Untitled - Marcello Cerqueira
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Marcello Cerqueira BECO DAS GARRAFAS - UMA LEMBRANQA & Editora Revan Copyright @ 1994 by Marcello Cerqueira Reuisdo 'Wilson de Jesus Costa Heloisa Helena Brown Duarte Silva Capa Cadu Gomes EditoragZo BArUf - Editoraglo Eletr6nica Impressfro Craphos Ci P- Bras il. Caralogagio- na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Cerqueira, Marcello, l93g Beco das garrafas : uma lembranga / Marcello Cerqueira. Rio de Janeiro : Revan, lgg4. C395b - Inclui bibliografia do autor isBN 85-7106-067-3 l. Beco das Garrafas (Rio de Janeiro, RJ) Fica6o. I. Tftulo. 94-to8l - cDD - 869.93 cDU - 869.0 (81) - 3 Esta obra C de fica6o. Afora pessoas de not6ria refer€ncia, qualquer semelhanga com personagens ou fatos da vida real terC. sido mera coincid€ncia. r994 EDITORA REVAN LTDA. Avenida Paulo de Frontin, 163 PBX (021) 293-4495 - Fax: 273-6873 CEP 20260-010 - Rio de Taneiro Obras do Autor Por esta Editora: A Constituigdo na Histdria, Origem & Reforrna (Hist6ria Constitucional. Direito Comparado, novembro de 1993,440 pigs.) Por outras Editoras: Noua Lei de Estrangeiras, Rio de Janeiro, PLG Editora, 1981; Penhor da Liberdade, Bras{lia, CPCD, 1981; Cadluer Barato, Rio de Janeiro, Editora Pallas, 1982; Rude Tiabalha, Brasllia, CPDC, 1 982; O Deus Ferido, Brasflia, Editora Escopo, 1985; Representagfr.o & Constituigdo, No de Janeiro, Editora Timbre, r990; Bateau Mouche : o Naufrdgio do Processo, Rio de Janeiro, Editora Timbre, 1990. Ensaios: Notas h Constituig1o Brasihira. Como Foram Conuocadas as Constituintes, Rio de Janeiro, 1986; Sistema dc Gouerno: Presidencialisrno ou Parhmentarismo, Rio de Janeiro,1990; Chacina na SerrA, Rio de Janeiro, 1990; Reforma Constitucional iom Quorum Reduzido E Golpt de Estado, Rio de Janeiro, 1992;Reuisd.o e Golpe de Estado, Rio de Ja- neiro,1992; Quem ndo Sabe Rezar Xinga a Deus, Rio de Janeiro, 1993. Literatura: Almogo de Ganso (romance), Rio de Janeiro, Philoliblion Livros de Arte, 1985; O Jeito do Rio (cr6nicas da cidade do Rio de Janeiro), Janeiro, Philoliblion Livros de Arte, 1985. Rio de No estrangeiro:'Abaixo a Pixaglo", b: Crbnicas Brasileiras,Florida, Universiry of Florida Center for Latin American Studies, Universiry Press of Florida, 1994 (Antologia). Tese: ,4 Constituigto e o Direito Anterior, a Fen6meno da Recepglo. O Impeachement do Presidcnte da Repilblica: um Estudo de Caso. Trabalho com que foi aprovado em Concurso Priblico de Provas e Tltulos para Professor de Teoria do Direito e Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense, 1994. NAO ME CULPE Nlo me culpe ficar meio sem graga Toda vez que voc0 passar por mim Nlo me culpe se os meus olhos O seguirem Mesmo quando Voc€ nem olhar pra mim Se eu E, que eu tenho Muito amor muita saudade E essas coisas Custam muito pra passar Nio me culpe n5o Pois vai ser assim Toda vez que voc€ passar por mim DOLORES DURAN I O Brco O Beco das Garrafas comega na rua Duvivier, na qua- como dizem, hoje,-os andncios de im6drfssima da praia veis com taf localizaglo. Justamente ali, no final dos anos cinqiienta e infcio dos sessenta, tr€s boates aconteciaml- Ma Griife, Bacard e Little CIub, depois Bottle's. O nome,Garrafas dec'Jrreu da seguida prCtica de moradores dos ediffcios em torno de jogar is ditai nas cabegas dos que barulhentamente comemoravam as pr6prias alegrias e as dores alheias' Beco' como todos ,"be*, i uma rua istreita, geralmente sem sa{da' como algumas situag6es em que a gente se v€ metido' M"as a ,roite nao fica apenas por ai' Alcangava, logo adiante, a rua Carvalho de Mendonga, apertada e ntre vdrios edif(cios de apartamentos e que ficou conhecida como a rua do "joga a .h"ue, meu bem", apelo que tudo revela, n6o deixa margem a dfvidas. Viela com indmeras casas noturnas' inferniihos e bares, mas com especial destaque para o Bare Boate Domin6, como o piano de Carlinhos, da Rddio Nacional, e mulheres selecionadas diretamente pela co-pro-prietdria, a lenddria Madame Martha, antiga profissional, afamada dama. BoateVogue, consumida pel-as cha^ que devorou todo o Hote I Vogue inc€ndio mas e m pavoroso ' na rua Princesa lsabel. O inc€ndio comegou com um curtocircuito na boate: o fogo atingiu as cortinas e, em seguida' as tubula96es de gds, qu! exploliram pelo pridio inteiro'.Em dez minutos as chamas alcangaram o 12" andar e o hotel arno dizer de Andeu como uma "bola de pingue-pongue" ndo pode escresinistro ao tonio Maria, que no dia seguinte comparecronista O ve r sua coluna Mesa de Pista, no Globo. apertado.em comentdrio da reportagem',o ceu na p{gina ..r."dur" "rob o titulo "lic€ndio no Fim"' Maria perdera amigos, a Boate Vogue era o cendrio preferido dos que Fe.ziam no'ir.. Nlo, n6o fodia escrever sua alegre e mordaz cr6nica "habitual sobre as noites cariocas. Refugiava-se, assim, na reDortagem geral, ali asilava sua dor, e a matCria refletia seu ,ofri.i.nto"("arde m-me os olhos e tremem-me os dedos".''), Jd nlo mais existia lembrangas incandescenres, recordag6es retorcidas pelo fogo e ainda quenres no rescaldo do inc6ndio. O Vogui acabo-u; terminou uma ipoca, calcinada pelas chamas. Fim de um tempo, comego do outro, que a noite vai ser sempre uma crianga e a bo€mia um show que n6o pode Parar. Tanto n5o pode que Zd Fernandes, mal refeito do inc€ndio no Vogue, comprou a boate Fiesta, rrocando-lhe o nome para Au Bon Gourmct. Com Dona Maria Raymunda Viveiros responde ndo pela cozinha e, segurando o bar, Jimie Chartes, nome que o cearense Severino Tragado adotara em homenagem ao barman favorito de Hemingway ap6s muita insist6ncia do jovem ediror E,nio Silveir", Te in.ondicional do consagrado escritor. A casa ia de ve nto em popa, especialmente ap6s a contratagio do vocalista Zezinho, que na pr6pria boate langou o samba "Quem rr.randa na minha vida sou eu", destinado ao maior sucesso ap6s gravado em disco setenta e oito rotag6es e tocado sem parar nas ridios a pedido do pr6prio pfblico, o que dispensava o tradicional jabacul€, expediinte a que se viam forgados autores, intirpreres e grauadoras para rem se us langamenros prestigiados pelos programadores das estag6es de ridio, uma graninha a molhar a mio do disc-jochey. E a boate s6 nio foi melhor por conta da sesquipedal mincada do \Talmir Porteiro, tambCm chamado Roupa Nova, que achou ve de barrar, sem motivagio aparenre, o Pedro das Flores, tipo maneiro que havia inaugurado, com relativo €xito, forma peculiar de vender sua mercadoria: colhia uma das rosas do ramo que abragava e a oferecia ls damas com uma gentil curvatura, postura que s6 abandonava ap6s os respectivos acompanhantes retribufrem devidamente a oferenda. Havia casos, entretanto, que o cavalheiro nio se cogava e ld permanecia o florista com a maior cara-de-pau do mundo, o ironco curvado, placidamente a esperar que o distinto se mancasse, contribuindo para o enlevo da parceira e para as despesas do Pedro, que nio se riam poucas, nio apenas pelo custo da mercadoria, sabidamenre alto, importada que era de Nova Friburgo ou Barbacena, mas tambim por sua natural inclinagio para as mulheres, pe ndor que o inspirou na criagio da inusitada forma de obsequiar, e que o obrigava, noite ap6s l0 noite, de impecdvel smohing e lustrosos saPatos de verniz, a sujeito a Percorrer as boates para defender algum' E ainda nas versado pouco "nlo" valete algum redondo de i..eb.r um julgamento tal que no ainda artes do fino galantcio e menos tipos Ou acompanhante. da gesto ins6lito pudesse receber iecididamente somfticos que' aproveitando-se da penumbra ambiente, punham-lhe no bolso uma nota curta' ficando bem com a dama e deixando mal o Pedro' jd que a mixaria n6o dava sequer para cobrir o custo da mercadoria. Ou, finalme nte, o que era pror, ver-se barrado na boate, como no caso do Au bon- Gourmer, impedido de trabalhar pelo Roapa Noua, proibigio que desagradaria Sirgio Porto, o festejado cronista Stanis[a* Ponte Prita, amigo db Pedro, das flores e da liberdade de trabalhar. A bronca do Lalau com o porteiro acabou em birra com a case, que ganhou a md vontade dc suas cr6nicas didrias, o que l.uou o propriet{rio a levantar o embargo ao.Pedro. das Flor., desp"ch"i emissdrios pedindo penico ao jornalista' Arrego q.ri t. mostrou indtil, mesmo quando ZC Fernandes o diJtinguiu com especial convite para assistir a estrCia do internaJionalmente ionhecido Tbc Platters, conjunto vocal norte-americano que fazia estrondoso sucesso no mundo todo, inclusive aqui, onde seus discos permaneciam nas paradas d.e sucesso, v.nd.ndo is pampas e tocando sem Parar nas rddicomo lamentava os, tio chegadas is mtisicas estrangeiras Sirgio Cabial, que se estreava como cronista musical' Qual! Nada demoveu Stanislaw' nem mesmo o argumento ierradeiro da presenga do corpo diplomdtico, ) frente nada mais nada menos que o honordvel Cdnsul Geral da Embaixada Norte-americana, diplomata de carreira' agente da CIA por conveni0ncia de servigo e bo€mio por re-c6ndita vocagio. Filho de mie lusitana e pai norte-ame ricano, Valthe r dos Santos Vernon, mais conheCido co-o Mister, mistura de jacar(. com cobra-d'dgua, atd que falava.um portugu€s. pass6u.l com um curioso tot"qu. luso-americano' o que lhe empr€stava um ar amblguo, como se fosse o pai imitando a mae, ia qu. sua voz aflautada se prestav.a a eventuais equ{vocos, iogo desmentidos por sua cara machona. Neca de pitibiribas: o fero cronista despachou o convidan te: ll tico. - Costo mais de corpo de miss que de corpo diplomd- E permaneceu irredutfvel, mesmo quando o embaixador lembrou-lhe que a festa era boca-livre, rudo por conta da casa, sem falar na presenea de mulheres mil, elegantes, perfumadas, oferecidas, algumas jd admiradoras do Lalau, outras candidatas a ral, enfim, noitada pra ninguCm botar defeito: "bebida, mulhe r e orgia", que slo, como diz o samba e ninguim ignora, "a lei do vagabundo". 56 mais tarde, no ano da graga de 1963, C que SCrgio Porto iria deixar e zenga de lado. E nlo por consideragio I casa ou aos empregados, se bem mantivesse viva a lembranga do insuperrivel tempero de dona Raymunda particular- de uma famente de um cabririnho guisado, acompanhado rofa esperta mas para assistir estrCia, como profissional, - Leio na comidiaI musical Pobre da cantora Nara Menina Rica, assinada por Vinicius de Moraes e Carlos Lira. Lalau jamais confessou a qualquer, mas reria ido antes vingado o convite de Z€ Fernandes I dupla Haroldo Barbosa e Luis Reis para se apresentarem no Au Bon Gourmet. Foi Haroldo quem recusou, terminantemenre: tivesse paci€ncia o 24,, mas nlo podia aceitar, n5o re m jeito para o palco, perde a esponrane idade, o priblico lhe infunde invencfvel terror; nio, lamentava recusar, mas nio dava pi, convidasse-o, isso sim, para uma casa, um apartamento, levasse o Lufs Reis e, enreo, perfeitamente, canraria, ainda que bem nio cantasse e mal o violio arranhasse, mas estaria I vontade, muito na sua, sem inibigdes, poderia apresentar suas composig6es, ora se poderia... O cronista reria ido se os parceiros fossem. Como desprezar a mensage m de esperanga da canglo que dizia: "Gloriosa manhi, por que tanta luz?" Iria, como nlo iria? Levantaria interditos, suspende ria e mbargos, ainda que puto-da-vida se tivesse com a cAsA e o lorpa do ZE Fernandes, nlo deixaria de prestigiar quem comp6s a melodia eterna: "Gloriosa manhi, por que tanta luz?..." Como de u em nada o convite, p6de o fero cronista dispensar e casa sem qualque r dificuldade. A oferta da noite era abundante e v{ria, o que facilirava manre r as posig6es de prin- t2 e princfpio, como ninguCm ignora, C cfpio que assumira - que liga a palavra l a91o. Se acanhauma linha de coer€ncia do fosse o burgo e falto de bares, dancings, night clabs, boates, inferninhos, gafieiras, cabarCs e restaurantes e o Au Bon Gourmet fosse o dnico a ofe recer iguarias, mdsica' shous e aventuras, como manter o princfpio? Lalau, quc nio era bobo, entio daria o dito pelo n6o dito, suspenderia vetos, rejeitaria proscrig6es, deixaria de desqualificar a casa apodando-a de O Comildo, pare desespero de Z( Fernandes e do Valentim, seu s6cio oculto, e g{udio da concorrdncia, sempre torcendo contra, plantando notas maldosas na imprensa, falando mal, intrigando, fazendo macumba. Mas nada disso se impunha, nenhuma concessio requeria a exuberante noite de Copacabana' que oferecia vida noturna para todos os usos, roca Para seus fusos, alCm de ensinar aprendiz de feiticeiro a ser bo6mio, orientC-lo, paciente, a pirambular pelas ruas I cata de um Pouso principal' alguma coisa que uma certa casa oferecesse e particularmente o tocasse e i6 cnteo cstabelecer-se' ancorar, langar ferros, bo€mio que se .Preza. fazer -Era como todo - ponto justo af que entrava a picardia dos donos da noite: criar um ambiente mCgico, capaz de prender o fregu6s, tornClo cativo do pedago, freqtientador asslduo, habitaC. Muita toisa concorria para tornar determinade cAstt ponto de atrag6o: artimanhas da cozinha, habilidades do barman, boa mdsica com bons intCrpretes, ainda que sem grandes brilhos, mas com desempenhos corretos' pr6prios Para a noite. O ambiente com bom astral e refrigerado' se possivel, propiciando o papo ameno' a conviv€ncia agradCvel. Isso posto, estava criada a alma do estabelecimento, seus proprietdrios vencedores, cragues no offcio de apascentar a noite. Valia experi6ncia no ramo, tato com a cliente la, empregados e artistas muito bem sclecionados. E sorte, muita sorte' que n5o era nada fdcil enfrentar a concorr€ncia, competiglo danada! Logo na entrada do bairro ficava a Zona Minada, assim chamada pelo prdprio SCrgio Porto, o per(metro entre o Leme e o Lido que abrigava as boates Drinh e Arplge, el6m do bar Mandarim, l3 Djalma Ferre ira, cansado de excursionar por aqui e por alhures, abriu sua pr6pria boete Drink, onde langou Mildnho, Ed Lincoln, Helena de Lima e Sflvio CCsar, todos destinados ao sucesso, como sucesso sesquipedal alcangou o samba de sua autoria e Luiz Ant6nio "Chega de Saudade", cujo criador, o crooner Miltinho, valorizava a composigio com sua forma peculiar de interpretar o balango que o fez famoso, a divisio no ritmo que permitia I melodia suas mil possibilidades. E o Arplge? Foi s6 \faldir Calmon deixar o Night and Day e abrir a casa ao priblico e ao sucesso. Retumbante sucesso, quando o consagrado poeta Vinicius de Moraes a escolheu para langar "Se todos fossem iguais a voc€", em parceria com o inspirado Tom Jobim, o Gershwin brasileiro. O bar Mandarim carregava a justificada fama de servir o me lhor Samba em Berlim da cidade: a mistura da fclicidade tragava a coca-cola com uma cachaga que nem te conto leve, perfumada, purissima, "fabricamento" de um primo do dono, alambiqueiro em ltalva, ld pras bandas de Campos dos Goitacazes alim de um pernil supimpa, incapaz de defei- - com rum jamaicano ou cubano mesmo, da tos; cuba-libre Ilha da Esperanga. Chopp bem tirado e uisque honesto, aldm de tira-gostos, tambim chamados de 'engasga-gato', sempre ' quentinhos, desengordurados, apetitosos. Tudo isso, compunha o bar de acanhada acomodaglo, mas de alma consagrada. Viesse de alCm-trinel o notivago, o turista, adventista ou curioso que fosse e enteo teriam de transpor e Zona Minada ecair nos bragos de outras sedu96es. Para o que os proprietirios se desdobravam, na penosa tarefa de atrair e cativar a boa clientela. E, freqiienteme nte, uma grande atragio era o chamariz d,a. casa, alCm da preocupagdo de distinguir o cliente habitual, oferecer-lhe tratamento personalizado, o que poderia muito eventualmente, embora ttrze t transtornos, como foi o caso conta a lenda de um forahom&ico patroci- do Beco, nado por -um leio-de-ch{cara um cara tranqiiilo, inimigo de semostragio, mas que acabou comendo de garfo em noite de sopa. Conta o anedotdrio que determinado fqeqiientador do Ma Grffi, conhecido pelas generosas gorjetas, porres homd- t4 ricos e mulherio variado, certo dia C flagrado, justo na esquina da Duvivier com o Beco, levando a maior bronca de uma coroa inteiramente descontrolada. Parecia, mesmo, querer agredir o cavalheiro, o qual procurava contemPorizar, mal se defende ndo. Corre o ledo em socorro do fregu€s e chega precisamente a tempo de defendE-lo de um tapa desfechado pela senhora diretame nte na cara do distinto . O ledo segura fortemente a agressora e consulta o figurio: que eu ponha a piranha num tdxi' doutor? -QueQuer responde desconsolado: Pode-deixar que eu mesmo levo. E a minha esPosa. -Outras formas de homenagear e clientela traziam menos controvirsias, embora n6o deixassem de alimentar o anedordrio, hist6rias e acontecidos tlo a gosto do pessoal da noite. O gerente do Cangaceiro, por exemplo, ofertava uma flor a todas as mogas que entravam ne casa da rua Fe rnando Mendes, com murais de Aldemir Martins e semPre com grandes atrag6es, como a dupla Ribamar e Tito Madi, que tambdm se aprese ntou no Jirau, no Little Clube no Texas ou Helena de Lima que jd se aprese ntara como crooncr do conjunto de Djalma Ferreira, no bar do Hotel Plazae tambCm na boace Bacard em contracanto com Dolores DurCn, alcangando not{vel sucesso, que havia de bisar, ali mesmo no Cangaceiro, na criagSo da marchinha "Est6o voltando as fl91g5", ds Paulinho Soledade, que iria fundar sua pr6pria casa: aboate Ztm-Zam, palco de inesquecivel show que reuniu o poetaVinlcius de Moraes e o compositor Dorival Caymmi' Com o inc6ndio do Vogue nio mais existia o piano do Sacha, que conheceu os dedos endiabrados de Fats Elpldio, o mdsico que iria compor a orquestra do maestro Copinha, no Copacabana Palace e depois no Studiam, baf do Hotel Excelsioi; enqua nto o crooner Lufs Cole ("Shine on Harvest Moon") cantava na boate Bcguin do Hotel Gl6ria, com bar aberto a partir das l9 horas, iantar dangante desde as 2l horas e a aprcsentaglo de um variado show I meia-noite em Ponto. Com Carlos Machado, Sacha abriu a casa que levaria seu nome e cuja grande atragSo era o cantor Murilinho de Almeida. Sacha conhecia as prefer€ncias musicais dos habituais freqiientadores, guardava-as na mem6ria e a cada um l5 brindava com a execu96o, sempre primorosa, da cangio preferida, o que sobremane ira lisonjeava os freqiientadores, simpre tlo vaidosos. Ma{sa deslumbrava no La Boh}me com "Meu mundo caiu", "Adeus" e "Ouga", que a revelaram como cantora e intCrprete de um g€nero musical que iria nascer e morrer no Beco; afossa. Depois, por influ€ncia de Ronaldo B6scoli, iria gravar "Barquinho" e "N6s e o mar", sua adesio a uma mrisica de outra espicie: a bossa-noua. Newton Mendonga, antes pianista no Domin6, iria morrer tocando seu instrumento na boate Carrorse/, tambCm no loga a chaae, se m imaginar a imporrincia, para a mrisica popular brasileira, do samba-canglo "Desafinado", que comp6s com Tom Jobim e que esraria desrinado a representar marco decisivo no movimento da bossa-noua, que deu a largada quando o baiano Jo6o Gilberto criou uma harmonia ritmica diferente ao acompanhar, no violio, a divina Elizeth Cardoso na gravagio do LP "Canglo do amor demais". Tlo caracte rfstica a batida de Joio Gilberto que levou a mais de um crftico musical a desqualifi car a bossa-noaA como g€nero musical: era mais uma maneira de tocar, diziam. O certo d que a bossa-noaa afastava o samba de suas origens populares, mas o aproximava do mundo. Sim, ainda se podia ver e ouvir grandes atrag6es - Charles- Aznavour ou Ella internacionais como Edith Piaf, Fitzgerald na boate Midnight ou no Golden Room do Copacabana Palace, ou ainda, suprema ventura, assistir I apresenta95o, no Teatro Municipal, em curta temporada, do extraordindrio Louis Armstrong. Os grandes horiis de luxo ou as grandes boates, como o Nigbt and Day ainda dispunham de capital para bancar grandes shows, atrag6es not{veis, orquestras famosas. Arrastavam o pfblico, ganhavam dinheiro. Artistas famosos tornavam'se chamarizes em boates, como Dorival Caymmi no Clube 36 ot Elizeth Cardoso no Pujol. E, verdade, iraziem farta clientela, mas s6 por l5 ou 30 dias que as casas nlo podiam manter por muito tempo os altos cach€s dos astros; e depois, como segurar as pontas o resto do ano? Era a crise tio temida pelos proprietdrios das l6 casas noturnas e pelos habituCs mais versados nas manhas da economia de mercado, esta inimiga da noite. Do Golden Room atd o Katahomba, inferninho da Galeria Alaska ou do Frcd\ eo Maloha, inferninho da Niemeyer, a noite resistia i crise e )r mudanga da capital. Mas era no Bcco das Garrafa.t que a noite se encantava' seus mistCrios eram revelados, tocados pela brisa... a brisa que vinha do mar... Eram tr6s as casas noturnas do Beco. De fora para dentro, o Ma Grffi, com Chuca-Chuca tocando marim-ba, quc o doutor Gilberto Salgado, todo granfa que era' preferia chamar de xilofone; o Bicard, onde o proprietdrio, o franc€s Gigi, tocava acordeSo, instrumento abomindvel, mas que atd neo ficava tio ruim em suas hdbe is mlos e onde o "barman" JeanPierre cantava; o Little Club, que mais tarde trocaria o nome pera Bonlei e receberia Tito Madi acompanhado pelo piano ie Ribamar, que ali, antes, estreara acompanhando a fabulosa Dolores Durin. Mas nlo foram s6 esses artistas que se aPresentaram no Beco. Foram tantos, foram muitos, que C atC diffcil a menglo de todos. Desde os que se aPresentatami6'consagrados' como o internacional Dick Farney, atd os que estrearam' como Eliana Pittman, que se revelou como crooner ao lado de Booke r Pittman, seu pai, no Little Club, onde tambCm fariam sua primeira apreientaqio Carlinhos Lyra e Edu Lobo; ou ainda 'E,f ir negin", levada por Dom Um para cantar no Bottle's, onde tambCm estreariam Leny Andrade e Nana Caymmi. O baterista Dom Um, que revelou Elis' jd se aPresentara nas "jam-sessions" do Little Club, que nas tardes de sdbado recebia a mogada da zona sul atraida pelo jazz, mas proibida de tomar bebidas alc6olicas, pelo menos ostensivamente, porque um cuba-libre semPre se podia-arranjar, mas s6 para ot t"p"r.t, ji que as moqas' mais comedidas, content".r"--ra em saborear o coquetel Primavera, rigorosamente sem dlcool. Atrafdo pelas "iam-sessions", o Little CIub tam' bCm acolheria Sdrgio Mendes que entio abandonaria a mrisica clCssica pelo jizz e li mesmo organizaria o co^niunto Hot Trio, depois transformado no Sextcto Bossa Trio, formado por Paulo Moura, no sax, Pedro Paulo, no pistom, Ot{vio Bailly, no baixo, Durval Ferreira, no violio e o baterista Dom IJm, l7 alCm, naturalmenre, de Sirgio Mendes ao piano, que tambtm acompanharia Odete Lara que r. no1'pocke tshow" para ela especialmente criado "p..r.tri"ria por MiCle 6r B6icoli. A casa tamb9.m iria revelar o tale nto de Luizinho Ega e do seu notivef Thmba Tiio, que organizou com o baterista Hilcio Milito e o contrabaixista Otdvio Bailly, depois substituldo por Bebeto. Quem n5o cantava ou tocava o Beco, ainda que fosse s6 uma canja? JoSo Gilberto, Tom Jobim, Altemar Dutra, Vinicius de Moraes, Helena de Lima, Mariza Gara Mansa, Elizeth Cardoso, D6ris Monteiro, SilvinhaTelles, Maysa, Lu(s Carlos Vinhas, Roberto Menescal e Johnny Alf, sim, o compositor e criador de "Eu e a brisa", que formou um conjunto com o baixistaTiio Nero e com o baterista Edison Machado, ele no piano e no vocal e que tanto sucesso alcangaria no Bottlei. AtC o inenarrrivel Pixinguinha o Mozart da mrisica brasileira, como o definia SCrgio Cabral tocou seu sax, jC perdera a embocadura para a flauta, levado pelo poeta Thiago de Mello, por seu compadre Odilon Ribeiro Coutinho e pelo jornalista Joio Saldanha, que ainda achou de dar porrada em um antigo desafeto, um cara muito filho-da-puta. Mas as lembrangas do Beco reservam um lugar especial para Dolores Durdn, porque as suas cang6es guardam o romantismo de uma ipoca, na l:igrima e no amor. E cantora da noite inigualdvel. Tanto que Ella Fitzge rald foi especialme nte ouvf-la na boare Bacard interpretar "My funny valentine", fox de Richard Hodges e Lorenz Harro, j{ gravado pelos maiores cantores americanos e que alcangara sua melhor interpretagio na voz de Dolores, conforme afirmou a pr6pria Ella para quem rivesse ouvidos de ouvir. Antes, no Little CIub, a canrora jd colhera entusiCsricos aplausos de Charles Aznavour que a ouviu cantar "Viens". Seu repe rt6rio era vasto. Dolores cantava mfsicas ame ricanas, francesas, espanholas e italianas com maviosa voz e prondncia correta. E quem nio se tocava pela beleza das cangdes de ternura e amor que ela comp6s? "Por causa de voc€", "A noite do meu be m", "Te rnura antiga", "Nio me culpes", dentre tantas e tantas... l8 Pois foi Dolores quem recolheu de um Macarra' no fundo-do-pogo, mas resignad-o, a preciosa frase 'amor n5o se qual elidefinirivamente se despedia.de um " "gr"d...",'.oamor nio correspondido. Expresslo que se tornou a alma de ,rrn" c"ngeo que Ribamar, Niwton BrCs Homem e S(lvio Silo g"roto assobiador, comPuseram e que o-pianista execu"", ,"u" ,lod" vez que Macarra aparecia no Littlc Club part ser consolado por'Dolores que iudo entendia de sofrimento e penas de amor' Mas era verio. Havia um ar de riso na boca das pessoas. E felicidade nas noites de Copacabana' 2 Mectnnt I Nem Macarra tinha idiia da morte do lelo-de-chi'cart do Bacardchamado Epadf, a mando do inspetor Badeco' em exemplar Almogo de Ganso armado p-elo Pastor na casa do get.liu, no lote 15, em Nova lguagu' E menos ainda da forra do Borboleta fechando o palei6 do tira que nele se vingara da curra no irm6o menor tentada pelo Valtinho' traticante Je to*i.o largamente conhecido niZon^ Sul, tambcm finado. Como pideria imaginar a seqii€ncia de epis6dios escao envolvimento das autoribrosos q,ra aar.".'"rr, ir"-" " seguranga Pri.blica e suas de Federal dades do D.p"rr"mento e com o crime organiMorte da cone*6es .o- o Esquadrlo zado? Macarra estava em outra. Segurava a barra de um amor neo corr.rpondido, cruel desve.rtoi", o fim-da picada' Talvez por isso mal tenha respondido ao Agente Laranja que a ele lo-unic"ra, algo compungido, a morte do colega' Ah. Morreu, d? -E ante a confirmagSo n6o morre, do leio: nlo v6 Deus. -NloQuem foi, como talve z Parcge, um comentdrio cinico' Absolutamente. Hi ocasi5es na vida em que as Pessoas ficam tlo voltadas Para as suas dores, consumidas pelo pr6prio in- t9 fortrinio, que o andncio de desditas alheias n6o as comove. Macarra nlo falou para ofender pessoa alguma, falou l-toa. E foi preciso: quem nio morre, neo v€ De-us mesmo. Agente Laranja nio ligou para o desinteresse do Macarra. Boa praga, nio cra homem dc encrencas. Dc altura mcdiana, encorpado e forte, o decidido Laranja e ra calad6o, bom de.briga: no brago, no uso da navalha, no "treizoitio", cujo coldre amarrava na barriga da perna. Era leio-de- chCcara no Littlc Club, no Beco das Garrafa.r, onde conheceu o Dr. Sylvio Alencar, alro funciondrio da Seguranga Priblica, lotado no gabinete do chcfe de policia do Distrito Federal, nada mais, nada menos do que o Coronel Couto, galinha-verde, integralista de carte irinha, uma besta quadrada. Certa feita livrara Dr. Sylvio de uma dificuldade, quando um espCcime vil, antig-o desafeto da autoridade, ameagou pegar-llie pelas costas, aplicar uma calga-arriada na chefia. Maiarra, que estava de bobeira na porta da boate e nio gostava de crocodilagem, alertou o le6o que_deu dois sossegi-rapat e um chega-p-ra-lt fortfssimos no meliante, salvando o gr",idao e ganhindo-lhe a gratidio, afinal consubstanciada na ulrerior nomeagio do salvador para Agente de Pol(cia. Posteriormente, jC funciondrio pdblico, veio a casar-se, em comunhlo universal de bens, com uma acreana herdeira de um laranjal para as bandas de Nova lguagu. Pelo cargo na polfcia e pela propriedade meeira, Mac-ar-ra passou a chamar o valente leio de Agente Laranja, apelido que se popularizou no Beco, onde dividia as graves fun_g6es de seguranga com Carlinhos Gatilho, tijucano escolado, lelo do Ma Griffe e no Bacard, com um tipo imenso, soturno, amaz6nico, chamado Epadri. Laranja era grato ao Macarra pelo oportuno avi-Agente so e que nio cntendeu o remoque . Queria mais C botar -fez pra fora a hisrdria para que nio ficaise dentro dele, remoendo. Um desabafo impelido, quem sabe, por um sentimento de perda por um colega qr'r. -ir-" profissio, urna "br"ga." espCcie de irmSo de armas, por assim "dizer. Ontem ele , amanha o filho da minha mie. E, diabos, ouvido d para isso mesmo! 20 Deram um Almogo de Ganso nele, Macarra. Ah. Sabe o que C? Nlo, Macarra E, neo sabia. o qu€? -E Laranja professor: os bandidos ou a tiragem querem acertar um ele. fecham e ai pra almogar deixa-pra-lC, convidam o cara De prifer6ncia com escoPeta' pra nio deixar dfvidas. Ah. - Epad6, bem que eu avisei "prele": "Epadd, nlo se - o garoto..,' mete com Macaria demonstra algum interesse, afinal. indaga. garoto? - Que O irmlo do Badeco. - Quando com algum desafeto, simulam uma conciliagio, as contas - Qu. Badeco? - O inspetor Badeco, do Esquadrio da Morte. Voc6 nio se-lembra do Valtinho? O traficante ? - [1x1xn1snte. Morreu, tambCm. - Eu sei. VAnia comentou comigo. Vinia -C muito dada, voc6 sabe. Era faixa dela. Laranja sabia. A mulher era dada atC demais. Mas o lelo nlo iria deixar a conversa escorregar Para as penas do amor: dor de corno n6o tem fim. Os apaixonados Procuram pretextos para falar de seus amores, como se a simples refei€ncia aminizasse os sofrimentos. V6o falando, falando, torcendo os fatos, colocando-os a servigo dos seus desejos, iludindo-se. O agente, entretanto, precisava vender o seu peixe e n6o aturar papo furado. Pois C, o cara era tarado. Parava no Bacard- Epadri C que is-vezes acertava um garoto pra ele, que o filho-da-puta currava com a rurma dele. Sacanagem, lasca Macarra. - Sacanagem d pouco! Filho-da-putismo d o que C. - Tem razio. - E nio foi por falta de aviso, nio. Vririas vezes falei - Mesmo o tal garoto. Alertei... com ele. Falou o qu€? u0 al. -Tu Falou bem. - 2l 3 Cdnurura O aviso teria partido do tira de plantlo no Hospital Miguel Couto, pra onde foram conduzidos o Luis Edmundo ainda com vida, embora muito maltratado, e rValter Mendes, o traficante, mortinho da silva. Pastor alcangou Badeco em casa quando este s€ preparava para arrematar o ensino na mulher, quem sabe mat{-la? Telefonema an6nimo sugerira algo mais gue um simples tratamento de varizes, ligando Dona Carmelita ao Doutor Esperidiio, especialista em angiologia e conhecido ornamentador de chifres em testas alheias: Conta, sua puta! - Conta o qu€, Baldomiro? Nlo tenho nada para contar, defendia-se a dona. O inspetor n5o iria nessa. Pr{tica de interrogat6rios, depoimentos, confiss6es, treinaram o tira na avaliagio da verdade. A voz da mulher ao telefone, andnima e veraz. A esposa do midico toda vez que desconfiava de uma cliente nova, telefonava para o marido enganado delatando a aventura. Voc€ nio me engana. €, melhor contar logo. - Contar o que, Baldomiro? - A verdade, Carmelita. A verdade. - Mas que verdade, criatura? - Qu. voc6 trepou com o mCdico. E melhor voc€ me contar- por bem. Voc€ sabe que eu tenho outros mdtodos. Posso pegar o doutor, levar o mogo pra Central. Ele vai abrir direitinho. Vai se r pior pra voc€. Carmelita sabia que o marido passava rapidamente da ameaga i pritica. Arrependia-se da aventura, melhor n6o t6la feito. Tambim a culpa era do marido, mesmo. Quem mandava nio trepar direito? Mal botava e jt ia gozando, sem esperar por ela que ficava depois rolando na cama sem conciliar o sono. E bruto, sem querer conversar a respeito, tentar outros meios, buscar outros modos. As amigas mais escoladas ensinavam mil maneiras: os dedos, a llngua. Depois, se go- 22 jri estava aliviada. Nio era tudo, mas jC quebrava um galho, n6o ficava no ora-veja. E a sugestio.de procurar u- tidi.o, fazer tratamento? Parecia ter ofendido o marido: "N6o estou doente, ndo. Isso passa, C nervoso." Mas quem passava eram os anos e o marido, nada. As sugest6es * ouiras abordagens, as tentativas de outras posig6es foram por ele, abruptamente. Quadradio o cara. repelidas O mCdico percebeu logo a insatisfaqio da mulher. Fora levando a .onrn.ira para o problema, sem Pressa. Uma palavra aqui, outra acoli. O tratamento das varizes espichando, a mulher aos poucos revelando suas agruras. f1x1x-5s de ejaculaglo precoce, diagnosticou o Dr. Espiridilo. E tem cura, doutor? - Te m cura, sim. E preciso consultar um especialista - ao tratamento. Se a senhora quiser eu indico um... e dispor-se Dona Carmelita C o desinimo em Pessoa: Qual, doutor, meu marido nem admite falar no problema. Doutor Esperidiio simula surPresa: Nlo quer didlogo? Nega-se a discutir o assunto? - Nada, nada. Nlo quer conversa. -O mCdico abre os bragos, o gesto corresPondendo I impot€ncia (da ci6ncia, bem entendido) em face da resist€ncia do doente. $s6, assim complica, nlo i? -Dona Carmelita naturalmente concordava. Complica, sim. Mas nlo se pode fazer alguma coisa, dar um remCdio? O midico franze o cenho, levanta a cabega, parece buscar a resPosta no teto: RemCdio mesmo nlo tem. E tratamento psicol6gi-co, a senhora entende? Entendia a senhora, mas jd que a conversa enveredou por esse caminho' Procurava uma saida. ppgfle, n6o tem compostura? -Esperidi6o n6o quis tirar de vez as esPeranqas da sua zass€ antes, paciente. - A senhora jd tentou outros meios? como, doutor? 23 ta? - - Outros meios... Assim, que n5o a penetraglo direJ^. E entlo? - Baldomiro n5.o quis nem saber. - O mddico coea a cabega. - Bom, se o paciente nio admitc buscar o prazer, satisfazer- a parceira usando recursos... ah... naturais, entlo fica dificil. Dona Carmelita p6e fd nas mezinhas. Mas n6o tem um remCdio, doutor? Eu ponho na no cafi... O facultativo lamentava, mas nlo havia. E, psicol6gico, minha senhora. -O desalento apossou-se da pobre mulher. Entlo C uma condenagio, doutor. Estou condenada a viver- com um marido pela metade... Esperidilo divisa uma fresra. Seu marido nlo C o rinico homem no mundo, Dona Carmelita. comida, Assusta-se a esposa. Nem de brincadeira, doutor. O senhor nio sabe quem -i meu marido... melhor nem saber. O midico fareja possibilidades. Mas i o caminho que lhe sobra, Dona Carmelita. - qualque r insinuagio de minha parte, estou falando Nio veja como midico. Estritamente profissional, ouviu? Seu marido nio lhe satisfaz e nlo aceita submeter-se a tratamento. A senhora n6o quer, esti certo. E uma mulher honrada, n6o tenho drivida. Mas, vamos e venhamos, 6 seu marido mesmo quem a estd compelindo... Mas i adultirio, doutor! -Dr. Esperidiio, midico especialista em angiologia, safado, a espetar chifres nos outros, ele tambCm corno de carteirinha, absolutamente n5o concordava. Balangou a cabega vdrias vezes antes de prosseguir. AdultCrio C infidelidade conjugal. Sup6c que o ca- harmoniosamente, com mdtua satisfagio e um dos sal viva c6njuges, por perverslo, busque fora de casa o que lhe sobra no lar. 24 Dona Carmelita ficou olhando com cara de besta' O mCdico continuou: Veia bem. Vai buscar fora o que ji tem em casa' ls vezes em abundAncia. Ainda nlo seria nesse assalto, sentiu o doutrinador' O senhor pode ter razio, mas continuo achando que pecado, sei 16... C - adultdrio, -da paciente afrou,etp"tiiieo ,"rrt., enfim, a guarda uE que vou entrar"' ai por xar, ainda que s6 um pouquinho' ?'sei vacilo' lC" soou-lhe como um Densou. O Infelizmente, minha senhora, dramas como o seu s6o muito comuns. Animava-se Dona Carrnelita. Nada como a desgraga alheia para aliviar a Pr6Pria. Qe6s6, f| - Comum. Comunlssimo. Aqui mesmo nesta sala pensa a senhora ser a tinica vltima de tal infortrlnio? Levanta-se o midico. Vai atC a janela' O dia morrendo' o teslo crescendo: Eu mesmo' minha senhora! 56 que pelo outro lado' -A dona m6o entende. Qe6e assim? -O mCdico se assenta. Cruza a Pernas' Limpa a lente dos 6culos, cuidadosamente. Olha a paciente bem nos olhos comuns. Suspira. Minha mulher, revela. -Curiosa, a paciente - - quer saber. ela? tem Q.,. E fria. Fria. E. Neo t.m interesse no ato sexual. Eu sei: fria. Pois €. Enquanto eu... Enquanto o senhor... Um vulclo! - Vulclo. - Perfeitamente. Um vulclo. -Dona Carmelita imaginou imediatamente um vulclo escorrendo lavas as c6nico, for-mato o na sua forma clissica, do seu topo, chamas, ardor' 25 O mCdico corta-lhe o pensamento. Em erupgio, minha senhora. Em permanenre ere- geo. - A dona tem um tremelique. Como disse senhor? - Repito vCriasovezes e estou sempre pronro. - Pronto. -Esperidilo puxou a cliente pela mlo. F6-la levanrar-se, dele acercar-se: Vou fazer uma demonstraglo para a senhora. Uma - experi€ncia apenas peq_uena no in leresse da ci€ncia. Yeja a senhora mesma como C possivel. E facil, muito fdcil. Nio precisa tirar a roupa. E sdajudar um pouquinho e terd a prova do que esrou lhe falando. Venha... Dona Carmelita parecia meio lesa, sem vontade pr6pria. Aceitou docilmente a posigio. Montou no mddico, auxiliou a penetraglo. O doutor aguarda a aprovaglo da paciente: Ndo d como eu lhe disse? - dona muda, Esperidilo A insistiu. Veja a senhora por si mesma, Dona Carmelita. Pode ficar o- tempo que quiser. E talvez mais tivesse ficado se a campainha do relefone nlo a despertasse. Dona Carmelita assustou-se. O som devolveu-lhe a razio. Levantou-se. Recomp6s-se. O telefone nio Parava. Como o outro nlo se mexia a clienre falou: Dr. Esperidiio, C melhor o senhor atender ao tele- fone. - Lamentou-se o mCdico a dispensa da atendente. Era expediente cosrumeiro, pare facilitar a pirataria, antecipar a saida da enfermeira. Ele ficava mais ) vontade. NZo que tivesse algum cacho com a moga. Isso, nio. Respeitava a mCxima: "onde ganhas o plo, nio comas a carne." E nem daria. Silene era um canhio. Levantou-se resignado. Atendeu: E, voc€, Esperidiio? -(Diabos, era Rita Maria, sua mulher). Sim? - Sim d o cacete, seu cinico. Encontrei na rua,- morei logo. 26 sua enfermeira Como? - Como? Como? Como o gu€, seu canalha? Pensa-que eu n6o- manjo seu joguinho? Quando voc€ dispensa a Silene porque vai comer a cliente. Qt. i isso, Rita Maria? - Que i isso, Rita Maria? Qu. i isso, Rita Maria? Que cachorro! Voc€ nlo tem vergonha, nio? No ,.t', C isso o q,l-e, No consult6rio! Esperidi6o! consult6rio, Absolutamente... - Tu i bem cinico, hem Esperidiao! J{ come u a clienre, seu- garanh6o filho-da-puta? Como? - E co*o mesmo, seu cachorro. JC comeu? E gostosa a cliente? O marido esboga uma reagio: Voc€ estd enganada, me respeite. -A mulher n6o quer saber: Vou respeitai filho-da-puta? diga? Diga' Espe ridilo, vou respeitar miiico que nlo respeita paciente? E no consult6rio, isperidido! Voc-6 n6o tem vergonha, nio? No consult6rio, Esperidilo! mais cedo, C Nlo... - Nlo o que, seu cachorro. Tu uai vet' Um dia te e bate o telefone' tu n6o perde por esPerar apronto ' O uma... midico coloci o telifone no gancho' Procura alguma coisa para dizer i paciente . Estava sozinho na sala' p{px, Baldomiro, pira. Estd me machucando, lamu- - a pobre mulher. riava-se O inspetor afrQuxa a Presslo. Vai confessar? Prefere morrer? com que o marido cuspiu a ameaga ("Prefere morrer?") e a certeza de que ele a cumpriria sem pestanejar decidiram por Dona Carmelita. -A naturalidade n6o sei nem bem expliiar. E co-o se eu estivesse fora de mim' fosse outra pessoa. Mas eu te juro que foi s6 entrar e sair' O tira nlo entendeu o manejo. - [ns1x1 e sair? 27 Dona Carmelita concorda. Ainda bem que o marido percebera. Isso mesmo, entrar e sair, nada mais. -Badeco se atrapalha entre a raiva e a confuslo. Escura, mulher: trepar nio C entrar e sair? eue diabo de-hist6ria C essa que voc6 estC invenrando? euer me sacanear? A mulher procura se acalmar. Explicar. Nio C nlo, Baldomiro. Voc€ me desculpe, eu nio quero -discordar de voc€. Mas nlo C isso que voc€ estC pensando, neo. -Eoqu€,entio? Demonstragio. - Demonstraglo, Carmelita. Voc6 pensa que eu sou otirio, pensa? Demonsrraglo, sim. E no inreresse da ci€ncia. No - entra e sai virias ato sexual vezes. As pessoas ficam arfando, procurando o gozo. N6o foi nada disso. Badeco sente a raiva crescer, tomar-se de c6lera. A campainha salva novamenre Carmelira do gozo, . da morte . Toques longos. Depois intermitentes. -Longol novamente. Caracrerlstico de quem revela a importlncia da mensagem pelo simples premir do botlo. E melhor arender a porta, Baldomiro. De mri vonrade, dividido, dirige-se o rira i porta. Por sua janelinha identifica o Pasror. A expresslo narlralmente grave do policial punha-se patibular. ''Tem merda ai", pensou Badeco. E virando-se para a mulher: Vai Li pra dentro, depois conversamos. - dona renta um refresco. A Foi como eu lhe disse, Baldomiro. Nlo foi nada. dizer... Nlo foi tudo. Experi€ncia. Mesmo assim n6o Quer fago mais. Prometo. Se fizer, pode me marar. . Badeco. presse ntia proble mas. Problemas graves trazidos pelo auxiliar. Nunca o procurava em casa. E-mesmo para uma emerg€ncia usaria o telefone. Eu juro Baldomiro. -Avoz da mulher agora soava longe. O marador dispensou-a novamente. 28 Vai lC pra dentro, mulher. Eu jd falei. Depois eu acerto -o teu lado. Ato contlnuo, abriu a Porta' deu entrada ao Pastor. Que nem cumprimentou, foi logo 4espejando: Sinto muito, chefe. E seu irm6o. -Alarma-sc Badeco (Lufs Edmundo, o cagula meio-irmlo do tira, C o xod6 do bruto). tem o mano? Fala, - Queno Miguel Couto. TiPorra! muito machucado. -Ta nega com a cabega' Pastor Foi o qu€ entao, Pastor? Fala, caralho! - Qs11x, chefe. Seu irmSo foi currado. -A fera endoidece. quem' Pastor? Onde? Currado? Currado - No apartamento doPor Valter Mendes, o traficante. -Badeco nlo entende. No apartamento do cara? Luisinho n6o tinha assunQue porra d essa? A gente ainda n6o sabe dire ito. Um telefonema an6nimo -avisoi d. ,,- crime em Botafogo. O pessoal da homicldios d quem fez o local. Um cara morto que-Parece ter levado com um candelabro na cabega. O candelabro estava na mlo do garoto, que mesmo desfalecido' se agarrava a ele.. O Nestor Ja homicjdios identificou logo o cera como o tal de Valtinho do triifico. O Eboli lcvantou a hip6tese da curra no garoto ter sido praticada Por outros membros da turma do V"ltitrho. Esses taras C que devem ter telefonado - an6niavisando para Rddio Patrulha que acionou mo, n6o sabe? a ambulincia. -O tira de plantio no hospital' que cursou a Escola de Pollcia com voc€, foi quem reconheceu seu irmio' Ligou para o Nestor e este Para mim. E eu estou aqui. Como td o mano? - Foi muito maltratado, mas est{ fora de perigo. J{ na porta, o inspetor lembra-se de alguma coisa. Volta, vai i mesa da sala, abre a sopeira e dela retira um receituCrio. No carro, passa o papel para o Pastor, com a orientagio-: Assim que tiver folga, fecha o cete da receita. O to com- esse cara... mCdico. Que parega acidente. Pastor guarda o papel no bolso e a instruglo na mem6- 29 ria. Iria cumprf-la na primeira oportunidadc. Lcvanrar os h{bitos da vitima. DefuntC-la. 4 A ronna Em pouco tempo o pessoal da Homicldios, auxiliado pela turma do Esquadrio, desvendou o crime, identificou os implicados. Waltcr Mcndes dividia seu tempo enrrc o trdfico dc drogas e a perversio de menores, oflcio em que se exercia com enorme desenvoltura. Garotos novos, metidos a malandro,,sem experi€ncia nas artimanhas da noite, eram prcsa fCcil do tarado, que os atraia a um pequeno aparsamenro na rua Camuirano, em Botafogo, com o oferecimento de mulheres, bebidas, e xe raft para os mais sabidos. Era sernpre a mesma rotina: alguCm lcaantaaa um garoto que tomava alguma coisa na boare, de prefer€ncia o Bacard, e depois era atrafdo ao apartamento onde ingeria uma bebida qualquer, misturada com alguma droga para evitar rcsist6ncias. A vitima ficava semiconsciente e al o Valtinho enrabava o garoto que depois era submetido i sua turma prCticas que deleitavam o traficante. 