O Camarote Vazio

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O Camarote Vazio
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Seguido pelo carregador que lhe levava a mala de couro — a imponente
mala de couro inglês, com fechos de metal e cantoneiras também de metal —
Benevenuto chegou ao cais do porto, no seu paletozinho de xadrez rachado
atrás, muito antes da hora marcada para a saída do navio.
Mesmo assim, já havia ali uma confusão de vozes, em espanhol, em
inglês, em francês, em italiano e em português, entre turistas que se
abraçavam, que riam alto, que se acenavam, uns com máquinas fotográficas a
tiracolo, outros com sacolas de compras e bolsas espaçosas, trajando roupas
sumárias, com vestidos cavados e coloridos, calças apertadas, camisas
esportivas, já deixando sentir o frenesi do carnaval.
E o Benevenuto, já no primeiro degrau da escada do porta-ló, olhando
alarmado os grupos de americanos barulhentos e efusivos e vendo o
carregador subir a escada da popa, inclinado para a frente, com a sua bela mala
nas costas:
— Felizmente esses gringos vão ficar aqui mesmo. Se fossem também
para Santos, eu desistia da viagem.
Embora ainda faltassem duas semanas para o carnaval, já havia, ali no
Rio de Janeiro, na Praça Mauá, na Avenida Rio Branco, na Cinelândia, na
Avenida Getúlio Vargas, com os enfeites carnavalescos tomando as faixas,
adornando os postes e as fachadas, atravancando a entrada do Teatro
Municipal, um ambiente de festa coletiva, prenunciando os cordões, os carros
alegóricos, os ranchos, as escolas de samba, os blocos de mascarados que se
espalhariam pela cidade, de sábado gordo à quarta-feira de cinzas.
Quase no meio da escada, Benevenuto perguntou a si mesmo como
tinha coragem de sair do Rio para ver uma tia velha, quase à morte, no interior
de São Paulo, perto de Santos, se também gostava de pular e dançar,
fantasiado, mascarado, quando não preferia participar dos desfiles de fantasias
de luxo, competindo com rivais terríveis, que lhe tiravam o sono.
Subiu outros degraus, suspirando:
— Ano que vem, já com as jóias da Tia Eudóxia, tiro a forra, ganhando
o primeiro prêmio do Teatro Municipal com a minha fantasia de Luís XIV.
Vou abafar a banca e botar pra quebrar. O Evandro que se cuide. Vai ficar de
cama, depois do desfile.
O médico, dias antes, lhe havia recomendado um pouco de descanso,
no seu corre-corre de todos os dias, nos pregões da Bolsa. E era como se lhe
ouvisse a voz, grave, rouca, vagarosa:
— Este ano, nada de carnaval. O senhor é um emotivo, leva tudo a
sério, convém fazer uma pausa, pelo menos agora.
E como a fantasia de Luís XIV, imponentíssima, tão rica quanto o traje
verdadeiro, nos calções, no peito bordado a ouro, no manto, no cetro, na
cabeleira em caracóis, ainda precisava de arremates, com vidrilhos e paetês
sobre as sedas e os veludos, Benevenuto baixou a cabeça, aceitando o
descanso forçado como uma penitência:
— Doutor, eu só quero que Deus tome nota de meu sacrifício.
E como encontrara no apartamento, ao voltar do médico, um novo
recado da Tia Eudóxia, que lhe pedia fosse vê-la com urgência, tornou a
suspirar, desolado:
— Um infortúnio nunca vem só. Deus quer e manda, faça-se a vontade
de Deus.
E mandou que o mordomo trouxesse do depósito de velharias do
edifício o seu malão de viagens marítimas:
— Depois do susto que levei, na última viagem de avião, com aqueles
sobressaltos entre Rio e Belo Horizonte, como se estivesse no Triângulo das
Bermudas, prefiro ir de navio.
Não tinha sido fácil conseguir um lugar nos poucos navios de
passageiros que ainda tocavam nos portos do Rio de Janeiro e Santos, vindos
de Liverpool, do Havre, de Lisboa, com destino a Buenos Aires ou
Valparaíso. Dias e dias empenhara-se para obter uma vaga no Pasteur, que
fazia a sua penúltima viagem à América do Sul. E de repente, no seu
escritório, o telefonema efusivo de seu amigo Nagibe, da agência de viagens:
— Benevenuto querido, você nasceu mesmo com o bumbum para a
lua. Seu camarote, no Pasteur, está arranjado, tanto para a ida quanto para a
volta. No Havre, quando já ia embarcar para Santos, um casal de franceses
cancelou a viagem, e o camarote deles vem vazio. E seu. Para ir e para voltar.
Parabéns.
E como a conjugação de astros, nos mapas astrológicos, lhe era
favorável, naquele meado de fevereiro, prometendo continuar assim até o
começo de março, Benevenuto foi também avisado de que o camarote era
bom.
Radiante, depois de uma risada boa, Benevenuto agradeceu ao querido
Nagibe a grande notícia, e logo bateu na madeira, fazendo uma figa, para
evitar os maus-olhados — mesmo do Nagibe.
E este, ainda loquaz, antes de desligar o telefone:
— Mas te prepara para pular a bordo. O Comandante do Pasteur,
mesmo sendo francês, adora carnaval, como qualquer brasileiro. Há sempre
festa a bordo.
E o Benevenuto, numa promessa que sabia de antemão não iria
cumprir:
— Vou ficar no camarote, fechado, lendo e dormindo. Tanto na ida
quanto na volta.
Mas recomendou ao mordomo, quando este subiu do depósito com o
malão:
— Pelo sim, pelo não, põe nas minhas roupas a fantasia de Pierrrô com
que tirei o prêmio do Baile do Copacabana, ano passado. Aquela que fez o
Evandro desmaiar.
De fato, o camarote amplo, de dois beliches, com a vigia aberta para o
mar, pareceu-lhe excelente, bem no meio do navio. Mesmo que o navio
jogasse, batido pelos vagalhões de alto-mar, suportaria o mareio, sabendo que
seria muito pior no camarote de proa, como acontecera na viagem à África, a
bordo do Príncipe Perfeito. Jamais esqueceria o arremesso das ondas, à altura
do Cabo da Boa Esperança, a caminho de Moçambique, quando o navio subia
por cima da vaga, fendendo-a de proa, para cair logo depois, como se
despencasse para afundar de uma vez, e ele, Benevenuto, ali,na casca de nós,
olhando tudo, sentindo tudo, com a impressão de que seu crânio ia estourar,
pressionado de dentro para fora.
E gemia, com o lenço na boca, salivando:
— Em que foi que me meti, meu Deus!
E só se consolava em reconhecer que, no ar, dentro de um avião, a
debater-se com as sacudidelas de um temporal, entre relâmpagos, teria sido
pior. Crispava as mãos, contraía o ventre, entregava-se às mãos de Deus, com
o suor frio a lhe descer pelas costas, sempre que a proa do navio, à sua frente,
tornava a subir, tornava a descer. Seus dentes batiam, a respiração lhe faltava.
No centro do navio, seguindo a linha do litoral, não arrostaria os
mesmos contratempos. Pela vigia, só descortinaria o oceano, sem a sensação
de olhar a proa cortando as ondas, e ora a empinar-se, ora a cair, mergulhando
no abismo.
Aliviado, voltou a respirar fundo:
— O camarote não podia ser melhor, Comissário. No lugar ideal, no
meio do navio. Obrigadíssimo.
E o Comissário, vermelho, a exibir no sorriso largo o seu canino de
ouro:
— É o que se quer. Desejo-lhe uma boa viagem. Sempre ao seu dispor,
Comissário Jacques.
E inclinando levemente a cabeça que o boné do uniforme branco
realçava, com os caracóis de cabelo vermelho saindo para os lados:
— O Comandante manda-lhe dizer que o espera na sua mesa. O
senhor fará as refeições conosco.
Apanhado pela surpresa do convite, Benevenuto pensou em esquivarse, livrando-se da maçada da mesa destacada; mas já o Comissário tinha
deixado a chave na fechadura do camarote, e tornava a inclinar a cabeça
simpática, com a mão tocando a pala do boné. Benevenuto inclinou-se
também, e agradeceu, pedindo que dissesse ao Senhor Comandante que se
sentia muito honrado em compartilhar de sua mesa.
Reconheceu logo que o convite do Comandante era uma astúcia a mais
do amigo Nagibe. Sem imaginar o suplício que lhe infligia, tirava-o do bembom do camarote espaçoso, onde pensara jantar, tomar café e almoçar,
chupando deitado as suas pastilhas de hortelã, com um novo romance da
Agatha Christie diante dos olhos, e ouvindo velhos tangos argentinos no tocafitas de seu rádio de pilha.
E eis que lhe aparecia, gentil, maneiroso, o convite irrecusável, com a
chateação supletiva da gravata borboleta, do smoking e da camisa de peito
engomado, além da meia preta e do sapato de verniz.
Por Benevenuto, nada disso teria vindo no seu malão. Só o velho
mordomo, que também herdara de seu pai, se lembraria de pôr ali semelhante
uniforme, com a justificativa de sempre:
— Uma pessoa como o senhor não pode ser apanhada de surpresa por
um compromisso de última hora. O smoking é indispensável.
E ele, Benevenuto, já quase à hora de descer para tomar o carro que já
estava à porta do edifício, à sua espera:
— Que compromisso de última hora pode me aparecer, Elesbão, a
bordo de um navio, para dois dias de viagem, já perto do carnaval?
E ali estava a resposta.
Tirou do malão a roupa, pendurou-a no cabide, e foi meter-se no
chuveiro, para tirar do corpo o suor das emoções da partida, com gente a
acenar, com turistas atirando para o cais fios de serpentina, com a orquestra
de bordo a tocar a Cidade Maravilhosa por entre os derradeiros sucessos de
Edith Piaff; e o navio a afastar-se vagarosamente da orla de cimento e pedra,
com a âncora a enrolar a corrente na roldana da popa, e o pessoal de bordo a
deslocar-se pelo convés e o portaló, subindo escada, descendo escada, entre
trilos de apito, gritos, ruído de passos precipitados, enquanto um velho senhor
de preto tirava reverentemente o chapéu de copa alta para o Cristo do
Corcovado.
Ao sair do chuveiro, enxugou-se com rapidez, vestiu a calça de mescla e
a camisa esportiva, pôs na cabeça o boné de xadrez, instalou no nariz os
óculos de vidro enfurnado, e foi ver o navio sair para fora da barra, na mais
bela baía do mundo.
Instalou-se no convés, com o binóculo nas mãos jubilosas, e todo ele se
alvoroçou, vendo ilhas, montanhas, lanchas, barcas, entre o Rio de Janeiro e
Niterói, até perceber que o navio passava agora defronte da Ilha Rasa e do
Forte de Copacabana, sob a última luz da tarde.
E não podendo mais conter-se:
— Lindo, lindo. Deus caprichou quando fez esta baía.
E o orgulho de ter nascido debaixo daquele céu, com o Cruzeiro do Sul
a brilhar e sob a proteção do Cristo Redentor, fê-lo pensar na pobre da Tia
Eudóxia, que o queria a seu lado, como objeto de todos os seus mimos e
agrados, e a quem, por fim, como legado de solteirona, deixaria as jóias de
família, as famosíssimas jóias que sempre guardara debaixo de chave, sem
mostrá-las a ninguém, ciumentamente decidida a defendê-las com as mãos em
garra, o nariz adunco e os olhos de águia solitária.
Lamentou-a:
— Pobre Tia Eudóxia, sempre azeda e resmungona, mas gostando de
mim, como se eu fosse o filho único que ela não teve!
Com receio de cochilar e adormecer, e para não correr o risco de
atrasar-se para ocupar o seu lugar à mesa do Comandante, ele se vestiu a rigor
com muita antecedência, passou o pente nos cabelos, aparou com a tesourinha
os pêlos do nariz e das orelhas, sempre meticuloso; perfumou-se, olhou-se da
cabeça aos pés, e instalou-se na poltrona do camarote, com a luz do abajur à
sua esquerda, pernas cruzadas, a dosezinha de uísque ao alcance da mão, na
mesa de centro, à sua direita, o ouvido atento ao aviso da sineta do salão de
jantar.
Como tornara a limpar as lentes de contato, a página do romance de
Agatha Christie lhe pareceu muito nítida, muito clara, e logo ficou à espreita
do astuciosíssimo Poirot, que não tardou a aparecer-lhe, páginas adiante, com
seu cachimbo inglês e sua experiência de detetive que nunca se enganava.
E já o interesse da leitura começava a crescer-lhe, transferindo-o do
camarote do navio para uma ruazinha de Londres, sob a luz de um lampião
quase apagado, quando ouviu retinir, por cima de sua cabeça, o badalo da
sineta de bordo, chamando para o jantar.
Olhou-se ao espelho, espevitou na botoeira o distintivo do Lion 's
Clube, corrigiu o cabelo à altura das têmporas, alteou o peito, olhou-se de lado
para ver melhor o efeito da risca do penteado, e saiu dali lépido, contente,
assobiando.
Os camarotes da primeira classe, de um lado e de outro, entre as
escadas que subiam ao convés ou baixavam ao salão de jantar, davam a
impressão de compor uma rua longa de portas sucessivas, com uma plaqueta e
um número por cima da fechadura reluzente. Reinava ali o cheiro
inconfundível do óleo da limpeza misturado ao odor da comida de bordo,
predispondo ao mareio.
A meio caminho, admirou de relance o salão recolhido da capelinha de
bordo, toda branca, com a estantezinha do Missal no altar de mármore, entre
os castiçais de prata maciça, finamente trabalhados, e que erguiam
verticalmente os três círios por acender. Ao longo da nave, sob a claridade
discreta, as duas orlas de bancos.
Como não queria ser o primeiro a chegar, parou um momento no alto
da escada, simulando interesse pela gravura da parede, que representava uma
cena de caça na floresta, com os cavalos galopando entre árvores imensas,
enquanto os cães corriam perseguindo um coelho, já com dois cavaleiros
assestando a espingarda para o tiro.
Aproximou-se, como interessado em saber agora o autor da gravura,
mas não tardou a endireitar a cabeça, começando a descer para o salão, ao
sentir que outros passageiros vinham descendo, a roçagar a seda e a musselina
dos vestidos longos, enquanto os smokings rescendiam a naftalina e a guardaroupa, às suas costas.
O maitre, magro, alto, muito parecido com o Papa Paulo VI, parecia
comprazer-se nessa semelhança, como a pedir desculpas, à entrada do salão,
com os olhos fundos, muito pálido, por estar de casaca, e não de branco, na
veste talar de Sua Santidade.
E foi ele que prontamente adivinhou, ao ver o Benevenuto a olhar por
cima das mesas, como à procura de seu lugar:
— Mesa do Comandante, Excelência?
— É como diz — confirmou Benevenuto. E o maitre, passando-lhe à
frente:
— Faça o favor.
Ao fundo do salão, de pé, por trás do espaldar da cadeira de braços, o
Comandante Cohen, gordo, vermelho, peito alto, de uniforme branco,
estendeu-lhe a mão por cima da mesa, ao ver o Benevenuto aproximar-se:
— Muito prazer. Estávamos à sua espera.
Já a mesa estava quase completa, com o Comandante ao centro, os dois
Comissários nas extremidades, o médico de bordo, e mais treze passageiros,
entre os quais quatro velhotas francesas, rescendendo a pó de arroz,
decotadas, pelancudas e sorridentes, espalhadas entre seis brasileiros, um
espanhol e um argentino, além de um português bigodudo, mais alto que o
comandante, calvo, com a gravata torta e a camisa a tufar-lhe no peito
colossal.
Não obstante todo o esforço do Comandante e dos Comissários,
auxiliados pelo médico de bordo, as conversas somente se animaram, à mesa
do jantar, quando os garçons encheram generosamente as taças de
champanha, depois de ter sido servido o prato especial de vitela, que o maitre
de chapéu alto, preparou ali mesmo, diante das chamas que lambiam a
frigideira.
E o Benevenuto, loquaz, apresentando-se, após saber que os brasileiros
eram pessoas abastadas, residindo em São Paulo, em Minas Gerais e no
interior do Rio de Janeiro, e que o espanhol vinha de Paris, onde morava, e
que uma das francesas era Marquesa de alguma coisa, que o português vendia
vinhos chilenos e que o argentino, exilado político ao tempo dos militares no
poder, estava afinal de volta a Buenos Aires, a chamado do governo:
— Não me levem a mal, se eu lhes digo, lealmente, sinceramente, que
eu, rico, folgado, solteiro, pintor nas horas vagas, jogador de pólo, sou apenas
um filhinho de mamãe, criado com muitos mimos, já órfão, e a caminho da
fazenda da Tia Eudóxia, que se queixa de que vai morrer, desde o ano
passado, e agora me prometeu que morre mesmo, assim que eu chegar à
cabeceira de sua cama e ela me entregar as jóias da família.
E ante o riso e o espanto dos circunstantes, sobretudo do Comandante
e do médico de bordo, que o fitavam de modo interrogativo, com a boca
entreaberta:
— E como sei que minha tia vai viver por muitos anos, sendo bem
capaz de me enterrar, e aos outros sobrinhos, e filhos de sobrinhos, aqui vou
eu, sabendo que, se trouxer as jóias de família, como espero, hei de pular
como nunca neste carnaval.
As palmas soaram, enquanto o português, alto, ombrudo, mão imensa,
estendia o braço por cima da mesa:
— Meus parabéns, se trouxer as jóias, e meus pêsames, misturados a
parabéns, se a D. Eudóxia morrer como promete.
Um dos Comissários, que falava fluentemente o castelhano, dirigiu-se
ao Benevenuto, depois de ouvir o Comandante, que ainda ria forte, batendo
palmas:
— O Comandante Cohen lhe propõe pular aqui mesmo, na volta do
navio, quando haverá a bordo, entre Santos e Rio de Janeiro, uma grande festa
de carnaval, com a presença de quase todos os que estão nesta mesa.
E Benevenuto, que deixava sentir no brilho dos olhos esverdeados o
efeito do champanha:
— Combinado, Comandante. Pularei aqui, na volta do navio.
Dali, a convite do Comandante, e depois de tomarem o café, que o
maitre louvou previamente, com a mão para cima, juntando dois dedos, como
numa bênção papal, subiram para o Salão de Festas, que o convés superior
rodeava, com seu espaço largo para as caminhadas higiênicas e a orla de
cadeiras de lona para o relax dos banhos de sol.
Ao subirem, o Pastem começara a balançar. Estaria a percorrer agora
um trecho de ondas mais fortes? Ou enfrentaria, lá fora, as surpresas de um
temporal? O certo é que, na subida da escada, a Marquesa pediu ao
Benevenuto, antes de galgar o primeiro degrau:
— Subimos juntos?
E o Benevenuto, solícito, já com o braço preparado para levá-la escada
acima:
— Para mim é uma honra, Marquesa.
E a velhota, com a nova camada de pó-de-arroz da toalete retocada ao
saírem da mesa:
— O meu bom amigo é muito gentil.
E subindo devagar, com o corpo a deixar boa parte de seu peso no
braço pressuroso:
— Já fez trinta anos?
— Trinta? Suba, Senhora Marquesa. Suba. Passe os quarenta, faça uma
pausa nos quarenta e três. Quarenta e três anos. Com direito a ter mais,
porque a família, do lado da Tia Eudóxia, que é o lado de minha mãe, é
longeva. Vai aos noventa sem precisar dieta. E com a cabeça clara, o que é
ainda melhor. Aos quarenta e três, é como se eu tivesse vinte e cinco.
Descontada a dor na coluna, que de vez em quando me belisca, nas horas em
que eu daria tudo para não me lembrar que ela exista.
E a Marquesa, subindo com lentidão:
— Console-se com as minhas pontadas, aqui do lado direito, e com as
minhas enxaquecas, que de vez em quando me atormentam. E peça a Deus
que o livre do reumatismo, que é a pior doença do mundo.
E arregalava os olhos pulados, horrorizada.
