"Viver por si", viver pelos seus - Programa de Pós

Transcrição

"Viver por si", viver pelos seus - Programa de Pós
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL
E LOCAL
GABRIELA AMORIM NOGUEIRA
“VIVER POR SI”, VIVER PELOS SEUS: FAMÍLIAS E COMUNIDADES
DE ESCRAVOS E FORROS NO “CERTAM DE SIMA DO SAM
FRANCISCO” (1730-1790).
Santo Antônio de Jesus
2011.
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_____________________________________________________________________
N778
Nogueira, Gabriela Amorim.
“Viver por si”, viver pelos seus: famílias e comunidades de escravos e
forros no “Certam de Sima do Sam Francisco” (1730 - 1790). / Gabriela
Amorim Nogueira - 2011.
211 f.: Il
Orientador: Prof. Dra. Maria de Fátima Novaes Pires.
Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa
de Pós-Graduação em História Regional e Local, 2011.
1. Escravos – Bahia – Relações com a Família. 2. Relações com a
Família – História – Séc. XVIII. 3. Bahia – História – séc. XVIII I. Pires,
Maria de Fátima Novaes. II. Universidade do Estado da Bahia, Programa
de Pós-Graduação em História Regional e Local.
CDD: 981.42
_____________________________________________________________________
Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB
Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396.
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GABRIELA AMORIM NOGUEIRA
“VIVER POR SI”, VIVER PELOS SEUS: FAMÍLIAS E COMUNIDADES
DE ESCRAVOS E FORROS NO “CERTAM DE SIMA DO SAM
FRANCISCO” (1730-1790).
Dissertação apresentada como requisito parcial para
a obtenção do grau de Mestre em História no
Programa de Mestrado em História Regional e Local
do Departamento de Ciências Humanas – Campus
V, Santo Antônio de Jesus, da Universidade do
Estado da Bahia, sob orientação da Prof ª. Dra.
Maria de Fátima Novaes Pires.
SANTO ANTÔNIO DE JESUS
2011
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GABRIELA AMORIM NOGUEIRA
“VIVER POR SI”, VIVER PELOS SEUS: FAMÍLIAS E COMUNIDADES
DE ESCRAVOS E FORROS NO “CERTAM DE SIMA DO SAM
FRANCISCO” (1730-1790).
Dissertação para a obtenção do grau de Mestre em História.
Santo Antônio de Jesus-BA, 05 de Abril de 2011.
Banca Examinadora:
_______________________________________________
Profa. Dra. Maria de Fátima Novaes Pires – UNEB/UFBA
Orientadora
________________________________________________
Profa. Dra. Lucilene Reginaldo – UEFS
Examinadora
________________________________________________
Profa. Dra. Isabel Cristina Ferreira dos Reis – UNEB/UFRB
Examinadora
5
À minha querida bisavó Ana Maria,
incentivadora especial dos meus estudos.
Aos meus avôs (in memoriam) Josué e Nelson.
Ás minhas vovós Antônia e Dalva, aos meus
pais Gabriel e Maura por suas lutas cotidianas
pelas sobrevivências da nossa família.
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AGRADECIMENTOS
Ao terminar mais esta etapa da minha trajetória pelos caminhos e descaminhos do ofício
do historiador, vejo muitas solidariedades... Parcerias... Realmente, não construímos um
trabalho acadêmico sozinhos, mas com a ajuda de diversas mãos, olhares, abraços, sorrisos,
lágrimas, incentivos...
O difícil, agora, é conseguir expressar toda gratidão que sinto por cada um que, de
alguma forma, trilhou comigo essa árdua, mas instigante e prazerosa caminhada.
Agradeço, muito especialmente, a minha querida profª. Maria de Fátima Novaes Pires,
que foi orientadora competente deste trabalho, desde sua fase embrionária na graduação. Não
tenho nem palavras para agradecer a sua paciência diante das dificuldades que enfrentei no
decorrer desses dois anos; como carinhosamente conduziu suas orientações, ensinando-me
sobre os conteúdos referentes à temática da escravidão, os referenciais teóricos e
metodológicos da disciplina História e, principalmente, dando-me lições raras da arte de
historiar, sempre instigando-me a perscrutar, nas entrelinhas das fontes, as “vozes” dos
sujeitos sociais, revelando a face humana das suas histórias. Muito obrigada por suas
correções dedicadas, por sua amizade, pelo estímulo constante e pelas nossas convivências
que lapidaram, cada vez mais, a minha escolha de ser historiadora. Ao seu esposo, Flávio,
pela carinhosa receptividade em Salvador e por me ajudar com as normas da ABNT.
Às professoras Lucilene Reginaldo e Isabel Cristina F. dos Reis, que, cuidadosamente,
leram o meu texto do exame de qualificação e contribuíram com o aprimoramento deste
trabalho, através das importantes sugestões feitas no nosso diálogo na banca de qualificação.
Agradeço, pelo incentivo e valorização que me impulsionaram na reta final da escrita desta
dissertação.
Outras vivências no mestrado, entre aulas, encontros, debates, conversas e trocas de emails sobre pesquisas historiográficas contribuíram significativamente com a construção deste
trabalho. Ressalto aqueles com quem convivi mais intensamente: os professores e professoras:
Suzana Servers, Graça Leal, Carmélia Miranda, Raimundo Nonato, Wilson Matos, Rafael
Filho, Isabel Reis. Na coordenação da linha II (Estudos sobre as trajetórias das populações
Afro-brasileiras), Wellington Castellucci.
Aos colegas da turma 2009.1, especialmente, Gilson, Melina e Wanderson
companheiros, dia a dia nas disciplinas da linha II, nos trabalhos, nas nossas conversas e
conversas... Outros que sempre participavam dessas prosas: Wilma, Priscila, Marilva, Taiane,
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Kleberson e Jacó. Lielva e Regina, companheiras de longas datas, de tantas experiências
desde o tempo da graduação. Liu, obrigada por nossa amizade tão carinhosa. Rê e Rogério
agradeço pelas acolhidas em Caetité.
Ane, Consuelo e Vilma, mais do que secretárias eficientes e comprometidas, tornaramse minhas amigas na vida solitária em Santo Antônio de Jesus. Valeu, meninas!!!
À Capes pela concessão da bolsa de mestrado.
Não posso deixar de registrar contribuições antecedentes a essas, aquelas dos primeiros
anos da vida universitária, base da minha formação historiadora. Aos professores: Lúcia
Porto, Marcos Profeta, Paulo Duque, Rosemária Joazeiro, Genilson Ferreira, Jairo Carvalho e
Zezito Rodrigues. Aos colegas no campus VI da UNEB/Caetité-BA, especialmente às
entusiastas mais presentes: Fernanda Rocha, Karoline Gilberta e Luciana da Costa. E,
também, aos queridos Levi José e Eudes. Ainda em Caetité, aos funcionários, professores e
estagiários do Arquivo Público Municipal de Caetité com quem convivi e fiz trocas valiosas
por pelo menos quatro anos.
Aos alunos do nono semestre do curso de História (agora graduados), UNEB, campus
VI, pela significativa experiência do estágio docente. Aos colegas do NEPES (Núcleo de
Estudos e Pesquisas de Escravidão no Sertão- UNEB, campus VI, espaço de prazerosas
discussões historiográficas.
Em Bom Jesus da Lapa muitas pessoas a agradecer...
Ao Bispo Emérito de Bom Jesus da Lapa, Dom Francisco Batistela (in memoriam),
quem primeiro permitiu o meu contato com os preciosos documentos paroquiais da Freguesia
de Santo Antônio do “Orubu de Sima”. A Dom César, Bispo atual, que desde a sua chegada
apoiou essa pesquisa. Aos funcionários da Cúria Diocesana Celeste, Diego e Ocimar.
Agradeço a meu amigo Itamar Cardoso, por gentilmente me disponibilizar seu precioso
acervo fotográfico. E, também, a Dona Tancinha, que me cedeu fotos das igrejas de Paratinga
(antiga vila do Urubu).
Nos trabalhos de digitação e formatação de tabelas me ajudaram Rosimeire, Clenimara
e Marcio Miguel; este verdadeiramente foi meu “anjo da guarda”, junto da sua mãe, Marize,
muitas vezes fizeram de sua casa extensão da minha “biblioteca”. Rogério da Silva
confeccionou o mapa das fazendas dos Guedes de Brito.
A profª Lélia Pondé, tão prestativa, cuidou das correções ortográficas do texto para a
qualificação e, na sua ausência, me ajudou muito a profª Norma Dourado. Para a correção
final do texto contei com o trabalho primoroso da profª Maria Belma Gumes Fernandes. A
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profª. Maria Zilá, incentivadora desse trabalho, me ajudou com o abstract. A profª Francisca
(Kita) me indicou pistas importantes da história de Bom Jesus da Lapa.
Aos moradores das comunidades negras do São Francisco agradeço na pessoa de “Seu
Viturino”.
Aos amigos da IAM e JM pelo incentivo e compreensão das minhas ausências.
Em Paratinga, sou grata aos funcionários do Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de
Magalhães, sobretudo aqueles com quem convivi mais diretamente: Divina, Agamenon,
Carlos Alberto, Demerval (“Nene”) e Evandro. Ao Juiz da Comarca de Bom Jesus da Lapa,
Dr. Armando Duarte de Mesquita Júnior, que autorizou a pesquisa no arquivo do referido
fórum.
Às amigas Samile e Tereza e ao Pe. Vilmar Correia pelas acolhidas em Salvador. Carla,
Mainara e Fernanda pelo apoio e estímulo de sempre.
Agradecimento especial aos queridos companheiros historiadores profª Nivaldo Dutra e
Napoliana Santana, por nossas trajetórias entrecruzadas nas Romarias da Terra e em outras
“romarias” nas comunidades negras do “Velho Chico”... Poli, obrigada pela parceria, por suas
leituras atentas do texto, por nossa amizade... Nivaldo, agradeço-te o incentivo e a
oportunidade de realizar o estágio docente contigo, na turma do nono semestre do curso de
História em Caetité, importante experiência.
Carinhosamente, agradeço aos meus familiares, que, sempre tão preocupados, torcem
por minhas realizações. Tia Cida e tia Maria (“ tia Lia”), incentivadoras de sempre. Ao meu
primo José, que, ao lado de Minaide, Mirelly e Jorddan, me acolheram em Santo Antonio de
Jesus com todo o aconchego do seu lar, tornando mais prazerosa essa fase da minha vida. Aos
meus cunhados Eline e Lucas. Aos familiares do meu noivo agradeço na pessoa de dona Iraci,
minha sogra.
Minha família, meu maior referencial. Rafael e Graziela, meus queridos irmãos, meu
pequeno sobrinho Lucas Gabriel. Meus pais, Gabriel e Maura, foram a base essencial para
esta conquista, inclusive, ajudando diretamente: Painho, com seus conhecimentos da região
do “Certam de Sima”, e Mãinha, interventora no acesso aos documentos da Cúria. Joilson,
meu noivo, se não fosse a sua dedicação, paciência, companheirismo e apoio fundamental,
teria sido muito mais difícil essa caminhada. Obrigada, por suavizar minha vida com todo o
seu amor... A vocês e a tantos outros incentivadores desse trabalho, que nessas linhas não
foram citados, minha gratidão sempre!!!
Por fim, obrigada, meu Deus!
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RESUMO
O presente estudo preocupou-se em acompanhar experiências familiares e comunitárias de
africanos e afro-brasileiros, com o objetivo de compreender a importância da família e da
comunidade na luta pelas sobrevivências e os seus significados para a constituição de
dinâmicas da vida social no “Certam de Sima do Sam Francisco”. Essas experiências
inscreveram-se entre 1730 e 1790, período no qual o povoamento dessa região se fazia intenso
com as fazendas pecuaristas, habitadas por nativos e, principalmente, de africanos e seus
descendentes. Buscou-se documentar trajetórias desses sujeitos sociais que pareciam “viver
por si” devido ao absenteísmo dos proprietários dessas fazendas. As fontes setecentistas,
registros paroquiais (batismos, casamentos e óbitos), inventários, testamentos, livros de atas
de irmandade, processos criminais, livros de memorialistas e viajantes, foram buscadas e
pesquisadas, revelando preciosos vestígios da vida social, em sua dimensão cotidiana. Mapas,
fotografias e a musicalidade regional contribuíram na problematização dessas fontes, que
possibilitaram aproximações com a condição escrava de homens e mulheres trazidos de
África, ou de seus descendentes nascidos nos sertões baianos. Como reorganizaram suas
vidas, envolvendo-se em intensas relações familiares e de compadrio que proporcionaram a
formação de comunidade permeada por solidariedade e hierarquias. Como forjaram
sobrevivências para si e para os seus, dedicando-se às labutas cotidianas com suas roças,
animais e negócios.
Palavras-chave: Escravidão; Família; Comunidade; Absenteísmo.
10
ABSTRACT
The present study was concerned to accompany family and community experiences of
African and african-Brazilian, with the purpose of understanding the importance of family and
community in the struggle for survival and their meanings for the constitution of the social
life dynamics in the “Certam de Sima do Sam Francisco”. These experiences were enrolled
between 1730 and 1790, period in which the settlement of this region was intense winth the
cattle raising farms, inhabited by natives, and specially by African and their descendants. It
tried to document the trajectory of these citizens that seemed “to live by themselves” due to
absenteeism of these farms owners. The sources of seventeenth century, parish records
(baptisms, marriages and death). Inventories, testaments, minutes book of fellowship,
criminal charges, memoralists and travellers books were searched, revealing precious vestiges
of social life in its daily dimension. Maps, photographies and regional musicality contributed
to the questioning of these sources, what made it possible approaches with the slave condition
of men and women brought from Africa or their descendants born in Bahia hinterlands. How
they reorganized their lives, engaging in intense family relationships and cronyism which
provided the creation of community permeated with solidarity and hierarchies. How they
forged survival for themselves and their relatives, dedicating to daily labour with their crops,
animals and business.
Keywords: Slavery; Family; Community; Absenteeism.
11
LISTA DE ILUSTRAÇÕES E TABELAS
Figura 1. Rede familiar e de compadrio de Miguel do “Gentio da Mina” e Luzia
crioula......................................................................................................................................122
Figura 2. Família Extensa......................................................................................................125
Figura 3. Rede de compadrio do casal Estevão crioulo e Domingas crioula........................138
Figura 4. Rede de Compadrio de Andreza crioula escrava de Estevão crioulo....................141
Figura 5. Família nuclear e compadrio de Joze Pereira da Silva e Maria da Silva
Nunes......................................................................................................................................142
Figura 6. Rede de Compadrio de Joze Pereira da Sylva........................................................143
Figura 7. Rede familiar e de compadrio de Maria do Nascimento.........................................144
Figura 8. Comadres e afilhados de Maria do Nascimento.....................................................145
Figura 9. Rede familiar e de compadrio de Manoel Crus......................................................147
Figura 10. Compadres e comadres de Manoel Crus...............................................................147
Figura 11. Rede de Compadrio de Felícia Pereira da Silva Nunes.........................................147
Figura 12. Rede de Compadrio de Faustino Pereira..............................................................149
Figura 13. Família Extensa de Maria Lopes...........................................................................175
Fotografia 1. Santuário do Bom Jesus da Lapa nas margens do rio São Francisco.................49
Fotografia 2. Igreja Matriz de Santo Antonio do “Orubu de Sima”........................................51
Fotografia 3. Asilo do Monge no Santuário do Bom Jesus da Lapa, século XIX....................57
Fotografia 4. Gruta do Bom Jesus da Lapa, século XIX...........................................................58
Fotografia 5. Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, Paratinga – BA.....................101
Fotografia 6. Pescadores no rio São Francisco......................................................................156
Mapa 1. Alto Sertão da Bahia na transição do século XVIII ao XIX.......................................18
Mapa 2. Fazendas dos Guedes de Brito, médio São Francisco, século XVIII.........................41
Mapa 3. Bacia Hidrográfica do rio São Francisco...................................................................48
Mapa 4. Caminhos do sertão: trajetos de boiadeiros, mineradores e tropeiros, séculos XVIII e
XIX............................................................................................................................................72
Tabela 1. Fazenda do “Certão do Rio São Francisco”..............................................................40
Tabela 2. Fazendas do Distrito do Rio Pardo............................................................................40
Tabela 3. Unidades de povoamento luso-brasileiro de trechos do Médio São Francisco
(1734)........................................................................................................................................42
Tabela 4. Proprietário de fazendas e sítios situadas em trechos do Médio São Francisco
(1734)........................................................................................................................................43
12
Tabela 5. População de Jacobina por freguesia – 1774 e 1779.................................................51
Tabela 6. Origem, cor e gênero dos escravos dos Guedes de Brito..........................................62
Tabela 7. Origem, cor, gênero dos escravos da Freguesia de Santo Antonio do
Orubu........................................................................................................................................64
Tabela 8. Origem, cor e gênero dos escravos da Freguesia de Santo Antonio do
Orubu........................................................................................................................................66
Tabela 9. Estimativas de escravos desembarcados na Bahia, 15821851...........................................................................................................................................66
Tabela 10. Região de origem dos escravos embarcados para a Bahia, (15811850).........................................................................................................................................69
Tabela 11. Faixa Etária dos Batizados.....................................................................................81
Tabela 12. Legitimidade dos filhos de escravos das fazendas dos Guedes de Brito..............103
Tabela 13. Casamentos de escravos e forros (1721-1780)......................................................111
Tabela 14. Formação de pares segundo a origem dos contraentes da Freguesia de Santo
Antonio do “Orubu de Sima” (1721-1780).............................................................................113
Tabela 15. Formação dos pares segundo a filiação dos contraentes da Freguesia de Santo
Antonio do “Orubu de Sima”..................................................................................................113
Tabela 16. Formação dos pares segundo a condição social dos contraentes da Freguesia de
Santo Antonio do “Orubu de Sima” (1721-1780)...................................................................117
Tabela 17. Formação dos pares segundo a origem dos contraentes escravos e forros das
fazendas dos Guedes de Brito (1721-1780)............................................................................118
Tabela 18. Formação dos pares segundo a condição social dos contraentes escravos e forros
das fazendas dos Guedes de Brito (1721- 1780)...................................................................119
Tabela 19. Formação familiar de escravos das fazendas dos Guedes de Brito....................127
Tabela 20. Locais de realização dos batizados que envolveram escravos dos Guedes de
Brito........................................................................................................................................130
Tabela 21. Padrinhos e Madrinhas dos escravos dos Guedes de Brito (1729-1790)............136
Tabela 22. Formação dos pares de padrinhos e madrinhas dos escravos dos Guedes de Brito
(1729-1790).............................................................................................................................136
Tabela 23. Posse escrava de escravos e forros dos Guedes de Brito.....................................168
Tabela 24. Criação de equinos de Isabel Ferreira dos Anjos.................................................172
Tabela 25. Relação de dívidas que se deveram a Isabel dos Anjos.......................................172
Tabela 26. Dívidas que se deveram a Alberto de Lima..........................................................184
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LISTA DE QUADROS
Quadro 2. Escravos da Fazenda da Itibiraba (1826).................................................................85
Quadro 3. Quinhão da viúva Maria de Souza e Quinhão de Felix Pereira da Costa................88
14
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
15
2 VIVÊNCIAS ESCRAVAS NAS FAZENDAS SETECENTISTAS DO
“CERTAM DE SIMA”
30
2.1 O “CERTAM DE SIMA”: FAZENDAS, IGREJAS E O RIO SÃO FRANCISCO
(UNIDADES DE POVOAMENTO)
30
2.1.1 O Rio São Francisco, Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima” e “Sanctuário do
Senhor Bom Jesus da Lapa”
47
2.2 HERANÇA DA CULTURA AFRICANA: TRÁFICO E REPRODUÇÃO NATURAL 60
2.2.1 Notas sobre o tráfico de escravos para o “Certam de Sima”
65
2.2.2 Reprodução natural: escolha escrava x escolha senhorial
79
2.3 SENHORES AUSENTES, SENHORES PRESENTES
89
3 FAMÍLIAS E COMUNIDADES DE ESCRAVOS E FORROS NO
“CERTAM DE SIMA”: CASAMENTOS E BATISMOS
94
3.1 EXPERIÊNCIAS FAMILIARES E COMUNITÁRIAS: SOCIABILIDADES,
AUTONOMIA E MOBILIDADE
3.2 FAMÍLIAS EXTENSAS E MATRIFOCAIS: PRÁTICAS E SIGNIFICADOS
3.2.1 Trajetórias familiares: viver pelos seus
3.3 FILHOS DE ESCRAVOS: BATISMOS E COMPADRIO
3.3.1 Redes de compadrio tecidas entre parentes, compadres e companheiros
94
104
119
129
138
4 “VIVE DE SUAS LAVOURAS”, “VIVE DE CRIAR SEUS GADOS”,
“VIVE DE SEUS NEGÓCIOS”: ECONOMIA REGIONAL E SUBSISTÊNCIA
FAMILIAR
152
4.1 LABUTAS SERTANEJAS: VAQUEIROS, LAVRADORES, PESCADORES,
FIANDEIRAS E TECELÃS
4.1.1 Escravos que pareciam “viver por si”: suas roças e seus cativos
4.2 TRABALHO FAMILIAR, HERANÇAS E SOBREVIVÊNCIAS
4.3“DUVIDAS” E “QUERELAS”: TENSÕES ENTRE PARENTES E VIZINHOS
4.3.1 “Quitéria da Graça, preta, forra, viúva: requerendo seus direitos
4.3.2 “Duvidas tiverao por hum pouco de algodao”
4.3.3”Richa velha” e brinquedos: conflitos familiares e comunitários
152
164
170
181
181
184
186
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
193
6 FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
195
15
1 INTRODUÇÃO
Investigar sobre trajetórias familiares de africanos e afro-brasileiros entre aqueles que
vivenciaram experiências escravas no “Certam de Sima do São Francisco”, no decorrer do
Setecentos, foi o desafio central deste trabalho. Um desafio ousado devido à situação precária
na qual se encontram as fontes localizadas na pesquisa. Os manuscritos setecentistas sob a
guarda da Cúria Diocesana de Bom Jesus da Lapa e do Fórum Nivaldo Rodrigues de
Magalhães, Paratinga-Bahia, sofrem, além da ação corrosiva do tempo, com as condições
inadequadas de armazenamento, daí resultando perda das informações desses preciosos
documentos.
Embora fragmentadas, essas fontes ainda conservam vestígios da vida social de
escravos, forros, livres pobres e ricos em sua dimensão cotidiana. 1 Perscrutar esses vestígios
facultou aproximações com experiências2 pregressas desses sujeitos sociais e, assim,
compreender como se envolveram por relações familiares e comunitárias, tendo em vista a
importância fundamental das trocas culturais da diáspora atlântica, ao reiniciar no Brasil suas
lutas pela sobrevivência.
O presente estudo parte da perspectiva de interpretação histórica que trata os sujeitos
sociais na condição escrava como agentes históricos. As suas histórias de vida, aqui contadas,
revelaram vivências familiares e comunitárias entre pais, filhos, avós, netos, tios, sobrinhos,
cunhados, compadres, amigos, vizinhos... Trajetórias permeadas por solidariedade, mas
1
A compreensão do cotidiano proposta por Maria Odila L. S. Dias (1995, p. 13-15) é adotada nessa abordagem
histórica. A autora apresenta cotidiano como um tempo histórico, “[...] sempre relegado ao terreno das rotinas
obscuras, o quotidiano tem se revelado na história social como área de improvisação de papéis informais, novos
e de potencialidade de conflitos e confrontos, em que se multiplicam formas peculiares de resistência e luta”.
Desse modo, torna-se viável uma história microssocial do cotidiano, que permite “[...] incorporar à história
tensões sociais de cada dia [que] implica a reconstrução da organização de sobrevivência de grupos
marginalizados do poder e, ás vezes, do próprio processo produtivo”.
2
A concepção do conceito de experiência apresentado pelo historiador E.P. Thompson, na obra A miséria da
Teoria (1981), muito inspira a presente abordagem. Para o autor as experiências humanas são culturalmente
construídas, logo, “[...] os homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro deste termo – não como
sujeitos autônomos, „indivíduos livres‟, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações
produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida „tratam‟ essa
experiência em sua „consciência‟ e sua cultura (as duas outras expressões excluídas pela prática teórica) das mais
complexas maneiras (sim, „relativamente autônomas‟) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, através das
estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada” (Ibid, p. 182). Sílvia Lara
(1995, p. 46), ao analisar as influências das abordagens thompsonianas entre os estudos da escravidão brasileira,
observou “que [...] alguns historiadores começaram a insistir na necessidade de incluir a experiência escrava na
história da escravidão no Brasil”. A autora reforçou: “Não se trata apenas e simplesmente de passar a estudar o
modo de vida dos escravos ou a visão escrava da escravidão”. Esses estudos devem levar em consideração que
“[...] as relações entre senhores e escravos são frutos de ações de senhores e escravos, enquanto sujeitos
históricos, tecidas nas experiências destes homens e mulheres diversos, imersos em uma vasta rede de relações
pessoais de dominação e exploração”.
16
também por conflitos cotidianos internos. Procurei indicar o quanto participaram ativamente
da sociedade em que viviam, articulando negócios, plantando roças, participando dos festejos
religiosos, de festas e batuques, além do importante papel desempenhado na economia local
através dos trabalhos com a agricultura, pecuária, pesca e artesanatos.
Percorri caminhos indicados pela nova história social da escravidão, que, a partir de
novas pesquisas às fontes históricas, bem como da adoção de novas posturas metodológicas,
apresentou inovações nas abordagens históricas. Desse modo, olhar o escravo como sujeito
social envolvido na teia de relações cotidianas encaminhou perspectivas de interpretação que
permitem “devolver” a humanidade, a condição cultural de suas experiências e os significados
que os próprios africanos e afro-brasileiros deram para suas vidas.
Isso se tornou possível a partir do contato com documentação inédita, guardiã de
vestígios da vida no tempo da escravidão setecentista do “Certam de Sima”. A busca por esses
documentos constitui-se em uma longa trajetória iniciada nas vivências na graduação em
História, especificamente nas aulas do Prof. Nivaldo Osvaldo Dutra, quando estudava sobre
“Quilombos da Bahia”. Paralelamente, as trocas de experiências vividas nas Romarias da
Terra e das Águas me aproximaram das comunidades negras da margem direita do Rio São
Francisco.
A partir de então, despertou em mim o desejo de pesquisar a história de uma dessas
comunidades: Araça-Cariacá. Nas pesquisas de campo realizei diversas entrevistas com
pessoas moradoras nessa comunidade, e, assim, conheci suas histórias de vida e de luta e suas
origens afro-brasileiras. Chamou muito a minha atenção a trajetória do vaqueiro Vitorino
Pereira de Castro, o morador mais antigo de Araça-Cariacá. Com orgulho da sua
afrodescendência, contou-me que era bisneto do escravo Roque, também vaqueiro, que
nasceu e se criou no interior da Fazenda da Volta, território que abrange Araça-Cariacá.
As conversas com “seu Viturino” ampliaram os rumos daquela pesquisa inicial da
graduação, levou-me a uma busca incansável por vestígios que me possibilitassem conhecer
outras experiências da vida escrava, dos nossos antepassados negros, primeiros moradores nas
barrancas do “Velho Chico”. Para essa empreitada contei com o apoio da minha parceira e
colega da graduação Napoliana Pereira Santana; juntas partimos à procura das possíveis
fontes que registraram essas trajetórias pregressas. Por intermédio da senhora Maura Amorim
Nogueira, em 2006, localizamos um rico acervo documental composto por registros
paroquiais dos séculos XVIII, XIX e XX.
Esses manuscritos sob a guarda da Cúria Diocesana de Bom Jesus da Lapa
encontravam-se sem organização arquivística adequada, então, o primeiro passo foi o trabalho
17
de seleção, limpeza e catalogação desses documentos.3 Somente depois de organizados, foi
possível a pesquisa nos livros de batismos, casamentos e óbitos, que possibilitaram a
realização do trabalho de conclusão do curso de História, em 2008, sobre escravos e forros,
antepassados do “Seu Viturino”, intitulado por: “Alianças familiares e práticas de compadrio
entre escravos e forros da Fazenda da Volta, Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”
(1780-1835). A riqueza das informações dessas fontes permitiu a ampliação desse projeto de
pesquisa, que foi aprovado na seleção do Mestrado em História Regional e Local (UNEB).
Aquelas conversas com “Seu Viturino” e o trabalho minucioso de pesquisa às fontes
conduziram-me à instigante investigação de experiências pregressas, vividas nos tempos
coloniais do povoamento dos sertões baianos. Tempo de africanos e africanas recomeçarem
suas vidas nas fazendas setecentistas do “Certam de Sima” após a traumática diáspora
atlântica. Tempo de portugueses e brasileiros com suas “bandeiras” avançando pelo interior
do Brasil-colônia... Tempo das grandes fazendas pecuaristas e da descoberta das minas de
ouro...
O contato com a documentação paroquial da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de
Sima”4 revelou inúmeros africanos e afro-brasileiros envolvidos por laços familiares e
comunitários. A presença marcante daqueles escravos e forros registrados como pertencentes
aos Guedes de Brito, destacou-se nos registros paroquiais ao longo do Setecentos,
despertando o meu interesse em perscrutar nessas fontes indícios de experiências pregressas
desses sujeitos sociais.
Neste sentido, busquei acompanhar trajetórias familiares de escravos que viveram em
fazendas setecentistas do “Certam de Sima”, mais especificamente os moradores das fazendas
dos Guedes de Brito, formadas a partir dos primeiros currais de gado do Mestre de Campo
Antonio Guedes de Brito.5 Os marcos temporais, 1730-1790, são flexíveis e correspondem a
uma demarcação referente ao período no qual são mais evidentes os vestígios dos escravos
3
A experiência vivida por mim como monitora do Arquivo Público de Caetité, foi fundamental nesses trabalhos
de organização arquivística e de pesquisa nos acervos da Cúria Diocesana de Bom Jesus da Lapa e no Fórum Dr.
Nivaldo Rodrigues de Magalhães, em Paratinga-BA.
4
Foram consultados, no Acervo da Cúria Diocesana de Bom Jesus da Lapa, 6 livros de registros de batismos”, 3
livros de registros de casamentos e 2 livros de óbitos, documentos da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de
Sima”.
5
Antônio Guedes de Brito, filho de Antonio de Brito Correia e Maria Guedes, tornou-se possuidor de um rico
patrimônio fundiário, de origem sesmeira e vinculado ao Morgado Guedes de Brito. Participou do processo de
interiorização dos sertões baianos, expandindo seu patrimônio de terras, implementou os primeiros currais de
gado na margem direita do São Francisco, os quais se tornaram grandes fazendas pecuaristas, transmitidas aos
seus descendentes até a primeira metade do século XIX. Para maiores esclarecimentos sobre os Guedes de Brito,
conferir Neves (2005; 2008).
18
dos Guedes de Brito, por isso permitem o alcance de suas experiências a partir de uma visão
longitudinal e do cruzamento das fontes.
O “chão social” dessas vivências, denominado nas fontes como “Certam de Sima” ou
“Certam de Sima do Sam Francisco”, corresponde à conceituação alto sertão da Bahia, como
é designada a região em estudo.6 No mapa abaixo, apresenta-se essa região na transição do
século XVIII ao XIX, nele pode-se visualizar demarcações espaciais que auxiliam a
compreensão dos prováveis contatos sociais e econômicos que interligavam os moradores
dessa região com outras localidades.
Mapa 1: Alto Sertão Baiano na transição do século XVIII ao XIX (apud NEVES, 2008).
6
Conforme Erivaldo Fagundes Neves (2008, p. 28), “a designação de alto sertão da Bahia referencia-se, pois, na
sua distância do litoral, talvez com os reforços da posição relativa ao curso do rio São Francisco e do relevo
baiano, que ali projeta as maiores altitudes do Nordeste do Brasil”. O autor (Ibid, p. 26) ressalta as imprecisões
quanto às definições das região do Brasil.
19
Os africanos e seus descendentes, escravos dessas fazendas, puderam experimentar
outras dimensões de autonomia e mobilidade,7 uma vez que pareciam “viver por si”, isto
devido à ausência dos proprietários nas fazendas. A ausência direta de fazendeiros das suas
fazendas foi amenizada pelo trabalho administrativo desempenhado por pessoas da confiança
desses senhores absenteístas, como os Guedes de Brito. Entre aqueles selecionados para
cuidar dessas fazendas estavam os próprios escravos, forros e livres. A participação de
escravos e forros no exercício dessa função contribuiu com a formação de hierarquias
internas, no interior das “comunidades escravas”. Essas hierarquias estruturavam as relações
sociais cotidianas. Portanto, esse aspecto foi fundamental à compreensão do “viver por si” e
“viver pelos seus” daqueles africanos e afro-brasileiros moradores no “Certam de Sima”.
As fontes paroquiais consultadas (batismos, casamentos e óbitos), analisadas nas
entrelinhas, possibilitaram, além da análise quantitativa expressa nos dados tabelados sobre
índices populacionais, números de nascidos e do tráfico, aproximações das dimensões sociais
cotidianas. Localizaram-se arranjos familiares e descobriu-se como os membros dessas
famílias optaram por “viver pelos seus”, envolvendo-se, constantemente, em atividades com
seus parentes e parceiros: nas idas e vindas nos momentos de alegria dos casamentos e
batizados, festejos e sambas e naqueles de tristeza, como doenças e mortes.
Sutilmente, nas atas paroquiais, adentrei-me pelo universo das escolhas de escravos e
forros: na busca por companheiros conjugais, pelos compadres e comadres ideais, no nome
dos filhos e afilhados. Os elevados índices vegetativos, nas fazendas dos Guedes de Brito,
sugerem a opção desses cativos pela família. As relações de compadrio indicaram interesses e
visões de mundo próprias dos cativos, que alargavam as convivências comunitárias com
livres, forros e escravos da região e até mesmo de Freguesias mais distantes.
Os documentos paroquiais são essenciais na reconstituição das identificações coloniais
imputadas aos africanos e afro-brasileiros. Mariza de Carvalho Soares (2000, p. 95-96), em
suas pesquisas aos assentos batismais do Rio de Janeiro setecentista, indicou possibilidades de
investigação sobre prováveis procedências africanas através dessas fontes. Conforme a autora:
O batismo não apenas insere os gentios no mundo cristão, mas também no
mundo coloquial. E o faz não apenas na condição de escravo, mas como
membro de grupos específicos, fazendo surgir daí, mais que uma simples
nomenclatura, um verdadeiro sistema de classificação a ser utilizado nas
7
A abordagem de Alex Andrade Costa (2009) são referências importantes para se pensar em autonomias e
mobilidades escravas. Em sua análise esses conceitos estão sempre relacionados, um influenciando o outro.
Segundo Costa (Ibid, p. 18-19), para os cativos “[...] a conquista de uma autonomia [foi] fundamental às
sociabilidades e à estruturação de suas vidas, alcançadas a partir de resistências e negociações cotidianas. [...] as
possibilidades do exercício da mobilidade escrava no campo, [entendidas] de forma diversa: desde as
„escapadas‟ do escravo, até o estabelecimento de acordos que garantissem a ele o direito de ir e vir”.
20
mais variadas circunstâncias. Assim é que os assentos paroquiais fornecem a
chave para entender um dos caminhos adotados para inserir elementos dos
diferentes gentios na sociedade colonial.
A pesquisa nas atas paroquiais da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”
buscou compreender sobre as presumíveis procedências dos africanos enviados para o
“Certam de Sima”, e quais os significados das suas prováveis origens nas vivências sociais.
Nesse caso, os registros de casamentos, muito mais do que os de batismos, possibilitaram
essas reflexões.
No decorrer da pesquisa, a problematização inicial gerava novos questionamentos, logo,
surgia a necessidade de fontes que facultassem novas respostas. Neste sentido, a busca por
documentos prosseguiu... Dessa vez, percorri o Arquivo de Jacobina, depois o Arquivo
Público da Bahia, busquei informações no Arquivo de Rio de Contas e não localizei os
possíveis documentos cartoriais da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”. Apenas
em 2010, após várias tentativas, consegui ter acesso ao arquivo do Fórum de Paratinga- Bahia,
antiga “Freguesia do Orubu”. Lá tive a grata surpresa de localizar inúmeros manuscritos
cartoriais e judiciais.
Sentimentos de alegria e tristeza experimentei naquele momento. Infelizmente, a
situação dos documentos era precária, encontrei-os sem organização arquivística e em
condições inadequadas de armazenamento. Marcas da ação corrosiva do tempo, de manchas
de água, mofo, traças, cupins revelaram o mau tratamento dedicado a esses documentos
imprescindíveis à reconstituição histórica da, ainda, tão silenciada história do “Certam de
Sima”. Mais uma vez, o primeiro passo foi a organização e limpeza da fragmentada
documentação cartorial da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”, o que levou
vários dias de muita labuta.8
Foi raro localizar documentos completos; na verdade, folhas avulsas de testamentos,
inventários, autos criminais, atas de irmandades, dentre outros documentos, estavam
misturadas como peças de um importante quebra-cabeça, que apenas em parte pude organizar.
Diante dessa situação, e do curto espaço de tempo para conclusão do mestrado, selecionei
aqueles manuscritos mais acessíveis à pesquisa, que são reduzidos, mas valiosos na
reconstituição das condições sociais e materiais das dinâmicas da vida de escravos e forros
sertanejos.
8
Nesse trabalho de limpeza e organização dos documentos também contei, em alguns dias, com a ajuda da
colega historiadora Napoliana Pereira Santana.
21
Os inventários e testamentos post-mortem foram úteis para o conhecimento das
condições de sobrevivências nas fazendas setecentistas do “Certam de Sima”. Demonstraram
que os fazendeiros desses sertões se valeram tanto do tráfico de africanos como do
crescimento vegetativo na formação e conservação das propriedades escravistas. Os
inventários e testamentos consultados pertencem a “senhores presentes”, ou seja, que
moravam em suas fazendas, então, pode-se pensar que a relação senhor - escravo se dava com
intensidade muito diferente daquela vivenciada por escravos que pareciam “viver por si”.
Informaram para o “Certam de Sima” setecentista vestígios da organização
socioeconômica, indicando que, desde o processo inicial de povoamento, o acesso à terra se
dava, sobretudo, através de arrendamentos. Indicaram um dinamismo econômico significativo
que envolvia livres pobres ou ricos, escravos, forros, viandantes, “romeiros da Lapa”,
tropeiros e vaqueiros em relações comerciais e na luta cotidiana por suas sobrevivências.
Os processos-crime constituíram-se em fontes primordiais na tentativa de aproximações
da dimensão cotidiana daquelas experiências pregressas de africanos e afro-brasileiros
escravos, forros ou livres. Diversos trabalhos historiográficos têm confirmado a relevância
desse tipo de fonte aos estudos da vida social.9 Maria de Fátima Novaes Pires (2009, p. 17),
atesta a valosidade da documentação criminal e ressalta sobre como tratá-las, visando a uma
interpretação histórica.
As vivências escravas, naquilo que revelam do seu modo de ser e ver as
coisas, são menos tangíveis e é sempre mais difícil frequentá-las. Nessa
medida, os processos criminais abrem algumas possibilidades para o
alcance dessa perspectiva. Todavia, é necessário assentá-las em sua
temporalidade a fim de contextualizar tensões e arranjos cotidianos,
valiosos indícios da vida social, indispensáveis às tentativas de
reconstituição da trajetória de tantos anônimos para a história.
Aqueles considerados anônimos na história setecentista são flagrados nos autos
criminais, que, embora fragmentados, guardam indícios das vivências cotidianas de tantos
sujeitos sociais marginalizados no “Certam de Sima”. Revelou-se a participação contundente
dessas pessoas envolvidas com assuntos pessoais: suas famílias, roças e animais, dúvidas e
desavenças e com ocupações de abrangência da sociedade local, na agricultura e pecuária,
contribuindo para o dinamismo econômico e social dessa região. Desse modo, foi possível
“desocultar” modos de sobrevivências tecidos por populações pobres do alto sertão baiano no
século XVIII.
9
Entre esses trabalhos, pode-se citar, por exemplo: Lara (1987), Wissenbach (1998; 1997), Schalhoub (1990),
Pires (2003; 2009).
22
Fontes impressas foram importantes nessa pesquisa, pois lançaram luzes nos silêncios
dos fragmentados documentos ao trazerem informações ocultas do viver nos sertões dos
Setecentos. Desse modo, Relatos de Viajantes e outros registros possibilitaram perscrutar
diferentes aspectos dessa sociedade, como, por exemplo, a permanência de paulistas e
portugueses que fixaram moradia e formaram famílias nessa região, arrendando ou
comprando terras dos Guedes de Brito, desde o início do Setecentos. Dentre os documentos
produzidos por viajantes analisados nessa pesquisa, os de Quaresma Delgado (1734) e de Spix
e Martius (1822) foram essenciais na reconstituição do alto sertão setecentista devido à
raridade e riqueza das informações documentadas.
Uma Comunidade Rural no Brasil Antigo: aspectos da vida patriarcal no sertão da
Bahia nos séculos XVIII e XIX, trabalho primoroso de Lycurgo Santos Filho (1956), tornouse essencial aos pesquisadores do alto sertão baiano,10 pela riqueza de informações referentes
à dinâmica sociocultural e econômica dos sertões de cima, perscrutadas no arquivo
pertencente aos ricos proprietários da fazenda do Brejo, localizada em Bom Jesus dos Meiras
(atual Brumado). Documentou-se, a partir dos negócios desenvolvidos pelos fazendeiros do
“Brejo do Campo Seco”, práticas econômicas, sociais e culturais entendidas na dimensão
regional.
A raridade de estudos dedicados ao alto sertão setecentista, tornou essa obra
indispensável ao presente trabalho.
O livro de Simeão Pires (1979) Raízes de Minas foi útil nessa pesquisa, transformandose em fonte enriquecedora ao trazer em suas linhas transcrições de importantes documentos
referentes ao Morgado Guedes de Brito e à Casa da Ponte, proprietários de fazendas
sertanejas estudadas nesse trabalho, desde a formação da região, em fins do século XVII,
permanecendo entre os descendentes até 1835. Parte da documentação pesquisada por esse
autor está sob a guarda do Arquivo da Casa da Ponte em Portugal.
Outras fontes foram analisadas, visando a uma melhor compreensão da vida
sociocultural e econômica do “Certam de Sima” no século XVIII. Os mapas contribuíram na
visualização desse contexto social, indicando os espaços, caminhos e rios nos quais
estabeleceram contatos culturais e econômicos vetores do povoamento dessa região. As
fotografias selecionadas, embora sejam do século XIX, guardam vestígios de lugares e
práticas sociais do Setecentos, ajudando na reconstituição de experiências pregressas vividas
naqueles espaços registrados pelo olhar fotográfico. A produção musical e literária guarda
10
Agradeço à Profª Dra. Maria de Fátima Novaes Pires, por revelar-nos essa obra tão valiosa aos estudos dos
sertões baianos.
23
expressões do cotidiano sertanejo, por isso as tomamos como referências passíveis de análise
histórica.
Esse trabalho empírico não prescindiu de importante interlocução teórica e
metodológica com a produção historiadora. A partir da renovação do debate historiográfico,
desde 1980, as abordagens da escravidão brasileira adquiriram outra dimensão, bem mais
atenta ao agenciamento dos escravos.11 Jonis Freire (2009, p.1) sobre isso conclui:
A visão de um escravismo estático, baseado numa dicotomia entre senhores
e escravos, no qual apenas aos primeiros caberia a condução do escravismo,
não mais se sustenta. Está claro que os senhores eram a parte mais forte da
contenda; entretanto, aos cativos havia a possibilidade de se mover dentro
de certos espaços. O escravo, visto como agente histórico ativo dentro do
sistema no qual se inseriu, estabeleceu uma relação ora de dependência, ora
de autonomia.
Novas facetas do processo escravista foram reveladas por pesquisas dedicadas ao
trabalho empírico e à interlocução historiográfica.12 “Novas abordagens e métodos adequados
libertam aos poucos os historiadores de preconceitos atávicos e abrem espaço para a história
microssocial do cotidiano” (DIAS, 1995, p.14). Nesse ambiente historiográfico de ampliação
do horizonte de interpretações, emergiu, também, a necessidade de os estudos históricos da
escravidão voltarem-se às reflexões da História da África. No nascedouro dessas discussões,
Sílvia Hunold Lara (2005, p. 52) chamou atenção para: “Se hoje temos novas análises sobre a
relação senhor-escravo, precisamos, por exemplo, redimensionar os estudos sobre o „lugar‟
das culturas africanas no Brasil”. Desde os trabalhos de Robert W. Slenes (1999), Mary
Karasch (1991), João José Reis (1993), citados pela referida autora, foi crescente o número de
pesquisas que investigaram sobre a cultura africana.
11
Discussões importantes sobre esses percursos historiográficos encontram-se, por exemplo, nas seguintes
referências: Maria Helena Pereira Toledo Machado. “Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a
história social da escravidão”. Revista brasileira de História, 8:16, mar./ago. 1988, p.143-160. Silvia Hunold
Lara. Blowin‟ In The Wind: Thompson e A Experiência Negra no Brasil. Projeto História, São Paulo, v.12, p.4356, 1995.
12
Dentre outros, fizeram parte desse momento da historiografia: Alida C. Metcalf. Vida familiar dos escravos em
São Paulo no século dezoito: o caso de Santana de Parnaíba. São Paulo. Estudos econômicos, 17(2), Maio/Ago.,
1987, p. 229-230. Silvia Hunold Lara. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro,
1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 353. Robert W. Slenes, Escravidão e família: padrões de
casamento e estabilidade familiar numa comunidade escrava (Campinas, século XIX). São Paulo: Estudos
Econômicos 17(2), Maio/Ago. Do mesmo autor, Na Senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da
família escrava, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. José Flávio Motta. Corpos escravos, vontades
livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999.
Manolo Florentino & José Roberto Góes. Paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro,
c.1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. Hebe Maria Mattos. Das cores do silêncio: os
significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Sheila de Castro Faria. A
colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial (sudeste, século XIX). Rio de Janeiro: Nova
fronteira, 1998. População e família (CEDHAL/USP), v.1, nº1, jan./jun. 1998, número dedicado ao tema da
família escrava.
24
Desde então, a temática da cultura africana despertou a atenção de historiadores que a
interpretaram a partir de diferentes ângulos. Para alguns estudiosos, as heranças da cultura
africana foram transplantadas no processo da diáspora para o Brasil, enquanto outros
enfatizam os processos de aculturação e a destruição dessas heranças. No entanto, a
historiografia contemporânea13 defende um processo de transformação e/ou recriação das
identidades daqueles africanos que vivenciaram a travessia atlântica, bem como dos seus
descendentes brasileiros. Vários estudos partiram dessa perspectiva e, construíram narrativas
históricas baseadas no papel ativo de africanos e afro-brasileiros na formação do mundo
atlântico.14
Está claro que estudos sobre a vida escrava não podem prescindir dessa perspectiva de
abordagem. “É necessário, como têm enfatizado vários pesquisadores, que pensemos a vida
daqueles sujeitos tendo como base suas experiências e recordações para entender suas
escolhas e estratégias no Novo Mundo” (FREIRE, 2009, p. 151). Sendo assim, a experiência
do cativeiro deve ser interpretada levando em consideração as “trocas culturais” vividas no
contexto da diáspora. Entre as duas margens do Atlântico, identidades escravas foram forjadas
a partir do contato entre africanos, europeus e povos nativos americanos.
Nas mais diversas práticas cotidianas, foi possível aos africanos manterem vivas suas
heranças culturais; mesmo com a perversidade do tráfico, contribuíram de forma significativa
no processo de formação da América portuguesa. A religiosidade tornou-se “lugar”
privilegiado para a preservação e/ou recriação da cultura africana. As irmandades, tema
explorado pela nossa historiografia,15 possibilitaram aos africanos vivenciar “[...] relativa
autonomia negra, na qual seus membros – em torno de festas, assembléias [sic], eleições,
funerais, missas e de assistência mútua – construíram identidades sociais significativas, no
interior do mundo às vezes sufocante e sempre incerto” (REIS, 1997, p. 12).
13
Dentre esses estudos, têm-se importantes referências, como, por exemplo: Slenes (1999), Mariza de Carvalho
Soares. Devotos da cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Carlos Eugênio Líbano e Flávio Gomes. “Com o pé sobre um Vulcão:
Africanos Minas. Identidades e a Repressão Antiafricana no Rio de Janeiro (1830-1840). Estudos afro-asiáticos,
2001, vol.23, nº2. John K. Thornton. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2004. Sidney Mintz e Richard Price. O nascimento da cultura afro-americana: uma
perspectiva antropológica. Rio de Janeiro: Pallas: Universidade Cândido Mendes, 2003. Na perspectiva dos
estudos pós-coloniais têm-se intensificado reflexões a partir das implicações históricas da Diáspora Atlântica.
14
Destacam-se as contribuições importantes sobre essas reflexões dos trabalhos: Jonh Thornton (2004); Slenes
(1991/1992; 1999); Soares (2000).
15
Pesquisas dedicadas às irmandades foram empreendidas por: João José Reis. Identidade e Diversidade Étnica
nas Irmandades Negras no Tempo da Escravidão. Tempo, vol. 2, nº 3, 1997:12. Mariza de C. Soares (Op. Cit.),
Lucilene Reginaldo. Os Rosários dos Angolas: irmandades negras, experiências escravas e identidades africanas
na Bahia Setecentista. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, 2005.
25
A historiadora Lucilene Reginaldo (2005), apresentou importante trabalho sobre
irmandades negras na Bahia setecentista, revelando essas irmandades como campos
privilegiados ao estudo da construção de identidades étnicas entre africanos escravizados no
Brasil. Sobre essas experiências identitárias ressaltou um aspecto pertinente no processo de
investigação histórica: “[...] não é possível pensar em identidades africanas sem pensar em
identidades crioulas e mestiças (Ibid, p. 99).
Contudo, foi o seio familiar o “lugar” propício à manutenção e recriação das práticas da
cultura africana. Os laços que uniram casais perpassaram por afinidades étnicas, os africanos
de diferentes procedências, ao se encontrarem no Brasil, “[...] em sua grande maioria
descobrem a „flor‟ na senzala a partir de experiências semelhantes no cativeiro e heranças
culturais em comum [...]” (SLENES, 1999, p. 49). Essas afinidades favoreceram a muitos
africanos possibilidades de transmitir aos seus descendentes brasileiros elementos da cultura
africana.
Mais do que um locus de trocas culturais e formação/recriação identitária, a família
significou para aquelas pessoas escravizadas a base para suas sobrevivências cotidianas, “[...]
era nela que eles compartilharam sua vida afetiva e conseguiram manter um mínimo de
autonomia” (FREIRE, 2009, p.156). As relações parentais ocasionaram vivências
comunitárias entre parentes e vizinhos que pertenciam a “comunidades escravas”. 16 Por todos
esses significados, a família escrava despertou o interesse de historiadores interessados em
“recuperar” aspectos mais íntimos da vida escrava. Como ressaltou Maria Cristina
Wissenbach (1998, p. 243-244):
A historiografia sobre a escravidão tem contemplado a família escrava
como alvo privilegiado de análise, uma vez que este permite deslindar
níveis de organização interna dos escravos, capazes de responder à
reificação pressuposta a sua condição de escravaria. [...] O estudo da família
tem embasado a idéia [sic] de um universo de escravo regulada por padrões
relativamente próprios, mediando e imprimindo dinâmica às relações
escravistas, estabelecendo parâmetros limitadores à exploração.
16
O conceito de comunidade escrava adquiriu espaço nas interpretações históricas da família escrava. Carlos
Engemann (2005, p. 171-205) estudou a formação de comunidades em grandes escravarias, defendendo que esse
tipo de análise permite acompanhar “[...] a configuração de comunidades [em] plantéis minimamente atados pela
solidariedade que brota da partilha de rituais, de símbolos e de parentesco”, entre grupos familiares. “Temos
então que a proliferação de alianças parentais conduz, de modo geral, à formação de uma identidade mais
abrangente: a comunidade”. Assinalou, também, que esse processo perpassou por tensões sociais: “a comunidade
escrava pode apresentar o paroxismo de resultantes das diversas tensões com as quais se aprende a viver”. Na
historiografia brasileira esse conceito tem sido amplamente discutido; neste trabalho, as abordagens de Slenes
(2009) e Engemann (2005) sobre comunidades escravas foram proveitosas, mas os estudos das fontes
pesquisadas revelaram especificidade do convívio comunitário entre os escravos do alto sertão baiano, como já
havia observado Pires (2009, p. 206-2007).
26
Na senzala uma flor, de Robert W. Slenes (1999), é uma importante referência aos
estudos da família escrava. O autor preocupou-se em perscrutar experiências escravas, em
Campinas, no decorrer do século XIX, demonstrando estratégias cotidianas adotadas pelos
escravos em favor de suas sobrevivências, sendo as relações familiares essenciais na
condução de suas vidas. Conforme o autor, os escravos utilizaram-se das heranças culturais
africanas na vivência no cativeiro, desse modo, a família escrava
[...] expressava um mundo mais amplo que os escravos criaram a partir de
suas „esperanças e recordações‟; ou melhor, ela era apenas uma das
instâncias culturais importantes que contribuíram [...], para a formação de
uma identidade nas senzalas, conscientemente antagônica à dos senhores e
compartilhada por uma grande parte dos cativos (Ibid, p. 49).
Configura-se, atualmente, um profícuo e crescente número de pesquisas que
encaminham diferentes perspectivas de abordagem, resultando em importantes referências ao
estudo da família escrava.17 Entretanto, mesmo com o crescimento desses estudos, apenas
recentemente, a historiografia baiana apresentou trabalhos dedicados especificamente a essa
temática.18 O trabalho da historiadora Isabel Cristina F. dos Reis (2007), A Família Negra no
tempo da escravidão (1850-1888), dedicado às experiências familiares entre negros
escravizados, livres e libertos, traz contribuições relevantes aos estudos da família escrava na
Bahia, apresentando uma narrativa histórica na qual é possível “escutar” a voz dos negros
escravizados, libertos e livres. Micro-histórias, que, “exumadas” da conjugação de diversos
documentos, ajudam a compreender a complexidade da família e seus significados no
universo escravista da Bahia Oitocentista.
17
Dentre as principais referências, vide: Florentino e Góes, op.cit., 1997. Mattos, op.cit., 1998, Slenes, op.cit.,
1999. Motta, op.cit., 1999. Cristiany Miranda Rocha. Histórias de Famílias Escravas. Campinas, São Paulo:
editora da Unicamp, 2004. Jonis Freire. Escravidão e Família escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista (tese
de doutorado). Campinas, SP, 2009.
18
Dentre os historiadores baianos, alguns apresentam em seus trabalhos discussões referentes à família escrava,
embora não seja o objeto central das suas pesquisas, desses citem-se: Stuart Schwartz. Segredos internos:
engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Capítulo 14. Stuart B.
Schwartz e Stephen Gudeman. “Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no
século XVIII”. In REIS, João José (Org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil.
São Paulo: Brasiliense, 1988. pp. 39-59; Katia de Queirós Mattoso., Família e sociedade na Bahia do século
XIX. São Paulo, Corrupio, 1988; e Bahia, século XIX: uma província no Império. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1992; Maria Inês Cortês de Oliveira. O liberto: o seu mundo e os outros. São Paulo: Corrupio, 1988,
(Baianada,7). p. 70; Veja-se ainda da mesma autora “Viver e morrer no meio dos seus: nações e comunidades
africanas no século XIX”. Revista da USP, n28 (dez. 95/fev. 96), Dossiê Povo Negro – 300 Anos, pp. 175-193;
Maria de Fátima Novaes Pires. O crime na cor: escavos e forros no alto sertão da Bahia – 1830- 1888. São
Paulo: Annablume/Fapesp, 2003. Da mesma autora, Fios da Vida: tráfico internacional e alforrias nos sertoins de
Sima – BA (1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009. Wellington Castelucci Júnior. Pescadores e roceiros:
escravos e forros em Itaparica na segunda metade do século XIX, 1860-1888. São Paulo: Annablume/Fapesp;
Salvador: Fapesb, 2008. Ressalte-se a relevância desses trabalhos para o presente estudo.
27
Enveredar por outros caminhos, nas investigações sobre a família escrava, é uma
preocupação cara aos pesquisadores que se dedicam às pesquisas regionais. Recentemente a
temática da família foi proveitosamente estudada no interior dos sertões baianos por
historiadoras. Elisangela Oliveira Ferreira (2008) investigou modos de vida na sociedade
oitocentista de Xique-Xique (Bahia), a partir das estratégias familiares e da vida material
estruturada no viver cotidiano. No trabalho intitulado Entre vazantes, caatingas e serras:
trajetórias familiares e uso social do espaço no sertão do São Francisco, no século XIX,
evidenciou a importância da família nesse contexto, observando alianças entre os grupos
sociais, inclusive aquelas vivenciadas por cativos. Outra pesquisa sobre experiências de
escravos em Xique-Xique, na segunda metade do século XIX, foi apresentada por Taiane
Dantas Martins (2010), sob o título: Da enxada ao clavinote: experiências, liberdade e
relações familiares de escravizados no sertão baiano, Xique-Xique (1850-1888).
Não poderia deixar de mencionar a relevante contribuição de alguns estudiosos que se
dedicaram a pesquisas históricas sobre os sertões baianos.19 Ressalto a inovadora pesquisa de
Márcio Santos, apresentada no livro Bandeiras Paulistas no Sertão do São Francisco:
Povoamento e Expansão Pecuária de 1688 a 1723; publicado em 2009, possibilitou-me
compreender mediações sociais que apresentaram “novos rumos” do processo de povoamento
da região “Sam franciscana”, revelando a fixação de pessoas nessa região desde o início da
colonização.
Os trabalhos da historiadora Maria de Fátima Novaes Pires são leituras indispensáveis
aos estudos da vida escrava no alto sertão baiano. Os resultados de suas investigações
históricas, realizadas com exemplar sensibilidade e competência, estão compilados em dois
importantes livros. No Crime na cor (2003), revelou experiências da vida cotidiana e tensões
sociais que envolveram escravos e forros, perscrutando em fontes diversas, especialmente do
alto sertão baiano oitocentista. Em Fios da Vida (2009), pode-se acompanhar outras
experiências dos escravos, forros e livres pobres envoltos pelos caminhos e descaminhos do
tráfico interprovincial, lutando cotidianamente pela sobrevivência nos “Sertoins de Sima” do
século XIX. Há que se dizer que esses estudos me indicaram possibilidades de pesquisas
sobre escravidão em outros espaços e tempos sociais do alto sertão da Bahia.
19
Erivaldo Fagundes Neves. Uma comunidade Sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo regional e local).
2 ed. rev.e ampl. Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana UEFS, 2008.
Do mesmo autor: Estrutura Fundiária e Dinâmica Mercantil: Alto Sertão da Bahia, Séculos XVIII e XIX. 1. Ed.
Salvador/Feira de Santana: Edufba/UEFS, 2005. Mônica Duarte Dantas. Fronteiras Movediças: relações sociais
na Bahia do século XIX (a comarca de Itapicuru e a formação do arraial de Canudos). São Paulo: Aderaldo &
Rotthschild; Fapesp, 2007.
28
Além da redução na escala de análise e o uso intensivo das fontes, outras questões
metodológicas adotadas por historiadores foram relevantes ao presente estudo. A adoção do
nome como pistas para acompanhar trajetórias foi método bem sucedido em pesquisas
históricas.20 Um exemplo desse tipo de pesquisa pode ser visto, dentre outros, no segundo
capítulo do livro A África no Brasil: Cafundó, no qual Robert W. Slenes, Carlos Vogt e
Peter Fry seguiram as pistas (os nomes) em diversos tipos de documentos, visando à
reconstituição das histórias da comunidade negra do Cafundó. Assim, a partir do cruzamento
nominal reconstruíram genealogias e trajetórias familiares consolidadas ao longo dos anos no
interior do Cafundó.
Esse trabalho muito me inspirou e, desse modo, seguindo o fio condutor - “nome” - foi
possível “recompor” dinâmicas das relações sociais experimentadas por africanos e
afrodescendentes que tiveram “seus nomes” registrados nos assentos paroquiais da Freguesia
de Santo Antônio do “Orubu de Sima”. Tornaram-se acessíveis trajetórias familiares desses
sujeitos sociais, em alguns casos, acompanhando os vestígios dos nomes em processos-crime,
inventários e testamento; revelaram-se, além das experiências familiares, outras vivências
cotidianas.
Alicerçada por essas interlocuções e, sobretudo, amparada pelas fontes históricas,
após, pacientemente, “[...] reunir dados muito dispersos e de esmiuçar o implícito” (DIAS,
1995, p. 14), foi possível conhecer indícios do modus vivendi de africanos e seus parentes
brasileiros que, vivendo a escravidão setecentista no “Certam de Sima”, imprimiram nessa
sociedade sertaneja suas escolhas e visões próprias, conduzindo famílias e negócios.
Revelaram, portanto, novas facetas da escravidão colonial baiana, outras dinâmicas sociais
vividas em diferentes ritmos de trabalho que oportunizaram àqueles escravos “viver por si” e
viver pelos seus.
Tem-se a intenção de documentar, nos capítulos que se seguem especificidades dessas
experiências sociais. O primeiro capítulo trata do “chão social”, no qual se estabeleceram
experiências de africanos, afro-brasileiros, indígenas e luso-brasileiros no processo de
povoamento do “Certam de Sima”. Identificam-se unidades de povoamento e as vivências
cotidianas desses sujeitos sociais na formação da referida região. Esses sujeitos estiveram
envolvidos nas atividades locais, participando da vida sociocultural e econômica. Investiga-se
a composição de algumas escravarias da região por processos de reprodução natural e/ou via
20
Ressaltem-se as reflexões do artigo O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico de Ginzburg e
Poni (1991), sobre o método onomástico, ou seja, a utilização do nome como fio condutor na análise das fontes.
O trabalho de Robert W. Slenes, Senhores e subalternos no Oeste Paulista (1997), também é uma referência
importante da utilização do nome como metodologia de pesquisa na reconstituição de trajetórias familiares.
29
tráfico, estudando os significados da presença africana nesse contexto social, levando em
consideração o absenteísmo ou a presença senhorial nas relações escravistas.
