o cotidiano na arte: entrevista com o público de

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o cotidiano na arte: entrevista com o público de
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GT 1 - CULTURA, DIFERENÇAS E DESIGUALDADES – SESSÃO 1
16 DE JUNHO DE 2015 – 14H
COORDENADXR E DEBATEDXR: DR. JORGE LEITE JR
LOCAL: AUDITÓRIO 1 DA BIBLIOTECA – ÁREA NORTE
O COTIDIANO NA ARTE: ENTREVISTA COM O PÚBLICO DE
OBRAS E SUAS EXPECTATIVAS
ALEXANDRA AGUIRRE1
[email protected]
GT 1 - Cultura, Diferenças e Desigualdades
O artigo procura compreender quais ações sociais estão presentes na recepção de obras
de arte contemporânea por meio de entrevista com público de obras, em que se buscou
reconhecer recursos e métodos compartilhados com outros visitantes, o artista, a obra e a
crítica. O ponto de vista da etnometodologia é de que as ações sociais e interpretações são
orientadas por métodos e gestão destes métodos compartilhados entre agentes. Estes recursos
estão disponíveis e são objeto de expectativa entre os agentes. Consideramos que são levados
para o interior de galerias e museus, à revelia de observadores, artistas e instituições. Para
observar e interpretar obras, utilizamos informações que orientam o olhar, o movimento do
corpo, o pensamento e a sensibilidade. Estas informações podem estar nas próprias obras –
cores, traços, figuras, materiais, etc. – ou no contexto mais amplo da exposição – no título da
obra, no texto da crítica, na biografia do artista, no comportamento dos outros observadores –
e, ainda, num contexto mais amplo ainda que antecede a exposição e que comporta
exposições anteriores, conhecimento estético e história da arte, etc. Em obras de arte, as
expressões indiciais que remetem a um quadro de referência ou metodológico também estão
presentes, os “istos” são as cores, traços, materiais, figuras que dependem do contexto da obra
– ou dos contextos mais amplos para estabilizar seu significado. Este artigo é a edição
reduzida do segundo capítulo da tese de doutoramento ―Interação na produção e recepção de
obras de arte contemporânea‖, sob a orientação do Prof-Doutor Ronaldo de Oliveira Castro,
pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro, em 2014.
Introdução
Utilizamos a fenomenologia do mundo social (SCHÜTZ, 2012; TEIXEIRA, 2000;
WAGNER, 2012) e o ponto de vista da etnometodologia (GARFINKEL, 2006; HERITAGE,
1999; GIDDENS, 1998) para pensar a recepção de obras de arte. Partimos do princípio de que
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Doutora em Ciências Sociais (UERJ), especialista em História da Arte e Arquitetura (PUC- Rio), mestre em
Comunicação Social (UFRJ). Leciona na Universidade Castelo Branco (RJ).
Programa de Pós Graduação em Sociologia
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o observador de obras, como o agente cotidiano, participa de um sistema de relevâncias –
métodos de agir típicos de um grupo ou comunidades de interesse – e também compartilha a
gestão desses métodos ou usos para orientar sua ação e interpretação. Por exemplo, tornar
visível ou não indícios do quadro de referências, a partir do qual se fala e age; esperar a ação
do outro para confirmar expectativas; utilizar a memória para antecipar ações; remeter à
biografia do interlocutor; se colocar no lugar do outro, etc. (GARFINKEL, 2006. p. 52). Em
experimento que analisa a conversa de um casal, Harold Garfinkel identifica os recursos de
gestão dos quais ambos lançam mão: remissão a assuntos não mencionados; as falas que se
orientam respectivamente; remissão às respectivas biografias e às ―perspectivas futuras de
interação‖, e sua utilização como esquema de interpretação; e, por fim, o aguardo do
desenrolar da conversa para o entendimento retrospectivo (GARFINKEL, 2006. p. 52).
Segundo a etnometodologia, as interações têm uma espessura temporal que é função
deste ato de ―investigação‖ que o agente faz de seu contexto. Como ele se apoia em
pressupostos, os ―vistos, mas não percebidos‖ (GARFINKEL, 2006; SCHUTZ, 2012) típicos,
do senso comum, ou de sistemas de relevâncias mais específicos, conferir, checar, antecipar
se estes pressupostos estão vigendo no contexto, garante a condição de ―normalidade‖ da
situação. Termos indiciais, como “isto”, que dependem do contexto para significar, como os
“etc” ou expressões “como você sabe” ou “blá, blá, blá” nas conversas são usados com
destreza pelo senso comum, ao gerir alternâncias entre significados e contextos. Termos ou
expressões indiciais remetem ao uso feito pelo grupo ou comunidade de interesse, a ―Relaçãode-Nós‖ (SCHUTZ, 1953), que os agentes pressupõem entre si. Interagir é gerir estes usos.
Porém, nem sempre se está lidando dentro da Relação-de-Nós e alguns recursos de gestão do
conhecimento comum, como os utilizados pela ―tese geral das perspectivas recíprocas‖
(SCHUTZ, 1953) e o preenchimento de lacunas com tipicalidades (somatório das
experiências da sociedade do qual se pode ―lançar mão‖ e que constitui o senso comum)
garantem a interação entre estranhos, pois, embora, as experiências sejam percebidas como
diferentes, os agentes assumem idealmente o intercâmbio de pontos de vistas e utilizam
conhecimento típico e padronizável para dar significado a comportamentos, gestos, termos
que desconhece.
Para observar e interpretar obras, utilizamos informações que orientam o olhar, o
movimento do corpo, o pensamento e a sensibilidade. Estas informações podem estar nas
próprias obras – cores, traços, figuras, materiais, etc. – ou no contexto mais amplo da
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exposição – no título da obra, no texto da crítica, na biografia do artista, no comportamento
dos outros observadores – e, ainda, num contexto mais amplo ainda que antecede a exposição
e que comporta exposições anteriores, conhecimento estético e história da arte, etc. Em obras
de arte, as expressões indiciais que remetem a um quadro de referência ou metodológico
também estão presentes, os “istos” são as cores, traços, materiais, figuras que dependem do
contexto da obra – ou dos contextos mais amplos para estabilizar seu significado.
Arthur Danto em ―A tranfiguração do lugar comum‖ (2010) mostra como o título de
uma obra pode orientar interpretações distintas, já que destaca indícios em lugar de outros e faz
o olhar do espectador passear espacialmente pela tela. A pintura do exemplo é ―Paisagem com a
queda de Ícaro‖ (ver figura 1), de Bruegel, em que as pernas de Ícaro no mar, no canto inferior
esquerdo, são apenas um detalhe na composição.
Imaginem agora quão diferente seria a leitura da obra se ela fosse intitulada
Lavrador perto do mar, uma pintura bucólica ou um exemplar dos primórdios da
arte proletária. Ou então se o quadro se chamasse Paisagem n. 12. Reparando
naquelas pernas, um observador poderia entendê-las como mero detalhe da pintura
flamenga, tal como o cão do pastor ou as figuras que aparecem na estrada distante.
[…] A obra de Bruegel também poderia ser intitulada Labores na terra e no mar, e
as pernas poderiam ser de um pescador de pérolas ou de um vendedor de ostras; […]
(DANTO, 2010, p. 180)
Para Jacques Aumont (2005), o olhar se espacializa na imagem pelo fato do
observador ―não ter olhar fortuito‖, mas ―informado‖, e ser orientado por ―ordens‖, como o
título da obra acima, em oposição a ―uma olhada sem intenção particular‖ (AUMONT, 2005,
p. 61). O autor refere-se à espacialização do olhar como ―busca visual‖ (grifo nosso):
Tentou-se prever as trajetórias de exploração de uma imagem pelo olho, mas, se não
for dada uma ordem explícita, essas trajetórias são uma inextricável rede de linhas
quebradas. O único resultado constantemente verificado é de que a trajetória é
modificada pela introdução de ordens particulares, o que é normal em vista do que
dizíamos: um olhar informado desloca-se de outro modo no campo que explora.
(AUMONT, 2005, p. 61).
Além do título, outras ―ordens‖ podem orientar o observador de obras, como o texto
da crítica e do artista, a posição espacial das obras pela curadoria, a observação e a conversa
com outros visitantes, etc.
Figura 1
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Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Pieter_Bruegel_de_Oude_-_De_val_van_Icarus.jpg. Acesso
em: 18 mar. 2013.
Para Alfred Schütz, o campo espacial é utilizado pelos agentes na ―investigação‖ do
contexto em que se encontram: ―Eu, estando ‗aqui‘, estou a outra distância e experimento
outros aspectos sendo típicos dos objetos do que ele que está ‗lá‘‖ (SCHÜTZ, 1953, p.8).
Alunos de Harold Garfinkel para um experimento em que deveriam se comportar como
estranhos observaram que: ―os objetos familiares — obviamente pessoas, mas também
móveis e decorações — resistiam aos esforços dos estudantes em pensar-se a si mesmos como
estranhos‖ (GARFINKEL, 2006, p. 58).
Ligia Dabul reflete sobre a recepção de obras em grandes exposições e constata que
ela não pode ser isolada de ações cotidianas, como a conversa. (DABUL, 2008, p. 55). Os
participantes confirmam ou não as expectativas de interpretação entre si de forma muito
semelhante como o fazem no cotidiano - ―comunicando impressões estão também sondandoas e lhes agregando itens das impressões e formulações daqueles com quem tentam interpretar
a obra‖ (DABUL 2008, p. 59) -, do mesmo modo como são orientados por outros - ―[...] que
alguém se veja atraído pela conversa de seus acompanhantes sobre algum objeto ou assunto
derivado de sua observação e eventualmente dirija seu olhar para ele‖, […] (DABUL 2008, p.
56) -, o que acaba servindo à avaliação das obras.
A orientação pelo outro é compreendida pela fenomenologia do mundo social como
situação ―originária‖ do indivíduo, assim como a participação em comunidades de interesses e
sistemas de relevâncias que é a ―orientação-pelo-Nós‖, pois a sociedade já é de antemão
constituída por experiências anteriores, na origem das experiências particulares que o
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indivíduo venha a ter. A presença de objetos também é originária, coisas e artefatos estão
disponíveis à interpretação, uso e apropriação. Para Alfred Schütz, o ato de escutar música é
constituído de uma espessura temporal semelhante à interação entre agentes. É por meio de
antecipações, memorização, remissão a ausências, identificação de padrões que o ouvinte não
apenas participa do contexto sonoro, como constitui o contexto da audiência (grifo nosso).
O fluxo dos tons transcorrendo no tempo interno é um arranjo significativo tanto
para o compositor quanto para o espectador, porque e na medida em que evoca no
fluxo da consciência participante um emaranhado de recordações, retenções,
projeções e antecipações que relacionam todos esses sucessivos elementos.
(SCHÜTZ, 2012, p. 228).
A participação do público, sob a forma de interação, está presente não porque ele está
diante da obra, mas porque este é o modo de agir e interpretar cotidianamente, que não é
deixado para trás, tão logo se entra numa galeria ou museu, ou quando se está diante de uma
obra pública. Investigam-se indícios sob a forma de signos, materiais, cores, gestos que se
manifestam e se cruzam de várias maneiras. Alguns recursos que ajudam o agente a gerir as
informações de que disponibiliza são muito comuns na observação de imagens. Enquanto nas
interações cotidianas, ações padronizadas têm mais chance de terem eficácia, pois respondem
a expectativas típicas, imagens típicas também respondem ao maior número de expectativas.
(AUMONT, 2005, p. 68)
Lígia Dabul afirma que um dos temas recorrentes nas conversas de exposição refere-se
à ―intenção‖ do artista, sob a forma de ―um segredo, mistério ou verdade detida pelo artista,
que mesmo inconscientemente disporia de sua ‗chave‘‖: ―é uma narrativa que ‗dá lugar a
certa tolerância quanto à não-clareza, à impossibilidade de compreender a mensagem, o que o
artista ‗realmente quis dizer‘, pois ‗nem sempre ele pode dizer tudo‘‖ (DABUL, 2008, p.
58). Para a estética da recepção, a intenção do artista, diferente do significado ou conteúdo da
obra (ISER, 1996), está relacionada à eficácia da comunicação da obra, que se realiza quando
o leitor se submete ao quadro de referências do autor, sua condição de satisfação. Para ilustrar
esta aplicação do termo ―intenção‖ utilizamos um exemplo de Arthur Danto, que remete ao
personagem de Jorge Luis Borges, Pierre Menard, escritor da obra igual, ipsis letteris, a de
Cervantes, ―As aventuras de Dom Quixote de La Mancha‖ (DANTO, 2010, p. 77). Para o
autor a obra de Menard só poderia ser compreendida à luz da intenção de seu autor as
estratégias que utiliza para reescrever a obra de Cervantes. Se olharmos somente a obra, como
resultado, não passa de falsificação ou cópia sem valor. Ela torna-se obra pela experiência do
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autor em reescrevê-la, a partir do conhecimento prévio que tem da obra de Cervantes, da
época diferente a que pertence, do estilo que não é o seu, etc. (grifo nosso).
E no fundo, de certa forma, é uma obra muito original, tão original que dificilmente
encontraríamos uma sua predecessora em toda a história da literatura. Quem antes de
Menard teria ousado tentar reelaborar com impulsos criativos próprios uma obra
que emanou de um conjunto de impulsos tão diferente, numa época tão diferente e
da alma de um artista tão diferente e de certa maneira bem menos refinado?
(DANTO, 2010, p. 79).
Para o leitor ou observador de obras poder se fazer a pergunta sobre a intenção – como
significado a descobrir ou como quadro de referências ao qual se submeter – ele precisa lançar
mão do recurso cotidiano da ―Tese da perspectiva recíproca‖ que é a de se colocar no lugar do
outro, no caso, do autor da obra.
Entrevista com público
Fizemos entrevistas com observadores da videoinstalação, de Elisa Pessoa, ―Diálogo‖2
(ver figura 2) com o objetivo de identificar os usos e recursos de gestão compartilhados pelo
público. Sete observadores se disponibilizaram a responder à entrevista, enquanto quatro se
recusaram. As entrevistas foram efetuadas em um dia3, na Antiga Fábrica Bhering4, que situase em bairro afastado e de poucos recursos, a divulgação foi feita por redes sociais, e o
público, portanto, não era de massa como normalmente ocorre com as exposições nos grandes
centros culturais. Para criar as perguntas levamos em conta as propriedades que um membro
da sociedade utiliza para afirmar a ―normalidade‖ de algo, no caso, o contexto da exposição.
Não se questiona o que se é pressuposto, e se o faz, é sempre ―superficialmente‖, já que ―os
membros dão por certo que qualquer um deve ‗conhecer‘ o cenário no qual opera‖
(GARFINKEL, 2006, p. 17). Frases como ―até meu filho faz algo assim‖, ao tentar refutar a
2
A videoinstalação projeta em escala 1:1 duas pessoas de perfil que trocam frases curtas sem sentido explícito.
Os personagens alternam as falas e lugares, e a projeção é reproduzida em looping infinitamente.
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A videoinstalação foi contemplada com a Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais 2013. Foi
exibida na Antiga Fábrica Bhering no dia 26 de outubro e 16 de novembro de 2013, data em que da entrevista.
A obra participou também da exposição ―A realidade é só uma forma‖, no Centro Cultural da Justiça Federal, do
dia 18 de janeiro a 27 de fevereiro de 2014. A videoinstalação é um projeto em parceria com a escritora Paloma
Vidal e a poeta Gab Marcondes.
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Fábrica desativada e ocupada por artistas em área próxima ao centro do Rio. Hoje o bairro de Santo Cristo, na
região do porto é objeto de reformas e ―revitalização‖, mas, em 2013, ainda estava em condições precárias de
acesso, segurança e moradia.
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condição artística da obra, afirmam a existência do campo da arte baseado na habilidade do
artista e na estética.
É parte desta situação de ―normalidade‖ também os ―relatos‖ – explicações sobre as
ações – que as visibilizam e tornam familiares aos membros do grupo: as ―práticas
‗reflexivas‘‖ pelo ―fato de que por estas práticas de explicação os membros tornam as
atividades ordinárias e familiares da vida cotidiana algo reconhecível como atividades
ordinárias e familiares‖ (GARFINKEL, 2006, p. 18). Harold Garfinkel, além do recurso
metodológico para os experimentos da ―quebra de expectativas‖, também, utiliza o ―método
de interpretação documental‖ (HERITAGE, 1999, p. 339).
Figura 2
Fonte: Elisa Pessoa
Neste método, propositalmente, incertezas e lacunas eram deixadas para que os
participantes preenchessem com o que consideravam os pressupostos da interação, ―os vistos,
mas não percebidos‖, e tecessem juntamente com o experimentador o contexto, até então,
inexistente. Decidimos, portanto, pensar a entrevista como contexto a ser tecido entre
entrevistado e pesquisadora, de modo que perguntas e respostas tomassem a forma de ―relato‖
ou ―explicações‖ que os membros dão de suas próprias ações: ―as explicações são traços
constituintes desses cenários que as mesmas explicações tornam observáveis‖ (GARFINKEL,
2006, p. 17). Embora, algumas perguntas tinham por objetivo romper expectativas e revelar a
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situação de ―normalidade‖ pressuposta, elas não tinham por objetivo pôr em risco a própria
entrevista.
Para os elementos que compunham o estatuto de ―normalidade‖ da ―exposição‖,
utilizamos a pesquisa de Ligia e a controversa que a ―intenção‖ do artista mobiliza;
consideramos também o fato de que exposições ―comumente‖ utilizam catálogos com textos
da crítica e curadoria que orientam a interpretação do público, como as conversas e
observações de outros; levamos em conta que a existência de um ―campo da arte‖ pressuposto
é o que legitima a exposição; e, por último, a ―função autor‖ (FOUCAULT, 1992), como
recurso típico para a recepção de obras, pois dá coerência a produções dispersas.
Os entrevistados são nomeados ficticiamente Maria, André, Paulo, Silvia, Nilza,
Sérgio e Ana conforme a ordem cronológica de participação na pesquisa. Segue o formulário
das perguntas e as expectativas acerca do uso de seu conteúdo:
“O que o artista quer dizer com a obra?”
Esta pergunta pressupõe que haja uma intenção e que ela é capaz de ser descoberta.
A crença recai sobre a entrevistadora e sobre o senso comum. De fato, nenhum dos
entrevistados se opôs à pergunta, e embora, a maioria tenha utilizado termos que expressam
dúvida, como ―acho‖, imaginar ou idealizar qual a intenção do outro é um recurso de
interação do qual se lança mão, e não uma crença de que realmente se sabe a ―intenção‖ ou de
que haja uma. Maria foi a única a questionar a pergunta, mas, ao fim, retoma-a, respondendo e
legitimando o contexto da entrevista. Em relação ao senso comum, Lígia Dabul julga o tema
pela capacidade de ―acolhimento‖ que tem de diversas posições, qualidade própria da
tipicalidade. ―Para além da temática reconhecida e atualizada quando a atenção se volta para
as obras, parte importante das conversas em exposições diz respeito ao que o artista ―quer
dizer‖. Nelas os comentários se superpõem, raramente se contrapõem‖. (DABUL, 2008, p. 58
- grifo nosso).
O recurso de gestão que esta pergunta exige é a ―tese da reciprocidade de
perspectivas‖, pois diferente de outras crenças, esta pergunta leva em conta que a motivação
ou intenção do artista possa ser experimentada ou conhecida, porém sempre de modo
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idealizado ou tipicalizrado. Maria ao responder utiliza o que teria dito à artista para responder
sobre sua intenção:
Entrevistadora - Você conversou com a artista sobre a obra?
Maria - Sim. Disse que achei essa obra da artista muito mais teatral. Acho que
aquela primeira pergunta sobre qual foi a intenção da artista a partir da obra de
arte, acho que, essa obra, a [artista], de alguma forma, mais diz o que ela quer,
mais deixa claro e objetiva a intenção do que ela quis fazer. Acho que é a mais
explícita.
Esta situação se repete em outras respostas dos entrevistados e revela que, além da
tipicalidade para atribuição da motivação dos outros, utiliza-se também a experiência própria,
autointerpretação, para identificar esta idealização (SCHÜTZ 1953, p. 12). A ideia de que é
possível imaginar e compartilhar o processo de produção de uma fala, de uma música, de uma
imagem já vem sendo discutido aqui, exemplificado pela música e a façanha de Pierre
Menard. Porém, as respostas variam em suas composições. A resposta de Maria remete ao
uso que a artista faz dos recursos que têm à mão, mas não afirma qual o resultado ou
sentido dar à obra: a obra é […] ―mais teatral […] de alguma forma, mais diz o que ela
quer, mais deixa claro e objetiva a intenção do que ela quis fazer. Acho que é a mais
explícita‖. Ela afirma que artista torna ―algo‖ mais claro, explícito, teatral, objetivo, mas
não diz que algo/conteúdo é este.
Dois entrevistados fazem afirmações sobre o que seria o resultado final da obra,
mas sem se referir ao modo ou como ela chega a ele. André e Ana:
André: o será que o artista quis dizer com essa obra? Dificuldade de comunicação
com as pessoas.
Ana: diferentes pontos de vista, é aquela coisa ‘estar no sapato do outro’. Todo
conflito que está acontecendo. É engraçado porque tem o macro e o micro, o que
tá lá fora e o que tá dentro. A nossa relação no mundo e a relação dos dois.
Paulo, Silvia, Nilza e Sérgio descrevem o processo de uso de ―algo‖ e o sentido que
ganha após a apropriação pela artista. Assim, entendemos que percorrer o caminho,
acompanhar as estratégias e usos, é um processo de interação com signos e objetos
produzidos.
Paulo identifica um indício que remete a uma possível estratégia do artista ―Eu gosto
da provocação do título: ‘Diálogo’ que na verdade não tem diálogo”, pois o título orienta a
interpretação e remete a um padrão a partir do qual a artista se expressa, neste caso, a ironia.
Ou seja, ela usa a falta de diálogo para produzir a obra, intitulando-a com este ―algo‖ que usa.
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A resposta de Silvia, no entanto, utiliza indícios visuais que remetem a uma estratégia e
padrão de interpretação sobre o contexto político contemporâneo. A obra é uma representação
reflexiva ―político-psicológica‖ não porque representa um ―estado de coisas‖ o mundo e o
contexto político, mas porque o faz de determinado modo. Ela especifica um ―esquema
gramatical‖ (GARFINKEL, 2006, p. 41) ou o uso que a obra faz dos indícios visíveis –
cabeças cobertas5, diálogos – para que chegue à interpretação de que ―reflete a nossa condição
humana, carioca, brasileira‖. Por exemplo, quando afirma ―ela fica trocando de pessoas‖, se
refere a uma organização horizontalizada, o mesmo diálogo poderia ser de diferentes pessoas,
sem hierarquia, e que estaria completamente de acordo com uma crítica política de
perseguição às manifestações. Quando se refere aos ―jovens atores‖ ela utiliza uma faixa
etária condizente com os manifestantes.
Silvia: eu acho que a videoinstalação ‗Diálogo‘, da Elisa Pessoa, é uma obra que
reflete muito a realidade hoje, não só a condição humana, de relacionamentos, como
de uma condição política. É uma obra político-psicológica. Na hora que ela usa os
mascarados e ela fica trocando de pessoa, faz o mesmo diálogo para um e para o
outro, que ela usa as blusas no rosto, usa máscara, dentro de um ambiente de casa,
um ambiente comum a todos e fica usando dois jovens atores, acho que ela reflete a
nossa condição humana, carioca, brasileira, 2013 [...] manifestações [...]
contemporânea.
Silvia também identifica indícios que compõem a dimensão ―psicológica‖ da obra
como o ―ambiente de casa‖ e ―dois jovens‖.
Os entrevistados Nilza e Sérgio também identificam a obra como reflexiva e
apresentam algumas operações adicionais da obra. Nilza, por exemplo, reconhece que o
deslocamento de uma cena cotidiana (um casal conversando na mesa) para uma galeria é um
recurso que rompe as expectativas do visitante. Ou seja, a obra/artista consideraria os sistemas
de relevâncias vigentes e opera sobre eles (―eu acho que ela quis transportar uma cena
cotidiana para um ambiente que não é cotidiano‖).
Nilza: eu acho que ela quis transportar uma cena cotidiana para para um ambiente
que não é cotidiano, por causa daquele estranhamento. Uma reflexão sobre o dia a
dia, sobre as palavras que a gente usa. É mais ou menos isso.
A obra é compreendida como reflexão sobre o próprio uso que cotidianamente se faz
de signos. Para Arthur Danto (2006) este é o próprio uso que a obra contemporânea faz dos
5
A videoinstalação foi produzida alguns meses após as manifestações políticas nas ruas em várias cidades
brasileiras, em junho de 2013, em que manifestantes cobriam os rostos para evitar a inalação por gás
lacrimogêneo e serem reconhecidos.
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signos em geral – ela reflete sobre os usos. De modo muito semelhante, para Sérgio, a obra é
reflexiva e se utilizaria ―da cena a mais banal e cotidiana possível, onde a gente pode ali de
alguma forma se perceber‖, da capacidade de todos se reconhecerem em banalidades ―típicas‖
do cotidiano. Seria a própria gestão da ―Tese da reciprocidade de perspectivas‖ para que o
visitante se reconheça e compartilhe com os personagens o esquema gramatical de crítica e
questionamento, a partir dos quais (personagens) foram construídos.
Sérgio: eu acho que, na minha interpretação, a artista não toca uma coisa específica,
ela toca de como se dá as relações pessoais. Ela escolhe uma cena a mais banal e
cotidiana possível, onde a gente pode ali de alguma forma se perceber. Uma forma
muito simples, esteticamente falando, uma forma muito próxima do que a gente vive
no nosso cotidiano.
As experiências, como na ―suspensão fenomenológica‖ (WAGNER, 2012) dos fatos,
podem ser vividas por outros, desde que as diferenças sejam colocadas de lado.
“Como você soube da obra? Alguém já tinha te falado dela?”
A segunda pergunta leva em conta a existência de sistemas de relevância, como o uso
específico que um grupo faz do conhecimento típico. Ter acesso a determinadas obras,
exposições, como interpretá-la, pode significar ser membro de um grupo de referência, já que
a comunicação da abertura de uma exposição, por exemplo, pode ser feita de modo informal.
De outra maneira, através de ―quem‖ ou do ―quê‖ um público de obra se informa? Com quem
e como interage? Acreditamos que a interpretação da obra de arte é constituída por diversas
narrativas que atravessam o contexto, e que isto se faz por compartilhamentos anteriores e
posteriores à exposição.
Apenas dois entrevistados não conheciam a artista e a obra. O que significa que
quando o público se desloca para a exposição já leu, ouviu falar ou viu alguma exposição do
artista. O ―olhar informado‖ como recurso de observação da imagem é constituído pelas
experiências anteriores e relevâncias dos espectadores. Três entrevistados colaboraram ou
acompanharam a produção da obra, o que significa que tiveram acesso aos bastidores da
exposição, e, por consequência, compartilham conhecimentos mais específicos. E dois
ficaram sabendo da obra por amigos ou pela própria artista, ou seja, tiveram a oportunidade de
conversar sobre a exposição. As duas entrevistadas que não sabiam da exposição foram à
fábrica com conhecidos ver obras de outros artistas e isto, pode ser indício de que ambientes
que reúnem várias exposições ao mesmo tempo, fazem circular o fluxo de conhecimento entre
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grupos, já que poderia ser uma tendência o público não se restringir à exposição para a qual
foi originalmente. Se tomarmos a observação do outro como um método para agir e
interpretar, podemos imaginar como a circulação de espectadores pode indicar a existência de
outras exibições.
“Por que esta obra se relaciona com outras do mesmo artista?”
A pergunta remete ao recurso da biografia. A ―função autor‖ (Foucault) é uma
característica moderna da ficção literária, cujo sentido de um conjunto de obras reside, entre
outros, com o fato de terem sido produzidos pelo mesmo autor. Arthur Danto afirma que
―obras se constituem, de um lado, pelo lugar que ocupam na história da literatura e, de outro,
pela relação que tem com seus autores‖ (2010, p. 76) e retoma a função autor nas artes
plásticas. No cotidiano este é um recurso utilizado com frequência e se espera que os outros o
façam: ―Agnés [entrevistada em experimento de Harold Garfinkel] devia confiar em suas
características relevantes e assegurar-se de que seus companheiros também faziam o mesmo‖
(GARFINKEL, 2006, p. 204).
Dos cinco entrevistados que afirmaram conhecer a artista, quatro justificam a relação
entre obras fazendo remissão ao uso técnico do vídeo e das imagens, à ―apropriação do
espaço‖ e ―ao movimento‖ como meio pelo qual a artista constrói sua biografia no ―campo da
arte‖.
Maria: porque usa o mesmo dispositivo que é o vídeo. A filmagem de uma cena e a
mesma cena sobreposta na hora da transmissão [...]. Acho que é basicamente isso
que há em comum com as outras obras.
André: porque usam mais ou menos o mesmo suporte. Uma coisa que começou com
o vídeo. Vídeo sem som. Só a imagem. E foi modificando até chegar na obra.
Paulo: eu acho que é uma busca. Essa busca tem um movimento. Outros trabalhos
que eu já tinha visto da mesma artista tinha um trabalho de dança, coreografia, e
nesse não tem o movimento coreográfico, mas tem o movimento da palavra. Acho
que tem uma busca aí pelas várias facetas do movimento.
Sérgio: eu conheço alguns poucos trabalhos da Elisa, mas o que eu já vi antes e o
que eu vejo nessa, eu acho que existe uma apropriação do espaço. Só que nessa ela
simula um espaço para ser apropriado. Ela faz uma montagem. Pelo que eu já
percebi ela faz uma composição cênica a partir do mobiliário já existente.
Ou seja, referem-se ao que há em comum entre as obras, por meio da remissão a outras
obras da artista, de modo a dá-las uma coerência. No entanto, Ana, que não conhecia a artista,
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mas por acaso já tinha visto uma obra sua, sem o recurso à biografia, mantém-se em dúvida
sobre como reuni-las sob o mesmo conjunto.:
Ana (não conhecia a artista, mas viu outros trabalhos dela em outra galeria): não
conheço. Eu só conheci um outro trabalho dela, era uma dupla, com uma outra
moça. Eu esqueci o nome agora [...] Era na TAL [Tech Art Lab – galeria]. Era
uma caixinha aberta, uma torneira, e uma imagem que tava em rewind, voltando
[…].
Entrevistadora: e você acha que essa obra ‗Diálogos‘ está relacionada com essa
outra da caixinha?
Ana: tem um texto que se revela quando a água desce … se parar para pensar posso
até conectar … eu não conectei não. Mas tem um diálogo também: a torneira, a
água, o texto que aparece quando o nível da água desce.
No caso de Silvia, a remissão à biografia se faz de forma explícita, pois além de
identificar usos técnicos que seriam próprios da artista, como a técnica da videoinstalação, do
suporte do vídeo, da sobreposição de imagens ―fantasmas‖, abre a narrativa com dados
biográficos que incluíam o local e o tempo para justificar a coerência do conjunto. Esses
dados se organizam sob a forma de uma narrativa temporal, situada no passado, e depois são
substituídos pelos elementos constantes que se mantém, para terminar com o que
consideramos aqui o contexto significativo do outro, no caso, a artista, os usos que faz,
métodos que utiliza, etc.
Silvia: a Elisa [Pessoa] é uma artista que já tem um trabalho em vídeo há muitos
anos, ela começou fazendo só vídeo com super-8 em Paris [...]então a Elisa é uma
artista que trabalha muito com videoinstalação e ela trabalha também sempre usando
o corpo humano, pelo que eu percebi até agora, pelo menos. Então essa relação de
sobreposições do próprio corpo no mesmo espaço, em diferentes tempos. Ter uma
ação que tá acontecendo naquela hora, depois fazer uma ação naquele mesmo
espaço, naquele mesmo recorte, e sobrepor uma imagem, fica meio fantasma. Coisas
que aconteceram no mesmo local, mas em tempos diferentes, com a mesmo pessoa,
a mesma roupa, tudo igual...E, nessa, também uma videoinstalação e ela usa o
espaço dela, ela coloca as mesas e as cadeiras, ela faz uma ambientação realística.
Ela te coloca na sua casa, no seu quarto, te traz para um ambiente pessoal, ela usa
projeção do corpo. Então tem vários elementos que estão dentro da linguagem dela,
da prática, da técnica [...] e dos conceitos que ela usa.
A intersubjetividade para Alfred Schütz parte do princípio de que o ―conhecimento‖
do contexto significativo do outro poderia ser mediado por signos ou por um objeto cultural, e
isto poderia ser identificado na primeira pergunta, em que a intenção da artista poderia ser
descoberta pela observação da obra. Nesta questão, a mediação se dá de modo inverso, a
biografia da artista é que faz a mediação do conjunto disperso de obras. A relação entre as
obras se afirma por meio da função autor.
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“E se eu dissesse que isto não é arte?”
Utilizando o recurso de ―quebra de expectativas‖, pôs-se em questão, não campo da
arte, mas especificamente a obra em exposição. As respostas são negativas e tendem a ser
identificadas com situações em que o contexto se constitui pelos membros de um sistema de
referência. Moralmente todos são responsáveis e organizam as próprias competências para
constituir os laços, indas e vindas, que tecem a ―textura de relevâncias‖ (GARFINKEL, 2006,
p. 160) da situação concreta. As respostas a esta pergunta são as que mais revelaram a
imputação moral que o contexto tem para os participantes. Constituir o contexto, do qual faz
parte, por meio de indicações e relevâncias é uma condição de aceitação moral do outro e de
si mesmo. Por exemplo, todos respondem discordando e justificam com narrativas da
institucionalização da artista, da liberdade de interpretação do receptor, e do que seria
definição conceitual de arte e da obra. As narrativas ou racionalizações são os relatos que
compõem o contexto que narram.
Maria: tem todo direito.... Não acho que há muito o que contestar... Pode ser e pode
não ser, depende do seu ponto de vista.
André: é uma coisa estranha [afirmar que não é arte]....Porque esta arte...
O que é arte? Se isto não é arte, então o que é arte? Contestação desse tipo é arte.
Entrevistadora: desse tipo como?
André: ...Essas mídias novas, que esse tipo de artista faz...
Paulo: a gente ia ter um belo debate aqui sobre o que é arte....Essa frase é muito
complicada... Eu diria para você que é arte, sim.
Entrevistadora: Por quê?
Paulo: eu discordaria de você. Porque eu acho que a arte é provocação, arte é uma
tentativa de comunicação com o outro, através de elementos não-convencionais,
não-óbvios.
Silvia: eu diria que você está errada.
Entrevistadora: Por quê?
Silvia: Porque isso é arte. Porque a gente tá falando de uma artista que já tem uma
estrada. Ela já foi representada pela Gentil [Carioca – galeria], já participou de
exposições aqui, ela é institucionalizada, documentada como uma artista
contemporânea.
Nilza: mas o que seria então, se não é arte? ...Não sei...Não é arte, é o quê, um
vídeo? Não sei. Parece que é arte, eu acho que é arte...
Entrevistadora: Por quê?
Nilza: Porque...Bom...Primeiro que tá num lugar que a gente sabe que é arte, a
gente identifica pelo ambiente, segundo que tenta provocar um sentimento de
estranhamento na pessoa, você é incomodada, você é levada a ter uma interação
com aquilo. Se fosse simplesmente um filme, você pode entrar e sair, pode nem ver,
ou não dar a menor bola para o negócio.... Acho que é isso.
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Sérgio: ...Eu diria que você tem que rever os seus conceitos...
Entrevistadora: Por quê?
Sérgio: Porque existe uma série de relações que vêm sendo tecidas na profissão da
arte, que vêm sendo...Na sociedade, no dia a dia, no sentido comum, que torna um
abismo entre sociedade, cotidiano, nos últimos 100 anos.
Ana: o que é arte então? [silêncio longo]
Entrevistadora: Você faria essa pergunta?
Ana: sim.
A socialização ocorre porque todos pressupõem que compartilham conhecimentos. Os
membros de um grupo ―sabem‖ e esperam que o outro ―saiba‖ também como usá-los e gerilos. Os silêncios mencionados acima são sobre o que não se diz e que é pressuposto.
Na constituição ativa da interação como uma prática eficiente, os ―silêncios‖ são tão
importantes quanto às palavras enunciadas e, certamente, compõem o quadro de
referência necessário de conhecimento mútuo em termos dos quais essas
enunciações ―fazem sentido‖, ou, mais adequadamente, o sentido é fornecido por
elas. As compreensões tácitas são encaradas pelos atores como condições comuns,
porém inexplicáveis, de interação (GIDDENS, 1998, p. 288).
A diferença entre as respostas refere-se ao conteúdo da narrativa (cada entrevistado
justifica sua afirmativa de que ―isto é arte‖), mas a reação de discordância, como está
diretamente ligada aos pressupostos do conhecimento (usos, gestão e também do conteúdo), é
muito semelhante entre eles.
“O crítico „Richard Helmut‟ afirmou que na arte contemporânea toda obra deve ser
avaliada pelo tempo que se para diante dela. Você concorda?”
O objetivo inicial desta pergunta era, como na segunda pergunta, identificar quais
narrativas tecem a recepção de obras de arte. No caso, o crítico da pergunta é fictício e sua
existência não foi questionada. Compreendemos, então, que responder à pergunta naturalmente,
implicava que, pelo menos, para estes entrevistados que obter informação de críticos era parte
de seu sistema de relevâncias.
Além da presença de outras narrativas, como textos de críticos, o conteúdo da pergunta
surgiu de uma conversa entre mim e a artista, em que ambas concordamos ter sido um indício
do interesse do público, cerca de 200 pessoas, na exposição anterior6, terem permanecido até
meia hora na sala, em silêncio, assistindo (PESSOA, 2013) a obra cuja extensão sem looping
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26 de novembro de 2013, na Antiga Fábrica Bhering
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dura em torno de 14 minutos. Por outro lado, esta pergunta refere-se também a um recurso
que particularmente interessa à situação de exposição que é o de saber se os agentes
observam-se entre si, os gestos, o tempo que outros disponibilizam para cada obra, a distância
e a aproximação praticadas. Essa pergunta, portanto, acaba por avaliar também se para os
visitantes há indícios corporais ou comportamentais do que seja uma apreciação adequada de
exposição, utilizando a competência de um crítico para justificá-la.
Cinco dos sete entrevistados discordaram do crítico ―Richard Helmut‖. Maria que
revelou desconfiança na primeira pergunta, repete a hesitação, porém de modo inverso.
Inicialmente concorda com a afirmação do crítico, para depois discordar dele:
Maria: Pelo tempo que se para... Acho que faz algum sentido. Não sei se toda obra
de arte pode ser... Mas uma obra que se ignora... Não sei, ela pode ser e você não
estar disposto para aquilo. Agora, se você for com a disposição de ver obras de
arte… não. Eu não concordo, porque tem a ignorância do espectador...
Entrevistadora: Como assim, não entendi?
É no desenrolar da resposta que a entrevistada formula o que seria um comportamento
―adequado‖ numa sala de exposição ou qual valor atribuído à obra a partir do comportamento
do espectador. A resposta é generalista e parte do seu próprio conhecimento sobre
contemplação de obras. Os entrevistados recorrem à tipicalidade ou à experiência própria do
que imaginam caber todos os outros em suas diferenças. A resposta de André, que afirmou
―não‖, e explicou - ―acho que, conforme a obra, você olha e capta na mesma hora, no mesmo
momento. Você não precisa ficar lá plantado lá meia hora para poder entender. Você olha e
entendeu, outros vão ficar lá muito tempo e vai custar a entender. E vai entender depois o que
viu‖ - embora utilize o termo ―você‖, ele o faz de modo generalista, não está se referindo à
entrevistadora, ou a qualquer pessoa em especial, senão a todos em sua generalidade. Pode ser
também um indicador do princípio da ―reciprocidade de perspectivas‖, de que a entrevistadora
vai ―compreendê-lo‖ melhor se ela se colocar neste outro ponto de vista. Silvia, como Maria,
usa a experiência própria, sua biografia, para responder à pergunta, o recurso de
―autointerpretação‖ (SCHÜTZ, 2012, p. 189), que é o de avaliar o outro a partir de seu quadro
de referências.
Silvia: não, não concordo. Eu, por exemplo, tenho tempo de absorção muito relativo em
relação a cada obra. Sou artista, estudei arte no Parque Lage, me formei na faculdade
de arte na Inglaterra, e tem exposições e obras que eu passo reto e batido, nem olho
direito, e tem outras que me prendem por horas sentada. Não posso concordar nunca
com ele, acho que é uma relativização entre a obra e o receptor.
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Os dois entrevistados que concordaram utilizaram recursos semelhantes, embora
Sérgio tenha utilizado conhecimento científico, a história da arte, que não é típico, mas
específico, Ana generaliza sua afirmação, utilizando vez não o ―você‖, mas termos como ―a
gente‖ e ―pessoa‖ que remetem a uma comunidade mais originária da relação-do-Nós:
Sérgio: eu acho que é um dado muito importante, o nexo temporal, no momento em
que ela [a obra] acontece. Ela não deve ser vista só a partir disso. São basicamente
duas maneiras de analisar. A análise sincrônica e a análise diacrônica. Elas são
complementares do meu ponto de vista, uma valoriza mais as relações num tempo
de agora e a outra vai buscar outras relações num tempo mais distante […].
Ana: num certo ponto sim.
Entrevistadora: por quê?
Ana: É o que atrai a gente, é o que faz a pessoa parar para ver. E ter a curiosidade,
ou porque gostou, ou porque lembrou alguma coisa. Teve um impacto. É uma forma
de comunicação com o público.
“Se conversou com a artista sobre a obra? Se sim, o quê?”; “se leu alguma coisa sobre a
obra, o convite, texto? O quê”; “se conversou com alguém sobre a obra, quem? Onde
conversaram e sobre o quê?”
Algumas perguntas complementares voltavam-se diretamente para a interação antes e
durante a exposição. O objetivo destas perguntas era saber que tipo de interação o público pode
ter entre si, com a artista, com o material disponibilizado, e se ele reconhece esta interação, pois
segundo Dabul ―ao menos para os que estão na exposição acompanhados, a experiência artística
inclui conversar, embora às vezes isso não seja lembrado por eles quando descrevem
exposições que frequentaram ou aquela que acabaram de percorrer‖ (2008, p. 60 - grifo nosso).
O que apreendemos da autora é que, embora a contemplação de obras seja atravessada por
conversas durante, antes e depois da exposição, é comum os visitantes não se referirem a elas,
como situações de menor importância. Compreendemos este ―esquecimento‖ como parte
daquilo que compõe o fundo comum de conhecimento, os ―vistos, mas não percebidos‖.
Segundo Harold Garfinkel, ―o como destas realizações‖ são ―não-problemáticos, vagamente
conhecidos e realizados habilmente, com exatidão, uniforme, standard, e como assunto que
não se deve explicar‖ (2006, p. 19). Ou seja, as atividades (e não seu conteúdo) de conversas,
de leituras de texto de crítica, de títulos de obras, somente são mencionadas em situação de
ruptura do fundo comum, como é o caso de algumas perguntas da entrevista.
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Como a entrevista foi numa exposição de um único dia, a artista não produziu material
textual (folder, catálogos) o que de antemão já implicava numa negativa da última pergunta.
A primeira e a terceira se referem à conversa entre si e com a artista e, antes da entrevista,
Maria, André, e Paulo conversavam em grupo com a artista sobre a obra, no entanto, este
dado não aparece nas respostas, sinalizando como as informações trocadas na interação
passaram a constituir as pressuposições de fundo de conhecimento comum – usos gestão –
que não são questionadas.:
Entrevistadora: se conversou com a artista sobre a obra? Se sim, o quê?
Maria: sim. Disse que […].
Entrevistadora: você conversou com outra pessoa sobre a obra?
Maria: não.
Entrevistadora: se conversou com a artista sobre a obra? Se sim, o quê?
André: não. Não conversei.
Entrevistadora: você conversou com outra pessoa sobre a obra?
André: tô conversando com você agora.
Entrevistadora: se conversou com a artista sobre a obra? Se sim, o quê?
Paulo: conversei. Conversei justamente da minha percepção sobre o movimento. O
que eu achei dos outros trabalhos dela, que eu já tinha percebido o movimento que,
agora é com as palavras, quando antes era movimento do corpo.
Entrevistadora: você conversou com outra pessoa sobre a obra?
Paulo: não. Ainda não. Não deu tempo.
A omissão das conversas acima não é porque elas não têm importância, mas o
contrário é porque têm muita importância, como método de ação e interpretação. É a partir
destas interações que os visitantes significam, porém isto nem sempre é compreendido assim:
Assim, nas conversas durante as exposições, os visitantes se informam, situam as
informações que detêm e comunicam, tomam contato e apresentam, confirmando
saberes e formando um rol de itens próprios para a interpretação daquelas obras e nele
incluindo diversos elementos que eles mesmos mobilizaram. (DABUL, 2008, p. 59).
Todos os outros participantes confirmaram ou negaram as conversas, no entanto, como
não era possível checar os dados, tomamos as respostas a partir de seu conteúdo. Silvia refere-se
à conversa com a artista e seu grupo de referência como de ―bastidores‖ minimizando sua
importância (grifo nosso):
Entrevistadora: você conversou com alguém sobre a obra, quem?
Silvia: conversei com outros amigos que estavam vendo também, aqui da [Fábrica]
Bhering.
Entrevistadora: o quê?
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Silvia: isso, das características da obra e outras coisas mais técnicas de disposição,
do projetor, da cadeira, etc. que, além de coisas a serem resolvidas ali no espaço
físico e na própria projeção, falo enquadramento. Não do corte, porque eu acho que
o corte tá perfeito. Perfeito é relativo, mas eu acho que é uma obra que funciona.
Mas a gente conversou mais sobre as percepções de cada um.
Na fala acima, o ―isso‖ aparece como termo indicial que depende do contexto
compartilhado para significar. Como, provavelmente, Silvia não sabe se a entrevistadora
compartilha ou não com ela os mesmos sistemas de relevância para significar o termo, ela
explica por meio ―das características da obra e outras coisas mais técnicas de disposição, do
projetor, da cadeira, etc.‖. No entanto, na explicação se utiliza outro termo indicial, o ―etc‖
[recurso gráfico meu, a entrevistada usa uma expressão fônica ―tanananan‖], para designar
―todo o resto‖, ―o que todo mundo sabe‖ e que não vale a pena ser mencionado, pressupondo
que a entrevistadora identifique o padrão gramatical a partir do qual fala.
Conclusão
Nas entrevistas, especificamente, reconhecemos a constituição do contexto pelos
entrevistados, quando retornam ou remetem a perguntas antes não respondidas. Se, no início
da entrevista, algumas perguntas não tinham sentido, após o desenrolar da conversa e do
compartilhamento do tempo com a entrevistadora, o contexto passa a dar sentido a estas
perguntas. Na exposição, o questionamento sobre a validade artística da obra exposta leva os
entrevistados a reagirem de modo indignado à pergunta. A reação emocional, segundo a
etnometodologia, está relacionada à imputação moral que o contexto tem para os
participantes. O contexto não preexiste à situação, mas é constituído pelos indícios
visibilizados pelos visitantes, na fala, nos gestos, nos movimentos corporais, ao mesmo tempo
em que dá sentido a eles. Procuramos identificar quais recursos de gestão do fundo comum de
conhecimento são esperados pelo público de obra. O observador se coloca na posição do
artista imaginando sua intenção; o público se sente moralmente responsável pelo contexto de
uma exposição; público compartilha com a crítica, com o artista e com outros visitantes
sistemas de relevância, e a omissão de informações, mais do que descaso, revela o quanto elas
são importantes, pois são pressupostas.
