a questão da memória no livro x do de trinitate de santo agostinho
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a questão da memória no livro x do de trinitate de santo agostinho
FACULDADE DE SÃO BENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO A QUESTÃO DA MEMÓRIA NO LIVRO X DO DE TRINITATE DE SANTO AGOSTINHO Douglas Finger São Paulo 2015 FACULDADE DE SÃO BENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO A QUESTÃO DA MEMÓRIA NO LIVRO X DO DE TRINITATE DE SANTO AGOSTINHO Douglas Finger Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Filosofia da Faculdade São Bento do Mosteiro de São Bento de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia, àrea de concentração em História da Filosofia Medieval. Orientador: Prof. Dr. Joel Gracioso São Paulo 2015 1 Nome: Douglas Finger Título: A questão da memória no De Trinitate de Santo Agostinho Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Filosofia da Faculdade São Bento do Mosteiro de São Bento de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Aprovado em _____ de ________________ de _______ . Banca Examinadora __________________________________ Orientador: Professor Doutor Joel Gracioso __________________________________ Professor Doutor Franklin Leopoldo e Silva __________________________________ Professor Doutor João Carlos Nogueira 2 Ao meu pai, que me ensinou a amar os livros 3 AGRADECIMENTOS Agradeço imensamente ao professor Joel, pelo incentivo que me deu durante anos para que este trabalho fosse realizado. Sem seu exemplo e apoio, nada disso teria acontecido; Aos professores que tive durante o curso, dentre eles Pedro Monticelli, Franklin Leopoldo e Silva, José Carlos Bruni, Djalma Medeiros e Bruno Basseto que me mostraram com paixão a sublime beleza do pensamento filosófico; Ao professor João Carlos Nogueira por ter aceito, junto com o professor Franklin Leopoldo e Silva, compor a minha banca de qualificação e defesa; E a Deus, fonte de toda verdade, por ter incitado no meu coração o desejo de adorá-lo com a minha vida, com toda a minha inteligência e com toda a minha força. 4 RESUMO FINGER, Douglas. A questão da memória no De Trinitate de Santo Agostinho. 2015. 81 fls. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de São Bento, São Paulo, 2015. A ousadia do pensamento de Santo Agostinho e sua firme fé cristã o fez procurar, através de uma profunda análise da alma humana, qual seria de fato no homem a parte que o faria digno de ser nomeado Imagem e Semelhança da Santíssima Trindade, que é Deus. Por esta razão, Agostinho no De Trinitate dirigiu sua atenção à parte mais excelente da alma humana, realidade espiritual denominada por ele de mens. Foi nela que encontrou a analogia trinitária mais semelhante ao mistério da Santíssima Trindade. Esta trindade seria formada pela memória, inteligência e vontade. Estas três faculdades formam a subtância espiritual da mens e designam sua essência. Qualitativamente estas três capacidades não se sobrepõem umas as outras, porém a memória aparece em destaque na análise agostiniana: Em uma comparação analógica, a memória seria com que o “Pai” da Trindade Santa. Neste sentido, Agostinho pontuou a memória como sendo, na realidade interior e espiritual do homem, a fonte e princípio da realidade psíquica: protagonista da linguagem; de todas as espécies de conhecimentos e do estado de consciência. A capacidade latente que a alma possui de conhecer-se a si mesma de forma imediata, tem sua base na memória. A vontade, por sua vez, inquieta por natureza, o é por saber-se pertencente à Deus, vontade última de todo ser vivente. Esta inquietude, porém, só se mantém enraizada no íntimo do homem em virtude de uma lembrança de Deus que o acompanha em tudo o que faz e até mesmo naquilo que deixa de fazer. A memória seria em última instância o elo espiritual da interioridade humana que o permite viver a realidade do mundo imediato, e o local onde ocorre o desdobramento do ser subjetivo e objetivo de cada um. Palavras-chave: Memória. Inteligência. Vontade. Conhecimento. Mens. Santíssima Trindade. Imagem e Semelhança. 5 ABSTRACT FINGER, Douglas. The question of memory on De Trinitate of Saint Agustine. 2015. 81 pp. Dissertation (Master in Philosophy) – Faculdade de São Bento, São Paulo, 2015. The boldness of the thought of St. Augustine and his strong Christian faith made him look through a thorough analysis of the human soul, of which would indeed be in man the part deserve to be named Image and Likeness of the Holy Trinity, which is God. For this reason, Augustine in De Trinitate turned his attention to the most magnificent of the human soul, spiritual reality which he designated by mens. In it was found the trinitarian analogy more resembling to the mystery of the Holy Trinity. This trinity would be formed by memory, intelligence and will. These three faculties form the spiritual gist of the mens and designate its essence. Qualitatively these three capabilities do not overlap each other, but the memory is highlighted in the Augustinian analysis: In an analog comparison, the memory would be the "Father" of the Holy Trinity. In this sense, Augustine pointed out the memory as being the inner and spiritual reality of man, the source and principle of psychic reality: protagonist of language; of all kinds of knowledge and state of consciousness. The latent capacity that the soul has to know herself immediately, has its basis in memory. The will, in turn, restless by nature, is to learn as pertaining to God, the ultimate desire of every living being. This concern, however, only remains rooted in the human heart due to a remembrance of God that accompanies it in everything that is done or undone. The memory ultimately means spiritual link of human interiority that allows living the reality of the immediate world, and where is the unfolding of the subjective and objetive being of each one. Keywords: Memory. Intelligence. Will. Knowledge. Mens. Holy Trinity. Image and likeness. 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO………………………………………………………………………...…… 8 1 PRIMEIRO CAPITULO: Memória e conhecimento …………………………...………. 19 1.1 O verbum mentis ………………………………………………………………. 19 1.2 O ato de conhecimento ………………………………………………………... 25 2 SEGUNDO CAPITULO: Memória enquanto notitia e cogitatio……………...………… 37 2.1 Notitia: o autoconhecimento da mens…………….……………...…..………… 49 2.2 O se cogitare: pensar a respeito de si …………………………………......…… 56 3 TERCEIRO CAPITULO: Memoria, intelligentia, voluntas …………………………..... 65 3.1 A trindade analógica ……………………………………………………..……. 66 3.2 Temporaliter: A expressão temporal da mens .…...…………………..………. 69 CONCLUSÃO…….…………………………………………………………………...…... 76 REFERÊNCIAS….……………………………………………………………..…………. 79 7 INTRODUÇÃO Para Aurélio Agostinho não havia nenhum objeto de pensamento que lhe causava maior interesse e fascinação de serem conhecidos do que a Deus e ao homem. Disse inclusive ele em seu livro Solilóquios: “Só quero conhecer a Deus e a alma. Nada mais”1. Este foi um objetivo traçado por Agostinho, e muito bem seguido por ele. Em todas as suas obras, é impossível não encontrar uma discussão a respeito de Deus ou do homem. Apesar de serem de naturezas distintas, homem e Deus estão mais unidos do que se imagina, na concepção agostiniana: “Ubi Deus, ibi homo: onde está Deus, aí está o homem” (CAPORALINI, 2007, p. 67). Agostinho nasceu em 354 em Tagaste, pequena cidade da Numbídia, África. Foi batisado em 387, data que revela o auge da sua conversão e adesão definitiva á Igreja e ao cristianismo. Em 395 foi consagrado bispo da cidade de Hipona, também na África. A vasta produção literária de Agostinho pode ser dividida assim: 1- obras de caráter filosófico; 2- obras teológicas; e 3- escritos exegéticos e polêmicos. Escreveu sua obra-prima dogmático-filosófico-teológica “De Trinitate” entre os anos de 399-4192. Agostinho veio a falecer no ano de 430. (BROWN, 2012). O panorama acadêmico, filosófico e espiritual deste africano pode ser muito bem conhecido e com rico detalhes através de suas Confessiones3, onde Agostinho realiza uma espécie de autobiografia, em um gênero literário deslumbrante (BROWN, 2012). Nela podemos reconhecer a enorme gratidão que Agostinho deve às suas influências, sobretudo na figura de Platão e Plotino: O platonismo não foi apenas um 'ingrediente' da evolução espiritual de Agostinho, que culminou na conversão; foi também o instrumento e o tesouro dos conhecimentos mediante os quais – e exclusivamente por meio deles – o seu pensamento se formou. Ora, a filosofia do bispo de Hipona é um produto da cultura cristã que raramente se encontra do decurso da sua história (MORESCHINI, 2008, pp. 454-455). O bispo de Hipona realizou uma espécie de síntese entre a doutrina da Igreja e Platão. Os ingredientes que contribuíram fortemente com este produto final que é a sua filosofia, foram sobretudo Cícero e o neoplatonismo de Plotino. Agostinho constituiu em sua filosofia tardia uma ideia de homem, a partir daquilo que interiormente já lhe estava instituído: a fé em Cristo, o homem-Deus. A sua conversão ao cristianismo fundamentou a grande maioria dos seus trabalhos enquanto filósofo e teólogo (BROWN, 2012). Não é por menos que Agostinho pertence á Patrística, isto é, aos denominados padres da Igreja por serem em certo sentido “pais” da doutrina cristã: “em sentido estrito, um Padre 1 cf. AGOSTINHO, A. Solilóquios. II,7. Ver mais adiante a divergência que há entre certos comentadores a respeito do verdadeiro periodo de redação do De Trinitate. 2 8 (ou Pai) da Igreja deve apresentar quatro características: ortodoxia doutrinal, santidade de vida, aprovação da Igreja, relativa antiguidade (até fins do século III aproximadamente)” (GILSON, 2007, introdução). Dentre estes Padres, Agostinho é o mais importante. Esta categoria da qual hoje participa, custou ao bispo de Hipona alcançar, devido a fortes e constantes embates filosóficos e doutrinários que teve que enfrentar ao longo da vida. Agostinho passou os seus últimos anos defendo a fé cristã das heresias donatistas e pelagianas (BROWN, 2012). Hão de sugerir alguns estudiosos de patrística que Agostinho basicamente exerceu um trabalho de contribuição filosófica cristã meramente como um controversista, isto é, apoiado em argumentos de defesa da fé e não de construção propiamente de uma doutrina. Mas não concordam com isso todos, pois: As duas obras da meia-idade de Agostinho, De Genesi ad Litteram e De Trinitate, são uma prova notável da sua capacidade especulativa. Até um conhecimento superficial desses dois livros é suficiente para desfazer a impressão simplista de que Agostinho só desenvolveu suas idéias como controversista. […] No De Trinitate temos um livro mais radicalmente metafísico que o de qualquer autor grego: ao longo do texto, podemos ver a tensão implícita em abarcar numa única perspectiva o Deus de Abraão e Isaac e o Deus dos filósofos (BROWN, 2012, pp. 343-344). Apesar de Agostinho se envolver em grandes temas filosóficos na redação de seus livros, quando não se sentia a vontade em debater questões das quais não se sentia suficientemente apto, Agostinho simplesmente deixava isso bem claro: Mas no campo da investigação filosófica, os dois livros4 transmitem toda a empolgação de participar de uma busca em que nenhum problema é evitado, nenhuma tensão é posta de lado, e na qual uma obra-prima da especulação desdobra-se com toda a desenvoltura diante de nós: ‘Portanto, que todo aquele que ler estas páginas siga adiante comigo, quando tiver a mesma certeza que eu; que investigue comigo, quando estiver tão hesitante quanto eu; […] Enveredemos juntos, portanto, pelo caminho da caridade, em busca d’Aquele de quem se disse: Buscai mais e mais a Sua face’ (De Trin., I, 3, 5) (BROWN, 2012, p. 344). Há um desencontro entre os comentadores de Agostinho a respeito de quanto tempo ele levou para escrever o De Trinitate. Segundo a edição bilíngüe publicada pela Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), a obra é composta em 400 e terminada em 416; Já a edição bilíngue da Bibliothéque Augustinienne (BA) sugere a composição de 398 a 426, enquanto a edição brasileira da Paulus sugere o início em 399 e o término em 419); Trapé (apud TEIXEIRA, 2003), propõe o início da redação dos livros I-XII por volta de 399 e o término de toda a obra (I-XV) em aproximadamente 420-426; Caron (2004) coincide com a data proposta pela BA. Por fim, Brown (2012, p. 226) sugere o início em 399, a publicação das obras furtadas em 4 De Genesi ad Litteram e o De Trinitate. 9 414 e a publicação corrigida por Agostinho, em 419. De acordo com este último autor, o período em que Agostinho redigiu o De Trinitate e que coincidiu com a redação de Genesis ad literam, foi um período extremamente produtivo do africano, e de grande profundidade teológica e filosófica: “Na meia-idade, Agostinho passou a vida a dar de si: entre 395 e 410, escreveu cerca de 33 livros e cartas extensas. Essa conversão à doação é altamente significativa” (BROWN, 2012, p. 344). Sua teimosia, exigência consigo mesmo e profunda caridade fez que com isso fosse possível, mesmo depois de haver escrito os 12 primeiros livros do De Trinitate, e ter seus escritos furtados. Pensou até em desistir, mas nos presentiou com uma obra completa composta por extensos 15 livros, dentre eles, o décimo, objeto de nosso estudo, teve que ser escrito por Agostinho ao menos duas vezes. O que é certo é que o início da redação do De Trinitate data o ano de 399, coincidindo com o final da redação do livro XIII das Confissões, onde Agostinho, com 45 anos de idade, parece sugerir uma explicação psicológica da Trindade. Devido a esta coincidência de data das redações de ambas as obras, podemos notar a presença de temas em comum entre elas: em especial a questão da memória, que tanto no livro décimo das Confissões quando no décimo do De Trinitate aparecem. A obra sobre a Santíssima Trindade pode ser basicamente dividida em dois grandes blocos. O primeiro vai dos livros I-VIII sendo o livro IX um de transição, desta parte mais teológica para uma segunda, mais antropológica, que vai do X-XV (BERMON, 2009). Encontraremos uma série de pressupostos e de temas da filosofia agostiniana implicados nas palavras de Agostinho. Por esta razão, este trabalho teve como uma das tarefas fazer importantes apontamentos e explicações nos devidos momentos, para que as palavras analisadas de Agostinho fossem mais facilmente compreendidas, e para que sustentassem melhor as nossas explicações e apontamentos dos problemas. O que Agostinho procura fazer nesta obra a partir do livro VIII em diante, é encontrar uma série progressiva de analogias trinitárias, que possam facilitar a ele compreender o imenso mistério que é a Santíssima Trindade: “Daí a complexidade da obra e seu imenso interesse” (AGAESSE; MOINGT, 1997, p. 587)5. Convencido de que não é possível entendê-la pela via direta, ele procura a via indiretas destas analogias. O caminho que ele procura é progressivo e hierárquico: na medida em que encontra uma nova analogia trinitária mais perfeita, ele submete uma à outra, de forma que a última de todas analogias trinitária não só é a mais perfeita que ele conseguiu encontrar como também todas as que a sucederam estão a ela submetidas. Agaësse e Moingt (1997) destacam 8 analogias trinitárias que Agostinho sugere do livro 5 Tradução livre de: “D’où la complexité de loeuvre et son immense intérêt.” 10 VIII ao XV de seu Tratado: 1- amans, amatur, amor67; 2- mens, notitia, amor8; 3- memoria, intelligentia, voluntas9; 4- res (visa), visio (exterior), intentio10; 5- memoria (sensibilis), visio (interior), volitio11; 6- memoria (intellectus), scientia, voluntas12; 7- scientia (fidei), cogitatio, amor13; 8- memoria Dei, intelligentia Dei, amor Dei14. Nesta separação as analogias enumeradas de 1 a 3 estão presentes no primeiro movimento do texto e as seguintes, do 4 ao 8, no segundo movimento: Este primeiro movimento consiste em um aprofundamento vertical no interior do homem, que visa explorar a realidade espiritual dele; e o segundo, um aprofundamento na realidade de sua mens15. A estreita unidade que há entre todas estas analogias é de grande preocupação de Agostinho, portanto ele fará questão de reforçá-las ao longo do texto. Em especial estas três primeiras merecem destaque, afinal compõem todo este primeiro movimento do texto onde Agostinho está preocupado em encontrar no interior da mens a analogia mais perfeita. Este processo encontra seu termo na descoberta que faz no livro X: memoria, intelligentia, voluntas como analogia trinitária mais perfeita e que reside no interior da mens16. Por esta razão o livro X do De Trinitate de Agostinho é um momento privilegiado e profundo da análise do mens na obra agostiniana. Mas nos alerta Bermon: “O raciocínio realizado por Agostinho no livro X do De Trinitate é dificil de ser seguido. Além de denso e complexo, sua 6 De Trinitate., VIII, 10, 14. Obra que, a partir de agora, abreviaremos apenas como DT. O número romano que useremos será apenas para indicar o livro/capítulo que nos referimos na obra. 8 DT., IX, 3, 3. 