construção da família ideal no conto la gallina degollada, de horacio

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construção da família ideal no conto la gallina degollada, de horacio
A (DES)CONSTRUÇÃO DA FAMÍLIA IDEAL NO CONTO
LA GALLINA DEGOLLADA, DE HORACIO QUIROGA
Caroline Ferreira Soares*
Rafael Guimarães (orientador)
RESUMO
Este artigo é um estudo de fragmentos da narrativa La gallina degollada, de Horacio Quiroga, comparado
com a teoria psicanalítica de Freud. O conto tem como característica principal a abordagem de grandes temas
sociais envoltos numa atmosfera onírica, de ordem subjetiva, e apresenta justamente a frustração de uma
idealização/desejo, a qual serve de base para este artigo. A partir da análise da narrativa, é possível perceber
uma série de questões familiares presentes ainda hoje no cotidiano da sociedade, sabiamente retratadas pela
criação de Horacio Quiroga. A idealização exacerbada da família feliz, livre de defeitos e de filhos
deficientes é uma utopia de ordem fantasiosa, quase uma patologia que, mesmo em meados do Século XXI,
continua perturbando muitas mentes. É o parecer sobressaindo-se ao ser, pois bem sabemos que não existem
relacionamentos e famílias perfeitas, mas, sim, boas aparências, relacionamentos mais saudáveis e
relacionamentos doentios, como o dos personagens Berta e Mazzini, como casal e como “líderes” de uma
família.
PALAVRAS-CHAVE: literatura, psicanálise, Horacio Quiroga.
RESUMEN
Este artículo es un estudio de rasgos del cuento La gallina degollada, de Horacio Quiroga, en comparación
con la psicología de Freud. La principal característica del cuento es el abordaje de temas sociales envueltos
en una atmosfera onírica, de orden subjetiva, y presenta la frustración de una idealización/deseo, que es la
base del artículo. A partir del análisis de la narrativa, es posible tener una percepción de las cuestiones
familiares todavía presentes hoy en el cotidiano de la sociedad, sabiamente retratadas por la obra de Horacio
Quiroga.
La idealización exacerbada de la familia feliz, libre de defectos y de hijos deficientes es una utopía de orden
fantasiosa, casi una patología que, mismo en el Siglo XXI, sigue perturbando muchas mentes. Es el parecer
más importante que el ser, pues sabemos que no existen relacionamientos y familias perfectas, lo que hay
son buenas apariencias, relacionamientos más saludables y relacionamientos doentios, como lo de los
personajes Berta y Mazzini, como pareja y como “líderes” de una familia.
PALABRAS-CLAVE: literatura, psicanálise, Horacio Quiroga.
“Uma ilusão não é a mesma coisa que um erro; tampouco é
necessariamente um erro. [...] O que é característico das ilusões é
o fato de derivarem de desejos humanos.”
Sigmund Freud, em O futuro de uma ilusão (1927).
Idealizar o futuro, imaginar suas possíveis nuances de maneira que as mesmas
tenham a maior aproximação possível com os desejos1 do sujeito é uma característica que,
consciente ou inconscientemente, busca a satisfação. Nos relacionamentos matrimoniais
*
Aluna do curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail:
[email protected]
1
“Desejo é o impulso de recuperar a perda da primeira experiência de satisfação.” FREUD, S. (1900).
Realização de desejos. In: A Interpretação dos Sonhos, Parte II. vol. V. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
ocidentais, essa característica se mostra bastante evidente: duas pessoas, unidas pelo amor,
idealizam a formação de uma família feliz. O conto La gallina degollada2 (1925), do
escritor uruguaio Horacio Quiroga, tem como característica principal a abordagem de
grandes temas sociais envoltos numa atmosfera onírica, de ordem subjetiva, e apresenta
justamente a frustração dessa idealização/desejo, a qual será abordada neste estudo, por
meio de análises de fragmentos da narrativa.
No conto, o casal Mazzini e Berta possui um matrimônio tradicional, no qual a
felicidade plena é alcançada com o nascimento de um filho. Por trás do nascimento desta
criança, o casal fantasia uma renovação da relação, idealiza o ponto máximo do amor,
assim como idealiza a criança. Para a mãe, “o esperado é que o filho retrate os seus ideais e
que seja reconhecido pelos outros como o máximo da perfeição e beleza” (MANNONI,
1988, p. 18). É criada uma espécie de transposição do que os pais imaginam ser uma
pessoa perfeita para esse bebê que virá, no qual será depositada a esperança de realização
de todos os projetos inacabados da mãe, seus desejos e frustrações. A mãe deseja que seu
filho seja um aperfeiçoamento dela mesma – “é o ‘renascimento’ do seu próprio
narcisismo [amor de si mesmo], projetado e transformado em amor objetal pelo filho”
(GÓES, 2006, p. 453) –, e que, ao mesmo tempo, possui o poder de, ilusoriamente, manter
a chama do amor acesa entre o casal. No conto, o narrador assim descreve o sentido da
gravidez de Berta para o casal Mazzini, evidenciando que um amor sem filhos não possui
nenhum fim, é uma relação egoísta:
A los tres meses de casados, Mazzini y Berta orientaron su estrecho amor de
marido y mujer, y mujer y marido, hacia un porvenir mucho más vital: un hijo:
¿Qué mayor dicha para dos enamorados que esa honrada consagración de su
cariño, libertado ya del vil egoísmo de un mutuo amor sin fin ninguno y, lo que
es peor para el amor mismo, sin esperanzas posibles de renovación?