Em seguida, o segundo capítulo dedica-se às experiências de africanos e seus
descendentes em torno da família, como vivenciaram a controversa relação entre o “viver por
si” e viver pelos seus. Criaram arranjos familiares, fortemente enraizados pelas convivências
entre parentes de diversas gerações. Identificam-se mobilidades e autonomias vivenciadas por
escravos, bem como o alargamento das suas relações afetivas e sociais através das práticas de
compadrio.
O terceiro capítulo preocupou-se em apresentar a participação de escravos, forros e
livres pobres na microeconomia regional, revelando arranjos cotidianos na luta pela
sobrevivência, observando os significados dessas experiências para a vida familiar. Foi
possível identificar tensões sociais entre aqueles que lutavam em defesa das suas roças e
animais, prováveis meios de subsistência de suas famílias.
Findando essas linhas introdutórias, quero, novamente, realçar que as histórias
contadas nas folhas seguintes foram, arduamente, buscadas nos manuscritos setecentistas, tão
fragilizados pelo tempo e pelas condições indevidas de armazenamento. Que as experiências
daqueles primeiros “barranqueiros do Velho Chico”21 e dos seus descendentes, como o “Seu
Viturino”, de algum modo alertem as pessoas e instituições para a necessidade, urgente, de
uma política de preservação dos acervos regionais que atendam às regiões sertanejas
esquecidas. Somente assim, será possível aos historiadores “retirarem” do anonimato
trajetórias dos nossos ancestrais, as nossas próprias histórias...
21
Poetas e músicos do vale do São Francisco preservam em seus versos “falares” cotidianos de moradores das
cidades e lugarejos às margens desse rio. Costumeiramente, as populações ribeirinhas identificavam-se como
“barranqueiros”, ou seja, moradores nas barrancas do São Francisco. O cd “Nobre Barranqueiro” oferece uma
reflexão poética e histórica sobre experiências e identidades dessas populações.
30
2 VIVÊNCIAS ESCRAVAS NAS FAZENDAS SETECENTISTAS DO
“CERTAM DE SIMA”.
2.1 O “CERTAM DE SIMA”: FAZENDAS, IGREJAS E O RIO SÃO FRANCISCO
(UNIDADES DE POVOAMENTO).
Nesta situação melindrosa alcançamos a fazenda da lagoa de N.
S. D‟ajuda, onde esperavamos socorro, por ser Ella uma das
maiores fazendas de todo o sertão; porém justamente a grande
população de mais de 160 escravos se oppoz aos nossos
desejos. Affirmaram que elles mesmos tinham falta de milho e
só conseguimos, com grande custo, compral-o aos negros, que
tinham ocupado os seus dias livres na própria cultura (SPIX &
MARTIUS, 1919, p. 14).
Os naturalistas bávaros Spix e Martius, ao percorreram os sertões da Bahia, entre os
anos de 1817-1820, depararam com escravos que, em suas palavras, “viviam por si”, ou seja,
estavam mais distantes das vistas dos seus senhores diretos. Mas, bem mais que isso,
revelaram-se escravos realizando negócios, comercializando gêneros de cultivo próprio, numa
situação que confirma a participação de escravos na microeconomia regional do alto sertão da
Bahia.
Experiências sertanejas como aquelas documentadas por esses viajantes no princípio do
século XIX, na verdade, muito antes fizeram parte das vivências no “Certam de Sima”. Os
documentos eclesiásticos e cartoriais da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”
registraram escravos de fazendas dessa região, desde os primórdios da colonização dos
sertões, em situações que apontam para diversificadas experiências sociais, bem como para
mobilidades vividas por entre fazendas e pequenas cidades próximas ao rio São Francisco ou
em “paragens mais distantes”. Essa situação de “viver por si” proporcionou aos africanos e
afro-brasileiros participação efetiva na construção dessa sociedade, não apenas através dos
seus negócios, mas com a formação de famílias e comunidades consolidadas.
O processo de interiorização nacional foi um procedimento adotado pela Coroa desde o
princípio da colonização brasileira. O rio São Francisco despertou a atenção do Governo
Geral que, desde meados do século XVI, organizou expedições para percorrê-lo. Em 1553,
excursionou por esse trajeto uma expedição comandada por Francisco Bruzza de Espinosa,
sendo “[...] as primeiras entradas no vale do São Francisco, motivadas pela busca de metais
preciosos, bem como para a captura de grupos indígenas, a fim de convertê-los ao trabalho
escravo no litoral” (PINHO, 2001, p. 21).
31
À frente dessas Entradas pioneiras, estiveram homens vindos de lugares distintos do
Brasil colonial: uns vinham da sede da Capitania da Bahia, outros de Pernambuco e, também,
aqueles que partiam do Sul (São Vicente, Santos e São Paulo). Essas Bandeiras dirigiam-se às
terras dos sertões nordestinos, abrindo novos caminhos no interior da América Portuguesa e
invadindo os territórios habitados por nativos de diferentes grupos étnicos.22 O enfrentamento
entre “desbravadores” e nativos foi um dos elementos desse contexto de adentramento para o
interior dos sertões. Por exemplo:
Na segunda metade do século XVII, os conquistadores moveram guerra
contra os tapuias no sertão da Bahia, que resistiram ao seu avanço no
Recôncavo [...]. A conquista de territórios iniciava-se com ações de colonos
como Antonio Guedes de Brito. Em geral empregava-se homens armados
(NEVES, 2005, p. 124-132).
Expedições oficiais, desde os primeiros anos da colonização, foram organizadas visando
a combater as populações nativas do interior da colônia. Conforme Mônica Duarte Dantas
(2000, p. 9), “[...] os índios representavam, por um lado, uma população indesejável que
deveria ser expulsa das terras para melhor aproveitamento das potencialidades da colônia e,
por outro, um reservatório de mão-de-obra a excitar a cobiça portuguesa”. O importante
trabalho do historiador Márcio Santos (2009, p. 64-65) contempla esta temática, ao tratar das
Bandeiras Paulistas, que, pelo menos desde 1669, já se faziam presentes nos trechos alto e
médio do São Francisco, visando à preação de índios. Foram Matias Cardoso, Antônio
Gonçalves Figueira e Januário Cardoso, paulistas, que assumiram papel central neste processo
colonizador.
A circulação desses bandeirantes paulistas no interior da colônia, pelo menos a partir
das últimas décadas do Seicentos, adquiriu outros significados além daquele de “caráter
itinerante” por busca de metais preciosos e índios. Esses homens paulistas fixaram-se nessa
região com o estabelecimento de currais de gado e depois de arraiais. Segundo Márcio Santos
(Ibid, p. 75), Matias Cardoso já era conhecedor dessa região antes da sua fixação:
[...] o bandeirante paulista não só circulava pela região nos anos anteriores à
sua fixação, como se deixara ficar, ainda que com longos e freqüentes
deslocamentos, no arraial instalado no vale do Verde Grande. Esses anos de
permanência na região, ainda que pareçam estar incluídos numa fase em
que Matias Cardoso ainda agia como apresador de índios e combatente a
soldo, podem ter preparado seu futuro estabelecimento como criador de
gado.
22
Conforme Neves (2008, p. 95-96), “os tapuias „eram os mais antigos‟ e primitivos indígenas do Brasil.
Expulsos do litoral pelos tupis, ocuparam os sertões, divididos em inúmeros „bandos, costumes e linguagens‟,
entre os quais os maracás, que habitaram os vales dos rios Paraguaçu e de Contas, e os „acaroaces‟ ou coroados,
que viveram no Médio São Francisco, imediações de Bom Jesus da Lapa”.
32
O estabelecimento desses bandeirantes paulistas, com suas unidades de criação de
gado, teve que conviver com o enfrentamento dos nativos, que constituíam uma ameaça
constante. Erivaldo Fagundes Neves (2005, p. 125) trata das “guerras” travadas entre
colonizadores e indígenas no interior da colônia, ressaltando as ações de resistência dos
nativos, “[...] que costumavam „descer fazendo roubos, mortes e violências‟, [...] os tapuias
continuaram a fustigar”.
23
Por sua vez, os paulistas buscaram meios para reverter as atitudes
de resistência dos nativos que persistiam durante as décadas iniciais do século XVIII. A
adoção de missões religiosas foi uma das vias de subjugar os indígenas moradores do Vale
são-franciscano.24
A partir de um importante documento – Ordem emitida por Januário Cardoso em
1728, transcrita e reproduzida por Brasiliano Braz na obra “São Francisco nos Caminhos da
História” (1977) (apud Santos, 2009, p. 83-84), reconstituíram-se alguns vestígios da relação
entre os colonizadores e populações nativas, revelando como as bandeiras paulistas utilizaram
as missões no fortalecimento do controle sobre índios dos sertões do São Francisco. Através
do estudo do referido documento Santos (Ibid, p. 84) concluiu:
Em primeiro lugar, fica claro que boa parte da população indígena nativa foi
mantida em aldeamentos e posta a trabalhar numa missão religiosa instalada
no vale do rio Itacarambi, onde era doutrinada e obrigada a assumir
casamentos cristãos. Mostra também o documento que a administração da
mão-de-obra indígena estaria reservada à missão, proibindo-se os índios de
negociarem seu trabalho diretamente com os fazendeiros locais. Nos
“gerais”, presumivelmente ainda não colonizados na época, poderiam os
índios manter suas práticas tradicionais de subsistência.
As fontes paroquiais consultadas nesta pesquisa apresentam vestígios da utilização da
mão de obra indígena nos trabalhos das fazendas do “Certam de Sima”. Depreende-se das
fontes a participação, considerável neste contexto, de “índios forros”, a exemplo da família
formada por Belchior Coelho e Angella Coelho, índios forros, com seu filho Manoel Coelho;
Francisco, índio forro, natural da Serra da Guapaba, donde veio ainda menor; Anna, índia,
forra, natural de Morrinhos.25
23
Santos (2009, p. 81) também comentou sobre isso: “A resistência indígena tomara a forma de assaltos às
fazendas de gado, ações que foram facilitadas pelo esvaziamento da tradicional atividade paulista de caça aos
índios, em razão do achamento das reservas auríferas das Minas Gerais”.
24
Mônica Dantas (2000) assinalou a atividade missionária como via de controlar os indígenas da região do rio
Itapicuru, no “sertão de dentro” desde 1561. Para Santos (Op. Cit, p. 85), “[...] o trecho médio do rio [São
Francisco] foi um dos eixos de expansão do movimento missioneiro, que deslocou capuchinhos, carmelitas
descalços, oratorianos, franciscanos e jesuítas para a formação de aldeamentos Jê em torno de missões
religiosas”.
25
Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
33
A presença desses “índios forros” no século XVIII indica que os indígenas, também no
alto sertão baiano, foram escravizados, sobretudo no período anterior ao Setecentos. A partir
dos últimos anos do século XVII, fatores contextuais conduziram à intervenção da Coroa nas
questões indígenas, inclusive acarretando mudanças nas relações entre colonos e índios. Sobre
isso, Jhon Manuel Monteiro (1994), em estudo da escravidão indígena nas origens de São
Paulo, concluiu que essa medida contribuiu com alforrias de nativos na condição escrava.
Conforme o referido autor (Ibid, p. 215):
De fato, no alvorecer do século XVIII, a despeito da regularização da relação
senhor-administrado através de uma carta régia de 1696, os índios
começavam a conscientizar-se das vantagens do acesso à justiça colonial,
sobretudo com respeito à questão da liberdade. Isso foi possível, em larga
medida, devido às reformas administrativas que foram implantadas a partir
da década de 1690 que, embora tenham alcançado êxito apenas parcial,
visavam subordinar a região à autoridade da Coroa, processo entrelaçado
com a descoberta de ouro nas Gerais.
Monteiro (Ibid, p. 212) identificou outros meios e motivos de conquista de alforrias e
sobrevivências dos nativos que, na condição forra, se acrescentavam à população de condição
incerta entre ser escravo ou ser liberto. A conquista da alforria nem sempre foi significado de
liberdade e melhorias de vida; além das limitações das alforrias condicionadas, os senhores
criavam estratégias de manter os índios em seu poder, por exemplo, alforriavam apenas
alguns membros da mesma família de índios cativos e, desse modo, despertavam os parentes
forros a permanecerem com seus parentes ainda cativos. “[...] ao longo do período escravista,
era comum encontrar libertos na composição da força de trabalho nas fazendas, ora para se
manterem junto às famílias, ora simplesmente coagidos” (Ibid, p. 214).
Provavelmente, motivações semelhantes conduziram “índios forros” a permanecerem
nas fazendas do “Certam de Sima”, convivendo com africanos e afro-brasileiros escravos.
Outros índios sertanejos viveram experiências, também escravistas, em aldeamentos
religiosos.26
Vestígios de aldeamentos Jesuíticos, na região do Urubu, foram identificados por
Serafim Leite, na obra História da Companhia de Jesus no Brasil (1945).27 No entanto, a
pequena quantidade de registro de indígenas nas fontes pesquisadas pode ser indício da
26
Importante documento sobre aldeamentos na região dos sertões do São Francisco consta no livro de Pe.
Martinho de Nantes. Relação de uma missão no Rio São Francisco. 2ª Ed. São Paulo: Campanha Editora
Nacional. Brasiliana, volume 368, 1979. Esse livro é um relato do Pe. Martinho de Nantes, missionário
capuchinho que foi enviado ao Brasil em 1671, sobre a sua experiência missionária no aldeamento de índios
cariris, em terras no sertão do são Francisco de posse do abastado senhor Francisco Dias d‟ Àvila, nas últimas
décadas do século XVII.
27
Márcio Santos (2009, p. 88) tratou da presença jesuítica na região do alto médio São Francisco, ressaltando as
relações sociais entre nativos e europeus por ocasião das missões e aldeamentos religiosos.
34
dizimação causada pelas “guerras de conquista”, empreendidas por homens como Antônio
Guedes de Brito, que “[...] descobrira o „rio de Sam Francisco, extinguindo destas partes o
gentio bárbaro‟” (NEVES, 2005, p. 121). No entanto, os nativos que sobreviveram às
invasões luso-brasileiras nesses sertões, foram escravizados. Isto se explica pelos “índios e
índias forras” que listamos na documentação da primeira metade do Setecentos.
As práticas de ocupação dos sertões do São Francisco, com os currais de gado, “uma
vez debelada a ameaça indígena, puderam tomar impulso [...]” (DANTAS, 2000, p. 10).
Assim, desde as últimas décadas do século XVII, bandeirantes e sertanistas estabeleceram-se
nessa região, desenvolvendo a atividade pecuária. Essa prática de ocupação com rebanhos
bovinos, segundo José Ricardo Moreno Pinho (2001, p. 24),
[...] iniciou no Recôncavo baiano, via Sergipe e à margem direita do rio,
antes da guerra contra os holandeses. Este processo foi acompanhado por
outro idêntico de gado, porém mais lento, ao longo da margem esquerda, na
direção de Pernambuco para o Rio São Francisco.
Tanto Garcia d‟Ávila quanto Antônio Guedes de Brito se utilizaram dos currais de gado
para ocupação das suas grandes possessões de terras adquiridas pelo sistema de sesmarias, 28
que objetivava povoar os terrenos incultos do interior do Brasil. Garcia d‟Ávila adquiriu
concessões territoriais, sendo a primeira uma sesmaria de seis léguas ao longo da Costa da
Capitania da Bahia, que lhe foi transferida pelo companheiro de viagem Tomé de Souza em
1563 (Loc. cit.). No ano de 1609, ampliou as terras da Casa da Torre até o rio Real, e seus
descendentes, ao longo do século XVII, alargaram o patrimônio, adquirindo novas doações,
desse modo tiveram posse de “[...] quase a metade das terras do São Francisco, propriedades
de aproximadamente uma centena de milhares de quilômetros quadrados, provavelmente, o
maior latifúndio já possuído no Brasil” (Op. Cit, p. 28).29
Seguindo perspectiva semelhante à dos Garcia d‟Ávila, Antônio Guedes de Brito e seus
herdeiros tornaram-se proprietários do segundo maior latifúndio do Brasil-Colônia, através de
28
Segundo Vainfas (2001, p. 530), “o sistema sesmarial de distribuição de terras foi aplicado no Brasil por D.
João III, quando da criação das capitanias hereditárias, através de forais [...] que incumbiam o donatário e seus
sucessores de repartirem as terras com os moradores pelo regime de sesmarias, isentas de foro, mas pagando pelo
dízimo sobre a sua produção à Ordem de Cristo. Posteriormente, com a criação do governo geral e a edição do
regimento de Tomé de Souza, em1548, a distribuição passou a ficar a cargo dos governadores. Uma vez passada
a carta de sesmaria, o colono teria plenos poderes sobre a terra, desde que a explorasse ou arrendasse.
Diferentemente de Portugal, onde sesmeiro designava o fiscal de terras, no Brasil o termo vinculou-se ao
recebedor da sesmaria. [...] Nos dois primeiros séculos de colonização, a legislação referente à extensão das
terras a serem doadas previa a avaliação das „possibilidades‟ de aproveitamento da terra e condições materiais do
solicitante. Fixava-se, também, certo tempo para iniciar a produção (o máximo de cinco anos)”.
29
Sobre os Garcia d Ávila ver dentre outros: Dantas (2000), Bandeira (2007), Pires (1979).
35
terras apropriadas nas guerras contra os nativos, da concessão de sesmarias,30 das heranças e
também por meio de compra, posses territoriais que abrangiam “desde as nascentes dos rios
Salitre, Jacuípe e Itapicuru no centro-norte da Bahia, até à cabeceira do rio das Velhas ou do
Paraopeba, no centro-sul do atual território de Minas Gerais” (NEVES, 2005, p. 117).
Antônio de Brito Correia e Maria Guedes, pais de Antônio Guedes de Brito, instituíram
o Morgado Guedes de Brito, transferido em herança para o seu filho. As posses territoriais dos
Guedes de Brito foram transferidas para os seus descendentes e o legado
[...] manteve-se na mesma cadeia sucessória, transferiu-se para sua filha
Isabel Maria Guedes de Brito e desta para a neta Joana que, depois de
enviuvar-se de João de Mascarenhas, contraiu novas núpcias com Manoel
de Saldanha da Gama. Dona Joana não teve filhos em nenhum dos enlaces e
legou tudo [...] ao segundo marido e, o nomeou sucessor também no
morgado [...] (Ibid, p. 116).
Como ressaltou Geraldo Rocha (1946, p. 15), “[...] obtidas as grandes sesmarias, Garcia
d‟Ávila, Guedes de Brito e seus sucessores espalharam, em fins do século XVI e por todo o
século XVII, os seus currais de gado pelas margens do São Francisco”. Para essa empreitada,
o sesmeiro Antonio Guedes de Brito contou com “[...] Brancos, Mulatos & Pretos; & também
Indios que com este trabalho procuraõ ter algum lucro” (ANTONIL, 1711, p. 188-189).
Estiveram envolvidos desde a condução das imensas boiadas, perpassando “[...] o trabalho
primeiro de acostumar o gado ao novo pasto, o que exigia algum tempo e bastante gente;
depois ficava tudo entregue ao vaqueiro” (ABREU, 2000, p. 153), que, em muitos casos,
figurava entre africanos cativos e seus descendentes, primeiros moradores das fazendas
setecentistas do alto sertão baiano.
Além dos currais de gados implementados através do processo de ocupação das
sesmarias concedidas aos D‟Ávila e aos Guedes de Brito, os sertões são-franciscanos
contaram, em seu povoamento, com o estabelecimento de bandeirantes paulistas que também
adotaram a criação bovina como meio de fixação nessa região. Conforme mencionamos
inicialmente, o pesquisador Márcio Santos revelou em suas pesquisas que a ocupação do vale
do médio superior São Francisco, região vizinha da área que contempla este estudo, foi
povoada pioneiramente por antigos bandeirantes paulistas. Santos (2009, p. 119) ressaltou o
pioneirismo paulista frente aos baianos donos das sesmarias, pois esses
30
Neves (2005, p. 118), especificou as sesmarias recebidas por Antônio Guedes de Brito, o neto: “oito léguas
entre as serras de „Tayashu e Caguaohé‟, com o pai Antônio Guedes de Brito Correia, em 26 de outubro de 1652,
seis léguas entre as nascentes dos rios Jacuípe e Itapicuru e do „Cagageu, entrando a varge do Toyuyuba‟
(Itiuba), também com o pai, em 2 de março de 1655, e uma sem indicação das dimensões, entre nascentes do
Itapicuru e do Paraguaçu à margem do São Francisco, sob condição de reservar uma légua para cada aldeia
indígena da área, com Bernardo Vieira Ravasco, de quem comprara a metade, em 22 de agosto de 1663.”
36
[...] „proprietários eram absenteístas, deixando as fazendas à administração
dos vaqueiros ou aforando parte de seus domínios‟. [...] esses grandes
sesmeiros [Garcia d‟Ávila e Guedes de Brito] simplesmente
desconhecessem a maior parte das terras que legalmente lhes pertenciam.
[...] A „sesmaria‟ de Guedes de Brito correspondia a uma larga faixa que
acompanhava todo trecho médio do São Francisco, percorrendo, ao longo
do rio, quase mil quilômetros. Nessa área estavam incluídos os vales do
médio superior São Francisco e do Verde Grande, [...] ocupados
inicialmente por Mathias Cardoso e Antonio Figueira nos últimos anos do
século XVII.
Estas conclusões de Márcio Santos facultam um novo horizonte de possibilidades
interpretativas, logo, nos ajudam a compreender o povoamento luso-brasileiro no “Certam de
Sima”. Depreende-se das fontes pesquisadas a presença de pessoas de diferentes procedências
(Bispado de Braga, Bispado de Lisboa, Bispado do “Maranham”, Bispado do Rio de Janeiro,
Vila de Cachoeira, Vila de Maragogipe, Guaratinguetá – Comarca de São Paulo, Santo Amaro
da Purificação)31 como moradoras dessa região, desde o início do Setecentos. Muitos desses
homens tinham suas próprias roças e gados e constituíram famílias, alguns com mulheres
africanas ou crioulas. Como afirmou a historiadora Elisângela Oliveira Ferreira (2008, p. 26),
[...] constituir família foi passo primordial para o estabelecimento da
população no médio São Francisco. A formação de laços de família era
fundamental para a estabilidade no mundo rural, pois retirava o sentido de
transitoriedade da ocupação, fixando pessoas e capitais nas novas terras.
O português Antônio Bernardes Lima, ao que tudo indica, foi morador antigo desses
sertões, pelo menos desde o início do século XVIII. As fontes registraram a sua presença,
junto da sua mulher, Margarida Freire, e dos filhos Mathias Bernardes Lima e Antônio
Bernardes Lima, com os escravos que trabalhavam na sua fazenda do Riacho.32 Outro
português abastado que se estabeleceu nesse contexto foi Bernardo Pereira Pinto, junto com a
sua esposa, Maria de Souza, e os filhos. Possuíam terras nas fazendas Parateca e “Rio das
Rãns”,33 e lá desenvolviam criação de animais com mão de obra escrava, no limiar do
Setecentos.34
Um outro exemplo do estabelecimento de famílias com seus “currais de gado”, no
interior da sesmaria dos Guedes de Brito, é o do Capitão-Mor José da Silva Ferreira, que, ao
31
Estas informações foram localizadas nos registros de casamentos da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de
Sima” da primeira metade do século XVIII.
32
Até esse momento da pesquisa não foi possível identificar com precisão a localização dessa fazenda.
33
Fazendas citadas por Quaresma Delgado (1730), localizadas na margem direita do rio São Francisco.
34
Para essas informações consultamos: Inventário e testamento de Bernardo Pereira Pinto (incompleto). Fórum
Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães, Paratinga-BA. Documentação não catalogada. Testamento de Mathias
Bernardes Lima. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães, Paratinga-BA. Documentação não catalogada.
Livros de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antonio do Orobu de Sima. Cúria Diocesana de Bom
Jesus da Lapa (documentação não catalogada).
37
lado de José Marques da Silva e Manoel Pereira Coutinho, foram responsáveis pela
Companhia da Barra do Paramirim até a Lapa (SANTOS, 2009). Bernardo Pereira Pinto,
Antônio Bernardes Lima e Mathias Bernardes Lima também possuíam os títulos de CapitãoMor e Sargento-Mor, sugerindo participação efetiva no processo de colonização da região
estudada.
A identificação da presença desses homens com suas famílias, desde a primeira metade
do século XVIII, em terras que compunham a sesmaria dos Guedes de Brito, demonstra a
importância dos arrendamentos de terras na ocupação fundiária do alto sertão baiano. A
documentação estudada vislumbrou indícios de arrendamentos nas terras dos Guedes de Brito,
situadas na Freguesia de Santo Antônio do Orubu de Sima: “nos seus domínios, os Guedes de
Brito arrendavam grandes faixas de terra para assentamento de fazendas pecuaristas, desde
finais do século XVII” (NEVES, 2005, p. 183).
A posse de terras, na fazenda da Parateca e “Rio das Rãns”, por Bernardo Pereira Pinto,
pelo menos desde 1743,35 ocorreu através de arrendamentos, pois naquele mesmo período o
sertanista Quaresma Delgado36 registrou estas mesmas fazendas como pertencente a Paschoal
Pereira. Vejamos:
Da Boa Vista e fazenda Parateca de Paschoal Pereira de gado de estrada 3 e
distancia 2 ½; o caminho o mesmo do anterior. Da Parateca à passagem do
rio das Rans de entrada 4 e distancia 2 2/4 e mais atraz uma legoa fica a
fazenda do Rio das Rans, que é do dito acima, de gado vaccum e fica fora
da estrada, bom caminho de várzeas e catingas.37
O sobrenome Pereira, comum entre Bernardo e Paschoal, sugere uma sucessão parental
através de heranças e da posse das terras. Entretanto não dispomos de informações suficientes
para confirmar essa hipótese, assim como sobre a compra efetivada em 1808 das fazendas da
Parateca e “Rio das Rãns”, vendidas pelo Conde e Condessa da Ponte, através do procurador
Joaquim Pereira de Castro, para Antônio Pereira Pinto, provável descendente de Bernardo
Pereira Pinto.38
No inventário de “Eleuterio Matheus”, de 1760, foram relacionadas “vinte cabeças de
gado vacum alto e macho na fazenda do Campo Grande” e mais “oito cabeças de gado vacum
35
Data referente ao registro mais antigo em que consta a participação de Bernardo Pereira Pinto na região em
estudo.
36
“O sertanista baiano Joaquim Quaresma Delgado, autorizado por portaria de 11 de janeiro de 1731, sondou
minérios em Jacobina, Rio de Contas, Minas Novas e Médio São Francisco. Excursionou pelos sertões até 1734,
quando adoeceu e interrompeu a expedição” (FRANCO, 1989 apud NEVES; MIGUEL, 2007, p. 59).
37
Para esse trabalho não consultamos os documentos originais dos roteiros de Quaresma Delgado, mas sim a
publicação de seis desses roteiros no recente trabalho: Erivaldo Fagundes Neves & Antonieta Miguel. (orgs.).
Caminhos do Sertão:ocupação territorial, sistema viário e intercâmbios coloniais dos sertões da Bahia. Editora
Arcádia, 2007.
38
Sobre esse processo de venda das fazendas Parateca e “Rio das Rãs”, vide: Neves; Miguel, Ibid, p. 117.
38
alto macho na fazenda da Itibiraba de Manoel de Saldanha”.39 Apesar do inventário acima
mencionado estar incompleto, deduzimos que “Eleuterio Matheus” não foi um rico
fazendeiro, entretanto pôde criar seu pequeno rebanho de bovinos.
A fonte não esclarece de que forma “Eleuterio Matheus” conseguiu manter seu gado em
duas grandes fazendas dos Guedes de Brito às margens do São Francisco. Possivelmente na
condição de agregado, “[...] submetendo-se às condições de um proprietário, a quem se
pagaria pelo uso de pequena faixa de terra através do trabalho na fazenda e de favores para
outras necessidades cotidianas” (PIRES, 2009, p. 148). Poderia, também, ser um vaqueiro que
recebia porcentagem das crias do gado do patrão.
A Irmandade de São Gonçalo do Amarante registrou, no seu livro de ata, aberto no ano
de 1798, a utilização de terras dos Guedes de Brito para a criação do seu gado. Em 1805, os
irmãos, reunidos na “casa de morada do tizoureiro Felipe M. da Silva”, decidiram por “[...]
mudar todo o gado de ferro e signal pertencente a Irmandade de noço gloriozo S. Gonçalo do
Amarante q‟se axao situados na Fazenda do Curralinho e na do Campo Grande para a fazenda
da Barra do S. Bom Jesus da Lapa [...]”.40
Arrendatários, agregados, posseiros e meeiros41 fizeram parte da estrutura fundiária do
alto sertão baiano. Conforme Mônica Dantas (2000, p. 15): “sem dúvidas, a prática de
arrendamento dos sítios viabilizava parte da ocupação das terras, como continuaria ocorrendo
durante toda colônia e Império”. Diante da grande extensão territorial de posse dos Guedes de
Brito e da necessidade de torná-las produtivas, esses proprietários permitiram que outros
cultivassem e/ou criassem em suas terras. Sobre isso a mesma autora (Loc. cit.), ressaltou:
Não só os D‟Ávila e os Guedes de Brito haviam deixado de fomentar a
utilização de grandes áreas de seus domínios, como vários outros sesmeiros,
brindados com largas porções de terras nos dois primeiros séculos de
colonização, sequer haviam chegado a tocar o solo de suas propriedades.
Essa prática levou Isabel Maria Guedes de Brito e Joana da Silva Guedes de Brito,
respectivamente filha e neta de Antônio Guedes de Brito, à Justiça, para requerer direitos pela
posse das terras. Neves (2005) apresentou análise sobre dois conflitos desse tipo, enfrentados
39
Inventário de Eleutério Matheus (incompleto). Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães, Paratinga-BA.
Documentação não catalogada.
40
Livro de assentos da mesa da Irmandade de São Gonçalo do Amarante, 1798. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues
de Magalhães, Paratinga-BA. Documentação não catalogada.
41
Conforme Maria de Fátima Novaes Pires (2009, p. 148-149), posseiros eram “[...] alguns homens e mulheres
[que] se aventuravam com suas numerosas famílias a ocupar terrenos mais pobres, numa situação precária e, por
isso mesmo, muitas vezes transitória”. Meeiros eram aqueles lavradores que faziam um acordo de meação com o
proprietário, “[...] ordinariamente fazia-se um acordo que consistia na cessão da „meia‟ (metade ou um quarto da
produção) pelo proprietário de terras, tornando o meeiro responsável pelas etapas do cultivo e da colheita,
serviços realizados, geralmente, com o auxílio da família”.
39
no início do Setecentos por essas sucessoras de Antônio Guedes de Brito, relacionados à
posse de territórios em torno da mineração em Rio das Velhas e Jacobina.42
Além dos arrendamentos, os Guedes de Brito, desde o início do século XVIII, já
vendiam partes de suas terras. Simeão Ribeiro Pires (1979, p. 205), a partir de pesquisas nos
Arquivos da Casa da Ponte, em Lisboa, observou que:
D. Joana, sem mesmo conhecer o seu futuro marido [Manoel de Saldanha],
já o nomeara administrador de MORGADO DE BRITO, por escritura
pública, que se lavrou na Corte e cidade de Lisboa em 19 de abril de 1733,
“quando veio para esta cidade da Bahia o dito meu marido haver-se
comigo”.
Foram localizados registros de Manoel de Saldanha, quando ainda morava na “cidade
da Bahia”, vendendo terras para o Alferes Francisco Pereira de Barros, em 1744.
[...] o Alferes Francisco Pereyra [...] comprou ao Illustrissimo Manoel de
Saldanha terras chamadas de Boa Vista Montes altos também comprou as
terras em que esta o Sitio das Mamonas cujas terras partem com as terras da
Serra da Boa Vista onde nasce o riacho das mamonas como se provara da
escritura folhas sessenta e quatro.43
Mesmo com esses arrendamentos e algumas vendas de posses territoriais, os Guedes
de Brito conservaram-se, ao longo do século XVIII, como proprietários de grande latifúndio.
Quaresma Delgado registrou, em suas anotações, a existência de dez fazendas de Joana da
Silva Guedes de Brito, ou seja, aquelas formadas pelos primeiros currais de gado, ainda na
administração do Mestre de Campo Antônio Guedes de Brito, seu avô, na transição do século
XVII para o XVIII. Eram denominadas como: Boa Vista, Batalha, Volta, Campos de São
João, Itibiruba (Itibiraba), Mocambo, Campo Grande, Curralinho, Santo Antônio do Orubu e
Riacho dos Porcos, todas na margem direita do São Francisco (vide Mapa 2).
Essas grandes fazendas do alto sertão foram vinculadas ao Morgado Guedes de Brito e
tornaram-se, dessa forma, inalienáveis (NEVES, 2005, p. 147). As normas para
arrendamentos e vendas dos sítios da Casa da Ponte, de 1819, previam que
“[...] as oito fazendas [da] beira [do] rio São Francisco e Carnaiba de Fora
não se venderam a comprador algum, mas puderam se arrendar como anexos
ao Morgado de Guedes de Brito, com a condição de não prejudicar as
fábricas e culturas das referidas fazendas” (PIRES, 1979, p. 235).
Dessas dez fazendas dos Guedes de Brito e sucedidas à Casa da Ponte, oito foram
arroladas em 1832, no inventário dos bens do sexto Conde da Ponte, João de Saldanha da
42
Para informações mais detalhadas sobre essas disputas territoriais, vide Neves, 2005, p. 134-153.
Processo-crime, 1768. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães, Paratinga-BA. Documentação não
catalogada.
43
40
Gama Melo Torres Guedes de Brito, filho primogênito de Manoel de Saldanha. 44 Todas essas
grandes fazendas conservaram-se como fazendas de extensiva atividade pecuária, através da
utilização do trabalho escravo no trato e manutenção dos ricos rebanhos de gado vacum e
gado cavallar, dentre outras atividades. (Vide Mapa 2).
Tabela 1: Fazendas do "Certão do Rio São Francisco"
Fazendas
Boa Vista
Batalha
Volta
Campos de São João
Itaberaba
Campo Grande
Curralinho
Santo Antonio
Gado Vacum
2.084
1.611
880
1.494
1.454
1.564
2.105
2.129
Gado Cavallar
81
36
343
45
45
41
44
54
Escravos
30
37
31
32
25
57
63
36
Total
13.321
689
311
Fonte: Inventário de João de Saldanha da Gama, sexto Conde da Ponte, 1832; Testamento de 1809. APB.
As fazendas do Rio Pardo, pertencentes a esses mesmos proprietários, também
despertaram atenção, devido às relações constantes entre escravos e forros dessas fazendas
com aqueles moradores nas fazendas do rio São Francisco, sobretudo a Itibiraba, que tem seu
território formado “parte em Rio Pardo e parte na Bahia”. Vejamos caracterizações das cinco
fazendas do Rio Pardo a partir do inventário do sexto Conde da Ponte, realizado em 1826.
Tabela 2: Fazendas do Distrito do Rio Pardo
Fazendas
Gado Vacum
Gado Cavallar
Escravos
Canabrava
437
06
27
Itibiraba
694
47
36
Bemposta
411
06
16
Grande
448
07
19
Angicos
112
03
19
Total
2102
69
117
Fonte: Carta de Francisco Xavier de Souza Castro, administrador geral da Casa da Ponte no Brasil, aos
herdeiros do sexto Conde da Ponte em Lisboa (Arquivo da Casa da Ponte. In: PIRES, 1979, p. 309-327).
44
De acordo com Neves (1999, p. 120), esse filho primogênito de Manoel de Saldanha tornou-se um dos homens
mais abastados do Brasil colonial, “[...] além dos megalatifúndios nos sertões da Bahia e Minas Gerais, recebidos
dos pais, herdou de um tio sem filho, considerável fortuna e a nobiliarquia de Conde da Ponte, tornando-se,
coincidentemente, o sexto possuidor do Morgado Guedes de Brito e também sexto titular da Casa da Ponte”.
41
Mapa 2: Fazendas dos Guedes de Brito, médio São Francisco, século XVIII.
42
Outras fazendas sertanejas setecentistas, mencionadas anteriormente, tornaram-se
importantes neste estudo, justamente pelas relações sociais que envolveram os sujeitos que
nelas viveram, como se verá mais adiante. São elas: Fazenda do Riacho, propriedade do
Capitão-Mor Antônio Bernardes Lima, depois herdada por seu filho, o capitão-Mor Mathias
Bernardes Lima; fazenda da Parateca e fazenda do “Rio das Rãns”, pertencente ao SargentoMor Bernardes Pereira Pinto.45
O testamento e inventário do Sargento-Mor Bernardo Pereira Pinto, datados
respectivamente, em 1756 e 1758, e o testamento do ano de 1795, do Capitão-Mor Mathias
Bernardes Lima, ainda que incompletos, foram fundamentais para a reconstituição histórica
das experiências vividas por escravos, forros e senhores no cotidiano escravista das fazendas
setecentistas do alto sertão, dada a limitação de informações da documentação relativa às
propriedades dos Guedes de Brito no século XVIII.
As informações documentadas nos roteiros de Quaresma Delgado (1734. In: NEVES;
MIGUEL, 2007) guardam indícios das unidades de povoamento luso-brasileiro nos sertões
baianos, como observou Santos (2009), ao utilizar os referidos roteiros como fontes em seus
estudos sobre o povoamento na região do médio superior São Francisco e rio Verde Grande.
O roteiro “Derrota das Cabeceiras do Rio Verde até a sua Barra e dahi ao arraial dos
morrinhos e delle correndo o Rio de São Francisco até a Barra do Rio Paramirim e da dita
Barra pelo Paramirim acima até a Fazenda do Riacho de S. Apolonia e da fazenda correndo a
parte direita a oeste a buscar a Serra e por Ella acima até o Brejo das Carnaybas e deste a sahir
na estrada da Bahia na fazenda das Barracas” (Op. cit., p. 108-114), apresenta referências aos
lugares (fazendas, arraiais, igrejas, caminhos) que abrangiam o território em estudo. Desse
modo, foram analisados os dados referentes à região estudada localizados no dito roteiro.
Tabela 3: Unidades de povoamento luso-brasileiro de trechos do Médio São
Francisco (1734). 46
Unidade
Fazendas de Gado
dos Guedes de Brito
Fazendas de Gado
de outros proprietários
45
Quantidade
10
10
Essas fazendas são referidas nas fontes como pertencentes aos sobreditos proprietários, no entanto não é dito
como as adquiriram. Conforme sugerimos, talvez fossem arrendatários, que com o passar dos anos adquiriram a
posse das referidas fazendas.
46
Essa tabela tomou como exemplo a abordagem de Márcio Santos (2009). As informações apresentadas são
referentes à região estudada neste trabalho, sendo os territórios da sesmaria dos Guedes de Brito localizados no
médio São Francisco. Portanto, os dados da tabela correspondem às anotações de Quaresma Delgado, publicadas
em Neves; Miguel (2007).
43
Morro de Bom Jesus da Lapa
01
Sítio
01
Arraial
02
Total
24
Fonte: DELGADO, Quaresma (1734 In: NEVES; MIGUEL, 2007, p. 108-114). “Derrota das Cabeceiras
do Rio Verde até á sua Barra...”
A tabela 3 apresenta a configuração da região estudada neste trabalho, confirmando a
participação de outros agentes no povoamento dessas terras, além dos proprietários da
sesmaria. Conforme os dados tabelados, os Guedes de Brito detinham dez grandes fazendas
pecuaristas e, em torno dessas, outros proprietários tinham posse de dez fazendas de gado,
demonstrando a fixação de homens e suas famílias que povoaram o “Certam de Sima” (vide
tabela 4).
Tabela 4: Proprietários de fazendas e sítios situados em trechos do Médio
São Francisco (1734).47
Proprietário
Padre Miguel de Lima
Dr. João Calmon
Propriedade
Quantidade
Faz. Cachoeirinha
01
Faz. da Malhada
03
Faz. do Riacho
Faz. da Canabrava
D. Joana Guedes de Brito
Faz. da Boa Vista
10
Faz. da Batalha
Faz. da Volta
Faz. Campos de São João
Faz. da Itibiruba (Itibiraba)
Faz. do Mocambo
Faz. do Campo Grande
Faz. do Curralinho
Faz. de Santo Antônio do Urubu
Faz. do Riacho dos Porcos
Paschoal Pereira
Fazenda da Parateca
02
Fazenda do Rio das Rãs
Francisco Vieira Lima
Fazenda do S. Onofre
04
Fazenda das Capoeiras
Fazenda das Várzeas
Fazenda do Boqueirão
José de Souza
Sitio Picada
01
Fonte: DELGADO, Quaresma (1734 In: NEVES; MIGUEL, 2007, p. 108-114). “Derrota das Cabeceiras do Rio
Verde até á sua Barra...”
Percebe-se que, no início do século XVIII, o povoamento já se fazia intenso. Os
primeiros currais de gado abriram vias de comunicações internas, caminhos que interligavam
fazendas, sítios e arraiais da região. Quaresma Delgado (1734) indicou esses caminhos,
47
Vide nota 45.
44
observando as suas condições de tráfego, fazendo observações: do “bom caminho de varzea e
caatingas”.
Percorreu a região estudada através da margem direita do rio São Francisco e logo
indicou a existência do “caminho da beira do rio”, que ligava uma fazenda com a outra.
Descendo o referido rio, os viajantes comunicavam-se com o Santuário do Bom Jesus da
Lapa, arraial de Santo Antônio do Orubu e arraial de Bom Jardim [...] “onde se passa o gado
que vem de outra banda de São Francisco” (DELGADO, 1733 In: NEVES; MIGUEL, 2007,
p. 111). Essa via continuava pelo rio Paramirim acima, ligando fazendas, vendas, sítios e
arraiais, portanto conectando-os às estradas de maior abrangência, como a “estrada da Bahia”.
Quaresma Delgado observou que, ao subir o rio São Francisco, passava-se por outras
fazendas e chegava-se ao arraial de Morrinhos,48 lugar que se tornou referência nesse contexto
de povoamento dos “sertões nordestinos”. A venda de Manoel Pereira, localizada na
passagem do rio Verde Grande, como anotou Delgado (Ibid, p. 110), “[...] Já não pertence a
Bahia”, demonstrando que os intercâmbios coloniais envolveram os territórios baianos e
mineiros, através dos diversos caminhos regionais e também daqueles que percorriam outras
distâncias da colônia. Nesta perspectiva, Santos (2009, p. 151) ressaltou: “as vias terrestres e
as rotas fluviais possibilitaram a conexão [...] [entre] diversos territórios coloniais da América
Portuguesa, entre eles as áreas mineradoras das Minas Gerais e de Goiás, as vilas Paulistas, o
Recôncavo baiano e as distantes capitanias setentrionais”.
A abertura dessas vias sertanejas49 proporcionou o desenvolvimento econômico e
demográfico dos sertões sanfranciscanos. Os caminhos terrestres e fluviais que serviram para
o adentramento e fixação de homens e suas famílias nos sertões, logo, passaram a
desempenhar papel primordial para o fomento da economia regional. Por esses veios
circulavam tropeiros com suas tropas carregadas de mercadorias, vaqueiros com suas boiadas,
viajantes, sertanistas e bandeirantes que percorriam o interior da América Portuguesa.
Conforme José Alípio Goulart (1961), o transporte de mercadorias contou, inicialmente, com
o trabalho de “carregadores humanos”. O autor (Ibid, p. 28-29) ressaltou:
[...] até meados do século XVIII, a carência de animais de carga, de tração e
mesmo de sela era quase absoluta [...]. O índio e o negro, escravizados, e o
mameluco assalariado é que se constituíam nos meios de transporte. [...]
48
Sobre Morrinhos, Richard Burton (1977, p. 220) registrou: “o lado oriental da praça é ocupado pela Igreja de
Nossa Senhora da Conceição dos Morrinhos, que deu nome ao lugar. É um „delubrum mirae magnitudinis‟ que
goza de grande fama, o que leva o forasteiro a perguntar como isso aconteceu. Ela deve sua origem à piedade de
um certo Matias Cardoso [...] , que, com sua irmã, Catarina do Prado, casada em São Paulo com um português,
fixou-se no sertão deserto e, por seus serviços contra índios, obteve o posto de Mestre de Campo, dignidade que
se estendeu por três gerações”.
49
Sobre como se dava a construção dessas primeiras vias sertanejas, vide: Santos (2009).
45
Nas costas, nos ombros, no pescoço e na cabeça dos homens é que se
arrebatavam não só fardos e caixas de mercadorias como também viajantes,
estes escanchados no cangote, ou então, como preferiam os mais
comodistas e aquinhoados, espichados em rêdes [sic] frescas e
acalentadoras ao balanço ritmado das passadas dos carregadores.
A partir do Setecentos, intensificou-se a utilização de animais nos transportes de
mercadorias para os sertões. Sérgio Buarque de Holanda (1994, p. 125) ressaltou que, “só
pelo século XVIII é que as primeiras [tropas de animais] começam a fluir esporadicamente
para o sertão remoto e, ainda assim, onde houvesse terras já desbravadas e povoadas”.
Formavam-se tropas, “[...] constituídas por mulas e jumentos, alimentados com rapadura e
milho quebrado, que os sustentavam fazendo resistir às longas distâncias” (PIRES, 2003, p.
39). Promoviam um comércio regional, no qual tais tropas exerciam papel importante no
abastecimento das populações sertanejas, “[...] conduzindo peixe seco, farinha e cereais [que]
alimentavam as atividades naqueles rincões” (ROCHA, 1946, p. 26).
Nesses caminhos, também se comercializavam produtos vindos de outros locais, como
assinalou Pinho (2007, p. 107), ao tratar da importância da estrada que partia do Recôncavo,
interligava as vias de acesso ao Maranhão, Pernambuco, Piauí e atingia os territórios da área
mineradora (MG). O autor ressaltou:
Pela estrada, escoavam-se mercadorias originárias de Portugal, que saíam
de Salvador, tais como tecidos, ferramentas, sal, ferro, vinho, azeite, farinha
de trigo e das regiões do Médio São Francisco e Serra Geral, que
exportavam gado, cavalgadura, algodão, tecidos rústicos e cereais, básicos
para o abastecimento dos mineiros e do Recôncavo.
Inventários do período setecentista da Freguesia do “Orubu de Sima” guardam vestígios
dessas relações comerciais. Bernardo Pereira Pinto e sua esposa Maria de Souza, moradores
da fazenda da Parateca, foram compradores dessas mercadorias que saíam dos portos da
capital da Província baiana. No inventário de Pinto, de 1756, constaram entre os bens
arrolados: ferramentas, armas, joias, tecidos (pano de linho, mantos de seda, seda azul, veludo
preto), lençóis, guardanapos, pratos da Índia, pratos da Sicília, pires da Índia, bacias e tachos
de cobre, ferros, dentre outros produtos.50
A historiadora Isnara Pereira Ivo (2008, p. 142) assinalou sobre o comércio de objetos
de luxo oriundos da Europa e consumidos por moradores do sertão da Ressaca: “além de jóias
em ouro e prata, as mulheres do Sertão da Ressaca possuíam vestidos e saias de seda que
vinham da Europa, assim como utilizavam baixelas de prata, copos de cristal e porcelanas
trazidas do Velho Mundo”.
50
Inventário e testamento de Bernardo Pereira Pinto (incompleto). Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães,
Paratinga-BA. Documentação não catalogada.
46
Negros africanos e crioulos, também foram conduzidos pelos “caminhos dos sertões”
por traficantes de escravos, que os vendiam aos fazendeiros da região, como veremos mais
adiante. Outros tantos africanos e crioulos destinavam-se às Minas, necessitadas da mão de
obra escrava nos trabalhos da mineração.51O gado, bem como seus derivados (carne, couro),
foram elementos constantes no trânsito comercial dessas vias.
As fazendas pecuaristas dos sertões coloniais tiveram papel central no abastecimento da
América Portuguesa, sobretudo durante a primeira metade do século XVIII. Das porteiras
desses currais de gado, partia o gado que serviria à alimentação, tanto das populações do
Recôncavo e da sede da Província, como da região de Minas. Sobre as relações comerciais
entre essas regiões, Santos (2009, p. 151-152) assinalou:
Tão importante quanto os escravos negros levados para o trabalho nas
jazidas minerais eram boiadas, transportadas para a região mineradora para
abastecer de carne sua população. O couro, outro importante produto da
pecuária, em peças para futuro beneficiamento e na forma de embalagens
para o tabaco exportado, era também levado pelos caminhos do sertão,
rumo aos portos litorâneos. O sal, retirado das salinas do Médio São
Francisco e utilizado na alimentação das populações sertanejas e
mineradores, na salitração dos rebanhos e no salgamento de carnes e peixes
para sua conservação, era outra mercadoria circulante pela região.
Os pioneiros currais de gado implantados nos sertões baianos, através da fixação de
luso-brasileiros e de africanos escravizados que cuidavam dos rebanhos bovinos de sesmeiros
absenteístas, como os Guedes de Brito, proporcionaram o desenvolvimento populacional,
econômico e social dessa região. Os caminhos abertos por esses primeiros moradores
dinamizaram a América Portuguesa, alargando o seu espaço socioeconômico, antes restrito ao
litoral. O roteiro de Quaresma Delgado e os inúmeros registros eclesiásticos da “Freguesia do
Urubu” documentaram que, desde o início do século XVIII, os sertões do São Francisco já
eram uma região ocupada por famílias luso-brasileiras e afro-brasileiras, envolvidas por um
dinâmico comércio local, regional e colonial.
No presente trabalho, detalhes minuciosos presentes nas fontes possibilitaram
aproximações das relações sociais vivenciadas por esses primeiros povoadores do “Certam de
Sima”. Foi possível recompor vivências pregressas de escravos no interior de fazendas do alto
sertão, bem como dos seus encontros e convivências em outros lugares da Freguesia de Santo
Antonio do “Orubu de Sima”, sobretudo nos principais centros de aglomeração populacional:
a sede da Freguesia (arraial e depois vila do Urubu) e o Santuário de Bom Jesus da Lapa,
importantes unidades do povoamento da região em estudo.
51
Entre os estudos sobre o tráfico de escravos para as Minas, ver dentre outros: Ivo (2009), Martins e Silva
(2006).
47
2.1.1 RIO SÃO FRANCISCO, FREGUESIA DE SANTO ANTÔNIO DO “ORUBU DE
SIMA” E “SANCTUÁRIO DO SENHOR BOM JESUS DA LAPA”.
Como vimos, na vasta região “sanfranciscana”, o povoamento encaminhava-se desde a
segunda metade do século XVII, com a chegada dos currais de gado. Pelos “caminhos dos
sertões”, transitavam vaqueiros e tropeiros com seus rebanhos bovinos e suas cargas de
mantimentos, num vai e vem, ora no sentido Recôncavo/litoral, ora rumo à região das Minas.
O rio São Francisco tornou-se o guia desses primeiros povoadores dos sertões. Os caminhos
que margeavam o “Velho Chico”,52 ofereciam condições primordiais para as longas viagens:
água em abundância e o provimento de outros alimentos. O poeta e cantador Paulo Gabiru
cantou em verso e prosa o rio São Francisco, reconhecendo o seu importante papel:
Corre o Chico na caatinga
Olho d água se arregala
Lapa, Sítio, Paratinga
Bom Jesus que o livre e valha
De uma seca como a sorte
Da rapina e suas garras
Deixe sempre cheio o pote
Lá em Xique-Xique e Barra.53
Sendo assim, esses pioneiros homens sertanejos encontraram no dito rio meios básicos
para o estabelecimento nessas novas paragens. No mapa 3 pode-se vislumbrar a dimensão do
rio São Francisco e seus afluentes e como essa base hídrica foi essencial para o
estabelecimento de populações nessa região. Santos (2009, p. 101) assinalou:
Essa base hídrica [o rio São Francisco e seus afluentes] possibilitava aos
homens “os meios de remediar sua pobreza”, aplicando-se à produção de
farinha de mandioca e à criação de gado bovino, produtos que, por sua
abundância, serviam de “copiosíssimo provimento para a inumerável gente
das cidades e de todos os mais povos”.
52
Essa denominação é como muitos ribeirinhos, carinhosamente, nomeiam o rio São Francisco.
Paulo Gabiru; Clebert Luiz. Canção:O às da canastra In: Um Cantador do São Francisco. Vitória da Conquista:
Estúdio Pindorama, 2006. CD, faixa 01.
53
48
Mapa 3: Bacia Hidrográfica do rio São Francisco. Fonte: ROCHA, 2004.
As ilhas que se formavam no curso do rio São Francisco propiciavam o plantio de
verduras, legumes e cereais. Os moradores no arraial do “Orubu” e adjacências usufruíram da
abundância de alimentos oferecidos pelas condições mais favoráveis de plantio e colheita nos
terrenos sempre molhados das ilhas. Durval Vieira de Aguiar (1979, p. 41), ao percorrer essa
região entre as últimas décadas do Oitocentos, registrou a existência de uma ilha: “existe
defronte da vila [do Urubu] uma ilha muito fértil que a supre de verduras e cereais”. Os
registros paroquiais guardam indícios da participação de escravos nas atividades agrícolas na
referida ilha. Alguns moravam por lá, e, provavelmente, vinham à sede da Freguesia
comercializar os seus produtos.
49
As populações que se formaram nas margens do rio São Francisco usufruíam de água
em abundância para a realização das tarefas diárias. A fotografia abaixo, apesar de fugir da
temporalidade desta abordagem, é pertinente, pois guarda vestígios do cotidiano dos
moradores da beira do “Velho Chico”. Observa-se a labuta de mulheres lavadeiras, algumas
acompanhadas de seus filhos. As canoas demonstram o envolvimento da população ribeirinha
com a atividade pesqueira, práticas comuns desde o tempo dos primeiros moradores.
Fotografia 1: Santuário do Bom Jesus da Lapa nas margens do rio São Francisco, 1903. Fonte: Acervo particular de Itamar
Cardoso.
Os rústicos currais de gado, inicialmente implementados nas margens do São Francisco,
tornaram-se grandes fazendas pecuaristas, estas, por sua vez, proporcionaram a formação de
aglomerações populacionais, como os arraiais e suas capelas. “A povoação surge, assim,
como uma aglomeração fixa de pessoas, formada de maneira espontânea, em torno de um dos
currais da fazenda”, ressaltou Santos (2009, p. 122). Esse historiador identificou tal
característica como comum na formação das primeiras aglomerações urbanas dos sertões do
São Francisco, exemplificando com o caso de Montes Claros, cidade mineira, que surgiu da
fazenda de gado fundada por Antônio Figueira.
Característica semelhante apresentou a formação do arraial e depois vila do Urubu. A
fazenda Santo Antônio do Urubu, identificada, no início do Setecentos, por Quaresma
Delgado, como propriedade de D. Joana Guedes de Brito, provavelmente foi estabelecida no
final do século XVII, no processo de ocupação das sesmarias dos Guedes de Brito. Sendo
localizada em ponto estratégico dos “caminhos dos sertões”, logo tornou-se local de passagem
50
de boiadores e tropeiros que conduziam suas boiadas e mantimentos para a região das Minas e
da Bahia de Todos os Santos. Esse dinamismo proporcionado pelo comércio “itinerante” de
rebanhos bovinos e outros produtos contribuiu para o povoamento nessa região, e, assim,
surgiu o arraial do Urubu no interior da fazenda Santo Antônio do Urubu de Cima. Os
moradores daquela fazenda, africanos, indígenas54 e luso-brasileiros, desenvolviam a pecuária
atrelada à agricultura.
Durval Vieira de Aguiar (1979, p. 41), ao excursionar por essa região, no século XIX,
observou que a vila do Urubu ainda conservava como principal atividade econômica a
pecuária.
A especialidade do termo [Urubu] é a criação do gado que é muito
proveitosa; e quando a seca é forte o retiram para as caatingas. Existem
muitas importantes fazendas de criação, que chegam a pegar anualmente até
800 bezerros, que se criam sempre ao abrigo da peste, que tanto persegue o
gado do baixo sertão.
O fator religioso também contribuiu com esse processo de povoamento. Naquela terra,
ainda inóspita a todos eles, também se envolveram em cultos e devoções diversas: “[...] desde
1695, já se desenvolviam ali os trabalhos da Irmandade de Santo Antônio de Pádua” (PINHO,
2001, p. 44). A transcrição feita por Monsenhor Turíbio Vilanova Segura (1987, p. 36), do
antigo manuscrito desta Irmandade, informa sobre essa antiga devoção:
[...] um sítio [...] chamado Urubu, o qual antigamente tivera Capela da
invocação de Santo Antônio, que a enchente do Rio desmanchou, eles [os
moradores] de presente a têm já alevantado em outro sítio, do Rio mais
desviado, e na dita Capela, para Maior serviço de Deus e veneração do
Santo, entre eles alevantaram e erigiram uma Confraria, debaixo do
Patrocínio de Santo Antonio, nosso português.
Essa devoção, que levou esses primeiros moradores dos “sertões de cima” à construção
de capela dedicada a Santo Antônio, bem como a organização da Irmandade de Santo Antonio
de Pádua, constituíram mais um dos elementos do povoamento, confirmando o
estabelecimento populacional nessa região, desde as últimas décadas do Seicentos.55 Essa
capela, com algumas modificações, é ainda, nos dias atuais, a Igreja principal da cidade de
Paratinga-BA, antigo arraial do “Orubu de Sima” ( vide fotografia a seguir).
54
Segundo Pereira (1981, p. 114 apud Pinho 2007, p. 118), “o arraial de Santo Antonio do Urubu de Cima surgiu
de uma aldeia indígena, na margem direita do São Francisco, no final do século XVII”.
55
A respeito do papel agregador das capelas rurais no processo de ocupação territorial, ver: Santos (2009; 2010).
51
Fotografia 2: Igreja Matriz de Santo Antônio do “Orubu de Sima”, Paratinga-BA. Fonte: Acervo particular de
Francelina Maria Coelho.
Lucilene Reginaldo (2005, p. 71) esclarece sobre irmandades na Bahia colonial.
Conforme a historiadora:
[...] os séculos XVII e XVIII marcaram o período áureo destas organizações
tanto na colônia como na metrópole. Classificadas genericamente em
irmandades e ordens terceiras, as confrarias brasileiras, seguindo herança
metropolitana, tinham como objetivos principais: o auxílio aos membros, nos
momentos de dificuldade financeira ou por motivos de doença; a garantia de
um funeral cristão para os irmãos e seus familiares; e, de maneira especial, a
promoção da devoção ao santo padroeiro da confraria.
Naqueles tempos, os sítios e fazendas do “Certam de Sima” do São Francisco
pertenciam à Freguesia de Jacobina,56 apenas em 1718, o então Arcebispo da Bahia, D.
Sebastião Monteiro da Vide criou a Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”, sendo
assim nomeada, devido à devoção existente a Santo Antônio de Pádua. A Igreja Matriz
tornou-se espaço de sociabilidades entre os moradores da Freguesia e também de pessoas
vindas de toda a região para participarem de batizados, casamentos e demais ocasiões
celebrativas.
Outras Freguesias também foram criadas, a exemplo da Freguesia de Nossa Senhora do
Livramento do Rio de Contas. Contudo, os registros paroquiais denunciam que essas divisões
56
Conforme Vieira Filho (2009, p. 47), “a freguesia de Santo Antonio de Jacobina data de 1682, porém sua sede
foi erigida onde hoje é a cidade de Campo Formoso, local conhecido no passado como Jacobina Velha”.
52
eclesiásticas nem sempre foram cumpridas por padres e missionários, principalmente em suas
desobrigas. Nas atas de casamentos e batizados registrava-se “Freguesia de Santo Antonio do
Orubu e Rio de Contas”, com muita freqüência, até a década de 1740.
Talvez isso fosse reflexo do distanciamento da sede da Província,57 onde se estabelecia
o Arcebispo da Bahia, dificultando as visitações eclesiásticas que fiscalizavam os trabalhos
paroquiais de padres e missionários nas capelas e igrejas das freguesias dos sertões baianos.58
A respeito dessa situação Lucilene Reginaldo (2005, p. 69) comentou:
No início do século XVIII, o arcebispo Dom Sebastião Monteiro da Vide
suplica ao Rei de Portugal a criação de novas freguesias no seu arcebispado
[...]. com exceção da freguesias da Capital, todas tinham problemas de
acesso, as distâncias eram imensas e os sacerdotes em número insuficiente.
O quadro desenhado, pelo arcebispo da Bahia, em 1712, apesar de algumas
melhorias, com a criação de mais de vinte freguesias, em 1718, como
resposta a sua solicitação, sofrerá poucas modificações ao longo do século.
Há, também, livros individuais para os assentos da “Freguesia de Santo Antonio do
Orubû de Baixo do Rio de Sam Francisco”, nos quais ficaram registrados batizados e
casamentos em fazendas e sítios pertencentes ao Morgado do Porto da Folha.59
Àquela altura, quase meados do século XVIII, o povoamento já se fazia intenso, “[...] à
vista disto poder-se-ia esperar muitas vilas nestas regiões tão povoadas. Puro engano: só
foram criadas no século XVIII” (ABREU, 2000, p.159). Em 1746, o arraial do Orubu, por
Ordem Régia elevou-se à condição de vila, e assim, emancipando-se de Jacobina, passou a ser
conhecida como Vila do Urubu. Tornou-se, assim, uma das primeiras vilas dos “sertões
sanfranciscanos”. Santos (2009, p. 148) estranha que, para a região do médio superior São
Francisco e Verde Grande, “[...] não obstante o rápido crescimento e a importância das
povoações [dessa região], nenhuma delas tenha chegado à condição de vila no Setecentos”.
57
Esse distanciamento entre a sede da colônia e o seu interior sertanejo influenciou além, das práticas religiosas,
a vida política e administrativa dos sertões. Referências sobre esse assunto podem ser localizadas no trabalho
inédito de Santos (2010, p. 25-26), que assinalou: “[...] a débil presença do Estado português nos sertões”. Para o
historiador, isso acarretou a formação de grupos e potentados individuais com relativo poder local. Desse modo,
“[...] a colonização do sertão nordeste constituiu, entre a segunda metade do século XVII e a primeira do
seguinte, um conjunto disforme de ações de grupos semi-autônomos, carente de um „sentido‟ único, portanto,
destituído de qualquer conteúdo de „projeto‟”.