9 DT., X, 11, 17. 10 DT., XI, 2, 2. 11 DT., XI, 3, 6-9 12 DT., XII, 15, 25. 13 DT., XIII 20, 26. 14 DT., XIV, 12, 15. 15 Isto é, da sua mente: cf. “[…] o que se chama mente não é a alma, mas aquilo que é superior na alma” (DT., XV, 7, 11). O conceito de mens é bastante amplo e por vezes complicado de se entender em Agostinho. É verdade que ele sempre se utilizou deste conceito para definir o homem e, no De Trinitate, não foi diferente. Agostinho entende o homem como um composto de alma e corpo. A alma, porém, é dotada de partes, não no sentido material pois Agostinho já havia abandonado o mterialismo maniqueista há muito tempo quando da redação do De Trinitate. No entanto, são feitas estas separações/divisões na alma a fim de se compreender racionalmente as várias faculdades dela. O conceito de mens traduz o nous grego no sentido de ser a parte da alma capaz de se elevar a Deus. A mens é capax Dei, e é a parte mais nobre da alma justamente em virtude disso. Está acima dos sentidos, da capacidade racional do homem e de sua inteligência. É na mens a sede da memória, da inteligência e da vontade do homem. No De Trinitate, mais do que em outras obras de Agostinho, é importante afirmar este caráter trinitário que ela possui. A mens têm um funcionamento triplamente qualificado, sendo a memória, a inteligência e a vontade um só coisa e ao mesmo tempo três coisas distintas. É deste aspecto trinitário que Agostinho encontrará no De Trinitate o gancho para comparar de maneira análoga esta trindade imanente com a transcendente formada pelo Pai, Filho e o Espirito Santo, que é a Santissima Trindade. Optei por não traduzir no corpo do texto o termo “mens” por mente nem por nenhuma outra palavra, a fim de não cair em problemas de interpretações que já estão suficientemente carregadas ambos conceitos. A ideia de utilizar “mens” em seu idioma original, que é o latim, é a de manter fechado o conceito à ideia que o autor quer imprimir, no recorte do texto que selecionamos. 16 Trata-se da analogia trinitária mais perfeita encontrada por Agostinho neste primeiro movimento de seu texto, que vai dos livros VIII ao XV. Como foi dito, a analogia mais perfeita de todas é a última, do item 8, formada pela memoria Dei; intelligentia Dei; amor Dei (cf. XIV, 12, 15). Esta analogia só se diferencia da de número 3, memoria, intelligentia, voluntas, em função de seu objeto que é Deus. Mas em si, ambas tratam das três atividades superiores da mens onde a psicologia agostiniana encontra o seu centro. 7 11 progressão não é evidente. A reflexão obedece sobretudo a uma lógica rigorosa” (BERMON, 2001, p. 77)17. É esta elucidação da lógica rigorosa utilizada por Agostinho que pretendemos tratar, no que ela se refere à questão da memória presente no livro décimo: qual o significado do aparecimento desta suposta “atividade” da alma no interior deste livro? De que maneira Agostinho entende o papel dela no interior da mens? E porque ela é uma atividade tão importante e necessária para Agostinho, a ponto de estar colocada ao lado da inteligência e da vontade? A memória em nossa concepção parece exercer profunda influência neste conhecimento que a mens tem de si mesma, de Deus e das coisas. Não somente isso, a memória parece ser em Agostinho o elo entre o si mesmo e seu devir. Com efeito, toda a noética agostiniana, passando por sua metafísica e ontologia parecem receber um traço bem marcado do seu conceito de memória. A progressão do texto é difícil de ser seguida e até Agostinho nos solicita que: “[...] para explicarmos essas mesmas coisas com mais clareza há de fazer apelo a uma atenção mais apurada”18. O autor lança, constantemente no texto, raciocínios consistentes de pressupostos dos quais partem suas argumentações, bem como referência à suas influências. Em especial no livro décimo do De Trinitate, Agostinho fez muitas referências indiretas a Cícero19. Da segunda parte deste tratado, que vai dos livros VIII ao XV, o livro décimo nos parece o mais rico em argumentações e conceitos filosóficos de toda a obra. E por isso, Cícero não poderia estar de fora pois é uma influência muito direta no bispo de Hipona, enquanto convertido à filosofia (cf. BROWN, 2012). No penúltimo capítulo do seu Tratado, Agostinho resume enfim aquilo que ele pretendeu realizar em todos os livros anteriores: Eis-nos chegados agora àquela fase da exposição em que tomámos a nosso cargo considerar a parte mais nobre da mente humana, com a qual se conhece ou pode conhecer a Deus, para nela encontrarmos a imagem de Deus20. É sobre esta questão que iremos nos debruçar no decorrer deste trabalho. Agostinho nos apresenta o conceito de memória a partir desta discussão onde ele prevê haver na mens uma imagem analógica da Trindade. Em suas próprias palavras: “A mente humana foi criada de tal maneira que jamais não se lembra de si mesma, jamais não se compreende a si mesma, jamais não se ama a si mesma”21. Há então nela um porto seguro, um eu seguro, que é presente e autoconsciente de si em todos os movimentos da alma: chamaremos de eu-íntimo. 17 Tradução livre de: “Le raisonnement mené par Augustin dans le livre X de la Trinité est difficile á suivre; outre sa densité et sa complexité, sa progresion n’apparaît pas immédiatement. […] La réflexion obéit cependant á une logique rigoureuse.” 18 DT., X, 1.1. 19 Entre os livros utilizados por Agostinho para sustentar sua argumentação, podemos destacar pelo menos: De Inventione, De Republica, Tusculanae Disputationes, De Oratore (cf. ROSA, 2007). 20 DT., XIV, 8.11. 21 DT., XIV, 14.18. 12 É por esta razão que o homem, enquanto imagem e semelhança de Deus, está apto a nos mostrar de maneira mais próxima como são as pessoas trinitárias: Pai, Filho e Espírito Santo. Agostinho é claro em seu posicionamento a respeito do homem, mesmo depois do Pecado Original: “Ela (a mens) é imagem de Deus precisamente porque é capaz de Deus e pode ser partícipe de Deus: um bem tão grande não é possível senão pelo facto de ser imagem de Deus”22. Adiante Agostinho prossegue afirmando que, embora o estrago de Pecado Original seja permanente no homem, contudo ele não o invalida completamente: A Escritura mostra bem que esta deformação não chega ao ponto de apagar por completo aquilo que é a imagem, ao dizer: […] 'Ainda que o homem se agite em vão, todavia caminha em imagem' 23. Ainda mais claramente, nos diz Agostinho do homem que Embora a sua natureza seja sublimem todavia pôde ser corrompida porque não é suprema; e ainda que tenha podido ser corrompida porque não é suprema, contudo é uma natureza sublime porque é capaz de uma natureza suprema e dela pode ser partícipe24. A natureza humana é por esta razão privilegiada e, na mesma medida, misteriosa à nossa total compreensão. A intenção de Agostinho no De Trinitate, como já apresentamos, é clara: Procurar “[...] evidentemente, a Trindade, não uma qualquer, mas a Trindade que é Deus, o Deus verdadeiro, supremo e único”25. Mas para ele é certo de que isto não será possível encontrá-la nesta vida de forma plena, mas somente na vida futura onde veremos a Deus face-a-face (NOLLI, 2001)26. “Por isso”, nos adverte Agostinho, […] tenhamos isto em conta, a fim de sabermos que é seguro o desejo de procurar a verdade do que o tomar antecipadamente por conhecido o que se desconhece. Assim, pois, procuremos como quem há-de encontrar e encontremos como quem há-de procurar27. Abordaremos neste trabalho o ser humano em sua complexidade para poder chegar até à imagem analógica mais perfeita possível da Santíssima Trindade, que podemos ter aqui nesta vida: a mens. Pois acreditamos, junto com o pensador de Tagaste, encontrar nela a memória em sua mais perfeita forma. Para nós, nos interessa apenas o caminho pelo qual autor percorre para chegar a seu objetivo. Se ele conseguiu ou não, não nos cumpre dizer isso. O mesmo vale para o mistério da Santíssima Trindade investigado por ele: é um mistério insondável em sua grandiosidade, que 22 DT., XIV, 8.11. DT., XIV, 4.6. 24 DT., XIV, 4.6. 25 DT., IX, 1.1. 26 cf. 1 Cor 13, 12. 27 DT., IX, 1.1. 23 13 transcende não só à memória enquanto modalidade da mens, como também à capacidade racional do homem. Por isso, deixaremos apenas sublinhado o que pensa Agostinho a este respeito nos momentos oportunos. É certo e está subentendido acreditarmos haver uma coerência no que Agostinho diz em todo o seu Tratado, a respeito dos diversos temas que ele aborda. Jamais poderse-ia apoiar a defesa de um conceito, ou melhor, de uma realidade que é a memória, se houvesse uma discordância entre a nossa opinião e a do autor. O que nos impressiona desde o começo da análise textual, que fundamenta este presente trabalho, é a incrível abrangência que a memória alcança. A psicologia agostiniana como um todo flerta com a metafísica continuamente, e além disso parece render graças à memória em diversos aspectos de sua dinâmica. E não saberíamos dizer como que aqueles que pretendem dissertar a respeito desta psicologia a ignorem parcial ou completamente. A respeito desta obra que escolhemos nos disse Gilson: As profundas especulações psicológicas do próprio santo Agostinho, no De Trinitate, deveriam ser consideradas ora como um esclarecimento da teologia à luz da psicologia, ora como um aprofundamento da psicologia pelo esforço de interpretação do dogma que ela empreende (2006, p. 283). Ter sido criado ad imaginem Dei, isto é, à imagem de Deus, é um mistério profundo para o homem. E este mistério se intensifica ainda mais, quando temos a certeza de que, não só imagem e semelhança de Deus fomos feitos, mas que também Deus encontra a sua morada em nós. Agostinho afirma que no homem interior Deus habita: […] a imagem divina no homem não é apenas, nem principalmente, aquilo em que o homem se parece efetivamente com Deus, mas a consciência que o homem adquire de ser uma imagem e o movimento pelo qual, atravessandose de certo modo, a alma usa dessa similitude de fato para alcançar a Deus (GILSON, 2006, pp. 283-284). Isto não equivale a dizer que somos um “pedaço” de Deus, pois não se trata de panteísmo. Além disso, afirmar que o homem é imagem e semelhança de Deus, [...] não é equiparar naturezas, mas indicar uma elevação ou assunção do homem, por parte de Deus, a uma esfera superior da criação, para convertêlo em um espelho onde Deus se reflita por participação analógica (CAMPELO, 2013, p. 32). Então se cabe ao homem esta honra é por um dom gratuito de Deus, e não por mérito da criatura. Indo mais além, acrescenta Ayoub: “O princípio de toda semelhança situa-se em Deus. Em outras palavras, a Semelhança não está contida no ser semelhante, ela é um princípio que produz a semelhança no ser semelhante” (2011, p. 65). Mas é todo o homem imagem e semelhança de Deus? A fim de formatar a verdadeira identidade do homem, criado pela Trindade, Gilson diz que: 14 A dignidade da imagem pertence somente ao homem. No homem, ela pertence propriamente apenas à sua alma; na alma, ela pertence propriamente apenas ao pensamento (mens), que nela é a parte superior e mais próxima de Deus (2006, pp. 416-417). A memória é uma constituinte da mens, na acepção de Agostinho. Juntamente com a inteligência e a vontade, forma uma tríade que constitui a parte superior da alma humana. Dito isso, Agostinho parece acreditar haver igual dignidade em cada uma destas atividades que compõe a mens, isto é, a memória, inteligência e vontade. Sendo elas interdependentes entre si e presentes umas nas outras. Se tomada no sentido usual, a palavra 'memoria' designa unicamente a aptidão de conservar as lembranças do passado e de reproduzi-las quando necessário. Mesmo reduzida a essa função modesta, a memória já seria um fenômeno surpreendente. (GILSON, 2007, p. 206). Mas Brachtendorf sugere uma nova acepção que Agostinho atribuiu à memória a partir do De Trinitate: “No entanto, Agostinho atribuirá mais uma função à memória no De Trinitate, em que ela não apenas é uma faculdade da lembrança do mundo sensível e do conhecimento de Deus, mas também lugar da lembrança de nós mesmos” (BRACHTENDORF, 2012, p. 219). É inquestionável então a posição que a memória possui na psicologia e na antropologia filosófica como um todo. Alguns dizem que até mesmo Freud tenha sido influenciado por Agostinho para construir a sua ideia de inconsciente, e fundar toda uma teoria psicanalítica cujo núcleo é a idéia de occultam memoriam de Agostinho: “Como observa Madec, a originalidade de Agostinho consistiria em insistir nos diferentes aspectos psicológicos da memória, para permitir a seus leitores perceber suas profundidades 'transpsicológicas'” (MORESCHINI, 2008, p. 478). A expansão dada por Agostinho à questão da memória sem dúvida influenciou significativamente os pensadores posteriores a ele: Em santo Agostinho, ele se aplica a tudo o que está presente à alma (presença que se atesta por uma ação eficaz), sem ser explicitamente conhecido nem percebido. Os únicos termos psicológicos modernos que seriam equivalentes à “memória” agostiniana são ‘inconsciente’ ou ‘subconsciente’, conquanto alargados, […], para incluírem na alma, além da presença de seus próprios estados atualmente não percebidos, a presença metafísica de uma realidade distinta, e trancendente, Deus. (GILSON, 2007, p. 204). E o que isso quer dizer? A memória não se limita à psicologia de Agostinho: tem ainda na metafisica suas raízes. O autor explica que, por exemplo, a memória de Deus na alma seria um caso particular da onipresença de Deus. Portanto torna-se inviável conceber em Agostinho um conceito de memória meramente psicológica e que ignore a existência da transcendência. Enfim, muito mais do que isso, a “[...] memoria se aplica a tudo o que está presente na alma e influi sobre ela, ainda 15 que a alma não esteja consciente disso” (MORESCHINI, 2008, p. 478). O caminho que procurei seguir na execução deste trabalho, em si, foi simples. Basicamente persegui as aparições diretas e indiretas da palavra e tema “memoria”. Procurei desenvolver e explicar em que sentido Agostinho parece querer utilizá-las em cada um dos momentos, a fim de problematizar o conceito de memória em sua abrangência. Contudo, em contato com a densidade e profundidade das palavras de Agostinho, foram geradas grandes dificuldades. Utilizei-me de comentadores para superá-las na medida do possível. Em sentido geral: procurei fazer os esclarecimentos que pareciam devidos somente no momento em que os temas surgiram. Por esta razão, em algumas etapas do trabalho recorria a livros anteriores e posteriores ao livro X do De Trinitate, pois deveriam haver neles explicações suficientes para os problemas. Procurei dar preferência ao próprio Agostinho no esclarecimento de seus conceitos. Porém, nem por isso deixei de usar o apoio dos comentadores. Como foi dito, o livro De Trinitate não dedicou exatamente um capítulo de sua obra para discursar extensamente sobre o conceito de memória. Algo mais parecido com isso, pode ser encontrado no livro X de suas Confissões. Porém creio haver encontrada do De Trinitate todos os elementos necessários para realizar uma investigação profunda e apurada sobre questão da memória: É possível retirar deste livro que selecionei uma perspectiva agostiniana sobre o fenômeno humano, mas que não seja este o enfoque direto de Agostinho. O doutor africano ao escrever o De Trinitate, como procuramos mostrar, está plenamente convecido de que não é possível conhecer Deus pela via direta, portanto parte do ser do homem em direção à Trindade. Para realizar esta ascensão, é inevitável que ele entre no interior da mens e também da memória. Com as suas Confissões o De Trinitate partilha a ideia de busca de Deus no interior do homem: naquele livro, é uma vontade inquieta que busca alcançar a Deus para encontrar seu repouso; neste último, é toda a mens que se percebe esquecida de si e por esta razão distante de Deus. No primeiro capítulo do nosso trabalho, destacarei a partir das palavras e argumentações de Agostinho o papel da memória em relação à linguagem humana. Este tema surge pois Agostinho quer unir memória, conhecimento e amor. O produto direto desta tríade é verbo interior e o verbo exterior. Daí, então, o direcionamento que o texto segue. Agostinho parece encontrar pequenas trindades em todo seu aparato discursivo, do começo ao fim da obra. O recorte que fiz do texto vai do