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DABUL, L. Conversas em exposição: sentidos da arte no contato com ela. Arte & Ensaios
Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Rio de Janeiro, EBA, UFRJ. Ano
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Corpo, escrita e empoderamento: a experiência do sujeito soropositivo nas
narrativas de Caio Fernando Abreu e Hervé Guibert
Guilherme Fernandes1
[email protected]
Capes
GT1 - Cultura, Diferenças e Desigualdades.
Resumo: Este trabalho tem como objetivo realizar um estudo comparado dos textos A l'ami
qui ne m'a pas sauvé la vie, do escritor francês Hervé Guibert, e "Cartas para além do muro",
do brasileiro Caio Fernando Abreu, procurando investigar como ambos lidaram, em suas
literaturas, com a descoberta e o enfrentamento da Aids. Acometidos pelo vírus HIV entre as
décadas de 1980 e 1990, estes autores passam por uma nova experiência com o corpo, a qual,
em seus textos, foi também transformada em uma nova experiência com a linguagem, desse
modo, a base teórica deste estudo será pautada por autores que versaram sobre as relações
entre corpo, linguagem, poder e identidade, dentre os quais Michel Foucault, Susan Sontag e
Judith Butler.
Palavras-chave: Literatura comparada; Corpo; Escrita; Aids, Identidade.
A literatura de Hervé Guibert e Caio Fernando Abreu, cujas obras se estendem, em
ambos os casos, da década de 1960 a 1990, problematiza a questão do corpo e da sexualidade
desde os seus primeiros textos, elaborando situações e personagens que colocam em cheque
algumas categorias hegemônicas, sobretudo no que concerne à divisão binária de gênero. No
entanto, interessa-nos para este estudo a fase final da produção destes autores, no início da
década de 1990, pois se trata do momento em que eles começam a refletir sobre o tema da
Aids a partir de relatos autobiográficos.
Por se tratar de um problema de saúde pública, cumpre, para entendermos um dos
fatores que motivaram Caio Fernando Abreu e Hervé Guibert a escreverem sobre si mesmos e
os efeitos da Aids em seus corpos, verificar qual o contexto de enunciação desses autores (fim
da década de 1980 e início da década de 1990) e quais narrativas estavam sendo construídas
1
Mestrando em Letras pela Universidade de São Paulo no programa de pós-graduação em Estudos Linguísticos,
Literários e Tradutológicos em Francês, sob orientação da Profa. Dra. Claudia Consuelo Amigo Pino. Bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) com um projeto de pesquisa voltado
para o estudo comparado dos textos de Caio Fernando Abreu e Hervé Guibert, atentando para a problemática em
torno das construções de sexo e gênero e para os desafios que a abordagem do tema da Aids implica no interior
das narrativas. Participa do grupo de pesquisa “Criação e Crítica”, no qual auxilia na edição do periódico
acadêmico de mesmo nome.
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acerca da epidemia do vírus HIV na época, sobretudo do ponto de vista da medicina. Para
tanto, parto do ponto de vista de que o discurso das ciências médicas não é imune às
contingências históricas, ele se estabelece em meio a um contexto social e justamente por isso
adota pontos de vistas parciais, a fim de construir uma narrativa que saneie determinados
hábitos e comportamentos em detrimento de outros.
A Aids, neste período, ainda era uma doença “nova” para a humanidade, e como tal,
segundo Henrique Figueiredo Carneiro (2000), gerara uma nova “desrazão”. Pouco se sabia
sobre o assunto, quais eram exatamente as causas, os métodos de prevenção e, sobretudo,
quais as possibilidades de cura. Em meio a toda esta nebulosidade, Richard Parker, em um
texto de 1992, afirma que as medidas tomadas pelos órgãos de saúde pública acerca da
pesquisa e do combate à enfermidade estavam, na grande maioria dos casos, pautadas pela
coleta desenfreada de dados e a acumulação de informações de ordem clínica, sem nenhuma
teoria social e comportamental que os amparasse:
(...) a pesquisa do comportamento sexual em relação à Aids quase nunca foi
orientada por uma “teoria do comportamento sexual”. Na verdade, na maioria
dos casos, não foi orientado por teoria alguma; a ênfase tem recaído sobre a
necessidade de se colher dados descritivos – como os estudos sobre
conhecimento, atitudes e práticas (CAP) –, pois aparentemente nutrimos a
esperança de que basta reunir uma quantidade suficiente de informações para
que os insights teóricos surjam (Parker: 2000, 17).
Desta coleta de dados ausente de qualquer conhecimento teórico sobre a pluralidade
das relações sexuais humanas – que até então já vinham sido produzidas em áreas como
Antropologia, Sociologia, História e Filosofia –, uma figura específica, ou, como bem define
Foucault em sua História da sexualidade, um “personagem” se sobressai: o homossexual2.
Independentemente do contexto em que o sujeito estava inserido e de qual experiência
subjetiva ele conferia às suas experiências sexuais, tendo ele se relacionado alguma vez com
alguém do mesmo sexo, passou imediatamente a fazer parte desta massa nebulosa de
“homossexuais”, que logo passaram a ser categorizados como o “grupo de risco”. Este foi o
primeiro passo para que uma nova onda preconceituosa e eugênica se manifestasse em meios
2
Segundo Michel Foucault: “A sodomia – a dos antigos direitos civil ou canônico – era um tipo de ato interdito
e o autor não passava de seu sujeito jurídico. O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um
passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia
indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua
sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas” (Foucault: 2010, 50).
2
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científicos, religiosos e midiáticos. A Aids se tornou, de acordo com Marcelo Secron Bessa
(1997: 14), uma “epidemia discursiva”, por meio da qual os discursos conservadores do início
do século, os quais associavam diversidade sexual à degenerescência, ganharam um novo
fôlego: “a epidemia surge em um momento histórico particular onde forças neoconservadoras
tentam se aproveitar da doença, ressuscitando a metáfora da peste – entre outras – para
manobras ideológicas (BESSA: 1997, 22). Atento a este processo, Caio Fernando Abreu
publica uma crônica no jornal O Estado de São Paulo em 1987, intitulada “A mais justa das
saias”, nela o autor critica os discursos conservadores que vinham sendo produzidos acerca da
Aids:
A pseudotolerância conquistada nos últimos anos pelos movimentos de
liberação homossexual desabou num instantinho. Eu já ouvi – e você
certamente também – dezenas de vezes frases tipo “bicha tem mesmo é que
morrer de Aids”. Ou propostas para afastar homossexuais da “sociedade
sadia” – em campos de concentração, suponho. Como nos velhos e bons
tempos de Auschwitz? Tudo para o “bem da família”, porque afinal – e eles
adoram esse argumento – “o que será do futuro de nossas pobres
criancinhas?” (Abreu: 2006, 58-59)
Abreu sinaliza para o fato de que se os movimentos contraculturais levados a cabo
durante as décadas de 1960 e 1970, dos quais ele também fez parte, tiveram certo êxito em
ampliar o debate sobre a sexualidade e arrefecer alguns dos estigmas impostos à comunidade
gay, o advento da Aids e a proliferação de narrativas conservadoras sobre o tema reavivou o
preconceito e a segregação. Neste mesmo texto, ele ainda afirma que “homossexualidade não
existe, nunca existiu. Existe sexualidade – voltada para um objeto qualquer de desejo. Que
pode ou não ter genitália igual, e isso é detalhe. Mas não determina maior ou menor grau de
moral ou integridade” (Abreu: 2006, 59). Ao questionar a noção de homossexualidade – uma
categoria advinda do século XIX, no âmbito das ciências médicas – e propor uma visão acerca
das relações sexuais humanas que vai além do binarismo homo/hétero ao qual estamos
habituados, o autor também questiona a existência desse “grupo de risco” formado por
indivíduos cuja sexualidade escapa ao padrão.
Em 1988, Susan Sontag, através do ensaio “Aids e suas metáforas”, também se
manifesta criticamente a respeito dos discursos conservadores que vinham sendo produzidos
sobre o tema. Ela constata que umas das marcas mais fortes que se atribuíram à doença está
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vinculada à imagem de um estrangeiro ou de um invasor, isto é, alguém que vem de fora
trazendo algum mal para a comunidade sã. Em suas palavras:
Não se trata de uma doença misteriosa que escolhe suas vítimas de modo
aparentemente aleatório. De fato, contrair Aids equivale precisamente a
descobrir – ao menos na maioria dos casos até agora – que se faz parte de um
determinado „grupo de risco‟, uma comunidade de párias. A doença expõe
uma identidade que poderia ter permanecido oculta dos vizinhos, colegas
detrabalho, familiares e amigos (Sontag: 2007, 97).
Seguindo esta linha de raciocínio de Sontag, entramos na questão da produção de
identidade de sujeitos. O fato de os órgãos de saúde pública terem elencado o “homossexual”
como o principal transmissor da doença produziu todo um aparato discursivo associando a
enfermidade à sexualidade “perversa” de indivíduos que não participavam de algumas
convenções heteronormativas, como a monogamia, o casamento e a constituição de famílias:
“O comportamento perigoso que produz a Aids é encarado como algo mais do que fraqueza.
É irresponsabilidade, delinqüência – o doente é viciado em substâncias ilegais, ou sua
sexualidade é considerada divergente” (Sontag: 2007, 98). O indivíduo, portanto, ao admitir
que tinha a doença, admitiria também uma possível identidade sexual transgressora. Num
contexto de forte preconceito e segregação social, cujos portadores do vírus tornam-se párias,
estar doente pode vir a ser um fardo maior do ponto de vista social do que do ponto de vista
biológico. Mais do que vítima da doença, os sujeitos soropositivos tornam-se os grandes
culpados, aqueles que exerceram práticas sexuais ilícitas e “se deixaram contaminar”.
Elaborar o conhecimento sobre a Aids unicamente nos termos do discurso científico
remete, nesse sentido, às narrativas de cunho positivista que ocuparam lugar privilegiado na
formação dos Estados-nação modernos no século XIX. Ao analisar este período histórico,
Michel Foucault constata que “pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico refletese no político; o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de
tempos em tempos, no caso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte no campo de controle
do saber e de intervenção do poder” (Foucault: 2001, 155). Entender o corpo e a sexualidade
humanas pelo viés racionalista das ciências médicas atende a este anseio de controle
promovido na era moderna, e quando se está em pauta uma enfermidade cuja principal forma
de contaminação ocorre por vias venéreas, é evidente que a narrativa “oficial” das ciências
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médicas entra em cena, ditando quais rumos os indivíduos devem tomar se quiserem evita-la e
elencando grupos sexuais de risco.
Caio Fernando Abreu e Hervé Guibert, ao publicarem seus textos autobiográficos
relatando suas experiências enquanto soropositivos, estão interagindo com as narrativas das
ciências médicas. Seus textos são a forma que estes autores encontraram para se manifestar
sobre o que estava acontecendo em seus próprios corpos, e não apenas se deixaram dominar
pelos discursos conservadores que apareciam a todo instante para classificar o indivíduo com
Aids.
As “Cartas para além do muro”, do escritor brasileiro, fazem parte de um conjunto de
quatro epístolas publicados entre 1994 e 1995 na coluna que o autor mantinha no jornal O
Estado de São Paulo. Partes destes textos foram escritos durante sua estadia no hospital de
infectologia Emílio Ribas, localizado na capital paulista. A opção pelo gênero epistolar se
deve justamente a um anseio do autor em se comunicar com seu público leitor enquanto
estava internado. É através destas cartas que ele informa sua condição de saúde e tece
reflexões sobre as dificuldades e os preconceitos enfrentados pelos pacientes soropositivos.
Apesar de todas girarem em torno do tema da Aids, cada carta possui características próprias.
As duas primeiras, publicadas respectivamente em agosto de 1994 e setembro de 1994, agem
como uma espécie de mensagem codificada, na qual o autor, através de imagens, expressa
como a doença afetou seu organismo e o deixou fragilizado fisicamente. Diz ele no parágrafo
inicial da primeira epístola: “Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que
ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que foi,
essa coisa estranha, saberei também esse jeito” (Abreu: 2006, 106). Suas palavras denotam
dúvida, o autor ainda não sabia o que estava se passando com ele e com seu corpo. Como já
mencionamos, a Aids ainda era uma doença “nova”, muito se especulava sobre ela, mas em
termos clínicos, os tratamentos ainda eram provisórios. Além disso, o tabu que se instaurara
por trás da forma de contaminação – diretamente associado ao relacionamento homossexual –
gerara uma série de pudores linguísticos, de modo que o próprio termo Aids era
constantemente evitado. Caio Fernando Abreu só irá mencioná-lo em sua terceira carta, haja
vista que nas duas primeiras ele se refere à enfermidade valendo-se de termos como “coisa
estranha” ou “turvação”.
O crítico Marcelo Secron Bessa, ao analisar o tema da Aids na literatura brasileira
contemporânea, pondera que “ter a Aids como tema não implica que ela apareça
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explicitamente; através da elipse, o escritor pode criar, em relação à síndrome, novas formas
de percepção ou outras abordagens” (Bessa: 1997, 51). Com efeito, Caio Fernando Abreu, ao
menos num primeiro momento, não se refere diretamente à síndrome, seu relato é permeado
de metáforas conotando a dor que este novo estado imprimiu em seu corpo, conforme
podemos verificar no seguinte excerto, no qual o autor expressa o espanto que sentiu quando
descobriu que era soropositivo:
Por enquanto ainda estou um pouco dentro daquela coisa estranha que me
aconteceu. É tão impreciso chamá-la assim, a Coisa Estranha. Mas o que teria
sido? Uma turvação, uma vertigem. Uma voragem, gosto dessa palavra que
gira como um labirinto vivo, arrastando pensamento e ações nos seus círculos
cada vez mais velozes, concêntricos, elípticos. Foi algo assim que aconteceu
na minha mente, sem que eu tivesse controle algum sobre o final magnético
dos círculos içando o início de outros para que tudo recomeçasse (Abreu:
2006, 106-107).
A “turvação” que a descoberta da Aids instaurou na mente do autor é expressa através
de uma linguagem igualmente turva. As imagens se sucedem – “voragem”, “labirinto vivo”–
e a prosa assume um tom poético, acentuado pelo uso contínuo de sibilantes – “arrastando
pensamento e ações nos seus círculos cada vez mais velozes, concêntricos, elípticos” –, o que
reforça, no plano formal, a sensação vertiginosa provocada pelo diagnóstico.
Na segunda carta, uma nova imagem é elencada pelo autor para se referir à sua
experiência com a doença. Desta vez, ele utiliza a metáfora do inferno para descrever o
espaço do hospital: “No caminho do inferno encontrei tantos anjos. Bandos, revoadas,
falanges. Gordos querubins barrocos com as bundinhas de fora (...). Nem tão celestiais assim,
esses anjos. Os da manhã uniforme branco, máscaras, toucas, luvas contra infecções” (Abreu:
2006, 109). A negatividade suscitada pelo ambiente hospitalar, associado ao inferno, é
amenizada pelas figuras angelicais que representam os médicos e enfermeiros que o tratavam.
Mais adiante, Abreu acrescenta ao seu panteão angelical uma série de artistas que também
passaram por situação semelhante:
Ao som de Lóri Finokiaro, Hervé Guibert continua sua interminável carta
para o amigo que não lhe salvou a vida. Reinaldo Arenas passa a mão
devagar em seus cabelos claros (...). Pois repito, aquilo que eu supunha fosse
o caminho do inferno está juncado de anjos. Aquilo que suja treva parecia,
guarda seu fio de luz. Nesse frio estreito, esticado feito corda bamba, nos
equilibramos todos. Sombrinha erguida nem alto, pé ante pé, bailarinos
destemidos do fim deste milênio pairando sobre o abismo (Abreu: 2006, 110111).
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Nesta batalha iniciada para tentar garantir mais alguns anos de vida, Abreu procura
contornar sua situação de fragilidade evocando a figuras de artistas que também eram
soropositivos. A admiração que o escritor brasileiro tinha por esses “anjos” cria um espaço de
alteridade, no qual é possível dialogar com outros artistas que também transformaram suas
experiências com a síndrome em arte, vide Cazuza, Reinaldo Arenas e o próprio Hervé
Guibert.
É somente na terceira “Carta pare além dos muros”, também publicada em setembro
de 1994, que Abreu abre mão de elipses e metáforas e passa a abordar sua situação de maneira
mais clara e descritiva. Neste texto, nada é escondido, e o autor chega até a se desculpar pela
linguagem obscura das duas epístolas anteriores:
Imagino que você tenha achado as duas cartas anteriores obscuras,
enigmáticas como aquelas dos almanaques de antigamente. Gosto sempre do
mistério, mas gosto mais da verdade. E por achar que esta lhe é superior te
escrevo agora assim, mais claramente. Não vejo nenhuma razão para
esconder. Nem sinto culpa, vergonha ou medo (Abreu: 2006, 112).
O autor segue o relato dizendo quando fez o teste de HIV, salienta que o resultado foi
positivo, em qual hospital foi internado, quando a doença se agravou, entre outros dados
precisos sobre o tema, seguidos inclusive por suas datas. Ao contrário das duas primeiras,
nada é metaforizado nesta epístola. Mesmo os efeitos da síndrome no corpo, antes
apresentados por vias imagéticas, agora é descrito com base em um vocabulário médicocientífico. Por não sentir "culpa, vergonha ou medo", o autor decide apresentar sua condição
de saúde de maneira direta. Conforme salientado por Susan Sontag, admitir que estava com
Aids implicava em responder também por sua sexualidade, uma vez que a doença ficara
conhecida na época como uma espécie de "peste gay". É importante para Caio Fernando
Abreu superar este estigma, admitindo que estava contaminado pelo vírus e, sobretudo,
enfatizando que não se sente envergonhado por isso.
A última “Carta para além dos muros” foi publicada em dezembro de 1995, mais de
um ano depois das outras três. Trata-se da mais dramática das epístolas, pois foi escrita num
momento em que o estado de saúde do autor já estava severamente afetado. Se na terceira
carta Abreu abrira mão de metáforas, nesta, o tom imagético volta com maior intensidade para
narrar o embate que ele estava travando com a própria morte:
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Eu, porco sangrando em gritos desafinados, faca enfiada no ventre, entre
convulsões e calafrios indignos. Eu gritava Senhor de Toda Luz de Tudo que
Existe, dai-me Foça, Fé e Luz. Gritei também não palavras, uivos,
descobrindo na carne que o berro alivia a dor. Gado no matadouro, recémnascido após o tapa e o choque, aterrorizado com a clareza dura e o ruído
insuportável do mundo cá de fora. Grito também: Senhor, não agora, porque
eu não quero que seja agora. Minhas histórias não escritas, meu jardim?
Desafiei Deus, sinto muito, era a única maneira de me salvar. Ele me
entendeu. Suponho, embora nunca seja confável, como diz Hilda Hilst. Então
confiei apenas no meu berro de cachorro atropelado na estrada deserta.
(Abreu: 2006, 200).
Em uma espécie de delírio, no qual diversas imagens são usadas para tentar definir o
estado de fragilidade do corpo, o narrador clama por mais tempo de vida. O sentimento de
urgência é tamanho que a própria realização da escrita é ameaçada pelo estado de fraqueza do
corpo. No entanto, Abreu contraria as expectativas e, como que num último gesto de
resistência, defere um grito que o faz retornar a vida. Cada página acrescentada ao seu relato é
um ato de resistência e heroísmo, e o sentimento de esperança surge em meio ao temor de
uma morte iminente, contrariando novamente as expectativas. Diz Abreu no parágrafo final
de sua última “Carta para além dos muros”: “Amanhã à meia-noite volto a nascer. Você
também. Que seja suave, perfumado nosso parto entre ervas na manjedoura. Que sejamos
doces com nossa mãe Gaia, que anda morrendo de morte matada por nós. Façamos um brinde
a todas as coisas que o Senhor pôs na terra para nosso deleite e terror. Brindemos à Vida
(Abreu: 2006, 201).
Assim como Abreu, Guibert expõe em seu livro, publicado em 1990, a nova
experiência que ele passou a viver após a descoberta de que estava com Aids. Seu texto
compreende um vasto espaço temporal, narrando eventos que se iniciaram na década de 1970,
com especial atenção para a amizade dele com Michel Foucault, o qual no livro aparecerá sob
o pseudônimo de Muzil. No entanto, estes eventos distantes no tempo não estão inseridos de
forma dispersa na obra. O passado só é elaborado segundo o que ele pode oferecer enquanto
meios de compreensão do presente, desse modo, se Guibert se dedica a contar a relação dele
com Foucault, isto ocorre porque o filósofo também era soropositivo e morrera em
decorrência da Aids. De acordo com o crítico Frédéric Gaussen: “Guibert, qui sait que lui
aussi va mourir du sida, raconte l‟agonie de Foucault, sa déchéance physique à l‟hôpital, sa
souffrance mais aussi sa gaieté stoïcienne face à la mort. En regardant mourir Foucault, c‟est
sa propre mort qu‟il observe par anticipation” (Gaussen: 2000, 1).
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Voltaremos a abordar a amizade de Guibert e Foucault mais adiante. Antes, porém,
cumpre esclarecer a razão pela qual a obra foi intitulada A l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie.
Tal título refere-se a outra amizade cultivada por Hervé Guibert, mas que foi marcada por
uma contenda que será explorada ao longo da obra. Ao descobrir que estava enfermo, o autor
se comunicou com um amigo norte-americano, que no livro será chamado de Bill. Ele
trabalhava na indústria farmacêutica e estava envolvido num projeto de vacina contra a Aids
que, segundo ele, já estava em sua fase final de desenvolvimento. Vale frisar que os métodos
de combate a Aids ainda eram precários comparado aos tratamentos retrovirais atuais.
Guibert, ao descobrir que a doença já estava se desenvolvendo em seu organismo, afirma ter
se adaptado rapidamente à ideia de que morreria dentro de pouco tempo. Foi a promessa de
vacina feita por Bill que o tirou deste estado de conformismo: “Bill, qui est en train de
contredire, sinon de remettre en question mon accoutumance à une mort três proche”
(Guibert: 1990, 185). Ao mesmo tempo em que lhe deu esperança, a notícia da vacina fez
Guibert entrar em um estado de ansiedade que não vivera até então, e o qual ele considera
mais incômodo que seu antigo conformismo: “J‟entrais dans une nouvelle phase, de
suspensions, d‟espoir et d‟incertitude, qui était peut-être plus atroce que la precedente”
(Guibert: 1990, 188). Ocorre que esta vacina prometida pelo farmacêutico norte-americano
tem problemas para sair do papel, até ao ponto em que Guibert percebe que estava sendo
iludido por Bill, o qual termina por admitir que a solução “mágica” para lidar com o vírus é
uma falácia. Por se sentir ultrajado, o autor nomeia o seu livro com uma dedicatória irônica ao
“amigo que não lhe salvou a vida”.
Semelhante a Abreu, Guibert vale-se de elipses e metáforas para se referir à
enfermidade e chega ao ponto de se recusar a tratar a Aids como uma doença:
(...) le sida n‟est pas vraiment une maladie, ça simplifie les choses de dire que
c‟en est une, c‟est un état de faiblesse et d‟abandon qui ouvre la cage de la
bête qu‟on avait en soi, à qui je suis contraint de donner pleins pouvoirs pour
qu‟elle me devore, à qui je laisse faire sur mon corps vivant ce qu‟elle
s‟apprêtait à faire sur mon cadavre pour le désintégrer (Guibert:1990, 17).
Guibert demonstra não querer usar o mesmo vocabulário frio e impessoal do discurso
científico, empregado diversas vezes durante a narrativa por Bill, o qual viria a ser seu
antagonista. Parece-nos coerente afirmar que Bill representa, se pensarmos em termos de
metonímia, a própria indústria farmacêutica, ou, de maneira mais ampla, os órgãos de saúde,
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cuja postura em face da doença, de acordo com a análise supracitada de Richard Parker, era a
de simples coleta e averiguação de dados. Hervé Guibert também é um crítico deste tipo de
abordagem, em A l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie ele diz: “Les chercheurs n‟ont aucune idée
de ce qu‟est la maladie, ils travaillent sur leurs microscopes, sur des schémas, des abstractions
(...) ils ne sont jamais en contact avec des malades, ils ne peuvent imaginar leur peur, leur
souffrance, le sentiment de l‟urgence ils ne l‟ont pas” (Guibert: 1990, 241).
Com vistas à conclusão deste trabalho, voltemos a abordar a relação de Guibert e
Foucault, pois apesar da proximidade que os dois tiveram, cada um adotou uma atitude muito
diferente em relação à Aids e ao público. Como já mencionamos, o escritor francês dedica
parte de sua narrativa autobiográfica ao relato de sua amizade com o filósofo, focando,
sobretudo, nos momentos finais de sua vida na década de 1980, quando ele também padecia
dos efeitos causados pela Aids e estava sob tratamento hospitalar em Paris.
Valendo-se do pseudônimo Muzil, que mais tarde o próprio Guibert viria a admitir que
se tratava de Michel Foucault, o narrador não tem nenhuma restrição em contar as aventuras
do filósofo em clubes sadomasoquistas, em expor seus relacionamentos homossexuais e, por
fim, em tornar pública a sua causa mortis, que até então permanecia um mistério. Apesar de
conhecido mundialmente pelo seu trabalho acadêmico, Foucault optou por não expor detalhes
sobre sua vida pessoal e sobretudo acerca de sua sexualidade. Como a Aids tornara-se um
fenômeno clínico imediatamente associado à homossexualidade masculina, Foucault se
esforça em esconder seu estado de saúde ao ponto de – nos estados mais avançados da doença
– preferir manter-se recluso em seu apartamento, conforme relata Guibert :“Paris l‟empêchait
de sortir, il s‟y sentait trop connu. Quand il allait au cinema, tous les regards convergeaint sur
lui” (Guibert: 1990, 29).
Nas visitas que Guibert fazia para Foucault ao hospital, ele se surpreende com a
maneira leve e estoica que o filósofo lidava com a doença e com as alterações provocadas por
ela em seu organismo: “Muzil n‟a jamais eu autant de fous rires que lorsqu‟il était mourant”
(Guibert: 1990, 24). Com efeito, a única preocupação que o afligia em relação à enfermidade
era a de não ser identificado como um indivíduo soropositivo, pois isto também implicaria em
ter que responder por sua vida sexual.
A razão pela qual Michel Foucault mantinha tamanha reserva em relação à sua
sexualidade parece estar relacionada com o que ele próprio postulou no primeiro volume de
sua História da sexualidade. De acordo com o filósofo, expor a sexualidade não é sinônimo
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de liberdade. Com o surgimento das nações modernas e das grandes metrópoles, Foucault
afirma que houve um esforço em tornar as relações sexuais humanas um problema de âmbito
político-administrativo, cuja intenção era justamente de controlar as perversões e remediar
qualquer conduta que desviasse da norma: “cumpre falar do sexo como de uma coisa que não
se deve simplesmente condenar ou tolerar mas gerir, inserir em sistemas de utilidades, regular
para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas,
administra-se” (Foucault: 2010, 30-31). Nesse aspecto, para não se ver enquadrado num
sistema de controle, Foucault opta por omitir suas preferências sexuais e, uma vez que a Aids
recebera a alcunha de “peste gay”, ele também oculta do público sua condição de saúde.
Levando em consideração a atitude de Michel Foucault, cabe questionarmos, em
sentido oposto, a razão pela qual Hervé Guibert e Caio Fernando Abreu optaram por se expor
ao grande público e narrar a experiência que eles tiveram enquanto indivíduos soropositivos.
Para tal, propomos uma reflexão com base nos postulados de Judith Butler, no livro Ginving
an account of oneself, e Homi K. Bhabha, em “The right to narrate”.
Narrar a si mesmo, de acordo com o que é proposto em Giving an account of oneself,
não é apenas um ato ocasional, no qual o indivíduo, de maneira despretensiosa, constrói sua
identidade. Em termos de relação de poder, a filósofa norte-americana afirma que narrar a si
mesmo é, antes de tudo, se narrar para alguém que está acima (que detém o poder), num
contexto em que a narrativa implica em se justificar, declarando-se culpado ou inocente:
(...) accountability follows only upon an accusation or, minimally, an
allegation, one made by someone in a position to deal out punishment if
causality can be established. And we become reflective upon ourselves,
accordingly, through fear and terror. Indeed, we become morally accountable
as a consequence of fear and terror (Butler: 2005, 11)
A teórica chama a atenção para a violência que se esconde por trás do ato de narrar. O
sujeito que constrói sua identidade através da narrativa está numa posição hierárquica
subalterna, ao contar sua própria história, ele assume a responsabilidade ética de apresentar a
um outro dominante sua versão sobre determinado aspecto de sua vida (Butler: 2005, 135).
Ética, para Butler é algo que se constrói coletivamente, e implica em conhecer e respeitar a
voz do outro. Quando uma minoria exige o direito de se expressar, de narrar a si mesmo, é
porque estava imersa em uma relação desigual, ausente de ética, apenas atendendo às
expectativas do grupo dominante.
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Em “The right to narrate”, entrevista concedida a Kerry Chance em 2001, Bhabha
também se refere às relações desiguais de poder, com escopo voltado para a questão colonial.
A noção de “direito de narrar” refere-se a um direito que todos, mesmo os povos que foram
silenciados pelas empreitadas coloniais, teriam de contar a sua própria história: “my notion of
who is the subject of the right to narrate is not the individual who is narrating but a whole
network of discursive, cultural, political, institutional, a network of events and enunciations
and constructions and writings that construct the possibility of narration” (Bhabha: 2001, 4).
Ter o direito de narrar implica, nesse sentido, em fazer com que os povos que foram excluídos
pelas ilusões universalistas das culturas ocidentais modernas assumam a posição de
enunciadores.
À luz das teorias de Butler e Bhabha, podemos entender as narrativas de Caio
Fernando Abreu e Hervé Guibert como exemplos de enunciados que estão à margem de um
sistema normativo, mas que lutam para não ser silenciados pelo discurso dominante. Ao expor
suas vidas através de suas narrativas, estes autores tomam a voz para si e se tornam sujeitos de
suas próprias experiências enquanto portadores do vírus HIV, da mesma forma em que
questionam o discurso – por vezes preconceituoso e homogeneizador – da ciência moderna.
Em suma, Abreu e Guibert, não contentes em ver suas identidades sendo escrita por terceiros,
sumariamente categorizados em um “grupo de risco” formado por pessoas cujo
comportamento não atende a determinado padrão, usam suas narrativas para se apossar de si
mesmos.
Não é à toa que o ato de escrever assume enorme importância para estes autores.
Abreu encerra sua primeira “Carta para além dos muros” dizendo ao leitor:
Tenho medo é desses outros que querem abrir minhas veias. Talvez não
sejam maus, talvez eu apenas não tenha compreendido ainda a maneira como
eles são, a maneira como tudo é ou tornou-se, inclusive eu mesmo, depois da
imensa Turvação. A única coisa que posso fazer é escrever – essa é a certeza
que te envio, se conseguir passar essa carta para além dos muros. Escute bem,
vou repetir no teu ouvido, muitas vezes: a única coisa que posso fazer é
escrever, a única coisa que posso fazer é escrever (Abreu: 2006, 108).
A frase que ecoa no ouvido do leitor soa como uma alerta do autor, que em face deste
novo estado, desta “Turvação” que o fez se perder de si mesmo, a escrita foi o meio por ele
encontrado para reelaborar sua identidade.
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Hervé Guibert não é menos dramático ao enfatizar a importância que a escrita teve em
sua vida após ter descoberto que estava com Aids. Em A l’ami qui ne m’as pas sauvé la vie,
ele faz diversas menções ao processo de criação de sua narrativa autobiográfica e de tal modo
se apega a criação de seu livro que em determinado momento afirma: “je choisirais entre le
suicide ou l‟écriture” (Guibert: 1990, 60).
A descoberta da Aids e de seus efeitos – de ordem física, psicológica e moral –
culmina em uma situação-limite, na qual se verifica a perda de domínio em relação aos seus
próprios corpos: “Ce jour-là on aurait pu me trépaner, me planter des seringues dans le ventre
et dans les yeux, j‟aurais juste serré les dents, j‟avais lancé mon corps dans quelque chose qui
le dépossédait apparament d‟une volonté autonome” (Guibert: 1990, 211), diz o escritor
francês, acentuando justamente a perda de controle dele em relação ao que estava se passando
em seu corpo. Nesse sentido, o ato de escrever e narrar a si mesmo se revela como uma forma
de empoderamento por parte destes autores. Em outras palavras, a escrita, em ambos os casos,
aparece como um espaço de resgate do corpo, um processo de análise e elaboração estética de
um corpo "perdido", que não pode mais existir senão dentro de outro corpo: o corpo do texto.
O conteúdo de A l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie e das “Cartas para além do muro” é
permeado de relatos autobiográficos envolvendo procedimentos médicos, referências a
amigos e familiares e viagens realizadas pelos autores. No entanto, o que se verifica é que
estes relatos, mais ou menos precisos, cedem rapidamente lugar a uma construção artística
que excede o plano referencial. A escrita é o espaço a eles disponível para elaborar, dar forma,
ao que estavam vivendo em seus corpos, e dentro desta elaboração, obviamente, há muito de
ficcional. Bruno Blanckeman utiliza a categoria de autoficção, cunhada por Serge
Doubrovsky, para caracterizar a produção de Guibert, segundo o crítico: “L'autofiction
représente (...) une pratique d'écriture entremêlant la relation phénoménologique brute, qui
permet l'étude du corps et de la conscience, et l'acte de fabulation, qui tente celle de
l'imaginaire et de l'inconscient” (Blanckeman: 2001, 1).
O conhecimento elaborado por estes autores acerca da Aids não se pretende
universalizante como aqueles das ciências médicas, tampouco se apresenta de maneira lógicodescritiva. No processo de conhecimento de si observado nestes textos, a linguagem é
performática, plena de metáforas que se sucedem para oferecer uma definição – sempre
provisória – sobre os efeitos da Aids. Apesar de existir uma fortuna crítica estabelecida sobre
as obras de Hervé Guibert e Caio Fernando Abreu, ainda não há estudos que proponham
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compará-los. Aproximar estes textos pode proporcionar, dessa forma, outras camadas de
percepção sobre a literatura destes autores, atentando para a maneira segundo a qual, em
contextos diferentes de publicação, a reflexão sobre a Aids apresenta movimentos comuns.
Referências bibliográficas
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BESSA, Marcelo Secron. Histórias Positivas. A literatura (dês)construindo a AIDS. Rio de
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&ext=1420756598&hash=ASujPbrH2GRNsNPH. Visualizado em 08/01/2015.
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de maio de 2000.
GUIBERT, Hervé À l'ami qui ne m'a pas sauvé la vie, Gallimard, Paris, 1990.
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Ed. 34, 200.
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Letras, 2007.
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1
A EMERGÊNCIA DO MMA FEMININO NO BRASIL: “DESCENDO A
PORRADA” NOS PRECONCEITOS?
Juliana Jardim1 (UNESP/Marília)
[email protected]
FAPESP
GT1 - Cultura, Diferenças e Desigualdades
A despeito do ser uma modalidade esportiva fortemente associada aos homens e à
masculinidade hegemônica, o Mixed Martial Arts (MMA, ou Artes Marciais Mistas, em
português) feminino vem crescendo vertiginosamente no Brasil. Neste trabalho, apresento e
discuto dados provenientes de minha pesquisa de doutorado em andamento, obtidos a partir
de uma etnografia multi situada com lutadoras brasileiras. O objetivo consiste em analisar a
recente emergência do MMA feminino no país, com foco nas questões relativas à
performatização de gênero. A partir da interlocução com as atletas, três pilares de
compreensão puderam ser traçados: 1) A maioria das lutadoras sofreu ou sofre algum tipo de
preconceito relacionado a gênero por praticarem a modalidade; 2) Em geral, as atletas migram
para o MMA em busca da recompensa financeira que não conseguiram encontrar através da
prática de suas artes marciais de origem; 3) Diversas lutadoras expressam o entendimento de
que, para obter sucesso no MMA hoje, é importante não apenas lutar bem, mas
preferencialmente ser bonita e feminina, dentro de uma concepção hegemônica de
feminilidade. Se, de um lado, o MMA é o terreno no qual algumas mulheres parecem
encontrar um espaço onde podem viver expressões de gênero e sexualidades não normativas,
de outro, a modalidade, sobretudo quando transformada em show midiático, mostra-se
fortemente presa às lentes binaristas que estabelecem normas rígidas para homens e mulheres.
Tais considerações, ainda preliminares, apontam para mudanças significativas, mas também
muitas resistências, no campo das relações de gênero e das sexualidades não normativas no
Brasil contemporâneo.
1 As artes marciais mistas no cenário nacional
Ela vai saber o que é um soco pesado na cara. Vou dar de
presente a ela uma cirurgia para tirar essa verruga da cara [...]Vai
ser logo no primeiro golpe. Depois disso, é lona!
A autora da frase que trago como epílogo do presente artigo é Bethe Correia,
brasileira, lutadora do UFC – a maior organização de Artes Marciais Mistas (Mixed Martial
1
Professora de Educação Física (Universidade Estadual Paulista – UNESP Bauru, 2005), Mestra em Educação
(UNESP Presidente Prudente, 2013) e Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da
UNESP Marília, sob orientação da professora Dra. Larissa Pelúcio. Nos últimos anos vem se dedicando ao
estudo da Teoria Queer e da interface entre esporte, gênero, sexualidade e sociedade.
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2
Arts – MMA) do mundo –, e foi proferida na coletiva de imprensa realizada em 20 de março
de 2015, na cidade do Rio de Janeiro, ocasião na qual foi anunciado seu próximo combate, no
qual disputará2 o cinturão Peso Galo (até 61,2 kg) com a campeã invicta da categoria, a
estado-unidense Ronda Rousey – mais famosa atleta de MMA do mundo. É exatamente à
Ronda que se destinam as rudes palavras proferidas por Bethe. As lutadoras vêm trocando
uma série de provocações e ameaças. Contrastando com a agressividade e impiedade das falas
de ambas, está o figurino com que as duas lutadoras adentraram o Maracanãzinho para a
coletiva de imprensa: Ronda trajava um vestido preto, justo ao corpo, pouco acima dos
joelhos; Bethe, um vestido vermelho, igualmente justo ao corpo, e mais curto que o de Ronda,
evidenciando suas coxas e glúteos avantajados, que facilmente podem ser associados ao
estereótipo da mulher brasileira. Enquanto a postura agressiva e impiedosa das atletas remete
a valores tradicionalmente associados à masculinidade, assim como a própria prática do
MMA em si, há, por outro lado, um cuidado das atletas em apresentarem-se belas, sensuais e
femininas – dentro de uma concepção hegemônica do que seja a feminilidade. Esta é uma das
questões que explorarei ao longo deste artigo, o qual pretende analisar a recente emergência
do MMA feminino no Brasil, com foco nas questões relativas à performatização de gênero
das lutadoras e nas representações midiáticas de gênero relativas a elas. Parto de uma
dimensão micro estrutural, o universo do MMA feminino, para buscar compreender aspectos
macrossociais que ajudem a situar as estratégias pessoais dessas atletas em responder, via
esporte, às mudanças significativas no campo das relações de gênero e das sexualidades não
normativas no Brasil contemporâneo.
O MMA caracteriza-se pela combinação de várias artes marciais, tais como o boxe, o
muay thai, a luta olímpica, o kickboxing, o jiu-jitsu, o karatê e o judô, dentre outras. Há duas
formas de se vencer uma luta da modalidade: por nocaute/ finalização, ou por pontos. Na
vitória por nocaute a luta é encerrada assim que um (uma) dos (as) lutadores (as) aplica um
soco, chute ou joelhada capaz de derrubar o (a) adversário (a) e deixá-lo (a)
momentaneamente desacordado (a), ou visivelmente sem controle do corpo. Há também o
nocaute técnico, que é quando não há um golpe derradeiro, mas uma sucessão de golpes
diante dos quais o (a) adversário (a) não consegue contra-atacar, nem defender-se. Nesse caso,
2
A luta será realizada no evento intitulado “UFC 190 - Rousey vs. Correia”, em 01/08/2015, na cidade do Rio de
Janeiro.
3
para preservar a integridade física do (a) lutador (a) subjugado (a), o (a) árbitro (a) encerra a
luta. As vitórias por finalização ocorrem através de golpes de imobilização que, se levados ao
limite, resultam em desmaios (no caso dos golpes aplicados no pescoço e que dificultam ou
impedem a respiração) ou lesões nas articulações. Por tal motivo, quando uma imobilização
está bem encaixada, o (a) lutador (a) que está sofrendo o golpe costuma “bater”, isto é,
desferir três leves tapas seqüenciais no chão ou no corpo do (a) adversário, sinal que indica
sua desistência do combate. A vitória por pontos ocorre quando não há nem nocaute, nem
finalização, de forma que o (a) vencedor (a) é aquele (a) que houver vencido um maior
número de rounds3.
O MMA é oriundo do antigo Vale Tudo e foi criado por brasileiros da família Gracie –
que desenvolveu o Jiu-jitsu brasileiro, hoje aclamado no universo do MMA – e lutadores de
diversas outras artes marciais, que organizavam lutas nas quais objetivavam mostrar a
supremacia das modalidades que praticavam (e de suas academias) perante as demais (AWI).
De acordo com Fellipe Awi (2012), foi com esse intuito que, em 1993, o brasileiro Rorion
Gracie criou a primeira edição do UFC, nos Estados Unidos. Nos anos 2000, quando a
organização ainda era pequena, foi comprado pelos irmãos Fertitta, empresários estadounidenses da área de entretenimento (donos de cassinos) na cidade de Las Vegas, e a
presidência da organização foi assumida pelo também estado-unidense Dana White:
[Eles] Assumiram um evento maldito, dependente de liminares na justiça para
acontecer, e o transformaram em um show mainstream, freqüentado por
celebridades. Além de regulamentarem o esporte nos Estados Unidos (à exceção de
cinco estados), conseguiram entender o que o público queria ver e consumir.
Contrataram os melhores lutadores de artes marciais mistas do mundo e
transformaram os embates entre eles em entretenimento de massa (AWI, 2012, p.
20).
Hoje o UFC é uma das maiores e mais valiosas organizações esportivas do mundo, e
vem se disseminando tão profusamente ao redor do globo, que tem seus cards4 transmitidos
em 28 idiomas, para mais de 145 países (AWI, 2012). O Brasil é um país referência no que
diz respeito a atletas de MMA, com vários lutadores ocupando posições de destaque na
organização, tais como Anderson Silva, Junior “Cigano” dos Santos, Vitor Belfort, Lyoto
3
Em geral, as lutas de MMA são compostas por 3 rounds, cada um com 5 minutos de duração, e intervalo de 1
minuto entre si. A exceção fica por conta das disputas de cinturão e/ou das lutas principais nas edições do UFC,
que são compostas por 5 rounds de 5 minutos cada.
4
Nome dado ao conjunto de lutas realizadas em uma noite em que haja uma edição do UFC.
4
Machida, José Aldo, Renan Barão e Rodrigo “Minotauro” Nogueira. A modalidade vem se
tornando cada vez mais popular em solo nacional. Atualmente, as principais lutas envolvendo
os atletas brasileiros transmitidas são transmitidas, além do pay per view (no Canal Combate),
também em canal aberto, na Rede Globo (ainda que com um delay contratual de no mínimo
meia hora após o horário da luta ao vivo, transmitida via canal pago). Além disso, pode-se
observar um verdadeiro boom no oferecimento e procura por aulas de MMA nas academias
(nas quais as aulas são mais voltadas à aprendizagem de golpes e ao condicionamento físico,
não ao combate em si).
Em 2013 o UFC completou 20 anos de existência (AWI, 2012). Porém, foi
tardiamente, apenas em seu vigésimo aniversário, que a organização passou a contar com sua
primeira categoria feminina. Anteriormente, o próprio presidente do UFC negava
veementemente a participação de mulheres no mesmo5. A exclusão das mulheres no UFC não
chega a ser surpreendente. Ainda que sua participação nos esportes venha se tornando cada
vez maior ao longo dos últimos séculos, este é, ainda, um campo marcadamente
androcêntrico, uma área de reserva dos homens (GOELLNER, 2005; CAPITÂNIO, 2005).
Apesar das dificuldades, historicamente construídas, no caminho das mulheres
esportistas, o MMA feminino vem se desenvolvendo a passos largos nos últimos anos,
crescimento que culminou em sua implantação no UFC. Atualmente, a categoria Peso Galo
feminino da organização conta com quatro brasileiras: Jéssica Andrade “Bate-estaca”,
Amanda Nunes “Leoa”, Bethe Correia “Pitbull” e Larissa Pacheco. No início do segundo
semestre de 2014 o UFC inaugurou uma segunda categoria feminina, a Peso Palha (até 52,2
kg), na qual também há três brasileiras contratadas: Juliana “Thai” Lima, Cláudia Gadelha e
Ericka Almeida6.
Além disso, há uma série de eventos de MMA realizados no Brasil que incluem lutas
femininas em seus cards, dentre os quais destaco o Jungle Fight, transmitido na televisão
aberta pela emissora Band, e o Xtreme Fighting Championship International (XFCi),
transmitido pela Rede Tv. Também não é possível deixar de mencionar o Invicta Fighting
Championhip, organização estado-unidense criada em 2012 (recentemente comprada pelo
5
É possível assistir a uma das entrevistas em que o presidente da organização rejeita a implementação do MMA
feminino no link que segue: <http://www.youtube.com/watch?v=fReLBq-QHnc>. Acesso em: 24 ago. 2014.
6
Maiores informações podem ser obtidas no site oficial do UFC. Disponível em:
< http://br.ufc.com/fighter>. Acesso em: 20 mai. 2015.
5
UFC), destinada exclusivamente ao MMA feminino, e que atualmente possui 3 brasileiras
campeãs, detentoras de três dos cinco cinturões existentes (um para cada uma das cinco
categorias de peso da organização): Herica Tiburcio (Peso Átomo, até 47,6 kg), Lívia Renata
Souza (Peso Palha) e Cristiane “Cyborg” dos Santos (Peso Pena, até 65,8 kg) – esta última, a
brasileira mais bem conceituada no MMA mundial, foi recentemente contratada pelo UFC, o
que aumenta a expectativa midiática e de fãs para que ela baixe de categoria de peso para
enfrentar a campeã Ronda Rousey, naquela que seria a mais aguardada luta de MMA
feminino da história, alimentada por muita rivalidade entre as lutadoras e, provavelmente,
rendendo as maiores cifras já atingidas por uma luta de mulheres (em vendas de ingressos,
pay-per-view, produtos promocionais, dentre outros).
2 Aportes teórico-metodológicos
Este trabalho é parte de uma pesquisa de doutorado em andamento, desenvolvida a
partir de uma etnografia muti situada, modalidade de pesquisa que “sai dos lugares e situações
locais de pesquisa da etnografia convencional, ao examinar a circulação de significados,
objetos e identidades culturais em um tempo-espaço difuso” (MARCUS, 2001, p. 111)7.