(QUIROGA, p. 1)
Neste trecho, é possível observar o ideal coletivo de família perpetuado, ainda, pela
sociedade atual, que, aos poucos, vem sendo contestado e confrontado por casais que
optam por uma vida conjugal sem filhos, centrada na relação a dois, na qual marido e
mulher também idealizam o futuro, porém não depositam seus desejos de felicidade em
2
In:
Cuentos
de
amor,
locura
y
muerte.
Disponível
<http://www.utpa.edu/faculty/jmmartinez/cuentos/cuequigallina.pdf>. Acesso em: 26 jul. 2012.
em:
uma terceira pessoa, o filho, e, em contrapartida, apresenta um novo modelo de família, no
qual a relação amorosa possui um fim em si mesma.
O nascimento do bebê, por sua vez, dá início a um processo de aceitação do filho
real, inicialmente visto pelos pais segundo suas fantasias. No entanto, a chegada deste
“estranho no ninho”, o Unheimlich3, ao mesmo tempo em que traz consigo a imagem da
família feliz, também vem acompanhada de certo desconforto para os pais, que,
gradualmente, começam a se dar conta de que um bebê é uma caixinha de surpresas: pode
corresponder parcialmente às suas fantasias ou não corresponder a nenhuma delas, mas
jamais concretizará todas elas.
Os processos de desligamento do filho ideal e a aceitação do filho real são graduais e
ocorrem na medida em que as decepções naturais vão acontecendo, ou seja, conforme o
filho vai assumindo sua própria personalidade. Entretanto, na obra de Quiroga, podemos
observar uma brusca quebra na aceitação natural do filho real: “La criatura creció, bella y
radiante, hasta que tuvo año y medio. Pero en el vigésimo mes sacudiéronlo una noche
convulsiones terribles, y a la mañana siguiente no conocía más a sus padres.” (QUIROGA,
p. 1).
A doença que acomete o primogênito dos Mazzini coloca em jogo duas questões: a
imposição da convivência e aceitação de um filho totalmente diferente do que fora
sonhado, repleto de limitações, totalmente dependente e mentalmente incapaz de pôr em
prática as ações cotidianas que a sociedade espera de seus indivíduos, incapaz de produzir
e de seguir os padrões morais.
Después de algunos días los miembros paralizados recobraron el movimiento;
pero la inteligencia, el alma, aun el instinto, se habían ido del todo; había
quedado profundamente idiota, baboso, colgante, muerto para siempre sobre las
rodillas de su madre. (QUIROGA, p. 1)
Trata-se de um golpe fatal, que representa a morte do filho ideal. A outra questão é a
frustração afetiva do casal, que vê seu projeto de felicidade conjugal falhar.
3
Segundo Sigmund Freud, a palavra alemã “Unheimlich” é o oposto de “Heimlich” [‘doméstica’], o oposto
do que é familiar, o estranho. As reflexões de Freud a respeito do Unheimlich encontram-se no artigo O
estranho, publicado em 1919. Tradução inglesa: The uncanny, 1925, C.P., 4, 368-407. (Tradução de Alix
Strachey.)
Na cena em que Mazzini conversa com o médico que examina a criança após o surto,
o marido de Berta é alertado sobre uma possível hereditariedade da doença do filho: “—
En cuanto a la herencia paterna, ya le dije lo que creía cuando vi a su hijo. Respecto a la
madre, hay allí un pulmón que no sopla bien. No veo nada más, pero hay un soplo un poco
rudo. Hágala examinar bien.” (QUIROGA, p. 2). A possível herança genética do pai não
fica clara neste momento. Logo, o leitor pode deduzir que, por meio deste artifício indutivo
do autor, a culpa da doença do filho está na fragilidade física da mãe. Mas o que teria dito
o médico a respeito da hereditariedade paterna? Neste trecho, o narrador lança uma pista:
“Con el alma destrozada de remordimiento, Mazzini redobló el amor a su hijo, el pequeño
idiota que pagaba los excesos del abuelo.” (QUIROGA, p. 2). E quais seriam os excessos
do avô da criança? Esta dúvida que intriga o leitor é posteriormente revelada por Berta: o
pai de Mazzini havia morrido de delírio. Essa construção textual marca o caráter cíclico e
não linear da narrativa. Mazzini aciona o mecanismo de defesa denominado por Freud de
repressão e reprime a hipótese de possuir sua parcela de culpa no desenvolvimento mental
de seu filho, racionalizando – outro mecanismo freudiano –, através de uma mentira
inconsciente, que se há um culpado no fato de a criança ter desenvolvido problemas
mentais, seria Berta, não ele.
