Surrealismo

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Surrealismo
XIII. – MÓDULO L
Em que se investiga o surgimento e desenvolvimento do movimento surrealista:
apresentando algumas de suas oposições, características e, também, alguns de seus
‘resultados’.
“Não existe revolução total, há unicamente a Revolução perpétua, vida
verdadeira, como o amor, deslumbrante a todo momento. Não existe ordem
revolucionária, há apenas desordem e loucura. A guerra da liberdade deve ser
conduzida com cólera e conduzida sem cessar por todos aqueles que não
aceitam...
Éluard. Philosophies.
“Eis que chegará a hora em que os mares de cálida cólera vão subir a corrente
gelada dos rios, transbordar, fecundar em grandes braçadas um solo
esclerosado, petrificado, acabar com as fronteiras, suprimir as igrejas, limpar as
colinas da auto-suficiência burguesa, decapitar os picos de insensibilidade
aristocrática, inundar os obstáculos que a minoria dos exploradores opunha à
massa dos explorados, levar a seu futuro a humanidade. Libertando-a das
instituições caducas, dos temores religiosos, da mística patrioteira e de tudo o
que faz e diviniza os males da maioria em proveito dos tubarões de duas patas,
de suas presunções e de toda a sua corja”.
René Crevel. La Révolution Surréaliste.
“Foi em 1919 que minha atenção se fixou nas frases mais ou menos parciais
que, em plena solidão, à chegada do sono, se tornam perceptíveis ao espírito
sem que se possa descobrir-lhes (a não ser com uma análise bastante
minuciosa) uma determinação prévia. Certa noite, em especial, antes de
adormecer, percebi nitidamente articulada, a ponto de ser impossível mudar-lhe
uma palavra sequer, mas isolada, no entanto, de qualquer ruído vocal, uma frase
bastante bizarra que chegava sem trazer vestígio dos acontecimentos aos quais,
conforme o testemunho de minha consciência, eu me encontrava misturado
naquele momento, frase que me pareceu insistente, frase, ousaria dizê-lo, que
martelava a vidraça. Rapidamente tomei consciência dela e me dispunha a
passar além quando seu caráter orgânico me deteve. Na verdade essa frase me
espantava; infelizmente não a guardei até hoje, era alguma coisa como: ‘Há um
homem cortado em dois pela janela’, mas ela não podia sofrer equívoco,
acompanhada que estava da fraca representação visual de um homem andando
e cortado ao meio por uma janela perpendicular ao eixo do corpo. Fora de
qualquer dúvida, tratava-se de simples reerguimento no espaço de um homem
que se mantinha debruçado à janela. Mas como tal janela havia seguido o
deslocamento do homem, eu percebia que estava diante de uma imagem de tipo
tão raro que tive desejo de incorporá-la a meu material de construção poética.
Tão logo lhe concedi esse crédito ela deu lugar a uma seqüência quase
intermitente de frases que não me surpreenderam menos e me deram a
impressão de extrema gratuidade...”.
André Breton. Manifesto Surrealista.
XIII. 1. – O ‘a que viemos!’ do Surrealismo e suas oposições (em continuidade) ao Dadá.
“Os surrealistas encontram nas descobertas de Freud uma solução provisória.
Doravante, está provado que o homem não é somente um ‘raciocinador’, nem
mesmo um ‘raciocinador sentimental’, como o foram muitos poetas antes deles,
mas também um dormidor, um dormidor insensível, que, toda noite, dissipará em
trocados. O homem não era somente um prisioneiro da natureza, de suas
conquistas sobre ela, mas de si mesmo; havia cercado o espírito com fitilhos que
o asfixiavam pouco a pouco. Atrasados silogismos, corolários, CQD, a causa e o
efeito. (...): abram as portas ao sonho, dêem lugar ao automatismo! Vamos ver o
homem tal como é, seremos homens por inteiro, ‘desacorrentados’, libertos,
ousando realizá-los. Basta de escuridão! Vamos todos viver na ‘casa de vidro’,
ver-nos-emos tais como somos e assim poderão nos ver aqueles que o
quiseram”.
Maurice Nadeau. História do surrealismo.
“Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares.
Só o que me exalta ainda é a única palavra: liberdade. Eu a considero
apropriada para manter indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende,
sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós
herdados, deve-se admitir que a MAIOR LIBERDADE de espírito nos foi
concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à
servidão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a
felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a
imaginação me dá contas do que PODE SER, e é bastante para suspender por
um instante a interdição terrível. (...) Onde começa ela a ficar nociva, e onde se
detém a confiança do espírito? Para o espírito a possibilidade de errar não é,
antes, a contingência do bem?”
André Breton. Manifesto do surrealismo.
“Desde o início, o conceito de ‘surrealismo’ traduz uma investigação nova,
apresenta já o rótulo de um produto cultural novo e manifesta fortemente o seu
cuidado em se distinguir sem cambiantes das outras etiquetas. A contradição
entre o rigor voluntarista e o compromisso, objetivamente solicitado a
exteriorizar-se pelo retorno à cultura, é um dos pontos de dilaceramento
permanente a propósito do qual o grupo não cessará de se dividir”.
Jules-François Dupuis. História desenvolta do surrealismo.
Em seu sentido etimológico1, o vocábulo surrealismo (usado pela primeira vez com
relação aos textos dramáticos de Guilhaume Apollinaire2) significaria não uma simples
predisposição para transcender o real, mas a aprofundá-lo e, paradoxalmente, tal intento,
na evolução experimentada pelo movimento, significou, fundamental e essencialmente,
uma verticalização (algo parecido a uma alma falando à outra) no ‘universo dos sonhos e
do inconsciente’, passando por leituras/interpretações pessoais e ‘personalistas’:
alavancadas e sinalizadas sobretudo pela psicanálise moderna, criada e desenvolvida,
sobretudo por Sigmund Freud. Com relação ao nome dado ao movimento ou àquilo que
ele ‘guardaria/traria/acalentaria’, afirmou Breton no Primeiro Manifesto do Surrealismo:
“Em desespero de causa, invoca ele [o homem] o acaso, divindade mais obscura
1
No “Manifesto Surrealista” (que é uma espécie de colcha de retalhos de ideias) o próprio Breton,
afirmava que o surrealismo abrangia todo o espectro da atividade humana, englobando, principalmente,
áreas, até aquele momento, negligenciadas da vida como o sonho e o inconsciente. Nesse sentido, para
distinguir-se dos outros movimentos (e fundamentalmente do Dadá), Breton apresentou a seguinte definição
do Surrealismo:‘SURREALISMO, s.m. Puro automatismo psíquico, através do qual se pretende expressar,
verbalmente ou por escrito, o verdadeiro funcionamento do pensamento. O pensamento ditado na ausência
de todo o controle exercido pela razão, e à margem de qualquer preocupação estética ou moral.ENCICL.
Filos. O surrealismo se assenta na crença na realidade superior de certas formas de associação até agora
desprezadas, na onipotência do sonho e no jogo desinteressado do pensamento. Visa à destruição
definitiva de todos os outros mecanismos psíquicos, substituindo-os na resolução dos principais problemas
da vida’.”
2
“Tudo bem analisado, creio, com efeito, que será melhor adotar surrealismo que sobrenaturalismo,
que eu havia empregado anteriormente. Surrealismo ainda não se encontra nos dicionários, e será de mais
fácil manuseio que sobrenaturalismo já empregado pelos filósofos”. G. APOLLINAIRE, Apud M. NADEAU.
Op.cit., p.21. A esse respeito, ainda, afirma Breton no Primeiro Manifesto: “Em homenagem a Guilhaume
Apollinaire, que morrera há pouco, e que por diversas vezes nos parecia ter obedecido a um arrebatamento
desse gênero, sem entretanto ter aí sacrificado medíocres meios literários, Soupault e eu designamos com
o nome de SURREALISMO o novo modo de expressão pura, agora à nossa disposição, e com o qual
estávamos impacientes para beneficiar nossos amigos”.
que as outras, à qual atribui todos seus desvarios. (...) o espírito do homem que
sonha se satisfaz plenamente com o que lhe acontece. (...) do momento em que
seja submetido a um exame metódico, quando, por meios a serem
determinados, se chegar a nos dar conta do sonho em sua integridade (isto
supõe uma disciplina da memória que atinge gerações: mesmo assim
comecemos a registrar os fatos salientes) quando sua curva se desenvolve com
regularidade e amplidão sem iguais, então se pode esperar que os seus
mistérios, não mais o sendo, dêem lugar ao grande Mistério. Acredito na
resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e
a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se
pode dizer”.
O movimento vertical ou mergulho radical proposto por Breton: espécie de busca
do sentido no ‘fundo do fundo’ de-si-mesmo, como se pode depreender, transitou
abstratamente pelo inefável e pelo abstrato conceito de ‘misterioso’ (em alguns momentos
da evolução do movimento amparado em um lastro de natureza mais metafísica e
ontológica e, em outros, apenas como simulacro de ‘condições inexplicáveis’), sendo que
o vislumbrado pelos artistas e militantes ligados ao movimento era trazer para dentro da
vida (ou para ‘o estado de vigília’ como chamava Breton) a força geradora do
‘maravilhoso’: encontrada fundamentalmente nos sonhos e cuja característica básica,
ainda com Breton, era ‘ser sempre belo’. Enfim, essa espécie de ‘surrealidade’ como
síntese de uma apologia ao sonho e ao aludido estado de ‘vigília misteriosa e inefável’
foi, ao longo do movimento surrealista, mudando de inclinação (por exemplo a
participação no Partido Comunista Francês – em determinada fase de evolução do
movimento), mas nunca de eixo; isto é, com relação, digamos, às propensões místicoonírico-metafísicas de seus artistas. Tais características, segundo muitos historiadores,
‘devem-se’ àquelas semelhantes do Expressionismo, desse modo, afirma Gilberto
Mendonça Teles. Op.cit., 164:
“origens estão ligadas ao expressionismo, embora se possam assinalar alguns
pontos de contato com o futurismo de Marinetti. Mas é com o expressionismo
que o surrealismo encontra um paralelo bastante evidente, a começar pela
revalorização do passado: os alemães viam em Novalis e Hölderlin os seus
precursores; os surrealistas redescobriam escritores como Sade, Nerval,
Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud e Mallarmé (...) Além disso, ambos os
movimentos buscavam a emancipação total do homem, o homem fora da lógica,
da razão, da inteligência crítica, fora da família, da pátria, da moral e da religião
– o homem livre de suas relações psicológicas e culturais. Daí a recorrência à
magia, ao ocultismo, à alquimia medieval na tentativa de se descobrir o homem
primitivo, ainda não maculado pela sociedade”.
Muitas, portanto, foram as contradições do Surrealismo (talvez como em nenhum
outro movimento ligado às vanguardas, principalmente por conta de integrantes do
movimento: das drogas alucinógenas à militância política de partidos de esquerda);
muitas também foram as mudanças de bandeiras (e de causas opostas) defendidas;
incontáveis foram as polêmicas, cisões e expulsões de vários de alguns de seus membros
do movimento, sob as mais diversas acusações: como vocação e interesses comerciais,
opostos aos pressupostos-em-transformação; não adesão a partidos e tendências
políticas; rejeição àqueles que permaneceram no Dadaísmo... Enfim, o Surrealismo, a
partir de um, digamos, chamado ‘estado de contradição imanente’, representou uma
tentativa de instaurar uma revolução imaginativa (ou uma espécie de ‘enlouquecimento
imaginativo’3) desenvolvida a partir de uma (e sempre confortável) artilharia estética: que
foi uma característica (à exceção dos expressionistas) bastante comum a todos os
movimentos das vanguardas históricas. De outra forma, o modo pelo qual os surrealistas
escolheram para fazer oposição ao quadro político-social de que discordavam ou a
‘trincheira’
escolhida
para
apresentar
suas
oposições
e
descontentamentos,
(diferentemente de alguns poucos dos futuristas que participaram, de fato, da guerra), foi
a senda da ‘ficção super imaginativa’. Esse procedimento marcou a história das artes e
Sarane Alexandrian, a propósito da permanência do ‘espírito surrealista’, mesmo depois
de passada a fase de sua produção mais intensa e revolucionária, afirma:
“Para compreender os artistas surrealistas é preciso saber que todos eles
consideravam a arte não como um fim em si, mas como um meio de valorizar o
que de mais precioso, mais secreto e mais surpreendente há na vida. Eles não
pretenderam ser nem artesãos nem estetas: apenas inspirados e jogadores”.4
Com relação ao ‘estado de guerra’ ou ‘estado estético de guerra’ proposto pelos
arautos da arte surrealista Walter Benjamin, a partir de uma sutil e contundente ironia,
afirma:
“desde o início Breton declarou sua vontade de romper com uma prática
que entrega ao público os precipitados literários de uma certa forma de
existência, sem revelar essa forma. Numa formulação mais concisa e
mais dialética: o domínio da literatura foi explodido de dentro, na medida
em que um grupo homogêneo de homens levou a ‘vida literária’ até os
extremos do possível”.5
Assim, André Breton6 – um dos fundadores e, também, um de seus arautos mais
3
Bom lembrar que Breton preconiza a loucura, as alucinações, as ilusões etc como fontes de prazer
e de gozo não desprezíveis. Por outro lado, e como afirma Maurice Nadeau. Op.cit., p.46: “O surrealismo é
considerado por seus fundadores não como uma nova escola artística, mas como um meio de
conhecimento, particularmente de continentes que até então não haviam sido explorados: o inconsciente, o
maravilhosos, o sonho, a loucura, os estados de alucinação, em suma, o avesso do cenário lógico”.
4
Sarane Alexandrian. O surrealismo. Portugal: Editorial Verbo, s/d.
5
Walter Benjamin. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, p.22.
6
Sarane Alexandrian. Op.cit, p.8, acerca da liderança de Breton e das marcas que o movimento
deixava em todos que participaram que dele participaram, afirma: “Breton soube impor àqueles que dele se
aproximaram, não só uma disciplina de ação, mas também, o que é mais notável, uma disciplina de sonho.
No entanto, um artista não deixava de ser surrealista, na altura em que, depois de se ter comprometido
fiéis e importantes do movimento surrealista (ex- participante do movimento dadaísta,
ainda que de modo algo reticente com relação a este movimento, por um intenso
processo de ‘bate-bocas’, sobretudo com Tzara) – afirmou em seu Primeiro Manifesto que
o Surrealismo representaria:
“uma consciência cada vez mais clara e ao mesmo tempo cada vez mais
apaixonada do mundo sensível. (...) Finjo, infelizmente, atuar em um mundo no
qual, para conseguir perceber suas sugestões, seria obrigado a passar por dois
tipos de intérpretes, uns para me traduzirem suas determinações, outros
impossíveis de encontrar, para impor a meus semelhantes a compreensão que
deles teria. Este mundo, no qual suporto o que suporto (não queiram saber), este
mundo moderno, afinal, diabo!, o que querem que eu faça nele?”
Dessa forma, é bastante comum, principalmente no início do movimento, assim
como já o haviam feito as outras vanguardas, haver uma forte oposição e recusa ao
caráter utilitarista, filisteísta e funcionalista (passando pelo crivo do mercantil) da arte
burguesa e que, a despeito de todo tipo de experimentação estética de oposição a ela,
permanecia na condição de
tendência hegemônica. Apesar de em seus primeiros
momentos, o movimento surrealista ter apresentado características ‘revolucionárias’, na
medida
em
que
contestava
manifestações,
produções
e
mentalidades
mais
conservadoras e também aquelas mais características e niilistas do próprio Dadaísmo,
afirma Benjamin:
“Há sempre um instante em tais movimentos em que a tensão original da
sociedade secreta precisa explodir numa luta material e profana pelo poder e
pela hegemonia, ou fragmentar-se e transformar-se, enquanto manifestação
pública. O surrealismo está atualmente passando por essa transformação. Mas
no início, quando irrompeu sobre criadores sob a forma de uma vaga inspiradora
de sonhos, ele parecia algo de integral, definitivo, absoluto. Todo o que tocava se
integrava nele. A vida só parecia digna de ser vivida quando se dissolvia a
fronteira entre o sono e a vigília, permitindo a passagem em massa de figuras
ondulantes, e a linguagem só parecia autêntica quando o som e a imagem, a
imagem e o som, se interpenetravam, com exatidão automática, de forma tão
feliz que não sobrava a mínima fresta para inserir a pequena moeda a que
chamamos ‘sentido’. A imagem e a linguagem passam na frente”.7
Para os surrealistas
(e a partir de uma formulação confusa), do mesmo modo
como já o havia sido para os dadaístas, a degradada obra artística burguesa encontravase e sufocava-se num determinado estado degradado – rigorosamente e em consonância
à lógica do sistema capitalista – que priorizava o Ter ao Ser8, configurando-se, pois, em
nessa empresa comum, era levado a separar-se dela pela sua própria evolução. Aí adquirira para sempre
princípios e estímulos que nunca teria encontrado sozinho, pois tudo nela se destinava alimentar um clima
lírico incondicional, desde as diatribes apaixonadas, a propósito de uma leitura, aos divertimentos”.
7
W. Benjamin. Op.cit., p.22.
A esse respeito, e de modo bastante inspirado em algumas das reflexões de Adorno (e
companheiros da chamada ‘Escola de Frankfurt’ sobre a indústria cultural, assim comenta Jules8
mais uma mercadoria, destituída de qualquer espírito artístico e de expressão mágicoonírico-imaginativa verdadeira; ou seja, a imaginação em seu estado místico-primitivo e
como expressão daquilo que os artistas resolveram chamar de ‘irrupção pura do
maravilhoso’. Dessa forma, era necessário que o ato de criação fosse e se assemelhasse
aos relâmpagos: que em determinados momentos e sob condições específicas rasgam os
céus marcando os olhos de medo e encantamento e, por esse viés, que o ato criador
pudesse ser substituído também pelo conceito de loucura9, que, à semelhança dos
relâmpagos, iluminavam as ‘cavernas do ser’, deixando exprimir um ‘hóspede
desconhecido’ (ou na morte: concebida como sociedade secreta – “sepultando aí o M
profundo por onde começa a palavra Memória.”): em sua profundeza, em sua totalidade
(sem passar pelo crivo de qualquer das lógicas existentes), automaticamente. No sentido,
portanto, da irrupção pura do maravilhoso, do mistério e da derrocada de toda e qualquer
forma de razão, era necessário atacar o primeiro inimigo do movimento que era o próprio
Realismo/Naturalismo. Desse modo, em seu primeiro Manifesto, em duas passagens,
assim comenta Breton acerca do Realismo:
“A atitude realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France,
François Dupuis. História desenvolta do surrealismo. Op.cit, pp.14-5: “O esteticismo apresenta-se
como a ideologia do antivalor mercantil que torna o mundo viável e detém, por isso, o segredo
dum certo estilo de vida, duma certa valorização do ser, oposto ao ser reduzido ao ter, que é o
capitalista. Assim, no espetáculo, a cultura fornecerá modelos de papéis valorizadores. À medida
que o econômico cria um mercado cultural, transformando os livros, os quadros e as esculturas
em mercadorias, as formas dominantes da cultura tornam-se mais e mais abstratas e suscitam,
em contrapartida, reações de anticultura. Ao mesmo tempo, quanto mais a economia ganha em
importância e impõe por toda a parte o sistema da mercadoria, mais a burguesia tem mister de
renovar o espetáculo do seu livre mercador ideológico que dissimulará a exploração crescente e
recusada, cada vez com maior brutalidade, pelo proletariado. Depois da guerra de 1940-1945, a
ruína das grandes ideologias e a exploração do mercado (livros, discos, gadgets culturalizados)
vão atirar a cultura para o primeiro plano das preocupações, e isto até porque a pobreza da
sob(re)vida incita a viver abstratamente segundo modelos cuja ficção para todos (predominância
das imagens dos estereótipos) tem grande necessidade de renovação. O surrealismo pagará a
fatura de uma tal recuperação que o seu coração, quando não o seu espírito, sempre recusou”.
9
A esse respeito aparece a seguinte indicação de Breton no Manifesto de 1924:“Todos
sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação senão a um reduzido número de atos
legalmente repreensíveis, e que, não houvesse estes atos, sua liberdade (o que se vê de sua
liberdade) não poderia ser ameaçada. Que eles sejam, numa certa medida, vítimas de sua
imaginação, concordo com isso, no sentido de que ela os impele à inobservância de certas regras
fora das quais o gênero se sente visado, o que cada um é pago para saber. Mas a profunda
indiferença de que dão provas em relação às críticas que lhe fazemos, até mesmo quanto aos
castigos que lhes são impostos, permite supor que eles colhem grande reconforto em sua
imaginação e apreciam seu delírio o bastante para suportar que só para eles seja válido . (...) São
pessoas de escrupulosa honestidade, cuja inocência só tem a minha como igual. ” (sic) Como diz
o ditado popular, parece que pretensão e água benta não fazem mal a ninguém. Não é, mesmo?...
Um pouco mais adiante, ainda, afirma Breton: “As confidências de loucos, passarei a vida a
provocá-las. São pessoas de uma honestidade escrupulosa e ninguém os iguala na inocência a
não ser eu. Foi preciso que Colombo partisse com alguns loucos para poder descobrir a América.
E vejam como essa loucura se espalhou e durou...”.
parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe
horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção. É ela a geradora
hoje em dia desses livros ridículos, dessas peças insultuosas. Fortifica-se
incessantemente nos jornais, e põe em xeque a ciência, a arte, ao aplicar-se em
bajular a opinião nos seus critérios mais baixos; a clareza vizinha da tolice, a
vida dos cães. (...)
Nada se compara a seu vazio; são superposições de imagens de catálogo, o
autor as toma cada vez mais sem cerimônia, aproveita para me empurrar seus
cartões-postais, procura fazer-me concordar com os lugares-comuns”.
“Por que o romance se converteu nessa forma quase universal de literatura?
Porque satisfaz ao apetite de lógica daqueles que o leem, e que encontram nele,
mesmo e sobretudo quando pobres paixões estão descritas nele, o prazer de
adicionar e de subtrair forças, tal como sucede na mecânica, e porque, de outro
lado, não é para aquele que o produz nada mais que o emprego de faculdades
lógicas. Faz-se mister um quadro determinado e minuciosamente descrito (ó
Balzac!), personagens com o respectivo nome e idade, cuidadosamente
etiquetadas, acerca das quais pode-se estar certo de que de seus contatos
jamais jorrará o milagre”.
Diferentemente, ainda, dos demais movimentos de vanguarda, o Surrealismo foi a
única escola a buscar uma mais próxima,
explícita (e constantemente complicada)
aproximação política com um partido político, que no caso específico aconteceu com o
Partido Comunista Francês (ou mais especificamente com o Grupo Clarté10). Tal
aproximação (e curtíssima permanência) deu-se sempre a partir de inúmeras confusões
e desentendimentos, como seria de se esperar, de ambos os lados, ou de outro modo: por
certa ortodoxia no partido e por certa ciosidade de liberdade e autonomia dos artistas. A
quase totalidade dos comunistas sempre desconfiou das verdadeiras intenções ‘políticas’
dos surrealistas, sendo que estes, naturalmente (e por mais que tentassem) da mesma
forma, nem sempre conseguiam adotar a ortodoxia de parte significativa dos membros do
partido. Nesse particular, vale destacar que a filiação de alguns dos integrantes do
movimento surrealista não se deu imediatamente após o lançamento do “Manifesto do
Surrealismo” em 1924, que rigorosamente não apresentava nenhuma alusão ou
referência à necessidade de participação, definição e opção política de qualquer natureza.
