a migração pós-colonial e as identidades nacionais

Transcrição

a migração pós-colonial e as identidades nacionais
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A MIGRAÇÃO PÓS-COLONIAL E AS IDENTIDADES
NACIONAIS DE ARGÉLIA E FRANÇA: NATIONBUILDING E SECURITIZAÇÃO
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Filipe Seefeldt de Césaro
Santa Maria, RS, Brasil.
2015
A MIGRAÇÃO PÓS-COLONIAL E AS IDENTIDADES
NACIONAIS DE ARGÉLIA E FRANÇA:
NATION-BUILDING E SECURITIZAÇÃO
Filipe Seefeldt de Césaro
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Relações
Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS) como
requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Relações
Internacionais.
Orientador: Prof. Dr. Igor Castellano da Silva
Santa Maria, RS, Brasil
2015
AGRADECIMENTOS
A trajetória percorrida até essa pesquisa, sua viabilização e desenvolvimento não
teriam sido possíveis sem o intenso apoio externo o qual sou incapaz de expressar, em sua
totalidade, nos limites deste espaço. Ainda assim, cabe o destaque de algumas pessoas que em
muito contribuíram com o que aqui foi desenvolvido.
Em primeiro lugar, agradeço a meus pais, Luciara Beatriz Seefeldt de Césaro e Glacir
de Césaro, por me disponibilizarem os meios materiais de estudar em Santa Maria e,
especialmente, pelo amor e carinho comigo compartilhados em todas as situações já vividas.
Pelo apoio e afeto dispensados em prol de um aprendizado constante, expresso a mesma
gratidão ao restante de minha família, de Alegrete a Chopinzinho, e às “famílias estendidas”
dos Rodrigues Martins e dos Missio Pinheiro. Sou muito grato também a meu orientador, Igor
Castellano da Silva, por ter confiado desde o início nesta pesquisa e pela paciência e
dedicação relegadas a seu suporte. De especial importância foi a convivência com minha
namorada, Luana da Silva Missio Pinheiro, cujo carinho e companheirismo constantes foram
associados à compreensão de minhas ausências e à atenção a monólogos instantâneos sobre a
Argélia. Além disso, agradeço, no âmbito do curso de Relações Internacionais da UFSM: ao
coordenador José Renato Ferraz da Silveira, pela dedicação e persistência na construção de
uma graduação de melhor qualidade; aos docentes, por seus ensinamentos e, acima de tudo,
pelo fomento à reflexão; aos colegas, pela associação entre amizade e discussão que para mim
tornaram o ambiente acadêmico mais descontraído e produtivo. Em específico, destaco minha
gratidão às professoras Giuliana Redin e Maria Catarina Chitolina Zanini, assim como aos
colegas do Núcleo de Pesquisa, Ensino e Extensão Direitos Humanos e Mobilidade Humana
Internacional (MIGRAIDH) e do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NECON), pelas
oportunidades fornecidas, pelo debate sempre fértil e pela atração que em mim despertaram
em relação ao fenômeno da migração. Ademais, agradeço a Alex Da Silva Rodrigues e a
Douglas Felipe Gerhardt pela grande amizade, pelos ensinamentos e pelas jams que tantas
vezes aliviaram meu estado de espírito.
Por fim, expresso minha gratidão à União, à Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela
oportunidade de completar um curso de ensino superior e pelo incentivo constante à pesquisa.
A todos que direta ou indiretamente fizeram parte de minha formação até aqui, о meu muito
obrigado.
O que ele se tornará, então? O que é o colonizado, de fato? Eu não acredito nem na essência
metafísica nem na essência psicológica. Pode-se descrever o colonizado no presente. Eu tentei
mostrar que ele sofre, julga e se comporta de uma determinada maneira. Se ele cessar em ser
colonizado, vai se tornar alguma outra coisa. A geografia e a tradição são obviamente forças
permanentes. Mas talvez, até lá, haverá menos diferenças entre um argelino e um marselhês
do que entre um argelino e um libanês. (Albert Memmi, 1957)
RESUMO
Trabalho de Conclusão de Curso
Curso de Relações Internacionais
Universidade Federal de Santa Maria
A MIGRAÇÃO PÓS-COLONIAL E AS IDENTIDADES NACIONAIS DE
ARGÉLIA E FRANÇA: NATION-BUILDING E SECURITIZAÇÃO
AUTOR: Filipe Seefeldt de Césaro
ORIENTADOR: Igor Castellano da Silva
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 02 de Dezembro de 2015
Esta pesquisa trata, em termos gerais, da vinculação explicativa entre a emigração argelina
pós-colonial e as identidades nacionais de Argélia e França exercitadas pelos Estados
paralelamente. Estuda-se como a gestão estatal de ambos os lados sobre o fluxo migratório é
capaz de revelar traços fundamentais de identidades nacionais conforme estruturadas no pósindependência. Dessa forma, o problema que norteia a pesquisa é: de que forma as
identidades nacionais de Argélia e França são expressas pela migração pós-colonial?. A
hipótese proposta é a de que, representando uma fonte de contato transnacional inserida nos
vínculos estabelecidos pela colonialidade, o fluxo de argelinos à França despertou nos Estados
reações que registram um crescente conteúdo identitário. Duas categorias referenciais são
empregadas como guia à análise dessa progressão: nation-building para a Argélia e
securitização societal para a França. No primeiro caso, verifica-se cada vez mais a
aproximação institucional em relação à emigração como forma de legitimação de um projeto
identitário inclusivo e plural, ainda sendo construído. No segundo, a imigração tem sido
abordada de uma forma defensiva direcionada à autoafirmação nostálgica de um projeto
identitário já consolidado historicamente. Portanto, é pela crescente intensificação de políticas
de nation-building e securitização societal sobre si pelo fluxo migratório que se faz possível a
apropriação de duas lógicas de identidade nacional exercitadas no período pós-colonial: o
existencialismo argelino e o essencialismo francês. Sobreviventes em diferentes conjunturas
desde 1962, apenas nos períodos mais recentes tais estruturas de identidade encontram-se
amadurecidas nas práticas estatais tomadas frente à diáspora argelina. Os processos
envolvidos nessa evolução e como essa contribuiu à maior expressão das duas identidades
nacionais são o objeto de análise principal da estrutura deste trabalho.
Palavras-Chave: Migração pós-colonial, identidade nacional, Argélia, França.
ABSTRACT
Senior Thesis
International Relations Major
Universidade Federal de Santa Maria
POSTCOLONIAL MIGRATION AND THE NATIONAL IDENTITIES
OF ALGERIA AND FRANCE: NATION-BUILDING AND
SECURITIZATION
AUTHOR: Filipe Seefeldt de Césaro
ADVISOR: Igor Castellano da Silva
Presentation‟s Date and Place: Santa Maria, December 2
This research deals, in general terms, with the explanatory link between the postcolonial
algerian emigration and the national identities of Algeria and France exercised by the States in
parallel. It explores how the state management of the migratory flux by both sides is capable
of revealing fundamental aspects of national identities as structured in the post-independence
context. Therefore, the question that guides the research is: in which ways the national
identities of Argélia and France are expressed by postcolonial migration?. The hypothesis
proposed is that, representing a source of transnational contact involved in the linkages
established by coloniality, the flux of algerians to France sparked in the States reactions that
involve a growing identitary content. Two referential categories are used as a guide to the
analysis of this progression: nation-building for Algeria and societal securitization for France.
In the first case, the institutional approach in relation to emigration is increasingly verified as
a form of legitimation of an inclusive and plural identitary project, still being constructed. In
the second one, immigration has been treated by a defensive approach directed to a nostalgic
self-affirmation of na identitary project already historically consolidated. Thus, it is by the
increasing intensification of nation-building and societal securitization policies on the
migratory flux that the appropriation of two logics of national identity exercised in the
postcolonial period is made possible: the algerian existencialism and the french essentialism.
Permanent in different conjunctures since 1962, only in the most recent periods these
identitary structures found themselves matured in the state practices in relation to the algerian
diaspora. The processes involved in this evolution and how it contributed to the major
expression of the two national identities are the main object of this research.
Key-Words: Postcolonial migration, national identity, Algeria, France.
RÉSUMÉ
Travail pour la Conclusion du Cours
Cour de Rélations Internationales
Universidade Federal de Santa Maria
LA MIGRATION POST-COLONIALE ET LES IDENTITÉS
NATIONALES DE L’ALGÉRIE ET DE LA FRANCE: NATIONBUILDING ET LA SÉCURITISATION
AUTEUR: Filipe Seefeldt de Césaro
DIRECTEUR DE RECHERCHE: Igor Castellano da Silva
LIEU ET DATE DU SOUTIEN DE LA RECHERHE: Santa Maria, 2 Décembre
2015
Cette recherche traite, en termes généraux, de la liaison explicative entre l‟émigration
algérienne post-coloniale et les identités nationales de l‟Algérie et de la France exercées par
les États en parallèle. Nous étudions comment la gestion de l‟État de ces deux côtés sur le
flux migratoire est capable de révéler les traits fondamentaux des identités nationales
structurées dans la post-indépendance. De cette façon, le problème qui guide la recherche est
celui: comment l‟identité nationale de l‟ Algérie et celle de la France sont exprimées par la
migration post-coloniale?. L‟hypothèse est que cette flux migratoire, qui represente une
source de contact transnational inserée dans les liens établis par la colonialité, a réveillé dans
les Ètats Algérien et Français des réactions qui enregistrent un contenu identitaire qui croît.
Deux catégories de référence sont employées comme guide à l‟analyse de cette progression:
nation-building (édification de la nation) pour l‟Algérie et la sécuritisation sociétal pour la
France. Dans le premier cas, il y a de plus en plus l‟approche institutionelle en ce qui
concerne l‟émigration comme un moyen de légitimer un projet identitaire inclusif et pluriel
qui est encore en train de s‟affirmer. Dans la deuxième, l‟immigration a été abordée d‟une
façon défénsive, adressée à auto-affirmation nostalgique d‟un projet identitaire déjá consolidé
historiquement. Donc, c‟est par l‟intensification croissante des politiques de nation-building
et sécuritisation sociétal sur le flux migratoire qui se rend possible la prise de deux logiques
d‟identité nationale exercées dans la période post-coloniale: l‟existencialisme algérien et
l‟essencialisme français. Survivantes dans des différentes conjonctures depuis 1962, c‟est
uniquement pour les périodes le plus recentes que telles structures d‟identité sont devenues
mûres dans les actions de l‟État adoptées face à la diaspora algérienne. Les processus
impliqués dans cette évolution sont l‟objet principal de notre recherche.
Mots-clès: Migration post-coloniale, identité nationale, Algérie, France.
LISTA DE FIGURAS
Quadro 1 – Análises em migração realizadas nos capítulos 1 e 2………...........84
Quadro 2 – Análises realizadas nos capítulos 2 e 3…………………………….86
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO GERAL .......................................................................................... 10
2 A MIGRAÇÃO ENQUANTO FENÔMENO DE AGÊNCIA E
EXPRESSÃO ...................................................................................................................... 17
2.1 Introdução ao capítulo .................................................................................................... 17
2.2 Colonialidade: o migrante, a dominação e a resistência ......................................... 17
2.3 Nation-building, segurança e a expressão identitária da migração ...................... 22
2.4 A diáspora argelina para a França .............................................................................. 30
2.5 Conclusão do capítulo ..................................................................................................... 36
3 A EMIGRAÇÃO E O PROCESSO DE NATION-BUILDING NA
ARGÉLIA ............................................................................................................................. 37
3.1 Introdução ao capítulo .................................................................................................... 37
3.2 Revolução e state-building (1962-1973) ...................................................................... 38
3.3 Liberalização, crise e ativismo (1973-1999) ............................................................... 44
3.4 Paz, transpolítica e inflexão (1999- atualidade) ........................................................ 50
3.5 Conclusão do capítulo ..................................................................................................... 57
4 A IMIGRAÇÃO E O PROCESSO SECURITÁRIO NA FRANÇA .. 58
4.1 Introdução ao capítulo .................................................................................................... 58
4.2 A racionalização econômica da imigração (1962-1974) .......................................... 59
4.3 A construção política da imigração (1974-1986)....................................................... 64
4.4 A materialização do consenso (1986-atualidade) ...................................................... 71
4.5 Conclusão do capítulo ..................................................................................................... 80
5 CONCLUSÃO GERAL ............................................................................................. 81
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 88
10
1 INTRODUÇÃO GERAL
Os fluxos migratórios estão dentre os fenômenos sociais, políticos e econômicos mais
correntes da história da humanidade. Seu impacto esteve ligado às diferentes conjunturas
estabelecidas, algo que se torna marcante especialmente a partir da ascensão da ordem
moderna estruturada por Estados nacionais. No entanto, dos processos históricos que
constantemente reconfiguraram as rotas migratórias internacionais, o neocolonialismo talvez
tenha sido um dos que implicou em maior impacto quantitativo e qualitativo. Isso porque
além de ter envolvido a desestruturação de organizações sociais e padrões de mobilidade das
populações dominadas, construiu globalmente uma articulação europeia de poder. Esse
processo fundamentalmente determinou as condições dos deslocamentos humanos e
concepções identitárias mesmo após os processos de descolonização.
Os contextos de libertação nacional revelaram, em conjunção com o intenso avanço
das tecnologias da comunicação e informação, novas características das migrações
internacionais e dos seus padrões de governança. Na medida em que emergiu uma verdadeira
revolução tecnológica nos campos da informação e da comunicação, esse processo projetou
impactos tanto sobre os novos Estados libertos da dominação colonial quanto sobre os
Estados antes colonizadores, e em vários casos a migração desenvolveu de forma autônoma
potencialidades políticas conectadas à relação entre ex-colônia e ex-metrópole. Nesse
contexto, o engajamento que cada Estado desenvolve sobre essa força transnacional estaria
relacionado não apenas a externalidades, necessidades e demais aspectos conjunturais: teria
um vínculo fundamental com os processos de construção de identidades nacionais enraizados
na experiência colonial e em sua posição frente aos desenvolvimentos atuais do capitalismo.
O objeto desta pesquisa, ao estar centrado em um caso emblemático de relacionamento póscolonial tal qual o estabelecido entre Argélia e França, permite que estas possibilidades
analíticas sejam exploradas.
Para tal, a base referencial utilizada está relacionada a seis conceitos que guiam a
apropriação teórica realizada pelo trabalho. Parte-se da contribuições clássicas e
contemporâneas dos estudos do nacionalismo em nation-building e identidade (como em
Hosbawn, 1990; Anderson, 2006; Kedourie, 1961; Edensor, 2002) para debater postulados
11
básicos estabelecidos aos estudos em pertencimento nacional, de forma a perceber como a
construção de identidades coletivas está atrelada tanto a estruturas determinantes e quanto à
prática social do indivíduo. Em suma, a noção de nation-building possibilita a apropriação de
mecanismos simbólicos propagados pelo Estado sobre a realidade social e cuja eficácia é
manipulada pelas especificidades de ação individual conforme tratadas pelo conceito de
identidade. Também em estudos migratórios é debatido um conjunto de contribuições
clássicas e mais recentes (como Thomas e Znaniecki, 1918; Park, 1928; Schiller, Basch e
Blanc, 1995), e que são direcionadas à exploração de processos inerentes e maleáveis do
fenômeno migração. Em termos gerais, procura-se refletir quais os significados e padrões de
ação/percepção são carregados pelas migrações internacionais, nesse sentido entendidas como
deslocamentos humanos envolvidos na manipulação de laços transnacionais mantidos entre as
sociedades de origem e destino. No campo de segurança em Relações Internacionais, o
mesmo padrão de consulta bibliográfica é seguido (Wolfers, 1962; Jervis, 1978; Buzan, 1983;
Huysmans e Squire, 2009, por exemplo), porém com o objetivo de atingir o debate em torno
da securitização em setor societal conforme proposta por Buzan, Weaver e Wilde (1998, p.
119-128). Em geral, busca-se entender como a agenda em segurança internacional possui
dinâmicas de construção discursiva e que dizem respeito a interesses políticos articulados por
agentes para determinadas audiências legitimadoras, definição que assim possibilita perceber
quais os fundamentos simbólicos da percepção de ameaças existenciais. São utilizados
também estudos em pós-colonialismo (como em Fanon, 1997; Memmi, 2003; Elayyadi, 2004;
Quijano, 2007), especialmente de modo a refletir sobre os laços subjetivos de conexão que se
mantêm após os processos de libertação nacional e sobre quais efeitos imprimem os processos
de construção sócio-histórica das figuras do colonizado e do colonizador. Destaca-se, além
disso, a utilização de contribuições relacionadas ao estudo do poder simbólico (como em
Engels, 2002; Mannheim, 1954; Lukács, 2003; Bourdieu, 1989), conceito explorado aqui para
o entendimento de sistemas estruturantes e estruturados cujo funcionamento imprime
dominação por meio de um consenso subjetivado.
Em suma, esses seis conceitos e os debates contemporâneos que os desenvolveram
com melhor precisão representam o refencial teórico consultado pela presente pesquisa.
Importam na medida em que possibilitam a análise de como identidades nacionais, que em
conjunção a nation-building e securitização societal são movidas por dinâmicas simbólicas,
podem ser narradas por um fluxo migratório constituído enquanto processo histórico no seio
de relações pós-coloniais Além disso, a existência de alguns temas pouco ou não abordados
pelas contribuições consultadas ensejam o debate aqui realizado.
12
Nesse sentido, pode-se inferir a justificativa para a pesquisa proposta. Primeiramente,
destaca-se a atenção dada ao processo historicamente incorporado às lógicas capitalistas de
descolamento de pessoas e que atualmente assume importância crescente ao Brasil, sendo
capaz de remeter a características das relações de poder entre sociedades e Estados. Nesse
contexto, o processo migratório é abarcado como capaz de não apenas fornecer um mapa
sócio-político daqueles oprimidos pelo padrão de mobilidade humana consolidado, mas
também de (em conjunto com análise de identidades) prover características gerais do processo
de construção e reinvenção da identidade em países pós-coloniais. Em segundo lugar, a
pesquisa também é justificada pela crescente importância tomada recentemente pelo diálogo
disciplinar entre os campos de Relações Internacionais, Antropologia e Sociologia, algo que
tem permitido o emprego de debates mais amplos sobre identidade, por exemplo. Enquanto
que internacionalmente vários estudos já buscam estruturar análises preocupadas com a
renovação das contribuições clássicas em nacionalismo para a sua aplicação interdisciplinar
(como em Hogan, 2009; Wodak et al 2009), no Brasil é mais comum o estudo de identidade
nacional e nation-building em áreas consolidadas (especialmente a Ciência Política). Ainda
que existam trabalhos importantes que empreguem visão mais sistêmica (Reis, 1997; Mahlke,
2005; Scanhola, 2013, por exemplo), destaca-se a pouca atenção no Brasil dispensada a casos
específicos como o da França e Argélia. Além disso, o contexto atual vivido tanto nas
dimensões da política internacional quanto dos debates acadêmico-sociais sobre migração
torna necessários esforços em pesquisa que promovam o maior entendimento acerca do
background subjetivo envolvido na relação entre Europa e Magreb à luz de sua influência na
atual crise humanitária verificada no Mediterrâneo1.
Nessas bases é que se justifica o problema formulado por esta pesquisa: de que forma
as identidades nacionais de Argélia e França são expressas pela migração pós-colonial?,
busca-se a apropriação do histórico fluxo migratório como ferramenta analítica de expressão
das identidades nacionais contemporâneas de Argélia e França conforme exercitadas no
período pós-colonial. A hipótese a ser testada é representada pela noção de que a emigração
argelina, por meio da apropriação estatal que recebe por Argélia e França, expressa
especialmente nos períodos recentes os projetos identitários assumidos por ambos os Estados
pós-coloniais. Nesse sentido, a emigração argelina para a França, ao representar um fato
___________
1
Ao longo dos anos de 2014 e 2015, os níveis já intensos de migração não documentada à Europa registraram
um salto quantitativo bastante forte. As condições precárias das travessias realizadas pelo mar Mediterrâneo
vincularam a esse quadro o crescimento do número de mortos aos milhares e a atenção público-midiática do
mundo todo ao processo. Efeito especialmente de conflitos civis e precariedade socioeconômica, as novas ondas
migratórias pressionaram posicionamento europeu que, até o período de produção do presente trabalho, mantevese na maioria das vezes enrijecido a debates afastados da dimensão humanitária.
13
histórico, cultural, político e econômico entre duas nações e duas instituições ligadas por um
passado colonial, põe em expressão a relação identitária consolidada na pós-colonialidade.
Destaca-se que isso pode ser percebido em dois padrões de gestão migratória desenvolvidos
recentemente: a abordagem da diáspora como ferramenta de nation-building pelo Estado
argelino e a recepção da mesma com preocupações em segurança societal pelo Estado francês.
Destacam-se, a partir dessa análise, formas identitárias cujo caráter conectado constitui
de objeto de estudo comum às abordagens envolvidas pelo pós-colonialismo. É nesse espectro
teórico que estão posicionados os conceitos aqui utilizados para a apropriação das identidades
nacionais pós-coloniais. São eles os de existencialismo e essencialismo conforme propostos
por Naylor (2000), tendo duas vantagens centrais aos objetivos desta pesquisa: adequam-se
com maior clareza ao caso de Argélia e França e permitem um tipo amplo de abordagem
identitária, ligada mais a lógicas de funcionamento do que a traços específicos de
constituição. Em outras palavras, são noções que, mesmo assentadas nas contribuições gerais
do pós-colonialismo, permitem notar como políticas sobre a migração pós-colonial, ao
lidarem com um objeto de conteúdo identitário intrínseco, denotam o exercício de estruturas
de nacionalidade pelos Estados.
De um lado, existencialismo (NAYLOR, 2000, p. 2) parte do dilema pós-colonial
argelino entre o fim da ordem política de dominação e a continuidade da dependência para
representar uma situação de indefinição identitária: “de acordo com uma publicação oficial: „a
independência real continua incompleta se ela não liberar tanto a terra quanto a alma do povo.
A Argélia recuperada pelos argelinos não basta. Os argelinos devem tornar-se e manter-se si
mesmos novamente‟. Isso constituiu o engajamento existencial”2. Nesse sentido, a constante
luta social e política do novo Estado por uma identificação nacional autêntica e coexistente à
desestruturação social causada pelo colonialismo é o elemento central do conceito proposto
pelo autor. De outro, essencialismo (NAYLOR, 2000, p.1) ilustra o mecanismo político de
funcionamento da transformação identitária passada pela França a partir da independência
argelina de 1962. Em termos gerais, está centrado em uma simbologia constantemente
evocada em diferentes conjunturas e direcionada a um retorno subjetivo ao passado de
sucessos e hegemonia global. Em termos concretos, verifica-se a tendência à nostalgia sobre o
papel do país no mundo enquanto modelo de nação historicamente consolidado: “com uma
gloriosa história de grandeur (i.e., grandeza política, cultural e moral) e independência, o seu
___________
2
Todas as citações do presente trabalho se encontram em língua portuguesa e foram traduzidas livremente pelo
autor. Sua versão original não pôde ser adicionada ao texto final por conta das limitações espaciais
características ao tipo de produção aqui proposto.
14
espírito único ou essência havia sido expresso por séculos enquanto uma identidade imperial
poderosa, como um atavismo gratificante”. O conceito propõe, então, a construção póscolonial de uma nacionalidade centrada em noções de atemporalidade e glória, reemergidas
pelos paradoxos entre o desejo de “ver na Argélia o reflexo da grandeza da França” e a não
aceitação das potencialidades nacionais perdidas em termos de poder mundial.
Ao propor os dois conceitos, o autor busca demonstrar como as relações bilaterais
foram uma das vias de expressão das duas identidades nacionais em exercício, porém dando
pouca atenção à migração e aos constrangimentos pós-coloniais que enseja ao exercício das
mesmas identidades nacionais. Nesse sentido, a pesquisa busca contribuir à análise já
realizada ao demonstrar como ambas as estruturas identitárias, historicamente ligadas por
dinâmicas de comparação, cooperação e conflito, tornam-se visíveis pelos processos de
nation-building e securitização a um dos laços pós-coloniais mais claros: a migração.
Em termos metodológicos, este trabalho adota o método de procedimento de estudo de
caso, além de utilizar o método de abordagem hipotético dedutivo e a técnica de pesquisa
bibliográfica sobre fontes secundárias. O recorte temporal focado no pós-independência
(desde 1962) se justifica tanto por sua natureza emblemática à relação entre Argélia e França
(e, portanto, à posição dos dois lados sobre o fluxo migratório) quanto pelo fato de que os
processos envolvidos em nation-building e securitização têm natureza contextual. Por serem
fenômenos de fundo simbólico (especialmente em sua relação com identidade), podem ser
mais bem apreendidos por análises de médio a longo prazo capazes de identificar sua variação
por condicionamentos históricos. Da mesma forma, migração e identidade apresentam uma
constante mutação que exige atenção ao contexto em que estão inseridos. Portanto, ao tomar
por ponto de partida a independência argelina, a pesquisa torna possível não só uma análise
mais clara das variações quantitativas e qualitativas em emigração argelina, mas também a
explicação da relação entre essas e os projetos identitários dos dois Estados (que passavam
naquele momento por uma inflexão). Além disso, e em vistas do não acesso a fontes primárias
e da ausência de possibilidades etnográficas, prioriza-se o uso de contribuições secundárias já
bem documentadas acerca de nation-building e securitização. A análise tende a tratar cada
uma das categorias referenciais sob dois aspectos gerais e que recebem atenção bibliográfica
consolidada: prática e discurso. Esses elementos, sempre que aludidos no texto, então, são
tratados a partir de seu conteúdo teórico estabelecido. O mesmo modelo aplica-se à análise
qualitativa do fluxo migratório, guiada então por duas categorias gerais igualmente bem
informadas: geração e tipo de atividade política.
15
Quanto à estrutura textual, a análise está dividida em três capítulos. O primeiro
capítulo ocupa-se com a análise de elementos que tornam a migração uma potencial
ferramenta de expressão de processos sociais, políticos e econômicos mais amplos, então
relacionados com as dimensões de colonialidade e identidade. Nesse sentido, as primeiras
duas seções do capítulo 1 realizam um debate a partir de revisão teórica dos estudos da área e
apresentam o modelo analítico proposto, que basicamente envolve, então, a utilização do
fenômeno migratório para a explicação de aspectos pertencentes aos campos da colonialidade
e da identidade nacional. Em auxílio a tal tarefa e a título de contextualização aos próximos
capítulos, a última seção realiza breve análise dos padrões quantitativos da emigração argelina
à França.
Os dois capítulos subsequentes (segundo e terceiro) tratam da verificação do modelo
analítico nos casos de Argélia e França. O segundo capítulo é dedicado à Argélia, e busca, de
maneira geral, analisar de que forma a emigração é capaz de expressar a identidade nacional
do país. Tal expressão se daria, desde a independência nacional, pela variação da gestão
emigratória do Estado a partir da categoria referencial de nation-building. Em vistas da
verificação desse processo desde 1962, a estrutura textual do capítulo é dividida em três
períodos históricos que contêm diferentes características de variação da gestão emigratória
argelina: 1962-1973, 1973-1999, 1999-atualidade. No primeiro período, percebe-se a
emigração enquanto fonte de possível ameaça à construção do Estado argelino e, portanto,
não são desenvolvidas políticas de nation-building para tal. No segundo, passa-se a uma
posição de proteção retórica permeada pela indiferença, o que mantém na ausência de nationbuilding pela emigração a aproximação pragmática apenas momentânea. No período mais
recente, mudam as concepções identitárias hegemônicas dentre as elites e o Estado passa a
desenvolver esforços permanentes em nation-building sobre a emigração. Tal demarcação
temporal permite não apenas a análise da variação do objeto principal (nation-building) de
acordo com os contextos conjunturais, mas também sua progressão enquanto expressivo da
identidade nacional argelina à luz de variáveis externas influentes em cada período. Em
adição, cada seção contém inicialmente uma análise qualitativa da variação do movimento
migratório enquanto agente transnacional, de forma a expô-lo como diretamente vinculado à
construção do Estado argelino e fornecendo base contextual ao debate do capítulo seguinte.
O terceiro capítulo é dedicado à França e, de maneira geral, busca analisar como o
mesmo fluxo considerado anteriormente constitui de uma ferramenta expressiva da identidade
nacional francesa. A proposição feita é a de que essa expressão se daria pela variação da
16
gestão imigratória empregada pelo Estado em termos de esforços em securitização societal.
Em lógica semelhante, o capítulo é estruturado em torno de três períodos históricos que
contêm diferentes dinâmicas de variação, nesse caso, da gestão imigratória francesa em
termos de securitização societal: 1962-1974, 1974-1986, 1986-atualidade. No primeiro
período, há o incentivo economicista da imigração com sua adequação ao quadro de
necessidades em mão de obra de forma a não desenvolver securitização sobre os fluxos. No
segundo, dão-se os primeiros esforços concretos em securitização do tema em torno de um
consenso político, processo que ainda assim ocorre apenas em âmbito econômico e de
segurança pública. No terceiro, o consenso político se torna simbólico na medida em que
padroniza a concepção de ações, atores e justificativas em torno da temática identitária,
momento que inaugura a securitização societal da imigração. Partido da análise qualitativa do
fluxo migratório realizada no capítulo anterior, a demarcação temporal novamente é
determinada pela variação do objeto principal (securitização), o que possibilita uma análise
tanto de variáveis externas influentes quanto da estrutura identitária nacional que se sobressai
de formas diferentes nas ações de Estado sobre a imigração.
As conclusões, por fim, retomarão os temas tratados ao longo dos capítulos, avaliando
a aplicação do modelo analítico, apontando aspectos de relativização do mesmo e procurando
demonstrar como as duas análises estiveram relacionadas à exploração de dois projetos
identitários que, mesmo maleáveis às conjunturas de ação, mantiveram-se permanentes até
sua plena constituição em políticas argelinas de nation-building para a emigração e francesas
de securitização societal para a imigração.
