miss daisy um caso de compulsão alimentar
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miss daisy um caso de compulsão alimentar
MISS DAISY UM CASO DE COMPULSÃO ALIMENTAR Marcela G. A. Alves – Psicóloga e candidata a psicanalista do Centro de Estudos Antônio Franco Ribeiro da Silva (CBP-RJ) Olny de Freitas – Candidata a psicanalista do Centro de Estudos Antônio Franco Ribeiro da Silva (CBP-RJ) Supervisão de: Nadia Gonçalves – Psicanalista CBP-RJ Rio de Janeiro, 2009 MISS DAISY Um caso de Compulsão Alimentar Resumo O objetivo deste trabalho é a apresentação de um caso clínico de distúrbio alimentar, onde foram observadas articulações entre: feminilidade, apetite, voracidade e agressividade, em um completo circuito digestivo-psíquico. Ao pensar na correlação de comida e afeto, levantamos questões que nos encaminhem para a melhor compreensão da dinâmica feminina do corpo, da alimentação, da sexualidade e da relação mãe-filha. MISS DAISY Um caso de Compulsão Alimentar “A cuidadosa seleção dos melhores ingredientes, o carinho dedicado à elaboração das receitas e uma nova tecnologia que permite à Sadia fabricar produtos com textura mais leve, fazem dessa torta Miss Daisy da Sadia uma experiência inesquecível de sabor.” (Propaganda da Torta Miss Daisy) Que contribuições a Psicanálise pode oferecer ao fenômeno dos Distúrbios Alimentares? Por que existe um enclausuramento da mente em um “corpo cárcere”? Como escolhem a Comida e o Corpo como representantes – fetiche – de um afeto? Segundo Winnicott (1936, p. 91), “(...) os distúrbios do apetite são muito comuns nas doenças psiquiátricas, mas creio que o reconhecimento de até que ponto é importante o ato de comer ainda não se deu”. O ato de comer, na verdade, fica delegado a um acting-out, não podendo ser refletido, nem, muito menos, pensado, quanto mais, elaborado. Optamos, então, como nos indica o próprio autor, por discutir os vínculos entre voracidade e apetite. A voracidade, de acordo com Winnicott (idem, p. 91), “(...) reúne em si o psicológico e o físico, o amor e o ódio, o que é aceito e o que não pode ser aceito pelo ego.” Seria algo tão rudimentar que só pode aparecer no humano de forma mascarada. Segundo dados extraídos da Current Medical Diagnosis & Treatment (1999), noventa por cento dos casos de distúrbios alimentares acontecem no sexo feminino. Este é um dado curioso, que nos leva a refletir sobre a possibilidade de uma relação mais estreita e específica entre feminilidade e apetite e, por conseguinte, voracidade. Deste modo, que relação psicodinâmica haveria entre a experiência do ser e do tornar-se mulher e o ato de comer? Voltando às perguntas iniciais, que relação há entre mente e corpo feminino, ou, dito de outro modo, que problemática estaria em causa na integração psicossomática da mulher, desembocando em problemas com o apetite? Fomos, então, procurar em Freud (1933[1932], p. 116-117), em sua conferência sobre Feminilidade, um ponto de partida para pensarmos essas questões. Segundo ele: “(...) A supressão da agressividade das mulheres, que lhes é instituída constitucionalmente e lhes é imposta socialmente, favorece o desenvolvimento de poderosos impulsos masoquistas que conseguem, conforme sabemos, ligar eroticamente as tendências destrutivas que foram desviadas para dentro.” A escolha do caso clínico que aqui se apresentará tentou encontrar nele algumas possíveis considerações sobre estas questões. Os elementos nucleares deste caso passam pela dinâmica feminina do corpo, da alimentação, da sexualidade e da relação mãefilha. Seria uma espécie de exemplo de pessoas que mostram a dor pelo avesso: no corpo. Trata-se, portanto, da história de uma jovem de 26 anos, com nível superior, mas que não exercia sua profissão, casada há dois anos (com um homem de quem foi amante), que em qualquer situação de ansiedade atacava de forma compulsiva tortas de chocolate. Não tortas comuns, mas a torta Miss Daisy. Era uma paciente em que se notava nitidamente a supressão da agressividade, em decorrência de estar muito regredida emocionalmente. Ela sempre falava que estava gorda e que precisava “voltar ao seu corpo de menina”. Diante da especificidade do nome do objeto atacado pela sua voracidade, tortas Miss Daisy, nome este sempre repetido nas sessões de análise, pensamos haver aí algo a mais sendo comunicado, o que, talvez, revelasse o sentido de sua compulsão voraz. Daí o título do trabalho, Miss Daisy. Miss, em inglês, significa, quando em maiúsculo, senhorita; moça. Em minúsculo, miss, significa falha, erro. Além disso, a palavra miss usada como verbo, to miss, pode significar ter saudade ou perder. (MICHAELIS, 2001). Assim, de quem e de que Miss Daisy falava? Miss Daisy se dizia gorda, brigava com a balança todos os dias. Começava dietas quase que mensalmente. Depois de muito esforço, emagrecia e