vadis”, Europa?
Eduardo Lourenço
H
á meio século que os vencidos da segunda guerra mundial
tentam levar a cabo uma empresa política inédita que é fazer da
Europa uma entidade económica, política e cultural análoga à
‘nação’ que nunca foi até aos dias de hoje. Foi em desespero
de causa, e após dois episódios suicidários do seu destino durante o século
XX, que três dos seus actores e responsáveis sonharam com uma Europa
nova. Esse ‘suicídio’ europeu já era como uma síntese de meio milénio de
disputa hegemónica sem quartel entre a Espanha, a França, a Inglaterra, a
Holanda, a que se associarão, tardiamente, a Áustria, a Prússia e a Rússia.
Ocasionalmente, a Suécia, então um país marginal, e Portugal, participaram como aliados de um desses actores hegemónicos. Não é caluniar o
nosso passado europeu assimilando-o a uma intermitente ‘guerra civil’,
se pensarmos que todas essas nações partilham uma certa cultura comum,
herdada da Antiguidade e de referência cristã (católica, protestante, ortodoxa), desde a queda de Constantinopla, confrontada com outro tipo de
cultura e referência religiosa.
Não espanta que com uma tão complexa herança, a chamada Europa
ocidental, empenhando-se, pela primeira vez a sério e democraticamente,
numa construção europeia de âmbito internacional, tenha encontrado tantas
dificuldades em levar avante a sua utopia europeizante. Aliás, e mau grado
a urgência do projecto europeu, as nações nele envolvidas só o puderam
conceber e levar a cabo com algum sucesso no contexto de uma guerra fria
cujos actores, Estados Unidos e União Soviética, pretendiam conquistar a
hegemonia mundial e de que a Europa é (ainda nessa época) o espaço privilegiado de dupla e oposta cobiça. Antes do fim dessa guerra fria, a Europa é,
na verdade, uma Europa de dupla face. A queda do muro de Berlim altera
radicalmente esta situação de uma Europa duplamente partilhada entre os
Estados Unidos e a Rússia. À parte como potência organicamente ligada
aos Estados Unidos (e quase vice-versa) fica a Inglaterra. Ambos geram e
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“QUO VADIS” EUROPA?
continuam a gerir, mais do que nunca, e mau grado a aparência hegemónica
da Alemanha (de novo reunida) a nova Europa em construção, convicta de
ter dado um passo de gigante nessa construção, outorgando-se (sempre sem
a Inglaterra) uma moeda europeia de importância internacional.
Pode, hoje sobretudo, pensar-se que a criação do euro foi a gota de ouro
que fez estremecer o santo dos santos, a moeda fetiche do dólar, a única
moeda imperial do espaço da chamada globalização. Quer dizer, da americanização política, económica, financeira, tecnológica e, mais do que se
pensa, cultural do mundo. Talvez não seja apenas duvidosa ciência-ficção
imaginar que a instituição do euro, a sua afirmação, o seu sucesso (excessivo?) nunca mais deixaram de preocupar o sistema monetário mundial, o
que tem no dólar e na sua absoluta supremacia a sua arma absoluta aquela que
permite comprar a não menos incontornável arma do petróleo e controlar
o mercado mundial. Também não é necessário recorrer às muitas versões de
um ‘complot’ ideológico-financeiro de complexas ramificações para explicar
a quase universal crise instalada no coração mesmo do capitalismo da era
informática para ter por mistério o desencadear de uma ofensiva para desestabilizar o euro e através dele todo o projecto de autonomização política da
nova Europa de maneira a assegurar a sua domesticação histórica definitiva.
O que a Nato é no campo estratégico tradicional, é, na ordem económica
e financeira, a fragilização do euro, que simboliza e encarna a Europa pós-queda do muro de Berlim. E se possível a sua desaparição. Mas quem na
Europa quer a Europa?
Paradoxalmente, a mais europeísta das grandes nações – apesar das suas
limitações ético-políticas – é mesmo a Alemanha. A antiga ‘nação do marco’
é hoje o novo FMI do euro. Só ela dispõe ainda de um poder económico –
apesar ou talvez por estar desarmada – para dar a uma “utopia” europeizante
um rosto que possa levá-la a enterrar os fantasmas tenebrosos que um dia a
arrastaram para o abismo. Só ela dispõe ainda de seduções históricas paradoxais para lhe assegurar a centralidade política que o destino lhe atribuiu ou
ela construiu. Quem pode construtivamente, por mais fantasmas terríficos
que a hipótese desenterre, trazer as “europeias” Ucrânia e a grande Rússia
para o espaço europeu que a História lhe concedeu? E mesmo a Turquia,
com que a Alemanha tem mais familiaridade que ninguém?
O que seria lógico e conforme a uma das tradições e estatutos europeus
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EDUARDO LOURENÇO
mais relevantes é que fosse da pátria de Voltaire e não de Lutero que esperássemos ainda um empenhamento histórico a favor de uma Europa não menos
exemplar, na medida em que o foi, outrora, em tantos domínios. Talvez por
ser, sozinha e há tantos séculos, “Europa” no que ela era como ‘nação’ de
referência para tantas outras, em rivalidade com a Inglaterra, ilha-mundo,
a França recuou desde o início diante da sua própria transcensão e versão
dinâmica europeias. Assim, filhas históricas da rivalidade incontornável das
suas histórias e culturas, nem a Inglaterra nem a França sentem necessidade
da Europa. Já o são de sobra.
Quem sonha com a Europa é a pequena ou a marginal – e marginalizada – Europa do Sul e de Leste. A nórdica é como se pertencesse a um
continente de sonhos gelados há muito. A bem considerar não há ninguém
para quem a Europa – a antiga e a de hoje – seja uma espécie de América. A
não ser aqueles que próximos no espaço fizeram dela em tempos – e agora
por fascínio e vantagens de toda a ordem – a América que eles não são nem
parecem poder sê-lo por enquanto.
Talvez tenha sido um sonho mal sonhado desejar uma Europa ‘unida’ tão
outra daquilo que durante séculos foi e maravilhosamente o é ainda: uma
coexistência de ‘nações’ vizinhas e inimigas umas das outras, mas ricas da
sua diferença. Na verdade, no fim da segunda guerra mundial com a vitória
absoluta dos Estados Unidos, os europeus, sobretudo os realmente vencidos,
quiseram ser ou ver uns Estados Unidos da Europa, o ideal europeu por
excelência. Era a ideia de Churchill com a Inglaterra de fora e de cima ou
em toda a parte. Mas desde a origem, os históricos Estados Unidos foram,
sabendo-o ou não, uma anti-Europa. Ou antes uma não Europa. E, neste
momento, uma super Europa. Que olha agora para a única e impotente
Europa como a Inglaterra olhava os ‘americanos’ antes de o serem.
Se calhar a Europa não precisava – nem precisa – de ir para lado nenhum,
nem ter um outro estatuto histórico, político e ideológico e pleonasticamente
cultural mais adequado do que o da sua multíplice realidade que foi sempre
o seu. Aqui se forjou o mundo moderno. E a modernidade do mundo.
Lembremo-nos disso. Não precisamos que ninguém nos salve. Precisamos
de nos salvar nós mesmos. Já não é pouco. Não estamos à venda.
Vence, 10 de Junho de 2012
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10
Uma Nova Social-Democracia Moderna*
Guilherme d’Oliveira Martins
A
situação financeira, sobretudo depois do «crash» do Outono
de 2008, tem posto na ordem do dia o tema das conceções
fundamentais sobre as modernas políticas públicas e sobre a
construção do Estado democrático. Estamos longe das preocupações dos anos noventa, cientes de que o «compromisso puramente
liberal» é insuficiente, pelo que se impõe o lançamento das bases de uma
«Nova Social-Democracia Moderna», apta a incorporar as lições mais
recentes dos acontecimentos, em especial quanto ao reforço da «equidade
intergeracional» e da justiça distributiva horizontal e vertical, quanto à
articulação entre Estado-providência e Sociedade-providência, segundo os
princípios da subsidiariedade, da proximidade e da diferenciação positiva, e
quanto à melhor ligação entre mercado e regulação independente, a partir
de uma conceção do Estado social sustentável, justo, modesto e sóbrio.
A crise da dívida soberana gerou uma profunda alteração de circunstâncias na vida económica e financeira europeia. Depois de um período
caracterizado pelo crédito barato e pelo crescimento do consumo e do
endividamento e dos défices públicos, houve a tomada de consciência de
que seria necessário tomar medidas no sentido da redução drástica das
despesas públicas. A convergência entre as dificuldades de tesouraria das
entidades públicas, a especulação dos mercados, a falta de confiança induzida pelos riscos inerentes aos Estados mais endividados e a ausência de
uma política europeia coordenada relativamente à competitividade, ao
investimento e ao emprego – tudo isso tem determinado a existência de
uma situação dilemática na qual se confrontam, por um lado, a exigência
de mais disciplina e rigor orçamentais (de modo a estancar o perigoso
aumento das dívidas públicas) e, por outro, a necessidade de reencontrar
*
Texto redigido segundo as normas do novo Acordo Ortográfico.
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UMA NOVA SOCIAL-DEMOCRACIA MODERNA
uma via de crescimento económico capaz de assegurar a criação de emprego
e o reforço das condições que permitam a coesão económica e social.
Acontece, porém, que os efeitos das duas orientações são contraditórios,
o que obriga a procurar soluções capazes de compatibilizar os objetivos de
sustentabilidade das Finanças Públicas e de desenvolvimento adequado das
economias. Estamos, deste modo, perante a obrigação histórica de tirar as
lições pertinentes do tempo em que vivemos.
Se nos lembrarmos da história económica dos anos trinta do século
XX, e ressalvadas as distâncias de um tempo em que a regulação pública
não tinha a dimensão e a eficácia dos nossos dias, finalmente percebemos
que a “Grande Depressão” demorou a ser superada por diversas razões,
entre as quais avultam: a fragmentação, o protecionismo, a prevalência
de soluções com efeito depressivo que agravaram o desemprego e não
promoveram o crescimento económico. A escola de Cambridge e J. M.
Keynes perceberam bem, antes de outros, que a noção clássica de equilíbrio económico estava posta em causa nas sociedades modernas e que a
procura efetiva global é uma noção complexa que não pode ser analisada,
como quis Jean-Baptiste Say, independentemente das diferentes situações
referentes ao nível de emprego. E foi Franklin D. Roosevelt, no país da
liberdade económica, que se viu na necessidade de pôr em prática, em
primeiro lugar, uma estratégia baseada na ação sobre a procura global,
visando a criação de emprego e a multiplicação do rendimento induzida pelo acréscimo do investimento. Hoje, se vivesse, Keynes chegaria à
conclusão de que a sua obra é muito pouco lida ou é mal compreendida,
uma vez que continua a pensar-se a noção de equilíbrio económico como
se esta fosse unívoca e estática, de acordo com uma tendência única e fatal.
Ora, se é verdade que a velha lei de Wagner – segundo a qual a tendência
para o aumento da despesa pública é permanente e ilimitada –, está posta
em causa, o certo é que os limites para a ação do Estado têm de ser aceites
e alcançados – de modo a que as políticas públicas se vejam reduzidas
em dimensão e influência, dando maior importância à iniciativa social,
à responsabilidade comunitária e à solidariedade ativa dos cidadãos. A
lição da “Grande Depressão” obriga-nos, assim, a considerar que, em vez
da fragmentação e da adoção de políticas deflacionistas, importa usar a
12
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
seletividade articulando instrumentos de rigor orçamental e de promoção
do crescimento económico.
A verdade é que a situação em que nos encontramos é de uma dificuldade extrema. Não há soluções encontráveis dentro das fronteiras de
cada Estado. O protecionismo e a fragmentação só agravarão os problemas
ligados à crise da dívida soberana, à falta de confiança e às dúvidas sobre os
riscos ligados às expectativas de cumprimento das obrigações económicas e
financeiras. O princípio da subsidiariedade ganhou, pois, uma atualidade
hoje mais evidente do que nunca. Precisamos de mediações eficazes e de
redes de proximidade que reforcem a legitimidade democrática e cívica (de
origem e de exercício). As especulações sobre a incerteza do futuro do euro
e sobre a evolução da União Europeia não contribuem para a procura e
para o encontro de soluções eficazes. Regressamos, no fundo, à perniciosa
fragmentação e ao perigoso protecionismo que tão trágicas consequências
teve nos anos trinta – uma vez que não se prefiguram soluções de coordenação e de articulação de esforços e iniciativas.
Uma democracia supranacional europeia, se não se confundir com
um superestado e se se basear numa legitimidade sentida e assumida pelos
cidadãos, poderá ser a melhor aliada das “soberanias abertas” nacionais
– superando os efeitos perniciosos do “salve-se quem puder”. Importa,
porém, que haja uma consciência clara do significado dos interesses vitais
comuns e dos interesses vitais nacionais. Isoladamente, não encontraremos
soluções adequadas, do mesmo modo que precisamos de ligar, com inteligência, eficiência e equidade, instrumentos de políticas públicas capazes de
responder às situações dilemáticas a que temos de responder.
E não esqueçamos que uma crise europeia agravada projetar-se-á no
mundo global com consequências imprevisíveis em termos de paz, segurança e desenvolvimento.
Muito se tem dito e escrito sobre o momento trágico que a Europa atravessa. Impõe‑se, porém, não iludir as questões nem pensar que tudo se
irá solucionar de forma fácil e natural. Assim não será. Estamos diante de
um desafio de sobrevivência para todas as economias europeias, mas, como
se disse, para o equilíbrio mundial. Uma União Europeia irrelevante,
13
UMA NOVA SOCIAL-DEMOCRACIA MODERNA
economicamente estagnada e sem voz no mundo arrastará consigo uma
grave recessão mundial com repercussões imprevisíveis, designadamente
para a segurança e para a paz. Eis por que os discursos sobre o fim do Euro
têm muito menos a ver com o tema monetário europeu do que com insondáveis propósitos de enfraquecimento dos Estados de direito, que exigem
um sistema de mediação e equilíbrio, visando o desenvolvimento sustentável e o fim da corrida suicida no sentido do progresso sem limites. Um
sistema internacional de polaridades difusas, como aquele em que vivemos,
obriga a que haja diversos meios de ação, com relevância, que sejam fatores
de criatividade e de desenvolvimento. Não nos esqueçamos de que a crise
da dívida soberana surgiu e instalou-se mercê de uma acumulação perigosa
de sintomas: primeiro, crédito barato; depois, falta de liquidez bancária;
especulação contra o euro e pretexto dado pelos Estados-membros da
União Europeia pelo não cumprimento dos compromissos assumidos na
União Económica e Monetária quanto a défice e à dívida pública. Todavia,
a melhor maneira de encontrar antídotos eficazes obriga a que se prossigam a sério os objetivos estruturais, como Europa 2020 (que sucedeu
à chamada Estratégia de Lisboa), ligando-os ao investimento coordenado
de infraestruturas europeias e à competitividade global das economias da
União. Não pode, pois, continuar o impasse atual em que os resultados
das medidas de disciplina orçamental ficam aquém do desejável, uma vez
que não há sinais de recuperação económica e de um crescimento saudável.
Em suma, urge darmos especial atenção a dez temas fundamentais: (i) A crise atual apenas será superada se o objetivo prioritário for a
criação de emprego e a coesão social; (ii) O necessário rigor orçamental
deve ser considerado como um instrumento ativo, visando a recuperação
da economia europeia e das economias nacionais; (iii) Essa finalidade
apenas poderá ser alcançada através de soluções cooperativas, daí que seja
necessária mais Europa política, mais coordenação e governo económico e
menos diretório; (iv) O problema da zona Euro é, assim, eminentemente
político: precisamos de uma forte vontade, assente na especial atenção aos
interesses vitais comuns da UE; (v) Complementarmente, se a questão é
política, importa não esquecer que, no campo económico, estamos diante
de um problema de crescimento, que é muito mais do que uma questão de
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GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
mero desequilíbrio das finanças públicas; (vi) Uma União Fiscal obrigará
a ligar a disciplina orçamental à recuperação económica – com definição
de objetivos, de metas e de um sistema credível de avaliação, auditoria e
responsabilidade; (vii) A austeridade tem de ser instrumental e não finalística – devendo envolver instrumentos capazes de impedir bloqueamentos
da justiça e desenvolvimento; (viii) Mais importante do que uma definição
formal constitucional sobre limites à dívida e ao défice, é indispensável que
haja um instrumento legislativo estável, claro e inequívoco que funcione
como um dissuasor efetivo relativamente ao incumprimento; (ix) Nestes
termos, a consagração de uma regra de ouro das Finanças Públicas não deverá
ser rígida nem confundir obrigações políticas e jurídicas com fórmulas
meramente técnicas ou circunstanciais; e (x) A salvaguarda da democracia,
da transparência e da participação dos cidadãos obriga, essa sim, a envolver
mais os Parlamentos nacionais, o Parlamento Europeu e as instituições de
controlo financeiro, na realização dos objetivos de disciplina das finanças
públicas, em nome do rigor, da verdade, da responsabilidade e da justiça.
Tudo visto e ponderado, se é certo que a solução encontrada por 25
Estados-membros da União Europeia, de celebração de um Tratado
sobre a estabilidade, coordenação e governação da União Económica e
Monetária, tem a fragilidade da mera natureza intergovernamental – o
que põe em causa a eficiência da coordenação por ausência do método
comunitário –, a verdade é que procura articular austeridade, sobriedade
e crescimento ligando-os a um esforço efetivo de cooperação. Trata-se
(ou pode tratar‑se) de um passo importante, em nome da solidariedade
económica e do desenvolvimento humano. No fundo, trata-se de reforçar
o pilar económico da UEM através da adoção de normas que promovam
a disciplina orçamental para reforço da coordenação das políticas económicas e melhoria no governo da Zona Euro, apoiando objetivos de
crescimento sustentado, emprego, competitividade e coesão social. Como
afirmou António de Sousa Franco, a moeda única europeia é um projeto
político e social que exige o completamento da união monetária pela união
económica, através de um governo económico europeu, que considere não
apenas a estabilidade de preços, mas também a promoção do emprego, a
coesão económica, social e territorial e a «convergência social».
15
UMA NOVA SOCIAL-DEMOCRACIA MODERNA
O rigor é um instrumento, a disciplina é um caminho necessário, o
desenvolvimento, a justiça e a coesão são objetivos inevitáveis. De facto,
Portugal terá de cumprir os compromissos que assumiu com diligência
e sentido de futuro, com respeito integral da legitimidade democrática.
É indispensável que não haja dúvidas sobre a determinação no sentido
da exigência, do rigor e da disciplina. Se é verdade que se torna necessário compatibilizar austeridade e crescimento económico, estabilidade
de preços e defesa do emprego e da coesão, o certo é que se impõe que
haja inteligência prática que permita garantir, a um tempo, credibilidade e confiança, por um lado, bem como criatividade e audácia, por
outro, a fim de que possamos retomar o caminho da convergência e do
desenvolvimento.
A credibilização de uma nova social-democracia moderna obriga,
na linha do que foi feito nas últimas décadas nos países nórdicos, e pela
social-democracia nesses Estados, a que haja uma atenção redobrada à
legitimidade do exercício centrada na responsabilidade cívica, no papel
acrescido dos parlamentos nacionais, na transparência financeira, na
sustentabilidade dos sistemas de cobertura dos riscos sociais, na prioridade
dada ao emprego, na subsidiariedade, na aposta na solidariedade voluntária
nas redes de proximidade, na valorização da igualdade como contrapartida
natural da liberdade e da diferença. A economia tem de se orientar para
as pessoas, com base na confiança e na coesão. Como tem insistido Pierre
Rosanvallon, o povo eleitoral, o povo social e o povo princípio coexistem e
completam-se, ora porque votam, ora porque vivem, ora porque afirmam
a igualdade jurídica e cívica. Impõe-se, assim, favorecer a expressão de cada
um desses domínios, com a sua especificidade própria, evitando a todo o
custo a “destruição partidária das instituições” e a erosão do imediatismo.
À indiferença temos de contrapor a atenção (e o cuidado) e uma ideia de
democracia assente na igualdade, na reciprocidade e no sentido comunitário. A autonomia, a liberdade e a dignidade das pessoas, a compreensão
das situações particulares, a diferenciação positiva, a igualdade e a diferença, eis o que importa!
16
As Regras de Oiro da Senhora Merkel
Fernando Pereira Marques
O
s tempos que estamos a viver são bem a demonstração, se
dúvidas ainda houvesse, de como a História é o produto não
só das circunstâncias materiais – infra-estruturais, como diria
Marx –, mas também das superestruturais e, sobretudo, da
acção dos seus protagonistas. E esta acção está intimamente ligada a opções
ideológicas, interesses, conflitos por eles impulsionados, assim como à
qualidade humana e intelectual, em especial dos que assumem papéis mais
destacados.
A primeira metade do século XX foi determinada por, entre outras,
as personalidades de Hitler, Mussolini, Estaline e, obviamente, pelas
circunstâncias históricas concretas que permitiram que os seus projectos
ideológicos, de diferente natureza, moldassem acontecimentos e políticas. Mas, do mesmo modo, não fossem homens com a envergadura de
De Gaulle, Churchill e Roosevelt, o desenlace da II Guerra Mundial teria
possivelmente sido outro. Como já parece ter-se percebido, a História não
tem um sentido nem uma coerência, nem sequer é função, de uma forma
mecanicista, unicamente dos factores sociais ou económicos. Deste modo,
não é despiciendo, para explicar o impasse dramático com que a Europa se
depara, a mediocridade dos seus principais dirigentes – para só falarmos
deste continente.
Constata-se tal facto quando, por exemplo, se ouvem as declarações do
ministro das Finanças alemão Schäuble subvalorizando as consequências
de uma eventual saída da Grécia da zona euro e até da UE, não só pelos
efeitos de dominó que isso teria, sobretudo sobre países mais vulneráveis
como a Irlanda, Portugal ou a Espanha, mas também por aquilo que esse
país representa na perspectiva da situação geo-estratégica nos Balcãs e até
pelo peso da componente militar nos seus poderes internos. Declarações
e atitudes do amigo dilecto do ministro Vítor Gaspar que se inserem na
visão das coisas da senhora Angela Merkel, a qual associa, na sua pessoa,
19
AS REGRAS DE OIRO DA SENHORA MERKEL
uma lamentável mistura de arrogância teutónica, boa consciência luterana
e rigidez autoritária estalinista.
Não sei se ela – ou eles, os governantes alemães – leram a obra de Keynes
As Consequências Económicas da Paz, onde este analisa e crítica as desastrosas
medidas tomadas na Conferência de Versalhes em relação à Alemanha. As
teses essenciais aí defendidas, repetidas em textos dos anos 30 após o crash
da Bolsa nos EUA e suas repercussões, serviriam de base à doutrina a que
ele deu o nome e insistiam no facto de que a humilhação dos povos e a
prossecução de políticas que geram recessão e empobrecimento, conduzem
as sociedades à desagregação e abrem o caminho ao desespero de multidões, caldo de cultura de todos os extremismos. Os factos viriam a dar-lhe
razão e estiveram na origem do retorno à barbárie na Europa, e não só,
durante um longo período, acompanhada pelo massacre de milhões de
seres humanos.
A Alemanha de hoje foi o país que mais usufruiu da forma voluntarista e calculista como foi gerida a criação do euro e o alargamento da UE
baseados em meros critérios mercantis. Ou seja, prosseguiu-se, particularmente após Delors, uma estratégia economicista, crescentemente
ultraliberal, suportada pela maior parte dos governantes europeus de vistas
curtas e pela cegueira dos burocratas de Bruxelas, agora encabeçados pelo
antigo marxista-leninista Durão Barroso. Secundarizou-se a dimensão
sociopolítica, a integração orçamental, a vertente cultural e a fundamental
participação legitimadora e democrática dos povos. Por outras palavras, o
projecto europeu reproduziu e espalhou a contra-revolução iniciada por
Thachter e Reagan. Nos EUA, como na Europa, vieram a afirmar-se políticas de desmantelamento de todos os elementos de regulação que desde o
New Deal nos EUA1 e a II Guerra Mundial, disciplinavam e controlavam a
cupidez da banca e da finança.
É neste contexto que, com repercussões no plano global, a euforia
especulativa baseada na financeirização das economias promoveu o endividamento público e privado, colocando os bancos e outras instituições
semelhantes no centro das decisões e permitindo a emissão de dinheiro
1
Em 1999, com Clinton, foi revogado o Glass-Steagall Act que datava de 1933 e visava separar as actividades da
banca de depósitos da banca de investimentos.
20
FERNANDO PEREIRA MARQUES
virtual em escala nunca antes vista, nomeadamente através dos hedge funds e
de outros produtos derivados. No caso norte-americano, tímidas tentativas
reguladoras da Commodity Futures Trading Comission foram neutralizadas graças à intervenção activa de Alan Greenspan e à cobertura do
próprio presidente Clinton. Em meados da administração clintoniana, o
volume de derivados tinha crescido até 13 triliões de dólares (em 1998 o PIB
dos EUA era de 8,7 triliões). Leia-se o que escreve a propósito um autor
citado por Laurence Lessig, num livro fundamental intitulado Republic, Lost:
“More than 30 years of deregulation and reliance on self-regulation by
finantial institutions championed by former Federal Reserve chairman
Alan Greenspan and others, suported by sucessive administrations and
Congresses, and actively pushed by the powerful financial industry at every
turn, had stripped away key safeguards, which could have helped avoid
catastrophe.2” A situação agravou-se durante os mandatos de George
W.Bush e mesmo Obama limitou-se, como explica Joseph E. Stiglitz3,
a tentar gerir os estragos, mas sem enfrentar os poderosos interesses em
jogo, apesar de, em 2008, ter implodido a Lehman Brothers, desencadeando a espiral de crise em que hoje o sistema está mergulhado. E porque
será? Nos EUA existe uma democracia limitada, é bom que de uma vez por
todas se comece a afirmá-lo claramente, em bom rigor uma oligarquia,
onde o Estado, os partidos da alternância – Democrata e Republicano –,
as liberdades e a sociedade estão subordinados aos detentores do poder
real: os lobbies que são os agentes organizados dos interesses dominantes.
Leia-se, para ilustrar esta asserção, outra passagem, desta feita de um relatório recente da Finantial Crisis Inquiry Comission: “As [this] report will
show, the finantial industry itself played a key role in weakening regulatory
constraints on institutions, markets, and products. It did not surprise the
Comission that an industry of such wealth and power would exert pressure
on policy makers and regulators. From 1999 to 2008, the finantial sector
expended $ 2.7 billion in reported federal lobbying expenses; individuals
and political action committee in the sector made more than $1 billion in
2
Cf. LESSIG, Lawrence – Republic, Lost-How Money Corrupts Congress and a plan to stop it. New York: Twelve, 2011, p.79.
V. STIGLITZ, Joseph E. – Le triomphe de la cupidité. Arles : Actes Sud, p.210 : « Malheureusement l’administration
Obama a maintenu le cap de l’administration Bush : elle a consacré l’essentiel de ses efforts à sauver les banques. »
3
21
AS REGRAS DE OIRO DA SENHORA MERKEL
campaign contributions. What troubled us was the extent to which the nation was deprived
of the necessary strength and independence of the oversight necessary to safeguard financial stability.4” Significa isto que, como aliás é quantificado na fonte utilizada, o
lobby da “finantial industry” – onde se destaca a J.P. Morgan agora também
em turbulência - ultrapassa em largos milhões de milhões todos os outros
lobbies, o que ajuda a explicar a domesticação de eleitos, governos, presidentes e o desvirtuamento da ideia democrática. Na Europa, já são vários
os empregados da Goldman Sachs presentes directamente em governos ou
noutras instituições politicamente determinantes.
É esta a realidade que se expandiu e tem condicionado a economia e a
finança internacionais. Inclusive na UE onde, após a senhora Thatcher,
os Blair, Schröder, Cameron, Barroso, Sarkozy, Berlusconi, Merkel e
tutti quanti se limitam a cumprir ordens emanadas dos “mercados”, essas
entidades deus ex machina que são materiais e têm rostos. Gerou-se uma interdependência que não é a da positiva e necessária cooperação construtiva
entre Estados e nações, mas sim o fruto do estádio supremo do capitalismo financeiro ultraliberal, também designado por globalização, filtrado
através das realidades específicas dos diversos países. Os verdadeiros conselhos de ministros deslocalizaram-se para as bolsas, as sedes dos principais
grupos económico-financeiros ou para as agências pretensamente de rating.
O desastre era inevitável e – como já acontecera em 1929 – repercutiu-se em todos os azimutes, provocando a derrapagem das contas públicas
nacionais, obviamente de forma particularmente violenta nos países mais
vulneráveis e periféricos, forçados a pedir empréstimos a taxas usurárias
para colmatar desvios que a riqueza produzida não sustentava ou a recorrer
mesmo à intervenção de organizações exteriores, como a Irlanda, a Grécia e
Portugal. As transferências de capitais e mais-valias para off-shores e paraísos
fiscais, as derrapagens de orçamentos nas obras públicas, projectos inúteis
e faraónicos a custos inflacionados (auto-estradas e estádios, p.ex.), BPNs,
PPPs, Duartes Limas, Oliveiras Costas, etc., isto é, as jogadas ousadas dos
senhores de indústria, os negócios de governantes levianos, de empresários, gestores e afins corruptos, entre nós e noutros lados, ajudaram aos
níveis insustentáveis da dívida nos respectivos âmbitos nacionais. Mas eles
1
Ibid. pp.82-83. Itálicos no original.
22
FERNANDO PEREIRA MARQUES
não fizeram senão aderir ao espírito da época, integrar-se na lógica do
sistema e, com a conivência do poder político, praticar à sua dimensão o
que em termos globais se praticava.
Poder político e governantes que, e por consequência, uma vez desencadeada a crise, em vez de atacarem a raiz dos problemas – isto é a “finantial
industry”, a ditadura da banca e dos mercados, o vale-tudo darwinista e
despromovido de princípios –, a pretexto da contenção da despesa, adoptaram um programa, vincadamente ideológico, de desmantelamento do
Estado-Providência e de destruição das conquistas sociais de gerações.
Assim se percebe que a senhora Merkel e os seus atentos, veneradores e
obrigados seguidores noutros executivos europeus, pretendam condicionar
o prosseguimento pelos poderes públicos de políticas económicas tendencialmente dirigidas ao interesse geral e visando o bem comum, impondo
instrumentos administrativo-legais como o da designada “regra de ouro”.
Esta “regra de ouro”, a que Jacques Delors chamou, em declarações ao
Le Monde, “piège à cons”, a ser aplicada, inclusivamente entre nós, como
impõe o recente tratado orçamental adoptado em final do ano passado
e servilmente ratificado pela Assembleia da República, não significará
outra coisa senão a subordinação da economia a uma lógica monetarista
e, a outro nível, a destruição dos sectores produtivos e a transformação de
países como o nosso, mais do que já acontece, em simples mercados para as
exportações alemãs e das outras economias dominantes. Poder-se-á argumentar que o pacto de estabilidade e crescimento de 1997 já instituía tectos
no défice público (3%) e na dívida (60% do PIB), todavia, como se sabe,
sobretudo a partir de 2008, isso foi insuficiente para impedir o descontrolo orçamental na generalidade da UE pelas razões gerais aduzidas atrás.
Por outro lado, é verdade que a Alemanha introduziu, em 2009, regras
semelhantes no seu ordenamento legal interno e mesmo constitucional.
Outros países até as possuíam antes, mas integradas no ciclo económico ou
na legislatura, como é o caso da Inglaterra e dos Países Baixos. A própria
Espanha, desde o início dos anos 2000, definiu um pacto de estabilidade para uso doméstico que foi alargado e integrado na Constituição no
sentido de controlar o défice das administrações regionais. Porém, o que
qualquer manual ensina, é que o equilíbrio das contas públicas depende,
primordialmente, do exercício da autoridade do Estado e do controlo
23
AS REGRAS DE OIRO DA SENHORA MERKEL
democrático pelos cidadãos sobre a demagogia de governos, a corrupção de
governantes ou o oportunismo de especuladores e outra gente sem escrúpulos nem pátria.
Acresce que, uma vez o mal feito – ou seja, o desequilíbrio das contas
públicas devido a factores endógenos e exógenos – e quando o ciclo económico é negativo, não são dispositivos contabilístico-orçamentais que
reintroduzem a estabilidade e o crescimento, como nos ensinou Keynes
e a História. Aliás, basta verificar o caso dos países nórdicos, onde sem
artifícios desse tipo, essas mesmas contas estão equilibradas e geram excedentes. Tais “regras de oiro”, ou de outro metal, têm, inevitavelmente,
como efeito, em especial nas economias mais frágeis, o facto dos executivos cortarem nas despesas e nos investimentos, agravando as dinâmicas
recessivas e, consequentemente, reduzindo as receitas5. Como diz o povo,
não se morre da doença, mas da cura. Ou, dito por outras palavras, regras
desse tipo, ainda por cima no contexto europeu e mundial a que aludimos
onde reina a lei do mais forte e os Estados se encontram à mercê da chantagem dos chamados mercados e das suas mafias organizadas, introduzem
um factor de rigidez na economia – agravada se já não se possui moeda
própria – que, favorecendo a finança e a especulação, só aprofundarão
o desmantelamento do que se pode designar por Estado social, herdado
do pós-guerra. Em termos mais simples, aumenta o empobrecimento e o
desemprego, pioram as desigualdades e as condições de vida e de trabalho
daqueles que constituem a maioria das populações, estagnam os países
menos desenvolvidos. Está-se, deste modo, a conduzir a UE à implosão
e ao fracasso, pois se, na verdade, a construção europeia implica, inevitavelmente, perdas de soberania, tal não poderá ser feito à custa dos povos e
contra a sua vontade, em proveito de potências hegemónicas e das oligarquias internacionais.
A eleição de François Hollande à Presidência da França, que será decerto
seguida – no momento em que escrevo ainda não se realizaram as legislativas – pela formação de uma nova maioria, não transporta, obviamente,
5
Escreveu Amartya Sen pensando especificamente na Grécia e em Portugal: “Ces réductions budgétaires poussées à leur maximum risquent de diminuer les dépenses publiques autant que les investissements privés. Si cela
se traduit également par une réduction des stimulus de croissance, les recettes publiques pourraient, elles aussi,
chuter douloureusement. » In « L’euro fait tomber l’Europe », Le Monde, dimanche 3-lundi 4 juillet 2011.
24
FERNANDO PEREIRA MARQUES
uma solução milagrosa, mas abriu novas perspectivas. Pois, como diria La
Palice, a questão central é política, ao contrário do que pretendem fazer
crer Herr Schäuble, Frau Merkel e, entre nós, o contabilista Vítor Gaspar
e o bem falante primeiro-ministro Passos Coelho que, depois de muito
“alavancar”, “implementar” e enunciar inúmeros “ai”tens (ele pretende
dizer o plural de item, o que pronunciado à inglesa é chique a valer), chegou
recentemente mesmo à conclusão que o desemprego é uma oportunidade a
não perder. Demonstra o actual primeiro-ministro imaturidade e enorme
insensibilidade social, o anti-humanismo que predomina nas relações
de trabalho e humanas, e na própria relação do Estado com os jovens, os
idosos, os trabalhadores, os mais desamparados em geral que são tratados
como cães.
Estão em confronto modelos de economia e de sociedade antagónicos, concepções ideológicas opostas, visões do mundo antinómicas. É
a Política, estúpidos! Não a economia. A opção coloca-se entre prosseguir uma política de subserviência e de gestão dos interesses da finança
internacional, dos grandes grupos económico-financeiros que actuam
num campo de vazio ético e de quase banditismo, uma política de contra-revolução ultraliberal, ou restaurar a Democracia, o primado da Lei e
do bem comum, disciplinando, regulando, incentivando o investimento
produtivo e multiplicador, taxando fluxos especulativos, reforçando a
autoridade dos Estados sobre os senhores do mundo, de forma a colocar os
cidadãos no centro da acção de quem governa. E se há decisões que têm de
ser tomadas no quadro europeu e além dele, através de organismos como o
BCE ou o FMI, elas devem ter em conta valores de justiça e de progresso, de
igualdade e de fraternidade; a dignidade dos povos tem de ser respeitada,
para serem mobilizadas as capacidades e as potencialidades de cada país;
o trabalho deve ser dignificado, os jovens ajudados a construir o futuro e
os idosos acarinhados. É necessário investir nas especificidades produtivas
de cada país, potenciar o que o conhecimento e as tecnologias trazem à
felicidade e ao desenvolvimento, apostar na educação e na qualificação,
assim como no fomento cultural. Em resumo, agir no quadro nacional, no
quadro europeu, e no quadro global, isoladamente sempre que possível e
articuladamente sempre que necessário, para produzir riqueza e a repartir
com equidade.
25
AS REGRAS DE OIRO DA SENHORA MERKEL
Words, words, dirão os cínicos pragmáticos, os corrompidos pela ganância
e os imbecis. Não, trata-se de tomar medidas concretas a serem defendidas
pelas forças de uma esquerda que precisa de se reorganizar e reencontrar, por novos movimentos sociais a dinamizar. A miséria e a pobreza
que promovem a marginalidade e frequentemente a violência, a fome
que obriga a recorrer à caridade das sopas dos pobres, coexistindo com o
esbanjamento e a opulência de minorias no chamado mundo desenvolvido
e industrializado – como se não bastasse o que se passa noutras regiões
do planeta – negam os Direitos do Homem e constituem um insuportável
retrocesso civilizacional. E aqueles que ainda não perceberam o que se está
a passar, seria bom despertarem e terem em conta as lições do passado:
se não se fizerem reformas, se não se reforçarem os valores democráticos
assentes na justiça e na ética, se não se afirmar uma visão humanista do
mundo e da vida na gestão das coisas, haverá revoluções. Apesar do espectáculo, do panem et circenses com que se procura imbecilizar e adormecer as
pessoas, o desespero e a revolta dos humilhados e ofendidos podem abrir
horizontes de futuro, mas também fazer ressurgir velhos demónios.
26
Crise do Euro e Modelo Social Europeu*
Glória Rebelo
“A economia sujeita à lei moral, e organizada com vista ao bem de todos,
é cláusula indispensável da liberdade autêntica de cada um”
(António Sérgio, Ensaios – tomo I, Clássicos Sá da Costa, 1974: 163)
1. Crise sistémica, austeridade e modelo social
A União Europeia (UE) vive hoje um momento de particular desafio e
exigência: responder com eficácia a uma devastadora crise do capitalismo
financeiro que, eclodindo entre 2007/2008, rapidamente originou uma
gravíssima crise económica e social a nível internacional. A par das medidas
de austeridade, entretanto adotadas pela maioria dos Estados-membros, o
sector bancário vai restringindo acentuadamente o crédito às empresas e às
famílias, circunstância que tende a agudizar os efeitos sociais e económicos
na atual conjuntura.
Dados divulgados recentemente pela OCDE demonstram que no ano
passado a Zona Euro registou uma forte deterioração da atividade económica, estimando-se em 2012 um cenário de frágil recuperação e mesmo,
para alguns países, designadamente Portugal, um cenário de recessão.
Também os dados do Eurostat divulgados em Abril deste ano, e relativos
à taxa de desemprego na UE em Fevereiro último, dão conta que a Zona
Euro registava a taxa recorde de 10,8% e a UE27 uma taxa de 10,2%. E se
os países menos afetados pelo desemprego – em situações mesmo próximas
do pleno-emprego – são a Áustria (com 4,2%), a Holanda (com 4,9%), o
Luxemburgo (com 5,2%) e a Alemanha (com 5,7%), os países mais fustigados são, sem dúvida, os países do sul da Europa: Espanha (com 23,6%),
Grécia (com 21% em Dezembro de 2011) e Portugal (com 15%)1.
De facto, desde 2001, altura em que a China entrou para a Organização
Mundial do Comércio (OMC), que se verifica um crescimento exponencial
* Texto escrito segundo as normas do novo Acordo Ortográfico.
1
Refira-se ainda, no que concerne ao desemprego jovem, as taxas de desemprego de 22,4% na UE e 21,6% na Zona
Euro, sendo as mais altas de 50,5% em Espanha e de 35,4% em Portugal e, ao invés, na Alemanha de 8,2%, na
Áustria de 8,3% e na Holanda de 9,4% (Eurostat, European Commision, April, 2012).
27
CRISE DO EURO E MODELO SOCIAL EUROPEU
da sua produção ao nível dos sectores primário (sobretudo agrícola) e
secundário (industrial). A produção chinesa não respeita apenas ao têxtil,
mas a todo o sector industrial e às atividades próprias do sector primário.
E quando a Comissão Europeia decidiu eliminar um conjunto de barreiras
ao comércio internacional (veja-se o comercio têxtil decidida em 2005)
foram emergindo fortes repercussões na economia europeia e nacional2.
Parecendo, assim, forçoso reconhecer que esta globalização financeira desregulada falhou no contributo para melhorar o crescimento do
emprego e os níveis de bem-estar social – uma vez que intensificou as desigualdades sociais e a pobreza3 – um pouco por todo o Mundo se procuram,
agora, respostas a esta crise. A globalização é uma transformação gigantesca
das economias e das sociedades mas a verdade é que a sua amplitude não
foi estimada em termos de efeitos, em países e em pessoas. Sobretudo ao
nível da distribuição da riqueza e do emprego ou, melhor, do aumento
acentuado de desigualdades sociais, pobreza e desemprego.
Progresso social e eficácia económica caminham logicamente a par;
estão diretamente associados. Como advogava Keynes, no contexto da crise
dos anos 1930 (e com o propósito de elaborar uma teoria que respondesse de forma eficaz a uma economia marcada por uma elevada taxa de
desemprego), o importante seria descobrir os fatores que determinam o
emprego4. E estes estavam diretamente ligados, em sua opinião, à procura
efetiva pois o desemprego provém de uma insuficiência do consumo
combinada com uma insuficiência do investimento. Assim, caberia ao
Estado desempenhar um papel de estímulo a estas duas funções, diretamente (despesa pública) ou indiretamente (através, por exemplo, da
Neste aspeto convém referir que, por exemplo, nos EUA se mantiveram um conjunto de medidas restritivas,
protetoras da indústria (e o índice que mede a produção industrial nos EUA tem vindo progressivamente a crescer).
2
Em 2010 um relatório da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (CNUCED)
alertava para o facto de a pobreza extrema ter aumentado exponencialmente na última década mesmo em situação global de crescimento económico: o número de indivíduos em situação de extrema pobreza aumentou 3
milhões por ano entre 2002 e 2007 (anos de forte crescimento económico, com médias de 7%), tendo atingido
em 2007, os 421 milhões de pessoas em todo o Mundo, ou seja, duas vezes mais do que em 1980. E fazendo um
balanço a uma década da evolução dos países mais pobres do Mundo, constata que também os países europeus se
viram, na última década, fortemente atingidos por este flagelo (UNCTAD (2010), “World Economic Situation
and Prospects 2011”, United Nations, New York). De facto, excetuando muito poucos (nomeadamente Portugal,
onde a taxa de risco de pobreza diminuiu de 21%, em 2000, para 18,1%, em 2007) os dados do Eurostat de 2010
mostram que, de 2000 a 2007, a taxa de risco de pobreza na UE aumentou de 16% para 16,2% e, na Zona Euro,
de 15% para 16,5%, sendo a tendência de aumento transversal à generalidade dos países europeus.
3
4
Cfr. J.M. Keynes, A Grande Crise e Outros Textos, Relógio D’Água, 2009.
28
GLÓRIA REBELO
política fiscal), única forma também de assegurar uma repartição mais
equitativa do rendimento, evitando arbitrariedades e desigualdades sociais.
Esta procura de estimular desenvolvimento económico mediante
progresso social - na medida em que a organização das relações sociais é
estruturante da dinâmica económica - é, também hoje, crucial. Mas o que
aconteceu foi que ao longo da primeira década deste século XXI, os lucros
da economia real foram arrebatados pelo sistema financeiro (e pela especulação) que exerceu uma atividade sem vigilante fiscalização. E os dirigentes
políticos europeus não compreenderam (ou não quiseram compreender)
a situação e, volvidos mais de cinco anos do início desta crise do capitalismo
financeiro, as práticas financeiras da banca permanecem sem um reforço
de regulação. Não foram, pois, retiradas ilações desta crise, nomeadamente
no que concerne ao funcionamento da economia, e o mundo (sobretudo
a Europa e os EUA) continuam a oscilar entre a especulação financeira e a
procura de a limitar. Nesta medida, outras crises, porventura mais graves,
podem vir a emergir.
Um dado parece certo: à crise atual não se responde mantendo inalteradas
as práticas que estiveram na sua origem5. Aliás, a questão que deve permanecer no centro do debate político é a de saber por que razão as práticas
bancárias não foram suficientemente reformadas e o que será necessário
para, então, corrigir as atividades especulativas da banca. O comportamento
especulativo e imprudente de camuflar riscos exige outra regulação e uma
permanente vigilância. É esta a principal lição a tirar da crise6.
Ora, num período em que se pede grandes sacrifícios aos cidadãos – que
geram, naturalmente, descontentamento, sentimento propício ao aparecimento de soluções messiânicas – urge robustecer uma conceção humanista
de democracia, alicerçada em princípios éticos que visem, mormente, a
5
Como referia Maria de Belém Roseira no discurso comemorativo do centenário da República, proferido a 5 de
Outubro de 2010 na Assembleia da República “o mercado especulativo não regulado ataca os Estados soberanos
e fragiliza-os ao dificultar o seu financiamento externo e ao pretender impor outras regras de jogo em que a
economia subjuga as pessoas em vez de as dignificar. (...) Somos, pois, todos chamados, mais uma vez na nossa
História, a um exercício de lucidez que reclama ações corajosas que passem pela preservação do essencial das nossas
identidade e soberania, desistindo do acessório. Ações que sejam explícitas e claras, desenhadas com rigor e bom
senso, com justiça social, com equidade, com coerência, e que se assumam como elemento estruturante na construção de um futuro melhor.”
E considerando, desde logo, que esta crise da dívida não é sobretudo da dívida pública mas sim de dívida privada.
É preciso prever o futuro e evitar réplicas, isto é, acautelar a responsabilização pelos desvios de gestão praticados
pelas grandes instituições financeiras.
6
29
CRISE DO EURO E MODELO SOCIAL EUROPEU
defesa da dignidade pessoal e social. Tanto mais que o princípio essencial
da Democracia é o respeito da dignidade da pessoa humana7.
E, ante um agravamento das incertezas no plano económico, o desafio
de saber responder a esta crise financeira, com origem no subprime, leva a
refletir sobre a necessidade – sentida hoje mais do nunca – de se considerar
que os dirigentes políticos europeus não podem resignar-se à ideia de um
empobrecimento generalizado da população (causado quer por perdas
salariais quer pelo aumento do desemprego, em especial o desemprego de
longa duração)8.
Além disso, porque o que está em causa neste momento é o nosso
modelo de sociedade. Saber se queremos, ou não, salvaguardar - não
obstante as adversidades financeiras - áreas sociais fundamentais como
o Serviço Nacional de Saúde, a escola pública ou o sistema público de
Segurança Social. Ou seja, preservar o Estado social e os seus valores, assegurando igualmente confiança no crescimento económico, na capacidade
de atrair ao território nacional investimento direto estrangeiro, e manter/
criar emprego.
Tanto mais que a ordem económica e a ordem moral não são alheias
entre si, importando que, na gestão política desta crise se atenda sobretudo ao interesse comum, em especial defendendo a coesão social. Muito
à semelhança da crise mundial de 1929, a atual crise não poderá ser solucionada sem uma conveniente resposta que considere os princípios da
justiça social9.
Numa Europa em rápida mudança, orientada pela “Estratégia Europa
2020” (estratégia de crescimento para uma década, assente na ideia central
de um crescimento económico inteligente, sustentável e inclusivo), importa
que ao nível da condução política europeia não se desista de pugnar por
7
Como enfatizava António Sérgio “Nunca devemos querer conduzir os homens sem que tais homens deem por
isso. Esta atitude é o cúmulo do desprezo; é tratá-los como inconscientes, como coisas, e não como pessoas.”
(António Sérgio, Ensaios – Tomo VIII, Livraria Clássicos Sá da Costa, 1974: 169).
Como argumentava António Sérgio “enquanto não desempobrecermos (…) não será a nação uma realidade
humana mas a simples vacuidade de um palavrão retórico (António Sérgio, Introdução Geográfico-Sociológica à História de
Portugal, Livraria Clássicos Sá da Costa,1974).
8
Como refere Augusto Santos Silva “a ordem económica, social, política, legal, tem de justificar-se e demonstrar
que é justa (Santos Silva, A., Os valores da esquerda democrática – Vinte teses oferecidas ao escrutínio público, Coleção Respública,
Almedina, 2010: 30).
9
30
GLÓRIA REBELO
estas três prioridades transversais ao conjunto dos Estados que integram a
UE: reforçar os níveis de emprego, de produtividade e de coesão social e,
mais concretamente, os objetivos identificados para as áreas do emprego,
da inovação, da educação, da inclusão social e da energia.
De facto, a resposta a esta crise internacional – que se sente-se por
todo o mundo – não pode ser a tentação para um forte retorno a políticas estritamente nacionais e a um protecionismo; assim como também
se sabe que não há um só caminho a seguir: o da austeridade conducente a
um inevitável empobrecimento dos países europeus mais afetados, Grécia,
Portugal, Espanha e Itália10. E a alternativa não poderá deixar de passar
por um reforço da aposta na atração de investimento direto estrangeiro
e numa visão estratégica de relançamento do crescimento económico e
de criação de emprego no médio prazo. Isso só será possível mediante a
implementação de um imprescindível conjunto de políticas económicas e
sociais transversais a nível europeu (e nacionalmente sectoriais) desenvolvidas em ambiente de diálogo social e de integração política que garanta,
simultaneamente, a diversidade nacional de cada Estado11.
Em suma, a políticas que promovam crescimento económico e emprego.
Recordo o ensaísta português António Sérgio: “A obra de fomento
precedeu a obra financeira. É essa a verdadeira cronologia económica…É
pavoroso o nosso défice financeiro, mas dêem-nos boa economia e logo
teremos boas finanças. Enriquecer Portugal, eis todo o problema financeiro” (António Sérgio, Ensaios – tomo IV, Clássicos Sá da Costa, 1974: 205).
Sobretudo atendendo à tendência que se desenha para o empobrecimento
acentuado de alguns países- os mais afetados por esta crise, designadamente
Como referia António Vitorino em entrevista dada ao jornal Expresso: “Há uma componente para Portugal que
tem a ver com a UE. Contrariamente ao que diz o ministro das Finanças alemão (um artigo no FT advogou ser
preciso mais ‘austeridade, austeridade, austeridade’), a solução é cumprir a austeridade, pôr as contas públicas em
dia e, ao mesmo tempo, criar condições para o crescimento económico. Essa perspetiva do crescimento económico
falta no contexto europeu e é essa componente portuguesa que depende da componente europeia.” E, acrescenta
ainda, “a Comissão propôs, e bem, antecipar fundos. Mas é preciso flexibilizar do ponto de vista burocrático e da
componente nacional. Temos um problema sério de restrição do investimento público, falta de liquidez no sistema
bancário e o vazio tem de ser preenchido por uma utilização mais intensiva e flexível dos fundos estruturais. Isto
depende de Bruxelas. “ (Expresso, 28 de setembro de 2011).
10
11
Como frisava António Vitorino na entrevista ao Expresso “a tarefa fundamental de quem acredita na Europa, seja
em que trincheira esteja, e do Governo português, é persuadir os países que têm reticências que se trata de uma
estratégia de interesse geral europeu e não só focalizada na resolução dos problemas dos países sobre-endividados”
(Expresso, 28 de setembro de 2011).
31
CRISE DO EURO E MODELO SOCIAL EUROPEU
Portugal12 - e sabendo-se que a população mais rica tem uma fraca propensão
para consumir, uma vez que os seus rendimentos excedem largamente as
despesas, comprometendo o desenvolvimento da economia.
Neste particular merecerá atentar na evolução do denominado “modelo
alemão”. A Alemanha vive hoje uma situação socioeconómica vincadamente
distinta da vivida na maioria dos países da Zona Euro. Por várias razões mas,
desde logo, porque é o país europeu que mais reduziu a taxa de desemprego
desde o início desta crise, ou seja de 2007 até hoje. Por este facto, o “modelo
alemão” vai surgindo como um exemplo a seguir em certos países europeus.