58
Através das pesquisas aos livros eclesiásticos da Freguesia de Santo Antonio do “Orubu de Sima”, percebemos
que essas visitas não foram frequentes, contudo, quando realizadas, fiscalizava-se, inclusive, a normatização da
redação dos assentos dos batismos, casamentos e óbitos, devendo ser registrados em livros específicos para cada
tipo de cerimônia, embora muitos vigários não atendessem a essas normas e por vezes registrassem as atas em
um único livro.
59
O artigo: “Conflitos de terras numa fronteira antiga: o Sertão do São Francisco no Século XIX”, do
pesquisador Francisco Carlos Teixeira da Silva, publicado na Revista Tempo, Rio de Janeiro, n.7, pp.9-28, trata
do Morgado do Porto da Folha, estabelecido desde o século XVIII na região de Sergipe.
53
O quadro abaixo apresenta dados referentes às freguesias pertencentes à Comarca de
Jacobina, informando como estavam organizadas eclesiasticamente e sobre as populações de
partes dos sertões baianos; nota-se que a freguesia do Urubu, entre os anos de 1774 e 1779,
apresentava o maior número de habitantes, totalizando 3.425 almas para 362 fogos.
Tabela 5: População de Jacobina por freguesia – 1774 e 1779.
ano
Freguesia
Fogos Almas
Santo Antônio da Jacobina
287
2212
Santo Antônio da Villa de Jacobina
321
3120
Santo Antônio da Villa do Urubu de Cima
362
3425
663
3223
147
1018
243
2023
S. Antonio do Pambú
93
1019
N.S. do Bom Sucesso
286
1982
290
2026
N. da Conceição do Rio Pardo
288
1924
TOTAL
2989
21972
Santo Antônio da Villa N.S. do Livramento do Rio
de Contas
Comarca do
Sul ou da
Jacobina
Sant‟Anna do Caitite
1774 Santusé
S. Francisco das Chagas na Villa da Barra do Rio
Grande
1779 TOTAL
24103
Fonte: VIEIRA FILHO, 2009, p. 78.
As práticas religiosas (casamentos, batizados, celebrações) contribuíam para o
dinamismo da Freguesia. Praticamente todos os dias, pelo menos um batizado se realizava na
Matriz, dedicada a Santo Antônio, além dos casamentos e batizados que aconteciam por toda
a extensa Freguesia, ministrados por padres, freis e missionários que, “andando em
desobriga”, faziam a festa de muita gente distribuída pelos “sertões de dentro”.
Realizava-se a desobriga de tempos em tempos, quando o vigário da
freguesia comparecia e ministrava os sacramentos, confessando, dando a
comunhão, batizando, casando, pondo, em suma, as pessoas em dia com os
sacramentos, fazendo-as principalmente cumprir o preceito pascal
(SANTOS FILHO, 1956, p. 187).
Os documentos que registraram as desobrigas na Freguesia de Santo Antônio do “Orubu
de Sima” revelaram que, além do próprio vigário, outros membros do clero ajudaram-no
54
nesses cultos pelos vastos sertões baianos. Alguns vinham de Freguesias pertencentes ao
Arcebispado de Pernambuco, outros de lugares mais distantes, como os “Religiosos
Carmelitas Calçados, na Província do Maranhão”.
No decorrer deste trabalho, veremos mais detidamente essa movimentação da população
pela extensa freguesia, percebendo como a Igreja Matriz e algumas capelas60 se tornaram
espaços de aglomeração de pessoas, portanto contribuindo com o dinamismo da região em
estudo.
O “Sanctuario do Senhor Bom Jesus da Lapa”, instalado na gruta da fazenda Itibiraba,
merece atenção especial, por ser um locus, dentre os mais importantes, de movimentação
populacional dos sertões sanfranciscanos desde o Setecentos. A gruta da Lapa, como ficou
conhecida, ganhou notoriedade com a chegada do peregrino Francisco de Mendonça Mar,
que, em 1691, passou a fazer morada nessa gruta. Outras versões são apresentadas pela
oralidade para a origem do Santuário do Bom Jesus da Lapa na referida gruta, dentre elas a
mais conhecida “[...] é o relato de um vaqueiro que encontra a imagem do Bom Jesus, através
de um boi que se tresmalha do rebanho, indicando-lhe o lugar sagrado” (STEIL, 1996, p.
153).61
Temos notícias de que, nesse morro, batizados e casamentos eram realizados desde o
final do século XVII. Em carta enviada pelo monge Francisco de Mendonça Mar para El-Rei
de Portugal, em 1717, está registrado: “na dita Lapa tem o suplicante um companheiro e
continuamente assistem nela vários clérigos e religiosos que passam por aqueles sertões”.62
Através de um interessante estudo antropológico, Carlos Alberto Steil (1996) estudou o
Santuário e o culto ao Bom Jesus da Lapa, a partir das experiências dos romeiros e visitantes,
demonstrando o desenvolvimento do santuário durante os três séculos da sua existência. Os
relatos antigos sobre o Santuário constituíram nesse trabalho fontes importantes. O autor
indicou mudanças na forma como os escritores desses relatos identificaram o Santuário.
Observou, entre aqueles que escreveram no século XVIII, uma visão impregnada pela fé e
60
Registram-se, neste trabalho, possibilidades futuras de estudos mais detidos sobre essas capelas e a Igreja
Matriz de Santo Antônio do “Orubu de Sima”, tratando-as como documentos arquitetônicos, assim como fez
Santos (2009), em suas pesquisas sobre a Igreja Matriz de Morrinhos e outras localizadas no médio superior São
Francisco e Verde Grande.
61
Além do trabalho de Steil (1996), outros estudos fazem referências a diferentes versões para a origem do culto
do Bom Jesus na gruta da Lapa, por exemplo: Segura (1987); Kocik (1988; 1990). No entanto, ambos os autores
veem essas versões como lendas, confirmando como “verdadeira” aquela versão na qual o monge penitente
descobriu a gruta e passou a nela fazer morada, organizando o culto ao Bom Jesus e à senhora da Soledade.
62
Utiliza-se, neste trabalho, a transcrição desse documento, publicada no trabalho de Segura, 1987: 119. De
acordo com o autor, o documento original está sob a guarda de arquivo em Lisboa. Segura consultou a cópia da
carta do monge, localizada no Arquivo Público do Estado da Bahia, Livro 12, Ordens Régias, 1717. Quando
realizei pesquisas no APB o referido documento não estava disponível à pesquisa, por isso utilizei a publicação
acima mencionada.
55
com a geografia do lugar. “O Peregrino da América”, escrito em 1728 por Marques Pereira
(1988: 171 apud STEIL, 1996, p. 31), assim descreveu o Santuário do Bom Jesus:
Até que cheguei outra vez às margens do rio São Francisco, onde vi aquele
milagre do céu na terra, o sagrado templo da Lapa, feito e fabricado pela
natureza por permissão divina, que causa admiração a todos os que vêem,
por verem uma igreja com toda a perfeição em lugar tão solitário.
Perspectiva semelhante Steil (Ibid, p. 30-34), observou nos relatos de D. Sebastião
Monteiro da Vide sobre o Santuário publicadas no livro “Santuário Mariano” (1722),63 nos
registros de Rocha Pita (1730) e no famoso poema “O Caramuru”, de José de Santa Rita
Durão, impresso em 1781, no qual o poeta dedicou 11 cantos ao Santuário. Analisando
registros do século XIX sobre o Santuário, Steil (Ibid, p. 34-35) assinalou mudanças nas
interpretações, entretanto prevaleceu o elemento geográfico:
Esta perspectiva, no entanto, parece mudar na descrição dos exploradores
do século XIX, que estiveram na Lapa e registraram a existência do
Santuário. Segundo Richard Burton, que visitou Bom Jesus da Lapa em
1867, não haveria nada ali “que justificasse a viva imaginação de Rocha
Pita”. [...] Teodoro Sampaio, que visitou o santuário dez anos mais tarde,
faz uma extensa e poética descrição do morro, situando-o na paisagem e
apresentando não mais como uma obra da Providência, mas da natureza.
A presente pesquisa aos registros paroquiais da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu
de Sima”, fontes contemporâneas aos relatos acima mencionados, permitiram outras “visões”
sobre o Santuário da Lapa. Depreendeu-se desses documentos uma intensa movimentação em
direção ao Santuário. Muitos escravos e forros das fazendas dos Guedes de Brito preferiam
batizar seus filhos na bonita Gruta da Lapa. Proprietários de fazendas vizinhas e, também, de
outras mais distantes, traziam seus escravos à gruta para casá-los e batizá-los. Outros tantos,
gente rica e pobre, escolhiam aquele lugar para receberem os sacramentos cristãos.
O próprio Monge, na carta anteriormente mencionada, descreveu a intensa
movimentação em torno do Santuário:
[...] na dita lapa [...] outros passageiros, que todos se dilatam por muitos
dias para descanso de suas pessoas e comboios, e, além destes, vêm assistir
muitas outras pessoas que, movidas da dita devoção, fazem suas novenas ao
Bom Jesus, como também as pessoas pobres e os que enfermam naqueles
sertões se valem da enfermaria que para eles tem feito o suplicante na
referida Lapa, onde são tratados com muita caridade [...].64
63
Segundo Monsenhor Turíbio Vilanova Segura (1987, p. 99- 109) as informações sobre o Santuário do Bom
Jesus da Lapa descritas no livro Santuário Mariano (1722) foram transmitidas por visitadores canônicos ao
Arcerbispo Dom Sebastião Monteiro da Vide, que, em 1702, a partir dessas informações, escreveu a biografia do
Monge da Gruta da Lapa e a remeteu ao autor de “Santuário Mariano”, Agostinho de Santa Maria, que no livro
registrou: “toda essa notícia nos enviou o ilustríssimo Arcebispo da Bahia, o Sr. Sebastião Monteiro da Vide,
com carta sua”.
64
Vide nota 62.
56
A localização da gruta da Lapa às margens do São Francisco, no cruzamento dos
“caminhos dos sertões”, que ligava o litoral à região das minas, contribuiu para transformá-la
em um dos principais pontos de pouso dessas paragens sertanejas. Sobre essa movimentação,
Segura (1987, p. 126) ressaltou:
Eram muitos os peregrinos que concorriam àquele Santuário pelos muitos
milagres que a Senhora obrava e achando os homens, tratantes nas Minas do
Sul; trânsito mais breve por aquela parte para Pernambuco e Bahia abriram
caminho junto à nova Igreja e ficou aquele deserto muito freqüentado de
romeiros e caminhantes.
Muitos viajantes por esses sertões encontravam no Santuário um pouso seguro, a
oportunidade de reabastecer as suas tropas e, até mesmo, de curar possíveis ferimentos no
“asilo do monge” (vide fotografia a seguir), ferimentos adquiridos nas longas caminhadas.65
Outros visitantes e romeiros vinham agradecer ao Bom Jesus da Lapa e à Senhora da
Soledade por graças alcançadas através dos seus milagres.66 A musicalidade regional trata
dessas práticas antigas de romarias; vejam-se os versos de Carlos Villela:
Acorda, Joana! Já raiou o dia
Vamos pegar a estrada
Vamos fazer romaria
Vambora! Pois tenho pressa
Para agradecer
Minhas preces ao Bom Jesus
Fizeram chover
Maria, toma conta dos meninos
João! Cuida bem da plantação
José! Olha os cabritos e as rês
Este ano eu vou com Joana
Paroano vão vocês
A igreja da Lapa foi feita de pedra e luz
Vamos todos visitar meu Senhor Bom Jesus.67
65
Conforme Segura (1987, p. 121-122), esse “asilo do Monge” estava situado em lugar plano em frente ao
Santuário, no largo da atual esplanada. Não foi possível precisar até quando o antigo prédio do “asilo do Monge”
permaneceu em frente à gruta. Conforme Lucas Kocik (2000, p. 106), “em 1895 teve início a construção do
Colégio-asilo de órfãos, com a capela. A obra ficou terminada sob a orientação do Frei Escolástico Rodrigues,
Agostiniano espanhol. Neste prédio, em 06 de junho de 1938, foi inaugurado pelo Pe. Turíbio Vilanova o
„Abrigo dos Pobres de Bom Jesus da Lapa‟”.
66
Com a chegada do Monge à gruta correu a notícia de que esse lugar era sagrado, aqueles que pediam ao Bom
Jesus da Lapa conseguiam milagres. Conforme Steil (1996, p. 37), “o Santuário surge, assim, como o arquétipo
de um centro mítico onde o céu e a terra se encontram, abrindo a possibilidade de se penetrar o domínio do
transcendente (Eliade, 1972). Seu poder de atração emana diretamente de uma paisagem animada por poderosos
que preexistem à condição humana. Neste sentido, o Santuário de Bom Jesus da Lapa surge como algo sui
generis, que possui um poderoso magnetismo devocional sobre os peregrinos e uma capacidade inerente ao
próprio local de produzir poderosos sentidos e significados para os seus devotos”.
67
Carlos Villela. Canção: Joana Romeira. IN: O doce e o sal. Recife-PE: Estúdio D‟angeles. CD (produzido por
Carlos Villela).
57
Fotografia 3: Asilo do Monge no Santuário do Bom Jesus da Lapa, século XIX. Fonte: Acervo particular de Itamar Cardoso.
Alguns desses visitantes permaneciam na gruta, esse costume foi registrado ainda no
século XIX por Teodoro Sampaio (1938, p. 102) quando percorreu esses sertões:
[...] Tocamos ahi o sino como signal de romeiro à porta e logo appareceunos o sacristão, que nol-a abriu e por onde entramos na capella já ocupada
por uma multidão andrajosa e chegada, homens, mulheres e meninos
exhibindo as suas deformidades, as suas ulceras, as suas misérias, pedindo,
clamando, atravessando o seu braço descarnado para nos tomar o passo,
rogando, supplicando, impertinentemente, incansavelmente.
As condições de vida dos sertanejos desses sertões de cima parece não terem sido fáceis.
O próprio Monge, na carta endereçada ao El-Rei de Portugal em 1717, indica essa situação,
reivindicando à Coroa “[...] terra em que possa criar algumas vacas e outras criações para com
eles melhor poder auxiliar as pessoas que frequentemente se demoram na [...] Lapa”.
Ressaltou o Monge: “[...] as graves necessidades que todos padecem na falta de mantimentos,
pois naquele deserto não se acham mais lavouras que aquelas que se planta o suplicante e seu
companheiro”.68
O Monge deve ter generalizado a falta de plantio de lavouras, pois dificilmente as
populações de africanos, indígenas e luso-brasileiros que habitavam essa região, desde a
segunda metade do século XVI, desperdiçaram as facilidades proporcionadas pelos terrenos
da beira do rio São Francisco às atividades agrícolas.
É oportuno retornar às vivências experimentadas no interior da Gruta da Lapa pelos
diversos sujeitos sociais. As visitas ao Santuário, além de permitirem cultos e promessas,
proporcionaram encontros de gente vinda de várias partes dos sertões que ali se conheciam,
constituíam amizades e laços por toda uma vida. Durante o século XVIII, foi comum a
participação de pessoas de outras freguesias em batizados e casamentos no Santuário, sendo
recorrentes aqueles das freguesias de São Caetano do Japoré, Santo Antônio da Manga, Sam
68
Vide nota 62.
58
Francisco da Barra do Rio Grande do Sul, todas pertencentes ao Arcebispado de Pernambuco,
como se verá mais detidamente no capítulo seguinte.
Essas celebrações aconteciam na gruta principal, denominada “gruta do Bom Jesus”. A
fotografia abaixo, datada do final do século XIX, segundo o artista plástico Itamar Cardoso,
registrou a “gruta do Bom Jesus” com muitos aspectos do tempo do Monge, por exemplo, o
altar dedicado a Santo Antonio de Pádua, destruído no incêndio de 1903. A partir dessa
imagem pode-se ter uma noção da gruta no século XVIII.
Fotografia 4: Gruta do Bom Jesus da Lapa, século XIX. Fonte: Acervo Particular de Itamar Cardoso.
Os visitantes da gruta provavelmente deixavam ofertas aos seus santos de devoção como
cumprimento de suas promessas. De acordo com Segura (1987, p. 112):
Os afortunados que antes de encher de ouro os surrões, tinham passado pela
Gruta a pedir a bênção ao Bom Jesus e as orações ao Monge para feliz êxito
de sua empresa, voltavam alegres para depositar aos pés do milagroso orago
da Lapa [...]. Daquela época eram as várias banquetas de grandes e
artísticos castiçais de prata, em número de dezenove que constam nos
inventários antigos. O suntuoso lampadário de duas arrobas de prata [...],
vários cálices de ouro, um sacrário de prata [...] e tantas outras riquezas
[...].69
Essas ofertas devem ter favorecido a aquisição de escravos por parte do Santuário. As
fontes aqui estudadas evidenciaram uma presença mais significativa de “escravos do Bom
Jesus” na segunda metade do Setecentos. Possivelmente, trabalhavam no cuidado com a Gruta
e com os moradores do asilo e, também, nas atividades agrícolas no brejo de São José e na
fazenda da Barra, propriedades territoriais do Santuário.
69
Esse mesmo autor indicou a existência do chamado “tesouro do Bom Jesus”, [...] “guardado debaixo e atrás do
Altar-Mor, em meio de grandes toras de cedro. No incêndio da gruta [em 1903] queimou-se totalmente”.
59
As convivências nesse espaço proporcionavam trocas de comunicação entre as pessoas
que por ali circulavam. Os que vinham de outras paragens traziam as notícias de suas terras,
alguns de lugares mais distantes, como a “Bahia de Todos os Santos” e o Recôncavo baiano,
outros contavam os “causos” acontecidos nas vilas e fazendas mais próximas. Desse modo,
deixavam influências no modos vivendi dos moradores da região que, por sua vez, se
mantinham conectados com o contexto colonial da América Portuguesa.
É importante também dizer que as idas e vindas rumo ao Santuário, também ajudaram a
dinamizar a economia regional. Aqueles que visitavam a gruta do Bom Jesus necessitavam
dos meios básicos para o estabelecimento durante o período das visitas: alimentação e local de
pouso. Como se viu, o monge da gruta, em carta de 1717, reconheceu a necessidade de auxílio
aos visitantes. Por suposto, para suprir essas necessidades, foi necessário dinamizar a
atividade agrícola que envolvia famílias de africanos e crioulos, moradores das fazendas em
torno da gruta. Essa dinâmica também favoreceu escravos e livres pobres, que vendiam
produtos de suas roças aos visitantes da gruta. Outros visitantes mais abastados aproveitavam
a ocasião da visita ao Bom Jesus para realizar negócios pecuaristas com fazendeiros locais,
dada a presença de grandes fazendas de gado nas vizinhanças do Santuário, localizado nas
terras da fazenda Itibiraba, propriedade dos Guedes de Brito.
Além do Santuário e da Matriz, outros espaços, como capelas e oratórios, serviram para,
além das cerimônias de casamentos, batizados e celebrações religiosas, outras sociabilidades.
Os mais citados são as capelas de: Santa Ana da Parateca; Nossa Senhora do Rosário de Bom
Jardim; Santa Ana de Caitité; Nossa Senhora de Madre de Deos de Montes Altos e também os
Oratórios e casas de orações de Malhada, Carinhanha, Cajoeiro.
Esses lugares, a princípio dedicados às práticas religiosas, tiveram suas “funções”
redimensionadas a partir das experiências de africanos, crioulos, indígenas, portugueses e
outros brasileiros que se entrelaçavam nas redes de convívio forjadas em cada locus social do
“Certam de Sima”. Alargaram a possibilidade de encontros entre africanos e seus
descendentes escravos com pessoas de diferentes segmentos sociais. Ali desenvolviam
relações de amizades, afetivas e, também, comerciais, ao tempo em que reforçavam aquelas
antes constituídas. Certamente, africanos e crioulos souberam aproveitar as possibilidades de
sobrevivências mais humanizadoras, vividas nesses locais, sobretudo no Santuário. No
decorrer do texto serão discutidas algumas experiências específicas; antes, veja-se o perfil
populacional daquelas fazendas.
60
2.2 HERANÇA DA CULTURA AFRICANA: TRÁFICO E REPRODUÇÃO
NATURAL
Os currais de gado e a descoberta das minas de ouro asseguraram o “povoamento” dos
sertões baianos. Como mostrou Mônica Duarte Dantas (2000, p. 20):
Desde fins do século XVII, a Bahia vinha experimentando o crescimento de
uma população de homens livres: pardos, mulatos e negros forros. As
vicissitudes da indústria açucareira e o posterior surto da mineração,
tiveram como produto „uma considerável alteração em tamanho,
composição, distribuição e estrutura‟ da população colonial. [...] No sertão
de dentro, as mudanças ocorridas no final do século XVII, viabilizando o
maior aproveitamento da região, tanto em fazendas de gado como as roças
de víveres voltadas ao comércio interno, constituíram-se, portanto, em
atrativo para várias camadas da população colonial.
Como se viu, para essas terras veio gente de toda parte, sobretudo paulistas e
portugueses em busca de enriquecimento, alguns deles com suas famílias, e outros que
somente criaram vínculos depois que se estabeleceram. Viviam com certo luxo, podendo
adquirir produtos importados da Europa, os quais enfeitavam suas “casas de telha”, como
apresentou o inventário de Bernardo Pereira Pinto, abastado morador do “Certam de Sima”.70
Também sobreviveram nessa região “[...] moradores de pequenos sítios, conseguidos
por compra, arrendamento ou simples ocupação” (DIAS, 2001, p. 11). Desse grupo faziam
parte livres pobres e forros que “[...] vagavam pelo sertão em busca de um pedaço de chão
para arrendar, um serviço ocasional para algum vaqueiro ou mesmo um terreno de onde
pudessem tirar somente o necessário para seu sustento”. (Op. cit., p. 20).
Com as boiadas, abriram-se novos caminhos e novos horizontes para as suas vidas e
para aqueles com os quais trabalhavam lado a lado. “Graças a estas circunstâncias, formou-se
no trajeto do gado uma população relativamente densa, tão densa como só houve igual depois
de descobertas as minas, nas cercanias do Rio [sic] [São Francisco]” (ABREU, 2000, p. 155).
Africanos contribuíram para esse adensamento populacional. Trabalhando no interior de
extensas fazendas às margens do rio São Francisco, mas também fora delas - conduzindo
tropas e boiadas do sertão para o litoral ou para províncias vizinhas -, constituíram suas
famílias fortalecidas por relações de amizade e de parentesco. E assim, colaboraram
decisivamente para o crescimento populacional daquela região erguida, sobretudo, através do
trabalho escravo.
70
Inventário e testamento de Bernardo Pereira Pinto (incompleto). Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães,
Paratinga-BA. Documentação não catalogada.
61
Apesar da falta de censos populacionais do período em estudo, os registros eclesiásticos
trazem informações importantes neste sentido. A pesquisa empreendida nos livros de
batizados e casamentos da antiga Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”
possibilitou conhecer uma amostra da população que viveu no interior dessas grandes
fazendas setecentistas.
Observou-se um grande volume de escravos ao longo do período colonial no interior
dessas fazendas. Mas quem eram esses escravos? Como africanos e crioulos constituíram as
suas vidas nos sertões baianos? Os documentos pesquisados permitiram algumas
aproximações das origens71 desses sujeitos e trazem indícios de suas experiências cotidianas
em torno da família e da comunidade.
Na presente abordagem, foram selecionados os registros paroquiais referentes aos
escravos e forros, moradores em fazendas do sertão são-franciscano. Nos livros pesquisados
foram localizadas 1.132 pessoas registradas como escravos dos Guedes de Brito, no período
entre 1720 e 1790. Esse número refere-se a todos os registros encontrados de cativos dos
Guedes de Brito, abrangendo todas as faixas etárias e ambos os sexos, entretanto esse dado
não representa o quantitativo exato das escravarias desses proprietários, uma vez que vários
nomes se repetem.72
De qualquer sorte, esses dados nos sugerem algumas informações importantes. Indicam
um baixo índice de africanos entre os moradores das fazendas dos Guedes de Brito. Na
primeira metade do século XVIII, do total de 337 escravos e forros, foram identificados
apenas 21 como africanos. Após a segunda metade do Setecentos, o número de africanos é
ainda menor, de 797 pessoas, somente 5 africanos foram localizados. Deve-se considerar a
significativa quantidade de escravos e forros que não tiveram as suas presumíveis origens
registradas. Sugere-se que o número de africanos sofreria algum aumento, contudo não
ultrapassaria o quantitativo daqueles nascidos no Brasil.
71
Registrem-se, neste trabalho, as dificuldades de afirmar com segurança as origens dos africanos traficados para
o Brasil. A historiografia tem enfatizado essa questão. A historiadora Maria Inês Côrtes de Oliveira (1997, p. 7273), sobre origens dos africanos da Bahia, destacou que: “desde o início da implantação do comércio de escravos
no Brasil, os registros sobre a procedência dos africanos estiveram sujeitos à terminologia usada na rede do
tráfico português [...]. Deste modo, os termos que foram utilizados para designar as origens dos escravos
provinham tanto do repertório das denominações empregadas pelos europeus, quanto dos termos utilizados pelas
populações locais para classificar os indivíduos que pertenciam a grupos que lhes eram conhecidos”. Como
resultado desse processo, a autora indicou que os africanos foram identificados a partir de “conteúdo
extremamente generalizante”, por isso deve-se interpretá-las como origens presumíveis. Neste trabalho retornarei
a essas discussões das presumíveis origens africanas.
72
Infelizmente, não há informações suficientes para identificar melhor esses dados, apenas em alguns casos foi
possível acompanhar trajetórias específicas.
62
Tabela 6: Origem, cor e gênero dos escravos e forros das fazendas dos Guedes de Brito
nos livros de batismos e casamentos.
1721-1759
ESCRAVOS
FORROS
ORIGEM/COR
HOMENS MULHERES HOMENS MULHERES TOTAL
Africanos
09
03
03
07
21
Minas
07
02
01
10
Angolas
01
02
01
04
Gege
01
01
Pretos
03
05
08
Brasileiros
69
62
06
11
148
Crioulos
22
21
03
07
53
Presumivelmente crioulos*
43
37
01
81
Mestiços
01
01
02
Pardos
03
03
03
Sem identificação
67
100
167
TOTAL
145
165
09
18
337
1760-1790
Africanos
03
01
01
05
Minas
03
01
04
Pretos
01
01
Brasileiros
152
224
12
11
403
Crioulos
44
69
08
09
130
Presumivelmente crioulos*
91
119
210
Mestiços
02
16
01
19
Pardos
12
17
03
02
34
Mulato
02
02
04
Cabra
01
01
02
Sem identificação
144
244
03
02
393
TOTAL
299
469
16
13
797
TOTAL GERAL
444
639
25
31
1134
Fonte: Livros 1,2,3,5,7 e 8 de batizados da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”. Livros 1, 2 de casamentos da
Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”.
*Apesar de não vir explícita a caracterização crioulo, a informação do local de nascimento, ou seja, de que nasceram no
Brasil, presume-se serem crioulos.
A comparação desses dados relativos aos escravos e forros das fazendas dos Guedes de
Brito, com informações localizadas em dois livros de casamentos da Freguesia de Santo
Antônio do “Orubu de Sima”, revelou números mais expressivos quanto à origem africana
para toda a Freguesia, no período de 1721 a 1780. Essas taxas mais elevadas de africanidade,
em relação ao menor número de africanos entre os escravos e forros dos Guedes de Brito,
sugerem que os senhores do “Certam de Sima”, na formação de suas fazendas escravistas,
fizeram opções diferenciadas, alguns recorrendo ao tráfico, outros, como os Guedes de Brito,
optando mais vezes pela reprodução natural. Os assentos de casamentos foram selecionados
também com o objetivo de conhecer prováveis origens de cativos e forros, moradores na
referida Freguesia, uma vez que, dentre os documentos pesquisados, geralmente nas atas de
63
casamento foram mais recorrentes do que nas atas batismais, informações sobre origens dos
africanos moradores no “Certam de Sima”.73
Do quantitativo de 298 atas de casamentos, localizou-se, para o período de 1721- 1759,
o total de 157 africanos, e entre 1760-1780, 77 pessoas foram identificadas como de origem
africana no conjunto dos contraentes.74 No universo dos pais dos contraentes, vislumbrou-se
mais um fragmento dessa população. Foram listados 33 pais africanos casando seus filhos
entre 1721-1759, e 27 pais africanos no decorrer de 1760-1780 (vide TABELAS 7 e 8).
Tabela 7: Origem, cor, gênero dos escravos e forros da Freguesia de Santo Antonio do
Orubu nos livros de casamentos.
1721-1759
ESCRAVOS
ORIGEM/COR
HOMENS
Africanos
61
Minas
26
Angolas
16
Gege
01
Guiné
06
Benguella
03
Ganguella
04
Congos
01
Ilha de São Tomé
01
Gentio da Costa
02
Preto
Ilha do Principe
Coirano
01
Cabo Verde
Brasileiros
19
Crioulos
10
Presumivelmente crioulos
07
Índio
01
Pardos
Mestiços
"Caboclo"
01
Sem identificação
66*
TOTAL
146
73
MULHERES HOMENS
55
14
29
03
12
07
02
01
01
01
02
01
01
08
01
24
12
07
05
02
03
05
37**
116
02
21
FORROS
MULHERES TOTAL
27
157
06
64
01
29
01
02
16
01
06
05
03
02
01
05
15
23
01
01
17
09
02
02
02
02
01
45
65
33
16
06
07
02
01
106
328
Importa ressaltar que pesquisas futuras aos demais livros e atas de batismos e casamentos da Freguesia do
Orubu, não contemplados neste estudo, poderão apresentar novos dados a respeito das prováveis origens de
africanos que moraram no alto sertão baiano, no século XVIII, podendo construir análises comparativas a partir
do conjunto de dados (batismos e casamentos) para toda a Freguesia, objetivo que não esteve nas condições
dessa pesquisa
74
O termo contraente foi recorrente em todos os livros de casamento, utilizado pelos vigários e escrivão para
designar aqueles que recebiam o sacramento do matrimônio na freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”.
64
1760-1780
Africanos
Minas
Angolas
Gege
Moçambique
Pretos
Benguella
Gentio da Costa
Cabu
Brasileiros
Crioulos
Presumivelmente crioulos
Índio
Pardos
Sem identificação
TOTAL
TOTAL GERAL
27
07
12
02
03
16
08
07
16
02
07
01
18
06
04
02
06
05
01
12
08
16
15
01
03
01
29
50
01
01
02
01
30
13
12
02
03
25
82
228
35
15
20
12
63
179
77
23
30
05
03
11
02
02
01
93
51
32
04
06
41
211
539
03
37
82
Fonte: Livro de casamentos da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”.
*Desses 66 contraentes sem identificação, 25 não apresentam a condição jurídica, provavelmente, livres de outras Freguesias. **Dessas
37 contraentes, sete não apresentam condição jurídica.
Tabela 8: Origem, cor e gênero dos pais dos contraentes da Freguesia de Santo
Antônio do "Orubu de Sima" nos livros de casamentos.
1721-1759
ORIGEM/COR
Africanos
Minas
Angolas
Gege
Ilha de S. Tomé
Preto
Brasileiros
Crioulos
Índios
Portugueses
Pais sem identificação
TOTAL
PAI
12
06
04
02
02
01
01
08
50*
72
MÃE
21
10
03
03
01
04
03
02
01
08
45
77
TOTAL
33
16
07
05
01
04
05
03
02
16
95
149
18
05
04
01
01
05
01
01
16
15
01
01
64
27
07
07
01
01
07
03
01
17
16
01
02
116
1760-1780
Africanos
Minas
Angolas
Gege
Conga
Pretos
Benguella
Gentio da Guiné
Brasileiros
Crioulos
Índios
Portugueses
Sem identificação
09
02
03
02
02
01
01
01
52
65
TOTAL
TOTAL GERAL
63
135
99
176
162
311
Fonte: Livros de casamentos da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”.
*Entre as atas do período 1721-1759, 277 assentos não registram a filiação dos contraentes.
** Entre as atas do período 1760-1780, 116 assentos não registram a filiação dos contraentes.
Percebe-se, a partir das informações disponibilizadas nos registros de casamentos e
batizados, que, ao contrário das fazendas dos Guedes de Brito, os demais locais da freguesia
do “Orubu de Sima” contaram, recorrentemente, com a presença dos africanos na sua
composição demográfica. Isso implica dizer que o “Certam de Sima” também esteve na rota
do tráfico de escravos, e os senhores dessa região mantiveram relação direta com esse
comércio transatlântico, justamente no período vigoroso do século XVIII. Vejam-se, alguns
aspectos do tráfico de escravos para os sertões baianos e possíveis significados da presença
africana nessa região.
2.2.1 NOTAS SOBRE O TRÁFICO DE ESCRAVOS PARA O “CERTAM DE SIMA”.
Ao longo do século XVIII, vigorou o tráfico atlântico de escravos. Da África, homens,
mulheres e crianças foram “arrancados” e comercializados nos portos africanos entre
traficantes, europeus e americanos. “O tráfico de escravos importou, para os diferentes países
das Américas e Antilhas, negros provenientes das mais diversas regiões da África”
(VERGER, 2002, p. 27).
Pierre Verger (Loc. cit.) dividiu o tráfico de escravos para a Bahia em quatro períodos:
ciclo de Guiné durante a segunda metade do século XVI; ciclo de Angola e do Congo no
século XVII; ciclo da Costa da Mina durante os três primeiros quartos do século XVII; ciclo
da Baía do Benim entre 1770 e 1850, estando aí o período do tráfico clandestino. Entretanto,
como bem assinalou Maria Inês Côrtes de Oliveira (1997, p. 40), essas divisões “[...] atendem
apenas a uma necessidade de sistematizar o estudo do tráfico, tomando como base as zonas
mais atuantes em cada período. Isto não deve de forma alguma subentender a exclusão do
tráfico proveniente de outras regiões”.
Na América portuguesa, o porto de Salvador sempre estava agitado com os constantes
desembarques dos navios negreiros vindos da costa africana com africanos de diferentes
procedências. A demanda por mão de obra escrava aumentou no final do Seicentos, com a
descoberta das minas no interior da colônia brasileira. Os dados da tabela 9 apresentam o
dinamismo desse porto ao longo do período vigente do tráfico, com seus momentos crescente
e decrescente. Essas oscilações refletem uma série de fatores ocasionados pelas relações entre
66
baianos, portugueses e comerciantes do Rio de Janeiro que, em situações distintas, buscavam
o monopólio do comércio dos africanos.75
Tabela 9: Estimativas de escravos desembarcados na Bahia, 1582-1851
Ano
# de escravos
Ano
# de escravos
Ano
# de escravos
1582-1700
106066
1751-60
75833
1811-20
113376
1701-10
85719
1761-70
66751
1821-30
99437
1711-20
109283
1771-80
73267
1831-40
12142
1721-30
106962
1781-90
76539
1841-51
64329
1731-40
89985
1791-1800
93259
1741-50
87694
1801-10
89066
TOTAL:
1349724
Fonte: RICHARDSON, Davi ; FLORENTINO, Manolo. The Trans Atlantic Slave Slave Trade: a Dataset online (TSTD 20). Apud RIBEIRO, 2005.
Stuart Schwartz (1988, p. 282), analisando o fluxo constante de africanos nas “docas de
Salvador”, destacou:
[...] apesar de mudanças nas áreas de concentração, a população escrava
baiana sempre foi composta por uma mistura de povos. Mesmo no auge do
tráfico no golfo do Benin, por volta de 1780 – 1820, quando jejes, nagês
(iorubas), tapas (nupês), haussás e outros povos “sudaneses” predominaram
entre os cativos, cerca de um terço dos escravos, nascidos na África
provinham de povos bantos de Angola e da África central.
As tabelas 7 e 8 demonstraram essa característica pluriétnica da população escrava,76
também no interior da província. Para a freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”
localizou-se a presença de africanos de denominações diversas. No conjunto dos contraentes
listei, majoritariamente, 87 minas, 59 angolas, 16 do Gentio da Guiné.77 Em quantidades
menores foram localizados: 08 benguellas, 07 do Gentio da Costa, 06 geges, 05 ganguellas,
03 congos, 03 moçambiques, 02 da Ilha de São Tomé, 01 cabo verde, 01 coirano, 01 cabu e
01 da Ilha do Príncipe. Entre os pais dos contraentes permaneceram entre “minas” e “angola”
os maiores números, sendo 23 pais “minas” e 14 pais “angola”. Outros pais foram
identificados como: 06 geges, 03 benguellas, 01 conga, 01 do Gentio da Guiné, e a presença
de 45 “pretos”, prováveis africanos.78
75
Sobre esses conflitos vide, por exemplo, Oliveira (1997).
Evita-se, neste trabalho, a utilização de aspas nos termos referentes às presumíveis origens de africanos, com o
objetivo de não sobrecarregar o texto com esse recurso.
77
O termo “guiné”, inicialmente, foi utilizado no tráfico como referente a todos os africanos capturados pelo
tráfico atlântico. Soares (2000a; 2000b) e Oliveira (1997) apresentaram importantes discussões sobre este
assunto.
78
Conforme Hebe Mattos (1998, p. 30), a historiografia tem assinalado: “[...] os significantes „crioulos‟ e
„pretos‟ mostravam-se claramente reservados aos escravos e forros recentes. [...] o significante preto até, até a
primeira metade do século [XVIII], era referido preferencialmente aos africanos”.
76
67
Não podemos perder de vista que essas referências dizem muito mais respeito às
representações étnicas do tráfico, como se mencionou anteriormente. A historiografia79 tem
demonstrado como, no contexto da diáspora, os africanos foram identificados não por suas
etnias, mas pelos locais de captura e embarque na África, antes de serem transportados para as
Américas. Sendo assim, os registros de “nações” e “gentios” referentes aos africanos, como
alertou Mariza de Carvalho Soares (2000a, p. 104), “[...] não correspondem, necessariamente,
a um grupo étnico, podendo ser resultado da reunião de vários grupos étnicos embarcados
num mesmo porto [...]”. Desse modo, pode-se pensar como os dados dos “grupos de
procedências”80 majoritários estão encobrindo a multiplicidade das possíveis origens das
populações africanas desembarcadas na América portuguesa.81
A diversidade de africanos, ainda que em números pequenos, localizados na amostra
documental pesquisada, assemelha-se à dos dados revelados por outros pesquisadores,82 que
confirmam essa multiplicidade entre os africanos traficados para a Bahia. Carlos Eugênio
Líbano Soares (2010, p. 83), através de pesquisas aos registros eclesiásticos da Cúria
Metropolitana de Salvador, notou, entre os africanos batizados na Freguesia da Sé, diversos
grupos: jeje, mina, gentio da Costa, nagô, Sabaram, São Tomé, Gentio da Guiné, Afom,
Angola, Ardra, Coda, Goudá, Moçambique, Craban, Crabaré. Prevaleceram os jeje, com
55,5%, seguidos de minas, com 35,4%, os angolas apareceram em apenas 0,2% dos casos.83
A pesquisadora Maria Inês Côrtes de Oliveira (1997, p. 55-56) demonstrou como os
viajantes Spix e Martius, em 1817, registraram “[...] a multiplicidade de „tribos‟ que os
traficantes „camuflavam‟ sob algumas das denominações que escolhiam para marcar a
procedência dos escravos”. Vejam-se alguns trechos dos registros desses viajantes:
[...] Estes sertanejos são obrigados algumas vezes a estender as suas
correrias até o centro da África, através do continente, até Moçambique. Os
escravos por eles aprisionados pertecem às tribos dos cazimbas, schéschés e
schingas; [...]. São embarcados em São Felipe de Benguela e em Novo
Redondo.
79
Soares (2000), Oliveira (1997), Soares (2010), Robim Law (2003), dentre outros.
Adotamos nesta análise a noção de “grupo de procedência” desenvolvida por Mariza de Carvalho Soares
(2000a). Conforme a historiadora: “[...] a noção de grupo de procedência [...] embora não elimine a importância
da organização social e das culturas das populações escravizadas no ponto inicial do deslocamento, privilegia
sua reorganização no ponto de chegada. [...] O que me leva a alterar o enfoque da análise de deslocamentos de
escravos da África para o Brasil é que as formas de organização dos pretos africanos têm tanto ou mais a ver
com as condições do cativeiro do que com o seu passado tribal. Os critérios de filiação a este ou aquele grupo
são definidos aqui, e não na África” (Ibid, p. 116).
81
Vide para o Rio Janeiro, Soares (2000a). Minas Gerais, PAIVA (2001).
82
Oliveira (1997), Líbano (2010; 2002), Reginaldo (2005).
83
Sobre os baixos índices de angolas, Soares (2010, p. 97) ressaltou que se deve “[...] Considerar que os angolas
são efetivamente sub-representados nos registros de batismo, por conta da determinação metropolitana de batizar
estes escravos na própria Luanda, o que aparece fragmentariamente na documentação”.
80
68
[...] Os escravos embarcados em Angola e de originário denominados
somente angolas, descendem das tribos dos ausazes, pimbas, shingas,
tembas [...]. Ao norte dessas regiões o denominado Reino do Congo é muito
freqüentado pelos traficantes de escravos, os portugueses, porém, não têm
nem domínio nem colônias próprias, mas ancoram os seus navios na baía de
Cabinda. Aí recebem eles os escravos que lhes são trazidos das províncias
do norte, Loango e Cacongo, e vão buscar outros portos do rio Zaire ou
Congo, onde os negociam com os chefes do lugar.
Os negros que são enviados daí para o Brasil chamam-se comumente
cabindas ou congos. [...].
Da costa oriental da África (Contracosta) trazem os portugueses,
sobretudo desde a restrição do tráfico na parte norte da Guinéia, muitos
negros para o Brasil. São arrastados do profundo centro da África para
Moçambique e pertencem principalmente às nações macuas e anjicos. [...].
Amparada pela análise de Pierre Verger (1968) e pelo referido relato de Spix e Martius,
Oliveira (Loc. cit.) identificou: “os haussá (ausazes) e os jejes (schéschés). Os jingas (yagas)
provavelmente seriam os “schingas” e os anjicos, dados como provenientes da Contracosta
[...]”.
Assim como as procedências dos africanos foram gestadas no âmbito do tráfico, as
características físicas, psicológicas e socioculturais também seguiram essa lógica mercantil
escravista, como observou Lucilene Reginaldo (2005, p. 149): “Fruto de preconceitos, de
contatos diretos, ou, ainda de interesses econômicos particulares, as qualidades e habilidades
eram, quase sempre, vinculadas à origem geográfica dos africanos”.
Sendo assim, criaram-se nesse contexto “propagandas” que divulgavam as qualidades de
determinado grupo de africanos em detrimento de outro, considerado de forma pejorativa.84
Os traficantes caracterizaram os africanos a partir dos seus interesses comerciais, então:
Os baianos exaltavam as qualidades dos “negros Minas” para os trabalhos
da mineração, por serem mais fortes e resistentes do que os angolas. Os
portugueses, por seu turno, interessados no fim do tráfico com a Costa da
Mina, divulgavam a excelência dos cativos de Angola e do Congo
especialmente pela maior facilidade de serem controlados. A rebeldia dos
“negros Minas” era uma das razões mais proclamadas a favor da
interrupção do comércio na Costa Leste (Op. cit., p. 46).
E os senhores do “Certam de Sima”, será que seguiram essa lógica do mercado do
tráfico nas escolhas dos escravos africanos? Conforme a amostra documental estudada, os
africanos e africanas destinados a esses sertões, frequentemente, faziam parte dos “grupos de
procedências” minas e angolas. Mesmo levando em consideração que esses dois grupos
abarcavam uma diversidade de grupos étnicos, sugere-se maior presença de africanos
84
Lucilene Reginaldo (2005, p. 149-162), desenvolveu interessante abordagem sobre esse aspecto no capítulo 4,
seção I: “Mais amoráveis e dóceis”: tráfico e a propaganda.
69
oriundos da África Ocidental, seguidos daqueles da África Centro-ocidental.85 Por outro lado,
os grupos de procedências minoritários demonstraram relações comerciais com portos da
região oriental. Comparando os dados da tabela abaixo, observa-se equivalência entre as
estimativas do tráfico para a Bahia no decorrer do Setecentos.
Tabela 10: Região de origem dos escravos embarcados para a Bahia (1581-1850).
Ano
África Ocidental
#
%
1581-1700
91594
75,2
1700-50
418633
77,4
1750-1800
262619
62,2
1801-30
153115
44,5
1831-50
38034
41,2
Total
963995
63,3
Fonte:TSTD2 (apud RIBEIRO, 2005).
África CentroOcidental
#
26257
119921
156516
164594
8657
472944
África Oriental
%
# %
21,6 1332 1,1
21,6 1332 0,2
37 2090 0,5
47,8 15368 4,5
9,4
31,1 20125 1,3
Indefinido
# %
2625 2,1
4485 0,8
1218 0,3
11081 3,2
45729 49,4
65138 4,3
Total
#
121808
541371
422443
344158
92840
1522203
Pode-se perceber que as presumíveis etnias localizadas nessa região do “Certam de
Sima” também se relacionam com conjunturas do tráfico. O maior número de escravos minas
listados nas fontes da Freguesia do Orubu, no período de 1721-1759, corresponde à
concentração do tráfico na região da Costa da Mina e Golfo do Benim, assim como a
quantidade de angolas, praticamente a metade do número de minas, confirmam que as
relações com os portos da região-centro-africana continuaram no século XVIII. Miller (1999
apud REGINALDO, 2005, p. 182) apontou que “[...] cerca de 24% dos escravos que deixaram
Luanda entre os anos de 1723-1755, 1794 e 1802-1826 tiveram como destino a cidade da
Bahia”.
As relações entre o porto de Luanda e o da Bahia se intensificaram no decorrer do
Setecentos. Talvez isto explique o aumento considerável no número de cativos angolas, no
decorrer da segunda metade do século XVIII, na Freguesia do Orubu, chegando a ser maior
do que a quantidade de africanos minas. A queda no número de africanos após 1760, de 157
para 77, também pode ter sido consequência de mudanças políticas contextuais. Manolo
Florentino et al (2004, p. 86) indicaram que acontecimentos internos à África acarretaram
85
A distribuição das procedências de africanos, feita por Soares (2000a, p. 109-112), através de pesquisas em
assentos de batismos da cidade do Rio de Janeiro (1ª metade do século XVIII), agrupou as presumíveis etnias por
regiões: Costa Ocidental: “cacheus” (vindos do porto de Cacheu), minas (vindos da baía de Benim), escravos de
ilhas como São Tomé e Cabo Verde. Costa Centro-Ocidental, subdivida em dois subgrupos: congos - congos,
muxicongos, boagas, calindas, monjolos; Angola - massanganas, caçanjes, loandas, rebolos, cabundas,
quissamãs, ambacadas e, mais ao sul os benguelas. Costa oriental (Contracosta): moçambiques, escravos da Ilha
de São Lourenço.
70
mudanças nesse sentido. Sinalizaram que a sucessão de conflitos entre diferentes reinos
africanos, no período de 1724-1727, culminou com a invasão e conquista do Porto de Ajudá
pelo rei de Daomé, Agaja. Os reinos de Daomé e de Oió disputavam o controle das rotas e
portos comerciais litorâneos e, consequentemente, lutavam pela manutenção do comércio de
escravos.
Esses conflitos resultaram em problemas estruturais para Oió e Daomé, inclusive
atingindo de forma ampla o comércio do tráfico, como, por exemplo:
[...] os navios que saíam da Bahia e de Pernambuco alargaram o tempo de
suas expedições – algumas delas chegaram a durar dezesseis meses quando,
normalmente, não gastavam mais de seis. Durante toda a década de 1730 o
comércio na região do porto de Ajudá continuou a deteriorar-se, culminando,
em 1743, com as destruições do porto de Jaquim e do forte português de
Ajudá (Ibid, p. 86).
Além desses conflitos internos entre reinos africanos, a forte concorrência entre
traficantes baianos, gerada pelos altos preços dos cativos, os ataques holandeses aos navios
brasileiros na Costa africana e o impacto da praça mercantil do Rio de Janeiro com a abertura
do Caminho Novo, também, foram fatores que implicaram o declínio do movimento de
africanos no porto de Salvador.
Novas pesquisas a fontes inéditas demonstraram que, mesmo com a abertura do
Caminho Novo, o comércio de escravos e mercadorias continuou dinâmico no “Caminho dos
Currais do Sertão”, ou “Caminho do Sertão”. As pesquisas realizadas por Maria do Carmo S.
Martins e Helenice Carvalho C. da Silva (2006, p. 18-19) revelaram preferência pelo
“Caminho do Sertão” “[que] [...] embora mais longo, se apresentava mais atrativo devido às
facilidades [...], e talvez, menos fiscalizados, o que propiciava os descaminhos de mercadorias
e, sobretudo de escravos”.
A partir dos registros de passaportes remetidos de Salvador para outras localidades,
essas pesquisadoras demonstraram o total de 19.917 escravos (17.632 africanos e 2.285
crioulos) comercializados pelo “Caminho do Sertão”. Para os sertões dos rios São Francisco e
Verde foram emitidos 121 passaportes, dando licença ao trânsito de 291 africanos e 109
crioulos, que iriam habitar as fazendas e vilas das Freguesias do São Francisco. As autoras
destacaram: “[...] toda a escravaria que foi contrabandeada através do sertão fica excluída de
nosso estudo”.
Então, por esses caminhos sertanejos, africanos e africanas continuavam o sofrido
itinerário. Após o desembarque em Salvador, aqueles comprados por senhores dos sertões
baiano e mineiro seguiam a pé, em comboios e, margeando o São Francisco, foram
71
distribuídos às suas novas moradas. O mapa 4 (na sequência) informa sobre esses roteiros
setecentistas. Essas viagens aconteciam com maior recorrência:
[...] pelos meses centrais do ano [...], talvez às condições de temperatura
mais amena e um clima mais seco, nesse período, na região. [...] não havia
escassez de água nem de alimentos por essa via já desbravada, o chamado
inverno brasileiro deveria contribuir muito para que a mortandade dos
escravos durante a viagem a pé fosse reduzida ao mínimo, elevando o lucro
dos comboieiros (MARTINS; SILVA, 2006, p. 14).
Após a traumática travessia atlântica, africanos de diferentes regiões da África, tiveram
que reconstruir suas vidas em novas terras, tendo na bagagem trajetórias pessoais vividas do
outro lado do atlântico e também na diáspora. Segundo Oliveira (1995/1996, p. 177), “um dos
efeitos perversos do tráfico intercontinental de escravos foi o rompimento dos vínculos
familiares e sociais de origem, privando o africano da condição de pessoa social e isolando-o
no novo ambiente”. Mas sabemos que a condição de “pessoa social” não deixou de existir
nem mesmo com a perversidade do tráfico, como demonstrou o impressionante relato de
Baquaqua.86 Interessa compreender de que forma os africanos traficados retomaram suas
vivências sociais e o quanto foram por elas motivados a recomeçar no alto sertão baiano.
Certamente, a rica herança cultural africana favoreceu a reconstituição de suas vidas:
“conseguiram se rearticular e estabelecer traços fortes da sua cultura, bem como constituir
uma identidade entre africanos e afro-descendentes” (FREIRE, 2009, p. 150). Na nova
realidade, recriaram suas práticas através de trocas entre as suas heranças culturais e
elementos de outras culturas ali encontradas (indígena, europeia), que reelaboraram seu
modus vivendi. Dessa forma, “significados culturais de origens africanas eram reinventados
pelos escravos no Brasil, não só para a primeira geração de africanos, mas também para as
seguintes, de cativos crioulos” (LÍBANO; GOMES, 2001, p. 5).
86
O africano Mahommah G. Baquaqua que, capturado pelos traficantes de escravos, vivenciou a traumática
trajetória do tráfico, entretanto nem mesmo essa experiência perversa fez Baquaqua perder a esperança de ter a
sua liberdade de volta. A sua sensibilidade permitiu que ele mesmo registrasse suas experiências da vida escrava.
Esse importante documento foi publicado pela primeira vez em 1854 em Detroit. Consultei a publicação de
partes desse documento publicado em: Escravidão. Revista Brasileira de História, 8, n. 16, mar/ago. São Paulo:
ANPUH/Marco Zero, 1988, com apresentação de Sílvia Hunold Lara. O historiador Paul Lovejoy apresentounos importante estudo sobre identidade no contexto da diáspora africana, tendo como fonte histórica o relato de
Baquaqua. Esse trabalho foi publicado no Brasil em 2002, na Revista Afro-Ásia, n. 27, sob o título: Identidade e
a miragem da etnicidade: a jornada de Mahommah Garbo Baquaqua para as Américas.
72
Mapa 4: Caminhos do sertão: trajetos de boiadeiros, mineradores e tropeiros, séculos XVIII e XIX.
Fonte: IBGE.
Os contatos culturais se faziam cotidianamente, entre os próprios africanos e entre esses
e seus descendentes e, também, com outros moradores das fazendas (portugueses, índios), nas
vivências da lida nas roças e com o gado, nos casamentos e batizados, nos festejos dos santos
padroeiros, nas atividades das irmandades, no ir e vir pelas fazendas e vilas. Essas
experiências possibilitaram a reelaboração das identidades étnicas entre aqueles africanos de
diferentes “nações”. De acordo com Mariza de Carvalho Soares (2004, p. 308),
[...] inicialmente uma identidade atribuída no âmbito do tráfico atlântico,
acaba sendo incorporada pelos grupos organizados no cativeiro e servindo
como ponto de referência tanto para o reforço de antigas fronteiras étnicas e
73
territoriais, como para o estabelecimento de novas configurações
identitárias, sejam elas étnicas, ou não.
A respeito dos possíveis arranjos e conflitos entre diferentes etnias africanas e dessas
com os crioulos, Jonis Freire (2009, p. 151) ressaltou:
As identidades são repensadas como construídas e até inventadas, a
valorização de possíveis identidades culturais provenientes do continente
africano tem aventado possibilidades de se pensar em uma herança cultural.
As particularidades que poderiam levar africanos a um conflito devem ter
sido refeitas, e no Novo Mundo ter se feito mais heterogêneas do que no
continente africano, levando os mesmos a possuírem entre si mais coesão
dentro da comunidade que até então poderia pensar, ou seja, haveria mais
um processo de reconhecimento cultural entre eles.
Nesse processo de recriações identitárias, os africanos utilizaram das suas “bagagens” e
das suas “recordações”. Na memória guardaram suas experiências familiares, comunitárias e
de trabalho, as quais sedimentaram as suas novas vivências no Brasil. Sobre as heranças
culturais de africanos, sobretudo daqueles que vieram da África Central, o historiador Robert
Slenes (1999, p. 143, grifos meus) apresentou importante reflexão:
[...] uma característica comum a praticamente todas as sociedades bantu,
como aliás a quase todas as sociedades africanas, é o fato de que elas se
estruturaram em torno da família concebida como linhagem: isto é, como
um grupo de parentesco que traça sua origem a partir de ancestrais comum.
Slenes observou que, entre as etnias centro-africanas, se desenvolviam pelo menos três
tipos de formação de parentesco: patrilineares, matrilineares ou bilaterais. 87 Contudo, no
Brasil, o contato entre essas especificidades, deu lugar à “gramática de parentesco em
comum”, reconhecendo entre si que a linhagem é o elemento cultural central na organização
de suas relações familiares. Guiavam-se por essa herança cultural de ancestralidade e origem
comum da família-linhagem. Desse modo, “[...] encontrando, ou forjando, condições mínimas
para manter grupos estáveis no tempo, sua tendência terá sido de empenhar-se na formação de
novas famílias conjugais, famílias extensas e grupos de parentesco ancorados no tempo”
(Ibid, p. 147, grifos do autor).
Essa noção de ancestralidade os acompanha: “os africanos levam seus ancestrais
consigo quando mudam de lugar, não importando onde esses ancestrais estejam enterrados”
(KOPYTOFF apud Loc. cit.). Portanto, as raízes culturais de parentesco em comum
possibilitaram aos africanos reorganizarem suas vidas, a partir das relações familiares
conjugais e depois ampliadas na perspectiva da “família-linhagem”. Observa-se que, no
87
Segundo Slenes (1999, p. 147), [...] pessoas de culturas matrilineares, patrilineares ou bilaterais [que traçavam]
a linhagem que situa socialmente o indivíduo, respectivamente através da mãe, do pai ou de ambos os
progenitores [...].
74
interior de fazendas do alto sertão baiano, os africanos reestruturaram suas vidas em torno da
família, inicialmente conjugal e que, com o passar dos anos, se tornava extensa, unindo pelo
parentesco pais, mães, filhos, avós, netos, tios, sobrinhos, primos, ocasionando a formação de
comunidades escravas.
Os estudos de Florentino e Góes (1997) sobre famílias escravas e tráfico atlântico, no
contexto social do Rio de Janeiro, entre a última década do Setecentos até a primeira metade
do século XIX, revelaram relações familiares nucleares, que se tornaram extensas com o
nascimento dos filhos, “[...] englobando um conjunto de três gerações ligadas por laços
consanguíneos. Horizontalmente, os limites do sentimento de pertencer a uma família
chegavam à incorporação de primos” (Ibid, p. 83). Ambos os autores assinalaram a
importância dessas relações e daquelas de parentesco ritual, na formação de comunidades
escravas no interior de escravarias do Rio de Janeiro:
[...] comunidade escrava apoiava-se fortemente no parentesco, e não se
restringia aos limites jurídicos e espaciais dos plantéis – o que pode ser
comprovado pela grande presença de padrinhos e madrinhas oriundos de
plantéis distintos daqueles dos batizandos, e insinuado pelos altos índices de
ilegitimidade da escravaria. Era, entretanto, no interior dos plantéis que a
comunidade cativa encontrava sua expressão maior (Ibid, p. 124).
No interior dessas comunidades escravas as heranças culturais africanas foram
transmitidas, nas convivências entre parentes. Os pais africanos ensinaram aos seus filhos
brasileiros seu modus vivendi. Podemos pensar que, nas práticas cotidianas com as lavouras e
criações, e com as atividades pesqueiras no São Francisco, os africanos se organizaram a
partir de suas experiências pregressas na África. Lá, desenvolviam agricultura, pesca, pecuária
e exploração dos recursos minerais, logo, detinham conhecimentos importantes para o
desenvolvimento dessas atividades também por aqui. Segundo Maria Emília Madeira Santos
(1996, p. 84), os povos da costa ocidental africana, proviam o seu sustento
[...] não só da pesca como igualmente da agricultura e quiçá da pastorícia,
pois também temos notícia da abudância nestas terras de variado tipo de
gado e caprino. O desenvolvimento de actividade pesqueira seja a lacustre,
como acontecia na faixa litoral a partir da barra até Luanda, pressupõe
obviamente a intervenção de outros mecanismos e outras práticas.
Conforme Santos (Ibid, p. 86), esses povos costumavam comercializar o excedente das
suas colheitas e de outras tarefas complementares nas feiras e mercados locais. A experiência
com as águas permitiu que os africanos desenvolvessem o fabrico de embarcações, feitas de
grandes troncos de madeira, “[...] para servir à pesca fluvial, o transporte de pessoas e
mercadorias”. Também eram detentores de importantes técnicas de extração de mineração do
75
ouro e do ferro, além de dominarem antigas técnicas de fundição desses metais (PAIVA,
2002, p. 187).
Essas práticas africanas influenciaram o dia a dia da vida escrava nas fazendas do
sertão. Nas propriedades de senhores absenteístas, o processo de transmissão cultural deve ter
encontrado condições mais propícias para desenvolver-se. Essa condição favorecia maiores
oportunidades aos escravos de guiarem as suas vidas com maior autonomia, relativamente a
outros contextos da escravidão brasileira. É recorrente na historiografia que o processo de
recriação e transmissão identitária foi mais “[...] fácil nas cidades, em virtude de uma maior
mobilidade dos escravos – que a princípio, mais facilmente teriam como encontrar seus
irmãos de nação” (FREIRE, 2009, p. 153).
Entretanto, observa-se que as vivências em grandes escravarias, como as dos Guedes de
Brito, que reuniam mais de 30 escravos na mesma fazenda, com a ausência de senhores
diretos, permitiram alargar os espaços de mobilidade e autonomia e ampliaram a convivência
entre africanos. Uma outra configuração, resultante deste aspecto, é a formação de hierarquias
internas, importante componente na estruturação das famílias e comunidades de escravos e
forros. Cabe aqui ressaltar que esses escravos encontraram na família um lugar essencial para
a transmissão e recriação das suas heranças culturais.
Traços de permanências culturais podem ser observados na formação dos
seus lares, no emprego de uma memória genealógica, por meio dos nomes
atribuídos aos seus descendentes, na formação de uma economia interna, nas
línguas empregadas por componentes (FREIRE, 2009, p. 156).
A trajetória familiar do casal Eugênio e Valéria, presumíveis africanos,88 cativos de
Dom João de Mascarenhas, revelou práticas cotidianas vividas por esses cativos que sugerem
experiências de recriações identitárias. Eugênio e Valéria casaram-se em 22 de Janeiro de
1724. Naquela ocasião já esperavam o nascimento do primeiro filho, ao que tudo indica. No
momento do nascimento, devem ter se surpreendido com a chegada de duas crianças.
Escolheram os nomes Cosme e Damião para os gêmeos recém-nascidos, batizando-os no dia
20 de agosto de 1724,89 sendo padrinho Josephe Gonçalves e a madrinha alguém de
sobrenome Guedes (o primeiro nome está ilegível), presumivelmente mais uma cativa dos
Guedes de Brito.90
88
Sugere-se, pela data do registro do casamento deles (1724), que fossem africanos, tendo em vista que, no
início do século XVIII, os primeiros casais formados nas fazendas dos Guedes de Brito foram constituídos de
africanos.
89
Livro de batizados da Freguesia de Santo Antônio do “Orobu de Sima”, nº 1. Cúria Diocesana de Bom Jesus
da Lapa.
