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ANAIS DO GRUPO DE TRABALHO 1 Humanização do Direito Civil Contemporâneo: Perspectivas e Desafios Artigos Completos e Resumos Expandidos Adriano Marteleto Godinho Maria Cristina Paiva Santiago Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa ORGANIZADORES Página 1 de 270 Comissão Editorial Ana Clara Montenegro Fonseca Gabriel Honorato de Carvalho Cinthia Caroline L. do Nascimento Juliana Fernandes Moreira Filipe Lins dos Santos Maria Cristina Paiva Santiago Conselho Científico Adriano Marteleto Godinho Marcos Augusto de Albuquerque Ehrhardt Junior Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa Heloisa Helena Pinho Veloso Robson Antão de Medeiros Henrique Ribeiro Cardoso Rodrigo Azevedo Toscano de Brito Jailton Macana de Araújo Wladimir Alcibiades Marinho Falcao Cunha Larissa Maria de Moraes Leal Catalogação na publicação Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB Bibliotecária Vânia Maria Ramos da Silva - CRB 15/0243 S471a Seminário de Direito Civil-Constitucional (3.: 2016 : João Pessoa, PB). Anais do III Seminário de Direito Civil-Constitucional: Hipervulnerabilidade, saúde e humanização do Direito Civil-Constitucional / Organizadores: Adriano Marteleto Godinho, Maria Cristina Paiva Santiago, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa; Instituto de Pesquisa e Extensão Perspectivas e Desafios de Humanização do Direito Civil-Constitucional – João Pessoa: IDCC / UFPB/ UNIPÊ, 2016. 272 p. Anais do Grupo de Trabalho 1 - Humanização do direito civil contemporâneo: perspectivas e desafios. ISBN978-85-92966-00-3 1. Direito Civil-Constitucional – Seminário. 2. Hipervulnerabilidade. 3. Saúde. 4. Humanização. I. Godinho, Adriano Marteleto. II. Santiago, Maria Cristina Paiva. III. Feitosa, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. IV. Instituto de Pesquisa e Extensão Perspectivas e Desafios de Humanização do Direito Civil-Constitucional. V. Título. CDU – 347:342 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ............................................................................................................... 1 SEÇÃO DE ARTIGOS ....................................................................................................... 3 CONSTRUÇÃO DA ENTIDADE FAMILIAR E SUAS TRANSFORMAÇÕES À LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL. ......................................................... 4 A TUTELA JURÍDICA DA DIGNIDADE HUMANA ANTE A PROMOÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE DOS PACIENTES COM CÂNCER .......... 20 A HUMANIZAÇÃO CONSTITUCIONAL SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA .................................................................................. 35 PERSPECTIVA CÍVEL-CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE FILIAÇÃO .......... 51 LIBERDADE DE ESCOLHA E AUTONOMIA DA VONTADE NOS PROCEDIMENTOS DE INTERVENÇÃODA VIDA: UM INSTRUMENTO DA DIGNIDADE HUMANA ............................................................................................. 70 REPERCUSSÕES DO DANO SOCIAL NA JURISPRUDENCIA BRASILEIRA .... 89 PROJETO ―NOME LEGAL‖ DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA PARAÍBA: SUA ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL NO DIREITO DAS FAMÍLIAS E A PRIORIZAÇÃO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA .................................................................... 107 DIREITO À MEMÓRIA, DIREITO AO ESQUECIMENTO: UM PARADOXO AINDA INCONCLUSIVO ......................................................................................... 120 DIREITO À INTIMIDADE À LUZ DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.815 DISTRITO FEDERAL ............................ 138 HUMANIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL: ALERTA PARA BANALIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DO HOMEM ........................................................... 163 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR VÍCIOS DE CONSTRUÇÃO NO PROGRAMA MINHA CASA, MINHA VIDA ................ 177 REFLEXOS JURÍDICOS DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO SISTEMA BRASILEIRO DE INCAPACIDADE CIVIL .......................................... 192 OS DIREITOS DA PERSONALIDADE POST-MORTEM E A CRISE DA NECROFILIA VIRTUAL........................................................................................... 205 NOVAS FORMAS DE FAMÍLIA COMO ................................................................. 219 REFLEXO DA SOCIEDADE PÓS-MODERNA ...................................................... 219 I AS TRANSFORMAÇÕES PROMOVIDAS PELO DIREITO CIVILCONSTITUCIONAL E A CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA ....................................................................................... 230 SEÇÃO DE RESUMOS ............................................................................................... 248 A EXECUÇÃO DE ALIMENTOS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL À LUZ DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO............................................ 249 A CONSTRUÇÃO DA ENTIDADE FAMILIAR E SUAS TRANSFORMAÇÕES Á LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL. ..................................................... 252 A HUMANIZAÇÃO CONSTITUCIONAL SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA ................................................................................ 254 A ENFITEUSE EM TERRENOS DA MARINHA E ACRESCIDOS COMO DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE ..................... 256 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO INSTITUTO DA SEPARAÇÃO DE CORPOS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL .......................................... 258 LIBERDADE DE ESCOLHA E AUTONOMIA DA VONTADE NOS PROCEDIMENTOS DE INTERVENÇÃO DA VIDA: UM INSTRUMENTO DA DIGNIDADE HUMANA ........................................................................................... 260 HUMANIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL: ALERTA PARA BANALIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DO HOMEM ........................................................... 262 DIREITO À INTIMIDADE À LUZ DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.815 DISTRITO FEDERAL ............................ 263 A CAPACIDADE CIVIL E A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA PERANTE NOTÁRIOS E REGISTRADORES .... 264 A IMPORTÂNCIA DA HUMANIZAÇÃO NO PROCESSO DE MEDIAÇÃO FAMILIAR SOB A PERSPECTIVA DA GUARDA COMPARTILHADA ............. 265 II APRESENTAÇÃO O Instituto de Pesquisa e Extensão Perspectivas e Desafios de Humanização do Direito Civil-Constitucional (IDCC), criado no ano de 2012, por iniciativa de docentes da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), apresentou, já em sua gênese, os nobres propósitos de desenvolvimento de atividades acadêmicas que pudessem contribuir para o desenvolvimento das instituições jurídicas no país, nomeadamente aquelas que se encartam no amplo e mutável universo do Direito Civil. Atualmente, as atividades do Instituto já contabilizam a realização de três seminários, com participação de juristas de todo o país e de além-mar, além da publicação de outras obras, tanto eletrônicas quanto impressas, que condensam a vasta produção científica de seus membros, tanto docentes quanto discentes. A proposta do Instituto é notável e notória: mais do que simplesmente transitar sobre o já consolidado método de releitura das instituições civis proposto pela escola do Direito Civil-Constitucional, propõe-se um passo adiante: a consolidação da vertente de humanização do Direito Civil. Humanizar os velhos institutos que sustentam os pilares seculares do Direito Civil implica avançar para muito além da concepção das pessoas humanas como meros personagens do mundo jurídico, a atuar como parte em atos e relações diversas. Para tanto, cumpre proclamar que o ser humano é o início e o fim do Direito, a verdadeira razão de ser do ordenamento jurídico, o que permite ultrapassar a ideia da pessoa natural como mero sujeito de direitos – embora, naturalmente, ela também o seja. Daí decorre que a personalidade jurídica das pessoas naturais nada mais seja que o reconhecimento de um estado prioritário de coisas, em que o ser humano figura como alicerce de todos os conceitos jurídicos – inclusive o de personalidade; daí também se proclama que a personalidade humana não pode consistir numa mera atribuição técnica, cujo árbitro seria o legislador (ao contrário do que se passa com as pessoas jurídicas, como restará demonstrado a seguir). Impõem-se, pois, duas ordens de ideias fundamentais: a primazia do ser humano enquanto núcleo orientador da ordem jurídica e a superação da concepção da pessoa Página 1 de 270 humana como simples sujeito de direitos. Coloca-se a pessoa natural, enfim, como a razão de ser da lei e do Direito, enquanto ser dotado de uma dignidade que lhe é intrínseca. É este o ponto de partida a orientar todas as concepções que se possam extrair sobre os temas contemporâneos de Direito Civil. A obra que se apresenta é fruto da inquietude de seus idealizadores: trata-se de um amplo compêndio dos trabalhos promovidos por ocasião da realização do evento intitulado ―III Seminário de Humanização do Direito Civil-Constitucional: hipervulnerabilidade, saúde e humanização do Direito Civil-Constitucional‖, realizado no Centro de Ciências Jurídicas da UFPB, em João Pessoa-PB, no período de 02 a 04 de março de 2016. Assim, este volume condensa os trabalhos avaliados e apresentados no Grupo de Trabalho 1, intitulado ―HUMANIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO: PERSPECTIVAS E DESAFIOS‖, sob a coordenação dos professores Adriano Marteleto Godinho, Maria Cristina Paiva Santiago e Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa, que orgulhosamente saúdam a comunidade jurídica, por meio da edição deste valioso contributo à boa pesquisa acadêmica e científica. Estão lançados os pilares fundamentais da humanização do Direito Civil. Que os leitores desta obra nos acompanhem nesta empreitada. Adriano Marteleto Godinho Maria Cristina Paiva Santiago Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa Coordenadores do GT 1 - Humanização do Direito Civil Contemporâneo: Perspectivas E Desafios João Pessoa-PB, 10 de maio de 2016. Página 2 de 270 SEÇÃO DE ARTIGOS Página 3 de 270 CONSTRUÇÃO DA ENTIDADE FAMILIAR E SUAS TRANSFORMAÇÕES À LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL. Wallace Leonardo de Aguiar 1 Resumo: O presente trabalho tem como objetivo discorrer e analisar a construção da entidade familiar e suas alterações ao longo das transformações da sociedade chegando até os dias atuais fazendo uma comparação entre os conceitos de outrora e o seu atual conceito trazido pela Constituição Federal de 1988 e reproduzido pelo Código Civil de 2002 e legislações infraconstitucionais posteriores. Para tanto utilizar-se-á do método dedutivo de pesquisa, através de análise bibliográficas e outras fontes de informações. Entender a construção da entidade familiar e suas alterações é compreender a evolução da sociedade como um todo, vez que, a instituição familiar é vista por muitos como sendo a base da sociedade de modo que reflete de forma clara e mais imediata as transformações, necessidades e mutações que sofrem os indivíduos e consequentemente a sociedade cabendo ao direito e ao Estado como ente soberano se adequar a estas novas necessidades para que se possa atender ao interesse coletivo social. Assim, conclui-se que um dos temas que mais sofreu mutações ao longo do tempo sob uma perspectiva jurídica foi sem sombra de dúvidas o direito de família e que dele decorre os preceitos e normas inerentes a instituição familiar chegando até os dias atuais onde se apresentam de uma forma bem distinta de outrora buscando melhor atender as necessidades daqueles que fazem parte do seio familiar ou que ainda farão, entendendo-se como família uma entidade mais disposta a oferecer dignidade ao indivíduo que dela participe do que preocupada com padrões e conceitos materiais e patrimoniais. Palavras-chave: família; direito; transformações. Abstract: This paper aims to discuss and analyze the construction of the family unit and its changes over the transformation of society coming to the present day making a comparison between the concepts of the past and its current concept brought by the 1988 1 Bacharel em direito pela UFPB; advogado, e-mail: [email protected]. Página 4 de 270 Federal Constitution and reproduced by Civil code of 2002 and later lesser low legislation. For this purpose it will be used the deductive method of searching through bibliographic analysis and other sources of information. Understand the construction of the family unit and its amendments is to understand the evolution of society as a whole, since, the family institution is seen by many as the basis of society so that it reflects clearly and more immediate transformations, needs and mutations suffering individuals and consequently the company fitting the right and the state as a sovereign entity to adjust to these new requirements so that it can meet the social collective interest. Thus, it is concluded that one of the issues that has mutated over time under a legal perspective was undoubtedly the family law and that it follows the principles and rules inherent to family institution coming to the present day where present in a very distinctive way of yore seeking better meet the needs of those who are part of the family environment or even will, be understood as a family more willing entity to offer dignity to the individual that it participates than worried about standards and material concepts and equity. Keywords: family; right; transformations. Introdução Partindo de uma análise sobre a instituição familiar desde o seu surgimento até os dias atuais, acredita-se que no princípio era na verdade um agrupamento de pessoas que se uniam por questões de necessidade, com o decorrer do tempo foram ocorrendo diversas transformações em sua estrutura podendo ser mencionada a família Romana, em uma época em que a mesmaera marcada pela autoridade do Pater Família para com todos os indivíduos que dela faziam parte, com o advento da igreja católica adquiriu caráter matrimonial, pois, só reconhecia a sua legitimidade através das normas religiosas do matrimonio. Com o passar dos tempos e a transformação social que inevitavelmente ocorria, a instituição familiar passou a ser regulada pelo direito que empregou a ela um caráter jurídico necessário, passando a ser enxergada como a base da sociedade e por isso sendo dever do direito regular a forma de constituição e dissolução, a partir do momento em que se começou a se conceber a ideia de possível dissolução do casamento, ideia que outrora era inconcebível, essas modificações se ocorreram já no século XX, em conformidade com Página 5 de 270 diversas mudanças inclusive de função, composição e concepções que foram trazidas com o advento do Estado social. O direito brasileiro cuidou de regular a instituição do casamento em todas as suas constituições até chegar a atual Constituição Federal de 1988. Nos tempos de outrora entendia-se, que a única forma de constituição familiar era através do matrimônio, seguindo esse conceito todas as nossas constituições trouxeram em seu bojo ao menos um artigo que seguia esse conceito, o que foi claramente evoluindo com as modificações que ocorriam na própria sociedade e as necessidades que surgiam em relação a constituição da entidade familiar. Sem dúvidas a instituição familiar foi um dos institutos que mais sofreu modificações e transformações em seus conceitos e formas deestruturação, de criação, extinção e papel que exerce junto ao meio social e ao próprio indivíduo membro dela. A Carta Magna de 1988, cuidou do tema buscando dar uma especial proteção para a família e garantir a todos o direito de ser inserido em um seio familiar bem como de constituir a sua própria sociedade parental, o que veio a ser seguido pelo Código Civil de 2002 embora ainda de forma reservada, quando passou a tratar da entidade familiar elevando a primeiro plano a pessoa, ou seja, o indivíduo seguindo assim os princípios trazidos pela CF/1988. 2. COMPREENDENDO A CONSTRUÇÃO DA ENTIDADEDE FAMILIAR. O indivíduo, desde que se tem notícias, sempre teve a necessidade de criar laços por menores que fossem, pois, a convivência isolada das demais pessoas é algo difícil de se imaginar, esses laços surgiam por diversos motivos podendo ser econômicos, sociais, emocionais, políticos, religiosos, entre outros. Inicialmente a ―família‖ era, na realidade, o conjunto ou formação de pessoas que agrupavam-se devido as afinidades que tinham entre si, passando então a cuidar, proteger e zelar uns pelos outros, isso muito antes de existir a figura da igreja como reguladora da instituição familiar ou até mesmo o Estado como intervencionista nestas relações que em sua origem eram puramente privadas, o conjunto familiar nada mais era do que um Página 6 de 270 agrupamento informal de formação espontânea que se uniam por uma química biológica2, ou seja, algo natural e espontâneo entre os indivíduos, Adhayl Lourenço explica isso demonstrando a necessidade que existe tanto entre os seres humanos como nos animais de se agruparem graças a atração das espécies e que através disso podem criar afinidades, laços, construírem um espaço onde podem dar e receber afeto, bem como, proteger e ser protegido, pois, o isolacionismo é repelido pela natureza humana3. Pouco depois, com a ocorrência da civilização dos indivíduos, começou a existir regras e costumes sociais que foram sendo aplicados também a instituição familiar como por exemplo: em Roma, a família era entendida como a instituição a qual tinha um representante, aquele que exercia o poder sobre os demais, o Pater familias, além do caráter afetivo ela tinha um condão econômico, patrimonial, religioso e até mesmo cultural. O pater familias era aquele que detinha todo o poder sobre as demais pessoas, inclusive sobre a sua esposa, filhas, e também as mulheres dos seus filhos quando estes se casavam com manu. Desde a sociedade Romana, a família e sua formação passou por diversas modificações, mas, sempre foi considerada uma instituição, porém, muito anterior ao Estado ou até mesmo a valores religiosos, econômicos ou morais. Nesse sentido se posiciona Oliveira4: Assim, a família, como instituição social, é uma entidade anterior ao Estado, anterior à própria religião e também anterior ao direito que hoje a regulamenta, que resistiu a todas as transformações que sofreu a humanidade, quer de ordem consuetudinária, econômica, social, cientifica ou cultural. Comparativamente, na Idade Média, a família tinha por base o direto canônico, época em que além do sangue só era constituída por meio o casamento religioso, com o passar dos tempos e o reconhecimento da família como instituição na qual o indivíduo poderia ter o seu completo desenvolvimento, além de ser considerada, por muitos, a base do Estado, passou a ser conceituada como sendo o conjunto de pessoas que descendem de um ancestral em comum isso no seu aspecto biológico ou aquela que era fundada na união de duas pessoas até então de sexo opostos através do casamento, isso no seu aspecto jurídico/social. 2 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7ª edição. Revista e atualizada, 2010, p. 27. DIAS, Adahyl Lourenço. A Concubina e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 1988, p. 1. 4 OLIVEIRA, José Sebastião. FUNDAMENTOS CONSTITUICIONAIS DO DIREITO DE FAMÍLIA. Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2002. 3 Página 7 de 270 Com o passar do tempo no advento da Igreja Católica como reguladora da sociedade a qual era responsável por ditar normas e regras, a família ganhou um caráter matrimonial, caracterizada pela figura do pai como o chefe, a mulher e os filhos devendo, portanto, submissão a ele, bem como caráter econômico, pois sua estrutura girava em torno de aquisição de bens, onde cada um deveria contribuir e, mais que isso, tinha como dever e/ou obrigação a procriação já que um de seus pilares era consubstanciado na afirmativa bíblica ―crescei e multiplicai-vos‖5, objetivando o povoamento da terra com novos cristãos, disseminando assim, a religião cristã no âmbito mundial. Desse modo, a igreja passou a controlar a forma de constituição familiar, sendoesta que era admitida e aceita não sendo reconhecidas outras formas diferentes. Posteriormente, o Estado excluiu da Igreja o poder de regular a instituição familiar, passando para si o exercício desse papel, momento no qual editou normas positivadas, seguindo com o costume de que a única forma de constituição familiar era aquela advinda do matrimônio, sendo este indissolúvel. Para o Estado, a família era o núcleo sob o qual orbitava a sociedade e, por isso, merecia especial proteção, de modo que se fazia necessário ditar normas e regras, como por exemplo, a instituição do casamento como forma necessária para criação da família. A criação dessas regras foi a forma encontrada para impor limites ao homem, ser desejante, que na busca do prazer, tende a fazer do outro um objeto6. Por isso a tamanha preocupação com as formas de criação, regras de conduta, social, moral e até as hipóteses de dissolução, isso em uma época que a dissolução do casamento não punha fim ao vinculo matrimonial. É mister salientar que não se pode dar um único e exclusivo conceito a palavra família, pois o mesmo sofre mutações ao longo dos tempos, das culturas e sociedades, mas, o que se pode observar é que os Estados entendem a instituição familiar como o agrupamento de pessoas, sejam elas unidas por um fator biológico, afetivo, moral, social ou até mesmo jurídico, de modo que, nenhum direito, inclusive o brasileiro, conseguiu ou consegue mostrar uma definição de família que acompanha todas as formas atuais. 5 6 SAGRADA, Bíblia, Livro de Genesis, cap. 9, versículo 7. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7ª edição, revista e atualizada. 2010. p. 21. Página 8 de 270 Conforme Lôbo7: Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo conceito indeterminado depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta dotada de ductilidade e adaptabilidade. Desse modo, percebe-se que a instituição familiar embora seja contemplada algumas de suas formas pela Constituição Federal, estas não são as únicas existentes, havendo outras que também merecem proteção. Alterações Legais Da Entedide Familiar Ao Longos Do Tempo. Tanto no direito brasileiro, assim como nos demais direitos do mundo, é perceptível um ―avanço‖ ou ―adaptação‖ do entendimento acerca do aspecto conceitual de família, a começar pelas nossas constituições que a priori tratou deste tema, conceituando a família sob seu caráter patriarcal sendo aquela que cuidava dos interesses patrimoniais, regulando apenas a ―Família Imperial", segundo a Constituição Federal de 18248. A Constituição Federal de 18919 cuidou do tema apenas em um artigo, no qual afirmava que a República apenas reconhecia o casamento civil como forma de constituição de família. Por isso, desvinculou a instituição matrimonial da religião, uma vez que separou o Estado da Igreja10. só a partir da Constituição Federal de 1934 que a família passou a receber a proteção do Estado, bem como foi incorporada a ela a temática da cultura e da educação. 7 LÔBO, Paulo Luiz Neto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do numeroscalusus. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9408-9407-1-PB.pdf>. Acesso em 15 de abril de 2015. 8 BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, 1824. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em: 24 de outubro de 2015. 9 BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em: 24 de outubro de 2015. 10 MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Dabud. Curso de Direito de Família. Editora Saraiva. São Paulo: 2013. p.58. Página 9 de 270 A Constituição Federal de 193711apesar de repetir a ideia de proteção do estado para com a entidade familiar e que concordava com o casamento, a mesma sofreu alterações importantes como, por exemplo, os cuidados que devem ser tomados dentro do seio familiar, bem como a igualdade de todos os filhos naturais. Esses conceitos foram praticamente reproduzidos na Constituição Federal de 194612 que, em quase nada, distinguiu-se da anterior referida. A constituição de 196713 explicitou a regularização da forma de constituição da família em seu artigo nº 167, no qual trazia, em seu bojo, o entendimento de família como aquela advinda do casamento, tendo a proteção dos Poderes Públicos, sendo este indissolúvel e de celebração gratuita, o que fora recepcionado na Constituição Federal posterior, no ano de 196914. No ano de 1988, mais precisamente em 5 de outubro, foi promulgada a nossa atual Constituição Federal15, que ocupou-se de tratar do tema conceitual de família em seu artigo nº 226, no qual explicita o conceito de família diretamente relacionada à base da sociedade, cabendo ao Estado protegê-la, bem como em seus incisos, o reconhecimento das uniões estáveis, dando-lhes, também, proteção estatal. Além disso, fora reconhecida a família monoparental, a igualdade de direitos e deveres entre os sexos, as formas de dissolução do casamento, os princípios que devem nortear essa instituição e a assistência para cada pessoa. Essas modificações observadas nos parágrafos vestibulares referem-se à necessidade que o Direito tem em acompanhar as mutações nos âmbitos sociais. Nesse sentido, Diniz16 afirma que: A evolução da vida social traz em si novos fatos e conflitos, de maneira que os legisladores diariamente passam a elaborar novas leis; juízes e tribunais 11 BRASIL. Constituição (1937). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1937. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm>. Acesso em: 24 de outubro de 2015. 12 BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1946. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm>. Acesso em: 24 de outubro de 2015. 13 BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1967. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm>. Acesso em 24 de outubro de 2015. 14 BRASIL. Constituição (1969). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1969. 15 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 40ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007. 16 DINIZ, Maria Helena. As Lacunas no Direito. Editora Saraiva. São Paulo: 1987. p. 73. Página 10 de 270 constantemente estabelecem novos precedentes e os próprios valores sofrem mutações, devido ao grande e peculiar dinamismo da vida. Pode-se entender que as funções que eram atribuídas a família ao longo do tempo foram se perdendo no seu próprio tempo, pois, muitas dessas funções deixaram de existir nos dias atuais, conforme Lôbo17 retrata a seguir: A família atual busca a sua identificação na solidariedade (Art.º 3, I da Constituição), como um dos fundamentos da afetividade, após o individualismo triunfante dos últimos séculos, ainda que não retome o papel predominante que exerceu no mundo antigo. Portanto, aquele caráter puramente patrimonialista e patriarcal extinguiu-se no espaço, em virtude da pluralidade de situações e relações formadas nos dias atuais, pois, não poderia permanecer a família restrita a conceitos puramente ultrapassados que, além de não refletirem mais a sociedade atual, não englobam mais as suas necessidades e miscigenação de relação quando se fala em família. O Direito, por conseguinte, busca acompanhar as necessidades dos indivíduosvia efetivação de seu papel, isto é, regular a vida em sociedade, de modo que atenda aos seus interesses. Por isso, não seria justo e nem certo que a família viesse a ser uma instituição fechada e retrógrada, hora controlada pela igreja, hora controlada pelo Estado. Atualmente, essa instituição tem um papel mais amplo, tanto em sociedade, quanto para o próprio indivíduo que dela faz parte, visto que mudaram as situações e épocas, e, consequentemente, modificaram-se as formas de constituição e estruturação familiar, pois o mundo de hoje não mais se detém a uma visão idealizada de família. Seu conceito sofreu constante mutação e a sociedade concede a todos o direito de buscar a felicidade, independentemente dos vínculos afetivos que estabeleçam18. Com as novas formas de constituição de família e em uma visão moderna e atual do que seria essa entidade, pode-se afirmar, que o seu papel mudou, de acordo com os dizeres de Dias19, a qual afirma que o seu principal papel é de suporte emocional do indivíduo, em que há flexibilidade e, indubitavelmente, mais intensidade no que diz respeito a laços afetivos. 17 LÔBO, Paulo. Direito Civil Famílias. Editora Saraiva. São Paulo: 2011. p. 18-19. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7ª adição, revista e atualizada. 2010. p. 33. 19 Idem. p. 42. 18 Página 11 de 270 A família deixou de ser aquela que, necessariamente, era criada pelo casamento, exigência que deixava a margem uma série de relações de afinidade e passou a ser pautada por princípios que norteiam as relações matrimoniais, monoparentais, mosaicas, homoafetivas, eudemonista, proporcionando-lhes proteção especial e assegurando-as direitos e obrigações, ainda conforme Dias20: É necessário uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que permite alcançar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação. As Grandes Transformações Oriundas Da Constituição Federal De 1988. A mais recente Constituição do Brasil, que fora promulgada em 5 de outubro de 1988, trouxe consigo uma série de mudanças, inclusive no tema ora discutido que é o direito de família. Baseada em princípios mais humanizados onde passou a refletir a maior importância da pessoa humana do que do seu patrimônio e voltada a atender os interesses sociais e proteger a dignidade da pessoa humana, viu-se o legislador obrigado a efetivar uma série de modificações na forma de criação e conceituação da instituição familiar, rompendo com a regra anterior de que a família só poderia ser criada pelo casamento, passando então a aceitar diferentes formas de constituição familiar, o que representou um salto inigualável para o Direito, em especial, o Direito da Família. A Constituição Federal de 198821 trata sobre o tema em um dos seus artigos destinados sobre essa instituição: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º. O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º Para efeitos de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º O direito e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após previa separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada a separação de fato por mais de dois anos. 20 Idem. p. 43. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 40ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. 21 Página 12 de 270 § 7º Fundados nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para a exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito das suas relações. Em apenas um único artigo, a nova Constituição conseguiu dar um salto histórico em relação a família, salto esse necessário para atender aos interesses da sociedade da época, houve uma reestruturação no próprio conceito de família ―Assim, a Carta de 1988 introduziu uma radical mudança no panorama da família, com a nova conceituação de entidade familiar, para efeitos de proteção do Estado, passando a família a ser concebida de forma mais ampla, em decorrência de sua origem no direito natural, com reflexos no âmbito civil e penal22". A entidade familiar deixou de ter como única forma originária o casamento e passou a ser reconhecida aquela oriunda do casamento civil ou religioso com efeitos civis, bem como a monoparental, além de reconhecer também as uniões estáveis formadas por pessoas de sexos diferentes, sendo assim, um homem e uma mulher como entidade familiar, conseguindo desse modo englobar um número bem maior de indivíduos. Passou a conceder direitos iguais para aqueles que se encontravam em uma convivência conjugal, não mais colocando a mulher em situação de subordinação ao marido, mas sim tornando-os iguais possuindo ambos direitos e obrigações para com o lar, filhos, relacionamento conjugal e a família. Pela primeira previu casos de separação e divórcio, não tendo mais o casamento aquele caráter de indissolubilidade que outrora o atingia, considerando-se que, ao se falar em dignidade da pessoa humana, não seria possível conceber a ideia de uma convivência ou um vínculo onde uma ou ambas as partes não estivessem mais de acordo, pois isso fere completamente o direito de escolha, de bem estar e de liberdade que acabam por refletir na própria dignidade do indivíduo. Incluiu o direito de planejar a família, ao dizer expressamente que é livre ao casal o planejamento familiar e que cabe ao Estado proporcionar meios para que esse direito seja 22 MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Dabud. Curso de Direito de Família. São Paulo: Editora Saraiva. 2013. p. 63. Página 13 de 270 efetivado conforme já visto no artigo 226 § 6º acima transcrito, ou seja, passou a entender o planejamento familiar como algo livre, podendo ser tanto por meios naturais ou tradicionais, meios científicos ou meios afetivos, não podendo esquecer do instituto de adoção que acaba sendo uma alternativa capaz de atender por vezes esse planejamento. Por último, regulou a família via mecanismos para a sua proteção, não só da família como instituição, mas também dando proteção especial a cada indivíduo que dela faz parte, inclusive prevendo a criação de meios para inibir possíveis violências que possam ocorrer interferindo assim nas relações familiares, como por exemplo o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Outra grande e importante incorporação trazida pela Constituição de 1988 e aplicada a entidade familiar, foi o acolhimento de princípios que servem para nortear essas relações. Para Lôbo23, esses princípios classificam-se em: o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da solidariedade familiar, da igualdade e direito a diferença, liberdade as relações de família, afetividade, convivência familiar e melhor interesse da criança. Embora a Constituição Federal de 1988 tenha se mostrado disposta a regular as relações que surgiam na sociedade, a cada dia que passa essas relações se tornam cada vez mais plúrimas e diferenciadas, de modo que o direito já não mais atende todas elas. Pode ser citado, como exemplo de evolução do Direito, em virtude da sociedade, algumas modificações que ocorreram no próprio Direito da Família, como, por exemplo, a Emenda Constitucional 66/201024, que veio por um fim a figura da separação que antes exigia um tempo mínimo e hoje em dia não é mais necessário: EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66 DE 13 DE JULHO DE 2010: Dá nova redação ao § 6º do art. 226 da Constituição Federal, que dispõe sobre a dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio, suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de 1(um) ano ou de comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos. Nesse mesmo sentido de modificação, pode ser mencionada aqui, também, uma mais recente, que é em relação ao casamento que deixou de ser unicamente aquele entre um 23 LÔBO, Paulo, Direito Civil Famílias. 4ª edição. São Paulo: Editora Saraiva. 2011. p. 55-79. BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 66, de 13 de julho de 2010. Brasília, 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc66.htm>. Acesso em 15 de outubro de 2015. 24 Página 14 de 270 homem e uma mulher, como consta no art. nº 226 da Constituição Federal25, passando a ser reconhecida também o casamento entre pessoas do mesmo sexo, isso através da resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 175/2013, que obriga a todos os cartórios do pais a realizarem o casamento homoafetivo bem como a conversão das uniões estáveis homoafetivas em casamento, tendo então força de lei.26 Ao buscar aprofundamento sobre este tema, percebe-se que a doutrina converge a esse respeito relatando que, uma vez sendo reconhecidas as várias mutações que a sociedade sofreu e sofre cotidianamente um dos institutos que mais acompanhou essas mudanças é sem dúvidas a família, pois, foram transformações feitas em sua base de construção, sua forma de estruturação. Tudo isso com o intuito de atender o real sentido dela mesma, que é proporcionar ao ser integrante, o alcance da plenitude de seus sentimentos e desejos. Também inclui proporcionar a convivência digna com os seus decendentes e proteger essa formação que se cria através de um contrato privado entre particulares, ou seja, através da sua autonomia de vontade, que merece e deve ser respeitada. Só dessa forma, pode-se chegar a ter a tão desejada e almejada dignidade que a constituição traça como seu pilar fundamental. Neste sentido diz Lôbo: A família atual busca sua identificação na solidariedade (art. 3º, I, da Constituição), como um dos fundamentos da afetividade, após o individualismo triunfante dos dois últimos séculos, ainda que não retome o papel predominante que exerceu no mundo antigo. Na expressão de um conhecido autor do século XIX, ―pode-se expressar o contraste de uma maneira mais clara dizendo que a unidade da antiga sociedade era a família como a da sociedade moderna é o indivíduo‖.27 Assim, hoje em dia, não se pode restringir o conceito de família apenas àquelas que eram previstas inicialmente pela Constituição, pois a cultura mudou, a sociedade mudou, os costumes mudaram e a consequência disso é uma série de novas relações privadas que são criadas todos os dias. Hoje, temos vários tipos de famílias que merecem proteção do Estado, sem que ele venha intervir como acontecia outrora. 25 Idem. 2007. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013. Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo. Brasília, DF, 14 de maio de 2013. 27 MAINE, Henry Sumner. El derecho antigo. Trad. A. Guerra. Madrid: Alfredo Alonso, 1893, p. 89, apud, LÔBO, Paulo, DIREITO CIVIL FAMÍLIAS, 4ª edição, de acordo com a Emenda Constitucional de 2010, Saraiva, 2011, p. 18-19. 26 Página 15 de 270 A realização pessoal da afetividade, no ambiente de convivência e solidariedade, é a função básica da família de nossa época. Suas antigas funções feneceram, desapareceram ou desempenharam papel secundário. Até mesmo a função procracional, com a secularização crescente do direito de família e a primazia atribuída ao afeto, deixou de ser sua finalidade precípua.28 O próprio IBDFAN (Instituto Brasileiro de Direito de Família), ao criar o estatuto das famílias dispôs da seguinte forma29: O conceito de família é cada vez mais plural. Os arranjos familiares da sociedade moderna não mais decorrem apenas do matrimônio. A união estável, entre pessoas do mesmo sexo ou não, famílias monoparentais, adoções e a comprovação de paternidade via testes de DNA atestam que as mais diversas formas de relação familiar tornam a vinculação afetiva mais importante na abrangência e nas novas definições do conceito de família. Assim sendo, é esclarecido que a sociedade se transforma, os conceitos evoluem os preconceitos são vencidos e cabe ao Direito acompanhar cada mudança e dar uma reposta às necessidades que são colocadas pelos indivíduos. A Família À Luz Do Direito Civil-Constitucionalizado. Com o advento da mais recente Constituição brasileira e com a sobreposição dos direitos fundamentais e sociais aos direitos patrimoniais, que traz a nova Constituição, o direito de família sofreu grandes e importantes transformações com respaldo em um dos princípios que é o pilar da Constituição atual denominado de a dignidade da pessoa humana. Considerando que a Constituição Federal é uma norma de caráter hierárquico superior ao próprio Código Civil, havia a necessidade de adaptá-lo ao que a Constituição já previa. Assim o novo Código Civil, ao entrar em vigor, já teria que explicitar normas que fossem compatíveis com as que já eram previstas pela Carta Maior. O novo Código Civil seguindo a Magna Carta abandonou a ideia de casamento como única forma de constituição da família, pois passou a regular também as famílias 28 LÔBO, Paulo, DIREITO CIVIL FAMÍLIAS, 4ª edição, de acordo com a Emenda Constitucional de 2010, Saraiva, 2011, p. 20. 29 Assessoria de Comunicação IBDFAN e Assessoria de Imprensa da Senadora Lídice da Mata. Projeto de Estatuto das Famílias. 2013. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/noticias/5182/Projeto+de+Estatuto+das+Fam%C3%ADlias+%C3%A9+apresenta do+no+Senado>. Acesso em 16 de abril de 2015. Página 16 de 270 monoparentais, bem como as chamadas uniões estáveis, o que outrora era inconcebível. Além disso, prevê direitos iguais para todos os filhos sendo estes havidos do casamento ou não, bem como igualdade para ambas as partes e atribui proteção especial a criança. Pode-se perceber que o atual Código Civil recepcionou o princípio da dignidade da pessoa humana aplicando-o claramente ao direito de família quando prevê em seu art. nº 1.511, enfatizando que ―o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges30.‖ Essa característica de igualdade entre os cônjuges é algo relativamente recente em nossa sociedade, algo que veio a ser efetivado graças a Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, recepcionado pelo novo Código Civil em 2002, seguindo a ideia de constitucionalização do direito civil, ou seja, as normas trazidas pelo atual código civil devem seguir e respeitar as que são trazidas pela CF/88. Dentre outras transformações realizadas com a vigência no novo código, é notável que este veio para colocar um fim ao que antes era chamado de pátrio poder, uma vez que assegurou para todos os indivíduos que fazem parte do núcleo familiar, dignidade, bem como igualou os direitos e deveres do homem e da mulher os colocando em condição equiparada, em conformidade com a igualdade prevista na Lei Maior. Assim, a família regulada pelo atual Código Civil finda sendo uma estrutura que se difere bastante das famílias de outrora, pois, hoje em dia, a família é uma comunhão de pessoas que podem ser ligadas pelo casamento, pelo afeto, pelo sangue, entre outros, importando veridicamente não mais os fatores econômicos, sociais, culturais ou religiosos, mas, de fato, em valores afetivos e no interesse de agir como família. Segundo Gonçalves31: O Código Civil de 1916 e as leis posteriores, vigentes no século passado, regulavam a família constituída unicamente pelo casamento, de modelo patriarcal e hierarquizada, ao passo que o moderno enfoque pelo qual é identificada tem indicado novos elementos que compõem as relações familiares, destacando-se os vínculos afetivos que norteiam a sua formação. Nessa esteira, tanto a Constituição Federal de 1988 quanto o Código Civil de 2002, tomaram bastante cuidado quanto as normas reguladoras e formas de criação da família, 30 BRASIL. Código Civil, 2002. Código Civil. Art. nº 1511, de 10 de janeiro de 2002. São Paulo. Editora Saraiva. 2002. 31 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família.v.6. São Paulo: Editora Saraiva. 2005. p. 16. Página 17 de 270 não restringindo-a em um grupo ou tipo, isso por que as formas previstas pela própria Constituição é um rol meramente exemplificativo que se alarga a cada dia, com o passar do tempo e com as novas relações que tendem a surgir sempre. Tornar esse rol taxativo traria um prejuízo imensurável para a sociedade e para o próprio Direito, o qual passaria a não corresponder as expectativas dos indivíduos, que é promover uma resposta e uma solução para as transformações, modificações e possíveis adaptaçõe que venham a surgir com o decorrer do tempo na convivência em sociedade. Considerações Finais Analisando os conceitos, formas de criação, finalidade e papeis que eram e são atribuídos a entidade familiar ao longo do tempo e até os dias atuais, é incontestável as suas transformações, que ocorreram graças a necessidade que direito possui de acompanhar mutações sociais. O fenômeno da constitucionalização do direito civil foi algo de extrema importância que refletiu diretamente no direito de família que era marcado pelo conservadorismo de outrora e que se estendeu até datas não muito distantes. Seguindo essa ideia de constitucionalização o direito civil quando em matéria de direito de família passou a se preocupar mais com o ser/indivíduo e suas necessidades, subjetividades e desejos, do que com o seu patrimônio, passou a ser buscado o alcance da realização pessoal proporcionando assim uma existência digna. Na ânsia desse alcance, foram abrindo espaço para o reconhecimento de tantas formas de famílias quantas forem necessárias enxergando as citadas na CF/88 e no CC 2002 como um rol meramente exemplificativo e não taxativo, pois, trazer princípios constitucionais de dignidade, igualdade, liberdade entre outros para o campo do direito civil em especial do direito de família representou um salto e benefício incalculável para todos os indivíduos que hoje são resguardados pelas novas formas de família. Referencias Bibliográficas. Assessoria de Comunicação IBDFAN e Assessoria de Imprensa da Senadora Lídice da Mata. Projeto de Estatuto das Famílias. 2013. Disponível em: Página 18 de 270 <http://www.ibdfam.org.br/noticias/5182/Projeto+de+Estatuto+das+Fam%C3%ADlias+%C3%A9+ apresentado+no+Senado>. Acesso em 16 de abril de 2015 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 40ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007. DIAS, Adahyl Lourenço. A Concubina e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 1988, p. 1. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7ª edição. Revista e atualizada, 2010, p. 27. DINIZ, Maria Helena. As Lacunas no Direito. Editora Saraiva. São Paulo: 1987. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família.v.6. São Paulo: Editora Saraiva. 2005. p. 16. LÔBO, Paulo Luiz Neto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do numeroscalusus. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9408-9407-1-PB.pdf>. Acesso em 15 de abril de 2015 LÔBO, Paulo. Direito Civil Famílias. Editora Saraiva. São Paulo: 2011. MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Dabud. Curso de Direito de Família. São Paulo: Editora Saraiva. 2013. MAINE, Henry Sumner. El derecho antigo. Trad. A. Guerra. Madrid: Alfredo Alonso, 1893, p. 89, apud, LÔBO, Paulo, DIREITO CIVIL FAMÍLIAS, 4ª edição, de acordo com a Emenda Constitucional de 2010, Saraiva, 2011. OLIVEIRA, José Sebastião. FUNDAMENTOS CONSTITUICIONAIS DO DIREITO DE FAMÍLIA. Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2002. SAGRADA, Bíblia, Livro de Genesis, cap. 9, versículo 7 Página 19 de 270 A TUTELA JURÍDICA DA DIGNIDADE HUMANA ANTE A PROMOÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE DOS PACIENTES COM CÂNCER Wendson Abraão Fernandes Diniz1 Lavynia Fabrícia Vaz de Oliveira2 Resumo: O presente trabalho se propõe a discutir acerca da neoplasia maligna (câncer) e seus reflexos na seara jurídica nacional e internacional, especialmente sob a perspectiva da dignidade da pessoa humana, esculpida na Constituição Federal de 1988 como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Almeja, ainda, analisar conceitos e problematizar a tutela jurídica da dignidade da pessoa humana, voltando-se ao exorbitante crescimento em número de diagnósticos da neoplasia maligna no âmbito nacional, principalmente sob o enfoque da humanização do direito civil-constitucional. Além disso, objetiva traçar um panorama do desenvolvimento das políticas públicas voltadas à promoção da saúde no país, ressaltando a importância das medidas de prevenção e multidisciplinariedade no tratamento. Por consequência, traz à tona a imprescindibilidade de maior eficácia na proteção do direito à vida e à saúde, perpassando pela análise da garantia da integridade física e psíquica do paciente com câncer, aspectos relevantes no que toca à salvaguarda dos direitos da personalidade. Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana; Direitos da personalidade; Políticas públicas; Saúde; Câncer. 1 Universidade Federal da Paraíba, discente do curso de Direito – campus Santa Rita, aluno colaborador do Instituto de Direito Civil-Constitucional (CCJ-UFPB) e extensionista do Programa ERO – Endodontia e Reabilitação Oral (Reconstrução do projeto de vida do paciente com neoplasia de cabeça e pescoço) desenvolvido no âmbito do Centro de Ciências da Saúde – Departamento de Odontologia Restauradora – UFPB,[email protected]. 2 Universidade Federal da Paraíba, discente do curso de Direito – campus Santa Rita, aluna colaboradora do Instituto de Direito Civil-Constitucional (CCJ-UFPB) e extensionista do Programa ERO – Endodontia e Reabilitação Oral (Reconstrução do projeto de vida do paciente com neoplasia de cabeça e pescoço) desenvolvido no âmbito do Centro de Ciências da Saúde – Departamento de Odontologia Restauradora – UFPB, [email protected]. Página 20 de 270 Abstract: This article proposes to discussing about the malignant neoplasm (cancer) and its repercussion on national and international law sphere, especially from the perspective of human dignity, inserted on Federal Constitution of 1988 as one of the foundations of the Federative Republic of Brazil. Intends, also, analyze concepts and problematize the legal protection of human dignity, focusing on exorbitant increase in number of diagnosis of cancer at the national level, mainly with a focus on humanization of civil and constitutional law. In addition to that, aims to give an overview of the development of public policies related to health promotion in the country, emphasizing the importance of prevention and multidisciplinary treatment measures. Consequently, it brings out the indispensability of more effective protection of the rights to life and to health, passing by the analysis of guarantee of physical and mental integrity of cancer patients, relevant aspects related to the safeguard of personality rights. Keywords: Human dignity; Personality rights; Public policies; Health; Cancer. Notas introdutórias A Constituição da República de 1988 veio inaugurar uma nova ordem normativopolítica no tocante à positivação dos direitos fundamentais. Assim, ao prever a dignidade humana como fundamento da república, quis a Carta Maior estabelecer o ser humano enquanto centro da ordem jurídica vigente. Nessa linha, a dignidade humana se desdobra como a essência da promoção dos direitos humanos fundamentais, pois não há sentido proteger o direito à vida, à segurança, à propriedade, à igualdade, à liberdade, ao trabalho, à moradia, e à saúde, entre outros positivados na CF/88 como direitos fundamentais, quando essa proteção não tem como objetivo mor a preservação da dignidade inerente à pessoa humana. É diante dessa dicotomia que se enfatiza a necessidade de discussão acerca dos institutos jurídicos que salvaguardam a dignidade humana e seu plano de eficácia, principalmente no que toca às políticas públicas do governo brasileiro voltadas à concretização da saúde dos pacientes com neoplasia maligna (câncer). Isso porque, tal patologia merece relevante destaque no campo jurídico, estando diretamente imbricada na proposição de efetivação do direito à vida, esse tão discutido na nova perspectiva Página 21 de 270 humanizada do Direito Civil, principalmente no que toca à efetivação dos direitos da personalidade. Desse modo, é deveras essencial o estudo do direito social à saúde entendendo-o no sentido transindividual, ultrapassando a lógica de disponibilidade estatal e estando relacionado mutuamente com a defesa dos direitos da personalidade, pois não é razoável pensar na garantia e efetividade da tutela jurídica da integridade física e psíquica, aspectos da personalidade, sem uma rediscussão da saúde como importante via para proteção da dignidade humana. A promoção da saúde enquanto direito humano fundamental A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resolução nº 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, e assinada pelo Brasil na mesma data, figurou como baluarte para a proteção do humano enquanto sujeito de direitos, na qual a dignidade humana ganhou notável espaço e reflexo na construção das democracias modernas. É nesse contexto que se pode pressupor que os direitos humanos têm características universais, interdependentes e indivisíveis3, além de outras, sendo, portanto, imprescindível a sua eficácia na totalidade, como se observa no tocante à necessidade de concretização da saúde como requisito para defesa da vida. No entanto, vê-se que as lições de Karel Vasak, jurista tcheco, apontam para um delineamento dos direitos humanos em três gerações/dimensões4, as quais estariam relacionadas ao momento histórico em que cada grupo de direitos foi conquistado e efetivada a intenção de resguardá-lo, conquistando notável publicidade a partir da divulgação e aperfeiçoamento proposta por Noberto Bobbio5 e Paulo Bonavides, esse idealista do termo ―4ª geração/dimensão‖6. 3 PIOVESAN, Flávia. A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos. Eos - Revista Jurídica da Faculdade Dom Bosco, Curitiba, v. 2, n. 1, p.20-33, jan. 2008. Semestral. Disponível em: <http://www.dombosco.sebsa.com.br/faculdade/revista_direito/3edicao/3ª edição completa.pdf>. Acesso em: 25 fev. 2016. 4 MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Altas,2008. P. 42 5 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992 6 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.570. Página 22 de 270 Embora a divisão fosse de maneira despretensiosa, frise-se que muitos Estados encontraram nela um meio para desarticular a proteção eficaz dos direitos humanos, como é o caso da notável relevância dada aos direitos de 1ª geração/dimensão em detrimento daquela conferida aos de 2ª geração/dimensão. A promoção da saúde, por exemplo, no ordenamento constitucional brasileiro, é elevada a status de direito fundamental de 2ª dimensão, ou seja, direito cuja consolidação de maneira universal e igualitária a todos, fica a cargo do Estado. No entanto, essa promoção se torna limitada à medida que são impostas teorias que visam restringir o custo do Estado com os direitos sociais, como se pode aferir a partir da análise da teoria da ―reserva do possível‖. Essa tese diz respeito à garantia do possível, do economicamente viável para o Estado, sem que haja uma desproporcionalidade na promoção dos direitos sociais7, afinal a economia estatal não suplanta tantas despesas com direitos coletivos, conforme se destacam as críticas a essa lógica expostas nas palavras do grande mestre português, José Gomes Canotilho: Quais são no fundo, os argumentos para reduzir os direitos sociais a uma garantia constitucional platônica? Em primeiro lugar, os custos dos direitos sociais. Os direitos de liberdade não custam, em geral, muito dinheiro, podendo ser garantidos a todos os cidadãos sem se sobrecarregarem os cofres públicos. Os direitos sociais, pelo contrário, pressupõem grandes disponibilidades financeiras por parte do Estado. Por isso, rapidamente se aderiu à construção dogmática da reserva do possível (Vorbehalt des Moglichen) para traduzir a idéia de que os direitos só podem existir se existir dinheiro nos cofres públicos. Um direito social sob ‗reserva dos cofres cheios‘ equivale, na prática, a nenhuma vinculação jurídica.8 Nesse sentido, pode-se denotar que, não obstante o Estado esteja vinculado a uma efetivação do direito à vida, se afasta de uma tutela jurídica garantidora quando limita a eficácia dos direitos sociais, a exemplo da saúde, à teoria da reserva do possível. Ratificando o exposto, se demonstra o teor do artigo 196, da CF/88,o qual dispõe: 7Andreas Krell apud Sarlet (2008, p. 30) – SARLET; TIMM, Luciano Benetti (org). Direitos fundamentais, orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2008. 8 CANOTILHO, J. J. G. e MOREIRA, V. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Ed. Coimbra, 1991, p. 131 apud 9 PIRES, C. T. ; ALMEIDA, A. B. F. R. . A ponderação proposta por Robert Alexy como forma de concretizar os direitos sociais: uma alternativa contra o simbolismo dos direitos sociais frente à reserva do possível. In: XXI Encontro Nacional do CONPEDI/UFU, 2012, Uberlândia. Sistema Jurídico e Direitos fundamentais individuais e coletivos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012. p. 8940-8965. Disponível em <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=6602294be910b1e3>. Acesso em: 25/02/2016. Página 23 de 270 Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.9 Ressalte-se que, conforme se encontra esculpido na Carta Maior, a saúde será garantida por meio de políticas públicas e econômicas, ou seja, mediante o possível, a reserva. É em torno dessa problemática que figura a necessidade do debate acerca dos direitos inerentes aos pacientes com câncer, tendo em vista que estão insertos em um grande paradoxo, baseado no crescente número de diagnósticos de casos de neoplasia maligna em contraposição à morosidade das medidas de prevenção e do início do tratamento da doença, em decorrência do déficit na excelência das políticas públicas. Considerações acerca das políticas públicas voltadas à prevenção e cura do câncer no Brasil O câncer começou a despontar, ainda de maneira muito tímida, como uma preocupação pública no Brasil no governo de Epitácio Pessoa, tendo em vista os crescentes casos verificados na Europa e Estados Unidos. A relevante necessidade da adoção de políticas públicas levou o governo da época a editar o Decreto nº 14.354, proposto pelo notável Carlos Chagas, a fim de incluir na órbita nacional uma política anticâncer. Já os estudos clínicos que começaram a enfrentar o câncer como um problema sanitário no Brasil - ensejando na inclusão desta patologia na agenda de saúde pública datam dos anos 20, tendo como principais expoentes os pesquisadores Eduardo Rabello; Mário Kroeff; e Sérgio Barros de Azevedo. O desenvolvimento de tais discussões acarretou em uma maior atenção por parte do Estado para tal problemática, o que culminou na criação de institutos como o Serviço Nacional do Câncer e o Centro de Cancerologia, bem como em campanhas de caráter educativo e conscientizador.10 10 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Página 24 de 270 Foi apenas na década de 90 que as políticas públicas de supervisão do câncer prosperaram de forma concreta, com a estruturação do Sistema Único de Saúde e com maior atuação do Instituto Nacional do Câncer (criado em 1957). É importante ressaltar quão notável estão sendo as pesquisas desenvolvidas pelo Instituto Nacional do Câncer – INCA, contribuindo para a formação e estruturação de políticas públicas voltadas aos pacientes com neoplasia maligna. Segundo o Instituto, o número de pessoas que vêm a óbito em decorrência do câncer, ultrapassa a marca dos 7 milhões por ano, o que corresponde a um percentual de 12% das mortes ocorridas em todo o planeta. Embora tais dados já representem números elevados, a expectativa mundial aponta para um aumento na quantidade de novos casos, que poderão chegar a 15 milhões no ano de 2020. No Brasil, a partir das estimativas do INCA e dados divulgados pelo DATASUS, foram registrados 14.000 óbitos relacionados ao câncer de mama, 13.000 relacionados ao câncer de próstata, 5.000 relacionados ao câncer de colo de útero, e 27.000 relacionados ao câncer de pulmão.11 A intensificação do número de diagnósticos decorre não apenas do aumento da expectativa de vida da população, mas também da crescente exposição dessa a fatores de risco, bem como se relaciona com a condição socioeconômica e de trabalho. A partir das pesquisas desenvolvidas, tem-se um resurgente alarme no âmbito da saúde no que toca à necessidade de estruturação de políticas públicas. Nessa perspectiva, frise-se o teor da Portaria do Ministério da Saúde nº 874, de 16 de maio de 2013, que instituiu a Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer na Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), norma que rege as políticas públicas de saúde, com o objetivo de reduzir a mortalidade e incapacidade ocasionadas pelo câncer nas mais variadas modalidades, bem como busca diminuir sua incidência na população brasileira. Tal dispositivo elege os seguintes princípios gerais da política nacional para a prevenção e controle do câncer, in verbis: 11 Brasil. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. A luta contra o câncer: orientações ao paciente e aos familiares, 1ª ed. Brasília, Câmara dos Deputados, 2015. P. 7-8Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/edicoes/paginas-individuais-dos-livros/aluta-contra-o-cancer-2013-orientacoes-ao-paciente-e-aos-familiares> Acesso em: 25/02/2016. Página 25 de 270 Art. 5º Constituem-se princípios gerais da Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer: I - reconhecimento do câncer como doença crônica prevenível e necessidade de oferta de cuidado integral, considerando-se as diretrizes da Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no âmbito do SUS; II - organização de redes de atenção regionalizadas e descentralizadas, com respeito a critérios de acesso, escala e escopo; III - formação de profissionais e promoção de educação permanente, por meio de atividades que visem à aquisição de conhecimentos, habilidades e atitudes dos profissionais de saúde para qualificação do cuidado nos diferentes níveis da atenção à saúde e para a implantação desta Política; IV - articulação intersetorial e garantia de ampla participação e controle social; e V - a incorporação e o uso de tecnologias voltadas para a prevenção e o controle do câncer na Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no âmbito do SUS devem ser resultado das recomendações formuladas por órgãos governamentais a partir do processo de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) e da Avaliação Econômica (AE).12 A partir desse instituto normativo, vê-se que o Brasil procura instituir uma política pública social que visa à concretização do direito à saúde, por intermédio do tratamento e prevenção dessa patologia que assola parte considerável de sua população. Tem-se notado, portanto, desde o nascedouro da preocupação pública com a neoplasia maligna, um crescimento na positivação de direitos relativos aos acometidos com câncer, a exemplo da isenção do Imposto de Renda (Lei nº 7.713/1988); concessão de auxílio doença e aposentadoria por invalidez (Lei nº 8.213/1991); cirurgia de reconstrução mamária (Lei nº 9.797/1999); prioridade na tramitação de processos e atendimento pela Defensoria Pública (Lei nº 13.105/2015); saque do FGTS (Lei nº 8.922/1994); prazo de até 60 para o início do tratamento (Lei nº 12.732/2012); benefício de prestação continuada (Lei nº 8.742/1993); prioridade no recebimento de precatórios (art. 100, §2º, CF/88); dentre outros. Todavia, embora haja inúmeras disposições normativas que versam sobre os direitos dos pacientes com neoplasia maligna nas mais diversas áreas, observa-se que ainda são notórias as dificuldades que tais pessoas encontram ao buscarem o cumprimento dessas 12 Brasil. Ministério da Saúde. Institui a Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer na Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).Portaria nº 874 GM/MS, de 16 de maio de 2013. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0874_16_05_2013.html>. Acesso em: 25 abr. 2015. Página 26 de 270 garantias, até mesmo no tocante àquelas mais basilares, como o tratamento médico e o fornecimento de medicamentos. Isso se dá em virtude da existência de uma grande escusa por parte do Estado em relação à salvaguarda de direitos, em especial do direito social à saúde.Tal eximição estatal se torna ainda mais visível quando as demandas se relacionam aos pacientes com câncer, que suscitam a necessidade de tratamentos, fármacos e auxílios que implicam em um dispêndio maior de recursos pelo Estado. A problemática da judicialização das demandas em saúde e seus reflexos na efetivação dos direitos sociais Mediante a situação de completa violação de direitos, a sociedade busca, então, por intermédio do Poder Judiciário, a concretização das garantias que lhes são, teoricamente, asseguradas não apenas por leis infraconstitucionais, mas pela própria Constituição Federal. Em decorrência disso, o Poder Judiciário vem desempenhando um papel cada vez mais significante na esfera política estatal, atuando de maneira proativa, tornando-se o detentor do poder final de decisão da atuação das instituições estatais e assumindo a posição de garante frente à total inércia do Poder Executivo. Denota-se, portanto, uma massificação da judicialização das demandas sociais, colocando os tribunais na posição de instância decisória final destas.13 Enxergar a atuação jurisdicional como um meio para pleitear quaisquer prestações ligadas à saúde, contudo, cria um sistema de esquiva das autoridades públicas que, sob a prerrogativa de esperar um posicionamento judicial sobre tais matérias sociais para de fato agir, mascaram a sua atuação falha, omissa e ineficaz.14 Ademais, a judicialização da saúde e a consequente prestação jurisdicional contribuem para a criação de uma falsa ideia de que o direito à saúde estaria sendo, de fato, concretizado. Entretanto, o que de fato ocorre é um processo de individualização de tal 13 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil) apud Regina Quaresma, Maria Lúcia de Paula Oliveira e Farlei Martins Riccio de Oliveira. (Org.). Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 45. 14 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana – 2ª ed. ampl. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 306. Página 27 de 270 direito, que passa a se perfazer tão-somente como uma prestação individual, restrita a uma lide de forma singular, reduzindo-se ao fornecimento de um medicamento ou de um tratamento em um caso específico. Assim, o Estado acaba por encobrir a real necessidade da sociedade, qual seja a de coletivização do acesso à saúde, possibilitando que essa seja acessível a toda a população, sobretudo aos pacientes com neoplasia maligna, cuja patologia requer atenção sobremaneiramente urgente. É importante salientar, ainda, que a ineficácia das políticas públicas aliada à judicialização insucedida das demandas em saúde, contribuem de maneira relevante para a estigmatização do paciente acometido com neoplasia maligna. O tratamento do câncer sob o enfoque multidisciplinar O surgimento de dificuldades no início do tratamento e os obstáculos que vão se tornando mais notórios ao decorrer desse, tornam evidente o fato de que o paciente assolado pelo câncer vê mitigado não apenas o seu direito à vida, à saúde, mas também à integridade. Tal violação da integridade do paciente se dá na medida em que muitas vezes ignora-se o fato de que a efetiva cura do câncer não se consubstancia somente por meio da realização de procedimentos médicos como a quimioterapia e a radioterapia. Desse modo, é de fundamental importância que o significado do termo saúde, em especial no tocante ao paciente com câncer, alcance dimensões mais abrangentes, principalmente ao levar-se em consideração uma visão humanizada do direito civilconstitucional. A garantia da saúde, para ser de fato plena, deve ultrapassar a concepção ligada apenas à ausência de doenças e patologias.15 Nesta toada, diversos documentos, tratados e pactos internacionais apresentam uma perspectiva desenvolvida, contemporânea e de caráter multidisciplinar acerca do conceito de saúde. 15 LEMOS, Fábia de Castro. Saúde como direito fundamental à vida: uma análise do direito à saúde e sua concepção atual na sociedade brasileira. 2012. 117 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pósgraduação em Educação Profissional em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Rio de Janeiro, 2012. Cap. 4. Disponível em: <http://arca.icict.fiocruz.br/handle/icict/8726#>. Acesso em: 28 fev. 2016. Página 28 de 270 Nesse respeito, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais reconhece como direito de todas as pessoas o de desfrutar de plena saúde, no aspecto não apenas físico, mas também mental16. Semelhante reconhecimento dessa abordagem pluridisciplinar foi conferido na Declaração de Alma-Ata, formulada quando da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada em 1978. Tal Declaração estabelece, em seu primeiro apontamento, as seguintes disposições: I. A Conferência reafirma enfaticamente que a saúde - estado de completo bemestar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade - é um direito humano fundamental, e que a consecução do mais alto nível possível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos outros setores sociais e econômicos, além do setor da saúde.17 No tocante ao paciente com câncer, de forma específica, essa necessidade se demonstra de maneira ainda mais contundente nos mecanismos internacionais. A ―World Cancer Declaration‖, apresentada na Assembleia Mundial de Saúde de 2013, estabelece nove principais metas para o controle e redução do câncer. Nesse sentido, relevante destaque merece a sétima meta, conforme se afere: ―Target 07 - Access to accurate cancer diagnosis, quality multimodal treatment, rehabilitation, supportive and palliative care services, including the availability of affordable essential medicines and technologies, will have improved.‖18 Assim, ao passo que propõe o acesso para as pessoas com câncer a um tratamento multisetorial de qualidade, abarcando inclusive aspectos de extrema relevância, como a reabilitação e os cuidados paliativos para os pacientes, tal declaração também enfatiza a notoriedade dos cuidados na esfera psíquica do paciente com câncer, a saber: Raise awareness about the need for multidisciplinary treatment, including surgery, radiotherapy and systemic therapy. Raise awareness about the need for a holistic approach to cancer care that encompasses mental health, rehabilitative, supportive and palliative care.19 16 Brasil. Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0591.htm> Acesso em: 25/02/2016. 17 Declaração de Alma-Ata. Formulada na Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/saude/almaata.htm> Acesso em: 25/02/2016. 18 World CancerDeclaration. Ratificada pelos Estados-membro na Assembleia Mundial de Saúde realizada em maio de 2013, p.1. Disponível em: <http://www.uicc.org/world-cancer-declaration> Acesso em: 25/02/2016. 19 Ibidem.p.3. Página 29 de 270 Sendo assim, resta evidente o grande arcabouço normativo-teórico de cunho internacional que pressupõe a imperativa necessidade de uma consideração multidisciplinar da cura do paciente com câncer, abarcando-a nos âmbitos físico, psíquico, social e emocional. A tutela dos direitos da personalidade diante da perspectiva humanizada do Direito Civil-Constitucional A partir da discussão acerca da importância do tratamento multidisciplinar do câncer, verifica-se, portanto, a necessidade de uma rediscussão da lógica patrimonial adotada pelo direito civil brasileiro, uma vez que a cura não decorre apenas do custeio financeiro, mas de elementos humanizadores do tratamento, como bem delineado acima. Esse tradicional enfoque pertinente à legislação civilista passa a ser reexaminado pela constitucionalização do Direito Civil e acaba por ganhar maior notoriedade pela perspectiva de humanização desse. O Direito Civil, a partir do Código de 2002, passa por uma transformação estrutural, afastando os velhos dogmas de apenas regular a vida econômica dos cidadãos, corroborando, portanto, nas lições de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, em uma despatrimonialização do direito privado e na necessária repersonalização do ser humano, concorrendo simultaneamente para o reconhecimento de um novo conteúdo, uma nova estrutura do Direito Civil, que passa a estar vocacionado à tutela privilegiada e avançada da pessoa humana.20 A esse respeito, argumenta o Ministro Edson Fachin: Operou-se, pois, em relação ao Direito dogmático tradicional, uma inversão do alvo de preocupações, fazendo com que o Direito tenha como fim último a proteção da pessoa humana, como instrumento para seu pleno desenvolvimento. Faz-se imprescindível blindar esse texto constitucional. (...) Não se pode esquecer que a Constituição Federal de 1988 impôs ao Direito o abandono da postura patrimonialista herdada do século XIX, migrando para uma concepção em que se 20 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. A personalidade jurídica e os direitos da personalidade. In: Curso de direito civil: parte geral e LINDB. vol. 1. 11ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2013. (p. 208-209) Página 30 de 270 privilegia o desenvolvimento humano e a dignidade da pessoa concretamente considerada, em suas relações interpessoais, visando à sua emancipação. 21 É que, além da constitucionalização do Direito Civil, importante referencial teórico para argumentação acerca da regulação da vida civil nos moldes garantidores da Constituição Federal, a humanização irriga a teoria civilista com a fixação do ser humano como centro do ordenamento jurídico. Assim, o direito à integridade física e à vida, delineados no diploma civilista como direitos da personalidade22, passam pela busca de uma defesa cada vez mais concreta, que, sem dúvida, começa pela reorganização dos modelos tradicionais a partir do princípio mor que é a dignidade da pessoa humana, conceituada pelo professor Ingo Wolfgang Sarlet como: (...) a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra tudo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.23 Nessa linha, completa tal conceituação as doutas lições de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald: Dignidade da pessoa humana, nessa ordem de ideias, expressa uma gama de valores humanizadores e civilizatórias incorporados ao sistema jurídico brasileiro, com reflexos multidisciplinares. Equivale dizer: todas as normas jurídicas do Direito Civil (e, é claro, dos demais ramos da ciência jurídica) relativas à personalidade jurídica têm de estar vocacionadas à dignidade do homem. É preciso, pois, efetivar no caso concreto, no cotidiano jurídico, a afirmação da dignidade humana, como postulado básico da ordem jurídica. Equivale dizer: impende exigir, contemporaneamente, que a legalidade constitucional permeie todo o tecido normativo do Direito Civil. Ou seja, é preciso funcionalizar os institutos privados aos valores constitucionais. 24 21 FACHIN, Luiz Edson. Questões do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 06. 22 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui O Código Civil. Brasília, 2002. 23 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 60. 24 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, op. cit. p. 167 Página 31 de 270 Desse modo, cabe salientar o quão importante se perfaz a prevalência da perspectiva humanizada do Direito Civil-Constitucional quando se trata da temática acerca do paciente com câncer, pois, embora os direitos à integridade física e à vida estejam inerentes aos direitos da personalidade humana, esculpidos no novel civilista, há a crescente necessidade de políticas públicas garantidoras da norma, de maneira a produzir um rearranjo do seu plano de eficácia, tornando-a mais próxima aos anseios daqueles acometidos pela neoplasia maligna. Conclusão A partir da construção histórica apresentada, evidencia-se que houve, inegavelmente, uma maximização das políticas públicas relacionadas à problemática do câncer. O Brasil deveras avançou muito nas pesquisas e nos institutos que buscam cotidianamente melhorar a condição de sobrevida dos pacientes de neoplasia maligna, bem como no tratamento dessa patologia. Diversos foram os dispositivos legais que permitiram a normativização do direito das pessoas com câncer nas mais variadas áreas, entre as quais a trabalhista, previdenciária, tributária, processual e no âmbito da saúde. Todavia, muito embora deva ser reconhecido esse notável avanço, é de se destacar que a crescente busca pelo Poder Judiciário como mecanismo capaz de promover a solução na garantia do direito à saúde revela uma deficiência na efetivação por parte do Estado. É imprescindível, portanto, que o direito social à saúde, esculpido nos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, seja visto como uma necessidade pública, não apenas como um direito positivo universal e passível de garantia, mas como uma imposição ao Estado, um dever efetivo. Para tanto, mister se faz o alicerçamento do direito à saúde de maneira substancial, conferindo a esse, dito de 2ª dimensão, a mesma relevância prestada ao direito à vida, tutelado de forma tão veemente pelo Estado Democrático de Direito. Isto porque, em verdade, o direito à vida se encontra intimamente ligado ao direito à saúde, o que se desdobra eminentemente a partir da tutela da integridade física e psíquica do ser humano, conforme é exposto nas doutas acepções de Ingo Sarlet: Página 32 de 270 Para além da vinculação com o direito à vida, o direito à saúde (aqui considerado num sentido amplo) encontra-se umbilicalmente atrelado à proteção da integridade física (corporal e psicológica) do ser humano, igualmente posições 25 jurídicas de fundamentalidade indiscutível. Destarte, assim se demonstra o quão importante é a discussão acerca da tutela jurídica da dignidade da pessoa humana, consagrada na Constituição Federal de 1988 e garantida no ordenamento infraconstitucional, principalmente tendo em vista a necessidade de problematização dos contornos jurídicos inerentes à proteção da integridade física e psíquica dos pacientes com câncer, aspectos relevantes à análise dos direitos da personalidade a partir da perspectiva humanizada do Direto Civil-Constitucional. Referências [1] PIOVESAN, Flávia. A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos. Eos - Revista Jurídica da Faculdade Dom Bosco, Curitiba, v. 2, n. 1, p.20-33, jan. 2008. Semestral. Disponível em: <http://www.dombosco.sebsa.com.br/faculdade/revista_direito/3edicao/3ª edição completa.pdf>. Acesso em: 25 fev. 2016. [2] MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Altas,2008. P. 42 [3] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992 [4] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.570. [5] Andreas KrellapudSarlet (2008, p. 30) – SARLET; TIMM, Luciano Benetti (org). Direitos fundamentais, orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2008. [6] CANOTILHO, J. J. G. e MOREIRA, V. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Ed. Coimbra, 1991, p. 131 apud PIRES, C. T. ; ALMEIDA, A. B. F. R. . A ponderação proposta por Robert Alexy como forma de concretizar os direitos sociais: uma alternativa contra o simbolismo dos direitos sociais frente à reserva do possível. In: XXI Encontro Nacional do CONPEDI/UFU, 2012, Uberlândia. Sistema Jurídico e Direitos fundamentais individuais e coletivos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012. p. 8940-8965. Disponível em <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=6602294be910b1e3>. Acesso em: 25/02/2016. [7] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. [8] TEIXEIRA, L. A. O câncer na mira da medicina brasileira. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 104-117, jan./jun. 2009. 25 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p.320. Página 33 de 270 [9] Brasil. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. A luta contra o câncer: orientações ao paciente e aos familiares, 1ª ed. Brasília, Câmara dos Deputados, 2015. P. 7-8Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/edicoes/paginas-individuais-doslivros/a-luta-contra-o-cancer-2013-orientacoes-ao-paciente-e-aos-familiares> Acesso em: 25/02/2016. [10] Brasil. Ministério da Saúde. Institui a Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer na Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Portaria nº 874 GM/MS, de 16 de maio de 2013. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0874_16_05_2013.html>. Acesso em: 25 abr. 2015. [11] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil) apud Regina Quaresma, Maria Lúcia de Paula Oliveira e Farlei Martins Riccio de Oliveira. (Org.). Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 45. [12] BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana – 2ª ed. ampl. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 306. [13] LEMOS, Fábia de Castro. Saúde como direito fundamental à vida: uma análise do direito à saúde e sua concepção atual na sociedade brasileira. 2012. 117 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pós-graduação em Educação Profissional em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Rio de Janeiro, 2012. Cap. 4. Disponível em: <http://arca.icict.fiocruz.br/handle/icict/8726#>. Acesso em: 28 fev. 2016. [14] Brasil. Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0591.htm> Acesso em: 25/02/2016. [15] Declaração de Alma-Ata. Formulada na Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/saude/almaata.htm> Acesso em: 25/02/2016. [16] World Cancer Declaration. Ratificada pelos Estados-membro na Assembleia Mundial de Saúde realizada em maio de 2013, p.1. Disponível em: <http://www.uicc.org/world-cancer-declaration> Acesso em: 25/02/2016. [17] Ibidem.p.3. [18] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. A personalidade jurídica e os direitos da personalidade. In: Curso de direito civil: parte geral e LINDB. vol. 1. 11ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2013. (p. 208-209) [19] FACHIN, Luiz Edson. Questões do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 06. [20]BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui O Código Civil. Brasília, 2002. Página 34 de 270 [21] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 60. [22]FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, op. cit. p. 167 [23] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p.320. A HUMANIZAÇÃO CONSTITUCIONAL SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA Marana Sotero de Sousa1 Rafaella Mayana Alves Almeida Cardins2 Resumo: Este breve estudo objetiva explorar a humanização do direito constitucional a partir do direito à alimentação adequada, direito público subjetivo previsto no artigo 6º da Constituição Federal do Brasil de 1988. Ainda, intenciona analisar a influência da agricultura familiar, atividade agrícola desenvolvida entre membros de uma mesma família, para assegurar o direito humano à alimentação. Tamanha é a importância da alimentação para a vida digna de todo e qualquer ser humano que tornou-se direito constitucionalmente previsto, mostrando-se como um dos instrumentos a incutir a humanização, cada vez mais crescente e necessária, no âmbito constitucional. Nesse esteio, relevante se faz a abordagem sobre a alimentação adequada e os reflexos que a agricultura familiar causa naquela,uma vez que ambas agem de modo a contribuir para a humanização constitucional, sendo este fator importante para a aplicação e execução das leis de forma justa, bem como para a garantia dos requisitos mínimos de vida digna e de uma sociedade pautada na equidade. Além disso, a segurança alimentar e nutricional também está presente quando se trata de direito fundamental à alimentação adequada, e justamente por ser intrínseca ao tema, será igualmente abordada, tendo em vista ser também um dos mecanismos a viabilizar a humanização constitucional, na medida em que atribui ao Estado o dever de prestar alimentação adequada aos cidadãos.Trata-se de um estudo hermenêutico, em que optou-se, para sua elaboração, pela utilização dos procedimentos bibliográficos, através de 1 Mestranda em Direito Econômico, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (PPGCJ/UFPB). Especialista em Educação em Direitos Humanos (UFPB). Especialista em Gestão Pública Municipal (UFPB). Graduada em Direito, pelas Faculdades Integradas de Patos (FIP). E-mail para contato: [email protected]. 2 Mestranda em Ciências Jurídicas, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bacharela em Direito, pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail para contato: [email protected]. Página 35 de 270 livros e artigos científicos, além do método de abordagem essencialmente qualitativo. Portanto, é imperioso explorar os institutos que possibilitam a humanização do direito constitucional, a exemplo da alimentação adequada, e que igualmente garantem a vida digna e a justiça social. Palavras-chave: Direito Humano à Alimentação Adequada; Humanização Constitucional; Agricultura Familiar. Abstract: This brief study aims to explore the humanization of constitutional law from the right to adequate food, subjective public right provided for in Article 6 of the Constitution of 1988 Brazil. Also intends to analyze the influence of family farming, agriculture developed between members of the same family, to ensure the human right to food. Such is the importance of food for the dignified life of any human being who became constitutionally provided right, showing up as one of the instruments to instill humanization increasingly growing and necessary, within the constitutional framework. In this context, relevant to make the approach about adequate food and the reflections that the family agriculture cause on that, since both act to contribute to constitutional humanization, which is important factor for the implementation and execution of fair laws, as well as to ensure the minimum requirements of a dignified life and a society based on equity. Besides that, the food and nutrition security is also present when it is about the fundamental right to adequate food, and precisely because it is intrinsic to the topic will also be addressed, in this way, also be one of the mechanisms to facilitate the constitutional humanization, in that it gives the State the duty to provide adequate food to citizens. It is a hermeneutical study, which was chosen for its preparation, use of bibliographic procedures, through books and scientific articles, in addition to essentially qualitative approach method. Therefore, it is very important to explore the institutions that enable the humanization of constitutional law, the example of adequate foodin order to also ensure a dignified life and social justice. Keywords:Human Right to Adequate Food; Constitutional Humanization; Family Farming Introdução Nota-se a necessidade cada vez mais crescente de humanizar o direito constitucional, isto é, de cada vez mais inserir na Carta Magna Brasileira a ideia de extensãodos direitos fundamentais à toda e qualquer pessoa, necessidade cada vez mais presente à existência e manutenção da vida digna do ser humano. É possível perceber, nos artigos 5º e 6º da Constituição Federal de 1988, um rol de direitos fundamentais, sociais, econômicos e culturais que pertencem à pessoa e que devem Página 36 de 270 ser garantidos e efetivados maiormente pelo Estado, mas também pela sociedade e pela família. Neste tocante, a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu art. 6º, a previsão do direito humano à alimentação. Tal direito pode ser visto como uma das maneiras a contribuir para a humanização constitucional, na medida em que gera para o Estado o dever de prestar alimentação para toda e qualquer pessoa, de modo a garantir o mínimo existencial para uma vida com dignidade. Entretanto, para a alimentação chegar ao patamar de direito humano previsto constitucionalmente, foi antes necessário haver uma constitucionalização agrarista, de maneira que a Constituição Federal de 1988 passou a fornecer relevo e importância às questões agrícolas, antes negligenciadas, inserindo o mecanismo da reforma agrária e do cumprimento da função social da propriedade em seu texto, como forma de diminuir as desigualdades sociais, a pobreza e a miséria no campo, ao mesmo tempo incentivando a produção da agricultura, principalmente a de cunho familiar. Com isso, o Estado passou também a perceber a importância da segurança alimentar e os resultados da produção de cunho familiar para a redução das desigualdades sociais, uma vez que fornecer alimentação adequada era uma das maneiras de desenvolver o país. Justamente por tais motivos a relevância da abordagem do direito humano à alimentação adequada junto à agricultura familiar e segurança alimentar. Ainda, evidencia-se o direito humano à alimentação como sendo um direito ao desenvolvimento, uma vez que visa o bem-estar, a vida digna, além da extinção da fome e da miséria, requisitos indispensáveis para o atingimento do desenvolvimento de um país. Para a elaboração do presente estudo, optou-se pela utilização dos procedimentos bibliográficos, através de pesquisa realizada em livros e artigos científicos sobre o tema, tratando-se de um estudo eminentemente hermenêutico. Assim sendo, relevante é a análise do direito humano à alimentação adequada, principalmente no tocante à sua contribuição como mecanismo de humanização constitucional, ainda mais realizando-se um apanhado junto a agricultura familiar e segurança alimentar, institutos que objetivam o bem-estar, a justiça social, a redução das desigualdades e a vida digna. Página 37 de 270 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO AGRÁRIA A Constituição do Brasil de 1988 trouxe um leque de direitos, expectativas, previsão das liberdades e direitos sociais e fundamentais bem definidos, criando meios para a construção de uma sociedade democrática, pautada na justiça, inclusão social e diminuição das desigualdades. Portanto, a nova Carta Constitucional inovou, trazendo consigo grandes avanços democráticos, que podem ser vistos através da definição de políticas públicas relativas à educação, assistência social, saúde e garantia de cumprimento da função social da propriedade, por exemplo. Porém, neste ponto ressalta-se, à título de crítica ao avanço proposto pela Constituição de 1988, a questão da reforma agrária. Isto porque, a função social da propriedade, sendo uma forma proposta pela Constituição de garantir a reforma agrária, foi uma maneira bastante tímida, pra não dizer de pouca eficácia, de assegurar a inclusão no direito de acesso à terra e a diminuição das desigualdades no setor rural. Portanto: ―Se em sua maioria, o texto constitucional de 1988 efetivamente ganhou avanços democráticos, pode-se abrir como grande exceção e como uma das vitórias mais desprezíveis do setor oligárquico, a questão da reforma agrária, que impedida de entrar com força total trouxe em seu bojo o artifício da produtividade, demonstração de força dos setores dominantes e atrasados, contrariando a democratização da terra e eliminação das desigualdades rurais‖ 3. Logo, ―a Constituição Federal de 1988 no tocante à questão agrária, avançou na forma e recuou no conteúdo‖4, pois foi na Constituição de 1988 que o setor rural encontrou, pela primeira vez, um tratamento diferenciado, onde lhe foi atribuído maior relevo. Contudo, segundo Maniglia5 não passou de ―mera embalagem, escondendo mercadoria de baixa qualidade. Já que no mérito, a Nova Carta contrariou a tendência histórica que vinha aperfeiçoando sucessivamente os instrumentos impositivos da Função Social da Propriedade Rural‖, além do fato dos mecanismos de redistribuição fundiária estarem retornando ao patamar da Constituição Federal de 1946. 3 MANIGLIA, Elisabete. Atendimento da função social pelo imóvel rural. In: BARROSO, Lucas Abreu; MIRANDA, Alcir Gursen de; SOARES, Mário Lúcio Quintão (Orgs.). O Direito Agrário na Constituição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. Trata-se de um capítulo de livro. Tendo em vista que no livro não consta o ano do capítulo, a autora deste último, Elisabete Maniglia, será referenciada ao longo deste trabalho da seguinte forma: MANIGLIA, 2006. 4 MANIGLIA, 2006, p.27 5 Idem, Ibidem. Página 38 de 270 De todo modo, compreende-se que a partir da constitucionalização da questão agrária, uma nova etapa rural teve início. Assim sendo, o texto constitucional de 1988 traz alguns aspectos de avanço rural ao falar da função social da propriedade. O art. 5º, incisos XXII e XIII, é exemplo já que deixa claro: que a propriedade é protegida, mas terá de cumprir a função social. Todavia o texto agrário embaraça a questão e cria uma antinomia ao inicialmente discorrer que toda propriedade que não cumprir sua função social será desapropriada (art. 184), para, em seguida, vetar a desapropriação nas terras produtivas, pequenas e médias. Retroagiu-se, dessa forma, no que o legislador avançou criando uma expectativa de cumprimento da função social e, em seguida, arrependido, preocupado em desagradar grupos aliados, vetou, de uma forma bem parcial, o que seria o interesse da maioria6. É forçoso reconhecer que o Brasil, um país rico em terras, sendo um dos maiores produtores de grãos já visto, mesmo com a previsão e realização da reforma agrária e da função social da propriedade, ainda tenha tantos problemas rurais, como a escassez de terras para a produção e para a própria subsistências das famílias agrícolas, alémda concentração fundiária nas mãos dos grandes proprietários. Logo, a Constituição Federal de 1988 trouxe seus reflexos positivos e negativos para o campo; na medida em que forneceu relevância às questões rurais, a partir da previsão constitucional da função social da propriedade, ressaltou a importância do setor rural; porém, o cenário de concentração de terras e da não divisão igualitárias desta, permanecem. Para a efetivação dos direitos humanos no campo e para uma real aplicação da função social da propriedade é necessário o apoio da sociedade e da justiça, a fim de evitar danos à natureza e principalmente as desigualdades em âmbito rural. O direto à alimentação na constituição federal de 1988 Segundo Siqueira, ―o direito à alimentação, enquanto direito positivado, encontra sua previsão legal no texto constitucional, em leis infraconstitucionais e em inúmeros outros dispositivos pertencentes à ordem jurídica brasileira7‖. 6 MANIGLIA, 2006, p. 29. SIQUEIRA, Dirceu Pereira. A dimensão cultural do direito fundamental à alimentação.Birigui-SP: Boreal Editora, 2013, p. 35. 7 Página 39 de 270 O direito à alimentação esteve presente na esfera jurídica brasileira ao longo de suas Constituições, ora de forma mais acentuada, ora de maneira mais discreta. Contudo, apenas com a promulgação da Constituição de 1988 é que tal direito passou a ter destaque e respaldo no Brasil, passando a ser reconhecido como direito de todo e qualquer cidadão, estando previsto no artigo 6º, que assegura os direitos sociais do povo brasileiro. Nesse esteio, Müller acrescenta que: [...] finalmente em 2010 o direito fundamental à alimentação foi incorporado à Constituição de 1988, no art. 6º por meio de Emenda Constitucional 64, entre os chamados Direitos Sociais, passando a ser considerado um direito social fundamental, muito embora em outros artigos da Carta Magna seja possível visualizar sua presença. Um conjunto de lei que garantem este direito, e o Estado tem a incumbência de garantir, proteger e promover ações e políticas públicas para que toda a população possa ter acesso a este direito e à soberania alimentar garantidos8. O direito à alimentação passa a ser responsabilidade de todos, da família e, essencialmente, do Estado, conforme o artigo 227, da Constituição Brasileira de 1988. Há uma crítica bastante presente no que diz respeito a previsão do direito à alimentação ter sido inserido no ordenamento brasileiro tão tardiamente, pois ―representa justamente a ausência de uma agenda política, social e jurídica voltada para as questões alimentares. Tal direito por ocasião da promulgação da Carta Constituinte já deveria ter seu lugar estabelecido9‖. Portanto, o direito à alimentação, por ser um direito eminentemente humano - uma vez que é garantia básica ao mínimo existencial e à vida digna de qualquer pessoa -, mostra-se como uma das formas da presença da humanização na Constituição de 1988, sendo uma das maneiras a demonstrar sua desburocratização e sua preocupação crescente com os direitos intrínsecos à dignidade humana. O direito humano à alimentação adequada 8 MÜLLER, Marcela. Direito Fundamental à alimentação adequadano contexto das organizações internacionais. Curitiba: Juruá, 2014. 9 MÜLLER, 2014, p. 59. Página 40 de 270 De acordo com Piovesan10, a concepção contemporânea dos direitos humanos veio a ser introduzida pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993. ―Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos, que constitui um movimento extremamente recente na história, surgindo, a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo11‖. Marcada pela universalidade e contemporaneidade, a chamada concepção contemporânea dos direitos humanos foi inovada pela Declaração de 1948. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta com valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e viceversa. [...] Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais (grifo nosso)12. Objetivando dar mais operatividade à Declaração dos Direitos Humanos de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1996, aprovou o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. O Brasil, um dos 145 Estados-partes a aderir ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, tem a obrigação jurídica de proteção dos direitos humanos. ―No que se refere especificamente ao direito à alimentação, o artigo 11 do Pacto consagra que ‗os Estados-partes reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação (...)13‖. Ressalta-se que, no contexto deste Pacto, o direito à alimentação adequada é realizado quando todo homem, mulher e criança, sozinho ou em comunidade com outros, tiver acesso físico e 10 PIOVESAN, Flávia. Proteção dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do Direito à Alimentação Adequada: Mecanismos Nacionais e Internacionais. In: PIOVESAN, Flávia; CONTI, Luiz Conti (Coords.). Direito Humano à Alimentação Adequada. Rio de Janeiro-RJ: Lumen Juris, 2007. Trata-se de um capítulo de livro. Tendo em vista que no livro não consta o ano do capítulo, a autora deste último, Flávia Piovesan, será referenciada ao longo deste trabalho da seguinte forma: PIOVESAN, 2007. 11 PIOVESAN, 2007, p. 18. 12 PIOVESAN, 2007, p. 22 e 23. 13 Idem, Ibidem, p. 31. Página 41 de 270 econômico, a todo tempo à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção 14. Ainda, ressalta-se que a forma mais comum de realização dos direitos humanos, econômicos, sociais e culturais é através do [...] conjunto de medidas normativas a que se costuma chamar políticas públicas. Portanto, os Estados têm o dever de formular e implementar políticas públicas eficazes e efetivas que prevejam, em tempo determinado, a consecução do estado de segurança alimentar e nutricional de sua população 15. Adentrando na esfera do direito humano à alimentação propriamente dito, Ziegler16 acrescenta que as necessidades relacionadas à alimentação, nutrição e segurança alimentar passaram a ser percebidas como direito dentro do direito humanitário, na Convenção de Genebra de 1864, quando verificou-se o poder sobre o alimento como forma de dominação de um ser humano sobre o outro, como se fosse uma arma de guerra. Por ser um direito humano, Müller17 explica que as discussões sobre direito à alimentação somente começaram a apresentar um aspecto legal a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948. Em âmbito brasileiro, têm-se duas leis importantes que garantiram o direito humano à alimentação e a soberania alimentar. A primeira é a Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional de 2006 (LOSAN), que traz no art. 2º a definição do direito humano à alimentação e no art. 4º trata da soberania alimentar, incorporando desta forma as diretrizes internacionais em uma lei, visando garantir tanto soberania quanto o direito fundamental à alimentação. O papel desta lei foi e é imprescindível para a soberania alimentar no Brasil 18. Valente entende que ―o direito à alimentação é um direito do cidadão, e a segurança alimentar e nutricional pra todos é um dever da sociedade e do Estado19‖. 14 Idem, Ibidem. ESMUP Manuais de Atuação. Direito à Alimentação Adequada. Brasília-DF: ESMPU, 2008. ISBN 16 ZIEGLER, Jean. Relatório do relator especial do direito à alimentação. Submetido de acordo com a resolução n. 2000/10 da Comissão de Direitos Humanos. Nações Unidas, Conselho Econômico e Social. E/CN. 4/2001/53, quinquagésima sétima sessão, 7 fev. 2001. 17 MÜLLER, 2014. 18 Idem, Ibidem, p. 58. 19 VALENTE, Flávio Luiz Schieck (Org.). Fome e desnutrição, determinantes sociais. São Paulo: Cortez, 2002-a. In: SIQUEIRA, Dirceu Pereira. A dimensão cultural do direito fundamental à alimentação.Birigui-SP: Boreal Editora, 2013, p. 35. 15 Página 42 de 270 Nesse contexto, faz-se ainda relevante analisar a contribuição da agricultura e da segurança alimentar para garantir o direito à alimentação adequada. Os reflexos da agricultura familiar e da segurança alimentar para o direito humano à alimentação A alimentação adequada, a segurança alimentar e a agricultura familiar são institutos indissociáveis, na medida em que colaboram e efetivam o direito à alimentação, principalmente no que se refere ao cenário brasileiro. A agricultura familiar e a segurança alimentar consistem em políticas públicas cada vez mais presentes e necessárias à humanização do direito à alimentação, constitucionalmente previsto, e consequentemente da própria Constituição, de modo a torná-lo presente na realidade dos brasileiros, intencionando com isso, a redução da fome, da pobreza, da miséria e das desigualdades sociais, garantindo, antes de tudo, o direito à vida digna e ao mínimo existencial. A agricultura familiar no brasil, o pronaf e a alimentação adequada Inicialmente, a pequena produção agrícola de cunho familiar era realizada por camponeses. A família camponesa trabalhava na lavoura e no plantio e a partir disso geravam sua própria economia e subsistência. Posteriormente, conforme as novas exigências e necessidades que o meio rural passou a demandar ao longo dos anos, houve uma espécie de modernização desse campesinato, passando agora o camponês a ser agricultor, originando a chamada agricultura familiar. Esse ramo da agricultura emergiu no cenário brasileiro a partir dos anos 1990, até atingir status de categoria econômica em 2006, com a promulgação da Lei nº 11.326, de 24 de Julho do citado ano. Trata-se de uma atividade agrícola, onde a produção é gerida em núcleo familiar. Apesar dos muitos entraves, esse tipo de produção agrícola vem se mostrando crescente, revelando também uma grande capacidade competitiva. Para tanto, é essencial ao desenvolvimento agroeconômico que o Estado forneça suporte e assistência técnica Página 43 de 270 suficientes para o crescimento deste ramo agrícola, orientando o agricultor. Nessa perspectiva, Moreno e Flores esclarecem: Reorganizar el modelo de desarrollo rural de Brasil, basado em lapotencialidad de la agricultura familiar, requiere um amplio proceso de cambiosinstitucionales destinados a proporcionar um soporte eficiente y eficaz a este tipo de productores. Entre éstastransformaciones, laconstrucción de una nuevaasistencia técnica y extensión rural (ATER) es una de lastareas estratégicas para asegurar a losproductoresrurales familiares unapoyo técnico adecuado. Esta adecuacióndebetener em cuentalosnuevosdesafíosgenerados e el entorno económico caracterizado por laeconomía globalizada y lasexigencias de competitividad de losmercados20. Daí a importância da atuação estatal tanto para o desenvolvimento da produção de cunho familiar, como para o próprio setor rural do país. Inclusive, a produção gerida em núcleo familiar é de suma importância para combater a insegurança alimentar no Brasil e garantir a alimentação adequada do cidadão,sendo aquela decorrente justamente da inviabilização da produção agrícola de pequeno porte, muitas vezes devido à falta de financiamento adequado e de incentivo à comercialização, levando a migração do campo à cidade. A produção familiar objetiva, portanto, configura-se claramente como uma das formas a assegurar o direito humano à alimentação, consistindo igualmente em uma das formas de amenizar os níveis de pobreza rural, que ainda persistem atualmente. Bonnal explica: Como se sabe, a pobreza rural no Brasil é bem mais antiga, sendo sua origem ligada à colonização portuguesa. Poder-se-ia até dizer que a formação da pobreza rural é consubstancial do modelo de colonização e de desenvolvimento econômico e social do Brasil. A marginalização da agricultura de sobrevivência iniciou-se nos primeiros tempos da colonização e não teve trégua senão até o início da década de 1990 com as medidas de previdência social, seguidas pelas políticas dirigidas à agricultura familiar. Durante mais de quatro séculos o sequestro fundiário pelas elites, a ausência de uma legislação salarial no campo e de medidas de proteção dos direitos sociais, a interdição ou enquadramento da ação político-sindical, o afastamento da agricultura familiar dos circuitos comerciais, a falta ou a escassez de serviço de educação e de saúde no meio rural 20 MORENO, Augusto A.; FLORES, Murilo. Mudanças Institucionais para o Apoio à Agricultura Familiar: o Caso da Extensão Rural. Sessão IV: Iniciativas para o fortalecimento da agricultura familiar, V Simpósio Latino Americano de Investigação e Extensão em Sistemas Agropecuários (IESA); V Encontro da Sociedade Brasileira de Sistemas de Produção (SBSP), realizados em Florianópolis, entre 20 e 23 de maio de 2002 (impresso e disponível no cd redistribuído no evento). Página 44 de 270 fizeram com que se desenvolvessem mecanismos institucionais de aceitação e reprodução da pobreza no meio rural21. No tocante às políticas públicas agrícolas, as manifestações iniciais acerca destas e que foram voltadas para o âmbito rural iniciaram a partir da agricultura familiar. Cazella22 explica que ―as primeiras medidas de criação de uma linha de financiamento descentralizada voltada para projetos que beneficiassem grupos de agricultores familiares começaram em meados da década de 1990, com a criação do PRONAF Infraestrutura e Serviços‖. A criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), em 1995, foi vista como uma maneira de reconhecer a especificidade da agricultura familiar. Sobre este programa, Guanziroli explica que: O PRONAF surge numa época (1995) na qual o elevado custo e a escassez de crédito eram apontados como os problemas principais enfrentados pelos agricultores, em particular os familiares. Após 10 anos de execução não cabe nenhuma dúvida que o programa se estendeu de forma considerável por todo o território nacional, ampliou o montante financiado, desenvolveu programas especiais para atender diversas categorias, assumiu a assistência técnica e reforçou a infraestrutura tanto dos próprios agricultores como dos municípios em que se encontra23. A agricultura familiar é responsável por mais de 70% dos alimentos presentes na mesa do brasileiro. Daí sua importância no cenário brasileiro no que se refere à garantia de 21 BONNAL, Philippe. Referências e Considerações para o estudo e a atuação dos programas de desenvolvimento territorial (PRONAT e PTC) na perspectiva da redução da pobreza em territórios rurais (capítulo 1). In: MIRANDA, Carlos; TIBURCIO, Breno (Orgs.). Políticas de desenvolvimento territorial e enfrentamento da pobreza rural no Brasil. Brasília: IICA, 2013 (Série desenvolvimento rural sustentável; v.19), 360 p., ISBN: 978-92-9248-475-0. Disponível em: <http://oppa.net.br/livros/Volume19.pdf>. Acesso em: 30 mai. 2015. 22 CAZELLA, Ademir Antônio, et. al. Ações e políticas no processo de gestão do programa territórios da cidadania: análise a partir dos estudos de caso (capítulo 9). In: MIRANDA, Carlos; TIBURCIO, Breno (Orgs.). Políticas de desenvolvimento territorial e enfrentamento da pobreza rural no Brasil. Brasília: IICA, 2013 (Série desenvolvimento rural sustentável; v.19), 360 p., ISBN: 978-92-9248-475-0. Disponível em: <http://oppa.net.br/livros/Volume19.pdf>. Acesso em: 30 mai. 2015. 23 GUANZIROLI, Carlos E.. PRONAF dez anos depois: resultados e perspectivas para o desenvolvimento rural. Revista de Economia e Sociologia Rural, Brasília, v. 45, n. 2, p. 301-328, Jun. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20032007000200004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 11 Jul. 2015. Página 45 de 270 uma alimentação adequada para o cidadão, além de ser um forte inibidor da insegurança alimentar e da pobreza rural. Segurança alimentar e alimentação Atualmente, vivemos num cenário brasileiro marcado pela fome, desigualdades e exclusão social. É cada vez mais latente a necessidade de programas e políticas públicas voltados para o combate da miséria e desnutrição. Siqueira expõe claramente o paradoxo em que vive o Brasil, ao dizer que: A fome, enquanto fenômeno presente na sociedade moderna, surge em meio a um cenário desconfortante, pois jamais se produziu tanto alimento no Brasil, onde há alta tecnologia voltada à agricultura, tanto em relação aos meios de produção quanto nas condições de armazenamento de colheita. Desse modo, é difícil compreender o avanço da fome nesse país 24. Certamente, a fome é um dos graves problemas presentes no mundo, que assola principalmente os países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Trata-se de uma das mais recorrentes e perniciosas violações da vida digna do ser humano. O Estado, como um dos responsáveis pela alimentação adequada, deve elaborar políticas públicas capazes de implementar o catálogo de direitos já enunciados no texto constitucional, dentre eles, a alimentação. ―Nesta esteira, tem-se que a segurança alimentar é de responsabilidade prioritária do Estado, tendo ele primeiramente que fornecer alimentos adequados a quem precise e, de maneira secundária, e o ônus, tanto na implementação de políticas favoráveis ao seu reconhecimento, como também em sua fiscalização25‖. Com o objetivo de garantir o direito à alimentação adequada foi criado, pela Lei nº. 11.346/06, o SISAN (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional). Esse sistema possui dois objetivos principais: a promoção ao acesso à alimentação e num segundo plano o incentivo à agricultura familiar. Daí percebe-se a íntima relação entre direito à alimentação, segurança alimentar e agricultura familiar, bem como as contribuições destes dois últimos institutos no fomento à humanização da alimentação. 24 25 SIQUEIRA, 2013, p. 13. SIQUEIRA, 2013, p. 28. Página 46 de 270 O direito à alimentação como mecanismo humanizador da constituição federal de 1988 O direito à alimentação pode ser considerado uma das maneiras a humanizar a Constituição Federal de 1988, na medida em que a mencionada Carta Magna o elevou à condição de direito fundamental, necessário à vida digna da pessoa, fazendo parte do mínimo existencial para sua sobrevivência, através do artigo 6º, sendo reconhecido como um direito de todos. Ainda, além de ter o caráter de direito humano, a alimentação igualmente contribui para o desenvolvimento de um país. Segundo Feitosa, o direito à alimentação pode ser tido como uma das formas de direito humano ao desenvolvimento, este último podendo ser ―caracterizado como direito dos povos e coletividades, em privilégio da dimensão individual e social, nas relações que priorizam a dignidade humana26‖. Aliás, o direito ao desenvolvimento surgiu ―do reconhecimento da existência de graves desigualdades sociais, com vistas à promoção de direitos, mas principalmente à proteção dos sujeitos e suas coletividades, objetivando a recuperação de suas capacidades, por intermédio de decisões que não dispensam a consulta ao grupo27‖. Inclusive, é apropriado entender que atualmente, desenvolvimento trata-se da ―possibilidade de todos os habitantes da terra terem acesso à água, alimentação, saúde, educação e democracia 28‖. A partir do conceito de desenvolvimento e da abrangência do direito ao desenvolvimento, é possível compreender a íntima relação existente entre o direito à alimentação como sendo uma das maneiras de atingir o desenvolvimento, à nível internacional e no Brasil, e igualmente como sendo um mecanismo a contribuir para a humanização do direito constitucional deste país. Considerações finais 26 FEITOSA, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. Direito Econômico do Desenvolvimento e Direito Humano ao Desenvolvimento. Limites e Confrontações. In: Direitos Humanos de Solidariedade: Avanços e Impasses. Curitiba-PR: Appris, 2013, p. 174. 27 FEITOSA, 2013, p. 228. 28 FEITOSA, 2013, p. 180. Página 47 de 270 É possível perceber o relevo que o meio rural e os problemas vivenciados no campo ganham a partir da constitucionalização agrarista, quando a questão fundiária, antes negligenciada, passa a ser prevista na Constituição Federal de 1988. A partir de tal previsão, é possível discutir a reforma agrária, através também do cumprimento da função social da propriedade. Apesar das críticas sobre a tímida preocupação constitucional sobre o tema, é imperioso reconhecer que a Constituição de 1988 foi a única das Constituições Brasileiras a tratar do tema da divisão de terras, incutindo no texto constitucional o ideal da divisão justa destas, com o objetivo de promover também o combate às desigualdades sociais, a promoção das culturas agrícolas, como por exemplo a agricultura familiar, além da diminuição dos níveis de pobreza rural e promoção da inclusão social, garantia da segurança alimentar e do direito humano à alimentação, este último como forma de trazer a humanização para o bojo constitucional. O direito humano à alimentação está expressamente previsto no art. 6º da Constituição Federal de 1988, sendo maiormente de responsabilidade do Estado, mas também da sociedade e da família. É direito fundamental, portanto, pertencente a todo e qualquer ser humano. No contexto do direito humano à alimentação adequada é imprescindível reconhecer sua íntima e necessária relação com a agricultura familiar e com a segurança alimentar, consistindo estes últimos em institutos a contribuir com a alimentação; o primeiro, responsável por mais de 70% dos alimentos que estão na mesa do brasileiro; o segundo, por ter como objetivo fornecer alimentos a quem dele precise, possibilitando uma alimentação adequada. Finalmente, reconhece-se o direito humano à alimentação adequada como um direito ao desenvolvimento, pois visa, dentre outros, o bem-estar social, a extinção da fome, a alimentação adequada a toda e qualquer pessoa, de modo que se trata de um direito social, voltado para a coletividade, que possibilita a vida digna e a garantia do mínimo existencial. Referências BONNAL, Philippe. Referências e Considerações para o estudo e a atuação dos programas de desenvolvimento territorial (PRONAT e PTC) na perspectiva da redução da pobreza em Página 48 de 270 territórios rurais (capítulo 1). In: MIRANDA, Carlos; TIBURCIO, Breno (Orgs.). Políticas de desenvolvimento territorial e enfrentamento da pobreza rural no Brasil. Brasília: IICA, 2013 (Série desenvolvimento rural sustentável; v.19), 360 p., ISBN: 978-92-9248475-0. Disponível em: <http://oppa.net.br/livros/Volume19.pdf>. Acesso em: 30 mai. 2015. BRASIL. Constituição (1988). CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 05 de janeiro de 2016. CAZELLA, Ademir Antônio, et. al. Ações e políticas no processo de gestão do programa territórios da cidadania: análise a partir dos estudos de caso (capítulo 9). In: MIRANDA, Carlos; TIBURCIO, Breno (Orgs.). Políticas de desenvolvimento territorial e enfrentamento da pobreza rural no Brasil. Brasília: IICA, 2013 (Série desenvolvimento rural sustentável; v.19), 360 p., ISBN: 978-92-9248-475-0. Disponível em: <http://oppa.net.br/livros/Volume19.pdf>. Acesso em: 30 mai. 2015. ESMUP Manuais de Atuação. Direito à Alimentação Adequada MPF-PFDC. BrasíliaDF: ESMPU, 2008. ISBN 978-85-88652-14-9. FEITOSA, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. Direito Econômico do Desenvolvimento e Direito Humano ao Desenvolvimento. Limites e Confrontações. In:Direitos Humanos de Solidariedade: Avanços e Impasses. Curitiba-PR: Appris, 2013. MANIGLIA, Elisabete. Atendimento da função social pelo imóvel rural. In: BARROSO, Lucas Abreu; MIRANDA, Alcir Gursen de; SOARES, Mário Lúcio Quintão (Orgs.). O Direito Agrário na Constituição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 25-44. MORENO, Augusto A.; FLORES, Murilo. Mudanças Institucionais para o Apoio à Agricultura Familiar: o Caso da Extensão Rural. Sessão IV: Iniciativas para o fortalecimento da agricultura familiar, V Simpósio Latino Americano de Investigação e Extensão em Sistemas Agropecuários (IESA); V Encontro da Sociedade Brasileira de Sistemas de Produção (SBSP), realizados em Florianópolis, entre 20 e 23 de maio de 2002 (impresso e disponível no cd redistribuído no evento). MÜLLER, Marcela. Direito Fundamental à alimentação adequada no contexto das organizações internacionais. Curitiba: Juruá, 2014. PIOVESAN, Flávia. Proteção dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do Direito à Alimentação Adequada: Mecanismos Nacionais e Internacionais. In: PIOVESAN, Flávia; CONTI, Luiz Conti (Coords.). Direito Humano à Alimentação Adequada. Rio de Janeiro-RJ: Lumen Juris, 2007. SIQUEIRA, Dirceu Pereira. A dimensão cultural do direito fundamental à alimentação.Birigui-SP: Boreal Editora, 2013, p. 35. Página 49 de 270 VALENTE, Flávio Luiz Schieck (Org.). Fome e desnutrição, determinantes sociais. São Paulo: Cortez, 2002-a. In: SIQUEIRA, Dirceu Pereira. A dimensão cultural do direito fundamental à alimentação.Birigui-SP: Boreal Editora, 2013, p. 35. ZIEGLER, Jean. Relatório do relator especial do direito à alimentação. Submetido de acordo com a resolução n. 2000/10 da Comissão de Direitos Humanos. Nações Unidas, Conselho Econômico e Social. E/CN. 4/2001/53, quinquagésima sétima sessão, 7 fev. 2001. Página 50 de 270 PERSPECTIVA CÍVEL-CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE FILIAÇÃO1 Agostinho Almeida de Sousa2 Marcos Virginio Souto3 Israel Lima Braga Rubis4 Wendel Alves Sales Macêdo5 Resumo: o presente trabalho tem por finalidade o estudo da filiação sob o enfoque cívelconstitucional. Para a consecução deste fim foi empregado como método de abordagem o dedutivo e como métodos de procedimento o histórico e comparativo, o exegético-jurídico e o hermenêutico, sendo a pesquisa subsidiada pelo exame de documentação indireta, sobretudo por meio da pesquisa bibliográfica em livros, artigos científicos e jurisprudência. A primazia do princípio da dignidade pessoa humana, consagrado na Constituição de Federal de 1988, como fundamento da República Federativa de Brasil, impôs novas perspectivas ao tema. Este princípio materializa-se na filiação através do princípio da igualdade entre filhos, não importando se havidos ou não na constância do casamento, objetivando minorar as desigualdades existentes no ordenamento jurídico brasileiro com relação à filiação. O estudo do direito de filiação passa, essencialmente, por uma perspectiva cível-constitucional, uma vez que, gradualmente, o legislador brasileiro foi ultrapassando paradigmas que impediam o tratamento isonômico dos filhos, até que foi promulgada a Constituição de 1988, considerando todos os filhos iguais. Palavras-Chave: Filiação; Enfoque cível-constitucional; Dignidade da pessoa humana; igualdade entre filhos. 1 Trabalho submetido ao GT 1: Humanização do Direito Civil Constitucional: perspectivas e desafios. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Conciliador no Centro de Conciliação e Mediação do TJPB/NPJ-UFCG, Campus de Sousa-PB. Email: [email protected]. 3 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Pós-graduando (latu sensu) em Direito Administrativo pelas Faculdades Integradas de Patos – FIP. Conciliador no Centro de Conciliação e Mediação do TJPB/NPJ-UFCG, Campus de Sousa-PB. Email: [email protected]. 4 Graduado em Direito na UFCG, Pós-graduando em Direito Constitucional e pesquisador. Email: [email protected]. 5 Advogado e Pesquisador. Integrante do IDCC da UFPB. Integrante do AFROEDUCAÇÃO da UFPB. Monitor da Pós-graduação Damásio de Jesus. Formado em Direito pela UFCG. Especialista em Direito Civil, em Direito Processual Civil, Direito Constitucional, Direito Administrativo e Tributário pela FAISA. Especialização em andamento em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Damásio de Jesus. Email: [email protected]. 2 Página 51 de 270 Abstract: the present study aims to study the membership under the civil and constitutional approach. To achieve this end was employed as a method of approach deductive and as methods of historical and comparative procedure, the exegetical and legal and hermeneutic, and the research subsidized by examining indirect documentation, especially through bibliographic research in books, scientific articles and jurisprudence. The primacy of the principle of dignity the human person enshrined in the Federal Constitution of 1988 as the foundation of the Federative Republic of Brazil, imposed new perspectives to the topic. This principle is embodied in the sonship through the principle of equality between children, whether or not havidos during marriage, aiming to reduce inequality in the Brazilian legal system with regard to membership. The study of the membership right passes essentially of a civil and constitutional perspective, since, gradually , the Brazilian legislature was passing paradigms that prevented equal treatment of the children , until the enactment of the 1988 Constitution, considering all children equals. Keywords: Membership; Civil and constitutional approach; Dignity of human person; Equality between children. Introdução A filiação é uma relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas. Esse estado decorre, normalmente, de um vinculo biológico, mas não necessariamente, especialmente sob o novo prisma constitucional. Hoje, é possível reconhecer a filiação, tão somente, em razão de um vínculo socioafetivo. O vínculo afetivo é a ligação estabelecida, após o nascimento, entre pessoas que não possuem um elo biológico entre si. O surgimento de laços afetivos faz com que ambas sejam capazes de coabitar harmonicamente num contexto familiar, ensejando relações juridicamente relevantes, que repercutem em diversos sentidos. A compreensão do tema proposto requer uma abordagem do contexto da filiação desde o Código Civil de 1916 até o Código atual, considerando-se as mudanças impostas pela ordem constitucional vigente. Página 52 de 270 O Código Civil de 1916 foi ultrapassado pelas notáveis mudanças dos valores que a sociedade atribuía às relações civis de filiação, reclamando uma adequação do ordenamento jurídico para se adaptar ao contexto garantista que impunha a atual Carta Magna. As normas do diploma revogado conferiam ênfase à família legítima. Sob sua égide existia tratamento diferenciado em razão de os filhos serem ou não advindos na constância do casamento, o que resultava em consequências jurídicas distintas conforme o caso. O novel diploma civil de 2002 confere tratamento inovador ao tema filiação, ampliando e consolidando garantias fundamentais da pessoa humana. A partir de então, o conceito de filiação ganha uma nova roupagem, para abranger, não só, os laços decorrentes da consanguinidade, mas também os decorrentes de vínculos afetivos, aproximando-se do chamado ―estado de filiação‖. O estado de filiação estabelece a ideia de que é necessário ir além de uma verdade científica, em que se analisa simplesmente a existência ou não da compatibilidade genética. Deve-se considerar também a existência de laços de confiança, fraternidade e amor. Ao redor do estado de filiação surgiram alguns critérios determinantes da filiação, a exemplo, dos critérios da presunção legal, biológicos, afetivos, da reprodução assistida e da posse do estado de filho. O estudo do direito de filiação passa, essencialmente, por uma perspectiva cívelconstitucional. A Constituição de 1988, em seu art. 1º, III, eleva o princípio da dignidade da pessoa humana a fundamento da República Federativa do Brasil, sendo reconhecido por alguns autores como princípio maior do Estado Democrático de Direito. Por essa razão, o novo Código Civil, editado em 2002, e a legislação que lhe seguiu estão contaminados por valores constitucionais consagrados na Carta de 1988, o que demonstra a estreita relação entre Direito Civil e Direito Constitucional. O Código Civil de 2002 amplia e consolida garantias conferidas aos filhos, bem como aprofunda o conceito de filiação e as diversas espécies de vínculos de filiação. A necessidade de se estudar e reconhecer as interferências das normas constitucionais no Direito Civil, especialmente no diz respeito à filiação, trazendo novas perspectivas, justifica a inclinação pelo tema. Destarte, o estudo passará inicialmente por uma análise histórica e evolutiva do instituto da filiação. Em seguida, firmar-se-á um conceito para o tema, bem como Página 53 de 270 classificações dele decorrentes. Em fim, serão destacadas inferências constitucionais sobre o tema filiação. Aspectos históricos e evolutivos da filiação São manifestas as mudanças ocorridas no tratamento conferido à filiação no decorrer dos anos, sobretudo em relação à legislação civil que vigeu até 2002, com ênfase especial para o tema da ―filiação‖ e suas classificações. Sabendo que o Código Civil de 1916 vigorou por mais de 80 anos, também é notório que a sociedade mudou ao longo desses anos e, deste modo, o legislador buscou adequar o ordenamento jurídico pátrio as novas realidades que surgiram. A Constituição Federal de 1988 destaca-se nessa evolução, impulsionando-a até a chegada do novo Código Civil em 2002. Com advento deste novo Código houve uma união de todas as mudanças que vinham sendo construídas até aquele momento. Por essa razão, é que o Direito Civil atual possui forte ligação com o Direito Constitucional. Na lição de Silvio de Salvo Venosa: ―o Código Civil de 1916 centrava suas normas e dava proeminência à família legítima, isto é, aquela derivada do casamento, de justas núpcias, em paradoxo com a sociedade brasileira, formada em sua maioria por uniões informais‖6. Deste modo, a lei civil daquela época já se mostrava em descompasso com a realidade social. Nos termos do Código Civil de 1916 existiam os filhos legítimos7, que eram aqueles concebidos na constância do casamento, e os ilegítimos8, que, nos termos do art. 358 daquele Código, eram divididos em incestuosos e adulterinos. Segundo Elias Antônio Queiroga, citado por Bruna Schlindwein Zeni, a respeito da classificação dos filhos: Legítimos eram os que nasciam da relação de casamento civil; ilegítimos eram os nascidos de relação extramatrimonial. Os ilegítimos dividiam-se em naturais ou espúrios. Filhos ilegítimos naturais eram nascidos de pais que não estavam impedidos de se casar. Os ilegítimos espúrios eram 6 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 228. Conforme prevê o art. 337, do CC/16,―são legítimos os filhos concebidos na constância do casamento, ainda que anulado, ou nulo, se contraiu de boa fé‖. 8 Nos termos do art. 358, do CC/16,―os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos‖. 7 Página 54 de 270 nascidos de pais que não podiam se casar, em virtude de impedimento. Os espúrios classificavam-se em adulterinos e incestuosos. Dava-se o primeiro caso, quando o impedimento decorria de casamento dos pais. (...) Se o impedimento para o matrimônio procedia de parentesco entre os pais, o filho nascido dessa relação era chamado incestuoso9. Neste sentido, Maria Berenice Dias assevera que: Essa classificação tinha como único critério a circunstância de o filho ter sido gerado dentro ou fora do casamento, isto é, o fato de a prole proceder ou não de genitores casados entre si. Assim, a situação conjugal do pai e da mãe refletia-se na identificação dos filhos: conferia-lhes ou subtraialhes não só o direito à identidade, mas também o direto à sobrevivência10. A respeito desta divisão, observa-se que o fator que legitimava a filiação era o matrimônio, sabendo que os filhos incestuosos e adulterinos não podiam, sequer, ser reconhecidos, nos termos do art. 358, disposição revogada apenas em 1989 pela Lei nº. 7.841/89. Quanto ao reconhecimento e a investigação de paternidade no antigo código, Bruna Schlindwein Zeni faz a seguinte análise: Ao filho detentor da presunção de legitimidade, que nada mais era do que o fato de ter nascido durante a constância de casamento válido, putativo ou anulável, ou de pessoas que faleceram na posse de estado de casadas, era dada a possibilidade de buscar seu reconhecimento como filho legítimo, mediante a ação de filiação.11 O art. 357 do CC/16 ditava que: ―reconhecimento voluntário do filho ilegítimo pode fazer-se ou no próprio termo de nascimento, ou mediante escritura pública, ou por testamento‖. O parágrafo único desse mesmo artigo preceituava que: ―o reconhecimento 9 QUEIROGA, Antônio Elias. Curso de Direito Civil – Direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 212. Apud ZENI, Bruna Schlindwein. A Evolução Histórico-Legal da Filiação no Brasil. Revistas Eletrônicas Unijuí, set. 2009. Disponível em:<https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/viewFile/641/363>. Acesso em: 08 fev. 2016. p. 62. 10 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 387. 11 ZENI, Bruna Schlindwein. A Evolução Histórico-Legal da Filiação no Brasil. Revistas Eletrônicas Unijuí, set. 2009. Disponível em:<https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/viewFile/641/363>. Acesso em: 08 fev. 2014. p. 65. Página 55 de 270 pode preceder o nascimento do filho, ou suceder-lhe ao falecimento, se deixar descendentes‖. Observa-se que os filhos poderiam ser reconhecidos, voluntariamente ou por intermédio da via judicial, sendo este reconhecimento feito por meio da certidão de nascimento, escritura pública ou testamento, antes do nascimento ou suceder-se ao falecimento, caso deixasse algum descendente. No tocante aos filhos adulterinos ou incestuosos, Zeni aponta que ―estes não poderiam ser reconhecidos. Se reconhecidos fossem, mediante ação de filiação, o ato tornava-se nulo a partir do momento da prova de que o filho era adulterino ou incestuoso‖12. Destarte, mostra-se clara a intenção do legislador em não conceder quaisquer direitos aos filhos de origem adulterina ou incestuosa, corroborando com o pensamento de Napoleão Bonaparte: ―a sociedade não tem interesse em que os bastardos sejam reconhecidos‖. Quanto à investigação de paternidade, a possibilidade de ingresso com ação para este intento estava vinculada à comprovação de alguma das hipóteses estabelecidas no art. 363do CC/16: Art. 363. Os filhos ilegítimos de pessoas que não caibam no art. 183, I a VI, têm ação contra os pais, ou seus herdeiros, para demandar o reconhecimento da filiação: I – se ao tempo da concepção a mãe estava concubinada com o pretendido pai; II – se a concepção do filho reclamante coincidiu com o rapto da mãe pelo suposto pai, ou suas relações sexuais com ela; III – se existir escrito daquele a quem se atribui a paternidade, reconhecendo-a expressamente. Percebe-se que no caput já existia proibição do ingresso com essa ação pelos filhos adulterinos ou incestuosos, uma vez que o CC/16 já trazia os casos de impedimentos matrimoniais ligados à relação entre parentes próximos e relacionamento adulterino em seu o art. 183, I a VI: Art. 183. Não podem casar (arts. 207 e 209): I. Os ascendentes com os descendentes,seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, natural ou civil. II. Os afins em linha reta, seja o vínculo legítimo ou ilegítimo. 12 Op. cit. p. 66. Página 56 de 270 III. O adotante com o cônjuge do adotado e o adotado com o cônjuge do adotante (art. 376). IV. Os irmãos, legítimos ou ilegítimos, germanos ou não e os colaterais, legítimos ou ilegítimos, até o terceiro grau inclusive. V. O adotado com o filho superveniente ao pai ou à mãe adotiva (art. 376). VI. As pessoas casadas (art. 203). Desta forma, é inegável que os filhos eram penalizados pelas atitudes erradas de seus genitores. Os incisos do art. 363 CC/16 traziam as hipóteses em que os filhos ilegítimos poderiam se utilizar da justiça para conseguir o reconhecimento, sendo necessário o estado de concubinato, a combinação da data da concepção do filho com a data em que o pai investigado havia raptado ou mantido relações sexuais com a mãe, ou então a existência de algum escrito, em que o pai investigado atribuía a si a paternidade. Assim afirma Maria Berenice Dias, sobre esta impossibilidade de reconhecimento: Negar a existência de prole ilegítima simplesmente beneficiava o genitor e prejudicava o filho. Ainda que tivesse sido o pai quem cometera o delito de adultério – que a época era crime –, infringindo o dever de fidelidade, o filho era o grande perdedor13. Estas normas começam a se tornar insustentáveis, visto que os filhos ilegítimos eram penalizados por serem gerados em uma relação adulterina ou incestuosa, não tendo sequer direito a serem reconhecidos pelo seu genitor. Destarte, em 1942 a legislação brasileira começa a dar sinais de que alteraria esta ordem, mesmo que discretamente, com a edição do Decreto-Lei nº. 4.737/42. A partir de então, o ordenamento jurídico passou a admitir que os filhos havidos fora do casamento pudessem ser reconhecidos após a dissolução da sociedade conjugal pelo desquite. Em 1949, com advento da Lei nº. 883, de 21 de outubro deste mesmo ano, a legislação ordinária deu um grande salto em direção ao reconhecimento de direitos aos filhos havidos fora do casamento, pois além de permitir o reconhecimento destes após a dissolução da sociedade conjugal, ampliou esta possibilidade para que o reconhecimento 13 DIAS, Maria Berenice. Op. cit. p. 387. Página 57 de 270 pudesse ser feito durante a vigência do casamento, porém este reconhecimento deveria ser feito em testamento cerrado, sendo, nesta parte, irrevogável. Nesse mesmo diploma legal passou-se a reconhecer o direito à herança dos filhos ilegítimos, que passaram a gozar de um patamar de igualdade ao lado dos filhos legítimos e dos legitimados do ponto de vista econômico, adquirindo também direito a alimentos provisionais nas ações de investigação de paternidade. A nova lei ainda possuía traços conservadores, uma vez que, além de só permitir o reconhecimento na constância do casamento por testamento cerrado nas ações de alimento, o filho só poderia acionar o pai em segredo de justiça. Em 1977 foi editada a Lei nº. 6.515, conhecida como a Lei do Divórcio, que regula a dissolução da sociedade conjugal. O seu art. 14, parágrafo único, afirma que: ―ainda que nenhum dos cônjuges esteja de boa fé ao contrair o casamento, seus efeitos civis aproveitarão aos filhos comuns‖. Atribuiu assim, direito aos filhos havidos de união nula ou anulável, independente da boa-fé dos nubentes. No entanto, a Constituição Federal de 1988 foi quem se responsabilizou por acabar de vez com qualquer distinção ou discriminação quanto à filiação, após cerca de 70 anos de vigência da ordem de filiação trazida pelo Código de 1916, em que havia distinção entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos. Na nova Carta Magna, mais precisamente em seu art. 227, § 6º, assim dispõe: ―os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação‖. Sendo assim, não havia mais qualquer distinção com relação aos filhos, sejam eles adotivos, concebidos na constância de um casamento ou fora deste, possuindo, todos eles, direitos iguais. Encerra-se aí o ultrapassado modelo, em que o filho era penalizado pelo ato do genitor, consagrando-se, então, o princípio da igualdade na filiação, que no ordenamento pátrio se enlaça com o princípio da dignidade da pessoa humana, objetivando minorar as desigualdades existentes no ordenamento jurídico brasileiro com relação à filiação. Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald afirmam que o § 6° do art. 227 da CF/88 ―foi de clareza solar ao determinar a igualdade substancial entre os filhos, evitando Página 58 de 270 qualquer conduta discriminatória, materializando, de certo modo, a dignidade da pessoa humana almejada como finalidade precípua da Republica Federativa do Brasil14. Em 1990, surge o Estatuto da Criança e do Adolescente, regulando matérias pertinentes a estes, desde tópicos de natureza civil até os de natureza penal, sobretudo temas relativos à adoção e filiação. O art. 27 do referido Estatuto assevera que o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça. Assevera também o diploma que o alegante não pode dispor deste direito e mais: não existe um prazo para que este venha interpor a ação. Em 1992 foi editada a lei que regulava a investigação de paternidade. É nesta lei que está previsto o exame de DNA como meio de prova para reconhecimento de paternidade. Nela está prevista que o pai deve ser notificado sobre a investigação de paternidade15, independentemente de seu estado civil. É importante também fazer menção ao artigo 5º da Lei nº. 8.560/92: ―no registro de nascimento não se fará qualquer referência à natureza da filiação, à sua ordem em relação a outros irmãos do mesmo prenome, exceto gêmeos, ao lugar e cartório do casamento dos pais e ao estado civil destes‖. Com o exame de DNA e a edição desta nova lei, sem dúvidas, houve um novo entendimento nos Tribunais acerca da prova de filiação. Com este artigo mais uma vez o legislador corrobora com o entendimento de que não há uma hierarquia ou distinção entre filhos e que todos devem possuir o mesmo tratamento. Conceito e classificações A evolução do tema deu uma nova dimensão ao conceito de filiação e possibilitou um delineamento de uma série de classificações sobre o vínculo de filiação, a exemplo, do 14 FARIAS, C. C.; ROSENVALD, N. Curso de Direito Civil: Famílias. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 539. Conforme o Art. 2° da Lei n°. 8.560/92:―Em registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida, o oficial remeterá ao juiz certidão integral do registro e o nome e prenome, profissão, identidade e residência do suposto pai, a fim de ser averiguada oficiosamente a procedência da alegação.§ 1°. O juiz, sempre que possível, ouvirá a mãe sobre a paternidade alegada e mandará, em qualquer caso, notificar o suposto pai, independente de seu estado civil, para que se manifeste sobre a paternidade que lhe é atribuída. 15 Página 59 de 270 estado de filiação, da presunção de paternidade, os critérios determinantes da filiação – biológico e afetivo –, da reprodução assistida e da posse do estado de filho. Para Silvio de Salvo Venosa a filiação é: ―uma relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas. Esse estado pode decorrer de um vinculo biológico ou não, como na adoção e na inseminação artificial heteróloga autorizada pelo pai‖16. Destarte, o vínculo biológico não é o único capaz de se levar a filiação. É certo que já existia o instituto da adoção no antigo código, porém com o progresso da ciência, se avançou também muito nos métodos conceptivos a exemplo da reprodução assistida. A evolução, contudo, não foi apenas cientifica, mas também de pensamento, estabelecendo assim uma filiação afetiva. Hoje, a afetividade é um princípio norteador da filiação. O estado de filiação é algo que vai além da verdade biológica, ou seja, não se necessita de um exame laboratorial para se comprovar este estado. Paulo Lôbo aduz que: ―a posse de estado de filiação refere à situação fática na qual uma pessoa desfruta do status de filho em relação a outra pessoa, independentemente dessa situação corresponder à realidade legal. É uma combinação suficiente de fatos indicando um vínculo de parentesco entre uma pessoa e sua filiação‖17. O Superior Tribunal de Justiça, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana, possui entendimento firmado no sentido de que o reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros18. Destarte, o fim maior que se pretende é a garantia da dignidade da pessoa humana, independentemente de qual vínculo se origina a filiação. A filiação pode ser presumida. O critério legal de determinação de filiação é conhecido como presunção pater is est, expressão derivada do latim ―pater is est quaem justae nuptiae demonstrant, que significa ―o pai é aquele indicado pelas núpcias‖. Este critério tem por base o casamento e está diretamente ligado ao dever de fidelidade, ou seja, para o critério legal a filiação se presume pelo casamento, sendo sempre o marido o pai 16 VENOSA, Silvio de Salvo. Op. cit. p. 233. LÔBO, Paulo. Direito Civil: família. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 236. 18 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 833712/RS. Terceira Turma. Relator: Ministra Nancy Andrighi. Data de Julgamento: 16/05/2007, Data de Publicação: DJ 04.06.200. 17 Página 60 de 270 (genitor) da criança. Com relação à maternidade tem-se a presunção matersemper certa est, em que a maternidade sempre é certa e será manifesta através dos sinais de gestação. O critério legal ou presunção pater is est está normatizado no art. 1597, incisos I e II, do CC/02. Conforme tais dispositivos presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal, bem como os nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento. Já existia tal presunção no antigo código e o legislador achou por bem sua manutenção no atual diploma. Outro critério para se estabelecer a filiação é o biológico. A filiação biológica é fácil de identificar. Sabe-se que esta filiação se estabelece pelo laço sanguíneo entre o genitor e o filho, laço este que independe de outra situação legal. O surgimento do exame de DNA possibilitou ao critério biológico uma certeza quanto à paternidade superior a 99%. Tamanha é a sua importância e precisão que a negativa injustificada em realizá-lo gera presunção juris tantum de paternidade. A Súmula de jurisprudência n°. 