Untitled - Marcello Cerqueira

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Untitled - Marcello Cerqueira
Marcello Cerqueira
BECO DAS GARRAFAS
- UMA LEMBRANQA
&
Editora Revan
Copyright @ 1994 by Marcello Cerqueira
Reuisdo
'Wilson
de Jesus Costa
Heloisa Helena Brown Duarte Silva
Capa
Cadu Gomes
EditoragZo
BArUf
- Editoraglo Eletr6nica
Impressfro
Craphos
Ci P- Bras il. Caralogagio- na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Cerqueira, Marcello, l93g Beco das garrafas : uma lembranga / Marcello
Cerqueira.
Rio de Janeiro : Revan, lgg4.
C395b
-
Inclui bibliografia do autor
isBN 85-7106-067-3
l. Beco das Garrafas (Rio de Janeiro, RJ)
Fica6o. I. Tftulo.
94-to8l
-
cDD - 869.93
cDU - 869.0 (81) - 3
Esta obra C de fica6o. Afora pessoas de not6ria refer€ncia, qualquer semelhanga com personagens ou fatos da vida real terC. sido mera coincid€ncia.
r994
EDITORA REVAN LTDA.
Avenida Paulo de Frontin, 163
PBX (021) 293-4495 - Fax: 273-6873
CEP 20260-010 - Rio de Taneiro
Obras do Autor
Por esta Editora:
A Constituigdo na Histdria, Origem & Reforrna (Hist6ria Constitucional. Direito Comparado, novembro de 1993,440 pigs.)
Por outras Editoras:
Noua Lei de Estrangeiras, Rio de Janeiro, PLG Editora, 1981;
Penhor da Liberdade, Bras{lia,
CPCD, 1981;
Cadluer Barato, Rio de Janeiro, Editora Pallas, 1982;
Rude Tiabalha, Brasllia, CPDC, 1 982;
O Deus Ferido, Brasflia, Editora Escopo, 1985;
Representagfr.o & Constituigdo, No de Janeiro, Editora Timbre,
r990;
Bateau Mouche : o Naufrdgio do Processo, Rio de Janeiro, Editora
Timbre, 1990.
Ensaios: Notas h Constituig1o Brasihira. Como Foram Conuocadas
as Constituintes, Rio de Janeiro, 1986;
Sistema dc Gouerno: Presidencialisrno ou Parhmentarismo, Rio de
Janeiro,1990;
Chacina na SerrA, Rio de Janeiro, 1990;
Reforma Constitucional iom Quorum Reduzido E Golpt de Estado, Rio de Janeiro, 1992;Reuisd.o e Golpe de Estado, Rio de Ja-
neiro,1992;
Quem ndo Sabe Rezar Xinga a Deus, Rio de Janeiro, 1993.
Literatura: Almogo de Ganso (romance), Rio de Janeiro,
Philoliblion Livros de Arte, 1985;
O Jeito do Rio (cr6nicas da cidade do Rio de Janeiro),
Janeiro, Philoliblion Livros de Arte, 1985.
Rio de
No estrangeiro:'Abaixo a Pixaglo", b: Crbnicas Brasileiras,Florida, Universiry of Florida Center for Latin American Studies,
Universiry Press of Florida, 1994 (Antologia).
Tese: ,4 Constituigto e o Direito Anterior, a Fen6meno da Recepglo. O Impeachement do Presidcnte da Repilblica: um Estudo
de Caso. Trabalho com que foi aprovado em Concurso Priblico
de Provas e Tltulos para Professor de Teoria do Direito e Direito
Constitucional da Universidade Federal Fluminense, 1994.
NAO ME CULPE
Nlo
me culpe
ficar meio sem graga
Toda vez que voc0 passar por mim
Nlo me culpe se os meus olhos
O seguirem
Mesmo quando
Voc€ nem olhar pra mim
Se eu
E,
que eu tenho
Muito amor muita saudade
E essas coisas
Custam muito pra passar
Nio me culpe n5o
Pois vai ser assim
Toda vez que voc€ passar por mim
DOLORES DURAN
I
O Brco
O Beco das Garrafas
comega na rua Duvivier, na qua-
como dizem, hoje,-os andncios de im6drfssima da praia
veis com taf localizaglo. Justamente ali, no final dos anos
cinqiienta e infcio dos sessenta, tr€s boates aconteciaml- Ma
Griife, Bacard e Little CIub, depois Bottle's. O nome,Garrafas
dec'Jrreu da seguida prCtica de moradores dos ediffcios em
torno de jogar is ditai nas cabegas dos que barulhentamente
comemoravam as pr6prias alegrias e as dores alheias' Beco'
como todos ,"be*, i uma rua istreita, geralmente sem sa{da'
como algumas situag6es em que a gente se v€ metido'
M"as a ,roite nao fica apenas por ai' Alcangava, logo
adiante, a rua Carvalho de Mendonga, apertada e ntre vdrios
edif(cios de apartamentos e que ficou conhecida como a rua
do "joga a .h"ue, meu bem", apelo que tudo revela, n6o deixa margem a dfvidas. Viela com indmeras casas noturnas'
inferniihos e bares, mas com especial destaque para o Bare
Boate Domin6, como o piano de Carlinhos, da Rddio Nacional, e mulheres selecionadas diretamente pela co-pro-prietdria, a lenddria Madame Martha, antiga profissional, afamada
dama.
BoateVogue, consumida pel-as cha^ que devorou todo o Hote I Vogue
inc€ndio
mas e m pavoroso
'
na rua Princesa lsabel. O inc€ndio comegou com um curtocircuito na boate: o fogo atingiu as cortinas e, em seguida' as
tubula96es de gds, qu! exploliram pelo pridio inteiro'.Em
dez minutos as chamas alcangaram o 12" andar e o hotel arno dizer de Andeu como uma "bola de pingue-pongue"
ndo pode escresinistro
ao
tonio Maria, que no dia seguinte
comparecronista
O
ve r sua coluna Mesa de Pista, no Globo.
apertado.em
comentdrio
da reportagem',o
ceu na p{gina
..r."dur" "rob o titulo "lic€ndio no Fim"' Maria perdera
amigos, a Boate Vogue era o cendrio preferido dos que Fe.ziam
no'ir.. Nlo, n6o fodia escrever sua alegre e mordaz cr6nica
"habitual sobre as noites cariocas. Refugiava-se, assim, na reDortagem geral, ali asilava sua dor, e a matCria refletia seu
,ofri.i.nto"("arde m-me os olhos e tremem-me os dedos".''),
Jd
nlo
mais existia
lembrangas incandescenres, recordag6es retorcidas pelo fogo
e ainda quenres no rescaldo do inc6ndio. O Vogui acabo-u;
terminou uma ipoca, calcinada pelas chamas.
Fim de um tempo, comego do outro, que a noite vai
ser sempre uma crianga e a bo€mia um show que n6o pode
Parar.
Tanto n5o pode que Zd Fernandes, mal refeito do inc€ndio no Vogue, comprou a boate Fiesta, rrocando-lhe o
nome para Au Bon Gourmct. Com Dona Maria Raymunda
Viveiros responde ndo pela cozinha e, segurando o bar, Jimie
Chartes, nome que o cearense Severino Tragado adotara em
homenagem ao barman favorito de Hemingway ap6s muita
insist6ncia do jovem ediror E,nio Silveir", Te in.ondicional
do consagrado escritor.
A casa ia de ve nto em popa, especialmente ap6s a
contratagio do vocalista Zezinho, que na pr6pria boate langou o samba "Quem rr.randa na minha vida sou eu", destinado ao maior sucesso ap6s gravado em disco setenta e oito
rotag6es e tocado sem parar nas ridios a pedido do pr6prio
pfblico, o que dispensava o tradicional jabacul€, expediinte
a que se viam forgados autores, intirpreres e grauadoras para
rem se us langamenros prestigiados pelos programadores das
estag6es de ridio, uma graninha a molhar a mio do disc-jochey.
E a boate s6 nio foi melhor por conta da sesquipedal mincada
do \Talmir Porteiro, tambCm chamado Roupa Nova, que achou
ve
de barrar, sem motivagio aparenre, o Pedro das Flores, tipo
maneiro que havia inaugurado, com relativo €xito, forma
peculiar de vender sua mercadoria: colhia uma das rosas do
ramo que abragava e a oferecia ls damas com uma gentil curvatura, postura que s6 abandonava ap6s os respectivos acompanhantes retribufrem devidamente a oferenda. Havia casos,
entretanto, que o cavalheiro nio se cogava e ld permanecia o
florista com a maior cara-de-pau do mundo, o ironco curvado, placidamente a esperar que o distinto se mancasse, contribuindo para o enlevo da parceira e para as despesas do
Pedro, que nio se riam poucas, nio apenas pelo custo da mercadoria, sabidamenre alto, importada que era de Nova
Friburgo ou Barbacena, mas tambim por sua natural inclinagio para as mulheres, pe ndor que o inspirou na criagio da
inusitada forma de obsequiar, e que o obrigava, noite ap6s
l0
noite, de impecdvel smohing e lustrosos saPatos de verniz, a
sujeito a
Percorrer as boates para defender algum' E ainda
nas
versado
pouco
"nlo"
valete
algum
redondo de
i..eb.r um
julgamento
tal
que
no
ainda
artes do fino galantcio e menos
tipos
Ou
acompanhante.
da
gesto ins6lito pudesse receber
iecididamente somfticos que' aproveitando-se da penumbra
ambiente, punham-lhe no bolso uma nota curta' ficando bem
com a dama e deixando mal o Pedro' jd que a mixaria n6o
dava sequer para cobrir o custo da mercadoria. Ou, finalme nte, o que era pror, ver-se barrado na boate, como no caso
do Au bon- Gourmer, impedido de trabalhar pelo Roapa Noua,
proibigio que desagradaria Sirgio Porto, o festejado cronista
Stanis[a* Ponte Prita, amigo db Pedro, das flores e da liberdade de trabalhar.
A bronca do Lalau com o porteiro acabou em birra com
a case, que ganhou a md vontade dc suas cr6nicas didrias, o
que l.uou o propriet{rio a levantar o embargo ao.Pedro. das
Flor., desp"ch"i emissdrios pedindo penico ao jornalista'
Arrego q.ri t. mostrou indtil, mesmo quando ZC Fernandes
o diJtinguiu com especial convite para assistir a estrCia do
internaJionalmente ionhecido Tbc Platters, conjunto vocal
norte-americano que fazia estrondoso sucesso no mundo todo,
inclusive aqui, onde seus discos permaneciam nas paradas d.e
sucesso, v.nd.ndo is pampas e tocando sem Parar nas rddicomo lamentava
os, tio chegadas is mtisicas estrangeiras
Sirgio Cabial, que se estreava como cronista musical'
Qual! Nada demoveu Stanislaw' nem mesmo o argumento ierradeiro da presenga do corpo diplomdtico, ) frente
nada mais nada menos que o honordvel Cdnsul Geral da
Embaixada Norte-americana, diplomata de carreira' agente
da CIA por conveni0ncia de servigo e bo€mio por re-c6ndita
vocagio. Filho de mie lusitana e pai norte-ame ricano, Valthe r
dos Santos Vernon, mais conheCido co-o Mister, mistura de
jacar(. com cobra-d'dgua, atd que falava.um portugu€s. pass6u.l com um curioso tot"qu. luso-americano' o que lhe empr€stava um ar amblguo, como se fosse o pai imitando a mae,
ia qu. sua voz aflautada se prestav.a a eventuais equ{vocos,
iogo desmentidos por sua cara machona.
Neca de pitibiribas: o fero cronista despachou o convidan te:
ll
tico.
-
Costo mais de corpo de miss que de corpo diplomd-
E permaneceu irredutfvel, mesmo quando o embaixador lembrou-lhe que a festa era boca-livre, rudo por conta da
casa, sem falar na presenea de mulheres mil, elegantes, perfumadas, oferecidas, algumas jd admiradoras do Lalau, outras candidatas a ral, enfim, noitada pra ninguCm botar defeito: "bebida, mulhe r e orgia", que slo, como diz o samba e
ninguim ignora, "a lei do vagabundo".
56 mais tarde, no ano da graga de 1963, C que SCrgio
Porto iria deixar e zenga de lado. E nlo por consideragio I
casa ou aos empregados, se bem mantivesse viva a lembranga
do insuperrivel tempero de dona Raymunda
particular- de uma famente de um cabririnho guisado, acompanhado
rofa esperta
mas para assistir estrCia, como profissional,
- Leio na comidiaI musical Pobre
da cantora Nara
Menina Rica,
assinada por Vinicius de Moraes e Carlos Lira.
Lalau jamais confessou a qualquer, mas reria ido antes
vingado o convite de Z€ Fernandes I dupla Haroldo
Barbosa e Luis Reis para se apresentarem no Au Bon Gourmet.
Foi Haroldo quem recusou, terminantemenre: tivesse paci€ncia o 24,, mas nlo podia aceitar, n5o re m jeito
para o palco, perde a esponrane idade, o priblico lhe infunde
invencfvel terror; nio, lamentava recusar, mas nio dava pi,
convidasse-o, isso sim, para uma casa, um apartamento, levasse o Lufs Reis e, enreo, perfeitamente, canraria, ainda que
bem nio cantasse e mal o violio arranhasse, mas estaria I
vontade, muito na sua, sem inibigdes, poderia apresentar suas
composig6es, ora se poderia...
O cronista reria ido se os parceiros fossem. Como desprezar a mensage m de esperanga da canglo que dizia: "Gloriosa manhi, por que tanta luz?" Iria, como nlo iria? Levantaria interditos, suspende ria e mbargos, ainda que puto-da-vida
se tivesse
com a cAsA e o lorpa do ZE Fernandes, nlo deixaria de
prestigiar quem comp6s a melodia eterna: "Gloriosa manhi,
por que tanta luz?..."
Como de u em nada o convite, p6de o fero cronista dispensar e casa sem qualque r dificuldade. A oferta da noite era
abundante e v{ria, o que facilirava manre r as posig6es de prin-
t2
e princfpio, como ninguCm ignora, C
cfpio que assumira
- que liga a palavra l a91o. Se acanhauma linha de coer€ncia
do fosse o burgo e falto de bares, dancings, night clabs, boates, inferninhos, gafieiras, cabarCs e restaurantes e o Au Bon
Gourmet fosse o dnico a ofe recer iguarias, mdsica' shous e
aventuras, como manter o princfpio?
Lalau, quc nio era bobo, entio daria o dito pelo n6o
dito, suspenderia vetos, rejeitaria proscrig6es, deixaria de desqualificar a casa apodando-a de O Comildo, pare desespero
de Z( Fernandes e do Valentim, seu s6cio oculto, e g{udio da
concorrdncia, sempre torcendo contra, plantando notas maldosas na imprensa, falando mal, intrigando, fazendo macumba.
Mas nada disso se impunha, nenhuma concessio requeria a exuberante noite de Copacabana' que oferecia vida
noturna para todos os usos, roca Para seus fusos, alCm de
ensinar aprendiz de feiticeiro a ser bo6mio, orientC-lo, paciente, a pirambular pelas ruas I cata de um Pouso principal'
alguma coisa que uma certa casa oferecesse e particularmente o tocasse e i6 cnteo cstabelecer-se' ancorar, langar ferros,
bo€mio que se .Preza.
fazer
-Era como todo
- ponto
justo af que entrava a picardia dos donos da noite:
criar um ambiente mCgico, capaz de prender o fregu6s, tornClo cativo do pedago, freqtientador asslduo, habitaC.
Muita toisa concorria para tornar determinade cAstt
ponto de atrag6o: artimanhas da cozinha, habilidades do barman, boa mdsica com bons intCrpretes, ainda que sem grandes brilhos, mas com desempenhos corretos' pr6prios Para a
noite. O ambiente com bom astral e refrigerado' se possivel,
propiciando o papo ameno' a conviv€ncia agradCvel. Isso posto, estava criada a alma do estabelecimento, seus proprietdrios vencedores, cragues no offcio de apascentar a noite. Valia
experi6ncia no ramo, tato com a cliente la, empregados e artistas muito bem sclecionados. E sorte, muita sorte' que n5o
era nada fdcil enfrentar a concorr€ncia, competiglo danada!
Logo na entrada do bairro ficava a Zona Minada, assim chamada pelo prdprio SCrgio Porto, o per(metro entre o
Leme e o Lido que abrigava as boates Drinh e Arplge, el6m
do bar Mandarim,
l3
Djalma Ferre ira, cansado de excursionar por aqui e por
alhures, abriu sua pr6pria boete Drink, onde langou Mildnho,
Ed Lincoln, Helena de Lima e Sflvio CCsar, todos destinados
ao sucesso, como sucesso sesquipedal alcangou o samba de sua
autoria e Luiz Ant6nio "Chega de Saudade", cujo criador, o
crooner Miltinho, valorizava a composigio com sua forma
peculiar de interpretar o balango que o fez famoso, a divisio
no ritmo que permitia I melodia suas mil possibilidades.
E o Arplge? Foi s6 \faldir Calmon deixar o Night and
Day e abrir a casa ao priblico e ao sucesso. Retumbante sucesso, quando o consagrado poeta Vinicius de Moraes a escolheu para langar "Se todos fossem iguais a voc€", em parceria com o inspirado Tom Jobim, o Gershwin brasileiro.
O bar Mandarim carregava a justificada fama de servir
o me lhor Samba em Berlim da cidade: a mistura da fclicidade
tragava a coca-cola com uma cachaga que nem te conto
leve, perfumada, purissima, "fabricamento" de um primo do
dono, alambiqueiro em ltalva, ld pras bandas de Campos dos
Goitacazes
alim de um pernil supimpa, incapaz de defei-
- com rum jamaicano ou cubano mesmo, da
tos; cuba-libre
Ilha da Esperanga. Chopp bem tirado e uisque honesto, aldm
de tira-gostos, tambim chamados de 'engasga-gato', sempre '
quentinhos, desengordurados, apetitosos. Tudo isso, compunha o bar de acanhada acomodaglo, mas de alma consagrada.
Viesse de alCm-trinel o notivago, o turista, adventista
ou curioso que fosse e enteo teriam de transpor e Zona Minada ecair nos bragos de outras sedu96es. Para o que os proprietirios se desdobravam, na penosa tarefa de atrair e cativar a boa clientela.
E, freqiienteme nte, uma grande atragio era o chamariz
d,a. casa, alCm da preocupagdo de distinguir o cliente habitual, oferecer-lhe tratamento personalizado, o que poderia
muito eventualmente, embora
ttrze t transtornos, como
foi o caso
conta a lenda
de um forahom&ico patroci- do Beco,
nado por -um leio-de-ch{cara
um cara tranqiiilo,
inimigo de semostragio, mas que acabou comendo de garfo
em noite de sopa.
Conta o anedotdrio que determinado fqeqiientador do
Ma Grffi, conhecido pelas generosas gorjetas, porres homd-
t4
ricos e mulherio variado, certo dia C flagrado, justo na esquina da Duvivier com o Beco, levando a maior bronca de uma
coroa inteiramente descontrolada. Parecia, mesmo, querer
agredir o cavalheiro, o qual procurava contemPorizar, mal se
defende ndo. Corre o ledo em socorro do fregu€s e chega precisamente a tempo de defendE-lo de um tapa desfechado pela
senhora diretame nte na cara do distinto . O ledo segura fortemente a agressora e consulta o figurio:
que eu ponha a piranha num tdxi' doutor?
-QueQuer
responde desconsolado:
Pode-deixar que eu mesmo levo. E a minha esPosa.
-Outras formas de homenagear e clientela traziam menos controvirsias, embora n6o deixassem de alimentar o
anedordrio, hist6rias e acontecidos tlo a gosto do pessoal da
noite.
O gerente do Cangaceiro, por exemplo, ofertava uma
flor a todas as mogas que entravam ne casa da rua Fe rnando
Mendes, com murais de Aldemir Martins e semPre com grandes atrag6es, como a dupla Ribamar e Tito Madi, que tambdm se aprese ntou no Jirau, no Little Clube no Texas ou Helena de Lima que jd se aprese ntara como crooncr do conjunto
de Djalma Ferreira, no bar do Hotel Plazae tambCm na boace Bacard em contracanto com Dolores DurCn, alcangando
not{vel sucesso, que havia de bisar, ali mesmo no Cangaceiro, na criagSo da marchinha "Est6o voltando as fl91g5", ds
Paulinho Soledade, que iria fundar sua pr6pria casa: aboate
Ztm-Zam, palco de inesquecivel show que reuniu o poetaVinlcius de Moraes e o compositor Dorival Caymmi'
Com o inc6ndio do Vogue nio mais existia o piano do
Sacha, que conheceu os dedos endiabrados de Fats Elpldio, o
mdsico que iria compor a orquestra do maestro Copinha, no
Copacabana Palace e depois no Studiam, baf do Hotel Excelsioi; enqua nto o crooner Lufs Cole ("Shine on Harvest Moon")
cantava na boate Bcguin do Hotel Gl6ria, com bar aberto a
partir das l9 horas, iantar dangante desde as 2l horas e a
aprcsentaglo de um variado show I meia-noite em Ponto.
Com Carlos Machado, Sacha abriu a casa que levaria
seu nome e cuja grande atragSo era o cantor Murilinho de
Almeida. Sacha conhecia as prefer€ncias musicais dos habituais freqiientadores, guardava-as na mem6ria e a cada um
l5
brindava com a execu96o, sempre primorosa, da cangio preferida, o que sobremane ira lisonjeava os freqiientadores, simpre tlo vaidosos.
Ma{sa deslumbrava no La Boh}me com "Meu mundo
caiu", "Adeus" e "Ouga", que a revelaram como cantora e intCrprete de um g€nero musical que iria nascer e morrer no
Beco; afossa. Depois, por influ€ncia de Ronaldo B6scoli, iria
gravar "Barquinho" e "N6s e o mar", sua adesio a uma mrisica de outra espicie: a bossa-noua.
Newton Mendonga, antes pianista no Domin6, iria
morrer tocando seu instrumento na boate Carrorse/, tambCm
no loga a chaae, se m imaginar a imporrincia, para a mrisica
popular brasileira, do samba-canglo "Desafinado", que comp6s com Tom Jobim e que esraria desrinado a representar
marco decisivo no movimento da bossa-noua, que deu a largada quando o baiano Jo6o Gilberto criou uma harmonia ritmica diferente ao acompanhar, no violio, a divina Elizeth
Cardoso na gravagio do LP "Canglo do amor demais".
Tlo caracte rfstica a batida de Joio Gilberto que levou
a mais de um crftico musical a desqualifi car a bossa-noaA como
g€nero musical: era mais uma maneira de tocar,
diziam. O certo d que a bossa-noaa afastava o samba de suas
origens populares, mas o aproximava do mundo.
Sim, ainda se podia ver
e ouvir
grandes atrag6es
- Charles- Aznavour ou Ella
internacionais como Edith Piaf,
Fitzgerald na boate Midnight ou no Golden Room do Copacabana Palace, ou ainda, suprema ventura, assistir I apresenta95o, no Teatro Municipal, em curta temporada, do extraordindrio Louis Armstrong.
Os grandes horiis de luxo ou as grandes boates, como
o Nigbt and Day ainda dispunham de capital para bancar
grandes shows, atrag6es not{veis, orquestras famosas. Arrastavam o pfblico, ganhavam dinheiro.
Artistas famosos tornavam'se chamarizes em boates,
como Dorival Caymmi no Clube 36 ot Elizeth Cardoso no
Pujol. E, verdade, iraziem farta clientela, mas s6 por l5 ou 30
dias que as casas nlo podiam manter por muito tempo os
altos cach€s dos astros; e depois, como segurar as pontas o
resto do ano? Era a crise tio temida pelos proprietdrios das
l6
casas noturnas e pelos habituCs mais versados nas manhas da
economia de mercado, esta inimiga da noite.
Do Golden Room atd o Katahomba, inferninho da Galeria Alaska ou do Frcd\ eo Maloha, inferninho da Niemeyer, a
noite resistia i crise e )r mudanga da capital.
Mas era no Bcco das Garrafa.t que a noite se encantava'
seus mistCrios eram revelados, tocados pela brisa... a brisa
que vinha do mar...
Eram tr6s as casas noturnas do Beco. De fora para dentro, o Ma Grffi, com Chuca-Chuca tocando marim-ba, quc o
doutor Gilberto Salgado, todo granfa que era' preferia chamar de xilofone; o Bicard, onde o proprietdrio, o franc€s Gigi,
tocava acordeSo, instrumento abomindvel, mas que atd neo
ficava tio ruim em suas hdbe is mlos e onde o "barman" JeanPierre cantava; o Little Club, que mais tarde trocaria o nome
pera Bonlei e receberia Tito Madi acompanhado pelo piano
ie Ribamar, que ali, antes, estreara acompanhando a fabulosa Dolores Durin.
Mas nlo foram s6 esses artistas que se aPresentaram no
Beco. Foram tantos, foram muitos, que C atC diffcil a menglo
de todos. Desde os que se aPresentatami6'consagrados' como
o internacional Dick Farney, atd os que estrearam' como Eliana Pittman, que se revelou como crooner ao lado de Booke r
Pittman, seu pai, no Little Club, onde tambCm fariam sua
primeira apreientaqio Carlinhos Lyra e Edu Lobo; ou ainda
'E,f
ir negin", levada por Dom Um para cantar no Bottle's, onde
tambCm estreariam Leny Andrade e Nana Caymmi.
O baterista Dom Um, que revelou Elis' jd se aPresentara nas "jam-sessions" do Little Club, que nas tardes de sdbado recebia a mogada da zona sul atraida pelo jazz, mas
proibida de tomar bebidas alc6olicas, pelo menos ostensivamente, porque um cuba-libre semPre se podia-arranjar, mas
s6 para ot t"p"r.t, ji que as moqas' mais comedidas, content".r"--ra em saborear o coquetel Primavera, rigorosamente
sem dlcool. Atrafdo pelas "iam-sessions", o Little CIub tam'
bCm acolheria Sdrgio Mendes que entio abandonaria a mrisica clCssica pelo jizz e li mesmo organizaria o co^niunto Hot
Trio, depois transformado no Sextcto Bossa Trio, formado por
Paulo Moura, no sax, Pedro Paulo, no pistom, Ot{vio Bailly,
no baixo, Durval Ferreira, no violio e o baterista Dom IJm,
l7
alCm, naturalmenre, de Sirgio Mendes ao piano, que tambtm acompanharia Odete Lara que r.
no1'pocke tshow" para ela especialmente criado "p..r.tri"ria
por MiCle 6r B6icoli. A
casa tamb9.m iria revelar o tale nto de Luizinho Ega e do seu
notivef Thmba Tiio, que organizou com o baterista Hilcio
Milito e o contrabaixista Otdvio Bailly, depois substituldo
por Bebeto.
Quem n5o cantava ou tocava o Beco, ainda que fosse s6
uma canja? JoSo Gilberto, Tom Jobim, Altemar Dutra,
Vinicius de Moraes, Helena de Lima, Mariza Gara Mansa,
Elizeth Cardoso, D6ris Monteiro, SilvinhaTelles, Maysa, Lu(s
Carlos Vinhas, Roberto Menescal e Johnny Alf, sim, o compositor e criador de "Eu e a brisa", que formou um conjunto
com o baixistaTiio Nero e com o baterista Edison Machado,
ele no piano e no vocal e que tanto sucesso alcangaria no
Bottlei. AtC o inenarrrivel Pixinguinha
o Mozart da mrisica brasileira, como o definia SCrgio Cabral
tocou seu sax,
jC perdera a embocadura para a flauta, levado
pelo poeta
Thiago de Mello, por seu compadre Odilon Ribeiro Coutinho
e pelo jornalista Joio Saldanha, que ainda achou de dar porrada em um antigo desafeto, um cara muito filho-da-puta.
Mas as lembrangas do Beco reservam um lugar especial
para Dolores Durdn, porque as suas cang6es guardam o romantismo de uma ipoca, na l:igrima e no amor.
E cantora da noite inigualdvel. Tanto que Ella Fitzge rald
foi especialme nte ouvf-la na boare Bacard interpretar "My
funny valentine", fox de Richard Hodges e Lorenz Harro, j{
gravado pelos maiores cantores americanos e que alcangara
sua melhor interpretagio na voz de Dolores, conforme afirmou a pr6pria Ella para quem rivesse ouvidos de ouvir. Antes, no Little CIub, a canrora jd colhera entusiCsricos aplausos de Charles Aznavour que a ouviu cantar "Viens". Seu repe rt6rio era vasto. Dolores cantava mfsicas ame ricanas, francesas, espanholas e italianas com maviosa voz e prondncia
correta.
E quem nio se tocava pela beleza das cangdes de ternura e amor que ela comp6s? "Por causa de voc€", "A noite do
meu be m", "Te rnura antiga", "Nio me culpes", dentre tantas
e tantas...
l8
Pois foi Dolores quem recolheu de um Macarra' no
fundo-do-pogo, mas resignad-o, a preciosa frase 'amor n5o se
qual elidefinirivamente se despedia.de um
"
"gr"d...",'.oamor nio correspondido. Expresslo que se tornou a alma de
,rrn" c"ngeo que Ribamar, Niwton BrCs Homem e S(lvio Silo g"roto assobiador, comPuseram e que o-pianista execu"",
,"u" ,lod" vez que Macarra aparecia no Littlc Club part ser
consolado por'Dolores que iudo entendia de sofrimento e
penas de amor'
Mas era verio. Havia um ar de riso na boca das pessoas. E felicidade nas noites de Copacabana'
2
Mectnnt I
Nem Macarra tinha idiia da morte do lelo-de-chi'cart
do Bacardchamado Epadf, a mando do inspetor Badeco' em
exemplar Almogo de Ganso armado p-elo Pastor na casa do
get.liu, no lote 15, em Nova lguagu' E menos ainda da forra
do Borboleta fechando o palei6 do tira que nele se vingara
da curra no irm6o menor tentada pelo Valtinho' traticante
Je to*i.o largamente conhecido niZon^ Sul, tambcm finado. Como pideria imaginar a seqii€ncia de epis6dios escao envolvimento das autoribrosos q,ra aar.".'"rr, ir"-"
"
seguranga Pri.blica e suas
de
Federal
dades do D.p"rr"mento
e com o crime organiMorte
da
cone*6es .o- o Esquadrlo
zado?
Macarra estava em outra. Segurava a barra de um amor
neo corr.rpondido, cruel desve.rtoi", o fim-da picada' Talvez
por isso mal tenha respondido ao Agente Laranja que a ele
lo-unic"ra, algo compungido, a morte do colega'
Ah. Morreu,
d?
-E ante a confirmagSo
n6o morre,
do leio:
nlo v6
Deus.
-NloQuem
foi, como talve z Parcge, um comentdrio cinico'
Absolutamente. Hi ocasi5es na vida em que as Pessoas ficam
tlo voltadas Para as suas dores, consumidas pelo pr6prio in-
t9
fortrinio, que o andncio de desditas alheias n6o as comove.
Macarra nlo falou para ofender pessoa alguma, falou l-toa.
E foi preciso: quem nio morre, neo v€ De-us mesmo.
Agente Laranja nio ligou para o desinteresse do Macarra. Boa praga, nio cra homem dc encrencas. Dc altura mcdiana, encorpado e forte, o decidido Laranja e ra calad6o, bom
de.briga: no brago, no uso da navalha, no "treizoitio", cujo
coldre amarrava na barriga da perna. Era leio-de- chCcara no
Littlc Club, no Beco das Garrafa.r, onde conheceu o Dr. Sylvio
Alencar, alro funciondrio da Seguranga Priblica, lotado no
gabinete do chcfe de policia do Distrito Federal, nada mais,
nada menos do que o Coronel Couto, galinha-verde, integralista de carte irinha, uma besta quadrada. Certa feita livrara
Dr. Sylvio de uma dificuldade, quando um espCcime vil, antig-o desafeto da autoridade, ameagou pegar-llie pelas costas,
aplicar uma calga-arriada na chefia. Maiarra, que estava de
bobeira na porta da boate e nio gostava de crocodilagem,
alertou o le6o que_deu dois sossegi-rapat e um chega-p-ra-lt
fortfssimos no meliante, salvando o gr",idao e ganhindo-lhe
a gratidio, afinal consubstanciada na ulrerior nomeagio do
salvador para Agente de Pol(cia. Posteriormente, jC funciondrio pdblico, veio a casar-se, em comunhlo universal de
bens, com uma acreana herdeira de um laranjal para as bandas de Nova lguagu. Pelo cargo na polfcia e pela propriedade
meeira, Mac-ar-ra passou a chamar o valente leio de Agente
Laranja, apelido que se popularizou no Beco, onde dividia as
graves fun_g6es de seguranga com Carlinhos Gatilho, tijucano
escolado, lelo do Ma Griffe e no Bacard, com um tipo imenso, soturno, amaz6nico, chamado Epadri.
Laranja era grato ao Macarra pelo oportuno avi-Agente
so e
que nio cntendeu o remoque . Queria mais C botar
-fez
pra fora a hisrdria para que nio ficaise dentro dele, remoendo. Um desabafo impelido, quem sabe, por um sentimento
de perda por um colega qr'r.
-ir-" profissio, urna
"br"ga."
espCcie de irmSo de armas, por
assim "dizer. Ontem ele , amanha o filho da minha mie. E, diabos, ouvido d para isso mesmo!
20
Deram um Almogo de Ganso nele, Macarra.
Ah.
Sabe o que C?
Nlo, Macarra
E,
neo sabia.
o qu€?
-E Laranja professor:
os bandidos ou a tiragem querem acertar
um
ele.
fecham
e
ai
pra
almogar
deixa-pra-lC, convidam o cara
De prifer6ncia com escoPeta' pra nio deixar dfvidas.
Ah.
- Epad6, bem que eu avisei "prele": "Epadd, nlo se
- o garoto..,'
mete com
Macaria demonstra algum interesse, afinal.
indaga.
garoto?
- Que
O irmlo do Badeco.
- Quando
com algum desafeto, simulam uma conciliagio,
as contas
- Qu. Badeco?
- O inspetor Badeco, do Esquadrio da Morte. Voc6
nio se-lembra do Valtinho?
O traficante
?
- [1x1xn1snte. Morreu, tambCm.
- Eu sei. VAnia comentou comigo.
Vinia -C muito dada, voc6 sabe.
Era faixa dela.
Laranja sabia. A mulher era dada atC demais. Mas o
lelo nlo iria deixar a conversa escorregar Para as penas do
amor: dor de corno n6o tem fim. Os apaixonados Procuram
pretextos para falar de seus amores, como se a simples refei€ncia aminizasse os sofrimentos. V6o falando, falando, torcendo os fatos, colocando-os a servigo dos seus desejos, iludindo-se. O agente, entretanto, precisava vender o seu peixe
e n6o aturar papo furado.
Pois C, o cara era tarado. Parava no Bacard- Epadri C
que is-vezes acertava um garoto pra ele, que o filho-da-puta
currava com a rurma dele.
Sacanagem, lasca Macarra.
- Sacanagem d pouco! Filho-da-putismo d o que C.
- Tem razio.
- E nio foi por falta de aviso, nio. Vririas vezes falei
- Mesmo o tal garoto. Alertei...
com ele.
Falou o qu€?
u0 al.
-Tu
Falou bem.
-
2l
3
Cdnurura
O aviso teria partido do tira de plantlo no Hospital
Miguel Couto, pra onde foram conduzidos o Luis Edmundo
ainda com vida, embora muito maltratado, e rValter Mendes, o traficante, mortinho da silva.
Pastor alcangou Badeco em casa quando este s€ preparava para arrematar o ensino na mulher, quem sabe mat{-la?
Telefonema an6nimo sugerira algo mais gue um simples tratamento de varizes, ligando Dona Carmelita ao Doutor Esperidiio, especialista em angiologia e conhecido ornamentador de chifres em testas alheias:
Conta, sua puta!
- Conta o qu€, Baldomiro? Nlo tenho nada para contar, defendia-se
a dona.
O inspetor n5o iria nessa. Pr{tica de interrogat6rios,
depoimentos, confiss6es, treinaram o tira na avaliagio da
verdade. A voz da mulher ao telefone, andnima e veraz. A
esposa do midico toda vez que desconfiava de uma cliente
nova, telefonava para o marido enganado delatando a aventura.
Voc€ nio me engana. €, melhor contar logo.
- Contar o que, Baldomiro?
- A verdade, Carmelita. A verdade.
- Mas que verdade, criatura?
- Qu. voc6 trepou com o mCdico. E melhor voc€ me
contar- por bem. Voc€ sabe que eu tenho outros mdtodos.
Posso pegar o doutor, levar o mogo pra Central. Ele vai abrir
direitinho. Vai se r pior pra voc€.
Carmelita sabia que o marido passava rapidamente da
ameaga i pritica. Arrependia-se da aventura, melhor n6o t6la feito. Tambim a culpa era do marido, mesmo. Quem mandava nio trepar direito? Mal botava e jt ia gozando, sem esperar por ela que ficava depois rolando na cama sem conciliar o sono. E bruto, sem querer conversar a respeito, tentar
outros meios, buscar outros modos. As amigas mais escoladas
ensinavam mil maneiras: os dedos, a llngua. Depois, se go-
22
jri estava aliviada. Nio era tudo, mas jC quebrava
um galho, n6o ficava no ora-veja. E a sugestio.de procurar
u- tidi.o, fazer tratamento? Parecia ter ofendido o marido: "N6o estou doente, ndo. Isso passa, C nervoso." Mas quem
passava eram os anos e o marido, nada. As sugest6es * ouiras abordagens, as tentativas de outras posig6es foram
por ele, abruptamente. Quadradio o cara.
repelidas
O mCdico percebeu logo a insatisfaqio da mulher. Fora
levando a .onrn.ira para o problema, sem Pressa. Uma palavra aqui, outra acoli. O tratamento das varizes espichando, a
mulher aos poucos revelando suas agruras.
f1x1x-5s de ejaculaglo precoce, diagnosticou o Dr.
Espiridilo.
E tem cura, doutor?
- Te m cura, sim. E preciso consultar um especialista
- ao tratamento. Se a senhora quiser eu indico um...
e dispor-se
Dona Carmelita C o desinimo em Pessoa:
Qual, doutor, meu marido nem admite falar no
problema.
Doutor Esperidiio simula surPresa:
Nlo quer didlogo? Nega-se a discutir o assunto?
- Nada, nada. Nlo quer conversa.
-O mCdico abre os bragos, o gesto corresPondendo I
impot€ncia (da ci6ncia, bem entendido) em face da resist€ncia do doente.
$s6, assim complica, nlo i?
-Dona Carmelita naturalmente concordava.
Complica, sim. Mas nlo se pode fazer alguma coisa, dar um remCdio?
O midico franze o cenho, levanta a cabega, parece buscar a resPosta no teto:
RemCdio mesmo nlo tem. E tratamento psicol6gi-co, a senhora entende?
Entendia a senhora, mas jd que a conversa enveredou por esse caminho' Procurava uma saida.
ppgfle, n6o tem compostura?
-Esperidi6o n6o quis tirar de vez as esPeranqas da sua
zass€ antes,
paciente.
-
A senhora jd tentou outros meios?
como, doutor?
23
ta?
-
-
Outros meios... Assim, que n5o a penetraglo direJ^.
E entlo?
- Baldomiro n5.o quis nem saber.
- O mddico coea a cabega.
- Bom, se o paciente nio admitc buscar o prazer, satisfazer- a parceira usando recursos... ah... naturais, entlo fica
dificil.
Dona Carmelita p6e fd nas mezinhas.
Mas n6o tem um remCdio, doutor? Eu ponho na
no cafi...
O facultativo lamentava, mas nlo havia.
E, psicol6gico, minha senhora.
-O desalento apossou-se da pobre mulher.
Entlo C uma condenagio, doutor. Estou condenada
a viver- com um marido pela metade...
Esperidilo divisa uma fresra.
Seu marido nlo C o rinico homem no mundo, Dona
Carmelita.
comida,
Assusta-se a esposa.
Nem de brincadeira, doutor. O senhor nio sabe
quem -i meu marido... melhor nem saber.
O midico fareja possibilidades.
Mas i o caminho que lhe sobra, Dona Carmelita.
- qualque r insinuagio de minha parte, estou falando
Nio veja
como midico. Estritamente profissional, ouviu? Seu marido
nio lhe satisfaz e nlo aceita submeter-se a tratamento. A senhora n6o quer, esti certo. E uma mulher honrada, n6o tenho drivida. Mas, vamos e venhamos, 6 seu marido mesmo
quem a estd compelindo...
Mas i adultirio, doutor!
-Dr. Esperidiio, midico especialista em angiologia, safado, a espetar chifres nos outros, ele tambCm corno de
carteirinha, absolutamente n5o concordava. Balangou a cabega vdrias vezes antes de prosseguir.
AdultCrio C infidelidade conjugal. Sup6c que o ca- harmoniosamente, com mdtua satisfagio e um dos
sal viva
c6njuges, por perverslo, busque fora de casa o que lhe sobra
no lar.
24
Dona Carmelita ficou olhando com cara de besta' O
mCdico continuou:
Veia bem. Vai buscar fora o que ji tem em casa' ls
vezes em abundAncia.
Ainda nlo seria nesse assalto, sentiu o doutrinador'
O senhor pode ter razio, mas continuo achando que
pecado, sei 16...
C
- adultdrio,
-da paciente afrou,etp"tiiieo ,"rrt., enfim, a guarda
uE
que vou entrar"'
ai
por
xar, ainda que s6 um pouquinho'
?'sei
vacilo'
lC" soou-lhe como um
Densou. O
Infelizmente, minha senhora, dramas como o seu
s6o muito comuns.
Animava-se Dona Carrnelita. Nada como a desgraga
alheia para aliviar a Pr6Pria.
Qe6s6, f|
- Comum. Comunlssimo. Aqui mesmo nesta sala pensa a senhora ser a tinica vltima de tal infortrlnio?
Levanta-se o midico. Vai atC
a
janela' O dia morrendo'
o teslo crescendo:
Eu mesmo' minha senhora! 56 que pelo outro lado'
-A dona m6o entende.
Qe6e
assim?
-O mCdico se assenta. Cruza a Pernas' Limpa a lente
dos 6culos, cuidadosamente. Olha a paciente bem nos olhos
comuns. Suspira.
Minha mulher, revela.
-Curiosa, a paciente
-
-
quer saber.
ela?
tem
Q.,.
E fria.
Fria.
E. Neo t.m interesse no ato sexual.
Eu sei: fria.
Pois €. Enquanto eu...
Enquanto o senhor...
Um vulclo!
- Vulclo.
- Perfeitamente. Um vulclo.
-Dona Carmelita imaginou imediatamente
um vulclo
escorrendo
lavas
as
c6nico,
for-mato
o
na sua forma clissica,
do seu topo, chamas, ardor'
25
O mCdico corta-lhe o pensamento.
Em erupgio, minha senhora. Em permanenre ere-
geo.
-
A dona tem um tremelique.
Como disse senhor?
- Repito vCriasovezes
e estou sempre pronro.
- Pronto.
-Esperidilo
puxou a cliente pela mlo. F6-la levanrar-se,
dele acercar-se:
Vou fazer uma demonstraglo para a senhora. Uma
- experi€ncia apenas
peq_uena
no in leresse da ci€ncia. Yeja a
senhora mesma como C possivel. E facil, muito fdcil. Nio
precisa tirar a roupa. E sdajudar um pouquinho e terd a prova do que esrou lhe falando. Venha...
Dona Carmelita parecia meio lesa, sem vontade pr6pria. Aceitou docilmente a posigio. Montou no mddico, auxiliou a penetraglo.
O doutor aguarda a aprovaglo da paciente:
Ndo d como eu lhe disse?
- dona muda, Esperidilo
A
insistiu.
Veja a senhora por si mesma, Dona Carmelita. Pode
ficar o- tempo que quiser.
E talvez mais tivesse ficado se a campainha do relefone
nlo a despertasse. Dona Carmelita assustou-se. O som devolveu-lhe a razio. Levantou-se. Recomp6s-se. O telefone nio
Parava.
Como o outro nlo se mexia a clienre falou:
Dr. Esperidiio, C melhor o senhor atender ao tele-
fone.
-
Lamentou-se o mCdico a dispensa da atendente. Era
expediente cosrumeiro, pare facilitar a pirataria, antecipar a
saida da enfermeira. Ele ficava mais ) vontade. NZo que tivesse algum cacho com a moga. Isso, nio. Respeitava a mCxima: "onde ganhas o plo, nio comas a carne." E nem daria.
Silene era um canhio. Levantou-se resignado. Atendeu:
E, voc€, Esperidiio?
-(Diabos, era Rita Maria, sua mulher).
Sim?
- Sim d o cacete, seu cinico. Encontrei
na rua,- morei logo.
26
sua enfermeira
Como?
- Como? Como? Como o gu€, seu canalha? Pensa-que
eu n6o- manjo seu joguinho? Quando voc€ dispensa a Silene
porque vai comer a cliente.
Qt. i isso, Rita Maria?
- Que
i isso, Rita Maria? Qu. i isso, Rita Maria? Que
cachorro! Voc€ nlo tem vergonha, nio? No
,.t',
C isso o q,l-e,
No consult6rio!
Esperidi6o!
consult6rio,
Absolutamente...
- Tu i bem cinico, hem Esperidiao! J{ come u a clienre, seu- garanh6o filho-da-puta?
Como?
- E co*o mesmo, seu cachorro. JC comeu? E gostosa a
cliente?
O marido esboga uma reagio:
Voc€ estd enganada, me respeite.
-A mulher n6o quer saber:
Vou respeitai filho-da-puta? diga? Diga' Espe ridilo,
vou respeitar miiico que nlo respeita paciente? E no consult6rio, isperidido! Voc-6 n6o tem vergonha, nio? No consult6rio, Esperidilo!
mais cedo,
C
Nlo...
- Nlo o que, seu cachorro. Tu uai vet' Um dia te
e bate o telefone'
tu n6o perde por esPerar
apronto
' O uma...
midico coloci o telifone no gancho' Procura alguma coisa para dizer i paciente . Estava sozinho na sala'
p{px, Baldomiro, pira. Estd me machucando, lamu-
- a pobre mulher.
riava-se
O inspetor afrQuxa a Presslo.
Vai confessar? Prefere morrer?
com que o marido cuspiu a ameaga
("Prefere morrer?") e a certeza de que ele a cumpriria sem
pestanejar decidiram por Dona Carmelita.
-A naturalidade
n6o sei nem bem expliiar. E co-o se eu estivesse fora de mim'
fosse outra pessoa. Mas eu te juro que foi s6 entrar e sair'
O tira nlo entendeu o manejo.
-
[ns1x1 e sair?
27
Dona Carmelita concorda. Ainda bem que o marido
percebera.
Isso mesmo, entrar e sair, nada mais.
-Badeco se atrapalha
entre a raiva e a confuslo.
Escura, mulher: trepar nio C entrar e sair? eue diabo de-hist6ria C essa que voc6 estC invenrando? euer me
sacanear?
A mulher procura se acalmar. Explicar.
Nio C nlo, Baldomiro. Voc€ me desculpe, eu nio
quero -discordar de voc€. Mas nlo C isso que voc€ estC pensando, neo.
-Eoqu€,entio?
Demonstragio.
- Demonstraglo, Carmelita. Voc6 pensa que eu sou
otirio, pensa?
Demonsrraglo, sim. E no inreresse da ci€ncia. No
- entra e sai virias
ato sexual
vezes. As pessoas ficam arfando,
procurando o gozo. N6o foi nada disso.
Badeco sente a raiva crescer, tomar-se de c6lera.
A
campainha salva novamenre Carmelira
do gozo,
.
da morte . Toques longos. Depois intermitentes. -Longol novamente. Caracrerlstico de quem revela a importlncia da
mensagem pelo simples premir do botlo.
E melhor arender a porta, Baldomiro.
De mri vonrade, dividido, dirige-se o rira i porta. Por
sua janelinha identifica o Pasror. A expresslo narlralmente
grave do policial punha-se patibular. ''Tem merda ai", pensou Badeco. E virando-se para a mulher:
Vai Li pra dentro, depois conversamos.
- dona renta um refresco.
A
Foi como eu lhe disse, Baldomiro. Nlo foi nada.
dizer...
Nlo foi tudo. Experi€ncia. Mesmo assim n6o
Quer
fago mais. Prometo. Se fizer, pode me marar.
. Badeco. presse ntia proble mas. Problemas graves trazidos pelo auxiliar. Nunca o procurava em casa. E-mesmo para
uma emerg€ncia usaria o telefone.
Eu juro Baldomiro.
-Avoz da mulher agora soava longe. O marador dispensou-a novamente.
28
Vai lC pra dentro, mulher. Eu jd falei. Depois eu
acerto -o teu lado.
Ato contlnuo, abriu a Porta' deu entrada ao Pastor. Que
nem cumprimentou, foi logo 4espejando:
Sinto muito, chefe. E seu irm6o.
-Alarma-sc Badeco (Lufs Edmundo, o cagula meio-irmlo do tira, C o xod6 do bruto).
tem o mano? Fala,
- Queno Miguel Couto. TiPorra!
muito machucado.
-Ta nega com a cabega'
Pastor
Foi o qu€ entao, Pastor? Fala, caralho!
- Qs11x, chefe. Seu irmSo foi currado.
-A fera endoidece.
quem' Pastor? Onde?
Currado? Currado
- No apartamento doPor
Valter Mendes, o traficante.
-Badeco nlo entende.
No apartamento do cara? Luisinho n6o tinha assunQue porra d essa?
A gente ainda n6o sabe dire ito. Um telefonema an6nimo -avisoi d. ,,- crime em Botafogo. O pessoal da homicldios d quem fez o local. Um cara morto que-Parece ter levado com um candelabro na cabega. O candelabro estava na
mlo do garoto, que mesmo desfalecido' se agarrava a ele.. O
Nestor Ja homicjdios identificou logo o cera como o tal de
Valtinho do triifico. O Eboli lcvantou a hip6tese da curra no
garoto ter sido praticada Por outros membros da turma do
V"ltitrho. Esses taras C que devem ter telefonado - an6niavisando para Rddio Patrulha que acionou
mo, n6o sabe?
a ambulincia. -O tira de plantio no hospital' que cursou a
Escola de Pollcia com voc€, foi quem reconheceu seu irmio'
Ligou para o Nestor e este Para mim. E eu estou aqui.
Como td o mano?
- Foi muito maltratado, mas est{ fora de perigo.
J{ na porta, o inspetor lembra-se de alguma coisa. Volta, vai i mesa da sala, abre a sopeira e dela retira um receituCrio. No carro, passa o papel para o Pastor, com a orientagio-:
Assim que tiver folga, fecha o cete da receita. O
to com-
esse cara...
mCdico. Que parega acidente.
Pastor guarda o papel no bolso e a instruglo na mem6-
29
ria. Iria cumprf-la na primeira oportunidadc. Lcvanrar os
h{bitos da vitima. DefuntC-la.