inicio do livro X (item 1.1) ao X, 2.4. é uma parte relativamente pequena com relação ao todo, mas segundo nossa acepção, de bastante relevância á nossa proposta. Boa parte da sua importância se deve ao fechamento que Agostinho faz do final do 16 livro IX, onde ele discute mais intensivamente as questões referentes à aquisição de conhecimento e ao verbo mental. E uma outra parte refere-se em alguns trechos à função propriamente da linguagem e sua importância, não só na relação consigo mesmo, (que identificamos com a aquisição estrita de conhecimento) mas com a sua transmissão e compartilhamento com os outros homens. Por esta razão, nos pareceu pertinente fazer uma pequena referência à transmissão de conhecimento por meio da linguagem, com o papel da memória na realização disto, e suas consequências. A discussão feita nos remete à ideia de memoria Dei que parece estar intimamente vinculada à doutrina da iluminação e que nos move a entender a apreensão que o intelecto tem da verdade. Não só isso, a memoria Dei nos remete imediatamente á ideia de memoria sui, que vai se tornar o tema do capítulo seguinte do trabalho, e que Agostinho faz uma explicação muito profunda e categórica. No segundo capítulo analisaremos os conceitos de notitia e cogitatio em Agostinho, e qual a relação destes dois com a memória. Sendo estes dois aspectos teóricos relevantes para a concepção do homem agostiniano, em que medida ambas idéias se apoiam na memória, tal com entendida por Agostinho? A fim de responder esta pergunta, procurarei problematizar a questão da memória, localizando-a no interior da mens, mostrando a maneira como Agostinho a define. Sobretudo se referindo a esta etapa do livro décimo, Bermon assinala ainda que ela […] contém a análise mais aprofundada do cogito na obra de Agostinho. Esta análise é centrada naquilo que se define por consciência ou conhecimento de si, que é próprio do espírito, a saber, a sua presença a si, que é sua interioridade e imanência, se quisermos usar um termo husserliano28 (BERMON, 2001, p. 77). Este capítulo é o mais denso, por se deparar com o cerne da proposta antropologia de Agostinho, em nosso entendimento, na sua obra De Trinitate. Mas não necessariamente o mais importante29. Agostinho nele levanta questões a respeito do estado pré-reflexivo da mens, onde haveria a presença pura de si e de Deus no homem. Neste momento, Agostinho também explica como entende haver encontrado a memória, ou ao menos uma espécie de memória, que sustentaria este estado pré-reflexivo no homem. A ontologia de Agostinho é indiscutivelmente fundamentada na presença de Deus no homem e do seu papel enquanto criador. O homem, por maior que seja e mais extraordinária sua natureza, ainda não deixa de ser uma criatura. Porém Agostinho parece dar um tratamento diferente ao homem, inclusive com relação a outros filósofos cristãos, exaltando sua grandiosidade e posição privilegiada no cosmos. A análise 28 Tradução livre de: “[…] contient l’analyse la plus appronfondie du cogito dans l’oeuvre d’Augustin. Cette analyse est centrée sur ce qui définit la conscience ou la connaissance de soi que posséde l’esprit, à savoir sa présence à soi, son intériorité ou son immanence, pour reprendre un terme husserlien”. 29 Como veremos, no primeiro capítulo Agostinho parece antecipar e resolver várias questões que ele utilizará apenas dos capítulos seguintes para se explicar, a fim de evitar qualquer tipo de confusão de conceituação. Por iso, esta primeira parte do livro X tem demonstrado fundamental importância na interpretação que buscamos. 17 desta parte do livro X requer um aprofundamento no tratamento destes problemas, para que Agostinho não seja mal interpretado, ficando por suas metáforas e jogo de palavras, apenas um “platônico-pseudocristão”. A maioria dos comentadores que encontramos a respeito do De Trinitate centram sua análise nesta parte do texto, majoritariamente. O que, a nosso entendimento, deprecia a profunda unidade do texto de Agostinho e deixa passar problemas e soluções levantadas por Agostinho, por falta de compromisso com todo o texto. No terceiro e último capítulo abordaremos os temas que aparecem no final do livro X, sobretudo com relação à imagem que Agostinho quer mostrar haver encontrado na mens do homem e que formaria uma imagem analógica da Santíssima Trindade: memoria, intelligentia, voluntas. Por esta razão, este capítulo irá mostrar a equivalência substancial que existe entre estas três faculdades da mens, segundo Agostinho. O que se destaca disso tudo é a igual sujeição que há entre estas atividades da alma com relação à temporalidade. Portanto o funcionamento delas - agora deixando de lado o estado pré-reflexivo do qual Agostinho abordou momentos antes - o autor passa a dissertar sobre estas atividades enquanto substância do pensamento, de caráter reflexivo. É nesta parte que Agostinho parece consolidar de fato a sua concepção de ser humano, colocando a memória em seu devido lugar e exaltando sua real importância. Ao final do texto encontramos uma surpreendente unidade de toda a reflexão feita por Agostinho, já iniciada no final do livro IX e que se estendeu bravamente no livro X. No corpo do texto faremos referências a outras partes do De Trinitate que estejam de acordo com o sentido procurado por Agostinho. 18 1. PRIMEIRO CAPITULO: MEMÓRIA E CONHECIMENTO Agostinho inaugura o livro décimo de seu Tratado sobre a Trindade partindo do seguinte pressuposto, cuja relevância já havia demonstrado ao final do livro IX e que a resolverá ao final desta primeira parte do décimo: “ninguém pode amar uma coisa de todo desconhecida (…)”30 31 . Dito de outra forma, só podemos amar aquilo que, de alguma maneira, conhecemos. A este fio condutor da problemática sobre o processo de conhecimento, daremos o nome de “princípio psicológico”. Agostinho está propondo indiretamente investigarmos o amor que tem todo aquele que se entrega ao estudo de algo, ou seja, de alguém que procura conhecer aquilo que ainda não conhece. A interrogação de Agostinho é uma só: como poderia alguém dirigir seu amor e sua atenção a um objeto de conhecimento, se de fato ainda não o conhece e não o ama? A união do amor a algo implica necessariamente em um conhecimento da coisa e vice-versa. É esta uma tese capital de sua noética. 1.1. VERBUM MENTIS A pergunta parece ser fácil de ser respondida quando temos em vista algo que já conhecemos. Para as conhecidas, faz sentido dizermos que as amamos. Mas e quando se trata de algo que desconhecemos? Como poderíamos amar algo desconhecido? Agostinho prova que é possível. E o faz a partir de uma mudança que dá ao conceito de des-conheido32. Primeiramente, o ponto de partida de Agostinho é o amor na forma de desejante: “o desejo de conhecer”. O desejo é o amor colocado em movimento, da mesma maneira que o amor é a vontade colocada em movimento. O que nos parece, afinal, é haver a primazia da inquietude do coração do homem como ponto de partida escolhido por Agostinho. Esta suposta “primazia da inquietude” fundamentaria o desejo latente do espírito humano em amar, uma vez que a sua vontade está colocada continuamente em movimento diante das coisas e de tudo, enquanto não se acalmar em uma futura companhia de Deus: “[…] fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti”33. 30 No original latino encontramos: “amare omnino nullus potest, diligenter intuendum est (…)” (De Trinitate., X, 1.1.). Farei citações do texto latino no rodapé somente de passagens que julgarei relevante ao leitor tomar conhecimento da maneira tal como se apresenta no texto original. 32 Toda essa sua nova tese tem seu centro na memória. Aquilo do qual o espírito ainda não se esqueceu totalmente, e por isso pode-se dizer “des-conhecido”, precisa ser “re-conhecido”, isto é, “re-lembrado” pela alma. A palavra “relembrar” como sinônimo de “reconhecido” não aparece aqui por um acaso pois, como veremos, conhecer é para Agostinho uma atividade da memória, aonde as lembranças compõem o conteúdo do conhecimento. É disto que Agostinho vai explicar nas etapas seguintes de seu texto. 33 AGOSTINHO, A. Confissões, I, 1. Esta conhecida passagem sela a abertura das Confissões de Agostinho, e no livro 31 19 Esta inquietude ontológica no qual vive todo homem após a Queda34, como supõe a doutrina cristã, onde o Pecado Original feriu toda criatura de Deus, foi capaz também de ferir no homem a sua capacidade própria de amar, o deixando com um coração inquieto, e na sua capacidade de conhecer. O que investiga, então, Agostinho, é um homem-ferido que conhece: e não simplesmente um homem que conhece o que é ser ferido. Esta inversão dos termos demonstra uma realidade a priori na qual todo homem participa, independente de sua vontade e de seu conhecimento a respeito disso. Por isso, primeiramente, haveremos de recordar com o próprio Agostinho, a forma como ele entende a aquisição do conhecimento dada esta condição. A princípio temos que as verdades eternas estão em Deus e são Ele. Nós, enquanto criaturas de Deus, apenas participamos destas verdades, na medida em que Deus se faz presente em nosso interior. Deus não participa em nós de forma atual ou temporária: Deus é uma presença sempre possível. Qualquer asserção verdadeira que se fizer, pressupõe a existência de uma Verdade última que a sustente. E esta verdade é Deus. Tudo o que é temporal, foi feito a partir destas verdades e, quando vemos através da “visão da mente”35, algo que esteja de acordo com a verdadeira e reta razão, então “temos em nós o verdadeiro conhecimento das realidades como, uma palavra que, dizendo-a, geramos dentro de nós, e não se separa de nós, nascendo”36. Todo conhecimento é gerado em nós mediante esta “visão” que a mente têm das realidades eternas que existem em Deus e, das quais o nosso interior participa. O termo deste processo de produção do conhecimento tem sempre como produto um verbo mental (verbum mentis): Conhecer é dizer interiormente o que se sabe. Não pode haver conhecimento sem verbo, na noética agostiniana. “Palavra” em latim se diz “verbum”. A interessante relação que há entre verbo no entendimento de Agostinho e a “palavra”, não é por um acaso. Utilizamos o falso cognato verbum e verbo para designar o conceito de Agostinho de “verbo mental”. Mas a tradução mais fidedigna para “verbum mentis” seria a de “palavra da mente”. Contudo, optamos por estar de acordo com os outros comentadores que preferem dizer “o verbo mental”. O que é proferido exteriormente pela boca, Agostinho se refere como sendo a vox verbi, isto é, a “voz da palavra” ou “som da palavra” (RINCON GONZALEZ, 1992). Esta última porém, embora seja distinta do verbum mentis, tem nele seu pressusposto. O verbum mentis impresso no espírito, segundo Agostinho, se refere a tudo aquilo que é X de seu De Trinitate podemos notar este pressuposto como que implicado. Entende-se por Queda a situação remanescente do homem e de toda a Criação de Deus, após o pecado de Adão tal como ilustrado na narrativa de Moisés no livro do Gênesis da Bíblia cristã. Acredita-se que houve uma diminuição de ser do homem e de suas faculdades psicológicas. Em função disso, Agostinho diz haver uma inquietude ontológica no coração do homem até que ele esteja com Deus, face a face, na beatitude. 35 Em latim Agostinho usa o termo “visu mentis” (cf. DT., IX, 7.12). 36 “atque inde conceptam rerum ueracem notitiam tamquam uerbum apud nos habemus et dicendo intus gignimus, nec a nobis nascendo discedit” (DT., IX, 7.12). 34 20 conhecido, enquanto a memória o pode proferir e designar37 mesmo que a realidade em si de seu conteúdo agrade ou não. Além disso Agostinho defende a ideia de que nos tornamos semelhantes àquilo que conhecemos38: somos in-formados e en-fomados por ele39. O espírito40 humano se assemelha à imagem conhecida que se instala na memória: “De facto, ninguém faz deliberadamente nada que não tenha dito antes em seu coração. Esta palavra é concebida pelo amor seja da criatura seja do Criador, isto é, da natureza mutável ou da imutável verdade”41. O verbo é pressuposto necessário tanto no conhecimento sensível quanto no conhecimento inteligível, de acordo com Agostinho. Desta maneira percebemos haver um conceito comum em ambas formas de conhecimento, sensível e inteligível, que é o do verbo mental enquanto átomo da noética agostiniana. Além disso, a deliberação da vontade está atrelada também a este verbo mental. Assim, a vontade passa a ter uma espécie de conteúdo intelectual, uma vez que esta palavra que se fixa é objeto da inteligência: ou seja, é a inteligência (intellectus) que cede no momento oportuno o seu conteúdo. Desta forma, é o verbo fonte de motivo para o agir, ou seja, de motiv-ação. O placet42 parece encontrar aqui sua estrutura: isto é, o consentimento passa a ser este verbo mental, cuja existência é dinâmica e simultânea a todo e qualquer espécie de conhecimento (MARION, 2008). Existe ainda um elemento que servirá como medium quo43 na geração do verbo mental, e determinará qual será seu possível direcionamento: Este elemento é o amor. Quando há um conhecimento das realidades espirituais e dos inteligíveis, o amor atuante é o caritas. Caso se trate de um conhecimento das realidades materiais, voltado às criaturas e não mais ao Criador, então temos o amor cupiditas. Há uma clara hierarquia de perfeição do amor, aonde o mais perfeito é o caritas e é somente por meio dele que se pode chegar a Deus com o auxílio da inteligência. O verbo mental sempre se forma, por ocasião do ato de conhecer, mas a sua qualidade pode variar entre amor caritas ou cupiditas. Segundo moral agostiniana, haverá sempre estreita relação com este verbo mental e a vontade. “Ora, a palavra nasce quando o que pensamos é de molde a pecar ou fazer o bem.”44 37 Proferir e designar são atividades da alma que supõem a memória. Contudo, na noética agostiniana, a definição no conteudo, ou seja, o significado designado por um signo é atribuido á Deus. 38 Esta é uma importantissima posição de Agostinho, e que destacará sua psicologia com esta singularidade. A semelhança da alma com a coisa, sensivel ou espiritual, para Agostinho determinará questões teológicas do tipo: condenação e justificação. Sobre este assunto trataremos apenas no próximo capítulo deste trabalho. 39 Adquirimos como que nossa substância e forma por meio do conhecimento. As plavras substância e forma em Agostinho são totalmente alheias ao sentido dado por Aristóteles. Procuramos utilizar estas palavras para temos dela apenas uma aproximação conceitual. 40 Optamos designar por “espírito” àquilo que Agostinho denomina em latim por animus. 41 “nemo enim aliquid uolens facit quod non in corde suo prius dixerit. Quod uerbum amore concipitur siue creaturae siue creatoris, id est aut naturae mutabilis aut incommutabilis ueritatis” (DT., IX, 7.12). 42 Palavra latina entendido aqui neste contexto como “consentimento”. Trata-se de um ‘sim’ que a vontade ‘diz’ à sua inteção interior. 43 Termo latino que designa “meio pelo qual”. 44 DT., IX, 8.13. 21 Apesar de vontade e verbo mental estarem muito próximas, jamais serão confundidas umas com as outras: “Logo, o amor, como mediador, une a nossa palavra e a mente da qual é gerada e associa-se a elas, como terceiro elemento, num abraço incorpóreo, sem nenhuma confusão”45. Resume, então, Agostinho: Palavra é, portanto, aquilo que agora pretendemos designar como sendo o conhecimento com amor. Quando, pois, a mente conhece e ama, a sua palavra une-se a ela com amor. E visto que ama o conhecimento e conhece o amor, não só a palavra está no amor, mas o amor na palavra, e ambos estão naquele que ama e naquele que diz46. Agostinho faz uma associação ao final do livro IX entre a geração de um conhecimento com a geração de um filho: conhecer é parir. Neste sentido, diz Agostinho, investigar é desejar parir, isto é, querer dar à luz a um conhecimento. Este parto é realizado no interior da mens, que é incitado por um desejo da vontade. Este desejo é o primeiro momento, que antecede a geração do conhecimento e que, por sua vez, precede a ação exterior, material. A fruição também conhecida como o gozo da vontade, pode ser considerada a última etapa do processo voluntário, onde acontece de fato a efetivação do ato volitivo e deleite do resultado: E o mesmo desejo pelo qual se anseia pela coisa a conhecer torna-se amor da coisa conhecida, enquanto possui e abraça essa descendência amada, isto é, une o conhecimento àquele que o gera.47 A intenção original de Agostinho parece ser apenas a de demonstrar que há uma íntima relação entre estes três elementos: mente, conhecimento e amor48. E é isso que ele demonstra finalmente no livro IX. Sendo na mente a memória a principal atividade de destaque e no conhecimento, o verbo, cuja existência esta intimamente relacionada ao amor, com quem aquele realiza a cópula. Com as palavras de Agostinho, temos a seguinte conclusão: Eis uma imagem da Trindade: a própria mente e seu conhecimento, que é sua descendência e sua palavra, de si gerada, e, como terceiro, o amor, e estas três coisas são uma só coisa e uma só substância49. Ao final do livro IX, enfim, temos uma primeira imagem analógica da Trindade: mens, notitia, amor, que: “(…) formam uma trindade de termos iguais e inseparáveis. Eles se interpenetram sem se misturarem em uma só substância” (BERMON, 2009, p. 71). Com este 45 “uerbum ergo nostrum et mentem de qua gignitur quasi medius amor coniungit seque cum eis tertium complexu incorporeo sine ulla confusione constringit” (DT., IX, 8.13). 