marília gabriela patrick Waterhouse paloma jorge

Transcrição

marília gabriela patrick Waterhouse paloma jorge
Revista do Itaú Personnalité n o 21 | Ano 6
marília gabriela
janeiro | fevereiro | março
Marília Gabriela | Patrick Waterhouse | Paloma jorge Amado | Morito Ebine
“Maturidade é ficar mais
confortável na própria pele”
Patrick Waterhouse
Paloma jorge Amado
Morito Ebine
exemplar distribuído nas
agências personnalité
EDITORIAL
F
echar um ano. Abrir outro. Momento de ponderar e refletir. Subtrair excessos,
somar acertos. Buscar novidades. A última edição de 2012 é o nosso balanço e, ao
mesmo tempo, nossa lista de desejos. Com ela, encerramos um calendário repleto de
histórias magníficas e começamos o sexto ano da Revista Personnalité.
O que você, leitor, tem em mãos, portanto, é um convite para a nossa festa. Um
aperitivo para o que planejamos para os próximos meses. Sempre utilizando a receita
que tem nos dado motivo para tantas alegrias: histórias de pessoas, experiências únicas. Passado, futuro, memórias, desafios e planos de gente que, à primeira vista, é interessante e depois, com mais profundidade, se torna ainda mais.
Desde dezembro de 2007, quando lançamos a nossa primeira edição, seguimos
essa fórmula para a escolha dos personagens. Por isso, nada melhor do que visitar
Salvador e o baú de memórias de Paloma Jorge Amado, a filha de Zélia Gattai e Jorge
Amado. Tudo para celebrar o centenário de nascimento de seu pai, “o Pelé da literatura”, nas palavras escolhidas pelo jornal The New York Times.
Outra craque, desta vez na arte de conversar, acabou se tornando a capa da edição.
Marília Gabriela, a jornalista que papeou com as pessoas mais importantes do nosso
tempo, sentou do outro lado da mesa e abriu detalhes e opiniões que não costuma falar. Gabi, como conta a partir da página 34, se define em uma fase “reclusa”.
Para abrir a edição, apresentamos o jovem diretor criativo Patrick Waterhouse, que
tem a missão de recuperar o fôlego da prestigiada revista Colors, publicação mantida
pela Benetton e que marcou o jornalismo dos anos 1990. E, para encerrar o ano e a
edição, subimos a Serra da Mantiqueira atrás do raríssimo talento do artesão Morito
Ebine. O japonês, radicado em Santo Antônio do Pinhal, é alguém que acredita na qualidade lenta e manual. Alguém capaz de criar móveis úteis e duradouros, sem utilizar
um prego. Para ele, eis o segredo de um bom produto. Como diz o artesão – que na
verdade prefere ser chamado de marceneiro –, no Japão existem construções tão bem-feitas que são capazes de durar mil anos.
Com a lição de Morito, entramos em um ano novo na mesma toada: com uma
revista para ler com calma e prazer. Uma revista que aposta na profundidade e na simplicidade de uma boa história, de um bom tête-à-tête. Nossa meta, como a de Ebine,
é entregar uma edição que dure – no papel, em nosso site ou no iPad – talvez não mil
anos, mas o suficiente para virar um registro da época em que vivemos.
michael hughes/laif
Feliz 2013!
Um abraço e boa leitura,
André Sapoznik
Itaú Personnalité
foto com um suvenir de don quixote tirada na espanha
por Michael Hughes. O fotógrafo inglês explica o projeto
em que enquadra esse tipo de lembrancinha na página 62
PS. Ótima notícia: enquanto fechávamos a edição, soubemos que a Revista Personnalité
foi a vencedora do 26o Prêmio Veículos de Comunicação, na categoria Revista Customizada. Para conquistar o reconhecimento de ser a melhor publicação customizada do
Brasil, ficamos entre as três finalistas, selecionadas por 500 dos principais dirigentes
de mídia do país. A seleção dos títulos aconteceu por indicação espontânea e coube aos
membros da Academia Brasileira de Marketing escolher o vencedor. Esse prêmio é para
você, leitor, que nos prestigia com sua atenção. Obrigado!
Colaboradores
expediente
Editor Paulo Lima Diretor Superintendente Carlos Sarli Diretor
Editorial Fernando Luna Diretora de Criação Ciça Pinheiro Diretora
de Criação Adjunta Micheline Alves Diretora de Publicidade e
Circulação Isabel Borba Diretora de Eventos e Projetos Especiais
Proprietários Ana Paula Wehba Diretor de Núcleo Tato Coutinho
Diretora de Desenvolvimento de Negócios Adriana Naves Diretor
Financeiro Renato B. Zuccari
O paulistano Felipe Hellmeister, 40 anos, mais
conhecido como Fepa, fotografa desde os 19 anos e
já colaborou com revistas como Trip, VIP e Tpm. Seu
trabalho integra o acervo permanente do Masp, em
São Paulo. Há dois anos, atua também como diretor
de filmes publicitários. Para esta edição, Fepa
clicou a capa com Gabi. “Ela é incrível”, resume.
“Superinteligente, sabe o que quer. Decidida, posa
como uma modelo profissional, conhece seus
melhores ângulos. Muito fotogênica!”
É nas ruas, aprendendo com os entrevistados, que
Millos Kaiser, 26 anos, mostra a verdadeira
vocação para a reportagem. “O jornalismo me leva a
conhecer pessoas e lugares que eu não conheceria
em nenhuma outra profissão”, comenta. “Quanto
mais tempo na rua, melhor.” Ele divide essa paixão
com o ofício de DJ. Nesta edição, Millos conta
a história da construção do Sesc Pompeia, que
completou 30 anos. “Foi um prazer me aprofundar
nos detalhes do projeto de Lina Bo Bardi.”
fotos: arquivo pessoal / danilo hideki abe / zé gabriel / andre vilas boas
A jornalista paulistana Rosane Queiroz, 42,
assina textos para revistas como Veja, Luxo e
Lola. Colabora para a Revista Personnalité há três
anos, na seção Cá entre Nós. Nesta edição, foi a
Salvador conversar com Paloma Amado sobre
suas lembranças do pai, Jorge Jorge Amado.
Depois de publicar Só – Dores e delícias de morar
sozinha (editora Globo, 2004), Rosane toca seu
novo projeto: um livro-reportagem, pela editora
Tinta Negra, sobre as mulheres que inspiraram
canções da MPB.
fotos: pedro loes / arquivo pessoal / arquivo pessoal / mariana caldas
Após assinar a matéria de capa com Gal Costa na
edição passada, o jornalista carioca Eduardo
Logullo retorna para sentar cara a cara com
Marília Gabriela. Há cinco anos trabalhando como
roteirista ao lado de Gabi, Eduardo conduziu o
papo às vésperas de sair em férias para Liubliana,
na Eslovênia. “O depoimento que Gabi deu para
a entrevista de capa desta edição é algo bastante
raro. Ela nunca fala de modo tão aberto para a
imprensa”, diz Logullo.
Diretor de Redação Décio Galina Projeto Gráfico e Direção de Arte
Elizabeth Slamek Editora Lia Bock Editor Contribuinte Edmundo
Clairefont Produtora Executiva Kika Pereira de Sousa Assistente de
Produção Bruna Serrano Editora Executiva de Conteúdo Digital
Eliana Castro Moderador da Fan Page Luiz Henrique Brandão
Repórter do Site Fernanda D’Angelo Departamento Comercial
Publicidade Diretor de Publicidade Heitor Pontes Supervisora de
Projetos Especiais e Planejamento Comercial Ana Carolina Costa
Oliveira Assistente Comercial da Diretoria Bruna Ortega Gerente
de Publicidade Mercado Segmentos Claudia Atala Coordenadora
Comercial e Atendimento Vanessa Soares Gerentes de Contas
Flavia Marangoni, Paulo Paiva e Roberta Rodrigues Executivos de
Contas Marcelo Milani, Thais Meneghello, Vivian Viviani e Gabriela
Llovet Gerente de Contas On-line Marco Guidi Executiva de Contas
On-line Fernanda Siqueira Assistente Comercial On-line Sharon
Ajzental Tráfego Comercial Aline Trida Para Anunciar publicidade@
trip.com.br Representantes International Sales Multimedia, Inc.
(USA) +1-407-903-5000 [email protected] Argentina
Roberto Rajmilevich [email protected] BA Romário Júnior DF Alaor
Machado MG Rodrigo Freitas PE Wladmir Andrade PR Raphael
Muller RJ Juliana Rocha RJ (Trip e Tpm) X² Representação RS/
SC Ado Henrichs SE Pedro Amarante SP Interior Daniel Paladino
Pesquisa de Imagens Aldrin Ferraz Bibliotecário Daniel de Andrade
Estagiária Nataly Rodrigues Produção Gráfica Walmir S. Graciano
Produtores Gráficos Cleber Trida Tratamento de Imagens Roberto
Longatto e Roberto Oliveira Revisão Ecila Cianni (coordenação)
– Adriana Rinaldi, Janaína Mello, Márcia Costa e Marcos Visnadi
Projetos Especiais e Eventos Diretora Ana Paula Wehba Assistentes
Pedro Toledo e Mariana Beulke Editora de Arte Camila Fank
Comercial Trade e Circulação Diretora Daniela Basile Analista de
Trade Renata Vilar Assistente de Trade Fábio Pinheiro Gerente
de Circulação Adriano Birello Assistente de Circulação Vanessa
Marchetti Projetos Digitais Diretor de Mídias Eletrônicas de
Custom Publishing Beto Macedo Editora de Arte Débora Andreucci
Negócios Diretor de Negócios Jan Cabral Gerente de Negócios
Izabella Zuanazzi Núcleo de Vídeo Coordenação Ana Rosa
Sardenberg Videomakers Vinicius Nora e Marco Paolielo Editor
de Vídeo Pitzan Oliveira Colaboraram nesta edição Anna Paula
Buchalla, Bárbara Soalheiro, Carol Quintanilha, Eduardo Logullo,
Gonçalo Junior, Leticia Castro, Millos Kaiser, Rosane Queiroz, Thiago
Lotufo (texto), Carol Quintanilha, Felipe Hellmeister, Marcelo Correa,
Márcio Lima, Marcos Vilas Boas, Nelson Mello, Victor Affaro (fotos),
Catarina Bessell (ilustração), Juliana Carletti (produção) Comitê Itaú
responsável por esta edição Fernando Chacon, André Sapoznik,
Cristiane Portella, Danielle Sardenberg, Ligia Benavente e Mariana
Couto de Arruda Colaboradores Marcello Barcelos, Maria Pestana e
Mariana Salles – DPZ Propaganda
Capa Marília Gabriela fotografada por Felipe Hellmeister
Revista Personnalité é uma publicação trimestral da Trip
Editora e Propaganda em parceria com o Itaú Personnalité.
Endereço para Correspondência: rua Cônego Eugênio Leite,
767, 05414-012, São Paulo, SP.
E-mail: [email protected]
www.tripeditora.com.br
A Trip Editora, cons­ci­en­te das questões am­bi­en­tais e sociais,
utiliza papéis Suzano com certificado FSC
(Forest Stewardship Council) para
impressão deste material.
A Certificação FSC garante que uma
matéria-prima florestal provenha de
um manejo considerado social,
ambiental e economicamente
adequado. Impresso na Gráfica
Log&Print – Certificada na Cadeia de
Custódia – FSC
Colaboradores
Mineira e torcedora do Atlético Mineiro,
Bárbara Soalheiro, 32 anos, é uma
jornalista com espírito inquieto. Trabalhou cinco
anos na editora Abril, onde dirigiu a revista
Capricho. Na Itália, foi editora-chefe da revista
Colors. Hoje, dedica seu tempo à Mesa&Cadeira,
empresa que criou e na qual realiza workshops
com profissionais renomados. Bárbara perfilou
Patrick Waterhouse, diretor da Colors. “É ótimo
quando se conhece muito bem o assunto do
seu perfilado”, diz.
Formada em arquitetura pela Universidade
de São Paulo, Catarina Bessell, 28 anos,
se interessou por desenhos logo que ingressou
na faculdade. Ilustradora e designer há cinco
anos, colabora para Folha de S.Paulo, O Estado
de S. Paulo e revistas das editoras Abril e Globo.
Atualmente, participa da exposição no MIS Arte
e cinema, com releituras de cartazes do cinema.
Ela fez as pinturas que ilustram o depoimento
sobre a Provence.
Jornalista há 20 anos, Thiago Lotufo, 38
anos, é diretor de redação da revista da GOL e
já escreveu para publicações como IstoÉ, Trip
e Superinteressante. Nesta edição, assina o
perfil de Morito Ebine, um mestre da arte da
marcenaria japonesa. A ideia surgiu há mais de
um ano, quando Thiago visitava a pacata cidade
de Santo Antônio do Pinhal. “Foi uma verdadeira
descoberta conhecer a complexidade de fazer
cadeiras e móveis em madeira sem utilizar
nenhum parafuso.”
O fotógrafo paulistano Marcos Vilas Boas,
40 anos, já teve suas imagens reproduzidas em
revistas como Bravo!, Rolling Stone e Vogue ao
longo de quase 20 anos de carreira. O curioso é
que, muito antes de aprender a manusear uma
câmera, sua vontade era ser marceneiro. Nada
melhor, então, que Marcos subisse a Serra da
Mantiqueira para enquadrar Morito Ebine em
sua oficina. “O que mais me encantou foram
as ferramentas japonesas. Elas remetem a uma
marcenaria em extinção no Brasil.”
sumário
10 Cá entre nós
Música, viagem, gastronomia e filmes –
dicas de quem sabe viver bem
15 Prestígio
Do Oiapoque ao topo
A foto de Alex Atala no norte do Amapá é um marco na viagem
que fez pelo Brasil por 120 dias, em 2002, e que serviu como
semente de seu primeiro livro
16
52
70
16 Lições de brasil
Patrick Watherhouse está há um ano no comando da revista
Colors. Com a missão de retomar a relevância da mítica
publicação italiana, o designer inglês passou duas semanas
aprendendo a sobreviver em São Paulo
52 Amadas memórias
84 pinceladas de provence
Filha de Jorge Amado e Zélia Gattai, Paloma Jorge Amado celebra
Por 12 anos, a empresária Tetê Etrusco viveu em Provence. Ao
o centenário de nascimento do autor de Gabriela, cravo e canela
voltar ao Brasil, trouxe lembranças que não estão nos guias da
e abre um baú de histórias adormecidas na Bahia
terra que inspirou os melhores quadros de Van Gogh
24 Praia de paulista
Como a arquiteta italiana Lina Bo Bardi transformou uma antiga
62 a viagem do suvenir
fábrica de tambores e geladeiras no Sesc Pompeia, centro
de lazer que completa três décadas e atrai anualmente mais
a pontos turísticos há 13 anos. A página em que exibe o projeto já
de 1 milhão de pessoas
90 Primeira Pessoa
Disciplina felina
recebeu quase 8 milhões de visitas. “Os suvenires são uma espécie
O cantor Otto elege os gatos Branca e Pirulito, com quem vive
de expressão de nossa mortalidade”
no Rio de Janeiro junto à filha Bettina, 6 anos, como ícones
O fotógrafo inglês Michael Hughes enquadra suvenires em frente
da vida familiar
34 Gabi de frente
brasileira e se abre às páginas da Revista Personnalité: “Entendi
que maturidade é ficar mais confortável na própria pele”
44 Cara-metade
Não é fácil viver a aventura de se reinventar para assumir no cinema
o jeito de ser de pessoas consagradas. Conheça o desafio encarado
pelos atores Daniel de Oliveira, Nelson Xavier e Júlio Andrade
34
Em Santo Antônio do Pinhal, na Serra da Mantiqueira, o marceneiro
japonês Morito Ebine transforma madeira em móveis feitos para
márcio lima / marcos vilas boas
o papel que a tornou uma das grandes apresentadoras da TV
70 O artífice
victor affaro / felipe hellmeister
Após 3 mil entrevistas, Marília Gabriela, aos 64 anos, inverte
durar cem anos utilizando a milenar técnica do encaixe
80 O país do presente
O bom momento econômico do Brasil atrai cada vez mais gente
para viver aqui. Conversamos com brasileiros que resolveram voltar
Errata: O nome correto da esposa de Carlos Niemeyer (reportagem
antes da hora e estrangeiros que não sonhavam em um dia adotar
sobre o Canal 100, publicada na edição 20) é Maria Luiza Niemeyer.
São Paulo como lar
Heloísa Niemeyer é prima de Carlos.
cá entre nós
cá entre nós
viagem, gastronomia e cultura – convidados especiais abrem suas preferências
_trilha sonora
Rafael Grampá, quadrinista
_
denise fraga, atriz
o filme da minha vida
Capas de discos e videoclipes ajudaram o desenhista gaúcho
a escolher as músicas que o acompanham desde a infância
A atriz aponta a comédia dramática Eu, você e todos nós
(2005) como exemplo de seu gênero favorito no cinema
por Carol Quintanilha
por rosane queiroz
7
Denise Fraga é uma das raras atrizes capazes de atuar com a
mesma desenvoltura na comédia e no drama. Prova disso é sua
performance, ao lado da amiga Cláudia Mello, em Chorinho, de
Fauzi Arap. A peça fala da vida urbana com “delicadeza, poesia
e humor”. Faz rir e comove. Com diálogos cheios de humor e
emoção, a peça narra a construção da inusitada amizade entre
uma moradora de rua (Denise) e uma solteirona (Cláudia).
3
5
2
4
6
1. “Bye-Bye Love”,
The Everly Brothers
É a primeira música que cantarolei.
Quando tinha 3 anos, meu pai
comprou um som 3 em 1. Veio um
disco de country com esta música.
4. “Love Missile F1-11”,
Sigue Sigue Sputnik
Devia ter 8 anos de idade quando
meu irmão mais velho apareceu
com este disco. A capa me pegou
na hora. Lembro de ter desenhado
a capa com uma caneta Bic em
meu caderno da escola. Me sentia
malandro escutando esta música.
Ninguém na escola a conhecia...
2. “Beat it”,
Michael Jackson
Música para brincar de dançar break.
Toda criança da minha geração
imitou o videoclipe desta música.
3. “Morena de Angola”,
Clara Nunes
Meu pai sempre foi um amante de
samba. Gosto de samba por causa
desta música. Mas tinha certo medo da
capa do disco, não sei bem por quê.
10
5. “Faroeste Caboclo”,
Legião Urbana
Era o hino da minha “gangue”, no final
dos anos 80. Andávamos de skate
e pichávamos a cidade enquanto
cantávamos esta música. Até pouco
tempo atrás existia o muro com o
desenho do Bob Cuspe que fiz na
cidade onde cresci, Cachoeirinha (RS).
6. “Go With The Flow”,
Queens Of The Stone Age
Já adorava rock, mas esta foi uma
das músicas que mais escutei na
minha vida. Me motivou a fazer riffs
de guitarra e ter uma banda de rock.
Hoje, tenho uma, só por diversão, que
se chama Old School Satan.
7. “Horses”,
Bonnie “Prince” Billy
Foi a música que mais escutei
enquanto desenhava minha graphic
novel de estreia, a Mesmo delivery.