56 que daquela feitaValtinho se havia dado mal. A droga nlo fizcra efeito integralmenre porgue, enjoado, o garoto vomitara a bebida e reagira. Lufs Edmundo nio soubc erplicar direito, mas lembrava-se que havia um castigal em cima de uma c6moda, que lhe serviu de arma conrra a cabega do tarado, que veio a morrer do golpe. A descriglo confusa da v{tima pouco ajudou, mas a rcconstituiglo dos fatos, a partir do Bacard,levou a polfcia ao currador e i sua curriola. FCcil, fdcil. A responsabilidade da apresentagio do garoto cabia a um certo Epad6, leio-de-chCcara do Bacard, boate prcferida pelo traficante. Raul, Cabrio e Borboleta curraranl o irmio do tira. 30 Badeco ouvia atentamente o relatdrio do Pastor, a quem indagou: - dava protegio ao \9'alter Mendes? Quem -Pastor ji esperava a pergunta. |vtuni2, comissdrio da Entorpecentes. -Badeco pensou um pouco. Resolveu-se. Primeiro, ele. fccha -O outro C meticuloso. Quer saber direitinho. O Muniz? -O inspetor Pro leio. confirma. Exltamente. Depois, PrePara um Almogo de Ganso E os curradores? Pastor quer saber. - Aonde est6o? - Est6o bem guardados. Estlo com o Monteiro, Invernada. na Raul e Cabrlo abotoa logo eles. Faz a desova no lu- gar de-costume. -EotalBorboleta? O instigador. O autor da iddia de currar, o garoto enquanto agoniiava o Valter Mendes. Os outros deram o servi9o. naolltttlo se borrara todo no pau-de-arara. Cabrlo foi mais resistente, precisou de uns choques na ponta.da llngua, nos l6bulos das-orelhas, nos testiculos. Mas tambim abriu tudo. A hist6ria veio inteirinha. Borboleta nem precisou entrar na porrada para admitir. Fui eu sim, chefia. -Monteiro, a pedido do Pastor, providenciou um Preso viciado, violcnto. NinguCm lhe disputava um prisioneiro novo. 'E meu o cabago" e virava fera, espumava' Santinho' esse aqui C o Borboleta. Vai ser sua mulher. Trcmeu o currador. N6o faz isso, chefia. N6o faz... -Pastor perguntou-lhe: Ud, tu n6o gosta de feze\ cabra? - Qsssq. Mas n6o gosro que fagam em mim. - Nunca fizeram? - Nunca, nlo senhor. - 3l Monteiro interfere na conversa: T{ pra voc€, Sanrinho. -Com os olhos, procura o assentimento do Pastor. E novamente Para o Preso: Depois, enraba ele, Santinho. Quanras vezes quiser. I vontade. Santinho babava-se todo. Decide-se o tira do Esquadrlo. Borboletava.i segaralo processo. Fica na Invernada atC ser-transferido para o Presidio, onde vai pra cela do estuprador da Pavuna. O que ficou famoso pelo ramanho do pau. Pode judiar Comodonomedele? Monteiro lembrava-se do tarado. Melquior era o nome. Escondia a cabega dentro de um capuz, mas como n6o mostrar a arma do crime? Funcionou melhor que impressio digital. Afinal identificado, a cr6nica se servira. Melquior, chefe. - Isso mesmo. E csse af. O Borboleta quando chegar - Caneca vai ser mulher dele. Acerra com o guarda e na Frei com o xerife do Pavilhio. Manda dar boa vida ao Melquior. Mas nada de amigagio. A noire que ele nio quiser, que escalem outro. O que tiver de pior. Macarra ouviu atd o final a narrativa. Lembrava-se vagamente do Epadd, sempre de te rno creme, e cere feia e de poucos amrgos. O filho-da-puta do Valtinho conhecera melhor. Sempre abonado, oferccendo bebida, travando rela96es, fazendo novas amizades. Quando soube que o cara mexia com drogas, comegou a eviti-lo. Nlo que fosse, ele, Macarra, palaara sdntd. Absolutamente nlo cra. Longe disso. Mas droga nio suportava de jeito algum: era o caminho do desespero e da loucura, da destruigio e da morre. Viver da misdria dos outros. Essa, nlo! E passava ao largo do traficante. Mas o neg6cio dos garotos era novidade para ele. Que m{gica besta. Tanra mulher na praga e os caras nessa... Que falra de assunto! 'Mulher C que d bom. Bom demais. Mesmo quando faz a gente sofrer, penar. Maltrata. Ah Vinia..." 32 Agente Laranja estava satisfeito: colocou a hist6ria para fora, aliviara-se. Quis remir o amigo da conversa. Pois i, seu Macarra. Pra voc€ ver... - voz do lc6o o dcvolve i realidade e ao Beco. A le mA branga de VAnia escapou entre os ediffcios. Procura algo para dizer ao amigo, para anim{-lo. Um comentdrio bacana... Pra mort€r basta tl vivo! -Termina por rir-se o Agente Laranja. Voc6 C um fildsofo, Macarra. -Que concorda. "F- isso a{, mesmo." Mas quer mudar de assunto. Conversa pesada essa do Laranja, paPo carecd. Que forma mais besta de comegar a noite. Vira o jogo. Viu Dolores? -Nlo, a cantora ainda nlo chegou. Nlo, n6o a vira, ain- da. Mas n6o deve demorar, td na,hora dela, informa o o rel6gio. Macarra apoiava-se ora num pi, ora noutro. Nio era danga, n6o era ginga, nem malandragem: aporrinhaglo' o que lelo consultando era. Quer tomar alguma coisa? (O gesto do Laranja ino bar.) O amigo rccusa. Obrigado. Td cedo pra comegar a beber. E ainda nio forrei o est6mago. Laranja ftz nova oferta. Come o bife do Vaticano... -Riu-se Macarra. Riu-se Laranja. Riram-se os dois. Em noites de muito movimento as boates apelavam para o Vati' cano. As cozinhas nlo davam conta e os bifes vinham do Vaticano, caipira que ficava na entrada do Beco. Era 6timo o bife do barzinho e muito mais etn conta. N6o, obrigado. Vou dar um giro por ai, Laranja. Depois- eu volto. Quero levar um lero com a Dolores. dicando Macarra abalou-se e Laranja ficou s6 pensando na esquisitice dos outros: 'Como C que podia? A besta do Macarra que parado na VAnia, que nlo ligava nada para ele e Nely ingssgssxda nele." mulherago! - JJ Nely, ah Nely! Usava o nome de guerra de SandraVilma, sendo das Dores o seu nome de batismo. Nely era o nome de escolha, depois de das Dores e imediatamente antes de Sandra Vilma. Aos amigos pedia para chamd-la Nely e entre esses o s6lido Laranja, que nlo atinava com a cisma do Macarra na outra, a tal Vinia. 'Que merda": assim Laranja resumia sua perplexidade. - 5 M,ecrnnl II Deodato dos Santos Curralino era o nome civil do ine- fivel Macarrio. Na intimidade, e s6 para os mais intimos, admitia a ablaglo do apelido para Macarra e como Deodato quer dizer "dado a Deus", ele encontrava nesta significagSo sua destinaglo ao sofrimento. "Predestinagio da velha", era como explicava tanta urucubaca, tanta canseira. Na vida s6 nlo fora guia dc ccgo e coringa de baralho; no mais, tinha feito de tudo. Garoto, comegou carregando uma pasta velha de couro, sempre aberta, com a arma de Ciriema, perigoso bandido da Baixada, onde morava com a mle, uma 'santa senhora". Seu trabalho era seguir de pertinho o marginal, colado nele, de china mesmo, e toda vez que ?intdaa sajcira, acudialhe com a pasta ir feiglo e a artilharia vinha pronta, certeira, desapiedada. A polfcia, nas batidas, nao podia encanar o Ciri pelo porte de arma que nio carregava e, menos ele, menor e reo franzino. Era expedicnte de ganho certo, mas perigoso. Deodato nio estava para ficar na linha de tiro de vagabundo e mudou de ocupagio, sendo, sucessivamente, carregador de compras na feira, entregador de padaria, olheiro de ponto de bicho, vendedor de amendoim torradinho na estaglo de Belford Roxo, engraxate na dita cstaglo, novamente entregador de padaria, trocador dc 6nibus, camel6 e, finalmente, 34 vendedor profissao que cumpria guando esta hist6ria o Vendedor da pesada nas Listas Telef6nicas, da equipe pegou. do inspetor ftalo, um cara muito legal que ls vezes parava no Beco para ver como iam as modas, recrear o espirito, desanuviar a mente. Espairecer. Macarra tinha particular orgulho dos seus tempos de camel6. Era mais arte do que propriamente um batente, embora trabalho pesado porque na rua, sujeito ao tempo, ao calor e ao frio, ao sol e i chuva. E arriscador eue v€Z ou outra o rapa aparecia e "confiscava" a mercadoria, sendo exatamente dai que o fiscal liarava o dele. Regueria prltica, habilidade, competencia, vocaglo e sorte, muita sorte. Os ambulantes que vendiam pentes, espelhos, mercadorias miridas eram deficientes ffsicos, o comer'.inho garantindo o de comer. Os camel6s vendiam mercadoria importada, moleza de cais. O preg5o era sonoro, convidativo, as pessoas paravam, rodeavam o camel6: um artista. "E 'chique-chique', inglesa, americana", o ruidoso anfncio de marca contrabandeada de gilete, "E iraliano, C automdtico, C o prego de uma gravara - o reclame do guarda-chuva naTravessa do Carmo, e 6 n1lon", de enorme aceitagSo nos dias de chuva. Faziam fila para comprar. E os brinquedos que s6 funcionavam nas destras mlos do camel6? O pai chegava em casa pronto para fazer uma figuraglo com a garotada e o diabo do brinquedo, nada. "Inda agorinha mesmo trabalhou na mlo do camel6", explicava o comprador I desconsolada plat€ia, se ndo inritil voltar ao ponto no dia seguinte e reclamar do camel6. O brinquedo voltava a ganhar vida em suas mlos. Se era de correr, corria. Se era de piruetar, piruetava. O camel6, her6i do asfalto, com um olho na mercadoria e outro na esquina, que o rapa poderia aparecer a qualquer momento. Fritava o peixe e olhava o gato. Deodato era mais para alto do que para baixo. Muito magro e algo encurvado. Mas nio foi por sua magreza que ganhou o apelido de Macarrlo: era enrolado, complicado e n6o era pouco! Vestia-se com certo epuro por esmero no trajar. Mas fazia algumas concess6es ao gosto duvidoso e, talvez por isso, 35 resultasse uma composiglo "suburbana', expressio elitista que desagradava o subdrbio ou os subfrbios, que por serem dois, o da Central c o da Leopoldina, sentiam-se duplamente insultados, atC porque nio estavam para aquelas modas e n6o tinham que delas dar conta. Seu forte era o tropical brilhante ingl€s (legitimo, moleza do cais) Super Pintex XX que usava em diversas cores e diferentes padronagens, com relevo especial para o risco de giz, ostentado por ele garbosamente nas noites de Copacabana. Coisas de ingl€s, porque o tropical esquentava nas noites de verlo e esfriava nas de inverno. N6o servia para o clima do Rio. Mas, moda C moda; gosto i gosto. Fazer o qu6? Camisis dc seda (pura, italiana) com monograma (em que se entrelagavam o D e o C, a marca do dono), gravatas idem e lencinho para o bolso de cima do palet6 tambCm idem: daques na mesrn.t linha. O cabelo negro, escorrido, penteado com gumex, a costeleta obscena, o pomo-de-adeo saliente engajado em um rosto de tragos regulares e de olhos encovados, errcimados por vastas sobrancelhas; ldbios finos, n1o usava bigodes. Lengos de cambraia de linho permanentemente ensopados de "Bond Street", logio de sua prefer€ncia. 6 VAuu Vinia tra moga clare, mais para baixa. Sardenta, parecia ter apanhado sol com peneira. Quando mcnina, em Marechal Hermes, ganhara o apelido de Ferrugem. Adolcscenre , mudara-se com a familia para o Graja6. O pai foi administrar o clube da Light, na rua Josd do Patroclnio. Muito galinha, ganhou do Marcelo, moleque do bairro, filho de Dona Marilia, estimada professora, o apelido de Marly Para-todos. Sim, porque Marly era seu nome de batismo, sendo Vinia nome escolhido quando, mais tarde, transferiu-se para Copacabana. Sem os pais, naturalmente. Bonita de corpo, jeitosinha, faceira, Marly amargou o seu tanto em Grajari. Mas tambCm que bairro ela foi achar de excrcer sua galinhagem. 36 A R{dio Nacional inventou um Programa que consistia em levar uma caravana de artistas a um determinado bairro e lC sortear brindes para os moradores. 'A felicidade bate I sua porta... sob o alto patrocfnio do Sabio Portugu€s." O regional de Dante Santoro e os cantores se aPresentavam na cairoceria de um caminhio de onde um locutor comandava a programaglo e o sorteio dos brindes' O feliz ganhador era d,rpla-.nte premiado: pelo brinde e Por ter seu nome divulgado pelas possantes e prestigiadas ondas da Rddio Nacional. Um sucesso. O caminhSo parou ld pelos lados da rua Lu{s Guimaries. E quem foi a cantora escolhida para dar o devido relevo i efemiride? Sim, ela mesma. Nada mais, nada menos que a pr6pria Emilinha Borba, a "Rainha do Rddio". Parafita, D,rtiittha, Paulinho Careca, M6e d'Agua, Otinho, Ercilio, AscAnio, enfim, a fina flor do bairro comPareceu' arrastando toda a turma. Emilinha arrematava seus sltows com uma cangIo, seu carro-chefe, que levava a platCia ao delirio, quando, a certa altura, perguntava: "Voc6s querem que eu rirorra?" As fas se descabelavam e gritavam bem alto: "Nlo, nlo, nio!" Nlo, absolutamente n6o queriam a morte do idolo. Pois bem, em Grajari, guando Emilinha fulmina o audit6rio com esta pergunta, a curriola se antecipa ls fis e, nlm jogral sacana e ator-doador, berra: "Queremos!]Ap6s a perplexiJade inicial, a consagrada artista reagiu: "Cachorrada, nlo canto mais neste bairro." Sacudiu o dedo Para a turma e abalou-se entrando alvorogada num Pachard preto. Pois foi nesse ninho de cobras que Marly achou de galinhar. Ld pelo final dos anos 50, o Graiari T6nis Clube costumava brindar o seu quadro social com o Baile da Primavera, oferecido aos cadetes das Escolas Militares. Servia para homenagear a chegada da dita e aproximar as filhas casadoiras dos frituros oficiais. E, quem sabe, genial premonigSo, ficar bem com as autoridades fardadas que viriam a governar o pais. Afinal, nlo tem se mPre um golpe militar para afastar o F"trt"trn" do comunismo, restabelecer a Paz na familia brasileira, desenvolver o pals? Receita norte-americana largamente empregada na AmCrica Latina. E sempre com sucesso. 37 Entretanto, diga-se em favor das sucessivas e dedicadas administrag6es do clube que tudo era morivo para festa. Se de manh6: manhl dangante; se )r tarde: tarde dangante; se I noite: noite dangante. No ver6o, baile na piscina com o con- junto do Chuca-chuca. O pobre do Gil, funciondrio do clube, a construir um meio deck por sobre a piscina, como se n5o sobrassem sal6es para o bate-coxa. Mas, era verio e ve16o C piscina. No inverno, baile do suCter com o conjunto do Steve Bernard, 9ue acoplava um solovox ao piano que tocava, um pequeno teclado, que permitia acompanhar o pr6prio piano, alim de tirar sons semelhantes a outros instrumentos, o que enriquecia a apresentagio, coroada, quando ele entoava cangSes francesas, o que fazia o enlevo dos mais velhos e facilitava o sarro dos mais novos que se aproveitavam do sfbito enleio das vigitantes mees, -egeras por definiglo. E concurso para tudo, alCm de premiag5es diversas. Melhor dangarino, melhor dangarina. Melhor par, aI premiando o conjunto. O mais animado, a mais animada. Naturalmente o pr€mio tambCm ia para o par mais animado: estimular os pares, formar casais, ir em frente, constituir familia. E sem protecionismo, favoritismo ou coisas semelhantes. Dona Mathilde, esposa do presidente do clube, Dr. Alberto Melleu, grande benemCrito, nlo admitia conchavos. Organizava um jriri de primeirissima: Gilberto Cabral, procurador da Caixa Econ6mica; Doutor Newton Motta, conceituado midico do bairro; Adib Estrela, forte comerciante da praga; e Isabel Fontenelle, ex-niss Grajari, a beleza em pessoa. Isenglo olimpica de Dona Marhilde, porque ela mesma tinha em casa uma filha casadoira, a meiga Rosinha, uma linda menina que n6o teria dificuldades em encontrar pretendentes, que, aliis, a viviam rondando, o que certemente facilitava a isenglo de sua reverenciada mle. Baile disso, festa daquilo, sem contar com o tradicional festejo de Slo Jolo, com quadrilha e rudo, previamente ensaiada por Dona Arlete Thedim Cosra, m6e da Soninha namorada do jovem cadete da aeronaftica SCrgio Macaco. E sem esquecer os famosos bailes de carnaval, precedidos pelas animadas batalhas de confete, inclusive o famoso baile do Be-a-bi realizado na quinta-feira anrerior ao carnaval e horas ap6s o baile da Balanga. Idealizado por Marcelo, foliio e 38 encrenqueiro, o baile s6 permitia o acesso ao sallo dos que portassem fardamento complcto da escola pdblica: calga ou saia pregueada, na cor azul, camisa branca com gravate azul que indicasse o ano que cursava o aluno, sapatos pretos e meias soquete. Devidamente paramentados, o s6cio ou seus convidados podiam brincar I vontade porque nlo faltavam garotas, beber seu cuba-libre ou sua cervejinha gelada e atC discretamente tomar uma prise no langa-perfume, de prefer€ncia rodo-metClico, I disposiglo nas vers6es ouro e prata, devaneio inocente, mais tarde proibido de fabricar pela ditadura militar fascista, inimiga das liberdades em geral e do Cter perfumado em particular. Uma baita de uma sacanagem! Pois bem, quando mal comegava um daqueles Bailes da Primavera, Ronaldo Alvaro Lacerda de Souza Gayoso, mais conhecido como Perdig1o, irmlo de Reynaldo Ant6nio Lacerda de Souza Gayoso, o Jarumelo, num gesto ousado que lhe era pr6prio rompe o natural retraimento civil e tira uma garota para dangar com o cldssico: A senhorita. danga? -Nlo, nlo dangava a senhorita. Que desculpasse, mas nlo sabia dangar. N6o era versada na pritica dos volteios e saracoteios. Perdigdo, de volta, avisou pere e turma: "Nio sabe dangar." Tudo bem, nlo tinha nada. Nlo era recusa, estava tudo explicado. Nio havia humilhaglo! Mas nlo d que o baile continua e todos v€em a garota dangando com um cadete. Marly ria sem parar, ria-se o cadete, bailavam. Perdigiio nada disse, nem lhe foi perguntado: o bom cabrito nlo berra! Engoliu o agravo' deu a volta por cima. Foi I luta. Passam os tempos, o pessoal briga no clube e vai jogar bola na Associagio Atldtica Grajad, agremiaglo desportiva rival do Grajari T6nis tambCm dada !r prdtica de engordar o galo e promover festinhas (como eram famosos os seus bailes carnavalescos e o Bloco dos Marinheiros que ati marchinha pr6pria cantava!). Pois nlo C que num desses bailarecos aparece justo a garota que havia, na Primavera, recusado o Perdigfuo, mas que agora (longe das fardas, ilus6es desfeitas) aceitava convites de qualquer civil, inclusive do Perdigho, certa- 39 mente deslembrada da anterior desfeita. E estava o par dangando, quando o Perdigdo, no meio do salao, pl,ra e comega a cheirar o ar. A moga fica desconce rtad,a e Perdigha, indiferente i perplexidade de Marly, continua a cheirar o ar em haustos cadavez mais fortes, arraindo a arengS.o dos circundanres. E, de repente, langa um berro que a todos surpreende: Voc€ peidou! - tio ins6lita increpagio a pobre moga p6de apenas Ante balbuciar aterrada: Eu? confirma Perdigdo -E acusador. lhe o dedo voc6 mesma. E aponta- A garota, desfeita em ldgrima, corre pere t mesa do pai que, inteirando-se do acontecido, vai tirar satisfag6es com o vil caluniador, reprovar-lhe o iniquo procedimento, negar a eventual flatu16ncia: O senhor estC enganado. Minha filha n6o peidou. Absolutamente. O pai, indignado e parrudo, cresce na santa ira: Nlo peidou, nlo peida e o senhor vai retirar o que disse, -ouviu? Forma-se o bolo. A curriola cerca os litigantes: Hipopdtamo, Cambota, Ciciara e Manoel Peito-de-Pombo guerem dar forga ao ofensor, entretanto, Juramelo, o irm6o, apiedado da moga, desarma esplritos, desfaz o bolol6: Se peidou nam td mais cheirando. Vam'bora, gente. -Resolveu o incidente mas nio a vergonha da moga. Afinal, nio era por ser galinha que a Marly faltavam pudores, sentimentos que a ra,pazieda machista n6o conseguia entender. Mas foi a galinhagem que permitiu a Marly buscar outros ares. Galinhagem dela, oferecida que era, e malandragem do AlCsio Pera, um sacanera. Gostava de mentir, o Pcru, N5o mentirinhas l-toa, mas mentiras de verdade, com enredo e tudo. Certa feita sumiu do bairro por mais de um m€s. Voltou descorado e cheio de lero, que teve na Europa, em Paris mais precisamente. Satisfez a curiosidade da turma: sim, Tour Eiffel era isso e aquilo; o Louvre aquilo e isso; Versailles, um belo de um paldcio. Frio, atd demais. Mas nlo foi na descriglo dos conhecidos 40 pontos turlsticos que Peru colheu admiraglo. De ouvir falar, lssim por alto, muitos conheciam o Champs-ElysCs, a Opera, o Quartier Latin, bairro dos estudantes, a Place Pigalle, reduto da sacanagem. O viajor introduziu a mogada nos mistCrios da bodmia de Montmartre, nos bisrr6s de SaintGermain-des-PrCs, nos restaurantes do prlmicr arrondisscn ent, especialmente o do Hotel Ritz, na Pl. Vend6me, sem esquecer da enorme impresslo que lhe causara o fausto do restaurante 'Grande Vefour", na rue Beaujolais, onde saboreou um delicioso "Ballotine de Canard", lamentando que a estagio (nio viajara entre setembro e abril) o impedisse de apreciar o prato "FeuilletC d'huitres", famoso em todo o mundo civilizado, fez questao de frisar o "civilizado", escandindo-lhe as sflabas. Mas nlo pensassem que a estaglo o impedira de provar um verdadeiro "feuilletC", pois que o 'Mercure Galant" fez-se conhecido exatamente pelo "FeuilletC de ris de veau" que oferecia, e logo adiante, na rue Patits-Champs. E para quem desejasse dar uma esticada depois do teatro, recomendaria um "EmincC d'avocat au jambon de parme", no sofisticado "Polyglore", na lle de Saint-Louis, pertinho do apartamento onde morou a princesa Isabel, informava hist6rico. Quanto a bebidas, champanhe e vinhos. Champanhes, embora naturalmente nio desprezasse a Cristal e a Cordon Rouge, as marcas mais conhecidas, preferia Dom Ruinart, ou Jacquart, ou Bricout, ou ainda Henriot da CuvCe Baccarat, disparou para uma plarCia inteiramente bestializada. Os olhares entao convergiram para Sebastiio Pelon dos Santos Moreira, estudante de medicina qu€ tomava aulas na Maison de France e por conta de quem havia passado exatos onze dias em Paris. Ti6o s6 p6de louvar o apuro da pronrincia e perguntar sobre vinhos, sobre vinhas. Que vinhos tomou, que vinhas recomendava? Aldsio, o viajante, fez-se modesto: Qualquer um "bordeaux supCrieur", ensinou. -Teria ido e voltado a bordo de um Super Constelattion da Panair do Brasil. Ficara no "Abbaye Saint Germain", um hotelzinho charmoso com um lindo jardinzinho na rue Cassette. Se o recomendava? Sem drivida, claro que sim. E por af foi. Ele contando e a turma viajando no trolol6 do cera. 4l Acontece que a irmi do Peru, Maria Elisa, namorava um cara chegado i turma, o qual, por acaso, esrava no dia da 'viagem' a Paris. Perguntada, rcspondeu: Qual Paris... Aldsio C maluco. N6o tem onde cair rnorto.- Vai a Paris como? 56 se for na Praga Paris, e assim mesmo tem de tomar algum emprestado para o lotaglo. O namorado n6o se conformou. A viagem, os Pormenores. N6o podia ser tudo invencionice. Podia, podia sim, confirmou a irml: Alisio passou um m€s trancafiado em casa. Deve umas revistas francesas, coisa assim. Est{ branter arranjado quelo porque ficou dentro de casa, sem tomar sol. E diante da curiosidade do namorado que requeria mais informag6es sobre as 'viagens" do irmlo, Maria Elisa, conhecedora de sua patologia, arrematou: Deixa pra ld, Al€sio C mit6mano. -Depositirio da informagio, Milton Temer nao sossegou enquanto nlo a repetiu para a turma. Que ficou pau da .rida cotn o Peru, nio faltando mesmo quem av€ntasse a hip6tese de dar umas porradas no dito. Ouvido nlo C paiol, consideravam. Houve sugest6cs no sentido de procurar imediatamente o safado e cobrar dele explicag6es: que neg6cio C esse de ficar alugando os ouvidos da rapaziada? Alfredo Franga, mais ponderado, preferia esperar o acaso do encontro e entlo exigir dele as raz6es que o teriam levado e cngruPir o Pessoal. Estavam na procura do melhor caminho para interpclar o safado quando o pr6prio, a bordo de um reluzente rabode-peixe, faz e carva na rua Gurupi e sobe a Engenheiro Richard, parando justo na porta do Grajari T€nis Clube, onde se concentrava a mogada, que enteo tem a oportunidadc de admirar o carrlo por dentro: os bancos de couro, o guidom na cor vinho, o painel arrojado, o clmbio hidramdtico. AlCsio mal parou. Oi turma, cumprimentou. -Arrancou. A patota estupefacta que abanava um adeus comportaria. Falar o qu€? 42 ficou seguindo a mlo tlo largo, que s6 um carro converslvel Foi no carrio que AlCsio recolheu uma deslumbrada Marly na Praga Nobel, longe da rua JosC do Patroc(nio e da vigilincia dos pais. Foi a guria entrar e ele tocar para a Zona Sul. O carro ia devagar. Peru saboreando a conquista; Marly aproveitando o luxo e o conforto do autom6vel. O rridio espalhava uma mfsica suave que os sons da rua teimavam em atrapalhar. Bolas. Na subida da rua Alice, Peru parou junto ao meio fio, fechou a capota e ligou o ar refrigerado. Seguiram. Logo ap6s atravessar o Tdnel Novo e antes da rua Felipe de Oliveira, AlCsio subiu a calgada e estacionou na porta de uma enorme loja de autom6veis. O casal mal havia trocado duas palavras durante o caminho, mas agora Marly ouve , forte, a voz de comando do namorado: Salta, Mady. Tenho uma surpresa para voc€. -Marly salta, mas nio entende nada. "Qual poderia ser a surpresa?" pergunta-se a garota. Os vendedores rodeiam Al€sio. Nlo poderia ser melhor a figuraglo. Elegantfssimo, terno azul, impecivel camisa social branca, gravata grenl. AlCsio era a imagem do sucesso. O pr6prio dono da loja afasta os vendedores. Iria ele mesmo atende r tlo ilustre personagem: Em que posso servi-lo, cavalheiro? -E um AlCsio casual informa e indaga: l5jsu procurando um carro para ela. (A mlo sugere a presenga da moga, mas n6o a aponta. Fino o cara.) Mas que nlo seja grande. Grande basta o meu (E a mlo Parece moverse na diregio do pr6prio carro). Alguma coisa da Europa, talvez? O dono volta o olhar para o interior da sua loja como a procurar uma marca ou a colher inspiraglo. De rePente t exclama: ' Temos um Porche, mas i caro... -Olhar gelado do futuro comprador faz o fulano arrepender-se imediatamente. E, claro que para o senhor prego i o de menos, procura consertar o besta. Os vendedores s6 gozando. Superior, AlCsio fez que nlo ouviu e gentilmente pede que lhe mostre o ve{culo. Que estri logo na entrada, I direita 43 de quem olha, mas meio escondido por um Impala que esta- cionara em frente a ele. Alisio se aproxima. Marly se aproxima. O dono da loja se aproxima. Se aproximam os vendedores. 56 tem este? AlCsio quer saber. - Com a indicagio - que o senhor deu, apenas... Bom, - loja... na outra Alisio corta: Podemos dar uma volta, experimentar? - Mas claro, doutor. Sem drivida. A prop6sito, como C o seu nome? Miranda. Alisio Miranda. Doutor AlCsio Miranda. - Briulio. Brdulio dos Reis Pimenra. - Ela i Marly. - Muito prezer, Dona Marly. - O prazer C meu, seu Br{ulio (E era, mesmo). -A volta C curta. Ganham a Avenida AtlAntica. O trAnsito nlo permite que o carro desenvolva, mas o ronco do motor nio deixa ddvidas quanto a sua potencia. O trio entra na Bollvar e volta pela Nossa Senhora de Copacabana. Br{ulio C rodo pergunras: Gostou do carro, doutor? Est{ aprovado? O que o senhor- achou? AlCsio consulta a moga. Quem deve dar opinilo C ela. Afinal, para ela d o mimo. Marly n6o acredita no que ouve, parece estar sonhando. Para mim, Alisio, meu bem? - Ora responde para quem haveria de ser? (E - No- carroestavam - r-6 or tie..) com razio. Saltam. AlCsio pergunta o prego. Majestoso, nem regateia. Preenche o cheque e di as ordens. O senhor por favor tire a nota fiscal direrarnente no nome -dela. (Novamente a m6o...) Briulio recebe o cheque e verifica seu correto preenchimento. Assalta-lhe uma drivida. Seri que esse cara todo lorde nio lhe estard querendo aplicar um pa.ssafaia? Sextafeira, os bancos fechados. Nem discute o prego, dd logo o cheque para impressionar a garota. Ou nlo? Quem sabe n6o C um milionirio? Ou um filhinho de papai cheio da grana? 44 Pelo sim, pelo nlo, o cerro s6 lcva depois de cobrar o cheque. Decide-se, afinal. fiscal vai - Pois nlo, doutor. Perfeitamente. A nota ser emitida segundo suas ordens, diretamente em nome de Dona Marly. Apenas, o senhor me desculpe, os bancos j6 fecharam e eu nlo posso cobrar o cheque. Assim, n6o leve a mal, mas o carro s6 posso entregar segunda-feira. Regras da casa... E preparou-se para o maior esPorro da pardquia. Mas, AlCsio veio manso. Mas d claro. Sem dfvida. O senhor tem toda a raz1o. E-s6 o se nhor dar a nota fiscal e na segunda a Marly ve m buscar o carro tlo logo abra o banco. Isso d um neg6cio. E neg6cio d ncg6cio. BrCulio, completamente aliviado, vai providenciar a emissio da nota fiscal, para o que precisa dos dados da feliz proprietCria. Q,r. nio cabe em si de alegria. N6o sabe o que fazer para agradecer ao namorado Presente tlo extraordindrio. Ah, como a vida € boa. Despedem-se de Briulio e de sua loja de autom6veis importados. Despedem-se dos vendedores de carros importados. (Marly secretamente despede-se de seu Porche Prateado.) AlCsio educadlssimo. Marly sinceramente emocionada. Os fulanos fazendo as honras. Todos felizes. pergunta AlCsio soberano. Feliz, meu bem? - meu bem? E Marly se enrosca - E precisa perguntar, - do carro...' no banco Tenho uma proposta, serC que voc6 topa? -Marly topa a proposta. Marly topa tudo. JC topava quase tudo. Agora, topa tudo. Aldsio prop6e o roteiro: Primeiro, vamos tomar um drink no Cangacciro, na Mendes. (Nlo disse, mas no fim da tarde e anrua Fernando tes de esquenrar a noite, o Cangaceiro cobrava pela metade a dose de uisque a titulo dc promoglo Para atrair mais clientela.) Depois, voltarnos (o carro mal entrara na Barata Ribeiro) e beliscamos alguma coisa no Hi Fi, aqui mesmo na Princesa Isabel. Depois... Bom, depois a noite C nossa... 45 Marly concordou. Com o Cangaceiro, com o Hi Fi. Ficou com a pulga atrds da orelha com o neg6cio da "noite C nossa". Mas pulga designa um tipo de Fiat pequeno e mal ajambrado, nlo um Porche prateado. Topo, meu bem. Estou mesmo com um pouco de sede. - Foi o cara encostar e o lelo-de-chdcara vir gabar-lhe o carro: carrlo, hem? Que - Que qualiomodelo,mesmo? C um Cadillac eu sei, mas Paciente , Peru entrega a chave ao manobreiro e esclarece: [ "6supi de ville", ano 1954. Encrou agora por forliminar na justiga. Demorou, mas ganhamos. Marly cada vez mais se admira do prest{gio do namorado: todo o mundo a conhecO-lo! (Como poderia saber que - ga de uma a pega era motorista de bacana?) O porteiro abre a porta solicito e o bar acolhe o casal. O gerente do Cangaceiro oferece uma flor Marly. Praxe da casa onde se destacam os murais de Alde mar Martins. I Sentam. Marly pede um cuba-libre. Alisio um uisque O gargom os serve. Coloca um Pratinho de amendoins. AlCsio sorve um largo gole. A bebida desce redonda. O pinta se anima e pergunta ao gerente: Q,t. temos hoje? dose dupla s6 com gelo. - Mais tarde Tito Madi vai cantar com Ribamar ao piano.-Vale a pena ficar... Alisio tem outro programa: volto? - Tenho que dar um pulo no Hi Fi, mas quem sabe e u hoje vai ter uma Volte sim anima o gerente grande- surpresa por-aqui... AlCsio, bebedor escolado, fez a parceira tomar antes do cuba-libre uma igua mineral Caxambu que com ela dividiu. Antes de pedir a saideira, outra Cgua mineral. E a saideira s6 para ele. Nada de garota ficar de fogo e estragar logo o programa. Aprendera em Gra,iad: "ballo apagado nlo sobe!" Quando C mulher, o ballo apaga, a distinta dorme . Quando d homem, o baleo nlo sobe de jeito nenhum. Chama o gar90m: 46 O me u, faz a ge ntileze d,e uazer mais uma dgua mineral e- um uisque simples para mim, nada de duplo. Com gds ou sem gds? - Com gCs. -O gargom trouxe o ufsque e trouxe e lgua, AlCsio se rviu a parceira e colocou uma medida de tgue no pr6prio uisque. "Pra temperar", cxplicou. A noite comegou a chcgar, assim os freqiientadores. AlCsio achou que j{ era hora de se pirulitar. Levantou-se, acenou para o gargom e dirigiu-se diretamenre eo gerenre: Deixa a despesa "em aberto" que eu volto. (Era meo partido de deixar a despesa "em aberto" do que lhor aplicar "pendur{-1a".) Se n6o gostou, o gerente guardou o gosto. Novamente animou o fregu6s: Volte. Volte, sim. Nio deixe de voltar. A surpresa vai ser-grande e vai valer a pena, prometeu. No .F/i Fi Bar c Rcstaurdntc Peru tambCm foi bem recebido. E nem seria idiota de ir a um lugar onde estivesse sujo na rodinha. Sentaram, o gargom trouxe o card{pio. AlCsio descomplicou-o para Marly: A especialidade da casa C o "Marreco de Pequim". - recomendo o "Siri recheado" ou a "Chicken in the Tambdm Basquet'. A escolha i sua... A escolha era dela, certo, mas ela estava em drivida. Fora o marreco, que tinha pena do bicho e n6o o poderia comer, que Al€sio, em sua alta sabedoria, havia pedido para ela escolher o prato adequado. Que nio se fez de rogado. Estalou os dedos e o gargon aPareceu: Um "Siri" para mim e uma "Chicken" para ela. - Para beberi - Por enquanto, traz uma dgua mineral, - quando chegar a comida. te pede Com gis ou sem depois a gen- g:is? - Com gds. -A vitrola hi-fi tocava "Meu mundo caiu", a voz de Malsa enchia a sala de amor. O casal i tocado. Ele segura a m6o direita dela com a esquerda. Ela corresponde: aperta-lhe a 47 mlo direita. Para os enamorados chega a comida. o tempo s6 conta quando Servida, o gargom torna a perguntar: Para beber? Alisio teve vontade de pedir um vinho branco, leve. Mas podia misturar. Nem consultou a parceira: Para ela uma coca-cola; para mim, meia dose de uisque. - Outra misica, um comentirio aqui, outro ali. As garfadas e goladas e estavam prontos para ganhar a noite. AlCsio ainda pediu um docinho para ela e um cafezinho destinado a fazer a boca para um cigarro importado, naturalmente. Como de costume, "pendurou" a dolorosa e saiu para o mundo. Tambdm naturalmente n6o esqueceu de dar uma gorje- ta para o porteiro: era de lci. Aspirou o ar da noite. A brisa marinha acariciava de tlo agrad{vel. Teve vontade de dar uma chegada no Cabega Chata, logo ali ao lado c ouvir umas emboladas do Manezinho Aradjo. Certamente enconrraria o Comandante Augusto de Moura Diniz, oficial de marinha, morador tambim em Grajari, gente finissima, fl do Mariozinho, habitudda casa. Mas li poderia estar o sobrinho dele, Marcelo, uma peste que iria ficar lhe sacaneando ele n6o estava ali para isso. Falando no mal, esmerilhando o pau: quase esbarra no Dinizinho, filho do Comandante, que o safda: O r"p"r, voc€ por aqui? - Pois d, acabei de pensar em dar um pulo no "Cabega" e provavelmente encontrar o Comandante ld. Td, ele rlsim. Tdcom o primo... - O Siiberth? - Neo, o Marcelo. -(Fudcu.) Mas voc€, cara, nio estd indo pra 16. Vai noutra di- - afirma. - E. Vou no Jirau ouvir a Helena de Lima. Voc6 sabe, ela tambCm i fi do Velho e sempre adianta o lado da gente, reglo sem falar que canta is pampas. Despedem-se. AlCsio corra a idCia de dar uma chegada no "Cabega". Nem se lembra da surpresa prometida pelo gerente do Cangaceiro. Se soubesse, certamenre para ld teria 48 tocado: C que Paulinho Soledade, saido de longa enfermid-ade, iria aprisentar o seu "Estlo voltando as flores", marchinha not{vel que refletiria seu reencontro com a vida, com as flores, com as manhis tlo lindas. Melhor era se mandar Para o Studium, bar do Hotel Excelsior, ouvir o fabuloso 'Fats" Elp(dio e depois, Deus C Pai, subir Para um dos apartamentoi .o- a cumplicidade do gerente da noite, seu faixa de Grajaf . Foi o que pensou, foi o que fez. Foi uma Marly alvorogada que Aldsio Perz desembarcou, na segunda-fei ta, ne porta da loja de autom6veis TAnia, mas do ouiro lado da rua, na mlo de quem vai para a cidade. Escapa de um carro aqui, outro acold' csPera Palsar 9 bonde maia-paulista que descia na contra-m1o do Tdnel Novo, e eis uma garota ansiosa Para entrar na Posse de sua formiddvel propriedade. Dirigir nlo dirigia. Mas nem Pensava no volante. Pensava no seu carro' na cor dele, na sua beleza. De como a vida iria mudar dora em diante. Entretanto, os olhares compungidos dos vendedores c a carranca do dono a fizeram seniir que alguma coisa nlo havia dado certo. Mesmo na defenliva encontro,t forgas para ir em frente, cumprimentar as Pessoas. Bom-dia t.,, BrC,rlio. Bom-dia pessoal. -O pessoal respondeu. Seu Brdulio aP€nas cuspiu: Tenha a bondade de me acompanhar, dona. -Jl no escrit6rio da loja, seu Brdulio sobe nas tamancas. Esses iipos subservientes slo assim: capachos dos poderosos, arrogantes com os desvalidos. Entlo que explicag6es tem a senhora Para me dar? E clnica, com coragem de aparecer no meu estabelecimento o conto-do-vigCrio. _ depois - de tentar passar-me nlo sabe o que responder.- Pude ra, Marly atarintada Seu Brdulio antes acontecendo. nlo entendia o que estava de perguntar: Achou tlo delicado, agora t6o estripido. aconteceu? o que Mas o que foi seu BrCulio, - O que aconteceu. O que aconteceu. -E dirigindo-se I platiia dc vendedores consternados: O que aconteceu seu Br{ulio? (o filho-da-puta imita, mal imitada, a vozinha da moga.) O que aconteceu C que 49 a senhora e aquele vigarista do seu namorado quiseram me passar a Perna... Um dos vendedores pede um aparte: Perdlo, seu Brdulio. Mas nio havia, como nio houve, a possibilidade da casa ter prejuizo... Seu Briulio n6o gostou do aparte. Prejuizo, seu Josi de Castro. E se eu tivesse entregue o -carro ir dupla de vigaristas. Hein, hein? E se eu tivesse entregue o carro, hem seu Zd de Castro? Que ainda arrisca uma ponderagio, quase uma lisonja: Mas ni.o entregou, patreo. As regras da casa, regras que o -senhor mesmo estabeleceu, s6 permitem a entrega do veiculo depois do cheque cobrado ou compensado. N6s aqui, por sua orientaglo, trabalhamos com a mdxima seguranga. Mas seu Briulio nlo estava para argumentos. E se tivesse entregue quem pagaria o meu prejuizol -O comerciante delirava., As regras teriam impedido a consumaglo do eventual chaveco. E mesmo o "comprador" n5.o fizera questeo de levar o carro. Aceitou imediatamente a restrigio imposta pelo vendedor. Tava na cara que queria s6 fazer um agd com a menina. Todos viam isso, menos seu Brdulio, cada vez mais enfurecido. Fui no banco cobrar o cheque e o gerente riu na minha-cara. Que a conta estava encerrada hC muiro. Que s6 teve um dep6sito inicial de mixaria. Que eu devia selecionar melhor minha clientela. Que isso, que aquilo e mais aquilo outro. E eu ouvindo com cara de bobo. Me diga, Dona Marly: eu tenho cara de bobo, tenho? A pobre da moga nlo sabia o que fazer. De repente compreendera tudo. Fora v(tima, ela sim, do conto-do-vigirio. Nlo tinha carro, nio tinha presenre, nlo tinha nada. Era s6 encenaglo para abusar dela e de sua estupidez. E foi uma Marly desfeita em ldgrimas que a bondade do Z4 de Castro levou ao botequim da esquina. Deu-lhe lengo, de u-lhe igua com agricar. E solidariedade humana. Tem nada nio, Marly, isso acontece. -Foi o que achou de dizer I falta de um discurso mais consistente. 50 Isso acontece, repetia a uma desesperada Marly. Que fazer? Como enfrentar a mie e o pai? Quando avi,ot.r, p.io telefone, que passaria o fim-de-semana fora, com uma amiga, foi um De us nos acuda. A m6e queria saber -que novidade-era essa. Que nunca antes isso tinha acontecido' voltasQue absolutamente nio aceitat'a tal despautirio. Que de coga uma dar e lhe pai saber seu de antes a cesa p"t" rJl{ mle I dissera Marly nova situa96o, da Segura cinto-dobrado. que nlo se preocuPasse' que ela estaria bem, e na segundafeira daria notfcias. E desligara o telefone. Como voltar, ago- Contar o qu€? A verdade? Nem pcnsar. Pensar, i o que a voz bondosa do Josi de Castro a convida. psnss, Marly. Com calma. Nlo perca o controle' Se nlo podc voltar Para casa, Pense numa tia, numa amiga, numa vizinha. Numa amiga. Sim. Tinha uma amiga de Marechal que tambdm saira deiasa Por um problema semelhante' Morava em Copacabana, na rua Belford Roxo. Tinha o enderego' Tinha o telefone. Ela mesma jd a convidara avir morar com ela. Trabalhar no teatro de revista. Estudar rePresentagio na escola de um cara meio bispo, coisa assim. Compassivo, Z€ Castto levou Marly Para casa da amira? ga. Furada e abandonada. 7 Rtre Mannq "Essa Rita Maria C uma desmancha-pnzet filha-da- puta. Ficar de pau na mio i isso." Pensava o indignado Espeiidiao Bispo dos Santos, m€dico especialista em sacanagem com a -uih.t do alheio' Lamentava a interrupglo brusca da ins6lita trepada, absolutamente inusitada. A dona se entregando toda, f,i.il, fiicil. Nlo tivessem sido barbaramente interiompidos, teriam feito de tudo. Quantos anos estaria rePresada a cliente? Muitos, certamente. 5l Doutor Esperidilo fechou o consult6rio, um conjunto de salas no Edificio Rex, na rua Alcindo Guanabara. Jd des- ceu na Cinelindia. Era dar um pulo no Amarelinho, tomar um chope estupidamente gelado anres de voltar para casa, enfrentar aquela megera. Quem sabe nlo aparecia um conhecido e jogava uma conve rsa [ora? Pensava o midico na cliente. Temia que a dona n6o mais voltasse. "Pau na mlo: filha-da-puta da Rira Maria." Rita Maria bateu o telefone e levantou-se da cama: Preciso de um copo d'dgua. T6 seca. -Nada como uma boa discuss5.o para deixd-la sedenta. Muniz reparou nos modos da dona. Impudica, passeava nua pelo apartamento. Curioso, pensava, as mulheres procuravam sempre se cobrir: um lengol, uma toalha, pega de roupa que fosse. Sem falar nas profissionais extremamente recatadas. Rita Maria era excegio, vivia desfilando sua gloriosa nudez pelo quarto, pela sala. Mal chegava e j6. ia se despindo, espalhando as roupas, atirando-lhe a calcinha, o suti6, as meias, as ligas. Da cozinha fez ouvir sua voz, ainda com restos de irritaglo: Eu conhego a cliente, somos do mesmo bairro. O marido- voc€ conhece, C seu colega. C? - Quem E Baldomiro. Na polfcia C chamado de Badeco. - Nio vai me dizer que a cliente i Dona Carmelita, vai? - Avoz desafiante antecede a moga que retorna ao quarto aplacada na sede, insacidvel na bronca: Vou. Vou, sim. Vou, por qu€? -E bem humorado o rira. Tenha santa paci€ncia, tesouro. Conhego Dona Carmelita.