Meu caro Jeeves - Amazon Web Services

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Meu caro Jeeves - Amazon Web Services
Meu caro Jeeves -
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P. G. Wodehouse
Meu caro Jeeves -
P. G. Wodehouse
Editor: Ismael A. Schonhorst
Tradução: Guilherme Campos
Capa e Diagramação: Fabiano R. de Sousa
Revisão: Ana Júlia Galvan
Conselho Administrativo:
Ismael A. Schonhorst
Fabiano R. de Sousa
Pedro Jung Tavares
Todos os direitos reservados.
Você está recebendo uma prévia
da tradução do clássico britânico
"My man Jeeves"
Informamos que o presente texto é apenas uma prévia do livro
"Meu Caro Jeeves", a ser lançado em breve pela editora, e que, por
este mesmo motivo, ainda não passou pelas revisões finais de texto
e de diagramação
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Meu caro Jeeves -
P. G. Wodehouse
MEU CARO JEEVES
POR
P. G. WODEHOUSE
1919
TRADUÇÃO
Guilherme Campos
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Meu caro Jeeves -
P. G. Wodehouse
DEIXE COM O JEEVES
Jeeves — sabe, meu criado — é de fato um
companheiro extraordinário. Tão capaz. Honestamente,
eu não saberia o que fazer sem ele. Grosso modo, ele é
um daqueles caras que se sentam olhando tristes as
ameias de mármore na Estação Pensylvania no local
indicando “Informações”. Sabe, aqueles “tiozinhos”, eu
digo. Você vai até eles e pergunta: “Quando é o próximo
trem para Melonsquashville, Tennessee?”, e eles
respondem, sem parar para pensar, “às catorze e
quarenta e três, plataforma dez, escala em San
Francisco.” E estão certos todas as vezes. Bem, Jeeves
te dá a exata mesma impressão de onisciência.
Para dar um exemplo do que eu digo, lembro
de ter­me encontrado com Monty Byng na Bond Street
um dia de manhã, encarnando a última moda em um
terno xadrez cinza, e senti que não poderia ser feliz
novamente até que obtivesse um daqueles. Arranquei
dele o endereço dos alfaiates e os pus na mesma hora a
trabalhar.
“Jeeves”, falei­lhe de noite, “encomendei­me
um terno xadrez, como aquele do Sr. Byng.”
“Imprudente, senhor”, disse ele firmemente.
“Não lhe cairá bem.”
“Pare de falar besteira! Foi o investimento
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mais seguro que já fiz em anos.”
“Não foi feito para lhe servir, senhor.”
Bem, resumindo a longa história, o bendito do
terno me chegou em casa, eu o vesti, e, assim que bati o
olho no espelho, quase desmaiei. Jeeves tinha toda a
razão. Eu parecia o cruzamento de um ator de comédia
musical com um bicheiro. Ainda assim, Monty tinha
ficado assaz elegante com exatamente a mesma roupa.
Mistérios da vida, nada além.
Mas não é só o bom senso de Jeeves para
roupas que é infalível, apesar de, claro, esse ser o seu
trato principal. O homem sabe tudo. Teve aquela vez
que ouvi um rumor sobre o cavalo de “Lincolnshire”.
Não lembro de como arrumei a dica, mas me parecia
que de fato que ela era quente, não tinha como ele
perder.
“Jeeves”, disse eu, porque gosto dele, e sempre
que posso tento favorecê­lo, “se você quiser fazer uma
grana extra, eu ouvi dizer que o Wonderchild, de
‘Lincolnshire’, vai ganhar.”
Ele balançou a cabeça.
“Acho melhor não, senhor.”
“Mas a informação é legítima. Eu mesmo vou
apostar nele.”
“Eu não recomendaria, senhor. O animal não
ganhará. O que estábulo conseguirá é o segundo lugar.”
Besteira pura, eu pensei, claro. Como diabos
Jeeves poderia saber algo sobre isso? Pois bem, você
pode imaginar o que aconteceu. Wonderchild liderou até
quase encostar na fita de chegada, e então um outro, o
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Banana Fritter, o passou pelo nariz. Ah, fui direto para
casa e chamei Jeeves.
“Depois dessa”, disse eu, “não dou mais um
passo sem o seu conselho. De hoje em diante,
considere­se o cérebro deste estabelecimento.”
“Muito bem, senhor. Hei de me esforçar para
satisfazê­lo.”
E tem conseguido, por Jove! Meu cérebro
nunca foi o meu forte; esse feijão velho parece ter sido
construído mais para fins ornamentais que para ser
usado, você vê; mas me dê cinco minutos para
conversar o assunto com Jeeves, e eu estou pronto para
aconselhar qualquer um sobre qualquer coisa. E esse é o
porquê de, quando Bruce Corcoran me procurou com
seus problemas, minha primeira ação foi tocar o sino e
matutar com o cabeçudo.
“Deixe com o Jeeves” disse eu.
Eu conheci Corky quando fui a Nova Iorque.