Ainda acho uma das canções mais
lindas que já ouvi.
kiko ferrite/acervo trip / divulgação
Ganhador do Eisner Awards, o
Oscar das HQs, e primeiro brasileiro
a publicar um roteiro pela Marvel
Comics (com uma história de
Wolverine), Rafael Grampá, 34 anos,
foi caçar em referências visuais a
trilha sonora que embalou sua vida.
Nenhuma surpresa nisso. Além dos
gibis, ele é diretor de uma produtora
de cinema (a Paranoid). Também
compõe e toca na banda Old School
Satan. Sua lista de canções, claro,
surge de lembranças de capas de
discos e videoclipes.
no sentido horário: na lata/acervo trip / EVERETT COLLECTION / keystone / afp/kobal collection / EVERETT COLLECTION / keystone
1
SOLIDÃO humana
Questionada sobre o filme
preferido, Denise elege
a comédia dramática Eu,
você e todos nós, da jovem
e talentosa diretora norteamericana Miranda July,
como um exemplo desse
estilo que ela reproduz em
Chorinho. “A trama tece
uma rede delicada sobre
a solidão humana. Cria
personagens únicos, que
vivem criativamente.”
A TRAMA
No filme de 2005, a artista plástica Christine Jesperson,
interpretada pela própria Miranda July, é uma mulher solitária,
que divide seu tempo entre suas criações e seu trabalho
como motorista para pessoas idosas ou que não podem
dirigir. Ao levar um de seus clientes a uma loja, ela conhece
Richard Swersey (John Hawkes), um vendedor de sapatos
que a convence a comprar um par mais confortável. Richard
se separou recentemente e mora com seus dois filhos, com
quem tem um relacionamento distante.
ato de protesto
“A cena que nunca esqueço é uma logo no início do
filme, em que Richard está se separando da mulher,
não sabe o que fazer naquela situação e resolve
incendiar a própria mão em frente à casa onde
moravam. Um simples e lindo ato de protesto.”
11
cá entre nós
cá entre nós
_Água na Boca
FABIO BARBOSA, chef
No controle da cozinha do La Mar Cebichería, o chef manauara Fabio Barbosa
se dedica a trazer a São Paulo um dos ícones da gastronomia peruana: o ceviche
_dica de mestre
claudia assef, jornalista e DJ
por Fernanda D’Angelo
De olho no verão, Claudia elabora uma playlist para
você se divertir nas férias de fim de ano
Quando o chef Fabio Barbosa assumiu as panelas do La Mar Cebichería,
em 2008, percebeu o tamanho do desafio de cuidar de um restaurante
especializado em disseminar a tradição da culinária peruana.
“Gastronomia para o peruano é igual ao futebol para o brasileiro”, diz.
Graduado em cuisine e pâtisserie pela Le Cordon Bleu (Londres) e com
passagem pelo hotel Emiliano, Barbosa passou quatro meses no Peru
entendendo a culinária. De lá, voltou com truques para preparar um
soberbo ceviche. Com unidades em Nova York, Bogotá e São Paulo,
a rede La Mar foi criada pelo estreladíssimo chef Gastón Acurio. Fabio,
nascido em Manaus, cumpre à risca o estilo da matriz. Sua missão é
manter as características das receitas originais.
por rosane queiroz
ceviche NIKEI
1. “Her Fantasy”, Matthew Dear
O nome mais quente do techno americano resolveu fazer música com banda. O resultado é incrível!
2. “Ye Ye”, Daphni
Música para brincar de dançar break com o meu irmão. Acho que toda criança da minha geração imitou a
dança/luta de canivetes do videoclipe desta música.
3. “Flash of Light”, Luca C & Brigante, participação de Róisín Murphy
Róisín, ex-Moloko, empresta vocal para uma música que tem jeito de hit do verão.
4. “H.F.G.W. (Canyons Drunken Rage)”, Tame Impala
A banda de rock australiana é queridinha das pistas de dança. Entenda o motivo ouvindo esta música.
5. “Cross Eyed Girl”, Dixlexsix
Quando você achava que a música eletrônica estava na maior mesmice, eis que surge o DixLexSix.
6. “Nickel Ride”, Capracara & The District Union
Groove perfeito para atrair todo mundo para a pista!
7. “Walk & Talk”, Benoit & Sergio
Duplinha querida por DJs de house, Benoit & Sergio fez seu grande hit em 2011. Continua atual.
12
1. O QUE CARACTERIZA A CULINÁRIA PERUANA?
O uso das pimentas locais. Sem esse ingrediente, não se faz culinária
peruana. A gente não adapta nada, tudo tem que ser o mais parecido
com o La Mar de Lima. A gente traz de lá pasta de pimenta, mas já tem
plantação de pimenta peruana em Piedade, no interior de São Paulo.
2. UMA PIMENTA PERUANA.
Os peruanos chamam pimenta de ají. O ají amarelo me encanta.
3. ALGO EM COMUM ENTRE A CULINÁRIA DO BRASIL E a
do PERU?
O uso de coentro, de pimenta e o valor dos elementos locais.
4. SEU CEVICHE PREFERIDO.
Gosto do clássico: peixe, limão e pimenta.
5. SEU PEIXE FAVORITO.
Meu peixe favorito é o mais fresco!
nelson mello
Idealizadora da Disco Baby, festa mensal que
coloca crianças e pais para dançar juntos,
em São Paulo, a jornalista Claudia Assef
entrou em contato com a música de pista
ainda menina, por influência de seus pais, um
casal festeiro que frequentava as noitadas de
discotecas paulistanas dos anos 70. Em 2003,
ela escreveu Todo DJ já sambou – A história do
disc-jóquei no Brasil, livro de referência sobre
a cena da música eletrônica nacional. Além de
pesquisadora, Claudia atua como DJ, com sets
que passeiam pelas batidas techno, house e
electro. Para a Revista Personnalité, a escritora
elaborou uma playlist ideal para o leitor animar
suas festas e passar muito bem o verão.
no sentido horário: gabriel rastelli quintão/vírgula / lost art/divulgação / lost art/divulgação
(1 porção)
Baixe a Revista Personnalité no iPad e confira outras três
receitas de ceviche
Ingredientes
140 g de filé de atum em cubos
100 ml de leite de tigre nikei
10 g de pepino japonês em tiras
10 g de nabo em tiras
2 g de pimenta-dedo-de-moça
picada
2 g de coentro
2 g de cebolinha
5 ml de óleo de gergelim
20 g de abacate em fatias finas
40 g de cebola roxa
2 g de alga nori em tiras
Sal a gosto
Modo de preparo
Temperar o atum com o sal e a
pimenta. Adicionar o coentro,
a cebolinha, o leite de tigre e
misturar. Completar com o óleo
de gergelim, o pepino, o nabo e
a cebola e servir imediatamente.
Decorar com abacate e nori.
Para o leite de tigre nikei
(10 porções)
680 ml de leite de tigre clássico
300 g de base nikei
20 g de base de tamarindo
Modo de preparo do leite
Misture tudo até emulsionar.
13
Base nikei
100 g pasta de ají panca
1 kg de mel
1 l de vinagre branco
100 ml de shoyu
Modo de preparo da base nikei
Adicionar os ingredientes em uma
panela e levar ao fogo médio até
ferver. Diminuir o fogo até que a
base dissolva. (Pasta de ají panca é
um produto importado do Peru.)
Base de tamarindo
750 g de tamarindo
400 ml de vinagre branco
400 g de açúcar demerara
40 g de gengibre
20 g de capim-limão
Modo de preparo da base
de tamarindo
Seguir os passos da base nikei.
Experimente
LA MAR
R. Tabapuã, 1.410.
Tel.: (11) 3073-1213
O restaurante La Mar participa
do Menu Personnalité:
itaupersonnalite.com.br/experiencia
> Menu Personnalité
cá entre nós
_sonhos
bruno de luca, ator
No ar com o programa Vai pra onde?, do Multishow, o apresentador
relembra os bons tempos de Los Angeles e projeta Canadá e Polônia
por rosane queiroz
tv globo/estevam avellar / ringo chiu/zuma/latinstock / Marek Swadzba/shutterstock
los angeles, 2009
jornada inesquecível
“Desde pequeno queria estudar cinema nos
Estados Unidos. Há dois anos, realizei meu
sonho. Passei um mês estudando na New
York Film Academy, em Los Angeles. Encarei
uma rotina de 14 horas diárias de aulas de
roteiro, direção, fotografia, edição, direção
de elenco e produção. Usamos uma parte da
cidade cenográfica da Universal Studios. Uma
das cenas que fizemos foi dentro de uma
limusine com piscina. Com uma câmera de 16
milímetros, registrei tudo. Ouvir o barulhinho
dessa câmera pela primeira vez foi uma das
coisas mais emocionantes da minha vida.”
Polônia
PRÓXIMA PARADA
“Quero conhecer o Canadá e a Polônia.
Primeiro, porque ainda não fui a nenhum
desses países. Depois, porque adoro a cultura
canadense. Sempre me interessou. Já a
Polônia… Bom, é por causa das loiras!”
14
Prestígio | Alex atala
Por Rosane Queiroz
_
Do Oiapoque ao topo
edu simões/arquivo pessoal
A foto de Atala no Amapá é um marco na
viagem que ele fez pelo Brasil por 120 dias, em
2002. Nascia ali o chef que hoje comanda o
D.O.M., o quarto melhor restaurante do mundo
O município de Oiapoque, com cerca de
30 mil habitantes, no norte do Amapá, é
simbólico para o chef Alex Atala. Exemplo da amplitude de seus interesses, a
pesquisa dos ingredientes e receitas mais
escondidos e variados da nossa cultura
marca sua culinária estrelada, consolidada no D.O.M., hoje o quarto melhor
restaurante do mundo, de acordo com
a revista britânica Restaurant. Sentado
diante da inscrição “aqui começa o Brasil”, o retrato ilustra o ponto de partida
– mas não os limites – de seus pratos.
Foi misturando ingredientes autóctones
(como o jambu e o pirarucu, do Norte, os
queijos mineiros e a tapioca nordestina)
com técnicas da gastronomia internacional – sobretudo a da vanguarda espanhola liderada pelo chef Ferran Adrià – que
Atala atraiu atenção mundial.
A foto ao lado faz parte da aventura
em que embarcou em 2002: uma viagem de 120 dias para escrever o livro
Por uma gastronomia brasileira, lançado
no ano seguinte pela editora BEI. “Gosto dela porque me lembra uma conjunção feliz de acontecimentos”, afirma
Atala. “Ir ao Oiapoque para pesquisar e
fotografar para meu primeiro livro, que
teve prefácio do Ferran Adrià, foi um
momento especial.”
Dividido em dois volumes – “Para
ver” e “Para ler” –, Por uma gastronomia
brasileira é quase uma autobiografia. Reconta a trajetória do cozinheiro, nascido
há 44 anos Milad Alexandre Mack Atala,
filho de uma família de classe média de
origem palestina. Oriundo da Mooca,
bairro de São Paulo, mas criado no município de São Bernardo, Alex aderiu ao
estilo punk na adolescência, nos anos
80. A alma de mochileiro lançou o rapaz
para a Europa quando ele tinha 18 anos.
Percorreu diversos países, pintou paredes na Bélgica, até cair em um curso de
gastronomia. De volta ao Brasil, arranjou
trabalho como DJ. Aos poucos, passou
a misturar as duas paixões: música e
gastronomia. Não por acaso, sua estreia
como chef aconteceu no Filomena, bar e
casa de shows que mudou totalmente de
15
perfil por conta das suas criações gastronômicas nos anos 90.
Hoje, além do D.O.M., Alex comanda
os fogões do Dalva e Dito, restaurante
dedicado a receitas brasileiras. “Quero
ser um cara acessível, por isso atendo
bem qualquer pessoa. Acho isso fundamental, porque parte da barreira que
quebrei no Brasil é essa coisa de que
chef tem que ser francês ou tem que ser
gringo ou tem que ser popopó...” Tudo a
ver com um cozinheiro que percorre o
país em busca de uma alta gastronomia
nacional sem o menor popopó.
Personnalité
Patrick Waterhouse
Por Bárbara Soalheiro Fotos Victor Affaro
lições de
brasil
Patrick Waterhouse está há um ano no comando da revista Colors. Com
a missão de retomar a relevância da mítica publicação italiana, o designer
inglês passou duas semanas aprendendo a sobreviver em São Paulo
16
17
Personnalité
P
Patrick Waterhouse
mostrar uma pessoa morrendo de Aids numa cama ou mostrar
uma coleção de órgãos sexuais masculinos – se tornou mais
banal. A Colors sofreu um golpe comum aos pioneiros: teve
sua fórmula copiada à exaustão e viu sua repercussão se diluir.
Patrick Waterhouse comanda a revista desde março de
2011. Passa a maior parte das horas do dia com uma dura, invejada e, por que não, deliciosa missão: impingir nova relevância
e o papel vanguardista que a revista teve e perdeu. “Há momentos em que eu olho para o lado e Patrick está em silêncio,
muito concentrado, fazendo um desenho ou anotando algo”,
diz Cosimo. “Seu rosto parece o de alguém fazendo um grande
esforço, tentando tirar algo muito grande de seu cérebro.” Foi
num momento desses que Patrick Waterhouse chegou a uma
solução: ele fez da Colors um manual de sobrevivência. São
edições temáticas, dedicadas a dividir com o leitor pensatas e
truques para escapar do fim do mundo ou mesmo como viver
melhor sendo feliz.
Em outubro, Patrick Waterhouse veio dividir essas lições
de sobrevivência editorial e pessoal com alguns jovens profissionais e artistas de São Paulo. Na verdade, ele anotou e aprendeu tanto quanto ensinou.
Patrick Waterhouse tem 31 anos. E, se as coisas fossem
como seu pai queria, ele seria brasileiro.
atrick Waterhouse tem o forte sotaque das famílias bemnascidas inglesas. Cresceu em Bath, a 150 quilômetros de
Londres, lugarejo em que a romancista Jane Austen viveu de
1801 a 1806 e que foi descrito por Charles Dickens em seu primeiro romance, As aventuras do sr. Pickwick (1836).
Patrick Waterhouse vive em Treviso, na Itália, a meia hora
de trem de Veneza. É ilustrador, fotógrafo, diretor criativo,
designer e teve obras exibidas na Art Basel, a respeitada feira
de artes, realizada a cada junho na Suíça. Recebeu o Discovery
Award, no festival de fotografia de Arles, famoso por revelar
novos talentos, em 2011, por seu trabalho Ponte City – uma
instalação mostrando a vida no maior edifício residencial de
Johanesburgo, na África do Sul. Certa vez, a pedido da maior
editora de livros da Itália, recriou O inferno de Dante em desenho. Decidiu fazer a história correr como uma espécie de diário de viagem. O trabalho, lançado em 2010, é detalhadíssimo.
Patrick Waterhouse sofre de uma dislexia tão intensa que
é praticamente incapaz de ler qualquer coisa que exceda um
parágrafo. Se a Patrick Waterhouse fosse dada a chance de ler
o que escrevo agora sobre Patrick Waterhouse, ele provavelmente diria: “Bárbara, você poderia ler isto aqui para mim?”.
Patrick Waterhouse é um homem que ama os livros, mas
é incapaz de decifrá-los quando os tem em mãos. Por isso,
tornou-se colecionador e voraz consumidor das versões em
áudio dessas obras.
Patrick Waterhouse é um homem que não lê, mas que
fala de literatura com a intimidade dos apaixonados. George
Orwell está no topo de sua lista. O sul-africano vencedor do
Nobel J. M. Coetzee está quase lá. O dominicano-americano
Junot Díaz é mais um (“Foi dele que roubei a ideia das notas
de rodapé que usamos na Colors”, diz folheando o romance A
fantástica breve vida de Oscar Wao).
Patrick Waterhouse é também um sujeito capaz de tirar
ordem e beleza do caos: sua mesa de trabalho na Fabrica, o
centro de comunicação mantido pela grife Benetton, vive empilhada de papéis avulsos, livros, teclado, monitor, ilustrações,
lembretes de ligações que jamais retornará. “Eu chamo isso
de Sistema Waterhouse: toda essa bagunça esperando para se
transformar numa grande ideia”, diz o editor Cosimo Bizzarri,
que se senta na mesa ao lado.
É nesse caos que é produzida a Colors, a revista trimestral criada em 1991 por Oliviero Toscani e Tibor Kalman e
que balançou um punhado de estruturas do jornalismo. Suas
imagens impactantes e sua capacidade de falar de assuntos
controversos de um modo muito cru, muito didático, fizeram
da publicação uma referência mundial. Mas o mundo mudou,
a internet apareceu, e o que era muito impactante – como
1
18
4
3
fotos 1, 2 e 3. arquivo pessoal / foto 4. divulgação/fabrica
INGLÊS NA PERIFERIA
Anthony Waterhouse, o pai de Patrick, é um homem cheio de
opiniões, avesso a qualquer luxo e engajado em causas políticas. Um sujeito que se apresenta como Antônio, fala português
perfeitamente e anda só de ônibus quando está em São Paulo.
“Ele se considera brasileiro”, diz o filho. Quando tinha 3 anos,
Anthony veio ao Brasil com o pai, o diretor John Waterhouse,
famoso pelos filmes feitos para o governo inglês durante a
Segunda Guerra incentivando cidadãos a economizar água e
energia. “Meu avô era excelente com efeitos visuais”, conta
Patrick. “Chegou ao Brasil para filmar propagandas de cigarro
depois do fim da guerra. A carreira dele estava no auge, viajava
muito. Então, decidiu deixar meu pai e minha tia aqui, com a
senhora que tomava conta deles, uma mulher chamada Maria,
que morava em Itaquera [zona leste de São Paulo].”
Anthony cresceu como um garoto da periferia paulistana.
Quando completou 13 anos, foi enviado para um colégio interno na Inglaterra. “Ele cresceu dividido. Vinha e voltava ao
Brasil sempre que podia. Chegava a passar um ano aqui. É engraçado porque nunca falamos sobre a vida dele em São Paulo,
mas sei que ele se sente em casa”, diz. “Quando a gente vem
junto, não é muito fácil. Meu pai se recusa a usar outro meio
de transporte que não ônibus e me proíbe de falar em público.
2
patrick veio
a são paulo
aprender a
sobreviver:
conviveu
com garotos
de rua do
projeto
social quixote
1. anthony e sua irmã: o pai do designer viveu no brasil nos
anos 1950; 2. retrato de maria: a brasileira que cuidou de
anthony em itaquera, são paulo, morreu no ano passado
Ele não quer que ninguém pense que é gringo.”
Em outubro, Patrick veio pela primeira vez ao Brasil sem
o pai. Foi a primeira vez também que explorou a cidade para
além da zona leste, que falou à vontade, fosse em inglês ou as
duas ou três palavras que sabe em português (além dos clássicos “obrigado” e “por favor”, ele aprendeu a perguntar “tem
glúten?” por causa das restrições alimentares da namorada e
companheira de trabalho, Rebecca Simpson). Deixou de lado
os ônibus. E pegou táxis. Muitos táxis.