17
2 A MIGRAÇÃO ENQUANTO FENÔMENO DE EXPRESSÃO
2.1 Introdução ao capítulo
Este capítulo busca, como base à análise do objeto, uma abordagem que trate a
migração enquanto processo de destaque a processos políticos, econômicos e sociais mais
amplos. A partir disso, e para que o modelo analítico seja clarificado, este capítulo possui três
desenvolvimentos. Primeiramente, são apresentadas duas formas de potencial expressão da
colonialidade pelo fenômeno migratório, de forma a introduzir uma das dialéticas
características à relação pós-colonial. Em um segundo momento, o enfoque é dado a duas
potenciais formas de expressão (securitização em setor societal e nation-building) de
identidade nacional pela migração e sua apropriação estatal. Por fim, e a título de
contextualização, é feita breve revisão histórica quantitativa da emigração argelina para a
França.
2.2 Colonialidade: o migrante, a dominação e a resistência
As migrações contemporâneas, além de envolverem a expressão de projetos de
identidade nacional (tema tratado na seção seguinte), também são capazes de representar
relações de dominação. Isso é particularmente expressivo em contextos pós-coloniais, nos
quais o monopólio do Estado sobre a mobilidade humana internacional (Reis, 2004, p. 150)
assume traços remanescentes de interdependência que atuam em constante contato com os
projetos de identidade nacional. Isso pode ser analisado com clareza pela noção de
colonialidade.
O conceito de colonialidade tem seu desenvolvimento ligado às evoluções teóricas do
pós-colonialismo. Esse, emergido especialmente durante e após os processos de libertação
nacional da metade do século XX, tinha por essência a proposição de uma “resistência teórica
à mistificadora amnésia do resultado colonial” (GANDHI, 1998, p. 4). De forma geral, então,
suas diferentes correntes de interpretação buscam um retorno ao que, nas mentes colonizadas,
18
o fim da ordem colonial aparentemente teria terminado: os vestígios da dominação
multidimensional mantida pelo Ocidente colonizador. Disso também se depreende a temática
da identidade pós-colonial, paralelamente antagônica a um passado de sofrimento e vinculada
a um presente de subordinação e atração pelo poder emanado daquele que domina. As formas
pelas quais essa dialética se estabelece em suas várias expressões são o objeto de estudo do
pós-colonialismo, e sua representação pela modernidade é dada pelo que chamamos de
colonialidade: “a expressão „colonialidade do poder‟ designa um processo fundamental de
estruturação do sistema-mundo moderno/colonial” (BALLESTRIN, 2013, p. 100).
Todos esses processos, especialmente aqueles que têm por objeto a identidade dos
colonizados, estabelecem diálogo fundamental com a noção de poder simbólico, desenvolvida
por teóricos como Engels (2002, p. 34-35), Mannheim (1954, p. 45) e Lukács (2003, p. 143) e
consolidada por Bourdieu (1991). O conceito ilustra como o exercício de poder pode ser
articulado por meio de instrumentos de dominação que paralelamente estruturam e são
estruturados. Nesse sentido, para que desempenhe sua função política, o símbolo deve ser
adequado à sua apropriação social por aqueles que “não querem saber que são objetos dele ou
até mesmo que eles mesmos o exercitam” (BOURDIEU, 1991, p. 163-164). Como veremos, a
colonialidade possui dinâmicas de hierarquização ligadas a esse tipo de poder, entendimento
presente desde os debates precursores.
Os estudos clássicos do pensamento pós-colonial envolvem trabalhos que
consolidaram a tentativa de pensar a realidade dos colonizados a partir de uma visão
representativa dos mesmos. Nesse sentido, foram desenvolvidas desde análises do sistema
colonial em funcionamento, dos traumas da guerra de independência e das formas pelas quais
se daria a descolonização até interpretações sobre a relação entre colonialismo e identidade,
como as que primam pela formação de uma relação intersubjetiva desse tipo entre colonizador
e colonizado e aquelas que buscam uma formulação emancipatória para o nascente
movimento da Negritude ao longo da primeira metade do século XX. De forma geral,
forneceram ferramentas iniciais do pensamento pós-colonial, essencialmente preocupado não
apenas com uma profunda análise crítica do colonialismo como sistema de exploração, mas
também em seu soerguimento como conjunto de elementos simbólicos que, enraizados nas
sociedades dominadas, mantêm um tipo de poder subjetivo3.
___________
3
As contribuições clássicas podem ser ilustradas pelas análises de alguns autores. Said (1979, p. 3) analisou o
processo histórico de construção simbólica do Oriente pelo Ocidente enquanto um objeto de reflexão
condicionado a determinados valores eurocêntricos. Césaire (2000, p. 32) refletiu sobre a construção discursiva
19
Partindo de muitos desses temas analisados pelos clássicos, estudos pós-coloniais que
complexificaram o nível de análise desenvolveram-se especialmente ao longo dos anos 1980 e
1990, com frequência por meio da criação de núcleos epistêmicos dedicados ao tema.
Exemplos desses são o Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos e o Grupo
Modernidade/Colonialidade. Foi no âmbito desse último que o conceito de colonialidade foi
desenvolvido e aprimorado por uma série de autores, sendo o principal deles Quijano (2010,
p. 170). Para o autor, colonialidade refere-se a uma série de aspectos de poder com laços
remanescentes nas sociedades colonizadas que mantêm especialmente o aspecto
subjetivo/simbólico do colonialismo – isso foi possibilitado pela articulação a nível global de
um padrão de racionalidade considerado universal, paralelamente a uma categorização racial e
geoidentitária. Assim, a colonialidade se expressa não apenas numa dimensão política, mas
também (e talvez principalmente) nas arenas culturais e de construção de conhecimento, como
demonstra Ballestrin (2013, p. 100). O movimento teórico aqui representado permite então
uma expansão do conceito que torna mais clara a multidimensionalidade da relação entre
colonialidade e projetos de identidade nacional enraizados nas apropriações estatais da
migração.
Duas das tendências mais destacadas dentre os estudos recentes em colonialidade
envolvem justamente essa ampla aplicabilidade do conceito para várias relações de poder
assimétricas. São elas as análises da colonialidade em seus reinos sociais, com destaque para
questões de gênero, autoridade e educação; e as análises em decolonização, ou seja, focadas
na desconstrução de padrões de saber considerados eurocêntricos. Tais contribuições4 revelam
o funcionamento da colonialidade como estrutural e variável em intensidade, podendo ser
do colonialismo como científico e civilizador, pensando tal processo a partir de uma auto-dissimulação pela
Europa, de uma naturalização de elementos fundamentais para a dominação colonial. Nkrumah (1964) buscou
entender como deveria se dar o exercício do que chama de “consciencismo”, um fundamento filosófico que
lideraria a formação de uma consciência revolucionária e que, especialmente, forneceria um mapa da “disposição
das forças que vão possibilitar a sociedade africana a digerir o Ocidente e os elementos Islâmicos e EuroCristãos na África, e a desenvolvê-los de tal forma que vão se adaptar à personalidade Africana” (p. 79). Fanon
(1997, p. 212) procurou entender o cerne da dominação colonial francesa sobre a Argélia, refletindo tanto sobre
as implicações socialmente patológicas da guerra de libertação quanto, em especial, sobre a especificidade que
uma relação de poder colonial no que concerne à consciência nacional. Por fim, Memmi (2003, p. 64) analisou
as condições emancipatórias do indivíduo colonizado, e como são essencialmente influenciadas por uma relação
de atração em relação ao “modelo do colonizador” – que, para o autor, resulta de uma introjeção por parte do
colonizado daquela imagem de si concebida pela dominação colonial.
4
Os debates correntes nessas duas tendências identificadas podem ser notados em alguns trabalhos. Elayyadi
(2004, p. 3) analisa a relação entre memória social do colonialismo e identidade nacional, buscando entender no
caso francês como o manejo da colonialidade, em conjunção com a memória do “lado obscuro da história”,
influencia a relação do país com a imigração. Ndlovu-Gatsheni (2013, p. 180) busca também entender como a
colonialidade influenciou o processo da construção do Estado nacional africano (p. 218). Já Salhi (2003, p. 17)
utiliza o conceito de “híbrido cultural” para analisar as dinâmicas pós-coloniais de construção de identidades
entre Argélia e França.
20
apropriada por diversas dimensões de análise. A migração, enquanto um movimento social
em constante demanda e contato com os Estados envolvidos (MEZZADRA, 2005, p. 94),
fornece um mapa de duas dinâmicas ambivalentes envolvidas na manutenção de laços póscoloniais e notáveis na dimensão da identidade: dominação e resistência. Ambas se
relacionam com conjunturas características ao colonialismo e com os diferentes projetos
identitários assumidos pelos Estados posteriormente, sendo encarnadas na figura daquele que
emigra do país antes colonizado.
A dimensão hegemônica dessa encarnação, já apontavam os clássicos, está em seu
poder de gerar interdependência. Essa vinculação entre colonizador e colonizado funciona
essencialmente no reino imaginativo, e herda algumas das categorias de dominação
construídas discursivamente ao longo do período colonial para se estruturar globalmente
enquanto processo de empoderamento assimétrico de populações, como interpreta Quijano
(2007, p. 171). Nesse sentido, o Orientalismo de Said (1979, p. 7) enquanto sistema de ideias
expresso/naturalizado por poder e a “civilização do colonialismo”/”brutalização” do
colonizado de Césaire (2000, p. 34) destacam uma dupla categorização necessária ao tipo
colonial de dominação:
Como pode uma elite de usurpadores, consciente de sua mediocridade, estabelecer
seus privilégios? Apenas por um meio: rebaixando o colonizado para exaltarem-se,
negando o título de humanidade aos nativos, e definindo-os como simples ausências
de qualidades - animais, não humanos (MEMMI, 2003, p. 22).
A introjeção desse quadro simbólico de imagens é característica da prolongada relação
de dominação (ELIAS, 2000, p. 20), e talvez uma das formas mais destacadas de expressão de
colonialidade na migração para a antiga metrópole. É marcado nesse processo um sentido de
aspiração identitária por parte do povo colonizado, pois, ao herdar traços profundos da
desestruturação social consolidada pelo colonialismo, passa a ver-se inferior e, como afirma
Memmi (2003), a apegar-se a um “modelo tentador muito próximo” (p. 164), ainda
representado pela figura do antigo colonizador. A migração à antiga metrópole materializa
isso na medida em que é, com frequência, reproduzida socialmente enquanto um projeto de
vida estabelecido.
No caso argelino, Sayad (1998, p. 41) identifica em etnografia que a diáspora como
tradição determina inclusive posições de grupos e famílias na estrutura social cabília, como
visível em depoimento de emigrado: “e como és desejada, ó França, antes que te conheçamos!
Tudo isso porque nossa aldeia só pensa na França. As pessoas só têm a França na boca” (p.
30). Nota-se, portanto, que a idealização do destino está relacionada não apenas a um senso de
21
pertencimento ou necessidade econômica, mas também a uma dimensão subjetiva da
dominação, visto que “o colonialismo é também um estado psicológico enraizado em formas
anteriores de consciência social tanto nos colonizados quanto nos colonizadores” (NANDY,
1983, p. 2). A manutenção da emigração enquanto prática culturalmente consolidada em
determinados países representa a constância de um tipo de dominação velada e estruturada
globalmente a partir de um modelo eurocêntrico. Entretanto, os mesmos fluxos migratórios
podem também apresentar movimentos divergentes a esse processo, algo que demonstra a
dualidade das heranças sociais representadas pela colonialidade.
Tais movimentos divergentes à dominação e que mantêm expressão nas emigrações
pós-coloniais contêm um elemento de resistência, que toma forma especialmente nas novas
dinâmicas de agência política que a mobilidade humana contemporânea inaugura. Como
aponta Vertovec (2009, p. 14), dentre essas podem ser destacadas a produção de mídia
independente, organização de movimentos sociais, prática de lobby e formação de redes
intercomunitárias de contato entre migrantes. A isso se deve adicionar que, apesar de o
direcionamento estatal ser uma constância, as comunidades migratórias transnacionais detêm
certo grau de autonomia para articulação política: “a transpolítica então implica que questões
de migração e identidade não apenas atravessem fronteiras geográficas, mas também que
transcendam as instituições políticas formais de burocracias estatais, partidos políticos e
sindicatos” (SILVERSTEIN, 2004, p. 8). Exemplos dessa agência política são encontrados
nos mais diversos contextos, como nas diásporas haitiana (SCHILLER e FOURON, 1997, p.
33) e venezuelana (SHUMOW, 2012, p. 815), e em conjunturas pós-coloniais que expressam
parte da situação identitária estruturada ao longo da dominação.
Como já apontado, a desestruturação econômica, política e cultural, o conflituoso
contexto de independência e a continuada colonização das mentes são todos elementos que
enquadram o povo dominado a constantes tentativas de autodefinição. Nesse mesmo sentido,
a debilidade da nascente burguesia nacional, como aponta Fanon (1997, p. 123), representa
mais uma das dimensões dessa série de momentos em que o país se debate ao tentar achar um
senso de existência enquanto coletividade. Em um momento, isso significou a tomada de
armas para a revolução, em outro, a agitação social e eventuais golpes de Estado – a análise
de Lawless (1995, p. 29) torna clara a evolução de tais rupturas no caso argelino. A crescente
construção de espaços transnacionais de agência política por fluxos de emigração para a
antiga metrópole representa parte de mais um tipo de articulação social envolvida nesse
constante movimento subjetivo de resistência.
22
É partindo das mesmas contribuições teóricas debatidas aqui que a análise dos
próximos capítulos se utiliza das noções de existencialismo e essencialismo conforme
propostas por Naylor (2000, p. 45) e definidas na introdução a este trabalho. O autor
subscreve às influências do pós-colonialismo clássico ao mesmo tempo em que as adequa à
relação contemporânea entre Argélia e França, demonstrando como as identidades nacionais
de ambos estão conectadas por lógicas de funcionamento construídas desde 1962. Como
debatido anteriormente, seu respectivo significado de busca por si mesmo e de reafirmação de
si mesmo encontra precedentes fundamentais no período colonial, mas é destacado apenas
quando a situação histórica exige que as duas nações se relacionem constantemente. Um dos
focos irremediáveis desse contato é a migração, na medida em que, como visto, representa
uma fonte de agência política permanente capaz de produzir e despertar memórias
sobreviventes.
As duas dimensões da colonialidade expressas na migração, uma relacionada à atração
pelo modelo europeu de poder e identidade e a outra à resistência a essa sedução, mantêm-se
vivas mesmo nas inovadas formas de construção de identidades características dos processos
de globalização. Ainda assim, representam dinâmicas ambivalentes que marcam uma luta
constante e comum aos povos libertos do colonialismo, a de descobrirem-se por si mesmos.
Tendo em vista tais dinâmicas da colonialidade representadas pela migração, importa agora
breve análise das formas pelas quais a última, no contexto considerado, pode servir de
ferramenta de expressão para identidades nacionais.
2.3 Nation-building, securitização societal e a expressão identitária da migração
Os processos de globalização, descolonização e desenvolvimento da tecnologia, em
conjunção com a emergência de novas entidades políticas, agregaram mudanças fundamentais
às migrações internacionais. O enfoque analítico sobre essas inflexões evoluiu paralelamente
aos aportes clássicos5, economicistas6, em redes sociais7 e em transnacionalismo8, e
___________
5
Como pioneiros desse movimento estão Thomas e Znaniecki (1918, p. 103), que delegaram à migração a
agência sobre mudanças sociais, algo que em sua análise está claro nos efeitos do processo sobre o núcleo
familiar que migra. Paralelamente, crescia o interesse acadêmico pelo pressuposto da assimilação e do melting
23
demonstra como as mesmas se dão, nos tempos atuais, de forma tanto qualitativa quanto
quantitativa (VERTOVEC, 2009, p. 54). É nesse contexto que a ambivalência identitária
característica da migração, antes melhor notada a um nível micro, passa a assumir então uma
dimensão coletiva política, econômica e social9.
Disso se depreende que a apropriação estatal de fluxos migratórios é constantemente
expandida para além da agenda econômica e assume um caráter político intensificado pela
articulação das comunidades transnacionais. Entender essa relação é fundamental para uma
análise mais clara das dimensões identitárias do Estado nacional moderno, algo a ser tratado
mais à frente. Nesse momento, é necessário destacar dois dos processos envolvidos na gestão
contemporânea das migrações: nation-building e securitização societal.
O termo nation-building é primeiramente encontrado nos emergentes debates na área
do nacionalismo dos anos 1960, e é comumente referido como introduzido por Karl Deutsch,
num momento em que a crença intelectual nos estágios evolucionistas da mudança social
perdia força e era substituída por um enfoque mais direcionado ao contexto e ao estudo
pot como resoluções naturais à imigração, posição expressa pela nascente Escola de Chicago. Expoente disso
está a interpretação de Park (1928, p. 887) sobre a relação entre a migração e a marginalidade.
6
A análise economicista e quantitativa teria sua ascensão pela interpretação neoclássica da migração, posta então
em termos de uma escolha racional do indivíduo. Assim, a migração internacional seria uma forma de
remanejamento de mão de obra baseada na escolha individual em relação ao diferencial de renda, numa lógica
“push and pull”. Contraposta a essa corrente estão os novos economistas, que criticam a negligência cometida
pelos neoclássicos ao não perceberem as demais variáveis sociais, políticas e culturais envolvidas na escolha de
migrar. Além dessa corrente, uma terceira tendência teórica economicista é a mercadológica, que se divide em
duas perspectivas: teóricos da segmentação e do capital humano. A primeira tem por enfoque a análise dos
setores secundários do mercado de trabalho e da influência desses na função social do imigrante, como em
Rodriguez e Piore (1979). Já a segunda perspectiva envolve a análise crítica das consequências econômicas da
imigração para a economia formal e para os serviços prestados pelo Estado, algo que deveria ser corrigido por
políticas de fronteira mais preocupadas com a absorção de mão de obra qualificada, como aponta Borjas (2014,
p. 2).
7
Esse movimento teórico deriva parte de sua influência das análises feitas pelos novos economistas, que
agregaram a seu estudo a importância das relações sociais do migrante em espaço paralelo ao da economia.
Nesse sentido, tornou-se fundamental considerar que não apenas o indivíduo migra, mas também um conjunto de
conexões multidirecionadas estabelecidas por suas relações sociais com os grupos de origem: “as relações
sociais, como os laços que conectam as pessoas em grupos, constituem o esqueleto da rede social. É por meio
destas relações que os atores ligam seus recursos e necessidades a estruturas de oportunidades” (FUSCO, 2007,
p. 17).
8
Essa abordagem procura explorar as novas formas, expressões e impactos que tomam os deslocamentos
humanos contemporâneos. Portanto, estendem a análise a externalidades que, em períodos anteriores, pareciam
desvinculadas. Esse contexto, e suas promovidas novas formas de sociabilidade, estariam incorporadas e
claramente destacadas na migração internacional pelas mais diversas formas (VERTOVEC, 2009, p. 2). Dentre
os conceitos desenvolvidos para a ilustração dessa nova realidade estão o de “transmigrante”, de Schiller, Basch
e Blanc (1995, p. 48), e o de “translocalidade”, de Appadurai (1997, p. 35).
9
Al-ali e Koser (2004, p. 157) afirmam que “as identidades e interesses políticos das comunidades migrantes
são, portanto, parcialmente desterritorializados e desincorporados de seus contextos locais e nacionais, e
reincorporados no interior das estruturas de uma economia global crescentemente integrada. Esses processos
contribuem para a formação de densos campos políticas transnacionais que se alargam dentre Estados de
emigração e de imigração” (AL-ALI e KOSER, 2004, p. 157).
24
comparativo da modernização político-econômica. Nesse período, e especialmente até os anos
1980, os estudos do nacionalismo passavam a dominar o debate conceitual em nationbuilding, primando por um viés historicista focado nas origens da responsividade entre a
identidade individual e os mecanismos simbólicos de homogeneização cultural propagados
pelo Estado. Teóricos importantes nesse contexto são Reinhard Bendix e Hans Kohn. Bendix
(1964, p. 3) destaca, por meio de análise historiográfica, como as identificações culturais prémodernas davam-se em relação a um tipo de autoridade não estatal. Já Kohn (1965) define o
nacionalismo como um “estado de espírito, no qual a lealdade suprema do individual é sentida
como sendo pertencente ao Estado-nação” (p. 9).
Portanto, o conceito esteve ligado ao processo de alcance de integração política de tipo
nacional por meio de mecanismos criados por um Estado já estabelecido. Nessa integração
estão incluídos elementos de etnicidade, língua, religião, história e cultura, ou seja, de
identidade; e nesses mecanismos estão os meios encontrados pelo Estado para reinventar a
integração, propagando e homogeneizando um senso de unicidade. Como aponta Bloom
(1990), ainda que o debate10 entre primordialistas e modernistas continue presente na área, é
nesse sentido que considerar o processo de nation-building como anterior ao Estado tornaria o
conceito obsoleto e não aplicável às formas pelas quais o Estado maneja a heterogeneidade de
sua população, num processo que busca estabelecer socialmente o ideal de que “a unidade
política e a nacional deveriam ser congruentes” (GELLNER, 1984, p. 1). O entendimento de
que o nacionalismo não foi um fenômeno concreto até os fins do século XVIII é, portanto,
pressuposto fundamental entre os debates clássicos em torno do conceito de nation-building.
Os estudos contemporâneos da área, ainda que na maioria das vezes mantenham os
mesmos elementos acima expostos, revelam-se menos historicistas e mais preocupados com
elementos específicos da construção e reinvenção social de nações. Bloom (1990, p. 54)
procura entender sob que condições e interesses estatais articulados uma identificação
psicológica da população com determinada simbologia nacional ocorre. Já Scanhola (2013, p.
46) e Edensor (2002, p. 17) procuram respectivamente analisar o papel da literatura no
___________
10
O debate emergiu dos estudos clássicos em nacionalismo e legou duas tendências gerais especialmente às
pesquisas relacionadas à identidade nacional. As interpretações primordialistas entendem a identidade nacional
como um elemento pré-moderno e envolvido por aspectos de vinculação política coletiva horizontal (de lógica
bottom-up), tais como etnia, memórias, mitos, história e cultura. Já as análises modernistas entendem que a
identidade nacional é um fenômeno essencialmente moderno, ligado à difusão global do capitalismo e às novas
dinâmicas por ele postas em movimento – portanto, primando por aspectos econômicos, administrativos e
ideológicos de vinculação coletiva (de lógica top-down).
25
processo de narração cotidiana e rotineira da nação, então responsável por parte da articulação
das heterogeneidades do corpo nacional11.
Portanto, os estudos dedicados ao processo de nation-building herdam o debate
característico da área do nacionalismo, porém, o resolvem de forma mais clara, pois disso
depende seu principal objeto de estudo: o da construção da nação pelo Estado. Não se
afastam, ainda assim, do entendimento de que a dimensão social é tão importante em nationbuilding quanto a atuação do Estado: é possível entender que a emergência de novos campos
políticos de articulação são passíveis de serem voltados a esse âmbito identitário, e é nessa
direção para a qual majoritariamente se encaminham os novos espaços de sociabilidade
desenvolvidos pela migração transnacional:
Comunidades transnacionais estão fisicamente removidas dos poderes coercivos e
jurídicos do Estado de emigração, e – ao menos em casos onde os Estados de
imigração são democracias liberais – estão relativamente livres para se engajar em
práticas políticas e culturais que partem daqueles que são oficialmente sancionados
no Estado-lar. Isso pode levar ao reforço de identidades que são reprimidas dentro
do Estado de emigração ou até à facilitação da criação de novas identidades
políticas, que são então reimportadas para o Estado de origem da diáspora externa
(AL-ALI e KOSER, 2004, p. 162).
Outro processo geral ligado à relação entre a emergência desses novos tipos de
migração e a gestão estatal da mobilidade humana é o de consolidação de padrões securitários
de manejo da migração. Enquanto o processo de nation-building está relacionado tanto a
realidades de emigração quanto de imigração, posicionamentos de segurança em relação à
mobilidade humana podem ser notados com maior frequência em países de maioria
imigratória, algo que apontam Schiller e Levitt (2004, p. 1019). Isso está relacionado às
diversas dimensões do impacto que cada movimento populacional implica, e no caso da
relação entre segurança e migrações transnacionais o principal ferido é o frequentemente
defendido ideal de assimilação: isso porque, como antes exposto, comunidades mantenedoras
de múltiplos laços políticos, econômicos e sociais tendem a expressá-los por organização
cultural para fins de articulação política em relação a tanto o Estado de recebimento quanto ao
Estado de origem (SILVERSTEIN, 2004, p. 71). Antes de explorar de forma mais profunda o
___________
11
Outros autores relevantes para o tema podem ser destacados. Thomas (2002, p. 1) fala em uma “engenharia da
nação” realizada por estruturas estatais propagandistas, capazes de negociar em diferentes níveis de poder e agir
sobre a realidade do coletivo populacional. Focado no papel da língua como elemento de construção de um
pertencimento nacional, Simpson (2008, p. 24) procura analisar o contexto africano de nation-building e
especialmente de que forma a multiplicidade de línguas unida à pós-colonialidade se relaciona com os esforços
estatais para propagar maior unidade identitária. Com a mesma atenção para o elemento linguístico, Wodak et al
(2009, p. 33) e Vertovec (2011, p. 248) analisam detalhadamente as estratégias discursivas e padrões
argumentativos comumente empregados pelo Estado para a construção e renovação de uma identidade nacional.
26
posicionamento de securitização em relação a populações imigratórias (análise análoga será
feita em relação a nation-building para a emigração), é necessário destacar alguns pontos do
debate teórico em segurança.
Os estudos de segurança estiveram, em sua vertente clássica, posicionados como uma
área da disciplina de Relações Internacionais. Diferentemente do tratamento mais técnico do
termo pela Sociologia, os teóricos em RI comumente trabalham com uma definição geral que
fundamenta um “alívio de ameaças a valores desejados” (WILLIAMS, 2008, p. 1). De forma
geral, o conceito de segurança esteve englobado por uma lógica estatocêntrica e, portanto,
preocupada com as relações de poder (especialmente militar) no meio político internacional.
Majoritariamente, a área de pesquisa em segurança emergiu no pós-Segunda Guerra, e
inaugurou a gradual consolidação das diferentes variantes das clássicas 12 abordagens realista e
liberal para a análise de segurança em um sistema internacional bipolar, paralelamente ao
surgimento (ao longo dos anos 1980 e 1990) de correntes ligadas ao construtivismo e à teoria
crítica, por exemplo.
As duas correntes tradicionais em Relações Internacionais dominaram as interpretação
e o uso conceitual do termo segurança ao longo da maior parte da Guerra Fria e especialmente
durante os anos 1950 e 1960. Apenas a partir dos anos 1980 é que o conceito passaria por uma
complexificação, em movimento teórico que buscava agregar maiores variáveis às análises
em voga até então. Tais análises a serem alteradas possuíam quatro características principais,
segundo Williams (2008, p. 3): enfoque no Estado, na estratégia, na preocupação em serem
científicas e na necessidade de manutenção de um status quo13.
___________
12
De maneira geral, a abordagem realista prima por analisar segurança como um derivativo de poder (RUDZIT,
2005, p. 299), ou seja, como uma meta a ser alcançada por vias da utilização do poder nas suas variantes. Nesse
sentido, o ator internacional que obtiver a capacidade política de estrategicamente manter um status quo,
disfrutará de uma segurança fundamentalmente referencial, em relação aos “concorrentes” - algo visível nas
análises de Morgenthau (1948, p. 22) e Waltz (1979, p. 126). Já a abordagem liberal, de maneira geral, busca
definir segurança a partir de um enfoque menos estatocêntrico, e centrado no fato de que o sistema internacional
estaria interligado em diferentes níveis quando da redução de ameaças a cada unidade. Nesses termos, e como
aponta Rudzit (2005, p. 299), entende-se a segurança (o alívio de ameaças) como uma consequência da paz. Há,
então, uma rede internacional que envolve os atores internacionais num padrão de interdependência,
necessariamente relacionado às margens de interação de cada entidade e, portanto, à sua segurança - isso é
notável nas análises de Keohane (2012, p. 8) e Axelrod (1997, p. 15). Ayoob (1995, p. 11-12) propõe a
impossibilidade da aplicação desses conceitos tradicionais de segurança à realidade política dos países de
Terceiro Mundo.
13
Alguns autores principais destacam-se na gradual mudança desse panorama de uso do conceito. Arnold
Wolfers (1962, p. 149) propõe que “segurança” é por definição um símbolo ambíguo, pois além de poder
envolver uma ampla variedade de políticas nacionais diferentes, pode ser entendido tanto em termos objetivos
(falta de ameaças para adquirir valores) quanto subjetivos (falta do medo de que tais valores sejam atacados).
Robert Jervis (1978, p. 171) analisa a possibilidade de cooperação sob o dilema de segurança, com a
problematização das variáveis consideradas pelos agentes para tal. Barry Buzan (1983, p. 20) busca a expansão
27
Enquanto os chamados estudos da paz e a teoria dos jogos mantiveram em suas
análises de segurança a tradição clássica de estatocentrismo e afastamento entre as dimensões
interna e a internacional, as correntes construtivista, feminista e da sociologia política
internacional buscaram desafiar tais pressupostos construídos em Relações Internacionais,
diversificando as ferramentas consideradas necessárias para uma análise em segurança
internacional – como aponta análise de Williams (2008, p. 118). As novas interpretações
sobre a utilização do conceito em RI emergentes especialmente nos anos 1980 e 1990 e o
contexto internacional de maior preocupação com questões de fundo ambiental e societal
trariam à cena acadêmica da área um novo debate14: wideners vs. tradicionalistas.
Dentre os autores contemporâneos que tomam a perspectiva widener, pode-se destacar
a preocupação em demonstrar como “o conceito de segurança liga indivíduos, Estados e o
sistema internacional tão estritamente que demanda ser tratado em uma perspectiva holística”
(BUZAN, 1983, p. 245), e como noções de segurança, anarquia e auto-ajuda são uma
instituição socialmente construída (WENDT, 1992, p. 399)15. A abordagem teórica fornecida
pelas contribuições da Escola de Copenhage, representando uma das correntes da sociologia
política internacional, expande o campo de aplicação do conceito a áreas até então
inexploradas por tal. É nesse âmbito que Buzan, Weaver e de Wilde (1998, p. 119-120),
defendendo a construção de temas em segurança como objeto de articulação políticodiscursiva, propõem a existência de um setor societal passível a esforços em securitização.