10
De modo esquemático, tratava-se de uma organização revolucionária que (à semelhança
de outras) apelava aos ensinamentos de Lenin e Trotski e cuja origem ligou-se à defesa de
Marrocos contra o colonialismo francês. Segundo Nadeau. Op.cit., p.82: “Os diretores de Clarté,
Jean Bernier, Marcel Fourrier, livraram-se pouco a pouco da influência pacifista e humanitária de
Henri Barbusse, fundador do movimento no fim da guerra (1919), para se engajarem no
movimento revolucionário, num plano paralelo ao da Internacional Comunista. Em torno dessa
organização criaram uma ‘aura’ de intelectuais e simpatizantes; atacavam duramente a ideologia
burguesa e tentam criar contra ela valores novos a partir do exemplo da Rússia dos Sovietes.
(...)O acordo entre os surrealista e Clarté (...) concretizou-se sob a forma de um Manifesto: ‘A
Revolução primeiramente e sempre’ onde, depois de uma saudação respeitosa à Ásia eterna,
entramos outras ideias novas aceitas pelos surrealistas, e bem estranhas, pelo menos da maneira
como são formuladas, as suas preocupações anteriores. Ei-los agora engajados nos problemas
do assalariado, ou seja, em plena economia política”.
O movimento surrealista, desenvolvido basicamente entre o período compreendido pelas
duas grandes guerras mundiais (chamado por alguns de fase áurea, tendo em vista sua
permanência até os dias de hoje), foi criado em Paris a partir de algumas das
características do Dadaísmo, sem que se possa, entretanto (pela ótica dos artistas do
movimento), atribuir uma filiação tão direta a este, fundamentalmente pela produção de
um novo conjunto de regras estéticas e pelo desfraldar da palavra de ordem: ‘ato de
criação espontânea’, que abolia, definitivamente, vários dos
vetos característicos
apresentados pelo Dadá. Ocorre que alguns dos militantes da nova escola mantiveram,
antes da fundação do próprio Surrealismo, boas relações e alguns chegaram a participar
dos mesmos espetáculos ou soirées, a escrever nas mesmas revistas literárias, trocar
correspondência etc. Dessa forma, especificamente com relação ao dadaísmo, é bom que
se diga que um exame mais acurado das duas tendências ou escolas mostra que no
início do movimento surrealista houve até mesmo relações hostis à tradição em curso,
incluída aí o próprio dadaísmo, já em estado dissolvente.11
“De Dadá, os primeiros surrealistas conhecem sobretudo a versão morna de
Paris, as palhaçadas de Tzara, a oposição ao futurismo e ao cubismo, algumas
querelas pessoais. Grosz, Huelsenbeck, Schwitters, Haussmann, Jung e mesmo
Picabia são-lhes, larga medida, estranhos”.12
“Faltava a Tzara o quanto basta de sentido crítico e de combatividade lúcida para
levar os artistas a desesperarem da arte e a agarrarem a vida quotidiana como
tema da obra coletiva revolucionária. Indecisos e, no fundo, mais sensíveis do
que o que gostariam de deixar transparecer ao atrativo de uma carreira artística,
os criadores depressa encontraram na repetição das mesmas troças
orquestradas por Tzara e no papel de vedeta que o show antiarte de Dadá lhes
propunha, o pretexto para reatar com a atividade cultural sem renegar o
desprezo dadaísta pela arte, mas apenas fingindo acreditar que o descrédito
tinha sido parcial e unicamente lançado sobre as formas então dominantes da
literatura, do pensamento e da arte. O surrealismo existia adormecido nas
incapacidades de Dadá”.13
“O relacionamento entre o surrealismo e o Dadá é complexo, porque, sob muitos
aspectos, eles eram bastante semelhantes. Politicamente, o surrealismo herdou
11
A despeito das oposições, vale destacar que os surrealistas também tiveram sua fase de enfants
terribles... , e sempre com a desculpa de que se opunham à cultura hegemônica. Das performances ou
atitudes herdadas dos dadaístas, uma delas promove um grande escândalo em toda França. Em 1925 é
lançado um panfleto chamado Un Cadavre, saudando o enterro (que não havia morrido) de Anatole France,
intelectual respeitadíssimo nos círculos da chamada ‘gente bem’. A esse respeito, assim justificou-se Breton:
“France representava o protótipo de tudo o que execrávamos. Se havia, do nosso ponto de vista, uma
reputação usurpada, era a sua. Éramos completamente insensíveis à pretensa limpidez do seu estilo e,
sobretudo, repugnava-nos o seu famosíssimo ceticismo.(...) No plano humano considerávamos a sua
atitude a mais equívoca e desprezível de todas: tinha feito o necessário para atrair os sufrágios da direita e
da esquerda. Estava corrompido de honrarias e jactância, etc. Estávamos dispensados de qualquer tipo de
deferência.Este fole esvaziou-se tão perfeitamente que é hoje difícil imaginar os furores que foram capazes
de provocar essas quatro páginas reunindo os textos de Aragon, Delteil, Drieu la Rochelle, Éluard e o meu.
Segundo Camille Mauclair, Aragon e eu pertencíamos ao ‘gênero louco furioso’. Exclamava: ‘Já não são
costumes de oportunistas e de apaches, mas de chacais...’ Havia quem fosse mais longe: pediam sanções”.
Apud Dupuis. Op.cit., p.27.
12
Jules-François Dupuis. Op.cit.,p.20.
13
Idem, ibidem, p.23.
a burguesia como seu inimigo, e continuou, pelo menos em teoria, seu ataque às
formas tradicionais de arte. Artistas previamente associados ao dadá aderiram
ao surrealismo; mas é impossível dizer que a obra de Arp, Ernst ou Man Ray, por
exemplo, VIROU surrealista de um dia para o outro. O surrealismo foi, por assim
dizer, um substituto do Dadá; como disse Arp, ‘expus com os surrealistas porque
sua atitude rebelde em relação à ARTE, e sua atitude direta em face da vida
eram semelhantes às do Dadá’. A diferença radical entre eles residia na
formulação de teorias e princípios, em vez do anarquismo dadaísta”.14
Ape
distintos movimentos... Mas, a despeito disso, em outros países da Europa as produções
artísticas eram e continuavam a ser apresentadas com os (digamos) rigores e
características intrínsecas do ‘movimento-mãe’. Tanto esse dado é verdadeiro que em
uma exposição dadaísta apresentada, na Alemanha, ou mais precisamente na cidade de
Colônia, em janeiro de 1920:
“Essa exposição, orientada por Ernst, Johannes Baargeld e Arp, recém-chegado
de Zurique, realizou-se num pequeno pátio a que se chegava através do
banheiro da Bräuhaus Winter. Os visitantes, no dia da inauguração, eram
recebidos por uma garotinha vestida com o traje branco de primeira comunhão,
recitando poemas obscenos. A exposição continha um grande número de objetos
‘descartáveis’. Uma escultura de Ernst tinha um machado preso ao lado, com o
qual o público era convidado a despedaçá-la. Fluidoskeptrick der Rotzwitha van
Gandersheim, de Baargeld, um precursor de muitos objetos surrealistas,
consistia num pequeno tanque cheio de água colorida de vermelho (manchada
de sangue?), com uma fina capa de cabelo flutuando na superfície, uma mão
humana (de madeira) sobressaindo da água e um despertador no fundo do
tanque. A peça foi destruída durante a exposição. Ironicamente, a exposição
esteve fechada enquanto as autoridades investigavam queixas de obscenidade,
mas tudo o que puderam encontrar foi a gravura de Adão e Eva de Dürer, e a
exposição foi reaberta”.15
Motivos de várias e outras ordens vêm se somar à separação dos dois grupos, em
fase dos acontecimentos mundiais (sobretudo aqueles referentes à carnificina da guerra),
categoricamente, não era possível imaginar que a arte se propusesse a destruir um
mundo já destruído e dilacerado. Dupuis, apresenta mais algumas evidências no processo
‘separatista’:
“Depois do esmagamento da revolução, de Berlim a Cronstadt passando por La
Courtine e pelas planícies da Ucrânia, Dadá fica sozinho a exigir, ao mesmo
tempo confusa e nitidamente, a destruição global da arte, da filosofia, da cultura,
enquanto setores separados, e a sua realização numa vida social unitária. Toda
a má consciência do reformismo surrealista ostenta a marca do projeto
revolucionário global, renegado com reticência e aceite no refluxo.
Assim, já pouco importa que Breton proclame na Révolution Surrealiste (n.°4):
‘Não há obra de arte que agüente perante o nosso primitivismo integral’, e que
Aragon fale em Un Cadavre da ‘miserável atividadezinha revolucionária que se
produziu a nosso Oriente no decorrer destes últimos anos’; apesar de sua
justeza, o primeiro propósito é ainda o de um inconsciente, e o segundo já o de
14
15
Dawn Ades. Op.cit., p. 90.
Idem, ibidem, p.87.
um imbecil; o futuro encarregar-se-á de mostrar que não passam de palavras em
conseqüência prática. O espírito Dadá sobrevive como forma verbal enquanto o
surrealismo nele enxerta um outro conteúdo”.16
Das oposições e incidentes entre os dadaístas e os futuros surrealistas, em 13 de
maio de 1921, Breton e Aragon promovem a manifestação pública e o julgamento de
Maurice Barrés17. O ‘réu’ era um manequim (tão ao gosto de muitas das experimentações
teatrais propostas desde Craig, passando pela dramaturgia simbolista), sendo que
o
‘julgamento’ foi presidido por Breton. Nesse julgamento estético-público-performáticoteatral, Ribemont-Dessaignes fez o papel de acusador público, Aragon e Soupault fizeram
sua defesa. Tzara, sempre alegre e pronto aos eventos, resiste em
participar do
‘julgamento’ tentando, mesmo, sabotar a iniciativa, fundamentalmente por recusar-se a
responder (segundo declarações de alguns dos participantes do evento, em depoimentos
posteriores) com ‘seriedade’, às questões que lhes foram formuladas, tendo em vista que
não lhe interessava participar, seriamente de uma encenação dessa natureza. Quanto aos
motivos de tal recusa: para além da justificativa de que todos, inclusive os dadaístas,
serem canalhas não foram apresentadas, concretamente, outras informações mais
específicas e/ou justificáveis. A transcrição abaixo mostra/aponta Tzara colocando o
‘ventilador na farofa’ dos jovens surrealistas mais afoitos, senão vejamos:
“Tzara – Não tenho nenhuma confiança na justiça, mesmo se esta justiça é feita por
Dadá. Você há de convir comigo, senhor Presidente, que somos apenas um
bando de canalhas e que, por conseqüência, as pequenas diferenças, canalhas
maiores ou canalhas menores, não têm nenhuma importância (...)
Pergunta – Você sabe por que foi obrigado a testemunhar?
Tzara – Naturalmente porque sou Tristan Tzara. Embora eu ainda não esteja de
todo persuadido.
Pergunta – Quem é Tristan Tzara?
Tzara – É todo o contrário de Maurice Barrès.
Soupault – A defesa, persuadida de que a testemunha inveja a sorte do acusado,
pergunta se a testemunha ousa confessá-lo?
Tzara – A testemunha diz merda à defesa (...)
Pergunta – Ao lado de Maurice Barrès, você pode citar ainda outros porcos?
Tzara – Sim, André Breton, Theodor Fraenkel, Pierre Deval, Georges RibemontDessaignes, Louis Aragon, Philippe Soupault, Jacques Rigaut, Pierre Drieu la
Rochelle, Benjamin Péret, Serge Charcoune.
Pergunta – A testemunha quer insinuar que Maurice Barrès lhe é tão simpático
quanto todos os porcos que são seus amigos e que ela acaba de enumerar?
Tzara – Pelo amor de Deus! Trata-se aqui de porcos e não de simpatia. Meus
amigos me são simpáticos, enquanto que Barrès me é antipático (...)
16
J.-F. Dupuis. Op.cit., p.45.
Maurice Barrés (1862-1923), escritor e político francês. Criador de uma vasta produção
literária, revelando uma grande contradição entre um espírito apaixonado, oscilando entre um
individualismo, a sedução pelas obras e os destinos exemplares e a necessidade de ordem e de
disciplina. Barrés era conhecido como o “anarquista literário do culto do eu”. Foi eleito deputado
por Nancy 1888-91, tornando-se a partir daí um líder do movimento intelectual nacionalista
Escreveu a trilogia O culto do eu (1888-1891); Os desenraizados, 1897; A colina inspirada, 1913;
17
Crônica da grande guerra, 1920-24; Do sangue volúpia e da morte, 1893-1909 etc
Soupault – A defesa registra que a testemunha passa seu tempo fazendo piadas
(...)
Tzara – Eu não julgo. Eu não julgo nada. Eu me julgo todo o tempo e me acho um
indivíduo pequeno e desagradável, qualquer coisa no gênero de Maurice, até
mesmo um pouco menos. Tudo isso é relativo”. 18
Esse julgamento, fundamentalmente pela ‘postura’ e respostas dadas por Tzara,
abala a relação entre muitos dos representantes de Dadá e aqueles do futuro
Surrealismo19 . Depois de vários estremecimentos, um processo de fissura mais intenso
deu-se, entretanto, quando Breton assumiu a direção da revista Littérature e mudou, tanto
o corpo de colaboradores (desligando muitos dos dadaístas que escreviam regularmente
nela) como a própria proposta editorial da revista, que, até aquele momento, de certa
forma, era determinada pelos representantes do movimento Dadá. Nesse ‘processo de
sangria do convalescente’, e segundo alguns comentaristas, o rompimento definitivo deuse com o anúncio de Breton, em 1922, de realização do Congresso Internacional das
Artes, com o objetivo de determinar as direções da arte moderna, contando com a
participação de representantes de todos os movimentos artísticos em produção naquele
momento histórico. Estratégica e maldosamente (Será? E há vozes dissonantes nesse
sentido), Breton convidou Tzara para participar do evento, inscrevendo no ‘quadro da
história das artes’ o dadaísmo que, desde sempre, e como já se viu, ‘autopropalava-se’
na condição de (anti)movimento, antiarte, antiestética... antitudo. Bem, desse modo, a
atitude de Breton de, à semelhança de todos os outros movimentos,
esquadrinhar’ o Dadaísmo no quadro mundial das artes,
‘conformar e
acabou com as antigas e
sempre confortáveis processos retóricos dos antiartistas e, assim, digamos, por ‘matálos’ definitivamente20 e por criar uma série de enfrentamentos e dissensões de toda
ordem.
“Para Tzara, qualquer que fosse a linha adotada, a mera proposta de discutir-se
a sério a arte na modernidade lhe parecia totalmente incompatível com a filosofia
dadá e se, em princípio, aceitou participar da empresa, foi com o mesmo espírito
burlador com que torpedeou a sessão do ‘Processo Barrès’. Breton, por seu
lado, via no Congresso a possibilidade de dar vazão a suas ansiedades e tornálas instrumento de ação, algo que já tentara anteriormente com o projeto das
excursões e o próprio ‘Processo Barrès’. (...)
18
Silvana Garcia. Op.cit., pp.224-5.
“Nenhum detalhe fora negligenciado para provocar as perseguições judiciais e suscitar o confronto
em que as facções revolucionárias pudessem reconhecer a ação sediciosa de Dadá. A salvação do
movimento disso estava dependente. Benjamin Péret que será animado, durante toda a vida, por uma igual
e intransigente radicalidade, fez, no papel de ‘soldado desconhecido’, uma intervenção muito notada,
testemunhando em língua alemã. O conjunto das declarações sublinhou, aliás, a natureza excrementícia
dos antigos combatentes, de Barrés e de tudo o que se aparentava com o caráter nacional”. Jules-François
Dupuis. Op.cit., pp.24-5.
19
20
dos desentendimentos com Tristan Tzara, na véspera da data marcada”.
Assim se re
Uma carta de Tzara, declinando o convite para participar do Congresso acaba
por deflagrar toda uma situação conflituosa que culminará com a não-realização
do evento. Breton, certo de que Tzara pretende manobrar contra o Congresso,
faz o Comitê assinar um comunicado à imprensa, no qual se dá um voto de
desconfiança a ‘um personagem conhecido por promotor de um ‘movimento’
vindo de Zurique’. A inclusão dessa frase irá provocar uma sucessão de cartas,
desistências (Éluard, Ribemont-Dessaignes e, posteriormente, Jacques Rivière)
e protestos contra o xenofobismo de Breton, culminando com a convocação
deste por um comitê improvisado de artistas, por iniciativa de Eric Satie.”21
Vários foram os desdobramentos advindos da discussão entre os dois ‘ativistas’, e
que (a despeito de serem contrários às estruturas burocratizadas) talvez, no fundo,
brigassem pela liderança do movimento... Dessa forma, Breton acaba recebendo do
julgamento ‘chamado’ por Satie um ‘voto de desconfiança ao projeto e ao comitê de
organização’. Tal atitude de seus companheiros parece ter deixado Breton bastante irado
motivo pelo qual o artista escreve um texto chamado Após Dadá e publicado em
Comoedia:
“Dadá muito infelizmente, não está mais em questão e seus funerais, em torno
de maio de 1921, não provocaram nenhum tumulto. O cortejo, pouco numeroso,
seguiu-se àqueles do cubismo e do futurismo, que os estudantes de belas-artes
farão afundar em efígie no Sena. Dadá, se bem que tenha tido, como se diz, sua
hora de celebridade, deixa poucas saudades: com o tempo, sua onipotência e
sua tirania tornaram-no insuportável”.
Tzara, em ‘direito de resposta’ à provocações de Breton, escreveu com tons
bastante melodramáticos O lado Secreto de Dadá na mesma Comoedia, utilizando-se de
prática bastante desabonadora, lamentavelmente, utilizada como expediente para ‘acabar’
com os concorrentes políticos em época de campanhas e tantas outras instâncias de
diferentes tipos de disputa pelo poder):
“Se escarneço totalmente de Dadá e de todas as minhas obras, não é menos
evidente que o sr. Breton não existe e não existirá senão por Dadá.
Um amigo escreveu-me que ‘Breton era um comediante completo e que mudava
de homem como mudamos de botinas’. Eu não penso como ele, pois estou
convicto de que o sr. Breton possui uma inteligência, infelizmente torturada por
falsos tormentos de ordem moral, pelos exemplos que tive de seus exageros
doentios, num ou noutro sentido. Tenho apenas um sentimento de piedade que é
a resposta a tudo aquilo que poderia reprovar. Tenho tempo para esperar, pois
sei de onde vêm as desgraças da vida conjugal. Mais dia, menos dia, saberemos
que antes de dadá, após dadá, sem dadá, através de dadá, por dadá, contra
dadá, com dadá, apesar de dadá, é sempre tudo dadá. Mas que tudo isso não
tem a menor importância”.
Muito mais irado do que antes e sentindo-se, logicamente, desafiado moralmente,
Breton escreveu novo texto chamado Abandonem Tudo, ‘oficializando’ seu desligamento
21
Silvana Garcia. Op.cit., p.227.
do movimento.
“Enfim, quem fala? André Breton, um homem sem grande coragem, que até aqui
se satisfez bem ou mal de uma ação derrisória e isso porque talvez um dia haja
sentido mais duramente do que nunca ser incapaz de fazer aquilo que queria. E
é verdade que tenho consciência de já ter desvalorizado a mim mesmo em
inúmeras circunstâncias; é verdade que me acho menos que um monge, menos
que um aventureiro. Isso não me impede de manter a esperança de me
recuperar e que, nesse início de 1922, nesse belo Montmartre em festa, eu
sonhe com aquilo que ainda possa vir a ser”.22
Acresça-se, ainda, ao quadro de rompimento dos dois movimentos (ou dos dois
líderes em processo de desentendimento pessoal), o fato de o propalado e sempre
alardeado niilismo dadaísta, negando a tudo e a si mesmo: “O verdadeiro dadaísta é
contra o Dadá”, não se coadunava com as inquietações que alguns dos líderes do
movimento surrealista vislumbravam, principalmente no que concernia ao poder do ATO
DE CRIAÇÃO ESPONTÂNEA: que, segundo eles mesmos, criaria a chamada “imagem
surrealista”23,
representando uma síntese de justaposição de inúmeros elementos
diferentes, mas – ainda que constituída por uma determinada visão niilista –
jamais se
negaria.
“Dos grandes testemunhadores do mal de viver, dois morreram, Cravan e Vaché.
O primeiro internou-se no mar, uma noite de tempestade no golfo do México, o
outro, que escrevia da frente ‘chatear-me-ia morrer tão novo’, mata-se em
Nantes, logo a seguir ao fim da guerra. Mais tarde, será a vez de Jacques
Rigaut, Raymond Roussel (...)
“A sob(re)vida, enquanto ausência de verdadeira vida e realidade imediatamente
conhecida, encontra em Dadá o espelho que ‘torna a vergonha mais vergonhosa’
e no suicídio, a denúncia, pelo negativo, da sua lógica de morte”.24
Assim, depois dos desentendimentos, mal-estares e rompimentos, os jovens
surrealistas conseguem finalmente ‘libertarem-se’ de (das ‘nocivas’) influências anteriores
e constituírem-se em movimento ‘autônomo’, originado, oficialmente, em Paris em 1924,
com a publicação do Primeiro Manifesto Surrealista de André Breton. Curiosíssimamente,
22
23
Apud Silvana Garcia. Ibidem, pp.228-9.
No Manifesto de criação do movimento surrealista, Breton dedica grande destaque à “imagem
surrealista”, afirmando, de saída: que “a linguagem foi dada ao homem para ser usada de um modo
surrealista”. Dessa forma, a metáfora, em sendo natural na imaginação humana, só poderia ser
concretizada “dando” [cabe perguntar por quem?] ao inconsciente plena liberdade de ação. Assim
procedendo, as mais deslumbrantes imagens ocorreriam espontaneamente. Entusiasmado por tais teses,
Breton afirmava, ainda, que a imagem surrealista nasceria da justaposição fortuita de duas realidades
diferentes (e quanto mais diferente, melhor), sendo que da centelha gerada por esse encontro é que
dependeria a beleza da imagem. Parece que a justificativa para esse princípio foi fundamentado na frase de
Lautréamont (Isidore de Ducasse, em Cantigas de Maldoror, canto VI) segundo a qual: “Tão belo quanto o
encontro fortuito de uma máquina de costura e de um guarda-chuva sobre uma mesa anatômica”. Esse
aludido processo de justaposição de imagens, e como já apresentado no Módulo X, caracteriza-se no
chamado processo de montagem. Ainda com ralação ao niilismo surrealista, lembra-nos Benjamin. Op.cit.,
p.25: “Antes desses videntes e intérpretes de sinais, ninguém havia percebido de que modo a miséria, não
somente a social como a arquitetônica, a miséria dos interiores, as coisas escravizadas e escravizantes,
transformavam-se em niilismo revolucionário”.
24
J.-F. Dupuis. Op.cit., p.46.
o último parágrafo do referido Manifesto termina, da seguinte forma (e ao que tudo indica
fazendo uma crítica, próxima ao tratamento post scriptum, naturalmente aos antigos
aliados e agora novos inimigos):
“O surrealismo é o ‘raio invisível’ que um dia nos fará vencer os nossos
adversários. ‘Não tremes mais, carcaça’. Neste verão as rosas são azuis, a
madeira é de vidro. A terra envolta em seu verdor me faz tão pouco efeito quanto
um fantasma. Viver e deixar viver é que são soluções imaginárias. A existência
está em outro lugar”.
XIII. 2. – O ‘aqui chegamos’ do Surrealismo
“Padeço horrorosamente da vida. Não há estado que eu não possa atingir. E
muito seguramente estou morto há muito tempo, estou já suicidado. Suicidaramme, quer dizer. Mas o que pensariam vocês de um suicídio anterior, de um
suicídio que lhes obrigasse a arrepiar caminho, mas do outro lado da existência
e não do lado da morte?”
