marília gabriela patrick Waterhouse paloma jorge
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marília gabriela patrick Waterhouse paloma jorge
Revista do Itaú Personnalité n o 21 | Ano 6 marília gabriela janeiro | fevereiro | março Marília Gabriela | Patrick Waterhouse | Paloma jorge Amado | Morito Ebine “Maturidade é ficar mais confortável na própria pele” Patrick Waterhouse Paloma jorge Amado Morito Ebine exemplar distribuído nas agências personnalité EDITORIAL F echar um ano. Abrir outro. Momento de ponderar e refletir. Subtrair excessos, somar acertos. Buscar novidades. A última edição de 2012 é o nosso balanço e, ao mesmo tempo, nossa lista de desejos. Com ela, encerramos um calendário repleto de histórias magníficas e começamos o sexto ano da Revista Personnalité. O que você, leitor, tem em mãos, portanto, é um convite para a nossa festa. Um aperitivo para o que planejamos para os próximos meses. Sempre utilizando a receita que tem nos dado motivo para tantas alegrias: histórias de pessoas, experiências únicas. Passado, futuro, memórias, desafios e planos de gente que, à primeira vista, é interessante e depois, com mais profundidade, se torna ainda mais. Desde dezembro de 2007, quando lançamos a nossa primeira edição, seguimos essa fórmula para a escolha dos personagens. Por isso, nada melhor do que visitar Salvador e o baú de memórias de Paloma Jorge Amado, a filha de Zélia Gattai e Jorge Amado. Tudo para celebrar o centenário de nascimento de seu pai, “o Pelé da literatura”, nas palavras escolhidas pelo jornal The New York Times. Outra craque, desta vez na arte de conversar, acabou se tornando a capa da edição. Marília Gabriela, a jornalista que papeou com as pessoas mais importantes do nosso tempo, sentou do outro lado da mesa e abriu detalhes e opiniões que não costuma falar. Gabi, como conta a partir da página 34, se define em uma fase “reclusa”. Para abrir a edição, apresentamos o jovem diretor criativo Patrick Waterhouse, que tem a missão de recuperar o fôlego da prestigiada revista Colors, publicação mantida pela Benetton e que marcou o jornalismo dos anos 1990. E, para encerrar o ano e a edição, subimos a Serra da Mantiqueira atrás do raríssimo talento do artesão Morito Ebine. O japonês, radicado em Santo Antônio do Pinhal, é alguém que acredita na qualidade lenta e manual. Alguém capaz de criar móveis úteis e duradouros, sem utilizar um prego. Para ele, eis o segredo de um bom produto. Como diz o artesão – que na verdade prefere ser chamado de marceneiro –, no Japão existem construções tão bem-feitas que são capazes de durar mil anos. Com a lição de Morito, entramos em um ano novo na mesma toada: com uma revista para ler com calma e prazer. Uma revista que aposta na profundidade e na simplicidade de uma boa história, de um bom tête-à-tête. Nossa meta, como a de Ebine, é entregar uma edição que dure – no papel, em nosso site ou no iPad – talvez não mil anos, mas o suficiente para virar um registro da época em que vivemos. michael hughes/laif Feliz 2013! Um abraço e boa leitura, André Sapoznik Itaú Personnalité foto com um suvenir de don quixote tirada na espanha por Michael Hughes. O fotógrafo inglês explica o projeto em que enquadra esse tipo de lembrancinha na página 62 PS. Ótima notícia: enquanto fechávamos a edição, soubemos que a Revista Personnalité foi a vencedora do 26o Prêmio Veículos de Comunicação, na categoria Revista Customizada. Para conquistar o reconhecimento de ser a melhor publicação customizada do Brasil, ficamos entre as três finalistas, selecionadas por 500 dos principais dirigentes de mídia do país. A seleção dos títulos aconteceu por indicação espontânea e coube aos membros da Academia Brasileira de Marketing escolher o vencedor. Esse prêmio é para você, leitor, que nos prestigia com sua atenção. Obrigado! Colaboradores expediente Editor Paulo Lima Diretor Superintendente Carlos Sarli Diretor Editorial Fernando Luna Diretora de Criação Ciça Pinheiro Diretora de Criação Adjunta Micheline Alves Diretora de Publicidade e Circulação Isabel Borba Diretora de Eventos e Projetos Especiais Proprietários Ana Paula Wehba Diretor de Núcleo Tato Coutinho Diretora de Desenvolvimento de Negócios Adriana Naves Diretor Financeiro Renato B. Zuccari O paulistano Felipe Hellmeister, 40 anos, mais conhecido como Fepa, fotografa desde os 19 anos e já colaborou com revistas como Trip, VIP e Tpm. Seu trabalho integra o acervo permanente do Masp, em São Paulo. Há dois anos, atua também como diretor de filmes publicitários. Para esta edição, Fepa clicou a capa com Gabi. “Ela é incrível”, resume. “Superinteligente, sabe o que quer. Decidida, posa como uma modelo profissional, conhece seus melhores ângulos. Muito fotogênica!” É nas ruas, aprendendo com os entrevistados, que Millos Kaiser, 26 anos, mostra a verdadeira vocação para a reportagem. “O jornalismo me leva a conhecer pessoas e lugares que eu não conheceria em nenhuma outra profissão”, comenta. “Quanto mais tempo na rua, melhor.” Ele divide essa paixão com o ofício de DJ. Nesta edição, Millos conta a história da construção do Sesc Pompeia, que completou 30 anos. “Foi um prazer me aprofundar nos detalhes do projeto de Lina Bo Bardi.” fotos: arquivo pessoal / danilo hideki abe / zé gabriel / andre vilas boas A jornalista paulistana Rosane Queiroz, 42, assina textos para revistas como Veja, Luxo e Lola. Colabora para a Revista Personnalité há três anos, na seção Cá entre Nós. Nesta edição, foi a Salvador conversar com Paloma Amado sobre suas lembranças do pai, Jorge Jorge Amado. Depois de publicar Só – Dores e delícias de morar sozinha (editora Globo, 2004), Rosane toca seu novo projeto: um livro-reportagem, pela editora Tinta Negra, sobre as mulheres que inspiraram canções da MPB. fotos: pedro loes / arquivo pessoal / arquivo pessoal / mariana caldas Após assinar a matéria de capa com Gal Costa na edição passada, o jornalista carioca Eduardo Logullo retorna para sentar cara a cara com Marília Gabriela. Há cinco anos trabalhando como roteirista ao lado de Gabi, Eduardo conduziu o papo às vésperas de sair em férias para Liubliana, na Eslovênia. “O depoimento que Gabi deu para a entrevista de capa desta edição é algo bastante raro. Ela nunca fala de modo tão aberto para a imprensa”, diz Logullo. Diretor de Redação Décio Galina Projeto Gráfico e Direção de Arte Elizabeth Slamek Editora Lia Bock Editor Contribuinte Edmundo Clairefont Produtora Executiva Kika Pereira de Sousa Assistente de Produção Bruna Serrano Editora Executiva de Conteúdo Digital Eliana Castro Moderador da Fan Page Luiz Henrique Brandão Repórter do Site Fernanda D’Angelo Departamento Comercial Publicidade Diretor de Publicidade Heitor Pontes Supervisora de Projetos Especiais e Planejamento Comercial Ana Carolina Costa Oliveira Assistente Comercial da Diretoria Bruna Ortega Gerente de Publicidade Mercado Segmentos Claudia Atala Coordenadora Comercial e Atendimento Vanessa Soares Gerentes de Contas Flavia Marangoni, Paulo Paiva e Roberta Rodrigues Executivos de Contas Marcelo Milani, Thais Meneghello, Vivian Viviani e Gabriela Llovet Gerente de Contas On-line Marco Guidi Executiva de Contas On-line Fernanda Siqueira Assistente Comercial On-line Sharon Ajzental Tráfego Comercial Aline Trida Para Anunciar publicidade@ trip.com.br Representantes International Sales Multimedia, Inc. (USA) +1-407-903-5000 [email protected] Argentina Roberto Rajmilevich [email protected] BA Romário Júnior DF Alaor Machado MG Rodrigo Freitas PE Wladmir Andrade PR Raphael Muller RJ Juliana Rocha RJ (Trip e Tpm) X² Representação RS/ SC Ado Henrichs SE Pedro Amarante SP Interior Daniel Paladino Pesquisa de Imagens Aldrin Ferraz Bibliotecário Daniel de Andrade Estagiária Nataly Rodrigues Produção Gráfica Walmir S. Graciano Produtores Gráficos Cleber Trida Tratamento de Imagens Roberto Longatto e Roberto Oliveira Revisão Ecila Cianni (coordenação) – Adriana Rinaldi, Janaína Mello, Márcia Costa e Marcos Visnadi Projetos Especiais e Eventos Diretora Ana Paula Wehba Assistentes Pedro Toledo e Mariana Beulke Editora de Arte Camila Fank Comercial Trade e Circulação Diretora Daniela Basile Analista de Trade Renata Vilar Assistente de Trade Fábio Pinheiro Gerente de Circulação Adriano Birello Assistente de Circulação Vanessa Marchetti Projetos Digitais Diretor de Mídias Eletrônicas de Custom Publishing Beto Macedo Editora de Arte Débora Andreucci Negócios Diretor de Negócios Jan Cabral Gerente de Negócios Izabella Zuanazzi Núcleo de Vídeo Coordenação Ana Rosa Sardenberg Videomakers Vinicius Nora e Marco Paolielo Editor de Vídeo Pitzan Oliveira Colaboraram nesta edição Anna Paula Buchalla, Bárbara Soalheiro, Carol Quintanilha, Eduardo Logullo, Gonçalo Junior, Leticia Castro, Millos Kaiser, Rosane Queiroz, Thiago Lotufo (texto), Carol Quintanilha, Felipe Hellmeister, Marcelo Correa, Márcio Lima, Marcos Vilas Boas, Nelson Mello, Victor Affaro (fotos), Catarina Bessell (ilustração), Juliana Carletti (produção) Comitê Itaú responsável por esta edição Fernando Chacon, André Sapoznik, Cristiane Portella, Danielle Sardenberg, Ligia Benavente e Mariana Couto de Arruda Colaboradores Marcello Barcelos, Maria Pestana e Mariana Salles – DPZ Propaganda Capa Marília Gabriela fotografada por Felipe Hellmeister Revista Personnalité é uma publicação trimestral da Trip Editora e Propaganda em parceria com o Itaú Personnalité. Endereço para Correspondência: rua Cônego Eugênio Leite, 767, 05414-012, São Paulo, SP. E-mail: [email protected] www.tripeditora.com.br A Trip Editora, consciente das questões ambientais e sociais, utiliza papéis Suzano com certificado FSC (Forest Stewardship Council) para impressão deste material. A Certificação FSC garante que uma matéria-prima florestal provenha de um manejo considerado social, ambiental e economicamente adequado. Impresso na Gráfica Log&Print – Certificada na Cadeia de Custódia – FSC Colaboradores Mineira e torcedora do Atlético Mineiro, Bárbara Soalheiro, 32 anos, é uma jornalista com espírito inquieto. Trabalhou cinco anos na editora Abril, onde dirigiu a revista Capricho. Na Itália, foi editora-chefe da revista Colors. Hoje, dedica seu tempo à Mesa&Cadeira, empresa que criou e na qual realiza workshops com profissionais renomados. Bárbara perfilou Patrick Waterhouse, diretor da Colors. “É ótimo quando se conhece muito bem o assunto do seu perfilado”, diz. Formada em arquitetura pela Universidade de São Paulo, Catarina Bessell, 28 anos, se interessou por desenhos logo que ingressou na faculdade. Ilustradora e designer há cinco anos, colabora para Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e revistas das editoras Abril e Globo. Atualmente, participa da exposição no MIS Arte e cinema, com releituras de cartazes do cinema. Ela fez as pinturas que ilustram o depoimento sobre a Provence. Jornalista há 20 anos, Thiago Lotufo, 38 anos, é diretor de redação da revista da GOL e já escreveu para publicações como IstoÉ, Trip e Superinteressante. Nesta edição, assina o perfil de Morito Ebine, um mestre da arte da marcenaria japonesa. A ideia surgiu há mais de um ano, quando Thiago visitava a pacata cidade de Santo Antônio do Pinhal. “Foi uma verdadeira descoberta conhecer a complexidade de fazer cadeiras e móveis em madeira sem utilizar nenhum parafuso.” O fotógrafo paulistano Marcos Vilas Boas, 40 anos, já teve suas imagens reproduzidas em revistas como Bravo!, Rolling Stone e Vogue ao longo de quase 20 anos de carreira. O curioso é que, muito antes de aprender a manusear uma câmera, sua vontade era ser marceneiro. Nada melhor, então, que Marcos subisse a Serra da Mantiqueira para enquadrar Morito Ebine em sua oficina. “O que mais me encantou foram as ferramentas japonesas. Elas remetem a uma marcenaria em extinção no Brasil.” sumário 10 Cá entre nós Música, viagem, gastronomia e filmes – dicas de quem sabe viver bem 15 Prestígio Do Oiapoque ao topo A foto de Alex Atala no norte do Amapá é um marco na viagem que fez pelo Brasil por 120 dias, em 2002, e que serviu como semente de seu primeiro livro 16 52 70 16 Lições de brasil Patrick Watherhouse está há um ano no comando da revista Colors. Com a missão de retomar a relevância da mítica publicação italiana, o designer inglês passou duas semanas aprendendo a sobreviver em São Paulo 52 Amadas memórias 84 pinceladas de provence Filha de Jorge Amado e Zélia Gattai, Paloma Jorge Amado celebra Por 12 anos, a empresária Tetê Etrusco viveu em Provence. Ao o centenário de nascimento do autor de Gabriela, cravo e canela voltar ao Brasil, trouxe lembranças que não estão nos guias da e abre um baú de histórias adormecidas na Bahia terra que inspirou os melhores quadros de Van Gogh 24 Praia de paulista Como a arquiteta italiana Lina Bo Bardi transformou uma antiga 62 a viagem do suvenir fábrica de tambores e geladeiras no Sesc Pompeia, centro de lazer que completa três décadas e atrai anualmente mais a pontos turísticos há 13 anos. A página em que exibe o projeto já de 1 milhão de pessoas 90 Primeira Pessoa Disciplina felina recebeu quase 8 milhões de visitas. “Os suvenires são uma espécie O cantor Otto elege os gatos Branca e Pirulito, com quem vive de expressão de nossa mortalidade” no Rio de Janeiro junto à filha Bettina, 6 anos, como ícones O fotógrafo inglês Michael Hughes enquadra suvenires em frente da vida familiar 34 Gabi de frente brasileira e se abre às páginas da Revista Personnalité: “Entendi que maturidade é ficar mais confortável na própria pele” 44 Cara-metade Não é fácil viver a aventura de se reinventar para assumir no cinema o jeito de ser de pessoas consagradas. Conheça o desafio encarado pelos atores Daniel de Oliveira, Nelson Xavier e Júlio Andrade 34 Em Santo Antônio do Pinhal, na Serra da Mantiqueira, o marceneiro japonês Morito Ebine transforma madeira em móveis feitos para márcio lima / marcos vilas boas o papel que a tornou uma das grandes apresentadoras da TV 70 O artífice victor affaro / felipe hellmeister Após 3 mil entrevistas, Marília Gabriela, aos 64 anos, inverte durar cem anos utilizando a milenar técnica do encaixe 80 O país do presente O bom momento econômico do Brasil atrai cada vez mais gente para viver aqui. Conversamos com brasileiros que resolveram voltar Errata: O nome correto da esposa de Carlos Niemeyer (reportagem antes da hora e estrangeiros que não sonhavam em um dia adotar sobre o Canal 100, publicada na edição 20) é Maria Luiza Niemeyer. São Paulo como lar Heloísa Niemeyer é prima de Carlos. cá entre nós cá entre nós viagem, gastronomia e cultura – convidados especiais abrem suas preferências _trilha sonora Rafael Grampá, quadrinista _ denise fraga, atriz o filme da minha vida Capas de discos e videoclipes ajudaram o desenhista gaúcho a escolher as músicas que o acompanham desde a infância A atriz aponta a comédia dramática Eu, você e todos nós (2005) como exemplo de seu gênero favorito no cinema por Carol Quintanilha por rosane queiroz 7 Denise Fraga é uma das raras atrizes capazes de atuar com a mesma desenvoltura na comédia e no drama. Prova disso é sua performance, ao lado da amiga Cláudia Mello, em Chorinho, de Fauzi Arap. A peça fala da vida urbana com “delicadeza, poesia e humor”. Faz rir e comove. Com diálogos cheios de humor e emoção, a peça narra a construção da inusitada amizade entre uma moradora de rua (Denise) e uma solteirona (Cláudia). 3 5 2 4 6 1. “Bye-Bye Love”, The Everly Brothers É a primeira música que cantarolei. Quando tinha 3 anos, meu pai comprou um som 3 em 1. Veio um disco de country com esta música. 4. “Love Missile F1-11”, Sigue Sigue Sputnik Devia ter 8 anos de idade quando meu irmão mais velho apareceu com este disco. A capa me pegou na hora. Lembro de ter desenhado a capa com uma caneta Bic em meu caderno da escola. Me sentia malandro escutando esta música. Ninguém na escola a conhecia... 2. “Beat it”, Michael Jackson Música para brincar de dançar break. Toda criança da minha geração imitou o videoclipe desta música. 3. “Morena de Angola”, Clara Nunes Meu pai sempre foi um amante de samba. Gosto de samba por causa desta música. Mas tinha certo medo da capa do disco, não sei bem por quê. 10 5. “Faroeste Caboclo”, Legião Urbana Era o hino da minha “gangue”, no final dos anos 80. Andávamos de skate e pichávamos a cidade enquanto cantávamos esta música. Até pouco tempo atrás existia o muro com o desenho do Bob Cuspe que fiz na cidade onde cresci, Cachoeirinha (RS). 6. “Go With The Flow”, Queens Of The Stone Age Já adorava rock, mas esta foi uma das músicas que mais escutei na minha vida. Me motivou a fazer riffs de guitarra e ter uma banda de rock. Hoje, tenho uma, só por diversão, que se chama Old School Satan. 