Referente a “grupos de identidade grandes e autossustentados”, tal setor é proposto pelos
autores em sua construção de um framework analítico capaz de captar atores, meios e objetos
envolvidos no alcance de uma condição livre de ameaças a dado sentimento coletivo de
pertença. Em outras palavras, o setor societal em segurança refere-se a temas ligados a
identidades coletivas.
do conceito em termos de escopo – o autor sugeria análises de segurança em RI que considerassem a relação
entre segurança nacional e segurança individual.
14
Os primeiros englobam aqueles teóricos que defendem que a utilização clássica de “segurança” em RI tem um
enfoque excessivamente vinculado à sobrevivência do Estado, algo que negligenciaria as demais dimensões do
conceito. Já os tradicionalistas defendem que uma expansão do conceito para além do campo militar tiraria sua
significância para a área de RI (numa potencial “invasão por outras disciplinas”), além de conter uma carga de
implicações ao âmbito de policy-making.
15
Algumas contribuições ilustram bem esse posicionamento teórico. Huysmans e Squire (2009) analisam
segurança menos como uma condição a ser aspirada e mais como um “mediador constitutivo da relação entre a
mobilidade humana e a política” (p. 11). E Bigo (2008, p. 2) analisa o padrão de governança em questões
construídas como de segurança, focando no que chama de “excepcionalismo dentro do liberalismo” para
caracterizar um padrão de securitização do setor societal.
28
Portanto, o campo dos estudos de segurança em RI possui, ao longo de seu
desenvolvimento teórico, variados debates de ordem conceitual que protagonizam a
dificuldade de limitação de um termo multidimensional a uma área que prima pelo externo,
pelo interestatal. As tendências de estudos mais recentes aqui revisadas caracterizam esse
desafio, dando continuidade à aplicação das análises widener emergentes especialmente nos
anos 1990 e ao mesmo tempo dando atenção aos perigos políticos e metodológicos de uma
expansão excessiva do conceito. A partir desse movimento teórico, e como se pôde perceber
quanto a nation-building, é possibilitada maior clareza analítica sobre alguns padrões
contemporâneos de governança estatal de populações, relacionando-os a processos políticos
amplos e graduais. Nesse sentido, fluxos migratórios são capazes de despertar reações
diversas e que podem envolver tanto políticas de segurança societal quanto de nationbuilding. Como centro do modelo analítico a ser utilizado (e melhor apresentado ao fim dessa
seção), importa entender que dinâmicas subjetivas levam o Estado a tomar um desses
posicionamentos.
A apropriação de fluxos migratórios transnacionais pelos Estados envolvidos depende
de uma série de fatores contextuais emergidos não apenas de especificidades econômicas,
políticas e sociais internas, mas também de dimensões sistêmicas parcialmente determinantes.
Em um debate teórico recente, Schiller e Levitt (2004, p. 1023-1024), assim como Vertovec
(2009, p. 94-95), categorizam alguns dos posicionamentos mais comuns de Estados de
emigração em relação às suas diásporas, propondo um continuum que vai desde políticas de
dupla cidadania/nacionalidade e de fomento à manutenção de laços transnacionais até a
condenação da emigração como um ato de traição e/ou como producente de inflexões
perigosas ao país. Mesmo que se entenda o evidente caráter fluido e mutante de tantos tipos
de engajamento político, é possível identificar no aspecto cíclico dos mesmos um elemento
historicamente construído e que, ao lado de dinâmicas conjunturais, influencia
permanentemente a relação Estado-população: a identidade.
É majoritariamente estabelecida, até mesmo nos debates mais dicotômicos de
primordialistas e modernistas, a ideia de que a nação tem a característica fundamental de ser
projetada segundo um imaginário consolidado. Ainda que isso esteja ligado ao complexo
campo dos processos horizontalizados e/ou verticalizados, é possível denotar que “a nação
veio a misturar dois conjuntos de dimensões, uma cívica e territorial, e outra étnica e
genealógica, em proporções variadas e em casos particulares” (SMITH, 1991, p. 15). Há
grande variedade nesses processos, determinados pela história social e política de cada
29
entidade, e disso decorrem as especificidades na governança de movimentos separatistas, por
exemplo. Hobsbawm (1990, p. 33) e Kedourie (1961, p. 11) corroboram isso ao analisar como
a ideia de nação era concebida, ao menos até o século XIX, como um projeto econômico, não
relacionado a categorias como a etnicidade – a nação de então era pensada para objetivos
articulados para o contexto, que via ainda nascente a noção de autodeterminação. Anderson
(2006, p. 40) e Kohn (1965, p. 10) interpretam da mesma forma a modernidade do capitalismo
de impressão como processo que permitiria evocar, nas massas populares, um senso de
temporalidade e coletividade até então não existente – como promovido pela difusão de
vernáculos oficiais pelas novas administrações monárquicas.
Portanto, nações foram historicamente concebidas pela construção de diferentes
esquemas intersubjetivos para o atendimento de interesses articulados. Independente das
plataformas populares acentuadas para tal (história comum, cultura, etnia, religião, etc), a
identificação nacional esteve sempre ligada a um senso de “querer ser”, tornado guia para as
transformações futuras consideradas ideais. É nesse sentido que a identidade nacional tem
uma dimensão essencial de funcionamento, que é a de agir enquanto um projeto. O
nacionalismo, afirma Connor (1984), refere-se a um tipo de lealdade individual a um “grupo
humano cujos membros compartilham de um senso intuitivo de semelhança, situado sobre um
mito de descendência comum” (p. 14) – é a plataforma de intermediação entre um passado de
glórias e prosperidade e um presente de expectativas e desejos. Smith (1991, p. 20) capta bem
esse simbolismo característico a partir do que destaca como as origens étnicas da nação,
constituídas por significações identitárias pré-modernas e que envolvem memórias,
convergências culturais e mitos de ancestralidade.
Esses elementos presentes na realidade do Estado nacional não agem de forma
essencialista, ou seja, não são um fim em si mesmos. Ao invés disso, atuam como meios
dinâmicos numa estrutura histórica de longa duração, e que na modernidade entra em contato
de negociação, como sugere Hutchinson (2005, p. 4) ao interpretar a nação enquanto zona de
conflito, e Renan (1882, p. 19) ao defini-la como um “plebiscito de todos os dias”. É nos
aspectos mundanos da vida social e cultura popular que isso se torna destacado, pois são as
expressões mais claras da “constante junção de fragmentos de discurso e imagens, enacções,
espaços e tempos, coisas e pessoas numa vasta matriz” (EDENSOR, 2002, p. 30), num
projeto de identidade nacional. A dialética da identidade nacional é, então, relacionada à sua
lógica paralelamente dinâmica e fixa, mutável mas relacionada a uma estrutura limitante.
30
Portanto, o Estado exercita, absorve e oficializa um núcleo específico de símbolos
nacionais a serem constantemente representados em seu relacionamento com a população.
Paralelamente, a existência política das massas manipula esse conjunto de prescrições, valores
e significados de acordo com as dinâmicas culturais e sociais em movimento. Dessa relação
decorre que Estado e população formam um complexo de contínua agência e reinvenção na
constituição política de um senso de nacionalidade.
A maneira pela qual o Estado consolida uma relação de apropriação recíproca com a
migração transnacional clarifica características essenciais de sua identidade nacional na
medida em que revela o simbolismo de anseios, expectativas e padrões de ação constituídos
historicamente com a população. Nesse sentido, o modelo analítico proposto trata nationbuilding e securitização societal como diferentes apropriações estatais das populações
migrantes, servindo assim de mecanismos que remetem a diferentes projetos de identidade
nacional em funcionamento. De forma alguma a utilização analítica desses processos deva
essencializar o posicionamento dos Estados, delegando aos países de imigração o destino de
reações securitárias e aos países de emigração o de reações de nation-building (já que,
especialmente para o contexto da década de 70, é também possível falar de emigração
enquanto questão de segurança para o governo argelino, por exemplo). Entretanto, apenas a
consolidação histórica de longa duração desses tipos de posicionamento político é capaz de
fornecer um mapa em identidade nacional. O capítulo seguinte explorará tais dinâmicas para o
caso da Argélia, algo que demanda antes breve análise histórica quantitativa do fluxo
migratório a ser considerado.
2.4 A diáspora argelina para a França
As invasões árabes do século VII, a ascensão e queda dos impérios Almorávida e
Almóada entre os séculos XI e XIII, o controle pelo império Turco-Otomano a partir do
século XVI e sua derrocada para a emergência do colonialismo ao longo do século XIX, estão
entre as conjunturas históricas mais importantes para o desenvolvimento da Argélia enquanto
entidade política e social. Ao longo desses processos o deslocamento populacional, em
diferentes níveis, manteve-se uma constância, e assentou raízes de longa duração na estrutura
31
social argelina (LAWLESS, 1995, p. 20-25). A expressão contemporânea disso pode ser
apropriada partindo das consequências da penetração colonial francesa consolidada a partir de
1830 e que, ao imprimir uma reconfiguração permanente da sociedade colonizada, anexa
novos elementos de significância ao já presente fenômeno da migração. Importa, assim, breve
revisão dos padrões de deslocamento humano à França durante o período colonial.
A invasão francesa de Argel em 1830, além de antecipar um processo de declínio do
poderio marítimo turco-otomano frente à expansão europeia e gradualmente consolidar o
avanço da dominação colonial, determina os padrões quantitativos e qualitativos de migração
na região pelo menos até o fim do século. Esses estiveram relacionados, especialmente após a
subjugação das últimas repúblicas berberes ao longo da década de 1850, à intensa repressão
militar seguida de expropriação de terras, como frisam Lawless (1995, p. 21) e Ajayi (2010, p.
528). Nesse contexto, predominou o deslocamento das populações nativas em direção às áreas
menos cultiváveis e às cidades, na medida em que o implemento da viticultura a partir da
década de 1880 era consolidado como parte de um processo de complementação entre
subordinação econômica, política e identitária (Naylor, 2000, p. 7). Os padrões de migração
estiveram, assim, diretamente ligados à forma pela qual o projeto colonial francês foi
concebido, de forma a produzir vastos danos às estruturas sociais tradicionais para facilitar a
dominação:
Por razão de sua interconexão fundamental, as estruturas sociais e econômicas
estavam fadadas a uma desintegração similar e paralela: a emigração do
desenraizado e indigente proletariado às vilas e cidades, a destruição da unidade
econômica da família, o enfraquecimento das antigas solidariedades e restrições que
foram impostas pelo grupo e que protegiam a ordem agrária, a ascensão do
individual e do individualismo econômico que destruíram o quadro comunitário,
foram todas tantas violações na coerente fábrica de estruturas sociais (BOURDIEU,
1962, p. 139).
É nas décadas finais do século XIX que a emigração internacional emerge com maior
força, estabelecendo destinos como Espanha, Marrocos e França, e registrando números
crescentes de 48.886 em 1893 para 101.100 em 1911 no caso da metrópole (Willcox, 1929, p.
1029). A predominância, nesses movimentos, de populações de trabalhadores regulamentados
às necessidades conjunturais da economia francesa constitui de um elemento constante na
gestão estatal da emigração argelina ao longo de grande parte do século XX. Mahlke (2005, p.
82) demonstra como já o fluxo de 1905 representava a inserção planejada de trabalhadores
argelinos em setores específicos da economia francesa em necessidade de mão de obra barata.
Eram os primeiros traços de uma tradição política a ser confirmada no pós-independência e
expressa pela figura do emigrante envolvido pelo mesmo dilema existencial de seu país:
32
É necessário que a relação de forças que separa os parceiros que fazem assim um
„contrato‟ aproveitando-se do fenômeno migratório - contrato esse que, neste caso,
acaba sempre e necessariamente dando vantagens para uns em detrimentos de outros
- funcione plenamente e funcione ao longo da relação contratual (durante a
negociação propriamente dita, ou seja, durante todo o processo de imigração), para
que os países de emigração cheguem a se convencer de que não estão fazendo um
„contrato‟ negativo ou que, demasiado conscientes de sua fraqueza e crentes de que
não podem mudar nada na relação de poder, preferem fingir que não sabem que é
contra seu bem (SAYAD, 1998, p. 239).
Tal modelo de governança do fluxo migratório a ser consolidado pelos Estados foi
assentado historicamente por uma inflexão qualitativa nas emigrações argelinas para a França,
especialmente ao longo das duas guerras mundiais. Além do crescente caráter de permanência
que a população migrante passava a assumir (em vistas da inserção em massa de argelinos aos
regimentos militares e aos setores da indústria de defesa), emergia em meio a essa, junto ao
nascimento dos primeiros movimentos nacionalistas argelinos a partir dos anos 1920, uma
comunidade politicamente articulada. A população de 350 mil argelinos na França ao fim da
Segunda Guerra Mundial consolidaria gradualmente um espaço transnacional de atuação
política, manejando identidades e demandas sociais fruto da dominação colonial – bom
exemplo disso é dado por Silverstein (2004, p. 72) quanto à reprodução do “mito cabílio”
(construção simbólica francesa para opor árabes e berberes) por comunidades transnacionais
no pós-independência.
A atividade política na comunidade franco-argelina apenas se fortaleceria no intervalo
entre o fim da Segunda Guerra e o início da guerra de independência, numa conjuntura em
que ocorria “uma dramática explosão de sentimento nacionalista na Argélia” (LAWLESS,
1995, p. 24) e o soerguimento africano, pela primeira vez de forma unívoca, de movimentos
expressos pela consolidação de uma consciência continental (MAZRUI, 2010, p. 29). A
criação do Mouvement pour les Triomphe Démocratiques, e sua articulação armada
representada pela Organisation Secrete, mais tarde a formar o Comité Révolutionnaire
d'Unité et d'Action (a ser renomeado para Front de la Libération Nationale), como os demais
movimentos insurgentes dos anos 1940 e 1950, possuía dinâmicas fundamentais de
articulação com a comunidade migrante. Essa característica é igualmente destacada por
Mahlke (2005, p. 86) em relação ao partido de oposição à FLN, o Mouvement Nationale
Algerién, que por meio da Union Syndicale des Travailleurs Algériens mantinha grupos de
pressão dentre os emigrados, num contexto em que o declínio da Quarta República anunciava
a radicalização do conflito pelos militares e a posterior instauração de um governo provisório
pela FLN.
33
A independência introduziria circunstâncias de mudança quantitativa ao fluxo
emigratório, enquanto os deslocamentos internos mantinham a histórica intensidade: ao longo
da guerra, a metrópole empregou extensivamente políticas de reassentamento forçado
(estimativas apontam para 3 milhões de pessoas) com o objetivo de manter a população longe
da influência de grupos insurgentes, num processo que também envolveu uma “convicção de
que para quebrar a resistência que essa sociedade opunha à ordem francesa e ao mundo
moderno, era necessário destruir suas estruturas sociais” (BOURDIEU, 1962, p. 166). Desde
o século XIX, com a emergência das primeiras políticas de expropriação de terras e definição
de direitos (destaca-se a Lei Warnier, de 1873) seriam mantidas medidas direcionadas à
destruição dos laços subjetivos entre o argelino, a família, o campo e o sistema tradicional de
valores. É por meio dessa destituição social consolidada ao longo da colonização que a
migração, ao representar um resultado e uma experiência material coletiva, ascende enquanto
força social paralela ao senso de revolta. A constante significância da emigração para a França
no pós-independência e a evolução de uma comunidade transnacional articulada representam
a ambivalência entre atração e repulsa forjada pelo colonialismo.
Os primeiros anos de independência, sob a presidência de Ben Bella, marcam um
boom emigratório para a França que registra estimativas de 180 mil pessoas em 1962 e 220
mil em 1963. O governo argelino assumiria, ao menos até o início da década de 70, uma
posição favorável à exportação de mão de obra em face das altas taxas de desemprego,
postura tomada ao encontro da livre circulação de pessoas instituída pelos Acordos de Evian
(que formalizaram a independência). Entretanto, logo ressurgiriam as tendências regulatórias
da França em relação à imigração, apoiadas pelo governo argelino em vistas do modelo de
cooperação estruturado com a descolonização.
Tal modelo de gestão se agravaria ao longo da década de 70, já que o governo de
Houari Boumediène proibiu a emigração em 1973 em vistas da necessidade de mão de obra
gerada pelo intenso programa de planificação econômica posto em ação, envolvendo rápida
modernização e nacionalização das principais companhias petrolíferas do país (LAWLESS,
1995, p. 30; MAZRUI, 2010, p. 439) – o processo marcava o elemento distributivo das
transformações econômicas pós-independência, o que Werenfelds (2007) interpreta como a
“cola ideológica” (p. 32) do sistema político argelino. Além disso, o padrão de emigração ao
longo dos anos 1970 foi fortemente influenciado pelo contexto da crise do petróleo e de
recessão econômica europeia, como aponta Ennaji (2010, p. 8), e manteve estagnadas as taxas
anuais (entre 20 e 40 mil pessoas) e as estimativas da comunidade argelina (cerca de 1 milhão
34
e 500 mil pessoas) residente nos países da OCDE ao longo dos anos 1970 e 1980. A ascensão
do presidente Chadli Bendjedid em 1979, que marcaria uma gestão de abertura econômica por
meio de reformas liberalizantes, pouco mudaria o discurso de desencorajamento à emigração
(NATTER, 2014, p. 12).
A queda dos preços do petróleo em 1986 e a subsequente crise econômica, paralela à
crescente instabilidade política e às altas taxas de desemprego, apenas consolidou a gradual
legalização da emigração corrente ao longo dos anos 1980. Os estratos sociais mais
vulneráveis e a militância islamita liderariam uma série de levantes populares que
crescentemente assumiam características violentas a partir de 1988, com destaque para a
agência de novos atores políticos como a Union Générale des Travailleurs Algériens, o Ahl el
Da'wa e o Front Islamique du Salut (LAWLESS, 1995, p. 35-38). A ampla transformação
realizada a partir das reformas político-econômicas introduzidas por Bendjedid, sua quebra
pelo golpe militar de 1992 e os 10 anos seguintes de intensa guerra civil expressam, além do
fundo histórico autoritário pelo qual foi concebido o Estado argelino, uma restruturação do
perfil emigratório do país. Enquanto o aumento quantitativo não foi intenso (manteve-se na
faixa de 10 mil pessoas por ano), a antes prevalecente migração de mão de obra pouco
qualificada agora daria lugar a populações de refugiados e trabalhadores com maior nível de
qualificação e destinação variada, mudança comum, de modo geral, aos países do Magreb
(ENNAJI, 2010, p. 28).
Os anos 2000 consolidariam tais tendências, agora envolvidas com maior interesse
pelo Estado argelino, que passou a perseguir políticas de amparo à comunidade emigrada e à
manutenção de vínculos identitários com essa (tratadas com maior profundidade no capítulo
seguinte). Esse maior engajamento político em relação à comunidade extraterritorial tem
contribuído para o crescimento do fluxo, que desde 2002 se mantém na faixa de 20 a 30 mil
pessoas anualmente (OCDE, 2013)16. A comunidade de 721.726 argelinos residentes na
França até 2012 (FARGUES, 2013, p. 12), por meio da quebra de uma tradição de
inconstância no tratamento da emigração pelo Estado, obtém então de forma plena uma
capacidade de articulação política autônoma e já em construção desde os tempos coloniais.
Por seu lado, a França parece manter o caráter securitário de sua gestão imigratória, também
historicamente enraizado.
___________
16
Disponível em: <http://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=MIG#>.
35
O fardo existencialista, carregado pelo argelino a partir da dominação sofrida,
gradualmente inseriu a migração num campo cultural híbrido, no qual se encontra tanto um
conjunto de elementos restantes da estrutura social tradicional quanto uma série de novas
ideias, aspirações e necessidades geradas pelo contato com a civilização ocidental. É em
convivência com tais dinâmicas de resistência/adesão que são criados mecanismos de
reprodução social da emigração, fundamentais para o seu enraizamento identitário na
sociedade argelina contemporânea:
A própria experiência da migração é organizada e relatada segundo os esquemas
tradicionais, e é pelo recurso ao vocabulário do sistema mítico-ritual que o
informante fala da „França‟. A descrição das condições de existência dos emigrantes
remete às grandes oposições míticas da tradição: interior-exterior, cheio-vazio,
claro-escuro, etc. Quer seja descrita como o oposto estrito à terra natal (quando lhe
são atribuídas todas as qualidades que são negadas à terra natal ou quando,
inversamente, lhe são imputados muitos dos males desconhecidos naquela), ou, ao
contrário, como seu equivalente, pelo menos em alguns de seus aspectos (a forte
presença dos parentes), a França é, a cada vez, caracterizada por uma série de
atributos que constitui, com a série antitética que seria aplicada à terra natal, um
conjunto de oposições homólogas (SAYAD, 1998, p. 43).
Portanto, ainda que o engajamento político do Estado argelino em relação à
comunidade de expatriados tenha sido relativamente tardio e inconsistente (na medida em que
apenas é institucionalizado nos anos 2000), o fluxo emigratório manteve-se uma constância
mesmo ao longo da retórica estatal de desencorajamento dos anos 1970 e 1980. Além disso, e
talvez mais marcante, está o forte direcionamento à França, envolvido por um caráter político
de atração e resistência ligado à colonialidade. Esses dados, além de diferenciarem a
experiência de emigração argelina daquelas das demais ex-colônias francesas (Marrocos e
Tunísia, por exemplo, onde a migração cuja comunidade se formou tardiamente assumiu
aspectos de maior diversificação de destino), corroboram a fixidez da força social da
emigração à França para os argelinos. Tais aspectos permitem que seja explorada de forma
mais clara a relação especial mantida entre os dois projetos de identidade nacional, já que
possuem representação tanto na dimensão sociocultural quanto nos posicionamentos estatais
contemporâneos (por nation-building e securitização societal). É nesse sentido que o caso de
Argélia e França se mostra fértil à análise segundo o modelo analítico proposto, algo a ser
realizado nos próximos capítulos.
36
2.5 Conclusão do capítulo
À luz de revisão teórica dos estudos em colonialidade, poder simbólico, migração,
nation-building, segurança e identidade, este capítulo procurou explorar as formas pelas quais
o fenômeno migratório, envolvido pela conjuntura subjetiva da colonialidade, serve de
ferramenta de expressão para a dimensão identitária nacional. A discussão feita destaca a
viabilidade de análises em migração para o fornecimento de informações relevantes acerca do
aspecto estrutural de identidades nacionais, ou seja, para a clarificação dos diferentes
caráteres de projetos historicamente consolidados nos países de origem e recebimento.
Quando envolvida por aspectos de colonialidade, essa dinâmica tende a produzir
nacionalidades oficiais paralelamente interdependentes (vinculadas por laços de atração) e
antagônicas (opostas em essência). A revisão histórica da evolução quantitativa da emigração
argelina para a França revela convergências importantes com o modelo analítico apresentado,
que a seguir tratará as políticas argelinas de nation-building em relação à comunidade de
emigrantes como mecanismos de expressão de um projeto de identidade existencialista.
37
3 A EMIGRAÇÃO E O PROCESSO DE NATION-BUILDING NA
ARGÉLIA
3.1 Introdução ao capítulo
Este capítulo analisará a primeira parte da hipótese de trabalho sugerida,
correspondente à expressão migratória da identidade argelina. Estabelecendo como tal o
processo de nation-building a partir do debate realizado no capítulo anterior, a estrutura do
texto a seguir está dividida em três seções. Cada uma delas revisa os desenvolvimentos
históricos envolvidos na relação entre migração e nation-building na Argélia, partindo da base
contextual e quantitativa fornecida pela última seção do primeiro capítulo. O objetivo central
é o de avaliar os padrões de variação de ambos os fenômenos à luz de aspectos conjunturais
influentes em cada período (1962-1973, 1973-1999, 1999-atualidade), de modo a identificar
quais condições permitiram uma mudança de posicionamento estatal frente à comunidade
expatriada e como tal processo expressa, dentre as especificidades de cada período, um
projeto existencialista17 de identidade nacional. Dessa forma, cada seção mantém a análise
ordenada dos seguintes temas: padrão qualitativo de emigração argelina, seu grau de
instrumentalização estatal para nation-building e a expressão, por tais variáveis, da identidade
nacional argelina. As conclusões podem ser resumidas da seguinte forma: o primeiro período
marca a ausência de nation-building por meio da emigração, que já estava envolvida pelo
germe do transnacionalismo; o segundo período revela a continuidade da posição estatal,
agora em face de uma emigração consolidada enquanto movimento político transnacional; o
terceiro período destaca a inauguração de amplo aparato institucional de aproximação à
emigração e sua vinculação a uma nova atitude em nation-building. Argumenta-se, portanto,
que a expressão de uma concepção existencialista de identidade nacional por meio do
processo de nation-building com a emigração apenas se deu no período mais recente, porém
não sem responder aos lastros históricos de desenvolvimentos característicos dos contextos
anteriores.
___________
17
Conforme debatido anteriormente, vincula-se o conceito à noção de identidade nacional para que seja possível
a apropriação da constante “busca por si mesmo” como uma forte necessidade de autoafirmação tanto pelo
Estado quanto pela sociedade. Nessa “tarefa” revolucionária, diferentes projetos de nação são evocados para a
ênfase de determinadas características imaginadas como autênticas e, portanto, expressivas de uma única
nacionalidade. No caso argelino, o conceito é especificamente apropriado em circunstâncias sócio-políticas cuja
formação contemporânea tem fortes influências da experiência colonial e de suas implicações subjetivas ao
contexto pós-independência. Ao longo das seções, o conceito será melhor explorado em suas variantes de cada
período.
38
3.2 Revolução e state-building (1962-1973)
A formação de uma comunidade emigrante politicamente engajada não é mero
fenômeno histórico novo para a Argélia, e está diretamente relacionada com o surgimento dos
primeiros movimentos nacionalistas durante os anos 192018. É no seio da criação de
movimentos como o Jeunes Algériens (1927) e a Fédération des Élus Musulmans (1930) que
diferentes agendas políticas evoluíram entre a moderação e o radicalismo, num processo
particularmente encarnado pelo movimento messalista19. A constante rearticulação desses
movimentos em relação à comunidade franco-argelina tornou-se uma constante, algo que
pode ser apropriado pelas características qualitativas da emigração argelina no imediato pósindependência. Estas estão relacionadas às variáveis da geração, tipo de atividade política,
teor de demandas e discurso20.
Ainda que de forma esparsa, pode-se afirmar que o germe da capacidade transnacional
na migração argelina se desenvolveu ao longo dos anos 1960 mesmo com o bloqueio
representado por dois processos conectados: a racionalização econômica do fluxo por meio de
tratados bilaterais e legislação interna (como será destacado a seguir) e a ênfase geracional
(apoiada socialmente e pelo Estado) no deslocamento provisório. Como aponta Fargues
(2013, p. 11), a predominância da migração temporária e pendular marcava a gestão das
necessidades de mão de obra na França e, paralelamente, adequava-se à primeira geração de
___________
18
A tradição política iniciada nesse período e de grande influência ao contexto dos anos 1960 está presente não
apenas na consolidação de um vínculo de apoio com partidos e representações internacionais socialistas (algo a
ser reproduzido, ao menos em retórica, por aqueles que assumiram o governo independente), mas também na
padronização de certas categorias de articulação, demanda e pertencimento a serem reproduzidas por uma
variedade de movimentos políticos.
19
Iniciado em 1926 com a criação da Etoile Nord Africaine, o movimento estabelecido por Messali Hadj
construiu um programa nacionalista radical e estreitamente vinculado à realidade da comunidade expatriada na
França e ao Partido Comunista Francês. Nessa primeira fase do nacionalismo argelino, a repressão policial a
migrantes institucionalizou-se, e, como aponta Lustick (1985, p. 66), a interiorização dos interesses da elite piednoir mantinha a ausência de reformas, mantendo férteis medidas como o fechamento do Parti du peuple algérien
em 1939 (segundo partido messalista). O movimento teria sua reorganização realizada com a criação de um
terceiro partido em 1946, o Mouvement pour les triomphe des libertés democratiques, que, mesmo frente a
constantes fraudes nas eleições parlamentares e municipais para a manutenção do status quo colonial, continuou
a fomentar a vinculação entre os núcleos políticos da metrópole e da colônia.
20
De modo geral, o elemento geracional guia não apenas as características do projeto de descolamento humano,
mas também a subjetivação do mesmo em termos culturais, étnicos e políticos. Nesse sentido, a relação entre as
diferentes gerações reproduz um extrato de processos ligados a variáveis mais amplas, como a da globalização,
por exemplo. Paralelas e conectadas aos aspectos geracionais de análise, estão as variáveis do tipo de atividade
política e do teor de demandas e discurso. Conforme aqui utilizadas, referem-se respectivamente à forma de
articulação enquanto movimento social (assim como à intensidade de tal) e ao padrão de construção de
subjetividades materiais ou não (em suma, podem envolver demandas e/ou concepções tanto em identidade
étnica quanto em direitos civis).
39
expatriados, caracterizada por maioria masculina designada por meio de laços sociais
tradicionais ao grupo de origem à missão específica de prover recursos às necessidades
materiais do lar (SAYAD, 1977, p. 61; SILVERSTEIN, p. 155). Majoritariamente, as
demandas se relacionavam a temas específicos da dimensão trabalhista, algo que
frequentemente ultrapassava os limites territoriais, assim criando um “campo fértil”21 à
consolidação de movimentos transnacionais engajados na política argelina (AISSAIOUI,
2009, p. 157). Disso decorrem as contínuas construções identitárias a partir de categorias que
exprimem semelhanças e divergências em relação ao universo francês, mas que se movem em
direção a uma conscientização política herdada do movimento nacionalista:
A visão do movimento nacionalista sobre a emigração conjura noções de exílio,
separação e opressão, assim como uma consciência do racismo e da hostilidade aos
quais os norte-africanos foram sujeitos, não apenas nas colônias, mas também na
França metropolitana. Está imbuído com sentimentos de perda, memória e
esperanças de que a emancipação e a liberdade irão marcar seu eventual retorno ao
lar. Os imperativos econômicos que motivaram sua migração estavam ligados à sua
marginalização social, política e econômica na África do Norte (AISSAOUI, 2009,
p. 42).
Dessa posição privilegiada entre dois mundos sociais diferentes, conflitantes e
cooperativos decorre o desenvolvimento histórico de um potencial de agência política na
migração argelina. Duas dinâmicas sobrepostas explicam o pouco interesse estatal nesse
fenômeno para o período: a construção das elites governantes e o lastro ideológico
revolucionário. De forma paralela, e em constante diálogo com esses dois elementos, estão as
variáveis relacionadas à abordagem interna em nation-building, às relações bilaterais com a
França e à economia argelina.
