iii-seminario-livro-1

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iii-seminario-livro-1
ANAIS DO GRUPO DE TRABALHO 1
Humanização do Direito Civil Contemporâneo:
Perspectivas e Desafios
Artigos Completos e Resumos Expandidos
Adriano Marteleto Godinho
Maria Cristina Paiva Santiago
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
ORGANIZADORES
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Comissão Editorial
Ana Clara Montenegro Fonseca
Gabriel Honorato de Carvalho
Cinthia Caroline L. do Nascimento
Juliana Fernandes Moreira
Filipe Lins dos Santos
Maria Cristina Paiva Santiago
Conselho Científico
Adriano Marteleto Godinho
Marcos Augusto de Albuquerque Ehrhardt Junior
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
Heloisa Helena Pinho Veloso
Robson Antão de Medeiros
Henrique Ribeiro Cardoso
Rodrigo Azevedo Toscano de Brito
Jailton Macana de Araújo
Wladimir Alcibiades Marinho Falcao Cunha
Larissa Maria de Moraes Leal
Catalogação na publicação
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB
Bibliotecária Vânia Maria Ramos da Silva - CRB 15/0243
S471a
Seminário de Direito Civil-Constitucional (3.: 2016 : João Pessoa, PB).
Anais do III Seminário de Direito Civil-Constitucional: Hipervulnerabilidade,
saúde e humanização do Direito Civil-Constitucional / Organizadores: Adriano
Marteleto Godinho, Maria Cristina Paiva Santiago, Maria Luiza Pereira de
Alencar Mayer Feitosa; Instituto de Pesquisa e Extensão Perspectivas e Desafios
de Humanização do Direito Civil-Constitucional – João Pessoa: IDCC / UFPB/
UNIPÊ, 2016.
272 p.
Anais do Grupo de Trabalho 1 - Humanização do direito civil contemporâneo:
perspectivas e desafios.
ISBN978-85-92966-00-3
1. Direito Civil-Constitucional – Seminário. 2. Hipervulnerabilidade. 3. Saúde. 4.
Humanização. I. Godinho, Adriano Marteleto. II. Santiago, Maria Cristina Paiva.
III. Feitosa, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. IV. Instituto de Pesquisa e
Extensão Perspectivas e Desafios de Humanização do Direito Civil-Constitucional.
V. Título.
CDU – 347:342
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................... 1
SEÇÃO DE ARTIGOS ....................................................................................................... 3
CONSTRUÇÃO DA ENTIDADE FAMILIAR E SUAS TRANSFORMAÇÕES À
LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL. ......................................................... 4
A TUTELA JURÍDICA DA DIGNIDADE HUMANA ANTE A PROMOÇÃO DO
DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE DOS PACIENTES COM CÂNCER .......... 20
A HUMANIZAÇÃO CONSTITUCIONAL SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO À
ALIMENTAÇÃO ADEQUADA .................................................................................. 35
PERSPECTIVA CÍVEL-CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE FILIAÇÃO .......... 51
LIBERDADE DE ESCOLHA E AUTONOMIA DA VONTADE NOS
PROCEDIMENTOS DE INTERVENÇÃODA VIDA: UM INSTRUMENTO DA
DIGNIDADE HUMANA ............................................................................................. 70
REPERCUSSÕES DO DANO SOCIAL NA JURISPRUDENCIA BRASILEIRA .... 89
PROJETO ―NOME LEGAL‖ DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA PARAÍBA: SUA
ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL NO DIREITO DAS FAMÍLIAS E A PRIORIZAÇÃO
DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA .................................................................... 107
DIREITO À MEMÓRIA, DIREITO AO ESQUECIMENTO: UM PARADOXO
AINDA INCONCLUSIVO ......................................................................................... 120
DIREITO
À
INTIMIDADE
À
LUZ
DA
AÇÃO
DIRETA
DE
INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.815 DISTRITO FEDERAL ............................ 138
HUMANIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL: ALERTA PARA BANALIZAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DO HOMEM ........................................................... 163
ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR VÍCIOS
DE CONSTRUÇÃO NO PROGRAMA MINHA CASA, MINHA VIDA ................ 177
REFLEXOS JURÍDICOS DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO
SISTEMA BRASILEIRO DE INCAPACIDADE CIVIL .......................................... 192
OS DIREITOS DA PERSONALIDADE POST-MORTEM E A CRISE DA
NECROFILIA VIRTUAL........................................................................................... 205
NOVAS FORMAS DE FAMÍLIA COMO ................................................................. 219
REFLEXO DA SOCIEDADE PÓS-MODERNA ...................................................... 219
I
AS
TRANSFORMAÇÕES
PROMOVIDAS
PELO
DIREITO
CIVILCONSTITUCIONAL E A CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA
PROPRIEDADE URBANA ....................................................................................... 230
SEÇÃO DE RESUMOS ............................................................................................... 248
A EXECUÇÃO DE ALIMENTOS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL À
LUZ DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO............................................ 249
A CONSTRUÇÃO DA ENTIDADE FAMILIAR E SUAS TRANSFORMAÇÕES Á
LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL. ..................................................... 252
A HUMANIZAÇÃO CONSTITUCIONAL SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO À
ALIMENTAÇÃO ADEQUADA ................................................................................ 254
A ENFITEUSE EM TERRENOS DA MARINHA E ACRESCIDOS COMO
DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE ..................... 256
A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO INSTITUTO DA SEPARAÇÃO DE
CORPOS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL .......................................... 258
LIBERDADE DE ESCOLHA E AUTONOMIA DA VONTADE NOS
PROCEDIMENTOS DE INTERVENÇÃO DA VIDA: UM INSTRUMENTO DA
DIGNIDADE HUMANA ........................................................................................... 260
HUMANIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL: ALERTA PARA BANALIZAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DO HOMEM ........................................................... 262
DIREITO
À
INTIMIDADE
À
LUZ
DA
AÇÃO
DIRETA
DE
INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.815 DISTRITO FEDERAL ............................ 263
A CAPACIDADE CIVIL E A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA PERANTE NOTÁRIOS E REGISTRADORES .... 264
A IMPORTÂNCIA DA HUMANIZAÇÃO NO PROCESSO DE MEDIAÇÃO
FAMILIAR SOB A PERSPECTIVA DA GUARDA COMPARTILHADA ............. 265
II
APRESENTAÇÃO
O Instituto de Pesquisa e Extensão Perspectivas e Desafios de Humanização do
Direito Civil-Constitucional (IDCC), criado no ano de 2012, por iniciativa de docentes da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), apresentou, já em sua gênese, os nobres
propósitos de desenvolvimento de atividades acadêmicas que pudessem contribuir para o
desenvolvimento das instituições jurídicas no país, nomeadamente aquelas que se encartam
no amplo e mutável universo do Direito Civil.
Atualmente, as atividades do Instituto já contabilizam a realização de três
seminários, com participação de juristas de todo o país e de além-mar, além da publicação
de outras obras, tanto eletrônicas quanto impressas, que condensam a vasta produção
científica de seus membros, tanto docentes quanto discentes.
A proposta do Instituto é notável e notória: mais do que simplesmente transitar
sobre o já consolidado método de releitura das instituições civis proposto pela escola do
Direito Civil-Constitucional, propõe-se um passo adiante: a consolidação da vertente de
humanização do Direito Civil.
Humanizar os velhos institutos que sustentam os pilares seculares do Direito Civil
implica avançar para muito além da concepção das pessoas humanas como meros
personagens do mundo jurídico, a atuar como parte em atos e relações diversas. Para tanto,
cumpre proclamar que o ser humano é o início e o fim do Direito, a verdadeira razão de ser
do ordenamento jurídico, o que permite ultrapassar a ideia da pessoa natural como mero
sujeito de direitos – embora, naturalmente, ela também o seja. Daí decorre que a
personalidade jurídica das pessoas naturais nada mais seja que o reconhecimento de um
estado prioritário de coisas, em que o ser humano figura como alicerce de todos os
conceitos jurídicos – inclusive o de personalidade; daí também se proclama que a
personalidade humana não pode consistir numa mera atribuição técnica, cujo árbitro seria o
legislador (ao contrário do que se passa com as pessoas jurídicas, como restará
demonstrado a seguir).
Impõem-se, pois, duas ordens de ideias fundamentais: a primazia do ser humano
enquanto núcleo orientador da ordem jurídica e a superação da concepção da pessoa
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humana como simples sujeito de direitos. Coloca-se a pessoa natural, enfim, como a razão
de ser da lei e do Direito, enquanto ser dotado de uma dignidade que lhe é intrínseca. É
este o ponto de partida a orientar todas as concepções que se possam extrair sobre os temas
contemporâneos de Direito Civil.
A obra que se apresenta é fruto da inquietude de seus idealizadores: trata-se de um
amplo compêndio dos trabalhos promovidos por ocasião da realização do evento intitulado
―III Seminário de Humanização do Direito Civil-Constitucional: hipervulnerabilidade,
saúde e humanização do Direito Civil-Constitucional‖, realizado no Centro de Ciências
Jurídicas da UFPB, em João Pessoa-PB, no período de 02 a 04 de março de 2016.
Assim, este volume condensa os trabalhos avaliados e apresentados no Grupo de
Trabalho 1, intitulado ―HUMANIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO:
PERSPECTIVAS E DESAFIOS‖, sob a coordenação dos professores Adriano Marteleto
Godinho, Maria Cristina Paiva Santiago e Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa,
que orgulhosamente saúdam a comunidade jurídica, por meio da edição deste valioso
contributo à boa pesquisa acadêmica e científica.
Estão lançados os pilares fundamentais da humanização do Direito Civil. Que os
leitores desta obra nos acompanhem nesta empreitada.
Adriano Marteleto Godinho
Maria Cristina Paiva Santiago
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
Coordenadores do GT 1 - Humanização do Direito Civil Contemporâneo: Perspectivas E
Desafios
João Pessoa-PB, 10 de maio de 2016.
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SEÇÃO DE ARTIGOS
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CONSTRUÇÃO DA ENTIDADE FAMILIAR E SUAS
TRANSFORMAÇÕES À LUZ DO DIREITO CIVIL
CONSTITUCIONAL.
Wallace Leonardo de Aguiar 1
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo discorrer e analisar a construção da
entidade familiar e suas alterações ao longo das transformações da sociedade chegando até
os dias atuais fazendo uma comparação entre os conceitos de outrora e o seu atual conceito
trazido pela Constituição Federal de 1988 e reproduzido pelo Código Civil de 2002 e
legislações infraconstitucionais posteriores. Para tanto utilizar-se-á do método dedutivo de
pesquisa, através de análise bibliográficas e outras fontes de informações. Entender a
construção da entidade familiar e suas alterações é compreender a evolução da sociedade
como um todo, vez que, a instituição familiar é vista por muitos como sendo a base da
sociedade de modo que reflete de forma clara e mais imediata as transformações,
necessidades e mutações que sofrem os indivíduos e consequentemente a sociedade
cabendo ao direito e ao Estado como ente soberano se adequar a estas novas necessidades
para que se possa atender ao interesse coletivo social. Assim, conclui-se que um dos temas
que mais sofreu mutações ao longo do tempo sob uma perspectiva jurídica foi sem sombra
de dúvidas o direito de família e que dele decorre os preceitos e normas inerentes a
instituição familiar chegando até os dias atuais onde se apresentam de uma forma bem
distinta de outrora buscando melhor atender as necessidades daqueles que fazem parte do
seio familiar ou que ainda farão, entendendo-se como família uma entidade mais disposta a
oferecer dignidade ao indivíduo que dela participe do que preocupada com padrões e
conceitos materiais e patrimoniais.
Palavras-chave: família; direito; transformações.
Abstract: This paper aims to discuss and analyze the construction of the family unit and
its changes over the transformation of society coming to the present day making a
comparison between the concepts of the past and its current concept brought by the 1988
1
Bacharel em direito pela UFPB; advogado, e-mail: [email protected].
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Federal Constitution and reproduced by Civil code of 2002 and later lesser low legislation.
For this purpose it will be used the deductive method of searching through bibliographic
analysis and other sources of information. Understand the construction of the family unit
and its amendments is to understand the evolution of society as a whole, since, the family
institution is seen by many as the basis of society so that it reflects clearly and more
immediate transformations, needs and mutations suffering individuals and consequently
the company fitting the right and the state as a sovereign entity to adjust to these new
requirements so that it can meet the social collective interest. Thus, it is concluded that one
of the issues that has mutated over time under a legal perspective was undoubtedly the
family law and that it follows the principles and rules inherent to family institution coming
to the present day where present in a very distinctive way of yore seeking better meet the
needs of those who are part of the family environment or even will, be understood as a
family more willing entity to offer dignity to the individual that it participates than worried
about standards and material concepts and equity.
Keywords: family; right; transformations.
Introdução
Partindo de uma análise sobre a instituição familiar desde o seu surgimento até os
dias atuais, acredita-se que no princípio era na verdade um agrupamento de pessoas que se
uniam por questões de necessidade, com o decorrer do tempo foram ocorrendo diversas
transformações em sua estrutura podendo ser mencionada a família Romana, em uma época
em que a mesmaera marcada pela autoridade do Pater Família para com todos os
indivíduos que dela faziam parte, com o advento da igreja católica adquiriu caráter
matrimonial, pois, só reconhecia a sua legitimidade através das normas religiosas do
matrimonio.
Com o passar dos tempos e a transformação social que inevitavelmente ocorria, a
instituição familiar passou a ser regulada pelo direito que empregou a ela um caráter
jurídico necessário, passando a ser enxergada como a base da sociedade e por isso sendo
dever do direito regular a forma de constituição e dissolução, a partir do momento em que
se começou a se conceber a ideia de possível dissolução do casamento, ideia que outrora
era inconcebível, essas modificações se ocorreram já no século XX, em conformidade com
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diversas mudanças inclusive de função, composição e concepções que foram trazidas com
o advento do Estado social.
O direito brasileiro cuidou de regular a instituição do casamento em todas as suas
constituições até chegar a atual Constituição Federal de 1988. Nos tempos de outrora
entendia-se, que a única forma de constituição familiar era através do matrimônio, seguindo
esse conceito todas as nossas constituições trouxeram em seu bojo ao menos um artigo que
seguia esse conceito, o que foi claramente evoluindo com as modificações que ocorriam na
própria sociedade e as necessidades que surgiam em relação a constituição da entidade
familiar.
Sem dúvidas a instituição familiar foi um dos institutos que mais sofreu
modificações e transformações em seus conceitos e formas deestruturação, de criação,
extinção e papel que exerce junto ao meio social e ao próprio indivíduo membro dela.
A Carta Magna de 1988, cuidou do tema buscando dar uma especial proteção para
a família e garantir a todos o direito de ser inserido em um seio familiar bem como de
constituir a sua própria sociedade parental, o que veio a ser seguido pelo Código Civil de
2002 embora ainda de forma reservada, quando passou a tratar da entidade familiar
elevando a primeiro plano a pessoa, ou seja, o indivíduo seguindo assim os princípios
trazidos pela CF/1988.
2. COMPREENDENDO A CONSTRUÇÃO DA ENTIDADEDE FAMILIAR.
O indivíduo, desde que se tem notícias, sempre teve a necessidade de criar laços por
menores que fossem, pois, a convivência isolada das demais pessoas é algo difícil de se
imaginar, esses laços surgiam por diversos motivos podendo ser econômicos, sociais,
emocionais, políticos, religiosos, entre outros.
Inicialmente a ―família‖ era, na realidade, o conjunto ou formação de pessoas que
agrupavam-se devido as afinidades que tinham entre si, passando então a cuidar, proteger e
zelar uns pelos outros, isso muito antes de existir a figura da igreja como reguladora da
instituição familiar ou até mesmo o Estado como intervencionista nestas relações que em
sua origem eram puramente privadas, o conjunto familiar nada mais era do que um
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agrupamento informal de formação espontânea que se uniam por uma química biológica2,
ou seja, algo natural e espontâneo entre os indivíduos, Adhayl Lourenço explica isso
demonstrando a necessidade que existe tanto entre os seres humanos como nos animais de
se agruparem graças a atração das espécies e que através disso podem criar afinidades,
laços, construírem um espaço onde podem dar e receber afeto, bem como, proteger e ser
protegido, pois, o isolacionismo é repelido pela natureza humana3.
Pouco depois, com a ocorrência da civilização dos indivíduos, começou a existir
regras e costumes sociais que foram sendo aplicados também a instituição familiar como
por exemplo: em Roma, a família era entendida como a instituição a qual tinha um
representante, aquele que exercia o poder sobre os demais, o Pater familias, além do caráter
afetivo ela tinha um condão econômico, patrimonial, religioso e até mesmo cultural. O
pater familias era aquele que detinha todo o poder sobre as demais pessoas, inclusive sobre
a sua esposa, filhas, e também as mulheres dos seus filhos quando estes se casavam com
manu. Desde a sociedade Romana, a família e sua formação passou por diversas
modificações, mas, sempre foi considerada uma instituição, porém, muito anterior ao
Estado ou até mesmo a valores religiosos, econômicos ou morais. Nesse sentido se
posiciona Oliveira4:
Assim, a família, como instituição social, é uma entidade anterior ao Estado,
anterior à própria religião e também anterior ao direito que hoje a regulamenta,
que resistiu a todas as transformações que sofreu a humanidade, quer de ordem
consuetudinária, econômica, social, cientifica ou cultural.
Comparativamente, na Idade Média, a família tinha por base o direto canônico,
época em que além do sangue só era constituída por meio o casamento religioso, com o
passar dos tempos e o reconhecimento da família como instituição na qual o indivíduo
poderia ter o seu completo desenvolvimento, além de ser considerada, por muitos, a base do
Estado, passou a ser conceituada como sendo o conjunto de pessoas que descendem de um
ancestral em comum isso no seu aspecto biológico ou aquela que era fundada na união de
duas pessoas até então de sexo opostos através do casamento, isso no seu aspecto
jurídico/social.
2
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7ª edição. Revista e atualizada, 2010, p. 27.
DIAS, Adahyl Lourenço. A Concubina e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 1988, p. 1.
4
OLIVEIRA, José Sebastião. FUNDAMENTOS CONSTITUICIONAIS DO DIREITO DE FAMÍLIA.
Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2002.
3
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Com o passar do tempo no advento da Igreja Católica como reguladora da sociedade
a qual era responsável por ditar normas e regras, a família ganhou um caráter matrimonial,
caracterizada pela figura do pai como o chefe, a mulher e os filhos devendo, portanto,
submissão a ele, bem como caráter econômico, pois sua estrutura girava em torno de
aquisição de bens, onde cada um deveria contribuir e, mais que isso, tinha como dever e/ou
obrigação a procriação já que um de seus pilares era consubstanciado na afirmativa bíblica
―crescei e multiplicai-vos‖5, objetivando o povoamento da terra com novos cristãos,
disseminando assim, a religião cristã no âmbito mundial. Desse modo, a igreja passou a
controlar a forma de constituição familiar, sendoesta que era admitida e aceita não sendo
reconhecidas outras formas diferentes.
Posteriormente, o Estado excluiu da Igreja o poder de regular a instituição familiar,
passando para si o exercício desse papel, momento no qual editou normas positivadas,
seguindo com o costume de que a única forma de constituição familiar era aquela advinda
do matrimônio, sendo este indissolúvel.
Para o Estado, a família era o núcleo sob o qual orbitava a sociedade e, por isso,
merecia especial proteção, de modo que se fazia necessário ditar normas e regras, como por
exemplo, a instituição do casamento como forma necessária para criação da família. A
criação dessas regras foi a forma encontrada para impor limites ao homem, ser desejante,
que na busca do prazer, tende a fazer do outro um objeto6. Por isso a tamanha preocupação
com as formas de criação, regras de conduta, social, moral e até as hipóteses de dissolução,
isso em uma época que a dissolução do casamento não punha fim ao vinculo matrimonial.
É mister salientar que não se pode dar um único e exclusivo conceito a palavra
família, pois o mesmo sofre mutações ao longo dos tempos, das culturas e sociedades, mas,
o que se pode observar é que os Estados entendem a instituição familiar como o
agrupamento de pessoas, sejam elas unidas por um fator biológico, afetivo, moral, social ou
até mesmo jurídico, de modo que, nenhum direito, inclusive o brasileiro, conseguiu ou
consegue mostrar uma definição de família que acompanha todas as formas atuais.
5
6
SAGRADA, Bíblia, Livro de Genesis, cap. 9, versículo 7.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7ª edição, revista e atualizada. 2010. p. 21.
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Conforme Lôbo7:
Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da
Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais
comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades
familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito
amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo conceito
indeterminado depende de concretização dos tipos, na experiência da vida,
conduzindo à tipicidade aberta dotada de ductilidade e adaptabilidade.
Desse modo, percebe-se que a instituição familiar embora seja contemplada algumas
de suas formas pela Constituição Federal, estas não são as únicas existentes, havendo outras
que também merecem proteção.
Alterações Legais Da Entedide Familiar Ao Longos Do Tempo.
Tanto no direito brasileiro, assim como nos demais direitos do mundo, é perceptível
um ―avanço‖ ou ―adaptação‖ do entendimento acerca do aspecto conceitual de família, a
começar pelas nossas constituições que a priori tratou deste tema, conceituando a família
sob seu caráter patriarcal sendo aquela que cuidava dos interesses patrimoniais, regulando
apenas a ―Família Imperial", segundo a Constituição Federal de 18248.
A Constituição Federal de 18919 cuidou do tema apenas em um artigo, no qual
afirmava que a República apenas reconhecia o casamento civil como forma de constituição
de família. Por isso, desvinculou a instituição matrimonial da religião, uma vez que separou
o Estado da Igreja10. só a partir da Constituição Federal de 1934 que a família passou a
receber a proteção do Estado, bem como foi incorporada a ela a temática da cultura e da
educação.
7
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do numeroscalusus.
Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9408-9407-1-PB.pdf>. Acesso em
15 de abril de 2015.
8
BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, 1824.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso
em: 24 de outubro de 2015.
9
BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro,
1891. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em: 24 de outubro
de 2015.
10
MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Dabud. Curso de Direito de Família.
Editora Saraiva. São Paulo: 2013. p.58.
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A Constituição Federal de 193711apesar de repetir a ideia de proteção do estado
para com a entidade familiar e que concordava com o casamento, a mesma sofreu
alterações importantes como, por exemplo, os cuidados que devem ser tomados dentro do
seio familiar, bem como a igualdade de todos os filhos naturais. Esses conceitos foram
praticamente reproduzidos na Constituição Federal de 194612 que, em quase nada,
distinguiu-se da anterior referida.
A constituição de 196713 explicitou a regularização da forma de constituição da
família em seu artigo nº 167, no qual trazia, em seu bojo, o entendimento de família como
aquela advinda do casamento, tendo a proteção dos Poderes Públicos, sendo este
indissolúvel e de celebração gratuita, o que fora recepcionado na Constituição Federal
posterior, no ano de 196914.
No ano de 1988, mais precisamente em 5 de outubro, foi promulgada a nossa
atual Constituição Federal15, que ocupou-se de tratar do tema conceitual de família em seu
artigo nº 226, no qual explicita o conceito de família diretamente relacionada à base da
sociedade, cabendo ao Estado protegê-la, bem como em seus incisos, o reconhecimento das
uniões estáveis, dando-lhes, também, proteção estatal. Além disso, fora reconhecida a
família monoparental, a igualdade de direitos e deveres entre os sexos, as formas de
dissolução do casamento, os princípios que devem nortear essa instituição e a assistência
para cada pessoa.
Essas modificações observadas nos parágrafos vestibulares referem-se à
necessidade que o Direito tem em acompanhar as mutações nos âmbitos sociais. Nesse
sentido, Diniz16 afirma que:
A evolução da vida social traz em si novos fatos e conflitos, de maneira que os
legisladores diariamente passam a elaborar novas leis; juízes e tribunais
11
BRASIL. Constituição (1937). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1937.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm>. Acesso
em: 24 de outubro de 2015.
12
BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1946.
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm>. Acesso
em: 24 de outubro de 2015.
13
BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1967.
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm>.
Acesso em 24 de outubro de 2015.
14
BRASIL. Constituição (1969). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1969.
15
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 40ª edição. São Paulo:
Saraiva, 2007.
16
DINIZ, Maria Helena. As Lacunas no Direito. Editora Saraiva. São Paulo: 1987. p. 73.
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constantemente estabelecem novos precedentes e os próprios valores sofrem
mutações, devido ao grande e peculiar dinamismo da vida.
Pode-se entender que as funções que eram atribuídas a família ao longo do tempo
foram se perdendo no seu próprio tempo, pois, muitas dessas funções deixaram de existir
nos dias atuais, conforme Lôbo17 retrata a seguir:
A família atual busca a sua identificação na solidariedade (Art.º 3, I da
Constituição), como um dos fundamentos da afetividade, após o individualismo
triunfante dos últimos séculos, ainda que não retome o papel predominante que
exerceu no mundo antigo.
Portanto, aquele caráter puramente patrimonialista e patriarcal extinguiu-se no
espaço, em virtude da pluralidade de situações e relações formadas nos dias atuais, pois,
não poderia permanecer a família restrita a conceitos puramente ultrapassados que, além de
não refletirem mais a sociedade atual, não englobam mais as suas necessidades e
miscigenação de relação quando se fala em família.
O Direito, por conseguinte, busca acompanhar as necessidades dos indivíduosvia
efetivação de seu papel, isto é, regular a vida em sociedade, de modo que atenda aos seus
interesses. Por isso, não seria justo e nem certo que a família viesse a ser uma instituição
fechada e retrógrada, hora controlada pela igreja, hora controlada pelo Estado.
Atualmente, essa instituição tem um papel mais amplo, tanto em sociedade, quanto
para o próprio indivíduo que dela faz parte, visto que mudaram as situações e épocas, e,
consequentemente, modificaram-se as formas de constituição e estruturação familiar, pois o
mundo de hoje não mais se detém a uma visão idealizada de família. Seu conceito sofreu
constante mutação e a sociedade concede a todos o direito de buscar a felicidade,
independentemente dos vínculos afetivos que estabeleçam18.
Com as novas formas de constituição de família e em uma visão moderna e atual do
que seria essa entidade, pode-se afirmar, que o seu papel mudou, de acordo com os dizeres
de Dias19, a qual afirma que o seu principal papel é de suporte emocional do indivíduo, em
que há flexibilidade e, indubitavelmente, mais intensidade no que diz respeito a laços
afetivos.
17
LÔBO, Paulo. Direito Civil Famílias. Editora Saraiva. São Paulo: 2011. p. 18-19.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7ª adição, revista e atualizada. 2010. p. 33.
19
Idem. p. 42.
18
Página 11 de 270
A família deixou de ser aquela que, necessariamente, era criada pelo casamento,
exigência que deixava a margem uma série de relações de afinidade e passou a ser pautada
por princípios que norteiam as relações matrimoniais, monoparentais, mosaicas,
homoafetivas, eudemonista, proporcionando-lhes proteção especial e assegurando-as
direitos e obrigações, ainda conforme Dias20:
É necessário uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos
familiares, devendo-se buscar o elemento que permite alcançar no conceito de
entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de
afetividade, independentemente de sua conformação.
As Grandes Transformações Oriundas Da Constituição Federal De 1988.
A mais recente Constituição do Brasil, que fora promulgada em 5 de outubro de
1988, trouxe consigo uma série de mudanças, inclusive no tema ora discutido que é o
direito de família.
Baseada em princípios mais humanizados onde passou a refletir a maior
importância da pessoa humana do que do seu patrimônio e voltada a atender os interesses
sociais e proteger a dignidade da pessoa humana, viu-se o legislador obrigado a efetivar
uma série de modificações na forma de criação e conceituação da instituição familiar,
rompendo com a regra anterior de que a família só poderia ser criada pelo casamento,
passando então a aceitar diferentes formas de constituição familiar, o que representou um
salto inigualável para o Direito, em especial, o Direito da Família. A Constituição Federal
de 198821 trata sobre o tema em um dos seus artigos destinados sobre essa instituição:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º. O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeitos de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão
em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º O direito e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos
igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após previa separação
judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada a
separação de fato por mais de dois anos.
20
Idem. p. 43.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 40ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2007.
21
Página 12 de 270
§ 7º Fundados nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade
responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao
Estado propiciar recursos educacionais e científicos para a exercício desse
direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou
privadas.
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a
integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito das suas
relações.
Em apenas um único artigo, a nova Constituição conseguiu dar um salto histórico
em relação a família, salto esse necessário para atender aos interesses da sociedade da
época, houve uma reestruturação no próprio conceito de família ―Assim, a Carta de 1988
introduziu uma radical mudança no panorama da família, com a nova conceituação de
entidade familiar, para efeitos de proteção do Estado, passando a família a ser concebida de
forma mais ampla, em decorrência de sua origem no direito natural, com reflexos no âmbito
civil e penal22".
A entidade familiar deixou de ter como única forma originária o casamento e passou
a ser reconhecida aquela oriunda do casamento civil ou religioso com efeitos civis, bem
como a monoparental, além de reconhecer também as uniões estáveis formadas por pessoas
de sexos diferentes, sendo assim, um homem e uma mulher como entidade familiar,
conseguindo desse modo englobar um número bem maior de indivíduos.
Passou a conceder direitos iguais para aqueles que se encontravam em uma
convivência conjugal, não mais colocando a mulher em situação de subordinação ao
marido, mas sim tornando-os iguais possuindo ambos direitos e obrigações para com o lar,
filhos, relacionamento conjugal e a família.
Pela primeira previu casos de separação e divórcio, não tendo mais o casamento
aquele caráter de indissolubilidade que outrora o atingia, considerando-se que, ao se falar
em dignidade da pessoa humana, não seria possível conceber a ideia de uma convivência ou
um vínculo onde uma ou ambas as partes não estivessem mais de acordo, pois isso fere
completamente o direito de escolha, de bem estar e de liberdade que acabam por refletir na
própria dignidade do indivíduo.
Incluiu o direito de planejar a família, ao dizer expressamente que é livre ao casal o
planejamento familiar e que cabe ao Estado proporcionar meios para que esse direito seja
22
MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Dabud. Curso de Direito de Família.
São Paulo: Editora Saraiva. 2013. p. 63.
Página 13 de 270
efetivado conforme já visto no artigo 226 § 6º acima transcrito, ou seja, passou a entender o
planejamento familiar como algo livre, podendo ser tanto por meios naturais ou
tradicionais, meios científicos ou meios afetivos, não podendo esquecer do instituto de
adoção que acaba sendo uma alternativa capaz de atender por vezes esse planejamento.
Por último, regulou a família via mecanismos para a sua proteção, não só da família
como instituição, mas também dando proteção especial a cada indivíduo que dela faz parte,
inclusive prevendo a criação de meios para inibir possíveis violências que possam ocorrer
interferindo assim nas relações familiares, como por exemplo o ECA (Estatuto da Criança e
do Adolescente).
Outra grande e importante incorporação trazida pela Constituição de 1988 e
aplicada a entidade familiar, foi o acolhimento de princípios que servem para nortear essas
relações. Para Lôbo23, esses princípios classificam-se em: o princípio da dignidade da
pessoa humana, o princípio da solidariedade familiar, da igualdade e direito a diferença,
liberdade as relações de família, afetividade, convivência familiar e melhor interesse da
criança.
Embora a Constituição Federal de 1988 tenha se mostrado disposta a regular as
relações que surgiam na sociedade, a cada dia que passa essas relações se tornam cada vez
mais plúrimas e diferenciadas, de modo que o direito já não mais atende todas elas.
Pode ser citado, como exemplo de evolução do Direito, em virtude da sociedade,
algumas modificações que ocorreram no próprio Direito da Família, como, por exemplo, a
Emenda Constitucional 66/201024, que veio por um fim a figura da separação que antes
exigia um tempo mínimo e hoje em dia não é mais necessário:
EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66 DE 13 DE JULHO DE 2010:
Dá nova redação ao § 6º do art. 226 da Constituição Federal, que dispõe sobre a
dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio, suprimindo o requisito de
prévia separação judicial por mais de 1(um) ano ou de comprovada separação de
fato por mais de 2 (dois) anos.
Nesse mesmo sentido de modificação, pode ser mencionada aqui, também, uma
mais recente, que é em relação ao casamento que deixou de ser unicamente aquele entre um
23
LÔBO, Paulo, Direito Civil Famílias. 4ª edição. São Paulo: Editora Saraiva. 2011. p. 55-79.
BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 66, de 13 de julho de 2010. Brasília, 2010.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc66.htm>. Acesso em 15
de outubro de 2015.
24
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homem e uma mulher, como consta no art. nº 226 da Constituição Federal25, passando a ser
reconhecida também o casamento entre pessoas do mesmo sexo, isso através da resolução
do Conselho Nacional de Justiça nº 175/2013, que obriga a todos os cartórios do pais a
realizarem o casamento homoafetivo bem como a conversão das uniões estáveis
homoafetivas em casamento, tendo então força de lei.26
Ao buscar aprofundamento sobre este tema, percebe-se que a doutrina converge a
esse respeito relatando que, uma vez sendo reconhecidas as várias mutações que a
sociedade sofreu e sofre cotidianamente um dos institutos que mais acompanhou essas
mudanças é sem dúvidas a família, pois, foram transformações feitas em sua base de
construção, sua forma de estruturação. Tudo isso com o intuito de atender o real sentido
dela mesma, que é proporcionar ao ser integrante, o alcance da plenitude de seus
sentimentos e desejos. Também inclui proporcionar a convivência digna com os seus
decendentes e proteger essa formação que se cria através de um contrato privado entre
particulares, ou seja, através da sua autonomia de vontade, que merece e deve ser
respeitada. Só dessa forma, pode-se chegar a ter a tão desejada e almejada dignidade que a
constituição traça como seu pilar fundamental.
Neste sentido diz Lôbo:
A família atual busca sua identificação na solidariedade (art. 3º, I, da
Constituição), como um dos fundamentos da afetividade, após o individualismo
triunfante dos dois últimos séculos, ainda que não retome o papel predominante
que exerceu no mundo antigo. Na expressão de um conhecido autor do século
XIX, ―pode-se expressar o contraste de uma maneira mais clara dizendo que a
unidade da antiga sociedade era a família como a da sociedade moderna é o
indivíduo‖.27
Assim, hoje em dia, não se pode restringir o conceito de família apenas àquelas que
eram previstas inicialmente pela Constituição, pois a cultura mudou, a sociedade mudou, os
costumes mudaram e a consequência disso é uma série de novas relações privadas que são
criadas todos os dias. Hoje, temos vários tipos de famílias que merecem proteção do
Estado, sem que ele venha intervir como acontecia outrora.
25
Idem. 2007.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013. Dispõe sobre a
habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de
mesmo sexo. Brasília, DF, 14 de maio de 2013.
27
MAINE, Henry Sumner. El derecho antigo. Trad. A. Guerra. Madrid: Alfredo Alonso, 1893, p.
89, apud, LÔBO, Paulo, DIREITO CIVIL FAMÍLIAS, 4ª edição, de acordo com a Emenda Constitucional de
2010, Saraiva, 2011, p. 18-19.
26
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A realização pessoal da afetividade, no ambiente de convivência e solidariedade,
é a função básica da família de nossa época. Suas antigas funções feneceram,
desapareceram ou desempenharam papel secundário. Até mesmo a função
procracional, com a secularização crescente do direito de família e a primazia
atribuída ao afeto, deixou de ser sua finalidade precípua.28
O próprio IBDFAN (Instituto Brasileiro de Direito de Família), ao criar o estatuto
das famílias dispôs da seguinte forma29:
O conceito de família é cada vez mais plural. Os arranjos familiares da sociedade
moderna não mais decorrem apenas do matrimônio. A união estável, entre
pessoas do mesmo sexo ou não, famílias monoparentais, adoções e a
comprovação de paternidade via testes de DNA atestam que as mais diversas
formas de relação familiar tornam a vinculação afetiva mais importante na
abrangência e nas novas definições do conceito de família.
Assim sendo, é esclarecido que a sociedade se transforma, os conceitos evoluem os
preconceitos são vencidos e cabe ao Direito acompanhar cada mudança e dar uma reposta
às necessidades que são colocadas pelos indivíduos.
A Família À Luz Do Direito Civil-Constitucionalizado.
Com o advento da mais recente Constituição brasileira e com a sobreposição dos
direitos fundamentais e sociais aos direitos patrimoniais, que traz a nova Constituição, o
direito de família sofreu grandes e importantes transformações com respaldo em um dos
princípios que é o pilar da Constituição atual denominado de a dignidade da pessoa
humana.
Considerando que a Constituição Federal é uma norma de caráter hierárquico
superior ao próprio Código Civil, havia a necessidade de adaptá-lo ao que a Constituição já
previa. Assim o novo Código Civil, ao entrar em vigor, já teria que explicitar normas que
fossem compatíveis com as que já eram previstas pela Carta Maior.
O novo Código Civil seguindo a Magna Carta abandonou a ideia de casamento
como única forma de constituição da família, pois passou a regular também as famílias
28
LÔBO, Paulo, DIREITO CIVIL FAMÍLIAS, 4ª edição, de acordo com a Emenda Constitucional de 2010,
Saraiva, 2011, p. 20.
29
Assessoria de Comunicação IBDFAN e Assessoria de Imprensa da Senadora Lídice da Mata. Projeto de
Estatuto das Famílias. 2013. Disponível em:
<http://www.ibdfam.org.br/noticias/5182/Projeto+de+Estatuto+das+Fam%C3%ADlias+%C3%A9+apresenta
do+no+Senado>. Acesso em 16 de abril de 2015.
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monoparentais, bem como as chamadas uniões estáveis, o que outrora era inconcebível.
Além disso, prevê direitos iguais para todos os filhos sendo estes havidos do casamento ou
não, bem como igualdade para ambas as partes e atribui proteção especial a criança.
Pode-se perceber que o atual Código Civil recepcionou o princípio da dignidade da
pessoa humana aplicando-o claramente ao direito de família quando prevê em seu art. nº
1.511, enfatizando que ―o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na
igualdade de direitos e deveres dos cônjuges30.‖
Essa característica de igualdade entre os cônjuges é algo relativamente recente em
nossa sociedade, algo que veio a ser efetivado graças a Constituição Federal de 1988 e,
posteriormente, recepcionado pelo novo Código Civil em 2002, seguindo a ideia de
constitucionalização do direito civil, ou seja, as normas trazidas pelo atual código civil
devem seguir e respeitar as que são trazidas pela CF/88.
Dentre outras transformações realizadas com a vigência no novo código, é notável
que este veio para colocar um fim ao que antes era chamado de pátrio poder, uma vez que
assegurou para todos os indivíduos que fazem parte do núcleo familiar, dignidade, bem
como igualou os direitos e deveres do homem e da mulher os colocando em condição
equiparada, em conformidade com a igualdade prevista na Lei Maior.
Assim, a família regulada pelo atual Código Civil finda sendo uma estrutura que se
difere bastante das famílias de outrora, pois, hoje em dia, a família é uma comunhão de
pessoas que podem ser ligadas pelo casamento, pelo afeto, pelo sangue, entre outros,
importando veridicamente não mais os fatores econômicos, sociais, culturais ou religiosos,
mas, de fato, em valores afetivos e no interesse de agir como família. Segundo Gonçalves31:
O Código Civil de 1916 e as leis posteriores, vigentes no século passado,
regulavam a família constituída unicamente pelo casamento, de modelo
patriarcal e hierarquizada, ao passo que o moderno enfoque pelo qual é
identificada tem indicado novos elementos que compõem as relações familiares,
destacando-se os vínculos afetivos que norteiam a sua formação.
Nessa esteira, tanto a Constituição Federal de 1988 quanto o Código Civil de 2002,
tomaram bastante cuidado quanto as normas reguladoras e formas de criação da família,
30
BRASIL. Código Civil, 2002. Código Civil. Art. nº 1511, de 10 de janeiro de 2002. São Paulo. Editora
Saraiva. 2002.
31
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família.v.6. São Paulo: Editora Saraiva.
2005. p. 16.
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não restringindo-a em um grupo ou tipo, isso por que as formas previstas pela própria
Constituição é um rol meramente exemplificativo que se alarga a cada dia, com o passar do
tempo e com as novas relações que tendem a surgir sempre. Tornar esse rol taxativo traria
um prejuízo imensurável para a sociedade e para o próprio Direito, o qual passaria a não
corresponder as expectativas dos indivíduos, que é promover uma resposta e uma solução
para as transformações, modificações e possíveis adaptaçõe que venham a surgir com o
decorrer do tempo na convivência em sociedade.
Considerações Finais
Analisando os conceitos, formas de criação, finalidade e papeis que eram e são
atribuídos a entidade familiar ao longo do tempo e até os dias atuais, é incontestável as suas
transformações, que ocorreram graças a necessidade que direito possui de acompanhar
mutações sociais.
O fenômeno da constitucionalização do direito civil foi algo de extrema importância
que refletiu diretamente no direito de família que era marcado pelo conservadorismo de
outrora e que se estendeu até datas não muito distantes.
Seguindo essa ideia de constitucionalização o direito civil quando em matéria de
direito de família passou a se preocupar mais com o ser/indivíduo e suas necessidades,
subjetividades e desejos, do que com o seu patrimônio, passou a ser buscado o alcance da
realização pessoal proporcionando assim uma existência digna.
Na ânsia desse alcance, foram abrindo espaço para o reconhecimento de tantas formas
de famílias quantas forem necessárias enxergando as citadas na CF/88 e no CC 2002 como
um rol meramente exemplificativo e não taxativo, pois, trazer princípios constitucionais de
dignidade, igualdade, liberdade entre outros para o campo do direito civil em especial do
direito de família representou um salto e benefício incalculável para todos os indivíduos
que hoje são resguardados pelas novas formas de família.
Referencias Bibliográficas.
Assessoria de Comunicação IBDFAN e Assessoria de Imprensa da Senadora Lídice da
Mata. Projeto de Estatuto das Famílias. 2013. Disponível em:
Página 18 de 270
<http://www.ibdfam.org.br/noticias/5182/Projeto+de+Estatuto+das+Fam%C3%ADlias+%C3%A9+
apresentado+no+Senado>. Acesso em 16 de abril de 2015
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 40ª edição. São
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DIAS, Adahyl Lourenço. A Concubina e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva,
1988, p. 1.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7ª edição. Revista e atualizada,
2010, p. 27.
DINIZ, Maria Helena. As Lacunas no Direito. Editora Saraiva. São Paulo: 1987.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família.v.6. São Paulo:
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LÔBO, Paulo Luiz Neto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do
numeroscalusus.
Disponível
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Acesso
em 15 de abril de 2015
LÔBO, Paulo. Direito Civil Famílias. Editora Saraiva. São Paulo: 2011.
MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Dabud. Curso de
Direito de Família. São Paulo: Editora Saraiva. 2013.
MAINE, Henry Sumner. El derecho antigo. Trad. A. Guerra. Madrid: Alfredo Alonso,
1893, p.
89, apud, LÔBO, Paulo, DIREITO CIVIL FAMÍLIAS, 4ª edição, de acordo com a
Emenda Constitucional de 2010, Saraiva, 2011.
OLIVEIRA, José Sebastião. FUNDAMENTOS CONSTITUICIONAIS DO DIREITO
DE FAMÍLIA. Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2002.
SAGRADA,
Bíblia,
Livro
de
Genesis,
cap.
9,
versículo
7
Página 19 de 270
A TUTELA JURÍDICA DA DIGNIDADE HUMANA ANTE A
PROMOÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE DOS
PACIENTES COM CÂNCER
Wendson Abraão Fernandes Diniz1
Lavynia Fabrícia Vaz de Oliveira2
Resumo: O presente trabalho se propõe a discutir acerca da neoplasia maligna (câncer) e
seus reflexos na seara jurídica nacional e internacional, especialmente sob a perspectiva da
dignidade da pessoa humana, esculpida na Constituição Federal de 1988 como um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil. Almeja, ainda, analisar conceitos e
problematizar a tutela jurídica da dignidade da pessoa humana, voltando-se ao exorbitante
crescimento em número de diagnósticos da neoplasia maligna no âmbito nacional,
principalmente sob o enfoque da humanização do direito civil-constitucional. Além disso,
objetiva traçar um panorama do desenvolvimento das políticas públicas voltadas à
promoção da saúde no país, ressaltando a importância das medidas de prevenção e
multidisciplinariedade no tratamento. Por consequência, traz à tona a imprescindibilidade
de maior eficácia na proteção do direito à vida e à saúde, perpassando pela análise da
garantia da integridade física e psíquica do paciente com câncer, aspectos relevantes no que
toca à salvaguarda dos direitos da personalidade.
Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana; Direitos da personalidade; Políticas
públicas; Saúde; Câncer.
1
Universidade Federal da Paraíba, discente do curso de Direito – campus Santa Rita, aluno colaborador do
Instituto de Direito Civil-Constitucional (CCJ-UFPB) e extensionista do Programa ERO – Endodontia e
Reabilitação Oral (Reconstrução do projeto de vida do paciente com neoplasia de cabeça e pescoço)
desenvolvido no âmbito do Centro de Ciências da Saúde – Departamento de Odontologia Restauradora –
UFPB,[email protected].
2
Universidade Federal da Paraíba, discente do curso de Direito – campus Santa Rita, aluna colaboradora do
Instituto de Direito Civil-Constitucional (CCJ-UFPB) e extensionista do Programa ERO – Endodontia e
Reabilitação Oral (Reconstrução do projeto de vida do paciente com neoplasia de cabeça e pescoço)
desenvolvido no âmbito do Centro de Ciências da Saúde – Departamento de Odontologia Restauradora –
UFPB, [email protected].
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Abstract: This article proposes to discussing about the malignant neoplasm (cancer) and its
repercussion on national and international law sphere, especially from the perspective of
human dignity, inserted on Federal Constitution of 1988 as one of the foundations of the
Federative Republic of Brazil. Intends, also, analyze concepts and problematize the legal
protection of human dignity, focusing on exorbitant increase in number of diagnosis of
cancer at the national level, mainly with a focus on humanization of civil and constitutional
law. In addition to that, aims to give an overview of the development of public policies
related to health promotion in the country, emphasizing the importance of prevention and
multidisciplinary treatment measures. Consequently, it brings out the indispensability of
more effective protection of the rights to life and to health, passing by the analysis of
guarantee of physical and mental integrity of cancer patients, relevant aspects related to the
safeguard of personality rights.
Keywords: Human dignity; Personality rights; Public policies; Health; Cancer.
Notas introdutórias
A Constituição da República de 1988 veio inaugurar uma nova ordem normativopolítica no tocante à positivação dos direitos fundamentais. Assim, ao prever a dignidade
humana como fundamento da república, quis a Carta Maior estabelecer o ser humano
enquanto centro da ordem jurídica vigente.
Nessa linha, a dignidade humana se desdobra como a essência da promoção dos
direitos humanos fundamentais, pois não há sentido proteger o direito à vida, à segurança, à
propriedade, à igualdade, à liberdade, ao trabalho, à moradia, e à saúde, entre outros
positivados na CF/88 como direitos fundamentais, quando essa proteção não tem como
objetivo mor a preservação da dignidade inerente à pessoa humana.
É diante dessa dicotomia que se enfatiza a necessidade de discussão acerca dos
institutos jurídicos que salvaguardam a dignidade humana e seu plano de eficácia,
principalmente no que toca às políticas públicas do governo brasileiro voltadas à
concretização da saúde dos pacientes com neoplasia maligna (câncer). Isso porque, tal
patologia merece relevante destaque no campo jurídico, estando diretamente imbricada na
proposição de efetivação do direito à vida, esse tão discutido na nova perspectiva
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humanizada do Direito Civil, principalmente no que toca à efetivação dos direitos da
personalidade.
Desse modo, é deveras essencial o estudo do direito social à saúde entendendo-o no
sentido transindividual, ultrapassando a lógica de disponibilidade estatal e estando
relacionado mutuamente com a defesa dos direitos da personalidade, pois não é razoável
pensar na garantia e efetividade da tutela jurídica da integridade física e psíquica, aspectos
da personalidade, sem uma rediscussão da saúde como importante via para proteção da
dignidade humana.
A promoção da saúde enquanto direito humano fundamental
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela
Resolução nº 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de
1948, e assinada pelo Brasil na mesma data, figurou como baluarte para a proteção do
humano enquanto sujeito de direitos, na qual a dignidade humana ganhou notável espaço e
reflexo na construção das democracias modernas.
É nesse contexto que se pode pressupor que os direitos humanos têm características
universais, interdependentes e indivisíveis3, além de outras, sendo, portanto, imprescindível
a sua eficácia na totalidade, como se observa no tocante à necessidade de concretização da
saúde como requisito para defesa da vida.
No entanto, vê-se que as lições de Karel Vasak, jurista tcheco, apontam para um
delineamento dos direitos humanos em três gerações/dimensões4, as quais estariam
relacionadas ao momento histórico em que cada grupo de direitos foi conquistado e
efetivada a intenção de resguardá-lo, conquistando notável publicidade a partir da
divulgação e aperfeiçoamento proposta por Noberto Bobbio5 e Paulo Bonavides, esse
idealista do termo ―4ª geração/dimensão‖6.
3
PIOVESAN, Flávia. A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos
Humanos. Eos - Revista Jurídica da Faculdade Dom Bosco, Curitiba, v. 2, n. 1, p.20-33, jan. 2008.
Semestral. Disponível em: <http://www.dombosco.sebsa.com.br/faculdade/revista_direito/3edicao/3ª edição
completa.pdf>. Acesso em: 25 fev. 2016.
4
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Altas,2008. P. 42
5
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992
6
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.570.
Página 22 de 270
Embora a divisão fosse de maneira despretensiosa, frise-se que muitos Estados
encontraram nela um meio para desarticular a proteção eficaz dos direitos humanos, como é
o caso da notável relevância dada aos direitos de 1ª geração/dimensão em detrimento
daquela conferida aos de 2ª geração/dimensão.
A promoção da saúde, por exemplo, no ordenamento constitucional brasileiro, é
elevada a status de direito fundamental de 2ª dimensão, ou seja, direito cuja consolidação
de maneira universal e igualitária a todos, fica a cargo do Estado. No entanto, essa
promoção se torna limitada à medida que são impostas teorias que visam restringir o custo
do Estado com os direitos sociais, como se pode aferir a partir da análise da teoria da
―reserva do possível‖. Essa tese diz respeito à garantia do possível, do economicamente
viável para o Estado, sem que haja uma desproporcionalidade na promoção dos direitos
sociais7, afinal a economia estatal não suplanta tantas despesas com direitos coletivos,
conforme se destacam as críticas a essa lógica expostas nas palavras do grande mestre
português, José Gomes Canotilho:
Quais são no fundo, os argumentos para reduzir os direitos sociais a uma garantia
constitucional platônica? Em primeiro lugar, os custos dos direitos sociais. Os
direitos de liberdade não custam, em geral, muito dinheiro, podendo ser
garantidos a todos os cidadãos sem se sobrecarregarem os cofres públicos. Os
direitos sociais, pelo contrário, pressupõem grandes disponibilidades financeiras
por parte do Estado. Por isso, rapidamente se aderiu à construção dogmática da
reserva do possível (Vorbehalt des Moglichen) para traduzir a idéia de que os
direitos só podem existir se existir dinheiro nos cofres públicos. Um direito social
sob ‗reserva dos cofres cheios‘ equivale, na prática, a nenhuma vinculação
jurídica.8
Nesse sentido, pode-se denotar que, não obstante o Estado esteja vinculado a uma
efetivação do direito à vida, se afasta de uma tutela jurídica garantidora quando limita a
eficácia dos direitos sociais, a exemplo da saúde, à teoria da reserva do possível.
Ratificando o exposto, se demonstra o teor do artigo 196, da CF/88,o qual dispõe:
7Andreas Krell apud Sarlet (2008, p. 30) – SARLET; TIMM, Luciano Benetti (org). Direitos fundamentais,
orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2008.
8 CANOTILHO, J. J. G. e MOREIRA, V. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Ed. Coimbra, 1991, p. 131
apud
9 PIRES, C. T. ; ALMEIDA, A. B. F. R. . A ponderação proposta por Robert Alexy como forma de
concretizar os direitos sociais: uma alternativa contra o simbolismo dos direitos sociais frente à reserva
do possível. In: XXI Encontro Nacional do CONPEDI/UFU, 2012, Uberlândia. Sistema Jurídico e Direitos
fundamentais individuais e coletivos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012. p. 8940-8965. Disponível em
<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=6602294be910b1e3>. Acesso em: 25/02/2016.
Página 23 de 270
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação.9
Ressalte-se que, conforme se encontra esculpido na Carta Maior, a saúde será
garantida por meio de políticas públicas e econômicas, ou seja, mediante o possível, a
reserva.
É em torno dessa problemática que figura a necessidade do debate acerca dos
direitos inerentes aos pacientes com câncer, tendo em vista que estão insertos em um
grande paradoxo, baseado no crescente número de diagnósticos de casos de neoplasia
maligna em contraposição à morosidade das medidas de prevenção e do início do
tratamento da doença, em decorrência do déficit na excelência das políticas públicas.
Considerações acerca das políticas públicas voltadas à prevenção e cura do câncer no
Brasil
O câncer começou a despontar, ainda de maneira muito tímida, como uma
preocupação pública no Brasil no governo de Epitácio Pessoa, tendo em vista os crescentes
casos verificados na Europa e Estados Unidos. A relevante necessidade da adoção de
políticas públicas levou o governo da época a editar o Decreto nº 14.354, proposto pelo
notável Carlos Chagas, a fim de incluir na órbita nacional uma política anticâncer.
Já os estudos clínicos que começaram a enfrentar o câncer como um problema
sanitário no Brasil - ensejando na inclusão desta patologia na agenda de saúde pública datam dos anos 20, tendo como principais expoentes os pesquisadores Eduardo Rabello;
Mário Kroeff; e Sérgio Barros de Azevedo.
O desenvolvimento de tais discussões acarretou em uma maior atenção por parte do
Estado para tal problemática, o que culminou na criação de institutos como o Serviço
Nacional do Câncer e o Centro de Cancerologia, bem como em campanhas de caráter
educativo e conscientizador.10
10
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Página 24 de 270
Foi apenas na década de 90 que as políticas públicas de supervisão do câncer
prosperaram de forma concreta, com a estruturação do Sistema Único de Saúde e com
maior atuação do Instituto Nacional do Câncer (criado em 1957).
É importante ressaltar quão notável estão sendo as pesquisas desenvolvidas pelo
Instituto Nacional do Câncer – INCA, contribuindo para a formação e estruturação de
políticas públicas voltadas aos pacientes com neoplasia maligna. Segundo o Instituto, o
número de pessoas que vêm a óbito em decorrência do câncer, ultrapassa a marca dos 7
milhões por ano, o que corresponde a um percentual de 12% das mortes ocorridas em todo
o planeta. Embora tais dados já representem números elevados, a expectativa mundial
aponta para um aumento na quantidade de novos casos, que poderão chegar a 15 milhões
no ano de 2020.
No Brasil, a partir das estimativas do INCA e dados divulgados pelo DATASUS,
foram registrados 14.000 óbitos relacionados ao câncer de mama, 13.000 relacionados ao
câncer de próstata, 5.000 relacionados ao câncer de colo de útero, e 27.000 relacionados ao
câncer de pulmão.11
A intensificação do número de diagnósticos decorre não apenas do aumento da
expectativa de vida da população, mas também da crescente exposição dessa a fatores de
risco, bem como se relaciona com a condição socioeconômica e de trabalho.
A partir das pesquisas desenvolvidas, tem-se um resurgente alarme no âmbito da
saúde no que toca à necessidade de estruturação de políticas públicas. Nessa perspectiva,
frise-se o teor da Portaria do Ministério da Saúde nº 874, de 16 de maio de 2013, que
instituiu a Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer na Rede de Atenção à
Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS),
norma que rege as políticas públicas de saúde, com o objetivo de reduzir a mortalidade e
incapacidade ocasionadas pelo câncer nas mais variadas modalidades, bem como busca
diminuir sua incidência na população brasileira. Tal dispositivo elege os seguintes
princípios gerais da política nacional para a prevenção e controle do câncer, in verbis:
11
Brasil. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. A luta contra o câncer: orientações ao paciente e aos
familiares,
1ª
ed.
Brasília,
Câmara
dos
Deputados,
2015.
P.
7-8Disponível
em:
<http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/edicoes/paginas-individuais-dos-livros/aluta-contra-o-cancer-2013-orientacoes-ao-paciente-e-aos-familiares> Acesso em: 25/02/2016.
Página 25 de 270
Art. 5º Constituem-se princípios gerais da Política Nacional para a
Prevenção e Controle do Câncer:
I - reconhecimento do câncer como doença crônica prevenível e
necessidade de oferta de cuidado integral, considerando-se as diretrizes da Rede
de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no âmbito do SUS;
II - organização de redes de atenção regionalizadas e descentralizadas,
com respeito a critérios de acesso, escala e escopo;
III - formação de profissionais e promoção de educação permanente, por
meio de atividades que visem à aquisição de conhecimentos, habilidades e
atitudes dos profissionais de saúde para qualificação do cuidado nos diferentes
níveis da atenção à saúde e para a implantação desta Política;
IV - articulação intersetorial e garantia de ampla participação e controle
social; e
V - a incorporação e o uso de tecnologias voltadas para a prevenção e o
controle do câncer na Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças
Crônicas no âmbito do SUS devem ser resultado das recomendações formuladas
por órgãos governamentais a partir do processo de Avaliação de Tecnologias em
Saúde (ATS) e da Avaliação Econômica (AE).12
A partir desse instituto normativo, vê-se que o Brasil procura instituir uma política
pública social que visa à concretização do direito à saúde, por intermédio do tratamento e
prevenção dessa patologia que assola parte considerável de sua população.
Tem-se notado, portanto, desde o nascedouro da preocupação pública com a
neoplasia maligna, um crescimento na positivação de direitos relativos aos acometidos com
câncer, a exemplo da isenção do Imposto de Renda (Lei nº 7.713/1988); concessão de
auxílio doença e aposentadoria por invalidez (Lei nº 8.213/1991); cirurgia de reconstrução
mamária (Lei nº 9.797/1999); prioridade na tramitação de processos e atendimento pela
Defensoria Pública (Lei nº 13.105/2015); saque do FGTS (Lei nº 8.922/1994); prazo de até
60 para o início do tratamento (Lei nº 12.732/2012); benefício de prestação continuada (Lei
nº 8.742/1993); prioridade no recebimento de precatórios (art. 100, §2º, CF/88); dentre
outros.
Todavia, embora haja inúmeras disposições normativas que versam sobre os direitos
dos pacientes com neoplasia maligna nas mais diversas áreas, observa-se que ainda são
notórias as dificuldades que tais pessoas encontram ao buscarem o cumprimento dessas
12
Brasil. Ministério da Saúde. Institui a Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer na Rede de
Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).Portaria nº
874
GM/MS,
de
16
de
maio
de
2013.
Disponível
em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0874_16_05_2013.html>. Acesso em: 25 abr. 2015.
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garantias, até mesmo no tocante àquelas mais basilares, como o tratamento médico e o
fornecimento de medicamentos.
Isso se dá em virtude da existência de uma grande escusa por parte do Estado em
relação à salvaguarda de direitos, em especial do direito social à saúde.Tal eximição estatal
se torna ainda mais visível quando as demandas se relacionam aos pacientes com câncer,
que suscitam a necessidade de tratamentos, fármacos e auxílios que implicam em um
dispêndio maior de recursos pelo Estado.
A problemática da judicialização das demandas em saúde e seus reflexos na efetivação
dos direitos sociais
Mediante a situação de completa violação de direitos, a sociedade busca, então, por
intermédio do Poder Judiciário, a concretização das garantias que lhes são, teoricamente,
asseguradas não apenas por leis infraconstitucionais, mas pela própria Constituição Federal.
Em decorrência disso, o Poder Judiciário vem desempenhando um papel cada vez
mais significante na esfera política estatal, atuando de maneira proativa, tornando-se o
detentor do poder final de decisão da atuação das instituições estatais e assumindo a
posição de garante frente à total inércia do Poder Executivo. Denota-se, portanto, uma
massificação da judicialização das demandas sociais, colocando os tribunais na posição de
instância decisória final destas.13
Enxergar a atuação jurisdicional como um meio para pleitear quaisquer prestações
ligadas à saúde, contudo, cria um sistema de esquiva das autoridades públicas que, sob a
prerrogativa de esperar um posicionamento judicial sobre tais matérias sociais para de fato
agir, mascaram a sua atuação falha, omissa e ineficaz.14
Ademais, a judicialização da saúde e a consequente prestação jurisdicional
contribuem para a criação de uma falsa ideia de que o direito à saúde estaria sendo, de fato,
concretizado. Entretanto, o que de fato ocorre é um processo de individualização de tal
13
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (o triunfo tardio do
direito constitucional no Brasil) apud Regina Quaresma, Maria Lúcia de Paula Oliveira e Farlei Martins
Riccio de Oliveira. (Org.). Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 45.
14
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da
dignidade da pessoa humana – 2ª ed. ampl. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 306.
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direito, que passa a se perfazer tão-somente como uma prestação individual, restrita a uma
lide de forma singular, reduzindo-se ao fornecimento de um medicamento ou de um
tratamento em um caso específico. Assim, o Estado acaba por encobrir a real necessidade
da sociedade, qual seja a de coletivização do acesso à saúde, possibilitando que essa seja
acessível a toda a população, sobretudo aos pacientes com neoplasia maligna, cuja
patologia requer atenção sobremaneiramente urgente.
É importante salientar, ainda, que a ineficácia das políticas públicas aliada à
judicialização insucedida das demandas em saúde, contribuem de maneira relevante para a
estigmatização do paciente acometido com neoplasia maligna.
O tratamento do câncer sob o enfoque multidisciplinar
O surgimento de dificuldades no início do tratamento e os obstáculos que vão se
tornando mais notórios ao decorrer desse, tornam evidente o fato de que o paciente
assolado pelo câncer vê mitigado não apenas o seu direito à vida, à saúde, mas também à
integridade. Tal violação da integridade do paciente se dá na medida em que muitas vezes
ignora-se o fato de que a efetiva cura do câncer não se consubstancia somente por meio da
realização de procedimentos médicos como a quimioterapia e a radioterapia.
Desse modo, é de fundamental importância que o significado do termo saúde, em
especial no tocante ao paciente com câncer, alcance dimensões mais abrangentes,
principalmente ao levar-se em consideração uma visão humanizada do direito civilconstitucional.
A garantia da saúde, para ser de fato plena, deve ultrapassar a concepção ligada
apenas à ausência de doenças e patologias.15 Nesta toada, diversos documentos, tratados e
pactos internacionais apresentam uma perspectiva desenvolvida, contemporânea e de
caráter multidisciplinar acerca do conceito de saúde.
15
LEMOS, Fábia de Castro. Saúde como direito fundamental à vida: uma análise do direito à saúde e sua
concepção atual na sociedade brasileira. 2012. 117 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pósgraduação em Educação Profissional em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz. Escola Politécnica de Saúde
Joaquim
Venâncio,
Rio
de
Janeiro,
2012.
Cap.
4.
Disponível
em:
<http://arca.icict.fiocruz.br/handle/icict/8726#>. Acesso em: 28 fev. 2016.
Página 28 de 270
Nesse respeito, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
reconhece como direito de todas as pessoas o de desfrutar de plena saúde, no aspecto não
apenas físico, mas também mental16.
Semelhante reconhecimento dessa abordagem pluridisciplinar foi conferido na
Declaração de Alma-Ata, formulada quando da Conferência Internacional sobre Cuidados
Primários de Saúde, realizada em 1978. Tal Declaração estabelece, em seu primeiro
apontamento, as seguintes disposições:
I. A Conferência reafirma enfaticamente que a saúde - estado de completo bemestar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou
enfermidade - é um direito humano fundamental, e que a consecução do mais alto
nível possível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização
requer a ação de muitos outros setores sociais e econômicos, além do setor da
saúde.17
No tocante ao paciente com câncer, de forma específica, essa necessidade se
demonstra de maneira ainda mais contundente nos mecanismos internacionais. A ―World
Cancer Declaration‖, apresentada na Assembleia Mundial de Saúde de 2013, estabelece
nove principais metas para o controle e redução do câncer. Nesse sentido, relevante
destaque merece a sétima meta, conforme se afere: ―Target 07 - Access to accurate cancer
diagnosis, quality multimodal treatment, rehabilitation, supportive and palliative care
services, including the availability of affordable essential medicines and technologies, will
have improved.‖18
Assim, ao passo que propõe o acesso para as pessoas com câncer a um tratamento
multisetorial de qualidade, abarcando inclusive aspectos de extrema relevância, como a
reabilitação e os cuidados paliativos para os pacientes, tal declaração também enfatiza a
notoriedade dos cuidados na esfera psíquica do paciente com câncer, a saber:
Raise awareness about the need for multidisciplinary treatment, including
surgery, radiotherapy and systemic therapy. Raise awareness about the need for a
holistic approach to cancer care that encompasses mental health, rehabilitative,
supportive and palliative care.19
16
Brasil. Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos,
Sociais
e
Culturais.
Promulgação.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0591.htm> Acesso em: 25/02/2016.
17
Declaração de Alma-Ata. Formulada na Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde.
Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/saude/almaata.htm> Acesso em: 25/02/2016.
18
World CancerDeclaration. Ratificada pelos Estados-membro na Assembleia Mundial de Saúde realizada em
maio de 2013, p.1. Disponível em: <http://www.uicc.org/world-cancer-declaration> Acesso em: 25/02/2016.
19
Ibidem.p.3.
Página 29 de 270
Sendo assim, resta evidente o grande arcabouço normativo-teórico de cunho
internacional que pressupõe a imperativa necessidade de uma consideração multidisciplinar
da cura do paciente com câncer, abarcando-a nos âmbitos físico, psíquico, social e
emocional.
A tutela dos direitos da personalidade diante da perspectiva humanizada do Direito
Civil-Constitucional
A partir da discussão acerca da importância do tratamento multidisciplinar do
câncer, verifica-se, portanto, a necessidade de uma rediscussão da lógica patrimonial
adotada pelo direito civil brasileiro, uma vez que a cura não decorre apenas do custeio
financeiro, mas de elementos humanizadores do tratamento, como bem delineado acima.
Esse tradicional enfoque pertinente à legislação civilista passa a ser reexaminado
pela constitucionalização do Direito Civil e acaba por ganhar maior notoriedade pela
perspectiva de humanização desse.
O Direito Civil, a partir do Código de 2002, passa por uma transformação estrutural,
afastando os velhos dogmas de apenas regular a vida econômica dos cidadãos,
corroborando, portanto, nas lições de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, em uma
despatrimonialização do direito privado e na necessária repersonalização do ser humano,
concorrendo simultaneamente para o reconhecimento de um novo conteúdo, uma nova
estrutura do Direito Civil, que passa a estar vocacionado à tutela privilegiada e avançada da
pessoa humana.20
A esse respeito, argumenta o Ministro Edson Fachin:
Operou-se, pois, em relação ao Direito dogmático tradicional, uma inversão do
alvo de preocupações, fazendo com que o Direito tenha como fim último a
proteção da pessoa humana, como instrumento para seu pleno desenvolvimento.
Faz-se imprescindível blindar esse texto constitucional. (...) Não se pode esquecer
que a Constituição Federal de 1988 impôs ao Direito o abandono da postura
patrimonialista herdada do século XIX, migrando para uma concepção em que se
20
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. A personalidade jurídica e os direitos da
personalidade. In: Curso de direito civil: parte geral e LINDB. vol. 1. 11ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador:
Juspodivm, 2013. (p. 208-209)
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privilegia o desenvolvimento humano e a dignidade da pessoa concretamente
considerada, em suas relações interpessoais, visando à sua emancipação. 21
É que, além da constitucionalização do Direito Civil, importante referencial teórico
para argumentação acerca da regulação da vida civil nos moldes garantidores da
Constituição Federal, a humanização irriga a teoria civilista com a fixação do ser humano
como centro do ordenamento jurídico.