301 Superior Tribunal de justiça dita que: ―em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade‖. É evidente que o critério biológico não é o único a ser levado em conta para se admitir a filiação. A filiação poderá ser estabelecida à vista da existência de laços afetivos, mesmo que não haja laços biológicos. De acordo com art. 1.593 do CC/02: ―o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem‖. Observa-se que o legislador não restringiu o parentesco aos laços sanguíneos, antes afirmou que o parentesco pode ter outra origem. Esta origem é a afetiva. Segundo a lição de Maria Berenice Dias, esta filiação: ―corresponde à verdade aparente e decorre do direito de filiação‖19. Essa verdade aparente não é a verdade real trazida pelo critério biológico, mas aquele estabelecido no convívio em família. A filiação afetiva é capaz de estabelecer laços que a simples presunção legal ou a consanguinidade, em si, não estabelecem. Claro que numa relação de filiação podem se 19 DIAS, Maria Berenice. Op. cit. p. 406. Página 61 de 270 suceder mais de um dos critérios, e é o que acontece na maioria dos casos, em que o filho biológico recebe afeto dos pais, estabelecendo ambos os critérios. Além disso, os avanços da medicina fizeram surgir outras situações, das quais se originam algumas relações de filiação. O Código Civil de 2002 bem avançou e previu hipóteses de reprodução assistida. O art. 1.597 do CC/02, em seus incisos III, IV e V, prevê três hipóteses de presunção decorrentes da concepção artificial. Destarte, presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: a) havidos por fecundação artificial homóloga (feita com material genético do próprio casal), mesmo que falecido o marido; b) havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; e c) havidos por inseminação artificial heteróloga (feita com material genético de terceiro doador), desde que tenha prévia autorização do marido. Em relação ao tópico em estudo (CONCEITO E CLASSIFICAÇÕES), estas presunções vão de encontro às estudadas anteriormente, uma vez que naquelas a mãe sempre é certa e o pai é o marido da mãe. Nestas, porém, a mãe nem sempre será certa, podendo, no caso da chamada gestação por substituição, o filho ser de uma mãe e gerado no útero de outra; a presunção pater is est também é relativizada, visto que o pai em questão não seria o marido da mãe que gerou o filho. Aspectos civeis-constitucionais da filiação O estudo do direito de filiação passa, essencialmente, por uma perspectiva cívelconstitucional. Segundo Paulo Lôbo, como fruto da constitucionalização das famílias, houve uma: ―potencialização da filiação como categoria jurídica e como problema, em detrimento do matrimônio como instituição, dando-se maior atenção ao conflito paternofilial que ao conjugal‖20. No mesmo sentido é a lição de Silvio Venosa: No direito brasileiro, a partir da metade do século XX, paulatinamente, o legislador foi vencendo barreiras e resistências, atribuindo direitos aos filhos ilegítimos e tornando a mulher plenamente capaz, até o ponto culminante que representou a Constituição de 1988, que não mais 20 LÔBO, Paulo. Op. cit. p. 36. Página 62 de 270 distingue a origem da filiação, equiparando os direitos dos filhos, nem mais considera a preponderância do varão na sociedade conjugal21. Além disso, a Constituição de 1988, em seu art. 1º, III, eleva o princípio da dignidade da pessoa humana a fundamento da República Federativa do Brasil. Sobre a dignidade da pessoa humana, Maria Berenice Dias leciona que: É o princípio maior, fundante do Estado Democrático de Direito, sendo afirmado já no primeiro artigo da Constituição Federal. A preocupação com a promoção dos direito humanos e da justiça social levou o constituinte a consagrar a dignidade da pessoa humana como valor nuclear da ordem constitucional. Sua essência é difícil de ser capturada em palavras, mas incide sobre uma infinidade de situações que dificilmente se consegue elencar de antemão. Talvez possa ser identificado como sendo o princípio de manifestação primeira dos valores constitucionais, carregado de sentimentos e emoções. É impossível uma compreensão totalmente intelectual e, em face dos outros princípios, também é sentido e experimentado no plano dos afetos22. O novo Código Civil, editado em 2002, e a legislação que lhe seguiu estão contaminados por valores constitucionais consagrados na Carta de 1988, o que demonstra a estreita relação entre Direito Civil e Direito Constitucional. O Código Civil de 2002 amplia e consolida garantias conferidas aos filhos, bem como aprofunda o conceito de filiação e as diversas espécies de vínculos de filiação. O art. 1.596 do CC/02, seguindo o espírito constitucional e garantista da nossa Carta de Direitos, reproduziu o mesmo teor do art. 227, § 6°, da CF/88: ―os filhos havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação‖. Essa nova redação quis privilegiar o respeito ao princípio da igualdade entre filhos. Segundo a lição de Pablo Stolze: ―não há, pois, mais espaço para a distinção entre família legítima e ilegítima, existente na codificação anterior, ou qualquer outra expressão que deprecie ou estabeleça tratamento diferenciado entre os membros da família‖23. 21 VENOSA, Silvio de Salvo. Op. cit. p. 14. DIAS, Maria Berenice. Op. cit. p. 44. 23 GAGLIANO, P. S.; PAMPLONA FILHO, R. Novo curso de direito civil, volume 6: direito de família: as famílias em perspectiva constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. n.p. LIVRO DIGITAL. 22 Página 63 de 270 Para Flávio Tartuce é odioso a utilização de expressões distintas para nomear as distintas relações de filiação, uma vez que todos são juridicamente iguais. Esse autor descreve que: Em suma, juridicamente, todos os filhos são iguais perante a lei, havidos ou não durante o casamento. Essa igualdade abrange os filhos adotivos e os havidos por inseminação artificial heteróloga (com material genético de terceiro). Diante disso, não se pode mais utilizar as odiosas expressões filho adulterino, filho incestuoso, filho ilegítimo, filho espúrio ou filho bastardo. Apenas para fins didáticos utiliza-se o termo filho havido fora do casamento, eis que, juridicamente, todos são iguais24. Defende Maria Helena Diniz que: ―a única diferença entre as categorias de filiação seria o ingresso, ou não, no mundo jurídico, por meio do reconhecimento‖25. Maria Berenice Dias chama atenção para uma série de mudanças inauguradas pela nova ordem jurídica introduzida pela Constituição Federal de 1988, que consagra como fundamental o direito à convivência familiar, adotando a doutrina da proteção integral. Nas palavras da civilista: A nova ordem jurídica consagrou como fundamental o direito à convivência familiar, adotando a doutrina da proteção integral. Transformou crianças e adolescentes em sujeitos de direito. Deu prioridade à dignidade da pessoa humana, abandonando a feição patrimonialista da família. Proibiu quaisquer designações discriminatórias à filiação, assegurando os mesmos direitos e qualificações aos filhos nascidos ou não da relação de casamento e aos havidos por adoção (CF 227, § 6º). Todas essas mudanças se refletem na identificação dos vínculos de parentalidade, levando ao surgimento de novos conceitos e de uma nova linguagem que melhor retrata a realidade atual: filiação social, filiação socioafetiva, estado de filho afetivo etc. Ditas expressões nada mais significam do que o reconhecimento, também no campo da parentalidade, do novo elemento estruturante do direito das famílias. Tal como aconteceu com a entidade familiar, a filiação começou a ser identificada pela presença do vínculo afetivo paterno-filial. Ampliou-se o conceito de paternidade, que compreende o parentesco psicológico, que prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal. A paternidade deriva do estado de filiação, independentemente de sua origem, se biológica ou 24 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015. n.p. LIVRO DIGITAL. 25 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 1.125. Página 64 de 270 afetiva. A ideia da paternidade está fundada muito mais no amor do que submetida a determinismos biológicos26. (grifo nosso) Destarte, o princípio da dignidade da pessoa humana passa a justificar o estabelecimento de novos vínculos filiais para além da verdade biológica ou legal. O estado de filiação estabelece-se baseado eminentemente num vínculo afetivo. Nessa concepção Bullos alude que: O conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana é amplo e pujante, envolvendo valores e espirituais e materiais. A dignidade humana reflete, portanto, um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio do homem. Seu conteúdo jurídico interliga-se às liberdades públicas, em sentido amplo, abarcando aspectos individuais, coletivos, políticos e sociais do direito à vida, dos direitos pessoais tradicionais, dos direitos meta individuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos), dos direitos econômicos, dos direitos educacionais, dos direitos culturais etc. abarca uma variedade de bens, sem os quais o homem não subsistiria. A força jurídica do pórtico da dignidade começa a espargir efeitos desde o ventre materno, perdurando até a morte, sendo inata ao homem.27 Essa força jurídica que emerge do princípio da dignidade da pessoa humana amparou as evoluções, pelas quais passou o tema filiação, até que tal laço pudesse ser determinado tão somente por vínculos afetivos. O estado de filho possui intima ligação com a filiação socioafetiva. Para Paulo Lôbo: ―o estado de filiação compreende um conjunto de circunstâncias que solidificam a presunção da existência de relação entre pais, ou pai e mãe, e filho, capaz de suprir a ausência do registro do nascimento‖28. Assim, ganha força a ideia de separação entre pai e genitor, pois para a teoria do estado de filiação não basta apenas gerar, mas também dar cuidado, afeto, amor, respeito. Estes são sentimentos que vão sendo construídos ao longo do convívio familiar. Depreende-se, então, que o estado de filho é algo constituído com o passar do tempo; recebe-se todo cuidado e atenção, mesmo não havendo vinculação biológica entre pai e filho. 26 DIAS, Maria Berenice. Op. cit. p. 389. BULOS, UadiLammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 512. 28 LÔBO, Paulo. Op. cit. p. 236. 27 Página 65 de 270 Segundo Maria Berenice Dias a doutrina apresenta três requisitos para a caracterização da posse do estado de filho: (a) tractatus - quando o filho é tratado como ta l,criado, educado e apresentado como filhopelo pai e pela mãe; (b)nominatio- usa o nome ela família e assim se apresenta; e (c)reputatio- é conhecido pela opinião pública como pertencente à família de seus pais. Sobre o assunto, Silvio Venosa defende que: ―para benefício dos próprios envolvidos, deverá preponderar a paternidade afetiva e emocional e não a do vínculo genético‖29. No julgamento do Recurso Especial 1328380/MS30, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio, deu provimento a um Recurso Especial, para anular sentença, em razão do reconhecimento de cerceamento de defesa, sob os seguintes argumentos: [...] 2.2 Efetivamente, o que se está em discussão, e pende de demonstração, é se houve ou não o estabelecimento de filiação socioafetiva entre a demandante e a apontada mãe socioafetiva, devendose perquirir, para tanto: i) a vontade clara e inequívoca da pretensa mãe socioafetiva, ao despender expressões de afeto, de ser reconhecida, voluntariamente, como mãe da autora; ii) a configuração da denominada 'posse de estado de filho', que, naturalmente, deve apresentar-se de forma sólida e duradoura. Todavia, em remanescendo dúvidas quanto à verificação dos referidos requisitos (em especial do primeiro, apontado pelo Tribunal de origem), após concedida oportunidade à parte de demonstrar os fatos alegados, há que se afastar, peremptoriamente, a configuração da filiação socioafetiva. É de se ressaltar, inclusive, que a robustez da prova, na hipótese dos autos, há de ser ainda mais contundente, a considerar que o pretendido reconhecimento de filiação socioafetiva refere-se à pessoa já falecida. De todo modo, não se pode subtrair da parte a oportunidade de comprovar suas alegações. 2.3 Em atenção às novas estruturas familiares, baseadas no princípio da afetividade jurídica (a permitir, em última análise, a realização do indivíduo como consectário da dignidade da pessoa humana), a coexistência de relações filiais ou a denominada multiplicidade parental, compreendida como expressão da realidade social, não pode passar despercebida pelo direito. Desse modo, há que se conferir à parte o direito de produzir as provas destinadas a comprovar o estabelecimento 29 VENOSA, Silvio de Salvo. Op. cit. p. 239. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1328380/MS. Terceira Turma. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Data de julgamento: 21/10/2014, Data de publicação: DJe 03/11/2014. 30 Página 66 de 270 das alegadas relações socioafetivas, que pressupõem, como assinalado, a observância dos requisitos acima referidos. [...] (grifo nosso) Destarte, a afetividade tem sido determinante nas relações de filiação norteado pela necessidade de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. Considerações finais A filiação é o vínculo que liga duas pessoas numa relação de parentesco. Esse vínculo, normalmente, decorre de fatores biológicos ou legais, porém, sob o prisma da nova ordem constitucional, é possível reconhecer a filiação, tão somente, em razão de um vínculo afetivo. Atualmente, é inconcebível que se faça um estudo do tema sem filtrá-lo pelas novas diretrizes trazidas pela Constituição Federal de 1988. Os princípios constitucionais espraiam seus raios sobre todo o ordenamento jurídico brasileiro, especialmente sobre o Direito Civil, de modo que a aplicação deste e de seus institutos deve observar valores maiores consagrados na Carta Magna. O art. 1.596 do Código Civil de 2002, coincidentemente, traz a mesma redação do § 6º do art. 227 da Constituição Federal de 1988. Este dispositivo trata especificamente, e de forma inédita, do direito à igualdade entre filhos. Isso significa que não importa se os filhos foram ou não fruto da relação matrimonial. Agora, todos possuem os mesmos direitos e qualificações. Ainda estão proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Houve um alargamento dos vínculos tradicionais de filiação para permitir que o indivíduo pudesse encontrar amparo num seio familiar. Isso somente é possível graças ao princípio da dignidade da pessoa humana, manto justificador da realização do ser pela sua simples condição de humano. Desse modo, laços socioafetivos passam, suficientemente, a abonar vínculos de filiação em detrimento dos tradicionais critérios biológico e legal. A força jurídica desse princípio deu sustentação às evoluções, pelas quais passou o tema filiação, até que tal laço pudesse ser determinado tão somente por vínculos socioafetivos capazes de solidificar a presunção da existência de relação entre pais e filhos, podendo até dispensar o registro de nascimento. Página 67 de 270 É importante concluir que os pais têm o dever de cuidar dos seus filhos sob pena de incidir o instituto denominado de abandono afetivo. Nesse caso, os pais que não cuidarem dos filhos estão sujeitos a responsabilização. Referências BRASIL. Constituição (1998). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2016. ______. Leinº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Vade Mecum Saraiva. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. FARIAS, C. C.; ROSENVALD, N. Curso de Direito Civil: Famílias. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2015. GAGLIANO, P. S.; PAMPLONA FILHO, R. Novo curso de direito civil, volume 6: direito de família: as famílias em perspectiva constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. LIVRO DIGITAL. LÔBO, Paulo. Direito Civil: família. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. QUEIROGA, Antônio Elias. Curso de Direito Civil – Direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 212. Apud ZENI, Bruna Schlindwein. A Evolução Histórico-Legal da Filiação no Brasil. Revistas Eletrônicas Unijuí, set. 2009. Disponível em:<https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/viewFile/6 41/363>. Acesso em: 08 fev. 2016. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015. LIVRO DIGITAL. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2013. ZENI, Bruna Schlindwein. A Evolução Histórico-Legal da Filiação no Brasil. Revistas Eletrônicas Unijuí, set. 2009. Disponível Página 68 de 270 em:<https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/viewFile/6 41/363>. Acesso em: 08 fev. 2014. Página 69 de 270 LIBERDADE DE ESCOLHA E AUTONOMIA DA VONTADE NOS PROCEDIMENTOS DE INTERVENÇÃODA VIDA: UM INSTRUMENTO DA DIGNIDADE HUMANA Maria Cristina Paiva Santiago1 Maria Thereza Santiago M. De Moura2 Torben Fernandes Maia3 Resumo: A dignidade humana foi assunta a um patamar grandioso pela Constituição Federal de 1988, revelando consequências singulares ao ordenamento jurídico brasileiro; o presente trabalho tem como objetivo discutir a liberdade e a autonomia como ferramentas que compõem e garantem aquele princípio. Valores como democracia, pluralismo e diversidade são institutos inerentes ao Estado Democrático de direito; destarte, baseados na premissa de que defender o direito de escolha é diferente de defender a escolha, acredita-se que para a carga axiológica constitucional brasileira de 1988, o poder de decidir de pacientes vítimas de doenças terminais e irreversíveis sobre a intervenção ou não no procedimento morte, é uma prerrogativa dos cidadãos brasileiros. Palavra-chave: Dignidade Humana; Autonomia; Morte; Bioética; Abstract: Human dignity was exalted to an extreme level by the Federal Constitution of 1988, revealingsingular‘s consequences to the Brazilian legal system; this paper aims to discuss freedom and autonomy as tools that compose and guarantee that principle.Values such as democracy, pluralism and diversity are institutes inherent in a democratic state of law; therefore, based on the premise that defending the right to choose is different to defend the choice, it‘s believed that for the Brazilian constitutional axiological load of 1988, the power to decide whether make the intervention or not in the death of patients suffering from irreversibleand terminal‘sillnesses, it‘s the prerogative of Brazilian citizens. Keywords: Human dignity; Autonomy; Death; Bioethics; 1 Professora Me. e Doutoranda pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: [email protected]. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: [email protected] 3 Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: [email protected] Página 70 de 270 Introdução No atual Estado Democrático de Direito brasileiro, instalado pela Constituição Federal de 1988, a envergadura conquistada pela dignidade humana foi tremenda. O ser humano foi alçado como o destinatário final de todas as normas jurídicas, de forma que todo o ordenamento deva ser um meio para atingir a ordem social e valorização da dignidade, tendo sempre a pessoa humana como foco final. Tal prova se faz no fato de que direitos sociais, individuais e coletivos passam a ser considerados bens jurídicos irrevogáveis, mediante o instituto de cláusulas pétreas. Valores como a democracia, o pluralismo e a diversidade também foram fundamentos vistos pelos constituintes como bens a serem profundamente defendidos e implementados na sociedade. Assim, pelo presente trabalho, iremos defender esses postulados como sendo ferramentas que compõem o princípio da dignidade da pessoa, onde viver em um Estado Democrático de Direito que respeita o pluralismo de ideologias e a diversidade de crenças, é, necessariamente, respeitar também a própria dignidade humana. Dessa forma,buscando defender essa tese, o presente escrito foi estruturado em quatro partes. Inicialmente, abordaremos os conceitos que serão utilizados durante a discussão, sobre os diversos procedimentos de morte. Em seguida,debruçaremo-nos sobre a conceituação preliminar do princípio da dignidade humana para nosterceiro e quarto momentos, abordarmos o direito de escolha de optar por uma antecipação da morte em situações excepcionais, o qual é embasado por valores constitucionaisde liberdade e autonomia individuais, e são na verdade uma forma de valorizar a dignidade da pessoa humana. A limitação das escolhas acerca de como reagiriam as pessoas ao depararem-se com o esgotamento de suas perspectivas de melhoras, - quando em estados avançados de doenças, sem expectativa de cura ou crescente ameaça de dor e degradação, - constitui uma possível afronta ao prisma dos princípios e direitos fundamentais dos seres humanos, vez que ferem o valor intrínseco à condição humana, -qual seja a dignidade - foram aqui explorados em consonância com o ordenamento jurídico brasileiro. As discussões provenientes da temática são amplas e possuem muitas vezes opiniões diametralmente opostas, onde muitas vezes são fundamentadas pelo mesmo princípio, conforme demonstraremos mais a frente. Iremos apresentar ambas as Página 71 de 270 fundamentações, e demonstrar os pensamentos a favor da liberdade de escolha, que permite a cada pessoa o direito de ser juiz de seu destino, quando posta a situações extremas, pois esse é o corolário da nossa Democracia. Contudo escolhemos tão somente apresentar vertentes desses julgamentos, por acreditar que incansável e infinito é o âmbito de laboração da temática abordada; em atenção às escolhas esclarecidas feitas por pacientes, bem como seus familiares e/ou responsáveis legais, submetidos a uma limitação própria de todo e qualquer direito do nosso ordenamento, foi o que motivou os autores aos esclarecimentos aqui apresentados. Por fim, notamos que a visualização da autonomia, bem como da liberdade, como efetivações do princípio da dignidade representam uma valorização intrínseca ao indivíduo, em consonância com os direitos fundamentais da Carta Magna. Através dela, elementos como a pluralidade, diversidade e democracia são inevitavelmente promovidas, e uma vez respeitadasas condições e limitações provenientes das rotas de colisões de direitos, objetivando uma convivência harmoniosa do corpo social, escolhas individuais merecem e devem ser consideradas. Procedimentos de intervenção da morte No decorrer da história, o conceito da eutanásia sofreu profundas alterações, vez que esse termo abrangeu em seu início e durante muito tempo, toda intervenção médica que visava de alguma forma alterar o ciclo natural da vida, conduzindo a um conceito ―negativo de abreviar direta e intencionalmente, a vida humana” 4. Dessa forma, julgamos necessário que, antes de adentrar ao mérito da discussão, é de fundamental importância tecer esclarecimentos acerca dos termos técnicos essenciais para a discussão do presente tema, sepultando desde já qualquer possível confusão terminológica. Eutanásia 4 PESSINI, Léo. EUTANÁSIA: por que abreviar a vida?, p. 285. Página 72 de 270 A eutanásia, morfologicamente derivada do grego, eu -bem- e thanatos -morte-, pode ser compreendida como a ação de induzir à morte com o mínimo de sofrimento 5, consistindo na aplicabilidade de formas suaves e indolores6; Faz-se mister afirmar que a essência motivadora do ato de ceifar a vida de alguém nesses casos deve inegavelmente estar pautada na compaixão, sendo esta ensejada pela ânsia de findar imenso e irremediável sofrimento do semelhante. É primordial ressaltar que em nosso ordenamento, em razão da atual inexistência da forma da eutanásia, tal conduta é compreendida como crime de homicídio, visto que o paciente, mesmo nos casos em que relata sua vontade ativamente, não promove os atos executórios. Em linhas gerais podemos afirmar quepara discutir a temática desejada diversos conceitos podem vir a surgir, de modo que, para nosso estudo, pertinente é tratar individualmente de cada uma, a fim de distingui-las com clareza. Suicídio e suicídio assistido O suicídio puro e simples é o ato voluntário de tirar a própria vida, podendo representar um grito de liberdade, um ato de liberdade individual, que reiteradamente é sufocada e agredida.7Aqui, a grande e maior característica reside na ausência de determinação e participação de terceiros. O suicídio assistido, também conhecido como ―autoeutanásia‖, constitui mais uma espécie de eutanásia, verificada quando o terceiro presta auxílio -material ou moral- ao paciente, por motivos completamente benévolos; nesta modalidade, o ato executório é realizado pelo doente, jamais pelo terceiro, caso contrário estaríamos diante do tipo penal de homicídio e da figura da eutanásia direta.8. Eutanásia x Ortotanásia 5 SÁ, Maria de Fátima. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. p. 32, 2001 LOPES, Antônio Carlos; LIMA, Carolina Alves de Sousa; SANTORO, Luciano de Freitas. Eutanásia, ortotanásia e distanásia: aspectos médicos e jurídicos. 2011. p.17. 7 CARDOSO, Álvaro Lopes. O Direito de Morrer: Suicídio e Eutanásia. Lisboa: Publicações EuropaAmérica. 1984. p. 37 8 BITTENCOURT, Cezar Robert. Tratado de Direito Penal. 2009. p. 108 6 Página 73 de 270 Dalmo Dallari entende como ortotanásia a não interferência de qualquer modo para prolongar ou apressar a morte, deixando a natureza agir9; Para Maria Elisa Villas-Bôas, ―é o resgate do morrer cercado, sobretudo, de afeto, e não penas de artefatos; o morrer a que todos esperamos ter direito‖.10. Nesse fenômeno, é fundamental que o processo morte já tenha sido iniciado, de modo que distingue-se da eutanásia por esta ser resultante de uma atuação ou omissão do agente. Eutanásia x Distanásia A distanásia, ao contrário do que representa a eutanásia, constitui a negação da morte através do prolongamento artificial de uma ―vida‖, quando esta já alcançou o fim. Os estudos doutrinários consideram a distanásia como uma persistência terapêutica ou mera frivolidade, onde o foco resta não mais na pessoa do paciente, mas na essência de sua patologia, de modo que culmina em um afastamento da natureza antropocentrista no campo da medicina. Assim, como aponta José Eduardo de Siqueira, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, “essa batalha fútil, travada em nome do caráter da vida, parece negar a própria vida humana naquilo que ela tem mais essencial: a dignidade” 11. Restando provada a importância do super-princípio – a dignidade -, debrucemo-nos agora sobre seus fundamentos e razões de ser, a fim de melhor compreender o desenvolvimento da temática aqui tratada. Notas Preliminares Sobre A Dignidade Humana Nas palavras de Léo Pessini12, o conceito de dignidade já ocupa, há pelo menos cinquenta anos, um lugar de destaque nas diversas declarações internacionais, além de espaços em constituições e legislações das mais variadas nações; em 1945, o preâmbulo da Declaração Universal de Direito Humanos ressaltou que: “O reconhecimento da dignidade 9 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Direito à vida e a liberdade para morrer. 2009. p. 43 BÔAS, Maria Elisa Villas. O direito fundamental à ortotanásia. 2010. p. 242 11 SIQUEIRA, José Eduardo de. A terminalidade da vida. 2005, p.152-153. 12 PESSINI, Léo. EUTANÁSIA: por que abreviar a vida?, p.133 10 Página 74 de 270 inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” 13 . Mais adiante, o mesmo texto, em seu artigo primeiro preceitua que: ―Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.” 14. Mediante uma simples interpretação das redaçõessupracitadas, percebemos que a referida declaração propõe que a dignidade seja um padrão comum a todos os povos, independente de cor, raça ou etnia, procurando enquadrar todas as pessoas em uma mesma espécie, qual seja a do ser humano;o objetivo é claro: tornar aquele padrão um direito subjetivo de todo membro da humanidade. Outrossim, é relevante apontar que concomitantemente a ascensão da dignidade, a liberdade é erigida a uma alta patente, onde tal qual uma simbiose, ou ainda num processo de fusão, são os dois institutos interdependentes considerados caríssimos aos seres humanos. Diante do que já foi exposto percebemos que a Constituição Federal de 1988 iniciou um importante projeto de valorização da pessoa humana; a partir de um movimento de superposição desse texto legal sobre os demais, deu-se início a uma nova hermenêutica constitucional: um fenômeno definido por Ingo Sarlet comohorizontalização dos direitos fundamentais15, onde toda a carga axiológica inovadora positivada na magna carta, a qual visa, sobretudo, o soerguimento da pessoa humana e a sua dignidade, - através de direitos fundamentais, individuais, sociais e coletivos, - eleva o ser humano à envergadura maior de todo o ordenamento jurídico, seja ele da esfera privada ou pública. Destarte, a eficácia dos direitos fundamentais passa a exercer influência sobre toda e qualquer esfera do arcabouço jurídico brasileiro, nas suas dimensões objetivas e subjetivas. A pessoa humana e a sua valorização passaram a ser os motivos e as razões da essência do Direito. Embora pareça óbvia, na atualidade, a necessidade de se reconhecer o papel central do Direito que deve atribuir à pessoa, foi há bem pouco tempo que se colocou a pessoa humana no seu devido lugar.(...)Apesar de, desde os primórdios da existência do homem, as normas jurídicas se direcionarem à regulamentação de atividades e à garantia de interesses humanos, a percepção de 13 Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em 10 de dezembro de 1948. Declaração Universal dos Direitos Humanos, op. cit. 15 SARLET, Ingo Wolfgang.Aeficácia dos direitosfundamentais. p. 392-400. 14 Página 75 de 270 que a pessoa, como fim em si própria – e não o indivíduo, ou , ainda pior, este em função do Estado – constitui o ponto fulcral de todo o fenômeno jurídico(...). Termos remetendo à ―dignidade‖ passaram a ser amplamente explorados e invocados em todas as vertentes jurídicas, vez que tal princípio passou a ser um imperativo teleológico: todomandamento normativo deve ter como produto, ainda que minimamente, a valorização de tal fundamento. Ao tomar por base as palavras de Antônio Junqueira de Azevedo, “pessoa é um bem, e a dignidade seu valor.”16, percebemos queo princípio da dignidade deve ser encarado como uma norma impositiva e um direito subjetivo de todo ser humano, não apenas mera diretiva interpretativa, da qual se pode extrair outros princípios17. Assim, o papel que desempenha no sistema jurídico brasileiro atual, preponderante e central, funciona como uma garantia, verdadeiro direito subjetivo inerente a qualquer pessoa, e de observância obrigatória em qualquer situação jurídica. Dessa feita, é visando à promoção da dignidade da pessoa humana, acima de tudo como mecanismo norteador, que nos lançamos nessa discussão acerca do procedimento da morte. Portanto, é partindo da premissa de que os autores desse artigo não defendem a morte por si só, mas sim, por saber que tal evento é uma incógnita inevitável e certa para todos aqueles que vivem, que debruçamos o olhar acerca desse processo, tendo por base que dor e sofrimento não são, necessariamente, partes integrantes desse fenômeno. A dignidade e seu caráter polissêmico O princípio da dignidade, embora seja muito explorado e bastante intuitivo no tangente aos seus contornos, representa na delimitação de seu conteúdo uma tarefa excessivamente árdua para juristas, sociólogos e filósofos; destarte, o conceito de dignidade prova ser, de fato, polissêmico18, de forma que dá margens para várias interpretações, bem como instrumento para fundamentar intenções antagônicas. Um bom exemplo de tal alegação se faz no fato de tal conceito produzir argumentos para ambos os lados da discussãoacerca da eutanásia, bem como do direito a uma morte digna. 16 AZEVEDO, AntônioJunqueira de.Caracterização juridical da dignidade da pessoahumana.p.15, 2002. LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. A genética no limiar da Eugenia e a reconstrução do conceito de dignidadehumana.2002, p.561. 18 PESSINI, Léo. Op. cit., p.141. 17 Página 76 de 270 De um lado existe o grupo contrário à aprovação da eutanásia, patrocinada por uma visão cristã e paternalista sobre a vida, o qualbaseado num conceito objetivo, a vida é considerada uma dádiva sagrada, concedida por uma criatura divina, queé a detentora exclusiva do poder de tirar ou abreviar uma vida, retirando do paciente ou de seus responsáveis legais a opção de tomar decisões a este respeito. A vida é uma bênção, de forma que o seu encurtamento por meios diretostorna-sealgo condenável, emborareste demonstrado que tal conjunturapoderá acarretar profundos sofrimentos ao paciente. O princípio da sacralidade da vida é considerado absoluto, não cabendo a nenhuma pessoa decidir acerca do procedimento ativo de morte19, ainda que o “direito à vida” se confunda com um “dever à vida” 20 , fazendo com que a busca incessante pelo prolongamento da vida de pacientes acometidos por doenças graves, contrária à vontade do enfermo ou do seu responsável legal, venha acompanhada de sofrimento, dor e humilhação, em uma possível afronta à dignidade humana, em seu espectro da liberdade e da autonomia;é importante ressaltar, entretanto, que cabe um juízo de valor sobre si mesma no que se refere ao quesito próprio da vida21, de modo que o âmbito de limitação permanece e concentra-se no que tange o procedimento da morte. Do outro lado, existe uma visão baseada na deontologia médica, que vê na liberdade e na autonomia do ser humano ferramentas que compõe o instituto da dignidade. Aqui, a autonomia e a liberdade de escolha são vistas como complemento à dignidade, quando o paciente é submetido a situações extremas e irreversíveis. Reconhecendo que o direito brasileiro não enxerga a vida como um direito absoluto222324, se faz necessário aprofundar o debate, para que não se incorra no risco de 19 Faz-se mister lembrar da distinção entre eutanásia e ortotanásia previamente discutida, visto que a Igreja Católica é a favor da segunda, evidenciada pela escolha do Papa João Paulo II ao declarar: ―Quando a morte inevitável é iminente apesar dos meios usados, é permitido, em consciência, tomar a decisão de recusar formas de tratamento que apenas asseguram um precário e doloroso prolongamento da vida.‖. (Urban CA, Simon A, Bardoe W, Silva IM.2003. Cap. 55, p. 524.) 20 BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE NO FINAL DA VIDA. P. 13. 21 A esse respeito, o Papa Pio XII declarou: ―O afastar a dor e a consciência por meio de drogas quando razões médicas o aconselham é permitido pela religião e moral quer ao paciente quer ao médico, mesmo que o uso das drogas abreviem a vida.‖. 22 Vide a Constituição Federal /88, em seu artigo 5º declara: ―XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”. 23 Vide o Código Penal Brasileiro: “Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de Página 77 de 270 compreender, equivocadamente, que essa linha de pensamento difunda a banalizaçãoda vida, entregando aos indivíduos,de forma ilimitada e irracional, poderes plenos sobre o direito de viver. Qualquer movimento jurídico que busque flexibilizar o direito à vida deve ser analisado com muita cautela, sempre acompanhado de intensos debates e numerosos olhares atentos. Contudo, em algumas situações o procedimento de intervenção médica sobre a morte se confunde com o próprio direito à dignidade, como nos casos de doenças terminais irreversíveis,a exemplo da distanásia – já conceituada previamente por esses autores -, situações em que o prazer em viver é convertido em uma luta descomedida pela sobrevivência a qualquer custo e sob as agruras de um pesado fardo. Dignidade Humana Como Instrumento Da Autonomia / Autonomia Da Vontade Como Emanação Da Dignidade Humana Em uma análise atenta à Carta Magna, é evidente o espaço de proeminência e relevo que é entregue à dignidade; sua eficácia e efeitos atingem a todo o ordenamento jurídico, devendo penetrar de forma intensa,norteando a interpretação de todo o sistema jurídico, pois foi inserido, não despropositadamente, já no primeiro artigo do texto constitucional, demonstrando o real peso desse princípio. Vejamos: Art. 1o - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: [...] III - a dignidade da pessoa humana.(Grifos nossos). É perceptível que o Estado Democrático de direito é justificado, dirigido e deve ter como finalidade o respeito a tal princípio, onde o exercício do múnus público e a movimentação da máquina estatal só se justificam quando em consonância com tal fundamento, legitimando o Estado, e não o contrário. Coadunamos com o pensamento de Ingo Sarlet, quando fala que: estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”. 24 Vide ADPF nº 54 julgada em 2012 pelo STF: “O Tribunal, por maioria e nos termos do voto doRelator, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal(...)”. Página 78 de 270 O Constituinte de 1988, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua e não meio da atividade estatal.25 Ainda na Constituição Federal, em seu preâmbulo, institutos como liberdade, igualdade e pluralidade são definidos como valores a serem perseguidos pelo Estado Democrático, visando sempre a harmonia social e a ordem interna. Dessa forma, tal qual espécies que derivam de um gênero, a dignidade - como um super princípio - só pode ser plenamente exercida quando aqueles também o são garantidos. Direitos Assegurados pela Dignidade Humana/ Um Direito Multifacetário Concretizar a dignidade humana não é tarefa fácil, vez que por se tratar de conceito complexo e plural, o seu alcance implica em ir ao encontro da igualdade de direitos, da independência e da autonomia do ser humano. Assim, respeitar a dignidade da pessoa humana, traz quatro importantes consequências: a) igualdade de direitos entre todos os homens, uma vez integrarem a sociedade como pessoas e não como cidadãos; b) garantia da independência e autonomia do ser humano, de forma a obstar toda coação externa ao desenvolvimento de sua personalidade, bem como toda atuação que implique na sua degradação e desrespeito à sua condição de pessoa, tal como se verifica nas hipóteses de risco de vida;(...)26.(Grifos nossos). Portanto, acreditam os autores desse texto que garantir a dignidade humana é igualmente assegurar aos pacientes terminais o direito de optar por qual tratamento será submetido, e além: deixar o mesmo, ou o seu representante legal, optar diante da iminência da morte, por procedimentos de intervenção médica que venham a incorrer na essência da vida, quando o é submetido a situações extremas e irreversíveis, de dor e sofrimento. À esse respeito, Renata de Lima Rodrigues afirma: 25 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2001. p. 103. NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana. 2000. p. 4. 26 Página 79 de 270 A dignidade humana reside na possibilidade de autodeterminação: dizer de seus próprios desígnios e poder escolher seus objetivos é que faz da vida humana um bem precioso a ser protegido.27 Defender o direito de escolha é diferente de apoiar a escolha. Defender o princípio da dignidade é diferente de aceitar seu uso arbitrário e discricionário. Interessante nos parece, nesta oportunidade, referenciar Habermas28,cujo pensamento defende que no campo democrático todas as pessoas devem formar uma concepção pessoal do que seja ―boa vida‖, segundo critérios próprios que não devem ser sujeitados à prescrição da maioria. É justamente por acreditar que numa sociedade democrática, a pluralidade é um imperativo, que pressupõe uma faculdade a todas as pessoas: o direito de decidir como gerir o seu próprio destino, diante da condição suprema do livre-arbítrio29. Outrossim, é necessário ressaltar que nesse escrito o que se defende não é uma escolha com liberdade absoluta, mas a que preste especial atenção à regras basilares, que pode em casos extremos, acreditamos ser este o posicionamento mais democrático, ter o poder de escolha entregue ao próprio cidadão- quando este for plenamente capaz30 do ponto de vista jurídico e psicológico -, evitando sempre uma autonomia ilimitada e incondicional. Permitir a intervenção no procedimento de morte sejapara atingi-la de forma natural - como na retirada de aparelhos e instrumentos que prolonguem a vida- ou praticá-la de forma ativa – com todas as ressalvas já apresentadas31, constitui a defesado direito de escolha, não implicando em uma relativizaçãodo direito à vida; É fundamental ressaltar que 27 RODRIGUES, Renata de Lima. Incapacidade, curatela e autonomia privada: 2005. p. 151. HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. 2004. 29 Para São Tomás de Aquino ―Livre-arbítrio é a causa de seu próprio movimento, porque pelo seu livrearbítrio o homem move a si mesmo para agir. Mas por necessidade não pertence à liberdade que o que é livre deveria ser a primeira causa de si mesmo, como também para uma coisa ser a causa de outra precisa ela ser a primeira causa. Deus, então, é a primeira causa, Quem move causas tanto naturais quanto voluntárias. E assim como por mover causas naturais Ele não evita que seus atos sejam naturais, por mover causas voluntárias ele não evita que suas ações sejam voluntárias: mas ao invés disto Ele é a própria causa disto neles; pois Ele opera em cada coisa de acordo com sua própria natureza.” (Suma Teológica I.83.1) 30 Pertinente lembrar-se do recente debate no que tange à ―capacidade‖ ante a interpretação do Estatuto do Idoso; A este respeito, Fábio Ulhoa afirma: ‖A velhice por si só, não é causa de incapacidade. Por mais avançada na idade, a pessoa tem plena aptidão para cuidar diretamente de seus negócios, bens e interesses. Se, pressentindo a proximidade do fim, quiser gastar considerável volume de suas reservas patrimoniais em atividades de pura diversão e lazer, poderá fazê-lo sem que os descendentes ou outros eventuais sucessores tenham direito de impedi-la. Não se pode considerar pródigo àquele que, não tendo responsabilidade pelo sustento e educação de mais ninguém, gasta ludicamente as economias construídas durante a vida‖ (ULHOA, Fábio. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1. p. 178.). 31 Onde há ausência de perspectiva de melhoras, sofrimento irremediável e incessante, iminência da morte, entre outros fatores que findam por não incluir, por exemplo, a espécie do suicídio. 28 Página 80 de 270 o respirar e desenvolver- ainda que de forma relativa- as atividade cerebrais por um indivíduo, deve ser compreendido como sobrevivência, não se confundindo de maneira alguma com o conceito da ―vida‖.Parece-nos muito oportuna a declaração de Eduardo Rabenhorst, quando fala que: Se existe algum fundamento único para a democracia, ele não pode ser outra coisa senão o próprio reconhecimento da dignidade humana. Mas tal dignidade é, ela própria, destituída de qualquer alicerce religioso ou metafísico. Trata-se apenas de um princípio prudencial, sem qualquer conteúdo pré-fixado, ou seja, uma cláusula aberta que assegura a todos os indivíduos o direito à mesma consideração e respeito, mas que depende, para a sua concretização, dos próprios julgamentos que esses indivíduos fazem acerca da admissibilidade ou inadmissibilidade das diversas formas de manifestação da autonomia humana. 32 Assim, diante de uma esperança de Estado Democrático de Direito, é inegável a necessidade de uma vida associada à dignidade, exercida e reclamada pelo próprio cidadão autônomo e capaz, de modo que Sá33 defende que a vida não deve ser encarada como sendo mais extraordinária, quando diante da liberdade e dignidade. O problema da autonomia ilimitada ou incondicional É imperial esclarecer, precipuamente, que não estamosnos debruçando sobre hipóteses de estados temporários ou reversíveis, onde o indivíduo escolhe morrer por simples motivações pessoais e outros se excluemdeimpedir ou participam ativamente prestando-lhe auxílio, aqui tratamos de pacientes que, encontrando-se em situações de efetiva degradação, dor e sofrimento incalculáveiscogitam a possibilidade de reclamar o poder de renunciar a intervenções médicas de prolongamento da vida, ou em um segundo momento optar pela abreviação direta da vida, por ato próprio ou alheio, por serem vítimas de doenças terminais extremamente dolorosas ou por enfermidades degenerativas que findamnagradativa perda de sua própria dignidade. Sabemos que as motivações para reclamar a autonomia como efetivação de mecanismo de dignidade quando na perspectiva de intervenção ativa de procedimentos que culminem na morte são extremamente delicadas e específicas, de modo que se torna impossível uma defesa de liberdade ilimitada e incondicional de tal poder de escolha; é 32 33 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrática.2001. p. 48 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer. 2005. Página 81 de 270 essencial que a ordem pública, em respeito aos bons costumes e intencionando preservar os indivíduos e a sociedade, negue a validade jurídica de decisões imperativas que não respeitem devidamente às normas legais de nosso ordenamento. Ressalta-se com veemência que a exaltação e a defesa do elemento da autonomia não constituem uma aceitação da finalidade definida pelaescolha, há, portanto uma pluralidade de opções, incluindo o prolongamento a qualquer custo da vida, onde poderá se optar dentre várias possibilidades, que incluem a prorrogação máxima da vida, sua não prorrogação artificial e, em situações extremas, sua abreviação. A esse respeito, segue o pensamento de Luís Roberto Barroso: Todavia, a prevalência da dignidade como autonomia não pode ser ilimitada ou incondicional. Em primeiro lugar, porque a o próprio pluralismo pressupõe, naturalmente, a convivência harmoniosa de projetos de vida divergentes, de direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisão. Além disso, escolhas individuais podem produzir impactos não apenas sobre as relações intersubjetivas, mas também sobre o corpo social e, em certos casos, sobre a humanidade como um todo. Daí a necessidade de imposição de valores externos aos sujeitos.34 É mister ressaltar ainda a evidente impossibilidade de cura ou reversão do quadro clínico, importando o tratamento em extensão da agonia e do sofrimento, sem qualquer perspectiva para o paciente, restringindo ainda mais a livre e desmensurada escolha por parte daquele que se submeteria – ou se recusaria- a interagir com o panorama médico. O objetivo do nosso escrito não é defender a entrada em nosso ordenamento de toda e qualquer forma de abreviação da vida – ou de outra maneira, da aproximação da morte -, mas tão somente incentivar um olhar, a princípio na realidade da ortotanásia, para que em um segundo momento, debrucemo-nos sobre atuações mais incisivas – como a eutanásia e o suicídio assistido – que inevitavelmente geram um maior impacto sobre a sociedade. Em consonância com esta ideia, Luís Roberto Barroso afirma: A prevalência da noção de dignidade como autonomia admite, como escolhas possíveis, em tese, por parte do paciente, a ortotanásia, a eutanásia e o suicídio assistido. Todavia, onde a ortotanásia é disciplinada adequadamente, do ponto de 34 BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE NO FINAL DA VIDA. p. 21 e 22 Página 82 de 270 vista médico e jurídico, a eutanásia e o suicídio assistido perdem muito de sua expressão, ficando confinados a situações excepcionais e raras. 35 E ainda: Nessas situações extremas, aparecem outros direitos e interesses que competem com o direito à vida, impedindo que ele se transforme em um insuportável dever à vida. Se, em uma infinidade de situações, a dignidade é o fundamento da valorização da vida, na morte com intervenção as motivações se invertem.36 Sabemos que exaustivo e enérgico seria o debate aqui sugerido, entretanto, por compreender que não constitui – em todos os casos- o no ordenamento jurídico brasileiro tipificado como prática de homicídio, defendemos com afinco a discussão da temática. A necessidade da existência de um consentimento livre e esclarecido no cenário envolvendo a morte Sabemos que a morte em si mesma é uma fatalidade inevitável, de modo que as escolhas feitas pelo indivíduo, -sejam para aproximá-la, sejam para afastá-la- não alterarão o resultado fático e finalístico da vida; considerando que concordamos que, independentemente da pessoa, o direito a uma morte digna deve ser universal e imperioso, é cabível afirmar que a dignidade humana essencialmente justifica a proposição de que o indivíduo é um fim nele próprio, sendo pertinente que na maioria dos casos, esteja em suas mãos à escolha relacionada aos procedimentos terapêuticos que irá se sujeitar nos casos neste escrito abordados; Assim, tudo se resume em um único e complexo elemento: a vontade. O consentimento pode ser compreendido como sendo a expressão da manifestação de vontade do indivíduo, de modo que Casabona37 associa sua definição à de autonomia; André Rüger afirma: A finalidade maior do consentimento informado é a concretização (ou não) de um acordo sobre o escopo, as finalidades e os limites da atuação médica. Além disso, consiste no único meio possível de definir, num caso concreto 35 BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A MORTE COMO ELA É: DIGNIDADE NO FINAL DA VIDA. P. 39 e 40 36 BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho.Op. Cit., p.13. 37 CASABONA, Carlos María Romeo. O consentimento informado na relação entre médico e paciente: aspectos jurídicos. 2005. P. 128-172. Página 83 de 270 unicamente aplicável a esse, aquilo que possa ser considerado como ‗bom‘ para o interessado38 Assim, é imprescindível nos casos aqui abordados – onde o paciente está consciente e capaz de exprimir suas intenções- que sua vontade em consonância com o que lhe é proposto pelo cenáriomédico seja exprimida, e ainda coadunamos com o pensamento exposto por Gilson Ely Chaves de Matos, qual seja: [...] o ato de consentir tem que ser qualificado, ou seja, livre de qualquer ingerência externa capaz de viciar a decisão do paciente. [...] os defensores desse consentimento qualificado entendem que sua validade não se atém à liberdade de escolha frente à informação e exigem que essa informação seja um esclarecimento pleno sobre todas as implicações inerentes ao tratamento 39. A autonomia e poder de autodeterminação do homem representam a efetivação da dignidade da pessoa humana. O ser humano é o único capaz de pensar e se questionar acerca dos fatos e conjunturas que o circundam, de modo que, a partir da reflexão e tomada de atitudes, o homem está efetivando sua própria liberdade e exercendo sua própria dignidade. Diante do que foi exposto verifica-se a pertinência e o cabimento de defender em tais conjunturas a liberdade –mesmo que não absoluta- do paciente de realizar e submeterse a suas próprias decisões, sendo ele mesmo –direta ou indiretamente- o responsável pelo resultado obtido. Conclusão A dignidade da pessoa humana é, por si só, soberana, de modo que ela constitui argumentos para opiniões diametralmente opostas e convida a essência de todos os direitos fundamentais, desde o direito à vida até o que podemos chamar de ―direito à morte‖ 40; seu conceito alicia a uma aplicação valorativa para garantir as bases da existência dos seres humanos, melhor dizendo, em sua ideia à defesa dos direitos pessoais no âmbito de suas autonomias e liberdades. Ademais, percebemos que ao defender a supramencionada autonomia, não estamos em consonância com o resultado escolhido pelo indivíduo, visto que o embate encontra-se 38 RÜGER, André. Conflitos familiares em genética humana. 2007. p.160. MATOS, Gilson Ely Chaves de. Aspectos jurídicos e bioéticos do consentimento informado na prática médica. 2007, p.201. 40 Aqui no sentido de morte digna. 39 Página 84 de 270 entre polos extremamente delicados e antagônicos: àquele que primapela preservação da vida a qualquer custo, independente do fator ausente de perspectiva de melhoras, versus, oimpedimentotaxativo de determinar aos indivíduos tratamentos que impõem fortes sofrimentos e desconfortos; a decisão, entretanto, deve ser escolhidacom base empráticas seguras, atentando à liberdade, consciência e elucidação das conjunturas enfrentadas, sempre em consonância com as limitações estabelecidas pela Constituição Federal e demais normas do ordenamento jurídico brasileiro. No Brasil não há quaisquer distinções significativas entre as figuras aqui discutidas – onde há a obstinação terapêutica, de um lado, e as condutas ativas e intencionais de abreviação da vida, de outro -de modo que em um cenário jurídico onde a ortotanásia, em princípio, distinga-se da eutanásia e do suicídio assistido, por exemplo, trará um esclarecimento e uma mudança gradativa envolvendo conceituação moral de menorpotencial ofensivo à sociedade como um todo. Portanto, o presente escrito buscou uma reflexão no que tange à morte em submissão ao princípio da dignidade da pessoa humana, de modo a concluir que o indivíduo, através de seu consentimento, deve poder exercer sua autonomia e liberdade, respeitando os limites cabíveis, no contexto dos procedimentos de morte, com intervenção passiva em um primeiro momento – ortotanásia – prevalecendo os fundamentos constitucionais que equilibram as escolhas individuais às metas da coletividade, através de um reconhecimento filosófico específico, qual seja: aconsideração do indivíduo como um ser moral, capaz de escolher e consequentementeapropriar-se das responsabilidades provenientes de tais escolhas. Reconhecemos que o ordenamento jurídico ao respeitar o direito de escolha do indivíduo, está mediatamente respeitando valores democráticos, e, igualmente, a dignidade da pessoa humana. Referências Biliográficas ALMEIDA, Alexander Moreira de. Suicídio Assistido, Eutanásia e Cuidados Paliativos. 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Página 88 de 270 REPERCUSSÕES DO DANO SOCIAL NA JURISPRUDENCIA BRASILEIRA1 Marcos Virginio Souto2 Israel Lima Braga Rubis3 Wendel Alves Sales Macêdo4 Agostinho Almeida de Sousa5 Resumo: o presente trabalho objetiva o exame do dano social, a partir da jurisprudência firmada pelo judiciário brasileiro e do diálogo Cível-Constitucional de normas e valores que norteiam o tema. Para a consecução deste objetivo, foi empregado como método de abordagem o hipotético-dedutivo e como métodos de procedimento o exegético-jurídico e o hermenêutico, sendo a pesquisa subsidiada pelo exame de documentação indireta, nomeadamente por meio da pesquisa bibliográfica em livros, artigos científicos e jurisprudência. Esta espécie de dano tem fundamentado uma série de decisões judiciais, responsabilizando civilmente, entes ou pessoas que praticam condutas socialmente reprováveis. A análise da responsabilidade civil por danos sociais ganha força a partir do estudo dos direitos fundamentais, especialmente os de terceira dimensão, que tratam especialmente dos direitos difusos e coletivos, os quais se fundamentam na solidariedade, objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, que impõe aos indivíduos um dever moral de assistência recíproca no desempenho de suas atividades, impedindo a ocorrência de uma lesão ao patrimônio moral ou material da coletividade, ou ressarcindo-a caso o dano se concretize. Nesse último caso, o poder judiciário, não obstante tratar-se o dano social de uma espécie relativamente nova, já acena positivamente para a existência de responsabilidade civil decorrente dos danos socialmente reprováveis por violação à tranquilidade social. 1 Trabalho submetido ao GT 1: Humanização do Direito Civil Constitucional: perspectivas e desafios Graduado em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Pós-graduando (latu sensu) em Direito Administrativo pelas Faculdades Integradas de Patos – FIP. Conciliador no Centro de Conciliação e Mediação do TJPB/NPJ-UFCG, Campus de Sousa-PB. Email: [email protected] 3 Graduado em Direito na UFCG, Pos-graduando em Direito Constitucional e pesquisador. Email: [email protected] 4 Advogado e Pesquisador. Integrante do IDCC da UFPB. Integrante do AFROEDUCAÇÃO da UFPB. Monitor da Pós-graduação Damásio de Jesus. Formado em Direito pela UFCG. Especialista em Direito Civil, em Direito Processual Civil, Direito Constitucional, Direito Administrativo e Tributário pela FAISA. Especialização em andamento em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Damásio de Jesus. Email: [email protected] 5 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Conciliador no Centro de Conciliação e Mediação do TJPB/NPJ-UFCG, Campus de Sousa-PB. Email: [email protected] 2 Página 89 de 270 Palavras-Chave: Danos Sociais; diálogo Cível-Constitucional; Direitos Fundamentais; Jurisprudência. Abstract: the present study aims at examining the social damage from the jurisprudence set by the Brazilian judiciary and the Civil and Constitutional dialog norms and values that guide the subject. To achieve this goal, was employed as the hypothetical-deductive method of approach and the procedure of methods exegetical and legal and hermeneutic, and the research subsidized by examining indirect documentation, including through literature in books, scientific articles and jurisprudence. This kind of damage has founded a number of judgments, responsible civilly, entities or people who do socially reprehensible conduct. The analysis of liability for social harm gains strength from the study of fundamental rights, especially the third dimension, dealing especially of diffuse and collective rights, which are based on solidarity, a fundamental objective of the Federative Republic of Brazil, which imposes individuals a moral duty to assist each other in carrying out their activities, preventing the occurrence of an injury to the moral worth or collective material, or compensating it if the damage materializes. In the latter case, the judiciary, despite treating the social damage a relatively new species, beckons positively to the existence of liability for socially reprehensible damages for violation of social tranquility. Keywords: Social damage; Civil-Constitutional dialogue; Fundamental rights; Jurisprudence. Introdução O dano social emerge como uma nova espécie de dano. A relevância do tema gira em torno da possibilidade de responsabilização civil de quem o comete. O ressarcimento ou a reparação pelos prejuízos causados a bens pertencentes à coletividade tem sido objeto de discussão no judiciário brasileiro, especialmente pelas inferências das normas e valores constitucionais no Direito Civil. Página 90 de 270 A citada espécie de dano visa inibir, através de sanção civil, a ação de indivíduos ou entes, que, dolosa ou culposamente, pratiquem atos que causem instabilidade social, comprometendo a segurança coletiva ou a qualidade de vida da população. Mas também, de forma não menos importante, o reconhecimento do dano social deixa claro a existência de uma espécie de prevenção geral civil, conferida a partir da proibição da proteção deficiente do Estado, tudo para garantir o exercício e o respeito aos Direitos Fundamentais. O objetivo principal é demonstrar o tratamento conferido pela jurisprudência brasileira ao dano social, entretanto, subsidiariamente, se pretende expor, ainda que sinteticamente, a sistemática da responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro, bem como estabelecer a correlação entre direitos fundamentais e danos sociais. Para a consecução dos objetivos deste trabalho empregou-se como método de abordagem o hipotético-dedutivo, que permite inferir conclusões a partir hipóteses previamente formuladas. Como métodos de procedimento foram utilizados o exegéticojurídico, através o qual se analisará a legislação e a jurisprudência pátria, sobretudo para determinar a legitimidade da responsabilidade civil por danos sociais no ordenamento jurídico brasileiro, e, ainda, o hermenêutico, em que o interprete empresta suas impressões, a fim de extrair do complexo de normas constitucionais ou infraconstitucionais aquela interpretação que se mostre mais coerente. A investigação foi subsidiada pelo exame de documentação indireta, nomeadamente por meio da pesquisa bibliográfica em livros, artigos científicos e jurisprudência. A problemática posta cinge-se ao exame do dano social, a partir dos julgados firmados pelo judiciário brasileiro, especialmente dos Tribunais Superiores, os quais são os responsáveis por harmonizar as diversas teses que surgem em torno dos mais variados temas levados a juízo. Este trabalho justifica-se pela sua contemporaneidade e pela importância que possui, não só, para a comunidade acadêmica e profissional, especialmente da área jurídica, mas também para os membros da coletividade, que, não raras vezes, tem seu patrimônio coletivo lesionado, porém lhes falta o conhecimento necessário para buscar a responsabilidade civil dos autores do dano. A compreensão do dano social é de grande estima, nos dias atuais, uma vez que a responsabilidade civil pela sua ocorrência visa o reequilíbrio do patrimônio moral e material da coletividade, tendo conta o alargamento Página 91 de 270 protetivo trazido pela Constituição Federal de 1988, sobretudo em relação aos direitos difusos e coletivos. Assim, impõe-se a premissa de que este estudo, apesar de não exauriente, certamente contribuirá para a compreensão do novo momento, pelo qual passa o tema da responsabilidade civil, que é aquele em que danos socialmente reprováveis podem ensejar indenização reparadora, desestimulando a atuação predatória e o enriquecimento ilícito de pessoas e entes, amparados por valores constitucionais que servem a toda sociedade. O estudo estabelecerá, inicialmente, uma correlação entre os direitos fundamentais e o dano social. Por conseguinte, fará uma síntese da responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro. Enfim, tratará especificamente do dano social à luz da jurisprudência brasileira, observando, obviamente, posições doutrinárias sobre tema, seguindo-se as considerações finais. O dano social sob o enfoque dos direitos fundamentais A responsabilidade civil passa pelo cerne da prestação eficiente do Estado na proteção dos Direitos Fundamentais. Cumpre ao Estado garantir aos cidadãos, individual ou coletivamente, meios de recomposição do seu patrimônio, em decorrência dos danos provocados sofridos. Ao se definir Direitos Fundamentais, tem-se como sendo aqueles direitos inerentes à pessoa humana positivados numa determinada ordem jurídica. No Brasil esses direitos estão prioritariamente previstos na Constituição Federal ou dela decorrem. Para o constitucionalista Uadi Lammêgo Bulos, os Direitos Fundamentais fundamentam-se da dignidade da pessoa humana, sendo a Constituição a sua fonte de validade6. A evolução histórico-social da humanidade trouxe consigo uma série de valores cada vez mais sensíveis que mereceram e merecem a abstenção ou intervenção do Estado para a sua concretização. Para tanto, os Direitos Fundamentais foram didaticamente estratificados em gerações, para melhor possibilitar o seu estudo e possibilitar a compreensão do momento histórico em que cada uma delas resplandeceu com mais força na sociedade. 6 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 525. Página 92 de 270 Três gerações são majoritariamente reconhecidas pela doutrina: na primeira dimensão estão dos direitos civis e políticos; na segunda, os direitos econômicos, sociais e culturais; e na terceira, os direitos difusos e coletivos. No entanto, existem aqueles que reconhecem uma quarta, quinta e sexta geração, a exemplo, do constitucionalista Uadi Lammêgo Bulos7. Os Direitos Fundamentais de primeira geração, que tem como princípio norteador a liberdade, buscam limitar a atuação do Estado sobre o indivíduo, visando impedir que este seja indevidamente lesado pela intervenção abusiva daquele. Consagram-se nesta dimensão as liberdades negativas, as quais indicam que os direitos fundamentais estarão garantidos quando o Estado não agir abusivamente sobre a vida privada do indivíduo. Já os Direitos Fundamentais de segunda geração, que se fundamentam na igualdade, implicam um agir positivo. A garantia desses direitos constitui para o Estado uma imposição de fornecer uma prestação positiva aos indivíduos. Na terceira geração situam-se os Direitos Fundamentais coletivos ou difusos, os quais ultrapassam esfera individual das pessoas e as alcançam de formal global. Pode-se citar como exemplos desses direitos o direito à paz, ao desenvolvimento, à qualidade do meio ambiente, à conservação do patrimônio histórico e cultural8. No julgamento do MS 22.164-0 SP9, o Supremo Tribunal Federal sintetizou o entendimento da Corte sobre o tema: Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consegram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade. 7 BULOS, Uadi Lammêgo. op.cit. p. 529-530. MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 138. 9 MS 22164, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 30/10/1995, DJ 17-11-1995. 8 Página 93 de 270 A lição do Professor Gilmar Ferreira Mendes10 é no sentido essas gerações não sucedem umas as outras, mas, na verdade, se complementam, na medida em que novas demandas reclamam concepções jurídicas e sociais compatíveis como momento vivido. Para ele: Essa distinção entre gerações dos direitos fundamentais é estabelecida apenas com o propósito de situar os diferentes momentos em que esses grupos de direitos surgem como reivindicações acolhidas pela ordem jurídica. Deve-se ter presente, entretanto, que falar em sucessão de gerações não significa dizer que os direitos previstos num momento tenham sido suplantados por aqueles surgidos em instante seguinte. Os direitos de cada geração persistem válidos juntamente com os direitos da nova geração, ainda que o significado de cada um sofra o influxo das concepções jurídicas e sócias prevalentes nos novos momentos. Assim, um antigo direito pode ter o seu sentido adaptado às novidades constitucionais. Entende-se, pois, que tantos direitos a liberdade não guardem, hoje, o mesmo conteúdo que apresentavam antes de surgirem os direitos de segunda geração, com as suas reivindicações de justiça social, e antes que fossem acolhidos os direitos de terceira geração, como o da proteção ao meio ambiente. Basta que se pense em como evoluiu a compreensão do direito à propriedade, desde a Revolução Francesa até a incorporação às preocupações constitucionais de temas sociais e de proteção do meio ambiente. Os novos direitos não podem ser desprezados quando se trata de definir aqueles direitos tradicionais. Vê-se que os Direitos Fundamentais de terceira geração fundamentam-se sobre o princípio da solidariedade. Este princípio foi alçado pelo Constituinte brasileiro de 1988 ao patamar de objetivo fundamental. Segundo o art. 3°, I, da Constituição Federal de 1988, construir uma sociedade solidária constitui uns dos objetivos da República Federal do Brasil. É o dever de mutualidade que deve existir entre os membros da sociedade, ora atuando positivamente, ora negativamente. O agir dos indivíduos deve antever possibilidade de danos aos demais membros da sociedade e, assim, pautar sua conduta de modo a não provocá-los. Deste modo, há um imperativo ético e moral que impõe ao indivíduo não agir para causar danos à sociedade. De outro modo, o agir do indivíduo poderá ser positivo no sentido de melhorar a situação daqueles que sofreram um dano. Sendo assim, as atividades desempenhadas por uns devem corresponder às expectativas dos 10 MENDES, Gilmar. op. cit., loc. cit. Página 94 de 270 outros, seja individual ou coletivamente, de modo que não haja perturbação na harmonia da convivência humana em sociedade. Segundo o consumerista Rizzatto Nunes, a solidariedade se impõe a toda sociedade, como um dever ético, a partir do qual os seus membros devem assistência uns aos outros, já que a somatória individual resulta num todo, coletivamente considerado. E, como é de forma organizada do grupamento social que se trata e esta é composta de pessoas, cuja dignidade se garante e que têm para dirigi-las, orientá-las, norteá-las em suas condutas normas de ordem jurídica e moral, é de crescer àqueles elementos sistêmicos – tidos como de fato – outro, ligado ao sistema social concretamente em funcionamento, elevado a uma categoria moral. Trata-se de um dever ético que se impõe a todos os membros da sociedade, de assistência entre seus membros, na medida em que compõem um único todo social.11 O princípio da solidariedade cria um manto valorativo e protetivo que se sobrepõe aos interesses individuais. A segurança coletiva ou a qualidade de vida da população são valores imprescindíveis para a convivência harmônica em sociedade. É inconcebível que indivíduos que os ignorem fiquem civilmente ilesos, especialmente quando os danos causados à sociedade decorrem de atividades lucrativas. Da necessidade de proteção e garantia dos Direitos Fundamentais, especialmente os difusos e coletivos, decorre a legitimação para a imposição de sanção civil aos que violarem tais valores. Epítome Da Responsabilidade Civil No Ordenamento Jurídico Brasileiro A origem da palavra responsabilidade remete à palavra latina spondeo, que revelava a vinculação solene do devedor nos contratos verbais do direito romano. À luz da doutrina atual, prevalece a noção de responsabilidade que privilegia a realidade social. Assim, a responsabilidade estará intrincada em toda atividade desenvolvida em sociedade, individual ou coletivamente, que acarrete um prejuízo. O seu objetivo principal é retorno ao statusquoante, ou seja, pretende-se obter do autor do dano o restabelecimento da harmonia e a recomposição do equilíbrio moral e material. 11 NUNES, Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.p. 90. Página 95 de 270 Em tempos longínquos não havia clara distinção entre responsabilidade civil e criminal. A preocupação imediata desaguava na imposição de uma sanção estatal em virtude da transgressão da norma. Com o passar do tempo houve a cisão entre responsabilidade penal e civil12. A partir de então a sanção deixou de incidir sobre o corpo do indivíduo e passou a representar uma constrição sobre o seu patrimônio. A constitucionalização do Direito Civil imprimiu ao instituto da responsabilidade civil funções que vão além da simples reparação do dano. Busca-se a preservação de valores, a exemplo da tranqüilidade social, que transcendem a esfera individual e patrimonial da recomposição do patrimônio e moral lesada. O art. 186 do Código Civil de 2002 prevê que todo aquele que causar dano a outrem ficará obrigado a repará-lo, in verbis: ―aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito‖. A partir desse dispositivo é que são extraídos os pressupostos constitutivos da responsabilidade civil. Segundo a lição de Carlos Roberto Gonçalves, são em número de quatro os elementos essenciais da responsabilidade civil: ação ou omissão, culpa ou dolo do agente, relação de causalidade e o dano experimentado pela vítima13. A conduta humana pode se dar por ação ou omissão. No primeiro caso, o indivíduo age positivamente, provocando um dano no patrimônio alheio. Já a omissão configura-se quando o indivíduo deixa de agir e, com isso, causa a lesão. Na prática, a sua comprovação não é tão fácil, uma vez que precisa ficar provado o dever de agir, bem como que o agir, no caso concreto, teria evitado o dano. O dolo consiste na vontade deliberada de praticar um ato danoso ao patrimônio material e/ou moral de outrem. Já a culpa é a inobservância das cautelas necessária durante a execução de determinado ato ou atividade. Vale ressaltar que no Direito Civil a culpabilidade do agente assume uma conotação latu sensu, abrangendo a culpa strictu sensu 12 O marco da divisão entre responsabilidade civil e penal ocorreu ainda no Direito Romano com o advento da chamada Lex PoeteliaPapiria em 326 a.C. 13 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: responsabilidade. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 52. Página 96 de 270 e o dolo, porém os reflexos, no que diz respeito à indenização, são iguais, com exceção da culpa, que poderá ser valorada14. O nexo de causalidade diz respeito à relação de causa e efeito existente entre a conduta do agente e o resultado danoso. Para que o agente seja responsabilizado civilmente é necessário que ele tenha concorrido para a ocorrência do dano. Caso contrário desaparecerá a obrigação de indenizar. Finalmente, passamos a análise de um dos elementos da responsabilidade civil que possui extrema importância dentro do tema proposto, que é o dano, sem o qual a ninguém poderá ser atribuída a obrigação de indenizar. O dano poderá consistir numa lesão ao patrimônio ou a um direito da personalidade do indivíduo. No primeiro caso, temos o denominado dano patrimonial, que consiste numa lesão concreta, implicando na perda ou deterioração de bens materiais, suscetíveis de avaliação pecuniária. De outro modo, existem lesões que não representam uma perda patrimonial, mas uma afronta aos direitos da personalidade de uma pessoa natural ou jurídica: são os danos morais, espécie de dano imaterial, que encontra respaldo direito na Constituição Federal de 198815. A partir da CF/88 houve uma tendência de ampliação das espécies de danos reparáveis. A Súmula n° 37 do Superior Tribunal de Justiça consolidou, segundo o qual é possível que o mesmo fato enseje indenização por dano moral e material16. O Enunciado n° 456 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal avançou bastante ao reconhecer, entre outras espécies, a existência do dano social: ―A expressão ‗dano‘ no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas‖. 14 Segundo preceitua o art. 944 do Código Civil de 2002 a indenização será aferida de acordo com extensão do dano, mas ―se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização‖. Ainda de acordo com o art. 945 no novel diploma legal, ―se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano‖. 