PROJETO QUIXOTE
Patrick veio a São Paulo aprender a sobreviver. Os primeiros
dias na cidade, o inglês passou na Vila Mariana, onde fica a
casa do Projeto Quixote, uma organização selecionada pela
Fundação Unhate (braço social da Benetton) pelo trabalho
com crianças em situação de rua. A missão do inglês era usar
19
3. patrick sentado, entre três amigos: quando ainda criança
passou temporadas em são paulo; 4. a mesa de trabalho na
fabrica, na itália, onde comanda a colors
Patrick Waterhouse
2
_
Uma revista sobre
o resto do mundo
Em 1990, Oliviero Toscani (o homem por trás de toda a estratégia
de comunicação da marca Benetton) entrou no escritório de Tibor
Kalman (do estúdio M&Co, em Nova York) e perguntou: “Você
20
projetos de patrick: 1. a premiada série de fotos ponte city;
2. o trabalho no projeto social quixote, em são paulo; 3. capa
italiana da versão ilustrada de o inferno de dante alighieri
pode desenhar uma revista para a Benetton?”. Ao que Tibor res-
4
4. divulgação/fabrica
3
1. mikhael subotzky e patrick waterhouse/cortesia goodman gallery / 2. rebecca simpson / 3. divulgação/fabrica
1
Personnalité
pondeu: “Só desenhar, não. Criar, editar e desenhar, sim”.
Um ano depois, os dois lançavam a primeira edição da Colors.
“A mensagem desta revista é que sua cultura (seja lá quem você
for) é tão importante quanto a nossa cultura (seja lá quem nós
formos)”, escreveu Tibor. Parece óbvio, num mundo em que até
mesmo a palavra globalização já ficou velha, mas, em 1991, antes
arte, narrativa e fotografia para que o grupo de 25 garotos e
garotas contasse como é sobreviver nas ruas de São Paulo.
Como sempre, Patrick trabalhou junto com Rebecca –
como ele, nascida em Bath. Há um ano, ela se mudou para
Treviso e agora cuida para que seus e-mails sejam lidos e
respondidos, organiza sua agenda, os pedidos de imprensa e o
acompanha ao redor do mundo. É uma espécie de assistente e
colaboradora, com todos os benefícios.
Patrick dividiu os dias de trabalho junto aos garotos do
Projeto Quixote por temas. Abrigo. Comida. Roupas. Objetos.
E foi aprendendo com os meninos o que comer quando você
não tem dinheiro. Que tipo de ferramentas você precisa ter
sempre à mão. Como você se fantasia quando precisa pedir
esmola. Como lavar a roupa, descolar mais grana, construir
um abrigo de papelão. Aos poucos, os garotos foram compartilhando o que sabem, e o resultado da semana de trabalho –
uma exposição que ficou em cartaz um mês em São Paulo – é
impactante justamente porque nos dá uma nova dimensão
sobre esses garotos. A de especialistas.
Tudo a ver com o que faz na Itália. No comando da Colors,
o designer inaugurou uma série intitulada “Manuais de sobrevivência”, que já está indo para o sexto número. “Nossa missão
4. capas de quatro edições da colors editadas por patrick
waterhouse no formato manual de sobrevivência, com temas
que vão do fim do mundo e excrementos à busca da felicidade
da internet, a Colors mudou tudo.
E não só pelo corte editorial. Toscani começou a usar técnicas
de publicidade para fazer conteúdo. A capa da edição número 1 —
um bebê recém-nascido, ainda com o cordão umbilical — parece
inofensiva em 2012, mas causou alvoroço em 1991: críticos a acusaram de apelativa. Era exatamente o que Toscani queria. Nada o
deixava mais satisfeito do que as discussões calorosas e apaixonadas levantadas por suas imagens controversas e corajosas.
Falando de grandes temas, mas dando a eles um tratamento
completamente original para a época, os 13 primeiros números da
revista – frequentemente inclusos nas listas de melhores revistas
do mundo – transformaram o mercado editorial. Juntos, Toscani e
Tibor criaram uma fórmula tão forte que, mesmo depois da saída
de Tibor (em 1997, ele foi diagnosticado com câncer e voltou para
Nova York para se cuidar) e de Toscani (ele se afastou do grupo
Benetton em 2000), a revista mudou pouco.
Em 2000, quando a Fabrica foi inaugurada, a revista passou a
ser produzida lá dentro. Monotemática, trimestral, bilíngue e produzida por uma equipe multicultural, a Colors circula hoje em 39
países. Desde outubro, passou a ser publicada também em inglês/
português. O Manual de sobrevivência para o Apocalipse pode ser
encontrado em livrarias de todo o Brasil.
21
Personnalité
continua sendo a mesma de quando a revista nasceu: celebrar
a diversidade”, diz. Sob sua direção, a publicação – que é sempre monotemática – passou a ser editada em forma de manual:
recheada de instruções, passo a passos, listas de equipamentos. “É claro que isso é só o formato que usamos para contar as
melhores histórias, mas é esse formato que dá uma identidade
a todos os números.” Os manuais são a sua assinatura. Patrick
faz questão de ter uma, porque é como artista que ele se reconhece. “Ele não é só um criativo. Eu diria que é um visionário:
um artista com uma visão”, diz o premiado fotógrafo italiano
Enrico Bossan, que dirige o departamento de fotografia da
Fabrica há sete anos e trabalha com Patrick há seis.
Patrick Waterhouse
“nossa
missãocontinua
sendo a mesma
de quando a
colors nasceu:
celebrar a
diversidade”
“AVISEI QUE NÃO IA MAIS EMBORA”
A capacidade de surpreender talvez seja a consequência mais
positiva de um comentário recorrente sobre o artista inglês:
sua cabeça não funciona como a do resto de nós. Ela tem uma
desorganização própria. É como se a máquina cerebral dele
tivesse uma estrutura levemente diferente, capaz de fazer conexões que a maior parte de nós não faria tão naturalmente.
irmã mais velhos, sua mãe sempre ofereceu abrigo e comida
para quem precisasse. “Era comum chegar em casa e ter alguém novo, um amigo de um amigo de alguém, que ia passar
algumas semanas morando com a gente”, conta. No meio de
tanta gente, ele e seu pai construíram uma relação sem grandes intimidades. Mas o pai e as memórias que Patrick tem de
suas visitas a São Paulo apareceram com frequência durante a
segunda semana de trabalho dele na cidade.
Junto ao editor executivo Cosimo Bizzarri (seu companheiro desde que assumiu a Colors), a missão de Patrick na
segunda semana em São Paulo era liderar um workshop organizado pela Mesa&Cadeira: um grupo pequeno de pessoas
selecionadas para trabalhar junto em um projeto, por seis dias.
Patrick decidiu focar na cidade e produzir em equipe não um
manual, mas um kit de sobrevivência.
A ideia do workshop era reproduzir com o máximo de
fidelidade o processo de trabalho do líder. Patrick é obstinado
por qualidade. Para escolher seis personagens, encomenda
a documentação de 60. Demora a tomar decisões. Quer ver
todas as opções possíveis. Usa todo o tempo que tem (e um
pouco do que não tem) para aprimorar um layout e uma ilustração. Não controla o caos. Trabalhar com ele é um processo
sempre um pouco extenuante (longas horas no escritório,
algumas madrugadas sem dormir, atrasos na gráfica), mas
resulta sempre num produto de altíssima qualidade. E não há
nele nenhuma vontade de mirar baixo. “Poderíamos ter feito
aqui uma edição de revista, mas, no lugar de editar as histórias em páginas duplas, criamos uma coleção de objetos, que,
juntos, contam como sobreviver em uma cidade de 20 milhões
de pessoas, onde você passa oito anos da sua vida no trânsito e
onde é complicado até estacionar um helicóptero.”
Mesmo com as madrugadas em claro e as mudanças de
última hora, o time envolvido nos projetos liderados por Patrick Waterhouse se sente feliz. Com aquela sensação de que
colocou no mundo algo do qual vale a pena se orgulhar. “Uma
coisa que aprendi trabalhando com ele: não tenha medo se o
projeto parece uma bagunça”, conta Cosimo. “Eventualmente
alguma coisa sairá dali e será alguma coisa incrível, como só as
coisas bagunçadas conseguem ser.”
No fim das contas, foram produzidas apenas 90 cópias dos
Kits de Sobrevivência. Sessenta foram colocadas à venda no
encerramento da Mesa&Cadeira. E esgotaram na mesma noite. “A coisa mais impressionante sobre São Paulo são as pessoas. É uma cidade imensa, difícil, mas você se sente acolhido,
bem recebido. É muito diferente de Londres ou Johanesburgo,
onde já vivi”, afirma. “Ou talvez eu me sinta assim porque sou
também um pouco brasileiro.”
A explicação mais possível para isso é o diagnóstico de
dislexia severa que recebeu quando ainda garoto. Sua capacidade de ler e soletrar é bastante limitada e Patrick cresceu
nessa dicotomia. Por um lado, sempre foi muito inteligente e
era tratado como um prodígio dentro de casa. “Por outro lado,
tive que repetir de ano e fui colocado em uma escola estranha,
meio hippie. É claro que eu me sentia incapaz.”
A falta de organização interna também aparece do lado de
fora. Seu computador tem sempre dezenas de janelas e tabs
abertas. Bastam três minutos para ele transformar um quarto
de hotel impecável num quarto adolescente. Outro exemplo
de desorganização é a mala: ele se esforçou muito para encontrar uma agenda no aeroporto de Guarulhos, antes de embarcar de volta à Itália.
Quem vê sua falta de intimidade com os aspectos mais
práticos e mundanos da vida entende por que Patrick parece
ter se encontrado na Fabrica, onde funciona o escritório da
Colors. A Fabrica é uma espécie de Terra do Nunca para criativos. Uma obra primorosa do arquiteto japonês Tadao Ando
em meio a uma vila medieval no norte da Itália, habitada por
gente entre 20 e 30 anos vinda de todos os lugares do planeta,
o centro de comunicação financiado pela Benetton é um laboratório para jovens talentos no mundo da fotografia, do design
de produtos, do design gráfico, da escrita e da tecnologia. Todos os anos, centenas de interessados enviam seus portfólios.
Os mais promissores são convidados para um período de teste.
Depois das duas semanas, os candidatos voltam para casa e
esperam uma resposta oficial, que costuma levar meses.
Com Patrick foi diferente. “Eu não tinha me dado conta
de que estava sendo convidado para um teste. Achei que tinha
sido selecionado, saí do meu emprego e vim. Quando cheguei,
avisei que não ia mais embora”, diz. O que poderia ser uma
saia justa não foi. Ninguém queria deixá-lo partir.
MADRUGADAS SEM DORMIR
Imitador talentoso (é muito observador e basta uma única
conversa com alguém para ser capaz de reproduzir sotaque
e trejeitos à perfeição), bebedor consistente (uma característica que talvez diga mais sobre seu país de origem do que
sobre ele mesmo) e um dos caras mais bem informados que
você encontra por aí (ele também escuta podcasts com a voracidade de quem sabe ter uma fraqueza a superar), Patrick
é uma excelente companhia. É do tipo de pessoa que ganha
uma viagem com tudo pago para um festival de música no
interior dos Estados Unidos simplesmente porque seus amigos sabem que a viagem será melhor com ele por perto.
Patrick cresceu numa casa cheia. Além de um irmão e uma
22
na página ao lado, Patrick Waterhouse com o editor da
colors, cosimo bizarri, a seu lado, lideram o workshop em
que produziram 90 kits de sobrevivência de são paulo
23
Por Millos Kaiser
Praia de
paulista
romulo fialdini/arquivo sesc pompeia / cortesia instituto lina bo bardi
Como a arquiteta italiana Lina Bo Bardi
transformou uma antiga fábrica de tambores
e geladeiras no Sesc Pompeia, centro de lazer
que completa três décadas e atrai anualmente
mais de 1 milhão de pessoas
acima, o projeto arquitetônico assinado pela italiana lina bo
bardi. na página ao lado, frequentadores tomam sol no decksolarium do bloco esportivo, inaugurado em 1982
25
ção será com uma exposição retrospectiva, prevista para abrir no dia 25 de janeiro
de 2013, coincidindo com o aniversário
de São Paulo. Quem assina a curadoria
do evento, batizado de Linha do tempo,
são os arquitetos André Vainer e Marcelo
Ferraz, colaboradores de Lina no projeto.
Na mesma ocasião, o livro Cidadela da liberdade, que narra e ilustra toda a história
da construção, também será reeditado.
Originalmente chamado de Centro
de Lazer Fábrica da Pompeia (o porquê
veremos alguns parágrafos adiante), o
lugar é muito mais do que uma praia
para o paulistano. É também aonde ele
vai atrás de cultura (são em média 120
atrações por mês, entre shows, peças
de teatro, espetáculos de dança e exposições), saúde (cerca de 4.500 pessoas
praticam 25 modalidades diferentes em
no alto, a fábrica de tambores dos irmãos mauser nos anos
1940. quarenta anos mais tarde, ela abrigaria o sesc pompeia.
ao lado, os tonéis produzidos no local são transportados
26
lugares mais interessantes da cidade”,
afirma Danilo Santos de Miranda, diretor
regional do Sesc. “Sua fundação ajudou a
instituição a se descobrir, a abrir as portas tanto do ponto de vista físico quanto
do programático.”
Desconstruindo o Pompeia
A área que ocupa quase um quarteirão
da rua Clélia abrigava nos anos 1940 uma
fábrica de tambores de lixo de propriedade dos irmãos Mauser. Posteriormente,
tornou-se a sede da Ibesa-Gelomatic,
uma marca de geladeiras. Quando, em
1977, Renato Requixa e Gláucia Amaral,
diretores do Sesc à época, convidaram
Lina para criar o projeto, ela encontrou
um centro de lazer já em plena ebulição,
ainda que nenhuma nova viga tivesse
sido erguida: a própria comunidade do
bairro havia ocupado o espaço abandonado com campeonatos esportivos, encontros de escoteiros, peças de teatro e bailes
arquivo sesc/gead / cortesia instituto lina bo bardi / arquivo sesc pompeia
E
m uma tarde de outubro – a mais
quente dos últimos 13 anos em São
Paulo –, umas 30 pessoas em trajes de
banho se espicham nos decks de madeira do Sesc Pompeia. “Essa é a praia do
paulistano. Venho aqui pegar sol há mais
de uma década”, diz Josefina Mello, 60
anos, enquanto ajeita o biquíni amarelo.
A cena certamente encheria Lina Bo Bardi (1914-1992) de orgulho. O objetivo da
arquiteta italiana, ao projetar o complexo
de lazer construído na zona oeste paulistana, sempre foi erguer um local para
todos – e praias, sejam elas de madeira
ou de areia, são ambientes democráticos
por excelência.
Em 2012, quando a morte de Lina
completa 20 anos, o Pompeia, considerado por muitos sua obra-prima, chega à
sua terceira década de vida. A comemora-
arquivo sesc pompeia
são 120
shows e
peças por
mês e 82
cursos ou
oficinas
seu complexo esportivo) e formação (há
82 cursos e oficinas livres, com 1.560
alunos matriculados). Só em 2012, mais
de 1 milhão de pessoas passaram por lá,
estima a assessoria do Sesc (Serviço Social do Comércio), uma instituição sem
fins lucrativos criada em 1946 pelo presidente Eurico Gaspar Dutra e hoje com
unidades em todos os estados brasileiros,
19 delas na capital paulista.
“O Pompeia foi o primeiro a juntar
esporte, cultura popular, cultura erudita
e cursos em um só lugar. A programação
múltipla, aliada a um projeto arquitetônico sem igual, o transformou em um dos
27
acima, o espelho d’água do espaço de estar, executado
conforme o projeto idealizado pela arquiteta italiana; e o
logotipo desenhado por lina bo bardi
_
Punks, artistas e
exposição infantil
Ao longo de seus 30 anos, muitos eventos
marcaram a história do Pompeia. Em 1982,
ano de inauguração, a exposição interativa Mil
brinquedos para a criança brasileira, idealizada
por Lina Bo Bardi, fez a cabeça dos infantes na
época. No mesmo ano, o primeiro festival punk
do Brasil, O começo do fim do mundo, produzido pelo escritor Antonio Bivar, levou 3 mil
jovens a pular ao barulho de Ratos de Porão,
Olho Seco, Inocentes, entre outros.
José Francisco da Silva, 56 anos, trabalha
na unidade desde que ela nasceu. Começou
como patrulheiro e hoje em dia é orientador
de público. Ele lembra bem do festival: “Foi
uma loucura, o batalhão de choque teve até
que intervir. Tinha gente trepada no teto, dançando como se estivesse brigando... Mas tinha
menina bonita também, viu?!”.
Vale relembrar ainda a gravação do programa Fábrica do som, produzido pela TV
Cultura entre 1983 e 84, onde os Titãs fizeram
uma das primeiras apresentações, bem como
shows antológicos de Gil e Caetano. Este
último por pouco não aconteceu. “Um rapaz
passou pela porta de entrada voando em cima
de uma bicicleta, com um violão nas costas.
Quando botei as mãos nele, meu colega falou:
‘José, esse aí é o Caetano Veloso!’.”
lada Cuide de você. A artista francesa convidou
107 mulheres (entre elas, as atrizes Victoria
Abril e Jeanne Moreau) a interpretarem a carta
que o namorado de Sophie lhe enviou para
romper seu relacionamento.
A primeira mostra individual do dinamarquês Olafur Eliasson, em 2011, também foi
destaque de crítica e de público. O artista desenvolveu dez trabalhos em “resposta aos estímulos provocados pela cidade de São Paulo”,
contando, inclusive, com uma obra em parceria
com o cineasta cearense Karim Aïnouz.
28
no alto, show do festival punk o começo do fim do mundo, de
1982, marco do movimento musical no país. acima, exposição mil
brinquedos para a criança brasileira, idealizada por lina bo bardi
fotos alexandres nunis / arquivo sesc pompeia
cícero/folha press / paquito/acervo sesc memórias/gedes
Mais recentemente, em 2009, a unidade
abrigou uma exposição de Sophie Calle intitu-
lina bo
bardi
vivia no
ostracismo
até assumir
o sesc
da terceira idade. “É isso que eu quero. É
isso que devemos manter em nosso futuro centro de lazer. Nosso programa está
pronto”, disse à primeira vista a arquiteta, que ainda cuidaria nos primeiros anos
da programação da unidade.
A italiana descobriu que os galpões
da antiga fábrica possuíam uma estrutura
– talvez a única do Brasil – moldada por
um dos pioneiros do concreto armado,
o francês François Hennebique (18421921). Resolveu, portanto, que boa parte
de seu trabalho não seria construir, mas,
sim, desconstruir. Ela então depenou
esses galpões até sua essência, retirando
os rebocos e aplicando jatos de areia –
algo semelhante ao que ela havia feito no
Solar do Unhão, em Salvador. Até então,
a ideia do arquiteto Júlio Neves, que projetou diversos prédios da avenida Faria
Lima, em São Paulo, e fora o primeiro
nome sondado pelo Sesc, era demolir
tudo e subir duas imensas torres no lugar.
a partir do alto, em sentido horário: exposição de olafur
eliasson, em 2011; exposição de joseph beuys, em 2010; e cartaz
de evento concebido por lina bo bardi, em 1982
29
Para auxiliá-la na empreitada, Lina
pediu indicação de um estagiário a um
amigo, professor da FAU (Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da USP), que
recomendou o aluno Marcelo Ferraz, um
promissor – e cabeludo – jovem de 22
anos. “Eu conhecia o Solar do Unhão e o
Masp, duas de suas obras mais importantes, mas a Lina estava no ostracismo na
época. Era mulher, esposa do controverso
professor e crítico de arte [Pietro Maria]
Bardi, tinha sido exilada política... a turma da arquitetura paulistana desprezava
o nome dela”, comenta Marcelo.