A necessidade de atualização da etnografia surge em resposta às grandes mudanças
geradas nos regimes político-econômicos internacionais pós Segunda Guerra Mundial,
seguidas por outras fragmentações e processos mais recentes, tais como a globalização e a
compressão espaço-tempo (MARCUS, 2001). Afirma Marcus (2001) que, se o capital
intelectual do chamado pós-modernismo propiciou idéias e conceitos para o surgimento da
etnografia multi situada, é ainda mais importante o fato de esta surgir como resposta a
desafios empíricos no mundo e, portanto, à transformação dos locais de produção cultural:
“Seguir empiricamente o fio condutor dos processos culturais leva à etnografia multi situada”
(MARCUS, 2011, p. 112).
A partir de tal entendimento, engajei-me em uma investigação que vem sendo
realizada tanto online (a partir do acompanhamento de postagens das lutadoras em redes
sociais – sobretudo o Facebook e o Instagram –, bem como de notícias e matérias midiáticas
7
As traduções das citações feitas a partir desta obra são de minha autoria.
6
relacionadas ao problema de pesquisa), quanto presencialmente (a partir do acompanhamento
de treinamentos e eventos da modalidade), com lutadoras de MMA brasileiras de diferentes
equipes, residentes no Brasil ou no exterior.
A investigação tem como principal escopo teórico e metodológico a Teoria Queer, que
balizará as análises aqui apresentadas. Entendo que problematizar e analisar as questões
relativas ao gênero e à sexualidade face à emergência do MMA Feminino no Brasil implica na
adoção de uma teoria social não canônica, já que, como aponta Miskolci (2009), as ciências
sociais e humanas construíram seu campo de investigação, teorias e conceitos baseadas na
assunção de que a heterossexualidade instituía os limites da vida social e do que seria possível
investigar. Apesar de sua relevância, os estudos feministas, gays e lésbicos dos anos 1970 e
1980 não foram capazes de contestar ou ao menos problematizar a heterossexualidade, que
ficou em uma benéfica zona de conforto que a mantinha como a suposta ordem natural do
desejo (MISKOLCI, 2012). Além disso, poucas ou raras vezes reconheceram as
problemáticas de dissidentes sexuais e de gênero (MIKOLCI, 2012).
Propondo uma inversão epistemológica – ou uma “subversão” epistemológica – surgiu
nos Estados Unidos, no final da década de 1980, a Teoria Queer. Oriunda do encontro entre
uma corrente da Filosofia e dos Estudos Culturais norte-americanos com o pós-estruturalismo
francês – que problematizou concepções clássicas de sujeito, identidade, agência e
identificação –, a Teoria Queer emerge em oposição crítica a estes estudos sociológicos sobre
minorias sexuais e de gênero (MISKOLCI, 2009). Seu grande desafio é assumir tanto que as
posições de gênero e sexuais são múltiplas e é impossível lidar com elas apoiadas em
esquemas binários (homem/mulher, masculino/feminino, heterossexual/homossexual), quanto
admitir que as fronteiras vêm sendo constantemente atravessadas e que o lugar social no qual
alguns sujeitos vivem é exatamente a fronteira (LOURO, 2001). O sujeito do pósestruturalismo é sempre encarado como provisório, circunstancial e cindido (HALL, 2006).
Em suma, o “queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou
tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora” (LOURO,
2001, p. 546). Benetti (2013), traçando uma genealogia da Teoria Queer no Brasil, lembra que
os estudos queer não têm as sexualidades como objeto de estudo obrigatório, mas antes o
objetivo de refletir sobre o sujeito abjeto, as normas sociais, a desconstrução das
naturalizações culturais e a reflexão sobre os (as) silenciados (as) pela história.
7
Há uma ruptura com o pensamento essencialista (BARD, 2013), segundo o qual
haveria uma noção de essência última que transcenderia limites históricos e culturais, cuja
ênfase política reside nas identidades (BRAH, 2006). Assim, não faz sentido considerar que
exista uma essência única, universal, que determine o que é o homem ou a mulher, , o (a)
homossexual, o (a) heterossexual. Mais do que isso, binarismos como “homem x mulher”,
“masculinidade x feminilidade” passam a ser rejeitados, na medida em que seus pólos são
reconhecidos como interdependentes e complementares. Não há fronteiras rígidas, mas antes
um borramento entre elas.
3 Batendo e apanhando: MMA feminino, performatividade de gênero e normas sociais
Logo em minhas primeiras incursões presenciais a campo, algumas questões
emergiram de forma latente. Uma delas foi a percepção de como os treinamentos da
modalidade são ainda mais intensos do que pareciam ser pela televisão: exigem muita força
muscular, condicionamento cardiorrespiratório excelente e amplo domínio das técnicas –
tanto para obter êxito nos golpes, quanto para se proteger adequadamente. Outra questão
latente é o fato de haver, nas academias de MMA, uma esmagadora maioria de lutadores.
Também me deparei apenas com “mestres”8 homens conduzindo os treinamentos das diversas
artes marciais envolvidas na prática da modalidade. As lutas oficiais são separadas a partir
dos (supostos) sexos biológicos, mas os treinamentos são mistos. As mulheres parecem
acostumadas a treinar com os homens, demonstrando sentirem-se à vontade. Os homens
também parecem à vontade, porém, constantemente assediam as atletas, em tom jocoso, de
brincadeira, mas com apelo fortemente sexual: “Ficam dando em cima da gente toda hora!”conta-me uma das lutadoras, quando perguntada sobre como é treinar com uma maioria de
homens. Conviver naquele ambiente exige que elas relevem o assédio, tornando-o uma
brincadeira aceitável e naturalizada no cotidiano dos treinamentos. O MMA torna-se um
espaço de constituição e legitimação da masculinidade dos lutadores, e o assédio constante às
lutadoras com as quais convivem é a forma que parecem encontrar para se exibir como
“machos verdadeiros” diante do grupo.
8
Categoria êmica. Na maioria das artes marciais, o (a) praticante adquire a graduação de mestre depois de obter
a última graduação existente na faixa preta. Porém, a obtenção do grau de mestre varia, pois cada arte marcial
tem seu sistema. Os líderes das equipes de MMA (em geral) são mestres em alguma Arte Marcial.
8
Em estudo etnográfico realizado por Thomazini, Moraes e Almeida (2008) com
lutadores e uma lutadora de MMA, ficou evidente a existência de representações ambíguas
associadas à presença feminina nas academias investigadas: ao mesmo tempo em que estas
são espaços de afirmação dos ideais predominantes de masculinidade, nos quais as mulheres
ou são estigmatizadas como existências estranhas naquele universo ou como presenças
submissas aos homens, alguns lutadores consideram a presença da lutadora uma conquista
que deveria ser respeitada e valorizada.
Não se pode deixar de problematizar como o próprio conjunto de adjetivos
tradicionalmente utilizados para caracterizar o esporte (em geral, não apenas o MMA),
refletem marcas que representam o mundo masculino (pensando em um modelo masculino
hegemônico): força, determinação, resistência e superação de limites (RUBIO; SIMÕES,
1999). Como conceitua Connell (1995), a masculinidade hegemônica corresponde a um
padrão de práticas (e não apenas uma série de expectativas de papéis ou uma identidade) que
possibilitou a manutenção da dominação dos homens sobre as mulheres, distinguindo-se de
outras masculinidades, especialmente das masculinidades subordinadas:
Foi em relação a esse grupo, e com a complacência dentre as mulheres
heterossexuais, que o conceito de hegemonia foi mais eficaz. A hegemonia não
significava violência, apesar de poder ser sustentada pela força; significava
ascendência alcançada através da cultura, das instituições e da persuasão
(CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013, p. 245).
Sobretudo ao longo do século XIX, a partir de um conjunto discursivo proveniente de
distintas fontes de saber – como a endocrinologia, a psicologia, a filosofia moral e a medicina
social –, o corpo da mulher foi legitimado como um corpo doméstico e procriativo, frágil e
facilmente afetado por eventos sociais e políticos que o desestabilizariam (LAQUEUR, 2001).
Assim, as mulheres foram excluídas da vida social e, conseqüentemente, dos esportes, já que
eram consideradas delicadas e não poderiam correr o risco de danificar seu frágil corpo nas
atividades esportivas, mas sim deveriam preservá-lo para a maternidade (GOELLNER, 2005).
Silvana Goellner (2005) denuncia como, ainda nos dias de hoje, se as mulheres vêm
ganhando cada vez mais espaço nos esportes, a participação delas em todas as esferas do
universo esportivo é comparativamente menor à dos homens. Além disso, “se a pouca
participação das mulheres nos esportes em geral é explícita, pode-se afirmar que a ausência
delas nos esportes socialmente considerados masculinos torna-se mais evidente” (SILVEIRA,
9
2008, p. 34-35). Por esportes socialmente considerados masculinos a autora entende as
modalidades esportivas que, em determinada sociedade, são reservadas aos homens, isto é,
consideradas adequadas a eles, mas não a elas.
A despeito das atuais transformações sociais que vêm possibilitando a emergência do
MMA feminino no Brasil, não há duvidas de que a modalidade seja socialmente considerada
masculina. Ainda que, na interlocução comigo, nem todas as lutadoras tenham relatado de
prontidão episódios em que sofreram preconceitos devido à prática da modalidade, quase
todas, ao longo do diálogo, acabam relatando episódios em que foram discriminadas pelo
simples fato de serem lutadoras. Uma das interlocutoras contou-me que, certa vez, ela e sua
companheira de treinamentos, também lutadora de MMA e exibindo uma musculatura
bastante definida, foram abordadas por um homem idoso, quando saiam do treinamento:
“MMA não é coisa de mulher, não! Mulher tem que ficar atrás do fogão, isso não é coisa de
mulher!” – Exclamou ele. Outra lutadora, quando perguntada a respeito de discriminações
sofridas, destacou não a linguagem verbal, mas os olhares a partir dos quais se sente
constantemente examinada: “Pessoas olham estranho por você ser lutadora, ter um corpo
diferente, ter mais músculos”. Em uma de minhas incursões a campo, durante um card do
UFC no Rio de Janeiro, um espectador gritou desdenhosamente, momentos antes do início da
luta entre a brasileira Amanda Nunes e a estado-unidense Shayna Baszler: “Cuidado para
não quebrar a unha!”.
Tais situações, ainda que corriqueiras, não podem ser naturalizadas. Elas ocorrem
porque as lutadoras de MMA fogem ao padrão hegemônico de feminilidade, segundo o qual
as mulheres seriam delicadas, frágeis, sensíveis, passivas. Estas mulheres gostam de uma
modalidade que ainda choca a muitas pessoas por sua suposta violência, cuja prática, ao
menos dentro dos octógonos e ambientes de treinamento, exige que sejam fisicamente fortes,
ativas, agressivas, impiedosas e resistentes à dor, o que as aproximam do modelo de
masculinidade hegemônico, associado ao poder viril (COURTINE, 2013).
Os corpos fortes, hipertrofiados e muitas vezes cobertos por tatuagens das lutadoras de
MMA rompem com a linearidade da matriz heterossexual (BUTLER, 2003), que designa a
expectativa social de que os sujeitos terão uma coerência linear entre sexo designado ao
nascer, gênero, desejo e práticas sexuais. Assim, ao praticarem MMA, modalidade fortemente
associada à masculinidade, as lutadoras subvertem as normas sociais que estabelecem regras
10
rígidas sobre a feminilidade, o que tende a causar medo ou incômodo, além de fazer com que
sejam quase automaticamente consideradas lésbicas. Fundada em um ideal de força física,
firmeza moral e potência sexual, a virilidade foi assumida como associada ao homem,
pertencente à ordem natural e inelutável das coisas (COURTINE, 2013). Afirma Courtine
(2013) que a história da virilidade não pode ser confundida com a história da masculinidade:
“Masculino” durante muito tempo foi somente um termo gramatical. Também no
século XIX e início do século XX não se exorta os homens a serem “masculinos”,
mas “viris”, homens, se dizia, “verdadeiros”... Que o “masculino” tenha vindo
suplantar o “viril” é bem sinal de que, decididamente, há algo que mudou no império
do macho (COURTINE, 2013, p. 9).
Na contemporaneidade, prossegue o autor, há um paradoxo na virilidade: esta
representação baseada na força, na autoridade e no domínio, acabou por parecer frágil,
instável e contestada. A virilidade entrou em uma zona de turbulências culturais, num campo
de incertezas, num período de mutação que afeta a identidade masculina com uma
instabilidade crônica. No começo do século XXI, a virilidade começa a ser dissociada do
corpo masculino (COURTINE, 2013), do qual, conforme coloca Judith Butler (2003), foi
durante muito tempo emblema, mercadoria, desempenho, disfarce ou paródia. Butler (2003)
evidencia que a aparência de fixidez interior do gênero é constituída performativamente, em
um processo de “estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de
uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a
aparência de uma substância, de uma classe natural de ser” (BUTLER, 2003, p. 59). Como
apontam Miskolci e Pelucio (2007), não se pode confundir performance com
performatividade, já que aquela está associada a uma idéia voluntarista, à representação de
um “papel de gênero”, enquanto esta “não tem relações com atos teatrais que sugerem
representações de papéis, senão com discursos que constroem sujeitos dentro de relações de
poder” (MISKOLCI; PELÚCIO, 2007, p. 262).
Nesta mesma linha de raciocínio, Jack Halberstam (1998) afirma que a masculinidade
não é um atributo de homens, e que, portanto, não pode ser determinada a partir do corpo
sexuado. É o abandono de tal fundacionismo biológico que permite à referida teórica Queer a
compreensão de que a masculinidade também pode ser expressa no corpo de mulheres
“biológicas”. A esta expressão de gênero, Halberstam chamou de Masculinidade Feminina
(Female Masculinity):
11
Longe de ser uma imitação, a masculinidade feminina na verdade nos permite
vislumbrar como a masculinidade é construída como masculinidade. Em outras
palavras, masculinidades femininas são enquadradas como fragmentos rejeitados da
masculinidade dominante, de forma que a masculinidade masculina possa parecer
ser a real (HALBERSTAM, 1998, p. 1).9
Há uma relação dialética, já que “a virilidade das mulheres continua a causar medo.
Ela desencadeia quase automaticamente um julgamento estético e moral negativo” (BARD,
2013, p. 151) e, ao mesmo tempo, atributos associados a ela, como coragem, ousadia, força,
resistência, valentia, além de uma técnica apurada, são pré-requisitos necessários para se
tornar uma boa lutadora.
No campo de pesquisa, não pude deixar de notar como os e as atletas pingam suor...
No tatame, nos bancos, em tudo. E treinam, em boa parte, agarrados (as). Não há espaço para
se preocupar ou incomodar com o suor alheio naquele ambiente. Quando o treinamento vai
para dentro do cage, espécie de gaiola onde ocorrem as lutas de MMA, uma de minhas
interlocutoras relata que treinar com o corpo sendo pressionado contra a “grade” é bastante
doloroso e a deixa coberta de hematomas, mas que, na hora da luta oficial, devido à
adrenalina, nem sente. Ao longo dos dias que passo com ela, outros relatos de dor são
recorrentes: doem os joelhos, a lombar, os dedos das mãos. Mas ela não pára de treinar, sua
preparação para sua próxima luta está a todo vapor. Similarmente, em sua etnografia com
lutadores de boxe, Wacquant (2002) afirma o reconhecimento da dor como elemento
intrínseco à construção do corpo (do) pugilista, um componente fundamental de qualquer
praticante de esporte de combate.
Em suas respectivas etnografias com lutadores de MMA, Spencer (2014) e Green,
(2011) também apontaram a dor como um dos elementos centrais. Um dos lutadores
entrevistados chegou a afirmar a Green (2011) que só se sente vivo quando é atingido por um
golpe. Spink (2012) aponta como, nos dias de hoje, a emoção associada ao risco-aventura
passou a ser renomeada como adrenalina. Mais do que uma substância, nos anos 2000 a
adrenalina tornou-se uma espécie de lubrificante da masculinidade, bastante associada à
sociedade de risco. Para Spink (2012), o risco-aventura aproxima os campos da Economia e
dos Esportes e herda a positividade da aventura; correr riscos torna-se uma prática necessária
para alcançar determinados ganhos. “A relevância está na satisfação subjetiva – inclusive na
9
Tradução minha.
12
modalidade das emoções radicais – e não em uma lista predefinida de efeitos indesejáveis”
(SPINK, 2012, p. 46).
O dia seguinte a um card do XFCi que acompanhei, lembrou-me um cenário de
guerra: duas atletas estrangeiras, que haviam se enfrentado na noite anterior, adentraram o
salão de café da manhã do hotel com os olhos cobertos por grandes hematomas; uma de
minhas interlocutoras estava mancando, com fortes dores no pé; a outra interlocutora, ainda
que tendo vencido sua luta por nocaute no primeiro round, também não escapou de acordar
com um pequeno hematoma no olho; seu companheiro de equipe, que também vencera sua
luta, precisou tomar pontos em um corte provocado por uma cotovelada no rosto e exibiu-me
as lesões que provocaram inchaço (“galos”) em seu crânio após os golpes sofridos; um outro
atleta estrangeiro circulava no saguão do hotel de cadeira de rodas, devido a alguma lesão
sofrida na perna durante seu combate.
No entanto, a despeito dos constantes hematomas, da dor, do suor e dos músculos
proeminentes requeridos por sua atuação profissional, algumas lutadoras buscam manter
valores tradicionalmente associados à feminilidade em seus corpos, o que é exibido, por
exemplo, por meio de unhas pintadas, utilização de saias e vestidos esportivos nas lutas e
treinamentos, e de cores como o rosa. Percebo como algumas também buscam rapidamente
explicitar a mim suas heterossexualidades, demonstrando certa preocupação em não serem
consideradas lésbicas, já que, como relataram minhas interlocutoras (neste caso, confirmando
a expectativa do senso comum, construída a partir da lógica da matriz haterossexual), o
universo do MMA feminino é composto por uma esmagadora maioria de “sapatões”
(lésbicas).
Outras lutadoras se associam ao que tradicionalmente se entende como masculino,
vestindo bermudas e camisetas largas, assumindo gestos e comportamentos associados aos
homens. Estas são quase todas lésbicas, mas não necessariamente todas, e remetem à
masculinidade feminina, tal como conceituada por Halberstam (1998). Contudo, assim como
ocorre na sociedade em larga escala, nem todas as lutadoras lésbicas performatizam gênero
desta forma, tal como nem todas as lutadoras heterossexuais são femininas, dentro de uma
concepção hegemônica de feminilidade. As expressões de gênero encontradas são múltiplas e
estão além do que os rótulos dariam conta de definir.
13
Não deixo, contudo, de questionar os limites do conceito de masculinidade feminina
para pensar as expressões de gênero de algumas de minhas interlocutoras de pesquisa, ou seja,
das lutadoras brasileiras de MMA. Se, por um lado, o conceito traz à tona expressões de
gênero que subvertem a lógica compulsória da matriz heterossexual, de outro, não se mantém
preso ao binarismo masculinidade x feminilidade, ainda que com suas muitas variações?
Parece-me preciso cuidado para não limitar as múltiplas possibilidades de expressão de
gênero que ainda podem ser encontradas em meu campo.
Jack Halberstam (1998) não deixa de explicitar que a masculinidade de mulheres não
consiste em uma expressão de gênero homogênea, mas em uma gama de variações que devem
ser pensadas a partir de contextos histórico-culturais específicos. Em que medida o conceito,
cunhado em um contexto norte-americano, dá conta de explicar tal expressão de gênero na
sociedade brasileira? Como pensá-lo a partir de nosso contexto histórico cultural? Uma
primeira pista para a resposta parece residir na constatação de que, no Brasil, há a
particularidade de as masculinidades femininas estarem marcadas por um forte recorte de
classe. Especificamente, tal expressão de gênero vem sendo mais encontrada entre mulheres
lésbicas das camadas mais pobres, onde os binários parecem operar com maior força e há
muitos casais de mulheres que correspondem ao par mulher masculina com mulher feminina,
como mostra a etnografia desenvolvida por Meinerz (2011) com mulheres da periferia de
Porto Alegre (RS).
Há trabalhos discutindo as particularidades que os estudos queer assumem fora dos
centros onde foram originalmente produzidos. Em particular, dialogo com estudos como os de
Pedro Paulo Gomes Pereira (2012), Larissa Pelúcio (2012, 2014) e Richard Miskolci (2014),
que problematizam a potência e, ao mesmo tempo, os limites na “transposição” dos estudos
queer no Brasil, bem como a hegemonia do queer produzido nos Estados Unidos e Europa e
as particularidades na produção “dos saberes insurgentes ao sul do equador”, para usar os
termos de Miskolci (2014).
Pereira (2012, p. 338) argumenta, a partir de dados de pesquisa etnográfica realizada
no estado do Rio Grande do Sul, que os entes sobrenaturais das religiões afro-brasileiras (Exú,
Pombajira, etc.) são, para as travestis, tão mediadores quanto a biotecnologia, conceito de
Paul B. Preciado que alcançou longo alcance dentro dos estudos queer. Afirma Pereira (2012,
p. 339) que “as travestis se definiram por atos, gestos corporais e discursos; por próteses
14
cibernéticas e substâncias químicas, mas também, e sobretudo, por santos e entidades”.
Pelúcio (2012, p. 413) também questiona as particularidades do queer no contexto brasileiro,
problematizando as produções de autores e autoras de grande que produziram a partir dos
grandes centros e possuem grande expressividade:
Nossa drag, por exemplo, não é a mesma do capítulo 3 do Problemas de Gênero de
Judith Butler (2003), nem temos exatamente as drag king das oficinas de montaria
de Beatriz Preciado, ou sequer podemos falar de uma história da homossexualidade
do mesmo modo de David Halperin, ou da Aids como o fez Michel Warner. Nosso
armário não tem o mesmo “formato” daquele discutido por Eve K. Sedgwick.
Os trabalhos supracitados tornam evidente que os estudos queer produzidos no Brasil
não apenas possuem as particularidades do contexto local, como também que produzimos
estudos com qualidade e sofisticação igual ou maior a de determinados trabalhos produzidos
nos centros norte-americanos e europeus. Assim, quando foco a questão da performatividade
de gênero de lutadoras de MMA diante da flagrante emergência da modalidade na sociedade
brasileira, não busco a simples aplicação de referenciais Queer já aclamados nos grandes
centros, mas antes considerar seus limites quando transpostos para o contexto nacional e para
meu objeto de estudo, desvelando as especificidades que o campo de pesquisa em questão tem
a revelar para o cenário queer brasileiro.
4 Esporte e show: o mercado da beleza
Merece destaque o fato de algumas atletas exibirem intencionalmente uma
performance que entendem como “feminina” em suas redes sociais e/ou diante da grande
mídia, procurando apresentar-se belas e sexies, pois entendem que isso as tornas mais
atrativas para os promotores de lutas, para as organizações de MMA, patrocinadores e fãs,
ajudando a impulsionar suas carreiras de lutadoras. Uma das interlocutoras chegou a
exemplificar-me uma frase que já teria ouvido de promotores de eventos de MMA no país:
“Você tem uma menina que lute bem aí e seja bonita?[para que ele convidar para lutar em seu
evento] Manda uma foto”. Outra lutadora fez a mim a seguinte declaração: “Tento me
arrumar, ficar o máximo feminina possível, fui na pesagem maquiada. Já me acho masculina,
meu jeito, então o máximo feminina que eu puder ficar, eu vou tentar! Não é só lutar bem que
faz você ganhar fã!”.
15
De fato, a modalidade não é apenas um esporte (na acepção polissêmica do termo),
mas também um negócio, um show midiático que pode ser altamente rentável. Além disso, a
despeito de minhas incursões a campo mostrarem um número relativamente equilibrado de
expectadores homens e mulheres nos ginásios, os eventos de MMA continuam sendo
produzidos visando um público homem e heterossexual. Nesta lógica heteronormativa e
machista, as atletas tornam-se produtos interessantes sobretudo se, além de apresentarem um
bom desempenho no MMA, travando combates de boa qualidade técnica, também forem
belas e sensuais. É devido ao show business, por exemplo, que Ronda Rousey e Bethe Correia
fizeram questão de apresentarem-se belas, sexies e femininas no anúncio de sua luta. A
normalização da variação de gênero no que tange a participação de mulheres nos esportes é
denunciada por Halberstam (1998): observa-se uma sobresseleção entre as atletas de melhor
desempenho, a partir da domesticação da masculinidade. Isto é, quanto mais as atletas
conseguem cultivar elementos considerados femininos, amparados em elementos étnicosraciais e em formas de explicitação da heterossexualidade, paralelos à eficiência corporal
requerida pelo esporte, mais serão valorizadas.
No entanto, algumas interlocutoras relataram tratar-se de uma via de mão dupla,
extremamente contraditória, já que o fato de algumas delas serem consideradas belas e
femininas já fez com que tivessem seus desempenhos questionados. Uma das atletas chegou a
ser retirada da programação principal de um evento, tendo sido rebaixada para o card
preliminar em sua luta de estréia na organização, exclusivamente porque o presidente da
mesma a teria visto fazendo as unhas nos bastidores e, a partir disso, deduzido que ela não
faria uma boa luta por ser muito feminina/ delicada. Outra interlocutora teve sua luta
interrompida prematuramente, pois o árbitro em questão acreditava que ela era bonita demais
para suportar os golpes. Ao reclamar da postura do árbitro, a atleta obteve dele a seguinte
resposta: “Você tem um rosto tão bonito, já pensou ele ficar machucado depois?”.
É também pelo fato de o MMA ser, concomitantemente, esporte e show, que várias
lutadoras e lutadores – e aqui novamente cabe o exemplo de Ronda Rousey e Bethe Correia –
abusam do trash talk, isto é, das provocações e ofensas públicas, para promover suas lutas.
Rivalidade, tal como beleza, vende lutas e impulsiona carreiras. Tornar-se uma estrela do
UFC é um negócio lucrativo, e fator que motiva muitas lutadoras de distintas artes marciais a
migrarem para a modalidade em busca de atingirem tal sonho, ainda que os salários das
16
mulheres que se destacam na organização – exceção talvez feita a Ronda Rousey – não se
equipare ao da maioria dos lutadores homens de mesma expressividade.
De fato, muitas lutadoras brasileiras buscam no MMA uma forma de ascensão social,
fenômeno similar ao que se observa com o futebol, e diretamente relacionado ao crescimento
das artes marciais mistas no país. Quando questionadas sobre as razões que as fizeram iniciar
a prática do MMA, até o momento todas as interlocutoras foram unânimes em apontar que
estavam em busca da recompensa financeira que não encontravam a partir da prática de suas
artes marciais de origem.
Algumas interlocutoras, contudo, não deixam de pontuar que não se obtém uma
recompensa financeira expressiva lutando MMA em eventos nacionais, e que, mesmo lutando
fora do país, são poucas as lutadoras que realmente passam a ter um alto poder aquisitivo.
Como exemplo, cito duas de minhas interlocutoras que, apesar de lutarem em uma
organização de MMA transmitida em canal aberto no país, continuam enfrentando
dificuldades financeiras: uma delas reside “na comunidade”(favela), pois não dá conta de
arcar com os alto custos do aluguel na cidade em que vive, além de constantemente precisar
recorrer à ajuda financeira da família. A outra relata que treina e luta mesmo sem possuir
plano de saúde, pois não dá conta de custear o pagamento de um. Há ainda lutadoras que
passaram períodos morando nas academias onde treinam, por não terem dinheiro suficiente
para despender em moradia. A maioria das lutadoras profissionais brasileiras trabalha
ministrando aulas de artes marciais nas academias onde treinam, para turmas convencionais
(de não atletas), como forma de obter a renda necessária ao seu sustento.
Venho me deparando com interlocutoras de distintos estratos sociais, mas parece haver
uma predominância de lutadoras de MMA bastante jovens e pertencentes à chamada “nova
classe média” ou, nas palavras de Jessé de Souza (2010), à classe batalhadora – isto é, a uma
nova classe operária, que não mais trabalha somente nas fábricas, mas ainda tem empregos
precários; que tem maior acesso a bens de consumo e bens culturais, porém sem que isso
esteja diretamente ligado a um capital cultural que possa promover sua ascensão social.
5 Final de round: ensaiando considerações
17
Ao longo do artigo apresentei, a partir do diálogo entre a literatura e os dados
coletados em meu campo de pesquisa, uma análise de como os valores e normas sociais
contemporâneos chegam até as lutadoras de MMA e são por elas operados a fim de garantir
possibilidades de ascensão social e, para além dela, a possibilidade de viver outras
possibilidades de expressão de gênero.
Se, de um lado, o MMA é o terreno no qual algumas mulheres parecem encontrar um
espaço onde podem viver expressões de gênero e sexualidades não normativas de forma
relativamente “autorizada”, de outro, a modalidade, sobretudo quanto transformada em show
midiático, mostra-se fortemente presa às lentes binárias que estabelecem normas rígidas para
homens e mulheres. Neste sentido, a pesquisa de campo aponta para mudanças significativas,
mas também muitas resistências, no campo das relações de gênero e das sexualidades não
normativas no Brasil contemporâneo.
De qualquer modo, o latente crescimento e a aceitação cada vez maior da prática do
MMA feminino no país, por si só, caracterizam uma conquista de extrema relevância por seu
alto teor subversivo, haja visto tratar-se de uma modalidade historicamente associada aos
homens e à virilidade. O crescimento do número de lutadoras de MMA evidencia como, de
fato, no século XXI a virilidade vai deixando de ser reconhecida como restrita aos homens.
As lutadoras ainda sofrem duros preconceitos e, ao mesmo tempo em que binarismos de
gênero são fortalecidos, lentas transformações sociais parecem estar em curso.
Neste artigo, diante de um estudo que se encontra em andamento, apresentei
discussões incipientes, ainda preliminares, que devem ser aprofundadas posteriormente. Há,
também, questões que não foram aqui abordadas e serão exploradas no futuro, como aquelas
que se relacionam à temática da violência: Por que é que a modalidade, supostamente
violenta, ganha cada vez mais praticantes, fãs e expectadores/as ao redor do globo e,
especificamente, no Brasil? O que é considerado violento quando se trata de artes marciais,
isto é, modalidades onde atletas devidamente treinadas competem entre si por livre vontade, a
partir de regras previamente estabelecidas? É sintomático constatar que, em uma sociedade
como a brasileira, onde a violência é cotidiana e estrutural, o MMA vem crescendo de forma
latente. Mais do que isso, duas de minhas interlocutoras – hoje lutadoras profissionais da
modalidade – relataram ter buscado seus primeiros contatos com as artes marciais como
forma de defesa pessoal, após uma delas ter sofrido um assalto e a outra ter tido uma tia
18
estuprada e assassinada. A luta foi o meio que encontraram para tentar se proteger de uma
sociedade onde se sentem violentadas.
Outra questão a ser explorada é uma frase com a qual me deparei recentemente,
publicada em um ensaio sensual feito com a estado-unidense Ronda Rousey, para uma famosa
revista esportiva: “forte é o novo magro”, era a afirmação estampada na publicação. Pus-me a
pensar: estariam os padrões de beleza mudando? Qual seria o impacto desta mudança no
padrão hegemônico de feminilidade? Essas mudanças chegaram ou chegarão ao Brasil?
O embate entre o MMA feminino e as normas que regulam cotidianamente os gêneros
e as sexualidades no Brasil contemporâneo segue cheio de tensionamentos. Que venham os
próximos rounds.
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1
TATUAGEM: O CORPO COMO ESPAÇO DE ADMINSTRAÇÃO DE
IDENTIDADES E DIFERENÇAS
Beatriz Patriota Pereira, PPGS/UFSCar1
[email protected]
FAPESP
GT 1 - Cultura, Diferenças e Desigualdades
Resumo
Na modernidade, o corpo se desloca e torna um espaço de administração de identidades e
diferenças. Através das técnicas e das modificações corporais, o sujeito tem a possibilidade de
criar um projeto corporal, marcado por processos de subjetivação. Com a legitimação da
tatuagem no campo artístico, acompanhada de sua profissionalização e higienização, a prática
se populariza por todo o mundo. Nesse processo, a tatuagem aparece como um dos
mecanismos de construção de identidades. Ao contribuir para o sentimento de identidade do
sujeito, a prática também marca diferenças. Objetivo discutir como as tatuagens são
significadas e como as posicionalidades dos sujeitos reverberam nas escolhas dos desenhos e
dos locais tatuados, criando processos de identificação e diferenciação. Faço essa discussão a
partir da etnografia em três estúdios na cidade de São Carlos/SP.
Ao pensar a condição corporal, Le Breton (2000) aponta que o corpo é criado
historicamente e moldado pelo contexto cultural e social no qual ele está inserido. Na
modernidade, de acordo com Le Breton (2009), o corpo desloca-se e é pensado como suporte
do sujeito, motivo de apresentação de si e objeto de representação de si. Entre o social e o
individual, é visto como um suporte de uma identidade fluída, provisória e variável.
Neste contexto, segundo Le Breton (2009), ocorre a perda do poder de ancoragem
corporal da existência e o corpo é dissociado do sujeito e considerado como um objeto em si.
Distinto do sujeito, torna-se uma matéria-prima no processo de construção de identidade,
espaço a se espera de modificações e melhorias para chegar ao ideal. Aparece a noção de
1
Mestranda em Sociologia pelo PPGS/UFSCar. Orientanda do Prof. Dr. Jorge Leite Jr. Graduada em Ciências
Sociais pela UFSCar.
Programa de Pós Graduação em Sociologia
Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia.
E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673
1
2
mudar a si mesmo remodelando a forma do corpo; e ao mudá-lo, o sujeito modifica seu
sentimento de identidade. Através das técnicas e das modificações corporais, o sujeito tem a
possibilidade de criar um projeto corporal, marcado por processos de subjetivação. Castro
(2007) destaca que o corpo é visto como território de construção de identidades.
Stuart Hall (2001) remete ao declínio das velhas identidades e ao surgimento de um
sujeito visto como fragmentado, composto de várias identidades, algumas vezes contraditórias
ou não resolvidas, em constante processo de mudança. Desaparece a coerência na produção da
identidade e o processo de identificação torna-se provisório e deslocado.
Identidade, termo que opera “sob rasura” 2 , é definida para Hall (2000) como uma
construção social produzida no discurso e definida com base em critérios culturais, históricos
e institucionais que buscam criar uma imagem do sujeito, imaginada como estável. É “o ponto
de encontro entre os discursos e as práticas que tentam nos convocar para que assumamos
nosso lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e os processos que produzem
subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode falar" (HALL, 2000;
111/112).
Assim, Hall (2000) entende identificação como um processo de articulação de
diferenças, que possibilita um indivíduo sentir-se dentro ou fora dessas categorias sociais. A
identificação é construída a partir do reconhecimento de alguma origem comum ou de um
mesmo ideal atuando junto com o acionamento da diferença, percebida como "uma
construção, como um projeto nunca completado - como algo sempre 'em processo'” (Hall,
2000; 106), não pode ser completamente determinada, no sentido de que pode ser sustentada
ou abandonada. É um processo de articulação, que produz “efeitos de fronteiras” (Hall, 2000;
106), como produto de marcação de diferenças e exclusão.
É a partir dos processos que nos constroem como sujeitos e das identificações nas
quais o sujeito se inclui que é possível criar um sentimento de identidade, mesmo que
fragmentado ou provisório. Hall (2000; 2001) sugere também uma intersecção entre o social e
o psíquico, considerando que as identidades são construídas por meio da diferença e dentro do
2
"O sinal de “rasura” (X) indica que eles não servem mais em sua forma original, não-reconstruída. Mas, uma
vez que eles não foram dialeticamente superados e que não existem outros conceitos que possam substituí-los,
não existe nada a fazer senão continuar a se pensar com eles - embora agora em suas formas desmoralizadas e
desconstruídas. A identidade é um desses conceitos que operam “sob rasura”, no intervalo entre a inversão e a
emergência, mas sem a qual certas questões-chave não podem ser sequer pensadas." (Hall, 2000).
Programa de Pós Graduação em Sociologia
Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia.
E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673
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3
discurso. Isso implica o reconhecimento de que é apenas por meio da relação com o outro (da
relação com aquilo que não é, com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido
chamado de seu exterior constitutivo) que o significado da identidade pode ser construído. “A
identidade é um ato de poder" (Hall, 2000) na medida em que a diferença do “eu” e do
“outro” se dá por uma contraposição. A identidade é, portanto, relacional, dinâmica e fluida; é
um processo, entre a identificação e a diferença.
Berger (2007), Braz (2006), Le Breton (2004; 2009), Featherstone (2003), Pires
(2005; 2009), Perez (2006) e Sweetman (2003) destacam a existência de uma relação para o
sujeito entre sua identidade e seu corpo, incluindo suas tatuagens. A tatuagem é "um sinal
visível inscrito na própria pele graças à injeção de uma matéria colorida na derme” (Le
Breton, 2009; 34). É por meio da tinta na pele que o desenho é “integrado” ao corpo. Para
além de marca de identidade, a tatuagem age como marca de diferença e de identificação.
Fazer uma tatuagem, como uma forma de modificar o corpo, pode afirmar a
apresentação e representação da identidade do sujeito. Le Breton (2009), então, associa o
crescimento do sucesso da tatuagem à ideia implícita de que o corpo é um objeto maleável ou
uma forma provisória. A tatuagem tem um valor de identidade, a marca é uma maneira de
escrever no corpo uma biografia: relações amorosas, amizades, mudança de status e
lembranças. Para Pires (2005; 2009), o sujeito adquire a opção de construir seu corpo
conforme seu desejo, dentro de suas posições e de certos padrões.
O corpo deixa de ser uma referência estável e passa a representar o bem que se possui,
com a necessidade de destacar-se e expor-se. Registrar no corpo, por meio da tatuagem, um
acontecimento é como um registro histórico, que ajuda a construir um processo identitário, ao
dar visibilidade à identidade do sujeito e explicitar suas ideias e seus ideais. O símbolo
pessoal surge, então, segundo a Pires (2005), da associação que o indivíduo estabelece entre
um desenho e um sentimento, uma lembrança ou uma sensação. O sujeito transfere para a
tatuagem uma memória.
Em consonância, Araújo (2005) vê a tatuagem como uma forma artística de expor
uma mensagem no corpo. Pérez (2006) considera a tatuagem como uma totalidade em que as
dimensões individual e social são partes constitutivas do processo de ser tatuado: uma
"construção da subjetividade – de inscrever nos corpos algo que diferencia e identifica"
(Pérez, 2006;193). E Braz (2006) vê nestas práticas um meio de conformação de projetos
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corporais, em que o corpo é usado "como mecanismo para a construção e a administração da
identidade” (Braz, 2006; 104), pela possibilidade de criação de um processo identitário que
não define identidades permanentes.
A tatuagem, para Le Breton (2004), é como um adereço definitivo que contribui para a
afirmação do sentimento de identidade, uma forma de escrever na carne os momentos chave
da existência, em que “o corpo torna-se simultaneamente arquivo de si e decoração” (Le
Breton, 2004; 11). Cada sujeito é levado a uma produção da sua própria identidade através de
uma construção corporal, em que "a interioridade do sujeito é um esforço constante de
aparência" (Le Breton, 2004; 21). A tatuagem é vista então como uma tentativa de controle do
sentimento de identidade e uma vontade de fabricar a si mesmo. Por meio dela, o sujeito conta
histórias de si e cria uma percepção de si, em relação com o julgamento dos outros.
A prática, conforme descrita por Pérez (2006) e Le Breton (2004), passa por distintos
contextos sociais. Apesar do contato com povos que praticavam modificações corporais, a
tatuagem foi introduzida de modo definitivo no mundo ocidental por viajantes e marinheiros,
no século XVIII. E, durante muito tempo, associaram-na ao “primitivismo” daqueles que a ela
recorriam. Para os criminalistas Lombroso e Lacasagne, os indivíduos tatuados eram
“selvagens”, pouco civilizados e inclinados a criminalidade. Já entre o século XIX e no início
do século XX, quem fazia e possuía tatuagem eram normalmente marinheiros, soldados,
detidos e prostitutas; sujeitos à margem e em busca de um enraizamento identificativo. A
visão pejorativa, remetendo a tatuagem para a barbárie e a criminalidade, pesou durante muito
tempo na sua recepção social, alimentando um estereótipo negativo. A tatuagem era vista
como marca de marginalidade e estigma social.
Desde a década de 1960, conforme Featherstone (2003), tem ressurgido o interesse por
modificações corporais. Grupos urbanos, como punks e hippies, adotaram a tatuagem como
uma marca corporal. A difusão social das modificações corporais tornou mais fácil o recurso à
tatuagem e possibilitou a eliminação progressiva, mas não definitiva, da ideia de transgressão.
"A tatuagem perde boa parte da sua conotação negativa" (Le Breton, 2004). O sentido
estigmatizador do uso da tatuagem começa a mudar a partir dos anos 1980, com o
estabelecimento de modernas lojas exclusivas, a profissionalização de seus praticantes, o
melhoramento da técnica e, sobretudo, as novas formas de conceber o corpo como obra-prima
de construção do sujeito e aberto às transformações.
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Sweetman (2003) destaca a popularidade crescente da tatuagem e nota que, apesar da
incorporação de formas de modificação corporal dentro da cultura de consumo, estes são
percebidos e experimentados como mais do que meros acessórios. Em conexão com períodos
específicos da sua vida, atuam na formação de uma narrativa particular, contando uma
história.
A tatuagem torna-se, assim, uma das opções estéticas procuradas pelas novas
gerações. Braz (2006) descreve que, a partir da década de 90, os estúdios procuram criar uma
imagem de profissionalismo e de qualidade artística e relacionar a prática à procedimentos
higiênicos. Esse processo é visto como uma forma de legitimar o campo das práticas de
modificação corporal.
A partir dessas mudanças, aparece um novo perfil de sujeitos tatuados, para Pérez
(2006), que aparenta não ter um rosto definido. É múltiplo, sem "fronteiras de sexo, percorre
as diferentes gerações, transita por todas as classes sociais, pertence a distintos níveis
educativos, faz diversas atividades, enfim, não possui, como antigamente, um perfil social
determinado" (Pérez, 2006; 189). “O estereótipo do tatuado como homem, jovem, forte,
proveniente do meio popular, mostrando uma virilidade agressiva, esfumou-se” (Le Breton,
2004; 10). ”De prática marginal e estigmatizante, a tatuagem passa pouco a pouco a ser
valorizada e reivindicada como artística" (Le Breton, 2004; 20). E o tatuador, de amador
torna-se profissional e artista.
Dito isso, percebe-se que, através dos processos históricos que envolvem a prática, a
tatuagem passa progressivamente de símbolo de degeneração à marca de desvio e de estigma,
à marca de diferença. Contudo, Pérez (2006) observa que o tipo de escolha em relação ao
local da tatuagem e ao desenho está vinculado ao gênero, orientado pelos padrões sexuais.
Fisher (2002), em consonância, percebe que há uma "reversão" de estereótipo entre gêneros,
que não se consolida na escolha do local e do desenho tatuado.
Assim, Luz e Sabino (2006) afirmam que “a tatuagem é um meio de individuação que
tem a tarefa de demarcar a diferença em relação ao outro, tatuado ou não" (Luz & Sabino,
2006; 252). As divisões estabelecidas pelos desenhos configuram a manutenção e reprodução
da gramática das diferenças de gênero, em que as tatuagens são vistas como instrumentos de
reiteração. Em campo, observei que lugares do corpo como antebraço, pescoço, ombro e pé e
desenhos como flor, borboleta, símbolo do infinito e andorinhas são ligados ao gênero
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feminino e que desenhos orientais, tribais, maori, de carpa e dragão, no braço, na panturrilha e
nas costas são tidos como preferências masculinas3.
As posicionalidades e as identidades assumidas pelos sujeitos são fluídas, múltiplas e
condicionais, construídas por meio da diferença. Nesse processo, criamos o contrário e o
comum, os mais diferentes e os mais iguais, a diferença e a identificação. Pensando o desvio e
a diferença como categorias analíticas, é possível observar que a tatuagem, antes, marcava
"degenerados", “desviantes" e "marginais" ou ligava-se a um grupo específico e, hoje, marca
a diferença, a partir da elaboração pelo sujeito de seus significados e da leitura dos outros
sobre ela. Enquanto mecanismo de construção de identidade, ela é significada e interpretada
na relação.
Tatuagens, segundo Castro (2007), são normalmente identificadas como recursos de
marcação da condição social. Por meio dela, "a soberania pessoal é limitada, demarcada pelos
pesos sociológicos, o ambiente da época, a condição social e cultural, a própria história, mas o
indivíduo tem a impressão de se fazer nascer, de decidir sua condição" (Le Breton, 2004;
15/16).
Assim, "quando pensa escolher seu desenho, o indivíduo é 'escolhido' por todo um
conjunto de representações e práticas, estruturas subjetivas e objetivas reproduzidas pelo
estilo de vida que articula e imita” (Luz & Sabino, 2006; 255). Braz (2006) percebe também
que a prática de um projeto corporal pessoal não escapa de um aparato de inteligibilidade. As
diferentes posições assumidas pelos sujeito atuam na construção de diferenças,
hierarquizações e normatividades.
Sujeitos que assumem diferentes posicionalidades se tatuam hoje. Há uma relação
entre o local do desenho e o tipo de desenho tatuado e determinadas marcas de gênero, classe,
raça, geração e estilo de vida. A interssecionalidade dessas posições opera na escolha do
tatuado. As posicionalidades dos sujeitos são articuladas na produção estética de grupos
sociais, que opera na escolha do local e do desenho da tatuagem e do estúdio, criando
processos de identificação e diferenciação.
3
Também observei que apesar de constante, estas diferenças e preferências podem ser fluídas e contextualizadas.
Não há uma fronteira fixa. Assim, existem mulheres que fazem tatuagens em locais dito masculinos ou de
desenhos que normalmente não são do gênero feminino, e vice-versa.
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De acordo com Sweetman (2003), a (relativa) permanência da modificação adquirida
ancora ou estabiliza um senso de identidade. Ao mesmo tempo, a permanência da tatuagem
pode não ser associada a um significado fixo, agindo a partir de um "carnaval de signos”, em
que a permanência da tatuagem não significa a permanência do significado. A tatuagem pode
assumir diferentes significações conforme a biografia do sujeito. Ele pode se identificar,
mudar o significado da tatuagem ou não a querer mais em seu corpo; manter, reformar, cobrir
ou retirar. Da mesma forma que a identidade é relacional e fluída, o significado também não é
fixo. O significado pode variar, a partir do “carnaval de signos” (Sweetman, 2003), conforme
as posições que o sujeito assume, com o que ele se identifica e conforme sua biografia,
marcando os limites de sua identidade.
