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#10 | fevereiro 2016
distribuição on-line gratuita
Editorial 3
Lista de autores publicados 85
Créditos e contato 86
Carol
Rodrigues
5
Tiago
Feijó
Júlia de
Carvalho
Hansen
Alvaro
Posselt
Lisa
Alves
Joana
Hime
11
17
21
34
43
Glória
Paiva
Alfredo
Fressia
Giuseppe
Ungaretti
em tradução de
50
60
Francesca
Cricelli
66
ensaio
fotográfico de
Juliana
Rocha
72
a imagem de capa e as
fotos ao longo da edição
são de Pedro Ferrarezzi
É
fim de Carnaval, o verão vai alto e, quando a gente se dá conta, já se foram 50 dias de 2016. O tempo vai
correndo (como nas fotos que mostram gente que
passa) e a Parênteses comemora hoje a décima edição.
Dez é um número legal, não é mesmo?
Nesta edição, novos amigos chegaram para visitar
nossas páginas. E são visitas generosas, todo mundo
trouxe presentes. Alguns trouxeram amores, outros
vieram falar de desamores. Alguns falam de alegrias,
e outros, de tristezas. Falam da vida. E todos falam
bonito.
Pode ser o dia lindo lá fora (os editores moram em
Curitiba e o Sol é visita rara), pode ser só uma impressão nossa, mas lançamos esta edição com espírito de
céu azul, finalzinho de férias, chuva de verão para refrescar, Bossa Nova na vitrola.
(Sim, é um editorial sem muita pretensão, só para
deixar tudo mais simpático.)
A porta está aberta, estejam em casa.
os editores
Carol
Rodrigues
Entre maio e junho
Dia vinte e seis é segunda eu odeio segunda.
Dia vinte e sete a Beatriz apresenta o balé.
Dia vinte e oito tem jogo do barça dois a zero.
Dia vinte e nove é meu aniversário.
Dia trinta eu dirijo lenta pela SP174. Atenta ao néon vermelho queimado pela metade. Aperto os olhos e leio COYOTE. Estaciono entre os caminhões. Estalo a tira fina
da calcinha asa delta e entro. Homem é trinta mulher é doze. A senhora da frente
pergunta à senhora da porta aceita cheque. Não nem cartão só dinheiro quem ainda
usa cheque. Pago a minha entrada pago a dela, coitada, e pra terceira pega o troco pra
você. Nisso um pulso quente pousa entre o debaixo da bunda e o fim da minha saia
plissada. O pulso quente é de homem grande posso te pagar uma dose. Não diz qual
bebida só assim uma dose. Diz que entrega tevê de plasma setenta e duas polegadas
que o caminhão está cheio, logo ali, que se eu quiser, me mostra. Eu digo que depois
querido depois.
No balcão tem cerveja quente na metade das canecas e outros dois homens grandes.
A camisa levantada na altura do umbigo inchado nos dois. São dois homens três carreiras armadas. Eu assinto, tiro uma nota de vinte debaixo da alça, o sutiã meia taça,
cor de ameixa, conjunto, a calcinha asa delta. Enrolo a nota um canudinho. Um dedo
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bloqueia uma narina, a outra fica branca.
Frito todos os ovos da caixa são sete. Uma
Passo a pontinha da nota na língua que
faísca sai do estalo é muito ovo um aperto
mal sai da boca. Devolvo assim, canudo
na espinha dorsal. O pé no chão levanta o
ao sutiã, meia taça, cor de ameixa, a mão
calcanhar. Apago o fogo. Saindo da pisci-
pra cintura o cabelo pra trás um respiro.
na seca do mundo eu sento na pia gelada
Saindo da piscina seca do mundo eu sen-
a cozinha quieta. Prato no colo sem guar-
to no molhado quente do balcão. Meio
danapo. Lambo cada dedo engordurado
tonta o cabelão solto. As mãos de graxa
de pão de ovo margarina. Lambuzo toda
de salgado frito de homem transpirado
a cara de menina. Que já não é. A menina
levantam o pouco pano da saia plissada.
que ainda é abre a porta coçando o sono
Dedos gordos oleosos as cutículas duras
pequeno do olho um cachinho dourado.
ocupam tudo ali o que encontram. Só
Que isso mãe o olho abre. Costas da mão
saem pra pedir mais cerveja ao rapaz que
limpando boca outra mão atira prato en-
olha tudo. Daí só lembro, virei pro lado,
gordurando pia de pão de ovo margarina.
ele sorria, esse rapaz, sorri também, tá
É graxa faz mal é ruim jogando fora, bato
tudo bem, e pedi uma cerveja pra mim.
uma palma melada. Sorrio. Danoninho?
Dia trinta e um muita espuma de sabão adstringente. Toalha na cabeça a ca-
Dia primeiro é domingo o almoço no
clube o cachorro no parque.
misa do barça só ela no corpo descalço
na cozinha. Derreto então a margarina.
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Lista de compras pra festa do Miguel
Colher de plástico
Garfinho
Chapeuzinho
Canudo
Guardanapo do pateta ou imprime sua cara em folhas sulfite e dobra em quatro
partes
Apitos
Bexiga
Bexigão pra estourar com bala dentro ou fura a sua bola inchada pra povoar o
Canadá
Bolo floresta negra
Pastelzinho de carne e de queijo
Esfihinha de carne e de queijo
Croquetinho de carne e de queijo ou trinta clones do teu pau pequeno
Refrigerante – guaraná, fanta uva fanta laranja e traz um zero pra mim qualquer um
Suco de caixa
Quindim
Fantasia do surfista prateado.
A Vela. Número oito. 8. Prateada.
E essa Manoela. Vi no seu face ela faz escova, silicone, usa batom com o contorno pra
fora da boca, parece maior do que é hein Fábio. Usa lente ela né. Esmeralda. Eu
acho cafona mas você que sabe né você que come.
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Sorvete de flocos. Duas caixas da kibon.
Sabe que é um pouco pesado né, pro Miguel, ter o pai assim atrás de mulher de
silicone né, chapinha aplique. É você que paga?
Chantilly. Pra festa tá, pra sua sacanagem você compra depois e compra diet tá, ouvi
dizer que o comum dá bactéria, fora a formiga.
Leite condensado
Creme de leite
Nescau
Manteiga.
Beijinho de lata.
Bala de coco
Papel crepom.
Toalha.
Deixa tudo nas sacolas com meu nome tá, na portaria. Camila Simões.
Uma caixa de fósforo daquele longo de segurança.
Na verdade se quiser subir, embrulhar bala de coco.
Salsicha
Molho de tomate.
Ajax, compra ajax.
O Miguel pediu um pirulito, aquele grande, do chaves, sabe qual? Traz também.
E de presente ele pediu um aquário mas sei lá, achei triste um peixe sozinho. Se for
comprar compra dois peixes. Só me avisa antes pra eu fazer espaço na sala.
Comida pro peixe
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Tô deixando a lista aqui com a sua mãe é que ela não quis dizer o seu endereço novo.
Só achei que sei lá, faz quatro anos e o Miguel pergunta. Eu mostro foto sua pra
ele mas tá antiga aquela nossa. Se puder comprar as coisas me avisa o celular é o
mesmo. Ou manda um e-mail camila.simõ[email protected]
Se não puder manda pelo menos uma foto nova. Sua sozinho.
Traz também figurinha da copa, o Miguel gosta.
Forminha pros doces
Milho pra pipoca
Pratinho de papel. Do dunga, se der
Carol Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro e vive
em São Paulo. Seu primeiro livro, Sem Vista
para o Mar (Edith, 2014), é vencedor do prêmios
Jabuti e da Fundação Biblioteca Nacional na categoria Contos, em 2015. Seu segundo livro, Os
Maus Modos, foi realizado com apoio do Proac
e será lançado em 2016. É formada em Imagem
e Som pela UFSCar e fez mestrado em Estudos
Internacionais de Performance na Universidade
de Amsterdam. É também produtora no Núcleo
de Audiovisual e Literatura do Itaú Cultural.
9
Júlia de
Carvalho
Hansen
IX
Passo a manhã calculando a provável altura de um tsunami
que viesse por debaixo do morro, me encontrasse sentada
nesta porta de varanda sobre o Tejo.
Não sei, mas já me aconteceu outra vez.
A onda atravessará os homens pela minha face
fazendo das raízes turbilhão. Os versos também
se fazem assim, procurando
o caminho por onde não podem passar.
Você também tem um canyon escondido? Sabe como é
uma terra que se abre em duas e entre elas voam uns pássaros
e nascem coisas
meu rio de sóis,
eu cego o pássaro do rio pra que ele não veja por onde nos leva.
Todo rio tem um pássaro que vive em si e eu o cego sempre.
Eu cego o pássaro de riso pelos teus olhos que se fecham.
Monto no rio, meu pássaro selado e cego, sem remetente.
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VII
Sou apenas um cavalo
o mundo não vale o mundo, meu bem
Estou sempre à espera de ver.
no entanto, é ele quem me leva.
Vou na frutaria de olhos muito abertos
vez em quando meus ombros se fecham
O cavalo (que vive por mim) abre mão
quando muito chama a ver. Temem o fogo
de ter cascos, patas, coices,
que se alastra entre estalos nas estruturas.
mas de correr no sol, não.
Preciso dissolver um pouco dos vigiantes olhos
E quando alguém sonha e confunde
para encontrar todos os olhares que tenho por onde.
o amor comigo, comigo o amor
É assim que vejo também a confusão.
infundido, infindável, é o cavalo.
A confusão tem algumas coisas para me ensinar.
Essa pouca relação é a nossa.
Meu esteio é claro quando estou pisando
meu chão diamantado de dentes
de cada animal que comi para me tornar
humana. E assim poder dizer.
Mas eu sei
sou tão pontual
nasci para esperar
os deuses não.
Dia desses
ganharei outra velocidade.
Serei planta.
E hei de continuar
iluminada
pela água.
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o espelho imantado
Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
– Álvaro de Campos
Te pus dormindo sobre o rio
Que sentido faria um amor tão longe
trajando o negro de sempre
de me visitar agora? Nessa hora?
tua imagem boia comigo
Que é?
e o rio era largo vermelho e dourado
Pombos-correios Embratel e-mails
quanta dissipação!, meu deus,
na lateral da cama em que durmo
milhares de partículas no ar denso desse verão
o fim da tarde iluminando
dores de cabeça caroços que incham corcundas húngaras
pelo colarinho sua camisa me forçava
contadas na televisão
a ser o vestido que eu usava rente à janela
vem a mim me dar
pensando que irias nele me querer e bem
loucura? Miragem, teus olhos
por trás de mim falam
aqui, perdi a metáfora,
por dentro daqui me olham
como em outros tempos perdiam estolas
neste incômodo na Hungria
perdi a matéria
de todos os espelhos deste infinito apartamento de Budapeste
neste espelho
quantas amostras emolduradas desde 1808
minha carne
miraram sem se ver?
se perdeu
Não sabem a voz que ouço da imagem de vidro.
Talvez pela primeira vez
posso discutir com meia dúzia de amigas
este espelho fale português
o vácuo a estratégia da beleza
essa língua cheia de dúvida
posso até fotografar-nos posando disso
em conjugar
mas não sei se é você que me visita
amar ou amando
ou é essa luz e meia que me enfeitiça?
de quem?
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Vítima e conquistadora
sempre a primeira e a última
no pódio de chegada
a melhor definição de amor
não vale um beijo de namorado
e essa tela fria e tão sem cheiro
tão sem beijo tão sem seu jeito
parece uma fila de amputadas mulheres pelo tempo
no recorte do meu corpo
apartada
atravessa a tua imagem o leito dos meus olhos aos litros
e muito os pisco nublados
e tento meditar como te suicido
se o momento de morte em mim do amor
trará pra sempre a morte do amor ou de mim,
é perigoso
é uma maravilhosa sonolência que te traz em imagem
enigmática
mas como um galho, pela margem, a correnteza estanca
para de rodar o Danúbio
nunca vai limpar o Pinheiros
e o dedo que me ajeita o cabelo
era capaz de ser teu fantasma
tua língua
minha língua
estrangeira de mim em qualquer parte.
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strike a poet
Tiro fotos da minha casa até acreditar que é uma cidade
sigo abraçando cadeiras entre o olhar imperativo dos gatos
a mão que afaga este problema a materialidade dos livros ajuda
no colegial me chamavam de menina de outra época
meu pai dizia que minha avó era uma mulher da terra
isso resume pra mim toda a poesia contemporânea
de repente ganharam o medo de dizer coração
é preciso paciência e a sensibilidade de um peixe.