Dois meses depois, ele recrutou um
amigo de classe: André Vainer. “A Lina
era um mito para mim, mas eu jamais
tinha visto sequer uma foto dela. Quando
deparei com aquela figura de rosto duro,
nariz adunco, cabelo bem preto, roupas
também pretas, fiquei surpreso”, conta
André. Ao longo da epopeia de nove anos
de obras que resultou no Pompeia, houve,
claro, muitas brigas. “Na hora da reconciliação, ela sempre citava Brecht: ‘É
preciso se entender claramente’”, recorda
André. O trio continuou trabalhando junto até a morte de Lina.
O escritório dos arquitetos funcionava em barracos improvisados no próprio
Soja não!
O papel de Lina ia muito além da arquitetura. A um ano da inauguração dos
galpões, os mais de 400 operários ameaçaram entrar em greve. O motivo: a substituição do feijão que vinha na marmita
diária pela soja que, naquele momento,
acabara de virar moda. Ao mesmo tempo,
corriam boatos de que o novo grão causava impotência sexual. A arquiteta então
organizou uma missa, celebrada por um
frade franciscano amigo, para livrar todos
da desgraça. Os ânimos foram recobrados. E o feijão voltou para o menu do dia.
Em 1982, foram inaugurados os
galpões industriais, onde toda a programação cultural e educacional tomaria
lugar. Todos os detalhes da cerimônia de
abertura, da trilha sonora à escolha do
cardápio, repleto de pratos brasileiros,
passaram pelo crivo de Lina. Um dos
primeiros espetáculos realizados foi O
baile da ilha fiscal, do coreógrafo Ivaldo
Bertazzo. “O enredo, um baile da corte
imperial que é invadido por saltimbancos, combinava perfeitamente com o
espírito democrático do Pompeia: gente
da classe AA sentada ao lado de gente
da classe C”, diz Bertazzo, que depois
encenaria mais uma dezena de produções no mesmo teatro. “Era engraçado
que na época todos achavam Pompeia
um lugar longínquo. Pensavam que era
maluquice fazer qualquer coisa lá.”
Quatro anos depois, o bloco esportivo,
composto de duas torres de concreto ligadas por passarelas, ficaria pronto. Nele,
a ideia de Lina era incentivar a recreação
no lugar da competição – uma piscina tinha o formato de uma praia (ela de novo)
e as quadras tinham medidas abaixo das
exigidas pelas federações dos esportes.
Em todo o Pompeia, programa e
projeto se fundem, tal como o aço e o concreto que sustentam seus antigos galpões,
tal como a arquitetura e a vida na visão
de Lina, que gostava de dizer: “Arquitetura, para mim, é ver um senhor ou uma
criança com um prato cheio de comida
atravessando elegantemente o espaço do
nosso restaurante à procura de um lugar
para se sentar numa mesa coletiva”.
Baixe a Revista Personnalité no iPad e
assista ao vídeo sobre o Sesc Pompeia
30
acima, os arquitetos andré vainer e marcelo ferraz reproduzem
em 2012 a foto que tiraram em 1984 com lina bo bardi, a partir de um
rascunho desenhado pela italiana para celebrar a parceria
arquivo pessoal marcelo ferraz / agradecimento sesc pompeia
foto nelson mello / desenho arquivo pessoal marcelo ferraz
canteiro. “Íamos testando e experimentando na hora. Um modo de fazer arquitetura quase medieval. O projeto mudava o tempo todo”, diz Marcelo. “Hoje
em dia, isso seria impensável”, afirma
André. Os três desenharam tudo, das
placas de sinalização e uniformes dos
funcionários ao mobiliário – o que, mais
tarde, influenciaria Marcelo a abrir sua
própria marca de móveis, a premiada
Marcenaria Baraúna.
“arquitetura
é ver alguém
comendo
numa mesa
coletiva”,
afirmava
lina bo bardi
31
Patrick Waterhouse pergunta:
Como
sobreviver
a um
entrevistado
que nada
tem a dizer?
32
Marília Gabriela responde:
Qualquer entrevistado tem o que dizer, acredite. Pode ser mais ou
menos técnico, mais ou menos previsível, mais ou menos claro, mas
sempre tem o que dizer. Agora... garantia mesmo do melhor a receber
é levá-lo a falar de suas origens, pai e mãe e infância. Não tem erro.
É o bom e velho innerself salvando qualquer entrevista.
33
marília gabriela
Gabi de frente
Após 3 mil entrevistas, Marília Gabriela, aos 64 anos, inverte o papel que a tornou
uma das grandes apresentadoras da TV brasileira e se abre às páginas da Revista
Personnalité: “Entendi que maturidade é ficar mais confortável na própria pele”
Por Eduardo Logullo Fotos Felipe Hellmeister
35
Personnalité
36
acostumou a prosear: sempre com as rédeas da conversa.
Arrancá-la, portanto, de sua agenda e fazê-la sentar do outro
lado da mesa não é fácil. Mas vale: em um de seus cada vez mais
raros depoimentos à imprensa, Gabi, minha amiga e parceira
profissional, observadora aguda das pessoas e do tempo em que
vivemos, deixou de lado seu estoque de interrogações para dividir exclamações, afirmações, reticências, risos, silêncios. Para a
Revista Personnalité respostas, somente respostas. Enfim.
Pré-história
“Vou contar a minha ‘pré-história’. Com uns 17, 18 anos, poucos
sabem o que querem ser na vida. Eu vivia em Ribeirão Preto e
depois vim para São Paulo, em 1968, aos 20. Procurava caminhos. Havia cursado um ano de psicologia, até notar que não era
o que eu queria. Prestei vestibular para medicina, achava que
seria psiquiatra. Acabei entrando em odontologia... E pensei:
‘Mas eu não quero isso!’. Aí fui fazer psicologia. Cursei um ano.
Parei. E prestei outro vestibular, para artes plásticas. Parei. Então, concluí que queria mesmo era morar em São Paulo. Aqui,
ainda fiz vestibular para cinema e publicidade. Sou uma pessoa
mercurial [risos]. Tranquei a matrícula porque pediram documentos que estavam em Ribeirão. A essa altura eu já estava na
TV Globo. Quer saber como fui parar lá?”
Jornal Nacional
“Era o primeiro ano do Jornal Nacional, 1969. Olhei o programa
no ar, vi um repórter no meio da rua, no exterior, e falei: ‘É isso
que quero fazer! Quero conhecer o mundo, falar com pessoas,
conhecer outras culturas e ganhar para fazer isso!’. Soube que
precisava falar com o Paulo Mario Mansur, então diretor de
jornalismo em São Paulo. Tentei marcar entrevista. Não consegui. Um dia, fui àquele que talvez tenha sido o último baile de
Carnaval do Theatro Municipal de São Paulo, com transmissão
da Rede Globo. Eu nem estava fantasiada. De repente, o Renato
Correa de Castro, um conhecido que trabalhava na emissora,
passa por mim e diz: ‘O Paulo é aquele ali!’. Ele estava animadíssimo, solteirão, correndo atrás de uma loura. Pulei no meio
dos dois. Um susto. Falei: ‘Não saio enquanto não marcar uma
entrevista com você!’. Ele agendou para dois dias depois, às
10 horas. Lembro que vesti uma roupa verde. Vestidinho bem
cortado, sapatos e bolsa de verniz azul-marinho. Ele foi direto:
‘Você queria fazer exatamente o quê?’. Respondi no ato: ‘Trabalhar no Jornal Nacional [risos]’. E ele: ‘Mas... você fez jornalismo?’. Não. ‘Você tem experiência nisso?’ Não. ‘Então, por que
quer fazer?’ Eu disse: ‘Mas é a única coisa que saberei fazer na
vida!’. Ele me ofereceu estágio de um mês. No primeiro dia,
faltou um repórter. E foi assim...”
“Em recanto,
perdi minha
ansiedade.
Sempre
foi fácil
trabalhar
com Caetano”
arquivo pessoal
O
telefone tocou? Gabi atende. O carro parou, ela abre a
porta de supetão. Há uma garrafa de vinho na mesa, e
Gabi assume o saca-rolha. O avião chegou, ela pega a bagagem
na esteira e sai do aeroporto sozinha. Vamos a um restaurante
novo? É a primeira a entrar. Um programa de TV está chato? É
a primeira a mudar de canal. E, se alguém surgir à sua frente,
será a primeira a perguntar.
É difícil resumir essa mulher decidida, loira, alta (1,82 metro), com olhos que surgem como dois faróis azuis acesos em
meu rosto – olhos capazes de atingir profundezas –, além da voz
rascante e conhecida nacionalmente. Resumir é reduzir. Ainda
assim, uma tentativa seria esta: ela se chama Marília Gabriela
Baston de Toledo Cochrane. Nasceu há 64 anos, em Campinas,
foi criada em Ribeirão Preto e vive em São Paulo. Jornalista,
atriz, escritora, cantora com três discos gravados (em um deles,
fez parceria com Caetano Veloso). Mulher em permanente ebulição, geminiana, veloz, mercurial, mãe do ator e apresentador
Christiano Cochrane, 40, e de Theodoro Cochrane, 34, ator,
artista plástico e cenógrafo.
Acontece que esse retrato de Gabi, um dos rostos mais conhecidos do país, não dá conta. Com 44 anos de carreira, ela
está em outra: “Agora sou a avó que brinca de boneca”, diz. A
frase surge por conta da convivência intensa com a primeira
neta, Valentina, 1 ano e meio, filha de Christiano com a atriz Daniele Valente. Mas há outro motivo para sua recente mudança
interior: o namoro firme com o empresário italiano Riccardo
de Angelis, 59, um dos diretores da operadora TIM. “Estou descobrindo novas possibilidades ao me envolver com um homem
coetâneo, alguém da minha idade”, diz Gabi, que foi casada por
oito anos com o ator Reynaldo Gianecchini, 40.
Além de reclusa ao círculo de amigos e à família, tem evitado aparecer ou opinar sobre o que quer que seja. “Fora do meu
trabalho, prefiro aparecer o mínimo”, explica. “Vivemos um
tempo de evasão da privacidade.” Tem razão. Apresentadora de
programas semanais nos canais GNT/Globosat e SBT, seu estilo
direto de conversar está no ar há pelo menos 32 anos, quando se
tornou âncora do diário TV Mulher, na Globo, em 1980. Criou
ali uma mistura de bate-papo com sessão de análise; de jogar
conversa fora com questionamentos incisivos; de sensibilidade
com a mais pura e desabrida curiosidade.
Ela domina a arte de disparar interrogações certeiras para
pescar respostas inesperadas, mesmo que essas respostas, às
vezes, venham por meio de silêncios. Assim, ela entrevistou
mais de 3 mil personalidades de todas as áreas. Assim, ela fez
carreira, ganhou música de Rita Lee, conversou com Fidel
Castro, Madonna, Yasser Arafat, Cazuza, Raul Seixas e Gore
Vidal. Assim, ela se tornou um ícone nacional. E, assim, ela se
marília gabriela
37
a partir do alto, em sentido horário: gabi no tv mulher, da globo,
com ney gonçalves dias; seu primeiro lp, de 1982; de frente com
o presidente collor, em 1991; capa de seu livro eu que amo tanto
(2008); no palco em lady macbeth (2006); e com o filho Christiano
Personnalité
marília gabriela
“diziam
que eu era
antipática.
tinham toda
a razão. a
aparência
era essa”
JOHN WAYNE DE SAIAS
Psicanálise na tv
“Sempre corri atrás das coisas. Nada caiu no colo. Essa batalha me forjou com uma têmpera que me fez sobreviver
em São Paulo. Fui à luta. Sou grande, me defendia. Sempre
estive na defensiva. Relaxei agora. Sabe a menina do interior?
Aquela que se não se cuidasse o lobo mau comeria? Uma vez
declarei: ‘Sou um John Wayne de saias’. E virei isso mesmo.
As pessoas diziam que eu era dura, antipática. Tinham toda a
razão. A aparência era essa. Não facilita comigo, porque não
sou ‘facinha’. Hoje me permito pensar a meu respeito. Sempre
tive dificuldade. Talvez pela carreira, pela maneira como vivi
e que me trouxe até aqui. Outro dia pensei: por que o meu trabalho ainda me encanta? Por que tudo foi tão concentrado no
ser humano, nas pessoas? Gosto de gente. Lembro pouco de
datas, de eventos históricos ou festivos. Mas lembro das gentes todas. Existe agora a clareza de que adoro saber por que as
pessoas fizeram algo, como fizeram, do que elas são feitas. O
que me interessa é isso. O que nós somos. O que leva alguém
a fazer grandes feitos, virar herói ou virar bandido? E o que
fez com que essas pessoas se destacassem na multidão? Gente
me interessa. Ainda não me cansei, 40 e tantos anos depois.
Ainda me interesso, genuinamente, por quem está na minha
frente, por aquele material humano.”
“Certa vez, um crítico da Folha de S.Paulo escreveu, descendo a
lenha, que eu fazia na TV um ‘simulacro de sessão de psicanálise’. Que não eram entrevistas... E quer saber? Achei formidável
[risos]! Depois encontrei com ele e comentei: ‘Você tem toda
razão’. Era isso mesmo: um modo de encarar o entrevistado. Ele
definiu o jornalismo que eu faria pelo resto da vida.”
PREÇO DA FAMA
“Vivemos tempos muito tristes. Escolhi uma profissão de alta
visibilidade. Sei que a exerço com prazer e espero que aconteça o mesmo com quem está assistindo. Mas a curiosidade
que essa exposição gera sobre mim me assusta muitíssimo.
Então decidi andar no reverso. Parece que todos procuram se
expor de maneira desavergonhada. Fico impressionada com a
evasão de privacidade, como disse um dia meu amigo Alfredo
Ribeiro, o Tutty Vasques. Já se perdeu a noção sobre quem é
evadido e quem foi invadido. É uma promiscuidade grande.
Por isso vivo quase reclusa. Fora da TV, quero aparecer o mínimo. Sempre tive horror à frase ‘é o preço a pagar pela fama’.
Penso que o ‘preço a pagar’ é ter bons resultados do trabalho!
Essa coisa de aceitar ser devorada pelo sistema é uma cafajestada. Sou conhecida, mas não furo filas. Não há hipótese de
furar filas. As pessoas me veem em lugares até improváveis,
entendeu? Sei lá, apareço para caminhar no parque de boné,
de tênis... Ganhei uma bicicleta e outro dia fui ao Ibirapuera.
Mas a bicicleta começou a trepidar, sei lá... E um carinha que
estava lá no parque gritou: ‘Ei, Gabi!’. Respondi: ‘Não fala comigo, senão eu caio [risos]!’. Aproveito a minha cidade. Adoro
São Paulo. Mas gosto de ficar em casa, ir ao cinema, ao teatro,
sentar com poucos amigos, comer, conversar, falar da vida.
Isso é o que importa.”
NEUTRALIDADE
“Jamais adquiri a noção do que sou ou de quem me tornei ao
longo desses anos. Desconheço o que representei ou represento
profissionalmente. Se alguém me pergunta algo, como você fez
agora, fico surpresa. Não sei se vivo a história do meu tempo, se
fui agente da história do meu tempo. Se tivesse esse raciocínio,
não teria feito – nem faria ainda – tantas entrevistas com a isenção que faço. Com a neutralidade que todo jornalista deveria ter.
Já entrevistei serial killer em prisão de segurança máxima. Com
interesse, com enorme curiosidade.”
A CANTORA
“Quando lancei meu primeiro disco, em 1982, cantei várias vezes nos Trapalhões, no Globo de ouro e até no Chacrinha. Uma
delícia. Era uma música da Rita Lee, ‘Diga ao povo que fico’.
Rita compôs para mim. Sempre cantei, desde que era estudante
em Ribeirão Preto. Cantava nos festivais de bossa nova... Teve
um show em que Taiguara tocou. Em outro, Toquinho. Quando
cheguei a São Paulo, continuei cantando na noite. Meu primeiro disco surgiu quando pedi ao Boni, então o todo-poderoso da
Globo: ‘Boni, você já me viu cantando?’. Naquela fase eu estava
com medo de ficar eternizada no TV Mulher. Foi ali que rolou o
meu histórico mal-estar com Clodovil [quando o estilista abandonou o programa depois de uma discussão ao vivo com Gabi].
O QUE É NOTÍCIA
“Tenho noção do que vai estar na mídia no dia seguinte – ou depois de uma hora. Sou up to date, sei o que acontece hoje, do que
vivem as pessoas, para onde vai a curiosidade delas e qual o interesse de quem se expõe. Quando alguém fala comigo, sei o que
vai virar notícia. Isso acontece com clareza. No início, não tinha
noção. Lembro que entrevistei Zélia Cardoso de Mello, e ela ali,
se confessando ‘apaixonada enquanto ministra’ [da Fazenda do
governo Collor, entre 1990 e 1991]. Achei normal e nem percebi o
escândalo que aconteceu no dia seguinte, as especulações sobre
quem seria a tal pessoa [o ministro da Justiça Bernardo Cabral].”
39
40
cara a cara com pelé; posando com o líder palestino yasser arafat;
durante a histórica entrevista com zélia cardoso de mello, em que a
ex-ministra deixou escapar um romance com um colega de governo; e
na primeira conversa com seu futuro marido, Reynaldo gianecchini
arquivo pessoal
arquivo pessoal
a partir do alto, entre os amigos jô soares e chico anysio; com
o ator americano jack palance; durante a tensa entrevista com
madonna, em que a cantora demonstrou mau humor diante das
perguntas de gabi; e com dercy gonçalves
diante do ainda candidato à presidência luiz inácio lula da silva; nos
bastidores com o ator americano dennis hopper; ao lado do atacante
ronaldo, que definiu como incrível a experiência de conversar com
gabi; e durante papo com o estilista italiano giorgio armani
41
escutando as histórias contadas pelo tenor italiano luciano
pavarotti; ao lado de um sorridente caetano veloso; sentada com o
escritor baiano jorge amado, autor de gabriela, cravo e canela; e
diante do cantor espanhol e ídolo romântico julio iglesias
Pedi ao Boni para cantar no Fantástico. Ele deixou gravar e garantiu que, se o resultado fosse bom, iria ao ar. Cantei uma música bem hard do Gonzaguinha, com letra falando de masturbação masculina. Nenhuma mulher cantaria: ‘É o grito da dona
moral no ouvido da gente’. Eu não queria comparação com
outras cantoras. E ficou bom, foi ao ar. Mas fui furiosamente
atacada quando saiu o disco. Fiquei de cama. Rita Lee me ligou
e falou: ‘Ih, querida, prepare-se, é terrível mesmo’. Adoraria
gravar um CD por ano. Não existe prazer como estúdio. Amo
ambientes musicais.”
decepções homéricas
“Fico surpresa com tudo o que leio. Ou tudo está errado por um
lado, ou errado por outro. Há algum tempo o ser humano chegou ao limite. Existem filósofos, políticos, analistas e otimistas
que dizem não ser verdade e que o ser humano deu muito certo.