4
A ronna
Em pouco tempo o pessoal da Homicldios, auxiliado
pela turma do Esquadrio, desvendou o crime, identificou os
implicados.
Waltcr Mcndes dividia seu tempo enrrc o trdfico dc
drogas e a perversio de menores, oflcio em que se exercia
com enorme desenvoltura. Garotos novos, metidos a malandro,,sem experi€ncia nas artimanhas da noite, eram prcsa fCcil do tarado, que os atraia a um pequeno aparsamenro na
rua Camuirano, em Botafogo, com o oferecimento de mulheres, bebidas, e xe raft para os mais sabidos.
Era sernpre a mesma rotina: alguCm lcaantaaa um garoto que tomava alguma coisa na boare, de prefer€ncia o
Bacard, e depois era atrafdo ao apartamento onde ingeria uma
bebida qualquer, misturada com alguma droga para evitar
rcsist6ncias. A vitima ficava semiconsciente e al o Valtinho
enrabava o garoto que depois era submetido i sua turma
prCticas que deleitavam o traficante.
56 que daquela feitaValtinho se havia dado mal. A droga nlo fizcra efeito integralmenre porgue, enjoado, o garoto
vomitara a bebida e reagira. Lufs Edmundo nio soubc erplicar direito, mas lembrava-se que havia um castigal em cima
de uma c6moda, que lhe serviu de arma conrra a cabega do
tarado, que veio a morrer do golpe.
A descriglo confusa da v{tima pouco ajudou, mas a rcconstituiglo dos fatos, a partir do Bacard,levou a polfcia ao
currador e i sua curriola. FCcil, fdcil.
A responsabilidade da apresentagio do garoto cabia a
um certo Epad6, leio-de-chCcara do Bacard, boate prcferida
pelo traficante. Raul, Cabrio e Borboleta curraranl o irmio
do tira.
30
Badeco ouvia atentamente o relatdrio do Pastor, a quem
indagou:
-
dava protegio ao \9'alter Mendes?
Quem
-Pastor
ji esperava a pergunta.
|vtuni2, comissdrio da Entorpecentes.
-Badeco pensou um pouco. Resolveu-se.
Primeiro,
ele.
fccha
-O outro C meticuloso.
Quer saber direitinho.
O Muniz?
-O inspetor
Pro leio.
confirma.
Exltamente. Depois, PrePara um Almogo de Ganso
E os curradores? Pastor quer saber.
- Aonde est6o?
- Est6o bem guardados. Estlo com o Monteiro,
Invernada.
na
Raul e Cabrlo abotoa logo eles. Faz a desova no lu-
gar de-costume.
-EotalBorboleta?
O instigador. O autor da iddia
de currar, o garoto enquanto agoniiava o Valter Mendes. Os outros deram o servi9o. naolltttlo se borrara todo no pau-de-arara. Cabrlo foi
mais resistente, precisou de uns choques na ponta.da llngua,
nos l6bulos das-orelhas, nos testiculos. Mas tambim abriu
tudo. A hist6ria veio inteirinha. Borboleta nem precisou entrar na porrada para admitir.
Fui eu sim, chefia.
-Monteiro, a pedido do Pastor, providenciou um Preso
viciado, violcnto. NinguCm lhe disputava um prisioneiro novo. 'E meu o cabago" e virava fera, espumava'
Santinho' esse aqui C o Borboleta. Vai ser sua mulher. Trcmeu o currador.
N6o faz isso, chefia. N6o faz...
-Pastor perguntou-lhe:
Ud, tu n6o gosta de feze\ cabra?
- Qsssq. Mas n6o gosro que fagam em mim.
- Nunca fizeram?
- Nunca, nlo senhor.
-
3l
Monteiro interfere na conversa:
T{
pra voc€, Sanrinho.
-Com os olhos, procura o assentimento
do Pastor. E
novamente Para o Preso:
Depois, enraba ele, Santinho. Quanras vezes quiser.
I vontade.
Santinho babava-se todo.
Decide-se o tira do Esquadrlo.
Borboletava.i segaralo processo. Fica na Invernada
atC ser-transferido para o Presidio, onde vai pra cela do estuprador da Pavuna. O que ficou famoso pelo ramanho do pau.
Pode
judiar
Comodonomedele?
Monteiro lembrava-se do tarado. Melquior era o nome.
Escondia a cabega dentro de um capuz, mas como n6o mostrar a arma do crime? Funcionou melhor que impressio digital. Afinal identificado, a cr6nica se servira.
Melquior, chefe.
- Isso mesmo. E csse af. O Borboleta quando chegar
- Caneca vai ser mulher dele. Acerra com o guarda e
na Frei
com o xerife do Pavilhio. Manda dar boa vida ao Melquior.
Mas nada de amigagio. A noire que ele nio quiser, que escalem outro. O que tiver de pior.
Macarra ouviu atd o final a narrativa. Lembrava-se vagamente do Epadd, sempre de te rno creme, e cere feia e de poucos amrgos.
O filho-da-puta do Valtinho conhecera melhor. Sempre abonado, oferccendo bebida, travando rela96es, fazendo
novas amizades. Quando soube que o cara mexia com drogas, comegou a eviti-lo. Nlo que fosse, ele, Macarra, palaara
sdntd. Absolutamente nlo cra. Longe disso. Mas droga nio
suportava de jeito algum: era o caminho do desespero e da
loucura, da destruigio e da morre. Viver da misdria dos outros. Essa, nlo! E passava ao largo do traficante.
Mas o neg6cio dos garotos era novidade para ele. Que
m{gica besta. Tanra mulher na praga e os caras nessa... Que
falra de assunto!
'Mulher C que d bom. Bom demais. Mesmo quando
faz a gente sofrer, penar. Maltrata. Ah Vinia..."
32
Agente Laranja estava satisfeito: colocou a hist6ria para
fora, aliviara-se. Quis remir o amigo da conversa.
Pois i, seu Macarra. Pra voc€ ver...
- voz do lc6o o dcvolve i realidade e ao Beco. A le mA
branga de VAnia escapou entre os ediffcios. Procura algo para
dizer ao amigo, para anim{-lo. Um comentdrio bacana...
Pra mort€r basta tl vivo!
-Termina por rir-se o Agente Laranja.
Voc6 C um fildsofo, Macarra.
-Que concorda. "F- isso a{, mesmo." Mas quer mudar de
assunto. Conversa pesada essa do Laranja, paPo carecd. Que
forma mais besta de comegar a noite. Vira o jogo.
Viu Dolores?
-Nlo, a cantora
ainda
nlo chegou. Nlo,
n6o a vira, ain-
da.
Mas n6o deve demorar, td na,hora dela, informa o
o rel6gio.
Macarra apoiava-se ora num pi, ora noutro. Nio era
danga, n6o era ginga, nem malandragem: aporrinhaglo' o que
lelo consultando
era.
Quer tomar alguma coisa? (O gesto do Laranja ino bar.)
O amigo rccusa.
Obrigado. Td cedo pra comegar a beber. E ainda
nio forrei o est6mago.
Laranja ftz nova oferta.
Come o bife do Vaticano...
-Riu-se Macarra. Riu-se Laranja. Riram-se os dois. Em
noites de muito movimento as boates apelavam para o Vati'
cano. As cozinhas nlo davam conta e os bifes vinham do Vaticano, caipira que ficava na entrada do Beco. Era 6timo o
bife do barzinho e muito mais etn conta.
N6o, obrigado. Vou dar um giro por ai, Laranja.
Depois- eu volto. Quero levar um lero com a Dolores.
dicando
Macarra abalou-se e Laranja ficou s6 pensando na esquisitice dos outros: 'Como C que podia? A besta do Macarra
que
parado na VAnia, que nlo ligava nada para ele e Nely
ingssgssxda nele."
mulherago!
-
JJ
Nely, ah Nely! Usava o nome de guerra de SandraVilma,
sendo das Dores o seu nome de batismo. Nely era o nome de
escolha, depois de das Dores e imediatamente antes de Sandra
Vilma.
Aos amigos pedia para chamd-la Nely e entre esses o
s6lido Laranja, que nlo atinava com a cisma do Macarra na
outra, a tal Vinia.
'Que merda": assim Laranja resumia sua perplexidade.
-
5
M,ecrnnl
II
Deodato dos Santos Curralino era o nome civil do ine-
fivel Macarrio. Na intimidade, e s6 para os mais intimos,
admitia a ablaglo do apelido para Macarra e como Deodato
quer dizer "dado a Deus", ele encontrava nesta significagSo
sua destinaglo ao sofrimento.
"Predestinagio da velha", era como explicava tanta
urucubaca, tanta canseira. Na vida s6 nlo fora guia dc ccgo e
coringa de baralho; no mais, tinha feito de tudo.
Garoto, comegou carregando uma pasta velha de couro, sempre aberta, com a arma de Ciriema, perigoso bandido
da Baixada, onde morava com a mle, uma 'santa senhora".
Seu trabalho era seguir de pertinho o marginal, colado
nele, de china mesmo, e toda vez que ?intdaa sajcira, acudialhe com a pasta ir feiglo e a artilharia vinha pronta, certeira,
desapiedada.
A polfcia, nas batidas, nao podia encanar o Ciri pelo
porte de arma que nio carregava e, menos ele, menor e reo
franzino. Era expedicnte de ganho certo, mas perigoso. Deodato nio estava para ficar na linha de tiro de vagabundo e
mudou de ocupagio, sendo, sucessivamente, carregador de
compras na feira, entregador de padaria, olheiro de ponto de
bicho, vendedor de amendoim torradinho na estaglo de
Belford Roxo, engraxate na dita cstaglo, novamente entregador de padaria, trocador dc 6nibus, camel6 e, finalmente,
34
vendedor
profissao que cumpria guando esta hist6ria o
Vendedor
da pesada nas Listas Telef6nicas, da equipe
pegou.
do inspetor ftalo, um cara muito legal que ls vezes parava no
Beco para ver como iam as modas, recrear o espirito, desanuviar a mente. Espairecer.
Macarra tinha particular orgulho dos seus tempos de
camel6. Era mais arte do que propriamente um batente, embora trabalho pesado porque na rua, sujeito ao tempo, ao
calor e ao frio, ao sol e i chuva. E arriscador eue v€Z ou outra
o rapa aparecia e "confiscava" a mercadoria, sendo exatamente
dai que o fiscal liarava o dele. Regueria prltica, habilidade,
competencia, vocaglo e sorte, muita sorte. Os ambulantes
que vendiam pentes, espelhos, mercadorias miridas eram deficientes ffsicos, o comer'.inho garantindo o de comer.
Os camel6s vendiam mercadoria importada, moleza de
cais. O preg5o era sonoro, convidativo, as pessoas paravam,
rodeavam o camel6: um artista.
"E 'chique-chique', inglesa, americana", o ruidoso
anfncio de marca contrabandeada de gilete,
"E iraliano, C automdtico, C o prego de uma gravara
- o reclame do guarda-chuva naTravessa do Carmo,
e 6 n1lon",
de enorme aceitagSo nos dias de chuva. Faziam fila para comprar. E os brinquedos que s6 funcionavam nas destras mlos
do camel6? O pai chegava em casa pronto para fazer uma
figuraglo com a garotada e o diabo do brinquedo, nada. "Inda
agorinha mesmo trabalhou na mlo do camel6", explicava o
comprador I desconsolada plat€ia, se ndo inritil voltar ao ponto no dia seguinte e reclamar do camel6. O brinquedo voltava a ganhar vida em suas mlos. Se era de correr, corria. Se era
de piruetar, piruetava.
O camel6, her6i do asfalto, com um olho na mercadoria e outro na esquina, que o rapa poderia aparecer a qualquer momento. Fritava o peixe e olhava o gato.
Deodato era mais para alto do que para baixo. Muito
magro e algo encurvado. Mas nio foi por sua magreza que
ganhou o apelido de Macarrlo: era enrolado, complicado e
n6o era pouco!
Vestia-se com certo epuro por esmero no trajar. Mas
fazia algumas concess6es ao gosto duvidoso e, talvez por isso,
35
resultasse uma composiglo "suburbana', expressio elitista que
desagradava o subdrbio ou os subfrbios, que por serem dois,
o da Central c o da Leopoldina, sentiam-se duplamente insultados, atC porque nio estavam para aquelas modas e n6o tinham que delas dar conta. Seu forte era o tropical brilhante
ingl€s (legitimo, moleza do cais) Super Pintex XX que usava
em diversas cores e diferentes padronagens, com relevo especial para o risco de giz, ostentado por ele garbosamente nas
noites de Copacabana. Coisas de ingl€s, porque o tropical
esquentava nas noites de verlo e esfriava nas de inverno. N6o
servia para o clima do Rio. Mas, moda C moda; gosto i gosto. Fazer o qu6? Camisis dc seda (pura, italiana) com monograma (em que se entrelagavam o D e o C, a marca do dono),
gravatas idem e lencinho para o bolso de cima do palet6 tambCm idem: daques na mesrn.t linha.
O cabelo negro, escorrido, penteado com gumex, a costeleta obscena, o pomo-de-adeo saliente engajado em um rosto
de tragos regulares e de olhos encovados, errcimados por vastas sobrancelhas; ldbios finos, n1o usava bigodes. Lengos de
cambraia de linho permanentemente ensopados de "Bond
Street", logio de sua prefer€ncia.
6
VAuu
Vinia tra moga clare, mais para baixa. Sardenta, parecia ter apanhado sol com peneira. Quando mcnina, em Marechal Hermes, ganhara o apelido de Ferrugem. Adolcscenre ,
mudara-se com a familia para o Graja6. O pai foi administrar o clube da Light, na rua Josd do Patroclnio. Muito galinha, ganhou do Marcelo, moleque do bairro, filho de Dona
Marilia, estimada professora, o apelido de Marly Para-todos.
Sim, porque Marly era seu nome de batismo, sendo Vinia
nome escolhido quando, mais tarde, transferiu-se para Copacabana. Sem os pais, naturalmente. Bonita de corpo, jeitosinha, faceira, Marly amargou o seu tanto em Grajari. Mas
tambCm que bairro ela foi achar de excrcer sua galinhagem.
36
A R{dio Nacional inventou um Programa que consistia em levar uma caravana de artistas a um determinado bairro e lC sortear brindes para os moradores. 'A felicidade bate
I sua porta... sob o alto patrocfnio do Sabio Portugu€s." O
regional de Dante Santoro e os cantores se aPresentavam na
cairoceria de um caminhio de onde um locutor comandava a
programaglo e o sorteio dos brindes' O feliz ganhador era
d,rpla-.nte premiado: pelo brinde e Por ter seu nome divulgado pelas possantes e prestigiadas ondas da Rddio Nacional. Um sucesso. O caminhSo parou ld pelos lados da rua
Lu{s Guimaries. E quem foi a cantora escolhida para dar o
devido relevo i efemiride? Sim, ela mesma. Nada mais, nada
menos que a pr6pria Emilinha Borba, a "Rainha do Rddio".
Parafita, D,rtiittha, Paulinho Careca, M6e d'Agua, Otinho,
Ercilio, AscAnio, enfim, a fina flor do bairro comPareceu'
arrastando toda a turma. Emilinha arrematava seus sltows com
uma cangIo, seu carro-chefe, que levava a platCia ao delirio,
quando, a certa altura, perguntava: "Voc6s querem que eu
rirorra?" As fas se descabelavam e gritavam bem alto: "Nlo,
nlo, nio!" Nlo, absolutamente n6o queriam a morte do idolo. Pois bem, em Grajari, guando Emilinha fulmina o audit6rio com esta pergunta, a curriola se antecipa ls fis e, nlm
jogral sacana e ator-doador, berra: "Queremos!]Ap6s a perplexiJade inicial, a consagrada artista reagiu: "Cachorrada, nlo
canto mais neste bairro." Sacudiu o dedo Para a turma e abalou-se entrando alvorogada num Pachard preto.
Pois foi nesse ninho de cobras que Marly achou de
galinhar.
Ld pelo final dos anos 50, o Graiari T6nis Clube costumava brindar o seu quadro social com o Baile da Primavera,
oferecido aos cadetes das Escolas Militares. Servia para homenagear a chegada da dita e aproximar as filhas casadoiras
dos frituros oficiais. E, quem sabe, genial premonigSo, ficar
bem com as autoridades fardadas que viriam a governar o
pais. Afinal, nlo tem se mPre um golpe militar para afastar o
F"trt"trn" do comunismo, restabelecer a Paz na familia brasileira, desenvolver o pals? Receita norte-americana largamente empregada na AmCrica Latina. E sempre com sucesso.
37
Entretanto, diga-se em favor das sucessivas e dedicadas
administrag6es do clube que tudo era morivo para festa. Se
de manh6: manhl dangante; se )r tarde: tarde dangante; se I
noite: noite dangante. No ver6o, baile na piscina com o con-
junto do Chuca-chuca. O pobre do Gil, funciondrio do clube, a construir um meio deck por sobre a piscina, como se
n5o sobrassem sal6es para o bate-coxa. Mas, era verio e ve16o C piscina. No inverno, baile do suCter com o conjunto do
Steve Bernard, 9ue acoplava um solovox ao piano que tocava, um pequeno teclado, que permitia acompanhar o pr6prio piano, alim de tirar sons semelhantes a outros instrumentos, o que enriquecia a apresentagio, coroada, quando ele
entoava cangSes francesas, o que fazia o enlevo dos mais velhos e facilitava o sarro dos mais novos que se aproveitavam
do sfbito enleio das vigitantes mees, -egeras por definiglo.
E concurso para tudo, alCm de premiag5es diversas.
Melhor dangarino, melhor dangarina. Melhor par, aI premiando o conjunto. O mais animado, a mais animada. Naturalmente o pr€mio tambCm ia para o par mais animado: estimular os pares, formar casais, ir em frente, constituir familia.
E sem protecionismo, favoritismo ou coisas semelhantes. Dona Mathilde, esposa do presidente do clube, Dr.
Alberto Melleu, grande benemCrito, nlo admitia conchavos.
Organizava um jriri de primeirissima: Gilberto Cabral, procurador da Caixa Econ6mica; Doutor Newton Motta, conceituado midico do bairro; Adib Estrela, forte comerciante
da praga; e Isabel Fontenelle, ex-niss Grajari, a beleza em
pessoa. Isenglo olimpica de Dona Marhilde, porque ela mesma tinha em casa uma filha casadoira, a meiga Rosinha, uma
linda menina que n6o teria dificuldades em encontrar pretendentes, que, aliis, a viviam rondando, o que certemente
facilitava a isenglo de sua reverenciada mle.
Baile disso, festa daquilo, sem contar com o tradicional festejo de Slo Jolo, com quadrilha e rudo, previamente
ensaiada por Dona Arlete Thedim Cosra, m6e da Soninha
namorada do jovem cadete da aeronaftica SCrgio Macaco. E
sem esquecer os famosos bailes de carnaval, precedidos pelas
animadas batalhas de confete, inclusive o famoso baile do
Be-a-bi realizado na quinta-feira anrerior ao carnaval e horas ap6s o baile da Balanga. Idealizado por Marcelo, foliio e
38
encrenqueiro, o baile s6 permitia o acesso ao sallo dos que
portassem fardamento complcto da escola pdblica: calga ou
saia pregueada, na cor azul, camisa branca com gravate azul
que indicasse o ano que cursava o aluno, sapatos pretos e
meias soquete. Devidamente paramentados, o s6cio ou seus
convidados podiam brincar I vontade porque nlo faltavam
garotas, beber seu cuba-libre ou sua cervejinha gelada e atC
discretamente tomar uma prise no langa-perfume, de prefer€ncia rodo-metClico, I disposiglo nas vers6es ouro e prata,
devaneio inocente, mais tarde proibido de fabricar pela ditadura militar fascista, inimiga das liberdades em geral e do
Cter perfumado em particular. Uma baita de uma sacanagem!
Pois bem, quando mal comegava um daqueles Bailes
da Primavera, Ronaldo Alvaro Lacerda de Souza Gayoso, mais
conhecido como Perdig1o, irmlo de Reynaldo Ant6nio
Lacerda de Souza Gayoso, o Jarumelo, num gesto ousado que
lhe era pr6prio rompe o natural retraimento civil e tira uma
garota para dangar com o cldssico:
A senhorita. danga?
-Nlo, nlo dangava a senhorita. Que desculpasse, mas
nlo sabia dangar. N6o era versada na pritica dos volteios e
saracoteios.
Perdigdo, de volta, avisou pere e turma: "Nio sabe dangar." Tudo bem, nlo tinha nada. Nlo era recusa, estava tudo
explicado. Nio havia humilhaglo!
Mas nlo d que o baile continua e todos v€em a garota
dangando com um cadete. Marly ria sem parar, ria-se o cadete, bailavam. Perdigiio nada disse, nem lhe foi perguntado: o
bom cabrito nlo berra! Engoliu o agravo' deu a volta por
cima. Foi I luta.
Passam os tempos, o pessoal briga no clube e vai jogar
bola na Associagio Atldtica Grajad, agremiaglo desportiva
rival do Grajari T6nis tambCm dada !r prdtica de engordar o
galo e promover festinhas (como eram famosos os seus bailes
carnavalescos e o Bloco dos Marinheiros que ati marchinha
pr6pria cantava!). Pois nlo C que num desses bailarecos aparece justo a garota que havia, na Primavera, recusado o Perdigfuo, mas que agora (longe das fardas, ilus6es desfeitas) aceitava convites de qualquer civil, inclusive do Perdigho, certa-
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mente deslembrada da anterior desfeita. E estava o par dangando, quando o Perdigdo, no meio do salao, pl,ra e comega a
cheirar o ar. A moga fica desconce rtad,a e Perdigha, indiferente i perplexidade de Marly, continua a cheirar o ar em haustos
cadavez mais fortes, arraindo a arengS.o dos circundanres. E,
de repente, langa um berro que a todos surpreende:
Voc€ peidou!
- tio ins6lita increpagio a pobre moga p6de apenas
Ante
balbuciar aterrada:
Eu?
confirma Perdigdo
-E acusador.
lhe o dedo
voc6 mesma. E aponta-
A garota, desfeita em ldgrima, corre pere t mesa do pai
que, inteirando-se do acontecido, vai tirar satisfag6es com o
vil caluniador, reprovar-lhe o iniquo procedimento, negar a
eventual flatu16ncia:
O senhor estC enganado. Minha filha n6o peidou.
Absolutamente.
O pai, indignado e parrudo, cresce na santa ira:
Nlo peidou, nlo peida e o senhor vai retirar o que
disse, -ouviu?
Forma-se o bolo. A curriola cerca os litigantes: Hipopdtamo, Cambota, Ciciara e Manoel Peito-de-Pombo guerem
dar forga ao ofensor, entretanto, Juramelo, o irm6o, apiedado da moga, desarma esplritos, desfaz o bolol6:
Se peidou nam td mais cheirando. Vam'bora, gente.
-Resolveu o incidente mas nio a vergonha da moga.
Afinal, nio era por ser galinha que a Marly faltavam pudores, sentimentos que a ra,pazieda machista n6o conseguia entender. Mas foi a galinhagem que permitiu a Marly buscar
outros ares. Galinhagem dela, oferecida que era, e malandragem do AlCsio Pera, um sacanera.
Gostava de mentir, o Pcru, N5o mentirinhas l-toa, mas
mentiras de verdade, com enredo e tudo. Certa feita sumiu
do bairro por mais de um m€s. Voltou descorado e cheio de
lero, que teve na Europa, em Paris mais precisamente. Satisfez a curiosidade da turma: sim, Tour Eiffel era isso e aquilo;
o Louvre aquilo e isso; Versailles, um belo de um paldcio.
Frio, atd demais. Mas nlo foi na descriglo dos conhecidos
40
pontos turlsticos que Peru colheu admiraglo. De ouvir falar,
lssim por alto, muitos conheciam o Champs-ElysCs, a Opera, o Quartier Latin, bairro dos estudantes, a Place Pigalle,
reduto da sacanagem. O viajor introduziu a mogada nos mistCrios da bodmia de Montmartre, nos bisrr6s de SaintGermain-des-PrCs, nos restaurantes do prlmicr arrondisscn ent,
especialmente o do Hotel Ritz, na Pl. Vend6me, sem esquecer da enorme impresslo que lhe causara o fausto do restaurante 'Grande Vefour", na rue Beaujolais, onde saboreou um
delicioso "Ballotine de Canard", lamentando que a estagio
(nio viajara entre setembro e abril) o impedisse de apreciar o
prato "FeuilletC d'huitres", famoso em todo o mundo civilizado, fez questao de frisar o "civilizado", escandindo-lhe as
sflabas. Mas nlo pensassem que a estaglo o impedira de provar um verdadeiro "feuilletC", pois que o 'Mercure Galant"
fez-se conhecido exatamente pelo "FeuilletC de ris de veau"
que oferecia, e logo adiante, na rue Patits-Champs. E para
quem desejasse dar uma esticada depois do teatro, recomendaria um "EmincC d'avocat au jambon de parme", no sofisticado "Polyglore", na lle de Saint-Louis, pertinho do apartamento onde morou a princesa Isabel, informava hist6rico.
Quanto a bebidas, champanhe e vinhos. Champanhes, embora naturalmente nio desprezasse a Cristal e a Cordon Rouge, as marcas mais conhecidas, preferia Dom Ruinart, ou Jacquart, ou Bricout, ou ainda Henriot da CuvCe Baccarat, disparou para uma plarCia inteiramente bestializada.
Os olhares entao convergiram para Sebastiio Pelon dos
Santos Moreira, estudante de medicina qu€ tomava aulas na
Maison de France e por conta de quem havia passado exatos
onze dias em Paris. Ti6o s6 p6de louvar o apuro da pronrincia e perguntar sobre vinhos, sobre vinhas. Que vinhos tomou, que vinhas recomendava?
Aldsio, o viajante, fez-se modesto:
Qualquer um "bordeaux supCrieur", ensinou.
-Teria
ido e voltado a bordo de um Super Constelattion
da Panair do Brasil. Ficara no "Abbaye Saint Germain", um
hotelzinho charmoso com um lindo jardinzinho na rue
Cassette. Se o recomendava? Sem drivida, claro que sim. E
por af foi. Ele contando e a turma viajando no trolol6 do
cera.
4l
Acontece que a irmi do Peru, Maria Elisa, namorava
um cara chegado i turma, o qual, por acaso, esrava no dia da
'viagem' a Paris. Perguntada, rcspondeu:
Qual Paris... Aldsio C maluco. N6o tem onde cair
rnorto.- Vai a Paris como? 56 se for na Praga Paris, e assim
mesmo tem de tomar algum emprestado para o lotaglo.
O namorado n6o se conformou. A viagem, os Pormenores. N6o podia ser tudo invencionice. Podia, podia sim,
confirmou a irml:
Alisio passou um m€s trancafiado em casa. Deve
umas revistas francesas, coisa assim. Est{ branter arranjado
quelo porque ficou dentro de casa, sem tomar sol.
E diante da curiosidade do namorado que requeria mais
informag6es sobre as 'viagens" do irmlo, Maria Elisa, conhecedora de sua patologia, arrematou:
Deixa pra ld, Al€sio C mit6mano.
-Depositirio da informagio, Milton Temer nao sossegou enquanto nlo a repetiu para a turma. Que ficou pau da
.rida cotn o Peru, nio faltando mesmo quem av€ntasse a hip6tese de dar umas porradas no dito. Ouvido nlo C paiol, consideravam. Houve sugest6cs no sentido de procurar imediatamente o safado e cobrar dele explicag6es: que neg6cio C esse
de ficar alugando os ouvidos da rapaziada? Alfredo Franga,
mais ponderado, preferia esperar o acaso do encontro e entlo exigir dele as raz6es que o teriam levado e cngruPir o Pessoal.
Estavam na procura do melhor caminho para interpclar o safado quando o pr6prio, a bordo de um reluzente rabode-peixe, faz e carva na rua Gurupi e sobe a Engenheiro
Richard, parando justo na porta do Grajari T€nis Clube, onde
se concentrava a mogada, que enteo tem a oportunidadc de
admirar o carrlo por dentro: os bancos de couro, o guidom
na cor vinho, o painel arrojado, o clmbio hidramdtico. AlCsio
mal parou.
Oi turma, cumprimentou.
-Arrancou. A patota estupefacta
que abanava um adeus
comportaria.
Falar o qu€?
42
ficou seguindo a mlo
tlo largo, que s6 um carro
converslvel
Foi no carrio que AlCsio recolheu uma deslumbrada
Marly na Praga Nobel, longe da rua JosC do Patroc(nio e da
vigilincia dos pais. Foi a guria entrar e ele tocar para a Zona
Sul.
O carro ia devagar. Peru saboreando a conquista; Marly
aproveitando o luxo e o conforto do autom6vel. O rridio espalhava uma mfsica suave que os sons da rua teimavam em
atrapalhar. Bolas. Na subida da rua Alice, Peru parou junto
ao meio fio, fechou a capota e ligou o ar refrigerado. Seguiram. Logo ap6s atravessar o Tdnel Novo e antes da rua Felipe
de Oliveira, AlCsio subiu a calgada e estacionou na porta de
uma enorme loja de autom6veis. O casal mal havia trocado
duas palavras durante o caminho, mas agora Marly ouve , forte, a voz de comando do namorado:
Salta, Mady. Tenho uma surpresa para voc€.
-Marly salta, mas nio entende nada. "Qual poderia ser
a surpresa?" pergunta-se a garota.
Os vendedores rodeiam Al€sio. Nlo poderia ser melhor a figuraglo. Elegantfssimo, terno azul, impecivel camisa social branca, gravata grenl. AlCsio era a imagem do sucesso. O pr6prio dono da loja afasta os vendedores. Iria ele
mesmo atende r tlo ilustre personagem:
Em que posso servi-lo, cavalheiro?
-E um AlCsio casual informa e indaga:
l5jsu procurando um carro para ela. (A mlo sugere
a presenga da moga, mas n6o a aponta. Fino o cara.) Mas que
nlo seja grande. Grande basta o meu (E a mlo Parece moverse na diregio do pr6prio carro). Alguma coisa da Europa,
talvez?
O dono volta o olhar para o interior da sua loja como
a procurar uma marca ou a colher inspiraglo. De rePente
t
exclama: '
Temos um Porche, mas i caro...
-Olhar gelado do futuro comprador faz o fulano arrepender-se imediatamente.
E, claro que para o senhor prego i o de menos, procura consertar o besta. Os vendedores s6 gozando.
Superior, AlCsio fez que nlo ouviu e gentilmente pede
que lhe mostre o ve{culo. Que estri logo na entrada, I direita
43
de quem olha, mas meio escondido por um Impala que esta-
cionara em frente a ele.
Alisio se aproxima. Marly se aproxima. O dono da loja
se aproxima. Se aproximam os vendedores.
56 tem este?
AlCsio quer saber.
- Com a indicagio
- que o senhor deu, apenas... Bom,
- loja...
na outra
Alisio corta:
Podemos dar uma volta, experimentar?
- Mas claro, doutor. Sem drivida. A prop6sito, como
C o seu nome?
Miranda. Alisio Miranda. Doutor AlCsio Miranda.
- Briulio. Brdulio dos Reis Pimenra.
- Ela i Marly.
- Muito prezer, Dona Marly.
- O prazer C meu, seu Br{ulio (E era, mesmo).
-A volta C curta. Ganham a Avenida AtlAntica. O trAnsito nlo permite que o carro desenvolva, mas o ronco do
motor nio deixa ddvidas quanto a sua potencia. O trio entra
na Bollvar e volta pela Nossa Senhora de Copacabana.
Br{ulio C rodo pergunras:
Gostou do carro, doutor? Est{ aprovado? O que o
senhor- achou?
AlCsio consulta a moga. Quem deve dar opinilo C ela.
Afinal, para ela d o mimo. Marly n6o acredita no que ouve,
parece estar sonhando.
Para mim, Alisio, meu bem?
- Ora responde para quem haveria de ser? (E
- No- carroestavam
- r-6 or tie..)
com razio.
Saltam. AlCsio pergunta o prego. Majestoso, nem regateia. Preenche o cheque e di as ordens.
O senhor por favor tire a nota fiscal direrarnente no
nome -dela. (Novamente a m6o...)
Briulio recebe o cheque e verifica seu correto preenchimento. Assalta-lhe uma drivida. Seri que esse cara todo
lorde nio lhe estard querendo aplicar um pa.ssafaia? Sextafeira, os bancos fechados. Nem discute o prego, dd logo o
cheque para impressionar a garota. Ou nlo? Quem sabe n6o
C um milionirio? Ou um filhinho de papai cheio da grana?
44
Pelo sim, pelo nlo, o cerro s6 lcva depois de cobrar o cheque. Decide-se, afinal.
fiscal vai
- Pois nlo, doutor. Perfeitamente. A nota
ser emitida segundo suas ordens, diretamente em nome de
Dona Marly. Apenas, o senhor me desculpe, os bancos j6 fecharam e eu nlo posso cobrar o cheque. Assim, n6o leve a
mal, mas o carro s6 posso entregar segunda-feira. Regras da
casa...
E preparou-se para o maior esPorro da pardquia. Mas,
AlCsio veio manso.
Mas d claro. Sem dfvida. O senhor tem toda a raz1o. E-s6 o se nhor dar a nota fiscal e na segunda a Marly ve m
buscar o carro tlo logo abra o banco. Isso d um neg6cio. E
neg6cio d ncg6cio.
BrCulio, completamente aliviado, vai providenciar a
emissio da nota fiscal, para o que precisa dos dados da feliz
proprietCria. Q,r. nio cabe em si de alegria. N6o sabe o que
fazer para agradecer ao namorado Presente tlo extraordindrio. Ah, como a vida € boa.
Despedem-se de Briulio e de sua loja de autom6veis
importados. Despedem-se dos vendedores de carros importados. (Marly secretamente despede-se de seu Porche Prateado.) AlCsio educadlssimo. Marly sinceramente emocionada.
Os fulanos fazendo as honras. Todos felizes.
pergunta AlCsio soberano.
Feliz, meu bem?
- meu bem? E Marly se enrosca
- E precisa perguntar,
- do carro...'
no banco
Tenho uma proposta, serC que voc6 topa?
-Marly topa a proposta. Marly topa tudo. JC topava quase
tudo. Agora, topa tudo.
Aldsio prop6e o roteiro:
Primeiro, vamos tomar um drink no Cangacciro, na
Mendes. (Nlo disse, mas no fim da tarde e anrua Fernando
tes de esquenrar a noite, o Cangaceiro cobrava pela metade a
dose de uisque a titulo dc promoglo Para atrair mais clientela.) Depois, voltarnos (o carro mal entrara na Barata Ribeiro) e beliscamos alguma coisa no Hi Fi, aqui mesmo na Princesa Isabel. Depois... Bom, depois a noite C nossa...
45
Marly concordou. Com o Cangaceiro, com o Hi Fi.
Ficou com a pulga atrds da orelha com o neg6cio da "noite C
nossa". Mas pulga designa um tipo de Fiat pequeno e mal
ajambrado, nlo um Porche prateado.
Topo, meu bem. Estou mesmo com um pouco de
sede.
-
Foi o cara encostar e o lelo-de-chdcara vir gabar-lhe o
carro:
carrlo, hem? Que
- Que
qualiomodelo,mesmo?
C
um Cadillac eu sei, mas
Paciente , Peru entrega a chave ao manobreiro e esclarece:
[
"6supi de ville", ano 1954. Encrou agora por forliminar na justiga. Demorou, mas ganhamos.
Marly cada vez mais se admira do prest{gio do namorado: todo o mundo a conhecO-lo! (Como poderia saber que
-
ga de uma
a pega era motorista de bacana?)
O porteiro abre a porta solicito e o bar acolhe o casal.
O gerente do Cangaceiro oferece uma flor Marly. Praxe da
casa onde se destacam os murais de Alde mar Martins.
I
Sentam. Marly pede um cuba-libre. Alisio um uisque
O gargom os serve. Coloca um Pratinho de amendoins. AlCsio sorve um largo gole. A bebida
desce redonda. O pinta se anima e pergunta ao gerente:
Q,t. temos hoje?
dose dupla s6 com gelo.
- Mais tarde Tito Madi vai cantar com Ribamar ao
piano.-Vale a pena ficar...
Alisio tem outro programa:
volto? -
Tenho que dar um pulo no
Hi Fi, mas quem
sabe e u
hoje vai ter uma
Volte sim
anima o gerente
grande- surpresa por-aqui...
AlCsio, bebedor escolado, fez a parceira tomar antes do
cuba-libre uma igua mineral Caxambu que com ela dividiu.
Antes de pedir a saideira, outra Cgua mineral. E a saideira s6
para ele. Nada de garota ficar de fogo e estragar logo o programa. Aprendera em Gra,iad: "ballo apagado nlo sobe!"
Quando C mulher, o ballo apaga, a distinta dorme . Quando
d homem, o baleo nlo sobe de jeito nenhum. Chama o gar90m:
46
O me u, faz a ge ntileze d,e uazer mais uma dgua mineral e- um uisque simples para mim, nada de duplo.
Com gds ou sem gds?
- Com gCs.
-O gargom trouxe o ufsque e trouxe e lgua, AlCsio se rviu a parceira e colocou uma medida de tgue no pr6prio uisque. "Pra temperar", cxplicou.
A noite comegou a chcgar, assim os freqiientadores.
AlCsio achou que j{ era hora de se pirulitar.
Levantou-se, acenou para o gargom e dirigiu-se diretamenre eo gerenre:
Deixa a despesa "em aberto" que eu volto. (Era meo partido de deixar a despesa "em aberto" do que
lhor aplicar
"pendur{-1a".)
Se n6o gostou, o gerente guardou o gosto. Novamente
animou o fregu6s:
Volte. Volte, sim. Nio deixe de voltar. A surpresa
vai ser-grande e vai valer a pena, prometeu.
No .F/i Fi Bar c Rcstaurdntc Peru tambCm foi bem recebido. E nem seria idiota de ir a um lugar onde estivesse sujo
na rodinha. Sentaram, o gargom trouxe o card{pio. AlCsio
descomplicou-o para Marly:
A especialidade da casa C o "Marreco de Pequim".
- recomendo o "Siri recheado" ou a "Chicken in the
Tambdm
Basquet'. A escolha i sua...
A escolha era dela, certo, mas ela estava em drivida.
Fora o marreco, que tinha pena do bicho e n6o o poderia
comer, que Al€sio, em sua alta sabedoria, havia pedido para
ela escolher o prato adequado.
Que nio se fez de rogado. Estalou os dedos e o gargon
aPareceu:
Um "Siri" para mim e uma "Chicken" para ela.
- Para beberi
- Por enquanto, traz uma dgua mineral,
- quando chegar a comida.
te pede
Com gis ou sem
depois a gen-
g:is?
- Com gds.
-A vitrola hi-fi tocava "Meu mundo caiu", a voz de Malsa
enchia a sala de amor. O casal i tocado. Ele segura a m6o
direita dela com a esquerda. Ela corresponde: aperta-lhe
a
47
mlo direita. Para os enamorados
chega a comida.
o tempo s6 conta quando
Servida, o gargom torna a perguntar:
Para beber?
Alisio
teve vontade de pedir um vinho branco, leve.
Mas podia misturar. Nem consultou a parceira:
Para ela uma coca-cola; para mim, meia dose de uisque.
-
Outra misica, um comentirio aqui, outro ali. As garfadas e goladas e estavam prontos para ganhar a noite. AlCsio
ainda pediu um docinho para ela e um cafezinho destinado a
fazer a boca para um cigarro importado, naturalmente. Como
de costume, "pendurou" a dolorosa e saiu para o mundo.
Tambdm naturalmente n6o esqueceu de dar uma gorje-
ta para o porteiro: era de lci. Aspirou o ar da noite. A brisa
marinha acariciava de tlo agrad{vel. Teve vontade de dar uma
chegada no Cabega Chata, logo ali ao lado c ouvir umas
emboladas do Manezinho Aradjo. Certamente enconrraria o
Comandante Augusto de Moura Diniz, oficial de marinha,
morador tambim em Grajari, gente finissima, fl do
Mariozinho, habitudda casa. Mas li poderia estar o sobrinho
dele, Marcelo, uma peste que iria ficar lhe sacaneando ele
n6o estava ali para isso. Falando no mal, esmerilhando o pau:
quase esbarra no Dinizinho, filho do Comandante, que o safda:
O r"p"r, voc€ por
aqui?
- Pois d, acabei de pensar em dar um pulo no "Cabega" e provavelmente
encontrar o Comandante ld.
Td, ele
rlsim. Tdcom o primo...
- O Siiberth?
- Neo, o Marcelo.
-(Fudcu.)
Mas voc€, cara,
nio
estd indo pra 16. Vai noutra di-
- afirma.
- E. Vou no Jirau ouvir a Helena de Lima. Voc6 sabe,
ela tambCm
i fi do Velho e sempre adianta o lado da gente,
reglo
sem falar que canta is pampas.
Despedem-se. AlCsio corra a idCia de dar uma chegada
no "Cabega". Nem se lembra da surpresa prometida pelo gerente do Cangaceiro. Se soubesse, certamenre para ld teria
48
tocado: C que Paulinho Soledade, saido de longa enfermid-ade, iria aprisentar o seu "Estlo voltando as flores", marchinha
not{vel que refletiria seu reencontro com a vida, com as flores, com as manhis tlo lindas. Melhor era se mandar Para o
Studium, bar do Hotel Excelsior, ouvir o fabuloso 'Fats"
Elp(dio e depois, Deus C Pai, subir Para um dos apartamentoi .o- a cumplicidade do gerente da noite, seu faixa de
Grajaf .
Foi o que pensou, foi o que fez.
Foi uma Marly alvorogada que Aldsio Perz desembarcou, na segunda-fei ta, ne porta da loja de autom6veis TAnia,
mas do ouiro lado da rua, na mlo de quem vai para a cidade.
Escapa de um carro aqui, outro acold' csPera Palsar 9
bonde maia-paulista que descia na contra-m1o do Tdnel
Novo, e eis uma garota ansiosa Para entrar na Posse de sua
formiddvel propriedade. Dirigir nlo dirigia. Mas nem Pensava no volante. Pensava no seu carro' na cor dele, na sua
beleza. De como a vida iria mudar dora em diante. Entretanto, os olhares compungidos dos vendedores c a carranca do
dono a fizeram seniir que alguma coisa nlo havia dado certo.
Mesmo na defenliva encontro,t forgas para ir em frente, cumprimentar as Pessoas.
Bom-dia t.,, BrC,rlio. Bom-dia pessoal.
-O pessoal respondeu. Seu Brdulio aP€nas cuspiu:
Tenha a bondade de me acompanhar, dona.
-Jl no escrit6rio da loja, seu Brdulio sobe nas tamancas.
Esses iipos subservientes slo assim: capachos dos poderosos,
arrogantes com os desvalidos.
Entlo que explicag6es tem a senhora Para me dar? E
clnica, com coragem de aparecer no meu estabelecimento
o conto-do-vigCrio. _
depois
- de tentar passar-me
nlo
sabe o que responder.- Pude ra,
Marly atarintada
Seu Brdulio antes
acontecendo.
nlo entendia o que estava
de
perguntar:
Achou
tlo delicado, agora t6o estripido.
aconteceu?
o
que
Mas o que foi seu BrCulio,
- O que aconteceu. O que aconteceu.
-E dirigindo-se I platiia dc vendedores consternados:
O que aconteceu seu Br{ulio? (o filho-da-puta imita, mal imitada, a vozinha da moga.) O que aconteceu C que
49
a senhora e aquele vigarista do seu namorado quiseram me
passar a Perna...
Um dos vendedores pede um aparte:
Perdlo, seu Brdulio. Mas nio havia, como nio houve, a possibilidade
da casa ter prejuizo...
Seu Briulio n6o gostou do aparte.
Prejuizo, seu Josi de Castro. E se eu tivesse entregue o -carro ir dupla de vigaristas. Hein, hein? E se eu tivesse
entregue o carro, hem seu Zd de Castro?
Que ainda arrisca uma ponderagio, quase uma lisonja:
Mas ni.o entregou, patreo. As regras da casa, regras
que o -senhor mesmo estabeleceu, s6 permitem a entrega do
veiculo depois do cheque cobrado ou compensado. N6s aqui,
por sua orientaglo, trabalhamos com a mdxima seguranga.
Mas seu Briulio nlo estava para argumentos.
E se tivesse entregue quem pagaria o meu prejuizol
-O comerciante delirava., As regras teriam impedido a
consumaglo do eventual chaveco. E mesmo o "comprador"
n5.o fizera questeo de levar o carro. Aceitou imediatamente a
restrigio imposta pelo vendedor. Tava na cara que queria s6
fazer um agd com a menina. Todos viam isso, menos seu
Brdulio, cada vez mais enfurecido.
Fui no banco cobrar o cheque e o gerente riu na
minha-cara. Que a conta estava encerrada hC muiro. Que s6
teve um dep6sito inicial de mixaria. Que eu devia selecionar
melhor minha clientela. Que isso, que aquilo e mais aquilo
outro. E eu ouvindo com cara de bobo. Me diga, Dona Marly:
eu tenho cara de bobo, tenho?
A pobre da moga nlo sabia o que fazer. De repente compreendera tudo. Fora v(tima, ela sim, do conto-do-vigirio.
Nlo tinha carro, nio tinha presenre, nlo tinha nada. Era s6
encenaglo para abusar dela e de sua estupidez.
E foi uma Marly desfeita em ldgrimas que a bondade
do Z4 de Castro levou ao botequim da esquina. Deu-lhe lengo, de u-lhe igua com agricar. E solidariedade humana.
Tem nada nio, Marly, isso acontece.
-Foi o que achou de dizer I falta de um discurso mais
consistente.
50
Isso acontece, repetia a uma desesperada Marly.
Que fazer? Como enfrentar a mie e o pai? Quando avi,ot.r, p.io telefone, que passaria o fim-de-semana fora, com
uma amiga, foi um De us nos acuda. A m6e queria saber -que
novidade-era essa. Que nunca antes isso tinha acontecido'
voltasQue absolutamente nio aceitat'a tal despautirio. Que
de
coga
uma
dar
e
lhe
pai
saber
seu
de
antes
a
cesa
p"t"
rJl{
mle
I
dissera
Marly
nova
situa96o,
da
Segura
cinto-dobrado.
que nlo se preocuPasse' que ela estaria bem, e na segundafeira daria notfcias. E desligara o telefone. Como voltar, ago-
Contar o qu€? A verdade? Nem pcnsar.
Pensar, i o que a voz bondosa do Josi de Castro a convida.
psnss, Marly. Com calma. Nlo perca o controle' Se
nlo podc voltar Para casa, Pense numa tia, numa amiga, numa
vizinha.
Numa amiga. Sim. Tinha uma amiga de Marechal que
tambdm saira deiasa Por um problema semelhante' Morava
em Copacabana, na rua Belford Roxo. Tinha o enderego' Tinha o telefone. Ela mesma jd a convidara avir morar com
ela. Trabalhar no teatro de revista. Estudar rePresentagio na
escola de um cara meio bispo, coisa assim.
Compassivo, Z€ Castto levou Marly Para casa da amira?
ga.
Furada e abandonada.
7
Rtre Mannq
"Essa Rita Maria C uma desmancha-pnzet filha-da-
puta. Ficar de pau na mio i isso." Pensava o indignado Espeiidiao Bispo dos Santos, m€dico especialista em sacanagem
com a -uih.t do alheio' Lamentava a interrupglo brusca da
ins6lita trepada, absolutamente inusitada. A dona se entregando toda, f,i.il, fiicil. Nlo tivessem sido barbaramente interiompidos, teriam feito de tudo. Quantos anos estaria rePresada a cliente? Muitos, certamente.
5l
Doutor Esperidilo fechou o consult6rio, um conjunto
de salas no Edificio Rex, na rua Alcindo Guanabara. Jd des-
ceu na Cinelindia. Era dar um pulo no Amarelinho, tomar
um chope estupidamente gelado anres de voltar para casa,
enfrentar aquela megera. Quem sabe nlo aparecia um conhecido e jogava uma conve rsa [ora?
Pensava o midico na cliente. Temia que a dona n6o
mais voltasse. "Pau na mlo: filha-da-puta da Rira Maria."
Rita Maria bateu o telefone e levantou-se da cama:
Preciso de um copo d'dgua. T6 seca.
-Nada como uma boa discuss5.o para deixd-la sedenta.
Muniz reparou nos modos da dona. Impudica, passeava nua pelo apartamento. Curioso, pensava, as mulheres procuravam sempre se cobrir: um lengol, uma toalha, pega de
roupa que fosse. Sem falar nas profissionais extremamente
recatadas. Rita Maria era excegio, vivia desfilando sua gloriosa nudez pelo quarto, pela sala. Mal chegava e j6. ia se despindo, espalhando as roupas, atirando-lhe a calcinha, o suti6, as meias, as ligas.
Da cozinha fez ouvir sua voz, ainda com restos de
irritaglo:
Eu conhego a cliente, somos do mesmo bairro. O
marido- voc€ conhece, C seu colega.
C?
- Quem
E Baldomiro. Na polfcia C chamado de Badeco.
- Nio vai me dizer que a cliente i Dona Carmelita,
vai?
-
Avoz desafiante antecede a moga que retorna ao quarto aplacada na sede, insacidvel na bronca:
Vou. Vou, sim. Vou, por qu€?
-E bem humorado o rira.
Tenha santa paci€ncia, tesouro. Conhego Dona Carmelita.- E, siria, honesia, cidadi acima de qualquer suspeira...
Rita Maria nlo se segura, interrompe o outro:
Vocds homens sio uns babacas. Santa-do-pau-oco,
C o que ela i. Sempre sonsa, fingida.
Muniz parece esbogar timida reagSo.
Qual, voc€ exagera...
- dona
A
corra:
52
Exagero C um cacete. Fomos vizinhas, meu filho.
- Na rua Grlo Pard. Conhego dc menina, fique sabenNo Lins.
do. Carmelita sempre foi dissimulada. Tinha um namorado
firme, um tal de Ferrio. Faziam misCria os dois, s6 vendo.
Voc6 via?
- Claro que via. N6s morivamos na mesma vila. A
casa dela era a 6ltima, em frente a da Glorinha. A minha era
primeira, logo na entrada. Depois ficava a casa da Leny, em
seguida a de uma coroa meio amalucada que morava sozinha
ld com uns gatos e por riltimo a casa dt santinha. N6s ficivamos na janela do quarto da Glorinha. ApagCvamos a luz do
quarto e ficdvamos olhando os dois, meu filho. Nem te conto. A casa tinha um porteozinho na entrada. Desses, baixinho. (A m6o indicava a pequena altura.) Eles ficavam ll, abragados, separados pelo tal portlozinho. Ela na Parte de dentro, ele na parte de fora. Ela levantava a saia e ele botava nas
a
coxas dela...
o policial uma contradiglo:
Como € que elc ia botar, mulher? E o portlo?
