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Tolerância
Diz Nicola Aslan em sua obra “Comentários ao Ritual de Aprendiz”, que um dos primeiros
exercícios a que deve empenhar-se o Aprendiz Maçom, para que possa integrar-se realmente no
Espírito maçônico, é a prática da mais ampla Tolerância, o que significa dispensar a mais generosa
benevolência relativamente às faltas e aos defeitos de seus Irmãos, os quais deve procurar dissimular
para que se propaguem os mais puros sentimentos de afeto e bondade que unem a todos os membros
da família maçônica numa sólida Fraternidade.
Como símbolo da Tolerância, a Maçonaria adotou a Trolha, utensílio dos pedreiros que dela
se utilizam para estender o emboço e cobrir assim as irregularidades, fazendo parecer o edifício como
formado por um único bloco. Desta forma, a Trolha tornou-se um emblema de benevolência para com
todos, de conciliação e de silêncio.
Segundo Plantagenet, a Trolha “é o Símbolo do amor fraternal que deve unir a todos os
Maçons, único cimento que os Obreiros podem empregar para a edificação do Templo”. “Passar a
Trolha” tem o significado também de esquecer as injúrias ou as injustiças, perdoar um agravo,
dissimular um ressentimento, desculpar uma falta.
O verbo “tolerare” significa, em latim, suportar. Dá-se-lhe atualmente o sentido de consentir,
permitir, condescender relativamente aos pontos de vista alheios. É também uma atitude de
indulgência no julgar a outrem e de compreensão para com as suas fraquezas. Na tolerância, contudo,
não há adesão, existe apenas condescendência, isto é, permite-se ou compreende-se que alguém
pratique determinada coisa, sem que por isso se tenha desejo de praticá-la também.
As religiões foram sempre intolerantes umas com as outras, pois todas elas se consideram
detentoras exclusivas da verdade. Salvaguardar a integridade do dogma é para a Igreja uma questão
vital, e assim o Padre Maurice Landrieux dizia, ainda em 1911, em seu livrinho “L’Inquisition, les
temps, les causes, les faits”, esta palavras:
A Igreja, por certo, estava nisso interessada. É para ela uma questão vital o
salvaguardar a integridade do dogma e reagir contra tudo o que põe em perigo a fé,
sem jamais tolerar que a atinjam, visto que sobre ela repousa, e que dela vive. É
sagrado, intangível!
Discutem-se opiniões, sistemas filosóficos: não se discute o Credo. Todas
as religiões positivas, com doutrinas precisas, são necessariamente intolerantes.
Não se podem deixar desmantelar admitindo os inovadores ou com eles transigindo;
posto que a tolerância implica sempre uma concessão, um acordo com o erro em
detrimento da Verdade; e qualquer diminuição da verdade dogmática é tão fatal à
Igreja quanto uma brecha no costado de um navio...
Tal era a opinião geral dos teólogos em princípios do século XX, porém os estonteantes
progressos da civilização, depois da Segunda Guerra Mundial, obrigou a uma revisão geral das
posições assumidas até então em todos os ramos, e as próprias religiões não podiam escapar ao
impulso do desenvolvimento das idéias. O próprio Concílio Vaticano II admitiu a liberdade de
consciência e o próprio pensamento livre.
No entanto, assinala Paul Naudon, ainda nas vésperas do Concílio, na “Enciclopédia do
Pecado”, S. Revma.Palazzini, secretário da Sagrada Congregação do Concílio e qualificador do santo
Ofício, fazia figurar o “pecado de tolerância”. Por certo, não esperava que, em 1965, seria publicada
a Declaração Conciliar “Dignitatis Humanae”.
A Maçonaria, no entanto, nasceu sob o signo da Tolerância, numa época em que todos se
consideravam donos absolutos da Verdade. Pode-se, pois, estranhar que tenha sido condenada tantas
vezes e por tanto tempo pelas “religiões positivas”, precisamente porque “inovou” o Ecumenismo?
Ao contrário, a grande característica da Maçonaria foi a mais absoluta tolerância em matéria
de religião e de política, assuntos cuja discussão proscreveu de suas Lojas, diferenciando-se, neste
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particular, de qualquer agrupamento religioso, político ou de qualquer outra índole. E foi esta
tolerância religiosa, precursora do ecumenismo, um dos motivos da bula “In Eminenti”.