Ou vai dar. Que nos encaminhamos para um mundo melhor.
Não é o que os índices de qualidade de vida indicam. O mundo
piorou muito. Só poderia ser assim, já que somos bilhões, em
crescimento vertical da população. Não vejo nada melhorando.
Vejo uma menina de 15 anos sendo baleada porque protegeu
a bolsa. Leio sobre a mãe com depressão pós-parto que mata
o filho. Coisas tenebrosas. Políticos corruptos que vivem do
dinheiro público. Vejo as multidões alienadas, sem consciência
e na ignorância. Olho o mundo de forma negativa porque me
informo. No geral, as pessoas não se informam. A não ser quando se descobrem em países quebrados, como agora na Europa.
Quando chega a derrocada, as pessoas se voltam para religião
e pedem aos deuses das igrejas para tirá-las do horror. A informação se pulverizou. Está superficial. Vivemos a era do espetáculo, as pessoas encontraram maneiras de fuçar a vida dos
outros. Minha visão é pessimista. Tenho decepções homéricas.
Entrevistei pessoas que pensei serem admiráveis, mas que se
revelaram pouco admiráveis e muito incorretas. Saio dos fatos
e me atenho, me agarro, ao que existe nas pessoas. Para tentar
compreender o que nos leva a cometer atos absurdos.”
PASSAGEM DO TEMPO
“O físico e astrônomo Marcelo Gleiser me garantiu que o tempo
não existe. O passado já ‘passou’. E o futuro também ainda não
veio. Então, me senti mais confortável. Aliás, ao entrevistá-lo
ontem, mais uma vez, ele disse: ‘Para você, o tempo não passou’.
A gente se divertiu. Bom, tive duas crises etárias. A primeira,
sem consciência do motivo, foi em uma data ‘quebrada’, entre
43 e 44 anos. Sentia uma angústia inexplicável. Fui ao analista –
42
quando preciso, vou mesmo. Descobri que atravessava a ‘idade
da morte’: minha mãe morreu aos 44 anos. Sacudi os ombros e
segui em frente. Passei a ‘idade da morte’. A crise seguinte veio
às vésperas dos 60 anos. Estava no Rio fazendo uma novela,
fora do meu ambiente, das minhas referências, longe dos meus
filhos, dos amigos, de minhas fotos, de tudo ‘meu’. Estava em
um ‘exílio’ e com a consciência de fazer 60 anos. Nunca pensara
antes em ter 60 anos. Achava que depois dos 60 estaria perdida.
Liguei para o Boni e desabafei. Fomos jantar no restaurante
Antiquarius. Boni, naquela fúria santa dele. Eu chorava: ‘Não sei
o que vou fazer depois dos 60, não planejei o que fazer da vida
nem sei o que fazer a partir de agora’. Ele respondeu: ‘Você tem
razão. Tem que planejar mesmo. Restam, mais ou menos, uns 20
anos de vida útil. É você que deverá tomar conta de si mesma.
Faça projetos, projetos, projetos. Mantenha-se ocupada’. É isso
mesmo: a vida é isso! Sou superexistencialista. Voltei para casa
apaziguada, terminei de gravar a novela Duas caras e passei o
aniversário de 60 anos em Nova York, com meu filho Theodoro.
Saímos caminhando para jantar. Conversando, conversando,
conversando. À meia-noite, brindamos. Depois, voltamos a
pé para o hotel. Conversando, conversando, conversando. E
quando vi, já tinha passado a data. E eu tinha 60 anos. A partir
dali, dessa crise, comecei a produzir coisas. Fiz um livro sobre
mulheres que amam demais [Eu que amo tanto, 2008], montei a
peça Aquela mulher, com o texto que [o escritor angolano] José
Eduardo Agualusa escreveu para mim, e consegui que Antônio
Fagundes trabalhasse pela primeira vez como diretor. Theodoro
fez a cenografia e os figurinos. A crise passou, tem passado. Farei 65 anos em 2013.”
O INEVITÁVEL
“No fim, concluí que maturidade é isso: ficar mais confortável
na sua pele. Chegou o inevitável. E você sabe o que é. E você
aceita. E relaxa. E vai bem. Estou amando. Aprendo, pela primeira vez, como é ter uma relação com um homem mais maduro. Sempre existiram homens mais novos do que eu. Percebi a
dificuldade que existia naqueles equilíbrios apenas agora, que
estou com um homem coetâneo. Isso é relação madura, imagino. Estou mais tranquila, mais risonha, sofro menos, sou avó.
Brinco de boneca com minha neta, Valentina. Literalmente.
Talvez seja isso a maturidade. Apesar de estar mais tranquila,
mais alegre, mais feliz, mais reclusa, com poucos e bons amigos, não posso ficar otimista com o resto mundo. Não acho que
o mundo está grande coisa... Mas fico igual àquela música: ‘Não
faz mal/ Eu tô carente, mas eu tô legal!’[risos].”
Produção Executiva: Kika Pereira de Sousa / Assistente de Produção: Juliana Carletti / Assistentes de Fotografia: Joe Santos e Pamella Gachido / Beleza: Omar Bergea / marília usa roupas clô orozco e huis clos
Personnalité
“nunca pensei
que um dia
teria 60 anos.
hoje Estou
amando, mais
tranquila,
risonha”
Por Gonçalo Junior
Carametade
Não é fácil viver a aventura de
se reinventar para assumir no cinema
o jeito de ser de pessoas consagradas.
Conheça o desafio encarado
pelos atores Daniel de Oliveira,
Nelson Xavier e Júlio Andrade
divulgação / tv globo/renato rocha miranda / domicio pinheiro/ae
H
acima, o ator júlio andrade, que passou cinco anos tentando reproduzir
os trejeitos e a feição de gonzaguinha para o filme gonzaga — de pai
para filho (2012). na página ao lado, júlio e gonzaguinha
á cinco anos, o ator gaúcho Júlio
Andrade soube que havia sido escrito um roteiro sobre a vida do cantor
e compositor pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989). Coadjuvante de filmes
de sucesso, como O homem que copiava
(2003) e Meu tio matou um cara (2004),
ambos de Jorge Furtado, Júlio tinha
31 anos quando decidiu perseguir com
muito mais do que unhas e dentes o
papel que acreditava ser o maior desafio
de sua carreira: interpretar o filho do rei
do baião, o também cantor e compositor
Gonzaguinha, morto precocemente em
1992, em um acidente de carro.
45
Jim Morrison o dono da performance.
O cinema brasileiro tem sido presenteado nos últimos anos com esse
mesmo tipo de atuação definitiva. Daniel de Oliveira, 35 anos, fez gente próxima duvidar de até que ponto ele não
teria ido longe demais em sua recriação
de um dos mais importantes roqueiros
cariocas. Em Cazuza – O tempo não
para (2004), filme de Sandra Werneck
e Walter Carvalho que lhe rendeu o troféu de melhor ator do Grande Prêmio
do Cinema Brasileiro, da Academia Brasileira de Cinema, o ator mineiro, como
Val Kilmer, aprendeu a emular com extrema precisão o timbre do cinebiografado. “Foi bem difícil recriar o Cazuza”,
conta. “Há muitos registros dele, da voz,
da imagem, e todo mundo tinha tudo
isso fresco na cabeça. Ou seja, não havia
muito para onde correr. Tinha que ficar
parecido e ponto.”
O protagonista tirou quase um ano
para afinar sua transformação de Daniel em Cazuza. “Esses meses fizeram
bastante diferença – nem era para ser
tanto tempo, mas, como o filme acabou atrasando por questões que não
dependiam de mim, ganhei esse período. Aluguei um apartamento no Leblon e fiz ali o meu QG Cazuza. Fiquei
imerso nos discos. Mergulhei numa
vida parecida com a que ele levava,
absorvendo o máximo que podia.”
Demorou, mas chegou o momento
em que sentiu que estava próximo de
sua meta. “Um dia, estávamos fazendo uma parte da gravação de voz e vi
uma cena do filme na tela, na hora
comentei: ‘Poxa, bacana! Conseguiram
colocar imagens reais do Cazuza!’.
O cara que estava comigo disse: ‘Não
tem imagem real, não! É tudo você,
brother’. Até eu me confundi!”
no alto, daniel de oliveira, que chegou a perder 15 quilos para
encarnar a fase final da carreira de cazuza, quando ele lutava
contra a aids, que o levaria à morte em 1990. ao lado, o ator e o cantor
46
daniel de
oliveira viu
a cena de
um show
em que
pensou ser
o cazuza –
mas era
ele mesmo
Uma performance inesquecível, que recria
nas telas um personagem da vida real, é
uma combinação que exige talento do ator
e outros ingredientes. Detalhes de produção e direção ajudam muito. Para a maquiadora Gabi Moraes, os grandes papéis
podem depender 50% da maquiagem. Há
20 anos ela ajuda atores a encarnar seus
desafios. Trabalhou em filmes como Terra
estrangeira (1995) e Abril despedaçado
(2002), ambos de Walter Salles. Foi ela
quem ajudou Rodrigo Santoro a se tornar
divulgação / divulgação / Ana Stewart/AE
Além das unhas e dos dentes, Júlio
precisou tornar-se todo ele um sósia
de Gonzaguinha. “No dia do meu teste,
que consegui por insistência, fui caracterizado”, diz. “Cheguei de peruca
e barba, o mais parecido que pude, decidido a levar o papel.” Até aquele momento, o gaúcho tinha apenas um concorrente. E a produção não precisou
de outros: Júlio saiu contratado. “Foi
só então que percebi que era mesmo
parecido com ele.” Em outubro passado, depois de meia década de convívio
quase diário com a sombra do compositor, Júlio, hoje com 36 anos, entregou
uma performance arrebatadora. Fez
de Gonzaga – de pai para filho, produção do diretor Breno Silveira, um dos
grandes sucessos de 2012. Ao final das
filmagens, ouviu um curto e certeiro
elogio do cineasta: “Gonzaguinha colocou você neste filme”.
Agora, Júlio Andrade corre um
risco que costuma sobrevoar a carreira
de grandes atores às voltas com personagens do gênero: realizar uma performance tão assombrosa que o próprio
ator se torna, aos olhos da multidão, o
personagem que interpretou. Exemplos desse fenômeno são fartos. Um
clássico aconteceu em Hollywood,
quando Val Kilmer, uma estrela ligada
a superproduções do cinema de ação
e de comédia, topou o convite do diretor Oliver Stone para assumir, em
1991, a carne de Jim Morrison, o líder
do grupo The Doors. Kilmer levou a
missão ao extremo. Além de uma recriação quase biológica do vocalista (a
semelhança entre ator e cantor é assustadora), ele desenvolveu seu canto a
ponto de dispensar a dublagem da voz
original: quando Val Kilmer cantava,
era quase impossível dizer se era ele ou
_
O peso da
maquiagem
e da preparação
dos atores
um homossexual em Carandiru (2003), de
Hector Babenco. “Foi preciso lembrar que,
mesmo travesti, ele era um presidiário, não
podia ser muito montado como vemos
nas ruas. Fizemos um trabalho no corte do
cabelo para afirmar a feminilidade no rosto. Deu certo.” Em Bicho de sete cabeças
(2001), de Laís Bodanzky, Gabi precisou
envelhecer Santoro em diversos momentos. “Ele era muito jovem, precisava carregar um peso no olhar, no rosto.”
O preparador de elenco também pode
ser decisivo. O diretor Pedro Freire acabou
de cuidar do novo filme de Marcelo Gomes,
Era uma vez eu, Verônica, protagonizado
por Ermila Guedes. “O trabalho do preparador é criar condições para o elenco
chegar aos personagens, só que sem focar
no roteiro. Eu faço improvisações, crio
situações que acontecem antes da cena,
de modo a estabelecer um clima.” Para o
especialista, uma grande atuação se resume “a uma coisa muito simples, mas muito
difícil de alcançar”: talento individual e
trabalho em equipe.
47
“é a magia do cinema, da tv”
divulgação/globofilmes / amancio chiodi/estadão conteúdo / divulgação
O veterano Nelson Xavier é outro astro
que percorreu o trabalhoso caminho
de incorporar uma pessoa à perfeição.
Como protagonista de Chico Xavier
(2010), de Daniel Filho, o paulistano de
71 anos assumiu os trejeitos do médium
em um nível que borra os limites entre
a vida real e a interpretação. Não foi
a primeira vez que fez isso. Por quase
30 anos, Nelson fora lembrado como o
cangaceiro mais famoso do país, na minissérie da Rede Globo Lampião e Maria Bonita (1982), de Aguinaldo Silva e
Doc Comparato. Até fazer o conhecido
espírita mineiro. “É engraçado, as pessoas me acham parecido com o Lampião e o Chico, mas eu não sou, não”,
diz. “Isso é a magia da TV e do cinema.
Ela engana a plateia. Ela faz você parecer com o personagem.”
48
acima, o veterano nelson xavier exibe sua impressionante
recriação da expressão do médium chico xavier. na página ao
lado, Chico e, no detalhe, o ator sem a caracterização
“engraçado.
me acham
parecido
com o chico
xavier. e eu
não sou!”,
diz nelson
xavier
“Virei uma pessoa melhor”
Nelson recorda que recebeu, em 2006,
um exemplar da biografia escrita por
Marcel Souto Maior. Sua primeira reação foi dizer que, se virasse filme, gostaria de interpretar Chico. Passou um
período estudando sua linguagem corporal, decorando minúcias de seu dia
a dia. Um pouco como um artesão, foi
moldando aos pouquinhos, com uma
extenuante rotina de observação, uma
reprodução fidelíssima. O fato é que,
desde essa atuação, ele nunca mais deixou de ser perguntado sobre o quanto
o médium transformou sua vida. “Virei
uma pessoa melhor”, conta. “Aprendi a
ser feliz pelo simples fato de estar vivo
49
numa dimensão que até então não conhecia. Fui invadido por uma emoção
intensa, profunda, que classifico como
amor, porque Chico foi uma pessoa que
só tinha amor para dar.”
Antes de incorporar Chico Xavier, o
ator acreditava que qualquer personagem, depois de interpretado, era como
uma página virada. “Com ele aconteceu
diferente. Dois anos depois do filme,
sua figura continua presente em mim.”
Daniel de Oliveira, que depois de Cazuza viveu o famoso bandido brasileiro
da década de 50 Hiroito Joanides, no
filme Boca (2012), de Flavio Frederico,
pensa de forma semelhante. Para ele, o
ator acaba pegando algum trejeito de um
personagem. Com o tempo, diz, os maneirismos vão embora. “Mas acredito que
cada experiência desse tipo enriquece a
memória do corpo. Por isso, é tão bacana
fazer personagens diferentes.”
Júlio Andrade, que atualmente filma
Serra Pelada, do diretor Heitor Dhalia,
entende a importância desse vínculo
entre ator e personagem. “Brinco que a
minha preparação para ser Gonzaguinha começou aos 8 anos”, conta o ator,
fã do artista desde criança. Ao cabo da
experiência, o gaúcho acredita que viver o músico mudou sua vida e visão de
mundo. “Um filme é uma viagem: pode
ser boa ou não, mas você sempre volta
transformado”, afirma. “Eu cresci, deixei de ser menino, virei homem, aprendi
a entender quem sou eu no mundo, o
que quero da vida e de minha relação
com minha filha. Tornei-me, com esse
filme, um homem livre.”
Marília Gabriela pergunta:
Dói pisar na terra
do jardim onde deitaram
as cinzas
de seus
pais?
Paloma jorge Amado responde:
Marília, querida, dói muito. Mas dói por não termos conseguido
até hoje transformar a casa no museu que meus pais merecem.
Dói muito o descaso dos governos, nos diversos níveis. Lembro
tanto de quando você entrevistou mamãe, recém-viúva, e
lhe disse que os leitores mereciam conhecer a Casa do Rio
Vermelho. Suas palavras foram fundamentais para que ela
saísse e cedesse, generosamente, seu aconchego. Hoje, quando
sento embaixo da mangueira onde estão, sinto imensa paz, mas,
ao sair do jardim para a casa nua, tenho vontade de chorar.
50
51
Por Rosane Queiroz, de Salvador
Amadas
Filha de Jorge Amado e Zélia Gattai, Paloma Jorge Amado celebra
o centenário de nascimento do autor de Gabriela, cravo e canela
e abre um baú de histórias adormecidas na Bahia
arquivo zélia gattai/fundação casa de jorge amado
memórias
53
Personnalité
paloma jorge amado em seu apartamento em salvador
exibindo o anel que pertenceu a simone de beauvoir e a
tatuagem baseada em um desenho de diego rivera
54
Espelho do pai
arquivo zélia gattai/fundação casa de jorge amado
“Meu pai e eu éramos muito parecidos. Segundo mamãe, dois leoninos insuportáveis que ela não conseguia
domar. O que não era verdade. Era ela quem mandava. Sou toda ele, até fisicamente, e ele dizia se encontrar
em mim. Papai me ensinou a pensar pela própria cabeça. Por isso, às vezes batíamos de frente, como num
dia em que me recusei a cumprimentar um sujeito que considerava calhorda. Papai o cumprimentou.
Provoquei: ‘Está vendo como somos diferentes?’. Ele riu e disse: ‘Eu era igualzinho a você na sua idade.
Daqui a pouco você vai cumprimentar essas pessoas como se fossem fantasmas’. Então me contou que
tinha no imaginário um cemitério de vivos, onde enterrava os desafetos. Quando encontrava a pessoa, a
imagem era a de um fantasma, e ele dizia olá. Ainda não atingi essa perfeição.”
márcio lima
“S
Sonia Braga é a irmã da minha idade — ela tem só um
ano a mais do que eu... Chega, não é? Parece que sou
gabola”, diz, sacando uma palavra que leva a repórter ao
dicionário, para descobrir que é sinônimo de “se gabar”.
Paloma teria razões de sobra para ser gabola: quem
mais possui uma tatuagem no antebraço com uma pomba
desenhada para ela pelo pintor mexicano Diego Rivera
(1886-1957), o ex-marido de Frida Kahlo? Quem mais
tem um anel que pertenceu à escritora francesa Simone
de Beauvoir? “A amizade é o sal da vida”, diz Paloma,
lembrando uma máxima do pai, homem de muitos amigos
e autor de romances traduzidos em 55 países e 49 idiomas
– e superado em vendas apenas por Paulo Coelho.
Aos 61 anos, duas vezes casada e separada, duas filhas
(Mariana, jornalista, e Cecília, cineasta), dois netos,
Paloma se formou em psicologia, trabalhou na Secretaria
de Cultura do Rio, foi assessora de um presidente da
República (José Sarney), atuou na
área de publicações da Unesco,
em Paris, e transcreveu livros do
pai para o computador. Há 20
anos, escreve e desenha em sua
oficina, chamada Que Papelão.
Ama cozinhar. Além disso, é uma
colecionadora de óculos (no dia
da entrevista, usava uns azuis,
comprados em Veneza).
Essa vida polvilhada
de presentes, histórias e
companheiros ganhou um novo
capítulo este ano, em que se
comemora o centenário de Jorge
Amado, nascido em 1912, morto
em 2001. Paloma decidiu abrir
seu baú de memórias para Revista
Personnalité. Nas páginas a seguir,
passeia pela vida de Jorge, sem
esquecer a presença igualmente
forte de sua mãe, Zélia (1916-2008).