-Rita Maria fez ar de deboche.
[ns1s as travas do portlo, n6o C Muniz? 56 porque
C porclo, tem que ser inteirigo, tem?
E ante o sil€ncio do amante.
Tem, Mrtniz? Me diga, Muniz, tem?
-Que se rende.
Nio, tesouro, nio tem, n6o.
-Satisfeita, retoma o relato.
Ficavam no maior sarro da par6quia. Depois, ela se
- e chupava o cara ali mesmo. Ela ficava de costas. De
abaixava
costas, Muniz. Nlo sei se dava tempo, ficava pouco temPo
de costas. Dcvia ter medo, n6o sei. Namorar com um de costas d diffcil de explicar. Ou nlo d, Muniz? Fala Muniz: C ou
Fare.ia
nio C?
E tetouro. Se surpreendidos, vio explicar como?
- Pois C. O cara a gente via Procurava
- pelos ombros.- Ela ficava um- pouquinho
Carmelita
virar a
e logo
desvirava. O cara ficava puto.
E voc€s?
- A gente ficava na maior excitaglo. Eu entlo me
v{rias vezes. Mas n6o atrapalha. Escuta. Af o cara
masturbava
53
sumiu, parece que a famllia dcle se mudou para o Parani,
Curitiba, parece, nlo sei ao certo. Foi depois desse cara que
ela comegou a namorar o filho de Dona Nair, o tal de Baldomiro. Um cara esquisito ls pampas.
O tira fala sCrio para a moga:
Olha Rita Maria, neo meta seu marido com esse
cara. A- nlo ser que queira ficar vifva. Ele i um dos Homens
de Ouro. E, matador, i do EsquadrSo da Morte.
Rita Maria estava por fora.
Homem de Ouro... Que diabo disso C aquilo?
- Policiais que formam
uma equipe especial diretamente-ligada ao chefe de policia. T€m licenga para matar.
Eu hem!
- Pois 4,. Barra pesadlssima. Eu, que sou Comis-s4rio,
nio me- meto com eles.-Especialmente com o Badeco. E fere,
tesouro. Mata por vocaglo e por gosto.
A dona tem uma ponta de hesitagio na cara astuta.
Todo fera e a mulher corneando. Vai ver, sabe.
- valente na rua mais mole em casa. Deve ser Quanto mais
corno
manso.
O tira nlo gosta sequer da conversa.
Sai dessa, mulher. Nio procura, que voce encontra.
E melhor deixar pra 1d... Voc6 € engragada. Botando chifres
no marido a toda hora e reclamando quando o pobrc dC umas
voltinhas.
A dona fica revoltada.
Muniz. Nio t{ direito voc€ falar assim comigo. Eu-'ps11(,
tenho furor utcrino, Muniz. Voc€ sabe disso, n6o sabe?
Diga: sabe ou nio sabe, que eu fou ninfomanfaca?
Bom...
- E doenga, Muniz. Eoenga. Eu tenho que trepar, trepar, trepar.
Trepar atC n6o poder mais. Ele, nlo. Nlo tem
doenga nenhuma, C sem-vergonhice, mesmo. Ele me paga.
Voc€s homens s6o todos iguais: "E sdria, Rita Maria, d sdria."
Sdria d o cacete. Cala de boca, seu Muniz. De boca. Cala de
boca...
O tira quer apaziguar a parceira.
!s6, tesouro. Mostra como a Dona Carmelita fazia
no portlo.
54
Esperidilo pdra o Nash em frente a casa' no alto da
ladeira, rua Henrique Morize, no Grajarl. Atravessa a rua Para
abrir o porteo de ferro da garagem.
Um furglo escuro ololhe na volta, bem no meio da
rua.
J{ caiu morto.
I
Focuurut'taa
Pastor conhecia o investigador NapoleSo de Cast-ro,
chefe do Setor de Vigilincia da 19" DR com jurisdiglo sobre
a favela do Esquele{o. J5, haviam trabalhado juntos' Castro
era ambicioro.'Ert""" louco Para se enturmar no Servigo de
Dilig€ncias Especiais, gruPo de elite dire tamente ligado- ao
gabi-nete do Chefe de Pollcia, sem dar satisfagio a ninguCm'
nome nos ,ornars, prbstfgio, cheios de banca. E grana. Muita
grana: grana alta, grana Preta' grana viva.
Recebeu bem o colega.
Seja bem-vindo, ieu Pastor. Pensei que nlo conhecesse mais os amigos. Td por cima da carne-seca...
Pastor abragou o outro.
Castro, lutando semPre.
- Qual,
De as ordcns. (Sabia o investigador nlo ser Procurado porque a saudade ePertara no Pastor.)
-
Tenho um servigo Pra voc€.
Capixaba foi encontrar o ComissCrio Muniz no bar ao
lado da Entorpecente.
Queio um particular com o senhor, chefia'
-Muniz
sabia que o alcagiiete er^ qucnte. Pedia alto, mas
a informaglo que trezia era semPre valiosa.
Tem pressa?
-E ante a confirmaglo do outro marcou em sua pr6pria
casa, dentro de um par de horas. Estava terminando o plantio e para l6tiria mei-o se dirigir. Esperaria o cabra.
55
Que nem usou as duas horas. Muniz veio abrir a porta
enrolado na toalha, ainda pingando. Antes, verificou-pelo
olho migico se era mesmo o alcagiiete. Tira vererano, nio
iria marcar
bobcira.
Chegou na hora, Capixa, mal acabei o banho. Vai
- enquanto eu me visto,
falando
e rumou para o quarro.
E o Fogueirinha, chefia...
-O tira vohou i sala. Ji nlao mais inreressado em vesrirse.
Senta, comandou.
Conta a hist6ria direitinho.
-O alcagiiete cagou uma- poltrona.
Acendeu um cigarro,
puxou uma tragada, expeliu a fumaga devagar. Pegou o cinzeiro e nele depositou o f6sforo apagado. Sabia que a informaglo interessaria enormemente o tira.
Jorge Gomes da Silva, assaltante e incendi{rio, se exercia no morro dos Macacos, em Vila Isabel. Com seu bando,
incendiava os barracos dos moradores que resistiam aos assaltos ou nio contribuiam com dinheiro suficiente. O critCrio era a veneta do bandido e a sentenga sempre cruel:
Mixaria nlo quero. Taca fogo no barraco, ordenava.
-Postava-se no pC do morro
e s6 permitia a passagem
dos que pagassem pedCgio. Trabalhador volrava cansado do
batente, queria chegar em casa, comer, descansar, ver a familia e n6o podia. O vagabundo n6o deixava.
Tem que pagar ped{gio, vivente.
-E se o pobre nlo pudesse pagar, ficava mal. Nio subia
o morro, entrava na porrada. Ou enti.o dava a volta longa
pelo Pau-da-bandeira, a outra verrente do morro. Chegar em
casa mais cansado, ainda. E humilhado.
AtC al tudo bem para o Muniz. Nlo era problema dele.
O Distrito do bairro que desse conra. Tudo bem ati o marginal se meter com o t6xico. E tambCm nio era s6 o t6xiio.
Fogueirinha poderia armar umas bocas-de-fumo no morro dos
Macacos e nlo teria bronca: seria apenas uma questeo d.e acerta. Mas nio, o filho-da-puta foi achar de se meter na favela
do Esqueleto, disputar o ponro e a freguesia com o X-9, traficante antigo, protegido do Comissdrio. Coisa que se faga?
Diz que deseja um acerto com o senhor, chefia.
-Muniz coga a cabega.
56
Falou pra quem?
- Pra mim mesmo, responde seguro o Capixaba.
-O ComissCrio vai testar a boa vontade do bandido. Nlo
duvida do alcagiiete.
o acerto onde?
- Quer
No Esqueleto.
-"Menos mal", pensa o tira, que Pergunta:
- Quando?
Marque o senhor. Eu aviso ele.
-O tira refletiu um pouco. Tanto de risco, tanto de lu-
cro. Mas nlo foi por ai a decis6o: vagabundo nio podia se
criar em cima de protegido seu. Como ficaria sua autoridade?
T^ certo, Capixaba,
- no final da tarde.
amanhl,
lugar.)-
Pode marcar Para dcpois de
Aonde? (O informante queria saber exatamente o
Na tendinha. Na tendinha do Crisanto. No Esque-
Voc6 sabe aonde C, nlo sabe?
leto, mesmo.
Sabia, o alcagiiete sabia. Podia deixar com ele, n6o se
preocupass. a,rtoiid"de. As seis horas estaria justo no ponto. 56 que... "
Pode falar, porra.
Diga, incentivou o tira.
-Capixaba ainda vacilava. Foi-preciso novo est(mulo por
parte do Comissdrio.
Qual C, majorl Se amarrando? Ai nlo dC!
Resolveu-se o informante.
Seguinte, doutor: e se o senhor dd uma blitz, com €
- fico? Fico sujo, se n6o me fecharem...
gue
eu
- Muniz tranqiiiliza o outro. Podia ir na boa. ele nlo ia
drmar contra o marginal. Era s6 o que faltava. Colheria os
louros da captura do bandido mas, por outro lado, jamais
teria informantes novamente , perderia a confianga de todos.
Nesse ramo, o mais importante C a confianga reciproca' Sem
ela nlo tinha papo.lria sozinho.
certo, chefia. O senhor falou, td falado.
-Taa vez do tira indagar:
Foi
E voc€, cara, qual i o seu...
- Pode deixar, doutor.
-Essa, nlo. Deixar como? O Comissdrio queria saber.
)t
Voc€ leva o qu€, Capixaba? Tenho que sabcr antes,
ou n5o- C? De repente nio dd...
O alcagiiete interrompe a auroridade.
Pode deixar, doutor. Mesmo. Pode deixar que eu
- com o Fogueirinha. Afinal, foi quem mandou me
me acerto
chamar. N5o foi o senhor. Ele tem que bancar.
Estava bem para o Doutor Solano Muniz, bacharel em
direito, comiss{rio de policia. Tudo combinado.
Foi Pastor alertar e o Castro arengdr com o colega.
Esse cara (, tira, Casrro, eu conhego ele. De uma
especializada.
Entorpecenres, eu acho.
faz aqui o ?inta., Pastor?
Que
-O agente
especial
d{ de ombros.
E eu sei? Vai ver tambdm entregaram para ele o
Fogueirinha...
O investigador decididamenre nlo gostou da concorr€ncia. O servigo proposto pelo Pastor, se b€m realizado,
implicaria, quem sabe, convite para integrar o Esquadrio. O
detetive nlo havia assegurado nada, claramente. Teria, entretanto, deixado no ar uma promessa: "TerC gente de olho no
seu trabalho, mano. Capricha..." Promessa que o Casto r egerrou pelo rabo. J{ sonhava com o convite formulado pelo pr6prio Chefe de Pollcia: "Pois me falaram muito bem do senhor.' 'Bondade sua, Excel6ncia..." 'Bondade nio, compet€ncia. Como o senhor receberia um convite para trabalhar
no Servigo Especial, diretamente ligado a mim?" Castro receberia bem, muito bem
ora se receberia! Nlo havia pensado em outra coisa desde- que o Pastor lhe propusera o servigo: "Nada de prender, Casrro. O cara vai resistir l prisio e
voc€ mete chumbo nele.'JC se via na equipe. O sucesso, a
fama, a grana, a dama, a cama. Os colegas olhando-o com
inveja, comentando: "Viu o Castro? Nlo faz muito era um
pC-de-chinelo igual I gente. Hoje estl nas alruras, no Esquadr6o. Precisa ver as roupas dele... E o carro? E as mulheres?
Chegou atd a se mudar pra Copacabana. E perto da praia..."
Pastor retira-lhe o devaneio.
Encrenca, pessoa.
-O investigador decide-se:
58
Vou falar com ele, Pastor.
Muniz olhava os dois com igual desconfianga. Nlo os
conhecia, mas que eram tiras, eram. Nio tinha drividas. O
grandio nlo lhe era estranho; o outro, mirradinho' com cara
nio manjava. Mas que cara sinistra. Patibular.
Castro se aproximou do Comissdrio.
Boa-tarde.
- Boa-tarde.
- Investigador Napoleio de Castro, da 19".
- Muito prezer. ComissCrio Muniz, Entorpecentes.
- O prazer C meu, doutor. Posso saber o que o uez I
minha-jurisdigio?
T6xico.
- T6xico?
- E, t6xico. Maconha, erva, fumo, mato' diamba.
-O investigador perde um Pouco o Prumo. N6o esperava pela resposta tio simples e eFtcaz. Mas segue:
A gente nio sabia dessa sua dilig€ncia. O nosso
Delegado nio ti sabendo da sua Presenga na drea.
E precisa saber pra que?
-Castro sente terra firme novamentc sob,os pCs.
Dar apoio, Comissdrio
- Obrigado, mas n6o preciso. Se precisasse teria re- E voc€, faz o qu€ Por essas bandas?
quisitado.
Recebi a informagio de que um pcrigoso bandido
vai aparecer por aqui. Vim cumprir minha obriga.96o.
Muniz quer laber quem acornpanha o interlocutor.
E, amigo scu?
-O investigador agora destila confianga.
E sim.-E detetlve, da Central. O senhor nio conhcde bunda,
ce ele?-
N6o, o Comissdrio nlo conhecia o detetive. Castro esclarece mais:
ais.
-
Detetive Pastor, do Servigo de Dilig€ncias Especi-
Muniz Frcou cabrciro. ("lJm cara do Esquedrio. Que
diabo de porra guererd aqui?")
Pode-se saber quem € e pcgal Deve ser caga grossa
I Chefatura...
para
interessar
O investigador nio foi muito cauteloso. Talvez j6 se
59
sentisse no Esquadrio. Acima do bem e acima do mal. Res-
pondeu:
Um bandido do morro dos Macacos. Um tal de
Fogueirinha,
um marginal perigosissimo.
Epa! Muniz tremeu nas bases. "Vai dar merda', pensou. E nlo serd s6 prisSo, sem drivida. Esses caras do Esquadrlo nlo prendem ningudm. Matam logo. "T6 ferrado', conjecturava a autoridade. E estava certo. Se acabam com a raga
do bandido, ninguim mais iria nele confiar. Adeus informantes. E o que era pior: accrtos nunca mais. Encurralado, decide enfrentar o colega.
Nada disso, invesrigador.
tal de Fogueirinha d
- com umas bocas-de-fumo Essc
meu. Td
por aqui. Vou prend€-lo.
Castro nlo se sugestiona.
Sei nlo, douror.
-Muniz endurece. Vou ter que consultar o colega.
Precisa consultar ninguCm, cara. Sou seu superior,
estou -lhe dando uma ordem.
Ordem por ordem, doutor, as dele slo mais altas.
(Com -o polegar, indicava o detetive logo atrds.)
Alheio i discusslo, confianre no Capixaba, Fogueirinha
se aproxima. Castro o v6 primeiro: saca o rev6lver. Muniz
pressente a chegada do bandido: puxa a arma ao mesmo rempo e grita para o colega:
N6o faga isso!
- palavras se perdem. Castro acerta um balago na tesAs
ta do bandido. Muniz, sem saber o que estava fazendo, talvez
o instinto, atinge o investigador no peito.
Pastor atira bem enrre os olhos do atordoado Comissirio. Calmamente se chega ao cadiver do Fogueirinha e coloca o seu revolver na m6o do morro. Pressiona o gatilho com
o dedo do bandido. Um tiro a esmo para o caso-de teste. E
meticuloso o detetive. Nunca deixa furo. A hist6ria j{ bola-
da:
Fogueirinha fuzilou os dois. Mesmo agonizante, o
investigador
Napoleio de Castro liquidou o bandido, dirC
Capixaba, promovido a tcstemunha ocular. Unica resremunha do sacrificio de dois devotados policiais cm defesa da
sociedade, da lei e da ordem.
60
saido
Pastor estava satisfeito. AtC que as coisas n6o tinham
era s6 fcchar o alcagiiete.
Capixaba j{ estava morto e nlo sabia.
tio mal. Depois,
A missa de sitimo dia mandada rezar na Matriz do PerpC.tuo Socorro, igrcja situada na Praga Edmundo Rego, em
Grajari, onde morava a vidva, Dona Rita Maria, foi oficiada
pelo padre Alberto Ferro em pessoa.
Agitada, mas algo digna, a vidva, toda de preto, recebia as condol€ncias de estilo.
E sofrimento duplo, porque morrerem-lhe, quase ao
mesmo tempo, o marido e o amante: o marido, pra deixar de
ser filho-da-puta; e o amarite, no estrito cumprimento do
dever, com enterro cheio de autoridades, inclusive a presenga do todo-poderoso Chefe de Policia, o Coronel Couto, salva de tiros e o escanbaz. "Muito ha/', pensava enlutada.
Na fila de condol€ncias se misturavam parentes do
marido e do amante. Duas vezes vidva, Rita Maria, sempre
organizada, lamentava-se nio poder rcceber os cumprimentos em duas filas: a dos parente e amigos do finado marido
de um lado; e de outro bordo, o pessoal do amante. Seria
muito bacana separar. E estava a pobre mulher imersa em
transcendentais pensamentos, quando um cidadSo esquisito,
meio vestido de padre e, que nlo lhe era totalmente estranho, cntrega-lhe um cartao e cicia aos seus ouvidos:
Dom Manuel, Bispo da Igreja Cat6lica Livre do
Divulgeglao IndependenBrasil.- Sou curador da "DIANE
- ajudo talentos a se ente de Artistas Nacionais e Escritores',
contrarcm com as artes. Me proiu.rc quando aliviar o luto.
Quero ajudC-la. Uma moga'jovei'n e.bonita como a senhora
fard sucesso no teatro, estou certo. Meus p€sarnes e atC breve...
Terminou o servigo. Terminaram as condol6ncias. Morreram-lhe o marido e o amante. Rita Maria ficou I disposi96o dos homens.
6l
9
M.antza
O dentista
Versilo estava seriamente encrencado.
Sua mulher, a funcionCria pdblica Nilza Riveiro de Albuquerque Versilo, ao prestar depoimento no Cart6rio do 22" Distrito Policial, assumiu a culpa:
Dei, sim, doutor. Dei na cara da vagabunda. E dou
mais. Dou quantas vezes quiser. Dou atC ela largar do meu
marido.
O delegado era conhecido do sogro do dentista e pai
de Nilza. Queria acomodar as coisas, mas estava diflcil. A
vltima, certamente orientada, exigia ir a exame de corpo de
delito. Ameagava ati com advogados, gente custosa que Deus
botou no mundo para complicar as coisas simples. Mesmo a
imprensa jlfarejava a notlcia. O rep6rce r da Luta Democrdtica,-Raul Azevedo, foi aconselhado a esquecer o epis6dio pela
pr6pria direglo do jornal, pessoal das relag6es do sogro. Mas
nlo iria ser fdcil. O jornalista era independente, alrivo, n5o
se curvava a patrlo. Se levado na conversa, no PaPo amigo,
puxado pelo cora96o, Raul poderia amolecer. Na dura' ficava
fera, fazia a maior merda. E sem medir conseqii€ncias, ligar
para o emprego, carreira, contas e pagar no fim do m6s. Nada,
o cara ficava azedo.
AlCm da "Luta", havie A Notlcia que tambdm cobria as
delegacias. Se um publica o outro corre atrds do prejuizo.
Atd quando poderiam tentear a imprensa? O prestigio do sogrande, nlo era ilimitado.
gro,
- conquanto
Nilza, a mulher, soube que a enfermeira dividia as obrigag6es de atender os clientes e' nos intervalos das consultas,
saciar o dentista. Ali mesmo no consult6rio. "Em cima da
cadeira de dentista", contava indignada a pobre senhora. Uma
amiga que chegou atrasada i consulta flagrara os dois trepando na cadeira. "Na cadeira de dentisti', repetia a traida.
"Na cadeira que meu pai deu de presente", repisava a esPosa
enganada.
-
JosC
Acompanhada de um dos capangas do pai, invadiu o
consult6rio e agrediu a enfermeira.
62
Apanha, cachorra! Apanha para aprendcr a nio -se
ho-"- casado. Toma cachorra, urrava cnfurecida.
"oE ceda vez mais dcsvaireda gritava c agredia.
Na cara, cachorra. Vai apanhar na cara!
-A outra tcntou rcagir.
Mc larga, apelava ao impasslvel seguranga. Me larga
quc eu mostro prck,
E sc cspcrncava c berrava:
Voci nio sc garantc. Tu I frie. Nlo segura seu homem.
Aumentou a ira da mulhcr. Chicotcou a rival at€ v€-la
dcsfalccer.
O dcntista ficou chocado. E aterrorizado. Imagina se a
Nilza dcscarr€ga em cima delc a raiva? Mclhor ncm?ensar'
Melhor felar Jon o pai dela. Quc o recebeu bem. Era homcm, comprcendia o gcnro. Elc tambdm nlo cra ncnhum
santo. Mas, quc diabo, o gcnro precisava tomar mais cuidado. Casado hC mais dc trinta anos' mas semPre cauteloso' A
mulhcr tambdm era uml fcra. Nilzinha tinha a quem sair'
Quc fosse passar uns dias fora. A casa de Iguaba estava is
ordens. Ficassc por 14. Quando as coisas serenass€m' mandaria
cham{-lo. Por inquanto' cra tcr paciSncia- Espcrar baixar a
ooeira. Nlo, absoiutamcntc nfu admitia. Tirasse da cabega'
besquite cstava fora de cogitagio. E, ante a insist€ncia do
genro, a dcclaragio Per€mPt6ria, taxativa:
Filha minha nlo dcsquita' s€u Versilo. Envidva'
O dentista botou a viola no saco e foi em vilcgiatura
para os banhos.
Com a outra foi mais drdstico. Falou pro caPanga:
Ela que se pire daqui. Do bairro, da minha vista'
Manda cla sc arrancai, seu Torquato. Se recusar, dd um ensino ncla, arrematou o cxtremoso Pai.
meter -
O dclcgado nlo podia fazer nada. Lamentava, gostou
da enfermcira. Morena iambo, lindfssima. 'Tinha gosto o
dcntista", pcnsava a autoridadeE anic as alcgag6cs da morena dc quc o pai da agressora
mandara um capanga ameag{-laVoc€ t€m prova da ameaga?
-
63
Nlo, a enfermeira nio tinha Prova da amcaga. Nlo tinha prova de nada. O delegado era um grande de um sacana:
como n6o saber que o caPanga escolado n6o deixaria prova?
Pergunta mais besta.
Nio tem prova? Entlo nlo posso fazer nada. O velho tem ligag6es com o gabinete do Chefe de Pol{cia, argumentava o prudcnte policial.
Para concluir amistoso:
Voc€ nlo tem um Parent€' uma amiga longe daqui?
Fica l{- uns tempos. Abaixa i poeira, ent6o depois voc€ decide, sugcria o delcgado coincidindo com o sogro do namorado.
Dcu-lhe um clario: lembrara-se de uma amiga de Marechal que morava em Copacabana e trabalhava no teatro.
Foi entlo queVinia recebeu, em Copacabana, uma Mariza extremamente assustada, que relatou o acontecido e con-
cluiu:
mal?
-
Ai
me lembrei de voc€. E vim pedir guarida. Fiz
Vinia foi
generosa, como semPre:
bem. Afinal, amigo € ptcssas coisas. Ou nlo d?
-Fez se acalmou. Vinia considerou a pldstica da
Mariza
amiga.
Levanta.Mirize, vem ci. Seus peitos slo duros?
-A outra estranhou a Pergunta:
isso, VAnia, n5'o tb te entendendo...
Que
-VAnia
riu-se.
Deixa de bobagem' garota. E que estou pensando
- pra voc€ na Rivista. Acho que vai dar. Amanhi te
num lugar
levo pra falar com o Valter Pinto.
A outra quer saber em que consiste trabalhar na Revista.
E coisa simples. A gente fica no fundo do palco.
M6os -para cima, os peitos pra fora e mostra um pedago da
bunda.
Mariza agradeceu aos cCus a oportunidade. "Que sorte." Sorte mesmo. Uma vedete havia denunciado menores
trabalhando nas boates e nos teatros e o juiz de menores esta-
64
va arrochando, de vez em quando mandava dar uma incerta.
As menores tiveram de ser substituldas.
Vdnia pergunta a uma Meriza mais calma, refestelada
na poltrona, senhora de si, fumando de piteira:
Se lembra da Alcinda lC de Marechal?
-E ante a resposta afirmativa da amiga, continua:
Pois i, andou dando umas cabegadas por af. Se me- um tira que batia nela. Largou o cara e se arranjou
teu com
no teatro rebolado. Quando eu tive de sair de casa porque
um cara me sacaneou feio, foi ela quem me deu uma alga...
Assim como voc6 estC fazendo comigo?
- Assim, mesmo. TambCm esrd na Revista. Alids, foi
- me levou. Agora cltama Eur(dice. Daqui a pouco
ela quem
vem af. Vem da aula de arte dramC.tica na escola de um cara
que C bispo, coisa assim.
10
Euniotct
O investigador de policia Mariano veio a conhecer a
domCstica Alcinda Resende, solteira, branca, 23 anos, com
g$em passou a viver maritalmente na rua dos Invdlidos, no
224, aparta.mento 19. Ultimamente, como andassem brigando muito, resolvcu mandar o amisio embora.
A princlpio, o policial se conformou, mas quando a
viu com outro, ficou fora de si. A pretexto de buscar camisas
e cuecas que teria esquecido, voltou ao antigo lar. Alcinda
tratou cortezmente, atC perceber a real intengSo do ex, momento em que lhe apontou a porta da rua.
Mariano apelou para os sentimentos da domdstica. Que
lembrasse os bons momentos que passaram juntos. Ele nio
podia esquecer a radiografia do seu corpo. Controlaria o 96nio, ela iria ver. Tudo seria diferente. Ele havia aprendido a
lig6o. Confiasse nele, a moga. Pedia apenas uma oportunidade. Palavra de escoteiro.
Conversa mole que nio foi aceita por uma Alcinda,
decidida a comegar vida nova, projeto que n6o incluia o vio-
65
lento policial, com rev6lver dependurado numa cintura cada
vez mais informe pelo excesso de comida e bebida. E que
roncava pra chuchu. Absolutamente. Tivesse paci€ncia, mas
nlo davi mais pC. Pensasse antes. Agora, "jamais de la vie".
Tivesse a gentileza de aliviar a sala, a casa' a rua' de sua molesta presenga. A bondade de aliviar-lhe a vida. Passasse bem
o cavalheiro.
Mariano ao ve r recusada a ansiada reconciliaglo armou
o maior banz€. Moeu a domCstica de porrada. Deu vaza aos
instintos que a atividade policial emPrestara alguma ticnica.
E o resultado foi uma Alcinda espancada a pedir socorro aos
vizinhos.
A Rddio Patrulha logo acudiu. N6o prendeu o colega,
mas levou-a ao Pronto-Socorro, onde foi atendida.
Medicada e refeita, Alcinda foi tratar da pr6pria vida.
Uma amiga de infAncia e do peito arranjou-lh 9 vege de corista no Teat-ro Jolo Caetano, q.t. levava a peea "E de Xurupito".
Ficava no fundo do palco com colares parcialmente cobrindo seus seios empinados, duros e belos. E uma tanga sumdria
que permitia vislumbrar, semPre que se mexia, uma bunda
deslumbrante. Recatada, Alcinda relutou um Pouco. Mas o
pavor de Mariano e a necessidade de uma nova vida, afastaram os preconceitos e contribuiram Para uma decislo, por
todos os tltulos, perfeitamente adequada' A amiga Salustiana,
agora chamada Bea, sugeriu que trocasse de nome e mudasse
di enderego. Sabia de uma vaga no aPartamento de umas
meninas da Revista, na rua Siqueira Campos. "Perto da praia,
umas colegas 6timas." Lamentava n6o poder morar com ela.
E que o coto" que bancava o ap€ gostava de encontrar tudo
,ro, .onfor-.r,'r.* gente por p.tio. E claro que podia ficar
por uns dias, atC acertar tudo. Falaria com o coroa, que nlo
poria obsticulos. Era gente boa, s6 que sistem{tico. Quanto
ao nome? Bom, quanto ao nome tinha que trocar' mesmo'
Aonde ji se viu torista chamada Alcinda? Nlo tinha cabimento. Mas que escolhesse um de seu agrado, nio dava palpites. Nome era uma coisa muito pessoal' E uma oportunidade rara, pois os pais sapecam cada nome na gente. Desculpasse mas nlo dava sugest6es. Ela i quem iria conviver com
o nome.
66
Alcinda pensou bastante e rcsolveu-se pelo nome de
urna pega que a havia impressionado muito. O artista sozinho no palco o tempo inteiro a chamar, a chamar, a contar
casos, a lembrar, a chamar por ela...
Resolvi, Bea. Vou me chamar Eurfdice!
-
I1
Br,e
Para Bea, atd que o teatro rebolado acertou sua vida:
mas custara! Embora o cach€ de corista n6o garantisse sua
sobreviv€ncia, foi o teatro que lhe abriu as portas depois que
ela mesma, por seus esforgos, as empurrara.
Foi o que ensinou a VAnia, depois que a recolheu vftima do conto que lhe passou o sacana do Pcru.
A atriz, minha filha, vive a apar€ncia. Tem de ter
vestidos,
bons sapatos e bolsas. As vezes atC chapCu. E
bons
cabeleireiro, manicure, pedicure, depiladora, maquiadora. E
perfume e j6ias...
A outra atalha.
Mas dd pra ganhar bem? Pra pagar tudo isso?
- N6o, niao dit. Nem pro aluguel do apartamento...
- Entio, como faz?
-Bea C professora de aluna que se revelard aplicada.
A gente precisa de um senhor que nos ajude ou...
- Ou entlo? Ou ent6o tem que C que apelar para o
mich€,- mesmo.
Mas Bea...
- Mas o qu6, corag6o?
- Isso C prostituiglo!
- outra bate e rebate.
A
prostituigeo, criatura? Que prostituiglo? Pros- dQue
ficar a mulher sentada e meio vestida esperando
tituiglo
ser escolhida. Olhada e examinada como gado. O cara se cheo dedo
gando na cafetina € perguntando: "E aquela ali?"
apontando a garota que finge n6o ser o alvo da-consulta.
lAquela ali, responde a cafetina, C nova no saho, mas ti agra-
67
dando muito. Faz tudo. E completa." E o fregu€s, ainda nio
satisfeito volta a perguntar: "E completa mesmo, faz tudo?"
A dona a repetir: "Pode ir, C completa, sim, o senhor vai se
agradar." Al o cara decide. D{ um toque na garota e vai para
o quartinho. Na porta, a empregada oferece uma bacia, um
pedago de sabonete e uma toalha pequena. A mulher se despe e se lava na frente do fregu6s. As vezes, as mais exigentes,
quando completas, o lavam rambCm. E, depois, d o lescolesco. Paga e se despede. Terminou, terminou. Tirdo no maior profissionalismo. O cara vai embora, a garota volta para o
saleo. E comega tudo outra vez: lavou, ti novo!
Vlnia sc encolhe, mas mesmo assim arrisca um palpite.
Entlo
C
uma espCcie de prostituiglo...
-Bea nio se contdm.
Mas quc mania, Deus meu! Escuta, Vinia. A puta
com
ela come e pege, ou melhor, paga pra comer.
E se a garota recusar?
- Se rccusar C despedida. E ainda se arrisca a levar
umas porradas
do lelo-de-chdcara. Poxa. Ouve, VAnia, ouve.
Conheci uma moga que recusou um cara na Big, na rua Alice, embaixo e foi fazer a vida na mesma rua, mais em cima,
porque a rua C uma ladcira, num puteiro carlssimo conhecido como Boceta-de-ouro. Pois bem: a dona do Boceta soube
pela Big gue ela lhe recusara um cliente e sumariamente a
despediu. Na hora. No olho da rua.
E cad6 ela?
- Ela, criatura, deu uma sorte que nem te conto.
-O 'ncm te conto' d senha para contar.
Conta, conta, estimula uma curiosa Vinia.
- $stn, ela lcu em um andncio de jornal que estavam
selecionando
mogas numa rua lC em BrCs de Pina para trabalhar no teatro. A garota se tocou para Id e passou no teste.
Dias depois, cstava ensaiando a pega "Castiga o couro', gue
cm scguida estreava e itia fazer muito sucesso...
VAnia n6o se segura e interrompe a narradora.
bom! Que sorte! Ser{?
-BeaQue
atalha.
- escolha. Fica sentada e o cara que simpatizar
nio tem
68
Perai, crieture.Peral. Deixa eu contar. Nlo atrapa- eu contar...
lha. Deixa
Vinia se aquieta, dC espago.
Assim a gente atC perde o fio da meada. Aonde d
- estava mesmo? Ah, na pega! Pois (., fez sucesso e a
que eu
garota embarcou nele. Os homens pensam que s6 porqu€ a
gente fica de perna de fora no palco somos todas fdceis. Nio
€, nio. Muitas t€m obrigag6es com esposos, noivos, namorados. O trabalho de corista C trabalho, mesmo. Ensaia, trabalha e vai pra casa como todo o mundo. Mas os homens nio
querem saber. As portas dos teatros de revista estlo cheias de
gaui6es. Mas tambCm aparece gente boa. Convites para festas, bailes, jantares. A tal garota embarcou num convite desses e conheceu um cara superlegal...
Vlnia, romintica, interrompe.
E ai? E ai? Conta, Bea, conta!
- Calma criatura. Vou contar. Escuta, presta atenglo.
pra jantar ou uma festa, nlo sei, o que eu sei d
Um convite
que comegaram a sair juntos. O cara vinha esper{-la no caixa
todas as noites. Era bonito de se ver. Sa{am como dois namoradinhos. Acabaram casando e a tal garota abandonou o rebolado. As vezes aparecem, quando esirCia uma pega e a genre
manda convite de poltrona.
pulx, Bea, que bacana!, d o que Vinia encontra pra
dizer. -
Bea n6o quer cortar de chofre as ilus6es da colega, mas
tambdm n6o quer semear ilus6es.
E, bacana, d, nio tem ddvida. Mas n6o d sempre as- Esse caso C exceg6o, a regra ( a dureza. Quem tem
sim, n5o.
pai e mie, casa pra morar, nlo tem de pagar aluguel, ainda
agiienta. Quem n6o tem, s6 se virando.
Mas aparecem muitos convites? Lugares chiques,
caras bacanas,
boas pintas?
Aparece, sim, mas depois o programa termina no
do cara.
epartamento
Fazer o qu€?
- E;ezet o qu6? Fazer o qu€? Fazer o qu6, VAnia? Lever
- santinha. Arrumar a casa. Preparar a janta. Tem cada
a louga,
uma...
VAnia insistc.
69
E se n6o quiser... ah... ficar com o carai
- EntSo n6o fosse. N6o aceitasse o convite. Voc€ pensa que o convite cai do cCu? Cai nio, criatura. Tem intermediCrio, filha. Um cara do pr6prio teatro. O porteiro, o caixa,
a chapeleira. Ou mesmo os choferes de praga mais antigos
que firem ponto no teatro. O intermediirio leva o dele' E
tudo acertado antes. 56 jantar, s6 jantar' 56 baile, s6 baile.
Ou entlo i tudo: barba, cabelo e bigode. O cara Paga o intermedidrio e a gente tambCm dC uma estia pra ele, pra ele indicar, sabe como C... Os caras perguntam: "Eu queria uma companhia..." Ai o intermedidrio adianta o teu lado. As vezes o
."t" t.- intenglo nume determinada garota. Pergunta: "E
aquela ali?" Ai o intermedidrio d{ as dicas: "Topa, n6o topa.
ropa isso, nlo topa aquilo. Aquela nlo C de programa." E por
ei vai.
E o sucesso, Bea? Quando vira vedete...
Bea ri-se da ingenuidade alheia.
gus6sss... Sucesso...
-Vinia insiste.
$uqg5ss, Bea. Sim, o sucesso!
-Bea considera a Pergunta. E complexa. Pensa um Pouco.
Bom
Vinia. Algumas alcangam sucesso. Vlo para o
- viram grandes
cinema,
vedetes, mas C raro.
Bea estava coberta de razlao. O sucesso aparecia para
poucas, muito poucas. No mais, muita canseira, trabalheira
danada. As coristas s6o obrigadas a aPresentar regularmente
I Divislo de Higiene e Seguranga do Trabalho um atestado
de bons antecedCntes passado pelo 6196o policial alim de um
outro certificado, um tal de certificado de capa-cidade flsica
e mental passado pelo mCdico oficial do depar-tamento. Ai
entrava o busilis da quest6o. O mCdico obrigava as rnogas a
tirar a roupa toda e as examinava nas Partes mais intimas,
apalpando os seios, as bundas, as Pernas. Fazendo_perguntas
sobtl t.*o e nlo sei mais o qu€. Os olhinhos middos do midico ficavam vermelhos e uma baba comegava a escorrer dos
cantos da boca. O cara tirava um lengo seboso e Procurava
limpar-se com as mlos tr6mulas.'Ficava ofegante. Parecia que
ia dlsmaiar. Sentava-se, olhava a paciente, a respiraglo voltava ao normal, assinava o papel e despedia a corista: "A se-
70
nhora pode ir. Passou no exame.' A garota aliviada e com o
papel na m6o s6 pensava em fugir do consult6rio.
Um nojo! Resumia Bea fazendo uma careta que sigasco.
profundo
nificava
VAnia n6o se dC por vencida.
Mas deve ter um lado bom. Tanta pluma, tanta
lantejoula, tanto paete... E as mtsicas?
Ainda nlo seria dessa vez que Bea daria uma colherde-ch{ I futura corista.
E... Pode scr... Mas atd a mulher chegar a ser vedevai
emargar um bocado. Berram por tudo! Berram porque
te,
falou
baixo; bcrram Polque voc€ falou alto.
voc6
Vinia nlo entende: d toda indagaglo. Bea C toda resPosta.
Mesmo nos ensaios, voc6 tcm de filar e sua 'fala"
mais alto ou cantar mais alto ainda, senSo os contra-regras
ou ensaiadores gritam conrigo Porque os que estlo nas dltimas filas tambCm pagararn e por isso t€m o direito de ouvir,
de ouvir tudo. TC certo, n6o tiro o direito deles; mas nlo
precisam gritar com a gente. E ensaio C ensaio, espetdc-ulo i
espetdculo-. Nlo foi aquele jogador de futebol que disse: "Triino € treino, jogo C jogoi" Entlo, no palco C igual. Mas eles
n[o querem saber.
Vlnia se complica.
Entlo por que gritam, quando voc€s falam alto?
- No camarim, criatura. Se levantar a voz no cama- a maior bronca da par6quia. E e*pressamente proirim, leva
bido falar alto no camarim.
-
pode.
-
xi!
Pois d:
nlo pode
isso,
nlo pode aquilo.
6,
tudo n6o
Bea estava coberta de razlo. Os teatros atd afixavam
um aviso com listagens dos "nlo podes". Povinho mais atrasado esse dos teatros de Revista. 'Nlo pode transitar pelos
corredores em roupas de baixo; nlo pode tingir os cabelos
sem licenga da diregio; n6o pode modificar o penteado; nlo
pode estacionar nos corredores que levam aos camarins; n6o
pode entrar em camarim de homem; nlo pode deixar que
ho-.- entr€ em seu camarim; nlo pode assinar abaixo-assinados, sem consultar o cmpresCrio; nlo pode falar alto nos
7l
bastidores; nio pode pregar prego nos camarins, nem escrevcr nas parcdes; nio pode acrescentar "cacos' ao texto; nio
pode deixar que as baratas roam as roupas de cena sob os
cuidados dos artistas; ndo pode ir I praia...'
Essas duas dltimas proibig6es intrigam I Vinia, particularmente .
Peral. Essas eu nio estou entendendo...
- Entendendo o que, criatura?
- Os teatros t€m baratas?
- gxlxixslTem baratas, sim. Os velhos teetros da Praga Tiradentes
t€m baratas, ratos, lacraias. Tem dias que os
bichos estSo mais atacados, o verio, sei lai, que a gente tem
de subir nas cadeiras pra se vestir.
E por que nlo pode ir I praia?
- Porque n6o pode pegar sol. Umas argentinas nlo se
e foram I praia. O sol as denunciou. Foram puagiientaram
nidas.
Punidas como?
- Multa, minha santa, multa. Trinta por cento do
cach€.-E ainda tem mais multa. Quer ver?
(A outra queria.)
Na companhia do Valter Pinto, os homens podem
chegar- no teatro a pC; mulher, n1o. Tem de chegar de carro:
se neo tiver quem leve tem de chegar de tdxi. A multa C a
mesmar trinta por cento do cach€.
Sacanagem.
- Da grossa. E tem mais. As coristas s5o obrigadas a
sorrir.-Mesmo sem vontade ou com dor de dentes. A gente
tem de passar alegria para o espectador. E o sorriso C essencid. Tanto assim, que houve uma briga entre as coristas e as
vedetes com o Carlos Machado e elas fizeram a greve do sorriso na boate Night and Day
Gostei. E como resolveu? Foram multadas?
- Nao, nlo foram, nio. Aconteceu que o Stanislaw
Ponte -Preta e o Ant6nio Maria tomaram as dores das meninas e desancaram o Machado pelas colunas dos jornais...
72
Qtt. jornais?
O Maria no O Globo e o Lalau no Ohirna Hora.
Ah.
Bom, af o Machado teve de recuar.
Mas a briga foi o que?
- Nlo sei bem. Parece que as meninas queriam que a
as carteiras de trabalho delas e...
casa zssinasse
UC,
nlo
assinam carteira?
- Nlo assinam nada. Pagam contra
-
recibo.
-EoMachadoassinou?
Assinou, sim. AtC que o Machado € gente boa. Mas
- C, patrSo C patrlo. E, inimigo do trabalhador. Pelo
sabe como
menos C o que vive dizendo o Marcelo, um rapaz que namora
uma bailarina do "Comigo C no caractxl' , uma pega que est{
levando no Jolo Caetano. E namoro sCrio.
VAnia, romintica irrecuperCvel, quer mais pormeno-
res.
\fxmsss, mesmo, pra valer?
- Claro! Ou voc€ pensa que a gente nlo namora?
-Vlnia se explica. Bea nio a entendera bem.
Claro que namora, Bea, mas o que eu perguntei C se
- C pra casar, por exemplo.
o namoro
Pode atC dar em car"rrrer,to, Vinia. E como todo
- 56 porque namota, tem de casar?
namoro.
E como a outra n6o responde, Bea insiste.
Basta namorar pra casar? Vinia. Responde criatura:
tem de casar?
se namorar
Nlo, nlo C obrigado. Eu s6 perguntei se era namoro comum...
E, comum. E como qualquer namoro. E o namoro
- C muito legal. E, legal is panpas.
dos dois
Vinia quer saber.
Conta, Bea. Conta tudo. (Era louca por hist6rias de
- De fadas c princesas. Aquelas em que tudo acaba
romancc.
bem, afinal.)
A bailarina chama-se Ldcia Gerck. Nio C corista,
nem vedete: € bailarina. A mle trabalha na noite, no Night
and Day C fot6grafa. Parece que ji foi corista. Agora C fot6grafa. A filha, Lricia, desde pequena, estuda bal6. Tem um
curso no Teatro Municipal, a menina estuda l{ e pretende
entrar no corpo de baile do teatro. A irm6 do Marcelo, Denise, tambCm estuda no Municipal. Ld se conheceram. Assim
que Ldcia completou dezoito anos, a m6e arranjou dela se
apresentar no teatro rebolado, como bailarina. Na pcga, tcm
73
um quadro em que ela danga. O namorado estuda Direito e
trabalha de rep6rter no Didrio de Notlcias. Faz plantio de
policia na delegacia da rua Hilirio de Gouveia. Toda noite
ele traz a Lricia e a leva pra casa depois do espeticulo. Conversa muito com a gente. Fala que o pessoal tem de se organizar, fundar um sindicato, reivindicar. Fala mal do patrSo,
fala mal do governo, fala mal dos trusts, dos americanos. E
comunista mas i boa gente.
12
Des Dones
I
Menina ainda, eram os caminhos a grande atraglo. Vivia matutando, contemplativa: o tanto que ficava olhando a
estrada. O tempSo que consumia em ver a mesma paisagem,
como se de tanto olhar descobrisse novidades. As irvores eram
i
as mesmas, as estag6es que se encarregavam de mudar-lhes
a vestimenta. Mas as drvores permaneciam enraizadas como
a desafiar transformag5es. E pareciam apenas tolerar a primavera, o outono. As flores poucas, as folhas muitas. E uma
tristeza infinita.
Pouso Alegre , cidadezinha do Planalto Mineiro, distava umas quantas liguas de Pogos de Caldas, onde seu Quaresma freqi.ientemente ia aos escambos. E Das Dores era assfdua passageira.
Me leva, papai.
-A vozinha doce, melada, irresistivel.
Levo. minha filha.
-Das Dores ia na boliia da perua, consumindo a paisagem. Outras irvores. Os rios que formavam lagoas e que voltevam a ser rios: que se perdiam de vista e mais adiante se
encontravam numa curva da estrada. Plantagdes, cria96es.
Casas, caslo, casebres.
Pessoas eram permanente novidade. Estincia Hidromineral, Pogos de Caldas seguidamenre esrreava gente. Forasteiros que vinham pelas dguas e para as curas. Ou por um
merecido descanso, direito que, para alguns, se alcanga de-
74
pois de muito trabalhar; Para outros, estado Pe rmanente.Porque j{ nasceram cansadoi ou se fatigam com o labor alheio'
P"so"t novas e coloridas Para Permanente entretenimento e
redobrada admiraglo da garota. Com elas nio falava e nem
nelas pegava, mas olhava que olhava. Especialmente no inverno q"and" os suCteres viiitavam a cidade: ficava atarantada
.Lr.t fortes e bonitas em malhas de 16. Casacos de cou",
-ro argentino
gostava muito. Idem de camurga. Das Dores
.t1- almejava t€-los' Contcntar-se-ia em neles
singJar
p"ri"t as m6ozinhas, sentir-lhes a maciez, a textura fina. Apreespecialmente as de cano alto'
ciava bolsas, sapatos e botas
Com su€ieres, casacos'- estolas, gorros e luvas I sua in-
teira disposiglo, Das Dores compunha altas figura96es. NinguCm possuia maior e mais variado.guarda-roupa, pois a imaginagao C como o sonho: nio tem limites!
Combinava cores e tons' nuangas eram apropriadamente consideradas: lis com camurga, las com couro, lls com
l6s. Composto o traje, comparecia o cachen€-para agasalhar
o p.t.ogo. Ou mantas, mantilhas, caPas' palas, vCus, ponchos e lengos de seda, fular.
Vestia e desvestia sem o trabalho de faz6-lo. Tudo ao
alcance da m6o, da inspiragio. Era um exercicio fascinante'
Podia praticC-lo em pdblico ou em privado. O teatro em que
Das Dores se movimentava era o pr6prio Pensamento' terreno em que i inritil querer aventurar-se.
Curioso i que as Pessoas nio se apercebiam das surpreendentes combinag5es que o gosto da menina engendrava'
Retirava, por conta pr6pria, elementos de uma rouPa e os
inseria .tri outt".. SC gostasse de um suCter e nele quisesse
aplicar um losango ariarelo em seu camPo ezul, n-ao fazia
cirim6nia. Os casacos tambCm se Prestavam a oPortunas
modificag6es: trocava bolsos, bot6es, lapelas, mangas. Gorros e luuas eram destaque ir parte . Gostava de v€-los combinarem entre si. N6o sC lhe importava' sequer, que destoassem do conjunto, afinal logrado ap6s pacientes combinag6es
ingentes criag6es--Queria-os ressalporq,ti n6o dizer
- ern arranios brilhantes. Ufa!
- com cores berrantes
"tadoi
Tal se via a menina em suas figurag6es.
75
Daf que Das Dores foi irremediavelrnente atralda por
um sudter de colorida malha de ll, gola tipo rul€ combinando com os punhos duplos, ambos alvos. Um lindlssimo casaco de camurga, comprido e extremamente charmoso, luvas
dc couro c pequeno chapCu com uma pena atrevida na fita de
sua copa. Botas de cano alto parcialmente escondidas nas pcrnas de uma calga de flanela. Os tac6es das botas, ouviu, ressoavam pelas noitcs de Pogos de Caldas.
Sendo assim composta a figura, pouco se dava a Das
Dores que o tipo fosse pr6vido e som{tico, diligente e lhano,
napeiro e estdlido. Por ser alto e magro, perfeiro manequim,
perdoava-se-lhe o bigode idiota, os gesros vagos, set gr,rlh" e
pcco. Das Dores, ali{s, haverC scmpre de manifestar prefer€ncia por homens magros e estultos.
Conta, enteo, a lenda que ela se perdeu nos perros de
Pogos de Caldas.
Para logo adiante se enconrrar liberta c confusa, lampcira c feliz. E algo dolorida.
N6o houve enleio, mas um certo encanto e muita novidade. Era melhor iniciar-se nos rudimentos do amor do que
ficar ouvindo o grito triste do aboio. Por que abster-se e-ficar queimando?
OtCvio ficou aturdido. Que acaso benevolente permitiu-lhe a inauguragio de tal monumento? E pensar que
idiota
vacilara em fazer a viagem. A praga de Pogos -de
Caldas -sem especiais atrativos, as perspectivas de venda desalentando o cometa, sempre reclamando da sorte, vftima do
tzer.,O quc nlo deixeva de conter um certo exagero, desculpdvel, entrctanro, pois o comum das pessoas, nituralmente,
quer os fados ao seu exclusivo servigo. E revoltam-se quando
as coisas n5o dlo certo: contra o destino, contra os outros. E
atC o bom Deus entra na danga. Mas Ele faz que nio v€ e vai
distribuindo gragas como pode e sendo miseiicordioso sempre que possivel. Nlo seria o caso presente? Que outra explicagio para o momenro sublime vivido por Otdvio dos Santos
Baptista, natural do subdrbio carioca de Maria da Graga,
branco azedo, vendedor de merda? Por que teria alcangado o
beneflcio de tamanha graEa? Jd que n6o reve merecimento,
fora graga, entio. E nio por amor ou particular afeto, ou
qualquer coisa do g€nero. Foi o acaso, mero imprevisto, no76
tdvel eventualidade. Quando imaginaria Otdvio, em sua exist€ncia inritil, ser provido de tamanha bem-aventuranga' o gozo
do mundo? A felicidade C apenas um estado prolongado de
alegria, um perfodo sem maiores afli96es, as angristias Passando ao largo. Positivamente n6o era, nem poderia ser, o
sentim€nto que o possufa. Era mais para ribombo do que
paragem: exploslo, no duro. Exaltagio! F.nt6o, era agarrar-se
ao momento, prolongC-lo o mais que pudesse' estender, dilatar. Permanecer exaltado e desfrutar o mais gue pudesse e a{
enteo, quem sabe, encontrar a felicidade.