começava a recuperar o gosto por se vestir. Até que qualquer situação de ansiedade era compensada com ataques às tortas. Depois corria ao mercado para comprar outra e colocar na geladeira. A paciente justificava que, assim, seu marido não saberia o que tinha feito. Abandonava a dieta e engordava tudo de novo. Não conseguia voltar ao “seu corpo de menina” e atender ao sonho de ser essa menina. Deparava-se, por conseguinte, com a impossibilidade de ser a Miss Daisy. Procurou análise após ter passado por um momento muito difícil, no qual teve que tomar remédios psiquiátricos. Ela dizia que “não estava maluca” e que não devia estar tomando aqueles medicamentos. Acreditava que a análise revelaria que era saudável. Chegou com muito sofrimento e contou o que ocorrera. Há poucos meses havia sido aniversário do marido e ela resolvera fazer um almoço para os amigos dele. Mas, enquanto ela estava na cozinha, ele foi reclamar com ela que a comida estava salgada. Iniciaram uma grande discussão, onde ele a ofendeu (não era raro acontecer). A mãe dela, então, ouviu e foi tirar satisfação com ele. A mãe e o marido começaram a brigar, ao passo que ela tentava acalmá-los. “Virou um barraco”, disse ela. A briga foi num crescendo, até que ela começou a ter convulsões. Mesmo estando caída, os dois continuaram a briga, sem perceber seu estado, só interrompendoa quando chegou a polícia, que foi chamada pelos amigos. Foi por conta deste episódio que ela foi ao psiquiatra. “Ela era a doente”, palavras da paciente. Seu marido, a partir daí, proibiu-a de falar com a mãe - o que ela continuava a fazer escondido. Escondia as visitas à mãe, escondia as tortas, escondia o corpo (com roupas largas). Miss Daisy se escondia. Na análise, não precisou de muito tempo para “vomitar” sua história: Era a caçula de um casal de filhos, cujo pai era alcoólatra. O pai batia na mãe, mas a tratava como “bonequinha”: todos os dias trazia sonhos da padaria para ela. Por volta dos seus 14 anos, os pais se separaram. Os tempos que se seguem são de “vacas magras”. Ela começa a trabalhar com a mãe, que era autônoma, e divide com ela as despesas. O irmão, por sua vez, está sempre em dívida com as despesas da família, mas a mãe recorrentemente o perdoa. Com o casamento, havia engordado quase 10 quilos. Não ia mais à praia, para não colocar biquíni (visualmente, ela era uma garota com um peso apenas um pouco acima do padrão, mas vestida com roupas de gorda.). O marido a criticava muito e ela achava que ele tinha razão – estava “feia, muito gorda”. Observamos, então, que se trata de um caso em que vigora um circuito digestivo psíquico. A oralidade é sua sintomática. Se fizermos uma relação entre nutrição física e nutrição psíquica das relações, percebemos um correlato direto entre comida e afeto. Lembremos que, até quando ela faz o almoço de aniversário para o marido, a comida que produz é criticada por este, ao passo que ela, ao mesmo tempo, refere que este almoço de aniversário é para os amigos do marido. Por que não pode expressar que esta comida é para ele? Afinal, era o aniversariante. Vale destacar também o fato do pai lhe trazer sonhos da padaria; no mesmo contexto em que ela era sua “bonequinha”, sua mãe apanhava. O que poderia sonhar Miss Daisy? O que ela de fato comia quando ingeria este sonho? Nessa mesma lógica, o que ela ingere com a Miss Daisy? Não seria esta torta um deslocamento desses sonhos? Segundo Winnicott (1936, p. 99), numa “(...) idade extremamente precoce (...) um ser humano pode tentar resolver o problema da desconfiança tornando-se incapaz de confiar no alimento”. A dúvida sobre a comida estaria no lugar da dúvida sobre o amor. A atitude em relação à comida, diz ainda o autor (idem, p. 103), ocultaria a atitude em relação a uma pessoa: a mãe. Assim, como confiar na promessa de ser sempre a “bonequinha”, quando um suposto objeto de amor, a mãe, é sadicamente maltrado? Como se sentir amada por alguém que é espancada e que ao mesmo tempo sabe que você é a “bonequinha” daquele agressor? Como querer crescer e habitar um corpo vivo, de mulher, quando o corpo feminino com quem deve se identificar é agredido, desrespeitado, abandonado? Continuar a ser a “bonequinha”, atualizando-a via Miss Daisy, não seria seu falso self? Aquele que a mantém viva, estando subjetivamente “morta”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FREUD, S. Feminilidade. In: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos (1932-1936). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Michaelis: dicionário escolar inglês. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2001. THIERNEY, L. MCPHEE S. e PAPADAKIS M. Current Medical Diagnosis & Treatment. Stamford: Appleton & Lange, 1999. WINNICOTT, D. W. O apetite e os problemas emocionais (1936). In: Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000.