“Tenho uma vida linda. Sou a mãe de Ci e Nana,
a avó de Lipe e Nico, a amiga de inúmeros amigos. A
privilegiada filha de Zélia e Jorge. Como boa leonina,
criativa e generosa, mas simples e low profile pelo
ascendente em peixes. Os defeitos, os assumo. O
‘maroceano’ passa por meus olhos de filha de Iemanjá.
Odoiá. Sou uma mulher feliz!”
e for de paz, pode entrar.” O aviso na porta do
apartamento de Paloma Jorge Amado traduz a
alma da dona da casa. “Tudo na minha vida é em torno
da paz”, diz a filha do casal ícone da literatura brasileira,
Jorge Amado e Zélia Gattai. Depois de quatro anos
vivendo no Rio de Janeiro, Paloma escolheu como seu
novo lar o terceiro andar de um prédio no bairro da
Federação, com vista para o mar de Ondina, em Salvador.
É um lugar cheio de vento, poucos móveis, muitos
livros e obras de arte. Gravuras produzidas pelos
mestres Carybé (1911-1997) e Calasans Neto (1932-2006)
convivem com dois retratos importantes: Paloma, aos 15
anos, desenhada por Carlos Scliar (1920-2001), e Jorge
Amado, aos 18, por Portinari (1903-1962). As paredes
guardam outro tesouro da filha do criador de Gabriela,
cravo e canela: um lenço com uma pomba no centro,
pintado em 1951 por Pablo Picasso (1881-1973), para o
Festival Mundial da Juventude
pela Paz. “Esse evento aconteceu
em Berlim e terminou em 19
de agosto, o dia em que nasci.
Papai estava ali, lutando pela
paz, e mamãe parindo em Praga,
durante o exílio”, conta Paloma,
de certidão de nascimento tcheca.
A ligação entre o escritor
baiano e o pintor espanhol foi
de profunda amizade. “Eu me
chamo Paloma por causa da
Paloma Picasso, a filha de Pablo.
No dia em que ela nasceu, papai
e Picasso estavam juntos em
Paris [onde Jorge viveu de 1948
a 1950] tentando um visto para
outro Pablo, o Neruda, que vivia
clandestino com um passaporte
guatemalteco”, diz. Tempos
depois, o poeta chileno se tornaria
padrinho de Paloma e habitué de sua casa, como tantos
artistas e intelectuais. “Eram pessoas absolutamente
simples com quem convivi, ao lado de meu irmão mais
velho, João Jorge”, afirma. “Simone de Beauvoir e Sartre,
conheci na infância e convivi na adolescência. Adoráveis.
Dorival Caymmi era como meu tio, assim como Vinicius
de Moraes, Carybé, Di Cavalcanti... Já ‘irmãos mais
velhos’ tive muitos: João Gilberto, Dori, Nana Caymmi...
paloma jorge amado
Niemeyer e a fábrica de brinquedos
“Aonde papai ia, eu ia atrás. Foi assim que, aos 6 anos, acreditei conhecer um fabricante de brinquedos:
Oscar Niemeyer, que fazia as casinhas em miniatura mais fabulosas que já vi. Morávamos em
Copacabana e o escritório de Oscar já era no mesmo lugar em que permanece hoje, no edifício Mae
West, nome de uma atriz peituda. O prédio lembra as curvas dela. Papai ia todo sábado até lá só
para bater papo. Um dia, ele não foi e perguntei: ‘Não vamos lá no seu amigo que faz brinquedos?’.
As maquetes, com arvorezinhas e carrinhos, na minha visão de menina, eram mágicas. Depois, meu
primeiro marido [o arquiteto Pedro Costa] trabalhou dez anos com Oscar nesse prédio.”
jorge amado brinca com a filha paloma no apartamento
em que viveram em 1953, no rio de janeiro
55
Personnalité
paloma jorge amado
Mina de ouro
“Na mudança para Salvador, encontrei um pacote de livros. Ao abrir, parecia que estava em Serra Pelada. Só
tinha ouro! Achei o exemplar da primeira edição numerada de Cacau, o segundo livro que ele publicou, em
1933 [depois de O país do Carnaval, de 1930]. A obra era dedicada a seus pais, meus avós, com ‘todo o amor’.
Descobri nesse pacote um volume de Vidas secas, de Graciliano Ramos, em que se lê, como dedicatória,
apenas: ‘De Graciliano a Jorge Amado’ – Graciliano era a secura em forma de homem. O mais incrível é um
exemplar de primeira edição de Il sentiero dei nidi di ragno [A trilha dos ninhos de aranha], primeiro livro de
Italo Calvino, com a dedicatória: ‘Alla Signora Amado e a Jorge che ne ha scritti tanti, un collega che è ancora al primo. Italo Calvino, Torino, maggio ‘49’ [Para Jorge e senhora, um homem que tem escrito tanto, de
um colega que ainda está em seu primeiro. Italo Calvino, Turim, maio de 1949]. Quando fiz 15 anos, papai me
deu as obras completas de Federico García Lorca, em espanhol, com capa de couro e lombada de ouro. É o
livro mais querido de minha biblioteca. Li todo. Quase 2 mil páginas.”
no alto, a primeira edição de cacau, publicado por jorge
amado em 1933. acima, italo calvino dedica seu PRIMEIRO
livro, a trilha dos ninhos de aranha, AO BAIANO
56
exemplar de vidas secas, lançado em 1938, com a dedicatória
no estilo seco que marcou seu autor, graciliano ramos: “de
graciliano a jorge amado”
arquivo zélia gattai/fundação casa de jorge amado
márcio lima
À mesa com Jean-Paul Sartre
“Quando Sartre esteve no Brasil, em 1960, pediram ao meu irmão, na época com 14 anos, que fizesse
uma entrevista para o jornalzinho da escola. João não quis. Disse que não entendia de filosofia. Mas
Sartre estava todo dia lá em casa. Para mim, era só um homem horroroso. Um dia, mamãe comentou
com ele que João não queria fazer a entrevista. Ele questionou, João justificou: ‘Sou um menino’. Sartre
disse: ‘Então me entreviste como um menino, me pergunte se gosto de tomate’. João perguntou, e
ele respondeu: ‘Não gosto de tomate, mas adoro ovo frito...’. Tempos depois, quando eu tinha 14 anos,
jantamos com Sartre e Simone de Beauvoir no Lipp, um simpático restaurante em Paris. Mamãe trocou
ali confidências com Simone. Ficaram amigas. Mais tarde, ganhou dela um anel de ouro e jade que a
francesa ganhara do pai aos 15 anos. Pouco antes de morrer, mamãe me deu essa joia. O curioso é que
gostamos tanto do Lipp que, no dia seguinte, voltamos sozinhos. Chegando lá, Sartre estava com uma
namoradinha. Papai disse: ‘Todo mundo finge que não viu’. Sartre fez o mesmo.”
na bahia, zélia gattai, jean-paul sartre, simone de beauvoir
e jorge amado posam ao lado de mãe senhora
57
Personnalité
paloma jorge amado
Afilhada de Pablo Neruda
“Em plena ditadura getulista, Neruda nos visitou em Salvador. Foi aquele corre-corre. Minhas
professoras de português e espanhol, no colégio Aplicação, me trouxeram, cada uma, um exemplar de
20 poemas de amor e uma canção desesperada para ele autografar. Cheguei com os livros e ele disse: ‘São
piratas’. E quis ficar com os exemplares para reclamar com a editora, dizendo que mandaria outros. Sabia
que compadre Neruda não cumpriria a promessa e pedi um bilhete para cada professora explicando o
caso. Ele escreveu uma carta enorme, com sua caneta-tinteiro verde. Tempos depois, encontrei uma das
professoras e comentei sobre a perda do livro. Ela disse: ‘Mas a carta está emoldurada na minha parede!’.”
no alto, o poeta pablo neruda, o político luís carlos
prestes e jorge amado. acima, o escritor baiano conversa
com o compositor e cantor francês georges moustaki
58
arquivo zélia gattai/fundação casa de jorge amado / arquivo pessoal
“Muita gente me pergunta por que acrescentei Jorge ao meu nome. Não acrescentei. Papai colocou
em todos os filhos seu nome completo. Meu irmão João [sociólogo] também é Jorge, assim como Lila,
filha de seu primeiro casamento [que morreu aos 15 anos, vítima de lúpus]. Sempre gostei de ser Jorge,
sobretudo no dia 23 de abril, o dia do santo. Durante os quatro anos que morei em Paris, nos reuníamos,
os Jorges, para um jantar animadíssimo: papai, os músicos Jorge Raillard e Georges Moustaki, e eu.
Moustaki é como um irmão. Desde que papai morreu, a gente marca e não tem coragem de se ver.”
“Ainda pequena, no Rio, morávamos num dúplex na Rodolfo Dantas, atrás do Copacabana Palace. João
Gilberto e a turma da bossa nova viviam compondo lá em casa. Na Bahia, foi a fase de Vinicius. Ele chegou
a escrever um poema na porta do meu guarda-roupa. Mas quando fez a canção ‘Minha namorada’, que fala
‘ser só minha até morrer’, comentei com papai que ele era reacionário. Papai caiu na gargalhada e disse:
‘Minha filha, não esqueça nunca: a gente só ama quando tem certeza que é até morrer’.”
arquivo zélia gattai/fundação casa de jorge amado
Confraria dos Jorges
Lição de Vinicius de Moraes
Encontro de craques
“Esta foto é de 1984. Papai havia ganhado o Prêmio Internacional Nonino, uma festa literária italiana.
Naquele mesmo ano, Zico tinha mudado para lá, com estardalhaço, porque havia trocado o Flamengo
pela pequena Udinese. Udine era pertinho de Percotto, a cidade onde a festa acontecia, e ele nos
convidou para ir a sua casa. Eu, flamenguista roxa, fiquei na maior emoção!”
no alto, jorge, o gravurista calasans neto e vinicius de
moraes em paris. acima, o autor conversa com o jogador
zico, ídolo da flamenguista paloma, que acompanha a cena
59
Personnalité
paloma jorge amado
Festa dos 100 anos
em 2000, com os cachorros fadul e morita, jorge amado
senta no jardim de sua casa na bahia, debaixo da árvore
de manga que recebeu suas cinzas depois de sua morte
60
marcelo regua/o dia / arquivo zélia gattai/fundação casa de jorge amado
Cinzas na mangueira
“Aos 83 anos, papai teve um infarto. Quando voltou para casa, me chamou no banquinho, debaixo da
mangueira, onde gostava de ficar, na casa do bairro do Rio Vermelho, aqui em Salvador. Era uma árvore
de manga carlotinha, aquela que é só fazer um furinho e chupar. Ele me pediu: ‘Quando eu morrer, dê um
jeito de me cremar e pôr as cinzas aqui. Não há ideia que me agrade mais do que me tornar adubo dessa
árvore’. Foi também o desejo de mamãe, que não autorizou nem os filhos a depositar as cinzas ali quando
morressem. ‘Debaixo dessa mangueira, só Jorge e eu!’, ela dizia. E assim será.”
arquivo zélia gattai/fundação casa de jorge amado
“Desfilei no Carnaval de 2012 pela Imperatriz Leopoldinense, que homenageou os 100 anos
de Jorge Amado. O centenário, que começou em setembro de 2011 e vai até março de 2013,
mobilizou pessoas de todas as idades, cultos e culturas. Muita gente falando do autor querido
na Bahia, no Brasil, no mundo. O melhor: todos falando no presente, o que dá a dimensão do
quanto seu legado é atemporal e universal. Em Salvador, papai está por toda parte. Mas não o
encontro fora, eu o encontro dentro de mim. Ontem comi um acarajé. Comemos juntos.”
Última conversa
“Em 1996, papai perdeu a visão central. Ele entrou num estado de depressão difícil. Deitava,
fechava os olhos e não respondia ninguém. No réveillon de 1999 para 2000, ele reagiu e
quis fazer um almoço em família. É triste, não gosto de lembrar [Paloma fica com os olhos
marejados]. Nesse dia, ele me confessou: ‘Eu passo o dia esperando chegar a noite para ver se
durmo e não acordo. Estou com um livro inteiro na cabeça sabendo que não posso escrever’.
Sugeri que ditasse para mim, mas dois dias depois já estava apagado de novo. Isso foi em 1o de
janeiro de 2000. Papai morreu em agosto de 2001. Foi nossa última conversa.”
Baixe a Revista Personnalité no iPad e veja vídeo do ator Gero Camilo interpretando trecho de O milagre dos pássaros (1979), de Jorge Amado
no alto, paloma desfila pela imperatriz leopoldinense, na
homenagem a jorge amado no carnaval deste ano. acima,
em fevereiro de 2001, seis meses antes de seu pai morrer
61
Por Michael Hughes, em depoimento a Lia Bock
A viagem
do suvenir
michael hughes/laif
O trabalho do inglês Michael Hughes devolve o suvenir ao seu
lugar de origem com montagens inusitadas. Em 13 anos, a página
em que exibe o projeto já recebeu quase 8 milhões de visitas
o inglês michael hughes utiliza um postal da estátua da liberdade
para substituir a verdadeira. o registro faz parte da série que o
fotógrafo iniciou durante uma viagem à alemanha, em 1999
62
63
michael hughes/laif
“E
no alto, suvenir da torre eiffel cobre a original em paris.
acima, o fotógrafo vai ao egito clicar as pirâmides. o trabalho
do inglês com as lembranças turísticas conta com 150 imagens
64
m novembro de 1999 eu
estava diante de Loreley, uma
pedra que fica no rio Rhine, próximo
à cidade de Coblenz, na Alemanha.
O lugar é um desses que a Unesco
decide declarar Patrimônio da
Humanidade. Merece. É lindo.
Eu, por acaso, naquele dia tinha
comigo um cartão-postal meio
estranho daquela paisagem. Era bem
tosco, para ser sincero. Mais tarde,
enviaria esse postal para minha filha
– na época, ela amava histórias de
princesas e há uma lenda ali sobre
a princesa Loreley, que atraía os
barcos e seus marujos para a morte.
Quando me vi diante da pedra e olhei
para o cartão, percebi que a luz e a
posição do que estava no papel eram
muito parecidas com o cenário que
estava à minha frente. Esse tipo de
coincidência que devemos aproveitar.
Na hora senti que deveria
misturar as duas coisas. Foi assim,
meio sem querer, que realizei a
primeira foto do que se tornaria a
série que estampa estas páginas.
Sempre tive uma queda por
suvenires e, na época, eu já tinha a
mania de colecionar os piores que
encontrava. Era um troço um pouco
esnobe, assumo: queria ter esses
objetos horrorosos para mostrar
o quão sofisticado era e a quantos
lugares tinha ido – posso garantir que
não sou mais assim.
Estou longe de ser um amante
de suvenires. Eu os coleciono, mas
no geral são tão malfeitos que fica
difícil amá-los. Eles apenas acabaram
servindo como base, talvez uma
empolgação, para esse projeto tomar
corpo. Já são 13 anos e mais de
150 fotos. Fotos sempre – eu digo
sempre! – tiradas com um item tosco
comprado no próprio local e sem
pedir para que as pessoas em volta
saissem, ou coisas do tipo. É simples,
rápido. Posto todas em meu Flickr.
Com o tempo, a minha brincadeira
foi fazendo cada vez mais sentido.
Repare como a fotografia tem tomado
o lugar das nossas lembranças
turísticas. Com uma câmera no bolso,
relaxamos. Além do incrível desejo
de estar na mesma foto do objeto que
estamos visitando, mesmo que seja
uma simplória placa do Starbucks.
O fotógrafo britânico Martin
Parr tem um trabalho muito bacana
em que aborda bem claramente essa
questão de fotos turísticas [Parr
fotografa pontos turísticos do mundo
abarrotados de pessoas com suas
câmeras fotográficas em punho].
Mas calma. Não quero ofender
os leitores que praticam o saudável
exercício de utilizar suas máquinas
fotográficas quando saem de sua
cidade. Acho positiva essa facilidade
que as câmeras baratas e boas
trouxeram. Como não gostar de
que mais pessoas desenvolvam um
legítimo interesse pela fotografia?
Gosto sempre de me perguntar:
por que não?
Provavelmente, nunca tivemos
tanto olho para detalhes, para cores,
para luzes. Mas, depois da primeira
fase de entusiasmo, tanto a câmera
como as fotos costumam acabar no
fundo de uma gaveta ou esquecidas
em um HD. Isso acontece porque,
a não ser que você tenha algo para
dizer com suas fotos, tirá-las se
torna tedioso. De qualquer forma,
65
“Estou
longe de
ser um
amante de
suvenires.
são tão
malfeitos
que fica
difícil
amá-los”
pirulito de torre de pisa
“O tempo de cada clique depende
da foto e do que colocarei na frente.
Existem algumas considerações
técnicas, como, por exemplo, se o
objeto é grande ou pequeno demais
e quais as possibilidades de distância
que posso tomar. Sempre aproveito as
pessoas que estão por ali, acho que isso
é importante na composição. Algumas
vezes não funciona. Recentemente
tentei fazer uma foto das hélices de
energia solar que são símbolo da
Holanda. Não deu certo. Também não
tenho certeza se a cara da Lady Di,
em Londres, funcionou muito bem...
Minhas fotos favoritas dessa série são
na Torre de Pisa, com a minha filha
“Diante
de um
monumento
famoso,
qualquer
um se
fotografa
sem muita
vergonha”
_
“Torço para
não viajar e
ficar em casa”
Michael Hughes tem 60 anos, nasceu em Kingston, Inglaterra. Vive
há 30 anos em Berlim, Alemanha.
Estudou história na London University, mas afirma que a palavra “estudou” é muito elegante para descrever o que se passou naqueles
anos. Ainda na faculdade, começou
a fotografar com a Pentax do pai. É
casado, tem três filhos e um neto.
As muitas viagens que faz por ano
chupando um pirulito no formato
do monumento, e também as Torres
Gêmeas, feitas quando o World Trade
Center ainda estava de pé.
Fui ao Brasil uma vez em 2010
para fazer uma reportagem sobre
energia. Gosto bastante da foto do
Cristo Redentor que fiz no Rio de
Janeiro. Ela mostra o suvenir e o
cristo em boa harmonia. Fico feliz
quando consigo isso. Se tenho em
mãos uma réplica em miniatura
muito exata, muitas vezes ela
esconde o que vai atrás. O que me
agrada mesmo é quando há certa
transparência, quando podemos ver
ambas as coisas. A magia está aí.
Viver é um pouco assim, não
é? Ver o máximo possível. Ir até os
lugares, passar por experiências, tirar
uma foto e, quem sabe, comprar um
suvenir. E por que não?”
são devidas à sua profissão de
fotógrafo freelancer de jornais e
revistas. “Viajo o suficiente para
querer ficar em casa nos próximos meses. Só este ano estive em
Londres e Amsterdã duas vezes.
Também passei por Irlanda, Grécia,
Portugal, Áustria e Itália.”
Foi em 2006 que o projeto
Suvenires ganhou notoriedade.
