“O PIROTÉCNICO ZACARIAS” COMO - Assis

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“O PIROTÉCNICO ZACARIAS” COMO - Assis
X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
[email protected]
“O PIROTÉCNICO ZACARIAS” COMO REESCRITURA DO LIVRO DE JÓ
Elias Vidal Filho (Graduando – UNESP/Assis – FAPESP)
Marco Antonio Sant’Anna (Professor – UNESP/Assis)
RESUMO: O presente trabalho é resultado da pesquisa financiada pela Fapesp, intitulada “Vida e morte
em ‘O pirotécnico Zacarias’, de Murilo Rubião”. Esse conto, publicado em livro homônimo em 1974,
apresenta como epígrafe dois versículos do livro (bíblico) de Jó. A epígrafe anuncia grande
intertextualidade entre os dois textos, principalmente quanto às discussões filosóficas existencialistas que
os pontuam. Este trabalho busca considerar o conto de Rubião como uma reescritura irônica do Livro de
Jó. No livro bíblico, após a bancarrota, Jó vive sua segunda glória, mais rico e com mais amigos e filhos.
Enquanto no conto, Zacarias vive sua segunda glória depois de morto, isolado da convivência social. Os
desfechos mostram a reescritura subversiva e irônica que o conto constitui sobre o livro bíblico, sobretudo
a partir da inversão de valores sobre a vida, a morte e a interação social. Essa comunicação pretende
levantar o questionamento sobre como a reflexão no conto sobre vida e morte posiciona-se
essencialmente na miséria da existência e da existência em sociedade, a despeito de todo pavor pela
solidão, pois o melhor momento de Zacarias é depois de “morto”. A discussão filosófica proposta por esse
trabalho está fundamentada pelas reflexões de Sartre.
PALAVRAS-CHAVES: intertextualidade, morte, vida, existencialismo.
Literariedade do texto bíblico
A primeira etapa do presente trabalho constitui-se na fundamentação da análise
literária do texto bíblico. Para tanto, a obra de Robert Alter, Em espelho crítico, teve importância
essencial. No capítulo intitulado “Verdade e Poesia no Livro de Jó”, dedicado inteiramente ao
Livro de Jó, Robert Alter analisa literariamente a narrativa de Jó, sobretudo por meio da
confrontação dialética dos discursos de Deus e de Jó.
Jó é apresentado como o homem mais rico e bom do oriente, pelo que o diabo
mobiliza-se, com a autorização de Deus, para empobrecê-lo, humilhá-lo e feri-lo, a ver se
consegue dissuadir Jó de seus propósitos justos. Depois de instalada a bancarrota em sua vida,
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e ao longo de todo o livro, durante o confronto com seus amigos (vindos a saber o motivo do
estado lastimoso do justo homem), Jó profere seu discurso, no qual implora sua morte e exclama
a felicidade impossível de não haver nascido.
Após a apresentação da situação inicial, isto é, justiça de Jó e sua miséria
desencadeada a partir da confusão posta pelo diabo, “a prosa da história básica é substituída
por uma poesia extraordinária” (ALTER, 1988, p.23). Essa prosa é constituída pelo discurso de
Jó, entremeado pelas discussões com seus três amigos, e pelo discurso divino, que instaura
uma glória maior na vida de Jó.
Robert Alter se atém a analisar, sobretudo a poeticidade da narrativa, para além do
enredo:
O que se precisa enfatizar, no entanto, muitíssimo mais do que foi feito até agora, é o papel
essencial que a poesia desempenha na realização imaginativa da revelação. Se a poesia
de Jó – pelo menos quando seu texto muitas vezes problemático e plenamente inteligível –
se destaca de toda poesia bíblica em virtuosidade e pura força expressiva, o poema
culminante em que Deus fala do meio da tempestade eleva-se além de tudo o que o
precedeu no livro, onde o poeta elaborou um idioma poético ainda mais rico e mais
impressionante do que aquele que emprestou a Jó. Ao impelir a expressão poética rumo a
seus próprios limites superiores, o discurso de conclusão ajuda-nos a ver o panorama da
criação – como talvez só pudéssemos fazê-lo através da poesia – com os olhos de Deus
(ALTER, 1988, p.25).