Ele era amigo de meu primo Gussie, que estava com um
bando de pessoas à rua da Washington Square. Não sei
se já lhe contei, mas a razão pela qual deixei a
Inglaterra foi que minha tia Agatha me enviou para
impedir que Gussie se casasse com uma atriz de
vaudeville, e eu me meti de tal maneira na confusão que
eu decidi que seria uma boa ideia eu passar uma
pequena temporada na América ao invés de voltar e ter
longas e longas conversas com minha tia sobre o
assunto. Então eu mandei Jeeves à frente para procurar
um apartamento decente, e fui me acostumando com a
noção do exílio. Preciso dizer que Nova Iorque é um
ótimo lugar no qual exilar­se. Todos eram
absolutamente bons comigo, o ambiente não era de
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modo algum monótono, e eu tinha algum dinheiro,
então tudo estava bem. Boêmios me apresentaram a
outros camaradas, e não demorou para que eu
conhecesse turmas da gente certa, dos que nadavam em
dólares nas casas ao longo do Parque, e outros que
viviam com o gás desligado, a maioria em torno da
Washington Square — artistas e escritores e gente do
tipo. Gente inteligente.
Corky era um dos artistas. Um desenhista de
retratos, ele chamava a si próprio, mas nunca havia
pintado nenhum. Ele estava sentado no banco dos
reservas com um cobertor, esperando por uma chance
de entrar no jogo. Você vê, o problema de pintar retratos
— eu dei uma investigada — é que você não sai
simplesmente pintando sem que alguém apareça para
pedi­lo, e eles jamais virão sem que você já tenha
pintado um bocado antes. Isso torna as coisas difíceis
para um artista. Corky conseguia se virar fazendo
ilustrações ocasionais para jornais cômicos — ele tinha
um certo dom para o cômico quando estava inspirado
— e fazendo estrados e cadeiras e coisas para as
propagandas. Sua principal fonte de renda, contudo,
derivava de se aproveitar de um tio rico — um tal de
Alexander Worple, que mexia no comércio de juta. Eu
nunca entendi direito o que vem a ser juta, mas parece
ser algo adorado pelo povo, uma vez que o Sr. Worple
ficara podre de rico com o negócio.
É verdade que muita gente acha que ter um tio
rico é sinônimo de vida fácil. Mas, de acordo com
Corky, não era esse o seu caso. Seu tio era um tipo
robusto, que parecia que iria viver para sempre. Tinha
cinquenta e um anos e parecia que rumava em direção a
mais cinquenta. Mas não era isso que preocupava o
pobre velho Corky, pois ele não possuía má índole, e
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não objetava a longa vida de seu tio. Do que ele
reclamava era a maneira como Worple costumava
atormentá­lo.
O tio de Corky, você veja, não queria que ele
fosse artista. Ele não achava que o sobrinho possuísse
talento no ramo. Ele sempre o exortava a abandonar a
arte e entrar no comércio de juta, começando da base e
traçando seu caminho até o topo. Juta parecia ter se
tornado uma espécie de obsessão para ele. Ele parecia
conferir­lha uma importância quase espiritual. E o que
Corky dizia era que, ainda que ele não soubesse o que
acontecia na base do negócio, o instinto dizia­lhe que
era algo mais bestial do que as palavras pudessem
descrever. Corky, além disso, acreditava no seu futuro
como artista. Um dia, ele disse, conseguiria um trabalho
notório. Enquanto isso, usando de seu melhor tato e de
persuasão, ele induzia seu tio a soltar­lhe relutante um
pequeno subsídio trimestral.
Ele jamais teria conseguido tal feito se seu tio
não tivesse um hobby. Sr. Worple era peculiar neste
aspecto. Como que por regra, um capitão da indústria
americano não faz nada fora do horário de serviço.
Quando bota o gato para fora e tranca o escritório à
noite, ele simplesmente desaba em um estado de coma
do qual só emerge para voltar a ser novamente um
capitão da indústria. Mas Sr. Worple, em seu tempo
livre, era o que se conhecia por ornitólogo. Ele
escrevera um livro chamado Pássaros Americanos e
estava escrevendo um outro, a ser chamado Mais
Pássaros Americanos. Quando ele o terminasse,
presume­se que começaria um terceiro, e assim por
diante até que o estoque de pássaros americanos
esgotasse. Corky costumava procurá­lo a cada três
meses e deixá­lo falar sobre pássaros americanos.
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Aparentemente, você poderia fazer o que quisesse do
velho Worple se você o deixasse primeiro versar sobre
seus animais de estima, e essas prosas costumavam
garantir o subsídio de Corky até então. Mas isso era um
tanto ruim para o pobre saltimbanco. Havia o temível
suspense, você vê, e, além disso, aves, exceto quando
grelhadas e na companhia de uma garrafa gelada, o
deixavam mortalmente entediado.
Para completar o perfil de Sr. Worple, ele era
um homem de temperamento extremamente impre­
visível, e sua tendência geral era pensar que Corky era
um pobre pateta e que qualquer passo que ele desse por
conta própria em qualquer direção era só mais uma
prova de sua inata idiotice. Imagino que Jeeves deva ter
a mesma noção sobre mim.
Então, quando Corky surgiu no meu
apartamento em uma tarde, empurrando uma garota à
sua frente, e disse: “Bertie, quero que você conheça
minha noiva, a Srta. Singer”, o aspecto da questão que
primeiro me veio à mente foi precisamente aquele sobre
o qual ele queria meu conselho. As primeiríssimas
palavras que eu disse foram: “Corky, mas e o seu tio?”.
O pobre artista deu uma daquelas risadas
desconsoladas. Ele parecia ansioso e preocupado, como
um homem que obteve sucesso no assassinato mas não
consegue pensar que diabos fazer com o corpo.
“Estamos apavorados, Sr. Wooster”, disse a
moça. “Esperamos que o senhor possa sugerir um jeito
de convencê­lo.”