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A ficção enquanto (re)escrita do real: uma análise de personagens
subalternas no romance A varanda do frangipani
Dionisio da Silva Pimenta1
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CAPES
GT1- Culturas, Diferenças e Desigualdades
Resumo: Este trabalho de pesquisa está estruturado na análise do romance A varanda do
frangipani do escritor moçambicano Mia Couto. Publicado em 1996, o romance faz um
retrato de Moçambique assolado pela guerra civil e prenhe de tensões entre as forças sociais
nativas e os novos poderes num momento pós-independência. Centrado nas ações do inspetor
Izidine Naíta, responsável pela investigação da morte do diretor do asilo, Vasto Excelêncio, o
texto traz à baila a marginalidade na qual se encontram sujeitos moçambicanos e tece fortes
oposições/enfrentamentos ao poder político do país por meio das falas das personagens. Desse
modo, primeiramente, o objetivo da pesquisa é demonstrar e analisar, a partir da teoria póscolonial e dos estudos culturais, como o texto literário endereça suas críticas à colonialidade
do poder político em Moçambique e quais são elas; quais sujeitos e saberes subalternos a
narrativa reivindica, (re)inscrevendo-os em seu corpo. Logo após, de modo ensaístico, buscase ler os agenciamentos postos em cena pelo romance como formas discursivas de resiliência,
(des)construção, (des)legitimação e enfrentamento a um modus operandi pós-colonial, na
medida em que a ficção, mobilizada enquanto representação simbólica do social, funciona
como forma de (re)escrita e (re)paginação de espaços híbridos de enunciação e
sujeitos/identidades subalternos(as). A pesquisa tem como fundamento teórico os trabalhos de
autores como Boaventura de Souza Santos, Ella Shohat, Frantz Fanon, Homi Bhabha,
Inocência Mata e Stuart Hall.
1
Formado em Letras (Português-Inglês) em 2010 pela UFSCar, com período sanduíche na
Universidade de Lisboa, Portugal, em 2008. Mestre em Estudos de Literatura pelo PPGLitUFSCar em 2013. Trabalhou como professor de português na Faculdade de Ciências Médicas
de Guantánamo, Cuba, em 2013. É doutorando em Sociologia pelo PPGS-UFSCar, sob
orientação do professor Dr. Valter Roberto Silvério, e tem como interesse de pesquisa a
relação entre As Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e os Estudos Pós-coloniais e
Culturais.
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Introdução
O presente artigo visa analisar os personagens do romance A varanda do frangipani,
do escritor moçambicano Mia Couto, a partir de uma perspectiva que estabeleça relações
entre literatura, sociologia e teoria pós-colonial. Desse modo, a análise considerará tanto a
linguagem literária quanto o contexto social representado, pressupondo este último não como
pano de fundo fixo do texto, mas como um jogo de interações sociais tensas que operam sob o
signo da colonialidade do poder, da identidade e da subalternidade.
Publicado em 1996, o romance faz o retrato de um Moçambique assolado pela guerra
civil e prenhe de tensões entre as forças sociais nativas e os novos poderes num momento pósindependência. Centrado nas ações do inspetor Izidine Naíta, responsável pela investigação da
morte do diretor do asilo, Vasto Excelêncio, o texto traz à baila as (im)possibilidades de um
estado nacional, na medida em que arquiteta oposições/enfrentamentos ao poder político do
país.
A narrativa retrata “as muitas perdas e ausências que mutilaram Moçambique”
(SECCO, 1999, p.385), funcionando como uma representação da nação nos anos 90. Dessa
forma, pelo viés estético a narrativa constrói o onírico, o insólito, as tradições orais e a
polifonia narracional como formas simbólicas de resiliência frente aos problemas que
agudizam a nação.
Com isso, não se pode deixar de pontuar a atuação do escritor Mia Couto na luta
contra o antigo regime colonial português em Moçambique, muito menos as suas críticas em
relação ao partido político, FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) que subiu ao
poder logo após a independência, em 1975.
A partir dessas ponderações iniciais, iremos pensar o próprio romance, enquanto
orquestração estética, como um modo de (re)escrita de uma problemática de ordem ética.
Dessa maneira, não seria a literatura uma forma terapêutica, capaz de escalpelizar os
meandros de um inconsciente pós-colonial e, portanto, revelar modos neocoloniais de
interação social?
Sem querer negar outras possibilidades de exegese da obra, esta parece-me plausível
uma vez que dialoga com o tom crítico do escritor Mia Couto, quando encara a escrita
literária como pensamento social propositivo. Para ele, “Os escritores moçambicanos
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cumprem hoje um compromisso de ordem ética: pensar este Moçambique e sonhar um outro
Moçambique” Couto, 2002, p.63.
Dois universos e uma (im)possível nação?
O primeiro ponto a destacar é a reivindicação, logo no início do romance, que o
narrador xipoco2 faz. Funcionando como um espírito errante, o morto critica a falta dos rituais
tradicionais em sua cerimônia de sepultamento:
Sou o morto. Seu eu tivesse cruz ou mármore neles estaria escrito: Ermelindo
Mucanga. Mas eu faleci junto com meu nome faz quase duas décadas. Durante anos
fui um vivo de patente, gente de autorizada raça. Se vivi com direiteza,
desglorifiquei-me foi no falecimento. Me faltou cerimónia e tradição quando me
enterraram. Não tive sequer quem me dobrasse os joelhos. A pessoa deve sair do
mundo tal igual como nasceu, enrolada em poupança de tamanho. Os mortos devem
ter a discrição de ocupar pouca terra. Mas eu não ganhei acesso a cova pequena.
Minha campa estendeu-se por minha inteira dimensão, do extremo à extremidade.
Ninguém abriu-me as mãos quando meu corpo ainda esfriava. Transitei-me com os
punhos fechados, chamando maldição sobre os viventes. E ainda mais: não me
viraram o rosto a encarar os montes Nkuluvumba. Nós, os Mucangas, temos
obrigações para com os antigamentes. Nossos mortos olham o lugar onde a
primeira mulher saltou a lua, arredondada de ventre e alma.
Não foi só o devido funeral que me faltou. Os desleixos foram mais longe:
como eu não tivesse outros bens me sepultaram com minha serra e o martelo. Não o
deviam ter feito. Nunca se deixa entrar em tumba nenhuns metais. Os ferros
demoram mais a apodrecer que os ossos do falecido. E ainda pior: coisa que brilha
é chamatriz da maldição. Com tais utensílios, me arrisco a ser um desses defuntos
estragadores do mundo.
Todas essas atropelias sucederam porque morri fora do meu lugar.
Trabalhava longe da minha vila natal. Carpinteirava em obras de restauro na
fortaleza dos portugueses, em São Nicolau. Deixei o mundo quando era véspera da
libertação da minha terra. Fazia a piada: meu país nascia, em roupas de bandeira,
e eu descia ao chão, exilado da cruz. Quem sabe foi bom, assim evitado de assistir a
guerras e desgraças (COUTO, 2007, p.9).
Um olhar mais amplo sobre a voz do sujeito revela-nos uma enunciação que extrapola
a própria dimensão textual. Desse modo, sendo produto de um espírito, a voz ganha
autonomia para fazer sua crítica ao momento de libertação nacional de Moçambique, na
medida em que o relaciona, de modo paradoxal, ao término de sua vida. Parece-nos, assim,
que num tom de autoridade, a voz do xipoco desconstrói o poder político de um incerto estado
moderno e garante, numa dimensão extratextual, portanto das relações sociais, a reivindicação
de um outro espaço de enunciação no pós-independência: o saber cultural das forças
tradicionais.
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Alma penada.
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A menção às guerras e desgraças durante o nascimento do país demonstra também que
este lugar cultural não está livre de tensões e ambivalências advindas do processo de
colonização portuguesa. É o que percebemos na fala do narrador xipoco, Ermelindo Mucanga,
quando este demonstra uma outra insatisfação. Agora, ele critica os governantes por revirarem
o seu túmulo sagrado no intuito de transformá-lo em um monumento, um herói do estado
nacional:
[...]Pás e enxadas desrespeitavam o sagrado. O que esgravatava aquela gente,
avivando assim a minha morte? Espreitei entre as vozes e entendi: os governantes
me queriam transformar num herói nacional. Me embrulhavam em glória. Já tinham
posto a correr que eu morrera em combate contra o ocupante colonial. Agora
queriam os meus restos mortais. Ou melhor, os meus restos imortais. Precisavam de
um herói mas não um qualquer. Careciam de um da minha raça, tribo e região. Para
contentar discórdias, equilibrar as descontentações. Queriam pôr em montra a etnia,
queriam raspar a casca para exibir o fruto. A nação carecia de encenação. Ou seria o
vice-versa? De necessitado eu passava a necessário. Por isso me covavam o
cemitério, bem fundo no quintal da fortaleza. Quando percebi, até fiquei
atrapalhaço. (Ibidem, p. 11-12).
No trecho, a voz do morto acena para um outro dado importante no âmbito das
relações sociais do novo estado nação. Trata-se da tentativa de circunscrição do mesmo,
enquanto monumento, na grande narrativa holística e homogênea da identidade nacional.
Buscando cristalizar sujeitos e sentidos, notamos aqui que “as identidades nacionais não são
coisas com as quais nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da
representação” (HALL, 2006a, p.48). Dessa maneira, fica patente a ideia de nação como uma
comunidade politicamente imaginada (Anderson, 2009), ou seja, um sistema de representação
simbólica que busca ver a diferença como unidade (Hall, 2006).
No entanto, em seu desenvolvimento a narrativa vai desvelando as tensões e as suturas
encobertadas pelo holismo e a homogeneidade do discurso nacional. É o que percebemos no
diálogo de Ermelindo Mucanga com o pangolim. O xipoco reforça o seu desentendimento
com o tempo presente que a nação está vivendo ao renegar a posição que lhe querem outorgar
de herói nacional:
– Não quer ser herói?
Mas herói de quê, amado por quem? Agora, que o país era uma machamba de
ruínas, me chamavam a mim, pequenito carpinteiro!? O pangolim se intrigou:
– Não lhe apetece ficar vivo, outra vez?
– Não. Como está a minha terra, não me apetece (COUTO, 2007, p.13).
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O estado em que se encontra a nação, “uma machamba de ruínas”, pode ser
compreendido como uma alusão à guerra civil, travada após a independência pelos
guerrilheiros da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e RENAMO (Resistência
Nacional Moçambicana), que culminou em instabilidades de ordem econômica, social e
política, e contabilizou a morte de milhares de moçambicanos.
Nesse cenário de entre guerras, o pangolim3 arquiteta um plano em que Ermelindo
Mucanga deve voltar à terra para ocupar o corpo de Izidine Naíta, inspetor de polícia que se
desloca da capital em direção ao asilo para investigar a morte do diretor, o senhor Vasto
Excelêncio.
Vozes subalternas em dissenso: a catarse de alguns meandros pós-coloniais
Navaia Gaetano, primeiro personagem a dar o seu depoimento, representa a tradição
autóctone que resiste no espaço do asilo, seja pela forma como encaminha o narrador inspetor
a um outro universo cultural, seja pelo modo como ele próprio se configura enquanto sujeito
híbrido, trans-temporal, sem idade, por conta da maldição que o transformou em velhocriança.
O personagem, ao depor sobre a morte de Vasto Excelêncio, critica o olhar assimilado
do diretor em relação aos ritos tradicionais do asilo:
– Que merda é esta? Que se passa aqui?
Nossa cerimónia era bruscamente interrompida por Vasto Excelêncio. O
diretor abusou de boca, sujou-nos o nome.
– Eu não disse que estão proibidas estas macacadas no asilo?
Os outros velhos explicaram: aquela cerimónia era para me salvar a mim. O
mulato olhou, espantado. Se aproximou do meu leito como se se quisesse certificar
da minha identidade. Quando seus olhos se fixaram nos meus foi como se um golpe
o derrubasse. Sacudiu a cabeça, esfregou as pálpebras a esborratar a visão. Depois,
virou-me as costas e proclamou:
– Ou me arrumam já esta merda ou pego fogo a tudo, bebidas, velhos,
crianças, tudo (COUTO, 2007, p.36).
Sendo um desconhecedor das tradições locais, um estrangeiro de sua própria terra
natal, Vasto Excelêncio é contra os rituais dos mais velhos e usa da violência para ameaçá-los.
Essa postura do diretor do asilo, seja pelo distanciamento do universo dos mais velhos, seja
3
Mamífero coberto de escamas e que se alimenta de formigas. Acredita-se que o pangolim habita os céus,
descendo à terra para transmitir aos chefes tradicionais as novidades sobre o futuro. Definição extraída do
glossário presente no romance A varanda do frangipani (COUTO, 2007, p.145).
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pelo modo pejorativo como se refere a eles, revela a continuidade de um modus operandi
colonial, uma vez que a imagem do colonizador reaparece, só que agora performatizada pelo
colonizado.
Sendo assim, Nãozinha, uma velha feiticeira do asilo, também representante da
tradição local, investe Navaia com óleos nas pernas para que o mesmo mate Vasto
Excelêncio:
[...] Passado um tempo, a feiticeira me encorajou a sair da cama:
– Vai você, Navaia. Faz o que tem a fazer-se...
Sem esforço, me levantei. Havia como que uma mão invisível me
empurrando. E as vozes me incitavam:
– Você é que é criança, tem forças de meninice.
– Sim, Navaia, vai lá matar esse filho de uma quinhentas...
Fechei os olhos. Afinal, tinha sido para matar que a morte disputara meu
corpo? Desencrispei as mãos. Apoiado pelos velhos fui sendo arrastado para a porta.
Sobre mim tombou o luar. Só então notei um punhal brilhando, justiceiro, em minha
mão direita (Ibidem, p. 36-37).
Nãozinha, responsável pelos feitiços no asilo, também expressa uma cosmovisão que
(re)ordena o real sob a lógica do insólito. No enredo, ela contrapõe a lógica anímica de sua
identidade ao mundo de Izidine Naíta, ao explicar a sua metamorfose diária – transformava-se
em água toda noite em uma banheira. A personagem continua seu depoimento falando sobre a
figura do wamulambo – cobra das tempestades celestes – que quebrou a sua banheira para que
Nãozinha não se recompusesse depois de transformar-se em água. O feitiço da cobra só seria
quebrado se Nãozinha fizesse amor com um dos velhos do asilo: Nhonhoso ou Mourão.
Prestes a iniciar o ato, Excelêncio apareceu e expulsou Nhonhoso – o escolhido para o
episódio – do quarto. Para se vingar, Nãozinha mata Vasto Excelêncio envenenado ao colocar
um pouco de seu sangue com aguardente no copo do diretor:
Era isso que ele queria. Enchi o copo. Excelêncio bebeu e rebebeu. Até que
uma tontura o deitou ao chão. O director delirava. Foi então que me deitei sobre ele.
Assim mesmo, nua e húmida, coincidi com seu corpo, concavidei-me com ele.
Excelêncio me enredou nos braços. Seus beijos transpiravam, a quente espuma da
bebida. O homem saltitava de nome em engano:
– Marta! Tina... minha Ernestina!
Em mim ele completou seus viris préstimos. Terminou com um rosnar de
bicho. Separei-me de seu corpo, ansiosa por me lavar. Era como se os líquidos dele,
dentro de mim, me azedassem mais que os prévios venenos. No espelho reconfirmei
o sangue tingindo-me o peito. Enquanto me lavava, o mulato berrou, impondo mais
bebida.
Voltei à sala e, de novo, lhe atestei o copo. No rebordo ficou uma marca de
sangue. O director não notou logo aquela dedada vermelha no vidro. Bebeu de um
trago o veneno e, tamboreando na barriga, mandou:
– Enche mais, velha!
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O copo tombou, estilhaçando-se. E o corpo de Vasto Excelêncio caiu
pesado em cima dos mil vidrinhos (Ibidem, p.90-91).
O trecho revela que o espaço do asilo, para além de outras formas de violência
aplicadas aos velhos, também era reduto da violência sexual, sofrida não só por Nãozinha,
mas pelas outras mulheres que ali estavam, tais como a enfermeira Marta e a esposa do diretor
Ernestina. O empreendimento da violência pelo diretor do asilo demonstra, pensando em Ella
Shohat (1996), que o colonial agora é uma narrativa de progressão, que atravessa
temporalidades e redimensiona posições sujeito, na medida em que entendemos que o uso da
força outrora feito pelo modus operandi colonial, agora é realizado pelo colonizado no pósindependência.
Dando continuidade, na confissão do personagem Nhonhoso, num misto de brigas e
desentendimentos com o velho português Mourão, uma tensão em relação ao colonialismo é
evidenciada, pontuando tanto o lado do colonizador, representado pela figura do velho branco
português, quanto do colonizado, representado pela figura do velho negro moçambicano:
– Você sempre quer mandar em mim. Sabe uma coisa: colonialismo já
fechou!
– Não quero mandar em ninguém...
Como não quer? Eu nos brancos não confio. Branco é como camaleão,
nunca desenrola todo o rabo...
– E vocês pretos vocês falam mal dos brancos mas a única coisa que querem
é ser como eles... (Ibidem, p.62)
Aqui, a rivalidade entre os velhos aponta para a descolonização como algo
contraditório que redimensiona sujeitos, posições e desejos. Em outro momento, ainda de
brigas, Nhonhoso chega à conclusão de que o processo de descolonização é algo maior do que
uma luta armada. O velho demonstra que uma outra lógica de domínio subjaz a superfície do
confronto armado, por vezes escondendo e apagando o espírito da cultura, agora não mais
puro e sim híbrido:
– Eh pá, já viu, Mourão? Lutámos nós!
– Foi bom, lhe dei um soco mesmo em plenas fuças.
– Porra, até parecia Frelimo contra colonialismo.
– Nós brancos, sempre ganhámos. Durante quinhentos anos vencemos
sempre. Nós é que tínhamos as armas...
O português, coitado, mantinha aquela ilusão. Ele não entendia o passado.
Não foram armas que nos derrotaram. O que aconteceu é que nós, moçambicanos,
acreditámos que os espíritos dos que chegavam eram mais antigos que os nossos.
Acreditámos que os feitiços dos portugueses eram mais poderosos. Por isso os
deixámos governar. Quem sabe suas histórias eram mais de encantar? Também eu,
no presente, gostava de escutar as histórias do velho português. Uma vez mais, lhe
pedia que me entretivesse de fantasias (Ibidem, p.65)
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Essa lógica do jogo da hibridez em territórios coloniais é ambivalente e chega a
perpetuar-se mesmo após a independência, sendo capaz de construir identificações reversas.
Desse modo, o hibridismo pode ser compreendido como as estratégias para apropriar,
traduzir, re-historicizar e ler de diferentes maneiras a cultura.
De acordo com Homi Bhabha (2005), há a articulação de um novo lugar político de
enunciação – terceiro espaço de enunciação – em que identidades podem ser negociadas e
construídas através de uma temporalidade descontínua da diferença cultural. “O Terceiro
Espaço, portanto, é o lugar do „híbrido‟, ou seja, o espaço onde os significados e as
identidades sempre contêm resíduos de outros significados e outras identidades” (BONNICI,
2009, p.33).
Pensando em Boaventura de Sousa Santos (2006), poderíamos dizer que se trata de
uma colonialidade do poder, em que muitos Calibans querem ser Prósperos, como bem nos
mostra a fala de Nhonhoso com Mourão:
– Você não entende, não pode entender. Eu vejo vocês sonharem com
grandes carros, grandes propriedades…
– E você sonha com pequenices?
– Eu só ambiciono ter uma árvore. Os outros querem florestas, eu só quero
uma arvorezita que eu possa cuidar, ver crescer, florir (COUTO, 2007, p. 67).
O trecho relaciona-se àquilo que Frantz Fanon, em sua obra Os condenados da Terra
(1979), retrata ao pontuar a transição do período colonial para a independência. A fala de
Nhonhoso nitidamente expressa a lógica perversa do desejo colonial, introjetada na psique do
negro colonizado, que traz como consequências a vontade de possuir os bens do colonizador e
ocupar o seu lugar:
O olhar que o colonizado lança para a cidade do colono é um olhar de luxúria, um
olhar de inveja. Sonhos de posse. Todas as modalidades de posse: sentar-se à mesa
do colono, deitar-se no leito do colono, com a mulher deste, se possível. O
colonizado é invejoso (FANON, 1979, p.27).
Nhonhoso revela que matara Vasto por amor à Marta Gimo. Segundo ele, como de
costume, ia sempre desejar boa noite a enfermeira e cobri-la com lençol. No entanto, depois
de pegá-la discutindo com Vasto Excelêncio – o diretor mantinha uma relação com a mesma,
Nhonhoso decide matá-lo: “Lhe empurrei para a parede, esmaguei a cara do gajo contra o
muro, tapei o focinho dele com a manta até lhe tirar o respiro final” (Ibidem, p.70).
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Na sequência a narrativa, o depoimento do português Domingos Mourão representa o
deslocamento da identidade do sujeito. A começar pelo próprio nome, Xidimigo, o
personagem é fruto de um processo de desterritorialização de sua identidade portuguesa.
[...] Desculpe-me este meu português, já nem sei que língua falo, tenho a gramática
toda suja, da cor desta terra (COUTO, 2007, p.46).
[...] É que estou tão desterrado, tão exilado que já nem me sinto longe nada, nem
afastado de ninguém. Me entreguei a este país como quem se converte a uma
religião (Ibidem, p. 47).
Esta saída da identidade portuguesa reinscreve, num momento pós-independência, o
velho Mourão num complexo espaço cultural em Moçambique, uma vez que não é mais o
colonizador português branco. No entanto, estrategicamente, este entre lugar é capaz de
revelar ao inspetor o porquê dos vários depoimentos não levarem ao real culpado, tendo em
vista que todos os velhos se diziam os verdadeiros assassinos:
Me leve a sério, inspector: o senhor nunca há-de descobrir a verdade desse morto.
Primeiro, esses meus amigos, pretos, nunca lhe vão contar realidades. Para eles o
senhor é um mezungo, um branco como eu. E eles aprenderam, desde há séculos, a
não se abrirem perante mezungos. Eles foram ensinados assim: se abrirem seu peito
perante um branco eles acabam sem alma, roubados no mais íntimo. Eu sei o que vai
dizer. Você é preto como eles. Mas lhes pergunte a eles o que vêem em si. Para eles
você é um branco, um de fora, um que não merece as confianças (COUTO, 2007,
p.52)
O velho português demonstra que as posições sujeito colonizado e colonizador são
agora reencenadas em um tempo pós-independência, o que faz com que a figura do inspetor
seja a de um assimilado, um estrangeiro. Pensando em Inocência Mata (2007), podemos dizer
que as falas dos personagens revelam a importância em “[...] desconstruir a encenação de
encontros que continuam a lógica colonial, seja nas relações transversais, que cruzam os
Estados-nação, seja nos inter-relacionamentos global/local, sinergizando o campo de forças
do Poder e do Saber” (2007, p.18).
Assim como os outros velhos, Xidimigo afirma que matara Vasto Excelêncio por
vingança aos maus tratos do mesmo que pisava em seus tornozelos:
[...] Vasto deveria desaparecer, eu o devia matar o mais breve possível.
Simplesmente, esperei pela noite. Nessa hora, ele sempre passava por um corredor
estreito, sem tecto, que liga o quarto dele à cozinha. Lhe montei a armadilha lá em
cima. Fiz subir uma grande pedra e a deixei, no alto, preparada para cair sobre Vasto
Excelêncio (COUTO, 2007, p. 53).
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Perdido em meio aos depoimentos, Izidine custa acreditar nos velhos, pois todos são,
simbolicamente, assassinos do diretor Vasto Excelêncio, o que na prática significa dizer que
ninguém é.
Dando continuidade, a enfermeira Marta, personagem que simboliza também uma
consciência crítica em relação à corrupção dos dirigentes e a tradição autóctone, redimensiona
a questão local a um prisma global, quando afirma que não só na fortaleza, mas no país inteiro
estava acontecendo um golpe contra o antigamente:
– Escute, senhor inspector: o crime que está sendo cometido aqui não é esse
que o senhor anda à procura.
[...]
– Olhe para estes velhos, inspector. Eles todos estão morrendo
[...]
Estes velhos não são apenas pessoas.
[...]
– São guardiões de um mundo. É todo esse mundo que está sendo morto.
[...]
– Estão a matar as últimas raízes que poderão impedir que fiquemos como o
senhor…
[...]
Gente sem história, gente que existe por imitação (Ibidem, p. 57).
Suas afirmações, para além de revelar as negligências do diretor do asilo, bem como o
esquema de corrupção montado – o asilo servia como depósito de venda de armas, caixas de
armamento entravam e saiam de lá –, apontam para uma generalização do crime e da
violência.
Parece-nos que a narrativa chega a aproximar-se da crítica empreendida por Frantz
Fanon à burguesia que assumiu o poder após as lutas de independência. Para o autor, a
exploração da miséria empreendida pelo poder não pode estar desvencilhada do conceito de
descolonização, na medida em que o processo parece sinalizar mais a troca de homens no
poder do que de culturas:
Meninos mimados ontem pelo colonialismo, hoje pela autoridade nacional, eles organizam
a pilhagem dos poucos recursos nacionais. Implacáveis, erguem-se por meio das mamatas
ou dos roubos legais – operações de importação e exportação, sociedades anônimas,
especulações na bolsa, cavações – acima dessa miséria hoje nacional (FANON, 1979,
p.36).
Na mesma veia crítica, a personagem Ernestina, viúva de Vasto Excelêncio, afirma
que:
[...]em todo mundo, os romances familiares trazem lembranças para reconfortar os
que estão nos asilos. Na nossa terra era ao contrário. Os parentes visitavam os velhos
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para lhes roubarem produtos. À ganância das famílias se juntavam soldados e novos
dirigentes. Todos vinham tirar-lhes comida, sabão, roupa. Havia organizações
internacionais que davam dinheiro para apoio à assistência social. Mas esse dinheiro
nunca chegava aos velhos (COUTO, 2007, p.107).
De acordo com Marta, a guerra é a grande culpada por essa violência e corrupção entre
as pessoas, principalmente por esse tratamento de espoliação em relação aos velhos. A cidade,
como um cão sarnento, está a viver de suas próprias feridas, a começar pelo próprio
investigador:
Vive do crime, se alimenta da imoralidade. Você, por exemplo, lá na polícia. Você
não se interroga quanto tempo vai levar até ficar contaminado pela doença dos
subornos? Sabe bem a que me refiro: investigações que se compram, agentes que se
vendem. Tiraram-lhe a investigação dos negócios de drogas. Transferiram-no da
secção de estupefacientes. Porquê? Você bem sabe, Izidine. E por que motivo o
enviaram para aqui, longe dos rebuliços? Deixe, eu mudo de assunto. Afinal, é sobre
mim que me devo espraiar (Ibidem, p. 122).
Nesse sentido, a própria esposa de Vasto Excelêncio, Ernestina, confirma as
imoralidades do marido, quando diz:
Eu tinha estado na cidade e observara a ganância dos enriquecidos. Agora, tudo
estava permitido, todos os oportunismos, todas as deslealdades. Tudo era convertido
em capim, matéria de ser comida, ruminada e digerida em crescentes panças. E tudo
isso mesmo ao lado de misérias (Ibidem, p.109)
Dito isso, pode-se afirmar que os depoimentos dos velhos do asilo, bem como os de
Marta e Ernestina funcionam, metaforicamente, como formas de aniquilar Vasto Excelêncio,
representante do poder local. As falas promovem o destronamento do poder vigente, que pode
ser lido, por extensão, como um rebaixamento do poder político corrupto em Moçambique no
pós-independência. Pela força da memória e da sabedoria dos velhos, uma outra lógica
ordena-se como forma de combate à condição degradante imposta pelo pós-guerra.
É pela ficção, então, que as relações sociais de poder entre os dirigentes políticos e o
povo são encenadas, de modo que a performance estética das mesmas agencie estratégias de
purgação de espaços pós-coloniais. De acordo com Inocência Mata, é esta a dupla demanda
das literaturas africanas de língua portuguesa:
[...] a catarse dos lugares coloniais, ainda não processada, uma vez que o colonial é ainda
uma presença obsidiante, e não apenas em literatura, e a revitalização de uma nova utopia
que os escritores buscam através de estratégias centrífugas (várias técnicas e estratégias de
pluralização do corpo da nação), mas de efeito centrípeto (o “repensamento” do projeto
monolítico de nação e de identidade nacional, mas buscando construir uma nação) (MATA,
2003, p.49).
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Por fim, podemos dizer que a fortaleza torna-se, assim, um espaço contraditório,
associando-se ao que diz Stuart Hall (2006) sobre a condição do pós-colonial, pois representa
tanto uma tensão entre forças sociais nativas frente a um poder – os velhos e o diretor Vasto
Excelêncio –, quanto um espaço da diferença, calcada na preservação de uma
memória/tradição autóctone – o asilo como reduto de memória e preservação de um
Moçambique ancestral que está sendo morto e devastado pela guerra.
Conclusão
Notamos que do começo ao fim a narrativa é construída nessa tensão entre o caminho
trilhado pelos líderes políticos da nação no pós-independência e as forças vitais que buscam
(re)ordenar a terra sob os parâmetros da tradição. Essenciais para a construção do enredo, os
depoimentos acenam para pistas que dispersam o foco narrativo. Como um verdadeiro
mosaico polifônico, eles operam como micronarrativas que promovem uma exorcização das
tensões pós-coloniais, revelando um crime maior do que aquele sob investigação: trata-se da
morte da própria nação moçambicana.
Pensando em Boaventura de Sousa Santos, parece-nos que Mia Couto realiza aqui a
tarefa do crítico pós-colonial, pois dá voz aos subalternos e questiona, por meio deles,
discursos hegemônicos que perpetuam desigualdades entre nações, raças e comunidades: “[...]
a função do crítico pós-colonial consiste em contribuir para destruir a subalternidade do
colonizado. Dado que a condição do subalterno é o silêncio, a fala é a subversão da
subalternidade” (SANTOS, 2006, p.235).
Referência Bibliográfica
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Trad. Denise Bottman. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila e outros. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2005.
BONNICI, Thomas. Conceitos-chave de teoria pós-colonial. Maringá: Eduem, 2005.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
COUTO, Mia. A varanda do frangipani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
___________. Pensatempos – textos de opinião. Lisboa: Editorial Caminho, 2005.
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FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad: Alexandre Pomar. Porto: A. Ferreira,
1952.
_____________. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Trad.: Adelaine
la Guardia Resende et al. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
MATA, Inocência. “A condição pós-colonial das literaturas africanas de língua portuguesa:
algumas diferenças e convergências e muitos lugares-comuns”. In: LEÃO, Ângela Vaz (Org.).
Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte:
PUCMINAS, 2003, p. 43-72.
__________. A literatura africana e a crítica pós-colonial: reconversões. Luanda: Nzila,
2007.
SANTOS, Boaventura de Sousa Santos. A gramática do tempo: para uma nova cultura
política. São Paulo: Cortez, 2006.
__________. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez,
1999.
SECCO, Carmen Lúcia Tindó. “Uma varanda sobre o Índico: entrelugar de sonhos, mitos e
memórias”. In: SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Escrever a casa portuguesa. Belo Horizonte,
Editora UFMG, 1999.
_________________________. A magia das letras africanas. Rio de Janeiro, Quartet, 2008.
SHOHAT, Ella. “Notes on the „Post-Colonial‟”. In: MONGIA, Padmini (Ed.). Contemporary
Postcolonial Theory – a Reader. New York: Arnold, 1996, p. 321-334.
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CULTURA POPULAR E CULTURA POPULAR NEGRA NA REGIÃO
NORDESTE DO BRASIL: O DESCENTRAMENTO DAS
HIERARQUIAS E GRANDES NARRATIVAS A PARTIR STUART
HALL
Dener Santos Silveira - PPGS/UFSCAR1
[email protected]
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior /CAPES
Grupo de Trabalho 1 - Cultura, Diferenças e Desigualdades.
Em seu estudo sobre a cultura popular presente no texto ―Notas sobre a desconstrução do
Popular‖ Stuart Hall identifica algumas dificuldades na análise desse conceito partindo desde
as insuficientes periodizações sobre o termo que impedem de mostrar as origens das
transformações e de suas rupturas internas provocando uma oscilação entre os polos que ele
chamou de dialética da contenção/resistência, até as conclusões do que pode ou não fazer
parte do ―povo‖, concluindo que o conceito representa uma arena de disputa entre o
consentimento e a resistência. Embora o autor não seja caudatário de uma ênfase sobre o
conceito de cultura popular as consequências de uma rasa interpretação podem esconder o
deslocamento da distinção entre o erudito e o popular. Essa preocupação é expressa por Stuart
Hall a partir de suas considerações sobre a cultura popular negra presente em seu texto Que
Negro é esse na cultura negra? a partir de três deslocamentos que propiciaram as estratégias
da política cultural negra de intervenção na cultura popular: o deslocamento dos modelos
europeus de alta cultura, EUA como centro de produção e circulação global de cultura e pela
descolonização do terceiro mundo e emergência das sensibilidades descolonizadas. Destarte
o trabalho tem como objetivo discriminar o terceiro deslocamento estratégico para emergência
de uma cultura popular negra sugerido por Stuart Hall e construí-lo analisando as políticas
culturais negras da região nordeste brasileira, com destaque para as manifestações musicais. A
tese de trabalho é a de que a ascensão do pós-moderno global – como sugeriu Hall - provocou
o descentramento das hierarquias e das grandes narrativas tornando possível a identificação de
uma cultura popular negra com específica tradição de representação.
1
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos
PPGS/UFSCAR, mestre em Sociologia PPGS/UFSCAR(2011) e graduado em Ciências Sociais pela
Universidade Federal de São Carlos (2006) com área de atuação em relações étnico-raciais, estudos culturais e
pós-coloniais. Possui especialização em Gestão Pública e Sociedade pela Universidade Federal do
Tocantins/UNICAMP(2012)
Programa de Pós Graduação em Sociologia
Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia.
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2
Introdução
O objetivo desse texto é analisar em perspectiva o desenvolvimento da cultura popular
negra no Brasil. Digo em perspectiva considerando, que em grande medida, os esforços de
interpretação do problema da cultura negra foram feitos, ou apenas descritos, pelo vocabulário
de uma sociedade colonizada onde a representação do sujeito negro foi confinada ao hiato
entre o vivido e o não vivido. Dito de outra forma, a existência do negro, ou melhor, a
inexistência do sujeito negro conduziu a uma interpretação de sua história cultural como uma
trajetória semovente, impura e estanque. Essa consideração é caudatária e ao mesmo tempo dá
contorno as ideias de Franz Fanon(2008) mostrando uma ontologia irrealizável do povo
colonizado num contexto colonial.
A reconstrução em perspectiva da cultura negra refere-se, por um lado, a um
reposicionamento do sujeito em busca de uma ontologia do ser negro como sugeriu Fanon, e
por outro, a tentativa de compreender a propagação do sistema rizomórfico2 da experiência da
escravidão e o legado de suas narrativas num processo de hibridação das formas culturais
negras no Brasil, em especial no nordeste brasileiro. Aqui considero esse processo como a
possibilidade de representação da cultura popular negra, cuja pretensão enquadra-se num
novo patamar analítico onde a retenção dos elementos raciais ganha muito mais consistência
do que comumente se atribui a sua produção.
Contudo, a análise das formas culturais negras no Brasil, com destaque para a região
nordeste, foi construída a partir da ideia de cultura popular. O esforço contínuo dos autores
num contexto colonial vislumbra reconhecer, antes a pressuposição de fixidez da
autenticidade das formas populares do que da conclusão fanoniana da incompletude da
compreensão do ser negro onde a ontologia deixa de lado a existência do sujeito negro.
Quem apresentou essa questão de forma sistemática foi Stuart Hall abordando os
conceitos em dois textos importantes de sua vasta obra, publicados no Brasil como capítulos
de seu livro ―Da Diáspora: identidades e mediações culturais‖ em 2009. O primeiro texto
―Notas sobre a desconstrução do popular‖ aborda as complicações da análise e utilização do
conceito de cultura popular apresentando uma breve genealogia dos sentidos que o
2
Paul Gilroy em seu livro Atlântico Negro afirma que gerações de intelectuais negros tiveram como formato de
propagação do arcabouço crítico da modernidade um sistema rizomórfico, que cria uma relação de cumplicidade
entre os terrores indizíveis da experiência da escravidão e da razão.
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alicerçaram como conceito na teoria social, bem como de suas insuficientes periodizações que
impedem de mostrar as origens das transformações e de suas rupturas internas provocando
uma oscilação entre os polos que ele chamou de dialética da contenção/resistência. O autor
reage ao conceito de forma áspera considerando-o pouco produtivo, no entanto sua
importância não se esvaiu como muitos pensam – pelo desgaste que o conceito provocou no
reforço do binômino alta cultura e cultura popular – perdendo a validade de seus propósitos,
mas sim, necessita de um reposicionamento, um deslocamento onde a tarefa é reconstituir a
trajetória de contextos culturais distintos, a fim de romper com a tessitura rígida e fixa
construída sobre os sentidos do conceito. Hall considera o conceito representando uma arena
de disputa entre o consentimento e a resistência.
O segundo texto ―Que negro é esse na cultura negra?‖ o autor interroga o conceito de
cultura popular a partir do sistema racializado experimentado em diferentes contextos durante
a colonização e pós-colonização, onde o conceito de popular passou a pressupor uma fixidez
da autenticidade das formas populares, enraizando-as nas experiências das comunidades
populares das quais elas retiram o seu vigor e nos permitindo vê-las como expressão de uma
vida social subalterna específica (HALL, 2009, p. 323). Destarte o autor traz a discussão de
uma cultura popular negra contrapondo as insuficiências das periodizações da cultura popular
questionando em qual momento podemos falar de uma cultura popular negra.
A iniciativa metodológica de Hall(2009) para reposicionar o debate em torno da
cultura popular e cultura popular negra, foi feito a partir do questionamento que o autor
jamaicano realiza sobre a constituição histórica possível, a procura de momentos oportunos
para se admitir a ideia de uma cultura popular negra.
Para tanto Hall(2009) recorre a genealogia de Cornel West em seu ensaio ―The
new cultural politics of difference‖ que detalha o momento para discutir a cultura popular
negra destacando três grandes eixos, que segundo Hall (2009) são muito úteis para inserir o
momento no contexto americano.



O primeiro eixo refere-se à identificação do deslocamento dos modelos de alta
cultura europeus para um contexto americano,
O segundo eixo refere-se à compreensão dos EUA como potência mundial e
consequentemente centro de produção e circulação global de cultura,
Terceiro eixo é marcado pela emergência de sensibilidades descolonizadas
oriundas do processo de descolonização dos países que experimentaram a
colonização.
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Cornel West nessa genealogia refere-se a uma transformação intelectual no mundo.
Segundo West (1990) os avanços europeus no transporte marítimo, produção agrícola,
formação dos estados nacionais, burocratização, industrialização consolidaram legacy of the
Age of Europe entre 1492 a 1945. Após esse período West destaca a emergência dos EUA
como potência mundial e centro de disseminação cultural do mundo, com um novo paradigma
cultural que propunha a socialização do anti-social, ou a aculturação do anti-cultural, ou a
legitimação da subversivo (WEST, 1990,p.3). Nesse momento também ocorria a
descolonização do terceiro mundo. Para West (1990) é crucial reconhecer esse processo para
compreender o fim da legacy of the Age of Europe e do surgimento dos EUA como potência
mundial. Sua estrutura de análise se encontra no argumento de descolonização 3 presente em
Os Condenados da Terra de Fanon (1979).
Hall (2009, p.318) acrescenta ao quadro geral da genealogia de West detalhes para
tornar o momento presente um momento peculiar para se propor a questão da cultura popular
negra. Trata-se, em primeiro lugar, das ambiguidades no deslocamento dos modelos europeus
de alta cultura para a América, se referindo à inexistência de qualquer tipo de etnicidade na
Europa Ocidental, enquanto nos EUA as políticas culturais americanas sempre foram
condicionadas pelas ambiguidades étnicas incluindo as tradições vernaculares da cultura
popular negra.
Em segundo, ressalta à natureza do período de globalização cultural sob a
denominação de um certo, ―pós-moderno global‖, que mesmo não apetecendo o autor como
nomenclatura conclusiva é carregada de importância num sentido de identificar que mesmo
no momento de alto-modernismo e posteriormente de um pós-modernismo(que deveria em
tese ampliar a matriz da diferença) o negro é representado de forma ambígua4. Além do mais
o pós-moderno global representa uma importante matriz cultural, não uma nova era cultural
mas um momento que se cerca por mudanças estéticas e estilísticas denominada por Hall
3
Fanon considerou que ―a descolonização é sempre um fenômeno violento‖, ―a expressão de uma necessidade
psico-sociológica, preenchendo uma dupla função: libertação em face do opressor e reconhecimento de si
mesmo‖ – “Para o colonizado a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono, dado que o
colonialismo significou a morte da sociedade autóctone. Abater o colono é matar o opressor e o oprimido” –
Frantz Fanon
4
A égide explicativa de Hall retorna a originalidade da busca por uma existência numa possível ontologia do ser
negro como sugerido por Fanon em seu texto Peles Negras Mascaras Brancas. A relação de ambiguidade dos
negros no proscênio entre alto modernismo e pós-modernismo é justamente o hiato do não vivido proposto por
Fanon. Responde-se assim a dificuldade de Hall em aceitar o ―pós-moderno global‖ para além de sua
insignificância e nulidade de proposições.
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como um dominante cultural, que desloca o alto modernismo para as ruas, isto é representa
uma importante mudança no terreno da cultura rumo ao popular – rumo a práticas populares,
práticas cotidianas, narrativas locais, descentramento de antigas hierarquias e grandes
narrativas(Hall, 2009, p.319)
Em terceiro lugar mostra o gosto do pós-modernismo pelas diferenças sexuais, raciais,
culturais e étnicas. Contrapondo a rigidez da matriz inclusiva da alta cultura europeia o pósmodernismo se encanta pela noção das diferenças e pelo ―sabor‖ exótico e o desejo por
vislumbrar a proximidade com o excêntrico.5 No entanto, o autor prega certos cuidados
questionando se os mesmo usos da diferença por parte desse pós-modernismo global não
segue a mesma dinâmica na relação com o primitivismo no passado, indagando se não haveria
novamente um jogo às custas do vasto silenciamento acerca da fascinação ocidental pelos
corpos de homens e mulheres negros e de outras etnias.(HALL, 2009, p.319)
O autor monta assim com um quadro de análise que resulta na identificação da cultura
popular como cenário de uma disputa: uma nova matriz cultural que descentra antigas
hierquias e grandes narrativas e que se abre aos horizontes das diferenças e para as margens
versus o que posso chamar de uma contracultura do pós-modernismo global que tenta
restaurar o cânone da civilização ocidental, retorno das grandes narrativa históricas, da língua
e da literatura(pilares de sustentação da identidade e da cultura nacional) e do absolutismo
étnico.6
O Brasil em especial é objeto privilegiado dessa discussão uma vez as formas culturais
negras são expressivas e contribuem para um bom debate acerca do contexto colonial.
Considerando a expectativa sobre a interpretação das formas culturais negras no Brasil para
além da versão culturalista - que minimizou o debate a mestiçagem, ao sincretismo
marcadamente visto a luz da noção de pureza e das contradições da cultura nacional –
apresenta-se como problema uma região brasileira que notoriamente se destaca na versão
5
Antonio Sérgio Guimarães seguindo Hall fará exercício semelhante em seu texto Modernidade Negra, como
veremos no decorrer desse texto, afirmando: para que essa modernidade se formasse foi preciso que os europeus
desenvolvessem uma representação de si sob uma matriz mais inclusiva [...] quando o culto as origens deixa de
se referir apenas ao panteão greco-romano, para permitir a infiltração de algum tipo de nativismo bárbaro.
(GUIMARAES, 2003)
6
Paul Gilroy no trabalho Atlântico Negro também argumenta sobre a resistência agressiva a diferença. No
capítulo Senhores e Senhoras, escravos e antinomias da modernidade o autor discute a dialética do senhor e do
escravo de Hegel, no intuito de chamar atenção para os riscos de confinamento e aprisionamento do negro num
lócus irrefletido, justamente pela incapacidade de crítica a modernidade que transformou em ilhas a relação entre
ciência e estética.
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nativa como a região mais negra do país. A análise parte do terceiro eixo da genealogia de
Cornel West: a emergência das sensibilidades descolonizadas a partir do caso sul-americano
onde não existe uma referência direta sobre a mudança intelectual proposta por West (1990).
A estratégia metodológica desse trabalho discrimina o terceiro deslocamento
estratégico para emergência de uma cultura popular negra sugerido por Stuart Hall e busca
construí-lo analisando as políticas culturais negras da região nordeste brasileira, com destaque
para as manifestações musicais de três personagens dessa região: Jackson do Pandeiro, Luiz
Gonzaga e João do Vale.
O trabalho se organiza em três partes. A primeira parte discute trabalhos que de certa
maneira municiaram a construção desse texto onde se discute a questão da reinvenção
africana no Brasil e debate o essencialismo construído no discurso sobre formas culturais
negras. A segunda parte apresento três personagens da música da região do nordeste Jackson
do Pandeiro, Luiz Gonzaga e João do Vale considerado aqui( e isso é uma leitura muito
particular) como estrutura da música nordestina no Brasil e na terceira parte mostro como a
ideia de cultura popular retira o vigor das manifestações negras e as aprisiona no tempo e
procuro mostrar o necessidade de descentrar as hierarquias e narrativas e as estratégias de
representação em torno dessas produções negras.
Mama África: o problema da reinvenção de África no Brasil
Essa estratégia de reposicionamento do debate sobre sujeitos negros para além do
absolutismo étnico e do nacionalismo não representa um movimento inédito. Outros autores
construíram propostas analíticas importantes que não apenas foram decisivas para uma nova
leitura da produção negra, mas foram responsáveis por municiar a construção desse texto.
Antonio Sergio Guimarães em seu texto Modernidade Negra sugere uma inclusão
cultural e simbólica dos negros à sociedade ocidental pensada como processo que se
desenrola no tempo. Nesse processo descontínuo de inclusão existe um campo de
representação que altera a percepção subjetiva dos europeus de si para si, a partir de uma
matriz inclusiva ressignificada pela perda de referência com
panteão Greco-romano e
infiltração de algum tipo de nativismo bárbaro(GUIMARAES, 2003) e também pelo alcance
de um estatuto individual dos africanos e descendentes por meio da apropriação e domínio das
línguas europeias.
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A ideia de Guimarães(2003) abandona a noção essencialista e substantivista que
pairou sobre a análise das organizações políticas negras nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil.
O sentido político do discurso negro ocorreu como descontinuidade da modernidade negra
que escapa aos polos restritivo da teoria das consciência racial por um lado, e de outro, o
imperialismo cultural norte-americano.
O autor propõe que o desenvolvimento histórico do legado político do movimento
negro( seja o modelo de discurso das organizações negras da década de 1930 e 1970), a
experiência das narrativas do terror racial a partir das desigualdades sobre os bens do
desenvolvimento em perspectiva comparada de negros e brancos, bem como, do debate sobre
a identidade nacional no contexto de substituição de importações é pano de fundo para
compreender se não toda a cultura negra, mas parte do contexto das formas descolonizadas de
participação negra na sociedade.
Outro trabalho central que se dedicou a investigação da cultura negra a partir de um
reposicionamento das estratégias de interpretação das manifestações culturais é trabalho de
Patrícia Santana Pinho, Mama África: reinvenção da África na Bahia publicado em 2004 e
reconhecido com o Prêmio Ibero-americano da LASA’s(Latin American Studies Association)
em 2006. O trabalho persegue pontos seminais para o debate racial no Brasil, e interroga:
como o sujeito de fenótipo preto tornou-se negro no Brasil? Que tipo de imagem sobre a alma
negra e o corpo essencializado tem sido ativado para a produção de referência na identidade
negra? Esses e outros questionamentos são realizados sobre um deslindamento da Bahia
considerado e reconhecido discursivamente de forma transnacional como o local mais
africano do Brasil.