Devem me ver como um dragão rasante, os miados
num abraço a gatinha tem fome e cheiro de ser vivo
pela primeira vez em um mês deixo a sala
é mais fácil o mar abrir em dois do que interromper o trânsito é por isso que não atravesso a rua
meio-dia sou o Torquato de colar de contas descendo
as delícias de aves nas mãos ela pensa em casamento no
sol de quase dezembro uma mãe me olha saindo pelo corredor
até o portãozinho de aço range a filha vai pra escola
a mala de rodinha, vergonha não é a palavra
finalmente, virei artista os dedos sujos de tinta
o uniforme azul-marinho o cabelo imundo embora a seda
Júlia de Carvalho Hansen
nasceu em São Paulo, em
janeiro de 1984. É poeta, as-
tenha rasgado só consigo desafinar o coro dos contentes
me alimentar com drogas pra me manter escrevendo
tróloga e uma das editoras
acordada e cansada e insuficiente esta melodia
das Edições Chão da Feira.
chega o texto ao fim e não reviso, it’s friday I’m in love.
15
Alvaro
Posselt
Curitiba não nos poupa
Ontem eu tomei sorvete
Hoje eu tomo sopa
Choveu tanto aqui
que até caiu
outro pingo no i˙
Um dia
conhecer Paris?
Deus me Louvre!
17
Não se empolgue
Na minha feijoada
só a orelha do Van Gogh
Noite do espanto
Fui baixar um arquivo
baixou-me um santo
Viver, eu suponho,
é chicotear a realidade
montado no sonho
A gente nunca erra
quando faz da paz
nossa arma de guerra
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Passado não é bagagem
O pensamento vazio
deixa leve a viagem
Entre arranhões e lambidas
Para cuidar de tanto gato
precisarei de sete vidas
Entrou sem aviso
O gato cruza o corredor
Alvaro Posselt nasceu em Curitiba/PR (02/12/1971).
É professor de português e poeta. Publicou Tão
breve quanto o agora, Um lugar chamado instante,
Entre arranhões e lambidas e Kaki. Divulga voluntariamente o haicai em escolas públicas através de
oficinas. Contato: [email protected]
Foto: Paulo Andrade.
e leva meu sorriso
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Tiago
Feijó
Aqui, Dentro de Mim
Em memória de Thiago Ribeiro da Costa e Inês Cruz
Do que me lembro bem foi do momento que
recebi a notícia. O Biel havia pedido cerveja e cachaça, daquele
jeito lá dele de me mostrar um espaço entre o polegar e o indicador. Pus até um tiquinho a mais, porque o dia estava meio
frio e o Biel pagava certinho no fim do mês. Depois chegou a
Rosa, bonita que só ela, num vestido que eu pus reparo, todinho
vermelho, bem apanhado na cintura e que mostrava um palmo
das coxas dela. Me pediu meia dúzia de tomates. Não esqueço,
como é que eu posso esquecer?, ela emendando no pedido:
– Meu menino está com vontade de comer salada de tomate;
vê se pode, Tereza!
Escolhi uns bem bonitos, madurinhos como o vestido dela,
e até passei uma água neles, pensando no seu menino. Ela me
pagou com uma nota de cinco bem maltratada, e quando fui no
caixa tirar o troco, o telefone tocou:
– Alô!
E do outro lado, uma voz de mulher, muito baixinha:
– Boa tarde. Por gentileza, eu queria falar com Tereza Auxiliadora do Nascimento.
– É ela.
– Dona Tereza, aqui quem fala é Marli, sou psicóloga do hospital Leopoldo e Silva, tenho um assunto delicado para tratar com a
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senhora. É preciso que a senhora permane-
– Dona Tereza, o seu filho morreu...
de antigamente, em desesperação, ar-
ça calma e atenta...
Não sei dizer ao certo o que aquilo me
rancavam tufos da cabeça. É verdade.
Eu segurava o telefone com o ombro,
causou. É difícil. Demorei pra somar as
Eu arranquei. E arranhei o meu rosto
enquanto contava as moedinhas do troco
palavras dela, pra juntar, pra entender.
como um bicho desvairado, num surto
da Rosa; nem dei a devida atenção à mu-
Mas antes mesmo de entender o cora-
de pôr fim a tudo, possuída. E eu ia ar-
lher, achei mesmo que era gente queren-
ção já disparou, querendo me arrancar o
rancar os meus olhos com a unha, mas
do me vender plano de saúde...
peito fora. Quase perdi o sentido. Fiquei
a Rosa me tomou as mãos e me abraçou
– Pode falar, moça.
zonza, trêmula, desacorçoada. Aí me veio
tão forte, tão forte, naquela compaixão
– Dona Tereza, o seu filho sofreu um
uma ideia que me deu um respiro, um
de mãe que veio buscar tomates para o
alívio. Aquilo não fazia sentido nenhum,
seu menino e me pegou no instante em
coisa incabível, não podia ser, não era
que eu perdia o meu. E me apertou com
possível...
tanta força no seu corpo, que eu, exaus-
acidente!
Aí parei. Quietinha. Tranquei as moedas na mão. E com a outra apertei o telefone no ouvido pra não perder nada
– Moça, deve ser algum engano, o meu
ta, vencida, acabada, desmoronei. Foi a
daquela voz pequena. No balcão o Biel
filho se chama Eduardo e está viajando;
Rosa que me levou lá pra cima, não sei
bebericava a cachaça com aquela cara lá
está na praia, moça!
como, não sei com que braços. Mulher
E aquela voz, como é que eu posso es-
tem força guardada pra doar pra dez
– Quê que aconteceu com meu filho?
quecer aquela voz?, calma e baixinha,
homens. Como foi que subi a escada?
– Dona Tereza, fique calma, por favor.
tentando me explicar, como se não qui-
Como foi que cheguei lá em cima? O
sesse me dizer:
Tuca encontrou a gente no meio da sala,
dele de quem nasceu pra nada.
Procure uma cadeira para se sentar...
– Dona Tereza, eu sinto muito, muito
tinha ouvido meus gritos. Não consegui
mesmo, mas o seu filho, Eduardo Pereira do
dizer nada pra ele, não sabia mais falar.
– Dona Tereza, foi uma fatalidade...
Nascimento, morreu hoje na praia, às duas
A Rosa, abraçada comigo, chorando co-
– Moça, não faz isso não, me diz logo,
horas da tarde, ele e a mulher dele...
migo, foi quem disse:
– Estou sentada. – estava nada – Quê
que aconteceu com meu filho, moça?
quê que aconteceu com meu menino?
Caiu tudo no chão, as moedas da Rosa
– O teu filho, Tuca... o teu filho... Aconteceu alguma coisa com o Edu...
Aí ela não pôde mais. A minha voz já ia
e o telefone. E eu arranquei de mim um
aflita, numa agonia só. Acho que ela não
grito grande, um vômito de desespero, de
soube mais o que dizer, até gente estuda-
tremer as prateleiras, de retirar das ca-
– O nosso filho morreu, Tuca!
da às vezes não sabe mais o que dizer. E
sas os vizinhos da rua. E me agarrei nos
O Tuca ficou ali, parado, olhando pra
me disse, numa só talagada:
meus cabelos... Dizem que as mulheres
nós duas como se visse dois fantasmas.
Aí me veio a força, e eu gritei:
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Os olhos arregalados, começando a ma-
Ele. Disse pra Ele que eu não merecia. Aí
caiu em cima dela, um casal que estava
rejar. Aí bambeou das pernas, pareceu
atenderam o telefone. Por um segundo
perto viu. Mas os dois estavam de mãos
que ia cair. Deu uns passos pra trás e
me inundei de uma paz que nunca tinha
dadas. Disseram que os dois morreram
tombou na poltrona. E foi desaparecen-
sentido, que nunca mais sentirei. Por um
de mãos dadas...
do devagarinho, sumindo lá dentro dele.
segundo só. Porque a voz que disse alô foi
A viagem não foi fácil. Um silêncio
Até que começou a chorar, um choro de
a voz dela, daquela mulher, da Marli. Aí
horrível dentro do carro; eu e o Tuca, aca-
homem derrotado, choro de homem fei-
o fio de esperança se rompeu, de vez. Gri-
bados. A Rosa foi dirigindo, se esforçando
to em menino. O Tuca chorando foi de
tei, blasfemei, pedi pra morrer. Pedi pra
pra se concentrar na estrada. Mas quan-
uma tristeza sem tamanho. Nós três cho-
morrer muitas vezes. A Rosa ficou em pé
do chegou lá foi pior. O IML era uma coisa
rando na sala, a desgraça enorme. Aí me
na sala, estendendo os braços pra mim,
horrorosa, um cheiro asqueroso de gente
veio outra ideia; a gente não quer acredi-
me mostrando as mãos dela, sem cora-
morta. Fiquei com um medo danado de
tar, mãe nenhuma acredita. Até hoje não
gem de me tocar...
que o meu filho estivesse carbonizado,
acredito no que aconteceu. Parece que
Fui reconhecer o corpo do meu filho e
de que eu não pudesse olhar o rosto dele,
vou abrir aquele quarto e ele vai estar lá,
da mulher dele, a Manuela. Quiseram me
tocar nos cabelos dele. O homem que
deitado na cama dele, ouvindo as músi-
privar disso, pediram que eu ficasse em
atendeu a gente estava dormindo numa
cas dele, lendo os livros dele. Nem abro
casa porque eu não tinha condições de ir.
cama ao lado de uma mesa com um cor-
mais aquela porta, de tanto desconsolo,
Mandei todos pastarem. Como é que eu
po morto. Não sei como fiz aquilo, não sei
porque ele nunca mais vai estar lá. Mas
ia ficar aqui esperando que me trouxes-
como pude fazer aquilo. A Rosa me am-
naquele momento tive uma ideia. Me
sem o meu filho? Como? Antes de irmos,
parando todo o tempo; o Tuca fumando
desatraquei da Rosa e corri pro telefone
a Rosa telefonou e ficou sabendo da his-
dentro do IML. O homem abriu duas ga-
da sala. O Tuca ainda me perguntou pra
tória. Os dois caminhavam na praia, de
vetas, uma do lado da outra. Como é que
quem eu ia ligar, nem respondi. Liguei
mãos dadas. Não havia muita gente àque-
eu posso esquecer?, o meu menino den-
pro celular do meu filho. Mãe nenhuma
la hora. O tempo não estava bom, armava
tro de uma gaveta. Estava inteiro, boni-
quer acreditar. Podia ser uma malvadeza,
chuva. Mas os dois caminhavam assim
to. Quando pus a mão nele, não aguen-
um trote de gente ruim. Nem sei quan-
mesmo, eram loucos por praia. Começou
tei mais e desmaiei. Antes de voltarmos
to tempo durou aquela chamada, aque-
a chover fininho, e de repente, sem mais
encontrei a Marli. Ela me deu um abraço
le barulhinho que chama, chama. Eu só
nem menos, meu Deus, sem nenhum
carinhoso, demorado, me passou a mão
rezava pra ouvir a voz do meu filho do
motivo, sem razão nenhuma, um raio
no rosto, nos cabelos. Estranho isso: gente
outro lado. Pedi pra Deus, implorei pra
caiu em cima deles. Um raio! Na verdade,
que a gente nem conhece fazer esse tipo
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de coisa. Mas entendi logo, ela também é
trabalhar. Ficar em casa se alimentando
Acho que o Tuca e a Rosa pediram pra
mãe e é estudada pra ajudar as pessoas.
dessa dor é que não dava. O pessoal foi
eles não tocarem mais no caso, não me
Conversamos. Gostei muito da Marli. No
chegando, devagarinho, ressabiado. O
lembrarem mais. Bobagem, tolice. Como
meio daquela desgraça toda ela foi uma
Biel foi o primeiro a entrar. Quase não
se eu precisasse dos outros pra me lem-
coisa boa que me aconteceu.
conseguia me olhar. Sem saber o que di-
brar do meu filho, pra me lembrar que
Enterrei meu filho no dia seguin-
zer, pediu cerveja e cachaça, daquele jeito
o meu menino estava morto, aos trinta e
te. Veio muita gente ver. Ele era querido,
lá dele. Eu servi e ele levantou o copo e me
um anos, morto e enterrado. Não foi fácil.
tinha muitos amigos. Levei meu filho
disse uma coisa que não esqueço, como é
A Rosa vinha todo o dia; a Rosa foi o meu
até a cova aberta. Quando o caixão des-
que eu posso esquecer?
amparo. Quando não dava mais, quando
ceu, quis pular lá dentro com ele. Acho
que toda mãe quer. É claro que não me
– Que Deus cuide da senhora, Dona
Tereza!
não tinha mais jeito de aguentar, eu pedia pra ela ficar no caixa e ia pro depósito
deixaram, senão eu teria pulado. Depois,
Me encheu os olhos d’água, o Biel di-
dos fundos, me enfiava atrás das caixas
não queria ir embora de lá, queria ficar
zendo aquilo. Com ele, vieram os outros.
de cerveja e chorava tudo, tudo, de uma
com ele, jogada naquele monte de terra,
Todos tristonhos, sorumbáticos, fazendo
só vez. Mas tinha que chorar baixinho, a
cavar tudo de novo com as minhas pró-
aquela cara do enterro. Não sabiam mais
mão tapando a boca pra não deixar esca-
prias mãos pra dar nele um último bei-
como me pedir a gelada deles, a cacha-
par o grito que sempre vinha, não queria
jo. A Manu, que era portuguesa, não pode
ça deles. Uns vinham, entravam, e não
que me escutassem. No começo, o Tuca
ser enterrada junto. A mãe quis o corpo
me pediam nada, nem um copo-d’água.
também chorava escondido; eu perce-
da filha, quis enterrar ela em Portugal.