Confrontada com uma forte perda de competitividade (devido, sobretudo, à
quebra do investimento direto estrangeiro) e ante um movimento de deslocalização empresarial para os países do leste da Europa, a Alemanha enfrentou,
em meados da década passada, um duplo desafio: relançar a economia e travar
a destruição de emprego. E defendendo uma política de “patriotismo económico”, especialmente no que concerne à industria13, a par de uma robusta
aposta nas exportações, desenvolveu-se então uma política de contenção salarial
nas empresas, contrapartida temporal da manutenção de emprego e da fixação
da produção (sobretudo industrial) em território nacional. Mas este esforço
de limitação dos custos de produção teve como consequência um desenvolvimento da pobreza e um aumento das desigualdades, traduzindo-se, além
do mais, num enfraquecimento no investimento nas infraestruturas do país,
nomeadamente ao nível da educação (o problema que agora emerge nalguns
sectores industriais é mesmo o da penúria de mão-de-obra qualificada).
Ora, a propagação deste “modelo alemão” de austeridade a outros países da
Zona Euro (em particular aqueles que foram mais atingidos socialmente pela
crise e têm salários médios muito inferiores ao alemão) poderá ter para esses
países consequências catastróficas, quer ao nível do emprego quer do crescimento
económico. Desde logo, e considerando a disparidade da média salarial entre os
Como afirmava Teresa de Sousa “o que já não é possível é ficarmos limitados a uma visão que rejubila pelo facto
de Portugal ou a Irlanda, a Grécia ou a Espanha encontrarem o caminho da salvação apenas pela desvalorização dos
salários e pelo desemprego em massa. Não é socialmente aceitável. Não é moralmente aceitável. Não tem, sobretudo, qualquer futuro. Mas é, cada vez mais, o único discurso que é oferecido pelos que creem que, da austeridade,
nascerá milagrosamente o crescimento. Nem que seja por isso, o facto de a campanha de Hollande poder abrir
uma nova perspetiva europeia já vale a pena” (Teresa de Sousa, “Hollande a nova fase do debate europeu”, Público,
18 de Março de 2012).
12
Idêntica, diga-se, à seguida pelos EUA em matéria de atratividade territorial no que respeita à indústria e à aposta
na consolidação deste sector.
13
32
GLÓRIA REBELO
denominados países periféricos (por exemplo, Portugal, Espanha, Grécia) e os
países do centro da Europa (por exemplo, Alemanha, Áustria ou Luxemburgo),
receando-se pelo exponencial incremento do conjunto de população pobre e da
expansão da designada “nova pobreza” (working poor) isto é, de trabalhadores pobres.
Diversos estudos sobre pobreza divulgados desde o início da crise de
2007/2008 revelam que, além do desemprego, a pobreza tem aumentado
junto de muitos agregados familiares dos países europeus mais afetados.
De fato, a par da denominada “pobreza geracional” (isto é, a pobreza que
resulta de um ciclo de pessoas que nascem pobres, vivem pobres e morrem
pobres, transmitindo geracionalmente esse ciclo de vida), verifica-se que
muitas famílias, que antes desta crise não eram pobres, confrontadas inesperadamente com o desemprego, resvalam para situações de pobreza. Ou
seja, trabalhar e deter um vínculo laboral, por si só, já não é suficiente
para afastar as famílias da pobreza ou do risco de pobreza, dado que muitas
auferem rendimentos baixos que em situações de desemprego – em especial de longa duração – agravam a vulnerabilidade social destes agregados.
2. François Hollande e a esperança da social-democracia europeia
E é neste ambiente de grande exigência ao nível da definição do futuro
da construção europeia que decorrem as eleições presidenciais francesas,
apontando as mais recentes sondagens publicadas para uma vantagem do
candidato socialista François Hollande**.
Ora, estas eleições assumem especial importância no atual contexto político
europeu, tanto que se entende que o resultado destas eleições pode vir a influenciar
quer as eleições alemãs quer as italianas sendo clara a esperança para os sociais-democratas europeus: se Hollande vencer em França, outros países da UE se seguirão14.
** Este artigo foi escrito antes da realização das eleições presidenciais francesas (Nota da direcção Finisterra).
Como, por exemplo, a Alemanha e a Itália. Como refere Francisco Assis “a esquerda democrática europeia debate-se com
um problema de fundo que prejudica a sua intervenção política e dificulta a sua capacidade de agregação eleitoral – a ausência
de um pensamento económico sólido e autónomo, que se possa opor com vigor aquilo que habitualmente se designa por
“doutrina neoliberal” e se tem revelado hegemónica nas últimas décadas. Grande parte dos problemas dos partidos da área
socialista e social-democrata derivam dessa insuficiência básica. Mas (…) em torno das questões europeias começa a emergir,
ainda que lentamente, uma visão política e económica capaz de identificar autonomamente a esquerda democrática (Francisco
Assis ,“Na política as palavras têm vida e muitas vezes têm o mérito de anunciar o futuro”; Público, 5 de Abril de 2012).
14
33
CRISE DO EURO E MODELO SOCIAL EUROPEU
Com a intenção de se demarcar de Nicolas Sarkozy, Hollande defende
que o seu projeto é de esperança: por um lado, esperança na criação de
emprego (nomeadamente junto da população jovem e dos desempregados
de longa duração – mediante o que designa por “contrato geração” – e
sugerindo uma clara aposta no “emprego verde” e no emprego de “serviços
de proximidade”) e, por outro, esperança na luta contra as desigualdades
sociais, designadamente no acesso à saúde e à educação.
Como declarou na sua campanha “a Europa atravessa a mais grave crise
da sua história”, crise que força os europeus a desilusões e que afasta a
construção europeia de um ideal prosseguido por varias gerações há mais
de cinquenta anos”. E, reafirmando a necessidade de construção europeia que contrarie a ideia de uma Europa “impotente face às forças do
mercado, obcecada com a desregulação e incapaz de resistir à globalização
liberal15”, Hollande retoma a ideia – apresentada em Berlim a 5 Dezembro
de 2011, no congresso do SPD – de propor uma alternativa ao tratado de
disciplina orçamental (assinado por 25 dos 27 Estados-membros da UE),
defendendo que este cria a “ilusão” de pretender terminar com a crise
financeira através da estabilidade mas não responde a uma crise económica
prolongada que, a prazo, poderá mesmo fazer ressurgir os desequilíbrios
financeiros que fizeram nascer, justamente, a primeira.
Como advoga Hollande, é necessário propor “novos instrumentos” que
favoreçam o crescimento e o emprego considerando que a situação na Zona
Euro é ainda frágil e que urge restaurar a confiança16. Para Hollande, sem
medidas para relançar o crescimento os governos não conseguirão nunca
pagar a sua dívida e os povos envolver-se-ão cada vez mais numa construção
europeia que os condenará ao empobrecimento, pois, como realçou na sua
campanha, “se nada mudarmos, os povos europeus não suportarão muito
tempo as consequências de um laissez-faire devastador; é um caminho trágico
que o mundo não conhece desde a Grande Depressão dos anos 1930.”
15
Opondo-se aqui a Nicolas Sarkozy que quer, a todo o custo, recuperar a parte do eleitorado do Front National
que nele votou em 2007 (face a Marine Le Pen).
A este propósito, refere Teresa de Sousa no Público “os socialistas e sociais-democratas europeus ainda estão
muito longe de ter compreendido a natureza desta crise e as suas consequências para o futuro das sociedades europeias e do modelo social europeu. (…) a Europa está longe de ser salva. O “consenso” “Merkozy” já começava a
cansar muita gente. A vitória de Hollande teria a vantagem de reequilibrar os termos do debate.” (Teresa de Sousa
“Porquê tanta pressa?”, Público, 15 de Abril de 2012).
16
34
GLÓRIA REBELO
E lamentando que os líderes da Zona Euro se tenham voltado unicamente para a implementação de políticas de austeridade, François Hollande
reclama medidas para o crescimento económico afirmando que é preciso
que os países europeus se previnam contra a instabilidade macroeconómica futura, tendo afirmado (quando foi recebido pelo líder do partido
trabalhista Ed Miliband, em Londres), num discurso proferido no King's
College) que “precisamos mais regulação (…) e desejamos que o crescimento na Europa possa ser estimulado e temos necessidade de uma Europa
que tenha essa visão. Viemos também aqui a Londres para dizer que o sector
financeiro deve estar ao serviço da economia, deve permitir criar a riqueza
e não apenas enriquecer à custa da atividade económica.”
E, de facto, a acontecer, a vitória de Hollande teria a virtude de forçar
um regresso ao debate político europeu sobre qual a melhor resposta a esta
crise em termos de crescimento económico e emprego.
35
O Estado Social em Causa1:
Instituições, Políticas Sociais e Movimentos Sociolaborais no
Contexto Europeu
Elísio Estanque
Introdução*
Num momento em que a Comunidade Europeia enfrenta a mais grave
crise desde a sua origem, o presente texto pretende revisitar algumas das
(velhas e novas) discussões em torno do Estado e ao mesmo tempo contribuir para a reflexão em torno do «Estado social» e dos seus desafios atuais.
Em primeiro lugar, importa (re)pensar o Estado na sua relação com a
sociedade, e questionar o seu papel, o seu potencial e os seus limites no
atual contexto de austeridade. De facto, é tempo de se fazer o balanço e de
se reinterpretar o legado “social” e histórico da Europa moderna, à luz da
realidade presente e das perplexidades que hoje ameaçam o modelo social
europeu. Na encruzilhada em que nos encontramos, perante medidas de
austeridade que atingem em cheio as classes médias e os trabalhadores em
geral, não pode esperar-se uma total passividade e conformismo dos cidadãos, em especial em países como Portugal, em que a relativa estabilidade
e coesão social se deveu sobretudo ao papel do Estado social. Daí que seja
indispensável prestar atenção aos novos movimentos sociolaborais que se
reconfiguram na fronteira entre um Estado fragilizado e um mercado de
trabalho onde grassa a precariedade, o desemprego e onde os direitos laborais estão a “desfazer-se no ar”.
Concepções e contradições do Estado moderno
O Estado e o seu significado sociológico permanece intimamente ligado
à história do Ocidente, onde, como é sabido, a Europa ocupa um lugar
central. A génese do Estado remete para o poder, sendo que este reside, em
última instância, na força, a começar pela força militar. Nessa medida, é
*
Texto escrito segundo as normas do novo Acordo Ortográfico.
1
O presente texto está igualmente em publicação no livro: Silva, Filipe Carreira (org.) (2012), Os Portugueses e o Estado
Providência. Lisboa: ICS.
39
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
nos exércitos, nos dotes de chefia dos seus líderes e na sua capacidade estratégica que repousa o domínio dos grandes impérios ou das cidades-Estado
mais influentes da era clássica. Faz sentido remeter para essas fórmulas
originárias do exercício do poder para refletirmos sobre o Estado e a
sociedade. Todavia, até hoje o conceito de «Estado» permanece discutível
quanto à sua origem e ao seu significado. O termo foi usado pela primeira
vez por Maquiavel (O Príncipe, 1532), mas o nascimento do Estado moderno
é posterior, sendo em geral situado no tratado de Paz de Westfália (1648),
com o reconhecimento de governos soberanos sobre uma dada área territorial. Com uma Europa central devastada por guerras religiosas que
duraram várias décadas, a paz foi muito dificilmente conseguida, ocorrendo num período de profunda viragem na correlação de forças entre
as diversas potências europeias. O Estado-nação emerge das ruinas da
cristandade medieval, resultado da desagregação dos grandes impérios: “A
universalidade política medieval, na sua unicidade e pouca diferenciação,
sob a autoridade suprema do papa e do imperador, deu lugar a um sistema
de Estados nacionais de variadas unidades políticas, soberanas e nacionais,
que tinham de enfrentar e resolver o problema das relações com a Igreja,
que permanecia universal e transnacional” (Cruz, 1992: 829). A autoridade dos Estados traduziu-se, então, num consenso alargado em torno da
soberania de cada território e das funções imputadas ao Estado, isto é: a)
uma forma de governo dotada de instituições e meios para impor a sua
Lei; b) um povo que aceita submeter-se a esse governo e com ele partilha
determinados valores; e c) um território com fronteiras bem delimitadas.
Na famosa obra de Thomas Hobbes, Leviatã, o “estado de natureza” terá
sido aquele em que, dadas as diferenças de poder e de inteligência entre os
homens, e dado que os recursos são sempre escassos, a ausência de um poder
dissuasor tende a suscitar uma guerra de todos contra todos. Ora, sendo a
guerra permanente uma situação insustentável, é urgente contê-la ou preveni-la. E é justamente pela necessidade de assegurar a paz que os homens tomam
consciência da necessidade de promover um contrato, um compromisso,
controlado por uma força centralizadora à qual a sociedade deve submeter-se.
Embora, como este clássico reconheceu, o Estado seja em larga medida “uma
ficção”, ele transporta uma “vontade própria”, mas que representa e incorpora a vontade colectiva dos cidadãos, criando e manuseando os mecanismos
40
ELÍSIO ESTANQUE
ativos que preservam os direitos e deveres de cada um.
Mas, à visão hobbesiana de uma autoridade centralizada imposta pelo
Estado, outros pensadores, como John Locke, contrapõem uma ideia de
soberania, igualmente representada pelo Estado, mas consentida pelos
indivíduos, por cujas liberdades e direitos de propriedade aquele deve velar,
caso contrário o poder de Estado perde legitimidade e os cidadãos têm
o direito de revoltar-se. A perspetiva lockiana pressupõe um processo de
consolidação de uma racionalidade aliada ao sentido de tolerância, respeito
pelas liberdades, e à ideia de governo pelo consentimento, o que proporcionou e deu solidez ao conceito de contrato social como base fundamental
de governação, de justiça e de progresso das sociedades. O estatismo de
Hobbes e o liberalismo de Locke seriam ainda contrariados por um dos
autores mais influentes do século das luzes: Jean-Jacques Rousseau.
Segundo Rousseau, a natureza e o ser humano induziram um direito
natural que a sociedade perverteu. Antecipou a visão sociológica segundo a
qual a origem das desigualdades entre os homens resulta da própria sociedade, da divisão do trabalho e da propriedade privada, sem no entanto
descurar o papel da racionalidade. Só através da razão pode ser criado um
“pacto” capaz de permitir a passagem do estado natural ao estado “civil”,
passagem essa que teve consequências nefastas como a guerra e o egoísmo.
Compete, portanto, ao Estado promover o contrato, apoiando-se na inteligência dos indivíduos, no seu pensamento racional-moral e promovendo
leis que sejam expressão dessa vontade geral, a fim de suprir a tendência à
desordem instigada pelo sistema social emergente. Porém, só o povo pode
conferir legitimidade ao governo, que pressupõe o respeito pela liberdade,
justiça e igualdade, considerados os principais garantes do contrato social
entre os súbditos e os soberanos, cujas relações são de reciprocidade.
Embora, as reflexões filosóficas em torno do Estado remontem ao berço da
civilização ocidental, é sobretudo com a emergência do capitalismo moderno
que se desenham as principais conceções a seu respeito, perante o triunfo da nova
sociedade ocidental, e é a partir delas que importa entender – e se possível reformular – a natureza complexa e contraditória do aparelho de Estado na sua relação
com a economia e a sociedade em geral. Autores clássicos das ciências sociais,
como Max Weber e Émile Durkheim, pensaram o papel do Estado moderno
enquanto instância fundamental de racionalidade política e de organização da
41
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
ordem social e moral da sociedade. Já Karl Marx desenvolveu todo um edifício
teórico em que o Estado capitalista é visto sobretudo como aparelho de dominação
associado à ordem económica e ao poder do capital nas sociedades industriais. O
que estes pensadores tiveram em comum e que nos pode ajudar a compreender
os problemas atuais foi a sua perceção de que o Estado e a economia são dimensões inscritas na sociedade e na sua estrutura socioeconómica.
Na verdade, o mais importante é atentar na natureza contraditória, plural
e complexa da sociedade moderna, cuja conflitualidade ganhou um carácter
estrutural logo no seu processo de gestação. Desde finais do século XVIII que as
guerras civis, os movimentos camponeses, a revolução burguesa e o movimento
operário marcaram a Europa ocidental com sucessivas convulsões sociais e políticas, a provar como a consolidação das nações modernas esteve longe de ser um
processo harmonioso. Daí que as preocupações com a lei, a ordem e a moral
tivessem acompanhado as grandes correntes teóricas e filosóficas do pensamento
social, muito embora, paradoxalmente, o triunfo da racionalidade ocidental
tenha caminhado lado a lado com a instabilidade, o conflito e a luta entre classes.
É neste ponto que importa realçar a sagacidade de Marx ao antever a
natureza eminentemente contraditória do capitalismo moderno e a sua
propensão para aprofundar essas contradições, que até agora tem oscilado
entre a tentação autodestrutiva e a capacidade regeneradora. Nesta perspetiva, o Estado, ainda que se imponha como uma instância superior e acima da
sociedade, nunca se despe das relações de classe e, nesse sentido, assume-se
como o principal veículo de legitimação e reprodução das fortes desigualdades
sociais e económicas por que se rege a sociedade capitalista. Do ponto de
vista conceptual, as referências de Marx ao Estado são dispersas, pouco aprofundadas e por vezes contraditórias, estando mais presentes nos seus escritos
históricos. Marx vê o Estado como uma dimensão do sistema de dominação
de classes, considerando-o uma instituição “parasita” que serve os interesses
da burguesia e dos altos funcionários, um “epifenómeno” das relações de
propriedade, sobressaindo ainda no seu pensamento uma noção de “Estado
instrumento” (cf. Bobbio, 1979), noção esta que é particularmente realçada
por Lenine2. As análises marxistas mais elaboradas sobre a complexidade e
2
Uma perspetiva que fica clara na sua obra O Estado e a Revolução: “Segundo Marx, o Estado é um órgão de dominação de
classe, um órgão de opressão de uma classe por outra, é a criação da «ordem» que legaliza e consolida esta opressão,
moderando o conflito de classes.” (Lenine, 1978 [1917]: 15).
42
ELÍSIO ESTANQUE
as tensões internas que atravessam o Estado capitalista surgiram mais tarde
(Poulantzas, 1978; Wright, 1978; Evens et al., 1985; Jessop, 1990).
As conceções e controvérsias acerca do Estado são tantas e tão diversas
que não cabem nesta breve reflexão. Desde os defensores do laissez-faire,
do Estado mínimo, que apenas reconheciam o seu papel de “vigilante”,
garante da paz, dos direitos de propriedade e pouco mais, às teorias do estatismo mais abrangente, o Estado-sujeito ou o hobbesiano Leviatã, passando
pela referida conceção leninista do Estado-instrumento, as premissas e
conceitos em torno do Estado são difíceis de elencar.
Um traço decisivo para a afirmação do Estado é o equilíbrio dinâmico
entre a lei e a ordem, de um lado, e a ação política dos cidadãos “livres”
num dado território, do outro. No que respeita ao papel político do Estado
poder-se-á dizer, como Samuel Huntington, que “na ausência total de
conflito social as instituições políticas são desnecessárias, na ausência total
de harmonia são impossíveis”. Daí que, no quadro democrático, o Estado
seja, por excelência, o terreno da política, o qual, aliás, só tem sentido
enquanto espaço plural, de liberdade, de diálogo, de compromisso e de
conflitualidade. Prende-se com isso a permanente tensão entre a atividade “interna” do Estado e a sua atividade “externa”, sendo que o termo
“interna” tanto pode referir-se à esfera das sua próprias instituições como
ao território nacional, enquanto a dimensão “externa” pode remeter quer
para a ação diplomática e da defesa perante os inimigos exteriores, quer
para a esfera que fica de fora do sistema político-jurídico-administrativo
do Estado, isto é, para a sociedade civil. Deste modo, faz sentido afirmar
que a eficácia do Estado se mede não tanto pelo seu funcionamento interno
mas mais pelo maior ou menor sucesso na relação que estabelece com o que
lhe é exterior. Por isso, as alianças, os jogos de poder e a ação estratégica
que definem os atores da arena política que operam no seio do Estado ou
em relação direta com ele, os levam a lutar permanentemente por reforçar
e reinventar as suas fontes de legitimidade política através da persuasão
e do compromisso em torno de interesses (taticamente) comuns. Como
afirmou o autor de O Contrato Social, “o forte nunca é suficientemente forte
para ser sempre o senhor, a menos que transforme a força em direito e a
obediência em dever” (Rousseau, 2000 [1762]).
Para Weber, o Estado é, por definição, a esfera da política e das
43
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
instituições da governação, que devem – através da lei – prevenir o risco de
excessivo intervencionismo na economia e na sociedade. Sendo o detentor
do monopólio da violência legítima, deve velar pela ordem social (legítima),
promovendo os meios legais para regular os conflitos, revertendo-os em
“lutas pacíficas”, isto é, criando uma saudável competição individual que
leve a sociedade a premiar os mais aptos, dando lugar a um sistema estratificado que reflita a distribuição diferencial do poder. Assim, o Estado
social emergente não deveria exceder os limites de um “Estado regulador”,
ou seja, assumir-se como o principal garante do modelo liberal. Compete
ao Estado e ao mercado desenvolver e aperfeiçoar a racionalidade, promovendo leis e formas administrativas assentes em sistemas impessoais e
burocráticos capazes de consolidar essa mesma ordem, sendo esta apoiada
em formas legítimas de consentimento – fundadas na tradição, na legalidade ou no carisma do líder – e não na coerção. Na perspetiva weberiana
assume particular importância o papel dos funcionários e técnicos, especializados na gestão do direito formal que o Ocidente apropriou do legado
do império romano e que influenciou a burocracia estatal moderna, sem a
qual o capitalismo não poderia consolidar-se. O aumento da complexidade
a isso obrigava, se bem que Weber reconhecesse os problemas daí advindos
para o funcionamento da democracia. Entre outros, o autor de Economia
e Sociedade assinala a crescente tensão entre soberania crescente (controlo dos
governos pelos governados) e soberania decrescente (controlo dos governados
pela burocracia), enquanto fatores favoráveis à emergência de um duplo
perigo: a “gaiola de aço” da administração e as ações emotivo-passionais
instigadoras de novos poderes carismáticos (Santos e Avritzer, 2003: 41).
Já Durkheim, preocupado com a ordem moral e a integração dos
indivíduos numa sociedade caracterizada pela “solidariedade orgânica”,
considerou o Estado como inerente ao caracter complexo e plural das
sociedades “políticas”, ou seja, ele só existe em sistemas diferenciados
cuja composição interna agrega distintos grupos secundários. Impõe-se
enquanto autoridade, não pela força mas através da moralidade, instigando os indivíduos a participar, sobretudo através do associativismo
corporativo, no exercício das profissões, na edificação de uma normatividade onde o coletivo tem a primazia sobre o individual, sem no entanto
oprimir os indivíduos. O Estado é então “a sede de uma consciência mais
44
ELÍSIO ESTANQUE
elevada” que, sem se confundir com a coletividade mais geral, constitui o
seu sistema nervoso central, “o órgão encarregado de elaborar certas representações que valem para toda a coletividade, que se distingue das outras
representações coletivas pelo grau mais elevado de consciência e reflexão”
(Durkheim, 1983).
Se o Estado veio a conquistar uma tão evidente centralidade no mundo
ocidental – e em especial na Europa – foi não apenas por via do seu papel
político, mas sobretudo porque a economia de mercado, que dominou
as sociedades industriais a partir do século XIX, deu lugar a fortíssimas
ruturas sociais e conduziu a um desmantelamento violento das velhas
formas de organização económica e de coesão cultural das comunidades
tradicionais. A economia das sociedades humanas está submersa em relações sociais, como afirma Polanyi (1980), e a produção era nas sociedades
tradicionais uma função direta da organização social, a qual desenvolveu
as suas atividades e relações de troca na base dos princípios da reciprocidade, da dádiva e da redistribuição, e onde a ideia de lucro ou mesmo
de riqueza, do ponto de vista individual, estiveram ausentes. Todavia, foi
justamente o domínio avassalador do princípio do mercado que fez despoletar a necessidade social de mecanismos de regulação, a fim de minimizar
ou prevenir os excessos do capitalismo selvagem que nessa época se instalou
na Europa, em especial em Inglaterra. Daí o paradoxo do Estado, tendo
em conta que – como ilustram as ideias de J.-J. Rousseau – o mesmo vive
há vários séculos no dilema de lutar pela realização da comunidade política
ao mesmo tempo que se debate com a crescente fragmentação das identidades coletivas de base local, dando lugar, não poucas vezes, ora a formas
elitistas de democracia mitigada, com escassa participação popular, ora a
regimes nacionalistas onde as massas se tornaram mera força instrumentalizada por chefes autoritários. O sonho de construção de uma comunidade
política alargada para níveis que recuperassem o velho sentido (rousseauniano) da comunidade natural foi uma utopia por cumprir, mesmo depois
da experiência europeia do contrato social, apesar desta ter sido a fórmula
que – na vigência do Estado-providência – mais se aproximou da referida
utopia (Morris, 1996).
Se a atividade económica é sempre social, tal não invalida reconhecer-se
a distinção analítica entre os dois domínios. Para além de que, apesar das
45
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
implicações reciprocas entre economia e sociedade, trata-se de dimensões
que encerram tensões e lógicas conflituantes, sobretudo se a esfera económica é dominada pelo princípio do mercado. Na verdade, uma análise
mais abrangente do papel do Estado que nos permita ensaiar uma abordagem integrada do seu significado social e político requer um esforço de
reflexão em que tais princípios terão de estar presentes.
Embora os marxistas tenham olhado para o Estado capitalista sobretudo enquanto “superestrutura” – expressão de uma realidade económica
fundada em relações de classe e formas de exploração – a visão estruturalista e dicotómica perdeu atualidade à medida que novos desenvolvimentos
teóricos foram surgindo, inclusive no seio do campo marxista, por exemplo
a partir dos contributos de Nikos Poulantzas. Nesta linha de reflexão, é
consensual a ideia de que o Estado tem como principal função societal, no
capitalismo, organizar as classes dominantes enquanto “bloco no poder”,
conferindo coerência e aproximando os diferentes interesses entre frações
específicas da burguesia, função essa que só pode ser cumprida na medida
em que a “relativa autonomia” das instituições seja assegurada. Dito de
outra forma, para que o Estado consiga cumprir um tal desígnio, isto é,
para realizar a sua função reprodutiva e assegurar a coesão da ordem socioeconómica vigente, terá de se afirmar “acima” de cada fração e sempre
que necessário agir em benefício (real ou aparente) do povo e das classes
trabalhadoras, por exemplo, legislando contra os interesses (imediatos)
dos grupos privilegiados. É em larga medida devido à atividade redistributiva do Estado que a sua função ideológica e discursiva ganha eficácia
no apaziguamento da conflitualidade social e consequente preservação
do status quo. Efetivamente, o Estado só pode assegurar a sua força política
enquanto controlar ou regular a riqueza económica produzida na sociedade, em particular ao assegurar as condições de crescimento e acumulação
de riqueza que sustente a política fiscal de que depende. Importa, por isso,
recusar a noção de absoluta autonomia ou de mera instância normativa
para o Estado moderno.
O Estado tem um fundamento económico, enquanto a economia tem
um fundamento político (Burawoy, 1985 e 2010). Por um lado, o fundamento económico refere-se à sua capacidade política para intervir na
economia. Por outro lado, a economia tem um fundamento político no
46
ELÍSIO ESTANQUE
sentido em que o modo como cada um dos agentes económicos participa
no sistema produtivo (e no mercado) obedece a relações de poder e dominação orientadas por critérios e formas de retribuição e de recompensa
profundamente desiguais, mas suportadas por lógicas de consentimento
que naturalizam as desigualdades e formas de exploração. Em suma, é na
sua tripla função – económica, ideológica e política – que o Estado realiza
o seu papel de produção e de revitalização permanente dos ingredientes
que cimentam a sociedade no seu conjunto. Todavia, esse é um trabalho
que está longe de ser isento de contradições.
Embora o Estado constitua a “ossatura” (Poulantzas, 1978) da sociedade
e funcione como o “destilador” da luta de classes, não deixa de abrigar no
seu seio as inevitáveis tensões e conflitos inscritos nos jogos de interesses
e nas alianças que os seus agentes permanentemente promovem, seja de
dentro para fora seja de fora para dentro. Trata-se de um sistema onde as
componentes institucional, formal e jurídica podem esconder uma parte das
relações e disputas concretas que circulam no seu seio, ou seja pode falar-se,
em certos contextos, como já foi apontado no caso da sociedade portuguesa,
de um Estado dual ou Estado paralelo (Santos, 1990 e 1994), que tanto atua por
ação como por omissão na sua articulação tensa e complexa com a sociedade,
na sua função simultaneamente reguladora, normativa e de dominação. A
linguagem e os rituais do Estado são sempre adornados com as vestes mais
coloridas, evidenciando desse modo a sua vocação ideológica, usando reiteradamente as formas cerimoniais e os meios discursivos de comunicação ao
seu dispor para dissimular ou esconder perante os olhares públicos as tramas
que operam paralelamente nos subterrâneos dessa teia densa e labiríntica
de instâncias e de interesses que alimentam o Estado ou dele se alimentam
(Poulantzas, 1971 e 1978; Burawoy, 1985; Ruivo, 1999).
Sociedade, mercado e Estado social
A partir de formulações desenvolvidas por Boaventura de Sousa Santos
(1994), pode considerar-se que o Estado, o mercado e a comunidade
constituem princípios centrais na organização das sociedades ao longo da
modernidade, jogando a sua articulação um papel dinâmico na organização
do sentido histórico que, em momentos diferentes, marcou as sociedades europeias nos últimos duzentos anos. Tais dinâmicas são, portanto,
47
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
expressão das contradições estruturais que em contextos particulares – e
sob a forma de políticas governativas, movimentos sociais, lutas de classe ou
outras forças organizadas – assumem orientações concretas, empurrando
por assim dizer a sociedade ora numa direção progressista e emancipatória
(melhorando os padrões de vida e bem-estar dos seus cidadãos), ora para
a reprodução e reforço de opressões e injustiças sociais (prolongando os
fatores de atraso ou regredindo nos seus padrões de desenvolvimento).
Como atrás referi, fazendo referência aos estudos de Karl Polanyi
(1980), a chamada economia “de mercado” só se tornou dominante no
pós-Revolução Industrial, tendo, na verdade a Europa do século XIX
assistido a um domínio avassalador do mercantilismo, que, ao longo da
fase mais “selvagem” do capitalismo moderno obrigou à construção de
mecanismos de regulação, designadamente através do Estado. Quer isto
dizer que – em contracorrente com o pensamento económico neoliberal
que dominou o mundo desde os anos oitenta do século passado – o papel
dos “mercados”, enquanto entidades ou “forças” capazes de se imporem
às sociedades, foi sempre rejeitado pelos modelos tradicionais de organização económica nas sociedades de economia agrária e nas culturas rurais,
pelo que, como aconteceu no século XIX, o liberalismo desregulado gerou
compreensíveis resistências sociais e políticas, pressionando os governos e
as instituições públicas a criar meios para limitar e regular os excessos do
mercantilismo.
É neste quadro que importa situar o problema a fim de compreendermos alguns dos fundamentos sociológicos do Estado social na Europa e
as razões por que a sua eventual extinção ou falência significaria um golpe
profundo nas expectativas dos cidadãos europeus (como adiante veremos),
cujas consequências poderiam ser devastadoras. O Estado, enquanto
relação de forças condensada, veste-se das roupagens do positivismo
durkheimiano para produzir normatividade e ao mesmo tempo cria uma
ficção de unidade, a “comunidade imaginada” (Anderson, 1991), usando
os seus diferentes aparelhos e políticas para promover formas duradouras
de consentimento, seja através da ação e do discurso, seja através de opacidades e silêncios seletivamente controlados. Os seus objetivos passam,
portanto, por tentar conjugar três dimensões fundamentais: a) o património histórico, cultural e linguístico do respetivo território onde é o
48
ELÍSIO ESTANQUE
garante da soberania; b) as experiências, identidades, interesses de classe,
lutas e conflitos do passado e do presente; e c) a organização social e institucional concreta, imprimindo-lhe uma estratégia racional e um projeto
de futuro (Burawoy, 1985). Acresce que estas dimensões, nas suas diferentes conjugações, dão lugar em cada momento histórico a formas e
regimes de regulação particulares que é necessário entender numa perspetiva dinâmica.
Nos últimos duzentos anos é possível conceber a existência de diversos
regimes de acumulação. Numa primeira fase, um regime despótico, de mercado,
que vingou no período de capitalismo “selvagem”, suscitando respostas
e movimentos sociais antissistémicos, com destaque para o movimento
operário e para as convulsões e movimentos republicanos, anarquistas e
socialistas que assumiram uma força decisiva na viragem do século XIX
para o século XX. Entretanto, a consolidação de novas técnicas e racionalidades burocráticas aplicadas à economia, conduziram ao aperfeiçoamento
de um regime disciplinar na produção, caracterizado pela rápida acumulação e
crescimento (modelo taylorista), o que, apesar disso, não evitou a grande
instabilidade social e política que passou por intensos conflitos, guerras e
revoluções – desde a I Guerra Mundial à revolução bolchevique e que três
décadas depois culminou com a II Guerra Mundial – na primeira metade
do século XX. Só posteriormente, já no período do pós-guerra se afirmou
um regime hegemónico, coincidente com o advento do welfare state, no qual a
integração e o consentimento foram objeto de uma negociação e compromissos sociais realizados à sombra do fordismo e das políticas sociais
promovidas pelo Estado. Finalmente, desde a década oitenta do século
passado, assistimos a uma nova viragem, de sentido liberal mas agora na
escala global, o que leva a que se fale da emergência de uma nova forma de
despotismo, o despotismo global ou despotismo hegemónico, coincidente com
as últimas décadas de hegemonia neoliberal, em que a regulação se realizou
através das múltiplas conexões transnacionais dinamizadas pela globalização e pelo capitalismo financeiro, apoiados nas redes informáticas e nas
novas tecnologias da comunicação (Burawoy 1985 e 2001; Castells, 1999).
Pode, pois, afirmar-se que ao longo dos últimos três séculos aqueles
regimes operaram sobre os despojos da velha sociedade pré-industrial onde
eram as estruturas sociais – ou mais corretamente, da comunidade – que
49
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
comandavam a economia. Na linha de autores já referidos (Santos, 1994;
Polanyi, 1980), pode dizer-se que o modo como se combinaram ao longo
de todo este tempo dependeu sempre da forma como os princípios da
comunidade, do mercado e do Estado se foram estruturando na geometria
do território e na organização colectiva das sociedades e das nações. Com
maior ou menor articulação entre os princípios do Estado, do mercado e
da comunidade (Santos, 1994 e 2011)3 permaneceu uma constante tensão
na qual se inscreveram os processos de sentido mais progressista e emancipatórios ou o seu contrário, as forças mais normalizadoras ou sistemas
mais conservadores e autoritários. Até finais do século XIX, foi o princípio
de mercado que se sobrepôs aos restantes mas o mesmo induziu – sobretudo
devido ao papel da luta de classes – um esforço de reconstrução do princípio
da comunidade. O movimento operário e as ideologias mais radicais que
o penetraram (em especial o anarquismo e o marxismo) foram portadores
de uma linguagem, de um projeto político que, de certo modo, transportaram um reforço do princípio da comunidade ou, dito de outra maneira,
projetaram um discurso classista e comunitarista que, além da sua marca
emancipatória, reinventaram a identidade colectiva dos oprimidos em torno
da noção de classe. Ainda que em parte ficcionada, essa foi uma subjetividade que, por um lado, resistiu ao princípio do mercado e, por outro lado,
foi decisiva para a emergência do Estado social. Tal processo acabou por
conduzir à primazia do princípio do Estado sobre os princípios do mercado e da
comunidade, tornando-se hegemónico, em especial após a II Guerra Mundial,
com o triunfo e consolidação do Estado-providência. Mas, como é sabido,
a partir da década de setenta foi de novo o mercantilismo que se reergueu
e, desde então, é novamente o princípio do mercado que ganha hegemonia e o
Estado que recua – e os seus programas sociais, assistenciais e solidários – e
se tem vindo a submeter cada vez mais à economia de mercado, agora numa
escala mais ampla, sob a batuta da globalização neoliberal.
Em diversos momentos desde o nascimento das sociedades industriais
modernas, mas em especial nas últimas quatro décadas, os mercados cresceram de uma forma avassaladora, mantendo a sua oposição ao protagonismo
Boaventura de Sousa Santos refere-se a estes três princípios na sua articulação com os pilares da regulação e da
emancipação (Santos, 1994).
3
50
ELÍSIO ESTANQUE
estatal. Se, durante muitos séculos, os mercados foram apenas acessórios
dos sistemas sociais, agora passou a ser a produção e distribuição que se
viriam a submeter cada vez mais aos mercados e as transações monetárias e
a motivação pelo lucro ganham primazia sobre as relações de troca e a reciprocidade. Até certo ponto, a sociedade no seu conjunto regressa à situação
que já experimentara no século XIX, isto é, a uma sujeição generalizada às
leis do mercado. Segundo Polanyi, o trabalho, a terra e o dinheiro, sendo
parte do sistema económico, são organizados através do mercado, mas não
são mercadorias dado que nenhum deles foi criado para venda pelo que “a
descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia” (Polanyi, 1980: 85). Sendo uma tendência antiga, que
este autor remete aos finais do século XVIII, não há duvidas que o recrudescimento do princípio do mercado como ideologia dominante suscitou
algum paralelismo com o que aconteceu na Europa desde há duzentos anos,
levando a economia de mercado a ganhar ascendente sobre as atividades
produtivas de base comunitária e solidarista (Laville e Roustang, 1999).
O campo laboral foi sem dúvida aquele em que os impactos desestruturadores da globalização têm sido mais problemáticos. As consequências
disso mostraram-se devastadoras para milhões de trabalhadores de diversos
continentes. E a Europa é o continente onde as alterações em curso representam o mais flagrante retrocesso perante conquistas alcançadas, desde o
século XIX. Com efeito, os impactos da globalização têm vindo a induzir
novas formas de trabalho cada vez mais desreguladas, num quadro social
marcado pela flexibilidade, subcontratação, desemprego, individualização
e precariedade da força de trabalho. Assistiu-se a uma progressiva redução
de direitos laborais e sociais, e ao aumento da insegurança e do risco, num
processo que se vem revelando devastador para a classe trabalhadora e o
sindicalismo desde os finais do século XX (Castells, 1999; Beck, 2000;
Antunes, 2006). Embora se saiba que não existe um modelo europeu único, pode,
genericamente, considerar-se que os traços que guiaram as principais
economias europeias ao longo do chamado modelo fordista passaram por
um equilíbrio entre o Estado e o mercado, conjugado com um contínuo
crescimento económico com políticas económicas keynesianas de procura
do pleno emprego e um equilíbrio entre a produção industrial e a
51
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
redistribuição. Tal sistema estimulou o aumento do poder de compra e a
sustentabilidade das políticas de segurança e proteção social, configuradas
no Estado-providência, que se apresentou ao mundo como o principal
modelo de sucesso económico e de bem-estar geral. O Estado-providência
europeu tornou-se uma espécie de contraparte do modelo de “socialismo
soviético”, um e outro com pretensões a servir de “farol” de progresso e
emancipação dos trabalhadores e da humanidade, ao longo do período
entre 1945 e 1975, por isso mesmo já batizado pelos “gloriosos trinta anos”
de bem-estar social.
A Europa (particularmente os países da região Norte) reunia as vantagens
dos EUA com todos os seus avanços tecnológicos e cultura democrática com
políticas sociais protetoras dos mais desapossados. Efetivamente, a relação
salarial fordista de produção, que se generalizou no pós-guerra – embora,
evidentemente segundo dinâmicas nacionais muito distintas consoante as
regiões e os regimes de cada país –, é indissociável do papel do Estado, pois
ela traduziu a passagem de uma relação de trabalho concorrencial e puramente mercantil para um modelo juridicamente regulado, dando lugar à
ideia de que: “a garantia de emprego e a noção de emprego – o contrato
indeterminado – e a proteção social estão na origem da chamada cidadania
social na Europa ocidental do pós-guerra” (Oliveira e Carvalho, 2010: 27).
O choque petrolífero de 1973-74 provocou receios sérios de uma
doença súbita e preocupante para a Europa: a “euro-esclerose”, relacionada com a perda de confiança no modelo e seu futuro prospetivo
(Cravinho, 2007), já então com as economias asiáticas em pano de fundo,
mostrando os primeiros riscos de desmantelamento do modelo e dando
lugar a um discurso que passou a secundarizar o papel das empresas e
da indústria em beneficio da economia financeira e do monetarismo.
Como assinalou João Cravinho, o olhar passou a centrar-se, na perceção
comum, “quase exclusivamente no lado social do modelo, representado
pelo Estado social, acompanhado pelas políticas de redistribuição financiadas pela elevada taxação” (Cravinho, 2007: 14). Esta leitura assentava na
ideia de que o desempenho económico da Europa era francamente deficitário por referência aos EUA e, ao que se supunha, por maioria de razão
o seriam perante as economias emergentes do continente asiático assentes
nos baixos salários. A crescente pressão que se foi exercendo sobre as
52
ELÍSIO ESTANQUE
atribuições sociais do Estado – fortemente potenciadas pelo triunfo político do modelo neoliberal consubstanciado nas vitórias de Ronald Reagan e
Margaret Thatcher – deu lugar a novas fórmulas e propostas para a redução
da intervenção estatal na economia, suscitando novas linhas de argumentação em que o chamado “princípio da subsidiariedade”, isto é, a ideia de
restringir ao mínimo indispensável a intervenção do Estado, quer na atividade empresarial quer mesmo nos programas assistencialistas, apenas se
justificava enquanto complemento da sociedade e dos agentes económicos,
ou seja, apenas nos casos em que a iniciativa privada se revelasse incapaz de
cumprir as funções consideradas fundamentais para o interesse público.
Como atrás foi apontado, os modelos “sociais” ou de regulação que
marcaram a Europa passaram por ciclos muito distintos e revelaram tensões
e conexões muito complexas, não obstante a presença dominante de uma
dada fórmula em relação a outras. Nesse processo, sempre oscilaram
tendências contrárias ou complementares entre a primazia dos mercados e
a do Estado. É importante não esquecer que o que ocorreu no continente
europeu e no Ocidente em geral não foi, de modo nenhum, um processo
uniforme e simultâneo em todos os países. Muito embora a economia de
mercado tenha começado a aumentar a sua força perante os Estados soberanos (o desequilíbrio de poderes, a força política, militar, tecnológica
etc., de cada Estado), bem como a solidez das suas instituições e o nível
geral de qualificações e capacidade competitiva no xadrez internacional,
daí resultaram dinâmicas muito discrepantes. Podem, por exemplo, fazer-se distinções muito claras entre o modelo das sociais-democracias vigente
nos países nórdicos, a tradição corporativista de países como a Alemanha,
a França e a Itália e o modelo mais liberal vigente no Reino Unido (e nos
EUA), sendo no entanto de destacar que, já desde os anos noventa se vem
colocando em causa a ideia de que o modelo neoliberal seja o desenlace
inevitável da crise do Estado-providência (Jessop, 1993; Esping-Andersen,
1996; Santos e Ferreira, 2001). Não se trata, portanto, de pensarmos em
termos de uma simples viabilidade ou inviabilidade do “Estado social”,
mas antes no quadro das transformações socioeconómicas e políticas mais
profundas que marcam a mudança histórica, em particular nos últimos
dez anos. Sendo o capitalismo um sistema dotado de grande complexidade
e dinamismo, o modo como a sua infraestrutura económica se combina
53
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
com o sistema democrático (a democracia formal) tem obedecido sempre a
contradições e compromissos mais ou menos instáveis, sendo hoje duvidoso
até quando e em que condições a democracia e o capitalismo constituem um
binómio compatível com o crescimento das forças produtivas ou se, pelo
contrário, intensificam os seus antagonismos e nos conduzem a ruturas
radicais e imprevisíveis (Santos, 2005 e 2011). Seja como for, a história
mostra-nos que não há modelos monolíticos que se seguem uns aos outros,
mas sim soluções sempre compósitas, transitórias e de duração indefinida.
Num período como o que temos vivido nos últimos anos no contexto
europeu, de atrofiamento do Welfare State, vimos como o modelo keynesiano
foi deixando espaço para, de novo, reemergir um conceito de “Estado
regulador”, inspirado no princípio shumpeteriano segundo o qual os
mercados são dotados de uma capacidade “natural” de autorregulação,
cabendo ao Estado sobretudo assegurar as condições da boa concorrência.
Essa passagem, apesar das suas particularidades em países diferentes,
traduziu-se em três traços fundamentais: a descentralização da ação estatal
para as escalas local ou transnacional; a maior focalização na esfera laboral,
nomeadamente nas políticas de formação profissional e na flexibilização
(lean production); a aposta na “governança”, em geral acompanhada por
processos de privatização e subcontratação em diversos sectores e serviços
públicos (Silva, 2009).
O que vem sucedendo na Europa nas últimas décadas prende-se igualmente com um conjunto de processos e tendências extremamente diversas,
apesar de no seu conjunto se tratar de transformações arrastadas pelas
mesmas forças que têm vindo a fustigar as economias e os Estados desde os
anos oitenta do século passado. O fraco crescimento e a recessão económica,
o défice público, o endividamento externo e o envelhecimento demográfico
são alguns dos aspectos que tornaram insustentável o modelo de Estado social
na maioria dos países europeus e estão a empurrar alguns para a ruína.
Nestas condições, parece evidente a impossibilidade de um regresso à
velha matriz do Estado-providência tal como existiu no passado. O que está
em curso é uma mudança profunda e estrutural, tornando impossível o
retorno à situação dos “gloriosos trinta anos”. As opções políticas a adotar
terão de escolher entre a intensificação do mercantilismo “selvagem”,
correndo o risco de fazer explodir as desigualdades, a miséria e as injustiças
54
ELÍSIO ESTANQUE
sociais, com a consequente generalização da conflitualidade, ou dar continuidade à tradição humanista e solidária inscrita na história da Europa,
reerguendo um modelo social adequado à nova realidade. Perante o agravamento da atual crise, o modelo neoliberal (ainda hegemónico) perdeu
legitimidade em face dos resultados desastrosos do poder financeiro e do
mercantilismo global, o que, associado às incongruências das políticas
da UE, colocou perigosamente em causa o projecto europeu e conduziu
alguns dos Estados mais antigos (como Portugal e a Grécia) em risco de
falência e perda de soberania. Por isso aumentam a cada dia que passa as
vozes a diagnosticar a crescente fragilidade da própria democracia liberal
representativa, embora se trate de um risco que pode ser travado a tempo,
como consequência de uma previsível repolitização da sociedade – cujos
indícios já começam a surgir nomeadamente através do revigoramento dos
movimentos sociais –, dinamizando novas modalidades de ação e abrindo
novas perspetivas de exercício de cidadania. Filipe Carreira da Silva sugere
um cenário de recriação da fórmula antiga, referindo-se a um “Estado
neossocial”, cenário que, a confirmar-se, passará pela emergência de um
novo paradigma que poderá inspirar-se, “quer em ideologias do passado
entretanto reformuladas, quer híbridas mais ou menos consistentes, quer
até em propostas realmente originais [que] poderão vir a ser esgrimidas no
espaço público num futuro mais próximo do que muitos julgariam possível
apenas há uns meses atrás” (Carreira da Silva, 2009: 38). Seja como for,
o caso português oferece-se como um exemplo particular, um case study que
merece ser pensado à luz das suas especificidades.
Portugal e o Estado social
A valorização do Estado social por parte dos europeus e dos portugueses é inquestionável, mas a sua importância reflete ao mesmo tempo as
debilidades estruturais da sociedade portuguesa. Essa é uma realidade que
pode ser observada quer no plano concreto, quer no plano das representações subjetivas. Como é sabido, em Portugal o Estado-providência surgiu
muito tardiamente e não chegou a atingir uma robustez que o situasse
num padrão semelhante ao que vigorou nos países do norte da Europa.
A industrialização tardia e a fragilidade de uma economia pequena e atrasada, sob o controlo apertado de um regime repressivo e avesso a qualquer
55
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
modernização, ou seja, a condição periférica em que nos encontrávamos,
teria de constituir um quadro de dificuldades acrescidas para os projetos
de desenvolvimento que o país pretendeu abraçar em 25 de Abril de 1974.
Sem esquecer o entusiasmo coletivo e a importância das experiências de
democracia participativa no período revolucionário – num contexto em
que a fragilidade ou paralisação das instituições do Estado abriu espaço
para projetos de mobilização, associativismo e cooperação entre trabalhadores, moradores, sindicatos, etc. –, nomeadamente no próprio
desenhar dos contornos do modelo de Estado social que posteriormente
se procurou edificar, o certo é que as condições socioeconómicas do nosso
país não foram as mais favoráveis. No início da década de oitenta, quando
o nosso Estado-providência começou a ser construído, estávamos ainda a
“digerir” a ressaca da utopia revolucionária, que ficcionámos tão rápida
como ingenuamente. Então, uma parte dos atores políticos com maiores
responsabilidades na governação presumiu que o crescimento económico
seria imparável e que, portanto, as políticas públicas teriam uma sequência
de natural consolidação rumo a um “socialismo democrático” onde as
políticas redistributivas poderiam satisfazer os cidadãos, levando o país
a recuperar em poucos anos o atraso ancestral que tinha. A outra parte,
foi mais cética quanto às virtudes do Estado na economia e estimulou ao
máximo a iniciativa individual e o papel do mercado, muito embora nunca
deixasse de controlar os recursos públicos para satisfazer as suas clientelas
e permanecer senão no governo, pelo menos na zona de influência (e de
“alternância”) que permitisse manter algum poder e beneficiar dos recursos
públicos em cada novo ciclo político. Em todo o caso, o que aqui importa
destacar é que, dadas as circunstâncias históricas e sociopolíticas em que
se iniciou o processo de construção do nosso Estado social, ele surgiu já
em contraciclo com o que estava a ocorrer nos países europeus avançados.
Com duas agravantes: não tínhamos nem uma cultura democrática consolidada nem um potencial económico e tecnológico que garantissem, de
facto, um ciclo de crescimento que nos aproximasse desses países.
A adesão à Comunidade Económica Europeia (atual UE) constituiu, na verdade, um impulso importante que, objetivamente estimulou
os inegáveis avanços que em todas as áreas sociais alcançámos nas últimas
três décadas. No entanto, e em contrapartida, a “promessa” da Europa e a
56
ELÍSIO ESTANQUE
ficção montada pelo discurso dominante levou os portugueses a crer que,
com a entrada dos fundos estruturais, com a competência “técnica” que o
primeiro-ministro de então, Cavaco Silva e a sua entourage e as condições
internacionais favoráveis, iríamos, enfim, por um lado, corrigir os excessos
e aplacar o sonho socialista e, por outro, meter nos carris uma economia
que nos traria o sucesso e o bem-estar, desde que mostrássemos ser “bons
alunos” perante a Europa. Apaziguar a contestação e apostar nas oportunidades e nas carreiras individuais, deixando-nos guiar por um professor
de inquestionável competência seria pretensamente a condição infalível
para atingir “o pelotão da frente”. Muito embora sejam inegáveis os resultados da primeira década após a adesão – tanto no plano do crescimento
como nas infraestruturas e na melhoria de muitos indicadores “sociais”
–, as contradições e injustiças sociais não terminaram, obviamente, assim
como não terminaram as ilusões acerca do potencial do “Estado-derecursos-ilimitados”, enquanto as “reformas estruturais” permaneceram
eternamente adiadas até aos dias de hoje.
Seja como for, um aspeto que não pode ser ignorado é a especificidade da sociedade portuguesa nesta matéria, revelando muitas vezes formas
próprias de conjugação e mistura entre lógicas institucionais e sociais,
que noutros países desapareceram há muito. Por exemplo, o fenómeno
da “economia solidária” – muitas vezes também designada por “terceiro
sector”, “sector não lucrativo”, “economia comunitária”, “economia civil”
ou “economia de comunhão” , tem desempenhado no nosso país um
importante papel no plano das sociabilidades ou solidariedades “primárias”, conjugando o Estado, o mercado e a comunidade, onde o social e o
económico se misturam, abrindo espaço a formas alternativas de organização produtiva e deste modo escapando ao modelo económico imposto
pela exclusiva racionalidade capitalista (Ramos, 2011:83). Mesmo admitindo que o Estado-providência português não chegou a passar de um
“semi-Estado-providência”, a sua relativa eficácia reguladora e distributiva
(pelo menos até aos anos 90) ficou a dever-se ao modo como as dinâmicas
da sociedade minimizaram as lacunas e a fraqueza do Estado enquanto
instância providencial. Assim, cito de novo Boaventura de Sousa Santos
para retomar a sua ideia de que a capacidade de aceitação e a ausência de
ruturas e conflitos fortes na nossa sociedade justifica em parte a ineficiência
57
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
ou carências das prestações públicas – em especial nessa primeira fase –
foi suprida por uma providência enraizada na própria sociedade, isto é,
“em Portugal, um Estado-providência fraco coexiste com uma sociedade-providência forte” (Santos, 1994:46).