Não impondo nem aceitando nenhuma doutrina como definitiva, exclusiva, ou como sua
própria, e não pretendendo governar as consciências, a Maçonaria estimula constantemente os seus
adeptos a tudo examinar. Não pondo quaisquer limites ao seu campo de investigação, deixa livres os
seus adeptos em matéria de opiniões religiosas e políticas.
Não tendo, por outro lado, pretensões a qualquer espécie de poder temporal, a Maçonaria é,
no entanto, intransigente defensora da Liberdade e da Democracia, por ela consideradas como os
maiores bens conquistados pelo homem.
A experiência tem demonstrado que os dogmas religiosos foram os maiores responsáveis pelas
divisões entre os homens uns contra outros em guerras e matanças que ensanguentaram as páginas da
História. É tão fácil persuadir um povo inculto de que ele é o único detentor da verdade e fazer-lhe
considerar herege a todo aquele que professa uma maneira diferente de adorar a Deus.
É sempre presunçoso fazer-se juiz de uma opinião qualquer que ela seja. Quando emanam de
pessoas sinceras, os modos de ver, por divergentes que sejam, são sempre igualmente respeitáveis.
Exprimem a verdade sob os diferentes aspectos que apresenta, por causa dos múltiplos pontos de vista
pelos quais é suscetível de ser encarada.
Em todas as opiniões encontra-se portanto uma parte de verdade, e como ninguém está no erro
absoluto, tampouco ninguém pode vangloriar-se de possuir a verdade em toda a sua perfeição. É mais
acertado, portanto, sermos indulgentes do que pedir aos outros para que vejam as coisas como nós
mesmos.
Sendo as inteligências geralmente fracas, só conseguem aproximar-se da Verdade depois de
percorrerem uma série de etapas que precisam vencer uma por uma. Desta forma, para que se possa
favorecer o progresso dos espíritos, torna-se necessário ter em conta as sucessivas fases por que passa
toda evolução intelectual. E obter-se-á melhores resultados com intervenções discretas. Os
retardatários não devem ser empurrados e obrigados a caminhar contra a sua vontade; a prudência
aconselha em precedê-los, encorajando-os: eles não deixarão de seguir.
É preciso ter cautela, sobretudo, de proceder por afirmações, fórmulas e dogmas. Nada é mais
contrário ao espírito maçônico. Sem tentar impor a nossa maneira de ver, podemos levar os outros a
descobrirem por si mesmos o que nós mesmos encontramos. O essencial é pensar e fazer pensar.
Alguns, no entanto, emprestam à palavra Tolerância um sentido que, na realidade, não passa
de indiferença quando, ao contrário, segundo um autor:
Ser tolerante, é penetrar o sentido profundo das coisas, e tendo-as
compreendido, é não somente elevar-se acima dos partidos, mas ainda ter o espírito
de explicar as coisas de maneira tal, que elas se tornem acessíveis a quem não as
tiver podido conceber com exatidão, qualquer que seja o sentimento que se possa
ter do objeto dessa coisa.
Referindo-se a tolerância, Luís Umbert Santos (Catecismo Masónico) diz que a Maçonaria
estudou as religiões:
...porque estuda os princípios morais que todas contêm, além de seus
dogmas. E embora não seja ela uma religião, nem seus templos igrejas, é algo mais
do que isso e muito acima disto, se pensarmos que a verdadeira igreja se encontra
em toda parte onde uma mão se estenda para ajudar a um semelhante, e esta é a
única e verdadeira mãe-igreja que jamais existiu, existe e continuará existindo
indefinidamente.
A Loja maçônica é um lugar onde se devem reunir homens tolerantes de boa vontade, que
amem a justiça e a nobreza, homens possuidores de corações puros e sem mancha, desejosos de serem
úteis aos outros e que tenham uma verdadeira compreensão desta maravilhosa palavra que se chama
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Fraternidade. Nesta Loja existirá então a Amizade, o Amor e a Tolerância que fazem com que se
passe a Trolha sobre os defeitos dos Companheiros. Ninguém podendo vangloriar-se de ser um
homem bom e sábio, a tolerância deve ser a trolha niveladora.
Existe, todavia, uma interpretação bastante errada a respeito da sublime Tolerância maçônica.