15 O inciso V do art. 5° da Constituição Federal de 1998 prevê que ―é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem‖. O inciso X do mesmo artigo ainda prevê que ―são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação‖. 16 Súmula n° 37 do STJ: ―São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato‖. Página 97 de 270 Destarte, o reconhecimento da responsabilidade civil pelo dano social privilegia um novo momento da realidade social, ultrapassando a barreira do patrimonialismo individual. Constitui-se em instrumento limitador das condutas danosas ao patrimônio da coletividade, visando se aproximar o máximo possível dos valores constitucionais atuais, especialmente dos direitos fundamentais. Repercussões Jurisprudenciais Do Dano Social As normas estampadas no Código Civil de 2002 perseguem valores que buscam privilegiar a dignidade da pessoa humana nas suas relações civis. A sociabilidade, a eticidade e a operabilidade são paradigmas que norteiam a aplicação desse diploma civil. A proteção das relações civis calcadas exclusivamente na satisfação de interesses individuais não traduz mais a realidade social vivida. Agora se deve olhar para a coletividade, tendo sempre em conta os seus interesses, ainda que se trate de relações eminentemente privadas. Invocamos a definição de sociabilidade trazida pelos civilistas, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, para os quais: A sociabilidade, ou função (fim) social, consiste exatamente na manutenção de uma relação de cooperação entre os partícipes de cada relação jurídica, bem como entre eles e a sociedade, com o propósito de que seja possível, ao seu término, a consecução do bem (fim) comum da relação jurídica17. O bem comum de uma relação jurídica pressupõe, não só o respeito aos interesses individuais, mas também um agir que considere os valores e interesses da sociedade. As atenções se voltam em relação a este último aspecto, uma vez que é incontroverso o reconhecimento da responsabilidade civil pelo dano individual. Paralelamente ao dano individual – violação do patrimônio ou de direito da personalidade –, surge o dano social, que consiste numa violação de bens ou direitos, sobre os quais incide diretamente o interesse da coletividade. São lesões que causam instabilidade social, demandando, portanto, a intervenção do Direito Cível-Constitucional para saná-la. 17 FARIAS, C.C.; ROSENVALD, N. Curso de Direito Civil. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2014. p. 50. Página 98 de 270 O conceito de dano social pode ser extraído da lição do civilista Antônio Junqueira de Azevedo18: Portanto, a nossa tese é bem clara: a responsabilidade civil deve impor indenização por danos individuais e por danos sociais. Os danos individuais são os patrimoniais, avaliáveis em dinheiro, – danos emergentes e lucros cessantes –, e os morais, - caracterizados por exclusão e arbitrados como compensação para a dor, para lesões de direito de personalidadee para danos patrimoniais de quantificação precisa impossível. Os danos sociais, por sua vez, são lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral – principalmente a respeito da segurança – quanto por diminuição na qualidade de vida. Os danos sociais são causa, pois, de indenização punitiva por dolo ou culpa grave, especialmente, repetimos, se atos que reduzem as condições coletivas de segurança, e de indenização dissuasória, se atos em geral da pessoa jurídica, que trazem uma diminuição do índice de qualidade de vida da população. Enquadram-se nessa espécie de dano aquelas condutas socialmente desabonadas que representam uma lesão ou ameaça de lesão à segurança das relações naturalmente desenvolvidas em sociedade. São relações sistêmicas e harmônicas que interligam os indivíduos em sociedade, fazendo com que a convivência coletiva das pessoas se torne possível. O paradigma da sociabilidade, o princípio da solidariedade, os Direitos Fundamentais e a dignidade da pessoa humana19 são fundamentos que chancelam a possibilidade da reparação civil pelo dano decorrente de condutas socialmente reprováveis que reduzem o nível da qualidade de vida da sociedade. Destarte, o dano social caracteriza-se como nova espécie de dano indenizável. Esse é o entendimento que vem sendo adotado nos Tribunais brasileiros, especialmente nas Cortes Superiores. Em consonância com a doutrina, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso repetitivo, firmou entendimento no nesse sentido: 18 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In: FILOMENO, José Geraldo Brito; WAGNER JR., Luiz Guilherme bda Costa; GONÇALVES, Renato Afonso (coord.). O Código Civil e sua interdisciplinariedade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 376. 19 A dignidade da pessoa humana foi erigida a fundamento da República Federativa do Brasil no inciso III do art. 1° da CF/88. Página 99 de 270 DIREITO PROCESSUAL CIVIL. IMPOSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO, EX OFFICIO, DE INDENIZAÇÃO POR DANOS SOCIAIS EM AÇÃO INDIVIDUAL. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. 8/2008 DO STJ). É nula, por configurar julgamento extra petita,a decisão que condena a parte ré, de ofício, em ação individual, ao pagamento de indenização a título de danos sociais em favor de terceiro estranho à lide.Inicialmente, cumpre registrar que o dano social vem sendo reconhecido pela doutrina como uma nova espécie de dano reparável, decorrente de comportamentos socialmente reprováveis, pois diminuem o nível social de tranquilidade, tendo como fundamento legal o art. 944 do CC. Desse modo, diante da ocorrência de ato ilícito, a doutrina moderna tem admitido a possibilidade de condenação ao pagamento de indenização por dano social, como categoria inerente ao instituto da responsabilidade civil, além dos danos materiais, morais e estéticos. Registre-se, ainda, que na V Jornada de Direito Civil do CJF foi aprovado o Enunciado 455, reconhecendo a existência do denominado dano social: "A expressão dano no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas". A par disso, importa esclarecer que a condenação à indenização por dano social reclama interpretação envolvendo os princípios da demanda, da inércia e, fundamentalmente, da adstrição/congruência, o qual exige a correlação entre o pedido e o provimento judicial a ser exarado pelo Poder Judiciário, sob pena da ocorrência de julgamento extra petita. Na hipótese em foco, em sede de ação individual, houve condenação da parte ré ao pagamento de indenização por danos sociais em favor de terceiro estranho à lide, sem que houvesse pedido nesse sentido ou sem que essa questão fosse levada a juízo por qualquer das partes. Nessa medida, a decisão condenatória extrapolou os limites objetivos e subjetivos da demanda, uma vez que conferiu provimento jurisdicional diverso daquele delineado na petição inicial, beneficiando terceiro alheio à relação jurídica processual posta em juízo. Impende ressaltar que, mesmo que houvesse pedido de condenação em danos sociais na demanda em exame, o pleito não poderia ter sido julgado procedente, pois esbarraria na ausência de legitimidade para postulá-lo. Isso porque, os danos sociais são admitidos somente em demandas coletivas e, portanto, somente os legitimados para propositura de ações coletivas têm legitimidade para reclamar acerca de supostos danos sociais decorrentes de ato ilícito, motivo por que não poderiam ser objeto de ação individual20.(Grifo nosso) Nesse mesmo julgado a Corte Superior decidiu que, não obstante fique caracterizado o dano social, não é possível a sua condenação em sede de ação individual, uma vez que tal espécie de dano somente pode ser demandada em ação coletiva. Assim, somente têm legitimidade para reclamar danos sociais os legitimados para ações coletivas. 20 STJ. 2ª Seção. Rcl 12.062-GO, Rel. Ministro Raul Araújo, julgado em 12/11/2014 (Info 552). Página 100 de 270 Há que se ressaltar que os danos sociais não se confundem com os danos materiais, morais e estéticos, nem tampouco é sinônimo de dano moral coletivo. Segundo Flávio Tartuce21, este último atinge vários direitos da personalidade, violando direitos individuais homogêneos ou coletivos em sentido estrito – vítimas determinadas ou determináveis –, e a indenização arbitrada é destinada para as próprias vítimas, enquanto que no dano social há um rebaixamento do nível de vida da coletividade, violando direitos de vítimas indeterminadas – toda a sociedade é vítima da conduta – e a indenização será destinada a um fundo de proteção ou instituição de caridade. Em recente julgado o Tribunal Superior do Trabalho reforçou a tese que reconhece e legitima o dano social ao condenar uma empresa que permitiu que trabalhadores laborassem em condições insalubres de trabalho: RECURSO DE REVISTA DO SINDICATO-RECLAMANTE. INDENIZAÇÃO POR DANO SOCIAL - DESRESPEITO ÀS NORMAS DE SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO. No caso, ficou comprovado nos autos que a empresa permitiu que os substituídos laborassem em condição insalubre de trabalho sem a devida proteção, descumprindo as normas do MTE e também o disposto nas cláusulas coletivas pactuadas com o sindicato a respeito da manutenção de condições de trabalho que preservem a saúde do trabalhador. Além de não cuidar do aspecto preventivo, a ré também sonegou aos substituídos o pagamento do adicional de insalubridade correspondente. A ofensa atinge mais que cada trabalhador em sua individualidade, porquanto o desrespeito a normas de segurança e saúde no trabalho engendra o perecimento do ambiente de trabalho experimentado por todos os empregados da reclamada, assim como porque ofende direitos sociais pactuados e preservados pela sociedade como um todo, que os elegeu fundamentais na afirmação do Documento Constitucional de 1988. O fenômeno abordado, cujos pressupostos restaram bem delineados no caso concreto (conduta ilícita, culpa, nexo causal e dano extrapatrimonial) consiste no que a doutrina empresarial tem reconhecido como "dano social", modalidade de dano injusto de natureza extrapatrimonial e transcendente a situações individuais que é amparado pela teoria da responsabilidade civil, em seu momento evolutivo mais avançado. O reconhecimento e a coibição desse tipo de dano se amparam em fundamento constitucional: decorrem da função social da propriedade (da qual se extrai a função social da empresa) insculpida no art. 5º, XXIII, da Constituição Federal de 1988. Entretanto, cumpre observar que a plasticidade da responsabilidade civil não pode transformá-la em panaceia. É importante considerar que a 21 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015. Página 101 de 270 identificação do dano social, com suas consequências jurídicas, pressupõe a adoção de critérios consistentes. Deve-se evitar a banalização do seu uso a fim de que o instituto não resulte esvaziado. A gravidade e a natureza extrapatrimonial do dano social exigem que se pense na responsabilidade civil não apenas sob a ótica tradicional (compensatória). O debate envolve a discussão sobre as distintas funções da responsabilidade civil e sobre o equilíbrio entre elas: (I) compensatória, (II) preventiva, (III) normativa , (IV) equitativa (evitar o locupletamento ilícito) e (V) punitiva, embora essa última perspectiva envolva muitas controvérsias. Em se tratando de dano de natureza extrapatrimonial, a problemática que se coloca refere-se à possibilidade de traduzir em um montante pecuniário algo que, por definição, não está sujeito tal mensuração. Os pressupostos teóricos da responsabilidade civil, nesses casos, devem ser invocados em favor da construção de um valor concreto, que seja proporcional ao dano. Nesse sentido, enquanto valores mínimos podem gerar o estímulo à prática ilícita, valores excessivos, além de incompatíveis com os pressupostos da indenização, podem comprometer a preservação da empresa. Como parâmetros de quantificação, devem ser considerados: a) Reprovabilidade da conduta: se a responsabilidade objetiva é discutível, não há dúvidas de que casos de reincidência, dolo (violação calculada) e culpa grave devem ser tratados com rigor; b) capacidade econômica e patrimonial da empresa; c) montante da vantagem ilicitamente obtida. A perspectiva de uma política jurisdicional de enfrentamento de tais questões, que comumente é invocado sob a terminologia imprópria de combate ao "dumping social", muitas vezes reverberam em iniciativas não isonômicas podem gerar distorções. As múltiplas funções da responsabilidade civil precisam ser harmonizadas com o princípio da manutenção da empresa e com a necessidade de se observar os múltiplos interesses que sobre ela se projeta. Daí porque sobreleva-se a importância do raciocínio consequencialista, no sentido de compreender os impactos das condenações sobre a empresa e também sobre os consumidores, e, sobretudo, sobre o erário público, quando se tratar de empresa integrante da Administração Pública indireta. O princípio da preservação da empresa não é incompatível com o reconhecimento e a reparação de danos sociais, mas deve ser importante parâmetro para a identificação, o tratamento e a quantificação de tais danos. Indenização por dano social fixada no valor de R$ 30.000,00, destinados ao treinamento de mão de obra no local base, em programas de saúde ocupacional, a serem definidos previamente e em comum acordo entre o sindicato autor e o Ministério Público do Trabalho, comprovado nos autos o efetivo gasto. Recurso de revista conhecido e provido.22 (grifo nosso) O referido julgado destaca mais um fundamento para o reconhecimento do dano social: a função social da propriedade, insculpida no art. 5°, XXII, da Constituição Federal 22 TST - RR: 18509220105030111, Relator: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Data de Julgamento: 23/09/2015, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 23/10/2015. Página 102 de 270 de 1988. Para Uadi Lammêgo Bulos ―Seu objetivo é otimizar o uso da propriedade, de sorte que não possa ser utilizada em detrimento do progresso e da satisfação da comunidade‖23. Vê-se também a preocupação dos julgadores com os limites da responsabilidade civil pelo dano social, a fim de que tal instituto não seja esvaziado em suas finalidades. Portanto, é necessária a adoção de critérios consistentes, com repercussão além da mera compensação. Assim, uma condenação por dano social deve envolver a análise das funções compensatória, preventiva, normativa, equitativa e punitiva. Outro julgado pertinente ao tema proposto discutiu a responsabilidade civil por dano social em face de fraude que vitimou vários consumidores de um sistema de loterias, no Rio Grande do Sul: TOTO BOLA. SISTEMA DE LOTERIAS DE CHANCES MÚLTIPLAS. FRAUDE QUE RETIRAVA AO CONSUMIDOR A CHANCE DE VENCER. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. DANOS MATERIAIS LIMITADOS AO VALOR DAS CARTELAS COMPROVADAMENTE ADQUIRIDAS. DANOS MORAIS PUROS NÃO CARACTERIZADOS.POSSIBILIDADE, PORÉM, DE EXCEPCIONAL APLICAÇÃO DA FUNÇÃO PUNITIVA DA RESPONSABILIDADE CIVIL. NA PRESENÇA DE DANOS MAIS PROPRIAMENTE SOCIAIS DO QUE INDIVIDUAIS, RECOMENDASE O RECOLHIMENTO DOS VALORES DA CONDENAÇÃO AO FUNDO DE DEFESA DE INTERESSES DIFUSOS. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Não há que se falar em perda de uma chance, diante da remota possibilidade de ganho em um sistema de loterias. Danos materiais consistentes apenas no valor das cartelas comprovadamente adquiridas, sem reais chances de êxito. Ausência de danos morais puros, que se caracterizam pela presença da dor física ou sofrimento moral, situações de angústia, forte estresse, grave desconforto, exposição à situação de vexame, vulnerabilidade ou outra ofensa a direitos da personalidade. Presença de fraude, porém, que não pode passar em branco. Além de possíveis respostas na esfera do direito penal e administrativo, o direito civil também pode contribuir para orientar os atores sociais no sentido de evitar determinadas condutas, mediante a punição econômica de quem age em desacordo com padrões mínimos exigidos pela ética das relações sociais e econômicas. Trata-se da função punitiva e dissuasória que a responsabilidade civil pode, excepcionalmente, assumir, ao lado de sua clássica função reparatória/compensatória. ―O Direito deve ser mais esperto do que o torto‖, frustrando as indevidas expectativas de lucro ilícito, à custa dos consumidores de boa fé. Considerando, porém, que os danos verificados são mais sociais do que propriamente individuais, não é razoável que haja uma apropriação particular de tais valores, evitando-se a disfunção alhures 23 BULOS, Uadi Lammêgo. op.cit. p. 616. Página 103 de 270 denominada de overcompensantion. Nesse caso, cabível a destinação do numerário para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos, criado pela Lei 7.347/85, e aplicável também aos danos coletivos de consumo, nos termos do art. 100, parágrafo único, do CDC. Tratando-se de dano social ocorrido no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, a condenação deverá reverter para o fundo gaúcho de defesa do consumidor. Recurso parcialmente provido24. Nesse caso, o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ressaltou a importância do Direito Civil Constitucional na regulação da vida em sociedade. Segundo o julgado, algumas condutas podem ser desencorajadas a partir da aplicação de sanções econômicas para aquelas pessoas ou instituições que se desviam dos padrões mínimos exigidos pela ética das relações sociais e econômicas. Segundo depreende-se do julgado, o dano social revela, excepcionalmente, a face punitiva e dissuasória que a responsabilidade civil em detrimento de sua clássica função reparatória/compensatória. É firme a posição dos Tribunais no sentido de que os danos que lesam a sociedade, a exemplo, do desrespeito às normas de saúde e segurança no trabalho e a fraude contra os consumidores devem ser desestimulados. Assim, a responsabilidade civil é um dos institutos de que dispõe os julgadores para evitar que condutas lesivas a coletividade sejam reiteradamente praticas por indivíduos na busca de seus interesses privados em detrimento da segurança da vida em sociedade. Considerações Finais O dano social caracteriza-se pela diminuição do nível social de tranqüilidade. O mencionado dano é um comprometimento da segurança coletiva e da vida em sociedade, em razão de condutas socialmente reprováveis. A reparação do dano social tem função eminentemente punitiva e dissuasória, e sua aplicação se legitima em face de valores constitucionais supremos que devem ser preservados e garantidos, a exemplo da dignidade da pessoa humana. Essa reparação 24 Recurso Cível Nº 71001281054, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Ricardo Torres Hermann, Julgado em 12/07/2007. Página 104 de 270 objetiva inibir, através de uma sanção civil, a ação de indivíduos ou entes, que, dolosa ou culposamente, pratiquem atos que causem instabilidade social, comprometendo a segurança coletiva ou a qualidade de vida da população. É notável o diálogo entre os institutos do Direito Civil e Direito Constitucional. Deste advém vários fundamentos que legitimam a responsabilidade civil pelo dano decorrente de condutas socialmente reprováveis, a exemplo, do paradigma da sociabilidade, o princípio da solidariedade, os Direitos Fundamentais, a dignidade da pessoa humana e a função social da propriedade. A limitação das condutas danosas ao patrimônio da coletividade visa se aproximar o máximo possível dos valores constitucionais atuais, especialmente dos Direitos Fundamentais. A jurisprudência dos Tribunais brasileiros vem reconhecendo o dano social como espécie de dano indenizável e chancelando a responsabilização civil pelos danos socialmente reprováveis por violação à tranqüilidade social. Ainda que fique caracterizado o dano social, não é possível a sua condenação em sede de ação individual, uma vez que tal espécie de dano somente pode ser demandada em ação coletiva. Assim, somente têm legitimidade para reclamar danos sociais os legitimados para ações coletivas, como por exemplo, o Ministério Público, associações e entidades de classe. No dano social, como toda a sociedade é vítima da conduta, os valores decorrentes das indenizações serão destinados a fundos de proteção ou instituições de caridade, já que os direitos violados pertencem à vítimas indeterminadas. Algumas condutas já foram reconhecidas como lesivas ao nível de tranqüilidade da vida em sociedade, como é o caso, daquelas que desrespeitam as normas de saúde e segurança no trabalho ou que caracterizam fraude ou lesão contra os consumidores, razão pela qual legitimaram condenações por danos sociais. Destarte, a responsabilidade civil por danos sociais é um dos institutos de que dispõe os julgadores para evitar que condutas lesivas à coletividade sejam reiteradamente praticadas por indivíduos na busca de seus interesses privados em detrimento da segurança da vida em sociedade. Referências Página 105 de 270 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In: FILOMENO, José Geraldo Brito; WAGNER JR., Luiz Guilherme bda Costa; GONÇALVES, Renato Afonso (coord.). O Código Civil e sua interdisciplinariedade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. BRASIL. Constituição (1998). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2016. ______. Leinº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Vade Mecum Saraiva. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. FARIAS, C.C.; ROSENVALD, N. Curso de Direito Civil. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2014. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: responsabilidade. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. NUNES, Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015. Página 106 de 270 PROJETO “NOME LEGAL” DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA PARAÍBA: SUA ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL NO DIREITO DAS FAMÍLIAS E A PRIORIZAÇÃO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA Guilherme Pinto do Nascimento1 Resumo: O Projeto "Nome Legal" do Ministério Público da Paraíba (MP-PB) surgiu para atender à demanda de crianças e adolescentes que não possuíam a paternidade reconhecida. A situação encontrava-se caótica, pois apenas 25% das crianças (uma a cada quatro) em idade escolar na Paraíba não possuíam o nome paterno em seus registros de nascimento quando essa valorosa iniciativa foi criada, em abril de 20112 e que aproximadamente cinco milhões e meio de crianças brasileiras não possuíam o nome do pai no registro civil, de acordo com estimativa do Conselho Nacional de Justiça, no Censo Escolar de 20113.O MPPB, através de sua louvável e destacávelatuação extrajudicialno Direito das Famílias, proporcionou a resolução dessas questões de maneiramais ágil e eficiente, evitando assim os desgastes que poderiam ser ocasionados por uma demanda judicial vagarosa. Cumpre-se destacar, por fim, a sobreposição da paternidade socioafetiva quando contraposta com a paternidade exclusivamente biológica ou genética. Ao final, após a análise das questões expostas e dos resultados obtidos, chegou-se à conclusão que Projeto "Nome Legal" do MP-PB obteve grande sucesso durante o seu período de vigência, prova disso que se tornou um núcleo permanente em 2015,visando dar continuidade aos procedimentos já instaurados e institucionalizando a prática nas Promotorias de Justiça do Estado da Paraíba. Palavras-chave: Projeto "Nome Legal"; Ministério Público da Paraíba, socioafetividade; Direitos das Famílias Abstract: The "Nome Legal" Project of Public Ministry of Paraíba (MP-PB) came to meet the demands of children and adolescents that didn't have their paternity recognised. The situation was found to be chaotic, as only 25% of the children (one in four) school aged in 1 Graduando do 10º período em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Email: [email protected] 2 MINISTÉRIO PÚBLICO DA PARAÍBA, Cartilha Nome Legal. 2012. p. 2. 3 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, Pai Presente e Certidões. 2ª edição. 2015. p.10. Página 107 de 270 Paraíba did not have the father's name on their birth records when this worthy initiative was created in April of 2011 and that approximately five and a half million brazilian children did not have the name of the father in Civil Registry, according to estimate of the Nacional Council of Justice in the school census of 2011. The Public Ministry of Paraíba, through its laudable and highlighted extrajudicial activities on Families Law, provided the resolution of these issues in a more agile and efficient way, thus avoiding the damage that could be caused by a lingering lawsuit. At the end, one must emphasise that the socioaffective paternity overlaps with the exclusively biological or genetic paternity. On a final note, after the analysis of the issues and the obtained results, it was concluded that the "Nome Legal" Project of the Public Ministry of Paraíba obtained great success during its period of validity, and the proof is that it became a permanent core in 2015, aiming to continue the already established procedures and institutionalizing the practice in the Courts of Justice in the state of Paraíba. Notas introdutórias O presente estudo possui como base a análise do Projeto "Nome Legal", de iniciativa do Ministério Público da Paraíba que, a grosso modo, buscava encontrar o pai das crianças e adolescentes que não o tinham na certidão de nascimento: objetivos iniciais, como funcionou, a adesão dos promotores no Estado, os resultados, a repercussão junto à sociedade e o desfecho. Entretanto, antes da avaliação supracitada, far-se-á imprescindível o estudo da atuação extrajudicial do MP-PB no Direito das Famílias, a partir de suas competências e incumbências presentes nos mais diversos dispositivos legais, principalmente na Constituição Federal de 1988. Outro ponto de grande relevância, que necessita de uma abordagem especial e minuciosa, é a questão da paternidade socioafetiva, visto que essa se encontra em erupção e com protagonismo atualmente, tanto na sociedade civil como nos debates jurídicos, sobretudo quando se fala em Direito Civil e Direito das Famílias, suas consequências no cotidiano e os efeitos jurídicos gerados pelo reconhecimento espontâneo de paternidade; além da questão de que o "Nome Legal" está intrinsecamente ligado a essa tendência da priorização do afeto sobre laços estritamente sanguíneos. Página 108 de 270 Desse modo, compreendendo a atuação extrajudicial do Ministério Público e paternidade socioafetiva, a análise crítica e a compreensão do Projeto "Nome Legal" se tornam bem mais natural e de fácil entendimento. Paternidade socioafetiva: breve abordagem histórica até os dias de hoje No Brasil, desde a Colônia, a família patriarcal e exclusivamente matrimonial era o modelo dentro do ordenamento jurídico. A questão biológica era imprescindível à família, com a nítida e discriminatória distinção entre filhos legítimos e não legítimos. Ao redor do mundo não era diferente: Por muito tempo reinou e em sua plenitude o princípio da filiação em favor do matrimônio, considerando superiores os filhos conjugais, afirmando-se na França, com Luis IX, o princípio romano partusventremsequitur (...). Em 1804 o Código Civl francês de Napoleão (...) sustenta não ter o Estado interesse na verificação da filiação dos filhos naturais havidos fora do casamento, onde o critério dominante era o da filiação legítima do casamento.4 Maria Berenice Dias afinca que na Revolução Industrial esse perfil hierarquizado e patriarcal não resistiu, visto que as mulheres foram obrigadas a trabalhar devido à necessidade mão-de-obra, acabando com o caráter meramente reprodutivo, e iniciando-se, mesmo que vagarosamente, o prestígio da afetividade.5 Com o passar do tempo, as famílias foram ficando cada vez mais complexas em suas relações afetivas, de modo que nos dias atuais, a partir da Constituição de 1988, tem-se a verdade genética/biológica em segundo plano quando se fala em filiação, principalmente quando já existe uma convivência duradoura dentro do âmbito familiar.6 Curiosamente, a priorização da socioafetividade se instaura em tempos de aperfeiçoamento do exame de DNA, onde o resultado para determinar a filiação beira a certeza absoluta. 4 MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 3ª ed. rev.atual e ampl. São Paulo:Forense, 2009. p. 427. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9ª ed. rev.atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 28. 6 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus.Novas Modalidades de Família na Pós-Modernidade. São Paulo: Atlas. 2010. p. 40 5 Página 109 de 270 Acerca do tema tratado, o civilista Paulo Lôbo nos contempla com a seguinte afirmação: A família patriarcal, que a legislação civil brasileira tomou como modelo, desde a Colônia, o Império e durante boa parte do século XX, entrou em crise, culminando com sua derrocada, no plano jurídico, pelos valores introduzidos na Constituição de 1988. Como a crise é sempre perda dos fundamentos de um paradigma em virtude do advento de outro, a família atual está matrizada em paradigma que explica sua função atual: a afetividade. Assim, enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida.7 Visto isso, não resta a menor dúvida que a afetividade constitui um princípio jurídico aplicado no âmbito familiar8, princípio esse de importância imensurável. Maria Berenice Dias - mais uma vez - assevera que a afetividade, apesar de não estar presente explicitamente na Constituição Federal, representa um princípio constitucional da família, visto que o rol de direitos individuais e sociais, como forma de garantir a dignidade da pessoa humana, nada mais é do que o compromisso de assegurar o afeto9. Rolf Madaleno trata da questão quando afiança a derrocada no plano jurídico da família patriarcal a partir dos valores introduzidos pela Constituição Federal de 1988. O civilista trata do afeto como mola propulsora dos laços familiares e das relações entre pessoas, movido pelo amor e sentimentos, de modo a concretizar a dignidade da existência humana. Os vínculos consanguíneos não se sobrepõem aos liames afetivos, de modo que o este último prevalece sobre o primeiro, até porque o afeto advém da liberdade individual de cada indivíduo de afeiçoar-se ao outro, a partir da convivência diária e da criação de laços sentimentais que vão muito além de um simples exame.10 Cumpre-se salientar que o Código Civil em vigor não possui expressamente o termo "paternidade socioafetiva", de modo que o mesmo é oriundo da doutrina. O código supra prevê indiretamente a questão no artigo 1.593 quando colaciona que "o parentesco é 7 LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 17. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, volume 5: direito de família. 9ª ed. rev. atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p.86. 9 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9ª ed. rev.atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 72. 10 MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. São Paulo:Forense, 2009. p. 65 8 Página 110 de 270 natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem." Isso não significa, de forma alguma, a diminuição na importância ou relevância da mesma, muito pelo contrário, posto que a paternidade socioafetiva é uma realidade incontestável no ordenamento jurídico pátrio, tanto pela doutrina como pela jurisprudência. Visto o que seria afeto, Paulo Lôbo, mais uma vez, afirma de maneira bastante elucidativa: A paternidade e a filiação socioafetiva são, fundamentalmente, jurídicas, independentemente da origem biológica. Pode-se afirmar que toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não biológica; em outras palavras, a paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a paternidade não biológica. Tradicionalmente, a situação comum é a presunção legal de que a criança nascida biologicamente dos pais que vivem unidos em casamento adquire o status jurídico de filho. Paternidade biológica aí seria igual a paternidade socioafetiva. Mas há outras hipóteses de paternidade que não derivam do fato biológico, quando este é sobrepujado por valores que o direito considera predominantes. (...) A chamada verdade biológica nem sempre é adequada, pois a certeza absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, especialmente quando esta já tiver sido constituída na convivência duradoura com pais socioafetivos (posse de estado) ou quando derivar da adoção. Os desenvolvimentos científicos, que tendem a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filho, pois a imputação da paternidade biológica não substitui a convivência, a construção permanente dos laços afetivos.11 O Projeto "Nome Legal" do Ministério Público, antenado com tendência contemporânea, contemplou em sua ação a questão da paternidade socioafetiva em contraposição com a exclusivamente genética, com a prevalência do amor sobre determinismos biológicos, deixando de lado o caráter econômico, social e religioso, para se afirmar no companheirismo e afetividade (desbiologização da paternidade).12 11 LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 17. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9ª ed. rev.atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 363. 12 Página 111 de 270 Ora, e não poderia ser diferente, pois como afirmam Pablo Stolze Gagliano e Rodoldo Pamplona Filho, "a preocupação maior é com o próprio menor, na existência de um referencial paterno que possibilite uma adequada formação para a convivência social."13 Sobre o Ministério Público, sua atuação extrajudicial no Direito das Família, atentando-se à priorização da paternidade socioafetiva, foi de suma importância para as crianças e adolescentes beneficiados. A atuação extrajudicial do Ministério Público da Paraíba no Direito das Famílias O artigo 127 da Constituição Federal de 1988 dispõe que "o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindolhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis." Paulo Gustavo Gonet Branco, em sua obra conjunta com Gilmar Mendes, dois notórios juristas, afinca de forma bastante esclarecedora: O Ministério Público na Constituição de 1988 recebeu uma conformação inédita e poderes alargados. Ganhou o desenho de instituição voltada à defesa dos interesses mais elevados da convivência social e política, não apenas perante o Judiciário, mas também na ordem administrativa. Está definida como 'instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis' (art. 127). A instituição foi arquitetada para atuar desinteressadamente no arrimo dos valores mais encarecidos na ordem constitucional. 14 Além do art. 127 da Constituição Federal, o artigo 227 dispõe: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 13 GAGLIANO,PabloStolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Direito de Família - As famílias em perspectiva constitucional. 4 ed. rev. e atual São Paulo: Saraiva, 2014, p. 629. 14 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 898 Página 112 de 270 Cristiano Chaves de Farias, Promotor de Justiça do Estado da Bahia, destaca a importância da atuação ostensiva e incessante do MP no Direito das Famílias, visto que a este se incumbe a defesa das crianças e dos adolescentes, bem como a preservação, garantia e efetivação dos direitos assegurados à infância e juventude, visto que se tratam de interesses sociais e individuais totalmente indisponíveis, independente da situação a que se remeta. Ou seja, envolvendo criança ou adolescente, maquinalmente impõe-se a atuação ministerial, pois o Parquet é protetor natural e fundamental da infância e juventude: Tratando a questão de interesses de menores - portanto indisponíveis - fica incontroversa, e torna-se necessária, a atuação do Parquet, sendo-lhe possível utilizar de qualquer medida, seja perante a Justiça, seja fora dela. Descortinou-se, via de consequência, uma gama infindável de garantias voltadas às crianças e adolescentes, trazendo consigo, como consectário lógico, um incontável volume e possibilidade de atuação ministerial, seja de forma repressiva, seja no modo preventivo. Essa ampla possibilidade de atuação do Parquet, através das inumeráveis medidas colocadas à sua disposição, a serviço da nobre causa menorista, vieram a conferir-lhe excepcional poder de fogo na defesa da mesma, permitindo uma ação eficaz centrada na proteção integral da infância e juventude. 15 Visto isso, pode-se auferir que a linha de atuação do MP não possui restrições no Direito de Famílias, é a mais abrangente possível, atentando-se à questão de que o rol de direitos presentes no artigo 227 da Carta Magna é meramente exemplificativo (e não poderia ser diferente), de forma que a doutrina da proteção integral deve ser respeitada, ou seja, "assegurar às crianças e adolescentes a satisfação de suas necessidades básicas vitais, independendo de formalismos ou questões instrumentais, processuais."16 Tratando sobre a atuação extrajudicial do Ministério Público como forma de salvaguardar os direitos das crianças e dos adolescentes, o Ilustre Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná, Julio Ribeiro de Campos Neto, assevera briosamente: É possível aferir, pois, que existe uma enorme distância entre a realidade vivida por nossas crianças e adolescentes e a retórica empregada por nossos governantes, agentes políticos, e, sociedade em geral, pois, ao 15 FARIAS, Cristiano Chaves de. A atuação do MP na defesa e proteção da Infância e Juventude. Disponível em <http://www2.mp.pr.gov.br/cpca/telas/ca_igualdade_14_2_1_2.php> Acesso em 23 de fev de 2016. 16 Ibidem. Página 113 de 270 mesmo tempo em que reconhecem a importância da criança para o futuro da nação nada fazem de concreto para que isto venha a ocorrer. Buscando a superação desta distância, o Ministério Público tornou-se um paladino da causa infanto-adolescente, promovendo as mais variadas ações, judiciais e extrajudiciais, voltadas à realização dos direitos deste segmento da população. Diga-se aqui que as ações extrajudiciais são de suma importância para a implementação da doutrina da proteção integral, quer por meio da divulgação da legislação em vigor, quer por meio de articulações políticas junto aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, aos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e Conselhos Tutelares, quer promovendo a articulação e funcionamento da rede de atendimento colocada à disposição da população infanto-juvenil. Afinal, 'sendo uma instituição de tutela do interesse social, cabe ao Ministério Público aproximar-se da coletividade, de organismos e entidades de representação social, mantendo-se aberto e acessível à população, lutando para assegurar o respeito aos seus direitos, de modo dinâmico e, preponderantemente, como órgão promovente.' 17 Visto tudo isso, pode-se auferir que cabe ao MP resguardar os direitos da sociedade como um todo, incluindo-se as crianças e adolescentes (principlamente). Na maioria dos casos, a defesa desses direitos se dá pela via judicial, entretanto, de maneira louvável e destacável, o Ministério Público da Paraíba atuou de maneira extrajudicial com o Projeto "Nome Legal", em cumprimento à função de zelar com efetivo respeito ao que é assegurado pela Constituição Federal.18 Ter o nome do pai em sua certidão de nascimento é um direito da personalidade e à identidade de toda pessoa, influindo diretamente em uma série de questões que advém dessa filiação, como, por exemplo, a pensão alimentícia e o direito à herança. Todavia, o ponto mais importante do projeto era, quando possível, o reconhecimento de um pai que participasse ativamente da vida da criança ou do adolescente, que não estivesse ligado exclusivamente pela questão biológica, a já elucidada paternidade socioafetiva. Faz-se de supra importância destacar que a atuação extrajudicial do Ministério Público da Paraíba no Direito das Famílias, através do "Nome Legal", possibilitou, na 17 CAMPOS NETO, Julio Ribeiro. O Ministério Público e a infância e juventude: por uma (re)formulação da forma de ver, pensar e atuar. Disponível em<http://www.gnmp.com.br/publicacao/127/o-ministerio-publico-e-a-infancia-e-juventude-por-uma-reformulacao-da-forma-de-ver-pensar-e-atuar>Acesso dia 23 de fev de 2016. 18 BULOS, UadiLâmmego. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 1418 Página 114 de 270 maioria dos casos, conforme será demonstrado mais adiante, que os conflitos fossem solucionados de maneira mais ágil, algo de grandessíssima relevância no ramo do direito civil em voga, resguardando e protegendo a criança ou adolescente, posto que estes eram os mais prejudicados com uma demanda judicial e a sua vagareza. Análise do Projeto "Nome Legal" do Ministério Público da Paraíba O Projeto "Nome Legal" do Ministério Público da Paraíba surgiu em abril de 2011, principalmente devido à estimativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)19 de que 5,5 milhões de crianças brasileiras não possuíam o nome do pai no Registro Civil, de acordo com o Censo Escolar 2011. Na Paraíba, o próprio MP registrou o número assustador de 25% das crianças (1 a cada 4) em idade escolar sem o nome paterno em seus registros de nascimento.20 O projeto buscou resgatar a figura paterna dentro da vida das crianças e dos adolescentes, indo muito além de um simples processo de registro, priorizando-se a questão da socioafetiviade, visto que a presença do pai é imprescindível para o jovem, prevenindo alguns problemas, inclusive escolares, como o baixo rendimento e a evasão. O próprio Ministério Público, em cartilha lançada no ano 2012, explicou o funcionamento do projeto nas escolas: O NOME LEGAL visita as escolas onde faz a escuta pessoal das mães em busca de dados dos supostos pais que, em um segundo momento, são convidados a comparecer ao projeto para reconhecerem voluntariamente a paternidade que lhes é atribuída ou submeterem-se, gratuitamente, a exame de DNA para determinação da paternidade. Em caso de recusa do possível responsável legal no reconhecimento da paternidade ouna realização do exame, o Ministério Público se encarregará dos procedimentos legais para averiguação dos fatos e aplicação 21 da lei. Cumpre-se aqui destacar e enaltecer a iniciativa do Ministério Público da Paraíba e sua atuação extrajudicial no Direito das Famílias, onde o mesmo enxergou a realidade social e compreendeu a necessidade da população, principalmente das crianças e adolescentes, que se viam totalmente prejudicados com a ausência do nome paterno em seu registro de nascimento. 19 MINISTÉRIO PÚBLICO DA PARAÍBA, Cartilha Nome Legal. 2012. p. 2. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, Pai Presente e Certidões. 2ª edição. 2015. p.10. 21 MINISTÉRIO PÚBLICO DA PARAÍBA, Cartilha Nome Legal. 2012. p. 5. 20 Página 115 de 270 Além do mais, a partir da explicação do MP de como funcionou a sua atuação nas escolas, percebe-se claramente a priorização pela paternidade socioafetiva, seja essa advinda de questões biológicas ou não, conforme já foi exaustivamente tratado no presente trabalho. As mães poderiam, e eram aconselhadas a isso, a nomear os possíveis pais da criança ou adolescente baseado no afeto. É evidente que, caso não houvesse essa pessoa, o MP iria a busca do pai meramente biológico, pois aquele menor não poderia ter o seu direito fundamental à identidade suprimido, além do fato de que a filiação traz uma série de efeitos jurídicos. Silvio de Salvo Venosa faz um apanhado desses efeitos da filiação que merecem ser mencionados: No processo civil, estão impedidos de depor como testemunha, além do cônjuge da parte, seu ascendente ou descendente em qualquer grau, assim como o colateral até o terceiro grau, seja consanguíneo ou afim (art. 405, § 2º, 1, do CPC). No direito penal, há crimes cujo parentesco entre o agente causador e a vítima agrava a intensidade da pena. No direito fiscal, o parentesco pode definir isenções, deduções ou o nível de tributação. No direito constitucional e no direito administrativo, há restrições de parentesco para ocupar certos cargos. No direito de família, os efeitos do parentesco fazem-se sentir com mais intensidade, ao estabelecer impedimentos para o casamento, estabelecer o dever de prestar alimentos, de servir como tutor etc. No direito sucessório, o parentesco estabelece as classes de herdeiros que podem concorrer à herança, limitando-se, na classe dos colaterais, àqueles até o quarto grau.22 Além de atuar nas escolas, o "Nome Legal" visitou os presídios, dando a oportunidade aos pais privados de liberdade a possibilidade de reconhecimento dos filhos, conferindo assim o direito de visita e convivência com o mesmo. É de suma imprescindibilidade destacar que o projeto só foi possível devido às parcerias realizadas pelo Ministério Público da Paraíba, contando com a participação do Governo do Estado, da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça da Paraíba, dos Cartórios de Registro Civil, do Fundo de Apoio ao Registro de Pessoas Naturais (FARPEN), da UFPB, através do Departamento de Prática Jurídica, do UNICEF 22 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil, volume 6: direito de família. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2013.p. 226. Página 116 de 270 (por termo de cooperação técnica), do Instituto Brasileiro de Direito de Família na Paraíba (IBDFAM/PB), do Instituto Unigente e do Movimento "Nós Podemos Paraíba". Percebe-se assim que foi montada uma verdadeira força-tarefa em busca dos ideais do projeto. Atuaram no "Nome Legal" 46 (quarenta e seis) Promotores de Justiça em todo o estado. A princípio, o projeto tinha como membros os Promotores com atribuição na área de família, mas nada impedia a participação de Promotor de outra área. Realizaram-se 92 mutirões, chegando a incrível marca de 3.41123 reconhecimentos voluntários de paternidade e 2.20824 exames de DNA.25 Como já visto, o "Nome Legal" tomou enormes proporções, devido a sua atuação concisa e relevante perante à sociedade, de modo a ganhar credibilidade da mesma, alcançando atuação em mais de 100 municípios da Paraíba. O sucesso foi tão grande que se passou a acolher demandas espontâneas (sem matrícula nas escolas) e, posteriormente, os cartórios passaram a encaminhar ao "Nome Legal" a relação de crianças registradas sem a indicação paterna. Logo, o projeto não poderia simplesmente encerrar, de modo que em 2015 foi transformado em Núcleo Permanente de Paternidade Nome Legal (NUPAR NOME LEGAL), objetivando dar continuidade aos procedimentos instaurados no projeto e institucionalizar as práticas nas Promotorias de Justiça da Paraíba. Conclusão Depois de tudo o exposto no presente estudo, pode-se auferir que o Ministério Público da Paraíba foi muito perspicaz e visionário na criação e implementação do Projeto ―Nome Legal‖. 23 298 em 2011; 1.263 em 2012; 570 em 2013; 1.122 em 2014; 158 em 2015. 24 154 em 2011; 563 em 2012; 542 em 2013; 613 em 2014; 336 em 2015. 25 MINISTÉRIO PÚBLICO DA PARAÍBA. Divórcio no Código Civil e atuação do promotor na área da família são debatidos em congresso do MPPB. Disponível em <http://www.mppb.mp.br/index.php/noticiasandroid/94-familia/2038-divorcio-no-codigo-civil-e-atuacao-do-promotor-na-area-da-familia-sao-debatidosem-congresso-do-mppb Acesso 22 de fev de 2016 Página 117 de 270 O MP-PB atuou no Direito das Famílias, conforme disposto na Constituição Federal, de modo a priorizar crianças e adolescentes e resguardar o seu direito à identidade. A Constituição não deve ser encarada como utopia, mas sim ser colocada em prática, como foi com o projeto discutido. Entretanto, o principal objetivo a ser alcançado não era simplesmente o de ter o nome paterno na certidão de nascimento, e sim de ter um pai que correspondesse às expectativas amorosas da criança ou adolescente, priorizando-se o afeto sobre o determinismo biológico. Isso só demonstrou a atenção do MP à realidade social contemporânea, de modo que a paternidade socioafetiva sobrepuja a meramente sanguínea. Por fim, conclui-se que o Ministério Público da Paraíba e o Projeto ―Nome Legal‖, através de suas inúmeras parcerias e de sua atuação conjunta com a sociedade, conseguiram um grande respeito e respaldo, de modo que o sucesso nos resultados obtidos e a sua transformação em um núcleo permanente falam por si só. Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, 2013. BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 23fev 2015. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9ª ed. rev.atual.eampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 3ª ed. rev.atual e ampl. São Paulo:Forense, 2009. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, volume 5: direito de família. 9ª ed. rev. atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Novas Modalidades de Família na PósModernidade. São Paulo: Atlas. 2010. Página 118 de 270 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil, volume 6: direito de família. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2013. MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Novas Modalidades de Família na PósModernidade. São Paulo: Atlas. 2010. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Direito de Família - As famílias em perspectiva constitucional. 4 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. MINISTÉRIO PÚBLICO DA PARAÍBA. Divórcio no Código Civil e atuação do promotor na área da família são debatidos em congresso do MPPB. Disponível em <http://www.mppb.mp.br/index.php/noticias-android/94-familia/2038-divorcio-no-codigocivil-e-atuacao-do-promotor-na-area-da-familia-sao-debatidos-em-congresso-do-mppb Acesso 22 de fev de 2016. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. 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Página 119 de 270 DIREITO À MEMÓRIA, DIREITO AO ESQUECIMENTO: UM PARADOXO AINDA INCONCLUSIVO Adriano Marteleto Godinho1 Breno Pereira Marques de Melo2 Isaías Moreira Ferreira3 José Albuquerque Toscano Júnior4 Rebeca Resende de França Rodrigues5 Notas introdutórias O presente trabalho é fruto das pesquisas realizadas na Universidade Federal da Paraíba, no âmbito do projeto destinado ao estudo dos direitos da personalidade, especificamente sob a ótica do direito à privacidade. O Direito ao Esquecimento está cada vez mais em voga no Judiciário brasileiro, um tema que desperta opiniões diversas sobre fatos de âmbito particular ou públicos, mas todos estes contextos desaguando em um mesmo embate entre o direito à memória, de um lado, e odireito ao esquecimento, de outro lado. Cumpre definir, essencialmente, até que ponto devemos esquecer fatos públicos de grande repercussão social, para que estes não venham a ocorrer novamente. O direito ao esquecimento deve se sobressair, mesmo quando determinado fato, em relação ao qual se pretenda eventualmente deixar esquecido, é de grande notoriedade social e interesse coletivo? Com estes linhas, pretende-se equacionar a tese do direito ao esquecimento, estabelecendo-se seus limites, justificativas legais e principiológicas e âmbito de incidência, inclusive em ordenamentos jurídicos alienígenas. Para além de se estabelecer a análise da possibilidade de as pessoas naturais pleitearem o esquecimento de fatos que compõem sua trajetória biográfica, ver-se-á de que modo também as pessoas jurídicas, excepcionalmente, poderão requerer idêntica tutela. Direito ao esquecimento: delimitações conceituais 1 Professor da Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa e Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais. Advogado. 2 Acadêmico do 10º período de Direito da Universidade Federal da Paraíba. 3 Professor da Universidade Federal da Paraíba. Graduado em Licenciatura Plena em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Acadêmico do 10º período de Direito da Universidade Federal da Paraíba. 4 Acadêmico do 9º período de Direito da Universidade Federal da Paraíba. 5 Advogada, graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Página 120 de 270 A memória é veementemente considerada e caracterizada como uma habilidade desenvolvida individualmente por cada ser humano, enquanto a capacidade individual ou coletiva de lembrar ou relembrar determinada informação relevante. Por meio de mídias, inclusive, pode ser realizada a coleta das informações por métodos seletivos, sendo a memória uma função do sistema nervoso responsável pela captação deste arcabouço. A produção de sentido sobre o passado (experiências vividas ou transmitidas) ocorre por meio da memória e, por meio desta, muitas vezes, busca-se modificar o presente, partindo da recordação de fatos e acontecimentos ocorridos em um passado muitas vezes um tanto distante. A memória seria uma gênese social de lembrança que objetiva reconstruir o passado; no entanto, o fato de relembrar alguns acontecimentos e fatos pode, para alguns, significar uma caminhada árdua rumo ao futuro. Em um estado com bases democráticas, o direito à informação se destacacom proeminência.A sociedade tem amplo acesso aos meios tele comunicativos e informacionais, a exemplo da internet. Passam os tempos, mas certos dados históricos são facilmente armazenados nas redes virtuais e o passado, com isto, acaba se misturando ao presente, o que poderá causar prejuízos a determinados indivíduos. Em meio a tantas controvérsias e debates surge, pois, um direito noviço, denominado direito ao esquecimento, sob o enfoque de princípios constitucionais e basilares, a exemplo do postulado da dignidade da pessoa humana. Fatos são lembrados e relembrados, matérias jornalísticas e programas televisivos sobre eventos passados são produzidos e, assim, pessoas podem ser submetidas a situações de extremo constrangimento. O esquecimento, portanto, propicia ao indivíduo ter seu passado deixado para trás, em proveito de uma existência presente livre de máculas preexistentes. Anderson Schreiber explica o direito ao esquecimento como sendo o direito de ―impedir que dados de outrora sejam revividos na atualidade, de modo descontextualizado,gerando-lhe risco considerável6”. O direito ao esquecimento difundiu-se mais peremptoriamente após o estabelecimento do Enunciado 531 pela VI Jornada de Direito Civil,7 promovida pelo Conselho da Justiça Federal 6 SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 197. Os enunciados da Jornada não têm qualquer força vinculativa, mas desempenham significativa autoridade doutrinária, servindo de referência interpretativa e constituindo fundamento para muitas decisões judiciais por não 7 Página 121 de 270 (CJF). Este enunciado constitui uma orientação doutrinária baseada na interpretação do Código Civil, elencando o direito de ser esquecido entre os direitos da personalidade, bem como assegurando a preservação da intimidade, da imagem e da vida privada, mediante o império do princípio de proteção à dignidade da pessoa humana, por reconhecer que ―a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento‖. Assim, o direito de não ser lembrado eternamente por um equívoco pretérito ou por situações constrangedoras ou vexatórias constitui um instrumento jurídico de salvaguarda à dignidade humana. Apesar de o enunciado contribuir sobremodo para a discussão do tema, ainda há necessidade de maior amadurecimento para sua plena aplicação, de modo a serem fixados seus parâmetros, para que seja acolhido o esquecimento de determinado fato, com a decretação judicial de retirada de informações a seu respeito, tendo em vista que quem se sentir lesado em seus direitos personalíssimos pode pleitear o cancelamento de informação, tanto dos meios de comunicação em mídia física, quanto do próprio mundo virtual. O surgimento desse direito, como um direito personalíssimo a ser protegido, teve origem na esfera criminal, mas atualmente foi estendido a outras áreas, como, por exemplo, às novas tecnologias de informação. Ele tem sido abordado na defesa dos cidadãos diante de invasões de privacidade pelas mídias sociais, provedores de conteúdo ou buscadores de informações. Ressalva-se, no entanto, que tal direito não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas tão somente garantir a possibilidade de se discutir o uso de informações atinentes a fatos pretéritos, mais especificamente ao modo e à finalidade com que são lembrados mediante arquivo em banco de dados. Com efeito, é preciso estabelecer as bases em que o direito ao esquecimento pode medrar.Paulo R. Khouri explana: ―Ponderar caso a caso os valores em jogo (pois) pode ocorrer que o direito ao esquecimento deva ser sacrificado em prol da liberdade de informação 8‖.É este o desafio a vencer: admitir o esquecimento e limar o passado do presente, sem propiciar, contudo, inaceitável ofensa à liberdade de expressão e à necessária preservação da memória de um povo e da história de uma nação.Impõe-se, neste contexto, uma balia imprescindível: dissociar os fatos que compõem a esfera privativa da vida de um indivíduo daqueles que, ao contrário, suscitam configurar a opinião de um único autor, mas a súmula do pensamento de grande parte dos civilistas nacionais integrantes do evento. 8 KHOURI, Paulo R. O direito ao esquecimento na sociedade de informação e o Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil. Revista de Direito do Consumidor, v. 89,| p. 463 e ss., set. 2013. Página 122 de 270 relevante interesse público. Segregam-se, assim, as informações de cunho estritamente privado, suscetíveis ao esquecimento, e os dados de interesse predominantemente coletivo, impassíveis de esquecimento, sob pena de se comprometer o passado não de uma única pessoa, mas de uma sociedade como um todo. Estas noções desafiam prudente análise, que será necessariamente casuística. Apenas as circunstâncias de cada caso em concreto poderão revelar, em um jogo de ponderação de direitos e valores, quais devem prevalecer e quais podem sucumbir. Apenas se admitirá o sacrifício da liberdade de expressão caso determinadas informações possam ser legadas ao esquecimento sem que tal implique prejuízo à memória de um povo. A internacionalização do direito ao esquecimento A tese do direito ao esquecimento não é suscitada apenas no Brasil. Relatos diversos, alguns mais antigos, outros mais recentes, demonstram que a controvérsia é viva, em particular, no ordenamento jurídico de países europeus e nos Estados Unidos da América. As raízes intelectuais do direito a ser esquecido são provenientes da França, sendo no referido país denominado de ―ledroità l'-oubli‖; no entanto, um caso analisado pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha em 1973, conhecido como ―caso Lebach‖, ganhou repercussão internacional. O caso se refere ao assassinato brutal de quatro soldados alemães responsáveis pela guarda e segurança de um depósito de munições sendo os três acusados condenados, dois delesà prisão perpétua e o terceiro a uma pena de reclusão de seis anos. Prestes a ser liberto, o terceiro acusado, as vésperas de cumprir integralmente sua pena, toma conhecimento de certo documentário, produzido por uma emissora televisiva, e decide mover ação judicial, tendo por objetivo impedir a ida ao ar do tal documentário, pautando-se em um direito assegurado e amplamente propagado pela Constituição Alemã, o direito ao desenvolvimento da personalidade, que seria violado, caso a obra fosse ao ar. O autor da demanda teve acolhida sua pretensão, ficando evidentes as limitações estabelecidas quanto à liberdade de expressão e comunicação, que não podem atingir direitos fundamentais dos indivíduos. Em treze de maio de 2014, a Grande Corte Europeia instaurou uma seção para possibilitar a discussão de um caso que chamou a atenção de juristas por todo o planeta. O caso envolvia a Página 123 de 270 empresa Google, de um lado, e o espanhol Mário Costeja González, de outro,tendo este solicitado judicialmente a retirada de determinadas informações procedentes dos resultados de busca do portal.A Corte Europeia decidiu pela procedência do pedido e determinou a retirada das informações referentes à venda em hasta pública de um determinado imóvel, que davam aos usuários da internet a impressão de ser o Sr. González um devedor inadimplente. O Tribunal reconheceu a supremacia do direito à vida privada, previsto na Carta dos Direitos Fundamentais, e o direito à proteção dos dados pessoais, incluído no mesmo diploma. O Tribunal defendeu em sua sentença a busca pelo equilíbrio entre o interesse dos internautas pelas informações contidas no meio virtual e os direitos fundamentais da pessoa atingida, que logicamente teriam sido afetados. O interesse público, no entanto, pode fazer cair por terra decisão prolatada pela Corte Europeia, tendo os casos que serem analisados em particular, o que foi suscitado pela pessoa jurídica demandada. A empresa Google alegou não ser responsável pelas informações contidas em sua base de dados; no entanto, o portal mesmo assim foi obrigado a retirar as informações referentes ao reclamante, fazendo a Corte prevalecer direitos e garantias constitucionais basilares. O tribunal reconheceu, com base na Diretiva 95/46/CE, promulgada pelo Parlamento Europeu, que o motor de busca é de responsabilidade direta do site ou portal responsável pela hospedagem das informações. O Tribunal estabeleceu, portanto, que o Google é responsável pelo manuseio virtual de informações pessoais, sendo responsável também pelos meios de busca utilizados assim como o processamento das informações. Assim, a empresa Google deveria adequar suas atividades, para que os direitos da personalidade, que compõem a essência das pessoas naturais, não sejam atingidos de forma maléfica ou prejudicial. Após a decisão tomada pela Corte Europeia, o Google tornou-se obrigado a retirar informações pessoais do seu banco de dados, quando as pessoas detentoras assim solicitarem. Milhares de pedidos foram feitos após a decisão, o que vem ocasionando despesas imensuráveis para o Google. Mesmo assim, é preciso equacionar o problema, tendo-se em conta a possibilidade de ocorrerem danos de ampla repercussão, dada a profusão rápida e de vastíssima extensão das informações lançadas na internet, em especial, o que reforça a necessidade da existência de meios de se conter danos. Nas palavras de AntonioRulli Junior e AntonioRulli Neto, ―avelocidade como as informações circulam não permite mais que pensemos tão somente em mecanismos de Página 124 de 270 abstenção e repressão, mas de meios eficazes para evitar os abusos e excluí-los, ou impedir que gerem resultados continuados ou mais gravosos9‖. Na Alemanha, em 2009, dois alemães, responsáveis pelo assassinato de um ator, ocorrido no ano de 1990,demandaram judicialmente a entidade que administra a enciclopédia virtual intitulada ―Wikipedia‖ requerendo a retirada de informações referentes ao crime, contidas na base de dados da empresa. No caso, os assassinos alegaram que a lei alemã garante a supressão dos nomes de criminosos de páginas eletrônicas e documentários, quando estes já tiverem respondido pelos crimes que comentaram. A divulgação de informações ligadas aos assassinos e ao crime por eles cometido geraria flagrante estigmatização de suas imagens, além de violar o direito à privacidade de ambos e o reconhecido direito de ser deixado em paz. No caso encimado, os assassinos alegaram que a lei alemã lhes assegura o direito a supressão dos seus respectivos nomes nas páginas eletrônicas e documentárias (da então enciclopédia) que tratam do assunto, tendo em vista já terem respondido pelo crime praticado. A divulgação de determinadas informações ligadas relacionadas ao crime, geraria, segundo os condenados, flagrante estigmatização de suas imagens, além de violar o direito à privacidade, garantido a ambos, e o suposto ―direito de ser deixado em paz‖. No entanto, a Suprema Corte Alemã10 não atendeu aos pedidos realizados11. A Corte Europeia já firmou a base deque é preciso, como premissa fundamental, que se examine o papel desempenhado por pessoas que possuem suas informações divulgadas em mídias e portais, pois tais dados podem se revestirde um caráter eminentemente público, o que inviabilizaria o exercício de um suposto direito ao esquecimento. Portanto, torna-se possível o conhecimento geral de algumas informações, ainda que desabonadoras da conduta de certos indivíduos, quando o interesse público for fator preponderante no âmbito de conhecimento de certos fatos de contexto histórico e social proeminente. Ademais, a utilização e divulgação de informações pessoais, segundo a Diretiva 95/46/CE, só poderá ser feita mediante motivos e objetivos legítimos e lícitos, portanto, os dados mencionados só poderão ser utilizados para fins específicos e determinados. 9 NOVOS MECANISMOS PARA MINIMIZAR O CYBERBULLYING EM UM CONTEXTO DE SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO. JUNIOR, Antônio Rulli e NETO, AntonioRulli. Disponível em:http://cidp.pt/publicacoes/revistas/ridb/2013/11/2013_11_12995_13002.pdf. 10 BGH, VI ZR 227/08, decisão de 15/12/2009. 11 _Disponível em: http://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/v614rl37/YreX6aYS0x4INA8l.pdf Página 125 de 270 Em 2011, a Comissão Parlamentar Francesa expediu o relatório 384, reconhecendo o direito de determinados cidadãos serem mantidos no anonimato, ou seja, o direito a promover a supressão de dados pessoais. Os parlamentares recomendaram a execução de meios que permitam a harmonização de regras referentes à privacidade e à liberdade dos meios informacionais. Vê-se, pois, que a União Europeia, por intermédio de tribunais e normas legais, vem trazendo à tona o direito a ser esquecido ou, simplesmente, o direito a deixar fatos e pessoas legados ao anonimato,que é posto frente a uma das principais garantias asseguradas pelas constituições de países de bases democráticas: a liberdade de expressão. Nos Estados Unidos, a liberdade de expressão, vista com ares de enorme eminência, coloca em xeque a aceitabilidade do direito a ser esquecido ou, simplesmente, o direito a ser mantido no anonimato ou ter informações assim tratadas. No dia 13 de maio de 2013 foi realizada uma conferência em Berlim, na qual estiveram presentes autoridades e representantes de empresas norte-americanas. Na aludida conferência, foi suscitada a possibilidade de adequação das leis referentes à privacidade nos Estados Unidos ao sistema de proteção de dados global. Ao final do evento, mais de 90 países foram notificados para adequação de seus sistemas.O direito ao esquecimento, em meio a tantos debates, chega a ser reconhecido nos EUA; no entanto, para muitos a admissibilidade do direito ao esquecimento gera flagrante violação da constituição americana. Já na jurisprudência norte-americana, destaca-se o caso envolvendo uma prostituta condenada pela prática de homicídio, que, anos após ter cumprido a pena, observa a retratação do fato por meio do filme ―The RedKimona12‖.A Suprema Corte da Califórnia, ao apreciar o caso, reconheceu que a suposta vítima teria direito a viver uma vida de retidão, sendo privada de violações desnecessárias e extemporâneas à sua dignidade. É possível argumentar-se que a aplicabilidade do direito ao esquecimento gera violação imediata do direito à liberdade de expressão, amplamente assegurada pela Constituição dos Estados Unidos. O que é visto como meio de simples proteção de dados pessoais pode representar um mecanismo para tentar apagar o passado e a história de determinadas pessoas, a exemplo de políticos que não querem ter seus nomes associados a alguns fatos e situações, e de 12 LIBERDADE DE INFORMAR E DIREITO À MEMÓRIA - uma crítica à ideia do direito ao esquecimento – NETO, João dos Passos Martins e PINHEIRO, Denise. Disponível em: file:///I:/6670-18054-1-SM.pdf. Página 126 de 270 criminosos que lutam para que o passado delituoso não se torne presente a ponto de supostamente prejudicá-los na vida em sociedade. O direito a ser esquecidoou, simplesmente, a ser mantido no anonimato, deve, de fato, ser ponderado e sopesado com outros valores, em especial o interesse público quanto à ampla divulgação de certos fatos que, mais do que simples componentes da trajetória individual de certas pessoas, são cruciais para a formação da memória de um povo e de uma nação. O direito ao esquecimento no Brasil A exemplo do que ocorre em diversos países em que se discute a viabilidade da incidência de um direito ao esquecimento, também no Brasil a tese ganha adeptos – e, por vezes, coloca em questão a proteção dos direitos da personalidade de pessoas notórias. É fato que quem conheceu a apresentadora Maria da Graça ―Xuxa‖ Meneghel em meados da década de 90 e anos posteriores, jamais tomaria conhecimento de certo ato que a colocou em situação bastante constrangedora se for observada em nome da moral e dos bons costumes da sociedade. No ano de 1982, fora lançado um filme de cunho erótico intitulado Amor Estranho Amor, em que a referida apresentadora atuava como a personagem Tamara, responsável pela iniciação da vida sexual de um garoto de 12 anos. Xuxa, inconformada com a enorme projeção do filme, que somente se deu após tornar-se ela mundialmente conhecida como apresentadora de programas televisivos infantis, moveu ação e obteve decisão favorável ao recolhimento de todas as fitas originais do referido filme das lojas de todo o país. A decisão judicial proibiu que o filme fosse comercializado dentro do Brasil, mas em 2005 ocorreu seu lançamento nos Estados Unidos, podendo a obra ser acessada atualmente por brasileiros em páginas eletrônicas hospedadas em diversos países. Xuxa ainda tentou, sem sucesso, uma ação judicial para impedir a divulgação do filme nos Estados Unidos. O art. 20 do Código Civil de 2002 já protege, na circunscrição dos direitos da personalidade, o direito à imagem, ao preceituar que: Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu Página 127 de 270 requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. 13 Ou seja, é sabido que há um limite para a exposição de imagens, e que este limite é a vontade do seu titular, ressalvadas as hipóteses em que se tratar de informação que vise à promoção da ordem pública. Ainda que se entenda ser possível suscitar o texto do art. 20 como fundamento para as pretensões de Xuxa, que chegou inclusive a obter êxito em uma contenda judicial movida contra a empresa Cinearte, que ensaiava relançar o aludido filme, torna-se praticamente inviável combater a expansão dos danos no âmbito da internet. Com efeito, a apresentadora não logrou êxito quanto ao impedimento de haver pesquisas em seu nome vinculado à pedofilia no sistema de buscas do site Google, em decisão unânime da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).14 Em um primeiro momento, quanto ao julgamento de antecipação de tutela, chegou-se a determinar que a empresa deveria retirar os resultados das pesquisas que vinculassem o nome da apresentadora ao termo pedofilia e a imagens que indicassem o mesmo contexto. Após o recurso por parte da empresa, houve a determinação de que apenas algumas imagens fossem suprimidas. No STJ, a Ministra relatora, Nancy Andrighi, abraçou o entendimento de que seria inviável prosseguir com a determinação do juiz de primeira instância, tendo em vista que, além de ser uma tarefa que não intrínseca ao serviço prestado, isto poderia inviabilizar as livres pesquisas referentes ao nome da apresentadora. No mesmo ano de 2012, um programa televisivo da Rede Record tornou pública a exposição de algumas fotos de Xuxa em ensaio nu, realizado há mais de duas décadas. A apresentadora ajuizou uma ação em face da emissora, alegando que tal ensaio fora feito com seu pleno consentimento – limitado, todavia, à exposição exclusiva em revistas masculinas, tese à qual aderiu o desembargador Eduardo Gusmão Alves de Brito, que assim decidiu no processo de nº 0029206-40.2012.8.19.0000 julgado da 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: 15 13 BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 1a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 14 Jusbrasil. Google ganha batalha contra Xuxa no STJ. Disponível em: <http://oabrj.jusbrasil.com.br/noticias/3165196/google-ganha-batalha-contra-xuxa-no-stj>Acesso em 26 de maio de 2014. 