- E, siria, honesia, cidadi acima de qualquer suspeira... Rita Maria nlo se segura, interrompe o outro: Vocds homens sio uns babacas. Santa-do-pau-oco, C o que ela i. Sempre sonsa, fingida. Muniz parece esbogar timida reagSo. Qual, voc€ exagera... - dona A corra: 52 Exagero C um cacete. Fomos vizinhas, meu filho. - Na rua Grlo Pard. Conhego dc menina, fique sabenNo Lins. do. Carmelita sempre foi dissimulada. Tinha um namorado firme, um tal de Ferrio. Faziam misCria os dois, s6 vendo. Voc6 via? - Claro que via. N6s morivamos na mesma vila. A casa dela era a 6ltima, em frente a da Glorinha. A minha era primeira, logo na entrada. Depois ficava a casa da Leny, em seguida a de uma coroa meio amalucada que morava sozinha ld com uns gatos e por riltimo a casa dt santinha. N6s ficivamos na janela do quarto da Glorinha. ApagCvamos a luz do quarto e ficdvamos olhando os dois, meu filho. Nem te conto. A casa tinha um porteozinho na entrada. Desses, baixinho. (A m6o indicava a pequena altura.) Eles ficavam ll, abragados, separados pelo tal portlozinho. Ela na Parte de dentro, ele na parte de fora. Ela levantava a saia e ele botava nas a coxas dela... o policial uma contradiglo: Como € que elc ia botar, mulher? E o portlo? -Rita Maria fez ar de deboche. [ns1s as travas do portlo, n6o C Muniz? 56 porque C porclo, tem que ser inteirigo, tem? E ante o sil€ncio do amante. Tem, Mrtniz? Me diga, Muniz, tem? -Que se rende. Nio, tesouro, nio tem, n6o. -Satisfeita, retoma o relato. Ficavam no maior sarro da par6quia. Depois, ela se - e chupava o cara ali mesmo. Ela ficava de costas. De abaixava costas, Muniz. Nlo sei se dava tempo, ficava pouco temPo de costas. Dcvia ter medo, n6o sei. Namorar com um de costas d diffcil de explicar. Ou nlo d, Muniz? Fala Muniz: C ou Fare.ia nio C? E tetouro. Se surpreendidos, vio explicar como? - Pois C. O cara a gente via Procurava - pelos ombros.- Ela ficava um- pouquinho Carmelita virar a e logo desvirava. O cara ficava puto. E voc€s? - A gente ficava na maior excitaglo. Eu entlo me v{rias vezes. Mas n6o atrapalha. Escuta. Af o cara masturbava 53 sumiu, parece que a famllia dcle se mudou para o Parani, Curitiba, parece, nlo sei ao certo. Foi depois desse cara que ela comegou a namorar o filho de Dona Nair, o tal de Baldomiro. Um cara esquisito ls pampas. O tira fala sCrio para a moga: Olha Rita Maria, neo meta seu marido com esse cara. A- nlo ser que queira ficar vifva. Ele i um dos Homens de Ouro. E, matador, i do EsquadrSo da Morte. Rita Maria estava por fora. Homem de Ouro... Que diabo disso C aquilo? - Policiais que formam uma equipe especial diretamente-ligada ao chefe de policia. T€m licenga para matar. Eu hem! - Pois 4,. Barra pesadlssima. Eu, que sou Comis-s4rio, nio me- meto com eles.-Especialmente com o Badeco. E fere, tesouro. Mata por vocaglo e por gosto. A dona tem uma ponta de hesitagio na cara astuta. Todo fera e a mulher corneando. Vai ver, sabe. - valente na rua mais mole em casa. Deve ser Quanto mais corno manso. O tira nlo gosta sequer da conversa. Sai dessa, mulher. Nio procura, que voce encontra. E melhor deixar pra 1d... Voc6 € engragada. Botando chifres no marido a toda hora e reclamando quando o pobrc dC umas voltinhas. A dona fica revoltada. Muniz. Nio t{ direito voc€ falar assim comigo. Eu-'ps11(, tenho furor utcrino, Muniz. Voc€ sabe disso, n6o sabe? Diga: sabe ou nio sabe, que eu fou ninfomanfaca? Bom... - E doenga, Muniz. Eoenga. Eu tenho que trepar, trepar, trepar. Trepar atC n6o poder mais. Ele, nlo. Nlo tem doenga nenhuma, C sem-vergonhice, mesmo. Ele me paga. Voc€s homens s6o todos iguais: "E sdria, Rita Maria, d sdria." Sdria d o cacete. Cala de boca, seu Muniz. De boca. Cala de boca... O tira quer apaziguar a parceira. !s6, tesouro. Mostra como a Dona Carmelita fazia no portlo. 54 Esperidilo pdra o Nash em frente a casa' no alto da ladeira, rua Henrique Morize, no Grajarl. Atravessa a rua Para abrir o porteo de ferro da garagem. Um furglo escuro ololhe na volta, bem no meio da rua. J{ caiu morto. I Focuurut'taa Pastor conhecia o investigador NapoleSo de Cast-ro, chefe do Setor de Vigilincia da 19" DR com jurisdiglo sobre a favela do Esquele{o. J5, haviam trabalhado juntos' Castro era ambicioro.'Ert""" louco Para se enturmar no Servigo de Dilig€ncias Especiais, gruPo de elite dire tamente ligado- ao gabi-nete do Chefe de Pollcia, sem dar satisfagio a ninguCm' nome nos ,ornars, prbstfgio, cheios de banca. E grana. Muita grana: grana alta, grana Preta' grana viva. Recebeu bem o colega. Seja bem-vindo, ieu Pastor. Pensei que nlo conhecesse mais os amigos. Td por cima da carne-seca... Pastor abragou o outro. Castro, lutando semPre. - Qual, De as ordcns. (Sabia o investigador nlo ser Procurado porque a saudade ePertara no Pastor.) - Tenho um servigo Pra voc€. Capixaba foi encontrar o ComissCrio Muniz no bar ao lado da Entorpecente. Queio um particular com o senhor, chefia' -Muniz sabia que o alcagiiete er^ qucnte. Pedia alto, mas a informaglo que trezia era semPre valiosa. Tem pressa? -E ante a confirmaglo do outro marcou em sua pr6pria casa, dentro de um par de horas. Estava terminando o plantio e para l6tiria mei-o se dirigir. Esperaria o cabra. 55 Que nem usou as duas horas. Muniz veio abrir a porta enrolado na toalha, ainda pingando. Antes, verificou-pelo olho migico se era mesmo o alcagiiete. Tira vererano, nio iria marcar bobcira. Chegou na hora, Capixa, mal acabei o banho. Vai - enquanto eu me visto, falando e rumou para o quarro. E o Fogueirinha, chefia... -O tira vohou i sala. Ji nlao mais inreressado em vesrirse. Senta, comandou. Conta a hist6ria direitinho. -O alcagiiete cagou uma- poltrona. Acendeu um cigarro, puxou uma tragada, expeliu a fumaga devagar. Pegou o cinzeiro e nele depositou o f6sforo apagado. Sabia que a informaglo interessaria enormemente o tira. Jorge Gomes da Silva, assaltante e incendi{rio, se exercia no morro dos Macacos, em Vila Isabel. Com seu bando, incendiava os barracos dos moradores que resistiam aos assaltos ou nio contribuiam com dinheiro suficiente. O critCrio era a veneta do bandido e a sentenga sempre cruel: Mixaria nlo quero. Taca fogo no barraco, ordenava. -Postava-se no pC do morro e s6 permitia a passagem dos que pagassem pedCgio. Trabalhador volrava cansado do batente, queria chegar em casa, comer, descansar, ver a familia e n6o podia. O vagabundo n6o deixava. Tem que pagar ped{gio, vivente. -E se o pobre nlo pudesse pagar, ficava mal. Nio subia o morro, entrava na porrada. Ou enti.o dava a volta longa pelo Pau-da-bandeira, a outra verrente do morro. Chegar em casa mais cansado, ainda. E humilhado. AtC al tudo bem para o Muniz. Nlo era problema dele. O Distrito do bairro que desse conra. Tudo bem ati o marginal se meter com o t6xico. E tambCm nio era s6 o t6xiio. Fogueirinha poderia armar umas bocas-de-fumo no morro dos Macacos e nlo teria bronca: seria apenas uma questeo d.e acerta. Mas nio, o filho-da-puta foi achar de se meter na favela do Esqueleto, disputar o ponro e a freguesia com o X-9, traficante antigo, protegido do Comissdrio. Coisa que se faga? Diz que deseja um acerto com o senhor, chefia. -Muniz coga a cabega. 56 Falou pra quem? - Pra mim mesmo, responde seguro o Capixaba. -O ComissCrio vai testar a boa vontade do bandido. Nlo duvida do alcagiiete. o acerto onde? - Quer No Esqueleto. -"Menos mal", pensa o tira, que Pergunta: - Quando? Marque o senhor. Eu aviso ele. -O tira refletiu um pouco. Tanto de risco, tanto de lu- cro. Mas nlo foi por ai a decis6o: vagabundo nio podia se criar em cima de protegido seu. Como ficaria sua autoridade? T^ certo, Capixaba, - no final da tarde. amanhl, lugar.)- Pode marcar Para dcpois de Aonde? (O informante queria saber exatamente o Na tendinha. Na tendinha do Crisanto. No Esque- Voc6 sabe aonde C, nlo sabe? leto, mesmo. Sabia, o alcagiiete sabia. Podia deixar com ele, n6o se preocupass. a,rtoiid"de. As seis horas estaria justo no ponto. 56 que... " Pode falar, porra. Diga, incentivou o tira. -Capixaba ainda vacilava. Foi-preciso novo est(mulo por parte do Comissdrio. Qual C, majorl Se amarrando? Ai nlo dC! Resolveu-se o informante. Seguinte, doutor: e se o senhor dd uma blitz, com € - fico? Fico sujo, se n6o me fecharem... gue eu - Muniz tranqiiiliza o outro. Podia ir na boa. ele nlo ia drmar contra o marginal. Era s6 o que faltava. Colheria os louros da captura do bandido mas, por outro lado, jamais teria informantes novamente , perderia a confianga de todos. Nesse ramo, o mais importante C a confianga reciproca' Sem ela nlo tinha papo.lria sozinho. certo, chefia. O senhor falou, td falado. -Taa vez do tira indagar: Foi E voc€, cara, qual i o seu... - Pode deixar, doutor. -Essa, nlo. Deixar como? O Comissdrio queria saber. )t Voc€ leva o qu€, Capixaba? Tenho que sabcr antes, ou n5o- C? De repente nio dd... O alcagiiete interrompe a auroridade. Pode deixar, doutor. Mesmo. Pode deixar que eu - com o Fogueirinha. Afinal, foi quem mandou me me acerto chamar. N5o foi o senhor. Ele tem que bancar. Estava bem para o Doutor Solano Muniz, bacharel em direito, comiss{rio de policia. Tudo combinado. Foi Pastor alertar e o Castro arengdr com o colega. Esse cara (, tira, Casrro, eu conhego ele. De uma especializada. Entorpecenres, eu acho. faz aqui o ?inta., Pastor? Que -O agente especial d{ de ombros. E eu sei? Vai ver tambdm entregaram para ele o Fogueirinha... O investigador decididamenre nlo gostou da concorr€ncia. O servigo proposto pelo Pastor, se b€m realizado, implicaria, quem sabe, convite para integrar o Esquadrio. O detetive nlo havia assegurado nada, claramente. Teria, entretanto, deixado no ar uma promessa: "TerC gente de olho no seu trabalho, mano. Capricha..." Promessa que o Casto r egerrou pelo rabo. J{ sonhava com o convite formulado pelo pr6prio Chefe de Pollcia: "Pois me falaram muito bem do senhor.' 'Bondade sua, Excel6ncia..." 'Bondade nio, compet€ncia. Como o senhor receberia um convite para trabalhar no Servigo Especial, diretamente ligado a mim?" Castro receberia bem, muito bem ora se receberia! Nlo havia pensado em outra coisa desde- que o Pastor lhe propusera o servigo: "Nada de prender, Casrro. O cara vai resistir l prisio e voc€ mete chumbo nele.'JC se via na equipe. O sucesso, a fama, a grana, a dama, a cama. Os colegas olhando-o com inveja, comentando: "Viu o Castro? Nlo faz muito era um pC-de-chinelo igual I gente. Hoje estl nas alruras, no Esquadr6o. Precisa ver as roupas dele... E o carro? E as mulheres? Chegou atd a se mudar pra Copacabana. E perto da praia..." Pastor retira-lhe o devaneio. Encrenca, pessoa. -O investigador decide-se: 58 Vou falar com ele, Pastor. Muniz olhava os dois com igual desconfianga. Nlo os conhecia, mas que eram tiras, eram. Nio tinha drividas. O grandio nlo lhe era estranho; o outro, mirradinho' com cara nio manjava. Mas que cara sinistra. Patibular. Castro se aproximou do Comissdrio. Boa-tarde. - Boa-tarde. - Investigador Napoleio de Castro, da 19". - Muito prezer. ComissCrio Muniz, Entorpecentes. - O prazer C meu, doutor. Posso saber o que o uez I minha-jurisdigio? T6xico. - T6xico? - E, t6xico. Maconha, erva, fumo, mato' diamba. -O investigador perde um Pouco o Prumo. N6o esperava pela resposta tio simples e eFtcaz. Mas segue: A gente nio sabia dessa sua dilig€ncia. O nosso Delegado nio ti sabendo da sua Presenga na drea. E precisa saber pra que? -Castro sente terra firme novamentc sob,os pCs. Dar apoio, Comissdrio - Obrigado, mas n6o preciso. Se precisasse teria re- E voc€, faz o qu€ Por essas bandas? quisitado. Recebi a informagio de que um pcrigoso bandido vai aparecer por aqui. Vim cumprir minha obriga.96o. Muniz quer laber quem acornpanha o interlocutor. E, amigo scu? -O investigador agora destila confianga. E sim.-E detetlve, da Central. O senhor nio conhcde bunda, ce ele?- N6o, o Comissdrio nlo conhecia o detetive. Castro esclarece mais: ais. - Detetive Pastor, do Servigo de Dilig€ncias Especi- Muniz Frcou cabrciro. ("lJm cara do Esquedrio. Que diabo de porra guererd aqui?") Pode-se saber quem € e pcgal Deve ser caga grossa I Chefatura... para interessar O investigador nio foi muito cauteloso. Talvez j6 se 59 sentisse no Esquadrio. Acima do bem e acima do mal. Res- pondeu: Um bandido do morro dos Macacos. Um tal de Fogueirinha, um marginal perigosissimo. Epa! Muniz tremeu nas bases. "Vai dar merda', pensou. E nlo serd s6 prisSo, sem drivida. Esses caras do Esquadrlo nlo prendem ningudm. Matam logo. "T6 ferrado', conjecturava a autoridade. E estava certo. Se acabam com a raga do bandido, ninguim mais iria nele confiar. Adeus informantes. E o que era pior: accrtos nunca mais. Encurralado, decide enfrentar o colega. Nada disso, invesrigador. tal de Fogueirinha d - com umas bocas-de-fumo Essc meu. Td por aqui. Vou prend€-lo. Castro nlo se sugestiona. Sei nlo, douror. -Muniz endurece. Vou ter que consultar o colega. Precisa consultar ninguCm, cara. Sou seu superior, estou -lhe dando uma ordem. Ordem por ordem, doutor, as dele slo mais altas. (Com -o polegar, indicava o detetive logo atrds.) Alheio i discusslo, confianre no Capixaba, Fogueirinha se aproxima. Castro o v6 primeiro: saca o rev6lver. Muniz pressente a chegada do bandido: puxa a arma ao mesmo rempo e grita para o colega: N6o faga isso! - palavras se perdem. Castro acerta um balago na tesAs ta do bandido. Muniz, sem saber o que estava fazendo, talvez o instinto, atinge o investigador no peito. Pastor atira bem enrre os olhos do atordoado Comissirio. Calmamente se chega ao cadiver do Fogueirinha e coloca o seu revolver na m6o do morro. Pressiona o gatilho com o dedo do bandido. Um tiro a esmo para o caso-de teste. E meticuloso o detetive. Nunca deixa furo. A hist6ria j{ bola- da: Fogueirinha fuzilou os dois. Mesmo agonizante, o investigador Napoleio de Castro liquidou o bandido, dirC Capixaba, promovido a tcstemunha ocular. Unica resremunha do sacrificio de dois devotados policiais cm defesa da sociedade, da lei e da ordem. 60 saido Pastor estava satisfeito. AtC que as coisas n6o tinham era s6 fcchar o alcagiiete. Capixaba j{ estava morto e nlo sabia. tio mal. Depois, A missa de sitimo dia mandada rezar na Matriz do PerpC.tuo Socorro, igrcja situada na Praga Edmundo Rego, em Grajari, onde morava a vidva, Dona Rita Maria, foi oficiada pelo padre Alberto Ferro em pessoa. Agitada, mas algo digna, a vidva, toda de preto, recebia as condol€ncias de estilo. E sofrimento duplo, porque morrerem-lhe, quase ao mesmo tempo, o marido e o amante: o marido, pra deixar de ser filho-da-puta; e o amarite, no estrito cumprimento do dever, com enterro cheio de autoridades, inclusive a presenga do todo-poderoso Chefe de Policia, o Coronel Couto, salva de tiros e o escanbaz. "Muito ha/', pensava enlutada. Na fila de condol€ncias se misturavam parentes do marido e do amante. Duas vezes vidva, Rita Maria, sempre organizada, lamentava-se nio poder rcceber os cumprimentos em duas filas: a dos parente e amigos do finado marido de um lado; e de outro bordo, o pessoal do amante. Seria muito bacana separar. E estava a pobre mulher imersa em transcendentais pensamentos, quando um cidadSo esquisito, meio vestido de padre e, que nlo lhe era totalmente estranho, cntrega-lhe um cartao e cicia aos seus ouvidos: Dom Manuel, Bispo da Igreja Cat6lica Livre do Divulgeglao IndependenBrasil.- Sou curador da "DIANE - ajudo talentos a se ente de Artistas Nacionais e Escritores', contrarcm com as artes. Me proiu.rc quando aliviar o luto. Quero ajudC-la. Uma moga'jovei'n e.bonita como a senhora fard sucesso no teatro, estou certo. Meus p€sarnes e atC breve... Terminou o servigo. Terminaram as condol6ncias. Morreram-lhe o marido e o amante. Rita Maria ficou I disposi96o dos homens. 6l 9 M.antza O dentista Versilo estava seriamente encrencado. Sua mulher, a funcionCria pdblica Nilza Riveiro de Albuquerque Versilo, ao prestar depoimento no Cart6rio do 22" Distrito Policial, assumiu a culpa: Dei, sim, doutor. Dei na cara da vagabunda. E dou mais. Dou quantas vezes quiser. Dou atC ela largar do meu marido. O delegado era conhecido do sogro do dentista e pai de Nilza. Queria acomodar as coisas, mas estava diflcil. A vltima, certamente orientada, exigia ir a exame de corpo de delito. Ameagava ati com advogados, gente custosa que Deus botou no mundo para complicar as coisas simples. Mesmo a imprensa jlfarejava a notlcia. O rep6rce r da Luta Democrdtica,-Raul Azevedo, foi aconselhado a esquecer o epis6dio pela pr6pria direglo do jornal, pessoal das relag6es do sogro. Mas nlo iria ser fdcil. O jornalista era independente, alrivo, n5o se curvava a patrlo. Se levado na conversa, no PaPo amigo, puxado pelo cora96o, Raul poderia amolecer. Na dura' ficava fera, fazia a maior merda. E sem medir conseqii€ncias, ligar para o emprego, carreira, contas e pagar no fim do m6s. Nada, o cara ficava azedo. AlCm da "Luta", havie A Notlcia que tambdm cobria as delegacias. Se um publica o outro corre atrds do prejuizo. Atd quando poderiam tentear a imprensa? O prestigio do sogrande, nlo era ilimitado. gro, - conquanto Nilza, a mulher, soube que a enfermeira dividia as obrigag6es de atender os clientes e' nos intervalos das consultas, saciar o dentista. Ali mesmo no consult6rio. "Em cima da cadeira de dentista", contava indignada a pobre senhora. Uma amiga que chegou atrasada i consulta flagrara os dois trepando na cadeira. "Na cadeira de dentisti', repetia a traida. "Na cadeira que meu pai deu de presente", repisava a esPosa enganada. - JosC Acompanhada de um dos capangas do pai, invadiu o consult6rio e agrediu a enfermeira. 62 Apanha, cachorra! Apanha para aprendcr a nio -se ho-"- casado. Toma cachorra, urrava cnfurecida. "oE ceda vez mais dcsvaireda gritava c agredia. Na cara, cachorra. Vai apanhar na cara! -A outra tcntou rcagir. Mc larga, apelava ao impasslvel seguranga. Me larga quc eu mostro prck, E sc cspcrncava c berrava: Voci nio sc garantc. Tu I frie. Nlo segura seu homem. Aumentou a ira da mulhcr. Chicotcou a rival at€ v€-la dcsfalccer. O dcntista ficou chocado. E aterrorizado. Imagina se a Nilza dcscarr€ga em cima delc a raiva? Mclhor ncm?ensar' Melhor felar Jon o pai dela. Quc o recebeu bem. Era homcm, comprcendia o gcnro. Elc tambdm nlo cra ncnhum santo. Mas, quc diabo, o gcnro precisava tomar mais cuidado. Casado hC mais dc trinta anos' mas semPre cauteloso' A mulhcr tambdm era uml fcra. Nilzinha tinha a quem sair' Quc fosse passar uns dias fora. A casa de Iguaba estava is ordens. Ficassc por 14. Quando as coisas serenass€m' mandaria cham{-lo. Por inquanto' cra tcr paciSncia- Espcrar baixar a ooeira. Nlo, absoiutamcntc nfu admitia. Tirasse da cabega' besquite cstava fora de cogitagio. E, ante a insist€ncia do genro, a dcclaragio Per€mPt6ria, taxativa: Filha minha nlo dcsquita' s€u Versilo. Envidva' O dentista botou a viola no saco e foi em vilcgiatura para os banhos. Com a outra foi mais drdstico. Falou pro caPanga: Ela que se pire daqui. Do bairro, da minha vista' Manda cla sc arrancai, seu Torquato. Se recusar, dd um ensino ncla, arrematou o cxtremoso Pai. meter - O dclcgado nlo podia fazer nada. Lamentava, gostou da enfermcira. Morena iambo, lindfssima. 'Tinha gosto o dcntista", pcnsava a autoridadeE anic as alcgag6cs da morena dc quc o pai da agressora mandara um capanga ameag{-laVoc€ t€m prova da ameaga? - 63 Nlo, a enfermeira nio tinha Prova da amcaga. Nlo tinha prova de nada. O delegado era um grande de um sacana: como n6o saber que o caPanga escolado n6o deixaria prova? Pergunta mais besta. Nio tem prova? Entlo nlo posso fazer nada. O velho tem ligag6es com o gabinete do Chefe de Pol{cia, argumentava o prudcnte policial. Para concluir amistoso: Voc€ nlo tem um Parent€' uma amiga longe daqui? Fica l{- uns tempos. Abaixa i poeira, ent6o depois voc€ decide, sugcria o delcgado coincidindo com o sogro do namorado. Dcu-lhe um clario: lembrara-se de uma amiga de Marechal que morava em Copacabana e trabalhava no teatro. Foi entlo queVinia recebeu, em Copacabana, uma Mariza extremamente assustada, que relatou o acontecido e con- cluiu: mal? - Ai me lembrei de voc€. E vim pedir guarida. Fiz Vinia foi generosa, como semPre: bem. Afinal, amigo € ptcssas coisas. Ou nlo d? -Fez se acalmou. Vinia considerou a pldstica da Mariza amiga. Levanta.Mirize, vem ci. Seus peitos slo duros? -A outra estranhou a Pergunta: isso, VAnia, n5'o tb te entendendo... Que -VAnia riu-se. Deixa de bobagem' garota. E que estou pensando - pra voc€ na Rivista. Acho que vai dar. Amanhi te num lugar levo pra falar com o Valter Pinto. A outra quer saber em que consiste trabalhar na Revista. E coisa simples. A gente fica no fundo do palco. M6os -para cima, os peitos pra fora e mostra um pedago da bunda. Mariza agradeceu aos cCus a oportunidade. "Que sorte." Sorte mesmo. Uma vedete havia denunciado menores trabalhando nas boates e nos teatros e o juiz de menores esta- 64 va arrochando, de vez em quando mandava dar uma incerta. As menores tiveram de ser substituldas. Vdnia pergunta a uma Meriza mais calma, refestelada na poltrona, senhora de si, fumando de piteira: Se lembra da Alcinda lC de Marechal? -E ante a resposta afirmativa da amiga, continua: Pois i, andou dando umas cabegadas por af. Se me- um tira que batia nela. Largou o cara e se arranjou teu com no teatro rebolado. Quando eu tive de sair de casa porque um cara me sacaneou feio, foi ela quem me deu uma alga... Assim como voc6 estC fazendo comigo? - Assim, mesmo. TambCm esrd na Revista. Alids, foi - me levou. Agora cltama Eur(dice. Daqui a pouco ela quem vem af. Vem da aula de arte dramC.tica na escola de um cara que C bispo, coisa assim. 10 Euniotct O investigador de policia Mariano veio a conhecer a domCstica Alcinda Resende, solteira, branca, 23 anos, com g$em passou a viver maritalmente na rua dos Invdlidos, no 224, aparta.mento 19. Ultimamente, como andassem brigando muito, resolvcu mandar o amisio embora. A princlpio, o policial se conformou, mas quando a viu com outro, ficou fora de si. A pretexto de buscar camisas e cuecas que teria esquecido, voltou ao antigo lar. Alcinda tratou cortezmente, atC perceber a real intengSo do ex, momento em que lhe apontou a porta da rua. Mariano apelou para os sentimentos da domdstica. Que lembrasse os bons momentos que passaram juntos. Ele nio podia esquecer a radiografia do seu corpo. Controlaria o 96nio, ela iria ver. Tudo seria diferente. Ele havia aprendido a lig6o. Confiasse nele, a moga. Pedia apenas uma oportunidade. Palavra de escoteiro. Conversa mole que nio foi aceita por uma Alcinda, decidida a comegar vida nova, projeto que n6o incluia o vio- 65 lento policial, com rev6lver dependurado numa cintura cada vez mais informe pelo excesso de comida e bebida. E que roncava pra chuchu. Absolutamente. Tivesse paci€ncia, mas nlo davi mais pC. Pensasse antes. Agora, "jamais de la vie". Tivesse a gentileza de aliviar a sala, a casa' a rua' de sua molesta presenga. A bondade de aliviar-lhe a vida. Passasse bem o cavalheiro. Mariano ao ve r recusada a ansiada reconciliaglo armou o maior banz€. Moeu a domCstica de porrada. Deu vaza aos instintos que a atividade policial emPrestara alguma ticnica. E o resultado foi uma Alcinda espancada a pedir socorro aos vizinhos. A Rddio Patrulha logo acudiu. N6o prendeu o colega, mas levou-a ao Pronto-Socorro, onde foi atendida. Medicada e refeita, Alcinda foi tratar da pr6pria vida. Uma amiga de infAncia e do peito arranjou-lh 9 vege de corista no Teat-ro Jolo Caetano, q.t. levava a peea "E de Xurupito". Ficava no fundo do palco com colares parcialmente cobrindo seus seios empinados, duros e belos. E uma tanga sumdria que permitia vislumbrar, semPre que se mexia, uma bunda deslumbrante. Recatada, Alcinda relutou um Pouco. Mas o pavor de Mariano e a necessidade de uma nova vida, afastaram os preconceitos e contribuiram Para uma decislo, por todos os tltulos, perfeitamente adequada' A amiga Salustiana, agora chamada Bea, sugeriu que trocasse de nome e mudasse di enderego. Sabia de uma vaga no aPartamento de umas meninas da Revista, na rua Siqueira Campos. "Perto da praia, umas colegas 6timas." Lamentava n6o poder morar com ela. E que o coto" que bancava o ap€ gostava de encontrar tudo ,ro, .onfor-.r,'r.* gente por p.tio. E claro que podia ficar por uns dias, atC acertar tudo. Falaria com o coroa, que nlo poria obsticulos. Era gente boa, s6 que sistem{tico. Quanto ao nome? Bom, quanto ao nome tinha que trocar' mesmo' Aonde ji se viu torista chamada Alcinda? Nlo tinha cabimento. Mas que escolhesse um de seu agrado, nio dava palpites. Nome era uma coisa muito pessoal' E uma oportunidade rara, pois os pais sapecam cada nome na gente. Desculpasse mas nlo dava sugest6es. Ela i quem iria conviver com o nome. 66 Alcinda pensou bastante e rcsolveu-se pelo nome de urna pega que a havia impressionado muito. O artista sozinho no palco o tempo inteiro a chamar, a chamar, a contar casos, a lembrar, a chamar por ela... Resolvi, Bea. Vou me chamar Eurfdice! - I1 Br,e Para Bea, atd que o teatro rebolado acertou sua vida: mas custara! Embora o cach€ de corista n6o garantisse sua sobreviv€ncia, foi o teatro que lhe abriu as portas depois que ela mesma, por seus esforgos, as empurrara. Foi o que ensinou a VAnia, depois que a recolheu vftima do conto que lhe passou o sacana do Pcru. A atriz, minha filha, vive a apar€ncia. Tem de ter vestidos, bons sapatos e bolsas. As vezes atC chapCu. E bons cabeleireiro, manicure, pedicure, depiladora, maquiadora. E perfume e j6ias... A outra atalha. Mas dd pra ganhar bem? Pra pagar tudo isso? - N6o, niao dit. Nem pro aluguel do apartamento... - Entio, como faz? -Bea C professora de aluna que se revelard aplicada. A gente precisa de um senhor que nos ajude ou... - Ou entlo? Ou ent6o tem que C que apelar para o mich€,- mesmo. Mas Bea... - Mas o qu6, corag6o? - Isso C prostituiglo! - outra bate e rebate. A prostituigeo, criatura? Que prostituiglo? Pros- dQue ficar a mulher sentada e meio vestida esperando tituiglo ser escolhida. Olhada e examinada como gado. O cara se cheo dedo gando na cafetina € perguntando: "E aquela ali?" apontando a garota que finge n6o ser o alvo da-consulta. lAquela ali, responde a cafetina, C nova no saho, mas ti agra- 67 dando muito. Faz tudo. E completa." E o fregu€s, ainda nio satisfeito volta a perguntar: "E completa mesmo, faz tudo?" A dona a repetir: "Pode ir, C completa, sim, o senhor vai se agradar." Al o cara decide. D{ um toque na garota e vai para o quartinho. Na porta, a empregada oferece uma bacia, um pedago de sabonete e uma toalha pequena. A mulher se despe e se lava na frente do fregu6s. As vezes, as mais exigentes, quando completas, o lavam rambCm. E, depois, d o lescolesco. Paga e se despede. Terminou, terminou. Tirdo no maior profissionalismo. O cara vai embora, a garota volta para o saleo. E comega tudo outra vez: lavou, ti novo! Vlnia sc encolhe, mas mesmo assim arrisca um palpite. Entlo C uma espCcie de prostituiglo... -Bea nio se contdm. Mas quc mania, Deus meu! Escuta, Vinia. A puta com ela come e pege, ou melhor, paga pra comer. E se a garota recusar? - Se rccusar C despedida. E ainda se arrisca a levar umas porradas do lelo-de-chdcara. Poxa. Ouve, VAnia, ouve. Conheci uma moga que recusou um cara na Big, na rua Alice, embaixo e foi fazer a vida na mesma rua, mais em cima, porque a rua C uma ladcira, num puteiro carlssimo conhecido como Boceta-de-ouro. Pois bem: a dona do Boceta soube pela Big gue ela lhe recusara um cliente e sumariamente a despediu. Na hora. No olho da rua. E cad6 ela? - Ela, criatura, deu uma sorte que nem te conto. -O 'ncm te conto' d senha para contar. Conta, conta, estimula uma curiosa Vinia. - $stn, ela lcu em um andncio de jornal que estavam selecionando mogas numa rua lC em BrCs de Pina para trabalhar no teatro. A garota se tocou para Id e passou no teste. Dias depois, cstava ensaiando a pega "Castiga o couro', gue cm scguida estreava e itia fazer muito sucesso... VAnia n6o se segura e interrompe a narradora. bom! Que sorte! Ser{? -BeaQue atalha. - escolha. Fica sentada e o cara que simpatizar nio tem 68 Perai, crieture.Peral. Deixa eu contar. Nlo atrapa- eu contar... lha. Deixa Vinia se aquieta, dC espago. Assim a gente atC perde o fio da meada. Aonde d - estava mesmo? Ah, na pega! Pois (., fez sucesso e a que eu garota embarcou nele. Os homens pensam que s6 porqu€ a gente fica de perna de fora no palco somos todas fdceis. Nio €, nio. Muitas t€m obrigag6es com esposos, noivos, namorados. O trabalho de corista C trabalho, mesmo. Ensaia, trabalha e vai pra casa como todo o mundo. Mas os homens nio querem saber. As portas dos teatros de revista estlo cheias de gaui6es. Mas tambCm aparece gente boa. Convites para festas, bailes, jantares. A tal garota embarcou num convite desses e conheceu um cara superlegal... Vlnia, romintica, interrompe. E ai? E ai? Conta, Bea, conta! - Calma criatura. Vou contar. Escuta, presta atenglo. pra jantar ou uma festa, nlo sei, o que eu sei d Um convite que comegaram a sair juntos. O cara vinha esper{-la no caixa todas as noites. Era bonito de se ver. Sa{am como dois namoradinhos. Acabaram casando e a tal garota abandonou o rebolado. As vezes aparecem, quando esirCia uma pega e a genre manda convite de poltrona. pulx, Bea, que bacana!, d o que Vinia encontra pra dizer. - Bea n6o quer cortar de chofre as ilus6es da colega, mas tambdm n6o quer semear ilus6es. E, bacana, d, nio tem ddvida. Mas n6o d sempre as- Esse caso C exceg6o, a regra ( a dureza. Quem tem sim, n5o. pai e mie, casa pra morar, nlo tem de pagar aluguel, ainda agiienta. Quem n6o tem, s6 se virando. Mas aparecem muitos convites? Lugares chiques, caras bacanas, boas pintas? Aparece, sim, mas depois o programa termina no do cara. epartamento Fazer o qu€? - E;ezet o qu6? Fazer o qu€? Fazer o qu6, VAnia? Lever - santinha. Arrumar a casa. Preparar a janta. Tem cada a louga, uma... VAnia insistc. 69 E se n6o quiser... ah... ficar com o carai - EntSo n6o fosse. N6o aceitasse o convite. Voc€ pensa que o convite cai do cCu? Cai nio, criatura. Tem intermediCrio, filha. Um cara do pr6prio teatro. O porteiro, o caixa, a chapeleira. Ou mesmo os choferes de praga mais antigos que firem ponto no teatro. O intermediirio leva o dele' E tudo acertado antes. 56 jantar, s6 jantar' 56 baile, s6 baile. Ou entlo i tudo: barba, cabelo e bigode. O cara Paga o intermedidrio e a gente tambCm dC uma estia pra ele, pra ele indicar, sabe como C... Os caras perguntam: "Eu queria uma companhia..." Ai o intermedidrio adianta o teu lado. As vezes o ."t" t.- intenglo nume determinada garota. Pergunta: "E aquela ali?" Ai o intermedidrio d{ as dicas: "Topa, n6o topa. ropa isso, nlo topa aquilo. Aquela nlo C de programa." E por ei vai. E o sucesso, Bea? Quando vira vedete... Bea ri-se da ingenuidade alheia. gus6sss... Sucesso... -Vinia insiste. $uqg5ss, Bea. Sim, o sucesso! -Bea considera a Pergunta. E complexa. Pensa um Pouco. Bom Vinia. Algumas alcangam sucesso. Vlo para o - viram grandes cinema, vedetes, mas C raro. Bea estava coberta de razlao. O sucesso aparecia para poucas, muito poucas. No mais, muita canseira, trabalheira danada. As coristas s6o obrigadas a aPresentar regularmente I Divislo de Higiene e Seguranga do Trabalho um atestado de bons antecedCntes passado pelo 6196o policial alim de um outro certificado, um tal de certificado de capa-cidade flsica e mental passado pelo mCdico oficial do depar-tamento. Ai entrava o busilis da quest6o. O mCdico obrigava as rnogas a tirar a roupa toda e as examinava nas Partes mais intimas, apalpando os seios, as bundas, as Pernas. Fazendo_perguntas sobtl t.*o e nlo sei mais o qu€. Os olhinhos middos do midico ficavam vermelhos e uma baba comegava a escorrer dos cantos da boca. O cara tirava um lengo seboso e Procurava limpar-se com as mlos tr6mulas.'Ficava ofegante. Parecia que ia dlsmaiar. Sentava-se, olhava a paciente, a respiraglo voltava ao normal, assinava o papel e despedia a corista: "A se- 70 nhora pode ir. Passou no exame.' A garota aliviada e com o papel na m6o s6 pensava em fugir do consult6rio. Um nojo! Resumia Bea fazendo uma careta que sigasco. profundo nificava VAnia n6o se dC por vencida. Mas deve ter um lado bom. Tanta pluma, tanta lantejoula, tanto paete... E as mtsicas? Ainda nlo seria dessa vez que Bea daria uma colherde-ch{ I futura corista. E... Pode scr... Mas atd a mulher chegar a ser vedevai emargar um bocado. Berram por tudo! Berram porque te, falou baixo; bcrram Polque voc€ falou alto. voc6 Vinia nlo entende: d toda indagaglo. Bea C toda resPosta. Mesmo nos ensaios, voc6 tcm de filar e sua 'fala" mais alto ou cantar mais alto ainda, senSo os contra-regras ou ensaiadores gritam conrigo Porque os que estlo nas dltimas filas tambCm pagararn e por isso t€m o direito de ouvir, de ouvir tudo. TC certo, n6o tiro o direito deles; mas nlo precisam gritar com a gente. E ensaio C ensaio, espetdc-ulo i espetdculo-. Nlo foi aquele jogador de futebol que disse: "Triino € treino, jogo C jogoi" Entlo, no palco C igual. Mas eles n[o querem saber. Vlnia se complica. Entlo por que gritam, quando voc€s falam alto? - No camarim, criatura. Se levantar a voz no cama- a maior bronca da par6quia. E e*pressamente proirim, leva bido falar alto no camarim. - pode. - xi! Pois d: nlo pode isso, nlo pode aquilo. 6, tudo n6o Bea estava coberta de razlo. Os teatros atd afixavam um aviso com listagens dos "nlo podes". Povinho mais atrasado esse dos teatros de Revista. 'Nlo pode transitar pelos corredores em roupas de baixo; nlo pode tingir os cabelos sem licenga da diregio; n6o pode modificar o penteado; nlo pode estacionar nos corredores que levam aos camarins; n6o pode entrar em camarim de homem; nlo pode deixar que ho-.- entr€ em seu camarim; nlo pode assinar abaixo-assinados, sem consultar o cmpresCrio; nlo pode falar alto nos 7l bastidores; nio pode pregar prego nos camarins, nem escrevcr nas parcdes; nio pode acrescentar "cacos' ao texto; nio pode deixar que as baratas roam as roupas de cena sob os cuidados dos artistas; ndo pode ir I praia...' Essas duas dltimas proibig6es intrigam I Vinia, particularmente . Peral. Essas eu nio estou entendendo... - Entendendo o que, criatura? - Os teatros t€m baratas? - gxlxixslTem baratas, sim. Os velhos teetros da Praga Tiradentes t€m baratas, ratos, lacraias. Tem dias que os bichos estSo mais atacados, o verio, sei lai, que a gente tem de subir nas cadeiras pra se vestir. E por que nlo pode ir I praia? - Porque n6o pode pegar sol. Umas argentinas nlo se e foram I praia. O sol as denunciou. Foram puagiientaram nidas. Punidas como? - Multa, minha santa, multa. Trinta por cento do cach€.-E ainda tem mais multa. Quer ver? (A outra queria.) Na companhia do Valter Pinto, os homens podem chegar- no teatro a pC; mulher, n1o. Tem de chegar de carro: se neo tiver quem leve tem de chegar de tdxi. A multa C a mesmar trinta por cento do cach€. Sacanagem. - Da grossa. E tem mais. As coristas s5o obrigadas a sorrir.-Mesmo sem vontade ou com dor de dentes. A gente tem de passar alegria para o espectador. E o sorriso C essencid. Tanto assim, que houve uma briga entre as coristas e as vedetes com o Carlos Machado e elas fizeram a greve do sorriso na boate Night and Day Gostei. E como resolveu? Foram multadas? - Nao, nlo foram, nio. Aconteceu que o Stanislaw Ponte -Preta e o Ant6nio Maria tomaram as dores das meninas e desancaram o Machado pelas colunas dos jornais... 72 Qtt. jornais? O Maria no O Globo e o Lalau no Ohirna Hora. Ah. Bom, af o Machado teve de recuar. Mas a briga foi o que? - Nlo sei bem. Parece que as meninas queriam que a as carteiras de trabalho delas e... casa zssinasse UC, nlo assinam carteira? - Nlo assinam nada. Pagam contra - recibo. -EoMachadoassinou? Assinou, sim. AtC que o Machado € gente boa. Mas - C, patrSo C patrlo. E, inimigo do trabalhador. Pelo sabe como menos C o que vive dizendo o Marcelo, um rapaz que namora uma bailarina do "Comigo C no caractxl' , uma pega que est{ levando no Jolo Caetano. E namoro sCrio. VAnia, romintica irrecuperCvel, quer mais pormeno- res. \fxmsss, mesmo, pra valer? - Claro! Ou voc€ pensa que a gente nlo namora? -Vlnia se explica. Bea nio a entendera bem. Claro que namora, Bea, mas o que eu perguntei C se - C pra casar, por exemplo. o namoro Pode atC dar em car"rrrer,to, Vinia. E como todo - 56 porque namota, tem de casar? namoro. E como a outra n6o responde, Bea insiste. Basta namorar pra casar? Vinia. Responde criatura: tem de casar? se namorar Nlo, nlo C obrigado. Eu s6 perguntei se era namoro comum... E, comum. E como qualquer namoro. E o namoro - C muito legal. E, legal is panpas. dos dois Vinia quer saber. Conta, Bea. Conta tudo. (Era louca por hist6rias de - De fadas c princesas. Aquelas em que tudo acaba romancc. bem, afinal.) A bailarina chama-se Ldcia Gerck. Nio C corista, nem vedete: € bailarina. A mle trabalha na noite, no Night and Day C fot6grafa. Parece que ji foi corista. Agora C fot6grafa. A filha, Lricia, desde pequena, estuda bal6. Tem um curso no Teatro Municipal, a menina estuda l{ e pretende entrar no corpo de baile do teatro. A irm6 do Marcelo, Denise, tambCm estuda no Municipal. Ld se conheceram. Assim que Ldcia completou dezoito anos, a m6e arranjou dela se apresentar no teatro rebolado, como bailarina. Na pcga, tcm 73 um quadro em que ela danga. O namorado estuda Direito e trabalha de rep6rter no Didrio de Notlcias. Faz plantio de policia na delegacia da rua Hilirio de Gouveia. Toda noite ele traz a Lricia e a leva pra casa depois do espeticulo. Conversa muito com a gente. Fala que o pessoal tem de se organizar, fundar um sindicato, reivindicar. Fala mal do patrSo, fala mal do governo, fala mal dos trusts, dos americanos. E comunista mas i boa gente. 