a organização dos estados americanos e a união das nações sul
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a organização dos estados americanos e a união das nações sul
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO SÓCIO-ECONÔMICO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS E RELAÇÕES INTERNACIONAIS Fernanda Santos Schramm A ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS E A UNIÃO DAS NAÇÕES SUL AMERICANAS SOB A ÓTICA DOS REGIMES INTERNACIONAIS: COOPERAÇÃO OU DESCONFIANÇA? FLORIANÓPOLIS, 2013 1 FERNANDA SANTOS SCHRAMM A ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS E A UNIÃO DAS NAÇÕES SUL AMERICANAS SOB A ÓTICA DOS REGIMES INTERNACIONAIS: COOPERAÇÃO OU DESCONFIANÇA? Monografia submetida ao curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito obrigatório para obtenção do grau de Bacharelado. Orientador: Prof.Dr(a). Graciela De Conti Pagliari FLORIANÓPOLIS, 2013 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CURSO DE RELAÇÕES ITNERNACIONAIS A Banca Examinadora resolveu atribuir a nota 10 à aluna Fernanda Santos Schramm na disciplina CNM 7280 – Monografia, pela apresentação deste trabalho Banca Examinadora: __________________________________ Prof.Dr.(a). Graciela De Conti Pagliari __________________________________ Prof.Dr. Jaime Cesar Coelho __________________________________ Prof.Dr.(a). Geisa Cunha Franco 3 Ao meu avô Hildebrando e à doçura, amor e profundidade do seu olhar. 4 AGRADECIMENTOS À minha mãe Magaly e ao meu pai Francisco pela vida, pelo amor incondicional, pelas palavras de incentivo, pela estrutura que me proporcionaram, por todo o apoio emocional, por se doarem tanto sem esperar nada de volta. À minha irmã Júlia, por ter me ensinado que o amor supera todas as diferenças e qualquer distância. Agradeço por preencher o meu dia-a-dia com tanta simplicidade. Vocês são a melhor parte de mim. À minha família, a quem agradeço na pessoa dos meus avós, Juçá e Hildebrando. Agradeço a compreensão nos momentos em que precisei me fazer ausente e a certeza de que sempre estaremos juntos – ainda que não fisicamente. A alegria e o carinho que nos unem tem tamanha força, que eu não imaginaria comemorar esta etapa sem vocês. Ao meu namorado Raphael, pela paciência infinita, pelo companheirismo e pela compreensão, por me transformar em uma pessoa melhor, pura e simplesmente por existir. Agradeço pelos conselhos, por dividir comigo um olhar crítico sobre as Relações Internacionais e pelas divagações que propiciaram as melhores conclusões deste trabalho. Agradeço por preencher com tanto amor e carinho o meu dia-a-dia nestes quatro anos de graduação. À minha querida orientadora, Graciela De Conti Pagliari, pela confiança e liberdade, pelas palavras seguras, pela doçura e firmeza, ambas tão necessárias. Algumas pessoas transcendem o plano da admiração e se tornam um referencial de inspiração, que buscamos continuamente “reproduzir”. Agradeço pelo exemplo, profissional e pessoal, e pela generosidade de ter compartilhado comigo tantos ensinamentos sobre a vida e a Segurança Internacional. Aos demais professores do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina, por todo o empenho e dedicação. Em especial aos professores Jaime, Helton e Patrícia, por terem abraçado a ideia de criar um novo curso, e por enfrentarem, de forma apaixonada, todos os desafios que essa tarefa exige. Às minhas amigas de toda a vida, por aceitarem – mesmo sem compreender – a minha distância e o meu encantamento pela academia. Aos meus amigos do curso de Relações Internacionais, em especial ao Luan Vieira, cuja amizade foi um privilégio que a vida me proporcionou. À Larissa e à Carol, pela cumplicidade e pela sutileza da sua presença. À Marina Willrich, por ter participado do projeto que se transformou neste trabalho, à Luiza Noronha pelas revisões e opiniões tão pertinentes, à Marina Bordignon pela alegria que transformou tantas das minhas tardes. Aos amigos do escritório Menezes Niebuhr, por compartilharem as vitórias do dia-a-dia. 5 “Dizem que é o medo da morte, e do que vem depois da morte, que leva os homens a se voltarem para a religião à medida que os anos se acumulam. Todavia, a experiência pessoal me trouxe a convicção de que, completamente à parte de tais temores e imaginações, o sentimento religioso tende a desenvolver-se quando envelhecemos; tende a desenvolver-se porque, à medida que as paixões se acalmam, que a fantasia e a sensibilidade vão sendo menos excitadas e menos excitáveis, a razão é menos perturbada em seu exercício, menos obscurecida pelas imagens, desejos e distrações que a absorviam; então, Deus emerge como se tivesse saído de trás de uma nuvem; nossa alma vê, sente a fonte de toda luz, volta-se natural e inevitavelmente para ela; porque, tendo começado a esvair-se dentro de nós tudo aquilo que dava ao mundo das sensações sua vida e seu encanto, não sendo mais a existência material sustentada por impressões externas e internas, sentimos a necessidade de nos apoiarmos em algo que permaneça, que nunca nos traia - uma realidade, uma verdade, absoluta e eterna. Sim, voltamo-nos inevitavelmente para Deus; pois esse sentimento religioso é por natureza tão puro, tão delicioso para a alma que o experimenta, que compensa todas as nossas outras perdas”. (Aldous Huxley, em Admirável Mundo Novo. São Paulo: Globo, 2009, pp. 356-357) 6 RESUMO As alterações advindas da intensificação do fenômeno da globalização provocaram profundos impactos na dinâmica da segurança internacional. A ideia de que ameaças transnacionais demandam respostas transnacionais, impulsiona os países a abandonarem o unilateralismo extremo, afastando algumas das premissas basilares do realismo clássico. Com o intuito de otimizar a persecução dos interesses nacionais, os Estados se engajam no estabelecimento de mecanismos cooperativos capazes de implementar uma única postura em face dos problemas que se originam da cena internacional. Nesse sentido, OEA e a UNASUL constituem dois exemplos de tentativas de estabelecimento de uma concertação política. Movidos por uma suposta “identidade comum”, os países americanos e sul-americanos investem na construção de fóruns de debate voltados a maior interconectividade das políticas de segurança e defesa regionais. O objetivo deste trabalho consiste em analisar o multilateralismo sob a perspectiva proposta pela teoria dos regimes internacionais, a partir da concepção de que os regimes de segurança constituem arranjos permanentes, capazes de restringir a maximização de poder no curto prazo mesmo na ausência de uma autoridade hierárquica, em prol de maiores níveis de segurança internacional. Palavras-chave: Regimes, segurança, realismo, OEA, UNASUL, cooperação, multilateralismo. ABSTRACT Changes arising from the intensification of the globalization phenomenon have caused profound impact on the dynamics of international security. The idea that transnational threats require transnational responses encourages countries to abandon the extreme unilateralism pushing away some of the basilar premises of the classical realism. Trying to optimize the pursuit of national interests, states engage themselves with the establishment of cooperative mechanisms capable of implementing a single posture facing the problems originated from the international plan. Thus, OAS and UNASUR are two examples of attempts to establish a political concertation. Driven by an so called "common identity", American and South American countries invest in discussion forums aimed to an greater interconnectedness of security policies and regional defense. The objective of this study is to analyze multilateralism under the perspective proposed by the theory of international regimes from the idea that security schemes are permanent arrangements, able to restrict the maximization of power in the short term, even in the absence of a hierarchical authority, in favor of higher levels of international security. Key words: Regimes, security, realism, OAS, UNASUR, cooperation, multilateralism. 7 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Evolução histórica do conceito de segurança........................................................46 Tabela 2 – Principais mecanismos de cooperação hemisférica...............................................74 LISTA DE ABREVIATURAS ALADI – Associação Latino-Americana de Integração ALALC – Associação Latino-Americana para o Livre Comércio ALCA – Área de Livre Comércio da Américas AUE – Acto Único Europeu CAN – Comunidade Andina de Nações CASA – Comunidade Sul-Americana de Nações CDS – Conselho de Defesa Sul-Americano CID – Colégio Interamericano de Defesa CMDAs – Conferências Ministeriais de Defesa das Américas CRS – Complexos Regionais de Segurança FARCs – Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia JID – Junta Interamericana de Defesa MERCOSUL – Mercado Comum Sul-Americano NAFTA – North American Free Trade Agreement OEA – Organização dos Estados Americanos ONU – Organização das Nações Unidas OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte OTAS – Organização do Tratado do Atlântico Sul PICE – Programa de Integração e Cooperação Econômica entre a Argentina e o Brasil 8 Sumário 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 10 2 REGIMES INTERNACIONAIS DE SEGURANÇA....................................................................... 14 3 4 2.1 As premissas realistas como norteadoras das questões de segurança ........................................ 15 2.2 A relativização da soberania nacional frente ao fenômeno da globalização .............................. 21 2.3 A necessidade de cooperação e a criação de regimes internacionais ......................................... 28 MUDANÇAS NO PARADIGMA DA SEGURANÇA.................................................................... 36 3.1 Segurança - perspectivas histórico-conceituais.......................................................................... 36 3.2 As “novas ameaças” no campo dos estudos estratégicos ........................................................... 47 3.3 O novo paradigma da segurança nas Américas ......................................................................... 53 INSTRUMENTOS MULTILATERAIS DE SEGURANÇA NAS AMÉRICAS ............................. 62 4.1 A Organização dos Estados Americanos – OEA ....................................................................... 62 4.1.1 Junta Interamericana de Defesa – JID ................................................................................ 75 4.1.2 Tratado Interamericano de Assistência Recíproca – TIAR................................................. 77 4.2 União das Nações Sul-Americanas ............................................................................................ 80 4.2.1 4.3 5 O Conselho de Defesa Sul-Americano ............................................................................... 86 A OEA e a UNASUL como regimes internacionais .................................................................. 91 4.3.1 Conjunto compartilhado de princípios, normas e regras – implícitos ou explícitos ........... 91 4.3.2 Padronização dos mecanismos de tomada de decisão......................................................... 94 4.3.3 Convergência de expectativas ............................................................................................. 97 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................... 102 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 107 9 1 INTRODUÇÃO A segurança tem sido perseguida, disputada e estudada desde os primórdios da organização social humana. As questões de política externa concernentes ao campo dos estudos estratégicos nunca deixaram de ocupar os mais altos patamares das preocupações estatais, uma vez que referem-se aquele considerado, de forma praticamente consensual pelas diversas teorias, como sendo o principal objetivo dos Estados nacionais: a sobrevivência. Em que pese os assuntos de segurança – nacional e internacional – tenham passado por momentos de maior popularidade e outros de menor ênfase acadêmica, o tema sempre esteve presente nas lista de prioridades governamentais, por razões historicamente óbvias e que, embora hoje não constituam uma unanimidade entre os estudiosos das Relações Internacionais, continuam tendo extrema relevância para entender a inserção e movimentação dos Estados no sistema mundial. “Security matters. It is impossible to make sense of world politics without reference to it” (WILLIAMS, 2008, p. 1). A ligação entre a vertente realista das Relações Internacionais e os estudos estratégicos salta aos olhos mesmo para aqueles que realizam uma análise superficial sobre assunto que envolva os dois temas. A vertente tradicional de ambas as disciplinas ampara-se na construção teórica desenvolvida por Thomas Hobbes, suplantada – metaforicamente – para a cena internacional, ou seja, na ideia de que em um ambiente essencialmente anárquico os Estados, assim como os homens, viveriam à sombra da guerra, em um constante estado de natureza. A busca pela sobrevivência traduz-se, assim, na defesa da soberania estatal que passa por uma contínua e gradual absolutização, pari passu ao processo de surgimento e consolidação do Estado moderno. Justamente nesse contexto histórico, solidificam-se as bases do realismo clássico, estruturado em torno de premissas tais como a natureza essencialmente racional e egoístas dos Estados nacionais, a busca por poder como sendo o principal elemento do interesse nacional, a anarquia como condicionante do Sistema Internacional e, sobretudo, a necessidade de garantir os meios de sobrevivência em um ambiente marcado pela autoajuda. Entretanto, nem o realismo, nem os estudos estratégicos permaneceram imunes às transformações históricas e ao surgimento de situações que não poderiam ser satisfatoriamente explicadas pelas tradicionais abordagens teóricas. Assim é que, tanto realismo, quanto o conceito de segurança, sofreram significativas transformações e ampliações na tentativa de adaptar-se à nova realidade. O realismo estrutural proposto por Kenneth Waltz, o neoliberalismo institucional de Keohane e as contribuições de Krasner 10 acerca da teoria dos regimes são exemplos de como alguns autores procuraram complementar as lacunas ou retificar as falhas do realismo clássico sem, entretanto, abandonar os pressupostos basilares desta corrente teórica. A teoria dos regimes internacionais surge em 1970, em meio a este movimento – mais precisamente com o conceito cunhado em 1975, por John Ruggie – como uma reação aos trabalhos dominantes no âmbito das Relações Internacionais. Embora a teoria tenha se desenvolvido com especial ênfase nos campos da Economia Política Internacional e das questões ambientais, muitos dos conceitos concebidos podem ser empregados à análise dos estudos estratégicos. De forma bastante resumida, os regimes internacionais podem ser definidos como arranjos sócio-políticos, criados com o intuito de facilitar o desenvolvimento da cooperação em um ambiente essencialmente anárquico e, portanto, desprovido de mecanismos sancionatórios isonômicos e eficientes. Vista por esta ótica, a dinâmica proposta pela teoria dos regimes, embora construa-se com base nas possibilidades de coordenação política, corrobora premissas realistas como o princípio da soberania e a busca tenaz pelos interesses nacionais. A intensificação do processo de globalização constitui um ponto de inflexão em relação à abordagem tradicional, com destaque especial para a superação das ideias de que os Estados nacionais seriam os únicos atores relevantes para as Relações Internacionais e que atuariam como “caixas pretas”, impenetráveis aos acontecimentos externos. O fato é que, especialmente a partir do século XX, o Estado tornou-se “demasiado grande para as coisas pequenas e demasiado pequeno para as coisas grandes” (FERRAJOLI, 2002, p. 50). A partir de então, a crescente percepção do caráter transnacional das “novas ameaças”, contribui não só para a ampliação material do conceito de segurança, mas para a relativização da soberania estatal e dos princípios do realismo clássico. Os Estados engajaram-se cada vez mais em arranjos cooperativos, adotando a ideia de que a busca por seus interesses particulares e, sobretudo, a garantia da sua sobrevivência, seriam otimizadas a partir de uma atuação coordenada. Há, nesse sentido, uma complementariedade – antes de uma contradição – entre a teoria realista e a teoria dos regimes internacionais, com o intuito de explicar por quais motivos os atores egoístas aceitariam perder parcela considerável da sua soberania em prol de uma concertação política. Os desequilíbrios na balança de poder mundial, as ameaças decorrentes das duas grandes guerras e as ameaças provenientes da globalização expõem as incapacidades resultantes da atuação unilateral e exigem dos governantes uma mudança de posicionamento. É justamente neste contexto histórico que intensifica-se o movimento de integração no 11 hemisfério ocidental. Incentivados por uma “identidade comum” e pelo surgimento de novas ameaças, os países americanos criaram uma série de mecanismos voltados à segurança coletiva, a exemplo da Junta Interamericana de Defesa (JID), do Tratado de Assistência Recíproca (TIAR) e da Organização dos Estados Americanos (OEA). Posteriormente, o fim da Guerra Fria e a eliminação do inimigo comum – consubstanciado na ameaça do comunismo soviético – proporcionaram uma maior autonomia às agendas de política externa nacionais, fazendo com que os países voltassem sua atenção a outros fatores de insegurança, sobretudo aqueles localizados no âmbito doméstico ou regional. Em que pese a América do Sul seja comumente classificada como zona de paz, livre de armas nucleares e significativos conflitos interestatais, a região apresenta índices de violência regional e transfronteiriça que perdem – em termos numéricos – apenas para aqueles constatados no Oriente Médio 1 . Com o intuito de oferecer respostas eficazes a estes problemas – transnacionais, em sua grande maioria –, bem como consolidar uma estrutura independente da interferência estadunidense, os países sul-americanos iniciaram um processo lento e gradativo de integração regional que culminou na criação da União das Nações SulAmericanas (UNASUL), com o objetivo principal de reforçar a cooperação regional, fortalecer os mecanismos multilaterais de combate às ameaças regionais, incentivar o intercâmbio de informações e experiências em matéria de segurança e defesa, na tentativa de consolidar uma identidade comum regional. O objetivo desta pesquisa, consiste em analisar o funcionamento de ambas as organizações – OEA e UNASUL – sob a ótica da teoria dos regimes internacionais, verificando a compatibilidade entre os requisitos que compõem o conceito de regimes e as dinâmicas de interação regional. Para tanto, construir-se-á um referencial teórico baseado nas principais premissas realistas e nos elementos centrais da teoria dos regimes internacionais – especialmente naqueles que podem ser aplicados às questões de segurança. O primeiro capítulo consiste na construção de um arcabouço teórico, onde, primeiramente, serão revisadas as premissas centrais da teoria realista das Relações Internacionais, das quais se destacam: (i) os Estados como principais atores da cena internacional; (ii) a racionalidade e a busca egoísta pelos interesses nacionais como condicionantes da atuação estatal; (iii) a anarquia como variável sistêmica; e (iv) a busca por segurança e sobrevivência como principal objetivo de política externa. Posteriormente, serão analisadas as condições nas quais os atores aceitam ceder parcelas de sua soberania em favor 12 de uma atuação coordenada e em como esse movimento multilateral se relaciona com o fenômeno da globalização. Em seguida será apresentada a teoria dos regimes internacionais como uma abordagem capaz de explicar os motivos e as dinâmicas de cooperação que se estabelecem entre atores essencialmente voltados para a persecução dos próprios interesses. No capítulo seguinte será proposta uma análise conceitual acerta do termo segurança internacional. Em um primeiro momento, se discutirá o conteúdo semântico da palavra e os diferentes parâmetros interpretativos – segurança nacional, coletiva e internacional. A seguir tratar-se-á de como estes parâmetros se relacionam com diferentes contextos históricos e em que medida influenciaram e influenciam a postura dos Estados nacionais. Serão abordados, ainda, a evolução do paradigma da segurança internacional e o modo como a ampliação das chamadas “novas ameaças” se insere nos contextos americano e sul-americano. Por fim, propõe-se uma retrospectiva dos movimentos históricos que culminaram na criação de duas grandes organizações internacionais, a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL). Em seguida será analisada – sob a ótica dos regimes internacionais – a estrutura funcional, as perspectivas atuais e futuras, e as principais políticas em termos de segurança internacional adotadas no âmbito de ambas as instituições. Com esse intuito, divide-se o conceito de regimes em três elementos basilares: (i) a existência de um conjunto de princípios, normas e regras; (ii) a padronização dos processos de tomada de decisão; e (iii) a convergência das expectativas. As conclusões deste estudo baseiam-se na verificação destes três elementos no mecanismo organizacional de ambas as instituições. É importante esclarecer que, embora não se desconsidere a importância do viés econômico, característico da teoria dos regimes internacionais, bem como das diversas discussões acerca dos processos de criação, desenvolvimento e declínio destes arranjos de cooperação, este trabalho restringe-se à identificação dos elementos que caracterizam a existência de um regime internacional voltado às questões de segurança. Pelos mesmo motivos, não serão abordados – pelo menos não nesta oportunidade – os processos internos de interação social amplamente trabalhados pelas abordagens construtivista e crítica. 1 MARES, 2001, p. 28 13 2 REGIMES INTERNACIONAIS DE SEGURANÇA Relegar uma determinada teoria porque ela floresceu séculos atrás significa apresentar não um argumento racional, mas um preconceito modernista que considera natural a superioridade do presente sobre o passado (Hans Morgenthau, em A Política entre as Nações, 1948). It is important to note that even when leaders share nothing but an aversion to war or violence, when they have nothing in common but their shared aversion, they can join together to create a limited security regime. (Janice Gross Stein, em Taboos and Regional Security Regimes, 2004). Existe uma inegável empatia entre as questões de segurança e a teoria realista das Relações Internacionais – a despeito de todos os questionamentos e censuras que lhe foram imputados. É que, embora o mundo tenha sofrido profundas alterações, em virtude do fenômeno da globalização, do consequente encurtamento das distâncias e, principalmente, frente ao surgimento de uma série de “novas ameaças”, de caráter cada vez mais transnacional, quando se trata da defesa do território, população e recursos, os Estados demonstram-se ainda extremamente relutantes quanto à cessão de parcelas da sua soberania. Essa postura é bem explicada pela teoria realista das Relações Internacionais que enfatiza, através da criação de uma série de conceitos e problematizações, a atuação dos atores pautada pela desconfiança constante, o que prejudicaria o estabelecimento de eficazes mecanismos de cooperação. Apesar de fugir à regra comum, a questão pode ser analisada pela ótica da teoria dos regimes internacionais que, embora aparentemente avessa às premissas realistas, não só é aplicável às questões de segurança, como também fornece explicações alternativas às abordagens tradicionais. Isso porque o realismo, apesar de ser uma das teorias pioneiras no campo das Relações Internacionais, foi continuamente flexibilizado e reinventado ao longo da história, no intuito de se adaptar aos acontecimentos que os conceitos clássicos, muitas vezes interpretados com uma rigidez excessiva, não foram capazes de explicar. Nesse sentido, ainda que amparada nas premissas basilares, tais como o egoísmo, a racionalidade dos atores, e a busca incessante por poder como principais elementos do interesse nacional, a teoria realista não refuta a instituição de arranjos cooperativos que visam, justamente, a otimização dos objetivos particulares. Muito pelo contrário, complementa a teoria dos regimes internacionais explicando o porquê e em quais circunstâncias os Estados estariam dispostos a abdicar de uma atuação unilateral em prol da cooperação. 14 2.1 AS PREMISSAS REALISTAS COMO NORTEADORAS DAS QUESTÕES DE SEGURANÇA O paradigma da segurança sempre esteve presente dentro do rol das questões prioritárias para o Estado nacional, desde a sua concepção como tal. Primeiramente porque não há como estudar o campo das Relações Internacionais de forma dissociada da constante busca pela sobrevivência, seja esta relativa às próprias unidades ou ao sistema como um todo. É que o Sistema Internacional constitui um requisito básico para a existência e desenvolvimento de qualquer espécie de relação interestatal, sendo que suas peculiaridades influem diretamente no modo como ocorrem tais interações. Segundo porque a própria ideia de soberania estatal está intimamente ligada à capacidade de defesa dos elementos constitutivos do Estado, quais sejam: território, povo e governo 2 . Nesse sentido, é incontroverso o fato de que o surgimento do sistema de Estados soberanos, a partir da Paz de Vestfália (1648)3 e do consequente fim da Guerra dos Trinta Anos, reforçou a necessidade de delimitação e defesa das fronteiras territoriais das nações recém criadas, dando início ao sistema de Estados e às Relações Internacionais tal como os conhecemos atualmente. Mesmo antes da solidificação da noção moderna de Estado, foram muitas as tentativas de delinear os padrões de interação entre as unidades territoriais, o comportamento dos atores no âmbito interno, a postura de uns em relação aos outros e destes para com o sistema. Tal engajamento intelectual e investigativo proporcionou o desenvolvimento e aprimoramento de uma série de paradigmas interpretativos que, ainda que não tenham sido desenvolvidos com este intuito específico, tiveram enorme contribuição como parâmetros de interpretação das Relações Internacionais. Dentre esta variedade de escolas doutrinárias, o realismo merece destaque quando se trata das questões de segurança, não só por ser considerada a escola mais tradicional do pensamento internacional4, mas principalmente porque concentra o seu enfoque 2 Dalmo de Abreu Dallari afirma que grande parte dos autores – segundo ele Del Vecchio, Donato Donatti e Caetano – costuma elencar a existência de um território e de um povo, tidos como elementos materiais para a caracterização de um Estado moderno e, ainda, um terceiro elemento formal, associado ao “poder ou alguma de suas expressões, como autoridade, governo ou soberania” (DALLARI, 1998). No mesmo sentido, Hedley Bull afirma que “o ponto de partida das relações internacionais é a existência de estados, comunidades políticas independentes, cada uma das quais possui um governo e afirma a sua soberania com relação a uma parte da superfície terrestre [território] e a um segmento da população humana [povo]” (BULL, 2002, p. 13). 3 “Sem dúvida, o mais importante resultado do final da guerra foi o surgimento de um Sistema Internacional de Estados. [...] Toda a política moderna e contemporânea, baseada no reconhecimento da legitimidade dos Estados e na constituição de um conjunto político de nações que se reconhecem como parte de um sistema em que rege um direito internacional, deriva do modelo criado e formalizado a partir da Paz de Westfália” ( A EI , 2006). 4 Keohane afirma que por mais de dois mil anos o realismo se concretizou como a principal tradição de análise das relações internacionais na Europa e suas ramificações no Novo Mundo (KEOHANE, 1983, p. 158). 15 na atuação e posicionamento dos Estados na forma de unidades “fechadas”, coesas, funcionando como verdadeiras caixas pretas, ou seja, impenetráveis pelos acontecimentos externos. A própria preservação dos Estados-nação como unidades políticas soberanas e centralizadoras, está intimamente ligada ao processo de instituição do sistema moderno de Estados. Isso porque o estabelecimento de unidades autônomas, por si só, pressupõe a capacidade de defender e resguardar essa independência política, como função precípua dos governos, sob pena de sacrificar a própria soberania estatal. Não por outros motivos, mesmo os autores mais críticos reconhecem que a teoria realista e o seu enfoque nas questões de poder, medo e anarquia, forneceram as principais explicações acerca do conflito e da guerra (ELMAN, 2008, p. 15). Embora o presente trabalho não tenha pretensões de revisar a teoria, dispensando, assim, os prolegômenos das teorias das Relações Internacionais, é importante demarcar algumas premissas da escola realista, porque intrinsecamente relacionadas às ideias de segurança. Delimitar as diretrizes de uma das principais teorias das Relações Internacionais, tão exaustivamente discutida pela academia e reconhecida pela sua solidez conceitual, pode parecer uma tarefa simples. Entretanto, o realismo clássico, instituído com amparo nas ideias preconizadas por autores como Maquiavel e Thomas Hobbes, foi sendo continuamente atualizado e reinventado com o objetivo de explicar os complexos e diversos fenômenos da história mundial. A teoria realista, hoje, não corresponde a uma única corrente teórica definida por um conjunto rígido de ideias e proposições estritamente delimitadas, mas sim a uma abordagem das Relações Internacionais desenvolvida gradualmente a partir do trabalho de uma série de estudiosos, com características particulares e distintas. Assim, conquanto dividissem o mesmo viés teórico, tais autores inevitavelmente empregaram seu subjetivismo à análise. Apesar das várias facetas apresentadas pela teoria, podem ser observados alguns pressupostos básicos, comuns às tradicionais e às inovadoras abordagens realistas. De plano, o realismo como viés interpretativo da política internacional, assume que as posturas estatais são impulsionadas pelas imperfeições da natureza humana, de onde se depreende o marcante pessimismo com que a teoria enxerga não só o homem em si mas toda a conjuntura das Relações Internacionais. Nesse sentido, os apetites humanos egoístas e sedentos de poder, seriam reforçados pela necessidade de manter-se seguro em um mundo anárquico, pautado pela autoajuda. Conforme se trabalhará nos capítulos posteriores, especialmente na seção 2.1., os estudos estratégicos, bem como o próprio conceito de segurança surgem, na década de 1930, fortemente amparados no realismo clássico, do qual decorre uma percepção da 16 segurança estritamente vinculada à lógica estratégico-militar, sendo esta restrita à preservação da unidade nacional. Assim, a primeira das constantes que caracterizam a teoria consiste no fato do realismo prestar-se a uma abordagem fria e racional acerca da natureza humana e da política internacional, o que, naturalmente, lhe custou uma infinidade de críticas: Tendo em vista que a teoria que busca entender a política internacional como ela é, e como deve ser, face à sua natureza intrínseca, e não apenas como as pessoas gostariam que ela fosse, é inevitável que a referida teoria tenha de vencer uma resistência psicológica que a maioria dos outros ramos do conhecimento não precisa enfrentar. (MORGENTHAU, 1948, p. 28). Em acréscimo, Robert Keohane (KEOHANE, 1983, p. 156) afirma que as três principais premissas realistas consistem em: (i) os Estados, organizados em entidades territoriais, constituem os atores mais relevantes do Sistema Internacional; (ii) a racionalidade atua como fator condicionante da atuação estatal e (iii) os interesses dos Estados são mensurados em termos de aquisição de poder. Além desses três pilares estruturais, a doutrina realista acresce à visão estado-centrista, a condição anárquica do Sistema Internacional, inerente à própria noção de Estados soberanos. A ideia clássica de soberania estatal, baseada no suprema postestas superiorem no recognoscens (poder supremo que não reconhece outro acima de si) e potestas legibus soluti (poder livre de submissão às leis) (FERRAJOLI, 2002), pressupõe a ausência de um poder superior aos Estados no Sistema Internacional, condição esta que, embora possivelmente relativizada a partir da criação de instituições supranacionais, não pode ser inteiramente descartada. No mesmo timbre, é importante ressaltar que, conquanto a atuação de organizações internacionais, corporações multinacionais, grupos terroristas, dentre outros novos atores, cada vez mais proeminentes no cenário global, não seja totalmente desconsiderada pelo realismo contemporâneo, a abordagem estado-centrista conserva-se predominante5. A primeira lei é que a solução definitiva para o problema da segurança internacional está na manutenção de um equilíbrio de poder [balança de poder] contra os inimigos potenciais. Uma vez que a guerra é o árbitro final nas disputas entre os Estados, 5 Essa é a tese defendida por Keohane e ye: “The assumption that the principal actors in world politics are states would remain the same, although more emphasis would be placed on non-state actors, intergovernmental organization, and transnational and transgovernmental relations than is the case in Realist analysis (KE HA E & ye, 1972)”. (KEOHANE, 1983P. 175). o mesmo sentido: “Desde os realistas, mais tradicionais, até posições mais críticas, que pelo menos aparentemente não colocam o Estado no centro do debate. […] Mesmo não sendo o único, o Estado é o principal elemento de qualquer estudo sobre segurança internacional” (AVILA e ARGUELHES, 2011, p. 22). 