15 Âmbito jurídico. TJ proíbe Record de exibir imagens da apresentadora Xuxa nua. Disponível em: <http://www.ambitoPágina 128 de 270 Não tem razão a agravante quando diz que a autora, ao tornar pública sua nudez, optou por renunciar a seus valores de privacidade e intimidade. Veja-se, nesse contexto, que quando a agravada aceitou fazer o ensaio nu, ela o fez a um determinado grupo de pessoas que, embora indetermináveis quanto ao número de destinatários, eram perfeitamente identificáveis quanto ao gênero: homens. Agora, quando a agravante expõe essas mesmas imagens na rede aberta de televisão, num domingo e em horário de pico de audiência, ela, a toda evidência, amplia significativa e inoportunamente esse rol de destinatários, que passa a incluir mulheres, crianças e adolescentes. Faria a apresentadora, então, jus à tutela pretendida pelo instituto do direito ao esquecimento? Naturalmente, ela é uma pessoal natural e, por sê-lo, é titular dos denominados direitos da personalidade. Tais direitos possuem como características a inalienabilidade e a imprescritibilidade, e independentemente da vontade de seu titular, estes atributos da existência humana se manifestam, imperiosos e dignos da máxima proteção. Mais precisamente quanto ao direito à imagem da apresentadora, compete-lhe a prerrogativa de delimitar o seu exercício e de protegê-lo, de modo a evitar ofensas à sua integridade moral e psicológica. No caso em questão, a apresentadora atribuiu certos limites à circulação de sua imagem, tanto nos vídeos quanto nas fotografias, não se admitindo extensões que não apenas ultrapassam os limites de seu consentimento quanto também não se qualificam como informações de interesse público digno de resguardo jurídico. Outra ocorrência no plano nacional de informações que tocam a pessoa notórias é o caso do ex-presidente Fernando Collor de Melo. Em 1992, o Congresso Nacional, por meio de processo de impeachment, tirou do poder o presidente mais jovem a ser eleito no Brasil. Fernando Collor de Melo assumiu a presidência da República aos 41 anos de idade, em 1989, com mais de 35 milhões de votos, assumindo o governo em um cenário altamente crítico da economia brasileira. Em meio a este contexto, o então presidente adotou uma medida enérgica, dando início ao chamado Plano de Reconstrução Nacional, dividido em duas fases, Collor I e Collor II. A partir de março de 1990, houve uma demissão em massa de funcionários públicos, congelamento de salários e preços, confisco de depósitos bancários e a volta do cruzeiro como moeda, medidas que não surtiram nenhum efeito positivo, causando, ao revés, tremenda revolta social. Para tentar sanar toda esta desestabilização financeira, Collor, por meio de sua equipe de governo, engendrou outros planos, que não obtiveram êxito, chegando-se ao estopim que juridico.com.br/site/?n_link=visualiza_noticia&id_caderno=20&id_noticia=86206>Acesso em 22 de maio de 2014. Página 129 de 270 culminou no ápice de sua crise governamental: as denúncias de corrupção veiculadas pelo seu irmão, em maio de 1992, e o envolvimento do seu tesoureiro de campanha Paulo César Farias. Fernando Collor de Melo, afinal, teve o seu mandato cassado e perdeu a prerrogativa do livre exercício de seus direitos políticos por oito anos. No mês de abril de 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o último processo que envolvia como parte o ex-presidente Collor, absolvendo-o das acusações do uso de cargo público para desvio de recursos, peculato, falsidade ideológica e corrupção passiva; por insuficiência probatória, o réu foi inocentado. Pelo que consta no acervo do Infográfico do sítio eletrônico da Revista Veja, Collor deixou a Presidência da República com 14 inquéritos no STF, oito petições criminais, quatro ações penais e constava como parte em mais de duas dúzias de habeascorpus, saindo ileso em todos os casos.16 Em meio a todo esse histórico envolvendo uma personalidade pública de grande notoriedade, em que todos os seus fatos políticos e privados foram conectados, sem possibilidade de desassociá-los, entramos na discussão dos direitos do ex-presidente de ter certos fatos da sua vida esquecidos, em contrapartida ao direito de a população de ter uma memória política viva. Naturalmente, o ex-presidente Collor jamais poderá pretender que sejam esquecido o fato de ter sofrido o processo de impeachment, por se tratar de evento que compõe a história política do país; tal não significa, contudo, que eventuais acintes à sua honra devam ser perpetrados e perpetuados, em especial na internet. Em meio ao contexto do caso anterior, podemos fazer uma correlação acerca dos fatos políticos da vida de Collor e qualquer político, que anos depois de sua participação no cenário nacional, pretendem manter certas questões de ordem pessoal afastadas da memória nacional. A discussão enseja muitas outras questões que abarcam não só personalidades políticas, mas pessoas notórias, de uma maneira geral. O direito ao esquecimento deve ser estudado minuciosamente e aplicado a casos práticos com parcimônia, para não transpassar as barreiras do que viria a ser uma possível censura. Apenas se admitirá o esquecimento se se tratar de fatos que compõem a esfera da estrita privacidade de um indivíduo, quando se puder concluir, enfim, que rememorá-los não apenas em nada contribuirá para manter acesa na memória coletiva uma 16 Disponível em: http://veja.abril.com.br/infograficos/rede-escandalos/perfil/fernando-collor-demello.shtml?Scrollto=conteudo-rede. Acesso em 04/05/2014. Página 130 de 270 informação digna de relevo histórico, como também representará uma afronta à própria dignidade humana. A extensão do direito ao esquecimento para a proteção de dados de interesse de pessoas jurídicas Na sociedade pós-moderna, a informação exerce relevância capital para o exercício de quaisquer atividades, tanto pessoais quanto empresariais, pois até mesmo, os atos mais simples e cotidianos da vida pessoal ou empresarial podem ser divulgados em escala global, em velocidade impressionante, com efeitos consideravelmente deletérios à imagem da pessoa física ou jurídica. Isto tem ocorrido devido a duas constatações: primeiro, é preciso resguardar a honra das pessoas, inclusive da pessoa jurídica, por meio de sua respectiva marca e reputação (honra objetiva); segundo, a veiculação das marcas empresariais atingiu patamares inimagináveis. As novas mídias, em face da escalada tecnológica se, por um lado tem resultado em significativo avanço concernente ao acesso, envio, arquivo e disseminação ágil e simples de informação, por outro, tem acarretado vasta gama de violações de direitos da personalidade, notadamente no campo da imagem, da intimidade e da privacidade. De fato, isto ocorre, porque como esclarece o desembargador Rogério Fialho Moreira:17 ―Verifica-se hoje que os danos causados por informações falsas, ou mesmo verdadeiras, mas da esfera da vida privada e da intimidade, veiculadas através da internet, são potencialmente muito mais nefastos do que na época em que a propagação da notícia se dava pelos meios tradicionais de divulgação. Uma retratação publicada em jornal podia não ter a força de recolher as “penas lançadas ao vento”, mas a resposta era publicada e a notícia mentirosa ou injuriosa permanecia nos arquivos do periódico. Com mais raridade era “ressuscitada” para voltar a perseguir a vítima‖.18 17 Desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, Rogério Fialho Moreira, coordenador da Comissão de Trabalho da Parte Geral na VI Jornada VI Jornada de Direito Civil, evento organizado pelo Centro de Estudos do Judiciário da Justiça Federal (CJE/CJF), visando delinear posições interpretativas sobre o Código, adequando-as às inovações legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, a partir do debate entre especialistas e professores nas comissões temáticas de trabalho. 18 2. http://ebook-direito.com.br/novidades/o-direito-ao-esquecimento-e-o-enunciado-531. Acesso em 18-11-2013. Página 131 de 270 Surge, neste contexto, uma questão fática de discussão inadiável e de resolução primordial, a saber: tem a pessoa jurídica de direito privado igual direito ao esquecimento ou deve-se preservar tal direito personalíssimo adstrito às pessoasnaturais? Na tentativa de apontar uma possibilidade de resposta, pode-se procederà análise de um caso envolvendo a multinacional de bebidas mundialmente conhecida: a Coca-Cola (Processo Nº: 0020617-36.2004.8.26.0100 TJ-SP). O caso relaciona-se àRedeTV e outras duas empresas ligadas ao refrigerante Dolly (Detall-Part, detentora da marca, e Ragi Refrigerantes, responsável pelo engarrafamento e comercialização do produto), que foram condenadas a pagar R$ 1 milhão em indenização à multinacional à Coca-Cola. Conforme o relatório do processo, o ―Programa 100% Brasil‖ tentou prejudicar a reputação do refrigerante Coca-Cola em notícias, debates e entrevistas, com o objetivo de incrementar as vendas da concorrente Dolly. No referido programa, falava-se sobre supostas práticas ilícitas da Coca-Cola, como sonegação fiscal, corrupção ativa, concorrência desleal e adição de substância entorpecente ao xarope do refrigerante. Apesar disso, as empresas Detall-Part e Ragi Refrigerantes alegaram que seus representantes participaram do programa apenas como entrevistados e que não receberam orientação sobre suas declarações; ao passo que a RedeTV afirmou que não tinha responsabilidade sobre o conteúdo do programa, já que a compra do espaço na grade de programação do canal foi ajustado entre a Dolly e um terceiro. A decisão final inferiu que ―as reportagens e entrevistas veiculadas no programa tinham por único objeto explorar denúncias de irregularidades envolvendo a empresa autora (Coca-Cola), tanto que foram entrevistados basicamente ex-funcionários, parlamentares e outras autoridades públicas que, de alguma forma, guardavam relação com as acusações desferidas contra a requerente (Coca-Cola)‖. Segundo o desembargador Francisco Loureiro, relator do processo supracitado, ―é possível concluir, sem sombra de dúvida, que o objetivo maior do programa não era informar o público acerca de fatos relevantes e de notório interesse público, mas sim ofender a Coca-Cola‖. Embora o caso tenha sido judicializado para salvaguardar a respeitabilidade pública da Coca-Cola, nada obsta que, em outra situação, as acusações de que foi inocentada a referida empresa possam ser reavivadas com igual teor, sem a devida ressalva de que as acusações foram infundadas. Nesta situação hipotética, teria a Coca-Cola o direito de requerer em juízo a tutela do direito ao esquecimento, de modo a preservar sua imagem e sua respectiva credibilidade? É possível concluir-se que sim, considerando-se alguns aspectos fundamentais, a saber: a Página 132 de 270 possibilidade de extensão de certos direitos da pessoa física à pessoa natural (concebida como conjunto de seres humanos ou de bens constituídos sob a forma da lei e aos quais se confere uma personalidade distinta da personalidade dos seus integrantes); assim como a garantia de que a atividade econômica desenvolvida pela empresa supracitada não sofra qualquer dano em função de informações inverídicas veiculadas em quaisquer mídias. A propósito, convém ressalvar que, conforme a Súmula 227 do STJ, “a pessoa jurídica pode sofrer dano moral”. O referido dano decorre de violação à honra objetiva – e mesmo à imagem – da pessoa jurídica. Considera-se que o dano moral da pessoa jurídica está muito mais associado ao ―desconforto extraordinário‖ que afeta o nome e a tradição de mercado, com repercussão econômica, do que aos atributos das pessoas naturais que compõem a empresa. Inclusive, paraLuiz Alberto David Araújo19,a imagem deve ser classificada necessariamente em dois grupos: imagem-retrato e imagem-atributo. A primeira mais aplicável à pessoa natural e a segunda aplicável também em relação à pessoa jurídica, por constituir-se de um conjunto de atributos de uma pessoa (física ou jurídica) identificados no meio social. É o que se chama de ―retrato moral‖. Destarte, viola-se a imagem-atributo toda vez que se ataca a imagem moral do indivíduo ou de uma empresa. Sob essa premissa, depreende-se que qualquer empresa que se constitua legalmente como pessoa jurídica – de acordo com os pressupostos do art. 45 do Código Civil e segundo a teoria da realidade das instituições jurídicas, defendida pelo constitucionalista francês HAURIOU – é dotada de personalidade, o que lhe confere a possibilidade de assumir obrigações e contrair direitos (direitos à personalidade, direitos reais e industriais, sobretudo) na ordem civil. Isto ocorre porque tanto a pessoa natural quanto a jurídica apresentam certa identidade comum: ambas têm nome; ambas têm domicílio; ambas têm patrimônio, bem comopossuem uma reputação a zelar, admitindo-se, por isso, o dano moral para a pessoa jurídica, desde que seja para proteger sua honra objetiva, dado o conceito e a credibilidade que tem na sociedade. Logo, se a pessoa jurídica é susceptível de ser lesionada moralmente em sua imagem e, por conseguinte, demandar reparação pelos danos que vier a sofrer, também por extensão, tem o direito de requerer judicialmente a tutela ao seu respectivo direito ao esquecimento de quaisquer atos ou fatos em 19 ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção Constitucional da Própria Imagem. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. Pag. 74. Página 133 de 270 que tenha sido envolvida e cuja divulgação contínua possa acarretar consideráveis danos ao exercício de sua atividade econômica. Reexaminando o caso em apreço, a título de análise meramente exemplificativa – tendo em vista que não houve qualquer requisição judicial por parte da Coca-Cola no sentido de resguardar-se seu direito ao esquecimento dos fatos anteriormente citados –, cumpre apontar para o inequívoco direito de ter garantido o esquecimento do que foi objeto de litígio. Primeiro, porque após devida apuração mediante farta e diversificada comprovação dos fatos, as acusações imputadas à Coca-Cola se evidenciaram infundadas; segundo, porque caso se permitisse que os fatos fossem novamente divulgados ou permanecessem constantemente ativos (e mesmo reativados) sem as devidas ressalvas, poderiam implicar em sérios prejuízos à marca, com possível redução de vendas. E, por fim, porque constitui consenso de que a veiculação de quaisquer informações inverídicas ou tendenciosas que possam causar prejuízo à imagem pública de uma pessoa natural ou jurídica é passível de direito à retratação e de reparação por danos. Sendo assim, em se comprovando irrefutavelmente que as informações mantidas em certas bases de dados eletrônicas possam ocasionar perdas irreparáveis tanto materiais, quanto morais, é razoável que se assegure à pessoa jurídica o direito ao esquecimento como forma de se salvaguardar o direito ao trabalho e a livre iniciativa, estipulados pela Carta Magna como pilares de nossa República Federativa do Brasil. Portanto, constata-se que a extensão do direito ao esquecimento à pessoa jurídica representa possibilidade efetiva e imprescindível à defesa do seu direito à imagem, embora sua aplicação não possa ser automática ou simplória. É preciso ponderar a fim de não se tolher o direito, no caso da imprensa televisiva, radiofônica ou impressa, de divulgar, de modo contextualizado, fatos relevantes e de interesse público; por outro lado, deve-se sopesar o direito ao esquecimento de atos e fatos cuja lembrança só tragam à memória o que possa constituir-se em prolongamento de mal-estar que impeçam a continuidade do andamento normal da atividade econômica desenvolvida pela pessoa jurídica. Em sendo possível constatar que o esquecimento de certos fatos nocivos ao bom nome empresarial se revela crucial para o bom andamento das atividades da pessoa jurídica, vigora a tese do direito ao esquecimento, conquanto não se esteja a impedir o acesso dos cidadãos a informações (mormente verídicas) de conteúdo e interesse social relevante. Página 134 de 270 Conclusões A tese do direito ao esquecimento ganha adeptos em idêntica velocidade com que suscita confrontações. Como falar-se em esquecimento na sociedade da informação? Como apagar da memória coletiva dados e informações, sem que se possa validamente atestar violação ao direito fundamental de liberdade de expressão? Seria viável, enfim, resguardar a hipótese de se determinar a remoção ou apagamento de notícias e fatos, ao mesmo tempo em que se preserva o direito ao conhecimento de informações que podem ser fundamentais à composição da cultura de um povo? As respostas a todos estes questionamentos não se revelam simples. É fato, todavia, que, apesar de haver dificuldades para tal desiderato, torna-se possível contrapor as informações que podem e devem ser rememoradas, de modo a se preservar a história de uma nação e de uma sociedade, dos fatos que compõem apenas e tão somente a trajetória de vida de um indivíduo (ou, ocasionalmente, de uma pessoa jurídica). Fatos inverídicos e desabonadores da honra, imagem, privacidade e outros direitos que compõem a esfera da personalidade merecem o devido esquecimento; mas, para além disso, até mesmo alguns fatos verídicos podem ser legados ao esquecimento. Afinal, a verdade, fora de seu contexto, pode revelar mais do que deveria; mal posta, em maus termos, a verdade pode induzir à mentira. Todo acontecimento tem seu contexto histórico; isolada deste contexto, os fatos se perdem em sua essência e em seu lugar. E é neste espaço, de difícil concretização (eis que se revela tarefa árdua precisar o que é ou não componente da memória coletiva ou apenas da vida privada das pessoas), que reluz a tese do direito ao esquecimento. Em relação às pessoas naturais, cuja dignidade deve ser preservada, e mesmo quanto às pessoas jurídicas, cuja honra objetiva e interesses patrimoniais merecem resguardo jurídico, é possível invocar-se, pois, um direito ao esquecimento. Trata-se não mais do que deixar que as pessoas, afinal, sejam deixadas em paz, e possam seguir suas trajetórias sem que sejam atingidas pelas mágoas e máculas do passado. Referências AGÊNCIA BRASIL.Há 20 anos, Fernando Collor de Mello foi o primeiro presidente do Brasil a sofrer processo de impeachment.Portal EBC. 2014. Disponível em: Página 135 de 270 <http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2012-09-29/ha-20-anos-fernando-collor-demello-foi-primeiro-presidente-do-brasil-sofrer-processo-de-impeachment> Acesso em 06/05/2014. ÂMBITO JURÍDICO.Xuxa vence na Justiça e impede distribuidora de vender filme Amor, Estranho Amor.Disponível em:<http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=visualiza_noticia&id_caderno=20&id_noticia=95431> Acesso em 22 de maio de 2014. ÂMBITO JURÍDICO. Xuxa não consegue restringir pesquisa no Google. Disponível em:<http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=visualiza_noticia&id_caderno=20&id_noticia=85709>Acesso em 22 de maio de 2014. ÂMBITO JURÍDICO. TJ proíbe Record de exibir imagens da apresentadora Xuxa nua. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=visualiza_noticia&id_caderno=20&id_noticia=86206>Acesso em 22 de maio de 2014. ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção Constitucional da Própria Imagem. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro.Volume I, 22ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. JORNAL NACIONAL. STF absolve Fernando Collor em ação do período em que era presidente.Portal G1. 2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornalnacional/noticia/2014/04/stf-absolve-fernando-collor-em-acao-do-periodo-em-que-erapresidente.html> Acesso em 06/05/2014 JUSBRASIL.Google ganha batalha contra Xuxa no STJ. Disponível em: <http://oabrj.jusbrasil.com.br/noticias/3165196/google-ganha-batalha-contra-xuxa-no-stj> Acesso em 26 de maio de 2014. LINK NOTÍCIAS DE TECNOLOGIA.Espanhol conquista „direito ao esquecimento‟ na internet.Portal Estadão. 2014. 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Página 137 de 270 DIREITO À INTIMIDADE À LUZ DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.815 DISTRITO FEDERAL Marcela Santiago Pereira de Melo1 Maria Cristina Paiva Santiago2 Resumo: O presente artigo pretende expor as divergências entre os direitos da personalidade e a liberdade de expressão, adotando comoparadigma a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815 Distrito Federal. Iniciamos o estudo com a constitucionalização do direito privado, que surgira no Brasil ao final do século XX, e trouxe consigo inúmeras mudanças tanto na nossa Constituição, quanto no Código Civil. Continuamos com a conceituação de dignidade da pessoa humana, com o objetivo de esclarecer a base do Novo Código Civil, voltada para o valor humanitário, e também o foco da nossa Constituição. Ao adentrarmos nos direitos da personalidade, passamos a explanar as divergências existentesentre odireito à intimidade, à privacidade e o direito à informação, à liberdade de expressão e de imprensa. Tem como objetivo específico o estudo dessa dicotomia e a análise do caso que chegou ao Superior Tribunal de Justiça acerca das biografias. A presente pesquisa será feita mediante disposições doutrinárias, buscando remover o tema discutido do âmbito teórico para o prático. Visto que a colisão entre os direitos da personalidade e os direitos à informação não possuem uma construção legislativa ampla, nosso estudo fora realizado por método dedutivo, baseando-se nos direitos fundamentais listados na Constituição Federal, para que dessa forma possamos compreender melhor o confronto existente entre tais direitos e suas consequências. Palavras-chave: Constitucionalização do direito privado; Dignidade da pessoa humana; Direitos da personalidade; Liberdade de expressão; Liberdade de imprensa. Resumé: Cet article vise à exposer les différences entre les droits de la personnalité et de la liberté d'expression, en prenant comme exemple l'action directe en inconstitutionnalité 4815 District fédéral. Nous avons commencé l'étude avec la constitutionnalisation du droit privé, 1 Bacharela no curso de direito do Unipê, email: [email protected] Maria Cristina Paiva Santiago, professora de direito do Unipê e da Universidade Federal da Paraíba, email: [email protected] 2 Página 138 de 270 qui a émergé au Brésil à la fin du XXe siècle et a apporté de nombreux changements à la fois dans notre Constitution, comme dans le Code civil. Nous continuons avec le concept de la dignité humaine, afin de clarifier la base du nouveau Code civil, dirigé à la valeur humanitaire, et aussi la mise au point de notre Constitution. En traitant des droits de la personnalité, nous expliquons les différences entre le droit de l'intimité, à la vie privée et le droit à l'information, la liberté d'expression et le droit de la presse. Nous avons, comme objectif spécifique de l'étude, cette dichotomie et l'analyse de l'affaire qui a atteint la Cour suprême sur les biographies. Cette recherche se fera par des déclarations doctrinales, cherchant à retirer le sujet discuté du domaine théorique à le domaine pratique. Depuis la collision entre les droits de la personnalité et le droit à l'information n'a pas de structure législative approfondie, notre étude a été réalisée par la méthode déductive, basé sur les droits fondamentaux énumérés dans la Constitution, de sorte que, de cette manière, nous pouvons mieux comprendre la confrontation existante entre ces droits et leurs conséquences. Mots-clés: Constitutionnalisation du droit privé; Dignité humaine; Droits de la personnalité; Liberté d'expression; Liberté de la presse. Introdução Para apresentar o devido trabalho, o intitulamos como: Direito à Intimidade à luz da Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 4.815 Distrito Federal. Temos que a questão debatida pelo tema é bastante atual, por existirem diversas controvérsias e discussões a respeito do direito à intimidade e à privacidade em confronto com as liberdades de informação. O determinado estudo expõe as ponderações entre mencionados direitos e garantias fundamentais, que são a base do nosso ordenamento jurídico, voltado sempre para a tutela da dignidade humana. Diante do empasse entre os ícones dos direitos da personalidade, em especial, os direitos à imagem, à honra, à intimidade, à privacidade, nome e os direitos de informação, liberdades de expressão, de imprensa, aplicaremos a análise no caso prático perante um Página 139 de 270 julgamento ocorrido no Superior Tribunal Federal, acerca das biografias, tido como: Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815 Distrito Federal. Desse modo, podemos vislumbrar mais ainda a importância do tema abordado se considerarmos a sociedade do nosso país nos dias de hoje, e se pesarmos também, o avanço tecnológico, virtual e informativo em que vivemos, capaz de propagar notícias de maneira desenfreada e incontrolável. Por isso, nos vêm as seguintes perguntas: até onde irá o direito à informação e o direito à privacidade? A sociedade pode se informar, mas a vítima ou a família da vítima não possui o direito à intimidade? Qual direito se sobrepõe em face do outro? A humanidade passou por diversas atrocidades e perdas, causando assim um certo receio em qualquer movimento que demonstrasse o mínimo de censura em seus direitos. Todavia, sabemos que os direitos fundamentais devem ser ponderados em cada caso concreto, passando por uma certa relativização evisando sempre condutas que não causem danos a outrem. No caso, o direito que prevalecerá é aquele que apoia a proteção do homem, que o defende e conserva a sua dignidade. Nessa ótica, discutiremos durante toda a pesquisa sobre a melhor maneira de por tal direito em prática. As questões problemáticas do tema são encontradas no nosso dia dia, por estarmos sempre rodeados de informações, pela internet, celulares, televisões, jornais; é impossível não ser manter informado sobre algo ou alguém. Dessa maneira, o avanço na tecnologia, apesar de trazer muitos benefícios, acaba de certa maneira afetando a vida privada das pessoas, pois, a qualquer momento podemos acessar informações sobre elas ou qualquer outro tema. Por isso, é preciso discutir como se deve agir diante de tais situações que confrontam à nossa intimidade, pois se não houver uma atenção maior, este mundo informativo pode chegar a atingir nossa imagem, nossa honra, nosso nome e, por fim, nossa dignidade. Então, por abordarmos um tema amplo, não é possível estudá-lo isoladamente, sendo indispensável iniciarmos pelos primórdios da reforma no Código Civil, em que o centro de estudo passa do patrimônio para a tutela do ser humano e adentrar nas garantias fundamentais, que pressupõem qualquer outro tipo de direito, como a liberdade de Página 140 de 270 expressão, liberdade de imprensa e direito à informação, quesitos regulares e assegurados pela nossa Constituição. Contituçionalização do direito privado e dignidade da pessoa humana Para a exata compreensão do sentido e alcance do fenômeno da constitucionalização, primeiramente revisitaremos alguns teóricos para, em seguida, abordarmos o tema da constitucionalização. Assim, para Hans Kelsen, em sua obra ―Teoria Pura do Direito‖, a hierarquização das normas, onde através de uma ―pirâmide jurídica‖, explicita que logo em seguida a uma norma hipotética fundamental, a Constituição deve estar acima de normas gerais (leis, costumes, valores, decretos, jurisprudências) e normas individualizadoras (decisões judiciais e negócios jurídicos)3. Desse modo, afirma José Afonso da Silva: A Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela o reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará a sua superioridade em relação às normas jurídicas4. Seguindo essa mesma linha de pensamento, tal tese fora aceita por grandes pensadores, dentre os quais destacamos Noberto Bobbio, filósofo italiano defensor do positivismo jurídico, que em sua obra ―Teoria do Ordenamento Jurídico‖, atesta que: [...]essa teoria serve para dar uma explicaçaõ da unidade de um ordenamento jurídico complexo [...] a norma fundamental é o termo unificador das normas que compõemum ordenamento jurid́ ico [...] sem uma norma fundamental , as normas constituiriam um amontoado, não um ordenamento5. 3 4 5 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito.1934,p.246-247 SILVA, José Afonso da.Curso de Direito Constitucional Positivo.1989, p. 45 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.1994, p.49 Página 141 de 270 A partir dessas ideologias foram verificadas divergências às diretrizes que o ordenamento jurídico se encaminhava, fazendo-se necessário uma atualização do direito em um plano geral. O fenômeno que concretizou tal renovação ficou conhecido como a constitucionalização do direito privado, que se dá pelasregras embasadas no âmbito do direito constitucional. Como mudança, pode-se constatar que os princípios constitucionais estão cada vez mais presentes no texto civil, provocando, inclusive, uma reforma neste.Desta feita, veio à tona o Código Civil de 2002, onde o centrodo sistema privado deixa de ser o patrimônio e passa para a tutela da pessoa humana, assim como afirma Paulo Lôbo6. Desse modo, o evento que podemos também chamar de repersonalização do direito civil desviou-se do foco material, para dar ênfase à dignidade da pessoa humana, centralizando-a no nosso ordenamento jurídico7. Também, nessa linha de pensamento, diz Eugênio Facchini: O patrimônio deixa de estar no centro das preocupações privatistas (recorde-se que o modelo dos códigos civis modernos , o Code Napoleon, dedica mais de 80% de seus artigos à disciplina jurídica da propriedade e suas relações), sendo substituído pela consideraçãocom a pessoa humana8. Ainda sobre o assunto, o desmembramento original entre as áreas do direito em público e privado, ocasionou com o tempo, uma individualização do direito civil no tocante as demais vertentes, máxime ao direito constitucional9. Nesse sentido, Tereza Negreiros explica que: […] oparalelismo entre direito civil e direito constitucional fica representado pela existência de duas ‗Constituições‘: ao lado da Constituição dirigida à disciplina da vida pública, o Código Civil era concebido como a ‗Constituição da vida privada‘, baseada na propriedade e no contrato10. 6 LÔBO, Paulo. Artigo sobre: Constitucionalização do direito civil: novas perspectivas.2013 LÔBO, Paulo. Artigo sobre: Constitucionalização do direito civil: novas perspectivas.2013 8 FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. 2006, p. 212 9 PASTRE, Daniel Fernando. Efeitos da Constitucionalização do Direito Privado na Interpretação dos Contratos: Análise Doutrinária e Jurisprudencial. 2011. 10 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato – novos paradigmas.2006, p. 49 7 Página 142 de 270 Como vem sendo elaboradopelos estudos dos civilistas, não se trata, apenas, de estipular a necessária comunicação entre os diversos conhecimentos jurídicos, com destaque entre o direito público e o direito privado. Não há, tão somente, a intenção de apurar a inclusão do direito civil na Constituição jurídico-positiva, mas os princípios de sua legalidade, que dela devem ser retirados11. Breves Ponderações Históricas Sobre A Constitucionalização Para Silva, o marco inicial da constitucionalização do direito privado, ocorre com o caso Luth12, onde a decisão do Tribunal Constitucional Alemão se manifestou, dizendo: A Constituição, que não pretende ser uma ordenação axiologicamente neutra, funda, no título dos direitos fundamentais, uma ordem objetiva de valores, por meio da qual se expressa um (...) fortalecimento da validade (...) dos direitos fundamentais. Esse sistema de valores, que tem seu ponto central no livre desenvolvimento da personalidade e na dignidade humana no seio da comunidade social, deve valer como decisão fundamental para todos os ramos do direito; legislação, administração e jurisprudência recebem deles diretrizes e impulsos13. O supracitado caso, influenciará bastante o direito constitucional, manifestando-se, assim, toda a organização da constituição como relação de valores e da eficácia transmitida dosdireitos fundamentais, entendendo-se por eficácia perante terceiros14. 11 LÔBO, Paulo. Artigo sobre: Constitucionalização do direito civil: novas perspectivas.2013 Sobre o caso Luth, Murillo Sapia Gultier explica que: ―no caso concreto, um cineasta fez um filme e um jornalista propagou uma grande campanha de boicote, dizendo que o cineasta era nazista. Entretanto, o filme em si nada falava acerca do nazismo, consistindo em uma comédia romântica. O boicote era em razão do cineasta e de seu pretenso passado e não quanto ao filme. A represália surtiu efeito e o filme fracassou, resultando em prejuízo ao cineasta que investiu na produção. Em razão disso, o cineasta ingressou com um pedido de indenização, com base em uma norma do Código Civil Alemão, a qual prevê que todo aquele que causa dano ao outrem tem o dever de indenizar. O cineasta logrou êxito nas instancias originárias, mas a corte constitucional reverteu o julgamento, uma vez que entendeu que as normas do ordenamento devem ser interpretadas à luz dos valores propostos pelos direitos fundamentais. Assim, em que pese o dispositivo do Código Civil Alemão determinando a indenização, este deveria ser interpretado de acordo com o direito fundamental de liberdade de expressão‖. (GULTIER, 2010) 13 SILVA, José Afonso da.Curso de Direito Constitucional Positivo, 2005, p. 42 14 GUTIER, Murillo Sapia.Constitucionalização do Direito Civil: A eficácia da Constituição e dos Direitos Fundamentais no direito privado.2010 12 Página 143 de 270 No Brasil, a constitucionalização do direito civil, fortalecida a partir da última década do século XX, foram realizadas diversas pesquisas e estudos, que trouxeram à tona a dimensão dos valores discutidos e a insuficiência na codificação do ordenamento jurídico, obrigando, dessa forma, à inserção das regras constitucionais no tocante a crucial relevância da pessoa humana, que sobrepõe-se, imensuravelmente, sob a idéia patrimonialista15. Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo necessitava de uma ordem que respeitasse os direitos dos seres humanos. Após sofrerem inúmeras barbáries que vetassem seus direitos à liberdade em sentido amplo, fora proclamada a Declaração Universal de Direitos Humanos – DUDH, marco inicial para o ápice da humanização dos direitos e garantias fundamentais16. Como visto no preâmbulo da Declaração Universal de Direitos Humanos, destacase sem cessar, os direitos e liberdades de todos, à igualdade, o reconhecimento da dignidade e do valor do ser humano, e a importância da compreensão de todos esses princípiospara o seu devido cumprimento. Lembramos nessa oportunidade, que a referida declaração inspirou a criação de um tratado, conhecido como Pacto de San José da Costa Rica, que fora assinado entre os integrantes da Organização dos Estados Americanos - OEA, durante a Conferência Especializada Interamericana sobre direitos humanos, passando a vigorar no dia 18 de julho de 197817. A Convenção tem por objetivo fixar um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos humanos essenciais, sendo estes fundamentados nos próprios atributos da pessoa humana, e não derivando do fato de ser ela nacional de determinado Estado, como prescreve o preâmbulo do supracitado pacto, de modo que conclui-se a eficiência da Declaração Universal de Direitos Humanos no ordenamento jurídico em geral18. Conforme, Ingo Wolfgang Sarlet, em sua discussão sobre os pontos de contato entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, cita que: 15 LÔBO, Paulo. Constitucionalização do direito civil: novas perspectivas.2013 SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2011, p. 76 17 Decreto Nº 678: Pacto de São José da Costa Rica. 1992, p. 1 18 Declaração Universal dos Direitos Humanos.1948, p. 2-3 16 Página 144 de 270 [...] a Constituição, a despeito de seu caráter compromissário, confere uma unidade de sentido, de valor e concordância prática ao sistema de direitos fundamentais, que, por sua vez, repousa na dignidade da pessoa humana, isto é, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado, razão pela qual se chegou a afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana atua como o ―alfa e ômega‖ do sistema das liberdades constitucionais e , portanto, dos direitos fundamentais19. A dignidade da pessoa humana como parâmetro em nossa Constituição, a torna, por primazia, diante do reconhecimento e proteção ao ser humano, puramente voltada ao interesse do indivíduo, fazendo, por conseguinte, com que esse princípio afirme-se com legitimidade, conforme evidencia o artigo 5º da Constituição20. Sobre o modo como é interpretado a utilização da dignidade da pessoa humana, são muitas as controvérsias existentes, pois, apesar desse fundamento intervir como agente primordial dos direitos e garantias fundamentais, há uma vasta visão à respeito da conexão entre eles.Oessencial, porém, é compreender que em meio às diversas minúcias da Constituição Brasileira, apesar de nem sempre haver uma ligação direta de que a causa dos direitos fundamentais seja explicitamente a dignidade da pessoa humana, não a diminui em continuar como parâmetro primordial e via de significado ao conjunto dos direitos fundamentais21. Vale ressaltar que: [...] a idéia de acordo com a qual o princípio da dignidade da pessoa humana imprime unidade de sentido ao sistema de direitos fundamentais não resulta imune a controvérsias, visto que não 19 SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988.2011, p. 91 20 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. 21 SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988.2011, p. 94 Página 145 de 270 afasta alguns pontos problemáticos, a começar pela ampla gama de conteúdos e dimensões que se atribui à noção de dignidade da pessoa humana em si, bem como na já referida, e não necessariamente linear e incontroversa, relação entre a dignidade e os direitos fundamentais22. Segundo o firmado por Jeremy Waldrom, a dignidade pode ser tanto o parâmetro dos direitos humanos e fundamentais, como o conteúdo desses direitos, dando-se o nome de ―dualidade de usos‖, mas, que não se trata de um conflito sobre qual função de dignidade será aplicada23. O fato é que o princípio da dignidade, como outros fundamentais expostos em nossa Constituição, conclui-se por critério material em diversas esferas. E que cada vez mais as sentenças adotadas em nossos Tribunais são baseadas unicamente na violação da dignidade, sem qualquer pressuposto aditivo, explanando os motivos pelos quais uma conduta é ofensiva a tal princípio. Na circunstância, consequentemente, elenca a dignidade como solução fundamental para as controvérsias existentes, porém, ocorre também o oposto, pois muitos casos terminam por contribuir mais para uma desvalorização do princípio, do que para sua eficácia24. São várias as decisões tomadas, partindo do pressuposto da dignidade humana, como bem lembra Sarlet, nos seguintes exemplos: [...]em relação aos casos de prisão civil na ordem jurídica brasileira, cumpre apontar a mudança de orientação por parte do Supremo Tribunal Federal, que a despeito de reconhecer – diversamente do julgado do Superior Tribunal de Justiça referido – apenas a hierarquia supralegal dos tratados de direitos humanos (superando, todavia, a tese anterior, da mera paridade ente tratado e lei ordinária), considera revogada a legislação permissiva da prisão do depositário infiel, invocando, além disso, os princípios da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana. Outra hipótese demonstra – no nosso sentir, de modo adequado – a utilização da dignidade da pessoa humana como fundamento da decisão (ainda que não se cuide do único fundamento legítimo), diz respeito à garantia de que uma pessoa idosa, acometida de doença grave, 22 SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988.2011, p. 94 23 WALDROM, Jeremy. Dignity and Rank.2007, p. 203-204 24 SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988.2011, p. 95-96 Página 146 de 270 mesmo tendo sido condenada à prisão pela prática de tráfico de entorpecentes, possa ainda assim cumprir a pena em regime de prisão domiciliar em regime fechado25. Ainda, a decisão proferida no Recurso Especial nº 1120676 (15.12.2010), em que se debatia o disposto no artigo 3º da Lei 6.194/74: [...]às indenizações pelo fato da morte, conceito que, de acordo com a exegese proposta pelo Ministro Paulo Tarso Sanseverino (acompanhada dos demais julgadores, vencido o Relator), deve abranger o nascituro, na condição de ser humano plenamente formado, embora ainda no útero materno, portanto, ainda não considerado pessoa na acepção do Código Civil. A matéria, de qualquer sorte, é controversa e dialoga com outros aspectos de relevo, inclusive no que diz com a proteção da dignidade nessa fase do desenvolvimento humano, bem como no tocante ao reconhecimento da titularidade de direitos humanos e fundamentais ao nascituro e mesmo em etapas mais precoces. Assim, não sendo o caso de aqui adentrar o debate, o que importa é a referencia a mais uma decisão invocando a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais como parâmetro hermenêutico, no sentido de uma interpretação conforme a dignidade e os direitos fundamentais26. Destarte, resgatamos, enfaticamente, a necessidade do princípio da dignidade da pessoa humana, posto como referencial no âmbito do processo hermenêutico, mesmo não adentrando no mérito das próprias decisões, e de plena normatividade para a resolução dos diversos conflitos jurídicos27. Como precursores do princípio da dignidade, os direitos fundamentais também devem ser utilizados não somente como critérios interpretativos para solucionar as adversidades no plano fático, mas o peremptório de que diante da dignidade não há dubiedade. Nessa lógica, afirma Alexandre Pasqualini, que: […] o fato de que ambos (dignidade e direitos fundamentais) atuam no centro do discurso jurídico constitucional, como um DNA, como um código genético, em cuja unifixidade mínima, convivem, de 25 SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2011, p. 97 26 SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2011, p. 97-98 27 SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988.2011, p. 98 Página 147 de 270 forma indissociável, os momentos sistemático e heurístico de qualquer ordem jurídica verdadeiramente democrática28. Assim, temos que levar sempre como parâmetro para a resolução dos conflitos jurídicos, os direitos fundamentais dispostos em nossa Constituição, e, mais ainda, priorizarmos a dignidade humana, que é a essência destes princípios básicos. Tutela Dos Direitos Da Personalidade No Ordenamento Civil Brasileiro Embora a maioria dos institutos jurídicos de direito civil tenham surgido na Antiguidade Romana, a tutela dos direitos da personalidade não foi introduzida pelo Direito Romano. Entretanto, podemos afirmar que na antiguidade clássica já se tinha notícia deuma ação chamada de actio injuriarum (contra a injúria), que cuidava dos casos pertinentes à violação contra a pessoa29. Sendo assim,verificamos que não existia uma categoria jurídica que tutelasse os direitos da personalidade, deixando muito vasto o real conceito e entendimento acerca deles30. Contudo, desde o pensamento clássico até os dias de hoje, notadamente por influência do Cristianismo, pregava-se uma doutrina de valorização do ser humano. Nas diversas religiões testemunhadas desde os primórdios da humanidade, em especial na cristã, o texto bíblico do Antigo e Novo Testamento apresentava passagens no sentido de que o ser humano fora feito à imagem e semelhança de Deus e que esse possui um valor próprio, ―que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento‖31. Ainda,na antiguidade clássica, o direito à personalidade dependia da posição social ocupada pelo indivíduo, tornando-o digno ou menos digno e, já no pensamento estóico,era tida como qualidade própria do ser humano, que o diferenciava das demais criaturas32. 28 PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e sistema jurídico. 1999, p. 80-1. FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.134 30 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.135 31 SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2011, p. 34) 32 SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2011, p. 34-35) 29 Página 148 de 270 No entanto, apenas após a Segunda Guerra Mundial, seguidado enorme massacre contra a humanidade, foi que o ser humano levou com seriedade a carência de uma ordem totalmente voltada para à pessoa humana, que acautelasse sua própria raça, e assim, em 1948, expediu-se a chamada Declaração Universal de Direitos Humanos33. Os diversos Códigos Civis foram retificados com o pós-guerra, pregando diretamente os direitos da personalidade. Essas normas manifestaram-se de forma mais explícita a partir do texto Constitucional de 1988, subsequente ao Projeto do Código Civil elaborado por Orlando Gomes, na década de 60. Tal projeto compreendia 16 artigos, que serviram de base para a formação das normas vigentes34. Mas, foi somente o Código Civil de 2002 que reconheceu verdadeiramente os direitos da personalidade, elencando-os dos artigos 11 ao 21 e trazendo consigo uma nova imagem ao direito privado na pós-modernidade, dando início a grandes mudanças de comportamento e compreensão de institutos jurídicos.35Nessa sequência, sobre os direitos da personalidade, temos que: [...] os chamados direitos da personalidade, enraizados na esfera mais íntima da pessoa e não mensuráveis economicamente, voltados à afirmação dos seus valores existenciais.Em sendo assim, considerando que a personalidade é um conjunto de características pessoais, os direitos da personalidade constituem verdadeiros direitos subjetivos, atinentes à própria condição de pessoa.Enfim, no dizer de Inácio de Carvalho Neto e Érika Harum Fugie, são eles, verdadeiramente, a medula da personalidade36. Esses direitos concorrem para o desenvolvimento da pessoa humana, abrangendo-a em toda sua formalidade (física, psíquica e intelectual), tornando-a como ser único, regido por suas determinadas características e com seus direitos assegurados para a preservação de tal individualidade e consequentemente, de sua dignidade37. Diante de tudo o que foi visto, podemos afirmarserde extrema importância a fundamentação de uma doutrina voltada para a valorização do ser humano, tendo toda ela, 33 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.135. FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.135 35 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.136 36 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.136 37 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.137 34 Página 149 de 270 desde os primórdios dos pensamentos históricos, influenciado sua implementação no campo jurídico atual. Segundo Immanuel Kant, um dos principais precursores desta teoria, temos que : O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que s dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim...Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres irracionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito)38. O ditame sobre as fontes dos direitos da personalidade são bastante discutidas, dividindo-se entre as razões jusnaturalistas e positivistas. Porém, no nosso ordenamento jurídico, prevalece que esses direitos são construídos no plano do direito positivo, e não meramente inerentes ao ser humano, como defende a corrente do direito natural, ainda propagada entre muitos doutrinadores39. Desse modo, podemos afirmar que surgiu uma necessidade social e apreensão propagada pelo avanço cultural devido a indiferença da era moderna e o desinteresse do Estado para com as questões humanitárias. Assim, o ser humano viu-se na responsabilidade de agir e criar uma política que o desviasse de qualquer fato comprometedor da sua integridade, encorajando, portanto, os tribunais germânicos a serem os precursores no âmbito dos direitos da personalidade40. Porém, essa luta se difunde até os dias atuais em países ainda adeptos a formas de punição que maltratam a dignidade do homem, como os seguintes exemplos: 38 KANT, Emmanuel. Fundamentos da Metafísica dos Costumes.1785, p. 134-135 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.138 40 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.139 39 Página 150 de 270 [...] situações ainda hoje existentes, nas quais queda inerte a tutela da humana, como nos países muçulmanos com suas penas corporais, nos países africanos com suas cirurgias de mutilação dos órgãos sexuais femininos e nos países que admitem a pena de morte. [...] Outro exemplo eloquente diz respeito aos direitos autorais que, embora classificados como direitos da personalidade, não são, às escâncaras, inatos, destruindo a tese jusnaturalista. Enfim, como afirmou Hannah Arendt, em passagem eloquente e célebre, ―os direitos humanos não são um dado, mas um construído‖41. Não obstante, os direitos da personalidade se firmaram no ordenamento jurídico brasileiro, tomando uma dimensão geral e abrangendo todos os ramos do direito. Esses direitos têm como característica fundamental sua indisponibilidade relativa, com exceção dos casos previstos em lei, que podem ser cedidosao exercício, como por exemplo o direito à imagem, capaz de ser transmitido atítulo oneroso ou gratuito42. A concessão dos direitos da personalidade é exequível, desde que não seja de natureza absoluta e genérica, ou seja, não pode ser perpétua.Essa permissão precisa ser passageira e singular, ainda respeitando a dignidade do titular.Ninguém pode renunciar ao direito da sua própria dignidade, pois, esta lhe é concedida em decorrência da sua condição humana43. Ainda sobre o assunto, temos como exemplo: [...] uma pessoa que consente em participar de um programa de televisão em que a sua integridade física é aviltada. No caso, a sua aquiescência é irrelevante, pois atenta contra a sua dignidade. Bem ilustra a hipótese, o interessante acórdão prolatado pelo Conselho Constitucional da França no célebre caso do ―arremesso de anões‖. Trata-se de importante precedente da jurisprudência francesa, cuidando de um estranho jogo, no qual os anões eram lançados à distância, com o auxílio de um canhão de pressão. Insurgindo-se contra decretos das prefeituras locais onde o jogo era praticado, proibindo a diversão pública, os promotores do jogo (e, pasmem! Os anões em litisconsórcio com os organizadores da diversão) ingressaram com medidas judiciais tendendo à liberação do certame. Confirmando a vedação administrative, a Casa Judicial 41 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.139 42 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.140-141 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.141 43 Página 151 de 270 francesa reconheceu que o ―respeito à dignidade humana, conceito absoluto que é, não poderia cercar-se de quaisquer concessões em função de apreciações subjetivas que cada um possa ter a seus próprio respeito. Por sua natureza mesma, a dignidade da pessoa humana está fora do comércio44. Deste modo, devemos lembrar que esses direitos possuem também a característica de vitalícios, atingindo sua extinção com a morte do titular, o que constata a sua intransmissibilidade45. Ressaltamos que, a tutela da personalidade jurídica de um morto permanece, assim como a de uma pessoa viva, como bem nos lembra o artigo 12 do Código Civil: Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau46. Então, mesmo queestedireito seja intransmissível, se propaga o direito à indenização e àreparação do dano moral, ou seja, uma transmissão no caráterpatrimonial,abrangendo os lesados em linha diretaou colateral até o quarto grau, assim como o previsto em lei47. Direito Da Personalidade Nas Relações Privadas: Direito À Intimidade Versus Liberdade De Expressão No Estado Democrático De Direito De acordo com os artigos do Código Civil que tratam dossupracitados direitos personalíssimos, encontramos os seus principais ícones que se inserem nos aspectos fundamentais da personalidade, como por exemplo: honra, imagem48, nome, privacidade49, dentre outros50. 44 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.141-142 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.143. 46 Código Civil. 2002 47 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p. 144 48 Vale a pena citar o texto de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, em que ―a imagem corresponde à exteriorização da personalidade, englobando, a um só tempo, a reprodução fisionômica do titular e as sensações, bem assim como as características comportamentais que o tornam particular, destacado, nas relações sociais‖. (FARIAS E ROSENVALD, 2009, p. 186) 45 Página 152 de 270 Quanto a estes ícones existem diversas discussões entre os doutrinadores brasileiros, pois não são abordados de forma específica pelo código. Tal fato ocorre porque o surgimento de novos valores incorporados na sociedade surgem à medida que a ciência e tecnologia avançam, e, por isso, é preciso compreender que estes direitos abrangem uma cláusula geral de proteção da personalidade.Esta universalidade dos direitos existe pois, ―na velocidade em que se operam as novas descobertas científicas e tecnológicas e considerando o estágio evolutivo da ciência‖, faz-se necessário uma proteção geral da personalidade, ―de modo a salvaguardar a tutela da pessoa humana‖51. Nesse sentido, pela característica desses direitos inesgotáveis, amparados por essa ampla defesa, temos que: [...] considerando a multiplicidade de situações a que se expõe a pessoa humana na (pós) modernidade, somente com o reconhecimento de uma cláusula geral de proteção (CF, art. 1º, III), de conteúdo principiológico, a ser preenchido no caso concreto pela jurisprudência, auxiliada pela doutrina, é que se pode garantir, eficazmente, a tutela da pessoa humana, impedindo violações das mais variadas naturezas ao ser humano52. Ainda sobre as citadas espécies de direitos personalíssimos, identificamos entre elas um fator comum: são tuteladas pela integridade psíquica. Todas regem a higidez mental do ser humano, que sem elas, perderia automaticamente sua dignidade53. Com a evolução da modernidade, esses direitos ficaram cada vez mais vulneráveis, sendo a Internet54principal ferramenta de tantos atentados à integridade moral, abrangendo um mundo digital fácil e rápido capaz de ofenderem inúmeras maneiras à dignidade humana55. 49 Quanto à privacidade: ―Trata-se, pois, da vida pessoal do ser humano, perpassando de um aspecto interior, incluindo aspecto amoroso, sexual, religioso, familiar, sentimental de uma pessoa, até um aspecto externo, muito mais amplo. É que o direito à vida privada trascende o direito de estar só. Não que este aspecto lhe seja estranho, mas porque é mais do que isto. (FARIAS E ROSENVALD, 2009, p. 193) 50 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p. 185 51 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 159 52 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 161 53 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 185 54 Internet – Rede mundial de computadores que conecta universidades, laboratórios governamentais, indivíduos, etc. (DICIONÁRIO TROPICAL, 1998, p. 385) 55 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 158 Página 153 de 270 Quanto à imagem, segundo Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, ―constitui a expressão exterior sensível da individualidade humana, digna de proteção jurídica‖. Podemos afirmar, então, que o direito à imagem é de imensa magnitude por apresentar-se tanto na Constituição Federal quanto no Código Civil, conforme os seguintes artigos56: Constituição Federal de 1988 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; Código Civil de 2002 Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. (Vide ADIN 4815) Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes. A partir da leitura dos artigos acima transcritos, verificamos que se utilizado qualquer meio capaz de ofender à imagem, intimidade, honra ou vida privada de outrem de forma abusiva, atingindo de tal maneira que viole algumdesses direitos, suscitará ao infrator a responsabilidade pelo dano moral ou material, obrigando-o a indenizar o ofendido. Questão polêmica é a que envolve o conflito de direitos fundamentais.De um lado tem-se o direito à intimidade, ao segredo, e de outro, tem-se o direito à liberdade de expressão. Para ilustrar tal situação, passamos a análise do caso das biografias. Análise Da Ação Direta De Inconstitucionalidade 4815 Distrito Federal Nessa sequência, segue explicação da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815 Distrito Federal: 56 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo.Novo curso de direito civil.2010, p. 220 Página 154 de 270 O objeto da presente ação, como antes relatado, é exatamente a interpretação de normas do Código Civil relativas à divulgação de escritos, a transmissão da palavra, a produção, publicação, exposição ou utilização da imagem de pessoa biografada, distinguindo-se obras biográficas de outros conteúdos que podem vir a ser divulgados, transmitidos, produzidos, publicados ou expostos (arts. 20 e 21 do Código Civil) e que, submetidos às normas de proteção daquele diploma legal, poderiam manter-se no espaço mais alargado atualmente adotado nas regras jurídicas vigentes e mesmo na jurisprudência predominante sobre a matéria. Liberdade de expressão e direito à liberdade de expressão57. Diante da decisão deferida pelo Supremo Tribunal Federal, pela relatoria da Ministra Carmen Lúcia, nos deparamos com diversos embates de direitos fundamentais, que de praxe se resumem no direito à intimidade versus direito à liberdade de expressão. Nessa sequência, é importante adentrarmos na questão da limitação desses direitos, que embora sejam vistos como primordiais e de caráter decisório, perdem essa diferenciação, a partir do momento que colidem com as garantias fundamentais de proteção à dignidade da pessoa humana58. Na audiência pública da discutida ação, um dos argumentos utilizados para esta ser deferida, foi o direito do cidadão à informação e à liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação. Sabemos que em um Estado Demorático de Direito, é crucial que exista a liberdade e direito de se informar e de ser informado, bem como revela nossa Constituição, no seu artigo 5º59. Nessa perspectiva, Luiz Alberto David Araújo, prescreve que: O direito de informar, ou de passar informações, tem um sentido constitucional de liberdade para informar. Em outras palavras, tratase de um direito fundamental de primeira geração, cuja preocupação consiste em impeder que o Poder Público crie embaraços ao livre fluxo das informações. […] O direito de se informar traduz igualmente uma limitação estatal diante da esfera individual. O indivíduo tem a permissão 57 Voto da Ministra Carmen Lúcia sobre a Publicação da Biografia. 2015, p. 27. FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 146 59 Voto da Ministra Carmen Lúcia sobre a Publicação da Biografia. 2015, p. 27 58 Página 155 de 270 constitucional de pesquisar, de buscar informações, sem sofrer interferências do Poder Público, salvo as matérias sigilosas, nos termos do art. 5º, XXXIII, parte final60. Temos como destaque no texto acima, que o direito à informação também vem presente na Constituição Federal, mostrando-se dessa maneira um direito fundamental tão quanto os direitos da personalidade. Desta maneira, diante desse confronto de direitos, ambos essenciais serem respeitados para que haja harmonia e ordem nas relações sociais, nos vem a pergunta: qual sofrerá limitações para a fixação do outro? Para respondermos tal pergunta, adentramos no aspecto concreto dos casos, que com suas particularidades, terão que ser solucionados na seara do Judiciário, acarretando na maioria das vezes em perdas e danos61. Por esse ângulo, Luis Roberto Barroso explica que: A questão é saber a extensão do poder judiciário na resolução destes conflitos entre direitos fundamentais, principalmente no que diz respeito à possibilidade de impeder previamente a liberdade de expressão em deferência à intimidade e à vida privada de terceiros62. Com isso, de acordo com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815, quanto ao conceito de biografia, temos que: […] é a escrita (ou o escrito) sobre a vida de alguém, relatando-se o que se apura e se interpreta sobre a sua experiência mostradae que, não sendo mostrada voluntariamente, não foi autorizado pelo sujeito ou por seus familiares a passarem para a coletividade. […] É a história de uma vida. Essa não acontece apenas a partir da soleira da porta de casa como anotado. Ingressa na intimidade sem que o biografado sequer precise se manifestar63. Deste modo, a partir do momento que a autorização para relatar a história da vida de alguém, sua intimidade, suas relações pessoais e sua privacidade, for abdicada, como será 60 ARAUJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional.2003, p.110 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 146-147 62 BARROSO, Luis Roberto. Revista Trimestral de Direito Civil.2002, p. 365 63 Voto da Ministra Carmen Lúcia sobre a Publicação da Biografia.2015, p. 98 61 Página 156 de 270 possível controlar para que os direitos à integridade moral não sejam feridos? Sabemos que o direito à liberdade de expressão e à informação, são tidos como fundamentais para a existência de um país abençoado pela democracia, mas, não podemos caracterizà-los como direitos absolutos, porque antes deles, está o âmago da nossa Constituição, a própria dignidade do ser humano, o seu direito ao resguardo, à decência, a sua moralidade. Nesse sentido, preceitua Gilberto Haddad Jabur: A liberdade de imprensa não é, a exemplo do direito que a institui (liberfdade de pensamento), absoluta. O direito de informar não é maior que outros direitos de igual envergadura, os quais, de tal sorte, recebem o mesmo tratamento constitucional que observa, decerto, temperamentos em prestigious dos valores sociais e éticos, e, em primeiro plano, a dignidade humana64. Como o discutido pelo embate, no plano bibiográfico, não apenas o bibiografado sofrerá danos, mas também, no caso desse estar morto, o cônjuge, ascendentes ou descendentes serão os lesionados responsáveis65. Nessa perspectiva, para compreendermos melhor a importância da conservação dos direitos perssonalíssimos diante dos direitos à liberdade de imprensa, informação e expressão, devemos nos ater a preservação do ser humano. Assim comoconstata Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: Por isso, embora a liberdade de imprensa também se apresente proteção especial e diferenciada, açada ao status de direito fundamental constitucional, não poderá o seu exercício ultrapassar o limite bem definido das demais garantias fundamentais. […] Em casos tais (colisão de direitos da personalidade e liberdade de imprensa), é certa e incontroversa a inexistência de qualquer hierarquia, merecendo, ambas as figuras, uma proteção constitucional, como direito fundamental. Impõe-se, então, o uso da técnica de ponderação dos interesses, buscando averiguar, no caso concreto, qual o interesse que sobrepuja, na proteção da dignidade 64 JABUR, Gilberto Haddad. Liberdade de Pensamento e Direito à Vida Privada: conflitos entres Direitos da Personalidade. 2000, p. 336 65 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 144 Página 157 de 270 humana66. Ante a citação acima, aproveitamos para mergulhar na maneira como lidar com determinada colisão de direitos, pois, como explicita a passagem, é preciso o uso da técnica de ponderação dos interesses, analisando cada caso concreto em sua peculiaridade e mantendo como base de eleição, a proteção da dignidade humana67. Ora, sabemos, pois, a importância da liberdade de informação e da imprensa, especialmente no âmbito de pessoas públicas, que,sem dúvida, são tratadas com maior evidência, e, mais ainda, quando certa notícia é em prol do interesse coletivo. Como bem frisa Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: ―as liberdades públicas funcionam a partir de garantias contitucionais impondo condutas positivas ao Estado para que estejam assegurados os direitos da personalidade‖68. Nesse aspecto, destacamos que: Interessante hipótese é formulada por GUSTAVO TEPEDINO, inspirado em STEFANO RODOTÁ,lembrando do politico que professa um exacerbado moralismo e, posteriormente, é surpreendido, pela imprensa, em situaçãoo que contradiz as idéias pregadas. Conclui ser possível veicular a notícia desse caso, a bem do interesse público. Identicamente, a divulgação de fatos que envolvem sonegação fiscal comprovada não atenta contra os direitos da personalidade, bem assim como não caracteriza abuso a veiculação normal de informação sobre eventuais apurações procedidas no âmbito de inquérito policial69. Dessa forma, entendemos a presença da relativação no ordenamento jurídico brasileiro, reconhecendo que não possuem caráter absoluto, nem são ilimitados, podendo sofrer alterações a partir da hipótese apresentada70. Conforme o debatido pela Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815, nos voltamos a apresentá-la, ante uma ótica relativista, e recordamos um dos argumentos utilizados para sua validade, em que, persistir na autorização para a publicação de uma biografia, seria uma 66 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 146 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 146 68 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 145 69 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 146. 70 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 146-147 67 Página 158 de 270 afronta à democracia, caracterizando-se em meio de censura71. No instante, rebatemos com a seguinte tese de que o controle da liberdade de imprensa não à proíbe de exercer seu papel, mas apenas ―põe na balança‖ sua conduta. Logo, é normal numa abundante Constituição como a nossa, ―impor uma relativização no exercício de todo e qualquer direito, quando colidir com outros valores, também constitucionais, de proteção da pessoa humana‖72. Nessa lógica, registra Edílsom Farias que, não é possível: […] confundir censura com controle jurisdictional da legalidade no exercício da liberdade de comunicação social, que é função reservada aos juízes e tribunais na democracia constitucional […] Isto é, não constituem censura as medidas judiciais decretadas para apurar a responsabilidade dos meios de comunicação social no exercício de sua atividade informativa73. Dessa forma, discernimos o caráter não absoluto dessas liberdades comunicativas, diante de uma sociedade massificada pela quantidade de informações, que propaga notícias sem o condão da veracidade, de cunho meramente sensacionalista, mas que, ao mesmo tempo, são regras constitucionais fundamentais para nossa democracia, se, todavia, respeitarema barreira de limites, propagando de forma saudável todo o tipo de publicação74. Nesse ponto de vista, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, expôs em seu artigo 11 que: A livre manifestação do pensamento e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem: todo o cidadão pode portanto falar, escrever, imprimir livremente à exceção do abuso dessa liberdade pelo qual deverá responder nos casos determinados pela lei75. Assim sendo, chegamos a contemplar a utilização do instituto da ponderação de interesses, em que o atrito existente entre os direitos da personalidade e a liberdade de 71 Voto da Ministra Carmen Lúcia sobre a Publicação da Biografia.2015, p. 62 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 147-148 73 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos. A Honra, a Intimidade, a Vida Privada e a Imagem versus a Liberdade de Expressão e Informação. 1996, p. 284) 74 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 191-192 72 75 Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789, artigo 11 Página 159 de 270 expressão deverão ser solucionados conforme apreciação casuística, com a análise do caso concreto, para assim definir qual direito triunfará sobre o outro76. Considerações Finais O meio informativo, a celeridade e o progresso tecnológico, não nos possibilita mais viver sem que sejamos observados, fotografados, nem esquecidos. Hoje, até na hora da nossa refeição, tiramos uma foto para publicar nas redes sociais a nossa comida. Pois bem, o mundo virtual adentrou em nossa casa. Conforme o embate discutido nos capítulos acima, entre direitos da personalidade e liberdade de expressão, devem ser averiguados com cautela, tratando de cada caso concreto pela sua singularidade e não esquecendo, no entanto, a premissa de priorizarmos a tutela da dignidade humana. Acerca da questão das biografias, é muito criticado por diversos doutrinadores o uso da autorização para publicá-la, pois atestam que dessa maneira acaba ferindo as liberdades de expressão, de informação, de pensamento e motivam a censura. Entretanto, não concordamos com isto. Sabemos que a biografia é a história da vida de alguém, das suas experiências, relações pessoais, enfim, a sua imagem, intimidade, honra e privacidade são expostas de alguma maneira. Logo nos perguntamos, como alguém pode ser privado do direito de escolha sobre querer externar ou não sua vida? De fato, entendemos que os fatos históricos, as notícias que interessam ao povo, não podem e nem devem ser vetadas. É direito do cidadão ter acesso à todas as informações e dever do Estado propagá-las, garantindo assim a seguridade social. Por isso, o que verdadeiramente importa é o respeito aos limites impostos pela colisão desses direitos fundamentais, optando sempre por àquele que protegerá a dignidade do homem. Finalmente, a razoabilidade se encontra na ponderação dos interesses, que deve lidar com cada caso concreto, elegendo sempre o que irá beneficiar o ser humano. 76 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 146-147 Página 160 de 270 Referências _______. Código Civil (2002). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/110406.htm>. Acesso em: novembro 2015 _______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: novembro 2015 _______.Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dudh.org.br/wp-content/uploads/2014/12/dudh.pdf>. Acesso em: novembro 2015 _______. Decreto Nº 678. Disponível em:<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1992/decreto-678-6-novembro-1992449028-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: novembro 2014 _______. 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FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral, 8ª edição, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2009 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos. A Honra, a Intimidade, a Vida Privada e a Imagem versus a Liberdade de Expressão e Informação. Porto Alegre: Fabris, 1996 GUTIER, Murillo Sapia.Constitucionalização do Direito Civil: A eficácia da Página 161 de 270 Constituição e dos Direitos Fundamentais no direito privado. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7250> Acesso em novembro 2015. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo.Novo curso de direito civil. Parte Geral. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. JABUR, Gilberto Haddad. Liberdade de Pensamento e Direito à Vida Privada: conflitos entres Direitos da Personalidade. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. KANT, Emmanuel. Fundamentos da Metafísica dos Costumes. Trad. de Lourival de Queiroz Henkel. São Paulo: Ediouro, 1785 KELSEN, Hans. 