Então, o discurso divino que constitui os últimos capítulos do mesmo livro sobressai
poeticamente em relação a todo o restante do Livro de Jó. Sendo assim, a poesia do Livro de Jó
não é vazia ou desconectada de seu conteúdo, já que expressa, por meio do maior trabalho
formal sobre o discurso de Deus, a grandiosidade desse discurso, pois divino (conforme a
narrativa).
A estruturação da narrativa de Jó por meio dos discursos imprime alguma noção
metalinguística ao livro, principalmente porque o discurso divino, sua palavra, cria a existência.
Toda a ação da história acontece por meio dos discursos. A fala de Jó na discussão com seus
amigos configura, ela mesma, uma narrativa. Essas características são notadamente literárias.
Em seu ensaio introdutório – “Da memória e da desmemória: excurso sobre o poeta
José Elói Ottoni, tradutor do Livro de Jó” – à tradução de José Elói Ottoni do Livro de Jó, Haroldo
de Campos cita o prefácio extraído da versão bíblica do Livro de Jó do Abade de Genoude: “Nele
o Livro de Jó é visto com um ‘divino poema’. Seu autor discute se se trata ou não de um
verdadeiro ‘drama’, fazendo um paralelo entre as tragédias de Ésquilo e o poema bíblico”
(CAMPOS, 1993, p.XVI). Apesar de mais adiante o Abade opor moralmente os textos numa
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axiologia estética do “bem” e do “mal”, Haroldo declara que se trata de grandezas singulares não
comparáveis nestes termos, “mas há um traço positivo em sua reflexão [do Abade]: aquele que o
leva a realçar os valores estéticos do texto bíblico” (CAMPOS, 1993, p.XVII).
Além do ensaio de Haroldo de Campos, a leitura do Livro de Jó com tradução de José
Elói Ottoni, possibilitou o contato com outra tradução do livro, que não as utilizadas nas edições
bíblicas. A maior preocupação formal de Ottoni durante sua tradução foi determinante para nos
valermos também dela em nosso trabalho. Essa preocupação formal pode ser notada nas rimas
e assonâncias, por exemplo, presentes no seguinte trecho:
Certamente, ó verboso, tu disseste:
Minhas palavras puras até agora,
Como eu sou, ainda veem a Luz Celeste.
Oxalá que o Senhor contigo fora!
Que abrindo os lábios seus te revelasse,
Aonde oculta a Sapiência mora,
Que os arcanos da Lei descortinasse!
Talvez a teu mau grado conhecesses,
Que por mais que o Senhor castigasse,
Fora inda menos do que tu mereces (Capítulo XI, p.29).
Evidentemente o fato de não ser uma tradução utilizada em alguma edição da Bíblia foi
bem visto, como para corroborar nossa leitura laica do texto.
Intertextualidade
É sabido que a priori essa intertextualidade é sustentada pela epígrafe do conto, o
versículo dezessete do capítulo onze do Livro de Jó: “E se levantará pela tarde sobre ti uma luz
como a do meio-dia; e quando te julgares consumido, nascerás como a estrela d’alva”. Mais
adiante faremos considerações sobre a epígrafe.
Percebemos que, assim como no Livro de Jó, a ação do conto está sustentada pelo
narrar, pelos discursos: Zacarias é narrador autodiegético e, portanto, nos conta seu acidente, o
desenrolar de sua situação fantástica até seu segundo estado (depois de morto) e reflete sobre
os acontecimentos. Sua reflexão existencialista sobre sua vida após a morte corresponde
subversivamente à dialógica entre os discursos de Jó e o divino: há apenas o discurso do
pirotécnico, não há um divino que crie sua segunda glória, justamente porque sua segunda glória
é estar morto, e a consequência dessa morte, a solidão. Ironicamente, Zacarias tampouco pede
sua morte ou que não tivesse nascido, pois está morto e vivo.
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No conto, os discursos pela vida e pela morte, polarizados no Livro de Jó em Deus e
em Jó (e em seus amigos), respectivamente, estão quase pictoricamente representados pela
metáfora – “metamorfose literária por excelência” (ARRIGUCCI, 1976, p.10) – da completa
ausência equivalente à completa presença de todas as cores:
A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras
vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue
pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, tênue, quase sem cor.