Lá no alto, pararam, deixaram passar outros pares, outros casais. Um
dos garçons que havia servido à mesa do Comandante, e era magérrimo, com
umas costeletas brancas contrastantes com o negror do resto da cabeleira
abundante e fofa, pálido, no tom do marfim antigo, também passou, levando a
bandeja repleta de garrafas e copos:
— Por favor.
E orientou-se no sentido do Salão de Festas, logo contido pela
Marquesa, que lhe disse, chamando-o com a ponta do leque:
— René, não te esqueças de minha infusão. Entre o patamar da escada
e o salão, não era grande a distância. Dali já se ouviam os primeiros acordes de
um sambinha brasileiro que a orquestra começara a tocar.
E a Marquesa, mais vagarosa, como se quisesse retardar a caminhada
perlongando o navio:
— Fiquei muito interessada em conhecer as jóias antigas de sua Tia
Eudóxia. Eu me interesso muito por jóias. Uma por uma, conheço as da
Rainha da Inglaterra. O falecido Rei Faruk, sempre que comprava jóias novas
para as suas amantes, ia à minha casa, em Versailles, para que eu as visse e
dissesse o que valiam. Sua Majestade, logo depois, consultava um joalheiro da
Praça Vendôme, muito seu amigo, e pessoa de toda a sua confiança. O
próprio joalheiro me telefonava: — Marquesa, a sua avaliação foi perfeita.
Parabéns.
E parando, como se a caminhada a houvesse fatigado:
— Na certa, as jóias de sua família têm uma história: ou todas, no seu
conjunto, ou cada uma, de per si. Não há jóia antiga sem história. E umas
trazem sorte; outras, malefícios. Convém separar. E só usar as que dão sorte.
O Benevenuto sorriu largo, desprendido:
— E a Senhora Marquesa acredita nessas histórias?
— Como acredito no senhor, aqui na minha frente. E como não sou
menina, já vi muito caso realmente assombroso. Tenho um anel de ametista
realmente estupendo. Ninguém pode usá-lo. Um de meus sobrinhos, moço
bonito, esportivo, tanto me azucrinou o ouvido, a propósito desse anel, que
eu, para me ver livre da insistência dele, dei-lho, com estojo e tudo, no dia de
seu aniversário. 31 de julho. Meu sobrinho pulou, de contente. Jade anel no
dedo. Felicíssimo.
Um silêncio.
E a Marquesa, com um semblante consternado:
— Primeiro, o Lucas teve um desastre de automóvel, na estrada, entre
nossa casa e o seu hotel. Segundo, como se não bastasse o desastre, em que
quase perde a vida, meteu-se num rolo com marginais perigosíssimos.
Resumindo tudo: não voltou para o hotel. Dali mesmo, morto, foi levado para
a capela.
A entrada do salão, Benevenuto passou adiante, escancarou a porta,
ficou parado esperando a Marquesa entrar, e a levou à poltrona que ela
própria indicou com o leque:
— Ali.
E esparramou-se na cadeira, ancha, a seu gosto, com as pernas
estiradas, um pé em cima do outro.
Já instalada, segurou o punho do Benevenuto, que distribuía
cumprimentos, olhando em volta:
— Como o senhor vai voltar conosco, tomando o navio em Santos
para descer no Rio, terei tempo de olhar suas jóias. Faço questão de vê-las.
Se quiser, posso avaliá-las.
E baixo, puxando-o mais para perto:
— O senhor gordo, e calado, que sentou à mesa ao lado do senhor, é
joalheiro. Em Genebra. E a senhora Aubin, que sentou à direita do Primeiro
Comissário, fabrica jóias. Em Lausanne.
Encheu o papo, alteando os seios, e logo se formalizou, séria,
prendendo a respiração, como se escolhesse as palavras antes de volver a falar.
Por fim, decidindo-se, abriu e fechou o seu leque espanhol, tornou a sorrir e
inclinou a cabeça, com os olhos no Benevenuto:
— Isso quer dizer que o meu bom amigo tem, aqui a bordo, quem
possa apreciar as suas jóias.
E ele, ainda alegre, com uns restos de animação que lhe subira à cabeça
no derradeiro gole de champanha:
— É uma razão a mais para trazê-las comigo, na volta do navio. Sem
elas, não saio da casa da Tia Eudóxia. E com elas, triunfante, entro neste
salão.
A Marquesa tornou a segurar-lhe o braço, chamou-o mais para perto. E
numa voz sussurrada, ao pé da orelha:
— Aqui, não. Não faça essa loucura. No seu camarote. E para poucos
amigos. Com jóias antigas, toda cautela é pouca.
Por volta da meia-noite, graças aos golinhos de licor com que
prolongou a sua vigília no Salão de Festas, sem muito interesse pelo jogo de
prendas de que até o Comandante Cohen participava, a Marquesa anunciou,
depois de um bocejo longo, que ia recolher-se ao seu camarote.
Benevenuto, solícito, ofereceu-lhe o braço:
— Posso levá-la?
— Senão se importa de fazer a corte a uma velha senhora...
— Pelo contrário. E com muito gosto.
A caminhada longa e vagarosa, depois de descerem a escada de dois
lances, foi divertida. A sonolência da Marquesa como que se desfez no passo
lento, de início perlongando o convés, depois seguindo pela ala de camarotes
sucessivos, na direção da proa.
E Benevenuto, alarmado:
— A proa não lhe faz mal aos nervos, Marquesa, com o navio subindo
como se fosse voar e descendo como se fosse naufragar?
E ela, risonha:
— Pelo contrário, anima-me. Anima-me e dá-me sono. Gosto de sentir
o perigo. Relaxa-me. Depois vem o sono. O sono sereno, profundo,
repousante. Só viajo em camarote de proa. De preferência em alto-mar.
Quando o navio joga, sinto-me no meu elemento. Já experimentou passar de
navio pelo Triângulo das Bermudas? Não sabe o que perdeu. É uma viagem
inesquecível. Dizem que, de avião, há também surpresas boas, como os
vácuos repentinos, os remoinhos de vento, as tempestades. Não digo que não.
Mas acho que de navio a emoção é mais forte. O abismo está ali, debaixo de
nossos pés. E com o mar rugindo e o navio a pular como um cabrito. Estive
lá ano passado. Ano que vem, vou voltar.
E parando um momento, para olhar o Benevenuto com a cabeça
inclinada, como em desafio:
— Quer vir comigo?
E Benevenuto, alarmado:
— Com a Senhora Marquesa, eu viajarei sempre com muito gosto, mas
não para passar pelo Triângulo das Bermudas. Só de pensar em semelhante
aventura, meu coração se acelera.
A Marquesa riu forte, ao mesmo tempo em que se firmava mais no
braço do Benevenuto, segurando-se contra o balanço do navio, e toda ela
como que se reanimou, desfazendo-se da sonolência:
— Só assim meu sono ia embora.
E como estavam no topo da escada que descia para o começo da orla
dos camarotes de primeira classe, ela sustou a descida, amparando-se no
corrimão do patamar, e perguntou ao Benevenuto, ainda rindo:
— Vai dormir? Ou ainda podemos conversar? Aqui? Ou no meu
camarote? A escolha é sua. Se preferir o camarote, tem lá uma boa poltrona, à
sua espera. Na minha idade (e voltou a rir), não se corre mais perigo de ser
mal falada.
E Benevenuto, galante:
— Não corra esse risco, Senhora Marquesa. Olhe que eu, nestes meus
quarenta e três, ainda sou de fácil combustão. É com rapidez que me inflamo.
A velha dobrou a risada:
— E olhe que lenha velha queima sempre mais depressa.
Mas, no camarote, já com o Benevenuto instalado na poltrona, à
cabeceira de um dos beliches, ela se instalou de novo na sua idade e na sua
condição de velha fidalga, embora houvesse trocado os sapatos pelos
chinelinhos da noite, enquanto derramava em dois cálices o licor da garrafa
bojuda que sempre a acompanhava nas viagens.
E passando um dos cálices ao Benevenuto:
— Vai gostar deste licor. É de minha quinta, em Portugal.
E como se tentasse avivar a própria memória:
— Já lhe disse que tenho uma quinta em Portugal? E verdade: tenho:
uma bela quinta, que me deixou meu marido, no Algarve. Nunca deixo de ter
comigo este licor.
E Benevenuto, sorvido o primeiro gole:
— Não é apenas bom, Senhora Marquesa: é divino.^
— É divino — concordou ela, sorvendo todo o seu cálice de uma vez,
com uma luz mais viva nos olhos pestanudos.
E sentando-se na borda do beliche:
— Sabe que fiquei muito curiosa de saber alguma coisa da sua Tia
Eudóxia. Eudóxia, não? E assim mesmo que se pronuncia o nome dela? Mais
velha que eu? Não esqueça que já fiz setenta anos. Mas não há muito tempo.
— Minha Tia Eudóxia é exatamente o contrário. Fez setenta anos há
muito tempo. Está chegando aos oitenta. Mas não sei se chega lá. Pela voz
dela, pelo tom de sua última carta, acho difícil. Ela mesma disse que está nas
últimas. Que eu, se não chegasse depressa, iria encontrá-la no cemitério. Ou
com a vela na mão.
E Benevenuto concluiu, passando rapidamente do tom pesaroso ao
tom jovial, depois de sorver novo gole do licor:
— Agora, é possível que sim. Ou uma coisa, ou outra. Mas também
pode ser que nem uma coisa, nem outra. Porque a Tia Eudóxia, assim como
se mete na cama para morrer, também se levanta para saber como vai a
colheita de seus cafezais.
E a Marquesa, alteando a cabeça curiosa:
— Ela é então muito rica. Além da coleção de jóias antigas, é
fazendeira de café. E tem filhos? E marido?
Benevenuto sacudiu a cabeça, negando. Não, não tinha filhos. Nem se
casara. Ou melhor: tivera os seus casos, mas sem se casar. E quanto a filhos...
E o Benevenuto, cruzando as pernas:
— Eu.
E emendando, depois de uma risadinha:
— Filho de criação, Senhora Marquesa. Porque foi a Tia Eudóxia que
me criou, que me educou, que me fez estudar na Europa, que me mandou
para os Estados Unidos. Quando voltei, não me deixou ir para a fazenda.
Achou que eu era educado demais para ser fazendeiro. Instalou-me no Rio de
Janeiro, na Avenida Atlântica. Fez de mim seu procurador, para as ligações
internacionais de seus negócios de café. E agora, mais uma vez, sentindo que
está nas últimas, quer que eu traga da fazenda as jóias da família.
Ele próprio tornou a servir-se do licor:
— Com a sua licença, Marquesa.
E após sorver outro gole:
— Na minha família, as jóias sempre couberam ao solteiro mais velho.
Ou solteira. Tanto faz.
Pôs a mão no peito, inclinou a cabeça:
— Depois da Tia Eudóxia, ficarão comigo. Minhas duas irmãs (que
moram em São Paulo), meus primos (que estão em toda parte, porque a
família é grande) e meus sobrinhos, além de mais novos do que eu, estão
casados. O solteiro teimoso sou eu. Eu e minha tia.
E a Marquesa, passado um silêncio:
— E são muitas essas jóias?
E o Benevenuto, como se exagerasse:
— Encha um armário, e mais outro. Ouro e prata. Platina. Pedra
preciosa. E um brilhante de fazer cair o queixo do joalheiro mais rico do
mundo.
A Marquesa aumentou os olhos ao máximo. E exibindo perto da
lâmpada do beliche o brilhantão que tinha no dedo:
— Maior que este, que me deu o Faruk?
Benevenuto ficou de pé. E reprimindo o bocejo na costa da mão:
— Sim, sim. Quase o dobro.
Na manhã seguinte, quando desceu ao salão para o café, Benevenuto só
encontrou à mesa do Comandante o português alto, ombrudo, peitudo,
cabeludo, e que lhe contou, retardando ainda mais a lentidão com que
dobrava o guardanapo, já servido:
— A Senhora Marquesa esperou até há pouco pelo bom amigo. Só não
esperou mais porque va mos descer em. Santos logo depois do meio-dia e ela
foi se preparar para o desembarque.
E com o guardanapo dobrado, enxugando os cantos da boca:
— A Senhora Marquesa passou toda a noite em claro apensar nas jóias
antigas que o meu caro amigo vai receber de sua tia moribunda. Disse ela que
não conseguiu dormir, mesmo com tranqüilizante.
E dois de nossos companheiros, patrícios do senhor, confirmaram o
alto valor das jóias, que já teriam sido expostas em Petrópolis, no Museu
Imperial.
Benevenuto corrigiu:
— Uma parte apenas. A mais valiosa, talvez.
Mas apenas uma parte.
E envaidecido:
— Creio que só a Rainha da Inglaterra terá uma coleção mais rica que a
da Tia Eudóxia.
— Acredito — aquiesceu o português, entrelaçando os dedos em cima
da borda da mesa.
E assim que o garçom se afastou:
— Posso lhe dar um conselho? Não me leva a mal? Redobre os
cuidados com as suas jóias. Toda cautela é pouca. O mundo está cheio de
gananciosos e invejosos. Recate-se. Num navio como este, repleto de
passageiros, podem vir ladrões internacionais. Podem. Perfeitamente. O
verdadeiro ladrão é um mágico. Furta-nos ou rouba-nos com extrema
habilidade. Sem deixar rastro. Sem que a vítima perceba. Quando percebe, já
está roubada.
A notícia de que o senhor vai ao interior de São Paulo receber jóias de
família já se espalhou pelo navio. É verdade: já se espalhou. Como, não sei.
Mas todo mundo, aqui, sabe que, na volta do navio, o senhor levará
para o Rio de Janeiro as jóias de sua Tia Eudóxia. Sabe quem me falou sobre
isso? O meu camaroteiro. O homem que limpa o meu camarote.
Benevenuto, que ia rindo, recolheu o riso, ficou uns momentos de boca
entreaberta, a olhar para o português.
E conseguindo reagir à surpresa:
— Se não foi o Comissário de bordo que deu com a língua nos
dentes, foi o próprio Comandante. Falei aos dois, logo depois de nossa
partida. Eu queria saber como deveria proceder, no meu regresso, quando
trouxesse comigo as jóias que estou indo buscar. O Comissário me respondeu,
com bom humor: — Trazendo-as num malão igual ao que entrou aqui com a
sua bagagem. — E o Comandante, com ar de espanto: — E são muitas,
cavalheiro? — Sim, — respondi. E ele, compreendendo aonde eu queria
chegar: — Neste nosso navio, desde que assumi o Comando, nada
desapareceu. — E para me tranqüilizar: — Não seria agora que ia desaparecer.
O português, que parecia ir arredar a cadeira para levantar-se, continou
sentado, como se quisesse dizer alguma coisa a mais ao Benevenuto, que se
comprazia em pôr na fatia de pão uma camada de manteiga, calmo, senhor de
si.
E decidindo-se:
— Releve-me se lhe dou um conselho: confie, desconfiando. Não sou
tão otimista quanto o nosso Comandante. Rouba-se a bordo como se rouba
em terra firme, desde que venha no navio, ou como passageiro, ou como
tripulante, ou como clandestino, um ladrão competente.
E o Benevenuto, com a boca cheia:
— O senhor, no meu caso, como faria?
— Primeiro, não diria a ninguém que ia pôr a bordo, na minha volta ao
Rio, um baú de jóias. Segundo, iria ao Comandante, já embarcado,e entregaria
a ele, na presença do Comissário, esse baú. Entregaria mediante recibo, com
as jóias conferidas, uma por uma.
E como o maitre se aproximava, com seu ar de santidade, exibindo na
luz do salão a sua semelhança com Paulo VI, logo o português se calou,
fazendo ao Benevenuto um rápido sinal para que mudassem de assunto.
Inútil. Benevenuto, cheio de si, sempre mastigando, lançou ao português um
olhar divertido:
— E se o Comandante, que é, aqui, senhor absoluto, se recusasse a
assumir a responsabilidade das jóias no seu navio?—perguntou-lhe, sabendo
que o confundiria.
E o outro, assim que Paulo VI se afastou:
— Faria voltar o navio. I-me-di-a-ta-men-te.
Benevenuto, que tinha dado outra mordida na fatia de pão repleta de
manteiga, olhou o companheiro, com ar divertido, enquanto refletia: — Como
este camarada é burro. Fazer voltar o navio, como? Ou será que ele pensa,
com essa cara vermelha, esse cabelo de escova, bigodudo, peitudo, espadaúdo,
que lhe basta dar um berro no Comandante para o navio dar marcha à ré?
Tinha graça. E quando pôde falar:
— E se o Comandante lhe sorrisse em vez de lhe atender?
— Segurava-o de frente, com toda a força de que sou capaz. E fazia o
navio voltar, ou por bem, ou por mal.
Benevenuto quase se engasgou com o pedaço de pão que acabara de
mastigar. E ia continuar a rir, olhando a cara do português, quando reparou
que este, com ar feroz, parecia estar abotoando o Comandante, com a
intenção lusitana de atirá-lo ao mar. Depressa, recolheu de novo o riso. E
sério, olhando para ò resto da fatia de pão:
— Não leve a mal o que lhe vou dizer. Sempre fui um homem
franco, aberto, e que nada tem para esconder. Tudo às claras. Nada de
sombras nem de penumbras. Um livro aberto. Sou como sou. Se as jóias de
minha Tia Eudóxia passaram a ser minhas, e se vou no navio com elas,
metidas num baú (se couberem), e fechadas com chave de segredo, ponho a
chave no bolso, fecho a porta do camarote, guardo também no bolso essa
outra chave, e quero ver quem é que põe a mão nas jóias da Tia Eudóxia, por
mais fino e malandro que seja.
E tornando a erguer o olhar para o português, que se limitou a replicarlhe, já de pé, por trás da cadeira:
— Cada um de nós sabe o que faz. E afastando-se:
— Melhoras para a senhora sua tia. Benevenuto ergueu do assento da
cadeira as nádegas contentes, com uma expressão feliz no semblante
descontraído:
— Que os anjos lhe digam: amém.
O carro da Tia Eudóxia, com que se fazia a ligação entre a fazenda e a
cidade, era um Ford pré-histórico, de carroceria alta, motor de manivela,
aberto, sem proteção lateral, e contra o qual investiam os cães, ao longo da
estrada, como se estivessem a latir para um fantasma. Ou melhor: contra dois
fantasmas, quando levava a própria Tia Eudóxia, repimpada no assento
traseiro, com seu vestido no meio das pernas finas, magra e seca, um lenço
estampado na cabeça.
Na direção, com seus imensos bigodes e seu chapéu de couro, o fiel
Frederico, cinqüentão robusto, dedicadíssimo, pronto para todo serviço, e
homem de confiança da velha, a quem esta podia entregar tranqüilamente um
cheque em branco, sabendo que ele somente lhe sacaria da conta bancária o
que fosse estritamente necessário para cobrir as despesas que lhe ordenava.
Pelo sim, pelo não, embora soubesse que toda gente protegia Tia Eudóxia, nas
muitas léguas em redor da fazenda, sempre pronta a sair em sua defesa, trazia
ele, no assento do banco, ao alcance da mão resoluta, o seu velho revólver de
cano longo, sempre limpo e azeitado, com o qual seria capaz de acertar uma
mosca voando diante de seus olhos.
E foi ele que o Benevenuto viu no cais do porto, à sua espera, de
braços cruzados, a olhar para cima, assim que o navio se aproximou do
armazém em que iria atracar. Não vendo ali a Tia Eudóxia, nem perto nem
longe, concluiu que a velha, de fato, já estaria com o pé na sepultura.
— Desta vez ela não está fingindo — admitiu, com uma ponta de
piedade, e de pesar, reconhecido ao muito que lhe devia e a que jamais se
lembrara de retribuir.
E suspirando, para desculpar-se:
— É a lei da vida: uns vão, outros ficam. Chegou a hora da Tia
Eudóxia. Como também chegará a minha. Só espero em Deus que custe a
chegar.
E para o português, que lhe batera no ombro:
— Eu estava à sua procura. Para me despedir do bom amigo. E lhe
dizer que, no Rio, ou aqui, pode contar comigo, se precisar. Aqui tem meu
cartão de visita, com endereço e telefone, no Rio.