Acho que vinham só pra ver, pra me ver,
bia tudo, ele aparecia com os olhos ver-
Eu entendi. Ela é mãe, e eu teria feito o
ver aquela minha desgraça, a minha cara
melhos, os gestos meio desconcertados,
mesmo. Morreram de mãos dadas, mas
de agonia. Um me perguntou como ti-
aquele sorriso forçado de quem não sabe
estão enterrados em terras diferentes.
nha sido, eu contei o que sabia. Depois
mais o que é felicidade. Depois ele parou,
Ele aqui, ela lá. E um oceano imenso en-
ele me disse que gostava muito do meu
acho que se conformou, aceitou. E hoje eu
tre eles. Nessa vida a gente não tem mui-
filho, menino bom, e começou a me con-
sei que lágrima de mulher não tem fim;
ta escolha, não é livre pra nada. Não se
tar uma história antiga em que os dois
e que a nossa dor, a nossa dor de mãe, é
pode nem ser enterrado do lado de quem
pulavam no quintal da Dona Mirtes pra
dor que mora no nosso ventre, espécie de
a gente ama.
roubar carambolas. Me deu uma vonta-
filho que nunca nasce, que não tem jeito
Reabri a mercearia uma semana
de louca de chorar, mas eu me aguentei.
de se pôr pra fora, morre com a gente.
depois. A vida não é fácil e é preciso
Depois ninguém mais tocou no assunto.
E o tempo passou; e o tempo é senhor,
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sempre foi. Mas quando tudo estava
o Tuca me pegou pela cintura no meio
sobra. Eu aprendi uma coisa, uma coisa
se amansando, aconteceu uma coisa.
do temporal e me arrastou de volta pra
que me dá um alívio imenso... Toda noi-
Foi num domingo, eu estava na sacada
dentro. Não sei por que fiz aquilo; a gente
te quando me deito pra dormir, fecho os
olhando a rua, o Tuca estava se barbean-
fica fraca, perde a vontade de se pôr de
olhos e converso com o meu filho. Toda
do, de repente o tempo fechou, deu umas
pé, como se o mundo tivesse perdido as
noite digo pra ele:
trovoadas fortes, e começou a cair uma
cores, fica tudo preto-e-branco. A gente
– Eduardo, meu filho, como é que você
chuva grossa e pesada, e com ela uma
não foi feita pra suportar uma dor des-
está? Aqui continua tudo como você dei-
chuva de raios, uns riscos grandes e lu-
sas; nem a pior das mulheres merece
xou: seu pai ainda está tentando parar de
minosos desabando do céu escurecido. E
uma dor dessas. O Tuca ficou muito pre-
fumar e eu continuo morrendo de sauda-
aquilo foi me dando uma coisa, uma afli-
ocupado com aquele meu desatino. Disse
des de você. Cuide-se, meu filho, e cuide
ção, uma revolta, uma saudade... Não sei
que eu precisava entender, aceitar; disse
da Manu também. Onde quer que você
o que me deu, não sei por que fiz aquilo.
que Deus não tinha culpa nenhuma, que
esteja, fique em paz e tenha paciência,
Sai correndo dali pro meio da rua, qua-
foi um acidente, que era a hora do nosso
que a gente ainda vai se encontrar... onde
se que me quebro na escada, meti os pés
filho ir. E enquanto falava, ele mesmo foi
quer que você esteja... E se não estiver em
descalços no asfalto e ergui os braços pro
se perdendo, se entregando, como se não
lugar nenhum, em um lugar eu sei que
céu. Aquela chuva toda ia me ensopando,
acreditasse nas próprias palavras que di-
você está: aqui, dentro de mim.
me encharcando, até as roupas de baixo.
zia. Terminamos os dois chorando, um
E me deu vontade de gritar, e eu gritei.
abraçado no outro, e foi a última vez.
Falei besteira, xinguei Deus, culpei Deus.
Eu entendi que a vida tinha que con-
Pedi que me caísse um raio em cima, que
tinuar, mesmo preto-e-branca. A vida,
agora era a minha vez, que se Deus ain-
para os que ficam vivos, tem sempre que
da tivesse um tiquinho de compaixão de
continuar. A dor nunca passa, nunca
mim que me levasse, que descesse sobre
passará. Mas como eu já disse, o tempo é
mim com a sua toda poderosa fúria, com
senhor, sempre foi. E com o tempo a gen-
o seu raio mortal. Implorei pra Deus que
te vai descobrindo um jeitinho de ficar
me levasse, que me levasse pra onde vão
de pé, de sorrir, com alguma alegria, de
os que morrem de raio, porque eu queria
alguma coisa boa que acontece. Com o
ver o meu filho, porque eu precisava dar
tempo a gente vai aprendendo a suportar
um último abraço no meu menino. Daí
com paciência o restinho de vida que nos
25
Há uma Gota de Orvalho
em Cada Criança
Quando menina me chateava muito com
nem mesmo de ódio; fiquei possessa, pasma, perdi a fome e o
ocorridos como o de hoje. Não é fácil manter a calma, uma es-
norte, e quase me senti verdadeiramente suja diante daquela
pécie de soberania intacta que devemos demonstrar nessas oca-
criança que esperava uma explicação sobre a sujeira das nos-
siões; não é tão fácil quanto parece aceitar e encarar o fato em
sas peles. Então mamãe lhe deu uma resposta, ao mesmo tempo
todos os seus pormenores! Mesmo pra mim, acostumada a todo
que me dava uma lição. Plena de carinho, e segurando com suas
tipo de preconceitos e calejada na arte de louvar e defender a
mãos negras as mãos rosadas do menino, mamãe lhe disse que
minha negritude. Sim, eu sei, há negros que não suportam ser
a nossa pele não era suja, e sim negra, porque éramos de ra-
negros! Uma pena! Eu mesma não posso me entender de ou-
ças diferentes, mas que no fundo éramos todos iguais... Que ele
tra maneira e não exagero quando digo que tenho um orgulho
nascera branquinho, nós negras, e havia ainda outras pessoas
intenso desta pele com que me visto. É como digo, quando o as-
com outras cores... Mamãe disse mais coisas, simples e bonitas,
sunto surge e quero causar algum efeito: “Fazer o que se sou sor-
das quais não me recordo, tamanho era o peso da minha raiva.
tuda, nasci com essa cor-delícia sem fazer o mínimo esforço!”
Depois, o pai do menino, vindo de uma mesa próxima, curvado
Mas nem sempre foi assim...
de mesuras, despejou na nossa mesa um sem-fim de desculpas
Certa vez, adolescente ainda, enquanto almoçava com ma-
e perdões pela indelicadeza do filho, no que mamãe lhe respon-
mãe num restaurante aqui perto, um menino bonito, criança
deu indulgentemente: “É só uma criança... uma doce e curiosa
de uns quatro-cinco anos, fincou pé junto da nossa mesa e ficou
criança!” E o menino se foi, bonito e sorridente, acenando para
nos olhando com uns olhos curiosos, preso no receio próprio
nós com a sua mãozinha rosada. “Não é preciso temer, Linda,
das crianças, talvez julgando se devia ou não perguntar o que de
você passará por isso e talvez por coisas piores na vida. Mas não
fato perguntou, e bem assim, com a vozinha limpa de menino
tema, mantenha a cabeça erguida e os olhos acesos, acredite
sem maldade: “Por que a pele de vocês é suja?” Aquela pergunta,
em quem você é, o pior preconceito que pode existir é aquele
feita daquela maneira, me atravancou a comida na garganta, e
que nasce dentro de você mesma!” Foi isso que mamãe me dis-
juro, de verdade, que tive vontade de vomitar tudo naquele me-
se quando terminamos aquele almoço. E esta é a verdade que
nino. Mamãe ficou me fitando, esperando de mim uma resposta
carrego comigo, é a verdade que me fez ser quem sou! Passei
educada, judiciosa, quem sabe até amorosa, como quem explica
mesmo por inúmeras situações delicadas, em algumas delas
com facilidade a uma criança por que as suas mãozinhas não
fui bem sucedida, em outras não. Afinal, há crianças e crianças;
podem tocar as estrelas. Mas eu não fui capaz de uma palavra,
como há adultos e adultos. Mas hoje... o que aconteceu hoje foi
26
sublime, o que aconteceu hoje foi a apoteose da negritude! Se
deu pra perceber um círculo de silêncio se expandindo ao redor
mamãe estivesse viva teria se desmanchado de alegria.
da gente, calando uma porção de bocas. Senti que me olhavam,
Foi no supermercado aqui da esquina, na fila do caixa. À minha frente uma mulher e uma criança, mãe e filha. Quando me
curiosos da minha reação, mas antes dela a mãe interveio, num
despautério sem tamanho:
dei conta a menina já me olhava com uns olhos maciços, fixos,
– Bela... que é isso? Certas coisas não se falam, filha!
plenos de um brilho azulejado. Não fez espera de nada, parecia
Os olhos da moça do caixa se pregaram em mim, desconcer-
cheia de palavras na boca e, sem tardar, deu dois passos na mi-
tados, toda ela em desalinho, como que desejosa de estar au-
nha direção, me apresentando seu metro de coragem:
sente dali. A mãe, sem me olhar, voltou a retirar as compras do
– Qual é o seu nome?
E eu, erguida num metro e oitenta, respondi com voz adocicada de falar com criança bonita:
carrinho.
– Desculpa, moça! – disse a pequena.
Transfigurada de afeto, a voz da menina agora era quase um
– Meu nome é Linda... e o seu?
sussurro. Me pus de cócoras e me fiz do tamanhinho dela. E ela,
Por um instante, ela caiu suspensa num pensamento, como
um pingo inocente de gente, se aproximou, perto, muito perto
se experimentasse o nome incomum que lhe dei, antes de me
responder:
de mim.
– Sem desculpas, mocinha! – respondi, maravilhada com
– Isabela, mas mamãe me chama de Bela!
os fios dourados dos seus cabelos finos – Eu sou marrom sim...
Rimos, reconhecendo a relação estabelecida entre os nossos
também sou mulata, parda, trigueira. Há muitas palavras, mas
nomes. Inteligentinha ela, e olha que não devia ter mais que
eu prefiro negra. Eu sou negra!
cinco anos. Foi aí que olhei pra mãe, que me encarava com uns
Os olhinhos dela agora pesquisavam tudo que me era pele.
olhos azuis vidrados idênticos aos da criança, com a distinção,
E assim, muito naturalmente, um carinho quase, os seus dedi-
apenas, de que os olhos adultos eram chochos, dois olhos cho-
nhos percorreram o meu braço como se provassem a textura da
chos metidos numa expressão seca, forjada de uma espécie de
minha cor.
menosprezo. Ao mirar a menina novamente, adivinhei nela a
– É bonita... a sua pele! Você gosta dela?
iminente pergunta, a pergunta cabal, calejada que sou no diag-
Tão perto de mim, a pequena Bela, que pude sentir, despren-
nóstico dessas ocasiões. Mas a pergunta não veio, o que veio foi
uma afirmativa. E a corajosinha, espevitada, nem se guardou
em hesitações, foi reta e sonora:
dido das palavras dela, o seu hálito fresco de criança.