Os acordos de Evian de 1962, que marcam a “última saída metropolitana” após falhos
planos reformistas (destaca-se o Plan de Constantine, iniciado em 1959), consolidaram a
independência argelina de uma forma negociada e direcionada ao atendimento de interesses
franceses a serem geridos pelo que a metrópole designava como “la coopération” (CHAZAN,
1999, p. 424). Entretanto, o caminho tomado pela independência não era objeto de
unanimidade entre as elites envolvidas nas negociações. Isso teve clara expressão na ascensão
de Ahmed Ben Bella à primeira presidência, já que resultou de lutas por poder 22 entre facções
___________
21
Era comum a organização de protestos, eventos culturais, congressos e periódicos (como o nacionalista El
Ouma) que possibilitaram a formação de redes de contato por meio de encontros em cafés, áreas de trabalho,
hostels e mercados. Esse modo de organização não apenas manteve coesas as demandas da comunidade argelina,
mas também a convencionou enquanto grupo social (algo impresso na organização urbana francesa pelos cités e
banlieues, subúrbios tradicionalmente relacionados aos argelinos).
22
As decisões tomadas nas conferências internas de Tripoli e Tlemcen deixaram claros os rompimentos inerentes
ao governo independente e, ao buscarem uma “opção revolucionária” de melhor acesso, representaram um
40
interiores à FLN (LAWLESS, 1995, p. 27; AGERON, 1991, p. 114). A aparente estabilidade
política inicial, alcançada após um período de terrorismo pela Organisation Armée Secrète e
de sucessivas tentativas de golpe em Argel, não apagou a fragmentação interna. Nesse
contexto, vinculou-se o socialismo unipartidário a um tipo de autoritarismo considerado
necessário para os fins legítimos da revolução, numa mentalidade política que King (2009, p.
32) nomeia de “etos corporativista” 23.
Revestido por uma retórica socialista e patriótica (diretamente vinculada ao exército,
formado por integrantes do Armée Nationale Populaire responsáveis pela guerra de
libertação), o novo governo apropriou-se da construção do Estado a partir de um modelo
burocrático-administrativo patrimonialista. Mesmo ao ter sua função deslocada rapidamente
para fins nacionalistas, tal modelo permaneceu incapaz de filtrar as demandas materiais e
subjetivas da população24: “a estrutura social e seus reflexos ideológicos não são
necessariamente congruentes com o sistema político” (ANDERSON, 2014, p. 13). Como se
verá a seguir, essa desvinculação foi estruturada nas dimensões da nacionalidade e da
economia e, além de explicar a relação entre o Estado e a emigração, permite maior
entendimento sobre as estratégias de controle do poder pelas elites de primeira geração25.
movimento político que “assimilou até mesmo as raízes mais podres do pensamento colonialista” (FANON,
1997, p. 134).
23
Para o autor, tal paradigma de ação política está relacionado ao tipo de autoritarismo instaurado em repúblicas
como a argelina, a síria e a egípcia. Em termos gerais, pode ser resumido a partir da primazia ideológica ao
paternalismo, à noção de que a liderança política centralizada (mesmo que de forma violenta e impositiva) é
mais eficaz em gerar unicidade nos interesses sociais conflitantes de um Estado nacional recém-constituído do
que um tipo de abordagem pluralista poderia o ser.
24
Aissaoui (2009, p. 95) aponta para o fato de que os diversos programas nacionalistas argelinos, mesmo os mais
inclusivos e/ou baseados em princípios universalizantes por vezes adeptos dos valores da “França de 1789”, não
conseguiram interpretar a complexidade das estruturas sociais do país. Nesse sentido, e em convergência ao
caminho traçado pela FLN, se houvessem ascendido ao poder acabariam por consolidar a mesma interpretação
parcializada da nação ao terreno da política.
25
Tais elites foram formadas majoritariamente a partir dos diferentes pólos de poder internos à FLN quando da
independência, o que eventualmente gerou um sistema político no qual a cooptação de atores paralelos foi
atingida pelo grau de legitimidade imediata daqueles que participaram da guerra de libertação nacional. Nesse
sentido, a maioria dos membros das elites de primeira geração fazia parte das divisões militares envolvidas na
guerra ou era vinculada ao amplo alcance ideológico do partido: “o forte papel – tanto simbólico como real – do
exército na era pós-independência retoma o papel central de seu predecessor, o Armée de Libération Nationale
(ALN), o braço militar do Front de Libération Nationale (FLN), durante os oito anos da guerra de libertação
(1954-1962). Ambos o FLN e o sucessor do ALN, o ANP, se tornaram dois dos principais pilares do sistema
unipartidário pós-colonial, e ambos se mantiveram principais constituintes do sistema unipartidário. Um terceiro
e quarto pilar do sistema político pós-colonial argelino eram a burocracia civil e a economia dirigida pelo
Estado, que eram estreitamente vinculados tanto formalmente quanto na prática. Esses quatro pilares não
poderiam ser facilmente distinguidos já que eles se tornaram crescentemente interligados, tanto no nível de
pessoal quanto em suas competências e funções dentro do sistema como um todo. Além disso, o balanço de
poder dentre esses pilares e dentre suas respectivas elites era de forma alguma estático. Ao invés disso, havia
uma contínua competição dentre e dentro dessas instituições [...]” (WERENFELDS, 2007, p. 32).
41
No centro da temática de políticas em nacionalidade está o fato de que, no sistema
político argelino, pouco se distinguia a ação política da prática social, regulada por laços de
solidariedade como aqueles ligados aos membros da chamada famille révolutionnaire. Isso
potencializava a imposição de uma identidade nacional árabe-muçulmana26 (como a
constituição de 1963 o fazia) sobre uma estrutura social complexa formada por um
“mecanismo caleidoscópico” (BOURDIEU, 1962, p. 94). Nesse sentido, as políticas relativas
à temática na Argélia pós-independência não apenas denotaram um distanciamento entre
Estado e sociedade, mas também se consolidaram enquanto ferramenta de exclusão27, como
interpreta Werenfelds (2007, p. 86).
A orientação política apresentada manteve prioritárias as relações bilaterais com a
França, já que até certo ponto foram marcadas por uma contínua dependência econômica
guiada pelo tiermondisme28 de Charles de Gaulle e Georges Pompidou. Nesse contexto, os
contornos de uma relação privilegiada29 foram consolidados e evoluíram até o seu
enfraquecimento nos primeiros anos da década de 1970. A mesma trajetória dessa cooperação
é perceptível no tema migratório, objeto de três protocolos assinados em 1963, 1964 e 1968
respectivamente referentes ao contingenciamento anual, ao controle médico e ao
encerramento do regime de livre circulação estabelecido em Evian (MAHLKE, 2005, p. 90;
BOUKLIA-HASSANE, 2010, p. 41). O aparato institucional mobilizado para a emigração era
limitado ao Ofício Nacional de Mão de Obra (ONAMO), criado em 1962. Este procurava
___________
26
Silverstein (2004, p. 70) destaca como os governos de Ben Bella e Boumèdiene demonizaram identidades
regionais (como a berbere) enquanto “sobrevivências feudais” ou “obstáculos à integração nacional”.
27
O processo de arabização da educação (iniciado em 1965 e mantido pela “Revolução Cultural” de
Boumediène, com implicações políticas essenciais aos períodos subsequentes) manteve baixa a capacidade de
mobilidade de maior parte da população em direção às elites, constituídas por uma minoria francófona.
28
Como aponta Naylor (2000, p. 50), a nova orientação em política externa do governo francês era realizada a
partir de uma reinvenção discursiva que buscava, paralelamente, legitimar a descolonização e manter a imagem
do país enquanto ator fundamental no cenário internacional. Dessa forma, a aproximação aos países libertos
procurava manter a projeção francesa sobre o mundo e adequar a nação ao novo contexto internacional sem a
perda da aspiração à liderança. Esse processo envolveu necessariamente uma reformulação identitária, tema
tratado no capítulo seguinte.
29
Com a própria descolonização tendo sido legitimada na França pela perspectiva de manutenção dos interesses
franceses sobre a Argélia, os dois países não apenas mantiveram a interdependência em assuntos pragmáticos
(nas dimensões comercial, militar, financeira e geopolítica, especialmente), mas também a partir do legado
histórico que inevitavelmente manteria as relações num grau de importância (seja pelo confronto ou pela
colaboração). Como Naylor (2000, p. 58) destaca, até 1965, de Gaulle e Ben Bella negociaram a revisão de
algumas disposições de Evian (a presença militar francesa e os direitos de extração e transferência garantidos às
companhias petrolíferas francesas pelo Code Pétrolier, especialmente), a manutenção de ajuda financeira, a
exclusividade comercial (acordo de 1964 regulava o mercado da viticultura) e a cooperação técnico-cultural
(pelos cooperánts, com o objetivo de revitalizar a administração pública após a massiva emigração pied-noir).
Em conferência realizada em 1965, de Gaulle encontrou Ben Bella para restaurar as relações por meio da
aceitação da relativização dos acordos de Evian (Argélia já havia realizado nacionalizações no setor da
agricultura, encaminhava uma política semelhante para os hidrocarbonetos com a criação da estatal
SONATRACH e diversificava parceiros internacionais), porém a manutenção dessa perspectiva não seria
permanente em vistas da intensidade das reformas revolucionárias de Boumediène.
42
instrumentalizar o fluxo de expatriados no marco das necessidades econômicas francesas e,
portanto, na garantia de uma vazão ao desemprego argelino30. Esse tipo limitado de interesse
estatal na comunidade emigrante foi intensificado com as escolhas econômicas realizadas e a
subsequente normalização31 das relações bilaterais frente à “crise dos hidrocarbonetos” de
1970 e 1971.
As prioridades de ação do regime argelino, cuja legitimidade estava estritamente
vinculada à “tarefa revolucionária”, vieram à tona com a escolha de uma orientação
econômica rentista32 a partir do golpe de Estado33 de Houari Boumediène em 1965. Belaïd
Abdessalam, primeiro ministro desde o governo Ben Bella, assegurou a estruturação de um
modelo de fomento às “indústrias industrializantes” e, por meio de dois planos quadrienais,
inaugurou um dos períodos de maior aceleração do crescimento argelino (LE SUEUR, 2010,
p. 21). Entretanto, a negligência ao setor agropecuário gerou, em longo prazo, dificuldades no
atendimento a condições básicas de segurança humana e na diversificação da economia
(ADAMSON et al, 2004, p. 43). Além disso, o modelo de planificação econômica então em
prática priorizou uma industrialização pouco dependente em capital humano (NAYLOR,
2000, p. 65). Nesse contexto, o distanciamento entre o Estado e a emigração em termos de
___________
30
O acordo de 1968, por exemplo, estipulava o recrutamento de 35 mil trabalhadores argelinos ao longo de três
anos e os redirecionava (inclusive com a possessão de certificados de residência) aos setores da economia com
maior necessidade de mão de obra. O migrante tinha o prazo de nove meses para ser empregado (caso não bem
sucedido, era repatriado) e o governo francês tinha total autonomia, segundo o acordo, para alternar as cotas
anuais de admissão.
31
Como destaca Naylor (2000, p. 76), os acordos de Argel de 1965 marcam o início de uma percepção recíproca
de “parceria”, ou seja, de um tipo de cooperação temperada e ainda especial (mesmo que isso tenha significado,
para os franceses, o compartilhamento da extração petrolífera com a nova estatal argelina). Os anos subsequentes
marcam a redefinição da cooperação na medida em que a parceria financeira e comercial minguava e a
estabilidade política francesa era desafiada pelos eventos de maio de 1968 (uma das causas para a renúncia por
de Gaulle). Assumindo em 1969, Pompidou reorienta a política externa para um enfoque mediterrâneo e procura
manter a relação especial: entretanto, tal estratégia é entravada pelas novas intenções argelinas que, ao
precisarem assentar em legitimidade o novo regime internacionalmente ativo na causa terceiro-mundista e dar
suporte aos novos planos de desenvolvimento, buscavam a nacionalização do setor petrolífero (quebrando com o
período “transitório” manejado até então). Esse passo foi tomado em 1971 e, segundo Naylor (2000, p. 100),
completou a descolonização econômica.
32
O rentismo é caracterizado, em termos gerais, pela captação de recursos oriundos de atividades não produtivas
(no caso argelino, a exportação de petróleo) como prioridade à manutenção de um nível mínimo de bem-estar
social. No contexto de Boumediène, constituiu de um instrumento de bloqueio a possíveis forças políticas
desafiadoras e, paralelamente, de legitimação de seu “reajuste revolucionário”. A orientação rentista constituiu, a
partir de então, de um dos elementos mais sólidos do sistema político argelino e da perpetuação de elites (tema
será debatido novamente na terceira seção).
33
Como interpreta Le Sueur (2010, p. 20), o golpe de Estado ocorreu de forma pacífica e em decorrência de
discordâncias internas quanto às políticas econômicas de Ben Bella, de sua ineficiência em gerir de forma bem
sucedida as organizações de massa e, especialmente, do autoritarismo inaugurado pelo presidente (expresso, por
exemplo, no banimento do partido de maioria cabília de Hocine Aït Ahmed, o FFS). Foi a partir disso que a
“correção revolucionária” de Boumediène recebeu amplo apoio. Ainda assim, para manter as divisões políticas
controláveis, o presidente (da república e do Conselho Revolucionário) e ministro da defesa utilizou o mesmo
tipo de autoritarismo contra o qual dizia lutar – era o “benbellismo sem Ben Bella”.
43
nation-building manteve-se constante mesmo na dimensão econômica (exceto em relação ao
interesse das remessas34, que ainda assim não recebiam grande incentivo). Além disso, mesmo
que o tema tenha sido favoravelmente adicionado à agenda bilateral, continuou dependente da
evolução da mesma. Enquanto a emigração argelina apresentou mudanças qualitativas iniciais
importantes à politização da comunidade franco-argelina, o nível de engajamento estatal junto
a essa para fins de nation-building permaneceu praticamente nulo35.
A gestão emigratória argelina limitou-se, como demonstrado, às formalidades
estabelecidas pela reinventada relação com a França e ao atendimento mínimo das
necessidades econômicas oriundas do modelo de Estado a ser construído. Em especial, o
período ilustra como a elite formada assumiu o poder em dissintonia com as primeiras
tendências do nacionalismo argelino (enraizadas em movimentos sociais na comunidade
emigrada). O engajamento que se desenhava então era paralelo e conectado àquele
desenvolvido na relação com a sociedade, assumindo traços de autoritarismo e suspeição
sobre quaisquer possibilidades políticas emergentes que não as que detinham o poder. Nesse
contexto, da mesma forma pela qual a emigração foi reduzida de uma força política a uma
fonte de ganhos econômicos, a complexa sociedade argelina foi limitada a uma nacionalidade
oficial cuja estreita representatividade era controlada por uma legitimidade fortemente
ideológica. Portanto, o afastamento político do Estado em relação à emigração expressa o
exercício de uma identidade nacional parcializada quanto à realidade sociocultural do país e
que, mesmo envolvida por numa lógica existencialista, não gerou práticas de aproximação à
diáspora. A negligência à comunidade emigrada seria reinventada frente aos novos
constrangimentos históricos, ainda assim não deixando de expressar a mesma lógica
identitária de constante autodefinição e ênfase em um modelo de nação pouco responsivo.
Vários processos históricos ainda ocorreriam de forma a possibilitar políticas em nationbuilding tomadas em direção à emigração.
___________
34
As remessas constituem de meio com importante influência sobre a balança de pagamentos do Estado de
origem, com o potencial paralelo de acelerar a movimentação da economia por meio do incremento do consumo.
Brand (2006, p. 8) e Bouklia-Hassane (2010, p. 59) discutem possíveis formas de aproximação estatal em
relação à comunidade emigrada como forma de remanejo e intensificação de remessas, com destaque para a
articulação, por meio de embaixadas, de serviços bancários direcionados à facilitação da transferência de fundos.
Para o período considerado nessa primeira seção, o governo argelino não desenvolveu esse tipo de esforço.
35
Apesar dos bloqueios (a serem mais tarde fortalecidos) apresentados à imigração argelina pelo governo
francês desde 1964, o governo argelino limitou-se a reforçar sua legitimidade discursiva (centralizada no ideário
da revolução socialista) por meio de medidas securitárias. Essas apresentavam a emigração como um perigo
subversivo que exigia constante vigilância: "militantes magrebinos na França eram largamente vistos como um
meio a um fim, como um instrumento em processos políticos que objetivavam a emergência de mudança política
no país de origem e sua influência rapidamente declinou" (AISSAOUI, 2009, p. 154).
44
3.3 Liberalização, crise e ativismo (1973-1999)
A partir da crise nas relações bilaterais, da proibição argelina da emigração (1973) e
do banimento francês dos regimes de recrutamento de trabalhadores imigrantes (1974), duas
tendências principais conectadas influenciaram a comunidade de expatriados argelinos: a
reavaliação das políticas francesas com a inflexão no tipo de deslocamento e a catalisação de
dinâmicas políticas herdadas da década anterior. Temáticas em consideração nesse contexto
de mudanças envolvem as relações bilaterais e a segunda geração de migrantes.
Os efeitos da “batalha do petróleo” entre Argélia e França geraram, como notado
anteriormente, um declínio na parceria forjada desde os acordos de Argel de 1965. Mesmo
que as relações tenham alcançado um status descontínuo de relançamento36 a partir da posse
de Valéry Giscard d'Estaing em 1974, as políticas de imigração francesas precisaram ser
reavaliadas em vistas da nova realidade econômica do país frente não apenas à crise do
petróleo de 1973 e à recessão econômica (NATTER, 2014, p. 9), mas também à onda de
ataques violentos a argelinos que varreu o país durante o período. Dessa forma, uma série de
medidas restritivas, designadas a sustentar a proibição de 1974 por meio do incentivo à
repatriação, foi tomada nos anos 1970. Gradualmente, a “reunificação familiar se tornou o
único veículo para os norte-africanos que desejavam migrar” (ENNAJI, 2010, p. 8).
Houve, portanto, a transição de um fluxo pendular-laboral a outro limitado às exceções
de uma legislação que, apesar da liberalização de François Miterrand37, tornou necessária uma
___________
36
Como destaca Naylor (2000, p. 101-116), as relações bilaterais franco-argelinas do período entre 1972 e 1980
passaram por um processo de reexame por meio de constante balanço, cálculo e concertação política para a
resolução das frequentes tensões diplomáticas. Enquanto o mondialisme de Giscard reviu a transformação
iniciada por de Gaulle e buscou uma cooperação a atender interesses pragmáticos (como forma de manter a
França num nível de liderança mundial e de interlocução das relações norte-sul), a política externa argelina
apreciava uma posição privilegiada no MNAL e na OPEP enquanto porta-voz do terceiro-mundismo. Ainda que
Giscard expressasse uma preferência pela banalização das relações, o espaço ocupado pela Argélia em seu plano
de projeção mundial seria privilegiado. Ao lado dos temas dos hidrocarbonetos, do gás natural, e do imbróglio
diplomático com a questão do Saara Ocidental, a dimensão humana assumiu uma posição prioritária e simbólica
expressa pela conferência de Argel em 1975 (especialmente em vistas da agitação política de emigrantes, harkis,
pied-noirs e coopérants).
37
Durante a gestão Miterrand (1981-1995), as relações bilaterais passariam por esforços mais efetivos de
melhoramento, mas que foram bloqueados pela desestabilização político-econômica da Argélia a partir da
metade dos anos 1980. A posição do presidente francês buscava certo rompimento com aquela de seus
antecessores Pompidou e Giscard, já que o desafio principal afirmado era o de manter o “codesenvolvimento” na
dimensão das ações e não apenas na do discurso. A posição de Bendjedid, também diferenciada em comparação
ao período anterior, possibilitou um redirecionamento efetivo das relações a partir de conferência realizada em
Argel em 1981. Dois acordos na dimensão migratória em tal contexto, de 1980 e 1984, ilustram o ciclo de
melhoramento-declínio da bilateralidade durante o período (NAYLOR, 2000, p. 127, 148): o primeiro inseriu o
45
relação estreita entre a presença não nacional e a produtividade econômica. Ao lado das
motivações econômicas para essa mudança, tornaram-se comuns debates que “começaram a
questionar a lógica por trás das políticas de imigração do governo francês e a habilidade da
sociedade em assimilar migrantes de países islâmicos, particularmente do Magreb” (ENNAJI,
2010, p. 25). Esse processo foi catalisado pelo falseamento do “mito do retorno” na medida
em que a maior parte da comunidade expatriada permaneceu e foi complementada pelo
crescimento dos fluxos não documentados. Isso revelou, gradualmente, a “presença inegável
na sociedade de uma imigração que até então havia sido considerada como temporária e um
fenômeno marginal” (VERTOVEC e WESSENDORF, 2010, p. 94) e, acima de tudo,
sinalizou o declínio do modelo assimilacionista de integração.
Ao lado desse processo e das novas formas de expansão social possibilitadas pela
crescente globalização38, a emergência de uma nova juventude educada e exposta às novas
aspirações do auge do crescimento econômico argelino (duradouro até meados dos anos 1980)
gerou mudanças na comunidade emigrada e desafios políticos inéditos ao Estado da FLN: “já
que as lutas de descolonização haviam passado há tempos, a juventude queria mudança, não
um ensaio de retórica nacionalista” (LE SUEUR, 2010, p. 50). Uma das forças políticoculturais mais expressivas dessa mudança no ambiente emigratório é aquela representada pelo
movimento beur.
Desenvolvendo uma série de rupturas com os mecanismos tradicionais de reprodução
da emigração argelina, os beurs (uma inversão silábica de arabes para designar os migrantes
de segunda geração) atingiram a juventude ao longo de um período 39 marcado por explosões
tema em um âmbito de cooperação técnica por meio de medidas para treinamento e profissionalização, subsídios
a novos empreendimentos, concessões fiscais e melhorias em habitação; o segundo seguiu o espírito dos acordos
contratualistas dos anos 1960, restringindo o acesso às cartas de residência (as exigências incluíam “capacidade
financeira” e “respeito à ordem pública“) e apoiando novas condições de deportação. Essa mudança, embora
pudesse ser superada por novos exercícios de concertação política, foi complementada por tensões geopolíticas
(especialmente no que diz respeito à intervenção francesa nos conflitos no Chade e Saara Ocidental) e pela
escalada da crise argelina a partir de 1985. Apesar de breve melhoria nas relações até 1988 no setor
petroquímico, a cooperação logo voltaria ao declínio em vistas das mudanças profundas a ocorrerem na Argélia
– a gestão bilateral da migração tomaria o mesmo rumo.
38
Deve-se destacar a revolução dos meios de transporte e comunicação (de forma associada à ampliação da
eletricidade para praticamente todas as cidades argelinas, até 1979), como condição necessária ao fácil
estabelecimento de contatos transnacionais, algo que consolidou um processo nascente nos anos 1960. Boa
ilustração das novas perspectivas de transnacionalismo abertas pela globalização nos anos 1970, 1980 e 1990 é
dada por Vertovec (2009, p. 59), que destaca o advento das chamadas telefônicas internacionais baratas como
uma das forças globalizantes mais importantes à migração contemporânea.
39
Nesse contexto, no qual a segunda geração passou assumir um posicionamento claro de contraposição às
instituições sociais e governamentais fonte de legislações restritivas e de repressão, a subjetividade construída
assumiu percepções de “defensores e intermediários de seus pais” e advogou uma autoimagem de “maior
liberdade em relação aos valores tradicionais e à sua passividade”. Um dos espaços de maior atuação política
46
de violência anti-imigrante perpetuada mesmo pelas forças policiais francesas. Como destaca
Silverstein (2004, p. 164), tal contexto fez surgir uma série de organizações (como a SOS
Racisme) cujo objetivo era o de rearticular a comunidade em torno de temas relacionados às
condições socioeconômicas da comunidade imigrante, buscando o ativismo sobre problemas
relacionados ao racismo e ao trabalho. Nesse sentido, a relação marcada pela coexistência
entre a ruptura e a reconciliação (SAYAD, 1977, p. 65) foi desenvolvida tanto com os
emigrados de primeira geração quanto com a Argélia.
Assim como os pais eram vistos pelos beurs como paralelamente passivos na luta por
direitos, mas indivíduos exemplares na consciência política, a nação de origem era percebida
em termos dialéticos. Assim, verificava-se tanto uma desvinculação com a retórica
nacionalista-revolucionária propagada pelo Estado (a União Nacional da Juventude Argelina
buscava, por exemplo, cooptar a comunidade expatriada para apoio ao regime)40 quanto o
interesse ao pertencimento como forma de ocupar uma “posição intermediária entre a África
do Norte e a França” (SILVERSTEIN, 2004, p. 153). Nesse sentido, o movimento beur
atingiu um nível de autonomia que o permitiu formular uma agenda direcionada à realidade
da imigração na França.
Contrastante com o desenvolvimento de tal potencialidade política estava o
posicionamento do Estado argelino, que ainda não havia desenvolvido uma estrutura
institucional destinada a engajar a parcela argelina do novo processo transnacional para fins
de nation-building. Além dos já debatidos padrões das dinâmicas migratórias e bilaterais, dois
elementos conectados se destacam na explicação da continuidade de posicionamento do
Estado argelino: as políticas internas em nacionalidade e a estabilidade político-econômica.
Amparada no suporte ideológico das chamadas três revoluções (industrial, agrária e
cultural), a gestão Boumediène embarcou, ao longo dos anos 1970, em um empreendimento
dirigido à correção de rumos proposta. Na dimensão cultural, o historicismo continuava a ser
utilizado de forma central na construção discursiva da nação, na medida em que quaisquer
políticas para o tema eram legitimadas pela prerrogativa de um novo estágio revolucionário
para a libertação nacional ou para a construção de um novo argelino (NAYLOR, 2000, p.
nesse sentido foi o das mídias independentes, como demonstra bem a análise de Chabal (2015, p. 118) sobre o
Sans Frontière (periódico criado por comunidade de franco-argelinos de Paris em 1979).
40
Esses tipos de arranjo institucional para relacionamento com a comunidade emigrante ficaram conhecidos
como amicales e também foram estruturados no Marrocos e na Tunísia no mesmo período. Como aponta Ennaji
(2010, p. 28), no caso da Argélia os diretores do órgão eram selecionados diretamente de Argel e tinham por
função principal a de “observar as atividades dos emigrantes”.
47
104). Uma mudança gradual, entretanto, marcou o período: enquanto os anos 1970
representaram a adesão a um pan-arabismo que apresentava a arabização41 da população
como condição necessária ao socialismo, os anos 1980 marcaram o esgotamento de tal
modelo especialmente por conta de seu uso estratégico. Como aponta Le Sueur (2010, p. 29),
o governo de Chadli Bendjedid passou a empregar em meio às condições econômicas
deteriorantes não apenas uma série de reformas de liberalização (melhor tratadas a seguir),
mas também medidas42 de cooptação política sobre a ala islamita43. Essas foram
instrumentalizadas para o contraponto entre o Islã político e as diversas variações dos
movimentos secularistas (que, naquele contexto, eram tidos como excessivamente
beneficiados pela gestão anterior e opositores com potencial). Por mais que esse
posicionamento fosse motivado por um contexto diferenciado, mantinha a mesma abordagem
interna em nation-building, pois propagava um projeto identitário que “implicava na redução
de uma sociedade multiétnica, multilinguística e culturalmente diversa em uma árabeislâmica, com o Islã enquanto religião de Estado e o árabe enquanto língua oficial”
(WERENFELDS, 2007, p. 33). Ao fim da década, a curta experimentação democrática
ocorrida entre 1989 e 1992 e seu bloqueio posterior impediram a mudança desse panorama,
mas abriram condições necessárias a uma nova consciência acerca do tema (a concretização
disso é aprofundada na seção seguinte).
___________
41
O modelo de políticas identitárias de Boumèdiene é bem ilustrado pela Carta Nacional de 1976, que em termos
gerais acentuava a ênfase no socialismo e reafirmava o Islã como religião de Estado. Em suma, “reiterava o
objetivo de „consolidar a independência nacional‟ pela „liquidação de todas as formas de influência imperialista
ou neocolonialista‟, destacava o tema familiar de que o „socialismo, na Argélia, é um movimento irreversível‟, e
ligava a construção do Estado socialista aos „valores islâmicos que são elemento constitutivo fundamental da
personalidade do povo argelino‟” (NAYLOR, 2000, p. 123). Assim, o discurso revolucionário vinculado ao Islã
era posto numa posição de fonte para legitimidade ao projeto socialista em movimento. Como aponta Le Sueur
(2010, p. 15), as medidas educativas envolvidas na arabização difundiam uma variação do árabe não compatível
com os dialetos argelinos, na medida em que esses não possuíam forma escrita. Portanto, o objetivo de vincular a
população a uma ampla ideologia pan-arabista falhou tanto em forma quanto em substância.
42
Algumas das medidas mais proeminentes nesse sentido foram: o Código da Família de 1984, que representava
ampla concessão aos islamitas (pois deteriorava os direitos das mulheres reconhecidos pela constituição), mas
acabou encorajando-os a formar um lobby ainda mais agressivo para a instituição da sharia; a Carta Nacional de
1986 que, em termos gerais, representou uma reafirmação dos princípios estabelecidos em 1976 (definia a
Argélia como “popular em essência, islâmica em religião, socialista em orientação, democrática em instituições e
moderna em vocação”); e a nova lei de arabização de 1990, que objetivava a completa arabização da
administração oficial até 1992 e da educação superior ate 1997. A negligência que essa “versão oficial” da nação
argelina comete foi expressa na chamada Primavera Berbere de 1980, quando a tomada estudantil do campus da
Universidade de Tizi-Ouzou por conta da proibição de uma palestra sobre o tamazigh (idioma berbere) foi
violentamente reprimida.
43
O movimento islamita emergido na década de 80 tem raízes diretamente ligadas ao salafismo político e ao AlQyiam dos anos 1960, que após a independência foram negligenciados pelo poder central como nacionalistas de
oposição remanescentes dos movimentos dos ulemas dos anos 1930. Nesse sentido, até os anos 1990, o Estado
argelino descartou o reconhecimento do Islã enquanto força política, apenas utilizando-o como ferramenta para
legitimação da nação a ser construída (BOUBEKEUR, 2008, p. 1-18).