Quando tudo começava a ficar branco, veio um automóvel e me matou (RUBIÃO, 1976,
p.14).
Esse trecho é repetido, como um refrão, segunda vez no conto, seguido de
complemento:
A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras
vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue
pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, tênue, quase sem cor.
Sem cor jamais quis viver. Viver, cansar bem os músculos, andando pelas ruas cheias de
gente, ausentes de homens (RUBIÃO, 1979, p.15-16).
As composições de cores até a anulação de todas elas, pela presença de todas,
equivale pictoricamente aos discursos pela vida e pela morte, e aqui novamente temos a
subversão intertextual, porque ao branco (vida, divino?) corresponde a morte do pirotécnico, e à
sua vida, a solidão de “andar por entre a gente”, como em Camões. Porque “sem cor jamais quis
viver”, e vive “com mais agrado do que anteriormente” (RUBIÃO, 1976, p.14) sua vida depois de
morto. O branco é juntamente a primeira luz de quem nasce e a última luz do morto. A última luz
do morto, no pirotécnico, também é a luz do nascimento.
A conversa entre os casais que estavam no carro e Zacarias sobre o destino a ser
dado para seu corpo equivale à discussão entre Jó e seus três amigos, que, não obstante, o
acusam por sua miséria.
As acusações que Jó sofre de seus amigos são tentativa deles de preencher a
incerteza sobre a causa de sua situação miserável. No conto, a incerteza está presente na
conversa dos casais do automóvel e no posicionamento das outras pessoas diante da morte do
pirotécnico (encontrar uma explicação racional: o morto não era o pirotécnico, o homem vivo não
é o pirotécnico, que morreu; ou uma explicação folclórica: o pirotécnico é um fantasma).
E mesmo na definição de Todorov do fantástico (na Introdução à literatura fantástica):
define-se em relação ao real e ao irreal; a incerteza do posicionamento interpretativo é o que
delimita o fantástico, a hesitação em explicar um acontecimento impossível pelas leis naturais
que desencadeia a dupla possibilidade de interpretá-lo.
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Sobre a segunda glória na vida de Jó, temos no conto a vida depois de morto do
pirotécnico Zacarias. Nesse momento a subversão intertextual anunciada pela epígrafe atinge
seu clímax e conclusão, porque a segunda glória de Zacarias é seu isolamento social, enquanto
em Jó, muito opostamente, a segunda glória se materializa pelas doações, os presentes, dos
amigos de Jó e de pessoas desconhecidas, ordenadas por Deus.
Epígrafe
O conto “O pirotécnico Zacarias” é introduzido pelo versículo dezessete do capítulo
onze do Livro de Jó: “E se levantará pela tarde sobre ti uma luz como a do meio-dia; e quando te
julgares consumido, nascerás como a estrela d’alva”. Essa epígrafe congrega em si o argumento
de todo o conto, sua ideia essencial, a saber, a precariedade da existência humana, sobretudo a
em sociedade, leva o homem a sucessivas metafóricas mortes cotidianas.
Para Jorge Schwartz, na obra Murilo Rubião: a poética do uroboro,
Toda epígrafe sofre uma perda de funcionalidade ao ser extraída do seu texto original,
sofrendo consequente refuncionalização ao ser interpolada num novo texto. Há uma dupla
função a ser observada: por um lado, a carga semântica do seu passado (o texto do qual
provém); por outro, o estabelecimento de um novo diálogo epígrafe/texto, ao ser inserida no
novo contexto (SCHWARTZ, 1981, p.4).
A epígrafe evidencia a intertextualidade entre o conto e o Livro de Jó, e, pelo conteúdo
ideário do primeiro, estabelece a subversão operada no texto bíblico por meio dessa
aproximação dos dois textos: enquanto o renascimento de Jó como estrela d’alva pela luz do
meio-dia, após a tarde constitui a segunda – ideal – glória de sua vida; o renascimento de
Zacarias é sua morte, pois essa determina seu isolamento social. Em Jó, seus amigos é que lhe
trouxeram novamente seus bens perdidos, para Zacarias a ausência do contato humano,
impossível chamar amigos, é em si mesmo o bem perdido no momento exato do nascimento
primeiro.