Antonin Artaud. La Révolution Surrealiste.
“Dadá cristaliza ao mesmo tempo a consciência da pulverização das ideologias e
a vontade da sua supressão em proveito da vida autêntica. Mas o niilismo
dadaísta assume-se como experiência da ruptura absoluta e, portanto abstrata.
Não só não se apoia nas condições históricas que presidiram ao seu
aparecimento como, dessacralizando a cultura, ridicularizando-a enquanto esfera
autônoma, jogando com os seus fragmentos, se isola também de uma tradição
de criadores que prosseguiam o mesmo objetivo de destruição da arte e da
filosofia (...)
O surrealismo reata com esta tradição, depois do falhanço (sic) de Dadá.
Retoma-a como se Dadá não tivesse existido, como se a dinamitagem da cultura
não já tivesse tido lugar. Dilata a esperança, conservada de Sade até Jarry, sem
notar que a superação se tornou possível. Coleta e vulgariza as grandes
esperanças sem descobrir que estão já presentes as suas condições de
realização. Com tal procedimento, renova o espetáculo que dissimula à última
classe, ao proletariado portador da liberdade total, a história a fazer. O seu
mérito terá sido o de uma escola para todos, popularizando os pensadores
revolucionários, à falta de realizar a revolução”.
Jules-François Dupuis. História desenvolta do surrealismo.
“Quando Dadá denunciava em toda a parte a poluição cultural e o
apodrecimento espetacular, o surrealismo chega com projetos de limpeza geral e
de regeneração”.
Dupuis. Ibidem.
Em 1924, através do lançamento do Manifesto Surrealista, André Breton, assume a
incumbência de
promover uma ‘revolução’ (artística, naturalmente) –
tendo como
‘mestres e modelos’ as mais antagônicas, desencontradas e ecléticas teorias, ideias,
especulações... formuladas pelos senhores: Sade, Lautréamont, Fourier, Marx, Nerval,
Novalis, Paracelso, Basile Valentin, Poe (assumido e depois expulso, por sua ‘ajuda’ à
investigação policial) –
maior que a anterior, pretendida pelos dadaístas, apresentando,
dentre outros, os seguintes (e megalomaníacos) intentos:
“abranger todo o espectro da atividade humana, com o objetivo de explorar e
unificar a psique humana, englobando áreas até então negligenciadas da vida,
como o sonho e o inconsciente” 25.
Dessa forma, nesse primeiro manifesto e como síntese do, digamos, ‘a que
viemos’, Breton pretendia, através daquilo que ele designava como sendo a
função
precípua do poeta:
“confundir interior com exterior, juntar particular e geral, encerrar a eternidade no
instante”
mais que isso, emendava o ‘articulista’ em cuja alma:
“a alma do poeta é o que é: um magma onde turbilhonam sensações,
sentimentos, desejos, aspirações que se exprimem no tumulto, na incoerência,
na gratuidade, por intermédio da palavra ou da escrita, molde imemoravelmente
lógico que deve ser desmembrado, quebrado, reduzido a seus elementos
simples: os vocábulos, os únicos suscetíveis de expressar fielmente o transe
poético em sua integridade”.26
Com uma perfeita estratégia de lançamento – e apropriando-se de experiências
anteriores, ao mesmo tempo em que o Manifesto estava sendo publicado –, foram
criados, também, a revista La Révolution Surréaliste (e que, em seu primeiro número,
alardeia na capa: “É preciso conseguir uma nova declaração dos direitos do homem.” e na
contracapa: “O surrealismo não se apresenta como a exposição de uma doutrina. Certas
ideias que atualmente lhe servem de ponto de apoio não permitem prejulgar o seu
desenvolvimento ulterior. Este primeiro número de La Révolution surréaliste não oferece
qualquer revelação definitiva. Os resultados obtidos pela escrita automática, pelo relato de
sonhos, por exemplo, são reapresentados, mas não se consigna qualquer resultado de
pesquisas, de experiências ou de trabalhos: é preciso aguardar tudo no futuro”.) e o
Centro de Pesquisas Surrealistas tendo como dois de seus primeiros editores Pierre
Naville (que no número três da revista teria declarado que: “Memória e o prazer dos olhos:
essa é toda a estética”)27 e Benjamin Péret. Nesse mesmo Centro, trabalhou um dos
25
Dawn Ades. Op.cit., p.91. Ainda nesse particular, Hauser. Op.cit., pp. 1124-25, afirma: “O novo
século é tão rico dos mais profundos antagonismos, a unidade do seu conceito de vida está tão
profundamente ameaçada, que a combinação dos extremos mais opostos, a unificação das maiores
contradições, tornam-se o tema principal, muitas vezes, o tema único da sua arte. O surrealismo, que, como
André Breton nota, começou por gravitar exclusivamente em torno do problema da linguagem, isto é, da
expressão poética. (...) arte que fez do paradoxo de tudo o que é forma e do que há de absurdo em toda a
existência humana a base do seu ponto de vista. (...) O surrealismo, que acrescenta ao método do
dadaísmo o ‘método automático de escrever’, já exprime, por esse meio, a crença de um novo
conhecimento, uma nova verdade e uma nova arte surgirão do caos, do inconsciente e do irracional, de
sonhos e das incontroladas regiões do espírito. (...) a partir de um mergulho no inconsciente, no pré-racional
e no caótico, e recorrem ao método psicanalítico de livre associacionismo, isto é, de desenvolvimento
automático de ideias e sua reprodução sem qualquer processo de crítica, racional, moral e estética”.
26
Maurice Nadeau. Op.cit., p.20.
27
Esse princípio ‘bate’ com aquele preconizado no Primeiro Manifesto, segundo o qual: “Escrevam
rápido sem assunto prefixado, bastante depressa par nada guardar na memória e para não serem tentados
a reler o que escrevem. (...) Prossigam tanto quanto lhes der prazer. Confiem no caráter inexaurível do
murmúrio”. Alguns anos mais tarde (mais precisamente em 1928), para colocar mais ‘linha’ ainda nessa
fogueira, Aragon. Traité du style. Apud Nadeau. Op.cit., p.57, afirma: “O surrealismo é a inspiração
reconhecida, aceita e praticada. Não mais como uma visita inexplicável, mas como uma faculdade que se
maiores nomes do teatro – e não só surrealista – Antonin Artaud28. A despeito do texto de
Artaud, conclamando todos os países da Europa a aderirem ao movimento, publicado na
Révolution, o Surrealismo. (Artaud fala/pensa em Europa, tendo em vista
que o
movimento tornou-se ou ‘ganhou’ importância internacional somente em 193629).
Com a criação do Centro, os integrantes do movimento criam algumas estratégias
de estudo, contemplando os seguintes aspectos: a importância e a necessidade dos
sonhos; a escrita automática; as teorias de Freud; os ‘acasos’, na condição de insights (ou
iluminações) necessárias e facilitadoras do ato de criação e, posteriormente, batizado de
l’hasard objetif e l’hasard subjetif; as experiências mediúnicas – êxtase ou espécie de
‘dialética da embriaguez’ –
(ou ‘trânsito’ com as forças místicas e ocultas) e cujos
conhecimentos eram dominados por iniciados (daí, entre outros, o nome de Paracelso
figurar como uma das fontes buscadas pelos surrealistas). Nesse aspecto, várias
experiências foram desenvolvidas, como a hipnose e a utilização das drogas; mas, afirma
exerce. Normalmente limitada pelo cansaço. (...) Assim, o fundo de um texto surrealista importa ao máximo
e é isto que lhe confere uma valiosa característica de revelação”. Com relação à revista, segundo Nadeau.
Idem, ibidem, pp.58-9: “difere bastante de uma revista literária comum. Sua apresentação é
propositadamente severa à semelhança de uma revista científica. Pierre Naville, co-editor juntamente com
Benjamin Péret, quisera intencionalmente esta semelhança com uma revista com La Nature, jornal científico
bem conhecido. Poucas coisas atraentes aos olhos: alguns desenhos, algumas fotografias; nenhum esmero
tipográfico, títulos de artigos propositadamente em preto e branco, assinaturas que nada destaca. Sutil
camuflagem! Não obstante o propósito de nada conceder ao prazer dos olhos, La Révolution surréaliste
tornar-se-á, assim mesmo, ‘a revista mais escandalosa do mundo’.”
28
A partir de sua contribuição e trabalho no Instituto, Artaud, escreve, na revista La révolution
surréaliste, n°3, de abril de 1925, o texto: Carta aos Reitores das Universidades Européias, em que
expressa seu desejo de liberdade e um incondicional otimismo no Surrealismo. “Mais longe do que a ciência
jamais irá chegar, lá onde as flechas da razão se quebram contra as nuvens, existe esse labirinto, num
ponto central onde convergem todas as forças do ser e todos os nervos essenciais do Espírito. Nesse
dédalo de paredes móveis e sempre mutantes, fora de todas as formas conhecidas de pensamento, o nosso
Espírito se agita, atento aos seus movimentos mais secretos e espontâneos – aqueles com o caráter de
revelação, um ar de ter vindo de alhures, de ter caído do céu... A Europa se cristaliza, mumifica-se
lentamente sob o envoltório de suas fronteiras, suas fábricas, seus tribunais de justiça, suas universidades.
A culpa está nos vossos sistemas bolorentos, na vossa lógica de dois mais dois igual a quatro; a culpa está
em vocês, reitores... O menor ato de criação espontânea é um mundo bem mais complexo e revelador do
que qualquer metafísica”.
29
A vitória do Surrealismo pôde, para orgulho de seus promotores ser percebida concretamente em
janeiro/fevereiro de 1938, através da Exposição Internacional do Surrealismo, em Paris, que contou com a
participação de quatorze países. Depois de decorrido muito tempo do lançamento e do predomínio da
chamada ‘imagem verbal’, a qual
Breton dizia ser sua melhor forma de concretizar os sonhos
inconscientes, na exposição de 1938 – que marca o apogeu do movimento – o que dominou foi a criação do
objeto. Segundo Ades, op.cit., p.97: Duchamp, que organizou toda a decoração, pendurou no teto duzentos
sacos de carvão; folhas mortas e grama cobriam o chão em redor de um tanque orlado de caniços e
samambaias, um braseiro de carvão ardia no centro e em cada um dos cantos do recinto havia uma enorme
cama de casal. Na entrada para a exposição estava colocado o Táxi Chuvoso de Dalí, um carro
abandonado em que a hera crescia por todo o lado, tendo em seu interior os bonecos do motorista e de
uma passageira histérica, que eram regados com água, e havia caracóis vivos rastejando por eles. O
acesso ao pavilhão principal fazia-se por uma ‘rua surrealista’, com manequins femininos alinhados de
ambos os lados e ‘vestidos’, por Arp, Dalí. Duchamp, Ernst, Masson, Man Ray e outros. No interior do
pavilhão estavam reunidos, além dos numerosos quadros, objetos surrealistas tais como a xícara com pires
para o café da manhã, forrados e revestidos com peles, e Jamais, de Dominguez, um imenso gramofone
com um par de pernas sobressaindo do pavilhão acústico e uma mão de mulher substituindo o braço do
pick-up.
Benjamin (Op.cit., p.23.):
“essas experiências não se limitam de modo algum ao sonho, ao haxixe e ao
ópio. É um grande erro supor que só podemos conhecer das ‘experiências
surrealistas’ os êxtases religiosos ou os êxtases provocados pela droga”.
A partir desse conjunto de ações, juntam-se ao grupo: André Masson, Mathias
Lubeck, Georges Malkine, Pierre Naville30, Raymond Queneau, Antonin Artaud, Jacques
Prévert, Marcel Duhamel e Pierre Brasseur; lembrando que do grupo já faziam parte: Paul
Éluard, Benjamin Péret, Roger Vitrac, Joseph Delteil, Limbour, Jean Carrive, Baron,
Georges Limbour, Robert Desnos, Marcel Noll, Francis Gerard, Marcel Duchamp, Max
Ernst, Crevel, Max Morise, Georges Auric, Jean Paulhan, e Man Ray.
De modo esquemático, tanto no primeiro manifesto quanto na revista Révolution,
Breton e seus companheiros incitariam os artistas e intelectuais a reduzirem ao máximo a
pressão exercida pela preocupação estética e moral, deixando aflorar ao máximo o
impulso de suas vidas interiores, fundamentalmente por meio da imaginação. Desse
modo, em uma passagem do primeiro manifesto, assim afirmava Breton:
“Reduzir a imaginação à escravidão, ainda que se fizesse pouco caso do que se
chama grotescamente de felicidade, é esquivar-se a tudo o que se pode
encontrar, no fundo de si mesmo, de justiça suprema. Só a imaginação me faz
perceber aquilo que pode ser e é o suficiente para levantar um pouco a terrível
interdição; bastante também para que eu me abandone a ela sem receio de me
enganar”.
Acresça-se a isso, ainda, o fato de estar sendo defendido um princípio segundo o
qual seria extremamente insuficiente que as formas mais tradicionais de arte pudessem
ser suficientes para exprimir a angústia do homem moderno. Dessa forma, os impulsos
inconscientes, que os surrealistas pretendiam captar, não encontrariam tradução numa
articulação lógica e consciente. Segundo a ótica de Breton, dentre outras coisas, e no
sentido de oposição à moral burguesa e sua crença nos valores judaico cristãos, aparece
no primeiro manifesto:
“O surrealismo proclama a onipotência do desejo e a legitimidade de sua
realização, tendo o Marquês de Sade como a figura central de seus propósitos”.
O objetivo da arte surrealista centrar-se-ia na estimulação das capacidades
verdadeiramente imaginativas que se esconderiam no subconsciente e, como decorrência
disso, na exposição/expressão do pensamento sem mediação da lógica cartesiana e
30
Naville, em seu texto La révolution et les intellectuels, escreveu que o movimento surrealista
poderia ser considerado como dialético, fundamentalmente pela evolução das atitudes contemplativas às
revolucionárias, posto que: “a hostilidade da burguesia contra toda manifestação de liberdade espiritual
desempenha um papel decisivo. Foi essa hostilidade que empurrou para a esquerda o surrealismo”. Apud
Benjamin. Op.cit., p.28.
tradicional (ou qualquer outro tipo de lógica), segundo a qual toda causa produziria um
efeito, semelhante ao par ação/reação. Nessa perspectiva, era preciso que o artista
libertasse seus instintos e impulsos sem nenhuma espécie de preocupação moral ou
estética, tendo como eixo principal o deixar-se levar pela busca de materialização do
sonho: de forma natural ou induzida31, da fantasia utópica e metafísica e com grande
ênfase aos pesadelos32. Atitudes dessa natureza justificavam-se fundamentalmente pelo
Estado burguês encontrar-se totalmente falido (guerra como índice incontestável disso).
Nessa perspectiva, portanto, arte, ciência, filosofia e literatura produzidas por artistas e
intelectuais ligados ao sistema eram totalmente execráveis pelos militantes ligados ao
movimento.33 O conceito de niilismo dos dadaístas correspondia naquele momento, para
os surrealistas ao de derrotismo (pela guerra passada e a eminência de outra em curso),
expressando uma total descrença com relação à própria civilização, motivo pelo qual a
arte deveria constituir-se em um canal de expressão que apresentasse sua possibilidade
de redenção em um perspectiva onírica (e jamais admitida como escapista). No caminho,
portanto, de “criação de um misticismo de um novo gênero”, através de Breton este
objetivo transforma-se um pouco depois em “criação de um mito coletivo”. Nesse sentido
(dissolvência do Estado burguês e reiteração de um ‘a que viemos’ importante dos
surrealistas ), há um opúsculo surrealista, cujo trecho é transcrito de Maurice Nadeau.
Op.cit., pp. 55-6:
“Os surrealistas são os primeiros a declarar que não têm talento, que o talento
não existe. Afinal, o que é talento? A possibilidade dada ou adquirida de arranjar
sutil ou vigorosamente pequenas histórias, de descobrir maneiras engenhosas
31
De 1922 a 1924, tentando buscar uma nova ‘identidade’ e a constituição de um grupo autônomo,
os futuros representantes do movimento, como Breton, Aragon, Eluard, René Crevel e outros, viveram um
período denominado por eles de période des sommeils (algo semelhante a período de sono ou período dos
sonâmbulos, como correspondente a diferentes formas de hipnotismo e uso de drogas), em que era
explorado as possibilidades do automatismo e dos sonhos. Cita, a esse respeito, Dawn Ades. Op.cit., p.90:
“Num artigo intitulado ‘Entrée des médiuns’, em 1922, Breton descreve a excitação que eles sentiram
quando descobriram que, durante um transe hipnótico alguns deles, especialmente, Desnos, podiam
produzir surpreendentes monólogos, escritos ou falados, repletos de imagens vividas de que seriam
incapazes, afirmou ele, num estado consciente. Mas uma série de incidentes perturbadores, como a
tentativa de suicídio em massa de todo um grupo deles durante um transe hipnótico, levou ao abandono
desses experimentos e, no primeiro Manifesto Surrealista, Breton evita qualquer discussão de auxiliares
‘mecânicos’, como drogas ou o hipnotismo, enfatizando o surrealismo como atividade natural, não induzida”.
32
Aragon. Une vague de rêves. Apud Nadeau. Op.cit., p.50, nesse sentido afirmou: “Uma epidemia
de sonos se abateu sobre os surrealistas... São sete ou oito que vivem tão-somente para esses instantes de
esquecimento, onde com as luzes apagadas, falam sem consciência, como afogados ao ar livre”.
33
“Um regime incapaz de disciplinar suas energia para outra coisa que não o enfraquecimento e a
destruição do homem foi à falência. Falência igualmente das elites que em todos os países aplaudem o
massacre generalizado, engenhando-se para encontrar medidas capazes de fazê-lo perdurar. Falência da
ciência, cujas mais belas descobertas residem na qualidade nova de um explosivo, ou no aperfeiçoamento
de alguma máquina de matar. Falência das filosofias, que não vêem no homem nada mais que seu
uniforme, e que se engenham em dar-lhe justificativas a fim de que não se envergonhe da função que o
mandaram desempenhar. Falência da arte, que para nada mais serve que propor a melhor camuflagem,
falência da literatura, simples apêndice ao comunicado militar. Falência de uma civilização que se volta
contra si mesma e se devora”. Maurice Nadeau. Op.cit., p.15.
de descrever o que existe, de inventar do melhor modo possível vocábulos raros.
Longe de nós o escritor, longe de nós o poeta, longe de nós o próprio homem! ‘O
eu aqui é mais detestável do que alhures’: Com sua massa compacta ele tapa a
caverna de onde procedem todas as vozes, essas vozes que transtornam.
Encontram-se em toda a parte em torno de nós; nem mesmo é preciso ter ouvido
afinado para ouvi-las, basta escutá-las, basta ser dócil. E que ridícula pretensão
de se prevalecer disso! O poeta à escuta de seu inconsciente terá contribuído
com algo para a riqueza desse? Todos são poetas desde que se disponham a
se colocar às ordens, e se o surrealismo não significa outra coisa senão este
‘colocar-se às ordens’, todos podem praticar esta ‘arte mágica’; a receita é de
uma simplicidade derrisória: ‘o surrealismo está ao alcance de todos os
inconscientes’.”
Voltando novamente às oposições entre os dois movimentos, pode-se dizer que,
apesar de haver diferenças(?) eles; ou, melhor dizendo – e talvez fosse mais interessante
estabelecer uma analogia – o Surrealismo foi um filho que negou o pai Dadaísmo (e
Freud explicou isso, não é mesmo?), tanto é que (e aqui se apresenta mais um exemplo à
luz de tantos outros) Breton, ‘o primogênito’, eivado por um sentimento niilista e anárquico
(característico daqueles mais tradicionais dos dadaístas: ou do pai, segundo a analogia)
escreve no Segundo Manifesto Surrealista:
“O mais simples ato surrealista consiste em ir para a rua, empunhando
revólveres, e atirar ao acaso, até não poder mais, na multidão. Quem não teve,
ao menos uma vez, vontade de assim acabar com o sisteminha de aviltamento e
cretinização em vigor, tem seu lugar marcado nessa multidão, barriga à altura do
cano da arma. A legitimação de um tal ato, não é de modo nenhum incompatível
com a crença nesse clarão que o surrealismo busca revelar no fundo de nós. (...)
Claro está também que o surrealismo não tem interesse em valorizar tudo que
se produz a seu lado a pretexto de arte, até de antiarte, de filosofia ou de
antifilosofia, em cada palavra, de tudo que não visa o aniquilamento do ser em
um brilhante, interior e cego, que não seja nem a alma do gelo nem a do fogo”.
XIII. 3. – Brevíssimo parênteses para as artes plásticas
“As telas de Dalí são perturbadoras, mas não tão verdadeiramente
transgressoras quanto às de Magritte. As telas de Magritte são controvertidas;
questionam os nossos pressupostos acerca do mundo, acerca das relações
entre um objeto pintado e um objeto real, e estabelecem analogias imprevistas
ou justaposições de
coisas completamente desconexas num estilo
deliberadamente inexpressivo, o que tem o efeito de um lento estopim. Não têm
um significado no sentido de que um argumento é resolúvel”.
Dawn Ades. Surrealismo.
Como o Surrealismo foi um movimento fundamentalmente literário,34 caberia ao
34
Aliás muitas são as teses segundo as quais as artes plásticas teriam sido meras ‘auxiliares’ do
surrealismo, uma vez que as preocupações surrealistas, centradas nos problemas com a poesia (literatura)
e a filosofia, parece ter preterido as artes pictóricas. Outros autores afirmam que, a despeito de raras
indicações nos manifestos sobre as artes plásticas, os artistas plásticos teriam mantido uma posição de
independência em relação à personalidade dominante de Breton. De qualquer forma, afirma Dawn Ades.
Op. cit., p. 93: “Max Ernst talvez fosse o mais chegado aos poetas surrealistas, sobretudo a Paul Éluard, e
acompanhou com interesse os desdobramentos teóricos do surrealismo. Em 1925, descobriu o frottage, que
descreve como ‘o verdadeiro equivalente do que já é conhecido pelo termo escrita automática’. ‘Fui
poeta, segundo a ótica de Breton, criar uma ‘poética anímica inconsciente’ (ideia essa
amparada, desde a formação inicial do grupo, nas observações de Lautréamont: “a poesia
deve ser feita por todos” e, também, na de Rimbaud, segundo a qual era preciso: “mudar
a vida”35)
que ultrapassasse e negasse a poesia: infensa e sem nenhuma preocupação
característica pelo qual haviam sido rotulados os conceitos burgueses de ‘arte’ e de
‘beleza’, tidos como ordinários; dessa forma, e em seu lugar:
“A ALMA do poeta é o que é: um magma onde turbilhonam sensações,
sentimentos, desejos, aspirações que se exprimem no tumulto, na incoerência,
na gratuidade, por intermédio da palavra ou da escrita, molde imemoravelmente
lógico que deve ser desmembrado, quebrado, reduzido a seus elementos
simples: os vocábulos, os únicos susceptíveis de expressar fielmente o transe
poético em sua integridade”.36
A respeito dessa verdadeira profissão de fé na “alma em estado de inconsciência”,
Gaston Regeot, Revue Blue, de 04/07/1925. Apud Henry Behar. Op.cit., p.15, apresenta
uma espécie de balanço sobre o surrealismo, afirmando que:
“Vê-se que o surrealismo não é outra coisa que uma adaptação ao atual gosto
de mistério, do inexprimível [inexpressável], do inefável que encantava os
simbolistas e que foi levado da poesia ao teatro por um Maurice Maeterlinck.
