estrangeiros - Dramaturgia Catarinense

Transcrição

estrangeiros - Dramaturgia Catarinense
ESTRANGEIROS
Gregory Haertel
Cena 1 – A Loja
(Alicia está sentada em sua mesa, na loja de fantasias que pertence ao seu pai. Ela observa
os objetos sobre a mesa: uma boneca, um sapatinho de cristal, entre outras coisas. Alicia não vê Pablo, que está
em um canto, fora da loja, de costas, como se não pertencesse àquele lugar. A peça inicia com a música Cantus
in Memorian of Benjamin Britten, de Arvo Part. No telão, projetado na parede atrás de Alicia, uma imagem
onírica de campo, com a câmera passeando até se fixar no rosto de Alicia – no telão. Durante algum tempo, no
telão, o rosto de Alicia está impassível. Aos poucos, uma lágrima começa a rolar do seu rosto. Alicia e Pablo,
no plano real, não registram o telão. Quando a música está quase acabando, Pablo se vira e, indo na direção
dos objetos da loja, começa a observá-los. A música acaba e o a imagem na tela se dissipa. Pablo observa
demoradamente Alicia, sem que ela o veja)
Alicia (quando percebe Pablo): Oi, boa tarde!
Pablo (Pablo é estrangeiro e fala com forte sotaque argentino): Boa tarde!
Alicia: O senhor quer uma ajuda?
Pablo: Por enquanto não, obrigado.
Alicia: Fica à vontade.
(Pablo caminha para a direita onde há um livro e pergunta a Alicia)
Pablo: Quanto está?
Alicia: Tem o preço ali.
Pablo: Ah, obrigado!
(Pablo caminha até a esquerda, logo até a direita novamente, cada vez mais perto de Alicia.
Ele pega um chapéu e o prova)
Pablo: Posso tirar algumas fotos?
Alicia: É...pode.
(Ele tira fotos de um espelho que o reflete e segue tirando fotos de toda a loja. Logo tira uma
foto de Alicia)
Alicia: Minha não.
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Pablo: Ah, me desculpe. Eu gosto de tirar fotos das pessoas que trabalham nas
lojas.
(Pablo continua tirando fotos)
Pablo: Vocês tem “rollo”?
Alicia: Rollo?
(Alicia não compreende e ele mostra a máquina fotográfica)
Pablo: Aquele negocinho que vai aqui dentro.
Alicia: Filme? (Pablo confirma). Não.
Pablo: E você sabe de algum lugar aqui perto que tenha?
Alicia: Acho que nem existe mais.
(Ele tira novamente uma foto dela, provocando-a)
Alicia: Eu não gosto de fotos.
Pablo: Perdão, eu estava querendo tirar uma foto da parede.
(Pablo derruba, de propósito, uma flor e Alicia vai recolher)
Alicia: Meu pai não gosta que fique bagunçado.
Pablo: Desculpa, não percebi que caiu. O teu pai é o dono da loja?
Alicia: Sim.
(Pablo se aproxima da mesa e pega o sapatinho)
Pablo: Ah, o sapato da "cenicienta".
Alicia: Ce...?
Pablo: Tu conheces. A princesa que desce as escadas e perde o sapato...
Alicia: É a cinderela!
Pablo: Isso! É que, de onde eu venho, nós falamos “cenicienta”.
Alicia: Tu falas diferente mesmo...
Pablo: É que eu sou da Argentina.
Alicia: É longe, né?
Pablo: Não, pertinho. Bom, na verdade eu sou do Uruguai.
Alicia: Mas tu não... (Pablo corta o assunto abruptamente)
Pablo: E o teu pai? Tu me falaste que ele é o dono. Ele não tá aqui?
Alicia: Sim, ele ta ali atrás dormindo, é a hora da sesta.
Pablo (com cinismo): Eu caminhei muito. Também estou tão cansado.
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Alicia: Ah, desculpa. Queres um café? Meu pai não gosta que eu ofereça, mas
eu posso... (Alicia se levanta e Pablo observa demoradamente o corpo dela)
Pablo: Não precisa, obrigado. Não gosto de café.
(Pablo vê a boneca que está sobre a mesa, aproxima-se e a pega. Alicia se incomoda com isto,
mas tenta não aparentar)
Cena 2 – A Boneca
Alicia: Essa é a Verde. Uma boneca que eu tenho desde que eu era criança. O
meu pai a trouxe de presente pra mim lá da Romênia. Por isso que ela é assim engraçada. Mas
ela não está à venda.