Assim, o direito à integridade física e à vida, delineados no diploma civilista como
direitos da personalidade22, passam pela busca de uma defesa cada vez mais concreta, que,
sem dúvida, começa pela reorganização dos modelos tradicionais a partir do princípio mor
que é a dignidade da pessoa humana, conceituada pelo professor Ingo Wolfgang Sarlet
como:
(...) a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra tudo e qualquer ato de cunho
degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais
mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação
ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão
com os demais seres humanos.23
Nessa linha, completa tal conceituação as doutas lições de Cristiano Chaves e
Nelson Rosenvald:
Dignidade da pessoa humana, nessa ordem de ideias, expressa uma gama
de valores humanizadores e civilizatórias incorporados ao sistema jurídico
brasileiro, com reflexos multidisciplinares.
Equivale dizer: todas as normas jurídicas do Direito Civil (e, é claro, dos
demais ramos da ciência jurídica) relativas à personalidade jurídica têm de estar
vocacionadas à dignidade do homem.
É preciso, pois, efetivar no caso concreto, no cotidiano jurídico, a
afirmação da dignidade humana, como postulado básico da ordem jurídica.
Equivale dizer: impende exigir, contemporaneamente, que a legalidade
constitucional permeie todo o tecido normativo do Direito Civil. Ou seja, é
preciso funcionalizar os institutos privados aos valores constitucionais. 24
21
FACHIN, Luiz Edson. Questões do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008,
p. 06.
22
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui O Código Civil. Brasília, 2002.
23
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 60.
24
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, op. cit. p. 167
Página 31 de 270
Desse modo, cabe salientar o quão importante se perfaz a prevalência da perspectiva
humanizada do Direito Civil-Constitucional quando se trata da temática acerca do paciente
com câncer, pois, embora os direitos à integridade física e à vida estejam inerentes aos
direitos da personalidade humana, esculpidos no novel civilista, há a crescente necessidade
de políticas públicas garantidoras da norma, de maneira a produzir um rearranjo do seu
plano de eficácia, tornando-a mais próxima aos anseios daqueles acometidos pela neoplasia
maligna.
Conclusão
A
partir
da
construção
histórica
apresentada,
evidencia-se
que
houve,
inegavelmente, uma maximização das políticas públicas relacionadas à problemática do
câncer. O Brasil deveras avançou muito nas pesquisas e nos institutos que buscam
cotidianamente melhorar a condição de sobrevida dos pacientes de neoplasia maligna, bem
como no tratamento dessa patologia.
Diversos foram os dispositivos legais que permitiram a normativização do direito
das pessoas com câncer nas mais variadas áreas, entre as quais a trabalhista, previdenciária,
tributária, processual e no âmbito da saúde.
Todavia, muito embora deva ser reconhecido esse notável avanço, é de se destacar
que a crescente busca pelo Poder Judiciário como mecanismo capaz de promover a solução
na garantia do direito à saúde revela uma deficiência na efetivação por parte do Estado.
É imprescindível, portanto, que o direito social à saúde, esculpido nos dispositivos
constitucionais e infraconstitucionais, seja visto como uma necessidade pública, não apenas
como um direito positivo universal e passível de garantia, mas como uma imposição ao
Estado, um dever efetivo.
Para tanto, mister se faz o alicerçamento do direito à saúde de maneira substancial,
conferindo a esse, dito de 2ª dimensão, a mesma relevância prestada ao direito à vida,
tutelado de forma tão veemente pelo Estado Democrático de Direito. Isto porque, em
verdade, o direito à vida se encontra intimamente ligado ao direito à saúde, o que se
desdobra eminentemente a partir da tutela da integridade física e psíquica do ser humano,
conforme é exposto nas doutas acepções de Ingo Sarlet:
Página 32 de 270
Para além da vinculação com o direito à vida, o direito à saúde (aqui considerado
num sentido amplo) encontra-se umbilicalmente atrelado à proteção da
integridade física (corporal e psicológica) do ser humano, igualmente posições
25
jurídicas de fundamentalidade indiscutível.
Destarte, assim se demonstra o quão importante é a discussão acerca da tutela
jurídica da dignidade da pessoa humana, consagrada na Constituição Federal de 1988 e
garantida no ordenamento infraconstitucional, principalmente tendo em vista a necessidade
de problematização dos contornos jurídicos inerentes à proteção da integridade física e
psíquica dos pacientes com câncer, aspectos relevantes à análise dos direitos da
personalidade a partir da perspectiva humanizada do Direto Civil-Constitucional.
Referências
[1] PIOVESAN, Flávia. A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção
dos Direitos Humanos. Eos - Revista Jurídica da Faculdade Dom Bosco, Curitiba, v. 2, n. 1,
p.20-33, jan. 2008. Semestral. Disponível em:
<http://www.dombosco.sebsa.com.br/faculdade/revista_direito/3edicao/3ª edição completa.pdf>.
Acesso em: 25 fev. 2016.
[2] MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Altas,2008. P. 42
[3] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992
[4] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009,
p.570.
[5] Andreas KrellapudSarlet (2008, p. 30) – SARLET; TIMM, Luciano Benetti (org). Direitos
fundamentais, orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2008.
[6] CANOTILHO, J. J. G. e MOREIRA, V. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Ed. Coimbra,
1991, p. 131 apud PIRES, C. T. ; ALMEIDA, A. B. F. R. . A ponderação proposta por Robert
Alexy como forma de concretizar os direitos sociais: uma alternativa contra o simbolismo dos
direitos sociais frente à reserva do possível. In: XXI Encontro Nacional do CONPEDI/UFU,
2012, Uberlândia. Sistema Jurídico e Direitos fundamentais individuais e coletivos. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2012. p. 8940-8965. Disponível em
<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=6602294be910b1e3>. Acesso em: 25/02/2016.
[7] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
[8] TEIXEIRA, L. A. O câncer na mira da medicina brasileira. Revista Brasileira de História da
Ciência, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 104-117, jan./jun. 2009.
25
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2004, p.320.
Página 33 de 270
[9]
Brasil. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. A luta contra o câncer: orientações ao
paciente e aos familiares, 1ª ed. Brasília, Câmara dos Deputados, 2015. P. 7-8Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/edicoes/paginas-individuais-doslivros/a-luta-contra-o-cancer-2013-orientacoes-ao-paciente-e-aos-familiares> Acesso em:
25/02/2016.
[10] Brasil. Ministério da Saúde. Institui a Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer
na Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no âmbito do Sistema Único de
Saúde (SUS). Portaria nº 874 GM/MS, de 16 de maio de 2013. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0874_16_05_2013.html>. Acesso em: 25
abr. 2015.
[11]
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (o
triunfo tardio do direito constitucional no Brasil) apud Regina Quaresma, Maria Lúcia de Paula
Oliveira e Farlei Martins Riccio de Oliveira. (Org.). Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro:
Forense, 2009, p. 45.
[12]
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio
da dignidade da pessoa humana – 2ª ed. ampl. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.
306.
[13] LEMOS, Fábia de Castro. Saúde como direito fundamental à vida: uma análise do direito à
saúde e sua concepção atual na sociedade brasileira. 2012. 117 f. Dissertação (Mestrado) - Curso
de Programa de Pós-graduação em Educação Profissional em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz.
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Rio de Janeiro, 2012. Cap. 4. Disponível em:
<http://arca.icict.fiocruz.br/handle/icict/8726#>. Acesso em: 28 fev. 2016.
[14]
Brasil. Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0591.htm> Acesso em: 25/02/2016.
[15]
Declaração de Alma-Ata. Formulada na Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de
Saúde. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/saude/almaata.htm> Acesso em:
25/02/2016.
[16]
World Cancer Declaration. Ratificada pelos Estados-membro na Assembleia Mundial de Saúde
realizada em maio de 2013, p.1. Disponível em: <http://www.uicc.org/world-cancer-declaration>
Acesso em: 25/02/2016.
[17] Ibidem.p.3.
[18]
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. A personalidade jurídica e os direitos da
personalidade. In: Curso de direito civil: parte geral e LINDB. vol. 1. 11ª ed. rev. ampl. e atual.
Salvador: Juspodivm, 2013. (p. 208-209)
[19]
FACHIN, Luiz Edson. Questões do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, p. 06.
[20]BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui O Código Civil. Brasília, 2002.
Página 34 de 270
[21]
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 60.
[22]FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, op. cit. p. 167
[23]
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004, p.320.
A HUMANIZAÇÃO CONSTITUCIONAL SOB A PERSPECTIVA DO
DIREITO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA
Marana Sotero de Sousa1
Rafaella Mayana Alves Almeida Cardins2
Resumo: Este breve estudo objetiva explorar a humanização do direito constitucional a
partir do direito à alimentação adequada, direito público subjetivo previsto no artigo 6º da
Constituição Federal do Brasil de 1988. Ainda, intenciona analisar a influência da
agricultura familiar, atividade agrícola desenvolvida entre membros de uma mesma família,
para assegurar o direito humano à alimentação. Tamanha é a importância da alimentação
para a vida digna de todo e qualquer ser humano que tornou-se direito constitucionalmente
previsto, mostrando-se como um dos instrumentos a incutir a humanização, cada vez mais
crescente e necessária, no âmbito constitucional.
Nesse esteio, relevante se faz a
abordagem sobre a alimentação adequada e os reflexos que a agricultura familiar causa
naquela,uma vez que ambas agem de modo a contribuir para a humanização constitucional,
sendo este fator importante para a aplicação e execução das leis de forma justa, bem como
para a garantia dos requisitos mínimos de vida digna e de uma sociedade pautada na
equidade. Além disso, a segurança alimentar e nutricional também está presente quando se
trata de direito fundamental à alimentação adequada, e justamente por ser intrínseca ao
tema, será igualmente abordada, tendo em vista ser também um dos mecanismos a
viabilizar a humanização constitucional, na medida em que atribui ao Estado o dever de
prestar alimentação adequada aos cidadãos.Trata-se de um estudo hermenêutico, em que
optou-se, para sua elaboração, pela utilização dos procedimentos bibliográficos, através de
1
Mestranda em Direito Econômico, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade
Federal da Paraíba (PPGCJ/UFPB). Especialista em Educação em Direitos Humanos (UFPB). Especialista em
Gestão Pública Municipal (UFPB). Graduada em Direito, pelas Faculdades Integradas de Patos (FIP). E-mail
para contato: [email protected].
2
Mestranda em Ciências Jurídicas, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bacharela em Direito, pela
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail para contato: [email protected].
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livros e artigos científicos, além do método de abordagem essencialmente qualitativo.
Portanto, é imperioso explorar os institutos que possibilitam a humanização do direito
constitucional, a exemplo da alimentação adequada, e que igualmente garantem a vida
digna e a justiça social.
Palavras-chave: Direito Humano à Alimentação Adequada; Humanização Constitucional;
Agricultura Familiar.
Abstract: This brief study aims to explore the humanization of constitutional law from the right to
adequate food, subjective public right provided for in Article 6 of the Constitution of 1988 Brazil.
Also intends to analyze the influence of family farming, agriculture developed between members of
the same family, to ensure the human right to food. Such is the importance of food for the dignified
life of any human being who became constitutionally provided right, showing up as one of the
instruments to instill humanization increasingly growing and necessary, within the constitutional
framework. In this context, relevant to make the approach about adequate food and the reflections
that the family agriculture cause on that, since both act to contribute to constitutional humanization,
which is important factor for the implementation and execution of fair laws, as well as to ensure the
minimum requirements of a dignified life and a society based on equity. Besides that, the food and
nutrition security is also present when it is about the fundamental right to adequate food, and
precisely because it is intrinsic to the topic will also be addressed, in this way, also be one of the
mechanisms to facilitate the constitutional humanization, in that it gives the State the duty to
provide adequate food to citizens. It is a hermeneutical study, which was chosen for its preparation,
use of bibliographic procedures, through books and scientific articles, in addition to essentially
qualitative approach method. Therefore, it is very important to explore the institutions that enable
the humanization of constitutional law, the example of adequate foodin order to also ensure a
dignified life and social justice.
Keywords:Human Right to Adequate Food; Constitutional Humanization; Family Farming
Introdução
Nota-se a necessidade cada vez mais crescente de humanizar o direito
constitucional, isto é, de cada vez mais inserir na Carta Magna Brasileira a ideia de
extensãodos direitos fundamentais à toda e qualquer pessoa, necessidade cada vez mais
presente à existência e manutenção da vida digna do ser humano.
É possível perceber, nos artigos 5º e 6º da Constituição Federal de 1988, um rol de
direitos fundamentais, sociais, econômicos e culturais que pertencem à pessoa e que devem
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ser garantidos e efetivados maiormente pelo Estado, mas também pela sociedade e pela
família.
Neste tocante, a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu art. 6º, a previsão do
direito humano à alimentação. Tal direito pode ser visto como uma das maneiras a
contribuir para a humanização constitucional, na medida em que gera para o Estado o dever
de prestar alimentação para toda e qualquer pessoa, de modo a garantir o mínimo
existencial para uma vida com dignidade.
Entretanto, para a alimentação chegar ao patamar de direito humano previsto
constitucionalmente, foi antes necessário haver uma constitucionalização agrarista, de
maneira que a Constituição Federal de 1988 passou a fornecer relevo e importância às
questões agrícolas, antes negligenciadas, inserindo o mecanismo da reforma agrária e do
cumprimento da função social da propriedade em seu texto, como forma de diminuir as
desigualdades sociais, a pobreza e a miséria no campo, ao mesmo tempo incentivando a
produção da agricultura, principalmente a de cunho familiar.
Com isso, o Estado passou também a perceber a importância da segurança alimentar
e os resultados da produção de cunho familiar para a redução das desigualdades sociais,
uma vez que fornecer alimentação adequada era uma das maneiras de desenvolver o país.
Justamente por tais motivos a relevância da abordagem do direito humano à alimentação
adequada junto à agricultura familiar e segurança alimentar.
Ainda, evidencia-se o direito humano à alimentação como sendo um direito ao
desenvolvimento, uma vez que visa o bem-estar, a vida digna, além da extinção da fome e
da miséria, requisitos indispensáveis para o atingimento do desenvolvimento de um país.
Para a elaboração do presente estudo, optou-se pela utilização dos procedimentos
bibliográficos, através de pesquisa realizada em livros e artigos científicos sobre o tema,
tratando-se de um estudo eminentemente hermenêutico.
Assim sendo, relevante é a análise do direito humano à alimentação adequada,
principalmente no tocante à sua contribuição como mecanismo de humanização
constitucional, ainda mais realizando-se um apanhado junto a agricultura familiar e
segurança alimentar, institutos que objetivam o bem-estar, a justiça social, a redução das
desigualdades e a vida digna.
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A CONSTITUCIONALIZAÇÃO AGRÁRIA
A Constituição do Brasil de 1988 trouxe um leque de direitos, expectativas,
previsão das liberdades e direitos sociais e fundamentais bem definidos, criando meios para
a construção de uma sociedade democrática, pautada na justiça, inclusão social e
diminuição das desigualdades. Portanto, a nova Carta Constitucional inovou, trazendo
consigo grandes avanços democráticos, que podem ser vistos através da definição de
políticas públicas relativas à educação, assistência social, saúde e garantia de cumprimento
da função social da propriedade, por exemplo.
Porém, neste ponto ressalta-se, à título de crítica ao avanço proposto pela
Constituição de 1988, a questão da reforma agrária. Isto porque, a função social da
propriedade, sendo uma forma proposta pela Constituição de garantir a reforma agrária, foi
uma maneira bastante tímida, pra não dizer de pouca eficácia, de assegurar a inclusão no
direito de acesso à terra e a diminuição das desigualdades no setor rural. Portanto:
―Se em sua maioria, o texto constitucional de 1988 efetivamente ganhou avanços
democráticos, pode-se abrir como grande exceção e como uma das vitórias mais
desprezíveis do setor oligárquico, a questão da reforma agrária, que impedida de
entrar com força total trouxe em seu bojo o artifício da produtividade,
demonstração de força dos setores dominantes e atrasados, contrariando a
democratização da terra e eliminação das desigualdades rurais‖ 3.
Logo, ―a Constituição Federal de 1988 no tocante à questão agrária, avançou na
forma e recuou no conteúdo‖4, pois foi na Constituição de 1988 que o setor rural encontrou,
pela primeira vez, um tratamento diferenciado, onde lhe foi atribuído maior relevo.
Contudo, segundo Maniglia5 não passou de ―mera embalagem, escondendo mercadoria de
baixa qualidade. Já que no mérito, a Nova Carta contrariou a tendência histórica que vinha
aperfeiçoando sucessivamente os instrumentos impositivos da Função Social da
Propriedade Rural‖, além do fato dos mecanismos de redistribuição fundiária estarem
retornando ao patamar da Constituição Federal de 1946.
3
MANIGLIA, Elisabete. Atendimento da função social pelo imóvel rural. In: BARROSO, Lucas Abreu;
MIRANDA, Alcir Gursen de; SOARES, Mário Lúcio Quintão (Orgs.). O Direito Agrário na Constituição.
2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
Trata-se de um capítulo de livro. Tendo em vista que no livro não consta o ano do capítulo, a autora deste
último, Elisabete Maniglia, será referenciada ao longo deste trabalho da seguinte forma: MANIGLIA, 2006.
4
MANIGLIA, 2006, p.27
5
Idem, Ibidem.
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De todo modo, compreende-se que a partir da constitucionalização da questão
agrária, uma nova etapa rural teve início.
Assim sendo, o texto constitucional de 1988 traz alguns aspectos de avanço rural ao
falar da função social da propriedade.
O art. 5º, incisos XXII e XIII, é exemplo já que deixa claro: que a propriedade é
protegida, mas terá de cumprir a função social. Todavia o texto agrário embaraça
a questão e cria uma antinomia ao inicialmente discorrer que toda propriedade
que não cumprir sua função social será desapropriada (art. 184), para, em
seguida, vetar a desapropriação nas terras produtivas, pequenas e médias.
Retroagiu-se, dessa forma, no que o legislador avançou criando uma expectativa
de cumprimento da função social e, em seguida, arrependido, preocupado em
desagradar grupos aliados, vetou, de uma forma bem parcial, o que seria o
interesse da maioria6.
É forçoso reconhecer que o Brasil, um país rico em terras, sendo um dos maiores
produtores de grãos já visto, mesmo com a previsão e realização da reforma agrária e da
função social da propriedade, ainda tenha tantos problemas rurais, como a escassez de
terras para a produção e para a própria subsistências das famílias agrícolas, alémda
concentração fundiária nas mãos dos grandes proprietários.
Logo, a Constituição Federal de 1988 trouxe seus reflexos positivos e negativos
para o campo; na medida em que forneceu relevância às questões rurais, a partir da previsão
constitucional da função social da propriedade, ressaltou a importância do setor rural;
porém, o cenário de concentração de terras e da não divisão igualitárias desta, permanecem.
Para a efetivação dos direitos humanos no campo e para uma real aplicação da função
social da propriedade é necessário o apoio da sociedade e da justiça, a fim de evitar danos à
natureza e principalmente as desigualdades em âmbito rural.
O direto à alimentação na constituição federal de 1988
Segundo Siqueira, ―o direito à alimentação, enquanto direito positivado, encontra
sua previsão legal no texto constitucional, em leis infraconstitucionais e em inúmeros
outros dispositivos pertencentes à ordem jurídica brasileira7‖.
6
MANIGLIA, 2006, p. 29.
SIQUEIRA, Dirceu Pereira. A dimensão cultural do direito fundamental à alimentação.Birigui-SP:
Boreal Editora, 2013, p. 35.
7
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O direito à alimentação esteve presente na esfera jurídica brasileira ao longo de suas
Constituições, ora de forma mais acentuada, ora de maneira mais discreta. Contudo, apenas
com a promulgação da Constituição de 1988 é que tal direito passou a ter destaque e
respaldo no Brasil, passando a ser reconhecido como direito de todo e qualquer cidadão,
estando previsto no artigo 6º, que assegura os direitos sociais do povo brasileiro. Nesse
esteio, Müller acrescenta que:
[...] finalmente em 2010 o direito fundamental à alimentação foi incorporado à
Constituição de 1988, no art. 6º por meio de Emenda Constitucional 64, entre os
chamados Direitos Sociais, passando a ser considerado um direito social
fundamental, muito embora em outros artigos da Carta Magna seja possível
visualizar sua presença. Um conjunto de lei que garantem este direito, e o Estado
tem a incumbência de garantir, proteger e promover ações e políticas públicas
para que toda a população possa ter acesso a este direito e à soberania alimentar
garantidos8.
O direito à alimentação passa a ser responsabilidade de todos, da família e,
essencialmente, do Estado, conforme o artigo 227, da Constituição Brasileira de 1988.
Há uma crítica bastante presente no que diz respeito a previsão do direito à
alimentação ter sido inserido no ordenamento brasileiro tão tardiamente, pois ―representa
justamente a ausência de uma agenda política, social e jurídica voltada para as questões
alimentares. Tal direito por ocasião da promulgação da Carta Constituinte já deveria ter seu
lugar estabelecido9‖.
Portanto, o direito à alimentação, por ser um direito eminentemente humano - uma
vez que é garantia básica ao mínimo existencial e à vida digna de qualquer pessoa -,
mostra-se como uma das formas da presença da humanização na Constituição de 1988,
sendo uma das maneiras a demonstrar sua desburocratização e sua preocupação crescente
com os direitos intrínsecos à dignidade humana.
O direito humano à alimentação adequada
8
MÜLLER, Marcela. Direito Fundamental à alimentação adequadano contexto das organizações
internacionais. Curitiba: Juruá, 2014.
9
MÜLLER, 2014, p. 59.
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De acordo com Piovesan10, a concepção contemporânea dos direitos humanos veio a
ser introduzida pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos
Humanos de Viena de 1993. ―Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização
dos direitos humanos, que constitui um movimento extremamente recente na história,
surgindo, a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos
durante o nazismo11‖.
Marcada pela universalidade e contemporaneidade, a chamada concepção
contemporânea dos direitos humanos foi inovada pela Declaração de 1948.
Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a
crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de
direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado
de unicidade existencial e dignidade, esta com valor intrínseco à condição
humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é
condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e viceversa. [...] Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível,
interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos
civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais
(grifo nosso)12.
Objetivando dar mais operatividade à Declaração dos Direitos Humanos de 1948, a
Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1996, aprovou o Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
O Brasil, um dos 145 Estados-partes a aderir ao Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, tem a obrigação jurídica de proteção dos direitos
humanos. ―No que se refere especificamente ao direito à alimentação, o artigo 11 do Pacto
consagra que ‗os Estados-partes reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida
adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação (...)13‖. Ressalta-se
que, no contexto deste Pacto, o direito à alimentação adequada é realizado quando todo
homem, mulher e criança, sozinho ou em comunidade com outros, tiver acesso físico e
10
PIOVESAN, Flávia. Proteção dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do Direito à Alimentação
Adequada: Mecanismos Nacionais e Internacionais. In: PIOVESAN, Flávia; CONTI, Luiz Conti (Coords.).
Direito Humano à Alimentação Adequada. Rio de Janeiro-RJ: Lumen Juris, 2007.
Trata-se de um capítulo de livro. Tendo em vista que no livro não consta o ano do capítulo, a autora deste
último, Flávia Piovesan, será referenciada ao longo deste trabalho da seguinte forma: PIOVESAN, 2007.
11
PIOVESAN, 2007, p. 18.
12
PIOVESAN, 2007, p. 22 e 23.
13
Idem, Ibidem, p. 31.
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econômico, a todo tempo à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção 14. Ainda,
ressalta-se que a forma mais comum de realização dos direitos humanos, econômicos,
sociais e culturais é através do
[...] conjunto de medidas normativas a que se costuma chamar políticas públicas.
Portanto, os Estados têm o dever de formular e implementar políticas públicas
eficazes e efetivas que prevejam, em tempo determinado, a consecução do estado
de segurança alimentar e nutricional de sua população 15.
Adentrando na esfera do direito humano à alimentação propriamente dito, Ziegler16
acrescenta que as necessidades relacionadas à alimentação, nutrição e segurança alimentar
passaram a ser percebidas como direito dentro do direito humanitário, na Convenção de
Genebra de 1864, quando verificou-se o poder sobre o alimento como forma de dominação
de um ser humano sobre o outro, como se fosse uma arma de guerra.
Por ser um direito humano, Müller17 explica que as discussões sobre direito à
alimentação somente começaram a apresentar um aspecto legal a partir da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948.
Em âmbito brasileiro, têm-se duas leis importantes que garantiram o direito
humano à alimentação e a soberania alimentar. A primeira é a Lei Orgânica da
Segurança Alimentar e Nutricional de 2006 (LOSAN), que traz no art. 2º a
definição do direito humano à alimentação e no art. 4º trata da soberania
alimentar, incorporando desta forma as diretrizes internacionais em uma lei,
visando garantir tanto soberania quanto o direito fundamental à alimentação. O
papel desta lei foi e é imprescindível para a soberania alimentar no Brasil 18.
Valente entende que ―o direito à alimentação é um direito do cidadão, e a segurança
alimentar e nutricional pra todos é um dever da sociedade e do Estado19‖.
14
Idem, Ibidem.
ESMUP Manuais de Atuação. Direito à Alimentação Adequada. Brasília-DF: ESMPU, 2008. ISBN
16
ZIEGLER, Jean. Relatório do relator especial do direito à alimentação. Submetido de acordo com a
resolução n. 2000/10 da Comissão de Direitos Humanos. Nações Unidas, Conselho Econômico e Social.
E/CN. 4/2001/53, quinquagésima sétima sessão, 7 fev. 2001.
17
MÜLLER, 2014.
18
Idem, Ibidem, p. 58.
19
VALENTE, Flávio Luiz Schieck (Org.). Fome e desnutrição, determinantes sociais. São Paulo: Cortez,
2002-a. In: SIQUEIRA, Dirceu Pereira. A dimensão cultural do direito fundamental à
alimentação.Birigui-SP: Boreal Editora, 2013, p. 35.
15
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Nesse contexto, faz-se ainda relevante analisar a contribuição da agricultura e da
segurança alimentar para garantir o direito à alimentação adequada.
Os reflexos da agricultura familiar e da segurança alimentar para o direito humano à
alimentação
A alimentação adequada, a segurança alimentar e a agricultura familiar são
institutos indissociáveis, na medida em que colaboram e efetivam o direito à alimentação,
principalmente no que se refere ao cenário brasileiro.
A agricultura familiar e a segurança alimentar consistem em políticas públicas cada
vez
mais
presentes
e necessárias
à
humanização do direito
à alimentação,
constitucionalmente previsto, e consequentemente da própria Constituição, de modo a
torná-lo presente na realidade dos brasileiros, intencionando com isso, a redução da fome,
da pobreza, da miséria e das desigualdades sociais, garantindo, antes de tudo, o direito à
vida digna e ao mínimo existencial.
A agricultura familiar no brasil, o pronaf e a alimentação adequada
Inicialmente, a pequena produção agrícola de cunho familiar era realizada por
camponeses. A família camponesa trabalhava na lavoura e no plantio e a partir disso
geravam sua própria economia e subsistência. Posteriormente, conforme as novas
exigências e necessidades que o meio rural passou a demandar ao longo dos anos, houve
uma espécie de modernização desse campesinato, passando agora o camponês a ser
agricultor, originando a chamada agricultura familiar.
Esse ramo da agricultura emergiu no cenário brasileiro a partir dos anos 1990, até
atingir status de categoria econômica em 2006, com a promulgação da Lei nº 11.326, de 24
de Julho do citado ano. Trata-se de uma atividade agrícola, onde a produção é gerida em
núcleo familiar.
Apesar dos muitos entraves, esse tipo de produção agrícola vem se mostrando
crescente, revelando também uma grande capacidade competitiva. Para tanto, é essencial ao
desenvolvimento agroeconômico que o Estado forneça suporte e assistência técnica
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suficientes para o crescimento deste ramo agrícola, orientando o agricultor. Nessa
perspectiva, Moreno e Flores esclarecem:
Reorganizar el modelo de desarrollo rural de Brasil, basado em lapotencialidad de
la agricultura familiar, requiere um amplio proceso de cambiosinstitucionales
destinados a proporcionar um soporte eficiente y eficaz a este tipo de productores.
Entre éstastransformaciones, laconstrucción de una nuevaasistencia técnica y
extensión rural (ATER) es una de lastareas estratégicas para asegurar a
losproductoresrurales
familiares
unapoyo
técnico
adecuado.
Esta
adecuacióndebetener em cuentalosnuevosdesafíosgenerados e el entorno
económico caracterizado por laeconomía globalizada y lasexigencias de
competitividad de losmercados20.
Daí a importância da atuação estatal tanto para o desenvolvimento da produção de
cunho familiar, como para o próprio setor rural do país.
Inclusive, a produção gerida em núcleo familiar é de suma importância para
combater a insegurança alimentar no Brasil e garantir a alimentação adequada do
cidadão,sendo aquela decorrente justamente da inviabilização da produção agrícola de
pequeno porte, muitas vezes devido à falta de financiamento adequado e de incentivo à
comercialização, levando a migração do campo à cidade.
A produção familiar objetiva, portanto, configura-se claramente como uma das
formas a assegurar o direito humano à alimentação, consistindo igualmente em uma das
formas de amenizar os níveis de pobreza rural, que ainda persistem atualmente. Bonnal
explica:
Como se sabe, a pobreza rural no Brasil é bem mais antiga, sendo sua origem
ligada à colonização portuguesa. Poder-se-ia até dizer que a formação da pobreza
rural é consubstancial do modelo de colonização e de desenvolvimento
econômico e social do Brasil. A marginalização da agricultura de sobrevivência
iniciou-se nos primeiros tempos da colonização e não teve trégua senão até o
início da década de 1990 com as medidas de previdência social, seguidas pelas
políticas dirigidas à agricultura familiar. Durante mais de quatro séculos o
sequestro fundiário pelas elites, a ausência de uma legislação salarial no campo e
de medidas de proteção dos direitos sociais, a interdição ou enquadramento da
ação político-sindical, o afastamento da agricultura familiar dos circuitos
comerciais, a falta ou a escassez de serviço de educação e de saúde no meio rural
20
MORENO, Augusto A.; FLORES, Murilo. Mudanças Institucionais para o Apoio à Agricultura Familiar: o
Caso da Extensão Rural. Sessão IV: Iniciativas para o fortalecimento da agricultura familiar, V Simpósio
Latino Americano de Investigação e Extensão em Sistemas Agropecuários (IESA); V Encontro da
Sociedade Brasileira de Sistemas de Produção (SBSP), realizados em Florianópolis, entre 20 e 23 de maio
de 2002 (impresso e disponível no cd redistribuído no evento).
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fizeram com que se desenvolvessem mecanismos institucionais de aceitação e
reprodução da pobreza no meio rural21.
No tocante às políticas públicas agrícolas, as manifestações iniciais acerca destas e
que foram voltadas para o âmbito rural iniciaram a partir da agricultura familiar. Cazella22
explica que ―as primeiras medidas de criação de uma linha de financiamento
descentralizada voltada para projetos que beneficiassem grupos de agricultores familiares
começaram em meados da década de 1990, com a criação do PRONAF Infraestrutura e
Serviços‖.
A criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
(PRONAF), em 1995, foi vista como uma maneira de reconhecer a especificidade da
agricultura familiar. Sobre este programa, Guanziroli explica que:
O PRONAF surge numa época (1995) na qual o elevado custo e a escassez de
crédito eram apontados como os problemas principais enfrentados pelos
agricultores, em particular os familiares. Após 10 anos de execução não cabe
nenhuma dúvida que o programa se estendeu de forma considerável por todo o
território nacional, ampliou o montante financiado, desenvolveu programas
especiais para atender diversas categorias, assumiu a assistência técnica e
reforçou a infraestrutura tanto dos próprios agricultores como dos municípios em
que se encontra23.
A agricultura familiar é responsável por mais de 70% dos alimentos presentes na
mesa do brasileiro. Daí sua importância no cenário brasileiro no que se refere à garantia de
21
BONNAL, Philippe. Referências e Considerações para o estudo e a atuação dos programas de
desenvolvimento territorial (PRONAT e PTC) na perspectiva da redução da pobreza em territórios rurais
(capítulo 1). In: MIRANDA, Carlos; TIBURCIO, Breno (Orgs.). Políticas de desenvolvimento territorial e
enfrentamento da pobreza rural no Brasil. Brasília: IICA, 2013 (Série desenvolvimento rural sustentável;
v.19), 360 p., ISBN: 978-92-9248-475-0. Disponível em: <http://oppa.net.br/livros/Volume19.pdf>. Acesso
em: 30 mai. 2015.
22
CAZELLA, Ademir Antônio, et. al. Ações e políticas no processo de gestão do programa territórios da
cidadania: análise a partir dos estudos de caso (capítulo 9). In: MIRANDA, Carlos; TIBURCIO, Breno
(Orgs.). Políticas de desenvolvimento territorial e enfrentamento da pobreza rural no Brasil. Brasília:
IICA, 2013 (Série desenvolvimento rural sustentável; v.19), 360 p., ISBN: 978-92-9248-475-0. Disponível
em: <http://oppa.net.br/livros/Volume19.pdf>. Acesso em: 30 mai. 2015.
23
GUANZIROLI, Carlos E.. PRONAF dez anos depois: resultados e perspectivas para o desenvolvimento
rural. Revista de Economia e Sociologia Rural, Brasília, v. 45, n. 2, p. 301-328, Jun. 2007. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20032007000200004&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 11 Jul. 2015.
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uma alimentação adequada para o cidadão, além de ser um forte inibidor da insegurança
alimentar e da pobreza rural.
Segurança alimentar e alimentação
Atualmente, vivemos num cenário brasileiro marcado pela fome, desigualdades e
exclusão social. É cada vez mais latente a necessidade de programas e políticas públicas
voltados para o combate da miséria e desnutrição. Siqueira expõe claramente o paradoxo
em que vive o Brasil, ao dizer que:
A fome, enquanto fenômeno presente na sociedade moderna, surge em meio a um
cenário desconfortante, pois jamais se produziu tanto alimento no Brasil, onde há
alta tecnologia voltada à agricultura, tanto em relação aos meios de produção
quanto nas condições de armazenamento de colheita. Desse modo, é difícil
compreender o avanço da fome nesse país 24.
Certamente, a fome é um dos graves problemas presentes no mundo, que assola
principalmente os países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Trata-se de uma
das mais recorrentes e perniciosas violações da vida digna do ser humano.
O Estado, como um dos responsáveis pela alimentação adequada, deve elaborar
políticas públicas capazes de implementar o catálogo de direitos já enunciados no texto
constitucional, dentre eles, a alimentação. ―Nesta esteira, tem-se que a segurança alimentar
é de responsabilidade prioritária do Estado, tendo ele primeiramente que fornecer alimentos
adequados a quem precise e, de maneira secundária, e o ônus, tanto na implementação de
políticas favoráveis ao seu reconhecimento, como também em sua fiscalização25‖.
Com o objetivo de garantir o direito à alimentação adequada foi criado, pela Lei nº.
11.346/06, o SISAN (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional). Esse
sistema possui dois objetivos principais: a promoção ao acesso à alimentação e num
segundo plano o incentivo à agricultura familiar.
Daí percebe-se a íntima relação entre direito à alimentação, segurança alimentar e
agricultura familiar, bem como as contribuições destes dois últimos institutos no fomento à
humanização da alimentação.
24
25
SIQUEIRA, 2013, p. 13.
SIQUEIRA, 2013, p. 28.
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O direito à alimentação como mecanismo humanizador da constituição federal de
1988
O direito à alimentação pode ser considerado uma das maneiras a humanizar a
Constituição Federal de 1988, na medida em que a mencionada Carta Magna o elevou à
condição de direito fundamental, necessário à vida digna da pessoa, fazendo parte do
mínimo existencial para sua sobrevivência, através do artigo 6º, sendo reconhecido como
um direito de todos.
Ainda, além de ter o caráter de direito humano, a alimentação igualmente contribui
para o desenvolvimento de um país. Segundo Feitosa, o direito à alimentação pode ser tido
como uma das formas de direito humano ao desenvolvimento, este último podendo ser
―caracterizado como direito dos povos e coletividades, em privilégio da dimensão
individual e social, nas relações que priorizam a dignidade humana26‖. Aliás, o direito ao
desenvolvimento surgiu ―do reconhecimento da existência de graves desigualdades sociais,
com vistas à promoção de direitos, mas principalmente à proteção dos sujeitos e suas
coletividades, objetivando a recuperação de suas capacidades, por intermédio de decisões
que não dispensam a consulta ao grupo27‖.
Inclusive, é apropriado entender que atualmente, desenvolvimento trata-se da
―possibilidade de todos os habitantes da terra terem acesso à água, alimentação, saúde,
educação e democracia 28‖.
A partir do conceito de desenvolvimento e da abrangência do direito ao
desenvolvimento, é possível compreender a íntima relação existente entre o direito à
alimentação como sendo uma das maneiras de atingir o desenvolvimento, à nível
internacional e no Brasil, e igualmente como sendo um mecanismo a contribuir para a
humanização do direito constitucional deste país.
Considerações finais
26
FEITOSA, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. Direito Econômico do Desenvolvimento e Direito
Humano ao Desenvolvimento. Limites e Confrontações. In: Direitos Humanos de Solidariedade: Avanços e
Impasses. Curitiba-PR: Appris, 2013, p. 174.
27
FEITOSA, 2013, p. 228.
28
FEITOSA, 2013, p. 180.
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É possível perceber o relevo que o meio rural e os problemas vivenciados no campo
ganham a partir da constitucionalização agrarista, quando a questão fundiária, antes
negligenciada, passa a ser prevista na Constituição Federal de 1988. A partir de tal
previsão, é possível discutir a reforma agrária, através também do cumprimento da função
social da propriedade.
Apesar das críticas sobre a tímida preocupação constitucional sobre o tema, é
imperioso reconhecer que a Constituição de 1988 foi a única das Constituições Brasileiras a
tratar do tema da divisão de terras, incutindo no texto constitucional o ideal da divisão justa
destas, com o objetivo de promover também o combate às desigualdades sociais, a
promoção das culturas agrícolas, como por exemplo a agricultura familiar, além da
diminuição dos níveis de pobreza rural e promoção da inclusão social, garantia da
segurança alimentar e do direito humano à alimentação, este último como forma de trazer a
humanização para o bojo constitucional.
O direito humano à alimentação está expressamente previsto no art. 6º da
Constituição Federal de 1988, sendo maiormente de responsabilidade do Estado, mas
também da sociedade e da família. É direito fundamental, portanto, pertencente a todo e
qualquer ser humano.
No contexto do direito humano à alimentação adequada é imprescindível reconhecer
sua íntima e necessária relação com a agricultura familiar e com a segurança alimentar,
consistindo estes últimos em institutos a contribuir com a alimentação; o primeiro,
responsável por mais de 70% dos alimentos que estão na mesa do brasileiro; o segundo, por
ter como objetivo fornecer alimentos a quem dele precise, possibilitando uma alimentação
adequada.
Finalmente, reconhece-se o direito humano à alimentação adequada como um
direito ao desenvolvimento, pois visa, dentre outros, o bem-estar social, a extinção da fome,
a alimentação adequada a toda e qualquer pessoa, de modo que se trata de um direito social,
voltado para a coletividade, que possibilita a vida digna e a garantia do mínimo existencial.
Referências
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2001.
Página 50 de 270
PERSPECTIVA CÍVEL-CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE
FILIAÇÃO1
Agostinho Almeida de Sousa2
Marcos Virginio Souto3
Israel Lima Braga Rubis4
Wendel Alves Sales Macêdo5
Resumo: o presente trabalho tem por finalidade o estudo da filiação sob o enfoque cívelconstitucional. Para a consecução deste fim foi empregado como método de abordagem o
dedutivo e como métodos de procedimento o histórico e comparativo, o exegético-jurídico
e o hermenêutico, sendo a pesquisa subsidiada pelo exame de documentação indireta,
sobretudo por meio da pesquisa bibliográfica em livros, artigos científicos e jurisprudência.
A primazia do princípio da dignidade pessoa humana, consagrado na Constituição de
Federal de 1988, como fundamento da República Federativa de Brasil, impôs novas
perspectivas ao tema. Este princípio materializa-se na filiação através do princípio da
igualdade entre filhos, não importando se havidos ou não na constância do casamento,
objetivando minorar as desigualdades existentes no ordenamento jurídico brasileiro com
relação à filiação. O estudo do direito de filiação passa, essencialmente, por uma
perspectiva cível-constitucional, uma vez que, gradualmente, o legislador brasileiro foi
ultrapassando paradigmas que impediam o tratamento isonômico dos filhos, até que foi
promulgada a Constituição de 1988, considerando todos os filhos iguais.
Palavras-Chave: Filiação; Enfoque cível-constitucional; Dignidade da pessoa humana;
igualdade entre filhos.
1
Trabalho submetido ao GT 1: Humanização do Direito Civil Constitucional: perspectivas e desafios.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Conciliador no Centro de
Conciliação e Mediação do TJPB/NPJ-UFCG, Campus de Sousa-PB. Email: [email protected].
3
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Pós-graduando (latu sensu)
em Direito Administrativo pelas Faculdades Integradas de Patos – FIP. Conciliador no Centro de Conciliação
e Mediação do TJPB/NPJ-UFCG, Campus de Sousa-PB. Email: [email protected].
4
Graduado em Direito na UFCG, Pós-graduando em Direito Constitucional e pesquisador. Email:
[email protected].
5
Advogado e Pesquisador. Integrante do IDCC da UFPB. Integrante do AFROEDUCAÇÃO da UFPB.
Monitor da Pós-graduação Damásio de Jesus. Formado em Direito pela UFCG. Especialista em Direito Civil,
em Direito Processual Civil, Direito Constitucional, Direito Administrativo e Tributário pela FAISA.
Especialização em andamento em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Damásio de
Jesus. Email: [email protected].
2
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Abstract: the present study aims to study the membership under the civil and constitutional
approach. To achieve this end was employed as a method of approach deductive and as
methods of historical and comparative procedure, the exegetical and legal and hermeneutic,
and the research subsidized by examining indirect documentation, especially through
bibliographic research in books, scientific articles and jurisprudence. The primacy of the
principle of dignity the human person enshrined in the Federal Constitution of 1988 as the
foundation of the Federative Republic of Brazil, imposed new perspectives to the topic.
This principle is embodied in the sonship through the principle of equality between
children, whether or not havidos during marriage, aiming to reduce inequality in the
Brazilian legal system with regard to membership. The study of the membership right
passes essentially of a civil and constitutional perspective, since, gradually , the Brazilian
legislature was passing paradigms that prevented equal treatment of the children , until the
enactment of the 1988 Constitution, considering all children equals.
Keywords: Membership; Civil and constitutional approach; Dignity of human person;
Equality between children.
Introdução
A filiação é uma relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas. Esse
estado decorre, normalmente, de um vinculo biológico, mas não necessariamente,
especialmente sob o novo prisma constitucional. Hoje, é possível reconhecer a filiação, tão
somente, em razão de um vínculo socioafetivo.
O vínculo afetivo é a ligação estabelecida, após o nascimento, entre pessoas que não
possuem um elo biológico entre si. O surgimento de laços afetivos faz com que ambas
sejam capazes de coabitar harmonicamente num contexto familiar, ensejando relações
juridicamente relevantes, que repercutem em diversos sentidos.
A compreensão do tema proposto requer uma abordagem do contexto da filiação
desde o Código Civil de 1916 até o Código atual, considerando-se as mudanças impostas
pela ordem constitucional vigente.
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O Código Civil de 1916 foi ultrapassado pelas notáveis mudanças dos valores que a
sociedade atribuía às relações civis de filiação, reclamando uma adequação do ordenamento
jurídico para se adaptar ao contexto garantista que impunha a atual Carta Magna.
As normas do diploma revogado conferiam ênfase à família legítima. Sob sua égide
existia tratamento diferenciado em razão de os filhos serem ou não advindos na constância
do casamento, o que resultava em consequências jurídicas distintas conforme o caso.
O novel diploma civil de 2002 confere tratamento inovador ao tema filiação,
ampliando e consolidando garantias fundamentais da pessoa humana. A partir de então, o
conceito de filiação ganha uma nova roupagem, para abranger, não só, os laços decorrentes
da consanguinidade, mas também os decorrentes de vínculos afetivos, aproximando-se do
chamado ―estado de filiação‖.
O estado de filiação estabelece a ideia de que é necessário ir além de uma verdade
científica, em que se analisa simplesmente a existência ou não da compatibilidade genética.
Deve-se considerar também a existência de laços de confiança, fraternidade e amor.
Ao redor do estado de filiação surgiram alguns critérios determinantes da filiação, a
exemplo, dos critérios da presunção legal, biológicos, afetivos, da reprodução assistida e da
posse do estado de filho.
O estudo do direito de filiação passa, essencialmente, por uma perspectiva cívelconstitucional. A Constituição de 1988, em seu art. 1º, III, eleva o princípio da dignidade da
pessoa humana a fundamento da República Federativa do Brasil, sendo reconhecido por
alguns autores como princípio maior do Estado Democrático de Direito.
Por essa razão, o novo Código Civil, editado em 2002, e a legislação que lhe seguiu
estão contaminados por valores constitucionais consagrados na Carta de 1988, o que
demonstra a estreita relação entre Direito Civil e Direito Constitucional. O Código Civil de
2002 amplia e consolida garantias conferidas aos filhos, bem como aprofunda o conceito de
filiação e as diversas espécies de vínculos de filiação.
A necessidade de se estudar e reconhecer as interferências das normas
constitucionais no Direito Civil, especialmente no diz respeito à filiação, trazendo novas
perspectivas, justifica a inclinação pelo tema.
Destarte, o estudo passará inicialmente por uma análise histórica e evolutiva do
instituto da filiação. Em seguida, firmar-se-á um conceito para o tema, bem como
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classificações dele decorrentes. Em fim, serão destacadas inferências constitucionais sobre
o tema filiação.
Aspectos históricos e evolutivos da filiação
São manifestas as mudanças ocorridas no tratamento conferido à filiação no
decorrer dos anos, sobretudo em relação à legislação civil que vigeu até 2002, com ênfase
especial para o tema da ―filiação‖ e suas classificações. Sabendo que o Código Civil de
1916 vigorou por mais de 80 anos, também é notório que a sociedade mudou ao longo
desses anos e, deste modo, o legislador buscou adequar o ordenamento jurídico pátrio as
novas realidades que surgiram.
A Constituição Federal de 1988 destaca-se nessa evolução, impulsionando-a até a
chegada do novo Código Civil em 2002. Com advento deste novo Código houve uma união
de todas as mudanças que vinham sendo construídas até aquele momento. Por essa razão, é
que o Direito Civil atual possui forte ligação com o Direito Constitucional.
Na lição de Silvio de Salvo Venosa: ―o Código Civil de 1916 centrava suas normas
e dava proeminência à família legítima, isto é, aquela derivada do casamento, de justas
núpcias, em paradoxo com a sociedade brasileira, formada em sua maioria por uniões
informais‖6. Deste modo, a lei civil daquela época já se mostrava em descompasso com a
realidade social.
Nos termos do Código Civil de 1916 existiam os filhos legítimos7, que eram aqueles
concebidos na constância do casamento, e os ilegítimos8, que, nos termos do art. 358
daquele Código, eram divididos em incestuosos e adulterinos.
Segundo Elias Antônio Queiroga, citado por Bruna Schlindwein Zeni, a respeito da
classificação dos filhos:
Legítimos eram os que nasciam da relação de casamento civil; ilegítimos
eram os nascidos de relação extramatrimonial. Os ilegítimos dividiam-se
em naturais ou espúrios. Filhos ilegítimos naturais eram nascidos de pais
que não estavam impedidos de se casar. Os ilegítimos espúrios eram
6
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 228.
Conforme prevê o art. 337, do CC/16,―são legítimos os filhos concebidos na constância do casamento, ainda
que anulado, ou nulo, se contraiu de boa fé‖.
8
Nos termos do art. 358, do CC/16,―os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos‖.
7
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nascidos de pais que não podiam se casar, em virtude de impedimento. Os
espúrios classificavam-se em adulterinos e incestuosos. Dava-se o
primeiro caso, quando o impedimento decorria de casamento dos pais. (...)
Se o impedimento para o matrimônio procedia de parentesco entre os pais,
o filho nascido dessa relação era chamado incestuoso9.
Neste sentido, Maria Berenice Dias assevera que:
Essa classificação tinha como único critério a circunstância de o filho ter
sido gerado dentro ou fora do casamento, isto é, o fato de a prole proceder
ou não de genitores casados entre si. Assim, a situação conjugal do pai e
da mãe refletia-se na identificação dos filhos: conferia-lhes ou subtraialhes não só o direito à identidade, mas também o direto à sobrevivência10.
A respeito desta divisão, observa-se que o fator que legitimava a filiação era o
matrimônio, sabendo que os filhos incestuosos e adulterinos não podiam, sequer, ser
reconhecidos, nos termos do art. 358, disposição revogada apenas em 1989 pela Lei nº.
7.841/89.
Quanto ao reconhecimento e a investigação de paternidade no antigo código, Bruna
Schlindwein Zeni faz a seguinte análise:
Ao filho detentor da presunção de legitimidade, que nada mais era do que
o fato de ter nascido durante a constância de casamento válido, putativo
ou anulável, ou de pessoas que faleceram na posse de estado de casadas,
era dada a possibilidade de buscar seu reconhecimento como filho
legítimo, mediante a ação de filiação.11
O art. 357 do CC/16 ditava que: ―reconhecimento voluntário do filho ilegítimo pode
fazer-se ou no próprio termo de nascimento, ou mediante escritura pública, ou por
testamento‖. O parágrafo único desse mesmo artigo preceituava que: ―o reconhecimento
9
QUEIROGA, Antônio Elias. Curso de Direito Civil – Direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p.
212. Apud ZENI, Bruna Schlindwein. A Evolução Histórico-Legal da Filiação no Brasil. Revistas
Eletrônicas
Unijuí,
set.
2009.
Disponível
em:<https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/viewFile/641/363>. Acesso
em: 08 fev. 2016. p. 62.
10
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2015. p. 387.
11
ZENI, Bruna Schlindwein. A Evolução Histórico-Legal da Filiação no Brasil. Revistas Eletrônicas Unijuí,
set.
2009.
Disponível
em:<https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/viewFile/641/363>. Acesso
em: 08 fev. 2014. p. 65.
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pode preceder o nascimento do filho, ou suceder-lhe ao falecimento, se deixar
descendentes‖.
Observa-se que os filhos poderiam ser reconhecidos, voluntariamente ou por
intermédio da via judicial, sendo este reconhecimento feito por meio da certidão de
nascimento, escritura pública ou testamento, antes do nascimento ou suceder-se ao
falecimento, caso deixasse algum descendente.
No tocante aos filhos adulterinos ou
incestuosos, Zeni aponta que ―estes não poderiam ser reconhecidos. Se reconhecidos
fossem, mediante ação de filiação, o ato tornava-se nulo a partir do momento da prova de
que o filho era adulterino ou incestuoso‖12. Destarte, mostra-se clara a intenção do
legislador em não conceder quaisquer direitos aos filhos de origem adulterina ou
incestuosa, corroborando com o pensamento de Napoleão Bonaparte: ―a sociedade não tem
interesse em que os bastardos sejam reconhecidos‖.
Quanto à investigação de paternidade, a possibilidade de ingresso com ação para
este intento estava vinculada à comprovação de alguma das hipóteses estabelecidas no art.
363do CC/16:
Art. 363. Os filhos ilegítimos de pessoas que não caibam no art. 183, I a
VI, têm ação contra os pais, ou seus herdeiros, para demandar o
reconhecimento da filiação:
I – se ao tempo da concepção a mãe estava concubinada com o pretendido
pai;
II – se a concepção do filho reclamante coincidiu com o rapto da mãe pelo
suposto pai, ou suas relações sexuais com ela;
III – se existir escrito daquele a quem se atribui a paternidade,
reconhecendo-a expressamente.
Percebe-se que no caput já existia proibição do ingresso com essa ação pelos filhos
adulterinos ou incestuosos, uma vez que o CC/16 já trazia os casos de impedimentos
matrimoniais ligados à relação entre parentes próximos e relacionamento adulterino em seu
o art. 183, I a VI:
Art. 183. Não podem casar (arts. 207 e 209):
I. Os ascendentes com os descendentes,seja o parentesco legítimo ou
ilegítimo, natural ou civil.
II. Os afins em linha reta, seja o vínculo legítimo ou ilegítimo.
12
Op. cit. p. 66.
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III. O adotante com o cônjuge do adotado e o adotado com o cônjuge do
adotante (art. 376).
IV. Os irmãos, legítimos ou ilegítimos, germanos ou não e os colaterais,
legítimos ou ilegítimos, até o terceiro grau inclusive.
V. O adotado com o filho superveniente ao pai ou à mãe adotiva (art.
376).
VI. As pessoas casadas (art. 203).
Desta forma, é inegável que os filhos eram penalizados pelas atitudes erradas de
seus genitores.
Os incisos do art. 363 CC/16 traziam as hipóteses em que os filhos ilegítimos
poderiam se utilizar da justiça para conseguir o reconhecimento, sendo necessário o estado
de concubinato, a combinação da data da concepção do filho com a data em que o pai
investigado havia raptado ou mantido relações sexuais com a mãe, ou então a existência de
algum escrito, em que o pai investigado atribuía a si a paternidade. Assim afirma Maria
Berenice Dias, sobre esta impossibilidade de reconhecimento:
Negar a existência de prole ilegítima simplesmente beneficiava o genitor e
prejudicava o filho. Ainda que tivesse sido o pai quem cometera o delito
de adultério – que a época era crime –, infringindo o dever de fidelidade,
o filho era o grande perdedor13.
Estas normas começam a se tornar insustentáveis, visto que os filhos ilegítimos
eram penalizados por serem gerados em uma relação adulterina ou incestuosa, não tendo
sequer direito a serem reconhecidos pelo seu genitor. Destarte, em 1942 a legislação
brasileira começa a dar sinais de que alteraria esta ordem, mesmo que discretamente, com a
edição do Decreto-Lei nº. 4.737/42. A partir de então, o ordenamento jurídico passou a
admitir que os filhos havidos fora do casamento pudessem ser reconhecidos após a
dissolução da sociedade conjugal pelo desquite.
Em 1949, com advento da Lei nº. 883, de 21 de outubro deste mesmo ano, a
legislação ordinária deu um grande salto em direção ao reconhecimento de direitos aos
filhos havidos fora do casamento, pois além de permitir o reconhecimento destes após a
dissolução da sociedade conjugal, ampliou esta possibilidade para que o reconhecimento
13
DIAS, Maria Berenice. Op. cit. p. 387.
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pudesse ser feito durante a vigência do casamento, porém este reconhecimento deveria ser
feito em testamento cerrado, sendo, nesta parte, irrevogável.
Nesse mesmo diploma legal passou-se a reconhecer o direito à herança dos filhos
ilegítimos, que passaram a gozar de um patamar de igualdade ao lado dos filhos legítimos e
dos legitimados do ponto de vista econômico, adquirindo também direito a alimentos
provisionais nas ações de investigação de paternidade. A nova lei ainda possuía traços
conservadores, uma vez que, além de só permitir o reconhecimento na constância do
casamento por testamento cerrado nas ações de alimento, o filho só poderia acionar o pai
em segredo de justiça.
Em 1977 foi editada a Lei nº. 6.515, conhecida como a Lei do Divórcio, que regula
a dissolução da sociedade conjugal. O seu art. 14, parágrafo único, afirma que: ―ainda que
nenhum dos cônjuges esteja de boa fé ao contrair o casamento, seus efeitos civis
aproveitarão aos filhos comuns‖. Atribuiu assim, direito aos filhos havidos de união nula ou
anulável, independente da boa-fé dos nubentes.
No entanto, a Constituição Federal de 1988 foi quem se responsabilizou por acabar
de vez com qualquer distinção ou discriminação quanto à filiação, após cerca de 70 anos de
vigência da ordem de filiação trazida pelo Código de 1916, em que havia distinção entre
filhos legítimos, legitimados e ilegítimos. Na nova Carta Magna, mais precisamente em seu
art. 227, § 6º, assim dispõe: ―os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por
adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações
discriminatórias relativas à filiação‖.
Sendo assim, não havia mais qualquer distinção com relação aos filhos, sejam eles
adotivos, concebidos na constância de um casamento ou fora deste, possuindo, todos eles,
direitos iguais.
Encerra-se aí o ultrapassado modelo, em que o filho era penalizado pelo ato do
genitor, consagrando-se, então, o princípio da igualdade na filiação, que no ordenamento
pátrio se enlaça com o princípio da dignidade da pessoa humana, objetivando minorar as
desigualdades existentes no ordenamento jurídico brasileiro com relação à filiação.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald afirmam que o § 6° do art. 227 da
CF/88 ―foi de clareza solar ao determinar a igualdade substancial entre os filhos, evitando
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qualquer conduta discriminatória, materializando, de certo modo, a dignidade da pessoa
humana almejada como finalidade precípua da Republica Federativa do Brasil14.
Em 1990, surge o Estatuto da Criança e do Adolescente, regulando matérias
pertinentes a estes, desde tópicos de natureza civil até os de natureza penal, sobretudo
temas relativos à adoção e filiação. O art. 27 do referido Estatuto assevera que o
reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e
imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer
restrição, observado o segredo de Justiça.
Assevera também o diploma que o alegante não pode dispor deste direito e mais:
não existe um prazo para que este venha interpor a ação. Em 1992 foi editada a lei que
regulava a investigação de paternidade. É nesta lei que está previsto o exame de DNA como
meio de prova para reconhecimento de paternidade. Nela está prevista que o pai deve ser
notificado sobre a investigação de paternidade15, independentemente de seu estado civil.
É importante também fazer menção ao artigo 5º da Lei nº. 8.560/92: ―no registro de
nascimento não se fará qualquer referência à natureza da filiação, à sua ordem em relação a
outros irmãos do mesmo prenome, exceto gêmeos, ao lugar e cartório do casamento dos
pais e ao estado civil destes‖. Com o exame de DNA e a edição desta nova lei, sem
dúvidas, houve um novo entendimento nos Tribunais acerca da prova de filiação.
Com este artigo mais uma vez o legislador corrobora com o entendimento de que
não há uma hierarquia ou distinção entre filhos e que todos devem possuir o mesmo
tratamento.
Conceito e classificações
A evolução do tema deu uma nova dimensão ao conceito de filiação e possibilitou
um delineamento de uma série de classificações sobre o vínculo de filiação, a exemplo, do
14
FARIAS, C. C.; ROSENVALD, N. Curso de Direito Civil: Famílias. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 539.
Conforme o Art. 2° da Lei n°. 8.560/92:―Em registro de nascimento de menor apenas com a maternidade
estabelecida, o oficial remeterá ao juiz certidão integral do registro e o nome e prenome, profissão, identidade
e residência do suposto pai, a fim de ser averiguada oficiosamente a procedência da alegação.§ 1°. O juiz,
sempre que possível, ouvirá a mãe sobre a paternidade alegada e mandará, em qualquer caso, notificar o
suposto pai, independente de seu estado civil, para que se manifeste sobre a paternidade que lhe é atribuída.
15
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estado de filiação, da presunção de paternidade, os critérios determinantes da filiação –
biológico e afetivo –, da reprodução assistida e da posse do estado de filho.
Para Silvio de Salvo Venosa a filiação é: ―uma relação de parentesco que se
estabelece entre duas pessoas. Esse estado pode decorrer de um vinculo biológico ou não,
como na adoção e na inseminação artificial heteróloga autorizada pelo pai‖16.
Destarte, o vínculo biológico não é o único capaz de se levar a filiação. É certo que
já existia o instituto da adoção no antigo código, porém com o progresso da ciência, se
avançou também muito nos métodos conceptivos a exemplo da reprodução assistida. A
evolução, contudo, não foi apenas cientifica, mas também de pensamento, estabelecendo
assim uma filiação afetiva. Hoje, a afetividade é um princípio norteador da filiação.
O estado de filiação é algo que vai além da verdade biológica, ou seja, não se
necessita de um exame laboratorial para se comprovar este estado. Paulo Lôbo aduz que: ―a
posse de estado de filiação refere à situação fática na qual uma pessoa desfruta do status de
filho em relação a outra pessoa, independentemente dessa situação corresponder à realidade
legal. É uma combinação suficiente de fatos indicando um vínculo de parentesco entre uma
pessoa e sua filiação‖17.
O Superior Tribunal de Justiça, baseado no princípio da dignidade da pessoa
humana, possui entendimento firmado no sentido de que o reconhecimento do estado de
filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser
exercitado sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros18. Destarte, o fim
maior que se pretende é a garantia da dignidade da pessoa humana, independentemente de
qual vínculo se origina a filiação.
A filiação pode ser presumida. O critério legal de determinação de filiação é
conhecido como presunção pater is est, expressão derivada do latim ―pater is est quaem
justae nuptiae demonstrant, que significa ―o pai é aquele indicado pelas núpcias‖. Este
critério tem por base o casamento e está diretamente ligado ao dever de fidelidade, ou seja,
para o critério legal a filiação se presume pelo casamento, sendo sempre o marido o pai
16
VENOSA, Silvio de Salvo. Op. cit. p. 233.
LÔBO, Paulo. Direito Civil: família. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 236.
18
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 833712/RS. Terceira Turma. Relator: Ministra Nancy
Andrighi. Data de Julgamento: 16/05/2007, Data de Publicação: DJ 04.06.200.
17
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(genitor) da criança. Com relação à maternidade tem-se a presunção matersemper certa est,
em que a maternidade sempre é certa e será manifesta através dos sinais de gestação.
O critério legal ou presunção pater is est está normatizado no art. 1597, incisos I e
II, do CC/02. Conforme tais dispositivos presumem-se concebidos na constância do
casamento os filhos nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a
convivência conjugal, bem como os nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução
da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento. Já
existia tal presunção no antigo código e o legislador achou por bem sua manutenção no
atual diploma.
Outro critério para se estabelecer a filiação é o biológico. A filiação biológica é fácil
de identificar. Sabe-se que esta filiação se estabelece pelo laço sanguíneo entre o genitor e o
filho, laço este que independe de outra situação legal.
O surgimento do exame de DNA possibilitou ao critério biológico uma certeza
quanto à paternidade superior a 99%. Tamanha é a sua importância e precisão que a
negativa injustificada em realizá-lo gera presunção juris tantum de paternidade. A Súmula
de jurisprudência n°. 301 Superior Tribunal de justiça dita que: ―em ação investigatória, a
recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de
paternidade‖. É evidente que o critério biológico não é o único a ser levado em conta para
se admitir a filiação.
A filiação poderá ser estabelecida à vista da existência de laços afetivos, mesmo que
não haja laços biológicos. De acordo com art. 1.593 do CC/02: ―o parentesco é natural ou
civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem‖. Observa-se que o legislador
não restringiu o parentesco aos laços sanguíneos, antes afirmou que o parentesco pode ter
outra origem. Esta origem é a afetiva. Segundo a lição de Maria Berenice Dias, esta
filiação: ―corresponde à verdade aparente e decorre do direito de filiação‖19. Essa verdade
aparente não é a verdade real trazida pelo critério biológico, mas aquele estabelecido no
convívio em família.
A filiação afetiva é capaz de estabelecer laços que a simples presunção legal ou a
consanguinidade, em si, não estabelecem. Claro que numa relação de filiação podem se
19
DIAS, Maria Berenice. Op. cit. p. 406.
Página 61 de 270
suceder mais de um dos critérios, e é o que acontece na maioria dos casos, em que o filho
biológico recebe afeto dos pais, estabelecendo ambos os critérios.
Além disso, os avanços da medicina fizeram surgir outras situações, das quais se
originam algumas relações de filiação. O Código Civil de 2002 bem avançou e previu
hipóteses de reprodução assistida. O art. 1.597 do CC/02, em seus incisos III, IV e V, prevê
três hipóteses de presunção decorrentes da concepção artificial. Destarte, presumem-se
concebidos na constância do casamento os filhos: a) havidos por fecundação artificial
homóloga (feita com material genético do próprio casal), mesmo que falecido o marido; b)
havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de
concepção artificial homóloga; e c) havidos por inseminação artificial heteróloga (feita com
material genético de terceiro doador), desde que tenha prévia autorização do marido.
Em relação ao tópico em estudo (CONCEITO E CLASSIFICAÇÕES), estas
presunções vão de encontro às estudadas anteriormente, uma vez que naquelas a mãe
sempre é certa e o pai é o marido da mãe. Nestas, porém, a mãe nem sempre será certa,
podendo, no caso da chamada gestação por substituição, o filho ser de uma mãe e gerado no
útero de outra; a presunção pater is est também é relativizada, visto que o pai em questão
não seria o marido da mãe que gerou o filho.
Aspectos civeis-constitucionais da filiação
O estudo do direito de filiação passa, essencialmente, por uma perspectiva cívelconstitucional. Segundo Paulo Lôbo, como fruto da constitucionalização das famílias,
houve uma: ―potencialização da filiação como categoria jurídica e como problema, em
detrimento do matrimônio como instituição, dando-se maior atenção ao conflito paternofilial que ao conjugal‖20.
No mesmo sentido é a lição de Silvio Venosa:
No direito brasileiro, a partir da metade do século XX, paulatinamente, o
legislador foi vencendo barreiras e resistências, atribuindo direitos aos
filhos ilegítimos e tornando a mulher plenamente capaz, até o ponto
culminante que representou a Constituição de 1988, que não mais
20
LÔBO, Paulo. Op. cit. p. 36.
Página 62 de 270
distingue a origem da filiação, equiparando os direitos dos filhos, nem
mais considera a preponderância do varão na sociedade conjugal21.
Além disso, a Constituição de 1988, em seu art. 1º, III, eleva o princípio da
dignidade da pessoa humana a fundamento da República Federativa do Brasil.
Sobre a dignidade da pessoa humana, Maria Berenice Dias leciona que:
É o princípio maior, fundante do Estado Democrático de Direito, sendo
afirmado já no primeiro artigo da Constituição Federal. A preocupação
com a promoção dos direito humanos e da justiça social levou o
constituinte a consagrar a dignidade da pessoa humana como valor
nuclear da ordem constitucional. Sua essência é difícil de ser capturada
em palavras, mas incide sobre uma infinidade de situações que
dificilmente se consegue elencar de antemão. Talvez possa ser
identificado como sendo o princípio de manifestação primeira dos valores
constitucionais, carregado de sentimentos e emoções. É impossível uma
compreensão totalmente intelectual e, em face dos outros princípios,
também é sentido e experimentado no plano dos afetos22.
O novo Código Civil, editado em 2002, e a legislação que lhe seguiu estão
contaminados por valores constitucionais consagrados na Carta de 1988, o que demonstra a
estreita relação entre Direito Civil e Direito Constitucional. O Código Civil de 2002 amplia
e consolida garantias conferidas aos filhos, bem como aprofunda o conceito de filiação e as
diversas espécies de vínculos de filiação.
O art. 1.596 do CC/02, seguindo o espírito constitucional e garantista da nossa Carta
de Direitos, reproduziu o mesmo teor do art. 227, § 6°, da CF/88: ―os filhos havidos ou não
da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas
quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação‖.
Essa nova redação quis privilegiar o respeito ao princípio da igualdade entre filhos.
Segundo a lição de Pablo Stolze: ―não há, pois, mais espaço para a distinção entre família
legítima e ilegítima, existente na codificação anterior, ou qualquer outra expressão que
deprecie ou estabeleça tratamento diferenciado entre os membros da família‖23.
21
VENOSA, Silvio de Salvo. Op. cit. p. 14.
DIAS, Maria Berenice. Op. cit. p. 44.
23
GAGLIANO, P. S.; PAMPLONA FILHO, R. Novo curso de direito civil, volume 6: direito de família: as
famílias em perspectiva constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. n.p. LIVRO DIGITAL.
22
Página 63 de 270
Para Flávio Tartuce é odioso a utilização de expressões distintas para nomear as
distintas relações de filiação, uma vez que todos são juridicamente iguais. Esse autor
descreve que:
Em suma, juridicamente, todos os filhos são iguais perante a lei, havidos
ou não durante o casamento. Essa igualdade abrange os filhos adotivos e
os havidos por inseminação artificial heteróloga (com material genético de
terceiro). Diante disso, não se pode mais utilizar as odiosas expressões
filho adulterino, filho incestuoso, filho ilegítimo, filho espúrio ou filho
bastardo. Apenas para fins didáticos utiliza-se o termo filho havido fora
do casamento, eis que, juridicamente, todos são iguais24.