Entendem alguns exegetas de Loja que tudo deve ser perdoado, tudo, mesmo delitos, vícios e crimes,
não compreendendo que não se trata mais de tolerância, mas de complacência covarde. Como se pode
admitir um representante da Lei tolerante com os transgressores da Lei? Como se pode admitir um
Deus tolerante com a injustiça, a imoralidade, a perversidade? Confundir a indulgência relativamente
a pequenos defeitos, a condescendência para com algumas imperfeições, a benevolência para com
certas faltas, com a compactuação ou cumplicidade com os crimes praticados, é levar a Tolerância
longe demais. A Tolerância é benevolente, mas não covarde.
Paul Naudon observa que pela sua ação no meio social, a Maçonaria não pode ter senão um
objetivo: a liberdade do homem, tendo como corolário moral o respeito de sua dignidade, o que
implica a tolerância compreensiva e exclui toda pressão exterior a seu respeito. Mas acrescenta em
nota:
A tolerância, virtude capital para a Maçonaria, não passa no entanto de uma
consequência e de um meio. Não se pode, portanto, como Albert Lantoine, fazer da
Maçonaria “uma religião da tolerância”.
Entretanto, em seu artigo “Tolerância injustificada, iguala falta”, numa revista maçônica
francesa, sob o pseudônimo de “Veritas”, um Maçom traduz bem o que se deva entender por
Tolerância maçônica, dizendo:
Várias vezes tive oportunidade de dar a minha opinião a respeito da
Tolerância, esta virtude que muitos Maçons transformam em panacéia, suscetível
de permitir-lhes em quaisquer casos e circunstâncias, o sossego, a tranquilidade, e
até a serenidade.
Seja o que for que aconteça ou se faça, tais Irmãos têm na boca um único
imperativo: “É preciso mostrar-se tolerante e indulgente a favor e contra tudo”...
mesmo contra a lógica e o espírito de justiça, e qualquer que possa ser a legitimidade
de uma reprovação, relativamente ao que pode ter sido verificado como nocivo à
Maçonaria ou contrário às regras das boas relações entre membros da Ordem.
Para muitos dos nossos, a Tolerância representa um perdão incondicional.
Aos olhos desses Irmãos condescendentes, só é Maçom verdadeiro aquele que
estiver disposto, sob pretexto de indulgência, a engolir todos os sapos e a desculpar
tudo o que for abusivo.
Assim compreendida e praticada, a Tolerância não é mais que uma renúncia,
melhor ainda: uma velhacaria. Torna-se mesmo uma falta muito grave quando
permite, em seguida a uma cega aplicação, a repetição de atos reprovados pela
moral maçônica ou contrários às estipulações da Constituição que regulamenta a
vida da Obediência.
Faz alguns anos, nas colunas desta Revista, considerei um dever levantarme contra a concepção absolutamente falsa de uma Tolerância autorizando os
piores excessos. Indignava-me, na época, da constante utilização da indulgência
muito discutível “para aquilo que se não quer ou se não pode impedir”. E não
escondia, ainda, a minha repugnância diante de uma pretensa Tolerância,
unicamente boa para tudo aceitar e para tudo deixar de fazer.
Infelizmente, nada foi modificado neste domínio. A Tolerância permanece,
no entendimento de alguns de nós, como o meio mais adequado – e naturalmente
mais fácil – para aplanar ou demover todas as divergências. Na realidade, é um
meio pernicioso, que permite e autoriza todos os desregramentos.
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Continuo pensando que a Tolerância não deve ser fonte de concessões ao
infinito, de perdões incessantemente renovados. A Tolerância convenientemente
compreendida possui limites, muito claros, traçados ao mesmo tempo por uma sábia
razão, a firmeza das convicções e do caráter, a manutenção constante das normas
de uma ética adotada, a preocupação de uma dignidade exata. A verdadeira
Tolerância não poderia estar acompanhada por abdicações nem ver-se guiada pelo
oportunismo.
Efetivamente, a falsificação de uma Tolerância assim descrita não deveria
introduzir-se em nossos costumes maçônicos. Infelizmente é o que se pode
continuamente constatar, não sem amargura. Toda uma educação deverá ser feita
de novo, ou para melhor dizer: uma correção necessária deverá ser praticada.
Porque não exprimi-lo com clareza: a prudência (ou as irregularidades), de
certos indivíduos, tem apenas por base a abdicação – sob pretexto de Tolerância
obrigatória – daqueles que se persuadem possuir um coração cheio de mansidão,
quando demonstram serem simplesmente fracos, e cuja astenia mental autoriza os
mais detestáveis abusos.