Ainda que este possa ser um tópico controverso, vem a propósito
salientar a importância das subjetividades, no sentido em que, como refere
o mesmo autor e eu próprio subscrevo, as condições em que esta promessa
de uma “boa sociedade” foi assimilada pela consciência colectiva dos
portugueses, a ideia de um processo em marcha segura rumo aos padrões
de vida europeus mais avançados da época, reforçou significativamente
os níveis de aceitação e de tolerância perante as dificuldades, tornando-as suportáveis na medida em que foram vividas como transitórias, o
que ajudou a “despolitizar” parte dos problemas uma vez que sucessivas
medidas menos populares podiam ser justificadas como inevitáveis, em
nome das exigências da integração europeia. Deste modo a forma política
do Estado poderia, assim, ser considerada um “Estado-como-imaginaçãodo-centro” (Santos, 1994: 51).
A relevância do Estado e das políticas sociais
Os traços que acabei de referir, apesar de contraditórios, não nos
impedem de assinalar, como já foi apontado, o efetivo crescimento do
Estado e das políticas sociais em Portugal, quer no período do pós-25 de
Abril de 1974, quer ainda durante o Estado-Novo. O emprego público,
por exemplo, revelou, desde os anos sessenta, uma tendência de crescimento constante até ao início dos anos noventa, nomeadamente, como
assinalou João Freire, no que se refere ao pessoal afecto às funções sociais
do Estado, sobretudo nos sectores da educação e da saúde, um aumento que
vem de antes da referida data histórica, o que não deixa de ser ilustrativo
de como esse processo é antigo. Porém, o volume de funcionários nesses
sectores era baixo até finais da década de setenta (situando-se nos 20%
do total da administração pública), tendo crescido muito rapidamente nas
décadas seguintes (cerca de 68% da administração pública) e mantendo-se
estável até 2008 (Rosa e Chitas, 2010; Freire, 2011).
O número total de assalariados na administração pública rondava os
523.119 em 2009. Desde 2005 que esse valor tem vindo a diminuir, tendo
58
ELÍSIO ESTANQUE
o sector público perdido pessoal de forma muito significativa sobretudo
entre 2005 e 2010, com uma redução de cerca de 80.000 funcionários.
Consequentemente, e como mostram os dados mais recentes, as despesas
com o pessoal da administração pública em Portugal decresceram muito
significativamente. Por comparação com a média dos países da UE27, “o
peso das remunerações da administração pública no PIB para Portugal
traduz variações negativas de 10,1% em relação ao ano 2000 e de 11,8%
em comparação com o ano 2005; enquanto o mesmo indicador para a
média dos países da UE apresenta variações positivas de 4,8% relativamente
a 2000 e de 2,4% em comparação com 2005” (BOEP, 2011: 1). É claro
que o peso relativo da administração pública tem sido apontado, desde há
pelo menos uma década, como a principal causa do agravamento da despesa
pública e do respetivo défice, com isso justificando um vasto conjunto de
medidas (adotadas pelos últimos governos) no sentido de reformar o Estado,
tendência que, como é sobejamente conhecido, se tem vindo a agravar com
o aproximar da crise e da austeridade que enfrentamos neste momento.
Para além do peso relativo do Estado social na economia, importa referir
outros indicadores, nomeadamente os que se prendem com as atitudes subjetivas dos cidadãos. Algumas das bases de dados recolhidas periodicamente
nos países da UE e em Portugal permitem atestar a centralidade que o Estado
social ocupa nas representações das pessoas, permitindo-nos daí induzir os
impactos reais das políticas sociais. Por exemplo, olhando o último inquérito do European Social Survey (ESS) – que permite comparar dados de quatro
inquéritos, de 2002 a 2008 (Vala, et al., 2010) –, fica desde logo clara a
importância atribuída pelos inquiridos à responsabilidade social do Estado,
visto que, na média dos países considerados4 (excepto Portugal) atribuem
uma importância média de 7,7, na escala entre 0 (mínima) e 10 (máxima).
No caso português a classificação é de 8,12 na mesma escala, posicionando-se assim o nosso país entre o grupo dos que atribuem maior importância ao
papel do Estado social. Vale a pena ainda referir outros aspetos mais específicos e igualmente relacionados com o funcionamento das instituições
Os países abrangidos pelos estudos do European Social Survey (ESS) foram 34, embora nalguns deles o inquérito não
tenha sido aplicado em todos os anos em que decorreram os levantamentos: Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária,
Chipre, Croácia, Dinamarca, Eslovénia, Eslováquia, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Holanda,
Hungria, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Noruega, Polónia, Portugal, Reino
Unido, República Checa, Roménia, Rússia, Suécia, Suíça, Turquia e Ucrânia.
4
59
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
estatais. Por exemplo, os níveis de satisfação dos cidadãos perante a vida em
geral e perante as políticas, as instituições e a democracia; ou as atitudes
perante o estado da educação e dos serviços de saúde.
Assim, os resultados do ESS (medidos na escala de 0 = extremamente satisfeito e 10 = extremamente insatisfeito) revelam que ao longo da primeira década
do presente século os portugueses se mostraram moderadamente satisfeitos
com as suas condições de vida, mas com percentagens de satisfação claramente
abaixo da média dos países da UE, resultados que se acentuam quando comparados com os países nórdicos (Vala et al., 2010). No caso da situação económica
do país, os níveis de insatisfação são bem mais evidentes e com tendência para o
agravamento à medida que foram sendo recolhidos os sucessivos resultados dos
quatro inquéritos aplicados ao longo da década. Quanto ao grau de satisfação
perante a forma como o governo está a actuar, os resultados oscilaram um pouco
ao sabor dos ciclos políticos (com maiores índices de insatisfação nos anos de
2002 e 2008), mas de um modo geral evidenciaram avaliações negativas em
valores mais acentuados do que a média da amostra, sendo que o somatório
de percentagens negativas (entre 0 e 4) ou se aproximam ou superam os 50%,
atingindo os 64,2% no ano de 2004 e os 66,6% em 2008. Esta desconfiança
do governo só é superada quando se trata de avaliar o grau de confiança nos
“políticos”. Neste caso, somando os valores negativos (entre 0 e 4 da escala),
obtemos para 2004 uma percentagem de 76,6% e para 2008 de 81,2%, além
de que os resultados negativos são bem mais acentuados em Portugal do que
na média dos restantes países. Refira-se ainda, a propósito da fraca confiança
na “classe política”, que o indicador “nenhuma confiança” obteve em 2002
uma percentagem de 17,2% de respostas (contra 11,8% da média dos outros
países), evoluindo depois para 25,3%, 25,7% e 29,4% respetivamente nos
anos 2004, 2006 e 2008, mantendo-se cerca de dez pontos acima da média.
É de referir ainda que essa baixa confiança (no governo e nos políticos) se
estende também à confiança social (interpessoal e no altruísmo dos outros) e
institucional (Parlamento nacional). Conforme se refere num estudo comparativo de âmbito europeu, os países escandinavos (Dinamarca, Finlândia,
Noruega, Suécia) e a Suíça, revelam os mais elevados níveis de confiança nesses
dois planos, enquanto que Portugal, Espanha e os países de Leste da Europa
(em especial a Polónia, a Hungria e a Eslovénia) revelam resultados opostos,
mostrando níveis de confiança muito baixos (Correia Silva, 2011: 51-57).
60
ELÍSIO ESTANQUE
Para concluir este tópico, vale a pena uma referência às representações
dos portugueses quanto a dois sectores fundamentais: a saúde e a educação.
De acordo com as mesmas bases de dados, a apreciação subjetiva dos portugueses no campo da saúde aponta para uma avaliação, em média, negativa
ao longo da década, embora com tendência para uma crescente moderação,
ou seja, se em 2002 as respostas entre 0 e 4 (na mesma escala de 0 a 10)
somavam 70,1%, nos inquéritos de 2004 e 2006 revelaram um decréscimo para 66,1%, e 65,3% respetivamente, baixando ainda de forma mais
vincada nos dados de 2008 para 51,9% de avaliação negativa dos serviços
de saúde. Já no caso da educação, as respostas obtidas ilustram igualmente
uma perceção pouco satisfatória, evoluindo as respostas – usando o mesmo
critério – de 62,3% de opiniões negativas em 2002, para 59,1% em 2004,
53,6% em 2006 e 57,2% em 2008, revelando neste caso um agravamento
no último período (Vala et al., 2010). Sendo as atitudes negativas bastante
mais vincadas do que nos restantes países, isso quer dizer que, pelo menos
do ponto de vista subjectivo, estes serviços não conseguiram responder
às expectativas dos cidadãos, pelo que, apesar de denotarem um ligeiro
abrandamento, se revelaram factores de preocupação e stress psicológico.
Procurando medir a felicidade dos cidadãos a partir de modelos da psicologia
social (Easterlin, 2001 e 2005; Veernhoven & Hagerty, 2006; Veernhoven,
2011), um estudo recente conduzido por Rui Brites da Silva mostrou que, em
termos do índice de bem-estar subjetivo, os portugueses ocupam uma posição
sofrível na segunda metade da tabela. No ranking de Veernhoven para o período
2000-2009, Portugal ocupa a 79ª posição (com 5,7 pontos na escala de 0 a
10) entre 149 países, empatado com a Bielorrússia, Djibuti, Egipto, Mongólia,
Nigéria e Roménia. Os primeiros lugares são ocupados pela Costa Rica (1º,
com 8,5 pontos na mesma escala), Dinamarca (2º), Islândia (3º), Canadá
(4º), Finlândia (5º). Para além disso, aquele estudo, que se apoiou não só
nestes indicadores mas ainda no relatório da “Comissão Stiglitz,”5 apresenta
Na verdade esta comissão foi constituída, além de Joseph Stiglitz, por Amartya Sen e J.-P. Fitoussi e outros académicos
e especialistas, um grupo promovido pelo Presidente francês Nicolas Sarkozy, tendo a equipa sugerido no seu primeiro
relatório iniciativas e critérios novos para avaliar o desempenho económico, tais como: “- usar outros indicadores
além do PIB nas contas nacionais; - verificar o desempenho de sectores básicos como saúde e educação; - considerar
atividades domésticas e levar em conta o padrão de vida das pessoas; - acrescentar informações sobre distribuição de
riqueza e rendimento; - incluir atividades fora do mercado. Uma inovação proposta pelo relatório é a avaliação líquida
e não bruta das atividades económicas, de modo que as extrações de recursos naturais, os impactos ambientais gerados
pela produção ou a utilização de stocks sejam levadas em conta”. In: site “Planeta Sustentável”, acedido em 7/09/2011:
http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/desenvolvimento/comissao-stiglitz-sen-fitoussi-pib-489751.shtml
5
61
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
resultados do índice de bem-estar subjetivo, tentando conjugar as dimensões subjetiva e objetiva da felicidade. Apesar das suas limitações, os critérios
utilizados revelaram uma significativa consistência com a avaliação subjetiva
dos inquiridos, espelhada nos dados do ESS acima referidos. Além disso, foi
possível, com base nisso, concluir que o bem-estar subjetivo dos portugueses
diminui de Norte para Sul do país, que os índices de felicidade são maiores nos
homens do que nas mulheres, e ainda que, os mais baixos índices de bem-estar
subjetivo se encontram entre as camadas etárias mais velhas, em particular as do
sexo feminino (Silva, 2011: 200-205).
Estas indicações, nomeadamente no que respeita à condição feminina, têm sido assinaladas em vários outros estudos, e são de certo modo
coerentes com os dados estatísticos reveladores de que as mulheres trabalham mais em atividades não-remuneradas, trabalham mais horas no
espaço doméstico e também continuam a ser vítimas de discriminação
salarial e de segregação noutros domínios da vida social (Carmo, 2010;
Ferreira, 2010) como adiante será mencionado. Por outro lado, o facto
dos segmentos mais jovens evidenciarem resultados menos negativos no
plano das subjetividades deverá prender-se com outras variáveis associadas
ao critério geracional que não aquelas que dependem diretamente da situação sociolaboral da juventude. O mundo do trabalho é, portanto, um dos
temas que merece atenção, tanto por aquilo que representa do ponto de
vista sociológico como pela sua implicação com a questão do Estado social.
Reforma do Estado, precariedade e desigualdades sociais
Tem sido repetidamente sublinhado que o sector onde as grandes
mudanças do neoliberalismo global têm tido um alcance mais evidente
e preocupante é o campo laboral. Por isso mesmo, diversas abordagens
têm tentado destacar a importância da centralidade do trabalho e com
isso procurando mostrar como a esfera económica não pode continuar
a ser pensada separadamente da esfera social (Santos, 2003; Silva, 2007;
Ferreira, 2009; Boavida e Naumann, 2007; Oliveira e Carvalho, 2010;
Estanque e Costa 2011). A atual tendência de precarização das relações de
trabalho, de dissociação entre condições profissionais e vínculos laborais,
está de facto a pôr em causa os velhos critérios e formas de diálogo, os
valores de solidariedade e no fundo o modelo de contrato social inspirado
62
ELÍSIO ESTANQUE
pela filosofia iluminista e consolidado desde o pós-guerra. Não é demais
sublinhar que nos últimos vinte anos as transformações ocorridas no
mercado de trabalho fustigaram de forma dramática os direitos e a qualidade do emprego. O modelo produtivo que até aos anos oitenta do século
passado pôde sustentar uma classe média que parecia em expansão sofreu
entretanto convulsões profundas que abalaram abruptamente as suas
expectativas mais risonhas. O aumento e diversificação da precariedade
laboral passaram a constituir um dos principais traços de recomposição do
mercado de trabalho tanto em Portugal como nos outros países da União
Europeia. Vimos assistindo a uma “tendência que traduz o estilhaçar
da homogeneização e estabilidade em que assentava o padrão modal do
emprego, quanto à natureza do vínculo laboral, ao tempo de trabalho e ao
estatuto social do trabalhador” (Gonçalves, 2010: 184).
Na última década, os postos de trabalho em regime de contratos permanentes diminuíram ao mesmo ritmo em que aumentaram os contratos
a termo certo. Aliás, o crescimento das situações precárias – ou o que
outrora se designava como situações “atípicas” no campo do emprego –
têm evoluído para uma profunda alteração do velho padrão de estabilidade,
obedecendo hoje a uma multiplicação de situações e de percursos profissionais, bem como no plano subjetivo e das vivências, quer do emprego quer
do desemprego, numa reconfiguração permanente, que justifica novos
questionamentos sobre essas novas formas de prestação de trabalho que
podem designar-se de novas “patologias da democracia laboral” (Ferreira,
2009: 76). Os valores do emprego precário (se somarmos os contratos
a termo, os recibos verdes, os trabalhadores temporários e o trabalho a
tempo parcial) aproximam-se já dos 28 a 30% do emprego. Este tipo de
contratos aumentou progressivamente e em todas as faixas etárias, sendo a
referida geração (hoje popularizada pelo nome de Geração à Rasca”)6 a que
mais sofre com isso, o que acontece, de resto, em muitos países europeus
como por exemplo a Espanha, a Alemanha, a Suécia e a França onde, tal
como em Portugal, mais de 50% dos trabalhadores desta geração já se
6
Que, diga-se, passou a ser conhecida desde o passado dia 12 de Março de 2011 como a “Geração à Rasca”, devido à
enorme manifestação convocada por um grupo de jovens sem situação precária, através do Facebook, e que, segundo
vários analistas, terá marcado um momento de viragem nas modalidades de ação colectiva e afirmado um novo fenómeno no cenário político nacional (voltarei a este assunto na parte final).
63
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
encontram em situação precária (Gonçalves, 2010). O desemprego de
jovens licenciados tem vindo a agravar-se nos últimos anos, atingido os
55 mil casos (em 2010), embora se saiba – e convém realçá-lo – que os
licenciados auferem salários mais elevados e permanecem menos tempo em
situação de desemprego ou de trabalho precário. Em todo o caso, quer o
desemprego quer os contratos não permanentes atingem especialmente o
segmento mais jovem. E isso aconteceu de forma drástica, estando 37,6%
dos trabalhadores com idades entre 15 a 34 em situação laboral de contratos
a prazo, e considerando apenas o segmento etário dos 15 aos 24 anos, essa
percentagem já se aproximava em 2010 dos 50% (INE, 2007, Inquérito ao
Emprego; Carmo, 2010).
No caso das mulheres, apesar de possuírem um elevado peso no mercado
de trabalho português (56,2% é a taxa de atividade feminina, uma das mais
elevadas da Europa) e da sua presença ser maioritária entre a população
empregada que completou o ensino secundário e superior, continuam
a ser vítimas de segregação no campo profissional, o que se comprova
pela sua menor presença nas categorias profissionais mais qualificadas.
Considerando as percentagens segundo o sexo por referência ao respetivo
peso entre os trabalhadores com níveis de educação mais elevados, verifica-se que enquanto 71,6% dos homens nessa condição pertencem àquelas
categorias (quadros médios e superiores), apenas 54,6% das mulheres se
encontravam em posições idênticas em 2005 (Rosa, 2008). Além disso,
as diferenças salariais entre homens e mulheres permanecem acentuadas,
sendo que a desigualdade salarial se agrava à medida que consideramos os
segmentos profissionais com habilitações escolares mais elevadas.
Os fluxos de mobilidade social ascendente foram reais durante algum
tempo, mas oscilaram sempre ao sabor de deslizes e variações em que os
ganhos e perdas de meios materiais e status profissionais se anulavam mutuamente. A classe média possui um peso escasso e uma duvidosa solidez, se
comparada com as sociedades avançadas da Europa. O sistema de ensino
superior, geralmente considerado um dos principais canais de promoção
da mobilidade – apesar de ter crescido massivamente nas últimas três
décadas e acolher hoje um volume significativo de estudantes provenientes
dos estratos da classe média-baixa e trabalhadora –, debate-se com indefinições diversas e muitos jovens que o frequentam vêem-se perante a
64
ELÍSIO ESTANQUE
impossibilidade de acederem a uma profissão que lhes garanta um estatuto
social substancialmente superior ao das suas famílias de origem.
Impactos sobre a classe média
O Estado e o mercado constituem desde sempre instâncias de eleição
enquanto fatores de racionalidade dos sistemas sociais, pelo que as políticas
de regulação – da economia e da sociedade – se apoiam necessariamente na
interligação entre essas duas esferas da vida social. A estruturação da atividade produtiva pode obedecer a uma intervenção direta ou indireta do
Estado e ocorre através de uma diversidade de canais, constituindo exemplos
disso o investimento em novas tecnologias e em conhecimento científico,
a capacidade de promover instituições de regulação dos conflitos laborais
ou as políticas educativas, entre outros. Assim, as políticas sociais e laborais coordenadas pelo Estado refletem-se não só na estruturação do mercado
de trabalho em geral, mas também, e desde logo, no maior ou menor peso
da administração pública na oferta de emprego. Por exemplo, a regulação
administrativa nos campos da saúde, da educação, da segurança social, etc.,
promoveu durante décadas o aumento de sectores profissionais qualificados,
funcionários administrativos, técnicos e especialistas de diversos tipos.
O caso português parece, de facto, indicar não só o importante peso
do Estado na estruturação da “classe média” como os efeitos do processo
mais geral de recomposição e mudança estrutural (Estanque, 2012). No
entanto, uma parte significativa dos funcionários e empregados do sector
terciário (quer no privado, quer na administração pública) debate-se
com problemas inerentes a uma condição de facto vulnerável, isto é, a
construção da classe média portuguesa, além de incompleta, deu lugar a
uma miragem que, hoje, vive perante a ameaça de a todo o momento se
esfumar. Para aferirmos mais em concreto o risco de vulnerabilidade que
em Portugal já toca várias franjas da classe média é conveniente ter presente
o modo como a questão do endividamento se conjuga com a evolução das
desigualdades. Para tal, é necessário ter presentes as estatísticas da pobreza
e da distribuição da riqueza no país.
As instituições e programas de solidariedade existentes no país para dar
assistência aos mais carenciados têm dado conta de um fenómeno, que
parece estar em crescimento, de pobreza envergonhada, o qual se relaciona
65
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
diretamente com o endividamento das famílias. Como é sabido, a percentagem de portugueses em risco de pobreza (considerado como critério
o limiar dos 60% do salário mensal médio, ou seja, cerca de 414 euros)
tem decaído ligeiramente nos últimos dez anos, mas mantém-se ainda
nos 18% (em 2003 era de 20,4%, segundo o INE), isto após as transferências sociais (antes delas o valor dispararia para mais de 40%). Entre
2006 e 2009 aumentou em 36% o número de pessoas abrangidas pelo
rendimento social de inserção (RSI) que em finais do ano passado abrangia
804 mil indivíduos. Os valores do incumprimento no crédito à habitação
situam-se, segundo os últimos dados, nos 1.957 milhões de euros, cerca de
2% do total da dívida, e no caso do crédito ao consumo esse montante é de
1.232 milhões de euros, o equivalente a 7% do total.
De acordo com a informação disponibilizada por instituições como o
Banco Alimentar contra a Fome, a Amnistia Internacional (AMI), a Cáritas
ou as Misericórdias, as situações de pobreza acentuam-se e cresce a pobreza
envergonhada: “as pessoas pedem comida, ajuda para pagar os livros dos
filhos, a mensalidade da casa, a conta da farmácia. Pedem sobretudo, que
não lhes divulguem o nome, porque nunca se imaginaram na posição de
quem faz o gesto de estender a mão a pedir ajuda; (…) são pessoas que
comem [nas cantinas comunitárias] viradas para a parede, têm vergonha se
ser vistas ali, se lhes perguntarem o nome fogem (…)” (Entrevista a Manuel
de Lemos, Presidente da União das Misericórdias Portuguesas, citado no
jornal Público, 7/11/2010).
Os processos de sobre-endividamento7 acompanhados pela DECO –
Associação de Defesa do Consumidor aumentaram sistematicamente ao
longo da última década, atingindo 2.837 processos em 2010, mas com um
número de pedidos bem maior (17.372). A comparação entre os últimos
quatro anos pode ser feita a partir dos processos entrados nos primeiros
dois meses de cada ano, sendo que no primeiro trimestre de 2011 já haviam
dado entrada 612 processos (mais 110 do que no mesmo período do ano
anterior), e se considerarmos também os pedidos que não deram lugar a
processos, em Janeiro e Fevereiro de 2011 foram 2.329 contactos, o que
Na linha de outros relatórios e trabalhos desenvolvidos no Centro de Estudos Sociais sobre os Direitos do Consumidor,
conduzidos por Catarina Frade. Veja-se (Frade, 2009).
7
66
ELÍSIO ESTANQUE
corresponde a uma média de 40 por dia. Os motivos apontados são em
primeiro lugar o desemprego (33,5%), seguido de motivos de doença
(20,8%) e da deterioração das condições laborais (19,9%). Segundo uma
responsável daquela organização, para além dos motivos apontados, começa
já a notar-se o efeito dos cortes salariais da função pública para os salários
acima dos 1.500 euros, referindo uma situação preocupante “com o atual
contexto económico e com a subida das taxas de juro, a nossa perspetiva é
que o número de famílias sobreendividadas aumente este ano, e aumente
significativamente” (jornal Público, 20/03/2011).
A maior dificuldade indicada para combater com eficácia este problema
prende-se com facto de o sobre-endividamento traduzir não só os impactos
destrutivos do desemprego, da doença e da crise em geral, mas ainda o ciclo
vicioso em que estas famílias se deixam enlear, somando vários créditos em
simultâneo e muitas vezes contraindo novos empréstimos para fazer face aos
antigos. Segundo os dados da DECO, 42,2% dos processos referem-se a
um número de 1 a 3 créditos, mas 39,8% dizem respeito a um número de
4 a 7 créditos e cerca de 18% correspondem a um número de 8 ou mais
créditos. Em suma, estes fenómenos deixam transparecer a angústia de
famílias inteiras afogadas em dívidas, que, de acordo com as fontes citadas,
entram em processo de descontrolo e falência, pois, tendem a procurar
ajuda já numa fase de aceleração imparável de afundamento no redemoinho
do endividamento. Na maioria das vezes os pedidos chegam quando já não é
possível socorrerem-se da retaguarda familiar.
Estas indicações em torno da pobreza e do endividamento pretendem
evidenciar alguns dos novos contornos que estes fenómenos têm vindo a
adquirir entre nós e que já começaram a atingir alguns segmentos da classe
média. Sem deixar de reconhecer a urgência em dar combate ao flagelo
da pobreza, nomeadamente através dos programas de solidariedade, que
desde os primórdios da era moderna foram mobilizados – quer por organizações filantrópicas e caritativas da sociedade civil, quer pelos programas
assistencialistas do Estado –, é inquestionável que tais problemas terão de
ser entendidos no quadro estrutural de funcionamento do sistema económico capitalista. Nessa medida, o enfoque aqui adotado pretende olhar
as desigualdades económicas e a sua dinâmica, não como distorções ou
anomalias transitórias, mas enquanto parte dos processos de recomposição
67
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
social mais vastos, inerentes às próprias contradições estruturais do sistema.
Nesse sentido, pode dizer-se que, tal como acontece na escala global, o
enriquecimento dos sectores e grupos sociais privilegiados tem como consequência o empobrecimento dos grupos sociais mais carenciados. Assim, o
agravamento das desigualdades e da pobreza – na fase de crise aguda em que
hoje estamos mergulhados – é, sem dúvida, indissociável do papel central do
mercado e da economia financeira enquanto centros de poder nas sociedades
ocidentais. É por isso mesmo, aliás, que a ação reguladora e redistributiva do
Estado continuará a ser a pedra de toque de uma Europa que pretenda recuperar a coesão e o equilíbrio perdidos, ainda que – é forçoso reconhecê-lo
– esse papel só possa ser eficaz se for possível redefinir novas formas de racionalização que assegurem uma rigorosa gestão de custos e garantam a efetiva
viabilidade financeira das políticas públicas.
A acentuada desigualdade na distribuição da riqueza em Portugal tem sido
revelada por diversos estudos como um problema estrutural difícil de combater
(Eurostat, 2006; Carmo, 2010). A diferença entre o rendimento médio dos
20% mais bem pagos e os 20% pior remunerados era 7,4 vezes a favor dos
primeiros em 1995, tendo desde aí decaído lentamente para 6,8 vezes em 1998,
valor que passou a 6,9 no ano 2005, para 6,5 em 2007, e no ano seguinte
situou-se em 6,1 (dados do INE, 2008; Carmo, 2010). Note-se ainda que
a disparidade das desigualdades de rendimento aumenta se restringirmos os
segmentos em comparação: entre os 10% com salários mais elevados e os 10%
que auferem salários mais baixos a diferença era, em 2006, de cerca de 12 vezes
mais. Esta situação, como muitas outras, é bem mais grave em Portugal do que
na média dos países da União Europeia (na UE15, o diferencial era no mesmo
de 4,8 vezes) e é ainda mais contrastante se a compararmos com um país como a
Dinamarca, onde essa discrepância era, no mesmo ano, de apenas de 3,5 vezes.
Os dados mais recentes comprovam que as desigualdades se acentuaram
entre 1995 e 2005, diminuindo a partir daí, embora muito ligeiramente.
Esta tendência tem sido confirmada por diversas escalas de medição como,
por exemplo, o coeficiente de Gini8,que revelou um agravamento de 34,4 em
Este é o indicador atualmente utilizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) para medir a desigualdade. Varia
numa escala entre 0 e 100, sendo o zero correspondente a uma situação com total igualdade de rendimentos entre os
membros de uma comunidade e o valor cem correspondente à situação oposta, em que todo o rendimento fosse monopolizado por um único indivíduo (INE: http://metaweb.ine.pt).
8
68
ELÍSIO ESTANQUE
1995, para 35,1 em 2005, tendo subido para 36 em 2008, ano em que
Portugal se colocou entre os três países mais desiguais da UE27 (CLBRL,
2007: 42-43; INE, 2009). Os elevados valores da desigualdade na distribuição do rendimento juntam-se ao facto de cerca de 18% da população
viver ainda no limiar da pobreza; um risco que é ainda maior no caso dos
reformados (20%), dos restantes inativos (28%) e dos desempregados
(35%), sem esquecer que as desigualdades salariais e de género permanecem muito vincadas. Os diagnósticos disponíveis têm vindo a reiterar
a persistência de uma situação muito preocupante neste campo, sendo as
melhorias verificadas nas últimas duas décadas quase insignificantes.
Em sectores específicos, como os jovens e as mulheres, as diferenças
de oportunidades continuam a ser flagrantes, sendo portanto categorias
sociais através das quais as novas desigualdades têm vindo a consolidar-se, o que é manifesto em indicadores como os índices de desemprego, de
precariedade, as diferenças entre os níveis salariais e as oportunidades de
emprego. Segundo os últimos relatórios do Observatório das Desigualdades
do ISCTE/IUL, entre os trabalhadores com o ensino básico a discrepância
salarial entre géneros é de 13,5% (em benefício dos homens), evoluindo
para 26,5% nos que possuem o ensino secundário completo e subindo para
27,2% na camada da força de trabalho com frequência do ensino superior (Carvalho, 2011). Isto evidencia bem como os processos de mudança,
apesar das importantes conquistas que alguns deles trouxeram consigo (por
exemplo, no plano das qualificações escolares e competências socioprofissionais), são em geral indutores de novas dinâmicas de desigualdade, que
parecem obedecer a uma permanente readaptação mas ao mesmo tempo
são dotadas de grande capacidade de resiliência.
Juventude e novos movimentos sociolaborais
O crescimento económico do pós-guerra permitiu sustentar um Estado
social que favoreceu importantes transformações e conquistas, mas ao
mesmo tempo que procurou programar o futuro, contribuiu, paradoxalmente, para proporcionar uma viragem de paradigma que fez emergir
diversas perversões e entropias no sistema, dando lugar a novos protagonistas e movimentos antissistémicos que, embora clamando por um
“futuro agora”, acrescentavam novas incertezas que mais tarde culminaram
69
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
na “crise do futuro” (Leccardi, 2005).
Foi nesse quadro que a juventude se impôs como ator social, intimamente associada à expansão do sistema de ensino e do Estado de bem-estar.
Mas, se o acesso à educação e o progressivo aumento da escolaridade levou
a um alargamento cada vez maior do período de formação e, portanto, da
fase de transição para a vida adulta, tal não implicou uma absoluta homogeneidade entre os jovens. Paralelamente, o processo de massificação dos
bens materiais compaginou-se com o poder cada vez mais uniformizador
das indústrias da cultura e dos mass media, cujo impulso decisivo foi, em
boa medida, suscitado a partir da invenção e democratização da radiodifusão, primeiro (anos trinta), e da televisão mais tarde (anos cinquenta)
fabricando audiências intermináveis de públicos ávidos de entretenimento e de um consumismo desenfreado9. Esta tendência atingiria o seu
auge nos finais dos anos sessenta, ajudando a despoletar as lutas contra o
consumismo e a alienação do homem unidimensional (Marcuse, 1967). Muito
embora “a juventude” jamais tenha sido um actor homogéneo, os seus
segmentos mais escolarizados, com maior capital cultural e mais politizados – no contexto de uma perigosa corrida aos armamentos entre as
duas superpotências da “Guerra Fria” e de uma Guerra do Vietname que
colhia milhares de vidas aos jovens dessa geração – animados por essa nova
torrente de valores e opções estéticas, culturais, musicais, etc., foram
engrossando os movimentos estudantis que vinham crescendo e cantando
a liberdade, principalmente nos campus das universidades da Europa e dos
EUA, ao som dos Beatles, Rolling Stones, Beach Boys, Led Zepelin e tantos
outros, aumentando o tom da crítica sistémica e ganhando uma crescente
força política, cujo momento culminante terá sido o Maio de 68 em Paris.
Mas o auge da irreverência dos estudantes parisienses deixou no ar algum
sabor amargo, na medida em que saiu frustrada essa ingénua expectativa de
união “revolucionária” com o movimento operário. Poderá a história ser
reescrita a este respeito? Isto é, quatro décadas depois, fará sentido admitir
que a componente culturalista e simbólica que em geral se inscreve nas
culturas juvenis e universitárias possa voltar a reunir-se com a ação coletiva
9
Primeiro, de eletrodomésticos, de automóveis, televisores, etc., e mais tarde o acesso a uma infindável panóplia de bens
materiais e simbólicos, uns e outros transfigurados em ícones e simulacros promotores de consentimento e alienação
(Baudrillard, Chomsky).
70
ELÍSIO ESTANQUE
oriunda do mundo “social” e do campo laboral?
O legado dos sixties revelou-se de grande significado, em particular no
terreno sociocultural, por ter conseguido evidenciar o esgotamento de
uma moral convencional e de um modelo de democracia formal que estava
a pôr em evidência os seus limites por via do ativismo radical dos filhos
das classes médias ocidentais. É possível que os novos repertórios introduzidos pelos novos movimentos sociais na agenda política mundial, e as
fissuras que eles ajudaram a revelar no sistema económico e nas democracias liberais, tenham contribuído para intensificar o abalo político que a
crise petrolífera da década seguinte veio a provocar no status quo do capitalismo ocidental. Curiosamente, os filhos do Estado social tornaram-se os
principais críticos do sistema que o gerou e lhe deu viabilidade. Quanto
mais a economia crescia, e com ela o poder de compra das classes trabalhadoras, mais estas reforçavam as hordas de consumidores atraídos pela
“sociedade da abundância” e formatando os seus padrões de gosto pelos da
classe média. E entretanto, foram os filhos das elites que mais se mostraram
entediados com a paz social, a previsibilidade de um “futuro” assegurado
e a hipocrisia do discurso político. Aqueles que já estavam a caminho de
engrossar a elite rejeitaram os seus padrões enquanto os que cresciam nos
bairros operários aspiravam a entrar num sistema num ensino superior
que lhes negava o acesso. Por outras palavras, as universidades públicas
legitimavam a “meritocracia” dos filhos das elites enquanto as novas gerações da classe operária desistiam da revolução, preferindo frequentar os
shoppings e sonhavam em comprar um automóvel.
Os movimentos de há quarenta anos introduziram ruturas que ainda
hoje se repercutem em múltiplos domínios. Tiveram uma influência
marcante quer no plano cultural quer no plano político, contaminando os
modos de vida de sucessivas gerações e as formas de ação coletiva de velhos e
de novos movimentos, abrindo espaço a novas conceções, linguagens e referências ideológicas no plano social e institucional (Eagleton, 1991; Cohen
e Arato, 1992; Eyerman e Jamison, 1991; Melucci, 1996; Eder, 1993;
Touraine, 1985 e 2006). Pode dizer-se que os padrões de gosto desencadeados a partir dos movimentos juvenis dos anos 60 no ocidente – no
plano estético, no vestuário, na música, nos interesses literários e intelectuais, na expressão da sexualidade, etc. – não só alteraram o quotidiano e os
71
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
modos de vida das gerações seguintes como desenharam novos contornos
na esfera pública e política em geral. A importância da chamada crítica artística (Boltanski e Chiapello, 2001) inseriu-se no processo de desconstrução
culturalista que esses movimentos imprimiram, alterando até certo ponto a
própria natureza do capitalismo, apesar das respostas que se seguiram – ou
por causa delas – sob a ação canibalizadora das instituições e do mercado,
abrindo caminho a novos valores e novas modalidades de ação coletiva, não
apenas no mundo desenvolvido mas na escala internacional (Holzmann e
Padrós, 2003; Cardoso, 2005).
Entretanto, sobretudo após a queda do muro de Berlim e o consequente
colapso do império soviético, esbateram-se largamente as ideologias que
durante mais de um século inspiraram os principais movimentos sociais
sob formas de ação colectiva inspiradas em modelos utópicos de cariz
emancipatório. No quadro deste processo, as novas tendências do capitalismo global estimuladas pelo neoliberalismo colocaram novos obstáculos
e desafios à ação coletiva, em larga medida esgotando os “velhos” movimentos e ao mesmo tempo estimulando novas redes e formas mais fluidas
de “alter-globalização” e de ativismos no “ciberespaço” onde importantes segmentos juvenis intervêm permanentemente (Ribeiro, 2000;
Waterman, 2002; Santos, 2004, 2005 e 2011; Estanque, 2006).
Mais recentemente, o mundo tem vindo a assistir a uma nova onda de
protestos e movimentos, em diferentes contextos e de consequências sociopolíticas ainda difíceis de aferir de modo contundente, mas que deixam
antever que a rebelião das massas não desapareceu, embora hoje a forma
como se manifestam – em especial nas camadas mais jovens – obedece a
lógicas diferentes e é apoiada por recursos e meios essencialmente distintos
dos que animaram os movimentos juvenis dos anos sessenta e setenta do
século passado. Basta lembrar as convulsões do último ano em vários países
do mundo árabe, nomeadamente na bacia mediterrânica, para se perceber
como os movimentos de cidadãos podem resultar em autênticas revoluções políticas quando a mobilização se generaliza e ousa enfrentar regimes
despóticos. Nos mais improváveis contextos culturais e religiosos – inclusive
no mundo islâmico, que alguns, após o 11 de Setembro de 2001, apressadamente consideraram ser um mundo em “choque” civilizacional com o
Ocidente – as revoltas que emergiram no ano passado, na Tunísia, Egipto,
72
ELÍSIO ESTANQUE
Líbia, Argélia, Bahrein, Síria, Iémen, apesar das particularidades de cada
uma delas, foram amplamente participadas pelas camadas mais jovens e
mais escolarizadas das “classes médias” desses países. Ainda que o futuro
seja uma incógnita e a “Primavera Árabe” não possa ainda confirmar que
se tratou de um desfecho vitorioso da democracia (muito menos se ela for
entendida como mero sinónimo do modelo ocidental), parece consensual
que foram experiências eminentemente democráticas, participativas e de
consequências emancipatórias para cada um desses povos. Os novos canais
de comunicação ligados às novas tecnologias, à internet, telemóveis, facebook e outras redes sociais, foram elementos de novidade muito presentes,
senão mesmo decisivos para o impacto dessas revoltas, tal como nos movimentos laborais e juvenis que têm atingido a Europa nos últimos anos.
Se optei por concluir com este tópico acerca dos movimentos sociolaborais é porque entendo que ele pode fornecer uma leitura diferente em
torno da relação entre o Estado e a sociedade civil. Uma relação que sempre
foi problemática e – sabemo-lo bem – denuncia uma divisão que é, ela
própria, questionável desde a sua origem. Sendo eminentemente analítica,
essa divisão pode ajudar a clarificar algumas das tensões e ambivalências da
atuação do Estado, seja no plano político e institucional quando o Estado
usa a sua legitimidade para regular a organização da sociedade, seja no
plano das relações entre o Estado e os interesses privados que por vezes
penetram no seu seio e o controlam, não raro condicionando e pervertendo a própria legitimidade democrática. Ou seja, em Portugal “temos
um Estado dócil entre os poderes fáticos e forte e arrogante ante as classes
populares de quem se espera docilidade e obediência” (Santos, 2011: 109).
Mas, por outro lado, também se pode considerar que temos uma sociedade
civil organizada (sindicatos, partidos políticos, associações) que é fraca e
uma sociedade civil desorganizada (redes primárias, família, relações de
vizinhança) que se mostra forte e que, por isso, diversos estudos desenvolvidos no CES a denominaram de “sociedade providência” (Hespanha e
Portugal, 2009; Portugal, 2011).
73
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
Conclusão
Para concluir, vale a pena formular uma linha de reflexão que exprime
uma outra faceta do presente tema, a saber: até que ponto a centralidade
que o Estado social continua, hoje, a ocupar no imaginário coletivo dos
cidadãos europeus joga um papel fundamental no futuro da Europa?
Uma hipótese explicativa a explorar pode colocar-se nos seguintes
termos: o ataque de que tem vindo a ser (e está a ser) alvo o Estado social
europeu constitui um fator decisivo para a instabilidade e conflitualidade
que pode generalizar-se na Europa nos próximos tempos. Boa parte das
questões que estão na agenda perante a atual crise passa por resolver o
dilema entre: uma Europa com mais cidadania, em que o vasto património
construído ao longo do século XX pode continuar a inspirar estratégias de
futuro sem deitar por terra os valores da justiça social, da igualdade e da
solidariedade, continuando em busca de programas viáveis e eficazes de
redistribuição; ou se, em vez disso, insiste num modelo que vá apenas no
sentido do aprofundamento do anterior, isto é, que persista no reforço da
hegemonia da economia neoliberal e no triunfo irreversível dos mercados
em detrimento da sociedade e do Estado.
Ora, sabendo nós a importância que o Estado social assumiu nas políticas redistributivas e ao mesmo tempo no imaginário dos cidadãos, como
se viu atrás, e tendo presente a intensificação das desigualdades estruturais
em sociedades onde o princípio liberal e o individualismo são incipientes
(na Europa continental pelo menos) é de admitir que a solidez do sistema e
a coesão social possam colapsar se o próprio Estado social vier a colapsar. A
reforçar esta ideia está o facto de que, ao contrário dos países anglo-saxónicos, nas sociedades do Sul da Europa, como Portugal, de forte tradição
católica, com laços comunitários e culturas paroquiais muito intensos,
e que viveram longas ditaduras de matriz estatal, as novas classes médias
(assalariadas) foram estruturadas muito tardiamente. No caso português,
foi sobretudo no período democrático que tal processo teve lugar e muito à
sombra do (frágil) Estado-providência entretanto criado, ou seja, são quase
insignificantes os segmentos sociais da classe média (assalariada e mesmo
empresarial) que se regem pelos princípios meritocráticos. Foi principalmente a estabilidade e os horizontes de uma carreira segura e previsível,
oferecida em primeira instância pela administração pública (em especial
74
ELÍSIO ESTANQUE
os sectores da educação, da saúde e da administração central e local), que
serviu de suporte à classe média, pelo que, atingidos tão fortemente como
estão a ser na atual situação de austeridade, tais sectores venham a inverter
muito rapidamente a tendência anterior, enfrentado agora os buracos e
vazios nessa rede protetora (o Estado) que até há poucos anos acalentou o
sonho da classe média urbana.
Há cerca de dez anos fazia sentido falar-se de um “efeito classe média”
(Estanque, 2003), resultante dessa aura de ilusões que induziu franjas
significativas das nossas famílias trabalhadoras a julgar-se como membros
da classe média. Mas, hoje, essa fantasia de quem se julgava à beira de um
status respeitável e de uma condição económica desafogada – fortemente
estimulada pela aparente facilidade de crédito – esbarra com uma realidade
bem mais dura, que nos revela uma “classe média sitiada” (Santos, 2011),
colocada no limiar de uma inesperada proletarização. Nestas condições é
de esperar que a classe média e os seus descendentes, comecem de facto a
revoltar-se contra um sistema que a sugou e agora a pretende descartar sem
qualquer recompensa (Estanque, 2012).
De certo modo, é isso que exprimem alguns dos atuais movimentos
sociolaborais. Ao contrário dos movimentos estudantis e culturais dos
anos sessenta e setenta, os atuais protestos de jovens, organizados através
das redes do ciberespaço e alheios a ideologias políticas, situam-se na fronteira entre um Estado em vias de falência e um mercado de trabalho que
se limita a prolongar a instabilidade e a defraudar todas as expectativas de
se alcançar um emprego digno e qualificado. De um lado, uma juventude
estudantil que se afastou da militância (política e associativa) sacrificando
o seu tempo livre, primeiro, no lazer consumista (anos oitenta e noventa),
depois, investindo na sua formação “técnica” com a mira nos objetivos
profissionais; de outro lado, as diversas camadas etárias (que não apenas
jovens) do campo profissional que vêm engrossando o sector dos precários
ao longo da última década estão “em guarda”. Ambos os sectores parecem
encontrar-se nesta encruzilhada de insatisfação, resultante de um balão em
vias de esvaziamento: a promessa de uma classe média artificialmente insuflada por um Estado social cuja sustentabilidade a prazo vinha há muito
sendo questionada. Perante todas as dificuldades estruturais enunciadas
anteriormente e dado o acentuar da crise económica que temos pela frente
75
O ESTADO SOCIAL EM CAUSA
parece cada vez mais claro que as atuais elites europeias (e nacionais), bem
como as instituições da União Europeia, se revelam incapazes de encontrar as respostas adequadas a problemas tão prementes, pelo que, deve
perguntar-se: restará à Europa, como último fôlego, uma resposta radical
da sua juventude e dos cidadãos em geral que já sofrem intensamente na
pele os efeitos da austeridade? Se os movimentos sociais não são em si
mesmos (como nunca foram) “a solução”, eles constituem um barómetro
fundamental que urge interpretar com humildade e inteligência. Quem o
fizer – governos, instituições, sindicatos ou partidos políticos – e souber
passar à ação poderá estar a abrir caminho às novas lideranças de que a
Europa tanto carece.
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80
Como a Reconstrução Ideológica
É Indispensável ao Projeto Social Europeu*
José Nuno Lacerda da Fonseca
A
atual crise financeira surge imputável à limitação da capacidade regulatória financeira dos governos, nomeadamente
nas suas instâncias internacionais. O enquadramento da crise
é, contudo, mais vasto. De facto, uma globalização, económica, acedendo a grandes reservas de mão-de-obra a valores muito baixos e
praticamente sem custos de proteção social (sobretudo na Ásia) pressionou
os governos de outros países (com mão-de-obra mais cara e maiores custos
de proteção social) para diminuírem as cargas fiscais, o valor do trabalho
e outras condições sociais, proliferando a figura dos paraísos fiscais.
O equilíbrio entre oferta e procura de capital desequilibrou-se com a
entrada, no mercado global, de grandes países tecnologicamente atrasados
e com grandes necessidades de investimento. O capital deslocalizou-se na
procura de lucros ainda maiores, deixando um rasto de desemprego e falta
de liquidez nos países de onde saiu, sem que tal fosse compensado pela
produção, no âmbito mundial, de bens a preços muito mais baixos que
pudessem ajudar a equilibrar os orçamentos e os consumidores das nações
que sofreram a fuga de capitais. A situação atual é de ausência de equilíbrio
entre oferta e procura de capital, originando grandes lucros e baixos salários, bem como recessão nos países mais atingidos por estes movimentos
de deslocalização. Não só o capital se tornou escasso como também se
tornou escassa a energia fóssil face a uma procura crescente, o que veio
acentuar as dificuldades de crescimento económico. Acresce ainda que,
devido ao envelhecimento da população e inversão das pirâmides etárias,
os custos de proteção social sobem em flecha. A degradação ambiental e
climática trouxe, também, custos acrescidos. Infelizmente, os governos e
as suas instâncias internacionais não só falharam na regulação internacional financeira, como falharam numa regulação internacional fiscal,
* Texto escrito segundo as normas do novo Acordo Ortográfico.
81
COMO A RECONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA É INDISPENSÁVEL AO PROJETO SOCIAL EUROPEU
bem como na regulação dos fluxos de capital e mercadorias no mercado
global. Como se tal não bastasse, muitos governos tentaram responder a
esta pressão para a degradação do valor do trabalho, fuga de investimento
e dificuldades de cobrança fiscal mediante empréstimos que permitiram,
durante algum tempo, manter o crescimento, proteger o valor do trabalho
e manter a proteção social. Esse tempo de moratória acabou porque as
dívidas assim contraídas assumiram montantes excessivos, ao ponto de se
ter perdido a credibilidade face aos credores. Junte-se a este panorama o
facto das tensões entre ricos e pobres, entre poderosos e os sem poder, ter
deixado de se expressar fundamentalmente na luta política e ter, também,
extravasado para o terrorismo internacional mais agressivo de sempre.
Embora o conjunto de causas que ocasionaram a atual crise seja muito
complexo, podemos, talvez, considerar que a crise não teria existido, com
a presente gravidade, se não fossem tão patentes as deficiências governativas
na União Europeia e as limitações governativas e culturais (sobretudo no
impacto que estas têm na organização e produtividade económica) existentes nos países hoje mais enfraquecidos. Na mesma ordem de ideias,
poderemos pensar que a solução passará por melhorar as capacidades
governativas na União e as capacidades governativas e culturais nos países
hoje mais enfraquecidos, não só por questões internas mas também na
perspetiva de uma ação mais eficiente nas concertações internacionais
sobre taxas, comércio internacional, regulação financeira e outras questões
internacionais ponderosas.
No que concerne às capacidades governativas da União, parece razoável
supor que o seu desenho institucional não favorece a produção de projetos
políticos de bem comum europeu. Ao contrário do que se considerou
essencial a nível das nações, não são sufragados projetos comuns para a
Europa. Isto é, não existem eleições para as instâncias supremas de poder
político (Parlamento Europeu e o inexistente Presidente Europeu) onde
sejam debatidos e sufragados projetos europeus. O que temos são eleições
de cariz essencialmente nacional (incluindo, na prática, as eleições para
o Parlamento Europeu) que produzem fóruns (Conselho de Ministros,
Parlamento, Comissão, etc.) onde se procuram equilíbrios entre o poder
das várias nações, com tendência para valorizar as questões de curto prazo
(os governos nacionais dependem de eleições em periódicos curtos prazos
82
JOSÉ NUNO LACERDA FONSECA
imbricados entre as diversas nações), gerir a forma como os eleitorados
nacionais podem percecionar as medidas e o marketing mediático em torno
delas e ceder, mesmo que parcialmente, aos interesses egoístas das nações
economicamente mais fortes. Neste aspeto, do desenho processual democrático, ou são as nações (com as suas eleições onde são sufragados projetos
nacionais de bem comum) que têm razão ou é a atual União com o seu
desinteresse endémico pelo debate popular sobre projetos europeus de
bem comum.
Claro que o empobrecimento das ideologias fere, também, o debate
sobre projetos de bem comum, europeus ou outros, não fosse a ideologia,
por definição, um projeto de bem comum, com uma visão de muitíssimo
longo prazo.
A descaraterização e enfraquecimento da ideologia socialista começou
com Eduard Bernstein, ao abrir as portas para se ceder completamente
ao modelo parlamentar democrático sem deixar abertura para a procura
de novas formas democráticas que melhor superassem o, equivocado e
perigoso, centralismo democrático das vanguardas iluminadas. Refira-se,
em abono de Bernstein que o seu modelo democrático apontava para um
vetor crucial de descentralização que as necessidades da “política real”
acabaram por fazer esquecer. Deve-se, também, a Bernstein, em grande
parte, o abandono de qualquer teoria do valor (isto é, uma teoria que ajude
a definir qual o rendimento justo de cada atividade profissional e classe
social). Esta desconstrução, promovida por Bernstein, abriu as portas para
a dominância das teorias do valor definido diretamente pelo mercado
económico, culminando num segundo e fatal momento de descaraterização e enfraquecimento da ideologia socialista que, já no início do século
XXI, surge com Anthony Giddens e a famosa terceira via (aliás, Bernstein
também se reclamou de uma terceira via). A terceira via de Giddens vem
decretar o abandono de qualquer modelo para o setor empresarial público.
O abandono do setor empresarial público foi aceite (com apenas algumas
resistências em torno de “setores estratégicos”) como panaceia para fugir
aos malefícios da economia planificado pelos governos (considerados
inaptos para orientar empresas, num mercado que ultrapassaria a sua inteligência), como se não existissem muitos outros modelos económicos a
estudar e desenvolver.
83
COMO A RECONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA É INDISPENSÁVEL AO PROJETO SOCIAL EUROPEU
Algo jocosamente, pode dizer-se que, depois destas duas “terceiras vias”,
o socialismo encontra-se já na “sexta via”, o que geometricamente parece
constituir uma volta de 180 graus, desvirtuando-o excessivamente, ao
ponto de já se duvidar de qualquer conceito, viável e pragmático, de Estado
que não seja o Estado Mínimo e de se aceitar que os esforços para uma
maior igualdade social dificilmente podem ser impostos aos mercados, sem
que isso ocasione dramática perda de competitividade. Mesmo aqueles que
continuam a insistir no Estado Social não podem deixar de ser assaltados
por dúvidas deste tipo, pois a destruição ideológica não dá grandes meios
de pensamento alternativo e só não gera estas dúvidas em quem se recusa a
refletir nas realidades atuais.