12 Des Dones I Menina ainda, eram os caminhos a grande atraglo. Vivia matutando, contemplativa: o tanto que ficava olhando a estrada. O tempSo que consumia em ver a mesma paisagem, como se de tanto olhar descobrisse novidades. As irvores eram i as mesmas, as estag6es que se encarregavam de mudar-lhes a vestimenta. Mas as drvores permaneciam enraizadas como a desafiar transformag5es. E pareciam apenas tolerar a primavera, o outono. As flores poucas, as folhas muitas. E uma tristeza infinita. Pouso Alegre , cidadezinha do Planalto Mineiro, distava umas quantas liguas de Pogos de Caldas, onde seu Quaresma freqi.ientemente ia aos escambos. E Das Dores era assfdua passageira. Me leva, papai. -A vozinha doce, melada, irresistivel. Levo. minha filha. -Das Dores ia na boliia da perua, consumindo a paisagem. Outras irvores. Os rios que formavam lagoas e que voltevam a ser rios: que se perdiam de vista e mais adiante se encontravam numa curva da estrada. Plantagdes, cria96es. Casas, caslo, casebres. Pessoas eram permanente novidade. Estincia Hidromineral, Pogos de Caldas seguidamenre esrreava gente. Forasteiros que vinham pelas dguas e para as curas. Ou por um merecido descanso, direito que, para alguns, se alcanga de- 74 pois de muito trabalhar; Para outros, estado Pe rmanente.Porque j{ nasceram cansadoi ou se fatigam com o labor alheio' P"so"t novas e coloridas Para Permanente entretenimento e redobrada admiraglo da garota. Com elas nio falava e nem nelas pegava, mas olhava que olhava. Especialmente no inverno q"and" os suCteres viiitavam a cidade: ficava atarantada .Lr.t fortes e bonitas em malhas de 16. Casacos de cou", -ro argentino gostava muito. Idem de camurga. Das Dores .t1- almejava t€-los' Contcntar-se-ia em neles singJar p"ri"t as m6ozinhas, sentir-lhes a maciez, a textura fina. Apreespecialmente as de cano alto' ciava bolsas, sapatos e botas Com su€ieres, casacos'- estolas, gorros e luvas I sua in- teira disposiglo, Das Dores compunha altas figura96es. NinguCm possuia maior e mais variado.guarda-roupa, pois a imaginagao C como o sonho: nio tem limites! Combinava cores e tons' nuangas eram apropriadamente consideradas: lis com camurga, las com couro, lls com l6s. Composto o traje, comparecia o cachen€-para agasalhar o p.t.ogo. Ou mantas, mantilhas, caPas' palas, vCus, ponchos e lengos de seda, fular. Vestia e desvestia sem o trabalho de faz6-lo. Tudo ao alcance da m6o, da inspiragio. Era um exercicio fascinante' Podia praticC-lo em pdblico ou em privado. O teatro em que Das Dores se movimentava era o pr6prio Pensamento' terreno em que i inritil querer aventurar-se. Curioso i que as Pessoas nio se apercebiam das surpreendentes combinag5es que o gosto da menina engendrava' Retirava, por conta pr6pria, elementos de uma rouPa e os inseria .tri outt".. SC gostasse de um suCter e nele quisesse aplicar um losango ariarelo em seu camPo ezul, n-ao fazia cirim6nia. Os casacos tambCm se Prestavam a oPortunas modificag6es: trocava bolsos, bot6es, lapelas, mangas. Gorros e luuas eram destaque ir parte . Gostava de v€-los combinarem entre si. N6o sC lhe importava' sequer, que destoassem do conjunto, afinal logrado ap6s pacientes combinag6es ingentes criag6es--Queria-os ressalporq,ti n6o dizer - ern arranios brilhantes. Ufa! - com cores berrantes "tadoi Tal se via a menina em suas figurag6es. 75 Daf que Das Dores foi irremediavelrnente atralda por um sudter de colorida malha de ll, gola tipo rul€ combinando com os punhos duplos, ambos alvos. Um lindlssimo casaco de camurga, comprido e extremamente charmoso, luvas dc couro c pequeno chapCu com uma pena atrevida na fita de sua copa. Botas de cano alto parcialmente escondidas nas pcrnas de uma calga de flanela. Os tac6es das botas, ouviu, ressoavam pelas noitcs de Pogos de Caldas. Sendo assim composta a figura, pouco se dava a Das Dores que o tipo fosse pr6vido e som{tico, diligente e lhano, napeiro e estdlido. Por ser alto e magro, perfeiro manequim, perdoava-se-lhe o bigode idiota, os gesros vagos, set gr,rlh" e pcco. Das Dores, ali{s, haverC scmpre de manifestar prefer€ncia por homens magros e estultos. Conta, enteo, a lenda que ela se perdeu nos perros de Pogos de Caldas. Para logo adiante se enconrrar liberta c confusa, lampcira c feliz. E algo dolorida. N6o houve enleio, mas um certo encanto e muita novidade. Era melhor iniciar-se nos rudimentos do amor do que ficar ouvindo o grito triste do aboio. Por que abster-se e-ficar queimando? OtCvio ficou aturdido. Que acaso benevolente permitiu-lhe a inauguragio de tal monumento? E pensar que idiota vacilara em fazer a viagem. A praga de Pogos -de Caldas -sem especiais atrativos, as perspectivas de venda desalentando o cometa, sempre reclamando da sorte, vftima do tzer.,O quc nlo deixeva de conter um certo exagero, desculpdvel, entrctanro, pois o comum das pessoas, nituralmente, quer os fados ao seu exclusivo servigo. E revoltam-se quando as coisas n5o dlo certo: contra o destino, contra os outros. E atC o bom Deus entra na danga. Mas Ele faz que nio v€ e vai distribuindo gragas como pode e sendo miseiicordioso sempre que possivel. Nlo seria o caso presente? Que outra explicagio para o momenro sublime vivido por Otdvio dos Santos Baptista, natural do subdrbio carioca de Maria da Graga, branco azedo, vendedor de merda? Por que teria alcangado o beneflcio de tamanha graEa? Jd que n6o reve merecimento, fora graga, entio. E nio por amor ou particular afeto, ou qualquer coisa do g€nero. Foi o acaso, mero imprevisto, no76 tdvel eventualidade. Quando imaginaria Otdvio, em sua exist€ncia inritil, ser provido de tamanha bem-aventuranga' o gozo do mundo? A felicidade C apenas um estado prolongado de alegria, um perfodo sem maiores afli96es, as angristias Passando ao largo. Positivamente n6o era, nem poderia ser, o sentim€nto que o possufa. Era mais para ribombo do que paragem: exploslo, no duro. Exaltagio! F.nt6o, era agarrar-se ao momento, prolongC-lo o mais que pudesse' estender, dilatar. Permanecer exaltado e desfrutar o mais gue pudesse e a{ enteo, quem sabe, encontrar a felicidade. E as coisas seguiriam seu natural curso, sem novidades de monta, se Das Dores nlo surpreendesse o idiota do Ot6vio, parrana, metido em um desconjuntado pijama' no amanhecer de um dia em que decidira fazer-lhe surPresa na Penslo que o hospcdava. O pijama era decepcionante. Nlo combinava com suCteres coloridas, casacos de camurga, botas de cano alto, beijos - no portlo. De um azul pilido, lencinho branco no bolsinho do palet6, frouxo e lasso, o pijama emPrestava ao usuCrio uma apar6ncia desleixada, negligente. Os bolsos do palet6, os de baixo, continham, por sua vez, cigerros e f6sforos. Inaceit{vel. Das Dores era remetida aos almogos de domingo e m sua casa. Seu Quaresma, pijama e palito na- boca, satisfeito, a dormitar na cadeira de balango. E quando seu tio, meio-irmlo do pai, morador em Goiis, onde vagamente mexia com minerais, pedras preciosas e semipreciosas, vinha de visita, ficavam ambos naqueles trajes prec{rios. E de chinelas. Nesses dias, a menina amanhecia com a av6 atrds do roco. O ruido dos fdsforos, os f6sforos na caixa' a caixa no bolso, o bolso do pijama. A barba por fazer. O mundo por mudar. E chinelas. Das Dores imaginava que se mais tios tivesse, mais convidados houvessem, entlo mais pijamas teria de suportar. E chinelas com carpins? Era um pesadelo. Olhou os pCs do namorado. Estava descalgo. Menos mal. Menos dissabores pare e pobre. Aturdido, encalistou-se o cometa. Nlo estava i altura de tais momentos. A subitaneidade do aparecimento da deu- 77 o personagem. Mas quem n6o ficaria? A preinebriando! E o diabo do urinol bem I vista. Nlo hC cena que resista I presenga de urn urinol entre as partes. E de tal sorte que para um chcgar atC o outro teria de transpor aquele ins6lito obstCculo. Ou lade{-lo, atitude sem ddvida mais prudente naquela dificil circunstincia. Otivio compreendeu que o pijama iria estragar tudo. Das Dores poderia relevar o urinol, pega que guarnecia o quarto e nlo propriamente a sua pessoa. Mas o pijama era diflcil de explicar. Imaginou dizer: "Todos usam, Das Dores.' E continuar no mesmo tom subalterno: "Que culpa tenho eu?" Quem sabe na generalizaglo n'ao encontraria uma salda mais ou menos honrosa? Ou seria de ouro o sil€ncio? Ou melhor arrojar-se aos pds da menina e implorar por seu sa confundiu senga dela inundando o quarto de luz, seqperfume perdlo? Ou, quem sabe, melhor seria n5.o fazer nada disso? Procurar agir com naturalidade comportamento quc apenas - todo o g€nero slo capazes dc os reis, os niscio e os loucos de administrar com permanentc €xito. Talvez oferecer-lhe uma cadeira. Dirigir-se ir pia e fazer sua matinal ablugio. Como se o dia tivesse comegando... Das Dores compreendeu, ali, que pijamas assim tornariam insuport{vel qualque r pretensio I vida cm comum. Quc n6o teria maiores atrativos: seria mon6tona e degenerada. Pressionado, o cometa poderia fazer limitadas concess6es ao gosto universal: usaria calgas civis, mas manteria o palet6 do pijama. "Scm acordo", pensava. A aparente boa vontade cncerraria, no fundo, abjeta conciliaglo. O pijama apareceu quando o traje degradou de suas responsabilidades. Qualquer composig5o em torno de pijamas, suas calgas e palet6s, juntos ou separados, implicaria obn6xia condescend€ncia, positivamente inadmissfvel. As primeiras p4lavras foram enteo pronunciadas naquela fria manhl de inverno: Bom-dia, Otdvio. - Bom-dia, Das Dores. Entre, faga o favor. Que grata - Voc€ por aqui... surpresa. Das Dores fez que nlo viu o pcnico. Aceitou a cadeira, 78 sentou-se, colocou as meos no regago, e assim ficou, linguida e bela. Otivio recomp6s-se, pigarreou, a express1o imbecil. Voc€ sabia, Das Dores, que sou sobrinho, por parte - de Dom Manoel Ceia Laranjeira, Bispo da Igreja de mle, Cat6lica do Brasil? (Sil€ncio.) Voc€ sabia, das Dores, que meu tio, o Bispo, d - da "DIANE Divulgaglo Independente de Artiscurador tas Nacionais e Escritores"? (Sil€ncio.) Voc6 sabia, das Dores, que meu tio, o Bispo, tem a - de auxiliar aspirantes I carreira teatral, ao cinema? bondade Descobrir talentos, revelar vocag6es? Das Dores algou os olhos lindos: interessava-se. 13 D.as Dorcs II Das Dores n5.o se apercebia das angristias de Otdvio dos Santos Baptista, mascate mofino, apoucado cidadlo a ter nas m6os idiotas, sern merecer, um raio de sol. Sua estupefagio decorria da evidente constatagio de que a beleza da menina s6 podia estar transitoriamente I disposigSo de sua achamboada pessoa. A transcendente criaturinha ainda n6o se dera conta que desperdigava gemidos, maviosos ais, com um tipo achavascado e estulto. Nio reparava, o pulha, o que ela tinha de di{fana, vol6til, etCrea. 56 I porrada! Otdvio era idiota, mas n6o ao ponto de desconhecer o dilema em que se metera: se leva a moga para a Capital, fatalmente a perder6; sc nlo a leva, perde do mesmo jeito, pois outro a levar{, jC que seu destino C o mar. E nem das Dores poderia saber das lambangas do tio do namorado (Ah, cachorro!) usado pelo sobrinho como isca para atrair a menina para a Capital e desfrutar de sua companhia, quem sabe por mais tempo. Que perderia das Dores atC OtSvio jC atinara. 79 E como das Dores poderia saber das rrapalhadas do tio do cometa? Adivinhar C proibido e a vida nlo C um livro em que a gente pode pular umas piginas, saltar uns capitulos e voltar informado, a curiosidade satisfeita, a trama esclarecida, a urdidura descoberta, o final antecipado pela curiosidade do leitor. A vida C o dia trangado com a noite, cuidadosa fieira de sucedidos, renque de desgostos, sirie de alegrias ocasionais. A vida d o penoso exercfcio de si mesmo, a busca da felicidade, a saudade pingando, o ourigo geral: C cozer pacientemente a pr6pria mortalha. E quando vieram i tona as lambangas do tio do mascate , enteo das Dores jt n6o era mais das Dores, embora sendo a mesrna, era outra Pessoa. E tampouco teria ligado ao desmantelamento da arapuca, jd estava em outra. Pouco apre ndeu na "DIANE Divulgagio Independente de Artistas Nacionais e Escrirores", mas fez contatos, relag6es, conheceu gente, pegou asiCtica e foi apresentada ao Rei da Noite. E sofreu, sofreu o pior agravo que uma mulher pode sofrer. Mas disso n6o gostaria de falar. Ao considerar seriamente o convite do cometa, das Dores acalentava antigo sonho de federalizar-se, fazer a Capital. Importava-se pouco (Louvado seja Deus!) com o convidante. Serviria de passaporte, nada mais. Mogigangas deixava; o atrds era um nadinha, nonadas, migalhas. Sofreu crianga, perdera cedo a mle.. Dela guardava lembrangas vagas, sem maiores pristimos. As turras com o pai, vivia a mie no cotidiano pouso-alegrense. A cabega fora de casa, o sentido ld longe. E avoz do pai, rouquenha e severa: Baixa o fogo, mulher! -Perfeitamente, baixar o fogo. Mas que fogo, se a lareira estava {ao apagede quanto o foglo? E mesmo o ferro de engomar jit n5.o continha os carvlozinhos em brasa, as iscuas que lhe davam serventia. Mas o pai devia ver o que os olhinhos da crianga nio pescavam. Ou entender de coisas que a filha nlo atinava. Ou simplesmente desconfiar. Ou deixar-se tomar pela suspeita, que d soma de desconfiangas anteriores, do temor habitual que os homens t6m de ser enganados, adornados com chifres, chamados i sorrelfa de corno, galhio, cabr6o. Cavilosos, a transformar meros indicios em forrlssimas 80 Ou mesmo afirmar sem Prova. provada, tendo a revelagio como certeze de pr6pria suspeita. E o "p.tt"r nieterico, o filho da Candinha? Entretanto, o pai devia saber o que repetia pelos cantos da casa, estivcsse ou nio presente presung5es. a mie. Baixa o fogo, mulher! baitat o fogo. Mas que fogo, se ele mesmo consumiu as provas em queirnadas, rest.ando apenas o preconceito, qoe i inimigo de :':iz5io, a alma do entendimenio. Pondere, liomem: os fatos nio sustentam a ddvida. Nlo se ponha a servigo do dem6nio' Deixe de ser Puto e n-a.o fage culto aos g€nios do mal. Nlo corra atrds de quem seescond.e -Perfeitamente, no anoniilato. O relato C de duvidosa autenticidade, o bilhete d ap6crifo. Que lavar a honra, seu Quaresma? Honra nlo se lava, pois n6o se lavam sentimentos. Lava-se rouPa' homern. Roupa suja. Que rios de sangue' homern. Agua -c sablo. Essas coisas'do amor apaixonado e cego comegam ridlculas c terminam em crimei. O prcconceito C uma bruxa solta dentro de sua cabega. S€ besta, livre-se dela, homem' Tomc ten€ncia na vida. Sua mulher C 6tima. Baixa o fogo, mulher! -Perfcitamente-, baixar o fogo. Mas que fogo, Helena? E a babC, prestimosa a alcoviteira, acudia com leitinhos € Papinhas, iarinhos e comidinhas. E mles-bentas, iguaria de sua ispecialissima especialidade, porCm, inventada Por uma cert"-Don" Benta Maria da ConceigloTorres, afamada quituteira na Corte do Imperador menino, manjar, entretanto' a conhecer culminincias nas m6os da bab{, que misturava farinha de trigo e os ovos com unglo e chegava eo Ponto d::ozimento c6m precisio. Mas falar, falava n1o. Boca-de-siri' Baixa o fogo, mulher! -Pert'eitamenti o fogo foi baixado. Por uma foice. Das Dores ficou por unt t.-pot em casa de uma sua madrinha, moradora dos arredores da cidadezinha. Pessoa bondosa e sensate e que gostava mais € de cuidar da pr6pria vida' Vestiu-se d. pt.ti Para o enterro. Chorou quitg mas logo foi brincar no quinial com o filho de sua madrinha, menino esperto que qleria ser bombeiro, soldado d9.f9So' amigo. do porro. Ett" vocagio, a de apagar fogo, sensibilizou a menina, que via no colega uma espCcie de her6i. Chegasse antes' e 8l teria apagado o fogo da mie, contentado o pai, que respondeu a jdri e saiu limpo, absolvidinho da silva: legltima defesa da honra. Das Dores deixou a casa da madrinha com alguma tristeza. Terminaram as brincadeiras. Nas festas de Slo Jo6o a fogueirinha a crepitar no quintal e a das Dores a incentivar naturais pendores: Apaga o fogo, Aralto. Apaga o fogo! -E Aralto, futuro bombeiro, acorria prestimoso, desfa- zia a fogueirinha, separava os galhos que a compunham, desempilhava a lenha incandescente, isolava as chamas, jogava {gua. Apagava o fogo. Foi a primeira paixio da menina. Em labaredas. 14 Das Doax III O bestalhlo do mascate agora andava ) pressa. Talvez pressentisse concorrentes, farejasse perigos. Andara sonhando chegar de deusa I Capital. E lembrava ditados que a sabedoria popular produzia para conferir forga )rs palavras. E entupia os ouvidos da menina com a falagio asnitica. "A pressa C inimiga da perfeigio." Ou: "Antcs tarde do que nunca." O animal nlo via que a argumentaglo caminhava no sentido oposto aos seus desejos? Ao conrririo, sugeria que das Dores pensasse melhor, nlo se afobasse. Os ditos lhe eram adversos, mas o regatao os repetia. Qomo a deusa fizesse ouvidos moucos, imersa em escassas recordag5es e algumas esperangas, continuou Otlvio dos Santos Baptista. "Ad perpetuam rei memoriam." -O cretino absolutamente n5o conhecia o significado da expressSo latina. Mas era latim, lingua de padre, poderia lembrar, a das Dores, o seu tio Bispo, Dom Laranjeira, curador da "DIANE", informagio que havia despertado o interesse da menina. Quem sabe n6o tiraria a namorada (Ah, cachor- 82 ro!) do devaneio? E voc0 sabe o que i devaneio, seu filho-daputa? VocO envolve seus Pensamentos em sonhos? Persegue quimeras? Se avexe, voc6 nio fez neda disso. VocO nem goza, voc€ sente afliglo. Coloque as pr6prias palavras ao seu servigo ou cale essa boca, ouviu? Mas nlo d que o sicofanta aPrestava-se a insistir com outro addgio? Parice ter balbuciado "ala jat es" ou coisa semelhante,-querendo dizer "alea jacta est" e langando-se-l sorte. A expresslo anterior, "ad perpetuam rei memoriam', por sua oriiem can6nica, jri que compunha bulas papais, Poieria lemblr, bamburro do acaso, o religioso seu tio' lntimo de cardeais e PaPas' e dar um toque na deusa' recordar-lhe a possfvel ."rr.ir" teatral. A derradeira citaglo, entretanto, "A sorte estC lanqada", atribulda a Jdlio CCsar ao transPor o Rubic6o, rio qui seParava a Itdlia da G{lia Cisalpina, Para enfrentar Pompeu J o Senado Romano, ficou na hist6ria como imorredouro g.rro de intrepidez e desafio: ou tudo ou nada! Ou vai ou rac-ha! Decididamente n6o se coadunava com Pessoa teo destituida de rompantes, express6es eternas que nlo habitavam "in anima vili". Ou seri que o n€scio hesitava em levar a deusa Para e Cidade de S5o Sebastilo do Rio de Janeiro, com sua graga irresponsCvel, suas praias apertadas entr€ o mar e a monta,rh",'sau trinsito louco, sels arranha-cius e casebres, seus homens blrbaros, paglos, infiiis a nlo respeitar a mulher alheia, a dizer piadinha, a passar-lhes a mlo na bunda' Ent6o, era isso: se fica, teme a concorr€ncia local - prim-os' amieos de infAncia, conhecidos antigos do grupo escolar' eueritu"is turistaf, de Pogos de Caldas; se vai, a cidade enorme a tragar incautos, a consumir matutos, as oferendas irrecusdveis.-Tinha raz-ao santo Agostinho ao considerar a drivida como a pior das angristias. Mas Otiivio precisava decidir-se, deixar de bobagens e levar a deusa p"t" o centro do mundo. Afinal, vocd d ou n6o c torcedor do'Bangu Futebol clube e eventual freqiientador do Cordlo do Bola Pieta? Quem n6o chora, nlo mama, Otivio. N6o seja assim' homem! Lembre-se de gue^ a. ignorAncia C a tolice atarriada de presunglo. Viva a vida federal plenamente, nlo se faEa de rogado. Se lhe tomarem a mulher, azar 83 voce ir{ perd6-la de qualquer maneira. Mas ter{ vivido de gl6ria. Serd reconhecido. Ter{ uma est{tua, um bronzc naquele subrlrbio de mcrda em que voc6 sc €sconde. Vamos, homem, decida-se. Estio todos isperando por um ato seu de vontade. A vida C incerra exist€niia. Dcixt-se de besteiras, cara. D6 sentido prestCvel i sua misera passagern por esse vale de lCgrimas. Delibere-se, homem. OtCvio, voc€ d um remarado filho-da-puta! Vamos, das Dores. Vamos para o Rio, voc6 vai gostar. A -cidade d tlo grandc, imcnso d o mar. Ot{vio dos Santos Baptista, insigne comera, patrlcio de excelsas virrudes, cidadio-prert"nt.,-p.r,sava olhai o infinito. -seu momento T5 A vtttctu A noite, aos poucos, ia capturando a tarde que morria em restos de luz. As sombras ganhavam a mineirlsiima cidade de Pouso Alegre. O sol jC se escondia, mas a lua neca de aparecer. A vida continuava. 'hrranjei urne cerona atC Piquete." 'Nada deixo .ie mim. Levo-me rodinha." Piquere, Engenheiro Passos d um pulo, nlo tem - -'De problema.' 'Mcu pai nem vai se importar. Ele usa pijama." "Tem uma serra no caminho. Voc€ conhece a estrada por aqueles lados?" 'Nem cachorro eu tenho. Uns trastes poucos. Helena tambCm foi inventar de morrer.' 'Ficaremos hospedados na Fazenda Trds Pinheiros, em Engenheiro Passos, em Resende, jd no Estado do Rio. O dono C meu amigo." 'Para que despedir-me?" "Chama-se Augusto." 'Despedir-me de quem?" 84 "Augusto Carvalho C meu amigo. Fazendeiro, toca sanalegre." "O pai apagou o fogo da mie." 'E alegre , toca sanfona, conta casos. E muito fazende iro, mesmo. Amigo pra valer." "O pai apagou o fogo da mie." "Foi delegado de polfcia. Agora, C politico, conta hist6ria de politica, do Gettilio Vargas, i muito amigo meu, fazendeiro, alegre, toca sanfona. E canta." "Pobre de quem n6o tem m6e. As ralzes n6o lhe pufona, C xam.tt E prefeito de Resende, a cidade da qual lhe falei. Toca sanfona e canta para alegrar as noites da fazenda, os h6spedes. E muito amigo meu, conta casos.' "Quem nio tem raizes como faz na vida?" "O clima i muito bom. Voc€ acorda cedo, toma leite no curral. Voc€ gosta de acordar cedo? Agrada-lhe o leite ? " "Quem cuidard de criag-aozinha do quintal?" A comida C farta e muito gostosa. Na fazenda. E as sobremesas muito variadas. Como a prosa do meu amigo. Fazendeiro, polltico, alegre, toca sanfona, canta." "E melhor dar os galos, as galinhas, os pintinhos." "E casado com uma senhora muito bonita chamada Dona Adriana." "E os patos?. Ia me esquecendo." *Dona Adri'Lra joga p6quer. Na fazenda." "E o leitlozinho, t6o gordinho." "Eu )s vezes jogo. Nlo 6 sempre. 56 quando falta alguCm para a parceirada. Dona Adriana chama: 'Venha, seu Ot{vio, venha jogar com a gente, completar a m6o'." "Dos meninos neo levo saudade. Sempre me pegando, me sujeitando, querendo coisas, agarrando-me os peitos, levantando minha saia, arreliando-me." "Se n6o tambCm nlo jogo." 'Arreliando-me, pedindo coisas, machucando-me, enfiando-me a lingua, os dedos." "... E que o jog6 pode esquentar, se as paradas aumentarem muito." " 'Vire, vire das Dores,' pediam os safados." 85 "E jogo C jogo. Tem de ter sorte. Prestar atengdo na pedida, na cara do parceiro- E ter sorte. A carta boa chegar na hora. Corresponder." "Menina nenhuma tenho por constante amiga. Nlo gosto de mulher. Tenho outras devog6es." "A gente passa uns dias na fazenda, descansando." 'A madrinha mudou. Aralto nio mora mais em Pouso Alegre. Foi servir o Exircito. Parece que engajou, mora no Rio." "E brinca com os filhos do casal. Ele toca sanfona, ele canta, i alegre, i politico, conta casos. Ela i senhora bondosa, cuida da fazenda, cuida da escrita da fazenda' joga p6quer. " "Serd que vou encontrar com ele no Rio?" "Eles t€m dois'filhos, duas criangas lindas. Voc6 gosta de criangas?" "Poderia andar por uma rua ds Rio e de repente topar com ele. Bonito, fardado. A gente poderia passear na cidade grande, tomar sorvete, dormir juntos, matar a fome ." "O menino se chama Noel; a menina, Martinha. Slo uns amores de crianga." "N6o fago falta." "Monta-se a cavalo, anda-se de charrete e toma banho de agude. Voc€ jd montou a cavalo? Voc6 jd andou de charrete? E agude, tomou banho?" . "Nunca foi lugar de eu mesma." "Eles t€m outra fazendinha colada. Chama-se Ponte Nova. Se nlo tiver lugar na sede da fezende, a gente fica na fazendinha." "Lugar meu?" "Mas tem um lugar, sim, nlo se assuste. E jaca. Tem iace na fazenda do seu Augusto. Tem doce de jaca. Tem doce de tudo. E sanfona." "Nada me prende aqui. Aralto nio apagou o fogo da m5.e. Vou-me embora." O vendedor pergunta ansioso: Vamos, das Dores? - \,/xmss, Ordvio. -E, virando-se para o cometa, as costas para e mine ira 86 cidade de Pouso Alegre, caminho de Pogos de Caldas, lugar em que nasceu, vivera sua vidinha, exclamou: Se vestir guarda-p6, nlo vou! - I6 A escotne Do NoME Que lhe reservar{ a cidade grande, das Dores? MundCu de genti desconhecida. Desprop6sito de bairros, ruas' casas' apartamentos, barracos. Voc€ n6o conhece ninguCm. Pessoas ,rlltadas para si mesmas, os pr6prios problemas, atribulag6es v{rias, aflig6er. Quando muito, um bom-dia, de dia; de tarde, boa-tarde; de noite, boa-noite. E estamos conversados. nada, nada. Quando \ E tlo lindo o Rio. A cidade tem magia, envolve gitt" te. Voc6 vai viver numa cidade moderna. Como as melhores do mundo. 56 que mais bonita, mais bonita que todas' O carioca C a melhor gente do mundo: acolhedor, boa praga, universal, gozador, sempre tirando brincadeiras. O carioca C da gema. A cidade C alegre,'das Dores. A alegria, das Dores, C da vida. E antfdoto contra a tristeza, largamente dia "nrora e de comprovada valia. E os divertimentos tantos. fundido Tantas variag6es! Quando nada, nada mesmo. Sua pessoinha estard inteiramente desamparada. Otdvio, voc€ sabe, i o resultado das pr6prias debilidades. Que poderi fner por voc€? Ele mesmo precisando de ajuda, t6o frouxo que d. Vacilando semPre. Parecendo danga: vai pra frente, volta pra trds; vai pra tr{s, volta pra frente. A vida, minha santa, demanda coreografia especial. Com passoi certos. Se nio, troPega. Ou cai, que C i preciso que voc€ saiba, nlo tem cardter. pior. - Ot{vio, N5o C que ele n6o tenha cariter, propriamente. Ele at€ que tem, ernbora o que tenha seja pouco. E o pouco que tem J ruim. Mas as pessoas slo como De us c o mundo as fizeram: € aceitd-las e pronto. Num instante voc€ se vira. Domina a cidade. A ter:i aos seus pCs. 87 N6o v{ atris de conversa fiada. Conversa fiada C um corno. No Rio falra dgua. Foda-se a falta d'Cgua. Sua terra C sempre sua terra. Quem gosta de terra C minhoca. Aqui voc€ tem amigos. Belos amigos esses. Vocd tem famflia. Minha fam{lia C a humanidade. O trAnsito C muiro louco. Foda-se o trAnsito. Bonita como voc€ i. Isso eu nao discuto. V6o se aproveitar de voc6. Ai que C bom. Gostosa do jeito que voc€ d. TambCm n6o discuto. Voc€ vai penar. Vai ser capa de revista. Vai sofrer. Vai vesrir um mai6 caralina e ser capa do Cruzeiro. Yai ter dor de cabega. Vai ser feliz. Vai dar cabegada. Vai n1o. A lua apareceu, afinal. Rritila nos cCus das Gerais. A deusa virou-se de frenre para a vida, o rumo do mar. Vou para o Rio de Janeiro, para Copacabana. Vou ser Nely! Por que uma nuvem atravessou o campo de luz? I7 A c.anr DA CENTML Ainda nlo seria dessa vez gue das Dores seria Nely. Coisas de Sandra S6nia que implicou com o nome. Imagina se soubesse o verdadeiro nome: das Dores? OtCvio, advertido da adoglo do nome, nada disse e nem era besta de dizer. O nome perfilhado vird mais adiante, a seu rempo. Antes, C narrar a viagem i Capital em espremido resumo. Foi Nely durante a viagem. Como Nely apresentara-se: "Muito prezer, Nely." Purame nte Nely. Nely apreciou muito a viagem. Caminhos novos, desconhecidos, diversos, variados: fascinante. Gostou muito da fezenda do seu Augusto, e igualmente de todos. Acordou cedo e tomou leite no curral. Andou de charrete e montou a cavalo. Chegou noite fechada I Capital. O trem arrasara, como hibito, segunda natureza a apoquentar os usudrios e retardar compromissos, a alongar esperas. de seu 88 a A gare da Cencral do Brasil causou impacto em Nely: a amplidio do vlo livr'e. A sujeira. Nlo tem nada segurando no meio. Parece que o teto vai desabar na gente... Tem perigo, n1o. -O imbecil p!rd.,, boa oportunidade de ficar calado' E claro que o teto nio iria cair em cima de ninguCm e- nem Nely alhava isso. Falou por falar e o idiota devia ouvir--por or.r'ir. Nio carecia de reiposta. A nlo ser no absurdo: "Vai cair, sim." E sair correndo, semeando o pinico, mel€ geral' E depois rirem-se da patuscada, faces afogueadas, alma banhada. e a Capital inaugurada na brincadeira, folganga, galhofa, ,," ,"."rr"g.m. E o .lttft.nt"-.nto dos segurangas da Central do Brasil, os mais filhos-da-puta, metidos a policia, pior que os tiras. E, achei que ia cair, sim. E dai? Nlo pode o cidadlo achar que um prdprio federal vai cair? Tem lei contra isso? Cad€ a lei? Mostra. E se os caras n6o dessem pia tris, acovardados ante tanta machice, crescer novamente. Lei nenhuma. Da gravidade? Gravidade € a putaque-o-pariu! ' E, ato continuo, enfiar a porrada nos agentes, rabo-deerraia, chute nos culhdes, cabegadas. Tocar o puta-merda' Parar na Delegacia, na Assist€ncia. Os dedos fichados, o talho no ,orto .orturado' E satisfeito, mofdo de pancada, de bragos com a deusa. Comigo C assim. Mulher minha disse que a gare da Central desaba, i porque desaba mesmo. A mulher orgulhosa, rebentando de satisfaglo. Mulher minha tem que resPeitar. -E livre de complicag6es policiais, pois aldm de valente e porradista emCrito, malandro. Na hora do depoimento' a p"l"*r." sabida escorregada no ouvido- do escrivlo: N6o sei o que esse Pessoal da central tem contra a policia... Como disse, cidadlo? Pessoal da gare. - Que gare? - Da Central. - 89 Contra a polfcia, - Compleramenre. o senhor falou? - Por que diz o senhor que a seguranga da Central do -Brasil tem coisas contra a policia? Pois nlo. Nlo C eu disse pros caras: 'Voc€s au- mesmo nlo t6m,que toridade nlo. Nio reconhego. Quem tem autoridade C a pollcia." Nlo C que os caras disserarnque nlo: "Que_m manda na gare d a genti. Policia aqui nio se cria, neo manda porra nenhuma." Ah, entio € assim? -O escrivio, diferengas antigas com o mundo, foi relatar ao delegado. Antes, comandou: Espera af, cidadio. -O delegado ouviu atenramenre o escrivlo, policial antigo, considerado, por sua escrupulosa honestidade escolhido gerente da caixinha do bicho. Sentenciou: Alivia o cara. -E Otdvio dos Santos Baptista saindo aclamado da Delegacia, debaixo de palmas, coberto de gl6rias. Com fama de briguento e fin6rio. Na hora do pau, o mais valoroso, desassombrado; na hora de livrar a prdpria cara, ladino c astucioso. Bolando a inrriga salvadora. Tirando o seu da rera. Romintico, as palavras doces escorrendo pelos ouvidos da grinfa, descendo-lhe o ventre, rolando nas ioxas, amolccendo, despertando aperires, acendendo desejos, antecipando gozos imensos. Incendiando. Quer uma estrela? Eu puxo pelas pontas. Quer um - seguro raio? Eu a descarga. E as luas? NinguCm poderia se expressar com mais comedimento e lhaneza. E o casal seguiria assim pela rua Larga de volra I Central do Brasil, ao ponro de tiixi, corcel que os levaria ela - aos meiga, ele ainda desafiante i casa, ao quarto, I cama, jogos do amor, aos sonhos. Mas qual... Otrivio dos Santos Baptista era poltrio, mdchio, chogo, pulha. Nio rinha imaginagio. Homem sdrio, nio estava para jactAncias e emb6fias. Era mais para dclambido e recatado. Absoluramente n6o se prestava a certos papCis: nio seria pCbulo de indtil farrona. 90 sada. - Vamos tomar um t{xi, Neln voc€ deve de estar can- Se estava, n6o delatou. Tocou-se o carro para o subrirbio de Maria da Graga, moradia do cometa. 18 A uonco.a Ot{vio teve o cuidado de fez|'la dormir em seu quarto. Nlo queria constrang€-la perante a m6e, forgar uma barra, dar uma de marido-e-mulher. Tinha dessas gentilezas o Personagem. A mie nem deu pela chegada do casal. Dormia a bom dormir. Deveras roncava. No outro quarto. E como apenas dois quartos compunham a casa, Otivio dormiu no sofC da sala. Nlo sonhou. Das Dores sonhou que era Nely. Arrumou os leng6is e os pensam€ntos. Sentia a fragrincia do jasmim no jardinzinho da m6e. A casa Pequena, arrumadissima. A mie, cuidadosa, semPre limpando. O aspirador de p6 e a enceradeira comprados a prestagio no Bertino Mota, amigo do falecido e vendedor de eletro-domisticos. Sentia-se confortivel o cometa, aspirava o perfume da noite, o cheiro da casa limpa. A tela da televislo semelhava entidade a dominar a sala com seu imponente sil€ncio. A caixa do aparelho parecia ter guardada a programaglo. Sons tlo diferentes, mistuias de lfnguas, ruidos de-tudo. Confusio que a tela figurava projetar. Inerte e apagada, porCm palpitando. Saber das Dores ali ao lado. Que fazer? Pensar doia tanto. As imagens agora eram as da infAncia. O pai, o ballo. Os m6veis da sala tomando estranhas formas, a sala flutuando. Era o sono. passa das oito. {6e1dx, Tavinho! -O vendedor abre os J{ olhos, que enxergam a m6e . Nem bem dormindo, ainda nlo acordado. Mam6e, eu trouxe uma moga. - E, eu ji vi na sua cama. - Ela vai ficar uns tempos conosco. - 9l Hum. - Ati a gente ver o gue vai dar. O rumo das coisas. vai tomar. Que A mle dd-lhe as costas. Ocupa as mlos. Inicia o labor didrio, a vassoura de piagava, a de p€lo, o esfregio, flanela. O balde. A rotina. tomar seu cafC agora ou espera a moga? -* Quer Espero, mamie. Vou lavar a boca do mingau das almas. Telefonaram do laborat6rio. -Otdvio gargereja. Deixaram o recado na vizinha. -Otdvio gergareja. Faz falta um telefone. -Otdvio grrgrreja. Fez falta um telefone, a -Otdvio gargareja. mie insiste. Isso de ocupar a vizinha C pau. Ela n6o ti ai pra viver tomando recado. OtCvio parou de gargarejar. Quando C que voc€ vai providenciar um telefone? -Otivio volta a garga.rejar. Eu pouco uso. E mais pra voc€, mesmo. -Era verdade. Pouco usava. As vezes para falar com a comadre, madrinha do Otdvio, gue morava no Cubango. Para acertar as visitas. Tinha graga fezer a viagem: a Auxiliar, as barcas na Praga XV o 6nibus da Ponte atC o Cubango e dar com o nariz na porta. A viagem perdida, a longa volta. Era mais para o filho, mesmo. AlCm, C claro, de conferir certa distingio. Ao ser apresentada a alguCm, poder dar o ndmero do telefone, alim do enderego. "Muito prezer, Dagmar dos Santos Baptista, rua Slo Gabriel, ndmero 158, casa 4, telefone 30-9137." Otdvio havia tentado o telefone, conseguir uma assinatura. Estava gramando na fila. Que eram duas: a dos comuns mortais; e a outra, do pessoal da patota, amigos dos homens. " Tatta errado", pensava o cometa. "Devia ter mais igualdade na Terra." E estd o cara entregue a t6o edificantes pensamentos quando Nely abre a porta do quarto. 92 Bom-dia. Aonde C o banheiro? pelz voz, a mie assoma a porta da sala e radioAtraida grefe a deusa em sua aparigilo. Otdvio sente a importAncia do momento. Mamie, eu quero lhe apresentar Nely. Nely, quero mamib. Nely, mamie. Mamie, Nely. lhe apresentar Muito pr^zer. - Muito prazer. -Otdvio, senhor da situagio, indica e outre Porta. -ObanheiroCali. E fica em pC. Parado. O brago estendido. O dedo aPontado para a porta do banheiro. Baixa o brago, menino. Nlo v€ que a moga jd entrou no banheiro? A beleza da Nely impressiona Dona Dagmar. psguix, meu filho, essa dona nlo d muita areia pro seu caminhlo? Caminhio? N6o, absolutamente. Viemos de trem. - Areia, menino. Muita areia pro seu caminhio! - De Resende. De Areias, n6o. Andei pela Parafba, - representava o Laborat6rio Silva Ararijo. quando Dona Dagmar suspirou profundamente. Quem sai aos nio degenira. O filho era idiota corno o pai. Apenas seus, exclamou, antes de retomar seus afazeres: Sai, gabiru! - 19 A PntEt Sarivs Prtita Safram pouco depois do almogo. Pegaram um lotag5o o MCier e dal outro atC a Praga Saens Pefia, onde morava Divulagadores Sandra 56nia, diretora artistica da "DIANE de Artistas Nacionais e Escritores", entidade beneficente, fundada por Dom Manoel Ceia Laranjeira, bispo da lgreja Catdlica Livre do Brasil, tio do cometa, irm6o de sua mie. atC Por conta de quem tivera o personagem Pequeno desaguisado com Dona Dagmar. 93 A discussio comegou a propdsito do banho da Nely. Meu filho, tem de avisar I moga que falra Cgua no - que economizar. Olha que onrem j6. nfLo enrrou. Rio. Tem Otivio fez que nlo ouviu e engrenou outro assunto. Mamie, por favor, ligue para seu irmlo, o bispo, e pega a- ele uma hora para mim. Pode adiantar que eu vou levando a Nely para fazer o curso de atriz. Telefono nada. Manoel - que ele inventou de Igreja C C um vigarista. Esse neg6cio uma vergonha, deixa a gente mal. E pecado mortal. E tire o dedo do nariz. ' Pra que insistir com a m6e? E preciso que estranhos miritos dos parentes para que enteo a familia os admita. Os mais pr6ximos, C sabido, custam a reconhecer o merecimento dos seus. Tem tezio o adrigio: 'Santo de casa nio faz milagres." E embalado por tlo profundas considera96es Ot{vio dirigiu-se ao telcfone da vizinha. Que o recebcu amavelmcnte, gostava do vendedor. Quem sabe ele...? f,nss6, seu OtCvio. Fez boa viagem? Dona Dagmar jd deu -o recado do laboratdrio? Foi o seu Cruz. Atd falei com ele se nio me arranjava uns fortificantes. Ando meio fraca. Umas tonteiras, sabe? De licenga, Dona vou entrando. N6o repa- Trouxe esses docesJurema, re, nio. pra senhora. Slo cristalizados. Muito obrigado pelo recado. Fortificante, neo C? Posso falar no seu telefone? Pode sim. E no corredor, o senhor sabe onde C. - E pro, meu tio, o bispo. - Dona Dagmar me falou dele (Era discreta e vizinha). Custou um pouco a descolar o tio. Perambulava pelo estabelecimento scm ddvida I procura de uma boa a91o para praticar. "Que sobrinho? Ah, o OtCvio. Que desejard o estrupfcio? SerC recado da chata da mle?" Relutante, Dom Manoel dirigiu-se ao aparelho. Prevaleceu, afinal, o instinto familiar do bondoso sacerdote. Atenderia o sobrinho. "Que fosse tudo pelo amor de Deus...' ressaltem os -A16,Cotio? E o tio, Dom Manoel ("Quem voc€ mandou mar, idiota?') 94 Sua bdnglo, meu tio. cha- sorte. - Deus te abengoe, te crie Para o bem e te d€ uma boa Obrigado, tio. - Deseja o qu6? - Seguinte, tio. Nlo v€ o senhor que conheci, em minha-riltima viagem, em Pogos de Caldas, ume mosa muito bonita que apreciaria muito, estou certo' uma oportunidade no teatro ou no clnema, nlo faz questlo. Al me lembrei do senhor e de sua bondade em orientar jovens na carreira artlstica. a moga chegar, traga-a aqui. Est{ bem. - Ela jd estd Quando aqui, tio' Veio comigo. -Complicou a guerra. Dom Manoel gostava de adiar as coisas, .-putt"t .orn barriga. Familia era um 536s. F logo " hoje que tinha compromisso com uma jovem que precisava, al6m dos conselhos sobre arte, de piedosas ora96es. Como fazer? Escuta, meu filho, hoje eu nlo posso atend€-la. Mas E nosdela. o lado Adianta moga. sa diretora artistica. Apresenta a mesmo Pode deixar Depois, eu veio sua protegida. 9".. :9 aviio a Sandra S6nia. Voc€ tem o enderego dela? E na rua General Roca. Anota ai... - nada, nlo. Voc€ vai na casa da Sandra S6nia. nio tem Nely gostou da Praga Saens Pefia. T6o grande. Lojas, cinemas. Tat t" gente. 'Que movimento' Deus do ciu!" Otdvio convidou. Vamos ao Palbeta, Nely? Tem sorvete' tem wffie. Vofrbd uma espdcie de bolo americano, fininho. Vem 9u;n; te, a gente passa-manteiga por cima e depois derrama mel. E E feito numa mCquina gue-Parece uma Prenmuito gostoso. --ottto pra voc€. Tem milh-shake, banana-split. Com sa. Eu calda. De caramelo, de chocolate, de framboesa. Voc6 gosta? Gosto, Ot{vio. Gosto de tudo. -Nely era assim: gostava de tudo. E quem gosta de tudo aproveita - Nelymelhor! gostou da loia. Grande, esPagosa. Logo na entrada, i esqu.td", bal.eo envidragado com mil guloseimas: empadinhas, croquetes, doces variados, torta, mil-folhas, brigadeiros, bolos. Refrescos de laranja, de maracujd. E mate. 95 Safam de uma miquina. Era s6 encosrar o copo na boca da bruta. Em frente ao balclo, a charutaria completa. E miudezas: cortadores de unha da marca Trin, chaveiros, isqueiros, cachimbos, canetas, penres. Depois, ainda I direira, um enorme balcio de cafd. Mogas com bules, xfcaras. A esquerda, ao comprido da loja, o balclo com banquinhos estofados para servir guarands, coca-colas, grapetes, crushs, sorvetes e wffies, lanches e comidas. No verio, prato-de-verio a prego especial. No inverno, macarrSo I bolonhesa acompatthado de-plo, manteiga, refresco e pudim, de sobremesa. De noire, tambdm prato-do-dia. Prcao especial. OtCvio sentia-se muito mestre de cerim6nia. Aqui aj1{s e aponrava um corrcdorzinho final - de barbeiro. Muito bom. Eu no do balcSo tem saleo cono o - com o Donato, C o melhor barbeiro do bairro. cabclo aqui Tem manicure, limpeza de pele com lama de AraxC. Dizem que d muito bom para a pele. Tem massagem no cabelo, no rosto. ("Veja voc6: lama de Araxd!") Em cima daqui dedo apontava para o alto e - mais apontaria?- otem para onde um enorme salio de sinuca. Em toda a extenslo da -loja. Apresentam-se os cobras do taco. O Carne-frita, o Lincoln. Tem apostas altas. O dinheiro fica na cagapa. Sabe como €... Casadinho dorme junto. Quem ganha vai na cagapa, tira a grana e mere no bolso. E tem apostas entre espectadores. Quem ganha d{ ume estia ao taco vencedor, uma espCcie de pr€mio. Quem perde, perde. Como na vida. E pena-voc€ nlo poder ir. Mulhir nlo enrra. ("Pedi para ir?") E Otrivio conrinuava, o falador solto. Tem quatro cinemas, fora o "poeira" chamado Tijuquinha. E aqui do lado. Tamb€m do lado, mas do ourro lado, o Carioca. O AmCrica ao lado dele, atravessando a rua. E o Metro? Um ar refrigerado de doer os ossos! No verlo a gente fica na porra s6 para pegar o ar quando ela se abre. E na continuagio da Praga. A gente vai passar na porta, d caminho para a rua General Roca, onde mora a Sandra S6nia, diretora da "DIANE, eu j6,lhe falei. Do meu tio. O bispo. Dom Manoel Ceia Laranjeira. IrmSo da mamle. Da Igreia Cat6lica Livre do Brasil. E homem de muita fC. E bondo-so... 96 ("Haja Deus!") Do outro lado da Praga tem o cinema Olinda. E, o maior de todos. A gente entra sem pagar porque o guarda, o Fritz, um cara gue parece alemlo, deixa a gente entrar. E guarda civil, aquele de farda verde, mora em Maria da Graf", tta rua Cirnt de Faria. E perto l{ de casa. Eu conhego ele C de ld. Qualquer dia eu te levo no cinema. ("Oh Pai!") Tem uma confeitaria muito boa antes do Metro. E tem as- Lojas Americanas. Inauguraram outro dia. Tem de tudo. Este sorvete que voc6 estC tomando C invengSo de ld. Quer dizer. E, invengio dos americanos. Mas foi ld que comegou essa moda. Quer dizer. Eles C que trouxeram do estrangeiro. Da( o tto^. dc Lojas Americanas. E bom o sorvete, trofeus esses sorvetes, nlo parecern? Nely absolutamente n6o estava para semelhangas C? Parecem e Parecen9as. Gosro de fitas avangadas. Tem filme assim por aqui, Otdvio? Atropelou-se o cometa. N6o esperava por essa. Era-lhe dificil o diilogo. Falava, ouvia. AtC ai tudo bem. Tiocar palavras, permutar opi.ni6es era muito, infinitamente dificil. 56 a conversa trivial. Ainda mais uma pergunta como essa! Aonde foi a menina tirar idCia tlo escalafobCtica? dizer... Bom. Nlo sei. - Vamos, Otivio,Quer a deusa comandou. Vamos conhe- essa dona. Ainda quero ir I praia, espiar o mar. cer logo Sandra 56nia recebeu-os muito bem. Entrem, entrcm. Nlo reparem a desarrumagio. Es- empregada. Empregada, voc€s sabem, C um probletou sem ma. Nio param no emprego. E apertando a mlo do cometa, o rabo do olho no rabo da moga. Seu tio me avisou da visita. E, etsa a moga? E bonium cafezinho? Passei ind'agorinha. Sentem. Fita. Querem quem I vontade. Enquanto esquentava o c{6 em banho-maria, Sandra S6nia avaliava as possibilidades da moga. Bem interessante. Carnuda. Umas narinas. Pro palco nlo saberia adiantar o jeito dela. Mas na cama... Poderia assegurar' tinha experi€ncia. 97 Valeria altos mich€s. Conhecia um certo banqueiro... Viria a calhar. E se gostasse de variar. Por que n6o? A diretora, muito artista, jogava nas onze. Mulher do seu tempo, sem preconceitos. Sandra S6nia servia caf€ e o papo careca. Voc€ veio muito bem recomendada. Dom Manoel - homem gosta muito do sobrinho aqui. santo - um Otdvio modesto, a mexer o cafC com Apontava para a colherinha, absorvido na contemplag6o da biqueira do p16- prio sapato. Ne ly levantou-se. O guarand, os sorve tes, a igta mineral, as emog5es pesavam-lhe na bexiga. -AondeCobanheiro? Ali, minha santa. S6nia, solicita, apontava a habi- tual primeira h direita. Foi a deusa entrar na casinha e a diretora interrogar o acompanhante sobre pequena ddvida, coisa de somenos. E que a moga vinha de costa adentro. Um sacana ar virginal confundia. Sabe-se ld? Gente do interior atrasada. Aproveitando a aus€ncia de nossa amiga, diga-me - Ot{vio: a moga € furada? uma coisa, Como disse a senhora? - E furada? -Pegou o sobrinho do tio desprevenido. Com essa n6o contava. Dona esquisita essa auxiliar do tio. As unhas vermelhas apertando a perna do inquirido. Aproximando-se perigosamente. E, furada, criatura? Insiste Sandra S6nia. - Hum? - Furada. Conheceu homem? E, virgem? - Creio que C aquariana. - Nlo, criatura. N5o perguntei pelo signo, nio. E vir- jd trepou? gem ou Nely voltou i sala. Sentiu OtCvio contrafeito. Falavam de mim? - Falava eu, Sandra S6nia assumiu. Para elogiar. Voc€ - charmosa. Aprendendo um pouco. Um banho de C bonita, loja. Um banho de lfngua. O qu6? - 98 De loja. Tcm muita butiquc em Copacabana. Jd foi a Copacabana? Ainda nlo. ir quando Quero - Voc6 vai gostar. - ]rfung2 vi o mar... - Ah. -A conversa ia morrendo quando ao que - veio. Nio v6 a senhora, Dona tem a -bondade sair daqui. o cometa' afinal, disse Sandra, que o tio bispo de orientar jovens talentosos na senda das ar- tes. Na o que' homcm? - Senda. - Que senda? - Das artes. - Ah! -Ot{vio pigarreia seco e continua: eu queria uma oPortunidade Para a Nely aqui. veio de Pogos de Caldas com esse desiderato. Des o que, homem? - Derato, Dona Sandra. Ah! -OtCvio ajeitou-se melhor na cadeira. f,n1fls, Dona Sandra, era isso que eu queria pleitear. Meu tio, Dom Manoel, mandou falar com a senhora. Tem dfvida, n6o. Ela podc se rnatricular no curso lC na "DIANE". Aprende a representar. Sandra S6nia se ligara na moga, resolveu dar-lhe um -Ai Ela mesma empu116o. E voc6 est{ com sortc, minha santa. Uma corista do 'Walter Pinto estd de viagem marcada Para Buenos Aires. Vai num show s6 de mulatas, e sobrard uma vaga. Mas Sandra, eu ainda... -sandra 56nia atalhou rdpida. Precisa s6 ficar no fundo do palco, parada, pelada, - para cima como se estivesse segurando um cesto. E o as mlos busto nq, Uma tenga e o bristb'nu. *,"Como' Sandra? , $usse, minha filhe. Sclos, peitinhos. Voc€ d iovem. durinhos. Vod rcrn! Deve t€.los se apresentar ld 99 Otdvio se incomoda. Pcrai, Dona Sandra, a Nely nlo i dessas... - Pcra{ voc6, Ot{vio. Deixa que eu sei falar. Tenho sim, Sandra, quer ver? O comera ficou bestando. A expressio imbecil. Sandra S6nia corta o baralho. Voc€ passa no curso amanhi no final da tarde . Eu te - V'alter Pinto. A revista levo no chama-se "E de Xurupito". Tem feito sucesso. Tdlevend,o no Teatro Recreio. Nely saiu satisireita da casa da Sandra S6nia, e jd batizada. 