Construído a partir da perspectiva dos estudos culturais e inspirada nos trabalhos de
Paul Gilroy, Stuart Hall e Michel Foucault, a autora analisa o mito da Mama África central
nas narrativas e representações produzidas por afrodescendentes em diferentes partes do que
conhecemos hoje como Atlântico Negro7. (CAPONE, 2011).
O texto examina a produção cultural da Bahia como uma versão local da diáspora
africana no Brasil e conecta as noções de bainidade a múltiplas camadas de interpretações da
negritude e de africanidade. Respondendo as críticas feitas ao trabalho de Paul Gilroy a autora
7
―Analyzing the myth of Mama Africa as central to narratives and representations produced by Afro descendents in different parts of what we call today ―the Black Atlantic. ‖ (Tradução própria).
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examina o lugar do Brasil no Atlântico Negro mostrando como a Bahia é atualmente
produtora de uma etnicidade negra onde a África alimenta o imaginário e a produção cultura
dos afrodescendentes.
Os templos de candomblé, escolas de capoeira, blocos afro e organizações da cultura
negra são identificados pela autora como os maiores produtores do discurso da negritude e da
noção de uma comunidade imaginada que conecta os negros a uma diáspora.
Como Ilê Axé Opô Afonjá para Candomblé baiano, o Ilê Aiyê , fundada em1974 , é
considerado como "o mais Africano " dos blocos afro da Bahia . Ambos tornaram-se
os "guardiões da negritude‖ e das "tradições africanas". Turistas negros americanos
contactam esses grupos em busca do que eles acreditam ser a Africanidade perdida.
Essa busca pela tradição na contemporaneidade da cultura afrobaiana reforça
suposições sobre a "natureza" dos negros e conduz a interpretações essencialistas de
uma suposta e unificada Cultura Africana.8 (CAPONE, 2011)
A estratégia de Pinho(2004) como resposta para essas interpretações restritivas que
enclausuram o sujeito no corpo negro, parte, por um lado, da proposta de Paul Gilroy
adotando uma posição anti-essencialista atribuindo valor de agência ao sujeito negro numa
sociedade racista e desigual, salientando ao mesmo tempo a construção social e histórica do
local das reinvenções da África e da africanidade como fonte de empoderamento
identificando os significados políticos gerados na produção de representações.
Por outro lado, Pinho(2004) seguindo Stuart Hall analisa a noção de identidade negra
definida como processo social e histórico e não biológico. Há, portanto, a compreensão da
negritude como ―estrutura de sentimento‖ se desenvolvendo historicamente e socialmente.
Esta premissa vai de encontro às estratégias de aprisionamento e confinamento no corpo, onde
interpretações essencialistas criam discursos que reivindicam o arcabouço biológico como
elemento residual distintivo.
Negritude é, portanto, entendida como uma "estrutura de sentimento" que se
desenvolve socialmente e historicamente, desafiando a interpretações
essencializadas que relacionam a produção cultural negra a um patrimônio
"biológico" , como "habilidades naturais" para dançar e para produzir música
acreditando ser transmitida por sangue. 9(CAPONE, 2011)
8
―Like Ilê Axé Opô Afonjá for Bahian Candomblé, Ilê Aiyê, founded in 1974, is considered as ―the
most African‖ of the blocos afro of Bahia. Both became the ―guardians of blackness‖ and ―African
traditions . ‖ African American tourists contact these groups in search of what they believe to be their
lost Africanness. This search for tradition in contemporary Afro - Bahian culture reinforces assumptions
about the ―nature‖ of African/black peoples and comforts essentialist interpretations of a supposed, unified,
―African culture . ‖(tradução própria)
9
Blackness is therefore understood as a ―structure of feeling‖ that develops socially and historically,
challenging the essentialized interpretations that relate cultural black production to a ―biological‖
patrimony, the ―natural abilities‖ to dance and to produce music believed to be transmitted by
blood.(tradução própria)
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A construção dos conteúdos com a propensa orientação para superar categorias de
confinamento e desse modo descentrar o sujeito na busca por um ontologia que liberte o
negro do olhar colonial é uma das tarefas do empreendimento de reposicionamento das
narrativas. A estratégia de Patrícia Pinho tem esse objetivo e corresponde ao mesmo tempo
em que municia as conclusões desse trabalho.
“Olhe, um preto!”10: Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga e João do Vale.
Um dia me veio às mãos um LP de João do Vale oferecido por um amigo nessas de
conhecer ―outras coisas‖ da MPB (música popular brasileira) para além do eixo Chico e
Caetano. Como todos outros álbuns que chegavam até mim iniciei minhas primeiras
degustações e fiquei muito motivado a conhecer o dono de uma narrativa tão eloquente e
criativa. A primeira canção que me chamou a atenção, pasmem, era uma música interpretada
por Caetano Veloso, cujo título era ―Na asa do vento‖ e o trecho ―a ciência da abelha da
aranha e a minha, muita gente desconhece‖ que seria visto em vários inícios de textos
acadêmicos como abertura.
O long play era uma coletânea Grandes Compositores/História da Música Popular
Brasileira organizado pela Abril Cultural em 1983 onde vários personagens da MPB
interpretavam as canções de determinado artista. Nesse caso era João do Vale e tinha Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethania11, Nara Leão12 Tim Maia entre outros . Lendo a
pesquisa do encarte – benesses inestimáveis dos vinis – que vinha acompanhando o disco,
num dos subtítulos dos textos li ―João do Vale é – com Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro –
um dos pilares da música nordestina. O texto era d jornalista e crítico musical José Neumanne
Pinto com o título ―O ritmo da palavra e a consciência da condição humana‖
Essa afirmação sempre ficou guardada enquanto eu passava a tentar compreender a
profunda disseminação do uso público da música naquela região, seja nas vozes dos três
personagens, seja nos demais compositores do nordeste brasileiro. Dentre as várias
características e representações possíveis uma delas é a consideração da clivagem racial (que
10
Referência ao início do capítulo 5 – a experiência vivida do negro do livro Pele Negra Mascaras Brancas de
Frantz Fanon(2008) ―Preto sujo!‖ Ou simplesmente: ―Olhe, um preto!‖. A busca implorada pelo reconhecimento
do outro sobre si. Triste ilusão! Como cita Fanon ―Aqui estão os farelos reunidos por um outro eu‖.
11
Maria Bethania teve como fato importante em sua carreira, a gravação da canção Caracará de João do Vale,
que foi interpretada de forma vigorosa e agressiva, em consonância com a força da letra dessa canção: Carcará
pega um mata e come(...)Carcará mais coragem do que homem.
12
Nara Leão junto com Zé Ketti e João do Vale realizaram o Show Opinião em 1964, com direção de Augusto
Boal. A peça trazia, em seu interior, críticas sociais referentes ao início da década de 1960 no Brasil .
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10
salta como secundária nas biografias e análises). As classificações eram quase exclusivamente
de classe social num contexto de profunda desigualdade social, onde ―preto/pobre‖ pairava
como unanimidade nas análises. Minha consideração nesse trabalho é de compreender a
produção desses músicos a partir da clivagem racial discutindo a possibilidade de uma
ontologia do ser negro – sugerido por Fanon – e analisar a produção cultural como
reverberações do Atlântico Negro – sugerido por Paul Gilroy, ou seja, desafiar as leituras que
fixaram as manifestações negras como tradições sem vigor e repensá-las como uma cultura
popular negra.
O texto considera os personagens da nordeste brasileiro formas culturais negras:
As tradições inventadas de expressão musical, são igualmente importantes no estudo
dos negros da diáspora e da modernidade porque elas tem apoiado a formação de
uma casta distinta, muitas vezes sacerdotal, de intelectuais orgânicos'' cujas
experiências nos permitem focalizar com particular clareza a crise da modernidade e
dos valores modernos.Essas pessoas geralmente tem sido intelectuais no sentido
gramsciano, operando sem os benefícios que fluem ora de uma relação com o estado
moderno,ora de posições institucionais seguras no interior das indústrias
culturais.(GILROY, 2001, p.164)
João do Vale - ―Poeta do Povo‖:
A ciência da abelha, da
aranha e a minha, muita
gente desconhece.
Foi o quinto de
oito
irmãos,
dos
quais
apenas três sobreviveram à infância pobre. Os pais eram agricultores pobres e sem terra. Por
volta dos seis anos de idade foi apelidado de "Pé de xote", pois vivia pulando e dançando. Um
de seus avós fora trazido de Angola como escravo e posteriormente fugiu. Chegou a perder a
vaga no Grupo Escolar Oscar Galvão para dar lugar ao filho de um coletor de impostos.
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Auxiliava nas despesas da casa, vendendo balas, doces e bolos que a mãe fazia. Com 12 anos
mudou-se com a família para São Luís, onde trabalhou vendendo laranjas nas ruas. Nesse
período participou do Noite Linda, um grupo de bumba-meu-boi, como fazedor de versos, o
chamado "amo". De 14 para 15 anos fugiu de casa, indo de trem para Teresina, onde
conseguiu emprego como ajudante de caminhão. Fazia viagens entre Fortaleza e Teresina.
Um dia viajou até Salvador e resolveu ficar por lá, por estar mais perto do Rio de Janeiro,
para onde tencionava ir. Mais tarde foi para Minas Gerais, onde trabalhou como garimpeiro
na cidade de Teófilo Otoni, onde obteve dinheiro para a sonhada viagem à então capital da
República. Foi para o Rio de Janeiro de carona em caminhão e arranjou emprego de pedreiro
em Copacabana, numa obra na Rua Barão de Ipanema. Trabalhava e dormia na obra,
visitando periodicamente as rádios, principalmente a Nacional, à procura de artistas que
gravassem suas composições. Mostrava suas músicas a muitos artistas, inclusive à cantora
Marlene e a Tom Jobim, que naquela época tocava piano num inferninho em Copacabana.13
Jackson do Pandeiro – ―O rei do ritmo‖
O
paraibano
Jackson do Pandeiro foi o
maior ritmista da história
da
brasileira e, ao lado de
Luiz
música
popular
Gonzaga,
o
responsável pela nacionalização de canções nascidas entre o povo nordestino. Pelas cinco
gravadoras que passou em 54 anos de carreira artística estão registrados sucessos como Meu
enxoval, 17 na corrente, Coco do Norte, O velho gagá, Vou ter um troço, Sebastiana, O canto
da Ema e Chiclete com Banana. A história da sua carreira artística reforça a herança da
influência negra na música nordestina - via cocos originários de Alagoas - que lhe permitiu
sempre com o auxílio luxuoso de um pandeiro na mão se adaptar aos sincopados sambas
13
Acessado em 05/06/2015 - http://www.dicionariompb.com.br/joao-do-vale/biografia
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cariocas e à música de carnaval em geral. Dono de um recurso vocal único, ele conseguia
dividir seus vocais como nenhum outro cantor na música popular brasileira. Seu maior mérito
foi de ter levado toda riqueza dos cantadores de feira livre do Nordeste para o rádio e
televisão, enfim para a indústria cultural. Grandes nomes da MPB lhe devotam admiração e já
gravaram seus sucessos depois que o Tropicalismo decretou não ser pecado gostar do passado
da música brasileira, principalmente, a de raiz nordestina.14
Luiz Gonzaga – ―O Rei do Baião‖
Luiz
brasileiro.
Gonzaga
Sanfoneiro,
recebeu o título de "Rei
(1912-1989) foi músico
cantor
do
e
compositor,
Baião".
Foi
responsável pela valorização dos ritmos nordestinos, levou o baião, o xote e o xaxado, para
todo o país. A música "Asa Branca" feita em parceria com Humberto Teixeira, gravada por
Luiz Gonzaga no dia 3 de março de 1947, virou hino do nordeste brasileiro. Luiz Gonzaga
(1912-1989) nasceu na Fazenda Caiçara, em Exu, sertão de Pernambuco, no dia 13 de
dezembro de 1912. Filho de Januário José dos Santos, o mestre Januário, "sanfoneiro de 8
baixos" e Ana Batista de Jesus. O casal teve oito filhos. Luiz Gonzaga desde menino já tocava
sanfona. Aos 13 anos, com dinheiro emprestado compra sua primeira sanfona. Em 1929, por
14
Acessado
biografia.html
em
05/06/2015:
http://culturanordestina.blogspot.com.br/2008/07/jakcson-do-pandeiro-
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13
causa de um namoro, proibido pela família da moça, Luiz Gonzaga foge para a cidade de
Crato no Ceará. Em 1930 vai para Fortaleza, onde entra para o exército. Com a Revolução de
30 viaja pelo país. Em 1933, servindo em Minas Gerais, é reprovado num concurso de músico
para o exército, passa a ser o corneteiro da tropa. Tem aulas de sanfona com o soldado
Domingos Ambrósio. Luiz Gonzaga deixa o exército, depois de nove anos sem dar notícias à
família. Foi para o Rio de Janeiro e passou a se apresentar em bares, cabarés e programas de
calouros. Em 1940 participa do programa de Calouros da Rádio Tupi e ganha o primeiro
lugar, com a música "Vira e Mexe". Tocando como sanfoneiro da dupla Genésio Arruda e
Januário, é descoberto e levado pela gravadora RCA Vitor, a gravar seu primeiro disco. O
sucesso foi rápido, vários outros discos foram gravados, mas só em 11 de abril de 1945 grava
seu primeiro disco como sanfoneiro e cantor, com a música "Dança Mariquinha". Em 23 de
setembro nasce seu filho Gonzaguinha, fruto do relacionamento com a cantora Odaléia
Guedes. Nesse mesmo ano conhece o parceiro Humberto Teixeira. Depois de 16 anos Luiz
volta para sua terra natal. Vai ao Recife e se apresenta em vários programas de rádio. Em
1947 grava "Asa Branca", feita em parceria com Humberto Teixeira. Em 1948 casa-se com a
cantora Helena Cavalcanti. Em 1949 leva sua família para morar no Rio de Janeiro. As
parcerias com Humberto Teixeira e com Zédantas rendeu muitas músicas. Gonzaga e seu
conjunto se apresentam em várias partes do país.15
Cultura Popular e Cultura Popular Negra: descentrando as narrativas
Uma das principais preocupações expostas por Stuart Hall ao se tratar sobre o debate
em torno do conceito de cultura popular refere-se à necessidade de definir seu local.
Considero plausível o entendimento de que há um consenso na interpretação das
manifestações culturais da região nordeste como elementos quase que essencialmente
populares.
Se verificarmos a trajetória dos três personagens do que pode ser considerado como
―os pilares da música nordestina‖ chama a atenção como, por um lado a clivagem de classe, já
citado nesse texto, e a condição socioeconômica dos sujeitos sobressaem de forma muito
convincente, e por outro, o espectro quase essencial do ―nordeste‖ como sentido comunitário.
As barreiras entre os estados são irrelevantes e a história dos sujeitos se homogeneíza na
15
Acessado em 05/06/15 - http://www.e-biografias.net/luiz_gonzaga/
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condição de nordestinos, e as reflexões sobre raça são sempre colocadas – quando citadas –
em segundo plano.
Vejamos o comentário de Ferreira Gullar16 sobre João do Vale, Jackson do Pandeiro e
Luiz Gonzaga:
―Devo dizer que considero João do Vale uma das figuras mais importantes da
música popular brasileira. Se é certo que em 1964-65, quando se realizou pela
primeira vez o show Opinião, os grandes centros do país tomaram conhecimento de
sua existência e lhe reconheceram os méritos de compositor, não é menos certo que
pouca gente se deu conta do que ele realmente significa como expressão de nossa
cultura popular. Isso se deve ao fato de que João do Vale não é um compositor de
origem urbana e que só agora se começa a vencer o preconceito que tem cercado as
manifestações populares sertanejas. É verdade que em determinados momentos, com
Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, essa música conseguiu ganhar o auditório
nacional, mas para, em seguida, perder o lugar conquistado. É que o Brasil é o
grande e diversificado. Basta dizer que, quando João do Vale se tornou um nome
nacional, já tinha quase trezentas músicas gravadas, que o Nordeste inteiro conhecia
e cantava, enquanto no Sul ninguém ainda ouvira falar nele.‖17
As análises sempre recorrem a construção do universo nordestino e a importância da
cultura popular. Acredito que essas conclusões não se apresentem como novidades, uma vez
que a relação entre cultura nacional e identidade nacional figuraram como um problema
central, deixando uma relação perspectiva com outros contextos, como por exemplo, a
América do Sul. Também não é nenhuma novidade a utilização metodológica de uma grande
narrativa cúmplice do discurso de modernidade e de emancipação irrealizável, mas que opera
como norte para a compreensão da realidade social. No Brasil o contexto não foi diferente.
Ao mostrar a vida de três personagens importantes na música brasileira, reitero em
perspectiva que, eles são músicos negros, descendentes de ex-escravos e partilharam de forma
agonizante a experiência da escravidão. A negociação que fizeram em vida em prol de seu
reconhecimento não passou daquilo que infelizmente Fanon(2008) já havia alertado:
―enclausurado nesta objetividade esmagadora, implorei ao outro. Seu olhar libertador,
percorrendo meu corpo subitamente livre de asperezas, me devolveu uma leveza que eu
pensava perdida e, extraindo-me do mundo, me entregou ao mundo‖.(FANON, 2008).
―Preto sujo‖ ou ―Olhe, um preto!‖: Essa é a consideração de Frantz Fanon para
concluir de forma dolorosa a tarefa irrealizável de garantir a existência ontológica do ser
negro. E não seria muito diferente se ao invés de vermos Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga
e João do Vale classificados como um ―preto‖ víssemos classificados como um ―nordestino‖.
16
Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira é um poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor,
memorialista e ensaísta brasileiro e um dos fundadores do neoconcretismo.
17
Acessado em 05/06/15 - http://www.cecac.org.br/MATERIAS/Joao_do_Vale.htm
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O destino foi cruel com os três personagens. Morreram pobres, sim. Mas esse não é o
problema. Morreram tentando apenas ser aquilo que consideravam ser, mas que foram
impedidos de mostrar. A realeza imposta pelas indústrias culturais, Rei do Ritmo, Rei do
Baião, O poeta do Povo aos seus personagens, se transformou de forma agonizante: se
tornaram objetos em meio a outros objetos. O Pandeiro, a sanfona e o povo(cultura popular)
foram iguais ou até mais reconhecidos que seus donos.
A proposta é construir uma cultura popular negra em perspectiva no intuito de mostrar
que, se ampliarmos o escopo de análise de forma transnacional e elaborarmos uma agenda
relacional chegaremos ao vislumbro de uma possibilidade crítica do legado de uma sociedade
colonial ao passo que a vivacidade das manifestações especificas da nação sejam reordenadas.
As condições mostram-se pelo processo de descentramento das hierarquias e o
reposicionamento do conceito de cultura popular. A perda de sentido a partir da ruptura entre
alta cultura e baixa cultura num contexto pós-moderno global potencializou narrativas
específicas com formas de representação mais autônomas.
A matriz cultural que se constrói a partir do descentramento desses sujeitos
―negros‖(em rasura) num novo horizonte analítico garante a abertura do campo de disputa
pela hegemonia cultural, onde a cultura popular se torna palco principal e o sujeito
subalternizado imediatamente o proscênio do contexto, uma vez que essa mesma abertura
possibilita o deslocamento das disposições de poder.
Bibliografia:
BHABHA, Homi, The location of culture, London/New York:Routledge, 1994
BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cad. Pagu [online]. 2006, n.26, pp. 329376.
CAPONE, Stefania. How to be Black in Brazil, or the Paradox of Raciological Antiracist
Struggles Université de Paris— Ouest-Nanterre/CNRS,2011.
COSTA, Sérgio. Dois Atlânticos. Teoria Social, anti-racismo, cosmopolitismo.Belo
Horizonte: UFMG, . v.1, 2006.
__________Desprovincializando a sociologia: a contribuição pós-colonial. Rev. bras. Ci. Soc.
[online]. 2006, vol.21, n.60, pp. 117-134.
FANON, Frantz, Pele Negra, mascaras brancas, Salvador, EDUFBA, 2008
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16
GILROY, Paul. O Atlântico Negro - Modernidade e Dupla Consciência. Rio de Janeiro,
Editora 34/UCAM, 2001.
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GT 1 - CULTURA, DIFERENÇAS E DESIGUALDADES – SESSÃO 2
17 DE JUNHO DE 2015 – 14H
COORDENADXR E DEBATEDXR: DR. JORGE LEITE JR
LOCAL: AUDITÓRIO 1 DA BIBLIOTECA – ÁREA NORTE
NEGROS, MULHERES E A BUSCA POR REDISTRIBUIÇÃO E
RECONHECIMENTO NO BRASIL
Cássia Maria Carloto (UEL)1
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Alexsandro E. P. de Souza (UEL)2
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GT 1 - Cultura, Diferenças e Desigualdades
Resumo:
Subestimadas por grande parte das elites governantes e intelectuais e também pelas classes
populares, os fatores étnico-raciais e de gênero, no que tange às desigualdades
socioeconômicas, foram, ao longo do século XX, tenazmente rechaçados e marginalizados.
Não obstante, a história nos mostra que a partir da segunda metade do século XX as Políticas
Públicas, os Direitos Humanos e uma visão crítica sobre a diversidade humana foram
gradativamente se coadunando - em consonância às reinvidicações e à pressão exercida por
distintos movimentos sociais. Como resultado dessa pressão as chamadas cotas raciais passam
a ser incorporadas às políticas públicas, notadamente no Brasil, no campo das políticas de
Educação. Autores como Nancy Fraser têm desenvolvido um campo teórico que articula
dimensões fundamentais como a esfera do reconhecimento e a esfera da redistribuição na
discussão sobre justiça social e que permite pensarmos os desafios das ações afirmativas.
Neste contexto, o objetivo deste trabalho é discutir as cotas raciais nas universidades a partir
da produção de Nancy Fraser sobre reconhecimento e redistribuição.
Introdução
1
Professora adjunta no departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Bolsista
de produtividade em pesquisa do CNPq - Nível 2 e pós-doutora em Serviço Social pela PUC-SP.
2
Doutorando no programa de pós-graduação em Serviço Social e Política Social da Universidade Estadual de
Londrina (UEL).
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Segundo a perspectiva da filósofa Nancy Fraser (2001), em nossa época,
“disputas por reconhecimento acontecem em um mundo de desigualdade material
exacerbada” (p.245). Assim, para autora, diante desta realidade inequívoca faz-se necessário,
ao seu enfrentamento, a utilização de dois “remédios”, um para injustiça econômica e outro
para injustiça cultural, a serem, dependendo do arranjo social, manipulados conjuntamente.
Ao propor tais remédios, Fraser objetiva “conectar duas problemáticas políticas que são
costumeiramente dissociadas, pois só por meio da reintegração do reconhecimento e da
redistribuição pode-se chegar a um quadro adequado às demandas de nosso tempo” (Fraser,
2001, p. 246).
Tendo como premissa essa realidade concebida por Fraser (2001), buscamos
compreender como as questões de não reconhecimento e má distribuição se coadunaram a
passaram a caracterizar o cotidiano de duas coletividades ambivalentes, paradigmáticas para a
autora, que ao longo da história brasileira se viram subjulgadas e, por conseguinte,
marginalizadas em sua cidadania, a saber: “raça” e gênero.
Relegados a própria sorte, oprimidos e subordinados por ideologias
hegemônicas que se engendraram com base na economia política e na cultura, os negros e as
mulheres vêm ao longo da história, especificamente no contexto brasileiro, reivindicando seus
respectivos espaços a fim da paridade de participação partidária, econômica e cultural
(Hasenbalg, 1979; Saffioti, 2004). Assim, diante dos avanços alcançados no que tange ao
enfretamento às discriminações de gênero e de raça/etnia, a partir da constituição de 1988,
propomos um entendimento da forma com que tal discriminação se engendrou, bem como os
impactos que os remédios afirmativos têm tido na sociabilidade das coletividades já citadas.
Outro elemento de caráter teórico importante nesta perspectiva é o que Fraser (2002)
denomina uma concepção de gênero bidimensional. Discutindo as questões de igualdade e
justiça social, Fraser propõe um olhar de gênero bifocal, “através do visor de uma das lentes
gênero tem afinidades com classe, e, através do visor da outra lente, é mais ligado a status”.
Nesta concepção gênero e raça aparecem como um eixo de categoria, que alcança duas
dimensões do ordenamento social: “a dimensão da distribuição e a dimensão do
reconhecimento”.
A autora discute a perspectiva distributiva afirmando que nesta,
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gênero aparece como uma diferenciação semelhante à classe, enraizada na
própria estrutura econômica da sociedade. Trata-se de um princípio básico para
a organização da divisão do trabalho, dá sustentação à divisão fundamental
entre trabalho “produtivo” pago e trabalho doméstico “reprodutivo” não pago,
sendo este último designado como responsabilidade primária das mulheres.
Como consequência, vemos uma estrutura econômica que gera formas
especificas de injustiça distributiva baseada no gênero (2002, p. 64).
Na perspectiva do reconhecimento, para Fraser, gênero e podemos acrescentar
raça/etnia aparecem como uma diferenciação de status, enraizada na ordem de status da
sociedade. A partir de padrões de valores androcêntricos e racistas as mulheres e os negros
sofrem formas específicas de subordinação e, como ressaltado por Fraser, a negação de seus
plenos direitos e proteção igualitária como cidadãs e cidadãos.
Diante desta constatação de desigualdades na distribuição dos recursos sociais
e desequilíbrio de status Fraser (2001) acredita haver duas possibilidades, ou tipos de
rémedios, para o enfrentamento das citadas problemáticas. O primeiro busca a redistribuição
de tais recursos, assim,
O remédio para insjustiça econômica é reestruturação político-econômica de algum
tipo. Isso poderia envolver redistribuição de renda, reorganização da divisão do
trabalho, sujeitar investimentos à tomada de decisão democrática ou transformar
outras estruturas econômicas básicas (Fraser, 2001, p. 252).
Já o segundo objetiva o reconhecimento de status, com efeito
O remédio para injustiça cultural, em constraste, é algum tipo de mudança cultural ou
simbólica. Isso poderia envolver reavaliação positiva de identidades desrespeitadas e
dos produtos culturais de grupos marginalizados. Poderia também envolver
reconhecimento e valorização positiva da diversidade cultural. Ainda mais
radicalmente, poderia envolver a transformação geral dos padrões societais de
representação, interpretação e comunicação, a fim de alterar todas as percepções de
individualidade (Fraser, 2001, p. 252).
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Grosso modo, esses seriam os remédios teorizados por Fraser, a fim do
enfretamento político das problemáticas apresentadas. Todavia, de modo mais específico, a
autora redimenciona a “posologia” de tais remédios e os conceitualizam em duas categorias, a
saber: rémedios afirmativos e remédios transformativos. Desde modo, aos remédios do
primeiro grupo o afronte das mazelas, socioeconômicas e culturais, por meio de medidas
paliativas é o que o carateriza. Destarte, tais medidas tendem a uma resolução mais imediata
do problema, o que gera uma aparente harmonia nas relações sociais, entretanto, por não
revisita-la em seu cerne, permite com que tal problemática, ressurja sob um novo cariz; já aos
remédios do segundo grupo, o que o caracteriza é a possibilidade que estes têm em viabilizar
uma nova estrutura social, promovendo assim reciprocidade e solidariedade nas relações
sociais, contudo, esse não permite a vizualização de seus resultados a curto prazo,
necessitando de um longo período a fim do desenvolvimento e amadurecimento societário, o
que por sua vez, faz com que no plano individual, o agente o vejo como uma aposta, logo
passível do não vislumbramento de sua concretização, daí um dilema na utilização de tais
ramédios.
Nessa dimensão propor políticas públicas de enfrentamento das desigualdades
de gênero e raça/etnia exige garantir um sentido emancipatório às mudanças que
pretendemos; que as desigualdades
sejam combatidas no contexto do conjunto das
desigualdades sociais, pressupondo práticas de cidadania ativa; garantir que o Estado
desenvolva
políticas
sociais
que
contemplem
as
dimensões
distributivas
e
de
reconhecimento/status que incidam efetivamente sobre o conjunto de desigualdades de classe,
gênero e raça/etnia.
A utilização de remédios afirmativos pelos anti-racistas no Brasil: a política de cotas
raciais
Reivindicadas pela primeira vez na década de 1940 quando do Manifesto à
Nação Brasileira, resultado da Convenção Nacional do Negro Brasileiro, organizada pelo
Teatro Experimental do Negro criado e coordenado pelo militante Abdias do Nascimento, a
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proposta de políticas específicas para o combate da discriminação negra se ancorava em
contundentes argumentos, dentre eles o que se refere ao âmbito educacional:
4) Enquanto não for tornado gratuito o ensino em todos os graus, sejam admitidos
brasileiros negros, como pensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos
particulares e oficiais de ensino secundário e superior do país, inclusive nos
estabelecimentos militares.
Diante do malogro de tais propostas, o mesmo Abdias do Nascimento, agora
deputado federal pelo Rio de Janeiro, apresenta 40 anos depois, em 1983, o Projeto de Lei
nº1.332 de 1983 que:
Dispõe sobre ação compensatória visando à implementação do princípio da isonomia
social do negro, em relação aos demais segmentos étnicos da população brasileira,
conforme direito assegurado pelo art. 153, 1º da Constituição da República.
O projeto abrange as áreas do emprego, público e privado, e da educação,
estabelecendo cotas de 20% para homens negros e de 20% para mulheres negras em todos os
“órgãos da administração pública, direta e indireta, de níveis federal, estadual e municipal”,
incluindo as Forças Armadas, “em todos os escalões de trabalho e de direção” (art. 2º), assim
como nas “empresas, firmas e estabelecimentos, de comércio, indústria, serviços, mercado
financeiro e do setor agropecuário” (art. 3º). Reserva também a estudantes negros 40% das
bolsas de estudos concedidas pelo Ministério e Secretarias de Educação, estaduais e
municipais, assim como 40% das vagas do Instituto Rio Branco, estas últimas igualmente
divididas entre homens e mulheres (art. 7º). Não se restringe, contudo, a medidas numéricas,
pois obriga o Ministério e as Secretarias de Educação a estudar e implementar “modificações
nos currículos escolares e acadêmicos, em todos os níveis (primário, secundário, superior e de
pós-graduação)”, com vistas a incorporar ao conteúdo dos cursos de História do Brasil e de
História Geral “o ensino das contribuições positivas dos africanos e seus descendentes” e
também das civilizações africanas, “particularmente seus avanços tecnológicos e culturais
antes da invasão européia [...]” (art. 8º) (Nascimento, 1983).
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O projeto não chegou sequer a ser apreciado, mas é interessante observar,
como nos lembra Carlos Alberto Medeiros (2007) que:
algumas das medidas nele contidas acabaram sendo implementadas, embora muito
mais tarde, como é o caso das bolsas de estudos para negros no Instituto Rio Branco,
criadas no Governo Fernando Henrique, e das modificações curriculares recentemente
instituídas pelo Governo Lula, por meio da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003,
que, alterando o art. 1º da Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº. 9.394 , de 20 de dezembro
de 1996 ), torna obrigatório, nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, o
ensino de história e cultura afro-brasileiras (Medeiros, 2007, p. 125).
Discriminação positiva, políticas compensatórias e políticas de inclusão, são as
expressões utilizadas para as políticas especiais, mormente reunidas sob a chancela de ações
afirmativas no Brasil. “Formalmente, é possível ver na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, de 1948, o primeiro passo do longo percurso que leva à idéia, atualmente
consensual em certos meios da necessidade das ações afirmativas” (Osório, 2006; 21). É
diante da falta de efetividade no cumprimento dos artigos – sobretudo nos dois primeiros – da
Carta dos direitos humanos – civis, políticos, econômicos, sociais e culturais – que se legitima
o uso das políticas de ação afirmativa, que visa a inclusão de grupos sociais minoritários.
Desta feita, Joaquim Gomes, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, explica que:
As ações afirmativas se definem como políticas públicas (e privadas) voltadas à
concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos
efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de
compleição física. Na sua compreensão, a igualdade deixa de ser simplesmente um
princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a
ser alcançado pelo Estado e pela sociedade (Gomes, 2007; p.51).
Dada a abrangência das dimensões materiais e imateriais que busca alcançar, as
políticas específicas denominadas no país como ações afirmativas têm sido utilizadas nos
mais diversos paises em todo o mundo, recebendo, de acordo com a gramática e/ou
particularidades do contexto social no qual se insere, diferentes denominações, sendo a
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tradução das utilizadas nos Estados Unidos e na Europa as que mais se disseminaram respectivamente, affirmative action (ação afirmativa) e discrimination positive (discriminação
posítiva) ou action positive (ação positiva).
Empregadas no Brasil desde a década de 1940, a fim da inclusão social de
grupos que por fatores sócio-históricos se viram à margem do processo produtivo e dos
benefícios do progresso, as ações afirmativas já foram utilizados em prol dos trabalhadores
nacionais (lei dos 2/3 de 1943); dos filhos de proprietários e trabalhadores rurais (lei do boi de
1968); dos deficientes físicos, Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991; do pluralismo político no
tocante a questão de gênero, Lei nº 9.504, de setembro de 1997; e por fim, em prol dos
negros, Lei 7.824, de 11 de outubro de 2012 e 6738/2013. Vemos deste modo que as políticas
de ação afirmativa,
por sua vez, abrangem programas sociais que remedeiam problemas gerados
em larga medida por ineficientes políticas preventivas anteriores ou devido à
permanência de mecanismos sociais de exclusão. Uma outra característica das
políticas compensatórias é que elas têm uma duração definida, isto é, elas
podem deixar de ter vigência desde que inexistam os mecanismos de exclusão
social que lhes deram origem (Silvério, 2007, p. 21).
Verifica-se, portanto, os motivos pelos quais se engendraram as políticas de
ação afirmativa, ou na concepção de Fraser (2001), remédios afirmativos, no contexto
brasileiro. Todavia, a autora nos lembra de que tais remédios são “voltados para a correção de
resultados indesejáveis de arranjos sociais sem perturbar o arcabouço que os gera” (Fraser,
2001, p. 266). Daí a necessidade do entendimento de que as ações afirmativas utilizadas,
sobretudo, no campo educacional “podem deixar de ter vigência desde que inexistam os
mecanismos de exclusão social que lhes deram origem”, como nos explica Silvério (2007).
Outorgada como lei federal em 2012, as cotas raciais, em particular, no âmbito
educacional vêm sendo utilizadas desde o ano de 2002 pelas mais diversas Instituições de
Ensino Superior público do país. Ao longo desse período, o que se vê é o aumento
considerável de estudantes negros aos bancos universitários, espaço histórcamente reservado
às elites (Paixão, 2011). Contrário ao argumentado orquestrado por intelectuais como Peter
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Fry (2007, Yvonne Maggie (2007) e Demétrio Magnoli (2007), explito no livro Divisões
perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo, de que a política de cotas suscitaria um
conflito racial no país, após 13 anos de sua implementação o que se tem, é uma melhor
sociabilidade entre brancos e negros no âmbito nacional e, que se vê, mesmo a passos lentos, em
franca e positiva transformação. Tal realidade se torna explicita por meio da leitura das analises
realizadas por autores e grupos de pesquisa que têm se dedicado ao acompanhamento do
desenvolvimento da políticas de cotas no âmbito universitário, tais como os trabalhos elaborados
por Jocélio Teles dos Santos (2013) e pelo Grupo de Estudos Multidiciplinares da Ação
Afirmativa (gemaa) do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro, bem como pela experiência empírica, que se pode vivenciar no cotidiana das
universidades que utilizam o mecanismo de cotas em seus respectivos processos seleção de
estudantes.
A vivência empírica e de modo mais específico às análises teóricas nos levam
ao entendimento de que ao longo da história, a luta por cidadania tem sido uma constante para
os negros brasileiros. Todavia, esta tem se mostrado árdua e perversa. Tal resistência social
causa, de forma singular em cada individuo negro, emoções e sensações diversas (Souza,
1983; Bento & Carone, 2012). Com efeito, a cognição (forma de perceber/conhecer o
mundo); identidade (forma de se reconhecer no mundo) e sociabilidade (forma de interagir
com os pares no mundo), formas subjetivas e objetivas de ver, compreender, se inserir e
intervir no social, tomam caminhos distintos na constituição das idiossincrasias de cada
indivíduo, que agem de acordo com a articulação entre realidade social e mundo simbólico.
Por si só, o espaço acadêmico se mostra um fértil território para novas
percepções individuais e sociais. Meio historicamente elitizado, o aumento de estudantes
negros neste ambiente, sobretudo nos últimos dez anos, tem gerado uma expressiva mudança
no habitus social, especificamente na sociabilidade dos estudantes do ensino superior e
também no cariz das profissões que exigem maior especialização teórica. Para além destas
mudanças que dizem respeito às categorias de sociabilidade e de classes, o vertiginoso
aumento na produção de trabalhos teóricos sobre a situação da população negra e também o
maior engajamento de universitários negros em movimentos sociais que demandam o
reconhecimento das diferenças, retoma a histórica discussão de identidade racial e
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especificidades de gênero, medida salutar para uma guinada no perverso status quo brasileiro
(Munanga, 2008; Crenshaw, 2002).
Coletividades ambivalentes no século XXI: se preparando para a utilização de remédios
transformativos
O impedimento político-econômico e sociocultural que restringiu uma
contundente ação política, sobretudo, por parte das coletividades de raça e de gênero ao longo
da história brasileira permitiu que o racismo, o machismo e as desigualdades de renda
viessem na vida cotidiana a se coadnunar. Destarte, o que se tem hoje é uma “questão social”
que atinge a toda classe trabalhadora, de forma inexorável, e questões étnico-raciais, de
gênero e de outras coletividades que causam sérias restrições para além das impostas pelos
fatores econômicos a um grupo expressível da população, o que por sua vez tende a fragilizar,
sobremaneira, uma realidade social por vezes já fragilizada.
Não obstante, a história nos mostra que a partir da segunda metade do século
XX as Políticas Públicas, os Direitos Humanos e uma visão crítica sobre a diversidade
humana foram gradativamente se coadunando - em consonância às reinvidicações e à pressão
exercida por distintos movimentos sociais - e o resultado dessa junção tem sido, em maior ou
menor grau, um desenvolvimento social que, mesmo não possibilitando ainda uma igualdade
social de fato entre os indivíduos, diferencia-se da desigualdade de outrora, quando,
sobretudo, as mulheres e aos negros não eram reconhecidos em seus direitos a cidadania
(Saffioti, 1992; Fernandes, 2008). Assim, ao buscar uma maior inserção dessas coletividades
historicamente marginalizadas, sobretudo, pelo maior acesso ao campo educacional –
políticas de cotas – pretende-se dispobilizar um melhor entendimento sobre a realidade sociohistórica destas coletividades e também empoderamento de seus agentes, propiciando assim,
num futuro quem sabe próximo, a utilização de remédios transformartivos que na concepção
de Fraser (2001) são, em contraste aos afirmativos, “orientados para a correção de resultados
indesejáveis precisamente pela reestruturação do arcabouço generico que os produz” (p. 266).
Considerações Finais
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Ao lado das políticas sociais, as de ação afirmativa são medidas paliativas cuja
necessidade se faz salutar na medida em que o enfrentamento da distribuição de renda e das
discriminações étnico-raciais e de gênero têm sido historicamente tergiversado e
marginalizado pela elite dirigente. Daí a necessidade atentar-se para as problemáticas tidas
como culturais, dentre elas as de “raça” e gênero.
Ao longo da história das políticas de ações afirmativas no país, o que se vê é a
possibilidade que essas têm em disponibilizar um novo modelo de sociabilidade ao “juntar”
diferentes grupos sociais em espaços sociais mormente ocupados por aqueles privilegiados
pelas maiores possibilidades materiais e/ou simbólicas acumuladas de forma complexa ao
longo da história socioeconômica do país. Sabemos que este pode ser tido como apenas um
começo, mas já é um começo.
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REVISITANDO A RECEPÇÃO DE FANON NO BRASIL: A
NEGRITUDE E O ATIVISMO NEGRO (BRASILEIRO) DO
FINAL DA DÉCADA DE 50
Deivison Mendes Faustino (UFSCar)
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GT1-Cultura, Diferenças e Desigualdades
Resumo
Neste trabalho apresento alguns resultados obtidos em minha pesquisa de doutorado
referente à recepção de Fanon no Brasil entre o final da década de 1950 e início da
década de 1960. Analiso as fontes oferecidas por estudos anteriores (ORTIZ, 1985,
GUIMARÃES, 2008; SILVA, 2011, 2013) e acrescento outras para dialogar com a
hipótese de um possível contato ou influência entre a Associação Cultural do Negro –
ACN e Frantz Fanon. Argumento que embora um encontro seja provável, a agência
política cultural da ACN aponta mais para uma proximidade com as tendências
políticas criticadas por Fanon do que com as suas próprias propostas.
A recepção de Frantz Fanon no Brasil foi objeto de reflexão em pelo menos
três importantes estudos: o livro Cultura Brasileira e identidade nacional, de Renato
Ortiz (2012 - 1a ed. 1985); o artigo A recepção de Fanon no Brasil e a identidade
negra, de Antônio Sergio Guimarães (2008) e a seção “Frantz Fanon e o ativismo
político-literário negro no Brasil: 1960-1980”, alocado no oitavo capítulo do livro A
descoberta do insólito: literatura periférica no Brasil (1960-2000), de Mário Augusto
Medeiros da Silva (2013a). No mesmo ano, o autor publica um artigo intitulado
Frantz Fanon e o ativismo político-cultural negro no Brasil: 1960/1980 (2013b),
onde retoma de forma revisada as abriram caminho para a investigação dos caminhos
pelo qual o pensamento de Fanon chegou ao Brasil.
Ao realizar uma busca exaustiva nos principais periódicos da década de
cinquenta, procurando identificar quais teriam sido os possíveis ecos de Fanon entre a
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intelegentsia brasileira, Guimarães afirma: “É como se a publicação de Peau noir,
masques blancs (1952) tivesse passado despercebida” (GUIMARÃES, 2008:100). O
autor explica que nesta época a intelectualidade brasileira acompanhava atentamente a
tudo que se disponibilizava nos periódicos franceses com o qual Fanon publicou ou
foi comentado. Como se sabe, em 1951 Fanon publicara “L’Expérience vécu du noir”
na Revista Esprit n. 179; e em 1952 publica “Le syndrome nord- africain”, na edição
n. 187. Em 1955, na edição n. 223 da mesma Revista, publica “Antillais et Africains”
e em 1956 publica o seu magistral “Racisme et culture”, na revista Présence
Africaine. Em
fevereiro de 1959 publica “Fondement réciproque de la culture
nationale et des luttes de libération” ainda na revista Présence Africaine. Em 1959 e
1961, publica “La minorité européenne d’Algérie en l’An V de la Révolution” e “De
la violence”., respectivamene na famosa revista Les Temps Modernes.
Estes escritos não passaram despercebidos ao debate francês, configurando-se
como objeto privilegiado da análise por importantes autores que, por sua vez, foram
lidos atentamente pela intelectualidade brasileira. Curiosamente, insiste Guimarães,
nem a Revista Anhembi, coordenada por Bastide e Florestan no momento em que
Bastid retorna de París; nem a Revista Brasiliense onde escreviam Clóvis Moura,
Florestan e Ianni; nem mesmo as publicações de Sergio Milliet sobre Sartre, Senghor,
Cesaire e outros temas referentes ao Movimento de Negritude; nenhuma dessas
publicações renderam alguma referência direta ou indireta à Fanon, configurando
assim um “silêncio impactante” (GUIMARÃES, 2008)
Duas décadas antes, Ortiz (2012 - 1a ed. 1985) já teria chegado a conclusões
parecidas. Embora o seu objetivo não era o de mapear a recepção de Fanon, mas
remontar as diferentes maneiras que a identidade nacional e a cultura foram
discutidas nas ciências sociais brasileiras, Ortiz oferece importantes elementos para
pensar essa recepção. Em primeiro lugar, como argumenta, há uma confluência entre
os temas e os referenciais teórico utilizados por Fanon e os intelectuais do ISEB: da
tradução francesa de Hegel por Hypolite e Kojeve nos anos 40 - e o respectivo
enfoque da dialética do senhor e do escravo como metáfora à dominação social,
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3
econômica e cultural - à divulgação e circulação dos Manuscritos Econômicos e
Filosóficos, de Karl Marx, em sua anunciada vinculação com Hegel; da ampla
influência do humanismo de Sartre (1946, 1956) às problematizações sobre a
“situação colonial” de Balandier (1951)... observam-se intrigantes similaridades nos
usos dos conceitos fundamentais de alienação e situação colonial:
O célebre livro de Sartre L’Existentialisme est un Humanisme é somente um dos
escritos que enfatizam a dimensão humana da libertação, e mostra que o debate entre
marxismo e existencialismo se realiza sob o signo do humanismo. O debate terá
influências diretas em Fanon, que não hesitará em pensar a libertação nacional em
termos de humanização universal do próprio homem. As repercussões são também
nítidas nos pensadores do ISEB, e Álvaro Vieira Pinto não deixa de considerar o
problema em seu livro Consciência e Realidade Nacional (ORTIZ, op. cit. p. 51)
O autor sugere que as semelhanças entre Fanon e os pensadores do ISEB se
expressavam principalmente através da “necessidade premente de uma busca por
identidade”.
Pois,
segundo
explica,
“para
além
das
categorias
de
colonizador/colonizado, branco/negro, opressor/oprimido, permanece [em ambos] a
pergunta, “quem somos nós?” ou “por que estamos assim?” (Op. cit. p. 55).
Entretanto, apesar desta notável confluência, o autor não observa nenhuma referência
à Fanon nesta época de consolidação do ISEB:
Não estou insinuando que exista uma filiação direta entre o pensamento de Fanon
dos intelectuais do ISEB, algo como uma influência de um sobre o outro. Tudo
indica que os trabalhos de Fanon são elaborados sem maiores conexões com os
pensadores nacionalistas brasileiros. Mas é justamente essa independência de
pensamento que torna o problema mais interessante. A referência a um tipo de
ideologia não brasileira introduz novos elementos para a compreensão do discurso
isebiano e nos permite entender como a história penetra e estrutura o próprio discurso
político. Por outro lado, ela dá uma abrangência maior à discussão da problemática
do nacional, pois não se restringe à particularidade do quadro brasileiro (Op. cit. p.
50)
Nem mesmo Guerreiro Ramos que, ao que se sabe, bebeu em quase todas as
fontes de Fanon, teria rompido o silêncio observado por Guimaraes 1 . A possível
1
A suposição segundo o qual Guerreiro Ramos conhecera (GUIMARÃES, 2008) ou foi influênciado
por Fanon (FILGUEIRA 2012:363) ainda carece de investigação. O que se sabe é que ele não se refere
ao autor martiniquenho em nenhum dos seus textos. Como afirma Guimarães, à 13a. Nota de rodapé de
seu artigo,: “Em A redução sociológica, de1958, Guerreiro cita explicitamente Aimé Césaire (Discours
sur le colonialisme, Paris: Présence Africaine,1955), Cheik Anta Diop (Nations nègres et culture.