Essa atualização do velho tema deve-se aos neurólogos e bastou para substituir
a velha e simples análise psicológica pela psicanálise do conhecido doutor
Freud”.
Conceitos como alma,
libertação de amarras burguesas, utopia, niilismo,
transgressão, transe, choque e quejandos, tomando como mote principal o de
automatismo tem sua origem, segundo Breton:
“Como estudante de medicina, trabalhara na Clínica Charcot sob a orientação do
neurologista Babinski e passara algum tempo no hospital de Nantes (onde
assaltado pela obsessão que mostrava ao meu olhar excitado as tábuas do assoalho, nas quais mil
arranhões tinham aprofundado as estrias. Decidi então investigar o simbolismo dessa obsessão e, para
ajudar minhas faculdades meditativas e alucinatórias, fiz das tábuas uma série de desenhos, colocando
sobre elas ao acaso folhas de papel que passei a friccionar com grafite. Olhando atentamente para os
desenhos assim obtidos... surpreendeu-me a súbita intensificação de minhas capacidades de visão e a
sucessão alucinatória de imagens contraditórias umas às outras”.
35
Nesse sentido, e com as ‘descobertas’ das teses de Marx, em 1925, a frase de Rimbaud foi
substituído pela ‘correlata’ do marxismo, segundo a qual era preciso: “transformar o mundo”. A adesão, em
substituição à nova ideia contida no pressuposto marxista, vale dizer, acabou sendo usada como bandeira
por poucos dos ‘ativistas’ do movimento que, por conta das ingerências políticas, acabaram se desligando
do Surrealismo. Em 1930, com a publicação do Segundo Manifesto Surrealista, e até por conta da
ratificação de alguns dos preceitos marxistas, novas adesões ao grupo se fizeram, destacando-se as de:
Louis Buñuel, Salvador Dali e do ‘antigo’ dadaísta Tristan Tzara. Em 1941, Breton vai para os Estados
Unidos, retornando a Paris em 1946. Nesse mesmo ano, Breton tratou de reeditar os seus manifestos,
acrescentando-lhes um prolegômeno, chamado: ‘Prolégomenes à un troisième manifeste du surréalisme ou
non’, no qual ratifica seu protesto contra a exploração do homem pelo homem e, também, pelas religiões.
Desse modo, Breton acaba pregando um novo mito social, falando de seres superiores (provavelmente, e
também, inspirado em alguns dos conceitos de Nietzsche) que se revelariam ou não, segundo algumas de
nossas atitudes e condutas. O texto em epígrafe, terminava com a seguinte questão: “Um novo mito? É
preciso convencer esses seres de que são o resultado de um espelhismo ou dar-lhes ocasião de
manifestar-se?” Enfim, apesar dos esforços de Breton de retomar o Surrealismo, campeava por entre as
consciências do período um forte ceticismo e niilismo, trazidos (naturalmente de modos opostos) sobretudo,
pelo pensamento de Sartre e de Heidegger.
36
Maurice Nadeau. Op.cit., p.20
conhecera Vaché). Escrevendo no Manifesto sobre os anos que antecederam a
guerra, diz Breton: ‘Completamente ocupado com Freud, como eu ainda estava
nessa época, e familiarizado com os seus métodos de observação, que eu tivera
ocasião de aplicar em pacientes durante a guerra, decidi obter de mim mesmo o
que tentamos obter deles, um monólogo pronunciado o mais rapidamente
possível, sobre o qual a mente crítica do indivíduo não deve produzir qualquer
julgamento, e que, portanto, não seja embaraçado por nenhuma reticência e seja
tão exatamente quanto possível, PENSAMENTO FALADO. Em colaboração
com Philippe Soupault, produziu páginas e páginas escritas desse modo e que,
quando as leram e compararam, os deixaram espantados com ‘a considerável
seleção de imagens’ assim geradas, ‘de uma qualidade tal que não teríamos
sido capazes de produzir usando a escrita comum’. As imagens, a vivacidade e
a emoção nos seus escritos eram muito semelhantes – as diferenças nos textos
provinham das diferenças em seus respectivos temperamentos, ‘sendo os de
Soupault menos estáticos do que os meus’. Os surrealistas sempre sublinharam
que o automatismo revelaria a verdadeira natureza individual de quem quer que
o praticasse, de um modo muitíssimo mais completo do que em qualquer de
suas criações conscientes. Pois o automatismo era o meio mais perfeito para
alcançar e desvendar o inconsciente. Os textos que Breton e Soupault tinham
escrito foram publicados em Littérature, em 1919, sob o título de Les Champs
Magnétiques, os quais, cinco anos antes do Manifesto, podiam ser qualificados
como a primeira obra surrealista”.37
O chamado automatismo (que guardaria, enquanto ato, a ‘transposição do
impossível e do proibido; uma tradução automática do mecanismo ‘desinteressado’ do
pensamento; liberação do inconsciente...) criado e preconizado por Breton representou
uma das determinações mais características e específicas do Surrealismo; ao mesmo
tempo, foi alvo de todo tipo de confusão e de incompreensão.38 Nessa perspectiva, e de
modo bastante lúcido, Modesto Carone Neto. Op.cit., tomando Theodor Adorno, como
uma de suas referências (e para quem ‘a justaposição descontínua de imagens teria o
caráter de montagem’), afirma que o automatismo (escrita automática) aproxima-se – e
não paradoxalmente – enquanto característica formal, ao conceito de montagem. Nas
37
Dawn Ades. Op.cit., p.91. Diferentemente da informação apresentada por Ades, no concernente à
data de publicação de Champs magnétiques, em outras fontes de consulta aparece a data de 1921. Em
outras fontes, ainda – e cuja informação parece mais correta – o texto em epígrafe teria sido criado em
1919, retrabalhado e publicado em 1921.
38
Em O surrealismo e a pintura, Breton, buscando defender suas teses, Apud Ades, p.94, afirma:
“Nos termos da moderna pesquisa psicológica, sabemos que fomos levados a comparar a construção do
ninho de um pássaro ao começo de uma melodia que tende para uma certa conclusão característica. Uma
melodia impõe sua própria estrutura na medida em que distinguimos os sons que lhe pertencem daqueles
que lhe são estranhos. Insisto em que o automatismo, tanto gráfico quanto verbal – sem prejuízo das
profundas tensões individuais que ele é capaz de manifestar e, em certa medida, resolver –, é o único
modo de expressão que satisfaz plenamente o olho ou o ouvido, ao realizar a unidade rítmica (tão
reconhecível no desenho ou texto automático quanto na melodia ou no ninho)... E concordo que o
automatismo pode participar na composição com certas intenções premeditadas; mas há um grande risco
de afastamento do surrealismo, se o automatismo fluir às ocultas. Uma obra não pode ser considerada
surrealista se o artista não se esforçar por abranger o campo psicológico total, do qual a consciência é
apenas uma pequena parte. Freud mostrou que nessa profundidade ‘insondável’ prevalece a total ausência
de contradição, uma nova mobilidade dos bloqueios emocionais causados pela repressão, uma
intemporalidade e uma substituição da realidade externa pela realidade psíquica, tudo sujeito
exclusivamente ao princípio do prazer. O automatismo conduz diretamente a esta região”.
artes plásticas, por exemplo, Max Ernst descobriu, numa espécie de insight, o frottage,
segundo o qual o artista pôde descobrir como um espectador e segundo suas próprias
declarações: ‘o nascimento de uma obra’. A partir dessa descoberta de Ernst, vários foram
os métodos buscados e criados no sentido de solicitar o inconsciente e, dentre eles,
Oscar Dominguez criou a ‘decalcomania’: que consiste, por processo de pressão, em
tentar captar os registros de tinta não seca em um outro papel.
“Para Miró e Mason, automatismo iria oferecer, de formas diferentes, uma
direção completamente nova para seus trabalhos. (...) Mason adotou sem
reservas o princípio do automatismo, e os desenhos à pena e à tinta que
começou no inverno de 1923-1924, logo depois do seu encontro com Breton,
estão entre os mais notáveis produtos do surrealismo. A pena move-se
rapidamente, sem ideia consciente de um tema, traçando uma teia de linhas
nervosas, mas firmes, das quais emergem imagens que são, por vezes,
aproveitadas e elaboradas, outras vezes deixadas como sugestões. Os mais
bem-sucedidos desses desenhos possuem uma integridade que provém da
elaboração inconsciente de referências textuais e sensuais, tanto quanto
visuais”.39
Miró, que foi considerado por Breton, o maior de todos os surrealistas, explorou
com ‘amplas e ilimitadas liberdades’ seus sonhos e fantasias da vida adulta e
principalmente da infância, ao mesmo tempo em que desenvolveu um amplo processo de
pesquisa (da arte infantil, da arte popular catalã e das obras de Hieronymus Bosch) e de
experimentação. No início dos anos vinte, Miró opunha-se radicalmente à arte cubista,
que para ele representava a ‘arte estabelecida’. Assim, em oposição à ‘arte estabelecida’,
toda ela racional e calculada, o ato de criação, para o pintor (à semelhança do ocorrido
com os poetas em relação às palavras), dividia-se em duas fases distintas, sendo a
primeira absolutamente livre e inconsciente: algo como a tinta e o pincel levarem a mão
(quase em transe hipnótico); e, a segunda, rigorosamente calculada. Acatando, portanto,
a palavra de ordem ‘do chefe’ do movimento, Miró aprofunda-se no automatismo e realiza
uma série de experimentações, como: aguada aleatória; improvisação com linhas, formas
e cores; criação de formas biomórficas e linguagem de sinais. As produções resultantes
dessas experimentações ilusionísticas, como boa parte da produção surrealista, ficaram
conhecidas pelo nome de ‘pinturas oníricas’; sem, entretanto, guardar referência direta
aos sonhos.40
“A distinção entre o automatismo e os sonhos, postulada, por exemplo, em La
Révolution Surréaliste, onde seções separadas são dedicadas a textos
39
Dawn Ades. Op.cit., 94.
Segundo Dawn Ades. Op.cit., p. 96: “As telas de Salvador Dalí (...) constituem uma dramatização
deliberada de seu próprio estado psíquico, tão substancialmente influenciadas pelas foram leituras de
psicologia do autor que parecem, por vezes, ilustrações para um caso clínico estudado por Freud ou KrafftEbing”.
40
automáticos e à narração de sonhos, não se aplica rigidamente, em absoluto, à
pintura surrealista. Arp, Miró, Ernst, por exemplo, misturam habilmente ambas as
coisas, não só em sua obra como um todo, mas dentro do mesmo quadro. As
pinturas, relevos e esculturas de Arp têm afinidades com o automatismo e os
sonhos: ele refere-se às suas ‘obras plásticas sonhadas’. Sua morfologia flexível
presta-se naturalmente a trocadilhos visuais, como a mão que também é um
garfo, os botões que também são seios, que proliferam em suas obras dos anos
20, quando esteve em estreito contato com os surrealistas”.41
Do grupo de pintores surrealistas, Dalí42 afirmava que suas obras, criadas a partir
de um hipertrofiado realismo onírico, caracterizavam-se em representantes de antiarte
(mas como conceito diferente daquele desenvolvido pelos dadaístas), considerando-as,
ainda, livres de “considerações plásticas e outras ‘besteiras’.” Segundo Ades. Op.cit.,
p.96:
“Dalí juntou-se aos surrealistas em 1929, época em que o movimento estava
sacudido por conflitos pessoais e políticos. Nos anos seguintes, Dalí emprestoulhe um novo foco, não só na pintura, mas também através de outras atividades,
como o filme Um cão andaluz (1920), que ele fez com Buñuel. Em 1936, o modo
cínico como ele se promovia e a sua total indiferença política numa época em
que o s surrealistas se mobilizavam para a ação positiva provaram ser
excessivamente prejudiciais, e ele foi expulso do movimento.43
“Dalí disse que a única diferença existente entre ele próprio e um louco é que ele
não era louco. A paranoia, que ele afirmava ser responsável por suas imagens
duplas, pouco ou nada tinha a ver com a paranoia médica. A atividade crítico
paranoica era uma adaptação do método de frottage de Ernst, que tinha feito
entrar em jogo a capacidade visionária do artista. Envolvia a capacidade de
perceber duas ou mais imagens numa só configuração. (...) O método baseou-se
no ‘súbito poder de associações sistemáticas, próprio da paranoia’, e era ‘um
método espontâneo de conhecimento irracional’. Disse Dalí: ‘Acredito estar
próximo o momento em que, por um procedimento de pensamento paranoico
ativo, será possível sistematizar a confusão para o total descrédito do mundo da
realidade”.
A Segunda Guerra Mundial – e de certa forma a ocupação de Paris, em 1940 –
acaba por dispersar os surrealistas e tornar impossível a continuidade do movimento.
Dessa forma, muitos dos artistas acabam por levar vários dos artistas ligados ao
movimento para outros países. Breton, por exemplo, vai para a chamada ‘nova Capital do
mundo’: Nova York, dando prosseguimento às suas atividades surrealistas. Com a ida de
41
Idem, ibidem, p.95.
Segundo J.-F. Dupuis, Dalí fez parte daquilo que de mais reacionário existiu dentro do movimento
surrealista. Assim, enquanto boa parte de seus companheiros, a partir de idas e vindas, participavam de
discussões consequentes – orientadas e ‘desorientadas’ por tendências ou partidos políticos – Dalí teria
aderido ao fascismo, ao catolicismo e ao franquismo.
43
O filme Um cão andaluz aparece em várias fontes como realizado em 1928. A respeito da obra do
cineasta Luis Buñuel (1900-38), sem dúvida um dos mais polêmicos e maiores cineastas do cinema mundial
(e sempre fiel às características do surrealismo), podem ser citados os seguintes filmes: L’age d’or, de
1930, realizado também em colaboração com Salvador Dali; Os esquecidos 1950; Subida ao céu 1951; A
vida criminal de Archibaldo de la Cruz 1955; A morte no jardim 1956; Nazarin 1958; Viridiana 1961; O anjo
exterminador 1962; O diário de uma camareira 1964; A bela da tarde 1966; O estranho caminho de São
Tiago 1969; Tristana 1970; O discreto charme da burguesia 1972; O fantasma da liberdade 1974; Esse
obscuro objeto do desejo 1977.
42
Breton e outros (Ernst, Masson) aos Estados Unidos... muitos dos movimentos norteamericanos surgidos no pós-guerra foram, sem dúvida, ajudados pela influência deles,
como a art-pop, o expressionismo abstrato e outros.
Para finalizar, à luz do exposto de acordo com classificações formuladas por
historiadores das artes plásticas, o movimento surrealista, nas artes plásticas, poderia ser
dividido em: surrealismo gestual – Miró, Max Ernst etc; surrealismo figurativo – Dali etc e
Action painting – Hans Arp etc.
XIII. 4. – Manifestos e fases do Surrealismo
“Eu, Sérgio Buarque de Holanda, acho discutível que em todas as coisas exista
um limite, um termo, além do qual perdem sua instabilidade, que é uma condição
de vida, para se instalarem confortavelmente no que só por eufemismo
chamamos de expressão e que na realidade é menos que seu reflexo. (...) Nada
nos constrange a que nos fiemos por completo na suave e engenhosa caligrafia
que os homens inventaram para substituir o desenho rígido e anguloso das
coisas. Hoje mais do que nunca toda arte poética há de ser principalmente – por
quase nada eu diria apenas – uma declaração dos direitos do Sonho. Depois de
tantos séculos em que os homens mais honestos se compraziam em
escamotear o melhor da realidade em nome da realidade temos de procurar o
paraíso nas regiões ainda inexploradas. Resta-nos portanto o recurso de dizer
das nossas expedições armadas por esses domínios. Só à noite enxergamos
claro. (...) Mas de que nos vale ter confiança no milagre se não ousamos
transpor aquele impossível e aquele proibido, colocados ali por prudência ou por
covardia?”
Sérgio Buarque de Holanda. Terra roxa e outras terras.
Apud Maria Célia de M. Leonel. Revista Estética e Modernismo.
“Partindo de Hegel tal como Marx e Engels, ainda que por outras vias, o
surrealismo desemboca no materialismo dialético”.
René Crevel. Surrealisme au Service de la Révolution 3.
Em várias fontes bibliográficas, e de modo esquemático reducionista (claro!),
encontra-se a informação segundo a qual o Surrealismo pode ser dividido em quatro
fases, assim organizadas:
1ª
(a partir de 1922 até 1924, quando da publicação do primeiro manifesto do
Surrealismo) - designada de revolução artística: iniciada a partir da separação e racha
com o movimento Dadá, mas , ainda, com muitas das características do movimento
anterior: ou seja, radicalização das ideias dadaístas;
Obs. – Maurice Nadeau. Op.cit. chama esta primeira fase de pós-dadaísmo ou de
“excitadores do Surrealismo”.
2ª (de 1924 até 1927) - de aproximação psicanalítica: em que são experimentadas drogas
e desenvolvidas artisticamente algumas das teorias da psicanálise, enfatizando o
inconsciente, os sonhos (a partir do desenvolvimento das chamadas imagens pré-
lógicas), hipnose e o automatismo;
Obs. – para alguns teóricos estas duas fases formam uma única. Nadeau chama esta
fase de “O período heroico do Surrealismo (1923-25)”.
3ª (se 1927 até 1929) - de aproximação política: aquela em que são buscadas as filiações
políticas, resumida no princípio segundo o qual o surrealismo estaria a serviço da
revolução e vice-versa. Esta fase foi absolutamente polêmica, tanto para os artistas
ligados ao Surrealismo (que mergulhados em questões místicas de diferentes matizes,
tinham dificuldade para entender a filiação/ligação ao Partido Comunista Francês e a
adesão ao materialismo histórico) quanto para os militantes do partido que viam com todo
tipo de desconfiança os artistas do movimento. No Segundo Manifesto do Surrealismo,
dentre outras coisas, Breton afirma:
“Desde Hegel, não há sistema ideológico que possa, sem imediato
desmoronamento, abandonar o vazio no próprio pensamento, decorrente do
princípio de uma vontade operando só por sua conta, e tendendo a se refletir
sobre si mesma. Quando eu relembro que a lealdade, no sentido hegeliano da
palavra, não pode ser função senão da penetrabilidade da vida subjetiva pela
vida ‘substancial’, e que sejam quais forem em outros aspectos suas
divergências, esta ideia não encontrou objeção fundamental de parte de espíritos
tão diversos como Feuerbach, acabando por negar a consciência como
faculdade particular, como Marx, inteiramente absorvido pela necessidade de
modificar de alto a baixo as condições exteriores da vida social, como Hartmann,
tirando de uma teoria do inconsciente de base ultrapessimista uma afirmação
nova e otimista de nossa vontade de viver, como Freud, insistindo cada vez mais
na instância própria do superego, penso que ninguém irá ficar admirado por ver
o surrealismo, em seu avanço, aplicar-se a outra coisa que não a resolução de
um problema psicológico, por interessante que seja. É em nome do imperativo
reconhecimento desta necessidade que acredito que não podemos evitar
questionar-nos de maneira mais candente sobre o regime social sob o qual
vivemos”.
Obs. – Esta fase caracterizaria-se por uma grande radicalização e foi conhecida como um
período, fundamentalmente, de expurgos. Em 1927, por exemplo, Roger Vitrac e Antonin
Artaud (que haviam fundado o Teatro Alfred Jarry) acabaram sendo expulsos do
movimento, sob a alegação de comercialização de suas obras. Inúmeras foram as
querelas e polêmicas acerca dessa expulsão e a de vários outros integrantes do
movimento. Breton polemizou com Soupault, Vitrac e Artaud tanto ‘ao vivo’, por meio de
bate-bocas quanto por textos escritos. Algumas das afirmações de Breton acerca de seus
contendores, apresentadas no Segundo Manifesto, passam por coisas da seguinte
natureza:
“o sr. Soupault e com ele, a infâmia total: nem falemos do que ele assina,
falemos do que não assina, das pequenas notícias deste gênero que ele ‘passa’,
negando sempre sua autoria, com sua agitação de rato percorrendo o
ratódromo, nos jornais de chantagem”; “De minha parte, confesso sentir um certo
prazer quando o sr. Artaud procura me fazer passar por um homem desonesto e
quando o sr. Soupault tem o descaramento de me chamar de ladrão. É, enfim, o
sr. Vitrac, verdadeiro porcalhão das ideias (...) pobre coitado que em cuja
ingenuidade a toda prova chegou a confessar que seu ideal como homem de
teatro, ideal que também é naturalmente o do sr. Artaud, é organizar espetáculos
que possam rivalizar em beleza com as ‘batidas’ policiais (declaração do Teatro
Alfred Jarry)”; “penso que não estou autorizado a deixar em sua vida de vadios
os poltrões, simuladores, arrivistas, falsários, delatores.”; “é mais que tolerável
que eu incrimine, de passagem, os trânsfugas do surrealismo, para quem é
muito difícil ou elevado demais o que sustento aqui”; “É o sr. Artaud, como foi
visto e como se poderia tê-lo visto, esbofeteado num corredor de hotel por Pierre
Unik, pedir socorro a sua mãe!”; “Que um ator com fito de lucro e de glória
empreenda montar luxuosamente uma peça do vago Strindberg, à qual ele
mesmo não dá nenhuma importância, claro, eu não veria nisso nenhum
inconveniente particular se este ator não tivesse passado, de tempos em
tempos, por homem de pensamento, de cólera e de sangue, se não fosse o
mesmo que em tais e tais páginas da Revolução Surrealista desejava
ardentemente, a acreditar-se nele, ‘queimar’ tudo, pretendia nada esperar senão
desse ‘grito do espírito que retorna a si, bem decidido a triturar
desesperadamente seus grilhões’. Que pena! Para ele era só um papel como
outro; ele ‘montava’ O sonho de Strindberg, tendo ouvido dizer que a embaixada
da Suécia pagaria (o sr. Artaud sabe que tenho a prova), e não lhe escapava que
isto julgava o valor moral de seu empreendimento (...) O sr. Artaud, que sempre
reverei como um ‘tira’ de cada lado na porta do Teatro Alfred Jarry, instigando
outros vinte contra os únicos amigos com que ele contava na véspera, tendo
negociado previamente na delegacia sua prisão, é naturalmente o sr. Artaud que
me considera mal vindo para falar de honra.”
Nesse particular, afirmam alguns historiadores que Artaud, apesar de ligado ao
movimento desde, basicamente seu início, foi, sobretudo,
criador de uma proposta
fundamentada em uma vivência absolutamente pessoal e coerente aos paradigmas com
os quais se identificou. Nadeau chama esta fase de “período raciocinante do
Surrealismo”.
Para Artaud, desde 1924: “A esperança de uma sociedade sem classes e do
reino da liberdade, tão apaixonadamente alimentada pelo surrealismo,
desapareceu já. Quando a revelação do estalinismo obscurecer o seu efeito no
coração de Breton e seus amigos, o surrealismo apropriar-se-á intelectualmente
da conclusão de Artaud, o desígnio de viver como tragédia cósmica do espírito o
drama da alienação cotidiana”. 44
Segundo algumas fontes bibliográficas, Artaud (por mais metafísico que se
pretendesse – e gostaria de lembrar, que a despeito disso tudo – jamais deixou de ser
francês) teria sido admirado por muitos diretores alemães e russos, mas o que
diferenciaria seus trabalhos, por uma dessas fontes seria:
“Aqui tocamos de perto nos limites da influência exercida sobre Artaud pelos
russos e pelos alemães, e a admiração que ele lhes dedicou. Artaud lhes é
reconhecido por combaterem o teatro literário e psicológico, ao mesmo tempo
que instituem um novo espaço cênico. Mas a partir daí os caminhos divergem.