– Sim, gosto. E gosto dos meus cabelos também, dos meus
olhos, das minhas mãos! Gosto de mim! Mas gosto também do
– Você é marrom!
que é diferente de mim, como dos teus cabelos, por exemplo. –
O supermercado estava relativamente cheio, como sempre. E
nisso, não resisti e acarinhei o ouro dos cabelos dela, uns fios
27
tão sedosos e limpos que me escorreram feito água por entre os
dedos – Os cabelos de Bela, tão belos!
Por um instante a mãe interrompeu o que estava fazendo e
ficou ali, rija, como que estupefata, com um litro de leite sus-
E ela riu um riso tão dela, feito de certa vergonha e legítima
penso no ar, visivelmente atenta à nossa conversa. A moça do
alegria: o riso franco das crianças! Depois voltou a ficar suspensa
caixa, transformada, agora nos olhava com um sorriso petrifi-
num pensamento, enquanto eu adivinhava suas maquinações.
cado e satisfeito, passando lentamente o código de barras dos
– Os seus também são bonitos... – disse ela afinal e, arremedando o meu gesto, colheu com a pequena mão que tinha uma
mecha dos meus cabelos – Os cabelos de Linda, tão lindos!
Rimos, desta vez mais expansivas que antes, quase despudo-
produtos diante do laser vermelho do leitor.
– Não, mocinha, isso não depende do sol. O máximo que você
vai conseguir é ficar toda vermelhinha...
– É... Isso se a mamãe não me passar protetor solar!
radas. Notei que as pessoas em volta guardavam ainda certo si-
Rimos novamente. Impossível, a pequena Bela. E então a
lêncio, agora talvez admiradas com a cena que viam. Foi então
mãe, despida de qualquer delicadeza, dirigindo-se a moça do
que a voz da mãe irrompeu, sinuosa, as palavras todas vestidas
caixa, estabeleceu novamente um círculo de silêncio ao redor
de meiguice, e não sei por que entrevi, por debaixo desta vesti-
da gente:
menta, um quê de viperino:
– Bela, a mamãe já está quase terminando aqui, minha querida! Você não quer vir me ajudar? Olha aqui aquele chocolate
que você gosta!
– Será que você pode ir mais rápido com isso! Eu não tenho
todo o tempo do mundo!
O sorriso petrificado da moça esboroou-se num segundo e as
suas mãos, num desgoverno evidente, principiaram a trabalhar
A menina ignorou tudo: o convite, a mãe, o chocolate. Fez que
freneticamente. Diante daquela repreensão mal-educada, vi os
não ouviu. E eu não pude fazer outra coisa, porque então me
olhos da moça se encherem de uma vergonha pastosa, quase
nasceram certas desconfianças e eu quis ver onde aquilo ia dar.
lágrima. E caíram os véus da minha desconfiança e tive certeza
Além do que, a pequena Bela estava agora quase aninhada no
do que então se passava ali veladamente. Não hesitei. Trouxe a
vão das minhas pernas, me oferecendo proximidades de amiza-
criança mais pra perto de mim, quase abraçadas uma na outra,
de antiga. Sem nos olhar, a mãe continuou a retirar as últimas
e, num tom mais elevado que antes, perguntei:
compras do carrinho.
– E você... gosta da cor da sua pele? – perguntei, quase tomando a criança no colo.
– Gosto... – e estendeu o bracinho para que julgássemos juntas – só acho que ela é muito branquinha, não é? Será que se eu
tomar um montão de sol ela fica da cor da sua?
– Você está na escolinha, Bela?
Meneou a cabeça, afirmativa.
– E na sua escolinha não tem nenhuma criança negra?
Parou. Segurou o queixo com a mão. Pensou. A mãe agora
pagava a conta.
– Não me lembro... acho que não!
28
Continuei; muitos nos olhavam.
– E você não conhece nenhuma outra pessoa negra além de
mim?
Mais um instante pensando, os olhos dela dentro dos meus.
– Sim, conheço, a Irene!
Curiosa, inquiri:
– Irene? Quem é Irene?
Foi a mãe quem respondeu, as palavras então todas nuas,
ácidas, afiadas, como setas que se atiram com rancor num alvo
fixo. E aquele par de olhos azuis me fulminando, transbordantes de uma ojeriza inexplicável:
– Irene é a nossa empregada!
E me arrancou a filha, puxando-a pelo braço, num gesto bruto. Tive o ímpeto de reagir, me ergui mesmo, alta, bélica, mas
o desacato me travou na garganta porque eu nada faria diante
daquela criança, a pequena preciosa. Mas o que não pude fazer,
ela fez por mim, na sua inocência de criança luminosa; ela, meu
pequeno presente de hoje.
Mal deram alguns passos e a voz da pequena Bela se fez ouvir, ampla, límpida, sonora, articulando cada palavra como se
cantasse uma canção:
– Mamãe, eu queria ser negra!
Olhei pra moça do caixa, os olhos dela se afundavam em
mim, rebrilhantes, saciados, agradecidos. Também ela negra...
Acho até que sorria!
29
Conto Tirado de um Poema
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
Poema tirado de uma notícia de jornal,
- Manuel Bandeira.
João Gostoso desce as vielas íngremes e irregulares do morro da Babilônia. À sua frente, sob o anoitecendo
Gostoso desce o morro, indistinto nos recantos de escuridão, le-
do céu, pululam as luzes de Copacabana; luzes estas que João
vando na caixa do pensamento a mulata Ritinha, cravo crava-
não vê, ou vê mas não repara, posto que em seus olhos fixa-se
do na carne de seu amor, ferida funda que não sabe cicatrizar,
agora a lembrança de outras luzes, as luzes de Ritinha, sorriso-
envolta nas brumas de um antigo carnaval. Em pouco, João pisa
nha, metida numa abundância de plumas e brilhos, a devassar
na Avenida Atlântica e se dá conta do mar, um mar de desilu-
o desejo dos homens no furdúncio do carnaval. Carregador de
são, e o rumor das vagas enche de mágoas o corpo colosso de
feira-livre, o árduo trabalho dos braços esculpiu no corpo negro
João. Mas ele continua a caminhar, visto que tem destino certo
de João muitas saliências de músculos e fez brotar nele a força
de chegada e que o mar, posto assim nos olhos, é como um novo
desumana da ressaca das marés. Mas esse corpo, bruto tronco
jeito de se afogar. E por agora João quer viver, viver e sofrer as
robusto de ébano, é casca falsa que envolve um homem pací-
dores inventadas para ele, que todo homem tem lá o seu qui-
fico, erguido em bondades, de mãos de trabalho e carícia. João
nhão e carregá-lo é questão de honra.
30
Copacabana é uma festa, riqueza sem fim. Gente vestida de
qual consegue se lembrar, como se a tal festa da carne não hou-
claridade, rindo aos trambolhos, saltando de carros lustrosos e
vesse ocorrido senão uma única vez. Mais adiante, João com-
exalando perfumes de línguas estrangeiras. João pensa na ale-
preende que a batucada não vem do antigamente, mas que re-
gria dessa gente, nas suas soltas gargalhadas, habitantes de al-
tumba no presente, ecoando na estrangulada noite do agora. E
tos edifícios, com o extenso mar emoldurado nas vidraças de
enfim João vislumbra, lançado no meio da rua, um facho de luz
suas janelas. Tão diferente dele, essa gente. Eles que não suspei-
expulso do bar Vinte de Novembro, seu destino e seu fim. É de
tam da sua fome incurável, do seu perfume de feira, de fruta,
lá que pulsa o sangue do samba.
da sua roupa puída, do seu barracão sem endereço perdido na
O bar está em polvorosa, com grande azáfama de gentes. O
barafunda da Babilônia. Cresce em João um asco por essa gente,
samba, no seu compasso cardíaco, perverte as pessoas, instala
porque foi o dinheiro deles que comprou a sua única riqueza, o
nelas um assanhamento de fogo, de labareda, bulindo com elas
seu bem mais valioso. Foi o dinheiro deles que levou de João a
por dentro, afrouxando nervos e músculos, libertando dos cor-
sua paz. João caminha apressado porque o samba não é afeito
pos a malícia da carne. E muita pele suada de mulata procu-
a esperar. Já no Arpoador, as espumas das ondas fazem João re-
ra no corpo de João o seu cais, o seu desvelo, o seu descanso. E
cordar a brancura das plumas de Ritinha no distante carnaval
muito braço de homem, risonho de safadezas, aperta o amigo
em que se conheceram. Ela, corpo em sarabanda, tremelicando
João, abraça o parceiro João. E muita boca de birita, melada de
as trigueiras ancas, abria em seu redor um círculo de admira-
embriaguez, despeja na orelha de João manhas e promessas de
ção. Ele, estacado no meio da multidão, o sangue assanhado, ti-
mulheres e camas. E os copos tilintam, erguidos na luxúria do
nha os olhos enfeitiçados pelos sortilégios da mulata que pare-
brinde. E o samba cresce, imenso, enorme, poderoso, grassando
cia levitar no centro do carnaval. E enfeitiçado, nem percebeu
de perna em perna a volúpia do seu veneno. João finalmente
quando a moça passou a sambar em seu derredor, circunave-
está entre os seus. E entre os seus, João bebe, João canta, João
gando seu corpo, ilha de prazer, ele, o escolhido, o eleito, terra
dança, sem que ninguém perceba a sua amargura infindável,
selvagem a ser desbravada. E no delírio do carnaval, os olhos de
a sua solidão medonha, abismo tão negro quanto a sua pele, a
um dizendo aos olhos do outro o desejo de seus corpos. E João
sua tristeza de pedra, inabalável, presentes ofertados pela mão
foi rei, e João foi estrela, e João foi madeira de fogueira. E João
da mulata Ritinha ao abandoná-lo na espessura das trevas. E a
conheceu finalmente o amor...
noite de então é a noite de João!
Agora, emaranhado nas ruas de Ipanema, com seu teto de
Tudo tem seu fim: o amor tem seu fim, a noite tem seu fim,
folhagens, João pensa ouvir os batuques do samba de outrora,
o samba tem seu fim. E agora, após o rebuliço das pernas e o
os mesmos batuques que o conduziram aos braços cheirosos de
delírio dos copos, João Gostoso caminha sozinho e atordoado na
Ritinha naquele feliz carnaval de sua vida, o único carnaval do
madrugada em declínio. Da banda do mar, um clarão anuncia
31
o parto da manhã de um dia azul. E João, homem feito de amor
vale mais a pena, que aquilo já não é viver, é arrastar-se, arras-
e desesperança, sem saber um jeito de esquecer, não faz outra
tar-se para o nada, porque para ele só existe o nada. É ela. É so-
coisa senão recordar... Ela, que já não tem mais nome; ela, que já
mente ela. E João abre os braços, tal qual o Cristo Redentor sobre
não tem mais corpo; ela, que já não tem mais voz... Ela, que ago-
o Corcovado, e se atira na Lagoa Rodrigo de Freitas para morrer
ra, neste agora de João, é apenas aquela que, em noite nefasta,
afogado.
ele viu descer de dentro de um luxuoso carro branco, brilhante,
como aqueles de Copacabana, toda ela vestida de claridade, de
A morte de João Gostoso coube apertada numa curta notícia
de Jornal.
anel reluzente no dedo, nos braços de um homem que a beijava
e a cobria com mãos de desejos. Aquilo foi como uma faca no
coração de João! Depois, as palavras dela queimando como brasa a pele de João: “João, você me desculpa? Você é o homem mais
bonito desse mundo, João! Mas você é ninguém e eu nasci pra
ser rainha!” João nunca mais viu Ritinha, que foi embora viver
seu sonho de rainha. Afundado num tempo de angústias, João
sobreviveu e esqueceu-se do homem, do luxuoso carro branco
e das palavras de brasa sopradas pela boca de Ritinha. Mas não
pôde esquecer-se dela, não soube esquecer-se dela. E Ritinha ficou ali, guardada no fundo dos olhos de João, envolta nas plumas de um fabuloso carnaval, pairando sobre a face de todas as
coisas.
João está agora à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, enquanto
um último resto de madrugada se recolhe para detrás da carcunda das montanhas. E João a vê pela última vez. É ela. É Ritinha, no seu abundante corpo de mulata, que sobe à superfície
Tiago Feijó nasceu em Fortaleza em maio de
1983. Mudou-se para o interior de São Paulo
do espelho d’água, requebrando as ancas no cerco dos admira-
ainda menino. Formou-se em Letras Clássicas
dores. É ela. Cravada nos olhos de João, dançando em torno de
pela Unesp. Venceu o Prêmio Ideal Clube de
João, buscando o corpo de João, naquele carnaval que não de-
Literatura 2014, na categoria Livro de Contos.
veria ter fim. E João não quer mais suportar, porque a saudade,
gota a gota, enche o peito de João. É ela. E João pensa que já não
Insolitudes é o seu primeiro livro, no qual esses três contos foram publicados.