“O ponto alto foi quando recebi
um telefonema do Jay Leno Show
(NBC) me convidando para ir a Los
Angeles participar do programa.
Mas o telefonema foi suficiente
para convencer a produtora de que
eu seria absolutamente inútil para
a televisão. Ali, perdi minha grande
chance”, brinca.
Michael tem um livro com as
fotos do projeto editado pela Fivefootsix e colabora para a revista
National Geographic. Para mais
Leia no iPad reportagem exclusiva
informações sobre o projeto acesse:
sobre a origem de cinco suvenires
www.hughes-photography.eu.
66
michael hughes/laif
abordar esse tipo de questão é um
troço um bocado polêmico. O próprio
Martin Parr teve dificuldades de
ser aceito pela tradicional agência
Magnum Photos, da qual faz parte
hoje. A velha guarda considerava seu
trabalho trivial demais.
Muitas vezes a cultura popular
é considerada trivial. E não há
nada mais trivial do que fotografias
tiradas nas férias. Diante de um
monumento famoso, qualquer um se
sente compelido a se fotografar sem
ter muita vergonha. A pessoa tem
um motivo supremo para isso: seja a
importância história e sentimental
do local, seja a missão de levar a
experiência de volta aos seus queridos.
Me interesso por essas questões.
Os suvenires são uma espécie de
expressão de nossa mortalidade. Eles
vivem em nossa casa nos lembrando
que há algo como a Torre Eiffel
no mundo, que ela fica em Paris e
precisamos ir até lá para vê-la. E que,
um dia, não será mais possível ir. Mas
a torre permanecerá lá. Nós, não.”
no alto, michael hughes fotografa a filha lambendo um pirulito
na frente da torre de pisa, na itália. acima, clique do cristo
redentor, feito durante visita ao rio de janeiro em 2010
67
Paloma jorge Amado pergunta:
Qual
sentimento
você tem
pelo
Brasil?
Morito Ebine responde:
Eu acho muito bom morar no Brasil. Acho bom morar
no Japão também. A diferença é que no Japão o trabalho
manual é mais valorizado. Acho o trabalho fundamental
na vida, no dia a dia. Aprendi a fazer móveis em lugar
montanhoso. Então, dá para viver e trabalhar tranquilo em
Santo Antônio do Pinhal, Serra da Mantiqueira.
68
69
morito ebine
Por Thiago Lotufo, de Santo Antônio do Pinhal Fotos Marcos Vilas Boas
Em Santo Antônio
do Pinhal, na Serra
da Mantiqueira, o
marceneiro japonês
Morito Ebine transforma
madeira em móveis feitos
para durar cem anos
utilizando a milenar
técnica do encaixe
O artífice
detalhe da mão de morito e
de uma plaina, marcada com o
ideograma que significa mar
71
Personnalité
O
morito ebine
mais de mil anos que, se tivessem sido feitas de concreto,
durariam 300 anos ou, de ferro, apenas 30. “Numa empresa
em que trabalhei por lá o chefe dizia: ‘Vocês usam madeira
que levou cem anos para crescer, então têm que fazer
móveis que durem outros cem anos’”, conta o marceneiro.
Além do encaixe, a secagem da madeira é uma premissa
fundamental para que os móveis atravessem séculos. Isso
porque, mesmo depois de cortada, ela muda de dimensão.
Quando seca, encolhe, quando fica exposta à umidade,
expande. “Essas variações de tamanho podem prejudicar os
móveis, né?”, diz Ebine. “Quanto mais tempo ficar secando,
mais estável. Madeira, quanto mais velha, melhor.” Nos
fundos de sua oficina, ele reserva uma parte do galpão
justamente à secagem de tábuas e pranchas. Nela, tem
madeira recém-chegada, com um ou dois anos, mas,
também, madeira que já está secando há 15 anos. Todas
esperando para ser eventualmente transformadas em
cadeira Broto, banqueta Bandeja ou mesa Galho, algumas
das mais de 30 peças feitas aqui.
mar subiu a serra, inundou um galpão e passou a
se ocupar de secar madeira. Isso em Santo Antônio
do Pinhal, cidade de 6.516 habitantes localizada na
Mantiqueira, a 163 quilômetros de São Paulo pela rodovia
Presidente Dutra. O mar, aqui, ganha outro nome. Ou,
melhor, um ideograma, que representa a letra E, de Ebine.
“A primeira letra do meu sobrenome significa mar em
japonês”, explica Morito Ebine, marceneiro nascido no
Japão que há oito anos montou sua oficina em meio às
colinas de Santo Antônio do Pinhal, longe do centro.
No galpão de tijolo aparente, erguido num terreno de
5.800 metros quadrados, sem muros ou cercas (“quer entrar,
entra”), ele e mais três ajudantes produzem, entre outras
coisas, cadeiras, bancos, mesas e luminárias empregando
a milenar técnica do encaixe: nada de pregos ou parafusos
para unir uma peça à outra. “Parafuso machuca a madeira
e acaba encurtando a vida dos móveis. Enferruja também e,
com o tempo, a estrutura fica mais frouxa”, afirma Ebine.
No Japão, segundo ele, existem construções de madeira com
72
na página ao lado: fachada da construção de tijolo
aparente de morito. no terreno, sem cercas ou muros, o
artesão produz não mais que dez cadeiras por mês
73
a partir do alto, em sentido horário: gavetas guardam
a coleção de ferramentas; chaise longue e luminária;
gabaritos para A construção dos móvEIS; e BIBLIOTECA
Personnalité
morito ebine
74
75
a marcenaria, repleta de gabaritos pendurados nas vigas. é o local
sagrado onde morito seca, mede, corta e trabalha a madeira. aqui,
ele planeja e constrói móveis para durar cem anos
Personnalité
morito ebine
“não uso
parafusos,
que machucam
a madeira.
sem eles, há
construções
no japão que
duram mil anos”
O marceneiro japonês vive alheio à badalação do
mundo dos designers – prefere, inclusive, ser chamado
justamente de marceneiro ou artesão. Ou, ainda, artífice,
o trabalhador ou operário que produz algum artefato. Tem
clientes famosos que, sabiamente, mantém anônimos; já
foi chamado pela revista britânica Monocle de “um dos
mais bem guardados segredos do design mundial”;
e suas cadeiras Folha e Nara foram parar no acervo da
R 20th Century Gallery, uma das maiores galerias de arte
para mobiliário brasileiro em Nova York. Segundo Julia,
Morito não liga para nada disso e nem sequer demonstrou
interesse em ser representado pela galeria. “Ele só quer
fazer peças de boa qualidade e úteis”, diz ela.
Ele quer também passar seu conhecimento adiante.
“Japonês costuma ser fechado, mas o Ebi é superaberto,
quer passar para a frente os ensinamentos”, diz Wagner
Manarim, 50, um de seus ajudantes. “Quem sabe tanto
quanto ele ou não abre o jogo ou já não produz mais.”
Wagner, o que você aprendeu com o Morito? “Aprendi a
identificar o sentido da madeira, o veio; a usar ferramentas
de um jeito diferente; a afiá-las; e a técnica do encaixe.”
Como ele é como professor? “Exige da gente o máximo da
perfeição, mas nada é uma ordem e sim um pedido.”
Na oficina, por conta de um ex-ajudante que custava
a assimilar os ensinamentos, Morito instalou uma
placa acima da porta de entrada com dois ideogramas
associados à cerimônia do chá: ichigo ichie. Traduzidos,
significam algo como “um momento, um encontro”. Com
isso, ele quis deixar claro ao aprendiz que cada peça
feita ali é única e que é preciso colocar atenção em todas
as etapas de sua construção. Em outra ocasião, afixou
com fita-crepe, em uma das paredes, uma tira de papel
com alguns outros ideogramas e a tradução logo abaixo:
“Aprender sem pensar é esforço vão; pensar sem nada
aprender é nocivo”.
Morito tem 45 anos, 1,69 metro e pesa 64 quilos.
Seus cabelos são pretos, com alguns fios brancos, e duas
entradas proeminentes marcam a testa. O rosto carrega
sobrancelhas negras e grossas. Ele usa as mãos – as pontas
dos dedos são bem arredondadas e a área reservada às
unhas, grande – como ferramentas que o ajudam a se
expressar. Em pé, fala com as pernas abertas, fazendo
uma base sólida no chão como se fosse um lutador de
caratê. Pontua as frases com “né?”, troca o ele pelo érre e
vice-versa (diz “praina” em vez de “plaina” e “molar” no
lugar de “morar”) e se atrapalha com preposições (“no
São Paulo”) e concordâncias (“todos minha família tá lá”).
Não consegue pronunciar o til: “Japón”. Diante de uma
pergunta complicada, para, pensa e procura a resposta
revirando os olhos. Quando está de acordo com algo, pisca
os olhos e inclina a cabeça para a frente.
Craque no idioma de Camões, Morito talvez não seja
(e seria descabido exigir isso dele), mas mestre no que
faz, isso ele é – mesmo que não concorde. Morito, você se
considera um mestre? “Hummm. Por acaso, virou mestre
porque ensinava pessoa, né? Se fosse nesse sentido... mas é,
agora, sim, depois de aprendizagem, né, vira aprendiz, depois
marceneiro. Eu tô no meio do marceneiro. Mestre deveria
ser assim depois dos 60 anos.” Você ainda tem algo para
aprender? “Ah, tem muito, né? Bastante coisa eu queria fazer
tecnicamente e não consigo, como um pianista que só depois
de avançar técnica consegue executar determinadas músicas.
Marcenaria tem que treinar muito para conseguir fazer.”
“O Deus da marcenaria”
A arquiteta e premiada designer paulista Julia Krantz,
45 anos, conhecida por seus móveis orgânicos, de linhas
arredondadas, diz que Morito “é o Deus da marcenaria,
um buda”. “Tudo o que ele me mostrou é o que eu sempre
quis a vida inteira”, ela revela. Os dois se conheceram
em 2006. Julia subiu a serra numa segunda-feira e ficou
encantada. De lá pra cá, às segundas, muitos outros sobe
e desce aconteceram. Fernando Mendes de Almeida, 47,
designer carioca, discípulo de Sergio Rodrigues, que já
conhecia Morito e foi apresentado à Julia num evento no
Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, também integra essa
confraria da madeira que se reúne – hoje em dia com menos
frequência – na bucólica Santo Antônio do Pinhal para trocar
experiências. Da parceria entre Ebine e Julia, nasceram as
cadeiras Weg2, uma homenagem ao designer dinamarquês
Hans Wegner, a Elipse e a Gil, esta última ainda um projeto. 76
na página ao lado, o marceneiro sentado em uma de suas
criações na oficina no interior de São Paulo
“Mais informal, solto”
Morito nasceu em Yaita, na província de Tochigi,
125 quilômetros ao norte de Tóquio. Tem um irmão
mais novo, Hidemi, 42, paisagista. Seu pai chamase Takashi e a mãe, Yoko (“esse é fácil, né?”). Ambos
alfaiates. No período equivalente ao nosso ensino médio,
gostava de física, matemática e filosofia. Mas resolveu
estudar marcenaria porque queria algo mais útil, com
sentido prático e, também, para resgatar a qualidade do
mobiliário japonês. “Eu tinha raiva dos móveis que não
77
Personnalité
_
Cadeira é feita
com 40 ferramentas
O mar inunda também as ferramentas da oficina erguida na Serra da
Mantiqueira. Isso porque em cada uma de suas mais de 80 plainas
— usadas para desbastar a madeira — é possível ver gravado o ideograma que representa o E, de Ebine, e que significa mar. Morito tem
especial apreço pelas plainas manuais, coisa que se percebe não somente pela quantidade como também pela diversidade que possui.
“No Brasil, não existem mais tantos termos técnicos de marcenaria
e usam a palavra ‘plaina’ para generalizar, como se fosse uma única
ferramenta”, diz o marceneiro. “No Japão, cada plaina, e são muitas,
tem seu próprio nome.” Sua plaina mais antiga tem 27 anos e foi
comprada na época da faculdade. Os formões, usados para entalhar
a madeira, são quase 50. Martelos, serrotes, goivas e outros equipamentos preenchem as gavetas e o espaço da marcenaria. “Tenho um
monte de ferramentas, mas com 20% delas dá para fazer 80% do
trabalho. Algumas eu uso uma ou duas vezes por ano, só que sem
elas não dá para fazer o que é preciso”, explica Ebine, que utiliza de
30 a 40 ferramentas para produzir uma cadeira, por exemplo.
78
duravam nada. No Japão, antigamente, faziam móveis
para durar gerações. Hoje em dia, feitos com aglomerado,
compensado ou MDF, não duram muito”, afirma Ebine.
Na universidade, estudou desenho de móveis e
marcenaria. Fez três anos e trancou a matrícula para viajar
pela Europa. Na volta, conseguiu seu primeiro emprego
na área e não retomou mais o curso. Trabalhou três anos
numa marcenaria grande, depois mais um ano em outra,
até montar o seu próprio negócio. Entre um emprego
e outro, ajudou num sítio de agricultura biodinâmica
plantando trigo, batata, cenoura, alface, entre outras
coisas. Nessa época, 1991, conheceu Rosana, uma brasileira
filha de japoneses, hoje com 49 anos, que trabalhava
no restaurante do sítio. “Os japoneses costumam ser
bem certinhos, o Ebi não. Ele era mais informal, solto,
se importava com assuntos diferentes”, conta Rosana.
“Foram essas coisas que me chamaram a atenção.”
Em 1993, casados, ela e Morito vieram ao Brasil por
dois meses para que ele conhecesse o país. Dois anos mais
tarde, em 1995, se mudaram em definitivo para cá. Foram
morar em Mogi das Cruzes (SP), no sítio do sogro dele,
NO ALTO, ALGUMAS DAS FERRAMENTAS DO MESTRE DO ENCAIXE. MORITO
TEM ESPECIAL APREÇO POR SUAs PLAINAS E seus FORMÕES, marcados
com ideogramas. parte desses equipamentos ele usa raramente
morito ebine
que usa no interior de sua oficina, como freijó, cedro, paumarfim, jatobá e embuia, e daquelas que cultiva na área
externa, como açoita-cavalo, liquidâmbar, jacarandá-mimoso,
pau-brasil e carvalho europeu. Morito gosta de madeira
em pé e de madeira deitada. Como se resolve esse aparente
dilema? “[Solta uma risadinha] Hã hã hã, é... é estranho,
né? Mas a gente não usa muita árvore. Uma árvore grossa
rende de 5 a 10 metros cúbicos de madeira. Nós usamos, por
ano, 5 metros cúbicos”, afirma ele. Ah, é? Nem uma árvore
então? “É, uma árvore, máximo duas árvores por ano. A
gente produz dez cadeiras por mês, 120 por ano, usando
cadeira como exemplo, né? Não é muita coisa. Compramos
madeira uma vez por ano e deixamos secar.” Prossegue: “No
Brasil, talvez não pensem, no Japão, bastante marceneiro
pensa: ‘Ah, vida da árvore acabou quando cortou e virou
madeira. Mas, depois de virar madeira, quando faz objeto,
pode começar a segunda vida’”. Uma vida, se depender de
Morito, de no mínimo cem anos.
onde cultivavam cogumelo e batata yacon (turbéculo de
origem andina). Lá, Morito começou a fazer móveis para
mobiliar a casa e, no boca a boca, a fama se espalhou.
Comprou equipamentos e montou sua primeira oficina no
Brasil. Depois de quatro anos, ele transferiu a oficina para
Quiririm, distrito de Taubaté (SP), e o casal mudou-se para
Campos do Jordão (eles moram lá desde 1999). Na cidade,
Rosana, arquiteta de formação, tem uma loja de artesanato
e produtos naturais. Na vizinha Santo Antônio do Pinhal,
Morito inaugurou sua oficina, em 2004.
De segunda a sábado, ele chega no trabalho a bordo de
sua Saveiro bege, ano 94. Cumprimenta os companheiros
Wagner, William e Waldemar, faz um afago nos cachorros,
os vira-latas Paco e Pitu e a akita Rita, e prepara chá, que
pode ser acompanhado por biscoitinhos Ellen, fabricados
a alguns terrenos ao lado. Começa a medir, cortar e
aplainar a madeira lá pelas 9h30. Almoça na própria oficina
entre 12 e 13 horas, continua o trabalho à tarde. Atende,
eventualmente, clientes, recebe telefonemas. Às 19, 19h30,
sobe na Saveiro e retorna para Campos do Jordão.
Morito diz que gosta de todas as árvores. Daquelas
no alto, a partir da esquerda, a cadeira weg2, uma homenagem
ao artista dinamarquês hans wegner, criada em parceria com a
designer julia krantz; e a banqueta folha
Baixe a Revista Personnalité no iPad e assista ao vídeo
produzido na marcenaria de Morito Ebine
79
Por Anna Paula Buchalla
O
país
do
presente
80
Nicolas e Cecília Gautier, empresário e designer de moda
N
carol quintanilha / arquivo pessoal
O bom momento econômico do Brasil
atrai cada vez mais gente para viver
aqui. Conversamos com brasileiros
que resolveram voltar antes da hora e
estrangeiros que não sonhavam em um
dia adotar São Paulo como lar
Estrangeiros atraídos pelo Brasil
ormalmente, os estrangeiros que
adotam o Brasil como moradia têm
duas preocupações: explicar que, não, a
violência não os impediu de optar por viver aqui e esclarecer que a mudança não
foi uma decisão aventureira. Com Nicolas
e Cecília Gautier, um empreendedor europeu de 34 anos e uma designer de moda de
28, que desde janeiro vivem em São Paulo,
a história se repete. “Poderíamos viver
em Londres, Nova York ou Pequim, mas
escolhemos São Paulo. É uma cidade como
qualquer outra metrópole, com o que há de
melhor e de pior para viver”, diz Nicolas.
Ele é o que se pode chamar de cidadão do
mundo. Filho de um empresário suíço-alemão e de uma francesa que cresceu na
África do Sul, nasceu no Japão, passou a
adolescência em Zurique e morou 11 anos
em Londres, onde estudou economia e
publicidade. “Sempre digo que estou aqui
por dois motivos: gosto do país e vejo não
um futuro, mas um presente de oportunidades.” Esse raciocínio tem trazido muitos imigrantes ao país. De acordo com o
censo de 2010, a imigração cresceu 86,7%
em comparação a 2000.
Nicolas comanda, com outros sócios,
a Mountain do Brasil, espécie de guardachuva que abriga várias companhias dos
mais diversos setores: eventos, entretenimento, futebol, cinema, mídia eletrônica
e publicidade digital. Seu desafio? Ajudar
empreendedores brasileiros a montar negócios inovadores. Em seu escritório, uma
casa arborizada no coração do Jardim
Paulistano, ao lado de cinco dezenas de
jovens, o clima é de criatividade e ousadia.
Ele cita o caso de um engenheiro que largou um emprego em uma grande multinacional e se juntou a seu grupo para se lançar em um projeto que mescla educação e
internet. “É gente assim, apaixonada por
uma ideia, que tem de sobra no Brasil”,
conta. “Ao contrário daqui, tenho a sensação de que os próximos dez anos na Europa serão muito incertos. Não se sabe para
onde o continente vai crescer.” E tudo isso
sem falar na carne, claro. “Amo os rodízios”, afirma o empresário que já parece
totalmente adaptado ao jeitinho brasileiro.