17 estes devem ter poder suficiente para se defender. Não podem depender somente de acordos internacionais, nem de organizações internacionais como as Nações Unidas, que não tem poder para fazer cumprir ou sancionar as leis [...] (FUKUYAMA, 1996, p. 303). Os Estados então, atuariam como unidades fechadas, inacessíveis umas às outras, em um modelo caracterizado pela célebre metáfora das “bolas de bilhar”. modelo reafirma a anarquia como estrutura condicionante do Sistema Internacional, onde as unidades soberanas (Estados nacionais) comportam-se de forma voluntariamente egoísta e unicamente voltada ao alcance dos seus interesses6. De acordo com o realismo clássico, tendo em vista que o eterno desejo por adquirir poder está enraizado na natureza humana, os Estados estão continuamente engajados no aumento das suas capacidades. “In short, classical realism explains conflictual behaviour by human failings” (ELMA , 2008, p. 17). Dessa forma, as interações entre as unidades corresponderiam sempre a jogos de soma zero e os interesses seriam essencialmente conflitantes, uma vez que todos estariam buscando a maximização das suas capacidades, de forma que toda vez que um Estado ganhasse o outro necessariamente haveria de perder. Logo, a possibilidade de cooperação nos moldes da teoria realista clássica, estaria significativamente inviabilizada e os Estados viveriam constantemente “à sombra da guerra” (VILLA, 1999, p. 131). Importante ressaltar que, embora o vocábulo guerra remonte à ideia de uma luta armada, ou ameaças em termos militares – possibilidade que, para alguns, estaria um tanto quanto afastada da realidade mundial contemporânea – o conceito pode ser interpretado como antagônico à cooperação, traduzido na forma de uma competição voraz, esta sim, bastante plausível nos dias atuais. Corroborando o entendimento explanado Kenneth Waltz, citando a teoria kantiana, afirma: “The natural state is the state of war. Under the conditions of international politics, war recurs; the sure way to abolish war, then, is to abolish international politics” (WALTZ, 2000, p. 8). Ainda quanto à estruturação do Sistema Internacional, em termos reais, cumpre mencionar a existência de um significativo gap entre a teoria e a prática. É que a visão das Relações Internacionais, expressa em grande parte nos acordos e tratados transnacionais, pressupõe a interação de nações igualmente soberanas, enquanto na realidade os atores vivenciam uma situação de extrema desigualdade, especialmente no que concerne às suas 6 Justamente no que concerne à natureza dos Estados, teorizada a partir de uma metáfora em relação à natureza humana, a teoria realista remonta aos escritos de Hobbes e Maquiavel que, embora em épocas e lugares bastante 18 capacidades em termos de poder. A questão do interesse nacional aparece, talvez, como a última constante na teoria realista, alheia às discussões e relativizações teóricas e intrinsecamente ligada à abordagem Estado-centrista. Os atores, inseridos em uma estrutura internacional anárquica, atuam sempre com o intuito de alcançar seus interesses, sendo estes definidos essencialmente em termos de poder. Não se pode perder de vista, entretanto, que o conceito de poder constitui uma construção temporal e, portanto, extremamente adaptável ao contexto político e cultural em que está inserido. Diferentemente, a sobrevivência do Estado foge à essa flexibilização e corresponde à questão de mais alta relevância nas preocupações de um estadista (comumente chamadas de hard power), estando acima, inclusive, dos princípios de ordem moral, o que justificaria a supremacia normalmente conferida aos estudos estratégicos. Ou seja, ainda que consciente da existência de tensões entre os princípios de ordem moral e as exigências de uma política externa exitosa, o realismo clássico afirma que o Estado não tem o direito de permitir que os primeiros prevaleçam sobre a última, sob pena de por em risco a segurança dos seus nacionais e a própria sobrevivência estatal. Significa dizer que as condutas adotadas pelos atores internacionais serão julgadas, não pelo seu conteúdo, mas por suas consequências (MORGENTHAU, 1948, p. 20). O realismo assume que na política mundial, sob condições anárquicas, os Estados devem confiar em suas próprias capacidades para preservar a sua independência e sobrevivência, devendo utilizar a força quando julgarem necessário. Para os realistas, portanto, a política mundial é vista como uma política de poder, traduzida na contínua luta pela sobrevivência, por benefícios e, habitualmente, por dominação (JERVIS, 1999, p. 45). Não é somente a metaforização da natureza humana, refletida no desejo de autopreservação dos Estados que condiciona as interações transnacionais, mas também a própria estrutura anárquica do sistema. Por esse motivo os Estados tratam com superioridade a questão da autonomia política – ou seja da segurança e sobrevivência independente do Estado em meio a um sistema de autoajuda – consubstanciada na eterna busca por uma maior projeção mundial, admitindo a possibilidade de cooperação apenas como uma opção secundária, embora não inviável (BATISTA e PECEQUILO, 2009, p. 67). Assim, a célebre ideia da “sombra do futuro”, a própria metáfora do jogo do prisioneiro e o dilema da segurança, ou seja, o realismo em si, não são conceitos que inviabilizam a possibilidade de cooperação, sequer a criação de instituições transnacionais. distintos, construíram a imagem de um ser humano bastante egoísta. 19 Entretanto, atuam como condicionantes do funcionamento destes mecanismos e, principalmente, da sua eficácia, em face da autonomia dos Estados nacionais (WALTZ, 2000, p. 41). Até porque a teoria realista parte do pressuposto de que as Relações Internacionais ocorrem muitas vezes amparadas nos processos de barganha, considerando, portanto, a existência simultânea de interesses conflitantes e convergentes. Em suma, a teoria realista, devidamente adequada à realidade atual, prevê a possibilidade de cooperação entre as unidades, ainda que em questões relacionadas à segurança e à sobrevivência estatal. Já em 1948, Hans Morgenthau proclamava o mesmo entendimento: Nada, na posição realista, invalida a presunção de que a presente divisão do mundo político em estados-nações será um dia substituída por unidades de maiores dimensões de natureza muito diferente e mais consentâneas com as potencialidades técnicas e exigências morais do mundo contemporâneo (MORGENTHAU, 1948, p. 19). Esta abordagem, contudo, não desconsidera necessariamente a racionalidade e o egoísmo dos atores, como condicionantes do interesse nacional. Muito pelo contrário, é justamente a busca desenfreada pela sobrevivência e pela maximização da segurança que leva as unidades egoístas a cederem parcelas da sua soberania7. Não por outro motivo, estudar as instituições internacionais sem levar em conta o individualismo e a preponderância do interesse nacional, consiste em fechar os olhos para a história. Novamente, é oportuno mencionar a obra do realista Hans Morgenthau, ao citar um dos princípios gerais de governo desenvolvido por George Washington: Poucos são os indivíduos capazes de fazer um sacrifício contínuo de todos os propósitos dos interesses ou das vantagens pessoais em prol do bem comum. [...] Estará fadada ao fracasso toda instituição que não esteja edificada sobre a verdade presumida dessas máximas. (MORGENTHAU, 1948, p. 17). Ou seja, tal conclusão, na mesma medida em que amplia a aplicação do realismo à teoria dos regimes internacionais, fornece explicações acerca do insucesso de tais arranjos cooperativos, normalmente baseados, única e exclusivamente, em uma igualdade formal das 7 Corroborando a tese de que a teoria realista não exclui a possibilidade de cooperação, Keohane explica que “cooperation is viewed by policymakers less as an end in itself than a means to a variety of other projects” (KEOHANE, 1984, p. 10). Ou seja, os Estados buscam a concertação política não única e exclusivamente porque nutrem um desejo de cooperar, mas porque entendem que essa cooperação poderá otimizar as suas chances de 20 unidades, incapaz de sobreviver aos “abalos sísmicos”, que necessariamente surgem em estruturas instáveis, como é o caso do Sistema Internacional8. 2.2 A RELATIVIZAÇÃO DA SOBERANIA NACIONAL FRENTE AO FENÔMENO DA GLOBALIZAÇÃO A característica definidora de qualquer Sistema Internacional – independente da abordagem teórica utilizada9 – é a anarquia, ou seja, a ausência de uma fonte hierárquica e legítima de poder supranacional. Entretanto, a inexistência de um poder supremo e internacionalmente reconhecido não implica, necessariamente, em uma situação caótica, uma vez que podem, e de fato existem, normas e princípios norteadores das relações interestatais. Nesse sentido o Sistema Internacional contemporâneo, incontestavelmente, caracteriza-se por ser um ambiente anárquico, composto por unidades territoriais juridicamente independentes, autônomas e, portanto, soberanas. Tais unidades nada mais são do que os próprios Estados nacionais que, embora preservem um relevante grau de autonomia, não vivem uma liberdade irrestrita, pelo contrário, têm seu âmbito decisório restrito por um conjunto de fenômenos externos que precisam ser sopesados10. Para tanto, propõe-se uma análise evolutiva do conceito de soberania, da qual se percebe claramente uma multiplicidade de definições e teorias cunhadas com o intuito de decodificar o significado do termo. O vocábulo carrega consigo conteúdo genuinamente polissêmico, maleável, o que possibilita o seu emprego de forma ecumênica e transmutável, assumindo contornos distintos, ao longo da história e em decorrência, principalmente, das características pessoais do doutrinador a empregá-lo ou do contexto histórico em que é discutido. Traçando um exame cronológico, o esboço da noção de soberania constrói-se concomitantemente ao fim do feudalismo, tendo sido primordialmente definida como o poder alcançar outros objetivos particulares. 8 A evolução histórica dos estudos estratégicos tem estrita ligação com a trajetória teórica do realismo, de modo que o conceito de segurança em nenhum momento se afasta completamente das noções trabalhadas na presente seção, conforme se verá nos capítulos subsequentes. 9 A anarquia sistêmica é uma característica que, analisada em seu sentido literal, sem parcialidades ideológicas, não pode ser afastada, uma vez que efetivamente não se verifica nenhuma autoridade supranacional capaz de constranger a atividade política interna dos Estados que não estejam dispostos a submeter-se ao sistema. Desta feita, ainda que algumas teorias refutem a importância da composição estrutural ou desenvolvam outros parâmetros de análise em detrimento da anarquia, esta premissa não pode ser completamente desconsiderada. 10 É justamente o que defende Gilpin ao afirmar que “although the international system is one of anarchy (i.e., absence of formal govern- mental authority), the system does exercise an element of control over the behavior of states (Bull, 1977; Young, 1978). However, the nature and extent of this control differ from the nature and extent 21 absoluto e perpétuo sujeito apenas às leis divinas e naturais11. É esta a definição construída, já no século XVI, pelo jurista e filósofo político francês, Jean Bodin (2011), talvez o primeiro autor a trabalhar o conceito de forma sistematizada, atribuindo-lhe, ainda, características como inalienável, intransmissível, imprescritível, indivisível e indelegável (LUPI, 2003, p. 127). No Estado de Bodin, o poder soberano, incutido na figura de um único governante, é concedido diretamente pela própria autoridade divina e, por conseguinte, os indivíduos em tal sociedade estariam submetidos única e exclusivamente a este soberano, manifestando a mesma profundidade, devoção e temor relativos àquela obediência religiosa12. Posteriormente, no plano teórico, o conceito é trabalhado por uma infinidade de autores, com destaque para a obra de Thomas Hobbes (1997), publicada em meados do século XVII, e a sua expressiva contribuição realista. No realismo hobbesiano, a concepção do Estado está estritamente vinculada à ideia que o autor nutre em relação aos seres humanos. Nesse sentido, os homens, se livres em seu estado de natureza13, viveriam na mais absoluta barbárie, entregues aos seus impulsos selvagens em decorrência da irrestrita liberdade como atributo da ausência de um poder soberano. Em tal situação, nenhum dos atores, indivíduos ou unidade política territorial, teria a garantia de sua sobrevivência ou de suas propriedades. A saída civilizatória é alcançada através da consciência coletiva dessa profunda insegurança, decorrente da ausência de uma autoridade suprema. A partir de então, os homens consentiriam, amparados na razão, em ceder parte de sua liberdade em favor da autopreservação14. Ou seja, os indivíduos possuem um interesse comum em restringir a sua individualidade e liberdade, de tal modo que se formam regimes políticos domésticos, voltados à garantia dos bens coletivos, sendo a segurança em face de um ataque externo o bem primordial a ser provido pelo Estado15. A anarquia é superada, mas apenas no âmbito of the control that domestic society exercises over the behavior of individuals” (GILPI , 2009, p. 28). 11 “A soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma epública [...]” (B DI , 2011, p. 195). “Esse poder é absoluto e soberano, pois não tem outra condição que aquelas que a lei de Deus e a da natureza comandam”. (BODIN, 2011, p. 203). 12 “Pois quem despreza seu Príncipe soberano despreza Deus, de quem o Príncipe é a imagem na Terra”. (BODIN, 2011, p. 289) 13 É importante esclarecer que o estado de natureza hobbesiano não possui um lugar específico no tempo e no espaço, muito pelo contrário, constitui uma construção teórica metafísica, por assim dizer, baseada exclusivamente na ideia que o autor nutre em relação a natureza humana e não em um determinada forma de organização da sociedade em um momento específico da história. 14 “Um Estado é considerado instituído quando uma multidão de homens concorda e pactua, que qualquer homem ou assembleia de homens a quem seja atribuído, pela maioria, o direito de representar a pessoa de todos eles (sem exceção), deverão autorizar todos os atos e decisões destes, como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de poderem conviver pacificamente e serem protegidos do restante dos homens”. (Grifo acrescido) (HOBBES,1997 p. 111). 15 Em uma visão bastante semelhante, Gilpin afirma que o principal objetivo externo do Estado consiste em proteger a integridade de seus cidadãos – garantindo-lhes a segurança – e seus direitos de propriedade. “The 22 doméstico das sociedades nacionais, já que, embora os indivíduos sacrifiquem um certo grau de autonomia, as recém-criadas nações não o fazem (STEIN, 1982, p. 307). Desta feita, o mundo de homens livres é substituído por um mundo de nações soberanas, autônomas e conscientes da sua existência e liberdade recíproca. A soberania anárquica torna-se, assim, o ponto nodal do Sistema Internacional contemporâneo, sendo que desta característica decorrem todos os princípios, interações e regras de conduta a serem adotadas pelos Estados nacionais. Talvez o principal destes desdobramentos corresponda ao princípio da não ingerência nos assuntos internos das unidades, ou simplesmente a não intervenção, garantida através da preservação da “exclusividade de competências de um Estado em seu território” (PELLET, DAILLIER, DINH , 1999, p. 394). Até porque, um sistema de Estados soberanos pressupõe não só que estes Estados respeitem, reciprocamente, as suas fronteiras político-territoriais, mas sobremodo, que sejam capazes de garantir um mínimo de estabilidade interna. Embora o conceito tenha alcançado seu ápice com os nacionalismos do século XIX, balanceados pela política do “equilíbrio de poder”, e permanecido sólido durante todo desenrolar das duas grandes guerras mundiais, paradoxalmente o caráter absoluto da soberania encontra nos acordos firmados ao fim dos conflito um obstáculo intransponível. Logo após o fim da Primeira Guerra Mundial e a admissão de que o consórcio de grandes potências europeias não fora suficiente para assegurar a estabilidade e a segurança do Sistema Internacional, intensifica-se a preocupação dos países em evitar a ocorrência de novas tragédias, resultando em um esboço do que viria a ser a maior organização internacional contemporânea, a partir da criação de “uma ‘Liga de ações’ (isto é, Estados independentes) que tudo abrangesse, e que solucionasse pacífica e democraticamente os problemas antes que se descontrolassem [...]” (H BSBAWM, 2007, p. 41). Embora a Liga das Nações tenha sido considerada um verdadeiro fracasso, é inegável a sua contribuição em relação às possibilidades de cooperação sistêmica16. Posteriormente, o conceito de soberania perde parte da sua rigidez com a assinatura da Carta de São Francisco, em junho de 1945, a consequente criação da Organização das Nações Unidas e, sucessivamente, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, ratificada no âmbito desta mesma organização. A soberania estatal, em termos internacionais, sujeitar-se–á, primary external function of the state is to protect the property rights and personal security of its members vis-avis the citizens and actions of other states” (GILPI , 2009, p. 17). 16 Para maiores informações acerca do processo de instituição da Liga das Nações e a tentativa de instituição de um sistema de segurança coletiva ver HERZ, Mônica, HOFFMANN, Andréa Ribeiro. Organizações 23 a partir de então, aos limites impostos pelo compromisso com a paz e com a proteção dos direitos humanos. Com o fim da Guerra Fria, o relacionamento entre os Estados experimenta novas e cada vez mais intensas transformações, abandonando a mera coexistência pacífica para adotar uma postura mais ativa em prol da cooperação. Nesse sentido, o fenômeno da globalização e a emergência de novos temas, tais como o terrorismo global, o comércio internacional de drogas, as mudanças climáticas, produzem uma série de preocupações que não podem ser respondidas individualmente pelos Estados, nos moldes do realismo clássico. Os conflitos internacionais passam a apresentar características significativamente diferentes daquelas até então conhecidas: o expansionismo territorial arrefece e as questões de segurança internacional adquirem novos contornos exigindo, cada vez mais, respostas conjuntas por parte dos Estados nacionais. Apenas para contextualizar, porque será exaustivamente trabalhado a seguir, os chamados “novos temas” ou “novas ameaças” à segurança internacional vêm sendo debatidos internacionalmente – por vezes com maior ou menor intensidade – desde a década de 1970 (VILLA, 1999, p. 135). Estes, portanto, não são problemas efetivamente novos e desde que foram identificados passaram a exigir uma atuação coordenada dos Estados nacionais. Entretanto, a dicotomia da Guerra Fria impedia que se buscassem alternativas verdadeiramente cooperativas, uma vez que os países estavam necessariamente ligados a um dos polos do Sistema Internacional. A maior e mais recente mudança, no campo dos estudos estratégicos, consiste na abertura de fóruns de debates que visam o tratamento conjunto dos problemas transfronteiriços, possibilitando que o multilateralismo e a cooperação – ainda que de forma pontual – ultrapassem os discursos políticos. Não bastasse, as transformações tecnológicas e produtivas impõem um processo de mudanças na sociedade humana e global, que se acelera em um ritmo estonteante, a exemplo dos avanços em termos de comunicação que aboliram virtualmente as variáveis tempo e distância (HOBSBAWM, 2007, p. 37). Em decorrência dessa avalanche de novos cenários e ameaças, existe uma forte tendência a relacionar a intensificação da globalização com uma suposta diminuição das capacidades e competências estatais sobre as atividades internas, o que acarretaria em uma relativização, ou até mesmo inutilização da ideia de soberania 17 . Internacionais: histórias e práticas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. 17 “A soberania externa do Estado sempre teve como sua principal justificação a necessidade de defesa contra inimigos externos. Hoje, com a diminuição dessa necessidade devido ao fim dos blocos contrapostos, a intensificação das interdependências e também as promessas não mantidas do direito [...] estão produzindo uma crise de legitimação desse sistema de soberanias desiguais [...]. Há, porém, uma razão a mais, e não menos relevante, que torna atualmente inadequado o obsoleto paradigma do velho Estado soberano. O Estado já é 24 Entretanto, como bem assevera o historiador Eric Hobsbawm, a própria estruturação do Sistema Internacional restringe as possibilidades de suplantar a organização baseada na soberania, sobretudo no que concerne às questões relacionadas à segurança: Existe agora, como durante todo o transcurso do século XX, uma ausência total de qualquer autoridade global efetiva que seja capaz de controlar ou resolver disputas armadas. A globalização avançou em quase todos os aspectos – econômico, tecnológico, cultural, até linguístico –, menos em um: do ponto de vista político e militar, os Estados territoriais continuam a ser as únicas autoridades efetivas (HOBSBAWM, 2007, p. 28). Até porque, para que as regras da soberania fossem substituídas, seria necessário um processo no qual os atores-chave decidissem que é mais conveniente aos seus interesses individuais eleger novas regras e instituições que sejam incompatíveis com a soberania estatal, optando, consciente e voluntariamente pela superação do sistema atual. Em suma: a despeito das mudanças sistêmicas, os Estados permanecem autônomos e, portanto, soberanos, mas a influência dos fatores externos limitadores dessa autonomia precisa ser sopesada. Stephen Krasner (2000) trabalha, em uma série de estudos acadêmicos e obras literárias18, o conceito de soberania sob uma ótica quadrimensional. Segundo o autor, o termo é empregado, coetaneamente, com quatro conotações bastante peculiares. Em primeiro lugar, a soberania pode ser encarada como a habilidade dos Estados em controlarem as movimentações, de bens, capitais e pessoas, através de suas fronteiras, capacidade essa que corresponderia à soberania de interdependência. Nesse sentido a soberania estaria sofrendo um processo de pulverização em virtude da globalização e dos consequentes avanços tecnológicos, especialmente no que concerne ao mencionado aumento da velocidade das interações e a concomitante diminuição dos custos em termos de comunicação e transporte. Entretanto, os efeitos da globalização incidem, não sobre a legitimidade ou competência dos Estados nacionais para controlar as suas fronteiras e/ou monopolizar suas estruturas internas, mas sim no grau de efetividade com que esse controle é exercido. Não se questiona se os Estados detêm competência para regular as circulações transfronteiriças, mas em que medida esse controle produz resultados. Isso porque o aumento da interdependência e a intensificação das relações interestatais fazem com que os governantes percam em termos de autonomia política e testemunhem uma diminuição da margem de manobra dos seus mecanismos demasiado grande para as coisas pequenas e demasiado pequeno para as coisas grandes”. (FERRAJOLI, 2002, p.47-50). 25 internos de poder que, por sua vez, corresponderiam à soberania interna, segundo aspecto da soberania discutido por Krasner. Desta feita, o enfraquecimento da soberania de interdependência, ou seja, do efetivo controle sobre os fluxos transnacionais, implicaria igualmente em uma relativização da soberania interna, pois um Estado que não pode regular as circulações através de suas fronteiras – a exemplo do tráfico internacional de armas – provavelmente não será capaz de regular as suas atividades internas – a utilização de armamentos (KRASNER, 2000, p. 27). A terceira faceta da soberania, classificada pelo autor como soberania westfaliana, está diretamente relacionada ao já aludido princípio da não ingerência externa, ou seja, ao fato de os Estados serem detentores do monopólio dos processos decisórios dentro dos seus limites territoriais, excluindo qualquer forma de intervenção hierárquica exterior. Quanto a esta característica específica, a globalização não parece produzir grandes ameaças à autonomia estatal, até porque as próprias organizações internacionais amparam-se, quase que de forma unânime, no respeito recíproco à soberania dos seus Estados membros. É justamente deste enfoque que decorre a quarta e última das dimensões do conceito, referente ao reconhecimento mútuo existente entre unidades territoriais juridicamente independentes, qual seja a soberania legal internacional. Isso significa que “los estados pueden voluntariamente conceder su soberanía westfaliana/vatteliana por médio del ejercicio de su soberania legal internacional, como lo han hecho los estados membros de la Unión Europea (UE)”. (Krasner, 2000, p. 29). Ainda no que concerne às mudanças oriundas do processo de globalização e em uma possível ameaça à soberania nacional, Hobsbawm levanta duas questões bastante relevantes. A primeira delas refere-se ao fato de a globalização, inserida em um mundo eminentemente capitalista, provocar um acirramento e uma maior exposição das assimetrias socioeconômicas tanto no interior dos países, quanto no âmbito internacional. Tais desigualdades aumentam a instabilidade do sistema e reforçam a necessária coordenação dos países em determinadas áreas temáticas, especialmente naquelas relacionadas às inseguranças produzidas por revoltas ocorridas na esfera doméstica das unidades territoriais, que podem transpor essas fronteiras e produzir uma instabilidade generalizada. Em segundo lugar, a velocidade com que se dão os fluxos informacionais, monetários, ideológicos, a disseminação de doenças, são apenas exemplos de como os Estados têm efetivamente reduzida a capacidade de desempenhar as funções essenciais necessárias à manutenção do controle sobre o seu território 18 Sovereignty: Organized Hypocrisy (1999); La Soberania Perdurable (2000). 26 (HOBSBAWM, 2007, p. 56). De fato a atual conjuntura internacional impõe aos países a necessidade de ajudar-se mutuamente, em prol da autopreservação. Pode-se traçar uma comparação, uma exportação do pacto constituído no âmbito dos Estados Nacionais, regulador do estágio primário de selvageria humana, para o Sistema Internacional superando o paradigma vestifaliano baseado na total ausência de limites e regras. Os Estados passam a celebrar entre si, de forma cada vez mais frequente, tratados e convenções, bem como aceitam ceder parcelas da sua autonomia às instituições internacionais. Todavia, não se está aqui a falar na instituição de um poder supraestatal ou na invalidação da soberania, mas sim em uma concessão mútua de parcelas deste poder soberano, em prol da segurança dos próprios Estados na estrutura internacional, mesmo porque na atual conjuntura “não há qualquer sinal de que os estados soberanos estejam inclinados a se sujeitarem a um governo mundial fundado no consentimento” (BULL, 2002, p. 294). Infere-se, portanto, que a globalização, bem como a instituição de uma série de organismos multilaterais, ainda que latentes, não invalidam a ideia de um Sistema Internacional composto por unidades soberanas, até porque estas instituições não tem nenhum poder efetivo além daquele que lhe é conferido voluntariamente pelos Estados. Ou seja, embora o mundo careça de “soluções supranacionais para os problemas supranacionais ou transnacionais” não há nenhuma autoridade legitimamente capaz de interferir no âmbito interno de um determinado país sem ofender os princípios norteadores da convivência pacífica entre estes, de modo que “a globalização sai de cena quando se trata de política, seja interna, seja internacional” (H BSBAWM, 2007, p. 58). Desta feita, seria bastante prematuro prever um término para o sistema dos Estados soberanos. Até porque a interdependência, apesar de acentuada nos dias atuais, não é nenhuma novidade no Sistema Internacional, tendo sido um constante desafio à atuação governamental. Mesmo durante o feudalismo o desenvolvimento das unidades territoriais esteve umbilicalmente ligado ao comércio e, portanto, às interações com os demais atores internacionais. Além disso, desde os primórdios da humanidade, até a era das navegações e, principalmente, em épocas de insegurança militar, as unidades político-territoriais – sejam elas Cidades Estados, Impérios, Estados Nacionais ou qualquer outra denominação sob a qual estejam classificadas – buscaram firmar alianças, ainda que temporárias, com os mesmos objetivos que o fazem hoje, no ápice do processo de globalização. Conclui-se, portanto, que a globalização não implica em uma deterioração irreversível da soberania ou perda generalizada da capacidade de controle dos Estados, mas sim em uma ampliação das tomadas de decisões conjuntas. Em outras palavras: o Estado perde em termos de autonomia decisória, em virtude 27 da interconectividade do sistema, o que não significa a invalidação das suas competências administrativas, políticas e, consequentemente, da soberania estatal sobre o seu próprio território e população. A ideia de soberania demonstra-se, assim, extremamente adaptável de acordo com o momento histórico vivido, bem como aos interesses dos líderes estatais. Dessa forma, o discurso da soberania acaba sendo bastante estratégico para os governantes, podendo ser evocado em situações nas quais seja mais proveitoso agir isoladamente mas, ao mesmo tempo, sendo passível de relativização nos casos em que os Estados sejam incapazes de atuar de forma isolada. A história demonstra que a despeito da retórica acerca do reconhecimento recíproco da soberania, o princípio da não ingerência externa tem sido constantemente violado em prol da estabilidade/segurança sistêmica – ainda que esta ameaça exista apenas no discurso de alguns governantes. Nesse sentido, não existiria nenhuma motivação que impelisse os Estados a buscar uma substituição do status quo, uma vez que a estrutura existente e, portanto, a soberania, pode coexistir com regras alternativas, de cooperação ou intervenção, que podem ser impostas ou aceitas voluntariamente (KRASNER, 2000, p. 37). Assim, após demonstrado que a necessária e plausível implementação de políticas coordenadas e multilaterais não inviabiliza a utilização do conceito de soberania ou o estudo das Relações Internacionais a partir da lógica de um sistema de Estados, passaremos a analisar os fenômenos histórico-sociais que exigiram – e continuam exigindo – uma atuação conjunta dos governos nacionais e em que medida os regimes constituem instrumentos satisfatórios a este fim. 2.3 A NECESSIDADE DE COOPERAÇÃO E A CRIAÇÃO DE REGIMES INTERNACIONAIS Não restam dúvidas quanto à existência de um novo cenário, bastante diferente daquele em vigor nos primórdios do campo de estudos das Relações Internacionais, consubstanciado no desenvolvimento de uma rede mundial de comunicações, bem como no incremento e intensificação dos fluxos transnacionais que resultam em um grau de percepção recíproca até então inédito no Sistema Internacional. Contudo, algumas características sistêmicas permanecem bastante similares, conquanto flexíveis ao novo contexto mundial. É o caso, por exemplo, da anarquia sistêmica que, como condicionante estrutural, reafirma tanto a autoajuda – a despeito das possibilidades de cooperação – quanto um certo grau de 28 supremacia das questões de segurança na política internacional 19. É que os Estados, como atores racionais e unitários, movidos pela eterna busca por poder, estariam condicionados ao paradigma individualista das Relações Internacionais. Justamente em virtude desse egocentrismo relacionado ao Estado realista e, consequentemente, à garantia da sobrevivência das unidades, verifica-se a existência de um grande vácuo entre os trabalhos desenvolvidos na área de segurança, nacional ou internacional, e a teoria dos regimes, genuinamente amparada na possibilidade de cooperação. O termo regimes internacionais, introduzido na literatura por John Ruggie, em 1975, foi inicialmente definido como o “conjunto de expectativas mútuas, normas e regulamentações, planos, energias organizacionais e compromissos financeiros aceitos por um determinado grupo de Estados” ( UGGIE apud KE HA E, 1984, p. 57). Posteriormente, Stephen D. Krasner, aperfeiçoou o conceito, caracterizando-o como o conjunto de “princípios, implícitos ou explícitos, normas e regras, e procedimentos de tomadas de decisões de determinada área das Relações Internacionais em torno dos quais convergem as expectativas dos atores” (K AS E , 1982, p. 186). Portanto, diferentemente dos acordos ou arranjos temporários específicos, os regimes não implicariam apenas no estabelecimento de normas e expectativas facilitadoras da cooperação, mas em uma forma de cooperação que transcende a pura e simples ideia de satisfação dos interesses egoístas (JERVIS, 1982, p. 357). Na verdade, os regimes traduzem-se em limitações, mais ou menos específicas, ao comportamento individual dos atores, prescrevendo – através do conjunto de princípios, normas e regras – determinados atos e proibindo outros, resultando em uma série de obrigações, ainda que estas não sejam impostas por uma autoridade hierárquica. (KEOHANE, 1984, p. 59). Pode-se dizer que a ausência de uma “ordem política hierárquica e mecanismos de implementação de sanções” (HE Z, 1997), consiste um uma característica fundamental dos regimes internacionais. O que ocorre com a instituição de um regime internacional é justamente a delimitação dos padrões de comportamento tolerados, capazes de produzir um sistema cooperativo na ausência de uma autoridade superior. Em suma, conjecturar a consolidação de um regime eficaz, no âmbito da segurança, seria propor a superação dos 19 VIOTTI e KAUPPI (1993) Afirmam que para a visão realista, questões militares e relacionadas à política dominam as preocupações mundiais. Para os realistas, a segurança militares e as questões estratégicas algumas vezes são referidas como assuntos de high politics, enquanto questões econômicas e sociais são vistas como menos importantes ou de low politics. Mesmo alguns autores que enfatizam a importância dos fatores não militares em termos de poder e política, como é o caso de Joseph Nye em sua obra The future of the power (2011), não desconsidera a relevância das questões de segurança “Military power will not have de same utility for states that it had in nineteenth and twentieth centuries, but it will remain a crucial componente of power in world politics” ( YE, 2011, p. 49). 29 riscos historicamente estudados, explicados pelos dilemas do prisioneiro e da segurança, sem a necessidade de recorrer à utópica instituição de uma autoridade supranacional. Em um cenário como este, os Estados nacionais aceitariam, espontaneamente20, cooperar mesmo em temas polêmicos como o da segurança internacional, hipótese que, a priori, esbarra no tradicional pensamento realista e na permanente possibilidade de adoção de uma postura individual. Como explicar, por exemplo, especialmente no que concerne à ideia de segurança, que em uma estrutura anárquica, onde os atores unitários agem sempre em prol da contínua acumulação de poder, poderiam existir expectativas convergentes a serem alcançadas por meio do estabelecimento de um conjunto de princípios, normas e regras, limitadores da atuação soberana dos Estados? Quais motivações levariam os governantes a abdicar da sua liberdade, da irrestrita supremacia do interesse nacional, adotando posturas comedidas e consentindo em restringir os seus próprios padrões de comportamento, ainda que isso implicasse em uma diminuição dos resultados ótimos possivelmente alcançáveis? De fato, a teoria dos regimes raramente é aplicada às questões de segurança por pelo menos duas razões: primeiramente em decorrência do já mencionado ceticismo realista, dominante nos assuntos relativo à segurança, em segundo lugar porque os regimes de segurança, se comparados aos regimes econômicos ou financeiros, são considerados mais difíceis de serem criados (DOGAN, Nejat, 2010, p. 7). Grande parte dos autores justifica essa aparente incompatibilidade teórica com base nas seguintes problematizações: (i) as questões relativas à segurança normalmente envolvem um grau de competitividade superior aos demais assuntos; (ii) é muito difícil distinguir posturas ofensivas e defensivas, de modo que a atuação dos Estados é muitas vezes mal interpretada; (iii) os riscos relativos ao tema da segurança são mais elevados e (iv) mensurar a própria segurança, bem como a segurança alheia, é uma tarefa bastante inexequível, principalmente em virtude da segurança não ser uma variável absoluta, calculável apenas em termos relativos21. Isso faz com que os atores, dentro de um regime de segurança, acreditem estar continuamente contribuindo mais e recebendo menos, em relação aos demais, por uma razão bastante lógica: o sacrifício individual é sempre mais evidente que 20 Ainda que essa espontaneidade decorra da necessidade. A única impossibilidade no âmbito da teoria dos regimes internacionais é que os Estados sejam expressamente forçados a participar do arranjo cooperativo. Entretanto, conforme assevera Keohane, ao assumir a posição dos atores como genuinamente voluntárias, correse o risco de ignorara as desigualdades de poder entre eles. “Regimes can be more or less "imposed"; that is, decisions to join them can be more or less constrained by powerful actors” (KE HA E, 1084, p. 70). 21 “Regimes are harder to establish in the security area than they are in the economic realm because of the inherently competitive cast of many security concerns, the unforgiving nature of the problems, and the difficulty in determining how much security the state has or needs” (JERVIS, 1982, abstract). 