E apressado, já com a máquina fotográfica a lhe pender do ombro,
pronto para descer, perguntou-lhe se tinha visto a Marquesa.
— Sim — confirmou o português.— E ela também me perguntou pelo
amigo. Deixei-a lá em baixo, com o Comandante.
Benevenuto tornou a apertar-lhe a mão, expansivo, borbulhante,
repetindo a despedida, e correu na direção da escada que levava ao portaló.
Pelo caminho, sempre efusivo, foi apertando a mão de outros passageiros. E
quando avistou a Marquesa, acelerou o passo, parou, bateu palmas, e foi para
ela de braços abertos:
— Eu não ia desembarcar enquanto não a encontrasse.
Apertou-a contra o peito, sentindo-lhe os seios grandes, moles, por trás
da seda do vestido e dos colares, mal contidos pelo sutiã folgado, e mais a
carne mole dos braços, em contraste com a pele espichada do pescoço e da
papada.
E ela, como a abandonar-se nos braços dele, enlanguescendo os olhos,
deixando-se apertar:
— E eu a procurar o meu bom amigo, como uma louca, subindo
escada, descendo escada. Quero-lhe falar. Para lhe fazer um pedido.
E como houvesse muita gente no portaló, já com o navio bem perto do
cais, levou-o para outro lado do convés, deu aos olhos pintados uma
expressão suplicante:
— Não me leve a mal o que lhe vou dizer. Primeiro, uma pergunta: vai
voltar mesmo conosco?
— E no mesmo camarote, Marquesa. Com a passagem aqui no bolso.
E ela, alvoroçada, baixando a voz, depois de olhar em volta para se
certificar de que ninguém mais a ouvia:
— E trazendo as jóias da senhora sua tia?
— Para isso estou aqui. E só mesmo um motivo assim me faria deixar
de participar do desfile de fantasias de luxo, no carnaval do Rio, este ano,
sabendo que ninguém me tomaria o primeiro lugar, quando eu aparecesse no
meu traje de Luís XIV. Transferi minha vitória para o próximo ano. Agora,
para mim, o importante é receber as jóias de minha Tia Eudóxia, que está nas
últimas, só esperando por mim para atender ao chamado de Deus, lá em cima.
E Benevenuto, ora sério, ora risonho, ora pesaroso, ora gaiato, segurava
agora as mãos da Marquesa, com a cabeça inclinada para um lado, os olhos
mais vivos.
A Marquesa pareceu espevitar-se, depois de um momento de
apreensões em que tornou a olhar em volta, para certificar-se bem de que
estavam sós, enquanto a orquestra de bordo emendava canções francesas:
— Posso lhe dar um conselho? Conselho de amiga? E de amiga que
sentiu, de ontem para hoje, que você e eu fomos postos no mundo para nos
entendermos, para nos ajudarmos. Como se fôssemos velhos amigos. Ouça
bem: não fale mais nas suas jóias. A ninguém. Você falou demais. Hoje, à
mesa do café, só se falou nas suas jóias. E eu fiz questão de admitir que, no
meu modo de entender, com o pleno conhecimento dos homens, sobretudo
dos homens sul-americanos, você não vai trazer jóia nenhuma. Que tudo
quanto você nos disse não passa de uma fantasia.
E Benevenuto, melindrado, largando as mãos da Marquesa:
— Oh, Marquesa! Que é que está me dizendo? Mentir, eu? Jamais. Sou
muito cioso do que digo. Se disse que vou trazer as jóias de minha família, vou
trazer as jóias de minha família.
A Marquesa segurou-lhe as mãos:
— Espere. Não ferva com pouca água. Não há razão para irritar-se.
Mas você, embora traga as jóias, vai dizer que não as trouxe. Que sua Tia
Eudóxia melhorou e que as jóias da família, por isso mesmo, continuaram
com ela.
E séria, grave, numa voz sussurrada:
— Eu tenho interesse nas suas jóias. Tenho. Um imenso interesse.
Podemos fazer uma fortuna com elas. Conheço o mercado. Sei a quem
podemos vendê-las. Sem impostos. Caladinhos. E como vou trazer comigo,
de Buenos Aires, um sobrinho meu, que é joalheiro competentíssimo, embora
moço como você, ele nos vai dizer, com o rigor de um expert, de um
profissional, o quanto vale, neste momento, cada uma das jóias de sua tia.
E aproximando mais o rosto:
— O essencial é ficar calado. Nada de falar. Segredo absoluto. Mesmo
porque, aqui para nós, eu desconfio de muita gente, aqui no navio. E de nossa
própria mesa. A começar pelo Comandante. Sim, pelo nosso próprio
Comandante, com quem estive conversando há pouco, antes que você
chegasse. Também gosta de jóias antigas.
Meia hora depois, quando já ia descer do navio, acompanhando o fiel
Frederico, sempre de chapéu desabado na cabeça, e do carregador que lhe
levava o baú de viagem, Benevenuto apertou com efu-são a mão papuda do
Comandante, esperando que este lhe dissesse alguma coisa sobre as jóias:
— Até a volta, meu bom amigo. Grato por tudo. E o Comandante,
olhando-o nos olhos:
— Não se esqueça de nosso baile à fantasia. E o Benevenuto, leviano e
serelepe:
— Mesmo que a velhinha morra, hei de pular. Ela, lá em cima, saberá
me compreender. Conte comigo.
E ambos riram alto, gostosamente, enquanto Benevenuto ia descendo a
escada do portaló.
Lá embaixo, seca, magra, com o eterno lenço na cabeça a lhe esconder
o cabelo ralo, Tia Eudóxia, em pessoa, estava à sua espera:
— Boa viagem, Benevenuto?
E ele, ainda espantado:
— Melhor ainda, quando vejo a senhora, aqui, à minha espera.
— Melhorei, e vim te buscar. Podia ser que te arrependesses de ter
vindo, e daqui mesmo qui-sesses voltar. Pelo sim, pelo não, agora não te deixo
me escapar.
E para o Frederico, que afinal tirara o chapéu, depois de lhe pedir
licença, submisso:
— Vamos embora.
E ela mesma deu ordem ao carregador para que pusesse no carro, do
outro lado da estação, o baú do sobrinho.
Segurou o Benevenuto pelo braço, impelindo-o para a frente. E ele,
reconhecendo-lhe a força e a energia:
— Afinal de contas, que é que a senhora teve?
Ela esteve a ponto de melindrar-se:
— O que é que eu tive ou o que é que eu tenho? O que eu tenho são os
meus oitenta anos, a completar no próximo domingo. Tu, com a tua boa vida,
não virias aqui, se eu não usasse de astúcia para te trazer, com os dois
telegramas que te passei, assinados pelo Frederico. Se demorasses mais um
pouco, ias ter outro telegrama, assinado por mim, com a notícia detalhada de
meu enterro — para te pôr em brios, já que não levas muito a sério tuas
obrigações de família.
Benevenuto protestou:
— Não diga isso, minha tia. Por favor, faça-me justiça. Nunca deixe de
dar o merecido valor ao carinho que devo ter para com a senhora. Deus, lá em
cima, e que me está ouvindo, sabe que estou dizendo a verdade.
E a velha, defronte do calhambeque:
— Benevenuto, olha bem para mim. Vieste à festa de meus setenta
anos? Não. À festa dos sessenta? Também não.
E ele, justificando-se:
— Eu estava em Boston, acabando meu curso de economia, e ia fazer
uma prova dificílima, quando a senhora me chamou para a festa dos seus
sessenta anos. No dia, antes da prova, passei-lhe um telegrama.
E a velha, instalando-se dentro do carro:
— Telegrama esse que só chegou às minhas mãos uma semana depois,
e com o agravante de que tu o havias passado na véspera, sem falar que já
tinhas transferido a passagem para um de teus amiguinhos americanos, que
veio ao Rio, foi a São Paulo, e nem ao menos me telefonou, para agradecer a
viagem que havia feito com o meu dinheiro. Benevenuto não se deixou
vencer:
— O pobre do Spencer tinha perdido o padrasto, e eu lhe proporcionei
a viagem para consolar o coitado. Disse-lhe isso mesmo, detalhadamente,
numa longa carta.
E ela, completando:
— Carta essa que nunca me chegou às mãos e de que, só agora, estou
tendo conhecimento.
E para passar uma esponja no passado:
— Esquece isso, Benevenuto. O importante, agora, é que estás aqui,
para os meus oitenta anos. E para te dar uma má notícia: não vai haver festa.
Aos oitenta anos, convém não comemorar: dá na vista, desperta a ira dos
invejosos. O melhor mesmo é restringir a comemoração. Eu, com a prudência
que me caracteriza, e que sempre deu certo, só vou comemorar os meus
oitenta anos contigo e com o Frederico. Mais ninguém. E reduzindo tudo a
um bonito bolo, que eu mesma vou preparar e confeitar, com oito velinhas:
uma para cada dez anos.
E o Benevenuto, entusiasmando-se:
— E fique sabendo que vou cantar o Parabéns pra você como nunca
cantei. A mesa da fazenda. Com voz forte. Para se ouvir em Santos.
Embora desapontado com a boa saúde da velha, Benevenuto conseguiu
compor a sua cara de circunstância, dizendo-lhe o que não pensava:
— Só eu sei a alegria que estou tendo em ver a senhora tão bem
disposta. Confesso-lhe que vinha preparado para chorar. Estou vendo agora,
com imenso alívio, que a senhora está ótima.
E a Tia Eudóxia, com a famosa risadinha que lhe soava no fundo da
garganta, sem lhe mostrar os dentes:
— Eu acredito no que estás me dizendo como se fosse verdade.
Obrigada, Benevenuto.
E repetiu a risadinha, logo acompanhada pela risadinha dele, que ele
mesmo prontamente reprimiu:
— Hoje, com o adiantamento da medicina, só morre quem quer. Basta
ter um bom médico, em dia com os progressos da medicina, para a vida se
prolongar indefinidamente, com os remédios adequados. Se depender de mim,
a senhora ficará para semente. E eu também, que também sou filho de Deus e
me sinto muitíssimo bem nesta vida e neste mundo.
Entretanto, a cada instante, só lhe vinha à consciência este pensamento
teimoso: "Pelo visto, vou voltar da fazenda com as mãos abanando, sem levar
das tais jóias de família um anel, uma pulseira, um brochezinho mixuruca.
Esta só a mim acontece".
E resignando-se:
— Seja tudo o que Deus quiser.
E a velha, que continuava a ouvir de modo realmente assombroso:
— Deus quer que eu continue viva, e bem disposta, e eu vou fazendo a
vontade de Deus, que é também a minha e a tua, Benevenuto.
E tornou a repetir a risadinha do fundo da garganta, como se fosse um
cacarejo demorado.
E ele, mentindo, para tentar sondar a velha sobre as jóias da família:
— Conheci a bordo, na viagem para cá, uma senhora muito fina, muito
culta, muito elegante, e bonita, além de ser fidalga, e que gostou muito de
mim. Imagine que se trata de uma Marquesa. Marquesa. Eu nunca tinha falado
com uma Marquesa. Pensei que Marquesa só existia nos velhos romances e
nos livros de história. Agora, sei que existe mesmo. Bonita, beirando os
cinqüenta anos. Não me largando. Agora, ouça: tem uma coleção de jóias
antigas, como a senhora.
E a Tia Eudóxia, com rapidez:
— Viste as jóias dela?
Benevenuto aumentou a negativa:
— Nã-nã-nã-o. Mas é como se tivesse visto. Fiquei até com medo de
que suplantasse as da senhora.
Tia Eudóxia espetou nos olhos do sobrinho o seu olhar duro e
perfurante:
— Duvido muito.
E sacudindo para longe a conversa:
— Vamos mudar de assunto, para eu não me aborrecer. Fica sabendo
que a minha coleção, com jóias de uma única família, no correr de três séculos
e meio, é única do mundo. Sem rival. Quem disser o contrário só diz isto para
me chatear.
Benevenuto encolheu-se no fundo do carro, humilde:
— Não está aqui quem falou. Desculpe.
Agora, como ia ser quando voltasse ao navio? Diria que a Tia Eudóxia
tinha mudado de idéia, resolvendo não morrer? Ou simplesmente confessaria
que as tais jóias de família, de que a tia tanto falava, lhe tinham parecido tão
ordinárias, tão vulgares, apesar de velhas, que achara melhor deixá-las mesmo
na fazenda?
E reconhecia:
— Vou acabar passando por mentiroso.
E com que cara sentaria novamente à mesa do Comandante? Eram em
que davam as astúcias excessivas de seu amigo Nagibe. Porque o culpado de
tudo era o Nagibe. Se tivesse viajado como outros passageiros, sentando-se
numa mesa discreta, não teria dado com a língua nos dentes, exagerando o
valor e a antigüidade das tais jóias de Tia Eudóxia.
De esguelha, por entre as sacudidelas do fordeco teimoso na estrada de
terra, olhava para a velha, ali ao seu lado, dura, tesa, e cochilando, de boca
entreaberta, olhos cerrados, sem sentir as sacudidelas do calhambeque nas
valas e nos buracos do caminho. E rematava, irritado:
— Não sei como é que ela, como as velhas feiticeiras, não prefere
ao automóvel de museu o cabo de vassoura, para ir da fazenda à cidade e da
cidade à fazenda. Além de ser mais rápido, como transporte, não devia sacudir
tanto quanto este camelo.
Mas tinha de tirar o chapéu à velha senhora: estava preso na ratoeira, só
podendo voltar no domingo, depois de cantar o Parabéns pra você, diante das
oito velas acesas. E que ia fazer, na monotonia da casa grande, durante o
tempo que ali ia passar? Sem gosto para a vida no campo, odiando boi e vaca,
tendo um grande medo de cobras, alérgico a banhos de rio, odiando coalhadas
e leite mugido, e sendo vítima predileta de mosquitos e carapanãs, antevia o
suplício dos longos dias de cárcere privado, com a Tia Eudóxia a lhe servir de
carcereira, e a lhe repisar as velhas histórias de bailes e de caçadas de seu
tempo de moça, que ele já sabia de cor.
E suspirava:
— Era só o que me faltava. Esta só a mim acontece.
De repente uma solução lhe acudiu para seu regresso: em vez de voltar
no Pausteur, com tanta gente a lhe cobrar as jóias da família, tomaria outro
navio, ainda que tivesse de ficar mais uns dias em Santos, num quarto de
hotel. E acharia outro navio? Ou optaria por ir de trem até São Paulo, para
tomar ali o expresso noturno que o devolveria ao Rio de Janeiro?
Consolou-se, como se afagasse o próprio pêlo:
— Quanto mais depressa eu voltar, melhor.
Doía-lhe terrivelmente o carnaval perdido. Perdido o desfile de
fantasias de luxo, no Rio. Mas lhe doía perder também o baile de bordo, no
Pastem. E ainda perder, nos três dias de Momo, os blocos de mascarados da
Rua Miguel Lemos, a dois passos de seu apartamento, em Copacabana, na
Avenida Atlântica. E mais o desfile das escolas de samba, a que nunca faltara,
desde que voltara dos Estados Unidos. Era demais!
E quase a gritar, no auge da raiva e do desespero:
— E tudo por culpa desta velha, que me preparou a armadilha em que
caí como um pato, como um bestalhão!
A estrada, por fim, se tornara mais suave, com a sua terra batida, o seu
renque de velhas árvores, os seus estirões de mata densa, por onde corria,
fresca, constante, a viração da tarde.
E Tia Eudóxia, como se a notícia da aproximação de seus domínios lhe
entrasse pelas narinas:
— Já estamos chegando — reconheceu, sorvendo o ar puro como se
tomasse um vasto copo de água fresca da cascata.
De fato, após uma subida, já se podia ver a casa branca, de janelas
verdes, voltada para o nascente, entre gordas árvores tranqüilas, um boi
preguiçoso pastando na relva, o moinho a girar com a força da água que vinha
do rio, e dois cães a latirem, arremetendo na direção do carro.
Tia Eudóxia, ouvindo-lhes o latido, deu ao rosto engelhado um novo
semblante, menos duro, menos severo, e sussurrou para o sobrinho, depois de
um breve cacarejo:
— Estamos em casa, Benevenuto. Não sei porque é que não vens
morar aqui. Continuas com a eterna mania da cidade, cheirando fumaça de
automóvel, ouvindo buzinas nervosas, correndo, falando alto, arriscando-se a
ser atropelado e morto, em vez de vir para cá e viver nesta paz, neste silêncio,
neste ar puro. Fica sabendo que, aqui, enterro todos vocês, e vou
tranqüilamente aos cem anos. Vou. Por que não?
E Benevenuto, alarmado, de si para si:
— É capaz, é capaz.
E querendo justificar-se, a recordar depressa o desfile de fantasias no
carnaval, as tardes do Flamengo e do Fluminese no Maracanã, o cooper no
calçadão da Avenida Atlântica, os bons filmes, as boas peças de teatro, a
penumbra das boates, tratou de falar alto... E quase numa desculpa:
— Cada um se acostuma onde nasceu, Tia Eudóxia. A senhora teve a
sorte de nascer aqui. Eu, não. Para mim, ou Rio, ou Paris.
E a velha, a ponto de exaltar-se:
— Não me venhas dizer que, se eu te passar as jóias da família, vais te
mandar para Paris. Por favor: previne-me em tempo!
E ele, sentindo a ameaça:
— Paris para passear, para gozar umas férias, nunca para morar. Para
morar, nossa terra. O Rio. São Paulo. A Bahia. Esta fazenda. Por que não?
Concordo com a senhora: nada como esta paz, este silêncio.
A velha resplandeceu:
— Estou gostando de te ouvir, Benevenuto. Tomara que o que estás
dizendo não seja da boca para fora. Tomara.
Ele ensaiou formalizar-se:
— Por quem é, Tia Eudóxia. Só digo o que sinto.
Na casa rústica, de imensa varanda escancarada, sob o alpendre de
telha-vã, as sombras da noite iam baixando, com uma lâmpada triste a mostrar
as samambaias e as cadeiras de vime, já acesa na última claridade do dia, por
entre o coaxar das rãs na lagoa, o cri-cri dos grilos, o zumbido dos primeiros
mosquitos rondando as orelhas do Benevenuto.
E ele, forçando o entusiasmo, enquanto perguntava a si mesmo se o
motor da luz elétrica iria passar a noite com'aquela mesma zoada teimosa,
tem-tem-tem, tem-tem-tem, que o punha nervoso:
— Aqui deve-se dormir esplendidamente, minha tia. Eu custo a vir
aqui; mas, quando venho, gosto. Gosto mesmo, não estou exagerando.
E para si mesmo, animando-se:
— Ela já falou nas jóias. Bom sinal.
A chuva forte parecia querer atravessar a noite, batendo no telhado,
caindo dos beirais, fustigando as árvores. De vez em quando um relâmpago
abria no espaço o seu clarão instantâneo. Os trovões não tardavam,
estremecendo a casa, por cima do pleque-pleque das goteiras. Duas vezes
seguidas o motor da luz havia parado, deixando a casa às escuras. A própria
Tia Eudóxia acendera o resistente candeeiro petromax, e este deu a impressão
de que, apagado durante o largo tempo, voltava com mais força de sua longa
letargia, espalhando em volta uma claridade lívida que endoidecia as
mariposas.
E ela, contente com a luz ressuscitada:
— Aqui, para tudo se dá um jeito, Benevenuto.
E durante o jantar copioso, com todos os pratos postos na mesa de
uma vez, uma crioulinha risonha, cria da velha, agitou uma ventarola chinesa
para espantar mariposas e mosquitos, enquanto os dois cães, farejando
agrados e comida, ora roçavam a cabeça nervosa pela saia de Tia Eudóxia, ora
erguiam o focinho para o Benevenuto aflito, que só pensava em que um deles
o iria morder.
A velha, enérgica, ralhando:
— Quietos. Já. Fora daqui.
E lá se foram os cães para o alpendre, de rabo caído e orelhas murchas,
parando adiante, no vão da porta, e alongando para o Benevenuto um longo
olhar suplicante.
