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#10 | fevereiro 2016 distribuição on-line gratuita Editorial 3 Lista de autores publicados 85 Créditos e contato 86 Carol Rodrigues 5 Tiago Feijó Júlia de Carvalho Hansen Alvaro Posselt Lisa Alves Joana Hime 11 17 21 34 43 Glória Paiva Alfredo Fressia Giuseppe Ungaretti em tradução de 50 60 Francesca Cricelli 66 ensaio fotográfico de Juliana Rocha 72 a imagem de capa e as fotos ao longo da edição são de Pedro Ferrarezzi É fim de Carnaval, o verão vai alto e, quando a gente se dá conta, já se foram 50 dias de 2016. O tempo vai correndo (como nas fotos que mostram gente que passa) e a Parênteses comemora hoje a décima edição. Dez é um número legal, não é mesmo? Nesta edição, novos amigos chegaram para visitar nossas páginas. E são visitas generosas, todo mundo trouxe presentes. Alguns trouxeram amores, outros vieram falar de desamores. Alguns falam de alegrias, e outros, de tristezas. Falam da vida. E todos falam bonito. Pode ser o dia lindo lá fora (os editores moram em Curitiba e o Sol é visita rara), pode ser só uma impressão nossa, mas lançamos esta edição com espírito de céu azul, finalzinho de férias, chuva de verão para refrescar, Bossa Nova na vitrola. (Sim, é um editorial sem muita pretensão, só para deixar tudo mais simpático.) A porta está aberta, estejam em casa. os editores Carol Rodrigues Entre maio e junho Dia vinte e seis é segunda eu odeio segunda. Dia vinte e sete a Beatriz apresenta o balé. Dia vinte e oito tem jogo do barça dois a zero. Dia vinte e nove é meu aniversário. Dia trinta eu dirijo lenta pela SP174. Atenta ao néon vermelho queimado pela metade. Aperto os olhos e leio COYOTE. Estaciono entre os caminhões. Estalo a tira fina da calcinha asa delta e entro. Homem é trinta mulher é doze. A senhora da frente pergunta à senhora da porta aceita cheque. Não nem cartão só dinheiro quem ainda usa cheque. Pago a minha entrada pago a dela, coitada, e pra terceira pega o troco pra você. Nisso um pulso quente pousa entre o debaixo da bunda e o fim da minha saia plissada. O pulso quente é de homem grande posso te pagar uma dose. Não diz qual bebida só assim uma dose. Diz que entrega tevê de plasma setenta e duas polegadas que o caminhão está cheio, logo ali, que se eu quiser, me mostra. Eu digo que depois querido depois. No balcão tem cerveja quente na metade das canecas e outros dois homens grandes. A camisa levantada na altura do umbigo inchado nos dois. São dois homens três carreiras armadas. Eu assinto, tiro uma nota de vinte debaixo da alça, o sutiã meia taça, cor de ameixa, conjunto, a calcinha asa delta. Enrolo a nota um canudinho. Um dedo 5 bloqueia uma narina, a outra fica branca. Frito todos os ovos da caixa são sete. Uma Passo a pontinha da nota na língua que faísca sai do estalo é muito ovo um aperto mal sai da boca. Devolvo assim, canudo na espinha dorsal. O pé no chão levanta o ao sutiã, meia taça, cor de ameixa, a mão calcanhar. Apago o fogo. Saindo da pisci- pra cintura o cabelo pra trás um respiro. na seca do mundo eu sento na pia gelada Saindo da piscina seca do mundo eu sen- a cozinha quieta. Prato no colo sem guar- to no molhado quente do balcão. Meio danapo. Lambo cada dedo engordurado tonta o cabelão solto. As mãos de graxa de pão de ovo margarina. Lambuzo toda de salgado frito de homem transpirado a cara de menina. Que já não é. A menina levantam o pouco pano da saia plissada. que ainda é abre a porta coçando o sono Dedos gordos oleosos as cutículas duras pequeno do olho um cachinho dourado. ocupam tudo ali o que encontram. Só Que isso mãe o olho abre. Costas da mão saem pra pedir mais cerveja ao rapaz que limpando boca outra mão atira prato en- olha tudo. Daí só lembro, virei pro lado, gordurando pia de pão de ovo margarina. ele sorria, esse rapaz, sorri também, tá É graxa faz mal é ruim jogando fora, bato tudo bem, e pedi uma cerveja pra mim. uma palma melada. Sorrio. Danoninho? Dia trinta e um muita espuma de sabão adstringente. Toalha na cabeça a ca- Dia primeiro é domingo o almoço no clube o cachorro no parque. misa do barça só ela no corpo descalço na cozinha. Derreto então a margarina. 6 Lista de compras pra festa do Miguel Colher de plástico Garfinho Chapeuzinho Canudo Guardanapo do pateta ou imprime sua cara em folhas sulfite e dobra em quatro partes Apitos Bexiga Bexigão pra estourar com bala dentro ou fura a sua bola inchada pra povoar o Canadá Bolo floresta negra Pastelzinho de carne e de queijo Esfihinha de carne e de queijo Croquetinho de carne e de queijo ou trinta clones do teu pau pequeno Refrigerante – guaraná, fanta uva fanta laranja e traz um zero pra mim qualquer um Suco de caixa Quindim Fantasia do surfista prateado. A Vela. Número oito. 8. Prateada. E essa Manoela. Vi no seu face ela faz escova, silicone, usa batom com o contorno pra fora da boca, parece maior do que é hein Fábio. Usa lente ela né. Esmeralda. Eu acho cafona mas você que sabe né você que come. 7 Sorvete de flocos. Duas caixas da kibon. Sabe que é um pouco pesado né, pro Miguel, ter o pai assim atrás de mulher de silicone né, chapinha aplique. É você que paga? Chantilly. Pra festa tá, pra sua sacanagem você compra depois e compra diet tá, ouvi dizer que o comum dá bactéria, fora a formiga. Leite condensado Creme de leite Nescau Manteiga. Beijinho de lata. Bala de coco Papel crepom. Toalha. Deixa tudo nas sacolas com meu nome tá, na portaria. Camila Simões. Uma caixa de fósforo daquele longo de segurança. Na verdade se quiser subir, embrulhar bala de coco. Salsicha Molho de tomate. Ajax, compra ajax. O Miguel pediu um pirulito, aquele grande, do chaves, sabe qual? Traz também. E de presente ele pediu um aquário mas sei lá, achei triste um peixe sozinho. Se for comprar compra dois peixes. Só me avisa antes pra eu fazer espaço na sala. Comida pro peixe 8 Tô deixando a lista aqui com a sua mãe é que ela não quis dizer o seu endereço novo. Só achei que sei lá, faz quatro anos e o Miguel pergunta. Eu mostro foto sua pra ele mas tá antiga aquela nossa. Se puder comprar as coisas me avisa o celular é o mesmo. Ou manda um e-mail camila.simõ[email protected] Se não puder manda pelo menos uma foto nova. Sua sozinho. Traz também figurinha da copa, o Miguel gosta. Forminha pros doces Milho pra pipoca Pratinho de papel. Do dunga, se der Carol Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro e vive em São Paulo. Seu primeiro livro, Sem Vista para o Mar (Edith, 2014), é vencedor do prêmios Jabuti e da Fundação Biblioteca Nacional na categoria Contos, em 2015. Seu segundo livro, Os Maus Modos, foi realizado com apoio do Proac e será lançado em 2016. É formada em Imagem e Som pela UFSCar e fez mestrado em Estudos Internacionais de Performance na Universidade de Amsterdam. É também produtora no Núcleo de Audiovisual e Literatura do Itaú Cultural. 9 Júlia de Carvalho Hansen IX Passo a manhã calculando a provável altura de um tsunami que viesse por debaixo do morro, me encontrasse sentada nesta porta de varanda sobre o Tejo. Não sei, mas já me aconteceu outra vez. A onda atravessará os homens pela minha face fazendo das raízes turbilhão. Os versos também se fazem assim, procurando o caminho por onde não podem passar. Você também tem um canyon escondido? Sabe como é uma terra que se abre em duas e entre elas voam uns pássaros e nascem coisas meu rio de sóis, eu cego o pássaro do rio pra que ele não veja por onde nos leva. Todo rio tem um pássaro que vive em si e eu o cego sempre. Eu cego o pássaro de riso pelos teus olhos que se fecham. Monto no rio, meu pássaro selado e cego, sem remetente. 11 VII Sou apenas um cavalo o mundo não vale o mundo, meu bem Estou sempre à espera de ver. no entanto, é ele quem me leva. Vou na frutaria de olhos muito abertos vez em quando meus ombros se fecham O cavalo (que vive por mim) abre mão quando muito chama a ver. Temem o fogo de ter cascos, patas, coices, que se alastra entre estalos nas estruturas. mas de correr no sol, não. Preciso dissolver um pouco dos vigiantes olhos E quando alguém sonha e confunde para encontrar todos os olhares que tenho por onde. o amor comigo, comigo o amor É assim que vejo também a confusão. infundido, infindável, é o cavalo. A confusão tem algumas coisas para me ensinar. Essa pouca relação é a nossa. Meu esteio é claro quando estou pisando meu chão diamantado de dentes de cada animal que comi para me tornar humana. E assim poder dizer. Mas eu sei sou tão pontual nasci para esperar os deuses não. Dia desses ganharei outra velocidade. Serei planta. E hei de continuar iluminada pela água. 12 o espelho imantado Outra vez te revejo, Mas, ai, a mim não me revejo! – Álvaro de Campos Te pus dormindo sobre o rio Que sentido faria um amor tão longe trajando o negro de sempre de me visitar agora? Nessa hora? tua imagem boia comigo Que é? e o rio era largo vermelho e dourado Pombos-correios Embratel e-mails quanta dissipação!, meu deus, na lateral da cama em que durmo milhares de partículas no ar denso desse verão o fim da tarde iluminando dores de cabeça caroços que incham corcundas húngaras pelo colarinho sua camisa me forçava contadas na televisão a ser o vestido que eu usava rente à janela vem a mim me dar pensando que irias nele me querer e bem loucura? Miragem, teus olhos por trás de mim falam aqui, perdi a metáfora, por dentro daqui me olham como em outros tempos perdiam estolas neste incômodo na Hungria perdi a matéria de todos os espelhos deste infinito apartamento de Budapeste neste espelho quantas amostras emolduradas desde 1808 minha carne miraram sem se ver? se perdeu Não sabem a voz que ouço da imagem de vidro. Talvez pela primeira vez posso discutir com meia dúzia de amigas este espelho fale português o vácuo a estratégia da beleza essa língua cheia de dúvida posso até fotografar-nos posando disso em conjugar mas não sei se é você que me visita amar ou amando ou é essa luz e meia que me enfeitiça? de quem? 13 Vítima e conquistadora sempre a primeira e a última no pódio de chegada a melhor definição de amor não vale um beijo de namorado e essa tela fria e tão sem cheiro tão sem beijo tão sem seu jeito parece uma fila de amputadas mulheres pelo tempo no recorte do meu corpo apartada atravessa a tua imagem o leito dos meus olhos aos litros e muito os pisco nublados e tento meditar como te suicido se o momento de morte em mim do amor trará pra sempre a morte do amor ou de mim, é perigoso é uma maravilhosa sonolência que te traz em imagem enigmática mas como um galho, pela margem, a correnteza estanca para de rodar o Danúbio nunca vai limpar o Pinheiros e o dedo que me ajeita o cabelo era capaz de ser teu fantasma tua língua minha língua estrangeira de mim em qualquer parte. 