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A modificação axiológica a que foi submetida a Ciência Jurídica destaca o princípio da dignidade da pessoa humana como o pilar básico de sua estruturação, evidenciando a preocupação com a essência do homem antes desassistida. A positivação dos direitos da personalidade na Constituição de 1988 e posteriormente no Código Civil de 2002 e o uso indiscriminado da dignidade do homem como fundamento genérico em peças jurídicas são sintomas diametralmente opostos de vantagem e de prejuízo, respectivamente, causados pelas alterações ocorridas no sistema. Uma nova perspectiva é, então, enfocada, ao ser ressaltada a banalização da aplicação dessa regraprincípio, a partir da análise de casos concretos. Dessa forma, pretende-se reforçar a importância da interligação das vertentes privada e pública, ressaltando a necessidade de razoabilidade nesse estreitamento de relação, ao alertar para a tendente hipertrofia do standard. Palavras-chave: Humanização; Princípio; Dignidade; Personalidade; Ponderação. Abstract: This article aims to introduce the phenomena of constitutionalization and humanization of jusprivatista harvest, from a historical retrospective of Law Theories, so that the benefits and risks are perceived to be faced, after changing the legal landscape social. The axiological modification that was submitted to Legal Science highlights the principle of human dignity as the basic pillar of its structure, showing concern for the essence of man before unassisted. The positivization of personality rights in the 1988 1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Voluntária do Projeto de Extensão ―Mediação: Em busca de uma cultura de paz‖, sob a orientação da Profa. Raquel Moraes. Membro do Projeto de Iniciação Científica sobre Direito Econômico, sob a orientação da Profa. Flavianne Bitencourt. Email: [email protected]. Página 163 de 270 Constitution and later in the Civil Code of 2002 and the indiscriminate use of human dignity as a general foundation in legal parts are diametrically opposed symptoms of advantage and injury, respectively, caused by changes in the system. A new perspective is then focused , to be emphasized the trivialization of application of this rule-principle, based on the analysis of concrete cases .Thus, we intend to reinforce the importance of links between private and public aspects, emphasizing the need for reasonableness in this closer relationship, aimed to draw attention to the standard of hypertrophy. Key words: Humanization ; Principle; Dignity; Personality; Weighing. Introdução O Direito, no Brasil, possui um histórico cunho econômico, bastando-se observar a dedicação dos instrumentos à regulação de bens e de contratos majoritariamente. O estudo das teorias jusnaturalista, juspositivista e pós-positivista atrelado aos acontecimentos sociais permite um entendimento conjuntural de que a codificação, a constitucionalização e a humanização da Ciência Jurídica são resultados interligados que evidenciam o papel central crescente e inovador do ser humano. A compreensão da transição entre o enfoque do Código Civil para o destaque da Constituição requer uma noção básica de que o jusprivativismo puro cedeu lugar para a relativização das regras positivadas, em detrimento das normas principiológicas que regem o sistema internacional e adentraram no âmbito interno. O fenômeno da humanização, então, simboliza essa abstração ocorrida na seara privada, através principalmente da inserção da dignidade do homem como axiologia básica de todo o Direito. Os civilistas se veem hodienarmente aproximados dos direitos fundamentais constitucionais, uma vez que a interligação se estabeleceu precisamente. Percebeu-se a ascensão dos direitos da personalidade, em virtude de sua positivação, como resultado efetivo benéfico dessa transformação do sistema. Por outro lado, o standard da dignidade da pessoa humana foi recebido pelos juristas como ferramenta de uso genérico, na expectativa de que serviria de método prático e objetivo de encaixe em diversas situações concretas. Torna-se evidente uma nova perspectiva e desafio a ser enfrentado, quando se percebe uma aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana desregrada. O erro dos Página 164 de 270 aplicadores de que esse seria um meio de simples manuseio, devido ao alto grau de generalidade aparente, ocasiona um descontrole de qualidade, que afeta a funcionalidade geral da Ciência Jurídica. O objetivo desta obra é, finalmente, apresentar o caráter humano que se pode atribuir ao Direito Civil, a partir de conclusões teóricas evolutivas do sistema, e alertar a sociedade para a preocupante banalização do standard, que pode ser comprovada pela vislumbrarão breve de casos. Teorias do Direito Como Embasamento Para Compreensão dos Fenômenos de Constitucionalização e de Humanização da Seara Jusprivatista As vertentes teóricas do Direito analisam ontologicamente a estrutura jurídica, em observação concomitante às outras vertentes de conhecimento inseridas na sociedade, na tentativa de compreender a funcionalidade da ferramenta que detém os juristas e de fazê-la mais acessível e esclarecida. O jusnaturalismo, o juspositivismo e o pós-positivismo constituem os pilares orientadores das modificações sistemáticas que resultaram, de uma maneira geral, na constitucionalização e na humanização da seara jusprivatista. O modelo defendido pelos jusnaturalistas apresentava uma dupla dimensão jurídica de planos posto e natural como inferior e superior consecutivamente. Havia uma tendência valorativa desses teóricos a identificarem uma sistematização alopoiética, na medida em que demonstravam suas crenças em uma interligação indissociável do Direito, da Ética e da Moral. A ciência dos juristas manter-se-ia, assim, imersa em uma infinidade de conceitos e de matérias, ocasionando um distanciamento da racionalidade necessária e um aprofundamento da subjetividade. A proposta dos juspositivistas, por outro lado, pode ser mais bem vista, sucedida e aplicada nos ordenamentos até os dias hodiernos, na medida em que atendeu, durante muito tempo, às expectativas de segurança e de objetividade, em meio a uma tendência crescente de complexidade social. A autopoiese sugerida firmou a noção de que a Ciência Jurídica deve ter um acoplamento com as outras áreas de saber, mas manter também um fechamento cognitivo, para facilitar sua compreensão e aplicação. A multiplicidade característica do Jusnaturalismo cedeu lugar à supremacia da lei do Juspositivismo. Página 165 de 270 O processo de estabelecimento dos caracteres de autorreferência, de procedimento e de demonstração do Direito evidenciou o plano de codificação desencadeado pela influência do Movimento Juspositivista e Iluminista, como assevera Noberto Bobbio2: Este projeto nasce da convicção de que possa existir um legislador universal (isto é, um legislador que dita leis válidas para todos os tempos e para todos os lugares) e da exigência de realizar um direito simples e unitário. A simplicidade e a unidade do direito é o Leitmotiv, a ideia de fundo, que guia os juristas que nesse período se batem pela codificação. No Brasil, vigorou a reunião de conteúdos de relevância no Código Civil, que durante muito tempo foi considerado expoente único e perfeito de solução de conflitos até que o homem pós-moderno passou a exigir maior versatilidade e eficiência de seus ordenamentos e o ideal da codificação foi desfeito. Foram notadas as diversas falhas que compunham esse instrumento estático, em meio a um mundo dinâmico, tornando-se visível a premissa de que "o direito é produto da cultura"3. A frustação de a justiça e a estabilidade não terem sido alcançadas pela codificação associada à conjuntura posterior da Segunda Grande Guerra permitiu uma fragmentação do Direito, conhecida como Era de Descodificação de Natalino, referindo-se ao surgimento consequente de novos conjuntos de determinações normativas, e possibilitou a modificação das visões humanas acerca dos direitos e dos deveres que possuem. Concomitantemente, torna-se imprescindível a correlação de tal circunstância ao pós-positivismo jurídico, teoria bastante adequada a essa organização conjuntural. Os pós-positivistas identificaram a necessidade da modificação da agenda, isto é, do deslocamento da importância demasiada dada à feitura do texto da lei para o reconhecimento de que maior atenção deve ser oferecida à capacitação dos profissionais no momento de sua aplicação aos casos concretos. A subsunção, método técnico positivista, sofre alterações suficientes para uma tendência à liberdade criativa do operador do Direito, já que a mutabilidade e as variações apontam para novos desafios. Contemporaneamente, o complexo social-jurídico encontrou no desmembramento do sistema em outros autônomos e especializados uma alternativa para maior sistematização harmônica generalizada. 2 BOBBIO, Noberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone Editora Ltda, 1996, p. 65. 3 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: Direitos Fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 56. Página 166 de 270 A fracassada codificação encontrou na Constituição um pilar estruturado nas bases dos direitos fundamentais interessante a ser expandido e aplicado suplementar e complementarmente. A influência do Direito Constitucional tornou-se central e caracterizou o fenômeno da constitucionalização. O atendimento das normas da Carta Magna às aclamadas garantias conquistadas na História dos Direitos Humanos permite maior eficiência e conexão às reorganizações internas e externas ocorridas no mundo. Os direitos fundamentais foram alcançados após a superação de inúmeras e de graves diferenças entre os homens, a partir de uma lenta e difícil evolução, passando a simbolizar a pedra angular de praticamente todas as ordens jurídicas. Essa conquista é fruto do idealismo da soberania popular e ascendeu como ferramenta essencial ao desenvolvimento das nações. Todas as áreas do Direito foram invadidas pela sensibilização advinda dos princípios firmados e defendidos, incluindo a seara jusprivatista, fazendo-se refletir e influenciar na relativização das regras e na proposição do ser humano como o enfoque da defesa e da proteção jurídicas, como ressalta Gustavo Tepedino4: Com efeito, vive-se hoje cenário bem distinto: a dignidade da pessoa humana impõe transformação radical na dogmática do direito civil, estabelecendo uma dicotomia essencial entre as relações jurídicas existenciais e as relações jurídicas patrimoniais. Torna-se obsoleta a summa divisio que estremava, no passado, direito público e direito privado bem como ociosa a partição entre direitos reais e direitos obrigacionais, ou entre direito comercial e direito civil. A constitucionalização e a consequente humanização do Direito Civil acarretam uma visível conexão das searas privada e pública, gerando variadas reações nas matérias abrangidas principalmente pelo Código Civil e Constituição. As regras positivadas passam a ser relativizadas pelos standards, especialmente pelo da dignidade da pessoa humana, e os princípios abrangentes exigem maior especialização do profissional para a aplicação coerente. A funcionalidade jurídica sofreu uma guinada de transformações cujo plano de fundo eram as teorias do Direito e palco eram as mudanças sociais. A compreensão histórica e conceitual da constitucionalização e da humanização das áreas privadas despertou a curiosidade pelo entendimento do novo papel do homem em sociedade jurídica, pela influência desses fenômenos nos direitos da personalidade e pela perspectiva 4 TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Direito Civil. São Paulo: Revista da Faculdade de Direito de Campos. Ano IV, nº 4 e ano V, nº 5, 2003-2004, p. 170. Página 167 de 270 paradoxal de que o excesso do enfoque na proteção à dignidade pode trazer problemas à sua aplicação coerente e, assim, comprometer os desafios que precisam ser embasados intelectualmente nesse standard. Ser Humano no Centro do Ordenamento Jurídico: Princípio da Dignidade como Cláusula Geral de Tutela da Pessoa Registros desde a época dos estóicos e do início do Cristianismo apontam para as discussões acerca do princípio da dignidade humana, que sofreu alterações. É deveras verdade a acepção religiosa vinculada à Deus como fundamento desse standard, perdurando até a Idade Média com as contribuições de Tomás de Aquino. Pico Della Mirandola, na Era Moderna, com sua oratio hominis dignitate, desenvolveu pioneiramente a justificação da proposta do ser humano centralizado em sociedade fora da teologia. Nos Séculos XVII e XVIII, por outro lado, foi identificada a necessidade do respeito à dignidade de e por todos, tendo Samuel Pufendorf ainda se atido à influência do poderio político e firmado entendimento de que o monarca era o único que não precisava seguir ao corolário. Imanuel Kant, no entanto, sugeriu uma noção categórica e uniforme de que o homem é um fim em si, não podendo ser coisificado ou utilizado como meio de obtenção de qualquer objetivo. A Segunda Guerra Mundial interrompeu esse processo de sensibilização, sendo resultado dos horrores nela acontecidos o surgimento de extrema validade da despatrimonialização e a consequente positivação do princípio. A Declaração Universal das Nações Unidas de 1948, em seu artigo 1º, aponta para a dignidade da pessoa humana como fundamental, surtindo efeito em ordenamentos jurídicos diversificados, inclusive no Brasil. A partir da Constituição de 1988, os brasileiros observaram o inciso III no artigo 1º como reservado à tutela envolvendo situações de violações à pessoa, evidenciando a diferente perspectiva de proteção prestada pelo Direito. A variabilidade histórico-cultural associada à axiologia aberta do fundamento torna difícil uma significação precisa, sendo bastante utilizada a conceituação negativa pelos autores, isto é, o apontamento de atitudes que não podem ser realizadas, em virtude da dignidade humana. Porém, é evidente o papel do Estado para a garantia do standard, devendo ser positivo e negativo, como assevera Ingo Sarlet5: 5 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. p. 62. Página 168 de 270 (...) por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir condições existenciais mínimnas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e coresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. A dignidade da pessoa humana não pode ser acentuada através de um conceito único, uma vez que está interligada a outros aspectos, como a igualdade, a liberdade, a integridade psicofísica e a solidariedade, de acordo com Maria Celina de Moraes6. A conexão desses substratos materiais permite a diminuição do valor atribuído aos intercâmbios econômicos, em virtude da fixação da apreensão pelo oferecimento do bemestar individual do homem em meio coletivo. O aparato que a igualdade oferece transcende a formalidade, isto é, a garantia de paridade perante à lei, alcançando uma ideia moderna de que materialmente deve-se garantir o tratamento desigual dos desiguais, em virtude de se estabelecer o equilíbrio devido. As minorias passam a ser, portanto, atendidas e acolhidas. A liberdade procura sanar o desafio de tutelar a privacidade e o exercício desprendido da vida privada, em meio a uma sociedade diversificada. A integridade psicofísica atualiza, de certa maneira, o Direito às novas searas, como a bioética e o biodireito, buscando proteger os dados genéticos, a disposição do próprio corpo e outros sentidos da personalidade. Para proporcionar a formação de uma rede única de atendimentos ao homem, a preocupação com a coletividade é minimizada, na medida em que a solidariedade é incluída no patamar de defesa, almejando o implemento de ações de redistribuição de renda e de justiça fiscal, por exemplo. Os seres humanos passaram, então, a serem valor cardeal do sistema, sendo identificados como sujeitos de direitos. A dignidade constitui o princípio basilar que regula e indica as diretrizes a serem seguidas pelos operadores do Direito e, apesar de não existir hierarquia entre os standards, esse é o epicentro da ordem constitucional, que não cederá em face de qualquer outro. 6 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. São Paulo: Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VII, Nº 8, 2006, pp. 81-117. Página 169 de 270 O paradigma patrimonialista cedeu espaço à ascensão da importância dos direitos da personalidade como consequência dessa alteração do foco do Direito. A necessidade de abrangência de garantias e a consequente dificuldade de taxativas situações a serem tuteladas tornou a dignidade da pessoa humana como cláusula geral de tutela, de acordo com o que pontua Maria Celina de Moraes7: Aqui, e desde logo, toma-se posição acerca da questão da tipicidade ou atipicidade dos direitos de personalidade. Não há mais, de fato, que se discutir sobre uma enumeração taxativa ou exemplificativa dos direitos da personalidade, porque se está em presença, a partir do princípio constitucional da dignidade, de uma cláusula geral de tutela da pessoa humana. Como regra geral daí decorrente, pode-se dizer que, em todas as relações privadas nas quais venha a ocorrer um conflito entre uma situação jurídica subjetiva existencial e uma situação patrimonial, a primeira deverá prevalecer, obedecidos, assim, os princípios constitucionais que estabelecem a dignidade da pessoa humana como o valor cardeal do sistema. Direitos da Personalidade: Noções Básicas Os direitos da personalidade, inicialmente, foram introduzidos na Magna Carta de 1988, que já era embasada no princípio da dignidade humana. A crescente valorização do ser social permitiu a inclusão de algumas garantias em outras leis e normas do ordenamento jurídico, tendo sido o Código Civil o instrumento em que houve mais específico destaque para esse ramo de benefícios, devido ao Capítulo II ter sido reservado exclusivamente para a matéria. Pode-se entender a enumeração no instrumento civil dos direitos como exemplificativos, uma vez que são alguns dos vários tutelados pelo Estado. O tratamento do assunto foi limitado e genericamente abordado em dez artigos, ensejando a necessidade de uma interpretação analítica e extensiva à aproximação entre os estatutos que possuem tais previsões. Apesar de não haver conceituação expressa positivada, há que se considerar a analogia feita por Silvio Beltrão8: (...) os direitos da personalidade distinguem-se dos direitos pessoais, pois a base dos direitos da personalidade é a o fundamento ético da dignidade da pessoa humana, enquanto que os direitos pessoais são desprovidos deste fundamento, e acabam por significar um direito não patrimonial, em 7 MORAES, Maria Celina Bodin de. Ob. Cit., p. 117 e ss. BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da personalidade: de acordo com o novo código civil. São Paulo: Atlas, 2005. p. 50. 8 Página 170 de 270 relação aos direitos suscetíveis de avaliação em dinheiro, com um campo muito mais vasto de incidência (...) Apesar das divergências doutrinárias, é reconhecida a titularidade para pessoas naturais e jurídicas, naquilo que for cabível, de acordo com o artigo 52 do Código Civil, incluindo ainda no rol dos protegidos os nascituros. Algumas características dos direitos de personalidade os apontam como singulares no cenário do Direito Privado, como os caracteres de absolutos, de gerais, de extrapatrimoniais, de indisponíveis, de imprescindíveis, de impenhoráveis e de vitalícios. A proteção aos valores fundamentais do ser humano possui uma tendência crescente de expansão, sendo difícil uma classificação taxativa de searas tuteladas e se tornando compreensível a disposição básica de subdivisões relativas à tricotomia corpo, mente e espírito, como Pablo Stolze9 propõe. A vida e a integridade física, a integridade psíquica e as criações intelectuais e a integridade moral são os três grandes pilares em que se encaixam os âmbitos defendidos consequentes dos direitos da personalidade. A preocupação física engloba o direito ao corpo e à voz; o grupo relativo ao resguardo da psique humana desdobra-se em direito à liberdade, à liberdade de pensamento, às criações intelectuais, à privacidade e ao segredo profissional, doméstico e pessoal; e a última vertente referente à tutela valorativa abrange os direitos à honra, à imagem e à identidade. Percebe-se, então, a busca por um suporte eficiente do Direito ao homem, que procura atendê-lo em uma infinidade de questões concernentes a sua natureza. Carlos Alberto Bittar10 comprova tal ideia, ao apontar: Esses direitos correspondem, portanto, a diferentes planos em que a pessoa é enfocada, ou seja, em seu desenvolvimento físico e mental e em seus relacionamentos com a coletividade como um todo e com seus núcleos integrantes. Voltam-se para a posição do ser na coletividade: vale dizer, com a situação pessoal, ou familiar, da pessoa humana na coletividade. As ameaças e as lesões que afetam a natureza do homem tornam-se cada dia mais comuns, sendo as previsões legais instrumentos de defesa judicial. O antigo descaso às ofensas pessoais é esquecido em face da luta individual e coletiva das pessoas pelo 9 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. Vol. 1 (parte geral). 16ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 199. 10 BITTAR, Carlos Alberto; BITTAR, Eduardo C. B. Os direitos da personalidade. 6. ed./ rev., atual. e ampl. por Eduardo C. B. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 29. Página 171 de 270 reconhecimento e respeito às diferenças. O fundamento, no entanto, utilizado pelos afetados recai no standard da dignidade humana, e o uso indiscriminado enfraquece o vigor de tal princípio. A humanização do Direito Civil, evidenciada através dos direitos da personalidade, é bastante oportuna à organização e ao desenvolvimento jurídico e social, contudo o manuseio do princípio para causas controvertidas e, muitas vezes, contrárias às regras previstas no ordenamento servem de alerta para uma nova perspectiva e um diferente desafio a ser enfrentado pelos juristas. Alerta Para Aplicação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana: Balanceio Entre Humanização e Jusprivativismo O standard da dignidade humana ocupa o espaço de epicentro axiológico da ordem constitucional e a falta de compreensão do real sentido de tal situação ocasionou uma desordem no uso dessa ferramenta jurídica. Em detrimento de regras positivadas e a fim de justificar criações dos julgadores, o "princípio dos princípios" é hoje encontrado fundamentando indiscriminadamente questões diversas, sendo aplicado de maneira distorcida e identificado como um instrumento facilmente manuseável. A posição que a ideia principiológica possui leva a sociedade a obter um entendimento absoluto do caráter totalitário do standard, quando verdadeiramente é necessária e possível a relativização, através de um juízo de ponderação e de razoabilidade, na tentativa de compatibilizar o conflito específico à noção da dignidade. O sucesso na utilização do princípio, então, requer um nível de abstração alto e é conseguido com a prevalência do subprincípio que mais se aproxime da realização do corolário principal. Contemporaneamente, é preocupante o grande número de peças jurídicas em que não se observa um efetivo trabalho mental desenvolvido, em virtude de um bombardeio de princípios, majoritariamente o da dignidade da pessoa humana. A humanização é uma tendência que pode, muitas vezes, ser interpretada como pólo oposto ao jusprivativismo, devido à dificuldade dos operadores do Direito de encontrarem um meio-termo em suas atividades. Dessa forma, enquanto se observa o alerta para a hipertrofia do standard, é identificado o esquecimento das normas positivadas. Página 172 de 270 Alguns julgados precisam ser apresentados para ilustrar o problema ora debatido. O primeiro caso diz respeito a um condômino inadimplente que, com base no standard, requereu que fosse determinado o parcelamento do seu débito junto ao condomínio. O pedido foi julgado improcedente e a sentença confirmada pelo Tribunal competente. Do voto do relator, colhe-se: Quanto às alegações meritórias alegadas pela apelante, entendo serem desprovidas de adminículo de juridicidade que possa sustentar a reforma da r. sentença hostilizada. A apelante restringiu-se a insistir no parcelamento dos débitos condominiais, o que simplesmente não pode ser imposto pelo Julgador, se não for de interesse da parte autora-credora. Embora possa ela lamentar as dificuldades financeiras enfrentadas, não pode esquecer de que as taxas condominiais têm tratamento legal especial, pelos simples fato de que a inadimplemência contumaz prejudica toda uma coletividade, o que não pode ser endossado pelo Poder Judiciário. Tal proceder não afronta os princípios sociais norteadores da Carta Constitucional de 1988, nem atinge o princípio da dignidade da pessoa humana. (TJ-MG - Ap. Cív. n. 380.174-5, Ac. unân. da 4ª C. Cív. - Rel. Juiz Saldanha da Fonseca - Julg. em 04/12/2002)11 É notável o vazio normativo consequente da aplicação exacerbada da ideia da dignidade da pessoa humana. A banalização do standard é alarmante e precisa ser combatida, para que o sistema jurídico brasileiro atue de forma balanceada. Eis a perspectiva negativa da humanização do Direito Civil Constitucional: o homem, apesar de protegido pelos direitos da personalidade, encontra sua natureza sendo posta como justificativa para quaisquer pleito. De outra maneira, tem-se como segundo exemplo um recurso extraordinário em que se utilizava o princípio da dignidade da pessoa humana atrelado ao direito da percepção de salário para o cancelamento de descontos em folha de pagamento, antes aceitos, e permitidos pela Constituição. É evidente o esquecimento do arcabouço de regras normativas, na medida em que se busca o atendimento a um interesse específico através da alegação de que o caso é de repercussão geral, ao se fazer a interligação ao standard. O Supremo Tribunal Federal logo percebe o equívoco e indefere a ferramenta recursal, esclarecendo a ministra Ellen Grace: Empréstimo. Consignação em folha de pagamento autorizada pelo mutuário, no limite de 30% de sua remuneração. Alegação de violação aos arts. 1º, III (dignidade da pessoa humana) e 7º, X (proteção do salário), 11 Disponível em: <www.tj.mg.gov.br>. Acesso em: 21 de Fev. de 2016. Página 173 de 270 ambos da Constituição Federal, em face da ausência de interesse do recorrente no prosseguimento dos descontos em folha. Inexistência de repercussão geral, tendo em vista que a questão não ultrapassa os interesses subjetivos da causa. (...) 2. O recorrente alega violação dos arts. 1º, III e 7º, X, tendo em vista que os descontos em folha de vencimentos, embora tenham sido autorizados pelo recorrente, no presente momento encontram-se em contrariedade à sua manifesta vontade. 3. Observados os demais requisitos de admissibilidade do presente recurso extraordinário, passo a análise da existência de repercussão geral. Verifico que o pedido de cancelamento do desconto em folha de pagamento, em face da falta de interesse do recorrente no seu prosseguimento, questão versada no presente apelo extremo, não ultrapassa os interesses subjetivos da causa, nos termis do § 1º do art. 543A do Código de Processo Civil. 4. Ante o exposto, manifesto-me pela inexistência de repercussão geral. (RE 584536 RG, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, julgado em 04/12/2008, DJe-035 DIVULG 19-02-2009 PUBLIC 20-02-2009 EMENT VOL-02349-08 PP-01665)12 As situações apresentadas serviram de base para comprovar a impressão de que o princípio da dignidade da pessoa humana é visto como artimanha facilitadora de ganho de causas, perdendo evidentemente o valor que detém e a especificidade que requer seu tratamento. Como assevera Wesley Louzada Bernardo13: Utilizar-se do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento jurídico de pedidos insignificantes como os apontados, que em nada se relacionam com o projeto constitucional, serve apenas para desacreditá-lo e fundamentar as posições positivistas contrárias à aplicação direta dos princípios constitucionais às relações privadas. Dessa forma, um novo desafio a ser enfrentado pela sociedade jurídica é o incentivo à aplicação correta do standard, prezando-se o equilíbrio no manuseio desse instrumento na realidade do Direito, após a humanização, e se devendo interligar a axiologia ao jusprivativismo posivitista. O reflexo do estudo das Teorias do Direito é visível, a partir da análise doas visões benéficas e maléficas ocasionadas pela supremacia do homem no ordenamento jurídico. A inclusão prática de direitos da personalidade é o registro de um 12 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28dignidade+da+pessoa+humana% 29&base=baseRepercussao>. Acesso em: 21 de Fev. de 2016. 13 BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. O princípio da dignidade da pessoa humana e o Novo Direito Civil: Breves Reflexões. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VII, Nº 8. Junho de 2006. Página 174 de 270 grande avanço, mas a aplicação exacerbada e indiscriminada da dignidade da pessoa humana é o alerta que chama a atenção atualmente de todos para a melhora do sistema. Conclusão A humanização do Direito Civil pode ser considerada o ápice da evolução jurídica, em virtude da elevação que foi concedida à posição do homem no ordenamento. A retrospectiva histórico-social desenvolvida a partir das teorias da Ciência Jurídica atrelada aos fenômenos da codificação e da constitucionalização permitiram a conscientização de que a transformação sofrida pelo sistema acompanhou a sociedade. Percebeu-se que a dignidade da pessoa humana é o eixo central de toda articulação ética a que a sociedade está preordenada e constitui, enfim, especialmente nas culturas ocidentais, a mais alta expressão da convergência a que a humanidade foi capaz de chegar. Em razão da importância atribuída ao standard, tal fundamento acabou por ganhar a propriedade de caber para tudo. Empobreceu-se. Esvaziou-se. Tornou-se um tropo oratório que tende à flacidez absoluta, se não alarmado tal problema. Constata-se, portanto, que a humanização civilista possui uma perspectiva paradoxal e um desafio audacioso a ser enfrentado, uma vez que pleitos jurídicos e decisões judiciais alertam para o uso indiscriminado do princípio da dignidade do homem. A banalização dessa vertente principiológica é alarmante, tornando-se imprescindível a busca constante dos juristas pelo uso da razoabilidade na utilização do standard, da mesma forma como o estudo específico da norma relativa permite maior capacidade para a aplicação coerente e eficaz. Referências Bibliográficas BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da personalidade: de acordo com o novo código civil. São Paulo: Atlas, 2005. p. 50. BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. O princípio da dignidade da pessoa humana e o Novo Direito Civil: Breves Reflexões. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VII, Nº 8. Junho de 2006. Página 175 de 270 BITTAR, Carlos Alberto; BITTAR, Eduardo C. B. Os direitos da personalidade. 6. ed./ rev., atual. e ampl. por Eduardo C. B. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 29. BOBBIO, Noberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone Editora Ltda, 1996, p. 65. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: Direitos Fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 56. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. Vol. 1 (parte geral). 16ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 199. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. São Paulo: Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VII, Nº 8, 2006. NÓBREGA, Flavianne Fernanda Bitencourt. Análise Econômica da precisão da norma jurídica: Uma Abordagem Pragmática da Cláusula Geral da Boa-fé Objetiva, 2015. Tese de Doutorado - Centro de Ciências Jurídicas / Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. p. 62. Supremo Tribunal Federal, RE 584536 RG, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, julgado em 04/12/2008, DJe-035 DIVULG 19-02-2009 PUBLIC 20-02-2009 EMENT VOL-02349-08 PP-01665.Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28dignidade+da +pessoa+humana%29&base=baseRepercussao>. Acesso em: 21 de Fev. de 2016. TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Direito Civil. São Paulo: Revista da Faculdade de Direito de Campos. Ano IV, nº 4 e ano V, nº 5, 2003-2004, p. 170. Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Ap. Cív. n. 380.174-5, Ac. unân. da 4ª C. Cív. - Rel. Juiz Saldanha da Fonseca - Julg. em 04/12/2002. Disponível em: <www.tj.mg.gov.br>. VILLELA, José Baptista. Variações impopulares sobre a dignidade da pessoa humana. in: Superior Tribunal de Justiça - Doutrina - Edição Comemorativa - 20 anos, Brasília, 2009, pp. 562-581. Página 176 de 270 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR VÍCIOS DE CONSTRUÇÃO NO PROGRAMA MINHA CASA, MINHA VIDA Luisa Carício da Fonsêca1 Resumo: O presente trabalho objetiva debater os diferentes posicionamentos da jurisprudência brasileira acerca da possibilidade de responsabilizar a instituição financeira – Caixa Econômica Federal, por vícios de construção em contratos de financiamento, no âmbito do Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV). A metodologia utilizada foram artigos publicados sobre o tema, a legislação correspondente e, principalmente, o comparativo entre diversas decisões nacionais, a fim de realizar uma pesquisa exploratória na área da execução do PMCMV. À luz de um direito civil-constitucional e diante do direito fundamental à moradia, imputar apenas ao construtor do imóvel a responsabilidade por eventuais defeitos na edificação, fere a boa-fé dos contratantes. Além disso, muitas vezes os beneficiários do programa habitacional não recebem a devida indenização moral e material, em razão de a referida responsabilidade limitar-se ao patrimônio das respectivas sociedades empresárias. Outro fator relevante é a qualificação da Caixa como empresa pública federal, na esfera da Administração Pública indireta, com papel exclusivo de promotora da casa própria a pessoas de baixa renda. Sendo assim, o PMCMV constitui verdadeira política pública e, como tal, requer uma análise mais atenta e humanizada por parte do Poder Judiciário. A legislação sobre o tema, a Lei 11.977/09, não assegura a legitimidade do ente financeiro em responder caso existam vícios ocultos no imóvel financiado. Por ser uma problemática relativamente recente, a jurisprudência oscila bastante e o Supremo Tribunal Federal ainda não se manifestou sobre o assunto. Nesse sentido, não podem os magistrados brasileiros ignorar as inúmeras demandas judiciais sobre a matéria, bem como a ausência de efetiva indenização aos mutuários lesados, quando apenas o construtor é responsabilizado. Palavras-Chave: Responsabilidade civil.Vícios de construção. Programa Minha Casa, Minha Vida. Jurisprudência. 1 Graduanda em Direito, no Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: [email protected] Página 177 de 270 ABSTRACT: The presente work objects to discuss different positions of Brazilian jurisprudence about the possibility to impute responsibility to the financial institution – Caixa Econômica Federal, for construction defects on financing contracts, inside ―Minha Casa, Minha Vida‖ Program (PMCMV). The methodology used was published articles about the theme, corresponding laws and, mostly, comparative among various national decisions, in orderto do an exploratory research in PMCMV‘sex ecution área. Illuminedby a civil-constitucional law and faced with fundamental right to housing, ascribe responsibility only to the constructor of the property for eventual edification damages, injureshirer‘sgood faith. Besides that, the beneficiaries of the habitational programmany times don‘t receive proper moral and material reparation, duetothementionedresponsibilitybelimitedtocompany‘sassets.AnotherrelevantfactorisCaixa‘ squality as a federal publiccompany, onIndirectAdministration‘ssphere, with exclusive functionpromoting home ownershiptolow-incomepeople.Thus, the PMCMV constitutes real publicpolicyand, as so, requiresa closerandhumanized look bythe Judicial Power.Legislationonthesubject, Law 11.977/09, does notsecurebank‘slegitimacytobechargedwhenexistshiddendefectsonfinancedproperty. thereasonthatthisis a relatively recente issue, jurisprudencevariates For a lot, alsotheSupremeCourthasnotyetmanifestedonthematter.Accordingly, brazilianjudgescannot ignore thecountlesslawsuitsaboutthesubject, apart fromthelackofeffectivecompensationtoinjuredmortgagee, whenonlythebuilderisliable. Keywords: Civil responsibility.Constructiondefects.―Minha Casa, Minha Vida‖ Program. Jurisprudence. Introdução O Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV, regulamentado pela Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, inegavelmente constitui um avanço no direito fundamental à moradia, além de representar a tendência atual de um direito civil-constitucional. Nesse sentido, não estamos diante de um mero financiamento habitacional, mas de uma política pública de fomento a uma garantia constitucional por meio da aquisição da casa própria. Contudo, não raras vezes a edificação de tais imóveis é realizada por construtoras descompromissadas, o que acarreta diversos vícios de construção, bem como danos para os Página 178 de 270 adquirentes do bem. A responsabilidade civil do construtor por vícios ocultos já é matéria pacífica no âmbito civil e consumerista. Porém, responsabilizar apenas a empresa construtora, na situação descrita, não traz garantias ao mutuário, uma vez que a referida responsabilidade limita-se ao patrimônio da sociedade empresária. Desse modo, muitos participantes do PMCMV lesados por imóveis mal construídos ingressaram no Judiciário, com intuito de responsabilizar também a instituição financeira fomentadora da política – a Caixa Econômica Federal. Esse é o ponto gerador de controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, visto que, em regra, as instituições bancárias não respondem por eventuais defeitos na propriedade financiada. Motivações À Criação Do Programa Minha Casa, Minha Vida Em 2009, ano de criação do PMCMV, o contexto nacional, no âmbito da habitação, era de um déficit enorme, fruto da história brasileira desde o Império. Além disso, as políticas habitacionais anteriores haviam fracassado, uma vez que a população de baixa renda não possuía acesso aos financiamentos ―elitizados‖. Dessa forma, os principais atingidos pela falta de moradia própria eram as famílias com renda de até três salários mínimos2. Outro fator importante, à época, era a recente eclosão da crise financeira mundial. Assim, durante o governo Lula, foi editada a Medida Provisória nº 459, de 25 de março de 2009, posteriormente convertida na Lei nº 11.977, do mesmo ano. A instituição do MCMV possuía, portanto, um viés social e outro econômico. O primeiro deles almejava garantir a justiça social e o acesso à moradia por parte dos indivíduos de baixa renda, enquanto que a segunda vertente estava associada ao crescimento econômico do país, mediante incentivo ao setor da construção civil. Decorrente do acesso a uma habitação digna, diversas liberdades podem ser conquistadas, a exemplo da redução da pobreza, da mortalidade infantil e do aumento do 2 ANDRADE, G. V. M. Políticas Habitacionais Brasileiras: uma avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida em suas duas edições. 2012. 86 f. Monografia (Graduação em Engenharia de Produção) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/Escola Politécnica, Rio de Janeiro – RJ. Disponível em: <http://monografias.poli.ufrj.br/monografias/monopoli10004918.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2016. Página 179 de 270 patrimônio familiar. Conforme o art. 1º, da citada lei3, o PMCMV é subdividido em dois programas: Art. 1o O Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV tem por finalidade criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais) e compreende os seguintes subprogramas: (Redação dada pela Lei nº 12.424, de 2011) I - o Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU); (Redação dada pela Lei nº 13.173, de 2015) II - o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR); e (Redação dada pela Lei nº 13.173, de 2015) Entre os citados subprogramas, o PNHU recebeu maiores investimentos, devido a maior carência de habitação nos centros urbanos do que no meio rural. A fim de atingir os seus objetivos, o MCMV conta com variados fundos, dentre eles: Fundo Garantidor da Habitação Popular (FGHab), Fundo do Desenvolvimento Social (FDS) e Fundo de Arrendamento Residencial (FAR). Desse modo, torna-se possível o financiamento com juros reduzidos e prazos dilatados. Para fomentar a política pública, a Caixa Econômica Federal, empresa de capital cem por cento público e com experiência na área habitacional, foi escolhida: Art. 9o A gestão operacional dos recursos destinados à concessão da subvenção do PNHU de que trata o inciso I do art. 2o desta Lei será efetuada pela Caixa Econômica Federal - CEF. (Redação dada pela Lei nº 12.424, de 2011) [...] Art. 16. A gestão operacional do PNHR será efetuada pela Caixa Econômica Federal4. Como se observa, a função da Caixa é de ―gestão operacional‖, de forma a englobar não só o financiamento, mas também a fiscalização do empreendimento, com fins de liberar os subsídios necessários ao construtor5. Em resumo, as ideias que permearam a criação do PMCMV foram no intuito de reduzir o déficit habitacional brasileiro e de aquecer o desenvolvimento econômico do país, tendo por gestora a Caixa Econômica Federal. Pode-se dizer que, de modo geral, seus 3 BRASIL. Lei n. 11.977, de 7 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas; altera o Decreto-Lei no 3.365, de 21 de junho de 1941, as Leis nos 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001, e a Medida Provisória no 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências.Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 jul. 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11977.htm>. Acesso em: 17 fev. 2016. 4 5 Ibid. ANDRADE, op.cit., p. 50. Página 180 de 270 objetivos foram e estão sendo atingidos. Contudo, a qualidade dos imóveis entregues com frequência não atende aos padrões mínimos, fato diversas vezes reportado pela mídia. Assim, relevante o debate acerca dos sujeitos responsáveis a realizar a devida reparação. Da Relação De Consumo Antes de discutir a responsabilidade civil propriamente dita, é fundamental esclarecer se a relação entre o adquirente do imóvel e a instituição financiadora é regida pelo Código de Defesa do Consumidor ou não. Já há entendimento sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça acerca dessa possibilidade: ―Súmula 297: O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras‖ 6. Desse modo, vislumbra-se nos contratos de empréstimo a aplicabilidade das normas consumeristas, posição amplamente defendida pela doutrina e jurisprudência. O mútuo feneratício em questão possui natureza social e tem por objetivo atender o direito fundamental à moradia, previsto no art. 6º, da Constituição Federal7. O referido contrato é firmado no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação – SFH e configura uma relação de consumo formada por fornecedor de serviços (Caixa) e consumidor (mutuário). A legislação consumerista assim dispõe8: Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. § 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. § 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. Por conseguinte, a responsabilidade do fornecedor de serviços por fato do serviço também é disciplinada pela legislação de consumo: Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos 6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Seção. Súmula 297. Brasília, 12 de maio de 2004. Diário da Justiça, 09 de setembro de 2009, p. 149. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/toc.jsp>. Acesso em: 28 fev. 2016. 7 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.Brasília, DF: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2008. 464 p. 8 BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078compilado.htm>. Acesso em: 28 fev. 2016. Página 181 de 270 à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. § 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido. § 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas. § 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. § 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.9 Importante observar que o fornecedor responde objetivamente por fatos do produto ou do serviço, ou seja, independentemente da aferição de culpa. Sendo a Caixa fornecedora de serviços dos financiamentos existentes no PMCMV, responderá nesta qualidade por eventuais defeitos na prestação de tal atividade. Da Responsabilidade Civil Por Vícios De Construção Como visto acima, a Caixa atua enquanto fornecedora de serviços nos contratos de financiamento junto ao MCMV e, por isso, recai responsabilidade civil objetiva sobre defeitos nas funções prestadas. À primeira vista, poder-se-ia pensar que a ocorrência de vícios de construção não teria relação com as funções a serem exercidas pela mencionada empresa pública. No entanto, esse entendimento não deve prevalecer. Primeiramente, por todos os motivos já elencados acerca do PMCMV: política pública direcionada à população de baixa renda; meio de atingir o direito à moradia e reduzir o déficit habitacional brasileiro; fragilidade em se responsabilizar apenas construtoras; Caixa enquanto gestora operacional do programa. Ora, a própria Lei nº 11.977/09 determina que a empresa pública federal não exerce papel de mera instituição financiadora e, por conseguinte, ela tem o dever de fiscalizar as execuções das obras. Por outro lado, mesmo que fosse caso de financiamento habitacional fora do MCMV, já há entendimento sobre a responsabilização do banco por defeitos na 9 Ibid. Página 182 de 270 construção, quando a participação da instituição financeira é fundamental na aquisição dos bens. Nas palavras do Defensor Público Federal Feliciano de Carvalho10: De modo mais efetivo a proteger o adquirente em face do agente financiador − haverá responsabilidade por vícios de construção, caso tenha de algum modo influenciado a aquisição, ainda que não tenha financiado a produção e nem emprestado sua marca ou desfrutado de qualquer vantagem sobre determinado empreendimento imobiliário. Pelo próprio princípio da boa-fé objetiva, todas as circunstâncias acima citadas transmitem para o consumidor inequívoca segurança sobre a idoneidade da aquisição do bem. Quebra o valor contratual de lealdade e cooperação o fato de o agente financeiro passar para o consumidor que este estará fazendo um ótimo negócio, em face das demonstrações de qualidade do bem, somente para conseguir prestar o serviço de financiamento para mais um consumidor – que será muito bem remunerado pelos juros pagos pelo adquirente, diga-se de passagem – e, caso surjam defeitos que desequilibram o contrato, discursar no sentido de inexistir responsabilidade do empresário/banco financiador. Assim como explanado, a Caixa também passa a ideia de confiança e estabilidade aos adquirentes de imóvel junto ao programa de habitação popular. Há ainda o contexto de criação do PMCMV, bem como a finalidade em se atingir justiça social. Desde a entrega das primeiras residências do programa, foram noticiados inúmeros casos de vícios ocultos nos imóveis espalhados por todo o país. A seguir, algumas manchetes dimensionam a repercussão do tema: 1) ―Minha casa na mira: Prefeituras e Ministério Público Federal fecham o cerco a habitações com problemas construtivos do Minha Casa, Minha Vida‖11 (julho/2012); 2) ―Imóveis do Minha Casa Minha Vida têm rachaduras e infiltrações: Reportagem constatou diversos problemas com o programa durante 40 dias de investigações‖12 (março/2015); 3) ―MPF recebe mil queixas contra o Minha Casa, Minha Vida: Problemas vão de venda e aluguel irregular a invasões, passando por má construção dos imóveis‖ 13 (março/2015); 10 CARVALHO, F. Vícios de construção do imóvel financiado: conexão contratual e responsabilidade do agente financeiro. Revista CEJ, Brasília, Ano XVII, n. 59, p. 42-50, jan./abr. 2013. Disponível em: <http://www.jf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewFile/1680/1706>. Acesso em: 16 fev. 2016. 11 NAKAMURA, J. Minha Casa na mira. Construção Mercado. São Paulo, jul. 2012. Edição 132. Disponível em: <http://construcaomercado.pini.com.br/negocios-incorporacao-construcao/132/artigo284024-1.aspx>. Acesso em: 28 fev. 2016. 12 SILVA, A.; TREZZI, H. Imóveis do Minha Casa Minha Vida têm rachaduras e infiltrações. ZH Notícias. Porto Alegre, 21 mar. 2015. Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/03/imoveis-dominha-casa-minha-vida-tem-rachaduras-e-infiltracoes-4722956.html>. Acesso em: 28 fev. 2016. Página 183 de 270 4) ―Problemas do Minha Casa, Minha Vida reforçam necessidade de reforma urbana‖ 14(abril/2013). Por consequência lógica, são cada vez mais frequentes as demandas judiciais envolvendo a execução das obras do MCMV. E o Poder Judiciário não pode quedar-se alheio a essa realidade social. Para tanto, é preciso ter em mente que o dever de fiscalização da Caixa não é simplesmente quantitativo, mas também qualitativo. Há um parâmetro de qualidade mínimo a ser cumprido e cabe à empresa pública em comento supervisionar os referidos padrões. Dentro do papel de gestora operacional do MCMV, a Caixa detém as seguintes funções: a) Atuar como instituição depositária e gestora dos recursos do FDS e FNHIS. b) Definir e implementar os procedimentos operacionais necessários à aplicação dos recursos, com base nas normas elaboradas pelo Conselho Gestor e pelo Ministério das Cidades. c) Controlar a utilização dos recursos financeiros colocados à disposição na construção dos empreendimentos habitacionais. d) Prestar contas e analisar a viabilidade das propostas selecionadas pelo Ministério das Cidades. e) Firmar contratos de repasse de recursos a estados, municípios e Distrito Federal em nome do Sistema Nacional da Habitação de Interesse Social (SNHIS). f) Oferecer informações ao Ministério das Cidades que permitam 15 acompanhar a execução do PMCMV, de maneira a avaliar o seu sucesso. Além disso, a empresa pública federal atua ainda como agente financeiro do SFH e como representante jurídico do FGHab. Sendo assim, a legitimidade da Caixa em responder por eventuais vícios de construção se funda no argumento de que, agindo na qualidade de fomentadora de política pública destinada à população de baixa renda, é responsável pela solidez e segurança do imóvel por ela financiado. Do Posicionamento Dos Tribunais Considerando tudo o que foi exposto, resta agora a análise das decisões do Judiciário nacional sobre a questão da responsabilidade civil da Caixa por vícios de construção, em contratos de mútuo no contexto do PMCMV. Devido à proximidade geográfica, foram selecionados acórdãos do Tribunal Regional Federal – 5ª Região e, em 13 TREZZI, H. MPF recebe mil queixas contra o Minha Casa, Minha Vida. ZH Notícias. Porto Alegre, 22 mar. 2015. Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/03/mpf-recebe-mil-queixascontra-o-minha-casa-minha-vida-4723835.html>. Acesso em: 28 fev. 2016. 14 BARROSO, H. Problemas do Minha Casa, Minha Vida reforçam necessidade de reforma urbana. A Verdade. São Paulo, 16abr. 2013. Disponível em: <http://averdade.org.br/2013/04/problemas-do-minha-casaminha-vida-reforcam-necessidade-de-reforma-urbana/>. Acesso em: 28 fev. 2016. 15 D`AMICO, Fabiano. O Programa Minha Casa, Minha Vida e a Caixa Econômica Federal. Cap. 2. 8/1/11. Curitiba-PR. p. 33 a 54. Página 184 de 270 razão da repercussão nacional, decisões do STJ. Por sua vez, o STF ainda não se manifestou sobre o mérito da questão. Houve apenas um acórdão, no qual o Ministro Relator Teori Zavascki decidiu pela inexistência de repercussão geral do tema, nesses termos: PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO AJUIZADA EM FACE DE CONSTRUTORA. VÍCIOS NA EDIFICAÇÃO DE IMÓVEL ADQUIRIDO ATRAVÉS DO PROGRAMA GOVERNAMENTAL ―MINHA CASA, MINHA VIDA‖. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO. CONSEQUENTE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. AUSÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. 1. A controvérsia relativa à existência ou não de litisconsórcio passivo necessário entre a Caixa Econômica Federal e a parte demandada, com o consequente reconhecimento da competência da Justiça Federal para julgar a ação, configura questão que envolve única e exclusivamente juízo a respeito dos termos da demanda (causa de pedir e pedido) e das normas processuais, infraconstitucionais, que disciplinam a existência ou não de litisconsórcio passivo necessário. Não há, portanto, matéria constitucional a ser apreciada. 2. É cabível a atribuição dos efeitos da declaração de ausência de repercussão geral quando não há matéria constitucional a ser apreciada ou quando eventual ofensa à Carta Magna ocorra de forma indireta ou reflexa (RE 584.608-RG, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJe de 13/3/2009). 3. Ausência de repercussão geral da questão suscitada, nos termos do art. 543-A do CPC. 16 Como visto, o STF entende que não há repercussão geral, por falta de matéria constitucional a ser apreciada, relativa à legitimidade passiva da Caixa nas demandas sobre defeitos de edificação no âmbito do MCMV e à consequente competência da Justiça Federal. Quando acolhida a preliminar de ilegitimidade passiva da empresa pública, o feito se extingue na Justiça Federal e é remetido à Justiça Comum Estadual. Sobre o assunto, já se posicionou de diversas formas o TRF – 5ª Região. Seja pela ausência de legitimidade da Caixa para figurar no polo passivo, CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. PROGRAMA MINHA CASA, MINHA VIDA - PMCMV. LEI Nº 11.977/2009. IMÓVEL RESIDENCIAL USADO. VÍCIO DE CONSTRUÇÃO. NÃO COBERTURA FUNDO GARANTIDOR DA HABITAÇÃO POPULAR - FGHAB. EXPRESSA MENÇÃO NO CONTRATO. CONFORMIDADE DA CLÁUSULA COM O ESTATUTO DO FGHAB E A LEI DE REGÊNCIA. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DA CAIXA. EXTINÇÃO DO PROCESSO, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. APELAÇÃO PROVIDA. 1. A Lei nº 11.977/2009 instituiu o Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV, iniciativa do governo federal que tem por finalidade criar 16 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo 891653 Repercussão Geral / MG. Recorrente: CONSTRUTORA CHEREM LTDA. Recorrido: MARTA FERREIRA DE ARAÚJO ALMEIDA. Relator: Ministro Teori Zavascki. Brasília, 25 de junho de 2015. Diário da Justiça Eletrônico. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28ARE%24%2ESCLA%2E+E+89 1653%2ENUME%2E%29+OU+%28ARE%2EPRCR%2E+ADJ2+891653%2EPRCR%2E%29&base=baseR epercussao&url=http://tinyurl.com/pc49ewu>. Acesso em: 29 fev. 2016. Página 185 de 270 mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, abrangendo o Programa Nacional de Habitação Urbana - PNHU e o Programa Nacional de Habitação Rural - PNHR. 2. O art. 20 do diploma legal em apreço dispõe sobre o Fundo Garantidor da Habitação Popular - FGHab, concebido, dentre outros objetivos, para assumir o saldo devedor do financiamento imobiliário, em caso de morte e invalidez permanente, e as despesas de recuperação relativas a danos físicos ao imóvel. 3. Hipótese em que a demandante pugna pela condenação da CAIXA à realização de reparos no imóvel financiado, que passou a apresentar goteiras, infiltrações e rachaduras, dentre outros problemas decorrentes de vício de construção, conforme Laudo de Vistoria às fls. 124/126. 4. Compulsando os autos, verifica-se que o contrato de mútuo e alienação fiduciária, firmado entre as partes sob a égide do PMCMV, exclui expressamente (fl. 59) a cobertura de "(...) despesas de recuperação de imóveis por danos oriundos de vícios de construção, comprovados por meio de laudo de vistoria promovido pela Administradora (...)". É de salientar que o dispositivo contratual é simples reprodução do art. 21 do estatuto do FGHab, ao qual a Lei 11.977/2009 (parágrafo 1º, art. 20) incumbiu definir as condições e os limites das coberturas do fundo em questão. 5. De mais a mais, na presente hipótese, a empresa pública se limitou a financiar a compra do imóvel escolhido pela promovente, ora apelada, sem que tenha participado de nenhuma etapa da respectiva construção, de modo que não há que se falar em culpa in eligendo ou in vigilando. Precedentes desta Corte Regional. 6. Nesse contexto, é forçoso reconhecer a ilegitimidade ad causam da ré, extinguindo-se o processo, sem resolução do mérito. 7. Apelação da CAIXA provida para acolher a preliminar de ilegitimidade passiva ad causam e extinguir o feito, sem resolução do mérito, com fulcro no art. 267, VI, da Lei Adjetiva Civil.17(grifo nosso) Seja pela defesa da legitimidade da citada empresa pública: Civil e Processual Civil. Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV. Imóvel Residencial financiado. Vicio de construção. Em se tratando de empreendimento de natureza popular, destinado a mutuários de baixa renda, o agente financeiro é parte legítima para responder, solidariamente, por vícios na construção de imóvel cuja obra foi por ele financiada com recursos do Sistema Financeiro da Habitação. Legitimidade Passiva ad causam da Caixa. Nulidade da sentença. Retorno dos autos ao juízo de origem, para prosseguimento da ação. Apelação provida.18 (Grifo nosso) A divergência aqui encontrada não é exclusiva do Tribunal em comento, mas verdadeiro reflexo do que ocorre nos tribunais espalhados pelo território brasileiro. Até então inexiste um entendimento dominante ou fixado por uma corte superior. No âmbito do STJ, a Ministra Isabel Gallotti defende interessante tese: RECURSOS ESPECIAIS. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. SFH. VÍCIOS NA CONSTRUÇÃO. SEGURADORA. AGENTE FINANCEIRO. 17 BRASIL. Tribunal Regional Federal, Região 5. Apelação Cível 549807/PE. Apelante: EMGEA e outro. Apelado: Edna de Araújo Cabral. Relator: Desembargador Federal: Edílson Nobre, Quarta Turma. Recife, 27 de novembro de 2012. Diário da Justiça Eletrônico. Disponível em: <>. Acesso em: 19 fev. 2016. 18 BRASIL. Tribunal Regional Federal. Região 5. Apelação cível n. 0803064-72.2013.4.05.8400. Apelante: Lenize Valentin. Apelado: Caixa Seguradora S/A e outros. Relator: Desembargador Federal José Lázaro Alfredo Guimarães. Recife, 9 de julho de 2014. Disponível em: <https://pje.trf5.jus.br/pje/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/listView.seam?signedIdProcesso Trf=cf6694c6d01dffe8b060c5e8f614ac4c#>. Acesso em: 19 fev. 2016. Página 186 de 270 LEGITIMIDADE. 1. A questão da legitimidade passiva da CEF, na condição de agente financeiro, em ação de indenização por vício de construção, merece distinção, a depender do tipo de financiamento e das obrigações a seu cargo, podendo ser distinguidos, a grosso modo, dois gêneros de atuação no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação, isso a par de sua ação como agente financeiro em mútuos concedidos fora do SFH (1) meramente como agente financeiro em sentido estrito, assim como as demais instituições financeiras públicas e privadas (2) ou como agente executor de políticas federais para a promoção de moradia para pessoas de baixa ou baixíssima renda. 2. Nas hipóteses em que atua na condição de agente financeiro em sentido estrito, não ostenta a CEF legitimidade para responder por pedido decorrente de vícios de construção na obra financiada. Sua responsabilidade contratual diz respeito apenas ao cumprimento do contrato de financiamento, ou seja, à liberação do empréstimo, nas épocas acordadas, e à cobrança dos encargos estipulados no contrato. A previsão contratual e regulamentar da fiscalização da obra pelo agente financeiro justifica-se em função de seu interesse em que o empréstimo seja utilizado para os fins descritos no contrato de mútuo, sendo de se ressaltar que o imóvel lhe é dado em garantia hipotecária. Precedentes da 4ª Turma. 3. Caso em que se alega, na inicial, que o projeto de engenharia foi concebido e aprovado pelo setor competente da CEF, prevendo o contrato, em favor da referida empresa pública, taxa de remuneração de 1% sobre os valores liberados ao agente promotor e também 2% de taxa de administração, além dos encargos financeiros do mútuo. Consta, ainda, do contrato a obrigação de que fosse colocada "placa indicativa, em local visível, durante as obras, de que a construção está sendo executada com financiamento da CEF". Causa de pedir deduzida na inicial que justifica a presença da referida empresa pública no polo passivo da relação processual. Responsabilidade da CEF e dos demais réus que deve ser aferida quando do exame do mérito da causa. 4. Recursos especiais parcialmente providos para reintegrar a CEF ao polo passivo da relação processual. Prejudicado o exame das demais questões. 19 (Grifo nosso) O referido julgamento foi inclusive transformado no Informativo de Jurisprudência nº 0506 do STJ, no qual se esclarece que a Caixa é parte legítima para responder por vícios de construção em contratos do SFH, quando incorrer em culpa in eligendo. Noutras palavras, todas as vezes em que atuar além dos limites da atividade bancária em sentido estrito. Exemplos de tal atuação podem ser descritos como: promoção do empreendimento, responsabilidade na elaboração do projeto, escolha da construtora e negociação dos imóveis. Apesar de ser um avanço, se comparada aos julgamentos pela ilegitimidade da Caixa como ré, a mencionada decisão deixa de assegurar aquelas hipóteses do MCMV, em que a instituição financeira se limita a financiar o imóvel pretendido, sem qualquer outra 19 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n. 1163228/AM. Recorrente: Caixa Seguradora S/A. Recorrido: Caixa Econômica Federal. Relator: Ministra Maria Isabel Galotti. Brasília, 9 de outubro de 2012. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=RESUMO&livre=1163228&b=ACOR >. Acesso em: 19 fev. 2016. Página 187 de 270 atuação. Nesses casos, consoante o posicionamento acima descrito, a empresa pública não seria parte legítima a responder por eventuais danos no bem financiado. Daí, a importância de um direito civil-constitucional e da contextualização necessária do PMCMV, enquanto política pública incentivadora do direito social à moradia. É papel dos magistrados alcançar a finalidade da norma a ser aplicada, de modo a garantir a humanização do direito civil e o efetivo acesso à justiça. Há muito se revisitou a clássica teoria dos contratos, a fim aplicá-los nos limites permitidos pelos princípios constitucionais. A máxima ―o contrato faz lei entre as partes‖ já não tem incidência irrestrita. No contexto atual, reconhece-se que os contratantes nem sempre se encontram em uma relação horizontal, isto é, de igualdade. A situação existente no financiamentodo MCMV reflete a hipossuficiência dos seus adquirentes perante a Caixa Econômica Federal, além da vulnerabilidade previamente estabelecida por ser uma política dirigida à população de baixa renda. Obviamente, cada caso deverá ser analisado especificamente, mas a decisão de excluir a Caixa da controvérsia necessita de ponderação acerca de todos os aspectos aqui discutidos. Conclusões O Direito deve estar atento à realidade social, sob pena de tornar-se matéria abstrata, dissociada do mundo dos fatos. Sendo assim, a situação aqui debatida também deve ter o mesmo tratamento, a fim de que possamos alcançar a finalidade última da esfera jurídica: a justiça. Quando um jurista se depara com uma norma, diversas são as maneiras de interpretá-la e, consequentemente, aplicá-la. No entanto, temos a obrigação de observála à luz dos mandamentos e princípios constitucionais. O caso do PMCMV não é diferente, ainda mais por se tratar de política pública que visa a garantir o direito fundamental à moradia. Regra geral, as instituições bancárias, quando financiadoras de empréstimos destinados à habitação, não respondem por eventuais vícios da edificação, mas tão somente verificam se o valor do mútuo corresponde ao imóvel pretendido. Contudo, o PMCMV possui algumas particularidades: a CAIXA, apesar de ser sujeito de direito privado, é uma empresa pública federal; o programa é uma política pública destinada à população de baixa Página 188 de 270 renda e promovida exclusivamente pelo citado ente da Administração Pública indireta, no âmbito do Programa Nacional de Habitação Urbana e Rural. Tais peculiaridades não podem ser olvidadas em futura imputação de responsabilidade advinda de danos causados por falhas na edificação. O Judiciário, principalmente, deve levar em conta os aludidos fatores na tomada de decisões, uma vez que ainda não há amparo legislativo nesse sentido. Então, fundamental as ideias de humanização jurisdicional, de justiça social e de hermenêutica teleológica, na qual se interpreta conforme a finalidade da norma. Como vimos, há basicamente três posicionamentos da jurisprudência nacional acerca da matéria: a) a instituição financeira não é responsável por eventuais vícios de construção;b) a instituição bancária poderá ser responsabilizada, mas apenas se houver participado em alguma fase da construção, a exemplo da escolha do imóvel ou da indicação do construtor;c) na qualidade de fomentadora de política pública de habitação, a Caixa deve responder em caso de falhas na construção. Assim, diante dos argumentos expostos, nos filiamos ao último entendimento. Posição mais garantista, com fins a atender a necessidade de redução do déficit habitacional do Brasil, mas não apenas de forma quantitativa. Ademais, não podemos ignorar a atenção ao direito social à moradia. Contudo, a responsabilização solidária da Caixa e da construtora não se dá de forma automática, sendo imprescindível a realização de perícia e a devida instrução processual, para evitar litigância de má-fé. Concluímos, portanto, ser fundamental o exame casuístico e sob os moldes do direito civil-constitucional. Referências ANDRADE, G. V. M. Políticas Habitacionais Brasileiras: uma avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida em suas duas edições. 2012. 86 f. Monografia (Graduação em Engenharia de Produção) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/Escola Politécnica, Rio de Janeiro – RJ. Disponível em: <http://monografias.poli.ufrj.br/monografias/monopoli10004918.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2016. BARROSO, H. Problemas do Minha Casa, Minha Vida reforçam necessidade de reforma urbana. A Verdade. São Paulo, 16 abr. 2013. Disponível em: <http://averdade.org.br/2013/04/problemas-do-minha-casa-minha-vida-reforcamnecessidade-de-reforma-urbana/>. Acesso em: 28 fev. 2016. Página 189 de 270 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2008. 464 p. ______. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078compilado.htm>. Acesso em: 28 fev. 2016. ______. Lei n. 11.977, de 7 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas; altera o Decreto-Lei no 3.365, de 21 de junho de 1941, as Leis nos 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001, e a Medida Provisória no 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências.Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 jul. 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Lei/L11977.htm>. Acesso em: 17 fev. 2016. ______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n. 1163228/AM. Recorrente: Caixa Seguradora S/A. Recorrido: Caixa Econômica Federal. Relator: Ministra Maria Isabel Galotti. Brasília, 9 de outubro de 2012.Diário da Justiça Eletrônico. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=RESUMO&livre=1 163228&b=ACOR>. Acesso em: 19 fev. 2016. ______. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Seção. Súmula 297. Brasília, 12 de maio de 2004. Diário da Justiça, 09 de setembro de 2009, p. 149. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/toc.jsp>. Acesso em: 28 fev. 2016. ______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo 891653 Repercussão Geral / MG. Recorrente: CONSTRUTORA CHEREM LTDA. Recorrido: MARTA FERREIRA DE ARAÚJO ALMEIDA. Relator: Ministro Teori Zavascki. Brasília, 25 de junho de 2015. Diário da Justiça Eletrônico. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28ARE%24%2E SCLA%2E+E+891653%2ENUME%2E%29+OU+%28ARE%2EPRCR%2E+ADJ2+89165 3%2EPRCR%2E%29&base=baseRepercussao&url=http://tinyurl.com/pc49ewu>. Acesso em: 29 fev. 2016. ______. Tribunal Regional Federal. Região 5. Apelação cível n. 080306472.2013.4.05.8400. Apelante: Lenize Valentin. Apelado: Caixa Seguradora S/A e outros. Relator: Desembargador Federal José Lázaro Alfredo Guimarães. Recife, 9 de julho de 2014.Diário da Justiça Eletrônico. Disponível em: <https://pje.trf5.jus.br/pje/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/listView.seam ?signedIdProcessoTrf=cf6694c6d01dffe8b060c5e8f614ac4c#>. Acesso em: 19 fev. 2016. ______. Tribunal Regional Federal, Região 5. Apelação cível n. 549807/PE. Apelante: EMGEA e outro. Apelada: Edna de Araujo Cabral. Relator: Desembargador Federal Edilson Pereira Nobre Júnior. Recife, 27 de novembro de 2012. Diário da Justiça Página 190 de 270 Eletrônico. Disponível em: <https://www.trf5.jus.br/Jurisprudencia/JurisServlet?op=exibir&tipo=1>. Acesso em: 19 fev. 2016. CARVALHO, F. Vícios de construção do imóvel financiado: conexão contratual e responsabilidade do agente financeiro. Revista CEJ, Brasília, Ano XVII, n. 59, p. 42-50, jan./abr. 2013. Disponível em: <http://www.jf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewFile/1680/1706>. Acesso em: 16 fev. 2016. D`AMICO, Fabiano. 