Talvez por tudo isto, a incapacidade europeia, para equilibrar alguns
graves efeitos desequilibrantes da globalização, seja muito baixa, não só na
sua ausência de contributos decisivos em instâncias de governança e regulação mundial (comercial e financeira) mas, também, na incapacidade
para controlar a galopada das cedências fiscais e dos défices financeiros
dos Estados periféricos e, ainda, na incapacidade de criar mecanismos de
intervenção interna, como um verdadeiro Banco Central Europeu com
capacidade para emitir moeda. Sem o aumento da massa monetária (política há muito seguida nos E.U.A.), não se percebe como fugir de uma
austeridade necessariamente recessiva. Claro que a emissão de moeda não
pode servir como álibi para aumentar o défice público e desprezar a austeridade, infelizmente necessária no curto prazo. Talvez um meio-termo
entre a política dos E.U.A. e a política Europeia, emitindo moeda mas
não desprezando políticas de austeridade, seja a única resposta imediata
contra a atual crise económica e financeira, já que a solidariedade europeia, veiculando maiores ajudas financeiras e económicas, dos países com
saldo financeiro positivo aos que apresentam défices, não parece viável,
de imediato, ao ponto se dar resposta à atual crise. Claro que a resposta
imediata à crise atual só será bem sucedida mediante uma série adicional
de condições. Muito se tem falado da repartição da austeridade por todos,
liquidez num sistema bancário capaz de selecionar efetivamente os bons
projetos empresariais, políticas dirigidas ao aumento da organização do
trabalho e à produtividade, reformulação das relações entre empresas
e investigação e desenvolvimento, cooperação acrescida entre pme´s no
84
JOSÉ NUNO LACERDA FONSECA
benchmarking, na investigação, no marketing e em vários outros aspetos, regulação anti-oligopolista, reforma da justiça, educação e saúde, planificação
estratégica das redes de transporte de mercadorias, alteração das atitudes
culturais nacionais que nos têm distanciado da produtividade de países
com outras matrizes culturais, moratória na dívida pública ou sua reestruturação, criação de duplas moedas em certos países para aumentar a massa
monetária minimizando a exportação da inflação, protecionismos alfandegários temporários, política de independência energética, renegociação
de parcerias público privadas, etc.
Não se pode esperar que a austeridade que, de facto, é apenas uma
diminuição relativa do valor social do trabalho, venha a resolver estas
problemáticas mesmo se acompanhada de corretas medidas de promoção
do crescimento económico. É que os países podem encetar uma competição de austeridades. De facto, se a diminuição do valor do trabalho
tornar mais competitivos alguns países, poderá haver a tendência de outros
responderem implementando, também, desvalorizações do trabalho (isto
é, diminuição de salários e de impostos para o Estado Social) de forma a
não perderem competitividade. De tudo isto resultará a continuação da
espiral da degradação do valor do trabalho e recrudescimento do valor
esmagador das grandes concentrações financeiras internacionais. O que
a teoria do mercado nos ensina é que a tendência será para que o valor
do trabalho a nível mundial se aproxime do valor mais baixo da oferta do
trabalho (hoje residente nos países asiáticos).
Provavelmente todas as medidas antes aqui referidas são necessárias e
muito mais terá de ser feito, sendo muito duvidoso que políticas que não
recorram a todas as possibilidades e coloquem excessivas expetativas num
restrito número de medidas possam vir a ter sucesso.
Contudo, a perspetiva do presente texto não é apenas a procura de
uma resposta imediatista à presente crise financeira mas sim de procura
de uma resposta estrutural, de médio e longo prazo, à crise mais geral de
produtividade, coesão, energia, ambiente, qualidade de vida estabilidade e
a diversos outros problemas que, reconhecidamente, há muito afligem as
sociedades europeias e as sociedades em geral.
Pode ser defendida a convição que só através da reconstrução da ideologia socialista será possível aumentar significativamente as capacidades da
85
COMO A RECONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA É INDISPENSÁVEL AO PROJETO SOCIAL EUROPEU
governação política e de mobilização dos povos, ao ponto de se inverter
o atual rumo de depreciação, económica e ética, no qual se acentuam as
desigualdades sociais e o aumento da criminalidade violenta e organizada,
num quadro mundial de degradação energética, ambiental e climática que,
em breve, poderá atingir pontos de rutura.
A reconstrução socialista implica recuperação da desconstrução
promovida por Bernstein, aproveitando, contudo, as suas virtudes mas
modernizando os modelos de exercício da democracia e refazendo uma
nova teoria do valor. Implica, também, a reconstrução capaz de suplantar
a desconstrução de Giddens expressa no desmantelamento da economia
pública, encontrando novos modelos de economia pública em mercado
concorrencial e com importante autonomia (recuperando e renovando a
velha ideia de Oskar Lange sobre o “socialismo de mercado”).
Todavia, a reconstrução ideológica não se pode restringir a estas três
facetas. O historicismo pretensamente científico que justificava a necessidade do socialismo (ideia também parcialmente desconstruída por
Bernstein) já não pode ser hoje aceite e tem de ser reconstruído pela
reflexão teleológica sobre modelos de sociedade a atingir no longo prazo,
reequacionando o valor relativo da liberdade e da igualdade e repensando
as suas relações (num campo teórico que remete para os contributos de
John Rawls).
Por último, existem duas novas questões que obrigam a uma reconstrução socialista. A primeira é a questão da ecologia e de uma série de
questões conexas, como o economicismo, os estilos de vida, os valores
éticos e o consumismo que, aliás, encontraram um importante esforço de
reconstrução na chamada teoria crítica de Herbert Marcuse, Guy Debord,
Jurgen Habermas, Anselm Jappe e tantos outros. Estes esforços terão de
continuar e terão de enlaçar a questão da ética que lhe está subjacente e que
hoje se encontra em rota de destruição, não podendo restringir-se apenas
à integração de políticas ambientais pois o movimento ecologista e a teoria
crítica colocaram questões muito mais profundas sobre o mal-estar social.
A segunda das novas questões que tem de ser integrada na reconstrução ideológica é a questão da progressiva importância da informação
e das assimetrias de informação que hoje são decisivas para os modelos de
funcionamento social e suas disfunções.
86
JOSÉ NUNO LACERDA FONSECA
Por facilidade de exposição, será primeiro aqui abordada a questão da
economia pública, passando-se, depois, à teorização de novas formas de
democracia e responsabilidade cívica. Por último e já de forma muito mais
resumida serão abordados os outros aspetos da reconstrução do socialismo
democrático.
I. Economia pública e empresas de cidadania
Sem empresas públicas o poder económico torna-se monopólio de
forças internacionais privadas que assim reduzem a quase nada o poder
de intervenção do Estado, não só no campo económico mas, também, no
campo político. De facto, sem poder negocial, face às grandes concentrações internacionais de capitais e sem capacidade para se financiar com os
resultados das empresas públicas, o Estado é obrigado a aceitar a vontade
das grandes concentrações internacionais de capitais ou ver fugir os capitais para “offshores”, para outros países e regiões do mundo, na pressão
da competitividade fiscal e salarial. Uma globalização económica sem um
equivalente político reduziu a política a pouco mais do que uma caixa de
ressonância dos grandes poderes económicos que, aliás, se encontram cada
vez mais permeáveis à degradação ética.
Esta fuga de capitais e a imposição de condições leoninas para o acesso
a estes inviabiliza, financeiramente, o Estado Social e reduz a democracia a
um sistema decisório secundário, sem poder face à virtual ditadura financista e amoral que hoje governa o mundo.
A forma de dissipar esta condição de dependência dos Estados, perante
a finança privada globalizada, seus plutocratas e aliados, passa pela consolidação de um sistema empresarial público, capaz de se reformular em função
das novas exigências geofinanceiras, em alinhamento permanente com
uma capacidade de inovação e empreendedorismo capazes de competir,
em matéria de criação de riqueza, com o sistema empresarial privado.
Para desenvolver um sistema empresarial público eficiente é necessário
que os rendimentos dos gestores públicos e dos trabalhadores em geral
dependam, em diverso grau mas decisivamente, da melhoria dos resultados
económicos das empresas públicas que devem gerir com autonomia e em
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COMO A RECONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA É INDISPENSÁVEL AO PROJETO SOCIAL EUROPEU
plena concorrência no mercado.
Contudo, tal pode não ser suficiente. Poderá ser fundamental que
estas empresas sejam claramente controladas pelos seus clientes, através
de processos de democracia mais direta. Os processos de democracia mais
direta que têm sido ensaiados, desde os anos 70, centram-se em grupos
de cidadãos (que passaremos a chamar fóruns) nos quais os cidadãos deliberam e decidem sobre questões que, tradicionalmente, eram decididas
pelos seus representantes políticos (ou seja, pelos Governos). Existem
talvez centenas destes fóruns, por todo o mundo, com diversos métodos de
seleção dos seus participantes (alguns são totalmente abertos), incidindo
sobre múltiplos temas e com processos de deliberação variados.
Neste contexto, devemos questionar se as referidas empresas públicas
(e seus gestores) forem avaliadas e tiverem os seus gestores recrutados por
fóruns independentes de cidadãos, em função de planos empresariais
que os candidatos, à gestão, apresentem, ficará plenamente assegurada a
independência e racionalidade da gestão das empresas públicas? Tal configuração será ir longe demais? Bastará, talvez numa primeira fase, que estes
fóruns tenham uma função fiscalizadora, num quadro de transparência
e publicitação dos exercícios orçamentais, devidamente simplificados e
acompanhados da indispensável fundamentação que permita ao cidadão
perceber com clareza as opções de gestão, o diligente recebimento de
receitas e a circunscrição ponderada das despesas, nomeadamente nas
empresas municipais?
Serão suficientes fóruns de cidadãos que tenham acesso a contínua e
cuidada formação específica para esta tarefa, abertos a quaisquer cidadãos
sem interesse corporativo nas empresas em causa? Fóruns acompanhados
e aconselhados por entidades especializadas em gestão no setor respetivo,
com possibilidade de, internamente, elegerem comissões temáticas para
análises mais aprofundadas e de escolherem representantes para executarem as deliberações tomadas, constituem uma devolução das empresas
públicas aos cidadãos que serão o próximo passo que deve ser dado no
setor público empresarial? Trata-se, afinal, de repensar os contributos
dos modelos empresariais de Oskar Lange, Robin Hannel e Russel Ackoff?
A constituição destas “empresas de cidadania” deve constituir a alternativa às privatizações e deve ser o caminho para o futuro de uma democracia
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JOSÉ NUNO LACERDA FONSECA
não subjugada à ditadura financista internacional e capaz de financiar
o Estado Social, bem como aliviar a, insuportável, carga fiscal sobre as
empresas privadas de base nacional, sobretudo das mais pequenas, com
a ajuda dos bons resultados financeiros do sistema empresarial público?
Existirão outros modelos de autonomia, concorrência e recrutamento e
avaliação de gestores públicos que assegurem a racionalidade económica e
a eficiência das empresas públicas?
Claro que este modelo das empresas de cidadania é uma solução global
de longo prazo. Contudo, talvez só o esclarecimento sobre as potencialidades das empresas de cidadania criará o ambiente ideológico que
impulsionará novos acordos, internacionais, sobre os impostos sobre o
capital e os mega salários da sua gestão. Sem estes novos acordos não haverá
solução a curto e médio prazo contra o excessivo poder que a globalização
conferiu às concentrações financeiras.
II. Governabilidade democrática e a democracia direta especializada
Embora seja indispensável que as democracias tenham um braço económico é, também, indispensável que as democracias governem bem melhor
do que têm feito, nomeadamente nas decorrências para instâncias internacionais. Infelizmente, é virtualmente impossível que o cidadão consiga,
efetivamente, avaliar a qualidade das governações, pois estas incidem sobre
uma grande diversidade de assuntos complexos que, aliás, são influenciados por muitas variáveis que escapam ao controlo dos governos nacionais.
Esta incapacidade de avaliação impede a realização da lógica democrática
de controlo, pelos cidadãos, dos seus representantes, colocando em causa
um dos pressupostos essenciais da democracia. Não é, pois, de estranhar a
mediatização e o peso excessivo do marketing na orientação do voto do cidadão,
estando este incapaz de avaliar, de forma racional e devidamente informada,
a globalidade das políticas concretas e dos seus efeitos a longo prazo.
As críticas ao défice informativo da democracia não cessaram de
aumentar desde Anthony Downs, logo em 1957, passando, depois, pelos
trabalhos de Benjamin Barber, Paul Hirst e tantos outros, envolvendo,
também, a escola da “Public Choice” e a teoria dos jogos, ao colocar a
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COMO A RECONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA É INDISPENSÁVEL AO PROJETO SOCIAL EUROPEU
questão das assimetrias informativas entre representado e representante. Os júris de cidadãos, de Ned Crosby, o orçamento participativo,
as sondagens deliberativas de James Fishkin e a agenda local 21, são talvez
as experiências mais conhecidas na tentativa de superação deste défice,
surgindo, mais recentemente, muitos tipos de experiências de democracia
eletrónica. Os conceitos e experiências de democracia participativa, preocupada com a devolução do poder aos cidadãos, bem como as reflexões e
inovações no âmbito da democracia deliberativa, preocupada com o nível
de informação e isenção que assiste à decisão, são dos conceitos hoje mais
estudados da teoria política.
Para dar resposta a estes problemas será que, progressivamente, as
deliberações políticas ou a escolha e avaliação de ministros, secretários de
Estado e diretores gerais deverão, cada vez mais, ser efetuadas por fóruns,
abertos a todos os cidadãos, suficientemente temáticos e especializados
para poderem coligir e usar a informação relevante?
Deverá ser criada uma rede de fóruns temáticos (de democracia eletrónica e por outros meios), cada um correspondendo ao tema de cada uma das
atuais Secretarias de Estado ou algo idêntico? Posteriormente, deverão ser
criados fóruns progressivamente mais especializados? Deverão, também, ser
criados fóruns que, embora não correspondendo a esta estrutura, constituam
temas agregadores, como fóruns vocacionados para questões de ideologia e
desenvolvimento do pensamento estratégico social e económico, bem como
fóruns vocacionados para o desenvolvimento e promoção da ética?
Deverá ser disponibilizado material pedagógico, formação e informação
que permita a qualquer participante (destes fóruns) estudar e apreender,
com a maior facilidade que as temáticas setoriais permitirem, as especificidades das matérias próprias, evitando o elitismo e o fechamento dos
fóruns? Estes materiais pedagógicos devem estar organizados em níveis,
permitindo que cada participante possa ir, progressivamente, percorrendo os diversos níveis de formação, tendo o seu voto ponderado em
consequência?
Os fóruns, devem ser abertos a todos os cidadãos mas deve ser limitado
o número de fóruns a que cada um pode pertencer, de forma a permitir
reflexão e deliberação aprofundada? Será interessante a delegação do voto
nos outros fóruns em que o cidadão não participa diretamente e em que
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JOSÉ NUNO LACERDA FONSECA
moldes e com que peso relativo?
De forma a evitar a captura corporativa dos fóruns temáticos, em cada
fórum ter-se-á de separar as votações em duas câmaras, uma representando
a procura e o consumidor e outra os profissionais do setor respetivo? Que
outras estruturas internas, nomeadamente a representatividade estatística dos fóruns face à população em geral (como nos modelos de Crosby
e Fishkin), assegurando a representatividade de todo o tipo de cidadãos
envolvidos, deve ser assegurada?
A questão magna será a ideia de que o poder deliberativo deve ir
passando, progressivamente, dos órgãos tradicionais da governação para
estes novos fóruns ou para estruturas semelhantes de democracia mais
direta?
Num sistema deste tipo, novos paradigmas de legitimidade democrática
fazem a sua aparição em pleno, configurando uma democracia especializada
e temática? Cada participante delega, na prática, nos outros participantes
a legitimidade para assumir decisões em seu nome (decisões estas tomadas
nos outros fóruns). Bem distantes estaremos do paradigma da representação
tradicional, no qual um participante delega poderes, vastos e genéricos, nos
representantes políticos que escolhe, através do seu voto.
A possibilidade dos cidadãos mudarem de uns fóruns para outros onde
sentem que a governação não está a ser correta, poderá permitir um equilíbrio que realize o interesse geral?
Será assim consubstanciada (com estes fóruns equilibrantes) uma
divisão do trabalho de avaliação e controlo do sistema político, sendo que
uns cidadãos se especializam em certas matérias e outros noutras matérias,
para assim poderem controlar o sistema público com verdadeiro conhecimento de causa?
Será que a reforma do atual sistema político, tentando caminhar para
um sistema mais dependente dos reais interesses dos cidadãos e com mais
elevado nível cognitivo nas suas decisões, exigirá o reformular de vários
outros paradigmas democráticos?
Por exemplo, será que os pequenos partidos devem ter representação e
peso decisório superior à sua votação (para promover a inovação e a diferença pluralista)? Será que os partidos derrotados devem gerir parte do
orçamento global (para melhor mostrarem o seu valor, para responsabilizar
91
COMO A RECONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA É INDISPENSÁVEL AO PROJETO SOCIAL EUROPEU
as oposições, acentuar pluralismo e diversidade)? Serão necessários órgãos
políticos específicos que assegurem a devida consideração dos problemas
de longo prazo, constituídos por profissionais eleitos para ciclos vitalícios,
remunerados em função da evolução de parâmetros sociais e ambientais
quantificados, evitando a monopolização nas questões mais próximas dos
curtos ciclos político-eleitorais? Serão necessárias Constituições Nacionais
que definam quais as variáveis que devem avaliar os governos, expressando
níveis de crescimento económico, coesão social, parâmetros ambientais,
redução da criminalidade e vários outros dos quais possa resultar uma
fórmula que quantifique a eficácia dos governos, sem prejuízo de vários
outras propostas de governação não passíveis de quantificação? Que papel
para a escolha por sorteio de representantes políticos e maiores restrições
a repetição de mandatos, um pouco na linha da democracia grega clássica
e na perspetiva de luta contra as redes clientelares e abertura de elites?
Será que a abertura a novos meios de intervenção do cidadão constituirá
o principal incentivo para que o cidadão se torne mais responsável, com
maior espírito de equipa e mais empreendedor, em todos os domínios da
sua vida, com importantes impactos não só na vida política mas também na
produtividade económica e nas relações sociais? Será esta a chave do sucesso
económico a longo prazo que tem diferenciado as nações, como sugerido
pelos trabalhos de Max Weber, Almond e Verba, Francis Fukuyama, Geert
Hofstede e Ronald Inglehart? Estas e várias outras questões devem contribuir para um debate profundo e que repense paradigmas.
Obviamente que todo este vasto leque de perguntas aponta um modelo
utópico de sistema económico e político, embora tente expressar, de forma
sincrética, a diversidade de centenas de experiências de democracia mais
direta e deliberativa que estão a brotar, em avalanche, de todos os pontos
do mundo, acrescentando-lhe uma componente de economia pública. Em
Portugal, será de ressaltar a agenda local 21, o orçamento participativo, o
acesso a diversas plataformas de democracia eletrónica e os conselhos gerais
escolares que, desde há alguns anos, recrutam os diretores das escolas secundárias, embora estas experiências sejam, ainda, frequentemente eivadas de
vários equívocos e sobressaltos organizacionais. A existência de tecnologias
eletrónicas, o aumento do nível educativo dos cidadãos e novos paradigmas
de representatividade e delegação constituem uma oportunidade histórica,
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JOSÉ NUNO LACERDA FONSECA
até agora nunca existente para a democracia mais direta, à qual os sistemas
governamentalistas, excessivamente centralizados, resistem, arriscando-se
a uma imagem de triste reacionarismo e obsolescência que devem tentar
ultrapassar, com urgência.
Não é, obviamente, de esperar que um modelo de empresas de
cidadania e de democracia especializada nem qualquer outro modelo referencial se torne realidade absoluta e universal. O futuro pode pertencer a
sistemas mistos, económicos e políticos, em permanente competição entre
si, com democracia representativa co-habitando com diversas formas de
democracia mais direta. Será razoável esperar que o debate sobre sistemas
referenciais, sejam estes ou outros com algum paralelismo, enquadrados
numa mais vasta reconstrução ideológica, apontados contra as limitações
estruturais da democracia, do sistema económico dominante e de várias
outras problemáticas decorrentes, será a única maneira de mobilizar os
cidadãos e fazer surgir reformas verdadeiramente estruturais, abrangendo
a grande variedade das problemáticas atuais, necessariamente da forma
progressiva, tolerante e polimorfa que é exigida pela complexidade das
sociedades atuais?
III. Teoria do valor, teleologia, liberdade negocial, economia da
informação e promoção da ética
Relativamente à teoria do valor (isto é, a teoria sobre o rendimento que
cada profissão e profissional deve auferir) a clássica teoria da exploração e
das mais-valias caiu, por não explicar que rendimento deve ser auferido
pelo trabalho de gestão do capital e por todas as outras profissões que não
sejam profissões operárias (em cada vez maior número e com maior peso
social). Uma outra fatal fragilidade foi não ter refletido sobre a recompensa ao risco do investidor. Em consequência, o socialismo ficou sem
uma teoria do valor. A sua reconstrução passará por apurar qual o incentivo (remuneração) necessário para levar os indivíduos a desempenharem
esta ou aquela atividade necessária. Este incentivo terá de compensar toda
a desutilidade envolvida em cada profissão (esforço, riscos, degradação
da saúde, etc.). Uma profissão com uma desutilidade que seja o dobro de
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COMO A RECONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA É INDISPENSÁVEL AO PROJETO SOCIAL EUROPEU
outra merecerá o dobro do rendimento, e assim consequentemente para
outros rácios entre desutilidades de outras profissões. O cálculo da desutilidade de referência para uma profissão (em torno da qual se situarão
os vencimentos de cada profissional, em função da sua produtividade de
mercado relativamente aos outros profissionais da mesma profissão) terá
de passar pelo levantamento técnico de índices de desutilidade (esperança
de vida, riscos e custos do insucesso, etc.), num sentido há algum tempo
proposto por James Mirrlees. Este índices técnicos devem ser complementados com o trabalho de observadores imparciais (tanto quanto possível)
que conheçam o suficiente sobre a profissão em causa.
Claro que desta maneira poderá ser impossível a imparcialidade no
julgamento de qual o justo rendimento do capital. Tal pode não ser razão
para abandonar esta teoria do valor mas sim para restringir, progressivamente, o uso de capital privado em privilégio do capital público e dos bens
comuns, através da prevalência de sistemas económicos polimorfos e com
diversidade de tipos de capital.
Outra decorrência desta teoria do valor é que os proprietários de
bens naturais não devem, talvez, ser remunerados fundamentalmente em
função da escassez desse bem mas sim da desutilidade envolvida na gestão
desse bem, o que implicará, por exemplo, nas rendas dos países produtores
de petróleo.
A teleologia é outro dos campos que requer reconstrução ideológica.
Quais os traços fundamentais da sociedade que queremos que exista a longo
prazo? Uma sociedade sem classes ou uma sociedade com uma distribuição
dos rendimentos compatível com os incentivos e as desutilidades? Uma
sociedade que, além disto, ofereça educação e apoios mais fortes para o
desenvolvimento dos seres mais frágeis ou oriundos de situações familiares
e sociais mais fragilizadas, garantindo assim a igualdade de oportunidades
intrínsecas (isto é, garantindo discriminação positiva na fase de desenvolvimento dos jovens ou no caso de acidentes e limitações pessoais impossíveis
de evitar)? Desejamos uma sociedade com este tipo de distribuição mais
homogénea do poder (seja económico ou outro tipo de poder), porque
o poder corrompe e constitui um potencial de limitação da liberdade de
quem não o tem, através de agressões e manipulações diversas? Nesta perspetiva, os objetivos últimos do socialismo reconstruído deixam de ser a
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JOSÉ NUNO LACERDA FONSECA
igualdade absoluta e passam a ser a liberdade, o incentivo ao contributo
efetivo de cada indivíduo e a solidariedade com os atingidos por situações
ou acidentes que não lhe são imputáveis. Fica assim afastado o competitivismo darwinista mas, também, um providencialismo, eleitoralista, que
muito feriu o movimento socialista internacional.
Algures entre o debate sobre a teoria do valor e sobre a teleologia
encontra-se a grave questão ideológica da liberdade negocial. O livre
mercado não assegura liberdade negocial entre as diversas classes que
disputam sobre a distribuição dos resultados de um projeto de trabalho
em comum (tradicionalmente, como se sabe, de forma simplificada esta
questão remete para as relações distributivas entre trabalho e capital). Tal
liberdade não se verifica se uma das partes tiver meio de aguentar longas
suspensões de cooperação entre classes (por exemplo, através do famoso
conceito de “preferência pela liquidez”, de Keynes e que traduz a retirada
do capital do circuito do investimento). Se uma das partes estiver, também,
mais organizada na sua comunicação interna isso afetará a liberdade negocial. Por exemplo, as cem maiores multinacionais do mundo poderão ter
maior facilidade de chegar a um acordo implementável na prática que os
cem maiores sindicatos do mundo, se estes últimos se encontrarem em rota
de esvaziamento e descredibilização. Existem muitas outras fontes de assimetria negocial que se impõem, na prática, transfigurando os mecanismos
de um mercado perfeito e impossibilitando o equilíbrio dos mercados e o
exercício de uma liberdade entendida também como liberdade negocial.
Sendo necessária a reconstrução ideológica no que concerne a economia
pública, democracia e teoria do valor e teleologia, existem também um
conjunto de outros novos temas nos quais o mercado não regulado se tem
demonstrado frágil (informação aos consumidores, especialmente nos mídia
e outros produtos complexos e difíceis de avaliar pelo consumidor, economia
da informação, estilos de vida e promoção da ética). Estas são também áreas
fundamentais de reconstrução ideológica, como aqui já se referiu.
Estas fragilidades do mercado advêm, no todo ou em parte importante,
do que, há já algumas dezenas de anos, se convencionou designar por assimetrias de informação. Kenneth Arrrow, George Akerlof e Joseph Stiglitz
são, talvez, os investigadores mais conhecidos nesta área, tendo mostrado que
o mercado não tende necessariamente a disponibilizar toda a informação
95
COMO A RECONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA É INDISPENSÁVEL AO PROJETO SOCIAL EUROPEU
sobre os seus produtos, ocasionando assimetrias de informação (entre as
diversas partes e classes envolvidas num negócio ou acordo social) que por sua
vez geram ineficiência e assimetrias de rendimento que não seriam necessárias para obter os mesmos ou melhores resultados económicos.
É neste enquadramento teórico geral que se considera que a regulação da
produção cultural e informativa é outra área fundamental em que é necessária a reconstrução ideológica. Esta reconstrução, como aqui já se referiu,
é justificada pela constatação que os mercados não geram necessariamente
informação suficiente sobre os seus produtos (qualidade, comparação de
preços, efeitos de curto e longo prazo – por exemplo nos mídia recreativos, saúde e ambiente). Caberá, portanto, a instâncias extra mercado
assegurarem essa informação. A melhor forma de o fazer parece consistir
em assegurar informação pluralista sobre os produtos e as análises diversas
que sobre eles se possam fazer, sendo que este pluralismo só pode ser assegurado pela participação do mais amplo leque pluripartidário, nas tarefas
de informação ao consumidor. As associações de defesa do consumidor
não garantem o pluralismo pois as associações em geral não são construídas
para tal desiderato. Obviamente que estas associações devem ter um papel
importante mas não suficiente.
Como exemplo de informação pluripartidária, pode-se tomar um caso
no mercado, muito especial, da informação jornalística de cariz político.
Considere-se a possibilidade de que as mais importantes peças jornalísticas
informativas dos mídia, pretensamente isentas e imparciais, devem estar
associadas a análises críticas de todos os partidos. Sendo que essas análises
devem ser facilmente acessíveis aos consumidores dos mídia. Trata-se
de um novo papel cultural para o qual os partidos e os mídia terão de se
preparar e que constitui um conceito inovador de partidos, mídia e informação ao consumidor.
Quanto à economia dos produtos informativos em geral, numa perspetiva também crítica mas complementar aos autores atrás citados, desde
Kenneth Arrow e Paul Romer que existe reflexão sobre as especificidades
da informação enquanto mercadoria (por exemplo pode ser consumida
sem que isso acarreta a sua destruição o que leva a um potencial consumo
infinito). Será pois de esperar que os mercados de informação escapem a
certas regras de funcionamento dos mercados. Por exemplo, é socialmente
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JOSÉ NUNO LACERDA FONSECA
ineficiente a investigação privada protegida por secretismo e patentes se
a mesma investigação puder ser pública e livremente acessível por todos
os utilizadores. Na mesma linha de ideias, surge a necessidade de deteção
de melhores práticas industriais e organizacionais e sua divulgação muito
ampla. O novo paradigma será o de uma investigação pública ou amplamente cooperativa, orientada pelas empresas, com participação financeira
do conjunto destas, com recompensa, das empresas aos investigadores e
inovadores, em função das avaliações que as empresas farão aos resultados
da investigação ou da divulgação de boas práticas e de outros serviços de
cooperação e intercâmbio.
Passemos agora à última questão ideológica que aqui se propôs tratar e
que é a da ética e dos estilos de vida, colocada no centro da reflexão socialista pelos movimentos dos anos sessenta e seus teóricos (sobretudo Marcuse
mas também Theodor Adorno. Max Horkheimer e a “teoria crítica”, em
geral, hoje reavivada por Jappe e Habermas).
O mesmo argumento, aqui usado, sobre as fragilidades do mercado da
informação pode ser usado para evidenciar a necessidade desta reconstrução ideológica. Temos, contudo, de usar o conceito de mercado de
forma muito mais vasta, entendendo-se “mercado” num sentido muito
geral como Gary Becker entende, podendo-se falar de mercado de soluções ecológicas, mercado de ofertas de educação ética e religiosa, mercado
de ofertas recreativas, etc. O mercado deste tipo de produtos está intimamente ligado a opções sobre estilos de vida e de consumo o que por sua vez
está intimamente ligado à ética e às morais.
Se o “mercado” não é suficiente garante, temos, mais uma vez de recorrer
a meios extra mercado de promoção da ética e de morais das quais decorrem
estilos de vida e consumo, objetivos de vida, atitudes e formas de relacionamento humano e social. Também neste desiderato a solução pluripartidária
parece a única viável para um conjunto de políticas de promoção da ética
que, aliás, não se terão de restringir à divulgação crítica de éticas e morais mas
também a facilitar acesso a experiências que possam tornar o indivíduo mais
propenso à ética (serviço cívico, contato com pessoas com outros valores,
tutória, comissões de ética e prémios de valorização de comportamentos
éticos, promoção do envolvimento em ações de solidariedade, promoção de
redes familiares articuladas em ações de formação parental, etc.).
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COMO A RECONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA É INDISPENSÁVEL AO PROJETO SOCIAL EUROPEU
A ética não cai, necessariamente, do nada nem resulta, necessariamente, do “mercado” das informações e culturas, competindo às instâncias
públicas assegurar sua promoção, através de políticas diversificadas e pluralistas, com uma transversalidade e importância tão grande ou maior que as
políticas ambientais que eclodiram desde os anos setenta. Chegou agora a
vez das preocupações sistémicas com a ética, num novo campo de expressão
ideológica e filosófica, no qual o socialismo muito terá de dizer.
IV. Conclusão
O mundo não pode continuar presa de uma democracia débil e claudicante face às grandes concentrações de poder que agridem, cada vez mais
profundamente, a liberdade e a dignidade humana. Um novo projeto
ideológico torna-se urgente. Neste contexto é de chamar a atenção para
o grupo “Real Utopias”, em torno de Erik Olin Wright, Archon Fung,
Herbert Gintis, Samuel Bowles e vários outros, nos E.U.A.. Talvez seja
o momento de uma nova revolução democrática, cívica e humanista que
coloque em causa a progressiva virtual ditadura da plutocracia (por vezes
identificada como sendo o “capitalismo selvagem”) e o modelo de governamentalismo centralista que, na prática, abriu o caminho a crescente
degradação económica, política, social, cultural e ética.
Uma mudança profunda, no sentido de uma democracia mais direta e
informada e de um Estado com efetivo poder, devidamente descentralizado, facultado pelo seu braço económico e pela participação cívica, é uma
necessária tarefa coletiva, de criatividade e responsabilidade. Só estas faculdades podem elevar as sociedades para novos paradigmas, num patamar
muito mais alto de civilização, envolvendo uma reconstrução ideológica
em várias vertentes e mobilizando os cidadãos para responderem às várias e
graves problemáticas que corroem as sociedades atuais.
A reconstrução socialista parece cada vez mais urgente. A crise económica está a fazer surgir um quase cripto-nazismo económico que defende
o desmantelamento da proteção do valor do trabalho e do Estado social,
augurando que os mais fortes, libertos dessa carga de ajuda aos outros,
possam livremente singrar, com a promessa mirífica que, mais tarde,
98
JOSÉ NUNO LACERDA FONSECA
depois da sua afirmação total, esses mais fortes vencedores se apiedam de
quem nenhum poder já tem e os permitam partilhar dos rendimentos dos
mais fortes. Muitos liberais sinceros podem ser levados a perfilhar este
quase fascismo económico, sem consciência que o fazem nem dos riscos
desse apoio. Não surgindo uma nova teoria socialista, a decadente “sexta
via” socialista não terá hoje (devido aos erros do passado) credibilidade
nem bases concetuais para criar uma alternativa ao competitivismo radical
que, aliás, tenderá para se assumir cada vez mais completamente, num
puro fascismo económico, darwinista e desumanizado, com a consequente
destruição do projeto europeu do Estado Social e ameaçando a própria
democracia e a paz na Europa e no mundo?
Não se trata de defender modelos únicos nem modelos teoricamente
definidos à partida. Trata-se de propor sistemas mistos, económicos,
sociais e políticos, em permanente competição entre si, envolvendo aprendizagens mútuas e evolução. A democracia representativa pode co-habitar
com diversas formas de democracia mais direta. O sistema empresarial
público deve viver em competição com vários outros modelos económicos,
desde a competição privada multinacional, até ao modelo das cooperativas,
passando por modelos de equilíbrios entre competição e cooperação no
mundo das pme´s, parcerias público-privadas em regimes diversificados e
vários outros. Modelos diversos de ética e participação cívica, teleologias
debatidas democraticamente, estilos de vida, modos e regulação da divulgação e produção da informação e da ética podem e devem existir de forma
diversificada, dialogante e tolerante.
Os melhores sistemas irão, progressivamente, tornando-se mais frequentes
e os outros sofrerão mutações até se tornarem melhores e assim progressivamente, num modelo de meta-competição, tolerância e aprendizagem mútua
constante. O movimento pós-moderno, de Jean-François Lyotard, Gianni
Vattimo e tantos outros, veio para ficar mas não num relativismo apático
perante o singrar dos desequilíbrios de poder. O trabalho de reconstrução
ideológica, social, económica e política é complexo e exige um longo caminho
mas parece o único meio para a esperança e para a reconstrução humanista.
99
IDEIAS
Rousseau, Trezentos Anos Depois
Joaquim Jorge Veiguinha
E
m 1751, Charles Bordes, membro da Académie de Sciences et
Belle-Lettres de Lyon, contestava o Discurso sobre as ciências e as artes
de Jean-Jacques Rousseau, distinguido, um ano antes, pela
Academia de Dijon, com o primeiro prémio, nestes termos:
“Tendo-nos destinado a natureza a viver em sociedade era necessário
que as nossas qualidades fossem desiguais relativamente à desigualdade
das posições que devemos ocupar: uns devem nascer para as funções mais
baixas da sociedade, para que as mais elevadas possam ser desempenhadas
sem interrupção: porque se cada um tivesse cultivado o seu próprio campo,
que tempo restaria para inventar as artes e as ciências, fazer as leis e mantê-las em vigor? A desigualdade natural é a base da desigualdade política e
civil necessária em todas as sociedades.”1
Paradoxalmente, o ilustre desconhecido Charles Bordes, académico
provinciano representante da burguesia comercial e manufactureira da
próspera Lyon, adquire uma actualidade preocupante numa época em que
se celebra o tricentenário do nascimento do seu famoso oponente, JeanJacques Rousseau, citoyen de Genève. E isto porque na primeira década do
século XXI retornam as concepções regressivas que visam ‘naturalizar’ ou
‘eternizar’ as crescentes desigualdades sociais. Se no século XVIII a questão
sobre a origem da desigualdade se situava no contexto da polémica da liberdade dos antigos e da liberdade dos modernos, mais tarde retomada por
Benjamin Constant num pequeno texto precisamente com este título, no
nosso século o retorno de ideias que se julgavam, há muito, superadas pelas
conquistas sociais e políticas do Estado de bem-estar e do modelo social
europeu anuncia a emergência de um ressentimento oligárquico que se
julga impune e acusa os seus críticos de estarem contaminados pelo vírus da
‘inveja igualitária’. Prova disso, é um artigo do actual primeiro-ministro
1
Citado por Guerci, Luciano – Liberta degli antichi e liberta dei moderni, Guida Editori, Nápoles, 1979, p. 64.
101
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
espanhol, o conservador Mariano Rajoy, publicado no Faro de Vigo em 24
de Julho de 1984: “Demonstrado de forma indiscutível que a sociedade é
hierárquica, gera todos os homens desiguais, não tratemos de explorar a
inveja e o ressentimento para basear sobre pulsões tão negativas a ditadura
igualitária. A experiência demonstrou de modo irrefutável que a gestão
estatal é menos eficaz do que a gestão privada. Por que é que se insiste
em aumentar a participação estatal na economia? Em grande parte, para
despersonalizar a propriedade, ou seja, para satisfazer a inveja igualitária.”2
Poder-se-á dizer que Mariano Rajoy toma os seus axiomas por demonstrações ‘irrefutáveis’, o que, desde logo, transforma o seu juízo numa mera
opinião sem fundamentos sólidos. É certo que o actual primeiro-ministro
espanhol não defende, como Bordes, que os homens são naturalmente desiguais. No entanto, não se distingue verdadeiramente do académico lionês,
pois retoma o seu argumento sob uma nova forma: o que é ‘natural’ é o
carácter hierárquico da sociedade – deliberadamente enunciada no singular,
ou seja, como algo de a-histórico –, o qual, é a fonte da ‘inveja igualitária’. De
facto, quem contesta a desigualdade social está a opor-se a uma espécie de
facto natural irrefutável na sua evidência e, por conseguinte, apenas pode
mover-se por um sentimento de ‘inveja’ quando compara a sua sorte com
a dos ‘vencedores’, isto é, com a dos que ocupam uma posição ‘hierarquicamente’ superior, seja esta fruto da riqueza, do poder ou do prestígio
relativos. Na sua mais recente autobiografia, Rajoy reforça a sua postura
intelectual dos anos 80 do século passado de uma forma mais requintada,
pois inventa uma versão dinâmica da ‘hierarquização’ social que se transforma no principal estímulo do progresso social e do bem-estar individual:
“Constitui uma demonstração matemática que o homem não se conforma
com a sua realidade, que aspira a mais, procura um maior bem-estar e além
disso um melhor ser, que, no fim de contas, luta para tornar-se desigual.”
Do homem natural ao homem social
Ao escutarmos Rajoy, compreendemos que trezentos anos após o seu
nascimento Rousseau continua a ser um antídoto contra a espiral regressiva do pensamento de direita actualmente imperante. Basta pensarmos
2
El País, Madrid, 7.01.12, p. 27.
102
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
no seu Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens, publicado
em 1755, também em concurso na Academia de Dijon, mas que não foi
premiado como o anterior. Neste segundo discurso, dedicado à República
de Genebra, onde Rousseau tinha nascido, o autor não faz concessões à retórica, ainda bem presente no primeiro, nem às regras formais
da oratória académica que tinham em vista conquistar o favor do júri. E
isto porque a questão proposta pela Academia – “Qual a origem da desigualdade e se ela é autorizada pela lei natural” – é bem mais complexa, já
que a maior parte dos autores da época, de que Bordes é um exemplo,
considera precisamente que a desigualdade natural é a fonte da desigualdade civil e política e que, por conseguinte, já está inscrita na própria ‘lei
natural’ que legitima a diferença das capacidades intelectuais dos homens.
Para o filósofo britânico John Locke, expoente do jusnaturalismo laico,
esta, apesar de “estar inscrita em todos” e de se revelar “ao intelecto como
idêntica”, acaba apenas por ser ‘entendida’ por alguns – os ‘mais’ racionais
–, pois “por mais de que as nossas faculdades intelectuais nos possam dar
a conhecer esta lei, todavia não resulta necessariamente que os homens
utilizem todos correctamente as suas faculdades: a natureza e as propriedades das figuras geométricas e dos números parecem evidentes e sem
qualquer dúvida cognoscíveis através das luzes naturais, porém não se infere
que quem esteja na posse das próprias faculdades supere os geómetras ou
seja profundamente versado na arte da aritmética: pelo contrário, é necessária uma meditação atenta, reflexão e atenção da parte do entendimento,
para que, a partir das coisas sensíveis e evidentes, na base de argumentações
e raciocínios, se possa penetrar na natureza secreta das próprias coisas.”3
O que aproxima Locke de Bordes é que nem um nem outro se preocupam em investigar por que motivo alguns se tornam geómetras, enquanto
a maioria permanece iletrada, ou seja, para ambos é considerada uma
evidência que a função que cada um desempenha na sociedade tem uma
origem natural, resulta exclusivamente das diferentes capacidades intelectuais dos homens. Bordes acrescenta ainda que as funções mais ‘elevadas’,
isto é, as que exigem reflexão e meditação, não poderiam desenvolver-se se
cada um se limitasse a cultivar o seu próprio campo, o que acaba por nos
3
Locke, John – Saggi sulla legge naturale, Laterza, Roma-Bari, 1973, p. 21.
103
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
remeter para o axioma, partilhado também por Mariano Rajoy, da necessidade de existência de uma hierarquia em que as diferenças sociais não apenas
coincidem com as diferenças intelectuais, mas são também necessárias para
o desenvolvimento destas. É contra este axioma que Jean-Jacques Rousseau
lança a sua ‘revolução copernicana’ do pensamento social e político não
apenas da sua época, mas também da actual, quando afirma: “Não se pode
perguntar qual é a fonte da desigualdade natural, uma vez que a resposta a
encontraríamos enunciada na simples definição da palavra. Menos ainda se
poderia procurar saber se haveria ligação essencial entre as duas desigualdades; porque isso seria querer saber por outras palavras se aqueles que têm
o mando valem necessariamente mais do que aqueles que obedecem e se a
força do corpo ou do espírito, a sabedoria e a virtude se encontram sempre
nos mesmos indivíduos em proporção do poder e da riqueza.”4
O argumento de Jean-Jacques pressupõe desde logo uma crítica magistral
à grande maioria dos intelectuais do seu tempo que naturalizam a desigualdade política e socialmente instituída e, por conseguinte, através de uma
generalização mecanicista, transformam num axioma de validade universal o
que caracteriza apenas um determinado tipo de sociedade concebida dogmaticamente como a única possível. Outro grande mérito de Rousseau é que a
desigualdade não pode também ser explicada em termos ‘morais’, nada tem
a ver com a ‘boa’ ou ‘má’ conduta do indivíduo, pois tal equivale a enunciar
uma nova forma da sua naturalização, precisamente aquela em que os valores
socialmente dominantes se transformam em factores de discriminação
social. Não haverá mais vida para além destes valores? A resposta de Rousseau
é positiva, percorre toda a sua obra, mas apenas se concretiza na fase da sua
maturidade, particularmente no Contrato social e nas suas investigações sobre a
Economia política, como demonstraremos mais à frente.
Entretanto, é necessário, por assim dizer, ‘separar o trigo do joio’,
ou seja, distinguir desigualdade natural de desigualdade social. Não se
trata, porém, de um exercício fácil, já que os contemporâneos do filósofo genebrino projectam na natureza as desigualdades sociais a ponto de,
imagine-se, considerá-las não apenas inevitáveis, mas também necessárias e
justas para o desenvolvimento da sociedade, como diriam hoje, no século
4
Rousseau, Jean-Jacques – Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens, Europa-América, Lisboa, 1976, p. 23.
104
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
XXI os herdeiros de Bordes. Para Rousseau é necessário um exercício de
abstracção, um retorno às origens ‘pré-sociais’ do homem, já que todos os
‘factos’ que são apresentados para justificar ou legitimar a ‘natural’ desigualdade entre os homens são já factos sociais, ou seja, característicos de
uma sociedade historicamente determinada em que impera uma hierarquização de poderes, mas também de talentos, centrada na discriminação e na
desigualdade e que, por conseguinte, não pode ser tomada como sistema de
referência: “Comecemos pois por afastar todos os factos porque eles não
tocam o problema. Não se devem tomar as investigações que se podem fazer
sobre este assunto por verdades históricas, mas unicamente por raciocínios
hipotéticos e condicionais, mais próprios para esclarecer a natureza das
coisas do que para mostrar a sua verdadeira origem e semelhantes àqueles
que todos os dias fazem os físicos acerca da formação do mundo.”5
A metodologia proposta por Rousseau põe desde logo em causa o
argumento tradicional, retomado por Bordes, de que o homem é um
ser naturalmente social. Partidário da ‘liberdade dos antigos’, o filósofo
genebrino está, a este respeito, próximo dos ‘modernos’ que contestam
a concepção, que remontava a Aristóteles, de que o homem é um ser
‘geneticamente’ predisposto para viver em sociedade. Rousseau retoma a
suposição dos jusnaturalistas laicos do século XVII de um ‘estado de natureza’ que, no entanto, constitui apenas uma hipótese paradigmática com a
qual se poderá confrontar o seu presente histórico para desvendar as causas
sociais da desigualdade que surgem aos olhos da maioria dos seus contemporâneos como ‘naturais’. Neste sentido, o estado natural de Rousseau não é,
como em Hobbes, um estado onde a ausência de uma autoridade separada
que estabelece as normas para a partilha dos bens escassos provoca uma
guerra de todos contra todos, nem, como em Locke, um estado em que a
fonte da propriedade privada é, primeiro, o trabalho individual e, depois,
com a descoberta da moeda de ouro e prata, a acumulação ilimitada de um
excedente sob a forma de dinheiro. Para ambos, o estado natural não é
uma hipótese, mas uma mera projecção de uma concepção individualista
de liberdade centrada na posse exclusiva de bens materiais. Rousseau rejeita
radicalmente este ‘individualismo possessivo’, o que o conduz a recuar no
5
Rousseau, Jean-Jacques, op.cit.,pp. 24.
105
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
tempo, em direcção a uma ‘idade mítica’, a um estado natural primitivo,
a partir do qual se poderá medir a ‘distância’ relativamente ao presente
histórico do homem social: um “grau zero” da evolução da humanidade,
segundo a feliz expressão de Jean Starobinski6.
No estado natural primitivo os homens vivem dispersos pelas florestas,
sem domicílio fixo e sem nenhum vínculo entre si. Estes alimentam-se do
que a natureza lhes oferece espontaneamente: são sobretudo recolectores
ou, extemporaneamente, caçadores. Sob o ponto vista material, o homem
natural é auto-suficiente porque pode satisfazer as suas limitadas necessidades sem o concurso dos outros. Esta auto-suficiência abrange também o
plano espiritual ou ‘moral’ que não pode ser separado do plano material,
mas forma com ele uma unidade indissociável. Ao contrário do homem
social, do homem produto da civilização, o homem primitivo não pode
confrontar-se com os outros na procura de honras, prestígio e riquezas
e, por conseguinte, não tem necessidade do seu reconhecimento, da sua
estima ou da sua aprovação. Mal se diferenciando da natureza, que ainda
não se tinha tornado um obstáculo à sua conservação, vive inteiramente em
si próprio: é uma espécie de ‘inteiro absoluto’ sem existência ‘relativa’, a
principal fonte do desenvolvimento das suas capacidades individuais, mas
também do predomínio de alguns sobre os outros.
No entanto, contrariamente aos animais, a sua conduta não é exclusivamente determinada pelo instinto: o homem natural possui já,
potencialmente, faculdades verdadeiramente humanas, como a capacidade
de querer e de escolher, ou seja, a liberdade e a capacidade de auto-aperfeiçoamento. No entanto, ambas não podem desenvolver-se, pois as suas
necessidades proporcionadas aos recursos que quase espontaneamente se
lhe oferecem não superam ainda o horizonte do presente imediato e, por
conseguinte, permanecem em letargo ou em hibernação. De facto, apenas
a consciência de uma necessidade futura que o demarcasse da natureza em
que participa ainda como organismo poderia levá-lo a projectar os meios
solicitados para a sua satisfação e, deste modo, a superar a sua espontaneidade ou instintividade naturais. Encontrando tudo o que necessita para
viver sem esforço, não almeja competir com os outros para superá-los na
6
Starobinski, Jean – Jean-Jaques Rousseau: La transparence et l’obstacle, Gallimard, Paris, 1971, p. 344.
106
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
repartição dos recursos escassos. Por isso, não poderia tornar-se previdente e a sua curiosidade ultrapassar a sua primordial ‘vontade de viver’
que se reduz ao sentimento da sua existência no ‘aqui e agora’ do evanescente momento presente.
Apesar da limitação das suas faculdades intelectuais e morais, o homem
natural possui dois sentimentos primordiais: o amor de si e a piedade. O
primeiro orienta-o para a sua própria conservação e afasta-o de tudo o
que possa pô-la em causa. O segundo é o impulso espontâneo da simpatia
natural que “ tempera o ardor que tem pelo próprio bem-estar por uma
repugnância inata em ver sofrer o próprio semelhante.”7 Estes sentimentos
estão completamente desprovidos de um sentido moral sobre o que se considera ‘bom’ ou ‘mau’, ‘justo’ ou ‘injusto’ que apenas desponta no estado
social. O primeiro é o sentimento que o leva a tomar consciência da sua
realidade como ser existente, mas em que a vida surge não como uma luta,
uma competição agónica, mas como um simples dado natural. O segundo
é a bondade, sentimento desprovido de qualquer conotação moral e que,
no fundo, é a fonte do que de mais humano existe no homem. Não sendo
justo nem injusto, não tendo nem virtudes nem vícios, o homem natural
não é, porém, um ser amoral, pois a sua bondade revela a sua humanidade.
Este é, quanto muito, um ser pré-moral ou moralmente indiferente.
Esta situação de dispersão originária não poderia durar eternamente.
Retomando a sua história conjectural do género humano, Rousseau atribui
às adversidades naturais a origem das primeiras associações. A inclemência
do clima e das estações do ano, tornam cada vez mais difícil a sobrevivência
do indivíduo no estado recolector da primeira fase e, por conseguinte,
começa a diferenciá-lo da natureza que se torna cada vez mais um obstáculo
à satisfação das suas necessidades rudimentares. Por outro lado, a conjectura de Rousseau não é apenas fruto da sua imaginação romanesca, mas
encontra alguns fundamentos científicos. Para a superação do estado de
dispersão originária contribuem fenómenos geológicos que se perderam
na poeira evanescente do tempo, mas que provavelmente exerceram uma
influência determinante na formação do que poderemos chamar a segunda
etapa do estado de natureza: “grandes inundações ou tremores de terra
7
Rousseau, Jean-Jaques, ibidem., p. 44-45.
107
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
rodearam de água ou de precipícios zonas habitadas; revoluções do globo
separaram regiões do globo e cortaram em ilhas porções do continente”8.
Estes fenómenos suscitam a formação das primeiras hordas para enfrentar
os primeiros obstáculos que a natureza começa a colocar à sobrevivência
dos homens, embora estas permaneçam ainda dispersas, pois os fenómenos geológicos que estiveram na origem da sua formação relegam-nos
para regiões isoladas, sem contacto umas com as outras.
Mais tarde, numa terceira etapa, formam-se os primeiros domicílios sedentários que introduzem importantes inovações relativamente ao
período precedente. A caça e a pesca substituem definitivamente o estado
de remoção dos frutos da natureza. Esta evolução tecnológica, que constitui um passo mais significativo do que o precedente na ‘desnaturalização’
do homem primitivo, conduz à superação das hordas anárquicas fruto das
contingências geofísicas. Surgem então os primeiros agregados humanos não
circunstanciais que tendem a reagrupar-se e a diferenciar-se em ‘famílias’
que partilham um antepassado comum. Constroem-se as primeiras aldeias,
mas a terra não se converte em propriedade privada. Porém, os homens não
conhecem ainda tanto as técnicas da metalurgia, necessárias à construção
dos primeiros arados que rompem a ‘terra virgem’, como as técnicas da
agricultura extensiva. Apesar disso, começam a cultivar com instrumentos
elementares pequenas hortas em redor das suas cabanas que constituem, no
entanto, um mero complemento relativamente à sua actividade fundamental
de caçadores e pescadores. Nestas ‘comunidades naturais’, inspiradas nos
relatos que Rousseau conhecia sobre os índios norte-americanos, esses seres
a quem foi atribuída uma designação equivocada pelos ‘descobridores’ europeus, emerge uma primeira diferenciação das funções laborativas que atribui
aos homens a função de prover à subsistência comum e relega as mulheres
para as tarefas domésticas e para cuidar das crianças.