14 strike a poet Tiro fotos da minha casa até acreditar que é uma cidade sigo abraçando cadeiras entre o olhar imperativo dos gatos a mão que afaga este problema a materialidade dos livros ajuda no colegial me chamavam de menina de outra época meu pai dizia que minha avó era uma mulher da terra isso resume pra mim toda a poesia contemporânea de repente ganharam o medo de dizer coração é preciso paciência e a sensibilidade de um peixe. Devem me ver como um dragão rasante, os miados num abraço a gatinha tem fome e cheiro de ser vivo pela primeira vez em um mês deixo a sala é mais fácil o mar abrir em dois do que interromper o trânsito é por isso que não atravesso a rua meio-dia sou o Torquato de colar de contas descendo as delícias de aves nas mãos ela pensa em casamento no sol de quase dezembro uma mãe me olha saindo pelo corredor até o portãozinho de aço range a filha vai pra escola a mala de rodinha, vergonha não é a palavra finalmente, virei artista os dedos sujos de tinta o uniforme azul-marinho o cabelo imundo embora a seda Júlia de Carvalho Hansen nasceu em São Paulo, em janeiro de 1984. É poeta, as- tenha rasgado só consigo desafinar o coro dos contentes me alimentar com drogas pra me manter escrevendo tróloga e uma das editoras acordada e cansada e insuficiente esta melodia das Edições Chão da Feira. chega o texto ao fim e não reviso, it’s friday I’m in love. 15 Alvaro Posselt Curitiba não nos poupa Ontem eu tomei sorvete Hoje eu tomo sopa Choveu tanto aqui que até caiu outro pingo no i˙ Um dia conhecer Paris? Deus me Louvre! 17 Não se empolgue Na minha feijoada só a orelha do Van Gogh Noite do espanto Fui baixar um arquivo baixou-me um santo Viver, eu suponho, é chicotear a realidade montado no sonho A gente nunca erra quando faz da paz nossa arma de guerra 18 Passado não é bagagem O pensamento vazio deixa leve a viagem Entre arranhões e lambidas Para cuidar de tanto gato precisarei de sete vidas Entrou sem aviso O gato cruza o corredor Alvaro Posselt nasceu em Curitiba/PR (02/12/1971). É professor de português e poeta. Publicou Tão breve quanto o agora, Um lugar chamado instante, Entre arranhões e lambidas e Kaki. Divulga voluntariamente o haicai em escolas públicas através de oficinas. Contato: [email protected] Foto: Paulo Andrade. e leva meu sorriso 19 Tiago Feijó Aqui, Dentro de Mim Em memória de Thiago Ribeiro da Costa e Inês Cruz Do que me lembro bem foi do momento que recebi a notícia. O Biel havia pedido cerveja e cachaça, daquele jeito lá dele de me mostrar um espaço entre o polegar e o indicador. Pus até um tiquinho a mais, porque o dia estava meio frio e o Biel pagava certinho no fim do mês. Depois chegou a Rosa, bonita que só ela, num vestido que eu pus reparo, todinho vermelho, bem apanhado na cintura e que mostrava um palmo das coxas dela. Me pediu meia dúzia de tomates. Não esqueço, como é que eu posso esquecer?, ela emendando no pedido: – Meu menino está com vontade de comer salada de tomate; vê se pode, Tereza! Escolhi uns bem bonitos, madurinhos como o vestido dela, e até passei uma água neles, pensando no seu menino. Ela me pagou com uma nota de cinco bem maltratada, e quando fui no caixa tirar o troco, o telefone tocou: – Alô! E do outro lado, uma voz de mulher, muito baixinha: – Boa tarde. Por gentileza, eu queria falar com Tereza Auxiliadora do Nascimento. – É ela. – Dona Tereza, aqui quem fala é Marli, sou psicóloga do hospital Leopoldo e Silva, tenho um assunto delicado para tratar com a 21 senhora. É preciso que a senhora permane- – Dona Tereza, o seu filho morreu... de antigamente, em desesperação, ar- ça calma e atenta... Não sei dizer ao certo o que aquilo me rancavam tufos da cabeça. É verdade. Eu segurava o telefone com o ombro, causou. É difícil. Demorei pra somar as Eu arranquei. E arranhei o meu rosto enquanto contava as moedinhas do troco palavras dela, pra juntar, pra entender. como um bicho desvairado, num surto da Rosa; nem dei a devida atenção à mu- Mas antes mesmo de entender o cora- de pôr fim a tudo, possuída. E eu ia ar- lher, achei mesmo que era gente queren- ção já disparou, querendo me arrancar o rancar os meus olhos com a unha, mas do me vender plano de saúde... peito fora. Quase perdi o sentido. Fiquei a Rosa me tomou as mãos e me abraçou – Pode falar, moça. zonza, trêmula, desacorçoada. Aí me veio tão forte, tão forte, naquela compaixão – Dona Tereza, o seu filho sofreu um uma ideia que me deu um respiro, um de mãe que veio buscar tomates para o alívio. Aquilo não fazia sentido nenhum, seu menino e me pegou no instante em coisa incabível, não podia ser, não era que eu perdia o meu. E me apertou com possível... tanta força no seu corpo, que eu, exaus- acidente! Aí parei. Quietinha. Tranquei as moedas na mão. E com a outra apertei o telefone no ouvido pra não perder nada – Moça, deve ser algum engano, o meu ta, vencida, acabada, desmoronei. Foi a daquela voz pequena. No balcão o Biel filho se chama Eduardo e está viajando; Rosa que me levou lá pra cima, não sei bebericava a cachaça com aquela cara lá está na praia, moça! como, não sei com que braços. Mulher E aquela voz, como é que eu posso es- tem força guardada pra doar pra dez – Quê que aconteceu com meu filho? quecer aquela voz?, calma e baixinha, homens. Como foi que subi a escada? – Dona Tereza, fique calma, por favor. tentando me explicar, como se não qui- Como foi que cheguei lá em cima? O sesse me dizer: Tuca encontrou a gente no meio da sala, dele de quem nasceu pra nada. Procure uma cadeira para se sentar... – Dona Tereza, eu sinto muito, muito tinha ouvido meus gritos. Não consegui mesmo, mas o seu filho, Eduardo Pereira do dizer nada pra ele, não sabia mais falar. – Dona Tereza, foi uma fatalidade... Nascimento, morreu hoje na praia, às duas A Rosa, abraçada comigo, chorando co- – Moça, não faz isso não, me diz logo, horas da tarde, ele e a mulher dele... migo, foi quem disse: – Estou sentada. – estava nada – Quê que aconteceu com meu filho, moça? quê que aconteceu com meu menino? Caiu tudo no chão, as moedas da Rosa – O teu filho, Tuca... o teu filho... Aconteceu alguma coisa com o Edu... Aí ela não pôde mais. A minha voz já ia e o telefone. E eu arranquei de mim um aflita, numa agonia só. Acho que ela não grito grande, um vômito de desespero, de soube mais o que dizer, até gente estuda- tremer as prateleiras, de retirar das ca- – O nosso filho morreu, Tuca! da às vezes não sabe mais o que dizer. E sas os vizinhos da rua. E me agarrei nos O Tuca ficou ali, parado, olhando pra me disse, numa só talagada: meus cabelos... Dizem que as mulheres nós duas como se visse dois fantasmas. Aí me veio a força, e eu gritei: 22 Os olhos arregalados, começando a ma- Ele. Disse pra Ele que eu não merecia. Aí caiu em cima dela, um casal que estava rejar. Aí bambeou das pernas, pareceu atenderam o telefone. Por um segundo perto viu. Mas os dois estavam de mãos que ia cair. Deu uns passos pra trás e me inundei de uma paz que nunca tinha dadas. Disseram que os dois morreram tombou na poltrona. E foi desaparecen- sentido, que nunca mais sentirei. Por um de mãos dadas... do devagarinho, sumindo lá dentro dele. segundo só. Porque a voz que disse alô foi A viagem não foi fácil. Um silêncio Até que começou a chorar, um choro de a voz dela, daquela mulher, da Marli. Aí horrível dentro do carro; eu e o Tuca, aca- homem derrotado, choro de homem fei- o fio de esperança se rompeu, de vez. Gri- bados. A Rosa foi dirigindo, se esforçando to em menino. O Tuca chorando foi de tei, blasfemei, pedi pra morrer. Pedi pra pra se concentrar na estrada. Mas quan- uma tristeza sem tamanho. Nós três cho- morrer muitas vezes. A Rosa ficou em pé do chegou lá foi pior. O IML era uma coisa rando na sala, a desgraça enorme. Aí me na sala, estendendo os braços pra mim, horrorosa, um cheiro asqueroso de gente veio outra ideia; a gente não quer acredi- me mostrando as mãos dela, sem cora- morta. Fiquei com um medo danado de tar, mãe nenhuma acredita. Até hoje não gem de me tocar... que o meu filho estivesse carbonizado, acredito no que aconteceu. Parece que Fui reconhecer o corpo do meu filho e de que eu não pudesse olhar o rosto dele, vou abrir aquele quarto e ele vai estar lá, da mulher dele, a Manuela. Quiseram me tocar nos cabelos dele. O homem que deitado na cama dele, ouvindo as músi- privar disso, pediram que eu ficasse em atendeu a gente estava dormindo numa cas dele, lendo os livros dele. Nem abro casa porque eu não tinha condições de ir. cama ao lado de uma mesa com um cor- mais aquela porta, de tanto desconsolo, Mandei todos pastarem. Como é que eu po morto. Não sei como fiz aquilo, não sei porque ele nunca mais vai estar lá. Mas ia ficar aqui esperando que me trouxes- como pude fazer aquilo. A Rosa me am- naquele momento tive uma ideia. Me sem o meu filho? Como? Antes de irmos, parando todo o tempo; o Tuca fumando desatraquei da Rosa e corri pro telefone a Rosa telefonou e ficou sabendo da his- dentro do IML. O homem abriu duas ga- da sala. O Tuca ainda me perguntou pra tória. Os dois caminhavam na praia, de vetas, uma do lado da outra. Como é que quem eu ia ligar, nem respondi. Liguei mãos dadas. Não havia muita gente àque- eu posso esquecer?, o meu menino den- pro celular do meu filho. Mãe nenhuma la hora. O tempo não estava bom, armava tro de uma gaveta. Estava inteiro, boni- quer acreditar. Podia ser uma malvadeza, chuva. Mas os dois caminhavam assim to. Quando pus a mão nele, não aguen- um trote de gente ruim. Nem sei quan- mesmo, eram loucos por praia. Começou tei mais e desmaiei. Antes de voltarmos to tempo durou aquela chamada, aque- a chover fininho, e de repente, sem mais encontrei a Marli. Ela me deu um abraço le barulhinho que chama, chama. Eu só nem menos, meu Deus, sem nenhum carinhoso, demorado, me passou a mão rezava pra ouvir a voz do meu filho do motivo, sem razão nenhuma, um raio no rosto, nos cabelos. Estranho isso: gente outro lado. Pedi pra Deus, implorei pra caiu em cima deles. Um raio! Na verdade, que a gente nem conhece fazer esse tipo 23 de coisa. Mas entendi logo, ela também é trabalhar. Ficar em casa se alimentando Acho que o Tuca e a Rosa pediram pra mãe e é estudada pra ajudar as pessoas. dessa dor é que não dava. O pessoal foi eles não tocarem mais no caso, não me Conversamos. Gostei muito da Marli. No chegando, devagarinho, ressabiado. O lembrarem mais. Bobagem, tolice. Como meio daquela desgraça toda ela foi uma Biel foi o primeiro a entrar. Quase não se eu precisasse dos outros pra me lem- coisa boa que me aconteceu. conseguia me olhar. Sem saber o que di- brar do meu filho, pra me lembrar que Enterrei meu filho no dia seguin- zer, pediu cerveja e cachaça, daquele jeito o meu menino estava morto, aos trinta e te. Veio muita gente ver. Ele era querido, lá dele. Eu servi e ele levantou o copo e me um anos, morto e enterrado. Não foi fácil. tinha muitos amigos. Levei meu filho disse uma coisa que não esqueço, como é A Rosa vinha todo o dia; a Rosa foi o meu até a cova aberta. Quando o caixão des- que eu posso esquecer? amparo. Quando não dava mais, quando ceu, quis pular lá dentro com ele. Acho que toda mãe quer. É claro que não me – Que Deus cuide da senhora, Dona Tereza! não tinha mais jeito de aguentar, eu pedia pra ela ficar no caixa e ia pro depósito deixaram, senão eu teria pulado. Depois, Me encheu os olhos d’água, o Biel di- dos fundos, me enfiava atrás das caixas não queria ir embora de lá, queria ficar zendo aquilo. Com ele, vieram os outros. de cerveja e chorava tudo, tudo, de uma com ele, jogada naquele monte de terra, Todos tristonhos, sorumbáticos, fazendo só vez. Mas tinha que chorar baixinho, a cavar tudo de novo com as minhas pró- aquela cara do enterro. Não sabiam mais mão tapando a boca pra não deixar esca- prias