O homem urso Alexandre Costa Val Médico Residente em
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O homem urso Alexandre Costa Val Médico Residente em Psiquiatria do IRS e aluno do IPSM-MG Introdução O documentário “O Homem Urso” (Grizzly Man, 2005), dirigido pelo cineasta alemão Werner Herzog, é uma verdadeira obra-prima sobre quão estranhos nós, os humanos, podemos ser. Esse filme ultrapassa o cotidiano dos ursos pardos para revelar a busca desesperada do ambientalista Timothy Treadwell pelo sentido de sua própria existência. As soluções bizarras encontradas por esse sujeito ilustram o valor dos detalhes particulares que podemos encontrar a partir de uma leitura psicanalítica, permitindo a construção de um caso único que vai além dos tipos universais encontrados na prática classificatória contemporânea. O filme Durante 13 anos de sua vida, Treadwell se dedicou ao cuidado dos ursos pardos do Alasca. Todo verão, o autoproclamado “guerreiro bondoso” voava para a terra gelada para proteger esses animais contra seus caçadores. Filmava suas expedições ao “labirinto dos ursos” e, posteriormente, divulgava seus filmes gratuitamente para escolas, crianças e quem mais quisesse vê-lo fazer a própria vida ter algum sentido. No entanto, sabe-se que esses ursos eram vigiados por biólogos, tinham a sua população controlada e não precisavam de ninguém que os patrulhassem durante o verão. Pessoas da região consideravam, inclusive, que esse contato próximo de humanos com os animais era maléfico, pois permitiria um combate entre as duas espécies. 1 Revista Eletrônica do IPSM–MG www.institutopsicanalise-mg.com.br/almanaqueonline.htm As atitudes de Treadwell indicavam que ele vivia em um mundo próprio, harmonioso e pacífico, muito diferente da natureza assassina e brutal regida pelo princípio básico da cadeia alimentar. Acreditava que era capaz de controlar os fenômenos naturais através de rituais criados por ele. Repetia incessantemente aos animais que os amava e ficava excessivamente transtornado em determinadas situações inerentes à vida selvagem, como, por exemplo, a morte de uma raposa por animais maiores, ou a morte dos filhotes de ursos por machos da espécie, para interromper a lactação das fêmeas e possibilitar nova cópula. Treadwell tivera uma infância tranqüila em uma cidade dos EUA, marcada pelo apego aos animais. Tinha um ursinho de pelúcia que o acompanhou durante toda a sua vida. Mudou-se, aos 19 anos de idade, para a Califórnia, com a intenção de seguir a carreira de ator. Após perder um papel em famoso seriado de TV, parece também perder o nó que o ancorava à realidade. Envolveu-se de forma abusiva com bebidas alcoólicas e drogas, chegando a inventar para si uma outra nacionalidade: australiano. É no meio de toda essa turbulência que Treadwell se encontra com os ursos. Afastou-se das drogas e passou a se isolar durante os verões no Alasca, documentando com duas filmadoras digitais sua convivência com os animais selvagens e sua forma particular de gozo. Em suas confissões para a câmera, sempre dizia ser mais feliz vivendo com os ursos do que com a sociedade e se exaltava com orgulho quando falava sobre os perigos de suas expedições. Repetia que, se morresse por lá, morreria feliz. A dificuldade de inscrição social torna-se evidente quando sua ex-namorada e melhor amiga narra como se conheceram. Ambos eram garçons de um restaurante badalado, e ela, irritada com uma família barulhenta que festejava um aniversário, ateou fogo na comida. Na sala da gerência, conheceu o colega de trabalho que também estava lá para receber uma advertência por uma conduta indevida. Juntos, tempos depois, formaram a fundação “Grizzly People” para proteção dos ursos pardos alasquianos. 