Nesta terceira etapa do estado de natureza despontam as primeiras regras
da aprovação e da estima e começa a debilitar-se o ‘amor de si’, enquanto
surgem as primeiras manifestações do ‘amor próprio’. Para Rousseau este
difere radicalmente do primeiro, já que é fruto do interesse pessoal, estimula a comparação dos talentos e das capacidades de cada um relativamente
8
Ibidem, p. 58
108
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
aos outros e é a fonte subjectiva da competição agónica pelo predomínio em
que o indivíduo visa superar o outro. No entanto, como não existe ainda
propriedade privada, mas uma forma de repartição comum dos frutos do
trabalho no seio da comunidade natural, este sentimento não encontra as
condições necessárias para poder desenvolver-se. Os conflitos são esporádicos, não geram verdadeiramente um ‘estado de guerra’, pois opõem apenas
uma comunidade natural a outras, centram-se exclusivamente na delimitação e apropriação do território de caça que, embora não seja inesgotável,
pode sempre ser redescoberto noutras paragens quando uma delas é expulsa
por outra do seu ‘habitat’ natural. Por sua vez, o sentimento primordial de
piedade já não reveste a forma espontânea da simpatia pelo próximo, mas a
do amor paterno e conjugal, sentimento mais estável porque se centra numa
relação não circunstancial mas duradoura que, no entanto, já não abrange
os membros que pertencem a outras comunidades.
A quarta etapa do estado de natureza é marcada pela formação da
propriedade privada e, por conseguinte, constitui verdadeiramente o ponto
de ruptura que estará na origem do estado civil, em que surgem as hierarquias em que cada um compete e se compara com os outros para que seja
reconhecido o seu ‘mérito’ e as desigualdades sociais não apenas se desenvolvem, mas acabam por ser ideologicamente legitimadas. A perspectiva de
Rousseau é sombria, pois, relativamente ao selvagem do estado de dispersão
originária, o indivíduo começa a dar mais importância às coisas que pode
possuir relativamente aos outros. A propriedade privada é, no fundo, a
fonte da desintegração das primeiras comunidades naturais de caçadores, a
condição da deformação do homem arrastado para um processo histórico
que destrói a simpatia espontânea, natural dos primórdios e gera o individualismo exclusivista: “O primeiro que, tendo murado um terreno se lembrou
de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas simples que acreditaram, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, quantas guerras, quantos
assassínios, quantas misérias e horrores, não teria evitado ao género humano
aquele que, arrancando as pedras ou tapando o fosso, gritasse para os seus
semelhantes: «Tende cuidado não escuteis esse impostor; estais perdidos se
esqueceis que os frutos são de todos e a terra não é de ninguém».”9
9
Ibidem, p. 53
109
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
Contrariamente a Locke e aos seus herdeiros fisiocráticos da escola de
Quesnay, o cultivo extensivo da terra não tem, em Rousseau, uma prioridade absoluta na ordem temporal, mas relativa. De facto, apenas um certo
nível de desenvolvimento tecnológico que os povos selvagens da América
ainda não conheciam poderia obrigar o indivíduo a abandonar o seu
estado de ‘indolência’ primitiva, em que as necessidades estão proporcionadas aos recursos que garantem a sua sobrevivência10, para dedicar-se
exclusivamente a um trabalho que exige instrumentos tecnologicamente
mais evoluídos e uma certa capacidade de previsão relativamente à satisfação de necessidades que se desnaturalizam cada vez mais e se projectam
no futuro. Uma nova divisão do trabalho acrescenta-se então à que se
tinha estabelecido anteriormente entre o homem e a mulher: a divisão
do trabalho entre cultivadores de trigo ou agricultores e os trabalhadores do ferro. Os primeiros têm necessidade de ferro para a fabricação
dos arados imprescindíveis para o cultivo extensivo da terra. Por sua vez,
os segundos precisam do trigo para se alimentarem, enquanto extraem
o ferro das vísceras da terra e o transformam num produto destinado ao
consumo produtivo dos cultivadores. Instaura-se assim uma dependência
recíproca entre o trabalho de uns e o trabalho dos outros que rompe a
auto-suficiência tanto do homem primitivo no seu estádio de dispersão
originária como das primeiras comunidades naturais de caçadores e pescadores. Esta divisão do trabalho é acompanhada por uma ‘revolução’ no
plano espiritual e mental: para cultivar a terra em larga escala é necessário
que os agricultores estejam dispostos a “perder primeiro alguma coisa para
ganharem muito no futuro11.” Reciprocamente, o ‘metalúrgico’ devia ser
dotado de “uma grande coragem e uma boa previsão para compreender
um trabalho tão penoso vendo a tão grande distância as vantagens que se
poderiam retirar.12” Eis como a capacidade de auto-aperfeiçoamento, que
permanecia em letargo no estado de dispersão originária e que não tinha
10
“Não fazer nada, uma vez garantida a sua sobrevivência, é a mais antiga e a mais forte das paixões dos homens. Se
olhássemos as coisas mais de perto veríamos que mesmo entre nós só trabalhamos para um dia vir a ter descanso:
é a preguiça que, ao fim e ao cabo, nos torna trabalhadores” (Rousseau, Jean-Jacques, Ensaio sobre a origem das línguas,
Estampa, Lisboa, 1981, nota à p. 80).
11
12
Rousseau, Jean-Jacques, Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens, op.cit., p. 62.
Ibidem, p. 61.
110
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
ainda condições para se desenvolver no seio das primeiras comunidades
de caçadores e pescadores, desperta através da capacidade de cálculo e de
assunção de riscos gerada pelo facto de que os meios de subsistência se
tornam mais difíceis de conseguir do que nos dois períodos anteriores.
O nascimento do cultivo extensivo teve como principal consequência a
formação das primeiras “regras de justiça” com vista a uma primeira repartição da propriedade da terra, pois os homens começaram a “alargar as suas
vistas para o futuro e dando-se conta de que todos tinham alguns bens a
perder, cada um começou a temer para si a represália dos males que podia
fazer a outrem.”13 Não eram ainda, no entanto, normas jurídicas, mas
apenas consuetudinárias, pois o estado civil ainda não se tinha constituído.
Tal como no Locke do Segundo tratado sobre o governo, Rousseau considera no
seu Segundo Discurso que a propriedade privada se constitui ainda no estado de
natureza e se baseia no trabalho do cultivador através do direito de usucapião: “É somente o trabalho que, ao dar direito ao trabalhador, sobre o
produto da terra que trabalhou, lhe dá também como consequência direito
sobre o campo, pelo menos até à colheita, e assim, de uma forma sucessiva,
todos os anos, o que origina uma posse contínua, que facilmente se transforma em propriedade.”14
No entanto, as afinidades com Locke terminam precisamente neste
ponto. Contrariamente ao filósofo britânico, Rousseau considera que
os benefícios que a divisão do trabalho entre a agricultura e a metalurgia
suscitaram na capacidade de auto-aperfeiçoamento dos indivíduos não
compensaram os seus prejuízos sociais. A dependência recíproca entre a
necessidade de ferro dos agricultores e a necessidade de trigo dos artesãos
não conduz ao mesmo nível de satisfação. Pelo contrário, esta contribui
para a intensificação das diferenças de produtividade e tem como principal
consequência o aprofundamento das distinções entre os ‘cultivadores-proprietários’ que, no início do período, permaneciam praticamente
iguais. Paralelamente, o aumento das trocas em consequência da introdução do dinheiro favorece o alargamento dos processos de cultivação
extensiva da terra com o objectivo de obtenção de um excedente cada vez
13
Ibidem, pp. 62-63.
14
Ibidem, p. 63.
111
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
maior. A terra cobre-se de patrimónios fundiários confinantes que apenas
podem aumentar uns à custa dos outros. Os cultivadores menos laboriosos
e previdentes acabam por ser expropriados em proveito dos outros que
perdem as suas terras. Por fim, confrontam-se ricos e pobres ou, mais especificamente, possuidores e não possuidores. Os primeiros invocam o seu
direito ao ‘supérfluo’, ou seja, ao excedente de produtos disponíveis para a
troca com o argumento da sua maior capacidade ou iniciativa em contraste
com a ‘indolência’ dos outros que, assim, são considerados responsáveis
pela sua própria pobreza. Diferentemente de Locke, este argumento não
tem, porém, nenhuma validade jurídica para Rousseau: “«Fui eu que
construí este muro; ganhei este terreno com o meu trabalho»; «quem
vos deu os alinhamentos», poder-se-lhe-ia responder, «e em virtude
de quê pretendeis ser pagos à nossa custa por um trabalho que não vos
impusemos? Ignorais que uma multidão de irmãos vossos morre ou sofre
necessidades naquilo que vós tendes em demasia e que vos seria necessário
um consentimento expresso e unânime do género humano para apropriardes da subsistência comum tudo o que vai para além da vossa?»”15
Para o genebrino o desenvolvimento tecnológico não foi governado
por uma providencial ‘mão invisível’ em que cada um seguindo o seu interesse pessoal acaba por favorecer o interesse de todos. Para Locke, por
exemplo, mas também para os seus discípulos da fisiocracia, o proprietário
‘previdente’, ou seja, capaz de avaliar os custos e os benefícios da sua actividade segundo uma lógica de racionalidade instrumental é uma espécie
de ‘benfeitor’ público, já que ‘cria’ valor através da produção de um excedente de subsistências ou de produtos manufacturados que, vendidos no
mercado, contribuem para satisfazer as necessidades tanto de si próprio
como dos outros. Rousseau contesta fortemente este argumento, pois ele
naturaliza ou eterniza a desigualdade social a partir das diferenças entre as
capacidades dos indivíduos que se objectivam através de uma competição
agónica em que o ter e o possuir cada vez mais se transformam no horizonte da sua existência e acabam por constituir a condição necessária para a
satisfação do desejo de mando e predomínio sobre os outros. Ao contrário
da corrente iluminista dominante, de inspiração liberal, o aumento das
15
Ibidem, p. 66
112
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
necessidades e dos meios para a sua satisfação resultante do progresso
tecnológico, apesar de desnaturalizar o selvagem dos primórdios, não é
de modo algum suficiente para socializar verdadeiramente o homem dito
‘civilizado’: “O homem selvagem, depois de jantado, está em paz com toda
a natureza, é amigo de todos os semelhantes (…) mas com o homem em
sociedade as coisas passam-se de maneira bastante diferente; trata-se, em
primeiro lugar, de providenciar ao necessário e depois ao supérfluo; em
seguida vêm as delícias e depois as imensas riquezas, e depois os súbditos e
depois os escravos: não há um momento de descanso.”16
A emergência da divisão do trabalho e do valor de troca conduz à perda da
primitiva auto-suficiência do selvagem dos primórdios e obriga o indivíduo
a contribuir para a satisfação das necessidades dos outros para poder satisfazer as suas. O interesse pessoal substitui o impulso natural da simpatia que
caracteriza a conduta do homem primitivo e estimula o homem em vias de se
tornar ‘civilizado’ a aumentar a sua própria fortuna relativamente à dos outros
e mesmo à sua custa. No entanto, como este não pode prescindir dos outros
tenta persuadi-los com a astúcia de que estariam a trabalhar para promover o
seu próprio interesse e bem-estar se trabalhassem para a promoção do dele.
O amor de si, predominante no selvagem e ainda entre os membros das
comunidades naturais de caçadores e pescadores, transforma-se definitivamente em amor-próprio interessado em que cada um, comparando-se com
os outros para realçar o ‘valor’ do que considera ser o seu próprio ‘mérito’,
simula preocupar-se com o bem-estar daqueles quando, na realidade, tem
apenas como objectivo promover o seu interesse pessoal.
No entanto, nesta etapa derradeira da evolução do estado de natureza
a reprodução das relações de dependência recíproca e a legitimação ideológica de que o interesse pessoal é a base da coexistência são cada vez mais
postas em causa pelo aumento das diferenciações e desigualdades sociais.
O confronto entre possuidores e não possuidores ameaça transformar-se
numa guerra de todos contra todos que destruirá a propriedade privada que
alguns acumularam e que já não pode ser respeitada pelos não possuidores
com o argumento ‘meritocrático’ de que foi conquistada pelo engenho e
sagacidade dos seus beneficiários. Eis então como um dos possuidores mais
16
Ibidem, nota 7, p. 105.
113
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
astucioso do que os outros, consciente do interesse que o une aos restantes
membros da sua classe, apresenta uma proposta para convencer os não
proprietários a celebrar um pacto que assegurará a estabilidade entretanto ameaçada: “«Unamo-nos», disse-lhes, «para garantir os fracos
da opressão, para conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do
que lhe pertence. Instituamos regulamentos de justiça e de paz a que todos
sejam obrigados a conformar-se, que não façam acepção de pessoas e que
de algum modo reparem os caprichos da sorte, submetendo igualmente o
poderoso e o fraco a deveres mútuos. Numa palavra, em vez de voltarmos
as nossas forças contra nós próprios reunamo-las num poder supremo
que nos governe de acordo com leis sábias, que proteja e defenda todos os
membros da associação, afaste os inimigos comuns e nos mantenha numa
eterna concórdia».”17
Apesar de se inspirar nas correntes jusnaturalistas, o pacto ‘social’ de
Rousseau que instituiu o estado civil é uma crítica aos defensores da tese
liberal que reduz a liberdade a um mero corolário do direito de propriedade. Em primeiro lugar, a ‘racionalidade’ dos interesses das classes
possuidoras é apenas capaz de formular uma concepção de ‘bem público’
que acaba por reduzir-se a um mero instrumento para a preservação da sua
segurança privada. Em segundo lugar, a protecção das pessoas pela autoridade ‘pública’ que será instituída, apesar de ter como objectivo neutralizar
as diferenças naturais entre as forças dos indivíduos, submetendo os mais
fortes e os mais fracos a regras comuns de coexistência, acabará por legitimar juridicamente as diferenciações económicas e sociais que resultam
do reconhecimento do direito de propriedade. Em terceiro lugar, o ‘artifício’ ideológico que está na origem do pacto ‘social’ subverte uma relação
de forças que era anteriormente favorável aos não proprietários que não
cessavam de aumentar relativamente ao número cada vez mais exíguo dos
proprietários em que se concentrava o excedente social acumulado. Deste
modo, a multidão dos ‘pobres’ torna-se mais débil, enquanto a elite dos
ricos se torna definitivamente mais poderosa.
O ‘contrato promessa’ de obediência às leis não é, porém, suficiente
para evitar as transgressões e punir os delitos contra a propriedade ou
17
Ibidem, p. 67
114
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
contra a integridade dos mais débeis fisicamente. Por conseguinte, é necessário um segundo pacto para vincular as partes a cumprir as obrigações a
que se tinham formalmente comprometido: “Se não existia poder superior
que pudesse ser garante da fidelidade dos contraentes, nem obrigá-los a
cumprir as suas recíprocas obrigações, as partes permanecem únicos juízes
da sua própria causa e cada uma delas teria sempre o direito de renunciar
ao contrato, quer quando achasse que a outra infringira as condições ou
que estas tinham deixado de lhe convir.”18
No Segundo discurso Rousseau retoma a tese jusnaturalista dominante
sobre a existência de dois pactos: um ‘pacto de associação’ – pactum unionis
– que estabelece consensualmente as normas jurídicas que regerão as relações civis; e um ‘pacto de submissão’ – pactum subjectionis – que institui uma
autoridade pública separada, isto é, um governo e uma magistratura que
garantem a aplicação das leis. No entanto, o filósofo genebrino considera
que o pacto de associação tem uma precedência histórica – e não apenas
lógica – sobre o pacto de submissão, o que o demarca dos jusnaturalistas.
De facto, antes que o segundo seja instituído – o povo escolhe os chefes
a que se compromete a obedecer – a ‘sociedade’ subsistia já através de
algumas “convenções gerais que todos os indivíduos se comprometiam a
observar e de que a comunidade se tornava garante para cada um deles.”19
As comunidades de caçadores da segunda etapa do estado de natureza são
exemplos marcantes desta espécie de direito consuetudinário, bem como a
usucapião relativamente à posse da colheita baseada no trabalho reiterado
do cultivador. Apenas quando estas convenções se revelam insuficientes
para prevenirem as consequências socialmente desastrosas do conflito
dos interesses antagónicos provocado pela crescente desigualdade entre
proprietários e não proprietários, se torna necessário transferir para
uma instituição que detenha o monopólio legítimo da força pública, que
é também o monopólio legítimo da violência, o poder de coagir todos a
obedecer às normas que garantem não propriamente a convivência civil,
pois esta não pode verdadeiramente existir num contexto em que crescem
as desigualdades e a luta pelo predomínio, mas, pelo menos, a coexistência
18
Ibidem, p. 75.
19
Ibidem, p. 69
115
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
social. Em suma, o que se forma verdadeiramente é o Estado político: uma
parte da sociedade, o governo e o seu aparato administrativo e repressivo,
destaca-se e ergue-se acima dela para evitar que o aprofundamento dos
antagonismos e fracturas sociais conduzam à sua iminente dissolução.20
Instituído o governo, inicia-se a segunda etapa do estado civil. Ao
contrário de Locke para quem este se limita a assegurar o direito de propriedade que se forma no estado de natureza, Rousseau considera que nenhum
argumento pretensamente racional pode dissuadir o povo a renunciar à
obediência estipulada, sempre que as condições de existência da maioria se
tornem insustentáveis e que os governantes a quem foi confiado o depósito
da força pública exerçam o poder que lhes foi delegado de modo arbitrário.
Para evitar os inúmeros conflitos que resultariam do reconhecimento do
direito de resistência à opressão, é necessária “uma base mais sólida do que
exclusivamente a razão” para preservar a ordem pública. Esta base não é outra
senão a religião, pois a “vontade divina” deveria intervir para “dar à autoridade soberana um carácter sagrado e inviolável que tirasse aos súbditos o
direito de dela dispor.”21 Este novo artifício ideológico, para além de suscitar
o conformismo da maioria perante a concentração da riqueza nas mãos de
alguns, abre a porta à competição pelo prestígio, poder e predomínio que
contribui para sufocar à nascença todas as possibilidades de formação de
um verdadeiro espírito público. Os que têm algo a perder deixam-se então
submeter a um só ou a poucos para que possam exercer o seu predomínio
sobre os que se situam nos escalões imediatamente inferiores da hierarquia
social e política: “Os cidadãos não se deixam oprimir senão na medida em
que são arrastados por uma cega ambição, e, na medida em que olham mais
para baixo do que para cima, a dominação torna-se-lhes mais querida do
que a independência e consentem em arrastar as cadeias, para, por sua vez,
Friedrich Engels inspira-se no Segundo discurso de Rousseau para definir a sua concepção de Estado: “O Estado não é
pois de modo algum um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tão pouco é a «realidade da ideia moral»
ou «a imagem e realidade da razão», como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um
determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição
consigo mesma e está dividida por antagonismos que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas
classes com interesses económicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, torna-se
necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo
dentro dos limites da «ordem». Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela e distanciando-se cada vez
mais, é o Estado” (Engels, Friedrich – A origem da família, da propriedade e do Estado, Editorial Presença, s.d., p. 225).
20
21
Rousseau, Jean-Jacques, op. cit., p. 75.
116
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
as poderem lançar sobre os outros. É muito difícil reduzir à obediência
aquele que não procurasse mandar e o melhor político não conseguiria
sujeitar homens que não desejassem senão ser livres.”22
Esta concepção de liberdade como não dominação é uma das grandes
conquistas do pensamento de Rousseau que caracterizaremos mais detalhadamente no final deste artigo. Entretanto, os detentores do poder
político têm interesse em promover “tudo o que pode enfraquecer
homens reunidos, desunindo-os; tudo o que pode dar um ar de concórdia
aparente; tudo o que pode dar à sociedade um ar de concórdia aparente e
semear nela um gérmen de divisão real; tudo o que inspirar às diferentes
ordens uma desconfiança e um ódio mútuo pela oposição dos seus direitos
e, por conseguinte, fortalecer o poder que a todos contém.”23 Este novo
artifício ideológico – a táctica de ‘dividir para reinar’ – inaugura a terceira
etapa do estado civil em que surge o despotismo político. Os governantes,
que anteriormente tinham sido eleitos ou consensualmente legitimados,
transformam-se em tiranos, enquanto o povo se transforma numa massa
amorfa de súbditos isolados24. Assim, a igualdade vigente no estado de
dispersão originária e nas primeiras comunidades de caçadores e pescadores acabará por ser restabelecida na terceira e derradeira etapa do estado
civil de uma forma totalmente invertida: querendo cada um contar mais
do que os outros, acabam todos por nada contar perante aquele ou aqueles
a quem alienaram a sua liberdade política. No seio do próprio estado civil
formar-se-á então um novo estado de natureza radicalmente diferente do
que constituiu o ponto de partida do desenvolvimento histórico, pois “um
era o estado de natureza na sua pureza e este último é fruto de um excesso
de corrupção.”25
Actualmente, o despotismo político a que se refere Rousseau foi substituído pelo despotismo dos mercados financeiros que transforma os governos
22
Ibidem, p. 77.
23
Ibidem, pp. 79-80.
24
“Uma Cidade, é preciso dizê-lo ainda, em que a paz é efeito da inércia dos súbditos conduzidos como um rebanho
e formados unicamente na servidão, merece mais o nome de solidão do que o de Cidade” (Espinosa – Tratado político,
Editorial Estampa, Lisboa, 1977, p. 48).
25
Rousseau, Jean-Jacques, op. cit., p. 80.
117
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
eleitos em meros executores de uma oligarquia de credores e especuladores
que promovem a desintegração das sociedades. Mas o Segundo Discurso de
Rousseau, apesar de não poder naturalmente prever esta regressão social e
política, adquire uma actualidade extraordinária, pois é uma resposta crítica
ao pensamento liberal dominante da época iluminista que prolonga as suas
raízes no presente. Para esta forma de pensamento, que tem em Kant o seu
máximo representante, são os obstáculos que a natureza opõe ao homem e a
resistência dos outros à sua pretensão de tudo subordinar à sua vontade que
o leva a ‘sair de si’ e a desenvolver as suas capacidades. Caso contrário, afirma
o filósofo alemão, “todos os talentos permaneceriam sempre em germe no
seio de uma existência de pastores da Arcádia, numa concórdia, numa satisfação e num amor mútuos perfeitos; os homens, doces como os cordeiros
que apascentam, não dariam à existência quase mais valor do que a que tem
o seu rebanho doméstico.”26 A perspectiva do conservador Mariano Rajoy
não é estruturalmente diferente: os homens existem para competirem uns
com os outros, para se superarem uns aos outros, ou seja, no fim de contas,
para se tornarem ‘desiguais’.
Rousseau põe em causa esta concepção. Para o genebrino a superação
do obstáculo da natureza converte-se, a partir de um determinado grau de
desenvolvimento tecnológico, em domínio do homem sobre o homem num
contexto de uma organização e divisão do trabalho que, apesar de promover a
produtividade económica, aprofunda as diferenciações sociais entre possuidores e não possuidores e entre os que comandam e os que executam. Neste
contexto, o homem não visa cooperar com os outros mas ultrapassá-los numa
competição agonística em que, como revela Hobbes, a “emulação” consiste
em “esforçar-se para superar quem está imediatamente à frente”27. Mas isto
significa, segundo Rousseau, o debilitamento cada vez maior do sentimento
de solidariedade e piedade do ‘homem natural’. Em contrapartida, reforça-se cada vez mais o desejo de distinção ou diferenciação relativamente aos
outros não apenas através da ostentação dos bens materiais possuídos, mas
também através dos talentos, capacidades, méritos e competências considerados socialmente ‘relevantes’. Todas estas distinções fictícias fornecem a
26
Kant – La philosophie de l’histoire, Denoel/Gonthier, Paris, 1976, p. 32.
27
Hobbes, Thomas – Elementi di legge naturale e politica, La Nuova Italia Editrice, Florença, 1972, p. 75.
118
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
quem as manifesta a estima e a aprovação dos outros porque são, de certo
modo, o símbolo do seu sucesso, da sua reputação e do seu poder. Assim, o
homem civil, para além de disfarçar as suas motivações egoístas sob a máscara
da sociabilidade, vive sempre ‘fora de si próprio’, já que retira dos outros
tanto a sua atomística ‘consciência de si’ como o sentimento da exclusividade
da sua própria existência. Eis como o progresso tecnológico se associa, no
plano ético, não a uma melhoria mas a uma deterioração e deformação da
conduta humana. Se é verdade que o retorno ao estado natural primitivo é
impossível, também é verdade que o reencontro da felicidade perdida, se tal
for possível, deverá situar-se ‘noutro lugar’, para além da História.
A república social de Rousseau
No prefácio de Narcise, obra literária e teatral publicada em 1752, Rousseau
defende que a maior parte dos filósofos e moralistas da sua época tendem a
destacar nas suas obras esta pequena máxima ‘exotérica’: “Os homens têm
em todo o lado as mesmas paixões; em todo o lado se deixam conduzir pelo
amor-próprio e pelo interesse; portanto, são os mesmos em todo o lado.”28
Com esta máxima, lançam o argumento, não menos exotérico, de que cada
um, perseguindo o seu interesse privado, contribui para satisfação do interesse privado dos outros muito mais eficazmente do que se manifestasse
deliberadamente a intenção de promovê-lo: “Todos os nossos escritores
consideram como a obra-prima do nosso século, as ciências e as artes, o luxo
e o comércio, as leis e as outras relações que, instituindo entre os homens os
vínculos da sociedade através do interesse pessoal, colocam-nos num estado
de mútua dependência, dão-lhes necessidades recíprocas e obrigam cada um
a contribuir para a felicidade dos outros para poder criar a própria.”29
Este tipo de argumentação ignora o facto de que os interesses pessoais
tendem a transformar-se cada vez mais em interesses contrapostos e mesmo
antagónicos quando deixam de se referir a uma dimensão pública. Estes não
aproximam os homens através de uma partilha de valores e de um empenhamento recíproco na procura de um bem comum, mas, pelo contrário,
encorajam cada um a converter os outros em meros instrumentos para a
28
Rousseau, J.-J. – Opere, Florença, 1972, nota à p. 27.
29
Ibidem, p. 26.
119
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
realização do seu bem-estar, riqueza e prosperidade exclusivas. Não é verdade
que os valores mercantis do ‘ter’, promovendo a comparação de uns com
os outros, convertem o indivíduo num obstáculo às pretensões dos outros e
promovem uma competição agónica em que cada um não visa cooperar com o
outro mas superá-lo para afirmar a sua ‘diferença’? : “Logo que um homem
se compara aos outros torna-se necessariamente seu inimigo, pois cada um
querendo no seu íntimo ser o mais poderoso, o mais feliz, o mais rico apenas
pode considerar como um inimigo secreto quem tendo em si próprio o
mesmo projecto se torna um obstáculo para a execução do dele.”30
A crítica de Rousseau aos valores mercantis do ‘ter’ assinala a transformação
da sociedade num mercado competitivo – o que lhe confere uma extraordinária
actualidade – caracterizado por um enorme vazio de valores ético-políticos.
Por um lado, o indivíduo não olha a meios para satisfazer os seus fins egoístas
e frequentemente encontra a sua própria satisfação no fracasso dos outros, a
quem chama depreciativamente ‘loosers’, perdedores, para utilizar a terminologia anglo-saxónica actualmente em voga. Por outro lado, como numa
‘sociedade de mercado’ cada um é uma espécie de ‘livre cambista’ que tem
sempre alguma mercadoria para vender aos outros, transforma-se num dissimulado, pois habitua-se a fingir que o interesse do outro, ou seja, do ‘cliente’ a
quem ‘religiosamente serve’ é mais importante do que o seu próprio interesse.
O relacionamento social transforma-se assim num jogo de aparências em que
cada um, estranho a si próprio e aos outros, oculta perante eles o seu próprio
ser e perde completamente de vista o bem público. Para alguns a prosperidade
do ‘estado civil’ baseia-se mesmo nas ‘paixões’ egoístas dos privados, de modo
que uma política que vise transformá-los em pessoas honestas e defensoras
do bem comum apenas contribuirá para mergulhar a ‘colmeia humana’ na
mais profunda das misérias31. Considerando o homem como é hoje, como o
homem em geral, grande parte dos contemporâneos de Rousseau renunciam
30
Rousseau, Jean-Jacques – “Fragments politiques” in Oeuvres Complètes, Gallimard, Paris, 1964, vol. III, p. 478.
“Deixai, pois de vos lamentar: apenas os tolos querem / Tornar honesta uma grande colmeia. / Desfrutar das comodidades do mundo, / Ter renome na guerra, mas viver no conforto/ Sem grandes vícios, é uma vã / Utopia, instalada
no cérebro. / É necessário que existam a desonestidade, o luxo e o orgulho, / Se queremos gozar o fruto (…) Sim, se
um povo quer ser grande, / O vício é tão necessário ao Estado / Como a fome o é para comer” (Mandeville, Bernard
– La fable dês abeilles, Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1974, p. 40).
Eis como alguns ‘ideólogos’ contemporâneos de Wall Street se inspiram neste poema mandevilliano, que deveriam
ter conhecido em milésima mão, para lançarem ao mundo a edificante máxima: ‘Greed is good’ (‘A ganância é boa’).
31
120
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
cepticamente a “ver numa constituição melhor das coisas, o preço das boas
acções, o castigo das más e o amável acordo da justiça e da felicidade.”32
Mais optimistas, outros vêem na lei natural, qual regra de conduta de
um ser moral capaz de controlar as próprias paixões egoístas e de se autodeterminar de acordo com a razão, o vínculo que garante a coexistência do
interesse de cada um com o dos outros. A este argumento Rousseau responde
que num contexto social em que o bem público não constitui o objectivo do
empenhamento de todos, a razão não é por si só suficiente para impedir
o indivíduo de prejudicar os outros sempre que este sente o seu próprio
interesse ameaçado ou apenas posto em causa. Nesta situação, o interesse
particular não se ‘coliga’ nunca com o interesse geral. Pelo contrário, ambos
se excluem mutuamente, porque “as leis sociais são um jugo que cada um
quer impor aos outros, mas não quer ele próprio suportá-lo.”33
A alternativa proposta por Rousseau consiste em encontrar uma forma
de associação em que o indivíduo renuncie conscientemente à sua existência
atomística para se elevar a uma nova forma de liberdade – uma liberdade
inclusiva – que não seja concebida como um mero meio para adquirir, bens,
prestígio e predomínio sobre os outros, mas como um objectivo que o una
aos outros numa verdadeira comunidade ético-política. Filho do seu século, o
filósofo de Genebra considera que a formação da nova comunidade resulta de
um acto voluntário, de um ‘contrato’ que, no entanto, difere substancialmente
do contrato jusnaturalista típico, já que é fundamentalmente um contrato de
associação, um ‘contrato social’, em que as partes rejeitam submeter-se a uma
autoridade política separada como condição da preservação da sua coexistência
no ‘estado civil’. A sua fórmula quimicamente pura é a seguinte: “ «Encontrar
uma forma de associação que defenda e proteja [com] toda a força comum a
pessoa e os bens de cada associado e em que cada um, ao unir-se a todos, só si
mesmo obedeça e continue tão livre como antes».“34
Como as condições estipuladas no ‘contrato social’ são iguais para todos
ninguém tentará impor aos outros um vínculo que ele próprio não aceite
32
Rousseau, Jean-Jacques – Fragments politiques, op. cit., p. 479
33
Rousseau, Jean-Jacques –“Du contract social (1e version)” in Oeuvres Complètes, Vol. III, p. 284.
34
Rousseau, Jean-Jacques – Contrato social, Editorial Presença, 1973, p. 21.
121
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
simultaneamente. Com este acto de associação entre indivíduos que viviam
precedentemente apenas para satisfazer os seus próprios interesses privados
exclusivos e não se cansavam de excogitar expedientes para se superarem ou
dominarem uns aos outros, forma-se um ‘eu comum’, uma vontade geral,
que une cada um aos outros. Deste modo, as partes deste contrato ‘sui
generis’ superam a sua personalidade abstracta, separada, transformando-se em membros de uma comunidade ético-política em que a convivência
cívica substitui a mera coexistência de vontades.
A comunidade política instituída chama-se República (‘Republique’) e é
designada pelos seus constituintes por Soberano (‘Souverain’) quando é activa e
Estado (‘État’) quando é passiva. Os seus membros formam o Povo (‘Peuple’) e
chamam-se Cidadãos (‘Citoyens’) na sua qualidade de participantes na assembleia
povo que detém a soberania e súbditos enquanto se encontram submetidos
às leis do Estado. Cada um será simultaneamente cidadão e súbdito, mas não
segundo o mesmo tipo de relação: é cidadão quando se eleva à vontade geral –
que não é o somatório das vontades particulares, ou ‘vontade de todos’, mas a
vontade moral comum que garante a coesão social e o convívio civil – e participa
na elaboração das leis que regem o destino da comunidade; é súbdito enquanto
indivíduo que obedece às leis porque possui uma vontade particular distinta da
vontade geral a que nunca poderá renunciar completamente.
O Soberano não constitui, como em Hobbes, uma autoridade separada,
mas sim a vontade geral que resulta da união de cada um com todos e dirige
a força pública do Estado. O primeiro não tem nenhuma obrigação perante
os súbditos porque a segunda tem como objectivo a realização do interesse
comum. Em contrapartida, aquele poderá obrigá-los a obedecer-lhe, já
que a vontade particular frequentemente leva-os a desfrutar tranquilamente dos direitos de cidadania sem assumirem os respectivos deveres. Esta
obrigação é condição necessária para a conservação da liberdade comum,
porque se o indivíduo se empenha com todos para constituir uma comunidade não depende de ninguém, mas apenas das leis a cuja elaboração
participa enquanto membro da assembleia soberana do povo.
As leis caracterizam-se sempre por se referirem a um objecto geral. Sendo
expressões da vontade geral, não podem nunca ter em conta questões específicas, nem as acções deste ou daquele indivíduo em particular. Isto significa que
o Soberano, apesar de ser o poder supremo do Estado, não pode impor a um
122
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
súbdito uma obrigação que não tenha simultaneamente imposto aos outros,
pois a sua actividade tem como horizonte as leis que vinculam todos de modo
igual. Torna-se então necessária a formação de um órgão que disponha da
força pública do Estado para agir sobre os súbditos em conformidade com as
directivas gerais e as regras fundamentais da convivência cívica estabelecidas
pela assembleia do povo soberano. Este órgão é o Governo (‘Gouvernement’).
A tarefa do Governo consiste em mediar a relação entre o Soberano e os
súbditos com vista à execução das leis e à manutenção da liberdade comum. A
sua formação não resulta, como no Segundo discurso, de um contrato entre o povo
e o chefe ou os chefes a quem ele se compromete a obedecer. Este não é mais do
que um mandato através do qual a assembleia do povo soberano cede em comissão
a simples funcionários o depósito da força pública do Estado. Estes funcionários poderão ser destituídos sempre que não executem fielmente as deliberações
comuns. A legitimidade de uma forma de governo não resultará do maior ou
menor número de magistrados que exercem o poder executivo, mas de que o
poder legislativo pertence à assembleia do povo soberano. Por isso, a República
é a forma legítima de Governo, enquanto a sua essência é a Democracia, ou seja, a
inalienável e indivisível soberania do povo.
O poder executivo do Governo é fruto da relação que se estabelece entre
o poder legislativo da universalidade dos cidadãos reunidos e o conjunto
disperso dos súbditos que obedecem às leis. O aumento da população e a
expansão territorial do Estado implica necessariamente que o poder de deliberação do cidadão nas decisões comuns diminui em proporção, apesar da
sua condição de súbdito permanecer inalterável: cada um “suporta da mesma
maneira todo o império das leis”35, mas o seu sufrágio que é, por assim dizer,
a “medida” da sua liberdade política indivisível36 – tem uma influência cada
vez menor na formulação daquelas. Nesta situação, o vínculo que mantém a
associação tende a debilitar-se. É necessário então que o poder de intervenção
35
Ibidem, p. 71.
“Para que uma vontade seja geral, nem sempre é necessário que seja unânime, mas é indispensável que todos os votos
sejam contados” (Ibidem, nota à p. 34).
Frase importantíssima porque defende que a cidadania é indivisível, ou seja, que todos os cidadãos têm direito a
voto – princípio básico da democracia – e que, por conseguinte, não pode existir distinção entre cidadãos activos, que
exercem o sufrágio por desfrutarem de uma autonomia e racionalidade que lhes é conferida pelo direito de propriedade, e cidadãos passivos, que, dependendo da vontade de outrem, estão apenas submetidos ao ‘império da lei’ sem
direito ao sufrágio. Esta é a posição do liberalismo kantiano (Veja-se: Kant, Emmanuel – Métaphysique des moeurs: Doctrine
du Droit, Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1979, pp. 196-97).
36
123
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
do Governo aumente para manter a coesão social e evitar a desintegração da
comunidade. Por outro lado, maior deverá ser também o poder do povo
para evitar que o corpo dos magistrados a quem comissionou o depósito da
força pública usurpe o exercício da sua autoridade soberana. Para evitá-lo
é necessário que este esteja frequentemente reunido. A duração das suas
assembleias periódicas provém de uma lei a que o Governo se deve subordinar porque o seu poder executivo é “suspenso” sempre que “o povo está
legitimamente reunido como soberano”37. O aumento da extensão territorial do Estado faz com que ele se deva federar, ou seja, reunir-se por grupos
e mudar frequentemente os depositários do poder executivo. Paralelamente,
a soberania não pode nunca ser delegada, pois os deputados do povo não
são os seus representantes, mas apenas os seus comissários38. Estes estarão
submetidos ao controlo popular através do vínculo do mandato imperativo
e, por conseguinte, poderão ser destituídos se contrariarem as decisões políticas periodicamente “referendadas” ou “plebiscitadas” pelo povo soberano.
Rousseau apercebe-se, porém que o alargamento do vínculo social
conduz ao debilitamento do corpo político, pelo que “um Estado pequeno
é proporcionalmente mais forte do que um maior.”39 Isto significa que o
indivíduo tende cada vez mais a ocupar-se dos seus negócios privados e,
em consequência, a tornar-se cada vez menos empenhado no exercício
activo da sua cidadania. Recusando a democracia representativa, Rousseau
defende, no entanto, que a única forma democrática de governo é aquela
em que o povo exerce directamente o poder legislativo. Mas esta forma
de governo adapta-se apenas aos Estados pequenos e em que as diferenciações sociais e económicas sejam mínimas: “Quantas coisas difíceis não
supõe este governo! Primeiro, um Estado muito pequeno, em que o povo
seja fácil de convocar e onde cada cidadão possa facilmente conhecer todos
os outros; em segundo lugar, uma grande simplicidade de costumes que
afaste a multiplicidade de problemas e as discussões espinhosas; depois
muita uniformidade nas classes e nas fortunas, pois sem ela, a igualdade
37
Ibidem, p. 108.
38
“O povo inglês julga ser livre, mas está muito enganado; só o é durante a eleição dos membros do parlamento; logo
que são eleitos, passa a ser escravo e nada é. Nos breves momentos em que goza de liberdade, faz tão mau uso dela, que
bem merece perdê-la” (Ibidem, p. 111).
39
Ibidem, p. 55.
124
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
não poderia subsistir por muito tempo nos direitos e na autoridade; finalmente, pouco ou nenhum luxo, porque ou o luxo é efeito das riquezas ou
torna-as necessárias; corrompe simultaneamente o rico e o pobre, um pela
posse, e o outro pela cobiça; vende a pátria à indolência, à vaidade; rouba ao
Estado todos os seus cidadãos, para os fazer escravos e todos da opinião.”40
Apesar de Rousseau considerar que “se existisse um povo de deuses, governar-se-ia democraticamente” e que “um governo tão perfeito não convém aos
homens”41, a democracia pode ser interpretada como o ideal que deve orientar
a actividade da única forma de governo legítimo. Democracia pressupõe antes
de tudo um certo nível de igualdade social. Em segundo lugar, a Democracia
associa-se a uma forma de liberdade como não dominação, ou seja, uma liberdade que rejeita o mando e o predomínio de alguns sobre a maioria que nasce
nas sociedades em que impera a desigualdade. Em terceiro lugar, a Democracia
pressupõe o controlo dos governantes pelos governados. Neste sentido, se o
Governo tem como objectivo “o cumprimento da vontade geral”, os meios para
o realizar são fundamentalmente quatro: “1. fazer respeitar as leis, 2 defender a
liberdade 3 manter os costumes 4 prover às necessidades públicas.”42
Entre as funções do Governo enunciadas pelo genebrino interessa-nos
destacar as duas últimas. A manutenção dos costumes está associada à promoção
da educação pública dos cidadãos. Sob o ponto de vista ético-político, esta deve
disciplinar o ‘amor próprio’ que é, no fundo, a fonte subjectiva da competição
agonística em que cada um visa superar o seu semelhante. Apesar de ser objectivamente impossível aboli-lo não porque o homem seja naturalmente egoísta, nem
porque, como afirma Mariano Rajoy, seja determinado pela ‘inveja igualitária’
dos mais desfavorecidos relativamente aos que se encontram nos lugares de topo
da ‘hierarquia social e política’, o amor próprio’ pode ser orientado para objectivos diferentes. Estes não serão a acumulação ilimitada de riquezas, nem a vaidade
pueril da ostentação de bens de luxo, nem a vontade de poder e privilégios, mas os
serviços que os indivíduos prestam ao Estado enquanto cidadãos civicamente empenhados. Mas isto significa que não será o mérito pessoal – conceito muito em voga
actualmente, mas que acaba frequentemente por legitimar diferenciações entre os
40
Ibidem, p. 81.
41
Ibidem, p. 82
42
Rousseau, Jean-Jacques – “Fragments politiques” in Oeuvres Complètes, p. 485.
125
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
indivíduos que resultam de causas sociais objectivas, por exemplo, a desigualdade
dos pontos de partida, que excluem muitos da oportunidade de manifestar os seus
próprios méritos –, mas a estima pública o critério da avaliação dos talentos e das
capacidades na República de Rousseau: ”Pertence à estima pública fazer a diferença entre os maus e as pessoas de bem; o magistrado não julga senão sobre o
direito rigoroso; mas o povo é verdadeiramente juiz dos costumes; julga de uma
maneira íntegra e esclarecida acerca deste ponto e, embora por vezes se abuse desse
juízo, nunca se corrompe. Os lugares dos cidadãos devem ser portanto regulados
não pelo mérito pessoal, o que redundaria em deixar ao magistrado uma aplicação
quase arbitrária da lei, mas pelos serviços que prestam ao Estado e que são susceptíveis duma estimativa mais exacta.”43
Relativamente à satisfação das necessidades públicas, é necessário antes
de tudo que se defina o direito de propriedade porque os bens dos particulares são a garantia mais segura dos seus compromissos futuros. Por outro
lado, sempre que estes aceitam associar-se deverão suportar as despesas
públicas da comunidade que formaram. Caso contrário, cada um desejará
apenas desfrutar dos benefícios da associação sem empenhar os seus bens
para mantê-la: “Se os bens não respondessem pelas pessoas nada seria tão
fácil como iludir os próprios deveres e ludibriar as leis.”44
Como vimos anteriormente, Rousseau admite que a origem da propriedade da terra remonta ao direito do primeiro ocupante baseado no trabalho.
No entanto considera, ao contrário de Locke e dos liberais da sua época, que
nenhuma espécie de ‘engenhosidade’ e ‘espírito de iniciativa’ poderá tornar
politicamente legítima a extensão de um direito de propriedade que atribuindo
a alguns o ‘supérfluo’ despoja os restantes do socialmente indispensável para
poderem ter uma existência condigna. Isto significa que a necessidade de segurança dos proprietários nunca poderá converter-se num critério que exclui os
não proprietários da comunidade política. Com o contrato social o indivíduo
renuncia à extensão ilimitada do seu direito de propriedade para transferi-lo
para a comunidade, pois recebe uma parte do que, enquanto privado, renunciou em benefício de todos, condição necessária para a sua própria segurança.
Rousseau, Jean-Jacques – Sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens, nota 17, p. 120. Veja-se também –
Rousseau, Jean-Jacques – “Considerations sur le gouvernement de la Pologne” in Oeuvres Completes, pp. 1020-29.
43
44
Rousseau, Jean-Jacques – “Economia” in Enciclopedia o dizionario ragionato delle scienze, delle arti e dei mestieri 1751-1772,
Feltrinelli, Milão, 1966, p. 269.
126
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
Caberá ao poder soberano a tarefa de instituir as regras gerais para a redistribuição dos bens fundiários, porque “o direito que cada particular tem sobre
a sua terra, está sempre subordinado ao direito que a comunidade tem sobre
todos”45. No entanto, esta não pode expropriar um particular, apesar de deter
a propriedade eminente de todas as terras. Caberá então ao Governo a tarefa
de conservar a igualdade relativa das fortunas privadas através de uma política
económica e social que tenha como objectivo fundamental não a expropriação
do excedente dos proprietários privados, mas a acumulação de imensos patrimónios por parte de alguns destes à custa da prosperidade pública.
A primeira medida da política económica e social proposta por Rousseau
consiste em estabelecer uma propriedade pública (‘domaine public’). Esta será
constituída por terras, uma parte das quais será arrendada por um determinado
número de anos a camponeses, enquanto a restante será desbravada através de
prestações laborativas em benefício da comunidade. Consciente das inúmeras
crises de carestia que avassalavam a sua época e provocavam inúmeras mortes por
fome, Rousseau defende que devem ser instituídos celeiros públicos ou, pelo
menos, registos públicos onde seja referido com exactidão a quantidade de víveres
indispensável para satisfazer as necessidades comuns em todo o território do
Estado. Com estes registos a administração pública poderá dirigir o seu fluxo das
zonas onde existam excedentes para aquelas em que vigore a carestia. Apenas com
este controlo público se poderá neutralizar que intermediários sem escrúpulos
possam explorar as assimetrias na produção das diversas regiões do território,
açambarcando a baixo preço os víveres nas que possuem excedentes para vendê-los a preços exorbitantes nas mais carenciadas, pois o “princípio fundamental
da prosperidade da nação” é que “toda a gente viva e ninguém se enriqueça.”46
45
Rousseau, Jean-Jacques – Contrato social, op. cit., p.29.
Rousseau, Jean-Jacques – “Project de constitution pour la Corse” in Oeuvres completes, p.994. Veja-se também
“Economia”in Enciclopedia 1751-1772, pp. 271-72.
A questão do abastecimento dos meios de subsistência coloca-se actualmente a nível mundial, e não apenas a nível local ou
numa pequena ilha como a Córsega, pelo que as propostas de Rousseau sobre a regulamentação do fornecimento de víveres
não perderam actualidade, mas devem ser contextualizadas. Assim, segundo a FAO, os preços reais dos alimentos dispararam
entre 2000 e 2012. Este aumento foi alimentado pela especulação sobre as matérias-primas que atingiram o seu pico em
2010, com o aumento do preço do trigo em consequência da seca na Rússia, incitando este país a decretar um embargo das
exportações deste cereal. Por conseguinte, é necessário regulamentar o comércio de víveres a nível global. Um dos primeiros
passos desta regulamentação seria a criação de uma base de dados comum que registaria informações sobre as reservas alimentares a nível mundial. Poder-se-ia, depois, na base de um planeamento rigoroso redistribuir as subsistências de modo a
satisfazer as necessidades das regiões mais carenciadas a partir das que possuíssem reservas. Uma coisa é certa: o comércio de
produtos alimentares não pode estar subordinado à especulação e ao despotismo cego das leis do chamado ‘mercado livre’.É
neste sentido que as propostas de Rousseau são actuais (Ver: Courrier International, 23.02.12, Paris, pp. 42-44).
46
127
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
Assegurado o abastecimento dos meios de subsistência deve-se promover,
em seguida, o desenvolvimento das indústrias mais indispensáveis. Para
além das que transformam as matérias-primas agrícolas, é necessário
proteger o património florestal fonte de madeira para a construção e o
aquecimento doméstico, explorar, se existirem, as minas dos metais mais
úteis, sobretudo o ferro, e implantar serrações e fundições perto dos rios e
dos bosques, localidades mais favoráveis para a transformação das matérias-primas e para o transporte dos produtos manufacturados. Estas indústrias
devem, porém, ser implantadas nas regiões menos férteis e menos povoadas
do território. Caso contrário, apesar do abastecimento dos operários e dos
artesãos se tornar mais fácil, a população laboriosa tenderá a concentrar-se em determinados pontos do território, enquanto outros se despovoam
e desertificam. Com esta política industrial a necessidade de importar será
reduzida a “algumas bagatelas” para cuja aquisição a administração pública
autorizará uma exportação proporcionada dos produtos do território.47
Para além das medidas de política agrária e industrial, o Governo deve
estabelecer um sistema de tributação dos rendimentos dos particulares.
As contribuições fiscais suscitam, porém, um importante problema jurídico: se são voluntárias a sua receita é nula; se são arbitrárias põem em
causa o legítimo direito de propriedade reconhecido pelo contrato social.
Para resolver este dilema, Rousseau defende que todos os impostos sobre
as pessoas devem ser instituídos apenas com o consenso expresso do povo.
Este consenso não pode, porém, ser fruto da vontade de todos, ou seja, da
mera soma aritmética das vontades particulares. Neste caso cada um tentará
transferir para os outros a carga fiscal e, por conseguinte, a subtrair-se
o mais possível ao pagamento dos impostos necessários para satisfazer as
necessidades públicas. Este pagamento deve, pelo contrário basear-se,
numa “vontade geral, manifestada através de uma pluralidade de votos, e
de um acordo sobre uma tarifa proporcional que não deixe nada de arbitrário ao imposto.” 48
Um outro princípio fundamental da tributação dos rendimentos é a
equidade. Para Rousseau, os impostos directos devem ser repartidos não
47
Rousseau, Jean-Jacques – “Project de constitution pour la Corse” in Oeuvres Complètes, pp. 928-29.
48
Rousseau, Jean-Jacques – Discorso sull l’economia politica, op.cit., p. 274.
128
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
apenas proporcionalmente aos bens possuídos pelos contribuintes, mas
também relativamente às diferenças dos seus patrimónios e da sua posição
social. Relativamente aos impostos indirectos, devem incidir não sobre
os bens de primeira necessidade mas sobre os produtos de luxo, já que
“enquanto existirem ricos, tentarão distinguir-se dos pobres, e para o
Estado não poderá existir uma fonte de receitas menos onerosa e mais
segura do que esta distinção.”49 O objectivo desta grande progressividade do sistema tributário é evitar a formação de grandes disparidades
na repartição dos rendimentos. Em caso contrário, o contrato social não
poderá manter-se porque os benefícios que cada um recolheria da associação seriam extremamente desiguais. O rico poderá então subverter o
contrato social e impor aos nãos possuidores um contrato privado que
seria formulado deste modo: “«Vocês têm necessidade de mim, porque
sou rico enquanto vocês são pobres: façamos pois um acordo entre nós:
eu conceder-vos-ei a honra de servir-me na condição de que me dêem o
pouco que vos resta pelo sacrifício que assumirei para comandar-vos».”50
O objectivo geral da política económica e social de Rousseau não é o de
“destruir absolutamente a propriedade privada porque é impossível, mas
de enquadrá-la nos limites mais restritos, de atribuir-lhe [uma] medida,
uma regra, um freio que a contenha, que a dirija e que a mantenha subordinada ao bem público.”51 A política agrária e industrial visa restabelecer
sob novas formas o ideal de autarcia vigente na segunda fase do estado de
natureza em que vigoravam as comunidades de caçadores e pescadores,
pois “quem depende dos outros e não encontre em si mesmo os próprios
recursos está condenado a não ser livre”52. A política fiscal visa, por sua vez,
redistribuir a riqueza social para evitar que “nenhum cidadão seja demasiado opulento para poder comprar um outro, e nenhum demasiado pobre
para ser obrigado a vender-se.”53 Ambas estão indissociavelmente ligadas à
49
Ibidem, p. 279.
50
Ibidem, p. 276.
51
Rousseau, Jean-Jacques – Project de constitution sur la Corse, op.cit., p. 931.
52
Ibidem, p. 903.
53
Rousseau, Jean-Jacques – Du contrat social (1eversion), op. cit., p. 332.
129
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
política educativa cujo objectivo fundamental é promover o civismo dos
cidadãos. Autarcia económica, igualdade, espírito público encontram a
sua unidade e razão de ser no princípio em que se baseia o contrato social:
que ninguém dependa de outro, mas apenas das leis que dá a si próprio
enquanto membro activo do povo soberano.