Pablo (observa a boneca. Pergunta para Alicia): Verde?
Alicia: É. O nome dela é Verde. Por causa do nariz. Eu gosto de dar nome pras
coisas, sabe? Parece que a gente fica mais perto delas... (pausa. Sobre a Verde) Eu gosto dela.
Quando eu era criança e me sentia sozinha, eu imaginava que ela conversava comigo. Em
romeno (risada sem graça)
Pablo: É por isso que ela está aqui?
Alicia: Não. Aqui na loja eu não me sinto sozinha. Aqui eu não preciso ficar
imaginando coisas...
(mais um momento em que os personagens não sabem o que fazer)
Pablo: O que é que tu gostas de fazer?
Alicia: Eu?
Pablo: A-hã.
Alicia: Ah, eu gosto de tanta coisa...
Pablo: Tanta coisa o quê?
Alicia: Ah, eu gosto de ver TV, de ficar aqui na loja, de olhar as paisagens nos
quadros (na loja tem alguns quadros com paisagens), de dançar...
Pablo: De dançar?
Alicia: Eu gosto. Mas o meu pai não me deixa sair. Então eu danço escondida.
Pablo: Aqui?
Alicia: A-hã.
Pablo: Sozinha?
Alicia: A-hã.
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Pablo: O teu pai não te deixa sair?
Alicia: Eu disse que não deixa, né? Mas deixa, sim. Lógico que deixa. Eu que
não quero. Ele cuida de mim.
Pablo: Ele parece ser uma pessoa boa.
Alicia: O meu pai? Todo mundo gosta dele. (Alicia percebe Pablo mexendo nas
coisas em sua mesa e volta para trás dela, retirando o objeto que Pablo tem nas mãos) Pra que sair, né? A
gente tem tudo aqui.
(Repentinamente, Pablo começa a cantar e dançar uma valsa. Seu texto é entrecortado por
trechos da música)
Pablo: Eu tenho muita vontade de te ver dançar.
Alicia: Ah, eu tenho vergonha...
Pablo: E se eu não olhasse?
Alicia: Como assim?
Pablo: Eu podia ficar virado pra parede, de olhos fechados. (Alicia não entende)
Faz de conta que tu ainda és criança e que eu sou a Verde.
Alicia (rindo): Tu não és a Verde.
Pablo: Mas tu gostas de dançar, não gostas?
Alicia: Gosto.
Pablo: Então...
Alicia: O meu pai não...
Pablo: Ele está dormindo, não é?
Alicia: A-hã.
Pablo: Então... Põe uma roupa bonita e fica aqui. Imagina que a Verde está te
vendo.
Alicia: Que roupa?
Pablo: Qualquer uma. (olha as roupas penduradas. Tira uma roupa) Que tal esta? É
linda (entrega a roupa para Alicia)
Alicia: Isso é uma fantasia!
Pablo (falando sobre as outras roupas): E daí? As outras opções também são
fantasias. Veste. Eu vou ficar ali (Enquanto ela observa a roupa, Pablo vai para um canto do palco e vira
de costas, como no início da peça)
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Alicia (interrompendo Pablo): Não vai (Pablo para. Alicia fala para o público) E o
Pablo não foi. Ele ficou aqui comigo. Só ele e eu (para Pablo) Fica de costas pra mim (para o
público) E ele ficou de costas pra mim. (para Pablo) Não olha. (Ela segura o vestido na mão. Uma
música gravada começa a tocar e Alicia segura o vestido na mão. Coloca o vestido por sobre a roupa. O vestido
fica preso no rosto de Alicia)
Cena 3 – Monólogo de Alicia
Alicia (com o vestido sobre o rosto. Ri. Depois de algum tempo, fala, ainda com o vestido
sobre o rosto): Que ridículo. Eu pedi pro Pablo não me olhar e eu é que não to vendo nada.
(pausa. Respira com certa dificuldade) Pablo? (pausa) E se eu morrer assim? O que é que os outros
vão pensar se me virem assim, morta com um vestido que nem é meu? (pausa) Se eu estivesse
falando alto o Pablo diria pra mim
Pablo (de costas, como se não estivessem conversando um com o outro): Eu te escuto,
Alicia.