90
As fontes paroquiais consultadas apresentaram os nomes dos escravos dos Guedes de Brito, na maioria das
vezes, acompanhados dos sobrenomes dos seus senhores: Guedes, Silva, Saldanha, Pereira. A historiografia
76
A escolha dos nomes Cosme e Damião indica possíveis referências identitárias desse
casal de escravos. “[...] A atribuição de um nome próprio a uma criança torna-a parte do
mundo social e confere-lhe a sua identidade social” (ALFORD, 1988, p. 51). Neste caso, os
pais dos gêmeos devem ter se inspirado nas suas heranças culturais africanas, 91
especificamente naquelas referentes à religiosidade. Mais do que isso, a escolha dos nomes
Cosme e Damião indica processos de formação identitária no contexto da diáspora. As trocas
culturais entre africanos e portugueses na colônia brasileira, forjaram “associações”, como,
por exemplo, a relação entre os santos católicos Cosme e Damião e os Ibejis,92 divindades
gêmeas iorubanas. Conforme Alaíze dos Santos Conceição (2008, p. 6):
O culto aos santos gêmeos: Cosme e Damião teve seu início no século XVI,
sendo trazido para o Brasil pelos portugueses. Com o passar dos anos, os
santos que se tornaram padroeiros dos médicos, dos farmacêuticos e dos
cirurgiões foram rejuvenescendo e aos poucos se identificando com os
mitos africanos: o orixá Ibeji, responsável pelo nascimento de gêmeos entre
os nagôs. É importante pensar que os novos contatos culturais de uma
sociedade mestiça favoreceram a infantilização dos santos.
Experiências como essas, vividas por Eugênio e Valéria, apontam indícios de certa
“tolerância religiosa” no interior do Brasil colônia.93 Descortinam-se, nesse contexto social,
processos de trocas culturais entre africanos, povos nativos e europeus, proporcionando
práticas cotidianas que reuniam elementos das culturas destes três segmentos populacionais.
apresentou que negros recebiam os sobrenomes dos seus donos quando se tornavam libertos. Portanto,
identificou-se mais uma especificidade da escravidão no “Certam de Sima”, e que merece pesquisa atenta nesse
aspecto, buscando entender possíveis significados dessa prática nominativa. Pode ser que corresponda às
escolhas daqueles escravos que “viviam por si”, em denominarem-se com o sobrenome do senhor. Ou, até
mesmo, tenha sido reflexo de posturas de senhores absenteistas em demarcar suas propriedades escravas. Esse é
um aspecto a ser problematizado em pesquisas futuras. Sobre práticas nominativas em escravarias, ver
importante estudo: Manolo Florentino e Cacilda Machado, “Famílias e Mercado: tipologias parentais de acordo
com o grau de afastamento do mercado de cativos (século XIX); Afro-Ásia, 24. Bahia; 2000: 62-63. Ver
também: Walter Fraga Filho. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910).
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006, p. 295 e, também, Florentino e Góes (1997, p. 88-92).
91
A escolha dos nomes próprios na África apresenta significados específicos. Segundo Saarelma-Maunumaa
(2003 apud Costa, 2004, p. 345), “no pensamento africano tradicional, o nome é a pessoa, enquanto na
concepção européia um nome é um mero rótulo referente à pessoa. Assim em África, uma pessoa não é chamada
de X, é X. [...] Em muitas sociedades africanas, às crianças são tradicionalmente atribuídos nomes de parentes
falecidos. O que indica a crença que a pessoa morta volta para a família através do nascimento do bebê”.
92
Princípio da dualidade, representado pelos gêmeos, na África, sendo estes sagrados. No Brasil são
considerados orixás em alguns terreiros, protetores dos gêmeos e partos múltiplos [...] muitas vezes confundidos
com erês (CACCIATORE, 1977, p. 145).
93
Adotei como referência a abordagem de Stuart B. Schwartz, Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação
no mundo atlântico Ibérico. São Paulo: Companhia das Letras; Bauru: Edusc, 2009. O autor ressaltou: “o tema
deste livro não é a história do tolerantismo religioso, e sim da tolerância, significando um conjunto de atitudes ou
sentimentos. Muitas vezes há um vínculo histórico entre ambos, mas não estão forçosamente associados. O
tolerantismo era amiúde uma solução de compromisso nascida de considerações políticas ou econômicas de
ordem prática, e não de sentimentos de tolerância. Este livro trata, portanto, de atitudes culturais”. Tratou da
questão do tolerantismo e da salvação a partir das ações de homens e mulheres anônimos, demonstrando o papel
ativo desses sujeitos sociais nas sociedades ibero-americanas.
77
Para Stuart Schwartz (2009, p. 274): “[...] a realidade do Brasil, povoado por índios pagãos e
convertidos, escravos africanos e os mestiços nascidos do contato entre eles e os europeus,
criou novas situações de interação que geraram novos tipos de proposições ou intensificaram
a crença nas proposições antigas”.
A escolha feita pelo casal de escravos Eugênio e Valéria dos nomes Cosme e Damião,
revelou possibilidades para aqueles que viviam na condição escrava de “viver e pensar como
e o que quisessem” (Ibid, p. 281). Mesmo participando de uma sociedade hierarquizada pela
política de reis e pelo poder da Igreja Católica, que subjugava as práticas culturais africanas,
criaram espaços nos quais as visões de mundo de africanos e afrodescendentes coexistiram em
meio a outras culturas, muitas vezes reelaborando-as.
Os africanos trouxeram consigo elementos culturais e religiosos que se
combinaram com as crenças e práticas transpostas pelos portugueses,
inclusive muitas práticas e cultos populares que o clero considerava
supersticiosos, impróprios ou heterodoxos (Ibid, p. 301-303).
As irmandades, os cultos afro-brasileiros, como o candomblé, os calundus, as festas e
batuques, sambas que se estendiam após as festividades de santos católicos, constituíram-se
em locus da expressividade das manifestações religiosas e sociais de matrizes africanas. Esses
espaços tornavam-se lugares de sociabilidade entre africanos, crioulos, indígenas e europeus
recriando práticas sociais e conservando outras tradições.
A devoção aos santos Cosme e Damião, prática comum no Brasil desde os tempos
coloniais, é um dos exemplos de recriações culturais ocorridas do contato entre africanos e
ibéricos. Desse modo, divindades africanas como os Ibejis permaneceram veneradas por
africanos escravos no Brasil. Mesmo que por meio da invocação de Cosme e Damião, santos
portugueses, a devoção aos Ibejis da tradição iorubana foi transmitida por gerações.
Em viagens pelos sertões baianos, M. M. Freitas (1947), registrou a continuidade
dessas práticas religiosas. Relatou a experiência do “preto velho” Zacarias, que junto da sua
família viveu em uma das fazendas sertanejas do Oitocentos. O viajante identificou
influências africanas e ibéricas na religiosidade de Zacarias, quando este, em prece por chuvas
no sertão, rogava “ao seu deus Ibeji”. Veja-se a descrição, um tanto romanceada, de Freitas
(Ibid, p. 342, grifo do autor):
De pé, olhando para riba, girando sobre os calcanhares, com a cabeça branca
como a neve, a testa larga e luzidia, numa manhã bonita e esperançosa,
aguardou que o sol despontasse atrás dos verdes montes e abriu os braços
horizontalmente e fez uma súplica ao Criador! Depois, com as mãos unidas e
espalmadas, em postura religiosa, joelhos dobrados sobre a terra fresca do
orvalho, pediu a Ibeji, sob a invocação de São Cosme e São Damião, que
chovesse no sertão baiano antes que aquela gente devastasse tudo e
78
transformasse a bela fazenda da Palmeira em simples tapera, em ruínas, em
nada!
Experiências como essa conduzem a pensar o quanto a condição de “viver por si”, dos
africanos e seus descendentes, escravos das fazendas dos Guedes de Brito, deve ter sido
favorável para essas pessoas praticarem seus cultos às divindades africanas, assim como
faziam nas suas terras de origens na África. Entre silêncios, muito ainda está por ser revelado
sobre a influência da herança cultural africana nas vivências no “Certam de Sima”...
No livro Cada um na sua lei, Stuart Schwartz (2009) revelou trajetórias de alguns
sujeitos na condição escrava que “tentavam viver por si mesmos”, como “[...] a negra
chamada Magdalena, na paróquia de São Gonçalo [Recôncavo Baiano, que] costumava
dançar publicamente o calundu” (Ibid, p. 303). O autor demonstrou que práticas de
tolerantismo e relativismo religioso foram recorrentes entre pessoas comuns que viveram no
mundo atlântico ibérico. Nesta perspectiva, pode-se pensar, a partir das entrelinhas dos
registros paroquiais, alguns vestígios desse tipo de experiência entre os moradores do alto
sertão setecentista, como aquela vivida por Eugênio e Valéria e os seus filhos Cosme e
Damião.
As transmissões e recriações das heranças culturais africanas perpassaram também pelas
vivências entre descendentes de africanos, sobretudo aqueles de primeira geração, como se
verá no segundo capítulo deste trabalho. Para Isabel Cristina Ferreira dos Reis (2007, p. 103),
A experiência de vida familiar do crioulo de primeira geração quase sempre
era diferenciada daqueles das gerações seguintes; ela comumente se dava no
seio da comunidade africana de seus pais. O crioulo de primeira geração
nascia, crescia, se socializava, aprendia os ensinamentos e os
comportamentos culturais oriundos dos membros da comunidade africana,
se afeiçoava a ela e por isto não era raro a edificação de relacionamentos
afetivos e familiares entre os seus membros.
Contudo, é importante destacar que os processos de transmissão cultural atravessavam
gerações. Portanto, os descendentes crioulos de primeira geração tornaram-se irradiadores das
raízes africanas, que são sentidas ainda nos dias atuais. A presença de africanos avós na
comunidade escrava, como Manoel Crus e Domingas Gonçalves, José Pereira da Silva e
Maria da Silva Nunes, que puderam transmitir pessoalmente os ensinamentos dos seus
antepassados africanos aos seus netos brasileiros, descendentes de terceira geração,
oportunizou essas relações de trocas culturais entre gerações.
Tendo em vista a importância fundamental da herança africana nas experiências de
africanos e seus descendentes, busca-se, no decorrer deste trabalho, estudar as suas histórias
de vida familiar e comunitária, levando em consideração as implicações dessas heranças
79
incorporadas nas experiências cotidianas vividas no alto sertão. Para tanto, é necessário
estudar o crescimento vegetativo no interior dessas propriedades escravistas e compreender os
significados dos nascimentos de filhos de escravos nessas fazendas do “certam de Sima”.
Veja-se este aspecto.
2.2.2 REPRODUÇÃO NATURAL: ESCOLHA ESCRAVA X ESCOLHA SENHORIAL.
O marcante número de crioulos, representados nas tabelas VI, VII e VIII, sugere
algumas referências importantes e ajuda-nos a pensar os significados da família cativa, tanto
para os escravos quanto para os seus senhores. O elevado índice de cativos nascidos no
interior de fazendas da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”, indica como
senhores sertanejos contaram com o crescimento vegetativo para a manutenção das suas
propriedades escravistas.
Esses dados sugerem algumas referências importantes. O quadro de baixo índice de
africanos e o marcante número de crioulos, nas fazendas setecentistas dos Guedes de Brito,
representados na tabela 6, ajudam-nos a compreender as origens desses sujeitos sociais.
Demonstram que os Guedes de Brito, para a manutenção das suas propriedades escravistas, se
valeram muito mais do crescimento vegetativo do que do tráfico. Simeão Ribeiro Pires (1979,
p. 245-249) indicou a existência de fazendas sertanejas dedicadas à “procriação de escravos”.
A casa da Ponte mantinha, nos sertões do Rio Pardo, [...] cinco grandes
fazendas de criatório próprio de gado e criatório de escravos. Eis as fazendas
próprias: Canabrava (Rio Pardo); Itibiraba (Rio Pardo Bahia); Bemposta
(Distrito de Serra nova - Rio Pardo); Fazenda Grande (São João do Paraíso –
Salinas); Angicos (São João do Paraíso). [...] Os escravos se destinavam ao
criatório escravo, a cuidar das fazendas e também para serem recrutados,
quando necessário, para os duros trabalhos do Engenho da Mata de São João
na Bahia, conforme se lê das numerosas cartas do administrador Geral aos
Senhores da Casa da Ponte em Lisboa.
Podemos depreender que, além da fazenda Itibiraba na Bahia, as outras propriedades
vizinhas, também às margens do São Francisco, tiveram características semelhantes. Isso se
justifica pelo fato de apresentar baixos números de africanos, taxas elevadas de mulheres e,
também, grande presença de crianças nessas fazendas, sugerindo “[...] que o crescimento
endógeno tenha sido crucial para o incremento do seu nível populacional. Dessa forma, o
tráfico teria um peso muitíssimo menor para essas fazendas [...]” (MACHADO et al 2003, p.
170).
80
Entretanto, há que se considerar esses índices de crescimento endógeno a partir da
perspectiva da agência dos escravos. Ter filhos perpassava também por vontades e escolhas
próprias. Estratégias extremadas, como o infanticídio, o aborto e o suicídio, foram sacadas em
diversas ocasiões:
[...] se colocaram como indivíduos tentando conduzir a própria vida em
meio a condições adversas. Muitos casos demonstram que o ato só era
praticado como último recurso para forçar o atendimento dos desejos ou
como alternativa para escapar definitivamente da escravidão (FERREIRA,
2009, p. 14).
Pesquisas têm revelado que atitudes desse tipo foram recorrentes entre escravos nos
diferentes locais da Bahia. A historiadora Maria de Fátima Novaes Pires (2003; 2009)
localizou, em processos criminais do alto sertão, experiências extremadas de escravos
sertanejos diante dos desmandos senhoriais. Tome-se como exemplo a atitude da escrava Ana
Maria, que conforme a autora (2003, p. 180) foi:
Uma escrava açoitada constantemente, a mando de sua senhora, que
procura fugir ao tormento se lançando à cisterna abraçada aos seus dois
pequenos filhos, talvez numa tentativa de livrá-los da triste sina que lhes
reservava a vida sob a escravidão. Deve também ter pesado para esta
atitude desesperada as preocupações com o futuro das crianças sem a sua
presença. Retirada ainda com vida, foi processada pelo assassinato dos seus
filhos.
Experiências de resistência às vontades senhoriais também foram localizadas entre os
cativos das freguesias de Salvador, revelou-nos o pesquisador Jackson Ferreira (2009, p. 1319); por exemplo, a atitude da “[...] africana Camila, 30 anos, escrava dos também africanos
Domingos e Guilhermina, moradores na freguesia do Pilar, em Salvador, que tentou se afogar
com seu filho Marcos, de apenas cinco meses, no Dique do Tororó”. Vivências como as de
Ana Maria e Camila são fortes exemplos de resistência diante da severidade da escravidão, e
colaboram para relativizar a concepção de “procriação” para atendimento exclusivo de
demandas senhoriais. Por outro lado, é preciso considerar que, diante dessas demandas,
homens e mulheres submetidos ao cativeiro também souberam utilizar desse expediente para
barganhas pessoais.
Uma carta escrita no ano de 1820, por Francisco Pereira de Castro (administrador geral
dos bens da Casa da Ponte no Brasil), endereçada aos herdeiros dos Guedes de Brito, em
Portugal, registrou nas suas entrelinhas atitudes de resistência dos escravos desses senhores
desde o Setecentos, os quais:
Fogem, e entranhados nos desertos perdem-se, como a experiência mostrou
ao Sr. D. João Mascarenhas, e ao Senhor Manoel de Saldanha, que em trinta
e dois anos que pessoalmente administrou, nunca pôde conservar um só
81
escravo mudado das fazendas, como confessa nas cartas escritas de Lisboa e
seus Administradores, que todos se empenharam na mesma diligência, e o
resultado foi achar eu trinta e tantos [escravos] extraviados sem dar serviços
nas fazendas [...] (CASTRO, 1820. In: PIRES, 1979, p. 310) .
É bem provável que, entre os motivos para a fuga94 desses escravos, estivesse a
separação de seus familiares com a mudança para outras fazendas, e até mesmo para o
Engenho da Mata de São João, no Recôncavo baiano. Diante da ameaça de separá-los dos
seus parentes, muitos cativos preferiam o refúgio nas matas do em torno das fazendas,
permanecendo em locais mais próximos, para assegurar o contato com as suas famílias.
Os dados elevados de nascimentos entre os escravos dos Guedes de Brito são sugestivos
da opção dos cativos em constituir famílias e das suas lutas para conservá-las. Como notificou
Slenes (1999, p. 109), sobre escravarias de Campinas, no século XIX, também escravos do
“Certam de Sima” “[...] valorizavam a família conjugal estável, lutavam com empenho para
formá-la e freqüentemente conseguiam realizar essa meta [...], quando havia condições
propícias para isso”.
Nas fontes batismais, localizou-se a presença marcante de crianças nas fazendas
escravistas. Conforme a tabela 11, do universo de 440 batizados, no período entre 1730 e
1790, apenas doze foram de africanos adultos escravos das fazendas sertanejas, a grande
maioria correspondia a crianças nos primeiros dias de vida. Desse modo, nota-se um elevado
índice de natalidade nas fazendas dos Guedes de Brito.
Tabela 11: Faixa Etária dos Batizados
Batizandos
Escravos dos Guedes de Brito
Escravos dos Escravos dos
Guedes de Brito
Escravos de Outros Proprietários
Total
Faixa Etária
TOTAL
CRIANÇAS
ADULTOS
(1730-1757) (1760-1790) (1730-1757) (1760-1790)
90
209
0
01*
300
09
35
134
10
74
293
01
08
9
0
03
4
20
120
440
*Provavelmente escrava adulta, pois não apresenta nome dos pais.
Fonte: Livros 1,2,3,5,7,8 de batizados da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”.
Especificidades da escravidão do “Certam de Sima” revelaram-se nesta pesquisa,
contribuindo para o debate historiográfico que interpreta a vida escrava a partir das
experiências dos próprios escravos. Novas facetas do processo escravista do Brasil rural
setecentista possibilitaram desconstruir visões preconceituosas que negligenciam a
94
Uma importante discussão sobre fugas como mecanismo de resistência escrava apresentaram-nos os
historiadores João José Reis e Eduardo Silva no livro “Negociação e conflito: A resistência negra no Brasil
Escravista”, de 1989.
82
humanidade de africanos e afro-brasileiros. Neste sentido, as trajetórias familiares de
escravos, acompanhadas neste trabalho, apresentaram significados que esses sujeitos sociais
deram para a formação de famílias, para a opção de ter filhos, o que desmitifica a concepção
de fazenda como “criatório de escravos”, reconhecendo esse espaço como de dinâmicas
relações sociais, e não de sujeitos apáticos.
O estudo de José Ricardo Pinho (2001, p. 87) demonstrou a significativa participação de
mulheres e crianças nas escravarias das fazendas do médio São Francisco. Essa situação, para
ele, “[...] sugere ter sido a formação familiar e a reprodução natural uma estratégia adotada
pelos proprietários [dessa região]”. Esses números indicam que as propriedades escravistas
foram mantidas, principalmente, através do crescimento vegetativo, mais do que pelo tráfico
escravos. Assim como assinalaram Carlos A.M. Lima e Kátia A.V. de Melo (2004, p. 156) em
suas pesquisas sobre escravidão na região do Paraná, também os senhores do “Certam de
Sima” “podiam contar com a família escrava para manter ou expandir escravarias”.
Cacilda Machado, Carlos Engemann e Manolo Florentino (2003, p. 185), em pesquisas
sobre fazendas escravistas da América Latina (séculos XVIII e XIX), analisaram, a partir das
especificidades de cada fazenda ou engenho, a composição demográfica dessas unidades
escravistas, observando as influências do afastamento do tráfico nas possíveis formas de
organização familiar e comunitária dos escravos. Concluíram que:
Ao significar o fim da contínua entrada de cativos desarraigados do ponto de
vista parental, o abandono do mercado e padrões incomuns de compras
podem criar melhores condições para o aparecimento e afirmação do
parentesco, e ainda quando não necessariamente assumam feições de grupos
multigeracionais, os arranjos familiares indicam a plena consolidação deste
grupo, da qual por certo derivam profundas conseqüências socioculturais.
Além das consequências do afastamento do tráfico, os cativos das fazendas dos
Guedes de Brito contaram também com outro fator favorável às suas vivências familiares e
comunitárias: o absenteísmo dos seus proprietários, moradores na sede da província da Bahia
e no Reino (PIRES, 1979, p. 232). Desde a formação dessas fazendas, no século XVIII, até o
início do século XIX, com o esfacelamento dos bens da Casa da Ponte, muitos escravos do
alto sertão experimentaram “viver por si”. Distantes dos seus senhores diretos, gozavam de
relativa autonomia e mobilidade. Cabe, no entanto, ressaltar que havia controle senhorial
proporcionado pela maneira administrativa adotada por esses senhores distantes, que elegiam,
inclusive entre os próprios escravos, líderes, capatazes ou feitores para cuidar das suas
propriedades.
83
Para autores como Simeão Pires (Ibid, p. 245), proprietários absenteístas, como os
Guedes de Brito, adotaram a reprodução natural na recomposição das suas posses de cativos
como estratégia vantajosa, diante do custo menos elevado comparativamente ao tráfico 95. Por
outro lado, sabe-se que os laços de parentesco percorreram os processos históricos e se
mostram fundamentais na vida dos sujeitos sociais. Desse modo, tanto para aqueles que
chegaram aos sertões, através do tráfico, quanto para aqueles que ali nasceram, a formação de
laços familiares favoreceu significativamente a sobrevivência sob o cativeiro. Nota-se, nos
registros eclesiásticos dos arquivos pesquisados, uma rica teia familiar formada por cativos da
mesma fazenda ou de fazendas vizinhas, como se verá mais detidamente no segundo capítulo
deste trabalho.
Tarcício Botelho (1998, p. 232) assinalou para o contexto pecuarista do Norte mineiro, a
utilização da reprodução natural pelos fazendeiros e possíveis significados dessa prática na
vida familiar de seus escravos:
A nosso ver, fica claro que, do ponto de vista senhorial, a reprodução
natural é um componente que entra positivamente em seus cálculos
econômicos. Muitos a adotam como estratégia única de manutenção e
ampliação do plantel. Outros, mesmo lançando mão de mercado, não
desprezam sua importância. [...] parece significar também a manutenção da
família escrava. Constantemente preservada, vemos casos de gerações que
se sucedem dentro de um mesmo plantel, trazendo à vida dos cativos nela
integrados um grande fator de estabilidade.
Os pesquisadores Afonso de Alencastro Graça Filho e Fábio Carlos Vieira Pinto (2008,
p. 58) revelaram para a região mineira de São José do Rio das Mortes, entre o período de
1743-1850, que a reposição das propriedades escravistas se deu tanto pela via tráfico, como
também pela reprodução endógena. Demonstraram, a partir da
[...] análise da participação das principais nações e etnias africanas nos
plantéis de São José [...] a interação entre a importação de africanos e a
reprodução endógena nas médias e grandes fazendas, apontando para a
mestiçagem dos plantéis, bem como para uma resistência cultural dos
africanos nas alianças matrimoniais endógenas.
O historiador Roberto Guedes (2008, p. 333), em estudo sobre a estrutura de posse e a
demografia escrava na localidade paulista de Porto Feliz, no decorrer da primeira metade do
século XIX, também identificou, para as propriedades escravistas daquela região, a formação
95
No Inventário, de 1758, do fazendeiro Bernardo Pereira Pinto, que indica maior opção pela aquisição de
cativos via tráfico, os valores dos cativos variaram entre cento e dez mil réis, maior valor, e vinte e cinco mil
réis, menor valor. Inventário e testamento de Bernardo Pereira Pinto (incompleto). Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues
de Magalhães, Paratinga-BA. Documentação não catalogada.
84
através do tráfico e da reprodução interna. Assinalou, entretanto, que esses dois tipos de
manutenção das posses de cativos se relacionavam com o poder aquisitivo senhorial.
Conforme o autor:
A predominância de pequenos e médios senhores, correspondia a
predominância de uma população crioula majoritariamente reproduzida
nestas escravarias, ao passo que a prepoderância de grandes senhores, que
concentravam a propriedade escrava, estruturou-se uma reprodução baseada
em africanos importados, principalmente por estes escravistas4.
A pesquisa empreendida nos registros eclesiásticos da Freguesia de Santo Antônio do
“Orubu de Sima” revelou referências importantes sobre a formação das fazendas escravistas
dessa região. A primeira leva de escravos trazidos no princípio da colonização, com a abertura
dos currais de gado, foi de africanos adquiridos via tráfico. Esses africanos, escravos no
interior dessas fazendas sertanejas, buscaram meios para adaptarem-se ao novo destino
imposto pelo tráfico atlântico. Nessas fazendas encontraram condições favoráveis às relações
mais próximas e aos arranjos familiares.
No princípio do século XVIII, os laços familiares já eram marcantemente presentes
entre os escravos dos Guedes de Brito. Em 1722, João Guedes e Maria Guedes confirmaram a
união com o ritual do matrimônio, assim também fizeram Antônio Guedes e Maria Guedes no
ano de 1723. O africano Manoel do Gentio da Mina uniu-se com a crioula Maria, em 1739 e
ampliou a família com os nascimentos dos seus filhos: Romana (1740), José (1743) e
Maximiano (1746). Manoel Velho e sua filha, escravos de Dona Isabel Maria Guedes de
Brito, apadrinharam a pequena Anna, filha de Magdalena, parceira de Manoel Velho.96
Essas vivências familiares foram ressignificadas no decorrer dos anos, unindo gerações.
Relações conjugais adquiriram múltiplos significados com a ampliação da família através dos
filhos, tios, sobrinhos, primos, e outros parentes consanguíneos, além de compadres e
comadres. Nesse sentido, o sentimento de pertencimento familiar tornou-se o fio condutor da
vida desses africanos que se estabeleceram no “Certam de Sima”.
O nascimento de novos cativos também favoreceu herdeiros de Antônio Guedes de
Brito, que incrementaram as suas propriedades escravistas ao longo do Setecentos. A relação
de escravos da fazenda da Itibiraba apresentada, em 1826, ao sexto Conde da Ponte,
demonstra, por um lado, que esses senhores se serviram da família escrava para manutenção
96
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 1. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
85
de suas propriedades, mas, por outro, também revela como os cativos daquelas fazendas
preservaram seus laços familiares por gerações. Veja-se:
Quadro 01: Escravos da Fazenda da Itibiraba (1826)
Nome
Manoel da Cruz
Ponciana
Romana
Antonia
Sabino
Rosa
Manoela
Francisca
Justina
Cipriano
Antonia
Francisca
Maria
Luiz
Joana
Firmino
Constança
Francisco
Serafim
Leonor
Joaquim
Joana
Vitoria
Brígido
Joaquim
Maria
Manoel
Maria
Antônio
Bernardino
Antônio de Saldanha
Saturnino
Constança
Carlota
Origem/cor
Pardo
Cabra
Cabra
Cabra
Cabra
Cabra
Cabra
Cabra
Cabra
Cabra
Cabra
Cabra
Cabra
Cabra
Cabra
Cabra
Cabra
Cabra
Cabra
Pardo
Pardo
Cabra
Pardo
Cabra
Cabra
Pardo
Pardo
Pardo
Crioulo
Nação
Mina
Pardo
Parda
Parda
Vinculo familiar
Casado
Casado
Filha de Ponciana
Filha de Ponciana
Filho de Ponciana
Filha de Ponciana
Filha de Ponciana
Filha de Ponciana
Filha de Ponciana
Filho de Ponciana
Casada
Filha de Romana
Filha de Antonia
Filho de Antonia
Filha de Antonia
Filho de Rosa
Filha de Rosa
Casado
Casada
Casado
Casada
Viúva
Filho de Vitória
Profissão
Vaqueiro
Vaqueiro
Vaqueiro
Vaqueiro
Vaqueiro
Filho de Maria
Ferreiro
Filho de Ana
Filha de Manoela
Filha de Francisca
Idade
63 anos
60 anos
31 anos
29 anos
16 anos
26 anos
22 anos
16 anos
11 anos
27 anos
24 anos
11 anos
4 anos
2 anos
4 anos
4 anos
33 anos
51 anos
34 anos
39 anos
33 anos
39 anos
19 anos
17 anos
12 anos
18 anos
47 anos
34 anos
50 anos
99 anos
4 anos
8 anos
2 anos
OBS:
doente
doente
FONTE: CASTRO, 1826. In: PIRES, Simeão Ribeiro. Raízes de Minas. Montes Claros, 1979.
Observa-se como os escravos da fazenda da Itibiraba construíram suas relações
familiares no interior da fazenda, lá todos se uniam por algum laço parental. Ponciana,
provável mulher de Manuel Cruz, com seus oito filhos e seis netos viveram juntos por
gerações. Ao longo desses anos de convivência, famílias como a de Ponciana preservaram
suas relações de amor, amizade e solidariedades, sentimentos que amenizavam a condição
cativa, porque para eles: “[...] fazer parte de uma família fazia muita diferença, pois podia ser
86
garantia de amparo nos momentos de necessidade” (REIS, 2007, p. 84). Em outros momentos
da vida social, a família também é importante, pois é sabido que a convivência entre pessoas é
uma necessidade que acompanha a humanidade.
Ficou claro que, para os Guedes de Brito, a reprodução natural continuou sendo a
estratégia principal na manutenção e ampliação das posses cativas de suas fazendas
pecuaristas. Esta opção também esteve na pauta de outros fazendeiros da região sãofranciscana, embora em menor intensidade. Os documentos batismais da Freguesia de Santo
Antônio do “Orubu de Sima” guardam muitos registros de batismos de filhos de escravos,
indicando altas taxas de nascimento de crianças cativas no decorrer do século XVIII.
Maria de Fátima Novaes Pires apresentou, para algumas freguesias do alto sertão baiano
oitocentista, significativos índices de crescimento vegetativo, confirmando a estratégia da
reprodução natural utilizada pelos senhores dessa região desde o Setecentos. A pesquisadora
(2003, p. 78-79) considerou:
[...] elevado índice de crescimento vegetativo na Freguesia de Riacho de
Santana. [...] A partir de 1871 encontramos aproximadamente 579
nascimentos de ingênuos, para um total de 351 homens e 228 mulheres.
Anotamos em quinze inventários de Rio de Contas, do período de 18101887, a presença de cerca de 141 adultos e 51 crianças (até 12 anos), o que
também colabora com a análise de certo crescimento vegetativo entre
escravos sertanejos.
Em outro estudo, Pires (2009, p. 126) ressaltou a permanência desse aspecto nas
fazendas do alto sertão, notificando a presença de famílias escravas estáveis nos inventários
da região. “[...] verificam-se uniões duradouras entre escravos, devido à presença de filhos em
idade adulta. E, assim como em outros autos, registra-se a forte presença da reprodução
natural, responsável pela manutenção de muitos dos plantéis na região”.
Entre os assentos de batismos pesquisados, apurou-se que o proprietário da fazenda do
Riacho, Mathias Bernardes Lima, permitiu por dez vezes o batizado dos filhos de suas cativas,
entre os anos de 1773 e 1787. Outros parentes de Lima também tiveram filhos de seus
escravos batizados. Florêncio Bernardes Lima levou ao batismo, em 1749, “Gonçallo, filho de
Joam e Luzia”, e no ano de 1757, “Rosa, filha de Catarina”, todos seus escravos.97 O patriarca
Antonio Bernardes Lima demonstrou interesse pela reprodução natural desde pelo menos
97
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
87
1743, quando se notam registros de casamentos de seus cativos. Foram notificados cinco
casais de escravos desse senhor que confirmaram suas uniões através do matrimônio.98
Os escravos adultos Luzia “Mina” e Luís “Mina”, dos Bernardes Lima, foram batizados
na fazenda do Riacho. Essa rica família do sertão lançou mão do tráfico e da reprodução
natural para a formação das suas propriedades escravistas, sendo prevalente este último
recurso. Mathias Bernardes Lima, em seu testamento de 1795, registrou a sua propriedade
escravista composta de 88 escravos, mencionados como crioulos, mestiços e mulatos,
provavelmente nascidos em suas propriedades. Ele próprio teve filhos com suas cativas, e
declarou pelo menos três: “[...] tenho três filhos naturais a saber Leam Bernardes Lima filho
de Maria do Nascimento e outros de nome Joana Irmam daquelle e filha della e outra de nome
Escolástica filha da crioula Ignacia Bernardes”.99 No segundo capítulo, este aspecto, com
certa regularidade no “Certam de Sima”, será analisado mais detidamente.
Bernardo Pereira Pinto e seus herdeiros aparecem mais relacionados ao tráfico de
escravos. No período de 1743 até a sua morte, em 1759, localizou-se apenas um registro de
batismo de escrava desse proprietário: “Anna filha legítima de Joseph e sua mulher Joanna”,
nascida na fazenda da Parateca.100 Outro registro, de 1761, foi de Maria de Souza, viúva de
Pinto, que levou à Capela da Parateca a pequena “Anna filha natural de Eleuteria escrava”.101
O inventário de Bernardo Pereira Pinto poderia esclarecer, entre outras coisas, a
composição de sua escravaria, não fosse o estado de fragilidade e descuido da documentação.
Desse inventário e dos autos da partilha conservaram-se apenas o “quinhão da viúva Maria de
Souza” e partes do “quinhão que se dá ao testamenteiro Felix Pereira da Costa”. Nesses,
foram arrolados 24 escravos, sendo 21 herdados pela viúva e 3 pelo testamenteiro, listados da
seguinte forma:
98
Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
99
Inventário e testamento de Bernardo Pereira Pinto (incompleto). Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães,
Paratinga-BA. Documentação não catalogada.
100
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 1. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
101
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 3. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
88
Quadro 02: Quinhão da viúva Maria de Souza e Quinhão de Félix Pereira da Costa.
Escravos
Francisco angola
Pedro angola
Euzébio mina
Francisco angola
Caetana gege (mulher do dito negro)
Jozeph crioulo
Antonio negro (já velho)
Antonio angolla
Manoel crioulo
Jozeph mina
Joanna mina
Bento mina
Silvestre mina
Antonio angola
Matheus angola
Lorença mina
João angola
Leonor gege
Feliciana crioula
Julhio crioulo
Mateus angola
Valor (em réis)
Maria mina
José cabo verde
João Jorge mina
70.000
70.000
110.000
90.000
85.000
100.000
20.000
70.000
40.000
60.000
25.000
100.000
60.000
70.000
54.000
80.000
85.000
35.000
50.000
30.000
80.000
20.000
20.000
30.000
Fonte: Inventário e testamento de Bernardo Pereira Pinto (incompleto). Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de
Magalhães, Paratinga-BA. Documentação não catalogada.
A partir dessa amostra dos escravos dos Pereira Pinto, supõe-se uma relação mais
intensa com o comércio de cativos. Foram arrolados 20 escravos africanos e apenas 4
crioulos, sendo a maior parte composta por homens (19). Estes dados apontam características
de escravarias compostas via tráfico, sendo as mais expressivas a prevalência masculina e a
africanidade.
Retomando a questão da composição de escravarias do alto sertão do São Francisco,
viu-se que proprietários absenteístas, como os Guedes de Brito, optaram, na formação das
suas fazendas, mesmo que em menor quantidade, pela mão de obra africana, sendo que os
primeiros africanos se uniram em relações familiares e contribuíram para o crescimento
populacional no interior dessas fazendas, no decorrer do século XVIII. O fazendeiro Bernardo
Pereira Pinto valeu-se muito mais da compra de cativos com vestígios de laços familiares
entre eles. Os Bernardes Lima, sobretudo Mathias Bernardes Lima, valeram-se tanto da
reprodução interna como do tráfico na manutenção das suas unidades escravistas.
89
Assim como observou Jonis Freire (2009, p. 117), em estudo sobre a composição da
população escrava de três propriedades nas Minas Gerais oitocentista,
[...] as duas opções para o aumento do número de cativos - reprodução
natural e tráfico de escravos - parecem não ter sido excludentes na referida
localidade, mas sim complementares. A opção por uma ou outra dependeu,
sobremaneira, do período de formação das posses, da maior ou menor
proximidade com o tráfico transatlântico e também com o raciocínio
econômico empreendido pelos senhores na busca pelo melhor “modelo”
para a manutenção e/ou ampliação de suas posses escravas.
Apesar das limitações dos documentos estudados nesta pesquisa, observou-se que a
composição demográfica das fazendas se valeu do tráfico de africanos, bem como da
reprodução endógena entre os escravos. Portanto, africanos e seus descendentes (crioulos,
pardos e mulatos) contribuíram na formação cultural dessa nova sociedade colonial no interior
dos sertões baianos. Cabe agora considerar, mais detidamente, o absenteísmo de senhores
proprietários de muitas fazendas do “Certam de Sima”, visto que este aspecto influenciou
experiências sociais daqueles escravos, imprimindo novas mediações sociais e especificidades
da escravidão nos sertões baianos setecentistas.
2.3 SENHORES AUSENTES, SENHORES PRESENTES.
O predomínio do absenteísmo, ou seja, a ausência direta dos senhores das suas
propriedades escravistas foi característica comum nessa região, desde o princípio do processo
colonizador. Capistrano de Abreu (2000, p. 154) ressaltou que “[...] os primeiros ocupadores
do sertão passaram vida bem apertada; não eram os donos das sesmarias, mas escravos ou
prepostos”. Os currais de gado dos Guedes de Brito, presumivelmente, foram conduzidos por
escravos; e tornaram-se responsáveis pela organização das primeiras fazendas da margem
direita do São Francisco. “[...] com suas boiadas escolhia caminhos apropriados para
constituir toscos currais onde deixava, em cada um deles, um casal de escravos encarregados
de zelar por dez novilhas, um touro e um casal de equíneos” (Centro Estadual de
Planejamento Agrícola-CEPA, 1984 apud Vieira Filho, 2009, p. 43).
Outros viajantes que percorreram o Brasil, registraram com certa regularidade a
existência de propriedades de senhores absenteístas. Flávio Rabelo Versiani (2001, p. 18-19),
em estudo a partir dos relatos de Saint-Hilaire, viajante oitocentista, indicou os registros feitos
por esse viajante de fazendas de absenteístas. Segundo Versiani:
[...] ele [Saint-Hilaire] parou no sítio do Pires, que era habitado por um
escravo de fazenda vizinha, „a quem seu dono havia confiado a guarda de
90
duzentas ou trezentas cabeças de gado, espalhadas pelas pastagens dos
arredores‟. Sozinho no sítio, o escravo dedicava-se a criar galinhas e pescar
nas lagoas próximas. Pouco adiante, o caso se repete: o sítio do Andrade,
dependência de uma grande fazenda que fora propriedade dos jesuítas, perto
de Campos [...], era „apenas habitado por dois escravos das fazendas do
Colégio, encarregados de cuidar do gado que vive nos arredores‟.
Os Guedes de Brito também adotaram essa estratégia na ocupação das suas terras no
alto sertão. Viviam na sede da colônia e de lá administravam suas fazendas. Manoel de
Saldanha, segundo marido de Joana Guedes de Brito, após a morte da esposa em 1762,
retornou para Portugal “[...] riquíssimo com o Morgado Guedes de Brito. [...] Vivendo na
Corte de Lisboa, passa a administrar de lá, onde também detinha propriedades, os seus
domínios no Brasil” (PIRES, 1979, p. 232).
Dessa forma, tiveram condições de ocupar suas posses territoriais de uma forma menos
custosa. Lima e Melo (2004, p. 137), ao estudarem fazendas de absenteístas, em Curitiba
(1797), e Castro (1835) no Paraná, identificaram essa prática entre os primeiros proprietários
dos Campos Gerais do Paraná.
[...] o absenteísmo também foi uma característica marcante durante o
processo de ocupação destas terras. Os habitantes de São Paulo, Rio de
Janeiro e Paranaguá, quando iniciaram a exploração das primeiras posses da
região, não fizeram com o intuito de se fixarem com toda a sua família,
formando uma nova comunidade, „mas simplesmente como um negócio a
ser explorado comercialmente, tendo em vista o abastecimento de São Paulo
e, principalmente, das regiões mineradoras do século XVIII‟.
As fontes, nas suas entrelinhas, revelam pequenos detalhes que conduzem a considerar o
absenteísmo dos senhores das fazendas do sertão do São Francisco, os Guedes de Brito,
semelhante ao encontrado para as propriedades do Paraná: “unidades que não contavam com a
presença de seus donos, ficando a administração por conta dos próprios escravos” (Ibid, p.
128). Situação diferente foi a de senhores ausentes de suas posses que preferiam confiá-las a
administradores livres, como concluiu Eugene Genovese (1979, p. 41-43), em suas pesquisas
sobre fazendas escravistas do Caribe, século XVIII.
Os dados apresentados por Pires (1979, p. 309-319), na importante obra “Raízes de
Minas”, a respeito das fazendas do Rio Pardo, propriedades dos Guedes de Brito, auxiliam os
pesquisadores a entender o absenteísmo e suas implicações na vida cotidiana de escravos e
forros de grandes fazendas sertanejas. O autor identificou, no Rio Pardo, as fazendas:
Canabrava, Bemposta, Grande, Angicos e Itibiraba (parte no Rio Pardo e outra na Bahia),
relacionadas, em 1826, no relatório do administrador Francisco Xavier de Souza Castro para a
91
Casa da Ponte. Nesse relatório, registraram-se essas cinco fazendas entregues aos cuidados de
escravos.
É sabido que Spix e Martius (1916) encontraram mulatos fiscalizando fazendas no alto
sertão baiano. Nas propriedades do Rio Pardo, os Guedes de Brito confiavam a fiscalização a
alguns líderes com condição próxima a feitores, muitos deles recrutados entre os seus próprios
escravos. Pires (2003, p. 89, grifo da autora), ao tratar deste aspecto, assinalou: “O sertão
baiano também contava com poucos administradores e mesmo capitães do mato. Não há
referências a feitores, nas fontes pesquisadas, e essa ausência possibilita algumas inferências
sobre ser escravo nessa região”.
Em Fios da Vida, a mesma autora (2009) revelou indícios da vida escrava no alto sertão
e indicou que a relação senhor/escravo perpassou por mediações sociais permeadas pela
política de dominação senhorial e por mobilidade e autonomias dos escravos reconhecidas
pelo senhor. Desse modo, “redes de relações foram constituídas por escravos e ex-escravos
que asseguraram acordos cotidianos com os seus senhores e estenderam conquistas
necessárias às suas vidas” (Ibid, p. 203-204).
Pesquisas futuras aos manuscritos da Casa da Ponte poderão contribuir para um melhor
entendimento da maneira adotada pelos Guedes de Brito na administração das suas
propriedades no alto sertão baiano, podendo lançar luzes nos estudos sobre as relações entre
senhores absenteístas e seus cativos nessa região sertaneja.
Os cativos dessa região contaram com certa autonomia e mobilidade, por exemplo,
alguns deles desempenharam funções importantes na administração das fazendas. No
documento da Casa da Ponte, pesquisado por Simeão Pires (1979, p. 312-316), Manoel
Pereira, Bernardino, Felipe, José e Manoel da Mota, cativos dos Guedes de Brito, que
“desempenharam a função de feitor”, foram apresentados da seguinte forma: (o nome do
escravo, origem) “[...] é o incumbido da Feitoria desta fazenda, e por isso obrigado a dar conta
dos parceiros e de tudo o mais à sua entrega”.
Mesmo que se considere a existência de administradores dos negócios desses
proprietários nos sertões, ainda assim, a responsabilidade diária no interior das fazendas
ficava a cargo dos próprios escravos, isto é, em cada propriedade um escravo era eleito para
exercer o papel da feitoria. Observam-se como características dos escolhidos: escravo, casado,
vaqueiro. A descrição do cativo Manoel Pereira, “incumbido da feitoria” da fazenda da
Canabrava, como “regente e criador”, ajuda a problematizar as intrínsecas informações das
fontes paroquiais e cartoriais, que registraram a presença, nesse contexto, de escravos
identificados como criador, a exemplo, o cativo Faustino Pereira.
92
A formação de hierarquias internas, nas comunidades de escravos que pareciam “viver
por si”, foi também provocada pela intervenção senhorial que, mesmo distante, mantinha
controle de suas fazendas, através de administradores por eles selecionados. Sugere-se que
Dom João de Mascarenhas e Manoel de Saldanha, que, como foi visto, “[...] em trinta e dois
anos [...] pessoalmente administrou [essas fazendas]” (CASTRO, 1820. In: Pires, 1979, p.
310), tenham confiado a administração dessas propriedades a alguns dos seus escravos. A
presente pesquisa não localizou registro de administradores livres, designados pelos Guedes
de Brito, no período estudado. Posteriormente, quando essas fazendas passaram à fortuna do
sexto Conde da Ponte, documentos do início do século XIX registraram a existência de
homens livres administrando as ditas fazendas.102
As funções desempenhadas pelos escravos ocasionavam distinções hierárquicas, sendo
a principal exercida pelo escravo vaqueiro. Como assinalou Pires (2003, p. 93): “O escravo
vaqueiro ostentava entre os seus pares uma posição hierárquica mais elevada, dispondo
também de maior confiança por parte do seu senhor. Era também um escravo de valor mais
alto, devido a sua qualificação profissional”.
As fontes estudadas nesta pesquisa sugerem que as famílias de cativos das fazendas
dos Guedes de Brito buscaram manter uma posição privilegiada na comunidade em que
viviam. O ofício de vaqueiro era transmitido de pai para filho, atravessando gerações. A
pesquisa à família de Manoel Crus, escravo, vaqueiro da fazenda da Itibiraba, traz indícios
dessa situação. Vejam-se vestígios dessas trajetórias:
Manoel Crus (pai), casado com Domingas Gonçalves; tiveram um filho, a quem deram
o mesmo nome do pai, Manoel Crus (filho), este casou-se com Brites crioula com quem teve
pelo menos dois filhos, Maximiano (1744) e Ignácia. Viúvo, em 1747, uniu-se com Felícia,
escrava da Itibiraba, desta união nasceu, no ano de 1754, o filho também nomeado de Manoel
Cruz (neto).103 Este, provavelmente, é o mesmo Manoel Cruz listado entre os escravos da
tabela 12, pai dos escravos vaqueiros Cipriano e Sabino (bisnetos).
Observe-se como essa família se preservou em posição destacada nas hierarquias
sociais internas na fazenda da Itibiraba. Entre os vaqueiros dessa fazenda, estiveram membros
de quatro gerações da família de Manoel Cruz. A convivência familiar atravessa o século
XVIII, chegando, pelo menos, até a primeira metade do Oitocentos. A transmissão da função
102
Os documentos referidos constituem-se em relatórios de administradores dos bens da Casa da Ponte
localizados no Brasil. Esses documentos estão sob a guarda do Arquivo da Casa da Ponte em Lisboa e foram
pesquisados por Simeão Pires, que publicou alguns deles no livro Raízes de Minas (1979).
103
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
93
de vaqueiro, entre os filhos da família Cruz, assegurou hierarquias nas relações comunitárias
entre cativos desses senhores absenteístas.104
Acompanhar alguns passos de cativos de outros proprietários, também, tornou-se
necessário a esta pesquisa. Sendo assim, foram selecionadas trajetórias de alguns escravos de
dois ricos fazendeiros, aqui já citados, Bernardo Pereira Pinto e Mathias Bernardes Lima,
ambos proprietários de fazendas situadas nas terras consideradas como do mega-latifúndio
dos Guedes de Brito. Diferentemente dos Guedes de Brito, esses fazendeiros moravam em
suas propriedades. Dessa forma, seus escravos vivenciaram experiências distintas daquelas
cativos dos Guedes de Brito, pois contaram com a presença do senhor de modo mais rotineiro.
Perscrutar, nas fontes, experiências de escravos de fazendeiros absenteístas e também
daqueles que conviveram com os seus senhores favoreceu uma abordagem comparativa, na
qual se podem observar situações diferenciadas, nesse contexto, do processo escravista. No
decorrer do texto, apresentam-se algumas dessas vivências cativas, almejando entender quais
as implicações para a vida escrava da presença ou ausência dos senhores dessas fazendas do
sertão de cima.
104
A organização das fazendas dos Guedes de Brito, às margens do São Francisco, conservou-se fundada por
essas hierarquias internas ocasionadas, sobretudo, pela distinção das funções desempenhadas nos trabalhos nas
fazendas. Em entrevista concedida, em 2005, pelo Sr. Viturino Pereira de Castro, morador e ex-vaqueiro da
fazenda da Volta, observei a continuidade dessas práticas. O Sr. Viturino me contou: “Meu bisavô foi o escravo
Roque, Antônio, Procópio e eu fomos vaqueiros da fazenda da Volta”. “Seu Vitorino” falou com orgulho da sua
função de vaqueiro, que atravessou as gerações do seu bisavô, o escravo Roque, do avô Antônio, de Procópio,
seu pai que transmitiu a função para ele, conservando na família o importante papel de ser vaqueiro no contexto
das grandes fazendas pecuaristas do sertão.
94
3 FAMÍLIAS E COMUNIDADES DE ESCRAVOS E FORROS NO
“CERTAM DE SIMA”: CASAMENTOS E BATISMOS
3.1 EXPERIÊNCIAS FAMILIARES E COMUNITÁRIAS: SOCIABILIDADES,
AUTONOMIA E MOBILIDADE.
A autonomia e mobilidade oportunizadas pelo absenteísmo, contribuíram para esse
“viver por si” e viver pelos seus dos escravos nas fazendas dos Guedes de Brito. Essa questão
é central neste trabalho, e ilumina nossas indagações a respeito da escravidão setecentista no
alto sertão baiano. Percorrer trajetórias familiares, nesse contexto, permitiu conhecer
especificidades do processo escravista colonial, identificando os significados da família e da
comunidade para os próprios escravos em suas experiências cotidianas. Os cativos puderam
manter convivências mais “estreitas” e constantes, haja vista que o controle senhorial foi
exercido através de intermediários, geralmente, por escravos das mesmas fazendas.
Depreende-se, das fontes estudadas, que os escravos e forros dessas fazendas sertanejas
estiveram envolvidos por relações familiares intensas, que ocasionaram a formação de uma
comunidade, na qual todos estiveram ligados por laços de parentesco, fossem consanguíneos,
ou pelas práticas de compadrio. Sendo assim, compartilhavam de uma nova identidade105
gestada em meio às influências locais, bem como do antepassado comum: a ascendência
africana.
O historiador Carlos Engemann (2005, p. 182) defende que
[...] a proliferação das alianças parentais conduz, de modo geral, à formação
de uma identidade mais abrangente: a comunidade. O transcorrer das
gerações em convívio produz um efeito gregário, o que fornece a amálgama
é a existência de antepassados comuns e de símbolos e crenças –
freqüentemente aprendidos desses antepassados – que também são
partilhados pela maioria dos membros da comunidade.
As famílias escravas, enraizadas no interior dessas fazendas, entrelaçaram-se em
relações diversas, estabelecidas no convívio comunitário. Cotidianamente, tornavam-se
compadres, estreitando, ainda mais, os relacionamentos entre escravos vizinhos ou moradores
105
Os historiadores Flávio dos Santos Gomes e Carlos Eugênio Líbano Soares (2002) chamam atenção quanto
aos percursos viáveis às interpretações históricas das identidades escravas. Conforme os autores (Ibid, p. 7): “É
fundamental abordar as identidades, articulando tanto as construções do tráfico negreiro e as políticas de
domínio, como o movimento histórico de agentes e contextos diversos, no caso as experiências forjadas pelos
próprios africanos e seus descendentes na diáspora.” O presente trabalho, ao abordar identidades escravas,
amparou-se em estudos que adotaram perspectiva de abordagem semelhante à referida por Gomes e Soares
(2002), dentre os quais destaco: Slenes (1999); Soares (2000). No importante artigo “Identidade e comunidade
escrava: um ensaio”, publicado na revista Tempo, n° 22, a historiadora Sheila de Castro Faria apresentou uma
reflexão historiográfica sobre a formação de identidade e comunidades entre africanos e quais as implicações das
heranças culturais africanas nesses processos.
95
em outras fazendas. Reforçavam antigas amizades, assim como construíam novas, buscando
trocas de solidariedades.
Além das solidariedades, os membros dessa comunidade vivenciaram prováveis
situações conflituosas que poderiam ser causadas em virtude das diferenças étnicas, embora,
como vislumbraram historiadores como Flávio Gomes (1995) e Robert Slenes (1999), a
pluralidade étnica de africanos escravos no Brasil não tenha impedido a formação de
comunidades entre aqueles que viveram a experiência da escravidão. As hierarquias internas,
certamente, estabeleceram conflitos nas vivências comunitárias, devido às distinções nas
ocupações e papéis desempenhados na vida em comunidade.
Por outro lado, entre os escravos dos Guedes de Brito, que viviam distantes das vistas
dos donos, as hierarquias serviram como meio de organização social dessa comunidade, que,
como qualquer outra,viveu experiências de solidariedades e de tensões cotidianas.
Essa “comunidade escrava” não era fechada aos escravos dos Guedes de Brito, esteve
aberta a cativos de outros proprietários, livres ricos e pobres, e forros, que, nas relações de
vizinhança ou nas alianças de compadrio, também participavam desse convívio comunitário.
A autonomia e mobilidade vivenciadas por esses escravos que pareciam “viver por si”,
contribuíram para o “viver pelos seus”, ou seja, a possibilidade de guiarem suas vidas
permitiu alargar os espaços de sociabilidades e convívio social entre parentes e os demais
companheiros da comunidade.
O poder “ir e vir”, transitar de uma fazenda para outra, percorrer longos trajetos,
muitas vezes acompanhados de parentes e amigos, parece ter sido uma situação regular para
aqueles escravos. Nessas viagens, visitavam companheiros e conhecidos e convidavam-nos
para apadrinhar seus filhos. Os registros paroquiais da Freguesia do Orubu são testemunhas
dessas vivências e demonstram como os batizados e casamentos alargaram os espaços de
sociabilidades daqueles envolvidos na comunidade escrava. Conforme Carlos Engemann
(2005, p. 189):
Ainda que formada em maior ou menor grau, a comunidade escrava
certamente forçava o uso de espaços sociais, temporais e físicos de ação dos
escravos. Não se quer aventar que tais espaços fossem apanágio das
comunidades cativas, aliás, elas só se valiam deles por serem reconhecidos
na sociedade colonial. O diferencial talvez estivesse na amplitude do uso. A
pia batismal é um dos espaços mais loquazes que se pode citar.
O casal de escravos Pedro Cavalcante da Sylva e Anasthacia da Sylva, moradores na
Fazenda da Volta, percorreu um longo caminho para batizar uma de suas filhas, a pequena
Thomazia. Seguiram em viagem até a Igreja Matriz, local escolhido para o ritual,
96
provavelmente acompanhados dos futuros compadres “Siman da Sylva Ferreyra casado e
Inocência do Espírito Santo solteyra e escrava também de Manoel de Saldanha”.106 De acordo
com os caminhos apresentados no roteiro de Quaresma Delgado (1734), a distância entre a
dita fazenda e a matriz correspondia aproximadamente a vinte e duas léguas, percorrida em
cerca de vinte horas.
Entretanto, é provável que tenham parado para descansar, sobretudo devido à presença
da criança. Ao longo do caminho, outras fazendas e sítios, habitados por livres, escravos e
forros sugerem encontros e conversas ao longo da viagem. Afloram, sutilmente, das atas
paroquiais, estratégias cotidianas como as que, possivelmente, fizeram Pedro e Anasthacia ao
escolherem um local mais distante para o batismo, situação que possibilitava outras
sociabilidades, para além daquelas experimentadas no universo da fazenda onde moravam.
Além desse aspecto, as atas informam números elevados de escravos que se afastavam
das suas rotinas de trabalho para realizar compromissos próprios com seus familiares. A
historiografia tem demonstrado que, geralmente, os senhores optavam por realizar cerimônias
coletivas e nos dias de “folga” dos escravos: “Os grandes fazendeiros comumente esperavam
até ter uma „safra‟ de batismo e casamentos para serem celebrados todos juntos: uma maneira
de tornar o uso do tempo mais eficiente [...]” (SLENES, 1999, p. 93-94).
O conjunto documental pesquisado indica uma constante participação de escravos do
sertão em casamentos e batizados, eventos que aconteciam diariamente na Igreja Matriz e no
Santuário. Têm-se notícias de que, na gruta do Bom Jesus da Lapa, batizados e casamentos
aconteciam desde o final do século XVII, quando a gruta passou a ser local de visitação após
a chegada do Monge Francisco da Soledade. Estas atividades devem ter se intensificado, a
partir de 1706, quando o Monge se tornou sacerdote, por intermédio do Arcebispo Dom
Sebastião Monteiro da Vide, podendo ele mesmo administrar os sacramentos (SEGURA,
1987, p. 118).
Os escravos deslocavam-se constantemente para batismos e casamentos, seja
percorrendo distâncias maiores, como fez o casal Pedro e Anasthacia, seja em percursos
menores entre fazendas vizinhas. Cerimônias coletivas também foram realizadas no alto
sertão. Além das desobrigas nas fazendas, batizados conjuntos aconteceram na Igreja Matriz e
no Santuário. No entanto, entre os escravos dos Guedes de Brito não se observa esse tipo de
prática com muita frequência. Tal prática não parece muito usual na primeira metade do
século XVIII, mas intensifica-se nas décadas seguintes. Nas fontes consultadas foi possível
106
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa-BA.
97
notar alguns registros, por exemplo: o casal Jheronimo da Silva e Adriana Mascarenhas, que,
juntamente com a forra “Maria crioulla”, batizaram seus respectivos filhos, Caetana e
Bernardo.107
“Aos des dias do mês de septembro de mil e Sete Centos e quarenta e seis annos” 108, o
referido casal de cativos saiu da sua moradia na fazenda do Curralinho, para batizar Caetana
na Matriz, no mesmo dia escolhido pela mãe de Bernardo. Naquela ocasião, estiveram
presentes os padrinhos da pequena Caetana, “Eugenio crioullo captivo e Maria crioula escrava
de Thomas Carvalho”109 e, também, “Cosme crioullo escravo de Manoel de Saldanha e
Antonia Pinto preta forra cazada com Thome também forro”, que batizaram “Bernardo filho
de Maria crioulla forra e pay incognito”110.
Saltam aos olhos as múltiplas anotações que informam sobre relações entre escravos e
forros; relações perpassadas pelas sociabilidades oportunizadas em cerimônias de casamento e
batismos, que deixam entrever a permanência de amizades com antigos companheiros de
condição escrava. O Santuário do Bom Jesus da Lapa foi palco dessas sociabilidades que
envolveram os moradores da gruta e dos seus arredores, como também visitantes, devotos e
peregrinos que visitavam o Santuário.
Os cativos dos Guedes de Brito, moradores das fazendas próximas à Gruta,
principalmente os da fazenda Itibiraba, construíram relações com alguns desses visitantes. A
escrava Joana, ao batizar sua filha Claudina, em 1779, no Santuário, escolheu como
compadres Ignacio Pereira e Florência de Tal, ambos solteiros e moradores na Freguesia do
Japoré, Bispado de Pernambuco.111
Domingas, crioula, escrava do Fidalgo Manoel de Saldanha, moradora nos Campos de
São João, confiou o seu filho Sutério aos compadres “Izidoro Correa Dultra, solteiro, homem
cavalariano, morador nas Minas Gerais, e Caetana Maria, solteira, moradora na Freguesia de
S. Romam”.112 Sugere-se que as escolhas por compadres de outras regiões foram possíveis a
partir do contato entre essas pessoas, proporcionado pelo espaço do Santuário; provavelmente
os visitantes retornavam, preservando os laços de amizade feitos quando vieram a primeira
vez.
107
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 1. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
108
Ibid.
109
Ibid.
110
Ibid.
111
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 3. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
112
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 5. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
98
Os irmãos Domingos Correa Ximendes e Maria da Soledade, moradores na Freguesia de
Japoré, Bispado de Pernambuco, em suas visitas ao Santuário, foram padrinhos pelo menos
duas vezes. No ano de 1777, foram escolhidos por Anna Bernarda, escrava de Manoel de
Saldanha, para batizarem a sua filha recém-nascida, Leonarda. Naquela mesma ocasião, Maria
da Soledade, ao lado de Antônio Correa das Virgens, batizou Guiomar filha de Jozepha,
escrava de Simplício Poderozo.113 Quatro anos depois, o casal Manoel Rodrigues e Brites
Maria Gomes confiou, na gruta do Bom Jesus, o filho Antônio aos compadres Domingos
Correa Ximendes e Maria da Soledade.
O nome Maria da Soledade remete a pensar que essa moradora da Freguesia do Japoré
tivesse pais devotos da “Senhora da Soledade”, venerada pelos romeiros e fiéis da gruta, pois
a homenageou dando à filha o mesmo nome da santa. Por sua vez, Maria da Soledade parece
ter se tornado devota, como os seus pais, visto que, junto do seu irmão, visitava o Santuário
com certa frequência.
Senhores de diferentes locais traziam seus cativos ou permitiam que eles participassem
de atividades no Santuário. Cativas do Dr. Pedro Paulo, por exemplo, em 1781, estiveram
juntas por ali para batizarem seus filhos. Magdalena, mãe de Pedro, batizado pelos compadres
José Ramos Oliveira, solteiro, e Bernarda Pereyra, sua companheira de cativeiro; Inocência
escolheu Theodozio Gonçalves, casado, e Ana de Nazareth para serem os padrinhos do seu
filho Sabino. Outro escravo desse mesmo senhor, Luiz, encaminhou-se em 1783 ao Santuário,
junto com Anna, crioula, forra, para batizarem a pequena Ilaria, filha de Mariana cativa de
Manoel de Saldanha.114
Em 30 de junho de 1757, pela manhã, o senhor da fazenda da Malhada trouxe dois
casais de escravos para receberem as bênçãos matrimoniais na Gruta do Bom Jesus. “Sendo
todo feito diante do povo que estava na missa”, casaram: “Luís, nação mina, com Gracia,
nação Angola” e “Joze Mina com Jozepha da Silva, crioula”.115 Além de trazerem os seus
cativos, os senhores também participavam diretamente das atividades do Santuário, batizando
seus filhos e/ou sendo padrinhos. Alguns vinham em grupos de parentes como foi o caso do
batizado de Venerando, em 1758. Seus pais, Cypriano Nunes e Maria Vieira de Barros, junto
113
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 3. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
114
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 7. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
115
Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
99
com seus parentes, Manoel Vieira de Barros e Theodora Mendes, vieram do Sítio de Santa
Rita para o dito batizado.116
Alguns desses escravos se envolveram em relações de compadrio, tornando-se
compadres de visitantes da Gruta. Anna, cativa do Santuário, foi escolhida por Anastácia,
escrava de José Pereira Vila Nova, para apadrinhar a sua filha Simplícia. Naquele mesmo
momento, outra cativa do Santuário, Joanna, tornou-se comadre do casal Manoel Gonçalves e
Clemência Maria, ao batizar Maria, filha destes.117
Outras relações afetivas e de companheirismo vivenciaram os cativos do Santuário.