mãos pra dar nele um último bei- como me pedir a gelada deles, a cacha- par o grito que sempre vinha, não queria jo. A Manu, que era portuguesa, não pode ça deles. Uns vinham, entravam, e não que me escutassem. No começo, o Tuca ser enterrada junto. A mãe quis o corpo me pediam nada, nem um copo-d’água. também chorava escondido; eu perce- da filha, quis enterrar ela em Portugal. Acho que vinham só pra ver, pra me ver, bia tudo, ele aparecia com os olhos ver- Eu entendi. Ela é mãe, e eu teria feito o ver aquela minha desgraça, a minha cara melhos, os gestos meio desconcertados, mesmo. Morreram de mãos dadas, mas de agonia. Um me perguntou como ti- aquele sorriso forçado de quem não sabe estão enterrados em terras diferentes. nha sido, eu contei o que sabia. Depois mais o que é felicidade. Depois ele parou, Ele aqui, ela lá. E um oceano imenso en- ele me disse que gostava muito do meu acho que se conformou, aceitou. E hoje eu tre eles. Nessa vida a gente não tem mui- filho, menino bom, e começou a me con- sei que lágrima de mulher não tem fim; ta escolha, não é livre pra nada. Não se tar uma história antiga em que os dois e que a nossa dor, a nossa dor de mãe, é pode nem ser enterrado do lado de quem pulavam no quintal da Dona Mirtes pra dor que mora no nosso ventre, espécie de a gente ama. roubar carambolas. Me deu uma vonta- filho que nunca nasce, que não tem jeito Reabri a mercearia uma semana de louca de chorar, mas eu me aguentei. de se pôr pra fora, morre com a gente. depois. A vida não é fácil e é preciso Depois ninguém mais tocou no assunto. E o tempo passou; e o tempo é senhor, 24 sempre foi. Mas quando tudo estava o Tuca me pegou pela cintura no meio sobra. Eu aprendi uma coisa, uma coisa se amansando, aconteceu uma coisa. do temporal e me arrastou de volta pra que me dá um alívio imenso... Toda noi- Foi num domingo, eu estava na sacada dentro. Não sei por que fiz aquilo; a gente te quando me deito pra dormir, fecho os olhando a rua, o Tuca estava se barbean- fica fraca, perde a vontade de se pôr de olhos e converso com o meu filho. Toda do, de repente o tempo fechou, deu umas pé, como se o mundo tivesse perdido as noite digo pra ele: trovoadas fortes, e começou a cair uma cores, fica tudo preto-e-branco. A gente – Eduardo, meu filho, como é que você chuva grossa e pesada, e com ela uma não foi feita pra suportar uma dor des- está? Aqui continua tudo como você dei- chuva de raios, uns riscos grandes e lu- sas; nem a pior das mulheres merece xou: seu pai ainda está tentando parar de minosos desabando do céu escurecido. E uma dor dessas. O Tuca ficou muito pre- fumar e eu continuo morrendo de sauda- aquilo foi me dando uma coisa, uma afli- ocupado com aquele meu desatino. Disse des de você. Cuide-se, meu filho, e cuide ção, uma revolta, uma saudade... Não sei que eu precisava entender, aceitar; disse da Manu também. Onde quer que você o que me deu, não sei por que fiz aquilo. que Deus não tinha culpa nenhuma, que esteja, fique em paz e tenha paciência, Sai correndo dali pro meio da rua, qua- foi um acidente, que era a hora do nosso que a gente ainda vai se encontrar... onde se que me quebro na escada, meti os pés filho ir. E enquanto falava, ele mesmo foi quer que você esteja... E se não estiver em descalços no asfalto e ergui os braços pro se perdendo, se entregando, como se não lugar nenhum, em um lugar eu sei que céu. Aquela chuva toda ia me ensopando, acreditasse nas próprias palavras que di- você está: aqui, dentro de mim. me encharcando, até as roupas de baixo. zia. Terminamos os dois chorando, um E me deu vontade de gritar, e eu gritei. abraçado no outro, e foi a última vez. Falei besteira, xinguei Deus, culpei Deus. Eu entendi que a vida tinha que con- Pedi que me caísse um raio em cima, que tinuar, mesmo preto-e-branca. A vida, agora era a minha vez, que se Deus ain- para os que ficam vivos, tem sempre que da tivesse um tiquinho de compaixão de continuar. A dor nunca passa, nunca mim que me levasse, que descesse sobre passará. Mas como eu já disse, o tempo é mim com a sua toda poderosa fúria, com senhor, sempre foi. E com o tempo a gen- o seu raio mortal. Implorei pra Deus que te vai descobrindo um jeitinho de ficar me levasse, que me levasse pra onde vão de pé, de sorrir, com alguma alegria, de os que morrem de raio, porque eu queria alguma coisa boa que acontece. Com o ver o meu filho, porque eu precisava dar tempo a gente vai aprendendo a suportar um último abraço no meu menino. Daí com paciência o restinho de vida que nos 25 Há uma Gota de Orvalho em Cada Criança Quando menina me chateava muito com nem mesmo de ódio; fiquei possessa, pasma, perdi a fome e o ocorridos como o de hoje. Não é fácil manter a calma, uma es- norte, e quase me senti verdadeiramente suja diante daquela pécie de soberania intacta que devemos demonstrar nessas oca- criança que esperava uma explicação sobre a sujeira das nos- siões; não é tão fácil quanto parece aceitar e encarar o fato em sas peles. Então mamãe lhe deu uma resposta, ao mesmo tempo todos os seus pormenores! Mesmo pra mim, acostumada a todo que me dava uma lição. Plena de carinho, e segurando com suas tipo de preconceitos e calejada na arte de louvar e defender a mãos negras as mãos rosadas do menino, mamãe lhe disse que minha negritude. Sim, eu sei, há negros que não suportam ser a nossa pele não era suja, e sim negra, porque éramos de ra- negros! Uma pena! Eu mesma não posso me entender de ou- ças diferentes, mas que no fundo éramos todos iguais... Que ele tra maneira e não exagero quando digo que tenho um orgulho nascera branquinho, nós negras, e havia ainda outras pessoas intenso desta pele com que me visto. É como digo, quando o as- com outras cores... Mamãe disse mais coisas, simples e bonitas, sunto surge e quero causar algum efeito: “Fazer o que se sou sor- das quais não me recordo, tamanho era o peso da minha raiva. tuda, nasci com essa cor-delícia sem fazer o mínimo esforço!” Depois, o pai do menino, vindo de uma mesa próxima, curvado Mas nem sempre foi assim... de mesuras, despejou na nossa mesa um sem-fim de desculpas Certa vez, adolescente ainda, enquanto almoçava com ma- e perdões pela indelicadeza do filho, no que mamãe lhe respon- mãe num restaurante aqui perto, um menino bonito, criança deu indulgentemente: “É só uma criança... uma doce e curiosa de uns quatro-cinco anos, fincou pé junto da nossa mesa e ficou criança!” E o menino se foi, bonito e sorridente, acenando para nos olhando com uns olhos curiosos, preso no receio próprio nós com a sua mãozinha rosada. “Não é preciso temer, Linda, das crianças, talvez julgando se devia ou não perguntar o que de você passará por isso e talvez por coisas piores na vida. Mas não fato perguntou, e bem assim, com a vozinha limpa de menino tema, mantenha a cabeça erguida e os olhos acesos, acredite sem maldade: “Por que a pele de vocês é suja?” Aquela pergunta, em quem você é, o pior preconceito que pode existir é aquele feita daquela maneira, me atravancou a comida na garganta, e que nasce dentro de você mesma!” Foi isso que mamãe me dis- juro, de verdade, que tive vontade de vomitar tudo naquele me- se quando terminamos aquele almoço. E esta é a verdade que nino. Mamãe ficou me fitando, esperando de mim uma resposta carrego comigo, é a verdade que me fez ser quem sou! Passei educada, judiciosa, quem sabe até amorosa, como quem explica mesmo por inúmeras situações delicadas, em algumas delas com facilidade a uma criança por que as suas mãozinhas não fui bem sucedida, em outras não. Afinal, há crianças e crianças; podem tocar as estrelas. Mas eu não fui capaz de uma palavra, como há adultos e adultos. Mas hoje... o que aconteceu hoje foi 26 sublime, o que aconteceu hoje foi a apoteose da negritude! Se deu pra perceber um círculo de silêncio se expandindo ao redor mamãe estivesse viva teria se desmanchado de alegria. da gente, calando uma porção de bocas. Senti que me olhavam, Foi no supermercado aqui da esquina, na fila do caixa. À minha frente uma mulher e uma criança, mãe e filha. Quando me curiosos da minha reação, mas antes dela a mãe interveio, num despautério sem tamanho: dei conta a menina já me olhava com uns olhos maciços, fixos, – Bela... que é isso? Certas coisas não se falam, filha! plenos de um brilho azulejado. Não fez espera de nada, parecia Os olhos da moça do caixa se pregaram em mim, desconcer- cheia de palavras na boca e, sem tardar, deu dois passos na mi- tados, toda ela em desalinho, como que desejosa de estar au- nha direção, me apresentando seu metro de coragem: sente dali. A mãe, sem me olhar, voltou a retirar as compras do – Qual é o seu nome? E eu, erguida num metro e oitenta, respondi com voz adocicada de falar com criança bonita: carrinho. – Desculpa, moça! – disse a pequena. Transfigurada de afeto, a voz da menina agora era quase um – Meu nome é Linda... e o seu? sussurro. Me pus de cócoras e me fiz do tamanhinho dela. E ela, Por um instante, ela caiu suspensa num pensamento, como um pingo inocente de gente, se aproximou, perto, muito perto se experimentasse o nome incomum que lhe dei, antes de me responder: de mim. – Sem desculpas, mocinha! – respondi, maravilhada com – Isabela, mas mamãe me chama de Bela! os fios dourados dos seus cabelos finos – Eu sou marrom sim... Rimos, reconhecendo a relação estabelecida entre os nossos também sou mulata, parda, trigueira. Há muitas palavras, mas nomes. Inteligentinha ela, e olha que não devia ter mais que eu prefiro negra. Eu sou negra! cinco anos. Foi aí que olhei pra mãe, que me encarava com uns Os olhinhos dela agora pesquisavam tudo que me era pele. olhos azuis vidrados idênticos aos da criança, com a distinção, E assim, muito naturalmente, um carinho quase, os seus dedi- apenas, de que os olhos adultos eram chochos, dois olhos cho- nhos percorreram o meu braço como se provassem a textura da chos metidos numa expressão seca, forjada de uma espécie de minha cor. menosprezo. Ao mirar a menina novamente, adivinhei nela a – É bonita... a sua pele! Você gosta dela? iminente pergunta, a pergunta cabal, calejada que sou no diag- Tão perto de mim, a pequena Bela, que pude sentir, despren- nóstico dessas ocasiões. Mas a pergunta não veio, o que veio foi uma afirmativa. E a corajosinha, espevitada, nem se guardou em hesitações, foi reta e sonora: dido das palavras dela, o seu hálito fresco de criança. – Sim, gosto. E gosto dos meus cabelos também, dos meus olhos, das minhas mãos! Gosto de mim! Mas gosto também do – Você é marrom! que é diferente de mim, como dos teus cabelos, por exemplo. – O supermercado estava relativamente cheio, como sempre. E nisso, não resisti e acarinhei o ouro dos cabelos dela, uns fios 27 tão sedosos e limpos que me escorreram feito água por entre os dedos – Os cabelos de Bela, tão belos! Por um instante a mãe interrompeu o que estava fazendo e ficou ali, rija, como que estupefata, com um litro de leite sus- E ela riu um riso tão dela, feito de certa vergonha e legítima penso no ar, visivelmente atenta à nossa conversa. A moça do alegria: o riso franco das crianças! Depois voltou a ficar suspensa caixa, transformada, agora nos olhava com um sorriso petrifi- num pensamento, enquanto eu adivinhava suas maquinações. cado