Rousseau, nosso contemporâneo
Trezentos anos depois da data do seu nascimento, Jean-Jacques Rousseau
é uma figura que não perdeu actualidade. Alguém disse que ‘os clássicos
são eternos’. No caso de Jean-Jacques, ‘citoyen de Genéve’, mas também
‘citoyen du monde’, designação que não seria provavelmente do seu agrado,
a sua actualidade começa, paradoxalmente, com as aporias e contradições
‘fecundas’ do seu pensamento político. Para Rousseau, autor do século
XVIII, a socialização do homem é apenas política, mas não social. Neste
sentido, é o primeiro autor a aperceber-se da contradição entre o ‘homem’,
ou seja, o membro da sociedade civil que apenas tem em vista a realização
do seu interesse privado, e o ‘citoyen’, membro emancipado de uma comunidade política que, no entanto, permanece ainda demasiado abstracta, tal
como Marx demonstrou na sua Crítica da questão judaica. Se é verdade que os
indivíduos acedem mediante o contrato social à sua ‘existência genérica’,
para utilizar uma expressão cara ao Marx dos ‘escritos da juventude’, de
cidadãos participantes nas deliberações públicas, também é verdade que
enquanto indivíduos sociais, membros da ‘sociedade civil’ permanecem
na condição de súbditos isolados, ou seja, de ‘burgueses’, que se limitam a
obedecer às leis para poderem perseguir os seus interesses particulares.
Na comunidade ético-política de Rousseau falta um consenso que possa
mediar a relação entre interesse geral e interesse particular, já que o Governo
é uma comissão do poder soberano, não constituindo, em termos lógicos,
um verdadeiro elemento mediador. Esta ‘ausência’ associa-se à tese de que o
indivíduo privado, ou seja, o ‘bourgeois’, consegue elevar-se apenas à vontade
geral através de um esforço ético de autoconsciência e virtude cívica que o leva
a abstrair-se, mas não a superar verdadeiramente, o seu interesse particular
‘exclusivista’, completamente dependente das motivações de um amor-próprio
centrado no ‘ter’, ou seja, na propriedade privada. No entanto, a ética não
pode necessariamente ter a força vinculante necessária para obrigar cada
130
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
membro da associação a conformar a sua vontade particular à vontade geral.
É necessário então limitar ou controlar o desenvolvimento de todas as ‘associações parciais’ que, separando cada vez mais a primeira da segunda, põe em
causa a centralidade da liberdade política participativa em que se deve basear o
predomínio da esfera pública sobre a esfera privada. Isto não significa, porém,
que Rousseau, como defendem alguns, seja o precursor de uma ‘democracia
totaltitária’54, pois, apesar de considerar que a pluralidade das “facções e associações parciais” enfraquece a vontade geral, acaba por concluir que “quando
uma destas associações é tão grande que domina todas as outras, como resultado
já não se obtém uma soma de pequenas diferenças, mas uma pequena diferença; nesse momento já não existe uma vontade geral, e a corrente dominante
é uma opinião particular”55. A tese de Rousseau sobre as ‘associações parciais’
teve outro destino, pois inspirou a lei de Le Chapelier de 17 de Junho de 1791
que proibiu a formação dos sindicatos em França com o argumento de que
eram os sucedâneos das ‘corporações’ do ‘Ancien Régime’. Estes apenas seriam
legalizados no Segundo Império pela lei de 25 de Maio de 1864.
A razão para a ausência da mediação entre vontade geral e vontade particular encontra-se não na esfera política, mas na esfera social. Filho da sua
época, Rousseau considera que a ‘justiça comutativa’ baseada na troca dos
produtos do trabalho dos particulares é a única relação que os membros
da sociedade civil estabelecem entre si56, o que significa que lhe escapa
totalmente a compreensão da natureza do trabalho assalariado moderno.
A sua originalidade relativamente aos seus contemporâneos consiste em
demonstrar que o desenvolvimento espontâneo do mercado e das trocas
não pode conduzir à constituição de uma verdadeira comunidade política, mas apenas de uma mera sociedade jurídica de proprietários privados,
como, de resto, defende Kant na sua “Doutrina do direito”, expoente
do liberalismo do século XVIII com grandes repercussões na actualidade.
Para evitar que estas diferenças ponham em causa a centralidade política
da vontade geral, apenas lhe resta basear a sua república numa sociedade
54
A este propósito veja-se: Talmon, Jacob L. – Le origini della democrazia totalitária, Il Mulino, Bologna, 1967, pp. 57-72.
55
Rousseau, Jean-Jacques – Contrato social, op.cit, p. 37.
56
“Nenhuma sociedade pode existir sem troca, nenhuma troca sem uma medida comum e nenhuma medida comum
sem igualdade. Deste modo, todas as sociedades têm como primeira lei uma certa igualdade convencional, tanto dos
homens como das coisas” (Rousseau, Jean-Jacques – Émile ou de l’éducation, Garnier-Flammarion, Paris, 1966, p. 245).
131
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
idealizada de pequenos produtores camponeses e artesãos, como defende
no seu Projet de constitution pour la Corse, praticamente sem comércio externo
e em que a maior parte das trocas e das contribuições fiscais se realiza in
natura ou em trabalho sob o controlo da administração pública. Além disso,
quando o interesse particular se começa a distanciar do interesse geral em
consequência do desenvolvimento das trocas e da divisão do trabalho resta-lhe apenas a alternativa de apelar a uma recorrente lógica plebiscitária
ou referendária e a um Legislador dotado da capacidade ‘sobre-humana’
de transformar indivíduos isolados e passivos politicamente em membros
activos de uma comunidade ético-política plenamente integrada, bem
como aos costumes como pressupostos pré-políticos da coesão social e
da dedicação ao bem público57. Por fim, acaba por cair numa espécie de
‘utopia retrospectiva’ quando defende a instituição de uma ‘religião civil’
que possa suscitar aqueles “sentimentos de sociabilidade sem os quais não é
possível ser-se bom cidadão nem súbdito fiel.”58
A contemporaneidade de Rousseau não é, porém, posta em causa com as
aporias e contradições que acabámos de analisar. Paradoxalmente, ou talvez
não, o seu alegado ‘pré-capitalismo’ pode servir de sistema de referência
para uma crítica não retrospectiva do próprio capitalismo. Actualmente
crescem como cogumelos os falsos apóstolos da ‘emancipação da sociedade civil’ e do esplendor da globalização. Relativamente aos primeiros esta
passagem do seu romance pedagógico, Émile, constitui ainda hoje uma boa
resposta crítica: “Existe no estado civil uma igualdade de direito quimérica
e vã, porque os meios destinados a conservá-la servem eles próprios para a
destruir, e a força pública acrescentada ao mais forte para oprimir o mais
débil rompe aquela espécie de equilíbrio que a natureza tinha estabelecido
entre eles. Desta primeira contradição resultam todas as que se observam na
ordem civil entre a aparência e a realidade. A multidão será sempre sacrificada a poucos e o interesse público ao interesse particular; estes nomes
“Aquele que ousa empreender a instituição de um povo, deve sentir-se capaz de modificar, por assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo que, por si mesmo, é um todo perfeito e isolado, numa parte de um todo
maior, do qual este indivíduo receba, de algum modo, a sua vida e o seu ser; de substituir por uma existência parcial e
moral a existência física e independente que recebemos da natureza. É preciso, numa palavra, que retire do homem as
forças que lhe são próprias, para lhe dar outras, que lhe são estranhas e que não possa usar sem o auxílio de outrem”
(Rousseau, Jean-Jacques – Contrato social, op. cit., p. 49.
57
58
Ibidem, p. 161.
132
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
enganosos de justiça e de subordinação servirão sempre de instrumentos
para a violência e de armas para a iniquidade; por conseguinte, as ordens
distintas que se julgam úteis umas às outras são com efeito apenas úteis a
elas próprias à custa das outras; pelo que se deve ajuizar que consideração
lhes é devida segundo a justiça e a razão.”59
A ‘igualdade de direito quimérica e vã’ que vigora na sociedade civil
‘emancipada’ reduz-se a uma competição social de interesses pelo predomínio, poder e riqueza que favorece sempre os mais fortes a quem alguns
atribuem ainda o ´mérito’ das suas ‘conquistas’ ou da sua ‘ascensão social’
que de nenhum modo seriam possíveis numa sociedade onde existisse uma
verdadeira igualdade de oportunidades. O aprofundamento da desigualdade
social, tema caro ao Rousseau do Segundo discurso, é típico de uma ‘sociedade
de mercado’ protótipo da ‘sociedade civil emancipada’ dos ideólogos do
conservadorismo neoliberal em que cresce cada vez mais a desigualdade
das condições sociais ou dos pontos de partida que põe também em causa a
versão ‘soft’ de alguns que vêem apenas no mérito pessoal a fonte da diferenciação das capacidades intelectuais. É por demais evidente que as novas
formas de darwinismo social, que Rousseau entrevia, devem ser combatidas
com políticas públicas que visem ressuscitar o espírito cívico, promover a
igualdade e premiar o mérito pessoal de modo justo e equitativo.
Rousseau é também precursor de uma crítica à tese de que o aumento das
necessidades, dos desejos e dos meios para satisfazê-los é a fonte do progresso e
prosperidade económicas. A interdependência que se estabelece entre a necessidade de cada um e a necessidade dos outros através da divisão do trabalho que
contribui necessariamente para aumentar a produtividade e o crescimento
económicos, suscita, por outro lado, uma competição de interesses em que cada
um tenta distinguir-se do outro na esfera do ‘ter mais’, ‘possuir mais’, acumular
ou ‘ostentar’ a sua ‘diferença’. Nunca como hoje vivemos num mundo caracterizado pela interdependência das necessidades, modos e meios de as satisfazer
à escala global em consequência do aprofundamento da divisão internacional
do trabalho e do alargamento de um mercado global em que participam países
‘emergentes’, como a China, a Índia e o Brasil. No entanto, também nunca como
hoje nos encontramos como fazendo parte de um mundo cada vez mais desigual
59
Rousseau, Jean-Jacques – Émile ou de l’éducation, op.cit., p. 307.
133
ROUSSEAU, TREZENTOS ANOS DEPOIS
em que se aconselha os países emergentes a consumir freneticamente para
alimentar o crescimento económico global que a Europa Ocidental e, em parte,
os Estados Unidos já não conseguem garantir. Este modelo é completamente
insustentável tanto em termos sociais como em termos ambientais. Em termos
sociais, porque se alimenta das desigualdades crescentes a nível mundial que estimula os cidadãos dos países emergentes a trabalharem cada vez mais e a ritmos
cada vez mais desenfreados para poderem sustentar o consumismo global e com
a ascensão de um estrato de consumidores com poder de compra relativamente
elevado a participarem, por via de uma emulação estimulada pela publicidade e
o marketing globalizados, nesta corrida ao ‘binge shopping’, ou seja, numa espécie
de ‘orgia aquisitiva’60. Em termos ambientais, a irracionalidade, o desperdício de
recursos, as diversas formas de poluição que não param de crescer põem em causa
a existência da ‘nossa casa comum’ que é o planeta terra. Com isto não se defende
um retorno à autarcia económica, tal como Rousseau não defende um retorno
ao estado de natureza, mas, como Dani Rodrik, uma “globalização inteligente,
não uma globalização máxima”, ou seja, uma globalização mais regulamentada
com o objectivo de preservar a democracia da ditadura dos mercados financeiros
e de conjurar o cada vez mais o iminente desastre ambiental61.
O maior legado de Rousseau à posteridade é, sem dúvida, a formulação dos
princípios e fundamentos da democracia. Apesar de recusar o mandato representativo e defender a democracia directa e o mandato imperativo que, historicamente,
não tiveram sucesso e acabaram por conduzir a regimes ditatoriais centrados nos
autodesignados ‘comissários do povo’ ou numa autoproclamada ‘vanguarda revolucionária’62, o filósofo de Genebra enuncia os dois grandes princípios da democracia:
uma concepção de liberdade como não dominação e a igualdade. O primeiro princípio, analisado por um autor contemporâneo, o filósofo australiano Philip Pettit63,
rejeita a tese liberal lockiana, mas também hobbesiana, assumida pelos neoliberistas
Veja-se a este propósito: Matthews Owen; Seno A. – “How Asia binge shoppers will help the West”, Newsweek,
Dezembro 2010-Janeiro 2011, pp.54-57.
60
61
Ver Ortega, Andrés – “El trilema de la globalización”, El Pais: Babelia, Madrid, 25.02.12, p. 16. O artigo é uma
recensão da tradução espanhola do livro de Dani Rodrik, La paradoja de la globalización. Democracia e el futuro de la economia
mundial, Antoni Bosch Editor, Barcelona 2012. Rodrik é professor de Economia Política Internacional na Escola
Kennedy de Governo da Universidade de Harvard.
62
Ver: Catroga, Fernando – Ensaio Respublicano, FFMS, Lisboa, pp. 100-104.
63
Ver: Petitt, Philip – Repubblicanism, Oxford University Press, Oxford, 1997, pp. 51-89.
134
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
contemporâneos de que a liberdade é um corolário do direito de propriedade e,
em consequência, uma liberdade que exclui o outro e que se concretiza, na prática,
através de uma competição agónica em que cada um tenta superar os demais. Pelo
contrário, a liberdade entendida como não dominação centra-se na cooperação e
rejeita a luta pelo predomínio que é a consequência necessária da outra forma de
liberdade. Liberdade como não dominação significa que a minha liberdade não é
um obstáculo à liberdade do outro, mas a condição da sua liberdade, já que só através
da cooperação num processo ininterrupto de dar e receber, em que a experiência da
minha liberdade se enriquece com a experiência da liberdade dos outros que, como
eu, não visam o mando, o poder e a ascensão nas hierarquias estabelecidas poderei
construir uma verdadeira comunidade de seres livres.
A nova forma de liberdade não é incompatível com a igualdade, mas, pelo
contrário, tem nesta o seu complemento necessário. De facto, a democracia não é
possível ou torna-se numa democracia mutilada, meramente formal ou convencional, quando a desigualdade social supera determinados limites. Neste contexto,
renasce a competição pelo prestígio, poder, mando e acumulação de riquezas que
destrói não apenas o convívio civil, mas também põe em causa a mera coexistência. É precisamente por isso que são plenamente actuais numa época obscura
como a nossa em que vigora um ‘capitalismo de casino’ as medidas de política
económica e social propostas por Rousseau: progressividade fiscal dos impostos
directos em vez de competitividade fiscal, impostos indirectos sobre os bens de
luxo, formação de uma propriedade pública de alguns meios de produção em
vez da obsessão privatizadora que abrange hoje até recursos fundamentais como
a água, ordenamento do território e formação de um espírito cívico através da
promoção de uma educação pública acessível a todos. Dirão alguns que a ‘emancipação da sociedade civil’ da ‘tutela’ estatal e a globalização tornaram a necessidade
de igualdade uma quimera. Agora, dizem estes, é necessário promover e reconhecer o mérito dos mais ‘capazes’, ou seja, precisamente dos que detêm mais
poder e riqueza e que, portanto, coitados, são frequentemente acossados pela
‘inveja igualitária’ dos que pouco ou nada têm. No entanto, olhando para o actual
estado de coisas poderá concluir-se que o predomínio destas teses está a conduzir
o mundo para o desastre. A catástrofe iminente paira num horizonte cada vez
mais sombrio. Faltam, porém, ainda os meios para a conjurá-la. A leitura critica
e atenta de Rousseau, nosso contemporâneo, poderá ser uma pista para encontrar
estes meios e construir uma ordem social e política mais livre, justa e humana.
135
CULTURA
Alfredo Margarido, Um Pensador Livre e Crítico
Fernando Pereira Marques
E
ntre 17 de Abril e 31 de Maio esteve aberta ao público na Biblioteca
Nacional de Portugal uma exposição sobre a vida e a obra de
Alfredo Margarido (“Um Pensador Livre e Crítico”), membro
do corpo redactorial da “Finisterra” desde o primeiro número.
A exposição, comissariada pela Profª Isabel Castro Henriques, reunia
manuscritos e correspondência que integram o espólio depositado no
Arquivo da Cultura Portuguesa Contemporânea dessa Biblioteca, exemplares da vasta obra impressa – ficção, poesia, ensaio e muitas dezenas
de traduções –, peças iconográficas, pinturas e aguarelas, entre outros
materiais evocativos da vida rica e multifacetada de um intelectual que foi
também destacado antifascista e anticolonialista.
Acompanhou esta exposição um catálogo bio-bibliográfico ricamente
ilustrado, contendo um importante levantamento de manuscritos, de
correspondência com nomes relevantes da nossa vida cultural, de artigos
saídos em várias publicações periódicas, além de nele também se reunirem
testemunhos sobre o homem e a obra de personalidades como Adelino
Torres, António Branquinho Pequeno, Arnaldo Saraiva, Cruzeiro Seixas,
Diogo Ramada Curto, Eugénio Lisboa, Inocência Mata, Daniel Lacerda,
Vasco de Castro, Marc Ferro, Perfecto E. Cuadrado, Trinh Van Thao,
entre outros.
Alfredo Augusto Margarido, como assinalámos nestas páginas em
devido tempo, nasceu em Moimenta (Vinhais) em 5 de Fevereiro de 1928
e faleceu em Lisboa em Outubro de 2010. Após primeiros estudos direccionados para as artes viria, já no estrangeiro, a centrar a sua formação
nas ciências sociais. Desde a sua juventude desenvolveu várias actividades
– nomeadamente a de jornalista no “Diário Ilustrado” –, mas dedicaria
o essencial da sua vida ao ensaísmo, à investigação – na École des Hautes
Études en Sciences Sociales de Paris, antigo departamento da École
Pratique – e à docência em várias universidades francesas e nacionais. Com
137
ALFREDO MARGARIDO, UM PENSADOR LIVRE E CRÍTICO
uma breve passagem pelas então colónias portuguesas – seria expulso de
Angola –, o seu envolvimento cívico anticolonialista – foi membro da Casa
dos Estudantes do Império – esteve associado ao estudo das questões africanas, quer interessando-se pelas literaturas de expressão portuguesa, quer
dedicando-se às problemáticas políticas, históricas, sociológicas e antropológicas desse continente.
Do mesmo modo desenvolveu uma activa militância contra o Estado
Novo, numa primeira fase como membro do PCP, mais tarde, no exílio,
próximo de outras correntes político-ideológicas. Além de, e como
se disse, legar à cultura portuguesa uma obra poética, de ficcionista e
tradutor, ensaística e até plástica, diversificada mas sempre marcada por
uma inesgotável curiosidade, uma enorme criatividade e por uma atitude
vincadamente livre e crítica. Consequentemente não enfeudada a grupos,
correntes, ortodoxias e desbravadora de novos caminhos que interessa hoje
ainda redescobrir e potenciar. As dezenas de artigos publicados nas páginas
de praticamente todos os números da “Finisterra” são disto a ilustração.
138
Eduardo Lourenço – Prémio Pessoa:
O Interrogador de Labirintos...*
Guilherme d’Oliveira Martins
A
atribuição do Prémio Pessoa a Eduardo Lourenço constitui
um ato de elementar justiça. Estamos perante o pensador
contemporâneo português de maior relevância. É o grande
ensaísta da reflexão sobre a identidade portuguesa e a sua
projeção universal. É um homem da modernidade e um ensaísta de dimensão
europeia e mundial, sobretudo por quanto escreveu sobre Fernando Pessoa
(o rei da nossa Baviera), a revista Orpheu e sobre o lugar do modernismo
português, visto no longo prazo da nossa cultura, desde Camões à Geração
de Setenta, passando pelos românticos, Herculano e Garrett. Seguidor de
Antero de Quental e dos seus amigos, representa hoje a síntese fecunda
entre a crítica e a procura de fatores de mobilização da sociedade contra o
torpor da indiferença. Num momento de crise, é importante reconhecer
o papel de um cidadão e de um pensador que faz das ideias, da crítica e da
interrogação dos mitos um sinal de esperança contra o fatalismo do atraso
ou a tentação da desistência. Grande interrogador da Europa de hoje,
Eduardo Lourenço apela à congregação de vontades e à argúcia da crítica
exigente – contra a indiferença e pela criação cultural.
A constante presença de Eduardo Lourenço na reflexão sobre os acontecimentos, a literatura e a vida, sobre Portugal e a Europa tem constituído
uma oportunidade para ultrapassarmos um atávico conformismo, uma
tendência para nos ficarmos pela superfície das coisas e uma sistemática
ilusão sobre os nossos males irremediáveis e sobre a fatalidade da história.
Ainda que muitos se mantenham distraídos, o certo é que o ensaísta
continua a interrogar-nos, com avanço sobre os acontecimentos e sobre
o modo como poderemos responder aos misteriosos e exigentes estímulos
perante os quais estamos confrontados. Em lugar de uma visão do País
imaginário, encruzilhada de sonhos e de má-língua, Lourenço procura
*
Texto escrito segundo as normas do novo Acordo Ortográfico.
139
EDUARDO LOURENÇO – PRÉMIO PESSOA: O INTERROGADOR DE LABIRINTOS
ser o camponês do Danúbio (ou melhor, de S. Pedro de Rio Seco), com
os pés assentes na terra – a dizer que tudo depende do que somos e do que
queremos ser. Trata-se de alertar (na senda de Unamuno) contra a loucura
de D. Quixote, uma das causas da decadência dos povos peninsulares, e
do seu pequeno émulo D. Sebastião. Quando muitos julgariam que havia
razões para otimismo, com a Europa a dar a sensação de uma caminhada
irreversível e imparável, Eduardo Lourenço surpreendeu-nos ao falar de
uma Europa desencantada. A Europa era, de algum modo, vítima do seu
próprio sucesso. Acabara a guerra fria, o império soviético desmoronara-se e havia novas expectativas e novas perplexidades a ditarem a sua lei. A
fragilidade europeia estava à vista, provindo quer da dificuldade interna de
superar contradições antigas, quer de uma campanha externa persistente
no sentido de não deixar o velho continente ser aquilo que desejaria ser.
Hoje percebemos por que motivo Eduardo Lourenço nos mostrou
esse incómodo mas indispensável cartão amarelo. Afinal, não poderíamos
esquecer que haveria um momento em que os egoísmos regressariam contra
os ideais e contra os que consideram não haver vacinas contra a barbárie,
salvo estarmos humanamente de sobreaviso. Por excesso de memória, a
Europa é uma realidade indefinida e indefinível, difícil de se encontrar.
“Só se podem sentir desencantados aqueles que sabendo a Europa a que
pertencem frágil na cena do mundo, por incapacidade de se constituir com
um mínimo de coerência política, constatam que quarenta anos de sonho
europeu não fizeram da Europa um mito para a consciência do cidadão
comum da Comunidade Europeia”, escreveu o Mestre em 1993. Agora,
se uns pensam que estamos condenados coletivamente a uma existência
medíocre, há razões para desejarmos uma autonomia, diremos estratégica,
centrada na defesa dos valores e interesses comuns e na compreensão de que
será mau para o mundo uma Europa dividida ou entretida com as vaidades
nacionais, tendo do outro lado do Atlântico os Estados Unidos embalados
na ilusão pueril de que poderão contrariar um movimento inexorável e
imperial de decadência cultivando a cizânia e o método da sobranceria,
contra a velha ideia de Kennedy e de Monnet da “parceria entre iguais”.
Com o fim do antigo mundo bipolar, tornámo-nos nómadas de uma
história difícil de decifrar, em que os instrumentos se confundem permanentemente com os fins. Vem à memória a Cacânia de Robert Musil ou
140
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
a recordação dos sonâmbulos de Hermann Broch. Viveremos um novo
“apocalipse alegre”? Só a releitura dos mitos levar-nos-á à mobilização das
vontades! A globalização, os meios de comunicação de massa e as sociedades
em rede tornam essa sombra inquietante, porque se projeta globalmente.
Os aprendizes de feiticeiro atiçam os fundamentalismos e o terror, sob
pretexto de os combater…As nações fecham-se, em lugar de buscar novos
modos de partilhar vontades e destinos… Como diria o ensaísta (“Portugal
como Destino”,1999): “povo missionário de um planeta que se missiona
sozinho, confinado ao modesto canto de onde saímos para ver e saber que
há um só mundo, Portugal está agora em situação de se aceitar tal como foi
e é, apenas um povo entre os povos. Que deu a volta ao mundo para tomar
a medida da sua maravilhosa imperfeição”.
Eduardo Lourenço é um pensador tantas vezes inesperado, uma vez que,
a cada passo, usou a crítica para pôr em causa as tendências do momento.
Assim foi quando escreveu a sua primeira «Heterodoxia» (1949), que se
demarcou das principais correntes dominantes, dando, no entanto, sinais
de compreensão relativamente às diferentes perspetivas em presença. Isso
mesmo tem alimentado alguns equívocos (apenas para os menos atentos e
incautos), estando mais do que demonstrada a impossibilidade de encerrar
o pensamento do ensaísta em qualquer sistema ou em qualquer lógica definível a priori. Heterodoxia era, para o nosso autor, «o humilde propósito
de não aceitar um só caminho pelo simples facto de ele se apresentar a si
próprio como único caminho, nem de os recusar a todos só pelo motivo de
não sabermos em absoluto qual deles é, na realidade, o melhor dos caminhos». Refletiu, desse modo, sobre autores que estavam à partida rotulados
como suspeitos, tendo Lourenço feito a sua apreciação sob o viso crítico,
sem qualquer preconceito e sempre com uma argúcia e uma inteligência
que ultrapassavam a superfície e as aparências relativamente aos autores e
obras analisados. Afinal, um heterodoxo deveria, para sê-lo, empenhar-se em ler o que estava escrito, procurando descobrir os significados, para
além das ilusões. E o tempo veio a dar-lhe razão sobre os valores duráveis
e sobre as manifestações sem espessura. Por isso, o forte sentido crítico
permitiu-lhe ser um interrogador exigente dos mitos (a começar no sebastianismo), recusando a crença num qualquer destino independente da
141
EDUARDO LOURENÇO – PRÉMIO PESSOA: O INTERROGADOR DE LABIRINTOS
vontade e das circunstâncias do tempo.
Homem generoso e disponível pôde, com essas qualidades, tornar-se um dos melhores intérpretes da identidade nacional. E Vasco Graça
Moura tem razão ao dizer que o seu exemplo e a sua qualidade não são
circunstanciais e reportam-se ao largo prazo, o que é tanto mais de realçar
quanto é certo que a cultura portuguesa tem muitos séculos e a referência
de Lourenço projeta-se muito para além dos horizontes próximos. E se
devemos referir essa capacidade singularíssima relativamente à procura
da identidade portuguesa, temos de acrescentar que procurou sempre
vê-la com projeção universal. Tendo-se negado a ser «estrangeirado» e
tendendo a ver de fora com olhos de dentro, a verdade é que, para ele,
a nossa identidade apenas faz sentido desde de que aberta e complexa.
No fundo, para o português uma identidade confinada não faz sentido.
Ganhamos sempre que recebemos e dessa hospitalidade resultam perenidade e riqueza. Por isso mesmo, Eduardo Lourenço compreendeu melhor
do que ninguém que em 1578-80 a figura central não foi D. Sebastião, mas
Camões (com toda a sua riqueza épica e lírica), e que, ao modo de Vieira,
o Desejado nunca poderia ser um morto ou um vencido, mas teria de ser
alguém vivo – e, mais do que D. João IV, deveria ser o povo heterogéneo e
difícil de conhecer e interpretar, que deseja viver livre, com apego à viagem
pelas Sete Partidas (talvez uma nova diáspora), à imagem e semelhança do
Infante D. Pedro, Duque de Coimbra (exemplo europeu e universalista),
com uma alma pelo mundo repartida. Assim, a heterodoxia inconformista
do escritor (discípulo à sua maneira, mas indiscutível, de Montaigne)
considera a saudade fora da clausura do saudosismo, partindo das raízes
antigas (D. Duarte, Nunes do Leão, Francisco Manuel e os românticos) e
de Pascoaes (cujo talento enaltece) e chegando à fulgurante heteronomia
de Fernando Pessoa. Não por acaso, o ensaísta afirmou, ao saber que o
Prémio Pessoa lhe tinha sido atribuído, que aquele que estaria satisfeito
(porventura mais do que ele próprio), seria Alberto Caeiro. A ironia é
significativa, já que é um fantasma puro que vem à memória. E quando, há
dias, se confessou convertido ao fado, através do talento de Amália (num
mano-a-mano no Museu do dito Fado) percebeu-se muito bem que ali
estava o incansável perscrutador de mitos e de destinos, interrogador de
labirintos, personalidade fascinante atenta a tudo (de Clint Eastwood a
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GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
Cristiano Ronaldo e de Cláudia Cardinale a Cristina Branco), para quem
a sua filomitia obriga, antes de tudo, à compreensão das pessoas comuns,
do vulgo, na busca da sublimidade, de forma a dar à vida um tom colorido que valha realmente a pena. Enquanto Garrett falou da saudade como
«gosto amargo dos infelizes», Lourenço preferiu a fórmula «gosto de mel
e lágrimas», que resume bem como os mitos não são coisas abstratas, mas
têm a ver com a compreensão de dois Países que sempre somos e seremos,
o profundo e conservador, e o de horizontes abertos, amante do desconhecido e diferente. E não falou o ensaísta das duas razões europeias em
«Nós e a Europa»? De facto, encontramos em si a costela de Miguel de
Unamuno e o seu sentimento trágico da vida (Salamanca, ali tão perto de S.
Pedro de Rio Seco), mas também a indelével atração pelo cosmopolitismo
de Ortega y Gasset, com um europeísmo de liberdade e emancipação.
Eduardo Lourenço é um ensaísta profundamente português. Foi-o
nos anos sessenta ao compreender que a liberdade teria de ser aberta e
heterodoxa – e ao entender que Fernando Pessoa era muito mais do que
uma leitura situada da «Mensagem». Logo em 1974, esteve ciente das
ilusões que se alimentavam ou das cristalizações simétricas, procurando
compreender os vários lados do problema, na longa duração, como o fez
magistralmente na «Raiz e Utopia» (de Helena Vaz da Silva) no ensaio
«Psicanálise Mítica do Destino Português». E se compreendeu muito
cedo a importância da opção europeia, foi também o primeiro a chamar
a atenção (com autoridade e conhecimento de causa) para os erros e para
os perigos da «Europa Desencantada» (obra com duas edições, em 1993,
aumentada em 2000) – sem esquecer que a Europa é uma saída, desde que
não exclusiva nem acrítica e desde que não se encerre na ilusão burocrática do sistema perfeito. Afinal, a reflexão sobre as próprias causas antigas
das decadências peninsulares (a partir da análise emblemática de Antero
de Quental) tem de ser lembrada no debate europeu, para que a Europa
não se torne periférica e irrelevante. «Sob a aparência de drama (diz E.
Lourenço), as peripécias da construção europeia não relevam desse género
literário, mas da tragédia. Tragédia quando se foi uma outra Europa, centro
do mundo, e já não se é. A Europa não está ainda definitivamente fora da
história – quer dizer, da vontade e do projeto que a conduz – mas está-lo-á
se não tiver configuração política e entidade económica, administrativa, a
143
EDUARDO LOURENÇO – PRÉMIO PESSOA: O INTERROGADOR DE LABIRINTOS
que chamamos União Europeia. Para não ficar, de todo à margem dela se
travou e trava a batalha pela Europa que possivelmente é mais do que isso.
Começou em Roma, como era simbolicamente óbvio. Esperemos que não
se desintegre, sob modo festivo, na Cidade das Flores»… O texto é de 1999
e mutatis mutandis poderia ter sido escrito agora.
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Eduardo Lourenço e João Martins Pereira:
Conversa com Abril em Fundo
Manuela Cruzeiro
T
alvez uma conversa improvável, dadas as óbvias diferenças
entre os dois, a começar pelo grau de notoriedade de cada um
deles e a acabar na aparente distância que separa os territórios
das suas reflexões. Mas sem dúvida um diálogo riquíssimo que
instaura um novo e compósito campo de indagação, cuja exploração revela
insuspeitadas zonas de confluência que, basicamente, se caracterizam por
um hibridismo metodológico antidogmático e criativo, ao serviço de uma
comum e genuína exigência em questionar o imaginário cultural português,
as imagens contrastantes que vem produzindo e a consequente necessidade
da produção de outras mais adequadas a um autoconhecimento mobilizador e futurante.
Instalado há quase setenta anos na nossa paisagem cultural, Eduardo
Lourenço é, sem dúvida, o nosso mais consagrado pensador vivo, de tal
forma se sucedem as distinções e prémios nacionais e estrangeiros de que
tem sido alvo. Contudo, esta justa consagração nem sempre se dá pelas
melhores razões. Consagra-se o autor, mas nem sempre se consagra com
igual vigor e entusiasmo a obra. Paradoxalmente, a enorme visibilidade de
EL tem convivido com uma quase invisibilidade da sua obra, para o que
contribui a incompreensível discrição com que a crítica recebe cada título
que dá à estampa, numa média de um por ano. Nasce assim a ilusão de que
se conhece um pensamento porque se conhece o autor, quer através das
inúmeras entrevistas, artigos de opinião, aparições televisivas, quer através
de excertos das suas obras, citações conjunturais ou de conveniência. Não
faltam exemplos desta versão instrumental nos mais variados campos do
saber, o que ajuda a fixar versões vulgarizadas e pobres, quando não totalmente erróneas do pensamento do nosso filósofo. Devemos ainda a EL a
distinção mais desejada e certamente a mais eficaz e perene: a da leitura
em extensão e profundidade da sua obra, a descoberta do carácter original
e até subversivo de muitas das suas teses, o diálogo criativo e interpelante
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EDUARDO LOURENÇO E JOÃO MARTINS PEREIRA: CONVERSA COM ABRIL EM FUNDO
em vez do silêncio reverente, ou da paráfrase acrítica. Devemos-lho em
duplicado, a ele que tem sido o mais apaixonado e generoso leitor das palavras dos outros, descobrindo-se e descobrindo-nos sempre e tão somente
através dessas palavras, que são afinal a única actividade humana criadora
de sentido.
Há certamente excepções, gratas e surpreendentes excepções, de autores
que, desafiados a pensar com ele ou contra ele a realidade portuguesa,
lançam nova luz sobre essa temática fascinante e inesgotável. É o caso de
João Martins Pereira, engenheiro de formação, economista, jornalista,
intelectual injustamente obscuro, em parte por culpa própria (dada a sua
radical aversão ao estrelato) mas também por culpa alheia (exemplo típico
do silenciamento das alternativas ao pensamento único), autor de um livro
cujo título enigmático No Reino dos Falsos Avestruzes (1983) adensa o mistério
e afasta os leitores mais apressados. E mesmo o subtítulo, Um olhar sobre a
política, parecendo clarificador, acaba por não ser fiel à revelação que nos
espera desde as primeiras páginas: um riquíssimo campo de abordagens
temáticas e disciplinares, todas elas confluindo nesse imenso filão que
genericamente designamos por imaginário nacional, seus mitos, símbolos
e imagens, ciclicamente revisitados em períodos críticos da nossa história.
O cenário e horizonte das suas reflexões é o Portugal pós-revolucionário,
a obra é uma lúcida e implacável auto-reflexão geracional e pessoal. Mas é
também um amargo e desencantado retrato do país, um misto de panfleto,
artigo de jornal e ensaio, breve mas rigoroso, directo mas reflexivo, conciso
mas profundo, satírico e cáustico mas muito sério.
O diagnóstico que nove anos passados sobre o 25 de Abril o autor nos
oferece é, nas suas linhas essenciais, muito próximo daquele que, decorridos apenas quatro anos sobre essa data charneira da nossa história, já
tinha feito EL nesse não menos fascinante Labirinto da Saudade (1978).
Partindo ambos da ideia central de que o 25 de Abril, para além das
grandes transformações políticas sociais e económicas, foi a última grande
oportunidade de produção de um novo discurso identitário, de uma nova
auto-imagem nacional, ambos concluem que, mais uma vez, falhámos. É
que uma revolução parte, é movida e reflecte sempre uma leitura imaginária da sociedade, e o seu êxito ou fracasso está seguramente ligado à
capacidade de impor esse imaginário e, mais do que isso, de o prolongar e
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MANUELA CRUZEIRO
enraizar na nova colectividade dela emergente. Ora o acentuado empobrecimento simbólico e mitológico que afecta hoje a sociedade portuguesa, e
que se manifestou logo após os breves meses do episódio revolucionário,
é o mais inequívoco sinal das dificuldades em impor um novo projecto e
imagem colectivos e, consequentemente, de uma profunda crise de identidade. Assim, num momento de viragem, de busca e de convulsão, num
momento em que a revolução encerrava um determinado espaço simbólico (Estado Novo, Fascismo, Salazarismo, Colonialismo) e abria outro
tendencialmente novo (Revolução, Liberdade, Socialismo, Democracia),
isto é, em que a revolução destruíra as bases da mitologia cultural que
sustentava o Estado Novo, necessário se tornava o aparecimento de uma
contra-mitologia que contestasse com igual vigor e convicção o sistema
de valores que davam corpo à eficaz mitologia do nacional-catolicismo.
Porém, essa contra-mitologia que devia prolongar e aprofundar a já forte
mitologia de oposição desenvolvida sobretudo a partir dos anos 50 do
século passado, não teve nos anos subsequentes ao 25 de Abril a expressão
que seria de prever e desejar.
A revolução não foi, portanto, capaz de criar, ou melhor, de recuperar e
revitalizar um vínculo congregador e mobilizador através de um verdadeiro
imaginário revolucionário, afinal de uma re-semantização do próprio
conceito de portugalidade e de todo o leque de outros dele derivados.
Tratava-se pois de questionar um imaginário nacionalista construído ao
longo de quase meio século pelo regime da ditadura e que vivia exclusivamente das sua dimensão ultramarina. Ou seja, de encarar a realidade de
um país que desde o século XV vivera ausente de si mesmo, embalado nas
velhas glórias dos descobrimentos e das conquistas, mas que de tudo isso
não soube nunca tirar a inevitável lição histórica.
EL não tem dúvidas: ‘Desde o início, a revolução contém uma falha
que, esperamo-lo, não lhe seja fatal. Hipnotizada pelo puro combate ideológico, descurou em excesso o sentimento nacional (...) A ideia de Nação
e o ‘nacionalismo’ no seu sentido de radicação e consubstanciação com o
interesse nacional, não só não são antagónicos do interesse revolucionário,
como lhe comunicam a sua força afectiva’ (Lourenço, 1978:63).
Falhámos, pois. Não rompemos com velhas construções imaginárias
as quais, em vez de autoconhecimento são antes formas de perpetuação
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EDUARDO LOURENÇO E JOÃO MARTINS PEREIRA: CONVERSA COM ABRIL EM FUNDO
de imagens distorcidas e por vezes falsas sobre a realidade nacional, o seu
passado e o seu lugar no mundo de hoje. Sucumbimos ao peso de velhas
e poderosas imagens, mais bloqueadoras do que libertadoras. O país com
excesso de passado não soube construir o futuro, ou pelo menos um futuro
que não fosse uma reciclagem narcísica e devoradora da velha nação imperial
e conquistadora. É a tão falada ‘imagologia nacional’ de que EL faz o mais
brilhante e certeiro diagnóstico, arriscando com a sua finíssima ironia (as
mais das vezes tão mal compreendida) a terapêutica da psicanálise colectiva.
João Martins Pereira foi, parece-me, um dos muitos que leu com indisfarçável admiração e fascínio esse tão aclamado Labirinto da Saudade, título
por demais sugestivo (qual o português que não gosta de ouvir falar de
saudade?) e que ostentava o intrigante subtítulo Psicanálise Mítica do Destino
Português, mas foi dos poucos que com ele dialogou num confronto corpo a
corpo com aquele que considera ‘o mais brilhante livro sobre a sociedade
portuguesa publicado nos últimos anos’ (Pereira, 1983:16).
Incomodou-o visivelmente (e creio que um tanto precipitadamente, se
atendermos à tal ironia lourenceana…) a sugestão de regressarmos todos
ao divã de Freud.... Para ele, e de forma muito abreviada, entre a psicanálise e a sociologia, antes a sociologia, e entre a sociologia e a história, antes
a história. Mas incomodou-o sobretudo a ideia, repetida até à exaustão por
lourenceanos de última hora, da nossa ‘originalização’ como país de forte
mitologia nacional, senhor de uma hiper-identidade, trincheira inexpugnável contra todos os acidentes da história, receita segura e quase milagrosa
contra todos os traiçoeiros golpes do destino. Diremos então que JMP
partilha da perplexidade de muitos outros autores que tomaram demasiada
à letra esse desafio para uma experiência de psicanálise colectiva. E, apesar
do indiscutível prazer intelectual que ela pode proporcionar, chama sobretudo a atenção para os riscos de um permanente oscilar entre patológico
e exaltante (a famosa esquizofrenia lourenceana) que a leitura da história
através dessa grelha de análise acaba por consagrar. O perigo está, justamente, na atitude profundamente pessimista veiculada pela ideia-mestra
de que ‘a pátria está doente’.
Estamos portanto numa primeira confrontação entre os dois, atenuável contudo, se recordarmos aqui que todo o esforço de Lourenço vai no
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MANUELA CRUZEIRO
sentido de apontar a necessidade de fugir a qualquer fatalidade biológica ou
psicológica, mesmo se o levantamento de longo alcance que vem fazendo
da nossa realidade cultural ao longo dos séculos, pareça em grande medida
autorizar uma leitura de pendor decadentista, na senda aliás de uma corrente
dominante, sobretudo a partir do sec. XIX, que olha a cultura portuguesa
numa perspectiva de forte acento de frustração, melancolia e até de tragédia.
Mas, como não estamos no reino da necessidade cultural, antes da criação
cultural, a invenção pode sempre substituir a repetição, a motivação a causalidade linear. O 25 de Abril de 1974 foi um desses momentos em que o ciclo
bipolar da exaltação/depressão poderia ser invertido.
Acresce ainda, e sobretudo, que a perspectiva de EL está muito longe
de ser a do pensador desencantado e céptico, sem lugar para a esperança, o
sonho ou a utopia, sugerido por uma leitura apressada desse quadro patológico da esquizofrenia diagnosticado no Labirinto da Saudade. Como afirma M.
Manuel Baptista: ‘se a teoria freudiana da ilusão como patologia do imaginário comanda toda a primeira parte do ensaio lourenceano, numa segunda
parte do que se trata é de uma específica fenomenologia do imaginário,
como capacidade de fecundar e ultrapassar um racionalismo ressequido
que Lourenço considera fortemente enraizado na cultura portuguesa
(Baptista, 2003:325). Nesse sentido, ele tem sido, e foi-o também no
cenário específico do Portugal pós-Abril, o nosso verdadeiro (porventura
único) mitólogo, se por tal entendermos, na esteira de Gilbert Durand,
aquele que não se ficando pela mera exegese mítica (miticiano) submete em
permanência os relatos míticos a uma crítica do seu sentido e significação.
Aquele cuja função consiste em desmistificar o símbolo e simultaneamente
remitificá-lo, isto é, extrair das contingências da biografia e da história
a intenção simbolista de transcender a história. De forma solitária e até
incompreendida, Lourenço vem, assim, fazendo o que chama uma revisitação permanente da nossa mitologia, não em sentido celebratório, mas em
sentido da crítica e da denúncia dos constantes processos de alienação do
simbólico, com vista à sua reconversão em força de libertação e de futuro. O
que afinal o mobiliza é justamente o desafio de novos sentidos, na convicção
de que nenhuma narrativa mitológica esgota a riqueza semântica que permite
renovações constantes, em contextos sociais variáveis.
Portanto, a debilidade do 25 de Abril está para o autor relacionada com
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EDUARDO LOURENÇO E JOÃO MARTINS PEREIRA: CONVERSA COM ABRIL EM FUNDO
a falta de imaginário, ou melhor com uma certa patologia do imaginário
que, para Lourenço não é a simples capacidade de recordar ou lembrar, e
nem sequer a transfiguração ou reconfiguração do real. É muito mais do
que isso. Tem uma consistência ontológica, instaura uma realidade dotada
de um poder de significação e uma energia de transformação. Por isso ele
fala de um ‘incómodo silêncio’ que se instalou na sociedade portuguesa.
‘Ao contrário do que se passou no começo do século XIX, na queda da
monarquia em 1910 ou até no advento do regime de Salazar em 1933, o 25
de Abril, chegado de surpresa, não conseguiu ainda inspirar uma verdadeira imagem de marca politica, ideológica e cultural. A invenção de tal
imagem era justamente a tarefa mais urgente da intelligentzia libertada pela
revolução. Só ela teria permitido articular a vontade de mudança e de
ruptura institucional expressa pelo 25 de Abril com a experiência média
do cidadão português, a sua herança moral, os seus mitos, as suas mais
legítimas esperanças’ (Lourenço, 1985:31-R).
De outra forma de silêncio nos fala JMP. A falta de uma mitologia
revolucionária forte converte-se segundo ele, numa desesperada (e desesperante) sucessão de pequenos mitos, numa multiplicação desgarrada,
desconexa e frágil, sem o potencial de consenso e mobilização dos grandes
desígnios nacionais. Procedendo com uma ‘quase heróica perseverança’ ao
mapeamento exaustivo dos principais núcleos mitológicos da sociedade pós-revolução – iniciativa privada, libertação da sociedade civil, constituição,
ou melhor revisão constitucional, CEE – o autor conclui que um grande
desígnio é um sonho impossível para uma burguesia sem verdadeiro poder
económico, com fraca organicidade social, com partidos que funcionam
como agências de colocação e, sobretudo, incapazes de ultrapassar o trauma
mais recente e violento do seu próprio nascimento revolucionário.
De duas impotências, interna e externa, se faz, na opinião do autor,
a impotência maior da democracia pós-Abril e dos seus pequenos mitos
conjunturais: internamente perdem no confronto com os meteóricos
mas intensos mitos revolucionários, responsáveis por imprevisíveis ‘recaídas’. Externamente, perdem no confronto com o modelo das tradicionais
burguesias europeias, das quais são pouco mais do que baratas imitações. Acontece que, mais do que sobrepostas, estas duas impotências se
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MANUELA CRUZEIRO
entrelaçam numa complexa relação de reciprocidade: ‘As mitologias tradicionais das burguesias europeias vêem-se aqui sobredeterminadas por
fantasmas, traumas, complexos vários que as impedem de sedimentar’
(Pereira, 1983:26).
Estas duas ordens de factores originam um discurso legitimador complexado e ressentido, construído muito mais pela negativa do que pela positiva.
Na ausência de uma grande causa mobilizadora nacional que seria, por
exemplo, o combate pela liberdade contra a ditadura fascista, a nova democracia parece preencher esse vazio com um outro combate que é ao mesmo
tempo a sua certidão de nascimento e o seu manual de sobrevivência: o
combate contra a memória de 1974-75, obsessão e trauma da nova classe
politica. Ou seja: a democracia, que na Europa nasceu como resposta a uma
necessidade orgânica de desenvolvimento económico capitalista, aparece
entre nós apenas como necessidade de afirmação de uma classe política que,
historicamente inconsistente e incapaz de um projecto próprio, construiu a
sua própria mitologia à medida do fantasma que queria exorcizar: o fantasma
de revolução: ‘A política portuguesa tem sido um mero exorcismo destinado a libertar-nos dos demónios e maldições que nos possuíram nesses
anos descabelados e os sacrifícios que regularmente nos são pedidos, tomam
o ar de expiação das terríveis culpas que nos são imputadas por termos posto
este país no caos e na anarquia’ (Pereira, 1983:49).
Esta marca genética retira potencial simbólico e conteúdo substancial ao
grande mito estrutural da democracia, o único com potencialidades de servir
de símbolo indiscutível da nova sociedade. Mas a sua fragilidade obriga a
que constantemente se adjective aquilo que deveria ser em si um valor absoluto. Por isso, nota com ironia JMP, não temos em Portugal democracia,
mas antes ordem democrática, instituições democráticas, partidos democráticos, soluções democráticas, defesa da democracia, democraticidade das decisões. Uma sequência retórica que
invade o discurso político, numa esforçada e tardia descoberta daquilo que
outros países já haviam conquistado há muito e que viviam a um nível de
evidência e organicidade que dispensava a necessidade de adjectivar aquilo
que era a substância da sua prática social e que chamavam tão simplesmente
sistema democrático. Sem substância, a política fica confinada à sua versão
mínima, a proclamada ‘normalidade democrática’ reduzida à autoproclamação das virtudes mais formais do que substanciais do jogo partidário. O
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EDUARDO LOURENÇO E JOÃO MARTINS PEREIRA: CONVERSA COM ABRIL EM FUNDO
que não chega, contudo, para alimentar e mobilizar energias colectivas como
demonstram as sucessivas crises que a nossa democracia tem atravessado e
sobretudo os elevados défices democráticos que persistem (e tragicamente
se aprofundam) na nossa sociedade actual.
Assiste-se, então, ao recurso a um segundo grupo de mitos, os mitos
de salvação: figuras ou ideias que ultrapassam o formalismo abstracto e se
corporizam em algo mais concreto e próximo. O maior potencial mobilizador é, no entanto, mais aparente do que real e o seu aparecimento
é, já por si, um sinal da ‘autodescrença dos dirigentes das famosas instituições democráticas na sua capacidade de gerar nesse quadro fórmulas
capazes de se imporem pelo jogo simultâneo da autoridade e do consenso’
(Pereira,1983:51/52). De que falam, então, os mitos de salvação? Mais do
que da possibilidade real de resolver a crise estrutural de uma sociedade,
falam ainda e sempre da imaturidade das suas forças políticas e traduzem
a falsa solução de uma fuga para a frente, através de uma figura carismática, investida de excepcionais poderes de mobilização e unificação. Figuras
como Ramalho Eanes ou Cavaco Silva são dois exemplos analisados por JMP
como típicas construções que representam exactamente o regresso do país à
ordem e à disciplina, fortemente abaladas com o episódio revolucionário.
Descontadas as diferenças, pessoais e de época, ambos encarnam o retrato-robot do salvador ou do regenerador a que ciclicamente recorremos numa
reciclagem ocasional e preguiçosa, directamente proporcional à ancestral
impossibilidade de contrapor a esse resignado demissionismo (que outros
chamarão destino ou desígnio...) uma ideia para Portugal.
Um único mito parece aos dois suficientemente forte e consistente
para substituir quer as poderosas velhas mitologias de Lourenço, quer os
pequenos núcleos de um débil imaginário democrático de Martins Pereira:
o mito da Europa.
Ambos concordam que a Europa foi, pelo menos até a presente crise, o
único mito da democracia pós-Abril que poderia encerrar possibilidades
de mobilizar a vontade nacional e sacudir a indolente apatia e distracção
em que a sociedade portuguesa caiu após o exaltante episódio revolucionário de 1974. É, aliás, assim que os agentes políticos com responsabilidade
desde o ano de 1976 até à providencial data de 1986 o apresentavam:
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MANUELA CRUZEIRO
como verdadeiro desígnio nacional capaz de preencher finalmente o vazio
deixado pelo fim do chamado ciclo do império, substituindo-o pelo ciclo
europeu. Num primeiro momento de euforia o projecto não deixou de
mobilizar energias, face ao desafio europeu e multiplicaram-se os estudos,
seminários, conferências e até embaixadas culturais com vista a convencer
os portugueses, por um lado, e a Comunidade Europeia, por outro, das
vantagens mútuas da nossa integração no velho continente. Sobretudo
Mário Soares, seu paladino desde a primeira hora, sempre viu nele, com
assinalável antecedência em relação aos seus pares, o verdadeiro seguro de
vida da democracia portuguesa.