Sim, é necessário voltar a uma compreensão mais lógica da aplicação da
Tolerância. Convém para isto ver-se cada Membro da Associação agir de tal sorte
que a virtude da indulgência volte a ser – em plena e perfeita acepção – a primeira
qualidade do Maçom, mas com a condição expressa dela ser exercida com
dignidade e discernimento.
Repito novamente o que dizia em 1953: a verdadeira Tolerância tem por
significado: Sinceridade no pensamento. Compreensão no estudo dos fatos.
Generosidade no cumprimento da ação. Jamais, porém, cegamente.
E se por Tolerância se entendesse a pura e simples omissão, a abdicação covarde diante de
todos os abusos, para que teriam sido instituídos os Tribunais do Júri nas Lojas, os Tribunais de
Justiça nas Obediências? Qual a razão da existência de Códigos de Leis Penais, de Processo Penal,
de Regulamentos Gerais e de Constituições? Evidentemente para entrarem em funcionamento quando
se verificarem os abusos neles previstos e para coibirem excessos, desmandos e mesmo crimes.
Não se pense, no entanto, que tais códigos não possam ser burlados, que os encarregados de
aplicá-los se mostrem imunes à deteriorização de sua consciência maçônica e que sejam incapazes de
fazer pender a Balança da Justiça de acordo com os seus mesquinhos interesses.
No entanto, a implacável Lei do Karma, desafiada, faz com que as covardes abdicações, as
desavergonhadas submissões a iníquas injunções vindas de autoridades corruptas e deterioradas,
carregam em seu bojo a indisciplina e a reação, com o consequente esfacelamento da fé e da confiança
de muitos nos ideais preconizados pela Maçonaria, mas que ainda constituem o paládio e o patrimônio
de abnegados “homens livres e de bons costumes”.
Diz o ilustre Maçom e escritor paulista Irmão Theobaldo Varoli Filho:
Não se entendam por tolerância maçônica os afrouxos licenciosos dos
deveres ou a passividade exagerada na prática do perdão. Por tolerância deve
entender-se, antes de tudo, que o comportamento do Maçom deve ser de respeito a
todas as manifestações de consciência e que, em Loja, o Obreiro de paz deve
conservar-se equidistante de qualquer credo...
Tolerância – Conceito Maçônico e Eclesiástico
Que é afinal a Tolerância? Interroga o padre Boaventura, surpreendido com o “uso e abuso”
que a Maçonaria faz desta palavra. E ele mesmo responde com a definição clássica dos jesuítas
citando Arturo Vermeersch:
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A Tolerância tem sempre por objeto um mal, um defeito físico, um erro
intelectual ou uma deformidade moral. O que é belo, bom, verdadeiro, correto e
perfeito não é tolerado, mas aprovado. O que é feio, mau, errado, inexato e
defeituoso é tolerado, não aprovado. Nunca dizemos “tolerar o bem, tolerar a
virtude”. Mas costumamos “tolerar uma afronta, tolerar uma injúria”. Conhecemse “Casas de Tolerância”. (N. – até estas os jesuítas conhecem! Os puros, os castos,
os virtuosos...). Por conseguinte, a palavra “Tolerância” exprime uma atitude
perante o mal, o erro, o defeito. (Frei Boaventura Kloppenburg – “A Maçonaria no
Brasil”, 1956).
Não é esta a acepção em que a Maçonaria emprega o termo, e dele “usa e abusa”, como afirma
o teólogo franciscano.
Para os maçons “Tolerância” é respeitar as opiniões alheias sem procurar impor as suas pela
violência. É propor e não impor. Um Estado é tolerante quando permite mais de um culto religioso e
não toma partido por nenhum; quando garante a liberdade de todos e não consente que violentem a
consciência dos cidadãos.
Para que se mantenha o equilíbrio e não se perturbe a liberdade religiosa, defende a Maçonaria
a separação do Estado das Igrejas. Mas separação não implica em abstenção do direito de fiscalizálas a todas, porque acima das concepções religiosas estão os problemas da ordem pública; e quando
os crentes não se respeitam, se desmandam ou se engalfinham, é ao Estado que cumpre intervir para
ensinar-lhes o culto da convivência pacífica.
A tolerância, portanto, nem sempre tem por objeto um mal, como pretende o jesuíta citado.