E as coisas seguiriam seu natural curso, sem novidades
de monta, se Das Dores nlo surpreendesse o idiota do Ot6vio, parrana, metido em um desconjuntado pijama' no amanhecer de um dia em que decidira fazer-lhe surPresa na Penslo que o hospcdava.
O pijama era decepcionante. Nlo combinava com suCteres coloridas, casacos de camurga, botas de cano alto, beijos
- no portlo.
De um azul pilido, lencinho branco no bolsinho do
palet6, frouxo e lasso, o pijama emPrestava ao usuCrio uma
apar6ncia desleixada, negligente. Os bolsos do palet6, os de
baixo, continham, por sua vez, cigerros e f6sforos.
Inaceit{vel. Das Dores era remetida aos almogos de
domingo e m sua casa. Seu Quaresma, pijama e palito na- boca,
satisfeito, a dormitar na cadeira de balango. E quando seu
tio, meio-irmlo do pai, morador em Goiis, onde vagamente
mexia com minerais, pedras preciosas e semipreciosas, vinha
de visita, ficavam ambos naqueles trajes prec{rios. E de chinelas. Nesses dias, a menina amanhecia com a av6 atrds do
roco. O ruido dos fdsforos, os f6sforos na caixa' a caixa no
bolso, o bolso do pijama. A barba por fazer. O mundo por
mudar. E chinelas.
Das Dores imaginava que se mais tios tivesse, mais convidados houvessem, entlo mais pijamas teria de suportar. E
chinelas com carpins? Era um pesadelo.
Olhou os pCs do namorado. Estava descalgo. Menos
mal. Menos dissabores pare e pobre.
Aturdido, encalistou-se o cometa. Nlo estava i altura
de tais momentos. A subitaneidade do aparecimento da deu-
77
o personagem. Mas quem n6o ficaria? A preinebriando! E o diabo do urinol bem I vista. Nlo hC cena que resista
I presenga de urn urinol entre as partes. E de tal sorte que
para um chcgar atC o outro teria de transpor aquele ins6lito
obstCculo. Ou lade{-lo, atitude sem ddvida mais prudente
naquela dificil circunstincia.
Otivio compreendeu que o pijama iria estragar tudo.
Das Dores poderia relevar o urinol, pega que guarnecia o
quarto e nlo propriamente a sua pessoa. Mas o pijama era
diflcil de explicar. Imaginou dizer: "Todos usam, Das Dores.' E continuar no mesmo tom subalterno: "Que culpa tenho eu?" Quem sabe na generalizaglo n'ao encontraria uma
salda mais ou menos honrosa? Ou seria de ouro o sil€ncio?
Ou melhor arrojar-se aos pds da menina e implorar por seu
sa confundiu
senga dela inundando o quarto de luz, seqperfume
perdlo?
Ou, quem sabe, melhor seria n5.o fazer nada disso? Procurar agir com naturalidade
comportamento quc apenas
- todo o g€nero slo capazes dc
os reis, os niscio e os loucos de
administrar com permanentc €xito. Talvez oferecer-lhe uma
cadeira. Dirigir-se ir pia e fazer sua matinal ablugio. Como
se o dia tivesse comegando...
Das Dores compreendeu, ali, que pijamas assim tornariam insuport{vel qualque r pretensio I vida cm comum. Quc
n6o teria maiores atrativos: seria mon6tona e degenerada.
Pressionado, o cometa poderia fazer limitadas concess6es ao
gosto universal: usaria calgas civis, mas manteria o palet6 do
pijama. "Scm acordo", pensava. A aparente boa vontade cncerraria, no fundo, abjeta conciliaglo.
O pijama apareceu quando o traje degradou de suas
responsabilidades. Qualquer composig5o em torno de pijamas, suas calgas e palet6s, juntos ou separados, implicaria
obn6xia condescend€ncia, positivamente inadmissfvel.
As primeiras p4lavras foram enteo pronunciadas naquela fria manhl de inverno:
Bom-dia, Otdvio.
- Bom-dia, Das Dores. Entre, faga o favor. Que grata
- Voc€ por aqui...
surpresa.
Das Dores fez que nlo viu o pcnico. Aceitou a cadeira,
78
sentou-se, colocou as meos no regago, e assim ficou, linguida e bela.
Otivio recomp6s-se, pigarreou, a express1o imbecil.
Voc€ sabia, Das Dores, que sou sobrinho, por parte
- de Dom Manoel Ceia Laranjeira, Bispo da Igreja
de mle,
Cat6lica do Brasil?
(Sil€ncio.)
Voc€ sabia, das Dores, que meu tio, o Bispo, d
- da "DIANE Divulgaglo Independente de Artiscurador
tas Nacionais e Escritores"?
(Sil€ncio.)
Voc6 sabia, das Dores, que meu tio, o Bispo, tem a
- de auxiliar aspirantes I carreira teatral, ao cinema?
bondade
Descobrir talentos, revelar vocag6es?
Das Dores algou os olhos lindos: interessava-se.
13
D.as
Dorcs
II
Das Dores n5.o se apercebia das angristias de Otdvio
dos Santos Baptista, mascate mofino, apoucado cidadlo a ter
nas m6os idiotas, sern merecer, um raio de sol. Sua estupefagio decorria da evidente constatagio de que a beleza da menina s6 podia estar transitoriamente I disposigSo de sua
achamboada pessoa. A transcendente criaturinha ainda n6o
se dera conta que desperdigava gemidos, maviosos ais, com
um tipo achavascado e estulto. Nio reparava, o pulha, o que
ela tinha de di{fana, vol6til, etCrea. 56 I porrada!
Otdvio era idiota, mas n6o ao ponto de desconhecer o
dilema em que se metera: se leva a moga para a Capital, fatalmente a perder6; sc nlo a leva, perde do mesmo jeito, pois
outro a levar{, jC que seu destino C o mar.
E nem das Dores poderia saber das lambangas do tio
do namorado (Ah, cachorro!) usado pelo sobrinho como isca
para atrair a menina para a Capital e desfrutar de sua companhia, quem sabe por mais tempo. Que perderia das Dores atC
OtSvio jC atinara.
79
E como das Dores poderia saber das rrapalhadas do tio
do cometa? Adivinhar C proibido e a vida nlo C um livro em
que a gente pode pular umas piginas, saltar uns capitulos e
voltar informado, a curiosidade satisfeita, a trama esclarecida,
a urdidura descoberta, o final antecipado pela curiosidade
do leitor. A vida C o dia trangado com a noite, cuidadosa
fieira de sucedidos, renque de desgostos, sirie de alegrias ocasionais. A vida d o penoso exercfcio de si mesmo, a busca da
felicidade, a saudade pingando, o ourigo geral: C cozer pacientemente a pr6pria mortalha.
E quando vieram i tona as lambangas do tio do mascate , enteo das Dores jt n6o era mais das Dores, embora sendo
a mesrna, era outra Pessoa.
E tampouco teria ligado ao desmantelamento da arapuca, jd estava em outra. Pouco apre ndeu na "DIANE
Divulgagio Independente de Artistas Nacionais e Escrirores",
mas fez contatos, relag6es, conheceu gente, pegou asiCtica e
foi apresentada ao Rei da Noite. E sofreu, sofreu o pior agravo que uma mulher pode sofrer. Mas disso n6o gostaria de
falar.
Ao considerar seriamente o convite do cometa, das
Dores acalentava antigo sonho de federalizar-se, fazer a Capital. Importava-se pouco (Louvado seja Deus!) com o convidante. Serviria de passaporte, nada mais. Mogigangas deixava; o atrds era um nadinha, nonadas, migalhas.
Sofreu crianga, perdera cedo a mle.. Dela guardava lembrangas vagas, sem maiores pristimos. As turras com o pai,
vivia a mie no cotidiano pouso-alegrense. A cabega fora de
casa, o sentido ld longe. E avoz do pai, rouquenha e severa:
Baixa o fogo, mulher!
-Perfeitamente, baixar o fogo. Mas que fogo, se a lareira
estava {ao apagede quanto o foglo? E mesmo o ferro de engomar jit n5.o continha os carvlozinhos em brasa, as iscuas
que lhe davam serventia. Mas o pai devia ver o que os olhinhos
da crianga nio pescavam. Ou entender de coisas que a filha
nlo atinava. Ou simplesmente desconfiar. Ou deixar-se tomar pela suspeita, que d soma de desconfiangas anteriores,
do temor habitual que os homens t6m de ser enganados, adornados com chifres, chamados i sorrelfa de corno, galhio, cabr6o. Cavilosos, a transformar meros indicios em forrlssimas
80
Ou mesmo afirmar sem Prova. provada, tendo
a revelagio como certeze de pr6pria suspeita. E o
"p.tt"r
nieterico, o filho da Candinha? Entretanto, o pai devia saber
o que repetia pelos cantos da casa, estivcsse ou nio presente
presung5es.
a
mie.
Baixa o fogo, mulher!
baitat o fogo. Mas que fogo, se ele mesmo consumiu as provas em queirnadas, rest.ando apenas o
preconceito, qoe i inimigo de :':iz5io, a alma do entendimenio. Pondere, liomem: os fatos nio sustentam a ddvida. Nlo
se ponha a servigo do dem6nio' Deixe de ser Puto e n-a.o fage
culto aos g€nios do mal. Nlo corra atrds de quem seescond.e
-Perfeitamente,
no anoniilato. O relato C de duvidosa autenticidade, o bilhete d ap6crifo. Que lavar a honra, seu Quaresma? Honra
nlo se lava, pois n6o se lavam sentimentos. Lava-se rouPa'
homern. Roupa suja. Que rios de sangue' homern. Agua -c
sablo. Essas coisas'do amor apaixonado e cego comegam ridlculas c terminam em crimei. O prcconceito C uma bruxa
solta dentro de sua cabega. S€ besta, livre-se dela, homem'
Tomc ten€ncia na vida. Sua mulher C 6tima.
Baixa o fogo, mulher!
-Perfcitamente-, baixar o fogo. Mas que fogo, Helena? E
a babC, prestimosa a alcoviteira, acudia com leitinhos € Papinhas, iarinhos e comidinhas. E mles-bentas, iguaria de sua
ispecialissima especialidade, porCm, inventada Por uma cert"-Don" Benta Maria da ConceigloTorres, afamada quituteira
na Corte do Imperador menino, manjar, entretanto' a conhecer culminincias nas m6os da bab{, que misturava farinha de trigo e os ovos com unglo e chegava eo Ponto d::ozimento c6m precisio. Mas falar, falava n1o. Boca-de-siri'
Baixa o fogo, mulher!
-Pert'eitamenti o fogo foi baixado. Por uma foice. Das
Dores ficou por unt t.-pot em casa de uma sua madrinha,
moradora dos arredores da cidadezinha. Pessoa bondosa e
sensate e que gostava mais € de cuidar da pr6pria vida' Vestiu-se d. pt.ti Para o enterro. Chorou quitg mas logo foi
brincar no quinial com o filho de sua madrinha, menino esperto que qleria ser bombeiro, soldado d9.f9So' amigo. do
porro. Ett" vocagio, a de apagar fogo, sensibilizou a menina,
que via no colega uma espCcie de her6i. Chegasse antes' e
8l
teria apagado o fogo da mie, contentado o pai, que respondeu a jdri e saiu limpo, absolvidinho da silva: legltima defesa
da honra. Das Dores deixou a casa da madrinha com alguma
tristeza. Terminaram as brincadeiras. Nas festas de Slo Jo6o
a fogueirinha a crepitar no quintal e a das Dores a incentivar
naturais pendores:
Apaga o fogo, Aralto. Apaga o fogo!
-E Aralto, futuro bombeiro,
acorria prestimoso, desfa-
zia a fogueirinha, separava os galhos que a compunham, desempilhava a lenha incandescente, isolava as chamas, jogava
{gua. Apagava o fogo.
Foi a primeira paixio da menina. Em labaredas.
14
Das
Doax
III
O bestalhlo do mascate agora andava ) pressa. Talvez
pressentisse concorrentes, farejasse perigos. Andara sonhando chegar de deusa I Capital. E lembrava ditados que a sabedoria popular produzia para conferir forga )rs palavras. E entupia os ouvidos da menina com a falagio asnitica.
"A pressa C inimiga da perfeigio."
Ou:
"Antcs tarde do que nunca."
O animal nlo via que a argumentaglo caminhava no
sentido oposto aos seus desejos? Ao conrririo, sugeria que
das Dores pensasse melhor, nlo se afobasse. Os ditos lhe eram
adversos, mas o regatao os repetia.
Qomo a deusa fizesse ouvidos moucos, imersa em escassas recordag5es e algumas esperangas, continuou Otlvio
dos Santos Baptista.
"Ad perpetuam rei memoriam."
-O cretino absolutamente n5o conhecia o significado
da expressSo latina. Mas era latim, lingua de padre, poderia
lembrar, a das Dores, o seu tio Bispo, Dom Laranjeira, curador da "DIANE", informagio que havia despertado o interesse
da menina. Quem sabe n6o tiraria a namorada (Ah, cachor-
82
ro!) do devaneio? E voc0 sabe o que i devaneio, seu filho-daputa? VocO envolve seus Pensamentos em sonhos? Persegue
quimeras? Se avexe, voc6 nio fez neda disso. VocO nem goza,
voc€ sente afliglo. Coloque as pr6prias palavras ao seu servigo ou cale essa boca, ouviu?
Mas nlo d que o sicofanta aPrestava-se a insistir com
outro addgio? Parice ter balbuciado "ala jat es" ou coisa semelhante,-querendo dizer "alea jacta est" e langando-se-l
sorte. A expresslo anterior, "ad perpetuam rei memoriam',
por sua oriiem can6nica, jri que compunha bulas papais, Poieria lemblr, bamburro do acaso, o religioso seu tio' lntimo
de cardeais e PaPas' e dar um toque na deusa' recordar-lhe a
possfvel ."rr.ir" teatral. A derradeira citaglo, entretanto, "A
sorte estC lanqada", atribulda a Jdlio CCsar ao transPor o Rubic6o, rio qui seParava a Itdlia da G{lia Cisalpina, Para enfrentar Pompeu J o Senado Romano, ficou na hist6ria como
imorredouro g.rro de intrepidez e desafio: ou tudo ou nada!
Ou vai ou rac-ha! Decididamente n6o se coadunava com Pessoa teo destituida de rompantes, express6es eternas que nlo
habitavam "in anima vili".
Ou seri que o n€scio hesitava em levar a deusa Para e
Cidade de S5o Sebastilo do Rio de Janeiro, com sua graga
irresponsCvel, suas praias apertadas entr€ o mar e a monta,rh",'sau trinsito louco, sels arranha-cius e casebres, seus
homens blrbaros, paglos, infiiis a nlo respeitar a mulher
alheia, a dizer piadinha, a passar-lhes a mlo na bunda' Ent6o, era isso: se fica, teme a concorr€ncia local - prim-os'
amieos de infAncia, conhecidos antigos do grupo escolar'
eueritu"is turistaf, de Pogos de Caldas; se vai, a cidade enorme a tragar incautos, a consumir matutos, as oferendas irrecusdveis.-Tinha raz-ao santo Agostinho ao considerar a drivida como a pior das angristias.
Mas Otiivio precisava decidir-se, deixar de bobagens e
levar a deusa p"t" o centro do mundo. Afinal, vocd d ou n6o
c torcedor do'Bangu Futebol clube e eventual freqiientador
do Cordlo do Bola Pieta? Quem n6o chora, nlo mama, Otivio. N6o seja assim' homem! Lembre-se de gue^ a. ignorAncia
C a tolice atarriada de presunglo. Viva a vida federal plenamente, nlo se faEa de rogado. Se lhe tomarem a mulher, azar
83
voce
ir{
perd6-la de qualquer maneira. Mas ter{ vivido
de gl6ria. Serd reconhecido. Ter{ uma est{tua,
um bronzc naquele subrlrbio de mcrda em que voc6 sc €sconde. Vamos, homem, decida-se. Estio todos isperando por um
ato seu de vontade. A vida C incerra exist€niia. Dcixt-se de
besteiras, cara. D6 sentido prestCvel i sua misera passagern
por esse vale de lCgrimas. Delibere-se, homem. OtCvio, voc€
d um remarado filho-da-puta!
Vamos, das Dores. Vamos para o Rio, voc6 vai gostar. A -cidade d tlo grandc, imcnso d o mar.
Ot{vio dos Santos Baptista, insigne comera, patrlcio
de excelsas virrudes, cidadio-prert"nt.,-p.r,sava olhai o infinito.
-seu momento
T5
A vtttctu
A noite, aos poucos, ia capturando a tarde que morria
em restos de luz. As sombras ganhavam a mineirlsiima cidade de Pouso Alegre. O sol jC se escondia, mas a lua neca de
aparecer. A vida continuava.
'hrranjei urne cerona atC Piquete."
'Nada deixo .ie mim. Levo-me rodinha."
Piquere, Engenheiro Passos d um pulo, nlo tem
- -'De
problema.'
'Mcu pai nem vai se importar. Ele usa pijama."
"Tem uma serra no caminho. Voc€ conhece a estrada
por aqueles lados?"
'Nem cachorro eu tenho. Uns trastes poucos. Helena
tambCm foi inventar de morrer.'
'Ficaremos hospedados na Fazenda Trds Pinheiros, em
Engenheiro Passos, em Resende, jd no Estado do Rio. O dono
C meu amigo."
'Para que despedir-me?"
"Chama-se Augusto."
'Despedir-me de quem?"
84
"Augusto Carvalho C meu amigo. Fazendeiro, toca sanalegre."
"O pai apagou o fogo da mie."
'E alegre , toca sanfona, conta casos. E muito fazende iro, mesmo. Amigo pra valer."
"O pai apagou o fogo da mie."
"Foi delegado de polfcia. Agora, C politico, conta hist6ria de politica, do Gettilio Vargas, i muito amigo meu, fazendeiro, alegre, toca sanfona. E canta."
"Pobre de quem n6o tem m6e. As ralzes n6o lhe pufona,
C
xam.tt
E prefeito de Resende, a cidade da qual lhe falei. Toca
sanfona e canta para alegrar as noites da fazenda, os h6spedes. E muito amigo meu, conta casos.'
"Quem nio tem raizes como faz na vida?"
"O clima i muito bom. Voc€ acorda cedo, toma leite
no curral. Voc€ gosta de acordar cedo? Agrada-lhe o leite ? "
"Quem cuidard de criag-aozinha do quintal?"
A comida C farta e muito gostosa. Na fazenda. E as sobremesas muito variadas. Como a prosa do meu amigo. Fazendeiro, polltico, alegre, toca sanfona, canta."
"E melhor dar os galos, as galinhas, os pintinhos."
"E casado com uma senhora muito bonita chamada
Dona Adriana."
"E os patos?. Ia me esquecendo."
*Dona
Adri'Lra joga p6quer. Na fazenda."
"E o leitlozinho, t6o gordinho."
"Eu )s vezes jogo. Nlo 6 sempre. 56 quando falta alguCm para a parceirada. Dona Adriana chama: 'Venha, seu
Ot{vio, venha jogar com a gente, completar a m6o'."
"Dos meninos neo levo saudade. Sempre me pegando,
me sujeitando, querendo coisas, agarrando-me os peitos, levantando minha saia, arreliando-me."
"Se n6o tambCm nlo jogo."
'Arreliando-me, pedindo coisas, machucando-me, enfiando-me a lingua, os dedos."
"... E que o jog6 pode esquentar, se as paradas aumentarem muito."
" 'Vire, vire das Dores,' pediam os safados."
85
"E jogo C jogo. Tem de ter sorte. Prestar atengdo na
pedida, na cara do parceiro- E ter sorte. A carta boa chegar
na hora. Corresponder."
"Menina nenhuma tenho por constante amiga. Nlo gosto de mulher. Tenho outras devog6es."
"A gente passa uns dias na fazenda, descansando."
'A madrinha mudou. Aralto nio mora mais em Pouso
Alegre. Foi servir o Exircito. Parece que engajou, mora no
Rio."
"E brinca com os filhos do casal. Ele toca sanfona, ele
canta, i alegre, i politico, conta casos. Ela i senhora bondosa, cuida da fazenda, cuida da escrita da fazenda' joga p6quer. "
"Serd que vou encontrar com ele no Rio?"
"Eles t€m dois'filhos, duas criangas lindas. Voc6 gosta
de criangas?"
"Poderia andar por uma rua ds Rio e de repente topar
com ele. Bonito, fardado. A gente poderia passear na cidade
grande, tomar sorvete, dormir juntos, matar a fome ."
"O menino se chama Noel; a menina, Martinha. Slo
uns amores de crianga."
"N6o fago falta."
"Monta-se a cavalo, anda-se de charrete e toma banho
de agude. Voc€ jd montou a cavalo? Voc6 jd andou de charrete?
E agude, tomou banho?"
. "Nunca foi lugar de eu mesma."
"Eles t€m outra fazendinha colada. Chama-se Ponte
Nova. Se nlo tiver lugar na sede da fezende, a gente fica na
fazendinha."
"Lugar meu?"
"Mas tem um lugar, sim, nlo se assuste. E jaca. Tem
iace na fazenda do seu Augusto. Tem doce de jaca. Tem doce
de tudo. E sanfona."
"Nada me prende aqui. Aralto nio apagou o fogo da
m5.e. Vou-me embora."
O vendedor pergunta ansioso:
Vamos, das Dores?
- \,/xmss, Ordvio.
-E, virando-se para o cometa, as costas para e mine ira
86
cidade de Pouso Alegre, caminho de Pogos de Caldas, lugar
em que nasceu, vivera sua vidinha, exclamou:
Se vestir guarda-p6, nlo vou!
-
I6
A escotne Do NoME
Que lhe reservar{ a cidade grande, das Dores? MundCu
de genti desconhecida. Desprop6sito de bairros, ruas' casas'
apartamentos, barracos. Voc€ n6o conhece ninguCm. Pessoas
,rlltadas para si mesmas, os pr6prios problemas, atribulag6es
v{rias, aflig6er. Quando muito, um bom-dia, de dia; de tarde, boa-tarde; de noite, boa-noite. E estamos conversados.
nada, nada.
Quando
\
E tlo lindo o Rio. A cidade tem magia, envolve gitt"
te. Voc6 vai viver numa cidade moderna. Como as melhores
do mundo. 56 que mais bonita, mais bonita que todas' O
carioca C a melhor gente do mundo: acolhedor, boa praga,
universal, gozador, sempre tirando brincadeiras. O carioca C
da gema. A cidade C alegre,'das Dores. A alegria, das Dores, C
da vida. E antfdoto contra a tristeza, largamente dia
"nrora e de comprovada valia. E os divertimentos tantos.
fundido
Tantas variag6es!
Quando nada, nada mesmo. Sua pessoinha estard inteiramente desamparada. Otdvio, voc€ sabe, i o resultado das
pr6prias debilidades. Que poderi fner por voc€? Ele mesmo
precisando de ajuda, t6o frouxo que d. Vacilando semPre.
Parecendo danga: vai pra frente, volta pra trds; vai pra tr{s,
volta pra frente. A vida, minha santa, demanda coreografia
especial. Com passoi certos. Se nio, troPega. Ou cai, que C
i preciso que voc€ saiba, nlo tem cardter.
pior.
- Ot{vio,
N5o C que ele n6o tenha cariter, propriamente. Ele at€
que tem, ernbora o que tenha seja pouco. E o pouco que tem
J ruim. Mas as pessoas slo como De us c o mundo as fizeram:
€ aceitd-las e pronto. Num instante voc€ se vira. Domina a
cidade. A ter:i aos seus pCs.
87
N6o v{ atris de conversa fiada. Conversa fiada C um
corno. No Rio falra dgua. Foda-se a falta d'Cgua. Sua terra C
sempre sua terra. Quem gosta de terra C minhoca. Aqui voc€
tem amigos. Belos amigos esses. Vocd tem famflia. Minha
fam{lia C a humanidade. O trAnsito C muiro louco. Foda-se o
trAnsito. Bonita como voc€ i. Isso eu nao discuto. V6o se
aproveitar de voc6. Ai que C bom. Gostosa do jeito que voc€
d. TambCm n6o discuto. Voc€ vai penar. Vai ser capa de revista. Vai sofrer. Vai vesrir um mai6 caralina e ser capa do Cruzeiro. Yai ter dor de cabega. Vai ser feliz. Vai dar cabegada.
Vai n1o.
A lua apareceu, afinal. Rritila nos cCus das Gerais. A
deusa virou-se de frenre para a vida, o rumo do mar.
Vou para o Rio de Janeiro, para Copacabana. Vou
ser Nely!
Por que uma nuvem atravessou o campo de luz?
I7
A
c.anr DA CENTML
Ainda nlo seria dessa vez gue das Dores seria Nely.
Coisas de Sandra S6nia que implicou com o nome. Imagina
se soubesse o verdadeiro nome: das Dores? OtCvio, advertido
da adoglo do nome, nada disse e nem era besta de dizer. O
nome perfilhado vird mais adiante, a seu rempo. Antes, C
narrar a viagem i Capital em espremido resumo.
Foi Nely durante a viagem. Como Nely apresentara-se:
"Muito prezer, Nely." Purame nte Nely.
Nely apreciou muito a viagem. Caminhos novos, desconhecidos, diversos, variados: fascinante.
Gostou muito da fezenda do seu Augusto, e igualmente de todos. Acordou cedo e tomou leite no curral. Andou de
charrete e montou a cavalo.
Chegou noite fechada I Capital. O trem arrasara, como
hibito, segunda natureza a apoquentar os usudrios e
retardar compromissos, a alongar esperas.
de seu
88
a
A gare da Cencral do Brasil causou impacto em Nely: a
amplidio do vlo livr'e. A sujeira.
Nlo tem nada segurando no meio. Parece que o teto
vai desabar na gente...
Tem perigo, n1o.
-O imbecil p!rd.,, boa oportunidade de ficar calado' E
claro que o teto nio iria cair em cima de ninguCm e- nem
Nely alhava isso. Falou por falar e o idiota devia ouvir--por
or.r'ir. Nio carecia de reiposta. A nlo ser no absurdo: "Vai
cair, sim." E sair correndo, semeando o pinico, mel€ geral' E
depois rirem-se da patuscada, faces afogueadas, alma banhada. e a Capital inaugurada na brincadeira, folganga, galhofa,
,," ,"."rr"g.m. E o .lttft.nt"-.nto dos segurangas da Central
do Brasil, os mais filhos-da-puta, metidos a policia, pior que
os tiras.
E, achei que ia cair, sim. E dai? Nlo pode o cidadlo
achar que um prdprio federal vai cair? Tem lei contra isso?
Cad€ a lei? Mostra.
E se os caras n6o dessem pia tris, acovardados ante tanta
machice, crescer novamente.
Lei nenhuma. Da gravidade? Gravidade € a putaque-o-pariu!
'
E, ato continuo, enfiar a porrada nos agentes, rabo-deerraia, chute nos culhdes, cabegadas. Tocar o puta-merda'
Parar na Delegacia, na Assist€ncia. Os dedos fichados, o talho no ,orto .orturado' E satisfeito, mofdo de pancada, de
bragos com a deusa.
Comigo C assim. Mulher minha disse que a gare da
Central desaba, i porque desaba mesmo.
A mulher orgulhosa, rebentando de satisfaglo.
Mulher minha tem que resPeitar.
-E livre de complicag6es policiais, pois aldm de valente
e porradista emCrito, malandro. Na hora do depoimento' a
p"l"*r." sabida escorregada no ouvido- do escrivlo:
N6o sei o que esse Pessoal da central tem contra a
policia...
Como disse, cidadlo?
Pessoal da gare.
- Que gare?
- Da Central.
-
89
Contra a polfcia,
- Compleramenre. o senhor falou?
- Por que diz o senhor que a seguranga da Central do
-Brasil tem coisas contra a policia?
Pois nlo. Nlo C
eu disse pros caras: 'Voc€s au- mesmo nlo t6m,que
toridade
nlo. Nio reconhego. Quem tem
autoridade C a pollcia." Nlo C que os caras disserarnque nlo:
"Que_m manda na gare d a genti. Policia aqui nio se cria, neo
manda porra nenhuma."
Ah, entio € assim?
-O escrivio, diferengas
antigas com o mundo, foi relatar ao delegado. Antes, comandou:
Espera af, cidadio.
-O delegado ouviu
atenramenre o escrivlo, policial antigo, considerado, por sua escrupulosa honestidade escolhido gerente da caixinha do bicho. Sentenciou:
Alivia o cara.
-E Otdvio dos Santos Baptista saindo aclamado da Delegacia, debaixo de palmas, coberto de gl6rias. Com fama de
briguento e fin6rio. Na hora do pau, o mais valoroso, desassombrado; na hora de livrar a prdpria cara, ladino c astucioso.
Bolando a inrriga salvadora. Tirando o seu da rera.
Romintico, as palavras doces escorrendo pelos ouvidos da grinfa, descendo-lhe o ventre, rolando nas ioxas, amolccendo, despertando aperires, acendendo desejos, antecipando gozos imensos. Incendiando.
Quer uma estrela? Eu puxo pelas pontas. Quer um
- seguro
raio? Eu
a descarga. E as luas?
NinguCm poderia se expressar com mais comedimento
e lhaneza.
E o casal seguiria assim pela rua Larga de volra I Central do Brasil, ao ponro de tiixi, corcel que os levaria
ela
- aos
meiga, ele ainda desafiante
i casa, ao quarto, I cama,
jogos do amor, aos sonhos. Mas qual... Otrivio dos Santos Baptista era poltrio,
mdchio, chogo, pulha. Nio rinha imaginagio.
Homem sdrio, nio estava para jactAncias e emb6fias.
Era mais para dclambido e recatado. Absoluramente n6o se
prestava a certos papCis: nio seria pCbulo de indtil farrona.
90
sada.
-
Vamos tomar um
t{xi, Neln voc€ deve de estar
can-
Se estava, n6o delatou. Tocou-se o carro para o subrirbio de Maria da Graga, moradia do cometa.
18
A uonco.a
Ot{vio teve o cuidado de fez|'la dormir em seu quarto. Nlo queria constrang€-la perante a m6e, forgar uma barra, dar uma de marido-e-mulher. Tinha dessas gentilezas o
Personagem.
A mie nem deu pela chegada do casal. Dormia a bom
dormir. Deveras roncava. No outro quarto.
E como apenas dois quartos compunham a casa, Otivio dormiu no sofC da sala. Nlo sonhou. Das Dores sonhou
que era Nely.
Arrumou os leng6is e os pensam€ntos. Sentia a fragrincia do jasmim no jardinzinho da m6e. A casa Pequena, arrumadissima. A mie, cuidadosa, semPre limpando. O aspirador de p6 e a enceradeira comprados a prestagio no Bertino
Mota, amigo do falecido e vendedor de eletro-domisticos.
Sentia-se confortivel o cometa, aspirava o perfume da noite,
o cheiro da casa limpa. A tela da televislo semelhava entidade
a dominar a sala com seu imponente sil€ncio. A caixa do aparelho parecia ter guardada a programaglo. Sons tlo diferentes,
mistuias de lfnguas, ruidos de-tudo. Confusio que a tela figurava projetar. Inerte e apagada, porCm palpitando. Saber
das Dores ali ao lado. Que fazer? Pensar doia tanto. As imagens agora eram as da infAncia. O pai, o ballo. Os m6veis da
sala tomando estranhas formas, a sala flutuando. Era o sono.
passa das oito.
{6e1dx, Tavinho!
-O vendedor abre os J{
olhos, que enxergam a m6e . Nem
bem dormindo, ainda nlo acordado.
Mam6e, eu trouxe uma moga.
- E, eu ji vi na sua cama.
- Ela vai ficar uns tempos conosco.
-
9l
Hum.
- Ati a gente ver o gue vai dar. O rumo das coisas.
vai
tomar.
Que
A mle dd-lhe as costas. Ocupa as mlos. Inicia o labor
didrio, a vassoura de piagava, a de p€lo, o esfregio, flanela.
O balde. A rotina.
tomar seu cafC agora ou espera a moga?
-* Quer
Espero, mamie. Vou lavar a boca do mingau das
almas.
Telefonaram do laborat6rio.
-Otdvio gargereja.
Deixaram o recado na vizinha.
-Otdvio gergareja.
Faz falta um telefone.
-Otdvio grrgrreja.
Fez falta um telefone, a
-Otdvio gargareja.
mie insiste.
Isso de ocupar a vizinha C pau. Ela n6o ti ai pra
viver tomando
recado.
OtCvio parou de gargarejar.
Quando C que voc€ vai providenciar um telefone?
-Otivio
volta a garga.rejar.
Eu pouco uso. E mais pra voc€, mesmo.
-Era verdade. Pouco usava. As vezes para falar com a
comadre, madrinha do Otdvio, gue morava no Cubango. Para
acertar as visitas. Tinha graga fezer a viagem: a Auxiliar, as
barcas na Praga XV o 6nibus da Ponte atC o Cubango
e
dar com o nariz na porta. A viagem perdida, a longa volta.
Era mais para o filho, mesmo. AlCm, C claro, de conferir certa distingio. Ao ser apresentada a alguCm, poder dar o ndmero do telefone, alim do enderego. "Muito prezer, Dagmar
dos Santos Baptista, rua Slo Gabriel, ndmero 158, casa 4,
telefone 30-9137."
Otdvio havia tentado o telefone, conseguir uma assinatura. Estava gramando na fila. Que eram duas: a dos comuns mortais; e a outra, do pessoal da patota, amigos dos
homens. " Tatta errado", pensava o cometa. "Devia ter mais
igualdade na Terra."
E estd o cara entregue a t6o edificantes pensamentos
quando Nely abre a porta do quarto.
92
Bom-dia. Aonde C o banheiro?
pelz voz, a mie assoma a porta da sala e radioAtraida
grefe a deusa em sua aparigilo.
Otdvio sente a importAncia do momento.
Mamie, eu quero lhe apresentar Nely. Nely, quero
mamib. Nely, mamie. Mamie, Nely.
lhe apresentar
Muito pr^zer.
- Muito prazer.
-Otdvio, senhor da situagio, indica e outre Porta.
-ObanheiroCali.
E fica em pC. Parado. O brago estendido.
O dedo aPontado para a porta do banheiro.
Baixa o brago, menino. Nlo v€ que a moga jd entrou
no banheiro?
A beleza da Nely impressiona Dona Dagmar.
psguix, meu filho, essa dona nlo d muita areia pro
seu caminhlo?
Caminhio? N6o, absolutamente. Viemos de trem.
- Areia, menino. Muita areia pro seu caminhio!
- De Resende. De Areias, n6o. Andei pela Parafba,
- representava o Laborat6rio Silva Ararijo.
quando
Dona Dagmar suspirou profundamente. Quem sai aos
nio
degenira. O filho era idiota corno o pai. Apenas
seus,
exclamou, antes de retomar seus afazeres:
Sai, gabiru!
-
19
A PntEt Sarivs Prtita
Safram pouco depois do almogo. Pegaram um lotag5o
o MCier e dal outro atC a Praga Saens Pefia, onde morava
Divulagadores
Sandra 56nia, diretora artistica da "DIANE
de Artistas Nacionais e Escritores", entidade beneficente, fundada por Dom Manoel Ceia Laranjeira, bispo da lgreja Catdlica Livre do Brasil, tio do cometa, irm6o de sua mie.
atC
Por conta de quem tivera o personagem Pequeno desaguisado
com Dona Dagmar.
93
A discussio comegou a propdsito do banho da Nely.
Meu filho, tem de avisar I moga que falra Cgua no
- que economizar. Olha que onrem j6. nfLo enrrou.
Rio. Tem
Otivio fez que nlo ouviu e engrenou outro assunto.
Mamie, por favor, ligue para seu irmlo, o bispo, e
pega a- ele uma hora para mim. Pode adiantar que eu vou
levando a Nely para fazer o curso de atriz.
Telefono nada. Manoel
- que ele inventou
de Igreja
C
C
um vigarista. Esse neg6cio
uma vergonha, deixa a gente mal.
E pecado mortal. E tire o dedo do nariz.
'
Pra que insistir com a m6e? E preciso que estranhos
miritos dos parentes para que enteo a familia os
admita. Os mais pr6ximos, C sabido, custam a reconhecer o
merecimento dos seus. Tem tezio o adrigio: 'Santo de casa
nio faz milagres." E embalado por tlo profundas considera96es Ot{vio dirigiu-se ao telcfone da vizinha. Que o recebcu
amavelmcnte, gostava do vendedor. Quem sabe ele...?
f,nss6, seu OtCvio. Fez boa viagem? Dona Dagmar
jd deu -o recado do laboratdrio? Foi o seu Cruz. Atd falei com
ele se nio me arranjava uns fortificantes. Ando meio fraca.
Umas tonteiras, sabe?
De licenga, Dona
vou entrando. N6o repa- Trouxe esses docesJurema,
re, nio.
pra senhora. Slo cristalizados.
Muito obrigado pelo recado. Fortificante, neo C? Posso falar
no seu telefone?
Pode sim. E no corredor, o senhor sabe onde C.
- E pro, meu tio, o bispo.
- Dona Dagmar me falou dele (Era discreta e vizinha). Custou um pouco a descolar o tio. Perambulava pelo
estabelecimento scm ddvida I procura de uma boa a91o para
praticar. "Que sobrinho? Ah, o OtCvio. Que desejard o estrupfcio? SerC recado da chata da mle?"
Relutante, Dom Manoel dirigiu-se ao aparelho. Prevaleceu, afinal, o instinto familiar do bondoso sacerdote. Atenderia o sobrinho. "Que fosse tudo pelo amor de Deus...'
ressaltem os
-A16,Cotio?
E o tio, Dom Manoel ("Quem voc€ mandou
mar, idiota?')
94
Sua bdnglo, meu tio.
cha-
sorte. -
Deus te abengoe, te crie Para o bem e te d€ uma boa
Obrigado, tio.
- Deseja o qu6?
- Seguinte, tio. Nlo v€ o senhor que conheci, em
minha-riltima viagem, em Pogos de Caldas, ume mosa muito
bonita que apreciaria muito, estou certo' uma oportunidade
no teatro ou no clnema, nlo faz questlo. Al me lembrei do
senhor e de sua bondade em orientar jovens na carreira artlstica.
a moga chegar, traga-a aqui.
Est{ bem.
- Ela jd estd Quando
aqui, tio' Veio comigo.
-Complicou a guerra. Dom Manoel gostava de adiar as
coisas, .-putt"t .orn barriga. Familia era um 536s. F logo
"
hoje que tinha compromisso com uma jovem que precisava,
al6m dos conselhos sobre arte, de piedosas ora96es. Como
fazer?
Escuta, meu filho, hoje eu nlo posso atend€-la. Mas
E nosdela.
o
lado
Adianta
moga.
sa diretora artistica. Apresenta a
mesmo
Pode
deixar
Depois, eu veio sua protegida.
9".. :9
aviio a Sandra S6nia. Voc€ tem o enderego dela? E na rua
General Roca. Anota ai...
- nada, nlo. Voc€ vai na casa da Sandra S6nia.
nio tem
Nely gostou da Praga Saens Pefia. T6o grande. Lojas,
cinemas. Tat t" gente. 'Que movimento' Deus do ciu!"
Otdvio convidou.
Vamos ao Palbeta, Nely? Tem sorvete' tem wffie.
Vofrbd uma espdcie de bolo americano, fininho. Vem 9u;n;
te, a gente passa-manteiga por cima e depois derrama mel. E
E feito numa mCquina gue-Parece uma Prenmuito gostoso.
--ottto pra
voc€. Tem milh-shake, banana-split. Com
sa. Eu
calda. De caramelo, de chocolate, de framboesa. Voc6 gosta?
Gosto, Ot{vio. Gosto de tudo.
-Nely era assim: gostava de tudo. E quem gosta de tudo
aproveita
- Nelymelhor!
gostou da loia. Grande, esPagosa. Logo na entrada, i esqu.td", bal.eo envidragado com mil guloseimas:
empadinhas, croquetes, doces variados, torta, mil-folhas, brigadeiros, bolos. Refrescos de laranja, de maracujd. E mate.
95
Safam de uma miquina. Era s6 encosrar o copo na boca da
bruta. Em frente ao balclo, a charutaria completa. E miudezas: cortadores de unha da marca Trin, chaveiros, isqueiros,
cachimbos, canetas, penres. Depois, ainda I direira, um enorme balcio de cafd. Mogas com bules, xfcaras. A esquerda, ao
comprido da loja, o balclo com banquinhos estofados para
servir guarands, coca-colas, grapetes, crushs, sorvetes e wffies,
lanches e comidas. No verio, prato-de-verio a prego especial. No inverno, macarrSo I bolonhesa acompatthado de-plo,
manteiga, refresco e pudim, de sobremesa. De noire, tambdm prato-do-dia. Prcao especial.
OtCvio sentia-se muito mestre de cerim6nia.
Aqui aj1{s
e aponrava um corrcdorzinho
final
- de barbeiro. Muito bom. Eu no
do balcSo
tem saleo
cono o
- com o Donato, C o melhor barbeiro do bairro.
cabclo aqui
Tem manicure, limpeza de pele com lama de AraxC. Dizem
que d muito bom para a pele. Tem massagem no cabelo, no
rosto.
("Veja voc6: lama de Araxd!")
Em cima daqui
dedo apontava para o alto e
- mais apontaria?- otem
para onde
um enorme salio de sinuca. Em toda a extenslo da -loja. Apresentam-se os cobras do
taco. O Carne-frita, o Lincoln. Tem apostas altas. O dinheiro fica na cagapa. Sabe como €... Casadinho dorme junto.
Quem ganha vai na cagapa, tira a grana e mere no bolso. E
tem apostas entre espectadores. Quem ganha d{ ume estia ao
taco vencedor, uma espCcie de pr€mio. Quem perde, perde.
Como na vida. E pena-voc€ nlo poder ir. Mulhir nlo enrra.
("Pedi para ir?")
E Otrivio conrinuava, o falador solto.
Tem quatro cinemas, fora o "poeira" chamado
Tijuquinha.
E aqui do lado. Tamb€m do lado, mas do ourro
lado, o Carioca. O AmCrica ao lado dele, atravessando a rua.
E o Metro? Um ar refrigerado de doer os ossos! No verlo a
gente fica na porra s6 para pegar o ar quando ela se abre. E
na continuagio da Praga. A gente vai passar na porta, d caminho para a rua General Roca, onde mora a Sandra S6nia,
diretora da "DIANE, eu j6,lhe falei. Do meu tio. O bispo.
Dom Manoel Ceia Laranjeira. IrmSo da mamle. Da Igreia
Cat6lica Livre do Brasil. E homem de muita fC. E bondo-so...
96
("Haja Deus!")
Do outro lado da Praga tem o cinema Olinda. E, o
maior de todos. A gente entra sem pagar porque o guarda, o
Fritz, um cara gue parece alemlo, deixa a gente entrar. E
guarda civil, aquele de farda verde, mora em Maria da Graf", tta rua Cirnt de Faria. E perto l{ de casa. Eu conhego ele
C de ld. Qualquer dia eu te levo no cinema.
("Oh Pai!")
Tem uma confeitaria muito boa antes do Metro. E
tem as- Lojas Americanas. Inauguraram outro dia. Tem de
tudo. Este sorvete que voc6 estC tomando C invengSo de ld.
Quer dizer. E, invengio dos americanos. Mas foi ld que comegou essa moda. Quer dizer. Eles C que trouxeram do estrangeiro. Da( o tto^. dc Lojas Americanas. E bom o sorvete,
trofeus esses sorvetes, nlo parecern?
Nely absolutamente n6o estava para semelhangas
C? Parecem
e
Parecen9as.
Gosro de fitas avangadas. Tem filme assim por aqui,
Otdvio?
Atropelou-se o cometa. N6o esperava por essa. Era-lhe
dificil o diilogo. Falava, ouvia. AtC ai tudo bem. Tiocar palavras, permutar opi.ni6es era muito, infinitamente dificil.
56 a conversa trivial. Ainda mais uma pergunta como essa!
Aonde foi a menina tirar idCia tlo escalafobCtica?
dizer...
Bom. Nlo sei.
- Vamos, Otivio,Quer
a deusa comandou. Vamos conhe- essa dona. Ainda quero ir I praia, espiar o mar.
cer logo
Sandra 56nia recebeu-os muito bem.
Entrem, entrcm. Nlo reparem a desarrumagio. Es- empregada. Empregada, voc€s sabem, C um probletou sem
ma.
Nio param no emprego.
E apertando a mlo do cometa, o rabo do olho no rabo
da moga.
Seu tio me avisou da visita. E, etsa a moga? E bonium cafezinho? Passei ind'agorinha. Sentem. Fita. Querem
quem I vontade.
Enquanto esquentava o c{6 em banho-maria, Sandra
S6nia avaliava as possibilidades da moga. Bem interessante.
Carnuda. Umas narinas. Pro palco nlo saberia adiantar o jeito dela. Mas na cama... Poderia assegurar' tinha experi€ncia.
97
Valeria altos mich€s. Conhecia um certo banqueiro... Viria a
calhar. E se gostasse de variar. Por que n6o? A diretora, muito artista, jogava nas onze. Mulher do seu tempo, sem preconceitos.
Sandra S6nia servia caf€ e o papo careca.
Voc€ veio muito bem recomendada. Dom Manoel
- homem gosta muito do sobrinho aqui.
santo
- um Otdvio modesto, a mexer o cafC com
Apontava para
a colherinha, absorvido na contemplag6o da biqueira do p16-
prio sapato.
Ne ly levantou-se. O guarand, os sorve tes, a igta mineral, as emog5es pesavam-lhe na bexiga.
-AondeCobanheiro?
Ali, minha santa. S6nia, solicita, apontava a habi-
tual primeira
h direita.
Foi a deusa entrar na casinha e a diretora interrogar o
acompanhante sobre pequena ddvida, coisa de somenos. E
que a moga vinha de costa adentro. Um sacana ar virginal
confundia. Sabe-se ld? Gente do interior atrasada.
Aproveitando a aus€ncia de nossa amiga, diga-me
- Ot{vio: a moga € furada?
uma coisa,
Como disse a senhora?
- E furada?
-Pegou o sobrinho do tio desprevenido. Com essa n6o
contava. Dona esquisita essa auxiliar do tio. As unhas vermelhas apertando a perna do inquirido. Aproximando-se perigosamente.
E,
furada, criatura? Insiste Sandra S6nia.
- Hum?
- Furada. Conheceu homem? E, virgem?
- Creio que C aquariana.
- Nlo, criatura. N5o perguntei pelo signo, nio. E vir- jd trepou?
gem ou
Nely voltou i sala. Sentiu OtCvio contrafeito.
Falavam de mim?
- Falava eu, Sandra S6nia assumiu. Para elogiar. Voc€
- charmosa. Aprendendo um pouco. Um banho de
C bonita,
loja. Um banho de lfngua.
O qu6?
-
98
De loja. Tcm muita butiquc em Copacabana. Jd foi
a Copacabana?
Ainda nlo.
ir quando
Quero
- Voc6 vai gostar.
- ]rfung2 vi o mar...
- Ah.
-A conversa ia morrendo quando
ao que
- veio.
Nio v6 a senhora, Dona
tem a -bondade
sair daqui.
o cometa' afinal, disse
Sandra, que
o tio bispo
de orientar jovens talentosos na senda das ar-
tes.
Na o que' homcm?
- Senda.
- Que senda?
- Das artes.
- Ah!
-Ot{vio pigarreia seco e continua:
eu queria uma oPortunidade Para a Nely aqui.
veio de Pogos de Caldas com esse desiderato.
Des o que, homem?
- Derato, Dona Sandra.
Ah!
-OtCvio ajeitou-se melhor na cadeira.
f,n1fls, Dona Sandra, era isso que eu queria pleitear.
Meu tio, Dom Manoel, mandou falar com a senhora.
Tem dfvida, n6o. Ela podc se rnatricular no curso lC
na "DIANE". Aprende a representar.
Sandra S6nia se ligara na moga, resolveu dar-lhe um
-Ai
Ela mesma
empu116o.
E voc6 est{ com sortc, minha santa. Uma corista do
'Walter Pinto estd de viagem marcada
Para Buenos Aires. Vai
num show s6 de mulatas, e sobrard uma vaga.
Mas Sandra, eu ainda...
-sandra 56nia atalhou rdpida.
Precisa s6 ficar no fundo do palco, parada, pelada,
- para cima como se estivesse segurando um cesto. E o
as mlos
busto nq, Uma tenga e o bristb'nu.
*,"Como' Sandra? ,
$usse, minha filhe. Sclos, peitinhos. Voc€ d iovem.
durinhos. Vod rcrn!
Deve t€.los
se apresentar ld
99
Otdvio se incomoda.
Pcrai, Dona Sandra, a Nely nlo i dessas...
- Pcra{ voc6, Ot{vio.
Deixa que eu sei falar. Tenho
sim, Sandra,
quer ver?
O comera ficou bestando. A expressio imbecil. Sandra
S6nia corta o baralho.
Voc€ passa no curso amanhi no final da tarde . Eu te
- V'alter Pinto. A revista
levo no
chama-se "E de Xurupito".
Tem feito sucesso. Tdlevend,o no Teatro Recreio.
Nely saiu satisireita da casa da Sandra S6nia, e jd batizada. 'Tenha paciGncia, minha santa, mas Nely nio C nome
de corista. Nome de artisca. Gostei de vocd. Vou te emprestar meu nome. 56 metade. Deixa ver... Voc€ vai chamar...
Vilma. Pronto: Sandra Vilma." Como recusar, a Sandra fora
t6o gentil, logo se oferecendo para arranjar emprego. Ainda
nem bem tinha chegado e jC empregada. Matriculada no curso do bispo. E beliscada nas faces, nos seios, na bunda. Esquisita a Sandra S6nia.
OtCvio estava amuado. Sobrou no final do papo, ficando por fora. N6o gostou da Sandra S6nia bolinar das
Dores, perdio, Nely; perd6o, Sandra Vilma. Nio rolerava essas
tra-nsa96es. "Mulher com mulher d,5, jrcar6", pensava. Original, o personagem.
- _ -Vamos pegar um lotag6o, Nely. Aqui na Praga C ponto final de um que vai atC o Posto Seis.
Partiu Nely em diregio ao mar de Copacabana.
20
Eucourno DAs AGUAS
Parecia um nunca acabar de {gua. A imensidio do mar
apertou-lhe o coregiozinho: "Eh marziot'
Tirou o sapato. Pulou na arcia. Tio fina, ainda morinha. Agradivel de pisar. Apanhar a areia nas mi.os e v€-la
escoar, caindo aos pouquinhos. E caminhando, avangando
100
na diregio do mar. A areia agora mais consistente, 6mida.