30 o alheio (JERVIS, 1982, p. 368). O fato é que, em termos de segurança internacional, os atores costumam agir com muita cautela. A capacidade bélica continua estando, ainda que em última instância, diretamente relacionada à defesa estatal e, consequentemente, à sobrevivência dos atores internacionais. Dessa forma, simples desvios de conduta, aparentemente superficiais, podem acarretar em consequências irreversíveis. Não por outro motivo, os níveis de desconfiança, decorrentes dos elevados custos que envolvem o tema, são igualmente altos, os governantes agem sob constante pressão e o medo da traição faz com que, mesmo quando em cooperação, os Estados permaneçam de prontidão, quase que esperando o momento em que voltarão a agir isoladamente (JERVIS, 1982, p. 359). Como agravante tem-se as diferentes percepções acerca dos fatores que produzem insegurança ou segurança. Os atores, embora inseridos em um mesmo sistema, lidam cotidianamente com questões internas muito particulares, de modo que medidas em prol da segurança de um, podem acarretar no aumento da insegurança dos demais. Ou seja, a despeito da globalização, do encurtamento das distâncias e do aumento dos fluxos transnacionais, ainda que os atores enfrentem questões que demandam respostas multilaterais, tratar a segurança sob uma perspectiva coletiva não é uma tarefa fácil. A rivalidade inerente ao tema, pautada por uma desconfiança generalizada, diminui consideravelmente as chances de uma atuação coordenada, conforme ensina Robert Jervis: The primacy of security, its competitive nature, the unforgiving nature of the arena, and the uncertainty of how much security the state needs and has, all compound the prisioners’ dilema and make it sharper than the problems that arise in most other areas. Furthermore, decision makers usually react by relying on unilateral and competitive modes of behavior rather than by seeking cooperative solutions. (JERVIS, 1982, p. 359-360). Todavia, as chances de consolidação de um regime de segurança, embora diminutas, não estão totalmente descartadas. Existe uma série de autores que defende a coerência entre ambas as teorias. A cientista política, Janice Gross Stein, por exemplo, afirma que, embora muitos acadêmicos utilizem a perspectiva liberal, baseada na ideia de que os atores estariam dispostos a buscar o interesse coletivo a longo prazo, para explicar a existência de uma intensa interconectividade dos assuntos globais e um movimento de solidariedade com as preocupações alheias, os trabalhos mais analíticos apontam para uma direção oposta, indicando pelo menos dois conjuntos de fatores que podem explicar a criação dos regimes, quais sejam a distribuição de poder e a busca egoísta pelo interesse próprio (STEIN, 1985, p. 31 606). Outros estudiosos sustentam, no mesmo timbre argumentativo, que é justamente o arcabouço teórico do realismo, com destaque para a autonomia das unidades, que explica porque os Estados nacionais aceitariam submeter-se a um sistema de cooperação. Segundo Arthur Stein, The existence of regimes is fully consistent with a realist view of international politics, in which states are seen as sovereign and self-reliant. Yet it is the very autonomy of states and their self-interests that lead them to create regimes when confronting dilemas. (STEIN, 1982, p. 324). Percebe-se, portanto, que embora a teoria dos regimes siga uma lógica aparentemente distinta da ideologia realista, na prática as duas escolas não se apresentam de forma completamente antagônica. Até porque o realismo, apesar de ser uma das teorias inaugurais do campo das Relações Internacionais, não permaneceu estático ao longo da história. Muito pelo contrário, uma série de autores, dentre eles Keohane (1983), Waltz (2000), Gilpin (2009) buscaram reformular e adaptar a teoria realista de acordo com a cena internacional pósSegunda Guerra, marcada pela profunda destruição dos países envolvidos e pelo consenso de que o mundo não suportaria um novo conflito de tamanhas proporções, em virtude do avanço tecnológico voltado para a evolução dos armamentos e seu alcance destrutivo. Nesse sentido, Stephen Krasner (1982), realista auto declarado, desenvolve uma análise da cena internacional por meio de duas possíveis interpretações, ambas decorrentes da teoria realista, acerca das relações interestatais. A primeira delas tem como espeque o egoísmo e a soberania dos Estados nacionais, enfatizando a busca cega e desenfreada por poder. O Sistema Internacional, sob tal perspectiva, pode ser representado por meio da metáfora da bola de bilhar, onde os Estados são os únicos atores pertinentes à análise, o meio é declaradamente irrelevante e as Relações Internacionais consistiriam, necessariamente, em jogos de soma zero. Em um sistema como este não haveria espaço para a consolidação de um regime, a não ser que o mesmo pudesse ser imposto. A segunda hipótese, por sua vez, prevê um cenário ainda mais complexo. O enfoque é dado ao impacto causado pela distribuição de poder entre os Estados, no meio externo. A metáfora mais adequada à análise conjuntural passa a ser a das placas tectônicas, ou seja, a interação entre as unidades é mais relevante que as políticas adotadas individualmente e, embora não esteja excluída a possibilidade de conflito, o mundo não pode ser considerado um simples jogo de soma zero. Ao contrário, esta abordagem prevê a possibilidade de ganhos 32 mútuos que poderiam incentivar a criação de um regime22. O modelo das placas tectônicas merece destaque, pois sustentou a teoria realista, quando a abordagem clássica não foi capaz de explicar, por exemplo, a inocorrência de uma mudança drástica no Sistema Internacional, no decorrer da década de 1970, época em que os Estados Unidos, um dos baluartes da bipolaridade sistêmica, sofreram drásticas perdas em termos de poder e capacidade. Nesse sentido, a teoria dos regimes exerce um papel complementar, amenizando os limites do realismo, ajudando a entender, por exemplo, porque, a despeito da crise do petróleo, da consolidação de novas potências, os padrões de comportamento, no Sistema Internacional, permaneceram fundamentalmente os mesmos. Uma das principais ideias desenvolvidas por Keohane, em sua obra Theory of World Politics, é a de que, sob condições de interdependência, mesmo as unidades egoístas podem estar dispostas a cooperar (KEOHANE, 1983, p. 176). A teoria, posteriormente conhecida como institucionalismo, enfatiza o papel das instituições multilaterais e o fato de que estas podem aprimorar as trocas de informações interestatais, uma vez que a informação assume um papel crucial para o sucesso das políticas mundiais coletivas, reduzindo as incertezas e aumentando a confiança recíproca dos atores, sem a necessidade de que ocorra uma mudança estrutural no sistema (KEOHANE, 2010, p. 6). A grande inovação do institucionalismo em relação ao realismo, tendo em vista que as premissas do último mantém-se pertinentes no desenvolvimento teórico do primeiro, é a tentativa de explicar a mudança na cena internacional. O realismo, em oposição, e da mesma forma que tantas outras teorias de solução de problemas, estaria concentrado na análise do mundo como ele é, sem intentar explicar as possibilidades de transformação. Sem empregar o institucionalismo, mas de forma bastante similar, Arthur Stein afirma que em determinados momentos o próprio cálculo racional dos atores, na busca por seus interesses individuais, faz com que estes abdiquem da adoção de posturas independentes, em prol de uma tomada de decisões coordenadas (STEIN, 1982, p. 316). Segundo autor, as mesmas forças que levam os indivíduos a superarem o estado de natureza – em suma, a necessidade de garantir a sobrevivência – também levam os Estados a suplantar o 22 Em uma análise mais específica e econômica, Gilpin problematiza a questão dos direitos de propriedade e o impacto da globalização sobre os mesmos. Segundo o autor, a progressiva extensão destes direitos dos indivíduos ou empresas, geograficamente para além das fronteiras de um único Estado nacional, tornou-se uma característica marcante do mundo moderno. A criação e funcionamento da economia mundial interdependente, exige a delimitação de regras capazes de garantir direitos como estes no âmbito internacional. Em outras palavras, a criação de regimes internacionais, nos mais diversos campos de interação entre os países, corresponde a uma demanda que, embora existente desde o surgimento dos Estados soberanos, se intensifica pari passu ao processo de globalização. (GILPIN, 2009, pp. 24-25). 33 individualismo, adotando posturas coordenadas. Nesse sentido, é extremamente relevante a distinção feita por Keohane quanto aos conceitos de harmonia e cooperação. A harmonia difere-se da cooperação, porquanto a primeira é eminentemente apolítica, ou seja, não se exige, necessariamente, o estabelecimento de uma rede de comunicação e a influência não precisa ser um fim político. Na harmonia não haveria um conflito de interesses entre os Estados, única e simplesmente, porque estes não seriam conflitantes. A cooperação, por outro lado, é uma questão altamente politizada, mormente porque implica, na grande maioria dos casos, em uma alteração dos padrões de comportamento, hipóteses em que os atores ajustam as suas condutas às preferências ou expectativas dos demais atores, através de um processo de coordenação política. (KEOHANE, 1984, p. 53). Desta forma, os regimes contribuem para a cooperação não através da imposição de regras que devem ser seguidas pelos Estados – ou seja, não implicam em um enfraquecimento das capacidades nacionais – , mas sim por meio da transformação do contexto dentro do qual os Estados tomam decisões amparados no interesse nacional. A cooperação, alcançada através da racionalidade, não implica, necessariamente, na aceitação de ideais comuns ou na renúncia à soberania estatal. Até porque, como já mencionado, os atores egoístas podem concordar em aceitar obrigações restritivas da sua autonomia, se acreditarem que tal postura trará melhores consequências no longo prazo (KEOHANE, 1984, p. 16). Na verdade a soberania anárquica atua como condicionante da cooperação e, portanto, da eficácia dos regimes, não o contrário. Nas palavras de Keohane: International regimes should not be interpreted as elements of a new international order "beyond the nation-state." They should be comprehended chiefly as arrangements motivated by self-interest: as components of systems in which sovereignty remains a constitutive principle. This means that, as Realists emphasize, they will be shaped largely by their most powerful members, pursuing their own interests. […] Theories of regimes can incorporate Realist insights about the role of power and interest, while also indicating the inadequacy of theories that define interests so narrowly that they fail to take the role of institutions into account. (KEOHANE, 1984, p. 63). Ou seja, enxergar a criação de regimes, a partir da percepção realista de um Sistema Internacional composto por entidades soberanas, que podem evitar voluntariamente, em determinados casos, a tomada de decisões independentes, implica em admitir a existência de interesses ou aversões comuns (STEIN, 1982, p. 318). Permanece, portanto, a crença de que as unidades sistêmicas perseguem seus interesses individuais, mas reconhece-se a 34 possibilidade da existência de interesses compartilhados que, uma vez identificados, podem culminar na instituição de regimes internacionais. Além disso, conforme bem assevera Keohane, assim como uma série de outros acadêmicos23, a percepção do interesse nacional depende tanto das expectativas acerca das consequências de dadas ações quanto dos valores fundamentais dos Estados e, nesse sentido, os regimes podem afetar tanto as expectativas quanto os valores, em face das possibilidades de cooperação (KEOHANE, 1984, p. 63). As percepções mútuas, por sua vez, são extremamente afetadas pelos fenômenos da globalização e interdependência, em decorrência da relativa diminuição do espaço mundial (STEIN, 1982, p. 316). Imprescindível, portanto, uma análise minuciosa acerca das expectativas dos atores em relação aos futuros padrões de cooperação no contexto das Relações Internacionais, tendo em vista que cada passo em favor de um avanço ou retrocesso nos processos de cooperação afeta terminantemente as crenças e a postura dos atores em relação às ações futuras. É evidente, portanto, a compatibilidade do realismo com a teoria dos regimes internacionais, explicando porque as unidades egoístas aceitam abrir mão da busca desenfreada pelos seus objetivos particulares – sem renunciá-los – optando por uma atuação conjunta, capaz de proporcionar resultados mais vantajosos para o sistema como um todo mas, sobremodo, para garantir que os demais respeitem os benefícios auferidos por cada ator. Supera-se, em relação à perspectiva realista tradicional, justamente a ideia do jogo de soma zero, da impossibilidade de cooperação. Nos dias atuais parece incontroverso que os países possam, através de instituições e acordos, bilaterais ou multilaterais, adotar políticas coordenadas, maximizando os benefícios individuais e coletivos. 23 “Changes in the nature of human understanding about how the world works, knowledge, can also transform state interests and therefore the prospects for international cooperation and regime formation” (STEIN, 1982, p. 320). 35 3 MUDANÇAS NO PARADIGMA DA SEGURANÇA De todas as paixões baixas, o medo é a mais amaldiçoada. (William Shakespeare, em Henrique VI, Parte I, Ato V, 1590). States, like people, are insecure in the proportion to the extent of their freedom. If freedom is wanted, insecurity must be accepted. (Kenneth N. Waltz, in Theory of World Politics, 1979, p. 112) Para verificar a existência de um regime de segurança no continente americano, ou mais especificamente, no âmbito da América do Sul, mister se faz uma delimitação do conteúdo que carrega a palavra segurança, bem como uma regressão aos estudos estratégicos com o intuito de identificar se existe um padrão para o emprego do termo, ou se a questão da segurança é tratada de forma dessincronizada, em favor de interesses puramente políticos. Em suma, o que se pretende trabalhar neste capítulo é a ampliação do campo da segurança, em virtude do surgimento de “novas ameaças” e em como o desenvolvimento dos estudos estratégicos afeta a percepção dos países no sentindo de estimular uma postura cooperativa. Para tanto será feito um exame cronológico, embasado nos principais fatos e fenômenos que impactaram a mudança ou a percepção da segurança e das suas possíveis ameaças. Posteriormente será analisado o histórico da segurança no continente americano em si e quais são as atuais ameaças que poderiam impulsionar o engajamento em regime de segurança. 3.1 SEGURANÇA - PERSPECTIVAS HISTÓRICO-CONCEITUAIS O termo segurança tem sido, não só uma das expressões mais frequentemente empregadas no campo das Relações Internacionais, mas também uma das mais ambíguas e controvertidas discussões entre os especialistas. Isso porque, embora a segurança seja um argumento rotineiro nos discursos de políticas externas, militares e econômicos dos países, empregado normalmente em favor do “interesse nacional”, sob as diversas facetas com as quais este se apresenta, pouco se discutiu sobre o significado semântico, essencialmente normativo do termo. David Baldwin (1997) fez uma importante crítica a este respeito, alegando que a maioria dos esforços teóricos em relação ao tema parece reduzir o seu enfoque à rediscussão acerca das agendas políticas estatais e não ao conceito em si. O autor vai além, denunciando a existência de um debate teórico exagerado, no sentindo de que o novo paradigma da segurança traria uma mudança substantiva, mas não conceitual: The dimensions of security have not changed with the end of the Cold War, but the substantive specifications of these dimensions that were appropriate during the Cold 36 War are likely to differ from those appropriate for the 1990s. Economic security, environmental security, identity security, social security, and military security are different forms of security, not fundamentally different concepts. (BALDWIN, 1997, p. 23). [Grifo acrescido]. Entretanto, para que se possa chegar a semelhante conclusão e examinar a existência ou não de um novo paradigma da segurança internacional, bem como o papel exercido por este nos padrões de comportamento adotados pelos Estados, mister se faz uma análise não só conceitual, como adverte Baldwin, mas sobretudo histórica, contextualizando a segurança nos diferentes cenários aos quais o Sistema Internacional foi submetido. Essa “retrospectiva” auxiliará a distinguir tanto as respostas fornecidas pelos países às ameaças pontuais, quanto os incentivos para a institucionalização de tais posturas. A ideia de segurança, nas palavras de Helga Hafterdorn, pode designar uma disciplina específica, um conceito, um objetivo estratégico, ou uma determinada área de pesquisa (HAFTERDORN, 1991, p. 4). Percebe-se, portanto, a inexistência de um conceito uno, capaz de abranger as noções de segurança nacional, internacional e global. Isso porque, todos estes termos referem-se a um conjunto muito particular de preocupações, que têm origens em diferentes contextos históricos e decorrem de distintas formas interpretativas das Relações Internacionais, as quais serão abordadas em ordem cronológica. O marco teórico e conceitual dos estudos sobre segurança é apontado, de forma bastante unânime pela academia24, como sendo o trabalho desenvolvido por Arnold Wolfers, intitulado “‘Nacional Security’ as a ambiguos symbol” 25 . Entretanto, as preocupações concernentes à segurança nacional parecem ter surgido juntamente com o nascimento da ideia de soberania, ou seja, a partir da inauguração do atual sistema de Estados nacionais, com a assinatura dos Tratados de Westfália, no século XVII. Nesse cenário, para preservar a segurança nacional e a integridade dos indivíduos, os homens concordariam em por fim à constante “guerra de todos contra todos” (H BBES, 1998, p. 33), eliminando a anarquia doméstica e materializando o Estado soberano26. A partir de então, os Estados, em meio a um ambiente essencialmente anárquico, ingressariam em uma incansável luta por poder, quase sempre com o intuito de manter-se “vivos”. A lógica hobbesiana, segundo Hafterdorn, preparou as bases para a teoria realista das Relações Internacionais, na qual estaria 24 BUZAN, 1983; KEOHANE, 1984; HAFTERDORN, 1991; BALDWIN, 1997; RUDZIT, 2005. O trabalho foi publicado primeiramente em 1952 sob a forma de artigo, na revista Political Science Quarterly, vol. 67, nº 4, e, posteriormente, em 1962, como capítulo do livro Discord an Colaboration. 26 No mesmo sentido, “The state becomes the mechanism by which people seek to achieve adequate levels of 25 37 perfeitamente inserido o conceito de segurança nacional (HAFTERDORN, 1991, p. 6). Este, por sua vez, teria uma ligação direta e indissociável com a segurança do ponto de vista estratégico-militar Na teoria política do realismo, a segurança das unidades políticas é gerada a partir de dois elementos: uma definição defensiva e nacional de segurança, bem como a dimensão militar e a balança de poder como garantias principais da segurança estatal. (VILLA, 1999, p. 128). A segurança, sob a ótica realista, tem, portanto, não só um viés nacionalista, mas essencialmente defensivo, direcionado à conservação das estruturas e valores estatais, bem como da integridade dos próprios indivíduos. Em outras palavras, “security is about survival” (BUZAN, WÆVER, WILDE, 1998, p. 21) e, em sendo assim, quaisquer ameaças autorizariam o emprego de uma extraordinária quantidade de força para afastá-las. Em suma, a invocação do termo é comumente utilizada para designar uma condição emergencial, que justifica a utilização de todos os meios necessários – inclusive legitimando o uso da força – para estancar o desenvolvimento da ameaça27. Tal perspectiva, durante muito tempo, suprimiu a autêntica noção de segurança internacional, pois preocupava-se unicamente com a integridade territorial das unidades estatais, ante o medo de um possível ataque externo. Como agravante, a anarquia sistêmica, interpretada pelo realismo como essencialmente conflitiva, pressupunha que, para assegurar a sobrevivência, os Estados deveriam expandir as suas capacidades militares, fazendo da preservação, ou do aperfeiçoamento da sua posição de poder no cenário internacional, o principal objetivo da política externa (VILLA, 1999, p. 131). É justamente em virtude dessa ideia de segurança associada à supremacia das questões militares sobre as demais questões das agendas políticas dos Estados que a militarização, a integridade estatal, a formação de alianças, a guerra e a paz, são definidas como questões de high politics28. De tal modo, inferese que a metáfora aplicável à segurança nacional-defensiva é aquela da “balança de poder”, na qual as unidades estariam empenhadas em impedir que os demais atores, de forma individual ou conjunta, acumulassem capacidades superiores às suas. Por fim, cumpre mencionar que o conceito de segurança nacional foi amplamente aplicado no decorrer das duas grandes guerras security against social threats”. (BUZAN, 1983, p. 20). 27 Embora a ideia de segurança nacional tenha sido gradualmente substituída pela segurança internacional, a utilização dos discursos referente às ameaças à sobrevivência estatal e, inclusive, à sobrevivência humana, serve para legitimar ações intervencionistas e construir exceções às regras do Direito Internacional. 28 “A preponderância da correlação entre o conceito e a segurança nacional deu um tom militarizado à 38 mundiais e, igualmente, em grande parte da Guerra Fria, tendo sido, inclusive, utilizado como sinônimo de segurança internacional, embora intrinsecamente ligado às características supramencionadas29. Remontando ao trabalho de Wolfers, a crítica principal do autor, no que concerne ao conceito de segurança nacional dominante à época, referia-se à conotação ambígua com a qual o mesmo vinha sendo utilizado, “they may not have any precise meaning at all. [...] they may be permitting everyone to label whatever policy he favors with an attractive and possibly deceptive name” (W LFE S, 1952, p. 481). Ou seja, a depender da retórica empregada, qualquer questão política poderia ser enquadrada como um problema de segurança nacional30. Além disso a própria ideia de segurança, quando restrita aos Estados individuais, intensifica de tal forma o dilema da segurança que as Relações Internacionais ficam encarceradas dentro da lógica do realismo clássico, qual seja a eterna luta por poder, afastando significativamente as possibilidades de cooperação (BUZAN, 1983, p. 5). A Liga das Nações, fundada logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, surge com a intenção de fornecer uma alternativa ao mecanismo da balança de poder, consolidando a noção de segurança através de um enfoque coletivo. A ideia principal era a de que a ameaça a um dos Estados membro significaria uma ameaça a todos os demais, o que, por si só, potencializaria os padrões cooperativos interestatais, flexibilizando e ampliando a noção de segurança nacional. O ideal proclamado pressupunha que todos os participantes deveriam responsabilizar-se, individualmente, em prol da coletividade, com o intuito de que, “in the end the new system [Liga das Nações] all states would cooperate in the common cause of providing security and justice for all rather than engaging in competition and coercion” (HAFTERDORN, 1991, p. 7). A superação da autoajuda e a definição do conceito de segurança coletiva estão sistematizados de forma bastante esclarecedora pelo jurista e internacionalista, Hans Kelsen, quando afirma que: Nos sistemas jurídicos em que prevalece o princípio da autoajuda o Direito pode autorizar, ou mesmo obrigar sujeitos, que não sejam as vítimas imediatas do delito, a ajudar a vítima em sua reação lícita ao delito [...] O princípio da autoajuda, no interpretação do que vem a ser propriamente a segurança” ( UDZIT, 2005, p. 301). 29 “Enquanto formalmente existia um mecanismo oficial chamado de segurança coletiva, concretamente o mecanismo da balança de poder, por meio do equilíbrio militar nuclear das superpotências, era o que propiciava a segurança do sistema bipolar (VILLA, 1999, p. 133). 30 É interessante perceber – apenas à título argumentativo – que a própria Constituição Federal brasileira, admite uma ampliação da autonomia governamental, em relação à população e, inclusive, a suspensão de direitos fundamentais em hipóteses de guerra, em que, teoricamente, estaria em risco a ideia de segurança nacional. 39 entanto, é eliminado quando a ordem jurídica reserva a aplicação da sanção a órgão especial, isto é, quando o monopólio da força da comunidade está centralizado. Quando os membros da comunidade jurídica são obrigados – e não apenas autorizados – a ajudar a vítima em sua legítima reação ao delito, [...] falamos de segurança coletiva. (KELSEN, 2010, p. 43). Ou seja, a ideia de segurança coletiva ante a uma ofensa ilegítima, impõe aos atores que atuem de forma coordenada através do mecanismo instituído com este fim específico. Uma vez estabelecida a segurança coletiva não cabe aos Estados optarem ou não pela invocação e obediência ao princípio. Este passa a ser uma norma cogente, restritiva da autonomia estatal. Cumpre esclarecer, entretanto, que a segurança coletiva não deslegitima ou diminui a relevância da soberania nacional, uma vez que a qualquer momento os Estados podem optar por abandonar o mecanismo constituído, sabendo que deverão assumir as consequências de tal escolha. Nesse ínterim, é importante pontuar que, embora Villa vincule o conceito de segurança coletiva estritamente à premissa idealista, na qual os Estados sentir-se-iam representados por uma comunidade internacional (VILLA, 1999, p. 132) – o que era, em última instância, o objetivo da Liga – o realismo em si não refuta a possibilidade de se estabelecer um mecanismo de segurança nos mesmos moldes, afastando unicamente a ideia de solidarização ou compadecimento com as preocupações alheias. Os Estados alcançariam uma harmonização de interesses – culminando na segurança coletiva – não por uma submissão aos preceitos morais ou idealistas, mas sim por entenderem que, de tal forma, poderiam otimizar a busca pelo próprio interesse nacional. O fracasso da Liga, no entanto, comprometeu a aderência ao conceito de segurança coletiva, que foi praticamente esquecido no decorrer de toda a Segunda Guerra Mundial. Posteriormente, com o fim do segundo grande conflito e a assinatura da Carta das Nações Unidas, em 1945, agregam-se duas novas noções à ideia de segurança: a renúncia ao uso – mas não ao acúmulo – da força e a subordinação aos direitos humanos. O emprego da força seria permitido de forma excepcionalíssima, sob a justificativa da segurança coletiva ou quando para a legítima defesa dos Estados31. Contudo, a noção de segurança coletiva não foi efetivamente aplicada até o fim da bipolaridade sistêmica e muito em virtude desta. Pelo 31 “Artigo 51 – ada na presente arta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o onselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais”. Disponível em <http://unicrio.org.br/img/CartadaONU_VersoInternet.pdf>. Acesso em 11 ago 2013. 40 contrário, o paradigma hobbesiano, baseado na militarização e na segurança nacional, permaneceu proeminente no Sistema Internacional, sendo a integridade estatal – e não a estabilidade do sistema como um todo – o principal objetivo das agendas políticas dos Estados (HAFTERDORN, 1991, p. 8). Majoritariamente, no decorrer de toda a Guerra Fria, os estudos de segurança estiveram voltados à defesa do realismo político e a uma preocupação com a segurança nacional (WILLIAMS, 2008, p. 3). Justamente nesse contexto surge, em 1949, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), criada com três objetivos específicos: dissuadir o expansionismo soviético, coibir o renascimento do militarismo nacionalista na Europa – através de uma forte presença norte-americana no continente – e incentivar a integração política europeia32. É importante deixar claro que o momento da criação da organização coincide com uma forte preocupação com a segurança nacional, decorrente da experiência vivenciada nas duas disputas anteriores. Entretanto, ante o desfecho do segundo conflito e a capacidade destrutiva das grandes potências, a percepção sistêmica dos países sofre uma drástica alteração, especialmente no que concerne à segurança nacional. A disparidade entre as potencialidades militares e a perspectiva de um ataque similar ao de Hiroshima e Nagasaki, fizeram com que os países buscassem, em consonância ao realismo político-estratégico, uma aliança militar capaz de garantir a sua segurança individual. A OTAN, como aliança político-militar ampara-se, até os dias atuais, na defesa coletiva, consubstanciada na percepção de que um ataque contra qualquer um dos membros representaria um ataque contra todos os demais33. Nesse sentido, cumpre mencionar uma substancial, porém comumente despercebida, diferença entre os termos defesa e segurança. É que a segurança, na definição de Wolfers, consiste “in an objective sense, measures the absence of threats to acquired values, in a subjective sense, the absence of fear that such values will be attacked” (W LFE S, 1952, p. 485). Ou seja, a segurança será sempre uma valoração abstrata, podendo ser aferida ante a inexistência de ameaças, ou a ausência do medo referente a tais ameaças. A defesa, por sua vez, decorre da própria insegurança, ou seja, consiste no meios materiais necessários à sua 32 Disponível em <http://www.nato.int/history/nato-history.html>. Acesso em 11 ago 2013. “Article 5 - The Parties agree that an armed attack against one or more of them in Europe or North America shall be considered an attack against them all and consequently they agree that, if such an armed attack occurs, each of them, in exercise of the right of individual or collective self-defence recognised by Article 51 of the Charter of the United Nations, will assist the Party or Parties so attacked by taking forthwith, individually and in concert with the other Parties, such action as it deems necessary, including the use of armed force, to restore and maintain the security of the North Atlantic area.” (Grifo acrescido). Disponível em <<http://www.nato.int/cps/en/natolive/official_texts_17120.htm>>, Acesso em 11 ago 2013. 33 41 prevenção ou enfrentamento 34 . Nesse timbre, a segurança nacional possui uma referência defensiva, relacionada à conservação das estruturas políticas e jurídicas, em última análise, do próprio Estado nacional (VILLA, 1999, p. 129). Retomando à análise cronológica, Hafterdorn afirma que, na década de 1960, com a Crise dos Mísseis (1962), com o crescente peso do papel das alianças em relação ao alcance dos objetivos perseguidos e a percepção de que mesmo uma estratégia nacional modificada, de forma isolada, não impediria um desastre nuclear, a tradicional ideia de segurança nacional passa a ser questionada e gradualmente substituída pela noção mais abrangente de segurança no nível internacional (HAFTERDORN, 1991, p. 9). Devido à natureza transnacional dos fenômenos que reproduzem ameaças, a segurança realista, amparada na abordagem militar, acaba subdimensionando as proporções dos problemas. Isso porque as respostas a essas inseguranças não podem ser definidas em termos competitivos, amparados na ideia de um jogo de soma zero, pelo contrário, exigem ações conjuntas e um intenso multilateralismo. Os Estados dão-se conta de que a segurança sistêmica, ou até mesmo regional, trará maiores benefícios em termos de estabilidade e sobrevivência, se comparada à busca desenfreada por uma maior segurança individual. A percepção da multilateralidade e transnacionalidade das ameaças impulsiona os tomadores de decisões a perseguir uma estratégia política conjunta, capaz de responder satisfatoriamente à realidade global. Ademais, conforme ressalta Baldwin, “when states are described as ‘competing’ with one another for security [...] suggests that the ‘winner’ of such a competition could be a state surrounded by insecure states” (BALDWI , 1997, p. 22), o que por si só comprometeria a segurança sistêmica, inclusive aumentando as chances de um ataque ao suposto “vencedor”. Não bastasse o episódio da crise cubana, o aumento da interdependência e dos fluxos transfronteiriços alteram significativamente a autonomia estatal, afastando a ideia de segurança vista, única e exclusivamente, sob a ótica estratégico-militar. Todavia, embora não seja desconsiderada a importância das chamadas “novas noções” de segurança, estas parecem ser exatamente o que Baldwin definiu como uma ampliação da materialidade do conceito, e não do conceito em si. “The adjectives indicate the differences, while the noun draws attention to the similarities. Both are important” (BALDWI , 1997, p. 23). Desta feita, a análise exposta na presente seção, concentra-se nas variações conceituais, que afetam 34 o mesmo timbre: “ conceito de Segurança acional está tradicionalmente relacionado à situação na qual a existência, a independência, a soberania e a integridade territorial do Estado estão sob ataque externo. [...] Defesa Nacional, por seu turno, é a política governamental que engloba uma série de medidas e instrumentos para assegurar a segurança nacional”. ( AST SA T S, 2004, p. 118). 42 diretamente a percepção dos atores em relação à segurança, independente de quais novos ou antigos temas esta venha a comportar. A evolução do conceito de segurança, poderia aparentar seguir uma certa linearidade, tendo sido abandonado de uma vez por todas a perspectiva estritamente nacional. Ocorre que, em meados da década de 1970, o mundo entrou em uma espécie de Segunda Guerra Fria (HOBSBAWM, 1995, p. 241), marcada pela re-bipolarização do globo 35 . Nesse mesmo contexto histórico, o internacionalista norte-americano Kenneth Waltz publicou um dos mais importantes trabalhos para o desenvolvimento das Relações Internacionais, dando origem à corrente teórica conhecida como neorrealismo ou realismo estrutural. Em Theory of International Politics (1979), Waltz reafirma preceitos do realismo clássico tais como a anarquia sistêmica, a segurança como objetivo primeiro a ser perseguido pelos Estado, bem com a racionalidade, a autonomia e a primazia destes como protagonistas – ainda que não exclusivos – das Relações Internacionais (WALTZ, 1979, pp. 102-104). Entretanto, o realismo estrutural afasta-se do realismo clássico ao focar na estrutura do Sistema Internacional – chamada por Waltz de terceira imagem – como condicionante dos padrões de interação dos atores. De acordo com o autor, a estrutura é a principal determinante dos resultados em termos de cooperação sistêmica, pois ao mesmo tempo em que encoraja algumas posturas, restringe outras. Dessa forma, as mudanças nos padrões de comportamento dos Estados – para uma maior ou menor cooperação – dependeria de variações nas características sistêmicas, mais precisamente em uma mudança na distribuição de poder entre as unidades e não nas unidades em si36. O neorrealismo, amparado na metáfora da balança de poder, foi a corrente teórica dominante acerca dos estudos estratégicos no decorrer toda a Guerra Fria, com base na ideia de que “because some states may at any time use force, all states must be prepared to do so-or live at the mercy of their militarily more vigorous neighbors. Among states, the state of nature is a state of war” (WALTZ, 1979, p. 102). Ou seja, não restam dúvidas de que, apesar de anteriormente ter sido fortemente questionada, dentro da dicotomia sistêmica a segurança nacional estratégico-militar foi preponderante, restando pouco espaço para a implementação de efetivas políticas cooperativas. Na década de 1980, com o fim definitivo da Guerra Fria, a visão dominante das Relações Internacionais passa novamente por uma mudança drástica. Nesse aspecto, a 35 Hobsbawm atribui como causas políticas dessa Segunda Guerra Fria, a derrota norte-americana no Vietnã (1973), uma nova onda de revoluções nos continentes Asiático, Africano e Americano, contrárias aos regimes ditatoriais patrocinados pelos Estados Unidos e muitas vezes atraídas pela ideologia socialista. 36 “Variation of structure is introduced, not through differences in the character and function of units, but only 43 corrente teórica conhecida como institucionalismo, desenvolvida por Robert Keohane e Joseph Nye, buscou explicar a política mundial agregando valores liberais aos tradicionais pressupostos realistas, construindo uma nova vertente acadêmica com enfoque principal nas possibilidades de cooperação e no papel das organizações internacionais 37 . Segundo os autores, os regimes internacionais surgiriam a partir da percepção da necessidade de cooperação entre os Estados – decorrente da interdependência –, com amparo no princípio da reciprocidade. Entretanto, como o presente trabalho não pretende discutir as evoluções no campo teórico das Relações Internacionais, o enfoque será restrito ao conceito de segurança e aos valores agregados a ele. Em suma, a ideia de segurança internacional, na definição proposta por Hafterdorn, coadunaria com a vertente institucionalista, que admite a criação de arranjos cooperativos entre os Estados nos moldes de uma sociedade interdependente. Pode-se dizer, inclusive, que o debate teórico vivenciou um processo de distensão entre as noções de segurança nacional e internacional, sendo esta última mais adequada aos novos conceitos de ameaça, dissociados da questão militar. Conforme expõe Villa: Ou seja, os próprios Estados se defrontam com noções de segurança em que já não se trata de auxiliar um Estado agredido por outro ou de acrescentar qualitativa e quantitativamente recursos de poder para manter o equilíbrio do mesmo, mas de redefinir estratégias institucionais políticas e técnicas para se autoproteger de riscos que têm sua matriz nos desequilíbrios societais e econômicos mundiais (VILLA, p. 160). Como terceira e última abordagem conceitual, Hafterdorn propõe a noção de segurança global, relacionada à teoria kantiana, baseada na existência de um conceito universal de segurança, consubstanciado no compartilhamento de um conjunto de regras, normas e práticas que resultariam em padrões de comportamento comuns a nível mundial (HAFTERDORN, 1999, p. 11). A ideia, se adequada à teoria dos regimes internacionais, implicaria na existência de um único regime internacional – ainda que unidisciplinar – que abarcaria todos os países, em uma espécie de comunidade global. Ocorre que a proposta, apesar de amplamente defendida pela corrente liberal das Relações Internacionais, não supera through distinctions made among them according to their capabilities” (WALTZ, 1979, p. 98). 