Muriel Singer era uma daquelas garotas
atraentes e quietinhas, que têm um jeito de olhar para
você com aqueles olhões, como se pensassem que você
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é a melhor pessoa do mundo, imaginando se você
mesmo ainda não se deu conta disso. Ela sentou­se de
um jeito meio encolhido, olhando para mim como se
dissesse para si: “ai, eu espero de verdade que esse
homem valente não vá me machucar”. Ela me incumbia
de um sentimento protetor, fazia­me querer afagar sua
mão e dizer “pronto, mocinha, já passou”, ou qualquer
outra expressão de mesmo efeito. Ela me fazia sentir
que não havia nada que eu não poderia fazer por ela.
Ela era como uma daquelas bebidas americanas de
sabor inofensivo, que se arrastam imperceptivelmente
pelo seu sistema, de modo que, antes que se dê conta do
que está fazendo, você já saia querendo reformar o
mundo na base da força, se necessário, fazendo uma
pausa para dizer ao brutamontes da esquina que, se ele
continuar encarando daquele jeito, você partirá sua cara
ao meio. O que eu digo é, ela me fez sentir alerta e
deslizante, como um velho e feliz cavaleiro errante, ou
algo do tipo. Eu senti que estava imerso com ela no
problema até as últimas consequências.
“Eu não vejo por que seu tio deverá lhe
resistir”, disse eu a Corky. “Ele há de achar a Srta.
Singer a esposa ideal para você.”
Corky recusou­se a consolar­se.
“Você não o conhece. Mesmo se ele gostasse
da Muriel, ele jamais admitiria. Esse é o tipo de cabeça
dura que ele é. Para ele, a recusa seria uma questão de
princípios. O que ele diria é que eu dei um passo
importante sem lhe pedir conselho, e automaticamente
lhe baixaria o Caim. Ele sempre fez assim.”
Eu forcei o “feijãozinho” para resolver essa
emergência:
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“Você quer dar um jeito de ele conhecer a Srta.
Singer sem saber que você a conhece. Aí você chega
—”
“Mas como eu daria esse jeito?”
Eu entendi a sua preocupação. Era aquele, de
fato, o problema.
“Só tem uma coisa a fazer”, disse eu.
“O quê?”
“Deixe com o Jeeves.”
E toquei o sininho.
“Senhor?”, disse Jeeves, revelando­se discreta­
mente. Um dos traços peculiares de Jeeves é que, a
menos que você tenha olhos de falcão, você raramente o
percebe entrando em um cômodo. Ele é como aqueles
artistas de rua na Índia, que se dissolvem no ar e cortam
o espaço de maneira incorpórea, e montam as partes de
novo no lugar exato que desejam. Eu tenho um primo
que é o que chamam Teosofista, e ele sempre diz estar
desvendando o mistério, mas nunca conseguiu operá­lo,
provavelmente por ter se alimentado na infância com
carne de animais mortos em raiva e de tortas.
Assim que eu vi o homem de pé, denotando
uma respeitosa atenção, um peso pareceu deixar a
minha mente. Eu senti como uma criança perdida que
avista seu pai de longe. Havia algo nele que me dava
confiança.
Jeeves é um tipo meio alto, com uma daquelas
caras escuras e perspicazes. Seu olho brilha com a luz
da pura inteligência.
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“Jeeves, queremos o seu conselho.”
“Muito bem, senhor.”
Despejei o doloroso caso de Corky em poucas
palavras bem escolhidas.
“Então, você vê o tamanho do problema,
Jeeves. Queremos que você nos sugira um jeito de o Sr.
Worple conhecer a Srta. Singer sem se dar conta do fato
de que o Sr. Corcoran já a conhece. Entende?”
“Perfeitamente, senhor.”
“Bem, tente pensar em algo.”
“Já pensei, senhor.”
“Já pensou!”
“O esquema que eu sugeriria é infalível, mas
tem o que poderia parecer­lhe uma desvantagem,
senhor, pois lhe requererá um certo dispêndio financeiro.”
“Ele quer dizer”, traduzi a Corky, “que ele tem
uma ideia excelente, mas que vai custar­lhe um
bocado.”
Naturalmente, o rosto do pobre artista
despencou, pois esse detalhe parecia arruinar todo o
plano. Mas eu ainda estava derretido sob a influência do
olhar da garota, e eu vi que aí era onde eu começaria a
ser o cavaleiro errante.
“Podem contar comigo para isso, Corky”, disse
eu. “Nada me faria mais contente. Continue, Jeeves.”
“Eu sugeriria, senhor, que o Sr. Corcoran se
aproveitasse da fixação do Sr. Worple por ornitologia.”
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“E como, como você sabia que ele é doido por
pássaros?”
“É a maneira como esses apartamentos de
Nova Iorque são construídos, senhor. Bem diferentes
das nossas casas em Londres. As paredes entre os
cômodos são da mais insalubre natureza. Sem a menor
intenção de ouvi­los, não pude deixar de notar o Sr.
Corcoran versar sobre o assunto com generoso vigor.”
“Oh! Então?”
“Por que a jovem dama não escreve um
pequeno volume, entitulado — digamos — ‘O Guia
Infantil dos Pássaros Americanos’, e dedica­o ao Sr.
Worple! Uma edição limitada poderia ser publicada sob
o seu custeio, senhor, e grande parte do livro seria, é
claro, dedicada a notas apologéticas sobre a obra mestra
do Sr. Worple, de mesmo assunto. Eu recomendaria o
envio de uma cópia de apresentação ao Sr. Worple,
imediatamente da publicação, acompanhada por uma
carta na qual a jovem dama pede permissão para
conhecê­lo, ele, a quem ela tanto deve. Isso deverá,
imagino, produzir o resultado desejado, mas, como
disse, a despesa envolvida seria considerável.”