Segundo Schwartz, há em Rubião uma narrativa estabelecida em suas epígrafes
bíblicas, na qual “o homem se converte em paradigma de si mesmo, no seu eterno fazer,
sugerindo a imagem, circular e sempiterna, do uroboro, serpente cósmica que morde sua própria
cauda” (SCHWARTZ, 1981, p.17).
Assim a trajetória circular em “O pirotécnico Zacarias” é sobre a subversão do ideário
de segunda glória, exaltação. Estruturalmente, a subversão é anunciada na epígrafe, que indica
a intertextualidade; ao final do conto percebemos a troca de valores quanto ao contato entre
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humanos, a vida social. Conteudisticamente, a morte de Zacarias corresponde à serpente
mordendo a própria cauda num processo de reconstrução da existência, pois, depois de morto, o
pirotécnico retorna a seu estado de solidão original, o não contato com outro humano. A vida
misantropa é resultado do processo evolutivo do humano, morto ele mesmo pelo contato com o
homem.
Essa subversão corresponde a “cosmovisão absurda” de que fala Eliane Zagury, em
“Murilo Rubião, o contista do absurdo”: o “ponto central da temática [da produção literária
muriliana] é a religiosidade do autor que desencadeia apocalipticamente uma cosmovisão
absurda” (ZAGURY, 1971, p.28). Isto é, a leitura que Murilo faz do versículo epígrafe, é irônica e
apocalipticamente absurda.
Existencialismo
Jean-Paul Sartre, em seu texto “O existencialismo é um humanismo”, define as bases
de sua doutrina, o existencialismo. Sua fundamentação principal é de que “a existência precede
a essência” (SARTRE, 1973, p.11), quer dizer, o homem se forma a partir do momento em que
vivencia suas experiências. Ou ainda: “o homem primeiramente existe, se descobre, surge no
mundo; e que só depois se define” (SARTRE, 1973, p.12).
Sartre prossegue sua reflexão assinalando a subjetividade que permeia o processo de
construção da essência do indivíduo, pois a existência é particular. E como as experiências são
escolhidas pelo homem, ele mesmo é o único responsável por sua existência e, em última
instância, por sua formação, sua essência. Cito: “o homem, como tal o concebe o existencialista,
se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como
a si próprio se fizer [...] É também a isso que se chama a subjetividade” (SARTRE, 1973, p.12).
Então, se o homem é o único responsável por si, se suas escolhas lhe são
intransferíveis, para o existencialista a ideia de Deus é inconciliável. Sartre metaforiza essa
reflexão no exemplo de um cortador de papel:
[...] o corta-papel é ao mesmo tempo um objeto que se produz de uma certa maneira e que,
por outro lado, tem uma utilidade definida, e não é possível imaginar um homem que
produzisse um corta-papel sem saber para que há de servir tal objeto. Diremos, pois, que,
para o corta-papel, a essência – quer dizer, o conjunto de receitas e de características que
permitem produzi-lo e defini-lo – precede a essência: e assim a presença, frente a mim, de
tal cortador de papel ou de tal livro está bem determinada. Temos, pois, uma visão técnica
do mundo, na qual se pode dizer que a produção precede a existência [...] Assim o conceito
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de homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de um corta-papel no espírito de
industrial (SARTRE, 1973, p.11).
Segundo o existencialismo de Sartre, o homem é responsável por si mesmo, mas não
apenas, porque toda sua ação repercute na humanidade. Logo, o homem é responsável por si,
por suas escolhas, pelo que escolhe ser, e também responsável pela interferência no mundo de
suas escolhas, porque o que escolhe ser determina sua escolha do que quer que os outros
sejam. Isto é, ao escolher o que queremos ser impetramos um modelo para o outro.
Quando dizemos que o homem se escolhe a si, queremos dizer que cada um de nós se
escolhe a si mesmo; mas com isso queremos também dizer que, ao escolher-se a si
próprio, ele escolhe todos os homens. Com efeito, não há dos nossos atos um sequer que,
ao criar o homem que desejamos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem
como julgamos que deve ser [...] escolhendo-me, escolho o homem (SARTRE, 1973, p.123).