Afinal, Nely tomou o mar pelas mlos.
Mas como poderia das Dores, jd Sandra Vilma, mas
ainda faltando ser Nely completamente, saber da inauguraglo, outrora, do mar dc Copacabana, e' depois, do nascimento do bairro? A praia mais bonita do mundo, o bairro
mais charmoso da cidadc.
A inaugurag6o de Copacabana foi qualquer coisa. O
nome foi tomado da peninsula de Copacabana, porglo de
terra cercada pelas Cguas do lago Titicaca, nos Andes, a mais
dc tr€s mil mitros dc altura. Pclo lado que a dgua n6o alcangava, transitavam os "peruleiros', traficantes de Prata que
trouxeram o norne para o Rio, emprestado pela llngua quichua.
O bairro comegou mesmo quando foi alcangado pelos
trilhos da "Botanical Garden'. Depois, jC nesse sdculo, por
obra de Pereira Passos, iniciou sua expanslo. Seu novo tragado ficou Copacabana devendo ao Prefeito Paulo de Frontin,
cm 1919. Nio levou muito tempo Para outro prefeito, Carlos
Sampaio, construir um cais para enfrentar as ressacas. E s6
enteo conter o mar, ou melhor, os mares que marcaram encontro para inaugurar Copacabana. Antes, muito antes, do
rei sair de Portugil tocado por uma ddzia de franceses esfarcomandados por um general de merda.
rapados,
- O encontro
dos mares il era ansiosamente aguardado
por todos que o habitavam, de suas margens atC suas rec6nditas profundezas.
Foi demais.
O pr6prio oceano, teo composto das 6guas do mund.o,
compareceu com todos os seus mares. Os costeiros, os mediterrineos, e mesmo os mares fechados acharam de enviar liquida representagSo. O mar da China, o mar de Espanha, o
mar da Bahia encontraram-se em mar alto e juntos entraram
na Bafa dc Guanabara.
Os ventos e as tempestades formaram vagas que correram para a terra. Perderam o Impeto e se transformaram em
ondas. Nadaram, nadaram e vieram a morfer na praia. Como
os homens. As ondas viravam espuma e cobriam Copacabana
de rendas.
l0l
A lua, tlo vaidosa, reconhecia Copacabana como sua
igual e a iluminava com sua luz. De pura inveja, uma estrcla
desceu do cCu, entrou no mar, ficou boiando. Depois da arrebentaglo.
- Parecia que a vocagio do bairro seria entregar-se i noite. E que nlo chegavam os primeiros raios de sol para
afugent{-la- Copacabana, excelsa, a cor cerflea, rosa e purPUnna, Perecra aurora.
Foi preciso que uma deusa ajudasse o sol a nascer e
falasse para a madrugada:
'Sou da noite,
Sou do v€nto.
Estrela do firmamenro,
Eu n6o te agiiento."
Era o que -espera o sol, apolineos raios, para botar o
nariz pra fora. E por constante astdcia que o sol faz o dia
aparecer. N6o por capricho ou capcioso offcio, mas por luras
e ardis. Dura e cont(nua porfia.
O mar infinito. A noite. O dia. A lua, o sol e pronto:
estava inaugurado o bairro de Copacabana, nlo mais o vergel de antes, mas uma floresta de concreto.
Nely deu por concluida sua apresentagio I praia de
Copacaban a. Ji era madrugada, enteo. Estava cansada e batizad.a para a vida na cidade grande. Tlo humana e reo cruel.
21
A orsprorDA Do
coMETA
A mic voltou a insistir que jri passava da hora. Otdvio
decidiu levantar-se. Indtil buscar proteg6o no sono, refugiar-se nos sonhos. Mortificado, levantou-se o comera. Iria ficar de pC, sim, mas trabalhar que i bom, nio. Enfrentar o
mundo? Melhor dar um giro, jogar sinuca no Palhcta.
Levanta, meu filho. Jd passou da hora!Adverte uma
preocupada
Dona Dagmar.
t02
levantei, mamle ("Um cristlo n6o pode nem so-
Jd
- prz?").
frer em
Vestiu-se rapidamente. Tomou cafC em pi mesmo.- Fez
cigarro. Agot", dava-se Pressa. Melhor telefonar logo
pro
boca
dar parte de doente.
o
Cruz,
para
A mie censurou-lhe o atraso.
Acaba perdendo o emPrego' meu filho. E emprego
- de hoje C t6o diffcil.
nos dias
Tem nada nio, m6e. Telefono da Dona Jurema, digo
qualquer, que vou chegar atrasado.
coisa
uma
Ruim Jsse nCg6cio de incomodar Dona Jurema toda
- causa de telefone. Eu jd falei pr1 v^oc€ que a gente
hora por
tem de ter um. Arranjar um pistoho naTelef6nica' comPrar'
sei 16!
Otdvio jd estava ern outra. A mle volta I c$ge.
N6o est{ direito, n6o. E, de mais a mais, Dona
ficar falada. Um rapaz solteiro indo na casa dela,
pode
Jurema
Voc€ sabe como C a lingua do povo. N6o perfora.
o maridb
injustiga: mulher sCria est{ ali. Boto miuma
E
seria
doa...
fogo.
no
nha m6o
Otivio tocou a campainha. A vizinha quando viu quem
era decidiu-se num rePente: tirou o robe-de-chambre. Fez o
contrCrio. Permitiu-se o avesso das coisas. Ficou s6 de camisola. TesSo matinal tem dessas regEncias.
A porta foi-lhe aberta. Otdvio, ao ver a vizinha s6 de
camisola, atrapalhou-se.
Desculpe, dona. E fez menglo de recuar.
-Dona Jurema, decidida, Puxou-o pelo brago.
Deixe de bobagem, seu Otfvio. Entre. O senhor nio
quer usar o telefone?
Quero, mas... nio quero ser inconveniente. A senhora mal acordou. A senhora estC I vontade. Eu invadindo.
E, falta de...
A vizinha nlo deixou o vendedor terminar.
Bobagem. Vai falando no telefone que eu vou Passar um cafezinho para o senhor.
$66, se n6o C inc6modo...
- Inc6modo nenhum. Tinha graga. O telefone o se- onde C, nlo sabe?
nhor sabe
103
Otivio fala baixo ao rclefone. Nio quer que a vizinha
ouga.
Ainda bem que te peguei, Cruz. Voc€ vai quebrar
meu galho.
E que nlo-amanhecl legal.
Cruz d boa genre. Tranqiiiliza o empregado.
Deixa comigo, mano. Agora, Tatd, me diga uma
coisa:avizinhaCboa?
O outro se embaralha.
Como assim?
- Se C boa, cara. E, comivel?
- Bom, nlo sei... Nunca pensei assim. Quer dizer, sempre no maior respeito, sabe como i.
Sei. Sei como C. Mas a voz dela ni.o mc engana. Vai
- quer nada conrigo
ver nlo
porque C vizinho. Perto de casa.
Pode dar galho. Comigo C diferente. Moro longe. Outro dePartamento, morou?
Morei.
- Pergunta se eu posso agradecer a ela tanta gentileza
- telefone. Tomar recado, essas coisas. Capricha, fala
dela no
de mim, diz que eu sou legal, gente de confianga, discreto,
coisa e lousa...
Otdvio tem ddvida. Baixa ainda mais o tom da voz,
quase sussurra.
Sei nlo, Cruz. A mulher C casada. E sCria. Pode nlo
gostar.- E como C que eu fico?
De pau na mlo, malandro. Tudo bem. Quer ficar de
pau na- m6o, tudo bem. Agora, n6o atrasa o meu lado, porra!
Virou fiscal de pica?
Dona Jurema enrra com o cafC. Ainda de camisola
(*Santfssimo!"). O comera se estnerda de vez.
Td certo. Quer dizer... Eu vou ver. Obrigado e um
abrago.-
A vizinha serve o cafC e o papo maneiro.
-
E a moga, seu Otdvio?
A gente terminou, Dona Jurema. Nely entrou para
o teatro. Estd morando em Copacabana. TambCm estuda para
atriz.
E chato, n6o
E,, sim.
104
C?
A gente fica sozinho. Eu fico tlo sozinha, seu Ot{semPre fora' Tem uns
momentos, umas horas... O senhor sabe.
OtCvio acaba o cafczinho. Levanta-se ' Dona Jurema se
aproxima.
Bom, fala o cometa.
A vizinha chega mais perto. Quase encosta no outro a
pretexto de pegar a xicera.
de ir andando. Tb atrasado, a
Bom,-repete
-Tenho
senhora nem imagina.
Dona Jureria n6o abre esPago. Fica na frente do vizinho. Estava aza;.a.de mesmo a dona. Pega-o entre as Pernas'
OtCvio s6 acha de rePctir.
TA atrasado, Dona Jurema.
- Eu tambdm.
-Otdvio ainda resiste.
vio. O- t"ttliot nem sabe. O Ribeiro
TA atrasado de verdade.
-A vizinha concilia.
-
P6e s6 um Pouquinho.
Otdvio despediu-se. No que ia saindo, lembrou-se do
recado do amigo.
Dona Jurema' o seu Cruz mandou agradecer I senhora tanta gentileza.
Qui gentileza, meu bem? Pergunta a vizinha mais
aliviada.
Os telefonemas, recados e tudo o mais.
-Dona Jurema balanga a cabega. Ajeita a alga da camisola que caira.
Tem nada. Fago com o maior Prezel. N6o precisa
- n6o.
agradecer,
Ot{vio tenta mais uma vez.
Ele perguntou se pode vir
agradecer pessoalmente'
-A vizinha di um longo susPiro'
-
56 se for semana que t'em. O Ribeiro chega hoje'
105
22
Autrtc
Teve hora cerra para morrer o astr6logo que pregava o
racismo.
Felicio JosC de Souza morava no bairro Nova Canal,
em Nova lguagu, onde tambCm comandava, na ridio Solim6es, um programa semanal de variedades, em que o prato
de resist6ncia era a astrologia, matCria de que erl professor
no comurn dos dias, alCm de tirar hor6scopo das pessoas,
fazer-lhes o mapa da vida, rragar rumos, dar-conselhbs.
Professor Fel{cio tinha uma mania, tara, mesmo. Nio
gostava de negros. Vivia dizendo que o atraso do Brasil era
culpa da desmiolada da Princesa Isabel. "Onde d que jC se
viu tirar negro do cativeiro", bradava nas ruas e na r{dio.
Vdrios homens de cor jd haviam se queixado ao Doutor Oscar Tiradentes, delegado municipal. Dr. Oscar nio fazia por menos; a cada denrincia abria o comperente inquCrito. Felfcio defendia-se. Negava, mas afirmava ao mesmo tempo. "Eu nlo falei, mas se tivesse falado, falaria. E era isso
mesmo. O negro i o responsivel pelo arraso do Brasil. O negro
e o portugu€s. Fosse o Brasil colonizado pelos holandeses e
ent6o seria outra coisa o pals."
A prova era insofismCvel, apesar do negaceio do acusado. As fitas dos programas. Era assim que argumentava a autoridade, porCm inurilmente.
Td gravado, seu Felfcio, o senhor vai negar?
- Nem afirmar. A gravaglo pode
ter sido montada para
me prejudicar,
afirmava.
AlCm de racisra, clnico o filho-da-pura do astr6logo. E
com as costas quentes, porque o filho-da-puta do juiz com
ele concordava.
Pode ser armaglo,
Mesmo a lei...
- Mas, Meritissimo doutor.
argumentava a autoridade, os
- slo semanais. Vossa
- Excel€ncia, mesmo, querenprogramas
do, pode ouvir o acusado pregando o racismo, violando a lei.
Querendo, doutor. Mas n6o quero. Juiz nlo tem
tempo-para essas coisas. Compete I pollcia trazes provas ca106
bais. O inquCrito estd mal instruido. Vou mandar baixar em
dilig€ncia. Arranje o senhor a Prova. E passe bem.
Passava mal o doutor delegado. Nlo gostava de racismo. Queria aplicar a'lei. A Lei Afonso Arinos. Diplo-ma legal
que tomou o nome do seu autor' que fora seu professor na
Faculdade Nacional de Direito. A intengio do Mestre era a
melhor possivel, mas a lei safra frouxa, sem bem tipificar a
cot dota reprovdvel. Tentara convencer o astr6logo. "Qual
holand€s, slu Felfcio! O senhor acha que a IndonCsia estd
melhor? O senhor it foi a Java? Quer ser javands? Esse neg6cio de racismo era de um atraso... Hitler era racista. Era contra judeus. Levou o mundo I guerra. Veja no que deu, seu
Fellcio..."
Que nlo estava nem ai Para as argumentag6es do delegado.
Hitler era um grande homem, doutor. Foi incompreendido.
AlCm de racista era nazista o filho-da-puta! E atrevido,
quercndo intimidar a autoridade.
Essas suas idCias, Doutor Oscar, slo idCias comunistas.
Obrigava o delegado a cair na defensiva.
Comunitt" er.t, seu Fellcio? O senhor estl redondamente enganado.
Temia, e com rezlo, o Secret{rio de Seguranga do Estado do Rio. Antigo integralista, certamente nlo iria dar cobertura ao policial.
O senhor estd enganado, seu Felicio. Cumpro a lei.
E a lei pune o preconceito de raga ou de cor. E crime..'
Crime nlo, delegado. Contravenglo.
-Era ve rdade, contravengSo e n6o crime. Umas penas de
merda: prislo simples ou multa. Nlo ameagava ninguCm. O
delegado buscou outra linha de comportamento.
- f,ssusa, seu'Felicio, o senhor tem sido ameagado. O
senhor- mesmo se queixou...
Qg1se, doutor. E sua obrigaglo ( me dar protegio e
nio ficar me ameagando, tamb€m. Assim, o senhor arma o
brago agressor contra um cidadlo respeitador das leis e dos
costumes.
t07
Ah. Eu
C
que armo o brago do agrcssor' seu Felicio?
- provocando os negros e eu € que armo o brago
O senhor
agressor, seu Felfcio..O scnhor tem cada uma' seu Felfcio.
-
"Indtil tentar dialogar com esse cachorro", concluiu
o
delegado ao partir para outra linha de ataqu€. Era conversar
co-1esposa, verificar sc ela nlo podia influenciar o marido
a pelo menos mancirar nos auqucs aos negros. Afinal, ela
tambdm estava ameagada.
Doutor Oscar Tiradentes, delegado de pol{cia municipal, lotado em Nova lguagu, ficou litcralmcntc siderado pela
hulher do filho-da-puta. 'Que pitCu', p€tlsou a preocupada
autoridade. "ldiota, com uma mulher dessas em casa e o canalha a aporrinhar a cor dos outros', considerava o tira. "Que
rematado idiota", conclula.
A senhora tenha a bondade de sentar-se, madame.
- Anita Vcridiana de Souza, sua criada.
-"Criada, tinha graga. Eu queria ser criado dela. Faria o
que ela quisesse. Gato c sapato taua 6timo pre mim", Pensava o representante da lei.
Em primeiro lugar, qucro agradecer I senhora a gentileza em atender o convite da Delegacia, Dona Anita. Muito
obrigado.
- Nlo tem de qu€, doutor. A gente tem de colaborar,
nlo tem?
Ji6, Dona Anita, tem. Mas, infelizment€ nem todos pcnsam assim. Seu marido, Por exernplo, fica ftzendo
restrig6es ls pessoas de cor...
PoiJd, doutor. O Felfcio C muito custoso. Eu j{ pedi
vdrias vezes para ele parar com isso. Que nlo tem necessidade disso. Que nlo leva a nada. Que € bobagem. E se a gente
for pesquisar bem, ninguCm cscePa aqui no Brasil, o senhor
nlo acha?
Acho, Dona Anita, acho. Mas seu marido nlo acha
- meio sem saber como proceder.
fico
A dona surpreende a autoridade.
Por que o senhor n6o o prende?
-O delegado, a princlpio, nlo soube o que dizer. e pt9-pria mulher iugerindo a prisio do marido. 'Tem coisa al',
admitiu.
e eu
108
Bom, Dona Anita. Prender, prender mesmo' eu nio
C a recuia de h6spides, de estudantes, de compradores, de emPrego
priblico em funglo de preconceito de rag_a ou cor. Nlo proibe, diretamente, a pessoa de falar mal de outra raga ou de
gente de outra cor. Devia proibir , mas n6o prolbe. Al eu
fto.uto enquadrar o seu Felicio por injfria, mas ele € escolado, esperto, deve estar instrufdo. Ele fala mais sobre a raga,
sobre a cor, mas nlo individualiza...
Individualiza?
- E,, individualiza. N6o diz, por exemplo, Fulano de
- negro safado ou coisa assim.
tal € um
Ah.
- E ai nio dC. E o juiz tambim nlo colabora. Tem um
- na Lei das Contraveng6es Penais que Pune alguCm
dispositivo
periurbar o sossego alheio exercendo profissio inc6moda.
br", o programa na rddio C semanal, o jornalismo, que C o
que ele pratica, C uma profissio, e ele incomoda os outros'
os homens de cor. E as mulheres de cor, tambdm,
to
""ro,
.
naturalmente
Pns[6, o juiz C conivente?
- A senhora vai me desculpar, mas e u nlo posso avalidos magistrados. A senhora sabe...
conduta
ar a Sei, sim. No fundo, o juiz € t6o culpado quanto o
meu marido.
Pois i, e com relaglo )rs ameagas. A senhora nlo as
posso.-AtC porque a lei, a senhora sabe, prolbe mais
teme?
-
Nlo, nlo tento, nlo.
Eles sabem que eu n6o concor-
- essas loucuras do Felicio. Os vizinhos de cor estlo
do com
cansados de saber que eu abomino esse comPortamento.
E a senhora jC procurou conversar...
- dona corta o tira.
A
O senhor jd conversou com o Fellcio?
- Ia, sim senhora.
- E entlo?
- Nlo foi poss{vel. Ele nlo quer di6logo. A gente fala
- e ele responde outra.
uma coisa
Pois i, comigo C igual. Assim como ele se nega a
dialogar com o senhor, se recusa tamb€m em casa.
-
E a senhora?
109
Vou ftzer o que? E muito desagrad{vel, e a mulher
O senhor acredita que
isso jd me obrigou, na Escola Priblica em que dou aula, a
fazer uma reuniio com os pais dos alunos. Imagine o senhor
que, em uma regiio carente como Queimados, o que tem mais
fezia
t- cara de nojo corespondcnte.
pretinhos.
A senhora agiu bem.
- Agi, sim. Primciro, aconselhci-me com ourra pro- a Angela Giacometti, uma moga gue vive trabalhanfessora,
do com os mais pobres, procurando orgenizer os pais, os
moradorcs do bairro.
C
_E?
Ela me levou pare conversar com um senhor muito
- na politica. O nome dcle d seu Gonzaga,
versado
trabalha
numa loja de ferragens, C uma espdcic de gerente l{. Um homem simples, mas que sabedoria, doutor. Td pra ver.
O delegado conhecia o Gonzaga. Chegara cle a participar de uma comissSo para reclamar do Fclfcio. E nem preto
era. Parecia mais um tipo acaboclado. E falante, respeitoso
mas duro. Colocou o delegado contra a parede. Mas tambCm
compreendeu logo tudo: a lei precdria, a posiglo do juiz de
direito da Comarca, a espertcza do acusado. E comprecndia
mais: a responsabilidadc da sociedade pela discriminagio aos
negros, encoberta, sempre, pela falsa impresslo de que no
Brasil n6o havia preconceito de cor. Como n6o havia? Havia,
sim. E o pior. Aquclc cncoberto, disfargado no mito da igualdade e da cordialidadc. Tudo mcntira, patranhas dc uma elite velha de sdculos, conclu{e o Gonzaga
Conhecia, sim. O
- Diziam que ele
delegado conhecia e respeitava seu Gonzaga.
cra comunista. Isso ele nio sabia. Nem tinha preconceitos.
Na Faculdade de Direito sempre vorava conrra a'Ala" e sempre a favor da "Reforma', embon soubesse que estava cheia
de comunistas como o Givaldo Siqueira, o Lricio Abreu e o
Milton Coclho da Graga. E outros mais.
Embora lamentando, o delegado se via obrigado a encerrar a conversa. Nio tinha scntido ficar mais tgmpo trancado com e moga. Dc rcpente, alguCm conta pro marido e
olha mais merda para ele.
ll0
Bom, Dona Anita, obrigado. Obrigado Por ter
Jd vi que
- o convite e obrigado pelos esclarecimentos'
aceitado
n6o adianta tambCm Pelo seu lado.
Dona Anita concorda demais.
Nlo adianta, mesmo' doutor. O Felicio n6o tem jeito. E "o que nlo tem remCdio, remediado estd", como diz o
sua sabedoria'
'Dovo em
O delegado levanta-se. Dona Anita, tambCm' Dirige mse I porta que pot ele C aberta. Um- aperto de m6o e mais
delegado
1,1 estavam despedidos, quando o
"grai"ci-e"."..
chama a moga:
Dona Anita, me desculpe, mas serd que a senhora
pode satisfazer uma curiosidade que eu tenho?
sabe?
-
Se puder?
Me diga, Porque seu marido age assim"'? A senhora
Sei, sim. Porque
C
broxa.
As coisas comcgaram a se complicar Para El{sio Adlo,
quando o uso da navalha entrou em declinio' Situaglo antec'ipada pelo samba de Noel quando dizia que no siculo do
o rev6lver deu ingrisso pra acabar com a valentia'
p-g..tto
'ErrJln.rro ele aceitava. o outro, oque mandava jogar fora a
navalha porque atrapalhava,
nlo, positivamente nlo
era com
ele .
O desuso da ferramenta como arma desmereceu a fama
do barbeiro. Se bem que Pouco habilidoso no trato da barba
Dropriamente dita, fungeb I que provavelmente devia a sua
irr.,errgao, Ellsio Adlo era craque t'a navalhada, por assim
dizer. Entretanto, prdtica que guardava, quando mogo' Para
as noites de sdbado.
Durante a semana' n6o. Ocupava-se em seu oficio de
oficial de barbeiro, amolando a dita no passador'
"Jd fui bom nisso" , diziaconsigo mesmo ao olhar a fe rramen;. Usava eldstico, a navalha jogada aberta na cara do
desafeto e voltando fechada na mlo habilidosa do barbeiro.
A fachada do adversdrio aberta Para semPre' sem cirurgilo
ou-. d.rr. compostura' costurasse legal. Uma avenida de
irrponro. Talho ie navalha nlo tinha conserto, todos sabiam'
Lengo de seda, que se dizia cortar o fio da navalha eventual-
ill
mente adversiria, usava no bolsinho de cima do palet6 que
lhe chegava aos joelhos. A boca da calga dc tio apertada obrigava-o a uma gin{stica corn o p( para nela entrar. ChapCu
tr€s tombos, sapato canoa, o bico de t6o fino era capaz de
espremer barata no canteo. E assim ia Elisio Ad6o passeando
sua fema. E sempre de olho nos inimigos e na polfcia, especi-
almcnte no Delegado Padilha, o qual se compretzia cm jogar
uma laranja por dentro das calgas do malandro e se ela n6o
p:Nsasse pela boca, cortava as calgas e, de quebra, rapava a
cabega do cara.
A navalha desde entlo n6o mais desfrutou do prestlgio
de outrora, a fama que seus usudrios alcangaram acdbou, foram relegados ao anonimato.
Ellsio Adio nio se importou. Aposentou-se nas duas
profiss6es: a de barbeiro e a de malandro. 56 usava a navalha
para. fazer a pr6pria barba. No mais, cuidava da gafieire Elita, onde era muito respeitado.
Era negro e morava no bairro Nova Cana6, em Nova
Iguagu. Durante tr€s anos agiientou calado as ofensas do Fellcio. Um dia, ou melhor, uma noite, cortou a garganta do
provocador. O crime nunca foi descoberto, apesar dos esforgos da Dclcgacia Municipal, c de seu titular, o Doutor Oscar
Tiradentes. Serd?
Anita, livre do filho-da-puta, foi procurar sua prima
Carmelita, tambdm vidva, mas de um policial, urn matador
chamado Badeco, "arquivo gueimado' por ordens diretas do
pr6prio Chefe de Polfcia.
Morava na me6ma casa do Lins. 56 que a vizinhanga
n6o sabia que ela cra corista do Carlos Machado e trabalhava
na sua pega "Este Rio Moleque', que fazia uma carreira dc
sucesso!
Carmelita'ficou feliz de rever a prima. N6o, nlo soubera do passamento do primo. Deveria t€-la visitado. 'Pra
que', perguntava a outra e ela mesma respondia: "Pra te dar
ao trabalho de ir ao vel6rio, ao enterro? Pra qu€? O falecido
nlo valia tanta canscira. E l{ em Nova Iguagu, onde Judas
pcrdeu as botas, qual..." E arrematouz "Jl foi tarde o desgragado."
tl2
Coincid€ncia danada. A morte dos respectivos as unia,
desde logo. Mortes violentas e merecidas.
Cirmelita contou i prima que se o marido n6o finasse
,
quem morreria era ela. Mandou matar o mddico que havia
tomado algumas liberdades com ela, embora sem maiores
conseqi.iOncias. Em seguida, seria a vez dela. Tinha certeza.
J{ se via morta. Os olhos fechados, o lengo amarrando o queixo, as m6os postas, as flores no caixlo.
A outra. nlo. Nio tinha risco de morte, mas risco de
vida, que nem marido direito era o cara' n6o prestave Para
nada.
pxsx nada mesmo, quis saber, curiosa, a Carmelita.
- Para nada, prima. Broxa geral.
-Agora, era uma quase-coincid€ncia.
Parecido, Anita. O Baldomiro, me explicou o fina- Experidiio, tinha ejaculaglo precoce. Botava e jd
do Doutor
ia gozando.
Q psg, prima, nem isso.
-Carmelita era mesmo curiosa.
f,ngfls, voc€ d virgem.
-A outra se espanta.
Virgem, Carmelita? Virgem, nada. J{ casei furada.
E depois, dava quando tinha vontade.
E o Fel{cio?
- AlCm de broxa era corno manso. Fazia que n6o via'
sei ld. -O que eu sei C que nlo ligava a minima. Gostava mesmo era de falar mal dos negros. Um babaca' Tive cada negro,
prima. Nem te conto.
Curiosa a mais nlo poder, Carmelita pede:
Qsngx, prima. Conta pra mim. Me d{ os detalhes.
- dessas hist6rias. Eu devia ser escritora, sabe? Botar
Eu gosto
no papel as hist6rias que me contam. Mesmo a minha ou a
sua, cada uma dd um livro. Ora, se dd!
Mas Anita nlo queria mais aquela conversa. Engrenou
outro assunto,
Me diga uma coisa, prima, ser{ que voc€ nlo arranja um -lugar pra mim...
Carmelita considera.
Nlo C dificil, nlo. Tem semPre muita moga saindo.
- Saindo? O emprego C tlo mal assim?
-
ll3
- N6o i tlo mal, mas voc6 nio tem nenhuma seguranga. Quando voc€ assina o contraro, jl deixa assinado a rescislo delc.
Sacanagem, p6.
- Sacanagem, mas C assim. A( as meninas quando arranjam- outras bocas se mandam. Tem shou no estrangeiro.
Especialmente para as mulatas. Em Buenos Aires, na Europa. Tem tambim casam€nto.
Casamenro? Espanta-se a outra.
- Casamento, sim senhora. E na lgreja, com padre e
tudo. E viu e grinalda, sim senhora. Pensando o qu€?
Anita gosrou.
$x6xqa. Mas e o emprego, dl pre viver?
- Pra viver mesmo nlo dd. Mas jC i um adianto. Eu,
por exemplo,
9ue tenho casa pr6pria e uma penslo do faleci-
do, embora pequena, d{. E pra voc€ tambCm vai dar. Voc€
vem morar comigo... Diga, prima, Felicio deixou alguma
coisa?
Deixou, sim. A casa
l{ em Nova lguagu.
- E, boa.
- Boa (., at9. demais. Mas o lugar, voc€ sabe, nio
muito-valorizado.
C
mais?
- Que
Deixou o escrit6rio no Centro de Nova Iguagu que
eu jd aluguei.
Falta ver a penslo...
Deve ser pequena.
- Deve, sim, mas sempre ajuda.
- Isso i verda.de. De grio em grlo...
- A galinha enche o papo.
- E se voc€ quiser...
- Quiser o qu€?
- Fazer programas, sair com uns caras endinheirados.
D{ bastante.
E tem que dar pros caras?
- Depende da combinaglo. Pode dar e pode nlo dar.
- que s6 quer companhia pra noite. Vem de outros
Tem cara
Estados para fazer neg6cio e aproveita pra conhecer a noite
do Rio. Eu mesma fago muito pouco. Fico logo com sono.
Mas quando o cara me agrada, eu saio mesmo.
E quem arruma os programas?
-
tt4
No teatro tem genre. Na boate que voc€ parar, tamTudo Azul quando quero sair. Ou no La
Crenailllre . Fiquei amiga do pessoal do Trio Iraquitl que toca
na boatc. E fico l{. Fico ouvindo. Se aparece alguCm interessante, eu saio. Se nlo, venho Pra casa. Leio, ougo mrlsica.
Encaro a cama. Tem'tamb€m a Sandra S6nia...
apito toca?
- EQue
direiora de uma espCcie de escola para atrizes, de
um cara bispo de uma Igreja nlo sei de qu€. Um cara pra lC
bCm. -Eu paro no
de safado.
Ela faz o que?
- Corretagem.
- Qslssgxgsrn]
- E,
Ela tem os contatos masculinos,
"otr.i"gem.
programas.
os
cara de grana, e accrta
tudo
Anita gostou da informagio sobre a escola. Ela tambCm gostaria,de estudar para ser atriz algum dia, quem sabe?
Que escola C essa, Carmelita? Ensina mesmo?
- Ensina,
ensina. Os caras dos teatros vlao li para contratar coristas. Quem se destaca pode atC conseguir uma fala
nas Pe9as.
-
Voc6 estuda 16?
Regularmente.
Me lcva?
lgve, sim. Mas 16 nlo pode me chamar de Carmelita.
Como C gue eu devo dc chamC-la?
Lita. Me chama de Lita, prima.
Q[x6e, si111.
23
Dou Lttnqulrna
NinguCm jamais soube bem explicar como Manoel Ceia
Laranjeira, tipo me6o e giboso, tornou-se Bispo da-Igreja
Cat6lica Livre do Brasil. E menos ainda se poderia informar
sobre a Igreja Livre do Brasil. O "Livre" i que complicava,
apesar dJser vocCbulo geralmente apreciado. As outras fica-
ll5
vam.sob suspeita: nlo seriam livres? De saida, o titulo que
escolhera era rebarbativo, antagonizave com as demais lgiejas, ou,.pelo menos, com as aqui situadas. Comprava rima
briga cabeluda.
Mas, n6o era sd essa a dificuldade. A de nature ze mecerial era aparenremente inrransponivel. Principiava por n6o
ter sede conhecida, o que representava grave embarago I difusSo de suas pias idiias, as raz5es pro-fundas que o teriam
levado a romper com a Igreja Romanl. Ou a nio aderir a um
seu confrade, o Bispo de Maura, dissidente conhecido e que,
outrora, recebera, em sua plenitude, o sacramento de ordem,
e que ia levando seu cisma com relativo €xito.
Modesta SC no subrirbio conferia circunstincia i Igreja do Maura e permitia-lhe realizar casamenros enrre pessoas
impedidas pela estreiteza da lei civil ou por intransponivel
dogma religioso. Fazia-lhes a vonrade,
ao clamor social, e enfrentava, a um tempo, o Estado"t.ttdi"
e algreja reconhecida, embora n5o mais oficial ("Coisas da Repriblica, lamentava"). Resolvia intricadas situag6es, amanhlva fam(lias, ministrava-lhes os sacramentos e recebia altos 6bulos, aceitava
contribuig5es, doag5es eram bem-vindas. E ia vivendo: um
benemdrito!
Seita sem templo, bispo sem Catedral, ordem religiosa
sem padres, seriam grandes os percalgos que o sacerdoti,enfrentaria. Mas n5o haveria de ser nada. Quem, como Dom
Laraljeira, de u provimento a si pr6prio, ordenou-se e sagrouse bispo, saberia vencer os obstriculos que se lhe
sem.
"nt.pirr.r-
Xexiu, amigo de.infAncia e do pe ito, barbeiro afamado
.
e perito na arte, quando s6brio, abriu-lhe a cora, tonsurouo. Negou-se, entretanto, a beijar-lhe a meo, a reconhecer-lhe
a-sribita dignidade eclesiristica, culminincia que ele mesmo,
XexCu, ajudara a perperrar. Mas, de quebra, aparou-lhe as
melenas e deixou o recCm-sagrado espitar .oit" que seria
"
acrescida do deslocamento do oficiaf i resid€ncia
do prelado,_lugar. ma.is apropriado para a cerim6nia do que o-salio
no Lins, localidade infestada de incrCus, pessoas infensas aos
sacrificios a que ora se impunha Dom Laranjeira. Talvez por
conhecerem o sdbito sacerdote de longa daia. Sempr. t.ro,
I l6
aplicando pequenas defesas, jogando bilhar. Por isso,
tonsura fora feita no maior moc6.
a
E verdade que o recente clCrigo sumira uns tempos do
bairro, do Sal6o Estrela Dalva, nome escolhido em homenagem I cantora Dalva de Oliveira, de quem era ardoroso f6,
do Bilhar do Seu Francisco, do caipira da Estaglo do Engenho Novo. Seus detratores dirao que andou em cana, cumprindo pena por estelionato, mas isso jamais ficou provado
por certideo competente ou ilibado testemunho. Tatarana,
de conversa ambigua, o religioso defender-se-d, embora de
forma meio vaga, sua hist6ria serd Iacunosa, imprecisa' o sentido obscuro prevalecendo sobre a clarcza dos fatos. FalarC
de sua incontida vocaglo sacerdotal, manifestada, pela primeira vez, quando menino, coroinha, adjutorava o vigdrio,
especialmente quando lhe cabia correr o prato para as
esp6rtulas, e, {gil, aliviava a par6quia de alguns trocados,
niqueis gue as mlos espertas faziam escorregar para os pr6prios bolsos. E claro que a parte final da hist6ria frcari encoberta por um vCu de mentiras, mas por justas raz6es, entretanto: a ningudm C licito delatar qualquer povo, quanto mais
a si pr6prio. Pessoa alguma poderia exigir tal comportamento de um semelhante, mesmo de quem procura santificar-se,
ganhar os cdus, livrar-se de todos os pecados. AlegarC que
irresistivel vocaglo levou-o a tomar ordens, vestir hlbito sacerdotal. Serd uma edificante conversa, sem ddvida.
Construir a sede de sua lgreja, portanto, foi o desafio
que Dom Laranjeira aceitara: confiava na bondade alheia, na
caridade priblica, na compaixlo geral. O "reino dos cCus" n6o
se alcanga com conversa fiada, era preciso trabalhar. Fano ou
delubro nlo lhe importava fosse o templo. Era construf-lo
Prestamente.
Uma grande t6mbola para fins caritativos seria a soluE todos ganhariam. Sim, porque o proveito
adequada.
91o
imaterial decorria do simples ato de comprar o bilhete. Se
premiado, entao, o beneficio seria duplo. Vantagem no cdu e
utilidade na terra. As temporalidades e as espiritualidades.
NinguCm perderia. Dom Laranjeira estimava as solug6es
abrangentes. Fazia-lhe bem I alma, renovava as convicg6es
que o iluminaram em caminho tlo espinhoso, mas vertical e
I t7
sacrossento. E correria o pr€mio pela Loteria Federal, o que
conferia certeze aos apostadores, nagio de gente naturalmcntc
desconfiada.
Entre a iddia da t6mbola e o dia do sorteio, as disposi-
do santo homem se alteraram. O autom6vel que seria
sortcado mclhor serviria aos seus picdosos labores, cstaria,
assim, multiplicada a sua capacidade de propagar a verdadcig6cs
ra fd, anunciar os novos tempos, assistir aos desvdidos, consolar os aflitos. Essa sensata idiia levou o piedoso sacerdote
a dcsaparcccr com o velculo, realizando um ato quc julgou
ser de significativa candura e manifesta fi. Mas tal nlo foi o
entcndimento do sorteado. Dirigiu-se I Delegacia Policial
mais pr6xima e complicou: foi gueixar-se ao "bispo" de plantlo. Comportamento, dc logo, a mcrecer reParos. E, sabido
que as pessoas costumam se queixar ao bispo, quando nio
mais encontram a quem apelar. Rigorosamente inusitado d
queixar-se do bispo, o que trouxe nlo poucas contreriedadcs
ao santo homem. Debalde argumentou com o ganhador, em
encontro arranjado pelo Xexdu, barbeiro de ambos, que o
estlva desobrigando de um bem material o que acentuaria o
cardtcr apenas espiritual da t6mbola e reforgaria a posiglo
do felizardo junto ao reino dos cdus, na hora do jufzo final,
porra! Liberado do pr€mio terreno, as b€n96os se derramariam, com maior intensidade, sobre sua cabega. Qabega quc
era dura, entretanto, e que recusou argumentzglo tlo transcendentc e razodvel. O virtuoso pastor viu-se, entio, comPelido a fazer um acordo com o loterista e a passar-lhe o carro:
nlo o "zero quildmetro" do anrlncio, mas um de segundamio, embora em perfeito esrado de conservagio. Jamais batera de frente.
O caso foi acomodado no Distrito, o dito ficou pelo
nlo dito, mas Dom Laranjeira viu-se obrigado, Por sua Yez, a
contribuir para uma.vaga obra de caridade em que sc €mPenhava a mulher do impenitente titular da Delegacia. "Nio se
pode confiar em mais ningudm, qualquer um fazia obra de
caridade", ruminava o eclesiCstico, aconselhando ainda, a
privar a jurisdiglo da autoridade de sua indulgcnte Prcsenga.
A fundagio da "DIANE
-
Divulgaglo Independente
portanto, a cdhar,
de Artistas Nacionais e Escritores' vinha,
ll8
sobre corresponder a um antigo desejo da venerCvel figura.
Sem contar i.rantagett adicional de atravessar o ttinel-que o
afastava da sanha policial e o aproximava da Zona Sul, com
seus mistirios e promessas, e dos artistas' gente sabidamcnte
avoada, desprendida, flcil de lidar, de convencer. Poderia
cercar-se de poetas, tribo de nefelibatas, pessoas de certas letras, pouco siso e muito riso.
de se temer quem Por Penoso oflcio tem o das
letras. Vivem empenhados em colocar no papel palavras que
formem frases, orag6es que consertem perlodos' que componham hist6rias, acontecidos, lamentos em Prosa e verso.
Maioria de pacificos e trat{veis, embora certas idCias Postas
em livros tenham causado alguns transtornos a paPas e a principes, a bangueiros e a generais. Humilde, Dom Laranjeira
nio tinha a pretenslo de ombrear-se com homens tlo importantes, vivendo nas alturas, como o escritor Nelson Werncck
SodrC, que alim de homem de letras, era general que complicave elnid" dot colegas de farda. Um qtiiproqu6 danado' que
o piedoso sacerdote nlo compreendeu bem quando lhe explimas fez cara de paisagem e foi em frente, atC Porque o
""t"-,
porque n6o diclCrigo habitava as planicies, em especial
-as ruas e becos, esconsos faltos de figuras ilustres. A
zer?
eles, o dedicado cura, queria servir, aPenas.
Dos sucessos anteriores nem mais se lembrava. Anistiou-se, concedeu-se ilimitado perdeo. Era um dos poucos
privilCgios a que se permitia Dom Laranjeira: o uso, embora
moderido, das superiores vantagens de ser o chefe de sua
pr6pria Igreja. Poucos colegas no mundo inteiro desfrutavam de tal poder. E certamente um reduzido nfmero o usaria, o que n6o lhe parecia grande coisa' pois dirigiam Igrejas
antigal com templos, paldcios, catedrais imensas, basflicas,
santuirios, par6quias, capelas. A possuir terras, ouros, brocados. E prata e paramentos. Papas, cardeais, arcebispos, bispos, abades, pt.sblt.tos' oragos, reverendos, arcediag-os, c6negot, priores, deiosr vigirios. Conduziam a vida e administravam a morte. Eram reverenciados e todos os acatavam' Nlo
precisavam apelar para poderes de exceglo. Possulam exdrciio, . .oott.s-celesiiais, tropas na terra e millcias no cdu, legi6es de anjos, espiritos de luz, arcanjos, serafins, querubins,
Podiam se expressar em latim semPre que lhes fosse conveni-
Nlo
C
I l9
ente, atC para n6o serem entendidos pelo comum dos mortais, por scus rebanhos. Tartamudo, Dom Laranjeira cxprimia-se epenas regularmente na lingua vernCcula, desconhecia todas as outras, vivas ou mortas, I excegio da llngua do
'p' q,r. praticara quando crianga e assim mcsmo com certa
dificuldade. Por esses motivos, aldm dos demais, o obscuro
eclesidstico precisava de muita, infinita compreenslo. Ele
estava comegando, n6o vinha de sCculos, demandava compaixio, boa vontade.
Posta a coisa em tlo elevados termos, o destino dcveria
se encarregar_ de urn merecido realce ao devoto cldrigo. Os
insondCveis desfgnios da Provid6ncia poderiam ser .olocados a scrvigo dos alevantados prop6sitos do imaginoso sac€rdote.
Era isso, pelo menos, o que esperava Dom Laranjeira,
ao emprestar seu honrado nome I nova entidade.
Com dedicados colaboradores
mais tarde injustamente acusados de formagio de quadrilha
o bispo instalou, numa casa de Botafogo, a "DIANE". Arranjou
rnesas e
cadeiras, poltronas e atd um pcqueno palco foi montado. Com
isso, o saldo da t6mbola, jC sangrado com a falta de compreens6o do premiado e com a voracidade do aparelho poliiial,
csvaiu-se. Viu-se, enrio, o religioso, compelido a aceirar m6dicas contribuig6es dos candidatos ao eitrelato. O que lhes
seria rctribufdo com o almejado sucesso no palco ou nas relas, pois os aspirantes podiam escolher entrC o rearro e o cinema.
Quando a fama, afinal, chegasse, o renome batesse irs
pr6prias porras e a celebridade, enfim, viessc a incomodar,
tivessem de usar 6culos escuros para escapar de enlouquecidos fis, focas nlo amestrados de jornais e ievistas sens"cionalistas, cnt6o veriam qu6o fnfimos foram os tributos. Como
era larga a vis6o do reverendo, como era generoso o seu esplrito! Pressago, jt antevia um fururo de gl6rias para seus pupilos. Que acorreram prestamente ao anrincio publicado nos
principais jornais:
'Prccisam-se de rapazes c dc mogas pdra completar o quadro de drtistas dc duas jellcaks naciinais..."
Os candidatos deveriam submeter-se a um resre na rue
19 de Fevereiro, em Borafogo, justo ao ladq da rcsid€ncia do
120
afamado cineasta Luis Carlos Barreto, que entlo tivalizave
com Nelson Pereira dos Santos.
Ao bairro em que outrora moraram Rui Barbosa e C6sar
Guimarles acorreram muitos e variados jovens em busca do
estrelato. Gente em penca. Que movimento! gente. SCrios e
compenetrados das altas responsabilidades que assumiam' os
diretores da "DIANE" garantiam estar ali a "porta aberta para
o estrelato'. Coisa de louco!
Os pretendentes depositavam a m6dica contribuiglo e
recebiam um texto para decorar. Depois, no prazo estabelecido, voltavam para <l teste. Eram invariavelmente reprovados. O que serviria, mais tarde, de argumento Para os maledicentes esculhambarem a "DIANE". Os papCis que Prometera, em andncios pdblicos, no cinema nacional, nunca aPareceram. Pelas mlos da "DIANE" jamais alguim conseguiria
trabalhar no cinema ou mesmo no teatro. Mas que culpa tinha a consplcua sociedade se rareavam os talentos e escasseavam as aptid6es? Se os que acudiram ao andncio eram Pessoas destituidas da imprescindivel vocaglo? A eles faltando
indispensdveis pendores. Em absoluto nlo se podia oPerar
milagres, apesar da s6lida posigio religiosa de Dom Laranjeira, Bispo da Igreja Cat6lica Livre do Brasil, presidente e
curador da "Divulgaglo Independente de Artistas Nacionais",
fung5es que acumulava com a boa vontade costumeira e reconhecido sacrificio. Dividia-se entre o cCu e a terra no afl
de a ambos agradar. A poder de ingentes esforgos, de mourejar
dias e noites, se bem que estas amenizadas pela companhia
de uma pupila particularmente interessada nas particularidades do teatro e nos mistCrios da fC. E o bom homem atendia a penitente, ensinava, consolava-a em seus ardores.
E o anfncio fora (Propositalmente?) vago. Dom Laranjeira tinha experi€ncia com a ingratidio ctdavez mais significativa desse amontoado de gente embrutecida chamada "humanidade". Sem reconhecer os valores emergentes' sem compreender as dificuldades que enfrentava para estabelecer uma
nova fC, construir uma Igreja, espalhar a boa nova. Era como
espargir dgua benta sobre uma multidio de infiCis. Ou
abengoar hordas pCrfidas. Inftil e desolador ministCrio esse
que se impusera o santo homem. E nlo fossem os fteis e oPortunos conhecimentos sobre a capitulaglo dos crimes e a fixa-
L2l
glo das penas, com que a vida o insrrulra, a orient{-lo em
momentos tio dif{ceis de sua existEncia, Dom Laranjeira cstaria literalmente fulminado, pois a tanto chegaria a maldade humana, a inveja, os inimigos poderosos, o abuseo, o con-
vencionalismo. As pessoas adoram formular queixas ls delegacias policiais. Denunciag6es postulat6rias.
Estava Dom Laranjcira divagando, quando um clario
salvou-o de tlo ominosas reflex6es. Por que n6o ampliar a
clientela da pia obra? Por que n6o estende-la a rodos? Por
que limitd-la aos jovens
rapazes e moges
inda mais
- mal-agradecidos, sem
- corresponquando eles se mosrram tlo
derem aos nobres feitos do prelado, tanto afadigamento c trabalheira lhe custava a escola. Ingratos a implicarem com o
singclo texto do andncio: "Prccisam-se dc rapazcs c dc mogas
para complctar o quadro de artistas dc duas pcllcahs nacionzis... " Nem de leve se insinuava que as referidas pel{culas
tinham precislo de artistas. O texto era claro como a luz do
dia: era complctar o quadro de artistas j{ existente. Os diretores de cinema, homens irrasclveis, poderiam realizar a filmagem com quadro incompleto. Ou alterar o roreiro, modificar a histdria, matar figurantes, n1o deixi-los nascer, exercer, enfim, seus extraordinirios poderes de vida c de morte
sobre os personagens. Nlo faziam isso habitualmente, s6 por
simples capricho? Ou para enlouquecer os produtores? Ou
mesmo por pura sacanagem? Adaptar o efetivo de artistas I
trama era tarefa simples que n6o requeria complicadas manobras. Era s6 jogar fora algumas cenas, e pronto! Com que
autoridade reclamavam, enteo, do honesto religiosol Melhor
que aprendessem a desfazerem-se em ldgrimas para, no momento seguinte, espipocar-se em altas gargalhadas. Aprender
as artes e nlo encher o saco do reverendo.
Motivado por essas nobilitantes considerag6es, o prcconicio saiu enxuro, reclame pra ninguCm botar defeitos ou
futuramente alegar direitos. 'Extras pard o cincma nacional.
Prccisam-se, na rua 19 de Fcuereiro, 139." Foi a{ que o atd
cnteo pacato logradouro conheceu seus momentos dc fasti
gio. A ruazinha amena, ladeada por canhestras {rvores, transbordou de gente, de todos os pontos da cidade, de todas as
122
Multidio de candiiatos I suprema gl6ria de imortalizetem as pr6prias figuras na cinematogrifia pdtria. Dom Laranjeira, passado o
ragas, de todas as cagas, de todas as idades.
momento em que atC a pr6pria fC lhe vacilara, considerava a
avalanche do ponto de *'ista da ampliaglo das atividades da
"DIANE", a oferta de possibilidades gerais (Que generoso
coraglo!) e substancial acriscimo nos ganhos, pois ningu€m
vive de brisa: faturar C preciso. E resumia' Para uma atenta
platdia de colaboradorei, condescendentemente, a sua judiciosa opiniio sobre o extravagente acontecimento:
Democrecia € assim!
-
Revigorado em sua fi, restabelecido em sua liquidez,
p6de o pastor empreender profundas alterag6es na concePgao berita do projeto e Precatar-se contra os eternos inconformados, insatisfeitos que vislumbravam delitos onde s6 existia bondade, pessoas que s6 vieram ao mundo Para tentar os
mansos, perseguir os puros' aporrinhar os demais.
Procutoi, logo,-dar um sentids prdtico aos seus sublimes objetivos. Entiqu em confabulag6es com Dona Sandra
S6nia, antiga corista do teatro rebolado, p-ossuidora {e yma
regular Escola de Arte, registrada na conformidade da lei e
do-s usos. O neg6cio foi concluldo com a comPra' pelo bispo, da cobigada escola. Desprendido' o comPassivo pastor
deixou as cotas da firma em nome de sua antiga proprietdria,
forrando-se, t6o somente, com um "contrato de gaveta" em
que a s6cia lhe reconhecia a propriedade e se obrigava a transferir as cotas para o reverendo ou Para quem este bondosamente indicasse. Para si, reservou o caixa da empresa, responsabilidade a exigir cuidados de homem, n6o importava.se
iacerdote fosse. Doha Sandra seria a diretora tCcnica, cuidaria da parte artistica propriamente dita, poderia expandir seus
primoiosos pendorei, sua reconhecida sensibilidade. Para faa antiga corista deixaria os recibos assinados
"ili."t
m1o. Teria suJretirada, mensal e generosa' garantida
de ante".r.rit",
e seria muito, imensamente feliz.
.
Era um arranjo magn(fico e a vida transcorria em Pcrfcita calma, atd que u- c.rto Domingos Alberto Ribalta, cidadao lusitano, ap6s cinco anos de iontribuig6es e dcsilur2.3
s6es, resolveu levar o caso ao conhecimento da Delegacia de
Dcfraudag6_es dizendo horrorcs do curador e presidJnte (de
honra) da 'DIANE" e de sua diretora artlstiia, a impoluta
Sandra S6nia.
A antiga corista ficou uma arara. Conrratou advogado
e ameagou proccssar o queixoso por difamagio, injdria e caldnia, as tr€s de uma s6 vez: nio faziapor menos a ofendida
professora.
Era, sobrerudo, mal-agradecido o aluno, especialmente com quem lhe dedicou horas extras, a trein{-lo em variadas prdticas amorosas para que nio fosse o galego surpreendido com um convite para um filme maislvaigado'e n6o
soubesse representar. E se nio repetiu o experimento foi por
encontrar o estudante por demais sabido e excepcionalmente
bem dotado pela natureza, o que n6o recomend"*'" determinada posiglo qu! o ardente luio passara a lhe exigir.