Defende Maria Helena Diniz que: ―a única diferença entre as categorias de filiação
seria o ingresso, ou não, no mundo jurídico, por meio do reconhecimento‖25.
Maria Berenice Dias chama atenção para uma série de mudanças inauguradas pela
nova ordem jurídica introduzida pela Constituição Federal de 1988, que consagra como
fundamental o direito à convivência familiar, adotando a doutrina da proteção integral. Nas
palavras da civilista:
A nova ordem jurídica consagrou como fundamental o direito à
convivência familiar, adotando a doutrina da proteção integral.
Transformou crianças e adolescentes em sujeitos de direito. Deu
prioridade à dignidade da pessoa humana, abandonando a feição
patrimonialista da família. Proibiu quaisquer designações discriminatórias
à filiação, assegurando os mesmos direitos e qualificações aos filhos
nascidos ou não da relação de casamento e aos havidos por adoção (CF
227, § 6º).
Todas essas mudanças se refletem na identificação dos vínculos de
parentalidade, levando ao surgimento de novos conceitos e de uma nova
linguagem que melhor retrata a realidade atual: filiação social, filiação
socioafetiva, estado de filho afetivo etc. Ditas expressões nada mais
significam do que o reconhecimento, também no campo da parentalidade,
do novo elemento estruturante do direito das famílias. Tal como aconteceu
com a entidade familiar, a filiação começou a ser identificada pela
presença do vínculo afetivo paterno-filial. Ampliou-se o conceito de
paternidade, que compreende o parentesco psicológico, que prevalece
sobre a verdade biológica e a realidade legal. A paternidade deriva do
estado de filiação, independentemente de sua origem, se biológica ou
24
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
Método, 2015. n.p. LIVRO DIGITAL.
25
DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 1.125.
Página 64 de 270
afetiva. A ideia da paternidade está fundada muito mais no amor do
que submetida a determinismos biológicos26. (grifo nosso)
Destarte, o princípio da dignidade da pessoa humana passa a justificar o
estabelecimento de novos vínculos filiais para além da verdade biológica ou legal. O estado
de filiação estabelece-se baseado eminentemente num vínculo afetivo.
Nessa concepção Bullos alude que:
O conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana é amplo e
pujante, envolvendo valores e espirituais e materiais. A dignidade humana
reflete, portanto, um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao
patrimônio do homem. Seu conteúdo jurídico interliga-se às liberdades
públicas, em sentido amplo, abarcando aspectos individuais, coletivos,
políticos e sociais do direito à vida, dos direitos pessoais tradicionais, dos
direitos meta individuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos),
dos direitos econômicos, dos direitos educacionais, dos direitos culturais
etc. abarca uma variedade de bens, sem os quais o homem não subsistiria.
A força jurídica do pórtico da dignidade começa a espargir efeitos desde o
ventre materno, perdurando até a morte, sendo inata ao homem.27
Essa força jurídica que emerge do princípio da dignidade da pessoa humana
amparou as evoluções, pelas quais passou o tema filiação, até que tal laço pudesse ser
determinado tão somente por vínculos afetivos.
O estado de filho possui intima ligação com a filiação socioafetiva. Para Paulo
Lôbo: ―o estado de filiação compreende um conjunto de circunstâncias que solidificam a
presunção da existência de relação entre pais, ou pai e mãe, e filho, capaz de suprir a
ausência do registro do nascimento‖28.
Assim, ganha força a ideia de separação entre pai e genitor, pois para a teoria do
estado de filiação não basta apenas gerar, mas também dar cuidado, afeto, amor, respeito.
Estes são sentimentos que vão sendo construídos ao longo do convívio familiar.
Depreende-se, então, que o estado de filho é algo constituído com o passar do tempo;
recebe-se todo cuidado e atenção, mesmo não havendo vinculação biológica entre pai e
filho.
26
DIAS, Maria Berenice. Op. cit. p. 389.
BULOS, UadiLammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 512.
28
LÔBO, Paulo. Op. cit. p. 236.
27
Página 65 de 270
Segundo Maria Berenice Dias a doutrina apresenta três requisitos para a
caracterização da posse do estado de filho:
(a) tractatus - quando o filho é tratado como ta l,criado, educado e
apresentado como filhopelo pai e pela mãe; (b)nominatio- usa o nome ela
família e assim se apresenta; e (c)reputatio- é conhecido pela opinião
pública como pertencente à família de seus pais.
Sobre o assunto, Silvio Venosa defende que: ―para benefício dos próprios
envolvidos, deverá preponderar a paternidade afetiva e emocional e não a do vínculo
genético‖29.
No julgamento do Recurso Especial 1328380/MS30, a Terceira Turma do Superior
Tribunal de Justiça, sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio, deu provimento a um
Recurso Especial, para anular sentença, em razão do reconhecimento de cerceamento de
defesa, sob os seguintes argumentos:
[...] 2.2 Efetivamente, o que se está em discussão, e pende de
demonstração, é se houve ou não o estabelecimento de filiação
socioafetiva entre a demandante e a apontada mãe socioafetiva, devendose perquirir, para tanto: i) a vontade clara e inequívoca da pretensa mãe
socioafetiva, ao despender expressões de afeto, de ser reconhecida,
voluntariamente, como mãe da autora; ii) a configuração da denominada
'posse de estado de filho', que, naturalmente, deve apresentar-se de forma
sólida e duradoura. Todavia, em remanescendo dúvidas quanto à
verificação dos referidos requisitos (em especial do primeiro, apontado
pelo Tribunal de origem), após concedida oportunidade à parte de
demonstrar os fatos alegados, há que se afastar, peremptoriamente, a
configuração da filiação socioafetiva. É de se ressaltar, inclusive, que a
robustez da prova, na hipótese dos autos, há de ser ainda mais
contundente, a considerar que o pretendido reconhecimento de filiação
socioafetiva refere-se à pessoa já falecida. De todo modo, não se pode
subtrair da parte a oportunidade de comprovar suas alegações.
2.3 Em atenção às novas estruturas familiares, baseadas no princípio
da afetividade jurídica (a permitir, em última análise, a realização do
indivíduo como consectário da dignidade da pessoa humana), a
coexistência de relações filiais ou a denominada multiplicidade
parental, compreendida como expressão da realidade social, não pode
passar despercebida pelo direito. Desse modo, há que se conferir à parte
o direito de produzir as provas destinadas a comprovar o estabelecimento
29
VENOSA, Silvio de Salvo. Op. cit. p. 239.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1328380/MS. Terceira Turma. Relator: Ministro Marco
Aurélio Bellizze. Data de julgamento: 21/10/2014, Data de publicação: DJe 03/11/2014.
30
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das alegadas relações socioafetivas, que pressupõem, como assinalado, a
observância dos requisitos acima referidos. [...] (grifo nosso)
Destarte, a afetividade tem sido determinante nas relações de filiação norteado pela
necessidade de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.
Considerações finais
A filiação é o vínculo que liga duas pessoas numa relação de parentesco. Esse
vínculo, normalmente, decorre de fatores biológicos ou legais, porém, sob o prisma da nova
ordem constitucional, é possível reconhecer a filiação, tão somente, em razão de um
vínculo afetivo.
Atualmente, é inconcebível que se faça um estudo do tema sem filtrá-lo pelas novas
diretrizes trazidas pela Constituição Federal de 1988. Os princípios constitucionais
espraiam seus raios sobre todo o ordenamento jurídico brasileiro, especialmente sobre o
Direito Civil, de modo que a aplicação deste e de seus institutos deve observar valores
maiores consagrados na Carta Magna.
O art. 1.596 do Código Civil de 2002, coincidentemente, traz a mesma redação do §
6º do art. 227 da Constituição Federal de 1988. Este dispositivo trata especificamente, e de
forma inédita, do direito à igualdade entre filhos. Isso significa que não importa se os filhos
foram ou não fruto da relação matrimonial. Agora, todos possuem os mesmos direitos e
qualificações. Ainda estão proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à
filiação.
Houve um alargamento dos vínculos tradicionais de filiação para permitir que o
indivíduo pudesse encontrar amparo num seio familiar. Isso somente é possível graças ao
princípio da dignidade da pessoa humana, manto justificador da realização do ser pela sua
simples condição de humano. Desse modo, laços socioafetivos passam, suficientemente, a
abonar vínculos de filiação em detrimento dos tradicionais critérios biológico e legal.
A força jurídica desse princípio deu sustentação às evoluções, pelas quais passou o
tema filiação, até que tal laço pudesse ser determinado tão somente por vínculos
socioafetivos capazes de solidificar a presunção da existência de relação entre pais e filhos,
podendo até dispensar o registro de nascimento.
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É importante concluir que os pais têm o dever de cuidar dos seus filhos sob pena de
incidir o instituto denominado de abandono afetivo. Nesse caso, os pais que não cuidarem
dos filhos estão sujeitos a responsabilização.
Referências
BRASIL. Constituição (1998). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
DF: Senado Federal, 2016.
______. Leinº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Vade Mecum Saraiva. 21.
ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2014.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10. ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2015.
DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
FARIAS, C. C.; ROSENVALD, N. Curso de Direito Civil: Famílias. 7. ed. São Paulo:
Atlas, 2015.
GAGLIANO, P. S.; PAMPLONA FILHO, R. Novo curso de direito civil, volume 6:
direito de família: as famílias em perspectiva constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2014. LIVRO DIGITAL.
LÔBO, Paulo. Direito Civil: família. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
QUEIROGA, Antônio Elias. Curso de Direito Civil – Direito de família. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004.p. 212. Apud ZENI, Bruna Schlindwein. A Evolução Histórico-Legal da
Filiação no Brasil. Revistas Eletrônicas Unijuí, set. 2009. Disponível
em:<https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/viewFile/6
41/363>. Acesso em: 08 fev. 2016.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense; São Paulo: Método, 2015. LIVRO DIGITAL.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 13. ed. São Paulo: Atlas,
2013.
ZENI, Bruna Schlindwein. A Evolução Histórico-Legal da Filiação no Brasil. Revistas
Eletrônicas Unijuí, set. 2009. Disponível
Página 68 de 270
em:<https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/viewFile/6
41/363>. Acesso em: 08 fev. 2014.
Página 69 de 270
LIBERDADE DE ESCOLHA E AUTONOMIA DA VONTADE NOS
PROCEDIMENTOS DE INTERVENÇÃODA VIDA: UM
INSTRUMENTO DA DIGNIDADE HUMANA
Maria Cristina Paiva Santiago1
Maria Thereza Santiago M. De Moura2
Torben Fernandes Maia3
Resumo: A dignidade humana foi assunta a um patamar grandioso pela Constituição
Federal de 1988, revelando consequências singulares ao ordenamento jurídico brasileiro; o
presente trabalho tem como objetivo discutir a liberdade e a autonomia como ferramentas
que compõem e garantem aquele princípio. Valores como democracia, pluralismo e
diversidade são institutos inerentes ao Estado Democrático de direito; destarte, baseados na
premissa de que defender o direito de escolha é diferente de defender a escolha, acredita-se
que para a carga axiológica constitucional brasileira de 1988, o poder de decidir de
pacientes vítimas de doenças terminais e irreversíveis sobre a intervenção ou não no
procedimento morte, é uma prerrogativa dos cidadãos brasileiros.
Palavra-chave: Dignidade Humana; Autonomia; Morte; Bioética;
Abstract: Human dignity was exalted to an extreme level by the Federal Constitution of
1988, revealingsingular‘s consequences to the Brazilian legal system; this paper aims to
discuss freedom and autonomy as tools that compose and guarantee that principle.Values
such as democracy, pluralism and diversity are institutes inherent in a democratic state of
law; therefore, based on the premise that defending the right to choose is different to defend
the choice, it‘s believed that for the Brazilian constitutional axiological load of 1988, the
power to decide whether make the intervention or not in the death of patients suffering
from irreversibleand terminal‘sillnesses, it‘s the prerogative of Brazilian citizens.
Keywords: Human dignity; Autonomy; Death; Bioethics;
1
Professora Me. e Doutoranda pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail:
[email protected].
2
Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: [email protected]
3
Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: [email protected]
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Introdução
No atual Estado Democrático de Direito brasileiro, instalado pela Constituição
Federal de 1988, a envergadura conquistada pela dignidade humana foi tremenda. O ser
humano foi alçado como o destinatário final de todas as normas jurídicas, de forma que
todo o ordenamento deva ser um meio para atingir a ordem social e valorização da
dignidade, tendo sempre a pessoa humana como foco final. Tal prova se faz no fato de que
direitos sociais, individuais e coletivos passam a ser considerados bens jurídicos
irrevogáveis, mediante o instituto de cláusulas pétreas.
Valores como a democracia, o pluralismo e a diversidade também foram
fundamentos vistos pelos constituintes como bens a serem profundamente defendidos e
implementados na sociedade. Assim, pelo presente trabalho, iremos defender esses
postulados como sendo ferramentas que compõem o princípio da dignidade da pessoa, onde
viver em um Estado Democrático de Direito que respeita o pluralismo de ideologias e a
diversidade de crenças, é, necessariamente, respeitar também a própria dignidade humana.
Dessa forma,buscando defender essa tese, o presente escrito foi estruturado em
quatro partes. Inicialmente, abordaremos os conceitos que serão utilizados durante a
discussão, sobre os diversos procedimentos de morte. Em seguida,debruçaremo-nos sobre a
conceituação preliminar do princípio da dignidade humana para nosterceiro e quarto
momentos, abordarmos o direito de escolha de optar por uma antecipação da morte em
situações excepcionais, o qual é embasado por valores constitucionaisde liberdade e
autonomia individuais, e são na verdade uma forma de valorizar a dignidade da pessoa
humana.
A limitação das escolhas acerca de como reagiriam as pessoas ao depararem-se com
o esgotamento de suas perspectivas de melhoras, - quando em estados avançados de
doenças, sem expectativa de cura ou crescente ameaça de dor e degradação, - constitui uma
possível afronta ao prisma dos princípios e direitos fundamentais dos seres humanos, vez
que ferem o valor intrínseco à condição humana, -qual seja a dignidade - foram aqui
explorados em consonância com o ordenamento jurídico brasileiro.
As discussões provenientes da temática são amplas e possuem muitas vezes
opiniões diametralmente opostas, onde muitas vezes são fundamentadas pelo mesmo
princípio, conforme demonstraremos mais a frente. Iremos apresentar ambas as
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fundamentações, e demonstrar os pensamentos a favor da liberdade de escolha, que permite
a cada pessoa o direito de ser juiz de seu destino, quando posta a situações extremas, pois
esse é o corolário da nossa Democracia.
Contudo escolhemos tão somente apresentar vertentes desses julgamentos, por
acreditar que incansável e infinito é o âmbito de laboração da temática abordada; em
atenção às escolhas esclarecidas feitas por pacientes, bem como seus familiares e/ou
responsáveis legais, submetidos a uma limitação própria de todo e qualquer direito do nosso
ordenamento, foi o que motivou os autores aos esclarecimentos aqui apresentados.
Por fim, notamos que a visualização da autonomia, bem como da liberdade, como
efetivações do princípio da dignidade representam uma valorização intrínseca ao indivíduo,
em consonância com os direitos fundamentais da Carta Magna. Através dela, elementos
como a pluralidade, diversidade e democracia são inevitavelmente promovidas, e uma vez
respeitadasas condições e limitações provenientes das rotas de colisões de direitos,
objetivando uma convivência harmoniosa do corpo social, escolhas individuais merecem e
devem ser consideradas.
Procedimentos de intervenção da morte
No decorrer da história, o conceito da eutanásia sofreu profundas alterações, vez que
esse termo abrangeu em seu início e durante muito tempo, toda intervenção médica que
visava de alguma forma alterar o ciclo natural da vida, conduzindo a um conceito ―negativo
de abreviar direta e intencionalmente, a vida humana” 4. Dessa forma, julgamos necessário
que, antes de adentrar ao mérito da discussão, é de fundamental importância tecer
esclarecimentos acerca dos termos técnicos essenciais para a discussão do presente tema,
sepultando desde já qualquer possível confusão terminológica.
Eutanásia
4
PESSINI, Léo. EUTANÁSIA: por que abreviar a vida?, p. 285.
Página 72 de 270
A eutanásia, morfologicamente derivada do grego, eu -bem- e thanatos -morte-,
pode ser compreendida como a ação de induzir à morte com o mínimo de sofrimento 5,
consistindo na aplicabilidade de formas suaves e indolores6;
Faz-se mister afirmar que a essência motivadora do ato de ceifar a vida de alguém
nesses casos deve inegavelmente estar pautada na compaixão, sendo esta ensejada pela
ânsia de findar imenso e irremediável sofrimento do semelhante.
É primordial ressaltar que em nosso ordenamento, em razão da atual inexistência da
forma da eutanásia, tal conduta é compreendida como crime de homicídio, visto que o
paciente, mesmo nos casos em que relata sua vontade ativamente, não promove os atos
executórios.
Em linhas gerais podemos afirmar quepara discutir a temática desejada diversos
conceitos podem vir a surgir, de modo que, para nosso estudo, pertinente é tratar
individualmente de cada uma, a fim de distingui-las com clareza.
Suicídio e suicídio assistido
O suicídio puro e simples é o ato voluntário de tirar a própria vida, podendo
representar um grito de liberdade, um ato de liberdade individual, que reiteradamente é
sufocada e agredida.7Aqui, a grande e maior característica reside na ausência de
determinação e participação de terceiros.
O suicídio assistido, também conhecido como ―autoeutanásia‖, constitui mais uma
espécie de eutanásia, verificada quando o terceiro presta auxílio -material ou moral- ao
paciente, por motivos completamente benévolos; nesta modalidade, o ato executório é
realizado pelo doente, jamais pelo terceiro, caso contrário estaríamos diante do tipo penal
de homicídio e da figura da eutanásia direta.8.
Eutanásia x Ortotanásia
5
SÁ, Maria de Fátima. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. p. 32, 2001
LOPES, Antônio Carlos; LIMA, Carolina Alves de Sousa; SANTORO, Luciano de Freitas. Eutanásia,
ortotanásia e distanásia: aspectos médicos e jurídicos. 2011. p.17.
7
CARDOSO, Álvaro Lopes. O Direito de Morrer: Suicídio e Eutanásia. Lisboa: Publicações EuropaAmérica. 1984. p. 37
8
BITTENCOURT, Cezar Robert. Tratado de Direito Penal. 2009. p. 108
6
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Dalmo Dallari entende como ortotanásia a não interferência de qualquer modo para
prolongar ou apressar a morte, deixando a natureza agir9; Para Maria Elisa Villas-Bôas, ―é
o resgate do morrer cercado, sobretudo, de afeto, e não penas de artefatos; o morrer a que
todos esperamos ter direito‖.10.
Nesse fenômeno, é fundamental que o processo morte já tenha sido iniciado, de
modo que distingue-se da eutanásia por esta ser resultante de uma atuação ou omissão do
agente.
Eutanásia x Distanásia
A distanásia, ao contrário do que representa a eutanásia, constitui a negação da
morte através do prolongamento artificial de uma ―vida‖, quando esta já alcançou o fim.
Os estudos doutrinários consideram a distanásia como uma persistência terapêutica
ou mera frivolidade, onde o foco resta não mais na pessoa do paciente, mas na essência de
sua patologia, de modo que culmina em um afastamento da natureza antropocentrista no
campo da medicina.
Assim, como aponta José Eduardo de Siqueira, presidente da Sociedade Brasileira
de Bioética, “essa batalha fútil, travada em nome do caráter da vida, parece negar a
própria vida humana naquilo que ela tem mais essencial: a dignidade” 11.
Restando provada a importância do super-princípio – a dignidade -, debrucemo-nos
agora sobre seus fundamentos e razões de ser, a fim de melhor compreender o
desenvolvimento da temática aqui tratada.
Notas Preliminares Sobre A Dignidade Humana
Nas palavras de Léo Pessini12, o conceito de dignidade já ocupa, há pelo menos
cinquenta anos, um lugar de destaque nas diversas declarações internacionais, além de
espaços em constituições e legislações das mais variadas nações; em 1945, o preâmbulo da
Declaração Universal de Direito Humanos ressaltou que: “O reconhecimento da dignidade
9
Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Direito à vida e a liberdade para morrer. 2009. p. 43
BÔAS, Maria Elisa Villas. O direito fundamental à ortotanásia. 2010. p. 242
11
SIQUEIRA, José Eduardo de. A terminalidade da vida. 2005, p.152-153.
12
PESSINI, Léo. EUTANÁSIA: por que abreviar a vida?, p.133
10
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inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis
constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”
13
. Mais adiante, o
mesmo texto, em seu artigo primeiro preceitua que: ―Todos os seres humanos nascem livres
e iguais em dignidade e em direitos.” 14.
Mediante uma simples interpretação das redaçõessupracitadas, percebemos que a
referida declaração propõe que a dignidade seja um padrão comum a todos os povos,
independente de cor, raça ou etnia, procurando enquadrar todas as pessoas em uma mesma
espécie, qual seja a do ser humano;o objetivo é claro: tornar aquele padrão um direito
subjetivo de todo membro da humanidade. Outrossim, é relevante apontar que
concomitantemente a ascensão da dignidade, a liberdade é erigida a uma alta patente, onde
tal qual uma simbiose, ou ainda num processo de fusão, são os dois institutos
interdependentes considerados caríssimos aos seres humanos.
Diante do que já foi exposto percebemos que a Constituição Federal de 1988 iniciou
um importante projeto de valorização da pessoa humana; a partir de um movimento de
superposição desse texto legal sobre os demais, deu-se início a uma nova hermenêutica
constitucional: um fenômeno definido por Ingo Sarlet comohorizontalização dos direitos
fundamentais15, onde toda a carga axiológica inovadora positivada na magna carta, a qual
visa, sobretudo, o soerguimento da pessoa humana e a sua dignidade, - através de direitos
fundamentais, individuais, sociais e coletivos, - eleva o ser humano à envergadura maior de
todo o ordenamento jurídico, seja ele da esfera privada ou pública.
Destarte, a eficácia dos direitos fundamentais passa a exercer influência sobre toda
e qualquer esfera do arcabouço jurídico brasileiro, nas suas dimensões objetivas e
subjetivas. A pessoa humana e a sua valorização passaram a ser os motivos e as razões da
essência do Direito.
Embora pareça óbvia, na atualidade, a necessidade de se reconhecer o
papel central do Direito que deve atribuir à pessoa, foi há bem pouco tempo que
se colocou
a pessoa humana no seu devido lugar.(...)Apesar de, desde os
primórdios da existência do homem, as normas jurídicas se direcionarem à
regulamentação de atividades e à garantia de interesses humanos, a percepção de
13
Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em 10 de dezembro de 1948.
Declaração Universal dos Direitos Humanos, op. cit.
15
SARLET, Ingo Wolfgang.Aeficácia dos direitosfundamentais. p. 392-400.
14
Página 75 de 270
que a pessoa, como fim em si própria – e não o indivíduo, ou , ainda pior, este em
função do Estado – constitui o ponto fulcral de todo o fenômeno jurídico(...).
Termos remetendo à ―dignidade‖ passaram a ser amplamente explorados e
invocados em todas as vertentes jurídicas, vez que tal princípio passou a ser um imperativo
teleológico: todomandamento normativo deve ter como produto, ainda que minimamente, a
valorização de tal fundamento.
Ao tomar por base as palavras de Antônio Junqueira de Azevedo, “pessoa é um
bem, e a dignidade seu valor.”16, percebemos queo princípio da dignidade deve ser
encarado como uma norma impositiva e um direito subjetivo de todo ser humano, não
apenas mera diretiva interpretativa, da qual se pode extrair outros princípios17. Assim, o
papel que desempenha no sistema jurídico brasileiro atual, preponderante e central,
funciona como uma garantia, verdadeiro direito subjetivo inerente a qualquer pessoa, e de
observância obrigatória em qualquer situação jurídica.
Dessa feita, é visando à promoção da dignidade da pessoa humana, acima de tudo
como mecanismo norteador, que nos lançamos nessa discussão acerca do procedimento da
morte. Portanto, é partindo da premissa de que os autores desse artigo não defendem a
morte por si só, mas sim, por saber que tal evento é uma incógnita inevitável e certa para
todos aqueles que vivem, que debruçamos o olhar acerca desse processo, tendo por base
que dor e sofrimento não são, necessariamente, partes integrantes desse fenômeno.
A dignidade e seu caráter polissêmico
O princípio da dignidade, embora seja muito explorado e bastante intuitivo no
tangente aos seus contornos, representa na delimitação de seu conteúdo uma tarefa
excessivamente árdua para juristas, sociólogos e filósofos; destarte, o conceito de dignidade
prova ser, de fato, polissêmico18, de forma que dá margens para várias interpretações, bem
como instrumento para fundamentar intenções antagônicas. Um bom exemplo de tal
alegação se faz no fato de tal conceito produzir argumentos para ambos os lados da
discussãoacerca da eutanásia, bem como do direito a uma morte digna.
16
AZEVEDO, AntônioJunqueira de.Caracterização juridical da dignidade da pessoahumana.p.15, 2002.
LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. A genética no limiar da Eugenia e a reconstrução do conceito de
dignidadehumana.2002, p.561.
18
PESSINI, Léo. Op. cit., p.141.
17
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De um lado existe o grupo contrário à aprovação da eutanásia, patrocinada por uma
visão cristã e paternalista sobre a vida, o qualbaseado num conceito objetivo, a vida é
considerada uma dádiva sagrada, concedida por uma criatura divina, queé a detentora
exclusiva do poder de tirar ou abreviar uma vida, retirando do paciente ou de seus
responsáveis legais a opção de tomar decisões a este respeito. A vida é uma bênção, de
forma que o seu encurtamento por meios diretostorna-sealgo condenável, emborareste
demonstrado que tal conjunturapoderá acarretar profundos sofrimentos ao paciente.
O princípio da sacralidade da vida é considerado absoluto, não cabendo a nenhuma
pessoa decidir acerca do procedimento ativo de morte19, ainda que o “direito à vida” se
confunda com um “dever à vida”
20
, fazendo com que a busca incessante pelo
prolongamento da vida de pacientes acometidos por doenças graves, contrária à vontade do
enfermo ou do seu responsável legal, venha acompanhada de sofrimento, dor e humilhação,
em uma possível afronta à dignidade humana, em seu espectro da liberdade e da
autonomia;é importante ressaltar, entretanto, que cabe um juízo de valor sobre si mesma no
que se refere ao quesito próprio da vida21, de modo que o âmbito de limitação permanece e
concentra-se no que tange o procedimento da morte.
Do outro lado, existe uma visão baseada na deontologia médica, que vê na liberdade
e na autonomia do ser humano ferramentas que compõe o instituto da dignidade. Aqui, a
autonomia e a liberdade de escolha são vistas como complemento à dignidade, quando o
paciente é submetido a situações extremas e irreversíveis.
Reconhecendo que o direito brasileiro não enxerga a vida como um direito
absoluto222324, se faz necessário aprofundar o debate, para que não se incorra no risco de
19
Faz-se mister lembrar da distinção entre eutanásia e ortotanásia previamente discutida, visto que a Igreja
Católica é a favor da segunda, evidenciada pela escolha do Papa João Paulo II ao declarar: ―Quando a morte
inevitável é iminente apesar dos meios usados, é permitido, em consciência, tomar a decisão de recusar
formas de tratamento que apenas asseguram um precário e doloroso prolongamento da vida.‖. (Urban CA,
Simon A, Bardoe W, Silva IM.2003. Cap. 55, p. 524.)
20
BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A MORTE COMO ELA É:
DIGNIDADE NO FINAL DA VIDA. P. 13.
21
A esse respeito, o Papa Pio XII declarou: ―O afastar a dor e a consciência por meio de drogas quando razões
médicas o aconselham é permitido pela religião e moral quer ao paciente quer ao médico, mesmo que o uso
das drogas abreviem a vida.‖.
22
Vide a Constituição Federal /88, em seu artigo 5º declara: ―XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo
em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”.
23
Vide o Código Penal Brasileiro: “Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto
necessário: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de
Página 77 de 270
compreender, equivocadamente, que essa linha de pensamento difunda a banalizaçãoda
vida, entregando aos indivíduos,de forma ilimitada e irracional, poderes plenos sobre o
direito de viver. Qualquer movimento jurídico que busque flexibilizar o direito à vida deve
ser analisado com muita cautela, sempre acompanhado de intensos debates e numerosos
olhares atentos. Contudo, em algumas situações o procedimento de intervenção médica
sobre a morte se confunde com o próprio direito à dignidade, como nos casos de doenças
terminais irreversíveis,a exemplo da distanásia – já conceituada previamente por esses
autores -, situações em que o prazer em viver é convertido em uma luta descomedida pela
sobrevivência a qualquer custo e sob as agruras de um pesado fardo.
Dignidade Humana Como Instrumento Da Autonomia / Autonomia Da Vontade
Como Emanação Da Dignidade Humana
Em uma análise atenta à Carta Magna, é evidente o espaço de proeminência e relevo
que é entregue à dignidade; sua eficácia e efeitos atingem a todo o ordenamento jurídico,
devendo penetrar de forma intensa,norteando a interpretação de todo o sistema jurídico,
pois foi inserido, não despropositadamente, já no primeiro artigo do texto constitucional,
demonstrando o real peso desse princípio. Vejamos:
Art. 1o - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamento: [...] III - a dignidade da pessoa
humana.(Grifos nossos).
É perceptível que o Estado Democrático de direito é justificado, dirigido e deve ter
como finalidade o respeito a tal princípio, onde o exercício do múnus público e a
movimentação da máquina estatal só se justificam quando em consonância com tal
fundamento, legitimando o Estado, e não o contrário. Coadunamos com o pensamento de
Ingo Sarlet, quando fala que:
estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando
incapaz, de seu representante legal.”.
24
Vide ADPF nº 54 julgada em 2012 pelo STF: “O Tribunal, por maioria e nos termos do voto doRelator,
julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a
interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II,
todos do Código Penal(...)”.
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O Constituinte de 1988, além de ter tomado uma decisão fundamental a
respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e
do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em
função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a
finalidade precípua e não meio da atividade estatal.25
Ainda na Constituição Federal, em seu preâmbulo, institutos como liberdade,
igualdade e pluralidade são definidos como valores a serem perseguidos pelo Estado
Democrático, visando sempre a harmonia social e a ordem interna. Dessa forma, tal qual
espécies que derivam de um gênero, a dignidade - como um super princípio - só pode ser
plenamente exercida quando aqueles também o são garantidos.
Direitos Assegurados pela Dignidade Humana/ Um Direito Multifacetário
Concretizar a dignidade humana não é tarefa fácil, vez que por se tratar de conceito
complexo e plural, o seu alcance implica em ir ao encontro da igualdade de direitos, da
independência e da autonomia do ser humano.
Assim, respeitar a dignidade da pessoa humana, traz quatro importantes
consequências: a) igualdade de direitos entre todos os homens, uma vez
integrarem a sociedade como pessoas e não como cidadãos; b) garantia da
independência e autonomia do ser humano, de forma a obstar toda coação
externa ao desenvolvimento de sua personalidade, bem como toda atuação
que implique na sua degradação e desrespeito à sua condição de pessoa, tal
como se verifica nas hipóteses de risco de vida;(...)26.(Grifos nossos).
Portanto, acreditam os autores desse texto que garantir a dignidade humana é
igualmente assegurar aos pacientes terminais o direito de optar por qual tratamento será
submetido, e além: deixar o mesmo, ou o seu representante legal, optar diante da iminência
da morte, por procedimentos de intervenção médica que venham a incorrer na essência da
vida, quando o é submetido a situações extremas e irreversíveis, de dor e sofrimento.
À esse respeito, Renata de Lima Rodrigues afirma:
25
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2001. p. 103.
NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana.
2000. p. 4.
26
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A dignidade humana reside na possibilidade de autodeterminação: dizer de seus
próprios desígnios e poder escolher seus objetivos é que faz da vida humana um
bem precioso a ser protegido.27
Defender o direito de escolha é diferente de apoiar a escolha. Defender o princípio
da dignidade é diferente de aceitar seu uso arbitrário e discricionário.
Interessante
nos
parece,
nesta
oportunidade,
referenciar
Habermas28,cujo
pensamento defende que no campo democrático todas as pessoas devem formar uma
concepção pessoal do que seja ―boa vida‖, segundo critérios próprios que não devem ser
sujeitados à prescrição da maioria.
É justamente por acreditar que numa sociedade democrática, a pluralidade é um
imperativo, que pressupõe uma faculdade a todas as pessoas: o direito de decidir como gerir
o seu próprio destino, diante da condição suprema do livre-arbítrio29. Outrossim, é
necessário ressaltar que nesse escrito o que se defende não é uma escolha com liberdade
absoluta, mas a que preste especial atenção à regras basilares, que pode em casos extremos,
acreditamos ser este o posicionamento mais democrático, ter o poder de escolha entregue
ao próprio cidadão- quando este for plenamente capaz30 do ponto de vista jurídico e
psicológico -, evitando sempre uma autonomia ilimitada e incondicional.
Permitir a intervenção no procedimento de morte sejapara atingi-la de forma natural
- como na retirada de aparelhos e instrumentos que prolonguem a vida- ou praticá-la de
forma ativa – com todas as ressalvas já apresentadas31, constitui a defesado direito de
escolha, não implicando em uma relativizaçãodo direito à vida; É fundamental ressaltar que
27
RODRIGUES, Renata de Lima. Incapacidade, curatela e autonomia privada: 2005. p. 151.
HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. 2004.
29
Para São Tomás de Aquino ―Livre-arbítrio é a causa de seu próprio movimento, porque pelo seu livrearbítrio o homem move a si mesmo para agir. Mas por necessidade não pertence à liberdade que o que é
livre deveria ser a primeira causa de si mesmo, como também para uma coisa ser a causa de outra precisa
ela ser a primeira causa. Deus, então, é a primeira causa, Quem move causas tanto naturais quanto
voluntárias. E assim como por mover causas naturais Ele não evita que seus atos sejam naturais, por mover
causas voluntárias ele não evita que suas ações sejam voluntárias: mas ao invés disto Ele é a própria causa
disto neles; pois Ele opera em cada coisa de acordo com sua própria natureza.” (Suma Teológica I.83.1)
30
Pertinente lembrar-se do recente debate no que tange à ―capacidade‖ ante a interpretação do Estatuto do
Idoso; A este respeito, Fábio Ulhoa afirma: ‖A velhice por si só, não é causa de incapacidade. Por mais
avançada na idade, a pessoa tem plena aptidão para cuidar diretamente de seus negócios, bens e interesses. Se,
pressentindo a proximidade do fim, quiser gastar considerável volume de suas reservas patrimoniais em
atividades de pura diversão e lazer, poderá fazê-lo sem que os descendentes ou outros eventuais sucessores
tenham direito de impedi-la. Não se pode considerar pródigo àquele que, não tendo responsabilidade pelo
sustento e educação de mais ninguém, gasta ludicamente as economias construídas durante a vida‖ (ULHOA,
Fábio. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1. p. 178.).
31
Onde há ausência de perspectiva de melhoras, sofrimento irremediável e incessante, iminência da morte,
entre outros fatores que findam por não incluir, por exemplo, a espécie do suicídio.
28
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o respirar e desenvolver- ainda que de forma relativa- as atividade cerebrais por um
indivíduo, deve ser compreendido como sobrevivência, não se confundindo de maneira
alguma com o conceito da ―vida‖.Parece-nos muito oportuna a declaração de Eduardo
Rabenhorst, quando fala que:
Se existe algum fundamento único para a democracia, ele não pode ser outra
coisa senão o próprio reconhecimento da dignidade humana. Mas tal dignidade é,
ela própria, destituída de qualquer alicerce religioso ou metafísico. Trata-se
apenas de um princípio prudencial, sem qualquer conteúdo pré-fixado, ou seja,
uma cláusula aberta que assegura a todos os indivíduos o direito à mesma
consideração e respeito, mas que depende, para a sua concretização, dos próprios
julgamentos que esses indivíduos fazem acerca da admissibilidade ou
inadmissibilidade das diversas formas de manifestação da autonomia humana. 32
Assim, diante de uma esperança de Estado Democrático de Direito, é inegável a
necessidade de uma vida associada à dignidade, exercida e reclamada pelo próprio cidadão
autônomo e capaz, de modo que Sá33 defende que a vida não deve ser encarada como sendo
mais extraordinária, quando diante da liberdade e dignidade.
O problema da autonomia ilimitada ou incondicional
É imperial esclarecer, precipuamente, que não estamosnos debruçando sobre
hipóteses de estados temporários ou reversíveis, onde o indivíduo escolhe morrer por
simples motivações pessoais e outros se excluemdeimpedir ou participam ativamente
prestando-lhe auxílio, aqui tratamos de pacientes que, encontrando-se em situações de
efetiva degradação, dor e sofrimento incalculáveiscogitam a possibilidade de reclamar o
poder de renunciar a intervenções médicas de prolongamento da vida, ou em um segundo
momento optar pela abreviação direta da vida, por ato próprio ou alheio, por serem vítimas
de doenças terminais extremamente dolorosas ou por enfermidades degenerativas que
findamnagradativa perda de sua própria dignidade.
Sabemos que as motivações para reclamar a autonomia como efetivação de
mecanismo de dignidade quando na perspectiva de intervenção ativa de procedimentos que
culminem na morte são extremamente delicadas e específicas, de modo que se torna
impossível uma defesa de liberdade ilimitada e incondicional de tal poder de escolha; é
32
33
RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrática.2001. p. 48
SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer. 2005.
Página 81 de 270
essencial que a ordem pública, em respeito aos bons costumes e intencionando preservar os
indivíduos e a sociedade, negue a validade jurídica de decisões imperativas que não
respeitem devidamente às normas legais de nosso ordenamento.
Ressalta-se com veemência que a exaltação e a defesa do elemento da autonomia
não constituem uma aceitação da finalidade definida pelaescolha, há, portanto uma
pluralidade de opções, incluindo o prolongamento a qualquer custo da vida, onde poderá se
optar dentre várias possibilidades, que incluem a prorrogação máxima da vida, sua não
prorrogação artificial e, em situações extremas, sua abreviação.
A esse respeito, segue o pensamento de Luís Roberto Barroso:
Todavia, a prevalência da dignidade como autonomia não pode ser ilimitada ou
incondicional. Em primeiro lugar, porque a o próprio pluralismo pressupõe,
naturalmente, a convivência harmoniosa de projetos de vida divergentes, de
direitos fundamentais que podem entrar em rota de colisão. Além disso, escolhas
individuais
podem
produzir
impactos
não
apenas
sobre
as
relações
intersubjetivas, mas também sobre o corpo social e, em certos casos, sobre a
humanidade como um todo. Daí a necessidade de imposição de valores externos
aos sujeitos.34
É mister ressaltar ainda a evidente impossibilidade de cura ou reversão do quadro
clínico, importando o tratamento em extensão da agonia e do sofrimento, sem qualquer
perspectiva para o paciente, restringindo ainda mais a livre e desmensurada escolha por
parte daquele que se submeteria – ou se recusaria- a interagir com o panorama médico.
O objetivo do nosso escrito não é defender a entrada em nosso ordenamento de toda
e qualquer forma de abreviação da vida – ou de outra maneira, da aproximação da morte -,
mas tão somente incentivar um olhar, a princípio na realidade da ortotanásia, para que em
um segundo momento, debrucemo-nos sobre atuações mais incisivas – como a eutanásia e
o suicídio assistido – que inevitavelmente geram um maior impacto sobre a sociedade. Em
consonância com esta ideia, Luís Roberto Barroso afirma:
A prevalência da noção de dignidade como autonomia admite, como escolhas
possíveis, em tese, por parte do paciente, a ortotanásia, a eutanásia e o suicídio
assistido. Todavia, onde a ortotanásia é disciplinada adequadamente, do ponto de
34
BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A MORTE COMO ELA É:
DIGNIDADE NO FINAL DA VIDA. p. 21 e 22
Página 82 de 270
vista médico e jurídico, a eutanásia e o suicídio assistido perdem muito de sua
expressão, ficando confinados a situações excepcionais e raras. 35
E ainda:
Nessas situações extremas, aparecem outros direitos e interesses que
competem com o direito à vida, impedindo que ele se transforme em um
insuportável dever à vida. Se, em uma infinidade de situações, a dignidade é o
fundamento da valorização da vida, na morte com intervenção as motivações se
invertem.36
Sabemos que exaustivo e enérgico seria o debate aqui sugerido, entretanto, por
compreender que não constitui – em todos os casos- o no ordenamento jurídico brasileiro
tipificado como prática de homicídio, defendemos com afinco a discussão da temática.
A necessidade da existência de um consentimento livre e esclarecido no cenário
envolvendo a morte
Sabemos que a morte em si mesma é uma fatalidade inevitável, de modo que as
escolhas feitas pelo indivíduo, -sejam para aproximá-la, sejam para afastá-la- não alterarão
o resultado fático e finalístico da vida; considerando que concordamos que,
independentemente da pessoa, o direito a uma morte digna deve ser universal e imperioso, é
cabível afirmar que a dignidade humana essencialmente justifica a proposição de que o
indivíduo é um fim nele próprio, sendo pertinente que na maioria dos casos, esteja em suas
mãos à escolha relacionada aos procedimentos terapêuticos que irá se sujeitar nos casos
neste escrito abordados; Assim, tudo se resume em um único e complexo elemento: a
vontade.
O consentimento pode ser compreendido como sendo a expressão da manifestação
de vontade do indivíduo, de modo que Casabona37 associa sua definição à de autonomia;
André Rüger afirma:
A finalidade maior do consentimento informado é a concretização (ou
não) de um acordo sobre o escopo, as finalidades e os limites da atuação médica.
Além disso, consiste no único meio possível de definir, num caso concreto
35
BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A MORTE COMO ELA É:
DIGNIDADE NO FINAL DA VIDA. P. 39 e 40
36
BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho.Op. Cit., p.13.
37
CASABONA, Carlos María Romeo. O consentimento informado na relação entre médico e paciente:
aspectos jurídicos. 2005. P. 128-172.
Página 83 de 270
unicamente aplicável a esse, aquilo que possa ser considerado como ‗bom‘ para o
interessado38
Assim, é imprescindível nos casos aqui abordados – onde o paciente está consciente
e capaz de exprimir suas intenções- que sua vontade em consonância com o que lhe é
proposto pelo cenáriomédico seja exprimida, e ainda coadunamos com o pensamento
exposto por Gilson Ely Chaves de Matos, qual seja:
[...] o ato de consentir tem que ser qualificado, ou seja, livre de qualquer
ingerência externa capaz de viciar a decisão do paciente. [...] os defensores desse
consentimento qualificado entendem que sua validade não se atém à liberdade de
escolha frente à informação e exigem que essa informação seja um
esclarecimento pleno sobre todas as implicações inerentes ao tratamento 39.
A autonomia e poder de autodeterminação do homem representam a efetivação da
dignidade da pessoa humana. O ser humano é o único capaz de pensar e se questionar
acerca dos fatos e conjunturas que o circundam, de modo que, a partir da reflexão e tomada
de atitudes, o homem está efetivando sua própria liberdade e exercendo sua própria
dignidade.
Diante do que foi exposto verifica-se a pertinência e o cabimento de defender em
tais conjunturas a liberdade –mesmo que não absoluta- do paciente de realizar e submeterse a suas próprias decisões, sendo ele mesmo –direta ou indiretamente- o responsável pelo
resultado obtido.
Conclusão
A dignidade da pessoa humana é, por si só, soberana, de modo que ela constitui
argumentos para opiniões diametralmente opostas e convida a essência de todos os direitos
fundamentais, desde o direito à vida até o que podemos chamar de ―direito à morte‖ 40; seu
conceito alicia a uma aplicação valorativa para garantir as bases da existência dos seres
humanos, melhor dizendo, em sua ideia à defesa dos direitos pessoais no âmbito de suas
autonomias e liberdades.
Ademais, percebemos que ao defender a supramencionada autonomia, não estamos
em consonância com o resultado escolhido pelo indivíduo, visto que o embate encontra-se
38
RÜGER, André. Conflitos familiares em genética humana. 2007. p.160.
MATOS, Gilson Ely Chaves de. Aspectos jurídicos e bioéticos do consentimento informado na prática
médica. 2007, p.201.
40
Aqui no sentido de morte digna.
39
Página 84 de 270
entre polos extremamente delicados e antagônicos: àquele que primapela preservação da
vida a qualquer custo, independente do fator ausente de perspectiva de melhoras, versus,
oimpedimentotaxativo de determinar aos indivíduos tratamentos que impõem fortes
sofrimentos e desconfortos; a decisão, entretanto, deve ser escolhidacom base empráticas
seguras, atentando à liberdade, consciência e elucidação das conjunturas enfrentadas,
sempre em consonância com as limitações estabelecidas pela Constituição Federal e demais
normas do ordenamento jurídico brasileiro.
No Brasil não há quaisquer distinções significativas entre as figuras aqui discutidas
– onde há a obstinação terapêutica, de um lado, e as condutas ativas e intencionais de
abreviação da vida, de outro -de modo que em um cenário jurídico onde a ortotanásia, em
princípio, distinga-se da eutanásia e do suicídio assistido, por exemplo, trará um
esclarecimento
e
uma
mudança
gradativa
envolvendo
conceituação
moral
de
menorpotencial ofensivo à sociedade como um todo.
Portanto, o presente escrito buscou uma reflexão no que tange à morte em
submissão ao princípio da dignidade da pessoa humana, de modo a concluir que o
indivíduo, através de seu consentimento, deve poder exercer sua autonomia e liberdade,
respeitando os limites cabíveis, no contexto dos procedimentos de morte, com intervenção
passiva em um primeiro momento – ortotanásia – prevalecendo os fundamentos
constitucionais que equilibram as escolhas individuais às metas da coletividade, através de
um reconhecimento filosófico específico, qual seja: aconsideração do indivíduo como um
ser moral, capaz de escolher e consequentementeapropriar-se das responsabilidades
provenientes de tais escolhas.
Reconhecemos que o ordenamento jurídico ao respeitar o direito de escolha do
indivíduo, está mediatamente respeitando valores democráticos, e, igualmente, a dignidade
da pessoa humana.
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no
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06/02/16.
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REPERCUSSÕES DO DANO SOCIAL NA JURISPRUDENCIA
BRASILEIRA1
Marcos Virginio Souto2
Israel Lima Braga Rubis3
Wendel Alves Sales Macêdo4
Agostinho Almeida de Sousa5
Resumo: o presente trabalho objetiva o exame do dano social, a partir da jurisprudência
firmada pelo judiciário brasileiro e do diálogo Cível-Constitucional de normas e valores
que norteiam o tema. Para a consecução deste objetivo, foi empregado como método de
abordagem o hipotético-dedutivo e como métodos de procedimento o exegético-jurídico e o
hermenêutico, sendo a pesquisa subsidiada pelo exame de documentação indireta,
nomeadamente por meio da pesquisa bibliográfica em livros, artigos científicos e
jurisprudência. Esta espécie de dano tem fundamentado uma série de decisões judiciais,
responsabilizando civilmente, entes ou pessoas que praticam condutas socialmente
reprováveis. A análise da responsabilidade civil por danos sociais ganha força a partir do
estudo dos direitos fundamentais, especialmente os de terceira dimensão, que tratam
especialmente dos direitos difusos e coletivos, os quais se fundamentam na solidariedade,
objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, que impõe aos indivíduos um
dever moral de assistência recíproca no desempenho de suas atividades, impedindo a
ocorrência de uma lesão ao patrimônio moral ou material da coletividade, ou ressarcindo-a
caso o dano se concretize. Nesse último caso, o poder judiciário, não obstante tratar-se o
dano social de uma espécie relativamente nova, já acena positivamente para a existência de
responsabilidade civil decorrente dos danos socialmente reprováveis por violação à
tranquilidade social.
1
Trabalho submetido ao GT 1: Humanização do Direito Civil Constitucional: perspectivas e desafios
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Pós-graduando (latu sensu)
em Direito Administrativo pelas Faculdades Integradas de Patos – FIP. Conciliador no Centro de Conciliação
e Mediação do TJPB/NPJ-UFCG, Campus de Sousa-PB. Email: [email protected]
3
Graduado em Direito na UFCG, Pos-graduando em Direito Constitucional e pesquisador. Email:
[email protected]
4
Advogado e Pesquisador. Integrante do IDCC da UFPB. Integrante do AFROEDUCAÇÃO da UFPB.
Monitor da Pós-graduação Damásio de Jesus. Formado em Direito pela UFCG. Especialista em Direito Civil,
em Direito Processual Civil, Direito Constitucional, Direito Administrativo e Tributário pela FAISA.
Especialização em andamento em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Damásio de
Jesus. Email: [email protected]
5
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Conciliador no Centro de
Conciliação e Mediação do TJPB/NPJ-UFCG, Campus de Sousa-PB. Email: [email protected]
2
Página 89 de 270
Palavras-Chave: Danos Sociais; diálogo Cível-Constitucional; Direitos Fundamentais;
Jurisprudência.
Abstract: the present study aims at examining the social damage from the jurisprudence set
by the Brazilian judiciary and the Civil and Constitutional dialog norms and values that
guide the subject. To achieve this goal, was employed as the hypothetical-deductive method
of approach and the procedure of methods exegetical and legal and hermeneutic, and the
research subsidized by examining indirect documentation, including through literature in
books, scientific articles and jurisprudence. This kind of damage has founded a number of
judgments, responsible civilly, entities or people who do socially reprehensible conduct.
The analysis of liability for social harm gains strength from the study of fundamental rights,
especially the third dimension, dealing especially of diffuse and collective rights, which are
based on solidarity, a fundamental objective of the Federative Republic of Brazil, which
imposes individuals a moral duty to assist each other in carrying out their activities,
preventing the occurrence of an injury to the moral worth or collective material, or
compensating it if the damage materializes. In the latter case, the judiciary, despite treating
the social damage a relatively new species, beckons positively to the existence of liability
for socially reprehensible damages for violation of social tranquility.
Keywords: Social damage; Civil-Constitutional dialogue; Fundamental rights;
Jurisprudence.
Introdução
O dano social emerge como uma nova espécie de dano. A relevância do tema gira
em torno da possibilidade de responsabilização civil de quem o comete. O ressarcimento ou
a reparação pelos prejuízos causados a bens pertencentes à coletividade tem sido objeto de
discussão no judiciário brasileiro, especialmente pelas inferências das normas e valores
constitucionais no Direito Civil.
Página 90 de 270
A citada espécie de dano visa inibir, através de sanção civil, a ação de indivíduos ou
entes, que, dolosa ou culposamente, pratiquem atos que causem instabilidade social,
comprometendo a segurança coletiva ou a qualidade de vida da população. Mas também, de
forma não menos importante, o reconhecimento do dano social deixa claro a existência de
uma espécie de prevenção geral civil, conferida a partir da proibição da proteção deficiente
do Estado, tudo para garantir o exercício e o respeito aos Direitos Fundamentais.
O objetivo principal é demonstrar o tratamento conferido pela jurisprudência
brasileira ao dano social, entretanto, subsidiariamente, se pretende expor, ainda que
sinteticamente, a sistemática da responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro,
bem como estabelecer a correlação entre direitos fundamentais e danos sociais.
Para a consecução dos objetivos deste trabalho empregou-se como método de
abordagem o hipotético-dedutivo, que permite inferir conclusões a partir hipóteses
previamente formuladas. Como métodos de procedimento foram utilizados o exegéticojurídico, através o qual se analisará a legislação e a jurisprudência pátria, sobretudo para
determinar a legitimidade da responsabilidade civil por danos sociais no ordenamento
jurídico brasileiro, e, ainda, o hermenêutico, em que o interprete empresta suas impressões,
a fim de extrair do complexo de normas constitucionais ou infraconstitucionais aquela
interpretação que se mostre mais coerente. A investigação foi subsidiada pelo exame de
documentação indireta, nomeadamente por meio da pesquisa bibliográfica em livros,
artigos científicos e jurisprudência.
A problemática posta cinge-se ao exame do dano social, a partir dos julgados
firmados pelo judiciário brasileiro, especialmente dos Tribunais Superiores, os quais são os
responsáveis por harmonizar as diversas teses que surgem em torno dos mais variados
temas levados a juízo.
Este trabalho justifica-se pela sua contemporaneidade e pela importância que possui,
não só, para a comunidade acadêmica e profissional, especialmente da área jurídica, mas
também para os membros da coletividade, que, não raras vezes, tem seu patrimônio
coletivo lesionado, porém lhes falta o conhecimento necessário para buscar a
responsabilidade civil dos autores do dano. A compreensão do dano social é de grande
estima, nos dias atuais, uma vez que a responsabilidade civil pela sua ocorrência visa o
reequilíbrio do patrimônio moral e material da coletividade, tendo conta o alargamento
Página 91 de 270
protetivo trazido pela Constituição Federal de 1988, sobretudo em relação aos direitos
difusos e coletivos.
Assim, impõe-se a premissa de que este estudo, apesar de não exauriente,
certamente contribuirá para a compreensão do novo momento, pelo qual passa o tema da
responsabilidade civil, que é aquele em que danos socialmente reprováveis podem ensejar
indenização reparadora, desestimulando a atuação predatória e o enriquecimento ilícito de
pessoas e entes, amparados por valores constitucionais que servem a toda sociedade.
O estudo estabelecerá, inicialmente, uma correlação entre os direitos fundamentais e
o dano social. Por conseguinte, fará uma síntese da responsabilidade civil no ordenamento
jurídico brasileiro. Enfim, tratará especificamente do dano social à luz da jurisprudência
brasileira, observando, obviamente, posições doutrinárias sobre tema, seguindo-se as
considerações finais.
O dano social sob o enfoque dos direitos fundamentais
A responsabilidade civil passa pelo cerne da prestação eficiente do Estado na
proteção dos Direitos Fundamentais. Cumpre ao Estado garantir aos cidadãos, individual ou
coletivamente, meios de recomposição do seu patrimônio, em decorrência dos danos
provocados sofridos. Ao se definir Direitos Fundamentais, tem-se como sendo aqueles
direitos inerentes à pessoa humana positivados numa determinada ordem jurídica. No Brasil
esses direitos estão prioritariamente previstos na Constituição Federal ou dela decorrem.
Para o constitucionalista Uadi Lammêgo Bulos, os Direitos Fundamentais fundamentam-se
da dignidade da pessoa humana, sendo a Constituição a sua fonte de validade6.
A evolução histórico-social da humanidade trouxe consigo uma série de valores
cada vez mais sensíveis que mereceram e merecem a abstenção ou intervenção do Estado
para a sua concretização. Para tanto, os Direitos Fundamentais foram didaticamente
estratificados em gerações, para melhor possibilitar o seu estudo e possibilitar a
compreensão do momento histórico em que cada uma delas resplandeceu com mais força
na sociedade.
6
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 525.
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Três gerações são majoritariamente reconhecidas pela doutrina: na primeira
dimensão estão dos direitos civis e políticos; na segunda, os direitos econômicos, sociais e
culturais; e na terceira, os direitos difusos e coletivos. No entanto, existem aqueles que
reconhecem uma quarta, quinta e sexta geração, a exemplo, do constitucionalista Uadi
Lammêgo Bulos7.
Os Direitos Fundamentais de primeira geração, que tem como princípio norteador a
liberdade, buscam limitar a atuação do Estado sobre o indivíduo, visando impedir que este
seja indevidamente lesado pela intervenção abusiva daquele. Consagram-se nesta dimensão
as liberdades negativas, as quais indicam que os direitos fundamentais estarão garantidos
quando o Estado não agir abusivamente sobre a vida privada do indivíduo.
Já os Direitos Fundamentais de segunda geração, que se fundamentam na igualdade,
implicam um agir positivo. A garantia desses direitos constitui para o Estado uma
imposição de fornecer uma prestação positiva aos indivíduos.
Na terceira geração situam-se os Direitos Fundamentais coletivos ou difusos, os
quais ultrapassam esfera individual das pessoas e as alcançam de formal global. Pode-se
citar como exemplos desses direitos o direito à paz, ao desenvolvimento, à qualidade do
meio ambiente, à conservação do patrimônio histórico e cultural8.
No julgamento do MS 22.164-0 SP9, o Supremo Tribunal Federal sintetizou o
entendimento da Corte sobre o tema:
Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que
compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o
princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos
econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades
positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os
direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade
coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consegram
o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no
processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos
humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis,
pela nota de uma essencial inexauribilidade.
7
BULOS, Uadi Lammêgo. op.cit. p. 529-530.
MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 138.
9
MS 22164, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 30/10/1995, DJ 17-11-1995.
8
Página 93 de 270
A lição do Professor Gilmar Ferreira Mendes10 é no sentido essas gerações não
sucedem umas as outras, mas, na verdade, se complementam, na medida em que novas
demandas reclamam concepções jurídicas e sociais compatíveis como momento vivido.
Para ele:
Essa distinção entre gerações dos direitos fundamentais é estabelecida
apenas com o propósito de situar os diferentes momentos em que esses
grupos de direitos surgem como reivindicações acolhidas pela ordem
jurídica. Deve-se ter presente, entretanto, que falar em sucessão de
gerações não significa dizer que os direitos previstos num momento
tenham sido suplantados por aqueles surgidos em instante seguinte. Os
direitos de cada geração persistem válidos juntamente com os direitos da
nova geração, ainda que o significado de cada um sofra o influxo das
concepções jurídicas e sócias prevalentes nos novos momentos. Assim,
um antigo direito pode ter o seu sentido adaptado às novidades
constitucionais. Entende-se, pois, que tantos direitos a liberdade não
guardem, hoje, o mesmo conteúdo que apresentavam antes de surgirem os
direitos de segunda geração, com as suas reivindicações de justiça social,
e antes que fossem acolhidos os direitos de terceira geração, como o da
proteção ao meio ambiente. Basta que se pense em como evoluiu a
compreensão do direito à propriedade, desde a Revolução Francesa até a
incorporação às preocupações constitucionais de temas sociais e de
proteção do meio ambiente. Os novos direitos não podem ser desprezados
quando se trata de definir aqueles direitos tradicionais.
Vê-se que os Direitos Fundamentais de terceira geração fundamentam-se sobre o
princípio da solidariedade. Este princípio foi alçado pelo Constituinte brasileiro de 1988 ao
patamar de objetivo fundamental. Segundo o art. 3°, I, da Constituição Federal de 1988,
construir uma sociedade solidária constitui uns dos objetivos da República Federal do
Brasil.
É o dever de mutualidade que deve existir entre os membros da sociedade, ora
atuando positivamente, ora negativamente. O agir dos indivíduos deve antever
possibilidade de danos aos demais membros da sociedade e, assim, pautar sua conduta de
modo a não provocá-los. Deste modo, há um imperativo ético e moral que impõe ao
indivíduo não agir para causar danos à sociedade. De outro modo, o agir do indivíduo
poderá ser positivo no sentido de melhorar a situação daqueles que sofreram um dano.
Sendo assim, as atividades desempenhadas por uns devem corresponder às expectativas dos
10
MENDES, Gilmar. op. cit., loc. cit.
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outros, seja individual ou coletivamente, de modo que não haja perturbação na harmonia da
convivência humana em sociedade.
Segundo o consumerista Rizzatto Nunes, a solidariedade se impõe a toda sociedade,
como um dever ético, a partir do qual os seus membros devem assistência uns aos outros, já
que a somatória individual resulta num todo, coletivamente considerado.
E, como é de forma organizada do grupamento social que se trata e esta é
composta de pessoas, cuja dignidade se garante e que têm para dirigi-las,
orientá-las, norteá-las em suas condutas normas de ordem jurídica e
moral, é de crescer àqueles elementos sistêmicos – tidos como de fato –
outro, ligado ao sistema social concretamente em funcionamento, elevado
a uma categoria moral. Trata-se de um dever ético que se impõe a todos os
membros da sociedade, de assistência entre seus membros, na medida em
que compõem um único todo social.11
O princípio da solidariedade cria um manto valorativo e protetivo que se sobrepõe
aos interesses individuais. A segurança coletiva ou a qualidade de vida da população são
valores imprescindíveis para a convivência harmônica em sociedade. É inconcebível que
indivíduos que os ignorem fiquem civilmente ilesos, especialmente quando os danos
causados à sociedade decorrem de atividades lucrativas. Da necessidade de proteção e
garantia dos Direitos Fundamentais, especialmente os difusos e coletivos, decorre a
legitimação para a imposição de sanção civil aos que violarem tais valores.
Epítome Da Responsabilidade Civil No Ordenamento Jurídico Brasileiro
A origem da palavra responsabilidade remete à palavra latina spondeo, que revelava
a vinculação solene do devedor nos contratos verbais do direito romano.
À luz da doutrina atual, prevalece a noção de responsabilidade que privilegia a
realidade social. Assim, a responsabilidade estará intrincada em toda atividade
desenvolvida em sociedade, individual ou coletivamente, que acarrete um prejuízo. O seu
objetivo principal é retorno ao statusquoante, ou seja, pretende-se obter do autor do dano o
restabelecimento da harmonia e a recomposição do equilíbrio moral e material.
11
NUNES, Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.p.
90.
Página 95 de 270
Em tempos longínquos não havia clara distinção entre responsabilidade civil e
criminal. A preocupação imediata desaguava na imposição de uma sanção estatal em
virtude da transgressão da norma. Com o passar do tempo houve a cisão entre
responsabilidade penal e civil12. A partir de então a sanção deixou de incidir sobre o corpo
do indivíduo e passou a representar uma constrição sobre o seu patrimônio.
A constitucionalização do Direito Civil imprimiu ao instituto da responsabilidade
civil funções que vão além da simples reparação do dano. Busca-se a preservação de
valores, a exemplo da tranqüilidade social, que transcendem a esfera individual e
patrimonial da recomposição do patrimônio e moral lesada.
O art. 186 do Código Civil de 2002 prevê que todo aquele que causar dano a outrem
ficará obrigado a repará-lo, in verbis: ―aquele que, por ação ou omissão voluntária,
negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito‖. A partir desse dispositivo é que são extraídos os
pressupostos constitutivos da responsabilidade civil.
Segundo a lição de Carlos Roberto Gonçalves, são em número de quatro os
elementos essenciais da responsabilidade civil: ação ou omissão, culpa ou dolo do agente,
relação de causalidade e o dano experimentado pela vítima13.
A conduta humana pode se dar por ação ou omissão. No primeiro caso, o indivíduo
age positivamente, provocando um dano no patrimônio alheio. Já a omissão configura-se
quando o indivíduo deixa de agir e, com isso, causa a lesão. Na prática, a sua comprovação
não é tão fácil, uma vez que precisa ficar provado o dever de agir, bem como que o agir, no
caso concreto, teria evitado o dano.
O dolo consiste na vontade deliberada de praticar um ato danoso ao patrimônio
material e/ou moral de outrem. Já a culpa é a inobservância das cautelas necessária durante
a execução de determinado ato ou atividade. Vale ressaltar que no Direito Civil a
culpabilidade do agente assume uma conotação latu sensu, abrangendo a culpa strictu sensu
12
O marco da divisão entre responsabilidade civil e penal ocorreu ainda no Direito Romano com o advento da
chamada Lex PoeteliaPapiria em 326 a.C.
13
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: responsabilidade. 7. ed. São Paulo: Saraiva,
2012. p. 52.
Página 96 de 270
e o dolo, porém os reflexos, no que diz respeito à indenização, são iguais, com exceção da
culpa, que poderá ser valorada14.
O nexo de causalidade diz respeito à relação de causa e efeito existente entre a
conduta do agente e o resultado danoso. Para que o agente seja responsabilizado civilmente
é necessário que ele tenha concorrido para a ocorrência do dano. Caso contrário
desaparecerá a obrigação de indenizar.
Finalmente, passamos a análise de um dos elementos da responsabilidade civil que
possui extrema importância dentro do tema proposto, que é o dano, sem o qual a ninguém
poderá ser atribuída a obrigação de indenizar.
O dano poderá consistir numa lesão ao patrimônio ou a um direito da personalidade
do indivíduo. No primeiro caso, temos o denominado dano patrimonial, que consiste numa
lesão concreta, implicando na perda ou deterioração de bens materiais, suscetíveis de
avaliação pecuniária. De outro modo, existem lesões que não representam uma perda
patrimonial, mas uma afronta aos direitos da personalidade de uma pessoa natural ou
jurídica: são os danos morais, espécie de dano imaterial, que encontra respaldo direito na
Constituição Federal de 198815.
A partir da CF/88 houve uma tendência de ampliação das espécies de danos
reparáveis. A Súmula n° 37 do Superior Tribunal de Justiça consolidou, segundo o qual é
possível que o mesmo fato enseje indenização por dano moral e material16.
O Enunciado n° 456 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal
avançou bastante ao reconhecer, entre outras espécies, a existência do dano social: ―A
expressão ‗dano‘ no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais,
mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem
reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas‖.
14
Segundo preceitua o art. 944 do Código Civil de 2002 a indenização será aferida de acordo com extensão
do dano, mas ―se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir,
equitativamente, a indenização‖. Ainda de acordo com o art. 945 no novel diploma legal, ―se a vítima tiver
concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade
de sua culpa em confronto com a do autor do dano‖.
15
O inciso V do art. 5° da Constituição Federal de 1998 prevê que ―é assegurado o direito de resposta,
proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem‖. O inciso X do mesmo
artigo ainda prevê que ―são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e imagem das pessoas,
assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação‖.
16
Súmula n° 37 do STJ: ―São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo
fato‖.
Página 97 de 270
Destarte, o reconhecimento da responsabilidade civil pelo dano social privilegia um
novo momento da realidade social, ultrapassando a barreira do patrimonialismo individual.
Constitui-se em instrumento limitador das condutas danosas ao patrimônio da coletividade,
visando se aproximar o máximo possível dos valores constitucionais atuais, especialmente
dos direitos fundamentais.
Repercussões Jurisprudenciais Do Dano Social
As normas estampadas no Código Civil de 2002 perseguem valores que buscam
privilegiar a dignidade da pessoa humana nas suas relações civis. A sociabilidade, a
eticidade e a operabilidade são paradigmas que norteiam a aplicação desse diploma civil.
A proteção das relações civis calcadas exclusivamente na satisfação de interesses
individuais não traduz mais a realidade social vivida. Agora se deve olhar para a
coletividade, tendo sempre em conta os seus interesses, ainda que se trate de relações
eminentemente privadas.
Invocamos a definição de sociabilidade trazida pelos civilistas, Cristiano Chaves de
Farias e Nelson Rosenvald, para os quais:
A sociabilidade, ou função (fim) social, consiste exatamente na
manutenção de uma relação de cooperação entre os partícipes de cada
relação jurídica, bem como entre eles e a sociedade, com o propósito de
que seja possível, ao seu término, a consecução do bem (fim) comum da
relação jurídica17.
O bem comum de uma relação jurídica pressupõe, não só o respeito aos interesses
individuais, mas também um agir que considere os valores e interesses da sociedade. As
atenções se voltam em relação a este último aspecto, uma vez que é incontroverso o
reconhecimento da responsabilidade civil pelo dano individual.
Paralelamente ao dano individual – violação do patrimônio ou de direito da
personalidade –, surge o dano social, que consiste numa violação de bens ou direitos, sobre
os quais incide diretamente o interesse da coletividade. São lesões que causam instabilidade
social, demandando, portanto, a intervenção do Direito Cível-Constitucional para saná-la.
17
FARIAS, C.C.; ROSENVALD, N. Curso de Direito Civil. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2014. p. 50.
Página 98 de 270
O conceito de dano social pode ser extraído da lição do civilista Antônio Junqueira
de Azevedo18:
Portanto, a nossa tese é bem clara: a responsabilidade civil deve impor
indenização por danos individuais e por danos sociais. Os danos
individuais são os patrimoniais, avaliáveis em dinheiro, – danos
emergentes e lucros cessantes –, e os morais, - caracterizados por exclusão
e arbitrados como compensação para a dor, para lesões de direito de
personalidadee para danos patrimoniais de quantificação precisa
impossível. Os danos sociais, por sua vez, são lesões à sociedade, no seu
nível de vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral –
principalmente a respeito da segurança – quanto por diminuição na
qualidade de vida. Os danos sociais são causa, pois, de indenização
punitiva por dolo ou culpa grave, especialmente, repetimos, se atos que
reduzem as condições coletivas de segurança, e de indenização
dissuasória, se atos em geral da pessoa jurídica, que trazem uma
diminuição do índice de qualidade de vida da população.