Eu me sentia como o dono de um cachorro
artista do vaudeville, quando o bicho acaba de terminar
um truque sem dificuldades. Eu só não entendo por que
um homem com o seu intelecto se satisfaz em ficar à
minha volta ajeitando minhas roupas e tal. Se tivesse o
cérebro de Jeeves, eu tentaria virar primeiro ministro,
ou alguma coisa assim.
“Jeeves”, eu disse, “sensacional! Um dos seus
melhores trabalhos.”
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“Obrigado, senhor.”
A garota objetou.
“Mas eu tenho certeza de que não consigo
escrever nenhum livro sobre nada. Não consigo
escrever nem uma carta decente.”
“Os talentos de Muriel”, disse Corky, com uma
leve tosse, “estão mais na direção do drama, Bertie. Eu
não mencionei anteriormente, mas uma das nossas
razões para estar tão nervosos com a maneira como meu
tio Alexander receberia a notícia que Muriel está no
coro daquele show Choose your Exit, no Manhattan.
Isso é loucura, mas nós dois tememos que isso aumente
as chances da tendência natural do tio Alexander de
coicear feito um cavalo.”
Eu também via o problema. Deus sabe que foi
um furdúncio em nossa família quando tentei me casar
com uma comediante musical poucos anos atrás. E a
memória da atitude de minha tia Agatha no problema de
Gussie e a garota do vaudeville ainda estava fresca em
minha mente. Eu não sei por que é assim — um desses
doutores em psicologia saberá explicar, eu suponho —
mas tios e tias, como classe, são sempre avessos ao
drama, de teatro ou de outras sortes. Eles não parecem
capazes de aceitá­lo sob nenhuma circunstância.
Mas Jeeves tinha uma solução, é claro.
“Eu imagino que será simples, senhor,
encontrar um autor impecunioso que ficaria feliz de
fazer a composição do volume por uma pequena soma.
Será necessário apenas que o nome da jovem senhorita
apareça na página do título.”
“É verdade”, disse Corky. “Sam Patterson o
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faria por cem dólares. Ele escreve uma noveleta, três
pequenos contos, e dez mil palavras de uma série para
uma das revistas de ficção sob nomes diferentes todo
mês. Um trabalhinho desses não seria nada para ele. Eu
o contatarei agora mesmo.”
“Excelente.”
“Isso seria tudo, senhor?”, disse Jeeves. “Muito
bem, senhor. Obrigado, senhor.”
Eu sempre achei que autores tivessem de ser
seres malditamente inteligentes, todos carregados de
massa cinzenta; mas eu entendi a sua jogada agora.
Tudo o que um autor precisa fazer é escrever umas
rubricas em intervalos, enquanto uma penca de
merecedores e inteligentes artistas juntam forças e
fazem o trabalho real. Eu sei, porque eu mesmo já fui
um. Eu simplesmente sentei­me no velho apartamento
com uma caneta­tinteiro, e, na época da entrega, saía
um livro novinho de primeira.
Por acaso, eu estava na casa de Corky quando
as primeiras cópias d’O Guia Infantil dos Pássaros
Americanos ficaram prontas. Muriel Singer estava lá, e
nós estávamos falando de frivolidades quando ouvimos
o estrondo do pacote entregue batendo à porta.
Era, certamente, um livro de verdade. Tinha a
capa vermelha, com algo que se parecia uma galinha, e
logo abaixo o nome da guria em letras douradas. Eu o
abri em qualquer página.
“Geralmente, em manhãs primaveris”, dizia ele
ao topo da página vinte e um, “se vagueares pelos
campos, ouvirás o doce gorjeio fluído e tranquilo do
pintarroxo. Quando atingires maior idade, deverás ler
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tudo sobre ele no maravilhoso livro
Americanos, do Sr. Alexander Worple.”
Pássaros
Você vê. Um incentivo para o tio logo de cara.
E pouquíssimas páginas depois, lá estava ele, na ribalta
novamente, ao tratar­se do papa­lagarta­de­asa­
vermelha. O livro era sólido. Quanto mais eu lia, mais
eu admirava o artista que o havia escrito, e o gênio de
Jeeves por ter­nos metido na empreita. Eu não via como
o tio não pudesse cair. Você não chama um escritor de
“a maior autoridade em papa­lagartas­de­asa­vermelha”
sem levantar­lhe uma certa disposição amigável.
“Infalível!”, eu disse.
“Moleza!”, disse Corky.
E um ou dois dias mais tarde ele perambulou
pela Avenida até o meu apartamento para dizer­me que
tudo dera certo. O tio havia escrito uma carta a Muriel,
tão melada de gentileza humana que, não conhecesse
ele a escrita do Sr. Worple, ter­se­ia recusado a creditar­
lhe a autoria. A qualquer hora que conviesse à Srta.
Singer, disse o tio, ele adoraria finalmente conhecê­la.
Pouco tempo depois, eu precisei sair da cidade.
Mergulhadores esportivos me haviam convidado a
visitar suas terras no interior; foram­se então meses até
que sosseguei os pés na cidade novamente. Estive
pensando bastante, claro, sobre Corky, se tudo havia se
desenrolado dentro dos conformes, e à minha primeira
noite em Nova Iorque, por acaso, em um
restaurantezinho tranquilo em que vou quando não
estou no clima das luzes estonteantes, encontrei Muriel
Singer, sentada sozinha em uma mesa perto da porta.