Paris: Présence Africaine, 1954) e Sartre (“Le colonialisme est um système”. Les Temps Modernes, no
126, 1956) em francês, mas não se refere a Fanon. Na segunda edição, de 1965, Guerreiro acrescenta a
essas leituras Balandier (Sociologie actuelle de l’Afrique noire. Dynamique des changements sociaux
en Afrique centrale. Paris: PUF, 1955) e continua sem se referir a Fanon” ( GUIMARÃES, 2008:103).
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4
explicação seria a diferença de horizontes entre os dois autores: enquanto Fanon
buscava resolver os problemas coloniais através da práxis revolucionária no contexto
da luta de classes, o sociólogo baiano, bem como o conjunto de pensadores do ISEB,
tendia para posições nacionalistas e populistas (ORTIZ, op. cit.; GUIMARÃES, Op.
cit.). O fato é que para Guimarães, é apenas a partir da visita de Sartre e Beauvoir ao
país em 1960 que o “silêncio” se relativisa para dar lugar a uma “morna recepção” por
parte da esquerda brasileira.
Em um caminho diferente dos autores anteriores, Silva (2013a; 2013b) propõe
analizar a recepção de Fanon nesta época por um vetor até então pouco explorado: o
ativismo negro. Para tal, argumenta pela existência de um fluxo, esparso, mas
importente de ideias entre intelectuais africanos, afro-norteamericanos e afrobrasileiros, entre o período de 20 à 60 que poderia oferecer algumas pistas relevantes
ao debate:
A circulação de ideias sobre África ou de intelectuais e militantes africanos em São
Paulo ainda carece de pesquisas mais articuladas. Memórias como as do militante
José Correia Leite (Leite & Cuti, 1992) ou entrevistas como a de Os- waldo de
Camargo (2007) mostram que, entre os anos 1920 e 1960, as associações negras
paulistanas tiveram contatos esparsos com obras traduzidas, escritores, jornalistas e
debates que remetiam a temas como o pan-africanismo, os movimentos que visavam
ao retorno ao continente africano, as lutas anticoloniais e pela libertação de países, a
violência do apartheid etc. (SILVA, 2013a:371)
A sugestão do autor é que a recepção de Fanon no Brasil poderia ser melhor
compreendida se focassemos neste fluxo afro-transatlântico de ideias. Como se sabe,
Frantz Fanon participou ativamente dos debates internacionais sobre a libertação dos
países colonizados, circulando, portanto, entre os principais espaços de articulação
política anticolonial (GEISMAR, 1972; GORDON, 2015; MACEY, 2000) e a
Associação Cultura do Negro, com sede em São Paulo, esteve presente em um destes
espaços, a saber: o II Congresso de Escritores e Artistas Negros, de Roma em 19592.
2
Como mostra Silva ao retomar as memórias do militante José Correia Leite: “ [Em 1959] O Geraldo
Campos, ainda como presidente [da Associação Cultural do Negro], tinha ido ao II Congresso de
Escritores e Artistas Negros realizado em Roma. [...] Em Roma já havia uma pessoa para representar o
Brasil. Era o pintor Tibério, que morava em Paris. O Geraldo Campos trouxe de lá uma porção de
documentos, teses e outras coisas, inclusive um distintivo que ele me deu, com o símbolo da revista
Presence Africaine” (LEITE & CUTI, 1992, apud SILVA, 2013a:517-8)
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5
Esta participação, segundo infere Silva, abre a possibilidade dos intelectuais
afrobrasileiros terem tido contato com as ideias e posições políticas de Fanon. Vale
lembrar, à esse respeito, que embora a posição defendida por Fanon não tenha sido
hegemônica (MARZIOLI, 2013) ele estava entre as figuras mais notáveis do referido
Congresso (CANNEL, 2007), como relata Amady Aly Dieng durante a comemoração
do 50o aniversãrio de Présence Africaine: “Neste memorável congresso houve vários
incidentes. O governo francês era hostil à presença do Dr. Frantz Fanon, membro da
FLN – Frente de Libertação nacional, que foi obrigado a se pronunciar sob o
pseudônimo de Dr. Oumar” (DIENG, 1997:109).
Entretanto, como reconhece Silva, essa hipotese de um possível encontro
ainda carece de fontes mais específicas para ser confirmada:
Dadas as informações lacunares, é difícil afirmar, sem pesquisa exaustiva no acervo
da associação, o que Oliveira – um dos representantes brasileiros - efetivamente
carregou consigo de Roma, qual nível de discussão foi capaz de estabelecer no
congresso, seu domínio de línguas estrangeiras [em particular, o francês] e, o mais
importante para agora, se conheceu Fanon e se interessou pelo mesmo (SILVA,
2013a:518).
Ainda assim, a despeito da carência de fontes, as pistas levantadas oferecem
um animador convite à reflexão, especialmente quando observadas à luz das
apropriações que os intelectuais negros das décadas seguintes estabeleceram – agora
de forma nomeada – com o pensamento de Fanon. Como revela o mesmo autor, o
ativismo cultural negro da década de 80 irá eleger justamente os textos de Fanon apresentados por Fanon no I e II Congresso de Escritores e Artistas Negros (1956 e
1959) – como referência para pensar as relações entre cultura negra, colonização e
luta política3.
3
Ao analisar a a produção intelectual de Mácrio Barbosa no Quilombhoje, silva conclui: Suas fontes
bibliográficas citam, entre outros: Os condenados da Terra (1979), com o texto “sobre a cultura
nacional”; e “Racismo e cultura”, publicado em tradução portuguesa no livro Em defesa da Revolução
Africana, em 1980. Antes este livro é o original Pour la révolution africaine, conjunto de ensaios
dispersos editado pela François Maspero em 1969 e traduzido em Portugual pela Sá da Costa Editora,
na “Coleção Terceiro Mundo”. “Racismo e cultura”é a conferência de Fanon ao I Congresso de
Escritores e Artistas Negros (1959); “Sobre a cultura nacional” é a sua conferência de 1959, para a
segunda edição do evento (SILVA, 2013a:519).
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6
Ainda sobre o final da década de 50 e início da década de 60, o autor observa
uma importante troca de ideias entre a ACN, a Presence Africaine e alguns outros
intelectuais do Movimento de Negritude. Esta troca apontava já em 1959 para uma
relação muito mais próxima do que se imaginava. Como comprova a carta encontrada
pelo autor na Coleção Associação Cultura do Negro, no Acervo Ueim-UFSCAR,
escrita pelo vice-presidente da ACN aos jornais da época:
A "Société Africaine de Culture", ciente da importância da contribuição dada pelo
elemento africano à cultura do Brasil, acolheria com imensa satisfação uma
representação de nosso país. Por isto, solicitou à Associação Cultural do Negro [...]
para que [se] tornasse intérprete de tal desejo, pedindo outrossim divulgar as notícias
referentes ao conclave e possivelmente tomar contato com o ambiente cultural do
país, assinalando as figuras que dele desejam participar. Solicitamos então aos
intelectuais negros e aos estudiosos eventualmente interessados no assunto, o envio
de sua adesão, para que a ACN possa transmiti-la à "Société Africaine de Culture",
recolhendo outrossim, os pormenores sobre a viagem para conhecimento daqueles
que desejam participar do Congresso. [...] A "S.A.C", com a qual a Associação
Cultural do Negro deseja estabelecer laços de amizade e de profícua colaboração,
sugeriu também a criação no Brasil de uma associação "Amis de Présence
Africaine", com membros brancos e negros, objetivando estudar os problemas
ligados à cultura afro-brasileira e a divulgação de todas as manifestações relativas a
ela [...] A Associação Cultural do Negro, aproveita então esta oportunidade para
lançar o seu apelo aos intelectuais brasileiros, negros e brancos, para que seja
fundado em São Paulo um centro filiado à "S.A.C" digno de representar no
estrangeiro a cultura africana no Brasil. Com este objetivo a A.C.N fará realizar dia
27 de fevereiro próximo, em sua sede social, uma reunião para tratar do assunto,
estando desde já convidados todos os interessados [...] Finalmente, o senhor Alioune
Diop, Secretário Geral da "Société Africaine de Culture", solicita o apoio e a
solidariedade da intelectualidade brasileira, das associações culturais e das entidades
que congregam o elemento negro, traduzidos no envio de mensagens por ocasião do
congresso (Américo Orlando da Costa, 18/02/1959. apud: SILVA, 2012:550-1)
Em outro trecho Silva relata, a partir dos dados encontrados, que o contato
afro-atlântico-diaspórico da ACN não se resumiu à sua participação no Congresso de
Roma, mas seguiu ativo possibilitando frutos diversos, dos quais o mais notável é a
participação de alguns de seus membros em uma edição organizada por Léon Damas,
imporante articulador internacional do Movimento de Negritude:
Todavia, não foi apenas a eles que a ACN despertava curiosidade. Léon Gontran
Damas, para organizar com poetas brasileiros a sua Nouvelle somme de poésie du
monde noir, editada em francês, inglês, português e espanhol pela Présence Africaine
(Damas, 1967), recorre àquele conglomerado de ativistas. Ali, segundo Camargo,
toma conhecimento e recolhe os poemas de Natanel Dantas, Eduardo de Oliveira,
Carlos de Assumpção, Luiz Paiva de Castro, Marta Botelho e do próprio
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7
entrevistado. Quase uma década antes, o poeta cubano Nicolas Guillén, a quem
Solano Trindade dedicou um poema em Cantares ao meu povo, também já havia
travado contato com alguns dos frequentadores da agora ACN - em particular Correia
Leite (SILVA, 2012: 247)
O ponto que importa para o presente paper é a discussão sobre as
possibilidades das ideias de Fanon terem exercido alguma influência na reflexão e
atuação da ACN em seu período de formação e consolidação. Um caminho possível
para essa reflexão, mas que não esgota o problema da pouca disponibilidade de
dados4, é a observação da posição de Fanon diante dos debates estabelecidos no II
Congresso, e as possíveis influências deles na atuação da ACN.
Como já foi mencionado, as posições de Fanon nesta época propunham
resolver os problemas apontados - entre os quais as culturas africanas e afrodiaspóricas estavam inseridas - através da práxis revolucionária anticolonial. Sua
atuação como
embaixador e mobilizador político-revolucionário da Frente de
Libertação Nacional da Argélia junto aos países da África subsaariana; o avançar das
lutas de libertação, resultando nas independências de paises como Sudão, Marrocos e
Tunísia (1956), Gana (1957), Guiné (1958) e o advento da revolução cubana poucos
meses antes do II Congresso 1959, influenciaram decisivamente na forma de Fanon
pensar a relação entre cultura e política, levando-o a se diferenciar ainda mais das
posições defendidas pelos intelectuais da negritude a frente da Revista Présence
Africaine5.
Em sua conferência ao II congresso afirma que a “condição de existência da
cultura é pois a libertação nacional, o renascimento do Estado” (FANON, 2010:280).
Isso significa que para ele o caminho que deveria ser adotado pelos intelectuais
presentes não deveria ser o enaltecimento da cultura africana – sistematicamente
4
Silva chama a atenção para a necessidade de pesquisas mais exaustivas na Coleção Associação
Cultural do Negro, acervo Acervo Ueim-UFSCar(SILVA, 2012; 2013a; 2013b).
5
Vale lembrar , como já discutimos em outro espaço (FAUSTINO, 2013), que algumas dessas
diferenças já se observam em Peu noire, masques blanques (1952), quando Fanon denuncia um certo
essencialismo nas posições defendidas pelo Movimento de Negritude.
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8
negada pelo julgo colonial – mas o engajamento dos artistas - junto ao povo
colonizado, seus saberes e (pré)conceitos – em direção a uma praxis política
(revolucionária) de transformação das condições concretas de existência. É apenas a
partir deste engajamento rumo à construção da nação, encarnando “as aspirações reais
do povo” e modificando o Estado que seria possível, segundo o autor, o surgimento
“formas de fecundidade cultural excepcional” (Op. cit. 281), como se pode ler no
mesmo trecho:
Pensamos que a luta organizada e consciente empreendida por um povo colonizado
para restabelecer a soberania da nação constitui a manifestação mais plenamente
cultural que exista. Não é unicamente o sucesso da luta que dá, posteriormente,
validade e vigor à cultura, não há hibernação da cultura diruante o combate. A
própria luta, no seu desenrolar, no seu processo interno, desenvolve as diferentes
direções da cultura e esboça novas orientações. A luta de libertação não restitui à
cultura nacional o seu valor e os seus contornos antigos. Essa luta, que visa uma
distribuição fundamental das relações entre os homens, não pode deixar intatos nem
as formas nem os conteúdos culturais desse povo (op. cit. 280-1)
Fora desse movimento prático-sensível, para ele, restariam apenas duas
opções: adorar à cultura do colonizador, legitimando-a enganosamente como a única
verdadeiramente válida – contribuindo assim para disseminar preconceitos em relação
à cultura autóctone – ou, por outro lado, lançar-se apaixonadamente à cultura dos
povos colonizados, cultura essa “zumbificada”, “substancializada”, “solidificada” e
“esterilizada” pelo colonialismo. Esta segunda opção - que para Fanon é partilhada
pelos intelectuais da negritude - foi alvo de duras críticas ao longo deste e de outros
textos escritos pelo autor. Não é atoa que a coletânea de textos apresentados à
Conferência dos Intelectuais da África e da Diáspora, organizada 2004 pela União
Africana em Dakar apresenta alguns trechos do capítulo IV “Sur le culture nationale”
de Les Damnés de la terre (1961) sob o título “A crítica da negritude por Frantz
Fanon”6
6
A coletância disponibiliza o texto de resolução dos congressos panafricanistas e algumas das
conferências que permearam as suas reflexões. O referido trecho pode ser encontrado nas páginas 177Programa de Pós Graduação em Sociologia
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O discurso de Niam N’goura para a primeira edição da Revista Présence
Africaine, em 1947 explicita bem as diferenças que futuramente Fanon assumiria,
pois segundo ele, visívelmente influenciado pela perspectiva da Negritude de Senghor
(1939), a Revista estaria aberta à colaboração daqueles que estivessem dispostos a
ajudar “definir a originalidade africana e acelerar a sua inserção no mundo moderno”
(N’GOURA, 1947:100), já que a Europa - “uma minoria de seres que produzem e
criam” impuseram ao resto do mundo – os “menos ativos” que “produzem menos” a
sua “produtividade” (op. cit. 101). A esse modo “patológico” e “militante” da
Europa, deve ser opor, portanto, a “sensibilidade muito viva e uma história longa e
singular” (op. cit. 102-3) própria de uma humanidade negra:
A língua pela qual essa humanidade vai se exprimir em nosso revista (o francês) não
deixará de revelar novas temáticas pitorescas e morais e formais inéditas de
sensibilidade. Acrescentaríamos até que esta humanidade negra pode enriquecer a
civilização europeia. Estamos convencidos de que sim. Pois um dos traços
característicos da vida moderna é acreditar que as consciências podem se comunicar
entre si. O negro-Africano, por sua vez, não acredita nisso. Para ele, de fato, não falta
prazer no amor e na amizade, mas ele desconhece um pouco a intimidade. Pelo
contrário, os europeus acham até que o ser humano só é real quando pode expressar a
sua humanidade. As instituições sociais o consideram dentro deste quadro
somente.[...] todo o ser humano que não manifestar sua personalidade é negado nesta
sociedade militante, na qual cada um assume inteiramente o seu próprio destino, na
qual só se valorizam as leis e os fatos, revelados pela ciência e pelo pensamento [...].
Quanto a nós, africanos, esperamos destas atividades culturais resultados bem
específicos. Que PRESENCE AFRICAINE nos franqueie uma inserção e um
posicionamento na sociedade moderna, ao mesmo tempo que nos revele ao mundo,
nos ensinando a crer na ideia. Pois ainda somos bem diferentes do europeu em
relação a isso [...]. O universo é, para nós, ilimitado em maravilhas, ele é fecundidade
infinita oferecida ao nosso vigoroso apetite. Nos preocupamos pouco em conhecer e
domar o mundo, mas sim e usufruir dos alimentos que a atualidade presente carrega.
Vivemos hic et nunc. De certa maneira, somos burgueses la onde o europeu é um
militante (op. cit. 103).
É óbvio que essa visão essencialista foi ressignificada ao longo dos anos com
o desenrolar das lutas de libertação nos diversos países africanos,
e a Revista
Présence africaine não ficou imune às novas influências, mas até o período do II
186 da edição brasileira de 1979 (Ed. Civilização Brasileira) e nas páginas 246-259 da edição de 2010
(Ed. UFJF).
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Congresso, as ideias hegemônicas estavam entre o movimento de negritude cultural
de Léon Damas, Aimé Cesiare, Leopold Senghor e e Alione Diop e o faraonismo de
Cheiq Anta Diop. O primeiro buscando “reabilitar” a raça negra a partir da estética,
em especial a ideologia e a poesia e o segundo, almejando ser uma forma “científica
de negritude” voltada à exaltação de um passado negro glorioso7. O ponto é que a
posição radical de Fanon era sabidamente crítica destas duas tendências e poderia ter
ganhado um eco maior nos anos de independência que se seguiram, se não fosse sua
morte precoce aos 36 anos em 1961. Enquanto isso, no II Congresso, defendia uma
abordagem da cultura que pudesse ser articulada a partir da luta (revolucionária) pela
construção da nação, os desejos e visões do de mundo do povo e uma visão
humanista-internacionalista que refutasse o nacionalismo, o particularismo e a
qualquer visão reificada de identidade:
Se o homem é o que ele faz, então diremos que a coisa mais urgente hoje para o
intelectual africano é a construção da sua nação. Se essa construção for verdadeira,
isto é, se traduzir a vontade manifesta do povo, se revelar em sua impaciência os
povos africanos, então a construção nacional se acompanhará necessariamente da
descoberta e da promoção de valores universalizantes. Longe, pois, de afastar-se das
outras nações, é a libertação nacional que torna a nação presente no palco da história.
É no coração da consciência nacional que se eleva e se vivifica a consciência
internacional. E essa dupla emergência é apenas, definitivamente, o núcleo de toda
cultura (FANON, 2010:283).
Já o ativismo brasileiro daquele momento, revela Silva, buscava respostas
diferentes para as suas buscas políticas e estéticas. Como se pode ler no Manifesto
lido na comemoração dos 70 anos da abolição da escravidão:
Neste ano de 1958 em que comemoramos o 70 aniversário da abolição da
escravatura no Brasil, as organizações culturais, esportivas, recreativas e as pessoas
7
Dyeng lembra que a despeito destas duas vertentes dominantes, a “Présence Africaine não de publicar
obras de tom anticolonialista, como O discurso sobre o Colonialismo, de Aimé Césaire; Os estudantes
negros falam (1953); As massas africanas e a atual condição humana (1956) e A companhia do Senegal
(1958) de Abdoulaye Ly; Carta a Marice Thorez (1956), de Aimé Cesaire; A contribuição ao estudo
dos problemas políticos na África negra (1958). De Mahjemout Diop; A África Negra pré-colonial e A
unidade cultural da África negra (1960), de Cheik Anta Diop” (DIENG, 1997:112).
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que a este subscrevem, uniram-se para homenagear os grandes vultos que, no
passado, batalharam nas tribunas, na imprensa, nos parlamentos, nos eitos, nas
senzalas e nos quilombos por causa tão justa e humana. [...] Tais vultos merecem a
homenagem e o respeito de todo o povo brasileiro, e, os ideais de liberdade e
independência que nortearam suas grandes ações, elevame enobrecem os sentimentos
de humanidade de nossa gente. [...] No momento em que se exaltam no Brasil os
sentimentos de nacionalidade, independência e liberdade, adquire ainda maior
oportunidade a comemoração do grande feito de 1888 [...] Através de sessões cívicas,
conferências culturais, representações de teatro, festejos populares, atividades
esportivas e recreativas, desejamos que todos os brasileiros participem das
festividades comemorativas do “O Ano 70 da Abolição”, contribuindo dessa maneira
para elevar ainda mais alto a chama democrática da igualdade jurídica e social das
raças.
Salve o Ano 70 da Abolição.
São Paulo, janeiro de 1958 (Carta da ACN, apud. SILVA, 2012: 243)
O tom agregador da carta, explica Silva, corresponde à necessidade de
congregar os elementos mais díspares a um acontecimento considerado de maior
importância, mas é reveladora, quando contrastada ao discurso de Fanon, acima
apresentado. Para além disso, o fatásma da repressão política sofrida pela Frente
Negra Brasileira, associada às caracterísitcas próprias do racismo brasileiro 8 fazia
com que, neste momento, os mentores de diversas organizações negras apostassem
mais nas formas culturais de articulação política. Como afirma o autor a respeito da
ACN:
Criada como um fato político e cultural, por mais que seus mentores qui- sessem
minimizar o primeiro adjetivo, ela se torna uma referência do ativismo negro, sendo
chamada a emitir opinião ou se posicionar sobre os mais diversos assuntos, em
diferentes momentos, acerca de questões que nem sempre pôde dar a resposta
esperada (SILVA, 2012: 247)
Assim, embora o ano de 1959 seja um momento decisivo para as lutas de
libertação que se seguiram no continente africano, e essas lutas, bem como os seus
desfechos bem ou mal sucedidos não passaram batido a estes intelectuais ativistas
8
Ranchard, olhando um momento distinto deste que por hora analizamos, sugere em seus estudos que a
aglutinação de negros em torno das entendidades de cunho cultural – em detrimento das organizações
políticas - foi uma estratégia bastante utilizada no Brasil, dado à perseguissão sistemática à autoorgnização negra (RANCHARD, 2001)
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afro-brasileiros9 parece ser mais provável que foi o Movimento de Negritude, e não
Fanon (revolucionário) com suas críticas a ele, que se aproximava mais das
perspectivas buscadas pela ACN:
Na tensa relação de fazer história e fazer sentido, a ACN procurou marcar um lugar
importante para o grupo negro paulistano, tentando se por em compasso com o
andamento das transformações da sociedade, abrindo uma brecha, às suas custas e às
expensas de poucos apoios de alguns intelectuais não negros, para cravar no cenário
da modernidade precária emergente de São Paulo, uma imagem do negro alternativa
à da escravidão, que fosse reivindicativa, crítica, propositiva e combativa. Os
condicionamentos sociais para sua produção foram determinantes para reafirmar a
marginalidade da iniciativa cultural negra, embora tenha sido capaz de, fato raro,
alçar um público não endógeno, num momento favorável, em aberto, com
disposições democráticas (Op. cit. 270).
Isso sugere que mesmo que os membros da ACN tenham tido algum contato
com as ideias do autor, elas ainda não ofereciam, neste momento, alguma utilidade ao
debate afrobrasileiro. Foi preciso que as ideias de Fanon esperassem por uma nova
geração de intelectuais e ativistas para serem retomadas e discutidas à luz do contexto
brasileiro.
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1
O QUE HÁ DE GROTESCO NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA
SEXUAL PELA SOCIEDADE BRASILEIRA?
Thamara Moretti Soria Jurado1 - UFSCar
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GT1 - Cultura, Diferenças e Desigualdades
As representações simbólicas da violência sexual contra crianças estão presentes em
campanhas realizadas com o objetivo de conter esse que vem sendo encarado como o grande
mal da contemporaneidade. Nestas campanhas é possível notar a utilização de elementos da
estética do grotesco que promovem a similaridade entre monstruosidade e malignidade. O
grotesco está presente na vida contemporânea não apenas como um elemento das artes e
literatura mas como algo fundamental para a formação de públicos de massa. Associado ao
proibido, apresenta as deformidades físicas, sexualidade latente e dissidente, violência e
excrementos unindo desequilíbrios com irracionalidade. As campanhas contra a pedofilia
evidenciam a doença mental, o desequilíbrio sexual e a deformidade moral como
características dos pedófilos. A divulgação massiva desse mal a ser combatido por toda a
sociedade está associada com a preocupação na formação plena dos sujeitos e com a
necessidade de criar estratégias de controle da vida que protejam dos perigos, patologias
(transtornos mentais, doenças sexualmente transmissíveis), delinquência, inadaptação etc. O
cuidado com as crianças e adolescentes está expresso na necessidade de resguardar a infância
como um período imaculado, com o objetivo de não propagar a criação do mal que pode
incidir sob a vítima, transformando-a em um possível agressor.
1. Introdução
A palavra pedofilia é definida como um transtorno de preferência sexual, classificada
como parafilia2 e perversão sexual, pelo Catálogo Internacional de Doenças (1983, p.215)
como:
Uma preferência sexual por crianças, usualmente de idade pré-puberal ou no início
da puberdade. Alguns pedófilos são atraídos apenas por meninas, outros apenas por
meninos e outros ainda estão interessados em ambos os sexos. A pedofilia raramente
é identificada em mulheres. Contatos entre adultos e adolescentes sexualmente
maduros são socialmente reprovados, sobretudo se os participantes são do mesmo
sexo, mas não estão necessariamente associados à pedofilia. Um incidente isolado,
1
Mestra em Filosofia e doutoranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal de
São Carlos.
2
As características essenciais de uma parafilia consistem em fantasias, anseios sexuais ou comportamentos
recorrentes, intensos e sexualmente excitantes, em geral envolvendo: 1) objetos não-humanos; 2) sofrimento ou
humilhação, próprios do parceiro, ou 3) crianças ou outras pessoas sem o seu consentimento
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2
especialmente se quem o comete é ele próprio um adolescente, não estabelece a
presença da tendência persistente ou predominante requerida para o diagnóstico.
Incluídos entre os pedófilos, entretanto, estão homens que mantêm uma preferência
por parceiros sexuais adultos, mas que, por serem cronicamente frustrados em
conseguir contatos apropriados, habitualmente voltam-se para crianças como
substitutos. Homens que molestam sexualmente seus próprios filhos pré-púberes,
ocasionalmente seduzem outras crianças também, mas em qualquer caso seu
comportamento é indicativo de pedofilia.
Apesar de apresentar uma definição psiquiátrica aparentemente minunciosa, esse
termo vem sendo utilizado por diferentes setores da sociedade (político, judiciário, midiático)
como uma ampla categoria, capaz de designar diferentes práticas e comportamentos como
pedófilos. A abrangência desse termo localiza a questão da violência sexual contra crianças e
adolescentes dentro de um amplo espectro em que se cruzam pornografia infantil, prostituição
infantil, abuso sexual infantil, como faces de um mesmo problema: a pedofilia.
O enfrentamento desta questão pela sociedade brasileira, que vem sendo construído
pelo viés da categoria pedofilia, traz à tona a recorrente associação com a animalidade, com
características semi humanas ou teratológicas, apresentando um "pequeno catálogo de
bizarrices e práticas suscetíveis de provocar repugnâncias...". (PAIVA; SODRÉ, 2002 ) É
possível notar que há elementos da estética do grotesco nas representações simbólicas da
pedofilia e que estão presentes, inclusive, nas Comissões Parlamentares de Inquérito, em
campanhas públicas e nos casos divulgados pela mídia.
O presente trabalho se propõe a apresentar, em linhas gerias, como a pedofilia
emerge como um problema social em um contexto no qual a figura do pedófilo surge como a
de um monstro contemporâneo. São retomados dois casos capazes de exemplificar o processo
de constituição de um pânico moral, no qual demônios populares são constituídos e
combatidos.
A relação com a teratologia, característica do estilo grotesco, apresenta-se como um
ponto fundamental para essa discussão, na medida em que é a associação com a
monstruosidade vai permear a preocupação com a punição e a prevenção deste mal. A
punição sendo dada pela criação de leis formais cada vez mais rigorosas e a prevenção sendo
construída sobretudo por duas vias, a da vigia que pais, familiares, escolas e toda a sociedade
devem manter para identificar antecipadamente situações que possam se configurar em
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violência sexual; e a do acompanhamento e tratamento de crianças3 que já tenham sido
vítimas de violência sexual e que estariam colocadas em um "ciclo de abuso" podendo, a
qualquer tempo, manifestar a doença.
No segundo tópico, o objetivo é discutir algumas definições do estilo grotesco a
partir de teóricos como Sodré e Paiva, Kaiser e Bakthin, procurando demonstrar que o este
estilo está presente na vida contemporânea não apenas como um elemento das artes e
literatura mas como algo fundamental para a formação de públicos de massa e para a
constituição da cruzada antipedofilia.
Nas considerações finais, a tentativa é discutir como a divulgação massiva desse mal
a ser combatido por toda a sociedade está associada com a preocupação na formação plena
dos sujeitos e com a necessidade de criar estratégias de controle da vida que protejam dos
perigos, patologias (transtornos mentais, doenças sexualmente transmissíveis), delinquência,
inadaptação etc. A utilização de elementos da estética do grotesco no enfrentamento da
violência sexual contra crianças e adolescentes, entre outras questões, promove a similaridade
entre a monstruosidade e a malignidade, evidenciam a doença mental, o desequilíbrio sexual e
a deformidade moral como características dos pedófilos e direcionam esta questão para a
necessidade de identificar aqueles que seriam os monstros contemporâneos.
2. A construção da pedofilia como um problema social
A crescente veiculação de noticias de casos de violência sexual infantil nos meios de
comunicação, assim como a criação de Organizações Não Governamentais direcionadas à
prevenção da pedofilia e os veículos de denúncias (como o disque 100 ou a ONG SaferNet,
que recebem denúncias de crimes de violação dos direitos humanos) demonstram a crescente
visibilidade que este tema vem adquirindo nos últimos anos.
No Brasil, a chamada Operação Carossel, realizada pela polícia federal em parceria com
a International Criminal Police Organization (Interpol), representou ma marco para os
programas de combate a pornografia infantil e a pedofilia. Esta operação acabou dando
origem a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia no Senado Federal que, por
3
Utilizo criança para designar a pessoa até 12 anos de idade e adolescente até 18 anos, conforme previsto no
ECA (Lei nº 8.069/90 ): "considera-se criança, para todos os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade
incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade".
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sua vez, incentivou a criação de uma campanha pública chamada "Todos Contra a Pedofilia"
encabeçada por um dos senadores que presidiu a referida CPI, Magno Malta, e o promotor de
justiça de Minas Gerais, Carlos José e Silva Fortes.
Foi a partir do final da década de 1980 que os debates acerca da violência infantil se
tornaram mais constantes, juntamente com a crescente preocupação em criar dispositivos
legais capazes de garantir a proteção da infância e juventude. A realização da Convenção
sobre os Direitos da Criança em de 1989 e os debates que já vinham ocorrendo nas Nações
Unidas vão culminar com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990.
Assim, a especificidade da infância começa a estar presente na legislação de uma
maneira explícita e, ao mesmo tempo, toda sorte de violência sexual praticada contra crianças
e adolescentes vão sendo entendidas e localizadas como questões de pedofilia. Tanto a
operação Carossel quanto as iniciativas que vieram antes e logo em seguida demonstram
como o tema foi alvo de debates e ações que se empenharam em tratar a pedofilia como uma
espécie de epidemia a ser enfrentada por toda a sociedade.
Não existe na legislação brasileira um tipo específico de delito que tenha o nome de
pedofilia. No campo jurídico, este termo vem sendo usado para indicar o abuso sexual
cometido contra crianças, portanto, não está atrelado a uma única prática, o que permite
enquadrar esses crimes em diversos artigos.
Também nos debates públicos e até mesmo nas campanhas governamentais e não
governamentais, é possível identificar a pasteurização do termo pedofilia que é continuamente
utilizado para
identificar diferentes comportamentos e práticas. Discursos em torno da
questão da pedofilia foram ganhando cada vez mais espaço tanto na mídia quanto em ações
políticas e jurídicas que resultaram em medidas de proteção à infância mas acabaram
pautando a problemática da violência contra crianças e adolescentes em um ciclo de pânico
moral.
Houve, portanto, um aumento crescente na veiculação de notícias a respeito da violência
sexual contra crianças e adolescentes nos últimos tempos, demonstrando uma mudança no
padrão de sensibilidade em relação ao tema. Como demonstra a pesquisadora Tatiane Landini
(2006), a abordagem destas questões pela imprensa foi mudando ao longo do tempo e em
diversos aspectos. Ao retomar as publicações do século XX do jornal Folha de São Paulo com
os temas de incesto, crimes violentos cometidos por estranhos, crimes contra a honra,
lenocínio e prostituição, pornografia infantil e pedofilia, Landini (2006 , p.24) demonstrou
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5
que desde o início do século XX aconteceram mudanças em relação ao tratamento dado a
estas matérias. Inicialmente, foi observado um número cada vez maior de publicações, depois
a ampliação nos tipos de violência divulgados, como a inserção de pornografia infantil e da
pedofilia, além disso:
Se, no início e no meio do século, a imprensa limitava-se a denunciar alguns casos
de lenocínio ou prostituição, no final do período, fala-se em várias modalidades
relacionadas à exploração sexual comercial: leilões de virgindade, cárcere privado
em bordéis, turismo internacional, turismo nacional etc.
Outra diferença apontada pela pesquisadora foi a profundidade das reportagens
publicadas que não se esgotavam mais na notícia do ocorrido, mas passaram a analisar os
fatos e entrevistar especialistas para compor suas análises e apresentar um enfoque
supostamente científico.
A linguagem utilizada e a divulgação de uma suposta frequência nos crimes desta
natureza são duas características que passaram a fazer parte das matérias divulgadas após a
década de 1980, até então os crimes de violência sexual eram divulgados como
extraordinários e esporádicos. Além disso, alguns casos passaram a ser acompanhados até o
final e transformados em grandes escândalos.
Essas mudanças entram em um processo de crescimento do "jornalismo investigativo"
que não se resume mais em dar a notícia mas procura acessar uma suposta "verdade" a ser
revelada, atribuindo aos casos uma originalidade inexistente e divulgando dados que estariam
ocultos como reais e confiáveis.
Em 1992 o jornal Folha de São Paulo publicou aproximadamente 120 matérias sobre
prostituição infanto juvenil. Uma destas, de autoria do jornalista Gilberto Dimenstein,
revelou a estimativa de que existiriam 500 mil meninas prostitutas no Brasil. O assombro
gerado com esse indicativo movimentou o país não apenas chamando a atenção do público
para as sucessivas matérias publicadas no referido jornal mas chegou a estimular medidas
políticas, como a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito da Prostituição.
Segundo Leandro Andrade (2001, p.29), a campanha realizada pelo jornal formou-se
como uma cruzada que promoveu discussões no âmbitos judiciário, legislativo e executivo ao
mesmo tempo em que efetuou "...uma campanha moral/humanitária, porém estigmatizadora
da pobreza, lançada por um dos atores sociais que participam da constituição da agenda
brasileira de políticas públicas." O pesquisador recorre a Becker para analisar essa questão e
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faz a relação entre a constituição de empresários morais, no caso daqueles que criam as
normas, e a campanha estabelecida via imprensa.
A despeito da estatística apresentada no jornal, que revelou um número de 500 mil
meninas infanto juvenis prostituídas no Brasil, Andrade (2001, p.19) identificou que,
Divulgaram-se estimativas astronômicas, geralmente números requentados a partir
de cifras aventadas na década anterior: para o território nacional "estimava-se" entre
2 milhões, 20% de todas as meninas brasileiras de 10 a 15 anos, ou ainda a cifra
redonda de 550 mil prostitutas infanto-juvenis brasileiras.
A partir da publicação no jornal de maior circulação nacional, essa estimativa passou a
ser divulgada em diversas instituições internacionais, tais como Unicef, Federação
Internacional dos Direitos Humanos, Human Rights Watch etc. que reproduziram esse dado
sem a identificação de sua veracidade ou da metodologia utilizada para chegar até esse
número. (ANDRADE, 2001)
Um outro caso de publicização que desencadeou um processo de pânico moral com
consequências desastrosas para os envolvidos, foi o da Escola Base4 amplamente divulgado
em 1994. Começou com a denúncia de duas mães que afirmaram que seus filhos de 4 anos
teriam sido vítimas de abusos sexuais cometidos pelos proprietários e funcionários da escola
infantil em que as crianças estudavam. As mães registraram a denúncia na delegacia,
acreditavam que a escola promovia orgias na casa dos pais de um outro aluno, o motorista da
perua que levava as crianças à escola também foi causado de envolvimento no caso. Os
principais acusados eram o casal proprietário da escola, casal de sócios e os pais de um
aluno.
O delegado responsável encaminhou as crianças para exame no Instituto Médico Legal
(IML) e executou uma busca na residência do casal supostamente envolvido, mas nada foi
encontrado. Revoltadas, as mães de alunos da escola procuraram a Rede Globo para
informaram o caso. Ainda no mesmo dia, a médica responsável pelo exame realizado nas
crianças enviou o informe de que havia evidências de abuso sexual em uma das crianças.
Baseado no resultado deste exame, o delegado pressupôs a culpabilidade dos
denunciados e passou a proferir diversas entrevistas declarando que havia evidências
suficientes para declará-los culpados. O caso tomou proporções incomensuráveis, baseado na
4
O relato do ocorrido pode ser acessado em: http://jornalggn.com.br/noticia/o-caso-escola-base-20-anos-depois
ou http://www.casadosfocas.com.br/destaque/o-caso-escola-base-1a-parte/
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imprensa e nas declarações do delegado, o público também decidiu que os acusados eram
culpados, todos os seis envolvidos eram, portanto, pedófilos.
As notícias sensacionalistas a respeito do caso estavam em todos os veículos de
comunicação. Quando as primeiras comprovações de inocência dos seis denunciados
começaram a surgir, o delegado foi afastado do caso. Em seguida, a polícia recebeu uma
notícia anônima que ligava o caso a um homem americano, acusado de tráfico de fotos que
incluiria imagens das crianças da escola Base. As crianças foram levadas à casa do acusado
para reconhecimento do local, uma delas quis brincar com um bicho de pelúcia e esse fato foi
usado como indicio de reconhecimento. Surgiram as próximas notícias, o jornal Estadão
publicou: "Alunos da Escola Base reconhecem a casa do americano‖, e a Folha de São
Paulo:―Criança liga americano a abuso de escola‖. Após a prisão do acusado ficou provado
que não havia qualquer relação entre ele e a Escola Base, sua inocência foi comprovada.
Em poucas horas após a denúncia, os acusados foram condenados pelo delegado, pela
imprensa e pela população. Chegaram a ser linchados, foram afastados de seus trabalhos e
proibidos de exercerem suas profissões, a escola foi fechada5. Esse resumo do caso demonstra
como a reação de pânico pautou ações violentas que foram geradas por medo e revolta. Um
pânico que não deve ser entendido como uma reação espontânea, mas sim como o resultado
de temores previamente existentes transformados em pânico mediante a atuação da mídia,
com a alarmante publicação de notícias sensacionalistas.
Nesse processo de constituição do clico de um pânico moral, em que situações ou
identidades passam a ser consideradas perigosas, momento em que padrões normativos são
rompidos, emergem reações que apresentam a natureza de pessoas ou situações de maneira
estereotipada ou estigmatizada, é nesse momento que barricadas morais são criadas ou
fortalecidas. Entram os especialistas que apresentam seus diagnósticos e soluções, depois a
situação acaba sendo esquecida e outras entrarão nesse ciclo que, para Stanley Cohen (1987),
é composto de três fases: inventário do problema, significação e a fase da ação.
Na fase do inventário, a mídia exerce um papel fundamental ao publicar rumores,
incertos e desorganizados, que vão contribuir para a criação de algumas possibilidades de
interpretação da situação apresentada.
5
http://jornalggn.com.br/noticia/o-caso-escola-base-20-anos-depois acessado em 04/06/2015
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As manchetes sensacionalistas fazem parte desse processo, exageram, dramatizam e
criam estereótipos. Nessa fase de formação do pânico moral, dois pontos são essenciais: a
constituição de uma situação como um problema social, e de um quadro interpretativo que
condicionará todas as notícias e interpretação que virão a seguir. Operar a criação de um
quadro interpretativo significa selecionar acontecimentos que conciliem com as previsões e
interpretações iniciais, direcionando esse processo para a reprodução do senso comum.
Na segunda fase, a da significação, atribui-se um significado ao problema considerando
as consequências do acontecido, não apenas para os envolvidos imediatos, mas para a
sociedade, relacionando-o com problemas sociais. Constroem características dos desviantes,
em geral, baseadas em estereótipos sociais que culminam na criação de uma imagem
demonizada do grupo de desviantes, vistos como anormais. Essa é a fase que Cohen (1987)
identificou como a da criação dos bodes expiatórios e demônios populares na qual o
direcionamento do problema em questão consegue fixar o papel dos envolvidos, criando as
condições necessárias para a reprodução e confirmação do que foi previsto.
Na terceira fase, há dois níveis, o de sensibilização, quando tanto o público quanto a
mídia permanecem atentas para qualquer retorno do problema, é nesse momento que
comportamentos considerados irrelevantes passam a ser suspeitos. As agências institucionais
de controle (policia, tribunal etc.) tornam-se fundamentais para agir em prol de interesses
coletivos com ações que levam a crer que mudanças na estrutura normativa seriam capazes de
resolver o problema, seja criando novas leis e regras ou reforçando valores simbólicos. Nesse
nível, os "empreendedores morais" são fundamentais.
Os "empreendedores morais", no sentido atribuído por Becker (2008), são indivíduos
que agem em nome da consciência e de interesses coletivos, criando ou impondo regras.
Assim, o autor identifica que o criador de regras está voltado para o conteúdo das leis pois
acredita que são estas que assegurarão a correção ou contenção de um determinado mal, desse
modo a sua própria moral é imposta aos outros. Becker salienta que existem motivações
humanitárias envolvidas nesse processo do empreendedor que acredita que será capaz de
beneficiar a todos, especialmente aqueles que estão abaixo de sua posição social. Em geral,
as cruzadas morais são realizadas por aqueles que ocupam uma posição social superior e
utilizam o poder deste posicionamento na estrutura social nas empreitadas morais que
realizam.
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Para alcançarem seus objetivos, e por estarem mais preocupados com os fins do que
com os meios, os cruzados fazem alianças também com aqueles que têm objetivos diferentes,
por exemplo, com interesses puramente comercias, não importa se as motivações são
humanitárias ou não. Os cruzados morais estão preocupados em alcançar o objetivo de sua
cruzada, desse modo, recorrer a especialistas é uma outra característica das campanhas
morais, seja para apoiarem a divulgação de seus objetivos com todo o rigor científico ou
auxiliar na elaboração de novas regras. (BECKER, 2008)
Quando as pessoas se sentem ameaçadas, como descrito no caso da Escola Base, em
geral acreditam que algo deveria ser feito, possibilidades são aventadas desde a retomada de
valores sociais tradicionais até a criação de novas leis ou punições mais rigorosas. E nesse
casos, em geral, as bases do controle social são reforçadas.
A cruzada moral, estabelecida na fase final e mais intensa do pânico moral demonstra
que o processo culmina com uma proposta de transformação social, já que são capazes de
canalizar ações políticas e a partir destas podem terminar em mudança social, como a criação
de novas regras.
O tema da violência sexual contra crianças e adolescentes torna-se alvo de
empreendimentos políticos a partir da Comissão Parlamentar de Inquérito da Prostituição
Infanto-Juvenil, realizada entre 1993 e 1994.
O Plano Nacional de Enfrentamento da
Violência Sexual Infanto-Juvenil foi elaborado em 2000 e impulsionou a inclusão do art. 244A28 no ECA/1990. Alguns anos depois, de 2003 a 2004, implementou-se uma Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes,
nas duas casas do Congresso Nacional. Nesta CPMI, é proposta uma nova alteração do
Código Penal em relação ao título, de "Dos crimes contra os costumes" tornou-se "Dos crimes
contra a dignidade sexual".
As transformações legais ocasionadas pelas comissões realizadas foram significativas.
Em 2003, o ECA sofre alterações nos artigos 240 e 241 e passa a prever como crime a
produção e distribuição de pornografia infantil. A lei 10.764, que modifica estes artigos, foi
impulsionada pela CPI da Prostituição Infanto-Juvenil.
A CPI da Pedofilia é realizada em 2008 e propôs transformações legais que também foram
sancionadas e implementadas no ECA. Foram criados novos tipos de crimes nos artigos 241A e 241-E: crime de produção de pornografia Infantil; crime de venda de pornografia Infantil;
crime de divulgação de pornografia infantil; crime de posse de pornografia infantil; crime de
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produção de pornografia infantil simulada (montagem) e crime de aliciamento de criança. No
artigo 241-D está previsto que pratica crime ―quem facilita ou induz a criança a ter acesso a
pornografia para estimula-la a pratica ato libidinoso.‖.
Em linhas gerais, as classificações legislativas, psiquiátricas, policiais e a publicação
midiática contribuem sistematicamente para a difusão e espetacularização da pedofilia,
estimulando e reforçando classificações em um processo no qual a figura do pedófilo aparece
de uma maneira genérica, como a de um monstro sem forma, com aspectos gerais, entendido
e divulgado como um inimigo de todos os cidadãos de bem. (LOWERKRON, 2012, p.12)
A discussão de Laura Lowerkron (2012) demonstra como a pedofilia é construída
como um problema social com status de emergência em um processo que acabou criando um
nova categoria de desviantes, a dos Monstros contemporâneos.
A figura do monstro está fora da ordem, distante do que é considerado natural e
normal. Segundo Jeffrey Cohen (SILVA, 2000),
é possível estabelecer um método de
inteligibilidade para as culturas a partir dos monstros que são criados por cada uma delas .
Assim, o corpo do monstro é um corpo cultural, de um certo momento cultural inserido em
um determinado tempo e espaço, exprimindo um sentimento. Entre o corpóreo e o incorpóreo,
são híbridos e difíceis de serem categorizados, presentes no limiar, aparecem em épocas de
crise e exigem um repensar entre a fronteira e a normalidade. Segundo Cohen (SILVA, 2000,
p.31),
"As demasiadamente precisas leis da natureza tais como estabelecidas pela ciência
são alegremente violadas pela estranha composição do corpo do monstro. Uma
categoria mista, o monstro resiste a qualquer classificação construída com base em
uma hierarquia ou em uma oposição meramente binária, exigindo, em vez disso, um
―sistema‖ que permita a polifonia, a reação mista (diferença na mesmidade, repulsão
na atração) e a resistência à integração — que permita aquilo que Hogle (1988, p.
161) chamou de ―um jogo mais profundo de diferenças, um polimorfismo nãobinário na ‗base‘ da natureza humana‖.
Corporificando a diferença, monstros apresentam o que está fora, o além e, nesse
sentido, qualquer tipo de alteridade pode ser colocada ou entendida como um corpo
monstruoso. Os principais elementos para considerar um corpo como monstruoso ou não são
as diferenças do tipo cultural, política, racial, econômica e sexual. Além disso, essa diferença
precisa ser exagerada a ponto de estabelecer a representação do outro como algo monstruoso e
digno de extermínio. Cohen (Silva, 2000, p.33) cita o exemplo bíblico
de quando os
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habitantes aborígenes de Canaã são colocados como gigantes ameaçadores para que fosse
possível justificar a colonização hebraica da Terra Prometida.
Podemos citar o exemplo do que aconteceu no caso da Escola Base, no qual o fato
ocorrido foi amplificado, as pessoas acusadas foram consideradas culpadas horas depois que a
denúncia foi realizada, o pânico gerado apontou quais eram os monstros, pessoas
consideradas dignas de extermínio, foram linchadas e tiveram suas vidas destruídas.