e satisfeito, passando lentamente o código de barras dos – Os seus também são bonitos... – disse ela afinal e, arremedando o meu gesto, colheu com a pequena mão que tinha uma mecha dos meus cabelos – Os cabelos de Linda, tão lindos! Rimos, desta vez mais expansivas que antes, quase despudo- produtos diante do laser vermelho do leitor. – Não, mocinha, isso não depende do sol. O máximo que você vai conseguir é ficar toda vermelhinha... – É... Isso se a mamãe não me passar protetor solar! radas. Notei que as pessoas em volta guardavam ainda certo si- Rimos novamente. Impossível, a pequena Bela. E então a lêncio, agora talvez admiradas com a cena que viam. Foi então mãe, despida de qualquer delicadeza, dirigindo-se a moça do que a voz da mãe irrompeu, sinuosa, as palavras todas vestidas caixa, estabeleceu novamente um círculo de silêncio ao redor de meiguice, e não sei por que entrevi, por debaixo desta vesti- da gente: menta, um quê de viperino: – Bela, a mamãe já está quase terminando aqui, minha querida! Você não quer vir me ajudar? Olha aqui aquele chocolate que você gosta! – Será que você pode ir mais rápido com isso! Eu não tenho todo o tempo do mundo! O sorriso petrificado da moça esboroou-se num segundo e as suas mãos, num desgoverno evidente, principiaram a trabalhar A menina ignorou tudo: o convite, a mãe, o chocolate. Fez que freneticamente. Diante daquela repreensão mal-educada, vi os não ouviu. E eu não pude fazer outra coisa, porque então me olhos da moça se encherem de uma vergonha pastosa, quase nasceram certas desconfianças e eu quis ver onde aquilo ia dar. lágrima. E caíram os véus da minha desconfiança e tive certeza Além do que, a pequena Bela estava agora quase aninhada no do que então se passava ali veladamente. Não hesitei. Trouxe a vão das minhas pernas, me oferecendo proximidades de amiza- criança mais pra perto de mim, quase abraçadas uma na outra, de antiga. Sem nos olhar, a mãe continuou a retirar as últimas e, num tom mais elevado que antes, perguntei: compras do carrinho. – E você... gosta da cor da sua pele? – perguntei, quase tomando a criança no colo. – Gosto... – e estendeu o bracinho para que julgássemos juntas – só acho que ela é muito branquinha, não é? Será que se eu tomar um montão de sol ela fica da cor da sua? – Você está na escolinha, Bela? Meneou a cabeça, afirmativa. – E na sua escolinha não tem nenhuma criança negra? Parou. Segurou o queixo com a mão. Pensou. A mãe agora pagava a conta. – Não me lembro... acho que não! 28 Continuei; muitos nos olhavam. – E você não conhece nenhuma outra pessoa negra além de mim? Mais um instante pensando, os olhos dela dentro dos meus. – Sim, conheço, a Irene! Curiosa, inquiri: – Irene? Quem é Irene? Foi a mãe quem respondeu, as palavras então todas nuas, ácidas, afiadas, como setas que se atiram com rancor num alvo fixo. E aquele par de olhos azuis me fulminando, transbordantes de uma ojeriza inexplicável: – Irene é a nossa empregada! E me arrancou a filha, puxando-a pelo braço, num gesto bruto. Tive o ímpeto de reagir, me ergui mesmo, alta, bélica, mas o desacato me travou na garganta porque eu nada faria diante daquela criança, a pequena preciosa. Mas o que não pude fazer, ela fez por mim, na sua inocência de criança luminosa; ela, meu pequeno presente de hoje. Mal deram alguns passos e a voz da pequena Bela se fez ouvir, ampla, límpida, sonora, articulando cada palavra como se cantasse uma canção: – Mamãe, eu queria ser negra! Olhei pra moça do caixa, os olhos dela se afundavam em mim, rebrilhantes, saciados, agradecidos. Também ela negra... Acho até que sorria! 29 Conto Tirado de um Poema João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado. Poema tirado de uma notícia de jornal, - Manuel Bandeira. João Gostoso desce as vielas íngremes e irregulares do morro da Babilônia. À sua frente, sob o anoitecendo Gostoso desce o morro, indistinto nos recantos de escuridão, le- do céu, pululam as luzes de Copacabana; luzes estas que João vando na caixa do pensamento a mulata Ritinha, cravo crava- não vê, ou vê mas não repara, posto que em seus olhos fixa-se do na carne de seu amor, ferida funda que não sabe cicatrizar, agora a lembrança de outras luzes, as luzes de Ritinha, sorriso- envolta nas brumas de um antigo carnaval. Em pouco, João pisa nha, metida numa abundância de plumas e brilhos, a devassar na Avenida Atlântica e se dá conta do mar, um mar de desilu- o desejo dos homens no furdúncio do carnaval. Carregador de são, e o rumor das vagas enche de mágoas o corpo colosso de feira-livre, o árduo trabalho dos braços esculpiu no corpo negro João. Mas ele continua a caminhar, visto que tem destino certo de João muitas saliências de músculos e fez brotar nele a força de chegada e que o mar, posto assim nos olhos, é como um novo desumana da ressaca das marés. Mas esse corpo, bruto tronco jeito de se afogar. E por agora João quer viver, viver e sofrer as robusto de ébano, é casca falsa que envolve um homem pací- dores inventadas para ele, que todo homem tem lá o seu qui- fico, erguido em bondades, de mãos de trabalho e carícia. João nhão e carregá-lo é questão de honra. 30 Copacabana é uma festa, riqueza sem fim. Gente vestida de qual consegue se lembrar, como se a tal festa da carne não hou- claridade, rindo aos trambolhos, saltando de carros lustrosos e vesse ocorrido senão uma única vez. Mais adiante, João com- exalando perfumes de línguas estrangeiras. João pensa na ale- preende que a batucada não vem do antigamente, mas que re- gria dessa gente, nas suas soltas gargalhadas, habitantes de al- tumba no presente, ecoando na estrangulada noite do agora. E tos edifícios, com o extenso mar emoldurado nas vidraças de enfim João vislumbra, lançado no meio da rua, um facho de luz suas janelas. Tão diferente dele, essa gente. Eles que não suspei- expulso do bar Vinte de Novembro, seu destino e seu fim. É de tam da sua fome incurável, do seu perfume de feira, de fruta, lá que pulsa o sangue do samba. da sua roupa puída, do seu barracão sem endereço perdido na O bar está em polvorosa, com grande azáfama de gentes. O barafunda da Babilônia. Cresce em João um asco por essa gente, samba, no seu compasso cardíaco, perverte as pessoas, instala porque foi o dinheiro deles que comprou a sua única riqueza, o nelas um assanhamento de fogo, de labareda, bulindo com elas seu bem mais valioso. Foi o dinheiro deles que levou de João a por dentro, afrouxando nervos e músculos, libertando dos cor- sua paz. João caminha apressado porque o samba não é afeito pos a malícia da carne. E muita pele suada de mulata procu- a esperar. Já no Arpoador, as espumas das ondas fazem João re- ra no corpo de João o seu cais, o seu desvelo, o seu descanso. E cordar a brancura das plumas de Ritinha no distante carnaval muito braço de homem, risonho de safadezas, aperta o amigo em que se conheceram. Ela, corpo em sarabanda, tremelicando João, abraça o parceiro João. E muita boca de birita, melada de as trigueiras ancas, abria em seu redor um círculo de admira- embriaguez, despeja na orelha de João manhas e promessas de ção. Ele, estacado no meio da multidão, o sangue assanhado, ti- mulheres e camas. E os copos tilintam, erguidos na luxúria do nha os olhos enfeitiçados pelos sortilégios da mulata que pare- brinde. E o samba cresce, imenso, enorme, poderoso, grassando cia levitar no centro do carnaval. E enfeitiçado, nem percebeu de perna em perna a volúpia do seu veneno. João finalmente quando a moça passou a sambar em seu derredor, circunave- está entre os seus. E entre os seus, João bebe, João canta, João gando seu corpo, ilha de prazer, ele, o escolhido, o eleito, terra dança, sem que ninguém perceba a sua amargura infindável, selvagem a ser desbravada. E no delírio do carnaval, os olhos de a sua solidão medonha, abismo tão negro quanto a sua pele, a um dizendo aos olhos do outro o desejo de seus corpos. E João sua tristeza de pedra, inabalável, presentes ofertados pela mão foi rei, e João foi estrela, e João foi madeira de fogueira. E João da mulata Ritinha ao abandoná-lo na espessura das trevas. E a conheceu finalmente o amor... noite de então é a noite de João! Agora, emaranhado nas ruas de Ipanema, com seu teto de Tudo tem seu fim: o amor tem seu fim, a noite tem seu fim, folhagens, João pensa ouvir os batuques do samba de outrora, o samba tem seu fim. E agora, após o rebuliço das pernas e o os mesmos batuques que o conduziram aos braços cheirosos de delírio dos copos, João Gostoso caminha sozinho e atordoado na Ritinha naquele feliz carnaval de sua vida, o único carnaval do madrugada em declínio. Da banda do mar, um clarão anuncia 31 o parto da manhã de um dia azul. E João, homem feito de amor vale mais a pena, que aquilo já não é viver, é arrastar-se, arras- e desesperança, sem saber um jeito de esquecer, não faz outra tar-se para o nada, porque para ele só existe o nada. É ela. É so- coisa senão recordar... Ela, que já não tem mais nome; ela, que já mente ela. E João abre os braços, tal qual o Cristo Redentor sobre não tem mais corpo; ela, que já não tem mais voz... Ela, que ago- o Corcovado, e se atira na Lagoa Rodrigo de Freitas para morrer ra, neste agora de João, é apenas aquela que, em noite nefasta, afogado. ele viu descer de dentro de um luxuoso carro branco, brilhante, como aqueles de Copacabana, toda ela vestida de claridade, de A morte de João Gostoso coube apertada numa curta notícia de Jornal. anel reluzente no dedo, nos braços de um homem que a beijava e a cobria com mãos de desejos. Aquilo foi como uma faca no coração de João! Depois, as palavras dela queimando como brasa a pele de João: “João, você me desculpa? Você é o homem mais bonito desse mundo, João! Mas você é ninguém e eu nasci pra ser rainha!” João nunca mais viu Ritinha, que foi embora viver seu sonho de rainha. Afundado num tempo de angústias, João sobreviveu e esqueceu-se do homem, do luxuoso carro branco e das palavras de brasa sopradas pela boca de Ritinha. Mas não pôde esquecer-se dela, não soube esquecer-se dela. E Ritinha ficou ali, guardada no fundo dos olhos de João, envolta nas plumas de um fabuloso carnaval, pairando sobre a face de todas as coisas. João está agora à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, enquanto um último resto de madrugada se recolhe para detrás da carcunda das montanhas. E João a vê pela última vez. É ela. É Ritinha, no seu abundante corpo de mulata, que sobe à superfície Tiago Feijó nasceu em Fortaleza em maio de 1983. Mudou-se para o interior de São Paulo do espelho d’água, requebrando as ancas no cerco dos admira- ainda menino. Formou-se em Letras Clássicas dores. É ela. Cravada nos olhos de João, dançando em torno de pela Unesp. Venceu o Prêmio Ideal Clube de João, buscando o corpo de João, naquele carnaval que não de- Literatura 2014, na categoria Livro de Contos. veria ter fim. E João não quer mais suportar, porque a saudade, gota a gota, enche o peito de João. É ela. E João pensa que já não Insolitudes é o seu primeiro livro, no qual esses três contos foram publicados. 32 Lisa Alves Que o meu sonho nunca assombre você Para Billie Holiday Do outro lado sou a mulher “de quatro paredes” ao som de Billie Holiday. Apenas uma “branquela” aborrecida q sonha ter a cor da terra para ser mais inquilina, q sonha ser Angela Davis. 