32
Lisa Alves
Que o meu sonho nunca
assombre você
Para Billie Holiday
Do outro lado
sou a mulher
“de quatro paredes”
ao som de Billie Holiday.
Apenas uma “branquela” aborrecida
q sonha ter a cor da terra para ser mais inquilina,
q sonha ser Angela Davis.
34
Deito-me no solo e afundo nos dias frios.
[dias de rabadas humanas.
A canção diz: “Little white flowers
Will never awaken you.”
Quando permanecemos estrangeiros
predomina uma fome de explorar
e não importa se oprimimos
o músculo do entregador de compras
ou o estômago podre de uma vespa morta.
A canção diz: “Soon there’ll be candles
And prayers that are said I know.”
Gosto da música dos abortados,
da música dos malditos,
da música que canta o apego arruinado.
A canção diz: “Darling I hope
That my dream never haunted you.”
Enquanto escrevo, você cai no sono.
O amor é a eterna espera do “Bom dia!”
35
O Canto da Sereia Morta
Para Clara Nunes
E eu era dessas, daquelas, de todas as formas
e colhia tempos e tentava congelá-los para
evitar que a vida fosse
tão rápida, tão mínima, tão flash.
Peguei a estrada,
inventei ternuras,
armei estragos
e sinto as falhas tornarem-se assombrações – é sempre um
bate e volta
(uma terceira de Newton).
Beijei homens sem dentes,
homens que chupam a pedra
e depois cospem na mão para calar o Diabo.
Beijei mulheres mortas,
mulheres sem pernas e sem braços – sereias suburbanas
le chant de la sirène morts
Tradução de Ramon Lv Diaz
et je étais de celles-ci, celles, dans tous les sens
et qui recueillé heures juste pour le cristallisation
et pour éviter la vie
très délié, très unitaire, trés lumiére.
je venir l’autoroute,
je conçoive douceurs,
j’ai conçu des baisses
pour voir faire l’erreurs aux fantômes – éternité d’aller et venir
(autre troisième de newton).
j’ai embrassé hommes sans dents,
les hommes qui sucent la pierre
à cracher sur sa propre main pour se taire le satin.
(capazes de seduzirem a Lua e morrerem ao Sol).
j’ai embrassé l’femmes mortes,
femmes démembré, sans bras – sirènes de faubourg
(adroit de séduire la lune et mourir au soleil).
36
Eu era a caminhante,
a caçadora de improbabilidades,
a especialista em vazios,
je étais un errant,
a montadora de quebra-cabeças sem peças.
invraisemblances de chasse,
je suis l’expert dans déserts,
Caminhei com os fracassados
e aprendi a passagem rápida para o desespero,
para o estopim.
fabricant de mosaïque sans pièces.
je marchais parmi ceux tombés
et a appris à se déplacer rapidement au désespoir,
pour l’cordeau détonant.
Hoje não falo mais que treze palavras por dia,
sou das superstições, da reza brava, do tipo
q tece a própria corda para embalar o pescoço
depois de uma vida ruim.
aujourd’hui, je ne parle pas plus de treize mots par jour,
superstitieux, priez passionnée, le sort
qui tisse la corde elle-même pour emballer
le cou après une misérable vie.
37
Retrato circense para Nanã
Para Raul Seixas
A Morte frequenta a Terra com trajes de mercadora.
Na bolsa – commodities e combustíveis.
A Morte tem ingresso para qualquer lugar
e dita as normas do jogo: quem planta,
quem colhe, quem come e quem saliva até
receber o doce empeçonhado por ela.
A Morte não é Câncer e nem Ebola,
a Morte antes de tudo é o Petróleo, o Capital e as Ações na Bolsa.
Mas a Morte também somos nós e nossos filhos e todas as gerações vindouras
q trocam água por Coca Cola,
q trocam o ar livre dos Parques
pelo ar condicionado dos Shoppings.
A Morte visita a Vida e a encanta como uma Circe às avessas:
porém nada se transformará em porcos e muito menos em anticorpos.
A Morte é cerca, muro, arame farpado,
embargos econômicos, multinacionais,
patentes, especulação imobiliária,
indústria farmacêutica, petróleo,
Estado, território e dominação.
Já disse o Velho Barqueiro
em meus piores pesadelos: “A Morte sempre esteve com você, baby.”
38
Cidade dos Sonhos
Há noites que o barulho do silêncio chega a estourar os tímpanos.
Os ratos do andar de cima arrastam seus móveis em sincronia.
Baratas voadoras atacam os pés de quem tenta sonhar e o tic-tac
do relógio marca os instantes que perdemos ouvindo as coisas.
Há noites que rodamos na cama como se alguma posição tivesse
[o poder de nos ninar.
O livro de cabeceira continua na página 33 há dois meses.
Flashes de luzes se transformam em anjos perversos
e construímos fantasmas que babam de um lado da boca.
Há noites que gritamos nossas mães por medo dos trovões.
A chuva que cai lá fora são lágrimas de uma criança órfã.
Passos são pisadas de Titãs em busca de vingança e não
existe perigo debaixo dos lençóis.
Há noites que desejamos fervorosamente uma companhia
e ligamos desesperadamente para todos os amigos.
Há noites que os filhos insistem em nascer
A linha está ocupada, a amiga está ocupada e o amigo já dormiu.
e dentro dos ventres criaturas carregadas de nossos DNAs explodem.
São nestas horas que pensamos na palavra casamento.
Todos insistem em dizer que nasceram do amor,
mas ninguém explica o nascimento da bomba atômica.
Há noites que já não esperamos mais nada.
Não existem lágrimas, chuvas e nem mesmo declarações.
Estamos velhos demais e as estrelas se tornaram anciãs.
O que nos restam são apenas sonhos – sonhamos com
as antigas e tormentosas noites.
39
Ode ao Rancor
Desintegram fotografias e células.
Os olhos se desmancham sobre a relva,
as mãos se oxidam na dança do tempo,
o pai já não está e a mãe se prepara para
[o beijo da Morte.
Você estuda sobre remédios
e sobre a decomposição da carne.
Vive o seu tempo e aprende
sobre antigos fantasmas e q
dentro da história familiar
também existiram opressores.
Você sente a existência depois de terríveis dramas:
depois de sua avó perder cinco bebês e bem depois
de seu bisavô ter matado vinte índios e violentado a
honra de centenas de imigrantes.
Você existe entre bilhões e
tudo o q precisa saber é trocar
as fraldas de sua mãe, a utilidade
de cada medicamento, cicatrizar as
feridas e dizer dez vezes por dia
para sua velha: tudo vai dar certo.
Depois virá a poesia,
pois a poesia começa tarde,
40
depois do crepúsculo,
depois dos velórios,
depois q as pernas falharem,
depois da pele se tornar um mapa do tempo – coberta de
linhas e cicatrizes.
E se o amor começa tarde (como bem disse o poeta gauche),
o ódio acorda cedo – nas reminiscências da infância
quando a mão bruta e pesada
humilha a sua inocência para
q mais tarde só restem poemas rancorosos.
Lisa Alves nasceu em 1981, é mineira (Araxá/MG) e radicada em Brasília.
É curadora da revista Mallarmargens. No Distrito Federal colabora com o
fanzine feminista De Salto Alto. Tem textos publicados em diversas revistas e páginas literárias como a Revista Zunai, Flaubert, Germina Literatura,
Cronópios e Diversos Afins. Tem poemas publicados em sete antologias
lançadas no Brasil, Argentina e País Basco. Lançou em agosto de 2015 seu
primeiro livro de poesia Arame Farpado (pelo selo Coletivo Púcaro e Lug
Editora). Site: lisaallves.wix.com/lisaalves e blog: lisaallves.blogspot.com.br
41
Joana
Hime
escoa
teu corpo fala tua fala
tua boca nada
em braçadas de silêncio
Foto: Branca Escobar
diz tudo
43
sessão da tarde
meu olhar faz cinema nela
te vejo a cada sessão sem efeito
na tela esqueço se mereço
compareço sem cortes
caos no set do coração
meu olhar encena seu poema
sob a saia da vida versada
me despe tua letra espreguiçada
te veste
me veste
teu verso em cinema
meu olhar cora tua cara
te olha castanho meio amendoado
soletra passeios enviesados
e se esvai assim envergonhado
sete cortes seco essa canção
set do tempo querendo pausar
a tela entornada em azul
o filme não quer findar
mas sobra cinema dentro de mim
sempre que acendem a luz
quero apagar
invento um motivo
cubro a fita do negativo
hora de acordar meu fitar
hora de acordar meu ermo estar
hora de agora
44
Foto: Branca Escobar
Amêndoas do tempo
A tarde mergulhou
alta em você
despencando no meu colo
suas pestanas choradas
Os dedos das mãos
voam alto
na costura do pensamento
enrolando em caracol
A noite cai
seus cabelos lisos
nas horas do céu
doando as amêndoas
Lembro do teu velho
de um dia
dilúvio lúdico
levando os segundos
que veio num postal
para o despertar
escrito à mão
de uma nova madrugadinha
e ressoa como os temporais
cá na beira da estante
O toalete de chão verde
entre um e outro postal
continuará gelado
dos nossos começos
a pia redonda não pingará mais chorados
pois já tratou dos lembrados num gole só
e nosso café de colher com amoras
deixo pra colher em outra tarde
onde os ventos respirem breves.
a ranhura da porta
não vai mais me acordar.
46
o mar
resseca
a sede
em montanhas
de silêncio
e os pássaros
choram mar
na cara dos peixes
47
moletom (uma
despedida)
na mala arrumada
a memória do nome
agasalha o retrato
um moletom entardecido
aconchega-se árido
nas lãs moles talhadas
uma manta aperta
cujas gravuras adormecem
delicadamente
crispadas do tempo
os espaços da mala puída
removendo passados
a manhã acolchoada
afogados de hoje
alinha os fios fugidos
Joana Hime, carioca, é compositora e poeta.
Graduada em jornalismo e mestra em Letras
pela PUC - Rio, atua no mercado musical desde 2001 como produtora artística, pesquisadora e gestora de projetos na área musical e lite-
do tecido ido
um carinho anoitecido
escapulindo o doce ardil
acasala o casario da dor
do escuro dia
pequenices amortecem
esses velhos montinhos
uma camiseta esquecida
rária. Foi coordenadora artística da gravadora
Biscoito Fino durante 12 anos, produzindo projetos como Projeto Centro Petrobras de Referência
da Música Popular Brasileira - um livro sobre
A Casa Edison e seu tempo e um acervo discográfico de obras de 1903 a 1930 -, além de artistas
como Tom Zé, Gilberto Gil, Chico César, Mônica
desabotoa as sobras
novinha em folha verde
dos verões arrepiados de frios
deu uma volta em cada nota
recobrindo mãos
que mais parecia uma anedota
que outrora aqueciam invernos
talvez nunca existiu
biografia ficcional sobre a relação dos compo-
das vilezas
e seu melhor se esvaiu
sitores Francis Hime e Chico Buarque. Em 2015,
que cobrem o manto
deitando-se
lançou o livro De dentro, um experimento po-
da vila dos amados
num solo vazio
Salmaso, Paulinho Moska e outros. Atualmente
prepara seu livro – CD autoral em parceria com
compositores brasileiros, e também escreve a
ético vinculado `as imagens da artista Branca
Escobar.
48
Glória
Paiva
Os bichos de nuvem
Era uma menina de pernas compridas e joelhos pontudos
que, dobrados de certa maneira, cabiam confortavelmente no
banco de trás do carro. O isopor com a merenda repousava no
chão, um travesseirinho antigo acomodava o pescoço e ela estava comodamente instalada, pronta para as sete horas de viagem
até a casa dos avós. Poder estirar-se no banco de trás era uma
das poucas vantagens de ser filha única. Às vezes tentava convencer a mãe de que precisava de um irmão, mas a mãe apenas
sorria, sem responder. E a menina não sabia se esperava ou se
se frustrava em sua impotência de criança.
O carro era usado e não tinha mais comodidades que um
toca-fitas e um sistema de ventilação que ventilava poeira e o
ar quente do exterior. A mãe usava óculos escuros e abria os
vidros, fazendo os cabelos se agitarem ao vento. Os pais ocupavam seu lugar de direito nos bancos da frente trocando poucas
palavras, mas a menina não entendia nada da conversa, abafada pelos ruídos dos caminhões. Na estrada, o pai relaxava seu
semblante habitualmente sério e seus olhos negros até sorriam.