Não cabe aqui o balanço de séculos de uma relação complexa de Portugal
com a Europa, frequentemente revisitada por estudiosos, comentadores e
políticos nem sempre coincidentes, é certo, conforme se acentua a importância dos factores económicos, políticos ou culturais, na construção dessa
nebulosa que continua a ser para o português médio a Europa. Nebulosa
que dificulta a análise sectorial de cada um desses factores e da sua contribuição para a vitalidade do mito com mais duração, porventura o único
que mereça esse nome, do pós 25 de Abril. EL foi de novo (tem sido)
um exímio decifrador dessa complexa teia de sinais contrários. Resgatando
a ideia de Europa, quer do excessivo rigor teórico da reflexão filosófica,
quer da pragmática aridez das análises económicas, o autor reintegra-a na
corrente de reflexão ancestral sobre a nossa identidade, confrontando-a
com a vasta galeria de imagens idealizadas que, ao longo da história ilustraram exemplarmente uma estranha relação conflituosa e ambígua, de
atracção e repulsa, ou de ressentimento e fascínio. Partindo da ideia de
que perguntar pela Europa é perguntar pelo modo como em cada país se
viveu e se vive essa complexa realidade cultural, Lourenço fala no nosso
caso concreto de duas razões: ‘Em geral, em termos quase físicos, essa curiosa
maneira de nos separarmos da Europa, ou de considerar que a autêntica
Europa está separada de nós, traduz-se pela consabida distinção entre
Europa para lá dos Pirinéus e Europa aquém dos Pirinéus’ (Lourenço,
1988:51). Parece então que a original (excêntrica em todos os sentidos)
maneira de nos relacionarmos com a Europa, tem sido a de uma separação. Só assim, aliás, faz sentido a retórica proclamação da nossa entrada
na Europa. Como muito bem sublinha o autor, se entrámos é porque não
153
EDUARDO LOURENÇO E JOÃO MARTINS PEREIRA: CONVERSA COM ABRIL EM FUNDO
estávamos lá, ou então, estávamos como se não estivéssemos, numa posição
que sugere dependência, marginalidade, exílio, distanciamento, inferioridade. Porém, um original jogo de luz e sombras transforma cada uma
destas formas de estar no seu reverso. Tudo somado, o mórbido complexo
de inferioridade a que este quadro depressivo nos conduziria, reconverte-se constantemente num contrário complexo de superioridade.
Em nenhum momento deste diálogo improvável os dois autores estiveram mais próximos. Apresentado por JMP como verdadeiro mito de
salvação, o mito da Europa ganhou a todos em consistência e longevidade.
Assistimos agora à sua trágica agonia, cumprindo aliás os piores prognósticos do autor que, sem poder prever a dimensão da crise em que mergulha
o velho continente, antevia, contudo, um prazo de validade para a forma
como a democracia pós/Abril o viveu: mais feito de miríficas promessas
do que de efectivo investimento. Com o nosso proverbial irrealismo,
envolvemos o objectivo mais prosaico da ajuda económica, de que precisávamos como de pão para a boca (já assim era nos longínquos anos 80...)
em solenes proclamações da nossa identidade europeia, em nome de um
passado comum, e mesmo de uma dívida histórica da Europa para com este
pequeno/grande país. Sobrou-nos em retórica o que faltou em trabalho
efectivo, e tudo começou a piorar quando se percebeu que ‘a Comunidade
Europeia não era uma instituição de caridade, nem o Eldorado. Que era
preciso estudar e preparar dossiês, e que a grande ignorância em que se
mantinha não apenas o povo em geral, mas até os empresários e governantes sobre tão áridas matérias, operaria mais uma vez a fatalidade de nos
converter de mensageiros do futuro, em suas vítimas’ (Pereira, 1983:56).
Em conclusão: também em relação à Europa cumprimos com uma constância desesperante o ciclo labiríntico das ‘polarizações esquizofrénicas’ em
que parece enredar-se desde sempre o nosso comportamento colectivo.
Oscilando entre o papel de parente pobre e o de parente rico, hesitando
entre o sentimento de passiva submissão por nos sabermos frágeis económica, técnica e cientificamente, e o de altiva superioridade por um passado
único não comparável com o de qualquer outro parceiro europeu, fomos
incapazes de olhar com realismo o presente e de investir nele a energia e
ambição necessária. Uma vez mais, procurámos o caminho mais curto e de
resultados mais rápidos, que é a salvação exterior. Ora esta salvação vinda
154
MANUELA CRUZEIRO
de fora, mexeu pouco com a estrutura arcaizante da sociedade portuguesa,
sem autonomia, sem hábitos de intervenção, sem densidade e vivências
autenticamente democráticas.
‘Mitos, traumas, e complexos são o pão nosso de cada dia do pequeno
mundo político-cultural português’ (Pereira, 1983:23). Ao contrário do
que seria de esperar, as palavras não são de EL, mas de JMP, numa aparente
inversão de papéis e de argumentos. Será então que após tanta resistência
inicial, o autor se converteu às virtudes da psicanálise? Nada será assim
tão linear. Tal como acontece com EL também o método psicanalítico é
aqui apenas um expediente hermenêutico, para melhor compreender e
descrever a realidade portuguesa. E, para que não restem dúvidas quanto à
instrumentação teórica que orienta em última instância as suas pesquisas,
ele mesmo a indica com toda a clareza, ao esclarecer o sentido do conceito
nuclear de mito: ‘certas ideias-chave que adquirem um estatuto mítico, na
medida em que induzem tendencialmente leituras do domínio do natural,
escondendo as suas origens e função ideológica’ (Pereira,1983:28). Esta
definição bebida directamente em Barthes, denota igual influência de
Gramsci, através do conceito de ideologia e do seu papel social de cimento
da sociedade. É ainda de clara influência gramsciana a noção de hegemonia: ‘O que são as nossas classes dirigentes? De onde vêm? De onde lhes
vêm os ideais democráticos? Como procuram articular o poder politico
com o poder económico? De que condições dispõem para conseguir uma
efectiva hegemonia?’ (Pereira,1983:30).
Ao fazer a genealogia ( e até a arqueologia) das forças que emergem no
cenário pós revolucionário, JMP trabalha exclusivamente o mito politico que,
para ele é sempre instrumento de obscurecimento da realidade social e politica
e das suas verdadeiras dinâmicas. O seu objecto é, pois, o campo mais específico e para ele mais real do ser social e do conflito de forças que o atravessam,
‘sem que por aí se esgote o problema’ como prudentemente ele adverte.
Esta é talvez a mais pura lição de independência, de rigor consigo
próprio e com os outros, de lucidez e de inteligência: a lição de que nunca
se esgota o problema, quando se aceita que a realidade é plural e só na
pluralidade de olhares e perspectivas ela nos pode ficar mais próxima. Isso
nos vem ensinando EL, desafiando a rigidez metodológico de psicólogos,
155
EDUARDO LOURENÇO E JOÃO MARTINS PEREIRA: CONVERSA COM ABRIL EM FUNDO
sociólogos, historiadores que confundem apressadamente a prodigiosa
diversidade e variedade de processos e de temas, afinal a sua perturbante
heterodoxia, com ausência de rigor metodológico, indefinição, contaminação conceptual, tentação dispersiva e eclética. Concluindo, pois,
Lourenço não faz psicologia, não faz sociologia, não faz história, embora
nada o impeça de aplicar a cada um destes discursos a critica mitológica que, sublinhe-se, não tem como finalidade a realidade objectiva da
história (individual ou colectiva) mas antes as imagens que a partir dela os
portugueses foram forjando de si próprios, ‘imagens que constituem uma
espécie de seu precipitado, e que se solidificam na memória dos indivíduos
e das colectividades, na forma de mitos, constituindo propriamente o seu
imaginário’ (Baptista, 2003: 321).
Trata-se, portanto de uma inesgotável, incansável (e também inalcançável) busca do sentido dos mitos e de símbolos, cuja dinâmica ele
tenta surpreender nessa tensão de onde eles surgem entre imaginação e
mundo. Para ele, portanto, o mito não é, ao contrário de JMP, obscurecimento, alienação ou mesmo mentira. Essa noção de nítida influência
marxista chegou a ser utilizada por EL sobretudo nos textos mais antigos.
Em contrapartida, nos mais recentes a noção é fortemente valorizada, tem
um sentido prospectivo com capacidade para reunir um povo em torno
de uma ideia de si. Estamos, pois, face a uma concepção dinâmica de
mito, entendido como algo que pode e por vezes deve mudar. Isto é, uma
leitura apropriadora de sentido, e nunca uma concepção de mito como
totalidade que se alimenta de uma auto-referencialidade permanente. A
nossa identidade como povo nunca está construída e só tem sentido como
um constante e renovado processo de auto-descoberta marcado sempre
pelo presente dos questionantes. Esta possibilidade de um sentido futurante para o colectivo, através de um imaginário adequado ao nosso rosto
verdadeiro e não forjado por velhas máscaras de uma galeria anacrónica
de heróis, santos e mártires, é amplamente desenvolvido nas obras posteriores, o que nos autoriza a falar de dimensão utópica do seu pensamento.
É o caso de Portugal como Destino (1999), espécie de continuação e reactualização do Labirinto da Saudade.
Invocando Foucault: da atopia ou heterotopia à utopia pode ser o
sentido do movimento quase labiríntico do seu pensamento: do não
156
MANUELA CRUZEIRO
lugar, ou de um lugar inclassificável, original, imprevisível, ou então da
justaposição num só lugar de vários espaços, vários posicionamentos, em
si próprios incompatíveis, à utopia, não no sentido clássico de espaço
mágico, confortável, linear, mas à utopia trágica, porque é “crítica, dilacerada, vigilante, que acolhe a contradição, mas que não deixa de se guiar
por um princípio de esperança ou ‘paixão positiva’’’ (Baptista, 2003:375)
Mas esses seriam tópicos para outros diálogos com outros interlocutores, dos quais, imagino, JMP se teria serena e discretamente retirado, ele
que em questões filosóficas permaneceu fiel a Sartre: A ele dedica o último
breve capítulo do seu livro, sintomaticamente intitulado ‘Sartre, a minha
jangada’. E sobre ele faz a mais desconcertante e solene confissão: ‘Sartre
poupou-me o psicanalista e a militância partidária’.
George Steiner fala de livros que são presenças reais e, com idêntico
sentido, EL de livros-acto. Para mim O Labirinto da Saudade e No Reino dos Falsos
Avestruzes são dois desses casos. M. Yourcenar disse algures, e não exactamente desta forma, que há autores que lemos, e gostamos. Outros que
lemos e com quem aprendemos. E há finalmente aqueles que lemos e cuja
leitura nos transforma. São esses os nossos autores. EL e JMP são, sem
dúvida dois dos meus autores.
157
EDUARDO LOURENÇO E JOÃO MARTINS PEREIRA: CONVERSA COM ABRIL EM FUNDO
Referências Bibliográficas
Baptista, Maria Manuel. Eduardo Lourenço – A Paixão de Compreender, Porto/Lisboa, Asa
Editores, 2003.
Lourenço, Eduardo. O Labirinto da Saudade – Psicanálise Mítica do Destino Português, Lisboa,
Publicações D. Quixote, 1978.
Lourenço, Eduardo. Nós e a Europa ou as Duas Razões, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da
Moeda, 1988.
Pereira, João Martins. No Reino dos Falsos Avestruzes – Um olhar sobre a Política. Lisboa, A Regra
do Jogo, 1983.
Silva, Vicente Jorge. Eduardo Lourenço: um heterodoxo confessa-se. Expresso/Revista, 1988.
158
O Impulso Documental e a Expressão Literária
em Alves Redol*
David Santos
D
eterminado pelo compromisso social da arte, Alves Redol
iniciou no final dos anos 30 um trajeto literário ímpar, que
abriu ao Ribatejo uma voz de esperança e intervenção ao documentar com espírito etnográfico, na promessa de uma prosa
atenta ao vernáculo, a dignidade das gentes mais esquecidas desta região
eminentemente rural, identificada então com o trabalho e o sustento
oferecidos pela Lezíria, o rio e as margens do Tejo.
Dos Gaibéus, que sazonalmente realizavam a ceifa ribatejana, aos
Avieiros, “nómadas do rio”, que viviam da pesca ribeirinha, ou da vida
rural dos Glorianos aos sacrifícios dos Fangueiros da Golegã, passando
ainda pelo árduo labor dos “mouros forros”, os Valadores que abriam ou
limpavam as valas e os esteiros, em todos Redol encontrou e caracterizou
literariamente a singularidade da vida dura e quase escrava, do trabalho “de
sol a sol”, bem como a expressão cultural espontânea dessas comunidades
isoladas. Por todos se interessou desinteressadamente, de bloco em punho,
empenhado sobretudo em dar a conhecer ao país, através da literatura,
uma realidade social quase desconhecida. Por isso, a criatividade literária
redoliana apresenta na sua génese um intenso espírito de missão, de apelo
cívico e cariz humanista, inspirado por uma visão marxista de transformação da sociedade, que significava à época a grande referência ideológica
alternativa ao regime ditatorial do Estado Novo.
Se tudo começara em 1938 com o “ensaio etnográfico” Glória – uma
Aldeia do Ribatejo, resultado de uma curiosidade crescente sobre a vida real
do Ribatejo profundo, e no incentivo e influência de Rodrigues Lapa e da
leitura de José Leite de Vasconcelos, a verdade é que, em Gaibéus (1939),
Alves Redol assume a sua ambição literária, ainda que expressa timidamente na famosa epígrafe que abre o livro1, promovendo com esse título
*
Texto escrito segundo as normas do novo Acordo Ortográfico.
159
O IMPULSO DOCUMENTAL E A EXPRESSÃO LITERÁRIA EM ALVES REDOL
(então bastante enigmático, por desconhecimento generalizado desse
grupo social) um cruzamento particular e original “entre” o exercício
da narrativa ficcional e a recolha documental de teor etnográfico. Ora,
será porventura este “entre” o elemento diferenciador que tornará Redol
numa das novas vozes da literatura portuguesa. Por outro lado, o acento
na recolha e assunção literária das expressões originais dos Gaibéus, ou
mais tarde de Avieiros e Fangueiros, aparece com a força de um voluntarismo imprevisto, pois se na obra de Aquilino Ribeiro ou mesmo Ferreira
de Castro podemos encontrar uma consciência profunda sobre o jargão
popular e regional, Redol introduz na sua narrativa uma espécie de nova
matriz realista, mais atenta à luta de classes e que salienta a expressão quase
direta dos sociolectos, o tom coloquial dos modos particulares de dizer e
agir dessas comunidades que observa, dando conta das suas difíceis relações
com a hierarquização tradicional do trabalho. Mas é curioso que, à época,
esse fator não terá sido suficiente para o reconhecimento desses primeiros
títulos, aparentemente por não se fazerem acompanhar da necessária
elaboração formal. A crítica que Mário Dionísio lhe dirige desde a famosa
“Ficha 5”2 e ao longo dos anos, ao apontar alguns “equívocos” formais e
uma “tendência infeliz” para “escrever difícil”3, que revelava sobretudo,
no entender do crítico, uma certa insegurança ao nível da linguagem e da
construção narrativa, levará o próprio Redol a reconhecer desde cedo, não
sem angústia, mas com humildade, as razões de algumas das suas “fragilidades”, fixando muitos anos mais tarde, no prefácio à 6ª edição de Gaibéus,
um mea culpa sobre essa estreia literária marcada pela “impetuosidade desregrada, o arrebatamento impulsivo de um jovem que anseia[va] por libertar
Alves Redol, Gaibéus, edição do autor, 1939. Recordemos a epígrafe que tanta polémica tem causado: “Este romance
não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no
Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem”. Apesar dos equívocos e das múltiplas interpretações, inclusive ampliados pelos diversos esclarecimentos prestados pelo próprio escritor ao longo dos anos, esta epígrafe que
introduz Alves Redol na literatura de ficção reflecte, na verdade, não apenas o implícito desejo literário do autor,
como o espírito de um tempo em que o levantamento documental se impunha ao exercício narrativo e romanesco.
Recorde-se, a propósito, a epígrafe em tudo semelhante, na forma e no conteúdo, que abre a obra Banditi (1946), do
escritor neorrealista italiano Pietro Chiodi: “Este livro não é um romance, nem uma história romanceada. É um
documento histórico, no sentido em que as personagens, os factos e as emoções aconteceram realmente”. (cf. Bruno
Falcetto, “Neorrealismos escritos”, in AAVV, NeoRealismo. La Nueva Imagen en Italia (1932-1960), Coord. Enrica Viganò,
Madrid, La Fabrica Editorial, 2007, p. 59).
1
2
Mário Dionísio, “Ficha 5”, in Seara Nova, 11 de Abril de 1942, p. 131-134.
Ibidem. Ainda sobre esta questão cf. Mário Dionísio, “Para o perfil de um camarada”, in AAVV, Alves Redol. Testemunhos dos
Seus Contemporâneos, (Org. Maria José Marinho e António Mota Redol), Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp. 66-80.
3
160
DAVID SANTOS
o homem de tais grilhetas, desejando que a sua pena se torne[asse] ferramenta de progresso”4. Desde as primeiras críticas, e manifestando desse
modo a sua enorme estima e consideração intelectual por Mário Dionísio,
Redol empenhar-se-á igualmente, apesar das dúvidas instaladas quanto ao
seu futuro como escritor, em aprofundar o labor oficinal da sua literatura, o que significava perseguir, como diria Dionísio, essa “simplicidade
limpa […] demoradamente adquirida, assimilada, construída”5, como
forma de evitar os “efeitos fáceis e vistosos que qualquer aprendiz rapidamente obtém”6. Estamos em crer, porém, que um dos valores maiores da
prática literária redoliana corre em paralelo ao Olimpo do enredo literário, à caracterização maior das personagens, ou desses “efeitos” formais
e linguísticos mais conformes às expectativas da intelectualidade informada, condição essencial para o aval da crítica. Se há característica que
distingue e ilumina a obra de Alves Redol, sobretudo entre os anos 40
e o final da década seguinte, é a capacidade de pôr a falar, no âmbito da
literatura e no universo da recetividade crítica, um conjunto significativo
de grupos étnicos que até aí tinham sido evitados como tema narrativo. O
próprio Mário Dionísio reconhecerá mais tarde, quando do prefácio de
Barranco de Cegos7, com sentido igualmente crítico e indagando diretamente
o leitor, que Alves Redol apresentava particularidades que o haviam determinado, para o bem e para o mal, desde o início do seu percurso, e que
redundariam nos muitos ataques que viria a sofrer ao longo dos tempos,
em sentidos opostos, de trincheiras rivais: “Que presa fácil! Não trouxe
ele para o nosso romance (e para nosso remorso) personagens, situações,
problemas nunca antes trabalhados, até então tranquilamente ignorados
pela literatura, com uma clareza e um espírito de luta que teriam de entusiasmar aqueles que da arte curam pouco, mas apenas de ideologias e
Alves Redol, “Breve memória para os que têm menos de 40 anos ou para quantos já esqueceram o que aconteceu em
1939”, in Gaibéus, (1939), (6ª edição), Lisboa, Publicações Europa-América, 1965, p. 21.
4
5
Mário Dionísio, “Prefácio”, in Alves Redol, Barranco de Cegos, Lisboa, Portugália Editora, 1961, p. 12.
6
Ibidem.
Prefácio onde Mário Dionísio defende de modo convicto Alves Redol, apontando o dedo a quem não percebera
ainda que Barranco de Cegos era não só a obra-prima do escritor vila-franquense, como “sem dúvida também um dos
grandes romances de toda a nossa história literária”. (cf. Alves Redol, Barranco de Cegos, Lisboa, Portugália Editora,
1961, p. 13).
7
161
O IMPULSO DOCUMENTAL E A EXPRESSÃO LITERÁRIA EM ALVES REDOL
incentivos de ação que nela possam ver? Não mostravam os seus primeiros
livros esquematismos de conceção e de análise, tibiezas de linguagem e de
construção, ingenuidades, que permitiram aos defensores da arte (e só da
arte…) uma reprovação sistemática, facilmente estribada em declarações do
próprio autor, segundo as quais só o documentário lhe interessaria?”8. Na
verdade, foi esta a teia onde se enredou não só a obra de Alves Redol, como
também a sua receção crítica, marcando assim o ritmo da sua sobrevivência
e significado, pelos menos no meio literário, pois junto do público leitor
a aceitação crescente convertê-lo-ia num dos escritores de maior sucesso
editorial até ao final da década de 50. Porém, a discussão parece, pelo
menos, aos olhos de hoje, algo deslocada ou indiferente a algumas das suas
características mais decisivas. Com efeito, mais do que fomentar parcialmente uma leitura ideológica ou o “incentivo” de uma ação política – o que
para muitos, por si só, condicionava desde logo e em grande parte a liberdade criativa do escritor –, e mais do que apresentar dilemas de conceção,
limitações formais ou de estética literária, a obra inicial de Redol traduz
precisamente o maior investimento até aí realizado entre nós em torno de
uma literatura mais próxima da energia realista do documentarismo.
Apesar de algumas impetuosidades estilísticas ou ânsias de intervenção
facilmente identificáveis, podemos dizer que o arranque romanesco de
Alves Redol inaugura e aprofunda, antes de mais, uma ligação invulgar e
talvez demasiado ousada para a época, situada entre o carácter analítico
associado às marcas sociais e políticas dos grupos com quem viveu e partilhou experiências reais e o desejo criativo de as expor ao imaginário e à
trama narrativa. Os seus primeiros títulos dependem em grande parte, na
verdade, desse impulso experimental e sobretudo da capacidade de transformação literária dos elementos recolhidos por um particularíssimo
“trabalho de campo”, inspirado nos métodos de pesquisa da etnografia
e da antropologia, mas adaptado às condições possíveis da sua formação
amadora. Estratégia, aliás, assumida com clara honestidade desde logo no
“preâmbulo” de Glória, quando afirma: “[…] a etnografia captou-me por
um misto de interesse cultural e simpatia pelo seu abandono, levando-me
a folhear alguns volumes da obra fecunda do ilustre fundador do Museu de
8
Ibidem, p. 11.
162
DAVID SANTOS
Belém [Redol refere-se ao Museu Nacional de Arqueologia, fundado por
Leite de Vasconcelos com a designação de Museu Etnográfico Português].
Então, constatei melhor quanto de valor linguístico e social encerravam
esses estudos, a viverem do heroísmo de meia dúzia, e embora reconhecendo-me incapaz de produzir obra científica com semelhanças de mérito,
entendi poder colaborar na etnografia portuguesa, recolhendo com amor
e desvelo aquilo que, no contacto vivificador buscado sempre com alegria
junto do meu povo, me parecesse merecer retenção”9.
Nessa medida, o informal documentarismo das primeiras obras pode
ser entendido ao mesmo tempo como a sua grande bandeira de criatividade, ao manifestar-se como ligação híbrida e interdisciplinar, quase
pós-moderna, diríamos, “entre” o “puramente” objetivo das ciências e o
“puramente” artístico da literatura, abraçando assim as potencialidades de
um lirismo romanesco que se mantém quase sempre, contudo, vinculado
ao real, ao fazer depender a narrativa de uma colagem à natureza dos tipos
sociais em que se inspira. Em nossa opinião, é precisamente essa fusão ou
“impureza”, espécie de marca maior de uma particular interdisciplinaridade, que melhor caracteriza a voz original de Alves Redol. Se observarmos
inclusive a sua obra sob a perspetiva aqui proposta, talvez as exigências
formais e artísticas levantadas pela autoridade crítica – nomeadamente a
necessidade de uma contenção estilística e a fuga ao conteudismo politizado – possam reduzir-se a uma de entre muitas perspetivas de leitura
sobra a sua natureza e complexidade.
Apesar dos avisos iniciais da crítica, a publicação de Marés (1941), Avieiros
(1942) e Fanga (1943), viria a confirmar o projeto literário de Alves Redol
como uma nova forma de realismo literário, trabalhado para transmitir
emoções ao leitor, mas também valores e preocupações de teor político-social. O Neorrealismo afirmava-se, assim, enquanto expressão alternativa
à literatura portuguesa presencista ou dela derivada, por meio de uma obra
de expressão épica, que nascera da necessidade de estudo e compreensão
sobre as características e especificidades regionalistas da sociedade portuguesa, das suas idiossincrasias aos vestígios humanos universais.
Já no contexto geográfico duriense, e depois de Porto Manso (1946), a
9
Alves Redol, Glória – uma Aldeia do Ribatejo, Edição do Autor, 1938, p. 10.
163
O IMPULSO DOCUMENTAL E A EXPRESSÃO LITERÁRIA EM ALVES REDOL
trilogia do ciclo Port Wine, constituída pelos títulos Horizonte Cerrado (1949),
Os Homens e as Sombras (1951) e Vindima de Sangue (1953), assegurava a Alves
Redol um protagonismo crescente, convertendo-o num dos escritores
portugueses mais atentos à realidade social, cuja obra integra uma visão
cada vez mais crítica e abrangente sobre o drama da exploração humana
em que se baseavam as relações de trabalho no nosso país. Se esta característica resultara primeiro da observação da vida ribatejana, traduzia-se
agora na denúncia das condições desumanas de grande parte da vindima
do Douro. Em todos estes casos, tal como em Uma Fenda na Muralha (1959),
na atenção prestada à faina dos pescadores da Nazaré já no final dos anos
50, Redol munia-se ainda – para além da sensibilidade lírica que caracteriza um escritor ou do já referido empenho cívico, ético e político – de
um apurado sentido de observação objetiva, apoiado não só nas técnicas
do registo etnográfico, mas sobretudo numa disponibilidade imensa para
captar a genuinidade do “outro” social, procurando no diálogo e na humanidade do gesto solidário um modo mais profundo de acesso à experiência
quotidiana desses grupos.
Por isso, se Barranco de Cegos (1961) significou para muitos o apogeu literário
de Alves Redol, a sua definitiva consagração como escritor, terá constituído
ainda um sinal mais de distanciamento ou dissolução do “propósito entnografista” que esteve na génese do Neorrealismo, essa “idade de inocência
épico-lírica”10 que se perdeu a favor do cânone literário, “no quadro de um
amadurecimento da técnica romanesca e da fecundidade semântica germinada a partir de um cruzamento de vozes sociais”11. Por outras palavras, se
parece não haver dúvidas sobre a diferença de valor literário entre a simplicidade esquemática e até maniqueísta12 de Gaibéus e a elaborada densidade
narrativa e psicológica de Barranco de Cegos, ela poderá significar, igualmente,
ainda que sob diferente perspetiva de análise, um empobrecimento da
riqueza semântica que se manifestara desde o início nesse “propósito etnografista”, mesmo que a sua surpreendente originalidade nem sempre tenha
Cf. Vítor Viçoso, “A ficção narrativa no movimento neo-realista: as vozes sociais e os universos da ficção”, in AAVV,
Batalha pelo Conteúdo – movimento neo-realista português, Vila Franca de Xira, Museu do Neo-Realismo/CMVFX, 2007, p. 73.
10
11
Ibidem, p. 84.
12
Ibidem.
164
DAVID SANTOS
sido trabalhada em prol da grande obra literária. É neste sentido reveladora
a análise feita em 1965 pelo próprio escritor acerca da sua primeira obra de
ficção: “Gaibéus seria um compromisso da reportagem com o romance, em
favor dos homens olvidados e também da literatura aviltada. Não conseguiu
voar tão alto nem tão longe. Mas, perante a ameaça que depois tão tragicamente todos provaram na consciência, ou na própria carne, Gaibéus quis
ser, e foi, um dos gritos exatos de um drama coletivo e privado”13. Ao reconhecer as limitações da sua obra de estreia, Redol refletia também sobre um
tempo que passara e as suas ilusões de transformação imediata. Esse título,
escrevia, “trazia com ele todas as virtudes e os fatais defeitos de um embrião.
É livro típico de uma atitude, mais outra voz na velha querela da função da
arte. Uma voz apaixonada, como é salutar quando se rompe combate”14.
Da experiência da etnografia ao combate politizado diluído pela escrita de
ficção, Alves Redol realizou um trajeto que o levou do real mais cru e transparente a um real aprofundado pela intensidade literária, na maturação de
uma simplicidade segura e voluntária, só ao alcance dos mestres.
Na verdade, com o aperfeiçoamento formal de Barranco de Cegos, após mais
de 25 anos desde a publicação de Gaibéus, Alves Redol recebeu finalmente
os elogios que lhe faltavam, oriundos, para mais, dessa crítica que desde
o início dos anos 40 exigira ao realismo social uma inequívoca e genuína
elevação artística, isto é, sustentara que depois da conquista de alguns temas
mais ou menos incómodos ao regime do Estado Novo, deveria converter-se
numa “arte maior” e abandonar a pretensão primeira de se afirmar sobretudo como “arte útil”, secundarizando desse modo o sentido de despertar
social que havia estado na sua origem, espécie de “pecado” diminuidor,
como se as características politizadas e documentaristas iniciais ferissem de
morte as suas hipóteses artísticas. No fundo, é como se o Neorrealismo estivesse destinado, desde o início, a fugir da sua essência original, apagando
aos poucos qualquer vestígio de expressão inovadora ou distintiva, para se
converter numa das muitas faces do cânone que define essa entidade incontornável, mas algo abstrata, que é “a grande literatura”15.
13
Prefácio de Alves Redol à 6ª edição de Gaibéus…, p. 21.
14
Ibidem, p. 23.
15
Cf. Harold Bloom, O Cânone Ocidental, (1994), (trad. port. Manuel Frias Martins), Lisboa, Temas e Debates, 2011.
165
O IMPULSO DOCUMENTAL E A EXPRESSÃO LITERÁRIA EM ALVES REDOL
Porém, o interesse documental que formou a sensibilidade literária de
Alves Redol não se manifestou apenas na experiência ficcional, obtendo
resultados concretos na pesquisa etnográfica que determinou a publicação dos Cancioneiros, nomeadamente o Cancioneiro do Ribatejo (1950) e o
Romanceiro Geral do Povo Português (1964) – este último contando com a colaboração de Fernando Lopes Graça (música) e Maria Keil (ilustrações).
Não podemos esquecer, como nos lembra Vítor Viçoso, que “a representação ficcional do povo, por parte dos neorrealistas, complementava-se
dialeticamente com a publicação e o estudo das fontes originais da cultura
popular”16. Por isso, podemos afirmar que a evolução ficcional de Redol
não diminuiu integralmente o seu propósito etnográfico, auscultando em
paralelo à ação literária a voz do povo e as manifestações culturais identificadas com a tradição oral. Pelo menos neste aspeto, o escritor manterá ativa
a sua intenção inicial de ouvir os grupos socioculturais do nosso país, com
o objetivo de recolher e registar a sua expressão mais genuína, constituindo
assim uma espécie de arquivo, entendido como tesouro ativo de uma certa
portugalidade ou nacionalismo17, diferente todavia da visão nacionalista do
Estado Novo. De facto, se Redol pretendia registar a cultura identitária do
país era porque nessa tarefa reconhecia, tal como Rodrigues Lapa definira
a filologia e o etnografismo, “um instrumento inapreciável de autêntica democracia”18, resultado do estudo e da compreensão desses grupos,
admitindo nas manifestações da cultura popular uma via de dignificação
emancipatória, reivindicativa do seu estatuto e lugar social, enquanto o
regime de Salazar procurava preservar nessa mesma identidade a razão de
um imobilismo de cariz conservador e corporativista.
Por outro lado, não será difícil reconhecer que entre o impulso documental, mais politizado inicialmente na sua dimensão utópica, e a expressão
literária amadurecida pela carreira de escritor, Alves Redol conduziu
o seu percurso visando a aceitação do meio literário, o que o terá realizado, finalmente, enquanto criador, sobretudo depois da publicação de
16
Vítor Viçoso, op. cit., p. 66.
Sobre esta questão cf. José Neves, Comunismo e Nacionalismo em Portugal. Política, Cultura e História no Século XX, Lisboa, Ed. Tinta
da China, 2008.
17
18
Cf. Alves Redol, Glória…, p. 9.
166
DAVID SANTOS
Barranco de Cegos. Mas nesse trajeto, em parte sacrificial, o escritor ter-se-á
afastado, pelo menos em parte, não só do ímpeto político como do espírito etnográfico original que, mesmo assim, ficará para sempre associado
à fundação do movimento neorrealista e, nessa medida, à sua afirmação
distintiva. De outro modo, não significará a incursão pelo etnografismo
o expoente máximo desse compromisso de Redol com os mais desfavorecidos, seus problemas e anseios, e com as tensões resultantes das relações
sociais do trabalho, desde cedo entendido como património inalienável
ou último reduto da dignidade humana? Haverá, na verdade, contributo
maior de Alves Redol à literatura portuguesa do século XX? Ainda recentemente, e apesar de apontar a Gaibéus, de modo crítico, “o compromisso
equívoco entre documentário e ficção”19, Vítor Viçoso defendeu também,
como nós, que “a modernidade de Redol está, apesar dos condicionalismos
epocais, nesta hibridez entre o etnografismo documental e uma poetização
que radica na relação simpática entre o autor e a paisagem, entre aquele e
as comunidades rurais que a habitam ou nela transitam”20.
19
Vitor Viçoso, op. cit, p. 67.
20
Ibidem.
167
A Mentira que Causa Deleite
João Soares Santos
“Il y a dans la nature des couleurs et des sons, mais pas de mots”
Gottfried Benn
1. No diálogo «Filopseudes», Luciano de Samosata (c. 120-190)
coloca Tixíades e Filócles a conversar sobre a mentira. Admitem que, em
determinadas circunstâncias, a narração de falsidades pode ser útil para
quem as emite ou para beneficiar uma comunidade. Ulisses serviu-se da
impostura para salvar a sua vida e a dos seus companheiros. Porém, sem
desculpa válida, proferida por homens de superior inteligência, a mentira
é causa de análise e censura. Tixíades aponta Heródoto, Ctésias de Cnido
e Homero como exemplos de indivíduos intelectualmente dotados que
usaram a escrita para veicular informações contrárias à verdade, preservadas através das gerações «na mais selecta dicção e ritmo.» 1 «Por causa
deles costumo várias vezes corar quando referem a castração de Urano, os
grilhões de Prometeu, a revolta dos gigantes, toda a desolação do Hades,
como Zeus por motivos amorosos se transformou em touro ou cisne,
como alguma mulher passou a ser uma ave ou urso; sim, e ainda Pégasos,
Quimeras, Górgonas, Ciclopes e tantos outros – estranhas e maravilhosas
fábulas apropriadas para encantar as almas das crianças que ainda receiam
Mormo e Lâmia.» 2
Tixíades manifesta a sua perplexidade ante os testemunhos de credibilidade relativos à existência de figuras mitológicas. Não entende como poetas
e povos aceitam sem relutância que Triptólemo se movia pelo ar atrás de
serpentes com asas, que Pã veio da Arcádia para Maratona para auxiliar na
batalha contra os Persas ou que Oreitia, uma das filhas de Ericteu, fosse
transportada por Bóreas. Quem tiver dúvidas sobre a genuinidade destes
eventos e factos é considerado um tolo sacrílego. Filócles absolve os poetas
versados nestes temas e aqueles que os apreciam, pois, apropriando-se
do poder sedutor destas histórias, os primeiros exercitam a sua arte para
deleitar os segundos.
Os dialogantes criticam relatos e crenças relacionadas com ideias
herdadas de épocas pretéritas. Sugerem que certas narrativas são mentiras
169
A MENTIRA QUE CAUSA DELEITE
que causam prazer e convicção. Eles mesmos, na condição de personagens ou vozes inventadas por Luciano evocam por via linguística uma
realidade paralela, transferem para uma construção artificiosa (a escrita)
acontecimentos e argumentações. Não parecendo ter uma intenção desonesta, Luciano usa a falsidade do discurso para persuadir os destinatários
com a sua maneira de opinar sobre o assunto. A mentira das histórias
é o mote para a sua ficção, para os seus enunciados verbais, para as suas
simulações vocabulares de ocorrências e de deliberações. As palavras e
os códigos aplicáveis à sua elocução ou ao seu registo escrito (ortografia
e estilo de redacção) têm níveis ou qualidades diferenciadoras nos quais
estão presentes elementos ontológicos, corporais e culturais. Ao ser comunicada pela fala ou por sinais gráficos, a língua tem uma expressão colectiva
e individual. A voz desenhada num suporte está desprovida de intonação,
não tem timbre, altura de som, as tonalidades sensíveis ou psicofisiológicas
próprias da vocalidade do elocutor.
Mentira («mensonge», «menterie», em francês) implica um engano,
alguém finge que uma coisa é outra, uma mensagem dolosa não suscita
dúvidas, passa a ser entendida como autêntica, como merecedora de assentimento. Aristóteles disse que o falso é a negação do que é pela afirmação do que
não é. O termo parece ter como antecedente etimológico o latim «mens»
(raiz «men») que significa «mente», «modo de pensar», «opinião»,
«carácter», «razão», «intelecto» ou «julgamento». A correspondência
Grega será «mnáo» indicativo de «cerrar os lábios» («mno»=«fechar a
boca») ou «mémno» («resoluto»). O verbo Alemão «meinen» significa «pensar», «opinar», «julgar» e «Meineid» denota um «juramento
falso», um «perjúrio». Em sânscrito «Mithya» (contracção de «Mithuya»)
exprime algo incorrecto, errado, impróprio, inexacto, enganador, não
verdadeiro, falar de um modo falso, emitir uma mentira. «Mito» é um
vocábulo proveniente de «Mythos» que em Homero designava a «explicação de um pensamento por palavras», «discurso», antes de adquirir a
acepção de relato fabuloso ou heróico. A cultura tece papéis e desempenhos,
limites e transgressões. Os poetas, os actores, os bailarinos mentem através
das histórias que relatam ou interpretam, obedecendo a uma tradição, a um
comportamento regulado por deveres e obrigações. Pelo que é dito e pelo
modo de dizer, o maravilhoso torna-se verosímil.
170
JOÃO SOARES SANTOS
Numa certa noite, Li Bo ou Li Taibo (701-762), o eminente poeta
Chinês, ébrio sobre uma embarcação vogando pelo rio, observou fascinado
a lua espelhada nas águas. Debruçou-se sobre ela mas, ao tentar apanhá-la caiu e afogou-se. Alguns biógrafos confirmam este desfecho. Será
verdade? Não terá ele morrido enfermo devido aos excessos de bebida?
Apetece acreditar na hipótese mais imaginativa ou na mais realista?
Nas artes orais de narrar, o intérprete funciona como uma causa
eficiente, uma pujança que introduz no mundo comum algo que não
pode ser experimentado num contexto de trivialidade. Como nos sonhos
ou nas deslocações xamânicas, amiúde se supõe o movimento da alma do
narrador por lugares distantes ou próximos e a sua comunicação incentivada por forças transcendentes. As palavras supostamente dimanam ou
são colocadas na sua boca por iniciativa de outras entidades, ele passa a
ser o agente emissor de uma autoridade cujos testemunhos verbais não
permitem suspeitas.
No Wayang Kulit de Java, género narrativo com manipulação de marionetas de couro sobre um ecrã, o recitador e marionetista (Dalang) adequa
(Pantes) às personagens vários tipos de voz, de articulação sonora e ritmo.
Há um tom ou altura (Laras) e uma natureza da enunciação variável
consoante a aparência e as características temperamentais e estatutárias
das mesmas. A exposição verbal pode conjugar atributos como força,
fraqueza, calma, ferocidade, desembaraço, acanhamento, firmeza,
peso, suavidade, aspereza, finura, requinte, habilidade, rudeza, bazófia,
vulgaridade, estupidez, profundidade, rapidez, lentidão, flutuação, ira,
doçura, etc. Pequenas dissemelhanças vigoram entre figuras de idêntica
tipologia. O Dalang imprime ânimo e recebe alento da marioneta. A sua
alma ou espírito (Suksma) estabelece uma conexão osmótica com o material
talhado para o fazer «tremer» ou seja, para lhe dar vida. Como se a coisa
inanimada entrasse em transe para incorporar o Dalang e os poderes que
este acolhe em si ou como se o Dalang entrasse em transe para receber ou
passar a ser a personagem representada. A voz que relata e se desdobra
em conversação define, com as cambiantes próprias, as relações firmadas
entre os intervenientes dramáticos. É modelada tendo em consideração a
anatomia destes, particularmente o rosto, a posição e a configuração dos
olhos e a forma da boca.
171
A MENTIRA QUE CAUSA DELEITE
Tendo como substância o artifício e o talento elocutório, as histórias
e os bardos encantaram os povos. Os temas e motivos específicos deambularam por via oral e adaptaram-se a novos enquadramentos étnicos e
culturais. Traços de concordância nas matérias, nas técnicas e afinidade
linguística persistem através de amplas áreas geográficas.
2. Os Cabiros (Kábeiroi, Kábiroi) eram divindades ctónicas veneradas nas
ilhas do mar Egeu (Eubeia, Lemnos, Imbros, etc.) até ao Helesponto,
na Macedónia, na Beócia, na Samotrácia, nas zonas costeiras e insulares
da Europa e Ásia Menor, no Egipto e Etrúria. Nome que provavelmente
significa «Mãe Terra» ou «Mãe da Cevada», Deméter, protectora da
agricultura, das dádivas concedidas pela terra, tinha como epíteto Kabeiría.
Prole de Hefaísto, o deus artesão disforme, os Cabiros, «grandes deuses»,
são entidades conectadas com a vegetação, com o labor metalúrgico e
mineiro, com a navegação e identificados com outras potestades como
Zeus, Dióniso, Deméter, Perséfone, Hades ou Hermes. Observando um
grande secretismo nas suas cerimónias, o seu culto estava associado ao
impedimento de perigos (naufrágios, enfermidades, pobreza, guerra,
homicídio, perjúrio, etc.). Kábeiroi recorda foneticamente Kubera (no
sânscrito mais tardio Kuvera) que, segundo os Vedas, era um ser sobrenatural habitante das profundidades telúricas, um espírito da obscuridade,
o chefe dos Yakshas (entidades fantasmáticas benevolentes ou malignas que
podem causar possessão), Guhyakas (categoria de génios que habitam as
cavernas, de «Guhya = «escondido», «coberto», «mantido secreto») e
Rakshasas (espíritos perniciosos que erram pela noite, de «Raksha» = «acto
de proteger» ou de «guardar»). Estas entidades misteriosas conectadas
com lugares ocultos ou dissimulados podem ter o dom da metamorfose.
Embora o nome Kubera seja difícil de esclarecer (talvez «deformado»
ou «monstruoso»), «Ku» é um prefixo sânscrito que expressa «deficiência», «deterioração», «desprezo», «estranheza», «depreciação»
(«Kubja» = «corcunda», «com o corpo arqueado») ou um termo que
significa «terra». Mais tarde Kubera passou a ser na Índia o deus da
opulência (Dhanapati = «senhor das riquezas») e, juntamente com Indra,
Varuna e Yama, um dos guardiões dos quatro pontos cardeais. É representado como um anão, com três pernas, oito dentes, um olho, uma barriga
proeminente, segurando um bastão, uma romã, um recipiente de água,
172
JOÃO SOARES SANTOS
um saco de dinheiro ou um mangusto que expele moedas ou jóias. Numa
gravitação vocabular encontramos sonoridades análogas no Hitita Kubaba
e no Lídio Kubebe ou Kubele referentes ao nome de uma deusa mãe da
Síria e da Anatólia assimilada pelos Hititas vindo ulteriormente talvez a ser
a Cibele (Kybéle = «gruta») da Frígia, a senhora das grutas e das montanhas na Ásia Menor, para a qual se realizavam «Mistérios», cerimónias
em que o êxtase dos adeptos (curetes, coribantes ou galos) surgia com
frequência. Um relevo de Karkemish (séc. XII a.C.), a capital de um reino
Sírio e parte do domínio de Mitanni, depois absorvida no império Hitita,
mostra Kubaba com um gorro e segurando uma romã.
Segundo as fontes Purânicas, durante o Krita Yuga (o primeiro ciclo
cosmológico com a duração de 1 728 000 anos), Kubera recebeu a incumbência de regente dos oceanos, rios e correntes aquáticas. Durante dez
mil anos ficou em penitência, mantendo a cabeça submersa para agradar
a Brahma. Praticou depois a austeridade de ficar de pé apenas com uma
perna assente no chão. Sensibilizado, Brahma concedeu-lhe o desempenho de protector das oito regiões (Ashtadikpalakas). Posteriormente foi rei
de Lanka, cidade situada no mar do sul, edificada no topo da montanha
Trikuta. Ravana, seu meio-irmão (o pai era Vishravas), expulsou-o da
urbe e usurpou o trono, obrigando-o ao exílio no Norte. Quando Ravana
raptou Sita, participou na guerra como aliado das tropas de Rama.
No Tibete, Kubera é designado por Lus Ngan Po ou Rnan Thos Sras,
na Mongólia por Bishman Tengri, na China por Bishamen Caishen,
no Japão por Bishamon Ten, Kubira ou Kompira, na Tailândia por
Kuperan. No arquipélago nipónico, na ilha piscatória de Shikoku, a
sua influência centrava-se no evitamento de riscos para os marinheiros.
Iconograficamente aparece como um velho escuro, sentado de pernas
cruzadas, com um gorro na cabeça e empunhando uma pena de pavão.
Vamana («anão») corresponde a um dos Avataras de Vishnu, a morfologia
que tomou perante Bali, o monarca dos Daityas, filho de Hiranyakashipu,
após este se apossar e afirmar a supremacia nos três mundos. Vishnu
instalou-se no útero de Aditi e depois de ela ser fecundada por Kashyapa,
surgiu com a aparência de Vamana. Quando Bali e os seus assumiram o
poder e ameaçaram as potestades celestes, Vamana dirigiu-se ao soberano e
solicitou que este lhe concedesse uma porção de terra capaz de ser percorrida
173
A MENTIRA QUE CAUSA DELEITE
em três passadas. Bali, desconcertado, acedeu ao pedido e, então, o anão
inchou, aumentando gigantescamente as suas proporções. Num primeiro
passo abarcou todo o céu, num segundo toda a terra e quando se preparava num terceiro para abranger as extensões subterrâneas, Bali prestou
homenagem à divindade, oferecendo a sua cabeça para ela apoiar o pé. Este
gesto de subordinação fez com que Vishnu lhe atribuísse a governação dos
domínios inferiores (Sutala ou Patala), instalando-se em Mahabaliputra.
No Antigo Egipto Bes era um deus acondroplásico, barbudo, deformado,
com as pernas arqueadas, pénis e testículos protuberantes, com uma pele de
felino nas costas, cuja cauda pendia entre as pernas. Confundível por vezes
com Hity (um anão músico e dançarino) e com Aha (seu provável predecessor), o seu nome abrangia outros espíritos ou divindades anãs e tinha a
função principal de defender os indivíduos de conjunturas ou circunstâncias
que ameaçassem a sua segurança ou os seus bens (no casamento, nos partos,
no sono, etc.). Um encanto dirigido a Bes refere-o como «grande macaco
com cabeça grande e coxas curtas» e como «macaco velho». Recebeu os
títulos de «Senhor de Punt» e de «Senhor da Núbia». Costuma aparecer
associado à música (toca harpa ou instrumentos de percussão) e à dança.
Anões que aparecem representados em cenas oficinais nas mastabas de Sakara
durante o Império Antigo ou em amuletos terão afinidades com Ptah, o deus
criador do mundo pelo pensamento e pela palavra, o «Supremo Dirigente
dos Artífices». Excepcionalmente o mesmo Ptah pode ter sido patenteado
com uma anatomia nanista e barriga eminente.
As crenças relacionadas com criaturas de estatura atrofiada abundam nas
tradições Germânicas. Nos mitos nórdicos estas (Dvergr, sugerindo deficiência) residiam no subsolo pois surgiram das larvas que comiam o cadáver
putrefacto de Ymir, o antepassado de todos os gigantes, cujas partes do
corpo flutuando no oceano de sangue vertido da sua aniquilação serviu
para originar a terra. «Sábios das Montanhas», habitam as galerias das
minas, grutas, cavidades, possuem riquezas, são exímios ourives e ferreiros
(foram eles que esculpiram as jóias e as armas dos deuses) e apreciam os
jogos e a dança.
A récita Bretã da princesa Dahut (Dahud, Ahés, Ahé ou Keben) reporta
que esta foi ajudada na edificação da cidade de Ys (ou Ker-is) pelas Korrigans
(ou Ozeganned), seres femininos de reduzidas proporções físicas, habitantes
174
JOÃO SOARES SANTOS
do mar, dos cursos fluviais, das cavernas com águia corrente, vigilantes de
tesouros, com gosto pela dança e por ludibriar humanos. As paredes dessa
magnífica urbe foram pintadas a dourado por anões.
Na concepção folclórica Irlandesa o duende ou trasgo (leprechaun) é um
anão sapateiro com aptidão para cantar e dançar, conhecedor do lugar onde
se encontra um pote de ouro no fim do arco-íris. Segundo a cosmologia
Celta, o além (otherworld ou fairyland) era um território insular submerso,
um sítio «de mel» para o qual havia passagem pelas cavernas, pântanos e
costas cobertas de canaviais. Esta dimensão paralela inacessível era povoada
pelos defuntos, pelas divindades e por criaturas liminares como as que
estivemos a descrever. As convicções Germânicas e Celtas sobre anões de
diferentes tipos preservaram-se após a cristianização. A qualidade apotropaica dos Cabiros, de Kubera, de Bes e de figuras aparentadas, a associação
ao elemento líquido, aos espaços subterrâneos, a corporalidade anómala
(atrofia e disformidade), as suas práticas artesanais, o gosto pela música e
pelos movimentos cadenciados, parecem ter, com compreensíveis variantes,
uma ressonância ampla nas tradições. A reverência e o teor por vezes auspicioso das mesmas talvez se tenha prolongado para as personagens cómicas
das cortes (os bobos) e do teatro (veja-se o exemplo do Vidushaka indiano).
3. Outro dos apoiantes de Rama na expedição militar com o escopo
de resgatar Sita (relatada nas versões do «Ramayana») foi Hanumat
ou Hanuman, o comandante dos Vanaras («macacos», «habitantes da
floresta»), um povo com atributos simiescos. Cognominado «Senhor dos
Macacos» (Kapipati), ele obedece com as suas hostes a Rama por seu turno
chamado «Chefe dos Macacos» (Kapiprabhu ou Kapiratha). O sábio (Rishi)
Narada, um dos descendentes de Kashyapa, um patriarca de eras muito
remotas (ou de Brahma) e de uma das filhas de Daksha (ou de Sarasvati),
amigo de Krishna, era designado por «cara de macaco» (Kapivaktra). De
Sugriva, o soberano dos Vanaras (Kapindra) dizia-se ser «venerado por
macacos» (Kapijya). Uma hipótese de antecedência deste herói primata
e da sua tribo é o guerreiro ou chefe Vrishakapi, mencionado no «Rig
Veda». O termo agrega «Vrisha» («macho de animal», «homem») e
«Kapi» («macaco», em Grego «pithékos»). Vocábulos com a componente «Kapi» estão conectados com a história mais antiga da Índia tal
como o nome Kapila («com cor de macaco», «castanho», «amarelo
175
A MENTIRA QUE CAUSA DELEITE
acastanhado», «avermelhado»), um homem douto pertencente à estirpe
de Manu e de Kardama («lama», «barro», «lodo»), dois predecessores
distantes e associado à fundação dos sistema filosófico Samkhya. Kapila é
também uma das filhas de Daksha que se veio a unir com Kashyapa («que
tem dentes negros» ou «tartaruga») , figura igualmente de épocas muito
recuadas. Arjuna tinha como emblema este animal, donde a denominação
honorífica «que tem como símbolo um macaco» (Kapiketana), identificado com Hanuman. No «Mahabharata» ele é meio-irmão de Bhima,
pois ambos foram gerados por Vayu (o deus Vento, em Grego «Aiolos»)
e encontram-se na floresta (Livro III, «Vana Parva»). Nesta secção
Hanuman resumidamente relata o Ramayana e descreve os quatro ciclos
cósmicos. Promete ainda ajudar os Pandavas entrando no estandarte de
Arjuna. As peças de teatro «Saugandhika Harana» de Vishvanatha, um
autor patrocinado por Prataparudra, governante de Warangal, em Andhra
Pradesh e «Kalyana Saugandhika» de Nilakantha incidem sobre este
entrecho em que Bhima, enquanto procurava as flores Saugandhika para
Draupadi, num lago pertencente a Kubera, se confronta com Hanuman.
Nos textos Jainistas os Vanaras não são apontados como símios mas
sim como espíritos aéreos «detentores de conhecimento» (Vidyadharas)
possuindo morfologias híbridas ou humanas ou como um povo que usava
nas coroas e bandeiras a insígnia de um primata. Hanuman não é um
macaco mas membro da linhagem Khechar, sendo cunhado de Ravana,
por casamento com Chandranakhi, a irmã do rei de Lanka. O seu exército
tinha como emblema o aludido animal.