34 Deito-me no solo e afundo nos dias frios. [dias de rabadas humanas. A canção diz: “Little white flowers Will never awaken you.” Quando permanecemos estrangeiros predomina uma fome de explorar e não importa se oprimimos o músculo do entregador de compras ou o estômago podre de uma vespa morta. A canção diz: “Soon there’ll be candles And prayers that are said I know.” Gosto da música dos abortados, da música dos malditos, da música que canta o apego arruinado. A canção diz: “Darling I hope That my dream never haunted you.” Enquanto escrevo, você cai no sono. O amor é a eterna espera do “Bom dia!” 35 O Canto da Sereia Morta Para Clara Nunes E eu era dessas, daquelas, de todas as formas e colhia tempos e tentava congelá-los para evitar que a vida fosse tão rápida, tão mínima, tão flash. Peguei a estrada, inventei ternuras, armei estragos e sinto as falhas tornarem-se assombrações – é sempre um bate e volta (uma terceira de Newton). Beijei homens sem dentes, homens que chupam a pedra e depois cospem na mão para calar o Diabo. Beijei mulheres mortas, mulheres sem pernas e sem braços – sereias suburbanas le chant de la sirène morts Tradução de Ramon Lv Diaz et je étais de celles-ci, celles, dans tous les sens et qui recueillé heures juste pour le cristallisation et pour éviter la vie très délié, très unitaire, trés lumiére. je venir l’autoroute, je conçoive douceurs, j’ai conçu des baisses pour voir faire l’erreurs aux fantômes – éternité d’aller et venir (autre troisième de newton). j’ai embrassé hommes sans dents, les hommes qui sucent la pierre à cracher sur sa propre main pour se taire le satin. (capazes de seduzirem a Lua e morrerem ao Sol). j’ai embrassé l’femmes mortes, femmes démembré, sans bras – sirènes de faubourg (adroit de séduire la lune et mourir au soleil). 36 Eu era a caminhante, a caçadora de improbabilidades, a especialista em vazios, je étais un errant, a montadora de quebra-cabeças sem peças. invraisemblances de chasse, je suis l’expert dans déserts, Caminhei com os fracassados e aprendi a passagem rápida para o desespero, para o estopim. fabricant de mosaïque sans pièces. je marchais parmi ceux tombés et a appris à se déplacer rapidement au désespoir, pour l’cordeau détonant. Hoje não falo mais que treze palavras por dia, sou das superstições, da reza brava, do tipo q tece a própria corda para embalar o pescoço depois de uma vida ruim. aujourd’hui, je ne parle pas plus de treize mots par jour, superstitieux, priez passionnée, le sort qui tisse la corde elle-même pour emballer le cou après une misérable vie. 37 Retrato circense para Nanã Para Raul Seixas A Morte frequenta a Terra com trajes de mercadora. Na bolsa – commodities e combustíveis. A Morte tem ingresso para qualquer lugar e dita as normas do jogo: quem planta, quem colhe, quem come e quem saliva até receber o doce empeçonhado por ela. A Morte não é Câncer e nem Ebola, a Morte antes de tudo é o Petróleo, o Capital e as Ações na Bolsa. Mas a Morte também somos nós e nossos filhos e todas as gerações vindouras q trocam água por Coca Cola, q trocam o ar livre dos Parques pelo ar condicionado dos Shoppings. A Morte visita a Vida e a encanta como uma Circe às avessas: porém nada se transformará em porcos e muito menos em anticorpos. A Morte é cerca, muro, arame farpado, embargos econômicos, multinacionais, patentes, especulação imobiliária, indústria farmacêutica, petróleo, Estado, território e dominação. Já disse o Velho Barqueiro em meus piores pesadelos: “A Morte sempre esteve com você, baby.” 38 Cidade dos Sonhos Há noites que o barulho do silêncio chega a estourar os tímpanos. Os ratos do andar de cima arrastam seus móveis em sincronia. Baratas voadoras atacam os pés de quem tenta sonhar e o tic-tac do relógio marca os instantes que perdemos ouvindo as coisas. Há noites que rodamos na cama como se alguma posição tivesse [o poder de nos ninar. O livro de cabeceira continua na página 33 há dois meses. Flashes de luzes se transformam em anjos perversos e construímos fantasmas que babam de um lado da boca. Há noites que gritamos nossas mães por medo dos trovões. A chuva que cai lá fora são lágrimas de uma criança órfã. Passos são pisadas de Titãs em busca de vingança e não existe perigo debaixo dos lençóis. Há noites que desejamos fervorosamente uma companhia e ligamos desesperadamente para todos os amigos. Há noites que os filhos insistem em nascer A linha está ocupada, a amiga está ocupada e o amigo já dormiu. e dentro dos ventres criaturas carregadas de nossos DNAs explodem. São nestas horas que pensamos na palavra casamento. Todos insistem em dizer que nasceram do amor, mas ninguém explica o nascimento da bomba atômica. Há noites que já não esperamos mais nada. Não existem lágrimas, chuvas e nem mesmo declarações. Estamos velhos demais e as estrelas se tornaram anciãs. O que nos restam são apenas sonhos – sonhamos com as antigas e tormentosas noites. 39 Ode ao Rancor Desintegram fotografias e células. Os olhos se desmancham sobre a relva, as mãos se oxidam na dança do tempo, o pai já não está e a mãe se prepara para [o beijo da Morte. Você estuda sobre remédios e sobre a decomposição da carne. Vive o seu tempo e aprende sobre antigos fantasmas e q dentro da história familiar também existiram opressores. Você sente a existência depois de terríveis dramas: depois de sua avó perder cinco bebês e bem depois de seu bisavô ter matado vinte índios e violentado a honra de centenas de imigrantes. Você existe entre bilhões e tudo o q precisa saber é trocar as fraldas de sua mãe, a utilidade de cada medicamento, cicatrizar as feridas e dizer dez vezes por dia para sua velha: tudo vai dar certo. Depois virá a poesia, pois a poesia começa tarde, 40 depois do crepúsculo, depois dos velórios, depois q as pernas falharem, depois da pele se tornar um mapa do tempo – coberta de linhas e cicatrizes. E se o amor começa tarde (como bem disse o poeta gauche), o ódio acorda cedo – nas reminiscências da infância quando a mão bruta e pesada humilha a sua inocência para q mais tarde só restem poemas rancorosos. Lisa Alves nasceu em 1981, é mineira (Araxá/MG) e radicada em Brasília. É curadora da revista Mallarmargens. No Distrito Federal colabora com o fanzine feminista De Salto Alto. Tem textos publicados em diversas revistas e páginas literárias como a Revista Zunai, Flaubert, Germina Literatura, Cronópios e Diversos Afins. Tem poemas publicados em sete antologias lançadas no Brasil, Argentina e País Basco. Lançou em agosto de 2015 seu primeiro livro de poesia Arame Farpado (pelo selo Coletivo Púcaro e Lug Editora). Site: lisaallves.wix.com/lisaalves e blog: lisaallves.blogspot.com.br 41 Joana Hime escoa teu corpo fala tua fala tua boca nada em braçadas de silêncio Foto: Branca Escobar diz tudo 43 sessão da tarde meu olhar faz cinema nela te vejo a cada sessão sem efeito na tela esqueço se mereço compareço sem cortes caos no set do coração meu olhar encena seu poema sob a saia da vida versada me despe tua letra espreguiçada te veste me veste teu verso em cinema meu olhar cora tua cara te olha castanho meio amendoado soletra passeios enviesados e se esvai assim envergonhado sete cortes seco essa canção set do tempo querendo pausar a tela entornada em azul o filme não quer findar mas sobra cinema dentro de mim sempre que acendem a luz quero apagar invento um motivo cubro a fita do negativo hora de acordar meu fitar hora de acordar meu ermo estar hora de agora 44 Foto: Branca Escobar Amêndoas do tempo A tarde mergulhou alta em você despencando no meu colo suas pestanas choradas Os dedos das mãos voam alto na costura do pensamento enrolando em caracol A noite cai seus cabelos lisos nas horas do céu doando as amêndoas Lembro do teu velho de um dia dilúvio lúdico levando os segundos que veio num postal para o despertar escrito à mão de uma nova madrugadinha e ressoa como os temporais cá na beira da estante O toalete de chão verde entre um e outro postal continuará gelado dos nossos começos a pia redonda não pingará mais chorados pois já tratou dos lembrados num gole só e nosso café de colher com amoras deixo pra colher em outra tarde onde os ventos respirem breves. a ranhura da porta não vai mais me acordar. 46 o mar resseca a sede em montanhas de silêncio e os pássaros choram mar na cara dos peixes 47 moletom (uma despedida) na mala arrumada a memória do nome agasalha o retrato um moletom entardecido aconchega-se árido nas lãs moles talhadas uma manta aperta cujas gravuras adormecem delicadamente crispadas do tempo os espaços da mala puída removendo passados a manhã acolchoada afogados de hoje alinha os fios fugidos Joana Hime, carioca, é compositora e poeta. Graduada em jornalismo e mestra em Letras pela PUC - Rio, atua no mercado musical desde 2001 como produtora artística, pesquisadora e gestora de projetos na área musical e lite- do tecido ido um carinho anoitecido escapulindo o doce ardil acasala o casario da dor do escuro dia pequenices amortecem esses velhos montinhos uma camiseta esquecida rária. Foi coordenadora artística da gravadora Biscoito Fino durante 12 anos, produzindo projetos como Projeto Centro Petrobras de Referência da Música Popular Brasileira - um livro sobre A Casa Edison e seu tempo e um acervo discográfico de obras de 1903 a 1930 -, além de artistas como Tom Zé, Gilberto Gil, Chico César, Mônica desabotoa as sobras novinha em folha verde dos verões arrepiados de frios deu uma volta em cada nota recobrindo mãos que mais parecia uma anedota que outrora aqueciam invernos talvez nunca existiu biografia ficcional sobre a relação dos compo- das vilezas e seu melhor se esvaiu sitores Francis Hime e Chico Buarque. Em 2015, que cobrem o manto deitando-se lançou o livro De dentro, um experimento po- da vila dos amados num solo vazio Salmaso, Paulinho Moska e outros. Atualmente prepara seu livro – CD autoral em parceria com compositores brasileiros, e também escreve a ético vinculado `as imagens da artista Branca Escobar. 48 Glória Paiva Os bichos de nuvem Era uma menina de pernas compridas e joelhos pontudos que, dobrados de certa maneira, cabiam confortavelmente no banco de trás do carro. O isopor com a merenda repousava no chão, um travesseirinho antigo acomodava o pescoço e ela estava comodamente instalada, pronta para as sete horas de viagem até a casa dos avós. Poder estirar-se no banco de trás era uma das poucas vantagens de ser filha única. Às vezes tentava convencer a mãe de que precisava de um irmão, mas a mãe apenas sorria, sem responder. E a menina não sabia se esperava ou se se frustrava em sua impotência de criança. O carro era usado e não tinha mais comodidades que um toca-fitas e um sistema de ventilação que ventilava poeira e o ar quente do exterior. A mãe usava óculos escuros e abria os vidros, fazendo os cabelos se agitarem ao vento. Os pais ocupavam seu lugar de direito nos bancos da frente trocando poucas palavras, mas a menina não entendia nada da conversa, abafada pelos ruídos dos caminhões. Na estrada, o pai relaxava seu semblante habitualmente sério e seus olhos negros até sorriam. 