Corky, imaginei, estava lá fora, ao telefone. Levantei­
me e fui dizer um “oi”.
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“Ora, ora, como assim?”, disse eu.
“Então, Sr. Wooster! Quanto prazer!”
“E o Corky, cadê ele?”
“Como assim?”
“Você está esperando pelo Corky, não está?”
“Oh, não tinha entendido. Não, não estou
esperando por ele.”
Pareceu­me que havia algo em sua voz, um
não­sei­o­quê estranho, sabe?
“Nossa, vocês não estão de mal, estão?”
“De mal?”
“É, brigados, sabe — desentendidos — culpa
dos dois lados — er... — coisas desse tipo.”
“E de onde você tirou essa ideia?”
“Ah, eh, bem... Assim... O que eu quis dizer é
— eu achei que vocês geralmente jantavam juntos antes
de você ir ao teatro.”
“Eu deixei os palcos há um tempo.”
De repente, a situação desceu a mim. Eu havia
esquecido por quanto tempo eu estive fora.
“Ah, lógico, faz sentido! Você se casou!”
“Sim.”
mundo.”
“Que beleza! Desejo­lhe toda a felicidade do
“Muito obrigada. Oh, Alexander”, ela disse,
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olhando para trás de mim, “este é um amigo meu — Sr.
Wooster.”
Eu me virei. Um camarada com um abastado
cabelo duro e grisalho e um rosto bem rosado de saúde
estava parado ali. Um camarada formidável, ele parecia,
ainda que tranquilo no momento.
“Quero que você conheça meu marido, Sr.
Wooster. O Sr. Wooster é amigo de Bruce, Alexander.”
O garotão apertou minha mão amigavelmente,
e isso foi tudo o que me impediu de cair duro no chão
de espanto. A noite estava bombando, era fato.
“Então você conhece meu sobrinho, Sr.
Wooster”, ouvi­o dizer. “Se você pudesse tentar enfiar
algum juízo em sua cabeça e fazê­lo desistir dessa
carreira de pintura! Se bem que acho que ele já deve tê­
la deixado. Notei algo nesse sentido naquela noite em
que ele veio jantar conosco, querida, para que eu o
apresentasse a você. Ele parecia muito mais quieto e
mais sério que o normal. Algo parecia tê­lo acometido.
Bem, o senhor nos daria o prazer de sua companhia hoje
ao jantar, Sr. Wooster? Ou o senhor já jantou?”
Disse que já havia terminado. Eu precisava era
de ar, não de comida. Senti que eu precisava ir para um
lugar aberto repensar todo o assunto.
Quando cheguei ao meu apartamento, ouvi
Jeeves andando em seu canto. Chamei­o.
“Jeeves”, disse eu, “essa é a hora em que todo
bom homem buscaria conforto na noitada. Primeiro de
tudo, preciso de um b.­e­s. seco, e então tenho notícias
para você.”
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Ele voltou com um carrinho e um copo longo.
“Melhor preparar um para você também. Você
vai precisar.”
“Mais tarde, talvez; obrigado, senhor.”
“Tudo bem. Como preferir. Mas você vai entrar
em choque. Lembra do meu amigo, Sr. Corcoran?”
“Sim, senhor.”
“E da garota que deveria cair graciosamente na
estima de seu tio escrevendo um livro sobre pássaros?”
“Perfeitamente, senhor.”
“Bem, ela conseguiu. Ela se casou com o tio.”
Ele ouviu a notícia sem nem mesmo piscar.
Não há como surpreendê­lo.
senhor.”
“Essa era, de fato, uma possível consequência,
“Não vai me dizer que você estava esperando
por isso!”
dade.”
“Passou pela minha cabeça como possibili­
“Ah, é? Por Jove! Você bem que podia ter nos
alertado!”
“Eu dificilmente gostaria de ter tomado a
liberdade, senhor.”
Naturalmente, eu enxerguei, depois de ter
comido alguma coisa e assossegado a mente, que o que
aconteceu não fora minha culpa, se você pensar direito.
Não tinha como eu prever que o esquema, que era em si
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mesmo uma obra­prima, desceria pelo ralo como
desceu; mas ainda assim devo admitir que não estava
ansioso para encontrar Corky até que o tempo, este
grande curandeiro, tivesse conseguido dar­lhe uma
recuperada. Evitei forçosamente a Washington Square
pelos meses seguintes. Em verdade, dei­lhe um perdido
como nunca dantes. E então, quando comecei a cogitar
que poderia voltar a frequentá­la com segurança e
rejuntar os pedaços quebrados, por assim dizer, vi que o
tempo, ao invés de fazer seu trabalho medicinal,
resolveu fazer sua jogada mais cruel e finalizar com a
cereja por cima. Ao abrir o jornal em uma manhã, li que
a Sra. Alexander Womble havia presenteado seu marido
com um filho e herdeiro.
Senti tanta pena do coitado do Corky que perdi
o apetite para o café da manhã. Disse a Jeeves para
tomá­lo para si. Eu estava arrasado. Mesmo. Era o
limite.
Eu mal sabia o que fazer. Queria, é claro, ir
correndo à Washington Square e pegar o coitado pela
mão, quieto; mas pensando bem, eu não tinha estômago.
O tratamento da ausência parecia ser a resposta. E dei­
lho em boas doses.