46 “uerbum est igitur quod nunc discernere et insinuare uolumus, cum amore notitia. Cum itaque se mens nouit et amat, iungitur ei amore uerbum eius. Et quoniam amat notitiam et nouit amorem, et uerbum in amore est et amor in uerbo et utrumque in amante atque dicente” (DT., IX, 10.15). 47 “idemque appetitus quo inhiatur rei cognoscendae fit amor cognitae dum tenet atque amplectitur placitam prolem, id est notitiam gignentique coniungit” (DT., IX, 12.18). 48 mens, notitia, amor: A segunda analogia trinitária na divisão adotada por Agaesse e Moignt (1997). 49 “et est quaedam imago trinitatis, ipsa mens et notitia eius, quod est proles eius ac de se ipsa uerbum eius, et amor tertius, et haec tria unum atque una substantia” (DT., IX, 12.18). 22 pressuposto, partimos para o livro X efetivamente, onde o autor irá aprofundar sua noética. Agostinho afirma no princípio do texto que a alma ama algo “porque conhece de um modo geral a beleza dos corpos pelo facto de haver contemplado várias, e tem razões para aprovar interiormente aquilo por que anseia exteriormente”50. O que isso significa? Por haver se deparado exteriormente com outras coisas belas, a alma sabe que o belo existe e quando vê exteriormente algo belo, logo identifica. Estas são as ditas “generaliter corporum”. Há no espírito do homem, uma imagem que fica retida destas generalidades corpóreas. Não seria possível, então, segundo Agostinho, conhecermos algo em que não houvesse em nós certo conhecimento prévio a respeito do objeto: sempre há algo nele que conheço e, por isso, posso dirigir o meu amor, ou seja, a minha vontade: “Quando isto se verifica, o amor que nasce não é de uma coisa totalmente desconhecida, uma vez que o seu género é assim conhecido”51. Mas Agostinho não pára aí: ele aponta para um conhecimento que vai além destas generalidades exteriores, tomando o caminho da interioridade onde lá “conhecemos na própria verdade”52. A estes ele denomina: o conhecimento dos saberes53. Esta asserção afirmativa aponta logo de início ao surgimento, mesmo que velado, de seu conceito de memória. E por que pode-se dizer isso? Pois, diz o próprio Agostinho logo em seguida que: “se não tivéssemos uma noção de cada saber impressa ao de leve (sic), no nosso espírito, não nos inflamaríamos no desejo de o conhecer”54. Há uma estreita unidade entre o desejo de conhecer e esta dita “impressão no espírito”. Como se uma influenciasse a outra mutuamente. Ora, onde poderia ser no espírito a residência desta impressão senão na memória? Reforçará Agostinho este fato mais adiante, quando irá explicar o que entende por signo. A questão da “impressão no espírito” aparece duas vezes neste início do livro X, e ela remete em ambas ocasiões diretamente á memória55. Esta espécie de conhecimento que ocorre na própria verdade, como dito por Agostinho, é entendido como o conhecimento dos inteligíveis em oposição aos sensíveis. O conhecimento intelectual se relaciona com aquilo que Agostinho entende por “conhecer na própria verdade”, uma vez que estas palavras nos remetem á sua teoria da iluminação ou doutrina da iluminação que, por ser sua antiga bagagem teórica, Agostinho não a explica no De Trinitate. (BROWN, 2012). 50 “”(DT., X, 1.1). DT., X, 1.1. 52 Em latim, “[...] amamus quas novimus in ipsa veritate” (DT., X, 1.1). 53 A expressão que ele usa é interessante, pois remete ás suas Confissões onde ele usa o mesmo termo. No livro X das suas Confissões, Agostinho atribui à memória o papel de armazenador do conhecimentos dos saberes. (cf. AGOSTINHO, 2009, pp. 265-321). 54 DT. X, 1.1. 55 O aparecimento da memória, portanto, já neste início do livro décimo, acontece por uma necessidade natural do próprio problema que Agostinho se põe a investigar: A memória surge como peça chave que articula de forma importante a noética agostiniana. Não somente isso, nesta análise da mens como um todo que Agostinho faz, a memória aparece como parte constituinte, cuja fundação tem como base o ato de conhecimento, e tudo o que o envolve. 51 23 Contudo se faz necessária para nós a recordação daquilo que o bispo de Hipona entende por esta doutrina, a fim de localizarmos a verdadeira posição que a memória ocupa na metafísica e na ontologia agostiniana56. A doutrina da reminiscência de Platão foi, sem qualquer dúvida, a fonte de inspiração para Agostinho elaborar a sua doutrina da iluminação. Ele se baseou em uma passagem da República de Platão, que traduz mais ou menos esta ideia: O Bem, diz Platão, é comparável ao Sol e à sua luz. Assim como o Sol torna as cores das coisas e as coisas em geral visíveis e os olhos capazes de ver, analogamente o Bem torna as realidades ideais inteligíveis e a alma racional inteligente, ou seja, capaz de conhecer os inteligíveis. O Bem, portanto, para Agostinho, se identifica com Deus: é ele a causa da verdade e da capacidade57 do espírito do homem de conhecer a verdade. Ora, a maneira pela qual o pensamento alcança a verdade não permite supor que ele seja o autor dela. Disso Agostinho não abre mão da doutrina platônica da reminiscência. Por ter um caráter metafórico, Agostinho sofreu ao longo de toda a história da filosofia fortes críticas58. Doucet (2004) define junto com Gilson (2003) a iluminação agostiniana como sendo uma percepção intelectual das verdades fundamentais, as quais manifestam a ação superior de uma Verdade pura e transcendente que a faz ver indiretamente. Deus então é Aquele que ilumina o intellectus humano. A teoria da iluminação em Agostinho é a descoberta de um critério que garante o julgamento e a posse da verdade, e não se trata de um processo de abstração intelectual (DOUCET, 2004). Ela engedra não só o conhecimento mas também a posse da verdade deste conhecimento, no ato cognoscente do espírito. Acima de tudo, a iluminação divina é imediata: exerce sua atividade na mens, sem passar por qualquer intermediário. Agostinho ressalta que: [...] não vemos somente a verdade por Deus, mas nele, o que significa afirmar que é na verdade divina que vemos a verdade e que, no tocante a nós, a visão desta verdade divina nos permite conceber as verdades. (GILSON, 2007, p. 169). O problema disto na doutrina agostiniana em geral é que se a operação iluminadora de Deus cessa, as criaturas param de agir e de ser. O mesmo acontece se a presença iluminadora da verdade cessar no homem: a mens é imediatamente lançada nas trevas. O conhecimento sensível não sofreria nenhuma dano, uma vez que para Agostinho a iluminação divina só é necessária para os inteligíveis. Afinal, quem negocia com o sensível é a razão; e quanto ao intelecto, se ocupa somente dos inteligíveis, realidades espirituais incorpóreas. Em suma, na doutrina agostiniana devem haver portanto três princípios básicos para se 56 A teoria da iluminação agostiniana foi: “Esboçada desde a conclusão do De beata vita; sugerida nos Solilóquios, […] e se desdobra em todo o De magistro e se afirma explicitamente na conclusão deste.” (GILSON, 2007, p. 154). 57 É Deus quem sustenta o ser do homem e portanto faz o espírito do homem capaz de conhecer. 58 Para outras indeterminações agostinianas recomendamos a leitura de GILSON, E. Introduction á l’étude de Saint Augustin. 2ª édition. Paris: Vrin, 2003, pp. 141-147 e 299-323. 24 garantir a Iluminação do intellectus: 1- A alma tem critérios de conhecimento imutáveis e necessários que lhe vêm de Deus; 2- A mente de Deus tem em si os modelos imutáveis e eternos (=Ideias) de todas as coisas; 3- Deus, no momento da criação, participa às coisas a capacidade de manifestar-se pela verdade, e às mentes a capacidade de colhê-las (DOUCET, 2004). A plena realização do conhecimento em Agostinho é transpsicológica, ou seja, ultrapassa a imanência do intellectus, pois depende de Deus. Pode-se dizer isso em virtude da relação que se estabelece entre a verdade e o intelecto. Dentro deste panorama, podemos perceber que a metafísica de Agostinho insere a memória como faculdade de dupla identidade da mens: imanente e transcendente. Intimamente unida ao amor e à inteligência, Agostinho já parece resolver, em pequena medida, todos problemas que pretende enfrentar em todo o livro décimo59. Acima de tudo, o pressuposto é o de que “de modo nenhum se pode amar aquilo que de todo se desconhece”60. Este princípio psicológico é resolvido pela memória, em sua união íntima com o desejo de conhecer, que é uma forma da vontade e a inteligência, aonde tudo acontece. Isso porque há sempre por trás de todo e qualquer conhecimento intelectual uma recordação, “ao menos de leve”, como disse Agostinho, e que é subjacente a ele. Aquilo que se “des-conhece” é a memória que “re-conhce” a partir de suas lembranças na forma de visão atual das ideias de Deus. Então, diferentemente de Platão, Agostinho não explica o conhecimento como sendo uma lembrança do passado – do mundo onde a Alma contemplou às Ideias antes de se encarnar em um corpo – , mas uma recordação do presente. 1.2. O ATO DE CONHECIMENTO Ao adentrarmos no contexto da noética metafísica de Agostinho, ele procura fazer um aprofundamento vertical a respeito do processo de entendimento, que é pressuposto de todo conhecimento de fato instalado na mens. Para Agostinho, este processo compreensivo se dá primeiramente através do sentido da audição: “Do mesmo modo, se alguém ouvir um signo que desconhece, como por exemplo o som de alguma palavra cujo significado ignora, deseja saber o seu significado”61. Ele chama atenção aos seguintes aspectos62: 1º sabe-se que aquele som pronunciado trata-se de uma palavra, isto é, de um conjunto de sílabas dotada de sentido; 2º sabe-se também que este som dotado de sentido é igualmente dotado de significado. Ou seja, sabe-se que toda palavra pode 59 Já no final desta primeira sessão 1.1. DT., X, 1.1. 61 DT., X, 1.2. 62 cf. DT., X, 1.2. 60 25 ser um signo, desde que remeta a um signficado, isto é, que “evoca uma realidade que foi insituída para aquele som”63 64. Somado a isso, o desejo ardente do espírito em conhecer se intensifica na medida em que estes dois aspectos destacados se realizam: “Por isso, quanto mais conhecido é esse signo, sem ser embora totalmente conhecido, tanto mais o espírito deseja conhecer o que dele lhe falta saber”65. Agostinho remete neste contexto mais uma vez à memória pois, ao dizer a respeito do som da palavra, indica que “a sua imagem articulada foi-lhe impressa no espírito pelo sentido da audição”66 67 . Esta articulação refere-se exatamente a estes dois aspectos acima indicados. Seja como for, sua imagem imprime-se no espírito. Esse espírito é o depositário das impressões das palavras, que, como vimos, Agostinho indica como sendo a própria memória68. Algumas páginas a frente, Agostinho irá dizer que o espírito opera não apenas no sentido estrito de conhecer, mas também no sentido amplo do pensar69. O processo de entendimento se estende aos outros sentidos, não ficando restrito apenas ao sentido da audição, pois o espírito a todos englobam. Como exemplo, o autor o caso do analfabeto, dizendo que este “recolhe, não com os ouvidos, mas com os olhos”70. Os sentidos são instrumentos, ou melhor, meios, para que na mens sejam formados finalmente o verbum mentis. Mas é somente a “palavra interior” que pode se tornar dotada de significado. Mesmo havendo o homem visto uma palavra escrita, ela nada seria útil num processo gnosiológico se fosse carente de significado: “se apenas soubesse que essa palavra existia e não soubesse que ela era signo de alguma coisa, já não procuraria mais nada, tendo apreendido pelos sentidos, na medida das suas possibilidades”71. Em uma categoria imanente do conhecimento, onde há a presença do verbum mentis, mas trata-se de conhecimento sensível, Agostinho chama atenção ao problema da significação enquanto constituinte do pensamento. Agostinho passa a associar a memória à atividade de recordar o significado das palavras. Todas estas generalidades de coisas corpóreas das quais falamos acima, para que o homem possa se referir a cada uma delas, é necessário o uso do signo. Como poderia então haver, entre as pessoas, um real entendimento a respeito das coisas visiveis e invisiveis senão pela fala? 63 DT., X, 1.2. Importante frisar que significado é a qualidade de algum significante. Podendo ser um ou mais significados possíveis para um mesmo significante. Não há, portanto, um significado, mas algum ou alguns. 65 DT., X, 1.2. 66 DT., X, 1.2. 67 No orignal lê-se: “et articulatam speciem suam impressit animo per sensum aurium”. 68 Mais adiante no texto, como destacaremos, ele fará uma referência direta e não mais indireta e ainda usará a própria palavra latina “memoria”. 69 No original: “animum quam nouit et cogitat”. 70 DT., X, 1.1. 71 DT., X, 1.2. 64 26 Ora, a palavra enquanto instrumento da linguagem, na qual os homens partilham uns com os outros, encontra na memória seu principio. É devido à capacidade dela de reter palavras e poder evocá-las quando quiser, que faz da memória um fundamento da sociabilidade do homem: somente por meio dela é possível haver um encontro com o outro efetivamente. A linguagem para Agostinho é intrínsecamente bela em virtude de sua utilidade. Pois, como diz, “(…) não há-de haver ninguém tão desinteressado deste conhecimento que, ao ouvir uma palavra desconhecida, não queira saber que palavra é e, podendo, não procure aprendê-la”72. Agostinho parece associar a aquisição de um novo conhecimento com a aprendizagem de uma palavra desconhecida. Conhecer é, então, descobrir uma palavra que se desconhece. Agostinho faz uma associação ao final da sessão 1.2 entre a beleza própria da linguagem enquanto arte social, pois une as pessoas; e enquanto meio de aprendizagem devido sua centralidade na aquisição de conhecimento. A transmissão de pensamentos entre os homens se dá por meio da enunciação de palavras dotadas de significados. Devido ao fato dos homens possuírem a ciência da utilidade da linguagem, é que reconhecem nela a sua beleza: “é por causa desta beleza conhecida, e amada porque é conhecida, que empenhadamente se procura a palavra desconhecida”73. O ponto pretendido por Agostinho com todo esse raciocínio é, em uma sucinta interpretação, o de mostrar que o fio condutor de todo novo conhecimento é sempre e necessariamente um outro já conhecido: eis aí o seu princípio psicológico por excelência. Isso diz respeito ao seu entendimento com relação a sua teoria da iluminação. Não se trata de uma iluminação puro do intelecto, onde prescinde de substância, isto é, de conteúdo. A força iluminativa, tal como já falamos anteriormente, de fato provém de Deus. Mas ela supõe a natureza humana e com tudo o que existe previamente nela, em suma, de suas lembranças. Conhecer é portanto acessar à nossa memória. Para encerrar esta sessão 1.2, Agostinho retoma a sua primeira trindade analógica formada pela mente, amor e conhecimento (mens, amor, notitia): Se, porém, tiver por inúteis estes livros, talvez julgue que tal palavra nem merece ser guardada na memória, porque vê que não tem qualquer relação com aquele tipo de saber que ele conhece, vê e ama em sua mente74. E é nesta rápida passagem do texto que podemos encontrar a primeira aparição da palavra “memoria”75 no livro décimo e é aqui que a nossa investigação propriamente dita se completa. A aparição desta trindade fecha o ciclo iniciado por Agostinho no começo de seu texto, onde ele retoma o discurso que ocorreu no final do livro IX e dá seu complemento, entrando ainda mais profundamente no interior da mens e direcionando seu raciocínio para a nova e mais perfeita 72 DT., X, 1.2. DT., X, 1.2. 74 DT., X, 1.2. 75 Que, escrito desta maneira, refere-se ao termo latino. 