48
Tal tentativa de manipulação sobre a balança de poder das forças sociais argelinas foi
ineficaz em seu propósito e esteve entre os fatores que catalisou, ao fim da década, uma crise
política paralela à recessão econômica. Enquanto a era Boumediène havia protagonizado
considerável grau de estabilidade44, a gestão Bendjedid encarou grandes desafios ainda na
primeira metade da década de 80. O lançamento de um plano quatrienal de reformas (19801984) anunciou a inflexão ocorrida com o novo presidente, que buscava a “adaptação da
Argélia ao novo contexto internacional” (NAYLOR, 2000, p. 123). Esse processo deveria
ocorrer, para o novo governo, por meio de medidas liberalizantes incluídas no plano citado e
que, de maneira geral, promoveram um desmonte do aparato industrial até então construído
para que gradualmente a alta dependência no setor petroquímico fosse eliminada. Ainda que a
mudança de rumos buscasse lidar com problemas econômicos antigos, o modelo de
liberalização proposto envolveu a sobreposição ineficaz de nova estrutura econômica sobre
outra já consolidada (LAWLESS, 1995, p. 34).
Na medida em que a situação se deteriorou com o segundo choque do petróleo de
1986, a emergência de uma grande variedade de novos atores políticos que se expressavam
desde o início da década era consolidada. Como aponta Werenfelds (2007, p. 40), a expressão
mais clara desse processo foi a emancipação da juventude argelina, que vinculou as
decadentes condições econômicas à gestão estatal pouco inclusiva em termos socioculturais
numa onda de protestos violentamente reprimidos em outubro de 1988. Foi com tal evento
que a politização do Islã, então representada principalmente pelo Front Islamique du Salut,
recebeu uma janela de ação ampliada pela reeleição de Bendjedid ao fim do mesmo ano sob a
promessa de posteriores eleições multipartidárias. Quando o processo de democratização45
___________
44
Em comparação a seu antecessor, Ben Bella, Boumediène foi mais eficaz na centralização do poder e,
principalmente, na formação de uma coalizão de apoio: “o papel da FLN foi reduzido ao de um instrumento de
liderança de Estado” (WERENFELDS, 2007, p. 35), especialmente pelas organizações de massa que visavam
maior controle civil. A isso, adiciona-se o papel essencial desempenhado pela Sécurité Militaire (a ser
transformada no Département du Renseignement et de la Sécurité em 1990) e seus serviços secretos no
enfraquecimento e cooptação de opositores políticos. Além disso, destaca-se o auge da política externa argelina
por meio da diversificação de parcerias e do ativismo de Abdelaziz Bouteflika nas causas de libertação nacional
como forma de projeção internacional do país. Todos esses elementos, aliados à orientação econômica já rentista
(como introduzida na seção anterior), angariaram grande apoio popular a Boumediène, algo expresso nas
eleições de 1976 (mesmo que o presidente fosse o único candidato).
45
A abertura política foi mantida, primariamente, como forma de recuperação de legitimidade para o
afastamento da crise corrente. Numa conjuntura em que a “ampliação dos direitos políticos e das liberdades civis
completamente transformou o cenário político da Argélia praticamente da noite ao dia” (WERENFELDS, 2007,
p. 43), os serviços secretos (especificamente, o Département du Renseignement et de la Sécurité) esperavam um
alcance máximo de 30% dos votos pela FIS. Tal resultado manteria a FLN no poder em vistas do baixo
eleitorado dos demais partidos recém-criados e pouco organizados. Dessa forma, o cálculo político das elites
consistia em manter a ala islamita na legalidade e continuar o processo democrático, já que seu banimento
poderia ocasionar em radicalização imediata.
49
atingiu seu momento decisivo, o sucesso da FIS nas eleições presidenciais de 1991 fez
emergir o círculo de influência militar das elites argelinas.
O resultado imediato foi a renúncia inesperada de Bendjedid no início de 1992 e o
cancelamento46 do segundo turno das eleições, algo que conformou o estopim das reações
violentas pelo movimento islamita e a escalada das respostas pelas forças de repressão. A
partir da instauração do Alto Comitê de Estado, a ser presidido por Mohamed Boudiaf (herói
da libertação nacional trazido ao cargo como uma figura moderada capaz de atrair
legitimidade), e do Alto Conselho de Segurança, o generalato assumiu o controle do poder
agora de forma não velada e com o difícil desafio de manter a paz (LE SUEUR, 2010, p. 54).
O banimento da FIS e a prisão de vários líderes falhou em desestabilizar o já constituído
braço armado do grupo, o Armée Islamique du Salut, que em conjunto com a oposição do
Groupe Islamique Armé iniciou uma lógica de guerra total ao regime. Esse processo resultou
no assassinato de Boudiaf em meados de 1992 e se intensificou durante as gestões de Ali Kafi
e Liamine Zéroual, apenas sendo amenizado a partir da eleição de Abdelaziz Bouteflika em
199947.
Com a instabilidade política permanente ao longo da década, o engajamento estatal
sobre a comunidade emigrada continuou comprometido e não desenvolveu estruturas
institucionais consideráveis. Isso significou que o discurso oficial sobre a comunidade
expatriada continuou determinado por conjunturas de interesse político, ou seja, de pouca
definição em posicionamento48. Ainda que a constituição de 1989 tenha estipulado a
___________
46
O pretexto oficial para a renúncia de Bendjedid e especialmente para a nova estrutura governamental
organizada foi o da defesa das instituições republicanas contra a emergência de um Estado regulado pela sharia,
já que isso reduziria as disposições democráticas da constituição de 1989. Como afirma Le Sueur (2010, p. 53), o
discurso envolvia a noção de que “era melhor ser a Turquia do que o Irã”.
47
O cenário político argelino a partir da morte de Boudiaf, que acabou envolvida por conspirações (não se sabia
se o atentado fora cometido a mando dos islamitas ou dos militares), constituiu de uma intensa polarização entre
Estado e grupos insurgentes e, especialmente, de uma atualização das dinâmicas de reprodução das elites. Ainda
que as clássicas lutas por poder não estivessem extintas, um campo fértil para o relativo retorno à paz no fim da
década foi condicionado. Os governos de Ali Kafi (1992-1994) e Liamine Zéroual (1994-1999) priorizaram o
alcance de um duplo programa direcionado à ordem pública e à restauração da economia, como afirma Le Sueur
(2010, p. 62). Apesar dos esforços dessas gestões para a retomada do crescimento econômico, no âmbito
bilateral as relações com a França eram entravadas por um dilema político apontado por Naylor (2000, p. 196):
enquanto o secularismo das elites no poder era visto como benéfico, sua ascensão não democrática e orientação
autoritária não poderiam ser objetos de defesa. Portanto, a crise político-econômica argelina determinou as
relações bilaterais da mesma forma pela qual influenciou as novas percepções e paradigmas de ação
governamentais para o tratamento do fluxo migratório.
48
Isso fica claro na diferença entre as eleições presidenciais de 1991 (nas quais a participação foi vetada em
vistas da prospecção de que a comunidade apoiaria os islamitas) e de 1995 (quando cerca de 630 mil emigrados
tiveram o direito ao voto assegurado devido à expectativa de apoio ao regime). Em resumo, “na Argélia o
conflito dos anos 1990 prolongou esse período de suspeita sobre os emigrantes e a relação entre o Estado
argelino e a comunidade emigrante continuou tensa” (NATTER, 2014, p. 28).
50
responsabilidade do Estado na proteção da comunidade expatriada (algo inédito nesse
sentido), as dimensões nacional e bilateral mantiveram clara a contínua negligência da
emigração enquanto fonte de potencial político para nation-building. Por outro lado, a
emergência de tal potencial representou uma variação importante para o período, na medida
em que ampliou a capacidade de ação transnacional dos franco-argelinos. Em termos gerais, o
contexto representou o agravamento da desvinculação entre o Estado e a comunidade
emigrante, mais uma vez paralelamente à imposição de uma nacionalidade oficial pouco
representativa à população argelina (algo que assume, como notado, interesses políticos de
cooptação e repressão de oposições). Isso esteve no centro da grave crise ocorrida e fez
emergir, como condição à retenção de poder pelas elites revolucionárias, a readequação
conjuntural do exercício identitário já consolidado. Novamente, a gestão estatal da emigração,
marcada agora por descontinuidades e indiferença, é despercebida pelo Estado como objeto de
nation-building, marca da posição destoante assumida pelos dois atores. Nesse sentido, as
ações tomadas apenas representam reflexos da posição assumida em âmbito doméstico frente
ao pluralismo da sociedade como a argelina: o existencialismo figurava nesse projeto de
nação excludente, mas não foi vinculado a políticas de nation-building sobre a emigração. O
turbulento contexto dos anos 1990, além de ter inaugurado um novo tipo de governança
militar que posicionou a paz como prioridade de agenda política, despertou nas elites a
percepção da urgência que temas de identidade haviam assumido no país. Em suma, tal
fenômeno abriu o caminho para a construção de políticas emigratórias mais sólidas e de
aproximação permanente. Como será notável a seguir, a identidade existencialista agora era
envolvida por uma nova configuração contextual e, com isso, pôde ser remodelada e expressa
de uma forma inédita pela gestão estatal da emigração.
3.4 Paz, transpolítica e inflexão (1999-atualidade)
Quando da decisão do establishment político argelino de manter a democratização em
1991, os militares já haviam deixado clara a sua intenção de continuar no poder a qualquer
51
custo49. O agravamento da situação securitária foi permeado por momentos de conciliação
com as alas moderadas dos islamitas que, desde Bendjedid, ignoraram berberes, sindicalistas e
feministas (LE SUEUR, 2010, p. 36) tanto em tentativas de negociação quanto em medidas
governamentais de concessão50. Ao limitar a representação da população argelina à oposição
com maior força política (a FIS) mesmo em períodos de conciliação ou violência51, o governo
atraiu maior atenção da comunidade emigrada não apenas para os efeitos do conflito aos
grupos sociais de origem, mas também para os temas da política nacional que comumente
relacionavam-se a questões identitárias de interesse. Nesse sentido, os anos conflituosos aos
poucos construíram um verdadeiro campo transpolítico entre a população nacional e a
emigração, numa matriz de relacionamento formada entre movimentos sociais da Argélia,
diferentes comunidades migratórias e grupos regionalistas franceses. Esse novo fenômeno é
notado, em pesquisa etnográfica, por Silverstein (2004, p. 228) na dimensão da memória
histórica evocada quando dos atentados de 1995 orquestrados pelo GIA:
Por exemplo, enquanto discutia os bombardeios de 1995 com amigos e conhecidos,
três categorias de memória histórica e referência foram mobilizadas: primeiro, os
paralelos com a primeira guerra argelina de libertação nacional, durante a qual a
FLN revolucionária utilizou técnicas de combate de guerrilha, incluindo
bombardeios urbanos; segundo, o mais próximo conjunto de ataques de 1986 em
Paris por grupos libaneses militantes; e finalmente a campanha de bombardeios de
1968 por separatistas bretões contra alvos do governo na Bretanha e em Paris.
As novas categorias migratórias que gradualmente crescem no fluxo e foram
envolvidas por esse processo são, principalmente, aquelas relacionadas à reunificação familiar
oriunda do deslocamento de refugiados durante a guerra e ao aumento geral na qualificação
profissional e na diversificação de destino (NATTER, 2014, p. 13). Junto a essa constituição
mista, emergiu uma terceira geração de emigrantes argelinos pós-beurs, responsável pela
efetivação, nos anos 1990 e 2000, do transnacionalismo introduzido na década de 80.
Frequentemente autointitulada rabeu (numa nova inversão silábica, mas agora da palavra
beur), a nova juventude da emigração argelina esteve envolvida por uma rejeição ao modelo
de assimilação construído entre a geração passada e o governo Miterrand. Em meio a essa
mudança, foi dada prioridade a tipos de pertencimento mais associados a formas culturais
híbridas suspensas entre as origens argelinas e a vivência francesa. Nesse cenário, destaca-se
o ativismo berbere recente como o mais ilustrativo das mudanças geracionais observadas. Isso
___________
49
Em jornal oficial do exército, lia-se em editorial: “O Exército Popular Nacional nunca entregará o país àqueles
que nos levariam de volta à Idade Média”.
50
Destaca-se que os islamitas não foram os responsáveis pelo início dos protestos nos anos 1980 (foram os
únicos, entretanto, a serem beneficiados por medidas de concessão ao longo do conflito).
51
Além das estimativas que apontam para 200 mil mortos ao fim do conflito, milícias populares, formadas pelos
chamados patriotes, eram frequentemente organizadas pelo exército para apoiar a resistência aos islamitas.
52
porque o movimento prioriza a superação das divisões criadas nos anos 1990 por partidos
como o RCD e o FFS (de origem cabília) e retoma a percepção, oriunda da primeira geração,
da experiência migratória enquanto um exílio temporário acompanhado por um desejo de
manter os laços com a nação de origem:
[...] emigrantes cabílios recentes têm experimentado uma distância emotiva e
política similar em relação à geração dos banlieues. Em primeiro lugar, enquanto
largamente apoiadores dos princípios franceses de laicidade, eles veem seu futuro
dentro de uma Argélia secular e multicultural a qual eles esperam ajudar a forjar
(SILVERSTEIN, 2004, p. 182).
Ainda que esse nível de potencial político da comunidade emigrada tenha se
estruturado a partir de desenvolvimentos históricos pertencentes às gerações anteriores e ao
tumultuado contexto de guerra (e toda a sua repercussão na França), o seu impacto nas
políticas argelinas de nation-building apenas se faz visível com o melhoramento das
condições securitárias do país. Isso ocorre a partir da eleição presidencial de Bouteflika em
1999 e de uma série de medidas da gestão inaugurada cujo objetivo era a reestruturação do
poder político por um tipo de “autoritarismo temperado” e consciente das condições mínimas
de manutenção da legitimidade. Dois elementos centrais explicam a alteração de
posicionamento frente à comunidade emigrada: novo tipo de reprodução das elites e
abordagem interna em nation-building.
O apoio informal das elites militares à candidatura independente de Bouteflika
expressou uma manobra política similar àquela ocorrida quando do retorno de Boudiaf ao país
para a gestão imediata ao golpe de 1992: buscava-se sustentar a prioridade em estabelecer a
paz pelo resgate de um middle-man supostamente capaz de exercer um diálogo unificado pela
legitimidade de sua liderança. No caso de Bouteflika52, esse processo foi construído desde o
cessar-fogo negociado em 1997 e formalizado por duas medidas principais tomadas em 1999
(Lei de Concordância Civil) e em 2005 (Carta para a Paz e Reconciliação Nacional) 53. Como
aponta Le Sueur (2010, p. 80-82, 90-91), as duas medidas em favor do retorno à ordem
pública (com grandes apelos à aceitação popular) foram manejadas por Bouteflika de forma a
neutralizar as pressões éradicateur. Dentro do possível, buscou-se negociar o afastamento
___________
52
Ministro das Relações Exteriores entre 1963 e 1979 e figura essencial tanto ao golpe de Boumediène de 1965
quanto ao sucesso do ativismo argelino no cenário internacional dos anos 1970.
53
Apesar de muito criticado (especialmente por não deixar explícito o papel do exército na violência da guerra),
o modelo de anistias utilizado teve ampla aprovação pelos dois referendos nacionais realizados e foi eficaz na
absolvição de milhares de membros do GIA e do AIS. Aqueles que se recusaram a participar do esquema
conciliador proposto pelo governo foram reagrupados, de forma geral, no Groupe Salafiste pour la Prédication
et le Combat (GSPC), e continuaram a organizar atentados esporádicos.
53
militar dos círculos de poder por meio da barganha de mantê-los protegidos de
investigações54.
Especialmente no período entre 2004 e 2006, uma ampla atualização do generalato em
posições-chave foi realizada. Apesar do criticismo direcionado ao caráter brando das anistias,
a estabilidade política e a legitimidade da figura presidencial (vista como responsável pelo fim
da violência e pelo alívio do isolamento do país no cenário internacional durante os anos
199055) foram asseguradas por novas dinâmicas de projeção política. Isso foi possível, como
aponta Werenfelds (2007, p. 62-63), pela expansão de um segundo e terceiro círculo de
influência56. Além de manter os núcleos decisórios presidencial e militar, a nova configuração
política argelina expandiu as redes a uma série de novos atores atraídos por cooptação 57 ou
elevados pela conjuntura nacional e internacional58. Esse processo, ao ser guiado por um
centro de poder construído em torno da lógica “unir para governar”, permitiu o alongamento
das relações de clientelismo e patronagem (como debatidas na primeira seção) às forças
sociais de potencial enfrentamento, ainda assim não alterando certos traços autoritários da
governança: “o regime se acomodou em um autoritarismo caracterizado por uma fachada de
política multipartidária, dominado por um partido de Estado e organizações corporativistas
afiliadas lançadas para conter trabalhadores e camponeses descontentes” (KING, 2009, p.
146).
___________
54
Em decreto de 2006, estipulava-se: “Qualquer um que, em discurso, escrita, ou qualquer outro ato, usar ou
explorar as feridas da Tragédia Nacional para ameaçar as instituições da República Democrática e Popular da
Argélia, para enfraquecer o Estado, ou para minar a boa reputação de seus agentes que honoravelmente o
serviram, ou para embaçar a imagem da Argélia internacionalmente, deverá ser punido por três a cinco anos de
prisão e uma multa de 250,000 a 500,000 dinares”.
55
Como aponta Boubekeur (2008, p. 11), desde os ataques de 11 de setembro de 2001 os Estados Unidos têm
considerado a Argélia um importante parceiro na “guerra ao terror”, promovendo a coordenação militar para a
resistência às ações de grupos islamitas remanescentes (especialmente aqueles articulados internacionalmente,
como o Al Qaeda au Maghreb Islamique, formado por ex-membros do GSPC em 2007).
56
Segundo Werenfelds (2007, p. 62-77), o segundo círculo era composto majoritariamente de grupos próximos a
ministros, ativistas de organizações civis, lobbies do setor privado e membros de organizações de massa. Já o
terceiro círculo, para a autora, era formado por atores mais dinamicamente posicionados e vulneráveis a
substituições, como o parlamento, partidos esquerdistas e islamitas de oposição (como o cooptado Mouvement de
la société pour la paix, representante dos moderados) e demais forças temporárias de pressão (como o
movimento cabílio, ativistas dos direitos humanos, sindicalistas independentes e imprensa em geral).
57
Nessa dinâmica, destaca-se a atração de muitos atores a partir das tentativas do governo (e frequentemente dos
próprios militares) de propagar uma nova imagem do exército como afastado da dimensão política, num “esforço
para desenhar fronteiras claras entre questões civis e questões militares” (LE SUEUR, 2010, p. 92).
58
Desde a liberalização econômica realizada pela gestão Bendjedid (como debatida na seção anterior), as elites
do setor privado (especialmente aquelas relacionadas às atividades petroquímicas) emergiram como poderosas
fontes de lobby. Werenfelds (2007, p. 64-65) destaca a criação, em 2000, do Forum des Chefs d’Enterprise, que
desde então reúne os maiores empreendedores do país com o autoreferido objetivo de “configurar a agenda
econômica do país”. Além disso, deve-se destacar que a abertura do setor energético em específico (1986) e a
consequente criação de novas oportunidades rentistas ao Estado também ampliou a margem para a aproximação
a novas elites.
54
Mesmo que as novidades políticas59 tenham se dado em convivência com a
manutenção das mesmas elites no poder, o resultado verificado aponta para um avanço na
manutenção da paz (especialmente em comparação ao contexto árabe e magrebino) e na
cessão de direitos civis. A dimensão que melhor expressa isso é a da nacionalidade e,
especificamente, a questão da identidade berbere. Em 2001, como aponta Le Sueur (2010, p.
83), uma série de protestos e levantes se espalhou pela Cabília e atingiu Argel após dois
episódios de brutalidade policial em Tizi Ouzou. As demandas uniam a falta de reformas
político-econômicas e o continuado enfoque estatal no pertencimento árabe, situação que
começou a mudar a partir da liderança do primeiro ministro Ali Benflis. Foram iniciadas
negociações com os envolvidos nos protestos e compensações financeiras foram fornecidas às
vítimas de violência policial, ao mesmo tempo em que era estipulada a punição dos agentes
envolvidos. Em 2002, a constituição foi alterada para finalmente reconhecer o Tamazight
como língua nacional, numa medida que além de representar um movimento inédito (e
impensável a gestões como a de Boumediène e Bendjedid) nas políticas internas de nationbuilding na Argélia, expressou a nova disposição do Estado em realizar concessões 60 em
termos identitários. Essa conscientização das elites sobre a necessidade de uma gestão
inclusiva em nacionalidade não poderia ter ocorrido em momento mais oportuno, visto que a
já debatida capacidade transnacional dos emigrantes na França mantinha interesse no tema e,
até que novas medidas fossem tomadas, pressionou as autoridades:
Imigrantes cabílios e suas crianças se engajaram em demonstrações públicas de
solidariedade com os protestos cabílios de 1994, 1998 e 2001, desacreditando o
pouvoir argelino como um „assassino‟ da cultura berbere em demonstrações em
massa em Paris e afora (SILVERSTEIN, 2004, p. 217).
Em continuidade a esse processo, a gestão Bouteflika tomou uma série de medidas
legislativas e institucionais para melhor aproximar o Estado da comunidade franco-argelina de
emigrantes e assim engajá-los politicamente na arena nacional. Na base desse novo
posicionamento está uma ruptura com o modelo anterior de políticas migratórias e, como
interpreta Labdelaoui (2005, p. 2-3), uma redefinição de discurso (torna-se rara a utilização de
termos como “emigrantes”, sendo mais comum o enfoque em expressões como “comunidade
___________
59
O novo padrão de governo, mesmo ao reinventar a forma e a ação mantendo a substância intacta, foi bem
sucedido em reduzir os efeitos da Primavera Árabe a uma série de protestos esporádicos equilibradamente
manejados pelas forças de segurança e reduzidos em intensidade. Como aponta Del Panta (2014, p. 12-20), isso
foi possibilitado pelo rentismo estatal gerido de forma estratégica, pela memória recente da guerra, pela falta de
uma oposição coesa e pela existência de uma coalizão dominante cujas fragmentações são amenizadas por
princípios comuns de ação estabelecidos desde as transformações políticas debatidas.
60
Outra medida importante a ser destacada e que representou uma interpretação mais inclusiva e apurada das
complexidades da sociedade argelina é a reforma, em 2005, do Código da Família de 1984 (que retirava grande
parte dos direitos da mulher), suprimindo qualquer tipo de descriminação legislativa contra a mulher.
55
nacional estabelecida no exterior”) e prática (trata-se a temática emigratória como uma
potencial fonte de benefícios, como o desenvolvimento econômico, a segurança e a
cooperação com países de destino61). Como demonstra Bouklia-Hassane (2010, p. 43-44), a
ratificação argelina da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os
Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias em 2004 marcou não apenas o
ponto culminante da interiorização jurídica, desde 1990, de uma série de convenções relativas
aos direitos fundamentais do homem, mas um turning point para as novas atitudes sobre a
emigração.
Em 2005, foi realizada a reforma da lei em nacionalidade, a partir de então regulada
pelo critério jus sanguinis de transmissão agora efetivado também por meio da maternidade.
Além disso, a medida também resultou na reafirmação da dupla cidadania e de demais
disposições sobre a constitucional liberdade de saída e, como interpreta Fargues (2013, p. 5),
representa uma das legislações mais igualitárias para o tema na região magrebina. Desde
então, foi priorizada a vinculação entre a ação diplomática e a mobilização de diferentes
ministérios (especialmente o das relações exteriores) para medidas sobre a comunidade
expatriada (LABDELAOUI, 2011, p. 1-2), algo mantido pelo Conselho Consultivo da
Comunidade Nacional Estrangeira62 criado em 2009. No mesmo processo, foi criado em 2010
o Secretariado de Estado Responsável pela Comunidade Nacional Externa, sendo estruturado
como o nível institucional de representação direta das demandas dos emigrados, tendo por
objetivo o melhoramento permanente dos subsídios de serviço público e a promoção da
participação de competências e capacidades nacionais expatriadas na política interna63. Devese destacar a operacionalidade dos programas já desenvolvidos:
___________
61
O governo Bouteflika tem primado pelo tratamento cooperativo da migração (tornando de pouca possibilidade
as decisões unilaterais comuns durante os anos 1970) por meio da participação em várias esferas do sistema
internacional. Deve-se destacar o processo de reaproximação com os EUA no pós-11 de setembro, pois, como
afirma Le Sueur (2010, p. 85), “interesses mútuos no setor energético aproximaram Bush e Bouteflika, mas a
chamada „Guerra ao Terror‟ cimentou o casamento ideológico”. Paralelamente, a Argélia engajou-se, junto à UE
e à França, no combate à migração não documentada. Dentre as ações tomadas nesse sentido, Fargues (2013, p.
5-9) destaca a reforma do código penal argelino em 2009 para adicionar o delito de saída irregular do território e
demais problemas relacionados (como o tráfico humano), a assinatura de seis acordos entre 1994 e 1997 para a
repatriação de argelinos em situação irregular e a proposição de compromissos com a UE (2002) e França (2008)
sobre a intenção de diminuir a migração indocumentada. A gestão bilateral franco-argelina em temas migratórios
atingiu novos patamares com os governos Chirac, Sarkozy e Holland, podendo desenvolver vínculos maiores
com a comunidade expatriada em detrimento do fechamento de fronteiras à migração “ilegal” (esse tema é
melhor tratado no capítulo seguinte).
62
A função principal desse órgão é a de proteger a comunidade (com manutenção da autonomia e fomento à
participação no desenvolvimento da Argélia) e a de articular os diferentes níveis de contribuição dos nacionais
instalados no exterior (um dos objetivos, por exemplo, é o de amenizar os efeitos da “fuga de cérebros”).
63
Destaca-se nova legislação de 2012 que permite o direito ao voto em eleições municipais e parlamentares (não
apenas presidenciais, como ocorria até então) e à representação de oito assentos na Assembleia Nacional Popular
56
[...] a questão do ensino de sua língua de origem a crianças de emigrados evolui
significativamente com o ensino da língua tamazight, além do árabe. De fato, em
continuação ao contexto de uma reunião interministerial no mês de janeiro de 2011
sobre a comunidade nacional no estrangeiro, Benatallah anunciou a adoção do
projeto de ensino das línguas árabe e tamazight nos três ciclos de ensino em
benefício dos membros da comunidade nacional estabelecida no estrangeiro.
Algumas medidas igualmente têm sido tomadas para assegurar mais vantagens a
alunos da Escola Internacional de Paris e permitir a abertura, no futuro, de outras
escolas fora de Paris e de um centro cultural argelino em Londres (LABDELAOUI,
2011, p. 4).
Portanto, a gestão Bouteflika marcou a introdução de um novo período para a gestão
emigratória argelina, rompendo com os posicionamentos que, até então, foram
majoritariamente oportunistas ou indiferentes em relação à histórica capacidade transnacional
da comunidade expatriada. As novas lógicas do exercício de poder geradas pela guerra civil e
a sua conexão com a temática identitária foram condições que possibilitaram a inserção da
emigração na agenda política nacional. Nesse sentido, a recente aproximação institucional não
pode ser apropriada pela noção de que um resgate foi realizado, ou seja, não pode ser
entendida como a “descoberta de uma fonte de agência política” na emigração pelo Estado.
Como a análise em migração demonstrou, a comunidade franco-argelina sempre foi
politicamente visível e esteve, com frequência, na pauta das relações bilaterais. Portanto, o
potencial político da emigração nunca foi desconhecido pelo Estado argelino, mas sim
reavaliado em vistas das condições de ação do contexto pós-guerra civil.
O diferencial desse relacionamento desde 1999 se dá pelo fato de que os atores
considerados (Estado e emigração) encontraram-se cercados por uma conjuntura favorável
(envolvida pelas consequências da guerra à constituição de ambos) e uma estrutura histórica
sempre influente (envolvida pelas atrações/repulsas da colonialidade e pela cultura política de
ambos). Em suma, e como introduzido pelo debate teórico do capítulo anterior, a identidade
nacional argelina desde a independência foi posta em movimento por dinâmicas tanto fluídas
quanto fixas: ao longo dos períodos, o existencialismo esteve a cargo de diferentes percepções
acerca da nação e, em termos de gestão migratória, apenas na conjuntura mais recente foi
expressa por meio de nation-building. A história de sua descolonização pode até envolver
(metade dos quais é reservada a mulheres). Ademais, é possível identificar uma nova mentalidade de ação
distante do oportunismo e indiferença das políticas unilaterais marcantes de períodos anteriores: "as primeiras
concertações dos encontros com os representantes da comunidade nacional no estrangeiro confirmam que o
objetivo não é o de pedir a adesão dessa comunidade a uma política elaborada sem sua participação, mas o de
gerar participação de seus representantes para a elaboração da estratégia governamental em direção dos argelinos
no estrangeiro" (LABDELAOUI, 2011, p. 3). Em movimento convergente está a multiplicação de organizações
civis para o diálogo acerca da política emigratória, sendo de destaque a Associação das Competências Argelinas,
a Associação Argelina para a Transferência de Tecnologia, a Rede de Graduados Argelinos das Grand Écoles e
das Universidades Francesas e a Rede para o Investimento no Mediterrâneo.
57
mudanças abruptas e descontinuidades regulares, mas esses elementos sempre foram
evocados por meio de um senso constante de “redescoberta” ou “reafirmação” nacional como
condições necessárias à estabilidade. A inédita aproximação do Estado sobre a emigração,
além de provar fundamental o papel da conjuntura de ação, representa mais uma vez o caráter
cíclico da identidade argelina pós-colonial e permanente do existencialismo como
enquadramento simbólico à imaginação da mesma. Em suma, passou-se a imaginar a Argélia
também pela via daqueles que a deixaram, mas que a ela continuam ligados.