Enquadram-se nessa espécie de dano aquelas condutas socialmente desabonadas que
representam uma lesão ou ameaça de lesão à segurança das relações naturalmente
desenvolvidas em sociedade. São relações sistêmicas e harmônicas que interligam os
indivíduos em sociedade, fazendo com que a convivência coletiva das pessoas se torne
possível.
O paradigma da sociabilidade, o princípio da solidariedade, os Direitos
Fundamentais e a dignidade da pessoa humana19 são fundamentos que chancelam a
possibilidade da reparação civil pelo dano decorrente de condutas socialmente reprováveis
que reduzem o nível da qualidade de vida da sociedade.
Destarte, o dano social caracteriza-se como nova espécie de dano indenizável. Esse
é o entendimento que vem sendo adotado nos Tribunais brasileiros, especialmente nas
Cortes Superiores. Em consonância com a doutrina, a 2ª Seção do Superior Tribunal de
Justiça, em sede de recurso repetitivo, firmou entendimento no nesse sentido:
18
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano
social. In: FILOMENO, José Geraldo Brito; WAGNER JR., Luiz Guilherme bda Costa; GONÇALVES,
Renato Afonso (coord.). O Código Civil e sua interdisciplinariedade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.
376.
19
A dignidade da pessoa humana foi erigida a fundamento da República Federativa do Brasil no inciso III do
art. 1° da CF/88.
Página 99 de 270
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. IMPOSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO,
EX OFFICIO, DE INDENIZAÇÃO POR DANOS SOCIAIS EM AÇÃO
INDIVIDUAL. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES.
8/2008 DO STJ). É nula, por configurar julgamento extra petita,a decisão
que condena a parte ré, de ofício, em ação individual, ao pagamento de
indenização a título de danos sociais em favor de terceiro estranho à
lide.Inicialmente, cumpre registrar que o dano social vem sendo
reconhecido pela doutrina como uma nova espécie de dano reparável,
decorrente de comportamentos socialmente reprováveis, pois
diminuem o nível social de tranquilidade, tendo como fundamento
legal o art. 944 do CC. Desse modo, diante da ocorrência de ato ilícito,
a doutrina moderna tem admitido a possibilidade de condenação ao
pagamento de indenização por dano social, como categoria inerente
ao instituto da responsabilidade civil, além dos danos materiais,
morais e estéticos. Registre-se, ainda, que na V Jornada de Direito
Civil do CJF foi aprovado o Enunciado 455, reconhecendo a
existência do denominado dano social: "A expressão dano no art. 944
abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas
também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos
a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas". A
par disso, importa esclarecer que a condenação à indenização por dano
social reclama interpretação envolvendo os princípios da demanda, da
inércia e, fundamentalmente, da adstrição/congruência, o qual exige a
correlação entre o pedido e o provimento judicial a ser exarado pelo Poder
Judiciário, sob pena da ocorrência de julgamento extra petita. Na hipótese
em foco, em sede de ação individual, houve condenação da parte ré ao
pagamento de indenização por danos sociais em favor de terceiro estranho
à lide, sem que houvesse pedido nesse sentido ou sem que essa questão
fosse levada a juízo por qualquer das partes. Nessa medida, a decisão
condenatória extrapolou os limites objetivos e subjetivos da demanda,
uma vez que conferiu provimento jurisdicional diverso daquele delineado
na petição inicial, beneficiando terceiro alheio à relação jurídica
processual posta em juízo. Impende ressaltar que, mesmo que houvesse
pedido de condenação em danos sociais na demanda em exame, o pleito
não poderia ter sido julgado procedente, pois esbarraria na ausência de
legitimidade para postulá-lo. Isso porque, os danos sociais são admitidos
somente em demandas coletivas e, portanto, somente os legitimados para
propositura de ações coletivas têm legitimidade para reclamar acerca de
supostos danos sociais decorrentes de ato ilícito, motivo por que não
poderiam ser objeto de ação individual20.(Grifo nosso)
Nesse mesmo julgado a Corte Superior decidiu que, não obstante fique
caracterizado o dano social, não é possível a sua condenação em sede de ação individual,
uma vez que tal espécie de dano somente pode ser demandada em ação coletiva. Assim,
somente têm legitimidade para reclamar danos sociais os legitimados para ações coletivas.
20
STJ. 2ª Seção. Rcl 12.062-GO, Rel. Ministro Raul Araújo, julgado em 12/11/2014 (Info 552).
Página 100 de 270
Há que se ressaltar que os danos sociais não se confundem com os danos materiais,
morais e estéticos, nem tampouco é sinônimo de dano moral coletivo. Segundo Flávio
Tartuce21, este último atinge vários direitos da personalidade, violando direitos individuais
homogêneos ou coletivos em sentido estrito – vítimas determinadas ou determináveis –, e a
indenização arbitrada é destinada para as próprias vítimas, enquanto que no dano social há
um rebaixamento do nível de vida da coletividade, violando direitos de vítimas
indeterminadas – toda a sociedade é vítima da conduta – e a indenização será destinada a
um fundo de proteção ou instituição de caridade.
Em recente julgado o Tribunal Superior do Trabalho reforçou a tese que reconhece e
legitima o dano social ao condenar uma empresa que permitiu que trabalhadores
laborassem em condições insalubres de trabalho:
RECURSO DE REVISTA DO SINDICATO-RECLAMANTE.
INDENIZAÇÃO POR DANO SOCIAL - DESRESPEITO ÀS NORMAS
DE SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO. No caso, ficou
comprovado nos autos que a empresa permitiu que os substituídos
laborassem em condição insalubre de trabalho sem a devida proteção,
descumprindo as normas do MTE e também o disposto nas cláusulas
coletivas pactuadas com o sindicato a respeito da manutenção de
condições de trabalho que preservem a saúde do trabalhador. Além de não
cuidar do aspecto preventivo, a ré também sonegou aos substituídos o
pagamento do adicional de insalubridade correspondente. A ofensa atinge
mais que cada trabalhador em sua individualidade, porquanto o
desrespeito a normas de segurança e saúde no trabalho engendra o
perecimento do ambiente de trabalho experimentado por todos os
empregados da reclamada, assim como porque ofende direitos sociais
pactuados e preservados pela sociedade como um todo, que os elegeu
fundamentais na afirmação do Documento Constitucional de 1988. O
fenômeno abordado, cujos pressupostos restaram bem delineados no
caso concreto (conduta ilícita, culpa, nexo causal e dano
extrapatrimonial) consiste no que a doutrina empresarial tem
reconhecido como "dano social", modalidade de dano injusto de
natureza extrapatrimonial e transcendente a situações individuais que
é amparado pela teoria da responsabilidade civil, em seu momento
evolutivo mais avançado. O reconhecimento e a coibição desse tipo de
dano se amparam em fundamento constitucional: decorrem da
função social da propriedade (da qual se extrai a função social da
empresa) insculpida no art. 5º, XXIII, da Constituição Federal de
1988. Entretanto, cumpre observar que a plasticidade da responsabilidade
civil não pode transformá-la em panaceia. É importante considerar que a
21
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
Método, 2015.
Página 101 de 270
identificação do dano social, com suas consequências jurídicas, pressupõe
a adoção de critérios consistentes. Deve-se evitar a banalização do seu uso
a fim de que o instituto não resulte esvaziado. A gravidade e a natureza
extrapatrimonial do dano social exigem que se pense na responsabilidade
civil não apenas sob a ótica tradicional (compensatória). O debate envolve
a discussão sobre as distintas funções da responsabilidade civil e sobre o
equilíbrio entre elas: (I) compensatória, (II) preventiva, (III) normativa ,
(IV) equitativa (evitar o locupletamento ilícito) e (V) punitiva, embora
essa última perspectiva envolva muitas controvérsias. Em se tratando de
dano de natureza extrapatrimonial, a problemática que se coloca refere-se
à possibilidade de traduzir em um montante pecuniário algo que, por
definição, não está sujeito tal mensuração. Os pressupostos teóricos da
responsabilidade civil, nesses casos, devem ser invocados em favor da
construção de um valor concreto, que seja proporcional ao dano. Nesse
sentido, enquanto valores mínimos podem gerar o estímulo à prática
ilícita, valores excessivos, além de incompatíveis com os pressupostos da
indenização, podem comprometer a preservação da empresa. Como
parâmetros de quantificação, devem ser considerados: a) Reprovabilidade
da conduta: se a responsabilidade objetiva é discutível, não há dúvidas de
que casos de reincidência, dolo (violação calculada) e culpa grave devem
ser tratados com rigor; b) capacidade econômica e patrimonial da
empresa; c) montante da vantagem ilicitamente obtida. A perspectiva de
uma política jurisdicional de enfrentamento de tais questões, que
comumente é invocado sob a terminologia imprópria de combate ao
"dumping social", muitas vezes reverberam em iniciativas não isonômicas
podem gerar distorções. As múltiplas funções da responsabilidade civil
precisam ser harmonizadas com o princípio da manutenção da empresa e
com a necessidade de se observar os múltiplos interesses que sobre ela se
projeta. Daí porque sobreleva-se a importância do raciocínio
consequencialista, no sentido de compreender os impactos das
condenações sobre a empresa e também sobre os consumidores, e,
sobretudo, sobre o erário público, quando se tratar de empresa integrante
da Administração Pública indireta. O princípio da preservação da empresa
não é incompatível com o reconhecimento e a reparação de danos sociais,
mas deve ser importante parâmetro para a identificação, o tratamento e a
quantificação de tais danos. Indenização por dano social fixada no valor
de R$ 30.000,00, destinados ao treinamento de mão de obra no local base,
em programas de saúde ocupacional, a serem definidos previamente e em
comum acordo entre o sindicato autor e o Ministério Público do Trabalho,
comprovado nos autos o efetivo gasto. Recurso de revista conhecido e
provido.22 (grifo nosso)
O referido julgado destaca mais um fundamento para o reconhecimento do dano
social: a função social da propriedade, insculpida no art. 5°, XXII, da Constituição Federal
22
TST - RR: 18509220105030111, Relator: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Data de Julgamento:
23/09/2015, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 23/10/2015.
Página 102 de 270
de 1988. Para Uadi Lammêgo Bulos ―Seu objetivo é otimizar o uso da propriedade, de sorte
que não possa ser utilizada em detrimento do progresso e da satisfação da comunidade‖23.
Vê-se também a preocupação dos julgadores com os limites da responsabilidade
civil pelo dano social, a fim de que tal instituto não seja esvaziado em suas finalidades.
Portanto, é necessária a adoção de critérios consistentes, com repercussão além da mera
compensação. Assim, uma condenação por dano social deve envolver a análise das funções
compensatória, preventiva, normativa, equitativa e punitiva.
Outro julgado pertinente ao tema proposto discutiu a responsabilidade civil por dano
social em face de fraude que vitimou vários consumidores de um sistema de loterias, no Rio
Grande do Sul:
TOTO BOLA. SISTEMA DE LOTERIAS DE CHANCES MÚLTIPLAS.
FRAUDE QUE RETIRAVA AO CONSUMIDOR A CHANCE DE
VENCER. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E
MORAIS. DANOS MATERIAIS LIMITADOS AO VALOR DAS
CARTELAS COMPROVADAMENTE ADQUIRIDAS. DANOS
MORAIS PUROS NÃO CARACTERIZADOS.POSSIBILIDADE,
PORÉM, DE EXCEPCIONAL APLICAÇÃO DA FUNÇÃO PUNITIVA
DA RESPONSABILIDADE CIVIL. NA PRESENÇA DE DANOS MAIS
PROPRIAMENTE SOCIAIS DO QUE INDIVIDUAIS, RECOMENDASE O RECOLHIMENTO DOS VALORES DA CONDENAÇÃO AO
FUNDO DE DEFESA DE INTERESSES DIFUSOS. RECURSO
PARCIALMENTE PROVIDO. Não há que se falar em perda de uma
chance, diante da remota possibilidade de ganho em um sistema de
loterias. Danos materiais consistentes apenas no valor das cartelas
comprovadamente adquiridas, sem reais chances de êxito. Ausência de
danos morais puros, que se caracterizam pela presença da dor física ou
sofrimento moral, situações de angústia, forte estresse, grave desconforto,
exposição à situação de vexame, vulnerabilidade ou outra ofensa a direitos
da personalidade. Presença de fraude, porém, que não pode passar em
branco. Além de possíveis respostas na esfera do direito penal e
administrativo, o direito civil também pode contribuir para orientar os
atores sociais no sentido de evitar determinadas condutas, mediante a
punição econômica de quem age em desacordo com padrões mínimos
exigidos pela ética das relações sociais e econômicas. Trata-se da função
punitiva e dissuasória que a responsabilidade civil pode,
excepcionalmente, assumir, ao lado de sua clássica função
reparatória/compensatória. ―O Direito deve ser mais esperto do que o
torto‖, frustrando as indevidas expectativas de lucro ilícito, à custa dos
consumidores de boa fé. Considerando, porém, que os danos verificados
são mais sociais do que propriamente individuais, não é razoável que haja
uma apropriação particular de tais valores, evitando-se a disfunção alhures
23
BULOS, Uadi Lammêgo. op.cit. p. 616.
Página 103 de 270
denominada de overcompensantion. Nesse caso, cabível a destinação do
numerário para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos, criado pela Lei
7.347/85, e aplicável também aos danos coletivos de consumo, nos termos
do art. 100, parágrafo único, do CDC. Tratando-se de dano social ocorrido
no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, a condenação deverá reverter
para o fundo gaúcho de defesa do consumidor. Recurso parcialmente
provido24.
Nesse caso, o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ressaltou a
importância do Direito Civil Constitucional na regulação da vida em sociedade. Segundo o
julgado, algumas condutas podem ser desencorajadas a partir da aplicação de sanções
econômicas para aquelas pessoas ou instituições que se desviam dos padrões mínimos
exigidos pela ética das relações sociais e econômicas.
Segundo depreende-se do julgado, o dano social revela, excepcionalmente, a face
punitiva e dissuasória que a responsabilidade civil em detrimento de sua clássica função
reparatória/compensatória.
É firme a posição dos Tribunais no sentido de que os danos que lesam a sociedade, a
exemplo, do desrespeito às normas de saúde e segurança no trabalho e a fraude contra os
consumidores devem ser desestimulados. Assim, a responsabilidade civil é um dos
institutos de que dispõe os julgadores para evitar que condutas lesivas a coletividade sejam
reiteradamente praticas por indivíduos na busca de seus interesses privados em detrimento
da segurança da vida em sociedade.
Considerações Finais
O dano social caracteriza-se pela diminuição do nível social de tranqüilidade. O
mencionado dano é um comprometimento da segurança coletiva e da vida em sociedade,
em razão de condutas socialmente reprováveis.
A reparação do dano social tem função eminentemente punitiva e dissuasória, e sua
aplicação se legitima em face de valores constitucionais supremos que devem ser
preservados e garantidos, a exemplo da dignidade da pessoa humana. Essa reparação
24
Recurso Cível Nº 71001281054, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Ricardo
Torres Hermann, Julgado em 12/07/2007.
Página 104 de 270
objetiva inibir, através de uma sanção civil, a ação de indivíduos ou entes, que, dolosa ou
culposamente, pratiquem atos que causem instabilidade social, comprometendo a segurança
coletiva ou a qualidade de vida da população.
É notável o diálogo entre os institutos do Direito Civil e Direito Constitucional.
Deste advém vários fundamentos que legitimam a responsabilidade civil pelo dano
decorrente de condutas socialmente reprováveis, a exemplo, do paradigma da sociabilidade,
o princípio da solidariedade, os Direitos Fundamentais, a dignidade da pessoa humana e a
função social da propriedade. A limitação das condutas danosas ao patrimônio da
coletividade visa se aproximar o máximo possível dos valores constitucionais atuais,
especialmente dos Direitos Fundamentais.
A jurisprudência dos Tribunais brasileiros vem reconhecendo o dano social como
espécie de dano indenizável e chancelando a responsabilização civil pelos danos
socialmente reprováveis por violação à tranqüilidade social.
Ainda que fique caracterizado o dano social, não é possível a sua condenação em
sede de ação individual, uma vez que tal espécie de dano somente pode ser demandada em
ação coletiva. Assim, somente têm legitimidade para reclamar danos sociais os legitimados
para ações coletivas, como por exemplo, o Ministério Público, associações e entidades de
classe.
No dano social, como toda a sociedade é vítima da conduta, os valores decorrentes
das indenizações serão destinados a fundos de proteção ou instituições de caridade, já que
os direitos violados pertencem à vítimas indeterminadas.
Algumas condutas já foram reconhecidas como lesivas ao nível de tranqüilidade da
vida em sociedade, como é o caso, daquelas que desrespeitam as normas de saúde e
segurança no trabalho ou que caracterizam fraude ou lesão contra os consumidores, razão
pela qual legitimaram condenações por danos sociais.
Destarte, a responsabilidade civil por danos sociais é um dos institutos de que
dispõe os julgadores para evitar que condutas lesivas à coletividade sejam reiteradamente
praticadas por indivíduos na busca de seus interesses privados em detrimento da segurança
da vida em sociedade.
Referências
Página 105 de 270
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade
civil: o dano social. In: FILOMENO, José Geraldo Brito; WAGNER JR., Luiz Guilherme
bda Costa; GONÇALVES, Renato Afonso (coord.). O Código Civil e sua
interdisciplinariedade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
BRASIL. Constituição (1998). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
DF: Senado Federal, 2016.
______. Leinº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Vade Mecum Saraiva. 21.
ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2014.
FARIAS, C.C.; ROSENVALD, N. Curso de Direito Civil. 12. ed. Salvador: Juspodivm,
2014.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: responsabilidade. 7. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012.
MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
NUNES, Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 8. Ed. São Paulo:
Saraiva, 2015.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense;
São
Paulo:
Método,
2015.
Página 106 de 270
PROJETO “NOME LEGAL” DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA
PARAÍBA: SUA ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL NO DIREITO DAS
FAMÍLIAS E A PRIORIZAÇÃO DA PATERNIDADE
SOCIOAFETIVA
Guilherme Pinto do Nascimento1
Resumo: O Projeto "Nome Legal" do Ministério Público da Paraíba (MP-PB) surgiu para
atender à demanda de crianças e adolescentes que não possuíam a paternidade reconhecida.
A situação encontrava-se caótica, pois apenas 25% das crianças (uma a cada quatro) em
idade escolar na Paraíba não possuíam o nome paterno em seus registros de nascimento
quando essa valorosa iniciativa foi criada, em abril de 20112 e que aproximadamente cinco
milhões e meio de crianças brasileiras não possuíam o nome do pai no registro civil, de
acordo com estimativa do Conselho Nacional de Justiça, no Censo Escolar de 20113.O MPPB, através de sua louvável e destacávelatuação extrajudicialno Direito das Famílias,
proporcionou a resolução dessas questões de maneiramais ágil e eficiente, evitando assim
os desgastes que poderiam ser ocasionados por uma demanda judicial vagarosa. Cumpre-se
destacar, por fim, a sobreposição da paternidade socioafetiva quando contraposta com a
paternidade exclusivamente biológica ou genética. Ao final, após a análise das questões
expostas e dos resultados obtidos, chegou-se à conclusão que Projeto "Nome Legal" do
MP-PB obteve grande sucesso durante o seu período de vigência, prova disso que se tornou
um núcleo permanente em 2015,visando dar continuidade aos procedimentos já instaurados
e institucionalizando a prática nas Promotorias de Justiça do Estado da Paraíba.
Palavras-chave: Projeto "Nome Legal"; Ministério Público da Paraíba, socioafetividade;
Direitos das Famílias
Abstract: The "Nome Legal" Project of Public Ministry of Paraíba (MP-PB) came to meet
the demands of children and adolescents that didn't have their paternity recognised. The
situation was found to be chaotic, as only 25% of the children (one in four) school aged in
1
Graduando do 10º período em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Email:
[email protected]
2
MINISTÉRIO PÚBLICO DA PARAÍBA, Cartilha Nome Legal. 2012. p. 2.
3
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, Pai Presente e Certidões. 2ª edição. 2015. p.10.
Página 107 de 270
Paraíba did not have the father's name on their birth records when this worthy initiative was
created in April of 2011 and that approximately five and a half million brazilian children
did not have the name of the father in Civil Registry, according to estimate of the Nacional
Council of Justice in the school census of 2011. The Public Ministry of Paraíba, through its
laudable and highlighted extrajudicial activities on Families Law, provided the resolution of
these issues in a more agile and efficient way, thus avoiding the damage that could be
caused by a lingering lawsuit. At the end, one must emphasise that the socioaffective
paternity overlaps with the exclusively biological or genetic paternity. On a final note, after
the analysis of the issues and the obtained results, it was concluded that the "Nome Legal"
Project of the Public Ministry of Paraíba obtained great success during its period of
validity, and the proof is that it became a permanent core in 2015, aiming to continue the
already established procedures and institutionalizing the practice in the Courts of Justice in
the state of Paraíba.
Notas introdutórias
O presente estudo possui como base a análise do Projeto "Nome Legal", de
iniciativa do Ministério Público da Paraíba que, a grosso modo, buscava encontrar o pai das
crianças e adolescentes que não o tinham na certidão de nascimento: objetivos iniciais,
como funcionou, a adesão dos promotores no Estado, os resultados, a repercussão junto à
sociedade e o desfecho.
Entretanto, antes da avaliação supracitada, far-se-á imprescindível o estudo
da atuação extrajudicial do MP-PB no Direito das Famílias, a partir de suas competências e
incumbências presentes nos mais diversos dispositivos legais, principalmente na
Constituição Federal de 1988.
Outro ponto de grande relevância, que necessita de uma abordagem especial
e minuciosa, é a questão da paternidade socioafetiva, visto que essa se encontra em erupção
e com protagonismo atualmente, tanto na sociedade civil como nos debates jurídicos,
sobretudo quando se fala em Direito Civil e Direito das Famílias, suas consequências no
cotidiano e os efeitos jurídicos gerados pelo reconhecimento espontâneo de paternidade;
além da questão de que o "Nome Legal" está intrinsecamente ligado a essa tendência da
priorização do afeto sobre laços estritamente sanguíneos.
Página 108 de 270
Desse modo, compreendendo a atuação extrajudicial do Ministério Público e
paternidade socioafetiva, a análise crítica e a compreensão do Projeto "Nome Legal" se
tornam bem mais natural e de fácil entendimento.
Paternidade socioafetiva: breve abordagem histórica até os dias de hoje
No Brasil, desde a Colônia, a família patriarcal e exclusivamente
matrimonial era o modelo dentro do ordenamento jurídico. A questão biológica era
imprescindível à família, com a nítida e discriminatória distinção entre filhos legítimos e
não legítimos. Ao redor do mundo não era diferente:
Por muito tempo reinou e em sua plenitude o princípio da filiação em
favor do matrimônio, considerando superiores os filhos conjugais,
afirmando-se na França, com Luis IX, o princípio romano partusventremsequitur (...).
Em 1804 o Código Civl francês de Napoleão (...) sustenta não ter o Estado
interesse na verificação da filiação dos filhos naturais havidos fora do casamento, onde o
critério dominante era o da filiação legítima do casamento.4
Maria Berenice Dias afinca que na Revolução Industrial esse perfil
hierarquizado e patriarcal não resistiu, visto que as mulheres foram obrigadas a trabalhar
devido à necessidade mão-de-obra, acabando com o caráter meramente reprodutivo, e
iniciando-se, mesmo que vagarosamente, o prestígio da afetividade.5
Com o passar do tempo, as famílias foram ficando cada vez mais complexas
em suas relações afetivas, de modo que nos dias atuais, a partir da Constituição de 1988,
tem-se a verdade genética/biológica em segundo plano quando se fala em filiação,
principalmente quando já existe uma convivência duradoura dentro do âmbito familiar.6
Curiosamente, a priorização da socioafetividade se instaura em tempos de aperfeiçoamento
do exame de DNA, onde o resultado para determinar a filiação beira a certeza absoluta.
4
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 3ª ed. rev.atual e ampl. São Paulo:Forense, 2009. p. 427.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9ª ed. rev.atual e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013. p. 28.
6
MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus.Novas Modalidades de Família na Pós-Modernidade.
São Paulo: Atlas. 2010. p. 40
5
Página 109 de 270
Acerca do tema tratado, o civilista Paulo Lôbo nos contempla com a
seguinte afirmação:
A família patriarcal, que a legislação civil brasileira tomou como modelo,
desde a Colônia, o Império e durante boa parte do século XX, entrou em
crise, culminando com sua derrocada, no plano jurídico, pelos valores
introduzidos na Constituição de 1988.
Como a crise é sempre perda dos fundamentos de um paradigma em virtude
do advento de outro, a família atual está matrizada em paradigma que explica sua função
atual: a afetividade. Assim, enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de
liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na
comunhão de vida.7
Visto isso, não resta a menor dúvida que a afetividade constitui um princípio
jurídico aplicado no âmbito familiar8, princípio esse de importância imensurável. Maria
Berenice Dias - mais uma vez - assevera que a afetividade, apesar de não estar presente
explicitamente na Constituição Federal, representa um princípio constitucional da família,
visto que o rol de direitos individuais e sociais, como forma de garantir a dignidade da
pessoa humana, nada mais é do que o compromisso de assegurar o afeto9.
Rolf Madaleno trata da questão quando afiança a derrocada no plano
jurídico da família patriarcal a partir dos valores introduzidos pela Constituição Federal de
1988. O civilista trata do afeto como mola propulsora dos laços familiares e das relações
entre pessoas, movido pelo amor e sentimentos, de modo a concretizar a dignidade da
existência humana. Os vínculos consanguíneos não se sobrepõem aos liames afetivos, de
modo que o este último prevalece sobre o primeiro, até porque o afeto advém da liberdade
individual de cada indivíduo de afeiçoar-se ao outro, a partir da convivência diária e da
criação de laços sentimentais que vão muito além de um simples exame.10
Cumpre-se salientar que o Código Civil em vigor não possui expressamente
o termo "paternidade socioafetiva", de modo que o mesmo é oriundo da doutrina. O código
supra prevê indiretamente a questão no artigo 1.593 quando colaciona que "o parentesco é
7
LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 17.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil, volume 5: direito de família. 9ª ed. rev. atual e ampl. Rio de Janeiro:
Forense; São Paulo: Método, 2014. p.86.
9
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9ª ed. rev.atual e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013. p. 72.
10
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. São Paulo:Forense, 2009. p. 65
8
Página 110 de 270
natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem." Isso não significa,
de forma alguma, a diminuição na importância ou relevância da mesma, muito pelo
contrário, posto que a paternidade socioafetiva é uma realidade incontestável no
ordenamento jurídico pátrio, tanto pela doutrina como pela jurisprudência.
Visto o que seria afeto, Paulo Lôbo, mais uma vez, afirma de maneira
bastante elucidativa:
A paternidade e a filiação socioafetiva são, fundamentalmente,
jurídicas, independentemente da origem biológica. Pode-se afirmar
que toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter
origem biológica ou não biológica; em outras palavras, a
paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a
paternidade biológica e a paternidade não biológica.
Tradicionalmente, a situação comum é a presunção legal de que a
criança nascida biologicamente dos pais que vivem unidos em
casamento adquire o status jurídico de filho. Paternidade biológica
aí seria igual a paternidade socioafetiva. Mas há outras hipóteses de
paternidade que não derivam do fato biológico, quando este é
sobrepujado por valores que o direito considera predominantes.
(...)
A chamada verdade biológica nem sempre é adequada, pois a certeza
absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, especialmente
quando esta já tiver sido constituída na convivência duradoura com pais socioafetivos
(posse de estado) ou quando derivar da adoção. Os desenvolvimentos científicos, que
tendem a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para
clarear a relação entre pais e filho, pois a imputação da paternidade biológica não substitui
a convivência, a construção permanente dos laços afetivos.11
O Projeto "Nome Legal" do Ministério Público, antenado com tendência
contemporânea, contemplou em sua ação a questão da paternidade socioafetiva em
contraposição com a exclusivamente genética, com a prevalência do amor sobre
determinismos biológicos, deixando de lado o caráter econômico, social e religioso, para se
afirmar no companheirismo e afetividade (desbiologização da paternidade).12
11
LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 17.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9ª ed. rev.atual e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013. p. 363.
12
Página 111 de 270
Ora, e não poderia ser diferente, pois como afirmam Pablo Stolze Gagliano e
Rodoldo Pamplona Filho, "a preocupação maior é com o próprio menor, na existência de
um referencial paterno que possibilite uma adequada formação para a convivência social."13
Sobre o Ministério Público, sua atuação extrajudicial no Direito das Família,
atentando-se à priorização da paternidade socioafetiva, foi de suma importância para as
crianças e adolescentes beneficiados.
A atuação extrajudicial do Ministério Público da Paraíba no Direito das Famílias
O artigo 127 da Constituição Federal de 1988 dispõe que "o Ministério
Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindolhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis."
Paulo Gustavo Gonet Branco, em sua obra conjunta com Gilmar Mendes,
dois notórios juristas, afinca de forma bastante esclarecedora:
O Ministério Público na Constituição de 1988 recebeu uma
conformação inédita e poderes alargados. Ganhou o desenho de
instituição voltada à defesa dos interesses mais elevados da
convivência social e política, não apenas perante o Judiciário, mas
também na ordem administrativa. Está definida como 'instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático
e dos interesses sociais e individuais indisponíveis' (art. 127). A
instituição foi arquitetada para atuar desinteressadamente no arrimo
dos valores mais encarecidos na ordem constitucional. 14
Além do art. 127 da Constituição Federal, o artigo 227 dispõe:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,
ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
13
GAGLIANO,PabloStolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Direito de
Família - As famílias em perspectiva constitucional. 4 ed. rev. e atual São Paulo: Saraiva, 2014, p. 629.
14
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. rev.
e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 898
Página 112 de 270
Cristiano Chaves de Farias, Promotor de Justiça do Estado da Bahia, destaca
a importância da atuação ostensiva e incessante do MP no Direito das Famílias, visto que a
este se incumbe a defesa das crianças e dos adolescentes, bem como a preservação, garantia
e efetivação dos direitos assegurados à infância e juventude, visto que se tratam de
interesses sociais e individuais totalmente indisponíveis, independente da situação a que se
remeta. Ou seja, envolvendo criança ou adolescente, maquinalmente impõe-se a atuação
ministerial, pois o Parquet é protetor natural e fundamental da infância e juventude:
Tratando a questão de interesses de menores - portanto indisponíveis - fica
incontroversa, e torna-se necessária, a atuação do Parquet, sendo-lhe
possível utilizar de qualquer medida, seja perante a Justiça, seja fora dela.
Descortinou-se, via de consequência, uma gama infindável de garantias
voltadas às crianças e adolescentes, trazendo consigo, como consectário
lógico, um incontável volume e possibilidade de atuação ministerial, seja
de forma repressiva, seja no modo preventivo. Essa ampla possibilidade
de atuação do Parquet, através das inumeráveis medidas colocadas à sua
disposição, a serviço da nobre causa menorista, vieram a conferir-lhe
excepcional poder de fogo na defesa da mesma, permitindo uma ação
eficaz centrada na proteção integral da infância e juventude. 15
Visto isso, pode-se auferir que a linha de atuação do MP não possui
restrições no Direito de Famílias, é a mais abrangente possível, atentando-se à questão de
que o rol de direitos presentes no artigo 227 da Carta Magna é meramente exemplificativo
(e não poderia ser diferente), de forma que a doutrina da proteção integral deve ser
respeitada, ou seja, "assegurar às crianças e adolescentes a satisfação de suas necessidades
básicas vitais, independendo de formalismos ou questões instrumentais, processuais."16
Tratando sobre a atuação extrajudicial do Ministério Público como forma de
salvaguardar os direitos das crianças e dos adolescentes, o Ilustre Promotor de Justiça do
Ministério Público do Estado do Paraná, Julio Ribeiro de Campos Neto, assevera
briosamente:
É possível aferir, pois, que existe uma enorme distância entre a realidade
vivida por nossas crianças e adolescentes e a retórica empregada por
nossos governantes, agentes políticos, e, sociedade em geral, pois, ao
15
FARIAS, Cristiano Chaves de. A atuação do MP na defesa e proteção da Infância e Juventude.
Disponível em <http://www2.mp.pr.gov.br/cpca/telas/ca_igualdade_14_2_1_2.php> Acesso em 23 de fev de
2016.
16
Ibidem.
Página 113 de 270
mesmo tempo em que reconhecem a importância da criança para o futuro
da nação nada fazem de concreto para que isto venha a ocorrer.
Buscando a superação desta distância, o Ministério Público tornou-se um paladino
da causa infanto-adolescente, promovendo as mais variadas ações, judiciais e extrajudiciais,
voltadas à realização dos direitos deste segmento da população. Diga-se aqui que as ações
extrajudiciais são de suma importância para a implementação da doutrina da proteção
integral, quer por meio da divulgação da legislação em vigor, quer por meio de articulações
políticas junto aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, aos Conselhos dos Direitos
da Criança e do Adolescente e Conselhos Tutelares, quer promovendo a articulação e
funcionamento da rede de atendimento colocada à disposição da população infanto-juvenil.
Afinal, 'sendo uma instituição de tutela do interesse social, cabe ao Ministério Público
aproximar-se da coletividade, de organismos e entidades de representação social,
mantendo-se aberto e acessível à população, lutando para assegurar o respeito aos seus
direitos, de modo dinâmico e, preponderantemente, como órgão promovente.' 17
Visto tudo isso, pode-se auferir que cabe ao MP resguardar os direitos da
sociedade como um todo, incluindo-se as crianças e adolescentes (principlamente). Na
maioria dos casos, a defesa desses direitos se dá pela via judicial, entretanto, de maneira
louvável e destacável, o Ministério Público da Paraíba atuou de maneira extrajudicial com o
Projeto "Nome Legal", em cumprimento à função de zelar com efetivo respeito ao que é
assegurado pela Constituição Federal.18
Ter o nome do pai em sua certidão de nascimento é um direito da personalidade e
à identidade de toda pessoa, influindo diretamente em uma série de questões que advém
dessa filiação, como, por exemplo, a pensão alimentícia e o direito à herança. Todavia, o
ponto mais importante do projeto era, quando possível, o reconhecimento de um pai que
participasse ativamente da vida da criança ou do adolescente, que não estivesse ligado
exclusivamente pela questão biológica, a já elucidada paternidade socioafetiva.
Faz-se de supra importância destacar que a atuação extrajudicial do Ministério
Público da Paraíba no Direito das Famílias, através do "Nome Legal", possibilitou, na
17
CAMPOS NETO, Julio Ribeiro. O Ministério Público e a infância e juventude: por uma
(re)formulação
da
forma
de
ver,
pensar
e
atuar.
Disponível
em<http://www.gnmp.com.br/publicacao/127/o-ministerio-publico-e-a-infancia-e-juventude-por-uma-reformulacao-da-forma-de-ver-pensar-e-atuar>Acesso dia 23 de fev de 2016.
18
BULOS, UadiLâmmego. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p.
1418
Página 114 de 270
maioria dos casos, conforme será demonstrado mais adiante, que os conflitos fossem
solucionados de maneira mais ágil, algo de grandessíssima relevância no ramo do direito
civil em voga, resguardando e protegendo a criança ou adolescente, posto que estes eram os
mais prejudicados com uma demanda judicial e a sua vagareza.
Análise do Projeto "Nome Legal" do Ministério Público da Paraíba
O Projeto "Nome Legal" do Ministério Público da Paraíba surgiu em abril de
2011, principalmente devido à estimativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)19 de que
5,5 milhões de crianças brasileiras não possuíam o nome do pai no Registro Civil, de
acordo com
o Censo Escolar 2011. Na Paraíba, o próprio MP registrou o número
assustador de 25% das crianças (1 a cada 4) em idade escolar sem o nome paterno em seus
registros de nascimento.20
O projeto buscou resgatar a figura paterna dentro da vida das crianças e dos
adolescentes, indo muito além de um simples processo de registro, priorizando-se a questão
da socioafetiviade, visto que a presença do pai é imprescindível para o jovem, prevenindo
alguns problemas, inclusive escolares, como o baixo rendimento e a evasão.
O próprio Ministério Público, em cartilha lançada no ano 2012, explicou o
funcionamento do projeto nas escolas:
O NOME LEGAL visita as escolas onde faz a escuta pessoal das mães em busca
de dados dos supostos pais que, em um segundo momento, são convidados a
comparecer ao projeto para reconhecerem voluntariamente a paternidade que lhes
é atribuída ou submeterem-se, gratuitamente, a exame de DNA para determinação
da paternidade. Em caso de recusa do possível responsável legal no
reconhecimento da paternidade ouna realização do exame, o Ministério Público
se encarregará dos procedimentos legais para averiguação dos fatos e aplicação
21
da lei.
Cumpre-se aqui destacar e enaltecer a iniciativa do Ministério Público da
Paraíba e sua atuação extrajudicial no Direito das Famílias, onde o mesmo enxergou a
realidade social e compreendeu a necessidade da população, principalmente das crianças e
adolescentes, que se viam totalmente prejudicados com a ausência do nome paterno em seu
registro de nascimento.
19
MINISTÉRIO PÚBLICO DA PARAÍBA, Cartilha Nome Legal. 2012. p. 2.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, Pai Presente e Certidões. 2ª edição. 2015. p.10.
21
MINISTÉRIO PÚBLICO DA PARAÍBA, Cartilha Nome Legal. 2012. p. 5.
20
Página 115 de 270
Além do mais, a partir da explicação do MP de como funcionou a sua
atuação nas escolas, percebe-se claramente a priorização pela paternidade socioafetiva, seja
essa advinda de questões biológicas ou não, conforme já foi exaustivamente tratado no
presente trabalho. As mães poderiam, e eram aconselhadas a isso, a nomear os possíveis
pais da criança ou adolescente baseado no afeto. É evidente que, caso não houvesse essa
pessoa, o MP iria a busca do pai meramente biológico, pois aquele menor não poderia ter o
seu direito fundamental à identidade suprimido, além do fato de que a filiação traz uma
série de efeitos jurídicos.
Silvio de Salvo Venosa faz um apanhado desses efeitos da filiação que merecem ser
mencionados:
No processo civil, estão impedidos de depor como testemunha, além do
cônjuge da parte, seu ascendente ou descendente em qualquer grau, assim
como o colateral até o terceiro grau, seja consanguíneo ou afim (art. 405,
§ 2º, 1, do CPC).
No direito penal, há crimes cujo parentesco entre o agente causador e a
vítima agrava a intensidade da pena.
No direito fiscal, o parentesco pode definir isenções, deduções ou o nível
de tributação.
No direito constitucional e no direito administrativo, há restrições de
parentesco para ocupar certos cargos.
No direito de família, os efeitos do parentesco fazem-se sentir com mais
intensidade, ao estabelecer impedimentos para o casamento, estabelecer o
dever de prestar alimentos, de servir como tutor etc.
No direito sucessório, o parentesco estabelece as classes de herdeiros que
podem concorrer à herança, limitando-se, na classe dos colaterais, àqueles
até o quarto grau.22
Além de atuar nas escolas, o "Nome Legal" visitou os presídios, dando a
oportunidade aos pais privados de liberdade a possibilidade de reconhecimento dos filhos,
conferindo assim o direito de visita e convivência com o mesmo.
É de suma imprescindibilidade destacar que o projeto só foi possível devido
às parcerias realizadas pelo Ministério Público da Paraíba, contando com a participação do
Governo do Estado, da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça da
Paraíba, dos Cartórios de Registro Civil, do Fundo de Apoio ao Registro de Pessoas
Naturais (FARPEN), da UFPB, através do Departamento de Prática Jurídica, do UNICEF
22
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil, volume 6: direito de família. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2013.p.
226.
Página 116 de 270
(por termo de cooperação técnica), do Instituto Brasileiro de Direito de Família na Paraíba
(IBDFAM/PB), do Instituto Unigente e do Movimento "Nós Podemos Paraíba". Percebe-se
assim que foi montada uma verdadeira força-tarefa em busca dos ideais do projeto.
Atuaram no "Nome Legal" 46 (quarenta e seis) Promotores de Justiça em
todo o estado. A princípio, o projeto tinha como membros os Promotores com atribuição na
área de família, mas nada impedia a participação de Promotor de outra área. Realizaram-se
92 mutirões, chegando a incrível marca de 3.41123 reconhecimentos voluntários de
paternidade e 2.20824 exames de DNA.25
Como já visto, o "Nome Legal" tomou enormes proporções, devido a sua
atuação concisa e relevante perante à sociedade, de modo a ganhar credibilidade da mesma,
alcançando atuação em mais de 100 municípios da Paraíba. O sucesso foi tão grande que se
passou a acolher demandas espontâneas (sem matrícula nas escolas) e, posteriormente, os
cartórios passaram a encaminhar ao "Nome Legal" a relação de crianças registradas sem a
indicação paterna.
Logo, o projeto não poderia simplesmente encerrar, de modo que em 2015
foi transformado em Núcleo Permanente de Paternidade Nome Legal (NUPAR NOME
LEGAL), objetivando dar continuidade aos procedimentos instaurados no projeto e
institucionalizar as práticas nas Promotorias de Justiça da Paraíba.
Conclusão
Depois de tudo o exposto no presente estudo, pode-se auferir que o
Ministério Público da Paraíba foi muito perspicaz e visionário na criação e implementação
do Projeto ―Nome Legal‖.
23
298 em 2011;
1.263 em 2012;
570 em 2013;
1.122 em 2014;
158 em 2015.
24
154 em 2011;
563 em 2012;
542 em 2013;
613 em 2014;
336 em 2015.
25
MINISTÉRIO PÚBLICO DA PARAÍBA. Divórcio no Código Civil e atuação do promotor na área da
família são debatidos em congresso do MPPB. Disponível em <http://www.mppb.mp.br/index.php/noticiasandroid/94-familia/2038-divorcio-no-codigo-civil-e-atuacao-do-promotor-na-area-da-familia-sao-debatidosem-congresso-do-mppb Acesso 22 de fev de 2016
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O MP-PB atuou no Direito das Famílias, conforme disposto na Constituição
Federal, de modo a priorizar crianças e adolescentes e resguardar o seu direito à identidade.
A Constituição não deve ser encarada como utopia, mas sim ser colocada em prática, como
foi com o projeto discutido.
Entretanto, o principal objetivo a ser alcançado não era simplesmente o de
ter o nome paterno na certidão de nascimento, e sim de ter um pai que correspondesse às
expectativas amorosas da criança ou adolescente, priorizando-se o afeto sobre o
determinismo biológico. Isso só demonstrou a atenção do MP à realidade social
contemporânea, de modo que a paternidade socioafetiva sobrepuja a meramente sanguínea.
Por fim, conclui-se que o Ministério Público da Paraíba e o Projeto ―Nome
Legal‖, através de suas inúmeras parcerias e de sua atuação conjunta com a sociedade,
conseguiram um grande respeito e respaldo, de modo que o sucesso nos resultados obtidos
e a sua transformação em um núcleo permanente falam por si só.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de
1988. Brasília: Senado Federal, 2013.
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 23fev 2015.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9ª ed. rev.atual.eampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2013.
LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 3ª ed. rev.atual e ampl. São
Paulo:Forense, 2009.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil, volume 5: direito de família. 9ª ed. rev. atual e ampl. Rio
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MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Novas Modalidades de Família na PósModernidade. São Paulo: Atlas. 2010.
Página 118 de 270
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil, volume 6: direito de família. 13ª ed. São Paulo:
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GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil:
Direito de Família - As famílias em perspectiva constitucional. 4 ed. rev. e atual. São Paulo:
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MINISTÉRIO PÚBLICO DA PARAÍBA. Divórcio no Código Civil e atuação do promotor
na área da família são debatidos em congresso do MPPB. Disponível em
<http://www.mppb.mp.br/index.php/noticias-android/94-familia/2038-divorcio-no-codigocivil-e-atuacao-do-promotor-na-area-da-familia-sao-debatidos-em-congresso-do-mppb
Acesso 22 de fev de 2016.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
Constitucional. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013.
FARIAS, Cristiano Chaves de. A atuação do MP na defesa e proteção da Infância e
Juventude.
Disponível
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<http://www2.mp.pr.gov.br/cpca/telas/ca_igualdade_14_2_1_2.php> Acesso em 23 de fev
de 2016.
BULOS, UadiLâmmego. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2013.
CAMPOS NETO, Julio Ribeiro. O Ministério Público e a infância e juventude: por uma
(re)formulação
da
forma
de
ver,
pensar
e
atuar.
Disponível
em<http://www.gnmp.com.br/publicacao/127/o-ministerio-publico-e-a-infancia-ejuventude-por-uma-re-formulacao-da-forma-de-ver-pensar-e-atuar>Acesso dia 23 de fev de
2016
MINISTÉRIO PÚBLICO DA PARAÍBA, Cartilha Nome Legal. 2012.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, Pai Presente e Certidões. 2ª edição. 2015.
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DIREITO À MEMÓRIA, DIREITO AO ESQUECIMENTO: UM
PARADOXO AINDA INCONCLUSIVO
Adriano Marteleto Godinho1
Breno Pereira Marques de Melo2
Isaías Moreira Ferreira3
José Albuquerque Toscano Júnior4
Rebeca Resende de França Rodrigues5
Notas introdutórias
O presente trabalho é fruto das pesquisas realizadas na Universidade Federal da Paraíba,
no âmbito do projeto destinado ao estudo dos direitos da personalidade, especificamente sob a
ótica do direito à privacidade.
O Direito ao Esquecimento está cada vez mais em voga no Judiciário brasileiro, um tema
que desperta opiniões diversas sobre fatos de âmbito particular ou públicos, mas todos estes
contextos desaguando em um mesmo embate entre o direito à memória, de um lado, e odireito ao
esquecimento, de outro lado. Cumpre definir, essencialmente, até que ponto devemos esquecer
fatos públicos de grande repercussão social, para que estes não venham a ocorrer novamente. O
direito ao esquecimento deve se sobressair, mesmo quando determinado fato, em relação ao qual
se pretenda eventualmente deixar esquecido, é de grande notoriedade social e interesse coletivo?
Com estes linhas, pretende-se equacionar a tese do direito ao esquecimento,
estabelecendo-se seus limites, justificativas legais e principiológicas e âmbito de incidência,
inclusive em ordenamentos jurídicos alienígenas. Para além de se estabelecer a análise da
possibilidade de as pessoas naturais pleitearem o esquecimento de fatos que compõem sua
trajetória biográfica, ver-se-á de que modo também as pessoas jurídicas, excepcionalmente,
poderão requerer idêntica tutela.
Direito ao esquecimento: delimitações conceituais
1
Professor da Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa e
Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais. Advogado.
2
Acadêmico do 10º período de Direito da Universidade Federal da Paraíba.
3
Professor da Universidade Federal da Paraíba. Graduado em Licenciatura Plena em Letras pela Universidade
Federal da Paraíba. Acadêmico do 10º período de Direito da Universidade Federal da Paraíba.
4
Acadêmico do 9º período de Direito da Universidade Federal da Paraíba.
5
Advogada, graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
Página 120 de 270
A memória é veementemente considerada e caracterizada como uma habilidade
desenvolvida individualmente por cada ser humano, enquanto a capacidade individual ou coletiva
de lembrar ou relembrar determinada informação relevante. Por meio de mídias, inclusive, pode
ser realizada a coleta das informações por métodos seletivos, sendo a memória uma função do
sistema nervoso responsável pela captação deste arcabouço.
A produção de sentido sobre o passado (experiências vividas ou transmitidas) ocorre por
meio da memória e, por meio desta, muitas vezes, busca-se modificar o presente, partindo da
recordação de fatos e acontecimentos ocorridos em um passado muitas vezes um tanto distante. A
memória seria uma gênese social de lembrança que objetiva reconstruir o passado; no entanto, o
fato de relembrar alguns acontecimentos e fatos pode, para alguns, significar uma caminhada
árdua rumo ao futuro.
Em um estado com bases democráticas, o direito à informação se destacacom
proeminência.A sociedade tem amplo acesso aos meios tele comunicativos e informacionais, a
exemplo da internet. Passam os tempos, mas certos dados históricos são facilmente armazenados
nas redes virtuais e o passado, com isto, acaba se misturando ao presente, o que poderá causar
prejuízos a determinados indivíduos.
Em meio a tantas controvérsias e debates surge, pois, um direito noviço, denominado
direito ao esquecimento, sob o enfoque de princípios constitucionais e basilares, a exemplo do
postulado da dignidade da pessoa humana. Fatos são lembrados e relembrados, matérias
jornalísticas e programas televisivos sobre eventos passados são produzidos e, assim, pessoas
podem ser submetidas a situações de extremo constrangimento.
O esquecimento, portanto, propicia ao indivíduo ter seu passado deixado para trás, em
proveito de uma existência presente livre de máculas preexistentes. Anderson Schreiber explica o
direito ao esquecimento como sendo o direito de ―impedir que dados de outrora sejam revividos
na atualidade, de modo descontextualizado,gerando-lhe risco considerável6”.
O direito ao esquecimento difundiu-se mais peremptoriamente após o estabelecimento do
Enunciado 531 pela VI Jornada de Direito Civil,7 promovida pelo Conselho da Justiça Federal
6
SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 197.
Os enunciados da Jornada não têm qualquer força vinculativa, mas desempenham significativa autoridade
doutrinária, servindo de referência interpretativa e constituindo fundamento para muitas decisões judiciais por não
7
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(CJF). Este enunciado constitui uma orientação doutrinária baseada na interpretação do Código
Civil, elencando o direito de ser esquecido entre os direitos da personalidade, bem como
assegurando a preservação da intimidade, da imagem e da vida privada, mediante o império do
princípio de proteção à dignidade da pessoa humana, por reconhecer que ―a tutela da dignidade
da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento‖. Assim, o direito
de não ser lembrado eternamente por um equívoco pretérito ou por situações constrangedoras ou
vexatórias constitui um instrumento jurídico de salvaguarda à dignidade humana.
Apesar de o enunciado contribuir sobremodo para a discussão do tema, ainda há
necessidade de maior amadurecimento para sua plena aplicação, de modo a serem fixados seus
parâmetros, para que seja acolhido o esquecimento de determinado fato, com a decretação
judicial de retirada de informações a seu respeito, tendo em vista que quem se sentir lesado em
seus direitos personalíssimos pode pleitear o cancelamento de informação, tanto dos meios de
comunicação em mídia física, quanto do próprio mundo virtual.
O surgimento desse direito, como um direito personalíssimo a ser protegido, teve origem
na esfera criminal, mas atualmente foi estendido a outras áreas, como, por exemplo, às novas
tecnologias de informação. Ele tem sido abordado na defesa dos cidadãos diante de invasões de
privacidade pelas mídias sociais, provedores de conteúdo ou buscadores de informações.
Ressalva-se, no entanto, que tal direito não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou
reescrever a própria história, mas tão somente garantir a possibilidade de se discutir o uso de
informações atinentes a fatos pretéritos, mais especificamente ao modo e à finalidade com que
são lembrados mediante arquivo em banco de dados.
Com efeito, é preciso estabelecer as bases em que o direito ao esquecimento pode
medrar.Paulo R. Khouri explana: ―Ponderar caso a caso os valores em jogo (pois) pode ocorrer
que o direito ao esquecimento deva ser sacrificado em prol da liberdade de informação 8‖.É este o
desafio a vencer: admitir o esquecimento e limar o passado do presente, sem propiciar, contudo,
inaceitável ofensa à liberdade de expressão e à necessária preservação da memória de um povo e
da história de uma nação.Impõe-se, neste contexto, uma balia imprescindível: dissociar os fatos
que compõem a esfera privativa da vida de um indivíduo daqueles que, ao contrário, suscitam
configurar a opinião de um único autor, mas a súmula do pensamento de grande parte dos civilistas nacionais
integrantes do evento.
8
KHOURI, Paulo R. O direito ao esquecimento na sociedade de informação e o Enunciado 531 da VI Jornada
de Direito Civil. Revista de Direito do Consumidor, v. 89,| p. 463 e ss., set. 2013.
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relevante interesse público. Segregam-se, assim, as informações de cunho estritamente privado,
suscetíveis ao esquecimento, e os dados de interesse predominantemente coletivo, impassíveis de
esquecimento, sob pena de se comprometer o passado não de uma única pessoa, mas de uma
sociedade como um todo.
Estas noções desafiam prudente análise, que será necessariamente casuística. Apenas as
circunstâncias de cada caso em concreto poderão revelar, em um jogo de ponderação de direitos e
valores, quais devem prevalecer e quais podem sucumbir. Apenas se admitirá o sacrifício da
liberdade de expressão caso determinadas informações possam ser legadas ao esquecimento sem
que tal implique prejuízo à memória de um povo.
A internacionalização do direito ao esquecimento
A tese do direito ao esquecimento não é suscitada apenas no Brasil. Relatos diversos,
alguns mais antigos, outros mais recentes, demonstram que a controvérsia é viva, em particular,
no ordenamento jurídico de países europeus e nos Estados Unidos da América.
As raízes intelectuais do direito a ser esquecido são provenientes da França, sendo no
referido país denominado de ―ledroità l'-oubli‖; no entanto, um caso analisado pelo Tribunal
Constitucional Federal da Alemanha em 1973, conhecido como ―caso Lebach‖, ganhou
repercussão internacional. O caso se refere ao assassinato brutal de quatro soldados alemães
responsáveis pela guarda e segurança de um depósito de munições sendo os três acusados
condenados, dois delesà prisão perpétua e o terceiro a uma pena de reclusão de seis anos. Prestes
a ser liberto, o terceiro acusado, as vésperas de cumprir integralmente sua pena, toma
conhecimento de certo documentário, produzido por uma emissora televisiva, e decide mover
ação judicial, tendo por objetivo impedir a ida ao ar do tal documentário, pautando-se em um
direito assegurado e amplamente propagado pela Constituição Alemã, o direito ao
desenvolvimento da personalidade, que seria violado, caso a obra fosse ao ar. O autor da
demanda teve acolhida sua pretensão, ficando evidentes as limitações estabelecidas quanto à
liberdade de expressão e comunicação, que não podem atingir direitos fundamentais dos
indivíduos.
Em treze de maio de 2014, a Grande Corte Europeia instaurou uma seção para possibilitar
a discussão de um caso que chamou a atenção de juristas por todo o planeta. O caso envolvia a
Página 123 de 270
empresa Google, de um lado, e o espanhol Mário Costeja González, de outro,tendo este solicitado
judicialmente a retirada de determinadas informações procedentes dos resultados de busca do
portal.A Corte Europeia decidiu pela procedência do pedido e determinou a retirada das
informações referentes à venda em hasta pública de um determinado imóvel, que davam aos
usuários da internet a impressão de ser o Sr. González um devedor inadimplente. O Tribunal
reconheceu a supremacia do direito à vida privada, previsto na Carta dos Direitos Fundamentais,
e o direito à proteção dos dados pessoais, incluído no mesmo diploma.
O Tribunal defendeu em sua sentença a busca pelo equilíbrio entre o interesse dos
internautas pelas informações contidas no meio virtual e os direitos fundamentais da pessoa
atingida, que logicamente teriam sido afetados. O interesse público, no entanto, pode fazer cair
por terra decisão prolatada pela Corte Europeia, tendo os casos que serem analisados em
particular, o que foi suscitado pela pessoa jurídica demandada.
A empresa Google alegou não ser responsável pelas informações contidas em sua base de
dados; no entanto, o portal mesmo assim foi obrigado a retirar as informações referentes ao
reclamante, fazendo a Corte prevalecer direitos e garantias constitucionais basilares. O tribunal
reconheceu, com base na Diretiva 95/46/CE, promulgada pelo Parlamento Europeu, que o motor
de busca é de responsabilidade direta do site ou portal responsável pela hospedagem das
informações. O Tribunal estabeleceu, portanto, que o Google é responsável pelo manuseio virtual
de informações pessoais, sendo responsável também pelos meios de busca utilizados assim como
o processamento das informações. Assim, a empresa Google deveria adequar suas atividades,
para que os direitos da personalidade, que compõem a essência das pessoas naturais, não sejam
atingidos de forma maléfica ou prejudicial.
Após a decisão tomada pela Corte Europeia, o Google tornou-se obrigado a retirar
informações pessoais do seu banco de dados, quando as pessoas detentoras assim solicitarem.
Milhares de pedidos foram feitos após a decisão, o que vem ocasionando despesas imensuráveis
para o Google. Mesmo assim, é preciso equacionar o problema, tendo-se em conta a possibilidade
de ocorrerem danos de ampla repercussão, dada a profusão rápida e de vastíssima extensão das
informações lançadas na internet, em especial, o que reforça a necessidade da existência de meios
de se conter danos. Nas palavras de AntonioRulli Junior e AntonioRulli Neto, ―avelocidade como
as informações circulam não permite mais que pensemos tão somente em mecanismos de
Página 124 de 270
abstenção e repressão, mas de meios eficazes para evitar os abusos e excluí-los, ou impedir que
gerem resultados continuados ou mais gravosos9‖.
Na Alemanha, em 2009, dois alemães, responsáveis pelo assassinato de um ator, ocorrido
no ano de 1990,demandaram judicialmente a entidade que administra a enciclopédia virtual
intitulada ―Wikipedia‖ requerendo a retirada de informações referentes ao crime, contidas na base
de dados da empresa. No caso, os assassinos alegaram que a lei alemã garante a supressão dos
nomes de criminosos de páginas eletrônicas e documentários, quando estes já tiverem respondido
pelos crimes que comentaram. A divulgação de informações ligadas aos assassinos e ao crime por
eles cometido geraria flagrante estigmatização de suas imagens, além de violar o direito à
privacidade de ambos e o reconhecido direito de ser deixado em paz.
No caso encimado, os assassinos alegaram que a lei alemã lhes assegura o direito a
supressão dos seus respectivos nomes nas páginas eletrônicas e documentárias (da então
enciclopédia) que tratam do assunto, tendo em vista já terem respondido pelo crime praticado. A
divulgação de determinadas informações ligadas relacionadas ao crime, geraria, segundo os
condenados, flagrante estigmatização de suas imagens, além de violar o direito à privacidade,
garantido a ambos, e o suposto ―direito de ser deixado em paz‖. No entanto, a Suprema Corte
Alemã10 não atendeu aos pedidos realizados11.
A Corte Europeia já firmou a base deque é preciso, como premissa fundamental, que se
examine o papel desempenhado por pessoas que possuem suas informações divulgadas em
mídias e portais, pois tais dados podem se revestirde um caráter eminentemente público, o que
inviabilizaria o exercício de um suposto direito ao esquecimento. Portanto, torna-se possível o
conhecimento geral de algumas informações, ainda que desabonadoras da conduta de certos
indivíduos, quando o interesse público for fator preponderante no âmbito de conhecimento de
certos fatos de contexto histórico e social proeminente. Ademais, a utilização e divulgação de
informações pessoais, segundo a Diretiva 95/46/CE, só poderá ser feita mediante motivos e
objetivos legítimos e lícitos, portanto, os dados mencionados só poderão ser utilizados para fins
específicos e determinados.
9
NOVOS MECANISMOS PARA MINIMIZAR O CYBERBULLYING EM UM CONTEXTO DE
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO. JUNIOR, Antônio Rulli e NETO, AntonioRulli. Disponível
em:http://cidp.pt/publicacoes/revistas/ridb/2013/11/2013_11_12995_13002.pdf.
10
BGH, VI ZR 227/08, decisão de 15/12/2009.
11
_Disponível em: http://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/v614rl37/YreX6aYS0x4INA8l.pdf
Página 125 de 270
Em 2011, a Comissão Parlamentar Francesa expediu o relatório 384, reconhecendo o
direito de determinados cidadãos serem mantidos no anonimato, ou seja, o direito a promover a
supressão de dados pessoais. Os parlamentares recomendaram a execução de meios que permitam
a harmonização de regras referentes à privacidade e à liberdade dos meios informacionais.
Vê-se, pois, que a União Europeia, por intermédio de tribunais e normas legais, vem
trazendo à tona o direito a ser esquecido ou, simplesmente, o direito a deixar fatos e pessoas
legados ao anonimato,que é posto frente a uma das principais garantias asseguradas pelas
constituições de países de bases democráticas: a liberdade de expressão.
Nos Estados Unidos, a liberdade de expressão, vista com ares de enorme eminência,
coloca em xeque a aceitabilidade do direito a ser esquecido ou, simplesmente, o direito a ser
mantido no anonimato ou ter informações assim tratadas.
No dia 13 de maio de 2013 foi realizada uma conferência em Berlim, na qual estiveram
presentes autoridades e representantes de empresas norte-americanas. Na aludida conferência, foi
suscitada a possibilidade de adequação das leis referentes à privacidade nos Estados Unidos ao
sistema de proteção de dados global. Ao final do evento, mais de 90 países foram notificados
para adequação de seus sistemas.O direito ao esquecimento, em meio a tantos debates, chega a
ser reconhecido nos EUA; no entanto, para muitos a admissibilidade do direito ao esquecimento
gera flagrante violação da constituição americana.
Já na jurisprudência norte-americana, destaca-se o caso envolvendo uma prostituta
condenada pela prática de homicídio, que, anos após ter cumprido a pena, observa a retratação do
fato por meio do filme ―The RedKimona12‖.A Suprema Corte da Califórnia, ao apreciar o caso,
reconheceu que a suposta vítima teria direito a viver uma vida de retidão, sendo privada de
violações desnecessárias e extemporâneas à sua dignidade.
É possível argumentar-se que a aplicabilidade do direito ao esquecimento gera violação
imediata do direito à liberdade de expressão, amplamente assegurada pela Constituição dos
Estados Unidos. O que é visto como meio de simples proteção de dados pessoais pode
representar um mecanismo para tentar apagar o passado e a história de determinadas pessoas, a
exemplo de políticos que não querem ter seus nomes associados a alguns fatos e situações, e de
12
LIBERDADE DE INFORMAR E DIREITO À MEMÓRIA - uma crítica à ideia do direito ao esquecimento
– NETO, João dos Passos Martins e PINHEIRO, Denise. Disponível em: file:///I:/6670-18054-1-SM.pdf.
Página 126 de 270
criminosos que lutam para que o passado delituoso não se torne presente a ponto de supostamente
prejudicá-los na vida em sociedade.
O direito a ser esquecidoou, simplesmente, a ser mantido no anonimato, deve, de fato, ser
ponderado e sopesado com outros valores, em especial o interesse público quanto à ampla
divulgação de certos fatos que, mais do que simples componentes da trajetória individual de
certas pessoas, são cruciais para a formação da memória de um povo e de uma nação.
O direito ao esquecimento no Brasil
A exemplo do que ocorre em diversos países em que se discute a viabilidade da incidência
de um direito ao esquecimento, também no Brasil a tese ganha adeptos – e, por vezes, coloca em
questão a proteção dos direitos da personalidade de pessoas notórias.
É fato que quem conheceu a apresentadora Maria da Graça ―Xuxa‖ Meneghel em meados
da década de 90 e anos posteriores, jamais tomaria conhecimento de certo ato que a colocou em
situação bastante constrangedora se for observada em nome da moral e dos bons costumes da
sociedade. No ano de 1982, fora lançado um filme de cunho erótico intitulado Amor Estranho
Amor, em que a referida apresentadora atuava como a personagem Tamara, responsável pela
iniciação da vida sexual de um garoto de 12 anos.
Xuxa, inconformada com a enorme projeção do filme, que somente se deu após tornar-se
ela mundialmente conhecida como apresentadora de programas televisivos infantis, moveu ação e
obteve decisão favorável ao recolhimento de todas as fitas originais do referido filme das lojas de
todo o país. A decisão judicial proibiu que o filme fosse comercializado dentro do Brasil, mas em
2005 ocorreu seu lançamento nos Estados Unidos, podendo a obra ser acessada atualmente por
brasileiros em páginas eletrônicas hospedadas em diversos países. Xuxa ainda tentou, sem
sucesso, uma ação judicial para impedir a divulgação do filme nos Estados Unidos.
O art. 20 do Código Civil de 2002 já protege, na circunscrição dos direitos da
personalidade, o direito à imagem, ao preceituar que:
Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da
ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a
exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu
Página 127 de 270
requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa
fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
13
Ou seja, é sabido que há um limite para a exposição de imagens, e que este limite é a
vontade do seu titular, ressalvadas as hipóteses em que se tratar de informação que vise à
promoção da ordem pública. Ainda que se entenda ser possível suscitar o texto do art. 20 como
fundamento para as pretensões de Xuxa, que chegou inclusive a obter êxito em uma contenda
judicial movida contra a empresa Cinearte, que ensaiava relançar o aludido filme, torna-se
praticamente inviável combater a expansão dos danos no âmbito da internet. Com efeito, a
apresentadora não logrou êxito quanto ao impedimento de haver pesquisas em seu nome
vinculado à pedofilia no sistema de buscas do site Google, em decisão unânime da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).14
Em um primeiro momento, quanto ao julgamento de antecipação de tutela, chegou-se a
determinar que a empresa deveria retirar os resultados das pesquisas que vinculassem o nome da
apresentadora ao termo pedofilia e a imagens que indicassem o mesmo contexto. Após o recurso
por parte da empresa, houve a determinação de que apenas algumas imagens fossem suprimidas.
No STJ, a Ministra relatora, Nancy Andrighi, abraçou o entendimento de que seria inviável
prosseguir com a determinação do juiz de primeira instância, tendo em vista que, além de ser uma
tarefa que não intrínseca ao serviço prestado, isto poderia inviabilizar as livres pesquisas
referentes ao nome da apresentadora.
No mesmo ano de 2012, um programa televisivo da Rede Record tornou pública a
exposição de algumas fotos de Xuxa em ensaio nu, realizado há mais de duas décadas. A
apresentadora ajuizou uma ação em face da emissora, alegando que tal ensaio fora feito com seu
pleno consentimento – limitado, todavia, à exposição exclusiva em revistas masculinas, tese à
qual aderiu o desembargador Eduardo Gusmão Alves de Brito, que assim decidiu no processo de
nº 0029206-40.2012.8.19.0000 julgado da 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro: 15
13
BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 1a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002.
14
Jusbrasil. Google ganha batalha contra Xuxa no STJ. Disponível em: <http://oabrj.jusbrasil.com.br/noticias/3165196/google-ganha-batalha-contra-xuxa-no-stj>Acesso em 26 de maio de
2014.
15
Âmbito jurídico. TJ proíbe Record de exibir imagens da apresentadora Xuxa nua. Disponível em:
<http://www.ambitoPágina 128 de 270
Não tem razão a agravante quando diz que a autora, ao tornar pública sua nudez, optou
por renunciar a seus valores de privacidade e intimidade. Veja-se, nesse contexto, que
quando a agravada aceitou fazer o ensaio nu, ela o fez a um determinado grupo de
pessoas que, embora indetermináveis quanto ao número de destinatários, eram
perfeitamente identificáveis quanto ao gênero: homens. Agora, quando a agravante
expõe essas mesmas imagens na rede aberta de televisão, num domingo e em horário de
pico de audiência, ela, a toda evidência, amplia significativa e inoportunamente esse rol
de destinatários, que passa a incluir mulheres, crianças e adolescentes.
Faria a apresentadora, então, jus à tutela pretendida pelo instituto do direito ao
esquecimento? Naturalmente, ela é uma pessoal natural e, por sê-lo, é titular dos denominados
direitos da personalidade. Tais direitos possuem como características a inalienabilidade e a
imprescritibilidade, e independentemente da vontade de seu titular, estes atributos da existência
humana se manifestam, imperiosos e dignos da máxima proteção.
Mais precisamente quanto ao direito à imagem da apresentadora, compete-lhe a
prerrogativa de delimitar o seu exercício e de protegê-lo, de modo a evitar ofensas à sua
integridade moral e psicológica. No caso em questão, a apresentadora atribuiu certos limites à
circulação de sua imagem, tanto nos vídeos quanto nas fotografias, não se admitindo extensões
que não apenas ultrapassam os limites de seu consentimento quanto também não se qualificam
como informações de interesse público digno de resguardo jurídico.