'Tenha paciGncia, minha santa, mas Nely nio C nome de corista. Nome de artisca. Gostei de vocd. Vou te emprestar meu nome. 56 metade. Deixa ver... Voc€ vai chamar... Vilma. Pronto: Sandra Vilma." Como recusar, a Sandra fora t6o gentil, logo se oferecendo para arranjar emprego. Ainda nem bem tinha chegado e jC empregada. Matriculada no curso do bispo. E beliscada nas faces, nos seios, na bunda. Esquisita a Sandra S6nia. OtCvio estava amuado. Sobrou no final do papo, ficando por fora. N6o gostou da Sandra S6nia bolinar das Dores, perdio, Nely; perd6o, Sandra Vilma. Nio rolerava essas tra-nsa96es. "Mulher com mulher d,5, jrcar6", pensava. Original, o personagem. - _ -Vamos pegar um lotag6o, Nely. Aqui na Praga C ponto final de um que vai atC o Posto Seis. Partiu Nely em diregio ao mar de Copacabana. 20 Eucourno DAs AGUAS Parecia um nunca acabar de {gua. A imensidio do mar apertou-lhe o coregiozinho: "Eh marziot' Tirou o sapato. Pulou na arcia. Tio fina, ainda morinha. Agradivel de pisar. Apanhar a areia nas mi.os e v€-la escoar, caindo aos pouquinhos. E caminhando, avangando 100 na diregio do mar. A areia agora mais consistente, 6mida. Afinal, Nely tomou o mar pelas mlos. Mas como poderia das Dores, jd Sandra Vilma, mas ainda faltando ser Nely completamente, saber da inauguraglo, outrora, do mar dc Copacabana, e' depois, do nascimento do bairro? A praia mais bonita do mundo, o bairro mais charmoso da cidadc. A inaugurag6o de Copacabana foi qualquer coisa. O nome foi tomado da peninsula de Copacabana, porglo de terra cercada pelas Cguas do lago Titicaca, nos Andes, a mais dc tr€s mil mitros dc altura. Pclo lado que a dgua n6o alcangava, transitavam os "peruleiros', traficantes de Prata que trouxeram o norne para o Rio, emprestado pela llngua quichua. O bairro comegou mesmo quando foi alcangado pelos trilhos da "Botanical Garden'. Depois, jC nesse sdculo, por obra de Pereira Passos, iniciou sua expanslo. Seu novo tragado ficou Copacabana devendo ao Prefeito Paulo de Frontin, cm 1919. Nio levou muito tempo Para outro prefeito, Carlos Sampaio, construir um cais para enfrentar as ressacas. E s6 enteo conter o mar, ou melhor, os mares que marcaram encontro para inaugurar Copacabana. Antes, muito antes, do rei sair de Portugil tocado por uma ddzia de franceses esfarcomandados por um general de merda. rapados, - O encontro dos mares il era ansiosamente aguardado por todos que o habitavam, de suas margens atC suas rec6nditas profundezas. Foi demais. O pr6prio oceano, teo composto das 6guas do mund.o, compareceu com todos os seus mares. Os costeiros, os mediterrineos, e mesmo os mares fechados acharam de enviar liquida representagSo. O mar da China, o mar de Espanha, o mar da Bahia encontraram-se em mar alto e juntos entraram na Bafa dc Guanabara. Os ventos e as tempestades formaram vagas que correram para a terra. Perderam o Impeto e se transformaram em ondas. Nadaram, nadaram e vieram a morfer na praia. Como os homens. As ondas viravam espuma e cobriam Copacabana de rendas. l0l A lua, tlo vaidosa, reconhecia Copacabana como sua igual e a iluminava com sua luz. De pura inveja, uma estrcla desceu do cCu, entrou no mar, ficou boiando. Depois da arrebentaglo. - Parecia que a vocagio do bairro seria entregar-se i noite. E que nlo chegavam os primeiros raios de sol para afugent{-la- Copacabana, excelsa, a cor cerflea, rosa e purPUnna, Perecra aurora. Foi preciso que uma deusa ajudasse o sol a nascer e falasse para a madrugada: 'Sou da noite, Sou do v€nto. Estrela do firmamenro, Eu n6o te agiiento." Era o que -espera o sol, apolineos raios, para botar o nariz pra fora. E por constante astdcia que o sol faz o dia aparecer. N6o por capricho ou capcioso offcio, mas por luras e ardis. Dura e cont(nua porfia. O mar infinito. A noite. O dia. A lua, o sol e pronto: estava inaugurado o bairro de Copacabana, nlo mais o vergel de antes, mas uma floresta de concreto. Nely deu por concluida sua apresentagio I praia de Copacaban a. Ji era madrugada, enteo. Estava cansada e batizad.a para a vida na cidade grande. Tlo humana e reo cruel. 21 A orsprorDA Do coMETA A mic voltou a insistir que jri passava da hora. Otdvio decidiu levantar-se. Indtil buscar proteg6o no sono, refugiar-se nos sonhos. Mortificado, levantou-se o comera. Iria ficar de pC, sim, mas trabalhar que i bom, nio. Enfrentar o mundo? Melhor dar um giro, jogar sinuca no Palhcta. Levanta, meu filho. Jd passou da hora!Adverte uma preocupada Dona Dagmar. t02 levantei, mamle ("Um cristlo n6o pode nem so- Jd - prz?"). frer em Vestiu-se rapidamente. Tomou cafC em pi mesmo.- Fez cigarro. Agot", dava-se Pressa. Melhor telefonar logo pro boca dar parte de doente. o Cruz, para A mie censurou-lhe o atraso. Acaba perdendo o emPrego' meu filho. E emprego - de hoje C t6o diffcil. nos dias Tem nada nio, m6e. Telefono da Dona Jurema, digo qualquer, que vou chegar atrasado. coisa uma Ruim Jsse nCg6cio de incomodar Dona Jurema toda - causa de telefone. Eu jd falei pr1 v^oc€ que a gente hora por tem de ter um. Arranjar um pistoho naTelef6nica' comPrar' sei 16! Otdvio jd estava ern outra. A mle volta I c$ge. N6o est{ direito, n6o. E, de mais a mais, Dona ficar falada. Um rapaz solteiro indo na casa dela, pode Jurema Voc€ sabe como C a lingua do povo. N6o perfora. o maridb injustiga: mulher sCria est{ ali. Boto miuma E seria doa... fogo. no nha m6o Otivio tocou a campainha. A vizinha quando viu quem era decidiu-se num rePente: tirou o robe-de-chambre. Fez o contrCrio. Permitiu-se o avesso das coisas. Ficou s6 de camisola. TesSo matinal tem dessas regEncias. A porta foi-lhe aberta. Otdvio, ao ver a vizinha s6 de camisola, atrapalhou-se. Desculpe, dona. E fez menglo de recuar. -Dona Jurema, decidida, Puxou-o pelo brago. Deixe de bobagem, seu Otfvio. Entre. O senhor nio quer usar o telefone? Quero, mas... nio quero ser inconveniente. A senhora mal acordou. A senhora estC I vontade. Eu invadindo. E, falta de... A vizinha nlo deixou o vendedor terminar. Bobagem. Vai falando no telefone que eu vou Passar um cafezinho para o senhor. $66, se n6o C inc6modo... - Inc6modo nenhum. Tinha graga. O telefone o se- onde C, nlo sabe? nhor sabe 103 Otivio fala baixo ao rclefone. Nio quer que a vizinha ouga. Ainda bem que te peguei, Cruz. Voc€ vai quebrar meu galho. E que nlo-amanhecl legal. Cruz d boa genre. Tranqiiiliza o empregado. Deixa comigo, mano. Agora, Tatd, me diga uma coisa:avizinhaCboa? O outro se embaralha. Como assim? - Se C boa, cara. E, comivel? - Bom, nlo sei... Nunca pensei assim. Quer dizer, sempre no maior respeito, sabe como i. Sei. Sei como C. Mas a voz dela ni.o mc engana. Vai - quer nada conrigo ver nlo porque C vizinho. Perto de casa. Pode dar galho. Comigo C diferente. Moro longe. Outro dePartamento, morou? Morei. - Pergunta se eu posso agradecer a ela tanta gentileza - telefone. Tomar recado, essas coisas. Capricha, fala dela no de mim, diz que eu sou legal, gente de confianga, discreto, coisa e lousa... Otdvio tem ddvida. Baixa ainda mais o tom da voz, quase sussurra. Sei nlo, Cruz. A mulher C casada. E sCria. Pode nlo gostar.- E como C que eu fico? De pau na mlo, malandro. Tudo bem. Quer ficar de pau na- m6o, tudo bem. Agora, n6o atrasa o meu lado, porra! Virou fiscal de pica? Dona Jurema enrra com o cafC. Ainda de camisola (*Santfssimo!"). O comera se estnerda de vez. Td certo. Quer dizer... Eu vou ver. Obrigado e um abrago.- A vizinha serve o cafC e o papo maneiro. - E a moga, seu Otdvio? A gente terminou, Dona Jurema. Nely entrou para o teatro. Estd morando em Copacabana. TambCm estuda para atriz. E chato, n6o E,, sim. 104 C? A gente fica sozinho. Eu fico tlo sozinha, seu Ot{semPre fora' Tem uns momentos, umas horas... O senhor sabe. OtCvio acaba o cafczinho. Levanta-se ' Dona Jurema se aproxima. Bom, fala o cometa. A vizinha chega mais perto. Quase encosta no outro a pretexto de pegar a xicera. de ir andando. Tb atrasado, a Bom,-repete -Tenho senhora nem imagina. Dona Jureria n6o abre esPago. Fica na frente do vizinho. Estava aza;.a.de mesmo a dona. Pega-o entre as Pernas' OtCvio s6 acha de rePctir. TA atrasado, Dona Jurema. - Eu tambdm. -Otdvio ainda resiste. vio. O- t"ttliot nem sabe. O Ribeiro TA atrasado de verdade. -A vizinha concilia. - P6e s6 um Pouquinho. Otdvio despediu-se. No que ia saindo, lembrou-se do recado do amigo. Dona Jurema' o seu Cruz mandou agradecer I senhora tanta gentileza. Qui gentileza, meu bem? Pergunta a vizinha mais aliviada. Os telefonemas, recados e tudo o mais. -Dona Jurema balanga a cabega. Ajeita a alga da camisola que caira. Tem nada. Fago com o maior Prezel. N6o precisa - n6o. agradecer, Ot{vio tenta mais uma vez. Ele perguntou se pode vir agradecer pessoalmente' -A vizinha di um longo susPiro' - 56 se for semana que t'em. O Ribeiro chega hoje' 105 22 Autrtc Teve hora cerra para morrer o astr6logo que pregava o racismo. Felicio JosC de Souza morava no bairro Nova Canal, em Nova lguagu, onde tambCm comandava, na ridio Solim6es, um programa semanal de variedades, em que o prato de resist6ncia era a astrologia, matCria de que erl professor no comurn dos dias, alCm de tirar hor6scopo das pessoas, fazer-lhes o mapa da vida, rragar rumos, dar-conselhbs. Professor Fel{cio tinha uma mania, tara, mesmo. Nio gostava de negros. Vivia dizendo que o atraso do Brasil era culpa da desmiolada da Princesa Isabel. "Onde d que jC se viu tirar negro do cativeiro", bradava nas ruas e na r{dio. Vdrios homens de cor jd haviam se queixado ao Doutor Oscar Tiradentes, delegado municipal. Dr. Oscar nio fazia por menos; a cada denrincia abria o comperente inquCrito. Felfcio defendia-se. Negava, mas afirmava ao mesmo tempo. "Eu nlo falei, mas se tivesse falado, falaria. E era isso mesmo. O negro i o responsivel pelo arraso do Brasil. O negro e o portugu€s. Fosse o Brasil colonizado pelos holandeses e ent6o seria outra coisa o pals." A prova era insofismCvel, apesar do negaceio do acusado. As fitas dos programas. Era assim que argumentava a autoridade, porCm inurilmente. Td gravado, seu Felfcio, o senhor vai negar? - Nem afirmar. A gravaglo pode ter sido montada para me prejudicar, afirmava. AlCm de racisra, clnico o filho-da-pura do astr6logo. E com as costas quentes, porque o filho-da-puta do juiz com ele concordava. Pode ser armaglo, Mesmo a lei... - Mas, Meritissimo doutor. argumentava a autoridade, os - slo semanais. Vossa - Excel€ncia, mesmo, querenprogramas do, pode ouvir o acusado pregando o racismo, violando a lei. Querendo, doutor. Mas n6o quero. Juiz nlo tem tempo-para essas coisas. Compete I pollcia trazes provas ca106 bais. O inquCrito estd mal instruido. Vou mandar baixar em dilig€ncia. Arranje o senhor a Prova. E passe bem. Passava mal o doutor delegado. Nlo gostava de racismo. Queria aplicar a'lei. A Lei Afonso Arinos. Diplo-ma legal que tomou o nome do seu autor' que fora seu professor na Faculdade Nacional de Direito. A intengio do Mestre era a melhor possivel, mas a lei safra frouxa, sem bem tipificar a cot dota reprovdvel. Tentara convencer o astr6logo. "Qual holand€s, slu Felfcio! O senhor acha que a IndonCsia estd melhor? O senhor it foi a Java? Quer ser javands? Esse neg6cio de racismo era de um atraso... Hitler era racista. Era contra judeus. Levou o mundo I guerra. Veja no que deu, seu Fellcio..." Que nlo estava nem ai Para as argumentag6es do delegado. Hitler era um grande homem, doutor. Foi incompreendido. AlCm de racista era nazista o filho-da-puta! E atrevido, quercndo intimidar a autoridade. Essas suas idCias, Doutor Oscar, slo idCias comunistas. Obrigava o delegado a cair na defensiva. Comunitt" er.t, seu Fellcio? O senhor estl redondamente enganado. Temia, e com rezlo, o Secret{rio de Seguranga do Estado do Rio. Antigo integralista, certamente nlo iria dar cobertura ao policial. O senhor estd enganado, seu Felicio. Cumpro a lei. E a lei pune o preconceito de raga ou de cor. E crime..' Crime nlo, delegado. Contravenglo. -Era ve rdade, contravengSo e n6o crime. Umas penas de merda: prislo simples ou multa. Nlo ameagava ninguCm. O delegado buscou outra linha de comportamento. - f,ssusa, seu'Felicio, o senhor tem sido ameagado. O senhor- mesmo se queixou... Qg1se, doutor. E sua obrigaglo ( me dar protegio e nio ficar me ameagando, tamb€m. Assim, o senhor arma o brago agressor contra um cidadlo respeitador das leis e dos costumes. t07 Ah. Eu C que armo o brago do agrcssor' seu Felicio? - provocando os negros e eu € que armo o brago O senhor agressor, seu Felfcio..O scnhor tem cada uma' seu Felfcio. - "Indtil tentar dialogar com esse cachorro", concluiu o delegado ao partir para outra linha de ataqu€. Era conversar co-1esposa, verificar sc ela nlo podia influenciar o marido a pelo menos mancirar nos auqucs aos negros. Afinal, ela tambdm estava ameagada. Doutor Oscar Tiradentes, delegado de pol{cia municipal, lotado em Nova lguagu, ficou litcralmcntc siderado pela hulher do filho-da-puta. 'Que pitCu', p€tlsou a preocupada autoridade. "ldiota, com uma mulher dessas em casa e o canalha a aporrinhar a cor dos outros', considerava o tira. "Que rematado idiota", conclula. A senhora tenha a bondade de sentar-se, madame. - Anita Vcridiana de Souza, sua criada. -"Criada, tinha graga. Eu queria ser criado dela. Faria o que ela quisesse. Gato c sapato taua 6timo pre mim", Pensava o representante da lei. Em primeiro lugar, qucro agradecer I senhora a gentileza em atender o convite da Delegacia, Dona Anita. Muito obrigado. - Nlo tem de qu€, doutor. A gente tem de colaborar, nlo tem? Ji6, Dona Anita, tem. Mas, infelizment€ nem todos pcnsam assim. Seu marido, Por exernplo, fica ftzendo restrig6es ls pessoas de cor... PoiJd, doutor. O Felfcio C muito custoso. Eu j{ pedi vdrias vezes para ele parar com isso. Que nlo tem necessidade disso. Que nlo leva a nada. Que € bobagem. E se a gente for pesquisar bem, ninguCm cscePa aqui no Brasil, o senhor nlo acha? Acho, Dona Anita, acho. Mas seu marido nlo acha - meio sem saber como proceder. fico A dona surpreende a autoridade. Por que o senhor n6o o prende? -O delegado, a princlpio, nlo soube o que dizer. e pt9-pria mulher iugerindo a prisio do marido. 'Tem coisa al', admitiu. e eu 108 Bom, Dona Anita. Prender, prender mesmo' eu nio C a recuia de h6spides, de estudantes, de compradores, de emPrego priblico em funglo de preconceito de rag_a ou cor. Nlo proibe, diretamente, a pessoa de falar mal de outra raga ou de gente de outra cor. Devia proibir , mas n6o prolbe. Al eu fto.uto enquadrar o seu Felicio por injfria, mas ele € escolado, esperto, deve estar instrufdo. Ele fala mais sobre a raga, sobre a cor, mas nlo individualiza... Individualiza? - E,, individualiza. N6o diz, por exemplo, Fulano de - negro safado ou coisa assim. tal € um Ah. - E ai nio dC. E o juiz tambim nlo colabora. Tem um - na Lei das Contraveng6es Penais que Pune alguCm dispositivo periurbar o sossego alheio exercendo profissio inc6moda. br", o programa na rddio C semanal, o jornalismo, que C o que ele pratica, C uma profissio, e ele incomoda os outros' os homens de cor. E as mulheres de cor, tambdm, to ""ro, . naturalmente Pns[6, o juiz C conivente? - A senhora vai me desculpar, mas e u nlo posso avalidos magistrados. A senhora sabe... conduta ar a Sei, sim. No fundo, o juiz € t6o culpado quanto o meu marido. Pois i, e com relaglo )rs ameagas. A senhora nlo as posso.-AtC porque a lei, a senhora sabe, prolbe mais teme? - Nlo, nlo tento, nlo. Eles sabem que eu n6o concor- - essas loucuras do Felicio. Os vizinhos de cor estlo do com cansados de saber que eu abomino esse comPortamento. E a senhora jC procurou conversar... - dona corta o tira. A O senhor jd conversou com o Fellcio? - Ia, sim senhora. - E entlo? - Nlo foi poss{vel. Ele nlo quer di6logo. A gente fala - e ele responde outra. uma coisa Pois i, comigo C igual. Assim como ele se nega a dialogar com o senhor, se recusa tamb€m em casa. - E a senhora? 109 Vou ftzer o que? E muito desagrad{vel, e a mulher O senhor acredita que isso jd me obrigou, na Escola Priblica em que dou aula, a fazer uma reuniio com os pais dos alunos. Imagine o senhor que, em uma regiio carente como Queimados, o que tem mais fezia t- cara de nojo corespondcnte. pretinhos. A senhora agiu bem. - Agi, sim. Primciro, aconselhci-me com ourra pro- a Angela Giacometti, uma moga gue vive trabalhanfessora, do com os mais pobres, procurando orgenizer os pais, os moradorcs do bairro. C _E? Ela me levou pare conversar com um senhor muito - na politica. O nome dcle d seu Gonzaga, versado trabalha numa loja de ferragens, C uma espdcic de gerente l{. Um homem simples, mas que sabedoria, doutor. Td pra ver. O delegado conhecia o Gonzaga. Chegara cle a participar de uma comissSo para reclamar do Fclfcio. E nem preto era. Parecia mais um tipo acaboclado. E falante, respeitoso mas duro. Colocou o delegado contra a parede. Mas tambCm compreendeu logo tudo: a lei precdria, a posiglo do juiz de direito da Comarca, a espertcza do acusado. E comprecndia mais: a responsabilidadc da sociedade pela discriminagio aos negros, encoberta, sempre, pela falsa impresslo de que no Brasil n6o havia preconceito de cor. Como n6o havia? Havia, sim. E o pior. Aquclc cncoberto, disfargado no mito da igualdade e da cordialidadc. Tudo mcntira, patranhas dc uma elite velha de sdculos, conclu{e o Gonzaga Conhecia, sim. O - Diziam que ele delegado conhecia e respeitava seu Gonzaga. cra comunista. Isso ele nio sabia. Nem tinha preconceitos. Na Faculdade de Direito sempre vorava conrra a'Ala" e sempre a favor da "Reforma', embon soubesse que estava cheia de comunistas como o Givaldo Siqueira, o Lricio Abreu e o Milton Coclho da Graga. E outros mais. Embora lamentando, o delegado se via obrigado a encerrar a conversa. Nio tinha scntido ficar mais tgmpo trancado com e moga. Dc rcpente, alguCm conta pro marido e olha mais merda para ele. ll0 Bom, Dona Anita, obrigado. Obrigado Por ter Jd vi que - o convite e obrigado pelos esclarecimentos' aceitado n6o adianta tambCm Pelo seu lado. Dona Anita concorda demais. Nlo adianta, mesmo' doutor. O Felicio n6o tem jeito. E "o que nlo tem remCdio, remediado estd", como diz o sua sabedoria' 'Dovo em O delegado levanta-se. Dona Anita, tambCm' Dirige mse I porta que pot ele C aberta. Um- aperto de m6o e mais delegado 1,1 estavam despedidos, quando o "grai"ci-e".".. chama a moga: Dona Anita, me desculpe, mas serd que a senhora pode satisfazer uma curiosidade que eu tenho? sabe? - Se puder? Me diga, Porque seu marido age assim"'? A senhora Sei, sim. Porque C broxa. As coisas comcgaram a se complicar Para El{sio Adlo, quando o uso da navalha entrou em declinio' Situaglo antec'ipada pelo samba de Noel quando dizia que no siculo do o rev6lver deu ingrisso pra acabar com a valentia' p-g..tto 'ErrJln.rro ele aceitava. o outro, oque mandava jogar fora a navalha porque atrapalhava, nlo, positivamente nlo era com ele . O desuso da ferramenta como arma desmereceu a fama do barbeiro. Se bem que Pouco habilidoso no trato da barba Dropriamente dita, fungeb I que provavelmente devia a sua irr.,errgao, Ellsio Adlo era craque t'a navalhada, por assim dizer. Entretanto, prdtica que guardava, quando mogo' Para as noites de sdbado. Durante a semana' n6o. Ocupava-se em seu oficio de oficial de barbeiro, amolando a dita no passador' "Jd fui bom nisso" , diziaconsigo mesmo ao olhar a fe rramen;. Usava eldstico, a navalha jogada aberta na cara do desafeto e voltando fechada na mlo habilidosa do barbeiro. A fachada do adversdrio aberta Para semPre' sem cirurgilo ou-. d.rr. compostura' costurasse legal. Uma avenida de irrponro. Talho ie navalha nlo tinha conserto, todos sabiam' Lengo de seda, que se dizia cortar o fio da navalha eventual- ill mente adversiria, usava no bolsinho de cima do palet6 que lhe chegava aos joelhos. A boca da calga dc tio apertada obrigava-o a uma gin{stica corn o p( para nela entrar. ChapCu tr€s tombos, sapato canoa, o bico de t6o fino era capaz de espremer barata no canteo. E assim ia Elisio Ad6o passeando sua fema. E sempre de olho nos inimigos e na polfcia, especi- almcnte no Delegado Padilha, o qual se compretzia cm jogar uma laranja por dentro das calgas do malandro e se ela n6o p:Nsasse pela boca, cortava as calgas e, de quebra, rapava a cabega do cara. A navalha desde entlo n6o mais desfrutou do prestlgio de outrora, a fama que seus usudrios alcangaram acdbou, foram relegados ao anonimato. Ellsio Adio nio se importou. Aposentou-se nas duas profiss6es: a de barbeiro e a de malandro. 56 usava a navalha para. fazer a pr6pria barba. No mais, cuidava da gafieire Elita, onde era muito respeitado. Era negro e morava no bairro Nova Cana6, em Nova Iguagu. Durante tr€s anos agiientou calado as ofensas do Fellcio. Um dia, ou melhor, uma noite, cortou a garganta do provocador. O crime nunca foi descoberto, apesar dos esforgos da Dclcgacia Municipal, c de seu titular, o Doutor Oscar Tiradentes. Serd? Anita, livre do filho-da-puta, foi procurar sua prima Carmelita, tambdm vidva, mas de um policial, urn matador chamado Badeco, "arquivo gueimado' por ordens diretas do pr6prio Chefe de Polfcia. Morava na me6ma casa do Lins. 56 que a vizinhanga n6o sabia que ela cra corista do Carlos Machado e trabalhava na sua pega "Este Rio Moleque', que fazia uma carreira dc sucesso! Carmelita'ficou feliz de rever a prima. N6o, nlo soubera do passamento do primo. Deveria t€-la visitado. 'Pra que', perguntava a outra e ela mesma respondia: "Pra te dar ao trabalho de ir ao vel6rio, ao enterro? Pra qu€? O falecido nlo valia tanta canscira. E l{ em Nova Iguagu, onde Judas pcrdeu as botas, qual..." E arrematouz "Jl foi tarde o desgragado." tl2 Coincid€ncia danada. A morte dos respectivos as unia, desde logo. Mortes violentas e merecidas. Cirmelita contou i prima que se o marido n6o finasse , quem morreria era ela. Mandou matar o mddico que havia tomado algumas liberdades com ela, embora sem maiores conseqi.iOncias. Em seguida, seria a vez dela. Tinha certeza. J{ se via morta. Os olhos fechados, o lengo amarrando o queixo, as m6os postas, as flores no caixlo. A outra. nlo. Nio tinha risco de morte, mas risco de vida, que nem marido direito era o cara' n6o prestave Para nada. pxsx nada mesmo, quis saber, curiosa, a Carmelita. - Para nada, prima. Broxa geral. -Agora, era uma quase-coincid€ncia. Parecido, Anita. O Baldomiro, me explicou o fina- Experidiio, tinha ejaculaglo precoce. Botava e jd do Doutor ia gozando. Q psg, prima, nem isso. -Carmelita era mesmo curiosa. f,ngfls, voc€ d virgem. -A outra se espanta. Virgem, Carmelita? Virgem, nada. J{ casei furada. E depois, dava quando tinha vontade. E o Fel{cio? - AlCm de broxa era corno manso. Fazia que n6o via' sei ld. -O que eu sei C que nlo ligava a minima. Gostava mesmo era de falar mal dos negros. Um babaca' Tive cada negro, prima. Nem te conto. Curiosa a mais nlo poder, Carmelita pede: Qsngx, prima. Conta pra mim. Me d{ os detalhes. - dessas hist6rias. Eu devia ser escritora, sabe? Botar Eu gosto no papel as hist6rias que me contam. Mesmo a minha ou a sua, cada uma dd um livro. Ora, se dd! Mas Anita nlo queria mais aquela conversa. Engrenou outro assunto, Me diga uma coisa, prima, ser{ que voc€ nlo arranja um -lugar pra mim... Carmelita considera. Nlo C dificil, nlo. Tem semPre muita moga saindo. - Saindo? O emprego C tlo mal assim? - ll3 - N6o i tlo mal, mas voc6 nio tem nenhuma seguranga. Quando voc€ assina o contraro, jl deixa assinado a rescislo delc. Sacanagem, p6. - Sacanagem, mas C assim. A( as meninas quando arranjam- outras bocas se mandam. Tem shou no estrangeiro. Especialmente para as mulatas. Em Buenos Aires, na Europa. Tem tambim casam€nto. Casamenro? Espanta-se a outra. - Casamento, sim senhora. E na lgreja, com padre e tudo. E viu e grinalda, sim senhora. Pensando o qu€? Anita gosrou. $x6xqa. Mas e o emprego, dl pre viver? - Pra viver mesmo nlo dd. Mas jC i um adianto. Eu, por exemplo, 9ue tenho casa pr6pria e uma penslo do faleci- do, embora pequena, d{. E pra voc€ tambCm vai dar. Voc€ vem morar comigo... Diga, prima, Felicio deixou alguma coisa? Deixou, sim. A casa l{ em Nova lguagu. - E, boa. - Boa (., at9. demais. Mas o lugar, voc€ sabe, nio muito-valorizado. C mais? - Que Deixou o escrit6rio no Centro de Nova Iguagu que eu jd aluguei. Falta ver a penslo... Deve ser pequena. - Deve, sim, mas sempre ajuda. - Isso i verda.de. De grio em grlo... - A galinha enche o papo. - E se voc€ quiser... - Quiser o qu€? - Fazer programas, sair com uns caras endinheirados. D{ bastante. E tem que dar pros caras? - Depende da combinaglo. Pode dar e pode nlo dar. - que s6 quer companhia pra noite. Vem de outros Tem cara Estados para fazer neg6cio e aproveita pra conhecer a noite do Rio. Eu mesma fago muito pouco. Fico logo com sono. Mas quando o cara me agrada, eu saio mesmo. E quem arruma os programas? - tt4 No teatro tem genre. Na boate que voc€ parar, tamTudo Azul quando quero sair. Ou no La Crenailllre . Fiquei amiga do pessoal do Trio Iraquitl que toca na boatc. E fico l{. Fico ouvindo. Se aparece alguCm interessante, eu saio. Se nlo, venho Pra casa. Leio, ougo mrlsica. Encaro a cama. Tem'tamb€m a Sandra S6nia... apito toca? - EQue direiora de uma espCcie de escola para atrizes, de um cara bispo de uma Igreja nlo sei de qu€. Um cara pra lC bCm. -Eu paro no de safado. Ela faz o que? - Corretagem. - Qslssgxgsrn] - E, Ela tem os contatos masculinos, "otr.i"gem. programas. os cara de grana, e accrta tudo Anita gostou da informagio sobre a escola. Ela tambCm gostaria,de estudar para ser atriz algum dia, quem sabe? Que escola C essa, Carmelita? Ensina mesmo? - Ensina, ensina. Os caras dos teatros vlao li para contratar coristas. Quem se destaca pode atC conseguir uma fala nas Pe9as. - Voc6 estuda 16? Regularmente. Me lcva? lgve, sim. Mas 16 nlo pode me chamar de Carmelita. Como C gue eu devo dc chamC-la? Lita. Me chama de Lita, prima. Q[x6e, si111. 23 Dou Lttnqulrna NinguCm jamais soube bem explicar como Manoel Ceia Laranjeira, tipo me6o e giboso, tornou-se Bispo da-Igreja Cat6lica Livre do Brasil. E menos ainda se poderia informar sobre a Igreja Livre do Brasil. O "Livre" i que complicava, apesar dJser vocCbulo geralmente apreciado. As outras fica- ll5 vam.sob suspeita: nlo seriam livres? De saida, o titulo que escolhera era rebarbativo, antagonizave com as demais lgiejas, ou,.pelo menos, com as aqui situadas. Comprava rima briga cabeluda. Mas, n6o era sd essa a dificuldade. A de nature ze mecerial era aparenremente inrransponivel. Principiava por n6o ter sede conhecida, o que representava grave embarago I difusSo de suas pias idiias, as raz5es pro-fundas que o teriam levado a romper com a Igreja Romanl. Ou a nio aderir a um seu confrade, o Bispo de Maura, dissidente conhecido e que, outrora, recebera, em sua plenitude, o sacramento de ordem, e que ia levando seu cisma com relativo €xito. Modesta SC no subrirbio conferia circunstincia i Igreja do Maura e permitia-lhe realizar casamenros enrre pessoas impedidas pela estreiteza da lei civil ou por intransponivel dogma religioso. Fazia-lhes a vonrade, ao clamor social, e enfrentava, a um tempo, o Estado"t.ttdi" e algreja reconhecida, embora n5o mais oficial ("Coisas da Repriblica, lamentava"). Resolvia intricadas situag6es, amanhlva fam(lias, ministrava-lhes os sacramentos e recebia altos 6bulos, aceitava contribuig5es, doag5es eram bem-vindas. E ia vivendo: um benemdrito! Seita sem templo, bispo sem Catedral, ordem religiosa sem padres, seriam grandes os percalgos que o sacerdoti,enfrentaria. Mas n5o haveria de ser nada. Quem, como Dom Laraljeira, de u provimento a si pr6prio, ordenou-se e sagrouse bispo, saberia vencer os obstriculos que se lhe sem. "nt.pirr.r- Xexiu, amigo de.infAncia e do pe ito, barbeiro afamado . e perito na arte, quando s6brio, abriu-lhe a cora, tonsurouo. Negou-se, entretanto, a beijar-lhe a meo, a reconhecer-lhe a-sribita dignidade eclesiristica, culminincia que ele mesmo, XexCu, ajudara a perperrar. Mas, de quebra, aparou-lhe as melenas e deixou o recCm-sagrado espitar .oit" que seria " acrescida do deslocamento do oficiaf i resid€ncia do prelado,_lugar. ma.is apropriado para a cerim6nia do que o-salio no Lins, localidade infestada de incrCus, pessoas infensas aos sacrificios a que ora se impunha Dom Laranjeira. Talvez por conhecerem o sdbito sacerdote de longa daia. Sempr. t.ro, I l6 aplicando pequenas defesas, jogando bilhar. Por isso, tonsura fora feita no maior moc6. a E verdade que o recente clCrigo sumira uns tempos do bairro, do Sal6o Estrela Dalva, nome escolhido em homenagem I cantora Dalva de Oliveira, de quem era ardoroso f6, do Bilhar do Seu Francisco, do caipira da Estaglo do Engenho Novo. Seus detratores dirao que andou em cana, cumprindo pena por estelionato, mas isso jamais ficou provado por certideo competente ou ilibado testemunho. Tatarana, de conversa ambigua, o religioso defender-se-d, embora de forma meio vaga, sua hist6ria serd Iacunosa, imprecisa' o sentido obscuro prevalecendo sobre a clarcza dos fatos. FalarC de sua incontida vocaglo sacerdotal, manifestada, pela primeira vez, quando menino, coroinha, adjutorava o vigdrio, especialmente quando lhe cabia correr o prato para as esp6rtulas, e, {gil, aliviava a par6quia de alguns trocados, niqueis gue as mlos espertas faziam escorregar para os pr6prios bolsos. E claro que a parte final da hist6ria frcari encoberta por um vCu de mentiras, mas por justas raz6es, entretanto: a ningudm C licito delatar qualquer povo, quanto mais a si pr6prio. Pessoa alguma poderia exigir tal comportamento de um semelhante, mesmo de quem procura santificar-se, ganhar os cdus, livrar-se de todos os pecados. AlegarC que irresistivel vocaglo levou-o a tomar ordens, vestir hlbito sacerdotal. Serd uma edificante conversa, sem ddvida. Construir a sede de sua lgreja, portanto, foi o desafio que Dom Laranjeira aceitara: confiava na bondade alheia, na caridade priblica, na compaixlo geral. O "reino dos cCus" n6o se alcanga com conversa fiada, era preciso trabalhar. Fano ou delubro nlo lhe importava fosse o templo. Era construf-lo Prestamente. Uma grande t6mbola para fins caritativos seria a soluE todos ganhariam. Sim, porque o proveito adequada. 91o imaterial decorria do simples ato de comprar o bilhete. Se premiado, entao, o beneficio seria duplo. Vantagem no cdu e utilidade na terra. As temporalidades e as espiritualidades. NinguCm perderia. Dom Laranjeira estimava as solug6es abrangentes. Fazia-lhe bem I alma, renovava as convicg6es que o iluminaram em caminho tlo espinhoso, mas vertical e I t7 sacrossento. E correria o pr€mio pela Loteria Federal, o que conferia certeze aos apostadores, nagio de gente naturalmcntc desconfiada. Entre a iddia da t6mbola e o dia do sorteio, as disposi- do santo homem se alteraram. O autom6vel que seria sortcado mclhor serviria aos seus picdosos labores, cstaria, assim, multiplicada a sua capacidade de propagar a verdadcig6cs ra fd, anunciar os novos tempos, assistir aos desvdidos, consolar os aflitos. Essa sensata idiia levou o piedoso sacerdote a dcsaparcccr com o velculo, realizando um ato quc julgou ser de significativa candura e manifesta fi. Mas tal nlo foi o entcndimento do sorteado. Dirigiu-se I Delegacia Policial mais pr6xima e complicou: foi gueixar-se ao "bispo" de plantlo. Comportamento, dc logo, a mcrecer reParos. E, sabido que as pessoas costumam se queixar ao bispo, quando nio mais encontram a quem apelar. Rigorosamente inusitado d queixar-se do bispo, o que trouxe nlo poucas contreriedadcs ao santo homem. Debalde argumentou com o ganhador, em encontro arranjado pelo Xexdu, barbeiro de ambos, que o estlva desobrigando de um bem material o que acentuaria o cardtcr apenas espiritual da t6mbola e reforgaria a posiglo do felizardo junto ao reino dos cdus, na hora do jufzo final, porra! Liberado do pr€mio terreno, as b€n96os se derramariam, com maior intensidade, sobre sua cabega. Qabega quc era dura, entretanto, e que recusou argumentzglo tlo transcendentc e razodvel. O virtuoso pastor viu-se, entio, comPelido a fazer um acordo com o loterista e a passar-lhe o carro: nlo o "zero quildmetro" do anrlncio, mas um de segundamio, embora em perfeito esrado de conservagio. Jamais batera de frente. O caso foi acomodado no Distrito, o dito ficou pelo nlo dito, mas Dom Laranjeira viu-se obrigado, Por sua Yez, a contribuir para uma.vaga obra de caridade em que sc €mPenhava a mulher do impenitente titular da Delegacia. "Nio se pode confiar em mais ningudm, qualquer um fazia obra de caridade", ruminava o eclesiCstico, aconselhando ainda, a privar a jurisdiglo da autoridade de sua indulgcnte Prcsenga. A fundagio da "DIANE - Divulgaglo Independente portanto, a cdhar, de Artistas Nacionais e Escritores' vinha, ll8 sobre corresponder a um antigo desejo da venerCvel figura. Sem contar i.rantagett adicional de atravessar o ttinel-que o afastava da sanha policial e o aproximava da Zona Sul, com seus mistirios e promessas, e dos artistas' gente sabidamcnte avoada, desprendida, flcil de lidar, de convencer. Poderia cercar-se de poetas, tribo de nefelibatas, pessoas de certas letras, pouco siso e muito riso. de se temer quem Por Penoso oflcio tem o das letras. Vivem empenhados em colocar no papel palavras que formem frases, orag6es que consertem perlodos' que componham hist6rias, acontecidos, lamentos em Prosa e verso. Maioria de pacificos e trat{veis, embora certas idCias Postas em livros tenham causado alguns transtornos a paPas e a principes, a bangueiros e a generais. Humilde, Dom Laranjeira nio tinha a pretenslo de ombrear-se com homens tlo importantes, vivendo nas alturas, como o escritor Nelson Werncck SodrC, que alim de homem de letras, era general que complicave elnid" dot colegas de farda. Um qtiiproqu6 danado' que o piedoso sacerdote nlo compreendeu bem quando lhe explimas fez cara de paisagem e foi em frente, atC Porque o ""t"-, porque n6o diclCrigo habitava as planicies, em especial -as ruas e becos, esconsos faltos de figuras ilustres. A zer? eles, o dedicado cura, queria servir, aPenas. Dos sucessos anteriores nem mais se lembrava. Anistiou-se, concedeu-se ilimitado perdeo. Era um dos poucos privilCgios a que se permitia Dom Laranjeira: o uso, embora moderido, das superiores vantagens de ser o chefe de sua pr6pria Igreja. Poucos colegas no mundo inteiro desfrutavam de tal poder. E certamente um reduzido nfmero o usaria, o que n6o lhe parecia grande coisa' pois dirigiam Igrejas antigal com templos, paldcios, catedrais imensas, basflicas, santuirios, par6quias, capelas. A possuir terras, ouros, brocados. E prata e paramentos. Papas, cardeais, arcebispos, bispos, abades, pt.sblt.tos' oragos, reverendos, arcediag-os, c6negot, priores, deiosr vigirios. Conduziam a vida e administravam a morte. Eram reverenciados e todos os acatavam' Nlo precisavam apelar para poderes de exceglo. Possulam exdrciio, . .oott.s-celesiiais, tropas na terra e millcias no cdu, legi6es de anjos, espiritos de luz, arcanjos, serafins, querubins, Podiam se expressar em latim semPre que lhes fosse conveni- Nlo C I l9 ente, atC para n6o serem entendidos pelo comum dos mortais, por scus rebanhos. Tartamudo, Dom Laranjeira cxprimia-se epenas regularmente na lingua vernCcula, desconhecia todas as outras, vivas ou mortas, I excegio da llngua do 'p' q,r. praticara quando crianga e assim mcsmo com certa dificuldade. Por esses motivos, aldm dos demais, o obscuro eclesidstico precisava de muita, infinita compreenslo. Ele estava comegando, n6o vinha de sCculos, demandava compaixio, boa vontade. Posta a coisa em tlo elevados termos, o destino dcveria se encarregar_ de urn merecido realce ao devoto cldrigo. Os insondCveis desfgnios da Provid6ncia poderiam ser .olocados a scrvigo dos alevantados prop6sitos do imaginoso sac€rdote. Era isso, pelo menos, o que esperava Dom Laranjeira, ao emprestar seu honrado nome I nova entidade. Com dedicados colaboradores mais tarde injustamente acusados de formagio de quadrilha o bispo instalou, numa casa de Botafogo, a "DIANE". Arranjou rnesas e cadeiras, poltronas e atd um pcqueno palco foi montado. Com isso, o saldo da t6mbola, jC sangrado com a falta de compreens6o do premiado e com a voracidade do aparelho poliiial, csvaiu-se. Viu-se, enrio, o religioso, compelido a aceirar m6dicas contribuig6es dos candidatos ao eitrelato. O que lhes seria rctribufdo com o almejado sucesso no palco ou nas relas, pois os aspirantes podiam escolher entrC o rearro e o cinema. Quando a fama, afinal, chegasse, o renome batesse irs pr6prias porras e a celebridade, enfim, viessc a incomodar, tivessem de usar 6culos escuros para escapar de enlouquecidos fis, focas nlo amestrados de jornais e ievistas sens"cionalistas, cnt6o veriam qu6o fnfimos foram os tributos. Como era larga a vis6o do reverendo, como era generoso o seu esplrito! Pressago, jt antevia um fururo de gl6rias para seus pupilos. Que acorreram prestamente ao anrincio publicado nos principais jornais: 'Prccisam-se de rapazes c dc mogas pdra completar o quadro de drtistas dc duas jellcaks naciinais..." Os candidatos deveriam submeter-se a um resre na rue 19 de Fevereiro, em Borafogo, justo ao ladq da rcsid€ncia do 120 afamado cineasta Luis Carlos Barreto, que entlo tivalizave com Nelson Pereira dos Santos. Ao bairro em que outrora moraram Rui Barbosa e C6sar Guimarles acorreram muitos e variados jovens em busca do estrelato. Gente em penca. Que movimento! gente. SCrios e compenetrados das altas responsabilidades que assumiam' os diretores da "DIANE" garantiam estar ali a "porta aberta para o estrelato'. Coisa de louco! Os pretendentes depositavam a m6dica contribuiglo e recebiam um texto para decorar. Depois, no prazo estabelecido, voltavam para <l teste. Eram invariavelmente reprovados. O que serviria, mais tarde, de argumento Para os maledicentes esculhambarem a "DIANE". Os papCis que Prometera, em andncios pdblicos, no cinema nacional, nunca aPareceram. Pelas mlos da "DIANE" jamais alguim conseguiria trabalhar no cinema ou mesmo no teatro. Mas que culpa tinha a consplcua sociedade se rareavam os talentos e escasseavam as aptid6es? Se os que acudiram ao andncio eram Pessoas destituidas da imprescindivel vocaglo? A eles faltando indispensdveis pendores. Em absoluto nlo se podia oPerar milagres, apesar da s6lida posigio religiosa de Dom Laranjeira, Bispo da Igreja Cat6lica Livre do Brasil, presidente e curador da "Divulgaglo Independente de Artistas Nacionais", fung5es que acumulava com a boa vontade costumeira e reconhecido sacrificio. Dividia-se entre o cCu e a terra no afl de a ambos agradar. A poder de ingentes esforgos, de mourejar dias e noites, se bem que estas amenizadas pela companhia de uma pupila particularmente interessada nas particularidades do teatro e nos mistCrios da fC. E o bom homem atendia a penitente, ensinava, consolava-a em seus ardores. E o anfncio fora (Propositalmente?) vago. Dom Laranjeira tinha experi€ncia com a ingratidio ctdavez mais significativa desse amontoado de gente embrutecida chamada "humanidade". Sem reconhecer os valores emergentes' sem compreender as dificuldades que enfrentava para estabelecer uma nova fC, construir uma Igreja, espalhar a boa nova. Era como espargir dgua benta sobre uma multidio de infiCis. Ou abengoar hordas pCrfidas. Inftil e desolador ministCrio esse que se impusera o santo homem. E nlo fossem os fteis e oPortunos conhecimentos sobre a capitulaglo dos crimes e a fixa- L2l glo das penas, com que a vida o insrrulra, a orient{-lo em momentos tio dif{ceis de sua existEncia, Dom Laranjeira cstaria literalmente fulminado, pois a tanto chegaria a maldade humana, a inveja, os inimigos poderosos, o abuseo, o con- vencionalismo. As pessoas adoram formular queixas ls delegacias policiais. Denunciag6es postulat6rias. Estava Dom Laranjcira divagando, quando um clario salvou-o de tlo ominosas reflex6es. Por que n6o ampliar a clientela da pia obra? Por que n6o estende-la a rodos? Por que limitd-la aos jovens rapazes e moges inda mais - mal-agradecidos, sem - corresponquando eles se mosrram tlo derem aos nobres feitos do prelado, tanto afadigamento c trabalheira lhe custava a escola. Ingratos a implicarem com o singclo texto do andncio: "Prccisam-se dc rapazcs c dc mogas para complctar o quadro de artistas dc duas pcllcahs nacionzis... " Nem de leve se insinuava que as referidas pel{culas tinham precislo de artistas. O texto era claro como a luz do dia: era complctar o quadro de artistas j{ existente. Os diretores de cinema, homens irrasclveis, poderiam realizar a filmagem com quadro incompleto. Ou alterar o roreiro, modificar a histdria, matar figurantes, n1o deixi-los nascer, exercer, enfim, seus extraordinirios poderes de vida c de morte sobre os personagens. Nlo faziam isso habitualmente, s6 por simples capricho? Ou para enlouquecer os produtores? Ou mesmo por pura sacanagem? Adaptar o efetivo de artistas I trama era tarefa simples que n6o requeria complicadas manobras. Era s6 jogar fora algumas cenas, e pronto! Com que autoridade reclamavam, enteo, do honesto religiosol Melhor que aprendessem a desfazerem-se em ldgrimas para, no momento seguinte, espipocar-se em altas gargalhadas. Aprender as artes e nlo encher o saco do reverendo. Motivado por essas nobilitantes considerag6es, o prcconicio saiu enxuro, reclame pra ninguCm botar defeitos ou futuramente alegar direitos. 