Artaud não pretende fazer o mesmo teatro que eles; o teatro deles é político, o
seu é metafísico e mágico. Daí vem a condenação inapelável que lança contra
44
J.-F. Dupuis. Op.cit., p.47.
eles, sem que haja nenhuma contradição com os elogios que lhes consagra
ocasionalmente. Desde 1924, ele ataca os que:
‘substituíram certas tradições molierescas e oficiais pelas novas tradições vindas
da Rússia ou de outros lugares’(...)
Condenação retomada oito anos mais tarde (1932) com maior clareza:
‘Considero vãs todas as tentativas feitas na Rússia para fazer o teatro servir a
objetivos sociais e revolucionários imediatos, por mais inovadores que sejam os
processos de encenação empregados. Tais condutas, na medida em que se
submetem aos dados mais estritos do materialismo dialético, viram as costas à
metafísica, que eles desprezam, e permanecem apenas uma encenação, na
acepção mais grosseira do termo’.”45
4ª - de aproximação mística: aquela em que houve uma aproximação das filosofias
orientais.46
Obs.- Nadeau chama esta fase de “autonomia do Surrealismo”, compreendendo o período
de 1930-39.
Da mesma forma como já havia acontecido com o Romantismo, que passou a designar
várias coisas diversas das características mais ‘específicas ou determinantes’ do
movimento, originalmente surgido na primeira década do século XIX na Alemanha; o
termo surrealismo atualmente presta-se a designar uma série de coisas, objetos,
situações que pouco ou quase nada tem a ver com o movimento. Dessa forma, e como
aparece no primeiro Manifesto do Surrealismo, é bom recordar, que para além do sonho e
da vigília, os surrealistas, vislumbravam ‘concretizar’ um estado de supra realidade ou de
sob(re)vida. Assim, afirmava Breton:
“Tudo sugere a existência de um certo ponto da mente no qual vida e morte, real
e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, as alturas e as
profundidades deixam de ser percebidos como contraditórios. Ora, seria em vão
que se buscaria qualquer outro motivo para a atividade surrealista a não ser a
esperança de determinar esse ponto”.
“Tanto se crê na vida, no que a vida tem de mais precário, a vida real, entendase, que afinal essa crença acaba por se perder. O homem, sonhador definitivo,
cada dia mais descontente com a sua sorte, a custo vai dando a volta aos
objetos de que foi levado a fazer uso e que lhe foram entregues pela sua
indiferença ou pelo seu esforço, pelo seu esforço quase sempre, já que ele
consentiu em trabalhar, ou pelo menos não lhe repugnou jogar a sua sorte
(aquilo a que ele chama a sua sorte). Cabe-lhe agora uma grande modéstia:
sabe quais as mulheres que teve, em que aventuras risíveis se meteu; a sua
riqueza ou a sua pobreza não lhe servem para nada, nesse aspecto ele continua
a ser a criança que acaba de nascer e, quanto à aprovação da sua consciência
moral, admito que passe bem sem ela”.
Entre 1924 e 1925 parece prevalecer no movimento a ideia de que seria necessário
completar a crítica feita pelos artistas do surrealismo a uma participação política mais
efetiva: e cujo objetivo seria a produção artística buscada a partir de um ‘certo estado de
furor’. Dessa forma, alguns dos surrealistas acabam (não sem oposições recíprocas
45
Alain Virmaux. Artaud e o teatro. Op.cit., p.149. Vale, ainda, afirmar (e/ou ratificar) que foram tais
pensamentos rigorosamente classistas e alienantes que acabaram por fazer com que ele tivesse sido
expulso do movimento surrealista, em fase de ‘compromisso assumidamente político’.
46
Trata-se, e como já falado, evidentemente de um reducionismo total; entretanto, bastante
conformado com as inúmeras contradições do movimento como um todo. Breton, em 1938, afirmou que
dois seriam os leitmotivs do movimento: primeiro que não haveria saída nenhuma fora do amor (cf. L’amour
fou); e, o segundo seria a importância e necessidade da ideia do sagrado e do oculto.
ambos os lados) por filiar-se ao Partido Comunista Francês, ou mais especificamente a
aproximar-se de alguns dos militantes
mais ‘à esquerda do partido’, formado por
representantes de vários grupos, ligados de uma forma ou outra à revista conhecida pelo
nome de Clarté. A esse respeito, assim comenta Dupuis. Op.cit., pp.29-30:
“Para muitos, obter, na impossibilidade do apoio do partido, pelo menos a sua
benevolência, era romper com os homens de letras duma forma mais decisiva do
que continuando a representar o papel de bárbaros da cultura, correndo o risco
de nela instaurarem um dia o seu poder e de acabarem por ser recuperados.
Para estes e para alguns outros, a imagem, explorada pela direita, do
bolchevista de faca nos dentes não deixava de ser sedutora. (...)
Só Artaud, sensível ao menor sinal de opressão, guardou as suas distâncias em
‘conhecimento’ de causa. À medida que os seus amigos se aproximavam de
Clarté, eclipsou-se, desapareceu. Soupault, Vitrac, Baron e alguns outros
optaram francamente pela carreira literária; saíram pela outra porta”.
Em 1927, Breton adere ao Partido Comunista Francês, demonstrando uma grande
vontade de agir de acordo com as determinações partidárias mas logo se cansa devido,
segundo suas próprias alegações e também a de alguns de seus companheiros, ao
excesso burocrático. Decepcionado e desiludido, desliga-se dele, desistindo de buscar
conexões partidárias entre arte e política. Assim, a partir do desligamento do partido, em
1931, os surrealistas aderiram à Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários,
controlada pelo partido, mas de modo militante.
As relações entre o partido e os surrealistas tornaram-se cada vez mais hostis.
Dessa forma, a ruptura configura-se verdadeiramente em 1935, às vésperas do
Congresso dos Escritores para a Defesa da Cultura,47 quando Breton encontra Ilya
Ehrenbourg, no Boulevar de Montparnasse, dizendo-lhe:
“Eu não tinha esquecido certa passagem do seu livro intitulado Vus par un
Écrivain de l’U.R.S.S., aparecido uns meses atrás e onde se dizia
nomeadamente: os surrealistas gostam muito de Hegel e de Marx e da
Revolução, mas do que não gostam é de trabalhar. Têm as suas ocupações.
Estudam, por exemplo, a pederastia e os sonhos... Dedicam-se a devorar, este
47
Segundo J.-F. Dupuis. Op.cit., p.37: “Na véspera do congresso, depois de fatigantes discussões
mantidas com os organizadores para que a palavra fosse dada a Breton, René Crevel mata-se. O seu
gesto, bem como o solipsismo de Antonin Artaud, contêm a resposta imediata, espontânea e negativa ao
problema levantado pelo surrealismo com base em elementos falsos: como, assentado em setores
autônomos – já arruinados objetivamente como valores humanos em jugo do sistema espetacular mercantil
-, na base de atividades parcelares mas erigidas em totalidade (arte, política, pensamento, inconsciente,
sob(re)vida, etc) e apresentadas como positivas, atingir uma unidade do indivíduo consigo próprio e com os
outros? Como é que o surrealismo, negligenciando a aspiração dadaísta no sentido do ponto de
negatividade total podia fundar historicamente a sua vontade de uma positividade e de superação
global?“Os surrealistas denunciam os processos de Moscou. Aproximam-se de Georges Bataille, cujo
movimento, Contre-Attaque, se considera uma ‘associação de combate antifascista de intelectuais
revolucionários’. (...) Benjamin Péret publica Je ne Mange pas de ce Pain-lá onde a poesia procura
verdadeiramente a sua prática, incitando à liquidação da tropa, da polícia, dos padres, dos patrões, do
dinheiro, do trabalho e de todas as outras forças de embrutecimento. Péret, que tem a coragem das suas
convicções, empenha-se ao lado dos anarquistas na revolução espanhola. Será o único presente neste
combate, que todos os seus amigos defenderam com entusiasmo, mas de longe”.
uma herança, aquele o dote da mulher..., etc. Depois de me ter apresentado,
esbofeteei-o por várias vezes, enquanto ele lastimosamente tentava parlamentar,
sem mesmo levantar a mão para proteger a cara. Não vejo que outro desforço
pudesse tirar deste difamador profissional...”48
No segundo Manifesto Surrealista de 1929 – espécie de manifesto em que se
propunha um ‘ajuste de contas’–, Breton apresenta as novas alternativas do movimento:
MOSTRAR, LIBERTAR ou TRANSFORMAR? Ao mesmo tempo em que o manifesto é
publicado há uma grande cisão dos membros do movimento que estavam filiados ao
Partido Comunista Francês, e cujo lema, até aquele momento havia sido: “Revolução a
serviço do Surrealismo ou Surrealismo a serviço da Revolução?”. Com o abandono das
questões políticas, houve expulsão de alguns dos membros do movimento como: Baron,
Masson, Prévert, Desnos, Vitrac, Limbour e Quenou. A partir desse período, também, uma
série de brigas, desentendimentos e rompimentos aconteceram entre os remanescentes.
Alguns dos membros do movimento tomam posição defendendo Trotsky, outros Stalin,
outros aquilo que de pior havia no fascismo (como se tudo não fosse péssimo) como
Franco, outros ainda o catolicismo... Breton, sem dúvida, o líder do movimento, briga com
alguns companheiros, reata a amizade e os trabalhos, briga novamente. Enfim, foi um
momento em que a situação mundial e a eminência sempre alardeada de uma guerra,
demandava atitudes e compromissos e todo tipo de radicalização intransigente no sentido
da defesa de princípios.
Com o intuito de apenas ilustrar um desses rompimentos, vale acompanhar o
ocorrido entre Breton e Éluard (que tomara a defesa do estalinismo). Breton, no México,
aproxima-se das proposições críticas defendidas por Trotsky (e às da Quarta
Internacional) e escreve com o artista plástico e militante comunista Diego Rivera o
manifesto: Pour une Art Révolutionnaire Indépendant (‘Por uma Arte Revolucionária
Independente) e fica sabendo que Éluard teve poemas publicados na revista Commune
(pró Stalin) – órgão da ‘Casa de Cultura’. Preocupado e decepcionado com a atitude do
companheiro, escreve-lhe o seguinte:
“apressei-me naturalmente a informá-lo por carta dos inqualificáveis processos
que esta organização tinha utilizado contra mim, e eu não duvidava que, em
relação a ela, retomasse imediatamente as suas distâncias. Mas não obtive
qualquer resposta e, no meu regresso, fiquei estupefato ao ouvi-lo alegar que
uma tal colaboração não implicava da sua parte nenhuma solidariedade
particular, pois se persuadira que um poema seu se defendia a si próprio, não
importa onde, dadas as suas qualidades intrínsecas, de modo que, no decurso
dos últimos meses, tão naturalmente como na Commune, tinha elaborado em
publicações fascistas – são os seus próprios termos – na Alemanha e na Itália.
Limitei-me a observar-lhe que uma tal atitude implicava da sua parte a quebra de
48
Idem, ibidem, p.36.
qualquer espécie de contrato existente entre nós e tornava inútil qualquer novo
encontro”.49
A já citada briga e rompimento entre Breton e Artaud teve vários lances; assim, em
uma carta a Breton, escreve Artaud:
“Como poderia escrever um texto para uma exposição à qual o mesmo público
fétido vai comparecer, a uma alegria que, ainda que levantasse seus fundos em
um banco comunista, é uma galeria capitalista, onde se vendem muito caro
quadros que não são mais pinturas, porém valores mercantis, valores intitulados
VALORES e que são neste mundo tudo aquilo que, enquanto objeto, se
denomina VALOR; essas espécies de grandes pedaços de papel impressos em
cores múltiplas e que representam sobre um simples papel (oh, milagre)
conteúdo de uma mina, de um campo, de um poço, de um sedimento, de uma
empresa, de uma prospecção, e ao qual o possuidor, o proprietário não
participou, nem mesmo com a ponta dos seus dedos, enquanto que milhões de
operários sucumbiram devido a este mesmo objeto, para que o fenômeno
denominado espírito possa usufruir à vontade do trabalho material do corpo”.50
De modo esquemático (com consciência dos ‘perigos’ representados pela pretensão
do ‘dar conta’, mas com consciência do exercício didático), pode-se dizer que, dentre as
características mais importantes, aquelas destacáveis seriam:
-
transposição do impossível e do proibido, no âmbito temático e formal. Nesse sentido,
há uma declaração (transmitida) por Raymond Queneau e citada por Maurice Nadeau.
Op.cit., p.69, bastante significativa:
“A adesão a um movimento literário, qualquer que seja ele, pressupõe fé nas
possibilidades de que se torne uma realidade.
A realidade imediata da revolução surrealista não é de molde a mudar o que
quer que seja na ordem física e aparente das coisas, tanto quanto de criar um
movimento nos espíritos. A ideia de uma revolução surrealista qualquer visa à
substância profunda e à ordem do pensamento... Visa a criar todo um misticismo
de novo gênero...
Todo adepto verdadeiro da revolução surrealista é levado a pensar que o
movimento surrealista não é um movimento no abstrato, e especialmente num
certo abstrato poético, sumamente execrável, mas é realmente capaz de mudar
alguma coisa nos espíritos”.
-
escrita automática [“As frases continuavam a brotar em mim, eu estava prenhe de meu
assunto”.], fundamentada no trabalho com o inconsciente e tomando como pressuposto
(‘justificativo’), as teorias de Freud. Breton, no Primeiro Manifesto do Surrealismo, dentre
outras justificativas, afirma:
“Tão ocupado estava eu com Freud nessa época, e familiarizado com os seus
métodos de exame que eu tivera alguma ocasião de praticar em doentes durante
a guerra, que decidi obter de mim o que se procura obter deles, a saber, um
monólogo de fluência tão rápida quanto possível sobre o qual o espírito crítico do
sujeito não emita nenhum julgamento, que não seja, portanto, embaraçado com
nenhuma reticência, e que seja exatamente quanto possível o pensamento
49
50
Idem, ibidem, p.39.
Carta
falado. (...) a velocidade do pensamento não é superior à da palavra e que ele
não desafia forçadamente a língua, nem mesmo a caneta que corre”.
“as descobertas de Freud. Com fé nestas descobertas desenha-se afinal uma
corrente de opinião, graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe
suas investigações, pois que autorizado a não ter só em conta as realidades
sumárias. (...) Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças
capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há
todo interesse em captá-las, captá-las primeiro, para submetê-las depois, se for
o caso, ao controle de nossa razão”.
“Com justa razão Freud dirigiu sua crítica para o sonho. É inadmissível, com
efeito, que esta parte considerável da atividade psíquica (pois que, ao menos do
nascimento à morte do homem, o pensamento não tem solução de continuidade,
a soma dos momentos de sonho, do ponto de vista tempo, a considerar só o
sonho puro, o do sono, não é inferior à soma dos momentos de realidade,
digamos apenas: dos momentos de vigília) não tenha recebido a atenção
devida”.
t
radução automática do mecanismo ‘desinteressado’ do pensamento. Além das
apologias feitas à capacidade/imaginação poderosa à seiva infantil, à
imaginação desregrada (próxima àquela ‘praticada’ pelos loucos), tendo como
corolário a ‘submersão’ no inconsciente e no mundo dos sonhos (em oposição
ao estado de vigília), afirma Breton em uma passagem do Primeiro Manifesto do
Surrealismo:
“Creio cada vez mais na infalibilidade de meu pensamento em relação a mim
mesmo, o que é justo. Contudo, nesta escrita do pensamento, onde se está à
mercê da primeira distração exterior, podem ocorrer ‘sobras’. Não há desculpa
se se tentar dissimulá-lo. Por definição, o pensamento é forte, incapaz de levar a
mal. É à conta de sugestões exteriores que se devem levar estas fraquezas
evidentes”.
Ainda com relação a esse mesmo assunto, escreve Breton em outra passagem
do mesmo manifesto:
“Mande trazer com que escrever, quando já estiver colocado no lugar mais
favorável possível para concentração do seu espírito sobre si mesmo. Ponha-se
no estado mais passivo, ou receptivo, dos talentos de todos os outros. Pense
que a literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo. Escreva
depressa, sem assunto preconcebido, bastante depressa para não reprimir, e
para fugir à tentação de reler. A primeira frase vem por si, tanto é verdade que a
cada segundo há uma frase estranha ao nosso pensamento consciente, pedindo
para ser exteriorizada. É bastante difícil para decidir sobre a frase seguinte: ela
participa, sem dúvida, a um só tempo, de nossa atividade consciente e da outra,
admitindo-se que o fato de haver escrito a primeira supões um mínimo de
percepção. Isto não lhe importa, aliás; é aí que reside, em maior parte, o
interesse do jogo surrealista. (...) Continue enquanto lhe apraz. Confie no caráter
inesgotável do murmúrio. Se o silêncio ameaça cair, por uma falta da inatenção,
digamos, que o leve a cometer um pequeno erro, não hesite em cortar uma linha
muito clara. Após uma palavra cuja origem lhe pareça suspeita, ponha uma letra
qualquer, a letra l, por exemplo, sempre a letra l, restabeleça o arbitrário,
impondo esta letra como inicial à palavra que vem a seguir”.
-
persecução e estímulo a todos os tipos de acasos (dando continuidade aos mesmos
expedientes buscados pelos dadaístas), com o objetivo de criação das imagens
surrealistas, apresentadas no Primeiro Manifesto do Surrealismo da seguinte forma:
“Não escondo que, para mim, a mais forte é a que tem o mais elevado grau de
arbítrio; a que exige mais tempo para ser traduzida em linguagem prática, seja
por conter uma enorme dose de contradição aparente, seja por ficar um de seus
termos curiosamente disfarçado, seja por se apresentar como sensacional e
pareça se desenlaçar pouco (fechando bruscamente o ângulo de seu
compasso), seja porque retira dela mesma uma justificação formal derrisória,
seja por ser de ordem alucinatória, seja por atribuir com naturalidade ao abstrato
a máscara do concreto, ou inversamente, seja por implicar a negação de alguma
propriedade física elementar, seja por provocar o riso”.
-
morte da palavra lógica, coerente e demonstrável – certa alusão paródica ao princípio
segundo o qual “nada pode haver na imaginação que antes não tenha estado no
inconsciente”. Escrever como exercício de ‘confessar o inconfessável’. Acerca da lógica,
Breton escreve, dentre outras coisas, no Primeiro Manifesto:
“Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem entendido, onde eu queria
chegar. Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, só se aplicam à
resolução de problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua em
moda não permite considerar senão fatos dependendo estreitamente de nossa
experiência. Os fins lógicos, ao contrário, nos escapam. Inútil acrescentar que à
própria experiência forma impostos limites. Ela circula num gradeado de onde é
cada vez mais difícil fazê-la sair. Ela se apoia, também, na utilidade imediata,
que é guardada pelo bom senso”.
-
apologia ao caos (diferenciado daquele do dadaísmo) como enfrentamento moral; ao
niilismo (diferenciado daquele dos dadaístas) com conotação de estado de angústia; ao
inconsciente; à desrazão; aos anacronismos; às sinestesias; ao oculto; ao milagre...
Nesse sentido, há um texto modelar de Aragon chamado Fragments d’une conférence
prononcée à Madrid à la Residencia de los Estudiantes, de 18 de abril de 1925:
“Ah! banqueiros, estudantes, operários, domésticas, vocês são os feladores do
útil, os abaladores da necessidade. E nunca trabalharei, minhas mãos são puras.
Insensatos, escondam-me as palmas de suas mãos, e esses calos intelectuais
de que têm tanto orgulho. Amaldiçoo a ciência, essa irmã gêmea do trabalho.
Conhecer! Desceram algum dia ao fundo deste poço escuro? O que
encontraram aí, que galeria rumo ao céu? Pois bem, não lhes desejo senão um
grande jato de gás que os restitua enfim à preguiça, que é a única pátria do
verdadeiro pensamento. (...)
Teremos razão em tudo. E antes de mais nada arruinaremos esta civilização que
lhes é cara, onde são moldados como fósseis no xisto. Mundo ocidental, estás
condenada à morte. Somos os derrotistas da Europa... Que o Oriente, o seu
terror, responda por fim à nossa voz. Despertaremos por toda parte os germes
da confusão e do mal-estar. Somos os agitadores do espírito. Todas as
barrigadas são boas, todos os entraves as nossas felicidades malditos. (...)
Mexa-se, Índia de mil braços, grande Brahma legendário. A ti, Egito! E que os
traficantes de drogas se lancem sobre nossos países terrificados. Que a América
ao longe se despenque de seus arranha-céus brancos em meio às proibições
absurdas. Levanta-te ó mundo! Vê como esta terra está seca e boa para todos
os incêndios. Parece palha.
Sorriam. Somos aqueles que sempre estenderão a mão ao inimigo”.
-
apologia e busca a uma certa pureza encontrada na infância. Tal apologia aparece no
Primeiro Manifesto Surrealista da seguinte forma:
“O espírito que mergulha no surrealismo revive com exaltação a melhor parte de
sua infância. Para ele é um pouco como a certeza de quem, a ponto de morrer
afogado, repassa em menos de um minuto todo o insuperável de sua vida. (...)
Das recordações de infância e de algumas outras, vêm um sentimento de não
abarcado, e pois, de desencaminhado, que considero o mais fecundo que existe.
Talvez seja a infância que mais se aproxima da ‘vida verdadeira’; a infância além
da qual o homem só dispõe, além de seu salvo-conduto, de alguns bilhetes de
favor; a infância onde tudo concorria entretanto para a posse eficaz, e sem
acasos, de si mesmo. Graças ao surrealismo, parece que estas chances voltam.
(...) Revive-se, na sombra, um terror precioso. (...) Eis ‘os elefantes com cabeça
de mulher e os leões voadores’ que Soupault e eu ainda há pouco tremíamos de
medo de encontrar, eis o ‘peixe solúvel’ que ainda me assusta um pouco. PEIXE
INSOLÚVEL, não serei eu o peixe solúvel, nasci sob o signo de Peixes e o
homem é solúvel em seu pensamento! A fauna e a flora do surrealismo são
inconfessáveis”.
-
apologia ao Oriente e aos orientalismos. Tal necessidade aparece fundamentalmente
na revista La Révolution Surréaliste 3, número totalmente consagrado à nova tese dos
surrealistas com caráter absolutamente laudatório em que a Ásia aparece como o remédio
ou “a cidadela de todas as esperanças”. Desse modo em um determinado momento da
revista aparece, citado por Nadeau. Op.cit., p.70:
“Somos teus fiéis servidores, ó grande Lama, dá-nos, dirige para nós tuas luzes,
numa linguagem que nossos espíritos contaminados de europeus possam
compreender e, se necessário, muda o nosso espírito, dá-nos um espírito
totalmente voltado para os cimos perfeitos onde o espírito do homem não sofre
mais”.
Segundo muitos dos surrealistas, a Ásia seria o espaço em que as contradições
não existiriam como no Ocidente, posto que a sociedade seria muitíssimo menos
contraditória e, também, o espaço em que lutas fatigantes contra o mundo mal feito não
teriam lugar. Segundo, provavelmente Artaud (e citado de Nadeau), no Oriente os homens
pareciam ter descoberto de uma só vez o Segredo que milhares de homens do Ocidente
se obstinavam penosamente em descobrir. De acordo, ainda, com Nadeau. Op.cit., pp.712:
“O Oriente não é apenas a pátria dos Sábios, é também, para os surrealistas, o
reservatório das forças selvagens, a pátria eterna dos ‘bárbaros’, dos grandes
destruidores, inimigos da cultura, da arte, das pequenas manifestações ridículas
dos ocidentais. Eternos revolucionários, armados com a tocha flamejante e
incendiária, eles, sob as pegadas dos cavalos de Átila, semearam a ruína e a
morte, com vistas a um renascimento. E a própria revolução russa, misteriosa
porque asiática, já não se apresenta aos olhos de Breton e de seus amigos
como ‘uma simples crise ministerial’. Nela fundirão finalmente todos os seus
desejos ardentes, mas vagos, de revolução universal, encetada por um Oriente
negador e regenerador”.