73 27 analogia trinitária que ele haverá de encontrar ao final do livro X, a saber: memória, inteligência e vontade. Este contexto onde apareceu a palavra “memória” sintetiza a concepção agostiniana acerca de seu posicionamento no interior da mens. A memória é aquela capaz de guardar a palavra de dupla maneira: primeiro, enquanto recordação do som das sílabas, que acrescentam à palavra sua estrutura verbal. E esta última é necessária para se haver a linguagem enquanto língua de um povo, com sua estética característica. E a outra maneira é quando a memória se faz faculdade capaz de guardar a palavra enquanto dotada de sentido, isto é, enquanto signo que se refere necessariamente a um significante. Este último é o que identificamos com o verbum mentis. Sem ela, a língua de qualquer povo seria vazia, mas: “importa que saiba que aquela palavra não é vazia, mas que por ela se quer significar alguma coisa”76. O sentido das palavras não são dados pela mente: Elas possuem um significado em si. A mente, sem dúvida, participa de forma privilegiada deste processo de significação, pois a iluminação acontece no interior do intellectus77. Além disso é a mente quem nomeia as coisas, designando algo por uma palavra ou outra. Mas nem por isto é correto dizer que em Agostinho a mente seja a responsável por dotar de significado as palavras. Portanto, unindo as pontas do raciocínio feito por Agostinho até aqui, “guardar na memória” e ser “impresso no espírito” para ele são a mesma coisa. A marca que uma palavra deixa no espírito é deixada sobretudo em sua memória. E cada coisa, sensível ou de natureza espiritual, tal como são os pensamentos, possuem um verbum. E, por se tornarem verbum mentis, é que são conhecidas e amadas no interior da mente. Signo é algo que remete a um significado, como já verificamos. Por exemplo, ao dizer: “retórica”, aquele que conhece esta arte, saberá dizer que este signo refere-se à arte de bem falar. Agostinho problematiza esta questão já nas suas Confissões, remontando sua origem: Por meio de sua memória, ele constata que movimentos voltados para determinados objetos sempre estão associados ás mesmas expressões sonoras. Disso ele conclui que os adultos nomeiam objetos com os sons respectivos. E reconhecer, portanto, que os sons não são meros ruídos, mas palavras dotadas de significado, pelo qual elas designam as coisas. (BRACHTENDORF, 2012, p. 57). Portanto o objeto de desejo e amor do homem, que procura conhecer aquilo que ainda pouco conhece, é um objeto que possui sempre uma ideia intencional: “intentionnalité idéale” (AGAESSE; MOINGT, 1997, p. 602). A união entre significado/significante trata-se sempre de um pressuposto do conhecimento procurado, portanto, se torna um objeto intencional de conhecimento. 76 DT., X, 1.2. Agostinho dá preferência no De Trinitate apenas para dizer que todo esse processo ocorre no interior da mens. O intellectus é apenas uma parte da mens. 77 28 Não há definitivamente desejo de procurar por aquilo que a nada se remete. O próprio Agostinho confirma isso: “Antes de mais, importa que saiba que é um signo, isto é, importa que saiba que aquela palavra não é vazia, mas que por ela se quer significar alguma coisa”78. O significante em Agostinho nunca é vazio pois possui sempre um significado. Áquilo que não se remete a nada, não incita o espírito a conhecê-lo e nem seria possível, uma vez que o desconhecido não pode ser amado, como vimos: De acordo com Agostinho, a aquisição da linguagem já pressupõe uma compreensão do que é um sinal. Essa compreensão é naturalmente dada ao ser humano e atua na linguagem facial e gestual, que a criança já domina […] Por certo, a criança pode, ela própria, fazer essa conversão de gesto em palavra, a saber, com auxilio da memória e da capacidade natural de compreender sinais. É esse o objetivo da afirmação de Agostinho de que não foram os adultos que o instruiram a respeito do caráter de sinal dos fonemas, mas que ele o apreendeu graças á sua inteligência dada por Deus. (BRACHTENDORF, 2012, p. 58). Ao comentar uma passagem das Confissões, Brachtendorf (2012) destaca a presença da memória na passagem da linguagem gestual para a verbal. O contexto do trecho comentado referese ao problema da genealogia da linguagem, objeto de discussão do livro I desta citada obra: Num estágio de comunicação rudimentar, ele tentou exprimir por gemidos, gritos e gestos os sentimentos do coração, para que seus desejos fossem satisfeitos. Mas não podia exteriorizar tudo o que desejava, nem conseguia fazer-se compreendido por todos. No entanto, com auxílio de sua memória, ele logo passou do estágio de gestos expressivos ao estágio de comunicação superior constituído pela linguagem das palavras (BRACHTENDORF, 2012, p. 57). Como é possível perceber, a memória tem um papel ativo no desempenho e desenvolvimento da linguagem, entendida de forma geral. Já presente na criança, a memória atua como um receptáculo interior capaz de armazenar um conjunto de sinais, de tal forma que a criança passará a reproduzí-los posteriormente. Estes sinais, que geralmente se apresentam como uma linguagem facial e gestual, é o que mais tarde converter-se-ão em palavras. Vale destacar que no primeiro livro das Confissões Agostinho parece retomar também alguns problemas referentes à relação signo-significado. O mesmo acontece neste pequeno trecho do De Trinitate como mostramos, mas que nos remete substancialmente ao De Magistro, obra onde Agostinho procura investigar de uma maneira mais profunda que se refere á teoria da linguagem como um todo79. 78 DT., X, 1.2. cf. “Como ex-linguista e professor de retórica, Agostinho dá especial atenção a questões da teoria da linguagem e dedica a ela uma de suas obras mais conhecidas” (BRACHTENDORF, 2012, p. 57). O comentador das Confissões de Agostinho se refere aqui aos livros De magistro (389) e De Doctrina christiana (396/397; 426/427) que são dedicados predominantemente à teoria da linguagem. Esta passagem, então, que destacamos do De Trinitate na verdade tem seus temas remetidos á essas obras majoritariamente. Portanto trata-se de um assunto bastante consolidado em Agostinho e cujo fundamento encontra suas raízes na memória 79 29 No De Trinitate estes são os seus pressupostos, tal como a citação acima demonstra. A memória é então uma faculdade intimamente ligada á atividade comunicativa do homem, no que se refere à recordação latente daquilo que seja um signo; no pronunciamento deste signo (seja gesto ou palavra); e no significado ao qual o signo está associado. A pergunta que imediatamente surge é a seguinte: Adquirimos o conhecimento dos objetos por meio das palavras? A resposta desenvolvida no De magistro é negativa. Agostinho diz a seu interlocutor, Adeodato: ‘Aquilo de que eu gostaria de convencer-te, tanto quando puder, é que nada aprendemos por esses sinais que se chamam ‘palavras’(De mag. 10, 34). (BRACHTENDORF, 2012, p. 59). É claro para Agostinho que as palavras, de fato, nada ensinam. Para ele, essa iluminação é divina, não imanente ao signo, mas trancendente a ele: a Pessoa Trinitária que ensina, de fato, é o Mestre Interior, a saber, o próprio Cristo: “Um só é vosso Mestre, Cristo”80. Nos esclarece finalmente a este repeito Brachtendorf dizendo que: Apenas Cristo é nosso mestre […] somente ele nos põe diante dos olhos objetos inteligíveis, de modo que podemos adquirir conhecimento por meio da intuição intelectual. Palavras, como os mestre humanos empregam, não fazem mais do que lembrar um conhecimento já adquirido, ou nos convidar a voltar o olhar físico ou espiritual para determinados objetos, para investigálos com mais precisão. Mas eles não podem de modo nenhum ensinar no sentido de transmitir, eles próprios, conhecimentos sobre objetos (De mag. 11, 36). (BRACHTENDORF, 2012, p. 59). Ao contrário de outros filósofos, Agostinho é muito simples no seu entendimento da função fundamental da palavra que é a de ser signo, e da função da fala, que é a capacidade humana de acenar para o outro o significado que aquele signo se refere. O bispo de Hipona levanta um problema interessante e de repercussão: […] e qual é a utilidade que se encontra naquela arte pela qual a sociedade humana partilha os seus sentimentos, para que as comunidades humanas se não tornem piores do que qualquer solidão, se os seres humanos, pela linguagem, não puderem comunicar entre si os seus pensamentos?81. A resposta a esta interrogação parece ser clara com a própria situação do homem pósmoderno, que deixou de se interrogar sobre isto e faz da sua vida em comunidade vazia, onde as pessoas não mais se encontram, e à nada remetem àquilo que dizem. É somente a luz da verdade que pode convencer o homem de que é bom e importante entender verdadeiramente alguma coisa. Também preocupado não só com a educação das artes liberais de sua época, o professor de retória, também debruçou sua preocupação posterior na intrução aos catecúmenos, dedicando não só a eles um livro, mas um método.82 80 Tradução livre de: “quia Magister vester unus est, Christus” cf. Mt 23, 10 (in NOLLI, 2001, p. 175). DT., X, 1.2. 82 cf. Sermón a los catecúmenos sobre el símbolo de los apóstoles; La catequesis a principiantes, in AGUSTIN, 1988. 81 30 Em sua pesquisa, Jordão (2009) encontrou um método que pode ser atribuído a Agostinho, na tarefa de ensino, ou seja, na transmissão de conhecimento. Como vimos, o mestre não é aquele transmite o conhecimento, como se passasse de uma cabeça para outra, algo totalmente absurdo83. Tal método consistia em uma admoestação que na verdade tinha a função de estimular a memória dos ouvintes, pois: […] a memória dos ouvintes era o local em que os pregadores ou formadores desejavam depositar e fixar o conteúdo do que ensinavam […] Especialmente para esses últimos, a memória constituía um grande instrumento de aprendizado (JORDAO, 2009, p. 94). Como disse o próprio Agostinho: “[…] o que se chama aprender nada mais é que recordar”84. Muito mais do que um grande instrumento, a memória é o intrumento por excelência do aprendizado, aquisição de conhecimento e reprodução deste (JORDAO, 2009). Sobre a capacidade de se comunicar, diz Agostinho no De Trinitate: A beleza desta arte, pela qual os pensamentos dos homens se dão a conhecer mutuamente pela enunciação de palavras dotadas de significado, é manifesta para a maioria dos espiritos racionais; é por causa desta beleza conhecida, e amada porque é conhecida, que empenhadamente se procura a palavra desconhecida85. Indo mais além, não podemos atribuir à fala uma dependência direta com a memória? Pois, em que sentido conseguiriamos enunciar uma frase inteira, se não houvesse na palavra exterior uma referênca em nós de um verbo interior? Mais uma vez o verbum mentis, imagem intelectual que habita a memória, se apresenta. No discurso agostiniano, ele está sempre pressuposto, e a linguagem tem nele seu fundamento. É o Verbo de Deus, que ilumina e atualiza em nós a verdade das coisas, possibilitando a formação do verbo mental. O Verbo (Logos) é esse Mestre Interior através do qual se faz possível a comunhão dos homens em uma mesma Verdade. Não comungam os homens em uma verdade qualquer, mas sim, na Verdade em si. É neste sentido que em Agostinho não se pode afirmar haver apenas a linguagem que comungam os homem e os une, mas também a existência de Deus, fonte última de encontro da verdade da qual todos participam. A memória enquanto instrumento deste verbo mental que se formou no interior do homem participa igualmente desta iluminação que vem de Deus, ressaltando então, que o divino toca a memória e a faz expandir suas fronteiras. Deus, portanto, é segundo Agostinho presente à memória de todo homem. Temos assim de trancendente no conhecimento intelectual o Verbo de Deus (Logos), e de imanente, o verbum mentis: O intelecto deve receber de fora o conhecimento dos princípios. 83 cf. AGOSTINHO, A. A grandeza da alma. XX, 34. AGOSTINHO, A. A grandeza da alma. XX, 34. 85 DT., X, 1.2. 84 31 Mediante a verdade como segunda Pessoa divina, ele experimente aquele iluminação que o capacita a conhecer o mundo e a si mesmo pelo pensamento. O mestre interior é totalmente trancendente ao intelecto e, por isso, lhe fornece de fora os conceitos fundamentais práticos, lógico-matemáticos e estéticos que estão na base de todo juízo individual verdadeiro. O conhecimento de conceitos como “felicidade” e “verdade” também provém dessa fonte. (BRACHTENDORF, 2012, p. 218). A relação que se estabelece na aquisição de qualquer tipo de conhecimento é entre o espírito e Deus; Mais precisamente entre a memória e Deus. Mas a memória nunca está sozinha no interior da mens, tal como vimos na importância do intellectus na formatação de conceitos verdadeiros. O gancho que Agostinho faz para se chegar às profundezas da mens e, daí, encontrar uma imagem da Trindade, parte da conceituação da memória como princípio de toda atividade intelctual. A questão da memória aparece no De Trinitate como cerne da vida da mens. A competência dos homens em criar uma linguagem, da qual podem participar todas as pessoas, é produto de convencionalismo (BRACHTENDORF, 2012). O verdadeiro significado das palavras transcendem a elas e lhes são anteriores: pois o significado/sentido delas encontram em Deus sua residência: De acordo com Agostinho, a relação de designação é especial, na medida em que um sinal representa o designado, está em seu lugar. A relação concreta entre um sinal e o designado pode ter causas naturais, como a fumaça é sinal do fogo, mas na maioria das vezes ela é estabelecida pela convenção, como, por exemplo, na linguagem verbal (BRACHTENDORF, 2012, pp. 57-58). Em sua conversa com Evódio, no De Magistro, Agostinho chega a uma conclusão parecida: Portanto, como a palavra consta de som e de significação, mas o som diz respeito aos ouvidos, a significação, á mente, não julgas que no nome, como em qualquer ser animado, o som seja o corpo e o significado seja como que a alma? […] o som da palavra pode ser dividido em letra, enquanto sua alma, ou seja, seu significado, não o pode86. O significado das coisas é incorpóreo, imaterial e por isso, indivisível. Contudo é ele o que permanece no pensamento. A memória se relaciona com o intelecto, pois trás à luz de Deus, que está nele, os verbos mentais. O amor quer unir estas duas realidades no interior da mens: temos então, finalmente, uma antecipação formal da trindade analógica, que já se forma a partir do entedimento dos próprios conceitos envolvidos. Agostinho encerra esta primeira parte do livro X de caráter introdutório, procurando fazer a apresentação de sua tese e de seus pressupostos. A maneira como une esta primeira parte e a seguinte de seu texto, acontece com o exemplo que faz do uso das palavras “scio”, “sei”, e “nescio”, isto é, “não sei”. Além de serem parecidas não só pela sua ortografia, são também semelhantes segundo o sentido: Pois, nem só aquele que diz: ‘sei’, e diz a verdade sabe obrigatóriamente o 86 AGOSTINHO, A. De Magistro, 32, 66. 32 que significa saber; mas também aquele que diz: ‘não sei’, e o diz com segurança, e diz a verdade e sabe que diz a verdade, sabe, com certeza, o que significa saber, porque também ele distingue quem não sabe de quem sabe quando, olhando-se a si, diz francamente: ‘não sei’ […] como o saberia se não soubesse o que é saber?87 Com essa afirmação Agostinho dá um novo sentido à ideia de conhecimento, da qual parecia ter falado o suficiente até aqui88. Pois, segundo ele, todos nós sabemos que é saber, ainda que não tenhamos a ciência daquilo que queremos conhecer. Trata-se de uma autoconsciência que a alma tem de sua capacidade cognoscitiva: para se reconhecer nesciente, ela sabe-se a si ciente. O conhecimento então, quando atingido pela alma, pode ser percebido e reconhecido como tal. O mesmo acontece com a situação de não-conhecimento, isto é, de nesciência, que pode ser igualmente reconhecido pela alma. Para finalizar, Agostinho faz o levantamento das possíveis possibilidades que poderiam explicar a sua tese central, a qual denominamos princípio psicológico, que diz: “não é possível amar aquilo que não é conhecido”89. Assim como na frase acima é possível perceber a presença das palavras “conhecimento” e “amor”, nos surge uma importante questão: onde estaria, então, a palavra “memória”? Ora, se é intenção última de Agostinho provar haver na mens essa tríplice identidade, que seria formada pela memória, inteligência e vontade, porque Agostinho então não a expressa claramente? A esta pergunta, realmente, não temos resposta ainda. Mas é fato que parece haver a presença contínua e indireta da memória, como pressuposto, e muito mais intensa até que a da vontade e a inteligência. A partir dos exemplos que Agostinho sugere no item 2.4 do texto, podemos perceber isso melhor. O doutor africano parte para sua última investida na formulação de seus pressupostos introdutórios, levantando possibilidades resolutivas, utilizando-se da conjunção “ou” (em latim, “aut”). Portanto os quatro aut’s que Agostinho aponta são os seguintes: 1- “Ou (se) tem já um conhecimento genérico daquilo que ama e espera conhecê-lo também numa coisa individual ou em cada coisa90 que, não sendo ainda dele conhecida, é ocasionalmente louvada, e cria uma forma imaginária que o instiga ao amor.”91 92; 2- “ou vemos alguma coisa na 87 DT., X, 1.3. Mais a diante, no capítulo XIV, Agostinho irá distinguir o que entende por ciência e sabedoria. “Conhecimento” e “saber”, como apareceu na citação que fizemos, devem ser compreendidos como sinônimos. 