7. “Horses”, Bonnie “Prince” Billy Foi a música que mais escutei enquanto desenhava minha graphic novel de estreia, a Mesmo delivery. Ainda acho uma das canções mais lindas que já ouvi. kiko ferrite/acervo trip / divulgação Ganhador do Eisner Awards, o Oscar das HQs, e primeiro brasileiro a publicar um roteiro pela Marvel Comics (com uma história de Wolverine), Rafael Grampá, 34 anos, foi caçar em referências visuais a trilha sonora que embalou sua vida. Nenhuma surpresa nisso. Além dos gibis, ele é diretor de uma produtora de cinema (a Paranoid). Também compõe e toca na banda Old School Satan. Sua lista de canções, claro, surge de lembranças de capas de discos e videoclipes. no sentido horário: na lata/acervo trip / EVERETT COLLECTION / keystone / afp/kobal collection / EVERETT COLLECTION / keystone 1 SOLIDÃO humana Questionada sobre o filme preferido, Denise elege a comédia dramática Eu, você e todos nós, da jovem e talentosa diretora norteamericana Miranda July, como um exemplo desse estilo que ela reproduz em Chorinho. “A trama tece uma rede delicada sobre a solidão humana. Cria personagens únicos, que vivem criativamente.” A TRAMA No filme de 2005, a artista plástica Christine Jesperson, interpretada pela própria Miranda July, é uma mulher solitária, que divide seu tempo entre suas criações e seu trabalho como motorista para pessoas idosas ou que não podem dirigir. Ao levar um de seus clientes a uma loja, ela conhece Richard Swersey (John Hawkes), um vendedor de sapatos que a convence a comprar um par mais confortável. Richard se separou recentemente e mora com seus dois filhos, com quem tem um relacionamento distante. ato de protesto “A cena que nunca esqueço é uma logo no início do filme, em que Richard está se separando da mulher, não sabe o que fazer naquela situação e resolve incendiar a própria mão em frente à casa onde moravam. Um simples e lindo ato de protesto.” 11 cá entre nós cá entre nós _Água na Boca FABIO BARBOSA, chef No controle da cozinha do La Mar Cebichería, o chef manauara Fabio Barbosa se dedica a trazer a São Paulo um dos ícones da gastronomia peruana: o ceviche _dica de mestre claudia assef, jornalista e DJ por Fernanda D’Angelo De olho no verão, Claudia elabora uma playlist para você se divertir nas férias de fim de ano Quando o chef Fabio Barbosa assumiu as panelas do La Mar Cebichería, em 2008, percebeu o tamanho do desafio de cuidar de um restaurante especializado em disseminar a tradição da culinária peruana. “Gastronomia para o peruano é igual ao futebol para o brasileiro”, diz. Graduado em cuisine e pâtisserie pela Le Cordon Bleu (Londres) e com passagem pelo hotel Emiliano, Barbosa passou quatro meses no Peru entendendo a culinária. De lá, voltou com truques para preparar um soberbo ceviche. Com unidades em Nova York, Bogotá e São Paulo, a rede La Mar foi criada pelo estreladíssimo chef Gastón Acurio. Fabio, nascido em Manaus, cumpre à risca o estilo da matriz. Sua missão é manter as características das receitas originais. por rosane queiroz ceviche NIKEI 1. “Her Fantasy”, Matthew Dear O nome mais quente do techno americano resolveu fazer música com banda. O resultado é incrível! 2. “Ye Ye”, Daphni Música para brincar de dançar break com o meu irmão. Acho que toda criança da minha geração imitou a dança/luta de canivetes do videoclipe desta música. 3. “Flash of Light”, Luca C & Brigante, participação de Róisín Murphy Róisín, ex-Moloko, empresta vocal para uma música que tem jeito de hit do verão. 4. “H.F.G.W. (Canyons Drunken Rage)”, Tame Impala A banda de rock australiana é queridinha das pistas de dança. Entenda o motivo ouvindo esta música. 5. “Cross Eyed Girl”, Dixlexsix Quando você achava que a música eletrônica estava na maior mesmice, eis que surge o DixLexSix. 6. “Nickel Ride”, Capracara & The District Union Groove perfeito para atrair todo mundo para a pista! 7. “Walk & Talk”, Benoit & Sergio Duplinha querida por DJs de house, Benoit & Sergio fez seu grande hit em 2011. Continua atual. 12 1. O QUE CARACTERIZA A CULINÁRIA PERUANA? O uso das pimentas locais. Sem esse ingrediente, não se faz culinária peruana. A gente não adapta nada, tudo tem que ser o mais parecido com o La Mar de Lima. A gente traz de lá pasta de pimenta, mas já tem plantação de pimenta peruana em Piedade, no interior de São Paulo. 2. UMA PIMENTA PERUANA. Os peruanos chamam pimenta de ají. O ají amarelo me encanta. 3. ALGO EM COMUM ENTRE A CULINÁRIA DO BRASIL E a do PERU? O uso de coentro, de pimenta e o valor dos elementos locais. 4. SEU CEVICHE PREFERIDO. Gosto do clássico: peixe, limão e pimenta. 5. SEU PEIXE FAVORITO. Meu peixe favorito é o mais fresco! nelson mello Idealizadora da Disco Baby, festa mensal que coloca crianças e pais para dançar juntos, em São Paulo, a jornalista Claudia Assef entrou em contato com a música de pista ainda menina, por influência de seus pais, um casal festeiro que frequentava as noitadas de discotecas paulistanas dos anos 70. Em 2003, ela escreveu Todo DJ já sambou – A história do disc-jóquei no Brasil, livro de referência sobre a cena da música eletrônica nacional. Além de pesquisadora, Claudia atua como DJ, com sets que passeiam pelas batidas techno, house e electro. Para a Revista Personnalité, a escritora elaborou uma playlist ideal para o leitor animar suas festas e passar muito bem o verão. no sentido horário: gabriel rastelli quintão/vírgula / lost art/divulgação / lost art/divulgação (1 porção) Baixe a Revista Personnalité no iPad e confira outras três receitas de ceviche Ingredientes 140 g de filé de atum em cubos 100 ml de leite de tigre nikei 10 g de pepino japonês em tiras 10 g de nabo em tiras 2 g de pimenta-dedo-de-moça picada 2 g de coentro 2 g de cebolinha 5 ml de óleo de gergelim 20 g de abacate em fatias finas 40 g de cebola roxa 2 g de alga nori em tiras Sal a gosto Modo de preparo Temperar o atum com o sal e a pimenta. Adicionar o coentro, a cebolinha, o leite de tigre e misturar. Completar com o óleo de gergelim, o pepino, o nabo e a cebola e servir imediatamente. Decorar com abacate e nori. Para o leite de tigre nikei (10 porções) 680 ml de leite de tigre clássico 300 g de base nikei 20 g de base de tamarindo Modo de preparo do leite Misture tudo até emulsionar. 13 Base nikei 100 g pasta de ají panca 1 kg de mel 1 l de vinagre branco 100 ml de shoyu Modo de preparo da base nikei Adicionar os ingredientes em uma panela e levar ao fogo médio até ferver. Diminuir o fogo até que a base dissolva. (Pasta de ají panca é um produto importado do Peru.) Base de tamarindo 750 g de tamarindo 400 ml de vinagre branco 400 g de açúcar demerara 40 g de gengibre 20 g de capim-limão Modo de preparo da base de tamarindo Seguir os passos da base nikei. Experimente LA MAR R. Tabapuã, 1.410. Tel.: (11) 3073-1213 O restaurante La Mar participa do Menu Personnalité: itaupersonnalite.com.br/experiencia > Menu Personnalité cá entre nós _sonhos bruno de luca, ator No ar com o programa Vai pra onde?, do Multishow, o apresentador relembra os bons tempos de Los Angeles e projeta Canadá e Polônia por rosane queiroz tv globo/estevam avellar / ringo chiu/zuma/latinstock / Marek Swadzba/shutterstock los angeles, 2009 jornada inesquecível “Desde pequeno queria estudar cinema nos Estados Unidos. Há dois anos, realizei meu sonho. Passei um mês estudando na New York Film Academy, em Los Angeles. Encarei uma rotina de 14 horas diárias de aulas de roteiro, direção, fotografia, edição, direção de elenco e produção. Usamos uma parte da cidade cenográfica da Universal Studios. Uma das cenas que fizemos foi dentro de uma limusine com piscina. Com uma câmera de 16 milímetros, registrei tudo. Ouvir o barulhinho dessa câmera pela primeira vez foi uma das coisas mais emocionantes da minha vida.” Polônia PRÓXIMA PARADA “Quero conhecer o Canadá e a Polônia. Primeiro, porque ainda não fui a nenhum desses países. Depois, porque adoro a cultura canadense. Sempre me interessou. Já a Polônia… Bom, é por causa das loiras!” 14 Prestígio | Alex atala Por Rosane Queiroz _ Do Oiapoque ao topo edu simões/arquivo pessoal A foto de Atala no Amapá é um marco na viagem que ele fez pelo Brasil por 120 dias, em 2002. Nascia ali o chef que hoje comanda o D.O.M., o quarto melhor restaurante do mundo O município de Oiapoque, com cerca de 30 mil habitantes, no norte do Amapá, é simbólico para o chef Alex Atala. Exemplo da amplitude de seus interesses, a pesquisa dos ingredientes e receitas mais escondidos e variados da nossa cultura marca sua culinária estrelada, consolidada no D.O.M., hoje o quarto melhor restaurante do mundo, de acordo com a revista britânica Restaurant. Sentado diante da inscrição “aqui começa o Brasil”, o retrato ilustra o ponto de partida – mas não os limites – de seus pratos. Foi misturando ingredientes autóctones (como o jambu e o pirarucu, do Norte, os queijos mineiros e a tapioca nordestina) com técnicas da gastronomia internacional – sobretudo a da vanguarda espanhola liderada pelo chef Ferran Adrià – que Atala atraiu atenção mundial. A foto ao lado faz parte da aventura em que embarcou em 2002: uma viagem de 120 dias para escrever o livro Por uma gastronomia brasileira, lançado no ano seguinte pela editora BEI. “Gosto dela porque me lembra uma conjunção feliz de acontecimentos”, afirma Atala. “Ir ao Oiapoque para pesquisar e fotografar para meu primeiro livro, que teve prefácio do Ferran Adrià, foi um momento especial.” Dividido em dois volumes – “Para ver” e “Para ler” –, Por uma gastronomia brasileira é quase uma autobiografia. Reconta a trajetória do cozinheiro, nascido há 44 anos Milad Alexandre Mack Atala, filho de uma família de classe média de origem palestina. Oriundo da Mooca, bairro de São Paulo, mas criado no município de São Bernardo, Alex aderiu ao estilo punk na adolescência, nos anos 80. A alma de mochileiro lançou o rapaz para a Europa quando ele tinha 18 anos. Percorreu diversos países, pintou paredes na Bélgica, até cair em um curso de gastronomia. De volta ao Brasil, arranjou trabalho como DJ. Aos poucos, passou a misturar as duas paixões: música e gastronomia. Não por acaso, sua estreia como chef aconteceu no Filomena, bar e casa de shows que mudou totalmente de 15 perfil por conta das suas criações gastronômicas nos anos 90. Hoje, além do D.O.M., Alex comanda os fogões do Dalva e Dito, restaurante dedicado a receitas brasileiras. “Quero ser um cara acessível, por isso atendo bem qualquer pessoa. Acho isso fundamental, porque parte da barreira que quebrei no Brasil é essa coisa de que chef tem que ser francês ou tem que ser gringo ou tem que ser popopó...” Tudo a ver com um cozinheiro que percorre o país em busca de uma alta gastronomia nacional sem o menor popopó. Personnalité Patrick Waterhouse Por Bárbara Soalheiro Fotos Victor Affaro lições de brasil Patrick Waterhouse está há um ano no comando da revista Colors. Com a missão de retomar a relevância da mítica publicação italiana, o designer inglês passou duas semanas aprendendo a sobreviver em São Paulo 16 17 Personnalité P Patrick Waterhouse mostrar uma pessoa morrendo de Aids numa cama ou mostrar uma coleção de órgãos sexuais masculinos – se tornou mais banal. A Colors sofreu um golpe comum aos pioneiros: teve sua fórmula copiada à exaustão e viu sua repercussão se diluir. Patrick Waterhouse comanda a revista desde março de 2011. Passa a maior parte das horas do dia com uma dura, invejada e, por que não, deliciosa missão: impingir nova relevância e o papel vanguardista que a revista teve e perdeu. “Há momentos em que eu olho para o lado e Patrick está em silêncio, muito concentrado, fazendo um desenho ou anotando algo”, diz Cosimo. “Seu rosto parece o de alguém fazendo um grande esforço, tentando tirar algo muito grande de seu cérebro.” Foi num momento desses que Patrick Waterhouse chegou a uma solução: ele fez da Colors um manual de sobrevivência. São edições temáticas, dedicadas a dividir com o leitor pensatas e truques para escapar do fim do mundo ou mesmo como viver melhor sendo feliz. Em outubro, Patrick Waterhouse veio dividir essas lições de sobrevivência editorial e pessoal com alguns jovens profissionais e artistas de São Paulo. Na verdade, ele anotou e aprendeu tanto quanto ensinou. Patrick Waterhouse tem 31 anos. E, se as coisas fossem como seu pai queria, ele seria brasileiro. atrick Waterhouse tem o forte sotaque das famílias bemnascidas inglesas. Cresceu em Bath, a 150 quilômetros de Londres, lugarejo em que a romancista Jane Austen viveu de 1801 a 1806 e que foi descrito por Charles Dickens em seu primeiro romance, As aventuras do sr. Pickwick (1836). Patrick Waterhouse vive em Treviso, na Itália, a meia hora de trem de Veneza. É ilustrador, fotógrafo, diretor criativo, designer e teve obras exibidas na Art Basel, a respeitada feira de artes, realizada a cada junho na Suíça. Recebeu o Discovery Award, no festival de fotografia de Arles, famoso por revelar novos talentos, em 2011, por seu trabalho Ponte City – uma instalação mostrando a vida no maior edifício residencial de Johanesburgo, na África do Sul. Certa vez, a pedido da maior editora de livros da Itália, recriou O inferno de Dante em desenho. Decidiu fazer a história correr como uma espécie de diário de viagem. O trabalho, lançado em 2010, é detalhadíssimo. Patrick Waterhouse sofre de uma dislexia tão intensa que é praticamente incapaz de ler qualquer coisa que exceda um parágrafo. Se a Patrick Waterhouse fosse dada a chance de ler o que escrevo agora sobre Patrick Waterhouse, ele provavelmente diria: “Bárbara, você poderia ler isto aqui para mim?”. Patrick Waterhouse é um homem que ama os livros, mas é incapaz de decifrá-los quando os tem em mãos. Por isso, tornou-se colecionador e voraz consumidor das versões em áudio dessas obras. Patrick Waterhouse é um homem que não lê, mas que fala de literatura com a intimidade dos apaixonados. George Orwell está no topo de sua lista. O sul-africano vencedor do Nobel J. M. Coetzee está quase lá. O dominicano-americano Junot Díaz é mais um (“Foi dele que roubei a ideia das notas de rodapé que usamos na Colors”, diz folheando o romance A fantástica breve vida de Oscar Wao). Patrick Waterhouse é também um sujeito capaz de tirar ordem e beleza do caos: sua mesa de trabalho na Fabrica, o centro de comunicação mantido pela grife Benetton, vive empilhada de papéis avulsos, livros, teclado, monitor, ilustrações, lembretes de ligações que jamais retornará. “Eu chamo isso de Sistema Waterhouse: toda essa bagunça esperando para se transformar numa grande ideia”, diz o editor Cosimo Bizzarri, que se senta na mesa ao lado. É nesse caos que é produzida a Colors, a revista trimestral criada em 1991 por Oliviero Toscani e Tibor Kalman e que balançou um punhado de estruturas do jornalismo. Suas imagens impactantes e sua capacidade de falar de assuntos controversos de um modo muito cru, muito didático, fizeram da publicação uma referência mundial. Mas o mundo mudou, a internet apareceu, e o que era muito impactante – como 1 18 4 3 fotos 1, 2 e 3. arquivo pessoal / foto 4. divulgação/fabrica INGLÊS NA PERIFERIA Anthony Waterhouse, o pai de Patrick, é um homem cheio de opiniões, avesso a qualquer luxo e engajado em causas políticas. Um sujeito que se apresenta como Antônio, fala português perfeitamente e anda só de ônibus quando está em São Paulo. “Ele se considera brasileiro”, diz o filho. Quando tinha 3 anos, Anthony veio ao Brasil com o pai, o diretor John Waterhouse, famoso pelos filmes feitos para o governo inglês durante a Segunda Guerra incentivando cidadãos a economizar água e energia. “Meu avô era excelente com efeitos visuais”, conta Patrick. “Chegou ao Brasil para filmar propagandas de cigarro depois do fim da guerra. A carreira dele estava no auge, viajava muito. Então, decidiu deixar meu pai e minha tia aqui, com a senhora que tomava conta deles, uma mulher chamada Maria, que morava em Itaquera [zona leste de São Paulo].” Anthony cresceu como um garoto da periferia paulistana. Quando completou 13 anos, foi enviado para um colégio interno na Inglaterra. “Ele cresceu dividido. Vinha e voltava ao Brasil sempre que podia. Chegava a passar um ano aqui. É engraçado porque nunca falamos sobre a vida dele em São Paulo, mas sei que ele se sente em casa”, diz. “Quando a gente vem junto, não é muito fácil. Meu pai se recusa a usar outro meio de transporte que não ônibus e me proíbe de falar em público. 2 patrick veio a são paulo aprender a sobreviver: conviveu com garotos de rua do projeto social quixote 1. anthony e sua irmã: o pai do designer viveu no brasil nos anos 1950; 2. retrato de maria: a brasileira que cuidou de anthony em itaquera, são paulo, morreu no ano passado Ele não quer que ninguém pense que é gringo.” Em outubro, Patrick veio pela primeira vez ao Brasil sem o pai. Foi a primeira vez também que explorou a cidade para além da zona leste, que falou à vontade, fosse em inglês ou as duas ou três palavras que sabe em português (além dos clássicos “obrigado” e “por favor”, ele aprendeu a perguntar “tem glúten?” por causa das restrições alimentares da namorada e companheira de trabalho, Rebecca Simpson). Deixou de lado os ônibus. E pegou táxis. Muitos táxis. PROJETO QUIXOTE Patrick veio a São Paulo aprender a sobreviver. Os primeiros dias na cidade, o inglês passou na Vila Mariana, onde fica a casa do Projeto Quixote, uma organização selecionada pela Fundação Unhate (braço social da Benetton) pelo trabalho com crianças em situação de rua. A missão do inglês era usar 19 3. patrick sentado, entre três amigos: quando ainda criança passou temporadas em são paulo; 4. a mesa de trabalho na fabrica, na itália, onde comanda a colors Patrick Waterhouse 2 _ Uma revista sobre o resto do mundo Em 1990, Oliviero Toscani (o homem por trás de toda a estratégia de comunicação da marca Benetton) entrou no escritório de Tibor Kalman (do estúdio M&Co, em Nova York) e perguntou: “Você 20 projetos de patrick: 1. a premiada série de fotos ponte city; 2. o trabalho no projeto social quixote, em são paulo; 3. capa italiana da versão ilustrada de o inferno de dante alighieri pode desenhar uma revista para a Benetton?”