Para a concepção maçônica ela é sobretudo, uma prova de civismo, uma demonstração de educação
perfeita. Ela significa a compreensão dos direitos alheios, o respeito às convicções de cada um, e a
obediência às leis do Estado que devem ser iguais para todos.
Todas as religiões são boas quando os seus fins são bons e preferem a catequese à violência.
A moral de umas não é melhor nem mais provada que a das outras, e onde inexiste a coação inexiste
o perigo do erro. Deixando as concepções de ordem metafísica ao domínio da consciência individual
dos seus membros, a Maçonaria realiza o ideal da liberdade religiosa.
Deus, não deve ser imposto pela violência, mas aceito pela inteligência se o homem é
consciente e dispõe do livre arbítrio.
Tolerar, na concepção maçônica, é “conviver”. Em determinado ponto do Hyde-Park, em
Londres, todos os domingos a certa hora do dia, os meetings em que se discutem doutrinas religiosas,
principalmente, realizam-se em grande número de grupos distintos de diferentes comunhões, sem que
a grave polícia inglesa tenha de intervir para apaziguar desordens, ou sufocar manifestações de
pensamento. Assim se manifestam, desenvolvem e fortalecem as qualidades excepcionais do caráter
inglês, o respeito profundo pelas liberdades individuais e coletivas, aliado ao amor das tradições
nacionais, a tendência de cada um se considerar elemento autônomo, independente e ativo, sem
invadir a esfera da atividade de outrem, a disciplina moral, o espírito de método e de ordem, o próprio
orgulho da raça e de nacionalidade, se quiserem, que fizeram de cada homem um cidadão e do
conjunto dos cidadãos uma poderosa individualidade nacional. Nenhum desses grupos se atreveria a
insultar os outros, a dizer que o seu Deus é mais divino que os alheios. Deus é um só e cada um pode
adorá-lo pela melhor forma que entender.
Não tendo responsabilidade quanto às almas, a Maçonaria deixa aos profissionais das religiões
o encargo de velar por elas, contanto que o seu zelo não se arvore em perturbador da paz e do sossego
dos corpos. E se o reino de Cristo não é neste mundo, porque não vão os padres orar nos cemitérios
em vez de o fazer nas tribunas dos auditórios?
Toda pessoa humana tem o direito à liberdade de pensamento, de
consciência e de religião, incluído nele o de trocar de crença, assim como a
liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou coletivamente,
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tanto em público como em particular, pelo ensino, pela prática, pelo culto e sua
observância.
Este princípio maçônico foi aceito e proclamado pelas Nações Unidas. Por que não o aceita a
Igreja Católica? Por que se recusou ela em tempos remotos a reconhecer que:
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidades e direitos,
que dotados como são de razão e consciência, devem comportar-se fraternalmente
uns com os outros.
Respondem-nos como Leão XIII no “Libertas Praestantissimum”, que em matéria de
liberdade religiosa: “ninguém a prega mais alto e afirma com mais constância do que a Igreja Católica,
e que ela a tem ensinado em todos os tempos”. Será que mente a história? Que não existiram as
cruzadas, que não houve nenhum massacre de Albigenses nem a sangrenta noite de São Bartolomeu?
Que nos suplícios nos cárceres do Santo Ofício, os autos de fé da inquisição, e as fogueiras ateadas
por Inocêncio VIII contra a feitiçaria, foi tudo invenção dos maçons para comprometer a Igreja? Ou
até os papas mais ilustres, como o da Humanum Genus, estão sujeitos a lapsos de memória?
Histórias de um passado morto, quando os homens não conheciam a indulgência, e o
fanatismo imperava como lei da selva. Mas não eram os homens comuns que torturavam nas lúgubres
prisões do Santo Ofício e queimavam em praça pública em nome de Cristo. Eram os padres,
iluminados pela centelha de Roma, e assistidos por cardeais inquisidores da Santa Igreja. E todos eles
eram santos, e como santos se faziam obedecer pelo braço secular, tendo a seus pés a autoridade
passiva de príncipes, reis e imperadores.
E que rei ou imperador é tão temerário ou insensato que se atreva a impugnar a santidade dos
padres ou a autoridade da Igreja?! – bramava Inocêncio III, megalômano e apopléctico.