50
Ele gostava das viagens de carro e, mesmo a paisagem tão co-
do pai. Concentrada e atenta ao relógio, olhava brevemente o
nhecida, da montanha até o litoral, do litoral até a montanha,
trânsito, os prédios acinzentados, um cão atropelado de anteon-
lhe inspirava. Sugeria à criança: não durma, veja os pastos, as
tem na mesma posição, decompondo-se lentamente na avenida.
vaquinhas, veja ali chegando uma pontinha de mar. Ela, no en-
Acostumou-se com a cena e já mal virava o rosto ao passar por
tanto, ia entorpecida pelo calor e o movimento, entre o sonho e
um deles. Eram muitos. A cada manhã, um novo aparecia, com
a realidade. Deitada no banco de trás, não olhava os pastos nem
o sangue vermelho em volta que ia ficando seco, marrom, até
as vacas nem o mar: só entrevia o céu desde a janela.
sumir em meio à sujeira. Às vezes, tinha a ilusão de que seria
Brincava sozinha, por horas, de adivinhar formas nas nu-
mais bonito se os animais mortos na autopista estivessem ape-
vens. Uma vez pensou que, se as pessoas boas iam para o céu,
nas cochilando no cantinho, aquecidos pelo sol. Mas sabia que
os animais também deveriam ir, pois todos eram naturalmente
a velocidade dos automóveis e caminhões os impossibilitava de
bons. Dizia que gostava de todos eles: sabia que mesmo os mais
correr o risco de fazer frenagens bruscas. E mentalizava diaria-
ferozes, o eram apenas por sua natureza. Daí concluiu que as
mente que jamais gostaria de ter de escolher entre provocar um
nuvens tinham, indubitavelmente, a forma dos bichos que já
acidente ou atropelar um cão perdido que decidisse atravessar.
haviam ido. Tinha sempre um jacaré de boca aberta, um tuba-
Conduzia devagar, por se acaso. Perguntava-se sempre, silencio-
rão solene, um urso triste, um gato dormindo enrolado, a ore-
samente: mas porque os cães e os gatos atravessam a rua? O que
lha de um elefante. Até dinossauro tinha, e também aquele cão-
será que veem, se do outro lado não há nada?
zinho de estimação que havia sido envenenado por um vizinho.
Acabou que o avião ficou mais barato e ninguém mais quis
Todos brancos e fofos, contrastando com o azul intenso. No céu
viajar de carro. E que ela se cansou da paisagem cinza da cida-
do quadrante de vidro empoeirado estavam todos os bichos do
de e tomou um desses aviões. Sentou-se ao lado de uma janela,
mundo.
sozinha, e pousou um livro sobre o colo. Chegou a abrir uma
Chegaram umas férias em que a menina já não se acomoda-
página, mas a sonolência de sempre, companheira de viagens,
va bem ao tentar estirar-se no banco de trás. Passou a ir sentada,
a assaltou e então desistiu de ler. Voltou a cabeça para o lado
olhando finalmente a estrada, as vacas, o pasto, a pontinha do
distraidamente e de repente ali estavam: o jacaré, o tubarão, o
mar, ou dormindo um pouco com a cabeça encostada no vidro.
tucano, o macaco, o cachorro vivo, flagrado em meio a um sal-
A paisagem passava monótona e os pais calavam, como um fil-
to. Dinossauros, tartarugas ao fundo, um golfinho que sorria.
me mudo repetido. As viagens para ver os avós foram cessando
E mesmo sabendo do princípio de que as nuvens não são nada
até desaparecerem.
além de partículas de água em suspensão na atmosfera, ela sor-
A menina agora tinha seu próprio carro e o conduzia diariamente para o trabalho, com os mesmos olhos sérios e negros
riu e levou consigo, em sua partida, todos os bichos, o pai, a mãe
e o irmão que nunca veio.
51
Onde o vento
cruza as pernas
– Il problema non è il vento, ma la dire-
a direção em que o vento sopra, apesar de
zione in cui soffia il vento – disse aquele
ele soprar muito, e forte, e era este o pro-
estranho sentado em um banco de praça,
blema que afligia seu interlocutor.
detendo-lhe a atenção enquanto cami-
Seus cabelos estavam desgrenhados
nhava ensimesmada em um dia no final
pelo vento, mas era possível entrever, de-
do inverno. Era Semana Santa e o mundo
baixo do emaranhado rebelde, que tinha
parecia haver girado muito de repente,
um rosto jovial, uns olhos com cor de ou-
como quando se reprograma um GPS e
tono, a barba por fazer e um meio sorriso
aquela seta vermelha dá um salto no glo-
de lado que lhe mirava.
bo, fazendo as coordenadas geográficas
– Como? – perguntou em sua língua
mudarem completamente como em um
natal, sem sequer pensar ou traduzir,
relógio digital em pane.
surpresa pela súbita interpelação no
Há um lugar no extremo sul da Itália
meio do corso movimentado.
que, quando lhe perguntam onde fica,
A direção do vento. Nunca havia pen-
explica: é o solado da bota, longe, longe,
sado nisso, mas é verdade, este é o proble-
mais longe do que jamais havia pensado
ma, raciocinou rapidamente, tentando
em chegar. Mais fácil que dar as coorde-
controlar as pontas da echarpe que vo-
nadas que aparecem no GPS ou dizer o
avam descontroladas por todos os lados.
nome da pequena cidade, que poucos es-
O estranho tinha um cigarro apagado na
trangeiros conhecem. Mas, para o vento,
boca e lhe pediu fogo. Uma confusão de
tanto faz as coordenadas, pois ele corre
mãos se sucedeu em uma tentativa de-
por ali como se embalado pelos recortes
morada de construir uma barreira con-
do mediterrâneo, como se ali ele cruzas-
tra as fortes lufadas de ar. Ela sentou-se
se todas as suas pernas que vêm tanto
no banco a seu lado para ajudá-lo na-
do norte, quanto do sul do planeta. E na-
quela difícil operação que era acender
quele cruze de pernas já não se entende
um cigarro justamente naquele ponto
52
um euro a mais na pequena bolsa.
geográfico onde o vento cruza as pernas.
em grupos clandestinos fazendo aquela
E de pernas cruzadas permaneceu por
última aposta demasiado alta, ela havia
O vento seguia implacável e quan-
um tempo, tendo também acendido seu
tido o privilégio de chegar tranquilamen-
do os cigarros ameaçavam apagar-se, o
próprio cigarro e parado para olhar os fa-
te, passando pelos controles de fronteiras
isqueiro voltava a prolongar um pouco
róis dos carros que passavam apressados,
sem questionamentos, ainda que tam-
mais o momento. Ela e o estranho con-
cortando aquele final de tarde.
bém vinda de um mundo terceiro onde
templavam a estátua a que chamavam
as coisas tampouco são assim, fáceis.
Il Cavatore desde aquele banco. O gigan-
Lado a lado, ela e aquele estranho, de
camisa vermelha e negra com padrão
Pensou nisso ao ver passar uma dupla
te de bronze e sua ferramenta afiada se
de xadrez e jeans surrados, permanece-
de africanos falando uma bonita língua,
destacavam agora, no crepúsculo, com
ram em silêncio, respirando ora a fuma-
melodiosa, mas que ela não entendia,
a iluminação noturna que acabava de
ça dos carros ou do cigarro, ora o vento
marcada por uma cadência de francês. E
ser acionada. A água jorrava por trás do
que vinha de todos os lados. Pensou nos
também quando foi interpelada por uma
domo desde os mecanismos da fonte,
caminhos e bifurcações de sua vida que
senhora que – já havia notado após al-
dando a impressão de que o gigante ha-
a levaram a atravessar o oceano e chegar
guns dias na cidade – chamava a todos de
via recém aberto uma fenda na pedra e
até aquele banco de praça, a sentar-se ao
avvocato.
fora congelado em seu movimento, como
lado daquele estranho que lhe transmi-
– Buona sera, avvocati – dizia a senhora
uma fotografia tirada no instante exato.
tia, apesar de tudo, uma familiaridade
a qualquer pessoa que passasse por aque-
Era esteticamente perfeito. Um homem e
agradável, com sua filosofia improvisada
la região, pedindo uma moeda. Porque ali
sua força, com todos os músculos, ossos e
e intempestiva sobre o grande problema
perto estava o tribunal de justiça e os se-
tendões em constante tensão e equilíbrio,
do vento.
nhores da lei circulavam com seus ternos,
o rosto sereno transmitindo um rasgo de
Da noite para o dia, encontrava-se em
gravatas e carros pelos cafés da praça. Seu
satisfação pela atividade.
uma das mais austrais partes da Europa,
italiano era carregado de muito sotaque
rota de entrada de tantos imigrantes que
e ela cobria a cabeça com um hijab cuja
saíam do norte da África para tentar a
cor já não se podia mais distinguir. Le-
A senhora de novo, com seu hijab, seu
vida no Velho Continente. Ao contrário
vava um bebê no colo; podia ser sua mãe,
bebê e sua bolsinha, lhe interromperam
destes que morriam, tantas vezes, nas
avó ou tia. Os olhos pedintes e grandes,
a contemplação do monumento. Equili-
perigosas travessias de barco, escondidos
emoldurados por uma espessa sobran-
brando o cigarro nos lábios, ela apalpou
dos olhos do mundo como se fazia nos
celha negra, não diziam muito acerca de
a bolsa e constatou que não havia nada
antigos navios negreiros, que entravam
sua idade, apenas sobre a expectativa de
naquele momento, afinal era também
– Per favore, avvocati, una moneta per il
bambino.
53
imigrante e o câmbio não a favorecia.
Quando pensava sobre isso, lhe parecia
ridiculamente absurdo o preço de cada
coisa. Melhor era não pensar. Já o estranho ao seu lado tirou, mecanicamente,
uma moeda do bolso e regalou à mulher,
que saiu satisfeita, agradecendo inúmeras vezes, caminhando rumo à Cidade
Velha.
Os cigarros finalmente se haviam consumido, o vento ainda (sempre) sem cessar. O rapaz agradeceu pela companhia
com um aceno de cabeça e ela também
se levantou, ajeitando a confusão de cabelos e pontas voadoras de echarpe. Despediram-se com um sinal desimportante
e andaram para direções opostas. Ele de
costas e ela, com o rosto voltado para o
vento.
54
As xicarazinhas na pia
As pequenas xícaras sujas de café na pia, com um pires e
que só sei dizer olhando dentro da chaleira de inox que ela ga-
uma colher (a menor de todas), são um sinal claro da passagem
nhou no casamento. (As peças “ganhadas no casamento” são
de minha mãe pela cozinha. Ela toma mais café do que o reco-
muito reconhecidas em casa por sua durabilidade e qualida-
mendado e os pequenos conjuntos de louça e talher manchados
de superiores a todos os demais objetos). Às vezes, minha mãe
de marrom, que se acumulam na cuba, denunciam seu vício
toma café também à noite, o que me deixa estupefata, não se
ao final de cada dia. A garrafa térmica sempre foi um tema de
importando nem um pouco com os meus protestos (“assim não
preocupação e atenção constantes em casa. Se se rompia, corrí-
vai conseguir dormir!”), porque, de todas as formas, ela se orgu-
amos a procurar uma substituta com a mesma qualidade, para
lha de ser um ser noturno, que pensa e produz muito melhor à
que a bebida favorita de mamãe não esfriasse rapidamente.
noite do que pelas manhãs.