— Para fora! — ordenou a velha, ríspida. E ela, ao fim da sobremesa:
— Já te mostrei as nossas jóias, Benevenuto? Ele, com rapidez, quase a
engasgar-se com a fatia de pudim:
— Nunca.
— Hoje, vais ver comigo o que são elas. Não podes fazer uma idéia.
Riquíssimas. Lindíssimas.
E após o cafezinho quente, tomado na cadeira de balanço, cacarejou,
pigarreou, tossiu, e levantou-se, munida de uma lamparina para a
eventualidade da luz tornar a apagar:
— Vem comigo.
Diante de uma porta fechada, entregou ao Benevenuto a lamparina,
desprendeu do cinto da saia o molho de chaves, abriu uma porta, abriu outra
porta, mais outra, e acendeu a lâmpada do quarto pequeno onde havia, a um
canto, enorme cofre de ferro, com o ar de ter pertencido a algum bandeirante.
Noutro canto, uma mesa redonda, com duas cadeiras, e mais um canapé
pequeno.
Ela, do lado de dentro, chamando o sobrinho:
— Entra.
E passou a chave na porta, assim que o Benevenuto entrou, um pouco
assustado e muito curioso.
— Senta-te ali — ordenou a velha, mostrando uma das cadeiras.
Primeiro, abriu o cofre. Veio de lá com uma caixa grande que deixou
sobre a mesa, diante do Benevenuto. Este, de coração acelerado, parecia ter
subido aos olhos; já não sabia conter-se, mudando de posição na cadeira,
estalando os dedos entrelaçados. E confessou, vendo a lentidão com que a
velha voltava ao cofre para trazer a terceira caixa:
— Me sinto nervoso, Tia Eudóxia.
Ela, a ponto de arreliar-se:
— Pára com teus fricotes. Do contrário, não te mostro nada.
Ele aquietou-se, com um ar de susto, e ela, instalando-se na cadeira à
sua frente, com as mãos na tampa da primeira caixa:
— Estas são as mais antigas. Pertenceram ao Capitão-mor de que
descende nossa família. Vieram de Lisboa com ele, numa caravela.
As mãos magérrimas, de longos dedos afilados, e unhas escuras,
ergueram a tampa, exibindo na luz viva os correntões de ouro, os diamantes,
as safiras, as opalas, as ametistas, os topázios, as turquesas, enquanto a voz
grossa, levemente molhada, ia falando, à medida que o polegar e o indicador
retiravam cada jóia ou cada pedra dos envelopes e papéis que as protegiam:
— O Capitão-mor, teu tetravô, foi o primeiro, em nossa família, que
teve o gosto das jóias. As pedras mais raras eram dele.
E exibindo na ponta dos dedos uma pedra verde, com um losango ao
centro:
— Sabes o que é isto? Não podias saber. E um muiraquitã. A pedra das
amazonas que teu tetravô foi buscar nas cabeceiras do rio Negro, lá em cima.
Trouxe a pedra preciosa, mas também apanhou a sezão que o
despachou daqui para a misericórdia de Deus, deixando todo o seu tesouro
para tua tetravô, que eu conheci, gorda e com um bigode maior do que o meu.
E com o risinho miúdo que não lhe alterava a gravidade do rosto:
— Estás rindo? Não rias não, que o caso é sério. Foi por causa deste
meu buço que não me casei. Só me apareciam maridos feios, e marido feio eu
não queria. Preferi ficar com as jóias da família, dadas por minha mãe, que as
havia recebido de minha avó, e esta, de meu bisavô.
Outro risinho cacarejado. E a velha, abrindo outro envelope:
— Foi minha mãe que instituiu na família a tradição de que estas jóias
deviam passar do solteiro mais velho de uma geração ao solteiro mais velho da
geração seguinte. Às vezes penso que ela fez isso para me consolar. E acertou
em cheio. Sozinha, aqui na fazenda, nas noites de chuva como a de hoje,
sempre gostei de me trancar nesta sala, para ver minhas jóias, uma por uma.
Estás vendo a letra de cada envelope? É minha. Como fui eu também que fiz
esta relação de todas as peças, em três folhas de papel almaço, no tempo em
que se escrevia com pena Malat, caneta, tinta de tinteiro e mata-borrão. Hoje,
tudo mudou. Também não se usam mais as jóias de antigamente. Os belos
brincos cravejados de brilhante. Os colares de muitas voltas. As pulseiras de
ouro e diamante. As gargantilhas. As pulseiras que se punham nos tornozelos,
e eram de ouro, com esmeraldas, com rubis, com crisólitas. Os broches
lindíssimos, verdadeiras obras de arte. Olha bem este colar. Fazes uma idéia
de quem foi? Da Marquesa de Santos. Como chegou à nossa família, não sei.
Sei que foi dela. Olha esta rosa, com pétalas de ouro cravejadas de brilhantes
azuis. Abriu a outra caixa. E com uma fivela na mão:
— De ouro, Benevenuto. Para sapato. Vê este diadema. Tem uma
história. Foi um caso de amor de teu trisavô com uma mulata baiana. Morreu
tuberculoso, antes de entregar a jóia. E o diadema ficou na família, com todas
estas ametistas. A mulata soube da jóia, e foi à casa de meu bisavô para
recebê-la. Deram-lhe um grito. O grito que eu também sei dar, nas minhas
horas de ira, e a mulata sumiu.
Um suspiro fundo.
E a velha, começando a guardar cada jóia:
— Como tudo isto se acumulou em nossa família, ignoro. Como
também ignoro como tudo foi conservado, sem se dispersar. Minha morta
mãe, tua avó, quando me entregou este tesouro, já estava viúva. Não queria
que ninguém soubesse que tudo isto estava com ela. Se lhe falavam de jóias
antigas, desconversava, ou então negava que tivesse uma simples roseta, um
anel, um brinco. Fiquei espantada quando vi todas estas jóias juntas, pela
primeira vez, como nas vitrinas de um museu. Tu sabias deste tesouro. Sabias.
Várias vezes te falei dele. Por alto. Mas falei. Dando a entender que um dia
seria teu. Senti que te assanhavas. Me calei. Vejo agora, por teus olhos
estrábicos e por tuas mãos abobalhadas, que ficaste tonto, Benevenuto. Pegas
uma jóia, pegas outra, e estás que nem menino em loja de brinquedo. Cada
jóia tem a sua história. Escrita por mim. Vais ter com que te distrair, em noites
como a de hoje. Podes ter todos os defeitos, mas uma qualidade eu não te
nego. Tens o gosto e o orgulho de tua família. Como eu. É e por isso que tua
casa, na Avenida Atlântica, no Rio, é um pequeno museu. Retratos, quadros,
diplomas. Tudo nosso. Assim é que deve ser. A família é a família.
E de vista baixa, recolhendo outra jóia ao envelope correspondente:
— Com os altos e baixos de minha saúde, posso chegar aos cem anos.
Mas também posso não chegar. Depois dos oitenta, ninguém pode responder
pelo dia de amanhã. E os meus estão chegando. Sábado que vem, sopro as
oito velinhas. Há quinze dias, tive uma dor aqui do lado e que me subia pela
garganta, sem querer passar. Pensei que minha hora da verdade tinha chegado.
Mandei que o Frederico te telefonasse. Não estavas em casa. Deixou o recado.
Não me falaste. Fiquei com raiva. Quase corto o fio do telefone para não ter
uma nova tentação de ligar para ti. Depois, amansei. E recorri aos telegramas
patéticos, que deram bom resultado. Se não viesses aqui, eu ia distribuir estas
jóias. Uma por uma. Aos parentes. Aos amigos. Para ti, nada. Como vieste,
não serás castigado. Pelo contrário: vou te dar tudo isto.
Benevenuto, com enorme esforço, e ainda com um resto de dúvida,
reuniu todas as forças de que era capaz, e perguntou, num fiozinho de voz
trêmula, segurando com fervor as duas mãos da velha:
— E tudo isto é meu, Tia Eudóxia? Meu mesmo? E a senhora não vai
se arrepender de me ter dado todo este tesouro? Para lhe ser franco, uma
coisa me dizia, aqui por dentro, que eu ia receber agora estas jóias. Cheguei a
pensar que era um sonho alto demais para a minha ambição. A senhora está
transformando o meu sonho em realidade. Com esta diferença: eu pensava
que tudo isto seria meu, depois que Deus a chamasse. Não foi preciso. Melhor
assim.
Levantou os braços para o teto, levantou também os olhos:
— Graças te dou, meu Deus, por esta graça alcançada.
E foi dobrando os joelhos, para beijar, contrito, os pés da velha,
reverente, reconhecido. Ela, com rapidez, susteve-lhe o gesto. E no tom
severo com que o repreendia, nos seus momentos mais veementes:
— Lá vens tu com os teus exageros.
Recolhido à imensidão do quarto, o corpo estirado ao longo do colchão
de capim, numa cama de ferro que gemia e rangia se mudava de posição, e
apenas iluminado pela vela assustada que clareava o crucifixo de cima da
cômoda, Benevenuto reconheceu que não iria dormir. Apesar da exaustão da
viagem no fordeco saltitante, e que ainda o amolecia e atordoava, persistia no
seu espírito, suplantando-lhe o cansaço, a emoção de ter visto com seus olhos
e pegado com as suas mãos, finalmente, as famosas jóias da Tia Eudóxia.
— Parece mentira: foi preciso chegar aos quarenta e três anos, já de
cabelos grisalhos, e este começo de barriga, para ver e pegar o tesouro da
família, de que ouvi falar desde menino.
E agora, além do mais, as jóias eram suas, embora ainda guardadas no
grande cofre de ferro, no lugar mais seguro da fazenda. Quando fosse dali,
elas iriam com ele. Com ele subiriam ao navio, em Santos. Com ele desceriam
do navio, no Rio de Janeiro.
Lá fora, entrando-lhe pelo quarto, o tuco, tuco, tuco do motor da luz
elétrica, como a lhe martelar a cabeça, ali dentro, com as portas e as janelas
fechadas contra a chuva e as mariposas. De vez em quando, como uma
explosão silenciosa, a faiscação instantânea dos relâmpagos; depois, longe,
estremecendo a casa, o rolar dos trovões. E sempre a chuva a cair, enervante,
repetindo infindavelmente o ratáplã das goteiras na bacia do corredor e
insistindo em sacudir as árvores e em bater na rótula das janelas sobre o
quintal.
De repente, sempre insone, Benevenuto sentou-se na cama. Tia
Eudóxia lhe teria dado todas as antigas jóias da família? Ou algumas, e as mais
raras e vistosas, ela teria passado adiante, numa hora de aperto (a hora de
aperto que todo mundo tem ) ? Sim, sim, e por que não? Ou seria que a Tia
Eudóxia, espertíssima, conservaria consigo, manhosa-mente, uma parte delas
(certamente as melhores), subtraídas ao conjunto?
E Benevenuto, com os pés nos chinelos:
— É preciso confiar desconfiando.
A velha era famosa por sua esperteza. Em matéria de dinheiro e de
negócios, ninguém a enganava, estava para nascer quem a passaria para trás.
Sempre de olho vivo. Passada na casca do alho.
E Benevenuto, levantando-se:
— Se é assim, por que, desta vez, não quereria me enganar?
De tanto ouvir falar, desde menino, nas jóias da família, guardadas pela
Tia Eudóxia, ele esperava agora que formassem um conjunto bem maior.
Decepcionara-se, passado o primeiro momento de emoção. As maravilhas
eram mesmo aquelas? Eram só aquelas as tais jóias do Capitão-mor? Diante
do espelho da penteadeira, interrogou-se:
— Não estás sendo bigodeado, Benevenuto? Abre os olhos.
E logo se pôs a rir baixinho, quase só para si, como se a sua imagem,
no reflexo do espelho, estivesse a chamá-lo à ordem:
— Estou sendo injusto. Injusto e ingrato.
Tia Eudóxia podia fazer das jóias o que bem quisesse. Eram delas,
somente a si própria teria de dar satisfação. Dera-as a ele, como podia ter
dado a outro parente. Mas a que parente, se todos estavam casados, ou
descasados, depois de mal casados? Ou viúvos? Ou desquitados?
E argumentando, sério:
— Solteiro mesmo, só eu.
Quando tornou a se deitar, ouvindo de novo os protestos das molas da
cama e os gemidos do colchão duríssimo — uma verdadeira pedra! —
Benevenuto voltou a fixar-se na exigüidade das jóias, aborrecido, revoltado,
como se fosse protestar:
— Agora, com que cara vou aparecer no navio, para a Marquesa, para o
Comandante, para o Comissário, para o português, para os outros idiotas da
mesa, depois de ter dito a todos eles que as jóias da tia Eudóxia eram muitas,
além de verdadeiras obras de arte, únicas no mundo? Sai dessa agora,
Benevenuto. Só quero ver, na hora, o jeitão da tua cara. E é merecido o
castigo. Por que deste com a língua nos dentes?
E suspirando alto:
— Sempre me dando mal com esta minha eterna mania de grandeza.
Sempre. E não me emendo. Na hora da fantasia, quero ser Napoleão, quero
ser Luís XIV, quero ser Pedro I, quando sou apenas Benevenuto, sobrinho da
Tia Eudóxia! Ora bolas! Ora sebo! Para mim, chega!
E mudou de posição, no travesseiro.
E como o sono afinal lhe veio, profundo, repousante, despertou na
manhã seguinte com outra disposição e outras idéias, lembrando-se do
muiraquitã, do colar da Marquesa de Santos, das esmeraldas, dos brilhantes, de
dois broches realmente sensacionais, dos brincos, das pulseiras de ouro
cravejadas de rubis, das gargantilhas, dos três diademas incomparáveis, para
acabar reconhecendo, enquanto escovava os dentes na bacia cheia de água,
que não ia fazer má figura, na hora em que fosse mostrar no navio, em altomar, as jóias da Tia Eudóxia.
A mesa do café, assim que se instalou na cadeira espaçosa, com o seu
apetite, com seu ar descansado e com a sua boa disposição para entender o
mundo, confessou à velha, que já esperava por ele, à cabeceira, magra,
espigada e exigente, com seu prato de coalhada e seu pote de mel:
— Custei a dormir, minha tia. De olhos fechados, eu continuava vendo
as nossas jóias. Colares, rosetas, placas, broches, tudo faiscando diante de
mim. Juntas, nunca vi tantas. Nem nas exposições de jóias, em Londres, em
Paris. Nem mais belas e mais ricas. Parecia que eu ia atravessar o resto da
noite acordado, só em pensar que todo o nosso tesouro vai ficar comigo.
A velha atalhou, parando no ar a colher grande cheia de mel:
— Se está com medo, deixe as jóias aqui. Aqui, comigo, enquanto eu
for viva, não me metem medo nem correm perigo. Com você, tenho agora
minhas dúvidas.
E Benevenuto, alarmado:
— Fique tranqüila. Eu, no começo, tenho medo, reconheço. Mas, na
hora da decisão, sou uma fera. Como a senhora. Com o mesmo sangue. A
mesma determinação de defender o que é meu.
Tia Eudóxia, ainda ríspida, meteu na boca a colher repleta, engoliu o
mel.
Havia momentos em que o desejo do Benevenuto era apoderar-se do
fordeco antidiluviano, girar-lhe a manivela do motor, e arrancar dali, sem
olhar para trás — fugindo do tédio que o sufocava, sem nada que fazer na
monotonia da vida na fazenda.
Tia Eudóxia, ao vê-lo assim, impaciente, mudando de posição na
cadeira, olhando o relógio, alongando o olhar para o portão distante, vinha ao
seu encontro, como desentendida:
— Eu, no teu lugar, me mudava para cá. A cidade não dá mais
segurança a ninguém. Roubos, as saltos, agressões a todo momento. Ninguém
tem mais garantia. Aqui, não: tudo seguro, tudo em ordem, tudo em paz.
Ninguém me desobedece. Só se faz o que eu quero ou o que eu aprovo.
E para animar o Benevenuto:
— Aqui, em seis dias de descanso, já engordaste uns seis quilos. No
mínimo. Chegaste aqui com uma palidez que me preocupou. Hoje, estás
vendendo saúde, nessas bochechas felizes, nessa bela cor, nesse apetite
formidável. Se queres, mando o Frederico a Santos, e cancelamos tua viagem.
Passas aqui toda a quaresma, para voltar na Páscoa. E o Benevenuto,
assustado:
— E os meus negócios no Rio? E os meus compromissos? E as
providências que tenho que tomar? A senhora não sabe o que é, ali, a minha
vida. Porque eu também me viro, me mexo, me rebolo. Não fico deitado, de
papo para o ar, tomando fresco. Antes ficasse. E a verdade é que, me virando,
me mexendo, me rebolando, estou contente. Encho o meu tempo, ocupo
minhas energias, torno-me útil e necessário.
E a velha, depois de cacarejar:
— Quem te ouve e acredita em ti, fica pensando que és mesmo isso
que estás dizendo. Deixa-te de exageros, Benevenuto. Nasceste com o
bumbum para a lua, isto sim. Não tens mulher, não tens filho. A tua sorte é
que eu gosto de ti. Mais da conta. Porque tu, por teu lado, só pensas no que
podes receber de mim, quando eu espichar as canelas.
Benevenuto suspirava:
— Não diga semelhante barbaridade. Por favor, Tia Eudóxia.
E ela, teimando:
— Digo, sim. Por que não? Todo mundo reconhece, na família, que eu
passo a mão por tua cabeça, que gosto muito de ti, que passei a vida a fazer
vista grossa para todas as tuas maluquices. Tirando o teu gosto da família, o
teu pendor para antigüidades e fantasias de carnaval, que é que tens nessa tua
cabeça, Benevenuto? Nada que se aproveite.
E resoluta, embalando-se na cadeira, a um canto da varanda:
— Se ficasses aqui, como eu sempre quis, eras outro homem. Homem
mesmo. Enérgico. Decidido. Útil. Olha que ainda está em tempo. Nunca é
tarde para pôr alguém no caminho certo.
E passando da aspiração ao programa:
— Em vez de eu ter o Frederico na direção do meu carro, que iria
comigo, daqui para Santos, de Santos para cá, daqui para São Paulo, de São
Paulo para a fazenda, gordo, bem-disposto, com essas bochechas rosadas, eras
tu, Benevenuto. O motor da luz era contigo. Contigo ficariam as entregas de
café, a administração da colheita, a fiscalização das sacas, a correspondência
com os fregueses. E sabes o que isso te daria, do pé para a mão, enquanto o
diabo esfrega um olho ? Te daria o prazer de meter a mão no bolso e
encontrar ali uma bolada. De dinheiro vivo. Sem apertos. Sou tua amiga. Mais
do que tua tia. Muita gente vai me censurar quando souber que te confiei as
jóias da família. Vai. E eu com isso. Ah, não gostaram? Fiz o que me deu na
veneta. E é verdade. Gostas de antigüidades. Teu maior sonho era ter contigo
as nossas jóias. Fiz-te a vontade. Mas não me iludo contigo. Com todo o teu
gosto das antigüidades, vais vender uma jóia hoje, outra amanhã, outra mais
depois de amanhã, contanto que não te f ai te o dinheiro para a cabeleira de
Luís XIV, o manto de Pedro I, a fivela de prata no sapatão do Marquês de
Pombal. E quando isso acontecer — porque vai acontecer — já estarei no
bem-bom de minha cova, dormindo o sono eterno por sinal que bem
merecido.
E Benevenuto, assim que a velha se calou e ficou a olhá-lo por cima
dos óculos, divertidamente:
— Acabou? Posso falar?