XIII. 5. – Dramaturgia surrealista e seus criadores
“Pourquoi écrivez-vous?
Escrevo para me confessar. É a única resposta.
Confessar o quê? O artista não sabe. Os símbolos ocultam suas tendências
instintivas. Ele sabe que confessou alguma coisa porque se sente bem”.
André Breton. Littérature
“Considero a arte de pintar a ciência de justapor as cores de tal forma que o seu
aspecto efetivo desapareça e deixe transparecer uma imagem poética... Na
minha pintura não há assuntos nem temas, trata-se de imaginar imagens cuja
poesia restitua às coisas conhecidas o que elas têm de absolutamente
conhecido e ... desconhecível”.
René Magritte. Carta a Sarane Alexandrian.
“1°Não temos nada a ver com a literatura. Mas somos muito capazes, se
necessário, de nos servir dela como todo o mundo.
2° O surrealismo não é um meio de expressão novo ou mais fácil, nem mesmo
uma metafísica da poesia. É um meio de liberação total do espírito e de tudo o
que se lhe assemelha.
3° Estamos bastante decididos a fazer uma Revolução.
4° Juntamos o termo surrealismo ao termo Revolução unicamente para mostrar
o caráter desinteressado, desprendido e mesmo totalmente desesperado dessa
revolução.
5° Não pretendemos mudar nada nos erros dos homens, mas queremos lhes
demonstrar a fragilidade de seus pensamentos, sobre que alicerces frágeis,
sobre que porões, construíram suas casas trementes.
6° Endereçamos à sociedade esta solene advertência. Que preste atenção aos
seus desvios, a cada um dos falsos passos de seu espírito, não a fraudaremos,
não...
7° Somos especialistas da Revolta. Não há um meio de ação que não sejamos
capazes de empregar, se necessário...
O surrealismo não é uma forma poética.
É um brado do espírito que se volta para si mesmo e está nitidamente decidido a
romper desesperadamente seus entraves.
E se necessário com martelos materiais”.
Texto transmitido por Raymond Queneau. (separata) La Révolution Surréaliste.
27/01/1925.
Seguindo uma tradição presente em vários movimentos de vanguarda e como
necessidade das ‘noitadas’ particulares de cada uma delas (serate, soirées), inicialmente
os surrealistas criaram esquetes que foram publicadas na revista Littérature. Assim, as
palavras de ordem do movimento, como: caos; surpresa; situações de irrealidade na
realidade; interesse na morte da palavra (referindo-se ao beletrismo); automatismo;
dinamismo; comunicação enigmática – fundamentada no onírico e no inconsciente;
liberação do inconsciente; confessar o inconfessável escondido no inconsciente,
sinestesias; elevado grau de lirismo..., para além do ‘previsto’ nos manifestos encontraram
um canal propício nas obras dramatúrgicas. Vale , ainda, reiterar que o movimento
surrealista, por todas as características próprias (e aqui apresentadas), do mesmo modo
como procederam os dadaístas, apresentavam seus espetáculos inseridos mais no que
se poderia chamar hoje de performances. Desse modo, e tendo em vista a fugacidade da
arte – sobretudo a preconizada por eles – acrescentado ao trabalho da imaginação, não
lhes interessava escrever textos que pudessem ser fixados em folhas de papel,
ganhando, assim, a eternidade. Uma última evidência prende-se ao fato de que os
embates entre os surrealistas foram constantes, dividindo-os cada vez mais. Assim, por
conta de toda sorte de embates, os surrealistas (divididos em ‘várias facções’) por seu
caráter virulento, viam-se obrigados a escrever constantemente para defenderem-se ou
acusarem aqueles que os acusavam...
Segundo Henry Behar. Op.cit., p. 18, um cronista de Comoedia, em 11/11/1924,
saúda O matusalém, de Ivan Goll, representado em Berlin, como o primeiro texto
dramático surrealista, já que para ele As mamas de Tirésias, de Apollinaire era “pura
farsa”.
− Peças:
Desde 1919, André Breton, influenciado pelas teorias de Freud, buscando
experimentar e exprimir as operações do pensamento (do inconsciente) e de apreender o
seu funcionamento, por meio do automatismo e da escrita automática, ‘testando-a’ em Les
champs magnétiques. Dessa forma, em processo de parceria, Soupault e Breton
escrevem as duas primeiras peças do movimento: Vous m’oublierez e S’il vous plaît.
L’Armoire à glace un beau soir, Au pied du mur e Trésor des jesuites, peças de
Aragon e Breton.
− Representantes do Surrealismo:
Breton, Aragon, Soupault, Éluard, Péret, Roberto Desnos, Max Morise, Roger Vitrac, Hans
Arp, Max Ernst, Miró, Louis Buñuel, Guilhaume Apollinaire etc.
Pablo Picasso, um dos mais destacados artistas das artes visuais do século XX,
escreveu um texto teatral bastante interessante, intitulado As meninas (ou As quatro
meninas) – e bastante representativo de algumas tendências e palavras de ordem
apresentadas pelos surrealistas. Desse modo, a apresentação do fragmento abaixo – do
texto de Picasso – aponta algumas das características e aspectos do Surrealismo:
“Meninas I, II e IV – Vamos à guerra, à guerra lá de casa. Anjinhos de
marshmallow, ratos e ratazanas, noite de caramelos, guizos da manhã. A vida
que passa aconteceu nos meus lençóis. É isso, é isso, é isso. A vida empaca
para atrair as vacas. A vida é bela, escondamo-nos dela. Os bezerros morreram
e já têm asas. A roda que gira desfaz seu vestido e mostra seus seios debaixo
das ervas, a noite esconde seus peixinhos. A bela colombela ama o seu
colombelo. Diga, malva-rosa, a aurora desta noite, conta uma estória, nos faça
rir, tira a coleira, desata os terços, divirta-nos com a sua pistola sobre este buquê
de rosas miséria miserere, como estamos contentes. Felizes por estarmos juntas
amanhã, depois de amanhã, hoje e ontem”.
(rodam, saltam e gritam cada vez mais depressa, cada vez com mais força e
caem umas sobre as outras, rindo.)
Menina IV – Ai, que gostosura, eu gostoseio, tu gostoseias, ela gostoseia. Feliz,
feliz, feliz, feliz...
Menina II – Feliz.
Menina I – Estou feliz, estou feliz. (grita) É isso, é isso, é isso.
(ouvem-se muitos pássaros e em cima delas começa a cair uma chuva de olhos
que se pregam aos vestidos e cabelos).
XIII. 6 – Excertos e destaques:
“Nós não somos livres. E o céu ainda pode cair sobre nossas cabeças. O teatro
foi, antes de tudo, criado para nos revelar essas verdades”.
Antonin Artaud. O teatro da crueldade.
“Atingir diretamente o organismo (...) mas para quê? Para construir o corpo. O
projeto de Artaud, na verdade, não medicinal, e sim ontológico. O teatro e seu
duplo e principalmente os escritos dos últimos anos frisam incansavelmente essa
exigência de um corpo novo: Não aceito o fato de não ter feito meu corpo por
mim mesmo. Mudar o corpo, mudar o mundo, uma coisa não se faz sem a outra:
Não sou dos que acreditam que a civilização deva mudar para que o teatro
mude; e acredito que o teatro, utilizado no seu sentido superior e o mais difícil
possível, tem força para influir sobre o aspecto e sobre a formação das coisas
(...). Sonho de uma subversão radical, da qual o teatro seria o agente e o
princípio”.
Alain Virmaux. Artaud e o teatro.
“o caso de Gauguin e de Artaud, para os quais a confrontação com religiões e
culturas primitivas teve o significado biográfico e artístico de uma revelação
profética e de uma esperança histórica. Ambos refletiram artisticamente o
niilismo, o vazio simbólico e vital, e o mal-estar cultural das metrópoles
européias; ambos expressaram o fim de uma cultura histórica e ambos partiram
para fora da civilização em busca de formas, cores e símbolos capazes de dar
nova força a suas criações e, com elas, à cultura moderna”.
Eduardo Subirats. Da vanguarda ao pós-moderno.
Antonin Artaud,51 invariavelmente em boa parte da bibliografia teatral consultada (e
para além dela, na quase totalidade existente), aparece ao lado de Bertolt Brecht e
Constantin Stanislavski como uma das referências mais importantes do teatro
contemporâneo. Trata-se, na perspectiva apresentada, de considerá-lo como um dos
pilares e pressupostos estéticos que daria sustentação àquilo que de mais significativo,
radical e emblemático se pode fazer em teatro. Considerado, portanto, como um dos
paradigmas da linguagem teatral,
Artaud – por meio de
suas ideias, criações e
metodologia – tem sido ciclicamente evocado e retomado; e, dessa forma, por releituras,
de modos ‘acertados e equivocados’ muito tem contribuído (direta e indiretamente) por
momentos extremamente significativos do teatro contemporâneo. Expulso do movimento
surrealista em 1927 (junto com Vitrac), acusado de práticas comerciais no Teatro Alfred
Jarry, Artaud justifica:
“No dia 10 de dezembro de 1926, às 9 da noite, no café ‘Profeta’, em Paris, os
51
Monique BORIE e outros. Estética teatral: textos de Platão a Brecht. Op.cit., p.447, assim
apresentam Artaud: “Antonin Artaud (1896-1948), escritor, encenador e ator francês, participou no
movimento surrealista antes de se separar dele no momento da criação do Teatro Alfred Jarry, em 1926. Se
nunca chegou a realizar esse ‘teatro da crueldade’ que propõe em O teatro e o seu duplo, não deixou
menos de alimentar toda uma corrente do teatro contemporâneo pela força dessa visão limite, nunca
atingida, que oferece. Esta visão é a de um teatro não apenas libertado da literatura e da psicologia, mas
que reencontraria a eficácia original e mágica (quer dizer criadora de realidade) de uma linguagem de
signos unificada, reconciliando, enfim, o corpo e o espírito, o abstrato e o concreto, o homem e o universo.
O ator, portador de signos, está no centro; a sua respiração e o seu corpo estão na base desta nova
gramática. Eles animam os seus ‘hieróglifos’. É fora do Ocidente – em direção ao Oriente (ele viu em Paris
uma representação do teatro de Bali em 1931) ou ao México (faz uma viagem ao México e ao país dos
trarahumaras em 1936) – que Artaud olha para encontrar modelos, em direção a essas culturas ‘sintéticas’ e
unitárias onde as formas nunca são separadas das ‘forças’. Porque para além do processo do teatro
ocidental, é o processo de toda uma cultura que Artaud faz, quer dizer, de uma certa prática da linguagem e,
através dela, de uma visão do homem, do mundo e da vida”.
surrealistas reúnem-se em congresso. Tratava-se de saber o que, diante da
revolução social que estrondeava, o Surrealismo iria fazer do seu próprio
desenvolvimento. Para mim, dado o que já se sabia do comunismo marxista, ao
qual pretendiam aderir, a questão nem se colocava. Será que Artaud pouco se
importa com a revolução?, perguntaram-me. Pouco me importo com a de vocês,
pois o Surrealismo também havia se transformado num partido”.
Respondendo às inquietações de Artaud, Breton cobra o posicionamento deste (e,
também, de Soupault) e em nome de um determinado rigor ideológico à esquerda que
impulsionava o Surrealismo ‘em rumo à necessidade de uma revolução’ (e que de modo
mais determinado significou a adesão de vários dos surrealistas às fileiras do Partido
Comunista Francês), defendia o ‘papa do movimento’ a aludida esquerdização deveria vir
antes de quaisquer outros princípios. Como Artaud não concordava com os novos
princípios e não se filiou ao partido acabou sendo expulso do movimento. Em resposta à
decisão de expulsão, Artaud, defendendo os ‘eternos’ princípios do Surrealismo, em texto
chamado Em plena noite ou o blefe surrealista, afirma:
“Existe ainda uma aventura surrealista e o surrealismo não morreu no dia em
que Breton e seus adeptos entenderam que era seu dever se vincular ao
comunismo e buscar no domínio da matéria imediata a consecução de uma ação
que só poderia se desenvolver normalmente nas disposições íntimas do
cérebro...
O Surrealismo sempre foi para mim uma nova espécie de magia. A imaginação,
o sonho, toda essa intensa liberação do inconsciente, que tem por finalidade
fazer aflorar à superfície da alma aquilo que ele tem por hábito manter
escondido, deve necessariamente introduzir profundas transformações na escala
das aparências, no valor da significação e no simbolismo do criado. Todo o
concreto muda de vestimenta, de casca, não mais se aplica aos mesmos gestos
mentais. O além, o invisível rechaçam a realidade. O mundo não resiste...
Eu desprezo muito a vida para pensar que uma mudança, qualquer que seja,
que se desenvolver no quadro das aparências, possa alterar alguma coisa na
minha detestável condição. O que me separa dos surrealistas é que eles amam
a vida tanto quanto eu a desprezo”.52
No concernente ao trabalho de encenação mais especificamente, Artaud deixou
uma pequena (mas significativa) participação prática, destacando-se a adaptação do texto
Os Cenci de Shelley e cuja direção foi considerada como sendo a sua mais expressiva e
polêmica contribuição à linguagem teatral. Com relação aos seus textos teóricos (a
maioria deles escrita em hospitais psiquiátricos, em que esteve internado de 1936 a 1946,
com sérios problemas mentais) o Teatro e seu duplo (Le Théâtre et son doublé, escrito em
1936), transformou-se, ao longo dos anos – e fundamentalmente nos anos de 1960 – em
uma espécie de ‘manual de sobrevivência’ para os militantes do chamado teatro de
ultravanguarda: do teatro pânico, passando pelo teatro performático (happenings) ao hoje
52
Apud Silvana GARCIA. Op.cit., pp.251-3.
chamado de teatro pós-moderno (em que tudo vale a partir da criação de ‘saladas’: tanto
de frutas quanto as russas). De outro modo, pode-se dizer que por esse texto Artaud
inaugurou e abriu espaço para as realizações mais radicais, anárquicas e antiteatrais da
encenação contemporânea, transformando-se, em boa parte dos casos, em uma moda ou
estilo.
No texto O teatro e seu duplo, Artaud vislumbra o teatro como um flagelo vitorioso,
uma epidemia redentora, defendendo a tese de que o teatro ocidental havia perdido seu
sentido religioso, místico, mágico ritualístico e coletivo: sendo necessário, portanto, injetar
o vírus do teatro no corpo social para desintegrá-lo. ‘Duplo’, portanto, representaria o
medo metafísico (já presente no teatro desde a antiguidade), em que o espanto e o horror
estariam plasmados em uma imagem (ou um signo). Dessa forma, e ainda no sentido de
recuperar os elementos perdidos pela humanidade, a proposta estética preconizada por
Artaud dava conta de que o teatro (“filho do delírio e da paixão”) não seria o duplo da
realidade socioeconômica, mas da ‘realidade’ das forças ocultas que regeriam o mundo.
Assim, as proposições artaudianas buscavam a criação de um teatro cuja linguagem
fosse capaz de atingir o homem no mais fundo de si, revelando o interior humano onde
habitariam a selvageria, a peste, os sonhos, o erotismo e o crime (numa espécie de
metafísica agressiva e destruidora). Como decorrência dessas proposições, Artaud
afirmava que sua teoria teria por objetivo:
“Drenar um abcesso gigantesco, que seria a própria vida moderna, prevenir a
violência descontrolada que a todo o momento nela ameaça deflagar, situando-a
no palco, em ação com a intensidade exasperada de uma epidemia redentora”.
Urgia, portanto, à luz da decadência da sociedade e da arte ocidentais (e como
certeza nisso Artaud tinha razão), criar um teatro puro (e desintegrador da forma cultural
tradicional) e cruel em que os atores pudessem afigurar-se como vítimas ardendo em
uma imensa fogueira, transmitindo sinais de dentro das chamas com o objetivo de libertar
a humanidade das repressões da civilização ocidental. Tais princípios, fundamentalmente
de ordem metafísica e mística, foram em muito construídos a partir de uma pesquisa
desenvolvida por Artaud da cultura oriental e da mitologia primitiva dos povos da América
(e fundamentalmente da mexicana, onde o artista permaneceu um tempo). Assim, além
de as imagens estupidificantes, as palavras em seu teatro não poderiam ser ditadas pela
lógica, mas pelo misticismo mágico e por toda forma de violência (latente nos indivíduos),
buscando refundir:
“as ligações entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que
já existe na natureza materializada”.
No âmbito do espetáculo, Artaud defendia o princípio de que as ações deveriam ser
desenvolvidas e apresentadas em vários planos e simultaneamente, que tornaria mais
eficaz o objetivo purificador do teatro através da conquista da compaixão e do terror. O
ator, em seu teatro, por ser um SIGNO VIVO deveria renunciar à sua liberdade de
intérprete através de uma grande disciplina e capacidade de entrega. Dessa forma, ainda,
deveria fugir da falsa representação (característica de todos os outros tipos de teatro e
especialmente aquele característico do Realismo), sem entretanto deixar de submeter-se
a uma gramática de efeitos ‘metodicamente calculados’.
Artaud escreveu, em 1938, O teatro e seu duplo, contendo vários textos escritos
anteriormente e, entre eles, dois manifestos, ambos chamados de Manifesto do Teatro da
Crueldade escritos, respectivamente, em 1932 e 1933. De modo absolutamente
esquemático e redutor, em ambos os manifestos, Artaud faz apologia à crueldade
(guardando, ainda, conotação ao conceito de peste) apresentando-a como necessária
para que o homem – à semelhança do conceito super-homem nietzschiano – pudesse
colocar-se em face de sua realidade integral (priorizando, evidentemente, a interior) com
o ‘poder’ de desmascará-la. Nessa acepção o conceito de peste é destacado como:
“manifestação e a exteriorização de um fundo de crueldade latente pelo qual se
localizam num indivíduo ou numa população todas as perversas possibilidades
do espírito”.
O teatro da crueldade – representando uma espécie de ritual de expurgo e de
exorcismo –, deveria ser constituído pela substituição da poesia da linguagem por uma
‘poesia do espaço’, priorizando os sons, os gritos atávicos; as luzes aliadas à dança; a
música e a pantomima, a partir da entrega total do ator e com o objetivo fundamental de
atingir a sensibilidade total do espectador. Tal formulação pressupõe uma síntese de
inúmeras teses de encenadores contemporâneos, sobretudo daquelas de Craig e Appia,
por um lado; e, por outro (a despeito de os objetivos serem opostos) das de Meyerhold,
passando, naturalmente por muitos indicadores tirados pelo Expressionismo.
Acerca da palavra crueldade, em carta datada de 13/09/1932, assim afirma Artaud:
“Não lhe posso dar detalhes sobre o meu manifesto que acarretassem o risco de
lhe debilitarem o significado. Apenas posso, por agora, comentar o meu título
‘Teatro da Crueldade’ e tentar justificar tal escolha.
Esta crueldade nada tem a ver com sadismo ou derramamento de sangue, ou,
pelo menos, nada tem a ver exclusivamente.
Não cultivo o horror sistematicamente. A palavra ‘crueldade’ tem de ser tomada
num sentido lato, e não no sentido de excesso físico que lhe é habitualmente
conferido. E, ao fazê-lo, sinto-me no direito pleno de não pactuar com o sentido
habitual da linguagem, de, uma vez para sempre, lhe pôr à mostra os pontos
fracos, de lhe libertar o pescoço da coleira de ferro, em resumo, regressar às
origens etimológicas da língua que, no meio de conceitos abstratos, sempre
evocam um elemento concreto.
Pode-se imaginar perfeitamente uma crueldade pura, sem dano físico. E que é,
com efeito, a crueldade, filosoficamente falando? Do ponto de vista do espírito,
crueldade significa rigor, intenção e decisão implacáveis, determinação inflexível
e absoluta. (...)
É um erro dar à palavra ‘crueldade’ um significado de sanguinolência impiedosa
e de solicitação, desinteressada e gratuita, de sofrimento físico. (...) Crueldade,
não é sinônimo de derramamento de sangue, carne martirizada, inimigos
crucificados. Esta identificação da crueldade com vítimas torturadas não passa
dum aspecto extremamente insignificante da questão. No exercício da crueldade
há uma espécie de determinismo mais elevado, a que o próprio carrascomartirizador está sujeito e que tem de estar decidido a suportar, na devida altura.
A crueldade é, acima de tudo, lúcida, - uma espécie de controle rígido e de
submissão à necessidade. Não há crueldade fora de um estado de consciência e
sem a aplicação da consciência. É a consciência que confere à consumação de
todos os atos da vida uma cor vermelho-de-sangue, um matiz cruel, uma vez
que não restam dúvidas de que a vida é sempre a morte de alguém”.
Em outra carta, datada de 14/11/1932, retomando o assunto, escreveu Artaud:
“A crueldade não foi introduzida à força no meu pensamento, sempre aí se
encontrou espontaneamente; o que tive, foi de me tornar consciente dela.
Emprego a palavra crueldade no sentido de um apetite de viver, um rigor
cósmico e necessidade implacável, no sentido gnóstico dum turbilhão vivo de
vento que devora a escuridão, no sentido duma dor sem cuja necessidade
inelutável a vida não poderia continuar. O bem deseja-se, é conseqüência de um
ato; o mal é permanente. Quando o deus oculta cria, obedece à necessidade
cruel duma criação que a si próprio se impôs, não pode deixar de criar e, por
conseqüência, não pode também deixar de introduzir no centro do torvelinho
voluntário um núcleo de mal cada vez mais condensado e cada vez mais
consumido. E o teatro, no sentido duma criação contínua, duma ação
integralmente mágica, obedece a esta necessidade. Uma peça em que esta
vontade, este apetite cego de vida, capaz de tudo espezinhar, não fosse visível
em todos os gestos e em todos os atos e no caráter transcendente da história,
seria uma peça inútil e irrealizada”.
O teatro e a peste, Antonin Artaud.
“Os arquivos da pequena cidade de Cagliari, Sardenha, contém o relato dum fato
histórico surpreendente.
Numa noite em fins de abril ou princípios de maio, em 1720, cerca de vinte dias
antes da chegada a Marselha do Grand-Saint Antoine, uma embarcação, cujo atraque
coincidiu com o mais espantoso surto de peste de que há memória nesta cidade, o vicerei da Sardenha a quem o reduzido encargo governativo havia talvez tornado sensível ao
mais pernicioso dos vírus, teve um sonho particularmente aflitivo – viu-se a si próprio
contaminado pela peste que, em sonhos grassava por todo o seu minúsculo Estado.
Sob um tal flagelo todas as formas estabelecidas da sociedade se desintegram. A
ordem dissolve-se. Apercebe-se de todas as infrações à moral vigente, de todas as
catástrofes psicológicas. Ouve, dentro de si, os fluídos do seu próprio corpo, a sussurrar.
Despedaçados a funcionar cada vez mais precariamente, numa vertiginosa aniquilação
de tecidos, sente os próprios órgãos cada vez mais pesados, a transformarem-se
gradualmente em carvão. É já porém demasiado tarde para evitar o flagelo? Mesmo
destruído, mesmo reduzido ao nada, com os órgãos pulverizados e consumido até a
medula, o vice-rei, que sonha, sabe que não morremos em sonhos, que a nossa vontade
age até mesmo no absurdo, até na negação de todas as possibilidades, até mesmo na
transmutação das mentiras de que se pode refazer verdades.
Desperta. Todos os rumores que correm acerca da peste, todos os miasmas de um
vírus vindo do Oriente, sabe agora como impedi-los de se aproximarem.