89 cf. DT., X, 1.1. 90 Esta tradução do texto latino que utilizamos parece a grosso modo comprometer a nossa interpretação do texto, que se apoia na conjunção “ou”. Contudo, em latim, não há o aparecimento de duas vezes a palavra “aut” nesta primeira sentença, como podemos verificar na nota seguinte. Sendo assim, sugerimos uma melhor tradução deste trecho que poderia ser a seguinte: “ou tem já um conhecimento genérico daquilo, que ama e espera conhecê-lo também na individualidade de cada coisa [...]”. 91 DT., X, 2.4. 92 Do latim: “aut enim genere notum habet quod amat idque nosse expetit etiam in aliqua singula uel in singulis rebus quae illi nondum notae forte laudantur, fingitque animo imaginariam formam qua excitetur in amorem.” 88 33 idéia da razão sempiterna e nela a amamos.”93 94; 3- “ou amamos alguma coisa conhecida por causa da qual procuramos uma desconhecida.”95 96; e 4- “ou alguém ama o próprio saber, o qual não pode ser desconhecido de ninguém que deseje saber alguma coisa.”97 98. A primeira hipótese levantada por Agostinho se refere à imaginação enquanto fonte de motivação para conhecer aquilo que supostamente se ama. Agostinho ao falar sobre a “forma imaginária” acaba por construir o conceito de imaginação, dando a ela a seguinte característica: “e de onde a cria senão a partir daquilo que já conhecia?”99. O termo usado por Agostinho para se referir à imagem produzida pela imaginação100é phantasma. A phantasia, por sua vez, “se refere à imagem de um objeto percebido, retido na memória” (AGAESSE; MOIGNT, 1997, p. 583)101. A imaginação é uma operação da memória na medida em que depende dela para formar esta “forma imaginária” da qual fala Agostinho. Portanto o phantasma é produto de phantasias conhecidas e que, a partir das quais, somos capazes de contruir um novo conhecimento. Em outras palavras, este “conhecimento genérico” seria a ação da mente de utilizar-se das pequenas imagens conhecidas para criar, virtualmente, uma outra102, isto é, produzindo conhecimento. Nesta primeira situação, então, o phantasma é colocado como opção motivadora da produção de um novo conhecimento qualquer. Mas, “se achar que aquela coisa que era louvada é diferente daquela forma figurada em seu espírito e bem conhecida no seu pensamento, provavelmente não a amará”103. Onde seria “figurada” isto é, impressa no espírito, senão na memória daquele que imagina? O problema, portanto, se insere todo no interior da memória nesta primeira hipótese que levanta: caso o espírito julgue ser a phantasia, “coisa que era louvada”, diferente do phantasma, “forma figura”, assim não optaria por amar este novo conhecimento. Assim, em um jogo de imagens, a phantasia e o phantasma deveriam se identificarem internamente para que a imaginação, de fato, seja o meio pelo qual a mente venha a conhecer a uma coisa individual. “Ver” nas “razões sempiternas”, como propõe a segunda hipótese, refere-se à teoria agostiniana da iluminação. A este respeito Agostinho já está suficientemente decidido da relação que há entre a apreensão intelectual iluminada por Deus e a mens como um todo e, por isso mesmo, também com a memória. Ele propõe a visão “em Deus” da verdade a respeito das coisas, como 93 DT., X, 2.4. Do latim: “aut in specie sempiternae rationis uidemus aliquid et ibi amamus” 95 DT., X, 2.4 96 Do latim: “aut aliquid notum amamus propter quod ignotum aliquid quaerimus” 97 DT., X, 2.4. 98 Do latim: “aut ipsum scire quisque amat, quod nulli scire aliquid cupienti esse incognitum potest” 99 DT., X, 2.4. 100 “imagina-ação”, isto é, imagem colocada em ação. 101 Tradução livre de “phantasia désigne l’image d’un objet perçu, retenue dans la mémoire”. 102 cf. AGOSTINHO, A. La Musica. VI, 11.30-32. 103 DT., X, 2.4. 94 34 solução para explicar que podemos de fato amar aquilo que desconhecemos porque, na verdade, nos é conhecido potencialmente em Deus. A questão da iluminação divina no processo de conhecimento implica em uma relação do conhecimento habitual e a memória do presente, na concepção de Agostinho104. A terceira hipótese sugere uma motivação da vontade a partir do conhecimento que temos atualmente de algo. Ou seja, o amor por algo atualmente conhecido nos move a querer e amar algo desconhecido: “o amor desta coisa desconhecida de modo nenhum nos prende, mas sim o amor da coisa conhecida”105 E, por esta razão, assim somos movidos a conhecer o desconhecido. E por último, quando se ama o saber em si, em lugar de qualquer outro objeto do pensamento e independente dele: “[…] é por estas razões que parecem amar uma coisa desconhecida aqueles que querem saber uma coisa que não sabem e, em razão do vivo desejo de procura, não pode dizer-se que não têm amor”106. Como sabe alguem o que é o saber em si, senão por meio de uma lembraça que tem dele? Ora, o que pode-se notar na análise destas sentenças de Agostinho, que visam justificar e solucionar o seu problema inicial, é que em todas elas está pressuposta de uma forma ou de outra a faculdade da memória. Desta maneira, ele passa a descrevê-la de uma forma indireta porém bastante precisa. Talvez até ela apareça de forma sutil, como vimos na hipótese de número dois, mas é inquestionável a suposição de sua presença. Embora seja curta esta parte do texto onde Agostinho mostra seus pressupostos, densas são suas asserções. O bispo de Hipona fará uma virada textual relativamente pequena, mas de grande repercursão. Ele colocará a partir de uma introspecção do espírito, o “si mesmo” como objeto de sua investigação. Como ele mesmo esclareceu, até agora estava mostrando seus princípios fundamentais aplicando-os áquilo que é “distinto de si”: “Mas como os exemplos que demos são os daqueles que desejam conhecer uma coisa distinta de si, há que ver se acaso não surge algum género novo quando a mente deseja conhecer-se a si mesma”107. Será então que quando a mens procura analisar a si mesma, estes princípios se mantém? Haveria alguma diferença fundamental entre o conhecimento que a alma tem das coisas distintas de si com relação ao conhecimento que ela tem de si? E, em tudo isso, onde e como a questão da memória se insere? Quando a mens tem por objeto a si mesma, há uma identificação de natureza entre aquele que conhece e o que é conhecido, pois ambos são de natureza espiritual. Esta identificação ocorre no nível virtual, no interior na mens, pois trata-se de uma aptidão que a alma tem de se conhecer, 104 Por reconhecer isso, Agostinho irá abrir uma possibilidade de se explorar melhor esta relação entre o conceito de iluminação do intelecto e a memória do presente mais ao termo do livro X. 105 DT., X, 2.4. 106 DT., X, 2.4. 107 DT., X, 2.4. 35 mesmo sem pensar explicitamente a respeito de si. Ou seja, a mente tem em sua memória um conhecimento de si que é latente e implícito, designado por Agostinho como sendo a notitia. Vimos que o homem não só é capaz de conhecer, em função do acesso privilegiado que tem às “razões das coisas”, mas que também é capaz de transmitir para os outros este conhecimento, em função de capacidades que são próprias da memória, por meio da linguagem. A mens, dotada de inteligência e capaz de conhecer, dá ao homem uma posição superior às demais criaturas no cosmo ordenado por Deus. Contudo, nos lembra Jordão que […] a alma não deve se exaltar quanto à posse da inteligência: sendo antes uma doação de Deus, os méritos de tal posse não recaem estritamente sobre a especificidade da natureza da alma. Daí deriva o preceito de que a inteligência deve estar a serviço de Deus e da ordem do universo (JORDAO, 2009, p. 75). Agostinho continuamente fará esta ponte entre psicologia e metafísica, mas é importante ressaltar que Deus não está em nosso pensamento como uma espécie de lembrança profunda que ora o pensamento perde de vista, ora encontra: “A idéia de Deus é inata ao homem como idéia da verdade. É ela que confere à aspiração humana uma natural orientação para Deus” (BRACHTENDORF, 2012, p. 217). Em resumo, não é em nós, mas sim em Deus que encontramos a Deus. Mas o que isso significa? A memória de Deus na alma, de que Agostinho fala é, portanto, somente um caso particular da onipresença de Deus nas coisas […] mas é um caso particular, a ponto de ser o único, posto que somente nele a criatura traz uma consciência íntima dessa presença divina. Deus está com todas as coisas; só o homem, se quiser, pode estar com Deus, pois somente o homem experimenta e conhece a presença universal de Deus nas criaturas (GILSON, 2007, pp. 209-210). Lembrar-se de Deus neste outro sentido, não é apreendê-lo como uma imagem passada, mas prestar atenção à sua presença perpétua e contínua. Estas questões rodam o mistério da memoria Dei postulada por Agostinho108. Mas ele opta por, antes de discutir sobre o mistério da união íntima e ontológica entre o homem e Deus, investigar o conhecimento que o homem tem de si mesmo. De acordo com o caminho empreendido por Agostinho até agora, tratamos a respeito do conhecimento que temos de coisas distintas daquele que conhece, ou seja, distintas do ente cognoscente. A seguir, o objeto de investigação passará a ser o conhecimento que a mens tem de si mesma, isto é, passaremos a tratar da questão do autoconhecimento reflexivo: Mas como os exemplos que demos são os daqueles que desejam conhecer uma coisa distinta de si, há que ver se acaso não surge algum género novo 108 Utilizaremos esta nomenclatura algumas vezes neste trabalho, a fim de tornar mais didática a compreensão do assunto. Mas não apareceu esta expressão “memoria Dei” em todo o livro décimo do De Trinitate. As expressões que podem ser de fato atribuidas a Agostinho, que aparecerão logo a seguir em seu texto, e que rodeiam o tema memoria Dei neste livro, são apenas: ‘occultam memoria’; ‘memoria sui’; e ‘memoria beatitudinis’. Esta última refere-se a uma das consequência da memoria Dei presente no homem, que é o desejo de beatitude. Esta nossa opção tem em vista o fato de que a nomenclatura é comumente empregada pelos comentadores de Agostinho. 36 quando a mente deseja conhecer-se a si mesma109 . Nesta frase que serve de prelúdio para a parte que se segue, Agostinho faz o uso formal pela primeira vez da palavra mens: trata-se, portanto, do conhecimento que a mens tem de si mesma, e qual seria o papel oculto da memória nesta questão do autoconhecimento reflexivo. 2. SEGUNDO CAPITULO: MEMÓRIA ENQUANTO NOTITIA E COGITATIO O primeiro problema que Agostinho levante é o seguinte: “O que é que a mente ama quando com ardor se procura a si própria, para se conhecer enquanto de si é desconhecida?”110 Primeiramente, o interlocutor sabe que quando a alma procura se conhecer é verdade dizer que ela se ama, caso contrário não faria esta busca. Pois só sabemos amar aquilo que conhecemos. Agostinho praticamente usou o capítulo anterior inteiro para conseguir provar isso e que agora tornou-se apenas um pressuposto. É certo então dizer que a alma se ama quando procura a si mesma. Mas a questão que aparece agora é outra: Mas o que nela ama, quando a si se procura? Responde Agostinho: “Se a si mesma, de que modo, uma vez que ainda não se conhece, e ninguém pode amar o que não sabe?”111 O problema então, aparentemente, permanece. O que pretende afinal Agostinho diante deste paradoxo? O tema do “conhecimento de si” ou do “autoconhecimento” é e sempre foi um problema recorrente entre os filósofos. Agostinho vem de uma descendência, onde já haviam seus contemporâneos problematizado esta questão, dentre eles os céticos, platônicos e neoplatônicos. Porém Agostinho refuta cada um deles e inaugura uma nova escola. Apesar de uma forte inspiração neoplatônica, Agostinho ainda se distancia um pouco deles: Mais precisamente Agostinho se inspira no Tratado sobre o conhecimento das hipostases (V, 3), onde Plotino refuta as objeções dos céticos formulando a possibilidade de encontro com o conhecimento de si. É então no contexto de uma argumantação onde o caráter é essencialmente refutativo e aporético que Agostinho afirma imediatamente que o espirito se conhece a si mesmo (BERMON, 2001, p. 78)112. Mas como é que Agostinho chega à conclusão que o conhecimento de si é um conhecimento imediato, tal como sugere Bermon (2001)? Em uma análise do texto desta seção de número 3.5, 109 DT., X, 2.4. DT., X, 3.5. 111 DT., X, 3.5. 112 Tradução livre de: “Plus précisément, il s’inspire vraisemblablement du traité Sur les hypostases qui connaissent (V, 3), dans laquel Plotin réfute les objections que les Sceptiques formulaient à l’encontre de la possibilité même de la connaissance de soi. C’est donc dans le contexte d’une argumentation don’t le caractère est essentiellement réfutatif et aporétique qu’Augustin affirme d’emblée que l’esprit se connaît lui-même.” 110 37 percebemos, mais uma vez, que Agostinho aponta as possibilidades resolutivas para este problema, a partir de conjuções verbais latinas.113 Agora, porém, ele usa o termo “an” antes de cada sentença114. É Bermon (2001) quem nota que Agostinho no item 3.5 do livro décimo se refere às diferentes hipóteses relativas à origem do conhecimento de si, começando sempre com a conjunção latina “an”- que tem a mesma função no português que a conjunção “ou”. O que ele não nota é que este recurso argumentativo já havia sido feito por ele anteriormente, como procuramos mostrar. E ainda, sob nossa interpretação, há uma razão lógica para isto. São hipóteses muito semelhantes em ambas situações, embora Bermon as aborde de uma outra maneira. E é justamente a terceira hipótese desta parte do texto que Agostinho irá se apoiar para realizar uma evolução textual. Em outras palavras, o caminho que Agostinho usa para sustentar sua argumentação é formalmente semelhante ao que ele fez anteriormente, mas o que de novo ele agora faz, é justamente o passo evolutivo de toda a sua filosofia que fará atingir ao fim que ele procura. As hipóteses que nos referimos como nos apresentou Bermon (2001) surgem sucessivamente umas às outras e são elas: 1- O conhecimento de outros espíritos; 2- O conhecimento da beleza que há em conhecer-se a si mesmo; 3- O conhecimento do soberano bem; 4- E o conhecimento de se conhecer conhecendo115. É notável que em todos estes pontos Agostinho destaca implicitamente, mais uma vez, a importância da memória. Anteriormente, a memória era somente um pressuposto no conhecimento que a alma tem de coisas distintas de si. Agora, porém, aparece como sendo pressuposto também no conhecimento que a alma tem de si mesma e de Deus. O que Agostinho mostra, porém, neste segundo momento, é uma outra coisa. Pois quando a alma procura um autoconhecimento e não mais um conhecimento a respeito de uma coisa distinta de si, não tem como a mente não se conhecer a si totalmente, ao cumprir estas hipóteses que sugere. Este é o plano de fundo do raciocínio de Agostinho neste momento. A primeira hipótese, tal como aparece no texto: Ou será que lhe falaram da sua beleza, da mesma maneira que costumamos ouvir falar das coisas ausentes? Talvez então se não ame a si, mas ame aquilo que de si imagina (fingit), coisa provavelmente muito diferente daquilo que ela própria é. Ou, ou se a mente se imagina igual áquilo que é e, por isso, quando ama essa representação (figmentum), se ama a si antes de se conhecer porque vê uma coisa igual a si, conhece, por consequência, outras 113 Da mesma maneira como mostramos no capítulo primeiro deste trabalho. Os termos ‘aut’ usado anteriormente por Agostinho e agora ‘an’, possuem gramaticalmente a mesma função no contexto em que estão inseridos. 