37 No decorrer da obra Power and Interdependence (1977), Keohane e Nye trabalham o conceito de regimes vinculado à noção de interdependência complexa e exploraram as condições de formação dos regimes que, embora não corresponda ao foco do presente trabalho, que busca identificar a existência ou não de um regime de segurança no âmbito do continente americano, constitui uma variável de extrema importância para a compreensão de outras dinâmicas que envolvem os regimes internacionais. 44 o viés utópico, ou seja, embora teoricamente possível é bastante difícil de imaginá-la posta em prática. Por fim, a abordagem ideal, segundo a autora, consistiria na segurança internacional, ou seja, na ideia de segurança como um valor compartilhado, mas que por si só não implicaria na superação do sistema de Estados soberanos ou na invalidação da abordagem realista – exceto no que concerne à segurança essencialmente nacional – aos temas de segurança38. O fato é que na década de 1990, com o fim da Guerra Fria, o realismo passa por uma profunda desvalorização como teoria explicativa das questões de segurança, traduzida na já mencionada diminuição ao enfoque nacional. Esta tendência ganha notoriedade com a ocorrência de inéditos eventos internacionais: o fim da dicotomia leste-oeste, o retrocesso no expansionismo soviético, a posterior democratização e liberalização econômica em toda a exUnião Soviética, a improbabilidade de deflagração de uma guerra entre as grandes potências, todos fatores que resultam em uma preferência pelas teorias liberal e construtivista para a explicação dos fenômenos internacionais. Entretanto, após os atentados de 11 de setembro, a noção de segurança nacional volta a dominar o campo dos estudos estratégicos e o realismo novamente passa a ser percebido como uma das teorias mais adequadas à explicação das políticas internacionais (ELMAN, 2008, p. 20). A Tabela 1, exposta a seguir, foi produzida com o intuito de sistematizar as definições de segurança – trabalhadas nessa seção – e a forma como têm sido empregadas ao longo da história: 38 Mais uma vez aduz-se à necessidade de renunciar à rigidez conceitual. Existem muitas premissas realistas extremamente válidas à interpretação do atual Sistema Internacional, a exemplo da preponderância dos Estados como atores sistêmicos – ainda que não exclusivos -, da condição essencialmente anárquica do sistema, da natureza eminentemente egoísta dos indivíduos e, consequentemente, dos Estados nacionais, sem invalidar as 45 Tabela 1. Evolução Histórica do Conceito de Segurança Conceito Perspectiva Teoria Aplicada Segurança Estratégico- Realismo Nacional militar Metáfora Cenário Contexto Histórico Balança de Pouca ou I e II Guerra Mundial e Poder nenhuma preponderantemente possibilidade durante a Guerra Fria Sistêmica de cooperação Excessivo Liga das Nações uso da força, otimismo (1919), Carta das cooperação quanto à Nações Unidas (1945). em outras cooperação Segurança Renúncia ao Coletiva Liberalismo Cooperação políticas estatais. Ampla Fim da Guerra Fria – (maior possibilidade Hegemonia (Coletiva + abrangência, de Americana, novos Nacional) diminuição cooperação. atores Cooperação Predomínio Pós-11 de setembro Segurança Cooperativa Internacional Institucionalismo Cooperação do enfoque militar, maior enfoque econômico, ambiental e societal) Segurança Cooperativa Institucionalismo Internacional (maior com retorno do medo + (Coletiva + abrangência, à ampla Nacional) retomada do preocupação possibilidade enfoque com a de militar) sobrevivência cooperação estatal. Fonte: Elaboração própria Uma última questão de destaque, no que concerne à delimitação conceitual contemporânea da segurança, diz respeito à emergência, já apontada no capítulo anterior, de possibilidades de cooperação. 46 múltiplos atores no Sistema Internacional. Entretanto, sem pretender ignorar a merecida valorização dada às organizações internacionais, multinacionais e grupos não governamentais, bem como às suas influências nos processos decisórios, é importante mencionar que estes continuam sob o monopólio dos Estados nacionais, ainda que no âmbito de instituições supranacionais. Ocorre que, em decorrência do recente e significativo peso atribuído aos atores não-estatais, a segurança deve ser pensada, também, a partir de uma estrutura institucional descentralizada. Em virtude de tal perspectiva, surge uma noção coletiva de segurança diferente daquela proposta pela Carta das Nações Unidas em 1945, que pressupõe não só a cooperação entre os Estados, mas entre estes e os demais atores do Sistema Internacional. A noção internacional de segurança, adotada no presente trabalhado, abrange tanto a segurança estatal39 quanto a segurança coletiva, admitindo a existência de políticas que priorizam uma ou outra, mas também de posturas governamentais que, em prol da segurança estatal, adotam práticas coletivas. 3.2 AS “ VAS AMEAÇAS” O CAMPO DOS ESTUDOS ESTRATÉGICOS Tendo sido abordadas as três principais interpretações conceituais acerca da noção de segurança, parte-se agora a uma discussão sobre as diferentes materialidades que podem estar incutidas na utilização do termo, especialmente no âmbito das interações interamericanas. É incontroverso, o fato de que no decorrer de toda a Guerra Fria, a segurança nacional e a militarização foram temas centrais no campo das Relações Internacionais. Este enfoque teórico é corroborado pelo predomínio da vertente realista, baseada na definição clausewzitiana de guerra como uma “continuação da política por outros meios”, ou seja, com espeque no alcance de objetivos políticos através de meios essencialmente militares, conforme demonstrado pela análise proposta na seção antecedente. Dito de outra forma, as análises de política externa, durante os três grandes conflitos mundiais40, estiveram pautadas pelo raciocínio realista e amparadas na premissa de que os Estados estariam engajados na persecução do interesse nacional voltado para a captação de maiores níveis de poder, sendo este medido, em última instância, em termos de potencialidade militar. Tal enfoque interpretativo, predominante nos primórdios dos estudos de segurança e dominante até o fim da Guerra Fria, é comumente sistematizado em torno dos “four Ss of states, strategy, science 39 Preferiu-se a utilização do termo estatal ao invés de nacional, para aludir à segurança dos Estados modernos, com o intuito de evitar possíveis associações ao sentimento nacionalista, que não se pretende discutir por ora. 40 Primeira Guerra Mundial, Segunda Guerra Mundial e Guerra Fria. 47 and the status quo” (WILLIAMS, 2008, p. 3). s quatro Ss, por sua vez, nada mais são do que a transposição das principais premissas realistas ao campo dos estudos estratégicos, ou seja: os Estados operam como atores principais do Sistema Internacional (states); o principal objetivo da política mundial consiste na busca pela melhor forma de gerir as ameaças e aplicar o uso da força militar (strategy); o campo almeja um viés científico com o intuito de garantir maior confiabilidade (science) e; a preocupação com a manutenção do status quo, com a tentativa de impedir uma mudança radical na sociedade internacional consiste em um dos principais objetivos das grandes potências (status quo). Ocorre que, desde a década de 1980 e, sobremodo, após o fim da Guerra Fria, uma série de mudanças sistêmicas fizeram com que a preponderância dos Estados nacionais nos estudos estratégicos passasse a ser crescentemente questionada 41. A partir deste momento, surge uma certa unanimidade, mesmo entre os autores realistas e neorrealistas, acerca do entendimento de que Estados, “are not the only importante actors, nor are they the only important referente objects for security” (WILLIAMS, 2008, p. 4). Pelo contrário, as relações interestatais passam a ser encaradas apenas como uma – embora extremamente relevante – das várias facetas que compõem a dinâmica contemporânea da segurança mundial. Essa mudança de enfoque conceitual é facilmente explicada pelo significativo declínio dos conflitos armados interestatais a partir da década de 1970 (WILLIAMS, 2008, p. 156). Desde então, e, cada vez mais, a violência armada no nível mundial distancia-se da centralidade estatal apregoada pela teoria realista e concentra-se na atuação de atores não governamentais, seja no âmbito doméstico dos Estados ou ultrapassando as fronteiras territoriais. É justamente nesse sentido que o conceito de segurança afasta-se do alinhamento automático com a retórica exclusivamente nacional e passa a comportar uma gama cada vez mais ampla de temáticas. Corroborando o raciocínio exposto na seção anterior, pode-se dizer que, com o fim da Guerra Fria, despontam novas formas de segurança, traduzidas em um novo paradigma, o que não coincide, necessariamente, com a aparição de um novo conceito42. A título de exemplo toma-se a proposta de Buzan, baseada em cinco principais setores – essencialmente interligados – que compõe o conceito de segurança: (i) a segurança militar, relacionada à 41 “For many of the advanced democracies, defense of the state is becoming only one, and perhaps not even the main de facto, function of the armed forces”. (BUZAN, WÆVER e WILDE, 1998, p. 22). 42 O presente trabalho adota a ideia de que os parâmetros interpretativos (nacional, coletivo e internacional) correspondem a diferentes conceitos de segurança, enquanto os novos temas, ou novas ameaças (segurança ecológica, segurança humana, segurança econômica, etc.) correspondem a diferentes materialidades de um mesmo conceito. Assim a segurança nacional pode ser ecológica, humana ou econômica e, ainda assim, ser distinta da segurança coletiva ecológica, humana ou econômica. A diferenciação toma como parâmetro, basicamente, a interpretação capaz de influenciar a postura dos países no Sistema Internacional. 48 sobrevivência estatal, às ameaças externas e internas que podem por em risco essa sobrevivência, bem como à percepção recíproca acerca das intenções dos demais estados; (ii) a segurança política, referente à estabilidade organizacional dos Estados; (iii) a segurança econômica, consubstanciada no acesso a recursos, finanças e mercados necessários à manutenção do poder e do bem-estar populacional; (iv) a segurança societal relacionada à possibilidade de desenvolvimento estatal sem comprometer a identidade e os valores nacionais; e (v) a segurança ambiental relativa à sustentabilidade e aos diversos impactos da atividade humana sobre o meio-ambiente (BUZAN, 1991, p. 19). Essa interpretação pentapartite expressa uma desenvolvimento conceitual que ganha maior relevância especialmente no campo dos estudos estratégicos, e que, de certa forma, flexibiliza a tendenciosidade ao realismo clássico e engessado, viés marcante dos primeiros trabalhos desenvolvidos na disciplina. O fato é que com o arrefecimento da bipolaridade sistêmica, mais especificamente após a queda do Muro de Berlim, os estudos estratégicos vivenciam uma mudança de enfoque, baseada na tese de que os desafios e interesses econômicos – entre outros temas – seriam mais importantes43 ao gerenciamento do Estado se comparados aqueles ligados à área militar (RUDZIT, 2005, p. 297). Como acréscimo, o resfriamento da dicotomia leste-oeste põe em cheque o próprio modelo da balança de poder, na medida em que, com a intensificação do fenômeno da globalização, os riscos são gerados independentemente da atuação individual dos Estados nacionais e, sendo transnacionais, são comuns a todas as unidades políticas. Em virtude dessa “nova realidade”, a literatura passa a incluir uma série de temas não militares nas suas análises de segurança. Nesse sentido, Villa alude ao fato de que é justamente na década de 1970 que surgem noções como segurança econômica e segurança ecológica, caracterizando uma inadequação da visão realista clássica, pontualmente no que concerne à segurança restrita às perspectivas nacional e estratégico-militar (VILLA, 1999, p. 135)44. Concomitantemente à ampliação temática da agenda de segurança – que passa a abarcar temas como o terrorismo, o tráfico de drogas, a pobreza, os direitos humanos, o meio ambiente, a explosão demográfica, a economia e a proliferação das armas de destruição em massa (CASTRO SANTOS, 2004, p. 116) – percebe-se uma alteração também no parâmetro 43 “In the case of security, textual analysis (Wæver 1998, 1195b, 1995c) suggests that something is designated as an international security issue because it can be argued that this issue is more important than other issues and should take absolute priority” (BUZA , WÆVE e WILDE, 1998, p. 24). 44 No mesmo timbre, “this dissatisfaction was stimulated first by the rise of the economic and environmental agendas in international relations during the 1970s and 1980s and later by the rise of concerns with identity issues and transnational crime during 1990s”. (BUZAN, WÆVER e WILDE, 1998, p. 2). 49 interpretativo, trabalhado na seção anterior. É que o conceito tradicional de segurança nacional, parecia não satisfazer os anseios e preocupações que passaram a dominar o cenário internacional a partir da década de 1970. Pelo contrário, as “novas ameaças” expõem a ineficácia do unilateralismo estatal e, sobremodo, da atuação exclusivamente militar. A ideia resume-se na máxima: problemas transnacionais demandam respostas transnacionais 45 . Assim, buscando oferecer uma alternativa à perspectiva tradicional da segurança, a Organização das Nações Unidas compôs uma comissão encarregada de estudar e identificar as ameaças que surgiriam no novo cenário: onhecida como “ omissão Palme” [...] ela manifestou, no seu informe, que às ameaças tradicionais (os conflitos interestatais) agora se adicionavam uma série de questões nada novas, mas que passavam a ser vistas pelo prisma da segurança e que foram denominadas “novas ameaças” ( GA IZAÇÃ DAS AÇÕES UNIDAS, 1983). Na lista dessas novas ameaças, eram contabilizadas algumas velhas questões que agora se tornavam complexas pela transnacionalização e as múltiplas conexões entre elas, como as migrações forçadas por guerras ou a miséria, as crônicas diferenças sociais, o crescente desemprego, a pobreza extrema, o tráfico de drogas ilícitas, de armas e munições e de pessoas, o crime organizado transnacional, etc. (SAINT-PIERRE, 2011, p. 410) Apenas a título ilustrativo 46 , as guerras internas, a pobreza extrema, a questão do tráfico e do terrorismo internacionais, correspondem a dificuldades frequentemente associadas à insuficiência da atuação estatal, unilateral e militar, e acabam tomando proporções transnacionais – quando já não nascem com essa característica –, em virtude dos transbordamentos que terminam por contagiar países vizinhos com problemas internos semelhantes (RUDZIT, 2005, p. 305). Por esse motivo, o emprego do termo guerra, vem sendo utilizado de forma ambígua pelos discursos políticos recentes, referindo-se ao uso da força armada em face de ações nacionais ou internacionais vistas como ameaçadoras à segurança internacional. As “guerras” contra a máfia, o narcotráfico, os grupos terroristas, são diferentes do conceito tradicional de guerra, referente à luta armada e direta entre exércitos, mas não deixam de ser uma “guerra” com o intuito de preservar a ordem pública dentro de 45 Essa nova percepção foi expressamente anunciada pelo Secretário Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, em discurso proferido em ocasião da abertura da Assembleia Geral de 2008: “our challenges are increasingly those of collaboration rather than confrontation [...]. Nations can no longer protect their interests, or advance the well-being of their people, without the partnership of the rest”. Disponível em < http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=28169>. Acesso em 22 set 2013. 46 O presente trabalho concentra-se especificamente no cenário americano de segurança, motivo pelo qual não se fará uma análise aprofundada das “novas ameaças”. 50 uma ou mais unidades políticas (HOBSBAWM, 2007, 27). Assim é que, as preocupações concernentes às “novas ameaças” foram gradualmente interiorizadas pelos países, na medida em que tornou-se cada vez mais explícita a necessidade do multilateralismo. Em 2004, durante o Painel de Alto Nível das Nações Unidas sobre Ameaças, Desafios e Mudanças, o grupo composto por dezesseis países reconheceu que, apesar da persistência dos antigos conflitos, passam a existir novas preocupações: “guerra civil, genocídio e violência intra-Estado, terrorismo, crime organizado transnacional, armas de destruição em massa, ameaças econômicas e sociais, pobreza, doenças infecciosas, degradação ambiental”. (S A ES, 2004). A conclusão, de acadêmicos, das organizações internacionais e dos próprios países parece ser uníssona: a linha que separa os conflitos entre países e os conflitos no interior dos países tornou-se extremamente difusa, as “novas ameaças” não respeitam fronteiras territoriais e, muitas vezes, não podem ser enfrentadas por um só Estado, ainda que este disponha de um grande poderio militar e econômico. O novo contexto sugere uma relativização da noção de segurança defendida pelo realismo clássico, restrita à ótica nacional e traduzida em termos essencialmente militares enquadrados no modelo da balança de poder. A transnacionalidade e a dimensão societal das ameaças “não só invalida[m] a opção da solução militar quanto relativiza[m] o tratamento do problema como questão de segurança nacional estritamente” (VILLA, 1999, p. 159). Também por esses motivos, a segurança não deve ser analisada de forma parcelada, uma vez que não se restringe a uma única esfera social, pelo contrário, exige uma visão holística, multidimensional47 , que abarque todos os níveis de interação humana, estatal e sistêmica. Percebe-se que, em face de riscos comuns, o aumento de poder estatal não produz, necessariamente uma maior segurança – o que não significa que os países renunciam à busca por poder48 – de modo que o equilíbrio de poder passa a ser complementado pela coordenação 47 O termo foi adotado pela Organização dos Estados Americanos, na Conferência Especial de Segurança de 2003. a lista dos “enfoques compartilhados e valores comuns” da instituição, disposta no projeto elaborado por ocasião do encontro, constava a seguinte proposição: “ ossa nova concepção da segurança no Hemisfério é de alcance multidimensional, inclui as ameaças tradicionais e as novas ameaças, preocupações e outros desafios à segurança dos Estados do Hemisfério, incorpora as prioridades de cada Estado, contribui para a consolidação da paz, para o desenvolvimento integral e para a justiça social e baseia-se em valores democráticos, no respeito, promoção e defesa dos direitos humanos, na solidariedade, na cooperação e no respeito à soberania nacional”. (OEA, 2003). O conceito de segurança global multidimensional também é analisado, em uma perspectiva bastante semelhante, por Rafael Duarte Villa, em sua Tese de Livre Docência, onde desenvolve o conceito de segurança global multidimensional, ressaltando justamente a interdisciplinaridade e a descentralização da segurança internacional. “[...] a ‘natureza preponderante’ da segurança internacional deslocou-se em direção a uma noção de risco, que, sendo global, é compartilhada por todas as unidades políticas, já que a sua natureza não é tanto estatal quanto societal”. (VILLA, 1999, p. 165). 48 A questão foi trabalhada no primeiro capítulo, onde restou demonstrado a possível coexistência de interesses individuais e mecanismos de cooperação, mesmo no moldes realistas, uma vez que essas estruturas visam 51 e pelo multilateralismo em determinadas áreas temáticas. Justamente nesse ponto específico se enquadra a antecedente discussão acerca da relativização da soberania estatal. Isso porque o Estado não é capaz de gerir, unilateralmente, ameaças eminentemente sistêmicas. Assim, ante a percepção da imprescindibilidade de adoção de determinadas posturas cooperativas e da consequente redefinição das estratégias institucionais particulares, os países aceitam ceder parcelas da sua autonomia em prol de uma maior segurança nacional e sistêmica. Essa cessão se traduz no aparecimento de uma série de acordos, bilaterais e multilaterais, bem como na materialização de instituições internacionais que visam coordenar o procedimento de tomada de decisão estatal. Ainda nesse sentido, pode-se dizer que a necessidade de apresentar respostas multilaterais, acaba por incentivar a formação de regimes, inclusive na área de segurança. Isso é, com o intuito de controlar as “novas ameaças” e diminuir as inseguranças percebidas coletivamente, os Estados podem acabar consolidando um conjunto de “princípios, implícitos ou explícitos, normas e regras, e procedimentos de tomadas de decisões” (K AS E , 1982, p. 186). Não por outro motivo a cooperação, sem excluir a busca pela sobrevivência e por poder, pressupõe uma relação de confiança recíproca entre os atores, estritamente vinculada às percepções dos países. Por consequência, a segurança acaba sendo entendida como um conceito bifacial: com um viés objetivo – a existência de uma ameaça real – e um viés subjetivo – a percepção desta ameaça (BUZAN, WÆVER e WILDE, 1998, p. 30). Essa intersubjetividade conceitual – entendida como uma construção social entre os Estados – é o fator impulsionador da formação e manutenção dos mecanismos de atuação conjunta, dentre eles, os regimes de segurança49. Antes de restringir o enfoque à dinâmica da segurança no continente americano, cumpre realizar uma última ressalva teórica. É que, preocupados com a ampliação desmedida e desvirtuada do conceito, alguns autores (RUDZIT, 2005; BUZAN, WÆVER e WILDE, 1998) advertem sobre os riscos da securitização de uma quantidade muito grande e abrangente de temas. A grande contribuição advinda dessa teoria, consiste na relevância atribuída ao discurso político 50 e ao processo de interação entre o tomador de decisão – agente justamente garantir a sobrevivência e a segurança dos Estados nacionais. 49 esse sentido, “Estas normas e instituições são marcadas pela ausência de uma ordem política hierárquica e mecanismos de implementação de sanções. Assim, há uma delimitação do comportamento legítimo ou admissível dos atores em um contexto específico. É importante notar que a teoria de regimes se refere a padrões de cooperação vinculados a áreas temáticas. Trabalhos sobre regimes têm possibilitado a compreensão de formas de cooperação internacional e construção de instituições na ausência de governo” (HE Z, 1997). 50 “The process of securitization is what in language theory is called a speech act”. (BUZAN, WÆVER e WILDE, 1998, p. 26). 52 securitizador – e a sociedade nacional51. Assim, o processo de securitização é definido como um movimento no qual os problemas políticos, que demandam políticas públicas, acabam sendo tratados como questões de segurança52. Em sendo assim, qualquer tema poderia ser considerado uma questão de segurança nacional ou internacional. É justamente em virtude da importância do discurso e, sobremodo, da acepção da segurança como uma percepção, estatal e social, que Buzan e seus colaborados enfatizam a relevância dos discursos políticos: “it is more relevant to grasp the process and dynamics of securitization, because one knows who can ‘do’ security on what issue and under what conditions, it will sometimes be possible to maneuver the interaction among actors and thereby curb security dilemmas” (BUZA , WÆVER e WILDE, 1998, p. 31). A alternativa à excessiva ampliação da agenda temática, apontada por Buzan, consiste em admitir o desenvolvimento das questões de segurança contando que seja mantida uma ligação com a sobrevivência das unidades – Estados – e com os princípios coletivos (BUZAN, WÆVER e WILDE, 1998, p. 27). Dessa forma a segurança pode ser aplicada a uma série de setores sem comprometer a qualidade essencial do conceito. Por fim é importante ressaltar que, embora a ideia de segurança ambiental, econômica, ou os direitos humanos, possam, em uma análise perfunctória, aparentar um distanciamento em relação à sobrevivência estatal, não é sem propósito advertir que os mesmos conceitos têm sido comumente utilizados para legitimar a intervenção de Estados ou organizações internacionais no âmbito doméstico de outros Estado, o que, sem sombra de dúvida, comprometeria a integridade do país intervindo. 3.3 O NOVO PARADIGMA DA SEGURANÇA NAS AMÉRICAS surgimento de “novas ameaças” decorre da percepção de uma interdependência53 51 “[…] um tópico somente é securitizado se e quando a audiência o aceitar como tal. Por isso o caso da securitização é uma negociação entre um agente-securitizador e a audiência […]”. (RUDZIT, 2005, p. 309). “A successful speech act is a combination of language and society, of both intrinsic features of speech and the group that authorizes and recognizes that speech”. (BUZAN, WÆVER e WILDE, 1998, p. 33). 52 “A securitização ocorre quando uma questão é categorizada como uma questão de segurança, isto é, ela é definida como ameaça em uma declaração de segurança nacional conforme definido nos White Papers de defesa e segurança, quando há um aumento marcante na alocação de recursos (orçamentários e de pessoal), quando a retórica de legitimação dos gastos orçamentários é securitizada ou quando há uma transferência de prerrogativas de uma agência ou ministério civil para um de segurança, seja de forma permanente ou temporária em tempos de crise” (KI H E , 2011, p. 28). 53 Susan Strange ao tratar dos regimes internacionais, faz uma importante crítica à generalização do termo interdependência, especialmente na academia norte-americana, afirmando que ao empregá-lo, normalmente os autores referem-se a padrões de dependência ou vulnerabilidade, na verdade, altamente assimétrica e desigual. Isso é, embora a interdependência expresse um sentido de reciprocidade no âmbito semântico, o que pode sugerir 53 sistêmica que se estende, inclusive, às questões de defesa e segurança dos Estados nacionais. Todavia, é importante destacar que os dilemas de segurança não repercutem ou influem nas políticas estatais de forma uníssona e, embora as ameaças possam ser compartilhadas, os impactos são percebidos em diferentes níveis ao redor do globo. Como regra geral, a distribuição dos riscos sistêmicos tende a ocorrer de “maneira semelhante para determinados grupos dentro do sistema, por isso a relação de segurança entre os Estados apresenta-se de modo mais intenso no âmbito regional” (PAGLIA I, 2011, p. 3). Essa regionalização da agenda da segurança é facilmente percebida no decorrer e no pós-Guerra Fria. Isso porque o interregno compreendido entre 1945 e 1989, em maior ou menor grau, foi marcado pela bipolaridade sistêmica e pelo consequente alinhamento dos países com um dos blocos, comunista ou capitalista. Fazendo uma breve contextualização, a abordagem continental referente à segurança internacional remonta ao período final do século XIX e início do século XX, marcado pelo crescimento da economia norte-americana e pela deflagração de uma política intervencionista inspirada no imperialismo e na Doutrina Monroe, baseada na máxima: “a América para os americanos” ( LIVEI A, 2012, p. 64). A constante presença norte-americana, em consonância com as mudanças históricas e, no campo da segurança, com a alteração dos parâmetros interpretativos, impulsionou a criação de uma série de mecanismos e instituições regionais, quase sempre sob a liderança dos Estados Unidos. Desta feita é que, em 1889, por consequência da Primeira Conferência Internacional Americana, os Estados americanos, sob a liderança estadunidense, passaram a se reunir periodicamente na tentativa de criar um sistema compartilhado de normas e instituições, em um processo que se desenrola até os dias atuais54. Buscando consolidar uma perspectiva hemisférica baseada na cooperação e propulsionada ora pelos interesses norte-americanos na manutenção da hegemonia regional, ora pela própria percepção coletiva dos países, foram criadas, nos idos da década de 1940, uma série de estruturas com o intuito de atender às antigas e novas demandas na área de segurança. São exemplos desse movimento, a Junta Interamericana de Defesa (JID), o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) e, por fim, a Carta da Organização dos uma distribuição igualitária dos impactos decorrentes do fenômeno da globalização, o fato é que estes afetam os países em diferentes graus de intensidade e formas (STRANGE, 1982, p. 485). Entretanto, para fins do presente estudo, adotar-se-á o termo interdependência com amparo na acepção mais pura da palavra, ou seja, a ideia de que existem contrarreações – voluntárias ou involuntárias – mútuas aos acontecimentos do Sistema Internacional, independente dos seus graus de intensidade. 54 Disponível em <http://www.oas.org/pt/sobre/nossa_historia.asp>. Acesso em 08 set 2013. 54 Estados Americanos (OEA)55. Pode-se dizer que o sistema interamericano, de um modo geral, vivenciou diferentes níveis de pressões e intervenções oriundas da grande potência regional – os Estados Unidos da América. Geralmente sob o discurso da existência de uma ameaça comum, consubstanciada no período da Guerra Fria em um “inimigo comunista”, o gigante americano interveio, de forma implícita ou explícita, no âmbito doméstico de praticamente todos os países do continente (VILLA, 2010, p. 23). No entanto, com o esmorecimento da bipolaridade sistêmica, as nações americanas, especialmente aquelas localizadas no hemisfério meridional, passam a usufruir de um maior grau de autonomia em relação à política norte-americana, ante a dissipação da ameaça comunista. Isso não significa, contudo, que os Estados Unidos tenham renunciado à região, mas que o seu enfoque se expande sobre outras áreas do globo, antes dominadas pelo comunismo soviético. Ademais, a ameaça ideológica foi substituída por uma série de novos atores e processos. A exemplo do que ocorre na cena internacional, a agenda de segurança do continente americano, e mais especificamente, da América do Sul, passa a incluir temas como o tráfico de drogas e armamentos, os movimentos migratórios, as instabilidades políticas e o terrorismo internacional. Alguns autores, como Mônica Hirst e Rafael Duarte Villa, atentam para a inexistência de grandes iniciativas em matéria de segurança por parte dos países sul-americanos. Segundo esses autores, os países da região fizeram “uso modesto” da liberdade referente às agendas estratégicas no pós-Guerra Fria, em virtude da sua baixa capacidade de iniciativa em matéria de segurança regional, o que abriu espaço para a securitização, pela via internacional, de problemas político-sociais da região (HIRST, 2008, p. 50; VILLA, 2010, p. 41). Causa ou efeito do intervencionismo estadunidense, a dinâmica da segurança no continente sulamericano apresenta um caráter não autônomo, o que acaba permitindo a absorção de perspectivas e processos de securitização externos, a exemplo do que ocorre com a assimilação – quase unânime – da política norte-americana de guerra ao terror56. As perspectivas regionais de segurança, na América do Sul mais especificamente, também experimentam uma alteração no seu cenário estratégico, especialmente em virtude da 55 O desenvolvimento e criação dessas estruturas será melhor trabalhado no próximo capítulo. A tese é fortemente defendida por afael Duarte Villa: “ u seja, o que define a dinâmica da segurança regional é um elemento exógeno: as políticas de segurança dos Estados Unidos. [...] Dada a condição dos Estados Unidos de hegemon hemisférico e seu envolvimento direto com a problemática das drogas, o ponto dinamizador das questões de segurança é mais contextual, e é dado pelas preocupações dos Estados Unidos. Isso levará a várias consequências” (VILLA, 2010, p. 38). onforme se verá no decorrer deste trabalho, a forte ingerência norte-americana e, principalmente, a assimetria em relação a potência hegemônica e os demais Estados americanos, constituem o principal obstáculo ao pleno funcionamento dos mecanismos regionais. 56 55 ruptura com o padrão histórico de rivalidades entre as duas principais “potências” regionais: Brasil e Argentina. Já na década de 1970, com o fim do conflito Corpus-Itaipu 57 , em decorrência da assinatura do Acordo Tripartite e, posteriormente, com a redemocratização política, ambos os países passaram a investir em medidas de fortalecimento da confiança recíproca58, especialmente no que concerne à utilização de energia nuclear apenas para fins pacíficos (PAGLIARI, 2011, p. 5), fundamentais para as futuras políticas de integração subregional. Ainda quanto aos avanços cooperativos, Mônica Hirst aponta como uma das principais tendências na conjuntura da segurança continental pós-Guerra Fria, a expectativa de que “as fronteiras de separação seriam substituídas por fronteiras de cooperação”, abrindo maiores possibilidades para “a segurança cooperativa entre os países sul-americanos e todo o âmbito hemisférico, com base no fortalecimento de regimes regionais e mundiais e o abandono de políticas de defesa nacionais” (HI ST, 2008, pp. 49-52). Entretanto, a mesma autora explica que a prescrição norte-americana de uma agenda de segurança cooperativa foi arquivada após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, quando as prioridades estratégicas – especialmente estadunidense – voltam-se à defesa do território nacional e ao fortalecimento das capacidades militares. A chamada “Doutrina Bush” investe em um unilateralismo exacerbado59 com o intuito de promover a segurança sistêmica, o que, paradoxalmente, acaba resultando em maiores níveis de insegurança e instabilidade, na medida em que deslegitima as instituições e organismos internacionais. Além disso, a macrossecuritização 60 da “guerra ao terror”, proclamada pelos Estados Unidos, reduz drasticamente a funcionalidade de regimes e instituições multilaterais, sendo, inclusive, comparada à política adotada nos anos da Guerra Fria (HIRST, 2008, pp. 49-54). Novamente percebe-se que, uma vez posta em risco a sobrevivência do Estado 57 “Acordo sobre ooperação Técnico-Operativa entre os Aproveitamentos de Itaipu e Corpus”, convencionalmente chamado de “Acordo Tripartite”, assinado em 1979, sob o governo militar do general João Batista Figueiredo, fez parte de um programa de política externa que priorizava o fortalecimento dos laços com os países latino-americanos, sobretudo a Argentina. (QUEIROZ, 2012, p. 600) 58 As medidas de confiança recíproca podem ser entendidas como uma tentativa de refutar o dilema da segurança e, assim como o último tem causa nas incertezas decorrentes da falta de informação acerca das posturas políticas, as primeiras proporcionam uma maior transparência nas relações interestatais. 59 Como bem asseveram Glauco Fernando Numata Batista e ristina Soreanu Pecequilo, “A doutrina Bush deixa claro que o país está disposto a agir sozinho contra as ameaças terroristas: ‘While the Unitade States will constantly strive to enlist the support of the international community, we will not hesitate to act alone, if necessary, to exercise our right of self-defense by acting preemptively’ (NSS, 2002, p. 6)” (BATISTA, PECEQUILO, 2009, p. 71). 