. Ao que Tibor res- 4 4. divulgação/fabrica 3 1. mikhael subotzky e patrick waterhouse/cortesia goodman gallery / 2. rebecca simpson / 3. divulgação/fabrica 1 Personnalité pondeu: “Só desenhar, não. Criar, editar e desenhar, sim”. Um ano depois, os dois lançavam a primeira edição da Colors. “A mensagem desta revista é que sua cultura (seja lá quem você for) é tão importante quanto a nossa cultura (seja lá quem nós formos)”, escreveu Tibor. Parece óbvio, num mundo em que até mesmo a palavra globalização já ficou velha, mas, em 1991, antes arte, narrativa e fotografia para que o grupo de 25 garotos e garotas contasse como é sobreviver nas ruas de São Paulo. Como sempre, Patrick trabalhou junto com Rebecca – como ele, nascida em Bath. Há um ano, ela se mudou para Treviso e agora cuida para que seus e-mails sejam lidos e respondidos, organiza sua agenda, os pedidos de imprensa e o acompanha ao redor do mundo. É uma espécie de assistente e colaboradora, com todos os benefícios. Patrick dividiu os dias de trabalho junto aos garotos do Projeto Quixote por temas. Abrigo. Comida. Roupas. Objetos. E foi aprendendo com os meninos o que comer quando você não tem dinheiro. Que tipo de ferramentas você precisa ter sempre à mão. Como você se fantasia quando precisa pedir esmola. Como lavar a roupa, descolar mais grana, construir um abrigo de papelão. Aos poucos, os garotos foram compartilhando o que sabem, e o resultado da semana de trabalho – uma exposição que ficou em cartaz um mês em São Paulo – é impactante justamente porque nos dá uma nova dimensão sobre esses garotos. A de especialistas. Tudo a ver com o que faz na Itália. No comando da Colors, o designer inaugurou uma série intitulada “Manuais de sobrevivência”, que já está indo para o sexto número. “Nossa missão 4. capas de quatro edições da colors editadas por patrick waterhouse no formato manual de sobrevivência, com temas que vão do fim do mundo e excrementos à busca da felicidade da internet, a Colors mudou tudo. E não só pelo corte editorial. Toscani começou a usar técnicas de publicidade para fazer conteúdo. A capa da edição número 1 — um bebê recém-nascido, ainda com o cordão umbilical — parece inofensiva em 2012, mas causou alvoroço em 1991: críticos a acusaram de apelativa. Era exatamente o que Toscani queria. Nada o deixava mais satisfeito do que as discussões calorosas e apaixonadas levantadas por suas imagens controversas e corajosas. Falando de grandes temas, mas dando a eles um tratamento completamente original para a época, os 13 primeiros números da revista – frequentemente inclusos nas listas de melhores revistas do mundo – transformaram o mercado editorial. Juntos, Toscani e Tibor criaram uma fórmula tão forte que, mesmo depois da saída de Tibor (em 1997, ele foi diagnosticado com câncer e voltou para Nova York para se cuidar) e de Toscani (ele se afastou do grupo Benetton em 2000), a revista mudou pouco. Em 2000, quando a Fabrica foi inaugurada, a revista passou a ser produzida lá dentro. Monotemática, trimestral, bilíngue e produzida por uma equipe multicultural, a Colors circula hoje em 39 países. Desde outubro, passou a ser publicada também em inglês/ português. O Manual de sobrevivência para o Apocalipse pode ser encontrado em livrarias de todo o Brasil. 21 Personnalité continua sendo a mesma de quando a revista nasceu: celebrar a diversidade”, diz. Sob sua direção, a publicação – que é sempre monotemática – passou a ser editada em forma de manual: recheada de instruções, passo a passos, listas de equipamentos. “É claro que isso é só o formato que usamos para contar as melhores histórias, mas é esse formato que dá uma identidade a todos os números.” Os manuais são a sua assinatura. Patrick faz questão de ter uma, porque é como artista que ele se reconhece. “Ele não é só um criativo. Eu diria que é um visionário: um artista com uma visão”, diz o premiado fotógrafo italiano Enrico Bossan, que dirige o departamento de fotografia da Fabrica há sete anos e trabalha com Patrick há seis. Patrick Waterhouse “nossa missãocontinua sendo a mesma de quando a colors nasceu: celebrar a diversidade” “AVISEI QUE NÃO IA MAIS EMBORA” A capacidade de surpreender talvez seja a consequência mais positiva de um comentário recorrente sobre o artista inglês: sua cabeça não funciona como a do resto de nós. Ela tem uma desorganização própria. É como se a máquina cerebral dele tivesse uma estrutura levemente diferente, capaz de fazer conexões que a maior parte de nós não faria tão naturalmente. irmã mais velhos, sua mãe sempre ofereceu abrigo e comida para quem precisasse. “Era comum chegar em casa e ter alguém novo, um amigo de um amigo de alguém, que ia passar algumas semanas morando com a gente”, conta. No meio de tanta gente, ele e seu pai construíram uma relação sem grandes intimidades. Mas o pai e as memórias que Patrick tem de suas visitas a São Paulo apareceram com frequência durante a segunda semana de trabalho dele na cidade. Junto ao editor executivo Cosimo Bizzarri (seu companheiro desde que assumiu a Colors), a missão de Patrick na segunda semana em São Paulo era liderar um workshop organizado pela Mesa&Cadeira: um grupo pequeno de pessoas selecionadas para trabalhar junto em um projeto, por seis dias. Patrick decidiu focar na cidade e produzir em equipe não um manual, mas um kit de sobrevivência. A ideia do workshop era reproduzir com o máximo de fidelidade o processo de trabalho do líder. Patrick é obstinado por qualidade. Para escolher seis personagens, encomenda a documentação de 60. Demora a tomar decisões. Quer ver todas as opções possíveis. Usa todo o tempo que tem (e um pouco do que não tem) para aprimorar um layout e uma ilustração. Não controla o caos. Trabalhar com ele é um processo sempre um pouco extenuante (longas horas no escritório, algumas madrugadas sem dormir, atrasos na gráfica), mas resulta sempre num produto de altíssima qualidade. E não há nele nenhuma vontade de mirar baixo. “Poderíamos ter feito aqui uma edição de revista, mas, no lugar de editar as histórias em páginas duplas, criamos uma coleção de objetos, que, juntos, contam como sobreviver em uma cidade de 20 milhões de pessoas, onde você passa oito anos da sua vida no trânsito e onde é complicado até estacionar um helicóptero.” Mesmo com as madrugadas em claro e as mudanças de última hora, o time envolvido nos projetos liderados por Patrick Waterhouse se sente feliz. Com aquela sensação de que colocou no mundo algo do qual vale a pena se orgulhar. “Uma coisa que aprendi trabalhando com ele: não tenha medo se o projeto parece uma bagunça”, conta Cosimo. “Eventualmente alguma coisa sairá dali e será alguma coisa incrível, como só as coisas bagunçadas conseguem ser.” No fim das contas, foram produzidas apenas 90 cópias dos Kits de Sobrevivência. Sessenta foram colocadas à venda no encerramento da Mesa&Cadeira. E esgotaram na mesma noite. “A coisa mais impressionante sobre São Paulo são as pessoas. É uma cidade imensa, difícil, mas você se sente acolhido, bem recebido. É muito diferente de Londres ou Johanesburgo, onde já vivi”, afirma. “Ou talvez eu me sinta assim porque sou também um pouco brasileiro.” A explicação mais possível para isso é o diagnóstico de dislexia severa que recebeu quando ainda garoto. Sua capacidade de ler e soletrar é bastante limitada e Patrick cresceu nessa dicotomia. Por um lado, sempre foi muito inteligente e era tratado como um prodígio dentro de casa. “Por outro lado, tive que repetir de ano e fui colocado em uma escola estranha, meio hippie. É claro que eu me sentia incapaz.” A falta de organização interna também aparece do lado de fora. Seu computador tem sempre dezenas de janelas e tabs abertas. Bastam três minutos para ele transformar um quarto de hotel impecável num quarto adolescente. Outro exemplo de desorganização é a mala: ele se esforçou muito para encontrar uma agenda no aeroporto de Guarulhos, antes de embarcar de volta à Itália. Quem vê sua falta de intimidade com os aspectos mais práticos e mundanos da vida entende por que Patrick parece ter se encontrado na Fabrica, onde funciona o escritório da Colors. A Fabrica é uma espécie de Terra do Nunca para criativos. Uma obra primorosa do arquiteto japonês Tadao Ando em meio a uma vila medieval no norte da Itália, habitada por gente entre 20 e 30 anos vinda de todos os lugares do planeta, o centro de comunicação financiado pela Benetton é um laboratório para jovens talentos no mundo da fotografia, do design de produtos, do design gráfico, da escrita e da tecnologia. Todos os anos, centenas de interessados enviam seus portfólios. Os mais promissores são convidados para um período de teste. Depois das duas semanas, os candidatos voltam para casa e esperam uma resposta oficial, que costuma levar meses. Com Patrick foi diferente. “Eu não tinha me dado conta de que estava sendo convidado para um teste. Achei que tinha sido selecionado, saí do meu emprego e vim. Quando cheguei, avisei que não ia mais embora”, diz. O que poderia ser uma saia justa não foi. Ninguém queria deixá-lo partir. MADRUGADAS SEM DORMIR Imitador talentoso (é muito observador e basta uma única conversa com alguém para ser capaz de reproduzir sotaque e trejeitos à perfeição), bebedor consistente (uma característica que talvez diga mais sobre seu país de origem do que sobre ele mesmo) e um dos caras mais bem informados que você encontra por aí (ele também escuta podcasts com a voracidade de quem sabe ter uma fraqueza a superar), Patrick é uma excelente companhia. É do tipo de pessoa que ganha uma viagem com tudo pago para um festival de música no interior dos Estados Unidos simplesmente porque seus amigos sabem que a viagem será melhor com ele por perto. Patrick cresceu numa casa cheia. Além de um irmão e uma 22 na página ao lado, Patrick Waterhouse com o editor da colors, cosimo bizarri, a seu lado, lideram o workshop em que produziram 90 kits de sobrevivência de são paulo 23 Por Millos Kaiser Praia de paulista romulo fialdini/arquivo sesc pompeia / cortesia instituto lina bo bardi Como a arquiteta italiana Lina Bo Bardi transformou uma antiga fábrica de tambores e geladeiras no Sesc Pompeia, centro de lazer que completa três décadas e atrai anualmente mais de 1 milhão de pessoas acima, o projeto arquitetônico assinado pela italiana lina bo bardi. na página ao lado, frequentadores tomam sol no decksolarium do bloco esportivo, inaugurado em 1982 25 ção será com uma exposição retrospectiva, prevista para abrir no dia 25 de janeiro de 2013, coincidindo com o aniversário de São Paulo. Quem assina a curadoria do evento, batizado de Linha do tempo, são os arquitetos André Vainer e Marcelo Ferraz, colaboradores de Lina no projeto. Na mesma ocasião, o livro Cidadela da liberdade, que narra e ilustra toda a história da construção, também será reeditado. Originalmente chamado de Centro de Lazer Fábrica da Pompeia (o porquê veremos alguns parágrafos adiante), o lugar é muito mais do que uma praia para o paulistano. É também aonde ele vai atrás de cultura (são em média 120 atrações por mês, entre shows, peças de teatro, espetáculos de dança e exposições), saúde (cerca de 4.500 pessoas praticam 25 modalidades diferentes em no alto, a fábrica de tambores dos irmãos mauser nos anos 1940. quarenta anos mais tarde, ela abrigaria o sesc pompeia. ao lado, os tonéis produzidos no local são transportados 26 lugares mais interessantes da cidade”, afirma Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc. “Sua fundação ajudou a instituição a se descobrir, a abrir as portas tanto do ponto de vista físico quanto do programático.” Desconstruindo o Pompeia A área que ocupa quase um quarteirão da rua Clélia abrigava nos anos 1940 uma fábrica de tambores de lixo de propriedade dos irmãos Mauser. Posteriormente, tornou-se a sede da Ibesa-Gelomatic, uma marca de geladeiras. Quando, em 1977, Renato Requixa e Gláucia Amaral, diretores do Sesc à época, convidaram Lina para criar o projeto, ela encontrou um centro de lazer já em plena ebulição, ainda que nenhuma nova viga tivesse sido erguida: a própria comunidade do bairro havia ocupado o espaço abandonado com campeonatos esportivos, encontros de escoteiros, peças de teatro e bailes arquivo sesc/gead / cortesia instituto lina bo bardi / arquivo sesc pompeia E m uma tarde de outubro – a mais quente dos últimos 13 anos em São Paulo –, umas 30 pessoas em trajes de banho se espicham nos decks de madeira do Sesc Pompeia. “Essa é a praia do paulistano. Venho aqui pegar sol há mais de uma década”, diz Josefina Mello, 60 anos, enquanto ajeita o biquíni amarelo. A cena certamente encheria Lina Bo Bardi (1914-1992) de orgulho. O objetivo da arquiteta italiana, ao projetar o complexo de lazer construído na zona oeste paulistana, sempre foi erguer um local para todos – e praias, sejam elas de madeira ou de areia, são ambientes democráticos por excelência. Em 2012, quando a morte de Lina completa 20 anos, o Pompeia, considerado por muitos sua obra-prima, chega à sua terceira década de vida. A comemora- arquivo sesc pompeia são 120 shows e peças por mês e 82 cursos ou oficinas seu complexo esportivo) e formação (há 82 cursos e oficinas livres, com 1.560 alunos matriculados). Só em 2012, mais de 1 milhão de pessoas passaram por lá, estima a assessoria do Sesc (Serviço Social do Comércio), uma instituição sem fins lucrativos criada em 1946 pelo presidente Eurico Gaspar Dutra e hoje com unidades em todos os estados brasileiros, 19 delas na capital paulista. “O Pompeia foi o primeiro a juntar esporte, cultura popular, cultura erudita e cursos em um só lugar. A programação múltipla, aliada a um projeto arquitetônico sem igual, o transformou em um dos 27 acima, o espelho d’água do espaço de estar, executado conforme o projeto idealizado pela arquiteta italiana; e o logotipo desenhado por lina bo bardi _ Punks, artistas e exposição infantil Ao longo de seus 30 anos, muitos eventos marcaram a história do Pompeia. Em 1982, ano de inauguração, a exposição interativa Mil brinquedos para a criança brasileira, idealizada por Lina Bo Bardi, fez a cabeça dos infantes na época. No mesmo ano, o primeiro festival punk do Brasil, O começo do fim do mundo, produzido pelo escritor Antonio Bivar, levou 3 mil jovens a pular ao barulho de Ratos de Porão, Olho Seco, Inocentes, entre outros. José Francisco da Silva, 56 anos, trabalha na unidade desde que ela nasceu. Começou como patrulheiro e hoje em dia é orientador de público. Ele lembra bem do festival: “Foi uma loucura, o batalhão de choque teve até que intervir. Tinha gente trepada no teto, dançando como se estivesse brigando... Mas tinha menina bonita também, viu?!”. Vale relembrar ainda a gravação do programa Fábrica do som, produzido pela TV Cultura entre 1983 e 84, onde os Titãs fizeram uma das primeiras apresentações, bem como shows antológicos de Gil e Caetano. Este último por pouco não aconteceu. “Um rapaz passou pela porta de entrada voando em cima de uma bicicleta, com um violão nas costas. Quando botei as mãos nele, meu colega falou: ‘José, esse aí é o Caetano Veloso!’.” lada Cuide de você. A artista francesa convidou 107 mulheres (entre elas, as atrizes Victoria Abril e Jeanne Moreau) a interpretarem a carta que o namorado de Sophie lhe enviou para romper seu relacionamento. A primeira mostra individual do dinamarquês Olafur Eliasson, em 2011, também foi destaque de crítica e de público. O artista desenvolveu dez trabalhos em “resposta aos estímulos provocados pela cidade de São Paulo”, contando, inclusive, com uma obra em parceria com o cineasta cearense Karim Aïnouz. 