E recorrendo ao tom patético:
— Lembra-se do que eu lhe disse, no dia de seus anos, na hora em que
ia apagar as oito velas daquele imenso bolo? Quando confessei, na presença
do Juiz, do Vigário, do Delegado de Polícia, da diretora do grupo escolar, do
agente dos Correios, do Dr. Pascale (seu médico), do Alonso (seu
farmacêutico), e de outros amigos de que não sei o nome, e todos que
trabalham na fazenda,a começar pelo Frederico, que a senhora sempre foi
para mim, não uma tia nem uma amiga, mas uma verdadeira mãe, e mãe como
poucas, mãe como Nossa Senhora? Lembra-se? Fiquei tão emocionado que
cheguei a chorar. Isso quer dizer que, em vez de falar ligado com a cabeça,
falei ligado com o coração. Eu sei o que lhe devo. Sei o que a senhora é, como
bondade, como sensibilidade, como força humana. Posso ser distraído. Um
pouco boêmio. Mas ingrato, não. Se a senhora, agora, neste momento, me
disser, com toda a franqueza: — Benevenuto, eu preciso de tua vida.—Eu
dou um passo, resoluto: — Tia Eudóxia, minha vida é sua. Onde e quando
devo morrer? — Não sei se diria isso mesmo à minha verdadeira mãe. Acho
que não. Só à senhora. Quer mesmo que eu fique aqui? Eu fico.
Tia Eudóxia enxugou os olhos com a costa da mão:
— Benevenuto, pára com isso. Agora, quem está chorando sou eu.
E deixou que ele a abraçasse e lhe beijasse a barra da saia, afagando-lhe
a cabeça:
— Exagerado. Sempre exagerado.
E tentando desfazer o aperto da garganta:
— Estás mesmo contente com as jóias que te dei? Contente mesmo?
Eu também, Benevenuto. Volta para teu apartamento, no Rio. Volta. Mas não
te esqueças de vir aqui de vez em quando. Não quero te prender. És bom
demais. Deus te abençoe.
Barbeado, penteado, perfumado, metido no costume azul-claro que se
ajustava bem à sua cor morena, aos seus lânguidos olhos levemente anilados,
Benevenuto se preparou bem cedo para a viagem de volta, no calhambeque
pré-histórico que o levaria a Santos, naquela segunda-feira de carnaval, quieta,
tranqüila, ajustada à sua condição de homem realizado.
A própria Tia Eudóxia, que às cinco horas da manhã, antes de bater o
relógio da varanda, já estava de pé, para tomar o seu copo de leite no curral,
fez questão de preparar-lhe a mala das jóias, ao fim da madrugada.
Prudente, astuciosa, ela o advertira:
— Nada de mala aparatosa, que dê na vista. Sei que, por teu gosto, ia
tudo num malão tauxiado, de cantos de metal, alças vistosas, fechadura
reluzente, como se fosses para o palácio da Rainha de Sabá. Mas era um erro:
chamava a atenção alheia, dava na vista. Nestes casos, quanto mais discrição,
melhor. Uma boa mala, simples, discreta, é que te convém. Não atrai os
ladrões.
Ele quis replicar-lhe, levemente aborrecido:
— É um engano seu, Tia Eudóxia. Para ladrão, tanto faz mala simples
quanto mala vistosa. O que faz o ladrão é o faro, o sexto sentido. Daqui para
Santos, não corro perigo, com o Frederico na direção, caladão, ar de poucos
amigos, debaixo do chapéu mexicano. No navio, muito menos. Em alto mar,
sem poder nadar para alcançar uma praia do litoral, não há ladrão que se
arrisque. Posso até dormir com a porta do camarote escancarada.
Mas, em vez de contrapor-se à velha, Benevenuto prontamente
concordou com ela:
— A senhora tem toda razão, Tia Eudóxia. O seguro morreu de velho.
Eu próprio, se for preciso, seguro a mala pela alça, entro no navio, com o
malão maior à frente, na cabeça do carregador, e quero ver quem é que
desconfia que vou carregando comigo, lépido, contente, feliz, as jóias de nossa
família.
Assobiou, rodopiou, vendo a tia diante do cofre aberto, com a mala a
dois passos, em cima da mesa redonda, a acomodar os envelopes das jóias, um
por um, meticulosamente:
— Por favor, Benevenuto, não faças cerimônia comigo. Se tiveres
algum aperto, me fala. Para tudo se dá um jeito. Por favor, nunca penses em
te desfazer destas jóias. Nunca. Enquanto eu estiver viva, conta comigo. Sei
que sou ríspida, fervo com pouca água, mas, no fundo, sou tua tia, passo a
mão por tua cabeça.
Fechou a mala, entregou a chave ao Benevenuto, fechou o cofre. E ao
ver que ele, risonho, cheio de si, como se não coubesse dentro da roupa bem
cintada, de paletó aberto atrás, erguia a mala pela alça de couro:
— Não carregues mala nenhuma. Põe, também ela, na cabeça do
carregador. E fica perto, de olho aceso nela. É mais seguro. Se dispões de um
carregador, que poderia levá-la, e és tu que a carregas, a conclusão é só uma:
ali dentro vai coisa de valor.
Benevenuto pôs-se a rir:
— A senhora pensa em tudo, Tia Eudóxia. Com a senhora, ninguém
pode. Eu que o diga.
E na sala contígua, desprendido, entregou a mala das jóias ao Frederico,
ordenando-lhe:
— Põe esta junto do malão. E gira a manivela do carro para esquentar
o motor. Obrigado.
Na véspera, tinha saído pelos arredores, a despedir-se de cada caseiro
ou agregado. Na volta, como visse a Tia Eudóxia, de joelho, na capelinha da
fazenda, ajoelhou-se também, fingindo que também rezava, com a cabeça
baixa, contrito, segurando a testa.
A mesa do jantar, parecia mesmo emocionado, com seu grande ar de
despedida vistosa, compungido, falando baixo, e pouco. Mesmo assim,
temendo que a tia não reparasse, adiantou-lhe:
— Hoje, por meu gosto, não saía daqui. Vou sentir falta da senhora,
deste silêncio, do tuco-tuco do motor da luz, do mugido do gado, do latido
dos cachorros. De tudo, minha tia. De tudo.
E ela, atalhando:
— E quem é que te obriga a ir embora?
— O dever — replicou ele, desconfiando que houvesse entrado por um
caminho errado, com a sua mania de dourar todas as pílulas.
E mais veemente:
— Chego ao Rio na terça-feira; na quarta, de pois do meio-dia, já tenho
uma entrevista marcada, no Centro da Cidade, com o Presidente de um
grande banco de Nova Iorque, para ajudá-lo numa grande obra social em
favor de nossas favelas.
E a velha, em tom de censura, olhando-o por cima dos óculos:
— Isso está me cheirando a mentira, Benevenuto. Não tens entrevista
com Presidente nenhum nem vais te meter em obra social. Tudo fantasia. A
única coisa real, em tudo quanto falaste, é mesmo a favela.
Ele cruzou os fura-bolos diante dos lábios, para beijá-los. E querendo
ficar sério e temendo o riso derramado:
— Se a senhora quiser que eu jure, por esta luz que nos alumia, eu juro.
Deus, lá em cima, está me escutando.
E beijou os dedos em cruz.
Meia hora depois, já no carro, ao lado do Frederico, tornou a descer,
abraçou de novo a velha, que lhe acenava no batente do alpendre:
— Mais um, mais um. Até a volta.
Lá adiante, ao deixar para trás a porteira da fazenda, voltou-se, acenou
de novo para a Tia Eudóxia, e ordenou ao Frederico, que assumira o seu papel
de motorista, com o peito mais alto, a cabeça mais levantada, o chapelão
desfraldado:
— Por mim, pode correr.
Ao despedir-se do Frederico, ao pé da escada do navio, não se
esqueceu de recomendar-lhe, depois de agradecer a longa viagem de carro, na
estrada repleta de buracos, sem que houvessem parado pelo caminho:
— Diga à Tia Eudóxia que eu, até o último momento, me lembrei dela.
E que este ano, sem falta, o meu Natal vai ser na fazenda, com ela. Com ela
— repetiu.
Logo correu atrás do crioulo imenso, de andar gingado, passos
indolentes, e que já ia entrando pelo cais do porto, empurrando um carrinho
de mão, levando-lhe as duas malas.
— Até a volta, Frederico.
Em vez de subir pela escada do portaló, do lado da proa, preferiu subir
também pela prancha, do lado da popa, para não perder de vista o carregador.
Este, deixando ao pé da prancha o carrinho de mão, ia agora com a mala
menor na mão e a outra na cabeça, andando depressa, como a equilibrar-se na
rapidez das pernas.
Lá em cima, já no navio, o crioulo lhe disse, deixando as malas no
convés:
— O senhor esqueceu de me dar o número do camarote.
Benevenuto, apressado:
— Me espere aqui mesmo. Vou buscar a chave.
E enquanto seguia pelo convés, para alcançar a cabine do Comissário,
do outro lado do navio, reconheceu ter cometido uma imprudência. Não
devia ter deixado com o crioulo a mala das jóias. E se ele descesse com ela,
enquanto ia buscar a chave? Ele próprio tratou de acalmar-se:
— Tudo vai dar certo.
Não demorou dez minutos, à espera do Comissário, que falava ao
telefone, lendo os nomes de uma lista de passageiros. O tempo lhe parecia
infinito. Afinal, conseguiu falar-lhe, o Comissário prontamente o reconheceu,
deu-lhe a chave, e Benevenuto se projetou para o convés, com a chave na
mão, agarrando-se mentalmente com São Judas Tadeu, de quem era devoto,
para segurar o crioulo, se este quisesse fugir.
De longe, viu o carregador sentado sobre a mala grande, e respirou,
tranqüilizado. Abrandou o passo, para que o crioulo não desconfiasse de sua
pressa. E à frente dele, interrompendo-lhe o cochilo:
— Podemos ir. Agora, vou eu na frente.
Baixou por uma escada, entrou pelo corredor comprido, que
acompanhava a orla de camarotes, passou depressa rente à porta entreaberta
do camarote da Marquesa, sem que esta o visse, e tratou de correr para seu
próprio camarote, seguido de perto pelo carregador, que ora batia num lado,
ora noutro, curvado para a frente, oscilando, com a mala grande às costas.
— Aqui — avisou Benevenuto.
Assim que entrou no camarote, deu com umas rosas frescas, no jarro
azul ao pé do espelho, acompanhadas por estas palavras, no cartão da
Marquesa: "Seja bem-vindo. Sentimos muito a sua falta." Sobre o mármore, o
convite do Comandante para o baile à fantasia, à noite, com esta
recomendação, numa letra espaçosa e firme: "Queremos aplaudir o seu
Pierrô."
Sorriu, feliz, pleno de si mesmo, e só então se lembrou do crioulo, já
dentro do camarote, e que lhe perguntava, numa voz agastada:
— E eu vou ficar aqui, carregando esta mala?
— Desculpe, amigo. Ponha-a aqui, por baixo do beliche. E a outra,
neste descanso.
Meteu a mão no bolso, tirou dali uma cédula, passou-a ao crioulo, que
olhou para a nota amarfanhada, ainda arreliado, continuando com a mão
estendida.
E o Benevenuto, compreendendo que o pagamento era pouco:
— Foi isso que paguei a outro carregador, aqui mesmo, quando
cheguei.
E o crioulo, zangado:
— Mas não era segunda-feira de carnaval, como hoje, e havia muito
carregador para trabalhar. Hoje, são poucos. E eu, para receber só isso, prefiro
trabalhar de graça.Tome de volta o seu dinheiro. Não precisa me pagar.
Benevenuto preferiu ser pródigo:
— Tem razão, patrício. Tem toda razão. E pouco. E aqui tem mais.
Deu-lhe outra cédula, mais outra, mais outra, mais outra, e foi vendo
que a cara gorda do crioulo, mais aberta, aumentava as bochechas,
resplandecendo. E sustando a prodigalidade:
— Agora, ponto final.
E o crioulo, ainda risonho:
— É como diz. Boa viagem, patrão. Voltando, estamos aqui.
Benevenuto acompanhou-o até o corredor, fechou a porta, tornou a
aspirar o perfume das rosas, olhou o mostrador do relógio de pulso, para ver
se tinha tempo para um banho de chuveiro, que lhe tirasse do corpo o cheiro
de leite, de capim e de bosta de boi, que ainda lhe entrava pelas narinas.
Diante do espelho, correu a mão pela barba. Como ia pintar-se para o baile da
noite, na fantasia de Pierrô, aumentando a boca, os olhos, as sobrancelhas,
convinha raspá-la de novo, já que, pela madrugada, ao fazê-la, ouvindo o tucotuco do motor da luz elétrica, tinha raspado quase às cegas, sem distinguir
direito o rosto estremunhado num velho espelho carcomido. E decidindo-se:
— Depois, um bom banho de chuveiro!
Tirou os sapatos, a roupa, ficou em cueca, e caprichou na barba,
antegozando o que ia ser a sua entrada no salão de festas, tinindo os guizos,
pulando, sacudindo os braços, com a cabeça a emergir da imensa gola fofa, os
pés nas sapatilhas.
Debaixo do chuveiro, no banheirinho do camarote, pôs-se a saltar,
cantarolando, com a certeza de que a noite seria sua. E assim como conseguira
suplantar o Evandro, o Clóvis, o Nelito, o Peixotinho, seus eternos rivais dos
carnavais passados, não deixando que lhe passassem à frente no concurso de
Pierrôs do Copacabana Palace, suplantaria qualquer outro competidor, mesmo
o português, mesmo os três casais de brasileiros da mesa do Comandante, e
também este, e o Comissário, e o médico do navio, e também a Marquesa,
ainda que esta aparecesse de Maria Antonieta, coberta de jóias!
E saindo do chuveiro, a respingar:
— Sim, as jóias! E eu que me tinha esquecido de minhas jóias!
Deveria usar uma delas, para fazer melhor figura? E para quê, se apenas
seu Pierrô de luxo lhe bastaria? Não, nada de jóias!
E enquanto se enxugava, correndo pelo corpo molhado a grossa toalha
de felpo, firmou no espírito a determinação sensata de nada dizer aos amigos
quanto às jóias da Tia Eudóxia. E se lhe perguntassem por elas? Diria que
tinham ficado na fazenda, onde estariam mais seguras. E argumentava, como
se estivesse a responder:
— A velha melhorou, está quase boa, achei melhor deixar as jóias com
ela.
E mudaria de assunto.
Mas o gosto de exibir-se, de escancarar aos olhos alheios os brincos, as
pulseiras, os diademas, as placas, as gargantilhas, os colares, para dizer à Mar.
Como havia a bordo um velho fotógrafo, que se encarregava de fixar
com a sua máquina vigilante os momentos mais destacados da viagem, para
depois vender os flagrantes aos passageiros, exibindo-os a um canto da Sala de
Estar, foi ele que fixou a chegada do Benevenuto, no momento em que este
entrou no salão de jantar—vestido de Pierrô.
A idéia acudira subitamente ao Benevenuto assim que ouviu, no seu
camarote, o badalo da sineta. Por que não aparecia no salão já preparado para
o baile? Assim, em vez de trocar de roupa depois do jantar, já ali apareceria
devidamente fantasiado. E como anteviu com precisão a surpresa de sua
entrada assim vestido, foi rápido ao trocar o smocking pela fantasia, só
deixando para a volta ao camarote a pintura do rosto, com o carmim nas
bochechas, o batom nos lábios, o traço de carvão prolongando os olhos e as
sobrancelhas.
Depressa conseguiu vestir-se, pôs as sapatilhas, e foi reunindo os guizos
do Pierrô que desceu a escada que levava ao salão — sem esquecer de pôr
ordem no camarote, cada coisa no seu lugar, fechada a mala das jóias,
esvaziados os cinzeiros repletos, espichada a cobertura do beliche onde a
Marquesa se havia instalado para olhar as jóias, ao lado do sobrinho joalheiro
que havia trazido de Buenos Aires.
Benevenuto parecia pouco para todo o seu júbilo. Vira a cupidez, o
espanto, a admiração de todo o grupo que viera com a Marquesa. Felizmente,
depois que todo o grupo se fora, pensando no jantar, pensando no baile de
carnaval, ele, Benevenuto, pudera conferir cada envelope, cada invólucro de
papel de seda, após olhar a jóia respectiva.
Pouco antes de sair, a Marquesa lhe dissera, retardando o passo
vagaroso, apoiada com vigor pelo joalheiro:
— Vamos fazer uma belíssima exposição de suas jóias em Paris, no
Museu Carnavalet.
E o sobrinho, mais exigente:
— Ou no Jacquemart André.
E a Marquesa, concordando:
— Sim, Jacques, tens razão: melhor no Jacquemart. É mais fino, mais
requintado.
E para o Benevenuto, que parecia ter aumentado o volume do pescoço
com o máximo de orgulho:
— Deixe isso comigo.
E quando ele irrompeu à porta do salão, recebido pelo espanto do
maitre, que levantara para a vasta calva as sobrancelhas assustadas, houve no
recinto um movimento geral de atenção e surpresa, e muita gente ficou de pé,
para admirar o Pierrô que havia parado de propósito, ainda no limiar, para que
o vissem e aplaudissem.
— Bravos! — gritou o Comandante, com seu vozeirão jubiloso.
E veio buscá-lo, saindo da mesa.
Tinindo os guizos, movendo a cabeça agradecido, quase às lágrimas
com tantos aplausos à sua volta, Benevenuto acercou-se da mesa, com o
Comandante a segurar-lhe o braço. E foi assim que a mesa, de pé, o recebeu,
batendo-lhe palmas, elogiando-lhe o Pierrô.
E o Comandante, comandando, a mostrar ao Benevenuto a cadeira
vazia, quase ao seu lado:
— Aqui, aqui.
Mas a verdade é que, no salão, outros passageiros tinham tido a mesma
inspiração do Benevenuto. Muita gente já estava ali fantasiada, inclusive a
Marquesa, com seu vistoso traje de odalisca, e também seu sobrinho, num
fofão escarlate.
A mesa havia sido aumentada, com mais seis passageiros, entre os quais
um senhor taciturno, alto, forte, que suplantou facilmente o tipo espadaúdo
do português, e mais um velhote moreno, que se distinguia pelo modo de
olhar — sempre contraindo as pálpebras, como se toda a gente em redor
fosse algo que devesse ser olhado de perto, com olhos de míope. As duas
novas senhoras eram chilenas; uma, acompanhada pela filha, levemente
estrábica; outra, trazendo consigo o marido, bem mais velho que ela, e
sorridente, como se pedisse desculpas por já ter feito setenta anos.
No correr do jantar, a despeito do entusiasmo com que ali havia sido
acolhida a fantasia do Benevenuto, não foi do Pierrô que se falou, o mais do
tempo, e sim das jóias da Tia Eudóxia, verdadeiras maravilhas.
O casal de brasileiros que Benevenuto já havia encontrado a bordo
vindo do Recife de avião, e embarcado, como ele, no Rio de Janeiro, quase o
irritou, quando ela ponderou, subindo a vozinha cantada:
— Em Pernambuco, com as nossas jóias, não ficamos atrás.
E Benevenuto, reagindo:
— Tantas quanto as minhas, Madame?
— Talvez. Mas as suas são mais ricas. Têm mais pedras preciosas.
Principalmente o diadema maior. Nunca vi outro tão bonito.
E Benevenuto, reconhecido:
— Obrigado, Madame.
A Marquesa, sempre assessorada pelo sobrinho, que estava à sua frente,
do outro lado da mesa, suplantou o entusiasmo de todos:
— Vou fazer um livro sobre suas jóias, Benevenuto. Com a reprodução
de todas. Sobretudo daquela pedra verde das amazonas.
E o sobrinho, aplaudindo a idéia:
— Para ser lançado na exposição de Paris, minha tia.
— Isso mesmo — ela concordou, movendo a cabeça de odalisca para
um lado e para outro, como se o livro já estivesse pronto.
E logo o Comandante, levantando-se, já no fim do café, e falando pelo
microfone do salão:
— Nosso baile vai começar às dez horas em ponto. Todo mundo de
máscara, não esqueçam. Quem não tiver máscara, o navio fornece, à entrada
do Salão de Festas. Podemos levantar.
Benevenuto voltou ao camarote com a impressão de que tudo estava
saindo a seu favor naquela viagem. E enquanto retocava a maquilagem diante
do espelho, aumentando os olhos, alongando as sobrancelhas, repuxando a
boca, já com o ruge nas bochechas e o batom nos lábios, sem esquecer um
sinal de beleza na face direita, ia recordando tudo de bom que lhe havia
acontecido, numa sucessão harmoniosa de acontecimentos felizes.