Desta maneira, fica evidente que o existencialismo não é individualista, muito pelo
contrário, até sofre as consequências que seu posicionamento sobre a importância do outro na
formação individual lhe traz, a saber, que os outros são o inferno do homem. No sentido de que
o homem acaba por ser dependente da opinião alheia. Essa máxima consta da peça de teatro
Huis Clos, de Sartre. Nela, as personagens descobrem umas das outras os motivos reais pelos
quais estão no inferno, isso porque dependem umas das outras.
Para obter uma verdade qualquer sobre mim, necessário é que eu passe pelo outro. O
outro é indispensável à minha existência, tal como, aliás, ao conhecimento que eu tenho de
mim. Nestas condições, a descoberta da minha intimidade descobre-me ao mesmo tempo
o outro como uma liberdade posta em face de mim, que nada pensa, e nada quer senão a
favor ou contra mim. Assim, descobrimos imediatamente um mundo a que chamaremos a
intersubjetividade, e é neste mundo que o homem decide sobre o que ele é e o que são os
outros (SARTRE, 1973, p.22).
Esses conceitos foram aplicados na análise do conto, logo abaixo.
Do fantástico como uma linguagem
No ensaio “Aminadab ou do fantástico considerado como linguagem”, parte da
coletânea de análises literárias, Situações I, Sartre faz um traçado do desenvolvimento do
fantástico do século XIX, tendo como grande representante a obra Aminadab, de Maurice
Blanchot, até o fantástico contemporâneo, do século XX, representado pela obra de Franz Kafka,
O Castelo.
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Da leitura realizada, o que nos interessa ao projeto é sua reflexão sobre o fantástico
contemporâneo.
Para Sartre, o fantástico contemporâneo é o retorno ao humano. Não explora
realidades transcendentes, mas expõe a condição humana. Essa condição humana, por meio da
representação do homem às avessas, é o absurdo.
Sendo assim, a realidade humana contemporânea é a coisificação do homem, talvez
consequência da racionalidade extrema, que gera um vazio existencial tipicamente moderno. O
extremo da racionalidade leva ao outro extremo oposto, a saber, a automatização do homem
(que não se assusta), os meios tornados em fins.
Dessa forma, o fantástico contemporâneo não é mais o fantástico da transcendência,
mas do absurdo da condição humana – a forma como o humano é tratado no fantástico
contemporâneo é a dissonância. Por isso o homem é representado às avessas. Cito: “não é nem
necessário nem suficiente retratar o extraordinário para atingir o fantástico. O acontecimento
mais insólito, isolado num mundo governado por leis, reintegra-se por si mesmo à ordem
universal” (SARTRE, 2005, p.136).
Se para Todorov, não haveria mais o narrar fantástico, segundo Sartre, o fantástico do
século XIX se transforma, no XX, no fantástico contemporâneo, que expressa o “pensamento
cativo e atormentado” do homem, decorrência da desestruturação que os preceitos
existencialistas lhe acenderam, sobretudo quanto à responsabilidade intransferível de suas
ações, já que “para o homem contemporâneo, o fantástico é apenas um modo entre cem de
reaver a própria imagem” (SARTRE, 2005, p.142). Cito:
Não se atribui ao fantástico o seu quinhão: ou ele existe ou se estende a todo o universo; é
um mundo completo, onde as coisas manifestam um sentimento cativo e atormentado, que
lhe corrói por baixo as malhas do mecanismo, sem jamais chegar a se exprimir. Nele a
matéria nunca é totalmente matéria, já que oferece apenas um esboço perpetuamente
contrariado do determinismo, e o espírito nunca é totalmente espírito, já que sucumbiu à
escravidão e a matéria o impregna e o empasta (SARTRE, 2005, p.136).
Por isso o homem é o ser fantástico da narrativa fantástica contemporânea, o absurdo,
pois todo o mundo representado é consonante consigo. E sendo absurdo, o homem não
estranha o mundo representado onde vive porque está reificado: segundo Sartre, a essência do
absurdo humano é os meios se converterem em fins, ou ainda, a ausência total de fins.