Alicia: E ele ia me ajudar com o meu vestido.
Pablo (de costas): Eu te escuto, Alicia.
Alicia (fica mais tranqüila): Que bom. O Pablo está me escutando. (tem dificuldade
para respirar com o vestido no rosto) Pablo? (ele não responde) Pablo? (ele não responde) Pablo?
Pablo: Eu te escuto, Alicia.
Alicia: Então porque tu não te mexes? Por que é que tu não vens até aqui?
(pausa. Está bastante incomodada com o vestido no rosto. Desespero) Me ajuda. (está ainda mais desesperada.
Tenta tirar o vestido do rosto algumas vezes até que desiste e fica assim, parada, respirando com o vestido sobre
o rosto. Depois de algum tempo, Pablo se aproxima e tira o vestido do rosto de Alicia – este já é o retorno para
o plano real. Alicia olha para ele, agradecida)
Alicia: Eu não sei me vestir direito.
Pablo: Eu te ajudo.
Cena 4 – Medo do pai
(enquanto ajeita o vestido sobre o corpo de Alicia, Pablo toca, pouco, a pele dela. Isto gera um
momento de intimidade e Alicia vai se aconchegando nos braços dele. Pablo também passa a abraçá-la mais)
Pablo (para Alicia): Tu já percebeste, Alicia, que quanto mais roupa a gente
veste, menos de verdade a gente é?.
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(Pablo começa a tirar suavemente a roupa de Alicia. Quando Alicia se dá conta do que está
acontecendo, ela corta o abraço)
Alicia: Eu acho melhor você ir embora.
Pablo: Por quê?
Alicia: É melhor. Pode chegar algum cliente.
Pablo: De onde eu vim, quando a gente começa a gostar de alguém, a gente
começa a gostar pelo cheiro.
Alicia (deixando-se seduzir): E o meu cheiro é bom?
Pablo (chegando perto do braço de Alicia): O daqui é. (sobe para mais perto dos ombros)
O daqui também. (chega perto do pescoço) O daqui é melhor ainda. (seduzindo) Por que tu não tiras
a tua roupa pra mim?
Alicia (cortando): É melhor mesmo você ir embora.
Pablo: Alguém já chegou assim perto de ti?
Alicia: Não. Não vem quase ninguém aqui.
Pablo: Tu me deixas chegar perto de ti?
Alicia (titubeando): Eu não posso.
Pablo: Queres que eu tire a minha roupa pra ti. (começa a abrir a camisa)
Alicia: Não.
Pablo: O melhor jeito de tu me conheceres é tu me veres nu.
(Pablo tira a camisa)
Alicia: Não, por favor. Pode chegar alguém.
Pablo: Não pode Alicia. Quando eu entrei, eu tranquei a porta (Alicia fica sem
ação. Pablo se aproxima ameaçadoramente de Alicia) Do que é que tu tens medo?
Alicia: Eu não tenho medo de nada. (Alicia não sabe o que faz. Pega alguns objetos
da loja e os coloca de volta no lugar. Limpa outros objetos. Faz as coisas de modo estabanado. Deixa cair
alguma coisa) Ai, eu sou tão desajeitada... Por isso que o meu pai não gosta que eu saia. Já
pensaste se eu derrubo alguma coisa em outro lugar? O que pode acontecer comigo? Ele diz
pra mim que aqui eu to bem cuidada. Aqui eu to bem cuidada. Olha, tudo tem o preço
certinho. (mostra um objeto) Olha, quinze reais. (outro objeto) Trinta reais. (outro objeto) Doze reais.
Pablo (segurando Alicia): Calma.
Alicia (assustada com o toque e se desvencilhando dele): Não encosta em mim.
Pablo (se aproxima novamente): Por quê?
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Alicia (se desvencilhando): Não encosta em mim.
Pablo: O que é que tem de errado?
Alicia: Eu não te conheço. Tu não me conheces.
Pablo: Tu estás com medo.
Alicia: Estou?
Pablo: Mas eu estou aqui contigo. Confia em mim. Eu não vou te fazer mal.
Eu posso ser a Verde. A Verde não te faria mal. (Alicia retorna para trás de sua mesa. Pausa)
Cena 5 – Eu sou a Verde
Alicia: Como é o teu nome?