Antônio da Soledade e Maria da Conceição, pretos, uniram-se, crescendo a família com a
chegada da filha Anna, em 1750, sendo esta batizada por Manoel Cardoso e sua mulher
Antônia Pires.118 O casal José e Fabrícia, ao batizarem a filha Basília, preservou a amizade
pelos companheiros Gonçalo e Ana, escravos do mesmo Santuário.119
Foram comuns os festejos comemorativos após as cerimônias de casamentos e
batizados coletivos. Lycurgo Santos Filho (1956, p. 129) assinalou:
[...] num assentamento de 1798, noticiou a celebração de batizados e
casamentos, num só dia, de escravos da viúva do Familiar, sua sogra. Esse
era um velho costume: Convidava-se o sacerdote à fazenda para a
celebração simultânea dos sacramentos, seguindo-se uma festa ou
“função”, com distribuição de aguardente e rapadura aos negros que, por
certo, se entregariam ao batuque ao som dos atabaques e ao repenique das
violas.
As fontes estudadas neste capítulo não esclareceram sobre a organização de festas
após os rituais de batismo e casamento. Entretanto, este costume deve ter se estendido entre os
escravos das fazendas dos Guedes de Brito. A cultura ibérica, sobretudo os festejos em torno
dos santos e padroeiros trazidos para o Brasil no processo colonizador, também, foi fator
influenciador nas práticas festivas da vida nos sertões coloniais.120
Em Fios da Vida, Pires (2009, p. 265) trata desses momentos de festa e
comemorações: “Nos espaços das pequenas vilas/cidades, roças e arrabaldes, em suas casas
ou senzalas, escravos e forros transgrediram os limites da condição escrava e criaram espaços
116
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 5. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
117
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 7. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
118
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
119
Op.cit.
120
Dentre outros trabalhos publicados sobre festas no Brasil, tem-se importante trabalho que reúne artigos de
diferentes historiadores, resultados de pesquisas dos mais diversos significados das práticas festivas em
contextos brasileiros da Colônia ao Império. Publicado em dois volumes, sob o título de: Festa: Cultura e
Sociabilidade na América Portuguesa, sendo organizadores István Jancsó e Iris Kantor (2001).
100
de liberdade em seus encontros festivos e nas improvisadas diversões cotidianas”. A autora
apresenta como no alto sertão as festas católicas atraíram a participação desses sujeitos sociais
(Op. cit., p. 243). Para a Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”, temos notícia de
que o padroeiro da Matriz, Santo Antônio, já nos finais do século XVII, era festejado por
aqui. “Celebravam com grande solenidade religiosa a festa do orago” (SEGURA, 1987, p. 36)
organizada pela Irmandade de Santo Antônio de Pádua,121 que, desde o século XVII, “era
comemorada com a pompa sertaneja de então, com vésperas, missa cantada de canto de órgão
(compromisso da Confraria de Santo Antonio de Pádua, cap. V, f.8)” (MAGALHÃES, 2006,
p. 30).
Outros santos eram festejados, como Nossa Senhora do Rosário e São Gonçalo do
Amarante, também organizados por irmandades, a partir de meados do século XVII (Loc.
cit.). Livros de assentos de óbitos trazem informações a respeito da participação de africanos e
crioulos, escravos e forros na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Por
exemplo, “Domingos Dias preto forro, cazado [...] foy em commendado teve acompanham da
Irmandade do Ruzario dos Pretos [...]”.122
Depreende-se que, se as irmandades os serviam na hora da morte, certamente escravos e
forros estiveram presentes nos festejos e novenas dedicados a estes santos, organizados pelas
irmandades. Não foram localizadas informações mais detalhadas dessa irmandade, no entanto,
até os dias atuais, encontra-se em Paratinga-Bahia (antiga vila do Urubu) a Igreja dedicada a
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos (vide foto na sequência).
121
Segundo Monsenhor Turíbio Vilanova Segura (1987, p. 35): “no arquivo paroquial de Paratinga, outrora tão
rico em documentos, que barulhos e esbulhos fizeram desaparecer no século passado, encontramos um
manuscrito em papel imperial, com lindas orlas e a imagem desenhada a pena, forrado com veludo. Contém o
compromisso da Irmandade de Santo Antonio erigida de novo na Capela do glorioso santo, sita no sertão, Rio
São Francisco, em um sítio chamado Urubu. Ano 1695”.
122
Livro de Registro de Óbitos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n 2°. Cúria Diocesana de Bom
Jesus da Lapa.
101
Fotografia 5: Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, Paratinga-BA. Fonte: Acervo Particular de Francelina
Maria Coelho.
Foi comum, nas diversas regiões do Brasil colonial, a devoção a Nossa Senhora do
Rosário, sobretudo entre os negros. Como assinalou Vera Lúcia Amaral Ferlini (2001, p.
457), “a festa do Rosário [foi] a mais tradicional dentre as festas dos negros”.123 Nos sertões
do São Francisco, Spix e Martius (1981) registraram, no início do século XIX, festejos de
Nossa Senhora do Rosário, provavelmente organizados pelos negros, tendo à frente um
sacerdote também negro. Relataram:
Os perigos desta viagem foram nos descritos por muitos práticos do
caminho, vindos de Urubu e de outros povoados, distantes alguns dias de
Malhada, por ocasião da festa em honra de Nossa Senhora do Rosário,
padroeira dos pretos e mulatos, com o seu sacerdote de igual cor (Ibid, p.
116).
Provavelmente, “os perigos” vistos nesses festejos por aqueles informantes, vindos do
Urubu, revelaram indícios de movimentação intensa de negros, escravos ou forros, em torno
dos festejos da padroeira, Nossa Senhora do Rosário.
São Gonçalo do Amarante foi outro santo bastante festejado no “Certam de Sima”.
Vestígios da antiga devoção dos sertanejos a esse santo estão presentes no testamento do rico
fazendeiro e Capitão-Mor Mathias Bernardes de Lima:
123
Ferlini (2001, p. 457-458) apresentou trecho do importante relato que Koster fez sobre a festa de Nossa
Senhora do Rosário, celebrada no mês de maio pelos negros. O autor registrou aspectos da organização e
participação dos negros nesses festejos, por exemplo, elegiam rei e rainha que eram coroados nesta ocasião, com
muitas danças ao som de tambores. O relato de Koster utilizado pela autora consta no livro: Henry Koster.
Viagem ao Nordeste do Brasil (1816). São Paulo: Nacional, 1942.
102
Declaro que esthou principiando a fazer huma caza de Oração dedicada a
Sam Gonçalo do Amarante aqual quando por meu fallecimento não esteja
acabada meu Testamenteiro acuida da minha fazenda acabara de fazer
epreparar acujo Santo e Caza de Oraçao deixo para a sua conservaão as
duas fazendas que possuho no Riacho e Canabrava com cem vaca em cada
hua dellas para o Rendimento delle Ser para a ditta Caza de Oração [...].124
O estudo realizado por Christiane Rocha Falcão (2006) sobre a dança de São Gonçalo
do Amarante, no povoado de Mussuca (Laranjeiras-Sergipe), revelou influências africanas no
culto a esse santo português. A musicalidade presente nessa dança apresentou-se com o ritmo
sincopado, típico do samba, maxixe e do choro. A caixa, instrumento tocado na dança de São
Gonçalo, segue essa tendência musical. Conforme a autora (Ibid, p. 9-10):
Desse ritmo, tem-se a continuidade da característica negra, o requebro nos
quadris aplicado pelos figuras [são aqueles que dançam], principalmente
quando do toque da chula. [...] também as indumentárias dos figuras
guardam em si significados culturais negros. Os colares coloridos não eram
simples adornos, mas sim contas africanas de culto aos orixás, introduzidos
pelos escravos.
Pode-se presumir o envolvimento dos africanos e de escravos nascidos no “Certam de
Sima” nos folguedos dedicados à São Gonçalo do Amarante, realizados nesse contexto
setecentista. Como indicou Pires (2009, p. 242), esses sujeitos sociais “vivenciaram na região
elementos da religião afro-brasileira, principalmente em sambas e batuques”.
Festejos cristãos também aconteceram no Santuário do Bom Jesus desde os tempos do
Monge. A introdução da nova imagem de Nossa Senhora da Soledade na Gruta da Lapa
causou grandes festejos comemorativos: “Tanto que a Santíssima Imagem chegou à Lapa foi
recebida com muitos festejos, muitos tiros, muitas luminárias e com a maior festa que se lhe
podia fazer e com muita alegria de todos, foi colocada na Capela-mor” (SEGURA, 1987, p.
108).125 A presença escrava nesse Santuário, amplamente demonstrada nos registros
paroquiais, foi confirmada pelo viajante Richard Burton (1977, p. 233, grifo meu) ao relatar
que “[...] ali [no Santuário], sentados em um banco, alguns desocupados, principalmente
negros, gozavam o ar fresco, vindo da ipueira embaixo”.
Esses festejos da Freguesia do Orubu aconteciam em locais (Matriz, Santuário, Casas de
Oração) constantemente frequentados por escravos e forros que, juntamente com as suas
famílias, não apenas participavam de encontros festivos, mas influenciavam a maneira como
124
Testamento de Mathias Bernardes de Lima. Fórum Nivaldo Rodrigues de Magalhães. Paratinga-BA (não
catalogado).
125
De acordo com Segura (1987), esta informação consta na biografia do monge escrita pelo Exmo. Sr.
Arcebispo da Bahia, Dom Sebastião Monteiro da Vide, que passou essas informações para o escritor da obra
“Santuário Mariano e Histórias das imagens milagrosas de Nossa Senhora”, dedicada ao referido Arcebispo e
editado em Lisboa no ano de 1722.
103
eles aconteciam. A historiografia tem demonstrado como as festas cristãs se alargavam com
os batuques, sambas, chulas, marujadas, reisados, cocos que “[...] aconteciam ao final das
procissões de padroeiros e missas depois que os participantes das festas cumpriam suas
obrigações devotivas e se recolhiam aos seus festejos em torno das fogueiras”
(WISSENBACH, 1997, p. 58).
O historiador João José Reis (2001, p. 339) revelou, em suas pesquisas, a participação
constante de negros nas diversas atividades festivas por todo o período colonial e no Império.
Das celebrações públicas, fossem cívicas ou religiosas, eles com frequência
participaram, segregados ou misturados com gente de outros setores sociais e
raciais. Além disso, quando faziam suas próprias festas, elas não eram nem
sempre as mesmas. Algumas tiveram mais, outras menos densidade
propriamente africana. As das irmandades negras, por exemplo, podiam
conter, sucessivamente, procissão religiosa católica, tambores, danças e
cantos africanos. Mas havia também as festas que procuravam reproduzir
mais fielmente a experiência que os escravos haviam trazido de suas terras
em África.
Importa ressaltar que as festividades organizadas pelos negros, como os batuques e
calundus, muitas vezes, foram vistas pelas autoridades locais e outros segmentos sociais de
forma preconceituosa, sendo consideradas infrações criminosas. Como por exemplo, “os
perigos” dos festejos de Nossa Senhora do Rosário, no Urubu, relatados por Spix e Martius.
Desse modo, negros envolvidos em suas atividades festivas foram perseguidos pela justiça
colonial que reprimia tais práticas.126
Rezas, festejos e batuques, espaços de sociabilidades nos quais se encontravam antigos
amigos e se faziam novas amizades, reuniam parentes que moravam em outras fazendas,
compadres, comadres e afilhados. Rapazes e moças se aproximavam, resultando dali novas
alianças familiares. Também nessas ocasiões, escravos e forros escolhiam aqueles que
batizariam os seus filhos, isto é, os seus futuros compadres. Essas escolhas envolveram
escravos, livres e forros em múltiplas redes de compadrio entre membros de famílias extensas
e matrifocais da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”, como se verá adiante.
126
A historiografia tem apresentado pesquisas sobre esse aspecto, por exemplo, o referido trabalho de João José
Reis, “Batuque negro: repressão e permissão na Bahia oitocentista” trata de batuques negros a partir da repressão
e permissão desempenhadas pelo poder estabelecido na Bahia, século XIX, diante dessa prática festiva dos
negros. Recentemente, o historiador Gilson Souza de Jesus (2011) apresentou importante estudo que contempla
essa temática, sob o título: Ao som dos atabaques: costumes negros e as leis republicanas em Salvador (18901939).
104
3.2 FAMÍLIAS EXTENSAS E MATRIFOCAIS: PRÁTICAS E SIGNIFICADOS
Aos oito de Dezembro de 1733 nesta Igreja de Stº Antº do Orubu cazei a
Miguel do Gentio da Mina com Luzia crioula filha de Domingos todos
escravos de D. Joanna da Silva Guedes de Britto o qual recibimento fiz
depois de denunciasos na forma do C. Tridentino e Ritual Romano, e o fis
por ordem do Reverendo Vigário Jozeph Pacheco (?) perante as
testemunhas abaixo asinadas do que fis este asento.
O Pe. Antonio dos Santos
Antonio Correa Franc.127
Aos seis de septembro do anno de mil setecentos e trinta e nove, bautizei, e
pus os Santos Óleos a Felix, filho de Miguel, e de sua mulher Luzia,
escravos de Manoel de Saldanha: foram Padrinhos Joze Álvares Barreto, e
Joanna Pereyra de Oliveira, pretos forros, e moradores nesta Freguesia de
Santo Antonio do Orubu.
O Coadjutor Joachim de Santa Anna.128
“Casar e batizar poderiam ser, para qualquer crença, estratégias de vida e
sobrevivência, num mundo sabidamente passageiro” (FARIA, 1998, p. 305). E para aqueles
subtraídos das suas vidas na comunidade em que nasceram e se criaram – a África – quais os
significados de se casarem e batizarem seus filhos? Encontraram na família estratégias de vida
e sobrevivência? A partir dos registros paroquiais que documentaram algumas experiências de
escravos em fazendas do “Certam de Sima”, tentamos responder a esses questionamentos e,
assim, compreender as práticas e significados do viver pelos seus e com os seus desses
escravos sertanejos.
O quantitativo de homens e mulheres (vide: Tabela 6, capítulo I) demonstrou, para a
primeira metade do século XVIII, equilíbrio sexual. E entre 1760 e 1790, as taxas indicaram
uma maior presença feminina (315 homens e 482 mulheres entre escravos e forros). Esses
dados são sintomas de certo distanciamento do tráfico, resultando em propriedades escravistas
“[...] majoritariamente [compostas] por escravos crioulos, com maior equilíbrio dos sexos”
(MACHADO et al, 2003, p. 178). Logo, os escravos que viveram nesse contexto contaram
com maiores possibilidades de se unirem entre si, formando laços familiares.
O tamanho das escravarias também foi um fator influenciador na organização de
famílias entre os cativos. Pesquisas129 têm demonstrado que:
127
Livro de Registro de Batismos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 1. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
128
Ibid.
129
Por exemplo: SLENES (1999), SCHWARTZ (1988).
105
[...] a menor participação de indivíduos casados ou viúvos nos plantéis com
menos escravos deriva inclusive da menor possibilidade de escolha do
cônjuge em tais plantéis, a qual é condicionada pelos obstáculos impostos
aos casamentos de cativos, restritos aos limites internos de cada plantel
(MOTA, 1988, p. 150).
Apesar de não se dispor, com muita precisão, de informações do tamanho das
escravarias presentes nas fazendas aqui estudadas, com base nos dados do inventário do Sexto
Conde da Ponte de 1832 (vide tabela 1, capítulo I), e dos registros paroquiais, supõe-se a
existência de grandes propriedades escravistas, haja vista a “[...] incidência de distribuição de
escravos pelas propriedades” (PIRES, 2003, p. 59) de um mesmo proprietário, neste caso dos
Guedes de Brito.
Como foi visto, o testamento de Mathias Bernardes Lima informou a existência de 88
escravos pertencentes a suas fazendas. Observa-se que, nessas condições, houve maiores
chances de esses escravos criarem entre si laços familiares. As fontes sugerem que suas
escolhas se limitavam ao universo das fazendas às quais pertenciam. Entre os 45 registros de
casamentos dos escravos dos Guedes de Brito e também das 137 uniões conjugais, indicadas
pela filiação dos batizados, todas apresentam relações entre escravos ou forros do mesmo
senhor.
Deduzi-se que mesmo reduzidos ao universo das fazendas da qual faziam parte, os
escravos dos Guedes de Brito, em virtude da convivência com um número considerável de
companheiros, encontraram maiores chances para os casamentos formais. Dessa forma, “[...] a
barreira contra casamentos religiosos entre escravos de diferentes proprietários” (SLENES,
1999, p. 75) não inibiu a realização de matrimônios entre esses escravos. Os índices de
legitimidade encontrados para os filhos de escravos dos Guedes de Brito confirmam esta
situação.
Tabela 12: Legitimidade dos filhos de escravos das fazendas dos Guedes de Brito.130
130
A análise dos dados apresentados nesta tabela foi inspirada, com algumas alterações, na metodologia utilizada
pela pesquisadora Vitória Fernanda S. de Andrade (2005) no estudo de registros paroquiais sobre índices de
ilegitimidade de filhos de mães escravas, em São Paulo do Muriaé (1852-1888). Sendo que, foram considerados:
legítimos aqueles filhos que tiveram registrado na ata de batismo o termo “filho legítimo de”; presumivelmente
legítimos os que apresentaram o nome do pai e da mãe, mas não explicitou o terno legítimo; natural quando
especificou no registro “filho natural de”; presumivelmente natural correspondeu a todos os filhos nascidos de
mães aparentemente solteiras.
106
1721-1759
Legitimidade
Legítimo
Presumivelmente Legítimo
Natural
Presumivelmente Natural
Total
Quantidade de Filhos (as)
65
21
48
24
158
1760-1790
Legítimo
51
Presumivelmente Legítimo
04
Natural
60
Presumivelmente Natural
27
Total
142
Total Geral
300
Fonte: Livros 1,2, 3, 5, 7 e 8 de batizados da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”.
%
41,13
13,29
30,37
15,18
100
35,91
2,81
42,25
19,01
100
100
Da amostra documental de 300 filhos, encontramos o quantitativo de 116 filhos
considerados legítimos, ou seja, seus pais confirmaram suas uniões pelo sacramento do
matrimônio. Os 25 filhos presumivelmente legítimos foram aqueles que tiveram em suas atas
batismais registrados os nomes do pai e da mãe. Os filhos apresentados como naturais
perfizeram o total de 108 filhos batizados apenas com o registro das mães, nas atas dos seus
batismos foram identificados como naturais. Outras crianças, em número de 51, tiveram em
seus registros apenas o nome da mãe, não sendo especificados como naturais. Esses dados
demonstraram taxas de legitimidade e ilegitimidade equivalentes com leve destaque para
filhos legítimos, desse modo, contrariando os baixos índices de legitimidade localizados para
outras regiões baianas. Conforme Sheila de Castro Faria (1998, p. 6).
[...] tanto para o século XVIII quanto para o XIX, a Bahia apresentou
sempre uma altíssima taxa de ilegitimidade entre os escravos batizados, o
que demonstra claramente a ausência de casamentos legais entre os
escravos, com algumas paróquias não chegando nem mesmo a registrar
sequer um filho legítimo.
Para essas conclusões Faria deve ter se baseado na historiografia baiana131, que tem
apresentado índices altos de ilegitimidade para a população da Bahia. Stuart Schwartz (1988,
p. 318) observou:
Na Bahia colonial, a situação parece ter sido semelhante à descrita para
áreas do Brasil. Foram examinadas amostras de certidões de batismos de
quatro paróquias do Recôncavo, para determinar proporções de
ilegitimidade. [...] embora os níveis de ilegitimidade fossem elevados para a
população baiana como um todo, para a população escrava eles eram o
dobro ou o triplo dos da população livre. A grande maioria dos cativos da
131
Por exemplos, os trabalhos: Schwartz (1988), Mattoso (1992).
107
zona rural baiana eram filhos de pais não casados segundo os ritos da Igreja
Católica. O casamento formal na Igreja não era comum entre os escravos, o
que não significava que eles não tivessem família ou que o parentesco não
fosse importante em suas vidas.
Stuart Schwartz (Loc.cit.) encontrou para os escravos de Saubara, em 1723-1724, 90,3%
de crianças ilegítimas, entre os batizados na Paróquia de Rio Fundo (1780-1 e 1788) taxas de
66,6%, em Monte 73,7% dos filhos de escravos eram ilegítimos. A paróquia de São Francisco
não registrou batizados de escravos com pais casados na Igreja Católica. Entre os batizados
conduzidos a pia batismal em Salvador, no século XIX, Kátia Mattoso (1992, p. 157) indicou
que 81,3% e 86,3%, respectivamente, foram de crianças mulatas e negras ilegítimas.
A historiadora Isabel Cristina F. dos Reis (2007, p. 94) confirmou essa característica de
ilegitimidade nas uniões entre cativos e libertos da freguesia urbana de Salvador, Sé, durante
o século XIX. Suas pesquisas aos registros de casamentos da Freguesia da Sé, revelaram a
incidência de poucos casamentos de escravos ao longo do Oitocentos, foram registrados
apenas 66 matrimônios. Entre os libertos, o casamento católico foi mais recorrente, tendo sido
documentado 235 vezes. A respeito dos casamentos entre cativos, Reis (Ibid, p. 95-96)
concluiu que “[...] os resultados obtidos a partir dos dados disponíveis reforçam as evidências
sobre baixos índices de uniões legitimadas entre aqueles que estavam submetidos ao regime
do cativeiro, uma vez que estes representavam 3,8% dos que se casavam”.
Kátia Mattoso (Op. cit., p. 157) apontou como justificativa para os baixos índices de
legitimidade na Bahia o fator econômico, “[...] sobretudo nas camadas populares, as pessoas
se casavam pouco, porque a cerimônia custava caro e não havia reprovação grave em relação
às uniões livres”. Entretanto, outros fatores devem ser considerados nos estudos sobre as
uniões legais entre escravos, visto que “[...] os tipos de produção, as localizações das áreas, o
tamanho das unidades produtivas e o período que, dependendo de determinadas combinações,
influíam nas possibilidades de casamentos de escravos” (FARIA,1998, p. 322).
Nesse sentido, podem-se compreender os padrões de legitimidade localidados para
outras regiões do Brasil. Faria (Ibid, p. 325) observou, em suas pesquisas a acervos batismais
de seis freguesias do Rio de Janeiro, índices mais elevados de casamentos de escravos, com
porcentagens acima de 40% para os filhos legítimos. Os estudos de Sílvia Maria J. Brugger
(2007, p. 115-120) também revelaram taxas maiores de legitimidade entre os cativos da região
mineira de São João Del Rei, chegando em alguns períodos a 40%. Dentre as especificidades
de cada contexto, ambas as pesquisadoras indicaram que os cativos do meio rural tiveram
mais acesso ao matrimônio em relação àqueles que residiam nas áreas urbanas.
108
Em meio a este debate historiográfico, como podem ser interpretados os dados de
legitimidade dos escravos das fazendas dos Guedes de Brito? Conforme foi visto na tabela 12,
pelo menos 116 crianças cativas tiveram pais casados pelo ritual católico, isto significa que
232 escravos e escravas estiveram unidos legalmente, formando núcleos familiares. Esses
dados apresentam especificidades regionais da vida escrava, revelando que, no “Certam de
Sima” do século XVIII, a “regra geral: os escravos não se casam” (MATTOSO, 2001, p. 127)
não foi cumprida. Mas o que levou esses escravos ao casamento formal? Houve interferência
do senhor na organização desses matrimônios?
As normas católicas favoreciam o acesso de escravos ao matrimônio. As Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, código de 1720, que regulamentavam as práticas dos
sacramentos, estabeleciam regras para os casamentos entre escravos, defendiam que os
senhores não poderiam proibir os seus escravos de casarem e também deveriam respeitar as
escolhas dos pares, podendo ser cativos, forros ou livres. Defendiam o direito dos escravos
casados de manterem-se juntos, não deveriam, pois, ser vendidos separadamente, entretanto,
ressaltavam que o escravo casado permaneceria na mesma condição jurídica – “propriedade”
do seu senhor (VIDE, 1720: Livro Primeiro, Título LXXI, p. 133).132
Embora com essa normatização, muitos senhores foram negligentes e, preocupados com
as limitações impostas pelo casamento, em relação aos “direitos” adquiridos pelos escravos
casados, poucas vezes incentivaram o matrimônio entre os seus cativos e, quando permitiam,
limitavam as escolhas dos parceiros ao universo da fazenda. Robert Slenes (1999, p. 75)
observou essa prática entre os senhores de Campinas (SP):
Os senhores de escravos em Campinas praticamente proibiam o casamento
formal entre escravos de donos diferentes ou entre cativos e pessoas livres.
(Na amostra da matrícula de 1872, não existem uniões matrimoniais que
cruzem a fronteira entre posses e há apenas alguns casamentos entre
escravos e libertos; além disso, nos assentos de casamento da Igreja ambos
esses tipos de união são raros.) Os senhores Campineiros não eram atípicos
nesse respeito; em outras localidades para as quais existem dados, a mesma
“proibição” existia. Em outras palavras, e invertendo a perspectiva, o
escravo que queria casar-se pela Igreja quase sempre tinha que encontrar
seu cônjuge dentro da mesma posse.
Apesar dessas restrições senhoriais, também identificadas para a Bahia do século XVIII,
por Stuart Schwartz (1988, p. 318), a vontade dos escravos também influenciou essas
vivências, uma vez que
[...] os escravos tinham meios de tornar conhecidos seus desejos.
Bajulavam, barganhavam ou simplesmente recusavam-se a cooperar, muitas
132
Sobre essas normatizações ver comentários de: Freire (2009), Faria (1998), Schwartz (1988), Brugger (2007),
Feitler et al (2010).
109
vezes defrontando-se com punição severa. Os senhores às vezes achavam
mais fácil ou mais prático anuir aos desejos dos escravos do que ignorá-los.
Por outro lado, alguns senhores viam no casamento uma maneira de “[...] prendê-los à
fazenda e a mais forte garantia de boa conduta” (RUGENDAS 1972 apud SAMARA, 1989:
s.p.). Manolo Florentino e José Roberto Góes (1997, p. 143) assinalaram como o matrimônio
contribuiu com o projeto escravista. Para esses historiadores: “[...] a sociedade escravista
precisava integrar culturalmente a si os estrangeiros que faziam desembarcar em suas terras e
o sacramento do matrimônio a isso prestava. Civilização e humanização, diziam eles.
Produção de escravos, acrescentamos nós”.
No caso dos casamentos de escravos dos Guedes de Brito, a opção desses senhores pela
reprodução natural sugere que tenha facilitado o acesso de seus escravos ao matrimônio, pois
talvez acreditassem que casados se prenderiam, ainda mais, à vida na fazenda por seus
vínculos familiares legitimados pelo ritual católico. Além desse fator econômico, pode ser que
tenham sido influenciados pelas obrigações cristãs.
Todavia, deve-se considerar que esses índices de legitimidade guardam muito das
escolhas próprias dos cativos. O absenteísmo proporcionou a escravos do alto sertão
setecentista uma mobilidade social que, possivelmente, influenciou muito as decisões dos
seus casamentos. Mesmo que o senhor pudesse, de longe, autorizar o vigário para administrar
o sacramento do matrimônio, as escolhas dos pares devem ter acontecido na convivência
cotidiana das labutas diárias, dos encontros festivos, dos batizados e casamentos de seus
parentes e companheiros.
Como concluiu Schwartz (1988, p. 318), “quanto maior a propriedade e mais distante e
menos íntimo o relacionamento com o senhor, mais liberdade tinham os escravos de tomar
suas próprias decisões e fazer seus próprios arranjos”. Neste sentido Faria (1998, p. 338)
observou:
Na nova situação, tentou sobreviver o melhor possível e o casamento
representou, entre muitas outras atitudes, uma intenção de ver respeitada,
segundo as normas da sociedade em que se viu forçado a viver, sua
organização familiar. O que mais podia fazer? É certo, entretanto, que o ato
religioso do casamento contava, para ele, menos do que disto decorreria
socialmente. Ao casar, o escravo e, mesmo, seus descendentes, tinham em
vista objetivos específicos, longe de ser o de sacralização de um
matrimônio. Buscavam um reconhecimento social.
Segundo Brugger (2007, p. 120), para os escravos do meio rural “[...] o casamento
poderia viabilizar maior autonomia, no sentido de constituição de habitação em separado do
restante da escravaria, e a possibilidade, inclusive, de manutenção de padrões culturais de
110
origem africana”.133 Tendo em vista a situação de “viver por si” de escravos de fazendas
absenteístas, presume-se que a manutenção das heranças da cultura africana encontrou, na
família, lugar essencial, embora essa manutenção independesse dos casamentos legítimos.
O casamento católico, sobretudo para os africanos, representou mais um meio de
adaptar-se à nova realidade. Os índices elevados de uniões sacramentadas pelo matrimônio,
entre os escravos dos Guedes de Brito, guardam indícios da influência do catolicismo
regional. O Santuário do Bom Jesus da Lapa, organizado na gruta da fazenda “Itibiraba”,
desde o final do século XVII, tornou-se local irradiador das práticas católicas. Sem dúvida, as
convivências diárias de africanos e afro-brasileiros nas atividades desse Santuário: missas,
batizados, casamentos, celebrações de óbitos, romarias, favoreceram trocas culturais, nas
quais, possivelmente, alguns desses sujeitos sociais foram influenciados pela “fé católica” nas
suas escolhas e práticas pessoais.
O matrimônio para esses escravos significou, possivelmente, mais uma oportunidade de
ampliação do espaço social de suas relações, isto porque as testemunhas dos seus casamentos
tornavam-se seus compadres. Os padrinhos dos casamentos dos escravos dos Guedes de Brito,
geralmente, eram pessoas livres que ocupavam posições estratégicas na sociedade local
(fazendeiros, funcionários da Justiça, padres, dentre outros). Foram notificados 15 padrinhos
crioulos ou pardos no universo de 300 atas de casamentos pesquisadas, denunciando que a
opção pelos padrinhos livres poderia trazer algum benefício para a vida desses cativos.
É importante ressaltar que muitos desses escravos, quando se uniam pelo ritual católico,
já vivenciavam a experiência conjugal, alguns com filhos já crescidos, outros por nascer. A
cativa Theodózia, por exemplo, quando contraiu matrimônio com Felix, em fevereiro de
1765, estava esperando o filho que, provavelmente, nasceu em novembro de 1765, a quem os
pais chamariam pelo nome de Crispim.134 Essa característica de legitimação pelo matrimônio
de uniões consensuais, pode ser sintoma da influência senhorial, mas também, guarda desejos
mais íntimos dos escravos que as fontes, infelizmente, não permitem acessar.
Lima e Castro (2004, p. 147), em seus estudos sobre fazendas de absenteístas, também
encontravam entre os casamentos de escravos a legitimação tardia de uniões já existentes.
[...] longe da voz do dono, era mais intensa a propensão a legitimar
tardiamente uniões havia muito existentes e operantes como consensuais. A
tendência à família escrava nas unidades absenteístas era tão forte que seus
133
Slenes (1999) e Faria (1998) trazem uma importante discussão sobre esse aspecto.
Livro de Registro de Casamento da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 3. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
134
111
cativos talvez precisassem mais que os outros de recorrer a laços sem
legitimação eclesiástica. No entanto, contavam com legitimação posterior.
Conhecer os arranjos conjugais, ou seja, como se formaram os pares, possibilitou
aproximações de possíveis significados para as escolhas dos escravos em busca dos seus
companheiros. Os dados dispostos na tabela 13 demonstram uma amostra da população cativa
e forra que sacramentou seus arranjos amorosos através do matrimônio. Para o período entre
1721 e 1759, foram identificados 208 casamentos de escravos e forros. No entanto, durante a
segunda metade do século XVIII foi menor o número daqueles escravos e forros que se
casaram, pelo menos aqueles cujos dados foram disponibilizados.
Tabela 13: Casamentos de Escravos e Forros (1721-1780).
Origem e moradia dos
Quantidade de casamentos
contraentes (casais)
(1721-1759)
(160-1780)
Total
Fazendas dos Guedes de Brito
27
19
46
Outros locais da Freguesia
de Santo Antonio do "Orubu
de Sima”
181
117
298
Total
208
136
344
Fonte: Livro 1 e 2 de casamentos da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”.
Certamente os cativos dos Guedes de Brito casavam entre si, majoritariamente, haja
vista que não foram localizados registros de casamentos com escravos de outras propriedades
escravistas. A filiação dos batizados confirmou essa opção por parceiros pertencentes ao
mesmo senhor. No conjunto de 300 registros de batizados de filhos de escravos dos Guedes
de Brito, apurou-se que pelo menos 141 tiveram pais da mesma propriedade escravista.
Alguns casais moravam em fazendas diferentes, como, por exemplo, o casal “Custodio, pardo,
natural e morador na Freguesia de Nossa Senhora do Rio do Pardo” e “Ignacia Mestiça,
natural e moradora nesta Freguesia [Santo Antônio do Orubu de Sima]”, ambos cativos de
Manoel de Saldanha.135
A historiadora Mariza de Carvalho Soares (2000, p. 123), em seus estudos sobre o Rio
de Janeiro setecentista, observou a recorrência de endogamia por plantel e destacou:
O curioso, entretanto, é perceber que no interior dessas relações,
aparentemente forçadas, existe uma grande regularidade na escolha dos
parceiros, que em grande parte são escolhidos no interior do mesmo grupo
de procedência. Assim embora a endogamia por plantel possa ser explicada
no plano da conveniência dos senhores, a endogamia por grupo de
procedência supõe outro tipo de motivação que indica existirem regras
135
Livro de Registro de Casamento da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
112
matrimoniais que vão além da disposição dos senhores em casar
aleatoriamente suas escravas.
Pesquisas anteriores, feitas por Maria Inês Côrtes de Oliveira (1995/1996), revelaram
que escolhas próprias de africanos permearam a reorganização de suas vidas após a travessia
atlântica na Bahia oitocentista. Basearam-se na “comunidade de seus parentes de nação” na
(re) construção das suas relações sociais. Conforme a historiadora (Ibid, p. 181, grifo da
autora), “estes novos vínculos começavam para alguns ainda nas primeiras horas de cativeiro,
entre os malungos, que compartilhavam as agruras da travessia do Atlântico e que
mantinham-se ligados para o resto da vida por esta dura experiência”.
O acompanhamento de trajetórias familiares de africanos, no “Certam de Sima”,
demonstrou relações construídas entre pessoas de mesma procedência da África. Não ficou
claro se foram malungos, mas tiveram em comum a mesma ancestralidade e a vivência
traumática da diáspora; mesmo que em travessias diferentes, essas afinidades foram essenciais
na reconstituição de suas vidas.
Foram observados, a partir da consulta documental disposta nas tabelas seguintes,
alguns vestígios de como se formaram as relações matrimoniais entre escravos do “Certam de
Sima”. No período de 1721 a 1758, foram identificados 181 casamentos que envolveram
escravos e/ou forros, nota-se endogamia por origem e condição social, ou seja, escravos
casaram-se mais com escravas, forros com forros e buscaram pares com a mesma
naturalidade. Entre os africanos casados neste período, perfazendo o total de 64 uniões, foram
notificados 46 pares da mesma etnia africana, sendo mais recorrentes pares de escravos
considerados como minas (21 casais). Essa informação reflete o quadro de maior participação
de africanos “minas”, na “Freguesia do Orubu”, ao longo da primeira metade do século
XVIII, conforme se viu no capítulo 1.
Outros africanos, provavelmente, não encontraram possibilidades de unirem-se com
pessoas da mesma naturalidade, portanto formaram pares com africanos de outras etnias: mina
com angola; benguela com mina; angola com guiné, dentre outros arranjos. Buscaram uniões
mistas com parceiros brasileiros, 11 africanos casaram com crioulas e 13 africanas tiveram
parceiros brasileiros. Foi registrado um único casamento entre africana e português, no
entanto cinco crioulas de primeira geração uniram-se a portugueses. Nota-se endogamia por
origem, pelo menos nos dados disponibilizados, pois, embora haja notificação de uniões
mistas, os escravos e forros privilegiaram, em suas escolhas, parceiros da mesma origem,
sendo 64 uniões entre africanos, 33 entre escravos e forros nascidos no Brasil.
113
Tabela 14: Formação dos pares segundo a origem dos contraentes da Freguesia de Santo
Antônio do “Orubu de Sima” (1721-1780).
Contraente
Mina
Angola
Guiné
Gege
Benguela
Africanas
Pretas
Indeterminada
Total
Contraente
Mina
3
Angola
3
3
5
1
Guiné
1
10
1
Gege
1
1
1
2
Benguela
0
Cobu
1
1
Moçambique
1
1
Africano (Preto)
1
Brasil
3
6
2
Portugal
1
5
1
9
13
14
16
117
1
Indeterminado
1
1
13
Total
9
1
3
1
4
Fonte: Livros 1 e 2 de casamentos da Freguesia de Santo Antonio do “Orubu de Sima”
A amostra dos pais dos contraentes demonstrou mais um fragmento das escolhas dos
escravos ou forros na formação de laços familiares. O número de filhos que, ao casarem,
tiveram suas filiações registradas foi razoável. Para o período de 1721-1759, foram
documentados 46 pais, desses 25 foram mães africanas e 7 pais africanos, 1 pai mestiço e 12
pais sem identificação das prováveis origens. Entre 1760-1780, 33 pais foram localizados,
sendo 17 mães africanas, 1 mestiça, 1 crioula, 1 índia e 1 mãe indeterminada.
Tabela 15: Formação dos pares segundo a filiação dos contraentes da Freguesia de Santo
Antônio do "Orubu de Sima" (1721-1780).
Contraente
Mina
Angola
Guiné
São
Tomé
Gege
Contraente
Mina
2
Angola
3
Mestiça
Índia
Crioula
1
1
5
1
1
1
1
Ganguella
1
1
Africanos pretos
Mestiço
1
Indeterminado
9
Total
2
Gege
Benguella
Africanas
Pretas
1
1
2
1
2
1
1
2
16
2
1
2
1
3
1
Total
Fonte: Livros 1 e 2 de casamentos da Freguesia de Santo Antonio do “Orubu de Sima”
15
1
1
28
114
A formação dos pares, observada através da filiação dos contraentes, indicou que
africanos buscaram relações com africanas, quando possível da mesma procedência étnica.
Por outro lado, africanas que não encontraram parceiros da mesma naturalidade uniram-se
com pessoas livres que não tiveram suas procedências declaradas, embora possam ter sido de
brasileiros. Provavelmente, essa pequena amostra não contempla outros possíveis arranjos
entre casais. Como se verá a seguir, pais africanos influenciaram as escolhas dos filhos na
seleção dos seus parceiros.
Os laços familiares dos casais: “Joze Guige e Maria Guige”, Agostinho e Marta
“Guiges”, guardam indícios de sentimentos mais íntimos nas escolhas desses africanos por
seus parceiros. Em terras alheias, encontrar um conterrâneo, possivelmente, foi muito
importante para esses “jejes”, assim como para minas, benguelas, angolanos... Pessoas que, ao
se reencontrarem no Brasil, reconheceram entre si um referencial identitário com “falares” e
ancestralidade comuns, o que facilitou a comunicação em suas vivências cotidianas.
Possivelmente, a noção de pertencimento cultural levou-os a buscar relacionamentos com
pessoas de mesma origem ou origem étnica próxima, e assim estruturar suas famílias com
base nas heranças da cultura africana.
Entre os filhos de africanos nascidos no “Certam de Sima”, localizaram-se vestígios da
influência dos seus pais africanos, pois muitos desses preferiram as uniões com crioulos de
primeira geração, geralmente descendentes da mesma origem étnica. Por exemplo, “Anastácio
crioullo, filho natural Joze Guige e Maria Guige” casou-se com “Lizarda crioula filha legítima
de Agostinho e Marta sua mulher ambos de nação Guige”.136 Provavelmente, buscavam
através da família preservar as heranças da cultura africana, que, transmitidas por seus pais,
poderiam ser conservadas pelo convívio diário entre aqueles que guardavam ancestralidade
comum.
As pesquisas de Isabel Cristina F. dos Reis revelaram práticas de endogamia por origem
entre os cônjuges da Freguesia da Sé, 1801-1888. Segundo a historiadora (2007, p. 100):
[...] no cômputo geral, quase sempre africanos uniram-se a africanos, e
crioulos a crioulos. Parece que mesmo aqueles africanos que faziam parte
de etnias minoritárias no contexto afro-baiano, e por isso não contavam com
facilidade para conseguir um companheiro da mesma origem étnica que a
sua, fizeram a opção por africanos de outras etnias, a exemplo de dois entre
três africanos identificados como „haussá‟, que desposaram um gêge e outra
mina, enquanto o terceiro casou-se com um cônjuge nascido no Brasil.
Ainda, angola casou-se com gegê e gegê com tapa; mina com são Thomé, e
por aí vai.
136
Ibid.
115
Outros trabalhos137 identificaram, para diferentes regiões do Brasil, dados de endogamia
e exogamia nas práticas matrimoniais. Luna e Costa (1981), para a Vila Rica, no período entre
1727-1826, computaram, no conjunto de 200 casamentos, que 56% de homens e 68,2% de
mulheres, africanos minas, casaram com parceiros da mesma nação de origem; entre os
angolas 31,4% dos homens e 51,6% das mulheres, também se uniram a parceiros da mesma
procedência étnica. Esses autores assinalaram: “[...] a tendência de se darem casamentos entre
indivíduos de mesma origem – “Minas” e “Angolas” neste caso – e, por outro, para ambas
nações, a predominância, em termos relativos, de mulheres que se casaram com pessoas de
mesma origem” (Ibid, p. 3).
Robert Slenes (1999, p. 79) apresentou que os graus de endogamia identificados para
Campinas, século XIX, se assemelham com outros dados encontrados para o Sudeste, “[...]
isto é, indicam uma tendência à endogamia entre africanos e entre crioulos, junto com uma
expressiva presença de casamentos „mistos‟”. Jonis Freire (2009) revelou endogamia e
exogamia nas práticas matrimoniais de escravos da Zona da Mata Mineira oitocentista,
conforme seus estudos,
[...] os homens africanos, que eram maioria, com relação às mulheres de
mesma origem, não puderam casar-se exclusivamente dentro do mesmo
grupo, realizando desta forma casamentos do tipo exogâmicos. Em
contrapartida, os crioulos e pardos, que eram a minoria, ambos com relação
às mulheres de mesma origem que a sua, tiveram maiores possibilidades de
ter se casado com mulheres do mesmo grupo (Ibid, p. 173).
Os livros de casamentos da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”
registraram um menor número de matrimônios que envolveram escravos e forros, entre os
anos de 1760-1780; observam-se, também, taxas menores de africanos, sendo listados 55
casais sendo pelo menos um dos cônjuges de origem africana. Essas informações sugerem que
os proprietários dessa região diminuíram suas relações com o tráfico, o que se reflete,
portanto, na redução do número de africanos. Estudos mais detidos sobre as implicações do
tráfico nessa região, contribuirão para análises mais minuciosas deste aspecto.
Observa-se que, no decorrer de 1760-1780, as uniões mistas superaram, mesmo em
pequena escala, aquelas formadas entre cônjuges de mesma naturalidade. Foram identificados
21 casais de africanos, sendo mais recorrente angola com angola (5 casos) e mina com mina
(3 casos). Outros arranjos conjugais se fizeram: angola com mina, angola com benguela, cobu
com angola, moçambique com angola e gege com angola. Mesmo que não encontrassem
137
Ver, por exemplo: Florentino & Góes (1997), Brugger (2007).
116
parceiros de etnias iguais às suas, esses africanos preferiram se unir a outros companheiros da
travessia atlântica, visando a possíveis afinidades étnicas.
Para outros africanos a opção foi estabelecer vínculos conjugais com brasileiros. Os
homens africanos, maioria em relação às mulheres africanas, casaram-se mais com brasileiras
do que as mulheres africanas, sendo 20 casais de africanos com brasileiras e apenas 10
formados por brasileiros e africanas. Entre os escravos e escravas nascidos no Brasil, foram
listadas 47 uniões endogâmicas, superando as 30 uniões mistas com parceiros de diferentes
etnias africanas, acima mencionadas.
Além desses tipos de arranjos matrimoniais, as fontes documentaram uniões entre os
escravos e seus proprietários. Esse foi o caso de “Antonio Ribeiro de Afonseca” e “Maria da
Sª sua escrava”, que em 1769, na presença do “Coadjutor Joze Manoel Codesso”, receberamse por esposos.138 Percebem-se, também, casos que sugerem a participação dos pais livres nas
escolhas de parceiros para suas filhas, fruto de relações com suas escravas. Por exemplo,
“Ursula Maria da Fonseca, filha natural do Alferes Antonio da Fonseca Sylva e de Maria
escrava sua”, deve ter contado com a influência do seu pai para casar-se com um homem,
provavelmente, livre. O escolhido foi “Ignacio Cardozo da Sylveira, filho natural de Antonio
Cardozo e Anna Sobral, naturais da Villa de Maragogipe e moradores na Barra”.139
O rico fazendeiro Mathias Bernardes Lima, como mencionado no primeiro capítulo,
registrou em testamento que teve três filhos com suas escravas: Leam Bernardes Lima e
Joana, filhos de Maria do Nascimento, e Escollastica, filha da crioula Ignacia Bernardes. “Os
três filhos são meus que por tau os tenho e reconheço por meus filhos legítimos e como os
clamo e instituo por meus legítimos e universais herdeiros de todos os meus bens [...]”.140 Ao
assumir a paternidade desses filhos “pardos”, fez questão de registrar as orientações paternas
quanto ao casamento de uma das filhas:
Declaro que minha Joanna já a princípio de cazada e que a instithuo por
minha herdeira [?] pequena na idade e porque tenho [?] que seja cazada com
quem saiba aproveitar os bens que há pertencem [...]. Desde já quero a
minha vontade [...] que seja ella cazada com hum filho de Portugal para
poder ter lugar o outro [?] de meus bens e não ser assim não quero por
principio algum que seja minha herdeira [...].141
138
Livro de Registro de Casamento da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 3. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
139
Ibid.
140
Testamento de Mathias Bernardes de Lima. Fórum Nivaldo Rodrigues de Magalhães. Paratinga-BA (não
catalogado).
141
Ibid.
117
Ficou claro que a intenção de Mathias Bernardes Lima era a de conservar o seu rico
patrimônio mesmo após a sua morte. Demonstrou os preconceitos da sociedade colonial
baseados “[...] na religião, na raça e na origem [que sempre] favoreciam os europeus, mesmo
os de baixa renda” (SCHWARTZ, 2009, p. 270), na exigência de que a filha apenas poderia
usufruir da herança se casasse com um português. Por outro lado, as relações estabelecidas
entre homens e suas cativas, revelaram fissuras nas rígidas estruturas da sociedade colonial,
dando espaço às trocas socioculturais entre africanos, europeus, povos nativos e seus
descendentes.
Experiências como essas permitem entender que as práticas matrimoniais, também,
guardavam especificidades das escolhas de escravos e forros em torno das suas vidas
pessoais. Analisando a formação dos pares pela condição social, visualiza-se que, apesar da
recorrente endogamia, alguns escravos e forros vivenciaram compartilhar suas rotinas com
pessoas de posição social distinta das suas. Conforme Vidal e Luna (1981, p. 2), “[...] não se
verifica rigidez absoluta com respeito às uniões entre indivíduos de segmentos sociais
distintos pois, além do expressivo porcentual de casamentos de escravos com libertos,
efetuavam-se uniões, ainda que raras, entres senhores e seus próprios cativos”.
Tabela 16: Formação dos pares segundo a condição social dos contraentes da Freguesia
de Santo Antônio do “Orubu de Sima” (1721-1780).
Contraente
Escrava
forra
livre
Total
Indeterminada
contraente
Escravo
153
25
forro
10
livre
Indeterminado
1
6
185
39
5
54
6
24
11
41
8
10
24
42
46
322
177
98
1
Total
Fonte: Livros 1 e 2 de casamentos da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”
Observa-se, também, endogamia segundo a condição social entre os casais da Freguesia
de Santo Antônio do “Orubu de Sima”. Desse modo, foi possível computar, no conjunto de
matrimônios da referida freguesia, para o período de 1721-1780, um maior número de
casamentos entre escravos, sendo 153, seguido de 39 casais de forros. Possivelmente, esses
graus elevados de relações endogâmicas entre cônjuges de mesma condição social refletem as
posturas senhoriais, comentadas anteriormente, bem como as opções próprias dos escravos.
No entanto, 66 uniões demonstram relações mistas, nas quais escravos casaram com pessoas
livres ou forras. Obteve-se, a partir da pesquisa, o total de 35 uniões matrimoniais entre
118
escravos e forros. Nota-se que por 25 vezes escravos uniram-se com forras e em 10 casos,
forros casaram-se com escravas.
Os arranjos entre forros e livres foram significativos, totalizando 24 casais. A maioria
desses casos uniram portugueses ou filhos de portugueses com escravas ou forras, sendo
escolhidas com mais frequência africanas ou crioulas de primeira geração. Viu-se apenas um
caso de escravo unindo-se a uma companheira livre. Alida Metcalf (1983 apud MOTA, 1988:
153), em suas pesquisas sobre Santana de Parnaíba - SP, no decorrer de 1720 a 1820, mostrou
que, no universo de 504 casamentos de cativos, 20% referiam-se a casos de uniões entre
escravos e livres, foram 53 casos de esposas cativas e 50 de cônjuges cativos. A autora (Loc.
cit.) revelou possíveis significados desses casamentos:
Os cativos usavam suas famílias como um meio de obter liberdade para
seus descendentes. Casamentos entre escravos e mulheres livres mostraram
ser uma valiosa estratégia para esse fim. Os homens cativos viam todos os
seus filhos nascerem livres apesar de eles próprios permanecerem escravos.
[...] mesmo os casamentos entre escravas e homens livres podiam resultar
em liberdade para a prole. Embora os filhos nascidos desses casamentos
viessem ao mundo como escravos, seus pais poderiam libertá-los.
A análise dos 45 assentos de casamentos que envolveram cativos dos Guedes de Brito
apresentou características semelhantes à dos demais casamentos computados como da
“Freguesia do Orubu de Sima”. Como se viu, esses escravos casavam com membros da
mesma propriedade escravista, logo, a endogamia por origem e condição social foi bastante
recorrente. Foram identificados 38 casamentos entre escravos, apenas uma minoria formara
uniões mistas, sendo dois de forros e escravos, e dois casos que envolveram escravos e livres
e, ainda, notificou-se um casal de forros. A pequena quantidade de africanos listados nestes
assentos paroquiais como escravos dos Guedes de Brito, deve ter conduzido seis africanos do
referido proprietário a casarem-se com crioulas. Outros dois africanos conseguiram unir-se a
africanas.
Tabela 17: Formação dos pares segundo as origens dos contraentes escravos e forros das
fazendas dos Guedes de Brito (1721-1780).
Contraente
Mina
Gege
Angola
Brasil
Indeterminado
Total
Contraente
Mina
Gege
Angola
Brasil
Indeterminado
1
4
1
8
42
1
25
2
1
0
1
32
Fonte: Livros de batizados e de óbitos da Freguesia de Santo Antônio do Orubu de Sima.
Total
8
5
1
1
25
10
119
Tabela 18: Formação dos pares segundo a condição social dos contraentes escravos e
forros das fazendas dos Guedes de Brito (1721-1780).
Contraente
Escravas
forras
Total
Indeterminadas
Contraente
Escravos
36
forro
Indeterminado
3
1
1
1
2
40
1
2
5
37
6
3
46
Total
Fonte: Livros 1 e 2 de casamentos e livro 1 de batizados da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”.
Considerando os oito casais que não tiveram suas origens registradas, sugere-se serem
africanos, pois as atas são do início do século XVIII. Conforme demonstrado no primeiro
capítulo, os Guedes de Brito, na formação das suas fazendas, contou com a mão de obra de
africanos.
Compreende-se que a organização familiar dos escravos e forros não este confinada às
uniões legitimadas pelo sacramento do matrimônio. As relações “consensuais”, seja com a
presença dos pais ou apenas das mães, fizeram parte da vida dos moradores do “Certam de
Sima”. A partir desses arranjos nasceram as famílias de escravos e forros, que com o passar
dos anos, cresceram, possibilitando experiências diferenciadas de parentesco. Proponho,
então, acompanhar algumas trajetórias familiares, nas quais estiveram envolvidos escravos e
forros pertencentes às “famílias extensas” ou “estendidas”142 e às “famílias matrifocais”.
3.2.1 TRAJETÓRIAS FAMILIARES: VIVER PELOS SEUS
A conceituação de “família escrava” apresentada por Tarcício Botelho (1994),
aproxima-se das características que foram identificadas para as práticas familiares vividas por
escravos no alto sertão baiano e, mais especificamente, no interior de fazendas de senhores
absenteístas. Segundo Botelho (Ibid, p. 129):
A família escrava passou a ter uma definição mais ampla, pensada em
termos de convívio familiar e comunidade escrava. Assim, ela já não se
referia apenas aquelas legitimamente constituídas. Mas também a mães e
pais solteiros convivendo com seus filhos, viúvos (as) com seus filhos e
outros arranjos.
142
Segundo Fragoso & Florentino (1987, p. 159): “as famílias estendidas são aquelas formadas por no mínimo
três gerações. A simples existências destas famílias estendidas demonstra a solidificação do parentesco no
tempo”.
120
Assim, como na Zona da Mata Mineira no “Certam de Sima” localizou-se, “[...] famílias
que extrapolam „núcleos primários‟. Ou seja, família intergeracional e ampliada, baseada no
parentesco consangüíneo e no ritual” (FREIRE, 2009, p. 163). Tendo em vista a perspectiva
adotada pelos Guedes de Brito na organização e manutenção das suas fazendas, optando pela
reprodução natural embora, inicialmente, optaram pelo tráfico trazendo para suas
propriedades africanos homens e mulheres, logo viabilizando as primeiras uniões, das quais
podem ter nascido os primeiros crioulos, também escravos daquelas fazendas.
Este apontamento adquire pertinência, quando as fontes paroquiais noticiam casamentos
entre escravos dos Guedes de Brito no princípio do século XVIII, na década de 1720. E, mais
ainda, pelo fato de ter havido, naquele mesmo período, batizados de filhos destes mesmos
escravos, indicando relações familiares consolidadas. Antônio Guedes e sua mulher, escravos
de Dom João de Mascarenhas, batizaram o filho Domingos, no dia 23 de dezembro de 1723.
O pequeno crioulo ganhou mais um parente, Domingos seu padrinho, também escravo do
mesmo fidalgo.143
A ata seguinte registrou o casamento de Antônio Guedes e Maria Guedes e demonstrou
a existência de laços afetivos entre os dois antes da oficialização matrimonial, pois casaram-se
em novembro e, logo depois, em dezembro, batizaram o filho Domingos. As duas
testemunhas a seguir mencionadas podem ter sido cativos dos Guedes de Brito, pois as fontes
indicam outras pessoas com os sobrenomes “Guedes” e “Cavaleiro” na condição social
escrava ou forra.
Aos 15 de novembro de 1723 casei por ordem do vigário Jozeph Pacheco de
Oliveira a Antonio Guedes com Maria Guedes escravos de Dom João de
Masquarenhas. Depois de feitas as denunciações canônicas conforme o
concilio Tridentino presente as testemunhas abaixo asignadas de q fis este
acento
O coadjutor Jacomo Correa Franc.
Pedro Guedes, Matias Cavaleiro.144
O escravo “Manoel Velho” despertou a minha atenção; apesar de conseguir acompanhar
apenas alguns passos da sua trajetória de vida, esses pequenos vestígios tornaram-se
importantes. O próprio nome, como foi registrado, nos sugere ser uma pessoa idosa, logo,
pode-se pensar ter ele sido um dos primeiros africanos nas fazendas dos Guedes de Brito.
Registro paroquial documentou a experiência, em 1726, de “Manoel Velho”, junto da
sua filha [nome ilegível], sendo padrinhos da pequena Anna, filha de “Magdalena”, todos
143
Livro de Registro de batizado da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n 1. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
144
Ibid.
121
escravos de dona Isabel Guedes de Brito.145 Então, “Manoel Velho”, no princípio do
Setecentos, já tinha filhos crescidos, haja vista que, pelas normas das Constituições Primeiras
do Acerpispado da Bahia, a madrinha deveria ter, pelo menos, doze anos, salvo de especial
licença (VIDE, 1720: Livro Primeiro, Título XVIII, p. 29). Em 1732, encontra-se, novamente,
“Manoel Velho”, dessa vez no casamento do seu filho “Aires Nunes da Rocha com Lucaria
crioula, filha de Maria solteira, escrava de Manoel Velho”.146
A informação do casamento acima referido confirma que a prática de escravos
possuírem escravos, vem desde o início da colonização do “Certam de Sima”. Esclarece,
ainda, sobre as relações entre os escravos “proprietários” e seus cativos, relações que, nesse
caso, parecem ter sido de companheirismo e amizade, afinal, o filho de Manoel Velho casouse com a filha da sua cativa. Além de indicar uma vivência comunitária e familiar, essa
relação pode ter sido reflexo da pequena quantidade de moradores nas ditas fazendas no
limiar do Setecentos.
Em junho de 1733, praticamente um ano depois do casamento, o casal Aires Nunes da
Rocha e Lucaria batizou o filho, que talvez não tenha sido o primeiro, dando-lhe o nome de
Manoel, provavelmente em homenagem ao avô “Manoel Velho”. Infelizmente, a informação
sobre os padrinhos se perdeu, nos desgastados livros da “Freguesia do Orubu”.
A partir dessas trajetórias, entende-se a importância da família para esses escravos,
primeiros moradores desses sertões baianos. A pesquisa nas fontes paroquiais setecentistas
revelou que esses cativos estiveram unidos por laços de parentesco consaguíneo e ritual,
portanto encontraram na família meios mais “suaves” de enfrentar as duras condições
impostas pela escravidão. Dessa forma, como ressaltou Slenes (1999, p. 147): “[...] Apesar da
separação radical de suas sociedades de origem teriam lutado com uma determinação ferrenha
para organizar suas vidas, na medida do possível, de acordo com uma gramática (profunda) da
família-linhagem”.
Na reconstituição das suas vidas, africanos como “Miguel do gentio da mina”, “Manoel
do gentio da mina” e “Jozê mina” buscaram nas suas origens africanas referências
importantes, como aquelas da “família-linhagem”. Esses três africanos escravos reelaboraram
suas vidas através da formação de laços conjugais que os uniram, respectivamente, às crioulas
de primeira geração Luzia, Maria e Mariana.147 Outros, como “Antonio do gentio da Mina”,
encontraram parceiras da mesma origem africana, ainda que de etnia diferente; “Antonio do
145
Ibid.
Op.cit.
147
Ibid.
146
122
Gentio da Mina” casou-se com “Engracia do gentio da Angola”.148 Dentre esses casais,
devido ao acesso a maiores informações, pode-se reconstituir as experiências familiares do
casal Miguel e Luzia.
Miguel do gentio da mina casou-se, em 1733, na Matriz de Santo Antonio do Orubu,
com Luzia, crioula, filha de Domingas, possivelmente, africana todos cativos de dona Joana
Guedes de Brito. Após essa data, registrou-se a presença desse casal, em 1739, levando à pia
batismal o filho Félix; talvez o casal tivesse outros filhos mais velhos, entretanto não foram
localizados esses possíveis registros. Conforme os dados dispostos na figura abaixo, Miguel e
Luzia tiveram, pelo menos, mais três filhos: Albina, Domingos e Julliana. Essa família
morava na fazenda “Riacho dos Porcos”.
Figura I: Rede familiar e de compadrio de Miguel do “gentio da Mina” e Luzia crioula
Miguel do “gentio
da Mina”
Theodozia
Crispim
1766
Jheronimo, escravo
do mesmo senhor e
Hermenegilda
de
Almeida
Luzia crioula
Felix
(1739)
Albina
(1740)
Domingos
(1744)
Joze (?) Barreto e
Joanna Pereyra
pretos forros
(?)
Xavier
de
Carvalho
Cutrim
(batizada em caso
de necessidade)
Domingos
Vas.
Monteiro, solteiro e
Joana de Jesus.
Escrava, solteira
Julliana
(1747)
Manoel Teixeira da
Costa e Maria,
crioula, escrava de
Ignácio Martins
Observa-se como a família proporcionou para “Miguel do gentio da Mina” meios de
transmitir e reelaborar sua identidade africana. Deve ter ensinado aos seus filhos o modus
vivendi da cultura da África Ocidental, região de onde foi “arrancado” pelo comércio atlântico
de escravos. Parece que seu filho Felix, se afeiçoou à herança cultural do seu pai pois,
quando se casou, em 1765, escolheu como esposa Theodózia, também crioula de primeira
geração, filha de “Joze Mina e Maria”. Nessa ocasião, o pai de Theodózia, também africano
mina, e o “velho” companheiro Miguel Mina, já haviam falecido. Mesmo com a morte dos
pais africanos, seus descendentes parecem ter sido influenciados pela ancestralidade africana,
formando união com pessoas de mesma descendência.
Desse modo, a morte dos pais africanos não impediu que as heranças da cultura africana
fossem transmitidas. Os anos de convivência com seus filhos devem ter servido para ensiná148
Livro de Registro de Casamento da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
123
los a amar a cultura africana para se sentirem parte dela. A convivência familiar entre
africanos e seus descendentes brasileiros permitiu que “[...] os significados culturais de
origens africanas [fossem] reinventados pelos escravos no Brasil, não só para a primeira
geração de africanos aqui desembarcados, mas também as seguintes, de cativos crioulos”
(SOARES e GOMES, 2001, p. 5). É bem provável que Crispim, neto dos avós Miguel e José,
escravizados, minas, tenha aprendido sobre seus antepassados africanos no convívio diário
com seus pais Félix e Theodózia, crioulos de primeira geração.