Lembro-me de um modelo dos anos 80, azul de bolinhas
Quando eu era criança, fazia tudo para vê-la sorrir e me co-
brancas, e de uma marca chamada Alladin como uma grande
brir de elogios. Queria que ela me contasse de novo como apren-
referência na produção de garrafas térmicas. Hoje penso que
di a ler sozinha, que dissesse às suas amigas do meu prêmio de
elas são umas lâmpadas mágicas de energia e concentração
melhor redação do colégio. Perguntava-lhe o que ela achava de
para minha mãe. Todas têm, porém, o defeito de vazar ao servir,
tal coisa genial que eu havia feito ou comentasse uma ideia ori-
deixando manchas nas toalhas de mesa e sujando tudo ao re-
ginal que eu havia tido. Sentia, portanto, uma grande satisfação
dor. Em alguma época, minha mãe se orgulhava de dizer que só
em preparar-lhe o café, em servir-lhe as duas micro-colheres
ela sabia servir o café sem derramar.
de açúcar, misturar, levar-lhe em uma bandeja, só para escutar
Já as xicarazinhas jamais faltam, abundantes em conjuntos
que havia feito bem. A garrafa térmica invariavelmente vazava,
e modelos. Se uma se rompe, surgem outras trinta automatica-
mas eu me dedicava a limpar minuciosamente qualquer res-
mente, sem nenhum estresse. Ela às vezes recicla a mesma xí-
pingo a fim de entregar-lhe um pires imaculado por baixo da
cara usada ao longo da jornada, lavando-a brevemente sob água
diminuta xícara. E levava tudo aquilo me equilibrando, concen-
corrente, mas sempre deixando pelo menos uma ou duas sujas
trada, escutando o tilintar da colher. Posso ouvi-lo, ainda, o ti-
ao final do dia. Há muitos anos, só se considera desperta depois
lintar da colherzinha apoiada no pires. Quando aprendi a fazer
da primeira xícara do café açucarado, feito com água fervente
café como ela gosta, nem forte nem fraco, perto da pré-adoles-
passando pelo coador de papel, à moda brasileira. “Não muito
cência, orgulhava-me de meu talento.
forte, não muito fraco”, diz.
São duas colheres cheias de pó para uma medida de água,
– Como saiu este café? Forte ou fraco? – lhe perguntava, já
antevendo o elogio.
55
– Muito bom – respondia, sempre, em quaisquer circunstâncias. –Obrigada, querida. Já pode casar!
à temperatura exterior, e a minha total objetividade para lidar
com o tema – não penso mais que um segundo para decidir se
“Já pode casar” é sua forma de elogiar o meu desempenho na
devo levar uma sombrinha ao sair. Minha inquietude quanto
cozinha. Até hoje, mesmo eu estando casada, ela diz, ao provar
a passar longos períodos dentro de casa, levando-me a saídas
uma receita feita por mim que seja aprovada por seu exigente
intempestivas fora de hora, e seu temor e comodismo, que mui-
paladar: Já pode casar.
tas vezes a impelem para debaixo das cobertas dias a fio. Seu
– Já casei, mãe – provoco, só para ver sua reação.
gosto por planejamentos com antecedência e meu hábito de al-
– Eu sei, boba, é modo de falar.
terar planos no último minuto. Meu apreço por comprimidos e
Não sei dizer em qual momento de minha vida, ao lavar a
pomadas e seu pânico de alergias, levando-lhe sempre a se au-
louça, as xicarazinhas nos pires sujos passaram a me provocar
tomedicar com as gotinhas homeopáticas que toma desde me-
um incômodo tremendo. Porque são muito pequenas e delica-
nina para o que quer que seja. Sua nostalgia pelas histórias do
das, e lavá-las exige maior destreza e cuidado. Porque o restinho
passado, seu orgulho escancarado de mim, sua percepção agu-
de café escurece todo o resto da pia momentaneamente. Porque
çada, e meus olhos que se reviram a cada narração que se repe-
as xícaras acumuladas, junto com os cinzeiros abarrotados, são
te, a cada elogio público ao meu grande talento e inteligência,
a prova material da sua ansiedade e falta de autocontrole. Por-
dos quais agora eu duvido muito, e o meu medo de que ela seja
que em dias de maior movimento, as xícaras podem chegar a até
capaz de estar lendo meus pensamentos neste exato momento.
quatro ou cinco, atrasando toda a limpeza do resto da louça com
Ela se aterroriza e me critica, eu me impaciento e a critico ainda
toda a destreza e cuidado que exigem, por serem tão pequenas.
mais.
Cinco xicarazinhas, cinco pires, cinco colheres. Às vezes, vem
– Por que você não toma logo esta pastilha para abaixar a fe-
alguma amiga maquiada e então ainda tem a xícara com marca
bre? – falo, do corredor, já com o copo d´água e o remédio em
de batom, o que sempre me provocou um pouco de asco. Minha
mãos.
mãe quase não usa batom. Melhor.
Uma irritação parecida com esta da pequena xícara suja pas-
– Não estou acostumada, posso ter um treco. Você me conhece, eu sou alérgica a tudo! – cisma.
sou a pautar muitos tópicos de nossa relação à medida que es-
Ou então, se a convenço a experimentar algo novo:
tilos e comportamentos antagônicos foram surgindo entre nós:
– Este restaurante português foi muito bem recomendado. E
seu desenfreio em comer o que lhe vem à cabeça, com uma es-
tem bom preço! Vejamos...
pecial estima por açúcar, farinha de trigo e confeitarias, inver-
– Nada disso me apetece. Tenho certeza de que esta ambrosia
samente proporcional à minha mania de alimentação saudá-
aqui não chega aos pés da receita da vovó– comenta, mesmo com
vel. Sua preocupação com tudo que é relativo ao clima, à chuva,
a intenção de pedir a ambrosia só para provar, com os óculos na
56
ponta do nariz e as papilas gustativas desafiantes, estalando a lín-
Nós nos contamos coisas da vida, falamos da vida dos outros,
gua no céu da boca. Tudo isso para concluir que, realmente, a am-
nos emprestamos roupas e acessórios, fazemos confidências. Eu
brosia era uma porcaria e o lugar não era, assim, grandes coisas.
resolvo qualquer coisa que não funciona em seu telefone celu-
Se decido viajar, naqueles meus momentos de impulsividade que a fazem levar as mãos à cabeça e a andar de um lado para
o outro falando alto, questiona tudo.
lar e ela me orienta com relação a alguma burocracia que preciso resolver.
Ela pode ser muito divertida, dona de um senso de humor
– Você vai se hospedar na casa de uma pessoa que nem co-
afiado. Gosta de inventar apelidos para as pessoas que não apro-
nhece, em Berlim? Está muito frio, deixe para ir quando chegar
va ou dispara respostas rápidas e irônicas a perguntas idiotas,
o verão! Você não aguenta o frio! Pelo amor de Deus! – implora,
no que eu solto sempre uma gargalhada, surpresa com sua des-
com a voz carregada de drama e sofrimento, caminhando da
compostura. Gosto particularmente de ouvir seus escrachos a
cozinha para o quarto, com um pires e a xícara na mão.
políticos que aparecem no horário eleitoral da televisão ou a
– Mãe, em Berlim existe calefação. E aquele meu amigo me
recomendou esta pessoa, fique tranquila.
pessoas com quem andou se irritando.
– O médico demorou duas horas para me atender. Este anão de
– Seu amigo, quem é este seu amigo, aquele que nunca teve
jardim está pensando que é quem? Meio metro de altura e acha
juízo, que bebia na escola! Eu me lembro bem deste amigo! –
que é o rei da Áustria-Hungria, deixando o paciente esperando.
resmunga, para logo tentar me dissuadir de fazer tal viagem até
Ou então:
o esgotar de suas forças.
– Olha este candidato. É fanho. Não consegue nem falar. Nin-
No fim, ela faz o que quer e eu faço o que quero, não antes de
guém vai votar nele. Á em asa odo undo é anho – diz tapando o
uma discussão tensa, permeada por insistências e desistências.
nariz, reproduzindo o efeito do possível problema buco-nasal
Como duas linhas paralelas que nunca se encontram, mas que
do indivíduo.
seguem ali, uma ao lado da outra, fomos traçando nosso cami-
E toma café na mini xícara, e acende outro cigarro. Mesmo
nho, depois daquela fase em que eu lhe levava cafezinhos pela
quando falamos ao telefone, a milhares de quilômetros de dis-
manhã pedindo-lhe elogios.
tância, escuto a respiração que prende e solta a fumaça e a co-
Mas uma relação tão visceral não se afrouxa nem com a distância, nem com o mau humor, nem com a crítica vigilante de
lher que bate no pratinho depois de mexer a bebida. Torno a lhe
perguntar:
ambas. Às vezes nos divertimos muito, quando decido pegar
– Mãe, quando é que você vai parar de fumar, hein?
para mim também um café e sentar em sua varanda, roendo
– Não sei, não sei. Um dia... Um dia! Um dia! – e começa a can-
um biscoito. Ela fuma como sempre, eu acendo um cigarro es-
tar uma canção inventada naquele momento que comece com a
condida de mim mesma para apagar depois de três tragadas.
expressão “um dia”.
57
Talvez as relações entre mãe e filha sejam sempre este poço
de sentimentos contraditórios, esta fonte de dor e alegria, este
cordão umbilical que custa a romper, se é que se rompe. Uma
que se projeta na outra, dois egos femininos em constante embate, a tragédia da emancipação da filha, os ciúmes, a dependência emocional, o amor e o prazer: tudo que os psicanalistas
adoram abordar desde Freud. Isso me recorda, aliás, de um dos
poucos comentários que ela fez sobre quando decidi me submeter à psicanálise – decisão à qual, naturalmente, ela é contrária.
– Você paga uma fortuna para passar uma hora por semana
falando mal de mim para um estranho? Deixa de ser trouxa!
Hoje, a distâncias geográficas abissais, nos encontramos
muito pouco. Com encontros cada vez mais raros, às vezes anuais ou menos, ela vem me visitar ou eu viajo até sua casa e, nestas ocasiões, toda a tensão freudiana vem à tona em pequenas
explosões de indignação, teimosia e crítica, alternadas pelas
Glória Paiva, 33 anos, é
gargalhadas das mesmas anedotas de que só nós achamos graça.
uma
Em sua última visita, deixei-a no aeroporto e voltei para casa,
onde me pus a ordenar pratos e copos. Pousei os olhos no fundo
jornalista
para-
naense criada em Belo
Horizonte por pais cariocas. Agora, vive entre a
da pia e a xicarazinha estava lá, com o pires e a colher. Umas
Itália e a Espanha, onde
manchas de café frio no pratinho, o açucareiro sobre a mesa,
cursa um mestrado em
alguns grãozinhos brancos espalhados.
Jornalismo Literário na
– Ela precisa parar de tomar tanto açúcar – comentei em voz
alta, mas meu marido não ouviu.
Universitat
Autònoma
de Barcelona. Após mais
de dez anos dedicados
Senti chegando o familiar sentimento de irritação com o
ao jornalismo mineiro,
conjuntinho que teria que lavar. Mas acabou que enchi os olhos
começa agora a envere-
d´água. Ela esteve aqui, tomou café, me disse que já posso casar
dar pela literatura, uma
e foi embora.
de suas grandes paixões.
Trabalha como jornalista
e tradutora.
58
Alfredo
Fressia
Parênteses
Quando nasci o sexo foi um destino. Não se pode escolher ser poeta.
Mulheres eu nunca amei nenhuma sem dúvida porque as amei em
bloco. Foi um amor longo e sem alegria. Elas também me amaram sem desejo
e sem gozo.
Olhei para elas com a nostalgia de uma vida mais bela. Quando quis ser
melhor quis ser mulher.
Depois me esqueci. Devorei a costela de Adão na travessia do deserto.
Fui homem, poeta, amei outros homens. Tive fome.
Cheguei na praia deste mar eterno, no sul do Brasil. Meu cheiro é de sal
virgem e de iodo azul. Sei que uma mulher devolverá ao mar o peixe com uma
moeda na boca.
Ela escreve meu poema. Eu aguardo.
60
Alfredo e eu
Dorme sob o firmamento
a flora paciente do inverno.
Eu também durmo em meu quarto de pobre.
Do lado cego do travesseiro,
um outro Alfredo tirita, é uma asa
ou uma sombra que eu prendi com alfinetes
entre as folhas de ervário, um insone
aprisionado nas nervuras,
meu fantasma transparente.
O que farei contigo, Alfredo?
Lá fora passará um dromedário
pelo olho de uma agulha, um milagre,
a longa ladainha de teus santos
para escapar do labirinto,
tocar o infinito ferido pela flecha
na constelação do Sagitário
e sempre a tartaruga em teu poema
ganhava a corrida.
Sobrevivo a cada noite
como um potro celeste
nutrido com alfafa e com estrelas
enquanto, tu, Alfredo, tens o odor
das ervas secas
na gaveta abarrotada de segredos.
Eu te esqueço ao despertar, continuo minha busca
obstinada no palheiro do mundo
e te reencontro no travesseiro
espetado no outro lado de meu sonho.
61
O medo, pai
Pai, eu me espanto
de estar preso em meu corpo, o condenado
umbral, perfeito, este retorno, pai,
eternamente em viagem e morto, pelas quatro
estações e a sorte
jogada dos homens, os filhos
obedientes da espécie, pai,
os mortos vindouros. Quem é
este hóspede em meu corpo? Estes anos,
de quem são prisioneiros nas veias?