O Senhor dá o nome de deuses aos padres e de príncipes aos reis. Os
príncipes têm o poder sobre a terra e os padres sobre a terra e sobre o céu. Os reis
têm ação sobre os corpos, mas os padres sobre os corpos e sobre as almas.
(Inocêncio III, “Reg. Nego. Imperii”, Epist. XVIII)
Houve, é certo, príncipes que duvidavam da santidade dos padres, e se levantavam por vezes
contra a impiedade destes, horrorizados com violências e constrangidos com a desventura dos súditos;
e o que lhes acontecia então? Eram depostos pelo papa e relegados ao desprezo dos seus vassalos!
“Por honra e defesa da Igreja – proclamava Gregório VII – eu proíbo a Henrique de governar o reino
teutônico e absolvo todos os cristãos do juramento de fidelidade que lhe prestaram”. E o pobre
imperador da Alemanha tombava do seu trono, abandonado pelos súditos apavorados com a
excomunhão que poderia cair sobre eles!
E como justificava o papa essa violência inominável? Por esta forma simples, muito
convincente naquela época, mas que hoje, - Graças ao Grande Arquiteto do Universo – não
encontraria eco algum: “O nome do papa é único no mundo; ele pode depor os imperadores e desligar
os povos do seu juramento de fidelidade” (Dictactus papae). E mais não disse nem ninguém lho
perguntava! Em todo o caso, a deposição de Henrique criara um ambiente de mal estar em outras
realezas, e Gregório VII precisava fazer alguma coisa para evitar o pior... E desculpou-se com São
Pedro...
Não há nada demais, afinal. “Cabendo ao sucessor de São Pedro ligar e desligar as coisas
espirituais – explicava ele em tom suave – com maioria de razão pode ele fazer o mesmo pelo que
respeita às coisas temporais”.
E as sangueiras continuaram.
Também continuou a escola de Gregório VII, pintadinha de fresco e mais atraente na forma,
sem perder nada nas arestas do fundo. Cento e vinte anos depois, Inocêncio III revelava como quem
não quer a mesma coisa, que:
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O Criador estabeleceu no firmamento da Igreja universal duas dignidades, a
maior das quais, - o papado – preside às almas como o sol preside aos dias; e a
menor – a realeza – preside aos corpos, como a lua preside às noites. O papado
prevalece sobre a realeza, tanto quanto o sol prevalece sobre a lua.
E nesta linguagem, mais política que mística, o sagaz Inocêncio foi embalando os pascácios
reais, até que outro Inocêncio, sem inocência nenhuma, descobriu que: “Jesus havia fundado um
domínio simultaneamente real e sacerdotal, dando a São Pedro o império da terra e do céu”.
(Inocêncio VI, “Petri de Vineis”).
Mas que tem a Tolerância com isto? – perguntará o leitor já saturado de tanta argúcia papal.
Tem muito, ora essa. É que sem o freio político não podia exercer-se a compressão religiosa...
ou vice-versa.
Que, vamos e venhamos, o fantasma das penas eternas era também, por sua vez, um freio
político, e criava-se assim um círculo vicioso em que todos se embaraçavam, menos a Igreja.
Paulo III e João Caraffa eram, não há dúvida, entusiastas da imposição da crença pelo terror,
mas visando em última análise o domínio político universal. Para isso legalizaram a Inquisição e a
dotaram de todos os poderes espirituais e temporais, obrigando o braço secular a prestar-lhe todo o
apoio. Por meio dela, com as mais incríveis torturas físicas e morais, eles amedrontavam os reis, e
subjugavam a nobreza.
Aparentemente, essa negregada justiça tinha por missão eliminar os não católicos,
especialmente os mouros e judeus; mas em realidade o que menos interessava era a crença.
Mouros e judeus, quando pobres, não valiam grande coisa e podiam ser hereges à vontade;
mas se por desventura eram ricos, ah! Então sim! Eram levados ao potro, esmagados na polé, e por
último assados em nome de Cristo, revertendo os seus bens para a Igreja. Uma ou outra feiticeira
passava pelas masmorras e sofria a “purga” da lei; mas até essas, coitadas, eram levadas ao suplício
para que denunciassem os seus clientes ricos... A sede do ouro sobrelevava o ardor da fé.