Outra ocorrência no plano nacional de informações que tocam a pessoa notórias é o caso
do ex-presidente Fernando Collor de Melo. Em 1992, o Congresso Nacional, por meio de
processo de impeachment, tirou do poder o presidente mais jovem a ser eleito no Brasil. Fernando
Collor de Melo assumiu a presidência da República aos 41 anos de idade, em 1989, com mais de
35 milhões de votos, assumindo o governo em um cenário altamente crítico da economia
brasileira. Em meio a este contexto, o então presidente adotou uma medida enérgica, dando início
ao chamado Plano de Reconstrução Nacional, dividido em duas fases, Collor I e Collor II. A
partir de março de 1990, houve uma demissão em massa de funcionários públicos, congelamento
de salários e preços, confisco de depósitos bancários e a volta do cruzeiro como moeda, medidas
que não surtiram nenhum efeito positivo, causando, ao revés, tremenda revolta social.
Para tentar sanar toda esta desestabilização financeira, Collor, por meio de sua equipe de
governo, engendrou outros planos, que não obtiveram êxito, chegando-se ao estopim que
juridico.com.br/site/?n_link=visualiza_noticia&id_caderno=20&id_noticia=86206>Acesso em 22 de maio de
2014.
Página 129 de 270
culminou no ápice de sua crise governamental: as denúncias de corrupção veiculadas pelo seu
irmão, em maio de 1992, e o envolvimento do seu tesoureiro de campanha Paulo César Farias.
Fernando Collor de Melo, afinal, teve o seu mandato cassado e perdeu a prerrogativa do
livre exercício de seus direitos políticos por oito anos.
No mês de abril de 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o último processo que
envolvia como parte o ex-presidente Collor, absolvendo-o das acusações do uso de cargo público
para desvio de recursos, peculato, falsidade ideológica e corrupção passiva; por insuficiência
probatória, o réu foi inocentado.
Pelo que consta no acervo do Infográfico do sítio eletrônico da Revista Veja, Collor
deixou a Presidência da República com 14 inquéritos no STF, oito petições criminais, quatro
ações penais e constava como parte em mais de duas dúzias de habeascorpus, saindo ileso em
todos os casos.16
Em meio a todo esse histórico envolvendo uma personalidade pública de grande
notoriedade, em que todos os seus fatos políticos e privados foram conectados, sem possibilidade
de desassociá-los, entramos na discussão dos direitos do ex-presidente de ter certos fatos da sua
vida esquecidos, em contrapartida ao direito de a população de ter uma memória política viva.
Naturalmente, o ex-presidente Collor jamais poderá pretender que sejam esquecido o fato de ter
sofrido o processo de impeachment, por se tratar de evento que compõe a história política do país;
tal não significa, contudo, que eventuais acintes à sua honra devam ser perpetrados e perpetuados,
em especial na internet.
Em meio ao contexto do caso anterior, podemos fazer uma correlação acerca dos fatos
políticos da vida de Collor e qualquer político, que anos depois de sua participação no cenário
nacional, pretendem manter certas questões de ordem pessoal afastadas da memória nacional. A
discussão enseja muitas outras questões que abarcam não só personalidades políticas, mas
pessoas notórias, de uma maneira geral. O direito ao esquecimento deve ser estudado
minuciosamente e aplicado a casos práticos com parcimônia, para não transpassar as barreiras do
que viria a ser uma possível censura. Apenas se admitirá o esquecimento se se tratar de fatos que
compõem a esfera da estrita privacidade de um indivíduo, quando se puder concluir, enfim, que
rememorá-los não apenas em nada contribuirá para manter acesa na memória coletiva uma
16
Disponível
em:
http://veja.abril.com.br/infograficos/rede-escandalos/perfil/fernando-collor-demello.shtml?Scrollto=conteudo-rede. Acesso em 04/05/2014.
Página 130 de 270
informação digna de relevo histórico, como também representará uma afronta à própria dignidade
humana.
A extensão do direito ao esquecimento para a proteção de dados de interesse de pessoas
jurídicas
Na sociedade pós-moderna, a informação exerce relevância capital para o exercício de
quaisquer atividades, tanto pessoais quanto empresariais, pois até mesmo, os atos mais simples e
cotidianos da vida pessoal ou empresarial podem ser divulgados em escala global, em velocidade
impressionante, com efeitos consideravelmente deletérios à imagem da pessoa física ou jurídica.
Isto tem ocorrido devido a duas constatações: primeiro, é preciso resguardar a honra das pessoas,
inclusive da pessoa jurídica, por meio de sua respectiva marca e reputação (honra objetiva);
segundo, a veiculação das marcas empresariais atingiu patamares inimagináveis. As novas
mídias, em face da escalada tecnológica se, por um lado tem resultado em significativo avanço
concernente ao acesso, envio, arquivo e disseminação ágil e simples de informação, por outro,
tem acarretado vasta gama de violações de direitos da personalidade, notadamente no campo da
imagem, da intimidade e da privacidade.
De fato, isto ocorre, porque como esclarece o desembargador Rogério Fialho Moreira:17
―Verifica-se hoje que os danos causados por informações falsas, ou
mesmo verdadeiras, mas da esfera da vida privada e da intimidade,
veiculadas através da internet, são potencialmente muito mais nefastos
do que na época em que a propagação da notícia se dava pelos meios
tradicionais de divulgação. Uma retratação publicada em jornal podia
não ter a força de recolher as “penas lançadas ao vento”, mas a resposta
era publicada e a notícia mentirosa ou injuriosa permanecia nos
arquivos do periódico. Com mais raridade era “ressuscitada” para
voltar a perseguir a vítima‖.18
17
Desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, Rogério Fialho Moreira, coordenador da Comissão de
Trabalho da Parte Geral na VI Jornada VI Jornada de Direito Civil, evento organizado pelo Centro de Estudos do
Judiciário da Justiça Federal (CJE/CJF), visando delinear posições interpretativas sobre o Código, adequando-as às
inovações legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, a partir do debate entre especialistas e professores nas
comissões temáticas de trabalho.
18
2. http://ebook-direito.com.br/novidades/o-direito-ao-esquecimento-e-o-enunciado-531. Acesso em 18-11-2013.
Página 131 de 270
Surge, neste contexto, uma questão fática de discussão inadiável e de resolução
primordial, a saber: tem a pessoa jurídica de direito privado igual direito ao esquecimento ou
deve-se preservar tal direito personalíssimo adstrito às pessoasnaturais?
Na tentativa de apontar uma possibilidade de resposta, pode-se procederà análise de um
caso envolvendo a multinacional de bebidas mundialmente conhecida: a Coca-Cola (Processo Nº:
0020617-36.2004.8.26.0100 TJ-SP). O caso relaciona-se àRedeTV e outras duas empresas
ligadas ao refrigerante Dolly (Detall-Part, detentora da marca, e Ragi Refrigerantes, responsável
pelo engarrafamento e comercialização do produto), que foram condenadas a pagar R$ 1 milhão
em indenização à multinacional à Coca-Cola. Conforme o relatório do processo, o ―Programa
100% Brasil‖ tentou prejudicar a reputação do refrigerante Coca-Cola em notícias, debates e
entrevistas, com o objetivo de incrementar as vendas da concorrente Dolly. No referido
programa, falava-se sobre supostas práticas ilícitas da Coca-Cola, como sonegação fiscal,
corrupção ativa, concorrência desleal e adição de substância entorpecente ao xarope do
refrigerante. Apesar disso, as empresas Detall-Part e Ragi Refrigerantes alegaram que seus
representantes participaram do programa apenas como entrevistados e que não receberam
orientação sobre suas declarações; ao passo que a RedeTV afirmou que não tinha
responsabilidade sobre o conteúdo do programa, já que a compra do espaço na grade de
programação do canal foi ajustado entre a Dolly e um terceiro. A decisão final inferiu que ―as
reportagens e entrevistas veiculadas no programa tinham por único objeto explorar denúncias de
irregularidades envolvendo a empresa autora (Coca-Cola), tanto que foram entrevistados
basicamente ex-funcionários, parlamentares e outras autoridades públicas que, de alguma forma,
guardavam relação com as acusações desferidas contra a requerente (Coca-Cola)‖. Segundo o
desembargador Francisco Loureiro, relator do processo supracitado, ―é possível concluir, sem
sombra de dúvida, que o objetivo maior do programa não era informar o público acerca de fatos
relevantes e de notório interesse público, mas sim ofender a Coca-Cola‖.
Embora o caso tenha sido judicializado para salvaguardar a respeitabilidade pública da
Coca-Cola, nada obsta que, em outra situação, as acusações de que foi inocentada a referida
empresa possam ser reavivadas com igual teor, sem a devida ressalva de que as acusações foram
infundadas. Nesta situação hipotética, teria a Coca-Cola o direito de requerer em juízo a tutela do
direito ao esquecimento, de modo a preservar sua imagem e sua respectiva credibilidade? É
possível concluir-se que sim, considerando-se alguns aspectos fundamentais, a saber: a
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possibilidade de extensão de certos direitos da pessoa física à pessoa natural (concebida como
conjunto de seres humanos ou de bens constituídos sob a forma da lei e aos quais se confere uma
personalidade distinta da personalidade dos seus integrantes); assim como a garantia de que a
atividade econômica desenvolvida pela empresa supracitada não sofra qualquer dano em função
de informações inverídicas veiculadas em quaisquer mídias.
A propósito, convém ressalvar que, conforme a Súmula 227 do STJ, “a pessoa jurídica pode
sofrer dano moral”. O referido dano decorre de violação à honra objetiva – e mesmo à imagem –
da pessoa jurídica. Considera-se que o dano moral da pessoa jurídica está muito mais associado
ao ―desconforto extraordinário‖ que afeta o nome e a tradição de mercado, com repercussão
econômica, do que aos atributos das pessoas naturais que compõem a empresa. Inclusive,
paraLuiz Alberto David Araújo19,a imagem deve ser classificada necessariamente em dois
grupos: imagem-retrato e imagem-atributo. A primeira mais aplicável à pessoa natural e a
segunda aplicável também em relação à pessoa jurídica, por constituir-se de um conjunto de
atributos de uma pessoa (física ou jurídica) identificados no meio social. É o que se chama de
―retrato moral‖. Destarte, viola-se a imagem-atributo toda vez que se ataca a imagem moral do
indivíduo ou de uma empresa.
Sob essa premissa, depreende-se que qualquer empresa que se constitua legalmente como
pessoa jurídica – de acordo com os pressupostos do art. 45 do Código Civil e segundo a teoria da
realidade das instituições jurídicas, defendida pelo constitucionalista francês HAURIOU – é
dotada de personalidade, o que lhe confere a possibilidade de assumir obrigações e contrair
direitos (direitos à personalidade, direitos reais e industriais, sobretudo) na ordem civil. Isto
ocorre porque tanto a pessoa natural quanto a jurídica apresentam certa identidade comum: ambas
têm nome; ambas têm domicílio; ambas têm patrimônio, bem comopossuem uma reputação a
zelar, admitindo-se, por isso, o dano moral para a pessoa jurídica, desde que seja para proteger
sua honra objetiva, dado o conceito e a credibilidade que tem na sociedade. Logo, se a pessoa
jurídica é susceptível de ser lesionada moralmente em sua imagem e, por conseguinte, demandar
reparação pelos danos que vier a sofrer, também por extensão, tem o direito de requerer
judicialmente a tutela ao seu respectivo direito ao esquecimento de quaisquer atos ou fatos em
19
ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção Constitucional da Própria Imagem. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
Pag. 74.
Página 133 de 270
que tenha sido envolvida e cuja divulgação contínua possa acarretar consideráveis danos ao
exercício de sua atividade econômica.
Reexaminando o caso em apreço, a título de análise meramente exemplificativa – tendo
em vista que não houve qualquer requisição judicial por parte da Coca-Cola no sentido de
resguardar-se seu direito ao esquecimento dos fatos anteriormente citados –, cumpre apontar para
o inequívoco direito de ter garantido o esquecimento do que foi objeto de litígio. Primeiro,
porque após devida apuração mediante farta e diversificada comprovação dos fatos, as acusações
imputadas à Coca-Cola se evidenciaram infundadas; segundo, porque caso se permitisse que os
fatos fossem novamente divulgados ou permanecessem constantemente ativos (e mesmo
reativados) sem as devidas ressalvas, poderiam implicar em sérios prejuízos à marca, com
possível redução de vendas. E, por fim, porque constitui consenso de que a veiculação de
quaisquer informações inverídicas ou tendenciosas que possam causar prejuízo à imagem pública
de uma pessoa natural ou jurídica é passível de direito à retratação e de reparação por danos.
Sendo assim, em se comprovando irrefutavelmente que as informações mantidas em certas bases
de dados eletrônicas possam ocasionar perdas irreparáveis tanto materiais, quanto morais, é
razoável que se assegure à pessoa jurídica o direito ao esquecimento como forma de se
salvaguardar o direito ao trabalho e a livre iniciativa, estipulados pela Carta Magna como pilares
de nossa República Federativa do Brasil.
Portanto, constata-se que a extensão do direito ao esquecimento à pessoa jurídica
representa possibilidade efetiva e imprescindível à defesa do seu direito à imagem, embora sua
aplicação não possa ser automática ou simplória. É preciso ponderar a fim de não se tolher o
direito, no caso da imprensa televisiva, radiofônica ou impressa, de divulgar, de modo
contextualizado, fatos relevantes e de interesse público; por outro lado, deve-se sopesar o direito
ao esquecimento de atos e fatos cuja lembrança só tragam à memória o que possa constituir-se
em prolongamento de mal-estar que impeçam a continuidade do andamento normal da atividade
econômica desenvolvida pela pessoa jurídica. Em sendo possível constatar que o esquecimento
de certos fatos nocivos ao bom nome empresarial se revela crucial para o bom andamento das
atividades da pessoa jurídica, vigora a tese do direito ao esquecimento, conquanto não se esteja a
impedir o acesso dos cidadãos a informações (mormente verídicas) de conteúdo e interesse social
relevante.
Página 134 de 270
Conclusões
A tese do direito ao esquecimento ganha adeptos em idêntica velocidade com que suscita
confrontações. Como falar-se em esquecimento na sociedade da informação? Como apagar da
memória coletiva dados e informações, sem que se possa validamente atestar violação ao direito
fundamental de liberdade de expressão? Seria viável, enfim, resguardar a hipótese de se
determinar a remoção ou apagamento de notícias e fatos, ao mesmo tempo em que se preserva o
direito ao conhecimento de informações que podem ser fundamentais à composição da cultura de
um povo?
As respostas a todos estes questionamentos não se revelam simples. É fato, todavia, que,
apesar de haver dificuldades para tal desiderato, torna-se possível contrapor as informações que
podem e devem ser rememoradas, de modo a se preservar a história de uma nação e de uma
sociedade, dos fatos que compõem apenas e tão somente a trajetória de vida de um indivíduo (ou,
ocasionalmente, de uma pessoa jurídica). Fatos inverídicos e desabonadores da honra, imagem,
privacidade e outros direitos que compõem a esfera da personalidade merecem o devido
esquecimento; mas, para além disso, até mesmo alguns fatos verídicos podem ser legados ao
esquecimento. Afinal, a verdade, fora de seu contexto, pode revelar mais do que deveria; mal
posta, em maus termos, a verdade pode induzir à mentira. Todo acontecimento tem seu contexto
histórico; isolada deste contexto, os fatos se perdem em sua essência e em seu lugar. E é neste
espaço, de difícil concretização (eis que se revela tarefa árdua precisar o que é ou não
componente da memória coletiva ou apenas da vida privada das pessoas), que reluz a tese do
direito ao esquecimento.
Em relação às pessoas naturais, cuja dignidade deve ser preservada, e mesmo quanto às
pessoas jurídicas, cuja honra objetiva e interesses patrimoniais merecem resguardo jurídico, é
possível invocar-se, pois, um direito ao esquecimento. Trata-se não mais do que deixar que as
pessoas, afinal, sejam deixadas em paz, e possam seguir suas trajetórias sem que sejam atingidas
pelas mágoas e máculas do passado.
Referências
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a
sofrer
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Página 135 de 270
<http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2012-09-29/ha-20-anos-fernando-collor-demello-foi-primeiro-presidente-do-brasil-sofrer-processo-de-impeachment>
Acesso
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Disponível
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<http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=visualiza_noticia&id_caderno=20&id_noticia=86206>Acesso
em 22 de maio de 2014.
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DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro.Volume I, 22ª ed. São Paulo: Editora
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Página 137 de 270
DIREITO À INTIMIDADE À LUZ DA AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.815 DISTRITO FEDERAL
Marcela Santiago Pereira de Melo1
Maria Cristina Paiva Santiago2
Resumo: O presente artigo pretende expor as divergências entre os direitos da
personalidade e a liberdade de expressão, adotando comoparadigma a Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4815 Distrito Federal. Iniciamos o estudo com a constitucionalização
do direito privado, que surgira no Brasil ao final do século XX, e trouxe consigo inúmeras
mudanças tanto na nossa Constituição, quanto no Código Civil. Continuamos com a
conceituação de dignidade da pessoa humana, com o objetivo de esclarecer a base do Novo
Código Civil, voltada para o valor humanitário, e também o foco da nossa Constituição. Ao
adentrarmos nos direitos da personalidade, passamos a explanar as divergências
existentesentre odireito à intimidade, à privacidade e o direito à informação, à liberdade de
expressão e de imprensa. Tem como objetivo específico o estudo dessa dicotomia e a
análise do caso que chegou ao Superior Tribunal de Justiça acerca das biografias. A
presente pesquisa será feita mediante disposições doutrinárias, buscando remover o tema
discutido do âmbito teórico para o prático. Visto que a colisão entre os direitos da
personalidade e os direitos à informação não possuem uma construção legislativa ampla,
nosso estudo fora realizado por método dedutivo, baseando-se nos direitos fundamentais
listados na Constituição Federal, para que dessa forma possamos compreender melhor o
confronto existente entre tais direitos e suas consequências.
Palavras-chave: Constitucionalização do direito privado; Dignidade da pessoa humana;
Direitos da personalidade; Liberdade de expressão; Liberdade de imprensa.
Resumé: Cet article vise à exposer les différences entre les droits de la personnalité et de la
liberté d'expression, en prenant comme exemple l'action directe en inconstitutionnalité 4815
District fédéral. Nous avons commencé l'étude avec la constitutionnalisation du droit privé,
1
Bacharela no curso de direito do Unipê, email: [email protected]
Maria Cristina Paiva Santiago, professora de direito do Unipê e da Universidade Federal da Paraíba, email:
[email protected]
2
Página 138 de 270
qui a émergé au Brésil à la fin du XXe siècle et a apporté de nombreux changements à la
fois dans notre Constitution, comme dans le Code civil. Nous continuons avec le concept
de la dignité humaine, afin de clarifier la base du nouveau Code civil, dirigé à la valeur
humanitaire, et aussi la mise au point de notre Constitution. En traitant des droits de la
personnalité, nous expliquons les différences entre le droit de l'intimité, à la vie privée et le
droit à l'information, la liberté d'expression et le droit de la presse. Nous avons, comme
objectif spécifique de l'étude, cette dichotomie et l'analyse de l'affaire qui a atteint la Cour
suprême sur les biographies. Cette recherche se fera par des déclarations doctrinales,
cherchant à retirer le sujet discuté du domaine théorique à le domaine pratique. Depuis la
collision entre les droits de la personnalité et le droit à l'information n'a pas de structure
législative approfondie, notre étude a été réalisée par la méthode déductive, basé sur les
droits fondamentaux énumérés dans la Constitution, de sorte que, de cette manière, nous
pouvons mieux comprendre la confrontation existante entre ces droits et leurs
conséquences.
Mots-clés: Constitutionnalisation du droit privé; Dignité humaine; Droits de la
personnalité; Liberté d'expression; Liberté de la presse.
Introdução
Para apresentar o devido trabalho, o intitulamos como: Direito à Intimidade à luz da
Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 4.815 Distrito Federal.
Temos que a questão debatida pelo tema é bastante atual, por existirem diversas
controvérsias e discussões a respeito do direito à intimidade e à privacidade em confronto
com as liberdades de informação.
O determinado estudo expõe as ponderações entre mencionados direitos e garantias
fundamentais, que são a base do nosso ordenamento jurídico, voltado sempre para a tutela
da dignidade humana.
Diante do empasse entre os ícones dos direitos da personalidade, em especial, os
direitos à imagem, à honra, à intimidade, à privacidade, nome e os direitos de informação,
liberdades de expressão, de imprensa, aplicaremos a análise no caso prático perante um
Página 139 de 270
julgamento ocorrido no Superior Tribunal Federal, acerca das biografias, tido como: Ação
Direta de Inconstitucionalidade 4815 Distrito Federal.
Desse modo, podemos vislumbrar mais ainda a importância do tema abordado se
considerarmos a sociedade do nosso país nos dias de hoje, e se pesarmos também, o avanço
tecnológico, virtual e informativo em que vivemos, capaz de propagar notícias de maneira
desenfreada e incontrolável. Por isso, nos vêm as seguintes perguntas: até onde irá o direito
à informação e o direito à privacidade? A sociedade pode se informar, mas a vítima ou a
família da vítima não possui o direito à intimidade? Qual direito se sobrepõe em face do
outro?
A humanidade passou por diversas atrocidades e perdas, causando assim um certo
receio em qualquer movimento que demonstrasse o mínimo de censura em seus direitos.
Todavia, sabemos que os direitos fundamentais devem ser ponderados em cada caso
concreto, passando por uma certa relativização evisando sempre condutas que não causem
danos a outrem.
No caso, o direito que prevalecerá é aquele que apoia a proteção do homem, que o
defende e conserva a sua dignidade. Nessa ótica, discutiremos durante toda a pesquisa
sobre a melhor maneira de por tal direito em prática.
As questões problemáticas do tema são encontradas no nosso dia dia, por estarmos
sempre rodeados de informações, pela internet, celulares, televisões, jornais; é impossível
não ser manter informado sobre algo ou alguém. Dessa maneira, o avanço na tecnologia,
apesar de trazer muitos benefícios, acaba de certa maneira afetando a vida privada das
pessoas, pois, a qualquer momento podemos acessar informações sobre elas ou qualquer
outro tema.
Por isso, é preciso discutir como se deve agir diante de tais situações que
confrontam à nossa intimidade, pois se não houver uma atenção maior, este mundo
informativo pode chegar a atingir nossa imagem, nossa honra, nosso nome e, por fim, nossa
dignidade.
Então, por abordarmos um tema amplo, não é possível estudá-lo isoladamente,
sendo indispensável iniciarmos pelos primórdios da reforma no Código Civil, em que o
centro de estudo passa do patrimônio para a tutela do ser humano e adentrar nas garantias
fundamentais, que pressupõem qualquer outro tipo de direito, como a liberdade de
Página 140 de 270
expressão, liberdade de imprensa e direito à informação, quesitos regulares e assegurados
pela nossa Constituição.
Contituçionalização do direito privado e dignidade da pessoa humana
Para
a
exata
compreensão
do
sentido
e
alcance
do
fenômeno
da
constitucionalização, primeiramente revisitaremos alguns teóricos para, em seguida,
abordarmos o tema da constitucionalização.
Assim, para Hans Kelsen, em sua obra ―Teoria Pura do Direito‖, a hierarquização
das normas, onde através de uma ―pirâmide jurídica‖, explicita que logo em seguida a uma
norma hipotética fundamental, a Constituição deve estar acima de normas gerais (leis,
costumes, valores, decretos, jurisprudências) e normas individualizadoras (decisões
judiciais e negócios jurídicos)3.
Desse modo, afirma José Afonso da Silva:
A Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, que
confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na
medida em que ela o reconheça e na proporção por ela distribuídos.
É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a
própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela
que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se
notará a sua superioridade em relação às normas jurídicas4.
Seguindo essa mesma linha de pensamento, tal tese fora aceita por grandes
pensadores, dentre os quais destacamos Noberto Bobbio, filósofo italiano defensor do
positivismo jurídico, que em sua obra ―Teoria do Ordenamento Jurídico‖, atesta que:
[...]essa teoria serve para dar uma explicaçaõ da unidade de um
ordenamento jurídico complexo [...] a norma fundamental é o termo
unificador das normas que compõemum ordenamento jurid́ ico [...]
sem uma norma fundamental
, as normas constituiriam um
amontoado, não um ordenamento5.
3
4
5
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito.1934,p.246-247
SILVA, José Afonso da.Curso de Direito Constitucional Positivo.1989, p. 45
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.1994, p.49
Página 141 de 270
A partir dessas ideologias foram verificadas divergências às diretrizes que o
ordenamento jurídico se encaminhava, fazendo-se necessário uma atualização do direito em
um plano geral.
O
fenômeno
que
concretizou
tal
renovação
ficou
conhecido
como
a
constitucionalização do direito privado, que se dá pelasregras embasadas no âmbito do
direito constitucional. Como mudança, pode-se constatar que os princípios constitucionais
estão cada vez mais presentes no texto civil, provocando, inclusive, uma reforma
neste.Desta feita, veio à tona o Código Civil de 2002, onde o centrodo sistema privado
deixa de ser o patrimônio e passa para a tutela da pessoa humana, assim como afirma Paulo
Lôbo6.
Desse modo, o evento que podemos também chamar de repersonalização do direito
civil desviou-se do foco material, para dar ênfase à dignidade da pessoa humana,
centralizando-a no nosso ordenamento jurídico7.
Também, nessa linha de pensamento, diz Eugênio Facchini:
O patrimônio deixa de estar no centro das preocupações privatistas
(recorde-se que o modelo dos códigos civis modernos
, o Code
Napoleon, dedica mais de 80% de seus artigos à disciplina jurídica
da propriedade e suas relações), sendo substituído pela
consideraçãocom a pessoa humana8.
Ainda sobre o assunto, o desmembramento original entre as áreas do direito em
público e privado, ocasionou com o tempo, uma individualização do direito civil no tocante
as demais vertentes, máxime ao direito constitucional9.
Nesse sentido, Tereza Negreiros explica que:
[…] oparalelismo entre direito civil e direito constitucional fica
representado pela existência de duas ‗Constituições‘: ao lado da
Constituição dirigida à disciplina da vida pública, o Código Civil
era concebido como a ‗Constituição da vida privada‘, baseada na
propriedade e no contrato10.
6
LÔBO, Paulo. Artigo sobre: Constitucionalização do direito civil: novas perspectivas.2013
LÔBO, Paulo. Artigo sobre: Constitucionalização do direito civil: novas perspectivas.2013
8
FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito
privado. 2006, p. 212
9
PASTRE, Daniel Fernando. Efeitos da Constitucionalização do Direito Privado na Interpretação dos
Contratos: Análise Doutrinária e Jurisprudencial. 2011.
10
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato – novos paradigmas.2006, p. 49
7
Página 142 de 270
Como vem sendo elaboradopelos estudos dos civilistas, não se trata, apenas, de
estipular a necessária comunicação entre os diversos conhecimentos jurídicos, com
destaque entre o direito público e o direito privado. Não há, tão somente, a intenção de
apurar a inclusão do direito civil na Constituição jurídico-positiva, mas os princípios de sua
legalidade, que dela devem ser retirados11.
Breves Ponderações Históricas Sobre A Constitucionalização
Para Silva, o marco inicial da constitucionalização do direito privado, ocorre com o
caso Luth12, onde a decisão do Tribunal Constitucional Alemão se manifestou, dizendo:
A Constituição, que não pretende ser uma ordenação
axiologicamente neutra, funda, no título dos direitos fundamentais,
uma ordem objetiva de valores, por meio da qual se expressa um
(...) fortalecimento da validade (...) dos direitos fundamentais. Esse
sistema de valores, que tem seu ponto central no livre
desenvolvimento da personalidade e na dignidade humana no seio
da comunidade social, deve valer como decisão fundamental para
todos os ramos do direito; legislação, administração e
jurisprudência recebem deles diretrizes e impulsos13.
O supracitado caso, influenciará bastante o direito constitucional, manifestando-se,
assim, toda a organização da constituição como relação de valores e da eficácia transmitida
dosdireitos fundamentais, entendendo-se por eficácia perante terceiros14.
11
LÔBO, Paulo. Artigo sobre: Constitucionalização do direito civil: novas perspectivas.2013
Sobre o caso Luth, Murillo Sapia Gultier explica que: ―no caso concreto, um cineasta fez um filme e um
jornalista propagou uma grande campanha de boicote, dizendo que o cineasta era nazista. Entretanto, o filme
em si nada falava acerca do nazismo, consistindo em uma comédia romântica. O boicote era em razão do
cineasta e de seu pretenso passado e não quanto ao filme. A represália surtiu efeito e o filme fracassou,
resultando em prejuízo ao cineasta que investiu na produção. Em razão disso, o cineasta ingressou com um
pedido de indenização, com base em uma norma do Código Civil Alemão, a qual prevê que todo aquele que
causa dano ao outrem tem o dever de indenizar. O cineasta logrou êxito nas instancias originárias, mas a corte
constitucional reverteu o julgamento, uma vez que entendeu que as normas do ordenamento devem ser
interpretadas à luz dos valores propostos pelos direitos fundamentais. Assim, em que pese o dispositivo do
Código Civil Alemão determinando a indenização, este deveria ser interpretado de acordo com o direito
fundamental de liberdade de expressão‖. (GULTIER, 2010)
13
SILVA, José Afonso da.Curso de Direito Constitucional Positivo, 2005, p. 42
14
GUTIER, Murillo Sapia.Constitucionalização do Direito Civil: A eficácia da Constituição e dos Direitos
Fundamentais no direito privado.2010
12
Página 143 de 270
No Brasil, a constitucionalização do direito civil, fortalecida a partir da última
década do século XX, foram realizadas diversas pesquisas e estudos, que trouxeram à tona
a dimensão dos valores discutidos e a insuficiência na codificação do ordenamento jurídico,
obrigando, dessa forma, à inserção das regras constitucionais no tocante a crucial relevância
da pessoa humana, que sobrepõe-se, imensuravelmente, sob a idéia patrimonialista15.
Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo necessitava de uma ordem que
respeitasse os direitos dos seres humanos. Após sofrerem inúmeras barbáries que vetassem
seus direitos à liberdade em sentido amplo, fora proclamada a Declaração Universal de
Direitos Humanos – DUDH, marco inicial para o ápice da humanização dos direitos e
garantias fundamentais16.
Como visto no preâmbulo da Declaração Universal de Direitos Humanos, destacase sem cessar, os direitos e liberdades de todos, à igualdade, o reconhecimento da dignidade
e do valor do ser humano, e a importância da compreensão de todos esses princípiospara o
seu devido cumprimento.
Lembramos nessa oportunidade, que a referida declaração inspirou a criação de um
tratado, conhecido como Pacto de San José da Costa Rica, que fora assinado entre os
integrantes da Organização dos Estados Americanos - OEA, durante a Conferência
Especializada Interamericana sobre direitos humanos, passando a vigorar no dia 18 de julho
de 197817.
A Convenção tem por objetivo fixar um regime de liberdade pessoal e de justiça
social, fundado no respeito dos direitos humanos essenciais, sendo estes fundamentados nos
próprios atributos da pessoa humana, e não derivando do fato de ser ela nacional de
determinado Estado, como prescreve o preâmbulo do supracitado pacto, de modo que
conclui-se a eficiência da Declaração Universal de Direitos Humanos no ordenamento
jurídico em geral18.
Conforme, Ingo Wolfgang Sarlet, em sua discussão sobre os pontos de contato entre
a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, cita que:
15
LÔBO, Paulo. Constitucionalização do direito civil: novas perspectivas.2013
SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 2011, p. 76
17
Decreto Nº 678: Pacto de São José da Costa Rica. 1992, p. 1
18
Declaração Universal dos Direitos Humanos.1948, p. 2-3
16
Página 144 de 270
[...] a Constituição, a despeito de seu caráter compromissário,
confere uma unidade de sentido, de valor e concordância prática ao
sistema de direitos fundamentais, que, por sua vez, repousa na
dignidade da pessoa humana, isto é, na concepção que faz da pessoa
fundamento e fim da sociedade e do Estado, razão pela qual se
chegou a afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana
atua como o ―alfa e ômega‖ do sistema das liberdades
constitucionais e , portanto, dos direitos fundamentais19.
A dignidade da pessoa humana como parâmetro em nossa Constituição, a torna, por
primazia, diante do reconhecimento e proteção ao ser humano, puramente voltada ao
interesse do indivíduo, fazendo, por conseguinte, com que esse princípio afirme-se com
legitimidade, conforme evidencia o artigo 5º da Constituição20.
Sobre o modo como é interpretado a utilização da dignidade da pessoa humana, são
muitas as controvérsias existentes, pois, apesar desse fundamento intervir como agente
primordial dos direitos e garantias fundamentais, há uma vasta visão à respeito da conexão
entre eles.Oessencial, porém, é compreender que em meio às diversas minúcias da
Constituição Brasileira, apesar de nem sempre haver uma ligação direta de que a causa dos
direitos fundamentais seja explicitamente a dignidade da pessoa humana, não a diminui em
continuar como parâmetro primordial e via de significado ao conjunto dos direitos
fundamentais21.
Vale ressaltar que:
[...] a idéia de acordo com a qual o princípio da dignidade da pessoa
humana imprime unidade de sentido ao sistema de direitos
fundamentais não resulta imune a controvérsias, visto que não
19
SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988.2011, p. 91
20
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes
às emendas constitucionais.
21
SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988.2011, p. 94
Página 145 de 270
afasta alguns pontos problemáticos, a começar pela ampla gama de
conteúdos e dimensões que se atribui à noção de dignidade da
pessoa humana em si, bem como na já referida, e não
necessariamente linear e incontroversa, relação entre a dignidade e
os direitos fundamentais22.
Segundo o firmado por Jeremy Waldrom, a dignidade pode ser tanto o parâmetro
dos direitos humanos e fundamentais, como o conteúdo desses direitos, dando-se o nome de
―dualidade de usos‖, mas, que não se trata de um conflito sobre qual função de dignidade
será aplicada23.
O fato é que o princípio da dignidade, como outros fundamentais expostos em nossa
Constituição, conclui-se por critério material em diversas esferas. E que cada vez mais as
sentenças adotadas em nossos Tribunais são baseadas unicamente na violação da dignidade,
sem qualquer pressuposto aditivo, explanando os motivos pelos quais uma conduta é
ofensiva a tal princípio. Na circunstância, consequentemente, elenca a dignidade como
solução fundamental para as controvérsias existentes, porém, ocorre também o oposto, pois
muitos casos terminam por contribuir mais para uma desvalorização do princípio, do que
para sua eficácia24.
São várias as decisões tomadas, partindo do pressuposto da dignidade humana,
como bem lembra Sarlet, nos seguintes exemplos:
[...]em relação aos casos de prisão civil na ordem jurídica brasileira,
cumpre apontar a mudança de orientação por parte do Supremo
Tribunal Federal, que a despeito de reconhecer – diversamente do
julgado do Superior Tribunal de Justiça referido – apenas a
hierarquia supralegal dos tratados de direitos humanos (superando,
todavia, a tese anterior, da mera paridade ente tratado e lei
ordinária), considera revogada a legislação permissiva da prisão do
depositário infiel, invocando, além disso, os princípios da
proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana. Outra hipótese
demonstra – no nosso sentir, de modo adequado – a utilização da
dignidade da pessoa humana como fundamento da decisão (ainda
que não se cuide do único fundamento legítimo), diz respeito à
garantia de que uma pessoa idosa, acometida de doença grave,
22
SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988.2011, p. 94
23
WALDROM, Jeremy. Dignity and Rank.2007, p. 203-204
24
SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988.2011, p. 95-96
Página 146 de 270
mesmo tendo sido condenada à prisão pela prática de tráfico de
entorpecentes, possa ainda assim cumprir a pena em regime de
prisão domiciliar em regime fechado25.
Ainda, a decisão proferida no Recurso Especial nº 1120676 (15.12.2010), em que se
debatia o disposto no artigo 3º da Lei 6.194/74:
[...]às indenizações pelo fato da morte, conceito que, de acordo com
a exegese proposta pelo Ministro Paulo Tarso Sanseverino
(acompanhada dos demais julgadores, vencido o Relator), deve
abranger o nascituro, na condição de ser humano plenamente
formado, embora ainda no útero materno, portanto, ainda não
considerado pessoa na acepção do Código Civil. A matéria, de
qualquer sorte, é controversa e dialoga com outros aspectos de
relevo, inclusive no que diz com a proteção da dignidade nessa fase
do desenvolvimento humano, bem como no tocante ao
reconhecimento da titularidade de direitos humanos e fundamentais
ao nascituro e mesmo em etapas mais precoces. Assim, não sendo o
caso de aqui adentrar o debate, o que importa é a referencia a mais
uma decisão invocando a dignidade da pessoa humana e os direitos
fundamentais como parâmetro hermenêutico, no sentido de uma
interpretação conforme a dignidade e os direitos fundamentais26.
Destarte, resgatamos, enfaticamente, a necessidade do princípio da dignidade da
pessoa humana, posto como referencial no âmbito do processo hermenêutico, mesmo não
adentrando no mérito das próprias decisões, e de plena normatividade para a resolução dos
diversos conflitos jurídicos27.
Como precursores do princípio da dignidade, os direitos fundamentais também
devem ser utilizados não somente como critérios interpretativos para solucionar as
adversidades no plano fático, mas o peremptório de que diante da dignidade não há
dubiedade. Nessa lógica, afirma Alexandre Pasqualini, que:
[…] o fato de que ambos (dignidade e direitos fundamentais) atuam
no centro do discurso jurídico constitucional, como um DNA, como
um código genético, em cuja unifixidade mínima, convivem, de
25
SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 2011, p. 97
26
SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 2011, p. 97-98
27
SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988.2011, p. 98
Página 147 de 270
forma indissociável, os momentos sistemático e heurístico de
qualquer ordem jurídica verdadeiramente democrática28.
Assim, temos que levar sempre como parâmetro para a resolução dos conflitos
jurídicos, os direitos fundamentais dispostos em nossa Constituição, e, mais ainda,
priorizarmos a dignidade humana, que é a essência destes princípios básicos.
Tutela Dos Direitos Da Personalidade No Ordenamento Civil Brasileiro
Embora a maioria dos institutos jurídicos de direito civil tenham surgido na
Antiguidade Romana, a tutela dos direitos da personalidade não foi introduzida pelo Direito
Romano. Entretanto, podemos afirmar que na antiguidade clássica já se tinha notícia deuma
ação chamada de actio injuriarum (contra a injúria), que cuidava dos casos pertinentes à
violação contra a pessoa29.
Sendo assim,verificamos que não existia uma categoria jurídica que tutelasse os
direitos da personalidade, deixando muito vasto o real conceito e entendimento acerca
deles30.
Contudo, desde o pensamento clássico até os dias de hoje, notadamente por
influência do Cristianismo, pregava-se uma doutrina de valorização do ser humano. Nas
diversas religiões testemunhadas desde os primórdios da humanidade, em especial na cristã,
o texto bíblico do Antigo e Novo Testamento apresentava passagens no sentido de que o ser
humano fora feito à imagem e semelhança de Deus e que esse possui um valor próprio,
―que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento‖31.
Ainda,na antiguidade clássica, o direito à personalidade dependia da posição social
ocupada pelo indivíduo, tornando-o digno ou menos digno e, já no pensamento estóico,era
tida como qualidade própria do ser humano, que o diferenciava das demais criaturas32.
28
PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e sistema jurídico. 1999, p. 80-1.
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.134
30
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.135
31
SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 2011, p. 34)
32
SARLET, Ingo Wolfgang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 2011, p. 34-35)
29
Página 148 de 270
No entanto, apenas após a Segunda Guerra Mundial, seguidado enorme massacre
contra a humanidade, foi que o ser humano levou com seriedade a carência de uma ordem
totalmente voltada para à pessoa humana, que acautelasse sua própria raça, e assim, em
1948, expediu-se a chamada Declaração Universal de Direitos Humanos33.
Os diversos Códigos Civis foram retificados com o pós-guerra, pregando
diretamente os direitos da personalidade. Essas normas manifestaram-se de forma mais
explícita a partir do texto Constitucional de 1988, subsequente ao Projeto do Código Civil
elaborado por Orlando Gomes, na década de 60. Tal projeto compreendia 16 artigos, que
serviram de base para a formação das normas vigentes34.
Mas, foi somente o Código Civil de 2002 que reconheceu verdadeiramente os
direitos da personalidade, elencando-os dos artigos 11 ao 21 e trazendo consigo uma nova
imagem ao direito privado na pós-modernidade, dando início a grandes mudanças de
comportamento e compreensão de institutos jurídicos.35Nessa sequência, sobre os direitos
da personalidade, temos que:
[...] os chamados direitos da personalidade, enraizados na esfera
mais íntima da pessoa e não mensuráveis economicamente, voltados
à afirmação dos seus valores existenciais.Em sendo assim,
considerando que a personalidade é um conjunto de características
pessoais, os direitos da personalidade constituem verdadeiros
direitos subjetivos, atinentes à própria condição de pessoa.Enfim,
no dizer de Inácio de Carvalho Neto e Érika Harum Fugie, são eles,
verdadeiramente, a medula da personalidade36.
Esses direitos concorrem para o desenvolvimento da pessoa humana, abrangendo-a
em toda sua formalidade (física, psíquica e intelectual), tornando-a como ser único, regido
por suas determinadas características e com seus direitos assegurados para a preservação de
tal individualidade e consequentemente, de sua dignidade37.
Diante de tudo o que foi visto, podemos afirmarserde extrema importância a
fundamentação de uma doutrina voltada para a valorização do ser humano, tendo toda ela,
33
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.135.
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.135
35
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.136
36
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.136
37
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.137
34
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desde os primórdios dos pensamentos históricos, influenciado sua implementação no
campo jurídico atual. Segundo Immanuel Kant, um dos principais precursores desta teoria,
temos que :
O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como
um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso
arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas
ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que s
dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado
simultaneamente como um fim...Portanto, o valor de todos os
objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre
condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da
nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres
irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se
chamam coisas, ao passo que os seres irracionais se chamam
pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si
mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como
simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o
arbítrio (e é um objeto de respeito)38.
O ditame sobre as fontes dos direitos da personalidade são bastante discutidas,
dividindo-se entre as razões jusnaturalistas e positivistas. Porém, no nosso ordenamento
jurídico, prevalece que esses direitos são construídos no plano do direito positivo, e não
meramente inerentes ao ser humano, como defende a corrente do direito natural, ainda
propagada entre muitos doutrinadores39.
Desse modo, podemos afirmar que surgiu uma necessidade social e apreensão
propagada pelo avanço cultural devido a indiferença da era moderna e o desinteresse do
Estado para com as questões humanitárias. Assim, o ser humano viu-se na responsabilidade
de agir e criar uma política que o desviasse de qualquer fato comprometedor da sua
integridade, encorajando, portanto, os tribunais germânicos a serem os precursores no
âmbito dos direitos da personalidade40.
Porém, essa luta se difunde até os dias atuais em países ainda adeptos a formas de
punição que maltratam a dignidade do homem, como os seguintes exemplos:
38
KANT, Emmanuel. Fundamentos da Metafísica dos Costumes.1785, p. 134-135
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.138
40
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.139
39
Página 150 de 270
[...] situações ainda hoje existentes, nas quais queda inerte a tutela
da humana, como nos países muçulmanos com suas penas
corporais, nos países africanos com suas cirurgias de mutilação dos
órgãos sexuais femininos e nos países que admitem a pena de
morte. [...] Outro exemplo eloquente diz respeito aos direitos
autorais que, embora classificados como direitos da personalidade,
não são, às escâncaras, inatos, destruindo a tese jusnaturalista.
Enfim, como afirmou Hannah Arendt, em passagem eloquente e
célebre, ―os direitos humanos não são um dado, mas um
construído‖41.
Não obstante, os direitos da personalidade se firmaram no ordenamento jurídico
brasileiro, tomando uma dimensão geral e abrangendo todos os ramos do direito. Esses
direitos têm como característica fundamental sua indisponibilidade relativa, com exceção
dos casos previstos em lei, que podem ser cedidosao exercício, como por exemplo o direito
à imagem, capaz de ser transmitido atítulo oneroso ou gratuito42.
A concessão dos direitos da personalidade é exequível, desde que não seja de
natureza absoluta e genérica, ou seja, não pode ser perpétua.Essa permissão precisa ser
passageira e singular, ainda respeitando a dignidade do titular.Ninguém pode renunciar ao
direito da sua própria dignidade, pois, esta lhe é concedida em decorrência da sua condição
humana43.
Ainda sobre o assunto, temos como exemplo:
[...] uma pessoa que consente em participar de um programa de
televisão em que a sua integridade física é aviltada. No caso, a sua
aquiescência é irrelevante, pois atenta contra a sua dignidade. Bem
ilustra a hipótese, o interessante acórdão prolatado pelo Conselho
Constitucional da França no célebre caso do ―arremesso de anões‖.
Trata-se de importante precedente da jurisprudência francesa,
cuidando de um estranho jogo, no qual os anões eram lançados à
distância, com o auxílio de um canhão de pressão. Insurgindo-se
contra decretos das prefeituras locais onde o jogo era praticado,
proibindo a diversão pública, os promotores do jogo (e, pasmem!
Os anões em litisconsórcio com os organizadores da diversão)
ingressaram com medidas judiciais tendendo à liberação do
certame. Confirmando a vedação administrative, a Casa Judicial
41
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.139
42
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.140-141
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.141
43
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francesa reconheceu que o ―respeito à dignidade humana, conceito
absoluto que é, não poderia cercar-se de quaisquer concessões em
função de apreciações subjetivas que cada um possa ter a seus
próprio respeito. Por sua natureza mesma, a dignidade da pessoa
humana está fora do comércio44.
Deste modo, devemos lembrar que esses direitos possuem também a característica
de vitalícios, atingindo sua extinção com a morte do titular, o que constata a sua
intransmissibilidade45.
Ressaltamos que, a tutela da personalidade jurídica de um morto permanece, assim
como a de uma pessoa viva, como bem nos lembra o artigo 12 do Código Civil:
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da
personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras
sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para
requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou
qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau46.
Então, mesmo queestedireito seja intransmissível, se propaga o direito à indenização
e àreparação do dano moral, ou seja, uma transmissão no caráterpatrimonial,abrangendo os
lesados em linha diretaou colateral até o quarto grau, assim como o previsto em lei47.
Direito Da Personalidade Nas Relações Privadas: Direito À Intimidade Versus
Liberdade De Expressão No Estado Democrático De Direito
De acordo com os artigos do Código Civil que tratam dossupracitados direitos
personalíssimos, encontramos os seus principais ícones que se inserem nos aspectos
fundamentais da personalidade, como por exemplo: honra, imagem48, nome, privacidade49,
dentre outros50.
44
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.141-142
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p.143.
46
Código Civil. 2002
47
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p. 144
48
Vale a pena citar o texto de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, em que ―a imagem corresponde
à exteriorização da personalidade, englobando, a um só tempo, a reprodução fisionômica do titular e as
sensações, bem assim como as características comportamentais que o tornam particular, destacado, nas
relações sociais‖. (FARIAS E ROSENVALD, 2009, p. 186)
45
Página 152 de 270
Quanto a estes ícones existem diversas discussões entre os doutrinadores brasileiros,
pois não são abordados de forma específica pelo código. Tal fato ocorre porque o
surgimento de novos valores incorporados na sociedade surgem à medida que a ciência e
tecnologia avançam, e, por isso, é preciso compreender que estes direitos abrangem uma
cláusula geral de proteção da personalidade.Esta universalidade dos direitos existe pois, ―na
velocidade em que se operam as novas descobertas científicas e tecnológicas e
considerando o estágio evolutivo da ciência‖, faz-se necessário uma proteção geral da
personalidade, ―de modo a salvaguardar a tutela da pessoa humana‖51.
Nesse sentido, pela característica desses direitos inesgotáveis, amparados por essa
ampla defesa, temos que:
[...] considerando a multiplicidade de situações a que se expõe a
pessoa humana na (pós) modernidade, somente com o
reconhecimento de uma cláusula geral de proteção (CF, art. 1º, III),
de conteúdo principiológico, a ser preenchido no caso concreto pela
jurisprudência, auxiliada pela doutrina, é que se pode garantir,
eficazmente, a tutela da pessoa humana, impedindo violações das
mais variadas naturezas ao ser humano52.
Ainda sobre as citadas espécies de direitos personalíssimos, identificamos entre elas
um fator comum: são tuteladas pela integridade psíquica. Todas regem a higidez mental do
ser humano, que sem elas, perderia automaticamente sua dignidade53.
Com a evolução da modernidade, esses direitos ficaram cada vez mais vulneráveis,
sendo a Internet54principal ferramenta de tantos atentados à integridade moral, abrangendo
um mundo digital fácil e rápido capaz de ofenderem inúmeras maneiras à dignidade
humana55.
49
Quanto à privacidade: ―Trata-se, pois, da vida pessoal do ser humano, perpassando de um aspecto interior,
incluindo aspecto amoroso, sexual, religioso, familiar, sentimental de uma pessoa, até um aspecto externo,
muito mais amplo. É que o direito à vida privada trascende o direito de estar só. Não que este aspecto lhe seja
estranho, mas porque é mais do que isto. (FARIAS E ROSENVALD, 2009, p. 193)
50
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral.2009, p. 185
51
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 159
52
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 161
53
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 185
54
Internet – Rede mundial de computadores que conecta universidades, laboratórios governamentais,
indivíduos, etc. (DICIONÁRIO TROPICAL, 1998, p. 385)
55
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 158
Página 153 de 270
Quanto à imagem, segundo Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, ―constitui a
expressão exterior sensível da individualidade humana, digna de proteção jurídica‖.
Podemos afirmar, então, que o direito à imagem é de imensa magnitude por apresentar-se
tanto na Constituição Federal quanto no Código Civil, conforme os seguintes artigos56:
Constituição Federal de 1988
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem
das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material
ou moral decorrente de sua violação;
Código Civil de 2002
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da
justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos,
a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a
utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu
requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe
atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se
destinarem a fins comerciais. (Vide ADIN 4815)
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes
legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou
os descendentes.
A partir da leitura dos artigos acima transcritos, verificamos que se utilizado
qualquer meio capaz de ofender à imagem, intimidade, honra ou vida privada de outrem de
forma abusiva, atingindo de tal maneira que viole algumdesses direitos, suscitará ao infrator
a responsabilidade pelo dano moral ou material, obrigando-o a indenizar o ofendido.
Questão polêmica é a que envolve o conflito de direitos fundamentais.De um lado
tem-se o direito à intimidade, ao segredo, e de outro, tem-se o direito à liberdade de
expressão. Para ilustrar tal situação, passamos a análise do caso das biografias.
Análise Da Ação Direta De Inconstitucionalidade 4815 Distrito Federal
Nessa sequência, segue explicação da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815
Distrito Federal:
56
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo.Novo curso de direito civil.2010, p. 220
Página 154 de 270
O objeto da presente ação, como antes relatado, é exatamente a
interpretação de normas do Código Civil relativas à divulgação de
escritos, a transmissão da palavra, a produção, publicação,
exposição ou utilização da imagem de pessoa biografada,
distinguindo-se obras biográficas de outros conteúdos que podem
vir a ser divulgados, transmitidos, produzidos, publicados ou
expostos (arts. 20 e 21 do Código Civil) e que, submetidos às
normas de proteção daquele diploma legal, poderiam manter-se no
espaço mais alargado atualmente adotado nas regras jurídicas
vigentes e mesmo na jurisprudência predominante sobre a matéria.
Liberdade de expressão e direito à liberdade de expressão57.
Diante da decisão deferida pelo Supremo Tribunal Federal, pela relatoria da
Ministra Carmen Lúcia, nos deparamos com diversos embates de direitos fundamentais,
que de praxe se resumem no direito à intimidade versus direito à liberdade de expressão.
Nessa sequência, é importante adentrarmos na questão da limitação desses direitos,
que embora sejam vistos como primordiais e de caráter decisório, perdem essa
diferenciação, a partir do momento que colidem com as garantias fundamentais de proteção
à dignidade da pessoa humana58.
Na audiência pública da discutida ação, um dos argumentos utilizados para esta ser
deferida, foi o direito do cidadão à informação e à liberdade de expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação. Sabemos que em um Estado Demorático
de Direito, é crucial que exista a liberdade e direito de se informar e de ser informado, bem
como revela nossa Constituição, no seu artigo 5º59.
Nessa perspectiva, Luiz Alberto David Araújo, prescreve que:
O direito de informar, ou de passar informações, tem um sentido
constitucional de liberdade para informar. Em outras palavras, tratase de um direito fundamental de primeira geração, cuja preocupação
consiste em impeder que o Poder Público crie embaraços ao livre
fluxo das informações.
[…]
O direito de se informar traduz igualmente uma limitação estatal
diante da esfera individual. O indivíduo tem a permissão
57
Voto da Ministra Carmen Lúcia sobre a Publicação da Biografia. 2015, p. 27.
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 146
59
Voto da Ministra Carmen Lúcia sobre a Publicação da Biografia. 2015, p. 27
58
Página 155 de 270
constitucional de pesquisar, de buscar informações, sem sofrer
interferências do Poder Público, salvo as matérias sigilosas, nos
termos do art. 5º, XXXIII, parte final60.
Temos como destaque no texto acima, que o direito à informação também vem
presente na Constituição Federal, mostrando-se dessa maneira um direito fundamental tão
quanto os direitos da personalidade.
Desta maneira, diante desse confronto de direitos, ambos essenciais serem
respeitados para que haja harmonia e ordem nas relações sociais, nos vem a pergunta: qual
sofrerá limitações para a fixação do outro?
Para respondermos tal pergunta, adentramos no aspecto concreto dos casos, que
com suas particularidades, terão que ser solucionados na seara do Judiciário, acarretando na
maioria das vezes em perdas e danos61.
Por esse ângulo, Luis Roberto Barroso explica que:
A questão é saber a extensão do poder judiciário na resolução destes
conflitos entre direitos fundamentais, principalmente no que diz
respeito à possibilidade de impeder previamente a liberdade de
expressão em deferência à intimidade e à vida privada de
terceiros62.
Com isso, de acordo com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815, quanto ao
conceito de biografia, temos que:
[…] é a escrita (ou o escrito) sobre a vida de alguém, relatando-se o
que se apura e se interpreta sobre a sua experiência mostradae que,
não sendo mostrada voluntariamente, não foi autorizado pelo sujeito
ou por seus familiares a passarem para a coletividade. […] É a
história de uma vida. Essa não acontece apenas a partir da soleira da
porta de casa como anotado. Ingressa na intimidade sem que o
biografado sequer precise se manifestar63.
Deste modo, a partir do momento que a autorização para relatar a história da vida de
alguém, sua intimidade, suas relações pessoais e sua privacidade, for abdicada, como será
60
ARAUJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional.2003, p.110
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 146-147
62
BARROSO, Luis Roberto. Revista Trimestral de Direito Civil.2002, p. 365
63
Voto da Ministra Carmen Lúcia sobre a Publicação da Biografia.2015, p. 98
61
Página 156 de 270
possível controlar para que os direitos à integridade moral não sejam feridos?
Sabemos que o direito à liberdade de expressão e à informação, são tidos como
fundamentais para a existência de um país abençoado pela democracia, mas, não podemos
caracterizà-los como direitos absolutos, porque antes deles, está o âmago da nossa
Constituição, a própria dignidade do ser humano, o seu direito ao resguardo, à decência, a
sua moralidade.
Nesse sentido, preceitua Gilberto Haddad Jabur:
A liberdade de imprensa não é, a exemplo do direito que a institui
(liberfdade de pensamento), absoluta. O direito de informar não é
maior que outros direitos de igual envergadura, os quais, de tal
sorte, recebem o mesmo tratamento constitucional que observa,
decerto, temperamentos em prestigious dos valores sociais e éticos,
e, em primeiro plano, a dignidade humana64.
Como o discutido pelo embate, no plano bibiográfico, não apenas o bibiografado
sofrerá danos, mas também, no caso desse estar morto, o cônjuge, ascendentes ou
descendentes serão os lesionados responsáveis65.
Nessa perspectiva, para compreendermos melhor a importância da conservação dos
direitos perssonalíssimos diante dos direitos à liberdade de imprensa, informação e
expressão, devemos nos ater a preservação do ser humano. Assim comoconstata Cristiano
Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
Por isso, embora a liberdade de imprensa também se apresente
proteção especial e diferenciada, açada ao status de direito
fundamental constitucional, não poderá o seu exercício ultrapassar o
limite bem definido das demais garantias fundamentais. […] Em
casos tais (colisão de direitos da personalidade e liberdade de
imprensa), é certa e incontroversa a inexistência de qualquer
hierarquia, merecendo, ambas as figuras, uma proteção
constitucional, como direito fundamental. Impõe-se, então, o uso da
técnica de ponderação dos interesses, buscando averiguar, no caso
concreto, qual o interesse que sobrepuja, na proteção da dignidade
64
JABUR, Gilberto Haddad. Liberdade de Pensamento e Direito à Vida Privada: conflitos entres Direitos
da Personalidade. 2000, p. 336
65
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 144
Página 157 de 270
humana66.
Ante a citação acima, aproveitamos para mergulhar na maneira como lidar com
determinada colisão de direitos, pois, como explicita a passagem, é preciso o uso da técnica
de ponderação dos interesses, analisando cada caso concreto em sua peculiaridade e
mantendo como base de eleição, a proteção da dignidade humana67.
Ora, sabemos, pois, a importância da liberdade de informação e da imprensa,
especialmente no âmbito de pessoas públicas, que,sem dúvida, são tratadas com maior
evidência, e, mais ainda, quando certa notícia é em prol do interesse coletivo. Como bem
frisa Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: ―as liberdades públicas funcionam a
partir de garantias contitucionais impondo condutas positivas ao Estado para que estejam
assegurados os direitos da personalidade‖68.
Nesse aspecto, destacamos que:
Interessante hipótese é formulada por GUSTAVO TEPEDINO,
inspirado em STEFANO RODOTÁ,lembrando do politico que
professa um exacerbado moralismo e, posteriormente, é
surpreendido, pela imprensa, em situaçãoo que contradiz as idéias
pregadas. Conclui ser possível veicular a notícia desse caso, a bem
do interesse público. Identicamente, a divulgação de fatos que
envolvem sonegação fiscal comprovada não atenta contra os
direitos da personalidade, bem assim como não caracteriza abuso a
veiculação normal de informação sobre eventuais apurações
procedidas no âmbito de inquérito policial69.
Dessa forma, entendemos a presença da relativação no ordenamento jurídico
brasileiro, reconhecendo que não possuem caráter absoluto, nem são ilimitados, podendo
sofrer alterações a partir da hipótese apresentada70.
Conforme o debatido pela Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815, nos voltamos
a apresentá-la, ante uma ótica relativista, e recordamos um dos argumentos utilizados para
sua validade, em que, persistir na autorização para a publicação de uma biografia, seria uma
66
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 146
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 146
68
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 145
69
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 146.
70
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 146-147
67
Página 158 de 270
afronta à democracia, caracterizando-se em meio de censura71.
No instante, rebatemos com a seguinte tese de que o controle da liberdade de
imprensa não à proíbe de exercer seu papel, mas apenas ―põe na balança‖ sua conduta.
Logo, é normal numa abundante Constituição como a nossa, ―impor uma relativização no
exercício de todo e qualquer direito, quando colidir com outros valores, também
constitucionais, de proteção da pessoa humana‖72.
Nessa lógica, registra Edílsom Farias que, não é possível:
[…] confundir censura com controle jurisdictional da legalidade no
exercício da liberdade de comunicação social, que é função
reservada aos juízes e tribunais na democracia constitucional […]
Isto é, não constituem censura as medidas judiciais decretadas para
apurar a responsabilidade dos meios de comunicação social no
exercício de sua atividade informativa73.
Dessa forma, discernimos o caráter não absoluto dessas liberdades comunicativas,
diante de uma sociedade massificada pela quantidade de informações, que propaga notícias
sem o condão da veracidade, de cunho meramente sensacionalista, mas que, ao mesmo
tempo, são regras constitucionais fundamentais para nossa democracia, se, todavia,
respeitarema barreira de limites, propagando de forma saudável todo o tipo de publicação74.
Nesse ponto de vista, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, expôs em
seu artigo 11 que:
A livre manifestação do pensamento e das opiniões é um dos
direitos mais preciosos do homem: todo o cidadão pode portanto
falar, escrever, imprimir livremente à exceção do abuso dessa
liberdade pelo qual deverá responder nos casos determinados pela
lei75.
Assim sendo, chegamos a contemplar a utilização do instituto da ponderação de
interesses, em que o atrito existente entre os direitos da personalidade e a liberdade de
71
Voto da Ministra Carmen Lúcia sobre a Publicação da Biografia.2015, p. 62
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 147-148
73
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos. A Honra, a Intimidade, a Vida Privada e a Imagem
versus a Liberdade de Expressão e Informação. 1996, p. 284)
74
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 191-192
72
75
Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789, artigo 11
Página 159 de 270
expressão deverão ser solucionados conforme apreciação casuística, com a análise do caso
concreto, para assim definir qual direito triunfará sobre o outro76.
Considerações Finais
O meio informativo, a celeridade e o progresso tecnológico, não nos possibilita mais
viver sem que sejamos observados, fotografados, nem esquecidos. Hoje, até na hora da
nossa refeição, tiramos uma foto para publicar nas redes sociais a nossa comida. Pois bem,
o mundo virtual adentrou em nossa casa.
Conforme o embate discutido nos capítulos acima, entre direitos da personalidade e
liberdade de expressão, devem ser averiguados com cautela, tratando de cada caso concreto
pela sua singularidade e não esquecendo, no entanto, a premissa de priorizarmos a tutela da
dignidade humana.
Acerca da questão das biografias, é muito criticado por diversos doutrinadores o uso
da autorização para publicá-la, pois atestam que dessa maneira acaba ferindo as liberdades
de expressão, de informação, de pensamento e motivam a censura. Entretanto, não
concordamos com isto.
Sabemos que a biografia é a história da vida de alguém, das suas experiências,
relações pessoais, enfim, a sua imagem, intimidade, honra e privacidade são expostas de
alguma maneira. Logo nos perguntamos, como alguém pode ser privado do direito de
escolha sobre querer externar ou não sua vida?
De fato, entendemos que os fatos históricos, as notícias que interessam ao povo, não
podem e nem devem ser vetadas. É direito do cidadão ter acesso à todas as informações e
dever do Estado propagá-las, garantindo assim a seguridade social.
Por isso, o que verdadeiramente importa é o respeito aos limites impostos pela
colisão desses direitos fundamentais, optando sempre por àquele que protegerá a dignidade
do homem.
Finalmente, a razoabilidade se encontra na ponderação dos interesses, que deve
lidar com cada caso concreto, elegendo sempre o que irá beneficiar o ser humano.
76
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson.Direito Civil: Teoria Geral. 2009, p. 146-147
Página 160 de 270
Referências
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Civil
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Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/110406.htm>. Acesso em: novembro 2015
_______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:
promulgada
em
5
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1988.
Disponível
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso
em:
novembro 2015
_______.Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
<http://www.dudh.org.br/wp-content/uploads/2014/12/dudh.pdf>. Acesso em: novembro
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Decreto
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Disponível
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_______. Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789. Disponível em:
<http://http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Doc_Histo/texto/Direitos_homem_cida
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_______. Voto da Ministra Carmen Lúcia sobre a Publicação da Biografia. Disponível
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<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4815relatora.pdf>.
Acesso em: novembro 2015
ARAUJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. 7. Ed. São Paulo:
Saraiva, 2003
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HUMANIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL: ALERTA PARA
BANALIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DO HOMEM
Ana Flávia Velloso Borges d'Avila Lins1
Resumo: O presente artigo se propõe a apresentar os fenômenos da constitucionalização e
da humanização da seara jusprivatista, a partir de uma retrospectiva histórica das Teorias do
Direito, a fim de que sejam percebidos os benefícios e os riscos a serem enfrentados, após a
mudança do cenário jurídico-social. A modificação axiológica a que foi submetida a
Ciência Jurídica destaca o princípio da dignidade da pessoa humana como o pilar básico de
sua estruturação, evidenciando a preocupação com a essência do homem antes desassistida.
A positivação dos direitos da personalidade na Constituição de 1988 e posteriormente no
Código Civil de 2002 e o uso indiscriminado da dignidade do homem como fundamento
genérico em peças jurídicas são sintomas diametralmente opostos de vantagem e de
prejuízo, respectivamente, causados pelas alterações ocorridas no sistema. Uma nova
perspectiva é, então, enfocada, ao ser ressaltada a banalização da aplicação dessa regraprincípio, a partir da análise de casos concretos. Dessa forma, pretende-se reforçar a
importância da interligação das vertentes privada e pública, ressaltando a necessidade de
razoabilidade nesse estreitamento de relação, ao alertar para a tendente hipertrofia do
standard.
Palavras-chave: Humanização; Princípio; Dignidade; Personalidade; Ponderação.
Abstract: This article aims to introduce the phenomena of constitutionalization and
humanization of jusprivatista harvest, from a historical retrospective of Law Theories, so
that the benefits and risks are perceived to be faced, after changing the legal landscape social. The axiological modification that was submitted to Legal Science highlights the
principle of human dignity as the basic pillar of its structure, showing concern for the
essence of man before unassisted. The positivization of personality rights in the 1988
1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Voluntária do Projeto de Extensão ―Mediação:
Em busca de uma cultura de paz‖, sob a orientação da Profa. Raquel Moraes. Membro do Projeto de Iniciação
Científica sobre Direito Econômico, sob a orientação da Profa. Flavianne Bitencourt. Email:
[email protected].
Página 163 de 270
Constitution and later in the Civil Code of 2002 and the indiscriminate use of human
dignity as a general foundation in legal parts are diametrically opposed symptoms of
advantage and injury, respectively, caused by changes in the system. A new perspective is
then focused , to be emphasized the trivialization of application of this rule-principle, based
on the analysis of concrete cases .Thus, we intend to reinforce the importance of links
between private and public aspects, emphasizing the need for reasonableness in this closer
relationship, aimed to draw attention to the standard of hypertrophy.
Key words: Humanization ; Principle; Dignity; Personality; Weighing.
Introdução
O Direito, no Brasil, possui um histórico cunho econômico, bastando-se observar a
dedicação dos instrumentos à regulação de bens e de contratos majoritariamente. O estudo
das teorias jusnaturalista, juspositivista e pós-positivista atrelado aos acontecimentos
sociais permite um entendimento conjuntural de que a codificação, a constitucionalização e
a humanização da Ciência Jurídica são resultados interligados que evidenciam o papel
central crescente e inovador do ser humano.
A compreensão da transição entre o enfoque do Código Civil para o destaque da
Constituição requer uma noção básica de que o jusprivativismo puro cedeu lugar para a
relativização das regras positivadas, em detrimento das normas principiológicas que regem
o sistema internacional e adentraram no âmbito interno. O fenômeno da humanização,
então, simboliza essa abstração ocorrida na seara privada, através principalmente da
inserção da dignidade do homem como axiologia básica de todo o Direito.
Os civilistas se veem hodienarmente aproximados dos direitos fundamentais
constitucionais, uma vez que a interligação se estabeleceu precisamente. Percebeu-se a
ascensão dos direitos da personalidade, em virtude de sua positivação, como resultado
efetivo benéfico dessa transformação do sistema. Por outro lado, o standard da dignidade
da pessoa humana foi recebido pelos juristas como ferramenta de uso genérico, na
expectativa de que serviria de método prático e objetivo de encaixe em diversas situações
concretas.
Torna-se evidente uma nova perspectiva e desafio a ser enfrentado, quando se
percebe uma aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana desregrada. O erro dos
Página 164 de 270
aplicadores de que esse seria um meio de simples manuseio, devido ao alto grau de
generalidade aparente, ocasiona um descontrole de qualidade, que afeta a funcionalidade
geral da Ciência Jurídica. O objetivo desta obra é, finalmente, apresentar o caráter humano
que se pode atribuir ao Direito Civil, a partir de conclusões teóricas evolutivas do sistema, e
alertar a sociedade para a preocupante banalização do standard, que pode ser comprovada
pela vislumbrarão breve de casos.