Pablo: Verde.
Alicia: Não. O nome de verdade.
Pablo: A Verde cuidava de ti? Eu sou a Verde. (pausa) Esse é o meu nome:
Verde. Me transforma nela.
Alicia: Tu não és a Verde. A Verde tá ali.
Pablo: Eu posso ser. Eu vou cuidar de ti. Me transforma nela.
(pausa)
Alicia: Tá. Eu vou ali (começa a ir em direção ao quarto do pai) buscar...
Pablo: Não. Usa as coisas que estão aqui.
Alicia: Mas...
Pablo: Usa as coisas que estão aqui.
Alicia: Tá. Não vai ficar muito parecido, mas (procura roupas).
Pablo: Como é o teu nome?
Alicia: Alicia.
Pablo: Alicia.
Alicia: O Uruguai é legal?
Pablo: O Uruguai?
Alicia: Não é de lá que tu viesses?
Pablo (sedutor. A sedução aqui começa a ser mais ousada): Vem aqui.
Alicia: Como é lá?
(Pablo pega a mão de Alicia)
Pablo: Lá onde?
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Alicia: No Uruguai.
Pablo (enquanto traz a mão de Alicia até o seu abdome. Ele encosta a palma da mão de
Alicia no seu abdome. Ela fecha os dedos): No Uruguai?
Alicia: É.
Pablo (descendo a mão de Alicia em direção ao seu pênis. Alicia oferece resistência. Pablo
fala com duplo sentido): No Uruguai tem um rio grande. Bem grande. E ele vai ficando maior
quanto mais a gente chega perto.
(Alicia consegue tirar a mão do corpo de Pablo e fica de costas pra ele. Pablo observa Alicia)
Alicia (ainda de costas): Tu não és do Uruguai, né?
Pablo: Não. Eu vim da Espanha. (nesta hora deve ficar claro que ele está sacaneando
com Alicia. Ela não entende. Pausa).
Alicia: Da Espa...
Pablo (sedutor): Vem aqui.
Alicia: Da Espa...
Pablo (um pouco mais irritado): Eu to te esperando, Alicia.
Alicia: Eu pensei que tu eras do...
Pablo (se aproxima de Alicia): Olha pra mim.
Alicia: A Espanha é do outro lado do mundo, né?
Pablo (esticando a mão na direção do seio de Alicia): Alicia.
Alicia (tirando a mão de Pablo): Como é que é a Espanha? É de lá mesmo que tu
viesses?
Pablo: E daí se eu vim de lá ou vim daqui? E daí se eu vim da Espanha, da
Argentina ou do Uruguai? Por que é que tu queres ter tanta certeza de tudo?
Alicia: Eu não quero ter certeza de nada. Tava tudo legal aqui. Por que é que
tás me incomodando?
Pablo: Eu tirei uma foto tua. Queres ver?
Alicia: Eu tinha falado pra não tirar.
Pablo: Olha (abrindo a parte de trás da câmera, ele mostra o lugar onde estaria o filme).
Alicia: Não tem filme.
Pablo: Pra que filme? Não ia aparecer nada. No teu retrato não ia aparecer
nada. Sabes por que tu tens medo de ficar nua? Porque se tu tirasses a tua roupa, tu ias
desaparecer. Puf. Desaparecer.
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Alicia: Tu não podes falar assim comigo.
Pablo: Então tira a tua roupa.
Alicia: Tu não podes falar assim comigo.
Pablo (agressivo): E por que não?
Alicia: Desculpa. É que eu não entendo direito o que tu falas. E eu nem sei de
onde é que tu és...
Pablo: O que é que muda pra ti, na tua vida, na merda da tua vida, saber de
onde é que eu sou?
Alicia: Eu não quis dizer isso.