2 Revista Eletrônica do IPSM–MG www.institutopsicanalise-mg.com.br/almanaqueonline.htm Aos poucos, Treadwell torna-se mundialmente conhecido por invadir o espaço dos ursos e forçar um contato desprotegido de uma maneira que mesmo os esquimós evitam há milênios. Acreditava que estava sendo perseguido injustamente pelo governo e pessoas que, ocasionalmente, visitavam a região. Na verdade, sofria críticas da sociedade e do próprio governo americano, mas também recebia o apoio incondicional de inúmeros fãs e amigos. O desfecho épico da história não surpreende: Treadwell e sua namorada da época são ferozmente devorados por um dos animais que tanto “protegeram”. Comentário As construções teóricas lacanianas caminham no sentido de caracterizar as montagens estruturais do sujeito, valorizando o que existe de singular em cada uma delas. Na clínica das psicoses, essa singularidade torna-se particularmente rica, quando se observa a solução encontrada por alguns, na tentativa de se construir uma amarração à realidade. Lacan propõe que o cerne da psicose esteja na forclusão do Nome-do-pai, ou seja, na não simbolização da Metáfora Paterna que permitiria uma dimensão do desejo do Outro. Isso impediria a construção simbólica de um corpo unificado, separado do Outro, levando o sujeito a uma completa alienação e à vivência de um despedaçamento corporal. O gozo pulsional forcluído do simbólico retorna como acontecimento de corpo no Real. A orientação da psicanálise nos permite pensar que é em torno dessa busca que se localiza o protagonista do filme. A sua decepção frente à aspiração à carreira artística talvez tenha sido o fator desencadeante da fragmentação de um eu imaginário. A partir daí, Treadwell lança mão das drogas e do álcool e tenta se recompor criando para si um “personagem” com naturalidade e sotaque diferentes de sua origem. O encontro com os ursos pardos aparece como uma nova forma de tratamento que, apesar de não ser uma solução menos devastadora, lhe possibilitaria um lugar na sociedade. Nessa empreitada, não bastava a convivência isolada em um 3 Revista Eletrônica do IPSM–MG www.institutopsicanalise-mg.com.br/almanaqueonline.htm ambiente selvagem: existia uma câmera que o filmava constantemente, revelando uma tentativa de invenção de um Outro a partir do olhar. O seu humor exaltado o levava, muitas vezes, a uma explícita perda de controle diante da câmera, através de manifestações agressivas, evidenciando um retorno no Real daquilo que foi rechaçado da linguagem. É como se, a partir da documentação de sua identificação com o “guerreiro bondoso”, ele pudesse reconstruir um limite entre o seu eu e o mundo. Nesse momento, existe a construção de um sujeito poderoso, inabalável e predestinado a transmitir uma mensagem à sociedade, revelando a sua inscrição em um processo de nomeação. Tem-se aí uma tentativa muito particular de se fazer um ego, encontrada por um sujeito que vivenciou a precariedade de uma marca do Nome-do-Pai e de uma significação da função fálica que lhe permitiria se situar em relação ao Outro. Tal precariedade pode ser observada na sua construção de um Outro ora persecutório, ora consumista, em seus atos desmedidos, em que não se evidencia um ponto de basta, e em seus relatos de suas aventuras amorosas, em que deixa transparecer uma certa confusão com relação à sua própria sexualidade. Assim como o relato autobibliográfico da musicista Heléne Grimaud, que encontrou, por conta própria, a música e a loba Alawa como suplência de uma marca fálica que não existiu em sua história, Treadwell parece fazer essa amarração a partir do encontro com a cinematografia e com os ursos, possibilitando se fazer um nome. Infelizmente, tal tentativa não foi tão bem-sucedida quanto a da pianista, limitando, inclusive, uma possível interferência da psicanálise aplicada nesse sujeito. 4 Revista Eletrônica do IPSM–MG www.institutopsicanalise-mg.com.br/almanaqueonline.htm Referências bibliográficas: ALVARENGA, E. (org.) A variedade da prática: do tipo clínico ao caso único em psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2007. KAUFMANNER, Henri. "Nome do pai e sintoma: da transcendência à exceção", Curinga 23: Invenções Paternas, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria. LACADÉE, Philippe. "Les variations sauvages d'un être libre sans inhibition", Quarto 86: L'invention sinthomatique, Paris: Agalma. LACAN, Jaques. (1955-1956) O Seminário, Livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. MILLER, Jacques-Alain. (2003) Você quer mesmo ser avaliado?: entrevistas sobre uma máquina de impostura. São Paulo: Manole, 2006. 5 Revista Eletrônica do IPSM–MG www.institutopsicanalise-mg.com.br/almanaqueonline.htm
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Referências bibliográficas: LACAN, Jacques. (1964) O Seminário. Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991. LAURENT, Éric. “Autisme et psychose...
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