A fé católica era o biombo por detrás do qual se escondiam os ambiciosos de riquezas, e os
inquisidores degenerados, ou já gastos por lúbricas bacanais, e que buscavam cevar os olhares
pecaminosos nos corpos desnudados das vítimas indefesas! Era nos estertores agônicos, das
supliciadas, que o cardeal Cisneros, inquisidor espanhol, sentia reviver a chama quase extinta dos
seus prazeres secretos!
Mas Cisneros era um monstro! Monstros eram eles todos; e quando o cardeal-inquisidor de
Portugal se lamentava ao médico Curvo Semedo de que a obra de Deus era imperfeita, deixando que
os cardeais envelhecessem, e este lhe respondia: Vossa Eminência é o santo Cardeal-Inquisidor...
Porque não faz o que fazia em Espanha o Cardeal Cisneros? Vá ao palácio da Inquisição, desça à
Câmara dos tormentos, mande torturar mulheres e assista, que a vida voltará...(Júlio Dantas “Santa
Inquisição”) o médico retratava com fidelidade a monstruosidade do Santo Ofício.
O cardeal, porém, já nem com os sacrifícios físicos conseguia entusiasmar-se.
Agora – dizia ele ao médico serviçal – é que tocaste de fundo na ferida.
Dantes, quando torturava alguém, - que prazer que sentia! Era como um vinho
capitoso que corria nas veias. Não deixava isso aos inquisidores; ia eu. E quando os
corpos nus se torciam no potro e na polé, - com que voluptuosidade eu seguia, pela
minha luneta de oiro, todas as contrações, todas as atitudes, todas as crispações de
dor! Embriagava-me, alucinava-me, crescia dentro de mim a alma de artista de um
Medicis! Passado um instante, já não eram criaturas vivas que eu tinha diante dos
olhos: eram nus das grandes obras de arte de Roma e de Florença, os quadros do
Vaticano, os retábulos de São Marcos, as estátuas do Palazzo Vecchio. E enquanto
os gritos ressoavam, e a nudez humana resplandecia ao clarão das tochas, e os frades
levantavam nas mãos descarnadas a cruz dos tormentos, do fundo de minha cadeira
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de inquisidor eu via claramente, e gritava, e apontava: Olha, além! Ticiano! Ali,
Murillo! – Rafael! – Giovani da Bologna! – Miguel Ângelo!
Hoje...
Mas se o espetáculo da tortura física deixa Vossa Eminência insensível – voltava o médico –
porque não experimenta a tortura moral?
- Tortura moral?...
- Conheci em Amsterdã um Inquisidor que, quando torturava o espírito de alguém,
rejuvenescia.
Esta era a face mais hedionda da inquisição, mais vil que a do roubo sob forma de confiscação
dos bens dos condenados, que já era trágica, mascara abjeta das ambições materiais em contraste com
a fisionomia doce do cristianismo voltada para as regiões do espírito, porque a pretexto de converter
a fé católica, não pela persuasão mas pela violência, cobria as depravações morais dos grandes
criminosos que envergavam a púrpura cardinalícia.
Um judeu rico era preso e conduzido à câmara dos tormentos. Submetido aos “tratos
expertos”, o desgraçado implorava a misericórdia dos magarefes, defendendo-se como podia.
Perguntavam-lhe o que possuía de seu e apertavam-lhe as cordas ao máximo. Estalavam os
membros, e as chamas derretiam-lhe os pés. Ele confessava: jóias, dobrões e um rancho de filhos para
criar.
- Mulher nova e bonita?
- Linda como os amores!
O Cardeal, até ali indiferente, tão comuns eram os casos dessa espécie, arregalava subitamente
os olhos e lamentava:
- É pena que tenhas de perdê-la para sempre...
- Senhor! Gemia o desgraçado esquecendo a dor física ante o tormento moral.
- Ofendeste Nosso Senhor e deves morrer na fogueira. Teus filhos, deserdados, serão lançados
à rua e ostentarão no peito a insígnia da maldição. Debalde estenderão a mão à caridade. Expiarão o
crime do pai e arrastarão por toda a vida a grilheta da infâmia.
E o Cardeal, num sorriso iluminado pela perspectiva de um prazer que há muito não fruía,
deixava antever uma esperança ao pobre torturado:
- Tudo depende de tua mulher... Gostas dela?... Tens amor aos teus filhos?...
- Mata-me bandido! – urrava o infeliz nas vascas da dor. Mata-me de uma vez, mas não me
tortures assim!