3.5 Conclusão do capítulo
Por meio de uma revisão de três períodos históricos demarcados a partir da variação
nos padrões em migração e nation-building, este capítulo procurou demonstrar como a relação
entre o Estado e a comunidade emigrada, mesmo em suas descontinuidades, funciona como
ferramenta de acesso ao exercício existencialista identitário conforme praticado em cada
conjuntura. Cada seção destaca variáveis primárias e secundárias que determinaram a relação
Estado-emigração, por fim as relacionando a uma estrutura de identidade nacional mais ampla
e remodelada pelo contexto considerado. Nesse sentido, ainda que tanto a negligência (dada
de diferentes formas de 1962 a 1973 e de então a 1999) quanto a aproximação (desde 1999)
do Estado sobre a comunidade expatriada expressem uma estrutura identidade existencialista,
esta apenas encontra-se amadurecida em práticas de nation-building sobre a emigração
durante o período mais recente.
58
4 A IMIGRAÇÃO E O PROCESSO SECURITÁRIO NA FRANÇA
4.1 Introdução ao capítulo
Este capítulo analisará a expressão migratória da identidade nacional francesa por
meio de posicionamentos de securitização em setor societal tomados em diferentes períodos
desde a independência argelina de 1962 e que atingiram tanto a comunidade argelina
estabelecida quanto seu crescimento pelos novos fluxos de entrada. Em estrutura semelhante à
do capítulo anterior, são selecionados três períodos históricos que marcam desenvolvimentos
específicos em securitização e em sua expressão identitária. Primeiramente, os processos
marcados na conjuntura entre 1962 e 1974 apontam para uma gestão economicista da
imigração que não envolveu quaisquer tentativas concretas de securitização do tema.
Posteriormente, o período entre 1974 e 1986 marca a efetivação de políticas securitárias
calcadas na padronização de atores, procedimentos e objetos centrados em um estágio inicial
da securitização da imigração, porém limitado ao setor econômico e de segurança pública. Por
fim, entre 1986 e a atualidade destaca-se a ampla expansão dos atores e meios para a
securitização da imigração, agora concreta em seus termos societais expressos em discurso e
prática de uma forma inédita. Em cada seção, são debatidos processos distintos cuja
exploração parte da base quantitativa e qualitativa em migração fornecida pelos capítulos
anteriores. Por meio da atenção a variáveis externas influentes, objetiva-se a análise do
posicionamento estatal francês sobre a imigração argelina (de modo a atingir os padrões de
variação da relação migração-securitização) e das formas pelas quais seu desenvolvimento
expressou, dentro das especificidades de cada conjuntura, um projeto identitário
essencialista64. De modo análogo, argumenta-se tal projeto passa por uma progressão histórica
em gestão migratória que parte de um caráter apenas reflexivo até uma ordem explicita e
consolidada na qual a securitização é diretamente expressiva do essencialismo conforme
exercito pela identidade francesa.
___________
64
Como debatido anteriormente, o conceito refere-se à longa tentativa de concepção de uma nação “livre” dos
traumas pós-coloniais. Nesse sentido, o essencialismo representa lógica estrutural predominante durante a
reconstrução da identidade nacional após o declínio do império e, como se tornará claro ao longo das seções,
manteve-se consolidado de diferentes formas no que se refere à gestão imigratória francesa.
59
4.2 A racionalização econômica da imigração (1962-1974)
Ao longo do período de reconstrução nacional pós-Segunda Guerra, uma reinvenção
material e subjetiva atingiu o Estado francês em seu percebido papel doméstico e
internacional. A independência argelina em 1962 representou mais uma dessas rupturas
históricas e influenciou a gestão imigratória francesa tanto pela contribuição à percepção
social xenófoba quanto pela limitação, a pouco mais de uma década, das possibilidades de
uma governança isolada e economista do Estado sobre a imigração. A variação desse
posicionamento estava ligada a dois elementos sobrepostos: a conjuntura econômica nacional
e a relação entre o Estado e os setores sindicalistas e empresariais empregatícios. Em diálogo
com essas duas variáveis, destacam-se as mudanças envolvidas na transição para a Quinta
República e a ascensão do neoliberalismo enquanto paradigma econômico.
Em primeiro lugar, os processos econômicos iniciados pela liberação nacional e pela
ascensão da Quarta República em 1946 envolveram profundas transformações65 influentes
junto à descolonização argelina em 1962. Apesar dos ciclos de desemprego e desequilíbrio no
balanço de pagamentos, o ritmo permanente de crescimento (STATE, 2011, p. 292) e as
consequências demográficas imediatas da guerra intensificaram as necessidades em mão de
obra naturais à conjuntura de reconstrução nacional. Esse processo, interiorizado pelas elites
(MAHLKE, 2005, p. 97), teve por resposta institucional imediata uma série66 de medidas em
facilitação do recrutamento de trabalhadores não nacionais. Com a criação do Office National
d’Immigration (1945) em substituição ao Société Générale d’Immigration (conglomerado de
agências privadas de recrutamento formado em 1926), o Estado francês empregou o laissezfaire na imigração de forma inédita. Afastando o Parlamento e os centros privados da tomada
___________
65
Em sequência às nacionalizações consolidadas por de Gaulle até 1946 e à acomodação do arranjo de
reconstrução europeia com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço em 1951, a modernização
econômica francesa envolveu um novo ritmo de mecanização do setor rural e a reconstituição da cadeia
produtiva especialmente em sua distribuição urbana (TOGMAN, 2011, p. 79). Como aponta State (2011, p. 299300), a amplitude da transformação ocorrida gerou o embate político, nos anos 1950, entre poujadistas liderados
por Pierre Poujade e representantes dos interesses do pequeno empresariado rural, e os seguidores de Pierre
Mendès-France interessados no maior incentivo às grandes corporações e à racionalização econômica.
66
Tais medidas estavam circunscritas no chamado “modelo francês de integração”, que impunha um padrão de
tratamento social e político do imigrante baseado no pressuposto do melting pot. De acordo com tal tese
(brevemente debatida no primeiro capítulo), a posição ideal do Estado seria a de passividade em relação à
comunidade imigrante estabelecida, agindo apenas sobre sua inserção econômica na medida em que a
assimilação automática a desproveria de laços à sociedade de origem. Na França, diferentes escolas de
pensamento orientaram a tomada de decisão em imigração segundo os pressupostos assimilacionistas, porém
sempre partindo da redução dos fluxos a um objeto de racionalização (TOGMAN, 2001, p. 81).
60
de decisão sobre o tema, o modelo desenvolvido legou a orientação estatal predominante
durante a década de 60: “o braço executivo francês „publicava‟ políticas via decretos e
circulares que nunca eram considerados na Assembleia Nacional” (TOGMAN, 2011, p. 98).
Esse posicionamento, especialmente durante os primeiros anos da década de 1970,
sofreu a pressão de setores específicos da economia atraídos pelo tema imigratório em face do
findar dos anos dourados de crescimento e das mudanças registradas no âmbito da
Comunidade Econômica Europeia. Nesse contexto, destacam-se dois atores que contribuíram
a uma rearticulação do Estado para a manutenção da gestão unilateral ao menos até 1974: o
sindicalista e o empresarial empregatício. Para fins de legitimação das medidas nos círculos
de influência da elite econômica, a gestão tornou-se sensitiva às demandas do lobby de um
dos dois grupos de acordo com a conjuntura de ação: “um padrão começou a se formar no
qual o governo geralmente perseguia políticas que tinham o suporte de pelo menos um dos
dois maiores interesses de classe” (TOGMAN, 2011, p. 84). Essa estratégia permitia não
apenas a ampliação do campo de manobra político para a priorização das necessidades
econômicas pulsantes do país, mas também o tangenciamento das oposições sociais ao
incentivo à imigração. Duas dinâmicas políticas correntes desde a independência argelina
também desempenharam papel importante às condições de manutenção dessa estratégia
assumida pelo Estado.
Primeiramente, destaca-se a centralização política levada a cabo durante a gestão de
Gaulle. Ancorada pelo apoio de interesses conservadores contrários à descolonização
argelina, a ascensão de Charles de Gaulle ao poder67 em maio de 1958 alimentou a esperança
de uma reversão das negociações com a FLN e, assim, tornou a rápida reestruturação do
sistema político possível. Uma série de medidas68 “gaullistas” foi tomada para o aumento do
___________
67
Especialmente dentre os círculos militares de influência política na época, o novo presidente emergiu como
uma figura intermediária capaz de superar as dificuldades enfrentadas pela bipolarização inicial entre a direita e
a esquerda dos anos 1950: “como tanto um símbolo e um salvador quanto a pessoa sob cuja liderança o governo
poderia ser reordenado e as forças armadas reforçadas” (STATE, 2011, p. 302). A oportunidade de controlar o
poder por de Gaulle surgiu a partir de levantes organizados por militares franceses em Argel que culminaram na
profunda fragmentação entre governo central e exército no que diz respeito ao tipo de descolonização
perseguido. Cercado pelo alto escalão militar e requisitado pelos setores mais conservados da coalizão
governante, de Gaulle retornou ao poder com o preenchimento de suas ideias constitucionais e a fundação da
Quinta República (HOWARTH e VAROUXAKIS, 2014, p. 39).
68
Dentre tais medidas, como apontam State (2011, p. 303-205), Howarth e Varouxakis (2014, p. 40), destacamse a adoção de sistema eleitoral de dois turnos, de um Parlamento bicameral reorganizado (constituído por
Senado e Assembleia Nacional), e do poder presidencial de apontar o cargo de primeiro ministro, de dissolver a
Assembleia Nacional e de nominar o presidente do Conselho Constitucional. Em termos gerais, tais mudanças
encorajavam a formação de alianças polarizadas atuantes além dos períodos eleitorais e que, em longo prazo,
legaram a bipolarização do sistema política francês e a estabilidade dos governos da Quinta República.
Importante também nesse âmbito foi terceiro-mundismo de política externa vinculado à manutenção do
61
poder decisório do Estado em termos econômicos domésticos e internacionais (NAYLOR,
2000, p. 48). Apesar de terem sido parte causal da agitação política verificada ao fim da
década, essas mudanças possibilitaram a retenção do poder decisório almejado no campo
imigratório principalmente na medida em que não foram revisadas no governo seguinte.
Em segundo lugar, importa a nova configuração partidária e sua relação com a
imigração. Central nesse sentido está a recuperação de força política pelos partidos
esquerdistas (especialmente a ala moderada, até então relacionada à falha da Quarta
República) e uma resultante bipolarização do poder político nacional (STATE, 2011, p. 305).
De um lado, a Fédération de la Gauche Democrate et Socialiste reunia as forças socialistas e,
de outro, os gaullistas formavam uma coalizão com as forças liberais por meio da Union des
Démocrates pour la République. Como expressam as dificuldades de reeleição em 1965, os
protestos massivos de 1968 e a rejeição popular de uma série de reformas limitadas em uma
“última saída” para de Gaulle em 1969, a ampliação dessa configuração política tornou mais
difícil a ação unilateral do Estado em imigração.
A renúncia por de Gaulle em 1969 em face da escalada da crise política69 e a
consagração de Georges Pompidou à sucessão gaullista anunciou uma “normalização”70 das
relações entre governo e oposição, mas não impediu pressões sobre o tema da imigração. A
despeito do fato de que “o Partido Comunista e o maior sindicato, a Confédération Générale
du Travail, apresentaram uma atitude ambivalente em relação aos imigrantes”
(SILVERMAN, 1992, p. 45), os interesses da comunidade franco-argelina começaram a ser
interiorizados às agendas do operariado francês e de seus braços partidários de oposição. As
desenvolvimento econômico pós-guerra esteve e na busca por uma posição pragmática frente à bipolarização da
política internacional: “o gaullismo via uma necessidade ampliada de uma França forte e independente: a
necessidade de oferecer ao mundo em desenvolvimento uma „terceira via‟, uma alternativa em relação às
superpotências, na condução das relações externas” (NAYLOR, 2000, p. 48).
69
Como demonstra State (2011, p. 310-311), a crise teve origem nos levantes ocorridos no ano anterior e
assumiram grande amplitude nacional por meio de greves e demonstrações públicas especialmente em fábricas e
universidades: “a França parecia estar à beira de outra revolução”. Uma série de concessões foi realizada sob a
liderança do novo ministro de educação Edgar Faure e do então primeiro ministro Georges Pompidou, porém as
principais medidas reformistas foram reprovadas em referendo nacional de 1969. A manutenção dos gaullistas
no poder foi possibilitada pela fragmentação da esquerda e, como interpretam Howarth e Varouxakis (2014, p.
38-39), pela disposição dos socialistas em conviver com as estruturas políticas da Quinta República (a nível
local, sua ala moderada recobrava força eleitoral).
70
A expressão mais direta de tal normalização foi a difusão de uma direita moderada não gaullista equivalente
em força à UNR (eventualmente fazendo parte de sua coalizão no governo, como é o caso de Giscard, a ser
eleito presidente em 1974). É nesse contexto que a criação da Union des Démocrates pour la République em
1971 une elementos do ascendente neoliberalismo com o gabinete formado pelo governo Pompidou vitorioso nas
eleições legislativas de 1973 (STATE, 2011, p. 312). Apesar das bem sucedidas reformas educacionais e
administrativas (com transferência de poderes a assembleia regionais, por exemplo), a crise econômica
anunciada pela guerra de Yom Kipur (1973) tornou inevitável a derrota eleitoral em 1974.
62
medidas de restrição assumiram nesse momento um caráter brando que visava manter a ainda
necessária recepção de trabalhadores enquanto satisfazia a pressões políticas envolvidas na
vinculação entre imigração e problemas de ordem pública, por exemplo. Não ameaçando a
posição unilateral do Estado e nem securitizando os fluxos, esse processo foi paralelo ao
direcionamento a uma agenda mais moderada (próxima ao Républicains-Indépendents,
liderado pelo posterior presidente Valéry Giscard d‟Estaing) e à reavaliação da incipiente
integração europeia71 e da orientação interna em política econômica (STATE, 2011, p. 312313).
Essa última mudança ocorreu em paralelo à ascensão do neoliberalismo e também
condicionou a gestão imigratória objetivada pelo governo. A unilateralidade decisória do
Estado72, inequívoca em sua constante rearticulação, agora lidava também com a expansão do
espaço ocupado pelo liberalismo na intelectualidade francesa A ascensão do neoliberalismo
em meios acadêmico-empresariais (HOWARTH e VAROUXAKIS, 2014, p. 22), algo
expresso pelo suporte aos benefícios da globalização e ao não intervencionismo estatal, foi
claramente representada pela Association pour la Liberté Économique et le Progrès Social73.
Com suas discussões muito disseminadas à época, a associação e demais elites neoliberal
encontram voz pública no fato de que “muitos empregadores que dependiam do trabalho
imigrante estavam infelizes com o novo sistema. Líderes empresariais desejavam uma mão
mais livre no recrutamento de trabalhadores estrangeiros, tal qual a que tinham antes da
guerra” (TOGMAN, 2011, p. 87). Como debatido para outras instâncias, o Estado novamente
manipulava os interesses de diferentes atores de forma a evitar a politização do tema e a
continuar atraindo uma mão de obra suficiente para as necessidades econômicas. Apenas a
crise econômica posteriormente deflagrada formaria um consenso político nacional em torno
de medidas restritivas à imigração.
___________
71
Como apontam Howarth e Varouxakis (2014, p. 194-195), os primeiros três anos da década de 1970 marcam a
ascensão da França enquanto pivô do aprofundamento da integração pelas negociações da União Econômica e
Monetária, com a priorização da intergovernamentabilidade e dos interesses em manter a moeda nacional forte
em comparação à alemã. Tal inflexão de posicionamento francês é uma das primeiras expressões do que, nos
períodos subsequentes, consolida-se como a europeização das políticas imigratórias nacionais. Esse tema será
aprofundado na penúltima seção.
72
Como aponta Togman (2011, p. 92), destacam-se três circulares emitidas em 1956, 1962 e 1964 cujo objetivo
era o maior fornecimento de subsídios à contratação irregular de trabalhadores imigrantes. Essas medidas foram
tomadas de forma administrativa, sem qualquer envolvimento parlamentar ou dos setores interessados no
emprego planejado dos fluxos de entrada.
73
Constituída enquanto comunidade epistêmica a partir de 1969, representou o surgimento de um arranjo
argumentativo inédito para a “justificação” das dinâmicas do capitalismo contemporâneo. O público-alvo era
especialmente a juventude envolvida nos levantes de maio de 1968 excluída da divisão das prosperidades
oriundas dos trente glorieuses (CHABAL et al, 2015, p. 181).
63
A gestão estatal da imigração argelina pela França durante o período entre 1962 e
1974 esteve situada, portanto, dentro da ampla conjuntura de reconstrução econômica
nacional e de redefinição das dinâmicas políticas envolvidas na perseguição de princípios
democráticos consolidados em longo prazo. À luz desse processo, a regulação dos fluxos de
entrada segundo uma lógica de demanda e oferta remeteu à acomodação identitária pela qual
passava a França dos anos 1960 em face da descolonização, porém não a relevou de forma
explícita em seu conteúdo. A posição majoritariamente isolada do Estado no tratamento dos
fluxos foi possibilitada pela sempre latente associação com um dos “parceiros sociais”
interessados na livre circulação de trabalhadores. Essa disposição de forças foi traduzida em
legislações pontuais comumente afastadas do debate parlamentar e das agendas eleitorais, de
forma a sujeitar quaisquer oposições à necessidade de mão de obra. As poucas políticas
públicas restritivas registradas ao fim da gestão Pompidou estiveram envolvidas no choque
inicial entre a presença imigrante e os crescentes problemas de habitação, desemprego e
ordem pública, comumente representando medidas de cessão às pressões de oposição e pouco
geradoras de mudanças na gestão em geral. Expressão clara disso é o caráter paliativo das
circulares Marcellin-Fontanet (1972) e Gorse (1973), geradas pela esparsa politização do tema
e, em seu caráter paradoxal74, mantenedoras do status quo assegurado pelo Estado sobre a
imigração. Verifica-se assim uma ausência tanto de processos concretos de securitização do
tema quanto de uma expressão da estrutura identitária nacional de forma prática na gestão da
imigração. A imigração não foi construída enquanto ameaça à identidade nacional, cujo
caráter essencialista apenas pode ser apreendido por interpretação que leve em conta o
significado da racionalização econômica dos fluxos humanos em uma sociedade já avessa aos
mesmos. Em outras palavras, o essencialismo ainda não havia sido vinculado sob aspecto
algum à gestão das imigrações.
Ainda próxima a um passado que a consolidou enquanto um centro mundial de
grandeza militar, cultural, política e econômica, a nação francesa reemergiu da turbulenta
década de 30 guiada pela necessidade de retorno à “normalidade imperial” (STATE, 2011, p.
296). Nesse contexto, durante as décadas de 40 e 50 as forças institucionais do Estado foram
direcionadas para o preenchimento da tarefa de recriação administrativa da Terceira
República apenas para que, entre 1956 e 1962, a descolonização trouxesse a independência de
___________
74
A primeira tinha por objetivo a restrição à regularização dos não documentados e a segunda promovia a
realização de anistias que se direcionavam em sentido contrário. A estratégia de lógica give and take frente aos
grupos políticos de pressão apoiou-se na atuação posterior do Secretaire d'Etat chargé des travailleurs imigres,
também criado sob o pretexto de que uma nova política imigratória estava sendo formulada quando, de fato, o
modelo já consolidado era mantido.
64
17 países e a queda simultânea de um ideário simbólico até então inquestionável. Se por um
lado a percepção atemporal da nação passou a conviver com a solução da cooperação póscolonial e da autonomia em meio à bipolarização das superpotências, por outro a legitimação
das mudanças ocorridas se deu em uma plataforma de autoafirmação. Buscava-se o destaque
da França enquanto entidade paralelamente maleável à ação do tempo e permanente em sua
função (contribuição à cultura e à civilização) e potencial (influência político-econômica) no
mundo. Na medida em que “ideias perpetuadas como a de que a glória e a grandeza da
França, acompanhadas pelo auto imposto dever de difundir a genialidade de sua cultura,
afetavam mentalidades e especialmente as „mentes oficias‟ pós-coloniais” (NAYLOR, 2000,
p. 49), mesmo o caráter racionalista da gestão imigratória no período apresentou uma relação
de poder assimétrica sobrevivente à renovação identitária realizada. Representada
consensualmente como objeto econômico, a imigração argelina nessa conjuntura demonstra
como o “mascaramento do caráter intrinsecamente político do fenômeno efetuado, enquanto
abundantemente carregado de implicações políticas, constitui uma das malícias que a lógica
propriamente simbólica, a lógica da ordem simbólica, exige” (SAYAD, 1998, p. 67). É nesse
sentido que as práticas liberais do Estado em relação aos fluxos de entrada e a sua
racionalização econômica escondiam, até o início da crise, a profunda oposição social à
estadia prolongada do imigrante. Portanto, a dimensão do essencialismo francês expressa pela
gestão imigratória nesse período é aquela ligada à incipiente percepção de uma capacidade
remanescente de dominação, ainda vinculada estreitamente às demandas da economia
nacional. A partir de 1974, a gestão imigratória traduziria essas percepções na adoção de
políticas propriamente securitárias contrapostas à articulação política da comunidade francoargelina. Pela primeira vez, o senso da imigração enquanto indesejável atingiria amplamente
os tomadores de decisão e seria efetivado de forma mais concreta em políticas de Estado –
ainda que exclusivamente nos setores econômico e de segurança pública.
4.3 A construção política da imigração (1974-1986)
O fim de uma sequência de décadas marcadas pela prosperidade econômica e o
rearranjo das capacidades do Estado de agir unilateralmente sobre a mesma devem ser
65
destacados não apenas como processos retroativos, mas como catalisadores de novas
percepções políticas e sociais sobre a imigração. É nesse sentido que, no contexto da gestão
de Valéry Giscard d‟Estaing (1974-1981) e de parte do primeiro mandato de François
Mitterrand (1981-1988), constrói-se um consenso político inicial acerca do tratamento da
imigração, algo instrumentalizado pela securitização do tema especialmente no setor
econômico. Dois elementos centrais contribuíram a esse processo: a inflexão discursiva do
modelo francês de integração imigratória e a chamada “crise do republicanismo”75.
Paralelalmente, as variáveis externas relacionadas à economia francesa e às novas dinâmicas
do sistema político tiveram papéis importantes no condicionamento dos padrões de gestão
securitária da imigração argelina.
A proibição da imigração laboral em 1974, além de resultado direto do choque
econômico causado pela crise do petróleo de 1973, foi imediatamente legitimada pelo
crescimento de ataques violentos racialmente motivados. Na medida em que a confluência da
crise petrolífera e do crescente desemprego lançava a economia francesa em um recesso de
grandes proporções (TOGMAN, 2011, p. 108), inaugurou-se a priorização tanto do
fechamento de fronteiras à imigração indocumentada quanto de um posicionamento que
permitisse a redução dos choques sociais em decorrência. Como interpreta Silverman (1992,
p. 70), a essa tarefa coube a reinvenção do assimilacionismo já consolidado desde o período
anterior76. Sob os auspícios dos ministros Jacques Chirac (1974-1976) e Raymond Barre
(1976-1981), a gestão Giscard permeou a retórica republicana circunscrita em tal modelo com
construções discursivas direcionadas à definição de categorias como “problema”, “novo”,
“solução” e “política imigratória”. A nova concepção da memória francesa em imigração
envolveu, nesse sentido, a diferenciação entre os fluxos anteriores e os que estavam em
ascendência. Foi possibilitada, assim, a justificação da necessidade de restringir os últimos: “a
„novidade‟ da „nova política‟ então reside não tanto nas medidas em si, mas na reformulação
da história da imigração passada que ela implica. É a reconstrução retrospectiva da ideia de
assimilação que é a mais significante aqui” (SILVERMAN, 1992, p. 81). Nesse sentido, foi
realizada a apresentação da imigração corrente como “nova” ou de “povoamento” em
___________
75
Como debate Reis (1997, p. 70), o republicanismo, ao ser socialmente percebido na França como uma
invenção genuinamente nacional, historicamente figurou enquanto preceito filosófico e moral de força constante.
A noção de que a nação é fundada pelo contrato social com o suporte da adesão voluntária e do respeito
humanitário, portanto, sempre se manteve influente na política nacional – em outras palavras, sempre foi “um
ponto a ser satisfeito” na legitimação de políticas.
76
Em sua definição clássica, tal modelo de integração envolve três pressupostos acerca do processo de
integração de não nacionais (VERTOVEC e WESSENDORF, 2010, p. 93): sua natureza individual (instituições
apenas arbitram seu funcionamento), sua priorização do vínculo criado pela cidadania (sobreposição sobre fontes
paralelas de pertencimento) e sua objetivação de uma igualdade idealmente “cega” às diferenças.
66
contraste com a de “mão de obra” antes verificada, o que permitiu uma categorização crítica
de fluxos enquanto “temporários” ou “permanentes”, como demonstra Sayad (2000, p. 24).
Com a reconstrução dos fluxos enquanto maléficos, emergiu a legitimação da
necessidade de uma nova intervenção estatal. Essa foi materializada especialmente pela
criação do Secretaire d'Etat Chargé des Travailleurs Imigrés (1974) e pela tomada de várias
medidas que, além de posicionadas em dissintonia com a retórica oficial pluralista, revelavam
o que Howarth e Varouxakis (2014, p. 159) interpretam como a “fraqueza do neoliberalismo
econômico francês”. A despeito da inicial relativização do dirigismo gaullista em busca da
recuperação da competitividade global aliada a reformas sociais 77, a emergência de medidas
de austeridade revelou as fragmentações existentes em termos de política econômica no
gabinete governante78 (STATE, 2011, p. 314). Bloqueadas as possibilidades de consenso em
tomada de decisão econômica, e em vistas do contínuo crescimento do desemprego 79, as elites
das grand écoles80 atingiram nova convergência política acerca da imigração. Agora
desvinculada do programa de crescimento nacional, a discussão sobre o tema tornava-se então
desejável tanto para Estado quanto para os grupos de pressão envolvidos.
Em um movimento inédito, verificaram-se os primeiros esforços de racialização da
gestão imigratória no debate público durante o governo Giscard, em um estágio inicial de
padronização discursiva (SAYAD, 2000, p. 22). Ainda assim, essa convergência de forças
pôde ser concretizada na securitização apenas em um espectro econômico e de segurança
pública, posto que além de pouco amplo, o consenso político formado não era centralmente
vinculado ao tipo de discurso identitário exposto. Os anos 1980 e sua absorção inicial do
libertarianismo soixante-huitard81 ainda intensificaram o ativismo imigrante, dificultando a
___________
77
Como destaca State (2011, p. 313), a amplitude das reformas envolveu a redução da idade eleitoral, a extensão
dos programas de segurança social e facilitação do acesso à educação básica. De particular significância,
entretanto, foi a legalização do aborto, que de imediato acirrou as oposições por parte da direita gaullista e
conservadora em geral.
78
Além do desmembramento partidário de Chirac, a vitória nas eleições legislativas de 1978 não impediu um
declínio em popularidade de Giscard frente ao gaullismo econômico assumido por Barre. É nesse contexto que
se torna clara a divergência entre a adoção do modelo econômico alemão pelo primeiro ministro e o fomento,
pelo presidente, de uma posição menos intervencionista envolvida no debate dos periódicos neoliberais
Contrepoint e Commentaire (CHABAL, 2015, p. 207).
79
Conforme expostas por Togman (2001, p. 108), as taxas de desemprego do fim da década de 70 ultrapassam
os 5% e, em relação ao início da década, registram um crescimento de 229,4%.
80
O termo refere-se às instituições de educação que historicamente acumulam a formação das elites políticas
nacionais, algo incorporado especialmente pela École Nationale d’Administration e seus énarques. Como
destacam Howarth e Varouxakis (2014, p. 30-31; 52-58), mesmo que tal configuração seja comumente criticada
por desconectar a população da alta política, desempenha um papel importante na estabilidade da Quinta
República ao gerar elites coesas e contribuir para as dinâmicas cíclicas de poder verificados na França
contemporânea.
81
A expressão tornou-se comum no vocabulário de correntes da direita crítica às formas radicalizadas de
liberalismo político oriundas dos levantes de 1968, pois defendiam um ritmo acelerado às mudanças vistas como
necessárias ao país. A formação desse movimento marcou a constância de tensões sociais ao longo da década de
67
concretização de uma securitização da imigração no setor societal. Importante em tal contexto
é a ascensão de Mitterrand ao poder e a chamada “crise do republicanismo” ligada às ações de
governo desempenhadas.
A herança política de Charles de Gaulle foi um dos elementos fundamentais às
alterações na balança de poder nacional dos anos 1970 que permitiram o sucesso eleitoral
socialista em 1981 (HOWARTH e VAROUXAKIS, 2014, p. 18). Isso porque o peso do
paradigma de ação gaullista contribuiu para a reestruturação partidária da direita e da
esquerda82 na medida em que perdurou nos elementos dissidentes da coalizão de governo com
Giscard, e sob a liderança de Chirac representou a única força com potencial de oposição ao
Parti Socialiste. Esse, em vistas do fraco desempenho econômico de governo nos últimos
anos da década de 1970, procurou uma agenda moderada afastada do Parti Comuniste
Française e pragmática quanto à oportunidade gerada pela fragmentação de direita. Ao
marcarem o atendimento oficial da demanda de minorias pelo “direito à diferença” e a
perseguição de um programa muito mais doutrinário do que o prometido em campanha
(STATE, 2011, p. 315)83, os três primeiros anos de Mitterrand acabaram encorajando a
ascensão posterior tanto do extremista Front National quanto do moderado Rassemblement
pour la République como geradores de um debate inédito.
Esse processo envolveu, por um lado, a retomada de princípios republicanos
tradicionais em resposta à prática estatal do que era taxado como “comunitarismo”84 e, por
70 e em vários momentos convergiu com a agência politica desenvolvida no seio da imigração (CHABAL, 2015,
p. 117).
82
De um lado, a não adesão de Giscard ao modelo de governança gaullista rapidamente entrou em conflito com
a posição pró-centralização do primeiro ministro Chirac, que em 1976 cria o Rassemblement pour la République
para reencarnar o programa da UNR. De outro, a derrota de Mitterrand no segundo turno das eleições de 1974
acelerou o declínio das tentativas de formação de uma coalizão em conjunto ao Parti Comuniste Français
(STATE, 2011, p. 314). Expressão disso foi o posicionamento do PS como único representante de esquerda
capaz de desafiar a gestão Giscard e, especialmente, a gradual ascensão do RPR como ator de confrontação
capaz de assumir posições elevadas no gabinete central.