'Extras pard o cincma nacional. Prccisam-se, na rua 19 de Fcuereiro, 139." Foi a{ que o atd cnteo pacato logradouro conheceu seus momentos dc fasti gio. A ruazinha amena, ladeada por canhestras {rvores, transbordou de gente, de todos os pontos da cidade, de todas as 122 Multidio de candiiatos I suprema gl6ria de imortalizetem as pr6prias figuras na cinematogrifia pdtria. Dom Laranjeira, passado o ragas, de todas as cagas, de todas as idades. momento em que atC a pr6pria fC lhe vacilara, considerava a avalanche do ponto de *'ista da ampliaglo das atividades da "DIANE", a oferta de possibilidades gerais (Que generoso coraglo!) e substancial acriscimo nos ganhos, pois ningu€m vive de brisa: faturar C preciso. E resumia' Para uma atenta platdia de colaboradorei, condescendentemente, a sua judiciosa opiniio sobre o extravagente acontecimento: Democrecia € assim! - Revigorado em sua fi, restabelecido em sua liquidez, p6de o pastor empreender profundas alterag6es na concePgao berita do projeto e Precatar-se contra os eternos inconformados, insatisfeitos que vislumbravam delitos onde s6 existia bondade, pessoas que s6 vieram ao mundo Para tentar os mansos, perseguir os puros' aporrinhar os demais. Procutoi, logo,-dar um sentids prdtico aos seus sublimes objetivos. Entiqu em confabulag6es com Dona Sandra S6nia, antiga corista do teatro rebolado, p-ossuidora {e yma regular Escola de Arte, registrada na conformidade da lei e do-s usos. O neg6cio foi concluldo com a comPra' pelo bispo, da cobigada escola. Desprendido' o comPassivo pastor deixou as cotas da firma em nome de sua antiga proprietdria, forrando-se, t6o somente, com um "contrato de gaveta" em que a s6cia lhe reconhecia a propriedade e se obrigava a transferir as cotas para o reverendo ou Para quem este bondosamente indicasse. Para si, reservou o caixa da empresa, responsabilidade a exigir cuidados de homem, n6o importava.se iacerdote fosse. Doha Sandra seria a diretora tCcnica, cuidaria da parte artistica propriamente dita, poderia expandir seus primoiosos pendorei, sua reconhecida sensibilidade. Para faa antiga corista deixaria os recibos assinados "ili."t m1o. Teria suJretirada, mensal e generosa' garantida de ante".r.rit", e seria muito, imensamente feliz. . Era um arranjo magn(fico e a vida transcorria em Pcrfcita calma, atd que u- c.rto Domingos Alberto Ribalta, cidadao lusitano, ap6s cinco anos de iontribuig6es e dcsilur2.3 s6es, resolveu levar o caso ao conhecimento da Delegacia de Dcfraudag6_es dizendo horrorcs do curador e presidJnte (de honra) da 'DIANE" e de sua diretora artlstiia, a impoluta Sandra S6nia. A antiga corista ficou uma arara. Conrratou advogado e ameagou proccssar o queixoso por difamagio, injdria e caldnia, as tr€s de uma s6 vez: nio faziapor menos a ofendida professora. Era, sobrerudo, mal-agradecido o aluno, especialmente com quem lhe dedicou horas extras, a trein{-lo em variadas prdticas amorosas para que nio fosse o galego surpreendido com um convite para um filme maislvaigado'e n6o soubesse representar. E se nio repetiu o experimento foi por encontrar o estudante por demais sabido e excepcionalmente bem dotado pela natureza, o que n6o recomend"*'" determinada posiglo qu! o ardente luio passara a lhe exigir. . M.:To o diploma de concluslo de curso que, ao final de cinco laboriosos e'indteis anos lhe ourorgou, r€presentava pura boa vonrade e o sadio espfrito de camarad"g.- q,r. o lustro alicergara. Razo{vel c6lira e justa indignag?o "trirrr"vam o espfrito da injustigada mesrra, de tal forma e com tamanha carga de convencimento que o pr6prio Tirular da Delegacia de Defraudag6es, Doutor Mariano Luiz, dividido entre hist6rias t6o dlspares, ficou na sua, deixou o barco correr, ou melhor, navegar. Na verdade, a escola existia legalmente, os papCis estavam em ordem. AtC artistas de algum renome ali ietxerciam entre mont-agens de pegas, apresentagdes em outras pegas, shows variados. Muitos cumpriam, atC mesmo, inteiro,b ano letivo, expressando duas voiag6es: a de mestre e a de artisra, premidas, ambas, pela falta regular de trabalho nos palcos, o teatro cada vez mais um entretenimento das elites. AlCm de representar um ponto seguro, uma espicie de pista de langam€nto para programas mais rendosos ou atC mesmo fabulosos mich€s, que Dona Sandra S6nia em pessoa se esmerava em arranjar. E n6o seria ela diretora artfstica. Por ourro lado, forgoso era admitir que a escola nio reelizara sua finalidade essencial: n6o se tinha norlcia da efetiva contratagio de qualquer dos seus indmeros alunos, rirante o pessoal dos teatros de revista que, vez por ourra, t24 arrebanhava coristas para as temporadas, somente. O que jC era alguma coisa. Ou nlo era? A diretora artlstica da "DIANE" n6o se conformava com tais restrig6es: "Escola n6o assegura emPrego aos seus argumentava convencida das p16alunos, nem faculdxdg" - tlo consistentes assim, pois se os prias raz6es. Que n6o eram graduados em dcterminada cscola, sem solitiria exceglo, n5o conseguem emprego jamais e quando tal desatino se estende por cinco anos, C porque algo de peculiar sucede. Para que enteo uma escola? A conseqii6ncia do ensino C o emprego, a contrataglor para iss.o se estuda. 'N6o assegura emprego, € verdade, mas se os alunos da escola nunca se emPregam, ent5o que porra de escola C essa", pensava o Delegado. E estava a autoridade imersa nas pr6prias dfvidas, guando chega a notlcia da participagio de um religioso no suspicaz estabelecimento de ensino, trzzida pelo {rdego lusitano, empenhad{ssimo agora em destruir a escola de arte, prender seus responsiveis, dar porrada neles, ensino exemplar. "Com Salazar C que C bom", lembrava da terrinha o quelxoso. E isso, mesmo. Os amigos de ontem slo os inimigos de hoje, e os mais terriveis, rancorosos, inexordveis. O falso religioso era um escroque que se fazia de bispo de uma igreja ' de ar4gae, apurou-se. A autoridade vinha transferida da Delegacia do Engenho Novo. Lembrava-se do vigarista que se fazia Passar Por padre, bispo de uma igreja que ele mesmo inventara. Tentou o golpe da t6mbola e se machucara: na sua jurisdiglao vagabundo nlo se criava! O Delegado, se a mem6ria nlo lhe faltava, permitira a acomodaglo em troca de um substancioso donativo do malandro para uma obra de caridade de uma moga com quem o policial estava se entendendo e que o vulgo chamava de casa-mililar. Ria-se o policial com a lembrange dt carl. do filho-da-puta ao se ver compelido a contribuir para uma concorrente; sentia-se um pindego, dobrava-se de rir. A escola parecia pr6spera, o falso padre nadando em dinheiro. O homem da lei jd vislumbrava polpuda cooperaglo do velhaco. A mesma obra da "regra tr€s" que vinha s€ arras- 125 tando, iria agora sofrer novo impulso, significativo incremento, e esfregava as honradas mios. Policial tarimbado, passou uma ordem para que fosse conduzido, i sua presetrga, o execrCvel clirigo. Ao mesmo tempo, mandou levantar a vida pregressa de todos os envolvidos na erapuca,. inclusive o aliagtiete portugu€s. Apuraria os fatos com absoluto rigor e ollmpica imparciilidade. Esclareceria a moxinifada "custasse o que cusiasse' ou 'doesse a quem doesse'. Policial da velha escola, olhos de lince, faro de raposa, consrruira justa reputagio de honradez e de extrema.la dedicaglo I causa pdblica ao longo de uma brilhante e proficua carre ira. Esrava a altura de enfrentar os piores meliantes, contumazes malfeitores, traficantes, charlatles, incendidrios e terrorisras, subversivos em geral. Com ele era ali, na dura. Sem contemplagio. Sua fama crescia em todo o aparelho policial. Apontado como exemplo, cumpria invejada carreira na reparriglo. Era conhecido como Mareus: primeiro os meus! Atenglo, marginais, o Doutor Fleury esti na irea: tremei! O Doutor EleotCrio dos Reis Fleury, Delegado de Defraudag6es, esrava a fim de engaiolar Dom Man6el Ceia La- ranjeira, Bispo da Igreja Cat6lica Livre do Brasil, curador e presidente (de honra) da "DIANE Divulgadora de Artistas Nacionais e Escritores", se conseguisse alcangar, com as probas mios, o devoto lombo. Escolado, Dom Laranjeira farejou sujeira quando um alarce, trescalando a tira, de feder a setenta milhal de distlncia, perguntou-lhe cortesmente: O distinto conhece por acaso um certo bispo por nome -de Laranjeira ou coisa assim? Respondeu o prelado, confirmando seus piores temores: Sim. Conhego ligeiramenre. coragem. Por que o ilustre amigo gostaria de saber? -E o agente disfargou. -E, tomando r26 Nlo sou eu, nlo. E, o Doutor Fleury, Delegado da que deseja um particular com o mogo. Tomava f6lego o reverendo (Ah!). Defraudag6es, Sio amigos? -E o policial sempre disfargando. E o Delegado i amigo de alguCm? - !nj[e, o que quer o Delegado com o bispo? -Continua o inyestigador na linha do despistamento. encanar o cara. - Quer E por que prenderia o bispo? -Manteve o policial o comPortamento disfargante. Parece que o elemento se faz passar - o conto-do-vig{rio. a aplicar por padre' vive Ria-se o diligente servidor da coincid€ncia, hilariante ao seu ver: um falso padre Passar um conto-do-vig{rio. quC, - qu{... Qu{' Esgotado o riso, o investigador, lanceiro, volta l.catga, D.l.gado est6 brabo, quer o homem na Delegacia hoje. ainda --O O Delegado, o senhor disse, C bravo? - Brabo? -O brutamontes dissimulava ir perfeiglo. pouco. O delegado d uma fera... -Friozinho na espinha do sacerdote. Como se manifesta a ferocidade do delegado, seBrabo C nhor? - O bruto mantCm a tCtica. O delegado dd porrada, dd telefone, caldo' arranca - com alicate, palmat6ria nas mlos e nos pCs, choque as unhas elCtrico, empalamento, pau-de-arara, essas coisas. O senhor sabe, o delegado C praga antigo. Entrou na pol(cia mocinho. Vem desde os tempos do Estado Novo. Aprendeu a torturar comunistas, tomou gosto e niao pira mais. E muito instrutivo. Ah. (Fugia o chlo do sacerdote.) - Suas ordens, senhor, slo assim tlo categ6ricas? - Slo sim, tenho de levar o filho-da-puta do padre de - jeito. qualquer E o tira pareceu impacientar-se. O senhor pode indicar o paradeiro do cidadlo? - r27 guir nos momentos de tentagio e de penrlria. E vinha esse Herodes a perseguf-lo novamente, a encarcerar inocentes, a acossar os cindidos e puros de coragio. Submet€-lo a ultrajes, oprobri{-lo. Sobretudo, revoltava-lhe a acusag5o: conrodo-vigCrio. E ele o gue era? Vigdrio, sim senhor! Fosse um leigo e estaria certa a atribuiglo do irregular comporramento. Mas a ele, n6o. Era insofismdvel e legitimo o direito de aplicar o seu pr6prio conto. De resto, expediente protegido pelas precaug6es que andara tomando e que o colocariam a salvo de sacrilegos e blasfemos. A sanha policial contra o pio sacerdote nlo teria curso, merc€ de Deus. Inexistiam provas materiais que incriminassem sua santa e precatada pessoa. As provas testemunhais seriam de nenhuma valia. Esfumaceiam. Era dar o tempo ao tempo. Safar-se, escapulir, renovar a fC e pregar em outra freguesia, baixar em outro terreiro. E, com efeito, Dom Laranjeira raspou-se. Foi cumprir seu retiro conformado. Ele mesmo C quem dizia i guisa da prdpria consolaglo, frase que resumia a imensa sabedoria do sacerdote. Ajoelhou, tem -Sentia-se como o de tio do Brds Cubas, 'cdnego de prerezar. benda inteira", para quem o "amor da gl6ria temporal eia a perdiglo das almas". Daria as santificadas costas ls coisas deste crudelissimo mundo. Iria se egerrar com os anjos, puxar reza grossa. Esmerar-se no servigo do Criador e maneiran isso a{, maneirar. A Provid€ncia se encarregaria dc prover seus destinos. A poupanga tlo duramente amealhada ajudaria, sem drivida que ajudaria. Entregar-se-ia a Deus e I sua infinita miseric6rdia. E despiu-se da hist6ria o santo homenzinho. Laranjeira transformou-se em "laranjeiro", rermo chulo a designar o vigarista, passador de conro, trambiqueiro. De alguma forma, o piedoso sacerdote fez escola, imortalizouse. Embora de maneira obliqua. Virou adjetivo. 130 24 O pona Duas Vinias faziam Ponto no Craqt Hotse. Uma l{, branquela, muquirana, VAnia propriamente dita e a nossa' chamada VAnia-da Rosa porqui Pedro das Flores sempre lhe dava uma rosa, flor de su" ievoglo, afinal incorporada ao nome de guerra. Um-dia, melhor, uma noite, Macarra conhcceu VAnia no Little CIab e dela se apaixonou perdidamente' Paixio que o consumiu em labaredai e sofridos ais. Misturou o dia com a noite, p€ com cabega. D.tl-t. o drama, cntretanto' Porque Macarra n6o foi correspondido. Toda a sua l{bia, sinceridade, malandragem e de"ogio, manhas e suspiros, e atC quebrantos' resultaram em t ada, neca de pitibiribas. Nada vezes nada. Dolores burin, que cantava e que ouvia, toda bondapaci€ncia, condoeu-se do Macarra. Que desperdicio, tande e jogado fora! Escolheu as palavras, nlo queria llagoto "-ot ar a moga, mas' quem sabe, amor igetno ou mais um cliente , que importa? Importa sim, Dolores. -Vlnia da Rosa foi definitiva. Quero ser livre, estar disponivel para quando o amor fulminante chegar. Pode ser atC numa segunda-feira, nlo importa. Quero plt tat'e que ro bordar. O amor,. Dolores, d o laminho-do sol, a gira da lua, o sal da terra. E a ciranda da boi'or.r, d um carro de fogo, lagoa azul' E o "iai. "*or, exaltagSo e d remanso. E ante uma Dolores PerPlexa: Nio me venha' querida, com esse lero de que eu sou muito nova para ter passado. Sentimento nobre d pau' Esse cara n6o sc manca? Dolores sc tocou e foi convencer Macarra. Que compreendesse, a moga nlo queria.- Importasse n6o, tinham ouiras, tinham tantas... Macarra foi irredutlvel. Eu hein? Nem pensar! O amor, Dolorcs, d a redengleo e tgl6ria; jd o encontrei, nlo vou recuar' desistir, abster- t3l me, dar parte de fraco. Sou guerreiro, salvei meus santos, saravei, vou I luta! Dolores, ternura em pessoa, compreendeu ambas as partes. Ela procurando o amor, busca quJ se revelard infrutffera; ele imaginando jd r€-lo .t.ontr"do, mas ern v6o. i{h o amor', pensava a cantora, ela mesma carregando todas as dores do mundo. Macarra foi I luta. Bolou um programa bacana, capez .le encantar a moga, subtraf-la da atitule distante qu. .omantinha. Nlo podia reclamar de grosseria, isto n6o. Mas _ele Vinia nio lhe dava sequer a oport,rnldade de mosrra-se tal qual era: lcgal pra cacete! Realmente, Macarra n6o poderia ter bolado melhor programa. Comegaria I tarde com o jogo no Maracan6, um cldssi- co: o Amdrica enfrentaria o Fluminense, p6-de-arroz, time 9: g.tt-,. metida a besta; de elite como o Raphael de Almeida Magalhies, o maior jogador de futebol de praia que pintou no Rio. Ele, Macarra, era rorcedor do AmCrica e habituara-se a acompanhar o rime, jogasse onde jogasse, mesmo no algapho de Madureira. Ia sempre na companhie duns rapazes de Graja6: Jacob Kligerman, Sirgio Lopes, JosC Viucai e Marcelo Cerqueira, todos americanos: "Quero torcer, torcer, torc-er, quero torcer atc morrer, morrer, morrer, porque a torcida americana C toda assim, a comegar por mim...i berravam nos estddios a mdsica gloriosa. Melhor que nio. Telvez, nio. Talvez u-ma pin6ia. Certamente que n6o. Mulher n6o aprecia muito futebol. Nio v6 grege. N6b, naturalmente, ni.o. Mas n6o C que o Dante Vigiani, seu amigo do peito, conseguira trezer Louis Armstrong em pessoa ao Brasil c o rei do jazz exaria tocando no Municipal, no sCbado pr6ximo..Era ligar para o Dante e descolar duas entrad"r, pblttonas bem situadas: um deleire! Foi um custo falar .o-- o .-prcs{rio, Vigiani n6o tinha ouvido que chegasse para tanto telefonema, nem entrada para tanto carona, porque as pessoas n6o gosram de pagar ingresso, querem filar sempte, muiro especialmente quando o teatro C do governo, como o majes- r32 toso Teatro Municipal. Do governo, mais propriamente da Prefeitura do Distriio Federil era o teatro, mas o espetdculo custave dinheiro, muito dinheiro, os olhos da cara, Porque Armstrong e sua banda nlo se apresentariam Por dez rCis de mel coado-. O empresdrio havia alugado o teatro, se bem que a prcAo simbdlico, porquc a Prcfcitura inclulra a aPrcsentagib em sua progranagSo cultural, o que incentivava buroalguns, mesmo' a exigirem it"tar e pollticos a pedirem ingressoi. O que n-eo daua pt, reagia Dante Vigiani. Mas abririiuma .*c.geo para o Macarra, seu amiglo. Especialmente tocado pela narritiva do amor a ser conquistado, paixlo quc o cstava a consumir, soliddrio, o empresirio Presenteou-o com as duas almejadas poltronas, mas Para a sessSo vesPertina, porquc a noturna jl estava esgotada. Viessc antes e teria conscguido. Era batuta mesmo' o Dante. - Vinha a calhar, Pensou nosso her6i. JC antevia o programSo. ' - Sairiam cmbalados pclo som mavioso do trornpete do Armstrong, sua voz rouca e inconfundlvel, sua banda genial e logo iantrriam: "Jazzdeve dar fomc", matutava. Poderiam jantar no Saadia, pertinho do Municiirem caminhandg, qucT sabe de bragos dapara pal, da:'ia "Vamos andando, VAnia, o Safiia ftca' Argumentaria: ios? Dantas, ndmero 87, C uma 6tima rua Senador na ali, logo casa." Depois, era atravessar a CinelAndia, cruzar a Avenida Rio Branio, c, logo depois da rua Santa Luzia, descer os degraus que levam lo dancingAvenida. E lugar de respeito, a lente pode levar as patroas. Certo C que fic-am as damas sentadas nas poltronas I disposigio dos cavalheiros' mas Para dangar, so-entc. Pode-sc convidar qualqucr das-damas. O jamais seri recusado. Apenas cada mdsica ""rrilheiro corresponderC a um furo no carteo. E ceda furo importTd em "oito cruzeiros', conta a satisfazer na hora da salda. Claro que ao levar sua dama, o cavalheiro nio ver{ seu cartio furado, mas, em comPensaglo, ptgar| caro pelo ingresso da companhia. Sim, poryue o night'clab vive disso, alCm das bebiias, porque comida C troia de dinheiro: nlo dd tucro pre cast. uvoie vai se deliciar, Vlnia, o lugar C do arromba. b porteiro de farda cdqui abre as Portas do dancing 16 den133 tro, luzes verde, ezul e cor-de-rosa v1o combinando com as mdsicas. E a gente danga, danga, danga. E, pista mesmo. No duro. Nlo i como nessas boates que a gente mal tem lugar pra girar, nio. A pista C imensa. A orquestra C 6tima. A crooner C a Angela Maria. A cantora esti. comegando agora, mas j{ C um sucesso da noite. Soube que o Carlos Machado esr{ cogitando contrat{-la com exclusividade para seu novo shou..." Tinha mais, que a noite i comprida. "A boate Bidu estt, apresentando um show formid{vel, 'Bedulnos no Carnaval'. Tem tambCm a Mara Abrantes, no Fiesta. E, considerada a melhor crooner da noite. Voc€ C que m escolhe, VAnia." Macarra estava pensando em fechar a noite com uma ceia no Lucas. Talvez lC encontrar o Oscar Niemeyer e apresentd-lo I Vinia. Apesar de famoso, o arquiteto era simples, falava com as pessoas na maior. O vendedo r iria fazer a maior figuraglo com a garora. Amigo de gente famosa. Quem sabe o Renato Guimar6es, faixa de fd do Macarra e amigo inseparrivel do Oscar, 16 niao estaria? E se tivesse, era certo o convite pra sentar I mesa do arquiteto. Jri imaginou que chinfra? Vinia ouviu o lero-lero do Macarra ati o fim. Sem dar um pio. Resignada, deixou o cara falar ati cansar. O pinta desfiou todo o rosirio da programaglo, realgando a vantagem de cada parte. E sempre deixando a escolha por conta da convidada. "Voc6 escolhe, Vinia" era a frase com que invariavelmente encerrava os diversos itens da noirada. E claro que omitiu o MacaracanS, a idCia inicial fora afugentada. AlCm de mulher nlo gostar de furebol, o sacana do SCrgio Lopes ere c^paz de dar em cima da Vinia e a genre nunca sabia: o repez ere abonado porque o pai, Coronel Bernardino, fazie todas as vontades do filho e rico que era nlo mcdia a grana que dava ao garoto. Macarra avaliou positivamente o prdprio desempenho. Crescera na hora de apresentar Vdnia ao Armstrong. Falou do Dante Vigiani e da amizade com o empresdrio. Nas poltronas disputadas a peso de ouro e da sua sorte em conseguir duas bem nas visperas da apresentaglo da banda. Louvou o dancing, assim a crooncr Angela Maria. Mas nlo fez por menos com a Mara Abranres e a boate Fiesta. 134 Caprichou no jantar, n6o mediu elogio Para a ceia. Enfim, cumpriu a contento a tarefa que se impusera: armar um para VAnia. programlo - - A moga ouviu que ouviu, depois falou: Brigada, Macarra, quero nlo. Fica Pra outra. vez' - perdlr o Programa, qu.- sabe voc€ nlo convida a Pra nlo Sandra Vilma? Ela goJta de voc€. Olha, chama ela de Nely' Macarra ficou na maior merda da par6quia. 25 As turntDAs Do MuutctPet Foi um mortificado Macarra que Luiz Mattoso, cha- mado Kid, aspirante da Marinha de Guerra, foi encontrar na bo*e La Crcmmailltrt comegando a noite de sexta-feira. Era tal o baixo-astral do amigo que o Kid logo se es- queceu do bate-boca que tivera 9oT o Affonso Real Nunes' de farda e companheiro de farras. E, que o Furica se amarreva no Trio Iraquitl, que se aPresentava exatamente ne tal boate La Cremmailltrc, onde o Macarra estava roendo beira de penico. AtC al tudo bem. Kid apreciava o Thio lraquiti, o Trio Nag6, o Trio de Ouro, o Trio Esperanga e os Trig€meos Vocalistas. "Mas toda noite, Furica, tenha d6", lamentava-se o marinheiro. Mas Affonso era de Natal, Rio Grande do Norte, amigo do Edinho, vocalista do conjunto e tambCm potiguar. Pior C que o Sidberth e o Lorenzi deram a maior Furica, inconformados de nlo poderem assistir a Fotg" "o apresentagio do conjunto paulista Dem6nios da Garoa, no Casablanca. Os dois vibravarn com o conjunto' especialmente quando inte rpretava m Saadosa Maloca ou Samba do Arncsto, do Adoniram Barbosa. Kid ficava puto da vida. "-Lot Oh SiCberth, que o Lorenzi Pare na dos caras rl lealdm de paulista C filho de italiano. Mas voc€, gal. Afinal, iara, carioca e de Graja6? Tenha santa paci€ncia! Inrltil. 56 de lembrar vinha-lhe incontida irritaglo. Nlo C que uma vez o Barrosa, navio em qu-e faziam costeira viagem de instrugio, ao parar no Porto de Santos possibilitou *1.g" 135 que os alunos fossem a 56o Paulo fartar-se com sua noite t5o cheia de atrativos e sacanagens. E nlo C que os dois colegas, .justamente os dois, inventaram de assistir os Dem6nios da Garoa que se apresentavam no programa Manoel da N6brega, na Rddio Nacional de Sio Paulo? E n6o i que foram, mesmo, arrastando o inconformado Kid que ourras aspirag6es levava, especialmente ouvir Dick Farney que cumpria contrato no bar do Hotel Claridge e se preparava para abrir sua pr6pria boate, a boate Farneyi. O pobre Kid estava a fim de ouvir o piano de "Fars" Elpldio, no Stadiurn, mas os dois deram forga ao Furica s6 porque o mulherio do La Cremrnaillbre era melhor, mais va- riado. Reclamou mas foi, como de seu costume, cordato que era. E se deu bem, porque o Macarra, ap6s alugar seu ouvido por um bom par de horas, queixando-se das mulheres em geral e da filha-da-puta da Vlnia em particular, presenteouo com dois cobigados ingressos para assisrir, na rarde do dia seguinte, no Teatro Municipal, Louis Armstrong e sua fabulosa banda. Com isso, Kid iria se regalar e limpar sua barra com a noivinha de Grajari, jC meio desconfiada que o noivo era da p{-virada. Nlo que se incomodasse com as noitadas que adivinhava fezer o namorado. E nem das companhias, pois Affonso, Lorenzi e Si€berth er"m repazes de familia, comportados. 56 nlo gostava quando ao grupo se juntava o Marcelo, irmlo do SiCberth. Aquilo era um moleque a evitar-se. Perdoasse dona Marilia, mas o segundo filho nio era companhia que se recomendasse. Preferia que o noivo nlo andasse com tal pesre. Mano, Mambo, Othinho, Leroy, Jurume-lo, Perdigio, Nh6t6 Tico, Espoleta, alCm de outros, forma-vam, com o Marcelo, uma curriola da pesada, absolutamente n6o recomenddvel. Se o namorado nlo quisesse sair sempre com os colegas da Marinha, o que seria compreensivel porque cha-teia olhar para as mesmas caras na escola e fora dela, enteo procurasse melhores companhias. Em Niterdi, tinha os irmlos quase da mesma idade. Mesmo em Gra.iad, companhias decentes n6o faltavam, como os incrlveis g€meos FCbio e Fabiano Pellon, e seus sobrinhos SebastiSo e Mdrio Luis. Alfredo "Boc6o", jogador de basquete, ou Dauquir, craque de futebol de salao. Tinha o Max Amaral, o Miltinho 136 filho do China, o Porci(ncula e o Mauro Miguelote, cadetes do Exircito. Ou o Gilberto Cabral, procurador da Caixa Econbmica. Tanta gente boa. Com seu irmlo' reconhecia, nlo era possivel. Nlo se davam bem o irmlo e o noivo. 56 n6o gostaria que o noivo ficasse na farra com o Marcelo: alCm de encrenquerro era comunista. Melhor acender uma vela. Como adivinharia a noiva que' naquele exato momento, o Marcelo estava preparando a lista dos convidados para a ce ntisima aprese ntage i do shou de Nanci Vanderley e Chico Anisio na boate Montecarlo e que o Kid compunha a dita? A turma da lista era duplamente convidada. De um lado, o convite vinha do Zelito Viana, irm6o do comediante e colega do Marcelo, do Leon Hirschman e do Marcus Alencar ,ro CJrrtro de Formaglo de Oficiais da Reserva da Marinha, servigo militar que os quatro tiravam com o maior sacriflcio. DeciJidamente, nlo davam Pere.acoisa. Do outro lado, eram convidados da Dolores Dur{n. A cantora iria apresentar o bai6o "A fia de Chico Brito", composiglo do not{vel comediante. Propositadamente, Marcelo nio inclulra seu irmlo SiCberth como represdlia I sua defesa do samba paulista- V€ se pode: ,rm" .ontr"diglo em termos' afirmava. Samba e p",rlirt" slo coisas que se repelem. 'Logo- meu irm5o", lahert"'rr"-t.. A lista s6 fezb crescer. Ia ser fogo arranjar convite para tante gente. Mas Dolores daria um jeito. Ela tinha jeito pra tudo. jl estavam na lista, alim do Vianinha, Cacd bi.g,t.t, Arnaldo Jabor, Carlos Callou, \Tanderley GuilhertVerneck Vianna, Jolo -. dor Santos, Ferreira Gullar, Luiz Eduardo Coutinho, das Neves, Augusto Boal, Glauber Rocha, BeAfonso Duarte, Miguel Borgei, Marcos Farias, Fernando lista ainda E a Mitio F.ocha, Silvio Gomes de Almeida. "tol ia crescer. Marcelo coloca seu irm6o SiCberth na lista. Perdoava-lhe o insulto. Irmlo C irm6o. Prevaleceria o bom senso. Samba paulista... Ainda faltavam o Paulo Alberto Monteiro de Barrls, o Alolsio Gordo, o RogCrio Monteiro de Souza e o Letlcio Jansen Filho . Zeli:o me mata' Dolores nem vai ligar. Chiio Anisio vai ficar puto comigo.. Boto na lista e foda-se. Se a gente neo entrar por bem, por bem entra. Porra e meus primos CCsar Augusto, Carlos Augusto e Dinizinho? r37 Ah, vlo ter de entrar, ora se vio. Seri que ainda tem mais...? Samba paulista, essa C boa! 26 A uetse Dos RErs Macarra curou o porre e jd esrava pronto para outro. O sCbado amanheceu desafiando tristezas. Como era bonito maio, como era feia a dor de corno. Lavou a boca com pasta de dente ati sair o gosto de cabo-de-guarda-chuva que a noitada da vdspera lhe deixara. Nem se recordava direito como chegou em casa. Lembrava-se de ter oferecido ao Kid as entradas para o concerto do Louis Armstrong, entradas suadas que a Vinia recusara. Lembrava-se, tambCm, que passara no Little para ouvir Dolores cantar e com ela dar dois dedos de prosa e nem assim melhorar de inimo. Macarra, a vida C assim. A moga nio quer. - Qual, Nio ligue. Soube que a Nely est:i interessada em voc€. Por que nio dl uma oportunidade a ela? Por que nlo di urqa oportunidade para voc€, criatura? Ah! agora lembrara: o Agenre Laranja o trouxera para casa. Devia ter subido nas cosras do le6o, porque nio lhe vinha i mem6ria mais nada. "Ressaca braba", considerava o enjeitado. Dar uma oportunidade a Nely. Dar uma oportunidade a si mesmo. "Essa Dolores..." A boate Bolero ficava na Avenida Atlinrica, de cara para o mar de Copacabana, testemunha do gesto sribito de Nely: generoso, meigo, imperecivel. A idCia era jantar no Beco da Fome, inevitivel como o fim do m6s. Mas Macarra estava abonado, havia vendido cat{logos de telefone para uma empresa na rua do Carmo, bicheiros que tinham uma imobili{ria mais de fachada, uns Fernandes. Nosso her6i estava disposto a gastar os cobres veio fCcil, fdcil vai. 138 Mas como foi o neg6cio, Macarra? CatClogo? Quiseram-saber, ao mesmo temPo, Leandro Konder e Carlos Nelson. Simples. Fui no cara vender um andncio, sabe como C, figuraglo na lista telef6nica. E o cara nada. Que nlo- tinha inteiesse, coisa e tal, que a firma nlo dependia de publicidade, era mais para administrar os im6veis da familia' N6o desisti, fui e- .im", argumentei: N6o se esconda, cavalheiro, de repente alguCm quer falar com o distinto, perdeu o nfmero do telefone, e agora? Faz como? Vai no cat{logo e pronto! Conclul triunfante. E o cara) - $ep, o care negaciou um Pouco e eu emPurrei-lhe Mas o que ele queria mesmo eram os catdlogos um negrito. de outios Estados. Fiz de diflcil, que iria ver, que era proibido vender, dispor, guer dizer, sabe como d... Fui na comPanhia, na moita, me forrei de catdlogos e faturei uma nota alta. E ainda logrei os gringos da Lista Telef6nica. Americae Macarra fuie o gesto obsceno, no comigo C aqui, oh! - era. muito antiimperialista que A orquestra tocava um bolero (Relof.) e alguns casais dangavam. Copos tilintavam. A fumaga dos cigarros' em novelos, subia atC as lAmpadas e o ambiente tornava-se bo€mio e acolhedor. Ameno e devasso. Iniciava-se ritual de honrada libaglo. E a noite ia assim venturosa quando um senhor, velho, alto, magro, camisa azul-clara pra fora das calgas azuis-escuras, 6culos verde, posta-se I frente da orquestra e inicia' solitdrio, um arremedo de danga. Juntava as m6os ao peito e abria os bragos levando-os ao limite do corpo. E dava uma meiavolta. E novamente abria os bragos como a receber a dama que ali deveria s€ encontrar; e ao perceber o vazio, volteava e tentava um passo, e mais outro. E abria os bragos, agora com um tosco geito de balC. Dobrava o joelho, a cabega pendia. O qle se passaria com o velho? Que emog6es ocultas o despertaram e o conduziram ao canhestro sararepente de .oteai? A bebida? N6o parecia. A coisa vinha mais de dentro, a bebida certamente contribula, mas as motivag6es eram mais profundas. D'alma. 139 A esrranha danga agora acentuava os gesros mais disparatados. E o ins6lito da cena passou a perrurbar os freqtentadores, a incomodar pelo patitico e pelo grotesco. A hesitaglo do lelo-de-ch{cara, e dos gargoni, poderia, logo, corresponder a um comportamenro violenro deles. O velho, quem sabe, ausente que esrava, espaventado, seria capaz de nlo atend6-los. Coisa mais descomposra e triste. Foi nesse exato momento que Nely, resoluta, num dtimo, aproxima-se do velho e, ternamente, aninha-se em seus bragos. O velho, num gesro donairoso, tira-lhe o (imagindrio) chapdu. E sai dangando com a deusa, como se jamais tivesse feito outra coisa na vida. E, indiferente I melodia, tranqiiilamente valsava como num baile de reis. E a noite seguiu misericordiosa e lddica. Nely era assim: compassiva e bela como poucas. Passavaomundoalimpo. 27 O oespotHAR DE Nrry Todos se comprimiam em volta do Dantinhas. A reinauguragio do Vogue colocava o antigo e pavoroso inc€ndio na ordem do dia. Ou da noite. E ninguCm melhor do que o lenddrio Jo6o Dantas Ribeiro para narrar o acontecido, j{ que tinha escapado inc6lume do desastre . O Wguc era hotel de ficar, as pessoas moravam ld. Existia na rua Princesa Isabel. Em Copacabana, naturalmente. Eu ia descansar e depois... - platiia sentiu que Dantinhas tinha dificuldades em A relatar o ocorrido. Hdlio Saboya, Ricardo CCsar Pereira Lira e Eduardo Seabra Fagundes, todos advogados e bo€mios e, por isso mesmo, duplamente malandros, deram alga ao narrador antes de a ele dar forgas para continuar. Respeitavam as lembrangas e as dores, mas ardiam de curiosidade. Afinal, era o proragonista do incrivel e pr6prio salvamento. Mas foi Alfredo Brito, arquitero escolado, quem resolveu a parada. Comandou outro uisque e o serviu como 140 Dantinhas gostava: o coPo longo chcio de gelo, a dose generose e soda cristal atC a boca do dito. Foi uma parada hem, amigo? Cutucou Alfredo' -Serviu como mote. Se foi... Como eu ia dizendo, depois de descansar jantar aqui com o Ibraim Sued e o. prefeito de Paris, iria eu Pierre Ruais. Certamente voltaria Para o hotel, n6o deixava nunca de terminar a noite na boate Vogac. A programaglo era de lei: jantar no Bec Fin e esicar no Wgac. Dat iinh.t d{ um largo gole na bebida. Mas a bebe devagarinho, saboreando-a. Quando dei de mim, as chamas jd haviam tomado o ePartamento. Jolo Dantas Ribeiro olhou pela janela, avaliou as circunstAncias. A escada dos bombeiros s6 chegava ao 5o andar' Como chegar at€ cla C que era a questao. Da j-anela do seu- aPartamento j{ totalmente tomado franc€s Pierre AndrC \0(/'an, proprietdrio do B!st16 fogo,-o pelo Z do Sitt Bar, ameagava atirar-se: a escada Magirus tambcm nio alcangava o seu andar, estava desesperado. Da rua, grita' vam-lhe que esperasse. Pierre atirou-se Para a morte na calgada. Depois, db 8" andar, atirou-se RaullVlartins, jornalista i torcedor do AmCrica Futebol Clube, indiferente aos apelos que, do mesmo andar, lhe fazia Dantinhas. Do 10" andar, o americano \Tarren Heyes tambCm nio atendeu aos ""trtot apelos que lhe fazia Dantinhas, para que ficasse calmo, lutasse pela vida; jogou-se. E voce, Dantinhas? -Dantinhas vestiu-se apuradamente, colocou a pCrola na gravata (pormenor que iria intrigar a Antdnio Maria), e a pistola na cinta. Fez uma corda com os leng6is, que amarrou nos ferros da janela e comegou a descida para a escada dos bombeiros. Mas a corda improvisada nlo alcangava a escada; o bombeiro, no toPo dela, jogou-lhe uma corda; depois de vdrias tentativas, Dantinhas conseguiu aganl'la e com ela subir, voltar ao seu aPartamento. Amarrou a corda nos ferros da janela e desceu trangiiilamente. E voc6 nlo fiiou com medo? Perguntou Ricardo Cdsar. l4l u{sque.- Depois, finalizou Dantinhas, tomei dois copos de _ O Voguc acabou; terminou uma ipoca, calcinada pelas chamas. Valdemar e Glorinha Schiller casaram-se no Vigue e ali moravam. Morrcram abragados. Na mesa ao lado, Nely, em pranros, refugiou-se no "senhoras". Era impossivel nlo ouvir a narrariva. Dantinhas, que de ordinirio falava baixo, como convinha a um homem-de sua esmerada educaglo e o lugar requeria, apenas sussurrava, mas os sussurros, talvez pelo vigor da narrativa, alcangavam todos os ouvidos. O Bcc Fin silenciou para ouvir os murmd- rios do Dantinhas. Macarra Ftzera, talvez, sua 6ltima tentativa de ganhar a Vnnia. Vendera uma figurag5.o para o Bec Fin nas Listas Telef6nicas. Seu proprietirio, o espanhol Manolo, que se fazia passar por franc€s, em troca de uma privilegiada posigio no catilogo que o vendedor, cara-de-pau, lhe havia assegurado, consentira em franquear-lhe L casa por uma noite: comida e bebida (pouca) por sua conta. Enquanto a deusa se recompunha, Macarra pensava no conselho da Dolores, jd meio arrependido de rer trazido Nely, ao ver o convite recusado por uma irredutivel Vinia. A boca era livre e valia a pena aproveitar, ainda que sem a Vinia de alcandoradas lembrangas, a escarmenrar sentimentos, e at6, a recusar, no final da noite, quem sabe, o r{lamo de abside alcova. Decidira-se, afinal, pelo convite a Nely que acei- tou Prazerosa. Aceito, sim, Macarra. Que bom. No Bec Fin, nunca _ fui. E, -grl-fino, nlo i? Seri que tinho roupa a altura? Macarra nio sabia se a Nely tinha roupa a alrura, mas lembrava-se de que Dolores DurCn tinha a mesma rodagem da outra, e sugeriu: Fala com a Dolores, fala. Voc€s t6m mais ou menos - talhe. Quem sabe ela...? o mesmo Sabia ela. E emprestou a Nely um vestido deslumbrante, presente de um fi que preferia deixar no anonimaro. 142 coParece ter sido feito sob medida para voc€ - Dolores Durdn, a doce cantora. mentou Assim ataviada, a deusa adentrou, rainha, muito "kar", o restaurante Bec Fin. Pera ela convergiam os olhares. Saboya precisou mesmo ficar contido por um segurador. Se acalma, disse com seu sotaque nordestino o - Nlo vE que a dama estd acompanhada, advertiu. Eduardo. 'Acompanhada daquilo", pensa'va um descorogoado Saboya ao diminuir o Macarra. Era verdade, o Macarra era um babaca mesmo. Mas era ele quem comboiava a dama pare a mesa'aderede" reservada, expresslo que o maitre usou para distinguir o valete e galantear a dama. "N6o tem tu, vai tu mesmo", pensava o Macarra, sem dar pelo sucesso que fazia sua acompanhante. Nem mesmo se tocou ao ouvir o pianista dedilhar a seqti€ncia: "O cabard se inflama quando ela danga..." Foi gentil, todavia. Cuidou para que a garota se sentisse confortCvel. "A comida estC boa?" Estava. 'A bebida tambCm?" TambCm. Bebeu um pouco demais, porque Dantinhas, um gentleman, ofereceu ao casal, mas visando a dama, uma garrafa de Chablis, vinho de sua predilegio. Nely bebia pouco. Macarra bebia tudo. Fazia-se tarde, impacientava-se Nely. O bestalhlo do Macarra nem dava pela coisa. Levanteram-se. Despediramse. Ricardo ainda conseguiu enfiar um torpedo na mlo da moga, que o aceitou. Boa-noite para todos, langou, no espago, a deusa. - Boa-noite, o coro gcral. - porta do restaurante abriu-se em bandeiras despreA gadas. O bafio da madrugada era o cheiro do mar de Copacabana. Estrelas moviam-se num cCu de promessas. O vento farfalha, Nely cicia: !a6es. -(Aonde?) O andar meio tr6pego, a vista quase baga, os sentidos afinal acesos, a boca seca, a voz rouca. A espera e o desvario. Ameago de del{quio. Tanto desassossego para descobrir, ali ao lado, pequeno, mas jeitoso apartamento, castelo dourado, exigua cafua, paldcio de cristal: t43 E, aqui. -O elevador anoso, o chiado Cspero e penetrante. Entre. - porta rangia, divinos sons. O chlo enodoado, alcatiA flado de imarcesclveis flores. Ah, os caminhos do amor tornado vida! A cama rangia, dossel a cobrir ardores e queimadas. O incenso e a obsessio. E os mistCrios de Nely enfim celebrados. 28 As,acnun,as DE NELr Siva estreou, como bailarina, no "Ballet Pigalle", dirigido por Raul Dubois. Convidou Nely para participar do espetdculo. Agradeceu mas n6o podia aceitar, embora muiro fosse a vontade de trabalhar com a amiga e sob a diregSo do competente Raul. "Desculpe Siva." Siva desculpava a amiga, especialmente quando soube do convite que lhe fizera o Silva Filho para o papel principal na Revista "Agora a coisa vai" que, em breve, estrearia no Teatro Jolo Caetano. Nely, afinal, Deus C Pai, tivera sua vez no teatro rebolado. Vinha de cumprir remporada em 56o Paulo onde acolhera seus sucessos na terra da garoa. E tudo ia nos conformes atC a vedete (mantinha o nome de guerra de Sandra, cortara o Vilma) Sandra conhecer o escroque AzizMuniz na boare Odsis, apresentada por Theo Fraga. Sandra estava curiosa em conhecer Aziz, o admirador que sempre lhe mandava rosas amarelas para o "La Ronde", onde, enteo, se apresentava. O camarim ficava coberto de rosas amarelas, um desparrame de flores. Mandava flores, mas ficava no anonimato (fisico). Os cart6es eram timbrados em alto relevo com o nome do cara. Por que as rosas? Por que amarelas? Por que rosas - amarelas? Por causa dos versos do poeta Carlos Pena Filho que Capiba- musicou. Tamborilava os dedos, cantava a mrisica. "Voc6 tem quase tudo dela, o mesmo perfume, a mesma/1or..." 144 eletra' Sempre impliquei com para mud{-lo' Sanira jd se mudara pra Nely' Era toda atenglo' . inspiraglo. Pra dcpois poder lhe dizer: Foi t... mas - tem o-itth" meu amor." Nely baixou os olhos grandes, sorriu-se' Mas al eu modifi carva - Queria uma oPortunidade o final. Daf para ProPor uma sociedade foi um pulo'.Era emoresCrio. (i,t.ti" letar o show para Porto Alegre' J6 havia as..rorado J,."aro. Precisava de uma estrela. ("Esrrela, eu?") Siir, de uma estrela. E mais do que isso, de uma s6cia' Estaairfor," a dividir os lucros com a estrela principal, todo o "" el.rr"o tambCm participaria dos ganhos' O cara tinha altas idCias. E foram para Porto Alegre. O nome da pega' parece' € que nlo ajudol. Por influ€ncia do core6grafb, uma,bicha muito louca, as cenas teriam que Procurar o malor reallsmo' Ere f5. dos filmes italianos do p6s-guerra o bicha' Aziz cobriu Porto AlegrJ d. i"tt""ts' Valeu-se da amizade de um sobrinho com o presidente da associagao estudantil, um tal de Pedro Simon, que ajudou' com sua rapazieda, a colar certazes nos principais pontos da cidade' O nome J"'p.g" era'Ti peg"ndl fogo". E-prometia, Qu€r pela enor,rr.'piop"garrda;'qi.r elas irtes do core6grafo, empenhado .- f""et rialistas as cenas de fogo. Nlo deu outra' no dia da-estrCia, o teatro pegou fogo' O prejuizo foi total. Os cenirios' as rouPas' o aluguel da tempoiada, os andncios' as Passagens dos artistas, o hotel' o adrdo cach€ e nlo sei mais o que"' "ttt"^.nto O empresCrio s6 faltou ficar maluco' Procurou o core6erafo para'lhe dar um ensino, mas a bicha j{ tinha fugido pI." .o*ilhas com o peSo Gaud€ncio' ",Nely, coitada, n6o sabia do que se tratava' Ainda traumatizada, Pegou um DC-4 da Cruzeiro do Sul e saltou no Santos Durnint, indo diretamente Para casa' Depois' nlo sabia contar direito o que se Passara' mas havia assinado uns tantos papCis que o s6cio e n"morado lhe havia apresentado' Tola, assumira-toda a responsabilidade e o escrogue se mandara, deixando a pobre segurer a descarga' t45 No dia da estrCia, na Companhia Silva Filho, chega o meirinho com a ordem do Juiz mandando prender a estiela. O processo teria corrido I revelia. O filho-da-puta do escroque, na papelada, havia, de indristria, alterado-o endercao da vedete. Citada por edital, considerada revcl, cstava Sandra na maior merda. Houve uma certa resist6ncia I ordem de prislo por parre do pessoal do teatro, o que levou o meirinho chamar o co" miss{rio Dilio, do 10" Distrito Policial. A autoridade examinou o mandado de prisSo expedido pelo Titular da 24e Vara Criminal, encontrando-o nos conformes. A moga tem - assustadas. de ir, anunciou para uma platCia de coristas O tearro C um meio de fuxico e inveja, onde uma procura tomar o lugar da outra. Nos camarins reina a inveja, o cidme, o despeito, embora n6o aparente. Tudo isso C verda- de, mas nio C menos verdade que, em determinadas horas, as diverg€ncias cedem lugar i solidariedade, ao medo comum de amanhi se verem em iddntica situagio e n6o terem ninguCm para punir por elas. O comissi.rio amansou as amigas. A pena i branda, a moga i primdria. Tenho certeze que o -Juiz defere o pedido de "sursis". Silva Filho era de Valenga, a "Princesinha da Sgrra', amigo,de um advogado nascido li, mas que se exercia nos foros da Capital jd granjeando a reputaglb que seu ralento fazia merecer. A ele logo telefonou. Oh Tavares, preciso de um favor teu. Uma vedete minha-foi presa e eu necessito que voc6 a solte imediaramente. - Jo$ Ant6nioTavares era advogado especialisra no civel, mal conhecendo o crime. Mas Silva n6o quiria outro. "Advogado d confianga', argumentava para o amigo valenciano. Doutor Jos€ Ant6nio Tavares deu-se por vencido. Estava certo, veria o que poderie frzer pela moga. Mas tirasse da cabega isso soltar imediatamentl. Levaria uns rempos. -de "Quc tempos?", quis saber o angustiado Silva com p.g" " " estrear denrro de poucas horas. Tavares n6o podia pricisar, t46 iria, agora mesmo, falar com o Juiz e logo mais daria uma posi96o. ^ Silva dividiu o papel de Sandra entre as vedetes Helena Amaral, Maria QuitClia, Mara Murce' Sabra Gaby e Norma Peraci. E tocou o bonde. Isto €, a Revista. Vigilincia (centro)' Sandra foi Jeguinte, dia no transferida, P^ta e penitenciCria de-Bangu' Na Central fora-lhe permitido o uso do p16prio vestido, mas, na Penitenciiria, aeicrita era outra. Todas as internas se obrisavam ao uso do uniforme comum. Uma sarja horrlvel, feior.rr,". ("Oh Pai, por que Tu me abandonas-tes?") O Juiz negou-o pidido de 'sursis". Tavares descobriu ,t" cit"g?o. O oficial fora apenas uma vez ao endereerro um que dos autos, e o mandado nlo identificava o .orrrt".r" co poti.iro que confirmara ser aquele o domic(lio da ri' N6o iora qoalihcado. A nulidade e ra evidente. O Tribunal de Justiga, ior sua Terceira CAmara Criminal, conhece u e deu proao "habeas-corpus", por tr€s a zero' "Unanimida"imento de', comemorava, triunfante, o causidico. O julgamento fora um sucesso. A sala de sessio coalhada de .ot-it,".. Ouviu-se palmas ao final da decislo, palmas que o desembargador piesidente tentava conter a poder d. utt a campainha q,t. t. revelaria inritil. Era tanto entusiasmo que chlgoo -atttto a contaminar os severos desembargadores. Uma-corista, mais saida que as outras, convidou um Iel.s, o que tinha mais cara de sacana, P^r^ e estriia' Nlo Posso' argumentou o desembargador' Mas se depois a menina Passar por aqui... E a voz eta carregeda de mal disfargados significados legais. Na sua Vara? Perguntou maliciosa. -O desembargador ficou encabulado. Ensaiou dizer que ( desembargador nlo tem mais Vara, quem tem Vara Juiz, mes a tempo apercebeu-se do duplo sentido da explicaglo' Melhor calar-se. E foi o que fez. Presa na Delegacia de A estrdia foi uma aPoteose. Homenageada em cena aberta. Os desembargadores nlo foram, mas os funcionirios do Tribunal nlo se 6""t"- de rogados. Na pega, colocaram um quadro que fazia refer€ncia I Penitenci{ria de Bangu; outro 147 falava da justiga, do seu valor, destacava a comper€ncia do Doutor Josd Antdnio Tavares e a clem€ncia dos magistrados. Foi um delfrio. Sandra, coberta de flores, dcixori o palco triunfante ('Deus d Pai.'). 