O que eu faço, pai, com meu espanto
em cima, e meus dias
nos dias implacáveis dos homens?
62
A última ceia
Um dia destes
escapavam corvos dos meus bolsos
e um ovo na alma
como um mal-entendido, como a alma,
obstruía meu esôfago. Matador
dos corvos, antes ovo, e alma,
eles me anulavam como um morto.
Escrevo a sombra da alma no esôfago.
Sou traidor, como uma viagem fabulosa
ao redor do corvo,
do ovo ou da morte.
Sou um mal-entendido que ameaça
e em perigo, um espantalho,
inútil como um ovo, depois corvo
ou a poesia.
63
(Final)
Encerro todo ciclo, em mim me acabo.
Tirésias contempla o travesti em silêncio,
por séculos se responde um eco humano
e em mim me acabo.
Alfredo Fressia (Montevidéu, 2 de agosto de 1948) é um poeta, ensaísta,
tradutor e professor uruguaio .Formado como professor de Literatura e
Língua Francesa, Alfredo Fressia dá aulas em Montevidéu até 1976, ano em
que a ditadura uruguaia o destitui. A partir de então instala-se em São
Paulo, Brasil, onde continua dedicado à poesia e ao ensino. Desde o fim
da ditadura, em 1985, Fressia volta sistematicamente a Montevidéu, onde
reside ao menos dois meses por ano. Exerceu o jornalismo cultural em
varias mídias do Uruguai, Brasil e México. Foi editor da revista mexicana
de poesia La Otra, na edição impressa, desde 2008 até 2013. Sua obra poética, várias vezes premiada, foi traduzida do espanhol para o português,
francês, inglês, italiano, grego e turco. No Brasil encontram-se ainda as
edições de Lumme Editor dos livros: Canto desalojado, Destino: Rua Aurora
e El futuro.
64
Giuseppe
Ungaretti por
Francesca
Cricelli
L’Illuminata rugiada
La terra tremola
di piacere
sotto un sole
Orvalho iluminado
A terra treme
de prazer
di violenze
sob um sol
gentili
de violências
gentis
66
Apocalipses
Apocalissi
I
I
Pela fenda de uma janela, luz
Da una finestra trapelando, luce
A copa da árvore exibe
Il fastigio dell’albero segnala
Livre de folhas.
Privo di foglie.
II
Se unico subitaneo l’urlo squarcia
II
Se único e repentino o grito rasga
L’alba, riapparso il nostro specchio solito,
A alvorada, reaparecido nosso espelho usual,
Sarà perché del vivere trascorse
Será por que do viver passou
Un’altra notte all’uomo
Outra noite pelo homem
Che d’ignorarlo supplica
Que por ignorá-lo suplica
Mentre l’addenta di saperlo l’ansia?
III
Di continuo ti muovono pensieri
Palpito, cui, struggendoli, dai moto.
IV
La verità per crescita di buio
Più a volare vicino s’alza l’uomo,
Si va facendo la frattura fonda.
Enquanto morde-lhe a ansiedade de ser visto?
III
Movem-te, sempre, pensamentos,
Palpitação, aos quais, por atrito, dás movimento.
IV
A verdade, pelo acrescer do escuro
Mais próximo se eleva o o vôo do homem,
Mais funda faz-se a fratura.
67
Mandolinata
Mi levigo
come un marmo
di passione
Para bandolim
Puir a mim mesmo
marmóreo
de paixão
68
Godimento
Mi sento la febbre
di questa
piena luce
Gozo
Sinto a febre
desta
luz plena
Accolgo questa
Acolho este
giornata come
dia como
il frutto che si addolcisce
fruta que se adoça
Avrò
Terei
stanotte
un rimorso come un
esta noite
latrato
um remorso como um
perso nel
latido
deserto
perdido
no deserto
69
Pensavo oggi,
guardando questo
cielo piovigginoso, che se, per un’improbabile grazia, si fosse d’improvviso alzato l’azzurro, non sarei
stato colto né da stupore, né da speranza. Anche
la nostalgia ha finito di persuadermi. Ho varcato
Pensava hoje,
olhando para este céu chuvoso, que se,
por uma graça improvável, se levantasse improvisamente o
azul, não seria tomado nem pelo estupor, nem pela esperança.
Até a saudade já não me persuade mais. Atravessei todos os
tutti gli stadi dove l’uomo può ancora trovarsi una
estados nos quais o homem ainda pode encontrar uma razão
ragione di vivere.
para viver.
Gli alti cieli delle notti chiare, se mai ancora
dovessero scoprirsi per me, avrebbero un significato di commiato.
Non sai – e chi saprà? – quest’infelicità di sentirsi abbandonato.
Abbandonato anche dalle cose; anche dalla
terra, anche dal mistero delle stagioni.
Non aver prossimo; si potrebbe popolare il
mondo di confidenti immaginari; ma non essere
cresciuto in nessuna terra; ma non portare in
Os altos céus das noites claras, se um dia tivessem que abrir-se para mim, significariam despedida.
Não conheces – e quem conhecerá? – esta infelicidade de
sentir-se abandonado.
Abandonado até pelas coisas; até pela terra, até pelo mistério
das estações.
Não ter próximo; poderia popular o mundo com confidentes
imaginários; mas não ter crescido em terra alguma; mas não le-
nessun luogo l’aria famigliare dell’origine; ma va-
var em lugar algum o ar familiar da origem; porém vagar sem-
gare sempre in esilio.
pre em exílio.
Mi sono creato un paese di cristallo, perché fatalmente dovessi accorgermi, da qualsiasi punto,
che non era naturale.
E non si può vivere a lungo di quest’allucinazioni ideali.
Criei para mim um país de cristal, para que tivesse que fatalmente dar-me conta, estando em qualquer lugar, que não era
natural.
E não é possível viver longamente destas alucinações ideais.
La vita è una dura disputa mossa da guai con-
A vida é uma dura disputa movida por enrascadas concretas,
creti, e ci vuole un terreno nel quale attecchire, e ci
e é necessário um terreno sobre o qual enraizar-se, e é preciso o
vuole il caldo che maturi e dori, e ci vuole la sera
che inondi di malinconia e la mattina che rinfreschi e rassereni.
Non ho che strade, strade, e strade; il grigio
perfido di questo cammino senza conclusione.
calor que amadureça e doure, e é precisa a noite que inunde de
melancolia e a manhã que refresque e acalme.
Não possuo nada mais que estradas, estradas, e estradas; o
cinza pérfido deste caminhar sem conclusão.
70
Tradutora, Francesca Cricelli é doutoranda em
Giuseppe Ungaretti, o poeta das quatro pátrias
Estudos da Tradução (USP). Em 2015, publicou
(Egito, Itália , França e Brasil) nasce no Egito, em
o livro Repátria, pela editora Demônio Negro.
Alexandria, no dia 8 de fevereiro de 1888, numa
Organizou e traduziu a correspondência entre
família toscana. Sua formação desde menino
Giuseppe Ungaretti e Edoardo Bizzarri 66-68
é, porém, francesa. Em 1912 muda-se para Paris,
(tradutor de Guimarães Rosa para o italiano).
gradua-se na Sorbonne e entra em contato com
É curadora das cartas de amor de Giuseppe
as vanguardas do princípio do século XX. Luta
Ungaretti para Bruna Bianco (Mondadori,
durante a Primeira Guerra Mundial, combaten-
2016). Traduziu Mario Luzi, Pier Paolo Pasolini,
do na Itália e na França. Vive em São Paulo de
Giuseppe
Leopardi,
1937 a 1942 lecionando literatura italiana na USP.
Jacopone da Todi. É tradutora dos psicanalistas
Perde, então, seu filho Antonietto, marca inde-
italianos Vincenzo Bonaminio (Imago, 2010) e
lével em sua biografia e poesia. A publicação
Franco Borgono. Traduziu este Apocalipses para
dos seus primeiros livros – Il Porto Sepolto (1916)
as plaquetes do Hussardos Clube Literário, do
e Allegria di Naufragi (1919) –, representa um dos
qual é sócia fundadora, junto com Vanderley
momentos mais significativos da formação da
Mendonça.
poesia contemporânea italiana. Ungaretti é um
Ungaretti,
Giacomo
dos fundadores do hermetismo.
Os poemas publicados aqui fazem parte das plaquettes do Hussardos Clube Literário, que tem autorização para reprodução das traduções.
71
ensaio
fotográfico de
Juliana
Rocha
Beira é um estudo fotográfico sobre a relação de desejo e – ao mesmo tempo – repulsa entre o corpo e o mundo; a ânsia de pertencimento que termina por nos demarcar ainda mais as fronteiras. A
proposta é que a partir da subversão da forma, a desordem da nossa existência, o alheamento do ser ao que o rodeia e todos os limites que nos definem como indivíduos se dissolvam numa sensação
que extrapole a experiência singular. As fotos foram produzidas em
negativos preto e branco e a maior parte do material foi revelada
em um laboratório caseiro. Arranhões e manchas funcionam como
analogia aos processos físico-químicos catárticos que permeiam, incontroláveis, a nossa afirmação de realidade.
Então, eu sou cearense. Vim pro rio com 18 anos pra faculdade de
jornalismo – UFRJ – mas no meio da faculdade comecei a trabalhar
com fotografia. Em 2010 entrei no RIOetc e sou editora de imagens lá
até hoje. Mas o que realmente me despertou pra meu trabalho autoral foi o projeto que fiz durante um ano, com o celular, fotografando
a praia de Copacabana no amanhecer. Tudo começou no Instagram
e virou um livro, chamado Copacabana Sentimental. Em 2015 eu comecei a trabalhar com fotografia analógica e isso virou uma paixão.
Tô sempre com minha FM2 na bolsa, com um filme preto e branco.
Lista de autores já publicados
Alan Kramer, Ana Guadalupe, Ana Kehl de Moraes, Ana
Martins Marques, Ana Rüsche, André Oviedo, Andréa Del
Fuego, Aníbal Cristobo, Barbara Mastrobuono, Bruna Beber,
Bruno Palma e Silva, Carina Sedevich, Carla Kinzo, Cecilia
Pavón, Charles Cros, Daniel Francoy, Daniella de Paula,
Déa Paulino, Deborah Prates, Dimitri br, Edu Suppion,
Ellen Maria Vasconcelos, Érica Zíngano, Fabiano Calixto,
Fabíola Weykamp, Fabricio Corsaletti, Felipe Nepomuceno,
Francesca Cricelli, Gabriela Ventura, Gertrude Stein,
Giuseppe Ungaretti, Grazi Shimizu, Guilherme Damasceno,
Ismar Tirelli Neto, J.F. de Souza, Jimena Arnolfi, Juliana
Amato, Juliana Krapp, Kenneth Koch, Luana Vignon, Jeanne
Callegari, Julia de Souza, Julianna Motter, Laura Liuzzi,
Leandro Jardim, Leo Ventura, Leonardo Gandolfi, Lielson
Zeni, Lilian Aquino, Lubi Prates, Luca Argel, Lucas Perito,
Luci Collin, Ludmila Rodrigues, Lyn Hejinian, Marcos
Vinícius de Almeida, Maíra Ferreira, Maíra Matthes, Marcos
Casadore, Mariana Botelho, Marília Garcia, Marcia Pfleger,
Matheus Hatschbach, Mirella Carnicelli, Miriam Adelman,
Múcio Góes, Nathalie Lourenço, Noemi Jaffe, Odile Kennel,
Pierre Masato, Rafael Mendes, Raimundo Neto, Ricardo
Domeneck, Rodrigo Garcia Lopes, Rosa van Hensberger,
Rubens Akira Kuana, Sergio Mello, Stephanie Borges, Tao Lin,
Thiago Ponce de Moraes, Thiago Tizzot, Vanessa Rodrigues,
Victor Heringer, Virna Teixeira, William Zeytounlian.
Fotógrafos
Adelaide Ivánova, Ana Kehl de Moraes, André Lasak,
Alexandre Santos, Carol de Andrade, Camila Lordelo, Daniela
Feder, Edu Suppion, Julio Perestrelo, Marcel Fernandes,
Mariana Caldas, Raphael Bernadelli, Rodrigo Sommer,
Thany Sanches, Vanessa Carvalho.
Edição
Bruno Palma e Silva
Lubi Prates
Fotos
Pedro Ferrarezzi
instagram.com/pdrfrrrzz
Projeto gráfico
Bruno Palma e Silva
palmaesilva.com.br
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