83
Como aponta Togman (2001, p. 118-121), aumento do salário mínimo, tributação de grandes fortunas,
nacionalizações, abolição da pena de morte, legalização de associações civis para imigrantes e financiamento de
mídias a elas associadas estão dentre as medidas tomadas em um primeiro momento que, por terem sido
articuladas em uma posição mais aberta à comunidade de imigrantes e à defesa dos direitos humanos, soaram
como “música aos ouvidos da extrema-direita” (FAVELL, 2001, p. 57). A lógica paternalista de defesa do
multiculturalismo inserida em parte dessas práticas acabou por negligenciar as forças de oposição, como aquela
representada pela emergente comunidade intelectual crítica aos direitos humanos enquanto guia ao campo de
manobra estatal (CHABAL, 2015, p. 225-240).
84
Referente ao percebido crescimento de forças políticas categorizadas segundo laços paralelos ao da
nacionalidade francesa, o uso do termo no discurso público foi reforçado tanto pelo baixo desempenho
econômico dos primeiros anos de Mitterrand quanto pelas práticas de descentralização política já nascidas na
gestão Giscard. Sob a liderança do ministro do interior Geston Defferre (1982-1986), as regiões e départements
tornaram-se autoridades locais (como as comunas e municipalidades) com autonomia orçamentária para lidar
com os novos cargos administrativos afastados do poder executivo do prefeito (HOWARTH e VAROUXAKIS,
2014, p. 59-63; STATE, 2011, p. 316). Em pouco tempo, tais reformas figuravam no centro das críticas ao
“comunitarismo” incentivado pelo governo.
68
outro, a interiorização de tal posição reacionária por parte até mesmo de ativistas imigrantes.
Como aponta Silverman (1992, p. 6), “em oposição ao anterior slogan antirracista „o direito à
diferença‟ („le droit à la difference‟), os maiores slogans da France Plus têm sido „o direito à
semelhança‟ („le droit à la ressemblance‟) e „o direito à indiferença‟ („le droit à la
indifférence‟)”85. É nesse sentido que a crise republicana do início dos anos 1980 teve
expressões em uma ampla quantidade de atores divididos entre as políticas afirmativas de
Estado e a reação a elas. O período entre as reformas de Mitterrand e as eleições legislativas
de 1986 representou, assim, uma prova de resistência passada pela filosofia republicana
francesa. Sua dominância na política nacional foi testada e comprovada pelo fato de que
mesmo as elites responsáveis pela tentativa de mudança em políticas públicas para imigração
em pouco tempo cederam às pressões de oposição:
Entretanto, até 1983, quando ataques racistas estavam em crescimento e a Frente
Nacional havia quebrado a barreira dos 10% nas eleições municipais, o governo
respondeu da forma o mais pragmática possível pelo fortalecimento de seus
controles e reforçando sua campanha contra os “clandestins” (SILVERMAN, 1992,
p. 59).
Na medida em que registra-se ao fim desse processo de embate um ressurgimento do
tradicionalismo” (REIS, 1997, p. 92), o governo socialista foi submetido a uma inflexão de
posicionamento eleitoralmente representada pela primeira cohabitation (1986-1988)86, que
tornou claras as contradições e dificuldades envolvidas em um tratamento aberto da imigração
na França. O dilema da gestão de uma identidade nacional posicionada entre a defesa dos
particularismos étnicos, culturais e religiosos (e seu aspecto humanitário, universalista e
libertário) e a manutenção da indivisibilidade coletiva (e seu aspecto republicano,
tradicionalista e igualitário) rearranja a “significância peculiar do passado” (HOWARTH e
VAROUXAKIS, 2014, p. 2) à nação. A renovação de seu essencialismo identitário manteve a
busca pela manutenção pós-colonial de relações de poder assimétricas e culturalmente
definidas, porém agora legitimada tanto pela corroboração das teses republicanas da unidade
nacional quanto pelo ponderamento dos princípios humanistas do universalismo. A
ambivalência desse processo, como debatido, teve dois efeitos direitos que deram à
conjuntura um papel transicional. Se, por um lado, consolidou-se um tipo de posicionamento
___________
85
Outro exemplo a destacar nesse processo é ativismo da Associação de Cultura Berbere, que passou a envolver
a afirmação do “vínculo a princípios republicanos de laicité” (SILVERSTEIN, 2004, p. 180)
86
Definido pela disposição em governo de um presidente e um primeiro-ministro pertencentes a filiações
partidárias distintas, esse fenômeno é comum ao sistema semipresidencialista francês. Isso porque as eleições
legislativas possuem grande peso na constituição da coalizão governante, pois definem quê lideranças políticas
podem emergir ao cargo de primeiro-ministro (HOWARTH e VAROUXAKIS, 2014, p. 44). No caso de 1986,
Mitterrand foi obrigado a apontar Chirac para o cargo e a “encarar” as críticas recorrentes aos primeiros
momentos de seu mandato. A significância desse processo para o novo caráter em gestão imigratória, a ser
repetido nos anos 1990, será brevemente debatido na próxima seção.
69
político sobre a imigração “explicitamente assentado em termos referentes às fundações
teóricas da unidade e coesão política francesa” (FAVELL, 2001, p. 40), por outro foram
bloqueadas as perspectivas herdadas dos 70 de uma securitização da imigração em âmbito
societal. Essa apenas se faria possível a partir de 1986 com o fim dos debates conflitantes e a
formação de um novo tipo de consenso sobre a imigração (SILVERMAN, 1992. p. 69).
A análise realizada destaca como as novas dificuldades cíclicas do welfare state
francês, cujos benefícios passaram a gerar constantes rupturas sociais, contribuíram para a
formação de um consenso inicial em política imigratória. Dando suporte justificativo às bases
econômicas do fechamento de fronteiras à imigração laboral, essa convergência resultou nos
primeiros esforços diretos para a securitização da imigração em geral. Pela primeira vez de
forma unívoca, o Estado, as elites de interesse econômico e grande parte dos partidos de
oposição entraram em convergência com a sociedade no apoio à existência de uma relação
causal entre a presença de imigrantes e os problemas crônicos que agora impactavam a
economia. As duas medidas que melhor expressam esse desenvolvimento são as leis Stoléru
(1977) e Bonnet (1979), responsáveis respectivamente pela redução dos direitos à
reunificação familiar e à residência, e pela extensão dos poderes e condições à deportação
(ADAMSON et al, 2004, p. 242). Justificadas pela ligação entre imigração, desemprego,
desordem e cortes nos gastos públicos, ambas as legislações não possuíam um conteúdo
identitário concreto e representam os limites econômicos sob os quais a securitização da
imigração ocorreu naquele momento. Isso se torna claro com a falha de dois processos de
cunho diferenciado, mas que objetivavam uma securitização da imigração no setor societal.
De um lado está o chamado aide au retour, um conjunto de financiamentos à
repatriação voluntária posto em movimento pelo ministro Raymond Barre. De outro, a
disseminação da tese do seuil de tolerance por André Postel-Vinay e Lionel Stoléru durante
seus mandatos no Secretaire d'Etat Chargé des Travailleurs Imigrés e segundo a qual a
França estaria ultrapassando o número máximo de não nacionais sustentáveis pela fábrica
social da nação. Ambos os eventos, o primeiro prático e o segundo discursivo, foram
abandonados em pouco tempo pelo fato de não terem alcançado as comunidades de
imigrantes magrebinos (TOGMAN, 2001, p. 112). O fato de que sua transferência aos
âmbitos do Parlamento e do Conselho de Estado era inevitável em vistas da relevância
assumida pelo tema no debate econômico nacional também agiu no sentido de um bloqueio a
práticas justificadas pela tese identitária do “balanço étnico-cultural”. O consenso político
atuou sobre a atitude geral defensiva em relação à imigração especialmente em bases
70
econômicas, mas não possibilitou, por seu escopo limitado em vistas da “crise republicana”, a
instrumentalização do processo de securitização no âmbito societal.
A percepção da imigração enquanto ameaça à identidade nacional ficou, portanto,
limitada ao uso discursivo ocasional e não figurou em conteúdo nas atitudes de Estado. Como
debatido, os primeiros anos do mandato de Mitterrand e seu esforço em desenvolver políticas
afirmativas à comunidade imigrante geraram reações que expressaram até que ponto a
securitização do tema poderia continuar relegada à área da economia e segurança pública. Em
suma, desenvolveram as condições de debate nacional que no período seguinte resultariam em
um tratamento diretamente identitário da imigração. Os padrões franceses de securitização da
imigração de 1974 a 1986 podem ser resumidos, em sua constituição limitada, em três
instâncias. Em primeiro lugar, mantiveram os objetos de atenção na imigração e comunidade
estabelecida como herança dos ensaios restritivos do período anterior. Em segundo,
expandiram de forma quantitativa os atores envolvidos a partir do consenso político formado
acerca da problemática entre imigração e recessão econômica. Por último, representaram um
avanço qualitativo e quantitativo dos meios utilizados com a concretização de legislações
incisivas sobre o tema. Essa configuração representou um estágio intermediário da prática
identitária essencialista, no qual mesmo a existência de certas retóricas etnocêntricas não pôde
ser instrumentalizada politicamente – não pôde, nesse sentido, ser concretizada em um
processo de securitização no setor societal.
A expressão da identidade nacional francesa pela gestão imigratória desse período,
como no caso das contínuas demandas por compensação financeira pela comunidade piednoir interpretadas por Chabal (2015, p. 111), diz respeito aos novos níveis de materialização
do mesmo tipo de dominação e engrandecimento verificados na conjuntura anterior de forma
exclusivamente velada. Em suma, era mantido o mesmo “sistema baseado na firme
superioridade não negociável” (VERTOVEC e WESSENDORF, 2010, p. 95), mas agora seu
funcionamento arcava com os custos inéditos do “enfretamento do tema” por sua politização.
Ilustrativo nesse sentido é o grau de criticismo público recebido por Mitterrand quando de sua
decisão saudosista de participar das comemorações argelinas do aniversário do início da
guerra de libertação nacional (NAYLOR, 2000, p. 153). A segunda metade dos anos 80 e a
virada à década seguinte concretizariam um novo potencial de expressão identitária pela
securitização da imigração. Centrada agora no setor societal, essa foi concebida de forma
condicionada a processos como o neorrepublicanismo e a escalada do tema migratório no
âmbito integracionista europeu.
71
4.4 A materialização do consenso (1986-atualidade)
A partir do fim da “crise republicana” debatida anteriormente, o espectro de oposição
e confronto ideológico entre os atores nacionais sobre o tratamento da imigração tornou-se
mais estreito. Ao contrário do registrado no período anterior, prática e discurso em imigração
estavam agora situados em um tipo de consenso político que posicionava a identidade no
centro de seu tratamento. Tal processo limitou o campo de manobra em migração tanto às
novas instituições criadas para tal quanto às teses de um republicanismo renovado. Dessa
maneira, foi possível a expansão de procedimentos e normas subjetivas percebidas como
mínimas para a concepção de políticas públicas e de fronteiras sobre o deslocamento humano.
Dois elementos principais possibilitaram essa configuração mista verificada a partir de 1986:
a politização do Islã e a ascensão do neorrepublicanismo. As variáveis paralelas relacionadas
à ascensão da Frente Nacional e à interiorização do tema migratório pelo quadro institucional
da União Europeia também contribuíram para os padrões securitários de tratamento
imigratório na França desse período.
Entre as eleições legislativas de 1986 e as presidenciais de 1995, um processo de
fragmentação dos pólos políticos clássicos ao sistema francês se tornou claro. O resultado
direto foi a retomada das forças neoliberais sobreviventes, agora permeadas pelo gaullismo do
Rassemblement pour la République e materializadas pelos sucessos eleitorais subsequentes.
Até o decorrer da gestão presidencial de Nicolas Sarkozy (2007-2012) sob a coalizão da
Union pour un Mouvement Populaire criada em 2002, a esquerda francesa teria pouco
sucesso em ascender amplamente enquanto força eleitoral87. As duas experiências econômicas
sucessivas pós-crise, representadas pela orientação neoliberal de Giscard nos anos 1970 e
___________
87
As eleições legislativas de 1993, que se mostraram desastrosas para os socialistas e inauguraram mais um
período de coabitação com Édouard Balladur (UDF) no posto de primeiro ministro, abriram os precedentes
necessários à ascensão do RPR de Chirac enquanto força com potencial. Desde as primeiras dificuldades
econômicas sofridas por Mitterrand, o partido havia sido bem sucedido na articulação de pressões à coalizão
central e na configuração da agenda política direitista (STATE, 2011, p. 318). A realização de reformas
ministeriais imediatas e a redução dos gastos públicos por decretos tangenciais ao debate parlamentar aliados ao
desenvolvimento de um novo padrão deteriorante de desemprego (HOWARTH e VAROUXAKIS, 2014, p. 29)
falharam em apagar os problemas econômicos correntes e reduziram a popularidade da gestão. A flutuação
política do período é bem expressa pela emergência de um terceiro período de coabitação com Lionel Jospin
(PS), entre 1997 e 2002. O encerramento do primeiro mandato marcaria a reavaliação de alianças políticas por
direita e esquerda frente à nova realidade eleitoral e aos problemas econômicos não resolvidos durante a década
de 90.
72
dirigista de Mitterrand nos anos 1980, falharam em sanar os problemas cíclicos88. Esse
resultado inevitavelmente erodiu a percepção social sobre a bivalência das “soluções
convencionais” (HOWARTH e VAROUXAKIS, 2014, p. 26-27). Entretanto, não foi
totalizante ou exclusivamente econômico o desenvolvimento histórico que, naquela
conjuntura, anunciou o declínio da esquerda e a escalada eleitoral da direita centrista. A
ascensão da FN desempenhou papel fundamental no rearranjo da política francesa sobre a
imigração.
O radicalismo do partido já consolidado desde sua criação (1972) sobre questões como
a independência argelina e a integração europeia não teve apelo popular forte o suficiente
tornar-se autêntico no campo da imigração frente o posicionamento restritivo da gestão
Giscard nos anos 1970 (TOGMAN, 2011, p. 124). Entretanto, as falhas da prática
multiculturalista de Mitterrand, a continuidade de problemas econômicos recorrentes e a
adoção do sistema proporcional de representação nas eleições legislativas de 1986
(HOWARTH e VAROXAKIS, 2014, p. 72) abriram a janela de oportunidade que faltava à
extrema-direita. Agora, o partido estava capacitado a configurar, com frequência, não apenas
a agenda política nacional em questões migratórias, mas a clareza do posicionamento dos
centrismos de direita e de esquerda:
Atingido pelo clarão do racismo nacional de Le Pen, o antirracismo (e a esquerda
organizada em geral) não apenas faltou com a visão e a estratégia necessárias para
lidar com a crise social mais ampla, mas frequentemente perpetuou um discurso que
contribuía para a confusão entre racismo e antirracismo (SILVERMAN, 1992, p.
69).
Com a consolidação do decréscimo em popularidade pela esquerda ao longo dos anos
1990, essa capacidade da FN de influir no campo das ideias sobre imigração cada vez mais
passou de uma estratégia eleitoral de conjuntura a um modelo discursivo de pressão sobre as
gestões subsequentes. Essa mudança envolveu tanto a atualização geracional das lideranças
partidárias, como demonstra a normalização da retórica xenofóbica pela figura de Marine Le
Pen89, quanto a manutenção de um populismo dono da “coragem de confrontar tabus, quebrar
o silêncio, intervir e expor a verdade sobre problemas societais” (VERTOVEC e
WESSENDORF, 2010, p. 13). Com essa estratégia de “respeito às regras do jogo” no campo
___________
88
Dentre as heranças econômicas dos anos 1970, destaca-se a persistência do desemprego. Como aponta
Togman (2001, p. 122), as taxas de crescimento comparativo do desemprego de 1989 em relação a 1980
atingiram os 50%, dispensando aos anos 1990 taxas absolutas constantemente tocantes aos 10%.
89
Em suma, a nova líder eleita presidente do partido em 2011 procurou afastar-se do racismo, do revisionismo
histórico e mesmo da homofobia que comumente eram orientações de seu pai, Jean-Marie Le Pen. O tratamento
de questões políticas se dá de maneira mais incisiva e menos doutrinária, de forma a conciliar a popularidade
crescente com a autenticidade do programa do partido em comparação ao resto do cenário direitista francês.
73
do discurso e o resultante sucesso eleitoral mais recente90, a FN pôde alçar-se ao nível de
debate dos “partidos de governo” da UMP e do PS durante as gestões de Nicolas Sarkozy e
François Hollande91. Desde as eleições de 2007, isso significou a adequação da alternância de
poder característica da Quinta República à chamada “lepénisation” do pensamento político
(TOGMAN, 2001, p. 132). De maneira geral, ascendia o neorrepublicanismo pela passagem
de “nós somos contra muçulmanos” a “apenas queremos defender a laicidade”, mantendo no
caso francês o fato de que “promulgações de noções universalistas de cidadania são sempre já
culturalmente particulares” (SILVERSTEIN, 2004, p. 32).
Enquanto a fundamental submissão do pertencimento nacional à cidadania republicana
baseada na voluntariedade de adesão continuou a figurar na ordem da lei, sua possibilidade de
aplicação foi permeada pela permanente presença discursiva do ideal tradicionalista de
conformidade cultural92. Como aponta Silverman (1992, p. 140), para que a imigração
continuasse a ser legitimamente vinculada a problemas sociais e econômicos, a construção de
sua “novidade” precisava ser refeita, mas agora em caráter político-identitário. Em termos
gerais, isso assumiu paralelamente a expressão normativa da ideal divisão entre o
individual/religioso/privado e o coletivo/secularista/público, e o rechaço a quaisquer grupos
sociais não subscritos a traços genuínos da cultura nacional. Permitia-se, assim, a legitimação
___________
90
Como destaca análise de Chabal (2015, p. 47-51), o partido tem representado desde sua ascensão uma força
tanto de fragmentação quanto de bipolarização do sistema político: o sucesso nas urnas possibilita tanto a
posição de “kingmaker” (determina o vencedor) nas eleições presidenciais quanto o manejo pragmático de um
programa partidário autêntico frente à formação de um novo tipo de lealdade eleitoral (não mais ancorada no
tradicional esquema direita/esquerda). O autor demonstra também como os números corroboram tal processo:
em eleições à Assembleia Nacional, o número de votos subiu de 2,703,442 em 1986 a 3,528,663 em 2012; em
eleições presidências, cresceu de 4,376,742 em 1988 a 6,421,426 em 2012.
91
A criação da Union pour um Mouvement Populaire quando da campanha de Chirac para 2002, reunindo as
maiores as forças de direita (RPR, UDF e DL) em um só veículo político, possibilitou forte coalizão de direita no
poder. Como aponta State (2011, p. 331-333), o presidente pôde disfrutar de bom campo de manobra em
conjunto com os primeiros-ministros Jean-Pierre Raffarin e Dominique de Villepin. Assim foi possível a
reeleição de 2007 e a vitória da direita nas eleições legislativas, ao custo da acentuação da polarização com os
socialistas. Tal processo, inédito desde o declínio de Mitterrand, foi intensificado pela persistência do
desemprego (HOWARTH e VAROUXAKIS, 2014, p. 28-29). Em meio à recessão econômica e aos esforços
falhos em revertê-la, fez-se possível a eleição de François Hollande (PS) em 2012, que busca a manutenção da
austeridade com maior “fidelidade ideológica” à esquerda a partir de concessões, por exemplo, à comunidade
LGBT. Ainda assim, “o partido socialista tem visto seu suporte da classe trabalhadora colapsar e, mesmo na
época da vitória de Hollande em 2012, ele estava longe do apoio de dois terços da classe trabalhadora do qual
Mitterrand disfrutava nos anos 1980” (CHABAL, 2015, p. 34). Como analisado, a constância pode ser verificada
também em gestão imigratória. A significância da bipolaridade política na França dos dias de hoje está ainda por
ser revelada pelas perspectivas de sucesso da extrema-direita nas próximas eleições e pela crescente “confusão”
centrista já verificada.
92
Esse ideal mantém a interdependência entre a coesão do corpo social e a seguridade de suas unidades quanto
aos direitos do homem, porém a exime de qualquer descontinuidade histórica que possa “manchar” a
reconstrução republicana (FAVELL, 2001, p. 49). É o exercício, ainda que escondido da história e da política
nacional, do que Howarth e Varouxakis (2014, p. 104-105) chamam de um “nationalisme fermé”
excepcionalista. Essa configuração é capaz, por exemplo, de legitimar a acusação de que os “franceses são as
vítimas do uso da burca e alvos de uma prática social incivilizada”.
74
da convivência entre o caráter excludente do nacionalismo francês e a “cegueira” do Estado
pós-colonial sobre as relações de poder assimétricas reproduzidas socialmente: “aqui a lógica
dominante é a de continuidade, com as grandes ideias universais da França colonial do século
XIX, trazidas de volta dentro de suas fronteiras europeias” (FAVELL, 2001, p. 65). Vertovec
e Wessendorf (2010, p. 105) demonstram como tal configuração, ao ser definitivamente
encaminhada ao discurso e gestão pública, comumente gerou debates que procuravam
bloquear o reconhecimento de minorias sob a máxima de que “isso sim geraria a
discriminação e a estratificação racial”93.
Foi dessa forma que a ampla construção da imigração como ameaça à segurança
societal francesa foi possibilitada. Em pouco tempo, a comunidade muçulmana na França se
tornou o objeto primordial desse processo em vistas tanto do transbordamento da guerra civil
argelina quanto da visibilidade política, cultural e religiosa atingida pelo Islã após décadas de
ativismo transnacional (NAYLOR, 2000, p. 213; SILVERSTEIN, 2004, p. 130). Situado entre
políticas radicais de assimilação e anti-discriminação, o paradigma neorrepublicano de
integração protagonizou então a evolução da linha restritiva de políticas imigratórias
anteriores a um patamar de conteúdo explicitamente identitário. Como aponta Togman (2001,
p. 117), várias medidas se destacam no tratamento do “problema muçulmano” sob essa
perspectiva e sinalizam bem o padrão de securitização desenvolvido sobre a comunidade
franco-argelina de imigrantes.
Em primeiro lugar, a criação do Conselho de Integração (1990-1993) teve por objetivo
a realização de pesquisas capazes de construir conhecimento acerca do processo concreto de
integração na França, finalmente elaborando uma série de prescrições normativas para
reforma política. Os seis relatórios gerados “podem ser lidos como o ponto focal de um
consenso extraordinário nas relações públicas francesas, no vocabulário, no enquadramento
teórico e temático que provinham para discussões e debates políticos mais detalhados”
(FAVELL, 2001, p. 43). Foi a expressão clara da ampliação de atores, meios e objetos
envolvidos na construção discursiva da imigração enquanto ameaça à identidade nacional,
abrindo o precedente à tradução desse processo em legislações restritivas para políticas
públicas e de fronteira. Nesse espectro destacam-se as Leis Pasqua (1986-1993) e Debré
___________
93
O empoderamento de quaisquer grupos sociais passou a ser visto não apenas como desnecessário, mas
também indesejável. Há, nesse sentido, a negligência de que “uma defesa republicana de minorias não pode,
então, ser limitada exclusivamente ao princípio de não discriminação. Ela também requer um reconhecimento
positivo da diferença étnico-cultural, com uma visão pluralista sobre as culturas nacionais que reconheça a
diversidade da comunidade cívica” (CHABAL, 2015, p. 258).
75
(1997), que agiram em complementariedade no objetivo de reforçar o policiamento de
fronteira e expandir as condições de deportação (TOGMAN, 2011, p. 126; HOWARTH e
VAROUXAKIS, 2014, p. 121). Em segundo lugar, a criação da Comissão Stasi (2003-2004)
e do Comitê Interministerial sobre o Controle da Imigração (2005) sintetiza o enquadramento
do Islã enquanto incompatível à vida social francesa com a orientação prática de restrição. A
comissão teve o objetivo de “examinar a implementação do princípio de laicidade na
República”, publicando o relatório que levou à proibição de símbolos religiosos em escolas
públicas (VERTOVEC e WESSENDORF, 2010, p. 102). Já o comitê consistiu de um arranjo
ad hoc afirmativo da “tolerância zero” sobre a imigração não documentada, materializando
essa posição em relatórios anuais comumente de cunho tradicionalista (MAHLKE, 2005, p.
106). A partir desses desenvolvimentos, inicialmente preocupados especialmente com a
integridade dos princípios laicos da República, foi inevitável a institucionalização de um tipo
de discurso culturalista. Como apontam Vertovec e Wessendorf (2010, p. 102), tanto o uso da
burca em escolas públicas94 quanto a recente amplitude de adesão dos restaurantes nacionais à
alimentação halal95 foram ilustrados, por mídia, sociedade e Estado, enquanto perigos
vinculados ao terrorismo internacional (como recentemente no âmbito dos ataques ao Charlie
Hedbo e à Paris)96 e à fragmentação cultural da sociedade francesa:
Pode parecer extraordinário que os legisladores tenham de ir a tais medidas para
impor uma justificação moral sobre uma questão técnico-legal normalmente deixada
a barganhas pragmáticas entre nações. Mas deve ser reconhecido que o esforço é
tomado pela percebida ameaça do fundamentalismo islâmico, que para sempre lateja
na mente francesa, na medida em que se preocupa com os problemas correntes na
___________
94
Conforme debate de Vertovec e Wessendorf (2010, p. 101), a proibição do uso da burca em espaços públicos
em 2010 foi o ponto culminante de uma série de episódios e debates nacionais catalisadores do processo. Nesse
sentido, o affaire du foulard surge a partir de três eventos principais: expulsão de três alunas muçulmanas de
escola secundária em Creil por usarem a burca (1989), regulação do Ministro da Educação tratando da
“conspicuidade” da burca (1994) e debate intenso com instauração da Comissão Stasi que proíbe em 2004 o uso
em escolas públicas (2003-2004). Um novo padrão qualitativo de governança imigratória emergiu nesse
contexto, mas manteve uma série de imaginários sociais construídos durante a colonização acerca do Islã
(SILVERSTEIN, 2004, p. 123).
95
“Halal”, segundo a lei islâmica, diz respeito a qualquer objeto ou ação com os quais é permitido se envolver.
Na França, a polêmica centralizou-se sobre a amplitude da carne halal no país, definida primariamente como
excludente do porco e relacionada a uma forma específica de abatimento sagrado de animais para consumo.
96
Os ataques ao jornal francês Charlie Hebdo ocorreram em 7 de janeiro de 2015 e envolveram o assassinato de
12 pessoas pela publicação, já tradicional ao periódico, de charges satíricas sobre o profeta Maomé. Nas semanas
que se seguiram, uma campanha mundial foi lançada sob o slogan “Je suis Charlie” (“eu sou Charlie”) e uma
série de protestos intensos em comoção pública se espalharam pela França. Em defesa da liberdade de expressão
e da democracia, uma marcha organizada em 11 de janeiro mobilizou 3,7 milhões de pessoas em todo o país e
autoridades como Angela Merkel, David Cameron e Matteo Renzi. Em 13 de novembro, uma série de ataques
foi orquestrada ao redor de Paris e resultou em ao menos 120 mortos. Violentos enquanto foram tais atentados, o
grau inédito de midiatização do tema e de defesa de instituições fundadas na tradição política nacional resultou
em mais uma instância expressiva da convergência entre Estado e sociedade quanto ao rechaço do elemento
muçulmano da nacionalidade francesa pós-colonial. Em suma, é a mesma exclusão que catalisa choques étnicoculturais e reproduz o favorecimento social de uma política externa agressiva irresponsável com as relações
interculturais irremediáveis à sociedade francesa.
76
Argélia. A partir disso, as políticas de lidar com o Islã na França estão para sempre
transformadas em uma luta simbólica entre a virtude política universal do sistema
público francês, e suas distinções entre público e privado fortemente legisladas em
oposição à ameaça do “intégrisme” islâmico (FAVELL, 2001, p. 84).
Nesse sentido, o posicionamento do Islã no centro de várias políticas de Estado
apoiadas por uma diversidade de atores despertou os precedentes necessários à emergência da
questão da identidade nacional ao discurso e prática em imigração. Junto às justificativas
econômicas, a integridade étnico-cultural da nação, há tempos motivo de preocupação social,
encontrava agora ressonância nas medidas oficiais para o tema.
Para além da forte politização do Islã verificada até a atualidade, os novos níveis
atingidos pela integração europeia nesse período foram fundamentais para o padrão assumido
de gestão imigratória. Enquanto a tradição gaullista manteve a preferência geral na França por
uma configuração intergovernamental às novas aproximações europeias (HOWARTH e
VAROUXAKIS, 2014, p. 194), a inserção da imigração nesse processo em muito convergiu
com a situação da política nacional sobre o tema. De forma geral, a organização de uma
política migratória unificada aos Estados-membro foi iniciada por uma adaptação tecnocrática
de projetos econômicos como o do mercado comum à dimensão da mobilidade humana
interna e, posteriormente, à da segurança comum. Representando a vinculação desse processo
ao objetivo central de combate à imigração não documentada, a incorporação de uma série de
fóruns intergovernamentais97 ao quadro institucional e jurídico da União Europeia pelos
tratados de Maastricht (1992) e Amsterdam (1997) oficialmente centralizou a migração
enquanto objeto de regulação comunitária (HUYSMANS, 2000, p. 755). Um dos resultados
em securitização expedidos por esse processo foi a criação da Agência Europeia de Gestão da
Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia
(Frontex) em 2004, e que atualmente mantém-se o principal instrumento comunitário de
combate à imigração não documentada e de vigilância da mobilidade de grupos percebidos
como de risco segundo a autonomia prevista aos envolvidos no Acordo de Schengen (BIGO,
2008, p. 47). No caso francês, não espanta que esse grau de discricionariedade para a
definição de ameaças à “segurança nacional” ou à “ordem pública” permita a vinculação dos
___________
97
Dois desses fóruns destacam-se como fundamentais ao nível de articulação europeia atual para o tratamento
comum da imigração: Grupo Trevi e Grupo Schengen. O primeiro, criado em 1975, teve o objetivo principal de
coordenar políticas governamentais para o setor do antiterrorismo, com o tempo concretizando iniciativas no
campo do policiamento de fronteiras e precedendo boa parte da estrutura tomada pelo Terceiro Pilar da UE
(atualmente denominado Área de Liberdade, Segurança e Justiça). O segundo, cujo tratado foi assinado em 1985
e entrou em vigor em 1993, busca primeiramente a harmonização das políticas de entrada e permanência entre
Estados-membro (pelo visto Schengen). Em um segundo momento, paralelamente à sua internalização pela UE,
instaura-se a cooperação administrativa para controle de fronteiras por meio de uma série de práticas que
“submetem a circulação transmediterrânea a uma série de restrições” (MAHLKE, 2005, p. 115).