Em síntese:
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Tudo é desgraça: as coisas sofrem e tendem à inércia sem jamais atingi-la; o espírito
humilhado, em escravidão se esforça para obter a consciência e a liberdade sem alcançálas. O fantástico oferece a imagem invertida da união da alma e do corpo: a alma toma o
lugar do corpo e o corpo o da alma. E para pensar essa imagem, não podemos usar ideias
claras e distintas; precisamos recorrer a pensamentos embaçados, eles mesmos
fantásticos, deixar-nos levar em plena vigília, em plena maturidade, em plena civilização à
mentalidade mágica do sonhador, do primitivo, da criança. Assim não é necessário recorrer
às fadas, as fadas tomadas em si mesmas são apenas mulheres gentis; o que é fantástico
é a natureza quando obedece às fadas, é a natureza fora do homem e no homem,
aprendida como um homem ao avesso (SARTRE, 2005, p.137).
Análise
No conto “O pirotécnico Zacarias”, Zacarias é atropelado por um carro e sua morte é
motivo de incerteza, pois fantasticamente continua vivo. Algumas pessoas não acreditam em sua
morte – “o morto tinha apenas alguma semelhança comigo” (RUBIÃO, 1976, p.13), outras
pensam que o pirotécnico que veem é um fantasma, outras ainda confirmam sua morte e
afirmam ser o homem que veem agora ser apenas muito parecido com o defunto.
Esses três posicionamentos acerca de sua morte equivalem à categorização que
Todorov fez sobre o fantástico: no primeiro e último casos não há permanência do fantástico
porque as explicações racionais para a morte configuram um desfecho estranho – a semelhança
do morto com Zacarias e a do sujeito vivo com o morto Zacarias. Não há o espaço de dúvida que
possibilita o fantástico. No segundo caso, o desfecho é maravilhoso, quer dizer, não há
explicação lógica segundo as leis naturais ao fato insólito: trata-se de um fantasma.
Todorov:
O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o
fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a
hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um
acontecimento aparentemente sobrenatural (TODOROV, 2004, p.31).
Mais adiante:
No fim da história, o leitor, quando não a personagem, toma contudo uma decisão, opta por
uma ou outra solução, saindo desse modo da fantástico. Se ele decide que as leis da
realidade permanecem intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que
a obra se liga a um outro gênero: o estranho. Se, ao contrario, decide que se devem admitir
novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do
maravilhoso (TODOROV, 2004, p.48).
Já segundo Sartre, a lei perde seu sentido ao tornar-se fim em si mesma, pois passa a
ser um capricho e, logo, a lei é uma obstinação. Justamente por isso o fantástico contemporâneo
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que Sartre define não é formado por transcendências sobrenaturais, mas forma-se a partir do
absurdo cotidiano.
Toda essa discussão sobre a morte do pirotécnico permite a reflexão, o esfacelamento
do homem, tema do poema de Mário Quintana, epígrafe desse relatório. Esfacelamento, pois o
homem presencia cotidianamente suas pequenas mortes: um jeito de sorrir, coisas que vão
sendo levadas.
Morto ou depois de alguma morte metafórica cotidiana, Zacarias vive “com mais
agrado do que anteriormente” (RUBIÃO, 1976, p.14). Como sua vida depois do acidente é
solitária, de um misantropo, isso leva a pensar na máxima de Sartre “o inferno são os outros”. As
escolhas das pessoas com quem Zacarias convivia configuram um juízo sobre o pirotécnico,
conforme a concepção existencialista de que todas as escolhas repercutem no outro. Sendo
assim, a postura indiferente de Zacarias, de quem afirma estar melhor sozinho, depois de morto,
tende a ser por despeito. Despeito porque efetivamente sua possibilidade de existência não foi
escolhida apenas por si, mas trata-se de um ajuste seu diante do que o outro lhe impetrou.
Semelhante coisa acontece com o jesuíta que Sartre conta como exemplo: mal
sucedido no amor e em sua preparação militar, tomou os insucessos como “sinal de que não
estava talhado para os triunfos seculares, e que só os triunfos da religião, da santidade, da fé,
lhe eram acessíveis” (SARTRE, 1973, p.18): o mesmo despeito, o mesmo ajuste.