Teorias do Direito Como Embasamento Para Compreensão dos Fenômenos de
Constitucionalização e de Humanização da Seara Jusprivatista
As vertentes teóricas do Direito analisam ontologicamente a estrutura jurídica, em
observação concomitante às outras vertentes de conhecimento inseridas na sociedade, na
tentativa de compreender a funcionalidade da ferramenta que detém os juristas e de fazê-la
mais acessível e esclarecida. O jusnaturalismo, o juspositivismo e o pós-positivismo
constituem os pilares orientadores das modificações sistemáticas que resultaram, de uma
maneira geral, na constitucionalização e na humanização da seara jusprivatista.
O modelo defendido pelos jusnaturalistas apresentava uma dupla dimensão jurídica
de planos posto e natural como inferior e superior consecutivamente. Havia uma tendência
valorativa desses teóricos a identificarem uma sistematização alopoiética, na medida em
que demonstravam suas crenças em uma interligação indissociável do Direito, da Ética e da
Moral. A ciência dos juristas manter-se-ia, assim, imersa em uma infinidade de conceitos e
de matérias, ocasionando um distanciamento da racionalidade necessária e um
aprofundamento da subjetividade.
A proposta dos juspositivistas, por outro lado, pode ser mais bem vista, sucedida e
aplicada nos ordenamentos até os dias hodiernos, na medida em que atendeu, durante muito
tempo, às expectativas de segurança e de objetividade, em meio a uma tendência crescente
de complexidade social. A autopoiese sugerida firmou a noção de que a Ciência Jurídica
deve ter um acoplamento com as outras áreas de saber, mas manter também um fechamento
cognitivo, para facilitar sua compreensão e aplicação. A multiplicidade característica do
Jusnaturalismo cedeu lugar à supremacia da lei do Juspositivismo.
Página 165 de 270
O processo de estabelecimento dos caracteres de autorreferência, de procedimento e
de demonstração do Direito evidenciou o plano de codificação desencadeado pela
influência do Movimento Juspositivista e Iluminista, como assevera Noberto Bobbio2:
Este projeto nasce da convicção de que possa existir um legislador
universal (isto é, um legislador que dita leis válidas para todos os tempos
e para todos os lugares) e da exigência de realizar um direito simples e
unitário. A simplicidade e a unidade do direito é o Leitmotiv, a ideia de
fundo, que guia os juristas que nesse período se batem pela codificação.
No Brasil, vigorou a reunião de conteúdos de relevância no Código Civil, que
durante muito tempo foi considerado expoente único e perfeito de solução de conflitos até
que o homem pós-moderno passou a exigir maior versatilidade e eficiência de seus
ordenamentos e o ideal da codificação foi desfeito. Foram notadas as diversas falhas que
compunham esse instrumento estático, em meio a um mundo dinâmico, tornando-se visível
a premissa de que "o direito é produto da cultura"3.
A frustação de a justiça e a estabilidade não terem sido alcançadas pela codificação
associada à conjuntura posterior da Segunda Grande Guerra permitiu uma fragmentação do
Direito, conhecida como Era de Descodificação de Natalino, referindo-se ao surgimento
consequente de novos conjuntos de determinações normativas, e possibilitou a modificação
das visões humanas acerca dos direitos e dos deveres que possuem. Concomitantemente,
torna-se imprescindível a correlação de tal circunstância ao pós-positivismo jurídico, teoria
bastante adequada a essa organização conjuntural.
Os pós-positivistas identificaram a necessidade da modificação da agenda, isto é, do
deslocamento da importância demasiada dada à feitura do texto da lei para o
reconhecimento de que maior atenção deve ser oferecida à capacitação dos profissionais no
momento de sua aplicação aos casos concretos. A subsunção, método técnico positivista,
sofre alterações suficientes para uma tendência à liberdade criativa do operador do Direito,
já que a mutabilidade e as variações apontam para novos desafios. Contemporaneamente, o
complexo social-jurídico encontrou no desmembramento do sistema em outros autônomos
e especializados uma alternativa para maior sistematização harmônica generalizada.
2
BOBBIO, Noberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone Editora Ltda,
1996, p. 65.
3
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: Direitos Fundamentais, políticas públicas e
protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 56.
Página 166 de 270
A fracassada codificação encontrou na Constituição um pilar estruturado nas bases
dos direitos fundamentais interessante a ser expandido e aplicado suplementar e
complementarmente. A influência do Direito Constitucional tornou-se central e
caracterizou o fenômeno da constitucionalização. O atendimento das normas da Carta
Magna às aclamadas garantias conquistadas na História dos Direitos Humanos permite
maior eficiência e conexão às reorganizações internas e externas ocorridas no mundo.
Os direitos fundamentais foram alcançados após a superação de inúmeras e de
graves diferenças entre os homens, a partir de uma lenta e difícil evolução, passando a
simbolizar a pedra angular de praticamente todas as ordens jurídicas. Essa conquista é fruto
do idealismo da soberania popular e ascendeu como ferramenta essencial ao
desenvolvimento das nações. Todas as áreas do Direito foram invadidas pela sensibilização
advinda dos princípios firmados e defendidos, incluindo a seara jusprivatista, fazendo-se
refletir e influenciar na relativização das regras e na proposição do ser humano como o
enfoque da defesa e da proteção jurídicas, como ressalta Gustavo Tepedino4:
Com efeito, vive-se hoje cenário bem distinto: a dignidade da pessoa
humana impõe transformação radical na dogmática do direito civil,
estabelecendo uma dicotomia essencial entre as relações jurídicas
existenciais e as relações jurídicas patrimoniais. Torna-se obsoleta a
summa divisio que estremava, no passado, direito público e direito
privado bem como ociosa a partição entre direitos reais e direitos
obrigacionais, ou entre direito comercial e direito civil.
A constitucionalização e a consequente humanização do Direito Civil acarretam
uma visível conexão das searas privada e pública, gerando variadas reações nas matérias
abrangidas principalmente pelo Código Civil e Constituição. As regras positivadas passam
a ser relativizadas pelos standards, especialmente pelo da dignidade da pessoa humana, e
os princípios abrangentes exigem maior especialização do profissional para a aplicação
coerente.
A funcionalidade jurídica sofreu uma guinada de transformações cujo plano de
fundo eram as teorias do Direito e palco eram as mudanças sociais. A compreensão
histórica e conceitual da constitucionalização e da humanização das áreas privadas
despertou a curiosidade pelo entendimento do novo papel do homem em sociedade jurídica,
pela influência desses fenômenos nos direitos da personalidade e pela perspectiva
4
TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Direito Civil. São Paulo: Revista da Faculdade de Direito
de Campos. Ano IV, nº 4 e ano V, nº 5, 2003-2004, p. 170.
Página 167 de 270
paradoxal de que o excesso do enfoque na proteção à dignidade pode trazer problemas à
sua aplicação coerente e, assim, comprometer os desafios que precisam ser embasados
intelectualmente nesse standard.
Ser Humano no Centro do Ordenamento Jurídico: Princípio da Dignidade como
Cláusula Geral de Tutela da Pessoa
Registros desde a época dos estóicos e do início do Cristianismo apontam para as
discussões acerca do princípio da dignidade humana, que sofreu alterações. É deveras
verdade a acepção religiosa vinculada à Deus como fundamento desse standard,
perdurando até a Idade Média com as contribuições de Tomás de Aquino. Pico Della
Mirandola, na Era Moderna, com sua oratio hominis dignitate, desenvolveu pioneiramente
a justificação da proposta do ser humano centralizado em sociedade fora da teologia.
Nos Séculos XVII e XVIII, por outro lado, foi identificada a necessidade do
respeito à dignidade de e por todos, tendo Samuel Pufendorf ainda se atido à influência do
poderio político e firmado entendimento de que o monarca era o único que não precisava
seguir ao corolário. Imanuel Kant, no entanto, sugeriu uma noção categórica e uniforme de
que o homem é um fim em si, não podendo ser coisificado ou utilizado como meio de
obtenção de qualquer objetivo. A Segunda Guerra Mundial interrompeu esse processo de
sensibilização, sendo resultado dos horrores nela acontecidos o surgimento de extrema
validade da despatrimonialização e a consequente positivação do princípio.
A Declaração Universal das Nações Unidas de 1948, em seu artigo 1º, aponta para a
dignidade da pessoa humana como fundamental, surtindo efeito em ordenamentos jurídicos
diversificados, inclusive no Brasil. A partir da Constituição de 1988, os brasileiros
observaram o inciso III no artigo 1º como reservado à tutela envolvendo situações de
violações à pessoa, evidenciando a diferente perspectiva de proteção prestada pelo Direito.
A variabilidade histórico-cultural associada à axiologia aberta do fundamento torna
difícil uma significação precisa, sendo bastante utilizada a conceituação negativa pelos
autores, isto é, o apontamento de atitudes que não podem ser realizadas, em virtude da
dignidade humana. Porém, é evidente o papel do Estado para a garantia do standard,
devendo ser positivo e negativo, como assevera Ingo Sarlet5:
5
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. p. 62.
Página 168 de 270
(...) por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de
cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração
por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um
complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa
tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como
venham a lhe garantir condições existenciais mínimnas para uma vida
saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e coresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão
com os demais seres humanos.
A dignidade da pessoa humana não pode ser acentuada através de um conceito
único, uma vez que está interligada a outros aspectos, como a igualdade, a liberdade, a
integridade psicofísica e a solidariedade, de acordo com Maria Celina de Moraes6. A
conexão desses substratos materiais permite a diminuição do valor atribuído aos
intercâmbios econômicos, em virtude da fixação da apreensão pelo oferecimento do bemestar individual do homem em meio coletivo.
O aparato que a igualdade oferece transcende a formalidade, isto é, a garantia de
paridade perante à lei, alcançando uma ideia moderna de que materialmente deve-se
garantir o tratamento desigual dos desiguais, em virtude de se estabelecer o equilíbrio
devido. As minorias passam a ser, portanto, atendidas e acolhidas. A liberdade procura
sanar o desafio de tutelar a privacidade e o exercício desprendido da vida privada, em meio
a uma sociedade diversificada. A integridade psicofísica atualiza, de certa maneira, o
Direito às novas searas, como a bioética e o biodireito, buscando proteger os dados
genéticos,
a disposição do próprio corpo e outros sentidos da personalidade. Para
proporcionar a formação de uma rede única de atendimentos ao homem, a preocupação
com a coletividade é minimizada, na medida em que a solidariedade é incluída no patamar
de defesa, almejando o implemento de ações de redistribuição de renda e de justiça fiscal,
por exemplo.
Os seres humanos passaram, então, a serem valor cardeal do sistema, sendo
identificados como sujeitos de direitos. A dignidade constitui o princípio basilar que regula
e indica as diretrizes a serem seguidas pelos operadores do Direito e, apesar de não existir
hierarquia entre os standards, esse é o epicentro da ordem constitucional, que não cederá
em face de qualquer outro.
6
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. São Paulo: Revista da Faculdade de Direito de
Campos, Ano VII, Nº 8, 2006, pp. 81-117.
Página 169 de 270
O paradigma patrimonialista cedeu espaço à ascensão da importância dos direitos da
personalidade como consequência dessa alteração do foco do Direito. A necessidade de
abrangência de garantias e a consequente dificuldade de taxativas situações a serem
tuteladas tornou a dignidade da pessoa humana como cláusula geral de tutela, de acordo
com o que pontua Maria Celina de Moraes7:
Aqui, e desde logo, toma-se posição acerca da questão da tipicidade ou
atipicidade dos direitos de personalidade. Não há mais, de fato, que se
discutir sobre uma enumeração taxativa ou exemplificativa dos direitos da
personalidade, porque se está em presença, a partir do princípio
constitucional da dignidade, de uma cláusula geral de tutela da pessoa
humana. Como regra geral daí decorrente, pode-se dizer que, em todas as
relações privadas nas quais venha a ocorrer um conflito entre uma
situação jurídica subjetiva existencial e uma situação patrimonial, a
primeira deverá prevalecer, obedecidos, assim, os princípios
constitucionais que estabelecem a dignidade da pessoa humana como o
valor cardeal do sistema.
Direitos da Personalidade: Noções Básicas
Os direitos da personalidade, inicialmente, foram introduzidos na Magna Carta de
1988, que já era embasada no princípio da dignidade humana. A crescente valorização do
ser social permitiu a inclusão de algumas garantias em outras leis e normas do ordenamento
jurídico, tendo sido o Código Civil o instrumento em que houve mais específico destaque
para esse ramo de benefícios, devido ao Capítulo II ter sido reservado exclusivamente para
a matéria.
Pode-se entender a enumeração no instrumento civil dos direitos como
exemplificativos, uma vez que são alguns dos vários tutelados pelo Estado. O tratamento do
assunto foi limitado e genericamente abordado em dez artigos, ensejando a necessidade de
uma interpretação analítica e extensiva à aproximação entre os estatutos que possuem tais
previsões. Apesar de não haver conceituação expressa positivada, há que se considerar a
analogia feita por Silvio Beltrão8:
(...) os direitos da personalidade distinguem-se dos direitos pessoais, pois
a base dos direitos da personalidade é a o fundamento ético da dignidade
da pessoa humana, enquanto que os direitos pessoais são desprovidos
deste fundamento, e acabam por significar um direito não patrimonial, em
7
MORAES, Maria Celina Bodin de. Ob. Cit., p. 117 e ss.
BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da personalidade: de acordo com o novo código civil. São Paulo: Atlas,
2005. p. 50.
8
Página 170 de 270
relação aos direitos suscetíveis de avaliação em dinheiro, com um campo
muito mais vasto de incidência (...)
Apesar das divergências doutrinárias, é reconhecida a titularidade para pessoas
naturais e jurídicas, naquilo que for cabível, de acordo com o artigo 52 do Código Civil,
incluindo ainda no rol dos protegidos os nascituros. Algumas características dos direitos de
personalidade os apontam como singulares no cenário do Direito Privado, como os
caracteres de absolutos, de gerais, de extrapatrimoniais, de indisponíveis, de
imprescindíveis, de impenhoráveis e de vitalícios.
A proteção aos valores fundamentais do ser humano possui uma tendência crescente
de expansão, sendo difícil uma classificação taxativa de searas tuteladas e se tornando
compreensível a disposição básica de subdivisões relativas à tricotomia corpo, mente e
espírito, como Pablo Stolze9 propõe. A vida e a integridade física, a integridade psíquica e
as criações intelectuais e a integridade moral são os três grandes pilares em que se
encaixam os âmbitos defendidos consequentes dos direitos da personalidade.
A preocupação física engloba o direito ao corpo e à voz; o grupo relativo ao
resguardo da psique humana desdobra-se em direito à liberdade, à liberdade de pensamento,
às criações intelectuais, à privacidade e ao segredo profissional, doméstico e pessoal; e a
última vertente referente à tutela valorativa abrange os direitos à honra, à imagem e à
identidade. Percebe-se, então, a busca por um suporte eficiente do Direito ao homem, que
procura atendê-lo em uma infinidade de questões concernentes a sua natureza. Carlos
Alberto Bittar10 comprova tal ideia, ao apontar:
Esses direitos correspondem, portanto, a diferentes planos em que a
pessoa é enfocada, ou seja, em seu desenvolvimento físico e mental e em
seus relacionamentos com a coletividade como um todo e com seus
núcleos integrantes. Voltam-se para a posição do ser na coletividade: vale
dizer, com a situação pessoal, ou familiar, da pessoa humana na
coletividade.
As ameaças e as lesões que afetam a natureza do homem tornam-se cada dia mais
comuns, sendo as previsões legais instrumentos de defesa judicial. O antigo descaso às
ofensas pessoais é esquecido em face da luta individual e coletiva das pessoas pelo
9
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. Vol. 1 (parte geral).
16ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 199.
10
BITTAR, Carlos Alberto; BITTAR, Eduardo C. B. Os direitos da personalidade. 6. ed./ rev., atual. e ampl.
por Eduardo C. B. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 29.
Página 171 de 270
reconhecimento e respeito às diferenças. O fundamento, no entanto, utilizado pelos afetados
recai no standard da dignidade humana, e o uso indiscriminado enfraquece o vigor de tal
princípio.
A humanização do Direito Civil, evidenciada através dos direitos da personalidade,
é bastante oportuna à organização e ao desenvolvimento jurídico e social, contudo o
manuseio do princípio para causas controvertidas e, muitas vezes, contrárias às regras
previstas no ordenamento servem de alerta para uma nova perspectiva e um diferente
desafio a ser enfrentado pelos juristas.
Alerta Para Aplicação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana: Balanceio Entre
Humanização e Jusprivativismo
O standard da dignidade humana ocupa o espaço de epicentro axiológico da ordem
constitucional e a falta de compreensão do real sentido de tal situação ocasionou uma
desordem no uso dessa ferramenta jurídica. Em detrimento de regras positivadas e a fim de
justificar criações dos julgadores, o "princípio dos princípios" é hoje encontrado
fundamentando indiscriminadamente questões diversas, sendo aplicado de maneira
distorcida e identificado como um instrumento facilmente manuseável.
A posição que a ideia principiológica possui leva a sociedade a obter um
entendimento absoluto do caráter totalitário do standard, quando verdadeiramente é
necessária e possível a relativização, através de um juízo de ponderação e de razoabilidade,
na tentativa de compatibilizar o conflito específico à noção da dignidade. O sucesso na
utilização do princípio, então, requer um nível de abstração alto e é conseguido com a
prevalência do subprincípio que mais se aproxime da realização do corolário principal.
Contemporaneamente, é preocupante o grande número de peças jurídicas em que
não se observa um efetivo trabalho mental desenvolvido, em virtude de um bombardeio de
princípios, majoritariamente o da dignidade da pessoa humana. A humanização é uma
tendência que pode, muitas vezes, ser interpretada como pólo oposto ao jusprivativismo,
devido à dificuldade dos operadores do Direito de encontrarem um meio-termo em suas
atividades. Dessa forma, enquanto se observa o alerta para a hipertrofia do standard, é
identificado o esquecimento das normas positivadas.
Página 172 de 270
Alguns julgados precisam ser apresentados para ilustrar o problema ora debatido. O
primeiro caso diz respeito a um condômino inadimplente que, com base no standard,
requereu que fosse determinado o parcelamento do seu débito junto ao condomínio. O
pedido foi julgado improcedente e a sentença confirmada pelo Tribunal competente. Do
voto do relator, colhe-se:
Quanto às alegações meritórias alegadas pela apelante, entendo serem
desprovidas de adminículo de juridicidade que possa sustentar a reforma
da r. sentença hostilizada. A apelante restringiu-se a insistir no
parcelamento dos débitos condominiais, o que simplesmente não pode ser
imposto pelo Julgador, se não for de interesse da parte autora-credora.
Embora possa ela lamentar as dificuldades financeiras enfrentadas, não
pode esquecer de que as taxas condominiais têm tratamento legal especial,
pelos simples fato de que a inadimplemência contumaz prejudica toda
uma coletividade, o que não pode ser endossado pelo Poder Judiciário. Tal
proceder não afronta os princípios sociais norteadores da Carta
Constitucional de 1988, nem atinge o princípio da dignidade da pessoa
humana. (TJ-MG - Ap. Cív. n. 380.174-5, Ac. unân. da 4ª C. Cív. - Rel.
Juiz Saldanha da Fonseca - Julg. em 04/12/2002)11
É notável o vazio normativo consequente da aplicação exacerbada da ideia da
dignidade da pessoa humana. A banalização do standard é alarmante e precisa ser
combatida, para que o sistema jurídico brasileiro atue de forma balanceada. Eis a
perspectiva negativa da humanização do Direito Civil Constitucional: o homem, apesar de
protegido pelos direitos da personalidade, encontra sua natureza sendo posta como
justificativa para quaisquer pleito.
De outra maneira, tem-se como segundo exemplo um recurso extraordinário em que
se utilizava o princípio da dignidade da pessoa humana atrelado ao direito da percepção de
salário para o cancelamento de descontos em folha de pagamento, antes aceitos, e
permitidos pela Constituição. É evidente o esquecimento do arcabouço de regras
normativas, na medida em que se busca o atendimento a um interesse específico através da
alegação de que o caso é de repercussão geral, ao se fazer a interligação ao standard. O
Supremo Tribunal Federal logo percebe o equívoco e indefere a ferramenta recursal,
esclarecendo a ministra Ellen Grace:
Empréstimo. Consignação em folha de pagamento autorizada pelo
mutuário, no limite de 30% de sua remuneração. Alegação de violação aos
arts. 1º, III (dignidade da pessoa humana) e 7º, X (proteção do salário),
11
Disponível em: <www.tj.mg.gov.br>. Acesso em: 21 de Fev. de 2016.
Página 173 de 270
ambos da Constituição Federal, em face da ausência de interesse do
recorrente no prosseguimento dos descontos em folha. Inexistência de
repercussão geral, tendo em vista que a questão não ultrapassa os
interesses subjetivos da causa.
(...)
2. O recorrente alega violação dos arts. 1º, III e 7º, X, tendo em vista que
os descontos em folha de vencimentos, embora tenham sido autorizados
pelo recorrente, no presente momento encontram-se em contrariedade à
sua manifesta vontade.
3. Observados os demais requisitos de admissibilidade do presente recurso
extraordinário, passo a análise da existência de repercussão geral.
Verifico que o pedido de cancelamento do desconto em folha de
pagamento, em face da falta de interesse do recorrente no seu
prosseguimento, questão versada no presente apelo extremo, não
ultrapassa os interesses subjetivos da causa, nos termis do § 1º do art. 543A do Código de Processo Civil.
4. Ante o exposto, manifesto-me pela inexistência de repercussão geral.
(RE 584536 RG, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, julgado em
04/12/2008, DJe-035 DIVULG 19-02-2009 PUBLIC 20-02-2009 EMENT
VOL-02349-08 PP-01665)12
As situações apresentadas serviram de base para comprovar a impressão de que o
princípio da dignidade da pessoa humana é visto como artimanha facilitadora de ganho de
causas, perdendo evidentemente o valor que detém e a especificidade que requer seu
tratamento. Como assevera Wesley Louzada Bernardo13:
Utilizar-se do princípio da dignidade da pessoa humana como
fundamento jurídico de pedidos insignificantes como os apontados,
que em nada se relacionam com o projeto constitucional, serve
apenas para desacreditá-lo e fundamentar as posições positivistas
contrárias à aplicação direta dos princípios constitucionais às
relações privadas.
Dessa forma, um novo desafio a ser enfrentado pela sociedade jurídica é o incentivo
à aplicação correta do standard, prezando-se o equilíbrio no manuseio desse instrumento na
realidade do Direito, após a humanização, e se devendo interligar a axiologia ao
jusprivativismo posivitista. O reflexo do estudo das Teorias do Direito é visível, a partir da
análise doas visões benéficas e maléficas ocasionadas pela supremacia do homem no
ordenamento jurídico. A inclusão prática de direitos da personalidade é o registro de um
12
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28dignidade+da+pessoa+humana%
29&base=baseRepercussao>. Acesso em: 21 de Fev. de 2016.
13
BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. O princípio da dignidade da pessoa humana e o Novo Direito
Civil: Breves Reflexões. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VII, Nº 8. Junho de 2006.
Página 174 de 270
grande avanço, mas a aplicação exacerbada e indiscriminada da dignidade da pessoa
humana é o alerta que chama a atenção atualmente de todos para a melhora do sistema.
Conclusão
A humanização do Direito Civil pode ser considerada o ápice da evolução jurídica,
em virtude da elevação que foi concedida à posição do homem no ordenamento. A
retrospectiva histórico-social desenvolvida a partir das teorias da Ciência Jurídica atrelada
aos fenômenos da codificação e da constitucionalização permitiram a conscientização de
que a transformação sofrida pelo sistema acompanhou a sociedade.
Percebeu-se que a dignidade da pessoa humana é o eixo central de toda articulação
ética a que a sociedade está preordenada e constitui, enfim, especialmente nas culturas
ocidentais, a mais alta expressão da convergência a que a humanidade foi capaz de chegar.
Em razão da importância atribuída ao standard, tal fundamento acabou por ganhar a
propriedade de caber para tudo. Empobreceu-se. Esvaziou-se. Tornou-se um tropo oratório
que tende à flacidez absoluta, se não alarmado tal problema.
Constata-se, portanto, que a humanização civilista possui uma perspectiva
paradoxal e um desafio audacioso a ser enfrentado, uma vez que pleitos jurídicos e decisões
judiciais alertam para o uso indiscriminado do princípio da dignidade do homem. A
banalização dessa vertente principiológica é alarmante, tornando-se imprescindível a busca
constante dos juristas pelo uso da razoabilidade na utilização do standard, da mesma forma
como o estudo específico da norma relativa permite maior capacidade para a aplicação
coerente e eficaz.
Referências Bibliográficas
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São Paulo: Atlas, 2005. p. 50.
BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. O princípio da dignidade da pessoa humana e
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VII, Nº 8. Junho de 2006.
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Doutorado - Centro de Ciências Jurídicas / Faculdade de Direito do Recife, Universidade
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Supremo Tribunal Federal, RE 584536 RG, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, julgado em
04/12/2008, DJe-035 DIVULG 19-02-2009 PUBLIC 20-02-2009 EMENT VOL-02349-08
PP-01665.Disponível
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TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Direito Civil. São Paulo: Revista da
Faculdade de Direito de Campos. Ano IV, nº 4 e ano V, nº 5, 2003-2004, p. 170.
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Juiz Saldanha da Fonseca - Julg. em 04/12/2002. Disponível em: <www.tj.mg.gov.br>.
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Superior Tribunal de Justiça - Doutrina - Edição Comemorativa - 20 anos, Brasília, 2009,
pp. 562-581.
Página 176 de 270
ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL
POR VÍCIOS DE CONSTRUÇÃO NO PROGRAMA MINHA CASA,
MINHA VIDA
Luisa Carício da Fonsêca1
Resumo: O presente trabalho objetiva debater os diferentes posicionamentos da
jurisprudência brasileira acerca da possibilidade de responsabilizar a instituição financeira –
Caixa Econômica Federal, por vícios de construção em contratos de financiamento, no
âmbito do Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV). A metodologia utilizada foram
artigos publicados sobre o tema, a legislação correspondente e, principalmente, o
comparativo entre diversas decisões nacionais, a fim de realizar uma pesquisa exploratória
na área da execução do PMCMV. À luz de um direito civil-constitucional e diante do
direito fundamental à moradia, imputar apenas ao construtor do imóvel a responsabilidade
por eventuais defeitos na edificação, fere a boa-fé dos contratantes. Além disso, muitas
vezes os beneficiários do programa habitacional não recebem a devida indenização moral e
material, em razão de a referida responsabilidade limitar-se ao patrimônio das respectivas
sociedades empresárias. Outro fator relevante é a qualificação da Caixa como empresa
pública federal, na esfera da Administração Pública indireta, com papel exclusivo de
promotora da casa própria a pessoas de baixa renda. Sendo assim, o PMCMV constitui
verdadeira política pública e, como tal, requer uma análise mais atenta e humanizada por
parte do Poder Judiciário. A legislação sobre o tema, a Lei 11.977/09, não assegura a
legitimidade do ente financeiro em responder caso existam vícios ocultos no imóvel
financiado. Por ser uma problemática relativamente recente, a jurisprudência oscila bastante
e o Supremo Tribunal Federal ainda não se manifestou sobre o assunto. Nesse sentido, não
podem os magistrados brasileiros ignorar as inúmeras demandas judiciais sobre a matéria,
bem como a ausência de efetiva indenização aos mutuários lesados, quando apenas o
construtor é responsabilizado.
Palavras-Chave: Responsabilidade civil.Vícios de construção. Programa Minha Casa,
Minha Vida. Jurisprudência.
1
Graduanda em Direito, no Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba.
E-mail: [email protected]
Página 177 de 270
ABSTRACT: The presente work objects to discuss different positions of Brazilian
jurisprudence about the possibility to impute responsibility to the financial institution –
Caixa Econômica Federal, for construction defects on financing contracts, inside ―Minha
Casa, Minha Vida‖ Program (PMCMV). The methodology used was published articles
about the theme, corresponding laws and, mostly, comparative among various national
decisions, in orderto do an exploratory research in PMCMV‘sex ecution área. Illuminedby
a civil-constitucional law and faced with fundamental right to housing, ascribe
responsibility only to the constructor of the property for eventual edification damages,
injureshirer‘sgood faith. Besides that, the beneficiaries of the habitational programmany
times
don‘t
receive
proper
moral
and
material
reparation,
duetothementionedresponsibilitybelimitedtocompany‘sassets.AnotherrelevantfactorisCaixa‘
squality as a federal publiccompany, onIndirectAdministration‘ssphere, with exclusive
functionpromoting home ownershiptolow-incomepeople.Thus, the PMCMV constitutes
real publicpolicyand, as so, requiresa closerandhumanized look bythe Judicial
Power.Legislationonthesubject,
Law
11.977/09,
does
notsecurebank‘slegitimacytobechargedwhenexistshiddendefectsonfinancedproperty.
thereasonthatthisis
a
relatively
recente
issue,
jurisprudencevariates
For
a
lot,
alsotheSupremeCourthasnotyetmanifestedonthematter.Accordingly, brazilianjudgescannot
ignore
thecountlesslawsuitsaboutthesubject,
apart
fromthelackofeffectivecompensationtoinjuredmortgagee, whenonlythebuilderisliable.
Keywords: Civil responsibility.Constructiondefects.―Minha Casa, Minha Vida‖ Program.
Jurisprudence.
Introdução
O Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV, regulamentado pela Lei nº
11.977, de 7 de julho de 2009, inegavelmente constitui um avanço no direito fundamental à
moradia, além de representar a tendência atual de um direito civil-constitucional. Nesse
sentido, não estamos diante de um mero financiamento habitacional, mas de uma política
pública de fomento a uma garantia constitucional por meio da aquisição da casa própria.
Contudo, não raras vezes a edificação de tais imóveis é realizada por construtoras
descompromissadas, o que acarreta diversos vícios de construção, bem como danos para os
Página 178 de 270
adquirentes do bem. A responsabilidade civil do construtor por vícios ocultos já é matéria
pacífica no âmbito civil e consumerista. Porém, responsabilizar apenas a empresa
construtora, na situação descrita, não traz garantias ao mutuário, uma vez que a referida
responsabilidade limita-se ao patrimônio da sociedade empresária.
Desse modo, muitos participantes do PMCMV lesados por imóveis mal construídos
ingressaram no Judiciário, com intuito de responsabilizar também a instituição financeira
fomentadora da política – a Caixa Econômica Federal. Esse é o ponto gerador de
controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, visto que, em regra, as instituições bancárias
não respondem por eventuais defeitos na propriedade financiada.
Motivações À Criação Do Programa Minha Casa, Minha Vida
Em 2009, ano de criação do PMCMV, o contexto nacional, no âmbito da habitação,
era de um déficit enorme, fruto da história brasileira desde o Império. Além disso, as
políticas habitacionais anteriores haviam fracassado, uma vez que a população de baixa
renda não possuía acesso aos financiamentos ―elitizados‖. Dessa forma, os principais
atingidos pela falta de moradia própria eram as famílias com renda de até três salários
mínimos2. Outro fator importante, à época, era a recente eclosão da crise financeira
mundial.
Assim, durante o governo Lula, foi editada a Medida Provisória nº 459, de 25 de
março de 2009, posteriormente convertida na Lei nº 11.977, do mesmo ano. A instituição
do MCMV possuía, portanto, um viés social e outro econômico. O primeiro deles almejava
garantir a justiça social e o acesso à moradia por parte dos indivíduos de baixa renda,
enquanto que a segunda vertente estava associada ao crescimento econômico do país,
mediante incentivo ao setor da construção civil.
Decorrente do acesso a uma habitação digna, diversas liberdades podem ser
conquistadas, a exemplo da redução da pobreza, da mortalidade infantil e do aumento do
2
ANDRADE, G. V. M. Políticas Habitacionais Brasileiras: uma avaliação do Programa Minha Casa Minha
Vida em suas duas edições. 2012. 86 f. Monografia (Graduação em Engenharia de Produção) – Universidade
Federal do Rio de Janeiro/Escola Politécnica, Rio de Janeiro – RJ. Disponível em:
<http://monografias.poli.ufrj.br/monografias/monopoli10004918.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2016.
Página 179 de 270
patrimônio familiar. Conforme o art. 1º, da citada lei3, o PMCMV é subdividido em dois
programas:
Art. 1o O Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV tem por finalidade criar
mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais
ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais,
para famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e
cinquenta reais) e compreende os seguintes subprogramas: (Redação dada pela
Lei nº 12.424, de 2011)
I - o Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU); (Redação dada pela Lei
nº 13.173, de 2015)
II - o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR); e (Redação dada pela Lei
nº 13.173, de 2015)
Entre os citados subprogramas, o PNHU recebeu maiores investimentos, devido a
maior carência de habitação nos centros urbanos do que no meio rural. A fim de atingir os
seus objetivos, o MCMV conta com variados fundos, dentre eles: Fundo Garantidor da
Habitação Popular (FGHab), Fundo do Desenvolvimento Social (FDS) e Fundo de
Arrendamento Residencial (FAR). Desse modo, torna-se possível o financiamento com
juros reduzidos e prazos dilatados.
Para fomentar a política pública, a Caixa Econômica Federal, empresa de capital
cem por cento público e com experiência na área habitacional, foi escolhida:
Art. 9o A gestão operacional dos recursos destinados à concessão da subvenção
do PNHU de que trata o inciso I do art. 2o desta Lei será efetuada pela Caixa
Econômica Federal - CEF. (Redação dada pela Lei nº 12.424, de 2011)
[...]
Art. 16. A gestão operacional do PNHR será efetuada pela Caixa Econômica
Federal4.
Como se observa, a função da Caixa é de ―gestão operacional‖, de forma a englobar
não só o financiamento, mas também a fiscalização do empreendimento, com fins de liberar
os subsídios necessários ao construtor5.
Em resumo, as ideias que permearam a criação do PMCMV foram no intuito de
reduzir o déficit habitacional brasileiro e de aquecer o desenvolvimento econômico do país,
tendo por gestora a Caixa Econômica Federal. Pode-se dizer que, de modo geral, seus
3
BRASIL. Lei n. 11.977, de 7 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida –
PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas; altera o Decreto-Lei no
3.365, de 21 de junho de 1941, as Leis nos 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de
1973, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001, e a Medida Provisória no 2.197-43, de
24 de agosto de 2001; e dá outras providências.Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 jul. 2009. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11977.htm>. Acesso em: 17 fev. 2016.
4
5
Ibid.
ANDRADE, op.cit., p. 50.
Página 180 de 270
objetivos foram e estão sendo atingidos. Contudo, a qualidade dos imóveis entregues com
frequência não atende aos padrões mínimos, fato diversas vezes reportado pela mídia.
Assim, relevante o debate acerca dos sujeitos responsáveis a realizar a devida reparação.
Da Relação De Consumo
Antes de discutir a responsabilidade civil propriamente dita, é fundamental
esclarecer se a relação entre o adquirente do imóvel e a instituição financiadora é regida
pelo Código de Defesa do Consumidor ou não. Já há entendimento sumulado pelo Superior
Tribunal de Justiça acerca dessa possibilidade: ―Súmula 297: O Código de Defesa do
Consumidor é aplicável às instituições financeiras‖ 6.
Desse modo, vislumbra-se nos contratos de empréstimo a aplicabilidade das normas
consumeristas, posição amplamente defendida pela doutrina e jurisprudência. O mútuo
feneratício em questão possui natureza social e tem por objetivo atender o direito
fundamental à moradia, previsto no art. 6º, da Constituição Federal7.
O referido contrato é firmado no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação – SFH
e configura uma relação de consumo formada por fornecedor de serviços (Caixa) e
consumidor (mutuário). A legislação consumerista assim dispõe8:
Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto
ou serviço como destinatário final.
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional
ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade
de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação,
exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante
remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e
securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
Por conseguinte, a responsabilidade do fornecedor de serviços por fato do serviço
também é disciplinada pela legislação de consumo:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de
culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos
6
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Seção. Súmula 297. Brasília, 12 de maio de 2004. Diário da
Justiça, 09 de setembro de 2009, p. 149. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/toc.jsp>.
Acesso em: 28 fev. 2016.
7
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.Brasília, DF: Senado Federal,
Subsecretaria de Edições Técnicas, 2008. 464 p.
8
BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras
providências.
Diário
Oficial
da
União,
Brasília,
DF,
12
set.
1990.
Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078compilado.htm>. Acesso em: 28 fev. 2016.
Página 181 de 270
à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou
inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor
dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre
as quais:
I - o modo de seu fornecimento;
II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi fornecido.
§ 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.
§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante
a verificação de culpa.9
Importante observar que o fornecedor responde objetivamente por fatos do produto
ou do serviço, ou seja, independentemente da aferição de culpa. Sendo a Caixa fornecedora
de serviços dos financiamentos existentes no PMCMV, responderá nesta qualidade por
eventuais defeitos na prestação de tal atividade.
Da Responsabilidade Civil Por Vícios De Construção
Como visto acima, a Caixa atua enquanto fornecedora de serviços nos contratos de
financiamento junto ao MCMV e, por isso, recai responsabilidade civil objetiva sobre
defeitos nas funções prestadas. À primeira vista, poder-se-ia pensar que a ocorrência de
vícios de construção não teria relação com as funções a serem exercidas pela mencionada
empresa pública. No entanto, esse entendimento não deve prevalecer.
Primeiramente, por todos os motivos já elencados acerca do PMCMV: política
pública direcionada à população de baixa renda; meio de atingir o direito à moradia e
reduzir o déficit habitacional brasileiro; fragilidade em se responsabilizar apenas
construtoras; Caixa enquanto gestora operacional do programa.
Ora, a própria Lei nº 11.977/09 determina que a empresa pública federal não exerce
papel de mera instituição financiadora e, por conseguinte, ela tem o dever de fiscalizar as
execuções das obras. Por outro lado, mesmo que fosse caso de financiamento habitacional
fora do MCMV, já há entendimento sobre a responsabilização do banco por defeitos na
9
Ibid.
Página 182 de 270
construção, quando a participação da instituição financeira é fundamental na aquisição dos
bens. Nas palavras do Defensor Público Federal Feliciano de Carvalho10:
De modo mais efetivo a proteger o adquirente em face do agente
financiador − haverá responsabilidade por vícios de construção, caso tenha de
algum modo influenciado a aquisição, ainda que não tenha financiado a produção
e nem emprestado sua marca ou desfrutado de qualquer vantagem sobre
determinado empreendimento imobiliário.
Pelo próprio princípio da boa-fé objetiva, todas as circunstâncias acima
citadas transmitem para o consumidor inequívoca segurança sobre a idoneidade
da aquisição do bem. Quebra o valor contratual de lealdade e cooperação o fato
de o agente financeiro passar para o consumidor que este estará fazendo um
ótimo negócio, em face das demonstrações de qualidade do bem, somente para
conseguir prestar o serviço de financiamento para mais um consumidor – que será
muito bem remunerado pelos juros pagos pelo adquirente, diga-se de passagem –
e, caso surjam defeitos que desequilibram o contrato, discursar no sentido de
inexistir responsabilidade do empresário/banco financiador.
Assim como explanado, a Caixa também passa a ideia de confiança e estabilidade
aos adquirentes de imóvel junto ao programa de habitação popular. Há ainda o contexto de
criação do PMCMV, bem como a finalidade em se atingir justiça social.
Desde a entrega das primeiras residências do programa, foram noticiados inúmeros
casos de vícios ocultos nos imóveis espalhados por todo o país. A seguir, algumas
manchetes dimensionam a repercussão do tema:
1) ―Minha casa na mira: Prefeituras e Ministério Público Federal fecham o cerco a
habitações com problemas construtivos do Minha Casa, Minha Vida‖11
(julho/2012);
2) ―Imóveis do Minha Casa Minha Vida têm rachaduras e infiltrações: Reportagem
constatou diversos problemas com o programa durante 40 dias de investigações‖12
(março/2015);
3) ―MPF recebe mil queixas contra o Minha Casa, Minha Vida: Problemas vão de
venda e aluguel irregular a invasões, passando por má construção dos imóveis‖ 13
(março/2015);
10
CARVALHO, F. Vícios de construção do imóvel financiado: conexão contratual e responsabilidade do
agente financeiro. Revista CEJ, Brasília, Ano XVII, n. 59, p. 42-50, jan./abr. 2013. Disponível em:
<http://www.jf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewFile/1680/1706>. Acesso em: 16 fev. 2016.
11
NAKAMURA, J. Minha Casa na mira. Construção Mercado. São Paulo, jul. 2012. Edição 132. Disponível
em:
<http://construcaomercado.pini.com.br/negocios-incorporacao-construcao/132/artigo284024-1.aspx>.
Acesso em: 28 fev. 2016.
12
SILVA, A.; TREZZI, H. Imóveis do Minha Casa Minha Vida têm rachaduras e infiltrações. ZH Notícias.
Porto Alegre, 21 mar. 2015. Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/03/imoveis-dominha-casa-minha-vida-tem-rachaduras-e-infiltracoes-4722956.html>. Acesso em: 28 fev. 2016.
Página 183 de 270
4) ―Problemas do Minha Casa, Minha Vida reforçam necessidade de reforma urbana‖
14(abril/2013).
Por consequência lógica, são cada vez mais frequentes as demandas judiciais
envolvendo a execução das obras do MCMV. E o Poder Judiciário não pode quedar-se
alheio a essa realidade social. Para tanto, é preciso ter em mente que o dever de fiscalização
da Caixa não é simplesmente quantitativo, mas também qualitativo. Há um parâmetro de
qualidade mínimo a ser cumprido e cabe à empresa pública em comento supervisionar os
referidos padrões.
Dentro do papel de gestora operacional do MCMV, a Caixa detém as seguintes
funções:
a) Atuar como instituição depositária e gestora dos recursos do FDS e FNHIS. b)
Definir e implementar os procedimentos operacionais necessários à aplicação dos
recursos, com base nas normas elaboradas pelo Conselho Gestor e pelo
Ministério das Cidades. c) Controlar a utilização dos recursos financeiros
colocados à disposição na construção dos empreendimentos habitacionais. d)
Prestar contas e analisar a viabilidade das propostas selecionadas pelo Ministério
das Cidades. e) Firmar contratos de repasse de recursos a estados, municípios e
Distrito Federal em nome do Sistema Nacional da Habitação de Interesse Social
(SNHIS). f) Oferecer informações ao Ministério das Cidades que permitam
15
acompanhar a execução do PMCMV, de maneira a avaliar o seu sucesso.
Além disso, a empresa pública federal atua ainda como agente financeiro do SFH e
como representante jurídico do FGHab. Sendo assim, a legitimidade da Caixa em responder
por eventuais vícios de construção se funda no argumento de que, agindo na qualidade de
fomentadora de política pública destinada à população de baixa renda, é responsável pela
solidez e segurança do imóvel por ela financiado.
Do Posicionamento Dos Tribunais
Considerando tudo o que foi exposto, resta agora a análise das decisões do
Judiciário nacional sobre a questão da responsabilidade civil da Caixa por vícios de
construção, em contratos de mútuo no contexto do PMCMV. Devido à proximidade
geográfica, foram selecionados acórdãos do Tribunal Regional Federal – 5ª Região e, em
13
TREZZI, H. MPF recebe mil queixas contra o Minha Casa, Minha Vida. ZH Notícias. Porto Alegre, 22
mar. 2015. Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/03/mpf-recebe-mil-queixascontra-o-minha-casa-minha-vida-4723835.html>. Acesso em: 28 fev. 2016.
14
BARROSO, H. Problemas do Minha Casa, Minha Vida reforçam necessidade de reforma urbana. A
Verdade. São Paulo, 16abr. 2013. Disponível em: <http://averdade.org.br/2013/04/problemas-do-minha-casaminha-vida-reforcam-necessidade-de-reforma-urbana/>. Acesso em: 28 fev. 2016.
15
D`AMICO, Fabiano. O Programa Minha Casa, Minha Vida e a Caixa Econômica Federal. Cap. 2. 8/1/11.
Curitiba-PR. p. 33 a 54.
Página 184 de 270
razão da repercussão nacional, decisões do STJ. Por sua vez, o STF ainda não se
manifestou sobre o mérito da questão. Houve apenas um acórdão, no qual o Ministro
Relator Teori Zavascki decidiu pela inexistência de repercussão geral do tema, nesses
termos:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO.
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO AJUIZADA EM FACE DE CONSTRUTORA.
VÍCIOS NA EDIFICAÇÃO DE IMÓVEL ADQUIRIDO ATRAVÉS DO
PROGRAMA GOVERNAMENTAL ―MINHA CASA, MINHA VIDA‖. CAIXA
ECONÔMICA FEDERAL. LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO.
CONSEQUENTE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. MATÉRIA
INFRACONSTITUCIONAL. AUSÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. 1. A
controvérsia relativa à existência ou não de litisconsórcio passivo necessário entre
a Caixa Econômica Federal e a parte demandada, com o consequente
reconhecimento da competência da Justiça Federal para julgar a ação, configura
questão que envolve única e exclusivamente juízo a respeito dos termos da
demanda (causa de pedir e pedido) e das normas processuais,
infraconstitucionais, que disciplinam a existência ou não de litisconsórcio passivo
necessário. Não há, portanto, matéria constitucional a ser apreciada. 2. É cabível a
atribuição dos efeitos da declaração de ausência de repercussão geral quando não
há matéria constitucional a ser apreciada ou quando eventual ofensa à Carta
Magna ocorra de forma indireta ou reflexa (RE 584.608-RG, Rel. Min. ELLEN
GRACIE, DJe de 13/3/2009). 3. Ausência de repercussão geral da questão
suscitada, nos termos do art. 543-A do CPC. 16
Como visto, o STF entende que não há repercussão geral, por falta de matéria
constitucional a ser apreciada, relativa à legitimidade passiva da Caixa nas demandas sobre
defeitos de edificação no âmbito do MCMV e à consequente competência da Justiça
Federal. Quando acolhida a preliminar de ilegitimidade passiva da empresa pública, o feito
se extingue na Justiça Federal e é remetido à Justiça Comum Estadual.
Sobre o assunto, já se posicionou de diversas formas o TRF – 5ª Região. Seja pela
ausência de legitimidade da Caixa para figurar no polo passivo,
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. PROGRAMA MINHA CASA, MINHA VIDA
- PMCMV. LEI Nº 11.977/2009. IMÓVEL RESIDENCIAL USADO. VÍCIO DE
CONSTRUÇÃO. NÃO COBERTURA FUNDO GARANTIDOR DA
HABITAÇÃO POPULAR - FGHAB. EXPRESSA MENÇÃO NO CONTRATO.
CONFORMIDADE DA CLÁUSULA COM O ESTATUTO DO FGHAB E A
LEI DE REGÊNCIA. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DA CAIXA.
EXTINÇÃO DO PROCESSO, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. APELAÇÃO
PROVIDA. 1. A Lei nº 11.977/2009 instituiu o Programa Minha Casa, Minha
Vida - PMCMV, iniciativa do governo federal que tem por finalidade criar
16
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo 891653 Repercussão Geral / MG.
Recorrente: CONSTRUTORA CHEREM LTDA. Recorrido: MARTA FERREIRA DE ARAÚJO
ALMEIDA. Relator: Ministro Teori Zavascki. Brasília, 25 de junho de 2015. Diário da Justiça Eletrônico.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28ARE%24%2ESCLA%2E+E+89
1653%2ENUME%2E%29+OU+%28ARE%2EPRCR%2E+ADJ2+891653%2EPRCR%2E%29&base=baseR
epercussao&url=http://tinyurl.com/pc49ewu>. Acesso em: 29 fev. 2016.
Página 185 de 270
mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais
ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais,
abrangendo o Programa Nacional de Habitação Urbana - PNHU e o Programa
Nacional de Habitação Rural - PNHR. 2. O art. 20 do diploma legal em apreço
dispõe sobre o Fundo Garantidor da Habitação Popular - FGHab, concebido,
dentre outros objetivos, para assumir o saldo devedor do financiamento
imobiliário, em caso de morte e invalidez permanente, e as despesas de
recuperação relativas a danos físicos ao imóvel. 3. Hipótese em que a demandante
pugna pela condenação da CAIXA à realização de reparos no imóvel financiado,
que passou a apresentar goteiras, infiltrações e rachaduras, dentre outros
problemas decorrentes de vício de construção, conforme Laudo de Vistoria às fls.
124/126. 4. Compulsando os autos, verifica-se que o contrato de mútuo e
alienação fiduciária, firmado entre as partes sob a égide do PMCMV, exclui
expressamente (fl. 59) a cobertura de "(...) despesas de recuperação de imóveis
por danos oriundos de vícios de construção, comprovados por meio de laudo de
vistoria promovido pela Administradora (...)". É de salientar que o dispositivo
contratual é simples reprodução do art. 21 do estatuto do FGHab, ao qual a Lei
11.977/2009 (parágrafo 1º, art. 20) incumbiu definir as condições e os limites das
coberturas do fundo em questão. 5. De mais a mais, na presente hipótese, a
empresa pública se limitou a financiar a compra do imóvel escolhido pela
promovente, ora apelada, sem que tenha participado de nenhuma etapa da
respectiva construção, de modo que não há que se falar em culpa in eligendo ou
in vigilando. Precedentes desta Corte Regional. 6. Nesse contexto, é forçoso
reconhecer a ilegitimidade ad causam da ré, extinguindo-se o processo, sem
resolução do mérito. 7. Apelação da CAIXA provida para acolher a
preliminar de ilegitimidade passiva ad causam e extinguir o feito, sem
resolução do mérito, com fulcro no art. 267, VI, da Lei Adjetiva Civil.17(grifo
nosso)
Seja pela defesa da legitimidade da citada empresa pública:
Civil e Processual Civil. Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV. Imóvel
Residencial financiado. Vicio de construção. Em se tratando de
empreendimento de natureza popular, destinado a mutuários de baixa renda,
o agente financeiro é parte legítima para responder, solidariamente, por
vícios na construção de imóvel cuja obra foi por ele financiada com recursos
do Sistema Financeiro da Habitação. Legitimidade Passiva ad causam da
Caixa. Nulidade da sentença. Retorno dos autos ao juízo de origem, para
prosseguimento da ação. Apelação provida.18 (Grifo nosso)
A divergência aqui encontrada não é exclusiva do Tribunal em comento, mas
verdadeiro reflexo do que ocorre nos tribunais espalhados pelo território brasileiro. Até
então inexiste um entendimento dominante ou fixado por uma corte superior. No âmbito do
STJ, a Ministra Isabel Gallotti defende interessante tese:
RECURSOS ESPECIAIS. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. SFH.
VÍCIOS NA CONSTRUÇÃO. SEGURADORA. AGENTE FINANCEIRO.
17
BRASIL. Tribunal Regional Federal, Região 5. Apelação Cível 549807/PE. Apelante: EMGEA e outro.
Apelado: Edna de Araújo Cabral. Relator: Desembargador Federal: Edílson Nobre, Quarta Turma. Recife, 27
de novembro de 2012. Diário da Justiça Eletrônico. Disponível em: <>. Acesso em: 19 fev. 2016.
18
BRASIL. Tribunal Regional Federal. Região 5. Apelação cível n. 0803064-72.2013.4.05.8400. Apelante:
Lenize Valentin. Apelado: Caixa Seguradora S/A e outros. Relator: Desembargador Federal José Lázaro
Alfredo
Guimarães.
Recife,
9
de
julho
de
2014.
Disponível
em:
<https://pje.trf5.jus.br/pje/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/listView.seam?signedIdProcesso
Trf=cf6694c6d01dffe8b060c5e8f614ac4c#>. Acesso em: 19 fev. 2016.
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LEGITIMIDADE. 1. A questão da legitimidade passiva da CEF, na condição
de agente financeiro, em ação de indenização por vício de construção, merece
distinção, a depender do tipo de financiamento e das obrigações a seu cargo,
podendo ser distinguidos, a grosso modo, dois gêneros de atuação no âmbito
do Sistema Financeiro da Habitação, isso a par de sua ação como agente
financeiro em mútuos concedidos fora do SFH (1) meramente como agente
financeiro em sentido estrito, assim como as demais instituições financeiras
públicas e privadas (2) ou como agente executor de políticas federais para a
promoção de moradia para pessoas de baixa ou baixíssima renda. 2. Nas
hipóteses em que atua na condição de agente financeiro em sentido estrito, não
ostenta a CEF legitimidade para responder por pedido decorrente de vícios de
construção na obra financiada. Sua responsabilidade contratual diz respeito
apenas ao cumprimento do contrato de financiamento, ou seja, à liberação do
empréstimo, nas épocas acordadas, e à cobrança dos encargos estipulados no
contrato. A previsão contratual e regulamentar da fiscalização da obra pelo agente
financeiro justifica-se em função de seu interesse em que o empréstimo seja
utilizado para os fins descritos no contrato de mútuo, sendo de se ressaltar que o
imóvel lhe é dado em garantia hipotecária. Precedentes da 4ª Turma. 3. Caso em
que se alega, na inicial, que o projeto de engenharia foi concebido e aprovado
pelo setor competente da CEF, prevendo o contrato, em favor da referida empresa
pública, taxa de remuneração de 1% sobre os valores liberados ao agente
promotor e também 2% de taxa de administração, além dos encargos financeiros
do mútuo. Consta, ainda, do contrato a obrigação de que fosse colocada "placa
indicativa, em local visível, durante as obras, de que a construção está sendo
executada com financiamento da CEF". Causa de pedir deduzida na inicial que
justifica a presença da referida empresa pública no polo passivo da relação
processual. Responsabilidade da CEF e dos demais réus que deve ser aferida
quando do exame do mérito da causa. 4. Recursos especiais parcialmente
providos para reintegrar a CEF ao polo passivo da relação processual.
Prejudicado o exame das demais questões. 19 (Grifo nosso)
O referido julgamento foi inclusive transformado no Informativo de Jurisprudência
nº 0506 do STJ, no qual se esclarece que a Caixa é parte legítima para responder por vícios
de construção em contratos do SFH, quando incorrer em culpa in eligendo. Noutras
palavras, todas as vezes em que atuar além dos limites da atividade bancária em sentido
estrito. Exemplos de tal atuação podem ser descritos como: promoção do empreendimento,
responsabilidade na elaboração do projeto, escolha da construtora e negociação dos
imóveis.
Apesar de ser um avanço, se comparada aos julgamentos pela ilegitimidade da
Caixa como ré, a mencionada decisão deixa de assegurar aquelas hipóteses do MCMV, em
que a instituição financeira se limita a financiar o imóvel pretendido, sem qualquer outra
19
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n. 1163228/AM. Recorrente: Caixa Seguradora
S/A. Recorrido: Caixa Econômica Federal. Relator: Ministra Maria Isabel Galotti. Brasília, 9 de outubro de
2012.
Disponível
em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=RESUMO&livre=1163228&b=ACOR
>. Acesso em: 19 fev. 2016.
Página 187 de 270
atuação. Nesses casos, consoante o posicionamento acima descrito, a empresa pública não
seria parte legítima a responder por eventuais danos no bem financiado.
Daí, a importância de um direito civil-constitucional e da contextualização
necessária do PMCMV, enquanto política pública incentivadora do direito social à moradia.
É papel dos magistrados alcançar a finalidade da norma a ser aplicada, de modo a garantir a
humanização do direito civil e o efetivo acesso à justiça.
Há muito se revisitou a clássica teoria dos contratos, a fim aplicá-los nos limites
permitidos pelos princípios constitucionais. A máxima ―o contrato faz lei entre as partes‖ já
não tem incidência irrestrita. No contexto atual, reconhece-se que os contratantes nem
sempre se encontram em uma relação horizontal, isto é, de igualdade.
A situação existente no financiamentodo MCMV reflete a hipossuficiência dos seus
adquirentes perante a Caixa Econômica Federal, além da vulnerabilidade previamente
estabelecida por ser uma política dirigida à população de baixa renda. Obviamente, cada
caso deverá ser analisado especificamente, mas a decisão de excluir a Caixa da controvérsia
necessita de ponderação acerca de todos os aspectos aqui discutidos.
Conclusões
O Direito deve estar atento à realidade social, sob pena de tornar-se matéria
abstrata, dissociada do mundo dos fatos. Sendo assim, a situação aqui debatida também
deve ter o mesmo tratamento, a fim de que possamos alcançar a finalidade última da esfera
jurídica: a justiça. Quando um jurista se depara com uma norma, diversas são as maneiras
de interpretá-la e, consequentemente, aplicá-la. No entanto, temos a obrigação de observála à luz dos mandamentos e princípios constitucionais. O caso do PMCMV não é diferente,
ainda mais por se tratar de política pública que visa a garantir o direito fundamental à
moradia.
Regra geral, as instituições bancárias, quando financiadoras de empréstimos
destinados à habitação, não respondem por eventuais vícios da edificação, mas tão somente
verificam se o valor do mútuo corresponde ao imóvel pretendido. Contudo, o PMCMV
possui algumas particularidades: a CAIXA, apesar de ser sujeito de direito privado, é uma
empresa pública federal; o programa é uma política pública destinada à população de baixa
Página 188 de 270
renda e promovida exclusivamente pelo citado ente da Administração Pública indireta, no
âmbito do Programa Nacional de Habitação Urbana e Rural.
Tais peculiaridades não podem ser olvidadas em futura imputação de
responsabilidade advinda de danos causados por falhas na edificação. O Judiciário,
principalmente, deve levar em conta os aludidos fatores na tomada de decisões, uma vez
que ainda não há amparo legislativo nesse sentido. Então, fundamental as ideias de
humanização jurisdicional, de justiça social e de hermenêutica teleológica, na qual se
interpreta conforme a finalidade da norma.
Como vimos, há basicamente três posicionamentos da jurisprudência nacional
acerca da matéria: a) a instituição financeira não é responsável por eventuais vícios de
construção;b) a instituição bancária poderá ser responsabilizada, mas apenas se houver
participado em alguma fase da construção, a exemplo da escolha do imóvel ou da indicação
do construtor;c) na qualidade de fomentadora de política pública de habitação, a Caixa deve
responder em caso de falhas na construção.
Assim, diante dos argumentos expostos, nos filiamos ao último entendimento.
Posição mais garantista, com fins a atender a necessidade de redução do déficit habitacional
do Brasil, mas não apenas de forma quantitativa. Ademais, não podemos ignorar a atenção
ao direito social à moradia. Contudo, a responsabilização solidária da Caixa e da
construtora não se dá de forma automática, sendo imprescindível a realização de perícia e a
devida instrução processual, para evitar litigância de má-fé. Concluímos, portanto, ser
fundamental o exame casuístico e sob os moldes do direito civil-constitucional.
Referências
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Minha Casa Minha Vida em suas duas edições. 2012. 86 f. Monografia (Graduação em
Engenharia de Produção) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/Escola Politécnica, Rio
de Janeiro – RJ. Disponível em:
<http://monografias.poli.ufrj.br/monografias/monopoli10004918.pdf>. Acesso em: 27 fev.
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BARROSO, H. Problemas do Minha Casa, Minha Vida reforçam necessidade de reforma
urbana. A Verdade. São Paulo, 16 abr. 2013. Disponível em:
<http://averdade.org.br/2013/04/problemas-do-minha-casa-minha-vida-reforcamnecessidade-de-reforma-urbana/>. Acesso em: 28 fev. 2016.
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DF: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2008. 464 p.
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dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078compilado.htm>. Acesso em: 28 fev.
2016.
______. Lei n. 11.977, de 7 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha
Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas
urbanas; altera o Decreto-Lei no 3.365, de 21 de junho de 1941, as Leis nos 4.380, de 21 de
agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990, e
10.257, de 10 de julho de 2001, e a Medida Provisória no 2.197-43, de 24 de agosto de
2001; e dá outras providências.Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 jul. 2009.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Lei/L11977.htm>. Acesso em: 17 fev. 2016.
______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n. 1163228/AM. Recorrente: Caixa
Seguradora S/A. Recorrido: Caixa Econômica Federal. Relator: Ministra Maria Isabel
Galotti. Brasília, 9 de outubro de 2012.Diário da Justiça Eletrônico. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=RESUMO&livre=1
163228&b=ACOR>. Acesso em: 19 fev. 2016.
______. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Seção. Súmula 297. Brasília, 12 de maio de
2004. Diário da Justiça, 09 de setembro de 2009, p. 149. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/toc.jsp>. Acesso em: 28 fev. 2016.
______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo 891653
Repercussão Geral / MG. Recorrente: CONSTRUTORA CHEREM LTDA. Recorrido:
MARTA FERREIRA DE ARAÚJO ALMEIDA. Relator: Ministro Teori Zavascki.
Brasília, 25 de junho de 2015. Diário da Justiça Eletrônico. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28ARE%24%2E
SCLA%2E+E+891653%2ENUME%2E%29+OU+%28ARE%2EPRCR%2E+ADJ2+89165
3%2EPRCR%2E%29&base=baseRepercussao&url=http://tinyurl.com/pc49ewu>. Acesso
em: 29 fev. 2016.
______. Tribunal Regional Federal. Região 5. Apelação cível n. 080306472.2013.4.05.8400. Apelante: Lenize Valentin. Apelado: Caixa Seguradora S/A e outros.
Relator: Desembargador Federal José Lázaro Alfredo Guimarães. Recife, 9 de julho de
2014.Diário da Justiça Eletrônico. Disponível em:
<https://pje.trf5.jus.br/pje/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/listView.seam
?signedIdProcessoTrf=cf6694c6d01dffe8b060c5e8f614ac4c#>. Acesso em: 19 fev. 2016.
______. Tribunal Regional Federal, Região 5. Apelação cível n. 549807/PE. Apelante:
EMGEA e outro. Apelada: Edna de Araujo Cabral. Relator: Desembargador Federal
Edilson Pereira Nobre Júnior. Recife, 27 de novembro de 2012. Diário da Justiça
Página 190 de 270
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REFLEXOS JURÍDICOS DO ESTATUTO DA PESSOA COM
DEFICIÊNCIA NO SISTEMA BRASILEIRO DE INCAPACIDADE
CIVIL
Andreza Fernanda de Souza Clementino
Eloisa Lopes Claudino
Resumo: O presente trabalho visa abordar os impactos causados pela edição da Lei
ordinária n° 13.146/2015, que institui o ―Estatuto da Pessoa com Deficiência‖, na teoria da
incapacidade civil. Em síntese, o referido estatuto atribui plena capacidade legal a pessoa
com deficiência, a retirando, portanto, do rol de pessoas incapazes presente nos artigos 3° e
4° do Código Civil. Logo, essas pessoas passam a ser plenamente capazes para diversos
atos da vida civil, como, por exemplo, o casamento e a união estável. Foi feito um
levantamento bibliográfico e jurisprudencial acerca do tema, onde foi realizado um estudo
detalhado da legislação, especificamente no tocante ao Código Civil, tanto a vigente como
a revogada, procurando trabalhar uma abordagem comparativa entre os respectivos
dispositivos. O Estatuto da pessoa com deficiência é fundamentado em princípios
constitucionais e visa estabelecer igualdade de direitos aos deficientes ao alterar diversos
dispositivos
legais,
implicando,
assim,
diversas
consequências
jurídicas.
Tais
consequências residem, especificamente, no âmbito dos contratos e da responsabilidade
civil. Em relação aos contratos, grande consequência consiste na desobrigação da
representação para a manifestação de vontade da pessoa com deficiência. Ademais, com a
manifestação sendo expressa diretamente pela pessoa com deficiência, consequentemente, a
responsabilidade civil, ante a ocorrência de danos, passa a ser inteiramente desta.
Entretanto, parte da doutrina confere ao Código Civil uma função protetiva em relação às
pessoas com deficiência, em virtude de possuírem discernimento reduzido, atribuindo,
assim, críticas ao estatuto. Desse modo, conclui-se que, ante a divergência relatada, é de
suma importância que haja a problematização acerca do tema, visando analisar quais
vantagens e desvantagens os deficientes adquiriram com a garantia da sua capacidade
plena.
Página 192 de 270
Palavras-chave: Estatuto da pessoa com deficiência; deficientes; capacidade legal;
consequências jurídicas.
Abstract: This study aims to address the impacts caused by the issue of Ordinary Law No.
13,146 / 2015 establishing the "Statute of person with Disabilities" in the civil disability
theory. In short, that status gives full legal capacity the person with disability, removing
thus the list of people unable present in 3 and 4 Articles of the Civil Code. So these people
become fully able to various acts of civil life, for example, marriage and stable union. It
was done a literature review and case law on the subject, where a detailed study of the
legislation was carried out, specifically with regard to the Civil Code, both current as
revoked, looking to work a comparative approach between the respective devices. The
disabled person's status is based on constitutional principles and aims to establish equal
rights for the disabled to change various legal provisions, thus implying different legal
consequences. Such consequences reside specifically in the context of contracts and civil
liability. For contracts, great consequence is the release of the representation to the person's
declaration of intent with disabilities. Furthermore, with the event being expressed directly
by the person with disabilities, therefore, liability, before the occurrence of damage, is
utterly this. However, part of the doctrine gives the Civil Code a protective function in
relation to persons with disabilities, by virtue of having reduced discernment, giving thus
the critical status. Thus, it is concluded that, given the reported divergence is of paramount
importance that there is a questioning about the issue to consider what advantages and
disadvantages the disabled acquired with the guarantee of full capacity.
Keywords: Person Statute with disabilities; disabled; legal capacity; legal consequences.
Introdução
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a aplicação de seus respectivos
princípios e garantias fundamentais adentrou para além dos limites do âmbito público,
implicando em grandes reflexos na esfera privada.
Ao ser estabelecido, nas relações jurídicas particulares, a igualdade entre as partes,
fundamentando-se tal tratamento nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
cidadania. Desse modo, visando a garantia de tal postulado, é instituído o estatuto da pessoa
com deficiência, por meio da lei 13.146/2015, o qual trouxe como principal inovação para o
nosso ordenamento a retirada das pessoas com deficiência do rol dos incapazes. Ao atribuir
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capacidade legal ao deficiente, os atos civis praticados por estes passam a ter plena
validade, consequentemente, a teoria das incapacidades sofre ―desfalque‖, sofrendo o
Código Civil, além de outros instrumentos legais, grandes alterações promovidas pelo
referido estatuto.
Diante de tais alterações, surgem diversas consequências, principalmente no que diz
respeito a desobrigatoriedade de alguns instrumentos, os quais antes possuíam função
protetiva aos deficientes. Dessa forma, significativos dispositivos do Código Civil foram
revogados, bem como a devida inclusão de outros, no sentido de harmonizar o ordenamento
jurídico, no que concerne
Cabe ressaltar o surgimento de significativas críticas quanto ao referido estatuto, ante
a elidição da proteção civil anteriormente conferida a essas pessoas, em virtude se seu
reduzido discernimento. Restando imprescindível que haja uma adequação entre a realidade
e a lei, para que não haja descompasso.
A dignidade da pessoa com deficiência a luz do processo de constitucionalização do
Direito Civil
Com o fenômeno da constitucionalização do direito civil e consequentemente da sua
humanização, o mesmo passa a ser interpretado sob a luz dos princípios e garantias
constitucionais. Com o advento da Constituição Federal de 1988, há uma releitura desse
instituto, antes extremamente patrimonialista, no sentido de priorizar uma concepção social,
coletiva das relações jurídicas firmadas entre os particulares.
O código civil, agora orientado nos ditames da justiça social e boa-fé, institui uma
igualdade nas relações jurídicas, ante a aplicação do princípio da isonomia, expresso no
artigo 5° da nossa Constituição federal/88. De acordo com Julio César Finger, os princípios
constitucionais possuem como meta orientar a ordem jurídica no sentido de promover a
realização de valores da pessoa humana como titular de interesses existenciais, para além
dos
meramente
patrimoniais.
Nesse
sentido,
fala-se
em
um
processo
de
despatrimonialização do direito civil. (Constituição e direito privado, p.94-95)
Ademais, percebe-se que a concretização das garantias fundamentais na esfera
privada sobreleva-se de importância no nosso ordenamento, refletindo para essa esfera a
Página 194 de 270
necessidade de inclusão social das pessoas marginalizadas, especialmente os deficientes,
tido muitas vezes não como uma doença, mas como um preconceito.