O Grand-Saint-Antoine, saído há um mês de Beirute, pede autorização para entrar
em Cagliari. O vice-rei responde com uma ordem desmentida, uma ordem que tanto a
população como o seu próprio corpo administrativo consideram irresponsável, absurda,
disparatada e despótica. Envia à toda pressa ao navio que supõe contaminado ordens
para o Grand-Saint-Germaine imediatamente mudar de rumo e se afastar a todo da
cidade, sob ameaça de ser afundado a tiros de canhão. Guerra à peste. O autocrata
estava disposto a não desperdiçar nem um minuto sequer.
É indispensável referirmo-nos, de passagem, precisamente à intensidade da
influência que este sonho exerceu sobre o vice-rei, pois foi devido a ela que, não obstante
os sarcasmos da multidão e o ceticismo da corte, não abdicou das suas ordens violentas,
desrespeitando assim não só os direitos do homem, mas a mais elementar consideração
pela vida humana e ainda toda a espécie de convenções nacionais e internacionais que,
perante a morte, perdem toda e qualquer pertinência.
Com efeito o navio seguiu seu rumo, acostou em Leghrorn e entrou no
ancoradouro de Marselha, onde lhe foi permitido desembarcar a carga. As autoridades do
porto de Marselha não possuem qualquer descrição do que aconteceu à carga
empestada. No que diz respeito à tripulação, sabe-se mais ou menos o que se passou: os
que não morreram da peste debandaram para outros países.
Não foi o Grand-Saint-Antoine que trouxe a peste para Marselha. A peste já lá
estava. E precisamente num momento de especial recrudescência. Mas os focos da
epidemia haviam já sido localizados com êxito.
A peste trazida pelo Grand-Saint-Antoine foi a peste oriental, e é da aproximação e
da difusão do vírus na cidade que data uma deflagração, particularmente terrível e
generalizada deste mal.
Tal fato traz à ideia certos pensamentos.
Essa peste que parece ter vindo reativar um vírus era, já de si, capaz de produzir
um efeito igualmente virulento; de entre toda a tripulação, apenas o capitão não foi
atingido; e para mais não parece que as vítimas recém-chegadas tivessem jamais estado
em contato direto com as outras, pois se encontravam confinadas a instalações
inacessíveis. O Grand-Saint-Antoine, que passa ao alcance de voz de Cagliari na
Sardenha, não deposita aí a peste, todavia o vice-rei capta, em sonhos, certas
emanações; não se pode negar que entre o vice-rei e a peste se estabeleceu uma
comunicação palpável, por mais sutil que fosse; e é demasiado fácil e nada explica limitar
a transmissão de tal doença a um contágio por simples contato.
Estas relações entre Saint-Rémys e a peste, suficientemente fortes para se
libertarem como imagens no sonho, não foram, no entanto, de intensidade suficiente para
o contaminar da doença.
De qualquer modo, a cidade de Cagliari ao ter conhecimento, decorrido algum
tempo, de que o navio fora afastado da sua costa pela vontade despótica do vice-rei
miraculosamente iluminado, originara a grande epidemia em Marselha, registrou tal fato
nos seus arquivos, onde pode atualmente ser encontrado.
A peste de 1720 transmitiu-nos as únicas descrições, ditas clínicas que possuímos
do flagelo.
No entanto restam dúvidas se a peste descrita pelos médicos marselheses era de
fato idêntica à que grassou em Florença em 1347 e que levou à produção do Decameron.
A História, os livros sagrados, e, entre eles, a Bíblia, certos tratados antigos de medicina,
todos se ocupam da descrição exterior de toda a espécie de pestes a cujos sintomas
mórbidos dedicaram uma atenção muito mais reduzida do que aos efeitos prodigiosos e
desmoralizadores deste enfermidade no espírito da vítima. Tiveram provavelmente razão
em assim proceder. Pois seria muito difícil à medicina estabelecer uma diferença básica
entre o vírus que dizimou Péricles defronte de Siracusa – partindo do princípio que a
palavra vírus é algo mais do que uma mera coincidência vocabular – e o que se
manifestou na peste descrita por Hipócrates e que, em tratados recentes de medicina, é
considerada uma espécie de pseudo peste.
Segundo estes mesmos tratados, a única peste autêntica é a peste egípcia que
surge dos cemitérios deixados e descobertos quando o Nilo reflui. Tanto a Bíblia como
Heródoto chamam a atenção para o surto fulminante de peste que, numa só noite,
dizimou os 180.000 homens do exército assírio, salvando assim o império egípcio. Se
este fato for verídico, teremos de considerar o flagelo como o instrumento direto ou a
materialização duma força inteligente em estreito contato com o que designamos por
fatalidade.
E, para chegarmos a tal conclusão, tanto se pode ter em conta com não, o exército
de ratos que na mesma noite se lançou sobre as tropas assírias e que destruiu as
armaduras e os arreios de couro, roendo-os em poucas horas. Este fato pode compararse à epidemia que deflagrou em 660 a.C. na cidade santa de Mékao, no Japão, por altura
de uma simples mudança de governo.
A peste de 1502 na Provença, que propiciou a Nostradamus as primeiras
oportunidades para exercer os seus poderes de curandeiro, coincidiu com as mais
profundas convulsões políticas, quedas ou mortes reais, desaparição e destruição de
províncias, tremores de terra, fenômenos magnéticos de todas as espécies, êxodos de
judeus, que, na ordem cósmica ou política, sempre precedem ou sucedem a cataclismos
e devastações cujos efeitos, aqueles que os provocam, por serem demasiado estúpidos,
não preveem, nem tampouco desejam, por não serem, na verdade suficientemente
perversos para tal.
Quaisquer que sejam os erros cometidos por historiadores e físicos com respeito à
peste, creio que poderemos admitir a ideia duma doença que seja uma espécie de
entidade física, não transmitida por um vírus. E se quiséssemos analisar minuciosamente
todos os fatos que nos são relatados pela história ou mesmo até por memória e que se
referem ao contágio da peste, seria difícil isolar um exemplo comprovado de contato pro
contato. O exemplo, citado por Boccacio, dos porcos que morreram por terem fossado
lençóis que haviam envolvido vítimas da peste, sugere muito mais do que uma espécie
de misteriosa afinidade entre o porco e a natureza da peste, o que por sua vez teria de
ser analisado com minúcia.
Embora não exista o conceito de uma verdadeira entidade mórbida, há certas
formas que o espírito pode provisoriamente aceitar como sendo características de
determinados fenômenos. E sem dúvida, parece-me que não repugnará ao nosso espírito
admitir uma peste descrita da maneira que se segue.
Antes da manifestação de qualquer mal-estar físico ou psicológico acentuado, o
corpo cobre-se de manchas vermelhas das quais a vítima apenas se apercebe de súbito,
ao adquirirem um tom negro. A vítima mal tem tempo de se armar e logo a cabeça lhe
principia a ferver e a tornar-se insustentavelmente pesada; o paciente cede então, sem
resistência, ao mal. É depois tomado por uma tremenda fadiga, a fadiga duma sucção
magnética centralizada, das moléculas divididas e impelidas para a aniquilação. Os
fluídos que percorrem o corpo da vítima, como que enlouquecidos, parecem repassar-lhe
a carne em caudal, agitados e confundidos. Sente-se uma náusea, o interior do estômago
parece que forceja por sair em jato, através dos dentes. O pulso que por vezes se retarda,
quase imperceptível, a mera virtualidade de um pulso, que em outras acelera-se em
proporção ao fervilhar interior da febre, de acordo com o pensamento que flui em
aberrações, a bater em pancadas apressadas como o coração que se torna intenso,
pesado, sonoro; os olhos, primeiro inflados, depois vítreos; a língua, inchada e ofegante,
primeiro branca, depois vermelha, depois negra. Como se carbonizada e em
desintegração; - tudo revela uma convulsão orgânica sem precedente. E em breve os
fluídos do corpo, enrugado como a terra ativada por um raio, como lava amassada por
forças subterrâneas, procuram uma saída. É no centro de cada mancha que se forma o
ponto de mais intensa inflamação; em torno destas manchas, a pele levanta-se esfolada
como bolhas de ar sob a superfície da lava, e as ampolas estão por sua vez rodeadas por
círculos. O último destes círculos, mas exterior como o anel de Saturno em redor do
planeta incandescente, indica o limite extremo dum bubão.
Todo o corpo fica sulcado por estas saliências, mas exatamente como os vulcões
que preferem determinados locais na terra, assim os bubões surgem, de preferência em
certos lugares do corpo humano. Nas proximidades do ânus, nas axilas, nos lugares
vulneráveis onde as glândulas desempenham fielmente as suas funções, surgem os
bubões, onde quer que o organismo esteja a descarregar toda a sua decomposição
interna, ou, conforme o caso, a sua própria vida. Na maioria dos casos, uma sensação
intensamente escaldante, localizada numa pequena mancha, indica que a vida do
organismo em nada perdeu a sua energia e que é possível uma melhoria da doença ou,
até mesmo, a cura. Tal como a raiva silenciosa, a peste mais terrível é a que não
patenteia sintomas.
O cadáver de uma vítima da peste não revela lesões, ao ser aberto. A vesícula
biliar que tem de filtrar as rejeições do organismo, densas e inertes, está repleta, inchada,
ao ponto de quase estourar, com uma substância fluida, negra e viscosa, tão densa que
dá ideia de ser uma outra substância completamente nova. Também o sangue nas
artérias e nas veias é negro e viscoso. A carne está endurecida como pedra. Nas
superfícies interiores da membrana do estômago, parecem ter ocorrido inúmeros
derrames de sangue, em jato. Tudo revela uma desordem fundamental das secreções,
mas há, como na lepra ou na sífilis, nem perda nem destruição de matéria. Os próprios
intestinos, o local onde se verificam as mais violentas desordens de sangue, onde as
substâncias atingem um grau espantoso de putrefação e de petrificação, não são
organicamente afetados. A vesícula onde se tem praticamente de arrancar o pus, como
em certos sacrifícios humanos, com uma faca afiada, um instrumento de obsidiana, duro e
vitro, a vesícula está hipertrofiada e a estalar em certos pontos, todavia intato, sem lhe
faltar qualquer parte, sem lesão visível, sem perda de substância.
Em certos casos, contudo, os pulmões e o cérebro atingidos, enegrecem a
gangrena. Os pulmões debilitados e corroídos desagregam-se em escamas de uma
substância negra desconhecida; e o cérebro funde-se, encolhe, torna-se granulado, uma
espécie de pó negro-de-carvão.
Duas importantes observações se podem fazer a respeito deste fato. A primeira é
que a síndrome da peste está completo mesmo sem a gangrena dos pulmões e do
cérebro, morrendo a vítima sem sofrer putrefação em parte alguma do corpo. Sem
menosprezar a natureza desta afecção podemos até dizer que o organismo não necessita
da presença duma gangrena física localizada para determinar o seu próprio óbito.
A segunda observação é a seguinte: os dois únicos órgãos que são de fato
afetados e lesados pela peste, o cérebro e os pulmões, dependem ambos, diretamente,
da consciência e da vontade. Podemos suster o fôlego e o pensamento, ativar a
respiração, dar-lhe qualquer ritmo à nossa escolha, torná-la consciente ou inconsciente a
nosso bel-prazer, ou estabelecer um equilíbrio entre duas espécies de respiração: a
automática que está sob controle direto do sistema nervoso simpático, e a outra, sujeita
aos reflexos do cérebro que mais uma vez tornaram conscientes.
Podemos identicamente acelerar, retardar e dar um ritmo arbitrário ao nosso
pensamento – podemos regular o jogo inconsciente do espírito. O que não nos é possível
é controlar a filtragem das substâncias fluidas no fígado, ou a redistribuição do sangue
levado a cabo pelo coração e pelas artérias, não podemos também impedir a digestão e
suster ou acelerar a eliminação de matérias do intestino. A peste parece portanto preferir
tornar manifesta a sua presença nos órgãos essenciais do corpo, os fulcros da atividade
física onde justamente a vontade humana, a consciência e o pensamento são eminentes
e susceptíveis de se manifestarem. (...)
De tudo isto demanda a fisionomia espiritual de uma doença cujas leis não podem
ser definidas com precisão e cuja origem geográfica será irrisório tentar determinar, pois a
peste do Egito não é a peste oriental, que por sua vez não é a que Hipócrates descreve, e
que não é também a de Siracusa, nem a de Florença, nem a Peste Negra que ceifou
cinquenta milhões de vidas na Europa medieval. Ninguém pode explicar por que é que a
peste atinge o covarde que se lhe tenta escapar e poupa o pervertido que satisfaz os seus
apetites nos próprios cadáveres; por muito que a distância, a castidade e o isolamento
são improducentes contra os ataques do flagelo; e por que é que um grupo de devassos
que se isola no campo, com Boccacio e os seus dois companheiros endinheirados e ainda
sete mulheres tão fervorosas em licenciosidade como em religião, pôde calmamente
aguardar o tempo quente em que a peste debanda; e por que é que num castelo próximo,
transformado numa autêntica cidadela por um cordão de homens armados que impediam
todos de qualquer acesso, a peste reduz os cadáveres à guarnição e os ocupantes e
apenas poupa os homens armados expostos ao contato. (...)
É a partir de todas estas peculiaridades, mistérios, contradições e sintomas que
temos de reconstituir a fisionomia espiritual de uma doença que destrói progressivamente
o organismo como a dor, que, à medida que se intensifica e aprofunda, multiplica os seus
recursos e meios de acesso a todos os planos da sensibilidade.
E desta liberdade espiritual com que a peste se desenvolve sem ratos, sem
micróbios e sem contato, é possível deduzir a ação obscura e absoluta de um espetáculo
que tentarei analisar.
Desde que a peste assente em uma cidade, todas as formas estabelecidas se
desintegram. Cessa a conservação das estradas e dos esgotos, deixa de haver exército,
polícia, administração municipal. Acendem-se piras ao acaso para queimar os mortos,
com qualquer material disponível. Cada família quer a sua. E então, como a madeira, o
espaço e as próprias chamas cada vez mais escasseiam, surgem dissenções entre
famílias, em redor das piras, em breve seguidas de debandada geral, pois os corpos são
por demais numerosos. Já os mortos obstruem as ruas, em pirâmides dilaceradas, roídas
em derredor pelos animais. O fedor sobe na atmosfera como uma chama. Ruas inteiras
estão bloqueadas por pilhas de mortos. E então as casas abrem-se, e as vítimas em
delírio, com o espírito de visões pavorosas, dispersam-se, em urros pelas ruas. A doença
que lhes fermenta nas vísceras e lhes circula por todo o organismo descarrega-se em
tremendas explosões cerebrais. Há os que sem bubões, delírio, dor ou erupção, se
observam ao espelho com orgulho, de esplêndida saúde – crêem – e tombam depois
mortos com o púcaro da barba na mão, cheios de desprezo pelas outras vítimas.
Por sobre os caudais de sangue, venenosos e espessos, cor de agonia e de ópio,
que jorram dos cadáveres, passam estranhas figuras, revestidas de cera, com o nariz
longo como salsichas e os olhos de vidro, com os pés assentes numa espécie de
sandálias japonesas, (...) a cantar litanias absurdas que os não livram de serem, por sua
vez, consumidos na voragem. Estes médicos ignorantes nada mais revelam que medo e
infantilidade.
Os escassos sobejos da população, que uma cupidez frenética aparentemente
imuniza, invadem as casas e furtam riquezas que sabem sem qualquer finalidade ou
proveito. E é nesse momento que nasce o teatro. O teatro, isto é, uma gratuidade
imediata que provoca atos sem utilidade ou proveito. Os derradeiros vivos possuídos de
frenesi; o filho obediente e virtuoso mata o pai; o homem casto pratica sodomia com os
vizinhos. O devasso torna-se puro. O avaro lança ouro às mancheias pela janela afora. O
herói guerreiro deita fogo à cidade por cuja salvação arriscou outrora a própria vida. O
peralta atavia-se com as melhores roupagens e passeia defronte das casas mortuárias.
Nem a ideia de uma ausência de sanções, nem a de uma morte eminente bastam para
motivar estes atos tão gratuitamente absurdos, praticados por homens que não
acreditavam que a morte pudesse ser o fim de tudo. E como explicar a vaga de febre
erótica que se apossa das vítimas restabelecidas e que, em vez de abandonarem a
cidade, ali permanecem, a tentarem obter dos moribundos e até dos mortos, um prazer
criminoso, meio esmagados sob as pilhas de cadáveres, onde o acaso os alojou.
Todavia, se é necessário um flagelo possante para trazer ao dia tal frenética
gratuidade, e se este flagelo se chama peste, podemos então talvez determinar o valor
desta gratuidade em relação à nossa personalidade total. O estado da vítima que morre
sem destruição material. Com todos os estigmas de uma doença absoluta e quase
abstrata, é idêntico ao estado de um ator totalmente repassado e perturbado por
sentimentos que não trazem qualquer benefício à sua condição real. No aspecto físico do
ator como no da vítima da peste, tudo revela que a vida reagiu ao paroxismo e, no
entanto, nada aconteceu. Entre a vítima da peste, que persegue visões, em esganiçada
correria e o ator, em perseguição dos seus sentimentos, entre o homem que para si
próprio inventa figuras que nunca teria possibilidade de imaginar, não fora a peste, e que
as cria no meio de um auditório de cadáveres e loucos delirantes, e o poeta que inventa
personagens inoportunamente e que os confia a um público igualmente inerte ou
delirante, há outras analogias que confirmam as únicas verdades que importa ter em
conta e que situam a ação do teatro, tal como a peste, ao nível de uma autêntica
epidemia.
Mas as imagens da peste que se produzem em relação a um poderoso estado de
desorganização física são como que as últimas emissões de uma força espiritual que
inicia a sua trajetória nos sentidos e dispensa por completo a realidade. Desde o
momento que se embrenha na violência da sua tarefa, o ator necessita de um poder
infinitamente maior, para se coibir de cometer algum crime, do que é necessário a um
assassino para o realizar e é precisamente nesta pura gratuidade que a ação e o efeito de
um sentimento, no teatro, surgem infinitamente mais válidos do que a ação e o efeito de
um sentimento consumado na vida real.
Comparada à violência do assassino, que se esgota, a do ator trágico permanece
encerrada num círculo perfeito. A violência do assassino pratica um ato, liberta-se e deixa
de estar em contato com a força que a suscitou, mas que já não a podem manter. A do
ator toma uma forma que a si próprio se nega, exatamente na medida em que se liberta e
se dissolve no universal.
Indo mais além nesta imagem da peste no seu aspecto de flagelo espiritual,
podemos interpretar as substâncias fluidas em agitação, produzidas no corpo das vítimas,
como a manifestação material duma desorganização que, noutras circunstâncias,
equivale aos conflitos, lutas, cataclismos e derrocadas com que deparamos ao longo da
vida. E assim, como não é impossível que o desespero vão de um alienado aos gritos
num asilo possa causar a peste por uma espécie de reversibilidade de sentimentos e de
imagens, pode-se identicamente admitir que os acontecimentos exteriores, conflitos
políticos, cataclismos naturais, a ordem na revolução e a desordem na guerra, ao
ocorrerem no contexto do teatro, se projetem na sensibilidade do público com todo o vigor
de uma epidemia
Santo Agostinho em A Cidade de Deus lamenta esta semelhança entre a ação
entre a ação da peste que mata sem destruir os órgãos e o teatro que, sem matar,
provoca não só no espírito de um indivíduo como no de toda uma camada popular, as
mais misteriosas alterações.
‘Ficai sabendo’, diz, ‘vós que sois ignorantes, que estas representações,
espetáculos pecaminosos, foram estabelecidos em Roma, não pelos vícios dos homens,
mas por ordem dos vossos deuses. Seria mais razoável prestar honras divinas a Cipião
do que aos tais deuses que não são decerto merecedores de tal pontífice!...(...)
‘De fato tal é a cegueira, tal a corrupção que as representações originam na alma
que até mesmo recentemente, aqueles a quem esta paixão fatal possui, os que tinham
fugido ao saque de Roma e se haviam refugiado em Cartago, passavam dia após dia no
teatro, a deleitarem-se com o seu próprio entusiasmo delirante pelos atores’.
É escusado apresentar as razões precisas deste delírio contagioso. Seria
igualmente escusado tentar descortinar as razões por que o nosso sistema nervoso, após
um determinado período de tempo, reage às vibrações da música mais sutil e acaba por
elas modificado, de uma maneira ou de outra, para sempre. Antes de mais nada, temos
de reconhecer que o teatro, tal como a peste, é delírio e é também comunicativo.
O espírito acredita no que vê e faz o que acredita; e nisto reside o segredo da
fascinação. (...) Há no entanto, condições que têm de ser descobertas para engendrarem
no espírito um espetáculo capaz de o fascinar, e tal descoberta não é coisa que diga
simplesmente respeito à arte.
Pois se o teatro se assemelha à peste, não é apenas por afetar coletivamente
classes importantes e as perturbar de uma forma idêntica. No teatro, tal como na peste,
há algo simultaneamente vitorioso e vingativo; apercebemo-nos que a conflagração
espontânea que a peste ateia, por onde quer que passe, nada mais é do que uma imensa
liquidação.
Uma calamidade social de tão vasto alcance, uma tão misteriosa desordem de toda
e qualquer organização, este transbordar de vícios, esse exorcismo total que força e
impele a alma até ao extremo, tudo indica um estado que é, não obstante, caracterizado
por uma certa força e no qual todos os poderes da natureza são descobertos, de novo, no
momento em que qualquer coisa essencial vai ser consumada.
A peste apodera-se de imagens que estão dormentes, uma desordem latente, e
expande-se, de súbito, nos gestos mais extremos; também o teatro toma os gestos e os
distende tanto quanto der. Tal como a peste, o teatro refunde todas as ligações entre o
que é o que não é, entre a virtualidade do possível e o que já existe na natureza
materializada. Restabelece a noção de símbolos e de arquétipos que se manifestam
como golpes silenciosos, pausas, saltos do coração, apelos de linfa, imagens
inflamatórias lançadas de chofre para dentro das nossas cabeças abruptamente
despertadas. O teatro devolve-nos os nossos conflitos dormentes e todas as suas
potências e dá a estas potências nomes que aclamamos como símbolos; e eis que, ante
os nossos olhos, se trava uma batalha de símbolos, a enfrentarem-se entre si, numa
impossível contenda. E só pode haver teatro desde o momento que o impossível principie
de fato e que a poesia, que acontece no palco, sustente e leve ao rubro os símbolos
tornados reais.
Estes símbolos, que dão sinal de potências prontas para se manifestarem, mas
mantidas até então em sujeição e inacessíveis ao mundo real irrompem sob forma de
imagens incríveis que dão direito de cidadania e existência a atos que são por natureza
hostis à vida das sociedades. No teatro autêntico, uma peça perturba o repouso dos
sentidos, liberta o inconsciente recalcado, estimula uma espécie de revolta virtual (que,
para mais, só resultará plenamente se permanecer virtual), e impõe à coletividade reunida
uma atitude simultaneamente difícil e heroica. (...)
Como a peste, o teatro é um terrível apelo às forças que impelem o espírito, como
por exemplo, para a fonte originária dos conflitos. (...)
A aparição atemorizante do MAL, que nos mistérios de Elêusis era produzido na
sua forma pura, autenticamente revelada, corresponde aos momentos mais puramente
trágicos de certas tragédias antigas que todo o verdadeiro teatro tem de recuperar.
Se o teatro essencial se compara à peste não é por ser contagioso mas por, tal
como a peste, ser a revelação, a apresentação à exteriorização num profundo íntimo de
crueldade latente, por meio do qual todas as potencialidades perversas do espírito quer
de um indivíduo, quer de um povo são localizadas.