50 Ele gostava das viagens de carro e, mesmo a paisagem tão co- do pai. Concentrada e atenta ao relógio, olhava brevemente o nhecida, da montanha até o litoral, do litoral até a montanha, trânsito, os prédios acinzentados, um cão atropelado de anteon- lhe inspirava. Sugeria à criança: não durma, veja os pastos, as tem na mesma posição, decompondo-se lentamente na avenida. vaquinhas, veja ali chegando uma pontinha de mar. Ela, no en- Acostumou-se com a cena e já mal virava o rosto ao passar por tanto, ia entorpecida pelo calor e o movimento, entre o sonho e um deles. Eram muitos. A cada manhã, um novo aparecia, com a realidade. Deitada no banco de trás, não olhava os pastos nem o sangue vermelho em volta que ia ficando seco, marrom, até as vacas nem o mar: só entrevia o céu desde a janela. sumir em meio à sujeira. Às vezes, tinha a ilusão de que seria Brincava sozinha, por horas, de adivinhar formas nas nu- mais bonito se os animais mortos na autopista estivessem ape- vens. Uma vez pensou que, se as pessoas boas iam para o céu, nas cochilando no cantinho, aquecidos pelo sol. Mas sabia que os animais também deveriam ir, pois todos eram naturalmente a velocidade dos automóveis e caminhões os impossibilitava de bons. Dizia que gostava de todos eles: sabia que mesmo os mais correr o risco de fazer frenagens bruscas. E mentalizava diaria- ferozes, o eram apenas por sua natureza. Daí concluiu que as mente que jamais gostaria de ter de escolher entre provocar um nuvens tinham, indubitavelmente, a forma dos bichos que já acidente ou atropelar um cão perdido que decidisse atravessar. haviam ido. Tinha sempre um jacaré de boca aberta, um tuba- Conduzia devagar, por se acaso. Perguntava-se sempre, silencio- rão solene, um urso triste, um gato dormindo enrolado, a ore- samente: mas porque os cães e os gatos atravessam a rua? O que lha de um elefante. Até dinossauro tinha, e também aquele cão- será que veem, se do outro lado não há nada? zinho de estimação que havia sido envenenado por um vizinho. Acabou que o avião ficou mais barato e ninguém mais quis Todos brancos e fofos, contrastando com o azul intenso. No céu viajar de carro. E que ela se cansou da paisagem cinza da cida- do quadrante de vidro empoeirado estavam todos os bichos do de e tomou um desses aviões. Sentou-se ao lado de uma janela, mundo. sozinha, e pousou um livro sobre o colo. Chegou a abrir uma Chegaram umas férias em que a menina já não se acomoda- página, mas a sonolência de sempre, companheira de viagens, va bem ao tentar estirar-se no banco de trás. Passou a ir sentada, a assaltou e então desistiu de ler. Voltou a cabeça para o lado olhando finalmente a estrada, as vacas, o pasto, a pontinha do distraidamente e de repente ali estavam: o jacaré, o tubarão, o mar, ou dormindo um pouco com a cabeça encostada no vidro. tucano, o macaco, o cachorro vivo, flagrado em meio a um sal- A paisagem passava monótona e os pais calavam, como um fil- to. Dinossauros, tartarugas ao fundo, um golfinho que sorria. me mudo repetido. As viagens para ver os avós foram cessando E mesmo sabendo do princípio de que as nuvens não são nada até desaparecerem. além de partículas de água em suspensão na atmosfera, ela sor- A menina agora tinha seu próprio carro e o conduzia diariamente para o trabalho, com os mesmos olhos sérios e negros riu e levou consigo, em sua partida, todos os bichos, o pai, a mãe e o irmão que nunca veio. 51 Onde o vento cruza as pernas – Il problema non è il vento, ma la dire- a direção em que o vento sopra, apesar de zione in cui soffia il vento – disse aquele ele soprar muito, e forte, e era este o pro- estranho sentado em um banco de praça, blema que afligia seu interlocutor. detendo-lhe a atenção enquanto cami- Seus cabelos estavam desgrenhados nhava ensimesmada em um dia no final pelo vento, mas era possível entrever, de- do inverno. Era Semana Santa e o mundo baixo do emaranhado rebelde, que tinha parecia haver girado muito de repente, um rosto jovial, uns olhos com cor de ou- como quando se reprograma um GPS e tono, a barba por fazer e um meio sorriso aquela seta vermelha dá um salto no glo- de lado que lhe mirava. bo, fazendo as coordenadas geográficas – Como? – perguntou em sua língua mudarem completamente como em um natal, sem sequer pensar ou traduzir, relógio digital em pane. surpresa pela súbita interpelação no Há um lugar no extremo sul da Itália meio do corso movimentado. que, quando lhe perguntam onde fica, A direção do vento. Nunca havia pen- explica: é o solado da bota, longe, longe, sado nisso, mas é verdade, este é o proble- mais longe do que jamais havia pensado ma, raciocinou rapidamente, tentando em chegar. Mais fácil que dar as coorde- controlar as pontas da echarpe que vo- nadas que aparecem no GPS ou dizer o avam descontroladas por todos os lados. nome da pequena cidade, que poucos es- O estranho tinha um cigarro apagado na trangeiros conhecem. Mas, para o vento, boca e lhe pediu fogo. Uma confusão de tanto faz as coordenadas, pois ele corre mãos se sucedeu em uma tentativa de- por ali como se embalado pelos recortes morada de construir uma barreira con- do mediterrâneo, como se ali ele cruzas- tra as fortes lufadas de ar. Ela sentou-se se todas as suas pernas que vêm tanto no banco a seu lado para ajudá-lo na- do norte, quanto do sul do planeta. E na- quela difícil operação que era acender quele cruze de pernas já não se entende um cigarro justamente naquele ponto 52 um euro a mais na pequena bolsa. geográfico onde o vento cruza as pernas. em grupos clandestinos fazendo aquela E de pernas cruzadas permaneceu por última aposta demasiado alta, ela havia O vento seguia implacável e quan- um tempo, tendo também acendido seu tido o privilégio de chegar tranquilamen- do os cigarros ameaçavam apagar-se, o próprio cigarro e parado para olhar os fa- te, passando pelos controles de fronteiras isqueiro voltava a prolongar um pouco róis dos carros que passavam apressados, sem questionamentos, ainda que tam- mais o momento. Ela e o estranho con- cortando aquele final de tarde. bém vinda de um mundo terceiro onde templavam a estátua a que chamavam as coisas tampouco são assim, fáceis. Il Cavatore desde aquele banco. O gigan- Lado a lado, ela e aquele estranho, de camisa vermelha e negra com padrão Pensou nisso ao ver passar uma dupla te de bronze e sua ferramenta afiada se de xadrez e jeans surrados, permanece- de africanos falando uma bonita língua, destacavam agora, no crepúsculo, com ram em silêncio, respirando ora a fuma- melodiosa, mas que ela não entendia, a iluminação noturna que acabava de ça dos carros ou do cigarro, ora o vento marcada por uma cadência de francês. E ser acionada. A água jorrava por trás do que vinha de todos os lados. Pensou nos também quando foi interpelada por uma domo desde os mecanismos da fonte, caminhos e bifurcações de sua vida que senhora que – já havia notado após al- dando a impressão de que o gigante ha- a levaram a atravessar o oceano e chegar guns dias na cidade – chamava a todos de via recém aberto uma fenda na pedra e até aquele banco de praça, a sentar-se ao avvocato. fora congelado em seu movimento, como lado daquele estranho que lhe transmi- – Buona sera, avvocati – dizia a senhora uma fotografia tirada no instante exato. tia, apesar de tudo, uma familiaridade a qualquer pessoa que passasse por aque- Era esteticamente perfeito. Um homem e agradável, com sua filosofia improvisada la região, pedindo uma moeda. Porque ali sua força, com todos os músculos, ossos e e intempestiva sobre o grande problema perto estava o tribunal de justiça e os se- tendões em constante tensão e equilíbrio, do vento. nhores da lei circulavam com seus ternos, o rosto sereno transmitindo um rasgo de Da noite para o dia, encontrava-se em gravatas e carros pelos cafés da praça. Seu satisfação pela atividade. uma das mais austrais partes da Europa, italiano era carregado de muito sotaque rota de entrada de tantos imigrantes que e ela cobria a cabeça com um hijab cuja saíam do norte da África para tentar a cor já não se podia mais distinguir. Le- A senhora de novo, com seu hijab, seu vida no Velho Continente. Ao contrário vava um bebê no colo; podia ser sua mãe, bebê e sua bolsinha, lhe interromperam destes que morriam, tantas vezes, nas avó ou tia. Os olhos pedintes e grandes, a contemplação do monumento. Equili- perigosas travessias de barco, escondidos emoldurados por uma espessa sobran- brando o cigarro nos lábios, ela apalpou dos olhos do mundo como se fazia nos celha negra, não diziam muito acerca de a bolsa e constatou que não havia nada antigos navios negreiros, que entravam sua idade, apenas sobre a expectativa de naquele momento, afinal era também – Per favore, avvocati, una moneta per il bambino. 53 imigrante e o câmbio não a favorecia. Quando pensava sobre isso, lhe parecia ridiculamente absurdo o preço de cada coisa. Melhor era não pensar. Já o estranho ao seu lado tirou, mecanicamente, uma moeda do bolso e regalou à mulher, que saiu satisfeita, agradecendo inúmeras vezes, caminhando rumo à Cidade Velha. Os cigarros finalmente se haviam consumido, o vento ainda (sempre) sem cessar. O rapaz agradeceu pela companhia com um aceno de cabeça e ela também se levantou, ajeitando a confusão de cabelos e pontas voadoras de echarpe. Despediram-se com um sinal desimportante e andaram para direções opostas. Ele de costas e ela, com o rosto voltado para o vento. 54 As xicarazinhas na pia As pequenas xícaras sujas de café na pia, com um pires e que só sei dizer olhando dentro da chaleira de inox que ela ga- uma colher (a menor de todas), são um sinal claro da passagem nhou no casamento. (As peças “ganhadas no casamento” são de minha mãe pela cozinha. Ela toma mais café do que o reco- muito reconhecidas em casa por sua durabilidade e qualida- mendado e os pequenos conjuntos de louça e talher manchados de superiores a todos os demais objetos). Às vezes, minha mãe de marrom, que se acumulam na cuba, denunciam seu vício toma café também à noite, o que me deixa estupefata, não se ao final de cada dia. A garrafa térmica sempre foi um tema de importando nem um pouco com os meus protestos (“assim não preocupação e atenção constantes em casa. Se se rompia, corrí- vai conseguir dormir!”), porque, de todas as formas, ela se orgu- amos a procurar uma substituta com a mesma qualidade, para lha de ser um ser noturno, que pensa e produz muito melhor à que a bebida favorita de mamãe não esfriasse rapidamente. noite do que pelas manhãs. Lembro-me de um modelo dos anos 80, azul de bolinhas Quando eu era criança, fazia tudo para vê-la sorrir e me co- brancas, e de uma marca chamada Alladin como uma grande brir de elogios. Queria que ela me contasse de novo como apren- referência na produção de garrafas térmicas. Hoje penso que di a ler sozinha, que dissesse às suas amigas do meu prêmio de elas são umas lâmpadas mágicas de energia e concentração melhor redação do colégio. Perguntava-lhe o que ela achava de para minha mãe. Todas têm, porém, o defeito de vazar ao servir, tal coisa genial que eu havia feito ou comentasse uma ideia ori- deixando manchas nas toalhas de mesa e sujando tudo ao re- ginal que eu havia tido. Sentia, portanto, uma grande satisfação dor. Em alguma época, minha mãe se orgulhava de dizer que só em preparar-lhe o café, em servir-lhe as duas micro-colheres ela sabia servir o café sem derramar. de açúcar, misturar, levar-lhe em uma bandeja, só para escutar Já as xicarazinhas jamais faltam, abundantes em conjuntos que havia feito bem. A garrafa térmica invariavelmente vazava, e modelos. Se uma se rompe, surgem outras trinta automatica- mas eu me dedicava a limpar minuciosamente qualquer res- mente, sem nenhum estresse. Ela às vezes recicla a mesma xí- pingo a fim de entregar-lhe um pires imaculado por baixo da cara usada ao longo da jornada, lavando-a brevemente sob água diminuta xícara. E levava tudo aquilo me equilibrando, concen- corrente, mas sempre deixando pelo menos uma ou duas sujas trada, escutando o tilintar da colher. Posso ouvi-lo, ainda, o ti- ao final do dia. Há muitos anos, só se considera desperta depois lintar da colherzinha apoiada no pires. Quando aprendi a fazer da primeira xícara do café açucarado, feito com água fervente café como ela gosta, nem forte nem fraco, perto da pré-adoles- passando pelo coador de papel, à moda brasileira. “Não muito cência, orgulhava-me de meu talento. forte, não muito fraco”, diz. São duas colheres cheias de pó para uma medida de água, – Como saiu este café? Forte ou fraco? – lhe perguntava, já antevendo o elogio. 