29 Foco EXTTNTI Sa{ram as seis pela rua Voluntdrios da pdtria. Vinia e Bea de saia e blusa. Maria Rita com um bolerinho tomarague-caia. Nely vesria branco. Eurfdice e Lita, avangadlssimas, se aprcsenravam de calgas compridas, jcans ameticano, moda estreada pcla charmosa Danusi Le6o, uma precursora a desafiar convcng6es e a senrar-se, de tardinha, io Sercia do Lcmc, a tomar chope com a rapeziada.. Terminaram a aula de representagio dram{tica na "DIANE". Tomariam um lotagio para Copacabana. pouco movimento na rua naquele sCbado I tarde. VAnia foi a primeira a sacar. Olha ld gente! Parece inc€ndio! -Estavam longe, u-mas quantas esquinas adiante, mas jC . dava para ver as labaredas; e a fumaga, em novclos, buscando o cdu. VAnia ficou extasiada. E temerosa, como sempre que se tratava de sinistros. Vamos ld, meninas. Mas n6o chcga maito perto, advertiu -como se falasse para si mesma. Jd os bombeiros faziam cordlo isolando o prCdio. Bea foi logo pcrguntando: Mal a gente viu e as I Que foi, hein? Que fogo, mogo. labaredas jC estavam lambendo rudo. Um senhor de pijamas (Nely nlo gostou, aborrecia pijamas.) respondeu: . Eu wi o fogo da janela da minha casa (Apontava um sobrado do outro lado da rua). Chamei logo os-bombciros. Sabia do perigo. E um laborar6rio de filmes. 148 Bea queria detalhes. Como chama? -Nesse momento, mais um carro dos bombeiros se aproxima em disparada, a sirene tocando loucamente. O vizinho esperou o carro passar, desligar o alarme. Os bombeiros saltaram correndo, cada um jC com o tino no que deveria fazer. Um corre pra c{, segura a mangueira; outro, corre pra lC, tira a escada. "Dl gosto ver", pensou o homem. E virando-se para a moga: Pois nlo? - o nome? _ nome? - Que O nome. O nome do laborat6rio. -Foi servida a resposta, enfim. Creio que i o laborat6rio da "Arte e Vit6ria Filmes". Pelo menos C o que disse aquele senhor lC. (Apontava para um tipo gordo e agitado, nervoso que s6 ele.) Bea aproxima-se do gordo. Boa-tarde. - Boa-tarde. - Que magada, nlo? Um abacaxi. Um verdadeiro abacaxi, dona. -Egrandeoprejufzo? Grande. Grande, mesmo. Praticamente tudo. Nio - nada. Ardeu como um bal6o. vai sobrar Tinha o qu€, af dentro? - Filmes. - Filmes sem nada, ou filmes jC filmados? O senhor - o que eu quero dizer, n6o entende? entende Filmes virgens e filmes jC rodados, peliculas da Pelmex. -Osenhor€odono? S6cio. Sou s6cio. Um tal de Bonfante. - Sou Bea, muito Prazer. -Bonfante nio respondeu ao "muito prazer", a conversa incAndio. Mas, Rita Maria, que se chegadeixa o papo morrer, nlo deixa o samba cair. O senhor sabe como comegou o fogo? -Bonfante coga os restos dos cabelos, remanescentes tufos na nuca. se apagava, como o ra, n-ao 149 Eu estava conversando sobre isso com o comandante dos -bombeiros. Eles s6o daqui, do Humait{. Eles solicitaram reforgos ao Posto Central, que chamou ourros quartiis. Parece que foi a agio do calor sobre a celul6ide e o.riros -ateriais qufmicos altamente inflamdveis. O laborar6rio tem tambim um servigo de revelag6es e c6pias. Tudo substnncia inflamivel. # seguro, nio td? - Estd sim, mas nlo cobre tudo. E seguro, a senhora sabe, demota para pagar, quer diminuir. Se a gente entra na Mas no justiga, faz chicana. Vai levando... Rira Maria quer animar o s6cio. Mas sempre C alguma coisa... -Que_ concorda, talvez por concordar. -"1.r menor, nio -VAnia puxou Bea pelo brago. E. Pode ser. Dos o C? Vem cd, mulher. Conta pra genre. -E falando para o senhor gordo. O senhor dd licenga, nio -Bonfante dava, sim. dd? Enquanto resumia a conversa para atentas ouvintes, dez viaturas do Corpo de Bombeiros, comandadas por um tenente-coronel, continuavam em luta com as chamas, conseguindo debeld-las ap6s uma hora de encarnigado combate. Tr€s vivas para os briosos soldados do fogo. Viva, Viva, Viv6ooo... O inc6ndio reduziu a cinzas os filmes, e a ferros retorcidos a aparelhagem. O capitlo veio correndo, perfilou-se ante o comandante. A contindncia perfeita, o galicismo dispensivel. O fogo foi extinto, meu Coronel. - Ciente. Afirmativo. Mande proceder ao toque de "fogo -extinto". Aos primeiros sinais do clarim NelS atraida pelo toque, reconheceu Aralto. Nely aproximou-se do bombeiro. Araho? Aralto, voc6 nlo C o Aralto? -Que reconheceu a namorada. Das Dores. E voc€ mesma, das Dores? 150 Sou sim. 56 que agora sou Nely. Mas sou das Dores Sandra-Vilma. TambCm sou ser das Dores. Neln tambdmposso voc€, barrd.a. Mas, para - s6 pra lnoce. ;C fui pra voc€, Aralto fit"*'" meio espantado com aquele mulherlo I sua frente. Sentia os olhares de alguns colegas convergirem para sua retralda Pessoa. O que muito o incomodava. Voc€ rnudou, das Dores. - Tudo muda Aralto. E madrinha? - fufss1su. - l\,'[e11su de qu6? Coitada. - De morrer mesmo. Thua velhinhe. - Ah. - E seu pai, seu Quaresma, que fim levou? - Nlo sii. Faz um temPeo que n6o tenho notfcias' - Eu tambCm n6o tenho notlcias lC da terra' Nunca Sempre Is voltas com o servigo. Fazendo cursos' mais voltei. Voc€ esid 6timo, Aralto, € bombeiro. Voc€ semPre fogo. gostou- de apagar Qeslq da profiss6o , dd pre viver. Nlo C muito, dd pra-viver. Agora, estC melhor Porque j{ sou cabo' mas E rnostrava as divisas. E bonito ser cabo. E bom ajudar os outros, Aralto' - psssxv que eu dou as ordens aqui com a corneta' - gue o fogo... Sou mais Os colegas Jhamau"m o bombeiro. Nely fez-que n6o viu os chamad-os. Aralto estava dc costas para clcs. De frente para das Dores, de costas, para todo o destacamento' Voc€ mora aonde, Aralto? No Andaral. Na rua Farias Brito, ndmero 842, casa12. Voc€ n5o conhece, C... Conhego, conhego, sim, Aralto. J6' tiae 16 umas-vezes. Para ouvir viol6o. f.lique mora o Roberto, por apelido Paci€ncia. Ele foi do "Bando da Lua", acompanhou Carmem Miranda aos Estados Unidos, mas n6o gosta de falar nisso' E voc€? - Em Copacabana. - E gente bem... - Vou bem, sim. Trabalho no teatro. - Ah, teatro. De choro ou de riso? - l5l De riso, Aralto. Altos risos. - guarnig6es dio sinal de parrir. Aralto C requisitado As para o toque. Nely prop6e: Vamos nos encontrar, depois? -O cabo vacila. N6o sei... (Aralto era um monte de drividas). solteira, Nao sabe, por qu€? E que eu ld casado. Voc€ d solteira, n6o i? Voc€ C das Dores? Sou. Tem o qu€? - Fica ruim, nlo fica? Moga solteira saindo com rapaz casado. Fica ou nio fica? Bobagem, Aralto. Aqui nlo i Pouso Alegre, nio. - Sei nio... - Vamos, Aralto. Fago tudo e fago gostoso. Voc6 vai - gosrar. ver. Vai As viaturas se aprestam. As amigas se impacientam. As guarnig5es idem. O sargento dd ordens ao Aralto: Manobrar, cabo. -Bea chama Nely. Rita Maria chama Nely. Eur(dice ma Nely. Lita chama Nely. Nely as atende , mas nho: n6o? - nlo cha- sem antes perguntar ao vizi- O senhor nlo rem vergonha de andar de pijama, As sirenes soavam estridentemente. Para que. O inc€n- dio nlo fora debelado? Encontraram-se na Praga Saens Pefia. Aralco havia perguntado: "Voc€ conhece, das Dores?" Conhecia sim. Coincid€ncia, a Praga foi o seu primeiro passeio no Rio. Com o Otdvio. Aralto indagou ciumento: C OtCvio? - Quem Quem foi. Um cara ai. - Seu namorado? - Foi. -Aralto arrisca: Foi com ele que voc6 veio pra cd? - r52 Foi, sim. - Foi enteo com ele que voc€ se perdeu, -Nely deu uma sonora gargalhada. pgldgs, Aralto? das Dores? coisa mais antiga! Que - Mas ele foi o primeiro, nlo foi? - Foi. - Doeu? - Td doendo. Minha barriga td reclamando. E fome. Vamos- ao Palheta? Tem wffie. VJc€ sabe o que 4. wffic? fr' um bolo americano bem fininho. A gente Passa manteiga e mel... (E ld se foi Nely, rePetindo a explicaglo qu€ recebera do cometa.) Tomaram o bonde em frente ao Eden' bar e restaurante. Era uma segunda-feira. Descanso da Companhia, folga no Quartel. O bonde percorreu a rua Conde de Bonfim. Aralto mostrou a Nely a Muda da Tijuca, a Usina. Nely nunca havia passado da Praga. Agora C que vai subir, das Dores. -Das Dores apreciava mais o passeio que Nely. O bonde serpenteando o caminho acima e aparecendo casas' Crvores. Aralto abraga a namorada. vim muito aqui em cima, das Dores. - Jd Incdndio? - N1o. Nlo € s6 apagando inc6ndio que trabalha o bombeiro. E ante o espanto da moga. Pra tudo que C coisa dificil chamam os bombeiros. desastres, acidentes. Bombeiro i pau pra toda Enchcntes, obra! Quem ouvisse, teria a impresslo que reclamava o cabo. gg lsrn temporal , chamam quem? - Os bombeiros, responde a namorada' - Os bombeiros, confirma o pr6prio, satisfeito da vida - ensinada. e da liglo E, sempre perigoso? - Sempre, nio. Tem atC umas bem engragadas. (Descontraia-se o cabo.) Outro dia, uma dona telefonou Para a central, nervoslssima. Disse que o Andrd estava no telhado, 153 poderia cair a qualquer momento. O oficial de dia pensou que Andri fosse filho da dona, parenre, sei Li. Mandou-se com a viatura, ele mesmo no comando. Quando chegamos no local e o tenente viu que AndrC era um cachorrinho... ,tttt cachorrinho desses assim... pequeririnho (E mostrava com as mlos o diminuto espago), o tenente ficou uma fera: 'Madame, como C que a senhora ocupa toda uma guarniglo por causa de um cachorro?'A dona s6 faltava chorar. Porque era um cSozinho de estimaglo. Era como pessoa da familia. AlguCm, de pura maldade, tinha colocado o bichinho no telhado. AndrC era muito comportado, jamais subiria no telhado por conta pr6pria. E nem tinha como. "Como ia subir, como, mogo? Me diga o senhor." E arremarou com um argumento fortissimo: i{ndrC C inocente", declarou. E os bombeiros foram buscar o c6o? - Fomos, sim. Fazer o qu€? A gente estava l{. O - ganindo, a mulher chorando. O tenente falou: "Se ciozinho acalme, dona. A gente vai buscar o animal." [Jma curva mais acentuada desequilibrava a garora que se chega mais. E l{ ia o bonde coleando o contraforte da Serra da Tijuca. Foi boa essa do clozinho e se aperrava no bombeiro. Aqui mesmo, e Aralto com gesto amplo alcan- a floresta. Aqui mesmo, um gava toda a gente csti cansado de receber chamado. Ji trabalhei aqui, das Dores, conhego a mata toda. chama os bombeiros? - Quem Ora, quem se perde na floresta. Tem sempre genre se perdendo. Garoto batendo gazete. Casal de namorados. Excursionistas amadores. Se perdem; alguim dd o aviso. Tem inc€ndio, tambim: baho ou fogo espontineo, na estiagem. coisa... - Que E dcsastre. Pior C desastre. Ouviu falar no desastre da Central? O maquinista Firmo Justino de Oliveira saiu da Estade Francisco Siis l8 horas e 24 minutos, com destino a 96o Belford Roxo, desprezando a advertOncia da cabine de con- t54 trole do Derby Clube de que havia duas composig5es manobrando na linha em que circularia. A primeira composiglo era um trem de passageiros sem eles: estitta apenas em-manobras. A segunda, um trem de carga que vinha de Sio Matheus e j{ ultrapassara a EstagSo de Triagem a caminho do terminal. Justino trafegou na contramlo exatos tr€s quil6metros' atC colher o que vinha de Triagem' e que estava parado no sinal perto da bifurcaglo de rua Visconde de Niter6i, entre as estag6es de Slo Francisco Xavier e Mangueira. O maquinista Daniel lgnCcio de Azevedo ainda viveria- para relatar que o outro vinha como um b6lido contra o seu: brilhante e tlrrivel. Serraram os ferros retorcidos que o prendiam e o removeram para o Hospital Souza Aguiar. Debalde foram os esforgos do Doutor Jrilio Sanderson de Queir6z. Morreu na mesa de operag6es. Eram 3h e 40 min. Em seu delirio, o maquinista via cabras pastando tranqiiilamente na linha do ttem. "Tirem as cabras, tirem as cabras", balbuciava nos estertores da morte. A viol€ncia do choque engavetou os dois primeiros vag6es. A velocidade fez com que o trem. de Belford Roxo raslasse o outro atC o meio do seu primeiro yaglo. Parecia um irottrtto alucinado com a sinistra incumb€ncia da destruig5o. A fera foi esmagando, triturando em sua macabra trajet6ria. E quando finalmente estancou, mais de uma centena de mortos, acima de trezentos feridos, eram suas vitimas. Vltimas do mais trdgico acidente ferrovidrio do pa{s. Os trens chocaram-se como se um pudesse integrar-se ao corpo do outro. Fosse uma caixa de brinquedos, dessas e- q,ri - os cubos aparentemente iguais se vlo encaixando. O estrondo ilcangou Mocinha no Faria, alto do morro da Mangueira. Abriu a porta do barraco e deu com o medo- nho espet{culo. Falou pra dentro de casa: "Mamie, olha as criangas pra mim que eu vou ajudar no desastre." Deicia o soliddrio povo da Mangueira para ajudar no que pudesse. BrogogCrio encontrou-se com Preto Rico na Curva da Cobra e si j.rtttat"m I negra Marina e ao seu irmlo Delega- do. Afonso "Beigola", diretor de harmonia da Estagio Primeira, acostumado a dar ordens, comandou: "Por aqui, gent te. 155 Os que safram com vida, atordoados, pularam pera- e linha, subiram a pequena elevagio de acesso i. rua Visconde de Niter6i. Estavam aterrorizados. Chegaram duas ambulincias do Hospital Sousa Aguiar. Era um quadro brutal e chocante. Gritos dos passageiros vivos entre as ferragens. Gemidos dos mais fracos, restos dc voz dos agonizantes. Imprensado enrre os blocos de ago, Almir Martins teve os pCs acabados de amputar ali mesmo pelo mCdico. Guarnig6es do Corpo de Bombeiros, mais ambulincias. Os bombeiros tentavam libertar os sobrevivenres das ferragens, enquanto os mCdicos aplicavam injeg6es de morfina. Feridos e mortos empilhavam-se nas portas dos vag6es, a muito custo abertas pelos bombeiros. Corpos apareciam irremediavelmente mutilados. As rddios mobilizaram a cidade. Parentes e amigos procuravam amigos e parentes entre os feridos e entre os mortos. Que foram colocados lado a lado na linha do rrem, esperando remogio para o Instituto MCdico Legal ou para a Assist6ncia Pdblica. Pessoas olhavam os cadC.veres e seguiam para os hospitais onde se apresentavam como volunt{rios. MCdicos e enfermeiras eram mobilizados pela RCdio Continental. O baile de formatura dos esrudantes de medicina foi inrerrompido e todos se apresentaram em seus hospitais. O Delegado de VigilAncia destacou quarenra homens para evitar a atividade de ladr6es que cosrumavam agir freqiientemente €m tais circunstAncias. Dezessete punguistas foram presos. O d6lar estava cotado a Cr$I27 ,50 para a compra e Cr$130,50 pere e venda. O tempo, instivel; chuvas ocasionais durante o per{odo. Multidlo comprimia-se na porta do Instituto MCdico Legal. Agenciadores de empresas funeririas disputavam prefer€ncia para realizar os enterros. O banco de sangue teve de dispensar doadores: n6o tinha mais como recolher o sangue oferecido. Qualquer um senria o luto da cidade. Nada mais triste que a dor de uma cidade alegre. Chegou ao local do desastre com um socorro do Servigo de Salvamento da Guarnigio Central do Corpo de Bombeiros, o soldado-corneteiro'Waldemiro Ferreira da Conceigeo. 156 No fundo de um vaglo encontrou o corPo mutilado de sua noiva, Sheila Maciel Antunes, cuja cabega fora separada do corpo e estava mais adiante, a um canto do carro. Nely cobriu o rosto com as m6os. Que horror, pobrezinha. -Tirou um lencinho da bolsa e assoou o nariz. Voc€ viu, Aralto? - Como n6o vi! Fui buscar um cobertor e ajuntei a moga. -Avisei para o tenente. Aquela rua, ali, chama-se Estrada Velha da Tijuca. O tencnte avisou ao capitio. Nely respirou profundamente. Guardou o lencinho. E uma vergonha como andam esses trens. Apinhados de-povo. Trem de carga, nio. Voc€ jd reparou em trem de certe, bcm? Jd viu? (Nely est{ quase na ponta do banco de madeira do bonde, olhando para o bombeiro.) Os dois vio direitinho, sem espremegSo nem nada. O cabo sabe das coisas. E, que gado C pra vender, das Dores. Pessoas s6 para uso. E-t€m muitas. Demais da conta. Mas vai ficar assim? Nunca ninguCm vai fazer nada? -E o cabo, entre cdptico e conformado, tambCm indaga. Quem vai punir pelos pobres? -E Nely ainda impressionada com o desastre. ,{ mssss cheira? pensa um pouco. -O bombeiro - Cheira. Cheira, sim. Cheira, das Dores. Cheira a que? { mq1js. O bonde do Alto da Boa Vista chegou na Praga Afonso Vizeu. O bombeiro, ainda no estribo, ofereceu a m6o. Segura, das Dores. E ajudou a moga a descer. -A ela mostrou o portao da Cascatinha. E pot aqui quc a gente entra, das Dores. -Que respondeu sdria: f,ssus4, voc€ pode me chamar de Nely? -Aralto ficou com cara de besta. Das Dores nlo estd bem? - t57 N6o, Aralto. Eu n6o sou mais das Dores. Sou Nelv. - de Nely, meu bem. Me chama O cabo concorda resignado. Td certo. Vou tentar. Nely, nlo C. Vou renrar. - Tenta mesmo, bem. - Nely... Tdvendo? Falei Nely, nlo falei? - Falou, sim, meu bem, falou. - Nely, voc€ estC com o farnel? - lsieu. Voc6 esti com a corneta? - 76, sim . E mostra o estojo. -_ Entlo, vamos. vamos. O casal passou o Portlo e a Casa da Guarda, tomando a Estrada da Cascatinha atC a Praga onde apreciaram a cascata: dguas que se despenham por mais de trinta metros. Que bonito, bem. (Deliciava-se Nely.) -O bombeiro advertiu a moga: Pronta para subir? -E, apontando uma trilha, comandou: O caminho d por ali. Estd preparada? -Nely estava preparada. Para subir, para dcscer. Para o que desse e viesse. A gente pega por aqui atd a Capela. Depois, a genre sobe mais. O casal ladeou a Capela Mayrink e penctrou a Floresta da Tijuca. O clima mudou, assim o cheiro. A temperatura C amena. Frcscor e suavidade no ar. A vcgetagio, os ramos das {rvores. As flores. A passarada, os sons da floresta. A mata se fecha cuidadosa, para abrir-se mais adiante ern clareira. Uma ponte rdstica, o ch6o hrimido, os musgos. A cascara ressoando ld longe. Uma grota, um regago, a Cgua geladinha. E solicito o corneteiro. curva. - Td cansada? Jd estamos chegando. E dcpois daquela De mlos dadas chegam ao Mirante Excelsior. A vista confrange o corag5o de Nely. A Bafa de Guanabara, em todo o scu esplendor, se oferecia inteira aos seus olhos. A bala e o seu mar mediterrineo. 158 O bombeiro saiu-se competente professor, identificando sltios, reconhecendo logradouros. Aquele bairro ali C Slo Crist6vlo. Aquele 1d... -O casario, os morrotes, o leito da Estrada de Ferro, chaminCs, edificag6es, terrenos baldios, espagos vazios. Os carros parecem miniaturas, nlo parecem? - pxlsssrn de brinquedo, concordava a moga. Aralto perguntou: Td com fome? Quer comer? -Nely estendeu a toalha por sobre a relva. Nela deitouse. Abriu os bragos para a mata. Vem, Aralto. Apaga meu fogo. - A floresta da Tijuca foi devastada no reinado de Dom e reconstru(da por Dom Pedro II. Jo6o Era ministro do ImpCrio o Visconde do Bom Retiro, que nomeou para administrar o reflorestamento um certo major Manoel Gomes Archer. Densas matas cobriam as encostas daTijuca. A floresta permaneceu intocada atC o final do s€culo XVIII, quando foi dividida em fazenda e sltios. As sementes de cafi que o sargento-mor Francisco de Melo Palheta trouxe da Guiana Francesa para o ParC., regalo da esposa do governador franc€s Claude D'Orvilliers, afinal deram-se bem na serra da Tijuca. Foram cultivadas por franceses que se diziam nobres cxpatriados, partiddrios do segundo Bonaparte. A Baronesa de Rouan, o Principe MontbCliard, o Conde Scey, o Conde VI de Gestas e a Senhora de Roquefeuil. Em outra vertente , mais franceses alCm de holandeses. Estrangeiro sempre fez merda por aqui. A elas deve-se, em grande parte, a devastagio da mata que o Major Archer iria remediar com seis escravos, sementes e mudas de sua Fazenda Independ€ncia, em Guaratiba. O Major reflorestou os morros e protegeu seus mananciais. Fez limpar as nascentes e regularizou o curso das dguas, construiu estradas e fixou o solo. E plantou angico, ararib{, bicufba, batalha, canela-lim5o, cedro-rosa, goiabeira-cascuda, guarajubC, garapiapunha, guante, jacarandatl, jequitibC, maria-preta, peroba, pau-brasil, vinh{tico e eucaliptos de seis 159 espCcies diferenres. Imbus, camarus, mangabas, jaburicabei- ras, cambucazeiras, jaqueiras com infinita variedade de cau- les e frondes. E mais, ip€, ururucurana, indaiagus, caticanh€, pau-ferro, sapucaia, louro-pardo. E vieram os p{ssaros: sabid, jo6o-de-barro, bem-te-vi, coleiro, galo-da-serra, sai, garuramo, cambaxirra que temiam anajEs e andirds. - foi o Major plantar em ourra freguesia e Findo o qu€, o Bar6o de Escragnolle, amigo do Imperador, romou-lhe o lugar. Tanta coisa guarda a floresta. Contam que JosC Alves Maciel, tocado por sua beleza, teria ali se definido em favor da Independ6ncia, e declarado ao Tiradentes: "Pode contar comigo, Alferes." Contam os gemidos de Nely. "Ai, Aralto, nlo pCra, nlo pdra. Tenho ainda mil carlcias. Vem mais." O pintor Nicolaus Antonio Taunay foi o primeiro a povoar essas matas. Contratada por Jolo VI, por sugesreo do Conde de Barca, a Missio Francesa aqui aportou, em 1816. Lebreiro ficou no Flamengo; Granjean de Montigny, na Gdvea; Debret, em Catumbi, e Taunay no Alto da Tijuca, onde fez construir sua resid€ncia em sitio fronteirigo i Cascatinha, entao coberta por densa floresta. Que seria des- crita pelo naturalista, Principe Maximiliano zu \fied Neuwied, pelo sdbio Auguste Saint-Hilaire e pelos botAnicos Von Martius e Jolo Batista Spix, alim de imorralizada nas gravuras de Rugendas, Fisquer e Arago. Generosa floresta que asilou nobres de araque e principes fajutos, franceses que cultivavam cafd aonde deviam plantar batatas e que, aos domingos, cavalgavam envergando briosos, grossos casacos de pura ll vermelha, vesrimenta rigorosamente apropriada ao clima tropical, especialmente ao verio carioca. Floresta que foi "taiqui", caminho dos tamoios, brenhas que talvez ainda guardem C.rvores com dsneas do descobrimento ou hquens imperiais e onde medram sargas e macegas. Floresta que abriga a Capela Mayrink com o triptico de Portinari, a ponte Alcintara de cantaria em cldssico estilo romano, o Alto da Mesquita, atravessado pelo rio Cachoeira, que vai cumprir tarefa de formar a Cascatinha sempre que receber as dguas da Gru- 160 ta Paulo e Virg(nia, assim batizada pelo Barlo de Escragnolle em homenagem ao livro de Bernardin de St. Pierre de mesmo nome; o Bo* Retiro, rio assim chamado em homenagem ao Visconde tambCm do mesmo nome; o Jardim dos Esquilos; as Cascatas Grabriela e Diamantina; a Vista do Almirante; as rulnas da casa do benemCrito Major Archer; o umbroso Caminho das Almas; o Lago das Fadas; o Agride Solidlo; e, dominando tudo, orgulhoso dos seus dois mil e oitocentos metros, o Pico da Tijuca. As matas, que foram mesa de piqueniques e cama de amores, acolhiam uma Nely saciada, feliz em comunh6o com a natureza. A deusa falou ao namorado no silOncio imenso da floresta: Toca corneta, Aralto. Toca corneta. conheceu o toque de "Fogo Ex- -E a Floresta da Tijuca tinto". 30 A cunn'q, VAnia vinha toda influlda, soltando plumas. Eurldice interpelou-a: Viu passarinho verde, coraglo? - Melhor, acertei uma situaglo legal. Vou aprumar de vez. - Vai casar? - Melhor, muito melhor. Descolei um coroa que i alta E mlo-aberta. Tipo pai-da-pdtria, sabe? Todo maravilha. Lorde, alinhadirrimo. De manhl, Prega a maior moral. Diz que tudo est{ perdido' gue o mundo virou de cabega para baixo. De noite, na sacanagem. Faz a maior misdria. Quer fazer tudo, minha filha! Escolhe cada posiglo que nem te conto... E funciona. Funciona, mesmo! Euridice sente a ligeira pontada da inveja. E natural, todo mundo sente. O sucesso alheio acentua nossas limita96es. l6l Aonde C que voc€ levantou tal pCrola, pode-se saber ou € segredo? Foi a negra Huga que acertou ele pra mim. - ourra fez um esforgo A de mem6ria. - Conhego? claro que conhece. Quem nlo conhece o Hugo, a vedete suprema da pederastia? Faz ponro no Follics, na daleria Alaska. E, T6lembrando, nio... - Conhece, sim. E, uma bichona muito louca. E, inter- entre rapazes e velhos, sabe, prostitutos e coroas medidrio viciados., Arranja tambim uns caras de grana para coristas e garotas de televislo. Foi ai que eu me criei. O coroa me viu n9 Arpige, onde estou parando. E gamou... Amor i primeira vtsta. E dai? - Dai que eu fiquei na minha. O cara me comendo com os- olhos, e eu ali, tranqtiilona. Sem me oferecer, natural mesmo. E nem podia, taaa de "chico". E da(? DaI que eu fiquei de bobeira, conversando, e quando dei por mim o coroa jd tinha se arrancado. Eu ati pensei: "Serd que vacilei, marquei toca?'Vocd sabe, homem J bi.ho muito vaidoso, gosta de ateng6o. Bom, mas a( eu resolvi deixar pra ld. O que tem de ser rraz forga. Se o coroa tivesse a fim de mim ele volta. - Nega? -Eatal Que nega? -Eur{dice fica impaciente na hist6ria da outra. A nega Huga, VAnia. A bicha intermedidria, porra! Aonde- C que a pega enfte, na hist6ria? Calma, pd. Escuta, mulher. Uns dias depois, nlo sei bem... VAnia fecha os olhos e suspende o rosro. Rebuscava, na mem6ria, o ndmero de dias, como se da lembranga dependesse o destino da humanidade. Euridice, ourras preocupa_ g6es, afobava-se. _ --Jres o-u quarro. Ou cinco. Sei Id... Encontro a Huga. Que foi logo dizendo: "Desrruindo corag6es, hem prince-sinha?" Eu te juro que nem liguei o cara ao coroa alinhado, 162 pensei: "Essa bicha tl querendo me agradar pra defender algum nas minhas costas, tirar partido de mim." Mas me fiz de iimpdtica; o segredo da vida 4, fazer amigos. Gosto de estar bem com todo o mundo. 1'Quem sou eu, Huga", fiz assim. Fim bem? Fez, sim. Tem mais C de ficar bem geral. - Pois 6. Al a. bicha contou a histdria do coroa. Que me viu- no Arplge, gostou muito de mim c coisa c tal' E foi por af dizendo que o cara era alto figurio e que tinha confianga nela... Nela quem? - Na bicha, mulher. Quem mais poderia ser? Com quem eu estava conversando? Nlo € com a bicha? Era. O que atrapalhou foi o "neli', p6. - PA digo eu. Se liga, mulher. bem, continua. Tb ligada. -Tudo Al que a nega botou o car^ nas alturas. E foi junto. Que o cara tinha sido Senador da Repdblica. Que era importente pacd. Tinha neg6cio de exportaglo. Ou serd de impor- tagiol Nlo sei bem. Eu s6 sei que o cara era montado grana e estava mesmo a fim de mim. na E voc€? - Eu na minha, s6 ouvindo o lero da bicha. Que o - de responsa. Que nlo podia facilitar, dar bandeira cara era por al. Que estava disposto a um encontro comigo. Se gos- tasse, acertava o meu lado. E voc€? - Eu topei na hora. Ia fazer doce? - Sei lC, minha filha. A gentc tem de se valorizar. - Valorizar o cacete. Banco a diflcil e ef iL viu: o cara - outra. Fico no ora-veja. A concorr€ncia C grande, arcanje mulher. E se eu dangol Euridice concorda. E,, voc€ tem rezieo. Voc€ tem que ver o seu lado. - pni[s, nlo i. Pois C. Ai a Huga ficou de acertar tudo, -dar o enderego do encontro. E deu? - Claro que deu, Eurldice. Eu adivinho? - Sei 1i... 163 . _ Total que fui me encontrar com o cara naguel e pr$ dio na Bollvar esquina de Atlintica, I esquerda de quem vai pra praia. Sabe? Sei, sim. O prCdio grande, mas C bom. E C famflia. - E o apartamento, dmenina! Jeitosinho. Todo mobiliadlo.- Tinha de tudo. Ufsque, rum, gim. Mas eu nem toquei na bebida. O cara n6o bebeu, nem eu. Imagina ficar com h{lito de bebida e o parceiro nio. Fica mal, n6o fica? Fica. Claro que E o cara? - O cara foi super fica. gentil. Que entrasse, ficasse I von- logo falando que gosrou de mim. Do meu jeito na tade. E boate. Meu comporramento. Sem falar nos meus olhos. Na minha boca. No meu corpo. E foi me beijando. Gentil, mesmo. E me abragando, tirando minha roupa com cuidado para nio amarrotar. Apreciando. E voc€? - Eu fiquei logo excitada. O coroa bacana, um figu- querendo agradar. 16o. Eu E agradou? - Agho que sim. Me agradei tambCm. O cara d experi_ ente, sabe fazer. 56 uma coisa me chateou... fazendo; Q,t. coisa? O cara me perguntou se eu era completa! Voc€ C? Sou. Mas isso C ld pergunta que se faga? O cara vai se a mulher deixar, tudo bern-- vai em frente. -Eai? AI, eu fiz que n6o ouvi. O cara tambCm se mancou. Fui fazendo, ele gosrando. Ele fazendo e eu gostando. N6s dois fazendo, n6s gostando. Eu n6o gosto. Tudo eu nio fago. -VAnia deu de ombros. . Bobagem. Todo mundo faz. Voc6 nio sabc o quc perde,-sua boba. Euridice balanga a cabega. Fago, n6o. Por isso C que eu gosto de japon€s. - Japon6s? sim. Paga em d6lares. Nio -beija na -,Jepon6s, boca. Tem pau pequeno. E goza logo. t64 regateia. N6o viu quando a nega Huga encostou no balcio localizado logo na entrada da Galeria caipira do Rolando, Alaska. Aproximou-se. CabegSo Oi, Nega. - Diga, meu querido. Alguma coisa, perdiglo? - Viu o pessoal por al? - Vi. T{ todo mundo no Scaramouche.Tlao aProntando o qu6? Aprontandq nada, bicha. Vai cuidar da tua vida. no MG que deixara estacionado na Avenida Copacabana, fez um sinal de despedida Per,a e nega e tocou Para i rua Bollvar. Tinha Pressa de propor a curra I turma. Era uma idCia genial. Chegou a temPo de ver o pai entrandorto edif(cio onte tinha ume gargonniire. Qae coincid€ncia. Estava com sorte. De rePente, a dona estava l{ tambCm e il eta um adianto. Explicava a coisa Pro Pessoal, escolhia-se o "amarrador". Facilitava a ag-ao. Sei, nlo. Budiio era s6 ddvidas. -Noves-fora deu forga ao faixa: Custa nada dar uma alga pro Cabega aqui. Qual C, Budilo? Custa dar uma forga para um amigo. Custa, najoi Budilo n6o falou nada. Mas pensou. Se € pra sacanear o pai, por que o Cabeglo nio tira umas fotografias da.mie .oh o-tt"*Lrado dela? Era a coisa mais f{cil do mundo, a coroa vivia dando as maiores bandeiras. Ia atrCs do garotio onde ele estivesse. E nlo tinha manc6metro. Outro dia mesmo surpreendera o cara com uma gatinha no Arpoador e plantara o maior esporro. Nem ligou pras explicag6es do rePaz. "Eu n6o td comendo ela nio, Mait€. E s6 namoro' tlns beijinhos.' E a mulher, Possessa, sem nada quercr-saber. A poita do rabo-de-pei*. abert" e ela comandando: "Entra fi' iho-d"-pnt", vem me contar aqui o que voc€ fez com essa vagabunda." E o cara, envergonhado, mas submisso: a coroa lhi dava a maior boa-vida. Mas tomava precaug6es. Mesmo o carro nlo estava em nome dele. Era dele, mas ficava em nome de uma amiga solteira. Preocupag6es que ela mesmo se encarregava de justificar: 'Ponho no seu nome,-depois voc€ enjoa de mim e me deixa. Vai embora com uma franguin-ha e al como C que eu fico?" Muitas rouPas. Pouco dinheiro. "Dinheiro pra quel Pra gastar com essas putas? O que voc€ qui- -Entrou 165 ser eu dou. Me pede que eu dou." E o garotio ia mancirando, mordendo a coroa, se defendendo. Andando de carro novo, convcrsfvel, pra cima e pra baixo. Bem vestido. Sem fazer l"d1 Pegando cor na praia, cortando ondas. Melhor do que batalhar num empreguinho mixc, passar a juventude r;da enfurnado naquele quarto-e-sala com a mie. Iludida, coitada, pensando que o filho tinha assenrado o julzo. O trabalho de representar firmas de outros Estados explicava as horas malucas do filho. E as noites fora de casa, tendo que acompanhar os donos das fdbricas quando vinham I Capital. Conhecer a noite. Divertir-se um pouco. Afogar o ganso. Que remCdio: tinha de aturar a coroa. Fazer boicara. Entrou no carro c nem bcm fechou a porra c j{ a dona buscando a reconciliaglo. E beijando. E agarrando nele. E chupando ele ali mesmo no carro. O carro encostado no meio-fio. A garotada da praia encostada no carro. Mulher mais doida...Budilo rendeu-se, afinal. bern, mas qual C o plano? -Ti Cabegio explicou. Era simples. O Toninho aqui e aponrava para o bota-pinta da - A gente liva ela "x6x113' a dona. curriola das - ela e ainda tira umas fotografias. pra uma "tocas', curra Que eu mando pro velho, pelo correio. Vai ficar puio-da-vidi.Ti eraredo na dona. Topa, Toninho? Pergunrou Budiio. -*Merda, foi assim da outra vez", pensou o Toninho. Noves-fora levantou a guria. Budiio foi conferir. por sorte, o fot6grafo ambulante que faz ponto em frente ao Pclicano colheu o maior instantlneo da garota. Retrato que passou de m6o em m1o. Todos avaliando-suas possibilidades. O tarado do Bidu esfregava as m6os rimidas, cheias de dedos nodosos: "Boa n6o, C 6tima." Toninho n6o levou muito tempo pra'amarrar- egarota. Chamava-se Alfcia. Ia fezer dezessete anos e exame pere a Faculdade. Morava com os pais no Posto Seis. O pai .t" t.soureiro da Caixa Econ6mica. A mle trabalhava no MinistCrio da Fazenda. Era filha dnica. Morena, um pouco gordote, mas n6o a ponto de prejudicar suas formas, que eram exuberantes. E Toninho as conferia na praia: certinha, mesmo! 166 Alfcia nlo desconfiou do convite. Nem tinha porque. Festinha na Barra, na casa de um amigo do coldgio. Nio, Toninho n6o tinha carro. E nem sabia dirigir. Mas tinha um amigo, por apelido Cabcglo, possuidor de um MG, poderia lev6-los. Voc€ topa, Allcia? - Topo, Toninho. Cabeglo foi pontual. !ng1s11 os dois na frente. Carro esPorte, sem banco traseiro. CabegSo C gentil. Fica um pouco apertado, mas os pombinhos nio se nio C? Se incomodam? incomodam, NIo, nlo se incomodavam. Toninho entra primeiro. Vou aqui, Allcia, por causa da mudanga. Perto da porta -fica melhor pra voc6. - ok. Este aqui d o Cabeglo. Vai levar a gente na festa. E boa praga. - oi. oi. -Cabeglo passou na porta da Galeria Alaska, o primeiro "ponto". Depois, tomou o rumo da Barra. Bidu viu o carro primeiro, alertou Budilo: Vamos, cara, Cabeglo e Toninho acabam de - passar com a garota. Se arranca. Cabeglo dirigia bem, tranqiiilo. Alicia sentia e cerlcia' no rosto. E o cheiro do mar. Toninho regula a estavento do glo do r{dio, avoz da Dolores domina o chiado: "Nio me culpes, se eu ficar..." Na Praga do Milho, em 56o Cristdvlo, Cabeglo surpreende o amigo. Aceita um milho, Allcia? E 6gua de coco? - Se nlo incomodo.. - Inc6modo, nenhum. E ati bom dar uma paradinha. - do carro estd esquentando um Pouco. O motor Toninho percebeu o Pa.rtido. [nssrnsda nada, Al(cia, era s6 o que faltava. Salta, vamos.- t67 Budi6o viu o carro estacionado, o pessoal na barraquinha. pira no Jod. Espera ld. e companhia passaram no segundo "ponto", Noves-fora jd estava montado na lambretta. Seguiu Budilo no rumo da "toca". Cabeglo diminui a marcha. Td ruim, gente. O motor / esquentando. Vou ter - Thua com medo disso. de parar. Saltou, abriu o cap6, mexeu um fio imaginirio. E melhor saltar. Td fervendo. VamJs esperar um Pouco. Foi o casal saltar e os "assaltanres" rodearem as vltimas. Lengos nos rostos, rev6lveres nas mlos. senlo a gente machuca. - Quietinhos, Alicia sente uma tonreira. Ap6ia-se em Toninho, gu€ fala aos assaltante: A gente n6o tem quase nada. Somos estudantes. - indo para uma fesra ali no... Estamos Cala a boca. Passa a grana e os rel6gios. E sem piar, Vamos em frenre. A gente -Quando CabegSo sen1o... Budilo divertia-se a mais n6o poder. A cena toda armada, a garora apavorada. A coisa ia ser fdcil. A garota, a gente quer ela. -Toninho revoha-se: N6o faz neda com ela, d minha noiva. \6iyx, nada. Onde i que jd se viu trazer noiva pra Barra -da Tijuca? falei. A gente ia numa festinha... - Jd Cala a boca, filho-da-puta. -Noves-fora tinha pressa. - Tira a roupa, moga. E melhor tirar. Eu posso rasgar. Budilo devolve a realidade ao garoro. Acorda, Toninho! Td no mundo da -Cabegio esclarece. lua? Ele td gamado. Tu n6o td gamado, major? -A turma quer saber da gamagio. 168 Ele td gamado na namorada. Na tal de Alicia. Livinho, que nlo havia participado da curra, conhecia hist6ria mal e mal. Surpreendeu-se: Mas ela fala com voce, ainda? - Claro que fala. Os "assaltantes" C que me obrigaram - O trato C que eu ia corner primeiro. Ai eu falei no a comer. ouvidinho dela: "Voc6 me dcsculpe. Eu n6o queria assim. Eu queria voc€ pra toda vida." Puxa, cara, voc€ C romintico, mesmo! Livinho ada mirava-se. Pois C. E sa{ com ela duas vezes depois da curra. - E com€u?i^ - E voc6 acha o qu€? -Nesse momento, Cabegio interrompe o papo e aponta uma mulher saindo de um cdiflcio. E ela. Aquela ali. -Toninho pergunta: Aquela o qu€, cara? - A mulher do vclho. De branco e azul, ali. Olha, porra! -A cadeiruda, cara! Livinho espera a mulher chegar mais perto, passar pela porta do bar e entlo poder confirmar: Eu conhego ela. E amiga de uma dona que eu dou - mas que me sacaneia. Conheci no Tudo Azul. em cima, Cabeglo comanda. 6timo, facilita tudo. Voc6 fala com ela quc o Toni- td caldo pela amiga. Arma uma fcstinha. Ela leva nho aqui umas amigas. A gente curra legal. Combinado. Eu ainda tiro uma forra. Livinho anima-se - . BudiSo repete e pergunta de sempre: Topa, Toninho? - Topo. - Vinia n6o conhecia Livinho. Eur{dice refresca a mem6ria da amiga: E aquele que vive dando em cima de mim. Moreno claro. -Alto. O pai C da Alfindega. Sempre me traz perfume franc€s. - Entio, por que a ddvida? r69 Sei ld, agora com.esse neg6cio de juventude transvi- que o garoto gosta de maconha. Outro dia ada. Desconfio estava com os olhos bem vermelhos.. E praia. E sol. €, mar. - Sei 1d... -VAnia est{ mais animada. Agradam-lhe as festas. A gente chama a Sandra Vilma e a Mariza. Mariza? A outra quer saber. - Que Que Mariza, Euridice? P6t E Claro que C a Mariza - a que pdra no Cremmailllra. Aquela minha amiga morewt, que tomou umas porradas da mulher de um dentista que ela corneava, e que eu levei pro rebolado, nio se lembra? Euridice se lembrava. Agora, perfeitamente. Isso a sossegou: nlo tolerava a Marize loura., a que Parava no Hi Fi. Tivera uma bronca com ela por causa de um argentino' no tempo e m que ambas feziam ponto no Fiesta. "Imagina, por um portenho", lamentava-se Eurldice. E com raz6o. Se hd turista mais desprezlvel 4 essa gente: mesquinhos, arruaceiros, grosseiros. E querendo tudo, forgando uma barra. Na bruta. Rende-se Eurldice. Entio estd certo. Vou combinar com o rapaz. Ele pega a-gente aqui. A festa serd no Joi, numa casa 6tima. E, do pai. A familia estd viajando. Td certo, eu falo com a Sandra Vilma e voc€ acerta - Melhor, deixa comigo: vou chamar a turma toda. a Meriza. Eurfdice se espanta: A mulherada toda? - E, p6. Alim da gente, da Sandra e da Mariza, chamo a Lita -e a Anita, aquela amiga dela, a Bea e a esporrenta da Rita Maria. Vai ser uma festa do arromba! Euridice volta a vacilar. Espera ai. - Que i desta vez, mulher? - Voc6 nlo acha que se eu aceitar, vou ter que dar pro - Ele vai querer me comer. Eu nlo vou ter de dar? Livinho? Vinia riu da colega: Sei to... O- que donzela. r70 Euridice. Voc€ i quem sabe. Se vier com jeigue tem? Voc€ C tlo cheia de moda, parece li, i Sorte que os pais do Livinho tivessem viajado. O pai era tarado pelo Louis Armstrong. Ficou uma fera por nio ter ido a Buenos Aires ver seu artista predileto. Embora Dante Vigiani, o empres{rio que lhe garantira entrada para todos os-shows do "jazzman" em sua aPresentagso no Municipal, lhe tivesse assegurado o pr6ximo retorno do cantor e pistonista acompanhado do seu conjunto "All Stars", Dr. Llvio nlo queria arriscar, perder a oportunidade. Por isso, quando anunciaram uma temporada do artista em Punta del Este n6o vacilou. Falara logo com a mulher: "Vamos, Dalvinha. Na volta a gente passa uns dias em Buenos Aires, mata as saudades." (Adorava almogar no La Cabanfr. que gabava ter melhor carne do mundo. A noite, freqiientava o Bar Uni6n, reduto da bo€mia portenha e que os turistas nlo conheciam.) Foram. E foram muito do bem. O funcionirio da AlfAndega levando o sentimento do dever cumprido: liberara os Cadillacs do Senador. Gente boa, o Senador. Sempre atencioso e disposto a atender pedidos, fazer favores. E generoso. Havia lhe dado uma nota preta, vencendo pertinaz resist€ncia do correto funciondrio. "Que isso, doutor Nascimento? De jeito nenhum. Fiz minha obrigagSo." O Senador nlo queria saber. "Absolutamente Doutoi Llvio. E .r-" pequena recompensa por sua ajuda desinteressada, Por sua compet6ncia. Faga o favor. De jeito nenhum digo-lhe eu." E estendia ao zeloso servidor priblico o envelope, pardo e gordo, a sugerir altas esp6rtulas. "Era dinheiro bem empregado", raciocinava o Pai-da-Pdtria. Urgia acelerar os processos de liberaglo dos autom6veis. A imprensa j6 comegava a noticiar com mais insistdncia. Tudo por causa de um "foca" do Didrio de Noticias, um tal de Elio Gaspari, o aprendiz de rep6rter que levantou toda a hist6ria. E alim disso malcriado. O Senador o chamara em seu gabinete 'no Monroe e lhe oferecera sua proteglo, a ele sugerindo subir rdpido no jornalismo, alCm de lhe assegurar um razodvel cala'boca. O garoto atrevido mal deixou o Sen"dor concluir a vantajosa ProPosta e foi logo dizendo: "Quer saber de uma coisa, Senador? Vai pra putaque-o-pariu." AlCm de falta de respeito com um Senador da Repriblica, o garoto manifestava total desconhecimento das q,tilid"der filantrdpicas do interlocutor: um benemirito! Quantos rapazes nlo havia ajudado? Mas, pior que o rep6r- t7l ter eram os donos de jornais. Cinicos a abrir manchercs. Primeiro, importavam os Cadillacs; depois, pregavam moral. Maior raiva, ainda, ficou do Doutor Lustosa, diretor do Correio da Repilblica. At€ para a amanre havia liberado um Oldsmobile converslvel: uma graga, ezvl, pneus banda branca. Sem falar no Cadillac preto para ele, o CoupC de Ville para e mulher, Chevrolctes para os garotos, e uma Harley Davidson mil e quinhentas cilindradas para o corno do genro. Que tartufo! Que filho-da-puta! E,, precisava mesmo correr com as importag6es. As eleig6es chegando, e o Senador precisando gastar uma verdadeira fortuna para se reeleger. 