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Página 191 de 270 REFLEXOS JURÍDICOS DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO SISTEMA BRASILEIRO DE INCAPACIDADE CIVIL Andreza Fernanda de Souza Clementino Eloisa Lopes Claudino Resumo: O presente trabalho visa abordar os impactos causados pela edição da Lei ordinária n° 13.146/2015, que institui o ―Estatuto da Pessoa com Deficiência‖, na teoria da incapacidade civil. Em síntese, o referido estatuto atribui plena capacidade legal a pessoa com deficiência, a retirando, portanto, do rol de pessoas incapazes presente nos artigos 3° e 4° do Código Civil. Logo, essas pessoas passam a ser plenamente capazes para diversos atos da vida civil, como, por exemplo, o casamento e a união estável. Foi feito um levantamento bibliográfico e jurisprudencial acerca do tema, onde foi realizado um estudo detalhado da legislação, especificamente no tocante ao Código Civil, tanto a vigente como a revogada, procurando trabalhar uma abordagem comparativa entre os respectivos dispositivos. O Estatuto da pessoa com deficiência é fundamentado em princípios constitucionais e visa estabelecer igualdade de direitos aos deficientes ao alterar diversos dispositivos legais, implicando, assim, diversas consequências jurídicas. Tais consequências residem, especificamente, no âmbito dos contratos e da responsabilidade civil. Em relação aos contratos, grande consequência consiste na desobrigação da representação para a manifestação de vontade da pessoa com deficiência. Ademais, com a manifestação sendo expressa diretamente pela pessoa com deficiência, consequentemente, a responsabilidade civil, ante a ocorrência de danos, passa a ser inteiramente desta. Entretanto, parte da doutrina confere ao Código Civil uma função protetiva em relação às pessoas com deficiência, em virtude de possuírem discernimento reduzido, atribuindo, assim, críticas ao estatuto. Desse modo, conclui-se que, ante a divergência relatada, é de suma importância que haja a problematização acerca do tema, visando analisar quais vantagens e desvantagens os deficientes adquiriram com a garantia da sua capacidade plena. Página 192 de 270 Palavras-chave: Estatuto da pessoa com deficiência; deficientes; capacidade legal; consequências jurídicas. Abstract: This study aims to address the impacts caused by the issue of Ordinary Law No. 13,146 / 2015 establishing the "Statute of person with Disabilities" in the civil disability theory. In short, that status gives full legal capacity the person with disability, removing thus the list of people unable present in 3 and 4 Articles of the Civil Code. So these people become fully able to various acts of civil life, for example, marriage and stable union. It was done a literature review and case law on the subject, where a detailed study of the legislation was carried out, specifically with regard to the Civil Code, both current as revoked, looking to work a comparative approach between the respective devices. The disabled person's status is based on constitutional principles and aims to establish equal rights for the disabled to change various legal provisions, thus implying different legal consequences. Such consequences reside specifically in the context of contracts and civil liability. For contracts, great consequence is the release of the representation to the person's declaration of intent with disabilities. Furthermore, with the event being expressed directly by the person with disabilities, therefore, liability, before the occurrence of damage, is utterly this. However, part of the doctrine gives the Civil Code a protective function in relation to persons with disabilities, by virtue of having reduced discernment, giving thus the critical status. Thus, it is concluded that, given the reported divergence is of paramount importance that there is a questioning about the issue to consider what advantages and disadvantages the disabled acquired with the guarantee of full capacity. Keywords: Person Statute with disabilities; disabled; legal capacity; legal consequences. Introdução Com o advento da Constituição Federal de 1988, a aplicação de seus respectivos princípios e garantias fundamentais adentrou para além dos limites do âmbito público, implicando em grandes reflexos na esfera privada. Ao ser estabelecido, nas relações jurídicas particulares, a igualdade entre as partes, fundamentando-se tal tratamento nos princípios da dignidade da pessoa humana e da cidadania. Desse modo, visando a garantia de tal postulado, é instituído o estatuto da pessoa com deficiência, por meio da lei 13.146/2015, o qual trouxe como principal inovação para o nosso ordenamento a retirada das pessoas com deficiência do rol dos incapazes. Ao atribuir Página 193 de 270 capacidade legal ao deficiente, os atos civis praticados por estes passam a ter plena validade, consequentemente, a teoria das incapacidades sofre ―desfalque‖, sofrendo o Código Civil, além de outros instrumentos legais, grandes alterações promovidas pelo referido estatuto. Diante de tais alterações, surgem diversas consequências, principalmente no que diz respeito a desobrigatoriedade de alguns instrumentos, os quais antes possuíam função protetiva aos deficientes. Dessa forma, significativos dispositivos do Código Civil foram revogados, bem como a devida inclusão de outros, no sentido de harmonizar o ordenamento jurídico, no que concerne Cabe ressaltar o surgimento de significativas críticas quanto ao referido estatuto, ante a elidição da proteção civil anteriormente conferida a essas pessoas, em virtude se seu reduzido discernimento. Restando imprescindível que haja uma adequação entre a realidade e a lei, para que não haja descompasso. A dignidade da pessoa com deficiência a luz do processo de constitucionalização do Direito Civil Com o fenômeno da constitucionalização do direito civil e consequentemente da sua humanização, o mesmo passa a ser interpretado sob a luz dos princípios e garantias constitucionais. Com o advento da Constituição Federal de 1988, há uma releitura desse instituto, antes extremamente patrimonialista, no sentido de priorizar uma concepção social, coletiva das relações jurídicas firmadas entre os particulares. O código civil, agora orientado nos ditames da justiça social e boa-fé, institui uma igualdade nas relações jurídicas, ante a aplicação do princípio da isonomia, expresso no artigo 5° da nossa Constituição federal/88. De acordo com Julio César Finger, os princípios constitucionais possuem como meta orientar a ordem jurídica no sentido de promover a realização de valores da pessoa humana como titular de interesses existenciais, para além dos meramente patrimoniais. Nesse sentido, fala-se em um processo de despatrimonialização do direito civil. (Constituição e direito privado, p.94-95) Ademais, percebe-se que a concretização das garantias fundamentais na esfera privada sobreleva-se de importância no nosso ordenamento, refletindo para essa esfera a Página 194 de 270 necessidade de inclusão social das pessoas marginalizadas, especialmente os deficientes, tido muitas vezes não como uma doença, mas como um preconceito. Como medidaprotetiva para essa camada social, surge a teoria das incapacidades do direito civil que, em virtude do reduzido discernimento dos deficientes, os qualifica como absolutamente incapazes de exercer, embora sejam titulares de direitos civis, por si atos na vida civil. Nesse sentido, segundo Caio Mário da Silva Pereira, "a lei não institui o regime das incapacidades com o propósito de prejudicar aquelas pessoas que delas padecem, mas, ao contrário, com o intuito de lhes oferecer proteção, atendendo a que uma falta de discernimento, de que sejam portadores, aconselha tratamento especial, por cujo intermédio o ordenamento jurídico procura restabelecer um equilíbrio, rompido em consequência das condições peculiares dos mentalmente deficitários‖ Não obstante, consolidada tal proteção civil, advindo a necessidade de possibilitar o amplo exercício dos direitos civis, de forma igualitária, o processo de integração social das pessoas com deficiência caminha para uma nova roupagem, proporcionando uma reanálise da forma como estão dispostos os institutos civis, dentre eles os referentes à capacidade. Como produto desse processo, foi editado o Estatuto da pessoa com deficiência, cujo projeto foi de autoria do Senador Paulo Paim – PT/RS e entrou em vigência em 5 de janeiro de 2016, possuindo alicerce no princípio da dignidade da pessoa humana, ao promover a inclusão social da pessoa com deficiência, capaz de exercer seus direitos e liberdades fundamentais. Outrossim, referido estatuto consiste em um mecanismo de emancipação civil e social, onde essas pessoas passam a ser tratadas plenamente como cidadãs, garantindo-se o princípio da cidadania. Desse modo, fortifica-se o regime democrático brasileiro, pois sabe-se que os princípios da dignidade da pessoa humana e da cidadania constituem em fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1° CF/88). Nesse sentido dispõe o art. 8° da lei 13.146/2015: “Art. 8o É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à Página 195 de 270 dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.” Em contrapartida aos referidos fundamentos legitimadores da edição da Lei n° 13.146/2015, surge o premente questionamento se acertada foi a edição do referido dispositivo, bem como essa nova conjuntura legislativa dialogará, de forma efetiva, com as limitações mentais presentes nos deficientes. Não obstante, antes de tecer algumas considerações que vão de encontro com asconcepções trazidas pelo estatuto, torna-se necessário um estudo detalhado da legislação, especificamente no tocante ao Código Civil, tanto a vigente como a revogada, procurando trabalhar uma abordagem comparativa entre os respectivos dispositivos. Conceito de deficiente e as alterações da capacidade para atos da vida civil Ante o exposto, é de suma importância que seja entendido o que caracteriza o deficiente, como a lei e os profissionais de saúde conceituam essas pessoas e o que acarreta a classificação de alguns indivíduos no rol de pessoas com deficiência. O conceito presente no artigo 2º da lei 13.146/15 é de que: Art. 2o Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”. Portanto, pode-se perceber que é um rol bem amplo de deficiências que deixam certas pessoas em desigualdade de condições com as demais. Sabendo que o Direito é uma ciência multidisciplinar, é essencial analisar como a medicina trata dessa questão. Segundo a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência, o deficiente é a pessoa ―que apresenta, em caráter permanente, perdas ou anormalidades de sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gerem incapacidade para o desempenho de atividades dentro do padrão considerado normal para o ser humano.‖ Página 196 de 270 A deficiência mental está conceituada no decreto nº 5.296/04, em seu artigo 5º: “d) deficiência mental: funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: 1. comunicação; 2. cuidado pessoal; 3. habilidades sociais; 4. utilização dos recursos da comunidade; 5. saúde e segurança; 6. habilidades acadêmicas; 7. lazer; e 8. trabalho.” Com a edição da lei 13.146/2015, foi atribuída plena capacidade às pessoas com deficiência, reconhecendo, portanto, como válidos todos os atos da vida civil praticados diretamente pelos mesmos, dessa forma dispõe o art. 6° da lei: “Art. 6o A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I - casar-se e constituir união estável; II - exercer direitos sexuais e reprodutivos; III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.” Assim, é clara a redação do artigo 84 da mesma leiao assegurar à pessoa com deficiência o exercício igualitário da capacidade legal, perante as demais pessoas: “Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.” Nesse sentido, verifica-se que o aludido estatuto alterou diversos dispositivos do nosso ordenamento jurídico, visando harmonizá-lo diante das novas perspectivas atribuídas às pessoas com deficiência. Página 197 de 270 O Código Civil de 2002 vinha tratando dos deficientes primordialmente no que tange a questão das incapacidades. O referido diploma classificava os absolutamente incapazes para exercer atos da vida civil: “Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos”;(REVOGADO). No entanto, a edição da lei 13.146/15 revogou esse inciso II e alterou a situação dos deficientes, retirando esses indivíduos da categoria de incapaz. Assim, essas pessoas passam a ser plenamente capazes para a prática de diversos atos da vida civil, devendo-se ressaltar, em alguns casos, necessária a adoção de institutos específicos. Ademais, outra significativa alteração consiste na revogação do inciso I do art. 1.548 do aludido código, o qual antes estabelecia que deveria ser determinada a nulidade do casamento, se contraído por enfermo mental: “Art. 1.548. É nulo o casamento contraído: I - pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil;” (REVOGADO). Nessa acepção, em contrapartida a tal revogação, o estatuto incluiu no art. 1.550 o § 2oreconhecendo, de forma expressa, a validade do casamento se contraído por essas pessoas diretamente: “Art. 1.550. É anulável o casamento: [...] § 2oA pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbia poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou curador.” Partindo-se da premissa de estabelecer igualdade de direitos e deveres entre deficientes e não-deficientes, foram revogados os incisos II e III do art. 228 do CC, nos quais não se admitia a pessoa com deficiência figurar na qualidade de testemunha: “Art. 228. Não podem ser admitidos como testemunhas: I - os menores de dezesseis anos; II - aqueles que, por enfermidade ou retardamento mental, não tiverem discernimento para a prática dos atos da vida civil; (REVOGADO). Página 198 de 270 III - os cegos e surdos, quando a ciência do fato que se quer provar dependa dos sentidos que lhes faltam;” (REVOGADO). Destarte, com a inclusão do § 2ono mesmo art. 228, passa a ser legítimo o depoimento proveniente de um deficiente: “§ 2o A pessoa com deficiência poderá testemunhar em igualdade de condições com as demais pessoas, sendo-lhe assegurados todos os recursos de tecnologia assistiva.” Entretanto, ainda no que diz respeito à legitimidade do deficiente para testemunhar, verifica-se uma contradição em nosso ordenamento ao analisar o novo Código de Processo Civil, o qual ainda se encontra no período de vacatio legis, tendo em vista o mesmo não ter sofrido alterações pelo estatuto. Sendo assim, se comparado o §2° do art. 228 do Código Civil com o artigo 447 do novo Código de Processo Civil, este último, não reconhece o deficiente como capaz de testemunhar no processo: “Art. 447. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas. § 1o São incapazes: I - o interdito por enfermidade ou deficiência mental; II - o que, acometido por enfermidade ou retardamento mental, ao tempo em que ocorreram os fatos, não podia discerni-los, ou, ao tempo em que deve depor, não está habilitado a transmitir as percepções; III - o que tiver menos de 16 (dezesseis) anos; IV - o cego e o surdo, quando a ciência do fato depender dos sentidos que lhes faltam.” Apesar da existência de tal contradição, aferi-se compatibilidade do estatuto com o novo CPC, no que diz respeito ao pleno acesso à prática de atos processuais, por meio eletrônico, assegurado ao deficiente pelo referido código. “Art. 199. As unidades do Poder Judiciário assegurarão às pessoas com deficiência acessibilidade aos seus sítios na rede mundial de computadores, ao meio eletrônico de prática de atos judiciais, à comunicação eletrônica dos atos processuais e à assinatura eletrônica.” Desse modo, as alterações expostas, conferidas pela lei 13.146/2015, implicaram relevantes consequências no âmbito jurídico, no que concerne a prática de atos civis pelos Página 199 de 270 deficientes, principalmente nos institutos do casamento, curatela, contratos e da responsabilidade civil. Consequências jurídicas a partir da vigência da Lei n° 13.146/2015 Como já foi relatado, as pessoas ―que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil‖ e ―os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo‖ deixaram de ser, respectivamente, absolutamente e relativamente incapazes. Esse fato trouxe uma série de consequências práticas para a realidade jurídica atual. A primeira mudança diz respeito à curatela, principalmente ao seu atual caráter excepcional.Caso uma pessoa com deficiência pretenda praticar atos da vida civil, precisa de um representante legal, na qualidade de curador, para representá-la. Com a mudança, essa representação não será mais obrigatória, devendo somente ocorrer de forma excepcional, conforme estabelece o § 2o do art. 85 do Estatuto: “§ 2oA curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado.” Ocorre ai a primeira dificuldade prática: existem pessoas que não conseguem exprimir sua vontade, em decorrência de fatores físicos. Pode-se tomar como exemplo o contrato de doação, onde é necessário que o indivíduo capaz exprima sua vontade. Seria de extrema dificuldade esse ato para algumas pessoas com deficiências que dificultam essa manifestação de vontade. Além disso, o deficiente, agora plenamente capaz, que tenha um déficit cognitivo, não pode se beneficiar das invalidades presentes nos artigos 166, I, e 171, I do Código Civil, que afirmam que: “Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz;” “Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: I - por incapacidade relativa do agente;” Página 200 de 270 No que diz respeito ao instituto dos contratos, deverá ser obedecido aos ditames presentes nos arts. 421 e 422 do Código Civil: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” Desse modo, ao considerar os deficientes plenamente capazes, a proteção civil ao deficiente, de certo modo, se restringe à boa-fé e a justiça contratual. Com isso, caso realize um contrato desvantajoso, esse negócio deverá ser válido, sendo necessária a prova de vícios do consentimento para requerer a anulação, além de não ter mais os benefícios acerca dos prazos, correndo a prescrição e decadência contra eles. Outra dificuldade repousa na questão da responsabilidade em decorrência do dano. Com a vigência dessa norma, o deficiente passa a responder pelos danos causados a bens de terceiros. Portanto, a responsabilidade perante a possível existência de danos, antes tida como indireta ou por ato de terceiro, tendo em vista que era o responsável legal que arcava com a reparação do dano. Assim, em virtude de ser considerada legítima a manifestação de vontade do deficiente e, ao partir da premissa de que a este deverá ser atribuído um tratamento isonômico em relação às demais pessoas, caso algumas pessoas com perda ou redução de discernimento, por exemplo, danifiquem algum bem alheio, ela responderá por esse fato, não subsidiariamente como era feito, mas precipuamente, sem a presença de representante ou curador. No que tange ao Direito de família, a edição do novo dispositivo legislativo trouxe mudanças no que diz respeito ao casamento. Conforme exposto, com a revogação do inciso I do art. 1.548 do CC, o qual prevê nulidade do casamento praticado pelo enfermo mental, trazendo, nesse aspecto, uma vantagem para os indivíduos com deficiência que querem construir família. Nesse sentido, o caso prático deve ser analisado com cautela. É certo que nem toda deficiência influencia na decisão de casar. Porém, há de se ter em mente que esse fato é um ato de vontade, e esta não pode estar ligada ou prejudicada pela deficiência, corroborando tal entendimento a inclusão já supracitada do parágrafo 2º no art. 1.548 do CC. Página 201 de 270 Entretanto, pode-se notar, de inicio, uma contradição legislativa entre o artigo 85 do Estatuto, que afirma que o curador só deverá ser solicitado em assuntos patrimoniais, e o seu § 1º,que institui que a curatela não afetará o direito ao matrimônio: “Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. § 1o A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.” O curador tem vontade própria, portanto, admitir a vontade de um terceiro em um contrato de casamento, onde as vontades que devem ser levadas em consideração é viciar a essência desse ato civil. Vale salientar que a vigência do novo artigo tem efeito ex tunc, não retroagindo, com isso, os casamentos realizados por pessoas com deficiência permanecem inválidos. Considerações finais Toda edição de dispositivos legais afeta direta ou indiretamente na vida dos indivíduos, principalmente aquela que altera diretamente parcela da população, inclusive quando essa parcela é dita vulnerável, devendo ser protegida. Segundo dados atuais do IBGE, 6,2% da população têm algum tipo de deficiência. Assim, diante dessa significativa camada social, é preciso ter cautela ao estabelecer mudanças nas normas que a regulamenta, principalmente no que concerne a validade da prática de atos civis por essas pessoas. Ante as dificuldades práticas narradas, deve-se analisar com ponderação às alterações supracitadas, especialmente, quanto à nova redação dos artigos 3º e 4º do Código Civil, para que tal mudança legislativa não venha a causar um efeito in pejus para esses indivíduos que devem ser protegidos pelos códigos brasileiros. Respeitar o princípio da isonomia, por vezes, não traz garantias imediatas aos indivíduos que dele dependem. Ao defender uma igualdade material entre as pessoas, para Nélson Nery Júnior, ―dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades‖. Página 202 de 270 Além de lutarem diariamente para vencer preconceitos e seguir suas vidas, apesar de todas as dificuldades, não se pode colocar mais obstáculos aos indivíduos com algum tipo de deficiência. Certo que o estatuto resguarda algumas precauções, pois concede algumas medidas de apoio, como, por exemplo, a tomada de decisão apoiada, aquela em que o deficiente elege duas pessoas de confiança para prestar-lhe apoio na tomada de decisões de atos civis, auxiliando a pessoa com deficiência a exercer sua capacidade. Não obstante, o estatuto ao elidir grande parte da proteção, conferida pelo Código Civil, aos deficientes, sob um pressuposto de inclusão social, deixa margens para um possível aproveitamento da incapacidade de autodeterminação desses indivíduos. Diante do surgimento de divergências quanto ao efeito que surtirá na vida das pessoas com deficiência, se realmente ocorrerá a dita integração dos mesmos na sociedade, somente com o percurso do tempo a Doutrina e Jurisprudência, conjuntamente, sanarão tais divergências. Referências BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. 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Página 204 de 270 OS DIREITOS DA PERSONALIDADE POST-MORTEM E A CRISE DA NECROFILIA VIRTUAL Gabriel Honorato de Carvalho1 Raphael Carneiro Arnaud Neto2 Resumo: O presente trabalho tem como escopo analisar os direitos da personalidade, postmortem, sob o viés da crise identitária que aflige aos usuários das redes sociais, que rotineiramente compartilham fortes conteúdos (fotografias e vídeos) de pessoas já falecidas, ultrapassando, aparentemente, os limites da privacidade, da honra e dos direitos à imagem. A este comportamento atribuímos o termo ―crise da necrofilia virtual‖. O caso emblemático para o presente estudo é o episódio ocorrido com a morte do cantor Cristiano Araújo, vítima de acidente automobilístico, no ano de 2015, especialmente no que atine à filmagem realizada pela equipe médica que procedeu a necropsia do cantor; registro este que circulou por todas as regiões do Brasil. Um atentado à dignidade, à honra e à imagem daquele ser humano, que, mesmo falecido, deveria ter respeitado os legítimos direitos sobre o seu corpo. Faz-se uma análise a respeito da legitimaçãoprocessual para a postulação da tutela tanto dos direitos patrimoniais, como dos direitos extrapatrimoniais. Avalia-se, de igual modo, a responsabilização dos agentes envolvidos: se apenas cometem dano indenizável aqueles que produzem o conteúdo ou se também todos aqueles que ocompartilham, através das redes sociais, como o Facebook, ou de outros meios de comunicação, como o Whatsapp. A estas pessoas, atribuímos à denominação de pseudonecrologistas. É, como dito, justamente este o foco do presente estudo, que busca compreender a mente humana, no que diz respeito ao que chamamos de crise da necrofilia virtual, como forma de apresentar um caminho jurídico para tal problema. Pergunta-se, sobretudo, em que ponto o direito pode ser útil à matéria; qual caminho trilhar na resolução de conflitos gerados por tal 1 Pós-graduando em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Superior da Advocacia – ESA/PB; Pósgraduado em Direito Material e Processual do Trabalho pela Escola Superior da Magistratura Trabalhista – ESMAT13; Presidente da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Paraíba – OAB/PB; Advogado e Consultor Jurídico. 2 Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa; Coordenador da Escola Superior da Advocacia, Seccional Paraíba – ESA/PB; Presidente da Comissão de Direito, Arte e Cultura da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Paraíba – OAB/PB; Diretor Científico e Acadêmico do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM/PB; Professor e Advogado. Página 205 de 270 comportamento humano. Objetiva-se, finalmente, pois, conclamar a sociedade a refletir como lidar com esta nova realidade e como construir uma nova cultura que faça um contraponto a tudo isto. Palavras-Chaves: Direitos da Personalidade; Post-mortem; Necrofilia virtual. Notas Introdutórias A humanidade, em toda a sua história, sempre passou por constantes transformações que refletem diretamente nos novos ideais, novos valores e, consequentemente, na forma como o ser humano vislumbra o mundo e seus semelhantes3. Os avanços tecnológicos, sobretudo os da última década, tem grande relevância para o presente estudo, em especial no que diz respeito à ampliação e facilitação dos meios de comunicação. Mensagens de texto, áudios, imagens, vídeos e notícias passam a ser compartilhados de forma bem mais fácil e instantânea do que se podia imaginar, muitas vezes tomando proporções assustadoras. Diz-se isto porque, se por um lado tais avanços trazem enormes ganhos para a sociedade, como, por exemplo, a possibilidade de se avisar, antecipadamente, toda uma comunidade a respeito de fortes chuvas que podem causar a inundação de toda a cidade, permitindo tempo hábil para a autoproteção; por outro lado, a desvirtuação da utilização destas ferramentas pode causar danos irreparáveis ao cidadão comum. Exemplificando, são diversos os casos de fotografias íntimas, no mais das vezes de adolescentes, que são vazadas por terceiros ou até mesmo pelos receptores originais, criando uma rede de compartilhamento que vai se ampliando, como uma pirâmidede marketing multinível, e espalhando-se por todo o país. Assim aconteceu em Porto Alegre – RS, onde uma jovem de apenas de 16 (dezesseis) anos, após ter fotografias íntimas 3 Sobre a crise de identidade na pós-modernidade, ou ―Modernidade Liquida‖, como prefere, escreve Bauman: ―Psiquicamente a modernidade trata da identidade: da verdade de a existência ainda não ser a daqui, ser uma tarefa, uma missão, uma responsabilidade. Como o restante dos padrões, a identidade permanece obstinadamente à frente: é preciso correr esbaforidamente para alcançá-la. E, portanto, se corre, puxado pela esperança e impelido pela culpa, embora a corrida, por mais rápida que seja, pareça estranhamente arrastada.In: BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Zahar, 1998. p.91. Página 206 de 270 divulgadas por seu ex-namorado4, tomando-se dimensãonacional – em razão de uma corrente que circulou o país através do aplicativo Whatsapp –nãoachou outra ―solução‖ para seu problema, senão o suicídio. ―L‟ homme est coupable‖ diria, Albert Camus5, que prosseguiria: “l‟est de n‟avoirsutirer de luimême” algo como: “mas ele não seria capaz de tomar de volta para si essa responsabilidade”6. Não fosse o bastante, a realidade nos mostra que nem mesmo os falecidos são poupados desta invasão de privacidade. Por mais que não se queira, facilmente se vê, em grupos do Whatsappou em blogs policiais, imagens de pessoas mortas, algumas expondo o corpo sem nenhuma tarja ou em situações de maior vulnerabilidade; vídeos de acidentes que mostram cenas horríveis de pessoas sendo despedaçadas, ou até mesmo gravações de cidadãos, no ápice de sua fraqueza ou de sua dor emocional, se suicidando. De uma ausência extrema de sensibilidade/solidariedade, usuários das redes sociais divulgam tais cenas como quem acabara de encontrar o ―tesouro perdido‖, pouco se importando com aquele ser humano que ali está sendo devassado ou com os familiares deste.Assim ocorreu no caso do cantor Cristiano Araújo, vítima de acidente automobilístico fatal, que teve o momento de sua necropsia filmado por um aparelho smartphone e circulado através dos já mencionados canais de comunicação. Violaram a privacidade, a intimidade, os direitos da personalidade e a dignidade humana do cantor e de sua família, os ―profissionais‖ da saúde que fizeram o registro, assim como todos aqueles internautas que contribuíram com a circulação do conteúdo.Parecemos assistir o antevisto por Hannah Arendt quando proferiu a célebre frase: “a autonomia do homem transformou-se na tirania das possibilidades”7. São, pois, estes tipos de condutas e posturas acima narradas que o presente escrito passa a denominar de crise da necrofilia virtual. 4 Essa parece ser a grande marca dos tais ―Tempos Líquidos‖ antevistos pelo professor de Leeds, o Sociólogo polonês ZygmuntBauman, uma sociedade onde as relações não são feitas pra durar, mas os traumas são indeléveis. Mais em: BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade das relações humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 5 Albert Camus (Mondovi, 7 de novembro de 1913 — Villeblevin, 4 de janeiro de 1960) foi um escritor, romancista, ensaísta, dramaturgo e filósofo francês nascido na Argélia, ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 1957. 6 CAMUS, Albert. Carnet. janvier 1942 – mars 1951. Paris, Puiseaux. p. 29. 1985. 7 Citada por AGUIAR, Odilio Alves. A questão social em Hannah Arendt. Trans/Form/Ação, v. 27, n. 2, p. 720, 2004. Página 207 de 270 Um importante registro se faz necessário: a palavra necrofilia advém da junção da expressões gregas “nekros”, que quer dizer morto ou cadáver, e “filía”, que significa amor. Desta feita, os dicionários da língua portuguesa atribuem a esta palavra o interesse sexual decorrente da visão ou do contato com um cadáver. O presente estudo, porém, em uma leitura mais ampla e genérica, apoiando-se na base etimológica da palavra, emprega a expressão necrofilia no sentido de desejo e/ou vontade (não necessariamente sexual) de ver pessoas mortas. É o que também chamaremos, por oportuno, de pseudonecrologistas. Anote-se, ainda, que tal análise será realizada através da abordagem aos direitos da personalidade post-mortem, sob o viés da constitucionalização do direito civil e seus três princípios básicos, conforme lições de Gustavo Tepedino8: a proteção da dignidade da pessoa humana (princípio dos princípios); solidariedade social; e o princípio da isonomia ou igualdade lato sensu. Para encerrar este introito, o que é mais importante para o objetivo do trabalho: chamar atenção do leitor e de toda a comunidade para a necessidade de uma mudança significativa para uma nova cultura, mais sensível e solidária pelo ser humano para o próprio ser humano, como perfeitamente pontua Anderson Schreiber: O cerne do problema não está na deterioração dos valores tradicionais, mas na sua flagrante insuficiência diante das novas tecnologias que, sem prejuízo da sua imensa utilidade, tornam extremamente vulneráveis a imagem, a privacidade e a intimidade alheias. Essas novas tecnologias exigem uma nova cultura, capaz de fazer frente à crescente exposição do ser humano. Vivemos uma era decisiva, em que cada sociedade precisa decidir como lidar com essa nova realidade.Podemos continuar assistindo passivamente, com mero constrangimento, à invasão desautorizada da esfera alheia ou podemos estabelecer novos padrões de comportamento, éticos e jurídicos9. Se a sociedade brasileira frustrou-se ao ver os primeiros passos dos direitos da personalidade no país sendo interrompidos pelo golpe de 1964 e a instituição do regime militar; foi apenas com a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil Brasileiro de 2002 que passou a respirar novos ares de esperança. Destaque-se, na Carta Cidadã, a instituição de princípios como a dignidade da pessoa humana e o da solidariedade, e, no Código Civilista, a inauguração de todo um capítulo endereçado aos direitos da personalidade, 8 TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In: Temas de direito civil. 3° ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 1-22. 9 SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 126. Página 208 de 270 assim como a adoção de uma base triangular para sustentação do diploma, reafirmando os deveres da eticidade, socialidade e operabilidade. Surge, da análise sistemática destes dois diplomas, o Direito Civil Constitucional, que, seguindo as lições de Flávio Tartuce, “nada mais é do que um novo caminho metodológico, que procura analisar os institutos privados a partir da Constituição e, eventualmente, os mecanismos constitucionais a partir do Código Civil, em uma análise de mão dupla”10. Ou, com albergue nos ensinamentos do insigne Ministro Luiz Edson Fachin, a incidência franca da Constituição nos diversos âmbitos das relações particulares à luz de comandos inafastáveis de proteção à pessoacomo a grande tendência do Direito Civil11. É justamente este o cerne da questão quando se fala nesta constitucionalização do direito civil, ou ainda quando se menciona a eficácia horizontal dos direitos fundamentais: a proteção do ser humano como objetivo primordial e prioritário de todo o ordenamento jurídico, estejamos falando do direito público ou privado. Anote-se, pela precisão das colocações, a doutrina de Maria Celina Bodin de Moraes: Correta parece, então, a elaboração hermenêutica que entende ultrapassada a summadivisioe reclama a incidência dos valores constitucionais na normativa civilística, operando uma espécie de ‗despatrimonialização‘ do direito privado, em razão da prioridade atribuída, pela Constituição, à pessoa humana, sua dignidade, sua personalidade e seu livre desenvolvimento 12. Observa-se, desde já, o direcionamento harmonioso da doutrina no sentido de se priorizar a dignidade da pessoa humana e assim os seus direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagemdas pessoas, como bem preconiza a Carta Magna em seu art. 5°, inciso X, frise-se, principal dispositivo no que tange aos direitos fundamentais do brasileiro. 10 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015, p. 54. 11 FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil. Sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 1011. 12 MORAES, Maria Celina Bodin de. ―A Caminho de um Direito Civil Constitucional‖, in Revista de Direito Civil, vol. 65, p. 26. Página 209 de 270 Tem-se aí a consagração do direito à privacidade;e essa expressão em sentido amplo para abarcar todas as manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade das pessoas13. Neste diapasão, cumpre trazer à baila o inconformismo do constitucionalista Dirley da Cunha Júnior com os casos de violação ao direito à privacidade na era da tecnologia da informação: Não é apanágio dos tempos hodiernos a violação ao direito à privacidade. Há muito a privacidade das pessoas vem reclamando maior proteção em face dos meios de comunicação. Com o aperfeiçoamento da técnica, os veículos de comunicação tornaram-se mais sofisticados e eficazes, de sorte que o homem, mesmo no recesso de seu lar, tem sido vítima de intrusos e inescrupulosos que, através de lentes teleobjetivas e aparelhos eletrônicos de ausculta, entre outros recursos, vêm devassando a sua privacidade e de sua família, numa intolerável ofensa a um direito agora expressamente assegurado constitucionalmente14. Embora a preocupação do autor seja abordada por um viés um pouco distinto do ora trabalhado, demonstra-se como é alarmante a extensão dos danos provocados pela ausência de uma regulamentação eficiente para o mundo virtual. O autor deixa claro, em outras palavras, o quão perigosos podem ser os instrumentos de comunicação na difusão da privacidade alheia, por cidadãos intrusos e inescrupulosos. Comportamento este que anda em trilhar diametralmente oposto aos preconizados pelo Direito Civil Constitucional, o qual, ao menos na teoria, estabelece o ser humano como interesse central do ordenamento e bem juridicamente relevante. Nos dizeres de Rafael Garcia Rodrigues, “trata-se do reconhecimento da personalidade como valor ético emanado do princípio da dignidade da pessoa humana e da consideração pelo direito civil do ser humano em sua complexidade”15. O que se está a dizer, destarte, é que a noção de personalidade assume uma natureza pré-normativa, visto estar intimamente relacionada à própria condição humana, preexistindo, portanto, à ordem legislada. Fala-se não apenas pelo viés ontológico, mas, sobretudo, no viés axiológico, estreitando-se o ―ser‖ e o ―valor‖, pois, como bem disseram 13 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros. 1999, p. 209. 14 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. Bahia: Editora Jus Podivm: 2011, p. 700. 15 RODRIGUES, Rafael Garcia. ―A Pessoa e o Ser Humano no Código Civil‖, in TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O Código Civil na Perspectiva Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, p. 20. Página 210 de 270 José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz, “o homem vale porque é, e é inconcebível que um ser humano seja sem ser”16. Este valor, intrínseco ao homem, o acompanha mesmo antes de sua existência – tanto que são diversas as normas de proteção ao feto, desde o campo civil até o ramo do direito trabalhista, como ocorre com a estabilidade provisória conferida a gestante para resguardar aquele ser que nem sequer nasceu –, persistindo e eternizando-se mesmo após a morte. Assim, embora o Código Civilista disponha, em seu art. 6°, que a existência da pessoa natural termina com a morte, a tutela à honra, à imagem e à todos os demais direitos,que continuam sendo tutelados pelo Estado. Neste linear, traz-se à baila a doutrina de Diogo Leite de Campos: Entre a concepção e a morte, o ser humano é uma pessoa jurídica, por o direito se limitar a ‗adoptar‘ a realidade biológica, integrando-a no mundo da cultura. Quererá isto dizer que, antes da concepção e depois da morte, não há nada, para a natureza e para a cultura? Antes da concepção, há o amor entre os pais, e células, contudo um código, que vão dar lugar a um ser humano. Há também a necessidade de proteger uma pessoa futura, de garantir que o processo de sua formação não lhe provocará danos. A pessoa futura projetará, para o período de antes da concepção, os seus direitos, para se proteger. A exemplo da personalidade jurídica que será, que exige uma proteção jurídica antes da morte, a personalidade jurídica que foi exige defesa para além da morte17. E não poderia ser diferente. Enquanto a vida de um sujeito tenha se esvaído por qualquer que seja o motivo, toda a sua história, sua honra, sua boa fama, sua imagem e sua privacidade devem ser respeitados. Não seria admissível permitir que um cidadão, que lapidou sua reputação em razão de uma vida digna, se tornando uma referência para a sociedade, tenha sua vida pessoal devassada por outrem, de forma inescrupulosa, com a única finalidade de deturpar a imagem alheia. Condutas como estas, quando inverídicas e distorcidas, geram abalos irreparáveis na reputação e consequentemente na vida da família da vítima e, em alguns casos, até mesmo das próximas gerações. Contudo, deve-se deixar claro que a tutela conferida pelo ordenamento jurídico não é somente aquela decorrente dos danos indiretos (família, amigos, comunidade), mas também e especialmente à honra e a imagem da própria pessoa já falecida. 16 MUNIZ, Francisco José Ferreira; OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. ―O Estado de Direito e os Direitos da Personalidade‖, in Revista dos Tribunais, 535, fev. 1980, p. 11-23. 17 CAMPOS, Diogo Leite de. Revista de Direito Comparado Luso-Brasileiro, ano IV, n° 7. Rio de Janeiro: Forense. 1988, p. 93-95, in in TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O Código Civil na Perspectiva CivilConstitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, p. 26. Página 211 de 270 Insta ressaltar, neste ponto, que aqui não se está a defender a proibição de se falar a respeito dos cidadãos que já partiram. Não é isto. Em verdade, aqui se está a defender é que não se ultrapasse o limite da liberdade de informação, evitando-se a invasão da esfera de privacidade da pessoa já falecida. De tal modo, seguindo a renomada obra de Humberto Ávila, há de se sopesar o conflito de princípios e valores aqui descritos, de um lado a liberdade de informação, e de outro, o direito à privacidade e a todos os direitos da personalidade. Como se chegar a resposta de tal enigma? Bom senso e razoabilidade, à partir de uma ponderação de valores éticos e morais18. Analisemos tal conflito no caso concreto do cantor Cristiano Araújo, caso emblemático para o presente estudo, como já antecipado nas notas introdutórias. Acontecimento que chocou o Brasil e, até mesmo, a comunidade internacional, apontou o quão frio se mostra o ―homem moderno‖. Recordemos, por oportuno, o caso. No dia 24 de Junho de 2015, o cantor sertanejo se envolveu em um acidente na BR-153, no interior de Goiás, no trajeto entre um show que acabara de fazer e o destino de sua residência. No banco da frente, o motorista e o segurança; no banco de trás, o jovem cantor Cristiano Araújo e sua noivaAllana Moraes, ambos arremessados para fora do veículo no momento da capotagem. Allana faleceu instantaneamente e Cristiano, mesmo socorrido, não sobreviveu ao impacto. Assim comoacontecido em outras tragédias envolvendo pessoas públicas, boa parte do país parou em comoção. Parece, entretanto, não se poder dizer o mesmo da equipe médica, que, mesmo no momento da necropsia, lançou-se a gravar um vídeo expondo o cadáver em situação degradante, chegando ao ponto de se autoenquadrarem ao lado dos restos mortais.Rapidamente a gravação ganhou notoriedade através de aplicativos de mensagense redes sociais, principalmente oYouTube,Facebook e o Whatsapp. Chama atenção a postura dos usuários da rede, aqui nominadospseudonecrologistas, que, em meio a ―críticas‖ à gravação, buscam e solicitam o conteúdo para assisti-lo, assim como compartilham ao próximo, como quem apenas registra um absurdo ocorrido, como se em nada estivessem contribuindo para aquela lesão. 18 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – Da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. Página 212 de 270 É justamente este o cerne da questão ora discutida. Qual o limite da liberdade de informação? Até que ponto deve ira tutela aos direitos da personalidade? E quanto às pessoas falecidas? Qual a responsabilidade de quem fez o registro? E qual a responsabilidade de quem apenas o compartilhou? No que diz respeito a esse confronto liberdade de informação versus direitos da personalidade, imperioso trazer à baila a dicção do art. 4° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que assim dispõe: “a liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo”.Existe, portanto, uma notória diferença entre noticiar um fato, como informar de um acidente e a morte de uma personalidade, e, por outro lado, expor para toda a comunidade uma vídeo-gravação das partes internas do corpo do falecido. Sobre o assunto, Anderson Schreiber, com a precisão que lhe é peculiar, aponta os parâmetros para aferir o grau de realização do exercício de liberdade e a intensidade do sacrifício imposto ao direito de imagem: Em termos gerais, podem-se indicar os seguintes parâmetros para aferir o grau de realização do exercício de liberdade de informação por meio da veiculação de imagens: (i) o grau de utilidade para o público do fato informado por meio da imagem; (ii) o grau de atualidade da imagem; (iii) o grau de necessidade da veiculação da imagem para informar o fato; e (iv) o grau de preservação do contexto originário onde a imagem foi colhida. Para aferir a intensidade do sacrifício imposto ao direito de imagem, cumpre verificar: (i) o grau de consciência do retratado em relação à possibilidade de captação da sua imagem no contexto de onde foi extraída; (ii) o grau de identificação do retratado na imagem veiculada; (iii) a amplitude da exposição do retratado; e (iv) a natureza e o grau de repercussão do meio pelo qual se dá a divulgação da imagem 19. No que atine à tutela dos direitos da personalidade, especificamente no que tange às pessoas já falecidas, encosta-se novamente na doutrina em albergue: Os direitos da personalidade projetam-se para além da vida do seu titular. O atentado à honra do morto não repercute, por óbvio, sobre a pessoa já falecida, mas produz efeitos no meio social. Deixar sem consequência uma violação desse direito poderia não apenas causar conflitos em familiares e admiradores do morto, mas também contribuir para um ambiente de baixa efetividade dos direitos da personalidade. O direito quer justamente o contrário: proteção máxima para os atributos essenciais à condição humana. Daí a necessidade de se proteger, post mortem,a personalidade, como valor objetivo, reservando a outras pessoas uma extraordinária legitimidade para pleitear a adoção das medidas necessárias a inibir, interromper ou remediar a violação, como autoriza o art. 12 do Código Civil. 19 SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 116. Página 213 de 270 Neste aspecto, chama-se atenção para o descompromisso de alguma parcela da mídia para com os direitos da personalidade do falecido, desencadeandoefeitos diretos no meio social e contribuindo para uma sociedade de baixa efetividade dos direitos inerentes à pessoa humana. Ora, veja-se, por exemplo, a exposição da personalidade humana por ―repórteres policiais‖, que insistem emdifundir a infelicidade alheia como se fora produto comercializável. A televisão, sem sombra de dúvidas, tem inestimável influência na formação cultural de uma comunidade, prestando enorme ‗contribuição‘ para a situação em que vivemos. Conquanto tenha o Marco Civil da Internet, Lei n. 12.965/14, em seu art. 7°, I, previsto a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, nos parece que o legislador preocupou-se, sobremaneira, em amenizar a responsabilidade civil dos provedores e operadores da internet. Em que pese alguns avanços da lei, acredita-se que esta poderia e deveria ser mais abrangente. Retornando ao Código Civilista, insta ressaltar a disposição do seu art. 12: “pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”, que é complementado pelo seu parágrafo único que assim estabelece: “em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau”. Por sua vez, o art. 20, do mesmo Diploma, que trata da divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem, prevê, também em seu parágrafo único, que “em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”. Chama-nos a atençãoo fato do legislador pautar todo o Código Civil a partir da priorização do ser humano (sua dignidade e personalidade),como prioridade máxima do ordenamento; preconizar que são indisponíveis os direitos da personalidade; e, posteriormente, elencar taxativamenteaqueles que podem postular a respectiva tutela judicial. Vejamos. Página 214 de 270 No que diz respeito aos direitos patrimoniais, é incontroverso que apenas devem possuir tal legitimação aqueles previstos nos roles taxativos dos dispositivos em análise – acrescentando-se, obviamente, o companheiro, esquecido pelo legislador – em perfeita atenção aos direitos sucessórios. Contudo, mesma certeza não se verifica, de plano, quanto aos ditos direitos pessoais indisponíveis, a exemploda honra do falecido. A esse respeito, não nos parece vazio de sustentação jurídica que o operador do direito, aplicando a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, atingiria em cheio as disposições ora debatidas, expandindo tal legitimação para alémdos previstos, alcançando toda e qualquer pessoa capaz que manifeste judicialmente o intento de impedir ou suspender a divulgação de um conteúdo lesivo. Tal leitura, poderia traduzir-se como aplicação do princípio constitucional da solidariedade (direitos fundamentais de 3ª geração). Trilhar-se-ia, deste modo, em sentido à efetividade dos direitos da personalidade, numa compreensão completa e complexa do ordenamento. Ocorre que não basta estender a legitimação para toda a comunidade. O grande passo, sem titubeio, é a responsabilização de todos os agentes envolvidos na cadeia de criação e divulgaçãodo conteúdo necrófilo. Assim, pensamos que a responsabilização(civil e/ou criminal) do agente é de fundamental importância para a mudança cultural que se deseja. Precisa-secompreender que tão gravosa quanto a conduta do cidadão que produz o vídeo ou a imagem, também é extremamente grave e danosoo comportamento daquele que ―apenas‖ compartilha o registro, razão pela qual, tendo contribuindo para o dano, também de forma significativa, merece ser responsabilizado. Veja-se que o Diploma Civil, em seu art. 186, preconiza que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Ora, se o dano mede-se por sua extensão, nos parece incontestável que concorrem para este tanto quem produz o conteúdo, como quem o compartilha, afinal de contas, é inegável que a dimensão se dará a partir dos compartilhamentos (propagação) do registro. A leitura do dispositivo apontado alerta que também comete ato ilícito aquele que, por omissão, causar dano a outrem. Nos parece que tal dispositivo ainda encontra margem Página 215 de 270 para punir, por exemplo, aquele integrante do grupo do Whatsapp, por exemplo, que mesmo não tendo assistido ou compartilhado, nada fez para cessar o dano, leia-se, nenhuma atitude (denúncia, por exemplo), fez a este respeito. Registre-se, ainda, a doutrina de Sérgio Cavalieri Filho, que, lecionando a respeito da teoria da equivalência dos antecedentes (também aplicada no ordenamento brasileiro), afirma que:“essa teoria não faz distinção entre causa (aquilo de que uma coisa depende quanto à existência) e condição (o que permite à causa produzir efeitos positivos ou negativos)”, concluindo, em seguida, que “se várias condições concorreram para o mesmo resultado, todas têm o mesmo valor, a mesma relevância, todas se equivalem”20. Destarte, como dito, é induvidoso que concorrem para a dimensão do dano não apenas o captador do conteúdo, mas também aquele que o compartilha na rede, uma vez que ganha maior extensão à cada compartilhamento. Considerações Finais Diante do estudo desenvolvido no presente texto, chega-se à conclusão da necessidade imediata de construção de uma nova cultura que faça frente a esta era de promoção banalizada do desrespeito aos direitos da personalidade. Pensa-se, portanto, que tal construção inicia-se pela qualificação da mídia e dos meios de comunicação, reprimindo-se os sujeitos que, sem nenhuma sensibilidade/solidariedade, expõem, abertamente, a imagem, a honra, a privacidade da pessoa já falecida, agindo em contraposição tamanha ao pilar central da Constituição Federal: o princípio da dignidade da pessoa humana. Diz-se isto justamente por entender a inestimável influência da mídia na cultura de uma sociedade. De igual modo, registra-se a importância da iniciativa de cada sujeito, seja através do exemplo de conduta, seja negando e reprimindo aqueles pseudonecrologistas, ou, ainda, judicializando os casos de necrofilia virtual, tanto para cessar a lesão à personalidade, como para responsabilizar civilmente o infrator. Pensa-se, de igual modo, que a responsabilização civil apresenta-se como fator de grande relevância para consecução desta mudança cultural que se intenta, considerando-se tanto o seu viés compensatório, como, sobretudo, a vertente sócio-pedagógica (ou punitivo20 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 64. Página 216 de 270 educativa). Ressaltando-se, conforme retro mencionado, a aplicação desta responsabilidade não apenas para quem produz o conteúdo, mas também para que o compartilha, por convergir diretamente com a dimensão do dano. Em uma sociedade cada vez mais capitalista, nos parece que o cidadão comum apenas passa a refletir sobre determinado assunto quando lhe é tocado o bolso. A atribuição, portanto, do dever de indenizar o dano moral, também se mostra como uma via adequada e essencial para o fim desta crise. O mais importante é que sociedade passe a constatar o quão prejudicial é a conduta que intitulamos de necrofilia virtual; perceba que não se pode assistir, inerte, a tudo isto; que precisa estabelecer novos padrões de comportamento, éticos e jurídicos; que necessita, sobretudo, agir, pois, como bem canta Lenine,“o mundo anda cada vez mais veloz, a gente espera do mundo e o mundo espera de nós”. Referências Bibliográficas AGUIAR, Odilio Alves. A questão social em Hannah Arendt. Trans/Form/Ação, v. 27, n. 2, 2004. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – Da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. BAUMAN, Zygmunt. 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Portal O Globo. http://oglobo.globo.com/brasil/jovem-comete-suicidio-depois-de-ter-fotosintimas-vazadas-na-internet-10831415 Visualizado em 18/02/2016, às 16h10m. MUNIZ, Francisco José Ferreira; OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. ―O Estado de Direito e os Direitos da Personalidade‖, in Revista dos Tribunais, 535, fev. 1980. RODRIGUES, Rafael Garcia. ―A Pessoa e o Ser Humano no Código Civil‖, in TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O Código Civil na Perspectiva Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2014. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999. TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015. TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O Código Civil na Perspectiva Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In: Temas de direito civil. 3° ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. Página 218 de 270 NOVAS FORMAS DE FAMÍLIA COMO REFLEXO DA SOCIEDADE PÓS-MODERNA Cinthia Caroline Luiz do Nascimento1 Resumo: Desde os primórdios de sua existência a humanidade vem sofrendo constantes mudanças. Da Idade da Pedra, onde o homem vivia em uma cultura extremante rudimentar, passando pela descoberta do fogo, da roda, da eletricidade, dentre tantas outras que foram evidenciadas ao passar dos séculos. Tais mudanças refletiram diretamente nas sociedades e suas maneiras de agir, comportar-se, vestir-se e principalmente de relacionar-se. Assim, estas transformações constantes chegaram até a base estrutural da humanidade, qual seja, a família, e, principalmente no que tange a sua formação. As famílias atuais têm composições diferentes daquelas da década de 50, por exemplo. O objetivo deste trabalho é demonstrar um pouco da verdadeira metamorfose ocorrida no âmbito familiar, fazendo um liame destas mudanças como sendo uma consequência dessa era fluida e efêmera denominada de PósModerna. Através de uma pesquisa puramente bibliográfica, procura-se ilustrar que foi após a Revolução Industrial e por conseguinte do Capitalismo, onde houve a necessidade da inserção da mulher no mercado de trabalho, que iniciou-se o passo decisivo para o aumento do número de divórcios e com eles o surgimento dos rearranjos familiares. Além disso, a liberdade sexual foi aflorando onde as pessoas passaram exigir o direito de relacionar-se livremente, o que acarretou o surgimento das comunidades LGBT. Daí em diante, foram aparecendo famílias com apenas um membro, ou compostas por dois homens ou duas mulheres, com a mãe sendo a chefe da família, dentre outras. O que são consequências de uma alteração no perfil da sociedade, bastante típico da era pós-moderna em que se vive. Isso gerou uma verdadeira revolução na seara jurídica, sendo refletida através da jurisprudência, onde gradativamente, os juízes se deparam com situações até então impensáveis e onde os limites da lei ainda não alcançavam. A consequência foram decisões verdadeiramente revolucionárias, indo até mesmo em contraponto a legislação infraconstitucional e abraçando as novas famílias com base no afeto, norteados pelo 1 Graduada em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ, Pós-graduanda em direito civil e processo civil pela Escola Superior da Advocacia – ESA. Advogada. E-mail: [email protected]. Página 219 de 270 princípio da dignidade da pessoa humana, influenciando alterações legislativas e a criação de novas leis para abraçar as novas relações familiares. Palavras-chave: Família; Multiparentalidade ; Pós-Modernidade ; Sociedade ; Afeto Abstract: Since the beginning of its existence, mankind has been undergoing constant change. Stone Age where the man lived in a extremante rudimentary culture, through the discovery of fire, the wheel, electricity, among many others that were shown to over the centuries. Such changes reflected directly in societies and their ways of acting, behaving, dressing and mainly relate. Thus, these constant changes came to the structural basis of humanity, namely the family and especially with regard to their training. Today's families have different compositions from those of the 50's, for example. The objective of this work is to demonstrate some of the true metamorphosis occurred in the family, making a bond of these changes because of that was fluid and ephemeral called Postmodern. Through a purely bibliographical research, seeks to illustrate that it was after the Industrial Revolution and therefore Capitalism, where there was a need of women entering the labor market, which began the decisive step to increase the number of divorces and with them the emergence of family rearrangements. In addition, sexual freedom was outcropping where people began demanding the right to relate freely which led to the emergence of LGBT communities. Henceforth, families were coming up with only one member, or composed of two men or two women, with the mother being the head of the family, among others. What are the consequences of a change in the profile of the society, fairly typical of the postmodern age in which we live. This created a true revolution in the legal harvest, being reflected through case law, which gradually judges are faced with situations previously unthinkable and where the limits of the law has not yet reached. The result was truly revolutionary decisions, even going as opposed to infra-constitutional legislation and embracing the new family based on affection, guided by the principle of human dignity and influencing legislative changes and the creation of new laws, to embrace the new family relationships Keywords: Family; Multiparentalidade; Post-Modernity; Society; Affection. Introdução Página 220 de 270 A família é a base da sociedade, assim diz a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 226. É, além disso, o local onde o ser humano se refugia e desenvolve sua personalidade e caráter2. Nas civilizações antigas, a família era administrada pelo pater familias, que era a figura do pai, onde todas as decisões e tudo que dizia respeito a seu âmbito familiar era por ele decidido. Naquela época, as famílias eram compostas pelo pai, pela mãe e pelos filhos, além dos filhos solteiros, noras, netos e demais descendentes, formando um verdadeiro clã. O―pater familias‖, como era conhecido o pai, era o senhor absoluto da casa, o sacerdote que presidia o culto aos antepassados e o juiz que julgava seus subordinados, alémde administrador dos negócios da família‖3. A mulher, tinha o papel apenas de cuidar dos filhos e da casa, extremamente submissa ao homem, não tinha qualquer poder de decisão. Entretanto, ao passar do tempo, esse poderio predominantemente masculino foi perdendo força, principalmente após a Revolução Industrial, onde a mulher passou a inserir-se no mercado de trabalho. Os tempos modernos trouxeram mudanças no comportamento humano, principalmente na visão de homem e mulher que se tinha antes nas civilizações ocidentais, que possuíam suas raízes na antiguidade clássica greco-romana e na cultura judaico-cristã4, ambas amplamente patriarcalistas. Com o advento da Era Industrial, as mulheres saíram de suas casas e passaram a dividir o espaço com os homens, integrando o mercado de trabalho.Com isso vieram as primeiras mudanças na formação da famíliadaquela época, pois muitas delas passaram a sustentar a si própria e aos seus filhos, quando se viam sem a figura masculina dentro de casa, seja por morte, seja por separação ou até mesmo abandono. A partir daí, o conceito de família mudou para sempree as pessoas passaram a unirem-se com basenas novas possibilidades, descobrindo sua liberdade sexual, com a livre escolha de seus cônjuges, tudo combaseno afeto5. 2 POPPE, Laila Letícia Falcão. Novas conformações jurídicas e sociais da família e o afeto como meio de efetivação desse direito fundamental. Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Direitos Humanos. 3 FIUZA, César. Direito Civil: curso completo/ Cézar Fiuza – 17 Ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2014. 4 PETRINI, J. C.: Pós-modernidade e família: um itinerário de compreensão, Bauru, EDUSC, 2003, 228 p. 5 COSTA, Fabrício Borges– Da Multiparentalidade do Século XXI. Percurso Acadêmico, Belo Horizonte, v. 5, n. 9, jan./jun. 2015. Página 221 de 270 Com a Revolução Sexual de 1960, ocorrida no ocidente, as pessoas saíram às ruas requerendoo direito a sua liberdade sexual, uso de contraceptivos e da pílula, sexo fora das relações conjugais, dentre outros. As consequências foram várias. A mulher ao adquirir sua independência e por vezes oprimida, passa a não aceitar o comportamento muitas vezes brutal de seu cônjuge, tendo a liberdade de viver sem a necessidade de manutenção de sua família por meio dele.O homem ou mulher que sentiam atração por pessoas do mesmo sexo começam a viver sua liberdade e despertam para o desejo de constituirfamília.Surgiram famílias menores e diferentes, por exemplo, as formadas apenas por avós que cuidam de seus netos e, dentre outras, foi abrindo o grande leque de composiçãofamiliar que se vê hoje, nesta era por alguns denominada de pós-moderna. A família na sociedade pós-moderna Conforme se vê atualmente e demonstrado acima, a família passou por diversas mudanças quanto a sua formação. Isso se deve as grandes alterações ocorridas com a sociedade nas últimas décadas e a vários elementos que surgiram concomitantemente, quais sejam, as inovações na medicina, as manipulações genéticas, a automação das indústrias, a valorização do consumismo, a revolução sexual, entre outros fatores, que foram essenciais para o surgimento de uma nova forma de pensar entre homens e mulheres6. Essa era em que se fala sobre tamanhas mudanças é, por muitos autores, denominada de ―Pós-Modernidade‖. Na visão de Jair Ferreira dos Santos Pós-modernismo é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por convenção, se encerra o modernismo (19001950)7. Essa época contemporânea em que se vive é marcada pelo imediatismo, segundo Bauman,a era pós-moderna é caracterizada pela liquidez ou fluidez dos sólidos padrões conservadores das décadas passadas8. Neste sentido, o que se valoriza no pós6 PETRINI, J. C.; MOREIRA, L. V. C.; ALCANTARA, M. A. R. Desafíos al estudio de la familia contemporánea. Revista Krínein - Universidad Católica de Santa Fé. Argentina. ISSN 1850-3217, v. 5, p. 161180, 2008. 7 SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004. – Coleção primeiros passos; 165) 22ª reimpr. da 1ª ed. de 1986. 8 BAUMAN, Zigmunt. MODERNIDADE LÍQUIDA. tradução, Plínio Dentzien. - Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 200. Página 222 de 270 modernismo é a individualidade da pessoa humana, tornando as relações e padrões mais flexíveis e abertos, com a rejeição das estruturas rígidas e hierárquicas do passado. Assim, surge a valorização da inclusão dos diferentes, com a finalidade de realização pessoal 9. Além disso, as relações fluidas desta época contemporânea, perderam um pouco da ideia do ―felizes para sempre‖, tendo como consequência disso o aumento do número de divórcios e com isso os rearranjos familiares. O instituto do casamento, com todas as suas formalidades, também perdeu forças nas últimas décadas e as pessoas passaram apenas a conviverem, nascendo um novo tipo de relação, atualmente também protegida pela Constituição Federal, que é a união estável. Daí por diante foram se formando as novas estruturas familiares conhecidas hoje e também já classificadas por vários estudiosos, que serão vistos adiante. As Novas Famílias E O Direito Brasileiro Como se sabe, as leis são criadas para nortear as relações em sociedade e por este motivo é que elas necessitam acompanhar as transformações que vêm ocorrendo nela. Entretanto, com processos legislativos tão demorados, como é o caso do ordenamento jurídico brasileiro, isso não tem sido possível.Diante de tãobruscas mudanças nem sempre é possível que a lei acompanhe a evolução social, fazendocom que situações desse jaez, cheguem ao gabinete dos magistrados sem que os mesmos possuam base teórica ou até mesmo jurisprudencial para julgar tais situações. No Brasil, após o advento da Constituição Federal de 1988, as pessoas foramconsideradas na sua individualidade, o que fez atrair um anseio por fazer desse bemestar pessoal o maior interesse da família pós-moderna. Os filhos passaram a ser Constitucionalmente iguais e a terem os mesmos direitos e deveres, sem distinçõesentre os que foram concebidos fora do casamento e os que foram adotados.Também, através da famigerada Emenda Constitucional 66/2010 houve a facilitação do divórcio, outra novidade, foi o reconhecimento da união estável como entidade familiar e ainda efinalmente as pessoas reconheceram que o fim de um matrimônio e/ou união estável não 9 MALUF, C. A. D.; MALUF, A. C. R. F. D. A família na pós-modernidade: Aspectos civis e bioéticos. R. Fac. Dir. Univ. São Paulo, v. 108, 2013. Página 223 de 270 desvincula ou desfaz a maternidade ou paternidade. O termo ―a família‖ foi dando espaço ao termo ―as famílias‖ abraçando as diversidades e dando abertura a novas classificações como família monoparental, anaparental, homossexual, dentre outras10. O direito, a duras penas, vem tentando acompanhar o avanço e as mudanças ocorridas nas famílias, entretanto, pelo menos no Brasil, pode-se reconhecer que muito já foi realizado. O Judiciário tem feito, no país, quase que um papel de legislador, tendo que se desdobrar para decidir os mais diversos e inovadores pedidos. Assim, nos últimos anos tem surgido emblemáticos julgados, que foram capazes de mudar toda forma de pensar dos legisladores, ao perceberem a necessidade de novas leis para abraçar as alterações da sociedade. A exemplo disso temos o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da união homoafetiva, que defendeu a união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar. A CF/88, em seu artigo 226, parágrafo 4º, também já reconheceu como entidade familiar as famílias compostas por apenas um dos pais e os filhos, mais conhecida como família monoparental11. A aceitação das novas formas de famílias pelo direito, é nada mais que uma consagração e respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, que é o grande cerne da sociedade contemporânea, priorizando a pessoa, ultrapassando a questão patrimoniale valorizandoas relações pessoais, que são atualmente mais baseadas no afeto, transpondo inclusive o vínculo biológico12. Classificaçao Das Famílias Contemporâneas Pois bem, a partir da visão constitucional de família, o consagrado princípio da dignidade da pessoa humana permitiu maiores possibilidades de composição e formação da mesma. De início, pode-se verificar através do artigo 226, da CF/88 que as famílias são geradas a partir dos institutos do casamento e da união estável, também já foi reconhecida 10 PRETTO, Camila Gabriela. Multiparentalidade: Possibilidade Jurídica e Efeitos Sucessórios. Trabalho de conclusão de curso, Universidade Federal de Santa Catarina, 2013. 11 SIMÕES, Fabrício dos Santos. Multiparentalidade: O Moderno Conceito de Família. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/33726/multiparentalidade-o-moderno-conceito-de-familia. Acesso em 16/10/2015. 12 KIRCH, Aline Taiane. COPATTI Lívia Copelli. O reconhecimento da multiparentalidade e seus efeitos jurídicos. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 112, maio 2013. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12754&revista _caderno=14>. Acesso em out 2015. Página 224 de 270 como família aquela formada por apenas um dos genitores e sua prole. Entretanto, Flávio Tartuce13 ensina que, para a doutrina e a jurisprudência, este rol não é taxativo e sim meramente exemplificativo e que através das lentes constitucionais, é permitida a admissão de outras formas de família, a exemplos das que segue: Anaparental – Etimologicamente, o prefixo grego ―ana‖ significa negação, privação14, portanto pode-se interpretar anaparental a família que não possui a figura dos pais. Essa expressão foi elaborada por Sérgio Resende de Barros15 e já serviu como base para julgados, a exemplo, dos julgados que consideraram como bem de família o imóvel de pessoa solteira; Monoparental –Diz-se da família que é composta de um dos pais e pelos filhos, predominantemente pela mãe, que jáfora reconhecida pela ConstituiçãoFederal de 1988, em seu artigo 226, parágrafo 4º. Nas últimas décadas tem aumentado este tipo de família, visto a grande quantidade de divórcios existentes e nada mais justo que reconhecê-la e protegê-la; Homoafetiva – É a família cujo casal é formado por pessoas do mesmo sexo. O reconhecimento deste tipo de família ocorreu em 2011, por decisão do Supremo Tribunal Federal através da ADPF 132/RJ e da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277/DF. Por unanimidade, os ministros equipararam a união homoafetiva com a união estável, em todos os efeitos jurídicos e erga omnes. Atualmente, já se consegue a celebração de casamento entre pessoas do mesmo sexo, utilizando-se da argumentação que se fundamenta na equiparação da união estável ao casamento consagrado na Carta de 88; Mosaico ou pluriparental – Étambém reconhecida como família reconstituída. Este tipo de família é formado por pessoas vindas de outras relações, que junto aos filhos 13 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. 1º ed. São Paulo, editora: Método, 2011. AFONSO, Diógenes. Prefixos Latinos. diafonsoparanapuka.blogspot.com.br. Disponível em: <http://www.educacional.com.br/upload/blogSite/5094/5094442/9140/PREFIXOS%20GREGOS%20E%20L ATINOS.pdf> . Acesso em: 16 de outubro de 2015. 15 BARROS, Sérgio Resende de. In: V Congresso Brasileiro de Direito de Família, 2006. A tutela constitucional do afeto. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 921 14 Página 225 de 270 das uniões anteriores formam uma nova família. A família mosaico é amplamente encontrada nos dias de hoje e também tem sua formação como consequência dos muitos divórcios existentes16. Diante do grande número de famílias reconstituídas, foi criada a Lei 11.924 de 17 de Abril de 2009, que altera artigo 57, parágrafo 8, da Lei de registros públicos, concedendo o direito aos enteados de serem adotados e adquirirem o nome do padrasto ou madrasta no seu registro de nascimento. Tais denominações são puramente doutrinárias.Esclarecem e facilitam o entendimento,ilustrando o que ocorre nessa era pós-moderna, a respeito das famílias. O direito por sua vez, vem tentando acompanhar aevolução da sociedade para que as pessoas não fiquem sem a devida proteção jurídica. Entretanto, há controvérsias de pensamento, onde algumas pessoas acreditam que a família tem perdido força e que um dia será extinta. De certo que esse período contemporâneo seja amigo do individualismo e que cada vez mais as pessoas têm a tendência a não se relacionarem ou pelo menos não criarem vínculos afetivos, mas ainda existem aqueles que lutam para ter uma família, mesmo que seja fora dos padrões de outrora. A despeito do futuro das famílias contemporâneas, Cézar Fiuza faz o seguinte questionamento, ―Mas qual seria o futuro da família ocidental? Responder a essa pergunta é impossível. As injunções históricas são as mais sub-reptícias, mudando o curso de todas as previsões que se possa fazer. As inovações médicas revolucionam o mundo a cada instante. O tema deve ser analisado, sem preconceito ou falsos critérios religiosos. O amor ao próximo deve ser a única regra a nos guiar nesses meandros tão conturbados‖. Como bem ilustrado pelo autor acima mencionado, não se deve olhar para essas mudanças sociais em torno da família com preconceito ou desrespeito, também sem falsos 16 ALVES, José Eustáquio Diniz. A família mosaico. Disponível em: <http://www.ie.ufrj.br/aparte/pdfs/a_familia_mosaico_16nov08.pdf>. Acesso em: 17 de outubro de 2015. Página 226 de 270 moralismos ou religiosos. Ademais, essa classificação doutrinária, revela claramente o reflexo da pós-modernidade nas relações interpessoais, entretanto, para melhor proteger juridicamente as novas famílias é necessário que a lei se renove. Foi com essa visão que o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) elaborou o Projeto de Lei, n. 470/2013, o polêmico ―Estatuto das Famílias‖, apresentado ao Senado Federalpela senadora da República Lídice da Mata do PT da Bahia. Este estatuto foi criado justamente para abraçar todas as mudanças ocorridas na sociedade no âmbito da família, a exemplo, pode-se citar o reconhecimento expresso do parentesco socioafetivo17 e da união homoafetiva, dentre outras, que não serão aqui demonstradas por não ser o norte primordial deste artigo18. Para o IBDFAM, faz-se necessário apartar as normas relativas ao direito de família do Código Civil, cujas normas são voltadas em sua maioria para questões patrimoniais.Entretanto, o projeto gerou polêmica e disparidade de pensamentos, principalmente pela bancada religiosa que atacou alguns dos pontos do projeto, a exemplo do reconhecimento das uniões estáveis de pessoas já casadas, pois atualmente, quem é casado não pode constituir união estável. Ocorre que existe alguns julgados aceitando tal possibilidade e “a proposta assimila a posição de que, se há separação de fato, a pessoa pode constituir união estável.”19 Embora os magistrados e doutrinadores estejam trabalhando em prol das mudanças ocorridas na família, a Comissão Especial do Estatuto da Família da Câmara dos Deputados, munida de conservadorismo, aprovaram recentemente um Projeto de Lei que define a família a partir da relação formada por um homem e uma mulher, indo totalmente a contrario sensu do que tem decido o STF. O projeto ainda será encaminhado para votação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, mas causou grande revolta de alguns 17 É o parentesco criado pelo vínculo afetivo. 