Não! – explicava cinicamente o bondoso príncipe da Igreja. A missão do Santo Ofício não é
matar por meios expeditos. E chamando o verdugo das torturas morais ordenava-lhe que conduzisse
a esposa do preso para a câmara imediata onde ele mesmo, por uma especial deferência, iria interrogála.
- Dispam a prisioneira e deitem-na no potro! Ordenava o cardeal inquisidor, ajeitando-se na
cadeira e sofraldando o manto.
Quatro dominicanos façanhudos, habituados às singularidades perversas do monstro,
desnudavam a infeliz mulher, manietavam-na e puxavam-lhe a cabeça para trás, ao mesmo tempo
que dois outros, tomando os brandões de cera que ardiam junto à cruz, os aproximavam do corpo
casto e belo para iluminar-lhe as curvas, para descerrar-lhe os encantos! Os olhos gastos do velho
sátiro fulguravam sinistramente devassando tudo, devorando tudo, para se fecharem em seguida na
concentração de impudicos pensamentos.
- Mais luz! Tragam mais tochas! Oh! Que espetáculo sublime ver as contrações nervosas,
sentir palpitar as carnes, adivinhar-lhes as crispações da dor! Mais luz! Mais luz!...
A vítima desmaiara. E o degenerado, enraivecido pela frustração de um prazer sonhado e cada
vez mais esquivo, insistia ainda, debruçado sobre ela, palpando-lhe os seios, profanando-os com os
dedos trementes e atrevidos...
- Despertem-na! Ponham-lhe o fogo aos pés!
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Um uivo de dor e um desafio à fera: - Afasta-te bandido que a tua baba queima mais que o
veneno das serpentes!
- Levem-na! Era esta a última chance do marido.
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Tudo isto se fazia em nome da Igreja e com conhecimento da Igreja! Todas estas infâmias se
perpetravam a pretexto de banir o erro e o pecado da face da terra!
E para onde mandava a Igreja os que morriam impenitentes?
- Para o inferno! – que pergunta tola. Logo, quem povoava o inferno era a própria Igreja que
fingia combatê-lo, mas que em realidade o prestigiava por sua aliança secreta com o diabo.
Escasseando os judeus, partiam os monstros à caça dos conversos a quem apelidavam, por
zombaria, de cristãos novos.
Llorente, que fora secretário do Santo Ofício, afirma que só na Espanha, entre 1475 e 1808, a
inquisição justiçara mil vítimas por ano, num total de 350.000, revertendo os seus bens para a Igreja
sob as vistas apavoradas dos monarcas, e com o aplauso entusiástico dos papas deslumbrados pelas
riquezas que o afluíam às arcas famélicas do Vaticano (Llorente, “Hist. Critique de l’Inquisition de
l’Hespagne”).
A Inquisição acabou. Não por vontade da Igreja, mas por força da ação maçônica exercida
com método e coragem. Pensar em ressuscitá-la seria demasiado absurdo; mas se não crepitam as
fogueiras humanas, as torturas morais ainda se praticam em muitas partes da terra. Na Espanha por
exemplo. A Igreja não renega o seu passado. Acomoda-se às situações mas não cessa de ruminar nas
vantagens do seu domínio político. Todos podem evoluir no sentido do progresso, porque as idéias
não são estáticas, menos ela. “Acreditais vós – dizia Clémenceau no senado francês – que eu não haja
nunca modificado o meu modo de sentir? Seria o pior mal que de mim próprio poderia dizer”. A
Igreja porém, não perfilha nem segue as opiniões do Tigre da Vendea. Os seus dogmas são eternos,
imutáveis, como imutáveis são os seus métodos de converter à fé católica. “A maior injúria que
podiam fazer-lhe era considerá-la diferente do que era no tempo em que excomungava a Carta Magna
da Inglaterra”. (P. Sabatier, “A propôs de la séparation”)
A Igreja de hoje não é diversa da Igreja da Idade Média. Ela continua afirmando, embora por
palavras mais suaves, que “recebeu de Deus o poder de forçar e de reprimir os que se afastam da
verdade, e não somente por penas espirituais, mas ainda pelas penas temporais e corporais”. (Vincent,
“Theologia Dogmática e Moral”).
Trecho extraído da Enciclopédia de Assuntos Avançados da Franco Maçonaria
Antonio Fernandes Teixeira & Francisco Carlos Campos, pp.4340/4349
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