55 – Muito bom – respondia, sempre, em quaisquer circunstâncias. –Obrigada, querida. Já pode casar! à temperatura exterior, e a minha total objetividade para lidar com o tema – não penso mais que um segundo para decidir se “Já pode casar” é sua forma de elogiar o meu desempenho na devo levar uma sombrinha ao sair. Minha inquietude quanto cozinha. Até hoje, mesmo eu estando casada, ela diz, ao provar a passar longos períodos dentro de casa, levando-me a saídas uma receita feita por mim que seja aprovada por seu exigente intempestivas fora de hora, e seu temor e comodismo, que mui- paladar: Já pode casar. tas vezes a impelem para debaixo das cobertas dias a fio. Seu – Já casei, mãe – provoco, só para ver sua reação. gosto por planejamentos com antecedência e meu hábito de al- – Eu sei, boba, é modo de falar. terar planos no último minuto. Meu apreço por comprimidos e Não sei dizer em qual momento de minha vida, ao lavar a pomadas e seu pânico de alergias, levando-lhe sempre a se au- louça, as xicarazinhas nos pires sujos passaram a me provocar tomedicar com as gotinhas homeopáticas que toma desde me- um incômodo tremendo. Porque são muito pequenas e delica- nina para o que quer que seja. Sua nostalgia pelas histórias do das, e lavá-las exige maior destreza e cuidado. Porque o restinho passado, seu orgulho escancarado de mim, sua percepção agu- de café escurece todo o resto da pia momentaneamente. Porque çada, e meus olhos que se reviram a cada narração que se repe- as xícaras acumuladas, junto com os cinzeiros abarrotados, são te, a cada elogio público ao meu grande talento e inteligência, a prova material da sua ansiedade e falta de autocontrole. Por- dos quais agora eu duvido muito, e o meu medo de que ela seja que em dias de maior movimento, as xícaras podem chegar a até capaz de estar lendo meus pensamentos neste exato momento. quatro ou cinco, atrasando toda a limpeza do resto da louça com Ela se aterroriza e me critica, eu me impaciento e a critico ainda toda a destreza e cuidado que exigem, por serem tão pequenas. mais. Cinco xicarazinhas, cinco pires, cinco colheres. Às vezes, vem – Por que você não toma logo esta pastilha para abaixar a fe- alguma amiga maquiada e então ainda tem a xícara com marca bre? – falo, do corredor, já com o copo d´água e o remédio em de batom, o que sempre me provocou um pouco de asco. Minha mãos. mãe quase não usa batom. Melhor. Uma irritação parecida com esta da pequena xícara suja pas- – Não estou acostumada, posso ter um treco. Você me conhece, eu sou alérgica a tudo! – cisma. sou a pautar muitos tópicos de nossa relação à medida que es- Ou então, se a convenço a experimentar algo novo: tilos e comportamentos antagônicos foram surgindo entre nós: – Este restaurante português foi muito bem recomendado. E seu desenfreio em comer o que lhe vem à cabeça, com uma es- tem bom preço! Vejamos... pecial estima por açúcar, farinha de trigo e confeitarias, inver- – Nada disso me apetece. Tenho certeza de que esta ambrosia samente proporcional à minha mania de alimentação saudá- aqui não chega aos pés da receita da vovó– comenta, mesmo com vel. Sua preocupação com tudo que é relativo ao clima, à chuva, a intenção de pedir a ambrosia só para provar, com os óculos na 56 ponta do nariz e as papilas gustativas desafiantes, estalando a lín- Nós nos contamos coisas da vida, falamos da vida dos outros, gua no céu da boca. Tudo isso para concluir que, realmente, a am- nos emprestamos roupas e acessórios, fazemos confidências. Eu brosia era uma porcaria e o lugar não era, assim, grandes coisas. resolvo qualquer coisa que não funciona em seu telefone celu- Se decido viajar, naqueles meus momentos de impulsividade que a fazem levar as mãos à cabeça e a andar de um lado para o outro falando alto, questiona tudo. lar e ela me orienta com relação a alguma burocracia que preciso resolver. Ela pode ser muito divertida, dona de um senso de humor – Você vai se hospedar na casa de uma pessoa que nem co- afiado. Gosta de inventar apelidos para as pessoas que não apro- nhece, em Berlim? Está muito frio, deixe para ir quando chegar va ou dispara respostas rápidas e irônicas a perguntas idiotas, o verão! Você não aguenta o frio! Pelo amor de Deus! – implora, no que eu solto sempre uma gargalhada, surpresa com sua des- com a voz carregada de drama e sofrimento, caminhando da compostura. Gosto particularmente de ouvir seus escrachos a cozinha para o quarto, com um pires e a xícara na mão. políticos que aparecem no horário eleitoral da televisão ou a – Mãe, em Berlim existe calefação. E aquele meu amigo me recomendou esta pessoa, fique tranquila. pessoas com quem andou se irritando. – O médico demorou duas horas para me atender. Este anão de – Seu amigo, quem é este seu amigo, aquele que nunca teve jardim está pensando que é quem? Meio metro de altura e acha juízo, que bebia na escola! Eu me lembro bem deste amigo! – que é o rei da Áustria-Hungria, deixando o paciente esperando. resmunga, para logo tentar me dissuadir de fazer tal viagem até Ou então: o esgotar de suas forças. – Olha este candidato. É fanho. Não consegue nem falar. Nin- No fim, ela faz o que quer e eu faço o que quero, não antes de guém vai votar nele. Á em asa odo undo é anho – diz tapando o uma discussão tensa, permeada por insistências e desistências. nariz, reproduzindo o efeito do possível problema buco-nasal Como duas linhas paralelas que nunca se encontram, mas que do indivíduo. seguem ali, uma ao lado da outra, fomos traçando nosso cami- E toma café na mini xícara, e acende outro cigarro. Mesmo nho, depois daquela fase em que eu lhe levava cafezinhos pela quando falamos ao telefone, a milhares de quilômetros de dis- manhã pedindo-lhe elogios. tância, escuto a respiração que prende e solta a fumaça e a co- Mas uma relação tão visceral não se afrouxa nem com a distância, nem com o mau humor, nem com a crítica vigilante de lher que bate no pratinho depois de mexer a bebida. Torno a lhe perguntar: ambas. Às vezes nos divertimos muito, quando decido pegar – Mãe, quando é que você vai parar de fumar, hein? para mim também um café e sentar em sua varanda, roendo – Não sei, não sei. Um dia... Um dia! Um dia! – e começa a can- um biscoito. Ela fuma como sempre, eu acendo um cigarro es- tar uma canção inventada naquele momento que comece com a condida de mim mesma para apagar depois de três tragadas. expressão “um dia”. 57 Talvez as relações entre mãe e filha sejam sempre este poço de sentimentos contraditórios, esta fonte de dor e alegria, este cordão umbilical que custa a romper, se é que se rompe. Uma que se projeta na outra, dois egos femininos em constante embate, a tragédia da emancipação da filha, os ciúmes, a dependência emocional, o amor e o prazer: tudo que os psicanalistas adoram abordar desde Freud. Isso me recorda, aliás, de um dos poucos comentários que ela fez sobre quando decidi me submeter à psicanálise – decisão à qual, naturalmente, ela é contrária. – Você paga uma fortuna para passar uma hora por semana falando mal de mim para um estranho? Deixa de ser trouxa! Hoje, a distâncias geográficas abissais, nos encontramos muito pouco. Com encontros cada vez mais raros, às vezes anuais ou menos, ela vem me visitar ou eu viajo até sua casa e, nestas ocasiões, toda a tensão freudiana vem à tona em pequenas explosões de indignação, teimosia e crítica, alternadas pelas Glória Paiva, 33 anos, é gargalhadas das mesmas anedotas de que só nós achamos graça. uma Em sua última visita, deixei-a no aeroporto e voltei para casa, onde me pus a ordenar pratos e copos. Pousei os olhos no fundo jornalista para- naense criada em Belo Horizonte por pais cariocas. Agora, vive entre a da pia e a xicarazinha estava lá, com o pires e a colher. Umas Itália e a Espanha, onde manchas de café frio no pratinho, o açucareiro sobre a mesa, cursa um mestrado em alguns grãozinhos brancos espalhados. Jornalismo Literário na – Ela precisa parar de tomar tanto açúcar – comentei em voz alta, mas meu marido não ouviu. Universitat Autònoma de Barcelona. Após mais de dez anos dedicados Senti chegando o familiar sentimento de irritação com o ao jornalismo mineiro, conjuntinho que teria que lavar. Mas acabou que enchi os olhos começa agora a envere- d´água. Ela esteve aqui, tomou café, me disse que já posso casar dar pela literatura, uma e foi embora. de suas grandes paixões. Trabalha como jornalista e tradutora. 58 Alfredo Fressia Parênteses Quando nasci o sexo foi um destino. Não se pode escolher ser poeta. Mulheres eu nunca amei nenhuma sem dúvida porque as amei em bloco. Foi um amor longo e sem alegria. Elas também me amaram sem desejo e sem gozo. Olhei para elas com a nostalgia de uma vida mais bela. Quando quis ser melhor quis ser mulher. Depois me esqueci. Devorei a costela de Adão na travessia do deserto. Fui homem, poeta, amei outros homens. Tive fome. Cheguei na praia deste mar eterno, no sul do Brasil. Meu cheiro é de sal virgem e de iodo azul. Sei que uma mulher devolverá ao mar o peixe com uma moeda na boca. Ela escreve meu poema. Eu aguardo. 60 Alfredo e eu Dorme sob o firmamento a flora paciente do inverno. Eu também durmo em meu quarto de pobre. Do lado cego do travesseiro, um outro Alfredo tirita, é uma asa ou uma sombra que eu prendi com alfinetes entre as folhas de ervário, um insone aprisionado nas nervuras, meu fantasma transparente. O que farei contigo, Alfredo? Lá fora passará um dromedário pelo olho de uma agulha, um milagre, a longa ladainha de teus santos para escapar do labirinto, tocar o infinito ferido pela flecha na constelação do Sagitário e sempre a tartaruga em teu poema ganhava a corrida. Sobrevivo a cada noite como um potro celeste nutrido com alfafa e com estrelas enquanto, tu, Alfredo, tens o odor das ervas secas na gaveta abarrotada de segredos. Eu te esqueço ao despertar, continuo minha busca obstinada no palheiro do mundo e te reencontro no travesseiro espetado no outro lado de meu sonho. 