A escolha do nome Crispim feita por esse casal, ao nomear o primeiro filho, assim
como a experiência do casal Eugênio e Valéria, pais dos gêmeos Cosme e Damião, aqui já
mencionada, sugere práticas cotidianas embasadas por referências identitárias, formadas na
convivência familiar entre africanos e seus parentes brasileiros. Como crioulos de primeira
geração, os pais de Crispim puderam conviver em meio às tradições da comunidade africana,
bem como recriá-las a partir das trocas culturais da diáspora. Na religião afro-brasileira,
Candomblé, o nome Crispim corresponde a um dos orixás ibejis, filho de Xangô e Iansã.149
As famílias nucleares constituídas pelos casais de escravos Antonio Guedes e Isabel
Guedes e Domingos da Sylva e Águeda da Silva cruzaram-se pela união de seus filhos,
formando uma família extensa, ou seja, um daqueles grupos familiares “[...] compostos por
parentes que [...] ultrapassavam os limites do grupo primário constituído por pais e filhos. Nos
referimos, por exemplo, à convivência de irmãos casados e suas proles” (MACHADO et al,
2003, p. 184). Antônio Guedes e Isabel Guedes, provavelmente africanos, tiveram pelo menos
cinco filhos: Onofre, Mariana, Lourenço, Anna Guedes e Adriana Mascarenhas. Domingos da
Sylva e Águeda da Silva, prováveis africanos, batizaram dois filhos: Michaela (1733) e
Quirino (1744). No assento de casamentos de 1745, foi identificado Jherônimo da Silva como
filho legítimo desse casal (vide figura 2).
Os filhos dessas duas famílias, Jherônimo da Silva e Adriana Mascarenhas, uniram-se
na Matriz, em setembro de 1745, um ano depois retornaram à mesma Igreja para o batizado
da filha Caetana. O nascimento de Caetana, em 1746, provavelmente trouxe muita alegria
para os demais membros da família. Os seus avós africanos puderam ver crescer seus
descendentes da terceira geração, logo a pequena Caetana teve maiores chances de conhecer e
aprender práticas culturais da África.150
149
Conforme Ferreira e Martinez (2010, p. 1074), os orixás ibejís são sete irmãos, filhos de Xangô e Iansã,
denominados: Cosme, Damião, Doú, Alaba, Crispim, Crispiniano e Talabi.
150
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 1. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
124
Caetana, com aproximadamente 13 anos de idade, casou-se com “Antonio Joze da
Silva”, também cativos dos Guedes de Brito.151 A família cresceu, mais ainda, com o
nascimento de Antônio, mestiço, filho legítimo desse casal.152 De acordo com o registro do
casamento de Anna Guedes, de 1748, seu pai já havia morrido, mas sua mãe continuou entre
eles, pelo menos até 1770, ocasião do casamento do seu filho Lourenço. Então, pode-se
pensar que, pelo menos, um dos avôs africanos pôde conviver com a sua quarta geração. Isso
leva a pensar na consolidação de uma vida social arraigada às condições de sobrevivência
local, e de trânsitos culturais bastante dinâmicos.
Anna Guedes casou-se com Cosme Cavaleiro, outro escravo dos Guedes de Brito, no
ano de 1748, na Igreja Matriz. Foram localizados, pelos assentos batismais, pelo menos cinco
filhos desse casal, entre 1749-1772: Mathias, Joanna, Luciano, Apolinária e Onório. Nos
livros de casamentos foi registrado o matrimônio de Genoveva Cavaleyra, também filha do
referido casal, Anna e Cosme.153 Filhos do casal Antônio e Isabel também casaram-se:
Mariana uniu-se a José Mina, em 1740, e Lourenço, já na condição social de forro, recebeu
por esposa “Anna da Rocha, crioula, forra, filha legítima, natural da Freguesia de Santo
Antonio da Manga, Bispado de Pernambuco”.154
A partir de duas famílias conjugais, inicialmente formadas por africanos, o parentesco
consaguíneo se entendeu no interior das fazendas dos Guedes de Brito, por mais de quatro
gerações, unindo escravos e forros pelo convívio familiar. A figura 2 ajuda a visualizar
melhor essas redes de parentesco. Essas relações adquiriram maiores dimensões nas práticas
de apadrinhamento nos casamentos e batizados. Alargou-se a família com os parentes
espirituais: compadres e afilhados. Foram identificados mais de vinte e cinco compadres e
comadres, dentre esses: “Eugenio, crioullo, captivo do mesmo senhore” e “Maria crioulla,
escrava de Thomas Carvalho”, “Joam Pereyra Machado e sua mulher Luzia da Silva”,
moradores da Parateca. “Manoel Martins creador da fazenda da Batalha” e “Thereza da Silva,
mossa solteira”,155 padrinhos e madrinhas que também fizeram parte das vivências familiares
e comunitárias dessa “família extensa”.
151
Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
152
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 5. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
153
Livros 1, 3 e 5 de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima. Cúria Diocesana
de Bom Jesus da Lapa. Livros 2 e 3 de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de
Sima. Cúria Diocesana de Bom Jesus da Lapa.
154
Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 3. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
155
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antonio do Orobu de Sima, n° 5. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
Figura 2: Família Extensa
Domingos da Silva
Michaela
(1773)
Quirino
(1744)
Águeda da Silva
Jherônimo
da
Silva
Antônio Guedes
Adriana
Mascarenhas
Antônio Joze da
Silva
Anna
Guedes
Onofre
(1740)
Joze Mina
Isabel Guedes
Cosme
Cavaleiro
Ana da
Rocha
Lourenço
Mariana
Caetana
(1746)
Antônio
(1767)
Mathias
(1749)
Miguel
Mina
Joana
(1754)
Luciano
(1756)
Onório
(1772)
Luzia
Manoel da
Costa Simões
Félix
Apolinária
(1758)
Boaventura
de Freitas
Genoveva
Cavaleira
Theodózia
Theodózia
(1775)
Crispim
1766
125
125
126
Sentimentos de amor, respeito e consideração marcaram as relações de compadrio. Por
exemplo, “Theodozia”, filha de Mariana e sobrinha de Adriana, em 1766, escolheu
“Jheronimo”, seu tio, para batizar Crispim, seu filho.156 Assim, Crispim receberia atenção
dobrada do seu padrinho, que já era seu tio-avô. Observou-se que os membros dessas famílias
se entrelaçaram por diversos laços parentais e encontraram na convivência familiar a base
para conduzir suas vidas, visando a dias melhores. Conforme Isabel Ferreira dos Reis (2009:
86), “a solidariedade e o amparo mútuo eram elementos indispensáveis e que podiam
contribuir para que africanos e afro-descendentes conquistassem uma vida com alguma
dignidade ou obtivessem socorro nos momentos de maior dificuldade”.
Além das famílias conjugais e extensas, identificou-se a formação familiar matrifocal,
ou seja, grupos familiares “formados por mães solteiras e seus rebentos”.157 Entre os escravos
dos Guedes de Brito, essa forma de organização da vida familiar esteve presente desde o
princípio do século XVIII. A escrava “Magdalena”, por exemplo, aparentemente foi mãe
solteira que conduziu sua família, constituída por, pelo menos, dois filhos: Anna, batizada em
1726; Maria, batizada em 1728. Nota-se que essa família esteve envolvida na comunidade
escrava, sendo “Magdalena” comadre de “Manoel Velho” e também de “Jozeph de Oliveira”,
ambos moradores dessas fazendas.158
Na tabela 19 nota-se que, na primeira metade do Setecentos, o número de famílias
conjugais (50) (das fazendas dos Guedes de Brito) foi mais recorrente do que a quantidade de
grupos familiares conduzidos por mães, aparentemente, solteiras (31). Contudo, com o passar
dos anos, observa-se a elevação no número de famílias matrifocais, ultrapassando aquelas
famílias com a presença de pai, mãe e seus filhos. Essa mudança pode ter sido reflexo de certa
queda no quantitativo de homens, na segunda metade do século XVIII, apresentadas na tabela
6 (capítulo 1). Talvez o decréscimo da participação masculina, nas fazendas dos Guedes de
Brito, tenha sido consequência de certo afastamento do tráfico de africanos, haja vista que a
presença de africanos, entre os anos de 1760-1790, se tornou menor. Caso se leve em
consideração que as informações sobre os pais dos filhos de mães aparentemente solteiras
foram ocultadas, mas que eles poderiam viver juntos, esses dados poderiam mudar.
156
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antonio do Orobu de Sima, n° 1. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
157
Ver sobre conceituação de famílias matrifocais, por exemplo: Machado (2003); Freire (2009).
158
Op. Cit.
127
Tabela 19: Formação familiar de escravos das fazendas dos Guedes de Brito.159
Tipo de formação
Quantidade
(1721 - 1759)
(1760 - 1790)
TOTAL
50
91
141
-
-
-
31
125
156
3
-
3
84
216
300
Conjugal (escravos do mesmo senhor)
Conjugal (escravos de senhores
diferentes)
Mães (aparentemente solteiras)
Mães e pais incógnitos
Total Geral
Fonte: Livros 1,2, 3, 5, 7 e 8 de batizados da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”.
Acompanhar trajetórias familiares matrifocais, através dos registros paroquiais, não é
tarefa fácil para o historiador, pois, como os nomes se repetem com frequência nas atas,
dificilmente se pode definir, por exemplo, de qual “Maria”, “Joana” ou “Ana” são as
experiências documentadas nas fontes. No caso do casal, ambos se tornam referências, ou
seja, um indica o outro, como: “Cosme Cavaleyro escravo e Anna Guedes, forra”. Contudo,
apesar dessas limitações, foi possível reconstituir algumas vivências familiares de mães
solteiras e seus filhos. Veja-se alguns percursos da família de “Maria da Asumpção”.
“Maria da Asumpção”, crioula, escrava de Manoel de Saldanha, foi moradora na
fazenda do Campo Grande, onde convivia com seus filhos. Em 1758, “Maria de Asumpção”
passou por momentos de pesar, pois morreu o seu filho Venceslao, ainda criança, sendo
conduzido do Retiro do Mocambo da Fazenda do Campo Grande até Lapa do Bom Jesus,
local onde foi sepultado. Vivenciou situação semelhante, quando morreu “Francisca, parda”
sua filha, também sepultada na mesma Igreja.160
Além desses filhos falecidos, Maria de Asumpção conviveu com pelo menos mais três,
que foram identificados vivendo ao lado da mãe até a morte desta, possivelmente entre 17601767. Clara, filha dela, foi batizada na Igreja Matriz, em 1760, tendo como padrinhos Antônio
Machado da Sylva e Marcelina da Sylva. Nessa ocasião, batizou-se também Custódia, filha de
sua companheira da escravidão Michaela, cativa do mesmo Manoel de Saldanha.161 Antônio
Pereira da Silva, provavelmente um dos seus primeiros filhos, foi identificado através da ata
do seu casamento, realizado em abril de 1767. Dessa mesma forma, foi possível conhecer
Damiana Pereira, sua filha, que se casou com o crioulo Alexandre Soares no ano de 1774.
159
Observa-se que os dados tabelados não representam o quantitativo exato de famílias formadas no interior
dessas fazendas, pois, como muitos nomes se repetem, nem sempre se pode certificar se correspondem à mesma
ou a outra pessoa.
160
Livro de Registro de Óbitos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana de Bom
Jesus da Lapa.
161
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 5. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
128
Na realização desses dois casamentos, “Maria de Asumpção” não estava mais entre seus
familiares. Embora não tenha alcançado o crescimento da sua terceira geração familiar, parece
que os deixou de alguma maneira amparados; deduz-se isso porque “Maria da Asumpção”
tinha seus próprios meios de sobrevivência. Sendo proprietária de escravos, talvez vivesse da
renda gerada pelo aluguel deles, ou quem sabe esses escravos trabalhavam junto com a sua
família nas “lavouras de mantimentos”.
A história de vida de “Brittes”, ainda que reconstituída com limitações, apresenta mais
um exemplo de mulheres conduzindo suas famílias. “Brittes”, crioula de primeira geração,
escrava de Joana Guedes de Brito, batizou a sua filha Damázia, em 1733, a qual se casou com
um dos cativos dos Guedes de Brito, Miguel de Mascarenhas. Dessa união, nasceu João, que
foi batizado no ano de 1756 pelos padrinhos “Jozê de Arahujo cativo do capitão Antonio de
Souza Ferreira e Jozefa Guedes mulher de Domingos da Silva, escravos e moradores nos
Campos de São João”.162
Brittes viu sua família crescer, e com o casamento da filha ganhou um genro e um neto.
Quatro anos depois, após enviuvar-se de Miguel de Mascarenhas, Damázia uniu-se em
segundo casamento, desta vez com o “Jacinto, nação mina, também escravo dos Guedes de
Brito”. Nessa ocasião, 1760, a mãe de Damázia ainda estava convivendo com seus familiares,
todos moradores na fazenda de Santo Antônio.163
A convivência familiar e comunitária entre africanos e seus descendentes de primeira
geração, deve ter permitido a essas famílias trocas culturais importantes na formação de suas
identidades. A partir das relações familiares, fossem elas conjugais, extensas ou matrifocais,
homens e mulheres, africanos ou crioulos escravos no interior dessas fazendas encontraram na
família a base para construir ou reconstruir suas vidas. A condição vivida pelo absenteísmo
senhorial facultou aos escravos dos Guedes de Brito mais condições de criar laços familiares e
preservá-los ao longo de gerações. Em torno dos filhos, pais e padrinhos alargaram-se os
espaços e relações sociais das famílias de escravos, logo, da comunidade em que viviam.
162
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 1. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
163
Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 1. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
129
3.3 FILHOS DE ESCRAVOS: BATISMOS E COMPADRIO.
Este estudo soma-se a uma historiografia que tem demonstrado a viabilidade de
estudos da “família escrava” por meio de fontes eclesiásticas. O pioneiro trabalho de
Gudeman e Schwartz (1988), sobre o compadrio no Recôncavo Baiano colonial tornou-se
exemplar neste sentido. A partir de então, diversos historiadores164 dedicaram-se a investigar,
nos diversos acervos eclesiásticos espalhados pelo Brasil, práticas de compadrio em diferentes
localidades e tempos históricos. Este tipo de estudo, como destacou Stuart Schwartz (1989, p.
330), permite alargar nossos conhecimentos da vida familiar, pois através dele
[...] temos uma oportunidade de ver a definição mais ampla de
parentesco no contexto dessa sociedade católica escravocrata e de
testemunhar as estratégias de escravos e senhores dentro das
fronteiras culturais determinadas por esse relacionamento
espiritual.
A partir da análise dos assentos de batizados selecionados,165 foi possível conhecer
experiências diferenciadas em torno do batismo cristão e dos consequentes laços de
parentesco que envolveram os escravos dos Guedes de Brito nas teias de relações entre os
diversos segmentos sociais do “Certam de Sima”.
A amostra de documentos estudada neste capítulo166 revelou que, no período entre
1722 e 1790, trezentos escravos dos Guedes de Brito foram batizados e que vinte escravos de
cativos de Manoel de Saldanha também foram levados à pia batismal. Nos batizados de
forros, livres e escravos de outros proprietários, os escravos dos Guedes de Brito serviram
como padrinhos quarenta e três vezes.
Como se viu, diariamente, os moradores da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de
Sima” estiveram envolvidos com a movimentação causada pelos frequentes batizados na
Igreja Matriz de Santo Antônio do “Orubu de Sima”, no Santuário do Bom Jesus da Lapa e
demais capelas e oratórios espalhados pela extensa freguesia do “Orubu de Sima”, outras
“vezes eram feitos em ocasiões de desobrigas dos párocos”.167
Observou-se que entre os cativos dos Guedes de Brito, boa parte dos batizados
aconteceram nas fazendas, através da visitação daqueles padres e missionários que receberam
164
Dentre estes citamos: Guedes (2001), Ferreira (2001), Pinto (2003), Brugger (2004).
Durante a pesquisa nos livros de batizados da Cúria Diocesana de Bom Jesus da Lapa busquei selecionar as
atas referentes aos batizados nos quais os escravos dos Guedes de Brito estiveram envolvidos e também todos os
assentos de batismos ocorridos no Santuário. Documentei o total de 432 registros.
166
Neste capítulo trabalhamos com o conjunto das atas referentes aos Guedes de Brito, perfazendo o total de 364
atas batismais.
167
Comentário do professor Ruy Medeiros do curso de Direito da Universidade do Sudoeste da Bahia.
165
130
a licença do vigário responsável pela “freguesia do Orubu” para ministrarem os sacramentos
cristãos. Outros buscaram os serviços do Santuário, Igreja mais próxima da maioria das
fazendas habitadas por esses escravos. E, apesar da considerável distância, muitos se
encaminharam para a Matriz, no arraial do Urubu, a fim de batizarem seus filhos, como se
verifica na tabela abaixo.
Tabela 20: Locais de realização dos batizados que envolveram escravos dos Guedes de
Brito.
Local dos Batizados
Fazendas
Santuário do Bom Jesus da Lapa
Matriz de Santo Antônio do Orubu de Sima
Sem identificação
Quantidade
66
76
126
96
Total
364
Fonte: Livros 1, 2, 3, 5, 7,8 de batizados da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”.
%
18,13
20,87
34,61
26,37
99,98
Ocorriam, também, os batizados “in periculo vito”, ou seja, crianças acometidas por
doenças, que, correndo risco de morte, eram batizadas em casa. Essa prática foi recorrente no
Brasil Colônia, sobretudo devido aos ensinamentos da fé cristã católica, que orientava as
pessoas ao batismo, pois morrer sem o dito sacramento comprometeria a alma do falecido
“pagão”, que ficaria vagando pela eternidade:
[...] como não pode ir para o céu, porque não é cristão, nem para o inferno,
porque não pecou, o pagão vagará pelo Limbo e reaparecerá sempre, nas
encruzilhadas, esquinas de cemitério, pátios de fazenda, estradas solitárias,
choramingando pelo batismo. [...] o viajante de coragem deve então atirar
água na direção do choro e dizer as palavras rituais: Eu te batizo em nome do
Padre, do Filho e do Espírito Santo! (CASCUDO, 2001, p. 659).
As Constituições Primeiras do Acerpispado da Bahia apresentam diretrizes que
orientam batismos fora da igreja, para aqueles em perigo de morte, quando da ausência do
pároco. Conforme as referidas normas:
[...] se alguma criança, ou adulto, estiver em perigo, antes de poder receber o
batismo na igreja, pode e deve ser batizado fora dela, em qualquer lugar, por
efusão ou aspersão, e por qualquer pessoa, posto que seja leigo ou
excomungado, herege ou infiel, tendo intenção de batizar, como manda a
Santa Madre Igreja. E posto que o batismo feito por qualquer das ditas
pessoas fica valioso, concorrendo os mais requisitos da sua essência [...]
(VIDE, 1720, Livro Primeiro, Título XIII, p. 20).
Nos documentos analisados localizou-se registros que apresentaram essa prática no
“Certam de Sima”. Entre os cativos dos Guedes de Brito, oito crianças foram batizadas “in
articullo mortis” e depois receberam o sacramento do batismo, validando o batizado informal.
131
Experiências diferenciadas foram vivenciadas; por exemplo, os pequenos “Maximiano filho
de Domingas escrava de Manoel de Saldanha”168 e Marcella filha de Antônio e sua mulher
Caetana, também cativos de Manoel de Saldanha,169 foram batizados em “cazo de
necessidade” pelo Rdo Fr. Jozê do Pilar. Provavelmente, nesses dois casos, foi possível contar
com a presença do padre, que talvez estivesse por perto, “andando em desobriga”.
Entretanto, esse não foi o caso da filha da escrava Ritta crioula: “Marcelina [...] foi
bautizada in articullo mortis por Faustino Prª. Criollo escravo de Manoel de Saldanha da
Fazenda do Campo Grande”.170 Faustino, morador no Campo Grande, acudiu a pequena
Marcelina na Itibiraba, a quem batizou “in articullo mortis”. Depois do batismo, Marcelina,
que se encontrava à beira da morte, sobreviveu. Sendo assim, muito possivelmente, a família
da pequena, em júbilo, validou o seu batismo no Santuário da Lapa. Segundo as normas
eclesiásticas, as crianças que sobreviviam depois do batizado “in articullo mortis” deveriam
ser levadas à Igreja para validar o batizado, assim determinavam as normas católicas:171
E se alguma criança por necessidade for batizada fora da Igreja, quando
depois a levaram para se lhe fazerem os exorcismos e porém os santos óleos,
antes de sair da igreja, fará o pároco termo na dita forma, declarando nele
quem foi a pessoa que batizou, e o nome da criança, e de seu pai e mãe, mas
não os dos padrinhos (em caso que os houvesse), porquanto neste caso se
não contrai com ele parentesco espiritual, como temos dito no título I 8 n. 66
(VIDE, 1720, Livro Primeiro, Título XX, p. 32).172
Em muitos casos como esse, pessoas leigas de segmentos sociais diversos eram
chamadas para realizar o batismo como, por exemplo, Balthazar Pereira, que esteve na casa da
escrava Clara e batizou a filha dela, Tereza, “[...] em perigo de vida por não haver sacerdote
naquele lugar”.173 Geralmente, as crianças que sobreviviam após o batismo em caso de
necessidade, recebiam a confirmação do batismo com a bênção e purificação dos “Sanctos
oleos” ministrados pelo sacerdote. Neste ritual, as crianças ganhavam padrinhos, que
poderiam ser as mesmas pessoas que as batizaram “in pericullo vito” ou novos compadres
168
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 5. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
169
Ibid.
170
Ibid.
171
Ibid.
172
No título I 8 n.66 registrou-se: “Conformando-nos com a opinião mais comum dos doutores, declaramos que,
quando alguém é padrinho em nome de outrem, e toca como seu procurador, não contrai parentesco senão aquele
em cujo nome toca. E quando o batismo, por necessidade, se faz em casa, se contrai parentesco espiritual entre o
que batiza e o batizado e seu pai e mãe, mas neste caso se não contrai algum impedimento com os padrinhos,
ainda que os haja; nem também se contrai com os padrinhos que assistem quando depois se fazem os exorcismos
e põem os santos óleos na igreja (VIDE, 1720, p. 29).
173
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 3. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
132
eram escolhidos. Assim fez a escrava Maria Cezilia: ao confirmar o batizado de sua filha
Maria, lhe deu novos padrinhos conforme descrito na ata abaixo:
Aos quinze dias do mês de julho de mil Sete Sentos e Setentanove na
Fazenda da Volta [...] batizou sobconditione por ter sido batizada in
pericullo vito por Valentim Rodrigues, Elhe pos os Sanctos óleos a Maria
nascida em Vinte Sinco de Novembro de Setenta e oito [...]. Forão
(padrinhos) Bento da Silva e sua mulher Raymunda escravos do
Ilustrissimo Manoel de Saldanha [...].174
Gudeman e Schwartz (1988, p. 53) concluíram que “as crianças batizadas à beira da
morte quase sempre não tinham padrinhos”. Apesar de não me haver detido no estudo de
todas as práticas de batismo da ampla Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”, o
recorte estudado demonstrou indícios de comportamento diferente. Dos oito casos de crianças
batizadas “in pericullo vito” acompanhados, quatro ganharam padrinhos ao confirmarem o
batismo com os “Sanctos oleos”.
Outro dado observado na análise do conjunto documental selecionado, corresponde ao
número marcante de crianças batizadas em relação à pequena quantidade de adultos que
também receberam o sacramento. No capítulo I, apresentou-se dados sobre a faixa etária dos
escravos batizados (vide Tabela 11), e sugeriu-se que os baixos números de batizados de
adultos devem ter sido consequências da opção dos Guedes de Brito pela reprodução natural
na formação das suas fazendas escravistas dispondo em menor intensidade do tráfico.
Por outro lado, esse pequeno número de batizados de adultos pode ter sido
consequência das normas eclesiásticas coloniais, que, a partir de 1697, ordenavam o batismo
dos africanos traficados ainda nos portos da África. Segundo Gudeman e Schwartz (Ibid, p.
53-54), essa medida foi tomada devido a este registro: “[...] a negligência dos senhores em
batizar os africanos recém-chegados provocou reclamações da parte dos padres. Em 1697,
uma ordem régia mandava que o batismo fosse feito nos portos africanos e que a instituição
religiosa fosse ministrada nos navios negreiros”.
Retomando as normas eclesiásticas que orientavam a prática batismal, observou-se
que nem sempre foram seguidas a rigor na Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”,
assim como em outras freguesias do Brasil colônia. Conforme as Constituições Primeiras do
Arcebispo da Bahia, as crianças recém-nascidas deveriam ser batizadas até oito dias depois do
nascimento. Sendo que cada criança seria apadrinhada somente por um padrinho (acima de 14
anos) e uma madrinha (acima de 12 anos). Os pais não poderiam assumir o papel de padrinhos
dos próprios filhos, bem como religiosos (padres, freiras, freis, cônegos dentre outros),
174
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 3. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
133
excetuando membros das Ordens Militares (VIDE, 1720, Livro Primeiro: Título XI, p. 16;
Título XVIII, p. 29).
Para todas essas regras foram encontradas transgressões, as quais, na verdade,
representaram ressignificações da prática do batismo de acordo com diferentes experiências
de vida. Quase sempre os escravos do “Certam de Sima” receberam os “Sanctos oleos” do
batismo, depois dos oito dias de nascidos, geralmente após o primeiro mês de vida. Quanto
aos padrinhos e madrinhas, encontramos um número considerável de crianças que contaram
apenas com um dos padrinhos para apadrinhá-las.
Anacleto, filho legítimo dos escravos Domingos e Anna, moradores na fazenda do
Mucambo, recebeu apenas a madrinha, Ana Maria da Costa, viúva e moradora no Sitio do
Mato.175 Outras crianças foram apadrinhadas por dois padrinhos, em alguns casos, até três.
Padres também serviram de padrinhos, assim como confiaram a Nossa Senhora alguns
afilhados.
O sacramento do batismo foi o primeiro mecanismo de inserção dos africanos
escravizados e seus descendentes na vida cristã colonial. Pelo menos, essa era a perspectiva
dos colonizadores, que utilizavam o recurso da cristianização como via de dominação das
populações africanas, por isso no momento do batismo nos portos da África, reforçava-se para
os africanos batizados:
Olhai, sois já os filhos de Deus; estais a caminho de terras espanholas (ou
portuguesas), onde ireis aprender as coisas da fé. Esquecei tudo que se
relacione com o lugar de onde viestes, deixai de comer cães, ratos ou
cavalos. Agora podeis ir e, sede feliz (BOXER, 1973, p. 43 apud SOARES,
2000, p. 257).
Entretanto, as convivências, no contexto da diáspora, permitiram que esses africanos e
afro-brasileiros ressignificassem as práticas cristãs a partir das suas heranças culturais da
África. Conforme assinalou Stuart Schwartz (2009, p. 246), “[...] a presença de milhares de
africanos, falando diversas línguas e adotando crenças e práticas religiosas muito distantes das
normas cristãs, era um desafio aos limites da teologia e da tolerância”. As escolhas (escolhas
dos compadres, dos nomes dos filhos, dos locais das cerimônias) feitas pelos escravos através
dos sacramentos católicos do batismo e do matrimônio, permitiram que cada grupo desses
sujeitos sociais imprimisse nessas experiências o seu modos vivendi e, consequentemente,
desestruturasse o controle do poder estabelecido (Estado/Igreja) na vida cotidiana dessas
pessoas.
175
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
134
Quando se penetra nas entrelinhas das fontes históricas, consegue-se uma aproximação
do universo mais íntimo e pessoal das vivências desses sujeitos sociais. Estudos das práticas
de compadrio entre escravos demonstram como é possível aproximar-se de alguns dos seus
significados. Para Cristiany Miranda Rocha (2004, p. 121),
O parentesco ritual, como o casamento e o compadrio, pode revelar-nos
elementos relativos às expectativas dos cativos diante da família, que não
são através do parentesco consangüíneo. Isso porque aquele envolve
mecanismos de escolhas que este não possui.
No presente estudo, cativos dos Guedes de Brito, envolvidos na situação do “viver por
si” e viver pelos seus, constituíram famílias e zelaram por elas. As relações de
apadrinhamento foram estratégicas na vivência pessoal e familiar de escravos e forros. O
nascimento dos filhos foi importante na vida dos escravos. Alegravam-se pela chegada de
mais um membro familiar, um filho significava continuidade à sua família-linhagem. Assim,
poderiam transmitir a cultura dos seus ancestrais. O filho reforçava o sentimento de
pertencimento ao novo lugar em que foram obrigados a morar, nesse caso, o “Certam de
Sima”. Na família, encontraram a base para a luta cotidiana pela sobrevivência.
Em torno dos filhos, os escravos puderam alargar o convívio familiar e as suas
estratégias de sobrevivência, pois, ao batizá-los, constituíam novas relações sociais através do
compadrio. Nesse sentido, os sacramentos de batismo e casamento adquiriram significados
que extrapolavam a dimensão cristã; perpassavam pelas experiências diversas inscritas no dia
a dia de suas vidas. “Tais laços podiam ser usados para reforçar laços de parentescos já
existentes, solidificar relações com pessoas de classe social semelhante ou estabelecer laços
verticais entre indivíduos socialmente desiguais” (FREIRE, 2009, p. 189).
Esses e outros sentidos afloram da leitura de registros de casamentos e batizados de
escravos e forros. No caso dos cativos dos Guedes de Brito, é possível perceber que se
envolveram em múltiplas relações ao tornarem-se compadres de pessoas de diferentes
segmentos sociais (livres ricos e pobres, cativos do mesmo e de diferentes senhores). Relações
sacramentadas na pia batismal que os acompanhavam por toda a vida, na convivência diária,
no apoio e na amizade, nas trocas de favores entre compadres e no cuidado dos padrinhos com
seus afilhados.
Estudos em diversas regiões do Brasil informaram padrões diferenciados para o
compadrio. Gudeman e Schwartz, em trabalho pioneiro nos arquivos paroquiais de duas
freguesias do Recôncavo baiano setecentista, observaram, por exemplo, que [...] “os senhores
não se tornavam padrinhos dos próprios escravos e só raramente os parentes do senhor
135
exerciam esse papel, o compadrio não era usado, em geral, para salientar os aspectos
paternalistas da relação entre senhor e escravos” (SCHWARTZ, 2001, p. 272).
Os autores justificaram esse padrão, a partir da concepção de incompatibilidade entre
as duas instituições - Igreja e Escravidão -, por apresentarem sentidos opostos. “Se o vínculo
do apadrinhamento era uma relação espiritual de proteção o vínculo senhor-escravo era uma
relação assimétrica de propriedade. Onde um representava socorro, o outro significava
subserviência” (Id: 1988, p. 42). Entretanto, em meio a essa contradição, os “laços
incompatíveis foram mantidos separados” enquanto outros senhores, escravos e livres
serviram como padrinhos. Os livres representaram 70% das escolhas dos escravos no
Recôncavo Baiano, seguidas das opções por escravos e libertos.
Em outras pesquisas, a participação de escravos apadrinhando foi mais expressiva, por
exemplo, nas propriedades rurais de Campinas, no século XIX, estudadas por Cristiany
Miranda Rocha (2004), que observou, no conjunto de duas propriedades escravistas,
porcentagens mais elevadas nas escolhas dos escravos por compadres da sua mesma condição
social, seja da mesma ou de diferente fazenda.
Para as fazendas de absenteístas de Curitiba (1797) e Castro (1835) no Paraná, Lima e
Melo (2004, p. 156) também encontraram um maior número de compadrios entre cativos.
Nesse estudo comparativo, concluíram que “[...] a propensão das mães e pais escravos para
selecionar compadres da mesma condição era muitíssimo maior nas unidades de absenteístas
em confronto com o conjunto de posses escravas”. Justificaram essas informações,
defendendo que a ausência dos donos das fazendas contribuiu com a construção de laços
familiares cerrados entre os escravos, influenciando o compadrio e assim, “provocando uma
tendência maior que a normal a que crianças escravas tivessem outros escravos como
padrinhos e madrinhas” (Loc. cit.).
As atas batismais analisadas no presente estudo apresentaram, para as práticas de
compadrio do alto sertão baiano, características semelhantes às dos padrões considerados para
o Recôncavo, embora aspectos específicos revelassem outras nuances de suas experiências.
Os cativos dos Guedes de Brito, nas escolhas dos padrinhos e madrinhas para apadrinhar seus
filhos, optaram, na maioria dos casos, por pessoas livres. Conforme a Tabela 21, 65,8% dos
padrinhos e 50,58% das madrinhas foram livres, logo, na formação dos pares de padrinhos,
também há o predomínio das escolhas por pessoas de status social mais elevado.
136
Tabela 21: Padrinhos e madrinhas dos escravos dos Guedes de Brito (1729-1790).
Condição Social
Escravos (a) do mesmo senhor (a)
Padrinhos
N
%
52
17,93
Madrinhas
N
%
64
25,09
Escravos (a) de outro senhor
12
4,13
16
6,27
191
18
17
65,8
6,2
5,86
129
19
27
50,58
7,45
6,66
Livre
Forro (a)
Indeterminado (a)
Total
290
99,92
255
* Dos 300 registros de batismos, 10 não apresentaram padrinhos e 45 não apresentaram madrinhas.
Fonte: Livros 1, 2, 3, 5, 7,8 de batizados da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”.
96,05
Tabela 22: Formação dos pares de padrinhos e madrinhas dos escravos dos Guedes de Brito
(1729-1790).
Padrinho
Livre
Madrinha
Livre
Escravo do
Escravo do
mesmo
outro
forro
Indeterminado
Total
121
5
1
1
1
129
18
8
11
35
3
5
4
1
4
5
3
4
3
3
-
65
18
24
9
-
1
2
9
21
167
48
11
15
16
Total
* 45 atas não apresentaram pares de padrinhos.
Fonte: Livros 1, 2, 3, 5, 7,8 de batizados da Freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”.
257
Escrava do mesmo
Escrava do Outro
Forra
Indeterminada
A opção por compadres livres revela possíveis estratégias desses escravos no cuidado
de suas famílias, pois significava oportunidade de criar relações com pessoas em condição
social melhor que poderiam amparar o afilhado e a sua família nos momentos de
necessidades. Neste sentido, as conclusões de Robert Slenes (1997, p. 271) acerca do
raciocínio dos escravos ao selecionar seus compadres apontam para “[...] a necessidade, num
mundo hostil, de criar laços morais com pessoas de recursos, para proteger-se a si e os seus
filhos”; esse pode ter sido um dos anseios dos escravos contemplados neste trabalho. Sílvia
Maria Jardim Brugger (2004, p. 6), no estudo do apadrinhamento de cativos em São João del
Rei (1730-1850) observou características semelhantes.
A opção preferencial por padrinhos livres indica a intenção dos cativos de
estabelecer, através do compadrio, alianças “para cima”. Afinal, o padrinho,
segundo a própria doutrina católica, constituí-se em um segundo pai, em um
com-padre: ou seja, alguém com quem, de algum modo, se dividia a
paternidade. Nada mais “normal” do que a pretensão de que esta divisão
pudesse ser feita com homens situados socialmente num patamar superior e
que pudessem dispor de mais recursos – não só financeiros, mas também
políticos e de prestígio – para o “cuidado” dos afilhados.
137
“A distante voz do dono” (LIMA; MELO, 2004) influenciou marcantemente a vida
cotidiana dos escravos de fazendas absenteístas do Paraná; no “Certam de Sima” não foi
diferente. Entretanto, naquelas a ausência do senhor implicou a formação de laços cerrados,
ou seja, as relações familiares e de compadrio circunscreviam-se no espaço da unidade
escravista. Nas fazendas dos Guedes de Brito, ao contrário, a relativa autonomia escrava, pelo
distanciamento do senhor, proporcionou relacionamentos abertos, nos quais as redes de
apadrinhamento ultrapassaram os limites das fazendas e em alguns casos da freguesia.
O “viver por si” dos cativos dos Guedes de Brito parece ter contribuído, com maior
intensidade, para a busca de laços com compadres livres, apesar do número significativo de
alianças entre companheiros das fazendas escravistas. A limitação das fontes dificulta o
acompanhamento das trajetórias de vida dos padrinhos e madrinhas, informações que podem
esclarecer melhor os significados da preferência desses escravos por compadres livres e a
influência da condição vivenciada pelo absenteísmo.
Todavia, sutilmente, emergem das fontes alguns sentidos dessas alianças entre escravos
e livres, não apenas a busca por apoio e proteção, mas também possíveis relações de amizade,
fruto da convivência há muito tempo constituída e que atravessava gerações. Conforme foi
visto no capítulo I, desde o princípio da colonização desses sertões, escravos, forros e livres
(ricos e pobres) conviviam no interior das primeiras fazendas do “Certam de Sima”, logo as
relações de vizinhança entre esses sujeitos sociais ecoam das atas paroquiais perscrutadas.
A família do “Capitam Antônio de Souza Ferreyra e de Donna Joanna Thimotea de
Vasconcellos”, moradores na Salinas junto da Lapa,176 constantemente estiveram envolvidos
com os cativos dos Guedes de Brito, seus vizinhos. Entrelaçaram-se pelas redes de compadrio
tecidas dia a dia quando aqueles batizavam os filhos destes e também nas escolhas dos
escravos para apadrinhar os filhos dos cativos da família Vasconcellos, também vizinhos.
A participação de escravos (as) e forros (as) como padrinhos e madrinhas ocupou,
respectivamente, o segundo e terceiro lugar na preferência dos escravos dos Guedes de Brito
(ver Tabela 21). Estas escolhas apresentaram outros significados do compadrio: a conservação
de antigas amizades e a consideração com parentes e amigos companheiros da escravidão,
portanto reforçando a vida em comunidade, as trocas de favores e as relações de vizinhança.
Esses aspectos gerais, apresentados até o momento, guardam uma multiplicidade de
relações e significados percebidos nas entrelinhas das fontes. A partir dessa perspectiva,
176
Ibid.
138
perscrutei nos documentos paroquiais as redes de compadrio que envolveram famílias de
escravos e forros das fazendas dos Guedes de Brito.
3.3.1 REDES DE COMPADRIO TECIDAS ENTRE PARENTES, COMPADRES E
COMPANHEIROS.
Estêvão e Domingas, crioulos provavelmente nascidos no interior das fazendas dos
Guedes de Brito,177 receberam, frente ao Coadjutor “Joachim de Santa Anna”, o sacramento
do Matrimônio. No dia 27 de Novembro de 1739, na Matriz, testemunharam aquela união
Antônio Mathias, Miguel de Sá e o próprio Coadjutor, os dois primeiros, pessoas moradoras e
conhecidas na Freguesia do Orubu.178 Na fazenda Santo Antônio do Orubu, esse casal viveu
com seus cinco filhos, todos batizados na sede da Freguesia. Esses batismos são “frestas” que
revelam alguns dos percursos das vivências familiares do referido casal. Vejamos a figura
abaixo:
Figura 3: Rede de compadrio do casal Estêvão, crioulo e Domingas, crioula,
escravos dos Guedes de Brito179
Estêvão crioulo
Anastácia
Legítima
04/09/1740
Miguel, escravo do
mesmo, Maurícia
Pereira, preta forra
Alexandre
Legítimo
09/10/1749
Antônio Mathias de
Oliveira, solteiro
Domingas crioula
Ignácio
07/09/1757
Apolinário da
Silva, morador
nesta vila
Narciza
Legítima
04/06/1757
Antônio Afonço
Barbosa, solteiro, e
Narciza Barbosa,
casada
Maria
Legítima
10/11/1760
Lourenço Guedes
liberto, e Anna Maria
escrava de Ignácio
Lopes da Cunha
No batizado de Anastácia, primeira filha do casal, os compadres escolhidos foram
Miguel, escravo do mesmo senhor morador na fazenda do Campo Grande (também dos
Guedes de Brito) e Maurícia Pereira de Oliveira, preta, forra, solteira. Ao buscar essas
alianças, Estêvão e Domingas preservaram suas relações de amizade e companheirismo por
membros da sua comunidade, pois Maurícia, mesmo forra, continuava convivendo nessas
177
Devido às condições das fontes, o livro de registro de batizados nº 1 apenas pôde ser analisado em algumas
folhas, talvez os assentos dos batizados de Estêvão e Domingas estiveram registrados nas folhas impossibilitadas
de pesquisa.
178
Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 1. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
179
Baseado nas atas dos Livros 1,2 e 3 de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de
Sima. Cúria Diocesana de Bom Jesus da Lapa.
139
fazendas. As fontes sugerem que Maurícia era muito respeitada entre os seus, por isso
apadrinhou outras crianças escravas nascidas nesse contexto180
Alexandre, segundo filho do casal, foi batizado na Matriz por Antônio Mathias de
Oliveira, solteiro, que já fazia parte do círculo de relacionamentos de Estêvão e Domingas,
pelo menos havia dez anos, desde o casamento destes, quando ele estava entre as
testemunhas.181 Novamente, burlando as normas das Constituições Primeiras do Arcebispado
da Bahia, batizaram, em 1757, o filho Ignácio, que contou apenas com Apolinário da Silva
(morador daquela vila) como padrinho.
Entre os cativos dos Guedes de Brito, encontram-se casos muito próximos a esses,
demonstrando que o papel do padrinho nessas relações de compadrio representou maior peso,
pois apenas 10 afilhados não ganharam padrinhos enquanto as madrinhas estiveram ausentes
em 45 dos batizados analisados (vide Tabela 21). Os significados deste tipo de escolhas
podem estar relacionados com a posição social dos chamados “homens livres”. Em geral, no
contexto social do século XVIII, eram eles que ocupavam posições de controle e de
dominação nas relações cotidianas de poder. Portanto, correspondiam aos anseios de apoio e
proteção de parcela significativa da população.
Gudeman e Schwartz (1988, p. 51), ao identificarem padrão semelhante entre os
padrinhos do Recôncavo Baiano, ressaltaram que, “[...] independentemente do estatuto legal
do batizado, as madrinhas estavam ausentes 14 vezes mais do que os padrinhos; a presença do
padrinho foi considerada mais importante que a da madrinha”.
Quanto ao batizado de Narciza, que contou com padrinho e madrinha, seus pais
convidaram Antônio Afonço Barbosa, solteiro, e Narciza Barbosa, casada, ambos livres.182
Esse assento de batismo é exemplar de um costume entre os moradores dessas fazendas
sertanejas: homenagear os compadres e parentes sanguíneos ao nomear seus filhos. Estevão e
Domingas, que além de confiarem sua filha aos cuidados da madrinha, Narciza Barbosa,
prestou-lhe homenagem ao nomear a filha com o mesmo nome da comadre. Têm-se, nesse
caso, ações cotidianas que expressam atitudes próprias de escravos no cuidado de suas
famílias, nas decisões e escolhas, na construção e conservação de suas amizades. Homenagear
180
Foi madrinha em outros batizados registrados no Livro de Batizados n° 1 referido anteriormente.
Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 1. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
182
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
181
140
a comadre sugere sentimento de respeito, admiração e consideração, aspectos da
“individualidade dos escravos”.183
Em 1760, Estêvão e Domingas novamente seguiram para a sede da Freguesia para
batizar mais uma filha, Maria.184 Nessa ocasião, os compadres convidados foram Lourenço
Guedes, liberto,185 e Maria, cativa de Ignácio Lopes da Cunha. Mais uma vez, esse casal
demonstrou o envolvimento com os companheiros de escravidão. Mesmo que Lourenço
Guedes fosse liberto, a confiança prevalecia, isso se explica devido à permanência desses
forros nas fazendas em que nasceram ou em que trabalhavam quando escravos. Mesmo
alforriados, continuavam integrados à comunidade de origem.
A aliança do casal Estêvão e Domingas com Anna Maria, escrava e moradora da vila,
demonstra como a convivência entre os escravos ia além dos “mourões” das fazendas.
Característica semelhante observou Cristiany Miranda Rocha (2004, p. 125) nos laços de
compadrio de escravos de Campinas (século XIX): “[...] tais amizades com uma considerável
frequência, extrapolavam os limites das fazendas em que viviam, já que muitos escravos
preferiram estabelecer os laços do compadrio com escravos de outros senhores”.
Diante da condição diferencial de Estêvão como proprietário de outros escravos,186
imagina-se que ele seria convidado para apadrinhar; porém, no conjunto documental
analisado, não se encontrou registro de Estêvão nem de sua mulher como padrinhos.
Entretanto os filhos de seus cativos foram batizados, possivelmente com o aval e até mesmo
com o acompanhamento de Estêvão, por isso é válido apresentar exemplo desta experiência.
Para tanto, selecionei alguns percursos da sua escrava Andreza, crioula, apresentados na
figura abaixo:
183
“O batismo e as relações espirituais definiam parte da individualidade dos escravos, isto também é ilustrado
pelos nomes próprios ou cristãos inscritos no livro de registro” (GUDEMAN e SCHWARTZ, 1998, p. 43).
184
Encontrei Maria, ainda em companhia da sua mãe, Domingas, esta já viúva, casando, com Mathias Antunes,
também cativo de Manoel de Saldanha, em 1778 na Matriz de Santo Antonio do Orubu. Livro de Registro de
Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do “Orobu de Sima”, n° 3. Cúria Diocesana de Bom Jesus da Lapa.
185
Lourenço Guedes é um dos treze cativos dos Guedes de Brito indicados nas fontes como proprietários de
outros escravos.
186
Identifiquei a quantidade de seis cativos pertencentes a Estevão crioulo.
141
Figura 4: Rede de Compadrio de Andreza, crioula, escrava de Estêvão, crioulo, escravo de
Manoel de Saldanha187.
Andreza crioula
Eugênio
1739
Capitão-Mor Jozê da
Silva,pardo, forro e
Antônia cativa de
Manoel Caetano Leam
Pedro crioulo
Domingos
1746
Francisco Xavier de
Oliveira e Maria
crioulla escrava de
Thomás Carvalho
Como se vê, Andreza, ao batizar seus dois filhos, optou por relações com escravos de
outros proprietários, a madrinha de Domingos, cativa de Thomás Carvalho, era requisitada no
exercício desse papel; por exemplo, um mês depois desse batizado, tornou a ser madrinha de
Caetana, filha de Jherônimo e Adriana, já conhecidos neste trabalho. Na escolha dos
padrinhos, Andreza preferiu pessoas em condição social superior à sua, selecionou, entre os
forros, o Capitão-Mor Jozê da Silva188 e, entre os livres, Francisco Xavier de Oliveira, talvez
com o mesmo objetivo do seu senhor: garantir alianças de possíveis vantagens.
Em dezembro de 1748, Andreza, mãe das duas crianças, casou-se com Pedro crioulo,
cativo de Manoel de Saldanha,189 possivelmente pai dos seus filhos, já que era comum
legitimar, através do sacramento do matrimônio, uniões consensuais. Nessa ocasião
apadrinharam os nubentes Luís Dias de Almeyda e Francisco de Almeyda Magalhães
(Coronel), pessoas influentes, moradores na vila, sede da Freguesia. Também nas relações
construídas com os padrinhos de casamento, Andreza buscou alianças verticais.
Parti, então, das “pistas” deixadas por Joze e Maria, escravos dos Guedes de Brito que
se uniram na fazenda da Itibiraba, onde constituíram família. Dessa união, nasceram os filhos
Euzébio, Felícia, Clara, Maria do Nascimento, Cypriana e Joaquim, formando uma família
que foi crescendo com a chegada dos netos. Conviviam, na fazenda da Itibiraba, pais, filhos,
187
Baseado nas atas do Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n 2.
Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2 Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
188
As fontes nas suas entrelinhas deixam ver aspectos de possível ascensão social dos escravizados no alto sertão
baiano. Encontramos indícios de forros e até escravos que, como o forro “Joze da Silva”, receberam o título de
capitão-mor.
189
Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
142
avós, netos, tios, sobrinhos, primos, cunhados e também compadres e comadres que
ampliavam essas relações familiares.
Acompanhei alguns passos dessa família através do cruzamento das informações dos
registros de batizados e casamentos (veja Figura 5). Não foi identificado os assentos batismais
de todos os filhos de José e Maria, mas quatro deles casaram-se. Desse modo, valho-me das
atas dessas cerimônias de casamentos na reconstituição das experiências dessa família.
Também, não localizei a ata do casamento de José e Maria, mas sabe-se que o casal se uniu
segundo as normas da fé católica devido à condição de legitimidade dos seus filhos, noticiada
nas fontes supracitadas. Ficou difícil o acesso às origens desses escravos, se eram africanos ou
crioulos; por outro lado, as suas vivências familiares e de compadrio são vislumbradas pelo
nascimento e casamentos dos seus filhos e netos. Alguns de seus percursos serão tratados a
seguir.
Figura 5: Família nuclear e compadrio de Joze Pereira da Silva e
Maria da Silva Nunes escravos dos Guedes de Brito.190
“Joze” Pereira
da Silva
Euzébio
Filho legítimo
Batizado: 1748
Clara
Filha legítima
Batizado: 1755
Joam Pires da
Cruz e Antônia
de Mello
João de Afonsequa e
Maria do Nascimento,
solteira
Felícia Pereira da
Silva, filha
legítima
Casamento: 1747
Maria da Silva
Nunes
Maria do
Nascimento,
filha legítima
Casamento: 1766
Cypriana da
Silva,
Filha legítima
Casamento:1767
Joaquim pardo
Filho legítimo
Casamento: 1778
Nos batizados dos filhos Euzébio e Clara, observa-se que “Joze” e Maria deram dois
sentidos às alianças firmadas com os padrinhos dos seus filhos. No batizado de Euzébio, o
casal procurou as possíveis vantagens do estreitamento das relações com pessoas livres,
enquanto para Clara o casal escolheu os compadres “João de Souza Afonsequa”, forro, e uma
irmã de Clara, Maria do Nascimento, demonstrando a confiança e apreço tanto para com o excolega, agora forro, como também para com uma das filhas mais velhas, do casal, essa que
tem outras experiências como madrinha, como se verá adiante.
O apadrinhamento de “Joze Pereira” aos seus quatro afilhados (ver figura abaixo)
demonstrou como ele e sua família foram referências na comunidade em que viviam. Foi
190
Baseado nas atas dos Livros de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2.
Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2, n°3, Cúria Diocesana
de Bom Jesus da Lapa.
143
localizado “Joze”, ao lado de suas filhas Maria do Nascimento e Felícia, batizando duas
crianças. Os companheiros de cativeiro, escravos vizinhos ou de outras fazendas, viram nos
membros da família de José e Maria pessoas ideais para desempenhar as funções de padrinho
e madrinha, ou seja, aqueles que, além de dar exemplo aos afilhados, eram, também,
responsáveis por eles. Confirmaram-se no compadrio antigas amizades, como no batizado de
Delfina, filha de “João Lopes de Afonseca”, forro, que seis anos antes tinha batizado Clara,
filha de “Joze Pereira”, passando a ser compadres por duas vezes.
Figura 6: Rede de Compadrio de “Joze Pereira da Sylva”.191
“Joze Pereira”
Padrinho
Mathias e sua
mulher Perpétua,
cativos de outro,
compadres
Liberata
Afilhada
1743
Malachias
Afilhado
1754
Mariana
Escrava de outro,
comadre
Alberto
Afilhado
1752
Delfina
Afilhada
1761
Luciana
Escrava de outro.
Comadre
João Lopes de
Afonseca, forro e sua
mulher Anna de
Almeida, compadres
Veja-se os percursos vividos por uma das filhas desse casal de escravos, Maria do
Nascimento. Antes de acompanhá-la nos batizados dos seus demais afilhados, é válido
conhecer outros momentos da sua trajetória familiar. Morava junto com seus pais na fazenda
da Itibiraba, onde deu à luz e criou pelo menos dois filhos, Nicácia e Manoel, quando era
ainda solteira (ver Figura 7). Em 1766, quando seus filhos já estavam, aproximadamente, com
onze e seis anos de idade, casou-se com Pedro Ferreira, viúvo de Andreza Guedes e filho
legítimo de Antônio Ferreira e sua mulher Francisca Maria, todos cativos de Manoel de
Saldanha. 192 As fontes não esclarecem se Pedro Ferreira era o pai de Nicácia e Manoel.
191
Baseada nas atas dos Livros1, 2 e 5 de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de
Sima. Cúria Diocesana de Bom Jesus da Lapa. Nos batizados que acompanhei nessa rede, aparece Maria da
Sylva por duas vezes, ao lado de “Joze Pereira”, apadrinhando. Entretanto, não foi possível certificar se nesses
casos, tratou-se de Maria da Silva, sua mulher, por isso não documentei sua provável trajetória como madrinha.
192
Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 3. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
144
Figura 7: Rede familiar e de Compadrio de Maria do Nascimento,
escrava de Manoel de Saldanha.193
Maria do
Nascimento
Nicácia, filha
natural, 1755
João Lopes, solteyro,
forro e Maria da Silva
mulher de “Joze
Pereira”
Pedro Ferreira
Manoel, filho
natural, 1760
“Joze” da Costa de Abreu e
Donna Joanna Thimótea
mulher do Capitão Antônio
de Souza Ferreira
As relações firmadas entre Maria do Nascimento e seus compadres reforçam
afirmações anteriores de compadrio entre parentes. Como se viu, ela batizou a própria irmã e
não hesitou em escolher a sua mãe “Maria da Silva mulher de Joze Pereira” como madrinha
da neta Nicácia. Sugere-se, portanto, que, além dos sentimentos de amor e consideração,
influenciaram essa escolha a convivência estável com seus familiares, pois ali, na Itibiraba,
nasceram e se criaram, permanecendo juntos até morrer.
Reforçou também relacionamentos com João Lopes, forro, e com “Joze” da Costa de
Abreu e Donna Joanna Thimótea, pessoas livres, moradoras da mesma “Freguesia do Orubu
de Sima”. A madrinha de Manoel, por exemplo, morava com sua família no território da
fazenda Itibiraba, certamente, as possibilidades de solidariedades e trocas de favores entre
essas comadres e entre madrinha e afilhado foram mais amplas. E as alianças de compadrio
nas quais Maria do Nascimento esteve envolvida como madrinha? O que é informado? Vejase a reconstituição dessas experiências na Figura 8.
193
Baseado nas atas dos Livros 2 e 5 de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima
e no Livro 3 de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
145
Figura 8: Comadres e afilhados de Maria do Nascimento.194
Maria do Nascimento
Madrinha
Luciana
Cativa de outro.
Comadre
Joze Pereira da Silva e
Maria da Silva,
Cativos. Compadres
Malachias
Afilhado
1754
Clara
afilhada
1755
Cypriano
afilhado
1779
Ignácio e sua
mulher Simplícia,
cativos. Compadres
Roza
afilhada
1785
Marcolina, cativa.
Comadre
Joze
afilhado
1793
?
Entre as escravas dos Guedes de Brito, Maria do Nascimento esteve entre as mais
requisitadas para ser madrinha, cinco atas de batismos documentaram essas práticas. O
batizado da sua irmã Clara, aqui já comentado, deve ter sido para ela e toda a família muito
especial, possivelmente pôde zelar dessa “afilhada-irmã” e acompanhar-lhe o crescimento.
Maria do Nascimento conquistou o respeito e admiração não apenas no seio familiar, atingiu a
comunidade da qual era membro e também de cativos de outros proprietários, moradores em
outras fazendas.
Não mediu esforços em percorrer o longo trajeto da Itibiraba até a Matriz, aceitando o
convite para batizar “Cypriano, filho de Ignacio e sua mulher Simplícia cativos de Manoel de
Saldanha”,195 assim também quando apadrinhou Roza, filha de Marcolina, cativa de Anna
Maria de Mello, em 1785, e depois, em 1793, “Joze”, aparentemente, escravo adulto de Félix
da Silva.196 Esses laços de compadrio entre escravos de proprietários diferentes indicam “a
busca por laços de parentesco e solidariedade com famílias antigas e enraizadas na fazenda”
(ROCHA, 2004, p. 139).
Muito provavelmente, a escolha de Maria do Nascimento como madrinha dos filhos de
cativos de outros proprietários, se justifique pela estabilidade de sua família, que firmara
relacionamento havia muito tempo com a comunidade local. Esse foi um fator relevante na
escolha dos compadres e comadres pelos pais dessas crianças que almejavam “[...] fazer
desses parentescos passaportes para o ingresso na comunidade já existente na senzala [na
194
Baseado nas atas dos Livros 2, 3 e 8 de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antonio do Orobu de
Sima. Cúria Diocesana de Bom Jesus da Lapa.
195
Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antonio do Orobu de Sima, n° 3. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
196
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antonio do Orobu de Sima, n° 8. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
146
fazenda], além de se aproximar dos laços verticais estabelecidos por essas famílias” (Loc.
cit.).
A forte presença do compadrio entre outros membros da antiga e enraizada família de
Maria do Nascimento confirma o interesse de outros escravos em aproximarem-se dela. Neste
sentido, apresenta-se referências de Felícia, irmã de Maria do Nascimento, que também
desfrutava do convívio familiar com seus pais, irmãos e sobrinhos, além do marido, do filho e
dos enteados.
Felícia casou-se com Manoel Crus, escravo dos Guedes de Brito e antigo morador da
Itibiraba.197 Na ocasião do casamento convidaram “Manoel Caetano e sua mulher Anna
Maria, moradores na Freguesia de Sam Francisco da Barra do Rio Grande Bispado de
Pernambuco” para serem os compadres a testemunhar essa união.198 O contexto dessas
experiências conduz a pensar que já se conheciam, pois, como evidenciaram as fontes, o vai e
vem de romeiros e visitantes na Gruta do Bom Jesus favorecia encontros mais constantes.
Manoel Cruz e Felícia moravam na fazenda em que se localizava esse Santuário, e
frequentavam-no com regularidade por ocasião dos batizados de seus parentes, filhos e
afilhados, bem como nos casamentos, inclusive no deles próprios. Talvez tenham conhecido
Manoel Caetano e Anna Maria em um desses momentos.
A seleção dos compadres desse casal denuncia a forte ligação com pessoas de
destaque na sociedade em que viviam. Manoel Cruz, no batizado de Maximiano, seu filho do
primeiro casamento, formou alianças com Silvestre Rodrigues da Silva e Izabel de Avellar,
esta, proprietária de escravos também na fazenda da Itibiraba. Seguiu mesma tendência no
batizado de Manoel, ao escolher o Tenente Manoel Machado de Almeyda e Donna Caetana
do Nascimento,199 solteiros e moradores na mesma fazenda, ambos proprietários de escravos e
requisitados outras vezes como compadres. Vê-se, também, mais um caso de homenagem
através dos nomes nessa família: Manoel Crus, que recebeu o mesmo nome do pai,200
registrou o seu filho como Manoel, conforme sinalizei no capítulo I.
197
O escravo Manoel Crus era viúvo da escravizada Brites, com quem teve, pelo menos, dois, Maximiano e
Ignácia, todos moradores na Itibiraba. Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do
Orobu de Sima, n° 2. E Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 1.
Cúria Diocesana de Bom Jesus da Lapa.
198
Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
199
Donna Anna Caetana do Nascimento, solteira, era filha de Donna Joana Thimotea de Vasconcellos, moradora
no Sítio Salinas, na Fazenda da Itibiraba. Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do
Orobu de Sima, nº 2.
200
“Manoel Crus, filho legítimo de Manoel Crus e Domingas Gonçalves, todos escravos de Manoel de
Saldanha”. Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, nº 2.
147
Figura 9: Rede familiar e de compadrio de Manoel Crus.201
Brites
Manoel Crus
Maximiano
Batizado: 1744
Ignácia
Casamento: 1758
Silvestre Rodrigues da
Silva e Izabel de Avellar
Felícia
Manoel
Batizado:1734
Tenente Manoel Machado
de Almeyda e Donna Anna
Caetana do Nascimento
Manoel Crus e Felícia, assim como seus parentes, não escaparam dos convites para
apadrinhar crianças e adultos escravos. Juntos batizaram, em 1778, Nicácia filha da cativa
Brígida Maria (dos Guedes de Brito), que valorizou a posição desses compadres na
comunidade: eram eles membros de famílias enraizadas no interior dessas fazendas havia
muito tempo e estavam envolvidos em bons relacionamentos com pessoas dos diversos
segmentos sociais. Neste sentido, devem ter se encaminhado as demais escolhas daqueles que
selecionaram Manoel Crus e Felícia, ao lado de outros parentes, para o apadrinhamento dos
filhos. Foi localizado um único registro desse casal apadrinhando juntos (mesmo afilhado),
por isso optei pela análise individual das suas experiências de compadrio.
Figura10: Compadres e comadres de Manoel Crus.202
Manoel Crus
Padrinho
?
Brígida Maria
escrava
comadre
Matheus
adulto mina
Afilhado 1745
Manoel
Afilhado
1779
Francisca
Escrava
comadre
Nicácia
Afilhada
1778
O primeiro afilhado de Manoel Crus, “Matheus adulto naçam mina escravo do Capitão
Joze da Silva Ferreira, morador na Fazenda da Volta”,203 reforça a representatividade de Crus
no contexto escravista do “Certam de Sima”, pois é possível que o Capitão, também morador
201
Baseada nas atas dos Livros 1 e 2 de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima.
E Livro de Registro de Casamentos da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, nº 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa.
202
Baseada nas atas dos Livros 2, 3 e 5 de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de
Sima.
203
A ata do batizado de Anna, filha do Capitão Valentim Rodrigues Moura e sua mulher Donna Joanna
Thimótea, datado de 1743, apresenta o capitão Joze da Silva Ferreyra, que, sendo procurador de “Manoel de
Saldanha cazado morador na cidade da Bahia em seo nome tocou a criança” supracitada. Cabe indagar: qual o
papel desse Capitão nessas fazendas do alto sertão? Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo
Antônio do Orobu de Sima, nº 1. Cúria Diocesana de Bom Jesus da Lapa.
148
nessas fazendas, tenha visto Manuel como um bom exemplo para o seu cativo. Essa tática dos
senhores foi identificada no Recôncavo baiano por Gudeman e Schwartz (1988, p. 54-55):
“[...] os senhores indicavam ou „convidavam‟ escravos mais aculturados para servirem de
padrinhos pela sua capacidade em assistir na integração do afilhado à força de trabalho, sendo
essa sua principal responsabilidade”.