. M.:To o diploma de concluslo de curso que, ao final
de cinco laboriosos e'indteis anos lhe ourorgou, r€presentava
pura boa vonrade e o sadio espfrito de camarad"g.- q,r. o
lustro alicergara. Razo{vel c6lira e justa indignag?o
"trirrr"vam o espfrito da injustigada mesrra, de tal forma e com
tamanha carga de convencimento que o pr6prio Tirular da
Delegacia de Defraudag6es, Doutor Mariano Luiz, dividido
entre hist6rias t6o dlspares, ficou na sua, deixou o barco correr, ou melhor, navegar.
Na verdade, a escola existia legalmente, os papCis estavam em ordem. AtC artistas de algum renome ali ietxerciam
entre mont-agens de pegas, apresentagdes em outras pegas,
shows variados. Muitos cumpriam, atC mesmo, inteiro,b ano
letivo, expressando duas voiag6es: a de mestre e a de artisra,
premidas, ambas, pela falta regular de trabalho nos palcos, o
teatro cada vez mais um entretenimento das elites. AlCm de
representar um ponto seguro, uma espicie de pista de langam€nto para programas mais rendosos ou atC mesmo fabulosos mich€s, que Dona Sandra S6nia em pessoa se esmerava
em arranjar. E n6o seria ela diretora artfstica.
Por ourro lado, forgoso era admitir que a escola nio
reelizara sua finalidade essencial: n6o se tinha norlcia da efetiva contratagio de qualquer dos seus indmeros alunos, rirante o pessoal dos teatros de revista que, vez por ourra,
t24
arrebanhava coristas para as temporadas, somente. O que jC
era alguma coisa. Ou nlo era?
A diretora artlstica da "DIANE" n6o se conformava
com tais restrig6es: "Escola n6o assegura emPrego aos seus
argumentava convencida das p16alunos, nem faculdxdg"
- tlo consistentes assim, pois se os
prias raz6es. Que n6o eram
graduados em dcterminada cscola, sem solitiria exceglo, n5o
conseguem emprego jamais e quando tal desatino se estende
por cinco anos, C porque algo de peculiar sucede. Para que
enteo uma escola? A conseqii6ncia do ensino C o emprego, a
contrataglor para iss.o se estuda. 'N6o assegura emprego,
€
verdade, mas se os alunos da escola nunca se emPregam, ent5o que porra de escola C essa", pensava o Delegado.
E estava a autoridade imersa nas pr6prias dfvidas,
guando chega a notlcia da participagio de um religioso no
suspicaz estabelecimento de ensino, trzzida pelo {rdego lusitano, empenhad{ssimo agora em destruir a escola de arte,
prender seus responsiveis, dar porrada neles, ensino exemplar. "Com Salazar C que C bom", lembrava da terrinha o
quelxoso.
E isso, mesmo. Os amigos de ontem slo os inimigos de
hoje, e os mais terriveis, rancorosos, inexordveis. O falso religioso era um escroque que se fazia de bispo de uma igreja
'
de ar4gae, apurou-se.
A autoridade vinha transferida da Delegacia do Engenho Novo. Lembrava-se do vigarista que se fazia Passar Por
padre, bispo de uma igreja que ele mesmo inventara. Tentou
o golpe da t6mbola e se machucara: na sua jurisdiglao vagabundo nlo se criava! O Delegado, se a mem6ria nlo lhe faltava, permitira a acomodaglo em troca de um substancioso
donativo do malandro para uma obra de caridade de uma
moga com quem o policial estava se entendendo e que o vulgo chamava de casa-mililar. Ria-se o policial com a lembrange dt carl. do filho-da-puta ao se ver compelido a contribuir
para uma concorrente; sentia-se um pindego, dobrava-se de
rir. A escola parecia pr6spera, o falso padre nadando em dinheiro. O homem da lei jd vislumbrava polpuda cooperaglo
do velhaco. A mesma obra da "regra tr€s" que vinha s€ arras-
125
tando, iria agora sofrer novo impulso, significativo incremento, e esfregava as honradas mios.
Policial tarimbado, passou uma ordem para que fosse
conduzido, i sua presetrga, o execrCvel clirigo. Ao mesmo
tempo, mandou levantar a vida pregressa de todos os envolvidos na erapuca,. inclusive o aliagtiete portugu€s. Apuraria
os fatos com absoluto rigor e ollmpica imparciilidade. Esclareceria a moxinifada "custasse o que cusiasse' ou 'doesse a
quem doesse'. Policial da velha escola, olhos de lince, faro
de raposa, consrruira justa reputagio de honradez e de extrema.la dedicaglo I causa pdblica ao longo de uma brilhante e
proficua carre ira. Esrava a altura de enfrentar os piores meliantes, contumazes malfeitores, traficantes, charlatles, incendidrios e terrorisras, subversivos em geral. Com ele era ali, na
dura. Sem contemplagio. Sua fama crescia em todo o aparelho policial. Apontado como exemplo, cumpria invejada carreira na reparriglo. Era conhecido como Mareus: primeiro
os meus!
Atenglo, marginais, o Doutor Fleury esti na irea:
tremei!
O Doutor EleotCrio dos Reis Fleury, Delegado de Defraudag6es, esrava a fim de engaiolar Dom Man6el Ceia La-
ranjeira, Bispo da Igreja Cat6lica Livre do Brasil, curador e
presidente (de honra) da "DIANE
Divulgadora de Artistas Nacionais e Escritores", se conseguisse
alcangar, com as
probas mios, o devoto lombo.
Escolado, Dom Laranjeira farejou sujeira quando um
alarce, trescalando a tira, de feder a setenta milhal de distlncia, perguntou-lhe cortesmente:
O distinto conhece por acaso um certo bispo por
nome -de Laranjeira ou coisa assim?
Respondeu o prelado, confirmando seus piores temores:
Sim. Conhego ligeiramenre.
coragem.
Por que o ilustre amigo gostaria de saber?
-E o agente disfargou.
-E, tomando
r26
Nlo
sou eu, nlo. E, o Doutor Fleury, Delegado da
que deseja um particular com o mogo.
Tomava f6lego o reverendo (Ah!).
Defraudag6es,
Sio amigos?
-E o policial sempre disfargando.
E o Delegado i amigo de alguCm?
- !nj[e, o que quer o Delegado com o bispo?
-Continua o inyestigador na linha do despistamento.
encanar o cara.
- Quer
E por que prenderia o bispo?
-Manteve o policial o comPortamento
disfargante.
Parece que o elemento se faz passar
- o conto-do-vig{rio.
a aplicar
por padre' vive
Ria-se o diligente servidor da coincid€ncia, hilariante
ao seu ver: um falso padre Passar um conto-do-vig{rio.
quC,
- qu{...
Qu{'
Esgotado o riso, o investigador, lanceiro, volta l.catga,
D.l.gado est6 brabo, quer o homem na Delegacia
hoje.
ainda --O
O Delegado, o senhor disse, C bravo?
- Brabo?
-O brutamontes
dissimulava ir perfeiglo.
pouco. O delegado d uma fera...
-Friozinho na espinha do sacerdote.
Como se manifesta a ferocidade do delegado, seBrabo
C
nhor? -
O bruto mantCm a tCtica.
O delegado dd porrada, dd telefone, caldo' arranca
- com alicate, palmat6ria nas mlos e nos pCs, choque
as unhas
elCtrico, empalamento, pau-de-arara, essas coisas. O senhor
sabe, o delegado C praga antigo. Entrou na pol(cia mocinho.
Vem desde os tempos do Estado Novo. Aprendeu a torturar
comunistas, tomou gosto e niao pira mais. E muito instrutivo.
Ah. (Fugia o chlo do sacerdote.)
- Suas ordens, senhor, slo assim tlo categ6ricas?
- Slo sim, tenho de levar o filho-da-puta do padre de
- jeito.
qualquer
E o tira pareceu impacientar-se.
O senhor pode indicar o paradeiro do cidadlo?
-
r27
guir nos momentos de tentagio e de penrlria. E vinha
esse
Herodes a perseguf-lo novamente, a encarcerar inocentes, a
acossar os cindidos e puros de coragio. Submet€-lo a ultrajes, oprobri{-lo. Sobretudo, revoltava-lhe a acusag5o: conrodo-vigCrio. E ele o gue era? Vigdrio, sim senhor! Fosse um
leigo e estaria certa a atribuiglo do irregular comporramento. Mas a ele, n6o. Era insofismdvel e legitimo o direito de
aplicar o seu pr6prio conto. De resto, expediente protegido
pelas precaug6es que andara tomando e que o colocariam a
salvo de sacrilegos e blasfemos. A sanha policial contra o pio
sacerdote nlo teria curso, merc€ de Deus. Inexistiam provas
materiais que incriminassem sua santa e precatada pessoa. As
provas testemunhais seriam de nenhuma valia. Esfumaceiam.
Era dar o tempo ao tempo. Safar-se, escapulir, renovar a fC e
pregar em outra freguesia, baixar em outro terreiro.
E, com efeito, Dom Laranjeira raspou-se. Foi cumprir
seu retiro conformado. Ele mesmo C quem dizia i guisa da
prdpria consolaglo, frase que resumia a imensa sabedoria do
sacerdote.
Ajoelhou, tem
-Sentia-se como o de
tio do Brds Cubas, 'cdnego de prerezar.
benda inteira", para quem o "amor da gl6ria temporal eia a
perdiglo das almas". Daria as santificadas costas ls coisas deste
crudelissimo mundo. Iria se egerrar com os anjos, puxar reza
grossa. Esmerar-se no servigo do Criador e maneiran isso a{,
maneirar. A Provid€ncia se encarregaria dc prover seus destinos. A poupanga tlo duramente amealhada ajudaria, sem
drivida que ajudaria. Entregar-se-ia a Deus e I sua infinita
miseric6rdia.
E despiu-se da hist6ria o santo homenzinho.
Laranjeira transformou-se em "laranjeiro", rermo chulo
a designar o vigarista, passador de conro, trambiqueiro. De
alguma forma, o piedoso sacerdote fez escola, imortalizouse. Embora de maneira obliqua.
Virou adjetivo.
130
24
O pona
Duas Vinias faziam Ponto no Craqt Hotse. Uma l{,
branquela, muquirana, VAnia propriamente dita e a nossa'
chamada VAnia-da Rosa porqui Pedro das Flores sempre lhe
dava uma rosa, flor de su" ievoglo, afinal incorporada ao
nome de guerra.
Um-dia, melhor, uma noite, Macarra conhcceu VAnia
no Little CIab e dela se apaixonou perdidamente' Paixio que
o consumiu em labaredai e sofridos ais. Misturou o dia com
a noite, p€ com cabega.
D.tl-t. o drama, cntretanto' Porque Macarra n6o foi
correspondido. Toda a sua l{bia, sinceridade, malandragem e
de"ogio, manhas e suspiros, e atC quebrantos' resultaram em
t ada, neca de pitibiribas. Nada vezes nada.
Dolores burin, que cantava e que ouvia, toda bondapaci€ncia,
condoeu-se do Macarra. Que desperdicio, tande e
jogado
fora! Escolheu as palavras, nlo queria llagoto
"-ot
ar a moga, mas' quem sabe, amor igetno ou mais um cliente ,
que importa?
Importa sim, Dolores.
-Vlnia da Rosa foi definitiva.
Quero ser livre, estar disponivel para quando o amor
fulminante chegar. Pode ser atC numa segunda-feira, nlo importa. Quero plt tat'e que ro bordar. O amor,. Dolores, d o
laminho-do sol, a gira da lua, o sal da terra. E a ciranda da
boi'or.r, d um carro de fogo, lagoa azul' E
o
"iai.
"*or,
exaltagSo e d remanso.
E ante uma Dolores PerPlexa:
Nio me venha' querida, com esse lero de que eu sou
muito nova para ter passado. Sentimento nobre d pau' Esse
cara n6o sc manca?
Dolores sc tocou e foi convencer Macarra. Que compreendesse, a moga nlo queria.- Importasse n6o, tinham ouiras, tinham tantas... Macarra foi irredutlvel.
Eu hein? Nem pensar! O amor, Dolorcs, d a redengleo e tgl6ria; jd o encontrei, nlo vou recuar' desistir, abster-
t3l
me, dar parte de fraco. Sou guerreiro, salvei meus santos,
saravei, vou I luta!
Dolores, ternura em pessoa, compreendeu ambas as
partes. Ela procurando o amor, busca quJ se revelard infrutffera; ele imaginando jd r€-lo .t.ontr"do, mas ern v6o. i{h o
amor', pensava a cantora, ela mesma carregando todas as dores
do mundo.
Macarra foi I luta. Bolou um programa bacana, capez
.le encantar a moga, subtraf-la da atitule distante qu. .omantinha. Nlo podia reclamar de grosseria, isto n6o. Mas
_ele
Vinia nio lhe dava sequer a oport,rnldade de mosrra-se tal
qual era: lcgal pra cacete!
Realmente, Macarra n6o poderia ter bolado melhor programa.
Comegaria I tarde com o jogo no Maracan6, um cldssi-
co: o Amdrica enfrentaria o Fluminense, p6-de-arroz, time
9: g.tt-,. metida a besta; de elite como o Raphael de Almeida
Magalhies, o maior jogador de futebol de praia que pintou
no Rio. Ele, Macarra, era rorcedor do AmCrica e habituara-se
a acompanhar o rime, jogasse onde jogasse, mesmo no algapho de Madureira. Ia sempre na companhie duns rapazes de
Graja6: Jacob Kligerman, Sirgio Lopes, JosC Viucai e Marcelo Cerqueira, todos americanos: "Quero torcer, torcer, torc-er, quero torcer atc morrer, morrer, morrer, porque a torcida americana C toda assim, a comegar por mim...i berravam
nos estddios a mdsica gloriosa.
Melhor que nio.
Telvez, nio. Talvez u-ma pin6ia. Certamente que n6o.
Mulher n6o aprecia muito futebol. Nio v6 grege. N6b, naturalmente, ni.o.
Mas n6o C que o Dante Vigiani, seu amigo do peito,
conseguira trezer Louis Armstrong em pessoa ao Brasil c o
rei do jazz exaria tocando no Municipal, no sCbado pr6ximo..Era ligar para o Dante e descolar duas entrad"r, pblttonas bem situadas: um deleire! Foi um custo falar .o-- o .-prcs{rio, Vigiani n6o tinha ouvido que chegasse para tanto
telefonema, nem entrada para tanto carona, porque as pessoas n6o gosram de pagar ingresso, querem filar sempte, muiro
especialmente quando o teatro C do governo, como o majes-
r32
toso Teatro Municipal. Do governo, mais propriamente da
Prefeitura do Distriio Federil era o teatro, mas o espetdculo
custave dinheiro, muito dinheiro, os olhos da cara, Porque
Armstrong e sua banda nlo se apresentariam Por dez rCis de
mel coado-. O empresdrio havia alugado o teatro, se bem que
a prcAo simbdlico, porquc a Prcfcitura inclulra a aPrcsentagib em sua progranagSo cultural, o que incentivava buroalguns, mesmo' a exigirem
it"tar e pollticos a pedirem
ingressoi. O que n-eo daua pt, reagia Dante Vigiani. Mas abririiuma .*c.geo para o Macarra, seu amiglo. Especialmente
tocado pela narritiva do amor a ser conquistado, paixlo quc
o cstava a consumir, soliddrio, o empresirio Presenteou-o com
as duas almejadas poltronas, mas Para a sessSo vesPertina,
porquc a noturna jl estava esgotada. Viessc antes e teria conscguido. Era batuta mesmo' o Dante.
- Vinha a calhar,
Pensou nosso her6i. JC antevia o
programSo.
' - Sairiam cmbalados pclo som mavioso do trornpete do
Armstrong, sua voz rouca e inconfundlvel, sua banda genial
e logo iantrriam: "Jazzdeve dar fomc", matutava.
Poderiam jantar no Saadia, pertinho do Municiirem caminhandg, qucT sabe de bragos dapara
pal, da:'ia
"Vamos andando, VAnia, o Safiia ftca'
Argumentaria:
ios?
Dantas, ndmero 87, C uma 6tima
rua
Senador
na
ali,
logo
casa."
Depois, era atravessar a CinelAndia, cruzar a Avenida
Rio Branio, c, logo depois da rua Santa Luzia, descer os degraus que levam lo dancingAvenida. E lugar de respeito, a
lente pode levar as patroas. Certo C que fic-am as damas sentadas nas poltronas I disposigio dos cavalheiros' mas Para
dangar, so-entc. Pode-sc convidar qualqucr das-damas. O
jamais seri recusado. Apenas cada mdsica
""rrilheiro
corresponderC a um furo no carteo. E ceda furo importTd
em "oito cruzeiros', conta a satisfazer na hora da salda. Claro que ao levar sua dama, o cavalheiro nio ver{ seu cartio
furado, mas, em comPensaglo, ptgar| caro pelo ingresso da
companhia. Sim, poryue o night'clab vive disso, alCm das
bebiias, porque comida C troia de dinheiro: nlo dd tucro
pre cast. uvoie vai se deliciar, Vlnia, o lugar C do arromba.
b porteiro de farda cdqui abre as Portas do dancing 16 den133
tro, luzes verde, ezul e cor-de-rosa v1o combinando com as
mdsicas. E a gente danga, danga, danga. E, pista mesmo. No
duro. Nlo i como nessas boates que a gente mal tem lugar
pra girar, nio. A pista C imensa. A orquestra C 6tima. A crooner
C a Angela Maria. A cantora esti. comegando agora, mas j{ C
um sucesso da noite. Soube que o Carlos Machado esr{ cogitando contrat{-la com exclusividade para seu novo shou..."
Tinha mais, que a noite i comprida.
"A boate Bidu estt, apresentando um show formid{vel,
'Bedulnos no Carnaval'. Tem tambCm a Mara Abrantes, no
Fiesta. E, considerada a melhor crooner da noite. Voc€ C que m
escolhe, VAnia."
Macarra estava pensando em fechar a noite com uma
ceia
no
Lucas. Talvez lC encontrar
o Oscar Niemeyer
e
apresentd-lo I Vinia. Apesar de famoso, o arquiteto era simples, falava com as pessoas na maior. O vendedo r iria fazer a
maior figuraglo com a garora. Amigo de gente famosa. Quem
sabe o Renato Guimar6es, faixa de fd do Macarra e amigo
inseparrivel do Oscar, 16 niao estaria? E se tivesse, era certo o
convite pra sentar I mesa do arquiteto. Jri imaginou que
chinfra?
Vinia ouviu o lero-lero do Macarra ati o fim. Sem dar
um pio. Resignada, deixou o cara falar ati cansar. O pinta
desfiou todo o rosirio da programaglo, realgando a vantagem de cada parte. E sempre deixando a escolha por conta da
convidada. "Voc6 escolhe, Vinia" era a frase com que invariavelmente encerrava os diversos itens da noirada. E claro que
omitiu o MacaracanS, a idCia inicial fora afugentada. AlCm
de mulher nlo gostar de furebol, o sacana do SCrgio Lopes
ere c^paz de dar em cima da Vinia e a genre nunca sabia: o
repez ere abonado porque o pai, Coronel Bernardino, fazie
todas as vontades do filho e rico que era nlo mcdia a grana
que dava ao garoto. Macarra avaliou positivamente o prdprio desempenho. Crescera na hora de apresentar Vdnia ao
Armstrong. Falou do Dante Vigiani e da amizade com o empresdrio. Nas poltronas disputadas a peso de ouro e da sua
sorte em conseguir duas bem nas visperas da apresentaglo da
banda. Louvou o dancing, assim a crooncr Angela Maria. Mas
nlo fez por menos com a Mara Abranres e a boate Fiesta.
134
Caprichou no jantar, n6o mediu elogio Para a ceia. Enfim,
cumpriu a contento a tarefa que se impusera: armar um
para VAnia.
programlo
- - A moga
ouviu que ouviu, depois falou:
Brigada, Macarra, quero nlo. Fica Pra outra. vez'
- perdlr o Programa, qu.- sabe voc€ nlo convida a
Pra nlo
Sandra Vilma? Ela goJta de voc€. Olha, chama ela de Nely'
Macarra ficou na maior merda da par6quia.
25
As turntDAs Do MuutctPet
Foi um mortificado Macarra que Luiz Mattoso, cha-
mado Kid, aspirante da Marinha de Guerra, foi encontrar na
bo*e La Crcmmailltrt comegando a noite de sexta-feira.
Era tal o baixo-astral do amigo que o Kid logo se es-
queceu do bate-boca que tivera 9oT o Affonso Real Nunes'
de farda e companheiro de farras. E, que o Furica se
amarreva no Trio Iraquitl, que se aPresentava exatamente ne
tal boate La Cremmailltrc, onde o Macarra estava roendo beira
de penico. AtC al tudo bem. Kid apreciava o Thio lraquiti, o
Trio Nag6, o Trio de Ouro, o Trio Esperanga e os Trig€meos
Vocalistas. "Mas toda noite, Furica, tenha d6", lamentava-se
o marinheiro. Mas Affonso era de Natal, Rio Grande do
Norte, amigo do Edinho, vocalista do conjunto e tambCm
potiguar. Pior C que o Sidberth e o Lorenzi deram a maior
Furica, inconformados de nlo poderem assistir a
Fotg"
"o
apresentagio do conjunto paulista Dem6nios da Garoa, no
Casablanca. Os dois vibravarn com o conjunto' especialmente quando inte rpretava m Saadosa Maloca ou Samba do Arncsto,
do Adoniram Barbosa. Kid ficava puto da vida.
"-Lot Oh SiCberth, que o Lorenzi Pare na dos caras rl lealdm de paulista C filho de italiano. Mas voc€,
gal. Afinal,
iara, carioca e de Graja6? Tenha santa paci€ncia!
Inrltil. 56 de lembrar vinha-lhe incontida irritaglo. Nlo
C que uma vez o Barrosa, navio em qu-e faziam costeira viagem de instrugio, ao parar no Porto de Santos possibilitou
*1.g"
135
que os alunos fossem a 56o Paulo fartar-se com sua noite t5o
cheia de atrativos e sacanagens. E nlo C que os dois colegas,
.justamente os dois, inventaram de assistir os Dem6nios da
Garoa que se apresentavam no programa Manoel da N6brega,
na Rddio Nacional de Sio Paulo? E n6o i que foram, mesmo,
arrastando o inconformado Kid que ourras aspirag6es levava, especialmente ouvir Dick Farney que cumpria contrato
no bar do Hotel Claridge e se preparava para abrir sua pr6pria boate, a boate Farneyi.
O pobre Kid estava a fim de ouvir o piano de "Fars"
Elpldio, no Stadiurn, mas os dois deram forga ao Furica s6
porque o mulherio do La Cremrnaillbre era melhor, mais va-
riado.
Reclamou mas foi, como de seu costume, cordato que
era. E se deu bem, porque o Macarra, ap6s alugar seu ouvido
por um bom par de horas, queixando-se das mulheres em
geral e da filha-da-puta da Vlnia em particular, presenteouo com dois cobigados ingressos para assisrir, na rarde do dia
seguinte, no Teatro Municipal, Louis Armstrong e sua fabulosa banda. Com isso, Kid iria se regalar e limpar sua barra
com a noivinha de Grajari, jC meio desconfiada que o noivo
era da p{-virada. Nlo que se incomodasse com as noitadas
que adivinhava fezer o namorado. E nem das companhias,
pois Affonso, Lorenzi e Si€berth er"m repazes de familia,
comportados. 56 nlo gostava quando ao grupo se juntava o
Marcelo, irmlo do SiCberth. Aquilo era um moleque a evitar-se. Perdoasse dona Marilia, mas o segundo filho nio era
companhia que se recomendasse. Preferia que o noivo nlo
andasse com tal pesre. Mano, Mambo, Othinho, Leroy,
Jurume-lo, Perdigio, Nh6t6 Tico, Espoleta, alCm de outros,
forma-vam, com o Marcelo, uma curriola da pesada, absolutamente n6o recomenddvel. Se o namorado nlo quisesse sair
sempre com os colegas da Marinha, o que seria compreensivel porque cha-teia olhar para as mesmas caras na escola e
fora dela, enteo procurasse melhores companhias. Em Niterdi,
tinha os irmlos quase da mesma idade. Mesmo em Gra.iad,
companhias decentes n6o faltavam, como os incrlveis g€meos FCbio e Fabiano Pellon, e seus sobrinhos SebastiSo e Mdrio Luis. Alfredo "Boc6o", jogador de basquete, ou Dauquir,
craque de futebol de salao. Tinha o Max Amaral, o Miltinho
136
filho do China, o Porci(ncula e o Mauro Miguelote, cadetes
do Exircito. Ou o Gilberto Cabral, procurador da Caixa Econbmica. Tanta gente boa. Com seu irmlo' reconhecia, nlo
era possivel. Nlo se davam bem o irmlo e o noivo. 56 n6o
gostaria que o noivo ficasse na farra com o Marcelo: alCm de
encrenquerro era comunista. Melhor acender uma vela.
Como adivinharia a noiva que' naquele exato momento, o Marcelo estava preparando a lista dos convidados para
a ce ntisima aprese ntage i do shou de Nanci Vanderley e Chico
Anisio na boate Montecarlo e que o Kid compunha a dita?
A turma da lista era duplamente convidada. De um
lado, o convite vinha do Zelito Viana, irm6o do comediante
e colega do Marcelo, do Leon Hirschman e do Marcus Alencar
,ro CJrrtro de Formaglo de Oficiais da Reserva da Marinha,
servigo militar que os quatro tiravam com o maior sacriflcio.
DeciJidamente, nlo davam Pere.acoisa. Do outro lado, eram
convidados da Dolores Dur{n. A cantora iria apresentar o
bai6o "A fia de Chico Brito", composiglo do not{vel comediante.
Propositadamente, Marcelo nio inclulra seu irmlo
SiCberth como represdlia I sua defesa do samba paulista- V€
se pode: ,rm" .ontr"diglo em termos' afirmava. Samba e
p",rlirt" slo coisas que se repelem. 'Logo- meu irm5o", lahert"'rr"-t.. A lista s6 fezb crescer. Ia ser fogo arranjar convite para tante gente. Mas Dolores daria um jeito. Ela tinha
jeito pra tudo. jl estavam na lista, alim do Vianinha, Cacd
bi.g,t.t, Arnaldo Jabor, Carlos Callou, \Tanderley GuilhertVerneck Vianna, Jolo
-. dor Santos, Ferreira Gullar, Luiz Eduardo
Coutinho,
das Neves, Augusto Boal, Glauber Rocha,
BeAfonso
Duarte,
Miguel Borgei, Marcos Farias, Fernando
lista
ainda
E
a
Mitio F.ocha, Silvio Gomes de Almeida.
"tol
ia crescer. Marcelo coloca seu irm6o SiCberth na lista. Perdoava-lhe o insulto. Irmlo C irm6o. Prevaleceria o bom senso.
Samba paulista... Ainda faltavam o Paulo Alberto Monteiro
de Barrls, o Alolsio Gordo, o RogCrio Monteiro de Souza e
o Letlcio Jansen Filho . Zeli:o me mata' Dolores nem vai
ligar. Chiio Anisio vai ficar puto comigo.. Boto na lista e
foda-se. Se a gente neo entrar por bem, por bem entra. Porra
e meus primos CCsar Augusto, Carlos Augusto e Dinizinho?
r37
Ah, vlo ter de entrar, ora se vio. Seri que ainda tem mais...?
Samba paulista, essa C boa!
26
A
uetse Dos
RErs
Macarra curou o porre e jd esrava pronto para outro. O
sCbado amanheceu desafiando tristezas. Como era bonito
maio, como era feia a dor de corno. Lavou a boca com pasta
de dente ati sair o gosto de cabo-de-guarda-chuva que a noitada da vdspera lhe deixara.
Nem se recordava direito como chegou em casa. Lembrava-se de ter oferecido ao Kid as entradas para o concerto
do Louis Armstrong, entradas suadas que a Vinia recusara.
Lembrava-se, tambCm, que passara no Little para ouvir
Dolores cantar e com ela dar dois dedos de prosa e nem assim melhorar de inimo.
Macarra, a vida C assim. A moga nio quer.
- Qual,
Nio ligue.
Soube que a Nely est:i interessada em voc€. Por
que nio dl uma oportunidade a ela? Por que nlo di urqa
oportunidade para voc€, criatura?
Ah! agora lembrara: o Agenre Laranja o trouxera para
casa. Devia ter subido nas cosras do le6o, porque nio lhe
vinha i mem6ria mais nada. "Ressaca braba", considerava o
enjeitado. Dar uma oportunidade a Nely. Dar uma oportunidade a si mesmo. "Essa Dolores..."
A boate Bolero ficava na Avenida Atlinrica, de cara para
o mar de Copacabana, testemunha do gesto sribito de Nely:
generoso, meigo, imperecivel.
A idCia era jantar no Beco da Fome, inevitivel como o
fim do m6s. Mas Macarra estava abonado, havia vendido cat{logos de telefone para uma empresa na rua do Carmo, bicheiros que tinham uma imobili{ria mais de fachada, uns
Fernandes. Nosso her6i estava disposto a gastar os cobres
veio fCcil, fdcil vai.
138
Mas como foi o neg6cio, Macarra? CatClogo? Quiseram-saber, ao mesmo temPo, Leandro Konder e Carlos
Nelson.
Simples. Fui no cara vender um andncio, sabe como
C, figuraglo na lista telef6nica. E o cara nada. Que nlo- tinha
inteiesse, coisa e tal, que a firma nlo dependia de publicidade, era mais para administrar os im6veis da familia' N6o desisti, fui e- .im", argumentei: N6o se esconda, cavalheiro,
de repente alguCm quer falar com o distinto, perdeu o nfmero do telefone, e agora? Faz como? Vai no cat{logo e pronto!
Conclul triunfante.
E o cara)
- $ep, o care negaciou um Pouco e eu emPurrei-lhe
Mas o que ele queria mesmo eram os catdlogos
um negrito.
de outios Estados. Fiz de diflcil, que iria ver, que era proibido vender, dispor, guer dizer, sabe como d... Fui na comPanhia, na moita, me forrei de catdlogos e faturei uma nota
alta. E ainda logrei os gringos da Lista Telef6nica. Americae Macarra fuie o gesto obsceno,
no comigo C aqui, oh!
- era.
muito antiimperialista que
A orquestra tocava um bolero (Relof.) e alguns casais
dangavam. Copos tilintavam. A fumaga dos cigarros' em novelos, subia atC as lAmpadas e o ambiente tornava-se bo€mio
e acolhedor. Ameno e devasso. Iniciava-se ritual de honrada
libaglo.
E a noite ia assim venturosa quando um senhor, velho,
alto, magro, camisa azul-clara pra fora das calgas azuis-escuras, 6culos verde, posta-se I frente da orquestra e inicia' solitdrio, um arremedo de danga. Juntava as m6os ao peito e abria
os bragos levando-os ao limite do corpo. E dava uma meiavolta. E novamente abria os bragos como a receber a dama
que ali deveria s€ encontrar; e ao perceber o vazio, volteava e
tentava um passo, e mais outro. E abria os bragos, agora com
um tosco geito de balC. Dobrava o joelho, a cabega pendia.
O qle se passaria com o velho? Que emog6es ocultas
o despertaram e o conduziram ao canhestro sararepente
de
.oteai? A bebida? N6o parecia. A coisa vinha mais de dentro,
a bebida certamente contribula, mas as motivag6es eram mais
profundas. D'alma.
139
A esrranha danga agora acentuava os gesros mais disparatados. E o ins6lito da cena passou a perrurbar os freqtentadores, a incomodar pelo patitico e pelo grotesco. A
hesitaglo do lelo-de-ch{cara, e dos gargoni, poderia, logo,
corresponder a um comportamenro violenro deles. O velho,
quem sabe, ausente que esrava, espaventado, seria capaz de
nlo atend6-los. Coisa mais descomposra e triste.
Foi nesse exato momento que Nely, resoluta, num
dtimo, aproxima-se do velho e, ternamente, aninha-se em seus
bragos. O velho, num gesro donairoso, tira-lhe o (imagindrio) chapdu. E sai dangando com a deusa, como se jamais
tivesse feito outra coisa na vida. E, indiferente I melodia,
tranqiiilamente valsava como num baile de reis. E a noite
seguiu misericordiosa e lddica.
Nely era assim: compassiva e bela como poucas.
Passavaomundoalimpo.
27
O oespotHAR DE Nrry
Todos se comprimiam em volta do Dantinhas. A
reinauguragio do Vogue colocava o antigo e pavoroso inc€ndio na ordem do dia. Ou da noite. E ninguCm melhor do que
o lenddrio Jo6o Dantas Ribeiro para narrar o acontecido, j{
que tinha escapado inc6lume do desastre .
O Wguc era hotel de ficar, as pessoas moravam ld. Existia na rua Princesa Isabel. Em Copacabana, naturalmente.
Eu ia descansar e depois...
- platiia sentiu que Dantinhas tinha dificuldades em
A
relatar o ocorrido. Hdlio Saboya, Ricardo CCsar Pereira Lira
e Eduardo Seabra Fagundes, todos advogados e bo€mios e,
por isso mesmo, duplamente malandros, deram alga ao
narrador antes de a ele dar forgas para continuar. Respeitavam as lembrangas e as dores, mas ardiam de curiosidade.
Afinal, era o proragonista do incrivel e pr6prio salvamento.
Mas foi Alfredo Brito, arquitero escolado, quem resolveu a parada. Comandou outro uisque e o serviu como
140
Dantinhas gostava: o coPo longo chcio de gelo, a dose generose e soda cristal atC a boca do dito.
Foi uma parada hem, amigo? Cutucou Alfredo'
-Serviu como mote.
Se foi... Como eu ia dizendo, depois de descansar
jantar
aqui com o Ibraim Sued e o. prefeito de Paris,
iria
eu
Pierre Ruais. Certamente voltaria Para o hotel, n6o deixava
nunca de terminar a noite na boate Vogac. A programaglo
era de lei: jantar no Bec Fin e esicar no Wgac.
Dat iinh.t d{ um largo gole na bebida. Mas a bebe devagarinho, saboreando-a.
Quando dei de mim, as chamas jd haviam tomado o
ePartamento.
Jolo Dantas Ribeiro olhou pela janela, avaliou as circunstAncias. A escada dos bombeiros s6 chegava ao 5o andar'
Como chegar at€ cla C que era a questao.
Da j-anela do seu- aPartamento j{ totalmente tomado
franc€s Pierre AndrC \0(/'an, proprietdrio do B!st16
fogo,-o
pelo
Z do Sitt Bar, ameagava atirar-se: a escada Magirus tambcm
nio alcangava o seu andar, estava desesperado. Da rua, grita'
vam-lhe que esperasse. Pierre atirou-se Para a morte na calgada. Depois, db 8" andar, atirou-se RaullVlartins, jornalista
i torcedor do AmCrica Futebol Clube, indiferente aos apelos
que, do mesmo andar, lhe fazia Dantinhas. Do 10" andar, o
americano \Tarren Heyes tambCm nio atendeu aos
""trtot
apelos que lhe fazia Dantinhas, para que ficasse calmo, lutasse pela vida; jogou-se.
E voce, Dantinhas?
-Dantinhas vestiu-se apuradamente, colocou a pCrola na
gravata (pormenor que iria intrigar a Antdnio Maria), e a
pistola na cinta. Fez uma corda com os leng6is, que amarrou
nos ferros da janela e comegou a descida para a escada dos
bombeiros. Mas a corda improvisada nlo alcangava a escada;
o bombeiro, no toPo dela, jogou-lhe uma corda; depois de
vdrias tentativas, Dantinhas conseguiu aganl'la e com ela
subir, voltar ao seu aPartamento. Amarrou a corda nos ferros
da janela e desceu trangiiilamente.
E voc6 nlo fiiou com medo? Perguntou Ricardo
Cdsar.
l4l
u{sque.-
Depois, finalizou Dantinhas, tomei dois copos de
_ O Voguc acabou; terminou uma ipoca, calcinada pelas
chamas. Valdemar e Glorinha Schiller casaram-se no Vigue e
ali moravam. Morrcram abragados.
Na mesa ao lado, Nely, em pranros, refugiou-se no "senhoras". Era impossivel nlo ouvir a narrariva. Dantinhas, que
de ordinirio falava baixo, como convinha a um homem-de
sua esmerada educaglo e o lugar requeria, apenas sussurrava,
mas os sussurros, talvez pelo vigor da narrativa, alcangavam
todos os ouvidos. O Bcc Fin silenciou para ouvir os murmd-
rios do Dantinhas.
Macarra Ftzera, talvez, sua 6ltima tentativa de ganhar a
Vnnia. Vendera uma figurag5.o para o Bec Fin nas Listas Telef6nicas. Seu proprietirio, o espanhol Manolo, que se fazia
passar por franc€s, em troca de uma privilegiada posigio no
catilogo que o vendedor, cara-de-pau, lhe havia assegurado,
consentira em franquear-lhe L casa por uma noite: comida e
bebida (pouca) por sua conta.
Enquanto a deusa se recompunha, Macarra pensava no
conselho da Dolores, jd meio arrependido de rer trazido Nely,
ao ver o convite recusado por uma irredutivel Vinia. A boca
era livre e valia a pena aproveitar, ainda que sem a Vinia de
alcandoradas lembrangas, a escarmenrar sentimentos, e at6, a
recusar, no final da noite, quem sabe, o r{lamo de abside
alcova.
Decidira-se, afinal, pelo convite a Nely que acei-
tou Prazerosa.
Aceito, sim, Macarra. Que bom. No Bec Fin, nunca
_
fui. E, -grl-fino, nlo i? Seri que tinho roupa a altura?
Macarra nio sabia se a Nely tinha roupa a alrura, mas
lembrava-se de que Dolores DurCn tinha a mesma rodagem
da outra, e sugeriu:
Fala com a Dolores, fala. Voc€s t6m mais ou menos
- talhe. Quem sabe ela...?
o mesmo
Sabia ela. E emprestou a Nely um vestido deslumbrante, presente de um fi que preferia deixar no anonimaro.
142
coParece ter sido feito sob medida para voc€
- Dolores Durdn, a doce cantora.
mentou
Assim ataviada, a deusa adentrou, rainha, muito "kar",
o restaurante Bec Fin. Pera ela convergiam os olhares. Saboya
precisou mesmo ficar contido por um segurador.
Se acalma, disse com seu sotaque nordestino o
- Nlo vE que a dama estd acompanhada, advertiu.
Eduardo.
'Acompanhada daquilo", pensa'va um descorogoado Saboya ao diminuir o Macarra. Era verdade, o Macarra era um
babaca mesmo. Mas era ele quem comboiava a dama pare a
mesa'aderede" reservada, expresslo que o maitre usou para
distinguir o valete e galantear a dama.
"N6o tem tu, vai tu mesmo", pensava o Macarra, sem
dar pelo sucesso que fazia sua acompanhante.
Nem mesmo se tocou ao ouvir o pianista dedilhar a
seqti€ncia: "O cabard se inflama quando ela danga..."
Foi gentil, todavia. Cuidou para que a garota se sentisse confortCvel. "A comida estC boa?" Estava. 'A bebida tambCm?" TambCm.
Bebeu um pouco demais, porque Dantinhas, um
gentleman, ofereceu ao casal, mas visando a dama, uma garrafa de Chablis, vinho de sua predilegio. Nely bebia pouco.
Macarra bebia tudo.
Fazia-se tarde, impacientava-se Nely. O bestalhlo do
Macarra nem dava pela coisa. Levanteram-se. Despediramse. Ricardo ainda conseguiu enfiar um torpedo na mlo da
moga, que o aceitou.
Boa-noite para todos, langou, no espago, a deusa.
- Boa-noite, o coro gcral.
- porta do restaurante abriu-se em bandeiras despreA
gadas. O bafio da madrugada era o cheiro do mar de Copacabana. Estrelas moviam-se num cCu de promessas.
O vento farfalha, Nely cicia:
!a6es.
-(Aonde?)
O andar meio tr6pego, a vista quase baga, os sentidos
afinal acesos, a boca seca, a voz rouca. A espera e o desvario.
Ameago de del{quio.
Tanto desassossego para descobrir, ali ao lado, pequeno, mas jeitoso apartamento, castelo dourado, exigua cafua,
paldcio de cristal:
t43
E,
aqui.
-O elevador anoso, o chiado Cspero e penetrante.
Entre.
- porta rangia, divinos sons. O chlo enodoado, alcatiA
flado de imarcesclveis flores. Ah, os caminhos do amor tornado vida! A cama rangia, dossel a cobrir ardores e queimadas. O incenso e a obsessio. E os mistCrios de Nely enfim
celebrados.
28
As,acnun,as DE NELr
Siva estreou, como bailarina, no "Ballet Pigalle", dirigido por Raul Dubois. Convidou Nely para participar do
espetdculo. Agradeceu mas n6o podia aceitar, embora muiro
fosse a vontade de trabalhar com a amiga e sob a diregSo do
competente Raul. "Desculpe Siva." Siva desculpava a amiga,
especialmente quando soube do convite que lhe fizera o Silva Filho para o papel principal na Revista "Agora a coisa vai"
que, em breve, estrearia no Teatro Jolo Caetano.
Nely, afinal, Deus C Pai, tivera sua vez no teatro rebolado. Vinha de cumprir remporada em 56o Paulo onde acolhera seus sucessos na terra da garoa. E tudo ia nos conformes atC a vedete (mantinha o nome de guerra de Sandra, cortara o Vilma) Sandra conhecer o escroque AzizMuniz na boare
Odsis, apresentada por Theo Fraga. Sandra estava curiosa em
conhecer Aziz, o admirador que sempre lhe mandava rosas
amarelas para o "La Ronde", onde, enteo, se apresentava. O
camarim ficava coberto de rosas amarelas, um desparrame de
flores. Mandava flores, mas ficava no anonimato (fisico). Os
cart6es eram timbrados em alto relevo com o nome do cara.
Por que as rosas? Por que amarelas? Por que rosas
-
amarelas?
Por causa dos versos do poeta Carlos Pena Filho que
Capiba- musicou.
Tamborilava os dedos, cantava a mrisica.
"Voc6 tem quase tudo dela, o mesmo perfume, a
mesma/1or..."
144
eletra' Sempre impliquei com
para mud{-lo'
Sanira jd se mudara pra Nely' Era toda atenglo' .
inspiraglo. Pra dcpois poder lhe dizer:
Foi
t... mas
- tem o-itth"
meu amor."
Nely baixou os olhos grandes, sorriu-se'
Mas al eu modifi
carva
- Queria uma oPortunidade
o final.
Daf para ProPor uma sociedade foi um pulo'.Era emoresCrio. (i,t.ti" letar o show para Porto Alegre' J6 havia as..rorado J,."aro. Precisava de uma estrela. ("Esrrela, eu?")
Siir, de uma estrela. E mais do que isso, de uma s6cia' Estaairfor," a dividir os lucros com a estrela principal, todo o
""
el.rr"o tambCm participaria dos ganhos' O cara tinha altas
idCias.
E foram para Porto Alegre. O nome da pega' parece' €
que nlo ajudol. Por influ€ncia do core6grafb, uma,bicha
muito louca, as cenas teriam que Procurar o malor reallsmo'
Ere f5. dos filmes italianos do p6s-guerra o bicha'
Aziz cobriu Porto AlegrJ d. i"tt""ts' Valeu-se da amizade de um sobrinho com o presidente da associagao estudantil, um tal de Pedro Simon, que ajudou' com sua rapazieda, a colar certazes nos principais pontos da cidade' O nome
J"'p.g" era'Ti peg"ndl fogo". E-prometia, Qu€r pela enor,rr.'piop"garrda;'qi.r elas irtes do core6grafo, empenhado
.- f""et rialistas as cenas de fogo.
Nlo deu outra' no dia da-estrCia, o teatro pegou fogo'
O prejuizo foi total. Os cenirios' as rouPas' o aluguel da tempoiada, os andncios' as Passagens dos artistas, o hotel' o adrdo cach€ e nlo sei mais o que"'
"ttt"^.nto
O empresCrio s6 faltou ficar maluco' Procurou o core6erafo para'lhe dar um ensino, mas a bicha j{ tinha fugido
pI." .o*ilhas com o peSo Gaud€ncio'
",Nely, coitada, n6o sabia do que se tratava' Ainda traumatizada, Pegou um DC-4 da Cruzeiro do Sul e saltou no
Santos Durnint, indo diretamente Para casa' Depois' nlo
sabia contar direito o que se Passara' mas havia assinado uns
tantos papCis que o s6cio e n"morado lhe havia apresentado'
Tola, assumira-toda a responsabilidade e o escrogue se mandara, deixando a pobre segurer a descarga'
t45
No dia da estrCia, na Companhia Silva Filho, chega o
meirinho com a ordem do Juiz mandando prender a estiela.
O processo teria corrido I revelia. O filho-da-puta do
escroque, na papelada, havia, de indristria, alterado-o endercao da vedete. Citada por edital, considerada revcl, cstava
Sandra na maior merda.
Houve uma certa resist6ncia I ordem de prislo por parre
do pessoal do teatro, o que levou o meirinho chamar o co"
miss{rio Dilio, do 10" Distrito Policial. A autoridade
examinou o mandado de prisSo expedido pelo Titular da 24e
Vara Criminal, encontrando-o nos conformes.
A moga tem
- assustadas. de ir, anunciou para uma platCia de
coristas
O tearro C um meio de fuxico e inveja, onde uma procura tomar o lugar da outra. Nos camarins reina a inveja, o
cidme, o despeito, embora n6o aparente. Tudo isso C verda-
de, mas nio C menos verdade que, em determinadas horas, as
diverg€ncias cedem lugar i solidariedade, ao medo comum
de amanhi se verem em iddntica situagio e n6o terem ninguCm para punir por elas.
O comissi.rio amansou as amigas.
A pena i branda, a moga i primdria. Tenho certeze
que o -Juiz defere o pedido de "sursis".
Silva Filho era de Valenga, a "Princesinha da Sgrra',
amigo,de um advogado nascido li, mas que se exercia nos
foros da Capital jd granjeando a reputaglb que seu ralento
fazia merecer.
A ele logo telefonou.
Oh Tavares, preciso de um favor teu. Uma vedete
minha-foi presa e eu necessito que voc6 a solte imediaramente.
- Jo$ Ant6nioTavares era advogado especialisra no civel,
mal conhecendo o crime. Mas Silva n6o quiria outro. "Advogado d confianga', argumentava para o amigo valenciano.
Doutor Jos€ Ant6nio Tavares deu-se por vencido. Estava certo, veria o que poderie frzer pela moga. Mas tirasse
da cabega isso
soltar imediatamentl. Levaria uns rempos.
-de
"Quc tempos?",
quis saber o angustiado Silva com p.g"
"
"
estrear denrro de poucas horas. Tavares n6o podia pricisar,
t46
iria, agora mesmo, falar com o Juiz e logo mais daria uma
posi96o.
^
Silva dividiu o papel de Sandra entre as vedetes Helena
Amaral, Maria QuitClia, Mara Murce' Sabra Gaby e Norma
Peraci. E tocou o bonde. Isto €, a Revista.
Vigilincia (centro)' Sandra foi
Jeguinte,
dia
no
transferida,
P^ta e penitenciCria de-Bangu'
Na Central fora-lhe permitido o uso do p16prio vestido, mas,
na Penitenciiria, aeicrita era outra. Todas as internas se obrisavam ao uso do uniforme comum. Uma sarja horrlvel, feior.rr,". ("Oh Pai, por que Tu me abandonas-tes?")
O Juiz negou-o pidido de 'sursis". Tavares descobriu
,t" cit"g?o. O oficial fora apenas uma vez ao endereerro
um
que
dos autos, e o mandado nlo identificava o
.orrrt".r"
co
poti.iro que confirmara ser aquele o domic(lio da ri' N6o
iora qoalihcado. A nulidade e ra evidente. O Tribunal de Justiga, ior sua Terceira CAmara Criminal, conhece u e deu proao "habeas-corpus", por tr€s a zero' "Unanimida"imento
de', comemorava, triunfante, o causidico.
O julgamento fora um sucesso. A sala de sessio coalhada de .ot-it,".. Ouviu-se palmas ao final da decislo, palmas que o desembargador piesidente tentava conter a poder
d. utt a campainha q,t. t. revelaria inritil. Era tanto entusiasmo que chlgoo -atttto a contaminar os severos desembargadores. Uma-corista, mais saida que as outras, convidou um
Iel.s, o que tinha mais cara de sacana, P^r^ e estriia'
Nlo Posso' argumentou o desembargador' Mas se
depois a menina Passar por aqui... E a voz eta carregeda de
mal disfargados significados legais.
Na sua Vara? Perguntou maliciosa.
-O desembargador ficou encabulado. Ensaiou dizer que
(
desembargador nlo tem mais Vara, quem tem Vara Juiz,
mes a tempo apercebeu-se do duplo sentido da explicaglo'
Melhor calar-se. E foi o que fez.
Presa na Delegacia de
A estrdia foi uma aPoteose. Homenageada em cena aberta. Os desembargadores nlo foram, mas os funcionirios do
Tribunal nlo se 6""t"- de rogados. Na pega, colocaram um
quadro que fazia refer€ncia I Penitenci{ria de Bangu; outro
147
falava da justiga, do seu valor, destacava a comper€ncia do
Doutor Josd Antdnio Tavares e a clem€ncia dos magistrados.
Foi um delfrio. Sandra, coberta de flores, dcixori o palco
triunfante ('Deus d Pai.').
29
Foco EXTTNTI
Sa{ram as seis pela rua Voluntdrios da pdtria. Vinia e
Bea de saia e blusa. Maria Rita com um bolerinho tomarague-caia. Nely vesria branco. Eurfdice e Lita, avangadlssimas,
se aprcsenravam de calgas compridas, jcans ameticano, moda
estreada pcla charmosa Danusi Le6o, uma precursora a desafiar convcng6es e a senrar-se, de tardinha, io Sercia do Lcmc,
a tomar chope com a rapeziada..
Terminaram a aula de representagio dram{tica na
"DIANE". Tomariam um lotagio para Copacabana. pouco
movimento na rua naquele sCbado I tarde. VAnia foi a primeira a sacar.
Olha ld gente! Parece inc€ndio!
-Estavam longe,
u-mas quantas esquinas adiante, mas jC
.
dava para ver as labaredas; e a fumaga, em novclos, buscando
o cdu.
VAnia ficou extasiada. E temerosa, como sempre que
se tratava de sinistros.
Vamos ld, meninas. Mas n6o chcga maito perto, advertiu -como se falasse para si mesma.
Jd os bombeiros faziam cordlo isolando o prCdio. Bea
foi logo pcrguntando:
Mal a gente viu e as
I Que foi, hein? Que fogo, mogo.
labaredas jC estavam lambendo rudo.