28 no alto, show do festival punk o começo do fim do mundo, de 1982, marco do movimento musical no país. acima, exposição mil brinquedos para a criança brasileira, idealizada por lina bo bardi fotos alexandres nunis / arquivo sesc pompeia cícero/folha press / paquito/acervo sesc memórias/gedes Mais recentemente, em 2009, a unidade abrigou uma exposição de Sophie Calle intitu- lina bo bardi vivia no ostracismo até assumir o sesc da terceira idade. “É isso que eu quero. É isso que devemos manter em nosso futuro centro de lazer. Nosso programa está pronto”, disse à primeira vista a arquiteta, que ainda cuidaria nos primeiros anos da programação da unidade. A italiana descobriu que os galpões da antiga fábrica possuíam uma estrutura – talvez a única do Brasil – moldada por um dos pioneiros do concreto armado, o francês François Hennebique (18421921). Resolveu, portanto, que boa parte de seu trabalho não seria construir, mas, sim, desconstruir. Ela então depenou esses galpões até sua essência, retirando os rebocos e aplicando jatos de areia – algo semelhante ao que ela havia feito no Solar do Unhão, em Salvador. Até então, a ideia do arquiteto Júlio Neves, que projetou diversos prédios da avenida Faria Lima, em São Paulo, e fora o primeiro nome sondado pelo Sesc, era demolir tudo e subir duas imensas torres no lugar. a partir do alto, em sentido horário: exposição de olafur eliasson, em 2011; exposição de joseph beuys, em 2010; e cartaz de evento concebido por lina bo bardi, em 1982 29 Para auxiliá-la na empreitada, Lina pediu indicação de um estagiário a um amigo, professor da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP), que recomendou o aluno Marcelo Ferraz, um promissor – e cabeludo – jovem de 22 anos. “Eu conhecia o Solar do Unhão e o Masp, duas de suas obras mais importantes, mas a Lina estava no ostracismo na época. Era mulher, esposa do controverso professor e crítico de arte [Pietro Maria] Bardi, tinha sido exilada política... a turma da arquitetura paulistana desprezava o nome dela”, comenta Marcelo. Dois meses depois, ele recrutou um amigo de classe: André Vainer. “A Lina era um mito para mim, mas eu jamais tinha visto sequer uma foto dela. Quando deparei com aquela figura de rosto duro, nariz adunco, cabelo bem preto, roupas também pretas, fiquei surpreso”, conta André. Ao longo da epopeia de nove anos de obras que resultou no Pompeia, houve, claro, muitas brigas. “Na hora da reconciliação, ela sempre citava Brecht: ‘É preciso se entender claramente’”, recorda André. O trio continuou trabalhando junto até a morte de Lina. O escritório dos arquitetos funcionava em barracos improvisados no próprio Soja não! O papel de Lina ia muito além da arquitetura. A um ano da inauguração dos galpões, os mais de 400 operários ameaçaram entrar em greve. O motivo: a substituição do feijão que vinha na marmita diária pela soja que, naquele momento, acabara de virar moda. Ao mesmo tempo, corriam boatos de que o novo grão causava impotência sexual. A arquiteta então organizou uma missa, celebrada por um frade franciscano amigo, para livrar todos da desgraça. Os ânimos foram recobrados. E o feijão voltou para o menu do dia. Em 1982, foram inaugurados os galpões industriais, onde toda a programação cultural e educacional tomaria lugar. Todos os detalhes da cerimônia de abertura, da trilha sonora à escolha do cardápio, repleto de pratos brasileiros, passaram pelo crivo de Lina. Um dos primeiros espetáculos realizados foi O baile da ilha fiscal, do coreógrafo Ivaldo Bertazzo. “O enredo, um baile da corte imperial que é invadido por saltimbancos, combinava perfeitamente com o espírito democrático do Pompeia: gente da classe AA sentada ao lado de gente da classe C”, diz Bertazzo, que depois encenaria mais uma dezena de produções no mesmo teatro. “Era engraçado que na época todos achavam Pompeia um lugar longínquo. Pensavam que era maluquice fazer qualquer coisa lá.” Quatro anos depois, o bloco esportivo, composto de duas torres de concreto ligadas por passarelas, ficaria pronto. Nele, a ideia de Lina era incentivar a recreação no lugar da competição – uma piscina tinha o formato de uma praia (ela de novo) e as quadras tinham medidas abaixo das exigidas pelas federações dos esportes. Em todo o Pompeia, programa e projeto se fundem, tal como o aço e o concreto que sustentam seus antigos galpões, tal como a arquitetura e a vida na visão de Lina, que gostava de dizer: “Arquitetura, para mim, é ver um senhor ou uma criança com um prato cheio de comida atravessando elegantemente o espaço do nosso restaurante à procura de um lugar para se sentar numa mesa coletiva”. Baixe a Revista Personnalité no iPad e assista ao vídeo sobre o Sesc Pompeia 30 acima, os arquitetos andré vainer e marcelo ferraz reproduzem em 2012 a foto que tiraram em 1984 com lina bo bardi, a partir de um rascunho desenhado pela italiana para celebrar a parceria arquivo pessoal marcelo ferraz / agradecimento sesc pompeia foto nelson mello / desenho arquivo pessoal marcelo ferraz canteiro. “Íamos testando e experimentando na hora. Um modo de fazer arquitetura quase medieval. O projeto mudava o tempo todo”, diz Marcelo. “Hoje em dia, isso seria impensável”, afirma André. Os três desenharam tudo, das placas de sinalização e uniformes dos funcionários ao mobiliário – o que, mais tarde, influenciaria Marcelo a abrir sua própria marca de móveis, a premiada Marcenaria Baraúna. “arquitetura é ver alguém comendo numa mesa coletiva”, afirmava lina bo bardi 31 Patrick Waterhouse pergunta: Como sobreviver a um entrevistado que nada tem a dizer? 32 Marília Gabriela responde: Qualquer entrevistado tem o que dizer, acredite. Pode ser mais ou menos técnico, mais ou menos previsível, mais ou menos claro, mas sempre tem o que dizer. Agora... garantia mesmo do melhor a receber é levá-lo a falar de suas origens, pai e mãe e infância. Não tem erro. É o bom e velho innerself salvando qualquer entrevista. 33 marília gabriela Gabi de frente Após 3 mil entrevistas, Marília Gabriela, aos 64 anos, inverte o papel que a tornou uma das grandes apresentadoras da TV brasileira e se abre às páginas da Revista Personnalité: “Entendi que maturidade é ficar mais confortável na própria pele” Por Eduardo Logullo Fotos Felipe Hellmeister 35 Personnalité 36 acostumou a prosear: sempre com as rédeas da conversa. Arrancá-la, portanto, de sua agenda e fazê-la sentar do outro lado da mesa não é fácil. Mas vale: em um de seus cada vez mais raros depoimentos à imprensa, Gabi, minha amiga e parceira profissional, observadora aguda das pessoas e do tempo em que vivemos, deixou de lado seu estoque de interrogações para dividir exclamações, afirmações, reticências, risos, silêncios. Para a Revista Personnalité respostas, somente respostas. Enfim. Pré-história “Vou contar a minha ‘pré-história’. Com uns 17, 18 anos, poucos sabem o que querem ser na vida. Eu vivia em Ribeirão Preto e depois vim para São Paulo, em 1968, aos 20. Procurava caminhos. Havia cursado um ano de psicologia, até notar que não era o que eu queria. Prestei vestibular para medicina, achava que seria psiquiatra. Acabei entrando em odontologia... E pensei: ‘Mas eu não quero isso!’. Aí fui fazer psicologia. Cursei um ano. Parei. E prestei outro vestibular, para artes plásticas. Parei. Então, concluí que queria mesmo era morar em São Paulo. Aqui, ainda fiz vestibular para cinema e publicidade. Sou uma pessoa mercurial [risos]. Tranquei a matrícula porque pediram documentos que estavam em Ribeirão. A essa altura eu já estava na TV Globo. Quer saber como fui parar lá?” Jornal Nacional “Era o primeiro ano do Jornal Nacional, 1969. Olhei o programa no ar, vi um repórter no meio da rua, no exterior, e falei: ‘É isso que quero fazer! Quero conhecer o mundo, falar com pessoas, conhecer outras culturas e ganhar para fazer isso!’. Soube que precisava falar com o Paulo Mario Mansur, então diretor de jornalismo em São Paulo. Tentei marcar entrevista. Não consegui. Um dia, fui àquele que talvez tenha sido o último baile de Carnaval do Theatro Municipal de São Paulo, com transmissão da Rede Globo. Eu nem estava fantasiada. De repente, o Renato Correa de Castro, um conhecido que trabalhava na emissora, passa por mim e diz: ‘O Paulo é aquele ali!’. Ele estava animadíssimo, solteirão, correndo atrás de uma loura. Pulei no meio dos dois. Um susto. Falei: ‘Não saio enquanto não marcar uma entrevista com você!’. Ele agendou para dois dias depois, às 10 horas. Lembro que vesti uma roupa verde. Vestidinho bem cortado, sapatos e bolsa de verniz azul-marinho. Ele foi direto: ‘Você queria fazer exatamente o quê?’. Respondi no ato: ‘Trabalhar no Jornal Nacional [risos]’. E ele: ‘Mas... você fez jornalismo?’. Não. ‘Você tem experiência nisso?’ Não. ‘Então, por que quer fazer?’ Eu disse: ‘Mas é a única coisa que saberei fazer na vida!’. Ele me ofereceu estágio de um mês. No primeiro dia, faltou um repórter. E foi assim...” “Em recanto, perdi minha ansiedade. Sempre foi fácil trabalhar com Caetano” arquivo pessoal O telefone tocou? Gabi atende. O carro parou, ela abre a porta de supetão. Há uma garrafa de vinho na mesa, e Gabi assume o saca-rolha. O avião chegou, ela pega a bagagem na esteira e sai do aeroporto sozinha. Vamos a um restaurante novo? É a primeira a entrar. Um programa de TV está chato? É a primeira a mudar de canal. E, se alguém surgir à sua frente, será a primeira a perguntar. É difícil resumir essa mulher decidida, loira, alta (1,82 metro), com olhos que surgem como dois faróis azuis acesos em meu rosto – olhos capazes de atingir profundezas –, além da voz rascante e conhecida nacionalmente. Resumir é reduzir. Ainda assim, uma tentativa seria esta: ela se chama Marília Gabriela Baston de Toledo Cochrane. Nasceu há 64 anos, em Campinas, foi criada em Ribeirão Preto e vive em São Paulo. Jornalista, atriz, escritora, cantora com três discos gravados (em um deles, fez parceria com Caetano Veloso). Mulher em permanente ebulição, geminiana, veloz, mercurial, mãe do ator e apresentador Christiano Cochrane, 40, e de Theodoro Cochrane, 34, ator, artista plástico e cenógrafo. Acontece que esse retrato de Gabi, um dos rostos mais conhecidos do país, não dá conta. Com 44 anos de carreira, ela está em outra: “Agora sou a avó que brinca de boneca”, diz. A frase surge por conta da convivência intensa com a primeira neta, Valentina, 1 ano e meio, filha de Christiano com a atriz Daniele Valente. Mas há outro motivo para sua recente mudança interior: o namoro firme com o empresário italiano Riccardo de Angelis, 59, um dos diretores da operadora TIM. “Estou descobrindo novas possibilidades ao me envolver com um homem coetâneo, alguém da minha idade”, diz Gabi, que foi casada por oito anos com o ator Reynaldo Gianecchini, 40. Além de reclusa ao círculo de amigos e à família, tem evitado aparecer ou opinar sobre o que quer que seja. “Fora do meu trabalho, prefiro aparecer o mínimo”, explica. “Vivemos um tempo de evasão da privacidade.” Tem razão. Apresentadora de programas semanais nos canais GNT/Globosat e SBT, seu estilo direto de conversar está no ar há pelo menos 32 anos, quando se tornou âncora do diário TV Mulher, na Globo, em 1980. Criou ali uma mistura de bate-papo com sessão de análise; de jogar conversa fora com questionamentos incisivos; de sensibilidade com a mais pura e desabrida curiosidade. Ela domina a arte de disparar interrogações certeiras para pescar respostas inesperadas, mesmo que essas respostas, às vezes, venham por meio de silêncios. Assim, ela entrevistou mais de 3 mil personalidades de todas as áreas. Assim, ela fez carreira, ganhou música de Rita Lee, conversou com Fidel Castro, Madonna, Yasser Arafat, Cazuza, Raul Seixas e Gore Vidal. Assim, ela se tornou um ícone nacional. E, assim, ela se marília gabriela 37 a partir do alto, em sentido horário: gabi no tv mulher, da globo, com ney gonçalves dias; seu primeiro lp, de 1982; de frente com o presidente collor, em 1991; capa de seu livro eu que amo tanto (2008); no palco em lady macbeth (2006); e com o filho Christiano Personnalité marília gabriela “diziam que eu era antipática. tinham toda a razão. a aparência era essa” JOHN WAYNE DE SAIAS Psicanálise na tv “Sempre corri atrás das coisas. Nada caiu no colo. Essa batalha me forjou com uma têmpera que me fez sobreviver em São Paulo. Fui à luta. Sou grande, me defendia. Sempre estive na defensiva. Relaxei agora. Sabe a menina do interior? Aquela que se não se cuidasse o lobo mau comeria? Uma vez declarei: ‘Sou um John Wayne de saias’. E virei isso mesmo. As pessoas diziam que eu era dura, antipática. Tinham toda a razão. A aparência era essa. Não facilita comigo, porque não sou ‘facinha’. Hoje me permito pensar a meu respeito. Sempre tive dificuldade. Talvez pela carreira, pela maneira como vivi e que me trouxe até aqui. Outro dia pensei: por que o meu trabalho ainda me encanta? Por que tudo foi tão concentrado no ser humano, nas pessoas? Gosto de gente. Lembro pouco de datas, de eventos históricos ou festivos. Mas lembro das gentes todas. Existe agora a clareza de que adoro saber por que as pessoas fizeram algo, como fizeram, do que elas são feitas. O que me interessa é isso. O que nós somos. O que leva alguém a fazer grandes feitos, virar herói ou virar bandido? E o que fez com que essas pessoas se destacassem na multidão? Gente me interessa. Ainda não me cansei, 40 e tantos anos depois. Ainda me interesso, genuinamente, por quem está na minha frente, por aquele material humano.” “Certa vez, um crítico da Folha de S.Paulo escreveu, descendo a lenha, que eu fazia na TV um ‘simulacro de sessão de psicanálise’. Que não eram entrevistas... E quer saber? Achei formidável [risos]! Depois encontrei com ele e comentei: ‘Você tem toda razão’. Era isso mesmo: um modo de encarar o entrevistado. Ele definiu o jornalismo que eu faria pelo resto da vida.” PREÇO DA FAMA “Vivemos tempos muito tristes. Escolhi uma profissão de alta visibilidade. Sei que a exerço com prazer e espero que aconteça o mesmo com quem está assistindo. Mas a curiosidade que essa exposição gera sobre mim me assusta muitíssimo. Então decidi andar no reverso. Parece que todos procuram se expor de maneira desavergonhada. Fico impressionada com a evasão de privacidade, como disse um dia meu amigo Alfredo Ribeiro, o Tutty Vasques. Já se perdeu a noção sobre quem é evadido e quem foi invadido. É uma promiscuidade grande. Por isso vivo quase reclusa. Fora da TV, quero aparecer o mínimo. Sempre tive horror à frase ‘é o preço a pagar pela fama’. Penso que o ‘preço a pagar’ é ter bons resultados do trabalho! Essa coisa de aceitar ser devorada pelo sistema é uma cafajestada. Sou conhecida, mas não furo filas. Não há hipótese de furar filas. As pessoas me veem em lugares até improváveis, entendeu? Sei lá, apareço para caminhar no parque de boné, de tênis... Ganhei uma bicicleta e outro dia fui ao Ibirapuera. Mas a bicicleta começou a trepidar, sei lá... E um carinha que estava lá no parque gritou: ‘Ei, Gabi!’. Respondi: ‘Não fala comigo, senão eu caio [risos]!’. Aproveito a minha cidade. Adoro São Paulo. Mas gosto de ficar em casa, ir ao cinema, ao teatro, sentar com poucos amigos, comer, conversar, falar da vida. Isso é o que importa.” NEUTRALIDADE “Jamais adquiri a noção do que sou ou de quem me tornei ao longo desses anos. Desconheço o que representei ou represento profissionalmente. Se alguém me pergunta algo, como você fez agora, fico surpresa. Não sei se vivo a história do meu tempo, se fui agente da história do meu tempo. Se tivesse esse raciocínio, não teria feito – nem faria ainda – tantas entrevistas com a isenção que faço. Com a neutralidade que todo jornalista deveria ter. Já entrevistei serial killer em prisão de segurança máxima. Com interesse, com enorme curiosidade.” A CANTORA “Quando lancei meu primeiro disco, em 1982, cantei várias vezes nos Trapalhões, no Globo de ouro e até no Chacrinha. Uma delícia. Era uma música da Rita Lee, ‘Diga ao povo que fico’. Rita compôs para mim. Sempre cantei, desde que era estudante em Ribeirão Preto. Cantava nos festivais de bossa nova... Teve um show em que Taiguara tocou. Em outro, Toquinho. Quando cheguei a São Paulo, continuei cantando na noite. Meu primeiro disco surgiu quando pedi ao Boni, então o todo-poderoso da Globo: ‘Boni, você já me viu cantando?’. Naquela fase eu estava com medo de ficar eternizada no TV Mulher. Foi ali que rolou o meu histórico mal-estar com Clodovil [quando o estilista abandonou o programa depois de uma discussão ao vivo com Gabi]. O QUE É NOTÍCIA “Tenho noção do que vai estar na mídia no dia seguinte – ou depois de uma hora. Sou up to date, sei o que acontece hoje, do que vivem as pessoas, para onde vai a curiosidade delas e qual o interesse de quem se expõe. Quando alguém fala comigo, sei o que vai virar notícia. Isso acontece com clareza. No início, não tinha noção. Lembro que entrevistei Zélia Cardoso de Mello, e ela ali, se confessando ‘apaixonada enquanto ministra’ [da Fazenda do governo Collor, entre 1990 e 1991]. Achei normal e nem percebi o escândalo que aconteceu no dia seguinte, as especulações sobre quem seria a tal pessoa [o ministro da Justiça Bernardo Cabral].” 