No caso do conto, a dependência em relação ao outro é hipertrofiada, já que define a
vida do homem: embora Zacarias diga que somente ele mesmo pode dizer se está vivo ou não,
isso de nada serve, pois dizer a quem que está vivo ou morto? Em última instância, apenas por
meio dos outros é que poderia afirmar sua vida ou morte:
A única pessoa que poderia dar informações certas sobre o assunto sou eu. Porém estou
impedido de fazê-lo porque os meus companheiros fogem de mim, tão logo me avistam
pela frente. Quando apanhados de surpresa, ficam estarrecidos e não conseguem articular
uma palavra (RUBIÃO, 1976, p.14).
Pois: “pelo penso, contrariamente à filosofia de Descartes, contrariamente à filosofia de
Kant, atingimo-nos a nós próprios em face do outro, e o outro é tão certo para nós como nós
mesmos” (SARTRE, 1973, p.21-2).
Zacarias não tem controle sobre o que lhe acontece, sobre sua vida, por isso age sem
consciência de que suas ações é que o formam. O pirotécnico é a imagem do homem reificado,
mesmo que desencaixado. Isto é, não está ciente de que sua existência é que constrói sua
essência, foi atropelado pelo absurdo da vida e age automaticamente. Mesmo assim, a
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inatividade do pirotécnico é uma escolha: “posso sempre escolher, mas devo saber que, se eu
não escolher, escolho ainda” (SARTRE, 1973, p.23).
À reificação de Zacarias equivalem os meios tomados como fins. Paralelamente, sua
função social está determinada antes que sua essência, conforme o exemplo do corta-papel.
Zacarias é um personagem no teatro de variedades social, suas escolhas e especificidades não
contam ou não existem.
Em Murilo Rubião: a poética do uroboro, Jorge Schwartz afirma sobre as personagens
de MR: “nenhuma personagem se salva, nesta visão degradada do mundo. A relação de troca
petrifica qualquer possibilidade de “humanização” do individuo, reduzindo-o a um mero objeto.
Homem/coisa fundem-se numa única entidade” (SCHWARTZ, 1981, P.36).
Por outro lado, quando há algum laivo de consciência no pirotécnico sobre sua própria
reificação, sobre a reificação do homem, é nisso que reside seu desencaixe. Embora aja de
forma automática, simples reação, quando não inativo, Zacarias percebe a ausência de sentido
da vida, pois não o formulou: “além de que, dizer que inventamos valores não significa senão
isto: a vida não tem sentido a priori. Antes de viverdes, a vida não é nada; mas de vós depende
dar-lhe um sentido que escolherdes” (SARTRE, 1973, p.27): “caminhava pela estrada. Estrada
do Acaba Mundo: algumas curvas, silêncio, mais sombras que silêncio” (RUBIÃO, 1976, p.15).
Zacarias resiste que seu cadáver tenha um fim ignorado, escolhe por seu destino,
porém essa sua escolha é, ironicamente, a partir de sua morte. Assim como sua faculdade de
convencer adversários, com a qual de vangloria, é utilizada também em ocasião de sua morte.
Num encadeamento sinestésico, seu pessimismo toma nuance saudosista ao mesmo
tempo em que descreve seu atropelamento e morte, e consequente solidão. E por último, como
sua morte é representação da morte dos homens:
A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras
vermelhas, de um vermelho compacto semelhante a densas fitas de sangue. Sangue
pastoso, com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, quase sem cor. Sem cor
jamais quis viver. Viver, cansar bem os músculos, andando pelas ruas cheias de gente,
ausentes de homens (RUBIÃO, 1976, p.15-6).
O saudosismo do que não foi e queria ter sido de Zacarias não tem fôlego suficiente e
então, mesmo que não quisesse ter vivido sem cor, para ele, viver é cansar bem os músculos,
vagar por ruas vazias.
Finalmente, se teve medo de sua morte, apenas por estar deslocado de seu real
costume, apesar de já morto anteriormente: o pirotécnico constatou sua morte:
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Por muito tempo se prolongou em mim o desequilíbrio entre o mundo exterior e os meus
olhos, que não se acomodavam ao colorido das paisagens estendidas na minha frente.