Um senhor de pijamas (Nely nlo gostou, aborrecia pijamas.) respondeu:
. Eu wi o fogo da janela da minha casa (Apontava um
sobrado do outro lado da rua). Chamei logo os-bombciros.
Sabia do perigo. E um laborar6rio de filmes.
148
Bea queria detalhes.
Como chama?
-Nesse momento, mais um carro dos bombeiros
se aproxima em disparada, a sirene tocando loucamente.
O vizinho esperou o carro passar, desligar o alarme.
Os bombeiros saltaram correndo, cada um jC com o tino no
que deveria fazer. Um corre pra c{, segura a mangueira; outro, corre pra lC, tira a escada. "Dl gosto ver", pensou o homem. E virando-se para a moga:
Pois nlo?
- o nome?
_
nome?
- Que
O nome. O nome do laborat6rio.
-Foi servida a resposta, enfim.
Creio que i o laborat6rio da "Arte e Vit6ria Filmes". Pelo menos C o que disse aquele senhor lC. (Apontava
para um tipo gordo e agitado, nervoso que s6 ele.)
Bea aproxima-se do gordo.
Boa-tarde.
- Boa-tarde.
-
Que magada, nlo?
Um abacaxi. Um verdadeiro abacaxi, dona.
-Egrandeoprejufzo?
Grande. Grande, mesmo. Praticamente tudo. Nio
- nada. Ardeu como um bal6o.
vai sobrar
Tinha o qu€, af dentro?
- Filmes.
- Filmes sem nada, ou filmes jC filmados? O senhor
- o que eu quero dizer, n6o entende?
entende
Filmes virgens e filmes jC rodados, peliculas da
Pelmex.
-Osenhor€odono?
S6cio. Sou s6cio. Um tal de Bonfante.
- Sou Bea, muito Prazer.
-Bonfante nio respondeu ao "muito prazer", a conversa
incAndio. Mas, Rita Maria, que se chegadeixa o papo morrer, nlo deixa o samba cair.
O senhor sabe como comegou o fogo?
-Bonfante coga os restos dos cabelos, remanescentes tufos na nuca.
se apagava, como o
ra,
n-ao
149
Eu estava conversando sobre isso com o comandante dos -bombeiros. Eles s6o daqui, do Humait{. Eles solicitaram reforgos ao Posto Central, que chamou ourros quartiis.
Parece que foi a agio do calor sobre a celul6ide e o.riros
-ateriais qufmicos altamente inflamdveis. O laborar6rio tem
tambim um servigo de revelag6es e c6pias. Tudo substnncia
inflamivel.
#
seguro, nio td?
- Estd sim, mas
nlo cobre tudo. E seguro, a senhora
sabe, demota
para pagar, quer diminuir. Se a gente entra na
Mas
no
justiga, faz chicana. Vai levando...
Rira Maria quer animar o s6cio.
Mas sempre
C
alguma coisa...
-Que_ concorda, talvez por concordar.
-"1.r menor, nio
-VAnia puxou Bea pelo
brago.
E. Pode ser. Dos
o
C?
Vem cd, mulher. Conta
pra genre.
-E falando para o senhor gordo.
O senhor dd licenga, nio
-Bonfante dava, sim.
dd?
Enquanto resumia a conversa para atentas ouvintes, dez
viaturas do Corpo de Bombeiros, comandadas por um tenente-coronel, continuavam em luta com as chamas, conseguindo debeld-las ap6s uma hora de encarnigado combate.
Tr€s vivas para os briosos soldados do fogo. Viva, Viva,
Viv6ooo...
O inc6ndio reduziu a cinzas os filmes, e a ferros retorcidos a aparelhagem.
O capitlo veio correndo, perfilou-se ante o comandante. A contindncia perfeita, o galicismo dispensivel.
O fogo foi extinto, meu Coronel.
- Ciente. Afirmativo.
Mande proceder ao toque de
"fogo -extinto".
Aos primeiros sinais do clarim NelS atraida pelo toque, reconheceu Aralto.
Nely aproximou-se do bombeiro.
Araho? Aralto, voc6 nlo C o Aralto?
-Que reconheceu a namorada.
Das Dores. E voc€ mesma, das Dores?
150
Sou sim. 56 que agora sou Nely. Mas sou das Dores
Sandra-Vilma. TambCm sou
ser
das Dores. Neln tambdmposso
voc€,
barrd.a. Mas, para
- s6 pra lnoce. ;C fui
pra voc€,
Aralto fit"*'" meio espantado com aquele mulherlo I
sua frente. Sentia os olhares de alguns colegas convergirem
para sua retralda Pessoa. O que muito o incomodava.
Voc€ rnudou, das Dores.
- Tudo muda Aralto. E madrinha?
- fufss1su.
- l\,'[e11su de qu6? Coitada.
- De morrer mesmo. Thua velhinhe.
- Ah.
- E seu pai, seu Quaresma, que fim levou?
- Nlo sii. Faz um temPeo que n6o tenho notfcias'
- Eu tambCm n6o tenho notlcias lC da terra' Nunca
Sempre Is voltas com o servigo. Fazendo cursos'
mais voltei.
Voc€ esid 6timo, Aralto, € bombeiro. Voc€ semPre
fogo.
gostou- de apagar
Qeslq da profiss6o , dd pre viver. Nlo
C
muito,
dd pra-viver. Agora, estC melhor Porque j{ sou cabo'
mas
E rnostrava as divisas.
E bonito ser cabo. E bom ajudar os outros, Aralto'
- psssxv que eu dou as ordens aqui com a corneta'
- gue o fogo...
Sou mais
Os colegas Jhamau"m o bombeiro. Nely fez-que n6o
viu os chamad-os. Aralto estava dc costas para clcs. De frente
para das Dores, de costas, para todo o destacamento'
Voc€ mora aonde, Aralto?
No Andaral. Na rua Farias Brito, ndmero 842, casa12. Voc€ n5o conhece, C...
Conhego, conhego, sim, Aralto. J6' tiae 16 umas-vezes. Para ouvir viol6o. f.lique mora o Roberto, por apelido
Paci€ncia. Ele foi do "Bando da Lua", acompanhou Carmem
Miranda aos Estados Unidos, mas n6o gosta de falar nisso'
E voc€?
- Em Copacabana.
- E gente bem...
- Vou bem, sim. Trabalho no teatro.
- Ah, teatro. De choro ou de riso?
-
l5l
De riso, Aralto. Altos risos.
- guarnig6es dio sinal de parrir. Aralto C requisitado
As
para o toque. Nely prop6e:
Vamos nos encontrar, depois?
-O cabo vacila.
N6o sei... (Aralto era um monte de drividas).
solteira,
Nao sabe, por qu€?
E que eu ld casado. Voc€ d solteira, n6o i? Voc€ C
das Dores?
Sou. Tem o qu€?
- Fica ruim, nlo fica? Moga solteira saindo com rapaz casado.
Fica ou nio fica?
Bobagem, Aralto. Aqui nlo i Pouso Alegre, nio.
- Sei nio...
- Vamos, Aralto. Fago tudo e fago gostoso. Voc6 vai
- gosrar.
ver. Vai
As viaturas se aprestam. As amigas se impacientam. As
guarnig5es idem. O sargento dd ordens ao Aralto:
Manobrar, cabo.
-Bea chama Nely. Rita Maria chama Nely. Eur(dice
ma Nely. Lita chama Nely.
Nely as atende , mas
nho:
n6o?
-
nlo
cha-
sem antes perguntar ao vizi-
O senhor nlo rem vergonha de andar de pijama,
As sirenes soavam estridentemente. Para que. O inc€n-
dio nlo fora debelado?
Encontraram-se na Praga Saens Pefia. Aralco havia perguntado: "Voc€ conhece, das Dores?" Conhecia sim. Coincid€ncia, a Praga foi o seu primeiro passeio no Rio. Com o
Otdvio.
Aralto indagou ciumento:
C OtCvio?
- Quem
Quem foi. Um cara ai.
- Seu namorado?
- Foi.
-Aralto arrisca:
Foi com ele que voc6 veio pra cd?
-
r52
Foi, sim.
- Foi enteo com ele que voc€ se perdeu,
-Nely deu uma sonora gargalhada.
pgldgs, Aralto?
das Dores?
coisa mais antiga!
Que
- Mas ele foi o primeiro,
nlo foi?
- Foi.
- Doeu?
- Td doendo. Minha barriga td reclamando. E fome.
Vamos- ao Palheta? Tem wffie. VJc€ sabe o que 4. wffic? fr'
um bolo americano bem fininho. A gente Passa manteiga e
mel... (E ld se foi Nely, rePetindo a explicaglo qu€ recebera
do cometa.)
Tomaram o bonde em frente ao Eden' bar e restaurante. Era uma segunda-feira. Descanso da Companhia, folga
no Quartel.
O bonde percorreu a rua Conde de Bonfim. Aralto
mostrou a Nely a Muda da Tijuca, a Usina. Nely nunca havia
passado da Praga.
Agora C que vai subir, das Dores.
-Das Dores apreciava mais o passeio que Nely. O bonde
serpenteando o caminho acima e aparecendo casas' Crvores.
Aralto abraga a namorada.
vim muito aqui em cima, das Dores.
- Jd
Incdndio?
- N1o. Nlo € s6 apagando inc6ndio que trabalha o
bombeiro.
E ante o espanto da moga.
Pra tudo que C coisa dificil chamam os bombeiros.
desastres, acidentes. Bombeiro i pau pra toda
Enchcntes,
obra!
Quem ouvisse, teria a impresslo que reclamava o cabo.
gg lsrn temporal , chamam quem?
- Os bombeiros, responde
a namorada'
- Os bombeiros, confirma o pr6prio, satisfeito da vida
- ensinada.
e da liglo
E, sempre perigoso?
- Sempre, nio. Tem atC umas bem engragadas.
(Descontraia-se
o cabo.) Outro dia, uma dona telefonou Para
a central, nervoslssima. Disse que o Andrd estava no telhado,
153
poderia cair a qualquer momento. O oficial de dia pensou
que Andri fosse filho da dona, parenre, sei Li. Mandou-se
com a viatura, ele mesmo no comando. Quando chegamos
no local e o tenente viu que AndrC era um cachorrinho... ,tttt
cachorrinho desses assim... pequeririnho (E mostrava com as
mlos o diminuto espago), o tenente ficou uma fera: 'Madame,
como C que a senhora ocupa toda uma guarniglo por causa
de um cachorro?'A dona s6 faltava chorar. Porque era um
cSozinho de estimaglo. Era como pessoa da familia. AlguCm,
de pura maldade, tinha colocado o bichinho no telhado.
AndrC era muito comportado, jamais subiria no telhado por
conta pr6pria. E nem tinha como. "Como ia subir, como,
mogo? Me diga o senhor." E arremarou com um argumento
fortissimo: i{ndrC C inocente", declarou.
E os bombeiros foram buscar o c6o?
- Fomos, sim. Fazer o qu€? A gente
estava l{. O
- ganindo, a mulher chorando. O tenente falou: "Se
ciozinho
acalme, dona. A gente vai buscar o animal."
[Jma curva mais acentuada desequilibrava a garora que
se chega mais. E l{ ia o bonde coleando o contraforte da Serra da Tijuca.
Foi boa essa do clozinho e se aperrava no bombeiro.
Aqui mesmo, e Aralto com
gesto amplo alcan- a floresta. Aqui mesmo, um
gava toda
a gente csti cansado de
receber chamado. Ji trabalhei
aqui, das Dores, conhego a mata
toda.
chama os bombeiros?
- Quem
Ora, quem se perde na floresta. Tem sempre genre
se perdendo.
Garoto batendo gazete. Casal de namorados.
Excursionistas amadores. Se perdem; alguim dd o aviso. Tem
inc€ndio, tambim: baho ou fogo espontineo, na estiagem.
coisa...
- Que
E dcsastre. Pior C desastre. Ouviu falar no desastre
da Central?
O maquinista Firmo Justino de Oliveira saiu da Estade
Francisco Siis l8 horas e 24 minutos, com destino a
96o
Belford Roxo, desprezando a advertOncia da cabine de con-
t54
trole do Derby Clube de que havia duas composig5es manobrando na linha em que circularia.
A primeira composiglo era um trem de passageiros sem
eles: estitta apenas em-manobras. A segunda, um trem de carga que vinha de Sio Matheus e j{ ultrapassara a EstagSo de
Triagem a caminho do terminal.
Justino trafegou na contramlo exatos tr€s quil6metros'
atC colher o que vinha de Triagem' e que estava parado no
sinal perto da bifurcaglo de rua Visconde de Niter6i, entre
as estag6es de Slo Francisco Xavier e Mangueira. O maquinista Daniel lgnCcio de Azevedo ainda viveria- para relatar
que o outro vinha como um b6lido contra o seu: brilhante e
tlrrivel. Serraram os ferros retorcidos que o prendiam e o
removeram para o Hospital Souza Aguiar. Debalde foram os
esforgos do Doutor Jrilio Sanderson de Queir6z. Morreu na
mesa de operag6es. Eram 3h e 40 min. Em seu delirio, o
maquinista via cabras pastando tranqiiilamente na linha do
ttem. "Tirem as cabras, tirem as cabras", balbuciava nos estertores da morte.
A viol€ncia do choque engavetou os dois primeiros vag6es. A velocidade fez com que o trem. de Belford Roxo raslasse o outro atC o meio do seu primeiro yaglo. Parecia um
irottrtto alucinado com a sinistra incumb€ncia da destruig5o. A fera foi esmagando, triturando em sua macabra trajet6ria. E quando finalmente estancou, mais de uma centena
de mortos, acima de trezentos feridos, eram suas vitimas.
Vltimas do mais trdgico acidente ferrovidrio do pa{s.
Os trens chocaram-se como se um pudesse integrar-se
ao corpo do outro. Fosse uma caixa de brinquedos, dessas
e- q,ri
- os cubos aparentemente
iguais se vlo encaixando.
O estrondo ilcangou Mocinha no Faria, alto do morro
da Mangueira. Abriu a porta do barraco e deu com o medo-
nho espet{culo. Falou pra dentro de casa: "Mamie, olha as
criangas pra mim que eu vou ajudar no desastre."
Deicia o soliddrio povo da Mangueira para ajudar no
que pudesse.
BrogogCrio encontrou-se com Preto Rico na Curva da
Cobra e si j.rtttat"m I negra Marina e ao seu irmlo Delega-
do. Afonso "Beigola", diretor de harmonia da Estagio Primeira, acostumado a dar ordens, comandou: "Por aqui, gent
te.
155
Os que safram com vida, atordoados, pularam pera- e
linha, subiram a pequena elevagio de acesso i. rua Visconde
de Niter6i. Estavam aterrorizados.
Chegaram duas ambulincias do Hospital Sousa Aguiar.
Era um quadro brutal e chocante. Gritos dos passageiros vivos entre as ferragens. Gemidos dos mais fracos, restos dc
voz dos agonizantes. Imprensado enrre os blocos de ago, Almir
Martins teve os pCs acabados de amputar ali mesmo pelo
mCdico.
Guarnig6es do Corpo de Bombeiros, mais ambulincias. Os bombeiros tentavam libertar os sobrevivenres das ferragens, enquanto os mCdicos aplicavam injeg6es de morfina.
Feridos e mortos empilhavam-se nas portas dos vag6es,
a muito custo abertas pelos bombeiros. Corpos apareciam
irremediavelmente mutilados.
As rddios mobilizaram a cidade. Parentes e amigos procuravam amigos e parentes entre os feridos e entre os mortos. Que foram colocados lado a lado na linha do rrem, esperando remogio para o Instituto MCdico Legal ou para a Assist6ncia Pdblica. Pessoas olhavam os cadC.veres e seguiam para
os hospitais onde se apresentavam como volunt{rios. MCdicos e enfermeiras eram mobilizados pela RCdio Continental.
O baile de formatura dos esrudantes de medicina foi inrerrompido e todos se apresentaram em seus hospitais.
O Delegado de VigilAncia destacou quarenra homens
para evitar a atividade de ladr6es que cosrumavam agir
freqiientemente €m tais circunstAncias. Dezessete punguistas
foram presos. O d6lar estava cotado a Cr$I27 ,50 para a compra e Cr$130,50 pere e venda. O tempo, instivel; chuvas
ocasionais durante o per{odo. Multidlo comprimia-se na
porta do Instituto MCdico Legal. Agenciadores de empresas
funeririas disputavam prefer€ncia para realizar os enterros.
O banco de sangue teve de dispensar doadores: n6o tinha
mais como recolher o sangue oferecido.
Qualquer um senria o luto da cidade. Nada mais triste
que a dor de uma cidade alegre.
Chegou ao local do desastre com um socorro do Servigo de Salvamento da Guarnigio Central do Corpo de Bombeiros, o soldado-corneteiro'Waldemiro Ferreira da Conceigeo.
156
No fundo de um vaglo encontrou o corPo mutilado de
sua noiva, Sheila Maciel Antunes, cuja cabega fora separada
do corpo e estava mais adiante, a um canto do carro.
Nely cobriu o rosto com as m6os.
Que horror, pobrezinha.
-Tirou
um lencinho da bolsa e assoou o nariz.
Voc€ viu, Aralto?
- Como n6o vi! Fui buscar um cobertor e ajuntei a
moga. -Avisei para o tenente. Aquela rua, ali, chama-se Estrada Velha da Tijuca. O tencnte avisou ao capitio.
Nely respirou profundamente. Guardou o lencinho.
E uma vergonha como andam esses trens. Apinhados de-povo. Trem de carga, nio. Voc€ jd reparou em trem de
certe, bcm? Jd viu? (Nely est{ quase na ponta do banco de
madeira do bonde, olhando para o bombeiro.) Os dois vio
direitinho, sem espremegSo nem nada.
O cabo sabe das coisas.
E, que gado C pra vender, das Dores. Pessoas s6 para
uso. E-t€m muitas. Demais da conta.
Mas vai ficar assim? Nunca ninguCm vai fazer nada?
-E o cabo, entre cdptico e conformado, tambCm indaga.
Quem vai punir pelos pobres?
-E Nely
ainda impressionada com o desastre.
,{
mssss cheira?
pensa um pouco.
-O bombeiro
-
Cheira. Cheira, sim. Cheira, das Dores.
Cheira a que?
{ mq1js.
O bonde do Alto da Boa Vista chegou na Praga Afonso
Vizeu.
O bombeiro, ainda no estribo, ofereceu a m6o.
Segura, das Dores. E ajudou a moga a descer.
-A ela mostrou o portao da Cascatinha.
E pot aqui quc a gente entra, das Dores.
-Que respondeu sdria:
f,ssus4, voc€ pode me chamar de Nely?
-Aralto ficou com cara de besta.
Das Dores nlo estd bem?
-
t57
N6o, Aralto. Eu n6o sou mais das Dores. Sou Nelv.
- de Nely, meu bem.
Me chama
O cabo concorda resignado.
Td certo. Vou tentar. Nely, nlo C. Vou renrar.
- Tenta mesmo, bem.
- Nely... Tdvendo? Falei Nely, nlo falei?
- Falou, sim, meu bem, falou.
- Nely, voc€ estC com o farnel?
- lsieu. Voc6 esti com a corneta?
- 76, sim . E mostra o estojo.
-_
Entlo,
vamos.
vamos.
O casal passou o Portlo e a Casa da Guarda, tomando
a Estrada da Cascatinha atC a Praga onde apreciaram a cascata: dguas que se despenham por mais de trinta metros.
Que bonito, bem. (Deliciava-se Nely.)
-O bombeiro
advertiu a moga:
Pronta para subir?
-E, apontando uma trilha, comandou:
O caminho d por ali. Estd preparada?
-Nely estava preparada. Para subir, para dcscer. Para o
que desse e viesse.
A gente pega por aqui atd a Capela. Depois, a genre
sobe mais.
O casal ladeou a Capela Mayrink e penctrou a Floresta
da Tijuca. O clima mudou, assim o cheiro. A temperatura C
amena. Frcscor e suavidade no ar. A vcgetagio, os ramos das
{rvores. As flores. A passarada, os sons da floresta. A mata se
fecha cuidadosa, para abrir-se mais adiante ern clareira. Uma
ponte rdstica, o ch6o hrimido, os musgos. A cascara ressoando ld longe. Uma grota, um regago, a Cgua geladinha.
E solicito o corneteiro.
curva. -
Td cansada? Jd estamos chegando. E dcpois daquela
De mlos dadas chegam ao Mirante Excelsior. A vista
confrange o corag5o de Nely. A Bafa de Guanabara, em todo
o scu esplendor, se oferecia inteira aos seus olhos. A bala e o
seu mar mediterrineo.
158
O bombeiro saiu-se competente professor, identificando sltios, reconhecendo logradouros.
Aquele bairro ali C Slo Crist6vlo. Aquele 1d...
-O casario, os morrotes, o leito da Estrada de Ferro,
chaminCs, edificag6es, terrenos baldios, espagos vazios.
Os carros parecem miniaturas, nlo parecem?
- pxlsssrn de brinquedo, concordava a moga.
Aralto
perguntou:
Td com fome? Quer comer?
-Nely estendeu a toalha por sobre a relva. Nela deitouse. Abriu os bragos para a mata.
Vem, Aralto. Apaga meu fogo.
-
A floresta da Tijuca foi devastada no reinado de Dom
e reconstru(da por Dom Pedro II.
Jo6o
Era ministro do ImpCrio o Visconde do Bom Retiro,
que nomeou para administrar o reflorestamento um certo
major Manoel Gomes Archer.
Densas matas cobriam as encostas daTijuca. A floresta
permaneceu intocada atC o final do s€culo XVIII, quando foi
dividida em fazenda e sltios.
As sementes de cafi que o sargento-mor Francisco de
Melo Palheta trouxe da Guiana Francesa para o ParC., regalo
da esposa do governador franc€s Claude D'Orvilliers, afinal
deram-se bem na serra da Tijuca.
Foram cultivadas por franceses que se diziam nobres
cxpatriados, partiddrios do segundo Bonaparte. A Baronesa
de Rouan, o Principe MontbCliard, o Conde Scey, o Conde
VI
de Gestas e a Senhora de Roquefeuil. Em outra vertente , mais
franceses alCm de holandeses. Estrangeiro sempre fez merda
por aqui. A elas deve-se, em grande parte, a devastagio da
mata que o Major Archer iria remediar com seis escravos,
sementes e mudas de sua Fazenda Independ€ncia, em
Guaratiba.
O Major reflorestou os morros e protegeu seus mananciais. Fez limpar as nascentes e regularizou o curso das dguas,
construiu estradas e fixou o solo. E plantou angico, ararib{,
bicufba, batalha, canela-lim5o, cedro-rosa, goiabeira-cascuda,
guarajubC, garapiapunha, guante, jacarandatl, jequitibC,
maria-preta, peroba, pau-brasil, vinh{tico e eucaliptos de seis
159
espCcies diferenres. Imbus, camarus, mangabas, jaburicabei-
ras, cambucazeiras, jaqueiras com
infinita variedade de cau-
les e frondes. E mais, ip€, ururucurana, indaiagus, caticanh€,
pau-ferro, sapucaia, louro-pardo. E vieram os p{ssaros: sabid,
jo6o-de-barro, bem-te-vi, coleiro, galo-da-serra, sai, garuramo, cambaxirra
que temiam anajEs e andirds.
- foi o Major plantar em ourra freguesia e
Findo o qu€,
o Bar6o de Escragnolle, amigo do Imperador, romou-lhe o
lugar.
Tanta coisa guarda a floresta. Contam que JosC Alves
Maciel, tocado por sua beleza, teria ali se definido em favor
da Independ6ncia, e declarado ao Tiradentes: "Pode contar
comigo, Alferes." Contam os gemidos de Nely.
"Ai, Aralto, nlo pCra, nlo pdra. Tenho ainda mil carlcias. Vem mais."
O pintor Nicolaus Antonio Taunay foi o primeiro a
povoar essas matas. Contratada por Jolo VI, por sugesreo do
Conde de Barca, a Missio Francesa aqui aportou, em 1816.
Lebreiro ficou no Flamengo; Granjean de Montigny, na
Gdvea; Debret, em Catumbi, e Taunay no Alto da Tijuca,
onde fez construir sua resid€ncia em sitio fronteirigo i
Cascatinha, entao coberta por densa floresta. Que seria des-
crita pelo naturalista, Principe Maximiliano zu \fied
Neuwied, pelo sdbio Auguste Saint-Hilaire e pelos botAnicos
Von Martius e Jolo Batista Spix, alim de imorralizada nas
gravuras de Rugendas, Fisquer
e
Arago. Generosa floresta que
asilou nobres de araque e principes fajutos, franceses que
cultivavam cafd aonde deviam plantar batatas e que, aos domingos, cavalgavam envergando briosos, grossos casacos de
pura ll vermelha, vesrimenta rigorosamente apropriada ao
clima tropical, especialmente ao verio carioca. Floresta que
foi "taiqui", caminho dos tamoios, brenhas que talvez ainda
guardem C.rvores com dsneas do descobrimento ou hquens
imperiais
e onde medram sargas e macegas. Floresta que abriga
a Capela Mayrink com o triptico de Portinari, a ponte Alcintara de cantaria em cldssico estilo romano, o Alto da Mesquita, atravessado pelo rio Cachoeira, que vai cumprir tarefa
de formar a Cascatinha sempre que receber as dguas da Gru-
160
ta Paulo e Virg(nia, assim batizada pelo Barlo de Escragnolle
em homenagem ao livro de Bernardin de St. Pierre de mesmo nome; o Bo* Retiro, rio assim chamado em homenagem
ao Visconde tambCm do mesmo nome; o Jardim dos Esquilos; as Cascatas Grabriela e Diamantina; a Vista do Almirante; as rulnas da casa do benemCrito Major Archer; o umbroso
Caminho das Almas; o Lago das Fadas; o Agride Solidlo; e,
dominando tudo, orgulhoso dos seus dois mil e oitocentos
metros, o Pico da Tijuca.
As matas, que foram mesa de piqueniques e cama de
amores, acolhiam uma Nely saciada, feliz em comunh6o com
a natureza.
A deusa falou ao namorado no silOncio imenso da floresta:
Toca corneta, Aralto. Toca corneta.
conheceu o toque de "Fogo Ex-
-E a Floresta da Tijuca
tinto".
30
A
cunn'q,
VAnia vinha toda influlda, soltando plumas. Eurldice
interpelou-a:
Viu passarinho verde, coraglo?
- Melhor, acertei uma situaglo legal. Vou aprumar de
vez.
-
Vai
casar?
- Melhor, muito melhor. Descolei um coroa que i alta
E mlo-aberta. Tipo pai-da-pdtria, sabe? Todo
maravilha.
Lorde, alinhadirrimo. De manhl, Prega a maior moral. Diz
que tudo est{ perdido' gue o mundo virou de cabega para
baixo. De noite, na sacanagem. Faz a maior misdria. Quer
fazer tudo, minha filha! Escolhe cada posiglo que nem te
conto... E funciona. Funciona, mesmo!
Euridice sente a ligeira pontada da inveja. E natural,
todo mundo sente. O sucesso alheio acentua nossas limita96es.
l6l
Aonde C que voc€ levantou tal pCrola, pode-se saber
ou € segredo?
Foi a negra Huga que acertou ele pra mim.
- ourra fez um esforgo
A
de mem6ria.
-
Conhego?
claro que conhece. Quem nlo conhece o Hugo, a
vedete suprema da pederastia? Faz ponro no Follics, na daleria Alaska.
E,
T6lembrando, nio...
- Conhece, sim. E, uma bichona muito louca. E, inter- entre rapazes e velhos, sabe, prostitutos e coroas
medidrio
viciados., Arranja tambim uns caras de grana para coristas e
garotas de televislo. Foi ai que eu me criei. O coroa me viu
n9 Arpige, onde estou parando. E gamou... Amor i primeira
vtsta.
E dai?
- Dai que eu fiquei na minha. O cara me comendo
com os- olhos, e eu ali, tranqtiilona. Sem me oferecer, natural
mesmo. E nem podia, taaa de "chico".
E da(?
DaI que eu fiquei de bobeira, conversando, e quando dei por mim o coroa jd tinha se arrancado. Eu ati pensei:
"Serd que vacilei, marquei toca?'Vocd sabe, homem J bi.ho
muito vaidoso, gosta de ateng6o. Bom, mas a( eu resolvi deixar pra ld. O que tem de ser rraz forga. Se o coroa tivesse a
fim de mim ele volta.
-
Nega?
-Eatal
Que nega?
-Eur{dice
fica impaciente
na hist6ria da outra.
A nega Huga, VAnia. A bicha intermedidria, porra!
Aonde- C que a pega enfte, na hist6ria?
Calma, pd. Escuta, mulher. Uns dias depois, nlo sei
bem...
VAnia fecha os olhos e suspende o rosro. Rebuscava, na
mem6ria, o ndmero de dias, como se da lembranga dependesse o destino da humanidade. Euridice, ourras preocupa_
g6es, afobava-se.
_ --Jres o-u quarro. Ou cinco. Sei Id... Encontro a Huga.
Que foi logo dizendo: "Desrruindo corag6es, hem prince-sinha?" Eu te juro que nem liguei o cara ao coroa alinhado,
162
pensei: "Essa bicha tl querendo me agradar pra defender algum nas minhas costas, tirar partido de mim." Mas me fiz de
iimpdtica; o segredo da vida 4, fazer amigos. Gosto de estar
bem com todo o mundo. 1'Quem sou eu, Huga", fiz assim.
Fim bem?
Fez, sim. Tem mais
C
de ficar bem geral.
- Pois 6. Al a. bicha contou a histdria do coroa. Que
me viu- no Arplge, gostou muito de mim c coisa c tal' E foi
por af dizendo que o cara era alto figurio e que tinha confianga nela...
Nela quem?
- Na bicha, mulher. Quem mais poderia ser? Com
quem eu estava conversando? Nlo € com a bicha?
Era. O que atrapalhou foi o "neli', p6.
- PA digo eu. Se liga, mulher.
bem, continua. Tb ligada.
-Tudo
Al que a nega botou o car^ nas alturas. E foi junto.
Que o cara tinha sido Senador da Repdblica. Que era importente pacd. Tinha neg6cio de exportaglo. Ou serd de impor-
tagiol Nlo sei bem. Eu s6 sei que o cara era montado
grana e estava mesmo a fim de mim.
na
E voc€?
- Eu na minha, s6 ouvindo o lero da bicha. Que o
- de responsa. Que nlo podia facilitar, dar bandeira
cara era
por al. Que estava disposto a um encontro comigo.
Se gos-
tasse, acertava o meu lado.
E voc€?
- Eu topei na hora. Ia fazer doce?
- Sei lC, minha filha. A gentc tem de se valorizar.
- Valorizar o cacete. Banco a diflcil e ef iL viu: o cara
- outra. Fico no ora-veja. A concorr€ncia C grande,
arcanje
mulher. E se eu dangol
Euridice concorda.
E,, voc€ tem rezieo. Voc€ tem que ver o seu lado.
- pni[s, nlo i. Pois C. Ai a Huga ficou de acertar
tudo, -dar o enderego do encontro.
E deu?
- Claro que deu, Eurldice. Eu adivinho?
-
Sei 1i...
163
.
_ Total que fui me encontrar com o cara naguel e pr$
dio na Bollvar esquina de Atlintica, I esquerda de quem vai
pra praia. Sabe?
Sei, sim. O prCdio grande, mas C bom. E C famflia.
- E o apartamento, dmenina!
Jeitosinho. Todo mobiliadlo.- Tinha de tudo. Ufsque, rum, gim. Mas eu nem toquei
na bebida. O cara n6o bebeu, nem eu. Imagina ficar com
h{lito de bebida e o parceiro nio. Fica mal, n6o fica?
Fica. Claro que
E o cara?
- O cara foi super fica.
gentil. Que entrasse, ficasse I von- logo falando que gosrou de mim. Do meu jeito na
tade. E
boate. Meu comporramento. Sem falar nos meus olhos. Na
minha boca. No meu corpo. E foi me beijando. Gentil, mesmo. E me abragando, tirando minha roupa com cuidado para
nio amarrotar. Apreciando.
E voc€?
- Eu fiquei logo excitada. O coroa bacana, um figu- querendo agradar.
16o. Eu
E agradou?
- Agho que sim. Me agradei tambCm. O cara d experi_
ente, sabe fazer. 56 uma coisa me chateou...
fazendo;
Q,t.
coisa?
O cara me perguntou se eu era completa!
Voc€ C?
Sou. Mas isso C ld pergunta que se faga? O cara vai
se a mulher deixar, tudo bern-- vai em frente.
-Eai?
AI, eu fiz que n6o ouvi. O cara tambCm se mancou.
Fui fazendo, ele gosrando. Ele fazendo e eu gostando. N6s
dois fazendo, n6s gostando.
Eu n6o gosto. Tudo eu nio fago.
-VAnia deu de ombros.
. Bobagem. Todo mundo faz. Voc6 nio sabc o quc
perde,-sua boba.
Euridice balanga a cabega.
Fago, n6o. Por isso C que eu gosto de japon€s.
-
Japon6s?
sim. Paga em d6lares. Nio
-beija na
-,Jepon6s,
boca. Tem pau pequeno.
E goza logo.
t64
regateia. N6o
viu quando a nega Huga encostou no balcio
localizado logo na entrada da Galeria
caipira
do Rolando,
Alaska. Aproximou-se.
CabegSo
Oi,
Nega.
- Diga, meu querido. Alguma coisa, perdiglo?
- Viu o pessoal por al?
- Vi. T{ todo mundo no Scaramouche.Tlao aProntando o qu6?
Aprontandq nada, bicha. Vai cuidar da tua vida.
no MG que deixara estacionado na Avenida Copacabana, fez um sinal de despedida Per,a e nega e tocou Para
i rua Bollvar. Tinha Pressa de propor a curra I turma. Era
uma idCia genial. Chegou a temPo de ver o pai entrandorto
edif(cio onte tinha ume gargonniire. Qae coincid€ncia. Estava com sorte. De rePente, a dona estava l{ tambCm e il eta
um adianto. Explicava a coisa Pro Pessoal, escolhia-se o
"amarrador". Facilitava a ag-ao.
Sei, nlo. Budiio era s6 ddvidas.
-Noves-fora deu forga ao faixa:
Custa nada dar uma alga pro Cabega aqui. Qual C,
Budilo? Custa dar uma forga para um amigo. Custa, najoi
Budilo n6o falou nada. Mas pensou. Se € pra sacanear
o pai, por que o Cabeglo nio tira umas fotografias da.mie
.oh o-tt"*Lrado dela? Era a coisa mais f{cil do mundo, a
coroa vivia dando as maiores bandeiras. Ia atrCs do garotio
onde ele estivesse. E nlo tinha manc6metro. Outro dia mesmo surpreendera o cara com uma gatinha no Arpoador e plantara o maior esporro. Nem ligou pras explicag6es do rePaz.
"Eu n6o td comendo ela nio, Mait€. E s6 namoro' tlns
beijinhos.' E a mulher, Possessa, sem nada quercr-saber. A
poita do rabo-de-pei*. abert" e ela comandando: "Entra fi'
iho-d"-pnt", vem me contar aqui o que voc€ fez com essa
vagabunda." E o cara, envergonhado, mas submisso: a coroa
lhi dava a maior boa-vida. Mas tomava precaug6es. Mesmo
o carro nlo estava em nome dele. Era dele, mas ficava em
nome de uma amiga solteira. Preocupag6es que ela mesmo se
encarregava de justificar: 'Ponho no seu nome,-depois voc€
enjoa de mim e me deixa. Vai embora com uma franguin-ha e
al como C que eu fico?" Muitas rouPas. Pouco dinheiro. "Dinheiro pra quel Pra gastar com essas putas? O que voc€ qui-
-Entrou
165
ser eu dou. Me pede que eu dou." E o garotio ia mancirando,
mordendo a coroa, se defendendo. Andando de carro novo,
convcrsfvel, pra cima e pra baixo. Bem vestido. Sem fazer
l"d1 Pegando cor na praia, cortando ondas. Melhor do que
batalhar num empreguinho mixc, passar a juventude r;da
enfurnado naquele quarto-e-sala com a mie. Iludida, coitada, pensando que o filho tinha assenrado o julzo. O trabalho
de representar firmas de outros Estados explicava as horas
malucas do filho. E as noites fora de casa, tendo que acompanhar os donos das fdbricas quando vinham I Capital. Conhecer a noite. Divertir-se um pouco. Afogar o ganso. Que
remCdio: tinha de aturar a coroa. Fazer boicara. Entrou no
carro c nem bcm fechou a porra c j{ a dona buscando a reconciliaglo. E beijando. E agarrando nele. E chupando ele
ali mesmo no carro. O carro encostado no meio-fio. A garotada da praia encostada no carro. Mulher mais doida...Budilo rendeu-se, afinal.
bern, mas qual C o plano?
-Ti
Cabegio
explicou. Era simples.
O Toninho aqui
e aponrava para o bota-pinta da
- A gente liva ela
"x6x113' a dona.
curriola
das
- ela e ainda tira umas fotografias. pra uma
"tocas', curra
Que eu mando pro velho, pelo correio. Vai ficar puio-da-vidi.Ti eraredo na dona.
Topa, Toninho? Pergunrou Budiio.
-*Merda, foi assim da outra vez",
pensou o Toninho.
Noves-fora levantou a guria. Budiio foi conferir. por
sorte, o fot6grafo ambulante que faz ponto em frente ao Pclicano colheu o maior instantlneo da garota. Retrato que
passou de m6o em m1o. Todos avaliando-suas possibilidades.
O tarado do Bidu esfregava as m6os rimidas, cheias de dedos
nodosos: "Boa n6o, C 6tima."
Toninho n6o levou muito tempo pra'amarrar- egarota. Chamava-se Alfcia. Ia fezer dezessete anos e exame pere a
Faculdade. Morava com os pais no Posto Seis. O pai .t" t.soureiro da Caixa Econ6mica. A mle trabalhava no MinistCrio da Fazenda. Era filha dnica. Morena, um pouco gordote,
mas n6o a ponto de prejudicar suas formas, que eram exuberantes. E Toninho as conferia na praia: certinha, mesmo!
166
Alfcia nlo desconfiou do convite. Nem tinha porque.
Festinha na Barra, na casa de um amigo do coldgio. Nio,
Toninho n6o tinha carro. E nem sabia dirigir. Mas tinha um
amigo, por apelido Cabcglo, possuidor de um MG, poderia
lev6-los.
Voc€ topa, Allcia?
- Topo, Toninho.
Cabeglo foi pontual.
!ng1s11 os dois na frente. Carro esPorte, sem banco
traseiro.
CabegSo C gentil.
Fica um pouco apertado, mas os pombinhos nio se
nio C? Se incomodam?
incomodam,
NIo, nlo se incomodavam.
Toninho entra primeiro.
Vou aqui, Allcia, por causa da mudanga. Perto da
porta -fica melhor pra voc6.
-
ok.
Este aqui d o Cabeglo. Vai levar a gente na festa. E
boa praga.
- oi.
oi.
-Cabeglo
passou na porta da Galeria Alaska, o primeiro
"ponto". Depois, tomou o rumo da Barra.
Bidu viu o carro primeiro, alertou Budilo:
Vamos, cara, Cabeglo e Toninho acabam de
-
passar
com a garota. Se arranca.
Cabeglo dirigia bem, tranqiiilo. Alicia sentia e cerlcia'
no rosto. E o cheiro do mar. Toninho regula a estavento
do
glo do r{dio, avoz da Dolores domina o chiado:
"Nio me culpes, se eu ficar..."
Na Praga do Milho, em 56o Cristdvlo, Cabeglo surpreende o amigo.
Aceita um milho, Allcia? E 6gua de coco?
- Se nlo incomodo..
- Inc6modo, nenhum. E ati bom dar uma paradinha.
- do carro estd esquentando um Pouco.
O motor
Toninho percebeu o Pa.rtido.
[nssrnsda nada, Al(cia, era s6 o que faltava. Salta,
vamos.-
t67
Budi6o viu o carro estacionado, o pessoal na barraquinha.
pira no Jod. Espera ld.
e companhia passaram no segundo
"ponto", Noves-fora jd estava montado na lambretta. Seguiu
Budilo no rumo da "toca".
Cabeglo diminui a marcha.
Td ruim, gente. O motor / esquentando. Vou ter
- Thua com medo disso.
de parar.
Saltou, abriu o cap6, mexeu um fio imaginirio.
E melhor saltar. Td fervendo. VamJs esperar um
Pouco.
Foi o casal saltar e os "assaltanres" rodearem as vltimas. Lengos nos rostos, rev6lveres nas mlos.
senlo a gente machuca.
- Quietinhos,
Alicia
sente uma tonreira. Ap6ia-se em Toninho, gu€
fala aos assaltante:
A gente n6o tem quase nada. Somos estudantes.
- indo para uma fesra ali no...
Estamos
Cala a boca. Passa a grana e os rel6gios. E sem piar,
Vamos em frenre. A gente
-Quando CabegSo
sen1o...
Budilo divertia-se a mais n6o poder. A cena toda armada, a garora apavorada. A coisa ia ser fdcil.
A garota, a gente quer ela.
-Toninho
revoha-se:
N6o faz neda com ela, d minha noiva.
\6iyx, nada. Onde i que jd se viu trazer noiva pra
Barra -da Tijuca?
falei. A gente ia numa festinha...
- Jd
Cala a boca, filho-da-puta.
-Noves-fora tinha pressa.
-
Tira a roupa, moga. E melhor tirar. Eu posso rasgar.
Budilo devolve a realidade ao garoro.
Acorda, Toninho! Td no mundo da
-Cabegio esclarece.
lua?
Ele td gamado. Tu n6o td gamado, major?
-A turma quer saber da gamagio.
168
Ele td gamado na namorada. Na tal de Alicia.
Livinho, que nlo havia participado da curra, conhecia
hist6ria mal e mal. Surpreendeu-se:
Mas ela fala com voce, ainda?
- Claro que fala. Os "assaltantes" C que me obrigaram
- O trato C que eu ia corner primeiro. Ai eu falei no
a comer.
ouvidinho dela: "Voc6 me dcsculpe. Eu n6o queria assim. Eu
queria voc€ pra toda vida."
Puxa, cara, voc€ C romintico, mesmo! Livinho ada
mirava-se.
Pois C. E
sa{ com ela duas vezes depois da curra.
- E com€u?i^
- E voc6 acha o qu€?
-Nesse momento, Cabegio interrompe o papo e aponta
uma mulher saindo de um cdiflcio.
E ela. Aquela ali.
-Toninho pergunta:
Aquela o qu€, cara?
- A mulher do vclho. De branco e azul, ali. Olha,
porra! -A cadeiruda, cara!
Livinho espera a mulher chegar mais perto, passar pela
porta do bar e entlo poder confirmar:
Eu conhego ela. E amiga de uma dona que eu dou
- mas que me sacaneia. Conheci no Tudo Azul.
em cima,
Cabeglo comanda.
6timo, facilita tudo. Voc6 fala com ela quc o Toni- td caldo pela amiga. Arma uma fcstinha. Ela leva
nho aqui
umas amigas. A gente curra legal.
Combinado. Eu ainda tiro uma forra. Livinho anima-se
-
.
BudiSo repete e pergunta de sempre:
Topa, Toninho?
- Topo.
-
Vinia n6o conhecia Livinho. Eur{dice refresca a mem6ria da amiga:
E aquele que vive dando em cima de mim. Moreno
claro. -Alto. O pai C da Alfindega. Sempre me traz perfume
franc€s.
-
Entio, por que
a ddvida?
r69
Sei ld, agora com.esse neg6cio de juventude transvi-
que o garoto gosta de maconha. Outro dia
ada. Desconfio
estava com os olhos bem vermelhos..
E praia. E sol. €, mar.
- Sei 1d...
-VAnia est{ mais animada.
Agradam-lhe as festas.
A gente chama a Sandra Vilma e a Mariza.
Mariza? A outra quer saber.
- Que
Que Mariza, Euridice? P6t E Claro que C a Mariza
- a que pdra no Cremmailllra. Aquela minha amiga
morewt,
que tomou umas porradas da mulher de um dentista que ela
corneava, e que eu levei pro rebolado, nio se lembra?
Euridice se lembrava. Agora, perfeitamente. Isso a sossegou: nlo tolerava a Marize loura., a que Parava no Hi Fi.
Tivera uma bronca com ela por causa de um argentino' no
tempo e m que ambas feziam ponto no Fiesta. "Imagina, por
um portenho", lamentava-se Eurldice. E com raz6o. Se hd
turista mais desprezlvel 4 essa gente: mesquinhos, arruaceiros, grosseiros. E querendo tudo, forgando uma barra. Na
bruta.
Rende-se Eurldice.
Entio estd certo. Vou combinar com o rapaz. Ele
pega a-gente aqui. A festa serd no Joi, numa casa 6tima. E, do
pai. A familia estd viajando.
Td certo, eu falo com a Sandra Vilma e voc€ acerta
- Melhor, deixa comigo: vou chamar a turma toda.
a Meriza.
Eurfdice se espanta:
A mulherada toda?
- E, p6. Alim da gente, da Sandra e da Mariza, chamo
a Lita -e a Anita, aquela amiga dela, a Bea e a esporrenta da
Rita Maria. Vai ser uma festa do arromba!
Euridice volta a vacilar.
Espera ai.
- Que i desta vez, mulher?
- Voc6 nlo acha que se eu aceitar, vou ter que dar pro
- Ele vai querer me comer. Eu nlo vou ter de dar?
Livinho?
Vinia riu da colega:
Sei
to... O- que
donzela.
r70
Euridice. Voc€ i quem sabe. Se vier com jeigue tem? Voc€ C tlo cheia de moda, parece
li,
i
Sorte que os pais do Livinho tivessem viajado. O pai
era tarado pelo Louis Armstrong. Ficou uma fera por nio ter
ido a Buenos Aires ver seu artista predileto. Embora Dante
Vigiani, o empres{rio que lhe garantira entrada para todos
os-shows do "jazzman" em sua aPresentagso no Municipal,
lhe tivesse assegurado o pr6ximo retorno do cantor e
pistonista acompanhado do seu conjunto "All Stars", Dr. Llvio
nlo queria arriscar, perder a oportunidade. Por isso, quando
anunciaram uma temporada do artista em Punta del Este n6o
vacilou. Falara logo com a mulher: "Vamos, Dalvinha. Na
volta a gente passa uns dias em Buenos Aires, mata as saudades." (Adorava almogar no La Cabanfr. que gabava ter melhor
carne do mundo. A noite, freqiientava o Bar Uni6n, reduto
da bo€mia portenha e que os turistas nlo conheciam.)
Foram. E foram muito do bem. O funcionirio da AlfAndega levando o sentimento do dever cumprido: liberara
os Cadillacs do Senador. Gente boa, o Senador. Sempre atencioso e disposto a atender pedidos, fazer favores. E generoso.
Havia lhe dado uma nota preta, vencendo pertinaz resist€ncia do correto funciondrio. "Que isso, doutor Nascimento?
De jeito nenhum. Fiz minha obrigagSo." O Senador nlo queria saber. "Absolutamente Doutoi Llvio. E .r-" pequena recompensa por sua ajuda desinteressada, Por sua compet6ncia. Faga o favor. De jeito nenhum digo-lhe eu." E estendia
ao zeloso servidor priblico o envelope, pardo e gordo, a sugerir altas esp6rtulas. "Era dinheiro bem empregado", raciocinava o Pai-da-Pdtria. Urgia acelerar os processos de liberaglo dos autom6veis. A imprensa j6 comegava a noticiar com
mais insistdncia. Tudo por causa de um "foca" do Didrio de
Noticias, um tal de Elio Gaspari, o aprendiz de rep6rter que
levantou toda a hist6ria. E alim disso malcriado. O Senador
o chamara em seu gabinete 'no Monroe e lhe oferecera sua
proteglo, a ele sugerindo subir rdpido no jornalismo, alCm
de lhe assegurar um razodvel cala'boca. O garoto atrevido mal
deixou o Sen"dor concluir a vantajosa ProPosta e foi logo
dizendo: "Quer saber de uma coisa, Senador? Vai pra putaque-o-pariu." AlCm de falta de respeito com um Senador da
Repriblica, o garoto manifestava total desconhecimento das
q,tilid"der filantrdpicas do interlocutor: um benemirito!
Quantos rapazes nlo havia ajudado? Mas, pior que o rep6r-
t7l
ter eram os donos de jornais. Cinicos a abrir manchercs. Primeiro, importavam os Cadillacs; depois, pregavam moral.
Maior raiva, ainda, ficou do Doutor Lustosa, diretor do Correio da Repilblica. At€ para a amanre havia liberado um Oldsmobile converslvel: uma graga, ezvl, pneus banda branca. Sem
falar no Cadillac preto para ele, o CoupC de Ville para e
mulher, Chevrolctes para os garotos, e uma Harley Davidson
mil e quinhentas cilindradas para o corno do genro. Que
tartufo! Que filho-da-puta! E,, precisava mesmo correr com
as importag6es. As eleig6es chegando, e o Senador precisando gastar uma verdadeira fortuna para se reeleger. 'Que sacanas, pensam que votos nascem em drvores?", indignava-se
o representante do povo. Doutor Livio era pega decisiva no
esquema das importag6es. Boa relaglo aquela. E agora, melhor, os filhos se tornaram amigos. Sempre saindo juntos para
festinhas. Era um 6timo repa;z o filho do fiscal. Excelente
companhia para o filho. Ele, Senador, sempre correndo pra
ld e pra cC. A mulher, tambCm, sempre envolvida com chds
de caridade: muito ocupada, muito sCria, muito austera, pra
ld de recatada. O casal sem muito tempo para dedicar ao filho. E agora essa onda de juventude transviada. Era um espeto! Felizmente o filho nlo se tinha metido naquela moda.
Algo vadio, d verdade, mas bom menino. Bom rapaz nlesmo.
Era. feliz o Senador. Era feliz o funcionCrio. Ambos merecidamente. "EscAndalo dos Cadillacs, que absurdo!"
Livinho comunicou I curriola a boa nova: os pais
iriam viajar. A mansio no Jod estava liberada da silva. Fariam a festinha l{ mesmo. Budilo achou que Livinho n6o
tinha peito. Bidu idem. Cabeglo gostou da idCia: 'Oba, curra
na cama!'Toninho nlo achou nada.
VAnia perguntou alegre:
Como i, mulher, tudo de p€ pere a festa?
-Euridice continuava indecisa.
Sei n6o, V6,nia.
-- Sei n6o o que? Parece que a gente tdindo prumagaeF
ra! E festa, mulher. Festa!
E continuou no mesmo tom alegre:
JC falei com a Sandra Vilma.lTopou no estalo.
-
172
E as outras?
- A Mariza topou, mas as outras jC tinham Programa.