39 40 cara a cara com pelé; posando com o líder palestino yasser arafat; durante a histórica entrevista com zélia cardoso de mello, em que a ex-ministra deixou escapar um romance com um colega de governo; e na primeira conversa com seu futuro marido, Reynaldo gianecchini arquivo pessoal arquivo pessoal a partir do alto, entre os amigos jô soares e chico anysio; com o ator americano jack palance; durante a tensa entrevista com madonna, em que a cantora demonstrou mau humor diante das perguntas de gabi; e com dercy gonçalves diante do ainda candidato à presidência luiz inácio lula da silva; nos bastidores com o ator americano dennis hopper; ao lado do atacante ronaldo, que definiu como incrível a experiência de conversar com gabi; e durante papo com o estilista italiano giorgio armani 41 escutando as histórias contadas pelo tenor italiano luciano pavarotti; ao lado de um sorridente caetano veloso; sentada com o escritor baiano jorge amado, autor de gabriela, cravo e canela; e diante do cantor espanhol e ídolo romântico julio iglesias Pedi ao Boni para cantar no Fantástico. Ele deixou gravar e garantiu que, se o resultado fosse bom, iria ao ar. Cantei uma música bem hard do Gonzaguinha, com letra falando de masturbação masculina. Nenhuma mulher cantaria: ‘É o grito da dona moral no ouvido da gente’. Eu não queria comparação com outras cantoras. E ficou bom, foi ao ar. Mas fui furiosamente atacada quando saiu o disco. Fiquei de cama. Rita Lee me ligou e falou: ‘Ih, querida, prepare-se, é terrível mesmo’. Adoraria gravar um CD por ano. Não existe prazer como estúdio. Amo ambientes musicais.” decepções homéricas “Fico surpresa com tudo o que leio. Ou tudo está errado por um lado, ou errado por outro. Há algum tempo o ser humano chegou ao limite. Existem filósofos, políticos, analistas e otimistas que dizem não ser verdade e que o ser humano deu muito certo. Ou vai dar. Que nos encaminhamos para um mundo melhor. Não é o que os índices de qualidade de vida indicam. O mundo piorou muito. Só poderia ser assim, já que somos bilhões, em crescimento vertical da população. Não vejo nada melhorando. Vejo uma menina de 15 anos sendo baleada porque protegeu a bolsa. Leio sobre a mãe com depressão pós-parto que mata o filho. Coisas tenebrosas. Políticos corruptos que vivem do dinheiro público. Vejo as multidões alienadas, sem consciência e na ignorância. Olho o mundo de forma negativa porque me informo. No geral, as pessoas não se informam. A não ser quando se descobrem em países quebrados, como agora na Europa. Quando chega a derrocada, as pessoas se voltam para religião e pedem aos deuses das igrejas para tirá-las do horror. A informação se pulverizou. Está superficial. Vivemos a era do espetáculo, as pessoas encontraram maneiras de fuçar a vida dos outros. Minha visão é pessimista. Tenho decepções homéricas. Entrevistei pessoas que pensei serem admiráveis, mas que se revelaram pouco admiráveis e muito incorretas. Saio dos fatos e me atenho, me agarro, ao que existe nas pessoas. Para tentar compreender o que nos leva a cometer atos absurdos.” PASSAGEM DO TEMPO “O físico e astrônomo Marcelo Gleiser me garantiu que o tempo não existe. O passado já ‘passou’. E o futuro também ainda não veio. Então, me senti mais confortável. Aliás, ao entrevistá-lo ontem, mais uma vez, ele disse: ‘Para você, o tempo não passou’. A gente se divertiu. Bom, tive duas crises etárias. A primeira, sem consciência do motivo, foi em uma data ‘quebrada’, entre 43 e 44 anos. Sentia uma angústia inexplicável. Fui ao analista – 42 quando preciso, vou mesmo. Descobri que atravessava a ‘idade da morte’: minha mãe morreu aos 44 anos. Sacudi os ombros e segui em frente. Passei a ‘idade da morte’. A crise seguinte veio às vésperas dos 60 anos. Estava no Rio fazendo uma novela, fora do meu ambiente, das minhas referências, longe dos meus filhos, dos amigos, de minhas fotos, de tudo ‘meu’. Estava em um ‘exílio’ e com a consciência de fazer 60 anos. Nunca pensara antes em ter 60 anos. Achava que depois dos 60 estaria perdida. Liguei para o Boni e desabafei. Fomos jantar no restaurante Antiquarius. Boni, naquela fúria santa dele. Eu chorava: ‘Não sei o que vou fazer depois dos 60, não planejei o que fazer da vida nem sei o que fazer a partir de agora’. Ele respondeu: ‘Você tem razão. Tem que planejar mesmo. Restam, mais ou menos, uns 20 anos de vida útil. É você que deverá tomar conta de si mesma. Faça projetos, projetos, projetos. Mantenha-se ocupada’. É isso mesmo: a vida é isso! Sou superexistencialista. Voltei para casa apaziguada, terminei de gravar a novela Duas caras e passei o aniversário de 60 anos em Nova York, com meu filho Theodoro. Saímos caminhando para jantar. Conversando, conversando, conversando. À meia-noite, brindamos. Depois, voltamos a pé para o hotel. Conversando, conversando, conversando. E quando vi, já tinha passado a data. E eu tinha 60 anos. A partir dali, dessa crise, comecei a produzir coisas. Fiz um livro sobre mulheres que amam demais [Eu que amo tanto, 2008], montei a peça Aquela mulher, com o texto que [o escritor angolano] José Eduardo Agualusa escreveu para mim, e consegui que Antônio Fagundes trabalhasse pela primeira vez como diretor. Theodoro fez a cenografia e os figurinos. A crise passou, tem passado. Farei 65 anos em 2013.” O INEVITÁVEL “No fim, concluí que maturidade é isso: ficar mais confortável na sua pele. Chegou o inevitável. E você sabe o que é. E você aceita. E relaxa. E vai bem. Estou amando. Aprendo, pela primeira vez, como é ter uma relação com um homem mais maduro. Sempre existiram homens mais novos do que eu. Percebi a dificuldade que existia naqueles equilíbrios apenas agora, que estou com um homem coetâneo. Isso é relação madura, imagino. Estou mais tranquila, mais risonha, sofro menos, sou avó. Brinco de boneca com minha neta, Valentina. Literalmente. Talvez seja isso a maturidade. Apesar de estar mais tranquila, mais alegre, mais feliz, mais reclusa, com poucos e bons amigos, não posso ficar otimista com o resto mundo. Não acho que o mundo está grande coisa... Mas fico igual àquela música: ‘Não faz mal/ Eu tô carente, mas eu tô legal!’[risos].” Produção Executiva: Kika Pereira de Sousa / Assistente de Produção: Juliana Carletti / Assistentes de Fotografia: Joe Santos e Pamella Gachido / Beleza: Omar Bergea / marília usa roupas clô orozco e huis clos Personnalité “nunca pensei que um dia teria 60 anos. hoje Estou amando, mais tranquila, risonha” Por Gonçalo Junior Carametade Não é fácil viver a aventura de se reinventar para assumir no cinema o jeito de ser de pessoas consagradas. Conheça o desafio encarado pelos atores Daniel de Oliveira, Nelson Xavier e Júlio Andrade divulgação / tv globo/renato rocha miranda / domicio pinheiro/ae H acima, o ator júlio andrade, que passou cinco anos tentando reproduzir os trejeitos e a feição de gonzaguinha para o filme gonzaga — de pai para filho (2012). na página ao lado, júlio e gonzaguinha á cinco anos, o ator gaúcho Júlio Andrade soube que havia sido escrito um roteiro sobre a vida do cantor e compositor pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989). Coadjuvante de filmes de sucesso, como O homem que copiava (2003) e Meu tio matou um cara (2004), ambos de Jorge Furtado, Júlio tinha 31 anos quando decidiu perseguir com muito mais do que unhas e dentes o papel que acreditava ser o maior desafio de sua carreira: interpretar o filho do rei do baião, o também cantor e compositor Gonzaguinha, morto precocemente em 1992, em um acidente de carro. 45 Jim Morrison o dono da performance. O cinema brasileiro tem sido presenteado nos últimos anos com esse mesmo tipo de atuação definitiva. Daniel de Oliveira, 35 anos, fez gente próxima duvidar de até que ponto ele não teria ido longe demais em sua recriação de um dos mais importantes roqueiros cariocas. Em Cazuza – O tempo não para (2004), filme de Sandra Werneck e Walter Carvalho que lhe rendeu o troféu de melhor ator do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, da Academia Brasileira de Cinema, o ator mineiro, como Val Kilmer, aprendeu a emular com extrema precisão o timbre do cinebiografado. “Foi bem difícil recriar o Cazuza”, conta. “Há muitos registros dele, da voz, da imagem, e todo mundo tinha tudo isso fresco na cabeça. Ou seja, não havia muito para onde correr. Tinha que ficar parecido e ponto.” O protagonista tirou quase um ano para afinar sua transformação de Daniel em Cazuza. “Esses meses fizeram bastante diferença – nem era para ser tanto tempo, mas, como o filme acabou atrasando por questões que não dependiam de mim, ganhei esse período. Aluguei um apartamento no Leblon e fiz ali o meu QG Cazuza. Fiquei imerso nos discos. Mergulhei numa vida parecida com a que ele levava, absorvendo o máximo que podia.” Demorou, mas chegou o momento em que sentiu que estava próximo de sua meta. “Um dia, estávamos fazendo uma parte da gravação de voz e vi uma cena do filme na tela, na hora comentei: ‘Poxa, bacana! Conseguiram colocar imagens reais do Cazuza!’. O cara que estava comigo disse: ‘Não tem imagem real, não! É tudo você, brother’. Até eu me confundi!” no alto, daniel de oliveira, que chegou a perder 15 quilos para encarnar a fase final da carreira de cazuza, quando ele lutava contra a aids, que o levaria à morte em 1990. ao lado, o ator e o cantor 46 daniel de oliveira viu a cena de um show em que pensou ser o cazuza – mas era ele mesmo Uma performance inesquecível, que recria nas telas um personagem da vida real, é uma combinação que exige talento do ator e outros ingredientes. Detalhes de produção e direção ajudam muito. Para a maquiadora Gabi Moraes, os grandes papéis podem depender 50% da maquiagem. Há 20 anos ela ajuda atores a encarnar seus desafios. Trabalhou em filmes como Terra estrangeira (1995) e Abril despedaçado (2002), ambos de Walter Salles. Foi ela quem ajudou Rodrigo Santoro a se tornar divulgação / divulgação / Ana Stewart/AE Além das unhas e dos dentes, Júlio precisou tornar-se todo ele um sósia de Gonzaguinha. “No dia do meu teste, que consegui por insistência, fui caracterizado”, diz. “Cheguei de peruca e barba, o mais parecido que pude, decidido a levar o papel.” Até aquele momento, o gaúcho tinha apenas um concorrente. E a produção não precisou de outros: Júlio saiu contratado. “Foi só então que percebi que era mesmo parecido com ele.” Em outubro passado, depois de meia década de convívio quase diário com a sombra do compositor, Júlio, hoje com 36 anos, entregou uma performance arrebatadora. Fez de Gonzaga – de pai para filho, produção do diretor Breno Silveira, um dos grandes sucessos de 2012. Ao final das filmagens, ouviu um curto e certeiro elogio do cineasta: “Gonzaguinha colocou você neste filme”. Agora, Júlio Andrade corre um risco que costuma sobrevoar a carreira de grandes atores às voltas com personagens do gênero: realizar uma performance tão assombrosa que o próprio ator se torna, aos olhos da multidão, o personagem que interpretou. Exemplos desse fenômeno são fartos. Um clássico aconteceu em Hollywood, quando Val Kilmer, uma estrela ligada a superproduções do cinema de ação e de comédia, topou o convite do diretor Oliver Stone para assumir, em 1991, a carne de Jim Morrison, o líder do grupo The Doors. Kilmer levou a missão ao extremo. Além de uma recriação quase biológica do vocalista (a semelhança entre ator e cantor é assustadora), ele desenvolveu seu canto a ponto de dispensar a dublagem da voz original: quando Val Kilmer cantava, era quase impossível dizer se era ele ou _ O peso da maquiagem e da preparação dos atores um homossexual em Carandiru (2003), de Hector Babenco. “Foi preciso lembrar que, mesmo travesti, ele era um presidiário, não podia ser muito montado como vemos nas ruas. Fizemos um trabalho no corte do cabelo para afirmar a feminilidade no rosto. Deu certo.” Em Bicho de sete cabeças (2001), de Laís Bodanzky, Gabi precisou envelhecer Santoro em diversos momentos. “Ele era muito jovem, precisava carregar um peso no olhar, no rosto.” O preparador de elenco também pode ser decisivo. O diretor Pedro Freire acabou de cuidar do novo filme de Marcelo Gomes, Era uma vez eu, Verônica, protagonizado por Ermila Guedes. “O trabalho do preparador é criar condições para o elenco chegar aos personagens, só que sem focar no roteiro. Eu faço improvisações, crio situações que acontecem antes da cena, de modo a estabelecer um clima.” Para o especialista, uma grande atuação se resume “a uma coisa muito simples, mas muito difícil de alcançar”: talento individual e trabalho em equipe. 47 “é a magia do cinema, da tv” divulgação/globofilmes / amancio chiodi/estadão conteúdo / divulgação O veterano Nelson Xavier é outro astro que percorreu o trabalhoso caminho de incorporar uma pessoa à perfeição. Como protagonista de Chico Xavier (2010), de Daniel Filho, o paulistano de 71 anos assumiu os trejeitos do médium em um nível que borra os limites entre a vida real e a interpretação. Não foi a primeira vez que fez isso. Por quase 30 anos, Nelson fora lembrado como o cangaceiro mais famoso do país, na minissérie da Rede Globo Lampião e Maria Bonita (1982), de Aguinaldo Silva e Doc Comparato. Até fazer o conhecido espírita mineiro. “É engraçado, as pessoas me acham parecido com o Lampião e o Chico, mas eu não sou, não”, diz. “Isso é a magia da TV e do cinema. Ela engana a plateia. Ela faz você parecer com o personagem.” 48 acima, o veterano nelson xavier exibe sua impressionante recriação da expressão do médium chico xavier. na página ao lado, Chico e, no detalhe, o ator sem a caracterização “engraçado. me acham parecido com o chico xavier. e eu não sou!”, diz nelson xavier “Virei uma pessoa melhor” Nelson recorda que recebeu, em 2006, um exemplar da biografia escrita por Marcel Souto Maior. Sua primeira reação foi dizer que, se virasse filme, gostaria de interpretar Chico. Passou um período estudando sua linguagem corporal, decorando minúcias de seu dia a dia. Um pouco como um artesão, foi moldando aos pouquinhos, com uma extenuante rotina de observação, uma reprodução fidelíssima. O fato é que, desde essa atuação, ele nunca mais deixou de ser perguntado sobre o quanto o médium transformou sua vida. “Virei uma pessoa melhor”, conta. “Aprendi a ser feliz pelo simples fato de estar vivo 49 numa dimensão que até então não conhecia. Fui invadido por uma emoção intensa, profunda, que classifico como amor, porque Chico foi uma pessoa que só tinha amor para dar.” Antes de incorporar Chico Xavier, o ator acreditava que qualquer personagem, depois de interpretado, era como uma página virada. “Com ele aconteceu diferente. Dois anos depois do filme, sua figura continua presente em mim.” Daniel de Oliveira, que depois de Cazuza viveu o famoso bandido brasileiro da década de 50 Hiroito Joanides, no filme Boca (2012), de Flavio Frederico, pensa de forma semelhante. Para ele, o ator acaba pegando algum trejeito de um personagem. Com o tempo, diz, os maneirismos vão embora. “Mas acredito que cada experiência desse tipo enriquece a memória do corpo. Por isso, é tão bacana fazer personagens diferentes.” Júlio Andrade, que atualmente filma Serra Pelada, do diretor Heitor Dhalia, entende a importância desse vínculo entre ator e personagem. “Brinco que a minha preparação para ser Gonzaguinha começou aos 8 anos”, conta o ator, fã do artista desde criança. Ao cabo da experiência, o gaúcho acredita que viver o músico mudou sua vida e visão de mundo. “Um filme é uma viagem: pode ser boa ou não, mas você sempre volta transformado”, afirma. “Eu cresci, deixei de ser menino, virei homem, aprendi a entender quem sou eu no mundo, o que quero da vida e de minha relação com minha filha. Tornei-me, com esse filme, um homem livre.” Marília Gabriela pergunta: Dói pisar na terra do jardim onde deitaram as cinzas de seus pais? Paloma jorge Amado responde: Marília, querida, dói muito. Mas dói por não termos conseguido até hoje transformar a casa no museu que meus pais merecem. Dói muito o descaso dos governos, nos diversos níveis. Lembro tanto de quando você entrevistou mamãe, recém-viúva, e lhe disse que os leitores mereciam conhecer a Casa do Rio Vermelho. Suas palavras foram fundamentais para que ela saísse e cedesse, generosamente, seu aconchego. Hoje, quando sento embaixo da mangueira onde estão, sinto imensa paz, mas, ao sair do jardim para a casa nua, tenho vontade de chorar. 50 51 Por Rosane Queiroz, de Salvador Amadas Filha de Jorge Amado e Zélia Gattai, Paloma Jorge Amado celebra o centenário de nascimento do autor de Gabriela, cravo e canela e abre um baú de histórias adormecidas na Bahia arquivo zélia gattai/fundação casa de jorge amado memórias 53 Personnalité paloma jorge amado em seu apartamento em salvador exibindo o anel que pertenceu a simone de beauvoir e a tatuagem baseada em um desenho de diego rivera 54 Espelho do pai arquivo zélia gattai/fundação casa de jorge amado “Meu pai e eu éramos muito parecidos. Segundo mamãe, dois leoninos insuportáveis que ela não conseguia domar. O que não era verdade. Era ela quem mandava. Sou toda ele, até fisicamente, e ele dizia se encontrar em mim. Papai me ensinou a pensar pela própria cabeça. Por isso, às vezes batíamos de frente, como num dia em que me recusei a cumprimentar um sujeito que considerava calhorda. Papai o cumprimentou. Provoquei: ‘Está vendo como somos diferentes?’