60 De acordo com o conceito, segundo Mônica Hirst, “a insegurança adquire um sentido planetário, afetando de forma generalizada os Estados e as sociedades, todos submetidos às consequências combinadas da globalização e da unimundialização” (HI ST, 2008, p. 54). Assim é que os Estados Unidos esforçam-se em ampliar o conceito de terrorismo internacional, levando-o a todas as regiões do globo, inclusive à guerra ao narcotráfico na América do Sul e, ainda, identificando suposta células terroristas na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. 56 nacional, não há flexibilidade nas agências estratégicas, os países se voltam para o âmbito doméstico, lançando mão de todas as suas “armas”, militares, políticas e econômicas, para garantir aquilo que a teoria realista classificou como o verdadeiro interesse nacional. No caso específico da América do Sul, essa retomada ao realismo se acentua em virtude da ineficiência das estruturas regionais, em virtude da porosidade dos mecanismos de controle, decorrente da globalização. Não por outro motivo, mantém-se na região sul-americana, a despeito da intensificação regional em termos de defesa e segurança, perspectivas nacionalistas e antigas rivalidades interestatais (HIRST, 2008, p. 50). De fato a América do Sul apresenta um alto nível de heterogeneidade e, apesar de ser comumente classificada como uma região pacífica 61 , com baixa incidência de guerras interestatais, “corresponde à região na qual se registra a maior taxa de mortalidade ocasionada por armas de fogo”62 (HIRST, 2008, p. 56). Nesse ínterim, mister se faz uma diferenciação de duas sub-regiões que apresentam padrões de relacionamento e cenários de estabilidade bastante diferenciados. Primeiramente a região andina, marcada por conflitos territoriais ainda latentes63, bem como por um processo acentuado de militarização e securitização. No lado oposto, o Cone Sul tem investido em dinâmicas de cooperação e fortalecimento da confiança recíproca (PAGLIARI, 2011, p. 6), grande parte em virtude da reaproximação das relações entre Brasil e Argentina. A intensificação do processo de integração sub-regional dos países consulenhos se dá mediante esforços que combinam integração econômica – a exemplo do Mercosul –, solidez democrática e segurança cooperativa (HIRST, 2008, p. 53). Resta evidente, portanto, as diferentes demandas em termos de segurança, o que dificulta a elaboração de uma postura comum, seja em relação às tradicionais ou às “novas” ameaças, especialmente em virtude da discrepância de percepções acerca causas potenciais de insegurança. Embora a região nunca tenha sido prioridade na agenda estratégica estadunidense, os 61 “According to the Uppsala Conflict Data Program, since the end of the Cold War the Americas have been the second most peaceful region in the world (with Europe being the most peaceful) (UCDP 2008). [...] Regarding weapons of mass destruction, one the greatest security concerns at the end of the twentieth century and beginning of the twenty-first century, Latin America is a remarkably stable area" (HERZ, 2008, p. 9). 62 David Mares, em um livro inteiramente dedicado à suposta pacificidade do continente latino-americano, demonstra a existência de conflitos interestatais ainda latentes no pós-Guerra Fria. título da bra “Violent Peace: Militarized Interstate Bargaining in Latin America”, é bastante elucidativo e sugere aquilo que o autor se propõe a demonstrar no decorrer do texto: que a América Latina embora aparentemente pacífica, possui índices de violência regional e transfronteiriça equiparados a qualquer outra área do globo, com exceção do Oriente Médio. (MA ES, 2001, p. 28). professor Marco epik afirma que “a região foi classificada como a segunda mais violenta do mundo, em razão das crescentes taxas de criminalidade verificadas em meados da década de 1990” ( EPIK, 2010, p. 63). 63 Villa cita a existência de problemas fronteiriços entre Chile/Bolívia; Chile/Peru; Equador/Peru; 57 países sul-americanos parecem pautar as suas posturas individuais, bilaterais e multilaterais, sempre levando em consideração – para o bem, ou para o mal – as diretrizes da política externa norte-americana. Explica-se, a heterogeneidade regional, especialmente no que se refere aos Estados Unidos, alcança extremos antagônicos em dois países vizinhos: Colômbia e Venezuela. O primeiro, historicamente aliado à política norte-americana64, consiste em um dos países mais afetados pelo narcotráfico, o que agrava-se em virtude da forte atuação das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARCs). Como resposta, o país adotou o Plano Colômbia, que assumiu um caráter eminentemente militar, em consonância com o combate ao “narcoterror” anunciado pelos Estados Unidos (PAGLIARI, 2006, p. 35). Foi sob essa retórica, inclusive, que o governo colombiano promoveu, em 2008, uma ofensiva militar às FARCs, instaladas em território equatoriano. O episódio corresponde à única vez, na conjuntura contemporânea da América do Sul, em que um Estado violou o princípio da soberania nacional, sob o pretexto de atacar um inimigo interno posicionado em território estrangeiro. Na ocasião, o governo venezuelano de Hugo Chávez, caracterizado pelo discurso anti-imperialista, mobilizou suas tropas para a fronteira com a Colômbia, reafirmando mais uma vez a sua tradicional oposição às estratégias colombianas e ao alinhamento do país com a política norte-americana (CEPIK, 2010, pp. 63-64). A Venezuela, em oposição à vizinha Colômbia, deixou bastante claro o seu questionamento ante o intervencionismo estadunidense, sendo comumente reconhecida como um “inimigo” dos Estados Unidos na América do Sul65. Ainda quanto aos pontos de instabilidade interna, a Bolívia é muitas vezes classificada como “um dos principais obstáculos à estabilidade regional na América do Sul” ( EPIK, 2010, p. 65). A crise estrutural boliviana se divide entre as planícies orientais – região conhecida como La Media Luna – ricas em gás, reivindicando a sua independência em relação ao departamento ocidental, povoado basicamente por grupos indígenas. A instabilidade atingiu seu ápice em 2008, após a vitória de Evo Morales para nas eleições presidenciais e o manifesto apoio aos grupos de esquerda, através da decisão de aumentar o controle estatal Colômbia/Venezuela, entre outros. (VILLA, 2010, p. 36). 64 Moniz Bandeira afirma que “a Colômbia, principalmente sob o governo do presidente Álvaro Uribe, passou a desempenhar a função de aríete dos Estados Unidos, contra o flanco da América do Sul” (BANDEIRA, 2009, p. 61). 65 “Finalmente, na lógica da GWT [Global War on Terrorism] e no quadro mais geral da percepção dos chamados “inimigos da América”, a Venezuela liderada por hávez foi enquadrada como Estado bandido” (BATISTA, PECEQUILO, 2009, P. 75). 58 sobre os recursos energéticos. Embora o conflito tenha sido dirimido antes tomar maiores proporções, as instabilidades internas permanecem latentes e acabam sendo agravadas por questões externas, como a infindável busca por uma saída boliviana para o mar, que se traduz em uma “ameaça” eminentemente territorial. Por fim, ressaltam-se as alegações em torno da existência de focos terroristas na Tríplice Fronteira que se estabelece entre Brasil, Paraguai e Argentina, e a alocação dessa região na agenda da Guerra ao Terror norte-americana. A suposta existência dos tais grupos terroristas, resultou no inédito mecanismo de cooperação 3+1 66 , entre Estados Unidos, Paraguai e Argentina, fortemente refutado pelo Brasil. A questão reforça um dos principais problemas relacionados às “novas ameaças”, qual seja, o caráter excessivamente aberto e indefinido dos conceitos. Tal indeterminação proporciona o emprego do conceito em situações díspares, muitas vezes encobrindo outros interesses que não os relacionados à segurança internacional. Também nesse sentido, se enquadra a preocupação brasileira com a reativação, em 2002, da IV Frota norte-americana, encarregada de patrulhar o Atlântico Sul. A presença militar estadunidense causa certa inquietação nos países sul-americanos, principalmente em virtude da assimetria em termos bélicos, e dificulta o processo de integração regional. Somam-se às questões pontuais supracitadas, ameaças de caráter generalizado e extremamente difuso, a exemplo da pobreza, da desigualdade social, da corrupção, do terrorismo, e do crime organizado, sendo esse último diretamente ligado ao tráfico transnacional e à uma série de violações aos direitos humanos. O grande problema das instabilidades domésticas, conforme apontado por David Mares (2001), é o fato de que muitos líderes políticos utilizam a atuação – tanto participativa, quanto indiferente – em conflitos externos para aumentar a sua popularidade interna, o que pode resultar em choques armados ou intervenções interestatais. Não são menos relevantes as ameaças provenientes do meio externo. A América do Sul corresponde hoje, não só a um dos maiores reservatórios de água potável, petróleo ou gás natural, mas também à uma região de extraordinária biodiversidade, abrigando um enorme contingente de espécies da fauna e flora. Entretanto, grande parte desses recursos biológicos estão inseridos na região da Floresta Amazônica que, além de ser um território com um histórico de reinvindicação internacional, caracteriza-se por ser uma área fronteiriça, pouquíssimo povoada e de difícil fiscalização, em virtude da sua dimensão e da ausência de 59 infraestrutura para circulação. Não é sem razão o receio de grande parte dos países sulamericanos, em face da cobiça internacional por recursos naturais 67 , o que poderia caracterizar um novo imperialismo. O fato é que a região enfrenta ameaças tradicionais, interestatais, multidisciplinares e transnacionais, que – tratadas pela via militar ou não – demandam mecanismos legítimos de cooperação entre os países. Ocorre que, a despeito da retórica da imprescindibilidade de se construir uma agenda de segurança e defesa regional, os países e as próprias instituições são bastante receosos em retirar das mãos do Estado nacional o monopólio do uso da força frente a intervenções externas68. Em verdade, no contexto do Sistema Interamericano, não existe sequer a possibilidade de delegar parte da atividade militar a um organismo internacional, porque inexiste a estruturação de um “braço armado” hemisférico, associado à OEA, ou mais regionalmente à UNASUL, nos moldes da OTAN e do ideal de defesa coletiva. Quando a discussão vem à tona, a posição dominante, incluindo a defendida pelo Brasil, é no sentido de que a Junta de Defesa Interamericana (JID) e o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) devem manter-se como fóruns de debate e mecanismos de assessoramento técnico-militar sem assumir efetivamente funções operacionais (PAGLIARI, 2006, p. 39). A ideia é justamente a de que os países devam sobreviver como unidades políticas soberanas e independentes e que, a despeito das possibilidades de cooperação, a segurança nacional e a sobrevivência do Estado devem ser questões para as quais as Forças Armadas de cada país devem estar constantemente preparadas. Por esse motivo os países da região têm optado por dirimir suas controvérsias e gerir as ameaças transnacionais por meio de acordos bilaterais e multilaterais, desprestigiando a atuação dos mecanismos de coordenação préestabelecidos. Até porque, o sistema interamericano não adaptou seus mecanismos coletivos às “novas ameaças” e à segurança multidimensional, embora tenha formalmente reconhecido a existência de ambas. O que se verifica hoje, em termos de instituições cooperativas no continente americano, é um grande gap entre as demandas em termos de segurança e uma estrutura 66 Para maiores informações sobre a política americana adotada para a região, ver (FERREIRA, 2010). David Harvey engloba dentro da definição de “novo imperialismo” a exploração violenta ou coercitiva de recursos naturais com enfoque para a exploração de petróleo no Oriente Médio. Segundo ele, muitas das intervenções políticas seriam motivadas por interesses puramente econômicos das grandes potências. (HARVEY, 2004). 68 “Cada Estado tem o direito soberano de identificar suas próprias prioridades nacionais de segurança e definir as estratégias, planos e ações para fazer frente às ameaças à sua segurança […]”. dispositivo veio expresso na lista dos “enfoques compartilhados e valores comuns”, elaborada por ocasião da Conferência Especial de Segurança, promovida em 2003 pela OEA. 67 60 supostamente isonômica e representativa. Embora a Organização dos Estados Americanos tenha incorporado em seu discurso a transnacionalidade e a multidimensionalidade, não se fixou um plano efetivo de ação conjunta e não há sequer uma convergência de ideias e expectativas entre os países do continente (PAGLIARI, 2006, p. 32). Mesmo no âmbito da União das Nações Sul Americanas, a assimetria econômica, política e social, constitui um problema real (CEPIK, 2010, p. 68). A amplitude da agenda estratégica reforça a necessidade de readequação das instituições hemisféricas, uma vez que, enquanto existirem tamanhas disparidades em termos de capacidade e poder – econômico, militar e político – dificilmente as nações sentir-se-ão encorajadas a priorizar posturas estratégicas organizacionais e adotar, efetivamente, mecanismos de tomada de decisão conjunta, em detrimento da autonomia estatal. Volta-se ao dilema do prisioneiro e às inseguranças oriundas da ampla possibilidade de deserção. De um lado as potências menores, com base em dados históricos, assumem que em questões de segurança os países poderosos acabam cooperando na medida em que lhes é conveniente69. Do outro, em uma reação que tende a ser diminuída em virtude da influência exercida pela mídia e pela opinião pública, as grandes potências dificilmente abrem mão do seu interesse nacional, única e exclusivamente, a fim de evitar um descontentamento entre os seus “parceiros” menores. Não bastasse, a forte presença estadunidense no âmbito das instituições regionais constitui um grande paradoxo, visto que, ao mesmo tempo em que fomentou a criação destas estruturas, torna-se hoje um dos principais fatores de desconfiança e receio por parte dos demais países. A grande preocupação, fundamentada em dados históricos, consiste na possibilidade de desvirtuação dos objetivos das instituições internacionais que, muitas vezes, acabam atuando como legitimadoras dos interesses particulares dos países mais poderosos, no caso, os Estados Unidos. 69 Não se pretende exagerar o potencial desertor das grandes potências, haja visa a existência de casos de sucesso em matéria de cooperação regional, a exemplo da OTAN. No entanto, a afirmação é corroborada pelo recentíssimo contexto de uma possível invasão americana à Síria que, em um primeiro momento, desconsiderou completamente a estrutura de segurança internacional promovida pela Organização das Nações Unidas 61 4 INSTRUMENTOS MULTILATERAIS DE SEGURANÇA NAS AMÉRICAS El año 2000 nos va a sorprender unidos o dominados. (General Juan Domingo Perón, quando defendera, nos anos 50, a criação de um mercado comum à Argentina, Brasil e Chile, BANDEIRA, 2003, p. 516) O tradicional conceito de segurança baseado nas visão estratégico-militar, foi gradualmente expandido, também no continente americano, em sintonia com um processo que vinha – e ainda vem – desenvolvendo-se em nível mundial. Os Estados americanos, no âmbito das mais variadas organizações, mundiais e regionais, e, mesmo nos acordos e tratados firmados bilateralmente acabam desenvolvendo uma agenda de segurança comum que, embora não abarque a totalidade de cada uma das preocupações particulares – acaba incluindo temas extremamente relevantes, como os direitos humanos, a defesa da democracia, o terrorismo, o narcotráfico, entre tantos outros, já trabalhados no capítulo anterior. Assim é que uma série de instituições são pensadas, ou repensadas, com o intuito de responder multilateralmente às ameaças que assumem cada vez mais um caráter transnacional. Para fins deste trabalho o Sistema Interamericano deverá ser compreendido como um processo histórico que se desenrola desde o fim do século XVIII e início do século XIX, com a independência das ex-colônias europeias no continente, mas que apenas alcança uma verdadeira institucionalização a partir do fim da Guerra Fria e o estabelecimento de importantes mecanismos multilaterais. Nesta seção propõe-se um apanhado histórico que culmina na atual conjuntura das principais instituições hemisférica voltadas para a segurança internacional. 4.1 A ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS – OEA O regionalismo no continente americano, interpretado tanto como uma expressão da identidade regional, como uma tentativa de institucionalização desta identidade (FAWCETT, SERRANO, 2005, p. 27), data do movimento das independências, iniciado no fim do século XVIII, com a libertação dos Estados Unidos da América. Já em 1823, em uma mensagem ao propondo-se a atuar isoladamente e independentemente de qualquer autorização. 62 Congresso Nacional o quinto presidente norte-americano, James Monroe, apresentou um conjunto de ideias que ficaria conhecido como “Doutrina Monroe” 70, baseado no lema “a América para os americanos”. Basicamente, a proposta visava garantir a autonomia dos Estados americanos, afastando a incidência de possíveis excursões colonizadoras, bem como o alcance do expansionismo europeu ao continente, além de comprometer-se com a nãointervenção dos Estados Unidos em guerras que pudessem ocorrer entre as antigas metrópoles 71 . Entretanto, apenas em 1888, ante a existência de instabilidades regionais, o Congresso de Washington autorizou que os Estados Unidos convocassem os demais Estados americanos para celebrar uma conferência com o intuito de “discutir e recomendar aos respectivos governos a adoção de um plano de arbitragem para a solução de desacordos e questões que possam ocorrer futuramente entre eles”, dando início a uma série de encontros denominados de Conferências Internacionais Americanas ou Panamericanas (ARRIGHI, 2004, p. 12). A doutrina Monroe foi assim, evoluindo gradualmente, firmando-se como uma marca da política e, sobretudo, do discurso estadunidense para a região, contribuindo para a institucionalização da identidade regional, por meio de um verdadeiro protótipo do que viria a o Sistema Interamericano (FAWCETT, SERRANO, 2005, p. 30). Já na Primeira Conferência – ocorrida na cidade de Washington entre outubro de 1889 e abril de 1990, com claro enfoque estadunidense na promoção das interações comerciais na região 72 e, em contrapartida, um clamor político das Repúblicas latino-americanas pelo reconhecimento de ameaças externas – iniciou-se um processo de materialização de uma rede de normas e instituições regionais com o intuito de garantir a paz e a estabilidade 70 Ver HOBSBAWM, 1988, p. 101, nota de rodapé. A doutrina, desenvolvida em 1823 e repetida de forma subsequente pelos governos americanos, expressa a hostilidade frente a qualquer nova tentativa de colonização ou intervenção política pelas potências europeias no hemisfério ocidental. Foi introduzido o significado, posterior, de que os Estados Unidos seriam o único governo autorizado a interferir em qualquer lugar do hemisfério. É importante ressaltar que a Doutrina Monroe, embora marcada por um viés extremamente intervencionista, não fez uso de instrumentos militarias, diferentemente do Corolário Roosevelt, de 1904 (PAGLIARI, 2009, p. 89) 71 Segundo Souto Maior, “em 1823, ao enviar sua famosa mensagem ao ongresso americano, o presidente James Monroe assumiu unilateralmente a posição de patrono das Américas. Surgia assim o pan-americanismo, uma forma de regionalismo paternalista que, na época, oferecia vantagens circunstanciais aqueles países do continente que ainda lutavam por afirmar sua independência recente em relação às metrópoles europeias”. (SOUTO MAIOR, 2006, p. 51). 72 A Primeira Conferência Internacional Americana foi promovida "com o objetivo de discutir e recomendar para adoção dos respectivos governos um plano de arbitragem para a solução de controvérsias e disputas que possam surgir entre eles, para considerar questões relativas ao melhoramento do intercâmbio comercial e dos meios de comunicação direta entre esses países, e incentivar relações comerciais recíprocas que sejam benéficas para todos e assegurem mercados mais amplos para os produtos de cada um desses países". Disponível em <http://www.oas.org/pt/sobre/nossa_historia.asp>. Acesso em 15 set 2013. Alguns autores são ainda mais enfáticos quanto aos interesses puramente comerciais dos Estados Unidos na América Latina, no momento da realização da Primeira Conferência Americana. Sepúlveda afirma que “sus aspiraciones eran concretas y 63 hemisféricas. No decorrer das décadas subsequentes a ideia de solidariedade, não intervenção e solução pacífica dos conflitos foi gradativamente incorporada na cultura internacional das Américas73. Ou seja, por meio das Conferências Americanas, de alguma forma, a OEA – ou o que viria a ser a organização – já atuava, pois mesmo “antes de nascer juridicamente, a organização já existia como um fato” (A IGHI, 2004, p. 7; SEPÚLVEDA, 1974, p. 15-23). No mesmo contexto histórico, em 1824, o então presidente da Grã-Colômbia74, Símon Bolivar enviou uma carta aos recém-independentes governos latino-americanos: México, América Central, Províncias do Rio do Prata, Chile e Brasil, convidando-os a participar de uma reunião com o intuito de criar uma “confederação de Estados”, capaz de se proteger mutuamente de agressões externas e preservar a paz entre os países membros (ARRIGHI, 2004, p. 8; SEPÚLVEDA, 1974, p. 19). O Congresso do Panamá terminou em julho de 1826 – sem a presença das delegações do Brasil, Chile e Províncias do Rio do Prata – com a assinatura do Tratado de União, Liga e Confederação Perpétua entre os Estados participantes, estabelecendo um acordo de defesa mútua e assistência recíproca. A introdução dos princípios da solidariedade e da segurança coletiva regional remonta, portanto, aos primeiros anos do movimento panamericano (SHAW, 2004, p. 44). Embora nunca tenha entrado em vigor, o tratado inaugurou uma postura cooperativa interamericana, constituindo a pedra angular de um sistema que seria gradativamente construído com base em acordos, tratados e instituições multilaterais. Ainda no que concerne à influência dos Estados Unidos na consolidação de uma identidade hemisférica, em 1904, como resposta a uma tendência de reaproximação recíproca entre Espanha e as ex-colônias ibéricas – movimento que tornou-se conhecido como hispanismo – o presidente norte-americano Theodore Roosevelt foi incisivo ao reafirmar as premissas herdadas pela Doutrina Monroe. Convencionalmente chamada de Corolário Roosevelt, a postura estadunidense, deu ainda mais ênfase, tanto à autonomia do continente, específicas: buscar mercado a sus produtos y proteger sus inversiones” (SEPÚLVEDA, 1974, p. 22). 73 Especialmente no que concerne à América do Sul, Herz atenta para a existência de duas importantes doutrinas do Direito Internacional que se desenvolveram e contribuíram para limitar o poder de intervenção dos Estados Unidos e da Europa na porção meridional das Américas. A primeira destas correntes doutrinárias, conhecida como Doutrina Calvo, em homenagem ao diplomata argentino Carlos Calvo, afirmava que os Estados não estariam autorizados a utilizar a força para cobrar dívidas devidas por outras nações ou indivíduos e reafirmava, assim, os princípios da imunidade soberana e da isonomia entre os Estados nacionais, ambos presentes na estruturação de ambas as organizações regionais estudadas neste trabalho. A segunda, Doutrina Drago, em homenagem ao também diplomata argentino, Louis Maria Drago, reafirmava a Doutrina Calvo e ainda declarou que a dívida pública não justificaria a intervenção armada ou a ocupação do território das nações americanas (HERZ, 2008, p. 4). Monica Serrano e Louise Fawcett, atentam para o fato da Doutrina Calvo não ter sido efetivamente aplicada fora do âmbito da América Latina, sequer pelo Direito Internacional. (FAWCETT, SEERANO, 2005, p. 34). 64 quanto a competência exclusiva dos Estados Unidos para atuar com legitimidade nas hipóteses de intervenção, com base em um suposto poder político internacional (FAWCETT, SERRANO, 2005, pp. 33-34). O posicionamento do governo norte-americano, entretanto, foi extremamente refutado pelo maioria dos países latino-americanos que temiam ver o antigo poder europeu transferido para a política do “big stick”. A partir deste momento, identificamse dois fluxos contraditórios e simultâneos, a visão monroísta – objeto desta seção – no sentido de uma lenta e contínua integração hemisférica, e o segundo – que será estudado posteriormente – caracterizado pela crescente desconfiança, especialmente dos países sulamericanos, em relação aos Estados Unidos, o que impulsionaria a criação de mecanismos regionais mais restritos (SOUTO MAIOR, 2006, p. 52). A despeito do suposto descontentamento com a política intervencionista dos Estados Unidos, a promoção das Conferências persistiu por mais de meio século (1890 – 1948), sobrevivendo às duas grandes Guerras Mundiais e às modificações provocadas no Sistema Internacional. Isso significa, em outros termos, que o incipiente Sistema Interamericano vivenciou os “anos de ouro” do conceito de segurança nacional – baseado nas premissas do realismo clássico – e, posteriormente, acabou por adotar a ideia de segurança coletiva, nos períodos imediatamente posteriores às guerras internacionais75. Dentre as Conferências Internacionais Americanas, destaca-se a Oitava, ocorrida em dezembro de 1938, em meio a exaltação dos nacionalismos europeus e ante a iminência de um conflito interestatal no “Velho Mundo”. Hemisfério encontro resultou na proclamação da “Unidade do cidental”, na instituição das “ euniões de onsultas de Ministros das elações Exteriores”76 com objetivo de traçar estratégias continentais e na aprovação da “Declaração 74 Atualmente Colômbia, Equador, Panamá e Venezuela. Conforme analisado no segundo capítulo, ambos os conflitos mundiais foram sucedidos por uma espécie de euforia da teoria liberal baseada na ideia de que o realismo não fora capaz de explicar os acontecimentos internacionais. Assim é que, por duas vezes, os países engajaram-se – de forma sincera ou não – em mecanismos multilaterais pautados na ideia de segurança coletiva e com o intuito de evitar uma reprodução do passado recente, à época. Entretanto, não é sem sentido mencionar que, em relação à primeira das instituições criadas, ou seja, a Liga das Nações, a própria Segunda Guerra Mundial serviu para expor as deficiências e falhas apresentadas pelo liberalismo, quiçá demasiado utópico, empregado na cunhagem da segurança coletiva. No mesmo sentido, a Organização das Nações Unidas, instituição multilateral pós-Segunda Guerra, embora possa se basear e adotar em sua carta constituinte princípios liberais, opera com um cunho inegavelmente realista, visto que o próprio Conselho de Segurança acaba reproduzindo a distribuição de poder mundial. Não se pretende, com isso, invalidar o conceito de segurança coletiva, muito pelo contrário. A análise objetiva trazer a lume as principais inconsistências de um sistema que se pretende cooperativo e multilateral, identificando pontos que precisam ser superados para que o viés coletivo não fique restrito ao campo da retórica. 76 O sistema de consultas, desenvolvido na Conferência de Consolidação da Paz, em Buenos Aires, 1936, consiste fundamentalmente, na possibilidade de, ante a iminência de uma intervenção extracontinental, ou qualquer outro evento que se caracterize como urgente para a agenda de segurança dos países, os governos americanos possam consultar-se entre si a respeito das medidas adequadas ao reestabelecimento da paz e a 75 65 dos Princípios da Solidariedade das Américas”, solidificando a ideia de solidariedade continental em face de intervenções ou ameaças externas 77 . Mais do que nunca, estavam criadas as bases necessárias para a formalização da Organização dos Estados Americanos (OEA). A deflagração da Segunda Guerra Mundial contribuiu para a união de praticamente todo o continente americano em um mecanismo de segurança mútua, frente a identificação de um inimigo comum, e, entre 1939 e 1942, os ministros das Relações Exteriores se reuniram em três oportunidades: no Panamá, em 1939, em Cuba, em 1940 e no Brasil em 1942, com o intuito de debater a situação dos países americanos no contexto do conflito que tomava proporções mundiais (HERZ, 2008, p. 5). É ainda nesse contexto, que surge a Junta Interamericana de Defesa (JID), em 1942, com o intuito de “preparar gradualmente as epúblicas Americanas para a defesa do continente através da realização de estudos e recomendar as medidas para este fim” 78. A JID foi projetada com o propósito de servir como órgão consultivo da OEA, nos moldes de um comitê internacional que desenvolveria abordagens cooperativas e posturas comuns em matéria de defesa e segurança hemisférica. Em que pese a existência de controvérsias quanto à inclusão da junta como órgão da OEA, bem como quanto à efetiva utilidade deste mecanismo na promoção da segurança hemisférica, a JID continua ativa em relação aos fins para os quais foi proposta, quais sejam: a construção de uma agenda comum, por meio do debate e da intensificação das relações interestatais. Em 1945 no México, após o término do conflito, realizou-se a Conferência Interamericana sobre os Problemas da Guerra e da Paz, ou simplesmente Conferência de Chapultepec. Na ocasião foram instituídos três importantes documentos: um tratado de assistência recíproca; a constituição básica de uma organização regional e um tratado para coordenação e consolidação de um consenso sobre a solução pacífica das controvérsias, com o escopo de reforçar o Sistema Interamericano até transformá-lo em uma organização regional, integrada com uma futura instituição mundial (ARRIGHI, 2004, pp. 17-18; SEPÚLVEDA, 1974, p. 29). Posteriormente, por ocasião da Conferência Internacional para a Manutenção da Paz e da Segurança Continental, promovida no Rio de Janeiro em 1947, tornaram-se permanentes as decisões temporárias da Ata de Chapultepec para a defesa solução pacífica dos conflitos. As reuniões de consulta foram continuamente usadas no âmbito do Sistema de Defesa Interamericano, proporcionando a consolidação de uma série de novos princípios, instituições e mecanismos cooperativos, de acordo com as demandas apresentadas pelos líderes governamentais (SEPÚLVEDA, 1974, pp. 30-32). 77 Disponível em <http://www.rbjid.com/sistinteramericano1.asp>. Acesso em 16 set 2013. 78 Idem. 66 hemisférica, tendo sido, nesta mesma ocasião, assinado o Tratado Internacional de Assistência Recíproca (TIAR), confirmando os objetivos ali proclamados. Por meio do tratado, as nações concordavam em adotar o princípio da segurança e autodefesa coletivas, comprometendo-se a agir conjuntamente em caso de agressão ou ameaça externa ao território, soberania e independência de qualquer um dos Estados membros, assim como em definir ações conjuntas no caso de um conflito entre dois países signatários do tratado. Embora a JID e o TIAR sejam atualmente considerados incluídos no grande sistema que é a OEA, é importante mencionar que os dois primeiros mecanismos são anteriores à instituição da organização. Somente em 1948, na Nona Conferência Internacional Americana, sucedida em Bogotá, a organização foi oficialmente formalizada, por meio da assinatura da Carta da Organização dos Estados Americanos, programada para implementar a segurança coletiva e a resolução de controvérsias com base nos mecanismos de consulta diplomática. Foram assinados, na mesma oportunidade, outros dois importantes documentos regionais: o Tratado Americano de Soluções Pacíficas, conhecido como Pacto de Bogotá, e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, adotada meses antes da Declaração Universal. A OEA tornou-se, assim, o primeiro organismo regional a cumprir a realização dos princípios contidos nos artigos 51 e 52, do Capítulo VIII, da Carta das Nações Unidas 79, que determinam que as organizações regionais devem auxiliar o processo de resolução pacífica de conflitos e que o seu papel na imposição da paz está subordinado ao Conselho de Segurança da ONU (HERZ, 2008, p. 5). O fato é que a Carta da OEA moldou um amplo quadro institucional, sistematizando em um só documento as antigas aspirações do Sistema Interamericano, iniciado com as Conferências Internacionais Americanas nos idos de 1889. O Tratado Americano de Soluções Pacíficas, por exemplo, obriga a resolução das controvérsias interestatais por meios pacíficos, ou seja, com espeque na mediação e nos bons ofícios, na investigação e conciliação, na arbitragem e, como último recurso, submetendo-as à Corte Internacional de Justiça, quando 79 “Art. 51 - Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer momento, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais. Art. 52 - Nada na presente Carta impede a existência de acordos ou de organizações regionais destinados a tratar dos assuntos relativos à manutenção da paz e da segurança internacionais que forem susceptíveis de uma ação regional, desde que tais acordos ou organizações regionais e suas atividades sejam compatíveis com os objetivos e princípios das Nações Unidas. [...]”. Disponível em <http://www.oas.org/dil/port/tratados_A- 67 não puderem ser dirimidas por outros meios (ARRIGHI, 2004, p. 20). Em breves palavras, a OEA foi estabelecida tendo dentre os seus propósitos essenciais a garantia da paz e da segurança continentais. Tendo sido orginalmente composta por 21 membros, a organização expandiu-se ao ponto de todos os Estados americanos – com exceção de Cuba, excluída em 1962 – terem ratificado a Carta (PAGLIARI, 2006, p. 29), consolidando-se como o mecanismo multilateral de maior abrangência hemisférica. Por óbvio a estrutura da organização não permaneceu a mesma desde 1948 até os dias atuais. As mudanças sistêmicas e a incorporação de novas funções aos organismos multilaterais implicaram a realização de quatro reformas na Carta da OEA, chegando ao texto atual, que regula a estrutura da organização. Antes de mais nada é imperioso mencionar uma peculiaridade em relação à estruturação formal da organização, muito bem abordada por Jean Arrighi: o fato de a OEA contar com mais de uma carta em vigor. Explica-se: a Carta original da organização “prevê que as reformas entram em vigor quando ratificadas por dois terços dos Estados membros [...] mas só obrigam os países que completaram o processo de ratificação (conforme os arts. 140 e 142 da arta)” (A IGHI, 2004, p. 23). A opção pode ter sido bem intencionada, no sentido de impedir que os países optassem pela deserção em face de uma proposta de reforma que não lhes agradasse. Entretanto, na prática o que se tem é uma “mesma organização regida por diferentes artas constitutivas, conforme o Estado membro e de acordo com as obrigações que este tenha ou não aceito” (A IGHI, 2004, p. 23). Tal característica, por si só, dificulta em muito a consolidação de um regime de segurança, uma vez que este seria marcado pela padronização dos procedimentos de tomada de decisão e pela convergência das expectativas do Estados membros. Entretanto, a maior parte dos princípios se manteve intacta – ainda que restrita ao âmbito formal – desde a criação da instituição até os dias atuais. É o caso, por exemplo, do disposto no artigo 3º da Carta, que prevê entre outras coisas: (i) o respeito à personalidade, soberania e independência dos Estados; (ii) a não ingerência nas questões políticas, econômicas e sociais; (iii) a segurança coletiva; (iv) a resolução pacífica de conflitos; (v) a proteção aos direitos humanos. Além disso, o texto normativo repudia o uso da força, exceto em hipótese de legítima defesa (Artigo 22); adota o princípio da inviolabilidade do território nacional (Artigo 21); estabelece a igualdade de direitos e deveres aos Estados (Artigo 10); bem como a proibição da intervenção em território estrangeiro (Artigo 19). De forma bastante resumida, pode-se dizer que o processo de tomada de decisões da 41_Carta_da_Organização_dos_Estados_Americanos.htm#ch9>. Acesso em 22 set 2013. 