E batendo na madeira do beliche para conjurar os maus-olhados:
— Primeiro, a insistência de Tia Eudóxia em me chamar. Eu, para fazer
corpo mole, quis vir de navio, crente que não encontraria passagem no
cruzeiro do Pasteur. Se telegrafei ao Nagibe, foi por desencargo de
consciência. Logo o querido, o grande, o incomparável Nagibe providenciou
tudo. E mais: me mandou a passagem. De graça. E com as recomendações
especiais ao Comandante e ao Comissário. A bordo, trataram-me como um
príncipe; na volta, agora, como um rei. Tia Eudóxia, além de me fazer o favor
de não morrer (se morresse, olhem eu aí de preto, com missa de sétimo dia,
luto demorado, recebendo condolências, agradecendo telegramas), teve o bom
gosto de me dar de vez todas as jóias da família, além de continuar no gozo
feroz da melhor saúde física e mental, aos oitenta anos bem vividos. Agora, os
aplausos que estou recebendo. E todo mundo maravilhado — comigo, com as
minhas jóias, com a minha fantasia.
E olhando para cima, com os olhos lânguidos e reconhecidos:
— Deus, obrigado.
E mais, como se tudo não bastasse: a exposição em Paris, o livro da
Marquesa, e badalado em todos os jornais, por ser o dono da mais bela
coleção de jóias do mundo!
E tornou a revirar os olhos:
— Mil vezes obrigado, meu Deus. Por tudo. Por tudo.
E como havia acabado a pintura do rosto, e posto o gorro do Pierrô, e
dado a sua mijadinha higiênica, e tomado o seu copinho de água para conjurar
a sede, antes da dosezinha de uísque (do bom, do legítimo), Benevenuto
cedeu, mais uma vez, ao seu espírito ordeiro e organizado, e olhou em volta,
para ver se o camarote estava mesmo a gosto, admitindo, com um sorriso
malicioso:
— De repente, alguém pode querer vir aqui, comigo, e eu não vou
querer fazer má figura.
Ao aproximar-se do Salão de Festas, não quis acreditar: uma animação
perfeita, com todo mundo saltando, pulando, cantando, a acompanhar a
orquestra, que só tocava música de carnaval, como no Copacabana Palace,
como no Monte Líbano, como nos antigos bailes do Teatro Municipal, como
nos melhores tempos do João Caetano, no baile dos Enxutos.
À entrada do salão imenso, quase repleto, o próprio Comissário ia
dando as máscaras a quem não as tinha. E eram máscaras de todos os feitios,
grotescas, risonhas, zangadas, narigudas, graciosas, e só a ele, Benevenuto,
tocou uma meia-máscara negra, que se ajustava esplendidamente ao seu
Pierrô, e com a qual entrou no salão, já pulando e cantando, com a sensação
de que o carnaval estava mesmo no seu sangue, fazia parte de sua pessoa,
ajustava-se perfeitamente à sua condição.
Viu a Marquesa, correu para ela, abraçou-a, rodopiou com ela, e foi
saltando, e foi cantando, enquanto sentia que todo o seu ser se realizava no
frenesi, no tumulto da sala.
Ali, só o velho relógio de pé, imenso, pêndulo tranqüilo, mostrador
redondo com algarismos romanos, parecia imune à loucura geral, rodando
com o mesmo vagar a agulha de seus ponteiros. Até o Comandante,
travestido, com uma saia rodada que lhe caía aos pés, parecia ter perdido a
austeridade e a cabeça abanando-se com uma ventarola, de bigode, seios
volumosos, braços nus e musculosos, e um vasto nariz à Cirano, vermelho, a
um palmo do rosto, e que lhe dava um ar ainda mais gaiato.
Benevenuto desfez os pares, criou o cordão, e deu várias voltas no
salão, animado, senhor do navio, senhor da festa, sem deixar que a orquestra
parasse, e escolhendo as marchas, os sambas, os maxixes, obrigando a
Marquesa a deixar a poltrona em que se instalara, a um canto, com seus
bombons e seus copázios de cerveja gelada.
— Ai, Marquesa, isto está divino. Só em Versalhes, no tempo de Maria
Antonieta. Ou então no tempo de Napoleão, com a Josefina mandando. Ai,
meu Deus, tornei a ter vinte anos.
E repunha a Marquesa na poltrona, enquanto ia em busca de outra
companhia, sem esquecer o Comissário, nem o companheiro português, e
mais o senhor taciturno, que só fazia sorrir e mover a cabeça, com um
bigodão de mandarim, um rabicho, um casaco de cetim cintilante por cima do
paletó e da gravata (obra e sugestão do Comandante), sempre que o
Benevenuto volteava em seu redor, batendo um pandeiro, sacudindo um
maracá.
Pouco depois da meia-noite, ao recolher os votos dos foliões para a
melhor fantasia da noite, com direito a uma nova viagem entre o Havree
Valparaíso, passando pela Terra do Fogo, o Comandante acercou-se do
microfone, e anunciou:
— Pierro de luxo, primeiro lugar.
Benevenuto, perto do relógio, quase desmaiou.
Depois, no segundo lugar, a filha da senhora chilena, com uma fantasia
típica de seu país, e em terceiro, sempre com aplausos gerais, a odalisca da
Marquesa, que se emocionou às lágrimas e saiu beijando cada companheiro de
viagem, enquanto a animação prosseguia, revigorada pelo chope gratuito que
o Comandante fez questão de oferecer, como cortesia da tripulação.
E foi pela exaustão, já com a luz da manhã querendo entrar no salão, e
a faxina do convés se iniciando, e os músicos da orquestra reduzidos apenas
ao pianista, e a Marquesa adormecida na poltrona, sem sentir o barulho à sua
volta, que o Comandante deixou o Salão de Festas, tirando a saia e o nariz, e
foi ver, do lado de terra, a linha verde do litoral brasileiro que se ia
acentuando, enquanto dizia ao Comissário:
— Outra festa, agora, à fantasia, só no próximo Carnaval.
À mesa do café, apesar do repetido chamado da sineta de bordo, só o
português e o senhor taciturno apareceram, este já preparado para descer no
Rio de Janeiro, aquele na camisa esporte e na calça bermuda com que se
defenderia do calor brasileiro, no rigor do estilo, ali a bordo, com o vento a
soprar do mar para terra.
E o português, à falta de outro interlocutor:
— O amigo é brasileiro?
E o outro, quase à sua frente, no lado oposto da mesa:
— Não, mas vivo aí há muitos anos.
— E mora mesmo no Rio?
— Não.Tenho uma propriedade, entre Petrópolis e Teresópolis, e é aí
que resido, e me dou bem.
E daí em diante, a cada nova pergunta do português, o senhor caladão,
metido consigo, sempre de vista baixa, limitou-se a responder, ou com a
cabeça, para confirmar, ou com o movimento do dedo indicador da mão
esquerda, para negar.
Afinal, cansado de respostas evasivas, o português continuou em
silêncio o seu pequeno almoço, mastigando devagar, sorvendo devagar o seu
café-com-leite, regalando-se com o mel de abelha francês, mas terminou por
indagar ao outro, no esforço teimoso para obrigá-lo a soltar a língua:
— Gostou do baile? Eu gostei.
O homenzarrão ondulou no ar a mão espalmada, para dizer que lhe
parecera assim, assim, mas sem falar, enquanto o português, cedendo à sua
tagarelice impulsiva, dava com a língua nos dentes, loquacíssimo:
— Eu gostei, e muito. Pulando, fiquei até o fim.
Quando parei de pular, baixei ao camarote. Mascarado. E era tanto o
meu sono, com as pálpebras a fecharem, como se tivessem chumbo, dormi de
máscara — a máscara bestial apache que me arranjou o Comissário e que,
modéstia aparte, me assentou como uma luva. Sei que a pagodeira acabou de
manhã. A nossa Marquesa, coitada, dormiu no próprio Salão de Festas,
fantasiada de odalisca.
Quem esteve estupendo, do princípio ao fim do baile, foi o nosso
Comandante. Pelo menos até o momento em que me retirei, esbarrando com
as paredes, bêbado de sono. Mas o meu camaroteiro, que trabalhou no bar até
de manhã, e ainda teve disposição para me acordar na hora do costume, me
garantiu que o Comandante se esbaldou como um rapazinho, mesmo vestido
de mulher, e com aquele narigão — sem música!
Devagar, dobrou o guardanapo, enxugou os cantos da boca, balançou
as pernas, sorveu o restinho de café-com-leite que ficara na xícara, e atirou a
derradeira pergunta, decidido a ir embora, se não conseguisse destravar a
língua do outro:
— Viu as jóias do nosso Pierrô? Gostou? Eu gostei. O senhor
também? Magníficas. Parte daquelas jóias são portuguesas. Meu país tem uma
bela tradição de ourives e plateros. Conhecia? Logo vi. Eu, na minha casa,
tenho uma caravela de ouro realmente soberba. Está vendo este meu relógio?
É de ouro, com um brilhante.Não chega a ser uma jóia. Um bom relógio.
Suíço. Mas não é uma obra de arte.
E levantou-se:
— Vou lá para fora. Quero ver a entrada da barra. Com a sua licença.
E subindo a escada:
— Que camarada difícil. Passou o tempo todo a mexer a cabeça, a
mexer a mão, a mexer o ombro, sem mexer os beiços, sem querer falar. Ainda
bem que ele vai descer no Rio. Se continuasse a viagem, eu pedia desculpas ao
Comandante, e mudava de mesa.
Lá no alto, no convés ainda úmido da faxina matinal, um marinheiro
passava óleo nos metais, enquanto outro, mais adiante, repunha as cadeiras
compridas em fileira, tomando boa parte do espaço livre, para a preguiça das
horas de leitura ou dos banhos de sol. Longe, quase na proa, perto do Salão
de Festas, o velho fotógrafo havia pendurado para secar as fotografias do
baile, e eram duas ou três centenas, com os instantâneos mais divertidos.
Foi para lá que se orientou o português, sentindo o vento forte do mar
bater-lhe nas pernas nuas. Perto, saudou o fotógrafo:
— Lembra-se de mim? Ontem, fui mandarim, com bigode e rabicho. Já
tem minhas fotos?
E logo deu com elas, aqui, ali, mais adiante, misturadas às demais, no
pandemônio da noite de carnaval:
— Com a sua licença.
Retirou quatro, depois outra, mais outra, rindo, achando graça em si
mesmo e nos outros, sobretudo no Comandante e na Marquesa, que lhe
pareciam os mais gaiatos da festa.
E o velho, rindo também:
— E há mais, senhor. Muito mais. Quase o dobro. Gastei muito filme,
mas valeu a pena. Tirando a música, olhando tudo isto a frio, quem é que diz
que a Senhora Marquesa é uma grande dama? E que este Pierrô não é um
brasileiro distinto? E que o Senhor Comissário é um homem sério, que vive a
gritar com os marinheiros? Já o dia raiando, quando vi o nosso Comandante
saindo da festa compasso arrastado, ainda de nariz postiço, tive vontade de lhe
bater na barriga. Há cinco minutos ele passou de novo por aqui. Queria que o
senhor o visse. Banhado, barbeado, penteado, metido no uniforme branco,
novamente na sua pele de Comandante. Até me perfilei quando ele me
cumprimentou.
Riu, voltou a ficar sério, e ria agora o português, novamente divertido
com as fotografias:
— Olhe este gordo ajoelhado aos pés de um árabe. Veja os olhos dele,
languidos, suplicantes. E esta moça quase nua. É a primeira vez que eu vejo o
carnaval autêntico. Uma loucura. Uma rematada loucura. Mas gostei. Não vou
mentir. Gostei.
E dobrando a risada:
— Sabe quem é este aqui, com uma máscara de velha? Um sobrinho da
Marquesa. Senta-se comigo à mesa do Comandante. A hora em que eu saí, ele
também saiu. Devia estar um pouco alto. Com uma máscara de velha. Sim,
senhor: esta mesa que aqui está. Quando andou pelo convés, amparando-se
nas paredes, tirou a máscara, jogou-a ao mar, dizendo um palavrão. Fez-me
rir, mesmo caindo de sono.
E o fotógrafo, pendurando outros instantâneos:
— Com o dia amanhecendo,e já sem música, houve quem saísse
pulando e dançando, com toda a animação do baile.Outros, como este aqui,
com ar sério e compenetrado. Veja este senhor de braço dado com a mulher,
como quem vai para a missa. Mas de barba postiça. Bati outra foto dele
quando a mulher lhe tirava a barba.
O português olhou outras fotos, sempre rindo alto, por entre
exclamações divertidas:
— Mas isto tudo é formidável, meu bom amigo. Se eu disser, na minha
quinta, em Portugal, que houve isto tudo, aqui no navio, num baile de
carnaval, vão dizer que estou mentindo.
E de repente, decidindo-se:
— Eu vou querer que o senhor faça para mim uma coleção completa
destas fotos. Para eu mostrar ao pessoal. Vou me divertir com elas o resto da
vida.
Até o meio-dia, quando o navio atracou no Cais Mauá, debaixo de um
sol muito vivo e causticante, os foliões da véspera, no baile à fantasia, como
que só tinham um propósito: recompor em si mesmos a austeridade dos
outros dias, no convés, na sala de estar, no portaló, até que a Praça Mauá,
sobre a qual o Pasteur se debruçava, estendeu até ele a animação de seus
blocos, ranchos e mascarados, ao som dos sambas e das marchas que os altofalantes ensurdecedoramente ampliavam, e então voltou o navio a animar-se,
mas de modo comedido.
Assim que os passageiros tiveram ordem de descer, muitos dos turistas
que tinham vindo do Havre, de Lugo ou de Lisboa, e também de Tenerife,
trataram de baixar ao cais, para os passeios até a praça, e mesmo Avenida Rio
Branco acima, enquanto crescia o bulício das bagagens e dos passageiros que
ali mesmo interromperiam a viagem.
A velha Marquesa, que acabara por ir dormir mesmo no camarote, já ao
meio da manhã, exibia agora os olhos estremunhados e os braços nus,
passeando pelo convés, fresca, amável e superior, sacudindo a ventarola sobre
o colo empoado. De vez em quando, reanimada pelas músicas dos altofalantes, ensaiava dançar, sem interromper a caminhada, e sacudia as nádegas,
e balançava os seios, como se os compassos buliçosos, no ritmo estrondante
das batucadas, tivessem o dom de acordar na grave senhora a odalisca da
véspera. E confessava, saracoteando-se:
— Vou acabar caindo no samba, ali na rua.
E ria, e aplaudia-se, no frenesi de um novo pandemônio, para logo
corrigir-se, continuando a caminhada, no seu passo descansado, gorda, ancha,
com uma leve camada de suor na testa e no pescoço.
Foi ela que primeiro perguntou pelo Benevenuto ao Comissário, ao
subir para o convés. E ele:
— Não o vi. Deve continuar dormindo no camarote. Como o navio só
vai sair amanhã à noite, vamos deixar que descanse ali mesmo, para se refazer
da animação de ontem.
Também o português não o tinha visto. Tampouco o casal chileno. E a
Marquesa:
— Ele vai acordar com estas músicas. Daqui a pouco aparece aqui para
se despedir. Vou sentir a falta dele. Eu só, não: todos nós. Um companheirão.
Meu sobrinho ficou impressionado com as jóias dele. E eu também. Vão dar
mesmo uma linda exposição. Nunca imaginei que, por aqui, sem uma vida
social refinada, houvesse tantos adereços, tantos colares, tantas pulseiras de
ouro, cravejadas de pedras preciosas. Da gente ficar de olhos arregalados.
Lá embaixo, a olhar para o navio, sempre de olho na escada do portaló,
o fiel Elesbão, compenetrado de seu papel de mordomo, tentava em vão
avistar o Benevenuto, para lhe dizer, tranqüilizando-o, que estava ali, pronto
para recebê-lo. E mais: tinha trazido consigo outro homem de confiança, além
do motorista, o Elisiário, para que lhe dessem a necessária cobertura, com
tanto bandido na rua se fingindo de folião, para o transporte das jóias da Tia
Eudóxia, entre a Praça Mauá e a Avenida Atlântica.
A própria Tia Eudóxia, na véspera, tinha telefonado ao Elesbão:
— O Benevenuto já está indo para aí. Vai buscá-lo. E leva contigo
mais alguém. Estás me entendendo, não? A carga é preciosa. O Benevenuto
confia em todo mundo. Vai buscá-lo no navio. Nessas horas, com tanto
assalto, tanto roubo, todo cuidado é pouco.
Houve um momento em que o Elesbão supôs que era o patrão que
vinha descendo a escada devagar. Correu para perto do navio, chamou o
Elisiário, que tinha o olhar num bloco de sujos, na Avenida Rodrigues Alves:
— Aqui, aqui. Do meu lado. Grudado em mim. Sem arredar.
Mas o homem, com o mesmo corpo do Benevenuto, o mesmo jeito
gracioso, e também moreno, só tinha dele o feitio, e era vesgo, e tinha um ar
debochado. Elesbão, que havia acenado para ele, olhou-o por cima do ombro,
já ao meio da escada, e voltou a ficar ao sol, com a vista levantada para o
portaló do navio:
— Se esse não era ele, Elisiário, o outro, que vier, é, com certeza.
Continua perto de mim.
Pela manhã, não contente de ter telefonado na véspera, Tia Eudóxia
tornara a lhe falar, abafando a voz:
— Uma pergunta, Elesbão: você, aí, mandou reforçar a fechadura da
porta? O apartamento tem sinal de alarme? Como é que não tem, Elesbão?
Onde é que você tem a cabeça?
E ele, tranqüilizando-a:
— Durma sossegada. O edifício é uma verdadeira fortaleza. Só entra
aqui quem a gente quer. Tudo é controlado pelo olho mágico. Lá embaixo, na
portaria do prédio, há um segurança, dia e noite. Até o elevador tem
fechadura própria: só abre quem for do apartamento. Sim, sim, conheço o
doutor como a palma de minha mão. Muito ordeiro, muito organizado, mas
confiando em todo mundo. Eu, aqui, tomo conta dele. Sou eu que fecho e
abro o apartamento. Muito segredo de gaveta só eu sei. O Doutor não se
cansa de dizer que, comigo no apartamento, ele dorme e viaja sossegado.
E quase a ponto de deixar sentir à velha que não estava gostando:
— A senhora também precisa confiar em mim. Confiança total.
Agora, ali no Cais do Porto, vendo o tempo passar sem que o patrão
aparecesse, bem vestido, bem penteado, Elesbão começava a inquietar-se. Tia
Eudóxia, com seus receios, teria tido alguma premonição? Seria possível, meu
Deus? Não, não, tudo daria certo. E numa determinação imediata:
— O melhor que eu faço é ir ao navio. Subo, falo com o Comandante,
e ponho tudo em pratos limpos. Em cinco minutos, o Doutor aparece.
— Aparece.
— Por que não?
Identificou-se ao pé da escada, e foi subindo. Perto do último degrau,
alarmou-se. E se o Doutor, em vez de esperar por ele, tivesse ido para
Copacabana, logo que o navio atracara? Apressou a subida, aflito. E tornando
a dominar-se já agora no patamar:
— Antes do navio atracar, já eu estava aqui. Por esta escada, ele não
desceu.
Teria descido pela prancha da popa, por onde os carregadores subiam e
desciam as bagagens? Sim, podia ser. Enquanto ele, Elesbão, olhava para a
escada do portaló, por onde desciam os passageiros, o Dr. Benevenuto, com
certeza, havia descido pela prancha, acompanhando o carregador com a
bagagem.
E aborrecido, enquanto cocava a nuca:
— E eu aqui, bestando.
O Comissário, por trás do balcão da cabine, procurou tranqüilizar o
Elesbão, que parecia nervoso, querendo tirar a limpo se o seu patrão tinha
desembarcado ou se ainda estava no navio:
— Deve estar aqui. Muita gente, hoje, deixou de ir à mesa do café e à
mesa do almoço, para continuar dormindo, depois da festa de carnaval, na
noite de ontem.