Assim como a peste, o teatro é o tempo do mal, por excelência, ou o triunfo dos
poderes obscuros que são alimentados por um poder ainda mais profundo, até a extinção.
Tanto no teatro como na peste, há uma espécie de sol, estranho, uma luz de intensidade
anormal, através da qual parece que o difícil e até mesmo o impossível se torna,
repentinamente o nosso elemento natural. (...)
Podemos agora dizer que toda verdadeira liberdade é intensamente trágica, e se
identifica indubitavelmente com a liberdade sexual que é também intensamente trágica,
embora não saibamos precisamente por quê. Pois já muito tempo decorreu desde que
Eros de Platão, o sentido da criação, a liberdade da vida se desvaneceram sob a máscara
sombria da LIBIDO que se identifica com tudo o que é sujo, abjeto, infame no modo
contínuo de vivermos e de nos lançarmos à vida com um vigor natural e impuro, com uma
força perpetuamente renovada.
É esta a razão porque todos os grandes mitos são violentamente trágicos, a ponto
de não se poderem imaginar a não ser numa atmosfera de carnificina, tortura,
derramamento de sangue, todas as efabulações magníficas que narram às multidões a
primeira divisão sexual e a primeira carnificina de essências, que se produziram na
criação.
O teatro, tal como a peste, é a imagem desta carnificina e desta separação
essencial. Desencadeia conflitos, solta poderes, liberta possibilidades e se estas
possibilidades e poderes são tão intensamente trágicos, a culpa não cabe nem à peste
nem ao teatro, mas à vida.
Não achamos que a vida, tal como é e como foi concebida para nós, nos
proporcione muitos motivos de exaltação. Dá ideia que, por meio da peste, um abscesso
gigantesco foi coletivamente granado, e que, tal como a peste, o teatro foi criado para
extinguir abcessos coletivos.
Talvez o veneno do teatro, injetado no corpo social, o desintegre, como diz Santo
Agostinho, mas pelo menos, fá-lo como a peste, como um flagelo vingador, uma epidemia
redentora na qual as épocas de credulidade quiseram ver a mão de Deus, e que nada
mais é, afinal, do que a aplicação de uma lei da natureza pela qual cada gesto é
contrabalançado por outro e cada ação pela respectiva reação.
O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve ou pela morte ou pela cura e a
peste é uma doença superior, por ser uma crise total para além da qual nada permanece
a não ser a morte ou uma purificação extrema. Identicamente, o teatro é uma doença,
porque é o equilíbrio supremo que se não pode atingir sem destruição. O teatro convida o
espírito a partilhar um delírio que exalta as energias. E, para concluir, constatamos que do
ponto de vista humano a ação do teatro, tal como a da peste, é benéfica, pois, ao
compelir os homens a verem-se tais como são, faz com que a máscara tombe, põe a nu a
mentira, o relaxamento, a baixeza e a hipocrisia deste nosso mundo, vence a inércia
asfixiante da matéria que se apodera até do mais claro testemunho dos sentidos; e, ao
revelar às coletividades humanas o seu poder trágico, a sua força oculta, incita-as a
tomarem, em face do destino uma atitude superior e heroica, que nunca teriam assumido
sem o teatro.
E a pergunta que não podemos deixar agora de formular é, se neste mundo
instável que se está a suicidar, sem disso se aperceber, é possível encontrar um núcleo
de homens capazes de imporem esta concepção superior do teatro, homens que nos
restituíram a todo equivalente natural e mágico dos dogmas em que já não acreditamos”.
(texto transcrito de Cadernos de Teatro n°95. Rio de Janeiro: Inacen/O Tablado,
out./nov./dez., 1982)
Sugestão de poema surrealista apresentado no Primeiro Manifesto Surrealista,
intitulado Poema e composto a partir de fragmentos de títulos recortados de jornais
(procedimento idêntico aquele usado pelos dadaístas). No manifesto as letras aparecem
em diferentes tamanhos e estilos.
Um risada
de safira na ilha de Ceilão
As mais belas palhas
Na prisão
Numa fazenda isolada
NO DIA-A-DIA
agrava-se
o agradável
Um caminho carroçável
vos conduz à beira do desconhecido
O café
roga por si mesmo
O ARTESÃO QUOTIDIANO DE VOSSA BELEZA
SENHORA,
um par
de meias de seda
não é
Um salto no vazio
UM CERVO
antes de tudo o amor
tudo poderia acabar tão bem
Paris é uma grande aldeia
Vigiai
o fogo incubado
a oração
do bom tempo
Sabei que
os raios ultravioleta
terminaram seu trabalho
bom e rápido
O PRIMEIRO JORNAL BRANCO
DO ACASO
Vermelho será
o cantor errante
ONDE ESTARÁ?
na memória
em sua casa
NO BAILE DOS ARDENTES
Faço
dançando
O que se fez, o que se fará
Mémoires d’un amnésique - La journée du musicien (fragment), Erik Satie, 15/02/1913.
“O artista deve regrar sua vida.
Acompanhem a programação de minhas atividades diárias:
Levanto-me: às 7h18; inspirado: de 10h23 às 11h47. Almoço às 11h47 e deixo a
mesa às 12h14.
Saudável passeio a cavalo, no fundo de meu parque: de 13h19 às 14h53. Outra
inspiração: de 15h12 às 16h07.
Ocupações diversas (esgrima, reflexões, imobilidade, visitas, contemplação,
destreza, natação, etc...): de 16h21 à 18h47.
O jantar é servido às 19h16 e terminado às 19h20. Vêm as leituras sinfônicas, em
voz alta: de 20h09 às 21h59.
Meu
dormir
tem
lugar
regularmente
às
22h37.
Semanalmente,
acordo
sobressaltado às 3h19 (às terças-feiras).
Como apenas alimentos brancos: ovos, açúcar, ossos ralados, gordura de animais
mortos, vitela, sal, noz de coco, frango cozido em água branca; bolor de frutas, arroz,
nabos, morcela canforada, pastas, queijos (brancos), salada de algodão e certos peixes
(sem a pele).
Faço ferver meu vinho, que bebo frio com suco de fúcsia. Tenho bom apetite; mas
não falo jamais quando como, com medo de sufocar.
Respiro com cuidado (pouco a cada vez). Danço raramente. Andando, coloco-me
de costas e olho fixamente para trás.
Com ar muito sério, se rio, é sem ser de propósito. Desculpo-me sempre e com
afabilidade.
Durmo com um olho só; meu sono é muito difícil.. Minha cama é redonda, com um
buraco para a passagem da cabeça. A cada hora um criado toma minha temperatura e me
dá outra.
Há muito tempo assino um jornal de moda. Uso um boné branco, meias brancas e
um colete branco.
Meu médico sempre me disse para fumar. Ele acrescenta aos seus conselhos:
-
Fume, meu amigo: sem isso, outro fumará em seu lugar”.
Mémoires d’un Amnésique – Ce que je suis (fragment), Erik Satie, 15/04/1912.
“Todos lhes dirão que não sou um músico. Isso é justo.
Desde o início de minha carreira, classifiquei-me, imediatamente, entre os
fonometrógrafos. Meus trabalhos são pura fonometria. Que se tomem Les fils des Étoiles
ou Mourceaux en forme de Poire, En habit de Cheval ou Les Sarabandes, percebe-se que
nenhuma ideia musical presidiu a criação dessas obras. É o pensamento científico que
domina.
De resto, tenho mais prazer em medir um som do que em ouvi-lo. Com o
fenômetro na mão, trabalho alegre e seguramente.
Que pesei ou medi? Todo Beethoven, todo Verdi etc. É muito curioso.
Na primeira vez que me servi de um fonoscópio, examinei um si bemol de grossura
média. Asseguro-lhes que jamais vi coisa mais repugnante. Chamei meu empregado para
fazê-lo ver.
No fonopesador, um fá sustenido ordinário, bastante comum, atinge 93
quilogramas. Ele emanava um tenor consideravelmente gordo que pesei.
Conhecem a limpeza dos sons? É bastante suja. Fiar é mais apropriado; saber
classificá-los é muito minucioso e demanda uma boa vista. Aqui estamos na fonotécnica.
Quanto às explosões sonoras, frequentemente tão desagradáveis, o algodão,
fixado nas orelhas, atenua-as convenientemente. Aqui estamos na pirofonia.
Para escrever minhas Pièces Froides, servi-me de um caleidofone-gravador. Isso
durou sete minutos. Chamei meu empregado para ouvi-las.
Creio poder dizer que a fonologia é superior à música. É mais variada. O
rendimento pecuniário é muito maior. Devo-lhe minha fortuna.
Em todo caso, no monodinamofone, um fonemetrista medianamente treinado pode,
facilmente, perceber mais sons do que o mais hábil músico, no mesmo tempo, com o
mesmo esforço. Graças a isso, escrevi tanto.
O amanhã portanto pertence à filofonia”.
Obs.- Apesar de as datas de produção dos textos serem bastante anteriores à eclosão do
movimento surrealista, Satie, por suas posturas, militância no movimento e características
estéticas, é, normalmente, inserido no surrealismo que só eclode, formalmente em 1924.
Benjamin PERÉT. A escrita automática. Texto, originalmente, escrito para o jornal
“Diário da Noite” em 1929 (que não o publicou). Tradução de Leila F. Lima. Apud. “A
Phala” Revista do Movimento Surrealista. Fundação Armando Alvares Penteado,
agosto/1967.
“Quem (...) entre os leitores deste jornal não foi arrebatado pela estranha poesia
que se desprende dos sonhos? Quem não viveu durante seu sono uma ou mais vidas
trepidantes, atormentadas, contudo mais reais e mais fascinantes que a miserável vida
quotidiana? Antes de ideias, de imagens, de frases que vinham ao espírito e despertavam
em si preocupações, que no estado de vigília, você não teria o mínimo reconhecimento?
Você pode observar que o mesmo fenômeno se produzia assim que deixasse o espírito
errar ao acaso. Lá, a consciência é abolida, ou quase. A razão retornou ao seu nicho e rói
o seu osso eterno.
Basta, portanto, expulsar essa razão cadela e escrever, escrever, escrever, sem
parar, sem ter conta do engarrafamento das ideias. Não há mais a necessidade de saber
o que é um alexandrino ou um litote. Tome uma mão, papel, tinta e caneta com uma pena
nova, e se instale confortavelmente à sua mesa. Agora, esqueça-se de todas as
preocupações, esqueça-se
de que é casado, que seu filho está com coqueluche,
esqueça-se de que é católico, de que é comerciante e que o fracasso lhe cerca, esqueça
que você é senador, que é discípulo de Augusto Comte ou Schopenhauer, esqueça-se da
antiguidade, da literatura de todos os países e de todos os tempos. A você não interessa
mais saber o que é lógico e o que não é, você não deseja mais saber o que lhe
pretendem dizer. Escreva o mais rápido possível para nada perder das confidências que
lhe são feitas sobre si próprio e sobretudo não releia. Você logo aperceberá que conforme
e na medida em que você vai escrevendo, as frases chegam mais rápidas, mais fortes,
mais vivas. E, se por acaso, você se encontre subitamente parado, não hesite, force a
porta do inconsciente e escreva a primeira letra do alfabeto, por exemplo. Uma letra
segue a outra. O fio de Ariadne retornará a si mesmo. Isto posto, eu começo.
Um maço de espargos que não tinha exatamente sete léguas pôs-se a perseguir
um arco-íris dentro de uma lata de graxa. O arco-íris corre sobre a praia à procura de um
lume aceso. Ele ouve o mar no côncavo de sua mão e retorna, após anos de estudos, a
uma ilha de areias movediças, capitão de fragatas. É quando o rei de um país qualquer
lhe faz presente de uma sopeira. Lá ele coloca os ovos de tartaruga e na mudança da lua
a sopeira levanta voo como o último suspiro de um tísico. Contudo, fazia uma linda noite e
as estrelas após terem perdido tudo no bacará foram pescar a truta com faróis de
automóveis. Tudo isto teria passado muito bem se a grande Duquesa Anastácia não
tivesse comido aquele dia uma folha de papel esmeril. Num nada de tempo, a grande
Duquesa tomando a banca perdeu a cabeça. O resto do corpo seguiu rapidamente e logo
não restou mais nada que as unhas dos artelhos que se foram desenhar uma senha
luminosa num canto sombrio cheio de mandíbulas se abrindo e se fechando, seguindo o
ritmo de: ‘au clair de la lune mon ami Pierrot...’ Nada mais restava ao espectador desolado
desta cena que engolir uma grande chávena de tinta bem negra. Ele o fez sem grande
repugnância, se bem que a temperatura muito elevada fez germinar canetas em sua
tinta. Após isso, ele fechou as venezianas de sua janela e adormeceu, e adormeceu como
um pires que se esqueceu de embebedar uma xícara de café.
Mas se o café entorna sobre o pescoço do adormecido ele será obrigado a gritar ao
fogo para chamar os bombeiros. Eles chegam como arengues defumados; ei-los, as
armas sobre os ombros, não mais achando onde está o canhão de seu fuzil e metendo os
cartuchos pelo nariz, tirando a orelha da porteira, roendo sementes de papagaio, metendo
sanguessugas no cofre forte do patrão, comendo frituras de mosquitos e arrastando o
diabo pela cauda para se fazer assim conduzir rapidamente e barato à casa de sua avó. A
pobre velha não tem mais que pele sobre os ossos. De vez em quando, ela vende um
pedaço da sua pele para fazer um tambor que ela envia a um de seus netinhos por
ocasião de seu aniversário. É extremamente comovedor, mas um pouco basta, porque
logo que ele esteja reduzido ao estado de esqueleto, ela não terá alternativa que a de
habitar as casas mal assombradas; seu proprietário detesta ruídos de ossaturas nas
escadas que já são bem carcomidas.
O tempo passa e a terra gira, as moscas voam, a água corre sob as pontes que
não sabem mais o que fazer de suas arcas depois que Noé que está muito bem morto
cujas pulgas que faziam ninho em sua orelha se refugiaram nos cães que dão seus pelos
aos gatos ao cantar dos galos. A fonte de beterraba poderá muito bem se secar e o salitre
recobrir o nariz do Papa antes que as folhas de acanto tomem o mês nos dentes. Este
não é o caso das joaninhas que as autoridades colocaram em camisas de força com
desprezo da justiça. Mas a justiça traz apenas velhos calçados acalcanhados pela
avareza e suas balanças estão de tal forma pesadas de batatas que elas marcam o ponto
da mesma forma que o cuco. Cuco! Cuco! Ele é o soldadinho dos pés gelados. Faz ‘um...
dois’ e eis que rola até os pés da escada enfiando a cabeça em uma caixa postal (...) A
infelicidade lá está. Existe um garfo na mão esquerda e um par de pinças na mão direita.
E num giro de mão, ele arranca o nariz dos audaciosos, o prende com seu garfo e o
coloca na posta restante. O nariz não se inquieta por tão pouco. Sabe que sua vez virá e
cerejas amadurecem; mas esperando lhe é necessário tomar a guarda e arrancar de uma
maneira ou de outra, os longos cabelos que tentam recobri-lo, sem isso o plageador do
bairro o tomará por uma peruca e lhe colocará sobre o crânio de sua esposa calva”.
O TEATRO DA CRUELDADE, de Artaud, publicado em 1948.
“Vocês conhecem algo mais ultrajantemente fecal
do que a história de Deus e seu ser: SATÃ,
a membrana do coração,
a leitoa ignominiosa,
do ilusório universal,
que com suas mamas babosas
jamais nos dissimulou
senão o NADA?
Diante desta ideia de um universo preestabelecido
o homem até agora não conseguiu estabelecer sua superioridade de sobre o império da
possibilidade.
Pois se nada existe,
nada existe
a não ser esta ideia excremental
de um ser que, por exemplo, teria criado as feras.
E de onde vêm as feras nesse caso?
Do fato de que o mundo das percepções corporais
não está à sua altura,
e não amadureceu,
do fato de que há uma vida psíquica
e nenhuma vida orgânica verdadeira,
do fato de que a simples ideia de uma vida orgânica pura
pode colar-se,
do fato de que uma distinção
pôde ser feita entre
a vida orgânica embrionária pura e a vida passional
e concreta e integral do corpo humano.
O corpo humano é uma pilha elétrica
no qual castraram e reprimiram as descargas,
do qual orientaram para a vida sexual
as capacidades e as tendências
enquanto que ele foi feito
justamente para absorver
por seus deslocamentos voltaicos
todas as disponibilidades errantes
do infinito do vazio
dos buracos do vazio
cada vez mais incomensuráveis
de uma possibilidade orgânica jamais satisfeita.
O corpo humano tem necessidade de comer,
mas quem experimentou de outro modo, a não ser no plano da vida sexual, as
capacidades incomensuráveis dos apetites?
Façam finalmente dançar a anatomia humana,
de cima para baixo e de baixo para cima,
de trás para frente e de frente para trás,
porém muito mais de trás para frente,
e o problema da rarefação
dos gêneros alimentícios,
não terá mais que ser resolvido,
porque não haverá mais ocasião
nem mesmo de colocar-se.
Fizeram o corpo humano comer, fizeram-no beber, para evitar de fazê-lo dançar.
Fizeram-no fornicar o oculto
a fim de se eximir
de comprimir
e suplicar a vida oculta.
Pois não há nada
como a assim denominada vida oculta
que tenha necessidade de ser supliciado.
Foi lá que Deus e o seu ser pensaram enviar o homem demente,
lá, naquele plano cada vez mais ausente da vida oculta
onde Deus quis fazer o homem acreditar
que as coisas podiam ser vistas e percebidas em espírito,
enquanto que não há de existente e de real
senão a vida física exterior
e que tudo aquilo que foge dela e se desvia dela
não é mais que os limbos do mundo dos demônios.
E Deus quis fazer o homem acreditar nessa realidade do mundo dos demônios.
Mas o mundo dos demônios é ausente.
Jamais ele alcançará a evidência.
O melhor meio de se curar dele e de destruí-lo
é acabar de construir a realidade.
Pois a realidade não está acabada, ela ainda não está construída.
De sua conclusão dependerá
no mundo da vida eterna
o retorno de uma eterna saúde.
O teatro da crueldade
não é o símbolo de um vazio ausente,
de uma espantosa incapacidade de se realizar em sua vida de homem,
Ele é a afirmação
de uma terrível
e aliás inelutável necessidade.
Nas encostas jamais visitadas
do Cáucaso, dos Cárpatos, do Himalaia, dos Apeninos,
sucedem-se todos os dias, noite e dia,
há anos e anos,
medonhos ritos corporais
onde a vida negra
a vida jamais controlada e negra
se entrega a espantosos e repulsivos banquetes.
Lá, os membros e os órgãos reputados abjetos
porque
perpetuamente abjetados,
reprimidos,
fora das capacidades da vida lírica exterior,
são utilizados no delírio total de um erotismo que não tem freio,
em meio ao derramamento,
cada vez mais fascinante
e virgem
de um licor
cuja natureza jamais pôde ser classificada,
porque ela é cada vez mais incriada e desinteressada.
(Não se trata especialmente do sexo ou do ânus que aliás devem ser decepados e
liquidados mas do alto das coxas, das cadeiras, dos dorsos, do ventre total e sem sexo e
do umbigo).
Tudo é por ora sexual e obsceno
porque tudo isso jamais pôde ser trabalhado e cultivado
fora do obsceno
e os corpos que dançam lá
não podem ser desligados do obsceno,
eles desposaram sistematicamente a vida obscena
mas é preciso destruir esta dança de corpos obscenos para substitui-los pela dança de
nossos corpos.
Fiquei perturbado e contaminado
durante anos
pela dança de um mundo assustador de micróbios
exclusivamente sexualizados
nos quais eu reconhecia na vida de certos espaços recalcados,
homens, mulheres, crianças da vida moderna.
Fui atormentado interminavelmente por pruridos de intoleráveis eczemas
nos quais as purulências da vida erótica do sarcófago
tinham livre trânsito.
Não há necessidade de procurar mais longe do que nessas danças rituais negras,
a origem de todos os eczemas,
de todos os herpes,
de todas as epidemias,
de todas as pestes
das quais a medicina moderna
cada vez mais confusa
se mostra impotente para encontrar a cauterização.
Fizeram baixar minha sensibilidade
há dez anos,
os degraus dos mais monstruosos sarcófagos,
do mundo ainda inoperado dos mortos
e dos vivos que quiseram
(e no ponto em que chegamos, é por vício)
que fizeram viver mortos.
Mas eu simplesmente me esquivei de ser doente e comigo todo um mundo que é tudo o
que eu reconheço.
O PEDANA
NA KOMEV TAU DEDANA
TAU KOMEV
NA DEDANU
NA KOMEV
TAU KOMEV
NA COME
COPSI TRA
KA FIGA ARONDA
KA LAKEOU
TU COBRA
COBRA JA
JA FUTSA MATA
DA serpente não
HÃ.
Porque vocês deixaram a língua sair dos organismos
foi preciso cortar aos organismos
sua língua
à saída dos túneis do corpo.
Só existe a peste, a cólera, a varíola negra
porque a dança
e em consequência o teatro
ainda não começaram a existir.
Qual é o médico dos corpos racionados da atual miséria
que tenha procurado ver a cólera de perto?
Escutando a respiração ou o pulso de um doente,
prestando atenção diante dos campos de concentração destes corpos racionados da
miséria,
diante do tremor dos pés, os troncos e dos sexos
do campo imenso e recalcado
de alguns micróbios terríveis que são os corpos humanos.
Onde estão eles?
Ao nível ou nas profundezas de certos túmulos
em lugares historicamente
ou geograficamente insuspeitos.
KO EMBACH
TU UR JA BELLA
UR JA BELLA
KOU EMBACH
Lá onde os vivos marcam encontro com os mortos
e certos quadros de danças macabras
não possuem outra origem.
São estes erguimentos
nos quais o encontro de dois mundos incríveis se delineia sem parar
que fizeram a pintura da Idade Média
como aliás toda pintura
toda história
e eu diria toda geografia.
A terra se pinta e se descreve
sob a ação de uma terrível dança
à qual ainda não fizeram dar epidemicamente todos seus frutos.
POST-SCRIPTUM
Lá onde existe a metafísica,
a mística,
a dialética irredutível,
eu ouço se torcer
o grande cólon
de minha fome
e sob os impulsos de sua vida sombria
eu dito para minhas mãos
sua dança,
a meus pés
ou os meus braços.
O teatro e a dança do canto,
são o teatro das revoltas furiosas
da miséria do corpo humano
diante dos problemas nos quais ele não penetra
ou cujo caráter passivo,
especioso,
chicanista,
impenetrável,
inevidente
o ultrapassa.
Então ele dança
através de blocos de
KHA, KHA
infinitamente mais áridos,
porém orgânicos;
ele põe no passo
a muralha negra
dos deslocamentos do interior do coração;
o mundo das lavras invertebradas
do qual se destaca a noite sem fim
dos insetos inúteis:
piolhos,
pulgas,
percevejos,
mosquitos,
aranhas,
só se produz
porque o corpo de todos os dias
perdeu sob a fome
sua coesão primeira
e ele a perde através de lufadas,
de montanhas,
de tiras,
de teorias sem fim
as fumaças negras e amargas
das cóleras
de sua energia.
POST-SCRIPTUM
Quem sou eu?
De onde venho?
Sou Antonin Artaud
E basta que eu diga
como sei dizê-lo
imediatamente vocês verão meu corpo atual partir em pedaços
e se recompor
sob dez mil aspectos notórios
um corpo novo
onde vocês não poderão
nunca mais
me esquecer”.

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