3. Notas sobre a estética do grotesco
A palavra grotesco surgiu com desenhos encontrados nas escavações realizadas na
Itália no século XV. Estes desenhos não apresentavam harmonia, equilíbrio e proporção
baseados nos ideias da Grécia Antiga, ao contrário, traziam representações desproporcionais e
desequilibradas. Estas formas de arte inovadoras foram chamadas de grotescas fazendo uma
referência às grottas (grutas) onde foram encontradas.
Segundo Sodré e Paiva (2002) o grotesco está presente na vida contemporânea e não
apenas como um elemento das artes e literatura, quando os autores examinam essa questão
procurando desvendar esse estilo estético entre o humano e animal, o abordam como algo
fundamental para a formação de públicos de massa. Nesse trajeto identificam a presença do
rebaixamento com referências constantes a animalidades, partes baixa do corpo, quebrando
regras e trazendo à tona uma desarmonia que vai gerar riso, espanto, nojo etc.
Sodré e Paiva (2002) identificam quatro tipos de grotesco, o escatológico, o
teratológico, o chocante e o crítico. O escatológico que se refere a dejetos, secreções; o
teratológico que se refere a monstruosidades, aberrações, deformações, bestialismos etc.; o
chocante já está presente nos tipos anteriores e tem a intenção de provocar um choque na
percepção; no crítico tenta-se expor ideias, elaborando críticas na forma de paródias,
caricaturas etc.
Ao expor 12 situações televisivas, os autores iniciam o capítulo A origem do grotesco
(2002) perguntando o que todos os exemplos trazidos apresentam em comum, e a resposta
imediata é a estética do grotesco. Em seguida, fazem uma análise de cada exemplo
identificando o que há de grotesco e concluem que em todos há o rebaixamento causando os
mesmos tipos de sensações: riso, horror, espanto e repulsa. O grotesco é, portanto, um estilo
estético que atravessou o tempo ao estar presente desde a antiguidade até os dias atuais,
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embora exista uma variedade de fenômenos que seria resultado da episteme da época,
algumas características mais gerais são notadas em diferentes fatos.
A relação entre humano e animal, por exemplo, é uma das características mais gerais e
estabelecida no rebaixamento de valores compreendidos como superiores ou pela ausência de
aspectos que seriam humanos, tais como a consciência moral, sexualidade civilizada,
alimentação regrada etc. De outro lado, seria possível estabelecer uma relação entre a
aparência física do humano e animal, chegando ao ponto da determinar características morais,
constituindo um saber chamado de fisiognomonia. (SODRÉ; PAIVA, 2002, p.22)
No século XIX com Victor Hugo, o estilo grotesco torna-se uma categoria estética e,
segundo Sodré e Paiva (2002), no século XX esta foi a categoria que mais se desenvolveu,
com conceitos que influenciaram todas as vanguardas artísticas posteriores que vão trabalhar
com a ideia de feio. Victor Hugo coloca no prefácio de sua peça Cromwell, apresenta o
grotesco como o cômico, o feio, o monstruoso, sobretudo como um modo novo de conceber o
fato estético.
A experiência do grotesco já existia antes de tornar-se uma categoria estética, e era
percebida pelos traços convulsivos que foram chamados de grotescos posteriormente, sobre as
formas do inverossímil, do que não parecia verdadeiro, presente na transgressão do
rompimento das leis da simetria. Associado ao onírico e ao disforme, o grotesco se torna para
Muniz e Paiva (2002, p.30):
De um substantivo com uso restrito à avaliação estética de obras de arte, torna-se
adjetivo a serviço do gosto generalizado, capaz de qualificar - a partir da tensão do
entre o centro e a margem ou a partir de um equilíbrio precário entre as formasfiguras da vida social como discursos, roupas e comportamentos.
Muito embora essa categoria apareça limitada pelo ridículo, o risível, segundo
Wolfgang Kaiser, a concepção do grotesco é mais ampla e deve abarcar formas como o
absurdo, o pesadelo e o diabólico. Sendo o monstruoso a sua manifestação mais constante,
evocando a exceção e o aberrante, em comparação com a normalidade. Não pode ser,
contudo, caracterizado apenas pelo monstruoso ou pela animalidade, mas os efeitos
desencadeados devem envolver o medo ou riso nervoso, capaz de propiciar um
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"estranhamento do mundo, uma sensação de absurdo ou de inexplicável, que corresponde
propriamente ao elemento do grotesco" (SODRÉ e PAIVA, 2002, p.56)
4. Considerações Finais
Nas campanhas de combate a pedofilia, nas palestras de divulgação realizadas pela
organização ―Todos Contra a Pedofilia”, por exemplo, uma das estratégias utilizadas é o
choque do público com as imagens de estupro de bebês, meninos ou crianças de até 4 anos, a
intenção é criar um sentimento comum de compaixão. Mas esses sentimentos evocados no
público podem, de um lado, compor uma identificação com a dor da vítima ou, talvez
simultaneamente, identificar uma infância interrompida e condenada a criação de um
indivíduo doentio, que experimentou, ao lodo do pedófilo, sensações que rompem a fronteira
imaculada da infância, segundo Laura Lowerkron (2001, p.20):
As imagens convocam, no espectador, simultaneamente, sentimento de piedade e
de horror. Sugiro que, se diante do sentimento de piedade, a criança é colocada
no lugar de vítima, frente ao sentimento de horror, ela emerge também como um
pequeno monstro, na medida em que, ao ser deslocada para um território erótico
no qual ela não deveria estar, ela participa, ao lado do ―pedófilo‖, da poluição da
noção de infância. Portanto, minha hipótese é que a ―cruzada anti-pedofilia‖
protege menos cada vítima específica que aparece nas imagens pornográficas do
que a noção de infância em geral.
Por terem experimentado a sexualidade ao lado do pedófilo, crianças tornam-se não
apenas vítimas mas "portadoras" de um mal que poderá vir à tona na fase adulta. Ou seja, a
constituição da violência sexual contra crianças e adolescentes como um problema de
pedofilia, direciona a atenção social, jurídica e política para a criação de estratégias capazes
de prevenir e punir a doença pedofilia, procurando identificar traços de psicopatia a serem
controlados. A criança que tenha sido vítima teria aprendido um padrão que seria apropriado
como algo "incontrolável, ou ainda, natural" (DELL'AGLIO; SANTOS, 2008, p.2).
Nesta lógica, cabe à sociedade encontrar meios de controlar e vigiar estas crianças
cujo estilo de vida poderão sair da normalidade e, nesse processo, será necessário identificar
na vítima as características monstruosas. O histórico familiar, as relações estabelecidas,
assim como a trajetória sexual são investigados com o objetivo de identificar os elementos da
estranheza e da limiaridade, capazes de indicar um sujeito potencialmente monstruoso. A
necessidade de desvendar o universo destas infâncias que (por romperem o ideal de pureza)
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teriam se tornado monstruosas evidencia os temores com a contaminação, impureza e perda
de identidade.
O jornalismo investigativo, como demonstra Landini,vem se empenhando em traçar
históricos e perfis tanto de pedófilos quanto das vítimas com todos os contornos
sensacionalistas, dignos do espetáculo grotesco. No caso da Escola Base, diferentes
reportagens apresentaram um conteúdo capaz de evidenciar a culpabilidade dos envolvidos,
na época o jornal Folha da Tarde publicou a seguinte notícia: ―Perua carregava crianças para
orgia‖; o Notícias Populares estampou na capa: ―Kombi era motel na escolinha do sexo‖. A
utilização de trocadilhos nos títulos das manchetes descaracterizam a notícia ao propor um
deslocamento escandaloso de sentido, evidenciando situações absurdas associadas a perversão
sexual, demonstram a associação com o grotesco.
Em março de 2008, a revista Carta Capital6 dedicou uma edição para a questão da
pedofilia no Brasil e a abertura da CPI da Pedofilia pelo senador da bancada evangélica,
Magno Malta. Na capa da revista, a imagem utilizada é a de uma menina sentada em uma
cama com um cigarro, provavelmente a mesma imagem utilizada pelo senador na seguinte
situação (Carta Capital, março de 2008) :
O senador Magno Malta, do PR do Espírito Santo, finge não notar a
descrença do repórter: ―Em tempos de CPIs de teor meramente eleitoral, como fazer
valer algo assim?‖ Malta se levanta, aparentemente alheio à pergunta, e cata um CD
guardado numa gaveta onde se espremem cerca de 40 processos referentes a crimes
de pedofilia investigados por diversas seções do Ministério Público no país. Insere o
disco prateado em um notebook e, sem tirar os olhos da máquina, crispa o rosto e
bota a mão na testa. ―Veja isto‖, murmura, certo do efeito que as imagens vão surtir.
Na tela, duas dúzias de fotografias de alta definição mostram uma menina de pouco
mais de 8 anos sendo estuprada, submetida a atos libidinosos e, como assessório
grotesco, obrigada a posar com um cigarro na boca e uma lata de cerveja na mão.
―Agora me diga‖, fala o senador, refeito pela enésima vez do choque provocado
pelas fotos, ―quem pode ser contra uma CPI destas?‖
O estranhamento e a repulsa são utilizados pelos empreendedores morais como
estratégias de choque público capazes de captar a atenção e encaminhar a situação para um
clímax sensacionalista, funcionando como atrativo e atuando no processo de criação de
pânicos morais.
Construída no cenário da aberração social, a pedofilia se configura como uma
categoria inscrita no campo das perversões sexuais, entrelaçando anormalidade e
perversidade. Toda a atenção social, midiática, política e jurídica está direcionada para a
6
Revista Carta Capital, 26 de março de 2008. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/
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necessidade de apreender essa categoria, delimitar seu campo de atuação com o objetivo de
puni-la e preveni-la.
Assim, o enfrentamento da violência sexual contra crianças vai sendo construído com
elementos grotescos utilizados para provocar reações como horror, raiva, medo e repulsa,
necessários para instituição e manutenção do pânico em torno da questão. É nesse processo
que emerge a figura monstruosa (a do pedófilo), como bem demonstrou Lowerkron (2012), e
é ela que vai deter o olhar público, jurídico e científico, restabelecendo o local de
subalternidade da criança que foi vítima de violência sexual.
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O PERFIL DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NO MATO GROSSO DO SUL:
ENTRE AS DESIGUALDADES E AS DIFERENÇAS1
Bruno de Oliveira Ribeiro (UEMS-Paranaíba)
[email protected]
GT1 : Cultura, Diferenças e Desigualdades.
O estado do Mato Grosso do Sul (MS) apresenta ações afirmativas em várias esferas sociais,
sendo as da sociedade civil, das Universidades (estadual e as federais) e do Estado (concursos
públicos estaduais) as de maior destaque. Estes perfis de ações afirmativas e suas
singularidades remontam articulações distintas entre duas chaves interpretativas das políticas
de ações afirmativas: a desigualdade e a diferença. Analisando esse par conceitual dentro da
realidade local de MS e, tendo como objeto as políticas de ações afirmativas, visamos fazer
uma reflexão das articulações entre estes conceitos nessas diferentes políticas. Destaca-se a
relação entre uma sociedade civil negra e o estado assim como as formas diferentes de
definição do pertencimento racial para cada modelo de política afirmativa.
Palavras-chave: Políticas afirmativas – Mato Grosso do Sul – desigualdade – diferença.
INTRODUÇÃO
Para traçar o perfil das ações afirmativas no Mato Grosso do Sul, é necessário
primeiro apontar a forma que tais políticas assumem no cenário estadual. Para essa tarefa
distinguimos inicialmente os casos regulados pelo estado (unidade federativa), depois pelo
Estado, como ações públicas e, posteriormente, os casos da sociedade civil, marcados por
formas menos rígidas de marcadores sociais, estas seriam ações privadas.
Essa distinção, entre público e privado, a principio, cumpre fins esquemáticos, visto
que, mesmo nas determinações das ações afirmativas da esfera pública há uma relação, mais
ou menos presente, de acordo com cada caso, da sociedade civil negra, elemento que merece
destaque nas discussões estaduais, assim como no cenário nacional.
As ações afirmativas do estado não são nem de longe homogêneas, possuem algumas
especificidades que as distinguem. Por isso, o ponto crucial para nossa diferenciação entre tais
1
Este artigo parte da minha dissertação de mestrado: O Mo(vi)mento negro no Mato Grosso do Sul: Políticas de
identidade e, pretende avançar em algumas discussões ali contidas.
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políticas no Mato Grosso do Sul, será com relação ao pertencimento racial e a relação entre
desigualdade e diferença. Mais especificamente, a forma como cada ação afirmativa define
aquele que pode usufruir de tal política, ou seja, como cada política retratada responderá a
pergunta: Quem é o negro para as ações afirmativas?
A partir dessas considerações cabe efetuarmos a definição conceitual de ação
afirmativa. Em seguida, apresentarmos as principais formas que tomam as ações afirmativas
no MS. Nossa proposta é de analisarmos tais distinções sob o prisma dos conceitos: a
desigualdade e a diferença e a forma do pertencimento racial.
AÇÕES AFIRMATIVAS: O RACISMO E O ANTIRRACISMO BRASILEIRO
Há a necessidade teórica de apresentarmos um conceito de ação afirmativa que possa
ser utilizado tanto na esfera privada, como na esfera pública, visto nosso objetivo
comparativo, e assim sendo, por ação afirmativa entendemos:
[...] um conjunto de políticas, ações e orientações públicas ou privadas, de
caráter compulsório (obrigatório), facultativo (não-obrigatório) ou voluntário
que tem como objetivo corrigir as desigualdades historicamente impostas a
determinados grupos sociais e/ou étnico/raciais com um histórico
comprovado de discriminação e exclusão. Elas possuem um caráter
emergencial e transitório. Sua continuidade dependerá sempre de avaliação
constante e da comprovada mudança do quadro de discriminação que
a gerou (MUNANGA, 2006, p.186).
Cabe um destaque, que é temporal. A demanda por políticas afirmativas pelo
movimento negro brasileiro é antiga, e remonta os anos 1940, e é parte dos resultados do I
Congresso do Negro, em 1950. Se formos buscar as origens de tais medidas, temos que recuar
um pouco mais no tempo, na Índia, desde 1948, previam-se medidas diferenciadas
de
promoção dos intocáveis2, no parlamento (reserva de assentos), no ensino superior e no
funcionalismo público, e desde 1919 há estas políticas. Os Estados Unidos foram os
primeiros, entre os países desenvolvidos, a instituírem em sua legislação uma política de ação
afirmativa em 1973, com o presidente da República John Kennedy3. As ações afirmativas não
2
Dentro do sistema de castas indiano eram os párias da sociedade.
3
Através da Executive Order nº 10.925/06/03/1973.
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se limitaram somente aos Estados Unidos, bem como não se destinaram exclusivamente para
os negros.
Ao nosso conceito de ação afirmativa também se enquadram algumas políticas
públicas brasileiras. Em 1943 através da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) o Estado
brasileiro garante a empregabilidade de trabalhadores nacionais, um terço em comércio
e indústrias, ou seja, um reserva de mercado, artificialmente construída para usufruto dos
trabalhadores nacionais. Outro exemplo, a Lei Ordinária 5.465 de julho de 1968, que dispõe
sobre o preenchimento de vagas em estabelecimentos de ensino agrícola, reservando 50%
de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos destes, esta já possui características bem
mais próximas das políticas afirmativas de reserva de vagas no ensino superior público
contemporâneas.
Desta forma, acabamos por evidenciar que ações afirmativas não compõem um quadro
inteiramente novo para o cenário político nacional, mesmo assim, teve intenso debate público
quando discutíamos a necessidade de ações afirmativas para negros e indígenas ampliarem
seu acesso nas instituições de ensino superior (IES) pública. De forma que, nossa pretensão de
analisar tais políticas públicas perpassa inevitavelmente, por um debate sobre o racismo e o
antirracismo brasileiro.
O racismo do qual o Brasil se alimenta, sobretudo a partir do século XIX, é o
cientifico, também tido por racismo clássico entre alguns autores. O racismo científico propõe
a existência de raças onde características físicas tenham correspondência com características
morais ou intelectuais. O apogeu desse racismo se dá ao longo da II Guerra Mundial, com o
Nazismo (WIEVIORKA, 2007; COMAS, 1970; ORTIZ, 2012).
A superioridade branca, atestada cientificamente pelo evolucionismo, darwinismo
social, quando trazida para o Brasil, sofre remodelações, visto que nossa sociedade, então
marcada por processos contínuos de miscigenação, destoava do modelo da Europa que,
condenava tais misturas. No Brasil, essas teorias foram pensadas sob o prisma dos mestiços e,
um conjunto de outras políticas públicas em torno da noção de branqueamento da população,
se constituiu via miscigenação, imigração, educação, eugenia, etc.
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No Brasil, o discurso da miscigenação vai receber aspectos de ideologia de Estado, e
afasta-se das perspectivas mais biologizantes aproximando-se das culturalistas. Casa Grande
& Senzala, dos anos 1930, tenta suavizar os conflitos existentes, por meio, de certo equilíbrio
formado entre os vários antagonismos. No que tange a questão racial esse equilíbrio é a figura
do mestiço, um intermediário que é o responsável pelas relações afetivas e menos conflituosas
entre Senhor e Escravo no Brasil. Freyre aponta para construção de uma identidade nacional
de um país multirracial onde não existem conflitos tão brutais quanto os nos EUA ou África
do Sul.
O racismo científico entra em crise mundial a partir do fim da II Guerra Mundial, a
Organização das Nações Unidas (ONU) protagoniza esse papel (COMAS, 1970). Por meio,
de uma série de pesquisas realizadas acaba por invalidar o uso cientifico da categoria raça,
sugerindo outras categorias para espelhar tais ideias. No entanto, o Brasil marcado pela
miscigenação, também fabrica a ideia de harmonia racial, de democracia racial, que gera
algumas consequências: primeiro a crença de que não existem raças no Brasil; a segunda
consequência é que ao invés de raça, surge a noção de que há uma classificação com
base na cor, que apaga qualquer possibilidade de preconceitos raciais; e em terceiro e
último lugar, que qualquer tentativa de tratar raça no Brasil é vista como importação de
ideias estrangeiras, pois no Brasil não existem raças, e sendo assim, são rotulados de
racistas todos os que tentam falar de políticas públicas para negros (BERNARDINO,
2002).
O antirracismo no Brasil se dedica na invalidação da democracia racial, sobretudo
depois da formulação de Roger Bastide e Florestan Fernandes (2008), que atribui a tal ideia a
condição de mito, um falseamento da realidade racial nacional marcada por desigualdades,
onde o “preconceito de ter preconceito” predomina nas relações raciais.
De perspectivas similares passamos a denunciar a formas de racismo e desigualdade
raciais no Brasil a partir dos anos 1980. O cenário da redemocratização do país propiciou que
demandas de democracia participativa ganhassem fôlego, e por consequência que as políticas
públicas passassem a ser o novo horizonte de lutas sociais do movimento negro brasileiro. E
por políticas públicas, a centralidade do processo é as ações afirmativas.
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As ações afirmativas tornaram-se alvo de debate público somente a partir de 2003. As
primeiras universidades no Brasil que admitem as cotas nos processos seletivos têm
seus primeiros estudantes a partir de 2003 (UERJ, UNEB e UENF), por força de leis
estaduais. A partir desse cenário, a luta pelas ações afirmativas foi uma das principais
características do movimento negro brasileiro (DOMINGUES, 2008).
MATO GROSSO DO SUL: UEMS E LEI 3.594/2008
A discussão na UEMS inicia-se a partir da Lei nº 2.5894, de 26/12/2002, esta
reservava um percentual de vagas para os indígenas, em seguida, 06/01/2003 através da Lei nº
2.6055, estabelece a reserva de vagas de 20% para negros. Estas datas colocam a UEMS
entre as primeiras Universidades do Brasil a aderirem a tais políticas.
O Conselho Universitário da UEMS, após discussões com os movimentos negro
e indígena, decide por meio das resoluções 241/03 e 250/03, o percentual de 10% para
indígenas e de 20% para os negros, estes ainda sendo exigidos que fossem oriundos da
escola pública ou bolsistas de escola privada (BITTAR; CORDEIRO; ALMEIDA, 2007).
Ainda restava decidir os critérios para inscrição, já pautado na reunião do Conselho
Universitário da UEMS. A discussão ocorreu na Câmara de Ensino do Conselho de Ensino,
Pesquisa e Extensão, onde surgiu uma comissão, com participação do movimento negro,
Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Negro – CEDINE, de lideranças indígenas e
da Coordenadoria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – CPPIR-MS, além dos
partícipes da UEMS. Foi organizado um fórum de discussão: “Reserva de vagas para
indígenas
e
negros
na
UEMS: Vencendo preconceitos” que percorreu nos quatorze
municípios onde a UEMS se encontra e Dourados, a sede. Esse processo deu início a
4
Este lei é de autoria do Deputado Estadual Murilo Zauith (PFL) e foi criada sem nenhum percentual
de reserva de vagas para os indígenas. O mesmo deputado não compareceu a nenhuma audiência ou debate
público sobre o tema.
5
O autor da lei foi o Deputado Estadual Pedro Kemp (PT) , que aponta que foi chamado pelo movimento negro
para propor a Lei de cotas para negros na UEMS. “E aí quando eu assumi a vaga na Assembleia Legislativa, eu
recebi lá a visita de representantes do movimento negro e da Coordenadoria do negro, essa da Casa Civil. Eles
me colocaram a proposta de discutir a questão da Lei de cotas para negros na UEMS” (CONCEIÇÃO, 2003,
p.131).
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uma série de palestras, seminários, conferências, audiências públicas na tentativa de
sensibilizar a comunidade acadêmica e discutir os critérios para inscrição.
No interior dessa comissão, o movimento negro trouxe a necessidade de somar aos
critérios já definidos, a questão do fenótipo e da pobreza; enquanto que, os indígenas
Guaranis Kaiowá e Terena, atestaram a necessidade da comunidade indígena juntamente com
a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) atestar a descendência indígena (BITTAR;
CORDEIRO; ALMEIDA, 2007).
A comissão responsável pela avaliação dos fenótipos foi construída, por meio da Próreitoria de Ensino, e é composta por: representantes da UEMS, do movimento negro,
do Fórum Permanente de Entidades do Movimento Negro de MS e do CEDINE. Os
representantes dessas estâncias deferem ou não a inscrição dos candidatos que se
autodeclararam negros.
Ainda no cenário estadual outra política tem destaque, em 2008, o Deputado Amarildo
Cruz (PT) consegue a aprovação da Lei Estadual nº 3.594, em 10 de dezembro de 2008. Esta
lei foi regulamentada a através do decreto n° 12.810, de 8 de setembro de 2009, institui
reserva de vagas de 10% para negro no provimento de cargos em concursos públicos de
MS.
Art. 1° Ficam reservadas para os negros 10% das vagas oferecidas em todos
os concursos realizados pelo Poder Executivo Estadual para provimento de
cargos e empregos públicos, da administração direta e indireta (MATO
GROSSO DO SUL, DECRETO N° 12.810, 2009).
A lei, de acordo com o deputado foi objeto de debate por aproximadamente um ano
com os demais deputados. Uma de suas assessoras, Vania Lucia B. Duarte, esteve em
constante diálogo com o movimento negro, que se fez presente na Assembleia Legislativa no
dia da aprovação. A Lei foi aprovada pela unanimidade dos deputados presentes,
ressalva observada pelo autor da lei (Entrevista, Amarildo Cruz, 2012).
Nos moldes de como ocorre na UEMS, o fenótipo torna-se critério de seleção, também
somado a uma autodeclaração. A estratégia é a mesma, cria-se uma comissão que avaliará a
procedência da autodeclaração racial, como previsto no artigo terceiro da Lei
12.810/09.
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Art. 3° A Secretaria de Estado de Administração constituirá comissão
composta por, no mínimo, cinco pessoas para, mediante processo de
entrevista, verificar a veracidade da declaração firmada pelo candidato, nos
termos do art. 2°, confrontando-a com o seu fenótipo (MATO GROSSO DO
SUL, DECRETO N° 12.810, 2009).
A comissão para esse fim é composta por dois servidores estaduais designados pela
Secretária de Estado de Administração – SAD; um representante da CPPIR-MS; um
representante do Fórum Permanente das Entidades do Movimento Negro de MS e um
representante do CEDINE. As Entrevistas serão todas realizadas após primeira fase dos
concursos. E para que os indeferidos não fiquem totalmente impossibilitados de ser admitido
o artigo 5º prevê:
§ 1° O candidato que não receber parecer conclusivo favorável da Comissão
Especial sobre sua condição de negro, mas cuja aparência suscite
dúvida razoável, será excluído da lista específica, permanecendo
somente na listagem geral de classificação para cargo (MATO
GROSSO DO SUL, DECRETO N° 12.810, 2009).
Como demonstrado, as políticas afirmativas de MS trazem o fenótipo como marcador
da identidade negra, e criam Comissões para julgar a veracidade das autodeclarações.
O movimento negro é partícipe dessas comissões, e propositor do fenótipo enquanto
critério de inscrição para a política de ação afirmativa na UEMS, enquanto que, a lei nº
12.810/2009 seguiu os procedimentos já referendados pela lei de reserva de vagas na UEMS.
Excluindo o elemento pobreza entre os critérios para concorrer a vagas em concursos
públicos.
UNIVERSIDADES FEDERAIS: UFMS, UFGD
As Universidades federais de Mato Grosso do Sul, seguem a lei federal 12.711/2012,
que regulamenta a políticas de ações afirmativas para as Universidades e Institutos federais.
Centramos nossa análise as duas universidades federais do Estado: Universidade Federal da
Grande Dourados – UFGD6 e a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS7.
A Lei federal 12.711/2012 foi regulamentada pelo decreto nº 7824/2012 e pela portaria
normativa nº 18/2012, este conjunto legislativo define e estabelece os critérios da política de
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Devo agradecer ao professor Doutor em Ciências Sociais Marcio Mucedula Aguiar.
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Devo agradecer a professora Doutora em Sociologia Priscila Martins Medeiros.
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ação afirmativa. A lei atribui que 50% das vagas, por curso e turno, serão destinadas a alunos
oriundos do ensino médio público, onde metade dessas seriam destinadas a alunos com renda
per capita igual ou inferior a um salário mínimo e meio, e a outra metade a alunos com renda
superior a essa. Esses 50% das vagas caberiam uma divisão etnicorracial que corresponda à
realidade da unidade federativa de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE, ou seja, o percentual de negros e indígenas de cada estado
deve ser a base sobre a qual a reserva de vagas se assentará.
A Lei entrou em vigor em 2012, e previa para sua implementação um mínimo de
12,5% ao ano, para que, no máximo em 2016, a lei fosse cumprida integralmente. Apesar da
lei, do decreto e da portaria normativa, a determinação quanto ao pertencimento racial
enquanto critério para usufruto da política é pouco trabalhada, sendo citada na portaria
normativa nº18/2012, no capítulo II – das modalidades de reserva de vagas – no artigo 3º:
II - proporção de vagas no mínimo igual à da soma de pretos, pardos e
indígenas na população da unidade da Federação do local de oferta de vagas
da instituição, segundo o último Censo Demográfico divulgado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, será reservada, por curso e
turno, aos autodeclarados pretos, pardos e indígenas (Portaria Normativa
nº18/2012, grifos nosso).
Tanto a UFMS quanto a UFGD, utilizam a autodeclaração racial para definir os negros
de tal política. Cabe esse importante destaque visto que a UEMS, já citada acima, utiliza
outras formas para delimitação do público que utilizará a política institucional, apoiada pelo
movimento negro regional. Por isso mesmo, a Lei Estadual nº 12.810/2009, do deputado
estadual Amarildo Cruz, que regulamenta reserva de vagas de 10% para negros em concursos
públicos, utiliza forma semelhante para determinar o pertencimento racial, ou seja, fenotípico.
No Mato Grosso do Sul, além dessa distinção entre as Universidades federais e a
estadual, cabe uma distinção entre as federais. Devemos salientar que a UFGD, a partir da
promulgação da lei aderiu a ela e, antecipou os percentuais, em 2013 já estava reservado os
50% previstos para os três anos. Enquanto que a UFMS, aderiu os percentuais anuais, de
forma que somente em 2016 atingirá os 50% de cotistas.
SOCIEDADE CIVIL – O INSTITUTO LUTHER KING – ILK
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O Instituto Luther King- Ensino, Pesquisa e Ação Afirmativa (ILK) é uma
Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), que promove atividades
educacionais, fornecendo curso pré-vestibular, gratuitos a alunos de baixa renda, utiliza como
um dos seus princípios de Ação Afirmativa, como critério de seleção dos seus alunos. O nome
da instituição foi sugestão do próprio Aleixo Paraguassú8, por credenciar ao reverendo Martin
Luther King Jr o protagonismo na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, fato
que, fortaleceu a adoção de Ações Afirmativas naquele país. O ILK se pretende enquanto
“mais um instrumento de superação da desigualação injusta a que são submetidas amplas
camadas da população brasileira” (ILK, 2003, ata nº1). O ILK nasce como sonho de um
integrante do movimento negro de MS, Aleixo Paraguassú Netto, que com apoio de
alguns amigos consegue fundar a instituição em 15 de fevereiro de 2003, em Campo Grande,
e objetiva criar um espaço intercultural de aprendizagem, e um meio de combater as
desigualdades sociais e etnicorraciais.
Uma das finalidades do ILK – a primeira, – relaciona os serviços educacionais à
Ação Afirmativa, afirmando o compromisso social e político da instituição com tal medida;
a) oferecer serviços educacionais, não seriados e não formais, com
ênfase na modalidade ações afirmativas ou medidas especiais
compensatórias destinadas a pessoas reconhecidamente carentes e/ou
pertencentes a minorias sociais, preferencialmente crianças e adolescentes
[...] (ESTATUTO, 2011).
O compromisso político do ILK torna a aparecer de maneira mais detalhada, no item
“f” do mesmo estatuto, ainda versando sobre as finalidades da instituição, tornando
mais evidente assim, a adesão à promoção da igualdade e a defesa dos Direitos Humanos;
f) combater todos e quaisquer tipos de preconceitos, segregação,
estigmatização e intolerância, bem como as práticas de discriminação racial,
em todas suas manifestações, buscando construir uma sociedade da
qual sejam eliminadas todas as formas de exploração, e ainda promover o
respeito aos Direitos Humanos (ESTATUTO, 2011).
O ILK nasce do desejo de democratização do acesso ao Ensino Superior, com
o compromisso de redução da desigualdade educacional, voltado para o combate a
todas as formas de racismo e preconceito, utilizando as Ações Afirmativas como método de
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Militante do movimento negro sul-mato-grossense, é juiz de direito aposentado, ex-secretário de Estado
de Justiça e de Educação.
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promoção da igualdade e posicionamento político. E o público-alvo da instituição que é: “[...]
formado por negros, índios, pessoas com deficiências e brancos carentes, com ênfase na
política de ação afirmativa por meio da educação não formal” (MORAES, 2009, p.60).
Dentre os critérios de seleção do alunado temos: a nota, a necessidade de ser aluno
oriundo da escola pública, e pertencente a um núcleo familiar de renda per capita de
um salário mínimo9. As vagas disponíveis são remanejadas conforme os critérios de
ação afirmativa definidos pela instituição: 45% para negros, 45% para brancos e os
10% entre indígenas e portadores de alguma deficiência. Na medida do possível tentase preservar uma proporção de gênero também, que dificilmente se mantém pela maior
procura ser das mulheres pelo curso pré-vestibular.
A questão racial surge no âmbito da ficha de inscrição dos alunos que pretendem sua
vaga no ILK. O IBGE caracteriza no item raça: preto, pardo, amarelo, branco e indígena
seguido de sua etnia, e consideram negros, como sendo, a soma de pretos e pardos. O ILK
distingue suas vagas entre negros e brancos, mas não considera todos que se autodeclaram
pardos como negros, como faz o IBGE.
O caráter fenotípico surge como sendo a moeda de maior peso na definição do negro
no ILK. A autodeclaração racial solicitada na ficha de inscrição difere da maneira
como ocorre a distribuição das vagas na instituição, e difere também da maneira como
o IBGE enxerga as designações raciais no Brasil. Permite que uma nova classificação surja.
Os pardos são divididos entre “negros-afrodescendentes” ou brancos, duas pastas que surgem
para arquivar as fichas individuais pois as vagar correspondem a 45% para cada um. A
decisão é tomada, majoritariamente, pelo corpo pedagógico e o principal critério é o fenótipo,
baseado na foto 3x4 solicitada no ato da inscrição, ou por vezes, com anotações após o fim da
inscrição ou da entrevista10. É importante lembrar que nenhum deles é eliminado, apenas
concorrem entre seus respectivos grupos pelas porcentagens de vagas que o ILK
9
Janilce M. G. Muniz, a coordenadora pedagógica chegou a mencionar a necessidade de alterar o valor mínimo
da renda familiar de um salário mínimo per capita para 1,5. Muitos inscritos tinham valores um pouco
acima de um salário mínimo.
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Procedimento realizado com alguns dos inscritos, com intuito de reduzir o número de pessoas que
descumpram qualquer dos critérios estipulados pela instituição.
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oferece, de maneira mais simples, cada qual concorre dentro do grupo racial em que é
arquivado. A média das notas adquiridas durante o ensino médio torna-se o principal critério a
partir deste momento, uma vez que os que chegam a essa fase, já cumpriram os demais
critérios de renda, ensino público ou bolsista integral em escola particular.
DIFERENÇA E DESIGUALDADE
Nesse momento esperamos ter conseguido demonstrar quão complexo e heterogêneo
são as formas pelas quais o pertencimento racial esta sendo determinado nas ações
afirmativas, públicas e privadas. Temos a expectativa de ter apontado que mesmo os critérios
públicos, marcado pelas leis possuem discrepâncias, fruto de uma República federativa onde
União e estados possuem certa autonomia, fato este que transparece em nossos exemplos. A
sociedade civil, aqui ligada ao mundo privado, apresenta outra forma de determinação racial,
mais dissonante ainda.
As categorias desigualdade e diferença possuem uma longa trajetória histórica e
teórica nas Ciências Sociais, optamos por tratá-las como categorias de análise para o estudo
do nosso caso específico, portanto, não ampliamos a discussão para sua trajetória histórica no
campo das ciências sociais. Para esse artigo ressaltamos os aspectos pragmáticos de ambos os
conceitos e por desigualdade tomamos como norte a constituição de uma questão social,
tomada com apresenta Ianni (1991), num reflexo da relação capital e trabalho, ou seja, a
produção de desigualdades sociais, que exigiria políticas de redistribuição . Enquanto que no
eixo da diferença, destacaríamos as políticas que afetam diretamente a questão racial, mas
sem necessariamente, influir sobre demandas sociais, podendo ser tomadas como políticas de
reconhecimento (TAYLOR, 2013). Assim sendo, as ações afirmativas que excluem como
critério a desigualdade social ressaltam os aspectos apenas de representação, reconhecimento
dos negros, seria essa uma ação afirmativa assentada na diferença, no reconhecimento, do
contrario teríamos modelos híbridos, que somam critérios de reconhecimento e redistribuição.
Reiteramos que são utilizadas aqui como categorias que norteiam uma diferenciação
das ações afirmativas, com a finalidade de opormos as ações afirmativas citadas. Em um
artigo de 2006, Andreas Hofbauer, caracteriza duas formas de olhar o racismo, a primeira
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sobre o prisma sociológico, que sob a influência da Escola de Chicago, prioriza na
delimitação dos grupos raciais aspectos socioeconômicos. Com o tempo, as perspectivas
marxistas vão ampliar seu espaço, e os grupos sociais e raciais vão se aparelhar em oposição
aos grupos dominantes. Um olhar antropológico, o segundo prisma, parte da crítica da
Antropologia moderna as teorias raciais e ao Evolucionismo, mas mantém (via F. Boas) a
terminologia raça, reivindicando para ela um “mundo da simbolização”, a raça em seu sentido
cultural, visto que a cultura enquanto conceito se cristaliza cada vez mais na Antropologia
moderna (HOFBAUER, 2006).
Seja na oposição questão social e questão racial, ou do olhar sociológico e olhar
antropológico, utilizamos categorias que nos possibilitam uma análise das ações afirmativas
no Mato Grosso do Sul.
Nenhum dos objetos deste mundo físico e biológico (sexo, idade, cor etc.)
pode ser apropriado em-si pela sociologia, ou seja, enquanto objetos naturais
ou fatos biológicos. Nas sociedades humanas tais fatos são sempre
incorporados de modo singular em um sistema de símbolos e tem sentidos
culturais, mesmo quando quem os usa pensa que não (GUIMARÃES, 2009,
p.17).
A partir dessa citação de Guimarães, podemos chegar à conclusão que a diferença está
em relação direta com os sistemas de símbolo e sentidos culturais do contexto em que é
percebida, portanto, compõe parcelas de processos culturais que inserem aos indivíduos
formas de perceber a realidade. Melhor dizendo, são construções sociais que singularizam
indivíduos sociais, e geram uma forma especifica de apreensão da realidade pelos envolvidos.
É interessante frisar que contra a diferença não se luta, ela é parte constitutiva da
realidade humana, se pauta na diversidade das formas sociais, culturais, políticas, econômicas,
biológicas e morais. Mas, há luta pelo reconhecimento (TAYLOR, 2013), sobretudo a partir
do momento que as identidades se constroem a partir “de dentro” e não mais pela posição
social, e nessa situação o reconhecimento deve ser conquistado. Para o reconhecimento das
demandas raciais, sobretudo as ações afirmativas há, majoritariamente uma inter-relação
criada entre o reconhecimento da diferença racial e da desigualdade social, também podem ser
lidas no conflito entre políticas de redistribuição e políticas de reconhecimento.
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A desigualdade enquanto uma realidade mais material, perceptível e mensurável,
ganha contornos próprios quando designamos as desigualdades raciais, sobretudo porque
contra essas é possível lutar de maneira mais direta, atualmente, via a nomenclatura de
promoção da igualdade racial.
Com estas perspectivas de desigualdade e diferença, vemos que as ações afirmativas
de Mato Grosso do Sul, com exceção da lei 12.810/2009, todas as demais trazem como
critérios para usufruto das medidas, os fatores socioeconômicos. Seja na esfera pública, ou na
privada, temos uma articulação entre critérios raciais a critérios socioeconômicos, na nossa
perspectiva, critérios de desigualdade e diferença, redistribuição e reconhecimento.
Mais complicado, no entanto, é a definição do pertencimento racial, nesse podemos
notar que a percepção da diferença racial no Mato Grosso do Sul, ou seja, excluindo a ação do
governo federal (Lei 12.711/2012), temos no fenótipo, um marcador da identidade racial. Esta
na legislação que garante as ações afirmativas na UEMS e no acesso ao serviço público
estadual, lei estadual 12.810/2009. Nesses dois casos, formam-se bancas compostas por
militantes do movimento negro e servidores públicos para determinação de um fenótipo
negro.
Na sociedade civil, ou seja, no ILK, a autodeclaração se encontra presente visto que é
um dos itens presente na ficha de inscrição. Nesta, os itens aparecem como no IBGE, ou seja,
Preto, Pardo, Branco e Indígena. O fenótipo entra em uma segunda fase, as vagas na
instituição são divididas de forma que negros e brancos ocupem 45% cada. Dessa forma,
aqueles que se autodeclararam pardos são divididos entre brancos e negros, de acordo com a
foto 3X4 solicitada na inscrição, ou uma anotação na ficha de cadastro, que é preenchida no
momento de uma entrevista ou da própria inscrição. A esses métodos estamos credenciando
um fator fenotípico, ou seja, parcelas dos autodeclarados pardos são movidos de “pastas”,
para brancos ou negros, assim cumprem os requisitos da instituição. E o critério do fenótipo
salta as vistas novamente.
Tentamos exprimir isso em um quadro que traga as ações afirmativas tratadas até aqui,
e que represente a forma com que o pertencimento é definido em cada política.
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Quadro 1. Relação entre ações afirmativas e critério de pertencimento racial no Mato Grosso
do Sul.
Nesse quadro, podemos observar que somente a medida adotada pelo governo federal
não utiliza de qualquer medida fenotípica no estado. No Mato Grosso do Sul, a primeira
medida de ação afirmativa, a da UEMS, foi intensamente debatida, sobretudo com o
movimento negro e a comunidade acadêmica da Universidade. Na ocasião o posicionamento
do movimento negro foi em prol de características fenotípicas para o processo seletivo, o
mesmo posicionamento foi a base para promulgação e regulamentação lei decotas no serviço
público estadual, e esta não sofreu nenhum questionamento do movimento negro no momento
de sua aprovação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar do recorte regional, podemos perceber que as ações afirmativas não tiveram
um modelo homogêneo de implantação e mesmo de critérios que encarem uma pergunta
crucial: Como definir quem é negro no Brasil? Mesmo a plataforma de ação do Governo
federal deixa em terrenos não muito sólidos a resposta a essa questão.
A percepção da identidade negra parece se prender ainda a cor, este seria um caráter
objetivo e observável em bancas, enquanto que as políticas de ações afirmativas públicas, já
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visualizando uma dificuldade se tal critério fosse único, prevê: Autodeclaração e/ou fenótipo e
renda. Dessa forma, o segundo critério sempre sustentará a decisão com relação ao primeiro.
Ou seja, a existência de desigualdade possibilitou a constituição de uma política que também
abrange o reconhecimento, e amplia o percentual de cidadãos favoráveis as ações afirmativas
no espaço público.
A possibilidade de que em outros estados do Brasil existam outras formas para definir
o pertencimento racial fortalece, a critica que é direcionada ao conceito de nação em seu
sentido de homogeneidade, de unidade. No Brasil, um dos pilares da construção da nação foi
a concepção de país mestiço, fruto do encontro de três raças. Essa unidade que durante muito
tempo invalidou que identidade negra e étnica pudessem reivindicar maior reconhecimento no
espaço público nacional começa a ceder frente a várias demandas focais da sociedade
brasileira. Estas exigem reconhecimento.
O desmonte da ideia de nação homogênea é perceptível na falta uma maneira única de
definir o pertencimento racial no Brasil, na verdade o que se tem é um zona de desconforto
generalizada quando se toca na temática, no entanto, as ações afirmativas, já consolidadas no
Brasil, exigem tais definições, porém sem determinar com firmeza todos os critérios. O que
cria a possibilidade de que cada região ou Universidade crie a forma, ou melhor, os critérios,
mais adequados à definição tal pertencimento, talvez exprimindo demandas regionais, como o
caso de Mato Grosso do Sul.
Os marcadores do pertencimento racial são objetivos. Os aspectos subjetivos e a
autodeterminação são minorados diante de uma banca, que tem orientações de avaliar os
aspectos objetivos, sobretudo o fenótipo. A identidade negra que corresponde a tais
procedimentos, se assenta na forma pela qual o movimento negro regional a consolidou ao
discutir as ações afirmativas da UEMS.
REFERENCIAIS
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GÊNERO, CLASSE E RAÇA: ENOVELAMENTO E
DESCENTRAMENTO PARA A COMPREENSÃO DA
CONTEMPORANEIDADE
Jéssica Fernandes Maia dos Santos – UFSCar1
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GT 1 – Cultura, Diferenças e Desigualdades
Resumo
Nas bases da constituição do Sujeito do Iluminismo, centrado no paradigma do
Homem/Branco/Heterossexual, está o grande processo político, econômico cultural/identitário
de expansão capitalista e de colonização das Américas, intrinsecamente relacionado com o
forte patriarcalismo da sociedade europeia medieval – patriarcado não entendido como uma
categoria a-histórica e universal, mas enquanto sistema social e histórico desigual constituinte
da sociedade moderna ocidental. Dessa forma, na esteira das teorias pós-estruturalistas, póscoloniais, feministas e de gênero, busca-se evidenciar o enovelamento das categorias gênero,
raça e classe como imperativo para a compreensão da contemporaneidade e para o repensar
crítico dessas categorias eminentemente modernas.
Assim, tendo em vista a influência pós-estruturalista para as teorias sociais e sua
contribuição para o descentramento da episteme ocidental, o que pertmite pensar os limites
culturais das categorias sociais, sua historicização e relativização, a crítica do próprio discuso,
este trabalho busca relacionar as discussões contemporâneas sobre os estudos de gênero e
pós-coloniais a partir do conceito de nó de Saffioti, que faz referência não apenas a não
possível separação, entrelaçamento e não sobreposição das categorias raça, gênero, classe,
mas também à dinamicidade e simultaneidade em que elas se relacionam. Resgatando para o
debate análises históricas do período do processo de expansão capitalista e de colonização
(mais especificamente no Brasil sem desconectá-lo do movimento mais amplo) e a condição
das mulheres europeias nos séculos XVI e XVII que elucidam a compreensão da formação da
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Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara/UNESP
Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFSCar
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modernidade e suas respectivas contradições sociais clássicas presentes no tempo
contemporâneo.
Pensamento pós-estruturalista: metafísica ocidental, discurso e poder
O pensamento pós-estruturalista evidencia a dimensão discursiva do âmbito social – se
refere não apenas ao discurso fala ou texto, mas ao todo simbólico – de modo que a produção
de saber, conhecimento, discursos estão relacionados diretamente com relações de poder e
interesses dos agente envolvidos. Assim, põe em cheque a pretença neutralidade da ciência e
o pensamento binário caracterŕistico da metafísica ocidenal na qual essa está fudamentada.
Derrida, filósofo franco-argelino pós-estruturalista, busca a desconstrução, do
pensamento filosófico e ceintífico, a metafísica ocidental, que seria não uma destruição, mas
uma decomposição do texto, buscando suas lacunas. Dessa forma, se desestabiliza os pares
binários tradicionais (também instrumentos de análise do estruturalismo), se denuncia o
logocentrismo do pensamento ocidental em sua busca pela “verdade”. A ocupação teórica de
Derrida se centra na crítica do discurso e da linguagem ocidental.
O autor critica toda história da metafísica da presença, alicerce do pensamento
filosófico ocidental centrado no logos, logocêntrica, isto é, a razão no centro, razão que busca
a verdade. A metafísica parte do pressuposto de que a linguagem é a fala, veio antes da
escritura e corresponde a voz interior, ao ser, ao que é verdadeiro, natural e puro – oralidade
depende da presença do ser. Escritura, assim, entendida em seu termo estrito, sistemática,
linear e fonética, é simples representação da língua falada, dos sons emitido pela fala, a língua
é independente da escritura sendo esta sua derivada. Essa ideia vem de um pensamento
binário. Dessa forma, a língua falada que teria acesso direto ao ser, ao sentido verdadeiro, e
por isso, seria o real objeto da linguística, é o significante primeiro, e a escritura significante
do significante.
Portanto, seu conceito diferrance é distinto da palavra diferença que opera por
binarismos, apresenta que significante e significado não se correspondem em absoluto e nem
se diferenciam em absoluto, há fronteiras culturais, e, nesses limites, é possível desconstruir,
transgredir sistemas de representação homogeneizantes, utilizando esses próprios discursos de
maneira que eles se reflitam e se critiquem a si próprios.