Mas depois de um mês, mais ou menos, eu
comecei a hesitar novamente. Ocorreu­me que pudesse
ter um efeito negativo no pobre rapaz essa atitude de
evitá­lo quando ele, provavelmente, mais queria é que
seus amigos o apoiassem. Eu o imaginava sentado em
seu estúdio ermo, sem outra companhia que não seus
amargos devaneios, e o pathos disso tudo me foi tão
profundo que saí imediatamente em busca de um táxi
para levar­me diretamente ao estúdio.
Eu corri para dentro, e lá estava Corky,
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encurvado sobre o cavalete, lançando pinceladas,
enquanto no assento do modelo sentava­se uma mulher
de meia idade de aspecto severo, segurando um bebê.
situação.
trás.
A gente tem de estar pronto para esse tipo de
“Ow, eh!”, eu disse, e comecei a andar para
Corky virou a cabeça sobre o ombro.
“Opa, Bertie. Espera aí. Nós já estamos
terminando por hoje. É isso, então, senhora”, disse ele à
babá, que levantou­se com o bebê e o repousou em um
carrinho que estava no corredor.
“No mesmo horário amanhã, Sr. Corcoran?”
“Sim, por favor.”
“Boa tarde.”
“Boa tarde.”
Corky ficou parado ali, encarando a porta, e
então voltou­se a mim e começou a desabafar.
Felizmente, ele parecia achar que eu já sabia de tudo o
que se passou, o que deixou a situação bem menos tensa
do que poderia ter sido.
“A ideia foi do meu tio”, disse ele. “A Muriel
não sabe de nada, ainda. O retrato é uma surpresa de
aniversário para ela. A babá leva a criança supostamente
para tomar um ar, e então a traz direto para cá. Para
você ter uma ideia da ironia das coisas, Bertie, escuta
só. Essa é a primeira encomenda da minha vida para
pintar um retrato, e o modelo é aquele saquito humano
de banha que surgiu do nada e me tomou o posto de
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herdeiro. Você acredita? Eu chamo de tortura esperar
que eu gaste as minhas tardes admirando a cara feia de
um pirralho que, para todos os efeitos, me acertou um
'21' no meio da testa e me limpou de tudo o que eu
tinha. Não posso recusar­me a pintá­lo, porque se o
fizesse meu tio cortaria meu subsídio; ainda assim, toda
vez que eu levanto os olhos para olhar aquela cara de
paisagem da criança, eu sofro agonias. Eu te digo,
Bertie, às vezes quando ele me lança um olhar de
condescendência, vira para o lado e golfa, como se o
enjoasse olhar para a minha cara, me bate uma vontade
louca de ocupar a primeira página dos jornais
vespertinos como a revelação assassina do momento.
Tem hora que eu consigo até ver as manchetes: ‘Jovem
artista promissor esquarteja bebê com um machado’.”
Dei uns tapinhas em seu ombro em silêncio.
Minha simpatia pelo pobre coitado era profunda demais
para palavras.
Evitei o estúdio por um tempo depois disso,
porque não me parecia justo intrometer­me na tristeza
do pobre artista. Além disso, tenho que admitir que
aquela enfermeira me dava medo. Ela me lembrava
pavorosamente a tia Agatha. Ambas tinham aquele
mesmo olhar penetrante.
Mas, uma tarde, Corky me ligou.
“Bertie.”
“Opa! E aí?”
“Você tem algum plano para hoje à tarde?”
“Não, não vou fazer nada.”
“Você não quer dar uma passada aqui no
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estúdio?”
“Por quê? Aconteceu alguma coisa?
“Eu terminei o retrato.”
“Bom garoto! Bom trabalho!”
“É...” — sua voz soava em dúvida. “Então,
Bertie, não sei. Tem alguma coisa esquisita. Eu não sei
direito o que é — meu tio vai chegar daqui a uma meia
hora para olhar, e — não sei por que, mas eu sinto que
vou precisar do seu apoio moral.”
Na hora, eu percebi que algo estava errado. A
compassiva ajuda de Jeeves parecia ser imprescindível.
“Você acha que ele vai ficar nervoso?”
“É possível.”
Eu tentava me lembrar daquela cara rosada que
conheci no restaurante, tentando imaginá­la enfurecida.
Não era muito difícil. Eu soei decidido a Corky no
telefone.
“Estou indo”, disse eu.
“Tá certo.”
“Mas só se eu puder chamar o Jeeves.”
“Por que o Jeeves? O que o Jeeves tem com
isso? Quem precisa do Jeeves? Ele é o idiota que
sugeriu o esquema que desembocou —”
“Ouça, Corky, meu velho. Se você acha que eu
vou enfrentar aquele seu tio sem o apoio de Jeeves,
você está enganado. Eu preferiria entrar em um covil de
animais selvagens e morder pessoalmente um leão no
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Meu caro Jeeves -
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pescoço.”
“Oh… Tá bom”, disse Corky. Não muito
contente, mas disse; então chamei Jeeves pelo sino, e
expliquei­lhe a situação.
“Muito bem, senhor”, disse Jeeves.
Esse é quem ele é. Ele nunca se abala.
Encontramos Corky perto da porta, olhando
para a tela, com uma mão levantada meio que
defensivamente, como se ele pensasse que a pintura
fosse lhe bater.
“Fique onde está, Bertie”, ele disse, sem se
mover. “Agora, diga­me honestamente, qual é a sua
primeira impressão?”
A luz do janelão incidiu direto sobre o quadro.