68 OEA se estrutura em torno de um conceito básico das Relações Internacionais: soberania. Isso porque a instituição adota o princípio do one country, one vote80, enfatizando a isonomia entre os Estados, sobretudo ao eliminar a prerrogativa do poder de veto que, em outros casos81, vai de encontro à igualdade proclamada pelas instituições. Assim é que, a Assembleia Geral – composta por delegações enviadas pelos países membros – em reuniões anuais, decide sobre as políticas da organização, as funções e estruturas dos diferentes órgãos e elabora recomendações aos Estados americanos, levando em consideração a opinião expressa por cada um dos membros presentes. Em hipóteses de grande urgência poderá ser convocada uma Reunião de Ministros das Relações Exteriores, com amparo tanto no artigo 61 da Carta da OEA82, quanto no artigo 6º do TIAR83, lembrando que no caso de invocação do TIAR, as disposições deste tratado regularão o processo decisório do qual somente serão partes os Estados signatários (HERZ, 2008, p. 6). Nesse sentido, pode-se dizer que a OEA e o TIAR funcionam – ou pelo menos, deveriam funcionar – como os pilares da segurança hemisférica. A JID, por sua vez, atua como órgão consultivo da organização, desenvolvendo estudos nas áreas de defesa e segurança com o intento de facilitar a adoção de posturas comuns dentre os países membros. Ocorre que, em harmonia com o movimento que se desenvolveu no âmbito mundial – conforme estudado no capítulo anterior – o hemisfério americano vivencia uma ampliação do conceito tradicional de segurança, para abarcar as “novas ameaças”, especialmente aquelas oriundas de atores não estatais. Por consequência, a nova configuração das relações de segurança desencadeou um processo de reestruturação da agenda de segurança também na esfera regional (PAGLIARI, 2009, p. 92). Sobretudo com o fim da Guerra Fria, a região perde a referência do “inimigo externo comunista” como elemento de coesão e o arrefecimento da 80 “Artigo 56 – Todos os Estados membros têm direito a fazer-se representar na Assembleia Geral. Cada Estado tem direito a um voto”. Idem. 81 O Conselho de Segurança da ONU é um claro exemplo de um mecanismo institucional que se pretende igualitário mas que, na prática, reproduz as assimetrias existentes entre os países. 82 “Artigo 61 – A Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores deverá ser convocada a fim de considerar problemas de natureza urgente e de interesse comum para os Estados americanos, e para servir de Órgão de Consulta”. Disponível em <http://www.oas.org/dil/port/tratados_A41_Carta_da_Organização_dos_Estados_Americanos.htm#ch9>. Acesso em 22 set 2013. 83 “Artículo 6º - Si la inviolabilidad o la integridad del territorio o la soberanía o la independencia política de cualquier Estado Americano fueren afectadas por una agresión que no sea ataque armado, o por un conflicto extra continental o intracontinental, o por cualquier otro hecho o situación que pueda poner en peligro la paz de América, el Organo de Consulta se reunirá inmediatamente, a fin de acordar las medidas que en caso de agresión se deben tomar en ayuda del agredido o en todo caso las que convenga tomar para la defensa común y para el mantenimiento de la paz y la seguridad del Continente”. Disponível em <http://www.oas.org/juridico/spanish/tratados/b-29.html>. Acesso em 22 set 2013. É importante destacar que, detectada uma situação de ameaça à segurança hemisférica, tanta a Carta da OEA, quanto o TIAR podem ser invocados, não havendo nenhuma norma que estabeleça uma prioridade entre um e outro. (HERZ, 2008, p. 11). 69 bipolaridade sistêmica ocasiona a pulverização do compartilhamento das percepções acerca das ameaças. Atentos ao alargamento do conceito e à fragmentação das percepções particulares relativas à segurança de cada país, os países no âmbito da OEA promoveram uma série de discussões com o intento de impulsionar a readequação da instituição. Ainda nesse sentindo, iniciou-se em 1994, à margem da OEA e sob a alegação de que a organização encontrava-se em defasagem quanto às novas características do Sistema Internacional, o processo de reunião das Cúpulas de Chefes de Estado e Governo das Américas. Nos sucessivos encontros, intercalava-se com as tradicionais questões de segurança a necessidade de difundir instituições e princípios intimamente ligados à promoção da paz, sobretudo o estabelecimento de regimes democráticos e o fortalecimento da confiança mútua. Somente a partir da III Cúpula, a OEA assume a responsabilidade pelos encontros e a discussão acerca da necessidade de uma reforma estrutural é retomada (PAGLIARI, 2009, pp. 94-95). Convém mencionar, ainda, a implementação das Conferências Ministeriais de Defesa das Américas (CMDAs) no âmbito da OEA, uma iniciativa norte-americana proposta na I úpula das Américas, com o intuito de “garantir, defender e solidificar os princípios democráticos na região” ( LIVEI A, 2012, p. 68). onforme bem ressaltado por Ana Paula Lage de Oliveira, As CMDAs tomaram significado crescente, de 1995 a 2010, tendo sua relevância relacionada ao contexto do fim da Guerra Fria e dos regimes militares na América do Sul e Central e, principalmente, devido ao incremento considerável das questões transnacionais e da ameaça do terrorismo, a partir dos eventos de 11 de setembro de 2001, e na precária, porém insistente, tentativa de tomada de soluções conjuntas, integradas, nas quais os países poderiam, cooperativamente, obter vantagens. Os principais temas em pauta nos nove encontros ocorridos até 2010 refletem uma dinâmica evolutiva que acompanha a do sistema interamericano e internacional adicionando-se à sua discussão o desafio inerente ao multilateralismo e as mudanças que o campo da segurança e da defesa observaram com as ‘novas ameaças’. (OLIVEIRA, 2012, p. 74). Em suma, as CMDAs funcionam, ainda hoje, como espaços de debate e aperfeiçoamento da cooperação, voltados para a promoção do “conhecimento recíproco e o intercâmbio de ideias no campo da defesa e da segurança”, por meio da “adoção de novas medidas de confiança e segurança que mantenham a paz e fomentem níveis crescentes de 70 cooperação e transparência nos assuntos de segurança e defesa hemisférica” ( EA, 2000)84. A atuação das CMDAs tem sido de suma importância para a contínua readequação do conceito de segurança adota pela organização, às “novas ameaças” 85 – incluindo temas como terrorismo, segurança humana, segurança energética, narcotráfico, pobreza, problemas migratórios – contribuindo para manter a OEA em paridade com as demandas contemporâneas. Assim é que, em decorrência da V CMDA, em novembro de 2002, já no pós-11 de setembro, adota-se a concepção de que a agenda de segurança hemisférica deveria se caracterizar por uma “arquitetura flexível”, abrangendo as peculiaridades dos espaços mais remotos do continente americano (PAGLIARI, 2009, p. 96). A percepção das mudanças oriundas da intensificação do fenômeno da globalização foram expressamente assumidas pela OEA na Conferência Especial de Segurança de 2003, onde adotou-se o já trabalhado conceito de segurança multidimensional, agregando as “antigas” e “novas” ameaças à segurança internacional. Os atentados terroristas de 11 de setembro parecem ter não só chamado a atenção para a imprescindibilidade de um mecanismo efetivamente multilateral, como meio de resposta às instabilidades transnacionais, mas, sobretudo, à impossibilidade de erradicar a tradicional abordagem da segurança, centralizada nas questões territoriais e na ameaça por meio da força. Por esse motivo, a mudança advinda dos ataques terroristas apresentou um desafio tanto à abordagem clássica da segurança nacional – uma vez que desloca o foco das ameaças das relações interestatais para as interações entre Estados e atores não estatais –, bem como aos defensores da ampliação do conceito, visto que traz a questão da violência política de volta para o centro das questões de segurança (BUZAN, HANSEN, 2009, p. 227). De fato os atentados terroristas significaram um ato de guerra, embora não previsto pelas normas internacionais86, elevando consideravelmente o nível de insegurança na cena 84 Disponível em <http://www.oas.org/csh/portuguese/docminist00.asp>. Acesso em 22 set 2013. A análise evolutiva do conceito de segurança trabalhado na seção 2.3., do 2º capítulo, é perfeitamente aplicável à lógica da OEA, uma vez que, no decorrer de toda a Guerra Fria grande parte dos países americanos adequaram-se à bipolaridade sistêmica, em um alinhamento, quase que unânime à política externa norteamericana. Em consonância com o movimento que se desenrola no nível mundial com o fim da ameaça comunista, também nas Américas a doutrina de segurança hemisférica ditada pelos Estados Unidos começa a ser questionada, bem como a interpretação da segurança apenas em termos estratégico-militares, o que acarretou em uma diminuição em termos de relevância no papel da OEA. Os países passaram a perceber o surgimento de novas ameaças e a procurar alianças menos abrangentes, bilaterais e multilaterais ad hocs, com o intuito de tratar mais incisivamente os focos de insegurança nacional e regional. 86 Segundo Buzan e Hansen: “What kind of war was this given that one side was a non-state actor (Betts, 2002; Nacos, 2003; Barkawi, 2004; Howard, 2006), and was it a good idea to frame it as a ‘war’ at all (Andreani, 2004/5)? Who was the enemy, what kinds of strengths and weaknesses did ‘terrorism’ have, and how was it to be understood (Hellmich, 2005; Neumann and Smith, 2005; Abrahms, 2006; Cronin, 2006; Enders and Sandler, 2006; Kydd and Walter, 2006)?”(BUZAN, HANSEN, 2009, p. 231). 85 71 internacional (BANDEIRA, 2003, p. 600). A partir desse momento os Estados Unidos assumem o papel de garantidores da paz e da segurança no Sistema Internacional, justificando sua política externa – muitas vezes agressiva – sob o discurso de uma “guerra ao terror”87. Pode-se dizer que a batalha contra o terrorismo passa por um intenso processo de securitização, traduzido, principalmente, na proclamação de um duelo entre o “bem e o mal”, onde a luta contra o mal legitimaria o emprego da força armada e o intervencionismo no Sistema Internacional88. Em verdade, as transformações oriundas do desastre e da posterior invasão ao Iraque são ainda mais profundas: retoma-se a valorização das premissas realistas e à supremacia da sobrevivência estatal que, embora nunca tenha sido abandonada, parece ter passado por uma fase de subestimação nas agendas políticas dos Estados nacionais. Entretanto, quando vêm à tona as verdadeiras motivações da invasão ao Iraque, ressaltando a extrema versatilidade e amplitude da “guerra ao terror”, o discurso estadunidense perfaz, novamente, um deslocamento de enfoque. A invasão passa a ser justificada não em virtude da defesa do território norte-americano – uma vez que não foram encontradas as tais armas de destruição em massa – mas sim, da segurança humana da população local (BUZAN, HANSEN, 2009, p. 244). Mas uma vez percebe-se como o emprego do conceito de segurança pode ser utilizado como um recurso estratégico dos Estados. No entanto, apesar da modernização do conteúdo material relativo ao conceito de segurança, o que se observa, no âmbito da OEA como um todo, incluindo nesta visão os mais diversos mecanismos multilaterais – JID, TIAR, CMDAs, entre outros – é uma obsolescência da estrutura operacional deste sistema. A despeito dos inúmeros apontamentos acerca da necessidade de modernização da organização, não houve, efetivamente, a adoção de um plano cooperativo (PAGLIARI, 2009, p. 97). Em verdade, a partir das décadas de 1970 e 1980 a OEA diminuiu consideravelmente a sua atuação na esfera de segurança, tendo restringido o seu papel às medidas de construção de confiança recíproca, mas permanecendo como uma alternativa de diálogo acerca das questões fronteiriças e como um fórum de resolução pacífica de controvérsias. Pode-se dizer que a organização expandiu o seu campo de atuação sem, entretanto, intensificar ou robustecer a sua eficácia nos assuntos tradicionais. Por 87 Moniz Bandeira fala, inclusive, em uma “pax americana” imposta pela força das armas (BA DEI A, 2003, p. 618). 88 Quanto à “demonização” da ameaça terrorista, extremamente relevante o apontamento de Buzan e Hansen: “‘Terrorists’ were not legitimate opponents, but evil, sneaky, barbaric and irrational. Discursive approaches showed both how the actions on 9/11 were constituted as ‘terror’, ‘acts of war’ and ‘orchestrated’, rather than ‘accidents’ or ‘crimes’ committed by a few individuals, and what political consequences these subject constructions entailed” (BUZAN, HANSEN, 2009, p. 244). 72 consequência, persiste um desejo coletivo de redefinir o papel da organização, que pode ser observado não só pelos debates acerca do conceito de segurança mas, também, no clamor por uma maior transparência na gestão de recursos militares, na supervalorização da proteção à democracia e na ênfase dada às necessidades especiais dos pequenos Estados (HERZ, 2008, p. 16). O foco da organização parece recair sobre as medidas de construção de confiança e segurança mútua89, em um exercício de diplomacia preventiva. A Tabela 2, exposta a seguir, foi desenhada com o objetivo de sistematizar os principais mecanismos do sistema interamericano de defesa, o contexto no qual surgiram e as ameaças que visavam controlar: 89 Dentre os mecanismos de construção da confiança e segurança recíproca estabelecidos no âmbito da OEA, ressalta-se a notificação prévia sobre os exercícios militares, a troca de informações sobre as políticas de defesa nacional, a permissão de observadores estrangeiros nos exercícios militares nacionais, a cooperação transfronteiriça, o intercâmbio de informações sobre as forças armadas nacionais, a maior transparência em relação aos gastos militares, entre outros. (HERZ, 2008, p. 18). Também nesse sentido: “as medidas de fortalecimento da confiança permitem que o dilema de segurança seja mitigado e que seja reduzida a possibilidade da resposta automática ser a escalada do uso da força. Assim também possibilitam a comunicação e, por isso, a transparência e maior previsibilidade das ações dos atores envolvidos” (PAGLIA I, 2009, p. 94). 73 Tabela 2. Principais Mecanismos de cooperação hemisférica Período Principais Contexto Histórico Resposta continental Instrumentos Histórico Preocupações 1826 Consolidação Movimentos de da autonomia e Independência na e Confederação independência América Espanhola Perpétua Utilizados Congresso do Panamá Tratado de União, Liga dos Estados americanos 1942 Ameaças Expansão territorial Criação da Junta Declaração de externas à germânica, ápice da Interamericana de Assistência Recíproca segurança e Segunda Guerra Defesa (JID) e Cooperação (1940) e integridade dos Mundial Ata de Chapultepec Estados (1945). americanos 1947 Agressões Início da Guerra Fria, Tratado Estabelecimento de um externas e reconstrução do Interamericano de mecanismo de internas aos Sistema Internacional. Assistência Recíproca segurança coletiva – (TIAR). percepção solidária das Estados americanos 1948 ameaças. Ameaça à Organização das Organização dos segurança do Nações Unidas, Guerra Estados Americanos continente Fria, avanço do (OEA) Carta de Bogotá (1948) comunismo 1994 Novas Ameaças Pós-Guerra Fria Conferências Cúpula das Américas Ministeriais de de 1994, em Miami Defesa nas Américas (CMDAs) Fonte: Elaboração Própria Por derradeiro, em que pese a existência de críticas contundentes 90, em uma análise bastante objetiva91, e, talvez, apartada da realidade, poderíamos identificar a existência de um regime de segurança, com base nos elementos distinguidos por Krasner, uma vez que: (i) a abrangência da OEA comprova a existência de um conjunto de normas e princípios comuns; 90 As críticas ao Sistema Interamericano e à Unasul serão analisadas na última seção do capítulo, juntamente com as possibilidades de identificação de um regime de segurança. 91 Diz-se objetiva porque se pretende, neste momento, analisar apenas os requisitos caracterizadores dos regimes internacionais e a correlação destes com os propósitos dos mecanismos multilaterais estabelecidos no continente, sem levar em consideração as subjetividades incutidas nas relações interestatais e o fato das percepções dos Estados influenciarem no funcionamento das instituições. Essa análise subjetiva será realizada no último ponto deste terceiro capítulo com o intuito de identificar a existência, ou não, de um regime de segurança nas 74 (ii) há uma padronização do processo de tomada de decisões por meio da Assembleia Geral ou da Reunião de Ministros das Relações Exteriores e (iii) a atividade preventiva e consultiva da JID e o aumento da confiança recíproca decorrente da maior transparência conferida por estes mecanismos, proporcionaria uma convergência das expectativas dos Estados participantes. 4.1.1 Junta Interamericana de Defesa – JID A Terceira Reunião de Consultas de Ministros das Relações Exteriores, realizada na cidade do Rio de Janeiro em 1942, em decorrência do ataque japonês à Pearl Harbor, culminou na criação da Junta Interamericana de Defesa (JID), com o propósito de estudar e preparar gradualmente os Estados americanos para a adequada defesa do continente (SEPÚLVEDA, 1974, p. 52). Os governantes, preocupados com a desenfreada expansão territorial implementada pelo Terceiro Reich e ante a possibilidade de alastramento desta política para o além-mar, principalmente em relação às antigas colônias alemãs na América, passaram a enfatizar temas incipientes desde o movimento bolivarianista, como a segurança coletiva, a assistência recíproca e a solidariedade americana. Resta evidente a ideologia predominante à época, consubstanciada na necessidade de cooperação hemisférica, expressa em ocasião da Segunda Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, no ano de 1940, onde, por meio da Declaração XV, reiterou-se a crença em um sistema de "Assistência Recíproca e Cooperação Defensiva das Nações Americanas". O mecanismo funcionaria através do procedimento de consulta entre os Estados e da crença de que “um atentado de um Estado não americano contra a integridade ou inviolabilidade do território, soberania ou independência política de um Estado americano seria considerado como um ato de agressão contra todos”92. Com o mesmo intuito, em 1962, foi criado – já no âmbito da JID – o Colégio Interamericano de Defesa (CID), destinado à preparação de funcionários militares e civis “para ocuparem cargos de responsabilidade no hemisfério. Assim, estavam consolidados [tendo em vista a prévia vigência do TIAR e existência da OEA] os mecanismos Américas. 92 Consejo Permanente de la OEA / Comite de Seguridad Hemisférica. Disponível em <http://www.oas.org/csh/spanish/ncsdoc%20OEA%20y%20JID.asp>. Acesso em 25 jun 2013. A Declaração afirmava, ainda, que as Repúblicas do Continente se autoproclamam solidárias, até o ponto de que qualquer ameaça ou ataque a alguma delas constitui um ataque ou ameaça para todas. Que é indispensável a existência de um organismo militar permanente que estude e resolva os problemas que afetem o Hemisfério Ocidental. Que a Junta Interamericana de Defesa provou ser um organismo para o intercâmbio de pontos de vista, estudos de problemas e formulação de recomendações referentes à defesa do hemisfério, para fomentar uma estreita colaboração entre as forças militares, navais e aéreas das Repúblicas Americanas. 75 de segurança coletiva do sistema interamericano” (PAGLIARI, 2006, p. 30). As relações da JID com a OEA desenvolveram-se, por muito tempo, de forma bastante ambígua, em meio a pressões daqueles que pretendiam fazer dela um efetivo mecanismo de defesa coletiva93 e aqueles satisfeitos com a atuação da instituição restrita à promoção do debate e fortalecimento das medidas de confiança. Foi em meio a essa discussão que, em junho de 1945, elaborou-se um projeto para a criação de um organismo de defesa permanente, ou melhor, um “ onselho Militar Interamericano de Defesa”, conforme mencionado pela Resolução XVIII, da Ata de Chapultepec94. Entretanto, a pretensão encontrou forte oposição interna sob a alegação de que a presença de um corpo militar permanente dentro do sistema interamericano seria contrária aos princípios pacíficos defendidos pela instituição. Assim, a Junta Interamericana de Defesa permaneceu apenas como um órgão consultivo e de assessoramento técnico militar, de caráter exclusivamente recomendatório e não operacional, voltado para a legítima defesa coletiva (PAGLIARI, 2006, pp. 38-39)95. A discussão foi retomada em 2003 às vésperas da Conferência Especial de Segurança da Organização dos Estados Americanos, pelas delegações de Estados Unidos e Canadá. Ambos os países intentavam expandir as atividades da Junta em direção ao campo da segurança, transformando-a em uma espécie de “braço armado” do mecanismo de segurança hemisférica (AMORIM, 2004, p. 148). Mais uma vez a proposta foi refutada, corroborando a tese de que quando se trata da segurança nacional os países são extremamente relutantes em abdicar das suas Forças Armadas e confiar a sua sobrevivência a um organismo supranacional. entendimento dos países contrários à sugestão é o de que “os Estados precisam manter forças internas para ter capacidade de sobreviver como unidades soberanas independentes” (PAGLIA I, 2006, p. 39). Em outras palavras, os Estados estariam dispostos a cooperar impulsionados pela persecução dos interesses nacionais – no caso a sobrevivência– mas não a abrir mão da sua soberania e dos meios de autodefesa – que garantissem a segurança estatal independentemente dos mecanismos de cooperação –, justamente como lecionam as vertentes mais recentes da teoria realista. Mesmo porque, os temas atinentes à sobrevivência estatal demandam respostas rápidas, muitas vezes inviáveis no âmbito de uma organização internacional, que exigiria tempo e disposição dos países para chegar a um 93 Conforme estudado na seção 2.1. o conceito de defesa é empregado apenas quando houver uma ameaça, ainda que iminente. Em outras palavras, a defesa corresponde aos meios materiais e às posturas políticas com os quais os países responderão a um ataque. 94 Disponível em <http://www.rbjid.com/sistinteramericano1.asp>. Acesso em 16 set 2013. 95 Disponível em <http://www.oas.org/csh/portuguese/novosdoc%20oea%20e%20jid.asp>. Acesso em 22 set 2013. 76 consenso. Caso se desse a substituição das Forças Armadas nacionais, por um órgão militar coletivo – desconsiderando as possibilidades de manipulação política do mesmo – provavelmente as respostas às ameaças seriam mais justas e democráticas, mas muito menos eficazes. Apesar de não ter “evoluído” para uma estrutura militarizada, a JID adquiriu novas funções com a ampliação da agenda de segurança, especialmente a partir da década de 1990. Tais atribuições referem-se ao fomento das medidas de confiança recíproca e ao desenvolvimento de programas regionais de educação voltados para a segurança (HERZ, 2008, p. 19). A instituição atua hoje como parte do mecanismo multilateral de segurança hemisférica, ainda que não tenha sido expressamente incorporada na arta da rganização” 96, e tem como função prestar à OEA e aos Estados membros serviços de assessoramento técnico, consultivo e de educação sobre assuntos militares e de defesa no hemisfério, além de contribuir para o cumprimento da Carta da OEA. Pode-se dizer, portanto, que a principal contribuição da Junta concentra-se no exercício da diplomacia preventiva, essencial à segurança hemisférica, mas pouco útil à defesa coletiva do continente. 4.1.2 Tratado Interamericano de Assistência Recíproca – TIAR A assinatura do TIAR correlaciona-se tanto com os desafios de segurança, exógenos ao continente – a exemplo da Segunda Guerra Mundial –, como com as disputas territoriais internas 97 . Visando amenizar ambas instabilidades, o tratado expressa dois grandes propósitos: (i) estabelecer uma frente comum de assistência militar multilateral contra ameaças externas; e (ii) manter a paz e a segurança regionais, regulando os mecanismos de solução pacífica de conflitos (SHAW, 2004, p. 54). Além das tradicionais preocupações com a segurança internacional, o contexto histórico de instituição do TIAR distinguia-se pela pulverização das alianças de guerra e pelo medo compartilhado do expansionismo do comunismo soviético, impulsionando a criação de um verdadeiro pacto de segurança e defesa coletiva, como uma alternativa aos acordos bilaterais internos e externos (PAGLIARI, 2006, 96 A JID passou a fazer oficialmente parte da estrutura da OEA, em 15 de março de 2006, de acordo com o documento de AG / RES. 1 (XXXII-E/06): “RESOLVE: To establish the Inter-American Defense Board (IADB) as an “entity” of the Organization under Article 53 of the OAS Charter [...]”. Disponível em <http://www.google.com/search?client=safari&rls=en&q=AG+/+RES.+1+(XXXII-E/06)+oea&ie=UTF8&oe=UTF-8>. Acesso em 22 set 2013. 97 onforme explica Jean Arrighi, o TIA “prevê três hipóteses para a sua aplicação: duas quando o conflito é com Estados não-americanos; uma quando se tratar de conflito entre Estado não-americanos” (A IGHI, 2004, p. 62). As duas primeiras hipóteses, relacionadas à uma ameaça exógena, estão previstas nos artigos 3º e 6º do texto do tratado, enquanto a determinação sobre a resolução pacífica de conflitos dentro do continente está 77 p. 29). O Tratado Interamericano de Assistência Recíproca – também conhecido como Tratado do Rio – foi desenhado e assinado na Conferência Interamericana para a Manutenção da Paz e da Segurança, em 1947 na cidade do Rio de Janeiro. Incorporando muitas das normas anteriormente estabelecidas, tais como a condenação formal de guerra ou do uso da força contra outro Estado soberano, a não-intervenção e a solidariedade continental, o tratado foi pensado com o intuito de estabelecer um sistema de “asistencia recíproca en caso de ataque armado, ‘para dar forma permanente a los principios contenidos en la Acta de Chapultec’” (SEPÚLVEDA, 1974, p. 32). Introduzindo a discussão acerca das principais incoerências contidas no tratado, César Sepúlveda aponta para uma questão de suma importância a qual vem se buscando dar ênfase no decorrer deste trabalho: a diferença entre segurança e defesa coletiva. Segundo o autor, a euforia reinante na Conferência do Rio impediu que fossem examinadas as consequências políticas e os mais variados aspectos que decorrem de um pacto como o que se propunha. Havia, sobretudo, uma “distorsión óptica”, visto que “en el proyectado Pacto se mezclaban cuestiones de ‘legítima defensa colectiva’, que sí interesaba a los países latinoamericanos, con la ‘seguridad colectiva’, una materia tecnicamente diferente” (SEPÚLVEDA, 1974, p. 33). Conforme já discutido nos capítulos antecedentes, a defesa – ainda que coletiva – corresponde aos recursos e meios empregados por um Estado, ou grupo de Estados, ao retaliar ou tentar prevenir uma agressão. A segurança coletiva, por sua vez, consiste em um mecanismo muito mais complexo, exigindo o estabelecimento de medidas coercitivas, centralizadas, capazes de garantir a segurança de todos os membros, independentemente de uma ameaça de ataque externo (SEPÚLVEDA, 1974, p. 34). Parece bastante claro, que o TIAR, sob essa ótica, nunca foi um mecanismo de segurança coletiva, o que não exclui a possibilidade de se caracterizar a existência de um regime de segurança no âmbito da OEA, uma vez que o tratado constitui um mecanismo que pode vir a contribuir para a defesa coletiva. Outras duas falhas podem ser interpretadas como comprometedoras do bom funcionamento do tratado: o caráter excessivamente aberto de muitos dos conceitos chaves que regem a aplicação do mecanismo – a exemplo da própria noção de segurança e ameaça – e, sobremodo, a assombrosa assimetria existente entre a potencia militar estadunidense e os outros vinte países signatários do tratado. Por esse motivo, a aplicação de qualquer tipo de regulada no artigo 7º. 78 ação sancionatória ou coercitiva ao governo norte-americano nascerá, por si só, fadada ao fracasso. Não bastasse, a despeito das sanções previstas no artigo 8º do TIAR que, em tese, constituem medidas à disposição do Órgão de Consulta – atualmente o Conselho Permanente da OEA – e que incluem o rompimento das relações diplomáticas e consulares, a interrupção parcial ou total das relações econômicas e, por fim, o emprego da força 98, não se pode perder de vista o disposto no artigo 53 da Carta das Nações Unidas que determina que “nenhuma ação coercitiva será, no entanto, levada a efeito de conformidade com acordos ou entidades regionais sem autorização do onselho de Segurança” (A IGHI, 2004, p. 63). u seja, qualquer atuação do mecanismo de defesa coletiva fica condicionada à autorização prévia da organização internacional que, por sua vez, deve levar em conta as opiniões de muitos países não afetados pela ameaça em questão. Estes foram apenas alguns dos motivos que fizeram com que o tratado tenha sido circunscrito ao campo formal, funcionado mais como um mecanismo de dissolução pacífica dos conflitos do que efetivamente para dissuadir ou refutar ameaças externas (PAGLIARI, 2006, p. 29)99. Por fim, dois episódios são de extrema relevância para entender o visível descrédito que os países nutrem pelo TIAR. Ambos referem-se às invocações relativas a ameaças exógenas, sendo que em todas as outras vezes o mecanismo foi utilizado para dirimir controvérsias entre Estados americanos. O primeiro caso corresponde à Guerra das Malvinas, em 1982, quando tropas argentinas desembarcaram no arquipélago ocupado pelos ingleses, a despeito de ter sido afirmada, em 1976 pela Comissão Jurídica Interamericana, a soberania Argentina sobre as ilhas (ARRIGHI, 2004, p. 71). Como resposta, a Grã-Bretanha enviou tropas à região, alegando o exercício do direito de legítima defesa. A Argentina, por sua vez, invocou a aplicação do TIAR, convocando a 20º Reunião do Órgão de Consulta. No entanto, o baixo grau de institucionalização, no sentido de garantir uma postura comum, impediu a utilização do instrumento. Os Estados Unidos, principais defensores do tratado, abstiveram-se de apoiar a Argentina, mesmo tendo o país latino-americano solicitado a aplicação do 98 “Art. 8º - Para los efectos de este Tratado, las medidas que el Organo de Consulta acuerde comprenderán una o más de las siguientes: el retiro de los jefes de misión; la ruptura de las relaciones diplomáticas; la ruptura de las relaciones consulares; la interrupción parcial o total de las relaciones económicas, o de las comunicaciones ferroviarias, marítimas, aéreas, postales, telegráficas, telefónicas, radiotelefónicas o radiotelegráficas, y el empleo de la fuerza armada” Disponível em <http://www.oas.org/juridico/spanish/tratados/b-29.html>. Acesso em 22 set 2013. 99 Segundo Pagliari, “Ao longo do período de sua vigência, o mesmo foi invocado dezenove vezes, a maioria delas para casos na América Central e Caribe. Porém, foi aplicado efetivamente em oito ocasiões, sendo que muitas outras intervenções ocorreram na América Latina no decorrer deste período, sem que, no entanto, se 79 mecanismo de defesa coletiva. Na mesma ocasião o Brasil reconheceu formalmente o direito argentino sobre o território, mas condenou o uso da força, em uma postura que ficou conhecida como “neutralidade amiga” (F A , 2009, p. 212). pretenso apoio brasileiro sequer mencionou a utilização dos mecanismos de segurança coletiva, o que também não foi feito por nenhum outro país do continente. O evento comprometeu a credibilidade não só do tratado, mas de todo o sistema interamericano de defesa, sobretudo porque a sua atual estruturação não é capaz de amenizar as disparidades entre as posturas dos países membros, dificultando a construção de uma identidade comum (PAGLIARI, 2009, p. 74). Posteriormente, após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, o governo brasileiro invocou o tratado, ainda no mês de setembro daquele ano, em discurso proferido pelo então Ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer, por ocasião da XXIV Reunião de Consulta de Ministros das Relações Exteriores no âmbito da OEA 100 . Contudo, apesar de aprovada uma Resolução anunciando que os ataques perpetrados contra os Estados Unidos consistiam em ataques à todos os Estados americanos, os países latino-americanos não se lançaram de forma efetiva contra a “Guerra ao Terror” (A IGHI, 2004, p. 73). A reafirmação da solidariedade continental, expressamente proclamada pela OEA, parece ter sido mais um instrumento de retórica que, embora demonstre a possibilidade de formação de uma frente hemisférica, enfatiza, igualmente, a ausência de mecanismos comuns eficazes contra essa “nova ameaça” que é o terrorismo (PAGLIA I, 2009, p. 136). 4.2 UNIÃO DAS NAÇÕES SUL-AMERICANAS São inúmeros os fatores que impulsionam os processos de cooperação interestatal e há, igualmente, um sem número de possibilidades interpretativas para explicar o porquê dos Estados abandonarem a sua total insubordinação, optando por sujeitar-se aos mecanismo e acordos que restringem-lhes a liberdade. Antes de analisar como estes processos interagem com a região sul-americana, cumpre ressaltar que, conforme delimitado já no primeiro efetivassem sob o seu amparo” (PAGLIA I, 2006, p. 29). 100 Em seu discurso Lafer afirmou que “Estamos todos confrontados com uma ameaça direta à segurança hemisférica. Não se trata apenas de externar condolências ou oferecer palavras de consolo a um país amigo por eventos trágicos. Os Estados Unidos da América não foram os únicos a sofrer com os ataques terroristas do dia 11 de setembro. Todos nos sentimos atacados. Todos fomos atingidos. [...]Com amplo respaldo dos demais Estados-partes, meu país, o Brasil, tomou a iniciativa de invocar o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca porque a excepcional gravidade dos ataques, e a discussão de seus desdobramentos, justificam o recurso ao nosso mecanismo hemisférico de segurança coletiva”. Disponível em <http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/2001/09/21/0167786427365-discurso-doministro-das-relacoes-exteriores-celso>. Acesso em 13 out 2013. 