. Ele riu e disse: ‘Eu era igualzinho a você na sua idade. Daqui a pouco você vai cumprimentar essas pessoas como se fossem fantasmas’. Então me contou que tinha no imaginário um cemitério de vivos, onde enterrava os desafetos. Quando encontrava a pessoa, a imagem era a de um fantasma, e ele dizia olá. Ainda não atingi essa perfeição.” márcio lima “S Sonia Braga é a irmã da minha idade — ela tem só um ano a mais do que eu... Chega, não é? Parece que sou gabola”, diz, sacando uma palavra que leva a repórter ao dicionário, para descobrir que é sinônimo de “se gabar”. Paloma teria razões de sobra para ser gabola: quem mais possui uma tatuagem no antebraço com uma pomba desenhada para ela pelo pintor mexicano Diego Rivera (1886-1957), o ex-marido de Frida Kahlo? Quem mais tem um anel que pertenceu à escritora francesa Simone de Beauvoir? “A amizade é o sal da vida”, diz Paloma, lembrando uma máxima do pai, homem de muitos amigos e autor de romances traduzidos em 55 países e 49 idiomas – e superado em vendas apenas por Paulo Coelho. Aos 61 anos, duas vezes casada e separada, duas filhas (Mariana, jornalista, e Cecília, cineasta), dois netos, Paloma se formou em psicologia, trabalhou na Secretaria de Cultura do Rio, foi assessora de um presidente da República (José Sarney), atuou na área de publicações da Unesco, em Paris, e transcreveu livros do pai para o computador. Há 20 anos, escreve e desenha em sua oficina, chamada Que Papelão. Ama cozinhar. Além disso, é uma colecionadora de óculos (no dia da entrevista, usava uns azuis, comprados em Veneza). Essa vida polvilhada de presentes, histórias e companheiros ganhou um novo capítulo este ano, em que se comemora o centenário de Jorge Amado, nascido em 1912, morto em 2001. Paloma decidiu abrir seu baú de memórias para Revista Personnalité. Nas páginas a seguir, passeia pela vida de Jorge, sem esquecer a presença igualmente forte de sua mãe, Zélia (1916-2008). “Tenho uma vida linda. Sou a mãe de Ci e Nana, a avó de Lipe e Nico, a amiga de inúmeros amigos. A privilegiada filha de Zélia e Jorge. Como boa leonina, criativa e generosa, mas simples e low profile pelo ascendente em peixes. Os defeitos, os assumo. O ‘maroceano’ passa por meus olhos de filha de Iemanjá. Odoiá. Sou uma mulher feliz!” e for de paz, pode entrar.” O aviso na porta do apartamento de Paloma Jorge Amado traduz a alma da dona da casa. “Tudo na minha vida é em torno da paz”, diz a filha do casal ícone da literatura brasileira, Jorge Amado e Zélia Gattai. Depois de quatro anos vivendo no Rio de Janeiro, Paloma escolheu como seu novo lar o terceiro andar de um prédio no bairro da Federação, com vista para o mar de Ondina, em Salvador. É um lugar cheio de vento, poucos móveis, muitos livros e obras de arte. Gravuras produzidas pelos mestres Carybé (1911-1997) e Calasans Neto (1932-2006) convivem com dois retratos importantes: Paloma, aos 15 anos, desenhada por Carlos Scliar (1920-2001), e Jorge Amado, aos 18, por Portinari (1903-1962). As paredes guardam outro tesouro da filha do criador de Gabriela, cravo e canela: um lenço com uma pomba no centro, pintado em 1951 por Pablo Picasso (1881-1973), para o Festival Mundial da Juventude pela Paz. “Esse evento aconteceu em Berlim e terminou em 19 de agosto, o dia em que nasci. Papai estava ali, lutando pela paz, e mamãe parindo em Praga, durante o exílio”, conta Paloma, de certidão de nascimento tcheca. A ligação entre o escritor baiano e o pintor espanhol foi de profunda amizade. “Eu me chamo Paloma por causa da Paloma Picasso, a filha de Pablo. No dia em que ela nasceu, papai e Picasso estavam juntos em Paris [onde Jorge viveu de 1948 a 1950] tentando um visto para outro Pablo, o Neruda, que vivia clandestino com um passaporte guatemalteco”, diz. Tempos depois, o poeta chileno se tornaria padrinho de Paloma e habitué de sua casa, como tantos artistas e intelectuais. “Eram pessoas absolutamente simples com quem convivi, ao lado de meu irmão mais velho, João Jorge”, afirma. “Simone de Beauvoir e Sartre, conheci na infância e convivi na adolescência. Adoráveis. Dorival Caymmi era como meu tio, assim como Vinicius de Moraes, Carybé, Di Cavalcanti... Já ‘irmãos mais velhos’ tive muitos: João Gilberto, Dori, Nana Caymmi... paloma jorge amado Niemeyer e a fábrica de brinquedos “Aonde papai ia, eu ia atrás. Foi assim que, aos 6 anos, acreditei conhecer um fabricante de brinquedos: Oscar Niemeyer, que fazia as casinhas em miniatura mais fabulosas que já vi. Morávamos em Copacabana e o escritório de Oscar já era no mesmo lugar em que permanece hoje, no edifício Mae West, nome de uma atriz peituda. O prédio lembra as curvas dela. Papai ia todo sábado até lá só para bater papo. Um dia, ele não foi e perguntei: ‘Não vamos lá no seu amigo que faz brinquedos?’. As maquetes, com arvorezinhas e carrinhos, na minha visão de menina, eram mágicas. Depois, meu primeiro marido [o arquiteto Pedro Costa] trabalhou dez anos com Oscar nesse prédio.” jorge amado brinca com a filha paloma no apartamento em que viveram em 1953, no rio de janeiro 55 Personnalité paloma jorge amado Mina de ouro “Na mudança para Salvador, encontrei um pacote de livros. Ao abrir, parecia que estava em Serra Pelada. Só tinha ouro! Achei o exemplar da primeira edição numerada de Cacau, o segundo livro que ele publicou, em 1933 [depois de O país do Carnaval, de 1930]. A obra era dedicada a seus pais, meus avós, com ‘todo o amor’. Descobri nesse pacote um volume de Vidas secas, de Graciliano Ramos, em que se lê, como dedicatória, apenas: ‘De Graciliano a Jorge Amado’ – Graciliano era a secura em forma de homem. O mais incrível é um exemplar de primeira edição de Il sentiero dei nidi di ragno [A trilha dos ninhos de aranha], primeiro livro de Italo Calvino, com a dedicatória: ‘Alla Signora Amado e a Jorge che ne ha scritti tanti, un collega che è ancora al primo. Italo Calvino, Torino, maggio ‘49’ [Para Jorge e senhora, um homem que tem escrito tanto, de um colega que ainda está em seu primeiro. Italo Calvino, Turim, maio de 1949]. Quando fiz 15 anos, papai me deu as obras completas de Federico García Lorca, em espanhol, com capa de couro e lombada de ouro. É o livro mais querido de minha biblioteca. Li todo. Quase 2 mil páginas.” no alto, a primeira edição de cacau, publicado por jorge amado em 1933. acima, italo calvino dedica seu PRIMEIRO livro, a trilha dos ninhos de aranha, AO BAIANO 56 exemplar de vidas secas, lançado em 1938, com a dedicatória no estilo seco que marcou seu autor, graciliano ramos: “de graciliano a jorge amado” arquivo zélia gattai/fundação casa de jorge amado márcio lima À mesa com Jean-Paul Sartre “Quando Sartre esteve no Brasil, em 1960, pediram ao meu irmão, na época com 14 anos, que fizesse uma entrevista para o jornalzinho da escola. João não quis. Disse que não entendia de filosofia. Mas Sartre estava todo dia lá em casa. Para mim, era só um homem horroroso. Um dia, mamãe comentou com ele que João não queria fazer a entrevista. Ele questionou, João justificou: ‘Sou um menino’. Sartre disse: ‘Então me entreviste como um menino, me pergunte se gosto de tomate’. João perguntou, e ele respondeu: ‘Não gosto de tomate, mas adoro ovo frito...’. Tempos depois, quando eu tinha 14 anos, jantamos com Sartre e Simone de Beauvoir no Lipp, um simpático restaurante em Paris. Mamãe trocou ali confidências com Simone. Ficaram amigas. Mais tarde, ganhou dela um anel de ouro e jade que a francesa ganhara do pai aos 15 anos. Pouco antes de morrer, mamãe me deu essa joia. O curioso é que gostamos tanto do Lipp que, no dia seguinte, voltamos sozinhos. Chegando lá, Sartre estava com uma namoradinha. Papai disse: ‘Todo mundo finge que não viu’. Sartre fez o mesmo.” na bahia, zélia gattai, jean-paul sartre, simone de beauvoir e jorge amado posam ao lado de mãe senhora 57 Personnalité paloma jorge amado Afilhada de Pablo Neruda “Em plena ditadura getulista, Neruda nos visitou em Salvador. Foi aquele corre-corre. Minhas professoras de português e espanhol, no colégio Aplicação, me trouxeram, cada uma, um exemplar de 20 poemas de amor e uma canção desesperada para ele autografar. Cheguei com os livros e ele disse: ‘São piratas’. E quis ficar com os exemplares para reclamar com a editora, dizendo que mandaria outros. Sabia que compadre Neruda não cumpriria a promessa e pedi um bilhete para cada professora explicando o caso. Ele escreveu uma carta enorme, com sua caneta-tinteiro verde. Tempos depois, encontrei uma das professoras e comentei sobre a perda do livro. Ela disse: ‘Mas a carta está emoldurada na minha parede!’.” no alto, o poeta pablo neruda, o político luís carlos prestes e jorge amado. acima, o escritor baiano conversa com o compositor e cantor francês georges moustaki 58 arquivo zélia gattai/fundação casa de jorge amado / arquivo pessoal “Muita gente me pergunta por que acrescentei Jorge ao meu nome. Não acrescentei. Papai colocou em todos os filhos seu nome completo. Meu irmão João [sociólogo] também é Jorge, assim como Lila, filha de seu primeiro casamento [que morreu aos 15 anos, vítima de lúpus]. Sempre gostei de ser Jorge, sobretudo no dia 23 de abril, o dia do santo. Durante os quatro anos que morei em Paris, nos reuníamos, os Jorges, para um jantar animadíssimo: papai, os músicos Jorge Raillard e Georges Moustaki, e eu. Moustaki é como um irmão. Desde que papai morreu, a gente marca e não tem coragem de se ver.” “Ainda pequena, no Rio, morávamos num dúplex na Rodolfo Dantas, atrás do Copacabana Palace. João Gilberto e a turma da bossa nova viviam compondo lá em casa. Na Bahia, foi a fase de Vinicius. Ele chegou a escrever um poema na porta do meu guarda-roupa. Mas quando fez a canção ‘Minha namorada’, que fala ‘ser só minha até morrer’, comentei com papai que ele era reacionário. Papai caiu na gargalhada e disse: ‘Minha filha, não esqueça nunca: a gente só ama quando tem certeza que é até morrer’.” arquivo zélia gattai/fundação casa de jorge amado Confraria dos Jorges Lição de Vinicius de Moraes Encontro de craques “Esta foto é de 1984. Papai havia ganhado o Prêmio Internacional Nonino, uma festa literária italiana. Naquele mesmo ano, Zico tinha mudado para lá, com estardalhaço, porque havia trocado o Flamengo pela pequena Udinese. Udine era pertinho de Percotto, a cidade onde a festa acontecia, e ele nos convidou para ir a sua casa. Eu, flamenguista roxa, fiquei na maior emoção!” no alto, jorge, o gravurista calasans neto e vinicius de moraes em paris. acima, o autor conversa com o jogador zico, ídolo da flamenguista paloma, que acompanha a cena 59 Personnalité paloma jorge amado Festa dos 100 anos em 2000, com os cachorros fadul e morita, jorge amado senta no jardim de sua casa na bahia, debaixo da árvore de manga que recebeu suas cinzas depois de sua morte 60 marcelo regua/o dia / arquivo zélia gattai/fundação casa de jorge amado Cinzas na mangueira “Aos 83 anos, papai teve um infarto. Quando voltou para casa, me chamou no banquinho, debaixo da mangueira, onde gostava de ficar, na casa do bairro do Rio Vermelho, aqui em Salvador. Era uma árvore de manga carlotinha, aquela que é só fazer um furinho e chupar. Ele me pediu: ‘Quando eu morrer, dê um jeito de me cremar e pôr as cinzas aqui. Não há ideia que me agrade mais do que me tornar adubo dessa árvore’. Foi também o desejo de mamãe, que não autorizou nem os filhos a depositar as cinzas ali quando morressem. ‘Debaixo dessa mangueira, só Jorge e eu!’, ela dizia. E assim será.” arquivo zélia gattai/fundação casa de jorge amado “Desfilei no Carnaval de 2012 pela Imperatriz Leopoldinense, que homenageou os 100 anos de Jorge Amado. O centenário, que começou em setembro de 2011 e vai até março de 2013, mobilizou pessoas de todas as idades, cultos e culturas. Muita gente falando do autor querido na Bahia, no Brasil, no mundo. O melhor: todos falando no presente, o que dá a dimensão do quanto seu legado é atemporal e universal. Em Salvador, papai está por toda parte. Mas não o encontro fora, eu o encontro dentro de mim. Ontem comi um acarajé. Comemos juntos.” Última conversa “Em 1996, papai perdeu a visão central. Ele entrou num estado de depressão difícil. Deitava, fechava os olhos e não respondia ninguém. No réveillon de 1999 para 2000, ele reagiu e quis fazer um almoço em família. É triste, não gosto de lembrar [Paloma fica com os olhos marejados]. Nesse dia, ele me confessou: ‘Eu passo o dia esperando chegar a noite para ver se durmo e não acordo. Estou com um livro inteiro na cabeça sabendo que não posso escrever’. Sugeri que ditasse para mim, mas dois dias depois já estava apagado de novo. Isso foi em 1o de janeiro de 2000. Papai morreu em agosto de 2001. Foi nossa última conversa.” Baixe a Revista Personnalité no iPad e veja vídeo do ator Gero Camilo interpretando trecho de O milagre dos pássaros (1979), de Jorge Amado no alto, paloma desfila pela imperatriz leopoldinense, na homenagem a jorge amado no carnaval deste ano. acima, em fevereiro de 2001, seis meses antes de seu pai morrer 61 Por Michael Hughes, em depoimento a Lia Bock A viagem do suvenir michael hughes/laif O trabalho do inglês Michael Hughes devolve o suvenir ao seu lugar de origem com montagens inusitadas. Em 13 anos, a página em que exibe o projeto já recebeu quase 8 milhões de visitas o inglês michael hughes utiliza um postal da estátua da liberdade para substituir a verdadeira. o registro faz parte da série que o fotógrafo iniciou durante uma viagem à alemanha, em 1999 62 63 michael hughes/laif “E no alto, suvenir da torre eiffel cobre a original em paris. acima, o fotógrafo vai ao egito clicar as pirâmides. o trabalho do inglês com as lembranças turísticas conta com 150 imagens 64 m novembro de 1999 eu estava diante de Loreley, uma pedra que fica no rio Rhine, próximo à cidade de Coblenz, na Alemanha. O lugar é um desses que a Unesco decide declarar Patrimônio da Humanidade. Merece. É lindo. Eu, por acaso, naquele dia tinha comigo um cartão-postal meio estranho daquela paisagem. Era bem tosco, para ser sincero. Mais tarde, enviaria esse postal para minha filha – na época, ela amava histórias de princesas e há uma lenda ali sobre a princesa Loreley, que atraía os barcos e seus marujos para a morte. Quando me vi diante da pedra e olhei para o cartão, percebi que a luz e a posição do que estava no papel eram muito parecidas com o cenário que estava à minha frente. Esse tipo de coincidência que devemos aproveitar. Na hora senti que deveria misturar as duas coisas. Foi assim, meio sem querer, que realizei a primeira foto do que se tornaria a série que estampa estas páginas. Sempre tive uma queda por suvenires e, na época, eu já tinha a mania de colecionar os piores que encontrava. Era um troço um pouco esnobe, assumo: queria ter esses objetos horrorosos para mostrar o quão sofisticado era e a quantos lugares tinha ido – posso garantir que não sou mais assim. Estou longe de ser um amante de suvenires. Eu os coleciono, mas no geral são tão malfeitos que fica difícil amá-los. Eles apenas acabaram servindo como base, talvez uma empolgação, para esse projeto tomar corpo. Já são 13 anos e mais de 150 fotos. Fotos sempre – eu digo sempre! – tiradas com um item tosco comprado no próprio local e sem pedir para que as pessoas em volta saissem, ou coisas do tipo. É simples, rápido. Posto todas em meu Flickr. Com o tempo, a minha brincadeira foi fazendo cada vez mais sentido. Repare como a fotografia tem tomado o lugar das nossas lembranças turísticas. Com uma câmera no bolso, relaxamos. Além do incrível desejo de estar na mesma foto do objeto que estamos visitando, mesmo que seja uma simplória placa do Starbucks. O fotógrafo britânico Martin Parr tem um trabalho muito bacana em que aborda bem claramente essa questão de fotos turísticas [Parr fotografa pontos turísticos do mundo abarrotados de pessoas com suas câmeras fotográficas em punho]. Mas calma. Não quero ofender os leitores que praticam o saudável exercício de utilizar suas máquinas fotográficas quando saem de sua cidade. Acho positiva essa facilidade que as câmeras baratas e boas trouxeram. Como não gostar de que mais pessoas desenvolvam um legítimo interesse pela fotografia? Gosto sempre de me perguntar: por que não? Provavelmente, nunca tivemos tanto olho para detalhes, para cores, para luzes. Mas, depois da primeira fase de entusiasmo, tanto a câmera como as fotos costumam acabar no fundo de uma gaveta ou esquecidas em um HD. Isso acontece porque, a não ser que você tenha algo para dizer com suas fotos, tirá-las se torna tedioso. De qualquer forma, 65 “Estou longe de ser um amante de suvenires. são tão malfeitos que fica difícil amá-los” pirulito de torre de pisa “O tempo de cada clique depende da foto e do que colocarei na frente. Existem algumas considerações técnicas, como, por exemplo, se o objeto é grande ou pequeno demais e quais as possibilidades de distância que posso tomar. Sempre aproveito as pessoas que estão por ali, acho que isso é importante na composição. Algumas vezes não funciona. Recentemente tentei fazer uma foto das hélices de energia solar que são símbolo da Holanda. Não deu certo. Também não tenho certeza se a cara da Lady Di, em Londres, funcionou muito bem... Minhas fotos favoritas dessa série são na Torre de Pisa, com a minha filha “Diante de um monumento famoso, qualquer um se fotografa sem muita vergonha” _ “Torço para não viajar e ficar em casa” Michael Hughes tem 60 anos, nasceu em Kingston, Inglaterra. Vive há 30 anos em Berlim, Alemanha. Estudou história na London University, mas afirma que a palavra “estudou” é muito elegante para descrever o que se passou naqueles anos. Ainda na faculdade, começou a fotografar com a Pentax do pai. É casado, tem três filhos e um neto. As muitas viagens que faz por ano chupando um pirulito no formato do monumento, e também as Torres Gêmeas, feitas quando o World Trade Center ainda estava de pé. Fui ao Brasil uma vez em 2010 para fazer uma reportagem sobre energia. Gosto bastante da foto do Cristo Redentor que fiz no Rio de Janeiro. Ela mostra o suvenir e o cristo em boa harmonia. Fico feliz quando consigo isso. Se tenho em mãos uma réplica em miniatura muito exata, muitas vezes ela esconde o que vai atrás. O que me agrada mesmo é quando há certa transparência, quando podemos ver ambas as coisas. A magia está aí. Viver é um pouco assim, não é? Ver o máximo possível. Ir até os lugares, passar por experiências, tirar uma foto e, quem sabe, comprar um suvenir. E por que não?” são devidas à sua profissão de fotógrafo freelancer de jornais e revistas. “Viajo o suficiente para querer ficar em casa nos próximos meses. Só este ano estive em Londres e Amsterdã duas vezes. Também passei por Irlanda, Grécia, Portugal, Áustria e Itália.” Foi em 2006 que o projeto Suvenires ganhou notoriedade. “O ponto alto foi quando recebi um telefonema do Jay Leno Show (NBC) me convidando para ir a Los Angeles participar do programa. Mas o telefonema foi suficiente para convencer a produtora de que eu seria absolutamente inútil para a televisão. Ali, perdi minha grande chance”, brinca. Michael tem um livro com as fotos do projeto editado pela Fivefootsix e colabora para a revista National Geographic. Para mais Leia no iPad reportagem exclusiva informações sobre o projeto acesse: sobre a origem de cinco suvenires www.hughes-photography.eu. 66 michael hughes/laif abordar esse tipo de questão é um troço um bocado polêmico. O próprio Martin Parr teve dificuldades de ser aceito pela tradicional agência Magnum Photos, da qual faz parte hoje. A velha guarda considerava seu trabalho trivial demais. Muitas vezes a cultura popular é considerada trivial. E não há nada mais trivial do que fotografias tiradas nas férias. Diante de um monumento famoso, qualquer um se sente compelido a se fotografar sem ter muita vergonha. A pessoa tem um motivo supremo para isso: seja a importância história e sentimental do local, seja a missão de levar a experiência de volta aos seus queridos. Me interesso por essas questões. Os suvenires são uma espécie de expressão de nossa mortalidade. Eles vivem em nossa casa nos lembrando que há algo como a Torre Eiffel no mundo, que ela fica em Paris e precisamos ir até lá para vê-la. E que, um dia, não será mais possível ir. Mas a torre permanecerá lá. Nós, não.” no alto, michael hughes fotografa a filha lambendo um pirulito na frente da torre de pisa, na itália. acima, clique do cristo redentor, feito durante visita ao rio de janeiro em 2010 67 Paloma jorge Amado pergunta: Qual sentimento você tem pelo Brasil? Morito Ebine responde: Eu acho muito bom morar no Brasil. Acho bom morar no Japão também. A diferença é que no Japão o trabalho manual é mais valorizado. Acho o trabalho fundamental na vida, no dia a dia. Aprendi a fazer móveis em lugar montanhoso. Então, dá para viver e trabalhar tranquilo em Santo Antônio do Pinhal, Serra da Mantiqueira. 