A aliança com Francisca, mãe de Manoel, guarda os mesmos significados do compadrio
com Maria Brígida, ambas eram cativas do mesmo senhor e buscaram no compadre Manoel
possivelmente auxílio, assim como visavam a preservar antigas amizades. Ao dedicar o
mesmo nome do padrinho ao filho, Francisca demonstrou consideração por esse compadre.
Felícia, esposa de Manoel Crus, também foi vista com muito apreço, sendo escolhida como
comadre por quatro vezes.
Figura 11: Rede de Compadrio de Felícia Pereira da Silva Nunes.204
Felícia
Madrinha
Rosa
Escrava
Comadre
João Lopes de
Afonseca forro e
sua mulher Anna
Maria compadres
Antônia
Afilhada
1757
Delfina
Afilhada
1761
Eugênia
Afilhada
1773
Domingas
Escrava
Comadre
Nicácia
Afilhada
1779
Brígida Maria
Escrava
Comadre
Rosa, cativa de Manoel de Saldanha, moradora na fazenda Campos de São João,
vizinha da Itibiraba, encontrou em Felícia a madrinha ideal para sua filha Antônia. Dezesseis
anos depois, Domingas, escrava dos Campos de São João, repetiu essa escolha no batizado da
filha Eugênia. A família de “Joze Pereyra da Silva” também cultivou sentimentos de grande
amizade. O apadrinhamento de Delfina (filha de João Lopes de Afonseca e sua mulher Anna
de Almeyda) por Felícia e seu pai “Joze”, exemplifica esses vínculos cotidianos, que se
expressavam de muitos modos na vida desses sujeitos, e que passaram a ocupar os registros
eclesiásticos.
A multiplicidade das redes de relações que envolveram essa família de escravos foi
ampliada com o ingresso de novos membros. O genro de “Joze” e Maria, Faustino Pereira,
crioulo, contribuiu nesse sentido, pois ocupou lugar de destaque entre os escravos dos Guedes
204
Baseado nas atas dos Livros 2, 3 e 5 de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de
Sima. Cúria Diocesana de Bom Jesus da Lapa.
149
de Brito escolhidos como padrinhos. Ingressou nessa família quando, em 1767, se casou com
Cypriana da Silva, tendo como padrinhos de casamento o Capitam Estêvão da Sª de Andrade
e Mathias Alvares Franco. Não foram localizados registros de filhos desse casal,205 no entanto
é possível dizer que receberam o compromisso de zelar pelos seus afilhados.
Cypriana, ainda quando solteira, foi escolhida pela escrava Simoa, moradora na
fazenda da Batalha, e assim, junto com “Joze Ferreyra”, assumiu a responsabilidade para com
o afilhado Domingos. Anna, filha legítima de Joam e Maria, cativos dos Guedes de Brito, na
gruta da Lapa recebeu a bênção da madrinha Cypriana. Acreditamos que a estabilidade
familiar de Cypriana influenciou essa escolha, pois as possibilidades de solidariedade
ampliam-se ao considerar que o relacionamento não se restringia às comadres, mas, também,
envolvia os familiares delas.
Os laços de compadrio que uniram Faustino Pereira aos seus afilhados, compadres e
comadres refletem significados semelhantes. Faustino também foi visto como uma pessoa de
referência na comunidade, sempre chamado nas horas difíceis, como fez a escrava Ritta, que
pediu ajuda Faustino para a sua filha Marcelina que estava em perigo de morte, conforme foi
visto anteriormente. Mas a trajetória de Faustino é mais longa e diversificada. Noutra ocasião,
foi possível vê-lo como procurador de João da Sylva Pimentel, crioulo, forro, morador em
Jacobina, que fora escolhido pelo casal Cosme Cavaleiro, escravo dos Guedes de Brito, e
Anna Guedes, forra, para apadrinhar a sua filha “Apollinaria”. Entretanto, na cerimônia do
batizado Pimentel não pôde comparecer, enviando Faustino como seu representante.
Figura 12: Rede de Compadrio de Fautino Pereira206
Faustino Pereira
Padrinho
Thereza de
Souza, crioula
forra, comadre
Comadre
Anselmo
Afilhado
1756
Marcelina
Afilhada
1761
Ritta, crioula,
Cativa,
comadre
Anna, crioula,
cativa,
comadre
Veríssimo
Afilhado
1758
Gregorio
Afilhado
1772
Felix da Silva e
Teodora da Silva
cativos,
compadres
Martinho Lopes e sua
mulher Delfina de
Almeida, compadres.
205
Cleto
Afilhado
1779
Localizei o registro de batismo de Amador, filho de Cypriana moradora na Itibiraba, ano 1756, (Livro de
Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana de Bom Jesus da
Lapa), entretanto o cruzamento das fontes não permitiu verificar se era a mesma Cypriana filha de Joze e Maria.
206
Baseada nas atas dos Livros 2, 3 e 5 de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de
Sima.
150
Amizade, confiança e respeito afloram das atas já tão gastas pelo tempo. Faustino
também atraiu a amizade de Félix e Teodora, companheiros escravos das fazendas dos
Guedes de Brito, e de Martinho e Delfina Almeida, livres,207 que também compunham a
população dessas fazendas. Escravas e forras, “mães solteiras”, também viram em Faustino o
compadre ideal, aquele que poderia ajudá-las de alguma forma na melhoria das condições de
vida para elas e seus filhos.
As redes de compadrio aqui estudadas foram selecionadas tendo em vista as múltiplas
vivências que sugerem. Através de trajetórias entrelaçadas por parentesco e compadrio,
aproximei-me de alguns vestígios de experiências de escravos, que, envolvidos na trama
diária do “viver por si” e “viver pelos seus”, lutaram, conviveram com diversas pessoas,
casaram, constituíram família, batizaram os filhos, apadrinharam os afilhados... Enfim,
viveram sob a escravidão como sujeitos ativos que constituíram relações fundamentais às suas
vidas.
As fontes indicaram a formação de uma “comunidade escrava” constituída por
famílias enraizadas no interior das fazendas dos Guedes de Brito, desde o princípio da
colonização. Os membros dessas famílias cativas estiveram envolvidos por relações diversas
com os demais grupos (livres, forros, viajantes, romeiros do Bom Jesus, índios) daquele
contexto colonial, responsáveis pela formação dos primeiros aglomerados populacionais do
“Certam de Sima do São Francisco”. A devoção ao Bom Jesus, na Gruta da Lapa, contribuiu
para o constante movimento de pessoas naquela região; logo, possibilitou aos escravos dos
Guedes de Brito relações para além daquelas mantidas com parentes e vizinhos de fazendas
contíguas.
Essa multiplicidade de convivências apresentada pelos arranjos familiares e de
compadrio, permite analisar a importância das vivências familiares e comunitárias para os
escravos das fazendas de absenteístas às margens do São Francisco. “A distante voz do dono
ampliava um espaço de „autonomia‟ para os cativos” (LIMA; MELO, 2004, p. 159), inclusive
na constituição de seus laços familiares e de relações sociais com compadres e comadres,
vizinhos ou moradores em outras Freguesias.
Mesmo a presença de capitães e sargentos que se relacionavam com os senhores
desses escravos, como foi o caso do Capitão “Joze da Sylva Ferreira”, e possivelmente,
indicassem a vigilância desses senhores absenteístas, ainda assim, veem-se esses escravos
conquistando espaços de autonomia, atando laços de compadrio com seus possíveis
207
As fontes trabalhadas pouco esclarecem sobre a condição social, por isso nem sempre foi possível definir com
precisão se eram livres, pobres ou ricos.
151
“vigilantes”. Como se viu, as relações com pessoas livres moradoras nessas fazendas, foram
intensamente buscadas pelos escravos. Percebe-se a convivência entre eles, nas escolhas de
escravos por pessoas livres para apadrinhar seus filhos, e também, quando esses cativos
batizam outros cativos adultos, geralmente “propriedades” de senhores que participavam
desse convívio.
Construíram, então, relações de trocas de favores, solidariedades que influenciaram na
possível vigilância de capitães e sargentos. A limitação das informações sobre o papel
exercido por esses sujeitos dificulta entender os significados dessas experiências no convívio
diário. As fontes pesquisadas permitiram, no entanto, compreender estratégias da luta
cotidiana dos escravos em criar condições favoráveis às suas famílias, pois “a família foi uma
instituição vital, dando-lhes o que perder, por ligá-los uns aos outros” (LIMA; MELO, 2004,
p. 159).
Muitos desses escravos “perdiam” a possibilidade de fugir (diante do absenteísmo do
seu senhor), porque para eles a família era importante. Estavam ligados por raízes profundas,
transmitidas por gerações pelos primeiros africanos escravizados pelo mestre de campo
Antônio Guedes de Brito e por seus descendentes, crioulos nascidos nessas fazendas. A opção
pela vida em família e em comunidade feita por esses cativos reflete a influência cultural dos
seus pais e avós que, arrancados da África, reelaboraram no Brasil os modos de vida e “[...]
formaram uma verdadeira comunidade, ligados por laços de parentesco e experimentando
uma estabilidade considerável no tempo” (SLENES, 1999, p. 114).
As práticas de compadrio demonstraram que essa comunidade não se constituía apenas
de “relações cerradas”, ou seja, restritas a escravos e forros. Abriam-se a outros indivíduos,
sobretudo àqueles que habitavam o “Certam de Sima do Sam Francisco”. A vida familiar e
comunitária tornou-se essencial para os escravos dos Guedes de Brito, assegurando-lhes a
permanência nessas fazendas “fiscalizadas por eles mesmos” (SPIX; MARTIUS, 1916, p. 8).
Os registros paroquiais aqui perscrutados possibilitaram aproximações de experiências
pregressas e conduziram a compreensões do quanto a família se tornou o fio condutor das
trajetórias de vida de africanos e seus descendentes brasileiros no “Certam de Sima”. Além
disto, é possível dizer que os vínculos de convivências entre os cativos dos Guedes de Brito
não se restringiram aos “mourões” das fazendas, e resultaram em duradouras relações de
respeito, confiança e amizade, que envolveram escravos, forros e livres na vivência
comunitária, na luta diária pela sobrevivência.
152
4 “VIVE DE SUAS LAVOURAS”, “VIVE DE CRIAR SEUS GADOS”,
“VIVE DE SEUS NEGÓCIOS”: ECONOMIA REGIONAL E
SUBSISTÊNCIA FAMILIAR.
4.1 LABUTAS SERTANEJAS: VAQUEIROS, LAVRADORES, PESCADORES,
FIANDEIRAS E TECELÃS.
Conhecer o universo da labuta diária de africanos e seus descendentes brasileiros
faculta-nos aproximações de alguns aspectos da vida escrava, sobretudo das atividades com a
pecuária e agricultura, seja no trabalho para os senhores ou em suas próprias roças, formando,
assim, um comércio regional em que os escravos tiveram participação efetiva.
Nessas terras do alto sertão setecentista, a pecuária foi a atividade central. Entretanto, a
sobrevivência dos currais de gado exigiu que os primeiros povoadores da região
desenvolvessem outras formas de produção, pois necessitavam de meios básicos de
sobrevivência. Desde o início da colonização, a criação de gado e o cultivo de lavouras se
complementaram na dinâmica econômica dos sertões baianos.
Conforme Erivaldo Fagundes Neves (2008, p. 184), essa região, desde o século XVIII,
caracterizou-se pela autossuficiência econômica.
[...] ao autonomizar o suprimento sertanejo e mercantilizar os excedentes
das policulturas, desenvolveram uma economia auto-suficiente, que
dinamizou o restrito mercado regional e expandiu para outras capitanias, de
modo diferente da grande lavoura açucareira litorânea, que maximizava a
concentração de renda e sua transferência para a burguesia mercantil
metropolitana, através do rigoroso monopólio do comércio colonial com a
política de portos fechados e navios estrangeiros.
O gado era utilizado de diversas formas, servia como alimento, na tração nos engenhos,
e seu couro constituiu-se em importante produto na cultura sertaneja, sendo “utilizado nas
portas das cabanas, nas cordas, em leitos, no mocó ou alforje, em mochilas, nas bainhas de
facas, na peia do cavalo” (PIRES, 1979, p. 153), na vestimenta do vaqueiro. Além de suprir as
necessidades locais, os rebanhos bovinos dos sertões baianos abasteciam Salvador e seu
entorno. Logo depois das descobertas das minas auríferas na região das Gerais, formou-se
outro mercado consumidor dos rebanhos bovinos da Bahia.208
Lycurgo Santos Filho (1956, p. 225) descreveu como se comercializava gado no alto
sertão baiano.
208
Sobre essa movimentação comercial, ver, por exemplo: Santos (2009).
153
Desde fins do século XVIII e pelos anos seguintes, até 1821, o proprietário
do Brejo do Campo Sêco realizou o comércio de gado, em grande e em
pequena escala, segundo se verifica nos livros manuscritos, comprando e
vendendo, recebendo e dando animais em pagamento, desde um animal até
uma boiada. Comprou e vendeu bezerros e bezerras, garrotes e novilhas,
bois e vacas. Negociou para si e também para terceiros, servindo então de
intermediário. Vendeu boiadas para negociá-las em Minas e no Salvador.
Wilson Lins (1980, p. 17), no romance “Militão sem remorso”, nos apresenta como,
possivelmente, se dava o comércio do gado nas barrancas do São Francisco. Acompanhe-se a
descrição do autor:
No dia seguinte ao da viagem de João de Castro e Militão ao Campo de
Fora, o porto de Remanso amanheceu atochado de reses a serem
transportadas para a outra margem do rio [São Francisco]. A algazarra era
grande entre os escravos canoeiros e os passadores de gado, também
escravos, mas que, tendo suas regras, não aceitavam as dos vaqueiros e
tangerinos, seus iguais. Aquele gadame todo estava sendo levado, para as
feiras de Jacobina e Sant‟Ana dos Olhos d‟Água.
Nota-se o dinamismo comercial gerado no porto de Remanso pela venda de gado, e a
participação efetiva dos escravos que trabalhavam como vaqueiros, canoeiros e passadores
das reses, sendo responsáveis por esse comércio conduzido por “suas regras”. Wilson Lins
(Ibid, p. 19) ressaltou a vigilância senhorial como esporádica, assinalou:
[...] Admirado de vê-lo no coice de uma boiada, a comer poeira nas
estradas, o novo dono do Campo Grande externou sua estranheza, mas se
deu por satisfeito com as razões por ele apresentadas, concordando ser
realmente necessário, uma vez por outra, aquele que cria o gado
acompanhar de perto os que tangiam, por não ser de desprezar o prejuízo da
quebra do peso, pela falta de cuidado nos estirões entre a porteira da
fazenda e a balança do comprador.
Provavelmente, assim fizeram outros ricos fazendeiros do alto sertão baiano, como
Bernardo Pereira Pinto e Mathias Bernardes Lima com os seus rebanhos das fazendas da
Parateca, “Rio das Rãns” e fazendas do Riacho e Canabrava. E o gado das propriedades dos
Guedes de Brito, de que forma chegavam ao comércio? Possivelmente, os Guedes de Brito,
também tenham confiado a comercialização do gado aos próprios vaqueiros. Também
dirigiram transações comerciais da sede da Capitania, onde moravam. Como foi visto no
capítulo I, após a morte de Joana Guedes de Brito, em 1762, Manoel de Saldanha passou a
morar em Lisboa, e, possivelmente, delegou administradores para cuidar das suas
propriedades no Brasil, sendo essa prática adotada por seus herdeiros até 1832, com o
esfacelamento desses bens.
154
Pequenas produções agrícolas floresciam nessas fazendas sertanejas, primeiro como
meio de suprir necessidades da própria unidade produtora. “Ressalta-se que, no Alto Sertão da
Bahia, o antigo costume de proprietários de terras, cederem pequenas nesgas para meeiros e
escravos produzirem micro lavouras próprias [...]” (NEVES, 2005, p. 50). Para manter a
atividade pecuária, foi preciso lançar mão da exploração de culturas, e assim, as pequenas
lavouras adquiriram grande importância para a sobrevivência dos sertanejos. Serviam ao
abastecimento doméstico e o excedente era comercializado nas feiras locais e nas relações
com tropeiros e “viandantes” que percorriam pelos caminhos dessas fazendas. Foi comum o
trabalho agrícola atrelado à pecuária na região em estudo.
A lavoura de “mantimentos” existiu em todas as fazendas de criação do
Nordeste. Também no Campo Sêco. Nem se compreenderia se faltasse. Era
complemento indispensável. Se bem que destituída a maior parte das vezes
de objetivo econômico por limitada e destinada apenas a prover à
alimentação do homem, não deixou de influir na economia regional,
forrando-a de gastos com a aquisição. Ainda mais: a plantação cerealífera
contribuiu sobremaneira para a auto-suficiência dos criadores em suas terras
(SANTOS FILHO, 1956, p. 308).
Essas atividades agropastoris sofriam influências climáticas. Essa situação levava à
organização dos trabalhos seguindo períodos de cheias e estiagens. Quando chovia muito,
sofria-se com as inundações, sendo necessário “retirar” o gado; e no período de fortes
estiagens, perdia-se parte do rebanho por falta de água, como foi o caso da fazenda da
Mandiroba, em que “experimentaram grandes perdas nos seus gados pela rigorosa seca que [a
atingiu] no anno de sesenta e seis [1766]”.209
As lavouras também obedeciam à periodicidade das chuvas. Durval Vieira de Aguiar
(1979, p. 23), em “Descrições Práticas da Província da Bahia”, de 1888, descreveu algumas
práticas agrícolas da região são-franciscana, a partir do que viu nas plantações em
Carinhanha.
Dividi-se duas espécies de plantação: uma que é periódica, feita anualmente
pelos moradores das margens do rio, para aproveitarem os terrenos
fertilizados pelas águas que escoam na vazante; consistindo no plantio de
feijão, milho, aipim, mandioca, melancia, aboborá, a qual é feita com uma
abundância verdadeiramente maravilhosa, que bem lhes compensa a
esterilidade do mesmo terreno durante a seca. A outra é permanente, para o
cultivo da cana, e é feita nos gerais a O [oeste] da vila.
Além dessas atividades agropastoris, os primeiros moradores das margens do São
Francisco desenvolveram a pesca e a caça como meios de sustento e produção. Bernardo
209
Folhas dos Autos-crime, 1768 (incompleto). Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães. Documentação não
catalogada.
155
Pereira Pinto deixou inventariadas, entre os bens para sua esposa, 7 varas de pescar.210
Possivelmente, utilizadas por seus escravos nas pescarias, realizadas nas “[...] ipueiras, onde,
à proporção que as águas se evaporaram, vai se aglomerando o peixe, que chega a fervilhar
em massa tão compacta que com o próprio peso rasga as redes de arrasto, que de cada lance
conduzem até aos milhares” (AGUIAR, 1979, p. 21).
A presença de africanos e indígenas, sem dúvida, influenciou as práticas de pescar e
caçar. Dos nativos aprenderam a pescaria, para que “[...] lhes basta um arpão, arco e flecha,
uma isca num pau, ou mesmo um cesto” (Loc. cit.). Dos africanos várias técnicas,
conhecimentos das suas experiências nos rios africanos, que a diáspora atlântica não
conseguiu apagar das suas lembranças, como se discutiu no capítulo I.
Como “barranqueiros”, ou seja, moradores nas barrancas do Rio São Francisco, devem
ter utilizado a pescaria como mais um meio de sobrevivência, trazendo para casa um ótimo
alimento, e se a pescaria fosse boa, o que não seria difícil no século XVIII, tempo de muita
abundância nas águas do “Velho Chico”, os pescadores poderiam vender peixes aos parentes,
vizinhos e fazendeiros locais, e também a tropeiros e viajantes que adiante comercializavam
os peixes salgados vendidos por esses barranqueiros. Aguiar (Op.cit., p. 20) também registrou
essa atividade pesqueira: “Para a pesca fazem toscas cabanas de palha nas coroas ou nas
ipueiras, a fim de salgarem e secarem o peixe, do qual formam pequenas pilhas, ou costais
próprios para carga, e os vendem aos catingueiros.” Na foto seguinte, pode-se perceber
pescadores nas margens do São Francisco, homens negros que herdaram essa prática dos seus
antepassados, aqueles pescadores do “certam de Sima” setecentista.
210
Ver sobre essas atividades como meios de sustento de populações pobres no alto sertão: PIRES, 2009, p. 107.
156
Fotografia 6: Pescadores nas margens do rio São Francisco, sem data. Fonte: Acervo particular de Itamar Cardoso.
Conhecer a labuta diária de lavradores, plantadores, pescadores, vaqueiros, nas fazendas
do “certam de Sima”, aproxima-nos do modus vivendi desses sujeitos sociais, bem como das
suas heranças culturais.
Ser vaqueiro, lavrador e pescador significou, dentre outras coisas, a oportunidade de
escravos e forros sentirem-se parte da sociedade na qual viviam. Alguns destacavam-se na
comunidade, adquirindo reconhecimento social, sendo os vaqueiros os que ocupavam lugar de
maior destaque .
A gente dos sertões da Bahia, Pernambuco e Ceará, informa o autor
anônimo do admirável roteiro do Maranhão a Goiás, tem pelo exercício nas
fazendas de gado tal inclinação que procura com empenhos ser nela
ocupada, consistindo toda a sua maior felicidade em merecer algum dia o
nome de vaqueiro. Vaqueiro, criador ou homem de fazenda, são títulos
honoríficos entre eles (ABREU, 2000, p. 154).
Ser vaqueiro foi o objetivo de muitos homens sertanejos, pois ocupar essa posição
representava maiores possibilidades de acesso a melhorias para suas vidas. O vaqueiro tinha a
confiança do senhor, como o caso de senhores absenteístas, que lhe confiava toda a
administração das fazendas. Desse modo, o vaqueiro ocupava espaço primordial nas
hierarquias sociais, como foi visto.
A presença de africanos e seus descendentes ocupando a posição de vaqueiros foi
recorrente ao longo do século XVIII, nas fazendas próprias dos Guedes de Brito. Em carta de
157
1820, enviada aos herdeiros do sexto Conde da Ponte, moradores em Lisboa, Pedro Francisco
de Castro descreveu os escravos, gado vacum e cavalar existentes nas cinco fazendas do
Distrito do Rio Pardo (MG). Do conjunto de 60 escravos (homens) listados, 23 foram
apresentados como vaqueiros (PIRES, 1979, p. 309-319).
Constantemente nas fontes pesquisadas, localizam-se referências àquele “que vive de
ser vaqueyro de gados”. Num processo-crime datado de 1786, entre as testemunhas foram
identificados cinco homens, pardos, que desempenhavam essa função.211 O trabalho de
vaquejar era de muita responsabilidade, uma tarefa árdua que exigia dedicação diária. Geraldo
Rocha (1946, p. 42) descreveu a força e ação destemida do vaqueiro do vale são-franciscano.
O vaqueiro [...] despe a armadura de couro com que se protege dos espinhos
e, a cavalo, nadando aqui e acolá, auxiliando a montada a transpor as longas
distâncias, fazendo-a repousar de alto em alto, onde a água, menos profunda
permite aliviar a respiração, alcança o ponto em que acolheu o gado [...]. A
vaqueirama conseguiu reunir aí grande grupo de animais em desespero. É
preciso guiá-los, procurando as direções em que possam encontrar rasos, de
ponto em ponto, para repouso, a fim de ser possível vencer a longa travessia
necessária para alcançar a terra enxuta.
Após conduzir as boiadas ao destino, o trabalho com o gado era contínuo. No dia a dia
das fazendas, o vaqueiro se ocupava em ferrar as crias, assim [...] “garantia a identificação e
posse do animal, não havendo perigo de passar à propriedade de outro dono, quando das
“juntas” nos pastos comuns” (SANTOS FILHO, 1956, p. 218). Conduzia o gado para o retiro,
local adequado com pastos e “ipueiras” para a criação.212 Também cuidava das bicheiras que
atingiam as crias e dos campos, deixando-os sempre limpos, evitando que outros bichos
matassem ou ferissem o gado.
A própria vestimenta do vaqueiro já identificava o seu ofício: “[...] usava alpercata,
esporas (muitas vezes descalço), perneira, guarda-peito e chapéu de couro” (PIRES, 2009, p.
151). Vestes que o ajudavam na labuta com o gado, sendo de couro, e que era mais resistente,
e o chapéu protegia do forte sol do sertão, evitando “ferimentos” quando se embrenhavam na
caatinga, conduzindo ou procurando o seu rebanho.
Diante de tanto trabalho, qual era o pagamento que o vaqueiro recebia? “Recebia ele
não em dinheiro, mas em crias, pelo sistema de „sortes‟” (Ibid, p. 211). Conforme costume
211
Folhas dos Autos-crime, 1786 (incompleto). Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães. Documentação não
catalogada.
212
Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães. Folhas dos Autos-crime, 1768 (incompleto). Documentação não
catalogada. O significado do “retiro” me foi explicado pelo Sr. Vitorino Pereira Castro: “retiro era o local para
onde se levava os bois, para cuidar, lá tinha amansador de bois” (entrevista concedida em 2005). Essa
denominação assemelha-se com o significado das “malhadas”, que consistiam em [...] “locais nos pastos onde os
vaqueiros reuniam o gado para o pernoite e também para separá-lo, ferrá-lo, etc.” [...] “malhadas significavam
ainda lugares ensolarados, onde o gado se reúne para descansar e ruminar” [...] (SANTOS FILHO, 1956, p. 218).
158
dessa época, o pagamento correspondia à “partilha”, o fazendeiro partilhava com seu vaqueiro
as crias que nasciam. De cada quatro ou cinco crias nascidas no ano, o vaqueiro tinha direito a
uma.213
O fazendeiro Bernardo Pereira Pinto tinha tamanha confiança no seu “criador”, que este
foi eleito testamenteiro. No inventário de Pinto, consta o “acento do gado” registrado por
Félix Pereira da Costa, criador da fazenda do “Rio das Rãns”.
Acento do gado que se prencipiou a gizar este anno de 1758 para o
inventário do defunto Bernardes Pereira Pinto; e hesta que aqui se acha
abaixo asentado em [?] he liquido da fazenda do Rio das Rãns tem pago
coartos aos criadores e tambem que tudo se abateo ao tirar da conta. [...]
Emporta o liquido [?] 3005 cabeças [...].
Observa-se que havia mais de um criador, cuidando do gado da fazenda “Rio das Rãns”
e que receberam o pagamento pelo regime de sortes aos “coartos”, ou seja, de cada quatro
crias nascidas o criador tinha direito a uma. A partilha do gado da fazenda da Parateca seguiu
orientações diferentes, vejamos:
Partilha que faz o S. Joze Correya de Bulhois nesta fazenda da Parateca da
coal toma entrega o S. João Pereira Machado para a lucrar tem Joze Correya
Correya de Bulhois para entregar abatidas as despesas que são seisentas e
sasenta e huma [...] ajustando que o criador faria duas sortes e o d[?] dono
huma que seo mesmo que lucrar ao seisto que razão se achara nesta partilha
a sorte de seis e seis e assim se contarão para o seu quinhao ahonde senão
achar sorte levantada [?] de entrega. [...] Emporta o liquido do gado 2005
cabeças.
O pagamento ao vaqueiro em crias possibilitava ao homem que vivia de vaquejar gado
ter a sua própria roça e crias, depois de “ajuntar um bom pecúlio e ao fim de certo tempo
adquirir terras e tornar-se também criador” (PIRES, 2009, p. 213). Certamente, essa
justificativa faculta aproximações de possíveis significados da participação de africanos,
crioulos e pardos, naquela sociedade, com suas próprias criações, roças e posses escravas.
Como foi visto, nas fazendas dos Guedes de Brito do rio Pardo, os vaqueiros foram os
próprios escravos, e em cada propriedade, havia mais de um. A quantidade de vaqueiros
correspondia ao número do rebanho bovino, por exemplo, para cuidar de 694 cabeças de gado
da fazenda da Itibiraba foram empregados oito vaqueiros. Ao analisar os dados das fazendas
do sertão do São Francisco (ver tabela I, Cap. I), inventariadas em 1832, Neves (2008, p. 264)
observou que a “[...] proporção de 86 rezes por escravo seria uma média razoável, se tornasse
casos isolados, [...] mas, o número de trabalhadores declina na proporção que aumenta a
dimensão do rebanho”. Para Pires (Op. cit., p. 153),
213
Sobre esse sistema de pagamento ao vaqueiro, vide: SANTOS FILHO (1956), ABREU (2000), PIRES
(2003), NEVES (1998).
159
[...] essa atividade (do vaqueiro) exigia número reduzido de pessoal, um
vaqueiro poderia cuidar de 40 ou 50 reses. [...] Todavia, não se deve perder
de vista certa elasticidade quanto ao número de trabalhadores envolvidos
nesses serviços, diante do número de grandes rebanhos, sobretudo
destinados a Salvador e ao Recôncavo baiano.
Além de vaquejar, os primeiros moradores do “Certam de Sima” ocuparam-se com a
lida nas roças e nos rios. Para se ter noção do envolvimento do sertanejo com a cultura de
plantar e colher, os inventários e processos-crime noticiam, repetidamente, o trabalho com as
lavouras. Por exemplo, das trinta e duas testemunhas convocadas a prestar depoimento sobre a
morte do crioulo “Jozé de Faria”, dez viviam de suas lavouras. Lycurgo Santos Filho (1956,
p. 308) informa como os escravos desenvolviam o trabalho agrícola:
O negro derrubava as árvores com o machado, roçava a vegetação menor
com a foice, ateava o fogo e, depois de extinto este, com a enxada revolvia
a terra, abrindo os regos ou covas para lançamento da semente. Esta era
providenciada pelo próprio agricultor, guardada de ano para ano.
No quinhão deixado por Bernardes Pereira Pinto à sua viúva Maria de Souza, foram
listados vários desses instrumentos necessários ao trabalho com as plantações: “Cinco
machados, seis fouces, uma enxada, dois serrotes e mais seis machados velhos, coatro fouces,
dês eixadas, dois machados novos, huma serra”.214 Ferramentas, algumas novas, outras
velhas, já utilizadas pelos escravos das suas fazendas na lida na roça. Plantava-se mandioca na
Parateca e no “Rio das Rans”, pois coube à viúva “hua rosa de mandioca em sua avaliaçao de
sinco mil Reis (5000)”.215
Outros utensílios foram inventariados, tanto aqueles utilizados por vaqueiros, como
“cinco sellas de vaqueijar gado” e também “taixos de cobre, taixo velho, bacia de cobre”,216
sugerindo diversificação das atividades empreendidas nessas fazendas, podendo evidenciar “a
confluência de engenhos e atividades agropastoris” (PIRES, 2009, p. 159).
Foram notificados instrumentos de trabalho tipicamente femininos, como roda de fiar e
tear, nos fragmentados registros setecentistas, dando pistas de experiências de vida de
mulheres no “Certam de Sima”. Os inventários também demonstram que mulheres pobres do
alto sertão baiano, além de labutarem com lavouras e criações de animais, de negociar seus
produtos no mercado local, também desenvolveram importante papel como fiandeiras,
costureiras e tecelãs, assim noticiaram as pesquisas de Pires (2009, p. 223):
214
Inventário do Capitão-Mor Bernardo Pereira Pinto, 1758 (incompleto). Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de
Magalhães. Documentação não catalogada.
215
Ibid.
216
Ibid.
160
A ostensiva qualificação de „custureiras‟, fiandeiras e tecelãs nos autos, em
período anterior e posterior à abolição, se explica, ao menos em parte, pela
presença da cultura do algodão na região de Caetité, que mobilizou um
grande contingente de mulheres encarregadas da fiação de algodão para o
fabrico de tecidos e roupas para o consumo local e para remessas, através de
tropeiros, para localidades vizinhas e também para a capital da província.
Como revelaram as pesquisas de Santos Filho (1956) aos livros de razão dos
proprietários da Fazenda do Brejo do Campo Seco, essa atividade incrementou-se na região
alto-sertaneja, ainda mais, a partir do final do século XVIII. Santos Filho observou que
Pinheiro Pinto, proprietário da dita fazenda, se tornou o responsável pelo crescente comércio
algodoeiro no alto sertão baiano, que envolveu ricos fazendeiros e trabalhadores pobres.
Sobre isso comentou:
O corretor de algodão do Brejo do campo Seco adquiria o produto,
conforme se tem visto, de cotonicultores da região, todos eles parentes,
compadres, ou simples conhecidos. Negociou também com negros, escravos
pertencentes aos fazendeiros vizinhos, e com negros e mulatos libertos
(Ibid, p. 283-284).
Enquanto os homens pobres cultivavam o algodão, as suas mulheres, mães, filhas,
irmãs... utilizavam o excedente dessas pequenas roças de algodão no fabrico de roupas para
uso dos familiares e, talvez, para outras pessoas que encomendavam seus serviços. A
informação de uma “Caza de roda de fiar de Maria Lopes”217 sugere um espaço específico
para o trabalho artesanal de fabricação de panos de algodão. Provavelmente, era dessa “caza
de roda de fiar” que Maria Lopes, fio a fio, tecia sua sobrevivência, ganhando algum vintém,
ou “[...] trocando panos, que sobravam do consumo da casa, por outras mercadorias e pagando
com eles pequenas dívidas” (DIAS, 1995, p. 227).
Maria Odila Dias (Ibid, p. 225) indicou, em seu estudo sobre mulheres pobres que
viveram no século XIX da sociedade paulistana, que a prática fiandeira ocorria em mutirões,
ou seja, “[...] serões improvisados de vizinhas, que vinham fiar, juntamente com filhos
pequenos”. Ressaltou que essa atividade “era o único e necessário modo de poder vestir a
família e a si próprias pois mal tinham com que alimentar-se”. Esses momentos, além do
trabalho manual intensivo e cansativo, devem ter sido vividos com outras sociabilidades; entre
conversas podiam preparar um cigarro de tabaco, como sugeriu o fato de Agostinho Teixeira,
primo de Maria Lopes, ter ido “[...] tomar tabaco em humas bucetas que estavam sobe hum
banco em caza de roda de fiar de Maria Lopes”.218
217
Processo-crime: Morte de Maria Lopes, 1799. (incompleto). Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães.
Documentação não catalogada.
218
Ibid.
161
Outras mulheres pobres do “Certam de Sima” devem ter complementado seus meios de
sobrevivência de agricultura e pecuária com o “artesanato caseiro”. Entre os bens
inventariados de Isabel Ferreira dos Anjos, como se verá adiante, registrou-se “hu tiar de teser
pano” e “hu ferro de alfayato”,219 indicando práticas domésticas de fabrico de pano de
algodão nos teares de mulheres sertanejas pobres, que, como indicou Santos Filho (1956, p.
287-289), serviam para costureiras coser “[...] peças de vestuário, cobertas, rêdes, toalhas...”;
com tais peças “[...] vestiram-se, não somente os negros, como também agregados, os
familiares e os próprios fazendeiros. [...] vestes componentes do trajo diário, de trabalho, da
população rural e até mesmo de grande parte citadina”.
Outras funções foram desempenhadas por populações pobres no “Certam de Sima”.
Entre testemunhas de processos analisados foram identificadas pessoas que sobreviviam dos
seguintes ofícios: carpinteiro, carapina, pedreiro, sapateiro. Não foram muito diversificadas as
funções dos trabalhadores sertanejos, prevaleceram os lavradores e vaqueiros, sendo os
primeiros ainda mais recorrentes. Essa característica parece ter se perpetuado, com poucas
alterações no século seguinte. O recente trabalho de Taiane Martins Dantas (2010, p. 43)
confirmou essa perspectiva para a região de Xique-Xique, no século XIX, destacou que “a
presença dos lavradores é evidente e revela que a agricultura era a atividade mais praticada do
município”.
Nos registros paroquiais foram identificados “creadores” nas fazendas dos Guedes de
Brito, por exemplo: “Francisco da Sylva Soares, solteiro, creador na fazenda da Itibiraba”, e
“Manoel Martins de Arahujo, morador, creador na fazenda da Batalha”. No capítulo I,
indicaram-se alguns vestígios do acesso à terra no contexto colonial do “Certam de Sima”. Os
Guedes de Brito vendiam ou arrendavam partes da sesmaria para livres pobres ou ricos, outras
faixas de terra foram utilizadas pelos seus escravos para empreendimentos próprios.
O inventário de Andreza Guedes, ainda que incompleto, fornece informações
importantes ao entendimento dessa situação. Datado de 1811, esse documento despertou
atenção inicialmente pelo sobrenome (Guedes) da inventariada, que foi moradora em uma das
ricas fazendas dos Guedes de Brito. Imaginou-se, logo, tratar-se de uma cativa ou ex-cativa
desses proprietários, uma vez que, na grande maioria dos registros de escravos e forros das
fazendas dos Guedes de Brito, constatou-se esse sobrenome. No entanto, a pesquisa não
conseguiu certificar a possibilidade de ela ter sido escrava ou forra.
219
Inventário de Isabel Ferreira dos Anjos, 1795 (incompleto). Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães.
Documentação não catalogada.
162
Entretanto, importa bem mais a sua trajetória familiar e comunitária. Segundo consta no
seu inventário, Andreza Guedes foi moradora na fazenda Campos de São João, onde
constituiu família ao lado de Ignácio Pereira, com o qual teve nove filhos: Pedro, Florência,
Simiana, Maria, Josefa, Bernardo, Matheus, Christina e Joana. Dentre esses filhos localizouse o registro de batismo da filha Maria, batizada na Gruta da Lapa, em 1799, pelos compadres
“Joze Perª Benevides e Quiteria da Sª”.220 A legitimidade de Maria atestou que, pelo menos a
partir dessa data, Andreza Guedes e Ignácio Pereira tiveram união sacramentada na Igreja
Católica.
As informações inventariadas documentaram os bens possuídos por Andreza Guedes,
esses dados possibilitaram aproximações com algumas experiências de sobrevivências
familiares de pobres no “Certam de Sima”. Essa família, provavelmente, vivia de seus
negócios com a criação de gados e equinos, e do cultivo de lavouras. Inventariou-se:
[...] Sento e vinte cabeças de gado vacum de toda a corte nesta fazenda dos
Campos [de São João] que foi vista algumas pellos avaliadores e avaliada
cada cabesa a dois mil quatro centos reis que importa a quantia de duzentos e
oitenta mil reis que foi digo oitenta e oito mil reis [...].221
No rol de bestas e cavalos, registrou-se a posse de oito bestas, totalizando trinta e dois
mil reis, um “cavallo castanho” avaliado por dezesseis mil reis, um “cavallo mais novo” pelo
mesmo preço, três “potros de um anno” avaliados em vinte e quatro mil reis, e mais “três
potros de dois annos” que importaram a quantia de “trinta e ceis mil reis”. Andreza Guedes e
seus familiares labutavam diariamente no trabalho com o gado, os números de animais são
significativos, denunciando a participação efetiva dessa família no dinâmico comércio
regional, não apenas no ramo pecuarista, mas também com produtos da agricultura.
Entre as “Ferrage” possuíam machados novos e velhos, enxadas novas e velhas e foice
nova. “[...] hum roçado que foi visto e avaliado pellos avaliadores pello preço e quantia de mil
duzentos e oitenta reis”. E “[...] huma caza de fazer farinha com roda e bulineta e mais
[ilegível...]”.222 Esses bens indicam o possível envolvimento com o plantio de lavouras e a
fabricação de um importante produto na alimentação daquele tempo: a farinha de mandioca.
Como ressaltou B. J. Barickman (2003, p. 96), “a importância da farinha de mandioca é, pois,
indiscutível. Presente tanto nas mesas dos ricos, como nas dos pobres, e nas cuias de baldes
220
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 10. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa-BA.
221
Inventário de Andreza Guedes, 1811. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães (Documentação não
catalogada).
222
Ibid.
163
que os escravos usavam à falta de pratos, constituía a base da dieta comum. Era, portanto, um
produto com um mercado local potencialmente grande”.
Partindo dessa perspectiva, presume-se que Andreza Guedes e sua família fizeram parte
do comércio local, também, com a venda de farinha de mandioca. Essas atividades
desenvolvidas com a pecuária e cultivo de lavouras, indicadas no inventário de Andreza
Guedes, proporcionaram melhores condições de sobrevivência. Andreza Guedes e seu marido,
Ignácio Pereira, puderam oferecer a moradia de “huma casa de telha”, deixar aos seus filhos,
que após a morte da mãe continuaram usufruindo desse espaço ao lado do pai.
Na partilha dos bens, os familiares de Andreza Guedes herdaram outros pertences
valiosos; além dos animais, da casa e dos instrumentos de trabalho, receberam objetos de ouro
(“hum par de brincos”, “hum baço”, “dois pares de botoens”) e de prata (“hum par de
fivellas”). Utensílios utilizados por vaqueiros foram registrados, como uma cangalha e uma
sela com estribos de ferro.223 As “Ropa de uso” partilhadas foram: “huma capona de Setim”,
“duas saias de chita uzadas”, “huma capa de durante”, “huma camisa de caça”, “outra dita
camisa de caça”, “outra camisa de bertanha”. Percebem-se, entre as roupas, algumas peças de
custo mais elevado, devido aos tecidos importados, e outras mais simples. Comumente, as
roupas foram deixadas como bens valiosos. A historiadora Cristina Wissenbach (1998, p.
222) assinalou que:
as roupas eram objetos cobiçados e relativamente disponíveis dentro das
estreitas possibilidades de consumo dos escravos [e ex-escravos] e, com
outros objetos, tinham papel significativo não só para a sobrevivência como
também ao processo de auto-afirmação.
O documento conservou nos autos da partilha quinhões de sete herdeiros, sendo
possível identificar que o cabeça do casal herdou a meação do monte mor, no valor de
duzentos e quarenta mil trezentos e oitenta e sete réis, e os filhos receberam cada um vinte e
cinco mil trezentos e oitenta e sete réis. A casa de farinha ficou no quinhão do marido e entre
os bens dos filhos, além dos animais, prevaleceram os instrumentos de trabalho, enquanto nos
quinhões das filhas, que também receberam animais, couberam os objetos de ouro e prata e as
roupas.
Diante do arrolamento desses bens vem a pergunta: Como Andreza Guedes adquiriu
esses bens inventariados? As fontes estudadas não apresentaram respostas concretas, mas
supõe-se que tenha herdado de seus familiares, talvez tenha sido filha de um vaqueiro da
fazenda Campos de São João que adquiriu gado através do sistema de sorte.
223
Ibid.
164
Localizou-se ata batismal de uma criança chamada Andreza, em 1776, filha legítima do
casal “Joze Machado e Domingas Guedes”, moradores da fazenda Santo Antônio, dos Guedes
de Brito, não tiveram a condição social registrada.224 Isso conduziu a pensar que se trata da
mesma Andreza; o sobrenome da sua possível mãe, Domingas Guedes, e a ausência da
condição social em todos os registros em que foram identificadas, encaminharam a essa
suposição. Como, provavelmente, Andreza Guedes faleceu em 1811, supondo-se que tenha
nascido em 1776, deve ter vivido pelo menos 35 anos. A localização do registro de casamento
de Andreza Guedes e Ignácio Pereira contribuiria para a certificação ou não dessas
suposições.
No entanto, esses vestígios da trajetória de Andreza Guedes, perscrutados nas fontes,
revelaram, mais uma vez, a formação de família entre os moradores das fazendas dos Guedes
de Brito e o quanto os membros familiares, sobretudo os pais, lutaram cotidianamente pela
sobrevivência familiar, envolvendo-se com a produção e o comércio regional. Outras
trajetórias, acompanhadas na sequência, apresentaram experiências diversificadas da
participação daqueles escravos que pareciam “viver por si” e, que, assim como Andreza
Guedes, participaram ativamente da microeconomia regional.
4.1.1 ESCRAVOS QUE PARECIAM “VIVER POR SI”: SUAS ROÇAS E SEUS
CATIVOS.
No decorrer da presente pesquisa, não foram localizados inventários, testamentos e
processos-crime referentes aos cativos dos Guedes de Brito, sobretudo daqueles cujas
trajetórias familiares foram tratadas nos capítulos anteriores. Esses tipos de fontes facultariam
aproximações de outras vivências nas quais se envolveram cotidianamente. No entanto, nas
entrelinhas dos registros paroquiais, vislumbraram-se indícios da participação daqueles
escravos que pareciam “viver por si” na luta diária pela sobrevivência, seja em roças próprias,
seja nas posses de escravos.
Os escravos tinham muitas responsabilidades. Entretanto, também, pautaram suas
rotinas nos afazeres em prol dos seus próprios interesses. As suas famílias foram decisivas
para assegurar uma participação ativa na microeconomia regional. Richard Burton (1977, p.
222), ao passar por essa região, em 1867, encontrou-se com uma família de negros na foz do
224
Livro de Registro de Batizados da Freguesia de Santo Antonio do Orobu de Sima, n° 10. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa-BA.
165
rio Verde Grande, à margem direita do São Francisco. Burton observou que essa família negra
havia levantado um rancho, junto ao qual desenvolveu uma pequena plantação de feijão e
melancia. Esses negros venderam aos viajantes duas melancias a três cobres.
A historiadora Maria de Fátima Novaes Pires (2009) observou em seus estudos que foi
comum, no alto sertão baiano, cativos beneficiarem-se de “roças” para o cultivo próprio.
Segundo a pesquisadora (Ibid, p. 140), essa prática acarretou implicações nas relações entre
senhores e escravos:
Essa situação foi uma opção vantajosa para os senhores, porque os isentava
de mantê-los. Tanto para aqueles com maiores posses e escravarias, como
para aqueles cujos recursos mal lhes bastavam. Também essa face
autônoma da escravidão revelava a capacidade de negociação muito
presente na relação dos escravos com seus senhores. De todo modo, a
possibilidade do cultivo próprio gerava para o escravo a capacidade de
formar pecúlio com o excedente de sua produção, servindo posteriormente à
compra de alforria pessoal e de familiares e, em termos mais imediatos, de
contarem com dinheiro (mesmo que pouco) para inserção na vida social.
É recorrente, na historiografia, que essas atividades econômicas informais,
desenvolvidas pelos cativos, eram “realizadas no tempo livre e permitido às margens da
produção principal das fazendas a ser usufruída estritamente pelo escravo e sua família”
(MACHADO, 1988, p. 148). A ausência de senhores, em fazendas do “Certam de Sima”, nos
levou a questionar esse “tempo livre”, pois, com o distanciamento, a relação direta entre os
senhores e seus cativos era quase inexistente. Logo, supõe-se que esses escravos tenham tido
melhores chances de cultivo de suas roças em tempos mais alargados.
Comparando com o “viver sobre si” de africanos e crioulos escravizados, que
trabalhavam como ganhadores nas ruas de cidades como Salvador e Rio de Janeiro,
observaram-se graus diferenciados de autonomia e mobilidade. Nos centros urbanos foi
comum a presença de escravos no vai e vem pelos becos, vielas, ruas e ladeiras, participando
ativamente da vida comercial dessas cidades. Irradiavam dos cantos diversos ofícios
desempenhados pelos conhecidos “escravos de ganho”: pedreiros, carpinas, marceneiros,
ferreiros, sapateiros, cozinheiros, alfaiates, calafates, roceiros e até alguns vaqueiros. Outra
função conhecida foi aquela desempenhada pelo carregador de cadeiras e outra a das mulheres
quitandeiras com seus mingaus, acaçás, frutas, verduras, feijão, arroz, milho, pão e peixe...225
Essas atividades geravam outras relações escravistas, caracterizadas por relação direta
entre os senhores e seus cativos. Os escravos, trabalhadores no ganho, conquistavam certa
autonomia e mobilidade, pois, como ressaltou o historiador João José Reis (1993, p. 9):
225
Sobre os cantos na cidade de Salvador e as atividades desenvolvidas pelos ganhadores vide os trabalhos de
Reis (1993; 1998), Andrade (1988).
166
Os escravos precisavam de independência e liberdade de movimento para
dar conta do serviço, dar lucro aos senhores e fazer a economia funcionar.
Os ganhadores iam à rua encontrar eles próprios trabalho. Era comum,
embora não fosse generalizado que os senhores permitissem que seus
escravos até morassem fora de casa, em quartos alugados às vezes de exescravos. Eles só voltavam à casa para “pagar a semana” , ou seja, a soma
semanal (que podia ser também diária) contratada com os senhores.
Nas rotinas de trabalho nas ruas, esses escravos que “viviam sobre si”, podiam ir e vir,
conversar com os amigos, jogar capoeira, participar de batuque, e até parar e descansar. “O
escravo ganhador organizava o tempo de seu trabalho – o tempo, o ritmo e, por vezes, o
volume do trabalho” (Ibid, p. 11). Nesses intervalos de autonomias, esses ganhadores
sociabilizavam suas ideias e visões de mundo, fortalecendo a vivência comunitária como um
grupo social que defendia os seus direitos, a exemplo daqueles ganhadores que participaram
da greve negra de 1857 na Bahia.226 Além do controle senhorial, em Salvador, os poderes
públicos criaram leis como mecanismo de disciplinar o trabalho dos negros.227
O viver sobre si desses sujeitos sociais encontrou limitações na vigilância dos
senhores, que esperavam ansiosos por lucros, por isso determinavam prestação de contas das
rendas auferidas pelos seus escravos, “quantia previamente estipulada” (ANDRADE, 1988,
p.132). Todavia, muitos desses ganhadores conquistaram melhorias de vida através das suas
atividades autônomas, inclusive acumulando rendas para a compra de alforrias.
A historiografia nos oferece vários exemplos. Juliana Barreto Farias (2010, p. 18-19)
acompanhou a trajetória de “Rita Cabinda”, jovem africana com filho recém-nascido, que foi
traficada na Costa-Oeste da África e, posteriormente, vendida no comércio escravista do Rio
de Janeiro, no princípio do Oitocentos. Conforme a autora, “[...] Rita Cabinda conseguiu
comprar sua liberdade, adquirir bens e ainda abrir um processo de divórcio”.
Na Bahia setecentista, africanos e seus descendentes conquistavam alforrias a partir dos
vinténs lucrados no ganho. Daniele Santos Souza (2009, p. 11) revelou algumas dessas
experiências:
O mulato Felipe Marques de Menezes obteve sua carta de alforria em 16 de
outubro de 1745, comprada por sua mãe por duzentos mil réis. [...] Tudo
leva a crer que sua mãe Bárbara, já liberta, fosse a responsável por guardar o
seu pecúlio, contribuindo também com alguma quantia para a emancipação
do filho. É quase certo que o ganho tivesse sido fundamental para a
realização dos planos de Felipe e de sua mãe.
226
Um dos momentos de resistência dos trabalhadores do ganho de Salvador, no século XIX, ficou conhecida
por “Greve Negra de 1857”, ver o interessante artigo de Reis (1993).
227
Sobre as medidas dos poderes públicos de Salvador na tentativa de disciplinar o negro em suas ações de
trabalho vide: Reis (1996)
167
Nas fazendas de senhores absenteístas no alto sertão, os espaços de autonomia e
mobilidade foram mais “largos”, pois, ao que tudo indica, os escravos não precisavam prestar
contas ao senhor dos seus próprios empreendimentos, ao passo que o senhor não tinha
responsabilidades com os gastos desses cativos na aquisição de alimentos e vestuários. Sendo
assim, diferentemente dos ganhadeiros, que tinham as vistas dos seus donos mais de perto, os
escravos nessas fazendas devem ter tido lucratividade maior na venda dos produtos agrícolas
e criações pertencentes a eles próprios. Logo, sugere-se que as rendas auferidas viabilizaram
adquirir melhores condições de subsistência familiar e, também, de poupar alguns vinténs
utilizados, inclusive, para compra de alforria.
A disciplina de trabalho desses escravos que “viviam por si”, deve ter sido conduzida
por ritmos ainda mais autônomos do que os dos ganhadores das ruas de Salvador. Distante das
vistas dos senhores, a lida na roça foi conduzida pela noção de tempo e trabalho dos próprios
cativos. Devem ter-se inspirado nas referências africanas de “tempo descontínuo”, pois “[...]
os africanos resistiram quanto puderam ao aniquilamento de suas noções de tempo e
trabalho.” (REIS, 2003, p.12)
Puderam dividir as tarefas de cuidado do gado, do plantio e colheita, da pesca e caça,
dos serviços domésticos... entre os familiares, ou até, com vizinhos e compadres da mesma
comunidade escrava. Assim, essas labutas tornavam-se menos cansativas e menos longas, ao
término ganhavam mais tempo para cuidar dos próprios negócios, das sobrevivências diárias e
do lazer com parentes e vizinhos. Importante ressaltar que as hierarquias internas em ambos
os tipos de trabalho contribuía com a organização dessas atividades.
Outro vestígio dessa situação de “viver por si” dos escravos dos Guedes de Brito
consiste na significativa participação de escravos proprietários de escravos. Foram
identificados, nas fontes estudadas, quatorze cativos que vivenciaram essa experiência. Esses
escravos com posses escravas puderam contar com o trabalho de seus cativos na realização de
tarefas, como, por exemplo, o cultivo de lavouras e/ou cuidado com o gado, bens que,
provavelmente, escravos proprietários de escravos tinham. Poderiam representar, também,
uma forma de acumular pecúlio, uma vez que a propriedade escrava foi bem valiosíssimo
nesse contexto social.
No alto sertão oitocentista, o acesso à posse escrava por escravos não foi tão recorrente
como no setecentos. Essa mudança relaciona-se com outra diferenciação dessa sociedade
sertaneja. Também no século XIX, a quantidade de escravos vaqueiros que assumiam a
administração das fazendas caiu consideravelmente; esse controle se estendeu a trabalhadores
168
livres. Certamente boa parte daqueles escravos que compravam cativos, foram vaqueiros e
administradores de fazendas. Pires (2003; 2009) identificou apenas, para o alto sertão do
século XIX, o caso de um forro proprietário de um escravo. A referida autora (2009, p. 122)
ressaltou que:
[...] nas maiores províncias escravocratas, como Rio de Janeiro, Minas
Gerais e São Paulo, essa não foi uma situação incomum. Mary C. Karasch
(2000: 448) confirma: os libertos não eram os únicos africanos a possuir
cativos; os escravos também compravam e podiam libertar seus próprios
cativos. Se tivessem permissão dos seus donos, podiam comprar novos
africanos no mercado, treiná-los e aculturá-los e depois dá-los em troca da
liberdade.
Tabela 23: Posse escrava de escravos e forros das fazendas dos Guedes de Brito.
Proprietário
Quantidade de escravos
homens
mulheres
crianças
Estêvão crioulo (escravo)
02
Domingos crioulo (escravo)
02
Eugênio crioulo (escravo)
04
Pedro Cavalcante (escravo)
01
Manoel Correia (escravo)
01
03
Maria de Asumpção (escrava)
01
Lourenço Guedes (escravo)
01
01
Marcellina Pereira (escrava)
01
Caetana (escrava)
03
Alexandra (escrava)
01
Miguel Pereira (escravo)
01
Domingos Guedes (escravo)
01
Cosme (escravo)
01
Maurícia Pereira de Oliveira (preta forra)
01
Total
03
22
*Sugere-se que uma destas escravas fosse adulta, pois não são indicados os nomes dos pais.
Fonte: Livros de batizados e de óbitos da Freguesia de Santo Antônio do Orubu de Sima.
total
03
02
04
01
02
01
01
01
03
01
01
01
01
22
05
04
08
02
06
02
03
02
06
02
02
02
01
02
47
Conforme dados apresentados na tabela acima, a posse cativa de mulheres e crianças foi
mais recorrente. Aparecem apenas três casos de homens. Eugênio foi quem teve maior
número de cativos, sendo pelo menos oito. Nas sociedades africanas verificou-se, nas
“relações de dependência” através da escravidão, padrão semelhante. A maioria dos
escravizados foram mulheres. Paul E. Lovejoy (2002, p. 44-46) assinalou essa característica
do ambiente africano, ressaltando a importância das mulheres nessas sociedades: “a
manutenção da sociedade dependia da fertilidade das mulheres e do produto do seu trabalho”.
O referido autor, a partir de estudos das práticas matrimoniais de africanos, revelou a opção
pela posse escrava de mulheres e crianças como um meio de assimilação e não de segregação.
169
Por meio dos casamentos de homens livres com escravas, era possível estas “tornarem-se
parte da família”.
As mulheres e os escravos nascidos na família eram facilmente assimilados,
e a venda destes era rara. Aqueles tomados como escravos quando crianças
raramente eram vendidos, sendo tratados como membros da família. Suas
atividades podiam ser mais servis, mas a eles eram muitas vezes concedidas
responsabilidades no comércio, na produção artesanal ou em outras
ocupações. Escravos de segunda geração podiam ter a mesma sorte ou um
destino ainda melhor. (Ibid, p. 46).
Esse modus vivendi de sociedades africanas ajuda a pensar sobre as relações entre
aqueles escravos do “certam de Sima” com seus cativos. A maioria de mulheres e crianças
como posses escravas de escravos dos Guedes de Brito sugere influências culturais da África.
Chamam a atenção as posses da escrava Caetana, computando seis escravos, e a de Maurícia,
que adquiriu como escravo o africano “Jhoam do gentio da Mina” e seu filho João crioulo.
Maurícia, preta, forra, pode ter comprado um cativo com origem igual à sua.
Maria Inês Cortes de Oliveira (1995/1996, p. 188), a partir de seus estudos em
testamentos de libertos, concluiu que os libertos, na aquisição de escravos, preferiam aqueles
com origens iguais às suas. A pesquisadora notificou 44 casos dessa procedência e apresentou
dois motivos para essas escolhas:
Os motivos que levaram um africano liberto a adquirir escravo entre os de
sua própria “nação” estavam ligados a escolhas pessoais, mas também às
limitações existentes no mercado quanto à variedade de suas regiões de
procedência, não restando ao comprador muitas opções neste sentido,
especialmente na praça de Salvador.
É provável que, no caso de Maurícia, as afinidades culturais tenham guiado a compra de
um africano mina. Pelo que se depreende das fontes, os africanos buscaram manter vivas as
suas heranças da cultura africana nas relações cotidianas no alto sertão. Foi comum africanos
apadrinharem filhos de africanos, assim como casarem com africanos seus filhos, crioulos de
primeira geração. Maurícia, por exemplo, foi escolhida por Miguel mina para apadrinhar seu
primeiro filho.
A posse de escravos “[...] estabeleceu hierarquias sociais” (PIRES, 2009, p. 122). No
interior da “comunidade escrava” em que conviviam escravos, forros e livres, alguns desses
com suas posses cativas, as relações cotidianas perpassaram por essas hierarquias, como, por
exemplo, a relação entre escravos e seus “senhores escravos”. No entanto, essa relação de
poder não impediu convivências comunitárias e familiares entre eles. Participavam da mesma
comunidade e muitos desses “senhores escravos” não apenas consentiam em que seus
170
escravos batizassem e casassem seus filhos, como também os acompanhavam nesses eventos
celebrativos.
Nas fazendas e roças do alto sertão, além dos serviços desenvolvidos pelos escravos,
utilizavam também o trabalho familiar. Os membros de uma mesma família se ajudavam
mutuamente na lida com a terra e animais. Nas propriedades de senhores absenteístas,
provavelmente, isto ocorria com mais frequência, haja vista que os escravos dessas fazendas
tinham maior autonomia na condução de suas vidas. Famílias de forros e livres pobres
estiveram envolvidas pelo cuidado com suas roças e criações, preocupavam-se com a
subsistência familiar e se envolviam em negócios que, até mesmo, lhes permitiam
sobrevivências mais confortáveis, inclusive deixando herdeiros bem amparados.
4.2 TRABALHO FAMILIAR, HERANÇAS E SOBREVIVÊNCIAS
Os documentos setecentistas do “Certam de Sima” confirmaram o envolvimento de
famílias nas atividades agrárias. Como assinalou Hebe Mattos (1998, p. 41), “[...] a atividade
agrícola, mesmo a mais simples roça de subsistência, pressupunha pelo menos uma família
constituída e acesso costumeiro à terra”. Sugere-se, portanto, que escravos, forros, livres
pobres donos de roças, assim como fazendeiros mais abastados, contaram com o apoio dos
seus familiares na labuta do dia a dia.
Como foi visto, nas terras dos Guedes de Brito e também de outros proprietários
sertanejos, famílias de escravos e forros ou de seus descendentes, cultivavam e criavam, eram
rendeiros ou posseiros e alguns até compraram os seus pedaços de terra, e com suas famílias
instalaram-se nessas áreas, a fim de buscar meios para a sobrevivência.
Médios e pequenos proprietários de terras cultivam lavouras e mantinham
criatórios apenas com o trabalho das próprias famílias. Uns empregavam
também a mão de obra escrava e, em alguns casos, de diaristas. Outros
complementavam a subsistência com a venda da própria força de trabalho
(NEVES, 2008, p. 265).
As informações documentadas no inventário de Isabel Ferreira dos Anjos revelaram
experiência de trabalho familiar e, ao que tudo indica, de uma família conduzida por uma
mulher. A participação efetiva das mulheres na organização das suas famílias e comunidades
tem sido reconhecida satisfatoriamente pela historiografia,228 sobretudo nos estudos sobre
contextos urbanos do Brasil; as mulheres vendedoras, escravas de ganho e escravas de
228
O trabalho da historiadora Maria Odila Leite da S. Dias. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX.
São Paulo: Brasiliense, 1995, é um dos pioneiros estudos sobre mulheres pobres e uma contribuição importante a
essa temática de estudo.
171
tabuleiros mobilizaram o comércio de cidades como Salvador e Rio de Janeiro, desde o
período colonial. Mulheres pobres, “[...] chefas de família que sustentavam suas casas e
alimentavam seus filhos com o pouco do que retiravam da vendagem que faziam diariamente”
(CASTELLUCCI JUNIOR, 2008, p. 76). No “Certam de Sima” do século XVIII, não foi
difícil encontrar trajetórias de mulheres à frente de negócios próprios e em prol da
sobrevivência de seus familiares.