115 É notável com a leitura destas sentenças que não parece haver absolutamente nada de semelhante com a argumentação feita anteriormente por Agostinho. Isso ocorre pois Bermon (2001) ressalta outros aspectos do raciocínio feito por Agostinho, não dirigindo sua atenção para os que notamos anteriormente, que fundamentaram o conhecimento imediato de si: 1- a partir da imaginação; 2- a partir de uma visão em Deus; 3- a partir de um conhecimento prévio; 4- a partir do saber em si. 114 38 mentes a partir das quais se imagina e, mediante esse modelo (genere), é conhecida por si mesma. Por que motivo é, pois, que, conhecendo ela outras mentes, se não conhece a si, quando nada pode ser-lhe mais presente do que ela mesma?116 117 Nesta primeira passagem, “Agostinho começa por supor que o espírito se conhece, não a partir de si mesmo mas a partir de uma representação extraída de algo que lhe exterior” (BERMON, 2001, p. 81)118. Resurge aqui a questão da imaginação. Portanto haveria segundo Agostinho a possibilidade de a mens amar a si mesma por meio de uma figura imaginária de si. Desta maneira, a mente se conheceria de uma forma simulada, baseada numa representação (figmentum) de si. Ao conhecer outros espíritos, conforme citação, a mente passa a amar esta imagem representativa de si baseado naquilo que observou exteriormente. Se fosse assim, a memória haveria sem dúvida ocupar o lugar mais primoroso não só na psicologia como na ontologia agostiniana, uma vez que a imaginação nada mais é do que uma atividade da memória.119 120 Mas é um absurdo pensar que o espírito possa amar esta imagem, com o próprio pensamento que é imagem, sem que ele se conheça a si próprio imediatamente. Pois como haveria de formar uma imagem de si se a si mesmo não sabe como é? A questão inverte de sentido: é por conhecer a si mesmo, por estar mais presente a si mesmo do que qualquer outro espírito, que o espírito conhece o que é ser espírito, e conhece que os outros são tambem espírito como ele (BERMON, 2001, p. 82). No final da citação vimos que não há nada mais presente à mente do que ela própria. O que leva o texto a uma profundidade muito maior, mas que nem por isso parece deixar de lado a relevância da memória neste processo. Agostinho vê que a questão é de fato mais profunda do que parece e, ao mesmo tempo, mais evidente. Amar e conhecer a si própria como se a mente fosse colocada em frente a um espelho, é um absurdo para Agostinho pois isso é possível apenas para o conhecimento das coisas corpóreas: […] de fato, fora de um espelho, os olhos jamais se verão, e de modo nenhum se deve pensar que, na observação das coisas incorpóreas, se use um processo idêntico de tal forma que a mente se conheça como num espelho121. Neste ponto Agostinho se opõe claramente a Platão e a Cícero, que concebem não haver possibilidade de a alma se conhecer imediatamente a si mesma. Sobre esse tema Platão diz em seu 116 DT., X, 3.5. Do latim: “an ei fama praedicauit speciem suam sicut de absentibus solemus audire? Forte ergo non se amat, sed quod de se fingit hoc amat longe fortasse aliud quam ipsa est. Aut si se mens sui similem fingit et ideo cum hoc figmentum amat se amat antequam nouerit quia id quod sui simile est intuetur, nouit ergo alias mentes nouit se non nouit cum se ipsa nihil sibi possit esse praesentius?”. 118 Tradução livre de: “Augustin commence donc par supposer que l’esprit se connaisse, non pas à partir de lui-même, mais […] d’une représentation qu’il tirerait de quelque chose qui lui serait extérieur”. 119 cf. DT., XI, 7.11. 120 Por exemplo, tal como podemos observar nesta passagem: “não é o sentido do corpo que recebe a forma a partir de um corpo, mas é a visão do espirito que recebe a forma a partir da memoria quando a imagem do corpo que sentimos no exterior se fixa na mesma memoria, consideramos a imagem que esta na memoria como que mãe da que se forma na imaginação daquele que pensa” (DT., XI, 7.11). 121 DT., X, 3.5. 117 39 Alcibíades (apud BERMON, 2001, p. 82) que a alma deve se servir como que de um espelho para poder ser conhecer, ou através da observação de uma outra alma: […] é certo, meu querido Alcibíades, que a alma também se quiser conhecer a si mesma, deve olhar a uma outra alma e nesta, na parte onde reside a faculdade própria da alma que é a inteligência, ou então a algum objeto que a ela seja semelhante (PLATON, 1949, apud BERMON, 2001, p. 82)122 . Não podendo se contemplar por si própria, a alma deve olhar atentamente a uma outra alma ou para Deus. E fazendo uma referência às Tusculanas de Cícero, Bermon também ressalta que “é visível que Cícero prolongou tambem a tradição do Carmídes e do Alcibíades de Platão, ao mostrar que o espírito não pode ser ver a si mesmo a partir de si.” (op. cit., p. 85)123. Então, na verdade, Agostinho ao confrontar os céticos em sua obra Contra os Acadêmicos e posteriormente em seu Livre Arbítrio, acaba por fundar uma base sólida onde haveria de erguer todo o seu edifício filosófico: Quando no A Trindade repete esse discurso, Agostinho o faz contra o ceticismo: o espírito tem certeza de não ser nenhuma das coisas de que não tem certeza. Agostinho faz distinção entre a representação e a intuição do espírito (MORESCHINI, 2008, p. 443). Agostinho se opondo a esta tradição, passa a ressignificar a clássica sentença do oráculo délfico: Para ele a questão do “conhece-te a ti mesmo” - o mandamento grego essencial do autoconhecimento (gnôthi seauton) – é uma questão muito diferente de todas as outras. Isto acontece em virtude do fato de a mente já se conhecer a si mesma, imediatamente: Conhece-te a ti mesmo – como está na inscrição sobre o portal no templo de Apolo em Delfos – pode em vários aspectos ser considerado o leitmotiv da ética da filosofia antiga. Agostinho então indaga a respeito das condições para o ato de autorreflexão exigido. Tal ato, segundo Agostinho, simplesmente não seria possível se já não houvesse antes um autoconhecimento, pois de outro modo quem procura a si mesmo não saberia nem o que procura, nem quando atingiu o objetivo de seu ato. Para poder aspirar a um conhecimento de si mesma, a mens já deve ser conhecida a si própria. O autoconhecimento não é, portanto, um ato da autorreflexão, mas seu pressuposto (BRACHTENDORF, 2012, p. 220). Nas palavras do próprio Agostinho, ele nos diz que: [...] quando se diz à mente: 'conhece a ti mesma', no instante em que compreende o que lhe é dito: 'a ti mesma', a si mesma se conhece, e por nenhuma outra razão que não seja o facto de estar presente a si mesma […] Ordena-lhe, pois, que faça aquilo que faz quando compreende a própria ordem124. 122 Tradução livre de: “(…) Eh bien, mon cher Alcibiade, l’âme aussi, si elle veut se connaître elle-même, doit regarder une âme, et, dans cette âme, la partie où réside la faculté propre à l’âme, l’intelligence, ou encore tel autre objet qui lui est semblable.” 123 Tradução livre de: “(…) on voit très clairement Cicéron prolonger la tradition du Charmide et de l’Alcibiade, en montrant que l’esprit ne peut pas plus se voir lui même.” 124 DT., X, 9.12. 40 O cumprimento da autorreflexão, isto é, do pensar a respeito de si, só é possível em virtude deste autoconhecimento dado. Enfim, […] o espírito conhece a si mesmo imediatamente, e conhece a partir de si um outro espírito. Nao é então meu espírito que se reflete a si mesmo no do outro, mas o contrário, usando uma expressão de Husserl, é o outro que se reflete como um alter ego em meu próprio ego. O modelo especulativo é invertido: meu ego não se reflete no do outro, mas é em mim que o outro se reflete (BERMON, 2001, p. 86).125 O outro, em sentido constitutivo, é o meu reflexo. Basta me conhecer, saber o que de fato é um espírito, mais especificamente o meu espírito, para assim conhecer aos demais. Agostinho na verdade inverte radicalmente a tradição platônica. Por fim fica estabelecido claramente que a mente deve se conhecer a si mesma antes de poder conhecer outros espíritos, enquanto tais. Adiante, aparece a segunda hipótese levantada pelo africano: Ou será que ela vê na razão da verdade eterna como é belo conhecer-se a si mesma, e ama aquilo que vê, e se esforça por realizá-lo em si, porque, embora se não conheça a si mesma, conhece, contudo, como é bom conhecer-se a si mesma? Mas é certamente muito estranho não se conhecer ainda e conhecer já como é belo conhecer-se.126 127 Aparece neste momento que a verdade por si só é incapaz de fazer com que o espírito se conheça a si próprio. A verdade revela o caráter originário do conhecimento de si, que não pode ser por ela mesma seu fundamento. E a razão disso é simples: “Se o espírito que se conhece sabe também quão belo é se conhecer, é o conhecimento que ele tem de si que o faz ver esta verdade” (BERMON, 2001, p. 87)128. Em uma frase: a certeza do conhecimento de si se funda no conhecimento de si, mas não tem nele sua origem. Ou ainda de forma mais simples: ao querer me conhecer, tenho a certeza de que já me conheço, pois caso contrário não reconheceria a mim mesmo quando me encontrasse. Parece haver um movimento circular do espírito implicado na manifestação da notitia. Este raciocínio é o mesmo aplicado por Agostinho anteriormente, contudo seu objeto agora mudou: antes referia-se apenas ao conhecimento ordinário, de coisas distintas de si e agora refere-se ao conhecimento que a mens tem de si mesmo. A grande questão que Agostinho quer chamar atenção é justamente que o conhecimento de si é muito diferente dos demais, por que se apoia em 125 Tradução livre de: “[…] l’esprit se connaît lui-même immédiatement, et connaît à partir de lui-même l’autre, en tant qu’il est un autre esprit. Ce n’est donc pas mon esprit qui se réfléchi lui-même dans celui de l’autre, c’est au contraire, pour reprendre une expression de Husserl, l’autre qui ‘se réfléchit’ comme alter ego dans mon propre ego. Le modèle spéculaire est inversé: le moi ne se réfléchi pas dans l’autre, c’est en moi que se réfléchit l’autre.” 126 DT., X, 3.5. 127 Do latim: “an in ratione ueritatis aeternae uidet quam speciosum sit nosse semetipsam, et hoc amat quod uidet studetque in se fieri quia, quamuis sibi nota non sit, notum ei tamen est quam bonum sit ut sibi nota sit? Et hoc quidem permirabile est nondum se nosse et quam sit pulchrum se nosse iam nosse” 128 Tradução livre de: “Si l’esprit qui se connaît sait combien il est beau de se connaître, c’et la connaissance qu’il a de lui-même qui le lui fait connaître en vérité.” 41 uma certeza interior e é um dado a priori na categoria dos conhecimentos. Terceira hipótese: Ou será que, por uma secreta recordação que a não abandonou no seu longo peregrinar, vê um fim mais nobre, ou seja, a sua salvação e a sua bemaventurança, e acredita que não pode atingir esse mesmo fim se não se conhecer a si mesma?129130 Se fossemos fazer um parelelismo com a argumentação de Agostinho do primeiro capítulo, aparentemente há total incompatibilidade entre estes dois momentos textuais. Isso ocorre pois anteriormente o hiponense estava preocupado em justificar o amor a uma coisa desconhecida apoiada no amor a uma conhecida. Agora porém, ele se baseia em uma “secreta recordação”, isto é, em uma lembrança latente do espírito, e que aparentemente se difere da argumentação usada anteriormente. Mas na verdade não há diferença alguma entre esses dois momentos textuais pois o próprio Agostinho diz que: “Assim, amando uma coisa, procura a outra, e ama aquilo que é conhecido, por causa do qual procura o desconhecido”131. Esta secreta recordação nada mais é que algo preciamente conhecido e que, a partir desta coisa conhecida, podemos conhecer a uma outra desconhecida. Mas, em nosso entendimento, Agostinho dá um salto evoluindo seu texto a partir da presença que concebe de Deus na estruturação de uma gnoseologia. Agostinho mostra que o conhecimento que a mente tem do soberano Bem é sempre acompanhado do conhecimento de si, pois seria um absurdo a mente poder se lembrar de sua bondade mas não lembrar-se de si mesma: Porque é então que a memória da sua bem-aventurança pôde perdurar, e com ela não pôde perdurar a memória de si (memoria sui) mesma de modo a que ela, que quer chegar, se conheça a si mesma tanto quanto conhece aquilo a que quer chegar?132133 Nesta importante passagem, como podemos perceber ao analisar o texto latino, Agostinho introduz a expressão memoria sui como sinônimo de conhecimento de si, isto é, da notitia. No que se refere a esta memória de si (memoria sui) podemos afirmar também o seguinte: Agostinho defende que, quando a mente a si mesma se conhece e arrecada tal conhecimento na memória, ela não adquire uma nova recordação, como se a recordação de si mesma não existisse, antes de a si mesma se conhecer. Este é mais um dos aspetos que opõe Agostinho áqueles que consideram que a memória é uma faculdade que apenas remete ao passado. Para o hiponense, uma tal restrição do alcance da função de recordar não explica a perenidade 129 DT., X, 3.5. Do latim: “an aliquem finem optimum, id est securitatem et beatitudinem suam, uidet per quandam occultam memoriam quae in longinqua eam progressam non deseruit, et credit ad eundem finem nisi se ipsam cognouerit se peruenire non posse?”. 131 DT., X, 3.5. 132 DT., X, 3.5. 133 No original lê-se: “Sed cur memoria beatitudinis suae potuit et memoria sui cum ea perdurare non potuit ut tam se nosset quae uult peruenire quam nouit illud quo uult peruenire?”. 130 42 e a subsistência do conhecimento de si (SILVA, 2012, p. 183). É preciso admitir que se de alguma maneira o homem conhece o seu fim último, é certo então que ele conhece: ou seja, que é capaz de conhecer. O conhecimento de sua bemaventurança é latente e portanto não está atual em seu espírito, mas sim, de forma habitual. Pode haver de se passar uma vida inteira, e o homem não entre em contato com esta verdade que lhe é interior? Sim. Mas por enquanto isto não configura um problema para Agostinho. Mas àquele que consulta sua memoria beatitudinis, descobre que para atingí-la deverá conhecer a si mesmo (ipsam cognouerit). Por que se não, como haverá de conseguir atingir seu objetivo último? Portanto, esta memória que tem o homem de sua beatitude, mesmo de viés ontológico, não poderia se antecipar à evidência do cogito. Afinal de contas, como saberia uma alma que ela deve ser salva se não sabe ainda nem que ela é? A grande questão é que ocorre aqui o surgimento da memoria Dei. Mas de que maneira se caracteriza? Quem busca Deus já deve conhecê-lo, para simplesmente buscar. Assim como a mulher tem na memória seu conhecimento da dracma perdida, o homem também deve possuir em sua memória um conhecimento de Deus, que possibilita a busca por ele. O próprio Deus é transcendente ao espírito humano, mas, para poder buscar Deus além de si mesmo, o homem já deve possuir em si mesmo, a saber, em sua memória, um conhecimento sobre Deus (BRACHTENDORF, 2012, p. 207). Segundo Agostinho há impresso em nós uma lembrança ontológica de Deus. Seguindo mais uma vez ao Apóstolo Paulo, Agostinho afirmou também que havia no homem, anteriormente ao Pecado Original, a plenitude de todas as suas faculdades. Uma integração completa com todos os valores da racionalidade (CAMPELO, 2013). A união entre homem-criatura e Deus-criador neste estágio primitivo era pleno, completo, pois o homem estava em estado de santidade e justiça original. Após a Queda, a humanindade toda ficou ferida para sempre: pois houve uma diminuição das potencialidades homem; uma verdadeira diminuição do ser do homem. Suas faculdades perderam seu estado de plenitude, diminuindo seus valores. O que era plenamente atual, tornou-se agora necessário um movimento constante e inquieto do espírito. O que segundo Agostinho foi afetado de forma notória foram as faculdades da mens, responsáveis pela aquisição do conhecimento, dentre elas, a memória: O conhecimento da verdade absoluta, por parte do homem, devia-se à sua natureza antes do pecado primeiro da humanidade. Com esse pecado perdeu-se esse pleno conhecimento, e só ficou, para o homem, a recordação da memoria Dei [...] (CAMPELO, 2013, p. 92). E o que isso significa? Significa dizer que na natureza do homem haviam todos conhecimentos atualizados, como que prontos. Este é um ponto que devemos frisar bastante, pois, 43 enquanto o conhecimento estava em uma relação natural entre o ente e seu objeto de conhecimento, não haveria nenhuma necessidade real, por exemplo, de desejar conhecer. Esta forma de conhecer, contudo, foi convertida em outra totalmente diversa: cabe agora ao homem-ferido, somente a capacidade de reencontrar esses conhecimentos, no interior de sua mens. Mas, a única lembrança que não deixou ao homem, foi a lembrança de Deus, a memoria Dei. Esta o Pecado Original não conseguiu ferir. Como disse o próprio Agostinho em outra parte do seu De Trinitate: Ora, ela (a mens) não poderia amar-se a si mesma se se desconhecesse completamente, isto é, se não se recordasse de si nem se compreendesse a si mesma. Com esta imagem de Deus em si, é tão poderosa que é capaz de unir-se áquele de quem é imagem134 . A lembrança de Deus que ficou em nós é capaz de nos levar ao seu encontro. Como veremos mais adiante, a memoria sui, muito similar com a memoria Dei pelo fato de ambas serem dadas a priori, são igualmente lembranças ontológicas das quais jamais esquecemos. A presença impressa da memoria Dei em nós, não só nos faz capazes de lembrar-mos de Deus, mas atesta também este vínculo ontológico que ainda há entre homem-criatura e DeusCriador. Fato que merece destaque a partir do momento em que se entende que este vínculo acontece por meio da memória de Deus comum a todos os homens. Esta idéia de memoria Dei nada mais é do que uma releitura cristã que Agostinho faz da reminiscência platônica, e que parece resolver o problema da consequência do primeiro pecado da humanidade (CAMPELO, 2013). Diferentemente do que propõem Platão, Agostinho não acredita que a humanidade inteira contemplou aos inteligíveis todos no Mundo das Idéias, antes de nascerem. Mas sim, que é em Deus que o homem vê as verdades eternas, não por mérito dele, mas em virtude da presença de Deus no espírito do homem, que o faz partícipe destas idéias. Ainda sobre este rompimento com Platão, Brachtendorf comenta também dizendo: O conhecimento lembrado sobre Deus reside, antes, no conhecimento natural sobre a verdade de princípios práticos, lógicomatemáticos e estéticos: 'Onde mais estão eles escritos senão no livro dessa luz que se chama verdade?'