E olhando o painel das chaves:
— Se ele tivesse desembarcado, a chave do camarote estava ali. Não
está. E que é que isso quer dizer? Que o seu patrão continua dormindo, sem
se dar conta de que o navio j á está no Rio de Janeiro.
E tirando do bolso da calça o chaveiro onde trazia a chave-mestra:
— Vamos lá.
Tranqüilo, rodando no dedo indicador a corrente do chaveiro, adiantou
ao Elesbão, que parecia mais aflito, na expectativa de um contratempo mais
sombrio:
— Ele sabe que o navio vai permanecer aqui até amanhã à noite. Pode
dormir à vontade.
À porta do camarote, olhou para o Elesbão com ar de riso, tardando
introduzir a chave no orifício da fechadura:
— O carnaval, aqui, parece que está mais animado este ano do que no
ano passado. E as músicas são mais bonitas.
Enfiou a chave, rodou-a. E antes de torcê-la de novo, para retrair a
lingüeta do trinco:
— O senhor, pelo jeito, não gosta de carnaval. E o Elesbão, nervoso:
— Não, não gosto.
O Comissário descerrou a porta, empurrou-a para dentro do camarote,
chamou pelo Benevenuto, quase ao mesmo tempo em que o Elesbão,
desconfiado, aflito, lhe passava à frente, guiado pela claridade da lâmpada
subitamente acesa. E vendo o camarote arrumado e limpo, com a mala grande
sob o beliche, o costume cinza do patrão pendente do cabide do guardaroupa, disse ao Comissário, alarmado, que também olhava em volta, sem
compreender:
— Não está o Doutor, não está também aqui a mala das jóias!
E patético, como diante do irremediável:
— Uma coisa me dizia, dentro de mim, que alguma coisa grave ia
acontecer com o Doutor. E agora, Comissário? Chame a Polícia, manda
examinar todo o navio, com a maior urgência, para ver se ele está aqui, se há
uma pista qualquer para sabermos onde ele está. E depressa. Não podemos
perder tempo! E o Comissário, cauteloso:
— Não toque mais em nada, por favor. Vou chamar a Polícia
imediatamente. Não saia daqui.
E com um lenço aberto, que lhe resguardava a mão nervosa, postou-se
à entrada do camarote, fez sair o Elesbão, puxou a porta, girou-lhe a chave,
intrigado, atônito, e seguiu corredor afora, para dar conhecimento do fato ao
Comandante, chamar a Polícia, saber o que se havia passado, examinar as
hipóteses do crime de morte ou do seqüestro, tirar a limpo o sumiço da mala,
levantar todo o seu conteúdo, ouvir os passageiros e a tripulação, como a
debater-se de repente com as rajadas e os rodopios de um vendaval.
Na subida da escada, suspirou, passou a mão na cabeça, apoiou-se no
corrimão, galgando depressa os degraus, tomado de uma súbita amargura, que
acentuou no seu rosto o sulco das rugas:
— Tudo ia tão bem, sem um problema a bordo, e agora, sem quê nem
mais, este mistério, este caso absurdo, depois de uma noite descontraída em
que tudo deu certo! Já sei que vou me aborrecer. Há dez anos, tivemos aqui
um problema parecido, com a senhora que apareceu morta na piscina de
bordo, e só eu sei as dores de cabeça que tive, só porque eu tinha sido a última
pessoa com quem ela conversou.
O Elesbão, à noite, ligou para a velha Eudóxia:
— Estou muito aborrecido, D. Eudóxia. E só lhe telefono porque sei
que é meu dever. A propósito de seu sobrinho.
Tia Eudóxia, que viera ao telefone de mau humor, a indagar a si mesma
o que é que o burro do Elesbão quer comigo, ergueu a voz, apreensiva, quase
num grito:
— E houve alguma coisa com ele, Elesbão?
Elesbão fez um silêncio, como se buscasse as palavras mais adequadas à
má notícia:
— Infelizmente houve, D. Eudóxia. Eu sinto muito lhe dizer. Mas não
posso deixar de dizer tudo à senhora, mesmo sabendo que estou falando com
uma pessoa que já fez oitenta anos.
Tia Eudóxia ergueu a voz com tal furor que por pouco se faria ouvir,
de sua fazenda ao Rio de Janeiro, sem recorrer ao telefone:
— Diga logo o que houve, seu idiota, em vez de me deixar aqui em
cima de brasas, com esses seus mistérios. O Benevenuto matou-se? Ou foi
morto?
E o Elesbão, em tom pesaroso:
— Sumiu, D. Eudóxia! E a velha, exaltada:
— Mas sumiu como, Elesbão? Outro silêncio.
A velha, noutro berro:
— Fala, idiota! Ou eu vou daqui e te racho a cabeça com um pau!
Elesbão soube ser compreensivo:
— Pode dizer o que quiser, D. Eudóxia. A gente está neste mundo para
sofrer. E eu estou sofrendo como um desesperado. Fui ao Cais do Porto
receber o Doutor. Eu e um amigo, que conhece também o Doutor. Qual não
foi a minha surpresa quando todos os passageiros desceram do navio, menos
o seu sobrinho. Fui lá em cima falar com o Comandante. Acabei falando com
o Comissário. O Comissário foi comigo ao camarote do Doutor. Mas o
Doutor não estava lá. Só estava a mala grande, que ele levou daqui. Armei um
rolo dos meus. E exigi do Comandante: — O senhor tem de dar conta de
meu patrão. Isso não pode ficar assim. E eu não saio daqui enquanto o senhor
não me disser o que aconteceu com ele. —Aí veio a Polícia. Lá fora, o
berreiro do carnaval. E no salão do navio, eu, o Comandante, o Comissário, o
Delegado, mais dois homens da Polícia. Tudo quanto se apurou, até a hora em
que eu vim para casa chorar, foi o depoimento de um marinheiro, que ouviu
uma coisa cair na água, ti-bum!, em plena madrugada, quando havia a bordo
um baile de carnaval.
Outro silêncio.
E Tia Eudóxia, falando devagar:
— Ainda estou no telefone, Elesbão. Tenho uma pergunta muito
importante a te fazer. Não me disseste nada sobre a mala das jóias. Sumiu
também, Elesbão?
E o Elesbão, após outro silêncio:
— É como diz, D. Eudóxia. Sumiu o Doutor e sumiu amala das jóias.
Como, não se sabe até agora.
Tia Eudóxia foi rápida na sua decisão:
— Eu vou até aí, Elesbão. Amanhã cedo estou chegando.
Elesbão, na manhã seguinte, foi apanhar pessoalmente o jornal na
banca da Rua Constante Ramos. E não esperou voltar ao apartamento para
ler, na primeira página, em destaque, a longa reportagem sobre O mistério do
camarote vazio, em que figurava seu nome.
Parou na esquina da Avenida Atlântica fruindo a emoção daquela glória
imprevista. Sim, era ele mesmo, Elesbão, nascido no Crato, mordomo,
cinqüenta e três anos, que ali estava, como a pessoa que havia denunciado o
fato e alertado a Polícia. O repórter acentuava: "Sem a ação enérgica deste
nosso patrício, visivelmente revoltado com o descaso a que estava relegado o
duplo crime —, com a morte ou seqüestro de uma conhecidíssima figura de
nossa sociedade e mais o roubo de toda uma riquíssima coleção de jóias
antigas —, o navio estrangeiro já teria zarpado de nosso porto, como se nada
houvesse acontecido".
Voltou à banca de jornal, comprou mais quatro exemplares: um, que
guardaria consigo; outro, que mandaria para os parentes, no Crato; outro mais,
para passar às mãos de Dona Eudóxia, e outro mais, como reserva
suplementar, prevendo a hipótese de ter de mandá-lo a mais alguém que, no
momento, não sabia ainda quem fosse.
Na portaria de seu edifício, já o porteiro tinha lido a reportagem:
— Foi o nosso síndico que leu primeiro. Leu, e me fez ler. Parabéns,
Elesbão. Há males que vêm para bem.
E como o síndico ia chegando da praia, no seu fresco calção de banho,
e outros moradores iam também saindo ou voltando, Elesbão sentiu à sua
volta um círculo de curiosos, entre os quais o sisudo general do quarto andar,
que lhe pediu contasse o que se havia passado.
E o Elesbão, instalado de repente na sua importância:
— Vi logo que havia ali qualquer coisa estranha que era preciso
esclarecer. Meu anjo da guarda me dizia: — Fala grosso, Elesbão. — E eu
reclamei: — Quero saber onde está o Doutor. Vocês, aqui, têm de dar conta
de meu patrão. Nem que eu tenha de ir ao fim do mundo.
E o dentista do nono andar, que sempre tinha uma objeção ou um
problema novo nas reuniões do condomínio:
— E você entendia o francês do Comissário, Elesbão?
— O francês, não; mas o espanhol, sim. Trabalhei onze anos na casa de
um argentino, e arranho bem o meu espanhol. Além disso, sou vivo. Ninguém
me passa para trás.
E por mais de hora contou o longo tempo em que, ouvindo as cantigas
de carnaval da Praça Mauá, ficara à espera da Polícia Marítima, depois da
outra Polícia, e do depoimento que tivera de repetir, e tralálá, minha Nossa
Senhora, um horror, e olham falando de cima, e grosso, para confundir os
gringos, para pôr tudo em pratos limpos.
De modo que, por volta do meio-dia, quando a Tia Eudóxia, ainda
maravilhada com a viagem de avião, na Ponte Aérea entre o Rio e São Paulo,
entrou no apartamento do sobrinho, havia ali um rebuliço de pessoas
estranhas, de luzes acesas, de máquinas assestadas sobre o Elesbão maquilado
e importante, no próprio gabinete do Benevenuto, e que estava sendo ouvido
para um programa de televisão.
Dizia ele, repimpado na cadeira alta:
— Camarote vazio é exagero: havia ali a mala grande do Dr.
Benevenuto, como foi dito no jornal. O que não disse é que, no guarda-roupa
do camarote, havia também o costume cinza que eu mesmo havia separado
para ele descer aqui no Rio.
E lembrando-se:
— E uma coisa que eu não disse e estou me lembrando agora: por uma
vista rápida da mala, com uma chavinha igual à do Dr. Benevenuto, e que está
neste meu chaveiro, dei por falta da fantasia de Pierrô, que ele naturalmente
vestiu para o baile de fantasia que houve no navio.
E o repórter, nervoso com o detalhe importante:
— Espera um momento, meu chapa. Repete isso devagar.
Foi nesse momento que, pela porta que dava para o elevador, entrou ali
Tia Eudóxia, magra, olhos pisados, carregando a sua vasta bolsa, e que logo
parou, como se estivesse em apartamento errado.
E ao dar com o Elesbão, no escritório do Benevenuto, como se fosse o
dono da casa, gritou para ele, exaltada:
— Que confusão é esta, Elesbão? E em que país estamos para que te
instales na cadeira do Benevenuto como se fosses agora o dono da casa?
Acaba já com isto. Põe daqui para fora toda esta gente. Lava a cara e vem
conversar comigo.
Mas já as câmaras de televisão convergiam sobre ela, ofuscando-a,
irritando-a, confundindo-a, e ela enrijeceu, dura, ao fundo da sala, com a
cólera a lhe subir ao rosto enrugado:
— Não quero ninguém aqui. Ponham-se daqui para fora. Já e já.
E a despeito dos flashes que se repetiam, e da câmara que continuava a
convergir sobre a sua figura magra e ríspida, a velha reagiu, postou-se na
porta, sempre aos gritos, protestando, e foi esvaziando a sala, com a mesma
energia, com a mesma voz de mando, até que só ela e o Elesbão restaram no
apartamento fechado.
E ele, a esfregar uma toalha no rosto para desfazer a maquilagem:
— Eu, por mim, não queria falar para a televisão, Dona Eudóxia. Deus
é testemunha. Mas jornalista é teimoso. Tanto teimaram comigo pelo telefone,
que eu tive de ceder. Deu nisso. Desculpe.
A velha, enquanto tratava de controlar-se, ocupando as mãos dinâmicas
a esvaziar os cinzeiros repletos:
— Vai te vestir, Elesbão. Temos de ir ao navio agora mesmo. No
caminho, vais me dizer as novidades. Prepara um dos quartos para o
Frederico, que vem a caminho daqui, com o meu automóvel. Tudo rápido. Já.
Tia Eudóxia, na sala de estar do navio transformada em sala do
inquérito, com o Delegado, os detetives, os guardas, o escrivão, e mais o
advogado do Consulado francês, e o próprio Cônsul, não conteve a sua
irritação:
— E o senhor vai deixar este navio sair do Rio de Janeiro sem que o
Comandante me devolva o meu sobrinho, ou diga ao menos onde ele foi
parar?
O Delegado afastou as mãos, erguendo o olhar para a velha:
— Nada foi apurado contra o Comandante e a tripulação, minha
senhora. Nada. Rigorosamente nada. A hipótese a que chegamos até agora,
depois de ouvir vários passageiros, depois de ouvir o pessoal de bordo, depois
de examinar meticulosamente o camarote, é que seu sobrinho, que tinha um
gênio extravagante, com o gosto de fantasias de luxo, com inclinação para ser
diferente, de se fazer notado, teve outro acesso de paranóia e decidiu matar-se,
atirando-se ao mar e levando com ele as jóias da família, para criar todo este
rebuliço, que está hoje nos jornais, nas revistas, nas rádios, nas televisões do
mundo inteiro, como um enigma, como um mistério. E a velha, intransigente:
— E o senhor não acha, Delegado, que tudo quanto me disse é
rematada besteira? Pois se não acha, fique sabendo que é. Meu sobrinho era
meio tanta, reconheço, mas não era tão maluco a ponto de jogar a vida fora,
com o tesouro que eu lhe botei nas mãos. Não, não era. Tinha meu sangue.
Sabia onde punha o nariz.
Levantou-se para ir embora. E de pé, retardando o primeiro passo:
— No fim de tudo, perco o meu sobrinho, perco as minhas jóias, e
estou vendo que perdi meu tempo e meu latim em querer ajudar a Polícia, em
conversar com o Comandante, em olhar o camarote, em fazer também o meu
inquérito, para dar nesta água de barrela: o navio liberado para ir embora, o
meu sobrinho sumido, sumidas as minhas jóias, e eu que volte para a minha
fazenda de mãos abanando.
O Delegado replicou, em tom sereno:
— Mas o inquérito ainda não está encerrado. Vou mandar fazer outras
diligências, vou novamente esmiuçar tudo, vou apelar para a Polícia francesa,
vou levar o caso à Interpol para ver se há uma pista, uma dúvida, um fio que
se possa puxar.
A velha sobraçou a bolsa. E estendendo a mão firme:
— Eu, por meu lado, não vou sossegar. Vou também me mexer. Vou
prosseguir nas minhas dúvidas. Até pôr o preto no branco. Até agarrar o
bandido pela gola. Porque, em tudo isto, há um bandido que os senhores não
descobrem, e que eu vou descobrir. Vou.
O Delegado, também de pé, retendo-lhe a mão por um momento:
— E conte conosco. Já lhe dei meu telefone. Me fale.
Tia Eudóxia recolheu o braço e foi saindo devagar, pesarosa, revoltada,
não sabendo o que fazer de si mesma. Naquele dia mesmo voltaria à sua
fazenda. Para se consolar, de noite, nas suas vigílias, com o cri-cri dos grilos, a
tabuada dos sapos nas margens do rio, o tuco-tuco do motor da luz elétrica.
E suspirando:
— Para meu fim de vida, não há dúvida: é um remate meio besta.
Pensando bem, eu merecia coisa melhor.
No convés, o velho fotógrafo de bordo, que em parte lhe ouvira a
conversa com o Delegado e se compadecera da senhora de oitenta anos, que
sabia teimar, lutar, discutir, sem que o tempo lhe houvesse atenuado as
energias, aproximou-se dela, amável, afetuoso:
— Posso-lhe fazer presente destas fotos, minha senhora? São as fotos
de seu sobrinho, anteontem, aqui no navio.
Tia Eudóxia recebeu as fotografias, afastou a mão para olhar melhor,
reconheceu o Pierrô com que o pobre do Benevenuto havia ganho o primeiro
prêmio do concurso de fantasias de luxo, no penúltimo carnaval do Rio, no
baile do Copacabana Palace, e se emocionou.
E ia agradecer a gentileza do fotógrafo, depois de outro suspiro,
quando o homem lhe perguntou:
— Gostou, senhora?
— Sim, gostei. Obrigada.
E ele, solícito:
— Tenho um maço de fotografias de toda a festa. Do começo ao fim.
E há outras com o mesmo Pierrô. Preparei uma coleção completa para um
passageiro, e posso-lhe ceder. Só cobro o material.
E Tia Eudóxia, hesitando em aceitar:
— E que é que o senhor vai dizer ao passageiro que lhe encomendou a
coleção?
— Faço outra para ele.
E ela, ao fim de um silêncio:
— Se pode ser assim, fico com a coleção.
Ao pé da escada do navio, aceitou a mão solícita que o Elesbão lhe
estendia. Trazia agora na bolsa, em forma de fotografias, a derradeira noite do
pobre do Benevenuto.O tempo haveria de consolá-la pela morte do sobrinho.
Só não a consolaria pela perda das jóias da família.
E disse ao Elesbão, que em silêncio caminhava ao seu lado, com ar
pesaroso:
— Amanhã mesmo volto para a minha fazenda. Aqui não tenho mais o
que fazer. Isto é a vida, Elesbão.
Embora não chovesse, havia lá fora uma ventania de temporal. Iria
chover, certamente, no correr da noite. Por enquanto, só se ouvia o gemido
das árvores torcidas pelo vento. E este mesmo vento, por arrancadas súbitas,
sibilava por baixo das portas, sacudia a fileira de janelas da imensa varanda,
assobiava pelo vão dos beirais, esfuziante, agressivo, enquanto o motor da luz
elétrica continuava o seu tuco-tuco teimoso, à revelia do mau tempo.
— Vai chover, e muito — vaticinou Tia Eudóxia, olhando a noite
escura por trás da vidraça, e sem disposição para o jogo de paciência com que
distraía a vigília antes de seu sono chegar.
Passara boa parte do dia a lembrar-se do Benevenuto. Menino,
correndo naquele quintal. Rapazinho, no sofá da sala, de pernas cruzadas, nas
férias do internato, em Lausanne, no mesmo colégio misto em que ela própria
estudara, no fim do outro século. Depois, já homem feito, e com a teimosa
mania das fantasias de luxo, pelo carnaval.
Nunca pudera atinar de onde viera no sobrinho esse pendor
extravagante, que o levava a entender de bordados, de mantos, de paetês, às
voltas com alfaiates e costureiras, tecidos finos, adornos, enciclopédias, livros
de história, tudo para acabar nos desfiles do Teatro Municipal, no Rio de
Janeiro, ou, também no Rio, no Clube do Monte Líbano, no Teatro João
Caetano, com direito a ser capa de revista, sempre que alcançava o primeiro
lugar, deixando de cama os seus rivais.
E ainda olhando a noite, com a impressão de que a chuva começara a
cair, fustigando as folhas das árvores, em volta da casa:
— É curioso: e tudo para acabar numa festa de carnaval, dentro de um
navio, como se o carnaval representasse a sua glória e o seu fim.
Já não tinha esperanças de ver elucidado o mistério do desaparecimento
do sobrinho, nem tampouco — o que profundamente lhe doía — o de suas
ricas jóias. Dias antes, o Elesbão lhe mandara o recado do Delegado:
nenhuma pista, nenhuma esperança, e com respostas evasivas, tanto da
Scotland Yard, em Londres, quanto da Interpol, na Europa e nos Estados
Unidos, e ainda da Polícia francesa, em Paris, em Marselha e Lyon. Todas
estavam atentas a vendas de jóias antigas, a exposições, a desfiles de moda.
Nada. Rigorosamente nada. Debalde a Interpol, reunindo cento e vinte cinco
polícias de todo o mundo, havia acompanhado, até a última semana, os
passageiros e a tripulação do navio, incluindo o próprio Comandante.