Em Foucault, filósofo francês também pós-estruturalista, é central a ideia de que poder e
saber sempre estão relacionados. Na produção discursiva sempre há relções de poder e é
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justamente no discurso que se encontra a dimensão positiva do poder. Em termos de análises
de poder, Foucault deixa claro algumas afirmativas: o poder é sempre uma relação, um
exercício; não há aqueles que o possuem e os que não possuem; é exercido na dimensão
microscópica, no nível do corpo social e não acima dele, em uma espećie de rede de relações
e não em uma verticalidade unidirecional; a resistência numa relação de poder nunca é fora,
mas se efetua dentro da prórpria rede; do poder ninguém escapa, não existe exterior:
O interessante da análise é justamente que os poderes não estão
localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam
como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém
escapa, a que não existe exterior possível, limites ou fronteiras. Daí a
importante e polêmica idéia de que o poder não é algo que se detém como
uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. (...) O que
significa dizer que o poder é algo que se exerce, e que se efetua, que
funciona. (…) se dissemina por toda a estrutura social. (...) E esse caráter
relacional do poder implica que as próprias lutas contra seu exercício não
possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento
de poder. Qualquer luta é sempre resistência dentro da prórpia rede do
poder, teia que se alastra por toda sociedade e a ninguém pode escapar... (
FOUCAULT, 1979, p. XIV)
Dessa maneira, o poder para existir e se perpetuar, partindo sempre do princípio de que
é uma relação não unidirecional, seguramente não corresponde apenas a sua forma negativa –
no sentido de lei, de interdição, restrição – como sempre foi entendido no pensamento político
ocidental de acordo com o modelo do direito. Porque, segundo Foucault, essa face é apenas o
seu limite e não sua essência, o poder comporta outros mecanismos, possui, primordialmente,
uma outra mecânica que lhe permite de fato o efeito de controle. Há uma dimensão positiva, o
que significa dizer que as relações de poder são produtivas, o poder fundamentalmente produz
e tranforma saberes, domínios para produção de conhecimento, discursos, regimes de
verdade. E justamente por isso que intervém no nível mais concreto da existência humana, o
prórpio corpo: “...não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo.” (
FOUCAULT, 1979, p. XVI – introdução). O poder penetra no corpo e, assim, produz
consciência dele prórpio e também domesticação, no entanto, como contra efeito gera
reinvindicação, exigência de seu próprio corpo contra o poder:
É sob essa perpectiva de poder positivo que Foucault escreve “História da sexualidade”,
deixando a idéia de sexo enquanto dado prévio, ele quis saber como e porque no Ocidente a
sexualidade se tornou o objeto ou campo para uma grande produção discursiva em termos de
regimes de verdades (obviamente abarca os discursos e produção de conhecimento científicos,
ou seja, legitimados) de modo que um conjunto heterogêneo de elementos sob o dispositivo
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da sexualidade produziu a idéia de sexo. É através da sexualidade que o poder se exerce
fundamentalmente em sua dimensão positiva.
Foucault afirma que essa proliferação discursiva bem pensada e não aleatória, essa teia
de elementos heterogêneos relacionados (instituições, leis, regulamentações, restrições,
análises, observações, saberes, discursos, enuciados científicos) que se configuram em um
dispositivo da sexualidade dotado de estratégias, é um mecanismo muito mais eficiente de
controle e exercício de poder do que a repressão, proibição. É um poder que possui dimensão
positiva.
Uma perspectiva histórica: da chacina de feiticeiras à domesticidade da
escravizada
Uma perspectiva histórica se faz necessário para se entender as bases da constituição do
Sujeito Universal iluminista, do paradigma ocidental da diferença ao Outro e as formas
modernas de dominação que perpassam as categorias classe, raça e gênero na triade
patriarcado/capitalismo/colonização.
A autora Anne Barstow em seu livro “Chacina de Feiticeiras” retrata o período do início
da modernidade, epecificamente o evento da chacina de feiticeiras ocorrida na Europa dos
séculos XVI e XVII, momento em que o capitalismo mercantil ganahava força, que o projeto
colonial ou de colonização se desenvolvia. Caçava-se mulheres na Europa, escravisava-se na
África e exterminava-se povos na América. Uma série de mecanismos de relações de poder
engendravam o paradigma colonial da diferença do Homem Branco Europeu, dispositivos que
são uma rede de elementos heterogênios relacionados: instituições, leis, regulamentações,
restrições, saberes, discursos, enuciados científicos que produzirá o “Outro”, aquele que não
faz parte do “nós”.
Estima-se cem mil mortos dos quais oitenta por cento dos acusados e oitenta e cinco por
cento dos executados eram mulheres, uma estimativa sem considerar as mulheres que
morreram nas prisões, em torturas ou se suicidaram. É clara a perseguição contra um sexo.
Anne Barstow afirma a importâcia de entender o patriarcado como categoria histórica para
compreensão da chacina de feiticeiras ocorrida na Europa (mulheres acusadas, examinadas,
julgadas, executadas e etc basicamente pelos homens)2.
2
Barstow argumenta sobre a importância da categoria patriarcado para a compreesão do período em questão
e do acontecimento da chacina: “O não entendimento do patriarcado como categoria histórica e de como ele
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A massiva caça às bruxas na Europa não pode ser explicada por um único fator, há uma
complexidade de fatores e condições que se entrelaçam em questões sociais, econômicas,
políticas, religiosas. Questões como: centralização dos Estados, Reformas religiosas, moior
restrição e regulamentação da vida sexual, crenças em compirações demoníacas,
decrescimento do status social das mulheres, tensões sociais por fome, pobreza, doenças,
aumento populacional, crise econômica e social pelo advento do sistema capitalista que se
fortalece e se sustenta num sistema patriarcal.
Essas mulheres ao mesmo tempo que foram vítimas na Europa dos séculos XVI e XVII
sofrendo perseguisão enquanto um grupo, eram, até esse período, também agentes sociais
ativos na economia e sociedade de um modo geral, e como “agentes de seu próprio destino”
(1995), nessa relação de poder entre os gêneros, Barstow sugere que tais papeis produtivos e
reprodutivos, médicos e terapêuticos tão importantes que elas desempenhavam na
comunidade foram tornando-as mais perigosas ao juízo dos homens:
...elas atuavam como parteiras, curandeias, conselheiras, fazendeiras,
taberneiras, fiandeiras, servas domésticas, assistentes de seus maridos no
trabalho artesanal, e assim por diante, e foram seus papeis produtivos
tanto quanto reprodutivo que as tornaram potencialmente perigosas para
os homens. (BARSTPW, 1995, p. 29)
No entanto, não apenas foram se tornando mais ameaçadoras aos olhos dos homens
como também o novo sistema social e econômico capitalista que surgia, desenvolveu-se
desfavoravelmente às mulheres, intrelaçando-se e fortalecendo-se com o patriarcalimo já
existente. As mulheres tinham, também, um papel importante na economia, seja no campo ou
na cidade, porém, sempre em trabalhos secundários, subalternos, de complementação,
trabalhadoras extras e marginais, sempre recebendo pagamentos inferiores aos dos homens
mesmo se estivessem na mesma função. Trabalhavam alguns períodos equilibrando com os
trabalhos domésticos. No campo grande parte do sustento provinha de suas hortas e da venda
de alguns produtos cultivados nos pequenos lotes familiares. Na ciadade, sempre como
ajudantes de seus maridos ou pais, seja no comércio ou nas pequenas fábricas familiares de
artesãos – participando das partes mais simples dos processos de produção dos artigos –, não
podiam especializar-se pois acabavam exercendo vários tipos de trabalhos, além de não lhes
ser permitido se tornarem aprendizes de algum ofício (BARSTOW, 1995). Porém, ainda assim,
funciona numa sociedade (…) não se pode reconhecer plenamente que as mulheres foram acusadas
basicamente por homens, julgadas por júris masculinos, revistadas por examinadores masculinos,
sentenciadas por juízes masculinos, torturadas por carcereiros masculinos, queimadas vivas por executores
masculinos – enquanto eram encomendadas por confessores masculinos.” (BARSTOW, 1995, p.28)
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eram importantes e ativas economicamente, participavam do sustento das famílias.
Nas crises eram as primeiras a serem dispensadas, a sofrerem com a inflação e impostos
e, nos séculos XVI e XVII, mesmo período da caça às bruxas na Europa, com o capitalismo
mercantil os camponeses perderam suas terras e muitos passaram a serem trabalhadores
assalariados o que não foi permitido de pronto às mulheres ou as que se tornaram lhes foi
separado os trabalhos com menores salários, mais subalternos e com menor exigência de
conhecimento e habilidades, cada vez mais dentro de casa dependentes de seus maridos ou
pais, e privadas de muitos meios de sustento que possuíam anteriormente. A desigualdade
social cresceu e consequentemente as tensões sociais, surgindo, assim, um cenário muito
desfavorável às mulheres, os bodes expiatório da época. A autora, dessa forma, faz uma
associação dessa situação provocada pelo novo sistema social e econômico e o fortalecimento
do patriarcado e a intensificação da caça às bruxas.
A história das mulheres européias revela que a centralização dos Estados-Nação e as
Reformas religiosas e o advento do capitalismo sobre uma sociedade já patriarcal reduziram
drasticamente suas oportunidades, diminuíram seus campos e formas de ação na sociedade e
seus conhecimentos e práticas sobre seus próprios corpos de modo que o ápice foi o século
XIX, período vitoriando, o auge da ideologia burguesa.
Barstow faz relação entre o crescente controle sobre as mulheres e o movimento
imperialista e colonialista europeu impulsionado pelo ímpeto capitalista da acumulação
primitiva datados de mesma época. Ao mesmo tempo que o homem europeu perseguia suas
próprias mulheres, também expandia seu controle sobre outros povos pelo mundo. Houve
grande concentração das riquezas de boa parte do mundo na Europa às custas de escravização
de africanos e massacres na América.
O processo histórico da expansão colonial promoveu desafios sem precedentoes,
período de grandes tranformações no pensamento, no âmbito político, social, economico e
religioso. A Reforma protestante colocou o indivíduo diante de Deus, o Reascimento deslocou
Deus e postulou o Homem no centro do universo, “...o Iluminismo, centrado na imagem do
Homem racional, científico, libertado do dogma e da intolerância, e diante do qual se estendia
a totalidade da história humana, para ser compreendida e dominada” (HALL, 2003). E, com a
constituição de novas relações (de poder) entre os povos, engendrou-se um grande processo
identitário. Assim, entre o Humanismo Renascentista (século XVI) e o Iluminismo (século
XVIII), formula-se as bases da constituição de um Sujeito Universal, a noção do sujeito
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soberano, indivíduo unificado cujo centro consiste em um núcleo indivisivel, sua indentidade
é fixa e centrada nesse núcleo interior, aquele que é portador de razão e que possui as
faculdades necessárias para entender e chegar ao conhecimento e controle sobre a natureza
que o cerca, para pensar e dizer sobre si e sobre o “Outro”, se coloca na posição de
enunciante, que se fundamenta nessa diferença. O europeu estava criando o seu “Outro”, um
paradgma que define outros grupos como o que ele prórpio não é numa diferenciação que
segrega e estigmatiza, se alicerça na intolerancia ao diferente ou à diferença e engendra
sistemas de representação totalizantes e homogeinizantes.
O sistema colonial desde seu surgimento porta em sua estrutura de maniera intriseca as
relações de força entre os gêneros, as classes e as “raças”. A história não somente da caça às
bruxas, mas a história do início da era moderna nos revela os discursos produzidos, os
regimes de verdade difundidos sobre qual era a natureza das mulheres e os que viriam a se
constituir sobre os negros, indígenas, que por sua vez nos apresenta as relações de poder
envolvidas não somente entre o Estado, a Igreja e a população, bem como entre os gêneros e o
que se denominaria raças. Um livro quase etnográfico que se pode usar como base para
exemplificar e entender, de certo modo, essas relações entre raça, gênero, e classe, mais
especificamente no Brasil, provenientes do colonialismo europeu é Casa-grande e Senzala.
Gilberto Freyre em seu famoso livro Casa-grande e Senzala contribui, de maneira
pioneira dentre os pensadores brasileiros da primeira metade do século XX, em uma análise
salutar sobre a formação social do brasil partindo do estudo da formação da família brasileira.
Nos apresenta com propriedade a relevante influência principalmente do negro na vida sexual
e de família do brasileiro, afirma a prensença ativa dos negros dentro das casas-grande e na
vida íntima dos brancos desde de seu nascimento até o fim de suas vidas. Retrata, portanto,
quase que exclusivamente apenas os escravos de serviço domésticos, aqueles que conviviam e
trabalhavam no interior das casas-grandes.
Ainda que Gilerto Freyre reconheça que muitas pesquisas e estudos de sua época sejam
contraditórios, inconsistentes e preconceituosos em comparação entre negros e brancos ou em
estudos “raciais” e que veja a miscigenação como algo positivo do ponto de vista cultural, se
pauta por alguns argumentos todavia impregnados do discurso eugenicista e aborda a temática
em termos de hierarquias culturais entre distintos grupos humanos:
Mas dentro da orientação e dos propósitos deste, interessam-nos menos as
diferenças de antropologia física (que ao nosso ver não explicam
inferioridade ou superioridade humanas, quando transpostas dos termos
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de hereditariedade de família para os de raça) que as de antropologia
cultural e de história social africana. Estas é que nos parecem indicar ter
sido o Brasil beneficiado com o elemento melhor de colonização africana
que outros países da América. Que os Estados Unidos, por exemplo.
(FREYRE, 2006, p. 362)
A sociedade colonial do Brasil dos séculos XVI – XIX, além de agrária baseada em
grandes propriedades monocultoras, escravocrata, era fundamentalmente patriarcal. A família
colonial tinha como principal integrante e chefe inquestionável o senhor de engenho, o
proprietário das terras, o patriarca. As mulheres ainda muito jovens, quase crianças casavam
com homens muito mais velhos, homens maduros – era muito comum um homem durante sua
vida casar-se três ou quatro vezes, pois varias mulheres morriam muito cedo, iniciavam a
maternidade precocemente, muitas vezes ainda sem condições físicas necessárias para essa
tarefa, diversas morriam nos partos e passavam por muitos partos durante a vida. O “sabor das
virgens donzelas” era somente apreciado em moças bem jovens. As meninas filhas do senhor,
sempre muito bem vigiadas, todo tempo quase que enclasuradas em sua casa ou quarto:
...a moça ou menina branca estava sempre sob as vistas de pessoa mais
velha ou da mucama de confiança. Vigilância que se aguçava durante a
noite. À dormida das meninas e moças reservava-se, nas casas-grandes, a
alcova, ou camarinha, bem no centro da casa, rodeada de quartos de
pessoas mais velhas. Mais uma prisão que aposento de gente livre.
(FREYRE, 2006 p. 394)
...a das grossas paredes, a dos verdadeiros ralos de convento em que, nas
casas-grandes, se guardavam as sinhá-moças. Aí vinha colhê-las verde o
casamento: aos treze e aos quinze anos. Não havia tempo para
explodirem em tão franzinos corpos de menina grandes paixões lúbricas,
cedo saciadas ou simplesmente abafadas no tálamo patriarcal. Afadas sob
as carícias de maridos dez, quinze, vinte anos mais velhos; e muitas vezes
inteiramente desconhecidos das noivas. Maridos da escolha ou da
conveniência exclusiva dos pais. (FREYRE, 2006 p. 395)
Entretanto, o patriarcalismo extendia suas forças para além da família branca, seu
alcance estava em toda a sociedade desde o senhor até o escravizado, o sistema colonial
agrário e escravocrata era essencialmente patriarcal. Em “Casa grande e senzala”, Freyre
mostra como os negros participavam ativamente da vida íntima e familiar dos brancos. As
amas negras amamentavam e criavam, crianças negras “brincavam” com os filhos do senhor e
negras e mulatas estavam a disposição para saciar os desejos do senhor ou para iniciar os
meninos brancos na “vida”, era grande o número de filhos bastardos.
Na primeira metade do século XX as teorias evolucionistas ainda tinham influência na
ciência e no pensamento social e muitos, principalmente publicistas e cientistas, atribuíam aos
negros (enquanto raça inferior e em condição selvagem) a responsabilidade de agentes de
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depravação e corrupção sexual das famílias brasileiras. Nina Rodrigues, um médico legisita
maranhense que exerceu suas pesquisas antropológicas na Bahia, considerava a mulata um ser
anormal e superexitada (FREYRE, 2006). Porém, Gilberto Freyre mostra que a visão da casagrande era de que os meninos não podiam ser “maricas” e deveriam ser defloradores e,
portanto, pergunta,: “como responsabilizar a negra?” Meninos criados numa educação sadista
de um erotismo patriarcalista e racista:
Nenhuma casa-grande do tempo da escravidão quis para si a glória de
conservar filhos maricas ou donzelões. (…) O que sempre se apreciou foi
o menino que cedo estivesse metido com raparigas. (…) Deflorador de
mocinhas. E que não tardasse em emprenhar negras, aumentando o
rebanho e o capital paternos. (FREYRE, 2006, p. 425)
Para Freyre o sistema escravocrata era o responsável pelo sadismo e erotismo patriarcal,
pela depravação sexual das famílias colonias e antecipação dos meninos na vida sexual,
também considerava, em menor grau, o clima quente. As pessoas desde seu nascimento eram
educadas em relações socialmente antagônicas em que, embora as negras e mulatas tidas pelo
autor como patologia social em condição de escravizadas, ele também atribui ao senhor maior
responsabilidade, enquanto agente ativo, do que às(os) escravizadas(os), agentes passivos: “A
verdade, porém, é que nós é que fomos os sadistas; o elemento ativo na corrupção da vida de
família; e moleques e mulatas o elemento passivo.” (FREYRE, 2006, p. 430 – 431).
Porém, ainda que o autor considere o sistema escravocrata como principal responsável
enquanto condição social e econômica degradante e o branco responsável antes que a negra,
há sobretudo a lógica patriarcal, constituinte desse sistema agrário-escravocrata, pautando as
relações coloniais desiguais de gênero e raça: entre homem branco e mulher negra. A negra
seria participante nas relações sociais da família patriarcal não como elemento passivo e
estático desprovida de toda e qualquer ação ou reação (as relações sociais mesmo as de
dominação não se dão de maneira unidirecional em absoluto, ainda que desigual e
forçadamente, sempre há troca e influência de ambas as partes), mas enquanto integrante em
posição subalterna nessas relações desiguais que também possui sua dinamicidade.
Portanto, o ponto principal a ser considerado como consequência das relações coloniais
não é a depravação sexual das famílias e a antecipação dos meninos nas práticas sexuais com
as negras e mulatas, mas sim o fato de as relações sexuais se darem explicita e frequentemente
entre brancos senhores e negras escravas dentro dessa lógica escravocrata patriarcal e assim, a
partir disso, formarem a família e a sociedade brasileira. Está explícito as relações de força no
contexto colonial as quais são alicerces para discursos, enunciados científicos racistas e
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sexistas produzidos principalmente no século XIX. O que revela a grande importância de
compreender o entrelaçamento das categorias gênero, raça e classe para se discutir as relações
coloniais e desconstruir o paradigma colonial da diferença.
Estudos de gênero e feminismos: relativização e historicização das categorias
A categoria mulher sempre esteve presente, ao longo da história, como sujeito principal
das lutas e teorias feministas. Porém, com o desenvolvimento intelectual dessas teorias, as
categorias patriarcado e mulher foram problematizadas, pois facilmente caíram ao mesmo
tempo num essencialismo e esvaziamento ao colocar o fator biológico como determinante
absoluto, afirmando um caráter universalista, trans-histórico e trans-geográfico do
patriarcalismo. Nesse contexto de crítica a alguns dos conceitos centrais dos estudos sobre
mulheres, surgiu a categoria gênero. O texto de Gayle Rubin “O Tráfico das Mulheres: Notas
sobre a Economia Política do Sexo” é apontado como um dos marcos na sua conceitualização
e utilização.
Na esteira da corrente de pensamento pós-estruturalista, desconstrutivista ou pósmoderna, na década de 1990, o conceito de gênero e seus pressupostos vem sendo debatidos e
reformulados. As noções de corpo, sexo e natureza passam a ser problematizadas e pensadas
enquanto saberes produzidos, objetos do conhecimento e de discursos. Contestam a linha de
pensamento de sistema sexo/gênero, muito pautada pela metafísica ocidental e seus
binarismos, cujas categorias são entendidas como um dado intocável, um apriori
incontestável. O gênero não deve ser apreendido como organizado, pensado, construído,
produzido simplesmente por causa ou a partir de fatores biológicos.
Donna Haraway é uma autora importante nas discussões dessas questões. Ela afirma a
necessidade de uma teoria da “diferença”3 que fuja dos modelos de pensamentos binários e
universalizantes, do tipo natureza/cultura, mesmo porque: “O valor de uma categoria
analítica não é necessariamente anulado pela consciência crítica de sua especificidade
histórica e de seus limites culturais” (HARAWAY, p. 211, 2004). Nesse sentido, sexo, assim
como natureza, é uma categoria, ou seja, um conceito. O que subentende construção de
conhecimento, uma condição de cultura e, na medida em que houve constante reafirmação e
demasiada atenção na ideia de gênero como uma edificação social, a categoria sexo foi
3
Haraway se refere ao refutamento ou afastamento de padrões totalizante e não ao sentido do chamado
feminismo de diferença, em que a palavra diferença faz referência à ênfase na perspectiva feminina e
permanece pautado num sistema totalizante sexo/gênero.
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deixada longe de problematização. Nas palavras da autora, não foi relativizada e historicizada,
nem inclusive os alicerces epistemológicos que sustentam tal sistema sexo/gênero.
O trabalho de Judith Butler, uma referência nos estudos Queer, também problematiza o
pressuposto epistemológico do sistema sexo/gênero. De modo que se entenda gênero como “o
meio discursivo/cultural através do qual...” (PISCITELLI, p. 15, 2001) a categoria sexo é
formulada como pré-discursiva, dado imutável ou um inquestionável da natureza. Para Butler,
nos termos do sistema sexo/gênero se fixa a identidade de gênero, e é imposta uma coerência
da sexualidade e do desejo baseado na heteronormatividade, a heterossexualidade como
norma, que não abarca a realidade das descontinuidades de gênero ou da complexidade dessas
relações que abrangem as interações entre gênero, sexualidade e desejo.
Butler, ao levantar a questão de que o termo gênero foi criado para romper com uma
noção essencialista de feminilidade e masculinidade, mostra que, se não for levada em
consideração que a própria ideia de sexo é questionável enquanto um dado natural, a categoria
gênero e a cultura se tornam um fatalismo, uma determinação cultural sobre os corpos. Nas
palavras da autora:
Em algumas explicações, a ideia de que o gênero é construído sugere um
determinismo de significados do gênero, inscritos em corpos
anatomicamente diferenciados, sendo esses corpos compreendidos como
recipientes passivos de uma lei cultural inexorável. Quando a “cultura”
relevante que “constrói” o gênero é compreendida nos termos dessa lei ou
conjunto de leis, tem-se a impressão de que o gênero é tão determinado e
tão fixo quanto na formulação de que a biologia é o destino. Nesse caso,
não a biologia, mas a cultura se torna o destino. (BUTLER, p. 26, 2010)
Nesses termos da problematização, de cunho desconstrutivista da categoria gênero, o
embate entre ativismo político e teorização se torna mais acirrado. Teóricos do pensamento
desconstrutivista, na sua busca pela (des)essencialização da mulher são criticados, por autoras
feministas, de desestabilizar, deslocar, dissolver o sujeito político que pressupõe a categoria
mulher. De distanciar a reflexão teórica do movimento político-social, inferindo que esse
modelo desconstrutivista dificultaria a prática política feminista, já que esta tem construído
historicamente sua ação política voltada para a transformação social em suas situações de
opressão ou subordinação das mulheres. Isto é, o movimento feminista compreende a mulher,
um sujeito político, por isso muitas(os) autoras(es) exitaram em estender as críticas ao
pensamento binário à distinção sexo/gênero, já que este sistema era muito útil para combater
os determinismos biológicos recorrentes cotidianamente no imaginário social. Se apresenta,
portanto, um impasse e limite político para a ação feminista.
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Dessa forma, a re-criação da categoria mulher proposta por Piscitelli (2001) e outra(os),
faz uma adição substancial para tal discussão. Enfatiza-se seu caráter e uso político,
conciliando, assim, as muitas críticas às visões essencialistas a um projeto político feminista.
Considera-se a contribuição do pós-estruturalismo que nega todo essencialismo à noção de
mulher, evidencia o aspecto discursivo do social e dá conta do caráter complexo e difuso do
poder, ou das relações de poder. Porém, em oposição ao abandono da categoria mulher, esta é,
nesses termos, historicizada, tornando viável a reflexão sobre as diferenças entre as mulheres
em seus contextos específicos (cultural e social), e também sobre suas semelhanças, sem
inviabilizar a prática política, (PISCITELLI, 2001) “...já que a identidade de 'mulher' é
simultaneamente exigida e desconstruída.” (HARAWAY, 2004, p. 246).
O movimento feminista, na década de 1980, devido também ao problema do racismo e à
questão das mulheres negras – que por muito tempo não foram considerados ou efetivamente
trabalhados pela literatura feministas mais reconhecida feita por mulheres brancas de classes
mais abastadas – produziram duras críticas à epistemologia e linguística etnocêntrica, ou
logocêntrica que oprime os que são referenciados com a categoria “natureza” ou estão na
fronteira entre os pares dicotômicos (as mulheres, negros, povos não europeus, os animais etc)
colocando em evidência os fortes problemas referentes ao colonialismo. Para Haraway:
“...uma teoria feminista de gênero adequada deve simultaneamente ser uma teoria da
diferença racial nas condições históricas específicas de produção e reprodução”.
Haraway traz a questão de como a mulher negra não foi constituída enquanto “mulher”
como a branca, foi racializada e sexualizada, considerada fêmea (animal) sem os direitos de
uma “mulher” de carregar o nome do pai e de participar da circulação de signos
(HARAWAY, 2004), formal e legítima, do sistema de parentesco oficial, o casamaneto.
Excluídas da cultura matrimonial oficial, participavam de outro tipo de circulação de signos
que as depreciava. Muitas vezes eram obrigadas a manter relações com o seus senhores
brancos e a multiplicarem o número de bastardos nas terras de engenho.
As mulheres brancas eram consideradas seres humanos porém, não sujeitos autônomos,
estavam para o serviço da procriação com o principal objetivo de perpetuar o nome da família
e de manter os bens na mesma, sempre sob a guarda de outro homem branco (pai, marido,
irmão) que respondia legalmente por elas. O senhor também detinha plenos direitos legais
sobre suas escravas
no entanto, enquanto uma propriedade alienável, em seu sentido
absoluto, que lhe pertencia, uma coisa, desumanizada. Mulheres brancas herdavam o nome do
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pai e transmitia aos filhos o nome do marido, os escravizados herdavam sua condição da mãe
a qual não possuía direitos sobre seus filhos. (HARAWAY, 2004). “...as mulheres brancas
não eram, legal ou simbolicamente, inteiramente humanas; os escravos não eram humanos
nem legal, nem simbolicamente.” (HARAWAY, 2004, p. 242). Senhor possuía o direito sobre
o corpo de outrem.
A influência pós-estruturalista nos estudos de gênero mostrou que as categorias sexo,
mulher, assim como gênero, raça, classe, pratriarcado devem ser historicizadas e
contextualizadas, tudo o que é passivel de discurso, tudo o que é discurso o deve. O póscolonialismo problematiza não somente o discurso ocidental, como também o lugar do
enunciante, todo discurso tem um enunciante com sua posição.
Teorias pós-coloniais: o lugar do enunciante
Um grande nome das chamadas teorias pós-coloniais é o Palestino Edward Said autor
do famoso livro intitulado Orientalismo. O orientalismo foi, entre outras coisas, uma escola
de pensamento ocidental que, a partir de interesses europeus e da visão evolucionista,
estudava e interpretava os povos ditos orientais. Said analisou essa escola de pensamento e
mostrou a estigmatização dos povos orientais por essa visão. De acordo com o autor, a própria
divisão Ocidente/Oriente criada pelos chamados ocidentais expressam uma dicotomia
correspondente à, respectivamente, superior/inferior em que o Ocidente, “centro do mundo”
se separa do outro “lado”, ou seja, desse “Outro” que não é o eu europeu. O autor afirma:
Sob o título geral de conhecimento do Oriente, e no âmbito da hegemonia
ocidental sobre o Oriente a partir do fim do século XVIII, surgiu um
Oriente complexo, adequado para estudos na academia, para exibição no
museu, para reconstrução na repartição colonial, para ilustração teórica
em teses antropológicas, biológicas, linguísticas, raciais e históricas sobre
a humanidade e o universo, para exemplo de teorias econômicas e
sociológicas de desenvolvimento, revolução, personalidade cultura,
caráter nacional e religioso. Além disso, a indagação imaginativa das
coisas orientais era baseada mais ou menos exclusivamente numa
consciência ocidental soberana, de cuja centralidade não questionada
surgia um mundo oriental, primeiro de acordo com ideias gerais sobre
quem ou o que era um oriental, depois de acordo com uma lógica
detalhada regida não apenas pela realidade empírica, mas por uma bateria
de desejos, repressões, investimentos e projeções. (SAID, 2007, p.35)
O pós-colonialsmo é de grande relevância para a questão colonial e seu efeitos mesmo
no período após colonização. Surgiu num momento histórico em que o sujeito universal do
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pensamento Ocidental Iluminista estava sendo descentrado e problematizado em meio ao
aparecimento da questão da diferença e da diversidade. Nesse sentido, o movimento póscolonial critica e desconstrói os binarismos característicos do pensamento colonial, ou seja, do
pensamento do Ocidente, nos quais o homem branco europeu é o elemento ativo que
sincretiza, que transforma e desenvolve as culturas e nunca é transformado, sua identidade é
fixa e sua cultura é pura e superior:
O termo se refere ao processo geral de descolonização que, tal como a
própria colonização, marcou com igual intensidade as sociedades
colonizadoras e as colonizadas (de formas distintas, é claro). Daí a
subversão do antigo binarismo colonizador/colonizado na nova
conjuntura. De fato uma das principais contribuições do termo “póscolonial” tem sido dirigir nossa atenção para o fato de que a colonização
nunca foi algo externo às sociedades das metrópoles imperiais. (HALL,
2003, p. 108)
Consequentemente o termo “pós-colonial” não se restringe a descrever
uma determinada sociedade ou época. Ele relê “colonização” como parte
de um processo global essencialmente transnacional e transcultural – e
produz uma reescrita descentrada, diaspórica ou “global” das grandes
narrativas imperiais do passado, centradas na nação. (HALL, 2003, p.
109)
Dessa forma o pós-colonial demonstra que tanto as colônias quanto os colonizadores
sofreram os efeitos e consequências do processo colonial, descentrando assim, as categorias
binárias do pensamento colonial e afirmando que o pós-colonialismo é um processo e não um
momento histórico que surge após outro momento passado e fechado (apesar de essa
dimensão cronológica existir), se refere à descolonização nos variados sentidos (políticos,
econômicos, simbólicos) dos povos que foram colonizados e dos colonizadores.
O pós-colonialismo como uma das formas pós-estruturalistas de pensamento, põe em
evidência, enquanto parte importante na produção discursiva e de conhecimento ocidental, o
lugar do enunciante e as relações de poder nas quais está inserido. Ao pensar no limite do
discurso, o pós-colonialismo desestabiliza os pares binários da metafísica e os sistemas
simbólicos ou de representação totalizantes característicos da modernidade. Corrobora, dessa
forma, com o deslocamento do enunciante clássico, o Sujeito Universal, e a centralidade da
produção discursiva ocidental. Discursos, aqui, são entendidos não apenas enquanto texto ou
fala, mas enquanto sistemas simbólicos, o que dá inteligibilidade ao meio social.
(BOURDIEU, 2001)
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Considerações finais: enovelamento, relações de poder e agência na subalternidade
McClintock, mesmo não seguindo a corrente teórica pós-estruturalista, sofre influências
na medida em que busca uma perspectiva de historicização e entrelaçamento das categorias
raça, gênero e classe. Tomando como exemplo a biografia de Cullwick e o contexto da
Inglaterra vitoriana, a autora põe em cheque as ideias deterministas e essencializadas das
hierarquias sociais, a suposta passividade dos subalternos, expressos em pares binários do tipo
opressor/vítima. Indo na contramão da naturalização das desigualdades sociais e
evidenciando, no entrelaçamento das categorias gênero, raça e classe, as formas modernas de
dominação.
A primeira vista seria possível concluir em Cullwick a expressão máxima da oposição
clássica dominação/submissão, uma mulher da classe trabalhadora que exercia a função de
criada doméstica no século XIX. Porém, em uma época em que a maioria das mulheres eram
analfabetas, ela deixou dezessete diários e, revela, em sua vida, as negociações nas relações
de poder, a resistência e a agência dos sujeitos em situação subalterna.
O ideal vitoriano sobre a mulher faz referência a um ser ocioso e encerrado no âmbito
doméstico, porém, a maior parte da classe média nesse período não poderia manter o numero
suficiente de criados, então, para isso, o trabalho doméstico realizados pelas esposas e os
empregados deveriam ser invisibilizados para que as mulheres pudessem manter sua imagem
de ociosidade. A racionalização do trabalho doméstico tem por objetivo invisibilizar o
trabalho das mulheres e seu valor econômico, isto é, tem a ver com a racionalidade liberal do
sujeito iluminista e com a separação radical, da época, entre público e privado. Esses
domínios não deveriam se confundir e esse trabalho doméstico está diretamente ligado com
essas demarcações de fronteiras. Dessa forma, esse trabalho fez parte da formação da
identidade da classe média de maneira que grandes esforços foram feitos dentro do âmbito
doméstico que nunca foram contabilizados ou reconhecidos, é negado o seu valor social e
econômico.
As fotografias de tipo retrato revelam seu travestismo em diversas figuras sociais
contraditórias como: dama da alta classe, camponesa, criado, anjo, escravo, homem, etc. Sua
capacidade de conversão de criada à dama, por exemplo, colocava em questão a naturalização
das fronteiras das categorias sociais de diferenciação e, também, evidencia seu poder de
negociação, mesmo em condição subalterna, sobre Munby:
O travestismo sinalizava a recusa de Cullwick dos papéis sociais
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limitados que lhe foram destinados. Vestida de homem, ela pôde viajar
pela Europa com Munby sem ser questionada. Vestida como mulher da
classe trabalhadora, ela entrava livremente em bares e teatros de revista,
divertindo-se com lazeres da classe trabalhadora que eram proibidos às
mulheres de “respeito”. Ela podia andar pela rua depois de escurecer sem
medo de perda de reputação ou de ameaças. Por outro lado, vestida como
uma senhora, ela podia apreciar o luxo e a aventura de hotéis, lugares de
férias e viagens turísticas aos quais as mulheres trabalhadoras não tinham
acesso. (MCCLINTOCK, 2003, p.. 78)
Através de encenações teatrais fetichistas públicas e privadas, Cullwick representava as
contradições históricas e sociais, a não naturalidade das hierarquias e buscava o
reconhecimento do trabalho doméstico das mulheres e o controle sobre seu próprio corpo e
trabalho – Cullwick casou-se com Munby apenas após dezenove anos de relacionamento
secreto, e, mesmo depois de casada, não ascendeu socialmente como esposa de um advogado,
mas continuou como trabalhadora doméstica assalariada e exigia que até seu marido a
pagasse. Ela, portanto, se recusou por muito tempo a casar-se com Munby e, após casada, não
quis apresentar-se publicamente como sua esposa, porque isso lhe retiraria seu direito de não
ser mãe e a certa mobilidade no espaço urbano que sua condição baixa lhe concedia. Iria,
também, na contramão de sua luta pelo reconhecimento do trabalho doméstico e das
mulheres. Sob condição subalterna, negociava e resistia nas relações de poder com Munby e
suas patroas. Sua própria aparência física (ela era musculosa e se orgulhava disso), os
travestimos fetichistas e sua capacidade de se comportar de maneira variada nos diversos
roteiros criados entre ela e Munby, revela as contradições sociais modernas expressas no
entrelaçamento entre classe, gênero e raça.
O conceito de nó de Heleiteh Saffioti vem ao encontro das reflexões propostas por
McClintock na medida que ela também reprova a análise exclusivista de uma categoria
separada da outra. O nó faz referência não apenas ao entrelaçamento e não sobreposição das
categorias raça, gênero, classe, mas também à dinamicidade e simultaneidade em que elas se
relacionam (SAFFIOTI, 2005). Como afirma a própria Saffioti, esse nó não é apertado de
modo que não se reconheça as especificidades das três contradições e nem frouxo de mais
levando ao desenlace. O nó revela uma certa frouxidão em que se possa perceber as
características distinguíveis das categorias e, ao mesmo tempo, sua não possível separação na
presente realidade. Esse conceito, devido sua natureza contraditória e a partir de sua
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característica teórico-metodológica, exige um raciocínio não linear, mas dialético (SAFFIOTI,
1998):
A figura do nó foi usada por mim para mostrar, simultaneamente, a
simbiose entre o racismo, o sexismo e as classes sociais, assim como
deixar aberta a possibilidade de se puxar uma ou outra ponta dos eixos
que o formam, para se realizar um escrutínio mais acurado. Não se trata
de separar estas contradições, que operam por meio desta nova realidade
de caráter fusional, mas de examinar cada uma delas à luz do nó que
formam. O nó não apresenta a frouxidão dos laços que se desfazem ao
menor movimento. Tampouco é duro a ponto de tornar irreconhecíveis as
contradições que o compõem. E, sobretudo, deixa as pontas dos eixos à
vista, dispostas a revelar suas especificidades. O mais importante a frisar,
contudo, é a natureza contraditória do nó, que, ademais, é regido por uma
lógica também contraditória. (SAFFIOTI, 1998, prefácio)
Assim, não se trata da mistura ou soma das categorias, nem de analisá-las
separadamente, tão pouco de uma intersecção, de modo que ora estão relacionadas e ora não,
pois é possível puxar uma ponta do eixo, mas o nó não se desfaz. Se trata de apreender a
realidade composta, complexa e simultaneamente, por essas contradições à luz do nó.
Saffioti reforça a importância da categoria patriarcado para a história das mulheres
mesmo com as diversas críticas a sua suposta a-historicidade e à seu uso, muitas vezes,
universalizante. Evidente, como apontado por muitas feministas, que aconteceu o uso
indiscriminado desse conceito, de caráter universal e essencialista, alimentando uma noção de
naturalização da dominação masculina. Entretanto, é sabido que, através de pesquisas
paleontológicas e antropológicas, o patriarcado remonta à aproximadamente 6000 anos de
existência (não necessariamente em todo lugar) e que, mesmo que em todas as culturas
conhecidas sempre houve a diferença de gênero e a divisão sexual do trabalho e que não tenha
sido comprovado a existência de sociedades matriarcais, não necessariamente a hierarquia de
gênero sempre foi uma constante na história da humanidade. Assim, é necessário reconhecer
que no Ocidente (ou o que se pode entender como história do Ocidente) “a experiência
histórica das mulheres tem sido diferente da dos homens...”(SAFFIOTI, 2005, p. 49), há o
caráter histórico da primazia masculina. Para a autora essa crítica de a-historicidade do
conceito é superficial e, além de negar a “historicidade do próprio fato social” (SAFFIOTI,
2005, p. 41).
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Patriarcado deve ser entendido como um conceito relacional, se refere a uma relação
entre sujeitos, como mostra McClintock há agência na subalternidade, em relações de forças
desiguais, em que, o sujeito em desvantagem não é passivo, ele também está agindo, negocia,
sabota, resiste, subverte a legitimidade da dominação, ora conforma-se: “...considera-se
errôneo não enxergar no patriarcado uma relação (…). Tampouco se considera correta a
interpretação de que, sob a ordem de gênero patriarcal, as mulheres não detêm nenhum
poder.” (SAFFIOTI, 2005, p. 51).
Assim, o patriarcado é entendido como um sistema social e material no qual há relações
de poder entre homens e mulheres, em que o primeiro é reconhecido como o patriarca, figura
central que detém os meios, materiais ou não, de subjugação da mulher. Um sistema não
compreendido enquanto a-histórico, trans-geográfico ou trans-cultural. Tampouco entendido
como um sistema em que o homem é a única fonte ou centro de poder ou ainda que o poder é
apenas exercido de cima para baixo como uma coisa que é detida por alguns em detrimento de
outros. Ao contrário, há poder difuso e sendo exercido no plano micro, no cotidiano,
entretanto, o homem está em privilégio. Dessa forma, nesse sistema a noção empregada sobre
o sexo biológico formula, a partir do sexo biológico, quem deterá os privilégios e quem estará
em desvantagem. Por isso a necessidade de historicização da categoria patriarcado, através
dela se pode pensar a(s) história(s) de mulheres.
O patriarcado tem base material, toda violência como, também, a ideologia tem
correspondência com o material: “Mesmo intelectuais de nomeada consideram o machismo
uma mera ideologia, admitindo apenas o termo patriarcal, isto é, o adjetivo. Como quase
nunca se pensa na dimensão material das ideias, a ideologia é interpretada como pairando
acima da matéria.” (SAFFIOTI, 2005, p. 58 – 59). A História das mulheres no Ocidente tem
sido de privação material, essa História que ainda está por se fazer, elas quase não aparecem
na narrativa histórica oficial e em muitas não oficiais também. Ainda que hoje, após muitas
lutas feministas, as mulheres possuam muito mais autonomia e igualdade social do que à um
século atrás, existe uma certa primazia material e simbólica dos homens senão não haveria,
dentre outras coisas, mulheres recebendo menores salários que os homens mesmo quando em
mesmo cargo, não haveria esse número alarmante de mulheres assassinadas e estupradas no
mundo. O endurecimento do patriarcado no processo de expansão capitalista e colonial está
diretamente ligado à questão material, o papel social das mulheres no Ocidente foi reduzido à
dependência econômica e desempenho de funções não valorizadas e na maioria das vezes não
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remuneradas, com menos autonomia, ou quase nenhuma, na sociedade. Assim, como a
categoria gênero é útil para a análise histórica de acordo com Scott, mulher e patriarcado
também o são. Então, por que descartar o conceito de patriarcado? Por que descartar a
evidência histórica de privação material das mulheres?:
O importante a reter é que a base material do patriarcado não foi
destruída, não obstante os avanços femininos. Se na Roma antiga o
patriarca tinha direito de vida e morte sobre sua mulher, hoje o homicídio
é crime capitulado no Código Penal, mas os assassinos gozam de ampla
impunidade. Desta sorte, a base econômica do patriarcado não consiste
apenas na intensa discriminação salarial das trabalhadoras, em sua
segregação ocupacional e em sua marginalização de importantes papéis
econômicos e político-deliberativos, mas também no controle de sua
sexualidade e, por conseguinte, de sua capacidade reprodutiva.
(SAFFIOTI, 2005, p. 42)
Então, não é somente à questão da disparidade econômica, a dimensão material se refere
também ao corpo, na corporificação das assimetrias e na violação do corpo de outrem: “no
controle de sua sexualidade e, por conseguinte, de sua capacidade reprodutiva” (SAFFIOTI,
2005, p. 42), na medida em que a mulher não tem sido considerada, no Ocidente, sujeito
autônomo, mas sujeitada à tutela de um homem, seu próprio corpo não lhe pertence. Antes,
essa base material está no próprio corpo, no contrato sexual (não num sentido essencialista de
sexo, como se o órgão sexual em si expressasse alguma hierarquia, mas o próprio discurso e
noção que se constrói sobre o sexo se expressa no contrato sexual e sua assimetria), no direito
de controlar o corpo de outrem.
A noção de materialidade do corpo é uma construção do pensamento binário ocidental
do tipo: corpo/mente, corpo/espírito, o corpo ou matéria como um dado a priori. Entretanto,
essa construção é, antes, sobre o sexo e, consequentemente, sobre o corpo. A materialização
dos corpos ou a sua materialidade é concebida a partir da ideia normativa de diferença sexual.
Isto é, sexo enquanto um construto cultural a partir da normatividade heterossexual. A matéria
do corpo como o efeito da dinâmica de poder. Relações de poder produz discursos, saberes
que, por sua vez, produz regimes de verdade, normatividade, por isso, o poder demarca,
circula, diferencia até o próprio corpo, o poder, assim, produz, é produtivo (BUTLER, 1993).
A materialidade do corpo, através da diferenciação normativa de sexo, é concebida ou
significada como anterior ao signo, à significação, à cultura, ao texto, ao discurso, um exterior
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absoluto. Em relação a crítica de que para o pós-estruturalismo, se não há nada fora do texto e
se a matéria é discurso, então, não há matéria, Butler rebate afirmando que desconstruir a
matéria não é negá-la ou negar o termo, é que alegar a necessidade dessa irredutibilidade da
matéria é muito problemático para o feminismo. Butler quer novas possibilidades para a
política de pensamento questionando essa certeza epistemológica sobre a matéria do
corpo.(BUTLER, 1993). Assim:
Com efeito, este fenômeno atinge materialmente o corpo de seus
portadores. A postura corporal das mulheres enquanto categoria social
não tem uma expressão altiva. Evidentemente, há mulheres que escapam
a este destino de gênero (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995) , mas se trata de
casos individuais, jamais podendo ser tomados como expressão da
categoria mulheres, extremamente diversificada. Em via de regra, as
mulheres falam baixo ou se calam em discussões de grupos mistos (…) A
ideologia sexista corporifica-se nos agentes sociais tanto de um polo
quanto de outro da relação de dominação-subordinação... (SAFFIOTI,
2005, p. 59)
Saffioti mostra que a categoria gênero é de extrema importância para os estudos
feministas e que não exclui a de patriarcado, na verdade devem trabalhar juntas, assim como
Piscitelli resgata a relevância da categoria mulher nos estudos de gênero e para a compreensão
das relações de gênero. Portanto, se é necessária a categoria mulher, então, não se pode
descartar o conceito histórico de patriarcado, este faz parte da história daquela: “O patriarcado
é tratado (pelas feministas liberais) como um conceito-sombra, sem sério papel analítico a
desempenhar na tarefa de dar sentido ao gênero” (JOHNSON, p. 116) , o que não se aceita
aqui.” (SAFFIOTI, 2005, p. 58)
Saffioti (2005) afirma que gênero é uma categoria ampla que compreende as categorias
sociais mulher e patriarcado mas, não as suplanta. Pois, há a necessidade ainda da
continuidade dos estudos sobre mulheres, quase não há registro de sua atuação e nem
reconhecimento enquanto sujeito político na história. Várias historiadoras feministas tem
percorrido este caminho, mas ainda há muito a se fazer: “Há uma tensão entre a experiência
histórica contemporânea das mulheres e sua exclusão dos esquemas de pensamento, que
permitem a interpretação desta experiência.” (Saffioti, 2005).
Assim, a contribuição pós-estruturalista permite pensar os limites culturais das
categorias sociais, sua historicização e relativização, a crítica do próprio discuso. O que não
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significa abandoná-las ou inutilizar seu papel elucidativo para a prática do conhecimento e do
cotidiano, do fazer político.
Nas bases da constituição do Sujeito do Iluminismo está o grande processo político,
econômico cultural/identitário de expansão capitalista e de colonização das Américas,
intrinsecamente relacionado com o forte patriarcalismo da sociedade europeia medieval.
Dessa forma, na esteira das teorias pós-coloniais, pós-estruturalistas, feministas e de gênero, é
possível afirmar que o conceito de enovelamento das categorias raça, gênero e classe e o
entendimento de sua constituição eminentemente moderna se faz necessário para a
compreensão da contemporaneidade.
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