Como medidaprotetiva para essa camada social, surge a teoria das incapacidades do
direito civil que, em virtude do reduzido discernimento dos deficientes, os qualifica como
absolutamente incapazes de exercer, embora sejam titulares de direitos civis, por si atos na
vida civil. Nesse sentido, segundo Caio Mário da Silva Pereira, "a lei não institui o regime
das incapacidades com o propósito de prejudicar aquelas pessoas que delas padecem, mas,
ao contrário, com o intuito de lhes oferecer proteção, atendendo a que uma falta de
discernimento, de que sejam portadores, aconselha tratamento especial, por cujo intermédio
o ordenamento jurídico procura restabelecer um equilíbrio, rompido em consequência das
condições peculiares dos mentalmente deficitários‖
Não obstante, consolidada tal proteção civil, advindo a necessidade de possibilitar o
amplo exercício dos direitos civis, de forma igualitária, o processo de integração social das
pessoas com deficiência caminha para uma nova roupagem, proporcionando uma reanálise
da forma como estão dispostos os institutos civis, dentre eles os referentes à capacidade.
Como produto desse processo, foi editado o Estatuto da pessoa com deficiência, cujo
projeto foi de autoria do Senador Paulo Paim – PT/RS e entrou em vigência em 5 de janeiro
de 2016, possuindo alicerce no princípio da dignidade da pessoa humana, ao promover a
inclusão social da pessoa com deficiência, capaz de exercer seus direitos e liberdades
fundamentais. Outrossim, referido estatuto consiste em um mecanismo de emancipação
civil e social, onde essas pessoas passam a ser tratadas plenamente como cidadãs,
garantindo-se o princípio da cidadania.
Desse modo, fortifica-se o regime democrático brasileiro, pois sabe-se que os
princípios da dignidade da pessoa humana e da cidadania constituem em fundamentos da
República Federativa do Brasil (art. 1° CF/88). Nesse sentido dispõe o art. 8° da lei
13.146/2015:
“Art. 8o É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar
à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos
direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade
e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à
profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à
habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à
cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à
comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à
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dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e
comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal,
da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e
seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que
garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.”
Em contrapartida aos referidos fundamentos legitimadores da edição da Lei n°
13.146/2015, surge o premente questionamento se acertada foi a edição do referido
dispositivo, bem como essa nova conjuntura legislativa dialogará, de forma efetiva, com as
limitações mentais presentes nos deficientes.
Não obstante, antes de tecer algumas considerações que vão de encontro com
asconcepções trazidas pelo estatuto, torna-se necessário um estudo detalhado da legislação,
especificamente no tocante ao Código Civil, tanto a vigente como a revogada, procurando
trabalhar uma abordagem comparativa entre os respectivos dispositivos.
Conceito de deficiente e as alterações da capacidade para atos da vida civil
Ante o exposto, é de suma importância que seja entendido o que caracteriza o
deficiente, como a lei e os profissionais de saúde conceituam essas pessoas e o que acarreta
a classificação de alguns indivíduos no rol de pessoas com deficiência.
O conceito presente no artigo 2º da lei 13.146/15 é de que:
Art. 2o Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem
impedimento de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou
mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdade de condições com as
demais pessoas.”.
Portanto, pode-se perceber que é um rol bem amplo de deficiências que deixam certas
pessoas em desigualdade de condições com as demais. Sabendo que o Direito é uma ciência
multidisciplinar, é essencial analisar como a medicina trata dessa questão. Segundo a
Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência, o deficiente é a pessoa ―que
apresenta, em caráter permanente, perdas ou anormalidades de sua estrutura ou função
psicológica, fisiológica ou anatômica, que gerem incapacidade para o desempenho de
atividades dentro do padrão considerado normal para o ser humano.‖
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A deficiência mental está conceituada no decreto nº 5.296/04, em seu artigo 5º:
“d)
deficiência
mental:
funcionamento
intelectual
significativamente inferior à média, com manifestação antes dos
dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de
habilidades adaptativas, tais como:
1. comunicação;
2. cuidado pessoal;
3. habilidades sociais;
4. utilização dos recursos da comunidade;
5. saúde e segurança;
6. habilidades acadêmicas;
7. lazer; e
8. trabalho.”
Com a edição da lei 13.146/2015, foi atribuída plena capacidade às pessoas com
deficiência, reconhecendo, portanto, como válidos todos os atos da vida civil praticados
diretamente pelos mesmos, dessa forma dispõe o art. 6° da lei:
“Art. 6o A deficiência não afeta a plena capacidade civil da
pessoa, inclusive para:
I - casar-se e constituir união estável;
II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de
ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e
planejamento familiar;
IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização
compulsória;
V - exercer o direito à família e à convivência familiar e
comunitária; e
VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção,
como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades
com as demais pessoas.”
Assim, é clara a redação do artigo 84 da mesma leiao assegurar à pessoa com
deficiência o exercício igualitário da capacidade legal, perante as demais pessoas:
“Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao
exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições
com as demais pessoas.”
Nesse sentido, verifica-se que o aludido estatuto alterou diversos dispositivos do
nosso ordenamento jurídico, visando harmonizá-lo diante das novas perspectivas atribuídas
às pessoas com deficiência.
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O Código Civil de 2002 vinha tratando dos deficientes primordialmente no que tange
a questão das incapacidades. O referido diploma classificava os absolutamente incapazes
para exercer atos da vida civil:
“Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente
os atos da vida civil:
II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem
o necessário discernimento para a prática desses
atos”;(REVOGADO).
No entanto, a edição da lei 13.146/15 revogou esse inciso II e alterou a situação dos
deficientes, retirando esses indivíduos da categoria de incapaz. Assim, essas pessoas
passam a ser plenamente capazes para a prática de diversos atos da vida civil, devendo-se
ressaltar, em alguns casos, necessária a adoção de institutos específicos.
Ademais, outra significativa alteração consiste na revogação do inciso I do art. 1.548
do aludido código, o qual antes estabelecia que deveria ser determinada a nulidade do
casamento, se contraído por enfermo mental:
“Art. 1.548. É nulo o casamento contraído:
I - pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os
atos da vida civil;” (REVOGADO).
Nessa acepção, em contrapartida a tal revogação, o estatuto incluiu no art. 1.550 o §
2oreconhecendo, de forma expressa, a validade do casamento se contraído por essas pessoas
diretamente:
“Art. 1.550. É anulável o casamento:
[...]
§ 2oA pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade
núbia poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade
diretamente ou por meio de seu responsável ou curador.”
Partindo-se da premissa de estabelecer igualdade de direitos e deveres entre
deficientes e não-deficientes, foram revogados os incisos II e III do art. 228 do CC, nos
quais não se admitia a pessoa com deficiência figurar na qualidade de testemunha:
“Art. 228. Não podem ser admitidos como testemunhas:
I - os menores de dezesseis anos;
II - aqueles que, por enfermidade ou retardamento mental, não
tiverem discernimento para a prática dos atos da vida civil;
(REVOGADO).
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III - os cegos e surdos, quando a ciência do fato que se quer
provar dependa dos sentidos que lhes faltam;” (REVOGADO).
Destarte, com a inclusão do § 2ono mesmo art. 228, passa a ser legítimo o
depoimento proveniente de um deficiente:
“§ 2o A pessoa com deficiência poderá testemunhar em
igualdade de condições com as demais pessoas, sendo-lhe
assegurados todos os recursos de tecnologia assistiva.”
Entretanto, ainda no que diz respeito à legitimidade do deficiente para testemunhar,
verifica-se uma contradição em nosso ordenamento ao analisar o novo Código de Processo
Civil, o qual ainda se encontra no período de vacatio legis, tendo em vista o mesmo não ter
sofrido alterações pelo estatuto. Sendo assim, se comparado o §2° do art. 228 do Código
Civil com o artigo 447 do novo Código de Processo Civil, este último, não reconhece o
deficiente como capaz de testemunhar no processo:
“Art. 447. Podem depor como testemunhas todas as pessoas,
exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas.
§ 1o São incapazes:
I - o interdito por enfermidade ou deficiência mental;
II - o que, acometido por enfermidade ou retardamento mental,
ao tempo em que ocorreram os fatos, não podia discerni-los, ou,
ao tempo em que deve depor, não está habilitado a transmitir as
percepções;
III - o que tiver menos de 16 (dezesseis) anos;
IV - o cego e o surdo, quando a ciência do fato depender dos
sentidos que lhes faltam.”
Apesar da existência de tal contradição, aferi-se compatibilidade do estatuto com o
novo CPC, no que diz respeito ao pleno acesso à prática de atos processuais, por meio
eletrônico, assegurado ao deficiente pelo referido código.
“Art. 199. As unidades do Poder Judiciário assegurarão às
pessoas com deficiência acessibilidade aos seus sítios na rede
mundial de computadores, ao meio eletrônico de prática de atos
judiciais, à comunicação eletrônica dos atos processuais e à
assinatura eletrônica.”
Desse modo, as alterações expostas, conferidas pela lei 13.146/2015, implicaram
relevantes consequências no âmbito jurídico, no que concerne a prática de atos civis pelos
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deficientes, principalmente nos institutos do casamento, curatela, contratos e da
responsabilidade civil.
Consequências jurídicas a partir da vigência da Lei n° 13.146/2015
Como já foi relatado, as pessoas ―que, por enfermidade ou deficiência mental, não
tiverem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil‖ e ―os
excepcionais, sem desenvolvimento mental completo‖ deixaram de ser, respectivamente,
absolutamente e relativamente incapazes. Esse fato trouxe uma série de consequências
práticas para a realidade jurídica atual.
A primeira mudança diz respeito à curatela, principalmente ao seu atual caráter
excepcional.Caso uma pessoa com deficiência pretenda praticar atos da vida civil, precisa
de um representante legal, na qualidade de curador, para representá-la. Com a mudança,
essa representação não será mais obrigatória, devendo somente ocorrer de forma
excepcional, conforme estabelece o § 2o do art. 85 do Estatuto:
“§ 2oA curatela constitui medida extraordinária, devendo
constar da sentença as razões e motivações de sua definição,
preservados os interesses do curatelado.”
Ocorre ai a primeira dificuldade prática: existem pessoas que não conseguem
exprimir sua vontade, em decorrência de fatores físicos. Pode-se tomar como exemplo o
contrato de doação, onde é necessário que o indivíduo capaz exprima sua vontade. Seria de
extrema dificuldade esse ato para algumas pessoas com deficiências que dificultam essa
manifestação de vontade. Além disso, o deficiente, agora plenamente capaz, que tenha um
déficit cognitivo, não pode se beneficiar das invalidades presentes nos artigos 166, I, e 171,
I do Código Civil, que afirmam que:
“Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:
I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz;”
“Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é
anulável o negócio jurídico:
I - por incapacidade relativa do agente;”
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No que diz respeito ao instituto dos contratos, deverá ser obedecido aos ditames
presentes nos arts. 421 e 422 do Código Civil:
“Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e
nos limites da função social do contrato.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na
conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de
probidade e boa-fé.”
Desse modo, ao considerar os deficientes plenamente capazes, a proteção civil ao
deficiente, de certo modo, se restringe à boa-fé e a justiça contratual. Com isso, caso realize
um contrato desvantajoso, esse negócio deverá ser válido, sendo necessária a prova de
vícios do consentimento para requerer a anulação, além de não ter mais os benefícios
acerca dos prazos, correndo a prescrição e decadência contra eles.
Outra dificuldade repousa na questão da responsabilidade em decorrência do dano.
Com a vigência dessa norma, o deficiente passa a responder pelos danos causados a bens de
terceiros. Portanto, a responsabilidade perante a possível existência de danos, antes tida
como indireta ou por ato de terceiro, tendo em vista que era o responsável legal que arcava
com a reparação do dano. Assim, em virtude de ser considerada legítima a manifestação de
vontade do deficiente e, ao partir da premissa de que a este deverá ser atribuído um
tratamento isonômico em relação às demais pessoas, caso algumas pessoas com perda ou
redução de discernimento, por exemplo, danifiquem algum bem alheio, ela responderá por
esse fato, não subsidiariamente como era feito, mas precipuamente, sem a presença de
representante ou curador.
No que tange ao Direito de família, a edição do novo dispositivo legislativo trouxe
mudanças no que diz respeito ao casamento. Conforme exposto, com a revogação do inciso
I do art. 1.548 do CC, o qual prevê nulidade do casamento praticado pelo enfermo mental,
trazendo, nesse aspecto, uma vantagem para os indivíduos com deficiência que querem
construir família.
Nesse sentido, o caso prático deve ser analisado com cautela. É certo que nem toda
deficiência influencia na decisão de casar. Porém, há de se ter em mente que esse fato é um
ato de vontade, e esta não pode estar ligada ou prejudicada pela deficiência, corroborando
tal entendimento a inclusão já supracitada do parágrafo 2º no art. 1.548 do CC.
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Entretanto, pode-se notar, de inicio, uma contradição legislativa entre o artigo 85 do
Estatuto, que afirma que o curador só deverá ser solicitado em assuntos patrimoniais, e o
seu § 1º,que institui que a curatela não afetará o direito ao matrimônio:
“Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados
aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
§ 1o A definição da curatela não alcança o direito ao próprio
corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à
educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.”
O curador tem vontade própria, portanto, admitir a vontade de um terceiro em um
contrato de casamento, onde as vontades que devem ser levadas em consideração é viciar a
essência desse ato civil. Vale salientar que a vigência do novo artigo tem efeito ex tunc, não
retroagindo, com isso, os casamentos realizados por pessoas com deficiência permanecem
inválidos.
Considerações finais
Toda edição de dispositivos legais afeta direta ou indiretamente na vida dos
indivíduos, principalmente aquela que altera diretamente parcela da população, inclusive
quando essa parcela é dita vulnerável, devendo ser protegida.
Segundo dados atuais do IBGE, 6,2% da população têm algum tipo de deficiência.
Assim, diante dessa significativa camada social, é preciso ter cautela ao estabelecer
mudanças nas normas que a regulamenta, principalmente no que concerne a validade da
prática de atos civis por essas pessoas.
Ante as dificuldades práticas narradas, deve-se analisar com ponderação às alterações
supracitadas, especialmente, quanto à nova redação dos artigos 3º e 4º do Código Civil,
para que tal mudança legislativa não venha a causar um efeito in pejus para esses
indivíduos que devem ser protegidos pelos códigos brasileiros. Respeitar o princípio da
isonomia, por vezes, não traz garantias imediatas aos indivíduos que dele dependem. Ao
defender uma igualdade material entre as pessoas, para Nélson Nery Júnior, ―dar tratamento
isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na
exata medida de suas desigualdades‖.
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Além de lutarem diariamente para vencer preconceitos e seguir suas vidas, apesar de
todas as dificuldades, não se pode colocar mais obstáculos aos indivíduos com algum tipo
de deficiência. Certo que o estatuto resguarda algumas precauções, pois concede algumas
medidas de apoio, como, por exemplo, a tomada de decisão apoiada, aquela em que o
deficiente elege duas pessoas de confiança para prestar-lhe apoio na tomada de decisões de
atos civis, auxiliando a pessoa com deficiência a exercer sua capacidade.
Não obstante, o estatuto ao elidir grande parte da proteção, conferida pelo Código
Civil, aos deficientes, sob um pressuposto de inclusão social, deixa margens para um
possível aproveitamento da incapacidade de autodeterminação desses indivíduos. Diante do
surgimento de divergências quanto ao efeito que surtirá na vida das pessoas com
deficiência, se realmente ocorrerá a dita integração dos mesmos na sociedade, somente com
o percurso do tempo a Doutrina e Jurisprudência, conjuntamente, sanarão tais divergências.
Referências
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em: 13
de fevereiro de 2016.
BRASIL.
Código
Civil
de
2002.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 14 de fevereiro
de 2016.
BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União,
Brasília, Nº 127, terça-feira, 7 de julho de 2015. Seção 1, 1677 – 7042. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm#art114>.
Acesso em: 18 de fevereiro de 2016.
FERNANDO
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José.
Estatuto
da
Pessoa
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Deficiência
causa perplexidade (Parte I). Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-ago-06/josesimao-estatuto-pessoa-deficiencia-causa-perplexidade>. Acesso em: 15 de fevereiro de
2016.
FERNANDO
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José.
Estatuto
da
Pessoa
com
Deficiência
causa perplexidade (Parte II). Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-agoPágina 203 de 270
07/jose-simao-estatuto-pessoa-deficiencia-traz-mudancas>. Acesso em: 15 de fevereiro de
2016.
NERY JÚNIOR, Nélson. Princípios do processo civil à luz da Constituição Federal.São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
SILVA PEREIRA, Caio Mário da, Instituições de Direito Civil, 25.ed, Rio de Janeiro,
Forense, 2012, v. 1.
STOLZE, Pablo. O Estatuto da Pessoa com Deficiência e o sistema jurídico brasileiro de
incapacidade civil. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/41381/o-estatuto-da-pessoacom-deficiencia-e-o-sistema-juridico-brasileiro-de-incapacidade-civil>. Acesso em: 19 de
fevereiro de 2016.
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OS DIREITOS DA PERSONALIDADE POST-MORTEM E A CRISE DA
NECROFILIA VIRTUAL
Gabriel Honorato de Carvalho1
Raphael Carneiro Arnaud Neto2
Resumo: O presente trabalho tem como escopo analisar os direitos da personalidade, postmortem, sob o viés da crise identitária que aflige aos usuários das redes sociais, que
rotineiramente compartilham fortes conteúdos (fotografias e vídeos) de pessoas já falecidas,
ultrapassando, aparentemente, os limites da privacidade, da honra e dos direitos à imagem.
A este comportamento atribuímos o termo ―crise da necrofilia virtual‖. O caso emblemático
para o presente estudo é o episódio ocorrido com a morte do cantor Cristiano Araújo,
vítima de acidente automobilístico, no ano de 2015, especialmente no que atine à filmagem
realizada pela equipe médica que procedeu a necropsia do cantor; registro este que circulou
por todas as regiões do Brasil. Um atentado à dignidade, à honra e à imagem daquele ser
humano, que, mesmo falecido, deveria ter respeitado os legítimos direitos sobre o seu
corpo. Faz-se uma análise a respeito da legitimaçãoprocessual para a postulação da tutela
tanto dos direitos patrimoniais, como dos direitos extrapatrimoniais. Avalia-se, de igual
modo, a responsabilização dos agentes envolvidos: se apenas cometem dano indenizável
aqueles que produzem o conteúdo ou se também todos aqueles que ocompartilham, através
das redes sociais, como o Facebook, ou de outros meios de comunicação, como o
Whatsapp. A estas pessoas, atribuímos à denominação de pseudonecrologistas. É, como
dito, justamente este o foco do presente estudo, que busca compreender a mente humana,
no que diz respeito ao que chamamos de crise da necrofilia virtual, como forma de
apresentar um caminho jurídico para tal problema. Pergunta-se, sobretudo, em que ponto o
direito pode ser útil à matéria; qual caminho trilhar na resolução de conflitos gerados por tal
1
Pós-graduando em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Superior da Advocacia – ESA/PB; Pósgraduado em Direito Material e Processual do Trabalho pela Escola Superior da Magistratura Trabalhista –
ESMAT13; Presidente da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da Ordem dos Advogados do Brasil,
Seccional Paraíba – OAB/PB; Advogado e Consultor Jurídico.
2
Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa; Coordenador da Escola Superior da Advocacia,
Seccional Paraíba – ESA/PB; Presidente da Comissão de Direito, Arte e Cultura da Ordem dos Advogados do
Brasil, Seccional Paraíba – OAB/PB; Diretor Científico e Acadêmico do Instituto Brasileiro de Direito de
Família – IBDFAM/PB; Professor e Advogado.
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comportamento humano. Objetiva-se, finalmente, pois, conclamar a sociedade a refletir
como lidar com esta nova realidade e como construir uma nova cultura que faça um
contraponto a tudo isto.
Palavras-Chaves: Direitos da Personalidade; Post-mortem; Necrofilia virtual.
Notas Introdutórias
A humanidade, em toda a sua história, sempre passou por constantes transformações
que refletem diretamente nos novos ideais, novos valores e, consequentemente, na forma
como o ser humano vislumbra o mundo e seus semelhantes3.
Os avanços tecnológicos, sobretudo os da última década, tem grande relevância para o
presente estudo, em especial no que diz respeito à ampliação e facilitação dos meios de
comunicação. Mensagens de texto, áudios, imagens, vídeos e notícias passam a ser
compartilhados de forma bem mais fácil e instantânea do que se podia imaginar, muitas
vezes tomando proporções assustadoras.
Diz-se isto porque, se por um lado tais avanços trazem enormes ganhos para a
sociedade, como, por exemplo, a possibilidade de se avisar, antecipadamente, toda uma
comunidade a respeito de fortes chuvas que podem causar a inundação de toda a cidade,
permitindo tempo hábil para a autoproteção; por outro lado, a desvirtuação da utilização
destas ferramentas pode causar danos irreparáveis ao cidadão comum.
Exemplificando, são diversos os casos de fotografias íntimas, no mais das vezes de
adolescentes, que são vazadas por terceiros ou até mesmo pelos receptores originais,
criando uma rede de compartilhamento que vai se ampliando, como uma pirâmidede
marketing multinível, e espalhando-se por todo o país. Assim aconteceu em Porto Alegre –
RS, onde uma jovem de apenas de 16 (dezesseis) anos, após ter fotografias íntimas
3
Sobre a crise de identidade na pós-modernidade, ou ―Modernidade Liquida‖, como prefere, escreve Bauman:
―Psiquicamente a modernidade trata da identidade: da verdade de a existência ainda não ser a daqui, ser uma
tarefa, uma missão, uma responsabilidade. Como o restante dos padrões, a identidade permanece
obstinadamente à frente: é preciso correr esbaforidamente para alcançá-la. E, portanto, se corre, puxado pela
esperança e impelido pela culpa, embora a corrida, por mais rápida que seja, pareça estranhamente
arrastada.In: BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Zahar, 1998. p.91.
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divulgadas por seu ex-namorado4, tomando-se dimensãonacional – em razão de uma
corrente que circulou o país através do aplicativo Whatsapp –nãoachou outra ―solução‖
para seu problema, senão o suicídio. ―L‟ homme est coupable‖ diria, Albert Camus5, que
prosseguiria: “l‟est de n‟avoirsutirer de luimême” algo como: “mas ele não seria capaz de
tomar de volta para si essa responsabilidade”6.
Não fosse o bastante, a realidade nos mostra que nem mesmo os falecidos são poupados
desta invasão de privacidade. Por mais que não se queira, facilmente se vê, em grupos do
Whatsappou em blogs policiais, imagens de pessoas mortas, algumas expondo o corpo sem
nenhuma tarja ou em situações de maior vulnerabilidade; vídeos de acidentes que mostram
cenas horríveis de pessoas sendo despedaçadas, ou até mesmo gravações de cidadãos, no
ápice de sua fraqueza ou de sua dor emocional, se suicidando.
De uma ausência extrema de sensibilidade/solidariedade, usuários das redes sociais
divulgam tais cenas como quem acabara de encontrar o ―tesouro perdido‖, pouco se
importando com aquele ser humano que ali está sendo devassado ou com os familiares
deste.Assim ocorreu no caso do cantor Cristiano Araújo, vítima de acidente automobilístico
fatal, que teve o momento de sua necropsia filmado por um aparelho smartphone e
circulado através dos já mencionados canais de comunicação. Violaram a privacidade, a
intimidade, os direitos da personalidade e a dignidade humana do cantor e de sua família,
os ―profissionais‖ da saúde que fizeram o registro, assim como todos aqueles internautas
que contribuíram com a circulação do conteúdo.Parecemos assistir o antevisto por Hannah
Arendt quando proferiu a célebre frase: “a autonomia do homem transformou-se na tirania
das possibilidades”7.
São, pois, estes tipos de condutas e posturas acima narradas que o presente escrito passa
a denominar de crise da necrofilia virtual.
4
Essa parece ser a grande marca dos tais ―Tempos Líquidos‖ antevistos pelo professor de Leeds, o Sociólogo
polonês ZygmuntBauman, uma sociedade onde as relações não são feitas pra durar, mas os traumas são
indeléveis. Mais em: BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade das relações humanas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
5
Albert Camus (Mondovi, 7 de novembro de 1913 — Villeblevin, 4 de janeiro de 1960) foi um escritor,
romancista, ensaísta, dramaturgo e filósofo francês nascido na Argélia, ganhador do prêmio Nobel de
Literatura de 1957.
6
CAMUS, Albert. Carnet. janvier 1942 – mars 1951. Paris, Puiseaux. p. 29. 1985.
7
Citada por AGUIAR, Odilio Alves. A questão social em Hannah Arendt. Trans/Form/Ação, v. 27, n. 2, p. 720, 2004.
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Um importante registro se faz necessário: a palavra necrofilia advém da junção da
expressões gregas “nekros”, que quer dizer morto ou cadáver, e “filía”, que significa amor.
Desta feita, os dicionários da língua portuguesa atribuem a esta palavra o interesse sexual
decorrente da visão ou do contato com um cadáver. O presente estudo, porém, em uma
leitura mais ampla e genérica, apoiando-se na base etimológica da palavra, emprega a
expressão necrofilia no sentido de desejo e/ou vontade (não necessariamente sexual) de ver
pessoas mortas. É o que também chamaremos, por oportuno, de pseudonecrologistas.
Anote-se, ainda, que tal análise será realizada através da abordagem aos direitos da
personalidade post-mortem, sob o viés da constitucionalização do direito civil e seus três
princípios básicos, conforme lições de Gustavo Tepedino8: a proteção da dignidade da
pessoa humana (princípio dos princípios); solidariedade social; e o princípio da isonomia
ou igualdade lato sensu.
Para encerrar este introito, o que é mais importante para o objetivo do trabalho: chamar
atenção do leitor e de toda a comunidade para a necessidade de uma mudança significativa
para uma nova cultura, mais sensível e solidária pelo ser humano para o próprio ser
humano, como perfeitamente pontua Anderson Schreiber:
O cerne do problema não está na deterioração dos valores tradicionais, mas na
sua flagrante insuficiência diante das novas tecnologias que, sem prejuízo da sua
imensa utilidade, tornam extremamente vulneráveis a imagem, a privacidade e a
intimidade alheias. Essas novas tecnologias exigem uma nova cultura, capaz de
fazer frente à crescente exposição do ser humano. Vivemos uma era decisiva, em
que cada sociedade precisa decidir como lidar com essa nova realidade.Podemos
continuar assistindo passivamente, com mero constrangimento, à invasão
desautorizada da esfera alheia ou podemos estabelecer novos padrões de
comportamento, éticos e jurídicos9.
Se a sociedade brasileira frustrou-se ao ver os primeiros passos dos direitos da
personalidade no país sendo interrompidos pelo golpe de 1964 e a instituição do regime
militar; foi apenas com a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil Brasileiro de 2002
que passou a respirar novos ares de esperança. Destaque-se, na Carta Cidadã, a instituição
de princípios como a dignidade da pessoa humana e o da solidariedade, e, no Código
Civilista, a inauguração de todo um capítulo endereçado aos direitos da personalidade,
8
TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In: Temas de
direito civil. 3° ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 1-22.
9
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 126.
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assim como a adoção de uma base triangular para sustentação do diploma, reafirmando os
deveres da eticidade, socialidade e operabilidade.
Surge, da análise sistemática destes dois diplomas, o Direito Civil Constitucional, que,
seguindo as lições de Flávio Tartuce, “nada mais é do que um novo caminho metodológico,
que procura analisar os institutos privados a partir da Constituição e, eventualmente, os
mecanismos constitucionais a partir do Código Civil, em uma análise de mão dupla”10.
Ou, com albergue nos ensinamentos do insigne Ministro Luiz Edson Fachin, a
incidência franca da Constituição nos diversos âmbitos das relações particulares à luz de
comandos inafastáveis de proteção à pessoacomo a grande tendência do Direito Civil11.
É justamente este o cerne da questão quando se fala nesta constitucionalização do
direito civil, ou ainda quando se menciona a eficácia horizontal dos direitos fundamentais: a
proteção do ser humano como objetivo primordial e prioritário de todo o ordenamento
jurídico, estejamos falando do direito público ou privado.
Anote-se, pela precisão das colocações, a doutrina de Maria Celina Bodin de Moraes:
Correta parece, então, a elaboração hermenêutica que entende ultrapassada a
summadivisioe reclama a incidência dos valores constitucionais na normativa
civilística, operando uma espécie de ‗despatrimonialização‘ do direito privado,
em razão da prioridade atribuída, pela Constituição, à pessoa humana, sua
dignidade, sua personalidade e seu livre desenvolvimento 12.
Observa-se, desde já, o direcionamento harmonioso da doutrina no sentido de se
priorizar a dignidade da pessoa humana e assim os seus direitos à intimidade, à vida
privada, à honra e à imagemdas pessoas, como bem preconiza a Carta Magna em seu art.
5°, inciso X, frise-se, principal dispositivo no que tange aos direitos fundamentais do
brasileiro.
10
TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015, p.
54.
11
FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil. Sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 1011.
12
MORAES, Maria Celina Bodin de. ―A Caminho de um Direito Civil Constitucional‖, in Revista de Direito
Civil, vol. 65, p. 26.
Página 209 de 270
Tem-se aí a consagração do direito à privacidade;e essa expressão em sentido amplo
para abarcar todas as manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade das
pessoas13.
Neste diapasão, cumpre trazer à baila o inconformismo do constitucionalista Dirley da
Cunha Júnior com os casos de violação ao direito à privacidade na era da tecnologia da
informação:
Não é apanágio dos tempos hodiernos a violação ao direito à privacidade. Há
muito a privacidade das pessoas vem reclamando maior proteção em face dos
meios de comunicação. Com o aperfeiçoamento da técnica, os veículos de
comunicação tornaram-se mais sofisticados e eficazes, de sorte que o homem,
mesmo no recesso de seu lar, tem sido vítima de intrusos e inescrupulosos que,
através de lentes teleobjetivas e aparelhos eletrônicos de ausculta, entre outros
recursos, vêm devassando a sua privacidade e de sua família, numa intolerável
ofensa a um direito agora expressamente assegurado constitucionalmente14.
Embora a preocupação do autor seja abordada por um viés um pouco distinto do ora
trabalhado, demonstra-se como é alarmante a extensão dos danos provocados pela ausência
de uma regulamentação eficiente para o mundo virtual. O autor deixa claro, em outras
palavras, o quão perigosos podem ser os instrumentos de comunicação na difusão da
privacidade alheia, por cidadãos intrusos e inescrupulosos.
Comportamento este que anda em trilhar diametralmente oposto aos preconizados pelo
Direito Civil Constitucional, o qual, ao menos na teoria, estabelece o ser humano como
interesse central do ordenamento e bem juridicamente relevante. Nos dizeres de Rafael
Garcia Rodrigues, “trata-se do reconhecimento da personalidade como valor ético
emanado do princípio da dignidade da pessoa humana e da consideração pelo direito civil
do ser humano em sua complexidade”15.
O que se está a dizer, destarte, é que a noção de personalidade assume uma natureza
pré-normativa, visto estar intimamente relacionada à própria condição humana,
preexistindo, portanto, à ordem legislada. Fala-se não apenas pelo viés ontológico, mas,
sobretudo, no viés axiológico, estreitando-se o ―ser‖ e o ―valor‖, pois, como bem disseram
13
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros. 1999, p.
209.
14
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. Bahia: Editora Jus Podivm: 2011, p.
700.
15
RODRIGUES, Rafael Garcia. ―A Pessoa e o Ser Humano no Código Civil‖, in TEPEDINO, Gustavo
(Coord.). O Código Civil na Perspectiva Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, p. 20.
Página 210 de 270
José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz, “o homem vale porque
é, e é inconcebível que um ser humano seja sem ser”16.
Este valor, intrínseco ao homem, o acompanha mesmo antes de sua existência – tanto
que são diversas as normas de proteção ao feto, desde o campo civil até o ramo do direito
trabalhista, como ocorre com a estabilidade provisória conferida a gestante para resguardar
aquele ser que nem sequer nasceu –, persistindo e eternizando-se mesmo após a morte.
Assim, embora o Código Civilista disponha, em seu art. 6°, que a existência da pessoa
natural termina com a morte, a tutela à honra, à imagem e à todos os demais direitos,que
continuam sendo tutelados pelo Estado.
Neste linear, traz-se à baila a doutrina de Diogo Leite de Campos:
Entre a concepção e a morte, o ser humano é uma pessoa jurídica, por o direito se
limitar a ‗adoptar‘ a realidade biológica, integrando-a no mundo da cultura.
Quererá isto dizer que, antes da concepção e depois da morte, não há nada, para a
natureza e para a cultura? Antes da concepção, há o amor entre os pais, e células,
contudo um código, que vão dar lugar a um ser humano. Há também a
necessidade de proteger uma pessoa futura, de garantir que o processo de sua
formação não lhe provocará danos. A pessoa futura projetará, para o período de
antes da concepção, os seus direitos, para se proteger. A exemplo da
personalidade jurídica que será, que exige uma proteção jurídica antes da morte, a
personalidade jurídica que foi exige defesa para além da morte17.
E não poderia ser diferente. Enquanto a vida de um sujeito tenha se esvaído por
qualquer que seja o motivo, toda a sua história, sua honra, sua boa fama, sua imagem e sua
privacidade devem ser respeitados. Não seria admissível permitir que um cidadão, que
lapidou sua reputação em razão de uma vida digna, se tornando uma referência para a
sociedade, tenha sua vida pessoal devassada por outrem, de forma inescrupulosa, com a
única finalidade de deturpar a imagem alheia. Condutas como estas, quando inverídicas e
distorcidas, geram abalos irreparáveis na reputação e consequentemente na vida da família
da vítima e, em alguns casos, até mesmo das próximas gerações. Contudo, deve-se deixar
claro que a tutela conferida pelo ordenamento jurídico não é somente aquela decorrente dos
danos indiretos (família, amigos, comunidade), mas também e especialmente à honra e a
imagem da própria pessoa já falecida.
16
MUNIZ, Francisco José Ferreira; OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. ―O Estado de Direito e os Direitos
da Personalidade‖, in Revista dos Tribunais, 535, fev. 1980, p. 11-23.
17
CAMPOS, Diogo Leite de. Revista de Direito Comparado Luso-Brasileiro, ano IV, n° 7. Rio de Janeiro:
Forense. 1988, p. 93-95, in in TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O Código Civil na Perspectiva CivilConstitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, p. 26.
Página 211 de 270
Insta ressaltar, neste ponto, que aqui não se está a defender a proibição de se falar a
respeito dos cidadãos que já partiram. Não é isto. Em verdade, aqui se está a defender é que
não se ultrapasse o limite da liberdade de informação, evitando-se a invasão da esfera de
privacidade da pessoa já falecida. De tal modo, seguindo a renomada obra de Humberto
Ávila, há de se sopesar o conflito de princípios e valores aqui descritos, de um lado a
liberdade de informação, e de outro, o direito à privacidade e a todos os direitos da
personalidade. Como se chegar a resposta de tal enigma? Bom senso e razoabilidade, à
partir de uma ponderação de valores éticos e morais18.
Analisemos tal conflito no caso concreto do cantor Cristiano Araújo, caso emblemático
para o presente estudo, como já antecipado nas notas introdutórias. Acontecimento que
chocou o Brasil e, até mesmo, a comunidade internacional, apontou o quão frio se mostra o
―homem moderno‖.
Recordemos, por oportuno, o caso. No dia 24 de Junho de 2015, o cantor sertanejo se
envolveu em um acidente na BR-153, no interior de Goiás, no trajeto entre um show que
acabara de fazer e o destino de sua residência. No banco da frente, o motorista e o
segurança; no banco de trás, o jovem cantor Cristiano Araújo e sua noivaAllana Moraes,
ambos arremessados para fora do veículo no momento da capotagem. Allana faleceu
instantaneamente e Cristiano, mesmo socorrido, não sobreviveu ao impacto.
Assim comoacontecido em outras tragédias envolvendo pessoas públicas, boa parte do
país parou em comoção. Parece, entretanto, não se poder dizer o mesmo da equipe médica,
que, mesmo no momento da necropsia, lançou-se a gravar um vídeo expondo o cadáver em
situação degradante, chegando ao ponto de se autoenquadrarem ao lado dos restos
mortais.Rapidamente a gravação ganhou notoriedade através de aplicativos de mensagense
redes sociais, principalmente oYouTube,Facebook e o Whatsapp.
Chama atenção a postura dos usuários da rede, aqui nominadospseudonecrologistas,
que, em meio a ―críticas‖ à gravação, buscam e solicitam o conteúdo para assisti-lo, assim
como compartilham ao próximo, como quem apenas registra um absurdo ocorrido, como se
em nada estivessem contribuindo para aquela lesão.
18
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – Da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. 13ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2012.
Página 212 de 270
É justamente este o cerne da questão ora discutida. Qual o limite da liberdade de
informação? Até que ponto deve ira tutela aos direitos da personalidade? E quanto às
pessoas falecidas? Qual a responsabilidade de quem fez o registro? E qual a
responsabilidade de quem apenas o compartilhou?
No que diz respeito a esse confronto liberdade de informação versus direitos da
personalidade, imperioso trazer à baila a dicção do art. 4° da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, que assim dispõe: “a liberdade consiste em poder fazer tudo que
não prejudique o próximo”.Existe, portanto, uma notória diferença entre noticiar um fato,
como informar de um acidente e a morte de uma personalidade, e, por outro lado, expor
para toda a comunidade uma vídeo-gravação das partes internas do corpo do falecido.
Sobre o assunto, Anderson Schreiber, com a precisão que lhe é peculiar, aponta os
parâmetros para aferir o grau de realização do exercício de liberdade e a intensidade do
sacrifício imposto ao direito de imagem:
Em termos gerais, podem-se indicar os seguintes parâmetros para aferir o grau de
realização do exercício de liberdade de informação por meio da veiculação de
imagens: (i) o grau de utilidade para o público do fato informado por meio da
imagem; (ii) o grau de atualidade da imagem; (iii) o grau de necessidade da
veiculação da imagem para informar o fato; e (iv) o grau de preservação do
contexto originário onde a imagem foi colhida. Para aferir a intensidade do
sacrifício imposto ao direito de imagem, cumpre verificar: (i) o grau de
consciência do retratado em relação à possibilidade de captação da sua imagem
no contexto de onde foi extraída; (ii) o grau de identificação do retratado na
imagem veiculada; (iii) a amplitude da exposição do retratado; e (iv) a natureza e
o grau de repercussão do meio pelo qual se dá a divulgação da imagem 19.
No que atine à tutela dos direitos da personalidade, especificamente no que tange às
pessoas já falecidas, encosta-se novamente na doutrina em albergue:
Os direitos da personalidade projetam-se para além da vida do seu titular. O
atentado à honra do morto não repercute, por óbvio, sobre a pessoa já falecida,
mas produz efeitos no meio social. Deixar sem consequência uma violação desse
direito poderia não apenas causar conflitos em familiares e admiradores do morto,
mas também contribuir para um ambiente de baixa efetividade dos direitos da
personalidade. O direito quer justamente o contrário: proteção máxima para os
atributos essenciais à condição humana.
Daí a necessidade de se proteger, post mortem,a personalidade, como valor
objetivo, reservando a outras pessoas uma extraordinária legitimidade para
pleitear a adoção das medidas necessárias a inibir, interromper ou remediar a
violação, como autoriza o art. 12 do Código Civil.
19
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 116.
Página 213 de 270
Neste aspecto, chama-se atenção para o descompromisso de alguma parcela da mídia
para com os direitos da personalidade do falecido, desencadeandoefeitos diretos no meio
social e contribuindo para uma sociedade de baixa efetividade dos direitos inerentes à
pessoa humana.
Ora, veja-se, por exemplo, a exposição da personalidade humana por ―repórteres
policiais‖, que insistem emdifundir a infelicidade alheia como se fora produto
comercializável. A televisão, sem sombra de dúvidas, tem inestimável influência na
formação cultural de uma comunidade, prestando enorme ‗contribuição‘ para a situação em
que vivemos.
Conquanto tenha o Marco Civil da Internet, Lei n. 12.965/14, em seu art. 7°, I, previsto
a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, nos parece que o legislador preocupou-se,
sobremaneira, em amenizar a responsabilidade civil dos provedores e operadores da
internet. Em que pese alguns avanços da lei, acredita-se que esta poderia e deveria ser mais
abrangente.
Retornando ao Código Civilista, insta ressaltar a disposição do seu art. 12: “pode-se
exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e
danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”, que é complementado pelo seu
parágrafo único que assim estabelece: “em se tratando de morto, terá legitimação para
requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em
linha reta, ou colateral até o quarto grau”.
Por sua vez, o art. 20, do mesmo Diploma, que trata da divulgação de escritos, a
transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem, prevê,
também em seu parágrafo único, que “em se tratando de morto ou de ausente, são partes
legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”.
Chama-nos a atençãoo fato do legislador pautar todo o Código Civil a partir da
priorização do ser humano (sua dignidade e personalidade),como prioridade máxima do
ordenamento; preconizar que são indisponíveis os direitos da personalidade; e,
posteriormente, elencar taxativamenteaqueles que podem postular a respectiva tutela
judicial.
Vejamos.
Página 214 de 270
No que diz respeito aos direitos patrimoniais, é incontroverso que apenas devem
possuir tal legitimação aqueles previstos nos roles taxativos dos dispositivos em análise –
acrescentando-se, obviamente, o companheiro, esquecido pelo legislador – em perfeita
atenção aos direitos sucessórios. Contudo, mesma certeza não se verifica, de plano, quanto
aos ditos direitos pessoais indisponíveis, a exemploda honra do falecido.
A esse respeito, não nos parece vazio de sustentação jurídica que o operador do
direito, aplicando a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, atingiria em cheio as
disposições ora debatidas, expandindo tal legitimação para alémdos previstos, alcançando
toda e qualquer pessoa capaz que manifeste judicialmente o intento de impedir ou
suspender a divulgação de um conteúdo lesivo.
Tal leitura, poderia traduzir-se como aplicação do princípio constitucional da
solidariedade (direitos fundamentais de 3ª geração). Trilhar-se-ia, deste modo, em sentido à
efetividade dos direitos da personalidade, numa compreensão completa e complexa do
ordenamento.
Ocorre que não basta estender a legitimação para toda a comunidade. O grande
passo, sem titubeio, é a responsabilização de todos os agentes envolvidos na cadeia de
criação e divulgaçãodo conteúdo necrófilo. Assim, pensamos que a responsabilização(civil
e/ou criminal) do agente é de fundamental importância para a mudança cultural que se
deseja.
Precisa-secompreender que tão gravosa quanto a conduta do cidadão que produz o
vídeo ou a imagem, também é extremamente grave e danosoo comportamento daquele que
―apenas‖ compartilha o registro, razão pela qual, tendo contribuindo para o dano, também
de forma significativa, merece ser responsabilizado.
Veja-se que o Diploma Civil, em seu art. 186, preconiza que “aquele que, por ação
ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem,
ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Ora, se o dano mede-se por sua
extensão, nos parece incontestável que concorrem para este tanto quem produz o conteúdo,
como quem o compartilha, afinal de contas, é inegável que a dimensão se dará a partir dos
compartilhamentos (propagação) do registro.
A leitura do dispositivo apontado alerta que também comete ato ilícito aquele que,
por omissão, causar dano a outrem. Nos parece que tal dispositivo ainda encontra margem
Página 215 de 270
para punir, por exemplo, aquele integrante do grupo do Whatsapp, por exemplo, que
mesmo não tendo assistido ou compartilhado, nada fez para cessar o dano, leia-se, nenhuma
atitude (denúncia, por exemplo), fez a este respeito.
Registre-se, ainda, a doutrina de Sérgio Cavalieri Filho, que, lecionando a respeito
da teoria da equivalência dos antecedentes (também aplicada no ordenamento brasileiro),
afirma que:“essa teoria não faz distinção entre causa (aquilo de que uma coisa depende
quanto à existência) e condição (o que permite à causa produzir efeitos positivos ou
negativos)”, concluindo, em seguida, que “se várias condições concorreram para o mesmo
resultado, todas têm o mesmo valor, a mesma relevância, todas se equivalem”20.
Destarte, como dito, é induvidoso que concorrem para a dimensão do dano não
apenas o captador do conteúdo, mas também aquele que o compartilha na rede, uma vez
que ganha maior extensão à cada compartilhamento.
Considerações Finais
Diante do estudo desenvolvido no presente texto, chega-se à conclusão da
necessidade imediata de construção de uma nova cultura que faça frente a esta era de
promoção banalizada do desrespeito aos direitos da personalidade.
Pensa-se, portanto, que tal construção inicia-se pela qualificação da mídia e dos
meios
de
comunicação,
reprimindo-se
os
sujeitos
que,
sem
nenhuma
sensibilidade/solidariedade, expõem, abertamente, a imagem, a honra, a privacidade da
pessoa já falecida, agindo em contraposição tamanha ao pilar central da Constituição
Federal: o princípio da dignidade da pessoa humana. Diz-se isto justamente por entender a
inestimável influência da mídia na cultura de uma sociedade.
De igual modo, registra-se a importância da iniciativa de cada sujeito, seja através
do exemplo de conduta, seja negando e reprimindo aqueles pseudonecrologistas, ou, ainda,
judicializando os casos de necrofilia virtual, tanto para cessar a lesão à personalidade, como
para responsabilizar civilmente o infrator.
Pensa-se, de igual modo, que a responsabilização civil apresenta-se como fator de
grande relevância para consecução desta mudança cultural que se intenta, considerando-se
tanto o seu viés compensatório, como, sobretudo, a vertente sócio-pedagógica (ou punitivo20
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 64.
Página 216 de 270
educativa). Ressaltando-se, conforme retro mencionado, a aplicação desta responsabilidade
não apenas para quem produz o conteúdo, mas também para que o compartilha, por
convergir diretamente com a dimensão do dano.
Em uma sociedade cada vez mais capitalista, nos parece que o cidadão comum
apenas passa a refletir sobre determinado assunto quando lhe é tocado o bolso. A
atribuição, portanto, do dever de indenizar o dano moral, também se mostra como uma via
adequada e essencial para o fim desta crise.
O mais importante é que sociedade passe a constatar o quão prejudicial é a conduta
que intitulamos de necrofilia virtual; perceba que não se pode assistir, inerte, a tudo isto;
que precisa estabelecer novos padrões de comportamento, éticos e jurídicos; que necessita,
sobretudo, agir, pois, como bem canta Lenine,“o mundo anda cada vez mais veloz, a gente
espera do mundo e o mundo espera de nós”.
Referências Bibliográficas
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2, 2004.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – Da Definição à Aplicação dos Princípios
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Portal O Globo. http://oglobo.globo.com/brasil/jovem-comete-suicidio-depois-de-ter-fotosintimas-vazadas-na-internet-10831415 Visualizado em 18/02/2016, às 16h10m.
MUNIZ, Francisco José Ferreira; OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. ―O Estado de
Direito e os Direitos da Personalidade‖, in Revista dos Tribunais, 535, fev. 1980.
RODRIGUES, Rafael Garcia. ―A Pessoa e o Ser Humano no Código Civil‖, in
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TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil.
In: Temas de direito civil. 3° ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
Página 218 de 270
NOVAS FORMAS DE FAMÍLIA COMO
REFLEXO DA SOCIEDADE PÓS-MODERNA
Cinthia Caroline Luiz do Nascimento1
Resumo: Desde os primórdios de sua existência a humanidade vem sofrendo constantes
mudanças. Da Idade da Pedra, onde o homem vivia em uma cultura extremante rudimentar,
passando pela descoberta do fogo, da roda, da eletricidade, dentre tantas outras que foram
evidenciadas ao passar dos séculos. Tais mudanças refletiram diretamente nas sociedades e
suas maneiras de agir, comportar-se, vestir-se e principalmente de relacionar-se. Assim,
estas transformações constantes chegaram até a base estrutural da humanidade, qual seja, a
família, e, principalmente no que tange a sua formação. As famílias atuais têm composições
diferentes daquelas da década de 50, por exemplo. O objetivo deste trabalho é demonstrar
um pouco da verdadeira metamorfose ocorrida no âmbito familiar, fazendo um liame destas
mudanças como sendo uma consequência dessa era fluida e efêmera denominada de PósModerna. Através de uma pesquisa puramente bibliográfica, procura-se ilustrar que foi
após a Revolução Industrial e por conseguinte do Capitalismo, onde houve a necessidade da
inserção da mulher no mercado de trabalho, que iniciou-se o passo decisivo para o aumento
do número de divórcios e com eles o surgimento dos rearranjos familiares. Além disso, a
liberdade sexual foi aflorando onde as pessoas passaram exigir o direito de relacionar-se
livremente, o que acarretou o surgimento das comunidades LGBT. Daí em diante, foram
aparecendo famílias com apenas um membro, ou compostas por dois homens ou duas
mulheres, com a mãe sendo a chefe da família, dentre outras. O que são consequências de
uma alteração no perfil da sociedade, bastante típico da era pós-moderna em que se vive.
Isso gerou uma verdadeira revolução na seara jurídica, sendo refletida através da
jurisprudência, onde gradativamente, os juízes se deparam com situações até então
impensáveis e onde os limites da lei ainda não alcançavam. A consequência foram decisões
verdadeiramente revolucionárias, indo até mesmo em contraponto a legislação
infraconstitucional e abraçando as novas famílias com base no afeto, norteados pelo
1
Graduada em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ, Pós-graduanda em direito civil e
processo
civil
pela
Escola
Superior
da
Advocacia
–
ESA.
Advogada.
E-mail:
[email protected].
Página 219 de 270
princípio da dignidade da pessoa humana, influenciando alterações legislativas e a criação
de novas leis para abraçar as novas relações familiares.
Palavras-chave: Família; Multiparentalidade ; Pós-Modernidade ; Sociedade ; Afeto
Abstract: Since the beginning of its existence, mankind has been undergoing constant
change. Stone Age where the man lived in a extremante rudimentary culture, through the
discovery of fire, the wheel, electricity, among many others that were shown to over the
centuries. Such changes reflected directly in societies and their ways of acting, behaving,
dressing and mainly relate. Thus, these constant changes came to the structural basis of
humanity, namely the family and especially with regard to their training. Today's families
have different compositions from those of the 50's, for example. The objective of this work
is to demonstrate some of the true metamorphosis occurred in the family, making a bond of
these changes because of that was fluid and ephemeral called Postmodern. Through a
purely bibliographical research, seeks to illustrate that it was after the Industrial Revolution
and therefore Capitalism, where there was a need of women entering the labor market,
which began the decisive step to increase the number of divorces and with them the
emergence of family rearrangements. In addition, sexual freedom was outcropping where
people began demanding the right to relate freely which led to the emergence of LGBT
communities. Henceforth, families were coming up with only one member, or composed of
two men or two women, with the mother being the head of the family, among others. What
are the consequences of a change in the profile of the society, fairly typical of the
postmodern age in which we live. This created a true revolution in the legal harvest, being
reflected through case law, which gradually judges are faced with situations previously
unthinkable and where the limits of the law has not yet reached. The result was truly
revolutionary decisions, even going as opposed to infra-constitutional legislation and
embracing the new family based on affection, guided by the principle of human dignity and
influencing legislative changes and the creation of new laws, to embrace the new family
relationships
Keywords: Family; Multiparentalidade; Post-Modernity; Society; Affection.
Introdução
Página 220 de 270
A família é a base da sociedade, assim diz a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 226. É, além disso, o local onde o ser humano
se refugia e desenvolve sua personalidade e caráter2.
Nas civilizações antigas, a família era administrada pelo pater familias, que era
a figura do pai, onde todas as decisões e tudo que dizia respeito a seu âmbito familiar era
por ele decidido. Naquela época, as famílias eram compostas pelo pai, pela mãe e pelos
filhos, além dos filhos solteiros, noras, netos e demais descendentes, formando um
verdadeiro clã. O―pater familias‖, como era conhecido o pai, era o senhor absoluto da casa,
o sacerdote que presidia o culto aos antepassados e o juiz que julgava seus subordinados,
alémde administrador dos negócios da família‖3.
A mulher, tinha o papel apenas de cuidar dos filhos e da casa, extremamente
submissa ao homem, não tinha qualquer poder de decisão. Entretanto, ao passar do tempo,
esse poderio predominantemente masculino foi perdendo força, principalmente após a
Revolução Industrial, onde a mulher passou a inserir-se no mercado de trabalho.
Os tempos modernos trouxeram mudanças no comportamento humano,
principalmente na visão de homem e mulher que se tinha antes nas civilizações ocidentais,
que possuíam suas raízes na antiguidade clássica greco-romana e na cultura judaico-cristã4,
ambas amplamente patriarcalistas.
Com o advento da Era Industrial, as mulheres saíram de suas casas e passaram a
dividir o espaço com os homens, integrando o mercado de trabalho.Com isso vieram as
primeiras mudanças na formação da famíliadaquela época, pois muitas delas passaram a
sustentar a si própria e aos seus filhos, quando se viam sem a figura masculina dentro de
casa, seja por morte, seja por separação ou até mesmo abandono. A partir daí, o conceito de
família mudou para sempree as pessoas passaram a unirem-se com basenas novas
possibilidades, descobrindo sua liberdade sexual, com a livre escolha de seus cônjuges,
tudo combaseno afeto5.
2
POPPE, Laila Letícia Falcão. Novas conformações jurídicas e sociais da família e o afeto como meio de
efetivação desse direito fundamental. Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Direitos Humanos.
3
FIUZA, César. Direito Civil: curso completo/ Cézar Fiuza – 17 Ed. – São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais; Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2014.
4
PETRINI, J. C.: Pós-modernidade e família: um itinerário de compreensão, Bauru, EDUSC, 2003, 228 p.
5
COSTA, Fabrício Borges– Da Multiparentalidade do Século XXI. Percurso Acadêmico, Belo Horizonte, v.
5, n. 9, jan./jun. 2015.
Página 221 de 270
Com a Revolução Sexual de 1960, ocorrida no ocidente, as pessoas saíram às
ruas requerendoo direito a sua liberdade sexual, uso de contraceptivos e da pílula, sexo fora
das relações conjugais, dentre outros. As consequências foram várias. A mulher ao adquirir
sua independência e por vezes oprimida, passa a não aceitar o comportamento muitas vezes
brutal de seu cônjuge, tendo a liberdade de viver sem a necessidade de manutenção de sua
família por meio dele.O homem ou mulher que sentiam atração por pessoas do mesmo sexo
começam a viver sua liberdade e despertam para o desejo de constituirfamília.Surgiram
famílias menores e diferentes, por exemplo, as formadas apenas por avós que cuidam de
seus netos e, dentre outras, foi abrindo o grande leque de composiçãofamiliar que se vê
hoje, nesta era por alguns denominada de pós-moderna.
A família na sociedade pós-moderna
Conforme se vê atualmente e demonstrado acima, a família passou por diversas
mudanças quanto a sua formação. Isso se deve as grandes alterações ocorridas com a
sociedade nas últimas décadas e a vários elementos que surgiram concomitantemente, quais
sejam, as inovações na medicina, as manipulações genéticas, a automação das indústrias, a
valorização do consumismo, a revolução sexual, entre outros fatores, que foram essenciais
para o surgimento de uma nova forma de pensar entre homens e mulheres6.
Essa era em que se fala sobre tamanhas mudanças é, por muitos autores,
denominada de ―Pós-Modernidade‖. Na visão de Jair Ferreira dos Santos
Pós-modernismo é o nome aplicado às mudanças ocorridas
nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950,
quando, por convenção, se encerra o modernismo (19001950)7.
Essa época contemporânea em que se vive é marcada pelo imediatismo,
segundo Bauman,a era pós-moderna é caracterizada pela liquidez ou fluidez dos sólidos
padrões conservadores das décadas passadas8. Neste sentido, o que se valoriza no pós6
PETRINI, J. C.; MOREIRA, L. V. C.; ALCANTARA, M. A. R. Desafíos al estudio de la familia
contemporánea. Revista Krínein - Universidad Católica de Santa Fé. Argentina. ISSN 1850-3217, v. 5, p. 161180, 2008.
7
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004. – Coleção primeiros
passos; 165) 22ª reimpr. da 1ª ed. de 1986.
8
BAUMAN, Zigmunt. MODERNIDADE LÍQUIDA. tradução, Plínio Dentzien. - Rio de Janeiro:Jorge Zahar
Ed., 200.
Página 222 de 270
modernismo é a individualidade da pessoa humana, tornando as relações e padrões mais
flexíveis e abertos, com a rejeição das estruturas rígidas e hierárquicas do passado. Assim,
surge a valorização da inclusão dos diferentes, com a finalidade de realização pessoal 9.
Além disso, as relações fluidas desta época contemporânea, perderam um pouco da ideia do
―felizes para sempre‖, tendo como consequência disso o aumento do número de divórcios e
com isso os rearranjos familiares.
O instituto do casamento, com todas as suas
formalidades, também perdeu forças nas últimas décadas e as pessoas passaram apenas a
conviverem, nascendo um novo tipo de relação, atualmente também protegida pela
Constituição Federal, que é a união estável. Daí por diante foram se formando as novas
estruturas familiares conhecidas hoje e também já classificadas por vários estudiosos, que
serão vistos adiante.
As Novas Famílias E O Direito Brasileiro
Como se sabe, as leis são criadas para nortear as relações em sociedade e por
este motivo é que elas necessitam acompanhar as transformações que vêm ocorrendo nela.
Entretanto, com processos legislativos tão demorados, como é o caso do ordenamento
jurídico brasileiro, isso não tem sido possível.Diante de tãobruscas mudanças nem sempre é
possível que a lei acompanhe a evolução social, fazendocom que situações desse jaez,
cheguem ao gabinete dos magistrados sem que os mesmos possuam base teórica ou até
mesmo jurisprudencial para julgar tais situações.
No Brasil, após o advento da Constituição Federal de 1988, as pessoas
foramconsideradas na sua individualidade, o que fez atrair um anseio por fazer desse bemestar pessoal o maior interesse da família pós-moderna. Os filhos passaram a ser
Constitucionalmente iguais e a terem os mesmos direitos e deveres, sem distinçõesentre os
que foram concebidos fora do casamento e os que foram adotados.Também, através da
famigerada Emenda Constitucional 66/2010 houve a facilitação do divórcio, outra
novidade, foi o reconhecimento da união estável como entidade familiar e ainda
efinalmente as pessoas reconheceram que o fim de um matrimônio e/ou união estável não
9
MALUF, C. A. D.; MALUF, A. C. R. F. D. A família na pós-modernidade: Aspectos civis e bioéticos. R.
Fac. Dir. Univ. São Paulo, v. 108, 2013.
Página 223 de 270
desvincula ou desfaz a maternidade ou paternidade. O termo ―a família‖ foi dando espaço
ao termo ―as famílias‖ abraçando as diversidades e dando abertura a novas classificações
como família monoparental, anaparental, homossexual, dentre outras10.
O direito, a duras penas, vem tentando acompanhar o avanço e as mudanças
ocorridas nas famílias, entretanto, pelo menos no Brasil, pode-se reconhecer que muito já
foi realizado. O Judiciário tem feito, no país, quase que um papel de legislador, tendo que
se desdobrar para decidir os mais diversos e inovadores pedidos. Assim, nos últimos anos
tem surgido emblemáticos julgados, que foram capazes de mudar toda forma de pensar dos
legisladores, ao perceberem a necessidade de novas leis para abraçar as alterações da
sociedade. A exemplo disso temos o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da
união homoafetiva, que defendeu a união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade
familiar. A CF/88, em seu artigo 226, parágrafo 4º, também já reconheceu como entidade
familiar as famílias compostas por apenas um dos pais e os filhos, mais conhecida como
família monoparental11.
A aceitação das novas formas de famílias pelo direito, é nada mais que uma
consagração e respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, que é o grande cerne
da sociedade contemporânea, priorizando a pessoa, ultrapassando a questão patrimoniale
valorizandoas relações pessoais, que são atualmente mais baseadas no afeto, transpondo
inclusive o vínculo biológico12.
Classificaçao Das Famílias Contemporâneas
Pois bem, a partir da visão constitucional de família, o consagrado princípio da
dignidade da pessoa humana permitiu maiores possibilidades de composição e formação da
mesma. De início, pode-se verificar através do artigo 226, da CF/88 que as famílias são
geradas a partir dos institutos do casamento e da união estável, também já foi reconhecida
10
PRETTO, Camila Gabriela. Multiparentalidade: Possibilidade Jurídica e Efeitos Sucessórios. Trabalho
de conclusão de curso, Universidade Federal de Santa Catarina, 2013.
11
SIMÕES, Fabrício dos Santos. Multiparentalidade: O Moderno Conceito de Família. Disponível em:
http://jus.com.br/artigos/33726/multiparentalidade-o-moderno-conceito-de-familia. Acesso em 16/10/2015.
12
KIRCH, Aline Taiane. COPATTI Lívia Copelli. O reconhecimento da multiparentalidade e seus efeitos
jurídicos. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 112, maio 2013. Disponível em:
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12754&revista
_caderno=14>. Acesso em out 2015.
Página 224 de 270
como família aquela formada por apenas um dos genitores e sua prole. Entretanto, Flávio
Tartuce13 ensina que, para a doutrina e a jurisprudência, este rol não é taxativo e sim
meramente exemplificativo e que através das lentes constitucionais, é permitida a admissão
de outras formas de família, a exemplos das que segue:

Anaparental – Etimologicamente, o prefixo grego ―ana‖ significa negação,
privação14, portanto pode-se interpretar anaparental a família que não possui a
figura dos pais. Essa expressão foi elaborada por Sérgio Resende de Barros15 e já
serviu como base para julgados, a exemplo, dos julgados que consideraram como
bem de família o imóvel de pessoa solteira;

Monoparental –Diz-se da família que é composta de um dos pais e pelos filhos,
predominantemente pela mãe, que jáfora reconhecida pela ConstituiçãoFederal de
1988, em seu artigo 226, parágrafo 4º. Nas últimas décadas tem aumentado este tipo
de família, visto a grande quantidade de divórcios existentes e nada mais justo que
reconhecê-la e protegê-la;

Homoafetiva – É a família cujo casal é formado por pessoas do mesmo sexo. O
reconhecimento deste tipo de família ocorreu em 2011, por decisão do Supremo
Tribunal
Federal
através
da
ADPF
132/RJ
e
da
Ação
Direta
de
Inconstitucionalidade 4.277/DF. Por unanimidade, os ministros equipararam a união
homoafetiva com a união estável, em todos os efeitos jurídicos e erga omnes.
Atualmente, já se consegue a celebração de casamento entre pessoas do mesmo
sexo, utilizando-se da argumentação que se fundamenta na equiparação da união
estável ao casamento consagrado na Carta de 88;

Mosaico ou pluriparental – Étambém reconhecida como família reconstituída. Este
tipo de família é formado por pessoas vindas de outras relações, que junto aos filhos
13
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. 1º ed. São Paulo, editora: Método, 2011.
AFONSO, Diógenes. Prefixos Latinos. diafonsoparanapuka.blogspot.com.br. Disponível em:
<http://www.educacional.com.br/upload/blogSite/5094/5094442/9140/PREFIXOS%20GREGOS%20E%20L
ATINOS.pdf> . Acesso em: 16 de outubro de 2015.
15
BARROS, Sérgio Resende de. In: V Congresso Brasileiro de Direito de Família, 2006. A tutela
constitucional do afeto. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 921
14
Página 225 de 270
das uniões anteriores formam uma nova família. A família mosaico é amplamente
encontrada nos dias de hoje e também tem sua formação como consequência dos
muitos divórcios existentes16. Diante do grande número de famílias reconstituídas,
foi criada a Lei 11.924 de 17 de Abril de 2009, que altera artigo 57, parágrafo 8, da
Lei de registros públicos, concedendo o direito aos enteados de serem adotados e
adquirirem o nome do padrasto ou madrasta no seu registro de nascimento.
Tais denominações são puramente doutrinárias.Esclarecem e facilitam o
entendimento,ilustrando o que ocorre nessa era pós-moderna, a respeito das famílias. O
direito por sua vez, vem tentando acompanhar aevolução da sociedade para que as pessoas
não fiquem sem a devida proteção jurídica. Entretanto, há controvérsias de pensamento,
onde algumas pessoas acreditam que a família tem perdido força e que um dia será extinta.
De certo que esse período contemporâneo seja amigo do individualismo e que cada vez
mais as pessoas têm a tendência a não se relacionarem ou pelo menos não criarem vínculos
afetivos, mas ainda existem aqueles que lutam para ter uma família, mesmo que seja fora
dos padrões de outrora.
A despeito do futuro das famílias contemporâneas, Cézar Fiuza faz o seguinte
questionamento,
―Mas qual seria o futuro da família ocidental?
Responder a essa pergunta é impossível. As injunções
históricas são as mais sub-reptícias, mudando o curso de todas
as previsões que se possa fazer. As inovações médicas
revolucionam o mundo a cada instante. O tema deve ser
analisado, sem preconceito ou falsos critérios religiosos. O
amor ao próximo deve ser a única regra a nos guiar nesses
meandros tão conturbados‖.
Como bem ilustrado pelo autor acima mencionado, não se deve olhar para essas
mudanças sociais em torno da família com preconceito ou desrespeito, também sem falsos
16
ALVES,
José
Eustáquio
Diniz.
A
família
mosaico.
Disponível
em:
<http://www.ie.ufrj.br/aparte/pdfs/a_familia_mosaico_16nov08.pdf>. Acesso em: 17 de outubro de 2015.
Página 226 de 270
moralismos ou religiosos. Ademais, essa classificação doutrinária, revela claramente o
reflexo da pós-modernidade nas relações interpessoais, entretanto, para melhor proteger
juridicamente as novas famílias é necessário que a lei se renove.
Foi com essa visão que o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)
elaborou o Projeto de Lei, n. 470/2013, o polêmico ―Estatuto das Famílias‖, apresentado ao
Senado Federalpela senadora da República Lídice da Mata do PT da Bahia. Este estatuto
foi criado justamente para abraçar todas as mudanças ocorridas na sociedade no âmbito da
família, a exemplo, pode-se citar o reconhecimento expresso do parentesco socioafetivo17 e
da união homoafetiva, dentre outras, que não serão aqui demonstradas por não ser o norte
primordial deste artigo18.
Para o IBDFAM, faz-se necessário apartar as normas relativas ao direito de
família do Código Civil, cujas normas são voltadas em sua maioria para questões
patrimoniais.Entretanto, o projeto gerou polêmica e disparidade de pensamentos,
principalmente pela bancada religiosa que atacou alguns dos pontos do projeto, a exemplo
do reconhecimento das uniões estáveis de pessoas já casadas, pois atualmente, quem é
casado não pode constituir união estável. Ocorre que existe alguns julgados aceitando tal
possibilidade e “a proposta assimila a posição de que, se há separação de fato, a pessoa
pode constituir união estável.”19
Embora os magistrados e doutrinadores estejam trabalhando em prol das
mudanças ocorridas na família, a Comissão Especial do Estatuto da Família da Câmara dos
Deputados, munida de conservadorismo, aprovaram recentemente um Projeto de Lei que
define a família a partir da relação formada por um homem e uma mulher, indo totalmente
a contrario sensu do que tem decido o STF. O projeto ainda será encaminhado para votação
na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, mas causou grande revolta de alguns
17
É o parentesco criado pelo vínculo afetivo.
18
SILVA, Pedro Francisco Mosimann da. A MULTIPARENTALIDADE NAS FAMÍLIAS
RECONSTITUÍDAS: DA REALIDADE SOCIAL À (UMA NOVA) REALIDADE JURÍDICA.
Trabalho de conclusão de curso da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2014.
19
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Câmara aprova o Estatuto das Famílias. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/191903-CAMARAAPROVA-O-ESTATUTO-DAS-FAMILIAS.html>. Acesso em: 20 de outubro de 2015.
Página 227 de 270
deputados, inclusive os da bancada LGBT20. Estas discussões estão longe de serem
concluídas, posto que a sociedade está justamente nesta fase de transição de padrões
conservadores e moralistas para uma sociedade que aceita as diferenças e que respeita a
opinião do próximo.
Conclusão
A partir do que foi explanado, conclui-se que a pós-modernidade tem relação
proporcionalmente direta com as mudanças ocorridas na sociedade, principalmente nos
assuntos relativos a família.
O imediatismo dos comportamentos, a falta de tempo, o trabalho excessivo, a
busca do prazer, do dinheiro e do poder, o consumismo exacerbado, dentre tantas outras
características desta Era, refletem imediatamente nas relações interpessoais. A
consequência disso, pode-se ver nos relacionamentos relâmpagos, na falta de
comprometimento para com o outro.O que realmente importa é o bem-estar
próprio.Partindo desse pensamento pode-se dizerque a pós-modernidade é considerada
como a erada consagração do eudemonismo21.