Pablo: O que é que muda na tua vida? Onde é que tá a tua vida? Isso que tu
tens aqui não é vida, Alicia. Isso que tu tens aqui não vale (pega um objeto e lê o preço do objeto)
quinze reais. Isso que tu tens aqui não vale nada. (joga o objeto no chão). Me fala, Alicia, me
explica, onde é que tá a porra da tua vida? (Pablo sobe na cadeira onde Alicia se sentava e começa a
recitar o Pai Nosso e a Ave Maria em castelhano, com o indicador apontado para Alicia. Esta recitação dura
até o final da cena 6)
Cena 6 – Monólogo 2 de Alicia
(Alicia se arrasta pra juntar o objeto. O clima é o mesmo do primeiro monólogo)
Alicia (com o objeto na mão): Onde é que tá a minha vida? (olha para o objeto e para o
público e pergunta) Onde é que tá a minha vida? (pega a Verde e fala para a Verde) Procura a minha
vida pra mim? Me ajuda. Por favor. Deve estar por aí. Em algum lugar. Eu sei que ela tava
comigo mas eu acho que eu perdi. Deve estar por aí. Atrás de algum quadro. Debaixo de
algum tapete. A minha vida... Tem que estar em algum lugar. Eu sei que ela tava comigo. Eu
nasci com ela, eu tenho certeza. Eu nasci com a minha vida e eu não sei como, eu perdi. Ela
tem que estar em algum lugar. Ela tem que estar por aqui. (Vira-se para Pablo e o encara. Pausa)
Pablo, procura a minha vida pra mim? Por favor. Procura. (para o público) Eu ia pedir pro Pablo
me ajudar a procurar a minha vida, vai que ainda tinha conserto, mas ao invés disso o Pablo
me disse
Pablo: Tira a tua roupa.
Alicia: Eu só queria que ele me ajudasse a procurar ali no chão pela minha vida,
tinha que estar ali, e a gente, eu e ele e a Verde juntos, a gente ia encontrar, eu tinha certeza,
mas ele disse
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Pablo: Tira a tua roupa.
Alicia: E eu disse ‘Não, Pablo, eu não quero tirar a minha roupa. Eu só quero
encontrar a minha vida’. Mas ele me mandou tirar a roupa. Ele disse que se eu quisesse
encontrar a minha vida eu tinha que ficar nua e eu fiquei. Tirei toda a roupa e fiquei nua. Na
frente da Verde e na frente do Pablo eu fiquei nua. Sem nenhuma roupa. Nua.
Cena 7 – Desnudando-se
(volta para o plano real)
Pablo: Tira a tua roupa.
Alicia: Eu não quero.
Pablo: Alicia, se tu queres sair daqui, se tu queres começar do zero como
qualquer criança, tira a tua roupa. Ninguém nasce vestida, Alicia. Ninguém.
Alicia: Mas se o meu pai entrar?
Pablo: O teu pai não entrou até agora. Tu achas mesmo que ele vai entrar?
(pausa) A porta tá fechada. Só estamos nós dois aqui. Tira a tua roupa.
Alicia: Eu não sei... eu...
Pablo: Olha pra mim. (Alicia olha) Confia em mim. Eu quero te ajudar.
Alicia: Eu...
Pablo: Tira a tua roupa.
Alicia: Eu...
Pablo: Para de agir como uma idiota, Alicia. Tu já és uma mulher.
Alicia: Eu não...
Pablo: Não precisas ter medo. Tu não estás sozinha.
Alicia: Eu sei.
Pablo: Então. Podes tirar. Tira a tua roupa.
Alicia: Se eu tirar, tu fechas os olhos?
Pablo: Não. Eu não vou fechar os olhos. Eu quero te ver tirando a roupa.
Alicia: Porque é que tudo é tão difícil?
Pablo: Porque sim. Tu tens duas opções. Tu podes tirar a tua roupa na minha
frente, e eu prometo ficar aqui contigo, ou tu podes continuar vestida, e eu vou embora.
Alicia: Não vai embora.
Pablo: Então tira a tua roupa.
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Alicia: Eu...
Pablo: Toda.
Alicia: Se eu não...
Pablo: Toda. Tira toda a tua roupa.
Alicia: Eu vou tirar. (pausa. Pablo volta a vestir a sua camisa) Eu posso fechar os
olhos?
Pablo: Podes.
Alicia: Obrigado. (pausa) Eu começo por onde?
Pablo: Escolhe. Eu não vou falar mais nada até tu estares sem nenhuma roupa.
Alicia: E se eu não conseguir? (Pablo não responde) Se eu parar no meio tu vais
continuar aqui? (Pablo não responde) Me responde, por favor? (pausa) Tu vais continuar aqui?