Muito venerado como deidade na Índia rural, Hanuman garante o
afastamento de influências nefastas, tutelando com a sua pujança factores
perniciosos para as vulnerabilidades humanas. Muitas tribos indígenas
prestam culto a macacos, mantendo uma tradição de narrativas sobre
Hanuman, levando a conjecturar a possibilidade dele ter sido uma figura
não ariana absorvida pelo bramanismo. Talvez um Yaksha ou um destacado
guerreiro autóctone que, como sucede noutros casos, depois de morto
passou a ser motivo de preito e de protagonismo em histórias. Entre
outras alternativas, atribui-se a sua paternidade a Vayu (Maruta ou Pavana,
o Vento) e a Anjana, uma Apsara amaldiçoada que nasceu como Vanari e
desposou Kesari. Podendo ela por natureza assumir à sua vontade qualquer
176
JOÃO SOARES SANTOS
morfologia, certa vez transformou-se numa bela mulher que, num monte,
ao ser contemplada por Vayu, não o deixou indiferente. Após uma irreprimível união, nela germinou Hanuman. Segundo «A História de Padma»
(«Paumachariya», referindo-se a Rama) obra redigida em Maharashtri
por Vimalasuri, um autor Jainista (entre 200 e 400), Hanuman descende
de Anjana e do príncipe Pavanajaya de Aditypura. Após vinte e dois anos de
abstinência sexual com a mulher, regressando de um combate como facção
de Ravana contra Varuna, consumou o acto com ela mas a consequente
gravidez foi considerada fruto de uma infidelidade. Em degredo, Anjana
deu à luz numa gruta. Deslocando-se com Pratisurya, o seu tio maternal,
para Hunuruhapura, a dada altura a criança deu um formidável salto do seu
regaço e aterrou sobre uma rocha. Devido à força assombrosa do menino
esta ficou despedaçada com o impacto. Segundo o «Bhavishya Purana»,
Shiva renasceu com a morfologia de Rudra, entrou na boca de Kesari e,
servindo-se do seu corpo, fez amor com Anjana. Vayu procedeu do mesmo
modo. Alojou-se no marido para fecundar a esposa. Da prenhez subsequente, doze anos volvidos, nasceu um menino com face de Vanara. A Apsara
Punjikasthala, com o nome terreno de Anjana ou Anjali, desagradada com
o aspecto da criança em si gerada, renunciou a mantê-la consigo e deixou-a na floresta. O jovem Hanuman, com um apetite voraz, procurando
alimento, viu o sol e, julgando que o astro era um fruto, pulou até ao céu e
tentou engoli-lo. O sol aterrado com as investidas pediu socorro. Ouvindo
os gritos, Ravana acudiu e enfrentou o faminto rapaz. 3 Um outro relato
conta que Hanuman perseguiu o sol no espaço celeste com a intenção de o
devorar e este refugiou-se no firmamento de Indra. Este deus arremessou-lhe então o seu raio (Vajra), atingindo com a arma o queixo do menino,
projectando-o para a terra. Vendo o ferimento do filho, Maruti reagiu
irado provocando a Indra e aos seus companheiros divinos um sofrimento
causado por cólicas. Indra acabou por pedir desculpa e como prova do
seu arrependimento conferiu a imortalidade a Hanuman. De acordo com
o «Shiva Maha Purana», Vishnu um dia transformou-se numa formosa
rapariga e Shiva, incitado pela sua beleza, ejaculou. Os sete sábios (Rishis)
conservaram o sémen numa folha e verteram-no nos ouvidos de Anjana.
Progénie ou manifestação de Shiva, de Vayu, de Kesari, de Pavanajaya
ou outros (no Sudeste Asiático aparece até referenciado como filho de
177
A MENTIRA QUE CAUSA DELEITE
Rama ou de Sita), semanticamente Hanuman indica «que tem um maxilar
saliente» ou «que tem um queixo poderoso» («Hanu»=«queixo» +
«Mah»=«grande», «forte», «poderoso») estando iconograficamente
patenteado com a fisionomia de um primata, corpo de homem, uma cauda
comprida e segurando uma clava na mão direita e uma montanha na esquerda.
Certas famílias ou clãs no Sul da China reputam-se de pertencer a uma
genealogia retrocedente a macacos que, após sequestrarem mulheres, com
elas se reproduziram. Segundo as «Cem Mil Palavras da Jóia» («Mani
Bka’ ‘Bum»), Avalokiteshvara ou Lokeshvara (em Tibetano Spyan Ras
Gzigs Dbang Phyung, o «Senhor que Olha para Baixo») surgiu no Tibete
com a aparência de um símio. Seis machos sem cauda, as seis tribos ou clãs
do «País das Neves», nasceram da sua ligação amorosa com um demónio
fêmea autóctone. «A História de Bu Jiang Zong, o Macaco Branco»,
conto de autor desconhecido divulgado no início do período Tang (618907), relata que durante a dinastia dos Liang (502-556, fundada por Xiao
Yan) o general Ouyang He numa expedição a Chang Le abrigou-se numa
caverna e nela a cônjuge deste foi raptada por um primata branco. Quando
por fim a conseguiu recuperar, ela apresentava-se grávida e a criança que
veio a nascer revelou semelhanças paternas, ficando com uma compleição
simiesca. Ouyang He foi executado por ordem do governante Chen (557588) e o jovem confiado a Jiang Zong, um amigo da família. 4
Certos mitos genésicos da Amazónia Peruana relatam que os seres
humanos são macacos sem apêndice posterior. Para os Ocaina, numa
primeira etapa, os humanos macacos alimentavam-se de terra e residiam
num mundo sem sol nem lua. Numa segunda fase, após um dilúvio e um
incêndio global, surgiram os símios sem cauda ao mesmo tempo que as
plantas comestíveis. Os Hitoto acreditam que os seus mais avitos antepassados foram macacos convertidos em humanos. Para os Bora os símios
passaram a ser humanos depois de uma chuva torrencial e um fogo que
lavrou por toda a parte. De um modo similar os Huambisa concebem ter
começado por ser macacos Maquisapa. Os mesmos animais são os predecessores étnicos dos Cashibo, protegendo-os em vida e auxiliando-os no
percurso a realizar depois do falecimento. O defunto tem de transpor
um rio, encontrando dois caminhos do outro lado e um homem macaco
que revela qual o trajecto a seguir. Os Cuna e os Chama pensam que os
178
JOÃO SOARES SANTOS
primatas foram no passado homens. 5 Na mitologia Azteca, a época actual
foi antecedida por quatro períodos cujos respectivos termos foram desastrosos. No primeiro, gigantes colectores acabaram devorados por jaguares.
No segundo, furacões transformaram os homens em símios. Os macacos
da era moderna (a quinta) são reminiscências de um processo gradual de
melhoramento da humanidade. Nas civilizações do México os animais
serviam de disfarce ou resultavam da incorporação dos deuses, usufruindo
por isso o seu estado de existência um esplendor sagrado. Um ano do calendário Azteca antigo era composto por dezoito meses com vinte dias. Cada
mês e unidades temporais que o constituíam recebiam um nome e símbolo
próprio, permitindo vaticinar o destino daqueles que neles nasciam. O
décimo primeiro mês (Ozomatli) era emblematizado pelo macaco. «Aqueles
que nasceram sob este signo eram considerados divertidos, como os actores,
marotos, atraentes, engenhosos, ganhando a sua vida devido a estas qualidades. Teriam muitos amigos; entre os reis e nobres estavam pessoas deste
tipo. No caso de ser uma menina, viria a ser uma cantora alegre, graciosa,
não demasiado modesta ou casta, agradável, capaz de persuadir com facilidade em qualquer assunto.» 6
Hun Bats e Hun Chen, entidades distintas ou uma entidade dúplice,
com cabeça de mono e corpo humano são deuses Maias das artes e surgem
amiúde em cenas com os gémeos divinos ou com os regentes do mundo
inferior. Os tutelares sobrenaturais da chuva e das águas correntes eram
concebidos no México como tendo dimensões hipotrofiadas como os anões
e gnomos. Tlatoc era o nome Azteca para englobar divindades pluviais, por
extensão da fertilidade e regeneração dos solos. A sua morada situava-se no
cimo das grandes elevações de terra e rocha ou no fundo das nascentes. Os
Tepictoton, seres com uma corpulência diminuta, responsabilizavam-se
por velar pelas montanhas.
4. Explorado e modelado de diferentes maneiras, o «Ramayana»
disseminou-se pelo Tibete, Mongólia, China, Japão, Coreia, Vietname,
Birmânia, Laos, Camboja, Tailândia, Malásia e Indonésia. Hanuman,
personagem de realce no elenco, acompanhou a deslocação desta epopeia
quer por intermédio da pregação religiosa e das traduções de textos concernentes às doutrinas, quer por via de mercadores, imigrantes, soldados,
marinheiros e artistas itinerantes. A versão mais antiga da récita de Rama
179
A MENTIRA QUE CAUSA DELEITE
na China está incluída numa conversão do «Satparamitasamgraha Sutra»
(em Chinês «Liudu Jijing») feita a partir do sânscrito por um monge
Sogdiano chamado Kang Senghui (séc. III). Como sucede no Budismo, a
narrativa é alterada para Jataka (relato das existências anteriores do Buda)
intitulando-se «Jataka de um Rei Desconhecido». Aqui, Rama não é um
Avatara de Vishnu mas o próprio Siddhartha Gautama num nascimento
prévio e Sita a princesa Yashodhara, a sua mulher. Ravana é um dragão
visível na forma de brâmane que a captura na floresta e a transporta para
o seu reino insular. Hanuman, juntamente com as tropas que comanda,
arremessando pedras no mar, constrói uma passagem para Lanka. 7 O
mesmo tema, filtrado pelo olhar budista, está evidenciado na «Anamaka
Jataka», traduzida para Chinês no século III e na «Dasharatha Jataka»
trasladada por Ji Jia Ye em 472 e no capítulo 46 da obra «Jnanaprasthana»
de Katyayaniputra, talvez transferida para a língua local por Xuangzang
(séc. VII). As Jatakas são histórias com traços de parábola e de sermão com
o desígnio de divulgar a doutrina Budista. Recorrem ao acervo de narrações tradicionais mudando-lhes o tom e acentuando uma interpretação
consonante com os valores a transmitir, promover ou reforçar. Incidem
sobre actos dignos de louvor protagonizados por Siddhartha antes de ele
nascer como Buda e atingir o Nirvana. A «Grinalda dos Nascimentos»
(«Jatakamala Shastra») de Aryashura, obra do cânone budista do Norte,
vertida para Chinês («Pusabeen Sheng Manlun») no século X ou XI,
contém a «História do Grande Macaco» (capítulo 24) na qual menciona
que o Bodhisattva foi noutros tempos um macaco de grandes dimensões
subsistindo nos Himalaias (Himavat) como um asceta. Um dia salvou um
homem perdido na floresta, vítima de um acidente. Esse mesmo indivíduo
tentou depois matá-lo para ter carne para comer. Enquanto o primata
dormia, exausto pelo esforço de o ter carregado às costas do fundo de um
precipício, lançou-lhe uma pedra à cabeça. A sua intenção não foi recompensada. Embora ferido, o macaco não retaliou e acompanhou o agressor
até à orla daquela região selvagem. Os remorsos torturantes do homem
originaram-lhe lepra. Uma outra «História do Grande Macaco» (capítulo 27) aborda o Bodhisattva como chefe de uma tribo de símios numa
área florestal dos Himalaias. Na trama, o soberano pitecantropo usa o seu
corpo retesado como ponte para os companheiros poderem escapar de
180
JOÃO SOARES SANTOS
uma árvore Banyan sob o ataque de um monarca local. No fim dá uma
lição de conduta virtuosa ao seu adversário. 8
Na cidade costeira de Quanzhou, na província de Fujian, onde existiu
uma comunidade de mercadores indianos, nos despojos de um templo
Hindu, há uma imagem que parece representar Hanuman. 9 Em Xinjiang,
alguns textos Budistas referem a epopeia de Rama. Em Yunnan, entre a
população Bai, Budistas que se exprimem num idioma do ramo TibetanoBirmano, situados junto à fronteira com a Birmânia e entre a minoria
Jingpo, da mesma família linguística, existem versões da mesma intriga. 10
Condensado em Jataka, o enredo do «Ramayana» foi transposto para
o Japão. Os testemunhos datam desde o século X. No arquipélago nipónico chamava-se «Ramaenna» ou «Ramaensho» e o desempenho de
Hanuman era mais discreto. Uma questão susceptível de controvérsia é
admitir Hanuman como matriz de Sun Wukong, o rei macaco do ciclo de
histórias intitulado «Viagem para Ocidente» («Xiyou Ji»), figura famosa
da literatura e do teatro Chinês. Da autoria de Wu Cheng’en (c. 15001582) este texto baseia-se em relatos populares e em edições prévias.
Entre as referências pioneiras desta mais consolidada obra (publicada em
1592) e personagem encontramos na China o culto aos gibões, particularmente os brancos, no reino Chu (700-223 a. C.), na zona da bacia central
do rio Yangzi. Nesta região vigorava um repertório de narrativas em que
intervinham estes animais. O Taoísmo enalteceu os poderes dos mesmos,
considerando-os detentores de um conhecimento singular na retenção do
Qi. Eram percepcionados como portadores de faculdades mágicas como
a de se reconfigurarem e de saber prolongar a vida. Noutras partes deste
país, o símio tem, entre outras propriedades, a de manter desviados entes
malignos sobrenaturais causadores de doenças ou de fracassos no estudo e
no comércio.
O tema em que um macaco demoníaco arrebata mulheres foi transmitido nalgumas composições literárias. Outro foco de legado será a viagem
empreendida pelo monge Xuanzang (c. 602-664) pela Ásia com o propósito de chegar à Índia e adquirir instrução e escrituras Budistas. A descrição
deste feito, documentada por um discípulo com o título «Memórias sobre
os Países Ocidentais na Época dos Grandes Tang» («Datang Xiyu Ji»,
646) terá impulsionado a eloquência e a imaginação dos contadores e uma
181
A MENTIRA QUE CAUSA DELEITE
tradição narrativa dela provinda pode ter germinado no período Tang
(618-907). Na época Song (960-1279) existem duas obras similares: a
«Narrativa Poética da Obtenção das Escrituras por Xuanzang do Grande
Tang» («Datang Xuanzang Qujing Shihua») e o «Registo da Obtenção
das Escrituras por Xuanzang do Grande Tang» («Datang Xuanzang Fashi
Qujing Ji») nas quais o macaco aparece ao peregrino sob o disfarce de um
erudito e afirma ser o soberano de 84 mil ousadas e destemidas criaturas da
sua espécie, provenientes de uma caverna situada na Montanha das Flores e
Frutos. Aqui, Sun Wukong («o macaco iluminado acerca da vacuidade») é
chamado «macaco aprendiz de monge» (Hou Xingzhe). Na «Representação
Miscelânica sobre a Peregrinação para Ocidente» («Xiyou Ji Zaju») do
dramaturgo Yang Jingxian (século XIV), o rei símio juntamente com o
porco Zhu Bajie e o frade Sha Wujing estão presentes. O mesmo sucede
com «Sanzang dos Tang Procura os Sutras na Índia» ou «Viagem para
Ocidente» de Wu Changling datada da época Yuan (1260-1368). Nela se
elucida que Sun Wukong foi um primata de pedra que, depois de encontrar uma fonte sagrada se tornou chefe dos macacos. Abandonou a sua
montanha e partiu em busca da Verdadeira Via. No período Ming (13681644) na «Relação de uma Viagem para Ocidente», redigida por Yang
Zhihe e corrigida por Zhao Jingzhen, Sun Wukong tem preponderância
na trama. Parece, neste caso, como noutras récitas populares de transmissão oral, ter existido um substrato ou enquadramento inicial que foi
acomodando novos episódios e personagens de modo a satisfazer o apetite
do público. Uma intersecção de histórias edificantes de teor Budista com
outras de cariz mais mundano e ainda lendas, mitos e relatos fantasiosos.
Wu Cheng’en reuniu uma série de fontes orais e bibliográficas para criar
uma obra que sincretiza dados de um imaginário de abrangência Taoista,
Budista e Confucionista. Precisando de versatilidade, de evitar a repetição, os profissionais do relato experimentaram novas situações, enredos e
intervenientes para assim serem solicitados mais vezes para deliciarem com
a sua arte. A introdução de Sun Wukong e a secundarização de Xuanzang
foi fundamental para garantir a simpatia das audiências. O ajuste da
personagem do «Ramayana» divulgada por via Budista ou a partir das
comunidades indianas na China na ousada jornada de Xuanzang para a
Índia foi determinante para o êxito e proliferação de episódios. «Viagem
182
JOÃO SOARES SANTOS
para Ocidente foi por um lado uma criação colectiva de artistas profissionais que ao longo de muitas centenas de anos desenvolveu as suas histórias
e personagens como resposta a uma exigência do público e, por outro, o
trabalho de um escritor de invulgar qualidade que usou o excelente material herdado para fazer algo melhor.» 11
Na civilização do Vale do Indo os arqueólogos descobriram entalhes
retratando macacos. No Egipto pré dinástico estes mamíferos eram embalsamados e sepultados. A devoção a um babuíno cinocéfalo chamado Hedjuer
(«Grande Branco») está testificada na primeira dinastia em Hieracômpolis
(Nekhen) e Abido por esculturas de babuínos sentados. Os «Textos das
Pirâmides» conectam o cinocéfalo branco a Tot (helenização de Djehuti),
potestade dos escribas, criadora dos hieróglifos. O nome Narmer, governante proto dinástico, aparece gravado numa estátua de babuíno pertencente
ao acervo do Museu de Berlim. 12 Babi ou Bebon era uma divindade piteciana com a morfologia de um babuíno. Para garantir a destreza sexual
depois da morte, o pénis do defunto era identificado com Babi.
Portador de uma virilidade pródiga, Hanuman é também um ser
íntegro e com uma estupenda erudição. Ensinado por Surya, aprendeu
sânscrito, gramática, estudou as artes, os tratados indianos, as formas de
Yoga e adquiriu faculdades psíquicas (Ashtasiddhi). Possui um discurso fluente
e persuasor, uma força impressionante, pode dar saltos magníficos e alterar
o seu tamanho e anatomia. É um melómano com dotes mágicos e mentais,
irrepreensível no seu acatamento a Rama e Sita.
5. As proezas de deuses ou de heróis de uma cultura ficam preservados
na memória dos poetas, narradores e ouvintes. Edificações grandiosas
foram erguidas com vocábulos estendendo o passado pelas incertezas da
transitoriedade cronológica presente.
No «Exame dos Quadros» («Chitradarshana»), primeiro acto da peça
«A Última Façanha de Rama» («Uttararamacharita») de Bhavabhuti (séc.
VIII), Lakshmana mostra a Rama e a Sita um conjunto de pinturas que
patenteiam cenas das suas vidas. Recordam e comentam episódios pretéritos, sendo Lakshmana o narrador e intérprete das mesmas. Uma delas
representa Hanuman e Rama ao vê-la exclama: «Oh alegria! É o valente
que tem um formidável braço, a felicidade de Anjana, aquele cujo heroísmo causou satisfação a nós próprios e a todo o universo». 13
183
A MENTIRA QUE CAUSA DELEITE
O relato de histórias com acompanhamento de imagens, bonecos ou
marionetas foi uma tradição cuja prática tem origens antigas na Índia.
Segundo as fontes Jainistas, os Ajivikas, seus rivais, na época do Buda (séc.
VI a.C.) têm como figura mais eminente um homem chamado Goshala
Mankhaliputra ou Maskarin Goshaliputra que, para doutrinar os seus discípulos, usava imagens. Este era descendente de um asceta (Mankhal) que subsistia
de um idêntico ofício, transportando na sua itinerância uma vara ou bordão
(Maskara). O «Bhagavati Sutra» (séc. III) refere que, relatando histórias, este
homem percorria as aldeias com a sua mulher, tendo ela um dia engravidado
de Goshala (o nome significa «que nasceu num estábulo de vacas»).
De modo a reforçar a concentração da assistência, os narradores
serviram-se de técnicas histriónicas e vocais para acentuar ónus dramático ao texto proferido e ainda pinturas, marionetas recortadas em pele de
animal ou estatuetas. O emprego de suportes com composições pictóricas
acompanhou a instrução Budista, Bramânica e outras. O âmbito geográfico
deste recurso expandiu-se pela Ásia Central, China, Coreia, Japão, Sudeste
Asiático, Irão, Arábia, Turquia e Europa. Os conteúdos variavam consoante
a mensagem a transmitir mas os meios mantinham algumas similitudes.
Tanto no «Mahabhashya» de Patanjali (séc. II a.C.), um comentário
em sânscrito aos textos do gramático Panini (séc. IV a. C.) e de Katyayana
(séc. III-II a.C., autor que completou a gramática do anterior), como
no «Mahavastu», obra que no mesmo idioma compila récitas Budistas
(entre os séc. I e IV) aparece um termo para designar um certo tipo de
profissional da narração: Shaubhika ou Shobhika (em língua Pali Sobhiya). O
étimo poderá ser Shub («aparecer», «parecer», «brilhar», «saltar»,
«adornar», correspondente ao Arménio Surb). A segunda das obras
mencionadas enumera um conjunto de artistas ou de animadores que
vêm ver Gautama a Kapilavastu, entre os quais está o Shaubhika. Este seria
uma espécie de actor, manipulando talvez figuras de sombras ou exibindo
e descrevendo imagens. Outro vocábulo, Yamapata («Yama» é o governante e juiz dos mortos) surge associado a récitas entoadas por alguém que
mostrava representações dos submundos de castigo e tortura («Naraka»,
geralmente traduzido por «infernos»), destino no qual os seres têm de
permanecer por um período diferenciado após o falecimento e antes de
renascerem. Narak Chitra («Naraka» + «Chitra»= «imagem», «pintura»)
184
JOÃO SOARES SANTOS
corresponde a outro género, aparentemente uma herança do anterior. O
«Harshacharita» de Banabhatta (séc. VII) regista o trabalho daquele que
apresenta o Yamapata (Yamapatika) da seguinte maneira: «entrando na rua
do bazar vi um Yamapatika rodeado por um grupo de rapazes impacientes
e entusiasmados. Ele explicava-lhes os frutos do outro mundo a partir de
um rolo pintado. Yama aparecia sentado num terrível búfalo. Segurando o
rolo na mão esquerda ele, com uma cana na mão direita apontava as cenas
pintadas». 14
No primeiro acto da peça «Rakshasa e o Selo» («Mudrarakshasa») de
Vishakhadatta ou Vishakadeva (séc. IX?), Nipunaka, um espião ao serviço
de Chanakya, o ministro de Chandragupta, serve-se deste ofício para vigiar
os súbditos e obter informações sobre o que se passa entre eles. 15
A difusão deste acessório terá ocorrido com a deslocação dos seus
intérpretes. As linhas de irradiação poderão ter uma origem indiana.
Conhecemos no Tibete os narradores Ma Ni Pa que nas suas jornadas por
feiras, centros de peregrinação e mercados apoiavam a elocução verbal
da história com representações pictóricas (Thanka). Um tipo de cantor da
epopeia de Gesar de Ling (Sgrung Pa) aparece provido com o mesmo recurso
auxiliar e com uma flecha aponta as sequências da intriga nele registadas.
No Irão encontramos categorias parecidas de profissionais: o Shurat Khwan
ou Shurat Khon (no teatro popular Shurat designava «marioneta» e Khwan ou
Khon «narrador»), o Parda Dar, o demonstrador de Parda Dari (aquele que
tem o Parda), Parda Zan e Shamayel Gardan («o circulador de imagens», nome
alternativo para Parda Dar). «Parda» poderá equivaler ao indiano «Pata»,
«Pad», «Paj» ou «Par», indicador de «tecido», «pano», «lençol»,
«ecrã», utilizado nestes relatos («Pata» em sânscrito). Com uma sonoridade e grafia aproximada de «Pata», o sânscrito tem igualmente o termo
«Pata» («queda», «voo», «voar», «modo de voar», «que desce»),
«Pā ta» («extensão», «série», «sucessão») e «Patha» («recitação»,
«leitura» ou «estudo de um texto»). Em dravídico a raiz verbal «Pad»
indica «cantar» («Paddanas» são narrativas cantadas). Em Andhra
Pradesh, por exemplo, estes rolos denominam-se por Kaki Padagalu e Patam
Kathalu. Lendas acerca das castas e subcastas bem como tramas versando
sobre heróis locais são expostas verbalmente recorrendo a este artefacto.
Com ele o Gowda Chettie relata o «Gowda Puranam» à comunidade Gowda,
185
A MENTIRA QUE CAUSA DELEITE
o Machaiah encadeia a trama do «Madelu Puranam» à cumunidade Rajaka, o
Kakipadagalavaru enuncia o «Mahabharata» à população Mudiraj, o Kunapulivaru
o «Padma Puranam» à casta Padmasale, o Addapuvaru narra a lenda da casta
Mangali (barbeiros) aos seus membros, o Gurrapuvaru a dos Malas à casta Mala e
o Dakkalivaru a da Madiga à comunidade homónima. 16
A proferição de uma sequência de eventos numa lógica temporal implica o
uso dos atributos vocálicos para criar uma experiência estética. A voz conduz
o tema e a fórmula de emissão, sendo de algum modo a pessoa que narra um
ilusionista que torna plausíveis e credíveis as ocorrências do seu discurso.
Na China o termo Bianwen (textos ou narrativas de mutação) surgiu
conectado com uma tendência literária popular mais religiosa ou mais
profana do período Tang (618-906). Bianxiangtu aplicava-se para especificar as pinturas de teor fantasioso geralmente Budistas que descreviam os
Narakas. O interesse pelo extraordinário e pelo exótico nas artes da palavra
tem um legado precedente à época Tang mas é nela que a imaginação dos
autores se emancipa de elos óbvios com o acervo tradicional. Os contos
Chuanqi («transmitir o estranho») na lista dos quais podemos incluir a
«História de Bu Jiang Zong, o Macaco Branco», são um testemunho vigorante em paralelo com o Bianwen. Este último supostamente derivou de um
estilo de récita oral com imagens chamado Zhuanbian («interpretar transformações» ou «virar [rolos com imagens] de transformações»). O narrador
tinha junto a si «quadros» ou «cenas de transformação» (Bianxiang) que ia
descrevendo e comentando. 17 Bian era o logograma Chinês para designar
aquilo que nas línguas Indianas reportava ao poder mágico ou miraculoso
da mutação a que os seres estavam sujeitos. A antecedência do Zhuanbian
estará radicada na Índia e na disseminação do Budismo, tendo depois
os chineses reajustado o género a histórias e a necessidades autóctones e
particulares. «Pensamos que a recitação [de Bianwen] era acompanhada
pelo desdobrar de rolos mostrando a representação pictórica das cenas
evocadas, um pouco como o Wayang Beber da Indonésia». 18 Estas imagens
poderão ter sido substituídas ou alternadas no período Song (960-1279)
por marionetas de sombra.
Na era Yuan (1279-1368) e Ming (1368-1644) o género Pinghua sucedeu
aos «Textos de Mutação» bem como os Baujuan («rolos preciosos»)
igualmente com incidências seculares e religiosas. A récita de Mulian,
186
JOÃO SOARES SANTOS
de procedência Indiana (o nome chinês de Maudgalyayana, discípulo
de Buda, Mokuren em Japonês), afirma-se transversalmente quer nos
Bianwen, Baojuan e outras expressões de literatura popular, mormente no
teatro. No «Ullambana Sutra» («Sutra dos Espíritos Esfaimados» ou,
de um modo mais literal, «Sutra dos que pendem de cabeça para baixo
[nos infernos]», «Yulanpen Jing» em Chinês), o monge Maudgalyayana
percorre os submundos de Yama (Yanlo em Chinês) e encontra a sua falecida mãe transformada num fantasma faminto (Preta). Oferece-lhe uma
tigela de arroz e quando ela tenta ingerir os grãos estes transformam-se
em pedaços incandescentes de carvão. Esta trama está associada à festa dos
defuntos, realizada na China na dinastia Tang e que, desde então, ganhou
progressivamente um estatuto mais popular. No Japão este período cerimonial denominava-se por Festa das Almas (Urabon-e).
No início do século XIX era possível encontrar no arquipélago nipónico pedintes elucidando com veemência sobre estes espaços subterrâneos
de sofrimento, evidenciando a iconografia relacionada. Estes mendicantes
prolongaram um estilo de relatar com suporte pictórico adicional que
remonta pelo menos ao período Heian (794-1185). Estas representações
sobre os domínios infernais (Yemma Yezu) percorreram a China e entraram
provavelmente no Japão pela Coreia. O nome Etoki («explicação de uma
pintura» ou «explicação usando uma pintura») abarcava esta actividade.
Em alternância ou como complemento podiam estar presentes pequenas
figuras esculpidas associadas ao assunto ou urdidura. No século XVII
os homens com esta ocupação designavam-se por Etoki Hoshi («propagadores da lei que explicam com imagens») e as mulheres por Kumano Bikuni
(«monjas de Kumano», do sânscrito Bhikhuni). Na região de Kumano,
a sul de Osaka, existiam santuários Shintô e Budistas bem como eremitas
(Yamabushi = «aqueles que dormem nas montanhas») que, por vezes, se
uniam a mulheres com conhecimento de técnicas xamânicas (Bikuni) e com
elas deambulavam pelas povoações pregando com o auxílio de imagens e
obtendo esmolas com esta tarefa. Embora fosse um território sagrado, não
há garantias que estas pessoas tivessem uma ordenação oficial para disseminar valores de qualquer doutrina ou fossem de Kumano.
Instrumento educativo, recreativo e de satisfação estética, as histórias
e modos de as relatar depreendem um usufruto do engenho e da perícia
187
A MENTIRA QUE CAUSA DELEITE
comunicativa humana. A narração exprime o indivíduo na sua articulação
particular e colectiva, plasma convenções, sincretiza memórias, depura
emoções e sentimentos. As tradições orais têm uma orgânica propensa à
cissiparição, desdobram-se em variantes individuais e gregárias, podem ser
recombinadas e reajustadas às experiências e vontades dos receptores. Com
a farinha amassada o padeiro não faz exactamente pães iguais. Numerosos
são os casos de interculturalidade nas diferentes categorias de récitas.
Quando atravessam regiões, continentes e oceanos, significa que houve
uma deslocação e ou contacto entre populações. O mesmo acontece com as
cópias e traduções de manuscritos.
O brâmane Vishnusharma foi aconselhado a Amarashakti, o douto rei
de Mihilaropya, para instruir os seus três filhos pouco interessados na aquisição de saberes. Para incentivar o idoso brâmane, o soberano ofereceu-lhe
cem concessões de terra. Mas ele respondeu que aos oitenta anos os bens
materiais não o entusiasmavam. O conhecimento não se vende por qualquer preço. Transmite-se para o aperfeiçoamento humano. Disponibiliza
os seus serviços apenas para que os descendentes do monarca tenham uma
erudição ímpar capaz de os ajudar nas opções do discernimento político. Compila então para eles o «Panchatantra» («Os Cinco Livros»),
conjunto de histórias provenientes da tradição oral, contendo apontamentos morais em verso de modo a facilitar a sua recordação. 19
188
JOÃO SOARES SANTOS
Referências:
1 – Lucian «The Lover of Lies or The Doubter», incluído em «The Works of
Lucian» (Tradução de A. M. Harmon), Vol. III, Harvard University press, Cambridge,
Massachusetts, 2004
2 – Idem
3 – Ver Joginder Narula, «Hanuman, God and Epic Hero», Manohar Publishers,
New Delhi, 2005 e K. C. Aryan e Subhashini Aryan, «Hanuman: Art, Mythology &
Folklore», Rekha Prakashan, New Delhi, 1994
4 – Mencionado por Lu Xun «Brève Histoire du Roman Chinois» (Traduzido por
Charles Bisotto), Gallimard, Paris, 1993
5 – Raphaël Girard, «Les Indiens de l’Amazonie Péruvienne», Payot, Paris, 1963
6 – Diego Durán, «Book of the Gods and Rites and the Ancient Calendar» (Traduzido
por Fernando Horcasitas e Doris Heyden), University of Oklahoma press, Norman, 1971
7 – Zhang Xing, «The Advent and Study of Ramayana in China», incluído na obra
«Ramayana in Focus: Visual and Performing Arts of Asia» (Editado por Gauri Parimoo
Krishnan), Asian Civilisations Museum, Singapore, 2010
8 – «The Jatakamala or Garland of Birth-Stories of Aryasura» (Traduzido por J. S.
Speyer), Motilal Banarsidass, Delhi, 1982 [1895]
9 – Zhang Xing, idem
10 – Ibidem
11 – W. J. F. Jenner (Tradução), «Journey to the West», Vol. IV, Foreign Languages
press, Beijing, 1990
12 – Jean-Pierre Corteggiani, «L’Egipte Ancienne et ses Dieux», Fayard, Paris, 2007
13 – Bhavabhuti, «La Fin de la Geste de Rama», incluído no volume «Théâtre
de l’Inde Ancienne» (Direcção de Lyne Bansat-Boudon), Bibliothèque de la Pléiade,
Gallimard, Paris, 2006
14 – Mencionado por M. L. Varadpande, «History of Indian Theatre», Abhinav
Publications, New Delhi, 1992
15 – Vishakadatta, «The Signet Ring of Rakshasa», incluído na obra «Great Sanskrit
Plays in Modern Translation» (por P. Pal), New Directions, New York, 1964
16 – Bittu Venkateswarlu, «Scroll Narratives of Andhra Pradesh», incluído na obra
«Chanted Narratives: The Living ‘Katha-Vanchana’ Tradition» (editado por Molly
Kaushal), Indira Gandhi National Centre for the Arts, D. K. Printworld, New Delhi,
2001
17 – Ver Victor H. Mair, «Painting and Performance: Chinese Picture Recitation and
its Indian Genesis», University of Hawaii press, Honolulu, 1988
18 – Jacques Pimpaneau, «Chine: Littérature Populaire – Chanteurs, Conteurs,
Bateleurs», Éditions Philippe Picquier, Paris, 1991
19 – «Panchatantra ou Les Cinq Livres» (Tradução de Édouard Lancereau),
L’Imprimerie Nationale, Paris, 1871.
189
190
LIVROS
Para Uma Ética Republicana
Fernando Pereira Marques
U
ma das mais dramáticas consequências
do longo período de
autoritarismo que
Portugal viveu no século XX foi,
além da paralisia das dinâmicas de
modernização, a quase total atrofia
da sociedade civil no que concerne
à afirmação da individualidade
cidadã e à gestão da coisa pública.
Por isso não admira que, passado
o período fundador da democracia
com o inevitável afastamento das
elites que o sustentaram – até por
razões geracionais –, hoje tenhamos
no poder e na oposição da alternância uma classe política que se
caracteriza por agir em função de
um pragmatismo gestor e de curto
prazo, sem valores nem referências
ideológico-histórico-culturais.
Os actuais governantes que,
imitando o estilo norte-americano
de exibicionismo pseudo-patriótico,
ostentam na sua lapela a bandeira
verde-rubra, fazem-no com preocupações de imagem e decerto por
recomendação de conselheiros de
marketing. Mas se lhes forem perguntar
o que simbolizam essas cores e a sua
origem não o saberão explicar, ou
pelo menos são incapazes de se aperceber do seu significado, associado
ao regime implantado (“implementado” dirão eles ou pelo menos a
maioria) em 5 de Outubro de 1910.
Data entretanto banalizada no calendário, pois aparentemente vai deixar
de ser feriado na sequência de um
negócio feito com a Santa Sé e em
nome dos “superiores” objectivos da
produtividade e da competitividade
– argumento ridículo que não interessa aqui desmontar.
Claro que esses governantes
são o produto da complexa construção de uma democracia sobre
a terra queimada pós-autoritária
– como dissemos atrás –, assim
como também do fracasso dos que
os precederam após o 25 de Abril,
no que concerne à criação e transmissão de uma cultura democrática
e republicana que emanasse das
escolas, dos partidos e da vida cívica.
Por isso, para eles, como para a
maioria dos portugueses, a ideia
de República esgota-se no facto do
191
PARA UMA ÉTICA REPUBLICANA
Chefe do Estado ser legitimado, no
nosso caso, por sufrágio directo e
universal.
Ora a República e o republicanismo são muito mais, como nos
explica, de uma maneira sistemática
e clara, Paulo Ferreira da Cunha no
seu ensaio, saído há tempos, Para uma
Ética Republicana (Lisboa: Coisas de
Ler, 2010). A República, enquanto
modo de gestão dos poderes e de
relação entre governantes e governados, começou a ganhar substância
e sentido com a teorização da polis
enquanto “comunidade de cidadãos” e a distinção entre regimes
que visam o bem comum e regimes
ao serviço do “bem particular” dos
governantes feita por Aristóteles;
ou com a res publica de Cícero,
baseada no “consentimento” –
elemento fundamental retomado
depois pelo pensamento liberal –,
na “comunidade de interesses” e na
“sociabilidade natural”.
A ideia republicana viria a
ressurgir no Renascimento, em
particular com Maquiavel que –
sobretudo no Discurso sobre a Primeira
Década de Tito Lívio – defende a superioridade da forma republicana
de regime, sublinha a importância
dos conflitos como condição de
liberdade e afirma que só pode
haver “bem comum” no “vivere
192
libero”, no qual coincide o interesse da cidade e dos seus membros.
Depois, como é sabido, reencontramos essa ideia no contratualismo
de Rousseau, já à luz da revolução
americana em Thomas Paine e, sob
os auspícios da revolução francesa,
em Condorcet – só para citar estes
nomes. Durante o século XIX, o
desenvolvimento do capitalismo
e a emergência de novas classes e
problemáticas sociais, tornaram
a ideia republicana nacionalista
e patriótica com Mazzini, “associacionista” com Pierre Leroux,
“solidarista” com León Bourgeois,
mais tarde socialista com Jean
Jaurès. Pode dizer-se que, entretanto, em consequência das derivas
totalitárias e autoritárias do século
XX, se assiste a uma renovação da
ideia democrática através da ideia
republicana em Arendt, com o
seu primado da “vita activa”, em
Habermas, em Rawls, em Pettit ou –
e longe de ser exaustivo - num autor
menos conhecido como Maurizio
Viroli.
Paulo Ferreira da Cunha ajuda-nos a fazer todo o percurso – que
eu sumariei – mas, como o próprio
título enuncia, sistematizando e
analisando sobretudo a questão dos
valores e das virtudes que constituem o património ético da ideia
FERNANDO PEREIRA MARQUES
republicana e lhe dão hoje, mais
do que nunca, uma enorme actualidade. Porque – como faz o
autor – basta partir da consagrada
tríade programática Liberdade,
Igualdade e Fraternidade – a que se
deverá acrescentar a indispensável
Laicidade –, para se deduzir um
projecto de construção do Estado
e da sociedade onde se compatibilize a democracia, na sua dimensão
formal, com a justiça social, a afirmação da individualidade cidadã
com a responsabilidade cívica,
assente no que se poderá designar
por virtudes privadas. Isto graças,
precisamente, ao exercício do
poder e da autoridade norteado por
virtudes públicas como a “convicção
e coerência política”, o “serviço e
dedicação públicas”, o “desapego
aos lugares públicos”, a “parcimónia
pública e liberalidade privada”,
o “despojamento, frugalidade e
comedimentos pessoais”, a “constância, adaptabilidade inteligente e
coerente”, o “legalismo inteligente
e crítico”, mais o “respeito pelas leis
como garantes de liberdade”.1
Numa situação onde um
Presidente da República faz tropeçar
a dignidade do cargo em histórias
1
de pensões e acções, onde o enriquecimento ilícito, a corrupção,
os “negócios”, no contexto mais
geral de crise do ultracapitalismo,
empurraram o país para o empobrecimento, o agravamento das
desigualdades e do atraso, para o
descrédito das instituições democráticas, é, mais do que nunca,
necessário lembrar, nomeadamente, que a I República pode ter
fracassado em muita coisa, mas não
na dimensão ética daqueles que estiveram na sua génese e nela tiveram
papel mais relevante. Deste modo,
além das virtualidades da ideia republicana, entendida em toda sua
riqueza consolidada no decurso da
história, interessa cultivar a aprendizagem da sua dimensão ética e
acentuar a importância em a transmitir às novas gerações. Pois, como
escreve Paulo Ferreira da Cunha: “O
republicanismo não será, assim, uma
ideologia radicalmente exclusora de
outras, mas um vector ideológico
sobretudo assente numa ética de
serviço da comunidade e no anelo
da fraternidade, capaz de potenciar
e melhorar a qualidade e a coerência
das várias ideologias democráticas, e
de as levar mais além.2”
Op.cit. pp. 187-192.
2 Ibid. p.213.
193
Catroga, Fernando – Ensaio Respublicano,
FFMS, Lisboa, 2011
Joaquim Jorge Veiguinha
P
ara Fernando Catroga
quando falamos em ‘Estado’
estamos a referir-nos à
dimensão institucionalizada de um poder centralizado que se
exprime através do monopólio legítimo da força e do direito exercido
sobre um determinado território
e que pressupõe a distinção entre
governantes e governados. O aspecto
central desta concepção é porventura o último, já que remete para a
dimensão coactiva do poder estatal,
que, no caso do Estado de direito,
se exerce através do ‘império da lei’
e da polícia que garante a sua aplicação e os direitos individuais, mas
esquece duas dimensões essenciais
da cidadania: a participação política
dos cidadãos e a procura do bem
comum.
A ausência destas duas dimensões desperta a necessidade de uma
reflexão sobre a “respublica”, etimologicamente ‘coisa do povo’. Este
termo significa a ideia de uma comunidade política organizada em que a
procura do bem comum se coloca
acima dos interesses particulares
exclusivos. Outra dimensão da
‘respublica’ é a dimensão da participação política: para os gregos a
‘polis’, ou seja, a comunidade política, contrapunha-se à ‘oikos’, a
esfera ’privada’ da família, constituindo a vida cívica a forma de vida
mais elevada. No mesmo sentido, os
romanos e, em particular, Cícero,
consideravam que “a indiferença e
acção exclusivamente centrada no
interesse de quem age não constituíam virtudes” (p. 43) e, por
conseguinte, que “um homem
virtuoso por excelência nunca seria o
que se mantém “à margem de toda a
atividade pública” (p. 44).
É certo que a ‘liberdade dos
antigos’, como referia no século
XIX o liberal Benjamin Constant,
pressupunha a existência de escravos
que trabalhavam para os cidadãos
‘livres’. No entanto, ao contrário
do que este pretendia demonstrar,
a emergência da modernidade não
pode ser entendida como a morte
da dimensão cívico-política e do
triunfo de um Estado separado
da sociedade civil que se limita a
195
CATROGA, FERNANDO – ENSAIO RESPUBLICANO, FFMS, LISBOA, 2011
garantir, através do império da lei, a
coexistência das esferas privadas e as
liberdades individuais.
Será em Maquiavel que podemos
encontrar as duas dimensões
conflituantes da modernidade política: a primeira concebe a política
como uma técnica de conquista e
gestão do poder e, por conseguinte,
apela desde logo para a separação
dos governantes dos governados;
a segunda desenvolve a dimensão
da respublica, entendida como um
“vivere libero e civile” que se opõe
ao fatalismo cego da fortuna e é
alimentada pela ‘virtù’, entendida
como o conjunto dos “comportamentos primordiais que visam criar
o novo” (p. 66). Esta dimensão
não é, porém, uma reprodução da
‘liberdade dos antigos’, já que o
moderníssimo Maquiavel considera
que a ‘virtù’ não consiste no unanimismo, mas resulta do equilíbrio
das tensões e conflitos que existem
no seio de uma república em que
os cidadãos resistem à instauração
de um poder suportado pela resignação e pelo fatalismo.
Outra questão importante analisada por Fernando Catroga, é a
relação entre poder e liberdade.
O primeiro sufoca a tendência do
homem para se libertar das imposições e constrangimentos que
196
pretendem confiná-lo num ‘eterno
presente’ sem futuro e sem esperança. Não é difícil de compreender
então que a liberdade é a antítese do
poder, pois rompe com a ‘ilusão’
de que os que o servem “poderiam
dominar os que estavam mais abaixo
na hierarquia das dependências
pessoais” (p. 71). Mas isto significa que, perante a ‘banalização’ da
palavra ‘liberdade’ – até os membros
ultraconservadores do ‘Tea Party’
norte-americano se arvoram em
arautos da ‘liberdade’ –, é necessário redefinir o conceito. Muito
justamente, Fernando Catroga
recusa o concepção neoliberal em
que a liberdade é entendida como
ausência de impedimentos à afirmação do individuo – o que acaba
por transformar-se no direito dos
mais fortes à liberdade – defendendo que esta se centra na “recusa
do arbítrio e da tirania”, ou seja, na
“não dominação” (p. 80): a minha
liberdade não pode ser conseguida à
custa da liberdade do outro, mas só
é possível quando pressupõe necessariamente um processo contínuo
de auto-aperfeiçoamento, cooperação e entreajuda.
Segue-se a análise da relação
entre liberdade e igualdade, questão
que tem suscitado muitas discussões estéreis e conclusões tão falsas
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
quanto sumárias. Para sair do círculo
fechado destes debates inconsequentes, o autor tem de regressar,
por assim dizer, às origens. A teoria
do mandato imperativo – que foi
defendida por Robespierre e pela
‘ala esquerda’ dos jacobinos durante
a Revolução Francesa e retomada
pelo bolchevismo leninista –, apesar
de pôr em causa a ‘irresponsabilidade’ que o mandato representativo
confere, de certo modo, aos ‘mandatários’ eleitos, baseia-se numa “certa
ideia mística do povo” que acaba
por “defini-lo como uma entidade
una e indivisível, detentora, por
natureza, de uma soberania pouco
aberta a mandatos que pluralizassem a sua unidade substancial, ou
que pudessem trazer o regresso dos
corpos (sociais e políticos)” (p. 94).
A ausência de pluralismo político tem como contraponto a génese
da concepção de ‘vanguarda política’ que, em nome da igualdade
e da prática virtuosa, se autoproclama representante exclusiva do
povo e, em consequência, acaba
inevitavelmente por inviabilizar
“um conceito de vontade geral que
respeitasse as minorias e incentivasse
a formação de associações políticas
que pugnassem pela formação deliberativa do interesse comum” (p.
102). Eis como, os ‘comissários do
povo’ substituem os mandatários
do povo e instauram uma espécie
de “ditadura comissarial” em que
o próprio princípio legitimador
do mandato imperativo – a revogabilidade a qualquer momento dos
representantes se não cumprissem
o programa político para que foram
eleitos – é posto em causa, pois as
diferenças políticas consideradas
como fracturantes são erradicadas
do horizonte em nome da ‘superioridade’ moral dos que se encontram
conotados com a ‘vanguarda política’ relativamente aos outros, “o
povo realmente existente”. Este
nunca se enquadrava verdadeiramente nesta, em consequência da
sua consciência ingénua ou da sua
passividade, na versão idealizada de
‘povo virtuoso’ ou dos elementos
‘revolucionários’ do povo. Tal
como Marx dizia que Hegel substituía a “lógica da coisa” pela “coisa
da lógica”, os comissários do povo,
com a sua pretensa superioridade
moral e política, convertem o ‘povo
realmente existente’, cuja representação monopolizam, no ‘povo dos
comissários’.
Tanto a ‘ditadura comissarial’
como a concepção exclusivista de
liberdade criaram imensos desastres sociais e políticos. É, portanto,
necessário encontrar uma alternativa
197
CATROGA, FERNANDO – ENSAIO RESPUBLICANO, FFMS, LISBOA, 2011
que reconheça a conflitualidade
social e o pluralismo político que
ela necessariamente implica e
recuse o autoritarismo e o direito
dos mais poderosos a privarem os
outros da sua liberdade e autonomia para imporem o seu arbítrio.
Parafraseando Jürgen Habermas,
Fernando Catroga considera que
esta alternativa passa necessariamente por um novo conceito de
cidadania democrática baseado não
numa identidade nacional fixa, mas
num processo intersubjectivo de
conhecimento construído por deliberação pública que contribua para
garantir a autonomia dos indivíduos
e a procura do bem comum e tenha
como objectivo subordinar o ethnos
ao demos (p. 133).
198
Este livro de Fernando Catroga
reveste uma enorme importância
na actualidade do país. Quando
alguns começam a contrapor o
‘interesse do Estado’ à vida cívica
numa espécie de saudoso retorno
a uma ordem salazarista sob novas
formas e apelam à resignação dos
cidadãos para se autoperpetuarem
no poder, é tempo de reinvocar
a ‘virtù’ maquiavélica, já que a
‘fortuna’ representa aquilo que “só
será vencido quando esta consegue
através da irrupção do novo, dar
forma criativa à matéria-prima que
aquela lhe oferece” (p. 67).
REVISTAS RECEBIDAS
Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 2ºTrimestre 2011.
Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 3ºTrimestre 2011.
Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 4ºTrimestre 2011.
Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 1ºTrimestre 2012.
The Flemish Left amidst a Nationalist Surge, Gerrit Kreveld Foundation, Ghent, 2011.
Humanística e Teologia, Universidade Católica do Porto, Porto, Julho 2011.
Humanística e Teologia, Universidade Católica do Porto, Porto, Dezembro 2011.
ParoleChiave, Carocci Editore, nº44, Roma 2010
ParoleChiave, Carocci Editore, nº45, Roma 2011
Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, nº93, Coimbra, Março 2011.
Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, nº93, Coimbra, Junho 2011.
Tempo Exterior, IGADI, nº23, Baiona (Pontevedra), Julho-Dezembro 2011.
Vértice, Página a Página-Divulgação do Livro, nº155, Lisboa, Novembro-Dezembro 2010.
Vértice, Página a Página-Divulgação do Livro, nº156, Lisboa, Janeiro-Feveriro, 2011.
Vértice, Página a Página-Divulgação do Livro, nº157, Lisboa, Março-Abril, 2011.
Vértice, Página a Página-Divulgação do Livro, nº159, Lisboa, Julho-Agosto, 2011.
Vértice, Página a Página-Divulgação do Livro, nº160, Lisboa, Março-Abril, 2011.
Vértice, Página a Página-Divulgação do Livro, nº161, Lisboa, Novembro-Dezembro, 2011.
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O SOCIALISMO DO FUTURO*
DOSSIER EUROPA
A IDEIA DE REVOLUÇÃO
REVOLUÇÃO EUROPEIA VERTIGEM DA PAZ
O INDIVIDUALISMO E A SOCIEDADE SOLIDÁRIA
A EUROPA E A NOVA (DES)ORDEM INTERNACIONAL
DAS PRESIDENCIAIS AO GOLFO
DEMOCRACIA OU PARTIDOCRACIA?
O REGRESSO DOS NACIONALISMOS
A EUROPA À BEIRA DA IMPLOSÃO?
O FIM DA POLÍTICA?
AMÉRICA! AMÉRICA!
A ALEMANHA E A EUROPA
A EUROPA, NÓS E OS OUTROS
A ESPANHA E NÓS
O FIM DE UM CICLO
A EUROPA E NÓS
VÁRIOS TEMAS
POR UMA EUROPA À ESQUERDA
O ESTADO-PROVIDÊNCIA; QUE FUTURO?
O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU NA ERA DA MUNDIALIZAÇÃO
REGIONALIZAÇÃO E O PAÍS
O REGRESSO DO POLÍTICO
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM – 50 ANOS DEPOIS
A GUERRA NO KOSOVO NA VIRAGEM DO SÉCULO
O ESTADO E A LIBERDADE RELIGIOSA
ESTARÁ A DEMOCRACIA EM CRISE NA EUROPA?
JUSTIÇA FISCAL
A GLOBALIZAÇÃO EM QUESTÃO
A EUROPA DEPOIS DE NICE
A DEMOCRACIA PORTUGUESA NOS INÍCIOS DO 3º MILÉNIO
O MUNDO EM CRISE
SER MINORIA, HOJE
A ESQUERDA NA ENCRUZILHADA
A CRISE MUNDIAL
UMA CONSTITUIÇÃO PARA A EUROPA
O ISLÃO E A MODERNIDADE
EDUCAÇÃO: QUE PERSPECTIVAS?
OS DESAFIOS ACTUAIS DA ESQUERDA PORTUGUESA
ESTADOS UNIDOS E EUROPA: AFINIDADES E DIFERENÇAS
LIBERALISMO E DEMOCRACIA
PODER POLÍTICO E SOCIEDADE CIVIL
A EUROPA DEPOIS DE LISBOA
QUE CRISE? QUE SOLUÇÕES? QUE ALTERNATIVAS?
O EFEITO OBAMA E O FUTURO DA DEMOCRACIA PLANETÁRIA
O SOCIALISMO DEMOCRÁTICO PERANTE O SOCIAL LIBERALISMO
AS REBELIÕES ÁRABES
A CRISE DO EURO E O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU
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*O Socialismo do Futuro (revista comemorativa do 10º aniversário, confrontando-se os autores com os artigos escritos 10
anos antes, publicados no nº 1)
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de desconto na aquisição de cada exemplar.
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