Estas mudanças comportamentais da sociedade, refletiram diretamente na
família, trazendo as mais diversas formas de composição familiar que se vê na atualidade.O
fato é que o direito, como ciência que regula a sociedade, tem que andar lado a lado com
essas mudanças, mas nem sempre é possível.De toda forma, alguns avanços já foram feitos,
mas ainda existe uma longa estrada até que se consiga uniformizar os entendimentos acerca
das diferenças. Enquanto isso a sociedade caminha em frente com suas mudanças, em
busca de uma igualdade entre as pessoas e respeito a diversidade.
Referências
ALVES, José Eustáquio Diniz. A família mosaico. Disponível em:
<http://www.ie.ufrj.br/aparte/pdfs/a_familia_mosaico_16nov08.pdf>. Acesso em: 17 de
outubro de 2015;
20
Jus Brasil. Com a aprovação do Estatuto da Família nada vai mudar, afirma especialista. Disponível
em:http://portal-justificando.jusbrasil.com.br/noticias/235973638/com-a-aprovacao-do-estatuto-da-familianada-vai-mudar-afirma-especialista>. Acesso em: 20 de outubro de 2015.
21
Ciência (doutrina) que, se baseando na procura pela felicidade ou por uma vida feliz, leva em consideração
tanto o aspecto particular quanto o global e caracteriza como benéficas todas as circunstâncias ou ações que
encaminham o indivíduo à felicidade.
Página 228 de 270
AFONSO, Diógenes. Prefixos Latinos. diafonsoparanapuka.blogspot.com.br. Disponível
em:
<http://www.educacional.com.br/upload/blogSite/5094/5094442/9140/PREFIXOS%20GR
EGOS%20E%20LATINOS.pdf> . Acesso em: 16 de outubro de 2015;
BARROS, Sérgio Resende de. In: V Congresso Brasileiro de Direito de Família, 2006. A
tutela constitucional do afeto. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 921;
BAUMAN, Zigmunt. MODERNIDADE LÍQUIDA. Tradução, Plínio Dentzien. - Rio de
Janeiro:Jorge Zahar Ed., 2001;
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Câmara aprova o Estatuto das Famílias. Disponível
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COSTA, Fabrício Borges– Da Multiparentalidade do Século XXI. Percurso Acadêmico,
Belo Horizonte, v. 5, n. 9, jan./jun. 2015;
FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 17.ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014;
Jus Brasil. Com a aprovação do Estatuto da Família nada vai mudar, afirma especialista.
Disponível
em:
http://portal-justificando.jusbrasil.com.br/noticias/235973638/com-aaprovacao-do-estatuto-da-familia-nada-vai-mudar-afirma-especialista>. Acesso em: 20 de
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MALUF, C. A. D.; MALUF, A. C. R. F. D. A família na pós-modernidade: Aspectos civis
e bioéticos. R. Fac. Dir. Univ. São Paulo, v. 108, 2013;
PETRINI, J. C.: Pós-modernidade e família: um itinerário de compreensão. Bauru:
EDUSC;
PETRINI, J. C. ; MOREIRA, L. V. C. ; ALCANTARA, M. A. R. . Desafíos al estudio de
la familia contemporánea. Revista Krínein - Universidad Católica de Santa Fé. Argentina.
ISSN 1850-3217, v. 5, p. 161-180, 2008;
POPPE, Laila Letícia Falcão. Novas conformações jurídicas e sociais da família e o
afeto como meio de efetivação desse direito fundamental. Dissertação (mestrado) –
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí).
Direitos Humanos;
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004. –
Coleção primeiros passos; 165) 22ª reimpr. da 1ª ed. de 1986;
SILVA, Pedro Francisco Mosimann da. A multiparentalidade nas famílias
reconstituídas: da realidade social à (uma nova) realidade jurídica. Trabalho de
conclusão de curso da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2014;
SIMÕES, Fabrício dos Santos. Multiparentalidade: O Moderno Conceito de Família.
Disponível em:http://jus.com.br/artigos/33726/multiparentalidade-o-moderno-conceito-defamilia. Acesso em 16/10/2015;
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. 1º ed. São Paulo, editora:
Método, 2011.
Página 229 de 270
AS TRANSFORMAÇÕES PROMOVIDAS PELO DIREITO CIVILCONSTITUCIONAL E A CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL
DA PROPRIEDADE URBANA
Vinicius Salomão de Aquino1
Resumo: A propriedade imobiliária exerce um papel fundamental na estrutura da nossa
sociedade, não só do ponto de vista do desenvolvimento econômico, mas também por
conferir um necessário espaço para vivência e moradia aos cidadãos. O caráter absolutista e
individualista da propriedade foi gradualmente superado à medida que o direito incorporou
os ideais do Estado Social e passou a resguardar os interesses de toda coletividade e não
somente do proprietário. A democratização do espaço urbano é um dos grandes desafios
contemporâneos, conferir a todos um espaço para construírem suas habitações é essencial
para garantia de uma vida digna e o exercício dos seus direitos básicos. Este ensaio tem
como objetivo investigar a evolução do instituto da propriedade com a influência do Direito
Civil-Constitucional e analisar os institutos do direito civil, como a usucapião, direito real
de habitação, regularização fundiária, entre outros capazes de ajudar a promoção de uma
justa distribuição do espaço urbano que viabilize o gozo de direitos básicos, principalmente
a moradia.
Palavras-chave: Direito Civil Constitucional; Direito à propriedade; Função social da
propriedade.
Abstract:Real
state
plays
a
termsofeconomicdevelopment,
thecitizenstolive.
key
role
butalsobecause
The
in
it
oursocietystructure,
provides
a
absolutistand
wayofportrayingpropertyhasgraduallychanges
notonly
neededspace
in
for
individual
as
thelawhasincorporatedideasfromtheWelfareStateandstartedtoprotectinterestsofthewholecom
munityinsteadofthelandlordalone.
The
urbanspacedemocratizationisoneofthegreatchallengesofour time, provideeveryone some
landto build their homes isessentialtosecure a lifewithdignityandthemostbasicrights.
ThispaperaimstoinvestigatetheevolutionofpropertywiththeinfluenceoftheupcomingConstitut
1
Mestrando em Direito Econômico pelo PPGCJ/UFPB. [email protected]
Página 230 de 270
ional
Civil
Law
andanalyzeusucaptios,
lawconceptstharcah
help
urbanlandregularizationandother
topromote
na
civil
équa
distributionoftheubanlandthatenablestheprotectionofhumanrights,
especiallytherighttohousing.
Keywords: Constitutional civil law; Righttoproperty; social functionofproperty.
Notas Introdutórias
O direito à propriedade é milenar e acompanhou o desenvolvimento das civilizações
humanas, mas ele não permaneceu imutável por todo esse tempo. O seu conceito ganhou
complexidade para abranger as novas dinâmicas sociais. Não obstante o desenvolvimento
econômico e a melhoria nos indicadores sociais, o país ainda convive com uma grande
desigualdade social o que acaba refletindo também na divisão do espaço urbano. Esta
disparidade, força um grande contingente de pessoas a viver em condições dessumas e/ou
ocupar terrenos irregularmente.
Desta forma, seria possível o Estado interferir, a partir de políticas públicas ou
textos legais, na propriedade para democratizar o seu acesso? Este trabalho tem como
objetivo analisar a evolução do conceito de propriedade e a sua relação com o Estado para
então analisar alguns institutos do direito civilque podem ajudar a tornar mais equânime e
justa a distribuição de espaço nos centros urbanos.
Volta Copérnica E O Direito Civil Constitucional
A sociedade está em constante transformação e o direito, consequentemente, não
poderia ficar inerte. Casamento entre pessoas do mesmo sexo, filhos adotivos com os
mesmos direitos que os filhos biológicos, princípio da boa-fé, proteção especial aos
consumidores, dentre outras são realidades que até poucas décadas seriam inimagináveis.
O perfil do Estado também foi gradualmente alterado, desde o absolutismo, liberalismo até
chegar ao Estado social, consistindo em outra força motriz de mutação das relações
jurídicas.
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A doutrina clássica do direito civil tem como base os valores do Estado Liberal que
defendem a plena liberdade entre as partes contratantes. O movimento liberal,
especialmente a partir da segunda metade do séc. XVIII, representava os desejos da
burguesia de estabelecer uma nova ordem onde o Estado atuaria como um mero
coadjuvante, garantindo a liberdade formal para as partes pactuarem livremente seus
contratos seguindo a lógica do ―laissez-faire‖.
Por conseguinte, nesse contexto, havia a valorização do princípio da autonomia da
vontade. Caio Mário aponta quais seriam os quatro aspectos fundamentais do referido
princípio: a)faculdade de contratar e de não contratar, ou seja, a possibilidade de decidir,
segundo os interesses e conveniências, se deseja firmar o contrato; b) a liberdade escolher
com quem deseja contratar, bem como o tipo de negócio a ser efetuado; c) liberdade de
fixar o conteúdo do contrato; d) uma vez concluído o contrato, este passa a constituir fonte
formal de direito, autorizando qualquer das partes a mobilizar o aparelho coator do Estado
para fazê-lo respeitar integralmente, na forma que foi originalmente pactuado entre as
partes.2
À época, os juristas acreditavam que os contratos criados seguindo esse modelo não
poderiam criar injustiças, uma vez que os seus desdobramentos já teriam sido aceitos pelos
contratantes exteriorizarem a sua vontade no momento da sua celebração. Ou seja, a plena
liberdade e a igualdade formal, sozinhas conduziriam à justiça contratual.
Havia também uma clara distinção entre o direito privado e o direito público,
seguindo os moldes da divisão concebida no Corpus Juris Civilisonde o direito público
seria voltado ao Estado, a coisa romana, enquanto o direito privado corresponderia volta à
utilidade de cada um dos indivíduos a partir dos preceitos naturais, civis ou das gentes.3
Na mesma época que os ideias burgueses ascendiam, o movimento de codificação
do direito civil se intensificou. Daniel Sarmento aponta que esse período representou o
coroamento dos ideais racionalizadores do iluminismo que deveriam estar fincadas em
2
PEREIRA, Caio Mario da Silva - Instituições de Direito Civil - Volume III - Contratos - Rio de Janeiro:
Forense, 2014.
3
Digesto I.1.1.2:“Huiusstudiiduae sunt positiones, publicum et privatum. Publicum ius est, quod as statum
rei Romanaespectac; privatum, quod ad singulorumutilitatem; sunt enimquaedam publice utilia,
quaedamprivatim. Publicum ius in sacris, in cacerdotibus, in magistratibusconsistit. Privatum iustripertitum
est; collectumetenim est ex naturalibus praeceptis, aut gentium, autcivilibus.”KRIEGEL, Albert; KRIEGEL,
Moritz; HERRMANN, Emil; OSENBRÜGGEN,Eduard. CuepodelDerecho Civil Romano. Promera Parte
Institua – Digesto. Barcelona : Jaime Molinas, 1889. p. 197
Página 232 de 270
bases seguras e organizadas. Um instrumento legal único possibilitaria uma aplicação da lei
com mais generalidade e abstração o que conferiria mais segurança para as relações
jurídicas.4
Neste contexto, o Código Napoleônico de 1804 é o diploma legal mais
representativo, sobre ele, PabloStolze e Rodolfo Pamplona assinalam que:―O código marca
a tendência ideológica do seu momento, com um fator agravante: sua vocação fagocitária e
totalizadora pretende agir com plenitude, todas as facetas da complexa e multifária cadeia
de relações privadas‖5
Correlato à questão da codificação, está a Escola da Exegese desenvolvida na
França que prezava pela aplicação fria da lei, restringindo o papel criativo dos juízes. Deste
modo, foi constituído um sistema que prezava pela segurança das relações para impulsionar
o desenvolvimento das atividades econômicas, contudo esta segurança não comtemplava os
desejos da população e a promoção dos seus direitos, o papel do direito privado se
resumiria a resguardar os interesses dos proprietários e burgueses, tendo como base a
autonomia de cada indivíduo.
A Código Civil Brasileiro de 1916 foi fortemente influenciada pelo Código
Napoleônico, absorvendo suas virtudes e seus defeitos. Ela refletia uma sociedade
patriarcal que ainda colocava o homem em posição de superioridade, diferenciava filhos
havidos fora do casamento e elitista por resguardar os interesses dos mais abastados sem
conferir maior proteção aos sujeitos mais vulneráveis.
Ocorre que os ideais liberais aplicados irrestritamente trouxeram consequências
incompatíveis com o desejo de construir uma sociedade mais justa e igualitária. Logo,
percebeu-se que os detentores dos meios de produção e os grandes comerciantes
acumulavam a maior parte das riquezas enquanto que nas classes mais humildes ficavam
concentradas as externalidades negativas das relações privadas sem qualquer contrapeso
para equilibrá-las.
A estrutura do Estado e da sociedade estavam centradas na proteção a interesses
individuais e não no bem-estar coletivo. Reflexos desta lógica perversa podiam ser
4
SARMENTO, Daniel. A normatividade da constituição e a constitucionalização do Direito Privado. Revista
da EMERJ , Rio de Janeiro, v. 6, n.23, p. 272-297, 2003. p. 280
5
STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. vol. I, 12ª ed. Saraiva, 2010.
p. 88
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constatados nos vários ramos do direito civil, não só nos contratos, mas também no direito
de família, responsabilidade civil etc. Os problemas sociais ficavam cada vez mais
evidentes e o sistema vigente não tinha respostas, ou melhor, era condizente no sentido de
manter as riquezas e direitos concentrados nas mãos de poucos.
Vários autores passaram a denunciar essa realidade injusta aos olhos do povo, mas
legal para os detentores do poder. Nesse sentido, André Luiz Menezes Sette6 destaca a
Encíclica RerumNovarum publicada em 1891 pelo Papa Leão XIII e os estudos de John
Maynard Keynes denunciando a falácia da justiça da política do ―laissez-faire‖.
Rodrigo Toscano de Brito aponta que a superação da ideia de códigos civilistas
como centro do universo jurídico ocorreu em função do processo de desenvolvimento
histórico que influenciou o perfil da legislação. Dentre os vários fatores, o referido autor
aponto o contrato como o principal vetor de transformação por sua conexão com o
dinamismo da economia.7
O liberalismo provou não ser perfeito como os liberais deduziam, principalmente
por causa da falta de regulamentação dos mercados que priorizam o lucro em detrimento de
qualquer garantia de proteção aos cidadãos. Nesse contexto, houve a ascensão do Estado
Social que confere uma proteção especial aos direitos políticos, econômicos e dos
trabalhadores. As constituições, além de demarcar os limites do poder do Estado e a
garantia das liberdades fundamentais, passaram a incorporar uma visão mais social e
política para o sistema econômico. Nesse processo de evolução merecem destaque as
constituições do México de 1917, Weimar de 1919 e a brasileira de 1934.
O constitucionalismo contemporâneo que acompanhou este novo modelo é marcado
pela ideia de uma Constituição dirigente, onde o Estado deve interferir na economia, e que
contém várias normas programáticas visando a conquista da tão almejada justiça social.
Os princípios socioeconômicos contidos no texto constitucional não podem ser
compreendidos como meros desejos ou objetivos distantes. Na linha do pensamento de
Konrad Hesse, a Constituição deve ser considerada como a ordem jurídica fundamental e
6
SETTE, André Luiz Menezes Azevedo. Direito dos Contratos: seus princípios fundamentais sob a ótica do
Código Civil de 2002. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. pp. 56-57
7
BRITO, Rodrigo A. T. Desapropriação judicial' e usucapião coletivo: uma análise comparativa.
ParahybaJudiciária , v. 8, 2012, pp. 197-220. p.
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detentor de uma força normativa capaz de assegurar a realização dos objetivos elencados no
seu texto:
Não se deve esperar que as tensões entre ordenação constitucional e realidade
política e social venham a deflagrar sério conflito. Não se poderia, todavia, prever
o desfecho de tal embate, uma vez que os pressupostos asseguradores da força
normativa da Constituição não foram plenamente satisfeitos. A resposta à
indagação sobre se o futuro do nosso Estado é uma questão de poder ou um
problema jurídico depende da preservação e do fortalecimento da força normativa
da Constituição,bem como de seu pressuposto fundamental, a vontade de
Constituição.8.
Deste modo, os mandamentos constitucionais deverão nortear toda atuação do
Estado, nas três esferas de poder. Há, portanto, uma mudança de paradigmas, as grandes
codificações perdem parte da sua importância e o seu fetiche de aplicação integral e literal,
revolucionando a percepção dos juristas sobre a função de cada norma da mesma forma que
Nicolau Copérnico transformou a astrologia.
Antes dos estudos de Copérnico, acreditava-se que a Terra era o centro do universo
e que os demais astros orbitavam ao seu redor (teoria geocêntrica), o astrônomo e
matemático polonês desenvolveu a teoria heliocêntrica, contrariando a Igreja Católica, onde
o sol seria o centro do sistema solar e os planetas, na verdade, estavam na sua órbita e
esclarecia que os dias e noites são resultantes do movimento da rotação da Terra.
A Constituição equipara-se ao sol, que se tornou o novo centro das ações com a
―virada de Copérnico‖. As normas infralegais devem, não apenas, respeitar a Constituição
no sentido formal, mas também incorporar os valores contidos neste para formar um
sistema jurídico harmônico.9Não há mais um caráter absoluto da interpretação literal dos
códigos, que sempre deve estar de acordo com o ―espírito‖ da Constituição que agora é o
centro e a razão de ser de todo ordenamento jurídico. Luiz Edson Fachin afirma que:
Assim,uma virada de Copérnico se registra desde o princípio dasrazões expostas
às raízes históricas e sociológicas da vida privada captada nos Códigos. As
transformações se dão notríplice vértice, vale dizer, do contrato, a seu modo do
pactoparcelar à obrigação como processo, da propriedade, datitularidade singular
ao significante plural, propriedades, eda família, esta (sem deixar o que realmente
é, ontologicamente)além do numerusclausus.10
8
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991. p.32
9
MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a
responsabilidade civil. Direito, Estado e Sociedade, v.9, n.29, p. 233-258 - jul/dez 2006. p. 234
10
FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. p.58
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As constituições, a exemplo da brasileira de 1988, passam a conter dispositivos
voltados para o futuro que tem a intenção de transformar a sociedade e não só espelhá-la.11
Assim, a prática do Direito Civil não poderia ficar estagnada no tempo, surge o
Direito Civil Constitucional que propõe uma nova visão sobre os institutos históricos deste
ramo do direito.
A releitura do Direito Civil à luz da Constituição, conforme lição de
GustravoTrepedino, representa a incorporação de valores não-patrimoniais, principalmente
a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, direitos sociais e a
justiça distributiva, objetivos pelos quais os agentes econômicos também devem cooperar
para a sua consecução.12
Paulo Lôboassevera que o Direito Civil Constitucional não pode ser compreendido
como uma disciplina autônoma do Direito Civil, muito menos deve competir com ela.
Aquele precisa ser entendido como uma metodologia ou técnica de estudo e pesquisa do
Direito Civil. Destarte, o mérito do Direito Civil Constitucional é promover a
ressignificação dos pilares do Direito Civil, promovendo a sua adequação às
transformações da sociedade e justiça a todos os segmentos da população.13
Pode-se apontar a palavra ―humanização‖ como a chave do ―novo‖ Direito Civil. As
relações jurídicas não podem ser pensadas apenas com o uso da lei, deve-se ter em mente
que nos contratos, relações de família, direitos reais há sempre uma pessoa que deve ter a
sua dignidade resguardada e protegida contra os interesses meramente econômicos do
capital. A seguir, será abordado como o Direito Civil Constitucional está influenciando o
instituto da propriedade, um dos três pilares do direito civil, juntamente com a família e os
contratos.
Funcionalização da propriedade privada e a superação do paradigma individualista
11
FACCHINI NETO, Eugênio. A constitucionalização do direito privado. Revista do Instituto do Direito
Brasileiro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - RIBD , v. 01, p. 185-244, 2012. p. 201
12
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. ed 4ª. Rio de Janeiro : Renovar, 2008. p. 23
13
LÔBO, Paulo. Metodologia do direito civil constitucional. In: Carlos Eduardo PianoviskyRuzyk, Eduardo
Nunes de Souza, Joyceanne Bezerra de Menezes; Marcos Ehrhardt. (Org.). Direito civil constitucional.
1ed.Florianópolis: Conceito, 2014, v. 1, pp. 19-27. p. 20
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A propriedade está atrelada à própria convivência do homem em sociedade, assim
afirma-se que ela é inerente à natureza do homem (teoria da natureza humana)14.
Apropriação de bens visando satisfação das necessidades físicas, alimentícias e morais
contribuiu para evolução das primeiras sociedades. A propriedade, pincipalmente a terra,
viabilizou a fixação do homem em uma determinada área, tornando desnecessário a
manutenção de fluxos migratórios, concomitantemente devido à sua relevância para vida
comunitária ela passou a ser concebida como um direito e a receber a devida proteção pelas
normas jurídicas aplicáveis a cada civilização.
O constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho enfatiza que a propriedade é
um vetor natural de desenvolvimento econômico, social e cultural.15Indiscutível sua
importância para a produção de bens, fomento das relações comercias, estruturação da
sociedade e a identidade cultural de um povo. Esta pode ser constatada desde o modo como
as propriedades são divididas e utilizadas pela sociedade, existência de bens culturais até as
características de construção dos prédios que exprimem o seu modo de vida.
No princípio, nas civilizações mais antigas e em tribos indígenas, a propriedade tem
um caráter comunitário, há um domínio comum das coisas úteis e da terra, enquanto só
alguns bens como redes, armas e utensílios de uso próprio são individualizados.16
Fustel de Coulanges, na sua obra clássica ―A Cidade Antiga‖, destaca que a
propriedade em conjunto com a religião doméstica e a família estavam solidificadas desde
as mais antigas eras nas sociedades gregas e itálicas. A deia de propriedade estava contida
na própria religião praticada por essas sociedades. Cada família adorava certos deuses que
só aquele núcleo poderia venerar e este Deus só protegeria aquela propriedade. Desta forma
a entidade divina se instala em determinada área e ao homem não era permitido sair dali
senão por extrema necessidade ou expulso por um inimigo, ou seja, a terra é destinada
àquela pessoa e torna-se sua propriedade.17
Entre os romanos, a propriedade tinha um caráter absoluto e individualista, não
obstante existissem algumas limitações fundamentadas no interesse público e dos vizinhos.
14
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 4 : Direito das Coisas. 27. ed. São Paulo :
Saraiva, 2012. p. 127
15
CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes. Protecção do ambiente e direito de propriedade: crítica de
jurisprudência ambiental. Coimbra: Coimbra editora, 1995. p. 9-10
16
DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p. 121
17
COULANGES, Numa-Denys Fustel. A Cidade Antiga. Trad. Frederico Ozanam Pessoa de Barros. São
Paulo :EDAMERIS, 1961. p. 88-89
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Ele era oponível a todos, erga omnes, perpétuo, exclusivo e ainda carregava um forte cunho
religioso.18O direito à propriedade era exercido com jus utendi(direito de usar a coisa como
lhe for mais conveniente), jus fruendi(direito de usar os frutos e produtos da coisa) e jus
abutendi (direito de dispor da coisa).19
Durante a Idade Média a propriedade, concentrada nas mãos de poucos, garantia o
comando dos senhores feudais, reafirmando seu status de nobreza e dominando os meios de
produção com os quais subjugavam a força de trabalho dos camponeses.20
O modo de produção capitalista manteve aqualidade individualista da propriedade e
atribuindo-lhe um caráter cada vez mais absoluto. O Código Napoleônico de 1804
concebeu a propriedade como um espaço de liberdade e privacidade da pessoa, rechaçando
intervenções do Poder Judiciário capazes de deduzir as faculdades de fruição e disposição
do proprietário. Esse código valorizava a esfera patrimonial dos sujeitos, seguindo os
anseios burgueses de proteção aos interesses privados e liberdade negocial.21
Nesse contexto histórico, destaca-se também a Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão de 1789, fruto da Revolução Francesa, que proclamava a propriedade como
um direito natural e imprescindível para o homem: ―Artigo 17º- Como a propriedade é um
direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade
pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia
indemnização‖.
As primeiras constituições brasileiras de 182422 e 189123 tratavam a propriedade
como um direito absoluto, que só poderia sofrer intervenção estatal em raríssimas exceções,
18
CARVALHO, Natalie de Paula. Ronald Coase e a propriedade privada: uma nova visão para o velho
direito? In: Maria Lírida Calou de Araújo e Mendonça; Ana Rita Nascimento Cabral; Nathalie de Paula
Carvalho; José Martônio Alves Coelho; Valter Moura do Carmo. (Org.). As Garantias da Propriedade e as
Intervenções Estatais. 1ed.Curitiba: Juruá Editora, 2012, v. 1, pp. 233-242. P. 236
19
PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. A teoria da função social da propriedade rural e seus reflexos na
acepção clássica de propriedade. In: STROZAKE, Juvelino José (Coord.). A questão agrária e a justiça. São
Paulo: RT, 2000. pp.88-129. p 93.
20
FARIAS, C. M. C.; FARIAS, M. E. C. ; ANDRADE, M. D. . Função Social da Propriedade no Âmbito do
Direito Internacional Privado. In: Maria Lírida Calou de Araújo e Mendonça; Ana Rita Nascimento Cabral;
Nathalie de Paula Carvalho; José Martônio Alves Coelho; Valter Moura do Carmo. (Org.). As Garantias da
Propriedade e as Intervenções Estatais. 1ed.Curitiba: Juruá Editora, 2012, v. 1, pp. 78-87. p. 80
21
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos reais volume 5.8
ed. rev. amp. e atual. Salvador :Juspodivm, 2012.
22
Art. 179, XXII. E'garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente
verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será ellepréviamenteindemnisado do valor
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segundo os moldes das constituições francesa e portuguesa. O Código Civil de 1916,
manteve esta visão sobre a temática, ainda espelhando as doutrinas individualista e
voluntarista presentes no código Napoleônico.
Esta realidade só começou a ser alterada com a Constituição de 1934, já com
influência da Constituição de Weimar de 1919, que garantia o direito de propriedade, mas
fazia a ressalva de que não ele não poderia ser exercido contra o interesse social ou
coletivo. A partir de então, começou um lento e gradual processo que resultou na
consolidação da função social da propriedade conferindo novo significado ao milenar
instituto.
Orlando Gomes conceituava propriedade a partir de três critérios: o sintético, o
analítico e o descritivo:
Sinteticamente, é de se defini-lo, com Windscheid, como a submissão de uma
coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, o direito de usar,
fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua.
Descritivamente, o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual
uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei. 24
Percebe-se que a definição trazida por um dos maiores civilistas que influenciou os
operadores do direito pátrios por décadas descreve a propriedade como um bem que está
submetido quase que exclusivamente à vontade do seu proprietário que estaria livre para
dispor ou deixar de dispor da propriedade. Não obstante a qualidade com que o referido
civilista trabalha as características centrais do conceito de propriedade, hodiernamente sua
resposta estaria incompleta por não contemplar os deveres inerentes à propriedade para que
ela atinja a sua função social. Rudolf von Ihering, em ―A luta pelo direito‖, já destacava
que tornar a propriedade produtiva é condição para sua existência: ―A propriedade não
pode conservar-se sã e vivaz senão por uma contínua conexão com o trabalho. É nessa
della. A Lei marcará os casos, em que terá logarestaunicaexcepção, e dará as regras para se determinar a
indemnisação.
23
Art. 72 § 17 - O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. As minas pertencem aos proprietários do solo,
salvas as limitações que forem estabelecidas por lei a bem da exploração deste ramo de indústria.
24
GOMES, Orlando. Direitos Reais. 21 ed. rev. e atual. por Luiz Edson Fachin. - Rio de Janeiro: Forense,
2012. p. 103
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fonte somente, em que a propriedade incessantemente se regenera e vivifica, que mostra
clara e lucidamente, até o fundo, o que é para o homem‖.25
A Constituição Federal de 1988 conferiu um tratamento especial ao tema, incluindo
a função social da propriedade no rol dos direitos e garantias fundamentais, além de elencalo como um dos princípios gerais da ordem econômica. Eros Grau26ressalta que o princípio
da função social da propriedade impõe ao proprietário, ou aquele que detenha o seu
controle, o dever de exercício da propriedade em benefício de outrem e não, apenas, de se
abster a usá-la com prejuízo alheio. O princípio atua como fonte de imposição de
comportamentos positivos, ou seja, prestação de fazer e não, meramente, um não fazer.
O artigo 182, § 2º da Constituição dispõeque a propriedade urbana cumpre sua
função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas
no plano diretor.Aqui, é possível constatar outra característica do Direito Civil
Constitucional, o diálogo das fontes. Nesse caso as normas que regularão a propriedade
estarão em leis municipais (plano diretor), cujas diretrizes estão contidas no Estatuto da
Cidade, norma de caráter eminentemente pública demonstrando também a superação da
separação radical entre o direito público e privado.
O código civil de 2002, já influenciado pela nova ordem constitucional, mesmo que
a sua tramitação tenha se iniciado na década de 1970, além de determinar o exercício do
direito de propriedade em harmonia com as questões sociais, também atribui ao proprietário
o dever de proteger a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o
patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
No tocante à propriedade rural, o constituinte foi mais explícito ao elencar os
requisitos para que a função social seja respeitada.27
Complementando a temática, valiosas as considerações escritas por Cristiano Farias
e Nelson Rosenval sobre o novo perfil da propriedade:
25
IHERING, Rudolf von, A luta pelo direito. Trad. João de Vasconcelos. São Paulo : Martin Claret, 2009. p.
51
26
GRAU, Eros. Parecer. In: STROZAKE, Juvelino José (Coord.). A questão agrária e a justiça. São Paulo:
RT, 2000. pp. 195-201. p. 197
27
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo
critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
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A propriedade não é o retrato do imóvel com as características físicas, mas
a feição econômica e jurídica que a representa formalmente, dotando o
proprietário de uma situação ativa que lhe permita o trânsito jurídico de
titularidades e a proteção plena do aparto jurisdicional. O título representativo da
propriedade é apenas a parte visível de um bem intangível que resume um
conjunto integrado e controlável de informações que circulam entre cartórios,
registros, instituições financeiras e Estado, promovendo segurança e confiança
intersubjetiva.
Podemos assim conceituar a propriedade como uma relação jurídica
complexa formada entre o titular do bem e a coletividade de pessoas. 28
Deste modo, evidencia-se que a propriedade deve servir ao bem comum e não
unicamente ao se dono, cujo direito sobre ela é apenas relativo. As mudanças ocorridas com
o direito à propriedade simbolizam bem as transformações promovidas pelo Direito Civil
Constitucional para superação do paradigma individualista e valorização da pessoa humana
ao invés de apenas resguardar as relações jurídicas.
Como visto, a propriedade exerce uma importante função para viabilizar uma vida
digna, principalmente no que diz respeito a um lugar para as pessoas habitarem. Destarte,
zelar pelo cumprimento da função social das propriedades é fundamental para garantir uma
sociedade mais justa.
O direito civil a serviço da justiça fundiária urbana
Este tópico destina-se a apontar alguns institutos de direito civil que podem auxiliar
na efetivação do princípio da função social da propriedade urbana e promover o acesso ao
espaço urbano e o direito à moradia.
Concessão Especial de Uso para Fins de Moradia – É sabido que os imóveis
públicos são insusceptíveis às ações de usucapião, contudo os isenta do dever de cumprir a
sua função social como qualquer outra propriedade. Este instituto, regulado pela Medida
Provisória nº 2.200/2001, com previsão constitucional no § 1º do artigo 183 e na alínea g,
inciso V, do artigo 4º do Estatuto da Cidade e incluído no rol de direitos reais do artigo
1.225 do Código Civil em 2007, possibilita a manutenção do cidadão na posse de um
imóvel sem que o ente público tenha que transmitir/perder seu imóvel.
O artigo 1º da referida medida provisória estatui que aquela pessoa quepossuiu
como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até 250 m2 de imóvel público
28
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson.Op. Cit. p. 263
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situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à
concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde
que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou
rural.
O pedido de concessão deve ser feito junto à Administração Pública que terá o
prazo máximo de doze meses para decidir, em caso de recusa ou omissão deste, o pedido
pode ser feito pela via judicial. O concessionário só perderá a concessão caso confiraao
imóvel destinação diversa da moradia para si ou para sua família e no caso de aquisição de
uma propriedade ou a concessão de uso de outro imóvel urbano ou rural.
Lígia Melo29, destaca que a concessão de uso permite ao Poder Público manter o
domínio do bem e o controle do seu uso ao mesmo tempo que inibe a especulação
imobiliária e a retirada forçada de pessoas humildes que encontraram naquele imóvel um
lugar para morar.
Regularização Fundiária - O instituto da regularização fundiária não é uma
inovação recente do ordenamento jurídico pátrio, mas ela ganhou força com a edição da Lei
11.977/2009 que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a
regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas. O fato da sua
regulação estar situada dentro da lei do maior programa habitacional do país demonstra que
uma das principais funções do instituto conferido pelo legislador é o combate à crise
habitacional.Ele vem atacar diretamente o problema das ocupações irregulares, com a falta
de recursos monetários que permitiriam o acesso ao mercado, somada à carência
institucional, para muitos a possibilidade de acesso à terra fica então restrita a uma ação
coletiva de ocupação em terrenos ou imóveis, o que gera inúmeras disputas políticas e
jurídicas.
O artigo 46 da referida lei define regularização fundiária da seguinte forma:
A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas,
ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à
titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno
desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
29
MELO, Lígia. Direito à moradia no Brasil: política de acesso por meio da regularização fundiária. Belo
Horizonte : Fórum, 2010. p. 224
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A partir da leitura do dispositivo acimo, é possível identificar duas finalidades
imediatas da regularização fundiária30: 1) Regularização do próprio assentamento com um
conjunto de ações urbanísticas para oferecer todos os equipamentos públicos básicos à
população; 2) Titulação dos seus ocupantes para conferir-lhes os títulos aquisitivos e
possibilitar o gozo total dos direitos relativos à propriedade.
Direito Real de Habitação– O artigo 1.831 garante ao cônjuge sobrevivente
(também ao companheiro, segundo jurisprudência dos nossos tribunais), independente do
regime de bens que foi adotado, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba
na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da
família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.
Esta norma tem como escopo a proteção do direito de moradia do cônjuge
supérstite, dando aplicação ao princípio da solidariedade familiar. Nesses casos, entende-se
que filhos devem, em garantir ao seu ascendente a manutenção do lar para que este não
fique desamparado, ademais, seguindo a ordem natural da vida, os filhos provavelmente
sobreviverão ao habitador, justificando assim a limitação nos seus poderesinerentes à
propriedade. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu inclusive que a aquisição de outro
imóvel pelo cônjuge supérstite não implica na perda imediata do seu direito real à
habitação31.
Usucapião–A usucapião é uma forma de aquisição originária da propriedade, onde
o possuidor de coisa alheia, após o transcurso de um determinado período de tempo, pode
pleitear a aquisição da propriedade. As origens do instituto remontam à Roma antiga 32 e ele
já constava no Código de 1916, portanto, não podemos qualifica-la como uma inovação,
todavia o Direito Civil Constitucional vem moldando a usucapião, principalmente com a
diminuição do lapso temporal exigido.
30
RODRIGUES, Daniela Rosário. O direito à propriedade titulada por meio de regularização fundiária In:
NALINI, José Roberto; LEVY, Wilson (Coords.). Regularização Fundiária. 2 ed. ver., atual e ampl. Rio de
Janeiro : Forense, 2014. p.35
31
DIREITO DAS SUCESSÕES. RECURSO ESPECIAL. SUCESSÃO ABERTA NA VIGÊNCIA DO
CÓDIGO CIVIL DE 2002. COMPANHEIRA SOBREVIVENTE. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. ART.
1.831 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. [...] 4. No caso concreto, o fato de a companheira ter adquirido outro
imóvel residencial com o dinheiro recebido pelo seguro de vida do falecido não resulta exclusão de seu direito
real de habitação referente ao imóvel em que residia com o companheiro, ao tempo da abertura da sucessão.
[...]. REsp 1249227/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em
17/12/2013, DJe 25/03/2014
32
DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p. 170
Página 243 de 270
O Código Civil de 2002 reduziu o prazo da usucapião extraordinária de vinte para
quinze anos e da usucapião ordinária de dez e quinze anos para cinco e dez, a depender do
cumprimento de certos pressupostos. Posteriormente, através da lei 12.424/2011, foi
instituída a usucapião especial familiar introduzida pela que estabelece o prazo de apenas
dois anos nos casos caso o possuidor, ininterruptamente e sem oposição, exerça posse
direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros
quadrados) cuja propriedade dividia com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o
lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral,
desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Destaca-se também a usucapião coletiva destinada às áreas urbanas com mais de
2
250 m , ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, onde não for possível
identificar os terrenos ocupados por cada possuidor prevista no Estatuto da Cidade como
instrumento de planejamento urbano.
Considerações finais
A pesquisa realizada ao longo do trabalho revela que o instituto da propriedade
sofreu profundas transformações ao longo do tempo para gradualmente afastar a visão
individualista e absolutista em favor de uma interpretação que confere a ela uma distinta
importância para conquista da justiça social. A propriedade não pode mais ser
compreendida somente como o domínio sobre um bem, mas como um vetor de
desenvolvimento econômico, social e cultural.
Paralelo ao desenvolvimento do Direito Civil Constitucional, que preza pelo
respeito à dignidade da pessoa humana e a interferência, quando necessário, do Estado para
equilibrar as relações entre particulares, houve o surgimento da função social da
propriedade que passa a integrar o conceito desta para relativizar as ideias existentes sobre
o instituto. Devido a sua importância para sociedade, o proprietário tem o dever de manter a
propriedade produtiva e sem prejudicar a coletividade. Atrelado à função social estão
aspectos ambientais, laborais e sociais, no meio urbano é clara também a importância da
gestão do espaço urbano para que todos possam ter uma moradia digna.
Infelizmente, o Brasil convive com uma grave crise habitacional que obriga
milhares de brasileiros a viver em condições precárias e ocupar irregularmente diversas
Página 244 de 270
áreas. O Estado diante das mazelas sociais não pode ficar inerte e deve ajudar a promover a
justiça social, deste modo ele deve promover políticas públicas e moldar a legislação para
melhor gerir a disposição da propriedade nos centros urbanos. Os instrumentos destacados
neste artigo são de grande valia para assegurar o cumprimento da função social da
propriedade seja através da transmissão do título de propriedade ou a posse, mesmo que
temporária, do imóvel ajudando a reduzir a segregação econômica-espacial onipresente nos
grandes centros urbanos.
Referências
BRITO, Rodrigo A. T. Desapropriação judicial' e usucapião coletivo: uma análise
comparativa. ParahybaJudiciária , v. 8, 2012, pp. 197-220.
CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes. Protecção do ambiente e direito de propriedade:
crítica de jurisprudência ambiental. Coimbra: Coimbra editora, 1995.
CARVALHO, Natalie de Paula. Ronald Coase e a propriedade privada: uma nova visão
para o velho direito? In: Maria Lírida Calou de Araújo e Mendonça; Ana Rita Nascimento
Cabral; Nathalie de Paula Carvalho; José Martônio Alves Coelho; Valter Moura do Carmo.
(Org.). As Garantias da Propriedade e as Intervenções Estatais. 1ed.Curitiba: Juruá
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Página 247 de 270
SEÇÃO DE RESUMOS
Página 248 de 270
A EXECUÇÃO DE ALIMENTOS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO
CIVIL À LUZ DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO
Thiago da Fonseca Rodrigues1
Resumo: Inicialmente, é imperioso esclarecer que, atualmente, constata-se a crescente
influência do pensamento constitucional em todos os ramos jurídicos, tendo em vista a
formação do recente fenômeno da Constitucionalização do Direito. Nesse sentido, observase que o Novo Código de Processo Civil (Lei n° 13.105/2015) reforçou as garantias
constitucionais relativas a executividade dos alimentos, conforme se demonstrará a seguir.
O presente trabalho objetiva analisar as novas disposições contidas no Novo Código de
Processo Civil, no que se refere à execução de alimentos, em consonância com o disposto
na Constituição Federal e nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, a fim de se
comprovar a inserção da legislação no recente movimento de Constitucionalização do
Direito. A presente pesquisa apresenta caráter qualitativo e teórico, com a utilização da
técnica de revisão bibliográfica, a partir da consulta à doutrina atualizada, jurisprudência e
análise da Lei n° 13.105/2015. O método de abordagem será o dedutivo, a partir da
utilização dos principais autores pátrios que abordam a temática em apreço, dentre eles,
Maria Berenice Dias, Luiz Edson Fachin, Jones Figueirêdo Alves, Pablo Stolze e Flávio
Tartuce. A Carta Magna traz, expressamente, em seu artigo 5º, inciso LXVII, a única
hipótese de prisão civil por dívida permitida no ordenamento jurídico pátrio, qual seja, ―... a
do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia‖
(STF/Súmula Vinculante nº 25). Nesse sentido, constata-se que, em consonância com o art.
7º do Pacto de São José da Costa Rica, o legislador constituinte objetivou garantir
amplamente ao alimentando o fiel cumprimento da prestação alimentícia. Por essa razão,
observa-se que o Novo Código de Processo Civil trouxe em seu bojo uma série de
disposições favoráveis ao alimentando. Dentre elas, pode-se destacar, inicialmente, os
artigos 528, §4º c/c art. 911, parágrafo único, e art. 528, caput c/c art. 911, caput, os quais,
no primeiro caso, mantiveram o prazo de 03 dias para justificação do devedor, após a sua
intimação, ao invés dos 10 dias pretendidos, durante a tramitação da proposta, assim como,
1
Graduando do curso de Direito
[email protected].
da
Universidade
Federal
da
Paraíba
–
UFPB.
E-mail:
Página 249 de 270
no segundo caso, não permitiram a substituição do regime fechado de cumprimento da pena
pelo regime semi-aberto. Além disso, observa-se que o Novo Código extirpou a dúvida
existente na doutrina a respeito do cabimento da execução dos alimentos fixados por título
executivo extrajudicial, com a criação do Capítulo ―Da Execução de Alimentos‖ (arts. 911
a 913), possibilitando, assim, a execução de alimentos fixados por escritura pública, por
exemplo. Por fim, merece destacar a criação de uma nova modalidade coercitiva de
cumprimento da obrigação alimentícia, qual seja, o protesto do pronunciamento judicial
(art. 528, §3º), o qual permite, assim, que o tabelião torne público o inadimplemento do
devedor perante os órgãos de proteção ao crédito (SPC, Serasa, etc.), comprometendo,
assim, a sua capacidade creditícia. Ante o exposto, conclui-se que a nova legislação
processual-civil
pode
ser
considerada
como
um
reflexo
do
fenômeno
da
Constitucionalização do Direito, na medida em que reforçou as garantias constitucionais
relativas à execução dos alimentos.
Palavras-chave: Novo CPC. Execução de Alimentos. Constitucionalização do Direito.
Referências
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<http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=visualiza_noticia&id_caderno=35&id_not
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CONSULTOR JURÍDICO. Novo CPC traz avanços para área da família. Disponível
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RANGEL, Rafael Calmon. Inovações (e provocações) a respeito do cumprimento da
obrigação
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prestar
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STOLZE, Pablo. O Novo CPC e o Direito de Família: Primeiras Impressões. Disponível
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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Quarta Turma admite inscrição de devedor de
alimentos
em
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de
Janeiro:
Forense;
São
Paulo:
MÉTODO,
2015.
Página 251 de 270
A CONSTRUÇÃO DA ENTIDADE FAMILIAR E SUAS
TRANSFORMAÇÕES Á LUZ DO DIREITO CIVIL
CONSTITUCIONAL.
Wallace Leonardo de Aguiar.1
Resumo: Desde os primórdios antes de mesmo de se ter conhecimento do conceito
jurídico do que vinha a ser a entidade familiar, os indivíduos por necessidades de
diversas naturezas já possuíam o instinto de se agruparem como forma de facilitar a sua
mantença no meio em que viviam criando assim grupos com aspectos em comum dos de
família. Com o passar do tempo e o surgimento do Estado como regulador das situações
e ações da vida em sociedade foi surgindo diversos conceitos dentre eles o de entidade
familiar, que desde sua origem até os dias atuais passou por grandes e importantes
transformações deixando de lado o seu caráter patrimonial e elevando o indivíduo a
sujeito primeiro dessa instituição, essas transformações ocorrerem visando atender as
necessidades que eram impostas pela sociedade.O presente trabalho tem como objetivo
discorrer e analisar a construção da entidade familiar e suas alterações ao longo das
transformações da sociedade chegando até os dias atuais fazendo uma comparação entre
os conceitos de outrora e o seu atual conceito trazido pela Constituição Federal de 1988 e
reproduzido pelo Código Civil de 2002 e legislações infraconstitucionais posteriores.
Para tanto utilizar-se-á do método dedutivo de pesquisa, através de análise bibliográficas
e outras fontes de informações. Entender a construção da entidade familiar e suas
alterações é compreender a evolução da sociedade como um todo, vez que, a instituição
familiar é vista por muitos como sendo a base da sociedade de modo que reflete de forma
clara e mais imediata as transformações, necessidades e mutações que sofrem os
indivíduos e consequentemente a sociedade cabendo ao direito e ao Estado como ente
soberano se adequar a estas novas necessidades para que se possa atender ao interesse
coletivo social. Assim, conclui-se que um dos temas que mais sofreu mutações ao longo
do tempo sob uma perspectivajurídica foi sem sombra de dúvidas o direito de família e
que dele decorre os preceitos e normas inerentes a instituição familiar chegando até os
dias atuais onde se apresentam de uma forma bem distinta de outrora buscando melhor
1
Bacharel em direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, Email: [email protected]
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atender as necessidades daqueles que fazem parte do seio familiar ou que ainda farão,
entendendo-se como família uma entidade mais disposta a oferecer dignidade ao
indivíduo que dela participe do que preocupada com padrões e conceitos materiais e
patrimoniais.
Página 253 de 270
A HUMANIZAÇÃO CONSTITUCIONAL SOB A PERSPECTIVA DO
DIREITO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA
Marana Sotero de Sousa1
Rafaella Mayana Alves Almeida Cardins2
Resumo: Este breve estudo objetiva explorar a humanização do direito constitucional a
partir do direito à alimentação adequada, direito público subjetivo previsto no artigo 6º da
Constituição Federal do Brasil de 1988. Ainda, intenciona analisar a influência da
agricultura familiar, atividade agrícola desenvolvida entre membros de uma mesma família,
para assegurar o direito humano à alimentação. Tamanha é a importância da alimentação
para a vida digna de todo e qualquer ser humano que tornou-se direito constitucionalmente
previsto, mostrando-se como um dos instrumentos a incutir a humanização, cada vez mais
crescente e necessária, no âmbito constitucional.
Nesse esteio, relevante se faz a
abordagem sobre a alimentação adequada e os reflexos que a agricultura familiar causa
naquela,uma vez que ambas agem de modo a contribuir para a humanização constitucional,
sendo este fator importante para a aplicação e execução das leis de forma justa, bem como
para a garantia dos requisitos mínimos de vida digna e de uma sociedade pautada na
equidade. Além disso, a segurança alimentar e nutricional também está presente quando se
trata de direito fundamental à alimentação adequada, e justamente por ser intrínseca ao
tema, será igualmente abordada, tendo em vista ser também um dos mecanismos a
viabilizar a humanização constitucional, na medida em que atribui ao Estado o dever de
prestar alimentação adequada aos cidadãos.Trata-se de um estudo hermenêutico, em que
optou-se, para sua elaboração, pela utilização dos procedimentos bibliográficos, através de
livros e artigos científicos, além do método de abordagem essencialmente qualitativo.
Portanto, é imperioso explorar os institutos que possibilitam a humanização do direito
constitucional, a exemplo da alimentação adequada, a fim de igualmente garantir a vida
digna e a justiça social.
1
Mestranda em Direito Econômico, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade
Federal da Paraíba (PPGCJ/UFPB). Especialista em Educação em Direitos Humanos (UFPB). Especialista em
Gestão Pública Municipal (UFPB). Graduada em Direito, pelas Faculdades Integradas de Patos (FIP). E-mail
para contato: [email protected].
2
Mestranda em Ciências Jurídicas, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bacharela em Direito, pela
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail para contato: [email protected].
Página 254 de 270
Palavras-Chave: Direito Humano à Alimentação Adequada; Humanização Constitucional;
Agricultura
Familiar.
Página 255 de 270
A ENFITEUSE EM TERRENOS DA MARINHA E ACRESCIDOS
COMO DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA
PROPRIEDADE
Gustavo Troccoli Carvalho de Negreiros1
Resumo: O presente trabalho se propõe delinear alguns dos principais aspectos do instituto
da enfiteuse, resquício da ordem jurídica anterior ao Código Civil de 2002, especificamente
aquela instituída em terrenos da marinha e acrescidos, analisando-a sob o filtro do princípio
constitucional da função social da propriedade. Nesse sentido, procura-se desenvolver um
conjunto de razões teórico-pragmáticas com o fito de demonstrar a desnecessidade da
manutenção, por parte da União, do instituto jurídico em apreço, tendo em vista a
obrigatoriedade de, cada vez mais, garantir que a propriedade cumpra a função social
predicada pela Carta Magna de 1988 (arts. 5.º, XXIII; 170; 182, §2.º; e 186, caput).
Destarte, sobretudo em virtude do trâmite doPL 951/2015, visando a eliminar a cobrança de
foro, taxa de ocupação e laudêmio pagos à União Federal, objetiva-se aqui esboçar os
fundamentos que conduzem à prescindibilidade de tais pagamentos. A metodologia do
estudo em análise, indutiva, contou com pesquisa doutrinária e legal, em observância à
tramitação do PL 951/2015, buscando-se, desse modo, tecer comentários à tendência
legislativa alusiva às cobranças enfitêuticas. O Código Civil de 2002, apesar de ter proibido
a constituição de novas enfiteuses e subenfiteuses, subsistindo apenas aquelas já existentes
(art. 2.038, caput), previu que a instituída em terrenos de marinha e acrescidos regula-se
por lei especial (art. 2.038, § 2.º). Perscrutando os direitos reais sobre coisa alheia, atesta-se
a amplitude do instituto em comento, o qualpermite até que o enfiteuta aliene seus direitos
sem aaquiescência do senhorio. Atualmente, a enfiteuse sobre os terrenos da marinha e
acrescidos é regrada pelo Decreto-Lei n.º 9.760/46, devendo o foreiro ou o ocupante, além
do foro ou taxa de ocupação anuais, pagar à União o denominado laudêmio, quando da
alienação do seu direito a outrem. Registre-se, por oportuno, que as pessoas consideradas
carentes ou de baixa renda, nos termos do art. 1º, §§1.º e 4.º, do Decreto-Lei n.º 1.876/81,
1
Graduando em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. Foi monitorvoluntário de Direito Civil I, monitor-bolsista de Direito Penal II e estagiário-bolsista da Justiça Federal –
SJPB. Atualmente, é estagiário-bolsista do Ministério Público Federal, lotado na Procuradoria Regional
Eleitoral. Endereço de e-mail: [email protected].
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são isentas desses pagamentos, configurando uma previsão deveras adequada à ordem
constitucional vigente. Entretanto, ao indiscutível arrepio do princípio da função social da
propriedade, somente o ávido desejo arrecadatório da União Federal justifica a manutenção
da enfiteuse sobre os imóveis sitos nos terrenos da marinha e acrescidos, o que contradiz,
por completo, as finalidades preceituadas pela Constituição Federal de 1988. Ante o
exposto, obedecendo-se aos ditames constitucionais, torna-se imperativo concretizar, com
maior nitidez e amplitude social, os preceitos ali estabelecidos, sendo imprescindível a
aprovação do PL 951/2015, extinguindo a cobrança de foro, taxa de ocupação e laudêmios
aos enfiteutas contemporâneos.
Palavras-chave: enfiteuse; extinção; laudêmio; taxas.
Referências
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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo.25ª ed. São Paulo:
Malheiros,
2005.
Página 257 de 270
A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO INSTITUTO DA SEPARAÇÃO
DE CORPOS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Thiago da Fonseca Rodrigues1
Resumo: Inicialmente, é imperioso esclarecer que o Novo Código de Processo Civil (Lei
n° 13.105/2015), no âmbito do Direito de Família, fez referência, de forma genérica, ao
instituto da separação, em alguns dos seus dispositivos, dentre eles, os artigos arts. 53,
inciso I, 189, §2º e 693, gerando, assim, um intenso debate doutrinário a respeito do seu
retorno ao ordenamento jurídico pátrio. Ocorre que,no que se refere ao instituto da
separação de direito, a questão se encontra bastante discutida pela doutrina, de forma
diversa do que ocorre com o instituto da separação de corpos, razão pela qual, tendo em
vista a sua enunciação expressa na nova legislação (art.189, II), demonstra-se necessária a
análise da sua constitucionalidade. O presente trabalho objetiva realizar uma análise a
respeito da inserção do instituto da separação de corpos, no âmbito do Novo CPC, em
consonância com o exposto na Constituição Federal, no Código Civil e na própria evolução
doutrinária e jurisprudencial pátria, a fim de se constatar, ao final, a sua
(in)constitucionalidade. A presente pesquisa apresenta caráter qualitativo e teórico, com a
utilização da técnica de revisão bibliográfica, a partir da consulta à doutrina atualizada,
jurisprudência pátria e análise da Lei n° 13.105/2015. O método de abordagem será o
dedutivo, a partir da utilização dos principais autores pátrios, que abordam a temática em
apreço, dentre eles, Lenio Luiz Streck, Paulo Lôbo, Pablo Stolze e Flávio Tartuce. De
antemão, deve-se esclarecer que a Constituição Federal de 1988 garante em seu art. 5º,
caput, a inviolabilidade do direito à vida, enquanto premissa básica do ordenamento
jurídico. Ademais, observa-se que, em que pese ser pacífica, na doutrina civilista, a
supressão do instituto da separaçãode direito do ordenamento jurídico pátrio, após a edição
da Emenda Constitucional nº. 66/2010, responsável por alterar o art. 226, §6º, da CF/88 (“o
casamento pode ser dissolvido pelo divórcio”), é imperioso asseverar que o mesmo
entendimento não se aplica ao instituto da separação de corpos, previsto no art. 189, inciso
II, do Novo CPC. Conforme esclarece doutrinadores de escol como Paulo Lôbo, o instituto
1
Graduando do curso de Direito
[email protected].
da
Universidade
Federal
da
Paraíba
–
UFPB.
E-mail:
Página 258 de 270
desdobra-se como medida essencial para o garantia da integridade física de determinado
cônjuge, quando este sobre ameaças ou violências físicas do outro parceiro(a), antes do
ajuizamento da ação de divórcio, garantindo o Código Civil que o juiz atue com a maior
brevidade possível (art. 1562 do Código Civil). Por essa razão, as discussões relativas à
impossibilidade de retorno da separação no ordenamento jurídico pátrio não se aplicam à
hipótese da separação de corpos. Ante o exposto, considera-se como constitucional o
dispositivo do Novo Código de Processo Civil, que faz referência ao instituto da separação
de corpos (art.189, inciso II), tendo em vista o entendimento doutrinário e jurisprudencial já
consolidado no país, em relação a sua relevância e aplicabilidade no ordenamento jurídico
pátrio.
Palavras-chave:
Novo
CPC.
Separação
de
corpos.
Constitucionalidade.
Página 259 de 270
LIBERDADE DE ESCOLHA E AUTONOMIA DA VONTADE NOS
PROCEDIMENTOS DE INTERVENÇÃO DA VIDA: UM
INSTRUMENTO DA DIGNIDADE HUMANA
Torben Fernandes Maia1
Maria Thereza Santiago Moura De Moura2
Maria Cristina Paiva Santiago3
Resumo: A dignidade humana foi assunta a um patamar grandioso pela Constituição
Federal de 1988, revelando consequências singulares ao ordenamento jurídico brasileiro; o
presente trabalho tem como objetivo discutir a liberdade e a autonomia como ferramentas
que compõem e garantem aquele princípio. Valores como democracia, pluralismo e
diversidade são institutos inerentes ao Estado Democrático de direito; destarte, baseados na
premissa de que defender o direito de escolha é diferente de defender a escolha, acredita-se
que para a carga axiológica constitucional brasileira de 1988, o poder de decidir de
pacientes vítimas de doenças terminais e irreversíveis sobre a intervenção ou não no
procedimento morte, é uma prerrogativa dos cidadãos brasileiros. Dessa forma, o presente
trabalho irá defender essa tese, o qual vai estruturado em 4 partes. Inicialmente,
abordaremos os conceitos que serão utilizados durante a discussão, sobre os diversos
procedimentos de morte. Em seguida, debruçaremo-nos sobre a conceituação preliminar do
princípio da dignidade humana para em um terceiro e quarto momentos, abordamos o
direito de escolha de optar por uma antecipação da morte em situações excepcionais, o qual
é embasado por valores constitucionais de liberdade e autonomia individuais, são na
verdade uma forma de valorizar a dignidade da pessoa humana. O procedimento utilizado
foi uma pesquisa, sobretudo, bibliográfica, doutrinária e legislativa, todas realizadas à luz
dos princípios da Constituição Federal de 1988. Iremos passear pelas doutrinas mais
renomadas, buscando sustento para a toda nossa tese, desaguando na pesquisa
jurisprudência brasileira, para verificar como estão se posicionando os tribunais pátrios,
fazendo uma análise crítica sobre a posição encontrada, e como ela encontra reflexos na
1
Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: [email protected]
Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: [email protected]
3
Professora Me. e Doutoranda pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail:
[email protected]
2
Página 260 de 270
vida da sociedade. Assim, a conclusão quebuscamos encontra foi ade reflexão no que tange
à morte em submissão ao princípio da dignidade da pessoa humana, de modo a concluir que
o indivíduo, através de seu consentimento, deve poder exercer sua autonomia e liberdade,
respeitando os limites cabíveis, no contexto dos procedimentos de morte, com intervenção
passiva em um primeiro momento – ortotanásia – prevalecendo os fundamentos
constitucionais que equilibram as escolhas individuais às metas da coletividade, através de
um reconhecimento filosófico específico, qual seja: a consideração do indivíduo como um
ser moral, capaz de escolher e consequentemente apropriar-se das responsabilidades
provenientes de tais escolhas.
Palavra-chave: Dignidade Humana; Autonomia; Morte; Bioética;
Página 261 de 270
HUMANIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL: ALERTA PARA
BANALIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DO HOMEM
Ana Flávia Velloso Borges d'Avila Lins1
Resumo: O presente artigo se propõe a apresentar os fenômenos da constitucionalização e
da humanização da seara jusprivatista, a partir de uma retrospectiva histórica das Teorias do
Direito, a fim de que sejam percebidos os benefícios e os riscos a serem enfrentados, após a
mudança do cenário jurídico-social. A modificação axiológica a que foi submetida a
Ciência Jurídica destaca o princípio da dignidade da pessoa humana como o pilar básico de
sua estruturação, que passou a se preocupar com a essência do homem antes desassistida. A
positivação dos direitos da personalidade na Constituição de 1988 e posteriormente no
Código Civil de 2002 e o uso indiscriminado da dignidade do homem como fundamento
genérico em peças jurídicas são sintomas diametralmente opostos de vantagem e de
prejuízo, respectivamente, causados pelas alterações ocorridas no sistema. Dessa forma,
pretende-se reforçar a importância da interligação das vertentes privada e pública,
ressaltando a necessidade de razoabilidade nesse estreitamento de relação, ao alertar para a
tendente hipertrofia do standard.
Palavras-chave:
Humanização;
Princípio;
Dignidade;
Personalidade;
Ponderação.
1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Voluntária do Projeto de Extensão ―Mediação:
Em busca de uma cultura de paz‖, sob a orientação da Profa. Raquel Moraes. Membro do Projeto de Iniciação
Científica sobre Direito Econômico, sob a orientação da Profa. Flavianne Bitencourt. Email:
[email protected].
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DIREITO À INTIMIDADE À LUZ DA AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.815 DISTRITO FEDERAL
Marcela Santiago Pereira de Melo1
Maria Cristina Paiva Santiago2
Resumo: O presente artigo pretende expor as divergências entre os direitos da
personalidade e a liberdade de expressão, adotando como paradigma a Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4815 Distrito Federal. Iniciamos o estudo com a constitucionalização
do direitoprivado, quesurgira no Brasilao final do século XX, e trouxe consigo inúmeras
mudanças tanto na nossa Constituição, quanto no Código Civil. Continuamos com a
conceituação de dignidade da pessoa humana, com o objetivo de esclarecer a base do Novo
Código Civil, voltada para o valorhumanitário, e também o foco da nossaConstituição. Ao
adentrarmos nos direitos da personalidade, passamos aexplanar as divergências existentes
entre o direito à intimidade, à privacidade e o direito à informação, à liberdade de expressão
e de imprensa. Tem comoobjetivoespecífico o estudo dessa dicotomia e a análise do caso
que chegou ao Superior Tribunal de Justiça acerca das biografias. A presente pesquisas era
feita mediante disposições doutrinárias, buscando remover o tema discutido do âmbito
teórico para o prático. Visto que a colisão entre os direitos da personalidade e os direitos à
informação não possuem uma construção legislative ampla, nosso estudo fora realizado por
método dedutivo, baseando-se nos direitos fundamentais listados na Constituição Federal,
para que dessa forma possamos compreender melhor o confront existente entre tais direitos
e suas consequências.
Palavras-chave: Constitucionalização do direitoprivado; Dignidade da pessoahumana;
Direitos
da
personalidade;
Liberdade
de
expressão;
Liberdade
de
imprensa.
1
Bacharela no curso de direito do Unipê, email: [email protected]
Maria Cristina Paiva Santiago, professora de direito do Unipê e da Universidade Federal da Paraíba, email:
[email protected]
2
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A CAPACIDADE CIVIL E A EFICÁCIA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA PERANTE
NOTÁRIOS E REGISTRADORES
Rafaella Mayana Alves Almeida Cardins1
Marana Sotero de Sousa2
Resumo: A promoção e proteção do pleno e equitativoexercício de todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais para todas as pessoas com deficiência, bem como a
promoção da sua dignidade inerente se configura como objetivo disposto na Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência assinado em Nova Iorque,
Estados Unidos da América, em 30 de março de 2007. Deve-se ressaltar que referida
convenção é equivalente às emendas constitucionais, nos termos do artigo 5º, parágrafo 3º
da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. O Estatuto da Pessoa com
Deficiência (Lei n. 13.146/2015), elaborado com base na Convenção citada, revogou e
alterou a capacidade civil prevista no Código Civil. Assim,considerando o atual debate em
torno das modificações legislativas concernentes à capacidade civil das pessoas com
deficiência, considerando, também, que os notários e registradores são profissionais do
direito que se deparam com amudança legal bem antes das provocações judiciais, foi
realizado, mediante revisão bibliográfica e documental, estudo sobre a eficácia dos direitos
fundamentais relacionados ao exercício da capacidade civil das pessoas com deficiência
perante os oficiais de registro e notários. Destarte, importante é a análise da capacidade
civil das pessoas com deficiência, da atividade notarial e registral e da eficácia dos direitos
fundamentais da pessoa com deficiência ante os mencionados profissionais.
Palavras-Chave: Capacidade Civil; Pessoa com Deficiência; Eficácia Direitos
Fundamentais
Perante
Terceiros;
Notários
e
Registradores.
1
Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bacharela em Direito pela
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail para contato: [email protected].
2
Mestranda em Direito Econômico, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade
Federal da Paraíba (PPGCJ/UFPB). Especialista em Educação em Direitos Humanos (UFPB). Especialista em
Gestão Pública Municipal (UFPB). Graduada em Direito, pelas Faculdades Integradas de Patos (FIP). E-mail
para contato: [email protected].
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A IMPORTÂNCIA DA HUMANIZAÇÃO NO PROCESSO DE
MEDIAÇÃO FAMILIAR SOB A PERSPECTIVA DA GUARDA
COMPARTILHADA
Raíssa da Silva Lima¹
Resumo: A sociedade vive em contínuo processo de transformação. E, com as mais
variadas mudanças nas relações sociais, o Direito necessita acompanhar este processo,
atendendo às novas demandas impostas pela sociedade e regulando as condutas dos
indivíduos em uma real conjuntura social, para que não se torne uma letra morta sem
aplicabilidade. Tendo em vista as alterações no modelo nuclear de família e o surgimento
de novos arranjos e composições familiares na atualidade, verificamos o crescente número
de separações e divórcios que dão origem a famílias monoparentais. Tal contexto reflete
diretamente nos filhos e no exercício do poder familiar, preconizado nos artigos 21 e 22 do
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). Com base na garantia estabelecida
pela Constituição Federal, em seu artigo 229, que assegura aos pais o dever de criar, educar
e assistir os filhos menores e diante destes novos arranjos familiares, a LEI Nº 11.698/2008
altera a redação dos artigos 1.583 e 1.584 do Código Civil Brasileiro, instituindo e
disciplinando a guarda compartilhada dos filhos. O presente trabalho objetiva ressaltar a
importância da mediação familiar no processo de guarda compartilhada, contemplando o
papel da humanização como característica fundamental. Entre os objetivos específicos
deve-se fazer uma análise geral e (re)pensar se a situação da guarda compartilhada –
exercida através da imposição de decisão judicial – é a solução mais benéfica para a
criança e o adolescente quando não há um acordo entre os pais, no processo de ruptura
conjugal. Quanto à metodologia aplicada, utilizar-se-á a pesquisa qualitativa, onde se
verifica a aplicabilidade da mediação familiar no que tange à guarda compartilhada. As
técnicas de pesquisa utilizadas são a pesquisa bibliográfica de artigos científicos e análise
de textos legais. Diante do estudo realizado, verificou-se que, embora a legislação vise
contemplar o princípio da igualdade imposto pela nossa Carta Magna, se não houver a
característica da humanização no processo de mediação familiar, visando, sobretudo, o
superior interesse da criança e do adolescente, estar-se-ia submetendo tais atores à situações
ainda mais danosas para o desenvolvimento da sua personalidade. Visando, ainda, dirimir
os conflitos que perpassam num processo de separação – em sentido amplo – e formação da
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coparentalidade é indispensável que a mediação esteja inserida no bojo do processo de
guarda. Tendo em vista que a criança e o adolescente encontram-se num contexto de
disputas entre seus genitores, pelos mais diversos motivos (interesses patrimoniais,
afetivos, entre outros), que resultam em sérias consequências danosas, a título de exemplo,
a alienação parental. Apesar de várias decisões adotarem a guarda compartilhada
compulsória, visando o interesse da criança e do adolescente, muitas vezes tal imposição
judicial não está cingida pela humanização, que deve estar calcada no ideário de paz social.
Tal característica serve como um instrumento propulsor para a efetivação da mediação
familiar. Portanto, chega-se à um entendimento que a humanização se faz necessária para
que o magistrado ultrapasse o direito civil constitucionalizado, aplicando a mediação como
o instrumento capaz de efetivar a guarda compartilhada, salvaguardando os direitos e os
interesses das partes envolvidas, sobretudo, dos filhos.
Palavras chaves: mediação; humanização; criança e adolescente; guarda compartilhada;
coparentalidade.
Referências:
BARBOSA, Águida Arruda. Guarda Compartilhada e Mediação Familiar - Uma Parceria
Necessária.
São
Paulo,
2014.
Disponível
em:
http://editoramagister.com/doutrina_26542223_GUARDA_COMPATILHADA_E_MEDI
ACAO_FAMILIAR__UMA_PARCERIA_NECESSARIA.aspx. Acesso em: 20/04/2016.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Brasília: Senado, 1988.
_______. Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº 8.069/ de 13.7.1990. Diário Oficial da
República Federativa do Brasil, Brasília, DOU 16.7.1990 e retificado em 27.9.1990.
_______.Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Diário Oficial da
República Federativa do Brasil, Brasília, DOU de 11.1.2002.
_______. Lei nº 11.698, de 6 de junho de 2008. Dispõe sobre a alteração dos artigos 1583
e 1584 do Código Civil. Diário Oficial [da] União, Brasília, 13 jun. 2008.
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