'Que sacanas, pensam que votos nascem em drvores?", indignava-se o representante do povo. Doutor Livio era pega decisiva no esquema das importag6es. Boa relaglo aquela. E agora, melhor, os filhos se tornaram amigos. Sempre saindo juntos para festinhas. Era um 6timo repa;z o filho do fiscal. Excelente companhia para o filho. Ele, Senador, sempre correndo pra ld e pra cC. A mulher, tambCm, sempre envolvida com chds de caridade: muito ocupada, muito sCria, muito austera, pra ld de recatada. O casal sem muito tempo para dedicar ao filho. E agora essa onda de juventude transviada. Era um espeto! Felizmente o filho nlo se tinha metido naquela moda. Algo vadio, d verdade, mas bom menino. Bom rapaz nlesmo. Era. feliz o Senador. Era feliz o funcionCrio. Ambos merecidamente. "EscAndalo dos Cadillacs, que absurdo!" Livinho comunicou I curriola a boa nova: os pais iriam viajar. A mansio no Jod estava liberada da silva. Fariam a festinha l{ mesmo. Budilo achou que Livinho n6o tinha peito. Bidu idem. Cabeglo gostou da idCia: 'Oba, curra na cama!'Toninho nlo achou nada. VAnia perguntou alegre: Como i, mulher, tudo de p€ pere a festa? -Euridice continuava indecisa. Sei n6o, V6,nia. -- Sei n6o o que? Parece que a gente tdindo prumagaeF ra! E festa, mulher. Festa! E continuou no mesmo tom alegre: JC falei com a Sandra Vilma.lTopou no estalo. - 172 E as outras? - A Mariza topou, mas as outras jC tinham Programa. A Bea-ficou de ver. Td afnzona dc ir. Vai ver. A outra C um pogo de drlvidas. Ainda n6o sei... -Vinia se irrita. P6, mulher, que figurinha mais dif{cil de bala Ruth, td pra -ver. N6o C, Vlnia. E que d... Vinia nlo d{ refresco. Oh, Eurfdice, v€ se nlo o meu lado. gostei plo. atrasa - amigo de seu namorado. E um pacas do Nio C meu namorado. - E, o que, enteo? - E meu conhecido. Somos aPenas amigos. Bons ami- mais do que isso. gos. Nada Td bem. Bons amigos. VocA td me saindo melhor que a encomenda. E mulher tem amigo? CabegSo sugeriu que todas as luzes da casa ficassem acesas. Pra que? Perguntou Bidu. - Pra dar a impressio de festa, otdrio. Quer assustar o - de safda. gado logo As luzes foram acesas. Lige a vitrola bem alto, gritou Cabeglo para dentro - da casa. A vitrola foi ligada no mdximo. As mogas ficaram impressionadas com a casa. Vinia era toda admiragio. Que palacete! -Antes, jd havia elogiado o carro. O Cadillac CoupC de Ville rosa da mie do Livinho. (O riralandro tinha a c6pia das chaves dos carros.) Meriza, no banco de trds, Passa a mlo no estofado e nlo se contCrn: luxo. Que -Eurldice, ao lado do rtpaz, C quem Pergunta: - E de qu€? 173 De qu6 o qu€? - O estofamento, Livinho. De que material i? - De couro, eu acho. Vinia recostou a cabega no banco. "ETao bom ser rico. T6o bom..." Euridice foi a primeira a desconfiar de que alguma coisa estava errada. O clima n6o combinava com a id€ia de festa. Havia algo de estranho no ar. N6o sabia bem identificar o que era. Mas que havia, isso havia. Segredou suas desconfiangas paia Vinia que concordou: Engragado, eu tambdm sinto isso. Tem mesmo alguma -coisa fora dos eixos. Eur(dice se apura. E, sim. Pode reparar: nio tem ninguim alCm de n6s e os garotos, Nlo tem gargom. - Qugs3s pessoas. - { 6a5x parece vazia. me cheirando a sacanagem! -Ti Vinia decidiu interpelar o dono da casa: Me diga uma coisa, me u chapa: que festa C essa, hem? -Livinho foi surpreendido pela pergunta. Ficou meio Cabeglo foi quem respondeu: desconcertado. Td desconfiando certo, dona. Mas tem festa, sim. Mas C-sd n6s mesmos. E uma festinha privada. Sandra Vilma, entlo Nely, quebra o sil€ncio: Assim td ruim. Tinha neiessidade disso? Neo dd. E, melhor a gente ir embora. Noves-fora falou duro: Deixa de bobagem, dona. Pode ver que as portas Nlo tem ninguim na casa. Na redondez tamestlo fechadas. bCm nlo tem ninguCm. Nlo adianta gritar. E, pura perda de remPo. Era ameagador o Noves-fora. Os bragos enormes, e cera feia. N6o gostava muito das donas, tudo mulher feita. Preferia as menininhas. Comprazia-se com o pinico das vitimas. Excitava-se. 56 de chegar perto jC gozava. Regozijava-se com t74 o pavor das garotas. Deleitava-se com o horror das cenas. Especialmente a repulsa que provocava. Repulsa que pareceu vislumbrar na morena bonita. Vou comer voc€. -Sandra Vilma, mais Nely do que nunca, responde de chofre: Por que nio come sua irml? - Serri como voc€ quiser, dona. Na viol€ncia ou na Pode escolher... camaradagem. Sandra Vilma, com Nely crescendo dentro dela, trincando os dentes, balbucia: Me deixa, repez. Me deixa em paz. Me respeite . -Noves-fora d:i-lhe um tapa na cara. A m6o aberta. A dor e a injrlria. Cachorro! - Marize considerava a coisa pelo melhor Angulo. Estavam inteiras. Tiveram sorte, ainda. Os garotos eram malucos. Tarados. E que orgia. Teve "rafa". Teve langa-perfume. E bebiMuita bebida. E atC um "fuminho". da. Fclizmente, as coisas terminaram bem. O Livinho as havia trazido de volta. Imagina se ficam sem conduglo li em cima? Perdidas de todo? Ou se os garotos decidissem judiar pra valer? VAnia, quando viu que n6o tinha mais jeito, soprou para Euridice: Nio conhccc o ditado? Se d inevitivel, relaxa e aproveita. Eur(dice sentiu o drama. Conhecia a amiga. Nlo precisa disfargar, nlo. Isso nlo tem cabimento. - vamos fazer as coisas piores do que jt sio. Fala com Mas nlo a Sandra, v€ se segura ela. E foi se juntar ao Livinho, confiando que ele a protegeria. Dava pare ele, e pronto! A pitria estava salva. Ledo engano. Passou de mlo em m6o. Ou de pau em pau, como diria, mais tarde, para bancar a c{nica, continuar com o disfarce, uma dilacerada VAnia. Eurldice queria dar queixa I pol(cia. SandraVilma gostaria muito, estava revoltada ("Precisava disso?"). Mas tinha t75 ddvidas. Lembrava-se do acontecido com a Gl6ria May. A vedete denunciara rer sido vitima de rapto e ficara por isso mesmo. Eram filhinhos do papai. Voc6s nlo viram o que aconreceu com a Gl6ria May? - Nio, que aconteceu? Mariza quer saber. -Sandra Vilma, largada de ser Nely, esclareceu: Nada, minha filha. Nada. Nadinha de nada. -Vinia conhecia a hist6ria. Disseram que ela queria se promove r. Fezer cartez - de uma imaginada por conta curra. Sandra Vilma, Nely novamente encostando, nlo gostou. Gostava da Gl6ria, mulher de princlpios. Voc€ nlo deveria falar assim dela. Mulher rem de ser solidiria. Vinia se defende. Nlo falei nada, ui! N6o dei opinilo, n6o. Falei o que disseram. Ela queria certaz. E, de mais a mais, C bobage m. E, pe rda de tempo. Os garotos t€m costas-quentes. Tirdo juventude transviada. Sandra Vilma, ourra vez Nely, nio concorda novamente: transviada nada. Slo € gangsters. Gangsters -Juventude sexuais. E covardes. Muito covardes. Vinia levantou-se. foi ati o meio da sala para dar mais circunstincia ao que ia falar. Vou contar uma que C cabo-de-esquadra! -Vdnia espera o sil6ncio absoluto, o interesse toral. Sabem quem C aquele garorao que ficou logo comigo? - Eurfdice nlo sabia, saira logo do salao com o Livinho. Conta, VAnia. Fica fazendo suspense... -VAnia hesita. Ser{ que conto? - Conta sim, Euridice insistiu. - Deixa de onda. - Pois bem. Aquele garot6o, bonitlo, cabega grande - mais, nada menos ... que o filho do Senador. C... nada Mariza nlo conhecia a hist6ria. Que Senador? - O meu coroa. O figurlo. - f qerns C que voc€ soube? Indaga a Euridice. - 176 se agiientou: "Sei quem voc€ €, sua do meu pai." AI eu Perguntei: "Que pai?" E " "mittt. o garoto: "O Senador Nascimento." Eur{dice nlo se conteve: E voc€? Coisa chata, n& Fez o qu€? - Eu? Nada. Ia fazer o qu€. O garoto em cima de mim. - Perguntando. Fazendo comparag6es: "O meud maiFalando. or, nio C?" E eu quieta. AlCm da situagio esquisita, detesto foda irradiada. Eurldice perguntando semPre: E dal? E voc€, criatura? - Eu? Me deu uma doideira danada: "Ent6o voc€ C o - meu homem?" Foi o garoto concordar e eu despejar: filho do " Td comendo sua mle, se u filho-da-puta!" Xi, Vinia, que horror, disse Nely jd assumida. - UC , que C que tem ? Eu nlo sou mulher do pai? Equase -mle. Nely insiste: N6o brinca com neg6cio de mle, nlo. Mie C trem put". E- sCrio. O garotio nlo - Foi falar em mie e Eurldice desmanchar-se. Nio sei como vocds podem brincar depois do que - Tenho vontade de chorar. Morrer. Sei lC. Bem que aconteceu! eu nlo gueria ir. Tinha uma coisa aqui dentro. Um pressentimento, n5o sei. Estou com noio de homem. Sabem o que C e solugava convulsanojo? Estou com nojo. Me sinto suja mente. Vinia passou-lhe a mlo nos cabelos. Os olhos cheios d'rigua. A boca seca. Liga n6o, sua boba. Lavou, td.novo.E".rantag.m - lavou, td novo. da xoxota: Cabeglo estava satisfeito com a festa. Afinal, era o pai da idCia. Foi conferindo: Ent6o, Livinho? - Legal, mea chapa. A dona quis fazer um romance . para o quarto. Disse que ia ser s6 minha. chamou-logo Me E voc€? - Eu fiquei quieto. Dei a maior corda. Amorzinho - Depois, troquei com voc€. Nio foi? m€smo. r77 Foi. E voc€, Toninho? -Toninho balanga a cabega. Noves-fora estranhou a dona. foi, major? Que -Bidu respondeu pela fera: Ele i invocado mesmo. Eu me dei bem. A garota, aquela-morena peituda chegou a falar: "Por que nio foi vocd o primeiro, tes6o?" Budi6o caiu na gargalhada. Ela falou pra todos, seu babaca. - " Td rudo aqui. Documentadinho."E agitando o rolo do filme: Depois, voc€ me dri? Cabeglo pediu. Olha o trato. - - (Dou, sim. Tu vais ver o que eu vou arrumar. Sarna grossa. Vou espalhar foto. Como quem espalha merda.) Dr. Livio recebeu, pelo Correio, as fotos de Dona Mait€ com o garotlo. Fotos na praia: a senhora de bragos com o npzzi deitada no colo dele, a boca numa posiglo reveladora. Aos abragos. Aos beijos. Atracada no rapaz. 'Que imprud€ncia!" Dificilmente um homem se sente chocado com a noticia da seduglo da mulher do pr6ximo. Dr. Llvio nio seria exceglo a uma regra teo confortdvel. Preocupava-o, apenas, o lado prdtico da questlo. Que fazer? Mostrar ao marido? Nem pensar, neo era civilizado. O Senador podia interpretar mal. Ningudm sabe como reage o corno. Poderia estremecer uma amizade tlo proveitosa. Perder a naturalidade. Ignorar? Perigoso para a senhora. Quem quer que fosse, gueria prejudicd-le,Talvez fazer chantagem. "De repente, estoura a bomba e olha eu af no meio do bolo!" Melhor era falar com ela. Mostrar as fotos. Que se prevenisse. Mas por que diabos teriam mandado as fotos justo para cle? Que merda. Mulher bonita, Dona Mait€. "Que descuido, Deus meu!" Dona Mait€ ficou surpresa com o telefonema. Conhecia ligeiramente o Dr. Lfvio. Sabia-o das relag6es do marido. Funcionririo da AlfAndega, cerramente andava metido com o marido naquela patifaria dos Cadillacs. 'Dois trambiqueiros', 178 pensava a dama. Os filhos eram amigos. Viviam em praias, bailes. Intrigou-a o ar de mistdrio do cavalheiro. "N5o lhe incomodaria, minha senhora, nlo fosse assunto assaz relevante. E de se u interesse." Se poderia ir no seu escrit6rio na rua do Rosdrio? A que horas? Depois do expediente seria melhor. No finalzinho da tarde. Que conversa estranha. Seria uma cantada? N6o, nio poderia ser. E se fosse, que modo original de dar uma cantada,biaconferir, de qualquer modo. Dr. Livio recebeu-a cortesmente. Curvou-se, beiiou-lhe a mlo enluvada. Entre, minh.a senhora. Muito agradecido pela tenglo.- a- Pois d, doutor. Confesso que o senhor despertou minha- curiosidade. E, toda coquete, aceitando a poltrona que lhe fora oferecida: Curiosidade de mulher... Ningudm segura. -Dr. Livio ajeitou o lago da gravata. Tinha o sestro de passar a ponta dos dedos na pdrola que a guarnecia. Dona Mait€, o caso que me fez tomar a liberdade de - d muito delicado. Dai as precaugSes que tomei. chamd-la E, com um gesto abrangente, mostrava o escrit6rio deserto de empregados. Assim o senhor me assusta, doutor. - Sinto muito, n6o tenho essa intenglo. Mas o fato d em si -extraordinariamente grave. Veja a senhora por si mesma. Dona Mait€ tomou o envelope e examinou rapidamente as fotografias. Ficou livida. EntSo era isso... Fotos suas com o Lazinho. Que filhos-da-puta! Quem as teria tirado? Como reriam chegado nas m6os de Dr. Livio. "Que situaglo, meu Deus!" significa isso, doutor? - Qr. Slo fotos... Da senhora, se me permite, com um... ah... Qr'r. slo fotos, eu sei. Estou vendo. 56 nlo sei d como -vieram parar aqui. Dr. Livio sentiu uma certa censura na voz da esposa do Senador. 179 Vieram pelo Correi,o, minha senhora. Como a senhora -mesma pode ver pelos selos colados no envelope , respondeu seco. Dona Mait€ percebeu. Desculpe, Dr. Lfvio. Mas estou tlo confusa. O senhor compreende, uma pessoa na minha posiglo. Dr. Livio compreendia. Por isso mesmo a tinha chamado para um encontro tio cercado de precaug6es. Mas podia nele confiar. T6-lo como amigo. Amparar-se em seu braEo. Dona Mait€ acalmou-se por momentos. Sentiu necessidade de explicar-se: Eu n6o sei, doutor, o que deu em mim. O Lazinho, o tepez- da fotografia, o senhor nlo imagina, dando em cima de mim, me perseguindo. E eu dizendo para ele: "N1o faga isso, tenho idade para ser sua m6e." Mas qual, o rapaz nio deixava... O senhor acredita, doutor? Dr. Livio acreditava. Sem sombra de ddvida. Piamente, minha senhora. E, se me permite, diria que a -senhora n6o parece mle de um rapaz. A senhora esti muito bem. Recompunha-se a dama. O senhor acha mesmo, doutor. Ou estC falando s6 - agradar, consolar uma mulher aflita? para me Absolutamente, minha senhora. Como nlo? A se- nhora -est{ muito bem, mesmo. Obrigada. Suas palavras sio um bilsamo. Imagine o senhor o cerco do rapaz. Nlo desistia. E telefonava. E me esperava na porta de casa. Quando eu ia sair, ld esrava ele em pC. E de calglo, doutor. De calglo! Se mostrando, fazendo de prop6sito. Dona Mait€ calou-se. Olhou para o interlocuror interrogativamente . Serd que eu posso lhe fazer uma confid€ncia? -Dr. Llvio espalma a m6o mo peito. Perfeitamente, minha senhora. Tenha-me por seu confidente. Pode confiar. Serei um tdmulo. Uma pequena hesitaglo e logo Dona Mair€ conrinua: O Nascimenro... Como d que eu vou dizer? - 180 Dr. Livio anima-a: Diga, Dona Mait€, nlo se acanhe. - O Nascimento nlo pode mais, o senhor entende o que eu- quero dizer? Relag6es sexuais, a senhora quer dizer? - Isso mesmo, doutor. Ele n6o ... - Trepa? Arriscou o confidente. - Isso mesmo, doutor. A palavra certa i - conversa ia ficando mais afdvel. A essa mesmo. p sg, doutor... -Dr. Livio a interrompe: pqu6e1 d muito formal. Somos amigos, agora. - Tem razio. E L(vio C um nome tlo bonito. - Mait€, tambdm. Tem classe. - Obrigada. - N6o tem porgue. Mas continue, Mait6. Falando a gente -se alivia, nlo d? E como tirar um peso. Voc€ tem razlao, meu bem. Tirar um peso. Vocd d dera que todos os homens fossem assim. Voc€ me condena? Neo, Mait€. Voc€ d jovem, ainda. E privada dos prazeres do corpo. Apenas... Apenas... - Apenas deveria tomar mais precaug5es. Lugares mais - homens mais responsdveis. discretos, Dona Mait6 olhou-o nos olhos. Que belo escrit6rio! As paredes eram de madeira. t6o compreensivo. Quem O Senador Nascimento recebeu uma dfzia de fotografias, pelo Correio. "Que diabo i isso...?" Assustou-se : "Seri que querem me meter em algum rolo?" 56 podia ser chantagem. Mas chantagem como? As fotos n6o eram dele. A bem dizer, nlo tinha nada com a moga. Apenas uma ligagio eventual, podia ser desfeita. Pensou e m chamar o Dr. Humberto Jansen, advogado da firma, aconselhar-se com ele. Ou entlo telefonar Para o Coronel Job, Delegado da Ordem Politica, que lhe devia um monte de favores. Depois, acalmou-se. A excitaglo dominou o medo. t8l "E, brincadeira de mau gosto", pensou. NinguCm reria como envolv€-lo nas cenas. Era tomar mais precaug6es. Dar um dinheiro para a moga, despedi-la. E d'ora em dianre , tomar ten€ncia, nlo cometer imprud€ncias. Imagina se alguCm da imprensa sabe de sua ligaElo com a moga. Pior se for aquele impertinente do Elio Gaipari. Ou se a Mait€, t6o recaiada, descobre. Que escindalo. Mas que pena. Era uma pena terminar o caso justo no momento em que estava indo t6o bem. A mulher era 6tima. E essas fotos, que posig6es! O fot6grafo era um arrista. Que grande, o do cara. "Serd maior que o meu?', perguntou-se. Que fotos, que mulher. N6o pensou mais. Ligou perae nega Huga. Olha, recebi pelo Correio, umas fotos da sua amiga, a Vinia. Diga a ela que eu gostei muito e que a estou esperando, amanhi, no mesmo lugar c no mesmo hordrio, ouviu? 3I PEnout DA CHINA Vinia nem deu trela ao papo furado da bichona: Nlo quero, Hugo. N6o quero, e td ecabado. Nio - mais nisso. Nunca mais, ouviul me fale Nunca mais! A nega Huga nlo entende u nada. Que falta de assunto. Outro dia, toda interessada pelo Senador. Hoje, puta da vida com os machos, que maldade! Rejeitando o convire do Senador para renovar encontros. E fechando a porta com chave e tudo. "Nunca mais!" Vai dizer o que ao Senador? Vai ficar puto dentro das calgas e com ela, a nega Huga. A bicha inrermedidria poderia perder seu melhor cliente por causa do destempero da Vnnia. E nem entende ra bem a posigio da outra. Que profissional era ela? Mas voc€ nlo aceita dinheiro, VAnia? - Aceito como retribuiglo ao meu trabalho. - Entlo? - Agora, me comprar, ni.o. Sou uma mulher livre, td sabendo? r82 "Que cagada", concluiu a desolada bicha. e pronto! E nem que quisesse. Estava com uma bruta de uma hemorragia. Que estava doence n6o havia drivida, a febre revelava. Mas os sintomas se misturavam: cansago, uma leseira, ard€ncias diversas... Tlo estranhas, uma vontade tlo grande de dormir' morrer' voar. Vinia n6o queria, Sandra Vilma, outra vez Nely, fez que nlo entendeu a pergunta da Bea, salva da curra pela asi{tica. Voc6 n6o foi currada? - N5o. - Curioso, aVinia me assegurou que voc€ foi currada. - E. Nao. Quer dizer. N6o fui eu propriamente. Foi Sandra- Vilma. Sandra Vilma? - E,. Foi. Ou ela ou a Sandra. - ffiss, espera, criatura, voc6 nio C SandraVilma? Voc6 - nlo € Sandra, nio? tambCm Nlo! Eu jd fui Sandra Vilma. Jt fui Sandra. Sou Nely, -nlo sabia? TambCm jd fui das Dores. Nlo sou mais. Definitivamente. Sou Nely. Ah! - Euridice queria sair do Rio, passar uns tempos fora, pelo menos. Lembrava-se do convite de uma menina que conhecera em Niter6i e que era de Itaperuna, onde regularmente passava as fCrias. Estudava Servigo Social em Niter6i, mas nas fCrias n6o dispensava a cidadezinha onde nascera' veraneava na localidade de Raposo, distrito de ltaperuna, famosa por suas Cguas minerais. Era do que ela estava precisando: Cgua mineral e distAncia dos homens. Nlo tinha o enderego da menina. Sabia apenas que ela estagiava no Hospital Ant6nio Pedro. Foi no hospital que a cotrheceu. Voltando um dia de Cabo Frio, o carro batera na entrada de Niter6i e ela foi socorrida no Hospital. Atendida pelo Doutor Aloisio Brazil foi operada de emergAncia e salva por milagre. E pelas habilidades do jovem mCdico, residente ainda, recim-formado. Como n6o tinha qualquer documento, a moga encarregada do Servigo Social, estudante fazendo €stdgio, entrevistara-a: nome, filiaglo, idade, estado civil, 183 enderego. 'Estava tudo bem?', pergunrou a menina €om um sorriso que a cativou. Ficou uns dias na cmerg6ncia atC ser transfcrida para a Bencfici€ncia Portuguesa, por iniciativa da Dolorcs DurCn, gue a soubcra hospitdizada e dura. Durcza guc, logo na primeira entrevista, confessara a Eliane Maccdo, do Scrvigo Social, ao saber que tinha dc providenciar, por si ou por parcntes, a pr6pria remoglo. Era hospital pdblico de pronto-socorro, nlo podia ficar. Tinha de abrir vaga para outros casos de urg6ncia. Mas Eliane a acdmou: fosse ficando, dava-se um jeito, mais na frcntc se veria o concerto. Calminha. J{ curada, uma noite encontra com Eliane ouvindo a Dolores no Littlc Club. Espanrou-sc: Voc€ por aqui, Eliane? Era a dltima pcssoa do mundo quc- eu esperava encontrar na noite... E a menina com cara de travcssura: Foi uma oportunidadc, sabe? Quando a Dolores foi - me convidou para o shou. Fiquei te visitar, com uma vontadc danada dc vir. Mas como? Cad0 companhia? _ E veio como? Pois C. Outro dia, saindo de um comlcio Praga - em Niter6i, fui com uns amigos romar umnalanche do Rink, na Leiteria Brasil, na rua da Conceigio. Era um comlcio pelas reformas de base e tinha gente de todos os lados. Na turme estava um rapaz que eu conhecia de vista da Faculdade de Direito, e quc d do partido, o Marcelo... Conhego. E amiglo da Dolores. E da Nely, aqucla - ali (Apontava o morcnago.) morena Eu tinha pouco contato com ele porque eu sou da JUC e cle d do partido... JUC? Univcrsit{ria Catdlica. Mas a luta pelas - Juventudc reformas de base c pela reforma universitCria junto.u todo mundo. Veja voc0... - Qgnvsssa vai, conversa vem, nio sei como o papo - na Dolores e cu contei o seu caso e o convite dcla. foi parar Elc se prontificou I rne trazcr. Mas dc indrlstria, que ele td de olho numa colega minha. _ 184 E cad€ ela? - Nio veio. N6o p6de vir. Pra ela fica mais dificil ainda -que para mim. Dei a desculpa de uma reuni6o, no Rio, na UNE, iom o Betinho, o Aldo Arantes e o Paulo Vieira sobre a criagio de um movimento mais avangado do que a JUC e que o Betinho quer chamar de Agio Popular... Euridice voava no PaPo. Era grego para ela. Mas a menina fora um doce, era tratar de retribuir. E entlo? - Enteo, eu fui I tal reuniio e agora estou aqui, como - ver. Feliz da vida. Achando tudo muito bacana. voc€ pode Gostaria de ficar mais, mas n6o dd. Parecia combinado. Marcelo se aproxima e chama a menina. E, melhor a gente -Eurldice protesta: se arrancar, Eliane... Perald, Marcelo. Segura as pontas' a menina mal ouviu -Dolores cantar. O show, mesmo, ainda nem comegou. Marcelo dd de ombros. Por mim, coragSo, ela poderia ficar o temPo que - E, que a m5ie, Dona Odete , € avangada, mas nlo i quisesse. tanto. Daqui a Niter6i C um estirlo. As barcas da Cantareira vlo devagar guase parando. Eliane se levanta. E, verdade. E, pena, mas i verdade. TambCm nlo quero -causar afli96o na mamie. Ela tC sozinha em casa. Meu irmlo se casou e mudou. Td. em Cabo Frio. Vou me despedir da Dolores... Volta outro dia. - \,/slse, sim. Outro dia eu volto. Nio hi nada me- que a noite de Copacabana. Eu volto, Eurfdice. Brilhor do geda. Felizmente, Nely havia comprado um aPartamento em Pogos de Caldas. Neg6cio de ocasilo. Sorte, mesmo. [Jma noite, estando no Kay Bar,boete do Fafd Lemos, C apresentada a um mogo muito distinto, um dos donos do Banco do ComCrcio, que, ao sab€-la conterrinea, se aproximou sorridente e seguro de si, como todo rico. Quer dizer ent6o que voc€ C conterrAnea? - 185 O senhor C de onde? - Sou de Pogos de Caldas. Sua colega ali apontava para a sonsa da Vinia, que lhe piscou o olho esperto me disse que voc€ C de l{... Quase, eu sou de Pouso Alegre. Mas sempre que podia -eu ia atC Pogos de Caldas. E, muito linda a cidade. Gostava mais de ir no inverno. Nas firias de julho. Espiar os turistas, ver as modas. As roupas... O senhor... Que a interrompe: Que i isso, nlo me chame de senhor. Meu nome i Paulo -CCsar. Paulo CCsar Alexandre dos Santos. Simpatizei logo com voc€. Voc€ tem um qu€, um 'it". Nely gostou dos modos do cavalheiro. T6o jovem e j{ tlo banqueiro. Agradeceu e seguiu em frente. Voc€ ainda vai a Pogos de Caldas, Paulo Cdsar? Eu nunca-mais fui. (Longo suspiro.) !611, claro que vou. Outro dia mesmo fui ao langamento -de um edificio que a gente esti. financiando na terrinha. Interessou-se a deusa. Aonde? - Na Praga Pedro Sanches... - Pedro Sanches... - Pedro Sanches, a pracinha ao lado das Termas Ant6nio -Carlos e do Palace Hotel. Nely localizou a praga, lembrou o hotel. Sei onde fica. ?',4lembrando. Boa localizaglo. - A melhor. Por que voc€ nlo compra um? - Nio sei se d{... - D6, como neo d{? Estamos vendendo em condig6es excepcionais. Slo Cr$26.000,00 de entrada, sendo l0o/o de sinal e l0olo na escritura, e os restantes 80o/o financiados em dez longos anos pela Tabela Price. Nlo sei, n1o, Paulo -O banqueiro animou a CCsar. conterrinea. Vai dar. Nio se afobe . Vou pedir para o Jos€ Parola, diretor- da Sociedade Construtora Bandeirante, responsdvel pelas vendas, vir falar com voc6. E j6, ne intenglo: Voc€ tem telefone? - 186 Tinha e o deu. Nely dava mesmo. No dia seguinte, jd cstava o Parola telefonandb. Marcaram encontro no Casabhn' ca. Ptola reservaria mesa, queria assistir ao show do conjunto Farroupilha. A companhia vinha a calhar. Certamente, o Paulo CCsar lhe dera o servigo: a morena mineira era um mulherago! Parola era boa companhia' mas falava pelos cotovelos, como todo bom vendedoi. Nely dava sorte com vendedores' Esse n6o fugiu I escrita. Quem fugiu I escrita fora o Macarra' Mas Macarra ert um idiota. O Paulo Cdsar me falou que voc€ era bonita, vistosa. - Exagero, cortou NelY. - Exa[ero, o qu€. Foi etondmico, - C linda... ro. Voc€ como todo banquei- (xi!) Tenho uma idCia. Vou lhe fazer uma ProPosta tancha. (Vem coisa, al.) O Condomlnio Bauxita € uma inovagio na cidade' Tem de tudo, alCm de dgua mineral de bica e das termas' Tem piscina de Cgua mineral. E fechada. Como se fosse uma estui^. f, p^t^ o'ir,".rrro. Yai fezer uma sensagio que nem te conto... Mas contava. Ora, se contava. A idCia C do Ellsio Pires' um rapaz talentoso, r€sponsdvel pela nossa publicidade. Vamos publicar gqr a16ntto.tondo a pisiina no inverno. No inverno Nely' D6.a "io atC neve fora do hotel, mas saindo sensagio de frio, "p"t"". d'lgua,, tranqtiila, iomo se tivesse saindo do mar no verlo, uma serela... E, em meio a confuslo que seu palrear causava na deusa e que a levava l perplexidade, pergunta: Imagina quem serd a sereia? responder. N6o entendia de sereias' De publicidade, de piscinas, de hotel. O cara parecia uma metralhadora, falando sem Parar. pxssss qae tdnevando' frio intenso, e a sereia sai da {gua... Da 6gua? -Nely nio.o,tb. - 187 Da dgua mineral. A sereia. -Repete a pergunra: Sabe quem -Nely nem atina.serd a sereia? Voc€. - Eu? Sereia? - E, voc€ mesma. Sereia linda de morrer. Voc€ mesma. Sai no O Cruzeiro, uma p{gina inteira. Voc6 na escada da piscina, ji com o corpo ptJfor" d'{gua e vestindo um caprichado mai6 Catalina. Caralina? - E, Catalina, voc€ topa? -Nely topava. Topo, Parola. -O vendedor arremata o papo: Seu pagamento serd a entrada. - Entrada? - A entrada do apartamento. E mais. Pra voc€ vai sair - de custo. Uma bagatela. Voc€ vai pagar em dez pelo prego anos sem sentir. Uma ninharia. . F"i assim que Nely se viu proprietdria de um quarro-e- no Edificio Bauxita, em Pogol de Caldas, ao-lado do Hotel Palace, com piscina de igua mineral. Nadar e beber. Um sucesso. Piscina de igua mineral. sala Dolores foi visitar Vinia. Encontrou-a mal. Sente o que, criatura? - N6o sei, Dolores. - Vou providenciar um midico e alguCm para ficar - O diabo C que as meninas todas pegaram a asidticom voc6. ca-. Vou ligar para o Doutor Adio Pereira Nunes, no Hospital Miguel Couto, ele vem ver voc€ e pronto. 56 n6o sei quim vai ficar aqui com voc€... Aqui d que nio vai ficar, Dolores. -Espanta-se a cantora. Nlo vai, por que? - Q ssnuato venceu, o proprietCrio n6o o renovou. Disse -que ia casar a filha, meteu um processo e eu estou despejada. -Q""l 188 (oprazo? Tenho at€ amanhe. -Dolores pensou um pouco. que Di-se um jeito. Tira isso da cabega. Preocupada C - melhora, mesmo. Vou mandar o mCdico. Tchauzinho. nlo Fica com Deus. Vai com Deus. -Dolores foi. Ia sempre com Deus. Deus gosta dos puros de coragio. E deles o Reino dos CCus. Eur{dice foi procurar o Marcelo pra pegar o enderego da Eliane. E nada. "Onde terd se metido o vivente?" De noite , no Little CIub, perguntou i Dolores: Dolores, voc€ viu o Marcelo? - Nio, n6o tem aparecido. Pergunta pra Nely. Ela vai - conta dele. saber dar Ela td aonde? - Td aqui ao lado, como sempre cantar"Eueabrisa". ouvindo o Jonny Alf Foi falar e Nely entrar na boate. Oh criatura, estava atr{s de voc€... - [19[6, me achou. - Preciso falar com o Marcelo. - Nio dri, ele viajou. Foi pra Moscou... - Fazer o qu6? - pxlsgs que i a comemoraglo do "Sputinik", aquele - que a Unilo SoviCtica langou no espago. Estava todo satClite satisfeito, gozando e cere dos americanos. Foi com ele aquele rapaz pintoso de Pernambuco... - Qual? O Roberto Freire. Aquele que a Bea tava a fim. Estavam -os dois dando risada, dando bananas pra Amdrica. Dolores intervCm na conversa: Por isso C que nlo tem aparecido. E nio teve nem coragem de se despedir. Sabe como eu detesto aquela gente. Sai no meio de uma excurslo na Rdssia. Pra nunca mais voltar, Deus me livre. Marcelo i um amor de rapaz, mas esse negdcio de comunismo estraga ele. Euridice se v€ num mato sem cachorro. E agora Nely, como C que eu vou fazer? -("E eu, ele partiu no melhor da festa...") 189 Nlo sei. -Nely nlo sabia, mas Dolores sabia. Calma Euridice. Voc€ vive afobada. Calma. Tdven' - dois rapazes l{? do aqueles Numa mesa de canto, Murilo Braga de Carvalho Jr. e Carlos Alberto Teixeira Leite, tomando cuba-libre, esperavam o show da cantora. Aqueles dois rapazes slo amigos dele. Ld de Grajari. De repente, te d6o a informagio. Euridice i tfmida, n6o sabe tomar iniciativa. Vai comigo, Nely, falar com os raPazes. -Nely ia. Falar com rapazes era sua especialidade. Boa-noite, gente. -Os rapazes levantaram-se educadamente. Murilo convidou: Sentam? -Sentaram. Bebem? -Bebiam. Bebem o qu6? -Foi Nely a perguntar: Voc€s ti.o bebendo o que? -Foi Teixeira a responder: Cuba-libre. -A vez de Euridice: TA certo. Pra n6s, tambim. -Nely toma a iniciativa. Me diga uma coisa, voc€s sabem do Marcelo? Estava em Moscou. Um frio de rachar. Tarefa do partido. O caso C o seguinte, talvez voc€s possam ajudar. A - aqui ficou amiga de uma amiga dele, ld de Niter6i. Euridice Acontece que ela estd de fdrias e a Eur{dice s6 tem o ende rego do trabalho. Precisava falar com ela. Voc€s podem ajudar. A menina chama-se Eliane Macedo. E clara. Murillo nlo podia. Teixeira, sim: jri andara namorando uma amiga da Eliane. Achar a Eliane, mesmo, eu n6o sei. Mas Posso te - dica. dar uma Nely i expedita. -Sabiam. 190 Entlo, d€. - Ela costuma freqiientar um barzinho em Niter6i. - amigos dela l{ que podem saber o enderego. Tem uns Nely anotou tudo. Euridice ficou bobando. O bar era o Petit Paris. Ficava entre as ruas Miguel de Frias e Alvares de Azevedo, logo no inicio de lcarai, em seguida i pedra de Itapuca, por onde passa o meridiano do Rio de Janeiro. O antigo Cassino ficava bem na esquina de Miguel de Frias com a Praia de lcaraf. O bar fica numa pracinha, ao lado do Cinema Icarai. Nlo tem errada. "E o nome dos rapazes?" IJm se chama Ronaldo Coutinho e o outro Dario Castelo Branco e o terceiro Coimbra de Mello. Slo boa gente, mas slo feras. Vocds v6o com calma. Vem cantada na cerra. Nely nem ligou. Um dia a ela perguntaram: "Voc€ canta?" ao que ela respondeu: "N1o, sou cantada." Agradeceram aos rapazes e voltaram i mesa da Dolores. Conseguiram? A cantora queria saber. - Conseguimos. -Eurldice choraminga pra Nely. Voc€ vai comigo, Nely? Vai? - Vou, que remCdio. -("No rnelhor da festa. Ele ainda perguntou: Voc6 estd triste? Eu respondi: Porque voc€ pergunta? Porque sei. Sabe como? Pela aus€ncia de mar nos seus olhos".) Nely afugentou fantasmas e perguntou i Dolores: Voc€ este escrevendo o qu€? - A letra de uma cangSo que estou compondo... - Tem nome? - Tem. Vai chamar-se "N1o me culpe" (Suspiro). Pobre do- Macarra. A gripe chamada asidtica pegou a cidade pelo pC. O Servigo de Epidemiologia da Prefeitura jA. havia registrado 209.996 casos. O sanitaristaLuiz Ant6nio Santini, em entrevisra exclusiva ao jornal Oltima Hora, multiplicou o n(mero de casos registrados por dez. N6o fazia por menos. Por suas contas, dois tergos da populagilo j6.havia contraldo a gripe. O resrante corria o risco de contaminaglo. Estava abalada a vida da cidade. Jd se registravam 1 18 6bitos e 50o/o das escolas estavam fechadas. N6o restava um l9t 6nico setor de atividade no Rio em que nlo tivesse penetrando o virus "singapura". Nas favelas a situaglo era de calamidade priblica. Moravam 640.000 pessoas nas favelas, o que equivalia a mais de ll5 da populagio carioca. Contavam-se 125.000 barracos. Cresciam a3.690 casebres por m€s. Ati os soldados do ExCrcito nio resistiram ao virus. A asi|tica fez estrago nas fileiras das forgas armadas. Era o que preocupava Dolores. As meninas todas tinham caido com o virus que nlo respeitava nem farda. Nely e Euridice iam viajar. A primeira, para seus dominios de Pogos de Caldas; e a segunda, pros dominios da Eliane, em Itaperuna. Que fazer com a Vinia? Quem iria cuidar dela? Dr. Adlo Pereira Nunes n5.o estava, a enfermeira informou que viajara. Provavelmente para a Rrissia com o Marcelo: eram unha-e-carne, os dois. Grande mCdico, mas vermelhinho como o outro. Ainda bem que deixara um assistente para atender seus casos. Gostara demais do jovem midico. Comprido e timido, nlo sabia o que fazer quando em presenga da cantora. "Sou seu fa", disse a muito custo. Ao que Dolores respondeu: "Eu tambdm serei sua f1, doutor, se o doutor der um jeito na VXnia. A pobre esri que n6o se agtienta." E ficou f5 do Doutor Laerte Yaz de Mello. Num instante diagnosticou o problema de Vinia. Repouso, pe nicilina e abstinGncia. Mas da alma, Dolores, podia pouco a medicina. A moga precisava era de carinho, compreenslo. Sentimentos que essa sociedade competitiva e cruel n6o conhecia... ("Xi, ourro vermelhinho, pensou a cantora.") Ficasse tranqi.iila, do corpo cuidava ele; da alma... Que fazer? A cantora n6o tinha a quem recorrer. De repente, o estalo. Macarra! Sim, porque nlo tinha pensado antes nele. "Vou mandar chamd-Io." Macarra tinha saido das Listas Telef6nicas. Era agora responsdvel pelo departamento de vendas da "PCrola da China", firma atacadista de cereais, fundada em 1925. Seu amigo, Luiz Carlos Abreu de Souza C quem o havia convidado, dado a oportunidade. E nio se arrependera, n1o. A casa s6 fez crescer, as vendas aumentando a ponro do Luiz mandar a press6o. "Calma, Macarra, a gente nlo tem estoque pra atender a tanto pedido. Vai devagar, amigo." Luiz diminuir 192 era assim. Tratava os amigos de amigo. E era amigo dos amigos. Andavafeliz o Macarra. Feliz e abonado. E orgulhoso da posiglo. Adorava o nome da firma: "PCrola da China." Que nome bonito! "PCrola da China.' Foi Luiz quem atendeu ao telefonema da cantora. Primeiro, nlo acreditou. Pensou que fosse um trote. Mas reconheceu e voz. Quem n6o reconheceria, afinal? Queria falar com o Macarra? Perfeitamente, ele iria ji chamd-lo. Mas, antes, gostaria que a cantora soubesse que era seu fa. Tinha todos os seus discos. A cantora foi gentil. "Pirola da China, n?ro €?'E, sim, "PCrola da China." "Que nome mais bonito", disse. Macarra atendeu imediatamente ao chamado da cantora. E n6o foi de lotaglo, n5o. O Luiz, tio severo com as coisas da firma, abriu-lhe exceglo: "Pode ir no carro da firma, Deodato. Nlo faga a Dolores esperar." Nlo fez. 32 Auon NAo sE AGMDECE VAnia aceitou. O que n6o tem remidio, cura sozinho. Macarra exultou: Aceito, Dolores. Aceito o encargo. Quem sabe nlo - enfermeiro? nasci para Ainda no carro da firma foi buscar Vinia em seu despejado apartamento. Encontrou-a medicada, mas ainda fe- bril. Seus problemas acabaram. Vou te levar pra casa e cuidar-de voc€. Voc€ vai ver. Nova vida pro Macarra. Recolheu Vinia da Rosa em sua casa, rainha em seu pr6prio paldcio, declarando, alto e bom som, a todos comovendo: "O amor C prova da exist€ncia de Deus!" Vida nova pra VAnia, ali, rendida, enferma, indiferente, dependente e taful. 193 Macarra voltou I firma depois de alojar Vlnia e ver que nada lhe faltava. AtC mesmo a companhia da vizinha do 206, ume aposentada que gostava de ajudar os outros. "Felizmente ainda existe gente assim", p€rsou o vendedor. Gente boa como o Luiz, que logo compreendeu o momento que estava a viver o ser chefe de vendas. "Sem problemas, amigo. O amigo pode cuidar da moga que eu cuido da casa." Antes, todavia, Macarra tinha de cuidar de uma grande encomenda pra Alagoas. Foi uma venda que fizera para o pr6prio vicegovernador do Estado, um antigo bo€mio, Teot6nio Vilela, sempre preocupado com a merenda das criangas, e procuran- do melhores pregos. Era ftcil lidar com ele. Limpo, direto, sem sacanagens. Dolores d que apresentouTeotdnio a ele. Era deputado, entlo. E usineiro. Vivia na noite. Depois, elegeuse e ficou no Estado cuidando da pobreza. Era um homem e tanto. Marcara encontro no Amarclinho e nio no Escrir6rio de Representaglo do Estado. Gostava de biritar. Conversou com ele, acertou tudo, e, de quebra, despejou seu drama. O homem ouviu calado. Como tambCm ouviu seu drama a Presidente do Sindicato das Entidades Culturais, a escritora Heloneida Studart, cuja entidade se alojava justo em cima do Amarelinho. Apresentou-a ao vice-governador. Teotdnio conhecia-lhe a familia. "Sua mie, a baronesa de Studart foi linda, menina." Certo, Heloneida era uma menina, ainda, como disse o alagoano, mas jd escrevia, agitava, enfrentava o preconceito machista, organizava a mulherada, dava os primeiros passos de sua luminosa vida. Macarra abalou-se. Deixou os dois conversando. Mas levava as palavras de ambos, alCm da receita de um picadinho de carne: 'Use tambdm uma pitadinha de coentro, Deodato, e ternura. Muita ternura!' Nlo entendeu muito a re*Ternura?" ceita pelo seu final. No picadinho? O que queria a amiga dizer com isso? Gostava da Heloneida. Ficaram amigos quando ele, ainda nas Listas Telef6nicas, tentara empurrar-lhe uma figuragio para o Sindicato: "Nio se esconda, jovem", teria dito com a conversa de sempre. Mas a moga nlo foi na l{bia do vendedor. "Que figuragio, car* Sindicato C pobre. O dono dessas Listas C agente da CIA, raspa daqui." Mas, logo amaciou. "Raspa em sentido figurado. Voc6 pode ficar, mas n6.o me queira empurrar andncio, ouviu?" E fica194 ram amigos. Ela sernpre tlo doce e tio franca. Tinha uma mensagem na receita. 56 que Macarra n6o a captava. Pior, ainda, foi o conselho do amigo: Tenho uma bola de cristal do tamanho de uma bola futebol. N6o sei se adivinho o futuro ou chuto em gol. de Como entender intelectuais? Bem alimentada pelo picadinho, Vinia condescendeu em ler para o enfermeiro os versos que fizera: 'Meu cCu n6o tem estrelas, Meu mar nlo tem azul, Quebrei o brago da vida No Rio Grande do Sul." Contrito, mortificado, Pesaroso, foi Macarra Procurar Dolores Dur{n. Que fazer, Dolores? Vdnia s6 quer saber de beber Crush e nlo tira da vitrola aquela mdsica que voc€ fez com o Tom e que a D6ris Monteiro gravou... "gs C por falta de adeus?' - Essa mesma. Ser{ que ela rl insinuando alguma coisa? ( A cantora nlo responde.) E os versos, Dolores, sem pC nem cabega. Isso C l{ poesia-que se faga. Verso mais besta: "Qrrebrei o brago da no Rio Grande do Sul." E nem garlcha C! "ida Dolores ouviu com paci€ncia e depois Perguntou: Voc€ voc€ mora? ji pensou em comPrar o apartamento em gue E Macarra penetrou no torvelinho do sonho da casa pr6pria. Mas comprar como, Dolores, eu nlo tenho dinheiro para- isso! A gente dd um jeito. (O anjo tinha jeito pra ,ujo.) Eu falo com o Claudio Medeiros que C figurio na Caixa Econ6mica e ele arranja um financiamento pra voc€. Macarra animou-se. Ser{ que a VAnia vai se tocar? De posse da apresentagio da Dolor€s correu logo para a Caixa. Claudio Medeiros atendeu-o na hora: 'Amigo da Dolores d 195 meu amigo. Deixa comigo, que eu vou re arranjer um financiamento. A caixa financia 80o/o. Voc€ tem de arranjar apenas a entrada." O que foi fdcil. Consultou o patrlo pelo telefone. Claro que podia contar com ele. Ainda aplaudiu: "Goste i de ver, Deodato. O amigo estd tomand o juizo." Tudo bem. Agora faltava falar com a VAnia. Verificar, nela, o impacto da compra, a sugerir estabilidade, uma vida mais tranqi.iila. Macarra, vivendo seu sodallcio, animado com a perspectiva da futura propriedade e enlevado com as Festas de fim de ano que se aproximavam, ocasilo em que as pessoas ficam abertas ao amor, l conc6rdia e outras pr{ticas subversivas, chegou a casa cheio de esperanga. Vinia. Arranjei um financiamento na Caixa. Vamos - no uamos) comprar o aparramento. (carregou Vinia parece que nlo ouvia. Serviu o enfermeiro com outros versos. "As velas pandas, Os venros de banda, Levando meu senhor Nabucodonosor." Que fazer? Procurar Dolores, como sempre. Foi quando o Agente Laranja lhe disse que a cantora ainda neo iinha chegado e atC o convidara para tomar umas e outras ou para comer bife no Vaticano,Isso depois de contar a hist6ria escabrosa da curra do irm6o do Badeco e o Almogo de Gango que o tira aprontou para o Epadri, outro leSo-de-chCcara d.o Beco. O cara virou presunto: morrinho da silva! Qual, ia dar uma volta. Ver como esrava a VAnia e depois voltar para se consolar com a Dolores. Que diabo, Vinia estava ld hd mais de um m6s em seu apartamento, e nada. Jd estava praticamenre curada, como lhe assegurara, ainda ontem, o Douror Laerre. Diagn6stico confirmado pelo pr6prio Doutor Ad6o Pereira Nunes, que jri havia voltado de Moscou, da festa do 'sputinik', com o Marcelo e o Roberto Freire. Indiferente a rudo, VAnia senria-se prisioneira no apartamento, na bondade e na solicitude de Macarra. E lamentava: t96 "Me ataca, Me acata. Me solta, Me deixa que eu que sambar." Pirulitou-se. Antes mesmo de entrar no aPartamento, ainda na Porta do prCdio, Deodato dos Santos Curralino teve o pressentimento que Vinia lhe deixara. N6o deu outra. O apartamento vazio. As roupas e a mala se foram. E com elas a Vinia da Rosa. Foi um Macarra aluldo que voltou ao Bcco. Laranja viu taaa pelas tabelas. logo que - '- o amigo Alguma coisa que eu possa- fazer? foi, Macarra? Que O amigo olhou o leSo com cara de boi que jC foi pro sacriffcio. Dolores cheeou? - Chegou, ,iri. Td cenrando. Ribamar ao piano. A Mas pode entrar. casr td.lotada. Macarra .t ttorr. Dolores Durdn cantava "A noite do meu bem". Dolores acabou de cantar. Quantas palmas! Nem bem agradeceu e viu o amigo no canto do bar. Murcho de dar d6' Airoximou-se. Pegouia mlo do infeliz. F€-lo sentar-se em sua mesa. deixou? Ela foi embora, nlo i? E, parecc. Parice, como? Nio se desPediu? Nlo. Mas deixou um recado, uma carta' um bilhete, n6o Nlo. - Nada? - Nada. -Revoltou-se a cantora. Mas isso nlo est{ direito, Macarra. Depois de tudo o que -voc€ fez por ela. Tanta dedicaglo. Tanta solidariedade, tanto des*'elo, tanto carinho... (Sil€ncio.) t97 Nem um agradecimento, -O amigo olha o nada. BalangaMacarra? a cabega. agradece. Nlo, Dolores, isso ela n5.o precisava. Amor n6o FIM Santa Teresa, 5 de r 98 junho de 1994. se Qualquer livro desta editora, n5o enconcrado nas livrarias, pode scr pcdido pelo reembolso postal I Editora Revan Ltda., Avenida Paulo de Frontin, 163 - CEP 20260-010 - Rio de Janeiro - RJ - Tel.: (021) 293-4495 - Fax (021) 273-68773