68 69 morito ebine Por Thiago Lotufo, de Santo Antônio do Pinhal Fotos Marcos Vilas Boas Em Santo Antônio do Pinhal, na Serra da Mantiqueira, o marceneiro japonês Morito Ebine transforma madeira em móveis feitos para durar cem anos utilizando a milenar técnica do encaixe O artífice detalhe da mão de morito e de uma plaina, marcada com o ideograma que significa mar 71 Personnalité O morito ebine mais de mil anos que, se tivessem sido feitas de concreto, durariam 300 anos ou, de ferro, apenas 30. “Numa empresa em que trabalhei por lá o chefe dizia: ‘Vocês usam madeira que levou cem anos para crescer, então têm que fazer móveis que durem outros cem anos’”, conta o marceneiro. Além do encaixe, a secagem da madeira é uma premissa fundamental para que os móveis atravessem séculos. Isso porque, mesmo depois de cortada, ela muda de dimensão. Quando seca, encolhe, quando fica exposta à umidade, expande. “Essas variações de tamanho podem prejudicar os móveis, né?”, diz Ebine. “Quanto mais tempo ficar secando, mais estável. Madeira, quanto mais velha, melhor.” Nos fundos de sua oficina, ele reserva uma parte do galpão justamente à secagem de tábuas e pranchas. Nela, tem madeira recém-chegada, com um ou dois anos, mas, também, madeira que já está secando há 15 anos. Todas esperando para ser eventualmente transformadas em cadeira Broto, banqueta Bandeja ou mesa Galho, algumas das mais de 30 peças feitas aqui. mar subiu a serra, inundou um galpão e passou a se ocupar de secar madeira. Isso em Santo Antônio do Pinhal, cidade de 6.516 habitantes localizada na Mantiqueira, a 163 quilômetros de São Paulo pela rodovia Presidente Dutra. O mar, aqui, ganha outro nome. Ou, melhor, um ideograma, que representa a letra E, de Ebine. “A primeira letra do meu sobrenome significa mar em japonês”, explica Morito Ebine, marceneiro nascido no Japão que há oito anos montou sua oficina em meio às colinas de Santo Antônio do Pinhal, longe do centro. No galpão de tijolo aparente, erguido num terreno de 5.800 metros quadrados, sem muros ou cercas (“quer entrar, entra”), ele e mais três ajudantes produzem, entre outras coisas, cadeiras, bancos, mesas e luminárias empregando a milenar técnica do encaixe: nada de pregos ou parafusos para unir uma peça à outra. “Parafuso machuca a madeira e acaba encurtando a vida dos móveis. Enferruja também e, com o tempo, a estrutura fica mais frouxa”, afirma Ebine. No Japão, segundo ele, existem construções de madeira com 72 na página ao lado: fachada da construção de tijolo aparente de morito. no terreno, sem cercas ou muros, o artesão produz não mais que dez cadeiras por mês 73 a partir do alto, em sentido horário: gavetas guardam a coleção de ferramentas; chaise longue e luminária; gabaritos para A construção dos móvEIS; e BIBLIOTECA Personnalité morito ebine 74 75 a marcenaria, repleta de gabaritos pendurados nas vigas. é o local sagrado onde morito seca, mede, corta e trabalha a madeira. aqui, ele planeja e constrói móveis para durar cem anos Personnalité morito ebine “não uso parafusos, que machucam a madeira. sem eles, há construções no japão que duram mil anos” O marceneiro japonês vive alheio à badalação do mundo dos designers – prefere, inclusive, ser chamado justamente de marceneiro ou artesão. Ou, ainda, artífice, o trabalhador ou operário que produz algum artefato. Tem clientes famosos que, sabiamente, mantém anônimos; já foi chamado pela revista britânica Monocle de “um dos mais bem guardados segredos do design mundial”; e suas cadeiras Folha e Nara foram parar no acervo da R 20th Century Gallery, uma das maiores galerias de arte para mobiliário brasileiro em Nova York. Segundo Julia, Morito não liga para nada disso e nem sequer demonstrou interesse em ser representado pela galeria. “Ele só quer fazer peças de boa qualidade e úteis”, diz ela. Ele quer também passar seu conhecimento adiante. “Japonês costuma ser fechado, mas o Ebi é superaberto, quer passar para a frente os ensinamentos”, diz Wagner Manarim, 50, um de seus ajudantes. “Quem sabe tanto quanto ele ou não abre o jogo ou já não produz mais.” Wagner, o que você aprendeu com o Morito? “Aprendi a identificar o sentido da madeira, o veio; a usar ferramentas de um jeito diferente; a afiá-las; e a técnica do encaixe.” Como ele é como professor? “Exige da gente o máximo da perfeição, mas nada é uma ordem e sim um pedido.” Na oficina, por conta de um ex-ajudante que custava a assimilar os ensinamentos, Morito instalou uma placa acima da porta de entrada com dois ideogramas associados à cerimônia do chá: ichigo ichie. Traduzidos, significam algo como “um momento, um encontro”. Com isso, ele quis deixar claro ao aprendiz que cada peça feita ali é única e que é preciso colocar atenção em todas as etapas de sua construção. Em outra ocasião, afixou com fita-crepe, em uma das paredes, uma tira de papel com alguns outros ideogramas e a tradução logo abaixo: “Aprender sem pensar é esforço vão; pensar sem nada aprender é nocivo”. Morito tem 45 anos, 1,69 metro e pesa 64 quilos. Seus cabelos são pretos, com alguns fios brancos, e duas entradas proeminentes marcam a testa. O rosto carrega sobrancelhas negras e grossas. Ele usa as mãos – as pontas dos dedos são bem arredondadas e a área reservada às unhas, grande – como ferramentas que o ajudam a se expressar. Em pé, fala com as pernas abertas, fazendo uma base sólida no chão como se fosse um lutador de caratê. Pontua as frases com “né?”, troca o ele pelo érre e vice-versa (diz “praina” em vez de “plaina” e “molar” no lugar de “morar”) e se atrapalha com preposições (“no São Paulo”) e concordâncias (“todos minha família tá lá”). Não consegue pronunciar o til: “Japón”. Diante de uma pergunta complicada, para, pensa e procura a resposta revirando os olhos. Quando está de acordo com algo, pisca os olhos e inclina a cabeça para a frente. Craque no idioma de Camões, Morito talvez não seja (e seria descabido exigir isso dele), mas mestre no que faz, isso ele é – mesmo que não concorde. Morito, você se considera um mestre? “Hummm. Por acaso, virou mestre porque ensinava pessoa, né? Se fosse nesse sentido... mas é, agora, sim, depois de aprendizagem, né, vira aprendiz, depois marceneiro. Eu tô no meio do marceneiro. Mestre deveria ser assim depois dos 60 anos.” Você ainda tem algo para aprender? “Ah, tem muito, né? Bastante coisa eu queria fazer tecnicamente e não consigo, como um pianista que só depois de avançar técnica consegue executar determinadas músicas. Marcenaria tem que treinar muito para conseguir fazer.” “O Deus da marcenaria” A arquiteta e premiada designer paulista Julia Krantz, 45 anos, conhecida por seus móveis orgânicos, de linhas arredondadas, diz que Morito “é o Deus da marcenaria, um buda”. “Tudo o que ele me mostrou é o que eu sempre quis a vida inteira”, ela revela. Os dois se conheceram em 2006. Julia subiu a serra numa segunda-feira e ficou encantada. De lá pra cá, às segundas, muitos outros sobe e desce aconteceram. Fernando Mendes de Almeida, 47, designer carioca, discípulo de Sergio Rodrigues, que já conhecia Morito e foi apresentado à Julia num evento no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, também integra essa confraria da madeira que se reúne – hoje em dia com menos frequência – na bucólica Santo Antônio do Pinhal para trocar experiências. Da parceria entre Ebine e Julia, nasceram as cadeiras Weg2, uma homenagem ao designer dinamarquês Hans Wegner, a Elipse e a Gil, esta última ainda um projeto. 76 na página ao lado, o marceneiro sentado em uma de suas criações na oficina no interior de São Paulo “Mais informal, solto” Morito nasceu em Yaita, na província de Tochigi, 125 quilômetros ao norte de Tóquio. Tem um irmão mais novo, Hidemi, 42, paisagista. Seu pai chamase Takashi e a mãe, Yoko (“esse é fácil, né?”). Ambos alfaiates. No período equivalente ao nosso ensino médio, gostava de física, matemática e filosofia. Mas resolveu estudar marcenaria porque queria algo mais útil, com sentido prático e, também, para resgatar a qualidade do mobiliário japonês. “Eu tinha raiva dos móveis que não 77 Personnalité _ Cadeira é feita com 40 ferramentas O mar inunda também as ferramentas da oficina erguida na Serra da Mantiqueira. Isso porque em cada uma de suas mais de 80 plainas — usadas para desbastar a madeira — é possível ver gravado o ideograma que representa o E, de Ebine, e que significa mar. Morito tem especial apreço pelas plainas manuais, coisa que se percebe não somente pela quantidade como também pela diversidade que possui. “No Brasil, não existem mais tantos termos técnicos de marcenaria e usam a palavra ‘plaina’ para generalizar, como se fosse uma única ferramenta”, diz o marceneiro. “No Japão, cada plaina, e são muitas, tem seu próprio nome.” Sua plaina mais antiga tem 27 anos e foi comprada na época da faculdade. Os formões, usados para entalhar a madeira, são quase 50. Martelos, serrotes, goivas e outros equipamentos preenchem as gavetas e o espaço da marcenaria. “Tenho um monte de ferramentas, mas com 20% delas dá para fazer 80% do trabalho. Algumas eu uso uma ou duas vezes por ano, só que sem elas não dá para fazer o que é preciso”, explica Ebine, que utiliza de 30 a 40 ferramentas para produzir uma cadeira, por exemplo. 78 duravam nada. No Japão, antigamente, faziam móveis para durar gerações. Hoje em dia, feitos com aglomerado, compensado ou MDF, não duram muito”, afirma Ebine. Na universidade, estudou desenho de móveis e marcenaria. Fez três anos e trancou a matrícula para viajar pela Europa. Na volta, conseguiu seu primeiro emprego na área e não retomou mais o curso. Trabalhou três anos numa marcenaria grande, depois mais um ano em outra, até montar o seu próprio negócio. Entre um emprego e outro, ajudou num sítio de agricultura biodinâmica plantando trigo, batata, cenoura, alface, entre outras coisas. Nessa época, 1991, conheceu Rosana, uma brasileira filha de japoneses, hoje com 49 anos, que trabalhava no restaurante do sítio. “Os japoneses costumam ser bem certinhos, o Ebi não. Ele era mais informal, solto, se importava com assuntos diferentes”, conta Rosana. “Foram essas coisas que me chamaram a atenção.” Em 1993, casados, ela e Morito vieram ao Brasil por dois meses para que ele conhecesse o país. Dois anos mais tarde, em 1995, se mudaram em definitivo para cá. Foram morar em Mogi das Cruzes (SP), no sítio do sogro dele, NO ALTO, ALGUMAS DAS FERRAMENTAS DO MESTRE DO ENCAIXE. MORITO TEM ESPECIAL APREÇO POR SUAs PLAINAS E seus FORMÕES, marcados com ideogramas. parte desses equipamentos ele usa raramente morito ebine que usa no interior de sua oficina, como freijó, cedro, paumarfim, jatobá e embuia, e daquelas que cultiva na área externa, como açoita-cavalo, liquidâmbar, jacarandá-mimoso, pau-brasil e carvalho europeu. Morito gosta de madeira em pé e de madeira deitada. Como se resolve esse aparente dilema? “[Solta uma risadinha] Hã hã hã, é... é estranho, né? Mas a gente não usa muita árvore. Uma árvore grossa rende de 5 a 10 metros cúbicos de madeira. Nós usamos, por ano, 5 metros cúbicos”, afirma ele. Ah, é? Nem uma árvore então? “É, uma árvore, máximo duas árvores por ano. A gente produz dez cadeiras por mês, 120 por ano, usando cadeira como exemplo, né? Não é muita coisa. Compramos madeira uma vez por ano e deixamos secar.” Prossegue: “No Brasil, talvez não pensem, no Japão, bastante marceneiro pensa: ‘Ah, vida da árvore acabou quando cortou e virou madeira. Mas, depois de virar madeira, quando faz objeto, pode começar a segunda vida’”. Uma vida, se depender de Morito, de no mínimo cem anos. onde cultivavam cogumelo e batata yacon (turbéculo de origem andina). Lá, Morito começou a fazer móveis para mobiliar a casa e, no boca a boca, a fama se espalhou. Comprou equipamentos e montou sua primeira oficina no Brasil. Depois de quatro anos, ele transferiu a oficina para Quiririm, distrito de Taubaté (SP), e o casal mudou-se para Campos do Jordão (eles moram lá desde 1999). Na cidade, Rosana, arquiteta de formação, tem uma loja de artesanato e produtos naturais. Na vizinha Santo Antônio do Pinhal, Morito inaugurou sua oficina, em 2004. De segunda a sábado, ele chega no trabalho a bordo de sua Saveiro bege, ano 94. Cumprimenta os companheiros Wagner, William e Waldemar, faz um afago nos cachorros, os vira-latas Paco e Pitu e a akita Rita, e prepara chá, que pode ser acompanhado por biscoitinhos Ellen, fabricados a alguns terrenos ao lado. Começa a medir, cortar e aplainar a madeira lá pelas 9h30. Almoça na própria oficina entre 12 e 13 horas, continua o trabalho à tarde. Atende, eventualmente, clientes, recebe telefonemas. Às 19, 19h30, sobe na Saveiro e retorna para Campos do Jordão. Morito diz que gosta de todas as árvores. Daquelas no alto, a partir da esquerda, a cadeira weg2, uma homenagem ao artista dinamarquês hans wegner, criada em parceria com a designer julia krantz; e a banqueta folha Baixe a Revista Personnalité no iPad e assista ao vídeo produzido na marcenaria de Morito Ebine 79 Por Anna Paula Buchalla O país do presente 80 Nicolas e Cecília Gautier, empresário e designer de moda N carol quintanilha / arquivo pessoal O bom momento econômico do Brasil atrai cada vez mais gente para viver aqui. Conversamos com brasileiros que resolveram voltar antes da hora e estrangeiros que não sonhavam em um dia adotar São Paulo como lar Estrangeiros atraídos pelo Brasil ormalmente, os estrangeiros que adotam o Brasil como moradia têm duas preocupações: explicar que, não, a violência não os impediu de optar por viver aqui e esclarecer que a mudança não foi uma decisão aventureira. Com Nicolas e Cecília Gautier, um empreendedor europeu de 34 anos e uma designer de moda de 28, que desde janeiro vivem em São Paulo, a história se repete. “Poderíamos viver em Londres, Nova York ou Pequim, mas escolhemos São Paulo. É uma cidade como qualquer outra metrópole, com o que há de melhor e de pior para viver”, diz Nicolas. Ele é o que se pode chamar de cidadão do mundo. Filho de um empresário suíço-alemão e de uma francesa que cresceu na África do Sul, nasceu no Japão, passou a adolescência em Zurique e morou 11 anos em Londres, onde estudou economia e publicidade. “Sempre digo que estou aqui por dois motivos: gosto do país e vejo não um futuro, mas um presente de oportunidades.” Esse raciocínio tem trazido muitos imigrantes ao país. De acordo com o censo de 2010, a imigração cresceu 86,7% em comparação a 2000. Nicolas comanda, com outros sócios, a Mountain do Brasil, espécie de guardachuva que abriga várias companhias dos mais diversos setores: eventos, entretenimento, futebol, cinema, mídia eletrônica e publicidade digital. Seu desafio? Ajudar empreendedores brasileiros a montar negócios inovadores. Em seu escritório, uma casa arborizada no coração do Jardim Paulistano, ao lado de cinco dezenas de jovens, o clima é de criatividade e ousadia. Ele cita o caso de um engenheiro que largou um emprego em uma grande multinacional e se juntou a seu grupo para se lançar em um projeto que mescla educação e internet. “É gente assim, apaixonada por uma ideia, que tem de sobra no Brasil”, conta. “Ao contrário daqui, tenho a sensação de que os próximos dez anos na Europa serão muito incertos. Não se sabe para onde o continente vai crescer.” E tudo isso sem falar na carne, claro. “Amo os rodízios”, afirma o empresário que já parece totalmente adaptado ao jeitinho brasileiro. “Continuo sendo muito pontual, como um legítimo suíço, então sempre culpo o ‘trânsito’ quando