(começa a chorar baixinho) Pablo, por favor. (começa a tirar a roupa) Não vai embora. (pausa) Eu vou
conseguir. (fecha os olhos. Continua a tirar a roupa) Eu to conseguindo. Pablo, tu tás aí? Eu to
conseguindo, Pablo. Eu to tirando a roupa. Na tua frente. Eu to ficando nua na tua frente,
Pablo. Eu to ficando nua e eu to aqui. Eu não desapareci. Tu tás aí? Eu sei que tu tás aí. Como
é que eu posso ter certeza que tu tás aí? Mas eu tenho, Pablo. Mesmo sem te ver eu sei que tu
tás aí. (pausa. Continua tirando a roupa) Agora eu também vou ficar quieta até eu ter tirado toda a
roupa. (pausa) Nós dois, Pablo. Quietos. (continua tirando a roupa. Cena longa, lenta, cheia de tensão.
Quando finalmente Alicia está completamente nua, ela fala) Pronto, Pablo. Eu to nua. Posso abrir os
olhos?
Pablo: Pode.
(Alicia abre os olhos. Poucos segundos depois, black total)
Cena 8 – As Trevas/Parto
(esta cena acontece toda no escuro completo)
Alicia: Eu não to vendo nada. Pablo? Onde é que tu tás? Encosta em mim.
Pablo? Pablo? Tá tudo escuro. Eu não consigo me mexer. Eu to com medo. Pablo?
(desesperada) O que é que aconteceu? Por que é que eu não consigo enxergar nada? Por que é
que tá tudo escuro? Pablo, eu to me sentando. Bem aqui onde eu tava antes. Eu to me
sentando. Cuida pra não pisar em mim. Eu to no chão. (pausa. Começa a chorar de desespero) Pelo
amor de deus, fala comigo, Pablo. Eu to com medo de ficar louca. Fala comigo. Só um
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pouquinho. Eu tirei a minha roupa pra ti, Pablo. Eu confiei em ti. Eu confiei em ti. Eu confiei
em ti. (chora baixinho. Fica alguns segundo assim, chorando baixinho, sem falar nada)
Pablo (voz em off): Onde é que tu estás?
Alicia: Pablo?
Pablo (voz em off): Responde. Onde é que tu estás?
Alicia: Na loja. Na loja que eu cuido, do lado do quarto do meu pai.
Pablo (voz em off): Estás na loja?
Alicia: Estou. Na loja, do lado do quarto do meu pai. Onde é que tu estás?
Pablo (voz em off): Eu estou aqui. (voz em off vindo de outro lugar) Eu estou aqui.
(voz vindo ainda de outro lugar) Eu estou aqui. (voz ainda de outro lugar) Eu estou aqui.
Alicia: Para, Pablo. Por favor. Para.
Pablo (voz em off): E tu, onde estás?
Alicia: Eu já te disse. Eu estou na loja. Nessa loja aqui.
Pablo (voz em off): Como é que tu sabes disso?
Alicia: Eu sei porque era aqui que eu tava antes, antes de acabar a luz.
Pablo (voz em off): Me descreve como era a loja.
(Alicia descreve a loja)
Pablo (voz em off): Agora me descreve o que tu estás vendo.
Alicia: Eu não to vendo nada.
Pablo (voz em off): Como é que tu podes ter certeza de que é o mesmo lugar?
Alicia: Porque é. É o mesmo lugar. Tem que ser. Eu conheço.
Pablo (voz em off): Então conta isso pra Verde.
(foco de luz apenas no Pablo real, que está vestido de Verde – de agora em diante será
chamada de Verde Real)
Alicia: Essa não é a Verde.
Pablo (voz em off): Essa é a Verde.
(começa a música Lacrymosa – Kronos Quartet)
Alicia: Essa não é a Verde. (procura pela voz em off e fala na direção da voz em off)
Essa não é a Verde. A Verde não é assim.