80 capítulo deste trabalho, a abordagem aqui adotada decorre da perspectiva realista, em decorrência da sua afinidade com os estudos estratégicos. É justamente por esse motivo que, dentre tantas outras possibilidades, assume-se a premissa de que os Estados atuam coletivamente em busca da maximização de suas próprias capacidades e, por consequência, do aumento dos níveis de segurança e das chances de sobrevivência101. O fim da Guerra Fria trouxe mudanças extremamente relevantes para o campo das Relações Internacionais, especialmente no que tange às matérias de segurança e defesa, sendo que a região da América do Sul não ficou imune a tais transformações. A inclusão de novos atores e novos temas nas agendas de política externa exerce uma influência ambígua na cena de cooperação sul-americana, pois ao mesmo tempo em que contribui para a percepção de que as instabilidades caracterizam-se por uma transnacionalidade e, portanto, exigem respostas multilaterais, dificulta a construção de uma percepção una acerca das prioridades regionais. O fato é que “enquanto os processos no contexto global redefiniram as relações no campo da segurança e diversos Estados adaptaram-se às novas condições, a mudança não foi homogênea na América Latina em geral e na América do Sul em particular” (PAGLIA I, 2013, p. 70). O fenômeno se estende ao continente americano de um modo geral e, embora o aparecimento de alguns níveis de integração na América do Sul remonte à utopia bolivarianista, apenas a partir da década de 1990, com o esmorecimento da bipolaridade sistêmica e o fim do dualismo leste-oeste, abre-se espaço para a reordenação das novas e antigas ameaças, nos níveis global e regional. A partir da década de 1960, inicia-se uma onda de processos de integração. Iniciativas como a Associação Latino-Americana para o Livre Comércio (ALALC) – que mais tarde viria a se transformar na Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) –, a celebração do Pacto Andino, que culminaria na criação da Comunidade Andina de Nações (CAN), e, principalmente, a mudança no padrão de relacionamento entre Brasil e Argentina, que inauguraram uma postura cooperativa a partir da assinatura do já mencionado acordo Tripartíte (1979) possibilitando o uso compartilhado das usinas de Itaipu e Corpus, são exemplos do aprofundamento das relações regionais, viabilizado por meio do afrouxamento da influência norte-americana no pós-Guerra Fria (ARIAS, K. VAN MAANEM, 2013, pp. 103-104). Nesse sentido, dois pontos são fundamentais para a compreensão do processo de integração regional na América do Sul: primeiramente a mencionada aproximação entre as 101 A ideia de sobrevivência é aplicada no seu sentido mais amplo, ou seja, os meios necessários para que o Estado consiga, não só manter-se ativo na cena internacional, mas cumprir as suas funções domésticas, 81 políticas externas brasileira e argentina e, em segundo lugar, a postura reativa do governo brasileiro na gestão do presidente Lula. Principais protagonistas da cena regional, Brasil e Argentina tradicionalmente mantiveram um relacionamento competitivo na tentativa de alcançar o status de potência sulamericana, em uma concorrência profundamente marcada pelos contínuos movimentos de aproximação e afastamento destes governos com a política externa estadunidense. Em meados da década de 1960, entretanto, após o golpe militar brasileiro, as relações entre ambos os países passam por um significativo estreitamento. O então Ministro das Relações Exteriores argentino, Miguél Angel Zavala Ortiz, iniciou consultas junto aos governos do Brasil, Bolívia, Uruguai e Paraguai, com o objetivo de viabilizar a exploração multinacional e coordenada da Bacia do Prata. O chanceler defendia não haver qualquer sentido na competição entre Brasil e Argentina, uma vez que “a balcanização da região só interessava às grandes potências” (BANDEIRA, 2003, pp. 391-392). Em 1965, o presidente argentino Juan Carlos Onganía, em uma visita ao Rio de Janeiro e a Brasília, fez um pronunciamento, no qual se referiu à existência da América Militar, com “um sistema de comunicações, não apenas mecânico, senão mental”, e defendeu o estabelecimento de uma aliança entre os Exércitos da Argentina e do Brasil, com o propósito de constituir o núcleo de uma força interamericana e circundar os dois países com uma fronteira ideológica, como medida preventiva contra a expansão do comunismo. Ao regressar a Buenos Aires, em entrevista à imprensa, voltou a insistir na “necessidade de nos unirmos, Brasil e Argentina, para nos resguardarmos dos perigos que nos ameaçam atualmente”, e na adoção de um sistema de segurança, “com ou sem forças permanentes” [...] (BA DEI A, 2003, p. 392) No decorrer de toda a Guerra Fria a política externa dos países sul-americanos – incluídas as relações Brasil-Argentina – tiveram pouco ou nenhum espaço para manifestaremse autonomamente, sendo quase sempre guiadas por um maior ou menor alinhamento com os Estados Unidos. Com o fim da ameaça comum soviética, ampliou-se a gama de possibilidades nas agendas políticas dos países. As iniciativas para a cooperação regional iniciaram-se ainda durante as ditaduras militares, desde o governo Geisel mas especialmente após a gestão de Figueiredo, que elegera a América Latina como área prioritária nas suas questões de política externa (FRANCO, 2009, p. 203). Nesse contexto destacam-se os grandes avanços em termos de cooperação obtidos no ano de 1986, através do Programa de Integração e Cooperação garantindo sobretudo a segurança e o bem-estar da sua população. 82 Econômica entre a Argentina e o Brasil (PICE), pelos governos dos presidentes Sarney e Afonsín, representando um passo definitivo no processo de integração bilateral e regional (BANDEIRA, 2003, p. 468) 102 . Em 1988, os dois países reforçaram seu compromisso integracionista com a assinatura do Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, que instituía como objetivo o estabelecimento de um mercado comum no prazo de dez anos (GARDINI, 2012, p. 816). A coordenação entre as políticas destes Estados teve tamanha importância que, ao procederem uma análise acerca da atual crise do Mercosul, Buzan e Wæver afirmam que regional stability is closely identified with the transformation of the Argentine– Brazilian relationship [...] only with a desecuritised relationship between Argentina and Brazil and a credible Mercosur can they (and not least Brazil) act vis-à-vis others (read: the United States) with the power of a region (BUZAN, WÆVER, 2003, p. 327). De fato não se poderia alcançar a integração do continente sul-americano sem uma concertação político-econômica entre Brasil e Argentina. No decorrer da década de 1990, com a queda do Muro de Berlim, o fortalecimento do poderio norte-americano e a criação do Ato Único Europeu 103 , a agenda internacional concentrou-se fortemente na disseminação da democracia e economias de mercado. A região sul-americana corria o risco de ver-se marginalizada, visto que, já em 1989104, todas as antigas ditaduras militares estavam extintas e as democracias reestabelecidas, o que voltava os esforços das grandes potências para as localidades do globo que necessitavam de maiores 102 Bandeira cita, como exemplo do estreitamento das relações entre Brasil e Argentina, os 12 protocolos estabelecidos com a Ata para a Integração de Brasil e Argentina, em 28 de julho de 1986, onde restaram acordadas questões acerca da circulação de bens de capital, da comercialização de trigo e abastecimento de algumas espécies alimentares, bem como um comprometimento de ambos os países com o aprofundamento das relações econômicas e comerciais bilaterais. Além disso, trataram da formação de empresas binacionais, mecanismos de financiamento recíproco, importação e exportação de gás natural e petróleo, troca de informações técnicas contra acidentes nucleares, cooperação das forças aéreas nacionais e intercâmbio no setor aeroespacial. as palavras do autor, embora os protocolos tenha um viés predominantemente comercial “o que interessou ao Brasil foi associação da Argentina para formar, de São Paulo a Buenos Aires, um pólo de gravitação, capaz de impulsionar o processo de integração na América do Sul e envolver, futuramente, os próprios países do Pacto Andino” (BA DEI A, 2003, pp. 463-467). 103 “ Acto Único Europeu (AUE) [assinado em 1987] revê os Tratados de Roma com o objectivo de relançar a integração europeia e concluir a realização do mercado interno. Altera as regras de funcionamento das instituições europeias e alarga as competências comunitárias, nomeadamente no âmbito da investigação e desenvolvimento, do ambiente e da política externa comum”. Disponível em <http://europa.eu/legislation_summaries/institutional_affairs/treaties/treaties_singleact_pt.htm>. Acesso em 30 set 2013. 104 Em 1989 os últimos dois governos militares sul-americanos, Chile e Paraguai, passaram por um processo de redemocratização. 83 esforços democráticos (GARDINI, 2012, p. 809). Nesse contexto, a assinatura do Tratado de Assunção, institui a criação do Mercado Comum Sul-Americano (MERCOSUL), em 1991, com a posterior adesão do Paraguai e Uruguai, em 1995. Corroborando o entendimento exposto, Buzan e Wæever atribuem a criação da organização a duas questões centrais aos temas de segurança: (i) o medo da marginalização em meio à globalização; e (ii) a defesa da democracia (BUZAN, WÆVER, 2003, p. 325). Isso porque, os recém-redemocratizados governos da Argentina e do Brasil, temiam pela sua fragilidade institucional e apostavam na cooperação democrática para diminuir as chances de possíveis novas experiências ditatoriais. Ainda no contexto da década de 1990, é importante ressaltar os esforços norteamericanos para a implementação de uma Área de Livre Comércio da Américas (ALCA), ampliando a zona de alcance do já instituído NAFTA105 de modo a abarcar todo o hemisfério. Embora não seja foco do presente trabalho o estudo do desenvolvimento e proposta de tais organizações106, mormente em virtude do seu caráter excessivamente comercial, mister se faz ressaltar o empenho brasileiro, principalmente na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, em optar por uma alternativa regional em detrimento da integração hemisférica. Bem por isso, a proposta de implementação da ALCA foi continuamente refutada, por meios diplomáticos e um sem número de negociações, enquanto os esforços para o desenvolvimento do Mercosul cresciam gradativamente. A partir do ano 2000, por intermédio de uma proposição do governo brasileiro, deu-se início às Reuniões de Presidentes da América do Sul, (DREGER, 2009, p. 44; OLIVEIRA, 2012, p. 76), que em 2004 resultaria na instituição da Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), uma prévia do que viria a ser posteriormente a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL). A CASA, fundada após a III Reunião, em 08 de dezembro de 2004, por meio da Declaração de Cusco, assinada pelos doze países sul-americanos 107 , expressava a vontade destes para construir gradualmente uma identidade sul-americana, bem como para desenvolver um processo de integração regional nas questões políticas, econômicas, sociais, culturais e ambientais, além de enfatizar o necessário investimento em infraestrutura como meio de reduzir as assimetrias existentes entre os países da região (VILLA, VIANA, 2010, p. 100). 105 North American Free Trade Agreement (NAFTA), assinado em 1992 por Estados Unidos, Canadá e México. Maiores informações podem ser econtradas em: BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos – Conflito e integração na América do Sul (Da Tríplice Aliança ao Mercosul 1870-2003) – Rio de Janeiro: Revan, 2003. pp. 493-516. 107 Argentina, Brasil, Bolívia, Colômbia, Chile, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela. 106 84 Apenas para introduzir a análise quanto a existência de um regime de segurança no âmbito da UNASUL, especialmente no que concerne ao primeiro requisito 108 , qual seja a existência de um conjunto de princípios, normas e regras, é importante mencionar que já no momento de constituição da CASA os países declaravam expressamente a existência de uma Identidade sul-americana compartilhada e valores comuns, tais como: a democracia, a solidariedade, os direitos humanos, a liberdade, a justiça social, o respeito à integridade territorial e à diversidade, a não-discriminação e a afirmação de sua autonomia, a igualdade soberana dos Estados e a solução pacífica de controvérsias 109 (DE LA AÇÃ DE US , 2004). A proposição da CASA marca um ponto de inflexão no processo de integração regional sul-americano, até então bastante restrito ao âmbito econômico e tendo como principais expoentes a CAN e o MERCOSUL. Por meio desse conjunto de valores compartilhados e, sobretudo, em virtude da percepção de uma identidade histórico-regional, possibilita-se uma incipiente ampliação da abordagem multilateral também para as questões de segurança, tradicionalmente debatidas por negociações e mecanismos bilaterais (PAGLIARI, 2009, p. 229). Apenas em 2007, na I Cúpula Energética Sul-Americana, ocorrida na Venezuela, os presidentes concordaram em alterar o nome da CASA para União das Nações Sul-Americanas (UNASUL)110. Assim em maio de 2008, a organização é formalmente instituída por meio do Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas. É importante consignar que, a despeito da alteração nominal, as inovações propostas pela CASA permaneceram latentes no sentido de superar o exclusivo tratamento bilateral para os problemas regionais, bem como a ênfase dada à interação econômico-comercial (VILLA, VIANA, 2010, p. 100), mudanças essenciais para a embrionária111 cooperação multilateral em termos de segurança e defesa. 108 Adota-se para a identificação dos regimes internacionais o conceito de Krasner, expresso no Capítulo I e dividido em: (i) existência de um conjunto de princípios, implícitos ou explícitos, normas e regras; (ii) padronização do processo de tomada de decisões e (iii) convergência das expectativas dos países. 109 Declaração de Cusco. Disponível em <http://www.funag.gov.br/biblioteca/dmdocuments/0285.pdf>. Acesso em 30 set 2013. Do texto do instrumento infere-se o estabelecimento de princípios gerais, como o fortalecimento de uma “identidade sul-americana compartilhada e valores comuns”, a “convergência de seus interesses políticos, econômicos, sociais, culturais e de segurança, como um fator potencial de fortalecimento e desenvolvimento de suas capacidades internas para sua melhor inserção internacional”, bem como a “a luta contra a pobreza, a eliminação da fome, a geração de emprego decente e o acesso de todos à saúde e à educação, como ferramentas fundamentais para o desenvolvimento de seus povos”, mas também de diretrizes bastante específicas, como o fortalecimento do Mercosul, da ALADI, da Comunidade Andina, como meios de alcançar a maior integração regional. 110 Disponível em <http://www.unasursg.org/inicio/organizacion/historia.>. Acesso em 08 out 2013. 111 Diz-se embrionária porque até então todas as experiências cooperativas em questões envolvendo a segurança 85 Dentre os vários objetivos sob os quais a organização está estruturada, Villa, Viana e Pagliari destacam três que guardam estreita ligação com o campo dos estudos estratégicos: (i) o aprofundamento do diálogo político entre os Estados que assegure um espaço de concertação, a fim de reforçar a integração sul-americana e a participação da UNASUL na cena internacional; (ii) a coordenação entre os organismos especializados dos Estados membros para fortalecer a luta contra o terrorismo, a corrupção, o combate às drogas, o tráfico de pessoas e armas de pequeno porte, o crime organizado transnacional, além da promoção do desarmamento, da não-proliferação e da desminagem; e, por fim (iii) a promoção de um intercâmbio de informação e experiência em matéria de defesa (PAGLIARI, 2009, p. 229; VILLA, VIANA, 2010, p. 101). Quanto ao último ponto específico é bastante relevante o crescimento do número de iniciativas multilaterais que abarcam não só a cooperação militar em áreas de fronteira112, ou em questões domésticas, mas também as já mencionadas medidas de fortalecimento da confiança recíproca. Restam evidenciadas, portanto, as inovações advindas da instituição da UNASUL, sobretudo, para o campo da segurança internacional e do multilateralismo regional. Entretanto, tendo em vista que a organização conta com um organismo próprio voltado às questões de defesa sul-americanas, a análise deste trabalho concentrar-se-á na existência ou não dos elementos constitutivos de um regime de segurança no âmbito do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS). 4.2.1 O Conselho de Defesa Sul-Americano Apenas sete meses após a formalização da UNASUL como organização internacional e, portanto, dotada de personalidade jurídica internacional, é proposta, também por iniciativa brasileira, uma instância de “consulta, cooperación y integración”113 em matéria de segurança dos Estados sul-americanos ou se derem pela via bilateral, ou por intermédio dos Estados Unidos. A inovação, portanto, refere-se à iniciativa multilateral regional autônoma, apartada de qualquer interferência exógena à América do Sul. 112 A região Amazônica é um excelente exemplo de cooperação multilateral regional, em termos de segurança e controle dos fluxos transfronteiriços. Villa e Viana mencionam a existência de nove operações da Polícia Federal brasileira com outros países: (i) e (ii) as operações COBRA e CRAF na fronteira entre Brasil e Colômbia; (iii) PEBRA na fronteira com o Peru; (iv) VEBRA estabelecida na divisa entre Brasil e Venezuela; (v) GUISU entre Guiana e Suriname; (vi) B AB entre Brasil e Bolívia; (vii) peração “ ibeirinho” que abrange toda a fronteira amazônica; (viii) Aliança com o Paraguai e (ix) Cone Sul, estabelecida entre Brasil, Uruguai e Argentina (VILLA, VIANA, 2010, p. 102). 113 “Artículo 1 Cr ase el Consejo de efensa Suramericano como una instancia de consulta, cooperaci n y coordinaci n en materia de efensa en armonía con las disposiciones del Tratado Constitutivo de NAS en sus Artículos 3 letra s, 5 y 6 ”. Disponível em <http://www.unasursg.org/uploads/11/27/11272dcbdadb1a64e7b7daa8a627ed68/Estatutos-de-creacion-Consejode-Defensa-Suramericano.pdf>. Acesso em 01 out 2013. 86 e defesa no continente sul-americano 114 (PALGIARI, 2009, pp. 229-230). O Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), é composto pelos doze Ministros da Defesa dos paísesmembros da UNASUL e tem como objetivos a consolidação da América do Sul como uma zona de paz, a construção de uma identidade comum sul-americana e o fortalecimento da cooperação em matéria de defesa, contribuir para a articulação de posições conjuntas da região em foros multilaterais sobre defesa, promover medidas de fortalecimento da confiança recíproca, impulsionar o intercâmbio de informações sobre treinamento e educação militar entre as Forças Armadas de cada país, bem como a integração de bases industriais de material bélico115. Dentre todos as finalidades brevemente listadas, destaca-se a importância da promoção dos exercícios militares conjuntos e da troca de informações acerca dos investimentos bélicos, como duas das principais medidas de fortalecimento da confiança regional. A bem da verdade, ante a ausência de uma autoridade coatora ou de um organismo militar comum, toda a estruturação do CDS sustenta-se na promoção e fortalecimento destas medidas de confiança, que visam não só consolidar uma postura comum em termos de segurança e defesa para o continente sul-americano em face dos demais países do Sistema Internacional mas, sobretudo, diminuir as instabilidades e inseguranças que decorrem das relações interestatais no âmbito regional. Não é sem propósito rememorar o contexto de efetiva propositura do Conselho116, no primeiro semestre de 2008. No dia 1º de março daquele ano, por ordens do governo – leia-se, do então presidente, Álvaro Uribe –, as Forças Armadas da Colômbia invadiram o território equatoriano sob a justificativa de combater as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARCs)117. O Brasil – sob a liderança marcante do presidente Lula – logo encabeçou um movimento que enfatizava a proposição feita, já em fevereiro do mesmo ano118, acerca do estabelecimento de um mecanismo regional de resolução pacífica de controvérsias e 114 Itamaraty define a criação de um “mecanismo de Medidas de Fomento da onfiança e da Segurança” como “um instrumento valioso para o fortalecimento da estabilidade, paz e cooperação na América do Sul”. Disponível em <http://www.itamaraty.gov.br/temas/america-do-sul-e-integracao-regional/unasul>. Acesso em 01 out 2013. 115 Os objetivos gerais e específicos do CDS estão publicizados no sítio < http://www.unasursg.org/uploads/11/27/11272dcbdadb1a64e7b7daa8a627ed68/Estatutos-de-creacion-Consejode-Defensa-Suramericano.pdf>. Acesso em 01 out 2013. 116 A proposta original data de 2006, tendo sido inicialmente pensado para incluir apenas os membros do Mercosul (PAGLIARI, 2009, p. 230). 117 O então presidente venezuelano Hugo Chávez, na ocasião, alegou que a Colômbia havia invadido o Equador e violado a sua soberania e que, caso a mesma invasão ocorresse em solo boliviano seria considerada um motivo para a guerra. Disponível em <http://news.bbc.co.uk/2/hi/7274038.stm>. Acesso em 01 out 2013. 118 O Ministro brasileiro da Defesa Nelson Jobim, propôs em fevereiro de 2008, a criação de um Conselho SulAmericano de Defesa que contaria com a participação de todos os países da região 87 fortalecimento da cooperação em termos de segurança. Posteriormente, em setembro de 2008, uma conflito interno na Bolívia119 quase atinge o status de guerra civil, novamente ameaçando a estabilidade regional. A criação do CDS, entretanto, não foi aceita de forma unânime pelos países do continente sul-americano. O governo da Colômbia manifestou, em maio de 2008, a sua expressa recusa em aceitar a instituição de um Conselho de Defesa Sul-Americano 120 , argumentando que as principais ameaças colombianas diziam respeito a temas relacionados com a guerrilha, não sendo este um problema comum aos demais Estados. O presidente colombiano apenas mudou de posicionamento, ratificando a criação do novo mecanismo após uma visita e um pedido pessoal do presidente Lula e, ainda, sob as condições de que “as decisões da organização deveriam ser adotadas por consenso; o Conselho deve explicitar que somente reconhece as forças institucionais consagradas pelas Constituições de cada país; rechaçar expressamente a grupos violentos, sem importar sua origem”. (PAGLIARI, 2009, p. 230). Após todas as tratativas e imposições expostas pelos países, o CDS foi efetivamente instituído em maio de 2008. Diferentemente de outras propostas de institucionalização do exercício militar regional121, o Conselho baseia-se na diplomacia pragmática, que se pretende livre de ideologias e parcialidades, o que lhe possibilita englobar tanto os membros do Mercosul, como os da CAN, com a intenção de fazer convergir, ao menos as informações e expectativas continentais, bem como padronizar o processo de tomada de decisões acerca de questões que envolvam a segurança regional. A não adoção de um mecanismo de defesa coletiva no âmbito do novo órgão da UNASUL, fica evidenciada, também, pela não discussão <http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u375356.shtml>. Acesso em 01 out 2013. 119 Disponível <http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL755002-5602,00GOVERNO+DA+BOLIVIA+ACUSA+GRUPOS+OPOSITORES+DE+INCITAR+GUERRA+CIVIL.html>. Acesso 01 out 2013. 120 Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,colombia-se-recusa-a-assinar-conselho-dedefesa,177088,0.htm>. Acesso em 01 out 2013. 121 Simultaneamente à proposição brasileira, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, sugeria a criacao de uma Organização do Tratado do Atlântico Sul (OTAS), nos mesmos moldes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), ou seja, baseada na em uma operacionalização militar insubordinada às Forças Armadas nacionais, mas compostas por recursos – materiais e humanos – provenientes destas. O que se pode depreender, com base nas diferenciações apontadas nos capítulos anteriores, é que a proposta brasileira possuía um viés mais voltado para a segurança, enquanto a iniciativa venezuelana tinha um claro enfoque na possibilidade de se estabelecer um mecanismo de defesa coletiva. Entretanto, embora existisse uma diferença estrutural em ambas as propostas, o objetivo final dos dois políticos – Jobin e Chávez – era declaradamente o mesmo, tendo o próprio Ministro brasileiro afirmado ser a diferente nomenclatura, uma questão puramente linguística. A questão é relevante pois demonstra, a despeito das diferenças ideológicas entre os países da região, uma vontade comum de institucionalizar a cooperação regional, especialmente em relação às questões de segurança. Disponível em < http://www.pucminas.br/imagedb/conjuntura/CNO_ARQ_NOTIC20080514103654.pdf?PHPSESSID=f514db08 88 acerca da contenção dos gastos militares nacionais (RUDITZ, 2013, p. 137). De fato a criação do CDS não impediu que os países da região poupassem esforços militares. De acordo com dados do Stockholm International Peace Research Center (SIPRI), os gastos militares na América Latina vivenciaram um acréscimo na ordem de 36% entre os anos de 2003 e 2008 (ARIAS, K. VAN MAANEM, 2013, p. 106). Nesse contexto, o incentivos à transparência e troca de informações quanto aos dispêndios militares demonstra a preocupação com uma suposta “corrida armamentista” na região. Entretanto, a maior parte das aquisições parece ser relativa à necessária modernização do aparato militar destes países, por meio de investimentos que haviam sido esquecidos desde o fim das ditaduras militares sul-americanas. Acima de tudo, o mecanismo estabelecido com o CDS clarificou a nebulosa linha que separa as questões de defesa e segurança, cuja indistinção no âmbito hemisférico prejudica a percepção dos reais limites do mecanismo cooperativo. A iniciativa deve ser interpretada sob a perspectiva da segurança defendida por autores como Buzan e Wæver (2003), ou seja, a significativa diferenciação entre as ameaças percebidas pelo Sistema Internacional como um todo – necessariamente incluídos os Estados Unidos – e pela América do Sul em particular. Segundo os autores, o nível de interdependência e a transnacionalidade dos Estados e das inseguranças sul-americanas, respectivamente, traduzem uma intensidade capaz de consolidar uma postura comum para toda a região. No entanto, essa possível concertação de políticas de segurança e defesa é profundamente afetada pelas assimetrias regionais que, embora não evitem o impacto provocado pelas ameaças comuns, acabam destacando as instabilidades mais pontuais. O problema das disparidades é exposto pelos autores com ênfase para as diferenças existentes entre os países da região andina e o chamado “ one Sul”122. Embora não se pretenda adentrar no conceito de Complexos Regionais de Segurança (CRS), formulado por Buzan e Wæver, sobretudo porque ele estabelece um padrão de interação diferente daquele proposto pela teoria dos regimes internacionais, baseando-se principalmente nos padrões amizade-inimizade existentes entre os países, a divisão da América do Sul em duas grandes áreas é interessante, no mínimo, para identificar as disparidades existentes entre elas. De forma bastante resumida, a região do “ one Sul” é apontada como pioneira na formação de uma identidade sul-americana 123 , apresentando 40c85b9d0e5b43b935de35c4>. Acesso em 01 out 2013. 122 Os autores dividem a região em dois Sub-Complexos Regionais de Segurança: Cone Sul e Norte Andino. 123 Conforme já trabalhado anteriormente, as relações Brasil-Argentina e, posteriormente, a instituição do Mercosul, constituem a pedra angular de sustentação desse sistema cooperativo. 89 grande coordenação política e avanços em termos cooperativos. O Norte Andino, por sua vez, caracteriza-se por ser um território onde ainda se fazem presentes fortes instabilidades, tanto no âmbito doméstico dos países, como nas zonas transfronteiriças 124 . Nessa região, a trasnacionalidade das ameaças não serviu para extirpar as possibilidades de conflito, mas sim como fator agravante, dificultando a formação de um consenso e o consequente estabelecimento de políticas cooperativas para a região (BUZAN, WÆVER, 2003, p. 317). Tal característica, por si só, não inviabiliza o tratamento multilateral dos problemas, apenas aponta para uma maior relutância em abandonar a visão essencialmente nacional. as palavras dos próprios autores, “the region has been transnationally unified more at the level of ideas and ideals, where symbolic figures are often shared, whereas the level of interests and actions has remained more fragmented” (BUZA , WÆVE , 2003, p. 318). Remonta-se assim, a uma questão trabalhada no início da seção: os diferentes níveis de intensidade com que as ameaças são percebidas no âmbito regional. O fato é que, embora a existência de novas ameaças seja admitida pelos governos regionais de uma forma geral, os níveis de prioridade e a agenda de segurança idealizados por cada um deles divergem em um grau que muitas vezes acaba bloqueando o funcionamento dos mecanismos de cooperação, baseados no consenso. A aplicação da “guerra ao terror”, ao combate contra o narcotráfico constitui um bom exemplo dessa desarmonia. Embora ambas as sub-regiões identifiquem na questão uma ameaça à segurança – nacional e regional – alguns países priorizam respostas baseadas em medidas de segurança pública, como é o caso do governo brasileiro, enquanto outros dispensam um tratamento militarizado ao tema – coadunando com a política empregada pelos Estados Unidos125 (PAGLIARI, 2013, p. 81). Em que pese a existência de heterogeneidades substanciais entre os países da região, o ponto fundamental a ser trabalhado é a clara intenção dos governos nacionais – uma vez que todos participam dos foros multilaterais supramencionados – em alcançar um consenso e institucionalizar a integração regional, fortalecendo a confiança mútua e consolidando as bases necessárias para a construção de uma identidade una. A proposição de mecanismos como a UNASUL e o CDS, traduz uma preocupação dos países sul-americanos em dar um 124 A região que compreende a porção nordeste da Floresta Amazônica, compreende países como Colômbia, Bolívia e Venezuela, que convivem não só com as tradicionais questões territoriais e instabilidades domésticas, mas lidam com sérios problemas relacionados às “novas ameaças”, sobretudo as questões concernentes ao narcotráfico e à guerrilha. 125 Nesse mesmo pensar, Buzan e Wæever afirmam que as questões das drogas acaba dividindo ao invés de fortalecer os laços entre os países latino-americanos. “Thus, the drugs issue might eventually become part of what ties all of South America (and in some respects all of the Americas) together, whereas now it mostly divides the two halves of South America” (BUZA , WÆVE , 2003, p. 336). 90 tratamento mais regionalizado aos problemas e inseguranças que lhes são peculiares, de forma mais intensa – devido a proximidade geográfica – e sem a interferência norte-americana. Nesse sentido, o redirecionamento estratégico, proporcionado pelo deslocamento do enfoque da segurança hemisférica para o nível regional, auxilia na construção de respostas mais efetivas às instabilidades locais e na construção de uma identidade regional. 4.3 A OEA E A UNASUL COMO REGIMES INTERNACIONAIS Para identificar a existência – ou a inexistência – de um regime de segurança no âmbito das estudadas organizações regionais, americana e sul-americana, pode-se partir de um questionamento básico: quais motivos levam os países a buscar o estabelecimento de mecanismos de cooperação em detrimento da atuação unilateral? Conforme visto no capítulo 1, a perspectiva realista pressupõe uma postura dos Estados nacionais, em suas Relações Internacionais, sempre racional e voltada para a maximização dos objetivos particulares. Estes objetivos, que nada mais são do que o próprio interesse nacional, correspondem em linhas gerais, à garantia da sobrevivência estatal. Assim, traçando uma correspondência entre teoria e história, o estabelecimento de todas as instituições estudadas – OEA, JID, TIAR, UNASUL e CDS – pode ser compreendido sob a lógica da insegurança em relação as ameaças sistêmicas e da ânsia em diminuir o grau de imprevisibilidade em relação às posturas adotadas pelos demais atores do Sistema Internacional. A análise derradeira deste trabalho será proposta em consonância com a forma como o conceito foi apresentado nas seções anteriores, ou seja, a partir de uma decomposição tripartite, examinando a existência, no âmbito de ambas as organizações, de (i) um conjunto compartilhado de princípios, normas e regras; (ii) padronização dos mecanismos de tomada de decisões; e (iii) convergência das expectativas. 4.3.1 Conjunto compartilhado de princípios, normas e regras – implícitos ou explícitos Primeiramente é importante estabelecer qual a interpretação adotada para as definições de princípios, normas e regras. Por questão de coerência, tendo em vista a utilização do conceito de regimes desenvolvido por Stephen Krasner, a delimitação dos componentes conceituais também será aquela proposta pelo autor. Portanto, para fins desta análise, tem-se que “Principles are beliefs of fact, causation, and rectitude. Norms are standards of behavior 91 defined in terms of rights and obligations. Rules are specific prescriptions or proscriptions for action” (K AS E , 1983, p. 2). Mais especificamente, quanto à definição de princípios, Keohane dispõe que “the principles of regimes define, in general, the purposes that their members are expected to pursue” (KE HA E, 1984, p. 58), ou seja os objetivos perseguidos pelos Estados ao aderir aos mecanismos de cooperação. No caso da OEA, conforme estudado na seção 3.1., o desencadeamento de um movimento voltado à unificação hemisférica, data do século XVIII, com o início do processo de independência das antigas colônias europeias. O panamericanismo alude ao receio cultivado pelos Estados americanos em relação à fragilidade de sua segurança e seus mecanismos de defesa, ante as grandes potências militares do “Velho Mundo”. Tanto é assim que todo o processo de integração se desenvolveu a partir da tentativa de consolidação de uma postura comum a todo o continente, em face de possíveis ameaças externas. O mesmo receio deu azo à instituição de mecanismos voltados ao estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, a exemplo da JID e do TIAR. Dessa forma, caso seja adotada a ideia de que os princípios caracterizadores dos regimes internacionais constituem os objetivos que os Estados membros pretendem alcançar – conforme proposto por Keohane –, pode-se dizer que, tanto a OEA, quanto a JID e o TIAR, possuem um conjunto de princípios, regras e normas compartilhados, ou seja, padrões de comportamento que devem ser seguidos por todos. Do mesmo modo, com a adoção formal, pela OEA, da definição de segurança multidimensional, os Estados membros expressam uma concordância geral em relação à existência de “novas ameaças” e à necessidade de conceder-lhes um tratamento multilateralizado, que deverá ser observado por todos. É importante ressaltar que esta aparente imposição não se dá sob uma ameaça sancionatória, muito pelo contrário, existe uma recomendação – instituída por meio dos princípios gerais e específicos, previstos nos documentos reguladores dos referidos mecanismos – a ser seguida pelos países para o bom funcionamento das instituições. E é interessante para os próprios atores, na maior parte do tempo e corroborando o que prevê a teoria dos regimes internacionais, que esse conjunto de proposições seja cumprido, para que o regime, ou a organização, possam materializar os benefícios supostamente oriundos da sua instituição: a diminuição das incertezas e ampliação das possibilidades de cooperação. Ora, se os países optam pelo multilateralismo justamente porque acreditam que a atuação conjunta pode maximizar os seus ganhos em relação à um posicionamento unilateral, a deserção embora permaneça sempre como uma possibilidade, deve constituir a exceção e não a regra, sob pena de comprometer toda a estrutura cooperativa. 92 No âmbito regional, a criação da UNASUL e, posteriormente, do CDS, decorre da percepção recíproca de que a resposta aos problemas da região poderia ser otimizada a partir da consolidação de uma identidade sul-americana, amparada na similitude histórica e composta por princípios e valores compartilhados. Ou seja, os objetivos pretendidos pelos países membros ao ratificarem a assinatura da Carta da UNASUL, podem ser deduzidos a partir do grau de interdependência e transnacionalidade existente entre eles e, simultaneamente, em virtude das assimetrias observadas por todos em relação à potência norte-americana. Em outras palavras, a consolidação, tanto da UNASUL como do CDS, traduz uma preocupação regional em fornecer um tratamento essencialmente sul-americano aos problemas e inseguranças locais, sem a interferência estadunidense. Sob essa perspectiva, pode-se deduzir que, em que pese as divergências e peculiaridades existentes entre os países sul-americanos, existe um ponto de coesão que caracteriza justamente esse conjunto de princípios, normas e regras compartilhados e que transcende o disposto nos tratados e acordos multilaterais constitutivos da organização: a preocupação em construir uma identidade regional. Não é sem propósito lembrar que, sobretudo no âmbito da OEA, existem diferentes percepções que influem na forma de interpretação dos princípios, normas e regras disciplinados pela organização. Dois exemplos são suficientes para elucidar a questão. Primeiramente a linha tênue que separa os conceitos de segurança e defesa, bem como a falta de uma delimitação expressa sobre quais os verdadeiros propósitos, especialmente da JID e do TIAR, levam a interpretações díspares, senão antagônicas, a respeito da necessidade de estabelecimento de um “braço armado”, capaz consolidar um sistema de defesa hemisférico. Além disso, as diferentes percepções e ponderações acerca das melhores respostas a serem oferecidas a cada espécie de problema, como ocorre com o tratamento dispendido à questão do narcotráfico, tanto no âmbito da OEA, quanto da UNASUL, dificultam o estabelecimento de uma postura comum. Nenhuma das mencionadas disparidades, entretanto, inviabiliza a existência de princípios, normas e regras, comuns a todos os membros das referidas instituições, até porque estas diferenças decorrem de interpretações subjetivas do texto expresso em documentos formais. Os princípios, normas e regras, existem e são comuns – independentemente de valorações particulares – a partir do momento em que cada país ratifica o tratado constituinte de uma organização internacional. Por fim, a inexistência de uma autoridade superior hierárquica capaz de impor sanções aos países que descumprirem os preceitos instituídos pelos mecanismos multilaterais, não exclui a possibilidade de consolidação de um regime 93 internacional, uma vez que a própria definição de regimes, pressupõe a “ausência de uma ordem política hierárquica e mecanismos de implementação de sanções” (HE Z, 1997). o que concerne ao primeiro elemento conceitual, portanto, ambas as organizações – OEA e UNASUL – podem ser enquadradas na definição de regimes internacionais. 