Eu o olhei bem. Então, dei mais um passo e olhei de
novo. E voltei para onde estava antes, porque não me
tinha parecido tão ruim de mais longe.
“E aí?”, disse Corky, ansiosamente.
Eu hesitei um pouco.
“Então, meu velho, eu vi a criança apenas uma
vez, e também muito brevemente mas — mas era uma
criança meio feia, né, se bem me lembro...”
“Tão feia como aí?”
Eu olhei de novo, e a honestidade compeliu­me
à franqueza.
“Isso, meu amigo, seria impossível.”
Coitado do Corky. Jogou o cabelo com os
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P. G. Wodehouse
dedos para trás em desespero. E resmungou.
“Você tem razão, Bertie. Alguma coisa deu
errado com essa porcaria. Minha impressão pessoal é
que, sem saber, eu fiz o que aquele Sargent e os outros
pintores conseguem — pintar a alma do modelo. Eu fui
além da aparência externa e retratei a alma da criança
na tela.”
“Mas tem como uma criança desta idade ter
uma alma deste jeito? Não sei como o bebê conseguiria
essa proeza em tão pouco tempo. O que você acha,
Jeeves?”
“Eu também duvido, senhor.”
parece?”
“Ele — ele meio que te encara com ódio, não
“Você também percebeu?”, disse Corky.
“Eu não sei se dá pra não perceber.”
"Tudo o que eu fiz foi tentar dar ao pestinha
uma expressão agradável. Mas, como ficou, ele parece
um tanto... consumido."
"Parece que ele que está no meio de uma farra
colossal, e que está aproveitando cada minuto. Não
achas, Jeeves?"
senhor.”
“Ele decididamente possui um ar embriagado,
Corky ia dizendo alguma coisa, quando a porta
se abriu, e o tio entrou. Por cerca de três segundos, tudo
era alegria, festa e cumprimentos. O homem apertou a
minha mão, deu um tapinha nas costas de Corky, disse
que nunca houvera um dia tão belo e deu uma batidinha
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Meu caro Jeeves -
P. G. Wodehouse
em sua perna com seu bordão. Jeeves projetara­se ao
segundo plano, e o homem não o notou.
“Bem, Bruce, meu garoto; então o retrato está
pronto. Ele está mesmo pronto — não está? Bem, traga­
o aqui. Vamos ver como ficou. Será mesmo uma bela
surpresa para sua tia. Onde ele está? Deixe­me —”
E então ele veio — de repente, sem que
estivesse pronto para o golpe; e cambaleou para trás
sobre o calcanhar.
“Cara...”, exclamou. E por talvez um minuto se
fez um dos silêncios mais abjetos que eu jamais houvera
presenciado.
“Isso é alguma pegadinha?”, disse ele, enfim,
de um jeito cortante que gerou umas dezesseis correntes
e calafrios pela sala ao mesmo tempo.
Pensei que me coubesse tentar melhorar a
situação para o velho Corky.
“Tente olhar a tela um pouquinho mais de
longe”, eu disse.
“Você tem razão!”, ele rosnou. “É disso que eu
preciso! Ficar tão longe disso que nem com um
telescópio eu consiga enxergá­lo!”. Ele voltou­se ao
Corky como um tigre selvagem indomado que acabou
de encontrar um tolete de carne. “E isso — isso — é
com o que você tem gastado o seu tempo e o meu
dinheiro por todos esses anos! Um pintor! Eu não o
contrataria nem como um pintor de parede! Eu lhe fiz
uma encomenda achando que você fosse um trabalhador
competente, e esse — esse — essa de caricatura de
jornal é o que me sai!” — ele voou em direção à porta,
chicoteando a calda e rosnando para si. “Isso acaba
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aqui! Se você quiser continuar a enganar­se fingindo ser
artista como desculpa para vadiagem, esbalde­se. Mas
este é o meu único aviso: se você não se apresentar ao
meu escritório na segunda­feira de manhã, preparado a
abandonar essa estupidez e começar a trabalhar a partir
de baixo, como deveria ter feito doze anos atrás, mais
nem um centavo — nem um centavo — nem um —
Aaargh!”. Então, fechou­se a porta, e ele não estava
mais conosco. E eu me esgueirei para fora do meu
abrigo antibombas.
“Corky, meu velho”, sussurrei, lânguido.
Corky estava de pé, o olhar fixado na pintura.
Seu rosto estava imóvel. Havia um ar de presa em seus
olhos.
“É, isso acaba aqui”, resmungou ele, abatido.
“O que você vai fazer agora?”
“Fazer? O que eu posso fazer? Eu não
conseguirei me manter aqui se ele cortar o meu
sustento. Você ouviu o que ele disse. Eu terei que ir ao
escritório segunda.”
Eu não conseguia pensar no que dizer. Eu sabia
exatamente como ele se sentia em relação ao escritório.
Não consigo lembrar­me de um momento em que tenha
me sentido tão infernalmente desconfortável. Era como
ficar ali insistindo em puxar assunto com alguém que
tinha acabado de ser condenado a vinte anos de cadeia.
silêncio.
Então uma voz tranquilizante quebrou o
“Se eu puder sugerir algo, senhor!”
Era Jeeves. Ele havia deslizado das sombras e
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estava observando gravemente a pintura. Palavra de
honra, eu não conseguiria lhe dar melhor ideia do efeito
desconcertante do Alexander, tio de Corky, em ação
senão dizendo que ele me fizera esquecer
completamente de que Jeeves estava ali.