E a velha, recriminando-se:
— A culpada mesmo sou eu. Que é que eu tinha de chamar aqui o
Benevenuto? E por que motivo lhe confiei minhas jóias?
E dando as costas à janela, ouvindo, mais forte, o ruído da chuva:
— Agora é tarde, Inês é morta. Não adianta passar a tranca na porta
depois da casa arrombada.
E já ia recolher-se ao seu quarto, para ouvir no toca-fitas um de seus
concertos prediletos, quando se lembrou da coleção de fotografias que
comprara ao fotógrafo, no navio. Onde as deixara? Trouxera-a na bolsa até a
fazenda. E depois?
— Já sei, já sei. Estão no gavetão da cômoda.
E a saudade do sobrinho, e mais a tristeza de se ver sozinha naquela
noite de chuva, e ainda uma ponta de magoada revolta por nada ter feito para
encontrar o culpado, levaram Tia Eudóxia a entrar no quarto, a abrir o
gavetão, a tirar dali o pacote das fotografias para se distrair com elas,
melancolicamente, sozinha, na noite friorenta e comprida, já agora clareada
pelos relâmpagos repentinos.
Pensou em espalhá-las na mesa do cofre de ferro onde por tantos anos
guardara as jóias, e reagiu:
— Não, aquela mesa é pequena. Preciso de uma mesa grande.
E tornou à varanda, reanimada por uma ponta de cólera contra a
maldade humana — que mata e rouba, sem remorsos, como se o crime fosse
um prêmio ou uma recompensa.
Ali, na vasta mesa de vinte e quatro lugares, onde outrora reunia os
fazendeiros dos arredores, para festejarem a alta do café, espalhou as
fotografias, sob o lustre aceso, e ficou a rir e a sorrir, às vezes a contrair o
rosto, como no esboço de uma censura, até que teve a sua atenção despertada
pelo grande relógio do Salão de Festas, presente em todas as fotografias,
graças à sua posição privilegiada dominando todo o recinto.
Por ele podia ver o momento exato em que o Benevenuto, no seu
Pierrô premiado, havia chegado. Depois, o Benevenuto num cordão; o
Benevenuto com a Marquesa; o Benevenuto com o Comandante; o
Benevenuto ao receber o prêmio do navio; o Benevenuto dançando; o
Benevenuto segurando o nariz postiço do Comandante; o Benevenuto com
uma taça de champanhe; o Benevenuto com um copo de uísque, alegre,
risonho, feliz, sem imaginar que, pouco depois, estaria morto. E quem o teria
matado? Quem o teria matado para lhe roubar a mala das jóias? Quem?
E redobrando de atenção, curvada sobre as fotografias:
— Quem o matou deve estar aqui. E há de ter descido no Rio de
Janeiro, trazendo a mala. Sim, trazendo a mala, no tumulto da descida
confusa, com as músicas de carnaval nos alto-falantes da Praça Mauá, com o
frenesi dos turistas querendo ver o carnaval, com os carregadores entrando e
saindo, na prancha de madeira da popa. Sim, devia ter descido ali. Do
contrário, se fosse um tripulante, se fosse outro passageiro, a mala teria sido
encontrada, nas várias buscas por todo o navio, camarote por camarote, sem
esquecer os porões, e até mesmo as cabines do Comandante, do Comissário e
dos dois pilotos. Tudo vasculhado. O criminoso, antes que o Elesbão
houvesse posto a boca no mundo, dando por falta do patrão, teria
desembarcado com toda a calma, com a sua mala, com a mala das jóias, e
desaparecido na confusão da cidade, sem que ninguém desconfiasse ou
maliciasse. E o baque que um dos tripulantes dissera ter ouvido pela
madrugada, como de uma coisa lançada ao mar? E a velha, alvoroçada:
— Muito simples, muito simples: matou o Benevenuto pelas costas,
atirou-lhe o corpo na água depois de tirar-lhe a chave do camarote, e foi
buscar a mala, que passou para o seu próprio camarote.
E como a inteligência de Tia Eudóxia, despertada pela iluminação de
seu raciocínio terrivelmente lúcido e lógico, ainda fosse mais adiante, a velha
deu um murro na mesa:
— E foi um homem forte, decidido, capaz de pôr o Benevenuto nas
costas e atirá-lo do convés do navio!
Tudo claro, clarinho, como se ela estivesse a ver a seqüência do crime, e
tornando às fotografias, selecionou os homens fortes, separou-os do
conjunto, até que se lembrou de ordenar as fotografias obedecendo à sucessão
do tempo marcado pelo relógio. E ia dizendo, à medida que as punha no
mesmo bloco:
— Estas, às dez e trinta. Estas, às dez e quarenta. Estas, às dez e
quarenta e cinco. Estas, às onze horas. Estas, à meia-noite.
Uma por uma, aglutinou-as no momento respectivo. E com outro
murro na mesa, querendo rir:
— Aqui está o Benevenuto saindo da festa: duas horas e oito minutos.
Logo depois, às duas horas e nove minutos, está saindo este homem forte,
espadaúdo, com uma máscara de rinocerante.
Nas demais fotografias, o Benevenuto não aparecia. Não aparecia
também o homem forte. Mas este voltava, às três e dois minutos.
E Tia Eudóxia, querendo rir, querendo gritar:
— Foi ele, foi. E matou o Benevenuto entre as duas horas e nove
minutos e três horas e um minuto!
A casa, isolada, com sete palmeiras imperiais à frente, da mesma altura,
com os mesmos leques verdes, era guardada por cinco cães negros, que latiam
e arremetiam ao menor ruído estranho.
Cá embaixo, precedendo o caminho de pedras que levava à casa de dois
pavimentes, circundada por um varandão espaçoso, o portão de madeira de
lei, sempre fechado, dispunha de um sino de bronze, com uma corrente de
ferro para vibrar-lhe o badalo sempre que alguém queria entrar. Logo os cães
saltavam para o portão, arremetendo, ladrando, até que aparecia alguém da
casa para atender.
E foi essa corrente que Tia Eudóxia puxou com força, logo que desceu
de seu carro pré-histórico, na estrada sinuosa e deserta que liga Petrópolis a
Teresópolis.
Na véspera, assim que chegara ao Rio de Janeiro, tinha ido ver o
Delegado, que logo viera ao seu encontro, sem notícias para lhe dar.
E ela, eufórica:
— Eu, ao contrário, tenho notícias para o senhor. Mas devagar.
Primeiro, preciso de sua ajuda para uma diligência que eu mesma quero fazer.
Só lhe peço que me dê a necessária cobertura. E ele, animando-se:
— Esclareceu o mistério, Dona Eudóxia?
— Estou no caminho.
E ela, mostrando-lhe a fotografia que tirara da bolsa:
— Lembra-se deste senhor? Foi passageiro do Pasteur, com o meu
sobrinho. Penso que desceu aqui no Rio.
— Sim, sim, me lembro perfeitamente. Ele já havia desembarcado, com
outros passageiros que saltaram aqui, quando iniciamos o processo. Não
cheguei a entrevistá-lo. Ele próprio veio aqui, dois dias depois, para qualquer
esclarecimento que se fizesse necessário. Prestou-me um depoimento de
rotina, e foi embora. É estrangeiro, não sei se polonês ou sueco. Está no
Brasil há muitos anos. Ainda hoje, não fala direito o português. Tem uma casa
entre Petrópolis e Teresópolís. Quando moço, teve neurose de guerra, disseme ele. Deixou-me o cartão de visita e o telefone. Para o caso de ser preciso
voltar aqui.
E resumindo:
— O que ele me disse não esclareceu nada. Disse que ficou na festa do
navio até de manhã. Saiu um pouco, para ir ao camarote tomar um remédio.
O remédio que sempre toma para a neurose. Voltou às três horas, pouco mais
ou menos. De vez em quando faz uma viagem. Quase sempre no Pasteur. O
Comandante, que o conheceu a bordo, gosta dele. E o põe na sua mesa,
sempre que ele viaja. Caladão. Uma semana depois de ter vindo aqui, tornou a
me falar, dessa vez por telefone. Para saber se eu o tinha chamado. Eu lhe
disse que não. Ele agradeceu e desligou.
Tia Eudóxia ficou um momento calada, olhando para o Delegado,
como a ponderar, a refletir. E prosseguindo na determinação que a trouxera
até ali:
— Eu vou à casa desse homem. Pode ser que essa história do remédio
para a neurose de guerra seja apenas uma desculpa. O que desejo do meu bom
amigo é que me dê dois ou três homens, bem armados, para a eventualidade
de eu precisar do serviço deles. Se a casa aonde vou fosse perto de minha
fazenda, eu não pedia nada. Lá, tenho gente de minha confiança. Aqui, o caso
muda de figura.
E o Delegado, oferecendo-se:
— Nesse caso, quem vai sou eu.
— O senhor, não — recusou a velha. — O homem já o conhece. Vou
como uma estranha. Para não dar na vista. E no meu velho carro, com o meu
próprio motorista. Amanhã, pela manhã. Cedo.
Agora, ali estava, vendo os cinco cachorros pularem à sua frente, do
outro lado do portão. Na volta da estrada, fizera parar a patrulhinha com os
três policiais muito bem armados. O fordeco pré-histórico viera até ali, com o
Frederico na direção, debaixo do seu velho chapéu mexicano.
E a velha, para o homem de pernas tortas que a olhava em silêncio,
atendendo ao badalar do sino, cercado pelos cães:
— É esta a casa do Senhor Petersen?
E o próprio Senhor Petersen, grandalhão, forte, aproximando-se, mais
atraído pelo carro velho que pela velha senhora:
— Sim, esta mesma. E o Senhor Petersen sou eu.
Tia Eudóxia, serena, procurou representar com perfeição o seu papel,
alongando o braço para dentro do portão:
— Muito prazer, Senhor Petersen. É bem possível que eu venha a ser
sua vizinha. Mais adiante daqui, na direção de Teresópolis, há uma
propriedade à venda. Estou pensando em comprá-la. Mas não vou vê-la nem
fecho o negócio sem antes ouvir um vizinho como o senhor.
E o Petersen:
— Já sei qual é a propriedade. É uma velha casa, com escadaria na
frente, dois pavimentos, um belo terreno, com um riozinho por trás. É boa,
mas é cara. Faça uma oferta menor.
E a velha, recolhendo o olhar cauteloso:
— O senhor, pelo que vejo, tem mesmo uma belíssima casa. Falaramme dela em Petrópolis. Um dia destes, posso lhe pedir para vê-la?
E Frederico, de cabeça descoberta, torturando a aba do chapéu:
— Peça para ver agora, Dona Eudóxia. O Senhor Petersen não lhe vai
dizer não.
E para o Senhor Petersen, que se limitara a ouvi-lo:
— Não me leve a mal, senhor. Conheço bem minha patroa. Se ela não
olhar a sua casa agora, não vai mudar de assunto até vir de novo aqui.
E o Petersen, enquanto o homem das pernas tortas continha os cães,
segurando dois pela coleira:
— Posso olhar primeiro o seu carro? Gosto desses carros antigos. São
ótimos. Motor simples, não enguiçam nunca. Quando moço, tive um carro
igual a esse. Aqui, tenho feito tudo para ver se compro um, mas não encontro
à venda. Quem tem, não quer vender.
E a velha, com ar contente:
— O meu, pelo tempo, não é mais um carro — é uma pessoa da
família. Está comigo há quarenta e dois anos. Firme. Bom de estrada. Pouco
consumo de gasolina. Perfeito. Herdei de meu pai. E é com ele que espero ir à
missa de meu centenário.
E o Petersen, abrindo a folha do portão:
— E vai. Fique certa que vai.
— Deus o ouça, Senhor Petersen.
E esperou, no portão, olhando as árvores, as palmeiras, as capistranas
do caminho, que ele olhasse o Ford uma vez, duas, três, até que, de volta,
após felicitá-la pelo carrinho, propôs-lhe:
— Se algum dia quiser se desfazer dele, me fale. Lá em cima, vou lhe
dar meu telefone. Basta me falar para eu ir ter com a senhora.
E passando à frente:
— Agora, venha olhar minha casa.
Ela olhou a varanda, a sala, os corredores, admirando os velhos móveis,
os velhos quadros, os tapetes antigos, como se estivesse a voltar atrás, na
marcha do tempo. Aqui, uma arca do século XVII. Ali, um consolo do tempo
do Príncipe Regente. No bengaleiro, as bengalas do Padre Feijó, de José
Bonifácio, do primeiro Imperador. Tudo bem cuidado, como nas
dependências de um museu. Noutra sala, relíquias da época de Napoleão
Bonaparte. Mais adiante, uma cadeira de Luís XVI. Em perfeito estado, um
oratório atribuído ao Aleijadinho, com a pintura da época.
E a velha, entusiasmando-se:
— Estou maravilhada, Senhor Petersen. Sou capaz de fazer aqui, se for
mesmo sua vizinha, a festa do meu centenário, incluindo a missa.
E ele, feliz:
— Sabe que tenho aqui uma linda capela? Venha vê-la.
Não era mais o morador carrancudo, refratário à admiração alheia. Mas
o colecionador desvanecido, que recolhe o elogio alheio como uma prova de
identidade.
Foi ele que abriu a porta da capela, e pôs-se a louvar o teto, a via sacra,
o altar, as imagens, enquanto a velha resvalava o olhar pela sacristia
pequenina, toda em mármore róseo, e em cuja parede central se alinhavam
cinco catacumbas, duas das quais com inscrição em latim. A quinta, perto do
chão, sem inscrição funerária, parecia ter sido utilizada em data recente, com o
mármore da futura lápide a exibir o cimento branco que a fechara. E Tia
Eudóxia, sempre maravilhada:
— Gabo-lhe o gosto, Senhor Petersen. Nunca vi nada igual ou
parecido. Sua casa é um pequeno palácio. E esta capelinha — soberba!
Na descida da rampa, perguntou-lhe:
— Aqui, com este clima, com esta paz, com este ar puro, vai-se aos
cem anos sem dificuldades. A coisa mais difícil de ser vista, para estas bandas,
é um enterro.
E o Petersen, entusiasmando-se:
— Desde que aqui estou nunca fui ao enterro de ninguém.
E a velha, despedindo-se:
— Meus parabéns, Senhor Petersen.
E no carro, para o Frederico, assim que este se orientou na direção da
patrulhinha:
— A mala de minhas jóias está naquela catacumba.
Frederico riu alto, levantando na frente a aba do chapéu. Mas recolheu
depressa o riso, ao ver que a velha Eudóxia, ao seu lado, ia beijando,
emocionada, o crucifixo de prata de seu terço.
Afinal, depois de tantos dias de interrogatórios, de depoimentos, de
acareações, o mistério chegava a seu termo, devidamente elucidado, e com a
Tia Eudóxia na posse das jóias da família.
Sem querer, ficara famosa, falando aos jornais, falando à televisão,
comentada, discutida, louvada por sua astúcia e por sua intuição, admirada
também por sua energia e por seu destemor, sem se lembrar de seus oitenta
anos, e ela própria ria alto, no apartamento da Avenida Atlântica, ao reparar
no ar de assombro com que o Elesbão a olhava, não querendo acreditar que
aquela velha magrinha, sequinha, estava de pé às cinco horas da manhã,
batendo-lhe à porta, para que fosse comprar os jornais, acentuando:
— Todos, Elesbão.
E o porteiro da noite, lá embaixo, ao reparar na cara de sono do velho
mordomo:
— Madrugando, Elesbão?
— É a patroa que me põe para fora da cama. A velha não dorme. Deita
à meia-noite, fica vendo a televisão ou ouvindo rádio, e às quatro da manhã já
está no banheiro se arrumando. E ainda grita comigo, me chamando de
preguiçoso. A mim, que não sei ficar parado.
Quanto mais nervosa, mais Tia Eudóxia se fazia autoritária. Telefonava,
ouvia, dava ordens, ralhava, sempre em movimento, como se não soubesse
ficar quieta. Só houve um dia em que se mostrou vagarosa, com os olhos
arroxeados pelas olheiras, uns restos de bocejo na costa da mão, demorando
servir-se à hora do café da manhã:
— Não dormi pensando no Petersen. Apesar do que fez, é digno de
pena. Confessou tudo, chorando. Sim, foi ele que matou o Benevenuto, sabes
com quê? Parece mentira: com um alfinete de chapéu de mulher, aqueles
grandes, que se usavam no meu tempo de moça, e que alguém deixou cair ao
chão, na festa do navio. De repente, andando por trás do Benevenuto, enfioulhe o alfinete pelas costas, à altura do coração. Inteiro. Sem discutir com o
Benevenuto. Sem nada lhe propor. Sabendo que, só assim, teria as jóias que
tinha visto no apartamento dele, levado pela Marquesa. Sim senhor.
Estupidamente. Desvairadamente.
E vendo o ar abobalhado do Elesbão, a ouvi-la:
— O Delegado não precisou apertar com ele. Pôs-se a chorar, contou
tudo. Contou depois como havia escondido as jóias na catacumba, único lugar
que lhe parecia seguro. E eu matei a charada, Elesbão. Eu, Eudóxia, uma
velha de oitenta anos.
Cacarejou, cortou um pedaço de queijo. E deu-lhe a boa notícia:
— Hoje vou receber minhas jóias. Amanhã me mando para a minha
fazenda. Isto aqui, com todos os progressos, com todos os confortos, também
cansa. Já estou com saudade dos mosquitos de minha casa.
E na manhã seguinte, na primeira claridade do novo dia, subiu ao seu
carro antediluviano, esperou que o Frederico ligasse o motor, girando lá fora a
manivela.
Já ia longe, a caminho de São Paulo, quando de repente, rodando os
polegares, perguntou a si mesma o que ia fazer das velhas jóias de família,
postas na mala do carro. Já estava na reta dos noventa anos. Lúcida, enérgica e
rija. E depois? Quem é que sabe o dia de amanhã? E que destino daria àqueles
anéis, àquelas pulseiras, àqueles colares, àquelas placas, àqueles adereços, com
tanto ouro, tantas pedras preciosas? Se não usara as suas jóias quando moça,
menos ainda as usaria quando velha, e bem velha, com a sua bengala, o seu
pigarro e o seu reumatismo. Também não as levaria no caixão quando Deus a
chamasse.
E sempre rodando os polegares:
— Não, não levo.
Assim, por que iria levá-las de volta à fazenda? Para dormir
sobressaltada, temendo os ladrões? Para que o prefeito insistisse em visitá-la,
tossindo muito, cheirando a cebola, só para ver se ela lhe dava um brinco,
uma pulseira, um anel, para as suas famigeradas tômbolas de Natal? Ou para
que insistissem em convidá-la para madrinha de casamentos e batizados, com
o pensamento na jóia que poderia dar como presente de nascimento ou de
boda? E reagindo:
— Não, isso não. As jóias das baronesas, das condessas, das açafatas do
Paço? A pulseira de ouro que Dom Pedro II deu à minha avó? O terçozinho
de prata que D. Leopoldina tinha na mão quando morreu? O muiraquitã que
todo mundo queria ver e pegar? Não, isso não!
E ali mesmo uma idéia generosa encheu-lhe a consciência, apoderou-se
de seu espírito, alvoroçou-lhe o raciocínio, fê-la mexer-se no assento de couro,
como se fosse levantar-se com falta de ar.
O Frederico, sempre vigilante, assustou-se:
— Está sentindo alguma coisa, D. Eudóxia?
— Sim — confirmou a velha.
E no seu tom autoritário:
— Vamos voltar, Frederico. Entra no primeiro retorno. Conheces o
caminho de Petrópolis?
E com ar feliz, libertando-se de sua nova angústia:
— Vou levar minhas jóias para o Museu Imperial. O lugar delas é lá.
E o Frederico, passado um silêncio, só para puxar por ela:
— E se o Diretor do Museu não quiser ficar com elas?
Tia Eudóxia mexeu-se na cadeira. E enérgica, inflexível:
— Dou-lhe um berro, dos meus, e ele fica.
Frederico entrou no retorno, passou por cima da ponte. Adiante, com
outro giro da direção, entrou na estrada de Petrópolis.
Paris, 28 de março de 1989.
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