Havia ainda o medo que sentia, desde aquela madrugada, quando constatei que a morte
penetrara no meu corpo (RUBIÃO, 1976, p.19).
Já que, de certa maneira, a miséria dos homens diminuiu sua dor, no sentido de que
ele não sentiu a perda da vida que tinha, e o oprime:
Só um pensamento me oprime: que acontecimentos o destino reservará a um morto se os
vivos respiram uma vida agonizante? E a minha angústia cresce ao sentir, na sua
plenitude, que a minha capacidade de amar, discernir as coisas, é bem superior à dos
seres que por mim passam assustados (RUBIÃO, 1976, p.19).
Desta feita, o pirotécnico Zacarias, agora sim, tenta criar uma nova vida: “não fosse o
ceticismo dos homens, recusando-se aceitar-me vivo ou morto, eu poderia abrigar ambição de
construir uma nova existência” (RUBIÃO, 1976, p.19). E consegue criá-la por meio do fantástico
(da arte):
Amanhã o dia poderá nascer claro, o sol brilhando como nunca brilhou. Nessa hora os
homens compreenderão que, mesmo à margem da vida, ainda vivo, porque a minha
existência se transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra para exclusiva
ternura dos meus olhos (RUBIÃO, 1976, p.19).
Interpretamos aqui as cores das alucinações cromáticas do pirotécnico como signo do
fantástico, além de sua morte, evidentemente. Existência fantástica e solitária: “exclusiva ternura
dos meus olhos”.
A tomada de consciência, das rédeas de sua existência, responsabilidade de suas
ações, mesmo que criando uma vida fantástica, que representa a arte, corresponde primeiro ao
preceito sartriano de que “é necessário que o homem se reencontre a si próprio e se persuada
de que nada pode salvá-lo de si mesmo, nem mesmo uma prova válida da existência de Deus”
(SARTRE, 1973, p.28), como a morte. E depois à concepção sartriana de que o fantástico
contemporâneo é, além da expressão do absurdo da condição humana, a rebelião contra esse
absurdo:
O fantástico humano é a rebelião dos meios contra os fins, quer porque o objeto
considerado se afirma ruidosamente como meio e nos oculta o seu fim pela própria
violência dessa afirmação, quer porque nos envia para outro meio, este para outro, e assim
sucessivamente até ao infinito sem que nunca possamos descobrir o fim supremo, quer
porque alguma interferência dos meios pertencentes a series independentes nos deixa
entrever uma imagem compósita e confusa de fins contraditórios (SARTRE, 2005, p.143).
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ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
Referências bibliográficas
ALTER, R. Verdade e poesia no Livro de Jó. In: Em espelho crítico. Trad. Adriana Garcia e
Margarida Golsztajn. São Paulo: Perspectiva, 1988.
ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. Outros achados e perdidos. São Paulo: Companhia das Letras,
1999. p. 51-6.
CAMPOS, Haroldo de. Da memória e da desmemória: excurso sobre o poeta José Elói Ottoni,
tradutor do Livro de Jó. In: O Livro de Jó. Trad. José Elói Ottoni. São Paulo: Loyola, Giordano,
1993, p. XI-XXVI.
O Livro de Jó. In: Bíblia Sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 1998.
O Livro de Jó. Trad. José Elói Ottoni. São Paulo: Loyola, Giordano, 1993.
QUINTANA, Mário. A rua dos cataventos. In: Poesias. Porto Alegre: Globo, 1972.
RUBIÃO, Murilo. O pirotécnico Zacarias. 3 e.d. São Paulo: Ática, 1976.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Tradução de Vergílio Ferreira.
Coleção Os Pensadores XLV. São Paulo: Abril, 1973.
______. Aminadab ou o fantástico considerado como uma linguagem. In: Situações I. Tradução
de Cristina Prado. São Paulo: Cosacnayfi, 2005. p. 135-149.
SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: a poética do uroboro. São Paulo: Ática, 1981.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. São
Paulo: Perspectiva, 2004.
ZAGURY, Eliane. Murilo Rubião: contista do absurdo. In: A palavra e os ecos. Petrópolis: Vozes,
1971.
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