(a música vai ficando mais intensa. A Verde Real começa a dançar de um jeito esquisito. Ao
mesmo tempo, no telão, aparece uma outra Verde, igual à Verde Real, dançando também. No início, a dança
das duas Verdes é igual. Alicia, de longe, observa a dança da Verde)
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Alicia: Verde? (aproxima-se da Verde Real, que continua dançando)
Verde do Telão (do telão, parando de dançar e olhando para Alicia. A Verde real
continua dançando. A Verde do Telão fala em gromelot parecido com romeno. As suas falas têm legendas no
telão): Vai, Alicia. Chega perto dela (Alicia entra nua no foco da Verde. A música acaba. A Verde tem
nas mãos dois sapatos de salto)
Verde do Telão (fala para a Verde Real): Mostra pra ela. (A Verde Real estende os
sapatos na direção de Alicia. A Verde do Telão pergunta para Alicia) Alicia, sabes o que é isso? (Alicia
não responde. A Verde do Telão continua) São os sapatos da Cinderela. Quando ela os calçava, ela
era uma outra pessoa. (pausa) Queres? (Alicia vai em direção aos sapatos. Quando está chegando perto, a
Verde Real joga os sapatos longe. A Verde do Telão fala) Ainda não. Tu não és outra pessoa. Agora,
neste exato momento, tu não és nada. Tu não és ninguém. (pausa longa. A luz sobre a Verde Real
diminui até que somente Alicia esteja iluminada. O Telão escurece. Somente Alicia, nua, iluminada, está em
cena).
Pablo (voz em off): Onde está o teu pai? Alicia, onde está o teu pai? (Alicia olha na
direção da porta) Ilumina o teu pai, Alicia. (luz sobre a porta atrás de onde, supostamente, o pai de Alicia
dormia) Ilumina o teu pai, não a porta. Ilumina o teu pai, não a porta.
Alicia: Pablo?
Pablo (voz em off): É esse o meu nome? Pablo?
Alicia: Pablo?
Pablo Real (voltando para a cena): Tá tudo bem contigo, Alicia? (Cena vai se
tornando aos poucos novamente realista, porém a cena é bem mais escura do que no realismo do início da peça)
Alicia: Tá.
Pablo Real: Eu to aqui contigo.
Alicia (para o Pablo Real): És tu mesmo?
Pablo Real: Sou.
(Alicia abraça Pablo, como se ele fosse o um salvador. O abraço dura bastante tempo. Por
parte de Pablo, o abraço é mais cínico)
Cena 9 - Humilhação
Pablo Real (olhando no rosto de Alicia): Sabes qual é o teu problema, Alicia? Se
alguém te dá um colo, tu já pensas que essa pessoa veio te salvar. Queres saber? Quando eu
entrei aqui, eu entrei pensando em brincar um pouco contigo e depois te matar. (tira uma faca e
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coloca contra o pescoço de Alicia. Momento de tensão) Mas, sabe, Alicia, nem isso tu mereces. Pra
alguém morrer, tem que primeiro estar viva. (larga a faca no chão e se vira pra sair)
Alicia: Não vai.
(Pablo se vira. Alicia pega a faca e coloca contra o próprio pescoço, ameaçando de se matar.
Pablo ri)
Alicia: Por favor, não vai.
Pablo: Não queres que eu vá? Então larga a faca (Alicia larga a faca) Agora te
ajoelha. Anda, te ajoelha. Agora fica de quatro e engatinha até aqui perto. Vem. Engatinha.
Devagar. Vem. Agora beija o meu pé. Isso. Agora beija o chão. Se eu te pedisse pra lamber
todo o chão tu lamberias, não é? Tu lamberias? Olha pra mim (Pablo dá um tapaço no rosto de
Alicia) Burra! Vem aqui! (pega Alicia pelos cabelos e a leva até perto da porta onde estaria o pai dela)
Repete o que eu te falo: Pai. (ela não repete) Repete. Pai.
Cena 10 - Oração
Alicia: Pai.
Pablo: Onde é que tu estavas quando eu precisei de ti? Fala. Vai. Onde é que tu
estavas quando eu precisei de ti? Fala.
Alicia: Onde é que...
Pablo: Onde é que tu estavas quando eu precisei de ti?
Alicia: Onde é que tu estavas quando eu precisei de ti?
Pablo: Onde é que tu estavas quando eu tirei a roupa pra esse homem? (pausa)
Fala. Onde é que tu estavas...
Alicia: Onde é que tu estavas quando eu...
Pablo: Quando eu tirei a roupa pra esse homem?
Alicia (ela repete): Quando eu tirei a roupa pra esse homem?
Pablo: Pai.
Alicia: Pai.
Pablo: Onde é que tu estavas quando eu precisei da tua proteção?
Alicia: Onde é que.
Pablo: Continua. Onde é que tu estavas quando eu precisei da tua proteção?