61 O medo, pai Pai, eu me espanto de estar preso em meu corpo, o condenado umbral, perfeito, este retorno, pai, eternamente em viagem e morto, pelas quatro estações e a sorte jogada dos homens, os filhos obedientes da espécie, pai, os mortos vindouros. Quem é este hóspede em meu corpo? Estes anos, de quem são prisioneiros nas veias? O que eu faço, pai, com meu espanto em cima, e meus dias nos dias implacáveis dos homens? 62 A última ceia Um dia destes escapavam corvos dos meus bolsos e um ovo na alma como um mal-entendido, como a alma, obstruía meu esôfago. Matador dos corvos, antes ovo, e alma, eles me anulavam como um morto. Escrevo a sombra da alma no esôfago. Sou traidor, como uma viagem fabulosa ao redor do corvo, do ovo ou da morte. Sou um mal-entendido que ameaça e em perigo, um espantalho, inútil como um ovo, depois corvo ou a poesia. 63 (Final) Encerro todo ciclo, em mim me acabo. Tirésias contempla o travesti em silêncio, por séculos se responde um eco humano e em mim me acabo. Alfredo Fressia (Montevidéu, 2 de agosto de 1948) é um poeta, ensaísta, tradutor e professor uruguaio .Formado como professor de Literatura e Língua Francesa, Alfredo Fressia dá aulas em Montevidéu até 1976, ano em que a ditadura uruguaia o destitui. A partir de então instala-se em São Paulo, Brasil, onde continua dedicado à poesia e ao ensino. Desde o fim da ditadura, em 1985, Fressia volta sistematicamente a Montevidéu, onde reside ao menos dois meses por ano. Exerceu o jornalismo cultural em varias mídias do Uruguai, Brasil e México. Foi editor da revista mexicana de poesia La Otra, na edição impressa, desde 2008 até 2013. Sua obra poética, várias vezes premiada, foi traduzida do espanhol para o português, francês, inglês, italiano, grego e turco. No Brasil encontram-se ainda as edições de Lumme Editor dos livros: Canto desalojado, Destino: Rua Aurora e El futuro. 64 Giuseppe Ungaretti por Francesca Cricelli L’Illuminata rugiada La terra tremola di piacere sotto un sole Orvalho iluminado A terra treme de prazer di violenze sob um sol gentili de violências gentis 66 Apocalipses Apocalissi I I Pela fenda de uma janela, luz Da una finestra trapelando, luce A copa da árvore exibe Il fastigio dell’albero segnala Livre de folhas. Privo di foglie. II Se unico subitaneo l’urlo squarcia II Se único e repentino o grito rasga L’alba, riapparso il nostro specchio solito, A alvorada, reaparecido nosso espelho usual, Sarà perché del vivere trascorse Será por que do viver passou Un’altra notte all’uomo Outra noite pelo homem Che d’ignorarlo supplica Que por ignorá-lo suplica Mentre l’addenta di saperlo l’ansia? III Di continuo ti muovono pensieri Palpito, cui, struggendoli, dai moto. IV La verità per crescita di buio Più a volare vicino s’alza l’uomo, Si va facendo la frattura fonda. Enquanto morde-lhe a ansiedade de ser visto? III Movem-te, sempre, pensamentos, Palpitação, aos quais, por atrito, dás movimento. IV A verdade, pelo acrescer do escuro Mais próximo se eleva o o vôo do homem, Mais funda faz-se a fratura. 67 Mandolinata Mi levigo come un marmo di passione Para bandolim Puir a mim mesmo marmóreo de paixão 68 Godimento Mi sento la febbre di questa piena luce Gozo Sinto a febre desta luz plena Accolgo questa Acolho este giornata come dia como il frutto che si addolcisce fruta que se adoça Avrò Terei stanotte un rimorso come un esta noite latrato um remorso como um perso nel latido deserto perdido no deserto 69 Pensavo oggi, guardando questo cielo piovigginoso, che se, per un’improbabile grazia, si fosse d’improvviso alzato l’azzurro, non sarei stato colto né da stupore, né da speranza. Anche la nostalgia ha finito di persuadermi. Ho varcato Pensava hoje, olhando para este céu chuvoso, que se, por uma graça improvável, se levantasse improvisamente o azul, não seria tomado nem pelo estupor, nem pela esperança. Até a saudade já não me persuade mais. Atravessei todos os tutti gli stadi dove l’uomo può ancora trovarsi una estados nos quais o homem ainda pode encontrar uma razão ragione di vivere. para viver. Gli alti cieli delle notti chiare, se mai ancora dovessero scoprirsi per me, avrebbero un significato di commiato. Non sai – e chi saprà? – quest’infelicità di sentirsi abbandonato. Abbandonato anche dalle cose; anche dalla terra, anche dal mistero delle stagioni. Non aver prossimo; si potrebbe popolare il mondo di confidenti immaginari; ma non essere cresciuto in nessuna terra; ma non portare in Os altos céus das noites claras, se um dia tivessem que abrir-se para mim, significariam despedida. Não conheces – e quem conhecerá? – esta infelicidade de sentir-se abandonado. Abandonado até pelas coisas; até pela terra, até pelo mistério das estações. Não ter próximo; poderia popular o mundo com confidentes imaginários; mas não ter crescido em terra alguma; mas não le- nessun luogo l’aria famigliare dell’origine; ma va- var em lugar algum o ar familiar da origem; porém vagar sem- gare sempre in esilio. pre em exílio. Mi sono creato un paese di cristallo, perché fatalmente dovessi accorgermi, da qualsiasi punto, che non era naturale. E non si può vivere a lungo di quest’allucinazioni ideali. Criei para mim um país de cristal, para que tivesse que fatalmente dar-me conta, estando em qualquer lugar, que não era natural. E não é possível viver longamente destas alucinações ideais. La vita è una dura disputa mossa da guai con- A vida é uma dura disputa movida por enrascadas concretas, creti, e ci vuole un terreno nel quale attecchire, e ci e é necessário um terreno sobre o qual enraizar-se, e é preciso o vuole il caldo che maturi e dori, e ci vuole la sera che inondi di malinconia e la mattina che rinfreschi e rassereni. Non ho che strade, strade, e strade; il grigio perfido di questo cammino senza conclusione. calor que amadureça e doure, e é precisa a noite que inunde de melancolia e a manhã que refresque e acalme. Não possuo nada mais que estradas, estradas, e estradas; o cinza pérfido deste caminhar sem conclusão. 70 Tradutora, Francesca Cricelli é doutoranda em Giuseppe Ungaretti, o poeta das quatro pátrias Estudos da Tradução (USP). Em 2015, publicou (Egito, Itália , França e Brasil) nasce no Egito, em o livro Repátria, pela editora Demônio Negro. Alexandria, no dia 8 de fevereiro de 1888, numa Organizou e traduziu a correspondência entre família toscana. Sua formação desde menino Giuseppe Ungaretti e Edoardo Bizzarri 66-68 é, porém, francesa. Em 1912 muda-se para Paris, (tradutor de Guimarães Rosa para o italiano). gradua-se na Sorbonne e entra em contato com É curadora das cartas de amor de Giuseppe as vanguardas do princípio do século XX. Luta Ungaretti para Bruna Bianco (Mondadori, durante a Primeira Guerra Mundial, combaten- 2016). Traduziu Mario Luzi, Pier Paolo Pasolini, do na Itália e na França. Vive em São Paulo de Giuseppe Leopardi, 1937 a 1942 lecionando literatura italiana na USP. Jacopone da Todi. É tradutora dos psicanalistas Perde, então, seu filho Antonietto, marca inde- italianos Vincenzo Bonaminio (Imago, 2010) e lével em sua biografia e poesia. A publicação Franco Borgono. Traduziu este Apocalipses para dos seus primeiros livros – Il Porto Sepolto (1916) as plaquetes do Hussardos Clube Literário, do e Allegria di Naufragi (1919) –, representa um dos qual é sócia fundadora, junto com Vanderley momentos mais significativos da formação da Mendonça. poesia contemporânea italiana. Ungaretti é um Ungaretti, Giacomo dos fundadores do hermetismo. Os poemas publicados aqui fazem parte das plaquettes do Hussardos Clube Literário, que tem autorização para reprodução das traduções. 71 ensaio fotográfico de Juliana Rocha Beira é um estudo fotográfico sobre a relação de desejo e – ao mesmo tempo – repulsa entre o corpo e o mundo; a ânsia de pertencimento que termina por nos demarcar ainda mais as fronteiras. A proposta é que a partir da subversão da forma, a desordem da nossa existência, o alheamento do ser ao que o rodeia e todos os limites que nos definem como indivíduos se dissolvam numa sensação que extrapole a experiência singular. As fotos foram produzidas em negativos preto e branco e a maior parte do material foi revelada em um laboratório caseiro. Arranhões e manchas funcionam como analogia aos processos físico-químicos catárticos que permeiam, incontroláveis, a nossa afirmação de realidade. Então, eu sou cearense. Vim pro rio com 18 anos pra faculdade de jornalismo – UFRJ – mas no meio da faculdade comecei a trabalhar com fotografia. Em 2010 entrei no RIOetc e sou editora de imagens lá até hoje. Mas o que realmente me despertou pra meu trabalho autoral foi o projeto que fiz durante um ano, com o celular, fotografando a praia de Copacabana no amanhecer. Tudo começou no Instagram e virou um livro, chamado Copacabana Sentimental. Em 2015 eu comecei a trabalhar com fotografia analógica e isso virou uma paixão. Tô sempre com minha FM2 na bolsa, com um filme preto e branco. Lista de autores já publicados Alan Kramer, Ana Guadalupe, Ana Kehl de Moraes, Ana Martins Marques, Ana Rüsche, André Oviedo, Andréa Del Fuego, Aníbal Cristobo, Barbara Mastrobuono, Bruna Beber, Bruno Palma e Silva, Carina Sedevich, Carla Kinzo, Cecilia Pavón, Charles Cros, Daniel Francoy, Daniella de Paula, Déa Paulino, Deborah Prates, Dimitri br, Edu Suppion, Ellen Maria Vasconcelos, Érica Zíngano, Fabiano Calixto, Fabíola Weykamp, Fabricio Corsaletti, Felipe Nepomuceno, Francesca Cricelli, Gabriela Ventura, Gertrude Stein, Giuseppe Ungaretti, Grazi Shimizu, Guilherme Damasceno, Ismar Tirelli Neto, J.F. de Souza, Jimena Arnolfi, Juliana Amato, Juliana Krapp, Kenneth Koch, Luana Vignon, Jeanne Callegari, Julia de Souza, Julianna Motter, Laura Liuzzi, Leandro Jardim, Leo Ventura, Leonardo Gandolfi, Lielson Zeni, Lilian Aquino, Lubi Prates, Luca Argel, Lucas Perito, Luci Collin, Ludmila Rodrigues, Lyn Hejinian, Marcos Vinícius de Almeida, Maíra Ferreira, Maíra Matthes, Marcos Casadore, Mariana Botelho, Marília Garcia, Marcia Pfleger, Matheus Hatschbach, Mirella Carnicelli, Miriam Adelman, Múcio Góes, Nathalie Lourenço, Noemi Jaffe, Odile Kennel, Pierre Masato, Rafael Mendes, Raimundo Neto, Ricardo Domeneck, Rodrigo Garcia Lopes, Rosa van Hensberger, Rubens Akira Kuana, Sergio Mello, Stephanie Borges, Tao Lin, Thiago Ponce de Moraes, Thiago Tizzot, Vanessa Rodrigues, Victor Heringer, Virna Teixeira, William Zeytounlian. Fotógrafos Adelaide Ivánova, Ana Kehl de Moraes, André Lasak, Alexandre Santos, Carol de Andrade, Camila Lordelo, Daniela Feder, Edu Suppion, Julio Perestrelo, Marcel Fernandes, Mariana Caldas, Raphael Bernadelli, Rodrigo Sommer, Thany Sanches, Vanessa Carvalho. Edição Bruno Palma e Silva Lubi Prates Fotos Pedro Ferrarezzi instagram.com/pdrfrrrzz Projeto gráfico Bruno Palma e Silva palmaesilva.com.br A Parênteses tem distribuição livre e gratuita, sinta-se à vontade para compartilhar. Não encorajamos, porém, nenhum tipo de adaptação e/ou de uso comercial dos materiais. Nesses casos, os autores devem ser consultados. Todos os textos e imagens aqui reunidos são, e sempre serão, de propriedade de seus autores, cuja gentileza agradecemos. Novas contribuições são sempre bem-vindas, fale conosco! revistaparenteses.com.br facebook.com/revistaparenteses [email protected]