18 SILVA, Pedro Francisco Mosimann da. A MULTIPARENTALIDADE NAS FAMÍLIAS RECONSTITUÍDAS: DA REALIDADE SOCIAL À (UMA NOVA) REALIDADE JURÍDICA. Trabalho de conclusão de curso da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2014. 19 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Câmara aprova o Estatuto das Famílias. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/191903-CAMARAAPROVA-O-ESTATUTO-DAS-FAMILIAS.html>. Acesso em: 20 de outubro de 2015. Página 227 de 270 deputados, inclusive os da bancada LGBT20. Estas discussões estão longe de serem concluídas, posto que a sociedade está justamente nesta fase de transição de padrões conservadores e moralistas para uma sociedade que aceita as diferenças e que respeita a opinião do próximo. Conclusão A partir do que foi explanado, conclui-se que a pós-modernidade tem relação proporcionalmente direta com as mudanças ocorridas na sociedade, principalmente nos assuntos relativos a família. O imediatismo dos comportamentos, a falta de tempo, o trabalho excessivo, a busca do prazer, do dinheiro e do poder, o consumismo exacerbado, dentre tantas outras características desta Era, refletem imediatamente nas relações interpessoais. A consequência disso, pode-se ver nos relacionamentos relâmpagos, na falta de comprometimento para com o outro.O que realmente importa é o bem-estar próprio.Partindo desse pensamento pode-se dizerque a pós-modernidade é considerada como a erada consagração do eudemonismo21. Estas mudanças comportamentais da sociedade, refletiram diretamente na família, trazendo as mais diversas formas de composição familiar que se vê na atualidade.O fato é que o direito, como ciência que regula a sociedade, tem que andar lado a lado com essas mudanças, mas nem sempre é possível.De toda forma, alguns avanços já foram feitos, mas ainda existe uma longa estrada até que se consiga uniformizar os entendimentos acerca das diferenças. Enquanto isso a sociedade caminha em frente com suas mudanças, em busca de uma igualdade entre as pessoas e respeito a diversidade. Referências ALVES, José Eustáquio Diniz. A família mosaico. Disponível em: <http://www.ie.ufrj.br/aparte/pdfs/a_familia_mosaico_16nov08.pdf>. Acesso em: 17 de outubro de 2015; 20 Jus Brasil. Com a aprovação do Estatuto da Família nada vai mudar, afirma especialista. Disponível em:http://portal-justificando.jusbrasil.com.br/noticias/235973638/com-a-aprovacao-do-estatuto-da-familianada-vai-mudar-afirma-especialista>. Acesso em: 20 de outubro de 2015. 21 Ciência (doutrina) que, se baseando na procura pela felicidade ou por uma vida feliz, leva em consideração tanto o aspecto particular quanto o global e caracteriza como benéficas todas as circunstâncias ou ações que encaminham o indivíduo à felicidade. Página 228 de 270 AFONSO, Diógenes. Prefixos Latinos. diafonsoparanapuka.blogspot.com.br. Disponível em: <http://www.educacional.com.br/upload/blogSite/5094/5094442/9140/PREFIXOS%20GR EGOS%20E%20LATINOS.pdf> . Acesso em: 16 de outubro de 2015; BARROS, Sérgio Resende de. In: V Congresso Brasileiro de Direito de Família, 2006. A tutela constitucional do afeto. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 921; BAUMAN, Zigmunt. MODERNIDADE LÍQUIDA. Tradução, Plínio Dentzien. - Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 2001; CÂMARA DOS DEPUTADOS. Câmara aprova o Estatuto das Famílias. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/191903CAMARA-APROVA-O-ESTATUTO-DAS-FAMILIAS.html>. 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Página 229 de 270 AS TRANSFORMAÇÕES PROMOVIDAS PELO DIREITO CIVILCONSTITUCIONAL E A CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA Vinicius Salomão de Aquino1 Resumo: A propriedade imobiliária exerce um papel fundamental na estrutura da nossa sociedade, não só do ponto de vista do desenvolvimento econômico, mas também por conferir um necessário espaço para vivência e moradia aos cidadãos. O caráter absolutista e individualista da propriedade foi gradualmente superado à medida que o direito incorporou os ideais do Estado Social e passou a resguardar os interesses de toda coletividade e não somente do proprietário. A democratização do espaço urbano é um dos grandes desafios contemporâneos, conferir a todos um espaço para construírem suas habitações é essencial para garantia de uma vida digna e o exercício dos seus direitos básicos. Este ensaio tem como objetivo investigar a evolução do instituto da propriedade com a influência do Direito Civil-Constitucional e analisar os institutos do direito civil, como a usucapião, direito real de habitação, regularização fundiária, entre outros capazes de ajudar a promoção de uma justa distribuição do espaço urbano que viabilize o gozo de direitos básicos, principalmente a moradia. Palavras-chave: Direito Civil Constitucional; Direito à propriedade; Função social da propriedade. Abstract:Real state plays a termsofeconomicdevelopment, thecitizenstolive. key role butalsobecause The in it oursocietystructure, provides a absolutistand wayofportrayingpropertyhasgraduallychanges notonly neededspace in for individual as thelawhasincorporatedideasfromtheWelfareStateandstartedtoprotectinterestsofthewholecom munityinsteadofthelandlordalone. The urbanspacedemocratizationisoneofthegreatchallengesofour time, provideeveryone some landto build their homes isessentialtosecure a lifewithdignityandthemostbasicrights. ThispaperaimstoinvestigatetheevolutionofpropertywiththeinfluenceoftheupcomingConstitut 1 Mestrando em Direito Econômico pelo PPGCJ/UFPB. [email protected] Página 230 de 270 ional Civil Law andanalyzeusucaptios, lawconceptstharcah help urbanlandregularizationandother topromote na civil équa distributionoftheubanlandthatenablestheprotectionofhumanrights, especiallytherighttohousing. Keywords: Constitutional civil law; Righttoproperty; social functionofproperty. Notas Introdutórias O direito à propriedade é milenar e acompanhou o desenvolvimento das civilizações humanas, mas ele não permaneceu imutável por todo esse tempo. O seu conceito ganhou complexidade para abranger as novas dinâmicas sociais. Não obstante o desenvolvimento econômico e a melhoria nos indicadores sociais, o país ainda convive com uma grande desigualdade social o que acaba refletindo também na divisão do espaço urbano. Esta disparidade, força um grande contingente de pessoas a viver em condições dessumas e/ou ocupar terrenos irregularmente. Desta forma, seria possível o Estado interferir, a partir de políticas públicas ou textos legais, na propriedade para democratizar o seu acesso? Este trabalho tem como objetivo analisar a evolução do conceito de propriedade e a sua relação com o Estado para então analisar alguns institutos do direito civilque podem ajudar a tornar mais equânime e justa a distribuição de espaço nos centros urbanos. Volta Copérnica E O Direito Civil Constitucional A sociedade está em constante transformação e o direito, consequentemente, não poderia ficar inerte. Casamento entre pessoas do mesmo sexo, filhos adotivos com os mesmos direitos que os filhos biológicos, princípio da boa-fé, proteção especial aos consumidores, dentre outras são realidades que até poucas décadas seriam inimagináveis. O perfil do Estado também foi gradualmente alterado, desde o absolutismo, liberalismo até chegar ao Estado social, consistindo em outra força motriz de mutação das relações jurídicas. Página 231 de 270 A doutrina clássica do direito civil tem como base os valores do Estado Liberal que defendem a plena liberdade entre as partes contratantes. O movimento liberal, especialmente a partir da segunda metade do séc. XVIII, representava os desejos da burguesia de estabelecer uma nova ordem onde o Estado atuaria como um mero coadjuvante, garantindo a liberdade formal para as partes pactuarem livremente seus contratos seguindo a lógica do ―laissez-faire‖. Por conseguinte, nesse contexto, havia a valorização do princípio da autonomia da vontade. Caio Mário aponta quais seriam os quatro aspectos fundamentais do referido princípio: a)faculdade de contratar e de não contratar, ou seja, a possibilidade de decidir, segundo os interesses e conveniências, se deseja firmar o contrato; b) a liberdade escolher com quem deseja contratar, bem como o tipo de negócio a ser efetuado; c) liberdade de fixar o conteúdo do contrato; d) uma vez concluído o contrato, este passa a constituir fonte formal de direito, autorizando qualquer das partes a mobilizar o aparelho coator do Estado para fazê-lo respeitar integralmente, na forma que foi originalmente pactuado entre as partes.2 À época, os juristas acreditavam que os contratos criados seguindo esse modelo não poderiam criar injustiças, uma vez que os seus desdobramentos já teriam sido aceitos pelos contratantes exteriorizarem a sua vontade no momento da sua celebração. Ou seja, a plena liberdade e a igualdade formal, sozinhas conduziriam à justiça contratual. Havia também uma clara distinção entre o direito privado e o direito público, seguindo os moldes da divisão concebida no Corpus Juris Civilisonde o direito público seria voltado ao Estado, a coisa romana, enquanto o direito privado corresponderia volta à utilidade de cada um dos indivíduos a partir dos preceitos naturais, civis ou das gentes.3 Na mesma época que os ideias burgueses ascendiam, o movimento de codificação do direito civil se intensificou. Daniel Sarmento aponta que esse período representou o coroamento dos ideais racionalizadores do iluminismo que deveriam estar fincadas em 2 PEREIRA, Caio Mario da Silva - Instituições de Direito Civil - Volume III - Contratos - Rio de Janeiro: Forense, 2014. 3 Digesto I.1.1.2:“Huiusstudiiduae sunt positiones, publicum et privatum. Publicum ius est, quod as statum rei Romanaespectac; privatum, quod ad singulorumutilitatem; sunt enimquaedam publice utilia, quaedamprivatim. Publicum ius in sacris, in cacerdotibus, in magistratibusconsistit. Privatum iustripertitum est; collectumetenim est ex naturalibus praeceptis, aut gentium, autcivilibus.”KRIEGEL, Albert; KRIEGEL, Moritz; HERRMANN, Emil; OSENBRÜGGEN,Eduard. CuepodelDerecho Civil Romano. Promera Parte Institua – Digesto. Barcelona : Jaime Molinas, 1889. p. 197 Página 232 de 270 bases seguras e organizadas. Um instrumento legal único possibilitaria uma aplicação da lei com mais generalidade e abstração o que conferiria mais segurança para as relações jurídicas.4 Neste contexto, o Código Napoleônico de 1804 é o diploma legal mais representativo, sobre ele, PabloStolze e Rodolfo Pamplona assinalam que:―O código marca a tendência ideológica do seu momento, com um fator agravante: sua vocação fagocitária e totalizadora pretende agir com plenitude, todas as facetas da complexa e multifária cadeia de relações privadas‖5 Correlato à questão da codificação, está a Escola da Exegese desenvolvida na França que prezava pela aplicação fria da lei, restringindo o papel criativo dos juízes. Deste modo, foi constituído um sistema que prezava pela segurança das relações para impulsionar o desenvolvimento das atividades econômicas, contudo esta segurança não comtemplava os desejos da população e a promoção dos seus direitos, o papel do direito privado se resumiria a resguardar os interesses dos proprietários e burgueses, tendo como base a autonomia de cada indivíduo. A Código Civil Brasileiro de 1916 foi fortemente influenciada pelo Código Napoleônico, absorvendo suas virtudes e seus defeitos. Ela refletia uma sociedade patriarcal que ainda colocava o homem em posição de superioridade, diferenciava filhos havidos fora do casamento e elitista por resguardar os interesses dos mais abastados sem conferir maior proteção aos sujeitos mais vulneráveis. Ocorre que os ideais liberais aplicados irrestritamente trouxeram consequências incompatíveis com o desejo de construir uma sociedade mais justa e igualitária. Logo, percebeu-se que os detentores dos meios de produção e os grandes comerciantes acumulavam a maior parte das riquezas enquanto que nas classes mais humildes ficavam concentradas as externalidades negativas das relações privadas sem qualquer contrapeso para equilibrá-las. A estrutura do Estado e da sociedade estavam centradas na proteção a interesses individuais e não no bem-estar coletivo. Reflexos desta lógica perversa podiam ser 4 SARMENTO, Daniel. A normatividade da constituição e a constitucionalização do Direito Privado. Revista da EMERJ , Rio de Janeiro, v. 6, n.23, p. 272-297, 2003. p. 280 5 STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. vol. I, 12ª ed. Saraiva, 2010. p. 88 Página 233 de 270 constatados nos vários ramos do direito civil, não só nos contratos, mas também no direito de família, responsabilidade civil etc. Os problemas sociais ficavam cada vez mais evidentes e o sistema vigente não tinha respostas, ou melhor, era condizente no sentido de manter as riquezas e direitos concentrados nas mãos de poucos. Vários autores passaram a denunciar essa realidade injusta aos olhos do povo, mas legal para os detentores do poder. Nesse sentido, André Luiz Menezes Sette6 destaca a Encíclica RerumNovarum publicada em 1891 pelo Papa Leão XIII e os estudos de John Maynard Keynes denunciando a falácia da justiça da política do ―laissez-faire‖. Rodrigo Toscano de Brito aponta que a superação da ideia de códigos civilistas como centro do universo jurídico ocorreu em função do processo de desenvolvimento histórico que influenciou o perfil da legislação. Dentre os vários fatores, o referido autor aponto o contrato como o principal vetor de transformação por sua conexão com o dinamismo da economia.7 O liberalismo provou não ser perfeito como os liberais deduziam, principalmente por causa da falta de regulamentação dos mercados que priorizam o lucro em detrimento de qualquer garantia de proteção aos cidadãos. Nesse contexto, houve a ascensão do Estado Social que confere uma proteção especial aos direitos políticos, econômicos e dos trabalhadores. As constituições, além de demarcar os limites do poder do Estado e a garantia das liberdades fundamentais, passaram a incorporar uma visão mais social e política para o sistema econômico. Nesse processo de evolução merecem destaque as constituições do México de 1917, Weimar de 1919 e a brasileira de 1934. O constitucionalismo contemporâneo que acompanhou este novo modelo é marcado pela ideia de uma Constituição dirigente, onde o Estado deve interferir na economia, e que contém várias normas programáticas visando a conquista da tão almejada justiça social. Os princípios socioeconômicos contidos no texto constitucional não podem ser compreendidos como meros desejos ou objetivos distantes. Na linha do pensamento de Konrad Hesse, a Constituição deve ser considerada como a ordem jurídica fundamental e 6 SETTE, André Luiz Menezes Azevedo. Direito dos Contratos: seus princípios fundamentais sob a ótica do Código Civil de 2002. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. pp. 56-57 7 BRITO, Rodrigo A. T. Desapropriação judicial' e usucapião coletivo: uma análise comparativa. ParahybaJudiciária , v. 8, 2012, pp. 197-220. p. Página 234 de 270 detentor de uma força normativa capaz de assegurar a realização dos objetivos elencados no seu texto: Não se deve esperar que as tensões entre ordenação constitucional e realidade política e social venham a deflagrar sério conflito. Não se poderia, todavia, prever o desfecho de tal embate, uma vez que os pressupostos asseguradores da força normativa da Constituição não foram plenamente satisfeitos. A resposta à indagação sobre se o futuro do nosso Estado é uma questão de poder ou um problema jurídico depende da preservação e do fortalecimento da força normativa da Constituição,bem como de seu pressuposto fundamental, a vontade de Constituição.8. Deste modo, os mandamentos constitucionais deverão nortear toda atuação do Estado, nas três esferas de poder. Há, portanto, uma mudança de paradigmas, as grandes codificações perdem parte da sua importância e o seu fetiche de aplicação integral e literal, revolucionando a percepção dos juristas sobre a função de cada norma da mesma forma que Nicolau Copérnico transformou a astrologia. Antes dos estudos de Copérnico, acreditava-se que a Terra era o centro do universo e que os demais astros orbitavam ao seu redor (teoria geocêntrica), o astrônomo e matemático polonês desenvolveu a teoria heliocêntrica, contrariando a Igreja Católica, onde o sol seria o centro do sistema solar e os planetas, na verdade, estavam na sua órbita e esclarecia que os dias e noites são resultantes do movimento da rotação da Terra. A Constituição equipara-se ao sol, que se tornou o novo centro das ações com a ―virada de Copérnico‖. As normas infralegais devem, não apenas, respeitar a Constituição no sentido formal, mas também incorporar os valores contidos neste para formar um sistema jurídico harmônico.9Não há mais um caráter absoluto da interpretação literal dos códigos, que sempre deve estar de acordo com o ―espírito‖ da Constituição que agora é o centro e a razão de ser de todo ordenamento jurídico. Luiz Edson Fachin afirma que: Assim,uma virada de Copérnico se registra desde o princípio dasrazões expostas às raízes históricas e sociológicas da vida privada captada nos Códigos. As transformações se dão notríplice vértice, vale dizer, do contrato, a seu modo do pactoparcelar à obrigação como processo, da propriedade, datitularidade singular ao significante plural, propriedades, eda família, esta (sem deixar o que realmente é, ontologicamente)além do numerusclausus.10 8 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991. p.32 9 MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. Direito, Estado e Sociedade, v.9, n.29, p. 233-258 - jul/dez 2006. p. 234 10 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. p.58 Página 235 de 270 As constituições, a exemplo da brasileira de 1988, passam a conter dispositivos voltados para o futuro que tem a intenção de transformar a sociedade e não só espelhá-la.11 Assim, a prática do Direito Civil não poderia ficar estagnada no tempo, surge o Direito Civil Constitucional que propõe uma nova visão sobre os institutos históricos deste ramo do direito. A releitura do Direito Civil à luz da Constituição, conforme lição de GustravoTrepedino, representa a incorporação de valores não-patrimoniais, principalmente a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, direitos sociais e a justiça distributiva, objetivos pelos quais os agentes econômicos também devem cooperar para a sua consecução.12 Paulo Lôboassevera que o Direito Civil Constitucional não pode ser compreendido como uma disciplina autônoma do Direito Civil, muito menos deve competir com ela. Aquele precisa ser entendido como uma metodologia ou técnica de estudo e pesquisa do Direito Civil. Destarte, o mérito do Direito Civil Constitucional é promover a ressignificação dos pilares do Direito Civil, promovendo a sua adequação às transformações da sociedade e justiça a todos os segmentos da população.13 Pode-se apontar a palavra ―humanização‖ como a chave do ―novo‖ Direito Civil. As relações jurídicas não podem ser pensadas apenas com o uso da lei, deve-se ter em mente que nos contratos, relações de família, direitos reais há sempre uma pessoa que deve ter a sua dignidade resguardada e protegida contra os interesses meramente econômicos do capital. A seguir, será abordado como o Direito Civil Constitucional está influenciando o instituto da propriedade, um dos três pilares do direito civil, juntamente com a família e os contratos. Funcionalização da propriedade privada e a superação do paradigma individualista 11 FACCHINI NETO, Eugênio. A constitucionalização do direito privado. Revista do Instituto do Direito Brasileiro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - RIBD , v. 01, p. 185-244, 2012. p. 201 12 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. ed 4ª. Rio de Janeiro : Renovar, 2008. p. 23 13 LÔBO, Paulo. Metodologia do direito civil constitucional. In: Carlos Eduardo PianoviskyRuzyk, Eduardo Nunes de Souza, Joyceanne Bezerra de Menezes; Marcos Ehrhardt. (Org.). Direito civil constitucional. 1ed.Florianópolis: Conceito, 2014, v. 1, pp. 19-27. p. 20 Página 236 de 270 A propriedade está atrelada à própria convivência do homem em sociedade, assim afirma-se que ela é inerente à natureza do homem (teoria da natureza humana)14. Apropriação de bens visando satisfação das necessidades físicas, alimentícias e morais contribuiu para evolução das primeiras sociedades. A propriedade, pincipalmente a terra, viabilizou a fixação do homem em uma determinada área, tornando desnecessário a manutenção de fluxos migratórios, concomitantemente devido à sua relevância para vida comunitária ela passou a ser concebida como um direito e a receber a devida proteção pelas normas jurídicas aplicáveis a cada civilização. O constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho enfatiza que a propriedade é um vetor natural de desenvolvimento econômico, social e cultural.15Indiscutível sua importância para a produção de bens, fomento das relações comercias, estruturação da sociedade e a identidade cultural de um povo. Esta pode ser constatada desde o modo como as propriedades são divididas e utilizadas pela sociedade, existência de bens culturais até as características de construção dos prédios que exprimem o seu modo de vida. No princípio, nas civilizações mais antigas e em tribos indígenas, a propriedade tem um caráter comunitário, há um domínio comum das coisas úteis e da terra, enquanto só alguns bens como redes, armas e utensílios de uso próprio são individualizados.16 Fustel de Coulanges, na sua obra clássica ―A Cidade Antiga‖, destaca que a propriedade em conjunto com a religião doméstica e a família estavam solidificadas desde as mais antigas eras nas sociedades gregas e itálicas. A deia de propriedade estava contida na própria religião praticada por essas sociedades. Cada família adorava certos deuses que só aquele núcleo poderia venerar e este Deus só protegeria aquela propriedade. Desta forma a entidade divina se instala em determinada área e ao homem não era permitido sair dali senão por extrema necessidade ou expulso por um inimigo, ou seja, a terra é destinada àquela pessoa e torna-se sua propriedade.17 Entre os romanos, a propriedade tinha um caráter absoluto e individualista, não obstante existissem algumas limitações fundamentadas no interesse público e dos vizinhos. 14 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 4 : Direito das Coisas. 27. ed. São Paulo : Saraiva, 2012. p. 127 15 CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes. Protecção do ambiente e direito de propriedade: crítica de jurisprudência ambiental. Coimbra: Coimbra editora, 1995. p. 9-10 16 DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p. 121 17 COULANGES, Numa-Denys Fustel. A Cidade Antiga. Trad. Frederico Ozanam Pessoa de Barros. São Paulo :EDAMERIS, 1961. p. 88-89 Página 237 de 270 Ele era oponível a todos, erga omnes, perpétuo, exclusivo e ainda carregava um forte cunho religioso.18O direito à propriedade era exercido com jus utendi(direito de usar a coisa como lhe for mais conveniente), jus fruendi(direito de usar os frutos e produtos da coisa) e jus abutendi (direito de dispor da coisa).19 Durante a Idade Média a propriedade, concentrada nas mãos de poucos, garantia o comando dos senhores feudais, reafirmando seu status de nobreza e dominando os meios de produção com os quais subjugavam a força de trabalho dos camponeses.20 O modo de produção capitalista manteve aqualidade individualista da propriedade e atribuindo-lhe um caráter cada vez mais absoluto. O Código Napoleônico de 1804 concebeu a propriedade como um espaço de liberdade e privacidade da pessoa, rechaçando intervenções do Poder Judiciário capazes de deduzir as faculdades de fruição e disposição do proprietário. Esse código valorizava a esfera patrimonial dos sujeitos, seguindo os anseios burgueses de proteção aos interesses privados e liberdade negocial.21 Nesse contexto histórico, destaca-se também a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, fruto da Revolução Francesa, que proclamava a propriedade como um direito natural e imprescindível para o homem: ―Artigo 17º- Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia indemnização‖. As primeiras constituições brasileiras de 182422 e 189123 tratavam a propriedade como um direito absoluto, que só poderia sofrer intervenção estatal em raríssimas exceções, 18 CARVALHO, Natalie de Paula. Ronald Coase e a propriedade privada: uma nova visão para o velho direito? In: Maria Lírida Calou de Araújo e Mendonça; Ana Rita Nascimento Cabral; Nathalie de Paula Carvalho; José Martônio Alves Coelho; Valter Moura do Carmo. (Org.). As Garantias da Propriedade e as Intervenções Estatais. 1ed.Curitiba: Juruá Editora, 2012, v. 1, pp. 233-242. P. 236 19 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. A teoria da função social da propriedade rural e seus reflexos na acepção clássica de propriedade. In: STROZAKE, Juvelino José (Coord.). A questão agrária e a justiça. São Paulo: RT, 2000. pp.88-129. p 93. 20 FARIAS, C. M. C.; FARIAS, M. E. C. ; ANDRADE, M. D. . Função Social da Propriedade no Âmbito do Direito Internacional Privado. In: Maria Lírida Calou de Araújo e Mendonça; Ana Rita Nascimento Cabral; Nathalie de Paula Carvalho; José Martônio Alves Coelho; Valter Moura do Carmo. (Org.). As Garantias da Propriedade e as Intervenções Estatais. 1ed.Curitiba: Juruá Editora, 2012, v. 1, pp. 78-87. p. 80 21 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos reais volume 5.8 ed. rev. amp. e atual. Salvador :Juspodivm, 2012. 22 Art. 179, XXII. E'garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será ellepréviamenteindemnisado do valor Página 238 de 270 segundo os moldes das constituições francesa e portuguesa. O Código Civil de 1916, manteve esta visão sobre a temática, ainda espelhando as doutrinas individualista e voluntarista presentes no código Napoleônico. Esta realidade só começou a ser alterada com a Constituição de 1934, já com influência da Constituição de Weimar de 1919, que garantia o direito de propriedade, mas fazia a ressalva de que não ele não poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo. A partir de então, começou um lento e gradual processo que resultou na consolidação da função social da propriedade conferindo novo significado ao milenar instituto. Orlando Gomes conceituava propriedade a partir de três critérios: o sintético, o analítico e o descritivo: Sinteticamente, é de se defini-lo, com Windscheid, como a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua. Descritivamente, o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei. 24 Percebe-se que a definição trazida por um dos maiores civilistas que influenciou os operadores do direito pátrios por décadas descreve a propriedade como um bem que está submetido quase que exclusivamente à vontade do seu proprietário que estaria livre para dispor ou deixar de dispor da propriedade. Não obstante a qualidade com que o referido civilista trabalha as características centrais do conceito de propriedade, hodiernamente sua resposta estaria incompleta por não contemplar os deveres inerentes à propriedade para que ela atinja a sua função social. Rudolf von Ihering, em ―A luta pelo direito‖, já destacava que tornar a propriedade produtiva é condição para sua existência: ―A propriedade não pode conservar-se sã e vivaz senão por uma contínua conexão com o trabalho. É nessa della. A Lei marcará os casos, em que terá logarestaunicaexcepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação. 23 Art. 72 § 17 - O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. As minas pertencem aos proprietários do solo, salvas as limitações que forem estabelecidas por lei a bem da exploração deste ramo de indústria. 24 GOMES, Orlando. Direitos Reais. 21 ed. rev. e atual. por Luiz Edson Fachin. - Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 103 Página 239 de 270 fonte somente, em que a propriedade incessantemente se regenera e vivifica, que mostra clara e lucidamente, até o fundo, o que é para o homem‖.25 A Constituição Federal de 1988 conferiu um tratamento especial ao tema, incluindo a função social da propriedade no rol dos direitos e garantias fundamentais, além de elencalo como um dos princípios gerais da ordem econômica. Eros Grau26ressalta que o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário, ou aquele que detenha o seu controle, o dever de exercício da propriedade em benefício de outrem e não, apenas, de se abster a usá-la com prejuízo alheio. O princípio atua como fonte de imposição de comportamentos positivos, ou seja, prestação de fazer e não, meramente, um não fazer. O artigo 182, § 2º da Constituição dispõeque a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.Aqui, é possível constatar outra característica do Direito Civil Constitucional, o diálogo das fontes. Nesse caso as normas que regularão a propriedade estarão em leis municipais (plano diretor), cujas diretrizes estão contidas no Estatuto da Cidade, norma de caráter eminentemente pública demonstrando também a superação da separação radical entre o direito público e privado. O código civil de 2002, já influenciado pela nova ordem constitucional, mesmo que a sua tramitação tenha se iniciado na década de 1970, além de determinar o exercício do direito de propriedade em harmonia com as questões sociais, também atribui ao proprietário o dever de proteger a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. No tocante à propriedade rural, o constituinte foi mais explícito ao elencar os requisitos para que a função social seja respeitada.27 Complementando a temática, valiosas as considerações escritas por Cristiano Farias e Nelson Rosenval sobre o novo perfil da propriedade: 25 IHERING, Rudolf von, A luta pelo direito. Trad. João de Vasconcelos. São Paulo : Martin Claret, 2009. p. 51 26 GRAU, Eros. Parecer. In: STROZAKE, Juvelino José (Coord.). A questão agrária e a justiça. São Paulo: RT, 2000. pp. 195-201. p. 197 27 Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Página 240 de 270 A propriedade não é o retrato do imóvel com as características físicas, mas a feição econômica e jurídica que a representa formalmente, dotando o proprietário de uma situação ativa que lhe permita o trânsito jurídico de titularidades e a proteção plena do aparto jurisdicional. O título representativo da propriedade é apenas a parte visível de um bem intangível que resume um conjunto integrado e controlável de informações que circulam entre cartórios, registros, instituições financeiras e Estado, promovendo segurança e confiança intersubjetiva. Podemos assim conceituar a propriedade como uma relação jurídica complexa formada entre o titular do bem e a coletividade de pessoas. 28 Deste modo, evidencia-se que a propriedade deve servir ao bem comum e não unicamente ao se dono, cujo direito sobre ela é apenas relativo. As mudanças ocorridas com o direito à propriedade simbolizam bem as transformações promovidas pelo Direito Civil Constitucional para superação do paradigma individualista e valorização da pessoa humana ao invés de apenas resguardar as relações jurídicas. Como visto, a propriedade exerce uma importante função para viabilizar uma vida digna, principalmente no que diz respeito a um lugar para as pessoas habitarem. Destarte, zelar pelo cumprimento da função social das propriedades é fundamental para garantir uma sociedade mais justa. O direito civil a serviço da justiça fundiária urbana Este tópico destina-se a apontar alguns institutos de direito civil que podem auxiliar na efetivação do princípio da função social da propriedade urbana e promover o acesso ao espaço urbano e o direito à moradia. Concessão Especial de Uso para Fins de Moradia – É sabido que os imóveis públicos são insusceptíveis às ações de usucapião, contudo os isenta do dever de cumprir a sua função social como qualquer outra propriedade. Este instituto, regulado pela Medida Provisória nº 2.200/2001, com previsão constitucional no § 1º do artigo 183 e na alínea g, inciso V, do artigo 4º do Estatuto da Cidade e incluído no rol de direitos reais do artigo 1.225 do Código Civil em 2007, possibilita a manutenção do cidadão na posse de um imóvel sem que o ente público tenha que transmitir/perder seu imóvel. O artigo 1º da referida medida provisória estatui que aquela pessoa quepossuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até 250 m2 de imóvel público 28 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson.Op. Cit. p. 263 Página 241 de 270 situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural. O pedido de concessão deve ser feito junto à Administração Pública que terá o prazo máximo de doze meses para decidir, em caso de recusa ou omissão deste, o pedido pode ser feito pela via judicial. O concessionário só perderá a concessão caso confiraao imóvel destinação diversa da moradia para si ou para sua família e no caso de aquisição de uma propriedade ou a concessão de uso de outro imóvel urbano ou rural. Lígia Melo29, destaca que a concessão de uso permite ao Poder Público manter o domínio do bem e o controle do seu uso ao mesmo tempo que inibe a especulação imobiliária e a retirada forçada de pessoas humildes que encontraram naquele imóvel um lugar para morar. Regularização Fundiária - O instituto da regularização fundiária não é uma inovação recente do ordenamento jurídico pátrio, mas ela ganhou força com a edição da Lei 11.977/2009 que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas. O fato da sua regulação estar situada dentro da lei do maior programa habitacional do país demonstra que uma das principais funções do instituto conferido pelo legislador é o combate à crise habitacional.Ele vem atacar diretamente o problema das ocupações irregulares, com a falta de recursos monetários que permitiriam o acesso ao mercado, somada à carência institucional, para muitos a possibilidade de acesso à terra fica então restrita a uma ação coletiva de ocupação em terrenos ou imóveis, o que gera inúmeras disputas políticas e jurídicas. O artigo 46 da referida lei define regularização fundiária da seguinte forma: A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. 29 MELO, Lígia. Direito à moradia no Brasil: política de acesso por meio da regularização fundiária. Belo Horizonte : Fórum, 2010. p. 224 Página 242 de 270 A partir da leitura do dispositivo acimo, é possível identificar duas finalidades imediatas da regularização fundiária30: 1) Regularização do próprio assentamento com um conjunto de ações urbanísticas para oferecer todos os equipamentos públicos básicos à população; 2) Titulação dos seus ocupantes para conferir-lhes os títulos aquisitivos e possibilitar o gozo total dos direitos relativos à propriedade. Direito Real de Habitação– O artigo 1.831 garante ao cônjuge sobrevivente (também ao companheiro, segundo jurisprudência dos nossos tribunais), independente do regime de bens que foi adotado, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar. Esta norma tem como escopo a proteção do direito de moradia do cônjuge supérstite, dando aplicação ao princípio da solidariedade familiar. Nesses casos, entende-se que filhos devem, em garantir ao seu ascendente a manutenção do lar para que este não fique desamparado, ademais, seguindo a ordem natural da vida, os filhos provavelmente sobreviverão ao habitador, justificando assim a limitação nos seus poderesinerentes à propriedade. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu inclusive que a aquisição de outro imóvel pelo cônjuge supérstite não implica na perda imediata do seu direito real à habitação31. Usucapião–A usucapião é uma forma de aquisição originária da propriedade, onde o possuidor de coisa alheia, após o transcurso de um determinado período de tempo, pode pleitear a aquisição da propriedade. As origens do instituto remontam à Roma antiga 32 e ele já constava no Código de 1916, portanto, não podemos qualifica-la como uma inovação, todavia o Direito Civil Constitucional vem moldando a usucapião, principalmente com a diminuição do lapso temporal exigido. 30 RODRIGUES, Daniela Rosário. O direito à propriedade titulada por meio de regularização fundiária In: NALINI, José Roberto; LEVY, Wilson (Coords.). Regularização Fundiária. 2 ed. ver., atual e ampl. Rio de Janeiro : Forense, 2014. p.35 31 DIREITO DAS SUCESSÕES. RECURSO ESPECIAL. SUCESSÃO ABERTA NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. COMPANHEIRA SOBREVIVENTE. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. ART. 1.831 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. [...] 4. No caso concreto, o fato de a companheira ter adquirido outro imóvel residencial com o dinheiro recebido pelo seguro de vida do falecido não resulta exclusão de seu direito real de habitação referente ao imóvel em que residia com o companheiro, ao tempo da abertura da sucessão. [...]. REsp 1249227/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 17/12/2013, DJe 25/03/2014 32 DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p. 170 Página 243 de 270 O Código Civil de 2002 reduziu o prazo da usucapião extraordinária de vinte para quinze anos e da usucapião ordinária de dez e quinze anos para cinco e dez, a depender do cumprimento de certos pressupostos. Posteriormente, através da lei 12.424/2011, foi instituída a usucapião especial familiar introduzida pela que estabelece o prazo de apenas dois anos nos casos caso o possuidor, ininterruptamente e sem oposição, exerça posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade dividia com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Destaca-se também a usucapião coletiva destinada às áreas urbanas com mais de 2 250 m , ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor prevista no Estatuto da Cidade como instrumento de planejamento urbano. Considerações finais A pesquisa realizada ao longo do trabalho revela que o instituto da propriedade sofreu profundas transformações ao longo do tempo para gradualmente afastar a visão individualista e absolutista em favor de uma interpretação que confere a ela uma distinta importância para conquista da justiça social. A propriedade não pode mais ser compreendida somente como o domínio sobre um bem, mas como um vetor de desenvolvimento econômico, social e cultural. Paralelo ao desenvolvimento do Direito Civil Constitucional, que preza pelo respeito à dignidade da pessoa humana e a interferência, quando necessário, do Estado para equilibrar as relações entre particulares, houve o surgimento da função social da propriedade que passa a integrar o conceito desta para relativizar as ideias existentes sobre o instituto. Devido a sua importância para sociedade, o proprietário tem o dever de manter a propriedade produtiva e sem prejudicar a coletividade. Atrelado à função social estão aspectos ambientais, laborais e sociais, no meio urbano é clara também a importância da gestão do espaço urbano para que todos possam ter uma moradia digna. Infelizmente, o Brasil convive com uma grave crise habitacional que obriga milhares de brasileiros a viver em condições precárias e ocupar irregularmente diversas Página 244 de 270 áreas. O Estado diante das mazelas sociais não pode ficar inerte e deve ajudar a promover a justiça social, deste modo ele deve promover políticas públicas e moldar a legislação para melhor gerir a disposição da propriedade nos centros urbanos. Os instrumentos destacados neste artigo são de grande valia para assegurar o cumprimento da função social da propriedade seja através da transmissão do título de propriedade ou a posse, mesmo que temporária, do imóvel ajudando a reduzir a segregação econômica-espacial onipresente nos grandes centros urbanos. Referências BRITO, Rodrigo A. T. Desapropriação judicial' e usucapião coletivo: uma análise comparativa. ParahybaJudiciária , v. 8, 2012, pp. 197-220. CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes. Protecção do ambiente e direito de propriedade: crítica de jurisprudência ambiental. Coimbra: Coimbra editora, 1995. CARVALHO, Natalie de Paula. Ronald Coase e a propriedade privada: uma nova visão para o velho direito? 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Página 247 de 270 SEÇÃO DE RESUMOS Página 248 de 270 A EXECUÇÃO DE ALIMENTOS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL À LUZ DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO Thiago da Fonseca Rodrigues1 Resumo: Inicialmente, é imperioso esclarecer que, atualmente, constata-se a crescente influência do pensamento constitucional em todos os ramos jurídicos, tendo em vista a formação do recente fenômeno da Constitucionalização do Direito. Nesse sentido, observase que o Novo Código de Processo Civil (Lei n° 13.105/2015) reforçou as garantias constitucionais relativas a executividade dos alimentos, conforme se demonstrará a seguir. O presente trabalho objetiva analisar as novas disposições contidas no Novo Código de Processo Civil, no que se refere à execução de alimentos, em consonância com o disposto na Constituição Federal e nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, a fim de se comprovar a inserção da legislação no recente movimento de Constitucionalização do Direito. A presente pesquisa apresenta caráter qualitativo e teórico, com a utilização da técnica de revisão bibliográfica, a partir da consulta à doutrina atualizada, jurisprudência e análise da Lei n° 13.105/2015. O método de abordagem será o dedutivo, a partir da utilização dos principais autores pátrios que abordam a temática em apreço, dentre eles, Maria Berenice Dias, Luiz Edson Fachin, Jones Figueirêdo Alves, Pablo Stolze e Flávio Tartuce. A Carta Magna traz, expressamente, em seu artigo 5º, inciso LXVII, a única hipótese de prisão civil por dívida permitida no ordenamento jurídico pátrio, qual seja, ―... a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia‖ (STF/Súmula Vinculante nº 25). Nesse sentido, constata-se que, em consonância com o art. 7º do Pacto de São José da Costa Rica, o legislador constituinte objetivou garantir amplamente ao alimentando o fiel cumprimento da prestação alimentícia. Por essa razão, observa-se que o Novo Código de Processo Civil trouxe em seu bojo uma série de disposições favoráveis ao alimentando. Dentre elas, pode-se destacar, inicialmente, os artigos 528, §4º c/c art. 911, parágrafo único, e art. 528, caput c/c art. 911, caput, os quais, no primeiro caso, mantiveram o prazo de 03 dias para justificação do devedor, após a sua intimação, ao invés dos 10 dias pretendidos, durante a tramitação da proposta, assim como, 1 Graduando do curso de Direito [email protected]. da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: Página 249 de 270 no segundo caso, não permitiram a substituição do regime fechado de cumprimento da pena pelo regime semi-aberto. Além disso, observa-se que o Novo Código extirpou a dúvida existente na doutrina a respeito do cabimento da execução dos alimentos fixados por título executivo extrajudicial, com a criação do Capítulo ―Da Execução de Alimentos‖ (arts. 911 a 913), possibilitando, assim, a execução de alimentos fixados por escritura pública, por exemplo. Por fim, merece destacar a criação de uma nova modalidade coercitiva de cumprimento da obrigação alimentícia, qual seja, o protesto do pronunciamento judicial (art. 528, §3º), o qual permite, assim, que o tabelião torne público o inadimplemento do devedor perante os órgãos de proteção ao crédito (SPC, Serasa, etc.), comprometendo, assim, a sua capacidade creditícia. Ante o exposto, conclui-se que a nova legislação processual-civil pode ser considerada como um reflexo do fenômeno da Constitucionalização do Direito, na medida em que reforçou as garantias constitucionais relativas à execução dos alimentos. Palavras-chave: Novo CPC. Execução de Alimentos. Constitucionalização do Direito. Referências ALMEIDA, José Luiz Gavião de; GONZALEZ, Everaldo Tadeu Quilici. O Novo Código de Processo Civil e sua repercussão no Direito de Família. Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15 (28), jan./jun. 2015, pp. 61-76. ALVES, Jones Figueirêdo. Alimentos e Abandono. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=visualiza_noticia&id_caderno=35&id_not icia=130383>. Acesso em: 19 de fevereiro de 2016. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Themis – Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará, Fortaleza. v. 4, n.2., jul/dez 2006, p. 13-100. BRASIL. Lei n° 13.105. Código de Processo Civil. Brasília, DF, 16/mar./2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20152018/2015/Lei/L13105.htm>. Acesso em: 27 de novembro de 2015. CONSULTOR JURÍDICO. Novo CPC traz avanços para área da família. 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Wallace Leonardo de Aguiar.1 Resumo: Desde os primórdios antes de mesmo de se ter conhecimento do conceito jurídico do que vinha a ser a entidade familiar, os indivíduos por necessidades de diversas naturezas já possuíam o instinto de se agruparem como forma de facilitar a sua mantença no meio em que viviam criando assim grupos com aspectos em comum dos de família. Com o passar do tempo e o surgimento do Estado como regulador das situações e ações da vida em sociedade foi surgindo diversos conceitos dentre eles o de entidade familiar, que desde sua origem até os dias atuais passou por grandes e importantes transformações deixando de lado o seu caráter patrimonial e elevando o indivíduo a sujeito primeiro dessa instituição, essas transformações ocorrerem visando atender as necessidades que eram impostas pela sociedade.O presente trabalho tem como objetivo discorrer e analisar a construção da entidade familiar e suas alterações ao longo das transformações da sociedade chegando até os dias atuais fazendo uma comparação entre os conceitos de outrora e o seu atual conceito trazido pela Constituição Federal de 1988 e reproduzido pelo Código Civil de 2002 e legislações infraconstitucionais posteriores. Para tanto utilizar-se-á do método dedutivo de pesquisa, através de análise bibliográficas e outras fontes de informações. Entender a construção da entidade familiar e suas alterações é compreender a evolução da sociedade como um todo, vez que, a instituição familiar é vista por muitos como sendo a base da sociedade de modo que reflete de forma clara e mais imediata as transformações, necessidades e mutações que sofrem os indivíduos e consequentemente a sociedade cabendo ao direito e ao Estado como ente soberano se adequar a estas novas necessidades para que se possa atender ao interesse coletivo social. Assim, conclui-se que um dos temas que mais sofreu mutações ao longo do tempo sob uma perspectivajurídica foi sem sombra de dúvidas o direito de família e que dele decorre os preceitos e normas inerentes a instituição familiar chegando até os dias atuais onde se apresentam de uma forma bem distinta de outrora buscando melhor 1 Bacharel em direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, Email: [email protected] Página 252 de 270 atender as necessidades daqueles que fazem parte do seio familiar ou que ainda farão, entendendo-se como família uma entidade mais disposta a oferecer dignidade ao indivíduo que dela participe do que preocupada com padrões e conceitos materiais e patrimoniais. Página 253 de 270 A HUMANIZAÇÃO CONSTITUCIONAL SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA Marana Sotero de Sousa1 Rafaella Mayana Alves Almeida Cardins2 Resumo: Este breve estudo objetiva explorar a humanização do direito constitucional a partir do direito à alimentação adequada, direito público subjetivo previsto no artigo 6º da Constituição Federal do Brasil de 1988. Ainda, intenciona analisar a influência da agricultura familiar, atividade agrícola desenvolvida entre membros de uma mesma família, para assegurar o direito humano à alimentação. Tamanha é a importância da alimentação para a vida digna de todo e qualquer ser humano que tornou-se direito constitucionalmente previsto, mostrando-se como um dos instrumentos a incutir a humanização, cada vez mais crescente e necessária, no âmbito constitucional. Nesse esteio, relevante se faz a abordagem sobre a alimentação adequada e os reflexos que a agricultura familiar causa naquela,uma vez que ambas agem de modo a contribuir para a humanização constitucional, sendo este fator importante para a aplicação e execução das leis de forma justa, bem como para a garantia dos requisitos mínimos de vida digna e de uma sociedade pautada na equidade. Além disso, a segurança alimentar e nutricional também está presente quando se trata de direito fundamental à alimentação adequada, e justamente por ser intrínseca ao tema, será igualmente abordada, tendo em vista ser também um dos mecanismos a viabilizar a humanização constitucional, na medida em que atribui ao Estado o dever de prestar alimentação adequada aos cidadãos.Trata-se de um estudo hermenêutico, em que optou-se, para sua elaboração, pela utilização dos procedimentos bibliográficos, através de livros e artigos científicos, além do método de abordagem essencialmente qualitativo. Portanto, é imperioso explorar os institutos que possibilitam a humanização do direito constitucional, a exemplo da alimentação adequada, a fim de igualmente garantir a vida digna e a justiça social. 1 Mestranda em Direito Econômico, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (PPGCJ/UFPB). Especialista em Educação em Direitos Humanos (UFPB). Especialista em Gestão Pública Municipal (UFPB). Graduada em Direito, pelas Faculdades Integradas de Patos (FIP). E-mail para contato: [email protected]. 2 Mestranda em Ciências Jurídicas, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bacharela em Direito, pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail para contato: [email protected]. Página 254 de 270 Palavras-Chave: Direito Humano à Alimentação Adequada; Humanização Constitucional; Agricultura Familiar. Página 255 de 270 A ENFITEUSE EM TERRENOS DA MARINHA E ACRESCIDOS COMO DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE Gustavo Troccoli Carvalho de Negreiros1 Resumo: O presente trabalho se propõe delinear alguns dos principais aspectos do instituto da enfiteuse, resquício da ordem jurídica anterior ao Código Civil de 2002, especificamente aquela instituída em terrenos da marinha e acrescidos, analisando-a sob o filtro do princípio constitucional da função social da propriedade. Nesse sentido, procura-se desenvolver um conjunto de razões teórico-pragmáticas com o fito de demonstrar a desnecessidade da manutenção, por parte da União, do instituto jurídico em apreço, tendo em vista a obrigatoriedade de, cada vez mais, garantir que a propriedade cumpra a função social predicada pela Carta Magna de 1988 (arts. 5.º, XXIII; 170; 182, §2.º; e 186, caput). Destarte, sobretudo em virtude do trâmite doPL 951/2015, visando a eliminar a cobrança de foro, taxa de ocupação e laudêmio pagos à União Federal, objetiva-se aqui esboçar os fundamentos que conduzem à prescindibilidade de tais pagamentos. A metodologia do estudo em análise, indutiva, contou com pesquisa doutrinária e legal, em observância à tramitação do PL 951/2015, buscando-se, desse modo, tecer comentários à tendência legislativa alusiva às cobranças enfitêuticas. O Código Civil de 2002, apesar de ter proibido a constituição de novas enfiteuses e subenfiteuses, subsistindo apenas aquelas já existentes (art. 2.038, caput), previu que a instituída em terrenos de marinha e acrescidos regula-se por lei especial (art. 2.038, § 2.º). Perscrutando os direitos reais sobre coisa alheia, atesta-se a amplitude do instituto em comento, o qualpermite até que o enfiteuta aliene seus direitos sem aaquiescência do senhorio. Atualmente, a enfiteuse sobre os terrenos da marinha e acrescidos é regrada pelo Decreto-Lei n.º 9.760/46, devendo o foreiro ou o ocupante, além do foro ou taxa de ocupação anuais, pagar à União o denominado laudêmio, quando da alienação do seu direito a outrem. Registre-se, por oportuno, que as pessoas consideradas carentes ou de baixa renda, nos termos do art. 1º, §§1.º e 4.º, do Decreto-Lei n.º 1.876/81, 1 Graduando em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. Foi monitorvoluntário de Direito Civil I, monitor-bolsista de Direito Penal II e estagiário-bolsista da Justiça Federal – SJPB. Atualmente, é estagiário-bolsista do Ministério Público Federal, lotado na Procuradoria Regional Eleitoral. Endereço de e-mail: [email protected]. Página 256 de 270 são isentas desses pagamentos, configurando uma previsão deveras adequada à ordem constitucional vigente. Entretanto, ao indiscutível arrepio do princípio da função social da propriedade, somente o ávido desejo arrecadatório da União Federal justifica a manutenção da enfiteuse sobre os imóveis sitos nos terrenos da marinha e acrescidos, o que contradiz, por completo, as finalidades preceituadas pela Constituição Federal de 1988. Ante o exposto, obedecendo-se aos ditames constitucionais, torna-se imperativo concretizar, com maior nitidez e amplitude social, os preceitos ali estabelecidos, sendo imprescindível a aprovação do PL 951/2015, extinguindo a cobrança de foro, taxa de ocupação e laudêmios aos enfiteutas contemporâneos. Palavras-chave: enfiteuse; extinção; laudêmio; taxas. Referências BRASIL. Constituição, 1988. BRASIL. Decreto-Lei n.º 1.876, de 15 de julho de 1981. BRASIL. Decreto-Lei n.º 9.760, de 5 de setembro de 1946. BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. BULOS, UadiLammêgo. Curso de direito constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 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Página 257 de 270 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO INSTITUTO DA SEPARAÇÃO DE CORPOS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Thiago da Fonseca Rodrigues1 Resumo: Inicialmente, é imperioso esclarecer que o Novo Código de Processo Civil (Lei n° 13.105/2015), no âmbito do Direito de Família, fez referência, de forma genérica, ao instituto da separação, em alguns dos seus dispositivos, dentre eles, os artigos arts. 53, inciso I, 189, §2º e 693, gerando, assim, um intenso debate doutrinário a respeito do seu retorno ao ordenamento jurídico pátrio. Ocorre que,no que se refere ao instituto da separação de direito, a questão se encontra bastante discutida pela doutrina, de forma diversa do que ocorre com o instituto da separação de corpos, razão pela qual, tendo em vista a sua enunciação expressa na nova legislação (art.189, II), demonstra-se necessária a análise da sua constitucionalidade. O presente trabalho objetiva realizar uma análise a respeito da inserção do instituto da separação de corpos, no âmbito do Novo CPC, em consonância com o exposto na Constituição Federal, no Código Civil e na própria evolução doutrinária e jurisprudencial pátria, a fim de se constatar, ao final, a sua (in)constitucionalidade. A presente pesquisa apresenta caráter qualitativo e teórico, com a utilização da técnica de revisão bibliográfica, a partir da consulta à doutrina atualizada, jurisprudência pátria e análise da Lei n° 13.105/2015. O método de abordagem será o dedutivo, a partir da utilização dos principais autores pátrios, que abordam a temática em apreço, dentre eles, Lenio Luiz Streck, Paulo Lôbo, Pablo Stolze e Flávio Tartuce. De antemão, deve-se esclarecer que a Constituição Federal de 1988 garante em seu art. 5º, caput, a inviolabilidade do direito à vida, enquanto premissa básica do ordenamento jurídico. Ademais, observa-se que, em que pese ser pacífica, na doutrina civilista, a supressão do instituto da separaçãode direito do ordenamento jurídico pátrio, após a edição da Emenda Constitucional nº. 66/2010, responsável por alterar o art. 226, §6º, da CF/88 (“o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio”), é imperioso asseverar que o mesmo entendimento não se aplica ao instituto da separação de corpos, previsto no art. 189, inciso II, do Novo CPC. Conforme esclarece doutrinadores de escol como Paulo Lôbo, o instituto 1 Graduando do curso de Direito [email protected]. da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: Página 258 de 270 desdobra-se como medida essencial para o garantia da integridade física de determinado cônjuge, quando este sobre ameaças ou violências físicas do outro parceiro(a), antes do ajuizamento da ação de divórcio, garantindo o Código Civil que o juiz atue com a maior brevidade possível (art. 1562 do Código Civil). Por essa razão, as discussões relativas à impossibilidade de retorno da separação no ordenamento jurídico pátrio não se aplicam à hipótese da separação de corpos. Ante o exposto, considera-se como constitucional o dispositivo do Novo Código de Processo Civil, que faz referência ao instituto da separação de corpos (art.189, inciso II), tendo em vista o entendimento doutrinário e jurisprudencial já consolidado no país, em relação a sua relevância e aplicabilidade no ordenamento jurídico pátrio. Palavras-chave: Novo CPC. Separação de corpos. Constitucionalidade. Página 259 de 270 LIBERDADE DE ESCOLHA E AUTONOMIA DA VONTADE NOS PROCEDIMENTOS DE INTERVENÇÃO DA VIDA: UM INSTRUMENTO DA DIGNIDADE HUMANA Torben Fernandes Maia1 Maria Thereza Santiago Moura De Moura2 Maria Cristina Paiva Santiago3 Resumo: A dignidade humana foi assunta a um patamar grandioso pela Constituição Federal de 1988, revelando consequências singulares ao ordenamento jurídico brasileiro; o presente trabalho tem como objetivo discutir a liberdade e a autonomia como ferramentas que compõem e garantem aquele princípio. Valores como democracia, pluralismo e diversidade são institutos inerentes ao Estado Democrático de direito; destarte, baseados na premissa de que defender o direito de escolha é diferente de defender a escolha, acredita-se que para a carga axiológica constitucional brasileira de 1988, o poder de decidir de pacientes vítimas de doenças terminais e irreversíveis sobre a intervenção ou não no procedimento morte, é uma prerrogativa dos cidadãos brasileiros. Dessa forma, o presente trabalho irá defender essa tese, o qual vai estruturado em 4 partes. Inicialmente, abordaremos os conceitos que serão utilizados durante a discussão, sobre os diversos procedimentos de morte. Em seguida, debruçaremo-nos sobre a conceituação preliminar do princípio da dignidade humana para em um terceiro e quarto momentos, abordamos o direito de escolha de optar por uma antecipação da morte em situações excepcionais, o qual é embasado por valores constitucionais de liberdade e autonomia individuais, são na verdade uma forma de valorizar a dignidade da pessoa humana. O procedimento utilizado foi uma pesquisa, sobretudo, bibliográfica, doutrinária e legislativa, todas realizadas à luz dos princípios da Constituição Federal de 1988. Iremos passear pelas doutrinas mais renomadas, buscando sustento para a toda nossa tese, desaguando na pesquisa jurisprudência brasileira, para verificar como estão se posicionando os tribunais pátrios, fazendo uma análise crítica sobre a posição encontrada, e como ela encontra reflexos na 1 Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: [email protected] Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: [email protected] 3 Professora Me. e Doutoranda pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: [email protected] 2 Página 260 de 270 vida da sociedade. Assim, a conclusão quebuscamos encontra foi ade reflexão no que tange à morte em submissão ao princípio da dignidade da pessoa humana, de modo a concluir que o indivíduo, através de seu consentimento, deve poder exercer sua autonomia e liberdade, respeitando os limites cabíveis, no contexto dos procedimentos de morte, com intervenção passiva em um primeiro momento – ortotanásia – prevalecendo os fundamentos constitucionais que equilibram as escolhas individuais às metas da coletividade, através de um reconhecimento filosófico específico, qual seja: a consideração do indivíduo como um ser moral, capaz de escolher e consequentemente apropriar-se das responsabilidades provenientes de tais escolhas. Palavra-chave: Dignidade Humana; Autonomia; Morte; Bioética; Página 261 de 270 HUMANIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL: ALERTA PARA BANALIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DO HOMEM Ana Flávia Velloso Borges d'Avila Lins1 Resumo: O presente artigo se propõe a apresentar os fenômenos da constitucionalização e da humanização da seara jusprivatista, a partir de uma retrospectiva histórica das Teorias do Direito, a fim de que sejam percebidos os benefícios e os riscos a serem enfrentados, após a mudança do cenário jurídico-social. A modificação axiológica a que foi submetida a Ciência Jurídica destaca o princípio da dignidade da pessoa humana como o pilar básico de sua estruturação, que passou a se preocupar com a essência do homem antes desassistida. A positivação dos direitos da personalidade na Constituição de 1988 e posteriormente no Código Civil de 2002 e o uso indiscriminado da dignidade do homem como fundamento genérico em peças jurídicas são sintomas diametralmente opostos de vantagem e de prejuízo, respectivamente, causados pelas alterações ocorridas no sistema. Dessa forma, pretende-se reforçar a importância da interligação das vertentes privada e pública, ressaltando a necessidade de razoabilidade nesse estreitamento de relação, ao alertar para a tendente hipertrofia do standard. Palavras-chave: Humanização; Princípio; Dignidade; Personalidade; Ponderação. 1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Voluntária do Projeto de Extensão ―Mediação: Em busca de uma cultura de paz‖, sob a orientação da Profa. Raquel Moraes. Membro do Projeto de Iniciação Científica sobre Direito Econômico, sob a orientação da Profa. Flavianne Bitencourt. Email: [email protected]. Página 262 de 270 DIREITO À INTIMIDADE À LUZ DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.815 DISTRITO FEDERAL Marcela Santiago Pereira de Melo1 Maria Cristina Paiva Santiago2 Resumo: O presente artigo pretende expor as divergências entre os direitos da personalidade e a liberdade de expressão, adotando como paradigma a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815 Distrito Federal. Iniciamos o estudo com a constitucionalização do direitoprivado, quesurgira no Brasilao final do século XX, e trouxe consigo inúmeras mudanças tanto na nossa Constituição, quanto no Código Civil. Continuamos com a conceituação de dignidade da pessoa humana, com o objetivo de esclarecer a base do Novo Código Civil, voltada para o valorhumanitário, e também o foco da nossaConstituição. Ao adentrarmos nos direitos da personalidade, passamos aexplanar as divergências existentes entre o direito à intimidade, à privacidade e o direito à informação, à liberdade de expressão e de imprensa. Tem comoobjetivoespecífico o estudo dessa dicotomia e a análise do caso que chegou ao Superior Tribunal de Justiça acerca das biografias. A presente pesquisas era feita mediante disposições doutrinárias, buscando remover o tema discutido do âmbito teórico para o prático. Visto que a colisão entre os direitos da personalidade e os direitos à informação não possuem uma construção legislative ampla, nosso estudo fora realizado por método dedutivo, baseando-se nos direitos fundamentais listados na Constituição Federal, para que dessa forma possamos compreender melhor o confront existente entre tais direitos e suas consequências. Palavras-chave: Constitucionalização do direitoprivado; Dignidade da pessoahumana; Direitos da personalidade; Liberdade de expressão; Liberdade de imprensa. 1 Bacharela no curso de direito do Unipê, email: [email protected] Maria Cristina Paiva Santiago, professora de direito do Unipê e da Universidade Federal da Paraíba, email: [email protected] 2 Página 263 de 270 A CAPACIDADE CIVIL E A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA PERANTE NOTÁRIOS E REGISTRADORES Rafaella Mayana Alves Almeida Cardins1 Marana Sotero de Sousa2 Resumo: A promoção e proteção do pleno e equitativoexercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais para todas as pessoas com deficiência, bem como a promoção da sua dignidade inerente se configura como objetivo disposto na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência assinado em Nova Iorque, Estados Unidos da América, em 30 de março de 2007. Deve-se ressaltar que referida convenção é equivalente às emendas constitucionais, nos termos do artigo 5º, parágrafo 3º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), elaborado com base na Convenção citada, revogou e alterou a capacidade civil prevista no Código Civil. Assim,considerando o atual debate em torno das modificações legislativas concernentes à capacidade civil das pessoas com deficiência, considerando, também, que os notários e registradores são profissionais do direito que se deparam com amudança legal bem antes das provocações judiciais, foi realizado, mediante revisão bibliográfica e documental, estudo sobre a eficácia dos direitos fundamentais relacionados ao exercício da capacidade civil das pessoas com deficiência perante os oficiais de registro e notários. Destarte, importante é a análise da capacidade civil das pessoas com deficiência, da atividade notarial e registral e da eficácia dos direitos fundamentais da pessoa com deficiência ante os mencionados profissionais. Palavras-Chave: Capacidade Civil; Pessoa com Deficiência; Eficácia Direitos Fundamentais Perante Terceiros; Notários e Registradores. 1 Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bacharela em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail para contato: [email protected]. 2 Mestranda em Direito Econômico, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (PPGCJ/UFPB). Especialista em Educação em Direitos Humanos (UFPB). Especialista em Gestão Pública Municipal (UFPB). Graduada em Direito, pelas Faculdades Integradas de Patos (FIP). E-mail para contato: [email protected]. Página 264 de 270 A IMPORTÂNCIA DA HUMANIZAÇÃO NO PROCESSO DE MEDIAÇÃO FAMILIAR SOB A PERSPECTIVA DA GUARDA COMPARTILHADA Raíssa da Silva Lima¹ Resumo: A sociedade vive em contínuo processo de transformação. E, com as mais variadas mudanças nas relações sociais, o Direito necessita acompanhar este processo, atendendo às novas demandas impostas pela sociedade e regulando as condutas dos indivíduos em uma real conjuntura social, para que não se torne uma letra morta sem aplicabilidade. Tendo em vista as alterações no modelo nuclear de família e o surgimento de novos arranjos e composições familiares na atualidade, verificamos o crescente número de separações e divórcios que dão origem a famílias monoparentais. Tal contexto reflete diretamente nos filhos e no exercício do poder familiar, preconizado nos artigos 21 e 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). Com base na garantia estabelecida pela Constituição Federal, em seu artigo 229, que assegura aos pais o dever de criar, educar e assistir os filhos menores e diante destes novos arranjos familiares, a LEI Nº 11.698/2008 altera a redação dos artigos 1.583 e 1.584 do Código Civil Brasileiro, instituindo e disciplinando a guarda compartilhada dos filhos. O presente trabalho objetiva ressaltar a importância da mediação familiar no processo de guarda compartilhada, contemplando o papel da humanização como característica fundamental. Entre os objetivos específicos deve-se fazer uma análise geral e (re)pensar se a situação da guarda compartilhada – exercida através da imposição de decisão judicial – é a solução mais benéfica para a criança e o adolescente quando não há um acordo entre os pais, no processo de ruptura conjugal. Quanto à metodologia aplicada, utilizar-se-á a pesquisa qualitativa, onde se verifica a aplicabilidade da mediação familiar no que tange à guarda compartilhada. As técnicas de pesquisa utilizadas são a pesquisa bibliográfica de artigos científicos e análise de textos legais. Diante do estudo realizado, verificou-se que, embora a legislação vise contemplar o princípio da igualdade imposto pela nossa Carta Magna, se não houver a característica da humanização no processo de mediação familiar, visando, sobretudo, o superior interesse da criança e do adolescente, estar-se-ia submetendo tais atores à situações ainda mais danosas para o desenvolvimento da sua personalidade. Visando, ainda, dirimir os conflitos que perpassam num processo de separação – em sentido amplo – e formação da Página 265 de 270 coparentalidade é indispensável que a mediação esteja inserida no bojo do processo de guarda. Tendo em vista que a criança e o adolescente encontram-se num contexto de disputas entre seus genitores, pelos mais diversos motivos (interesses patrimoniais, afetivos, entre outros), que resultam em sérias consequências danosas, a título de exemplo, a alienação parental. Apesar de várias decisões adotarem a guarda compartilhada compulsória, visando o interesse da criança e do adolescente, muitas vezes tal imposição judicial não está cingida pela humanização, que deve estar calcada no ideário de paz social. Tal característica serve como um instrumento propulsor para a efetivação da mediação familiar. Portanto, chega-se à um entendimento que a humanização se faz necessária para que o magistrado ultrapasse o direito civil constitucionalizado, aplicando a mediação como o instrumento capaz de efetivar a guarda compartilhada, salvaguardando os direitos e os interesses das partes envolvidas, sobretudo, dos filhos. Palavras chaves: mediação; humanização; criança e adolescente; guarda compartilhada; coparentalidade. Referências: BARBOSA, Águida Arruda. Guarda Compartilhada e Mediação Familiar - Uma Parceria Necessária. São Paulo, 2014. Disponível em: http://editoramagister.com/doutrina_26542223_GUARDA_COMPATILHADA_E_MEDI ACAO_FAMILIAR__UMA_PARCERIA_NECESSARIA.aspx. Acesso em: 20/04/2016. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado, 1988. _______. Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº 8.069/ de 13.7.1990. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DOU 16.7.1990 e retificado em 27.9.1990. _______.Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DOU de 11.1.2002. _______. Lei nº 11.698, de 6 de junho de 2008. Dispõe sobre a alteração dos artigos 1583 e 1584 do Código Civil. Diário Oficial [da] União, Brasília, 13 jun. 2008. Página 266 de 270