“Não sei se cheguei a mencionar­lhe, senhor,
um Sr. Digby Thistleton, com o qual um dia trabalhei?
Talvez o senhor o tenha conhecido. Ele era financista.
Ele hoje atende por Lorde Bridgnorth. Um de seus
ditados favoritos era que sempre há uma saída. A
primeira vez que o ouvi usar a expressão foi após o
fracasso de uma patente de depilatório que promoveu.”
“Jeeves”, disse eu, “o que é que isso tem que
ver com o assunto?”
“Eu mencionei o Sr. Thistleton, senhor, porque
seu caso apresenta, em alguns aspectos, um paralelo
com o caso presente. Seu depilatório falhou, mas ele
não caiu em desespero. Ele o reinseriu no mercado sob
o nome de Hair­o, sob a garantia de produzir tufos
cheios de cabelo em poucos meses. Sua propaganda, se
o senhor se lembra, era uma figura humorística de uma
bola de bilhar antes e depois de seu uso, e fez tamanha
fortuna que o Sr. Thistleton foi enobrecido por serviços
prestados a seu Partido. Parece­me que, se o Sr.
Corcoran observar a questão com cuidado, descobrirá,
como o Sr. Thistleton, que sempre há uma saída. O Sr.
Worple mesmo sugeriu a solução para a dificuldade. No
calor do momento, ele comparou o retrato a uma
caricatura de jornal. Eu considero a sugestão bastante
valiosa, senhor. O retrato do Sr. Corcoran pode não ter
agradado ao Sr. Worple como representação fiel de seu
único filho, mas não tenho dúvidas de que editores
alegremente o considerariam como o início de uma
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Meu caro Jeeves -
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série de desenhos humorísticos. Se o Sr. Corcoran me
permitir uma sugestão, o seu talento sempre pendeu
para o lado do humor. Há algo nesta pintura — algo
ousado e vigoroso, que me prende a atenção. Estou
seguro de que ela se tornaria assaz popular.”
Corky encarava a pintura, fazendo um barulho
seco puxando com a boca. Ele parecia completamente
reprogramado.
riso.
Então, de repente, ele começou um ataque de
“Corky, meu velho!”, disse eu, apertando­lhe o
ombro de leve. Temia que o pobre moço estivesse
histérico.
Ele começou a sapatear pelo chão.
“Ele está certo! O homem está certíssimo!
Jeeves, você é um salva­vidas! Você teve a melhor ideia
do século! ‘Apresentar­se no escritório segunda!’
‘Começar a trabalhar desde baixo!’ Eu compro a
empresa, se eu quiser! Eu conheço o diretor da seção de
humor do Sunday Star. Ele vai amar! Ele me falou esses
dias de como era difícil arrumar novas séries cômicas.
Ele me dará tudo que eu pedir por uma obra­prima
dessas. Eu tenho uma mina de ouro. Cadê meu chapéu?
Eu arrumei o emprego da minha vida! Cadê a porcaria
do chapéu? Me empresta cinco contos, Bertie. Eu
preciso pegar um táxi para Park Row!”
Jeeves lançou um sorriso paternal. Ou melhor,
ele tinha um espasmo muscular paternal embutido na
boca, que era o máximo que ele se aproximava de sorrir.
“Se eu puder fazer­lhe uma sugestão, Sr.
Corcoran — para o título da série que o senhor tem em
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mente — ‘As Aventuras do Bebê­Borrão’”.
Corky e eu olhamos para a pintura, e então um
ao outro com um olhar chocado. Não poderia haver
outro título.
“Jeeves”, disse eu. Passaram­se poucas
semanas, e eu havia acabado de olhar a seção cômica do
Sunday Star. “Sou um otimista. Sempre o fui. Quanto
mais velho eu fico, mais eu concordo com Shakespeare
e os outros poetas sobre a noite ser sempre mais escura
antes do amanhecer, e que toda nuvem se contorna em
brilho, e o que você perde na ida você supera nas
reviravoltas. Olhe o Sr. Corcoran, por exemplo. O
sujeito estava completamente mergulhado na sopa,
poder­se­ia dizer. Sob todas as aparências, ele havia
tomado o golpe direto no pescoço. E olhe para ele
agora. Você viu essas figuras?”
“Eu tomei a liberdade de olhá­las antes de
trazê­las ao senhor. Extremamente divertidas.”
“Então eu acertei, viu só?”
“Como eu havia previsto, senhor.”
Inclinei­me para trás sobre as almofadas.
“Sabe, Jeeves, você é um gênio. Você deveria
ganhar alguma comissão.”
“Eu não tenho do que reclamar, senhor. O Sr.
Corcoran tem sido bastante generoso. Que tal o terno
azul para hoje, senhor?”
“Não, acho que vou vestir o azul, o com as
listras vermelhas fraquinhas.”
“Não o azul de listras vermelhas, senhor.”
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“Mas eu gosto de como eu fico nele.”
“Não o azul de listras vermelhas, senhor.”
“Tudo bem, pegue o que você escolher.”
“Muito bem, senhor. Obrigado, senhor.”
É claro, eu sei que estou sendo mandado; mas
Jeeves está sempre certo. Você tem que levar isso em
conta, não é. Que foi?
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De Douglas Adams ao pessoal do Monty Python:
todos leram, admiraram e encontraram inspiração
em P.G Wodehouse, o “Plum”. Nós da Editora
Nanquim também o lemos — e agora contamos com
a sua ajuda para que os leitores brasileiros possam
apreciar esse grande escritor. Ajude na divulgação
da nossa campanha.
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