“Continuo sendo muito pontual, como um
legítimo suíço, então sempre culpo o ‘trânsito’ quando estou atrasado.”
no alto, a partir da esquerda: as férias do casal pela áfrica em
2011; nicolas e cecília passeiam por londres em 2010; neste ano, a
dupla conheceu a cordilheira dos andes e os gêiseres da bolívia
81
E o tal medo da violência? “Vou e
volto a pé do trabalho para casa. O medo
não me impede de viver como um cidadão que usufrui da cidade. Vou a parques, passeio com meu cachorro como
fazia em Londres e nem considero a
possibilidade de ser assaltado. Sei que a
cidade é dura e violenta, mas os Estados
Unidos e a Europa também são.” Cecília
faz coro: “O Brasil mudou muito e é hoje
um lugar para onde as pessoas querem
vir”. A italiana é filha de uma brasileira
e, apesar de nunca ter morado aqui antes, vinha periodicamente desde pequena. “Estou adorando. É uma cidade tão
vibrante e movimentada.”
Antes de se decidirem por São Paulo,
Nicolas rodou o país. O que descobriu?
“Trabalha-se muito mais aqui do que em
qualquer outro lugar do mundo. Passo
até 14 horas por dia no escritório.” A
vida, diz ele, também ficou mais cara.
“Fico espantado com os preços dos supermercados e dos restaurantes.” Mas
nada disso afeta os seus planos de ficar:
“Tenho muitos projetos, inclusive o de
ter filhos e criá-los aqui”.
Brasileiros de volta à pátria
ruy teixeira / arquivo pessoal
Ruy Teixeira e Paula Juchem, fotógrafo e designer
82
no alto, paula, ruy e os filhos em sua casa em são
paulo. acima, a partir da esquerda, a caminho da ilha de
porquerolles, frança, em 2003; passeio até o lago di Lecco, na
itália, em 2010; paula e a filha, bia, no ateliê em parma, 2010
em dez anos,
dobrou o
número de
brasileiros
de volta
ao país
Era um fim de semana comum do mês de
março e Paula passeava com os filhos em
Madri quando recebeu um telefonema
do marido, Ruy: “Você precisa ler um
texto do Domenico de Masi”. No artigo,
o sociólogo italiano falava sobre o grande
potencial do Brasil para o futuro. Entre
outras coisas, lembrava que os italianos
haviam lamentavelmente perdido o prazer pela vida e que só sabiam reclamar.
Em apenas uma semana, os dois, que havia quase uma década moravam na Itália,
decidiram que era hora de arrumar as
malas. Em agosto deste ano, retornaram
para São Paulo. A guinada na vida do
casal não é exceção. Segundo o censo de
2010 feito pelo IBGE (Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística), o número de
brasileiros que retornaram ao país dobrou
em comparação ao número de 2000.
A designer Paula Juchem, 38 anos,
conheceu o fotógrafo Ruy Teixeira, 55,
em Milão, em 1998. Ele já morava lá
desde 1987 e trabalhava como correspondente de revistas de moda brasileiras.
Casaram-se no ano seguinte. Em 14 anos
juntos tiveram dois filhos – Pedro, 10, e
Bia, 5 – e, segundo Paula, a ideia de voltar
nunca havia passado pela cabeça. “Ruy já
estava vindo bastante a São Paulo: a cada
dois meses ele viajava para fazer fotos de
arquitetura e design.” Mas o desânimo
que tomou conta da Europa nos últimos
tempos e a perspectiva de recarregar as
energias no Brasil foram definitivos na
decisão do casal. “Fomos para a Itália
em busca do novo, e hoje os europeus, ao
contrário do que está acontecendo aqui,
fogem da novidade”, afirma Ruy.
Apesar do pouco tempo em solo brasileiro, o casal se diz completamente à
vontade com a nova vida – mérito da glo-
83
balização, mas também das semelhanças
entre São Paulo e Milão. “Como sempre
fiquei entre as duas cidades, é como se estivesse mudando de bairro, e não de país”,
conta o fotógrafo. Para Paula, a sensação
de que sempre esteve por perto é a mesma. “O Skype e a internet revolucionaram
o conceito de distância. Não passou um
dia em que eu não lesse um jornal brasileiro”, conta. “Arrisco dizer até que a cidade
está melhor. Quando saí de São Paulo, não
havia ciclovias e as pessoas circulavam
bem menos de metrô ou pelas ruas. Tenho
a impressão de que ela está mais viva.”
A decisão de voltar foi rápida, mas
nem por isso impensada. “Não fomos nem
voltamos da Itália pela corrida do ouro.
Em determinado momento, queríamos
que nossos filhos se sentissem brasileiros”, afirma Ruy. É um sentimento natural de quem adota um novo lugar para
viver. “As crianças nos pediam para voltar,
e qualquer dúvida sobre a nossa decisão
desaparece quando olhamos para elas.
Parece que, ao desembarcar aqui, elas relaxaram. Lá, a infância é muito contida e
tudo é proibido”, comenta Paula. Evidentemente, como toda escolha, essa também
incluiu perdas. “Tínhamos um ensino
público de qualidade, o que não existe no
Brasil. Também perdemos a sensação de
segurança, mas nem por isso ergui uma
fortaleza em casa”, diz Paula.
Uma palavra para definir o que há
de melhor no Brasil? “Frescor”, afirma
Ruy. “No Brasil ainda há muita coisa a ser
feita. E há a nossa incrível capacidade de
enfrentar crises. Nós, brasileiros, enxergamos a dificuldade como um desafio. Na
Europa, ela é sinônimo de imobilidade.
E isso se reflete na política, no trabalho e
no espírito das pessoas.”
por Tetê Etrusco, em depoimento a Edmundo Clairefont ilustrações Catarina Bessell
Pinceladas
de Provence
Por 12 anos, a empresária Tetê Etrusco viveu
em Provence. Ao voltar ao Brasil, trouxe
lembranças que não estão nos guias da terra
que inspirou os melhores quadros de Van Gogh
S
aint-Paul de Masoule é um prédio
comprido, de cor ocre e telhadinho
marrom. É também um antigo monastério construído no século 12. Nos anos
1700, tornou-se asilo. Permanece assim.
Suas janelas, cortadas por grades de ferro,
encaram um campo de trigo na periferia
de Saint-Rémy, a uma hora de carro de
Marselha, no sul da França. No coração
de Provence. Ali, se o leitor algum dia se
interessar em visitar – e eu insisto com
todas as minhas forças para que se interesse –, os livros de registro lhe dirão o
seguinte: no dia 8 de maio de 1889, por
vontade própria e com uma orelha a menos, decepada durante um surto, o holandês Vincent van Gogh internou-se para
uma temporada de reclusão. Durante as
53 semanas seguintes, ele pintou 143 quadros e rabiscou uma centena de desenhos.
O pintor preencheu telas em branco com
obras-primas a partir do que via pelas janelas ou caminhando diante de jardins de
lilases, corredores de ciprestes, efêmeras
íris, mares de lavanda, rosas povoadas por
besouros e tapetes de grama. Pincelou
uma série de girassóis, colhidos e dispostos numa jarra. Recriou horizontes com
os pontilhados de seu impressionismo
sem igual. O auge dessa fase, a fase final
e mais brilhante de sua produção, culminaria com seu suicídio aos 37 anos, em 29
de julho de 1890. É um exemplo extremo,
definitivo e dramático das despedidas
provençais. Nada a ver com os 12 anos de
verões inesquecíveis que vivi ali.
85
Minha história na Provence começa,
na verdade, em Paris. Em 1986, aos 25
anos, deixei São Paulo, onde nasci, para
estudar literatura na capital francesa.
Apaixonadíssima pelo país, calhou, claro,
de me apaixonar também por um francês.
Durante meses, cozinhei minhas dúvidas
entre permanecer em Paris, voltar ao Brasil ou segui-lo até Provence, onde ele, um
artista plástico, vivia. Um dia, o francês
me fez uma proposta cândida e – mais
tarde percebi – traiçoeira: “Que tal passar
umas férias na terra onde nasci?”. Fomos.
Não resisti. Fiquei.
Casamos em Cavaillon, a terra do
melão. E, por mais graça que a frase sugira, o melão de Cavaillon é mesmo um
capítulo à parte na história da geografia e
dos sabores. Cavaillon, le pays du melon.
Não comer a fruta que nasce ali é não ter
comido a fruta. E, se um dia você quiser
mastigar o assunto numa visita ao sul da
França, que tal visitar o Prévôt? O Prévôt
é um restaurante familiar, fundado em
1981 e que fica na Avenue de Verdun.
Há um menu inteiro à base de melão.
Bebidas também são feitas com a mesma matéria-prima. E, na dúvida sobre a
inspiração que move as caçarolas do chef
Jean-Jacques Prévôt, guarde um pouco
de atenção para a mobília, toda com cor
de... melão. Experiência inesquecível.
CINCO SENTIDOS
A Provence fica no sul do país, quase na
fronteira com a Espanha. É um naco de
França banhado pelo azulíssimo mar
Mediterrâneo. É contido e separado das
outras regiões pelos Alpes, pela Itália e
pelo rio Ródano. É quente a maior parte
do ano (e o inverno, quando chega, chega ameno, em comparação com o que se
encontra na Europa). Chuvas são raras,
o céu parece equipado com um desembaçador: as nuvens são poucas e, quando surgem, surgem lindas, branquinhas,
sugerindo fofices.
Gosto de pensar que a Provence é
um teste para os cinco sentidos. Se você
me pedir um cheiro, eu direi vários. Alecrim, tomilho e todas as famosas ervas
provençais. Mas, se precisar eleger um,
citarei a lavanda, espalhada em campos por toda parte. Anote uma cidade
especial para entender o sul da França
com o nariz: na região do Luberon, um
maciço com altitudes de até 1.125 metros, a cidadezinha de Gordes, empoleirada numa colina, oferece uma vista
inacreditável de vales tomados pela cor
lilás. Ali, não deixe de jeito nenhum de
visitar uma das atrações turísticas essenciais do país: a Abadia de Sénanque,
uma construção com mais de 850 anos
que oferece, talvez, o campo de lavanda
mais famoso do mundo. É a um só tempo um carinho olfativo e visual.
Os olhos só terão a ganhar impressões
marcantes se estender o passeio a províncias vizinhas, como Roussillon, Menerbes e Lacoste, a mais romântica das
cidades, perdida e bucólica. São vilarejos
minguados de gente, cortados por vielas,
predinhos baixos de dois e três andares,
piso de pedra, curvas em declive, mirantes aqui e ali, cafés e restaurantes familiares, lojinhas de queijos, vinhos, chocolates, óleos, azeites, suvenires, docinhos,
compotas, frutas...
Lembranças que me trazem água
na boca e a vontade de listar os meus
sabores favoritos. Posso dizer que estas
frutas são especiais: as groselhas, o melão
(sim, insisto no melão!), os morangos. Dá
vontade de colher maçãs e peras que aparecem em cada jardim. Se for verão, as
“o melhor
jeito de
conhecer
franceses
é indo a
mercados
como o de
cavaillon”
86
cerejas crescem em campos à beira das
estradas. Um convite igualmente tentador são os pêssegos. E tem as amêndoas,
o abricó. Falar em queijos, na França, é
mergulhar num mundo impossível de
selecionar. Mas faço um esforço e digo
para não deixar passar o queijo de cabra.
CASAR A PÉ
Nos 12 anos que vivi em Cavaillon,
mantive uma rotina francesa: dividida
entre o trabalho e a art de vivre. A vida
ali é tão simples... Um exemplo? No
dia que casei, fui para a minha cerimônia a pé. Saí de lá casada. E, de novo,
a pé, quase parando no caminho para
comprar pão. Adorava os mercados. Os
mercados da Provence são uma marca
registrada. Alguns, montados com barraquinhas em dias específicos nas ruas,
valem como um museu para os senti-
87
dos. Não deixe de conhecer o que fica
em Oppéde, na região de Luberon. Chama-se Moulin d’huile d’olive e sair dali
com ao menos uma latinha de azeite é
obrigação. Mas o meu favorito é mesmo
o marché de Cavaillon, por conta do que
há para comprar, claro, mas, sobretudo,
porque esses mercados são o jeito mais
fácil de travar contato com as gentes. Fiz
amizades eternas ali.
Lembro do Louis. O Louis é um
sujeito baixinho, careca, de olhinhos
puxados. Passou dos 50 anos, mas oferece aquele tipo de semblante que mete
dúvidas. Cabe em qualquer idade: ele
às vezes surge com as feições suaves e
simpáticas de um garoto. Outras vezes,
parece um sábio vendedor de salames,
capaz de prever a chegada antecipada
do inverno e mesmo os rumos de um
casamento, tudo com um quase imper-
“se existe
uma época
ideal para
visitar a
Provence,
é o verão,
tempo de
agitos”
ceptível sorriso. Deve ser por conta da
ascendência vietnamita. Não sei. Sei que
virou meu amigo. Até hoje, quando volto
a Cavaillon, gasto um par de horas e uns
tantos euros comprando saucisson na
sua barraca e escutando os últimos burburinhos da vizinhança.
Também escutava o vento provençal.
Ele é famosíssimo. E forte, barulhento.
É conhecido como mistral. Eu diria que
o sopro do mistral é a definição auditiva
que tenho de lá. Lembro, por exemplo,
de que em Avignon, uma das principais
cidades da região, me hospedei num lindo hotel, o La Mirande. De lá, é possível
escutar essa sinfonia de ar. Adorava também ir até a praça para observar o Palácio
dos Papas, que, como o nome sugere, foi
sede da igreja católica no século 14. É uma
construção gótica gigantesca. Em julho,
abriga um dos festivais de artes mais importantes da França. Se existe uma época
ideal para visitar a Provence, o verão,
apesar de escaldante, é a temporada dos
agitos. O outono e a primavera são ótimos
e pedem outro tipo de disposição. Uma
disposição para observar, sossegar, tocar.
Porque se há algo que a Provence permite
é o encontro de corpos. Não preciso dizer
que o local, lindo e delicado, é um convite
sem igual ao romantismo.
Na França, a art de vivre é uma religião não oficial. Tudo é mais lento. Mais
contemplativo. Lembro de tirar os outonos para produzir as compotas de fruta
que serviria durante o inverno. As pessoas guardam o final da tarde para beber
vinho ou café em bistrôs, sentadas debaixo de árvores. Amava tomar um rosé
ou um tinto no Café de France, na Place
88
de la Liberté, em Isle sur la Sorgue,
uma vilazinha linda, cheia de lojinhas
e bons restaurantes, cortada pelo rio
Sorgue. Ali, aos domingos, funciona um
marché a que se vai para lotar uma cestinha com vinho gelado, saucisson, fougasse (pão típico provençal), queijos de
cabra e pêssegos. Então, de bicicleta ou
de carro, eu partia para piqueniques em
campos de girassóis e de trigo. Adorava
passar a mão nos ramos de manjericão
e alecrim enquanto crianças corriam,
animais faziam seus barulhos, casais e
amigos cantavam, bebiam, comiam.
Durante 12 anos da minha vida, passei muitos dos meus dias ali e assim. Vivi
duas grandes histórias de amor: uma por
meu marido, outra pela Provence. Acabei
me separando dos dois. Mantive a grande
amizade com meu ex. Voltei ao Brasil,
abri uma pousada em Paraty. Hoje, mantenho acesas essas lembranças visitando
de quando em vez minha antiga cidade
francesa, meus amigos e meus locais favoritos. O difícil mesmo é administrar a
distância. Quando isso acontece, espremo
do coração uma memória capaz de resolver minhas inquietações.
A LIÇÃO De Provence
Certa vez, a caminho de Saint-Rémy
para um fim de semana de verão, pouco
antes de voltar de vez ao Brasil, descobri
um campo de girassóis desses que há
aos montes nas redondezas. Era quase
hora de o sol se pôr, e sentei para comer
um punhado de groselhas, beber algo e
iniciar o difícil processo de dizer tchau à
minha vida francesa. Olhei para cima, e a
cor do céu era indescritível. Pensei: “Deve
ser essa mesmíssima luz a que encantou
artistas que pintaram esta paisagem. Gauguin a pintou, Cézanne a pintou. E Van
Gogh! Sim, Van Gogh a pintou...”.
Lembrei, então, de A noite estrelada,
obra máxima do holandês. Ela é justamente um retrato perfeito das noites
estreladas que pairam sobre Saint-Rémy.
Foi feita bem ali, onde eu estava. É uma
espécie de carta de adeus à Provence.
Veio à memória a página de um livro
de história. Ela recontava o dia em que
Van Gogh foi andar, igualzinho a mim,
nesses campos que margeiam a cidade.
Os dois, ele e eu, vivendo um julho de
calor e despedidas na Provence. O artista,
em 1890, atravessava o auge de uma depressão. Eu, em 1997, encarava a véspera
de uma saudade. Ele tomou um revólver,
cercado por girassóis semelhantes aos
que me tocavam. Levou o cano ao tórax
e meteu um balaço no peito. Voltou cam-
89
baleando à pensão onde vivia. Agonizou
por dois dias. Pouco antes de expiar, sussurrou ao irmão Theo, que o velava: “La
tristesse durera toujours” (a tristeza vai
durar para sempre).
Sabe, amo Van Gogh. Quase o compreendi durante aquele pôr do sol de
verão em um piquenique solitário na
pequena Saint-Rémy. Mas, sinceramente,
aqui entre nós e todo mundo, que belo,
rematado e genial imbecil! O holandês,
no fim, jamais compreendeu o que é a
Provence. Sim, ele a pintou à perfeição.
Não, não existirá nunca foto, memória ou
texto que faça a mesma tradução da beleza que seus pinguinhos e riscos de tinta
azul, preta e dourada atingiram. Mas
faltou pescar a essência. Van Gogh não
entendeu a essência de Provence.
A essência provençal não reside na
tristeza. Reside na saudade. Não sou
pintora, não me tornei escritora. Abandonei há mais de 25 anos meu curso
de literatura em Paris em troca de um
amor. Passei 12 anos ali. Ontem, vivia
feliz num mundo de flores, mistrais e
sabores. Hoje, vivo feliz numa pousada
encantadora em Paraty. Mas, se pudesse mudar uma vírgula na história da
Provence, eu borraria, eu apagaria, eu
refaria o último ato, as últimas palavras
de Vincent van Gogh.
Pensando bem, naquele fim de tarde
de verão, sentada diante de um campo
dourado, fiz justamente isso. Fiz o que
Van Gogh não fez. E deveria ter feito. Eu
disse adeus a Provence sem pintar nada
de vermelho, sem estorvar o ruído do
mistral. Mantive intacto o dourado dos
girassóis e o silvo do vento. Voltei ao Brasil. Sem tristeza. Mas com uma saudade
que vai durar para sempre.
primeira pessoa | OTTO
Por Rosane Queiroz
_
Disciplina felina
marcelo correa
O cantor Otto elege os gatos Branca e Pirulito, com quem vive no Rio de Janeiro junto à filha
Bettina, 6 anos, como ícones da vida familiar. “Eles ensinam bastante. Admiro a disciplina felina.
Não me perguntam muita coisa e eu também não. Gatos são gatos. Eu os amo.”