Alicia: Onde é que tu estavas quando eu precisei da tua proteção?
Pablo: Pai.
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Alicia: Chega.
Pablo: Fala.
Alicia: O que tu queres de mim?
Pablo: Repete: pai, onde é que tu estavas quando o Pablo bateu em mim e me
derrubou no chão? Repete. Onde é que tu estavas quando o Pablo me humilhou e me fez
beijar o chão? Repete. Onde é que tu estavas quando eu ficava presa nessa merda de loja de
fantasias vendendo as coisas que tu me mandavas vender? Repete. Pai. Repete. Pai, vai tomar
no cu. Pai, vai tomar no cu. Repete. Burra! (Pablo sai. No telão, inicia um vídeo com os olhos de Alicia
em close, depois mostrando o seu corpo nu. O corpo de Alicia vai se transformando em outros corpos nus, como
se ela pudesse se transformar em outras pessoas. O vídeo acontece ao mesmo tempo da cena 11. Música: Last
Song, da Meredith Monk)
Cena 11 – Monólogo 3 de Alicia
Alicia (baixinho): Vai tomar no cu. Vai tomar no cu. Vão tomar no cu. (retoma)
Eu queria conseguir falar assim: pai, vai tomar no cu. Pablo, vai tomar no cu. Será que um dia
eu vou conseguir? A cinderela conseguia. Ela colocava uma outra roupa e era outra pessoa. Pai,
eu quero ser outra pessoa. Pablo, se eu fosse outra pessoa eu ia fazer tudo diferente. Tudo. Eu
não ia mais trabalhar na loja. Eu ia fazer o que eu quisesse. Eu ia falar pra ti, Pablo, que tu és
um idiota. Eu ia te falar: Pablo, vai tomar no cu! Vai tomar no cu. Eu ia conseguir falar assim.
E eu ia conseguir dançar, sozinha, sem dar bola pra nada. Eu ia gritar pro mundo, quer saber
mundo?, vai tomar no cu. Bem alto. Vai tomar no cu. Vão tomar no cu. Pai, eu quero ser outra
pessoa. Pablo, eu quero ser outra pessoa.
Cena 12 – Tu és Outra Pessoa
(Pablo entra, calmo, até onde Alicia está. Alicia está tampando a sua nudez com uma roupa
que estava no chão. Pablo vai até onde estão os sapatos da Cinderela e os estende para Alicia. O vídeo com a
projeção dos vários corpos nus termina).
Alicia (para Pablo): Posso?
Pablo: Podes. (ele calça os sapatos em Alicia e fala para ela) Pronto, Alicia. Agora,
até a meia-noite tu és outra pessoa.
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(Alicia fica de pé, altiva, sobre os saltos. Encara o público. Momento de silêncio. Alicia
encara o público durante algum tempo. Depois começa a caminhar pelo ambiente como se estivesse tentando
reconhecê-lo. Observa os espelhos, os quadros, as fantasias, as máscaras. Depois pega a boneca Verde na mão)
Alicia (para si mesma): Eu não conheço esse lugar. (Alicia vai até a mesa atrás de
onde ela mesma estava sentada no início da peça. Alicia se apóia na mesa e fala na direção da cadeira, como se
ela mesma continuasse sentada ali): Alicia, quando eu voltar, eu não quero mais te ver sentada aí
atrás. (Depois Alicia volta para perto de Pablo e o encara. Aproxima-se ainda mais dele e entrega a boneca
para ele. Fala para Pablo) É tua, não é? (Alicia dá uns poucos passos mas logo volta e passa a olhar
desafiadoramente para Pablo – que está com a boneca Verde na mão. Alicia fala para Pablo) Queres saber?
(Alicia atira o vestido que está carregando no chão, expondo a sua nudez) Vai tomar no cu! (agora Alicia se
vira e fala para os objetos da loja, de costas para o público) Vão tomar no cu! (Alicia passa por Pablo e sai
de cena. Pablo fica algum tempo sozinho em cena, segurando a boneca. Ele olha rapidamente as coisas da loja e
depois arruma a boneca sobre a mesa – este arrumar é feito com bastante carinho. Pablo caminha calmamente
para fora da loja. Todas as luzes se apagam, exceto pelo foco na boneca. Este último foco também se apaga.
Nenhuma música)
FIM
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