estou atrasado.” no alto, a partir da esquerda: as férias do casal pela áfrica em 2011; nicolas e cecília passeiam por londres em 2010; neste ano, a dupla conheceu a cordilheira dos andes e os gêiseres da bolívia 81 E o tal medo da violência? “Vou e volto a pé do trabalho para casa. O medo não me impede de viver como um cidadão que usufrui da cidade. Vou a parques, passeio com meu cachorro como fazia em Londres e nem considero a possibilidade de ser assaltado. Sei que a cidade é dura e violenta, mas os Estados Unidos e a Europa também são.” Cecília faz coro: “O Brasil mudou muito e é hoje um lugar para onde as pessoas querem vir”. A italiana é filha de uma brasileira e, apesar de nunca ter morado aqui antes, vinha periodicamente desde pequena. “Estou adorando. É uma cidade tão vibrante e movimentada.” Antes de se decidirem por São Paulo, Nicolas rodou o país. O que descobriu? “Trabalha-se muito mais aqui do que em qualquer outro lugar do mundo. Passo até 14 horas por dia no escritório.” A vida, diz ele, também ficou mais cara. “Fico espantado com os preços dos supermercados e dos restaurantes.” Mas nada disso afeta os seus planos de ficar: “Tenho muitos projetos, inclusive o de ter filhos e criá-los aqui”. Brasileiros de volta à pátria ruy teixeira / arquivo pessoal Ruy Teixeira e Paula Juchem, fotógrafo e designer 82 no alto, paula, ruy e os filhos em sua casa em são paulo. acima, a partir da esquerda, a caminho da ilha de porquerolles, frança, em 2003; passeio até o lago di Lecco, na itália, em 2010; paula e a filha, bia, no ateliê em parma, 2010 em dez anos, dobrou o número de brasileiros de volta ao país Era um fim de semana comum do mês de março e Paula passeava com os filhos em Madri quando recebeu um telefonema do marido, Ruy: “Você precisa ler um texto do Domenico de Masi”. No artigo, o sociólogo italiano falava sobre o grande potencial do Brasil para o futuro. Entre outras coisas, lembrava que os italianos haviam lamentavelmente perdido o prazer pela vida e que só sabiam reclamar. Em apenas uma semana, os dois, que havia quase uma década moravam na Itália, decidiram que era hora de arrumar as malas. Em agosto deste ano, retornaram para São Paulo. A guinada na vida do casal não é exceção. Segundo o censo de 2010 feito pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o número de brasileiros que retornaram ao país dobrou em comparação ao número de 2000. A designer Paula Juchem, 38 anos, conheceu o fotógrafo Ruy Teixeira, 55, em Milão, em 1998. Ele já morava lá desde 1987 e trabalhava como correspondente de revistas de moda brasileiras. Casaram-se no ano seguinte. Em 14 anos juntos tiveram dois filhos – Pedro, 10, e Bia, 5 – e, segundo Paula, a ideia de voltar nunca havia passado pela cabeça. “Ruy já estava vindo bastante a São Paulo: a cada dois meses ele viajava para fazer fotos de arquitetura e design.” Mas o desânimo que tomou conta da Europa nos últimos tempos e a perspectiva de recarregar as energias no Brasil foram definitivos na decisão do casal. “Fomos para a Itália em busca do novo, e hoje os europeus, ao contrário do que está acontecendo aqui, fogem da novidade”, afirma Ruy. Apesar do pouco tempo em solo brasileiro, o casal se diz completamente à vontade com a nova vida – mérito da glo- 83 balização, mas também das semelhanças entre São Paulo e Milão. “Como sempre fiquei entre as duas cidades, é como se estivesse mudando de bairro, e não de país”, conta o fotógrafo. Para Paula, a sensação de que sempre esteve por perto é a mesma. “O Skype e a internet revolucionaram o conceito de distância. Não passou um dia em que eu não lesse um jornal brasileiro”, conta. “Arrisco dizer até que a cidade está melhor. Quando saí de São Paulo, não havia ciclovias e as pessoas circulavam bem menos de metrô ou pelas ruas. Tenho a impressão de que ela está mais viva.” A decisão de voltar foi rápida, mas nem por isso impensada. “Não fomos nem voltamos da Itália pela corrida do ouro. Em determinado momento, queríamos que nossos filhos se sentissem brasileiros”, afirma Ruy. É um sentimento natural de quem adota um novo lugar para viver. “As crianças nos pediam para voltar, e qualquer dúvida sobre a nossa decisão desaparece quando olhamos para elas. Parece que, ao desembarcar aqui, elas relaxaram. Lá, a infância é muito contida e tudo é proibido”, comenta Paula. Evidentemente, como toda escolha, essa também incluiu perdas. “Tínhamos um ensino público de qualidade, o que não existe no Brasil. Também perdemos a sensação de segurança, mas nem por isso ergui uma fortaleza em casa”, diz Paula. Uma palavra para definir o que há de melhor no Brasil? “Frescor”, afirma Ruy. “No Brasil ainda há muita coisa a ser feita. E há a nossa incrível capacidade de enfrentar crises. Nós, brasileiros, enxergamos a dificuldade como um desafio. Na Europa, ela é sinônimo de imobilidade. E isso se reflete na política, no trabalho e no espírito das pessoas.” por Tetê Etrusco, em depoimento a Edmundo Clairefont ilustrações Catarina Bessell Pinceladas de Provence Por 12 anos, a empresária Tetê Etrusco viveu em Provence. Ao voltar ao Brasil, trouxe lembranças que não estão nos guias da terra que inspirou os melhores quadros de Van Gogh S aint-Paul de Masoule é um prédio comprido, de cor ocre e telhadinho marrom. É também um antigo monastério construído no século 12. Nos anos 1700, tornou-se asilo. Permanece assim. Suas janelas, cortadas por grades de ferro, encaram um campo de trigo na periferia de Saint-Rémy, a uma hora de carro de Marselha, no sul da França. No coração de Provence. Ali, se o leitor algum dia se interessar em visitar – e eu insisto com todas as minhas forças para que se interesse –, os livros de registro lhe dirão o seguinte: no dia 8 de maio de 1889, por vontade própria e com uma orelha a menos, decepada durante um surto, o holandês Vincent van Gogh internou-se para uma temporada de reclusão. Durante as 53 semanas seguintes, ele pintou 143 quadros e rabiscou uma centena de desenhos. O pintor preencheu telas em branco com obras-primas a partir do que via pelas janelas ou caminhando diante de jardins de lilases, corredores de ciprestes, efêmeras íris, mares de lavanda, rosas povoadas por besouros e tapetes de grama. Pincelou uma série de girassóis, colhidos e dispostos numa jarra. Recriou horizontes com os pontilhados de seu impressionismo sem igual. O auge dessa fase, a fase final e mais brilhante de sua produção, culminaria com seu suicídio aos 37 anos, em 29 de julho de 1890. É um exemplo extremo, definitivo e dramático das despedidas provençais. Nada a ver com os 12 anos de verões inesquecíveis que vivi ali. 85 Minha história na Provence começa, na verdade, em Paris. Em 1986, aos 25 anos, deixei São Paulo, onde nasci, para estudar literatura na capital francesa. Apaixonadíssima pelo país, calhou, claro, de me apaixonar também por um francês. Durante meses, cozinhei minhas dúvidas entre permanecer em Paris, voltar ao Brasil ou segui-lo até Provence, onde ele, um artista plástico, vivia. Um dia, o francês me fez uma proposta cândida e – mais tarde percebi – traiçoeira: “Que tal passar umas férias na terra onde nasci?”. Fomos. Não resisti. Fiquei. Casamos em Cavaillon, a terra do melão. E, por mais graça que a frase sugira, o melão de Cavaillon é mesmo um capítulo à parte na história da geografia e dos sabores. Cavaillon, le pays du melon. Não comer a fruta que nasce ali é não ter comido a fruta. E, se um dia você quiser mastigar o assunto numa visita ao sul da França, que tal visitar o Prévôt? O Prévôt é um restaurante familiar, fundado em 1981 e que fica na Avenue de Verdun. Há um menu inteiro à base de melão. Bebidas também são feitas com a mesma matéria-prima. E, na dúvida sobre a inspiração que move as caçarolas do chef Jean-Jacques Prévôt, guarde um pouco de atenção para a mobília, toda com cor de... melão. Experiência inesquecível. CINCO SENTIDOS A Provence fica no sul do país, quase na fronteira com a Espanha. É um naco de França banhado pelo azulíssimo mar Mediterrâneo. É contido e separado das outras regiões pelos Alpes, pela Itália e pelo rio Ródano. É quente a maior parte do ano (e o inverno, quando chega, chega ameno, em comparação com o que se encontra na Europa). Chuvas são raras, o céu parece equipado com um desembaçador: as nuvens são poucas e, quando surgem, surgem lindas, branquinhas, sugerindo fofices. Gosto de pensar que a Provence é um teste para os cinco sentidos. Se você me pedir um cheiro, eu direi vários. Alecrim, tomilho e todas as famosas ervas provençais. Mas, se precisar eleger um, citarei a lavanda, espalhada em campos por toda parte. Anote uma cidade especial para entender o sul da França com o nariz: na região do Luberon, um maciço com altitudes de até 1.125 metros, a cidadezinha de Gordes, empoleirada numa colina, oferece uma vista inacreditável de vales tomados pela cor lilás. Ali, não deixe de jeito nenhum de visitar uma das atrações turísticas essenciais do país: a Abadia de Sénanque, uma construção com mais de 850 anos que oferece, talvez, o campo de lavanda mais famoso do mundo. É a um só tempo um carinho olfativo e visual. Os olhos só terão a ganhar impressões marcantes se estender o passeio a províncias vizinhas, como Roussillon, Menerbes e Lacoste, a mais romântica das cidades, perdida e bucólica. São vilarejos minguados de gente, cortados por vielas, predinhos baixos de dois e três andares, piso de pedra, curvas em declive, mirantes aqui e ali, cafés e restaurantes familiares, lojinhas de queijos, vinhos, chocolates, óleos, azeites, suvenires, docinhos, compotas, frutas... Lembranças que me trazem água na boca e a vontade de listar os meus sabores favoritos. Posso dizer que estas frutas são especiais: as groselhas, o melão (sim, insisto no melão!), os morangos. Dá vontade de colher maçãs e peras que aparecem em cada jardim. Se for verão, as “o melhor jeito de conhecer franceses é indo a mercados como o de cavaillon” 86 cerejas crescem em campos à beira das estradas. Um convite igualmente tentador são os pêssegos. E tem as amêndoas, o abricó. Falar em queijos, na França, é mergulhar num mundo impossível de selecionar. Mas faço um esforço e digo para não deixar passar o queijo de cabra. CASAR A PÉ Nos 12 anos que vivi em Cavaillon, mantive uma rotina francesa: dividida entre o trabalho e a art de vivre. A vida ali é tão simples... Um exemplo? No dia que casei, fui para a minha cerimônia a pé. Saí de lá casada. E, de novo, a pé, quase parando no caminho para comprar pão. Adorava os mercados. Os mercados da Provence são uma marca registrada. Alguns, montados com barraquinhas em dias específicos nas ruas, valem como um museu para os senti- 87 dos. Não deixe de conhecer o que fica em Oppéde, na região de Luberon. Chama-se Moulin d’huile d’olive e sair dali com ao menos uma latinha de azeite é obrigação. Mas o meu favorito é mesmo o marché de Cavaillon, por conta do que há para comprar, claro, mas, sobretudo, porque esses mercados são o jeito mais fácil de travar contato com as gentes. Fiz amizades eternas ali. Lembro do Louis. O Louis é um sujeito baixinho, careca, de olhinhos puxados. Passou dos 50 anos, mas oferece aquele tipo de semblante que mete dúvidas. Cabe em qualquer idade: ele às vezes surge com as feições suaves e simpáticas de um garoto. Outras vezes, parece um sábio vendedor de salames, capaz de prever a chegada antecipada do inverno e mesmo os rumos de um casamento, tudo com um quase imper- “se existe uma época ideal para visitar a Provence, é o verão, tempo de agitos” ceptível sorriso. Deve ser por conta da ascendência vietnamita. Não sei. Sei que virou meu amigo. Até hoje, quando volto a Cavaillon, gasto um par de horas e uns tantos euros comprando saucisson na sua barraca e escutando os últimos burburinhos da vizinhança. Também escutava o vento provençal. Ele é famosíssimo. E forte, barulhento. É conhecido como mistral. Eu diria que o sopro do mistral é a definição auditiva que tenho de lá. Lembro, por exemplo, de que em Avignon, uma das principais cidades da região, me hospedei num lindo hotel, o La Mirande. De lá, é possível escutar essa sinfonia de ar. Adorava também ir até a praça para observar o Palácio dos Papas, que, como o nome sugere, foi sede da igreja católica no século 14. É uma construção gótica gigantesca. Em julho, abriga um dos festivais de artes mais importantes da França. Se existe uma época ideal para visitar a Provence, o verão, apesar de escaldante, é a temporada dos agitos. O outono e a primavera são ótimos e pedem outro tipo de disposição. Uma disposição para observar, sossegar, tocar. Porque se há algo que a Provence permite é o encontro de corpos. Não preciso dizer que o local, lindo e delicado, é um convite sem igual ao romantismo. Na França, a art de vivre é uma religião não oficial. Tudo é mais lento. Mais contemplativo. Lembro de tirar os outonos para produzir as compotas de fruta que serviria durante o inverno. As pessoas guardam o final da tarde para beber vinho ou café em bistrôs, sentadas debaixo de árvores. Amava tomar um rosé ou um tinto no Café de France, na Place 88 de la Liberté, em Isle sur la Sorgue, uma vilazinha linda, cheia de lojinhas e bons restaurantes, cortada pelo rio Sorgue. Ali, aos domingos, funciona um marché a que se vai para lotar uma cestinha com vinho gelado, saucisson, fougasse (pão típico provençal), queijos de cabra e pêssegos. Então, de bicicleta ou de carro, eu partia para piqueniques em campos de girassóis e de trigo. Adorava passar a mão nos ramos de manjericão e alecrim enquanto crianças corriam, animais faziam seus barulhos, casais e amigos cantavam, bebiam, comiam. Durante 12 anos da minha vida, passei muitos dos meus dias ali e assim. Vivi duas grandes histórias de amor: uma por meu marido, outra pela Provence. Acabei me separando dos dois. Mantive a grande amizade com meu ex. Voltei ao Brasil, abri uma pousada em Paraty. Hoje, mantenho acesas essas lembranças visitando de quando em vez minha antiga cidade francesa, meus amigos e meus locais favoritos. O difícil mesmo é administrar a distância. Quando isso acontece, espremo do coração uma memória capaz de resolver minhas inquietações. A LIÇÃO De Provence Certa vez, a caminho de Saint-Rémy para um fim de semana de verão, pouco antes de voltar de vez ao Brasil, descobri um campo de girassóis desses que há aos montes nas redondezas. Era quase hora de o sol se pôr, e sentei para comer um punhado de groselhas, beber algo e iniciar o difícil processo de dizer tchau à minha vida francesa. Olhei para cima, e a cor do céu era indescritível. Pensei: “Deve ser essa mesmíssima luz a que encantou artistas que pintaram esta paisagem. Gauguin a pintou, Cézanne a pintou. E Van Gogh! Sim, Van Gogh a pintou...”. Lembrei, então, de A noite estrelada, obra máxima do holandês. Ela é justamente um retrato perfeito das noites estreladas que pairam sobre Saint-Rémy. Foi feita bem ali, onde eu estava. É uma espécie de carta de adeus à Provence. Veio à memória a página de um livro de história. Ela recontava o dia em que Van Gogh foi andar, igualzinho a mim, nesses campos que margeiam a cidade. Os dois, ele e eu, vivendo um julho de calor e despedidas na Provence. O artista, em 1890, atravessava o auge de uma depressão. Eu, em 1997, encarava a véspera de uma saudade. Ele tomou um revólver, cercado por girassóis semelhantes aos que me tocavam. Levou o cano ao tórax e meteu um balaço no peito. Voltou cam- 89 baleando à pensão onde vivia. Agonizou por dois dias. Pouco antes de expiar, sussurrou ao irmão Theo, que o velava: “La tristesse durera toujours” (a tristeza vai durar para sempre). Sabe, amo Van Gogh. Quase o compreendi durante aquele pôr do sol de verão em um piquenique solitário na pequena Saint-Rémy. Mas, sinceramente, aqui entre nós e todo mundo, que belo, rematado e genial imbecil! O holandês, no fim, jamais compreendeu o que é a Provence. Sim, ele a pintou à perfeição. Não, não existirá nunca foto, memória ou texto que faça a mesma tradução da beleza que seus pinguinhos e riscos de tinta azul, preta e dourada atingiram. Mas faltou pescar a essência. Van Gogh não entendeu a essência de Provence. A essência provençal não reside na tristeza. Reside na saudade. Não sou pintora, não me tornei escritora. Abandonei há mais de 25 anos meu curso de literatura em Paris em troca de um amor. Passei 12 anos ali. Ontem, vivia feliz num mundo de flores, mistrais e sabores. Hoje, vivo feliz numa pousada encantadora em Paraty. Mas, se pudesse mudar uma vírgula na história da Provence, eu borraria, eu apagaria, eu refaria o último ato, as últimas palavras de Vincent van Gogh. Pensando bem, naquele fim de tarde de verão, sentada diante de um campo dourado, fiz justamente isso. Fiz o que Van Gogh não fez. E deveria ter feito. Eu disse adeus a Provence sem pintar nada de vermelho, sem estorvar o ruído do mistral. Mantive intacto o dourado dos girassóis e o silvo do vento. Voltei ao Brasil. Sem tristeza. Mas com uma saudade que vai durar para sempre. primeira pessoa | OTTO Por Rosane Queiroz _ Disciplina felina marcelo correa O cantor Otto elege os gatos Branca e Pirulito, com quem vive no Rio de Janeiro junto à filha Bettina, 6 anos, como ícones da vida familiar. “Eles ensinam bastante. Admiro a disciplina felina. Não me perguntam muita coisa e eu também não. Gatos são gatos. Eu os amo.”