A Bea-ficou de ver. Td afnzona dc ir. Vai ver.
A outra C um pogo de drlvidas.
Ainda n6o sei...
-Vinia se irrita.
P6, mulher, que figurinha mais dif{cil de bala Ruth,
td pra -ver.
N6o
C, Vlnia. E que d...
Vinia nlo d{ refresco.
Oh, Eurfdice, v€ se nlo
o meu lado. gostei
plo.
atrasa
- amigo de seu namorado. E um
pacas do
Nio C meu namorado.
- E, o que, enteo?
- E meu conhecido. Somos aPenas amigos. Bons ami- mais do que isso.
gos. Nada
Td bem. Bons amigos. VocA td me saindo melhor
que a encomenda. E mulher tem amigo?
CabegSo sugeriu que todas as luzes da casa ficassem
acesas.
Pra que? Perguntou Bidu.
- Pra dar a impressio de festa, otdrio. Quer assustar o
- de safda.
gado logo
As luzes foram acesas.
Lige a vitrola bem alto, gritou Cabeglo para dentro
-
da casa.
A vitrola foi ligada no mdximo.
As mogas ficaram impressionadas com a casa.
Vinia era toda admiragio.
Que palacete!
-Antes,
jd havia elogiado o carro. O Cadillac CoupC de
Ville rosa da mie do Livinho. (O riralandro tinha a c6pia das
chaves dos carros.)
Meriza, no banco de trds, Passa a mlo no estofado e
nlo
se contCrn:
luxo.
Que
-Eurldice,
ao lado do rtpaz, C quem Pergunta:
-
E de qu€?
173
De qu6 o qu€?
- O estofamento, Livinho. De que material i?
- De couro, eu acho.
Vinia
recostou a cabega no banco. "ETao bom ser rico.
T6o bom..."
Euridice foi a primeira
a
desconfiar de que alguma coisa
estava errada.
O clima n6o combinava com a id€ia de festa. Havia
algo de estranho no ar. N6o sabia bem identificar o que era.
Mas que havia, isso havia.
Segredou suas desconfiangas paia Vinia que concordou:
Engragado, eu tambdm sinto isso. Tem mesmo alguma -coisa fora dos eixos.
Eur(dice se apura.
E, sim. Pode reparar: nio tem ninguim alCm de n6s
e os garotos,
Nlo tem gargom.
- Qugs3s pessoas.
- { 6a5x parece vazia.
me cheirando a sacanagem!
-Ti
Vinia decidiu interpelar o dono da casa:
Me diga uma coisa,
me u chapa: que festa C essa, hem?
-Livinho foi surpreendido
pela pergunta. Ficou meio
Cabeglo
foi
quem
respondeu:
desconcertado.
Td desconfiando certo, dona. Mas tem festa, sim.
Mas C-sd n6s mesmos. E uma festinha privada.
Sandra Vilma, entlo Nely, quebra o sil€ncio:
Assim td ruim. Tinha neiessidade disso? Neo dd. E,
melhor a gente ir embora.
Noves-fora falou duro:
Deixa de bobagem, dona. Pode ver que as portas
Nlo tem ninguim na casa. Na redondez tamestlo fechadas.
bCm nlo tem ninguCm. Nlo adianta gritar. E, pura perda de
remPo.
Era ameagador o Noves-fora. Os bragos enormes, e cera
feia. N6o gostava muito das donas, tudo mulher feita. Preferia as menininhas. Comprazia-se com o pinico das vitimas.
Excitava-se. 56 de chegar perto jC gozava. Regozijava-se com
t74
o pavor das garotas. Deleitava-se com o horror das cenas.
Especialmente a repulsa que provocava. Repulsa que pareceu
vislumbrar na morena bonita.
Vou comer voc€.
-Sandra Vilma, mais Nely do que nunca, responde de
chofre:
Por que nio come sua irml?
- Serri como voc€ quiser, dona. Na viol€ncia ou na
Pode escolher...
camaradagem.
Sandra Vilma, com Nely crescendo dentro dela, trincando os dentes, balbucia:
Me deixa, repez. Me deixa em paz. Me respeite .
-Noves-fora d:i-lhe um tapa na cara. A m6o aberta. A
dor e a injrlria.
Cachorro!
-
Marize considerava a coisa pelo melhor Angulo. Estavam inteiras. Tiveram sorte, ainda. Os garotos eram malucos. Tarados.
E que orgia. Teve "rafa". Teve langa-perfume. E bebiMuita
bebida. E atC um "fuminho".
da.
Fclizmente, as coisas terminaram bem. O Livinho as
havia trazido de volta. Imagina se ficam sem conduglo li em
cima? Perdidas de todo? Ou se os garotos decidissem judiar
pra valer?
VAnia, quando viu que n6o tinha mais jeito, soprou
para Euridice:
Nio conhccc o ditado? Se d inevitivel, relaxa e aproveita.
Eur(dice sentiu o drama. Conhecia a amiga.
Nlo precisa disfargar, nlo. Isso nlo tem cabimento.
- vamos fazer as coisas piores do que jt sio. Fala com
Mas nlo
a Sandra, v€ se segura ela.
E foi se juntar ao Livinho, confiando que ele a protegeria. Dava pare ele, e pronto! A pitria estava salva.
Ledo engano. Passou de mlo em m6o. Ou de pau em
pau, como diria, mais tarde, para bancar a c{nica, continuar
com o disfarce, uma dilacerada VAnia.
Eurldice queria dar queixa I pol(cia. SandraVilma gostaria muito, estava revoltada ("Precisava disso?"). Mas tinha
t75
ddvidas. Lembrava-se do acontecido com a Gl6ria May. A
vedete denunciara rer sido vitima de rapto e ficara por isso
mesmo. Eram filhinhos do papai.
Voc6s nlo viram o que aconreceu com a Gl6ria May?
- Nio, que aconteceu?
Mariza quer saber.
-Sandra Vilma, largada de ser Nely,
esclareceu:
Nada, minha filha. Nada. Nadinha de nada.
-Vinia conhecia a hist6ria.
Disseram que ela queria se promove r. Fezer cartez
- de uma imaginada
por conta
curra.
Sandra Vilma, Nely novamente encostando, nlo gostou. Gostava da Gl6ria, mulher de princlpios.
Voc€ nlo deveria falar assim dela. Mulher rem de
ser solidiria.
Vinia se defende.
Nlo falei nada, ui! N6o dei opinilo, n6o. Falei o
que disseram.
Ela queria certaz. E, de mais a mais, C bobage m. E, pe rda de tempo. Os garotos t€m costas-quentes. Tirdo
juventude transviada.
Sandra Vilma, ourra vez Nely, nio concorda novamente:
transviada nada. Slo € gangsters. Gangsters
-Juventude
sexuais.
E covardes. Muito covardes.
Vinia levantou-se. foi ati o meio da sala para dar mais
circunstincia ao que ia falar.
Vou contar uma que C cabo-de-esquadra!
-Vdnia espera o sil6ncio absoluto, o interesse toral.
Sabem quem C aquele garorao que ficou logo comigo?
-
Eurfdice nlo sabia, saira logo do salao com o Livinho.
Conta, VAnia. Fica fazendo suspense...
-VAnia hesita.
Ser{ que conto?
- Conta sim, Euridice insistiu. - Deixa de onda.
- Pois bem. Aquele garot6o, bonitlo, cabega grande
- mais, nada menos ... que o filho do Senador.
C... nada
Mariza nlo conhecia a hist6ria.
Que Senador?
- O
meu coroa. O figurlo.
- f qerns C que voc€ soube? Indaga a Euridice.
-
176
se agiientou: "Sei quem voc€ €, sua
do meu pai." AI eu Perguntei: "Que pai?" E
" "mittt.
o garoto: "O Senador Nascimento."
Eur{dice nlo se conteve:
E voc€? Coisa chata, n& Fez o qu€?
- Eu? Nada. Ia fazer o qu€. O garoto em cima de mim.
- Perguntando. Fazendo comparag6es: "O meud maiFalando.
or, nio C?" E eu quieta. AlCm da situagio esquisita, detesto
foda irradiada.
Eurldice perguntando semPre:
E dal? E voc€, criatura?
- Eu? Me deu uma doideira danada: "Ent6o voc€ C o
- meu homem?" Foi o garoto concordar e eu despejar:
filho do
" Td comendo sua mle, se u filho-da-puta!"
Xi, Vinia, que horror, disse Nely jd assumida.
- UC , que C que tem ? Eu nlo sou mulher do pai? Equase -mle.
Nely insiste:
N6o brinca com neg6cio de mle, nlo. Mie C trem
put". E-
sCrio.
O garotio nlo
-
Foi falar em mie e Eurldice desmanchar-se.
Nio sei como vocds podem brincar depois do que
- Tenho vontade de chorar. Morrer. Sei lC. Bem que
aconteceu!
eu nlo gueria ir. Tinha uma coisa aqui dentro. Um pressentimento, n5o sei. Estou com noio de homem. Sabem o que C
e solugava convulsanojo? Estou com nojo. Me sinto suja
mente.
Vinia passou-lhe a mlo nos cabelos. Os olhos cheios
d'rigua. A boca seca.
Liga n6o, sua boba. Lavou, td.novo.E".rantag.m
- lavou, td novo.
da xoxota:
Cabeglo estava satisfeito com a festa. Afinal, era o pai
da idCia. Foi conferindo:
Ent6o, Livinho?
- Legal, mea chapa. A dona quis fazer um romance .
para o quarto. Disse que ia ser s6 minha.
chamou-logo
Me E voc€?
- Eu fiquei quieto. Dei a maior corda. Amorzinho
- Depois, troquei com voc€. Nio foi?
m€smo.
r77
Foi. E voc€, Toninho?
-Toninho balanga a cabega.
Noves-fora estranhou a dona.
foi, major?
Que
-Bidu respondeu pela fera:
Ele i invocado mesmo. Eu me dei bem. A garota,
aquela-morena peituda chegou a falar: "Por que nio foi vocd
o primeiro, tes6o?"
Budi6o caiu na gargalhada.
Ela falou pra todos, seu babaca.
- " Td rudo aqui. Documentadinho."E agitando o rolo
do filme:
Depois, voc€ me dri? Cabeglo pediu.
Olha o trato.
-
-
(Dou, sim. Tu vais ver o que eu vou arrumar. Sarna
grossa. Vou espalhar foto. Como quem espalha merda.)
Dr. Livio recebeu, pelo Correio, as fotos de Dona Mait€
com o garotlo. Fotos na praia: a senhora de bragos com o
npzzi deitada no colo dele, a boca numa posiglo reveladora.
Aos abragos. Aos beijos. Atracada no rapaz.
'Que imprud€ncia!"
Dificilmente um homem se sente chocado com a noticia da seduglo da mulher do pr6ximo. Dr. Llvio nio seria
exceglo a uma regra teo confortdvel. Preocupava-o, apenas,
o lado prdtico da questlo.
Que fazer? Mostrar ao marido? Nem pensar, neo era
civilizado. O Senador podia interpretar mal. Ningudm sabe
como reage o corno. Poderia estremecer uma amizade tlo
proveitosa. Perder a naturalidade.
Ignorar? Perigoso para a senhora. Quem quer que fosse, gueria prejudicd-le,Talvez fazer chantagem. "De repente,
estoura a bomba e olha eu af no meio do bolo!" Melhor era
falar com ela. Mostrar as fotos. Que se prevenisse. Mas por
que diabos teriam mandado as fotos justo para cle? Que
merda. Mulher bonita, Dona Mait€.
"Que descuido, Deus meu!"
Dona Mait€ ficou surpresa com o telefonema. Conhecia ligeiramente o Dr. Lfvio. Sabia-o das relag6es do marido.
Funcionririo da AlfAndega, cerramente andava metido com o
marido naquela patifaria dos Cadillacs. 'Dois trambiqueiros',
178
pensava a dama. Os filhos eram amigos. Viviam em praias,
bailes. Intrigou-a o ar de mistdrio do cavalheiro. "N5o lhe
incomodaria, minha senhora, nlo fosse assunto assaz relevante. E de se u interesse." Se poderia ir no seu escrit6rio na
rua do Rosdrio? A que horas? Depois do expediente seria
melhor. No finalzinho da tarde. Que conversa estranha. Seria uma cantada? N6o, nio poderia ser. E se fosse, que modo
original de dar uma cantada,biaconferir, de qualquer modo.
Dr. Livio recebeu-a cortesmente. Curvou-se, beiiou-lhe
a
mlo enluvada.
Entre, minh.a senhora. Muito agradecido pela
tenglo.-
a-
Pois d, doutor. Confesso que o senhor despertou
minha- curiosidade.
E, toda coquete, aceitando a poltrona que lhe fora oferecida:
Curiosidade de mulher... Ningudm segura.
-Dr. Livio ajeitou o lago da gravata. Tinha o sestro de
passar a ponta dos dedos na pdrola que a guarnecia.
Dona Mait€, o caso que me fez tomar a liberdade de
- d muito delicado. Dai as precaugSes que tomei.
chamd-la
E, com um gesto abrangente, mostrava o escrit6rio deserto de empregados.
Assim o senhor me assusta, doutor.
- Sinto muito, n6o tenho essa intenglo. Mas o fato d
em si -extraordinariamente grave. Veja a senhora por si mesma.
Dona Mait€ tomou o envelope e examinou rapidamente as fotografias. Ficou livida. EntSo era isso... Fotos suas
com o Lazinho. Que filhos-da-puta! Quem as teria tirado?
Como reriam chegado nas m6os de Dr. Livio. "Que situaglo,
meu Deus!"
significa isso, doutor?
- Qr.
Slo fotos... Da senhora, se me permite, com um...
ah... Qr'r. slo fotos, eu sei. Estou vendo. 56 nlo sei d
como -vieram parar aqui.
Dr. Livio sentiu uma certa censura na voz da esposa do
Senador.
179
Vieram pelo Correi,o, minha senhora. Como a senhora -mesma pode ver pelos selos colados no envelope , respondeu seco.
Dona Mait€ percebeu.
Desculpe, Dr. Lfvio. Mas estou tlo confusa. O senhor compreende,
uma pessoa na minha posiglo.
Dr. Livio compreendia. Por isso mesmo a tinha chamado para um encontro tio cercado de precaug6es. Mas podia nele confiar. T6-lo como amigo. Amparar-se em seu braEo.
Dona Mait€ acalmou-se por momentos. Sentiu necessidade de explicar-se:
Eu n6o sei, doutor, o que deu em mim. O Lazinho,
o tepez- da fotografia, o senhor nlo imagina, dando em cima
de mim, me perseguindo. E eu dizendo para ele: "N1o faga
isso, tenho idade para ser sua m6e." Mas qual, o rapaz nio
deixava... O senhor acredita, doutor?
Dr. Livio acreditava. Sem sombra de ddvida.
Piamente, minha senhora. E, se me permite, diria
que a -senhora n6o parece mle de um rapaz. A senhora esti
muito bem.
Recompunha-se a dama.
O senhor acha mesmo, doutor. Ou estC falando s6
- agradar, consolar uma mulher aflita?
para me
Absolutamente, minha senhora. Como nlo? A se-
nhora -est{ muito bem, mesmo.
Obrigada. Suas palavras sio um bilsamo. Imagine o
senhor o cerco do rapaz. Nlo desistia. E telefonava. E me
esperava na porta de casa. Quando eu ia sair, ld esrava ele em
pC. E de calglo, doutor. De calglo! Se mostrando, fazendo de
prop6sito.
Dona Mait€ calou-se. Olhou para o interlocuror interrogativamente .
Serd que eu posso lhe fazer uma confid€ncia?
-Dr. Llvio espalma a m6o mo
peito.
Perfeitamente, minha senhora. Tenha-me por seu
confidente.
Pode confiar. Serei um tdmulo.
Uma pequena hesitaglo e logo Dona Mair€ conrinua:
O Nascimenro... Como d que eu vou dizer?
-
180
Dr. Livio anima-a:
Diga, Dona Mait€, nlo se acanhe.
- O Nascimento nlo pode mais, o senhor entende o
que eu- quero dizer?
Relag6es sexuais, a senhora quer dizer?
- Isso mesmo, doutor. Ele n6o ...
- Trepa? Arriscou o confidente.
- Isso mesmo, doutor. A palavra certa i
- conversa ia ficando mais afdvel.
A
essa mesmo.
p sg, doutor...
-Dr. Livio a interrompe:
pqu6e1 d muito formal. Somos amigos, agora.
- Tem razio. E L(vio C um nome tlo bonito.
- Mait€, tambdm. Tem classe.
- Obrigada.
- N6o tem porgue. Mas continue, Mait6. Falando a
gente -se alivia, nlo d? E como tirar um peso.
Voc€ tem razlao, meu bem. Tirar um peso. Vocd d
dera que todos os homens fossem
assim. Voc€ me condena?
Neo, Mait€. Voc€ d jovem, ainda. E privada dos prazeres do corpo. Apenas...
Apenas...
- Apenas deveria tomar mais precaug5es. Lugares mais
- homens mais responsdveis.
discretos,
Dona Mait6 olhou-o nos olhos. Que belo escrit6rio!
As paredes eram de madeira.
t6o compreensivo.
Quem
O Senador Nascimento recebeu uma dfzia de fotografias, pelo Correio.
"Que diabo i isso...?" Assustou-se : "Seri que querem
me meter em algum rolo?" 56 podia ser chantagem. Mas chantagem como? As fotos n6o eram dele. A bem dizer, nlo tinha
nada com a moga. Apenas uma ligagio eventual, podia ser
desfeita. Pensou e m chamar o Dr. Humberto Jansen, advogado da firma, aconselhar-se com ele. Ou entlo telefonar Para
o Coronel Job, Delegado da Ordem Politica, que lhe devia
um monte de favores. Depois, acalmou-se. A excitaglo dominou o medo.
t8l
"E, brincadeira de mau gosto", pensou. NinguCm reria
como envolv€-lo nas cenas. Era tomar mais precaug6es. Dar
um dinheiro para a moga, despedi-la. E d'ora em dianre , tomar ten€ncia, nlo cometer imprud€ncias. Imagina se alguCm
da imprensa sabe de sua ligaElo com a moga. Pior se for aquele
impertinente do Elio Gaipari. Ou se a Mait€, t6o recaiada,
descobre. Que escindalo.
Mas que pena. Era uma pena terminar o caso justo no momento em que estava indo t6o bem. A mulher era
6tima. E essas fotos, que posig6es! O fot6grafo era um arrista. Que grande, o do cara. "Serd maior que o meu?', perguntou-se. Que fotos, que mulher.
N6o pensou mais. Ligou perae nega Huga.
Olha, recebi pelo Correio, umas fotos da sua amiga, a Vinia.
Diga a ela que eu gostei muito e que a estou
esperando, amanhi, no mesmo lugar c no mesmo hordrio,
ouviu?
3I
PEnout DA CHINA
Vinia nem deu trela ao papo furado da bichona:
Nlo quero, Hugo. N6o quero, e td ecabado. Nio
- mais nisso. Nunca mais, ouviul
me fale
Nunca mais!
A nega Huga nlo entende u nada. Que falta de assunto.
Outro dia, toda interessada pelo Senador. Hoje, puta da vida
com os machos, que maldade! Rejeitando o convire do Senador para renovar encontros. E fechando a porta com chave e
tudo. "Nunca mais!" Vai dizer o que ao Senador? Vai ficar
puto dentro das calgas e com ela, a nega Huga. A bicha inrermedidria poderia perder seu melhor cliente por causa do destempero da Vnnia. E nem entende ra bem a posigio da outra.
Que profissional era ela?
Mas voc€ nlo aceita dinheiro, VAnia?
- Aceito como retribuiglo
ao meu trabalho.
- Entlo?
- Agora, me comprar, ni.o. Sou uma mulher livre, td
sabendo?
r82
"Que cagada", concluiu a desolada bicha.
e pronto! E nem que quisesse. Estava com uma bruta de uma hemorragia. Que estava doence
n6o havia drivida, a febre revelava. Mas os sintomas se misturavam: cansago, uma leseira, ard€ncias diversas... Tlo estranhas, uma vontade tlo grande de dormir' morrer' voar.
Vinia n6o queria,
Sandra Vilma, outra vez Nely, fez que nlo entendeu a
pergunta da Bea, salva da curra pela asi{tica.
Voc6 n6o foi currada?
- N5o.
- Curioso, aVinia me assegurou que voc€ foi currada.
- E. Nao. Quer dizer. N6o fui eu propriamente. Foi
Sandra- Vilma.
Sandra Vilma?
- E,. Foi. Ou ela ou a Sandra.
- ffiss, espera, criatura, voc6 nio C SandraVilma? Voc6
- nlo € Sandra, nio?
tambCm
Nlo! Eu jd fui Sandra Vilma. Jt fui Sandra. Sou
Nely, -nlo sabia? TambCm jd fui das Dores. Nlo sou mais.
Definitivamente. Sou Nely.
Ah!
-
Euridice queria sair do Rio, passar uns tempos fora,
pelo menos. Lembrava-se do convite de uma menina que conhecera em Niter6i e que era de Itaperuna, onde regularmente
passava as fCrias. Estudava Servigo Social em Niter6i, mas
nas fCrias n6o dispensava a cidadezinha onde nascera' veraneava na localidade de Raposo, distrito de ltaperuna, famosa
por suas Cguas minerais. Era do que ela estava precisando:
Cgua mineral e distAncia dos homens.
Nlo tinha o enderego da menina. Sabia apenas que ela
estagiava no Hospital Ant6nio Pedro. Foi no hospital que a
cotrheceu. Voltando um dia de Cabo Frio, o carro batera na
entrada de Niter6i e ela foi socorrida no Hospital. Atendida
pelo Doutor Aloisio Brazil foi operada de emergAncia e salva
por milagre. E pelas habilidades do jovem mCdico, residente
ainda, recim-formado. Como n6o tinha qualquer documento, a moga encarregada do Servigo Social, estudante fazendo
€stdgio, entrevistara-a: nome, filiaglo, idade, estado civil,
183
enderego. 'Estava tudo bem?', pergunrou a menina €om um
sorriso que a cativou. Ficou uns dias na cmerg6ncia atC ser
transfcrida para a Bencfici€ncia Portuguesa, por iniciativa da
Dolorcs DurCn, gue a soubcra hospitdizada e dura. Durcza
guc, logo na primeira entrevista, confessara a Eliane Maccdo,
do Scrvigo Social, ao saber que tinha dc providenciar, por si
ou por parcntes, a pr6pria remoglo. Era hospital pdblico de
pronto-socorro, nlo podia ficar. Tinha de abrir vaga para
outros casos de urg6ncia. Mas Eliane a acdmou: fosse ficando, dava-se um jeito, mais na frcntc se veria o concerto.
Calminha.
J{ curada, uma noite encontra com Eliane ouvindo a
Dolores no Littlc Club. Espanrou-sc:
Voc€ por aqui, Eliane? Era a dltima pcssoa do mundo quc- eu esperava encontrar na noite...
E a menina com cara de travcssura:
Foi uma oportunidadc, sabe? Quando a Dolores foi
- me convidou para o shou. Fiquei
te visitar,
com uma vontadc
danada dc vir. Mas como? Cad0 companhia?
_ E veio como?
Pois C. Outro dia, saindo de um comlcio
Praga
- em Niter6i, fui com uns amigos romar umnalanche
do Rink,
na Leiteria Brasil, na rua da Conceigio. Era um comlcio pelas reformas de base e tinha gente de todos os lados. Na turme estava um rapaz que eu conhecia de vista da Faculdade de
Direito, e quc d do partido, o Marcelo...
Conhego. E amiglo da Dolores. E da Nely, aqucla
- ali (Apontava o morcnago.)
morena
Eu tinha pouco contato com ele porque eu sou da
JUC e cle d do partido...
JUC?
Univcrsit{ria Catdlica. Mas a luta pelas
- Juventudc
reformas
de base c pela reforma universitCria junto.u todo
mundo.
Veja voc0...
- Qgnvsssa vai, conversa vem, nio sei como o papo
- na Dolores e cu contei o seu caso e o convite dcla.
foi parar
Elc se prontificou I rne trazcr. Mas dc indrlstria, que ele td
de olho numa colega minha.
_
184
E cad€ ela?
- Nio veio. N6o p6de vir. Pra ela fica mais dificil
ainda -que para mim. Dei a desculpa de uma reuni6o, no Rio,
na UNE, iom o Betinho, o Aldo Arantes e o Paulo Vieira
sobre a criagio de um movimento mais avangado do que a
JUC e que o Betinho quer chamar de Agio Popular...
Euridice voava no PaPo. Era grego para ela. Mas a menina fora um doce, era tratar de retribuir.
E entlo?
- Enteo, eu fui I tal reuniio e agora estou aqui, como
- ver. Feliz da vida. Achando tudo muito bacana.
voc€ pode
Gostaria de ficar mais, mas n6o dd.
Parecia combinado. Marcelo se aproxima e chama a
menina.
E,
melhor a gente
-Eurldice protesta:
se arrancar,
Eliane...
Perald, Marcelo. Segura as pontas' a menina mal
ouviu -Dolores cantar. O show, mesmo, ainda nem comegou.
Marcelo dd de ombros.
Por mim, coragSo, ela poderia ficar o temPo que
- E, que a m5ie, Dona Odete , € avangada, mas nlo i
quisesse.
tanto. Daqui a Niter6i C um estirlo. As barcas da Cantareira
vlo
devagar guase parando.
Eliane se levanta.
E, verdade. E, pena, mas i verdade. TambCm nlo
quero -causar afli96o na mamie. Ela tC sozinha em casa. Meu
irmlo se casou e mudou. Td. em Cabo Frio. Vou me despedir
da Dolores...
Volta outro dia.
- \,/slse, sim. Outro dia eu volto. Nio hi nada me- que a noite de Copacabana. Eu volto, Eurfdice. Brilhor do
geda.
Felizmente, Nely havia comprado um aPartamento em
Pogos de Caldas. Neg6cio de ocasilo. Sorte, mesmo. [Jma
noite, estando no Kay Bar,boete do Fafd Lemos, C apresentada a um mogo muito distinto, um dos donos do Banco do
ComCrcio, que, ao sab€-la conterrinea, se aproximou sorridente e seguro de si, como todo rico.
Quer dizer ent6o que voc€ C conterrAnea?
-
185
O senhor
C
de onde?
- Sou de Pogos de Caldas. Sua colega ali apontava
para a sonsa da Vinia, que lhe piscou o olho esperto
me
disse que voc€ C de l{...
Quase, eu sou de Pouso Alegre. Mas sempre que
podia -eu ia atC Pogos de Caldas. E, muito linda a cidade.
Gostava mais de ir no inverno. Nas firias de julho. Espiar os
turistas, ver as modas. As roupas... O senhor...
Que a interrompe:
Que i isso, nlo me chame de senhor. Meu nome i
Paulo -CCsar. Paulo CCsar Alexandre dos Santos. Simpatizei
logo com voc€. Voc€ tem um qu€, um 'it".
Nely gostou dos modos do cavalheiro. T6o jovem e j{
tlo banqueiro. Agradeceu e seguiu em frente.
Voc€ ainda vai a Pogos de Caldas, Paulo Cdsar? Eu
nunca-mais fui. (Longo suspiro.)
!611, claro que vou. Outro dia mesmo fui ao langamento -de um edificio que a gente esti. financiando na terrinha.
Interessou-se a deusa.
Aonde?
- Na Praga Pedro Sanches...
- Pedro Sanches...
- Pedro Sanches, a pracinha ao lado das Termas Ant6nio -Carlos e do Palace Hotel.
Nely localizou a praga, lembrou o hotel.
Sei onde fica. ?',4lembrando. Boa localizaglo.
- A melhor. Por que voc€ nlo compra
um?
- Nio sei se d{...
- D6, como neo d{? Estamos vendendo em condig6es
excepcionais.
Slo Cr$26.000,00 de entrada, sendo l0o/o de
sinal e l0olo na escritura, e os restantes 80o/o financiados em
dez longos anos pela Tabela Price.
Nlo sei, n1o, Paulo
-O banqueiro animou a CCsar.
conterrinea.
Vai dar. Nio se afobe . Vou pedir para o Jos€ Parola,
diretor- da Sociedade Construtora Bandeirante, responsdvel
pelas vendas, vir falar com voc6.
E j6, ne intenglo:
Voc€ tem telefone?
-
186
Tinha e o deu. Nely dava mesmo. No dia seguinte, jd
cstava o Parola telefonandb. Marcaram encontro no Casabhn'
ca. Ptola reservaria mesa, queria assistir ao show do conjunto Farroupilha. A companhia vinha a calhar. Certamente, o
Paulo CCsar lhe dera o servigo: a morena mineira era um mulherago!
Parola era boa companhia' mas falava pelos cotovelos,
como todo bom vendedoi. Nely dava sorte com vendedores'
Esse n6o fugiu I escrita. Quem fugiu I escrita fora o Macarra'
Mas Macarra ert um idiota.
O Paulo Cdsar me falou que voc€ era bonita, vistosa.
-
Exagero, cortou NelY.
- Exa[ero, o qu€. Foi etondmico,
- C linda...
ro. Voc€
como todo banquei-
(xi!)
Tenho uma idCia. Vou lhe fazer uma ProPosta
tancha.
(Vem coisa, al.)
O Condomlnio Bauxita € uma inovagio na cidade'
Tem de tudo, alCm de dgua mineral de bica e das termas' Tem
piscina de Cgua mineral. E fechada. Como se fosse uma estui^. f, p^t^ o'ir,".rrro. Yai fezer uma sensagio que nem te conto...
Mas contava. Ora, se contava.
A idCia C do Ellsio Pires' um rapaz talentoso, r€sponsdvel pela nossa publicidade. Vamos publicar gqr a16ntto.tondo a pisiina no inverno. No inverno Nely' D6.a
"io
atC neve fora do hotel, mas saindo
sensagio de frio,
"p"t"".
d'lgua,, tranqtiila, iomo se tivesse saindo do mar no verlo,
uma serela...
E, em meio a confuslo que seu palrear causava na deusa e que a levava l perplexidade, pergunta:
Imagina quem serd a sereia?
responder. N6o entendia de sereias' De
publicidade, de piscinas, de hotel. O cara parecia uma metralhadora, falando sem Parar.
pxssss qae tdnevando' frio intenso, e a sereia sai da
{gua...
Da 6gua?
-Nely nio.o,tb.
-
187
Da dgua mineral. A sereia.
-Repete a pergunra:
Sabe quem
-Nely nem atina.serd a sereia?
Voc€.
- Eu? Sereia?
- E, voc€ mesma. Sereia linda de morrer. Voc€ mesma. Sai no O Cruzeiro, uma p{gina inteira. Voc6 na escada
da piscina, ji com o corpo ptJfor" d'{gua e vestindo um
caprichado mai6 Catalina.
Caralina?
- E, Catalina, voc€ topa?
-Nely topava.
Topo, Parola.
-O vendedor arremata o papo:
Seu pagamento serd a entrada.
- Entrada?
- A entrada do apartamento. E mais. Pra voc€ vai sair
- de custo. Uma bagatela. Voc€ vai pagar em dez
pelo prego
anos sem sentir. Uma ninharia.
. F"i assim que Nely se viu proprietdria de um quarro-e-
no Edificio Bauxita, em Pogol de Caldas, ao-lado do
Hotel Palace, com piscina de igua mineral. Nadar e beber.
Um sucesso. Piscina de igua mineral.
sala
Dolores foi visitar Vinia. Encontrou-a mal.
Sente o que, criatura?
- N6o sei, Dolores.
- Vou providenciar um midico e alguCm para ficar
- O diabo C que as meninas todas pegaram a asidticom voc6.
ca-. Vou ligar para o Doutor Adio Pereira Nunes, no Hospital Miguel Couto, ele vem ver voc€ e pronto. 56 n6o sei quim
vai ficar aqui com voc€...
Aqui d que nio vai ficar, Dolores.
-Espanta-se a cantora.
Nlo vai, por que?
- Q ssnuato venceu,
o proprietCrio n6o o renovou.
Disse -que ia casar a filha, meteu um processo e eu estou despejada.
-Q""l
188
(oprazo?
Tenho at€ amanhe.
-Dolores pensou um pouco.
que
Di-se um jeito. Tira isso da cabega. Preocupada C
- melhora, mesmo. Vou mandar o mCdico. Tchauzinho.
nlo
Fica com Deus.
Vai com Deus.
-Dolores foi. Ia sempre com Deus. Deus gosta dos puros de coragio. E deles o Reino dos CCus.
Eur{dice foi procurar o Marcelo pra pegar o enderego
da Eliane. E nada. "Onde terd se metido o vivente?" De noite , no Little CIub, perguntou i Dolores:
Dolores, voc€ viu o Marcelo?
- Nio, n6o tem aparecido. Pergunta pra Nely. Ela vai
- conta dele.
saber dar
Ela td aonde?
- Td aqui ao lado, como sempre
cantar"Eueabrisa".
ouvindo o Jonny Alf
Foi falar e Nely entrar na boate.
Oh criatura, estava atr{s de voc€...
- [19[6, me achou.
- Preciso falar com o Marcelo.
- Nio dri, ele viajou. Foi pra Moscou...
- Fazer o qu6?
- pxlsgs que i a comemoraglo do "Sputinik", aquele
- que a Unilo SoviCtica langou no espago. Estava todo
satClite
satisfeito, gozando e cere dos americanos. Foi com ele aquele
rapaz pintoso de Pernambuco...
- Qual?
O Roberto Freire. Aquele que a Bea tava a fim. Estavam -os dois dando risada, dando bananas pra Amdrica.
Dolores intervCm na conversa:
Por isso C que nlo tem aparecido. E nio teve nem
coragem de se despedir. Sabe como eu detesto aquela gente.
Sai no meio de uma excurslo na Rdssia. Pra nunca mais voltar, Deus me livre. Marcelo i um amor de rapaz, mas esse
negdcio de comunismo estraga ele.
Euridice se v€ num mato sem cachorro.
E agora Nely, como C que eu vou fazer?
-("E eu, ele partiu no melhor da festa...")
189
Nlo
sei.
-Nely nlo sabia, mas Dolores sabia.
Calma Euridice. Voc€ vive afobada. Calma. Tdven'
- dois rapazes l{?
do aqueles
Numa mesa de canto, Murilo Braga de Carvalho Jr. e
Carlos Alberto Teixeira Leite, tomando cuba-libre, esperavam o show da cantora.
Aqueles dois rapazes slo amigos dele. Ld de Grajari.
De repente, te d6o a informagio.
Euridice i tfmida, n6o sabe tomar iniciativa.
Vai comigo, Nely, falar com os raPazes.
-Nely ia. Falar com rapazes era sua especialidade.
Boa-noite, gente.
-Os rapazes levantaram-se educadamente. Murilo convidou:
Sentam?
-Sentaram.
Bebem?
-Bebiam.
Bebem o qu6?
-Foi Nely a perguntar:
Voc€s ti.o bebendo o que?
-Foi Teixeira a responder:
Cuba-libre.
-A vez de Euridice:
TA
certo. Pra n6s, tambim.
-Nely toma a iniciativa.
Me diga uma coisa, voc€s sabem do Marcelo?
Estava em Moscou. Um frio de rachar. Tarefa
do partido.
O caso C o seguinte, talvez voc€s possam ajudar. A
- aqui ficou amiga de uma amiga dele, ld de Niter6i.
Euridice
Acontece que ela estd de fdrias e a Eur{dice s6 tem o ende rego
do trabalho. Precisava falar com ela. Voc€s podem ajudar. A
menina chama-se Eliane Macedo. E clara.
Murillo nlo podia. Teixeira, sim: jri andara namorando uma amiga da Eliane.
Achar a Eliane, mesmo, eu n6o sei. Mas Posso te
- dica.
dar uma
Nely i expedita.
-Sabiam.
190
Entlo,
d€.
- Ela costuma freqiientar um barzinho em Niter6i.
- amigos dela l{ que podem saber o enderego.
Tem uns
Nely anotou tudo. Euridice ficou bobando. O bar era
o Petit Paris. Ficava entre as ruas Miguel de Frias
e Alvares de
Azevedo, logo no inicio de lcarai, em seguida i pedra de
Itapuca, por onde passa o meridiano do Rio de Janeiro. O
antigo Cassino ficava bem na esquina de Miguel de Frias com
a Praia de lcaraf. O bar fica numa pracinha, ao lado do Cinema Icarai. Nlo tem errada. "E o nome dos rapazes?" IJm se
chama Ronaldo Coutinho e o outro Dario Castelo Branco e
o terceiro Coimbra de Mello. Slo boa gente, mas slo feras.
Vocds v6o com calma. Vem cantada na cerra.
Nely nem ligou. Um dia a ela perguntaram: "Voc€ canta?" ao que ela respondeu: "N1o, sou cantada."
Agradeceram aos rapazes e voltaram i mesa da Dolores.
Conseguiram? A cantora queria saber.
- Conseguimos.
-Eurldice choraminga pra Nely.
Voc€ vai comigo, Nely? Vai?
- Vou, que remCdio.
-("No rnelhor da festa. Ele ainda perguntou: Voc6 estd
triste? Eu respondi: Porque voc€ pergunta? Porque sei. Sabe
como? Pela aus€ncia de mar nos seus olhos".)
Nely afugentou fantasmas e perguntou i Dolores:
Voc€ este escrevendo o qu€?
- A letra de uma cangSo que estou compondo...
- Tem nome?
- Tem. Vai chamar-se "N1o me culpe" (Suspiro). Pobre do- Macarra.
A gripe chamada asidtica pegou a cidade pelo pC. O
Servigo de Epidemiologia da Prefeitura jA. havia registrado
209.996 casos. O sanitaristaLuiz Ant6nio Santini, em entrevisra exclusiva ao jornal Oltima Hora, multiplicou o n(mero
de casos registrados por dez. N6o fazia por menos. Por suas
contas, dois tergos da populagilo j6.havia contraldo a gripe.
O resrante corria o risco de contaminaglo.
Estava abalada a vida da cidade. Jd se registravam 1 18
6bitos e 50o/o das escolas estavam fechadas. N6o restava um
l9t
6nico setor de atividade no Rio em que nlo tivesse penetrando o virus "singapura". Nas favelas a situaglo era de calamidade priblica. Moravam 640.000 pessoas nas favelas, o que
equivalia a mais de ll5 da populagio carioca. Contavam-se
125.000 barracos. Cresciam a3.690 casebres por m€s. Ati os
soldados do ExCrcito nio resistiram ao virus. A asi|tica fez
estrago nas fileiras das forgas armadas.
Era o que preocupava Dolores. As meninas todas tinham caido com o virus que nlo respeitava nem farda. Nely
e Euridice iam viajar. A primeira, para seus dominios de Pogos de Caldas; e a segunda, pros dominios da Eliane, em
Itaperuna. Que fazer com a Vinia? Quem iria cuidar dela?
Dr. Adlo Pereira Nunes n5.o estava, a enfermeira informou
que viajara. Provavelmente para a Rrissia com o Marcelo: eram
unha-e-carne, os dois. Grande mCdico, mas vermelhinho
como o outro. Ainda bem que deixara um assistente para atender seus casos. Gostara demais do jovem midico. Comprido
e timido, nlo sabia o que fazer quando em presenga da cantora. "Sou seu fa", disse a muito custo. Ao que Dolores respondeu: "Eu tambdm serei sua f1, doutor, se o doutor der
um jeito na VXnia. A pobre esri que n6o se agtienta." E ficou
f5 do Doutor Laerte Yaz de Mello. Num instante diagnosticou o problema de Vinia. Repouso, pe nicilina e abstinGncia.
Mas da alma, Dolores, podia pouco a medicina. A moga precisava era de carinho, compreenslo. Sentimentos que essa
sociedade competitiva e cruel n6o conhecia... ("Xi, ourro vermelhinho, pensou a cantora.") Ficasse tranqi.iila, do corpo
cuidava ele; da alma...
Que fazer? A cantora n6o tinha a quem recorrer. De
repente, o estalo. Macarra! Sim, porque nlo tinha pensado
antes nele. "Vou mandar chamd-Io."
Macarra tinha saido das Listas Telef6nicas. Era agora
responsdvel pelo departamento de vendas da "PCrola da China", firma atacadista de cereais, fundada em 1925. Seu amigo, Luiz Carlos Abreu de Souza C quem o havia convidado,
dado a oportunidade. E nio se arrependera, n1o. A casa s6
fez crescer, as vendas aumentando a ponro do Luiz mandar
a press6o. "Calma, Macarra, a gente nlo tem estoque pra atender a tanto pedido. Vai devagar, amigo." Luiz
diminuir
192
era assim. Tratava os amigos de amigo. E era amigo dos amigos. Andavafeliz o Macarra. Feliz e abonado. E orgulhoso da
posiglo. Adorava o nome da firma: "PCrola da China." Que
nome bonito! "PCrola da China.'
Foi Luiz quem atendeu ao telefonema da cantora. Primeiro, nlo acreditou. Pensou que fosse um trote. Mas reconheceu e voz. Quem n6o reconheceria, afinal? Queria falar
com o Macarra? Perfeitamente, ele iria ji chamd-lo. Mas,
antes, gostaria que a cantora soubesse que era seu fa. Tinha
todos os seus discos. A cantora foi gentil. "Pirola da China,
n?ro €?'E, sim, "PCrola da China." "Que nome mais bonito",
disse.
Macarra atendeu imediatamente ao chamado da cantora. E n6o foi de lotaglo, n5o. O Luiz, tio severo com as
coisas da firma, abriu-lhe exceglo: "Pode ir no carro da firma, Deodato. Nlo faga a Dolores esperar."
Nlo
fez.
32
Auon NAo
sE AGMDECE
VAnia aceitou. O que n6o tem remidio, cura sozinho.
Macarra exultou:
Aceito, Dolores. Aceito o encargo. Quem sabe nlo
- enfermeiro?
nasci para
Ainda no carro da firma foi buscar Vinia em seu despejado apartamento. Encontrou-a medicada, mas ainda fe-
bril.
Seus problemas acabaram. Vou te levar pra casa e
cuidar-de voc€. Voc€ vai ver.
Nova vida pro Macarra. Recolheu Vinia da Rosa em
sua casa, rainha em seu pr6prio paldcio, declarando, alto e
bom som, a todos comovendo:
"O amor C prova da exist€ncia de Deus!"
Vida nova pra VAnia, ali, rendida, enferma, indiferente, dependente e taful.
193
Macarra voltou I firma depois de alojar Vlnia e ver
que nada lhe faltava. AtC mesmo a companhia da vizinha do
206, ume aposentada que gostava de ajudar os outros. "Felizmente ainda existe gente assim", p€rsou o vendedor. Gente boa como o Luiz, que logo compreendeu o momento que
estava a viver o ser chefe de vendas. "Sem problemas, amigo.
O amigo pode cuidar da moga que eu cuido da casa." Antes,
todavia, Macarra tinha de cuidar de uma grande encomenda
pra Alagoas. Foi uma venda que fizera para o pr6prio vicegovernador do Estado, um antigo bo€mio, Teot6nio Vilela,
sempre preocupado com a merenda das criangas, e procuran-
do melhores pregos. Era ftcil lidar com ele. Limpo, direto,
sem sacanagens. Dolores d que apresentouTeotdnio a ele. Era
deputado, entlo. E usineiro. Vivia na noite. Depois, elegeuse e ficou no Estado cuidando da pobreza. Era um homem e
tanto. Marcara encontro no Amarclinho e nio no Escrir6rio
de Representaglo do Estado. Gostava de biritar. Conversou
com ele, acertou tudo, e, de quebra, despejou seu drama. O
homem ouviu calado. Como tambCm ouviu seu drama a Presidente do Sindicato das Entidades Culturais, a escritora
Heloneida Studart, cuja entidade se alojava justo em cima
do Amarelinho. Apresentou-a ao vice-governador. Teotdnio
conhecia-lhe a familia. "Sua mie, a baronesa de Studart foi
linda, menina." Certo, Heloneida era uma menina, ainda,
como disse o alagoano, mas jd escrevia, agitava, enfrentava o
preconceito machista, organizava a mulherada, dava os primeiros passos de sua luminosa vida.
Macarra abalou-se. Deixou os dois conversando. Mas
levava as palavras de ambos, alCm da receita de um picadinho de carne: 'Use tambdm uma pitadinha de coentro, Deodato, e ternura. Muita ternura!' Nlo entendeu muito a re*Ternura?"
ceita pelo seu final.
No picadinho? O que queria
a amiga dizer com isso? Gostava da Heloneida. Ficaram amigos quando ele, ainda nas Listas Telef6nicas, tentara empurrar-lhe uma figuragio para o Sindicato: "Nio se esconda, jovem", teria dito com a conversa de sempre. Mas a moga nlo
foi na l{bia do vendedor. "Que figuragio, car* Sindicato C
pobre. O dono dessas Listas C agente da CIA, raspa daqui."
Mas, logo amaciou. "Raspa em sentido figurado. Voc6 pode
ficar, mas n6.o me queira empurrar andncio, ouviu?" E fica194
ram amigos. Ela sernpre tlo doce e tio franca. Tinha uma
mensagem na receita. 56 que Macarra n6o a captava.
Pior, ainda, foi o conselho do amigo:
Tenho uma bola de cristal do tamanho de uma bola
futebol.
N6o sei se adivinho o futuro ou chuto em gol.
de
Como entender intelectuais?
Bem alimentada pelo picadinho, Vinia condescendeu
em ler para o enfermeiro os versos que fizera:
'Meu
cCu n6o tem estrelas,
Meu mar nlo tem azul,
Quebrei o brago da vida
No Rio Grande do Sul."
Contrito, mortificado, Pesaroso, foi Macarra Procurar
Dolores Dur{n.
Que fazer, Dolores? Vdnia s6 quer saber de beber
Crush e nlo tira da vitrola aquela mdsica que voc€ fez com o
Tom e que a D6ris Monteiro gravou...
"gs C por falta de adeus?'
- Essa mesma. Ser{ que ela rl insinuando alguma coisa?
(
A cantora nlo responde.)
E os versos, Dolores, sem pC nem cabega. Isso
C
l{
poesia-que se faga. Verso mais besta: "Qrrebrei o brago da
no Rio Grande do Sul." E nem garlcha C!
"ida Dolores ouviu com paci€ncia e depois
Perguntou:
Voc€
voc€ mora?
ji
pensou em comPrar o apartamento em gue
E Macarra penetrou no torvelinho do sonho da casa
pr6pria.
Mas comprar como, Dolores, eu nlo tenho dinheiro para- isso!
A gente dd um jeito. (O anjo tinha jeito pra ,ujo.)
Eu falo com o Claudio Medeiros que C figurio na Caixa Econ6mica e ele arranja um financiamento pra voc€.
Macarra animou-se. Ser{ que a VAnia vai se tocar? De
posse da apresentagio da Dolor€s correu logo para a Caixa.
Claudio Medeiros atendeu-o na hora: 'Amigo da Dolores d
195
meu amigo. Deixa comigo, que eu vou re arranjer um financiamento. A caixa financia 80o/o. Voc€ tem de arranjar apenas a entrada." O que foi fdcil. Consultou o patrlo pelo telefone. Claro que podia contar com ele. Ainda aplaudiu: "Goste i de ver, Deodato. O amigo estd tomand o juizo." Tudo bem.
Agora faltava falar com a VAnia. Verificar, nela, o impacto da
compra, a sugerir estabilidade, uma vida mais tranqi.iila.
Macarra, vivendo seu sodallcio, animado com a perspectiva da futura propriedade e enlevado com as Festas de
fim de ano que se aproximavam, ocasilo em que as pessoas
ficam abertas ao amor, l conc6rdia e outras pr{ticas subversivas, chegou a casa cheio de esperanga.
Vinia. Arranjei um financiamento na Caixa. Vamos
- no uamos) comprar o aparramento.
(carregou
Vinia parece que nlo ouvia. Serviu o enfermeiro com
outros versos.
"As velas pandas,
Os venros de banda,
Levando meu senhor
Nabucodonosor."
Que fazer? Procurar Dolores, como sempre. Foi quando o Agente Laranja lhe disse que a cantora ainda neo iinha
chegado e atC o convidara para tomar umas e outras ou para
comer bife no Vaticano,Isso depois de contar a hist6ria escabrosa da curra do irm6o do Badeco e o Almogo de Gango que
o tira aprontou para o Epadri, outro leSo-de-chCcara d.o Beco.
O cara virou presunto: morrinho da silva!
Qual, ia dar uma volta. Ver como esrava a VAnia e depois voltar para se consolar com a Dolores. Que diabo, Vinia estava ld hd mais de um m6s em seu apartamento, e nada.
Jd estava praticamenre curada, como lhe assegurara, ainda
ontem, o Douror Laerre. Diagn6stico confirmado pelo pr6prio Doutor Ad6o Pereira Nunes, que jri havia voltado de
Moscou, da festa do 'sputinik', com o Marcelo e o Roberto
Freire.
Indiferente a rudo, VAnia senria-se prisioneira no apartamento, na bondade e na solicitude de Macarra. E lamentava:
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"Me ataca,
Me acata.
Me solta,
Me deixa que eu que sambar."
Pirulitou-se.
Antes mesmo de entrar no aPartamento, ainda na Porta do prCdio, Deodato dos Santos Curralino teve o pressentimento que Vinia lhe deixara.
N6o deu outra. O apartamento vazio. As roupas e a
mala se foram. E com elas a Vinia da Rosa.
Foi um Macarra aluldo que voltou ao Bcco. Laranja viu
taaa pelas tabelas.
logo que
- '- o amigo
Alguma coisa que eu possa- fazer?
foi,
Macarra?
Que
O amigo olhou o leSo com cara de boi que jC foi pro
sacriffcio.
Dolores cheeou?
- Chegou, ,iri. Td cenrando. Ribamar ao piano. A
Mas pode entrar.
casr td.lotada.
Macarra .t ttorr. Dolores Durdn cantava "A noite do
meu bem".
Dolores acabou de cantar. Quantas palmas! Nem bem
agradeceu e viu o amigo no canto do bar. Murcho de dar d6'
Airoximou-se. Pegouia mlo do infeliz. F€-lo sentar-se em
sua mesa.
deixou?
Ela foi embora, nlo i?
E, parecc.
Parice, como? Nio se desPediu?
Nlo.
Mas deixou um recado, uma carta' um bilhete, n6o
Nlo.
- Nada?
- Nada.
-Revoltou-se
a cantora.
Mas isso nlo est{ direito, Macarra. Depois de tudo
o que -voc€ fez por ela. Tanta dedicaglo. Tanta solidariedade,
tanto des*'elo, tanto carinho...
(Sil€ncio.)
t97
Nem um agradecimento,
-O amigo olha o nada. BalangaMacarra?
a cabega.
agradece.
Nlo, Dolores,
isso ela n5.o precisava. Amor n6o
FIM
Santa Teresa, 5 de
r
98
junho de 1994.
se
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