4.3.2 Padronização dos mecanismos de tomada de decisão O segundo elemento conceitual de regimes consiste na padronização dos mecanismos de tomada de decisão, que deve acontecer de forma horizontalizada, diferentemente do que ocorre no âmbito doméstico das sociedades nacionais ou mesmo no ordenamento de algumas organizações internacionais. Em verdade, justamente em decorrência do princípio da soberania e da característica anárquica do Sistema Internacional, as instituições estudadas neste trabalho não foram criadas com o intuito de materializar um poder supraestatal, capaz de interferir coercitivamente na autonomia dos Estados, muito pelo contrário. Nesse sentido, estudá-las sob a perspectiva da teoria dos regimes internacionais ajuda a entender tanto os movimentos cooperativos quanto os atritos existentes entre os países, mesmo dentro de um mecanismo de coordenação. Isso porque, embora os regimes restrinjam a autonomia estatal, tanto pela imposição de princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão, quanto pelas assimetrias de poder existente entre seus membros, a sua soberania permanece intacta – pelo menos do ponto de vista formal. Em sendo assim, a coordenação emerge, no âmbito dos regimes internacionais, por meio da padronização dos procedimentos de tomada de decisão, onde os países consentem em decidir conjuntamente acerca de temas que lhes são comuns, através de um rito previamente estabelecido. Por esse motivo, pode-se dizer que os regimes constituem o que Keohane denomina “quasi-agreements”, ou seja, espécie de contrato que não deverá ser obrigatoriamente adotado pelos Estados 126 , mas que uma vez ratificado, auxilia na harmonização das atuações unilaterais (KEOHANE, 1984, p. 89). Em suma, os regimes não são criados para estabelecer uma estrutura centralizada coercitiva, capaz de impor aos Estados nacionais um conjunto de obrigações nos mesmos moldes daquelas impostas aos indivíduos no âmbito das sociedades nacionais. Pelo contrário, os regimes são estruturas essencialmente descentralizadas, o que não implica a ausência de mecanismos de coerção. O que precisa ficar claro é que, embora não haja uma imposição formal para que os países filiem-se às 126 Afasta-se aqui a já mencionada discussão sobre o consentimento voluntário ser muitas vezes mitigado pelas assimetrias existentes entre os países membros dos regimes. O fato é que juridicamente não há um meio de 94 instituições, uma vez parte de um regime internacional o Estado poderá sofrer sanções que serão promulgadas conjuntamente pelos membros individuais, por meio do processo padronizado de tomada de decisões. A função precípua dos regimes internacionais é, na verdade, estabelecer expectativas mútuas estáveis sobre os padrões de comportamento dos demais atores e desenvolver relações que possibilitarão às partes adaptarem suas práticas a novas situações. No âmbito da OEA, a padronização do processo de tomada de decisões é posta em prática por meio das reuniões anuais da Assembleia Geral, onde é adotado o princípio do one country, one vote e as decisões são tomadas basicamente por maioria absoluta dos votos127. Além disso, poderão ser convocadas, em situações excepcionais, Reuniões de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, podendo para tanto ser invocados a Carta da OEA ou o TIAR. A JID por sua vez, possui como mais alto órgão representativo o Conselho de Delegados que poderá se reunir ordinária ou extraordinariamente 128 , para decidir questões acerca do desempenho de suas funções. Entretanto, como a função da JID corresponde, basicamente, ao exercício de uma diplomacia preventiva, relacionada às medidas de confiança recíproca e, portanto, à convergência das expectativas, a análise da padronização dos processos de tomada de decisão será concentrada na Assembleia Geral da OEA. Existe um porém no mecanismo coletivo da OEA, mencionado na seção 3.1., que dificulta esta padronização: o fato de haver mais de uma carta em vigor. A possibilidade dos países adotarem, ou não, as reformas introduzidas 129 , resulta em um verdadeiro “caos compelir os Estados a aderirem a um regime internacional. 127 Em algumas hipóteses é prevista a tomada de decisão por voto de dois terços, conforme o artigo 59 da Carta da EA: “Artigo 59 - As decisões da Assembleia Geral serão adotadas pelo voto da maioria absoluta dos Estados membros, salvo nos casos em que é exigido o voto de dois terços, de acordo com o disposto na Carta, ou naqueles que determinar a Assembleia Geral, pelos processos regulamentares”. Disponível em <http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-41_Carta_da_Organização_dos_Estados_Americanos.htm#ch9>. Acesso em 05 out 2013. 128 De acordo com o art. 13, do Estatuto da JID: “Art. 13 euniões, 13.1. euniões ordinárias e extraordinárias. O Conselho realizará reuniões ordinárias e extraordinárias com o objetivo e tomar as decisões necessárias ao desempenho de suas funções. As reuniões serão convocadas pelo Presidente ou pelo Vice-Presidente, na ausência do Presidente. Atas serão lavradas e distribuídas aos membros Salvo disposição em contrário deste Estatuto, as votações e debates nessas reuniões serão realizadas de acordo com o egulamento do onselho”. Disponível em <https://docs.google.com/a/globo.com/file/d/0Bx8yHQ_oK0EwTkhGUVNDSVNsdmc/edit?usp=drive_web&pli =1>. Acesso em 05 out 2013. 129 O artigo 140, da Carta da OEA prevê que a própria carta somente torna-se obrigatória para aqueles países que completarem o processo de ratificação. O artigo 142, por sua vez, prevê as possibilidades de reforma, determinando o mesmo processo de entrada em vigor. “Artigo 40 - A presente Carta entrará em vigor entre os Estados que a ratificarem, quando dois terços dos Estados signatários tiverem depositado suas ratificações. Quanto aos Estados restantes, entrará em vigor na ordem em que eles depositarem as suas ratificações. [...] 95 organizado”. Isso porque alguns Estados estarão submetidos a determinadas obrigações – que aceitaram por serem supostamente comuns a todos – enquanto outros estarão desincumbidos delas. Por motivos semelhantes, a vigência de mais de um estatuto prejudica, inclusive, a convergência das expectativas dos atores. No que tange à UNASUL, o órgão máximo da instituição corresponde ao Conselho de Chefas e Chefes de Estado e de Governo, que se reunirá com periodicidade anual a fim de “estabelecer as diretrizes políticas, os planos de ação, os programas e os projetos do processo de integração sul-americana”130. Todavia, embora tenha sido constituída com o propósito de consolidar uma postura única sul-americana, o próprio Tratado Constitutivo da organização prevê a possibilidade de que, mesmo tendo sido aprovada uma política pelo Conselho, qualquer Estado membro possa eximir-se de aplicá-la total ou parcialmente, sem sofrer qualquer forma de retaliação institucional. O CDS, por sua vez, é composto pelas Ministras e Ministros de Defesa de seus membros, que se reunirão anualmente para elaborar acordos, que posteriormente serão adotados por consenso 131 . Ou seja, tanto a organização como o Conselho, embora proporcionem uma estrutura de tomada de decisões conjunta, permitem que os países continuem atuando unilateralmente, caso lhes seja conveniente. Não há como negar a existência de um mecanismo que visa justamente padronizar a tomada de decisão coletiva e, por isso, não há como excluir de plano a existência de um regime de segurança no âmbito da OEA ou da UNASUL. Entretanto, a baixa institucionalização – centrada em organismos intergovernamentais e em um processo decisório baseado no consenso – e a ampla gama de possibilidades que permanecem aos governantes para atuar a parte de tais mecanismos – bastante evidenciada pela tratativa de Artigo 42 - As reformas da presente Carta só poderão ser adotadas pela Assembléia Geral, convocada para tal fim. As reformas entrarão em vigor nos mesmos termos e segundo o processo estabelecido no artigo 140”. Disponível em <http://www.oas.org/dil/port/tratados_A41_Carta_da_Organização_dos_Estados_Americanos.htm#ch9>. Acesso em 05 out 2013. 130 É esse o texto do artigo 6 do Tratado Constitutivo da Unasul, in verbis: “ onselho de hefas e hefes de Estado e de Governo é o órgão máximo da UNASUL. Suas atribuições são: a) estabelecer as diretrizes políticas, os planos de ação, os programas e os projetos do processo de integração sulamericana e decidir as prioridades para sua implementação; […] As reuniões ordinárias do Conselho de Chefas e Chefes de Estado e de Governo terão periodicidade anual. A pedido de um Estado Membro poderão ser convocadas reuniões extraordinárias, através da Presidência Pro Tempore, com o consenso de todos os Estados Membros da UNASUL”. Disponível em <http://www.unasursg.org/uploads/cb/f2/cbf2f9520ad902831b19a51f5b886959/Tratado-Constitutivo-versionportugues.pdf.>. Acesso em 05 out 2013. 131 onforme o disposto no artigo 12, do Estatuto do onselho: “Artículo 12 l Consejo realizar anualmente reuniones ordinarias, según el criterio de rotación de la Presidencia Pro Tempore de UNASUR”. Disponível em <http://www.unasursg.org/uploads/11/27/11272dcbdadb1a64e7b7daa8a627ed68/Estatutos-de-creacion-Consejo- 96 questões por meios bilaterais ou trilaterais – obsta o enquadramento de ambos na definição de regimes de segurança. Por esse motivo, as instituições estudadas podem ser classificadas como “quasi-regimes”, parafraseando o termo cunhado por Keohane. Em suma, a criação de ambas as organizações e seus respectivos mecanismos de atuação conjunta, contribui para a materialização de um ambiente que favorece as possibilidades de cooperação, mas que, em virtude da sua não unanimidade – haja vista a persistência de uma série de tratados e acordos bilaterais em detrimento do multilateralismo, sobretudo no âmbito da OEA e na área de segurança –, não podem ser consideradas efetivamente como regimes internacionais. 4.3.3 Convergência de expectativas Um dos grandes obstáculos à cooperação, conforme enfatizado pela teoria dos jogos e pelo dilema do prisioneiro, consiste nas assimetrias de informações. Em ambos os casos, a ausência ou as falhas no processo de comunicação conduzem a resultados não cooperativos, mesmo quando existem interesses comuns. Neste contexto as iniciativas no sentido de garantir uma maior transparência às ações e gastos militares, propostas tanto no âmbito da OEA, quanto no CDS, podem ser extremamente eficazes, assegurado justamente a convergência de expectativas, aparentemente o elemento mais problemático para a caracterização dos regimes internacionais132. No que concerne à perspectiva hemisférica, os Estados Unidos exerceram um papel imprescindível, primeiramente ao impulsionar a instituição de um mecanismo de cooperação continental e, atualmente por representar uma disparidade em termos de capacidades com relação aos demais países, o que contribui para o aumento das desconfianças e dificulta o engajamento em estruturas multilaterais. As assimetrias entre a potência estadunidense e as nações sul-americanas são expostas, inclusive, quanto aos interesses perseguidos no âmbito internacional e às ameaças consideradas relevantes em termos de política externa. Segundo Rudzit, o momento de criação da OEA e do TIAR, compreendido entre 1946 e 1960, corresponde ao único período histórico em que os Estados Unidos e os países da América do Sul foram efetivamente parceiros, em uma aliança estratégico-militar (RUDZIT, 2013, p. 131). Ainda de acordo com o autor, no momento em que a União Soviética conquista a capacidade de alcance intercontinental, com a operacionalização de mísseis balísticos, a de-Defensa-Suramericano.pdf>. Acesso em 05 out 2013. 132 A convergência de expectativas é dita como problemática em virtude de demandar uma análise acerca das percepções mútuas mantidas pelos atores, ou seja, um dado extremamente impreciso e suscetível à constantes e abruptas variações. 97 América do Sul torna-se tão vulnerável quanto qualquer outra área do globo, diminuindo o interesse norte-americano na região. A partir de então as divergências entre os interesses estadunidenses e da região sul acentuaram-se gradativamente, com destaque para o fim da Guerra Fria e a eliminação da ameaça soviética. A desconfiança dos Estados sul-americanos em relação aos Estados Unidos intensificou-se na medida em que a história demonstrava a relativização – por parte do governo norte-americano – de princípios como a soberania e a não ingerência, em prol de uma suposta defesa da segurança internacional. Cada vez mais consolidava-se no continente sulamericano a necessidade de estabelecer uma instituição regional livre da intervenção estadunidense. Se a relutância em entregar-se a arranjos cooperativos é inerente aos temas relativos à segurança e defesa, essa aversão se agrava quando os riscos da deserção de um dos membros é somado a uma capacidade bélica extremamente superior aos demais. No âmbito da OEA, praticamente nenhuma medida sancionatória poder ser implementada contra os Estados Unidos, ou mesmo contra outro país sem a anuência deste. Essa gritante assimetria acarretou em um descrédito por parte dos países e em uma consequente perda de legitimidade do mecanismo hemisférico. Demais disso, o comportamento dos atores regionais parece ser bastante explicado por uma das principais premissas realistas estudadas no capítulo 1, qual seja, a primazia do interesse nacional. Embora não refutem as iniciativas multilaterais, os países parecem estar dispostos a cooperar apenas na medida em que essa cooperação seja benéfica e não comprometa a sua independência em face dos demais. E, em se tratando de uma organização que poucas vezes conseguiu ultrapassar o campo da retórica e alcançar a prática, muitos atores optam por mecanismos bilaterais, mais eficientes e menos burocratizados. Entretanto, a organização não perdeu a sua relevância, em que pese a persistência de inúmeras suspeitas entre os países membros. As causas do atual enfraquecimento da OEA, podem ser sistematizadas em torno de duas questões principais: (i) a incapacidade da instituição em atenuar as profundas assimetrias regionais; (ii) as acusações de que a organização constitui muito mais um instrumento da hegemonia americana, do que um efetivo mecanismo de atuação multilateral (SANTOS, 1998, pp. 159-160). No entanto, os países não parecem ter desistido por completo do mecanismo, como se depreende da significativa presença registrada na 43ª Assembleia Geral, ocorrida em junho deste ano e cujo tema central 98 foi “Por uma política integral face ao problema mundial das drogas nas Américas” 133. Na reunião estiveram presentes representantes dos trinta e cinco países membros da organização e, em que pese tenham-se discutidos questões polêmicas tal como criminalização do uso de drogas134, os líderes políticos reafirmaram a necessidade de se garantir um “enfoque integral, fortalecido, equilibrado e multidisciplinar” desta que constitui uma ameaça à segurança nacional de todos os países da região135. Se por um lado a presença física do poderio militar norte-americano – a exemplo do “Plano olômbia”, do “ omando Sul”136 e da “IV Frota” –, intensifica o receio decorrente da disparidade em termos de poder, por outro o incentivo às medidas de confiança recíproca – sobretudo por meio da JID e do CID –, traduzem uma tentativa conjunta de reduzir as incertezas e aumentar as possibilidades de cooperação. Os avanços obtidos nesse sentindo são inquestionáveis, haja vista os inúmeros empreendimentos multilaterais na área de segurança. Também nesse sentido, a EA pode ser enquadrada na definição de “quasi-regimes”, pois embora os países não estejam integralmente comprometidos com os mecanismo, existem iniciativas no sentido de aumentar a confiabilidade dentro das estruturas multilaterais e construir uma posição comum no que concerne às questões de segurança. Sob a mesma perspectiva, a UNASUL e o CDS, aproximam-se ainda mais da teoria dos regimes internacionais. Isso porque, diferentemente do que se poderia pensar em uma análise superficial, os padrões de cooperação não são representados unicamente por hipóteses extremistas de total ausência ou presença de conflitos, The difficulties of cooperating are illustrated best not by either purely conflictual games (in which discord appears to be determined by the structure of interests) or fundamentally cooperative ones (in which only melodramatic bad luck or its equivalent can prevent cooperation), but by what Thomas Schelling has called ‘mixed-motive games": games characterized by a combination of "mutual 133 Disponível em <http://www.oas.org/es/centro_noticias/comunicado_prensa.asp?sCodigo=PG-010>. Acesso em 07 out 2013. 134 A controvérsia centrou-se sobretudo na discussão acerca da necessidade de combater igualmente a produção e o consumo de drogas. Os Estados Unidos manteve-se firme em defesa da criminalização do uso de narcóticos enquanto outros – como Guatemala, México e Bolívia – enfatizaram o fracasso do atual modelo de luta antidrogas, ressaltando a necessidade de um combate voltado aos centros de demanda. Disponível em <http://noticias.terra.com.br/mundo/debate-sobre-drogas-revela-divergencias-em-assembleia-daoea,4eceb1699831f310VgnCLD2000000dc6eb0aRCRD.html>. Acesso em 09 out 2013. 135 Disponível em <http://www.oas.org/es/centro_noticias/comunicado_prensa.asp?sCodigo=PG-010>. Acesso em 09 out 2013. 136 “ omando Sul é a organização oficial dos Estados Unidos mais engajada nos temas latino-americanos, possui o maior número de pessoas (mais de 1.100 oficiais) designadas para tratar dos assuntos da região do que as outras agências governamentais” (PAGLIA I, 2013, p. 220). 99 dependence and conflict, of partnership and competition’ (1960/1980, p. 89) (KEOHANE, 1984, p. 67) A ideia de mútua dependência e competição, é perfeitamente aplicável à região sulamericana, onde pequenos e médios Estados, até muito recentemente, tiveram sua política externa pautada pela persecução de apoio externo, majoritariamente dos Estados Unidos. Entretanto, uma vez conscientes das imperfeições oriundas deste padrão voltado “para fora”, os países sul-americanos propuseram o estabelecimento de um mecanismo exclusivamente regional. A convergência das expectativas no âmbito sul-americano é facilitada pela interdependência e transnacionalidade das ameaças, nacionais e internacionais, bem como pela similaridade de posição destes países na cena internacional – uma vez que nenhum deles assume o status de grande potência. O desenrolar do processo de integração da América do Sul foi permeado por simultâneas relações de cooperação e competição que, apesar de ainda existentes, culminaram na instituição de mecanismos de fomentação do fortalecimento da confiança recíproca, da diminuição das incertezas e da concertação política, especialmente na área da segurança. Muitos já foram os frutos obtidos a partir do multilateralismo, a exemplo das citadas operações transfronteiriças, promovidas normalmente entre dois ou mais Estados nacionais. Ademais, as “novas ameaças” estudadas no capítulo 2, exigem que se estabeleça um mínimo de cooperação entre as políticas externas dos países afetados. Nesse sentido, em que pese a ausência de uma estrutura coercitiva, a UNASUL e o CDS favorecem a consolidação de uma postura comum por meio do intercâmbio de informações e de uma maior transparência quanto aos assuntos militares. Ainda assim, essa atuação precisa lidar com a existência de uma série de divergências e desentendimentos interestatais. As críticas mais recentes à UNASUL referem-se ao fato de a presidência da organização ter sido concedida pro tempore – na 7ª Cúpula, em agosto de 2013 e após a crise no Paraguai137 – ao Suriname, governado pelo ex-ditador, envolvido com o tráfico de drogas e condenado pela Interpol, Dési Bouterse (ESTADO DE SÃO PAULO, 2013). Ainda em 2013, a operação que transferiu o senador de oposição boliviano – Roger Pinto Molina, suposto 137 Em junho de 2012, após uma intensa crise civil, decorrente da morte de 17 pessoas em um processo de reintegração de posse na região de Curuguaty, o então presidente paraguaio Fernando Lugo foi destituído do cargo, por meio de um processo de impeachment extremamente questionado. Frederico Franco assumiu a presidência, em meio a uma série de ameaças de retaliação pelos países membros da UNASUL e do Mercosul. O Paraguai foi temporariamente “suspenso” de ambos os blocos regionais, até que fossem realizadas eleições democráticas e transparentes. Em julho de 2013, após a posse do novo presidente eleito Horacio Cartes, o Mercosul anulou a referida suspensão, sendo seguido pela UNASUL, que revogou a medida em agosto do 100 perseguido político – da embaixada brasileira em La Paz, ao território nacional, sob a guarda de uma escolta de militares e diplomatas brasileiros (AZEDO; VALADARES, 2013), estremeceu as relações diplomáticas entre os dois países e provocou uma crise no Itamaraty, que culminou na demissão do Ministro das Relações Exteriores, Antônio Patriota138. Embora ambos os governos tenham afirmado que as relações entre eles não seriam afetadas (BBC BRASIL, 2013), o episódio marcou uma falha de integração e concertação estratégica. Além disso, há uma sensação de que o bilateralismo ainda é priorizado em relação ao organismo regional (ALENCASTRO, 2013). Contudo, a despeito desta perspectiva pessimista, foram aprovados, ainda na 7ª Cúpula, diversos de investimentos voltados à infraestrutura e maior interconectividade da região, o que caracteriza pelo menos indícios de um processo de integração capaz de superar o nível ideológico. Em suma, não há como falar em uma total convergência de expectativas, até porque as percepções unilaterais carregam uma subjetividade inerente à cultura de cada país. Da mesma forma, não se pode ignorar os avanços alcançados no âmbito da organização. Ainda que a UNASUL e o CDS não proporcionem o necessário grau de convergência de expectativas capaz de enquadrá-las no conceito de regimes internacionais, ambos os mecanismos exercem um papel fundamental na coordenação do pensamento político regional. mesmo ano (GIRALDI, 2013), (MELITO, 2012), (CARMO, 2012). 138 O ex-ministro passou a ocupar o posto de representante do Brasil nas Nações Unidas. 101 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora tenham-se delimitado três elementos constitutivos dos regimes internacionais, justamente para fins da análise proposta por este estudo, a caracterização de um regime de segurança parece se expressar de forma bastante sutil e, muitas vezes, subjetiva. Ainda que os dois primeiros requisitos – de acordo com os significados aqui empregados – sejam facilmente verificáveis, por meio da existência de um compartilhamento de princípios, normas, regras e uma padronização do processo de tomada de decisões, a terceira condição é extremamente difícil de ser mensurada. As declarações políticas, a adoção e refutação de determinadas posturas, oferecem dados que podem ser interpretados – mas não precisados – como movimentos de convergência ou divergência das expectativas. Além disso, o campo da política externa é instável e imprevisível. Pequenas rupturas nos padrões de comportamento ou movimentos não sinalizados podem desencadear suspeitas muitas vezes irreversíveis. Por outro lado, posturas mais ousadas e aparentemente ameaçadoras – como foi o caso da transferência do senador boliviano patrocinada pelo Brasil – produzem pouca ou nenhuma resposta do país supostamente desafiado. Ambas as situações constituem claros exemplos de como a ciência política e as Relações Internacionais formam um campo de estudo impreciso e inconstante. Ao analisar os problemas concernentes à segurança internacional, no entanto, em que pese a existência de desconcertos pontuais, a interdependência e a transnacionalidade das questões regionais consolidaram uma série de mecanismos multilaterais que efetivamente fomentam e proporcionam a cooperação e coordenação política, ainda que com uma abrangência parcial. A realidade das “novas ameaças” e a ampliação material do conceito de segurança exigiram posturas inovadoras, distintas da clássica cooperação em termos estratégico-militares. Os países se viram obrigados a unir esforços para tratar de temas tradicionalmente discutidos com exclusividade no âmbito doméstico, com o intuito de garantir a segurança dos seus cidadãos em um mundo extremamente globalizado e permeado por ameaças que ultrapassam as fronteiras nacionais. A teoria dos regimes internacionais surge nesse contexto – conforme apontado na Introdução e no Capítulo 1 – como uma tentativa de explicar os processos cooperativos sem abandonar os princípios basilares da teoria realista. Dessa forma, embora o enfoque da teoria esteja voltado sobretudo à Economia Política Internacional e aos arranjos multilaterais econômicos, não se descarta a possibilidade de aplicar o raciocínio proposto às questões de segurança. Os regimes, econômicos, ambientais ou de segurança, são caracterizados por um 102 processo de interação político e social que amplia as possibilidades de cooperação interestatal na ausência de uma autoridade superior hierárquica com poderes sancionatórios. Ou seja, a dinâmica proposta pela teoria dos regimes abrange tanto as possibilidades de coordenação política quanto os princípios realistas da soberania e da supremacia do interesse nacional. Pode-se concluir, inclusive, que por consolidarem mecanismos de cooperação na ausência de uma autoridade supranacional, o aparecimento dos regimes precede o estabelecimento das organizações internacionais, embora isso não constitua necessariamente a regra. Entretanto, no caso da OEA e da UNASUL, a formalização de ambas as instituições não afasta a possibilidade de identificação de um regime, muito pelo contrário. Em virtude da baixa institucionalização, da predominância de mecanismos intergovernamentais, da ausência de um órgão com legitimidade para impor sanções e, sobretudo, da ênfase no diálogo, na manutenção de fóruns de debate e na construção de um pensamento comum, as duas organizações coadunam com a lógica proposta pela teoria dos regimes internacionais. Com o fim da II Guerra Mundial e a assinatura da Carta das Nações Unidas há uma mudança de enfoque no campo dos estudos estratégicos. Já nesse cenário inicia-se um movimento de priorização das posturas multilaterais, com o intuito de prevenir a ocorrência de novos conflitos de proporções globais. Entretanto, o predomínio da abordagem coletiva foi efêmero e a segurança nacional permaneceu como principal parâmetro interpretativo até o fim da Guerra Fria. O arrefecimento da dicotomia leste-oeste pôs em cheque o próprio modelo da balança de poder, na medida em que, com a intensificação do fenômeno da globalização, os riscos são gerados independentemente da atuação individual dos Estados nacionais e, sendo transnacionais, são comuns a todas as unidades políticas. Em virtude dessa “nova realidade”, a literatura passa a incluir uma série de temas não militares – tais como o terrorismo, o tráfico de drogas, a pobreza, os direitos humanos, o meio ambiente, a explosão demográfica, a economia e a proliferação das armas de destruição em massa – nas suas análises de segurança. O conceito de segurança nacional, embora não seja desconsiderado, é englobado por uma perspectiva mais ampla, a partir da acepção de que os problemas transnacionais demandam respostas transnacionais. Confrontados pela necessidade de adotar políticas coordenadas e conferir uma abordagem multilateral aos diversos fatores que produzem insegurança, que se dispersam e interagem, concomitantemente, dentro e fora das sociedades nacionais, os Estados veem-se compelidos a ceder parte da sua soberania em prol de uma maior segurança no Sistema Internacional. Essa relativização traduz-se no surgimento de uma série de acordos e tratados, bilaterais e multilaterais, bem como na cristalização de mecanismos internacionais com o 103 intuito de estabelecer uma concertação política. Justamente neste movimento se enquadra a teoria dos regimes internacionais. As preocupações com a segurança hemisférica, no âmbito do continente americano, surgem ainda no século XIX, com o movimento bolivarianista e a proclamação da Doutrina Monroe. A existência de variáveis históricas comuns fez com que estes países, movidos pelo medo em relação às antigas metrópoles europeias e pela fragilidade das instituições locais em garantir a estabilidade regional, buscassem consolidar uma rede cooperativa, em um processo que culminou na criação de estruturas como a Junta Interamericana de Defesa (JID), o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) e a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA). Instituídos já nos primeiros anos do pós-Guerra, estes mecanismos dominaram as perspectivas de segurança continentais no decorrer de toda a Guerra Fria, mantendo os países unidos em uma coalizão liderada pelos Estados Unidos e preocupada com a expansão de um inimigo comum, o comunismo soviético. O fim da Guerra Fria trouxe mudanças extremamente relevantes para o campo das Relações Internacionais, especialmente no que tange às matérias de segurança e defesa. Além da já mencionada redefinição das ameaças, para a inclusão de uma série de novos temas e atores, a eliminação do “perigo comunista” abriu novas possibilidades de cooperação no âmbito regional. A partir da década de 1960 iniciou-se, no âmbito da América Latina, uma série de inciativas voltadas à integração. Posteriormente, a superação do padrão competitivo e o estreitamento entre os governos brasileiro e argentino, na década de 1970, foram fundamentais para a estruturação das bases cooperativas regionais. Além disso, o intenso desenvolvimento das economias centrais em meio à globalização e a incapacidade institucional dos países sul-americanos, impulsionaram a criação de mecanismos capazes de defender a democracia e a estabilidade local, bem como de evitar a marginalização da região no Sistema Internacional. Todavia, apenas nos anos 2000, a partir de uma proposição do governo brasileiro, iniciaram-se as reuniões presidenciais que, em 2004, resultariam na instituição da Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), posteriormente rebatizada de União das Nações Sul-Americanas (U ASUL). A organização, baseada em uma “identidade sulamericana compartilhada e valores comuns” (Declaração de usco, 2004), buscava o aprofundamento do diálogo entre os países, o fortalecimento da integração regional, a coordenação dos instrumentos e políticas voltados ao combate das “novas ameaças” e a promoção de um intercâmbio de informações e experiências em matéria de defesa. Em 2008, a aceitação da proposta de estabelecimento de um fórum consultivo de cooperação e 104 integração, voltado às questões de segurança e defesa, materializou, no âmbito da UNASUL, a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS). Uma vez delimitados o referencial teórico e o processo histórico de integração regional, o objetivo deste trabalho concentrou-se na análise de ambas as organizações – OEA e UNASUL –, bem como dos mecanismos decorrentes destas – JID, TIAR e CDS – sob a ótica da teoria dos regimes internacionais. Para tanto, o conceito de regimes foi divido em três elementos fundamentais: (i) a existência de um conjunto compartilhado de princípios, normas e regras; (ii) a padronização do processo de tomada de decisões; e (iii) a convergência das expectativas. Em que pese a existência de diferentes percepções acerca das inseguranças e do tratamento ideal a ser disponibilizado a estas ameaças, a existência de um conjunto de princípios, normas e regras compartilhados consolida-se a partir da ratificação dos tratados constituintes de ambas as organizações. Tanto na Carta da OEA, quanto no Tratado Constitutivo da UNASUL, estão dispostos princípios, objetivos gerais e específicos, normas e procedimentos com os quais os países concordaram no momento de assinatura dos documentos. A ausência de uma autoridade superior hierárquica capaz de impor sanções aos países que descumprirem tais determinações, não exclui a possibilidade de identificação de um regime internacional, uma vez que a própria definição de regimes, pressupõe a “ausência de uma ordem política hierárquica e mecanismos de implementação de sanções” (HE Z, 1997). Quanto ao segundo elemento conceitual, a padronização dos procedimentos de tomada de decisão, traduz-se na anuência expressa pelos países ao estabelecer mecanismos decisórios multilaterais, com o intuito de deliberar conjuntamente acerca de temas que lhes são comuns, através de um rito previamente estabelecido. Também nesse aspecto, a existência de uma Assembleia Geral no âmbito da OEA e de um Conselho de Delegados no âmbito da JID, ambos encarregados de decidir as diretrizes principais a serem adotadas pelas organizações, corresponde a uma tentativa de padronização dos processos decisórios. O Conselho de Chefas e Chefes de Estado e de Governo e o conjunto de Ministras e Ministros de Defesa, referentes à UNASUL e ao CDS, respectivamente, consolidam-se como espaços de diálogo voltados à construção de uma postura una que não exclui a possibilidade de atuação unilateral. Em suma, encontra-se à disposição dos países uma série de mecanismos voltados à tomada de decisões conjunta, tanto na esfera hemisférica quanto na esfera regional. Entretanto, a permanente preferência dos líderes políticos pela realização de acordos e tratados bilaterais em detrimento do multilateralismo, impede a caracterização de tais instituições como efetivos regimes de 105 segurança. O último e mais complexo dos elementos conceituais consiste na verificação da convergência de expectativas. De fato, a mensuração acerca das percepções recíprocas dos atores demandaria uma profunda análise a partir das teorias construtivista e crítica, que trabalham tanto com a interação entre ideias, capacidades materiais e interesses no âmbito doméstico dos Estados nacionais, como com a influência exercida pelo produto deste diálogo no Sistema Internacional. Tal apreciação, entretanto, não foi o foco deste estudo, que se concentrou essencialmente nas manifestações mais expressivas das diretrizes de política externa. Sob esta perspectiva, pode-se dizer que as divergências – tanto no âmbito da OEA, quanto da UNASUL – são profundas e difíceis de serem superadas, o que se percebe pela existência de uma desconfiança generalizada. Todavia, o incentivo às medidas de fortalecimento da confiança recíproca, como prioridade nas políticas de ambas as organizações, contribui justamente para uma possível consolidação futura desse terceiro elemento, promovendo ambientes de debate favoráveis à construção de um pensamento político comum para a região. Embora a consolidação, de uma identidade regional ou de um pensamento comum, esteja longe de ser concretizada – caso seja viável –, se considerarmos o lapso temporal e a quantidade de episódios históricos que culminaram na formação dos atuais padrões comportamentais, a superação da desconfiança regional e das posturas competitivas pode ser identificada no horizonte utópico poetizado por Eduardo Galeano: “ella está en el horizonte. Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. Para que sirve la utopia? Para eso sirve: para caminar”139. 139 GALEANO, 2001, p. 230. 106 REFERÊNCIAS AMORIM, Celso L. N. O Brasil e os novos conceitos globais e hemisféricos de segurança. In, PINTO, J. R. de A.; ROCHA, A. J. R. da; SILVA, R. D. P. da (Org.). Reflexões sobre defesa e segurança: uma estratégia para o Brasil. Série Pensamento Brasileiro sobre Segurança e Defesa. v. 1. Brasília: Ministério da Defesa, Secretaria de Estudos e de Cooperação, 2004. ARIAS, Aimee Kanner. e K. VAN MAANEM, GUILLERMO. Segurança na América do Sul: a Unasul como ator de segurança regional. In, OLIVEIRA, Marcos Aurelio Guedes de. Cultura de defesa Sul-Americana. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2013. pp. 97-116. ARRIGHI, Jean Michel. OEA, Organização dos Estados Americanos. Barueri, SP: Manole, 2004. – (Entender o mundo; v. 4). AVILA, Carlos Frederico Domínguez Avila; ARGUELHES, Delmo de Oliveira. História da américa do sul e cultura estratégica: estão os conflitos do passado presentes hoje? 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