77
debates internos em identidade às atitudes restritivas no âmbito externo. Nesse sentido, a já
consolidada securitização da imigração no setor societal da França legitima especialmente à
opinião pública a indiferença do Estado em face da crise humanitária atual. É a emergência de
um mecanismo de complementariedade entre abertura interna e soerguimento externo de
fronteiras.
De importância paralela nesse contexto foram os ataques de 11 de setembro. Como
aponta Leite (2010, p. 62), a nova conjuntura introduziu um tipo de tratamento com enfoque
emergencial de curto prazo, num “conjunto de normativas comunitárias que disciplinam
alguns aspectos relacionados à questão da imigração” e procuram desenvolver o que Van
Munster (2005, p. 8) chama de “gestão de riscos”. O procedimento consolidado, apesar dos
constantes compromissos humanitários, primou pelo enfrentamento de questões pontuais por
meio da cessão de um alto nível de discricionariedade aos Estados e da perspectiva de
previsibilidade de ataques terroristas pela demarcação de grupos de risco. Karyotis (2007, p.
7) destaca a Reunião Extraordinária do Conselho de Justiça e Política Interna em 20 de
setembro de 2001 como pontual ao novo aparato de tratamento da imigração em nível
regional: sempre com um “olhar à frente” acerca das ameaças. Nesses termos, o tratamento
comunitário europeu da imigração acabou por contribuir aos reflexos naturais do declinante
welfare state, ao imaginário de nações idealmente homogêneas e à relutância sócio-política,
especialmente no caso francês, em aceitar as consequências da globalização (CHABAL, 2015,
p. 39). Dentre os casos mais ilustrativos desse apoio comunitário à lógica societal da
securitização da imigração em países como a França está a Diretiva do Retorno de 2008.
Aprovada em 2008 pelo Parlamento Europeu com 396 votos a favor, 197 contra e 106
abstenções, foi parte de um esforço coletivo para a diminuição da regularização de não
nacionais e para a instituição de medidas mais severas em termos de detenção e deportação
de irregulares. Em suma, dá-se plena liberdade ao Estado para a interpretação de quais grupos
estabelecidos e quais perfis de fluxos futuros devem ser adequados às novas normas. Isso, na
França, recentemente tomou a perspectiva de uma diminuição até mesmo da população
imigrante já estabelecida e que, pela conjunção das legislações nacional e comunitária, tem
sido mal sucedida na perseguição de um status regularizado.
O espaço seletivo reservado à migração na agenda da UE, portanto, reproduziu
elementos do processo de securitização do tema, algo central para a gestão desenvolvida pela
França nesse período. Essa esteve ancorada em um paradigma dialético centrado na
coabitação entre o controle de fronteiras e a integração (ao menos retórica) da comunidade
78
imigrante estabelecida. Conforme debatido, o novo contexto expandiu atores, meios e objetos
de atenção para o tratamento da imigração. A construção primeiramente discursiva e em
seguida prática da imigração como ameaça à identidade nacional é agora consolidada por
atores do poder legislativo, da opinião pública, da mídia e dos mais diferentes espectros do
sistema político, num processo característico à securitização em setor societal (BUZAN,
WEAVER e DE WILDE, 1998, p. 124). Os meios utilizados foram adequados à nova
importância do tema no contexto da integração europeia e envolveram a interiorização, pelo
âmbito prático de legislações, os novos padrões discursivos de justificação inerentes a um
discurso etnocêntrico. Os objetos de vinculação a fontes de ameaça à identidade, à economia e
à ordem pública envolviam, de forma inédita em sua materialização, a comunidade
estabelecida (especialmente sua capacidade de integração) e a imigração não documentada.
Em vistas dessa abertura do tema ao debate nacional, e mesmo com a persistência de
parte das lutas ideológicas entre o individualismo e o igualitarianismo dos anos 1980, a
década de 90 marcou percepções de ameaça à coesão cultural da nação e, portanto, à parcela
excludente da virtude universalista francesa. Os anos 2000 e o período mais recente provaram
a materialização dos discursos anteriormente consolidados e a capacidade dos mesmos em
manter a prática de uma posição defensiva mesmo em tempos de crise humanitária no Mar
Mediterrâneo. Por mais paradoxal que pareça, essa configuração de ideias foi reproduzida
pelos órgãos e legislações neorrepublicanos então inaugurados e que, entre a ação direta ou
velada, mantiveram-se os veículos legitimadores das posições securitárias (FAVELL, 2001, p.
69). Há, nesse período, uma conjunção inédita de ideias e ações que, em associação às
variáveis analisadas, possibilitam a expressão concreta de uma identidade nacional
essencialista a partir da securitização da imigração em termos societais. Como que numa
réplica contemporânea dos árabes “cidadãos de segunda classe” durante o período colonial, a
prática fez prevalecer o que o discurso universalista esconde: o etnocentrismo.
Por que, como debatido, o tradicionalismo vinculado ao republicanismo clássico
submeteu os princípios universalistas? Por que o reconhecimento positivo da diferença,
inscrito em tais princípios, não pôde ser viabilizado ao framework republicano? Como
debatido por Chabal (2005, p. 129-175), há uma estrutura histórica em jogo, constituída tanto
de glórias quanto de derrotas morais do passado. Paralelamente, ambas as categorias de
memória são reproduzidas por forças sociais e políticas cuja descolonização mostra-se
incompleta. A reinvenção da nação francesa mantém a passos firmes o caráter fluído de
qualquer construção identitária, mas não sem refletir elementos sobre os quais foi fundada.
79
Dentre esses, a análise realizada sobre a lógica à qual esteve submetida a relação com a
comunidade franco-argelina destaca o senso de um „deslocamento impróprio‟ causado pelo
fim da ordem colonial (especialmente em sua significação para o caso da Argélia). Longe de
alcançar Estado e sociedade de forma totalizante, é no campo simbólico que tal fenômeno é
verificado: há a tendência de constate busca por correções históricas aplicadas às
descontinuidades que se sobrepõem na corroboração da ideia de que “a França não é mais a
mesma”. A imigração pós-colonial, ao lado de processos como a globalização e a
“americanização do mundo”, representa um desses obstáculos à perseguição de um ideário
nacional de traços anacrônicos. A manutenção de um posicionamento securitário centrado em
identidade, frente aos fluxos de recebimento e à estabelecida comunidade argelina, expressa a
parcela da transformação contemporânea da França ainda apegada a uma realidade de poder
não mais percebida. É, portanto, um estágio remanescente da descolonização da França:
Nesse sentido, é necessário reexaminar genealogicamente o imaginário nacional
francês do universalismo republicano enquanto um produto histórico do
colonialismo, para mostrar como suas definições de „nação‟, „nacionalidade‟, e
„cidadania‟ são em si historicamente ligadas a uma série de exclusões correntes de
povos e conteúdos culturais específicos (SILVERSTEIN, 2004, p. 33).
A intensificação qualitativa da securitização da imigração nesse período confirma o
mesmo caminho identitário perseguido pela França desde o fim do passado imperial, porém
de forma explícita e em coexistência com as dinâmicas regionalistas de securitização. O
consenso político anterior é expandido a um tratamento da imigração de bases simbólicas e
instrumentais, sendo mantido mesmo em meio às tentativas retóricas por Hollande de “virar a
página” com a África e com as memórias dela emanadas98. O essencialismo nacional
sobrevive na gestão pós-colonial da imigração por meio da tradução, em prática política e
discursiva, de um senso de superioridade legitimado por determinada construção da história.
Identitário como o é o conteúdo político envolvido na imigração, sua vinculação com a
malaise social é, portanto, até os dias de hoje confrontada tanto por atitudes de autoafirmação
nacional instrumentalizadas junto ao bloqueio europeu de fronteiras quanto pela “intuição
otimista de que a França é capaz do „grande começo‟ que a levaria à regeneração” (CHABAL,
2015, p. 264).
___________
98
Um exemplo de tal estratégia discursiva perseguida pelo presidente diz respeito a seu reconhecimento, inédito
na história pós-colonial francesa, do massacre de estimados 250 argelinos em Paris ocorrido durante protestos
em 17 de outubro de 1961. Nesse contexto, Hollande buscou desde sua eleição um afastamento retórico em
relação a Sarkozy (conhecido por proposições como a do ensino dos benefícios do colonialismo em escolas
públicas) – ainda assim, a opinião pública e as práticas institucionais continuam a favorecer uma posição severa
sobre o tema imigratório.
80
4.5 Conclusão do capítulo
Por meio de uma revisão de três períodos históricos demarcados a partir da variação da
securitização da migração no setor societal, este capítulo procurou demonstrar como a relação
entre o Estado e a imigração, mesmo em suas descontinuidades, funciona como ferramenta de
expressão de uma lógica identitária essencialista na França. Cada seção analisou a evolução
histórica do processo de securitização da imigração no âmbito societal à luz de variáveis
conjunturais influentes. Por fim, os padrões de variação em securitização foram relacionados
a uma estrutura de identidade nacional remodelada pelo contexto considerado, porém
permanente e expressa em todos os períodos. Nesse sentido, o primeiro período (1962-1974)
registrou um padrão nulo de securitização do tema, que ainda assim teve um tipo de expressão
reflexiva da tendência identitária de dominação pós-colonial marcada tratamento racionalista
dos fluxos e nos sentimentos sociais xenófobos que escondia. No segundo período (19741986) verificou-se uma securitização da imigração no setor econômico e de segurança pública
situada agora em consenso político de pouca capacidade instrumental frente à conjuntura
mista da “crise republicana”, porém que confirmou agora de forma discursiva a mesma
expressão identitária do período anterior. Por fim, último período (desde 1986) registrou uma
securitização da imigração centralmente posicionada no setor societal a partir de um consenso
político amplo e com potencial de materialização tanto em discurso quanto em prática. O
essencialismo identitário francês, calcado em construções nostálgicas sobre o passado e em
um decorrente sentimento de superioridade, mantém-se assim presente com maior intensidade
na forma de securitização praticada em tempos recentes: a da exclusão da imigração fundada
explicitamente em justificativas identitárias.
81
5 CONCLUSÃO GERAL
A história contemporânea da relação entre Argélia e França, fundamentalmente
permeada pelo legado subjetivo do passado, envolveu a manutenção reinventada de muitas
das significâncias sociais, políticas e culturais desenvolvidas sobre a plataforma colonial.
Incisiva e prolongada como o foi, a dominação revestiu o imaginário social de ambos os lados
com papéis que não simplesmente deixaram de ser desempenhados a partir de 1962. Para
além das assimetrias de poder, essas funções representam os dilemas reais que os novos
tempos impõem abruptamente a identidades construídas em outras circunstâncias históricas.
De um lado, a ex-colônia luta pela consolidação de uma “versão de si” de interesse das elites
e legítima à população, ao mesmo tempo em que se ancora na dignidade moral da libertação.
De outro, a antiga metrópole mantém o resgate de princípios tradicionais agora ajustados às
novas necessidades de autoafirmação, buscando paralelamente gerir os constrangimentos da
memória colonial. Em suma, são estruturas identitárias permanentes e que emergem à prática
e ao discurso em várias das instâncias que envolvem algum contato entre as duas nações. A
migração de argelinos à França, historicamente consolidada em termos transnacionais,
representa uma das vias mais recorrentes pelo qual isso ocorre.
Recorrendo a tal informação, clarificada durante os debates realizados sobre o fluxo
franco-argelino, os três capítulos de desenvolvimento buscaram a aplicação do modelo
analítico proposto. Resumido pelo posicionamento da migração enquanto ferramenta de
expressão às identidades pós-coloniais de Argélia e França, tal modelo gerou análises
centradas na utilização das abordagens teóricas selecionadas para a apropriação do
desenvolvimento histórico das gestões migratórias verificadas atualmente.
O primeiro capítulo buscou debater a vinculação entre teoria e objeto por meio de
estrutura textual tripartida. Primeiramente, discutiu-se a relação entre migração e
colonialidade através da breve problematização das produções científicas verificadas em cada
conceito, algo que em seguida é utilizado para demonstrar como as circunstâncias póscoloniais de um processo de mobilidade humana são capazes de representar aspirações sociais
tanto sujeitas à dominação quanto resistentes à mesma. Em seguida, o debate foi deslocado
aos conceitos de nation-building, segurança e identidade, utilizando-se das contribuições
teóricas neles envolvidas para elucidar a relação (central ao modelo analítico) entre gestão
82
migratória e construções identitárias. Por fim, o capítulo foi encerrado com breve análise dos
aspectos quantitativos da emigração argelina à França, a título de contextualização do objeto
para os debates subsequentes.
O segundo capítulo direcionou-se à avaliação da parcela da hipótese de trabalho
referente à Argélia. Para isso, três períodos históricos desde 1962 foram demarcados segundo
a variação dos dois objetos em análise: o caráter qualitativo da emigração argelina e sua
instrumentalização para fins de nation-building pelo Estado. Indissociáveis, os objetos foram
integrados a variáveis externas condicionantes em cada conjuntura, tais como a construção do
Estado argelino, sua estabilidade político-econômica, as novas dinâmicas de reprodução das
elites e o elemento geracional em migração. Nesse sentido, foi possível a verificação tanto de
padrões distintos de gestão emigratória nos três períodos analisados quanto sua evolução a
políticas identitárias para a comunidade expatriada sob a forma de nation-building. Nos dois
primeiros períodos (1962-1973 e 1973-1999), verificou-se que a emigração varia
consideravelmente em termos qualitativos e a posição do Estado permanece vinculada a
pequenas mudanças dentro de uma orientação defensiva em relação ao fluxo99. Já no último
período (1999-atualidade), enquanto a emigração manteve o caminho à capacidade de agência
política cada vez maior, a posição do Estado aproxima-se a passos firmes de medidas
permanentes em nation-building junto aos expatriados. Ao fim das análises de cada período,
debateu-se como a gestão migratória da conjuntura em caso expressou traços constituintes da
identidade pós-colonial argelina. Em suma, foi verificado que a instrumentalização estatal da
emigração em cada um dos períodos esteve vinculada ao desafio existencialista argelino de
diferentes formas. A mesma estrutura foi reproduzida de diferentes maneiras pela gestão
migratória de cada conjuntura, mas sua expressão concreta e em políticas de nation-building
apenas foi gerada ao longo do último período de análise.
Partindo em sentido analítico semelhante, o terceiro capítulo procurou avaliar a
parcela da hipótese de trabalho concernente à França. De forma análoga, três períodos
históricos foram selecionados de acordo com a variação da gestão imigratória francesa em
termos de securitização da imigração em termos sociais. Partindo dos debates em migração
___________
99
Conforme debatido, tais mudanças se deram dentro de uma atitude racionalista sobre a emigração, algo bem
ilustrado pelas aproximações limitadas a períodos de remessas prósperas, boa relação bilateral e perspectiva de
apoio político. Não havia, nos dois primeiros períodos, a noção de que o fluxo e a comunidade expatriada
poderiam significar um suporte ao reconhecimento de uma identidade nacional plural e muito menos de que o
incentivo à sua posição transnacional poderia gerar bons resultados sócio-políticos ao país. Em suma, a posição
predominante nesse primeiro momento foi a suspeição quanto às intenções políticas da emigração e sua
aproximação apenas em momentos de potencial geração de ganhos de curto prazo ao Estado.
83
fornecidas pelos capítulos anteriores, a análise continua permeada por variáveis externas que
condicionaram os posicionamentos securitários do Estado francês em relação aos fluxos e à
comunidade estabelecida de cada conjuntura. Verificou-se que a securitização da imigração
desenvolveu um tipo de evolução mais distribuída entre os períodos do que o processo de
nation-building argelino, o que resultou no alongamento do último período de análise (que
cobre quase três décadas). Em suma, a vinculação efetiva do tema imigratório a uma agenda
de segurança societal assume precedentes mais graduais que reinventam imaginários políticos
antes construídos. O primeiro período (1962-1974) marca a inserção das políticas imigratórias
em uma agenda estritamente econômica que apenas trata a comunidade franco-argelina como
questão de segurança em poucos momentos, já que isso convinha às necessidades nacionais
de mão de obra. Já os dois últimos períodos (1974-1986 e 1986-atualidade) representam a
securitização concreta do tema, primeiro enquanto ameaça constante à ordem pública e ao
funcionamento eficaz do welfare state e, posteriormente, à segurança societal da França.
Envolvidos na análise de cada período estiveram eventos distintos como a significância
política da transição à Quinta República, a “crise do republicanismo” e a ascensão da Frente
Popular. Novamente, cada padrão de variação da gestão imigratória francesa é analisado
como expressivo, por diferentes formas, de uma estrutura identitária pós-colonial permanente:
ainda assim, essa apenas figura como central no tipo de securitização desenvolvido no período
mais recente. As análises em gestão migratória realizadas nos dois capítulos e a progressão
histórica de sua expressão identitária podem ser apropriadas de forma resumida nos Quadros 1
e 2.
A partir da análise realizada, tem-se que o fluxo de argelinos à França, ao representar
uma fonte de contato transnacional remetente à colonialidade do poder, despertou desde 1962
diferentes reações nos Estados argelino e francês. Tais respostas assumiram a forma de
gestões migratórias evocativas das identidades nacionais pós-coloniais. Enquanto todas as
conjunturas apresentaram tal orientação, foram os períodos mais recentes para os dois casos
que trataram seu conteúdo simbólico de forma direta em prática e discurso. Cabe a questão:
como esse diagnóstico histórico realizado comprova que tais gestões migratórias de fundo
identitário são estruturais? Conforme debatido, a tomada de uma posição em nation-building e
em securitização em cada um dos casos não ocorreu em um “vácuo” simbólico. Tanto o
Estado argelino quanto o francês desenvolveram justificativas para suas ações nos períodos
em que não houve gestão migratória em sentido identitário. No caso argelino, a emigração era
percebida como uma insurgência política diretamente relacionada ao negativo exercício
84
étnico-cultural do povo berbere: o existencialismo já estava presente de forma reflexiva
mesmo em uma visão da nação excludente dos expatriados. No caso francês, a imigração era
legitimada apenas por seu papel então fundamental ao desenvolvimento nacional, posto que
grande parte da sociedade opunha-se a ela: o essencialismo já figurava de modo reflexivo
tanto na objetificação política quanto na rejeição social dos fluxos. Em suma, cada conjuntura
imprimiu especificidades à manipulação das identidades nacionais existencialista e
essencialista, e por isso cada uma gerou tipos diferentes de sua expressão. Na dimensão da
gestão migratória, isso significou que apenas os períodos mais recentes envolveram uma
expressão explícita das disposições envolvidas nas estruturas identitárias de cada nação.
Variável
independente
Período
Padrão de variação
quantitativa
Rapidamente crescente
(entre
100 e 220 mil por
1962-1973
ano)
Rapidamente
Fluxo
1973-1999 decrescente (entre 10
emigratório
e 40 mil por ano)
argelino
1999Estável (entre 20 e 40
atualidade
mil por ano)
Padrão de variação
qualitativa
Contexto
Estável (socialmente
constituída enquanto
pendular e ativismo
político nacionalista
ancorado em deveres
familiares)
Teor de
demandas
Gradualmente crescente
(reunificação familiar,
Tipo de
movimento beur, ruptura
deslocamento
com unidade familiar e
e relações
autonomização de
bilaterais
ativismo com articulação
internacional)
Rapidamente crescente
(refúgio, movimento
rabeu, transnacionalismo
com demais redes
sociais de migrantes e
retomada de laços
híbridos com família e
nação de origem)
"Década
Negra"
Quadro 1 – Análises em migração realizadas nos capítulos 1 e 2100
___________
100
Elaborado pelo autor. Os dados quantitativos apresentados foram retirados diretamente dos debates realizados
na última seção do capítulo 1 – referências específicas, portanto, encontram-se nessa parte do texto. Já os dados
qualitativos foram retirados das análises realizadas ao longo das três seções do capítulo 2, sendo sua organização
neste quadro organizada em torno de duas categorias principais presentes no texto: elemento geracional e tipo de
atividade política. Dessa forma, a sumarização dos debates conforme encontrados no quadro envolveu a
utilização de ambos os elementos como guia à descrição do padrão de variação qualitativa. Demais variáveis
debatidas e cujo caráter foi considerado secundário encontram-se na coluna “contexto”. Conforme foi
demonstrado na introdução ao trabalho, a exposição quantitativa do capítulo 1 foi realizada a título de
85
Na Argélia, a emigração cada vez mais tem sido instrumentalizada para fins de nationbuilding. O Estado passa a desenvolver esforços dialogados com a comunidade expatriada por
meio da criação de órgãos consultivos permanentes que não apenas visam a proteção jurídica
da comunidade franco-argelina, mas o estreitamento de laços transnacionais políticos, sociais
e culturais. Conforme debatido, medidas como a inflexão retórica ao uso de expressões como
“comunidade nacional estabelecida no exterior” e sua concretização a partir do ensino do
árabe e do tamazight no seio da emigração a vinculam a uma consciência mais responsiva
assumida recentemente pelo Estado em relação à temática da identidade nacional. É um novo
estágio do desafio existencialista argelino, configurado em mais um tipo de rearticulação
estatal direcionada à constante autodefinição. De uma nacionalidade desvinculada dos
expatriados e quase exclusivamente ancorada na glória revolucionária passou-se a uma que
inclui o reconhecimento das diversidades internas aliado à aproximação identitária da
diáspora. Cada fase dessa mudança, como no caso das políticas linguísticas desde os anos
1970, demonstra uma instância diferente na qual o Estado se engajou na tarefa existencialista
de definir a identidade da nação.
Para a França, a imigração tem sido cada vez mais tratada por uma perspectiva de
segurança
societal.
O
Estado
reproduz
uma
série
de
imaginários
sociais
que
fundamentalmente estão relacionados à experiência colonial. Esse processo característico ao
período de análise mais recente é representado pela criação de uma série de arranjos
institucionais e legislações de exceção que cobrem não mais apenas, por exemplo, a questão
da imigração não documentada. A atenção pública e os esforços práticos do Estado passam a
ser dispensados à desejada integração da comunidade já estabelecida, posto que sua
visibilidade política e principalmente étnico-cultural é amplificada quando o “mito do
retorno” é falseado nos anos 1970 e 1980. Em meio à constante autoafirmação nacional
concretizada por meio da manipulação seletiva da história e dos valores tradicionalistas,
republicanos e universalistas, tanto o enquadramento discursivo de lideranças políticas quanto
o tratamento jurídico-institucional da questão demonstraram a profunda preocupação com a
integridade da fábrica social francesa. Como claramente ilustra a polêmica do uso da burca ou
até mesmo a debatida tese do seuil de tolerance dos anos 1970, tal preocupação assumiu em
aproximação entre teoria e objeto, e para contextualização inicial. Já o debate qualitativo encontra-se no capítulo
2 por dizer respeito a processos fundamentalmente vinculados ao processo de construção do Estado argelino.
86
conjunturas diferentes a mesma posição: glórias e valores envolvidos na fundação nacional
são retomados para a legitimação de práticas impositivas e, acima de tudo, conscientes de sua
moralidade. A intensificação da posição defensiva da França sobre a imigração mesmo em
face das mudanças circunstanciais, portanto, representa um novo estágio expressivo da mesma
lógica essencialista de sua identidade pós-colonial.
Objeto de análise
Período
1962-1973
Argélia
Variável interveniente Padrão de variação
Nation-Building
sobre o fluxo
Nulo (posição
defensiva contrainsurgente)
Contexto
Construção das
elites, lastro
ideológico
revolucionário e
relações bilaterais
Variável dependente
Identidade de expressão
existencialista reflexiva (identidade
não é explícita em gestão
emigratória)
Nation-Building
sobre o fluxo
Abordagem interna
Nulo (retórica de
em nationproteção e interesse building, estabilidade
exclusivo em
político-econômica e
remessas)
tipo de descolamento
migratório
1999atualidade
Nation-Building
sobre o fluxo
Gradualmente
crescente (primeiras
medidas
institucionais sob
nova percepção)
Padrão de
reprodução das
elites, abordagem
interna em nationbuilding e "década
negra".
1962-1974
Securitização do
fluxo em setor
societal
Nulo ("demanda e
oferta" e definição
de objetos)
Economia, relação
Estado/"parceiros
sociais" e transição à
Quinta República
1974-1986
Inflexão de modelo
Gradualmente
Securitização do crescente (expansão discursivo sobre
integração, "crise do
de atores e meios
fluxo em setor
republicanismo" e
com
formação
de
societal
novas dinâmicas
consenso político)
políticas
1986atualidade
Securitização do crescente (expansão
"questão
Identidade de expressão
de atores, meios e
muçulmana",
essencialista concreta (identidade é
fluxo em setor
objetos com
neorrepublicanismo
central em gestão imigratória)
societal
formação de
1973-1999
França
Radidamente
consenso simbólico)
Identidade de expressão
existencialista concreta (identidade
é central em gestão emigratória)
Identidade de expressão
essencialista reflexiva (identidade
não é explícita em gestão
imigratória)
Politização da
e ascensão da FN
Quadro 2 – Análises realizadas nos capítulos 2 e 3101
___________
101
Elaborado pelo autor. As duas variáveis externas classificadas como “cumulativas” denotam períodos em que
os processos anteriores, influentes sobre as características qualitativas do fluxo migratório, repetiram sua
influência sobre nation-building sobre o fluxo. Durante o período entre 1999 e atualidade, por exemplo, as
variáveis externas da geração e da “década negra” (guerra civil argelina) foram de mesma influência sobre as
políticas estatais de nation-building junto à emigração. As categorias selecionadas para expressão identitária,
nomeadamente “existencialista/essencialista reflexiva ou concreta”, dizem respeito ao teor assumido pela gestão
migratória de cada período em termos de identidade e procuram destacar a acentuada mudança ocorrida nas
conjunturas mais recente. De forma análoga ao quadro anterior, foram selecionadas variáveis contextuais
consideradas primárias aos debates, sendo as demais não apresentadas a título de síntese do conteúdo. São elas:
economia, relações bilaterais, a “década negra” e geração emigratória.
87
Em face de tais conclusões, destaca-se a busca implícita de algumas contribuições ao
debate geral sobre o tema. Em termos sociais, é preciso ter em mente que o desenvolvimento
de gestões públicas sobre fluxos migratórios está subscrito não apenas aos interesses e
possibilidades da conjuntura, mas dizem respeito também a construções identitárias
produzidas no seio da relação entre Estado e sociedade. Tal reflexão permite, por exemplo, a
análise da atual evolução brasileira em política imigratória como duplamente determinada: ao
lado do suporte instrumental à almejada orientação humanitária no ambiente internacional,
estão em jogo construções simbólicas acerca da “vocação multicultural” do país. Há uma
manipulação da gestão imigratória segundo o momento, mas sempre de forma a reproduzir
um senso de autopercepção consolidado. A problematização necessária diz respeito ao
balanceamento entre esse imaginário político e a realidade social das relações étnico-culturais,
de modo a questionar a intensidade na sociedade brasileira de problemas recorrentes como o
racismo, a xenofobia e as tensões intergrupo. Apenas o ponderamento entre o imaginário de
uma nação inclinada ao multiculturalismo e a realidade etnocêntrica de parcelas da sociedade
brasileira é capaz de gerar uma gestão imigratória responsável na proteção humanitária e
atenta às correntes sociais contrárias a tal. Como vimos para o caso de Argélia e França, a
evolução dessa mesma lógica entre migração e identidade é gradual e está vinculada à
descolonização de ambos os lados. É nesse ponto que as conclusões da presente pesquisa
buscaram algum grau de contribuição ao debate acadêmico. Além da ampliação da literatura
disponível em língua portuguesa sobre o objeto, foi elucidada uma parcela de mais uma
instância do contato humano em que a colonialidade possui grande poder de influência: a
migração. Grande parte dos estudos recentes em torno do pós-colonialismo buscam
justamente a identificação dos mais variados níveis de sua expressão de forma a clarificar em
que estágios se encontram os processos concretos de dominação, resistência e libertação.
Ao mesmo tempo em que essa demanda envolve a consideração atenta das nuances
específicas a cada caso e a variável externa, há um elemento de caráter geral às análises de
objetos subjetivos que figura como requisito à precisão dos resultados: a investigação
empírica. Restringida por limitações temporais e pelo não acesso a fontes primárias ou a
ambientes qualificados ao campo etnográfico, a presente pesquisa procurou evitar tal
constrangimento pela apropriação de identidades pós-coloniais e de seu campo discursivo em
termos já bem documentados. Em outras palavras, frente à impossibilidade de extrair
informações específicas acerca dos traços do pertencimento nacional argelino e francês,
88
optou-se pela utilização de modelos estruturais teoricamente informados e referentes mais a
lógicas de funcionamento do que a características detalhadas. Ao mesmo tempo em que
possibilitou a melhor apropriação do potencial explicativo da migração, essa escolha
representou a limitação da capacidade analítica em identidade, mas sem destituí-la das
qualidades de investigação verificadas nos resultados. Busca-se, nesse sentido, propor a
necessidade de novas pesquisas focadas no tratamento tanto microssocial quanto nacional e
regional das referidas estruturas identitárias, utilizando análises em discurso e etnografia de
modo a abarcar como são empregadas por atores de diferentes escopos (portanto em suas
variantes) e em que sentidos mudam ou não ao longo da história. Outra prescrição possível a
pesquisas futuras nesse sentido é a de maior delimitação temporal de modo a possibilitar a
apropriação de detalhes e variantes não captados pelo escopo abrangente aqui utilizado. As
limitações do presente trabalho, assim, fornecem esses pontos de atenção válidos a novas
pesquisas sobre o objeto de Argélia e França ou, em geral, sobre a relação entre identidades
pós-coloniais e fluxos migratórios. Longe de totalizar a complexidade dos processos de
construção identitária, a capacidade da exploração de tal temática reside na descoberta de
possíveis pontos de diálogo entre a pós-colonialidade e idiossincrasias sempre influentes.
89
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