Andreza Guedes, como foi sugerido anteriormente, parece se encaixar nesse perfil, mas
nessa perspectiva perscrutei a trajetória de Isabel Ferreira dos Anjos. O seu inventário, de
1795, esclareceu sobre sua vida familiar e comunitária. Sua família foi formada, pelo menos,
por dois filhos, “Siman da Silva Ferreira” e Anna Maria de Almeida, seus netos Serafim,
Antônio, Joanna Pereira e Joaquina Pereira e do genro “Joze Matheus”, todos citados como
herdeiros dos seus bens.229
Possivelmente, a moradia dessa família foi a casa de palha com porta e quintal
inventariada entre os bens da matriarca Isabel dos Anjos. Viviam em condições simples, pelo
menos se forem interpretados os utensílios deixados aos herdeiros. Além da casa de palha,
deixou duas portas velhas e uma janela, um “taixo” velho remendado, três enxadas (duas
velhas), um machado velho. Deixou, ainda, “hu tiar de teser pano” e “hu ferro de
alfayato”,230 esse último herdado pelo filho “Siman”, e o tear fez parte do quinhão recebido
pelo neto Serafim. Como apresentou-se anteriormente, parece que Isabel se dedicava a tecer
panos utilizados no fabrico de roupas para o uso dos familiares e possivelmente para a venda.
Mas, essa não foi a principal atividade na qual se envolveu Isabel dos Anjos. Para a
renda do sustento familiar, sem dúvidas, ela angariava alguns vinténs a mais do trabalho
dedicado à criação e comércio de equinos. Para essa empreitada Isabel arrendava terras na
“rebeira d‟agoa rayras nas fazendas do Cap.am Mor Pedro Domingues do Prado”.231 Foram
inventariados números significativos de animais equinos criados por Isabel dos Anjos,
provavelmente, com a ajuda dos seus familiares, sobretudo do filho “Siman Ferreira da Silva”
(inventariante) e o genro “Joze Matheus”. Veja-se a relação de animais e seus valores:
229
Inventário de Isabel Ferreira dos Anjos, 1795. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães (documentação
não catalogada).
230
Ibid.
231
Ibid.
172
Tabela 24: Criações de equinos de Isabel Ferreira dos Anjos.
Descrição do animal
Cavalos velhos
Cavalos Novos
Cavalos mansos
Cavalos mansos
Potros amansadores
Potros de ano e meio e de ano
Bestas
Total
Quantidade
3
1
5
2
8
31
30
79
Valor unitário
5$000
5$000
8$000
9$000
8$000
4$000
3$000
42$000
Valor Total
15$00
5$000
40$000
18$000
64$000
124$000
90$000
356$000
Fonte: Inventário de Isabel Ferreira dos Anjos. 1795. Forum Nivaldo Rodrigues de Magalhães, Paratinga-BA.
A partir dos dados tabelados, depreende-se que Isabel buscou como meio de
sobrevivência familiar a criação de cavalos e bestas, por isso detinha quantidade expressiva
deles, indicando que participava do comércio de equinos. As fontes indicaram a importância
desse tipo de animal na atividade agropecuarista desde o início do povoamento dessa região.
Santos Filho (1956, p. 243) ressaltou:
[...] o papel preponderante desempenhado por equinos e muares na economia
citadina e na rural, empregados que foram em múltiplos misteres, desde os
serviços rurais, incluindo-se movimentação de moendas e trabalhos do
pastoreio, até a tração das carruagens citadinas.
Sem dúvidas que a procura por esse tipo de animal foi muito recorrente no “Certam de
Sima”, haja vista ser uma região predominante de trabalho pecuarista todo vaqueiro
necessitava de um cavalo para o exercício do seu ofício. Para os tropeiros esses animais eram
indispensáveis. Entre os bens inventariados de Isabel dos Anjos, localizaram-se dívidas a
receber por ela ou pelos seus herdeiros de alguns compradores de seus animais. Através dessa
relação de dívidas foi possível perceber articulações comerciais em torno dos equinos da
referida proprietária. Os valores das dívidas permitiram vislumbrar os possíveis preços dos
animais comercializados por Isabel dos Anjos e formas de comercialização.
Tabela 25: Relação de dívidas que se deveram a Isabel dos Anjos.
Devedor
Joze Seze Moreira
Antonio Joze Queiroz
Joze Ferreira de Souza
Quiteria Maria da Encarnasa
Joze Venansio
Brerno Fran.co Dorado
Joze Thobias de Arº
Bernardino de Barros
Total
Mercadoria devedora
1 cavalo
resto de 1 cavallo
resto de outro crédito
resto de 1 crédito
resto de 1 crédito
resto de 1 crédito
resto de 1 crédito e 2
cavalos
7
Valor
10$500
11$000
4$000
7$400
28$540
2$000
3$720
12$000
78$760
Fonte: Inventário de Isabel Ferreira dos Anjos. 1795. Forum Nivaldo Rodrigues de Magalhães, Paratinga-BA.
173
Sugere-se que ela vendia um cavalo pelo preço de 10$500 réis, sendo o pagamento
parcelado, como indicaram os “restos de créditos” registrados. Esse valor de 10$500 réis por
um cavalo, no ano de 1792, estava abaixo dos valores de cavalos vendidos em período
semelhante na fazenda do Brejo do Campo Seco, os quais oscilaram entre 16 a 20 mil réis
como observou Santos Filho (1956, p. 258) nos livros de contas dos proprietários dessas
fazendas. Esse mesmo autor, amparado pelos relatos do príncipe Maximiliano, informou “[...]
que enquanto na caatinga o gado vacum se cotava por menos preço do que o vigente em
outras regiões, „os cavalos são relativamente mais caros, pois um mau cavalo, já bastante
servido, custa raramente menos de 16$000 a 18$000 réis” (Loc. cit.).
Os avaliadores dos animais dessa proprietária avaliaram “[...] três cavallos, dois velhos
e hu novo com defeito” por 5$000 réis cada um, dois cavalos mansos vistos por 9$000 réis
cada um. Em contrapartida os potros e bestas receberam valores correspondentes ao mercado
regional, sendo crescente a valorização desses animais na transição do século XVIII para o
XIX. Por exemplo, “[...] um potro de 1 ano se cotou em 4$000 reis em 1799, em 1800 um de
dois anos foi vendido por 10$000 e em 1805 houve compras a 8$000”(SANTOS FILHO,
1956, p. 259). Os potros de Isabel dos Anjos receberam o valor de 4$000 réis, aqueles de um
ano e de um ano e meio, já os potros amansadores valeram 8$000 réis.
A atividade de criação de equinos foi o meio de sobrevivência escolhido por essa
mulher, condutora da sua família. Filhos, netos e genro, possivelmente, labutavam dia a dia ao
lado de Isabel dos Anjos, desde o cuidado dos animais até as transações comerciais com a
venda de cavalos, potros e bestas. Por vezes, essa empreitada não deve ter sido fácil e a
lucratividade devia servir aos gastos básicos da subsistência familiar e ao financiamento dessa
atividade, pois não tinham terras próprias para a criação, pagavam o arrendamento de terras
propícias, à beira d‟água.
Portanto, chefes de famílias, como Isabel dos Anjos, mulher livre pobre, buscaram
meios de sustento para seus familiares. Foram à luta e conquistaram a dignidade de
sustentabilidade familiar a partir de suas próprias iniciativas. Desse modo, mesmo após a
morte, deixavam, de certo modo, amparados os seus entes queridos, que, no caso dos
herdeiros de Isabel dos Anjos poderiam dar continuidade ao negócio de equinos realizado pela
sua mãe e avó, e assim manter esse meio de sobrevivência.
Deixar amparados os parentes, após a morte, foi preocupação cara a muitas chefes de
famílias do “Certam de Sima”. Clemência Lopes, moradora da fazenda Itibiraba, deixou
registrada a sua última vontade, justamente, o amparo dos seus filhos Antônia Lopes da
174
Fonseca, Pedro e Manoel. Ao localizar esse documento, uma única folha na qual Clemência
Lopes declarou o seu último desejo, buscaram-se, através do método nominativo, vestígios da
trajetória dessa mãe. O sobrenome Lopes foi recorrente entre os registros paroquiais da
fazenda da Itibiraba e do Santuário do Bom Jesus da Lapa e, sendo assim, não seria difícil
identificar algumas pistas das experiências de Clemência.
De fato, entre os batismos e casamentos no Santuário e na fazenda Itibiraba, foram
localizados Clemência Lopes, alguns dos seus parentes e compadres. Contudo, foram
identificados, ora como crioulos forros, ora sem referência alguma da cor e da condição
social, dificultando a certificação sobre as presumíveis características identitárias, geralmente,
impostas pela sociedade escravista colonial. Os pais de Clemência, João Lopes da Fonseca e
Anna de Almeida, moradores da fazenda Itibiraba, casaram-se na Igreja Matriz de Santo
Antônio do Orubu em 1759.232 Anteriormente, no ano de 1755, João Lopes, solteiro, forro,
apadrinhou Nicácia, filha de Maria do Nascimento, cativa de Manoel de Saldanha, moradora
da fazenda Itibiraba e pertencente a família enraizada na dita fazenda como se analisou no
segundo capítulo.
Evidências como essas foram perscrutadas através da ligação nominativa, por isso
sugere-se que a família extensa da qual Clemência Lopes fez parte fora constituída por
crioulos forros e seus descendentes, presentes na Itibiraba, pelo menos desde a segunda
metade do século XVIII. Na figura 13, vislumbram-se melhor alguns vestígios das trajetórias
que envolveram parentes e parceiros que conviviam comunitariamente na Itibiraba.
Clemência conviveu com seus pais, irmãos, cunhado, sobrinhos e seus filhos vivenciaram em
meio aos avôs, tios e primos. Veja-se na sequência a figura da família de Clemência Lopes.
Os compadres e comadres indicados na figura 13, revelaram escolha dos familiares de
Clemência Lopes, que preservaram as relações comunitárias vividas no interior da Itibiraba.
Na condição de forros, não só permaneceram morando na mesma fazenda do tempo de
cativeiro, como também continuaram suas relações de amizade e confiança com escravos dos
Guedes de Brito. Pessoas livres pobres e ricas, moradores na Itibiraba, foram consideradas nas
práticas de compadrio dos “Lopes da Afonseca”, tanto que Clemência Lopes deixou
registrado: “[...] rogo a meo compadre Joze Pereira Bonavidis quera aseitar este meo
apontamento q do comprimento a os meos ligados”.233
232
Livro de Registro de casamento da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, nº 2. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa-BA.
233
Folha avulsa, documento referente a Clemência Lopes, 1810. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães
(documentação não catalogada).
Figura 13: Família Extensa de Clemência Lopes
Francisco de
Moura
Romana Lopes
da Fonseca
João ou Joze de
Almeida
João Lopes da Fonseca
Clemência
(1767)
Vitorino
(1780)
CapAM Antônio de
Souza Ferreira e
Joanna Thimotea de
Vasc. mulher deste.
Anselmo da Silva
Félix e sua mulher
Anna Maria
Roza da Silva
Anna de Almeida
Francisco
(1777)
Gil Pereira de Aragão,
morador no
Miradouro, e Ignácia
Gonçalves
Delfina
(1761)
Martinho Lopes
José
e
Felícia
escravos de Manoel
de Saldanha
Cleto
Filho legítimo
1779
Antônia
Lopes
Fonseca
da
Pedro
Manoel
Antônio
Joaquim da
Silva
Faustino escravo
de
M.
de
Saldanha e Ritta
Correa
forra
solteira
Lamberto
crioulo filho
natural 1878
Clemente
da
Silveira Espimela
e Ritta Correa
175
176
Após conhecer um pouco da trajetória familiar de Clemência Lopes, pode-se
compreender possíveis significados da sua última vontade:
Declaro q dexo huma escrava crioulinha pr. nome Francisca pª. Minha filha
Antonia Lopes dafonseca cuja crioulinha comprei pr. preso de quantia de
sincoenta i quatro mil res dinheiro prosidido de hum cavalo de huma besta q.
minha Irmam mi deo cujo proto sevendeo pr. vinte sinco mil res mais
dezaseis mil res de hum cavalo de Pedro q seo avou lideo o cuju dinheiro
comperi um poco de sal q vendendo fis este dinheiro com q comprei a dita
crioulinha digo e declaro q dexo mais huma cabrinha pr. Nome Inosencia
dexo a meo dous filhos Pedro i Manoel cuja cabrinha comprei pr. Presso i
quantia sesenta e sinco mil res cujo dinheiro p.ar este pagamento deo o
difunto Antonio Joaquim da silva di esmola a seo afilhado Manoel q com
hele compeir ate xegar a quantia de trinta mil res q fis entro mais hum cavalo
de Pedro q si vendeo pr. Dizaseis mil reis pr. Sidido o dito cavalo de huma
espingarda q seo avou lideo o resto paguei em farinha de huma rosa q meo
Irmão mi plantou [...].234
O referido registro guarda, nas suas entrelinhas, expressões da vida familiar e
comunitária dessa família. Revelou-se a preocupação de uma mãe em deixar algum amparo
para os seus filhos, utilizando várias estratégias para adquirir dinheiro suficiente para a
compra de cativos. A colaboração do avô e dos tios foi importante. A neta “Antonia Lopes
dafonseca” recebeu do avô, João Lopes da Fonseca, um cavalo. O avô também presenteou o
neto Pedro com outro cavalo e uma espingarda, presentes vendidos pela mãe, Clemência, com
o intuito de adquirir posses cativas.
Clemência contou com a solidariedade de seus irmãos para reunir essa quantia. Ganhou
da sua irmã um cavalo e uma besta.235 Seu irmão foi generoso, colaborando com a irmã,
plantando uma roça de mandioca, da qual deve ter feito a farinha que ela vendeu. Entre
vendas e compras e revendas, conseguiu adquirir dinheiro e assim comprou duas cativas,
deixando-as para os filhos, ressaltando: “[...] pª q meos filhos nãe haja dipendensia entre heles
e quando heles quera proseder hum contra outro posa dividir oq. Li pertensia a cada hum o q
rogo a helis q vivam irmanmente como Irmão [...]”.
Além dessas experiências familiares e comunitárias, o referido documento indicou o
envolvimento da família “Lopes da Fonseca” com atividades de cultivo de lavouras, como a
roça de mandioca da qual sugere-se que essa família fabricava farinha. Os cavalos, bestas e
potros relacionados, provavelmente faziam parte das criações que tinham em alguma parte da
extensa fazenda da Itibiraba dos Guedes de Brito. Viviam de suas roças e criações, favoráveis
à subsistência familiar, e o excedente por certo, como fizeram outros moradores daquela
234
Ibid.
Sugere-se que essa irmã de Clemência Lopes foi Delfina Lopes, identificada nas fontes paroquiais como a
filha mais velha do casal João Lopes da Fonseca e Anna de Almeida.
235
177
região, foi comercializado através das trocas e vendas no dinâmico contexto agropecuarista do
“Certam de Sima”.
Com os dezesseis mil réis da venda do cavalo de Pedro que o avô tinha lhe ofertado, sua
mãe comprou um pouco de sal, importante produto na alimentação da região, servia como
conservante dos alimentos. Por isso, deve ter vendido com maior facilidade e por alguns
vinténs a mais. Desenvolvia-se, na região do São Francisco, a produção e comercialização de
sal. Spix e Martius (1976, p. 114), em suas andanças por essa região registrou, o “animado”
comércio de sal em Carinhanha.
[...] pecuária e sal constituem a riqueza desse extenso distrito, e este último
artigo, sobretudo, o comércio em Carinhanha e no posto da fronteira de
Minas Gerais, do outro lado, Malhada. [...] O sal extraído nas margens do rio
São Francisco, nas províncias da Bahia e Pernambuco, é importado em sacos
de couros, surrões, cada um dos quais, pesando trinta ou quarenta libras,
paga cem réis de direito de entrada.
Taiane Martins Dantas (2010, p. 34) indicou a permanência desse comércio de sal nas
margens do São Francisco, no Oitocentos, sobretudo na região de Xique-Xique, assinalou que
“muitos possuíam ainda salinas nas Serras do Assuruá, de onde extraíam sal para exportar
[...]”. Retorne-se às heranças...
Herança de pai abastado atrelada ao trabalho familiar conduziu o filho da africana mina
Maria Pereyra de Barros rumo ao comércio regional da Freguesia de Santo Antônio do Orubu.
Faustino Pereira de Barros, pardo, era filho natural do rico fazendeiro sertanejo o Alferes
Francisco Pereyra de Barros236 com uma das suas cativas, Maria Pereira de Barros, “preta
mina”. O referido Alferes, pai do pardo, forro Faustino Pereira de Barros, foi antigo morador
do “Certam de Sima”, tornou-se proprietário de ricas fazendas, inclusive algumas terras
denominadas por Boa Vista e Sítio das Mamonas em Montes Altos, compradas de Manoel de
Saldanha, em 1744, como mencionei no capítulo I.237
Na ocasião da compra dessas terras, o pai de Faustino faleceu, conforme se registrou em
processo-crime, no qual Faustino foi considerado réu, oportunidade em que defendia seu
direito às terras, como se verá adiante:
[...] quando comprou as ditas terras [Sitio das Mamonas, terras da Boa Vista
em Montes Altos] na cidade da Bahia no regresso q fez para sua caza
236
Foram identificados, pelo menos, três filhos desse abastado senhor, todos com suas escravas. Foram estas:
Maria, “mina”, mãe de Faustino Pereira de Barros; Luzia, crioula, mãe de Bernardo Pereira de Barros e Serafina
Pereira de Barros, mãe de Francisco Pereira de Barros. Nota que todos os filhos foram batizados com o
sobrenome do pai, sugerindo que tenham sido reconhecidos por Francisco Pereira de Barros ainda em vida.
Livros 2 e 3 de Registros de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa-BA.
237
Processo-crime, 1768. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães, Paratinga-BA (documentação não
catalogada).
178
falesceu em caminho da Vila de Joam Amaro de sorte que quando lavrou a
escritura das ditas terras folhas Setenta e quatro foi com o seu testamento
[...].238
Provavelmente, após a morte do Alferes Francisco, seus filhos, como, por exemplo,
Faustino, tornaram-se forros e herdeiros dos bens do rico pai. Presume-se que o Alferes
Francisco tenha deixado em testamento o direito dos filhos naturais à sua herança; não se
localizou esse possível documento, mas outras fontes indicaram a posse dos seus filhos das
suas fazendas. No referido processo-crime de 1768, Faustino Pereira de Barros foi
considerado o dono das terras compradas pelo falecido pai nas proximidades de Montes Altos.
Nesse processo, Faustino e José Pereira Gonçalves foram acusados pela morte dos
gados da fazenda da Mandiroba, animais que eram de propriedade de um Reverendo, de nome
não identificado, o qual acusou que a construção de um açude no Riacho das Mamonas
dificultou o acesso à água, logo o gado morreu por essa falta. O Reverendo defendia direito
sobre o Riacho das Mamonas, segundo ele, fazia parte das terras doadas pelo Alferes
Francisco Pereira de Barros à “Capella de Montes Altos”. No entanto, uma das testemunhas
“provava que as terras que o dito defunto deixou [...] para a Capella de Montes Altos foram as
da Serra ou Riacho da Boa Vista e Montes Altos e não as do Sitio das Mamonas insertas na
escritura folha quarenta e quatro. [...]”.239
Apesar de as folhas dos autos conclusos desse processo não terem sido localizadas,
sugere-se que os réus foram absolvidos, pois foi discurso comum entre as testemunhas o
reconhecimento do direito dos réus como proprietários dessas terras, acrescentando que o
açude não causara os prejuízos acusados pelo Reverendo. Conforme a testemunha Nicácio da
Silva Cabral, homem pardo, casado, morador nas margens do Rio Verde e criador:
Dise que sabe por ver que os reos sam senhores e possuidores do Sitio das
Mamonas feito em terras próprias pelos ter comprado o defunto seu pay o
Alferes Francisco Pereira de Barros ao Illustrissimo Manoel de Saldanha no
anno de mil setecentos e quarenta e quatro de que tem escritura publica que
elle testemunha a vio [...]
Dise que sabe deciencia certa que o defunto Alferes Francisco Pereira de
Barros no testamento com que [?] instituhio os [reos] por seus herdeiros por
cuja rezam estes possuidores do Sitio das Mamonas [...] dice que o assude
que fizeram os Reos na sua rossa nam prejudica por modo algum aos gados
do Reverendo Autor nem em tempo algum prejudicaram por haver muitos
pastos e Enpueiras muito abundantes de agoas que nunca ate o prezente tem
faltado em anno algum por mais seca que tenha havido [...].240
238
Ibid.
Ibid.
240
Ibid.
239
179
Observa-se que Faustino Pereira de Barros tomou posse dos bens do seu pai, tornandose um homem de considerável patrimônio de fazendas, escravos e animais. Retomando fase
anterior da trajetória de Faustino, flagrou-se mais um aspecto da sua vida íntima: o momento
do seu casamento. A ata paroquial datada de 1759 registrou a união de “Faustino Pereira de
Barros, pardo, forro, natural e morador do Sitio de Montes Altos, Desta Freguesia” com
“Caytana, preta, mina, forra, escrava que foi de Roza Pereyra Valadares”. 241
A cerimônia aconteceu na casa do noivo, no Sítio do Curralinho de Montes Altos, para
onde se descolou em desobriga o Padre Manoel de Faria Barros, capelão da Capela de Nossa
Senhora de Madre de Deos de Montes Altos. Certamente, esteve entre os presentes a mãe de
Faustino, Maria Pereyra de Barros, e como testemunha contou com o seu irmão por parte do
pai, “João Pereyra de Barros, pardo, forro, solteiro”, e Manoel Ignácio Pinho, casado, todos
moradores na mesma fazenda.
Interessante notar as escolhas de Faustino. Mesmo em outra condição social, forro e
herdeiro de ricas fazendas, não perdeu a identificação com a comunidade escrava na qual
havia crescido, por isso não hesitou em escolher como esposa Caytana, que, além de ser
escrava, tinha provável origem étnica igual à da mãe dele. Pode-se pensar que afinidades
culturais tenham influenciado essa escolha. Não foram localizados registros de filhos desse
casal, mas uma filha natural chamada Anna Pereira de Barros foi batizada como filha de
Faustino e Maria, escrava. O registro do casamento de Anna com “Joze Lopes do Rio Lisboa,
natural da freguesia de Morrinhos”, apresentou indícios de que Anna morava com o pai, na
fazenda Curralinho, onde ocorreu o casamento, ela foi registrada como órfã de mãe nessa
ocasião.242
Faustino desenvolvia em suas terras lavouras de mantimentos e criação de gados, para
esses trabalhos contou com a mão de obra escrava, sendo alguns africanos, como “[...]
Marcelina adulta de nação naguina da Costa da Mina”, a qual foi batizada em 1744.243 E,
também, de outros escravos nascidos na Freguesia do Orubu, como Maria Lina, crioula. Esta
última teve uma filha, Luciana, que foi batizada por João Lopes do Rio Lisboa, genro do seu
senhor.244
241
Livro de Registros de Casamentos da Freguesia de Santo Antonio do Orobu de Sima, n° 2. Cúria Diocesana
de Bom Jesus da Lapa-BA.
242
Livro de Registros de Casamentos da Freguesia de Santo Antonio do Orobu de Sima, n° 3. Cúria Diocesana
de Bom Jesus da Lapa-BA.
243
Livro de Registros de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 3. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa-BA.
244
Livro de Registros de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 7. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa-BA.
180
A falta de acesso a documentos com maiores esclarecimentos quanto às experiências de
Faustino em torno dos seus negócios, não torna impossível compreender que esse homem,
pardo, forro, que vivia de suas lavouras e gados, estivesse ativamente participando do
comércio regional. A localização da sua fazenda do Curralinho na “estrada das Minas”245
favorecia um comércio local. Certamente, os produtos agrícolas, além de serem comprados
pelos vizinhos, foram buscados por viajantes, tropeiros, vaqueiros, camboeiros, dentre outros,
que percorriam esses sertões, cortando a estrada que levava às Minas. Faustino deve ter
comercializado gado na porteira do próprio curral, como foi costume local, muitos desses
animais poderiam abastecer a região mineradora.
Assim sendo, Faustino criou meios de sobrevivências para si e seus familiares, podendo
ter condições de vida mais digna. Sugere-se que essas características tenham contribuíram
para que Faustino se tornasse um homem público e respeitado na sociedade do “Certam de
Sima”, inclusive conquistando respeito, confiança e amizade de outros ricos fazendeiros dessa
região, dentre esses Mathias Bernardes Lima. Faustino Pereira de Barros estava em segundo
lugar entre os testamenteiros indicados por Mathias Bernardes Lima no seu testamento, não
assumiu esse papel porque Faustino faleceu “depois da Páscoa no anno de 1798 [...] com a
idade de secenta annos pª. sima”.246
Essa amizade parece ter sido de longa data; por exemplo, em 1781, Faustino recebeu, na
sua fazenda do Curralinho, Escolástica, uma das filhas naturais de Mathias Bernardes Lima,
esta com a sua cativa, a crioula Ignácia Bernardes. Na visita Escolática se fez acompanhar de
Jerônima e do filho Pio, ambos escravos de Mathias Bernardes Lima, nessa ocasião Faustino e
Escolástica batizaram o pequeno Pio.247
A vida social do “Certam de Sima” não foi apenas de relações familiares harmoniosas.
Famílias, companheiros e vizinhos enfrentaram momentos de tensões com ameaças de perder
seus direitos, rixas antigas, querelas, “brincadeiras de mau gosto” entre aqueles que se
estranharam por motivos fúteis e outros pela defesa dos seus bens, dos meios de
sobrevivências. Adiante buscou-se aproximação de alguns vestígios desse universo
improvisado do viver.
245
Folhas avulsas de testemunhos de processos, 1771. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães, ParatingaBA (documentação não catalogada).
246
Testamento de Mathias Bernardes Lima, 1803. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães, Paratinga-BA.
Documentação não catalogada.
247
Livro de Registros de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima, n° 7. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa-BA.
181
4.3 “DUVIDAS” E “QUERELAS”: TENSÕES ENTRE PARENTES E VIZINHOS
4.3.1“QUITÉRIA DA GRAÇA, PRETA, FORRA, VIÚVA”: REQUERENDO SEUS
DIREITOS.
A conquista de direitos como ter roças e criações próprias esteve na pauta da luta pela
sobrevivência de homens e mulheres na condição cativa desde o período colonial. Essas
conquistas possibilitaram àqueles escravos uma vida com alguma dignidade, alargando
espaços de autonomia e mobilidade. Cultivar suas lavouras e criar animais permitia que esses
sujeitos sociais se responsabilizassem pelo sustento familiar e participassem ativamente do
comércio local, vendendo, comprando ou trocando os excedentes das suas produções.
Por outro lado, autonomias e mobilidades de escravos e até mesmo de forros
enfrentavam limitações frente aos mandos e preconceitos da escravidão. Sendo assim, na luta
cotidiana pelos direitos, a conquista da “carta de liberdade” não significou o fim de situações
de constrangimentos, humilhações e trapaças, como assinalou o historiador Wellington
Castellucci (2008, p. 98):
No Brasil, direitos como a conquista de cidadania, os limites de autonomia,
recém adquirida, a quebra de normas e etiquetas ditadas pela classe dos
senhores e a luta contra os riscos de reescravização foram alguns dos
dilemas experimentados pelos forros, num campo de disputa que definia,
momentaneamente, as relações de poder e o alcance de restrições à liberdade
plena.
Todavia, muitos forros não se conformavam diante dessas “restrições” e, mesmo no
contexto da escravidão sertaneja setecentista, lutaram contra ações de domínio dos seus
antigos proprietários. Quitéria da Graça, em 1770, procurou a justiça para requerer seus
direitos. Encaminhou ao Juiz da Vila de Rio de Contas uma petição, na qual reivindicava a
posse dos seus bens como viúva de Alberto de Lima, também forro, justificando da seguinte
forma:
Dis Quiteria da Graça preta forra viúva que ficou de Alberto de Lima preto
forro morador na Fazenda da Malhada que sendo o dito seu marido escravo
do dito padre Miguel Lima Mendes Galvam o deixou forro no seu
testamento [...] in quam seu testamenteiro Mathias Bernardes Lima lhe
passou sua carta de liberdade e muito antes que o senhor depos anulassem o
dito testamento por verdade da ley testamentária e falecendo o marido da
supp. [suplicante] se acham os bens do casal na Fazenda [ilegível] de Roque
Vieyra de Lima, seu Irmam Antonio Vieyra de Lima [...].248
248
Inventário de Alberto de Lima, 1770. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães, Paratinga-BA.
Documentação não catalogada.
182
Observa-se que, após a morte de Alberto de Lima, sua esposa ficou desamparada e os
senhores Roque e Antônio se aproveitaram dessa situação, tomando para eles os bens
deixados pelo esposo de Quitéria. A partir do registro acima referido, supõe-se que, ainda na
condição cativa, Alberto conquistou roças e criações próprias desenvolvidas na propriedade
escravista do seu senhor, o Reverendo Padre Miguel de Lima. Após a morte do senhor, foi
alforriado, e pelo que tudo indica, permaneceu morando na mesma fazenda em que foi
escravo, aliás, esse foi costume comum entre os forros do “Certam de Sima”. “O sentimento
de direitos sobre as roças explica por que alguns roceiros cativos permaneceram nas
propriedades depois de alcançarem a alforria” (FRAGA FILHO, 2006, p. 43).
Ao que indicaram as fontes, Alberto de Lima conviveu no interior dessa fazenda com
sua mãe, Maria da Rocha, e Quitéria da Graça, sua esposa. Não foram localizados registros de
filhos ou outros parentes. A ata de casamento desse casal apresentou indícios das suas
vivências. Na ocasião do matrimônio, que ocorreu em fevereiro do ano 1768, no Oratório do
“Padre Francisco Velozo das Neves”, os dois já eram forros. Alberto de Lima, crioulo, forro,
natural da Freguesia de Santo Antônio da Manga e Quitéria da Graça, preta, mina, forra,
anteriomente cativa de Domingos Antônio. Possivelmente, viviam maritalmente antes dessa
oficialização, podendo ser os bens adquiridos uma conquista conjunta do casal.249
Diante da reivindicação feita por Quitéria, o Juiz da vila de Rio de Contas encaminhou a
petição ao Juiz da Vila de Santo Antônio do Orubu, em que consta: “[...] proceda logo o
Inventario dos bens do casal da supplicante, e sendo necessário proceda nelles o seqüestro há
dar partilha [...]”. Esses bens encontravam-se em mãos de Roque Vieyra Lima e seu irmão
Antonio Vieira de Lima, que “[...] nam querem entregal na supplicante a quem por bem a
posse delles como cabeisa do casal [...]”.250 Sendo Roque Vieira morador na mesma fazenda
na qual moravam Alberto e Quitéria e presumível parente do senhor destes, o padre Miguel de
Lima achou-se no direito de tomar para si os bens de Alberto.
O Juiz da vila do Urubu e seu termo, “Doutor Antonio da Silva Caldas Cavalgante
Albuquerque”, designou oficiais da justiça para resolver o problema de Quitéria, desse modo,
deu ordens para que
[...] notifiquem aos suplicados Roque Vieyra de Lima e Gaspar de Lima
vaqueiro da fazenda da Alagoa na parte das bestas para que no termo de
vinte quatro horas venha na minha prezença com o Rol de gados e bestas de
ferro e signal da Suplicante para se avaliarem e inventariarem e nam o
249
Livro de Registros de Batizados da Freguesia de Santo Antonio do Orobu de Sima, n° 3. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa-BA.
250
Op. Cit.
183
fazendo no dito termo procederem contra elles na forma declarada napetiçam
dentro de baixo de pena nella declarada [....].251
O juiz determinou nessa petição que o não comparecimento de Roque Vieira de Lima e
Gaspar de Lima resultaria na prisão deles. A diligência feita na fazenda da Malhada não
localizou os procurados, no entanto a intimação foi recebida e assinada pelo irmão de Roque,
Salvador Vieira de Lima. Não foi possível certificar o comparecimento de Roque, pois
diversas folhas do documento estão manchadas, inviabilizando a pesquisa. No entanto,
conservaram-se os escritos do “termo de assentada e auto de partilha”, permitindo conhecer os
bens reconhecidos como de Alberto Lima.
Apresentou-se o rol dos gados composto de 31 cabeças de animais com a ferra e sinal de
AL (Alberto Lima). O rol das bestas também foi apresentado, mas tornou-se ilegível. Abaixo
desses rols, concluídos em 10 de março de 1771, na fazenda do Rio Verde, consta a assinatura
de Salvador Vieira de Lima, indicando ter sido ele o responsável pela prestação de contas dos
bens de Alberto.
Nos autos da partilha registraram-se, além dos gados, cavalos e bestas, outros objetos e
utensílios, os quais guardam vestígios da vida do casal Alberto e Quitéria. Foram repartidos
esses bens entre a esposa e a mãe de Alberto, e abatidos os custos do inventário no Monte
Mor de 162$120 réis. O quinhão de Quitéria formou-se com objetos mais pessoais como:
“calçam de linho”, “camiza e Silouras de pano de algudam”, “camiza de pano de linho”. Uma
rede de fio também foi herdada pela esposa de Alberto, que recebeu, além desses bens,
“quatro pratos de castanho”, itens raros entre os pertences de pessoas pobres,
“[...] sugerindo que muitos pobres ainda continuavam a comer bem ao estilo
que predominou até o fim do século XVIII, ou seja, pondo suas refeições em
cuias de improviso e fazendo com as mãos pequenos bolinhos de comida e
armazenando água em moringas de barro” (CASTELLUCCI JUNIOR, 2008,
p. 85).
A partir desses itens inventariados, vê-se que viviam de maneira bem modesta. Pelo
visto, não tinham moradia própria, vestiam-se com roupas simples e tinham uma única rede
para dormir ou descansar depois das lidas cotidianas. Surpreendeu-me não a presença de
pratos de castanho, mas o pertence de uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, de ouro,
avaliada em 9$760 réis, a qual foi avaliada entre outros itens, como uma faca grande, para
pagamento dos custos e dívidas. Será que a imagem da Conceição significou uma devoção de
Alberto, ou era apenas mais um bem adquirido? Quem sabe foi herança do padre Miguel de
Lima, seu antigo senhor?
251
Ibid.
184
Não faltaram os instrumentos de trabalho com as criações, como: “cella gineta”, “cella
bastarda”, “par de esporas velhas”, “facam velho”, que ficaram para Quitéria, além de um
potro e onze bestas. Chamou a atenção o fato de a quantidade de gado apresentado no rol não
constar em mesmo número nos autos de partilha, apenas uma cabeça de gado entrou na
partilha, sendo herdada pela mãe de Alberto. Infelizmente o inventário está incompleto,
dificultando compreender essas questões.
Outro aspecto importante foi a participação de Alberto no comércio local,
provavelmente vendendo gado, cavalos, potros e bestas. Foram consideráveis o número e
valores de dívidas a receber entre os bens do inventariado, veja-se tabela 3.
Tabela 26: Dívidas que se deveram a Alberto de Lima.
Devedor
Francisco do Rego Barros
Francisco de Arahujo
Sebastiam Fernando
Roque dos Santos Lima
Joze Rodrigues
Valores/reis
19$500 / 19$500
1$680 / 1$680
$880
5$000 / 5$000
$640 / $640
Total
39$000
3$360
$880
10$000
1$280
54$420
Total
Fonte: Inventário de Alberto de Lima, 1770. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães, Paratinga-BA.
Documentação não catalogada.
Quitéria da Graça, africana, “mina”, forra, lutou pelos seus direitos, através da justiça e,
ao que tudo indica, conseguiu reaver os seus pertences, readquirindo condições necessárias à
sobrevivência, principalmente, a reconquista da sua dignidade de poder gozar da sua liberdade
e, possivelmente, retomar os negócios com o comércio de animais desempenhado por seu
marido e com a ajuda dela.
4.3.2 “DUVIDAS TIVERAO POR HUM POUCO DE ALGODÃO”.
Os fragmentados documentos setecentistas da “Freguesia do Orubu” documentaram
outras experiências de pessoas pobres na preservação dos seus negócios, roças e criações.
Alguns, no entanto, diferentemente de Quitéria, não buscavam a justiça para defender seus
direitos, mas, sim, fizeram “justiça com as próprias mãos”. O acesso a roças próprias, de certo
modo, alargou a autonomia de escravos que tiveram mais tempo para dedicarem-se aos seus
negócios e ampliar meios de subsistência familiar.
185
Assim, dedicaram-se mais aos seus familiares e ao convívio comunitário, entretanto,
como lembrou Alex Andrade Costa (2009, p. 87), em seu estudo sobre vivências escravas no
Recôncavo Sul da Bahia oitocentista, “essa proximidade em que viviam os escravos, ao
mesmo tempo em que facilitava as relações e os unia mais, poderia gerar ou despertar tensões
e rixas entre os mesmos [...]”. Muitas vezes os limites de acesso a determinado pedaço de
terra não foram respeitados, pois cada um defendia “direitos” específicos, e isso gerou
“questões”, “duvidas”, “querelas” e “richas”...
O historiador Walter Fraga Filho (2006, p. 42-43) também identificou conflitos em
torno das roças próprias de escravos no Recôncavo baiano e considerou
[...] que o cultivo de roças conferiu aos escravos espaços de independência
pessoal na produção da própria subsistência e na comercialização do que era
cultivado. Com o tempo, o acesso às roças transformou-se numa fonte
permanente de conflito, na medida em que os escravos criaram um senso de
direitos sobre as parcelas de terra que cultivavam.
Um processo crime de 1786 registrou um conflito dessa natureza. Nos autos da devassa
do corpo de delito, vê-se: “[...] morto Jozê de Faria crioullo forro com hum tiro de espingarda
perto da boca do estomago com hua pancada de grãos de xumbo do que lhe fizera hua ferida
grave de que procedeu morrer o dito Jozê de Faria [...]”.252 Jozê de Faria e Manoel João,
crioulos, moradores no “citio do Cayetê” entraram em conflito pelo zelo dos seus próprios
negócios.
As testemunhas que depuseram na devassa desse processo-crime narraram versões para
o crime do assassinato do crioulo Jozê de Faria, dizendo o saber “pello ouvir dizer e ser
público e notório”. Uma delas, “Romao Loppez Ferreyra”, pardo, que vivia de suas lavouras,
informou: “O criollo Manoel Joao matara o criollo Jozê de Faria, com hum tiro de espingarda
com huá pancada de xumbo no citio do cayetê e de que do mesmo tiro morreu e que as taes
duvidas tiverao por hum pouco de algodão [...]”.253
Outra testemunha, Bento Pereira, mestiço, que vivia de suas lavouras, apresentou outro
motivo para as “duvidas” que tiveram Manoel João e Jozé de Faria, disse que: “Por conta de
hua teyma que tiverao que o dito Manoel Joao não queria que o dito Jozê de Faria botara o seu
Cavallo na rosa delle dito Manoel Joao [...]”.
Provavelmente, como foi comum naquela época, José de Faria criava seu animal à solta
e, sendo assim, o cavalo deve ter chegado até a roça de algodão de Manoel João, causando-lhe
prejuízos com a destruição da plantação. Castellucci Junior (2008, p. 85) observou, nos
252
Processo-crime, morte feita ao crioulo José de Faria, 1786. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães,
Paratinga-BA (sem catalogação).
253
Ibid.
186
processos-crime oitocentistas da região de Itaparica-Bahia, problemas criados entre escravos e
senhores devido à invasão de animais nas lavouras. Comentou: “Criar animais à solta, por não
possuírem pastos privados provocou, por diversas vezes, alterações entre forros e senhores de
terras, uma vez que os animais destruíam as roças dos últimos [...]”.
No “Certam de Sima”, como se viu, esses conflitos envolveram populações pobres, que,
como os crioulos Manoel João e José de Faria, lutavam pela conservação dos seus bens, dos
seus interesses próprios, chegando, algumas vezes, a atitudes extremadas, como fez Manoel
João ao matar José de Faria. É importante ressaltar que a defesa das roças e criações foi, na
verdade, a defesa dos seus “arranjos de sobrevivências”, que, diante da “[...] instabilidade da
vida econômica incorporava-se, assim e sobretudo, na luta pela sobrevivência, produzindo e
exigindo improvisações [...]” (WISSENBACH, 1998, p. 232).
Muitas vezes pagavam altos preços por essas atitudes extremadas; sendo presos perdiam
a liberdade. Foi o que ocorreu com Manoel João; em 1786, a justiça da Freguesia de Santo
Antônio do Orubu declarou-o como réu culpado e “[...] contra elle passe as ordens necessarias
para ser prezo com todo segredo de justisa”. Não foi possível acompanhar se essa prisão foi
definitiva e qual o fim desse processo, pois a situação fragmentária do documento dificultou o
acesso a essas informações.
Para além desses conflitos em torno de lavouras e animais, a população pobre da
“Freguesia do Orubu” vivenciou tensões motivadas por “rixas antigas” e, até mesmo, por
prováveis “brincadeiras de mau gosto” com armas de fogo. Famílias e comunidades se viram
envolvidas por essas alterações próprias da vida cotidiana. Ainda que fragmentados,
documentos setecentistas guardam alguns vestígios dessas experiências sociais, como se pode
ver a seguir.
4.3.3 “RICHA VELHA” E “BRINQUEDOS”: CONFLITOS FAMILIARES E
COMUNITÁRIOS.
Desavenças de motivos diversos, corriqueiramente, estiveram presentes nas relações
sociais. Assim como conviviam solidariamente, situações desarmoniosas ocorreram entre as
pessoas, como indicaram as pesquisas de Pires (2003; 2009) aos processos criminais do alto
sertão baiano oitocentista. Segundo a referida historiadora (2003, p. 221):
As rixas, grosso modo, estiveram indicadas direta ou indiretamente na
maioria dos processos que tratam de tensões envolvendo escravos, forros e
trabalhadores livres pobres. [...] Insultos, desarmonias domésticas, intrigas
187
amorosas e outros percalços mais, desencadearam contendas e levaram
segmentos pobres a se enfrentarem impiedosamente.
Impiedosamente, a mulata Thereza foi agredida por Maria Flores, Anna, Theodózia e
Félis. Ignácio Xavier da Rocha, senhor da mulata Thereza, encaminhou-se à justiça da Vila de
Santo Antônio do Orubu e deu queixa do ocorrido. Sem dúvidas, frente à agressão que quase
levou sua cativa a óbito, preocupou-se com o provável prejuízo. Diante dessa denúncia, abriuse um processo, do qual se conservaram as folhas do “auto de querela” e do corpo de delito.
Conforme a petição, o senhor da mulata Thereza declarou que ela,
[...] indo a fonte buscar agoa ao servir do suplicante no dia seis de junho do
corrente ano [1796] pellas sete horas do dia Maria Flores, Anna, Theodozia,
Felis todos forros agregados de Cipriano Nogueira de cazo pensado richa
velha sem temor de Deos e as Justiças de sua Magestade Fidelissima quem
Deos guarde foram ao encontro com a escrava do Suplicante e depois Le a
ferirem com hum pao na cabesa como consta do auto deixam [ilegível] de
feridas apegaram a braços e a suraram a qua da sorte que nao estar Crispim
Joze que acodio ao arruido separamente a afogariam ao Rio [...].254
O que levou Maria Flores, Anna Theodózia e Féliz a cometer essa agressão a Thereza?
Infelizmente, os vestígios localizados desse caso não respondem a essa pergunta. Soube-se
apenas tratar de uma “richa velha” e que por isso agiram de “cazo pensado”.
Pode-se imaginar que, nas convivências diárias na vila do Orubu, já que os envolvidos
moravam por lá, se desentenderam por algum motivo, que pelo visto incomodou muito Maria
Flores e os companheiros, que furiosamente surraram a mulata Thereza e quase a afogariam
no rio, sem medir as consequências dessa ação. De caso pensado devem ter planejado quando
e como seria.
Provavelmente, essas pessoas conheciam as suas rotinas, e escolheram como melhor
ocasião o momento no qual a escrava Thereza, costumeiramente, ia até a fonte para buscar
água. Logo cedo, às sete horas da manhã, o seu senhor necessitava da água para as atividades
matinais. Houve a participação de um menor, Félix, que era filho de Anna. Maria e
Theodózia, por sua vez, eram tias de Félix e irmãs da mãe deste; Anna provavelmente, levouo por não ter com quem deixá-lo. Essa família de forros trabalhava como agregados do
“Capitam Ciprianno Nogueira”.
Abre-se um breve parêntese sobre vestígios da trajetória desse “capitam”. O primeiro
vestígio de Ciprianno Nogueira foi localizado entre os registros paroquiais de 1780; nesta data
serviu como padrinho de Thereza, filha de Josefa escrava de Manoel de Saldanha. Essa não
254
Folhas avulsas referentes ao espancamento da mulata Thereza, 1796. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de
Magalhães, Paratinga-BA (sem catalogação).
188
foi a única afilhada de Ciprianno, que, pelo visto, se tornou querido entre os escravos dos
Guedes de Brito e não mediu esforços em ir até o Santuário para batizar Thereza. Em 1783,
apadrinhou mais uma cativa dos Guedes de Brito, dessa vez tornou-se compadre da escrava
Maurícia, mãe da afilhada Jerônima.255
Faz sentido pensar que Ciprianno Nogueira foi uma pessoa reconhecida na “Freguesia
de Santo Antônio do Orubu de Sima”. Documentos de 1794 informaram mais sobre sua
trajetória; como testemunha em um processo, foi identificado da seguinte forma: “Capitam
Ciprianno Alvares Nogueira homem crioulo, forro cazado natural de Santo Amaro e morador
nesta vila que vive do officio de pedreiro que dise ser de cinqüenta e dous annos [...]”.256
Então, fazia pelo menos quatorze anos que esse crioulo, forro, tinha deixado sua terra
natal, Santo Amaro, para tentar a vida nos sertões baianos.257 Possivelmente, escolheu a
“Freguesia do Orubu”, desenvolvendo lá seu ofício de pedreiro, que deve ter sido requisitado
nessa região, haja vista as fontes muito pouco apresentarem informações de pessoas com
essas funções “qualificadas”. Tornou-se capitão, assumindo posição destacada nas hierarquias
da sociedade local. A essa altura já havia conquistado terras ou roças próprias e também
escravos.258 A presença de quatro agregados, ou melhor, de uma família de agregados de
Ciprianno Nogueira, sugere que o mesmo tinha posses territoriais.
Fecha-se o parêntese e volta-se para a “richa velha” entre as agregadas de Ciprianno
Nogueira e a escrava Thereza. Pelo visto, Thereza ficou muito machucada, salvando-se
apenas pela ajuda de “Crispim Joze”, que escutou a confusão e prováveis gritos de socorro de
Thereza. O exame de corpo de delito apenas foi feito oito dias depois do ocorrido, isto porque
o juiz e o tabelião não estavam na vila na ocasião, estavam “[...] fora em diligencia do
oficio”.259
255
Livros 7 e 8 de Registros de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima. Cúria Diocesana de
Bom Jesus da Lapa-BA.
256
Folhas avulsas de testemunhos em processo de 1794. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães, ParatingaBA (sem catalogação).
257
Maria Odila Dias (2001), no texto “Forros e brancos pobres na sociedade colonial do Brasil, 1675-1835”,
demonstrou como populações escravas, após conquistarem a condição de forros, buscaram estratégias de
sobrevivências além da realidade em que moravam. Conforme a autora (Ibid, p. 6), mães escravas ou forras viam
“seus filhos se dispersarem em vida nômade; como soldados de milícia local percorriam as trilhas da sua própria
região; outros como tropeiros foram intermediários do comércio de abastecimento entre a capitania de Minas e
Goiás; ainda outros como camaradas, tangedores ou passadores de bois ocuparam-se em ir e vir entre o sertão da
Bahia e as vilas mineradoras. [...] Aos poucos, consolidaram uma sobrevivência bastante diversificada que por
vezes alcançava um nível econômico melhor”.
258
Dentre os seus escravos, localizou-se, em 1794, Ignácia Pereira, cativa de Cipriano Nogueira, sendo madrinha
de Maria, crioula, filha legítima de Roque e Silvana, casal de crioulos, cativos dos Guedes de Brito. Livro 8 de
Registros de Batizados da Freguesia de Santo Antônio do Orobu de Sima. Cúria Diocesana de Bom Jesus da
Lapa-BA.
259
Folhas avulsas referentes ao espancamento da mulata Thereza, 1796. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de
Magalhães, Paratinga-BA (sem catalogação).
189
Passados oito dias, realizou-se o exame de corpo de delito, sendo convocados como
testemunhas dos ferimentos “Athanazio Joze da Silva” e “Felis Joze Pereira”, que “[...]
haviam vistos as ditas feridas no dia em que foram feitas [...]”.260 Conforme se relatou do
exame feito na cabeça de Thereza,
[...] lhe acharam huma ferida no alto da cabesa para a parte direita do
tamanho de huma polegada esa sua e quase fechada por haver pasado já oito
dias [...] pello dito jurado Felix Joze foi dito que quando fora feita que teria
de fundo [ilegível] de meia polegada [...] foi dito que lhe haviam feito atual
ferida com pao[...].261
Essa querela deve ter dado mais algumas folhas de processo judicial, contudo não foram
localizadas nessa pesquisa. Entretanto, como se viu, fragmentos de documentos facultaram
conhecer alguns aspectos do cotidiano de populações pobres do “Certam de Sima”
setecentista. Vivências cotidianas marcadas por experiências diversas: ora por solidariedades
e amizades, ora por conflitos e tensões. Sentimentos comuns a todos aqueles que vivem.
A família de Maria Lopes também não escapou a essas experiências, sendo
surpreendida pela sua morte no dia oito de agosto de 1799. Apenas mais de três meses depois
desse ocorrido, abriu-se um processo investigativo sobre o caso, tendo sido ouvidas
testemunhas com o objetivo de:
“[...] servir no conhecimento de quem fes a dita morte [...] e por nam se ter
feito corpo de delito direito mandou que por tanto se perguntarem
testemunhas para se averiguar quem digo se averiguar que feridas tinha o
corpo da falecida, aonde, seo tamanho e profundidade e com que
instrumento [...].262
Entre as testemunhas convocadas estavam parentes e conhecidos da falecida, moradores
da fazenda da Boa Vista, local da morte, e de fazendas vizinhas. As informações de
identificação das testemunhas permitiram compreender alguns aspectos da trajetória familiar
de Maria Lopes e de Eleutério José, considerado o culpado pela morte de Maria Lopes.
Ambos foram parentes, Eleutério sobrinho de Maria. Observou-se que fizeram parte de uma
família de pardos, ou seja, descendentes de negros cativos, que majoritariamente nasceram na
Freguesia de Santo Antônio do Orubu. A única testemunha, entre os parentes de Maria e
Eleutério, natural de outra freguesia foi o pardo Daniel Lopes Antunes, de 79 anos, que
nasceu em Jacobina.263
260
Ibid.
Ibid.
262
Processo-crime da morte de Maria Lopes, 1799. Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães, Paratinga-BA
(sem catalogação).
263
Ibid.
261
190
Não se sabe o motivo da vinda de Daniel para a fazenda da Boa Vista, local onde fez
morada e constituiu sua vida familiar, convivendo com pelo menos sua terceira geração, já
que, como se identificou, Daniel foi pai de Maria Lopes e avô de Eleutério. Outros parentes
fizeram parte desse convívio familiar, sendo que sete deles testemunharam nesse processo,
informando serem primo, tio, cunhado da falecida ou do acusado do crime.
Esses parentes viviam na fazenda da Boa Vista, apenas Manoel Vieira da Costa, pardo,
80 anos, casado, tio de Eleutério morava em outro local do termo da Freguesia do Orubu.
Todos os membros dessa família, enraizada havia muito tempo na referida Freguesia,
sobreviviam do trabalho com a agricultura, plantando, colhendo e, quem sabe, também
comercializando os seus produtos.
Depois de conhecer o universo familiar de Maria Lopes e Eleutério, retorna-se ao crime.
Agostinho Teixeira, pardo, casado, primo de Maria e de Eleutério, narrou em seu depoimento
“que disse que sabe por ver”; segundo ele:
[...] que procurando elle testemunha tomar tabaco em humas bucetas que
estavam sobe hum banco em caza de roda de fiar de Maria Lopes e por
nam achar tabaco a quis deitar fora estando Eleuterio filho de Serino Joze em
pe com huma espingarda na mam a foi armando para com ella atirar nelle
testemunha ou meter medo porque entre elle testemunha e o dito Eleuterio
que Sam primos nam havia rixa alguma edando elle testemunha com a mam
na boca da espingarda que adesviou de si e com a pancada disparou a arma e
matou a Maria Lopes que estava asentada ao pe da roda de agoa fiando
algudam [...].264
O cunhado da falecida e sobrinho de Eleutério, Antônio Alvares de Souza, pardo,
apresentou outra versão para o ocorrido, baseando-se no que ouviu dizer publicamente sobre o
caso. Com testemunho semelhante ao de Antônio Álvares de Souza, o pardo Bento Joaquim
de Souza, natural da cidade da Bahia e morador na fazenda da Boa Vista, onde “vive de suas
lavouras”, em seu depoimento disse saber por ter visto, então, declarou:
[...] Agostinho Teixeira tendo humas razoens com Boa ventura de tal por
cauza de huma buceta de tabaco e dizendo o dito Agostinho a o Primo
Eleuterio que ficara Sentido no dito Boa ventura que lhe queria dar no dito
Teixeira logo o dito Eleuterio armou espingarda dizendo ao primo se lhe
queria ofender a seo camarada com as suas armas e dando o dito Agostinho
huma pancada na espingarda disviando a boca da dita espingarda se se logo
disparou e foi matou a Maria Lopes que estava sentada fiando na roda de
agoa [...].265
Como se vê, os dois depoimentos apresentaram possibilidades interpretativas diferentes
da morte de Maria Lopes. No primeiro depoimento, tem-se a versão de um dos participantes
264
265
Ibid.
Ibid.
191
do crime, que parece ter utilizado da oportunidade de falar sobre o caso para defender-se de
uma possível culpa, indicando como culpado o seu primo Eleutério, omitindo o motivo pelo
qual buscou tabaco junto a sua prima Maria Lopes. Como relataram outros depoentes, a
exemplo de Bento Joaquim de Souza, na verdade Agostinho Teixeira queria tabaco para,
provavelmente, pagar a “Boa ventura de tal” com quem tivera “humas razoens” e que estava à
procura do dito Agostinho.
Outra testemunha observou que:
[...] este [Agostinho] pedio ao seo primo Eleuterio Joze do Espírito Santo
que lhe desse a espingarda com que estava o dito Eleuterio armando a
espingarda dizendo ao [ilegível] que se com a sua espingarda de que queria
defender-se o dito Agostinho desviou com huma pancada [...].266
Não ficou claro se Eleutério tinha intenção de atingir o primo Agostinho ou se foi uma
brincadeira que acabou tirando a vida de Maria Lopes. O depoente Daniel Lopes Antunes
defendeu que o ocorrido foi causado por brincadeira, ou seja, sem intenção de matar. Talvez
tenha preferido acreditar nessa hipótese, afinal como patriarca da família seria difícil aceitar
que o seu neto Eleutério tivesse matado a sua filha, Maria Lopes, tia deste. Veja parte da
versão dada por ele, que disse saber “por hir acudir ao arruído que se fes”:
[...] e achado Maria Lopes morta e pro guatando quem a matou lhe disseram
varias pessoas que se achavam prezentes que Agostinho Teixeira com
hums briquedos com Eleuterio Joze que estavam com huma espingarda
a dispararam que o xumbo foi matar adita Maria Lopes que estava fiando
em huma roda Sentada [...].267
Pelo visto não adiantou o testemunho do avô, que apresentou como culpados Agostinho
e Eleutério. Nos autos conclusos da devassa, registrou-se, em 23 de novembro de 1799, que
“Eleuterio Jozé, filho de Serino José” foi considerado culpado e “se passou as ordens para ser
preso”. No entanto, essa não deve ter sido a decisão final, pois o processo continuou em
andamento, “e se cuntunua na devassa”. Mais uma vez a situação fragmentada da
documentação não permitiu conhecer o desfecho desse caso.
Pode-se, pelas entrelinhas dos fragmentos de documentos setecentistas da “Freguesia de
Santo Antonio do Orubu de Sima”, pinçar “vestígios do cotidiano de homens e mulheres
pobres que com seus familiares, ou por seus familiares, se envolveram na microeconomia
local, driblando a condição de inferioridade e subalternidade que a sociedade colonial lhes
impôs, buscando afirmarem-se como pessoas que também podiam ter autonomia na
organização de suas vidas.
266
267
Ibid.
Ibid.
192
Por isso, muitos negros, crioulos, pardos, mestiços, africanos escravos ou forros
conquistaram: viver de suas lavouras, de criar seus gados, de seus negócios, de fiar e tecer... E
desse modo, “viver pelos seus”, ou seja, puderam oferecer condições de vida familiar mais
confortável aos parentes, assegurando que todos continuariam vivendo juntos, compartilhando
alegrias e tristezas, uniões e desavenças... Essas sobrevivências de populações pobres, sem
dúvidas, dinamizaram a vida socioeconômica do “Certam de Sima”.
193
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos fragmentados manuscritos setecentistas, foram seguidas pegadas, marcas de
experiências pregressas de índios, africanos, brasileiros, europeus... Pessoas pioneiras no chão
social do “Certam de Sima do Sam Francisco”.
Quantas cores, sons e ritmos de vidas dinamizaram a sociedade sertaneja da antiga
Freguesia de Santo Antonio do “Orubu de Sima”, contribuindo para o crescente povoamento
do interior do Brasil-colônia! Despertaram minha atenção, ainda mais, aquelas vozes que
permaneciam silenciadas: vozes dos africanos e seus descendentes nascidos nesses sertões.
Acompanhar seus vestígios revelou trajetórias do “viver por si” e viver pelos seus...
Debaixo da poeira das fontes, sutilmente, emergiram cores, sabores, cheiros,
sentimentos, ritmos e sons de labutas, do aboio dos vaqueiros que ecoava pelas toscas estradas
e caminhos daqueles sertões... Mugido do gado, que eles guiavam para as malhadas, para as
beiras d‟água do “Velho Chico”. E no ritmo dessas águas conduziam fartas pescarias...
Mulheres envolviam-se pelos fios de algodão em suas rodas de fiar. Enxadas, foices e facões
tocavam as terras onde plantavam e colhiam milho, mandioca e outros alimentos para as
refeições diárias, e o que sobrava comercializavam nas porteiras das fazendas ou na “Vila do
Orubu”.
Além desses ritmos da vida cotidiana, foi possível “ouvir” murmúrios mais íntimos de
vivências a dois, a três... de arranjos familiares que uniram africanos e afro-brasileiros por
laços sanguíneos, muito particularmente, inspirados por suas heranças culturais da “Mãe
África”. Recriaram modus vivendi e identidades, partindo da ancestralidade comum da
família-linhagem. Assim, envolveram-se em relações intensas, formando grupos familiares
nucleares e extensos que perpassaram gerações, em alguns casos chegando até a quarta
geração: pais, filhos, netos, bisnetos, sobrinhos tios, avós, bisavós, primos, cunhados, sogros,
noras e genros...
Esse emaranhado de ligações familiares proporcionou aos africanos e afro-brasileiros
moradores das fazendas setecentistas vivências comunitárias intensas e estáveis que
favoreceram a formação de comunidade permeada por solidariedades e hierarquias internas.
Foi a partir da família e da comunidade que aqueles escravos que “viviam por si”, ou seja, que
não tiveram relações diretas com seus proprietários, já que esses foram absenteístas, puderam
reorganizar suas vidas, interrompidas pela trágica experiência da Diáspora Atlântica.
194
O “viver por si” oportunizou autonomias e mobilidades aos escravos, que puderam
conduzir suas vidas a partir das próprias visões de mundo, por suas escolhas. Também
estruturaram-se pelas hierarquias formadas na comunidade em que viviam, sobretudo pelo
papel dos escravos vaqueiros.
Foi bonito “ouvir” os ruídos do viver pelos seus, como fizeram suas escolhas na
formação dos pares de contraentes, nos nomes dos seus filhos, dos locais para a celebração
dos casamentos e batismos, das idas e vindas rumo ao “Sanctuario do Senhor Bom Jesus da
Lapa”, à Matriz na “Vila do Orubu” ou às Capelas e oratórios nas fazendas, como a mais
procurada, Capela de Santa Ana da Parateca. Nas escolhas dos compadres e comadres deram
múltiplos significados e, sobretudo, ampliaram as relações familiares, reforçando a
comunidade na qual vivenciaram sociabilidades e tensões na luta cotidiana pela
sobrevivência.
Todos esses ruídos somente foram ouvidos porque parti de inquietações do presente e
me equipei com os instrumentos investigativos da operação historiográfica, especialmente
aqueles dos campos da História Social e da Micro-história, é claro sem perder a imaginação
histórica. Assim, com olhar e ouvidos afinados, das entrelinhas de discursos oficiais foi
possível captar vozes de escravos e, com muito cuidado, reconstituí-las, documentando as
suas experiências em uma narrativa histórica, que, realmente, contemple a humanidade das
suas histórias de vida. Esse foi o anseio maior do presente trabalho, que buscou revelar
especificidades da escravidão colonial no “Certam de Sima do Sam Francisco”.
Outros ruídos, cores, sentimentos... experiências diversas continuam ocultadas pela
poeira dos arquivos, logo, existe, ainda, muito trabalho para aqueles historiadores que se
propõem a desvendar outras facetas das histórias dos sertões baianos.
195
FONTES E BIBLIOGRAFIAS
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Livros de Registros de Batismos da Freguesia de Santo Antonio do “Orubu de Sima”, 17201790.
Livros de Registros de Casamentos da Freguesia de Santo Antonio do “Orubu de Sima”,
1720-1780.
Livros de Registros de óbitos da Freguesia de Santo Antonio do “Orubu de Sima”, 17201790.
Arquivo do Fórum Dr. Nivaldo Rodrigues de Magalhães Paratinga – Bahia:
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1730 – 1790.
Autos de inventários da Freguesia de Santo Antonio do “Orubu de Sima”, Comarca de
Jacobina, 1730 – 1790.
Testamentos da Freguesia de Santo Antonio do “Orubu de Sima”, Comarca de Jacobina, 1730
– 1790.
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“Orubu de Sima”.
Folhas avulsas de Manuscritos diversos.
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Fotografias de Igrejas da cidade de Parantinga. Acervo Particular de Maria Francelina
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