Ainda na ânsia de ter um filho perfeito, salvador do casamento, Berta e Mazzini
trazem ao mundo mais três crianças, todas vítimas do mesmo mal que acomete o
primogênito, desesperando os pais que “Ya no pedían más belleza e inteligencia como en
el primogénito; ¡pero un hijo, un hijo como todos!” (QUIROGA, p. 2). Na trama, o casal
busca uma sofrida aceitação da condição de suas crianças. Segundo Góes (2006, p. 455), a
reação dos pais se dá devido a
transtornos na relação narcísica dos pais com o filho, o qual é muito diferente
daquele até então idealizado e desejado por eles. Os pais não conseguem se
(re)conhecer nesse estranho, nesse “Unheimlich” que chegou com uma falha,
não sendo possível cumprir o destino que, no desejo dos pais, lhe foi traçado.
Diante da situação, Berta e Mazzini vivem a amargura do convívio com seus filhos,
levados pela compaixão que sentiam por suas pequenas bestas, um adjetivo bastante
pesado, utilizado pelo autor para descrever as crianças. No entanto, o difícil convívio acaba
por minar cada vez mais o relacionamento do casal, que passa a procurar um no outro a
culpa pelo triste destino de seus filhos, atitude descrita pelo narrador como “patrimonio
específico de los corazones inferiores” (QUIROGA, p. 3). Até que nasce Bertita.
A menina Bertita, criada com todos os mimos, finalmente corresponde às
expectativas do casal Mazzini, não manifestando nenhum tipo de perturbação mental, ou
seja, se aproxima mais do filho idealizado pelos Mazzini, que já não é mais a mesma
idealização que antecedeu ao primogênito, uma vez que o desejo dos pais estava centrado,
principalmente, no desenvolvimento normal de um filho. Passado o temor de que Bertita
fosse tomada pelo mesmo mal dos outros quatro filhos, certamente ela passa a ser depósito
de outras fantasias da mãe.
Enquanto Bertita torna-se o centro das atenções da família Mazzini, que acredita
finalmente ter encontrado a paz e a felicidade (aparente), os quatro meninos idiotas4 são
completamente rejeitados do núcleo familiar. Tal rejeição salienta a presença do
mecanismo da negação, comum em situações dolorosas. Diante da possibilidade de uma
vida “normal”, do casal com a filha Bertita, a dor da doença e da frustração presente nos
quatro meninos é posta à margem, tanto que a mãe não mantém sequer contato com eles,
deixando a cargo de uma empregada a limpeza e alimentação das criaturas, que passam a
receber tratamento inferior ao de muitos animais, pois são completamente desprovidos de
afeto. Abandonados em seu mundo incompreensível, passam horas e horas sentados em um
banco, não podem entrar na casa, tampouco manter contato com a irmã Bertita.
No momento em que os meninos presenciam a empregada degolando uma galinha,
suas mentes, até então pouco ou nada estimuladas, são tomadas por um ímpeto de
violência. E na primeira oportunidade na qual Bertita, a filha ideal, o motivo de toda a
rejeição sofrida, se lhes aparece sozinha e indefesa, eis que os filhos reais atacam:
Uno de ellos le apretó el cuello, apartando los bucles como si fueran plumas, y
los otros la arrastraron de una sola pierna hasta la cocina, donde esa mañana se
había desangrado a la gallina, bien sujeta, arrancándole la vida segundo por
segundo. (QUIROGA, p. 6)
O casal Mazzini, que já havia perdido quatro filhos ideais no momento em que eles
manifestaram sua doença, com a morte de Bertita, ponto alto da dor e frustração, perdia,
por completo, a filha ideal, uma vez que os outros, apesar de “mortos”, se faziam
presentes, provocando um luto diário e irremediável, portanto negados pelo inconsciente
dos pais e rejeitados.
4
Entenda-se idiota a pessoa que sofre de idiotismo, retardo mental.
Considerações finais
A partir da análise deste conto, é possível perceber uma série de questões familiares
presentes ainda hoje no cotidiano da sociedade, sabiamente retratadas pela criação de
Horacio Quiroga. A idealização exacerbada da família feliz, livre de defeitos e de filhos
deficientes é uma utopia de ordem onírica e fantasiosa, quase uma patologia que, mesmo
em meados do Século XXI, continua perturbando muitas mentes. É o parecer
sobressaindo-se ao ser, pois bem sabemos que não existem relacionamentos e famílias
perfeitas, o que existem são boas aparências, relacionamentos mais saudáveis e
relacionamentos doentios, como o de Berta e Mazzini, como casal e como “líderes” de uma
família.
REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1900). Realização de desejos. In: A Interpretação dos Sonhos, Parte II. vol. V.
Rio de Janeiro: Imago, 1987.
GÓES, Fernando Antônio de Barros. Um encontro inesperado: os pais e seu filho com
doença mental. Psicologia ciência e profissão. 2006, 26 (3).
MANNONI, M. A criança retardada e a mãe. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
QUIROGA, Horacio. Cuentos de amor, locura y muerte. Disponível em:
<http://www.utpa.edu/faculty/jmmartinez/cuentos/cuequigallina.pdf>. Acesso em: 26 jul.
2012.