. Agostinho, nesta pergunta, se distancia de uma teoria da anamnese de inspiração platônica. […] para a explicação da procedência do conhecimento a priori, [a reminiscência] já não tem significância alguma. (BRACHTENDORF, 2012, p. 215). Mas nesta tríade formada pela mente, conhecimento e amor, aonde fica o desejo voluntário? “O apetite natural de conhecer, como o amor por si mesmo, é prova de existência em nós da memoria Dei, por isso o conhecimento intelectual é necessario para o homem” (CAMPELO, 2013, 134 DT., XIV, 14. 20. 44 p. 92). Dois são os pontos importantes que no comentador toca: primeiro, no homem, após sua expulsão do paraíso, há a necessidade de conhecer. Não somente um conhecimento das coisas sensíveis mas também intelectuais, onde o homem entre em contato com os inteligíveis. E o outro ponto que chama atenção, é sobre o estado da vontade do homem: como se ela estivesse apriorísticamente predeterminada ao bem e à verdade absoluta, para se sustentar. Há portanto no homem um desejo que o move a conhecer. Não apenas à verdade das coisas, mas a todos os trancendentes necessários. Esse desejo é o que remete ao a priori, que está impresso em nossa natureza ou em uma como que memória metafísica, que repousa em nós, no sentido de podermos observar que, desde sempre, em nós e conosco existe este impulso conatural à felicidade, verdade, beleza, justiça, unidade [...] (CAMPELO, 2013, p. 92). Esse parece ser em Agostinho o laço que une a mente, o conhecimento e o amor. Esta trindade que apresentou no livro IX reflete um estado de natureza do homem, que está destinado à conhecer para saciar seu desejo. Longe de vir a ser pleno, ao menos nesta vida terrena, o homem marcado com a memória de Deus é uma criatura inquieta e que não poderia nem se encontrar consigo mesmo, no seu eu mais íntimo, se não houvesse nele uma intimidade maior que o trancendesse, ou seja, Deus: ‘Por que nos criastes para vós, e o nosso coração vive inquieto enquando não repousa em vós’ (Conf. I, 1, 1). De acordo com isso, há uma tendência para Deus, que não surge por causa da experiência, mas pertence à natureza racional do homem (BRACHTENDORF, 2012, p. 207). No De Trinitate o tema da memoria Dei se concentra na seguinte passagem: “[…] por uma secreta recordação […] vê um fim mais nobre, ou seja, a sua salvação e a sua bem-aventurança”135. No texto latino a sentença parece ter mais força do que em sua tradução: “securitatem et beatitudinem suam, videt per quandam occultam memoriam.”136 Que, em uma tradução livre nossa poderia se tornar: “A sua salvação e beatitude é vista por meio de uma oculta memória”. Os termos no texto latino estão invertidos e, por isso, atribuem mais força á idéia de oculta memória – que identificamos com a idéia de memoria Dei. Mas o que Agostinho quer nos mostrar com esta afirmação? Diz ele que a mens recorda-se de um fim, ou melhor, de seu fim. Mas como poderia isso ser possível? Uma vez que o fim é algo futuro e, por isso, ainda não aconteceu. E, ao mesmo tempo, recordar-se de algo, até onde sabemos, trata-se de lembrarmos de algo que já aconteceu. Estamos diante de mais outro paradoxo: o paradoxo do tempo. 135 136 DT., X, 2.5 DT., X, 3.5. 45 Agostinho parece neste momento inserir a presença de Deus no interior da mens e, com isso, também da memória. Com isso, nos deparamos com uma união entre eternidade e temporalidade que se encontram no interior da mens. Mas por que razão haveria esta união? Isso acontece pois Deus é o fundamento da beatitude de todos os homem, e em Deus não há tempo. Para Agostinho o tempo é uma criatura de Deus assim como o homem.137 Então, na medida em que Deus se faz presente no interior do homem e atualiza esta presença constantemente, ocorre o encontro entre criatura e Criador, do temporal com o atemporal. Nesta terceira hipótese levantada por Agostinho, embora contenha semelhança com a terceira hipótese do capítulo anterior, é totalmente superior àquela: Devemos isso ao fato de Agostinho haver inserido definitivamente Deus no contexto do conhecimento que a alma tem de si. Ambas formas de conhecimento são interdependentes, segundo ele. E ainda acrescenta que tanto a memória de si quanto a memória de sua bem-aventurança perduram (perdurare), isto é, irão durar por muito tempo: “Sed cur memoria beatitudinis suae potuit et memoria sui cum ea perdurare non potuit ut tam se nosset quae uult peruenire quam nouit illud quo uult peruenire?”138 De fato a morte por ser o marco para que a memoria sui e memoria Dei cessem, afinal de contas, a realidade da mens será outra na presença de Deus. Mas sobre este assunto Agostinho nada falou neste livro X do De Trinitate. Afinal, o que é notável se refere ao fato de Agostinho haver designado a memória como um campo de encontro entre o eterno e o temporal. Deus se identifica com a eternidade e o homem com a temporalidade. O paradoxo do tempo em sentido último se confunde com o paradoxo da própria existência humana, uma vez que ele transpassa toda a vida presente como a vida futura deste mesmo homem139. A partir disso, podemos ver a verdadeira proximidade que a memoria sui e memoria Dei possuem enquanto conhecimento a priori do espírito. Não antecipando cronologicamente nenhuma com a relação a outra: a certeza de que se é, requer em muitos aspectos a certeza de que Deus existe. O mesmo acontece ao contrário: de que adiantaria a existência de Deus, se o espírito humano não fosse capaz de experenciá-lo de certa maneira? Deus se torna partícipe em Agostinho de seu conceito abrangente de memória e de sua noética. Isto significa dizer que a mente sabe de uma maneira oculta, secreta e velada que deve ser salvo, ou seja, é desta maneira que o homem todo sabe disso. Esta forma de conhecimento, memoria beatitudinis, perdura no espírito do homem, como uma memoria Dei, como dissemos. A 137 cf. AGOSTINHO, A. Confissões. XI, 13,15. Em português: “Porque é então que a memória da sua bem-aventurança pôde perdurar, e com ela não pôde perdurar a memória de si mesma, de modo a que ela, que quer chegar, se conheça a si mesma tanto quanto conhece aquilo a que quer chegar?” (DT., X, 3.5). Optamos por colocar o texto latino no corpo do texto a fim de ressaltar o aparecimento dos termos “memoria sui”, “memoria beatitudinis” e “perdurare”. 139 O último capítulo deste trabalho irá novamente explorar este tema da temporalidade humana e eternidade de Deus, e seu encontro no interior da memória. Temporalidade passa a ser no final do livro X um termo utilizado pelo próprio Agostinho. 138 46 participação de Deus no homem, na qualidade de presença e não de substância, serve portanto para entender em Agostinho toda lembrança deixada de Deus em nós: não apenas dos inteligíveis necessários, mas no sentido de Deus ser a origem e fim da existência do homem. A memória é partícipe também desta verdade, a qual o homem na visão de agostiniano não poderia descartar. Última hipótese proposta por Agostinho: Ou será que, quando ama conhecer-se, não se ama a si, que ainda não conhece que ama, mas ama o próprio conhecer, e tolera mais penosamente o facto de ela mesma não ser objecto do seu conhecimento, conhecimento com o qual tudo pretende abarcar?140141 Neste momento do texto Agostinho dá um outro salto especulativo. O problema a ser enfrentado por ele é relativamente pequeno: pois o conhecimento a priori que a mens tem de si mesma é um dado. Para Agostinho, provar o contrário disso seria muito mais complicado, pois: […] os homens ignoram o mais habitual fato de que o espírito se conhece sempre, imediatamente e totalmente. Agostinho expõe então que é verdadeiramente imediata a consciência de si e faz entender que todo espírito se conhece em virtude desta consciência, ainda que se ignore a si mesmo. Este momento pode ser chamado de novi agostiniano, que precede em direito o ato do cogito, em função de ser o novi o alicerce ou a condição de possibilidade de um ponto de vista noético (BERMON, 2001, p. 78)142. Bermon (2001) nos situa de forma muito clara os dois momentos do autoconhecimento agostiniano: Antecipa de certa maneira a idéia de cogito, enquanto possibilitada pelo novi agostiniano. Nestas quatro soluções que Agostinho propos, todas elas sem nenhuma excessão desembocam na mesma conclusão: a mente já se conhece a si mesmo imediatamente e totalmente, a priori. A respeito deste processo de autoconhecimento, Silva (2012) acrescenta dizendo que: O termo desse processo conclui que a verdade acerca de si mesmo é possível pela já referida condição paradoxal da mente humana: a co-presença, no interior dela, entre Deus e o espírito humano (SILVA, 2012, p. 177). Portanto é de suma importância a inserção dada por Agostinho a Deus, em sua relação e unidade com a mens. Se há um momento da virada no texto de Agostinho, este momento está na pergunta que Agostinho faz logo após a exposição de sua última hipótese: “quando é que conhece o seu conhecer se não se conhece a si mesma?”143144 140 DT., X, 3.5. Do latim: “an cum se nosse amat, non se quam nondum nouit sed ipsum nosse amat acerbiusque tolerat se ipsam deesse scientie suae qua uult cuncta comprehendere?” 142 Tradução livre de: “[…] les hommes ignorent le plus souvent que leur esprit se connaît toujours déjà lui-même immédiatement et totalement. Augustin expose donc d’emblée ce que’est véritablement la connaissance de soi et il faut comprendre que tout esprit se connaît en vertu de cette connaissance même, lor même qu’il semble l’ignorer. Ce moment pourrait être appelé celui de novi augustinien, qui précède en droit l’acte du cogito, du fait qu’il en est comme le soubassement ou la condition de possibilité d’un point de vue noétique.” 143 DT., X, 3.5 141 47 Desta frase destacamos os seguintes pontos: é o primeiro momento que Agostinho troca o verbo latino querere por nescire, ou seja, “procurar” por “ignorar-se”. Isto significa que não se trata de uma busca, mas de alguém que busca, alguém que é capaz de ignorar a si mesmo enquanto busca. Ora, esta mens procurante é jamais ignorante: pois não pode ignorar ao menos o fato de que busca. Entramos portanto no campo do novi agostiniano, como nos recordou Bermon (2001). “O conhecimento da alma por ela mesma é o conhecimento que ela tem de seu próprio ato de conhecer” (AGAESSE; MOINGT, 1997, p. 605).145 Os comentadores sublinham a virada gramatical que Agostinho faz em seu texto, dizendo que ele faz uma espécie de redução dialética, passando a frase do modo acusativo para o nominativo: a saber, do “le moi-objet” dans “le moisujet”146 (me oponho – a mim). (AGAESSE; MOINGT, 1997, p. 604). O argumento de Agostinho para isso parece seguir três etapas: 1- A alma na condição de ente cognoscente esta toda (em latim, tota) inteira ciente que se conhece. Não é uma parte da alma que conhece uma outra parte da alma. Isto seria inviável e logo rejeitado por Agostinho, pois todo conhecimento, que é sempre de natureza espiritual, isto é, tem a alma como partícipe, é feito pela alma toda. E não por uma parte dela. Então este ente cognoscente é indivisível no ato de conhecer.; 2- Outra virada gramatical: o “se” que está na forma acusativa se transforma, ao mesmo tempo, em ente da ação, na forma de particípio; 3- Conclui-se que a alma se conhece toda inteira (totam), pois “o eu-objeto se encontra desfrutando de privilégios do sujeito cognoscente”147 (AGAESSE; MOINGT, 1997, pp. 604-605). Temos basicamente duas importantes conclusões até aqui a respeito da mens: o da sua totalidade e de seu autoconhecimento. Esta reflexão é uma retomada do livro IX, aonde Agostinho antecipa estas conclusões dizendo: “Resulta daí claro que tudo quanto conhecemos gera, em nós e juntamente connosco, o conhecimento de si”148. É interessante como, além dessas retomadas incessantes, o desenvolvimento argumentativo de Agostinho é preenchido também por viradas gramaticais, característica muito marcante de seus textos e produto, certamente, de sua formação em retórica (BROWN, 2012). Deve haver cuidado para não confundir este sólido e preciso raciocínio com mero emaranhado de palavras, ou puro verbalismo149 (AGAESSE, 1997, p. 604). Por fim, é de grande destaque a conclusão de que a consciência de si, idêntica ao 144 ‘Quo pacto igitur se aliquid scientem scit quae se ipsam nescit?’ Em latim, Agostinho usa na verdade a palavra ignorar (nescit). Então em uma tradução melhor para esta passagem, propomos a seguinte: “quando é que conhece o seu conhecer se se ignora?” 145 Tradução livre de: “La connaissance de l’âme par elle-même est la connaissance de son acte propre”. 146 Em uma livre tradução temos: “Do ‘a mim-objeto’ para o ‘a mim-sujeito’”. 147 Tradução livre de: “Le moi-objet se trouve jouir des privilège du sujeit connaissant”. 148 DT., IX, 12.18. 149 “verbalismo” deve ser entendido como o “caráter de um discurso em que as palavras, tomando uma importância abusiva, se distanciam do pensamento e deixam de ter uma significação real” (JAPIASSU, H; MARCONDES, D., 2006, p. 276). 48 conhecimento de si, não implica em uma divisão entre objeto conhecido e ente cognoscente. O conhecimento de si se torna irredutível a qualquer outra forma de conhecimento e, além disso, se torna condição a priori de todas as outras formas de conhecimento (AGAESSE; MOINGT, 1997; BERMON, 2001; MARION, 2008). 2.1 NOTITIA: O AUTOCONHECIMENTO DA MENS Temos portanto aqui a necessária definição de nosse: “[…] a nosse designa sempre o conhecimento implícito que permanece guardado na memória, ainda que a própria alma não saiba que lá está” (AGAESSE; MOINGT, 1997, p. 605)150. E é assim que a memória aparece nesta etapa do texto de Agostinho, como o lugar privilegiado no espírito aonde reside o conhecimento a priori e habitual que a mens tem de si mesma, isto é, da sua autoconsciência. Como é que poderia ser explicada então a existência da memória, sem se recorrer a ela para explicar? Em algum momento na psicologia agostiniana, deveria haver não só uma certeza primeira, que é a do cogito, como também deveria haver um conhecimento primeiro, a priori, tal como é o conhecimento de si. Se não conheço todas as minhas faculdades, como posso afirmar com certeza de que não sou nenhuma dela? Ora, mas conhecer implicaria em colocar a minha razão em movimento. Se isto acontece, na verdade então não há ato aprioristico nenhum, pois este se define como sendo um conhecimento que se tem, sem o uso de nenhum outro recurso gnoseológico para se explicar. Mas eis que Agostinho vem com a solução: na verdade não podemos conhecer a memória, trata-se muito mais de um encontro com ela: um inventum, ir ao encontro.151 Então não a conhecemos, a encontramos: é o eu-íntimo interior. Ao ser descoberta, damos conta de que tinhamos dela um conhecimento inconsciente. Em Agostinho, então, é arbitrário colocar uma linha de separação entre o consciente e o inconsciente, pois na memória estes se cruzam. Como não envolve nenhum processo cognitivo, torna-se um a priori, um conhecimento direto sem mediações: Na medida em que se trata de um conhecimento por presença, ele articula-se com a função da mente mediante a qual o ser é captado em estreita conexão com a dimensão temporal. Por isso, a memória é, neste trajeto, a função da mente á qual Agostinho presta particular atenção sem, contudo, poder isolar a análise da atividade dela e a intervenção das demais funções, no processo cognitivo humano, dada a mútua implicação das faculdades. (SILVA, 2012, pp. 177-178). 150 Tradução livre de: “[…] le nosse désigne toujours la connaissance implicite qui demeure cachée dans la mémoire, alors même que l'âme ne sait pas qu'elle y est.” 151 cf. DT., X, 7.10. 49 Isto não quer dizer que a memoria sui trata-se de um autoconhecimento intuitivo. Mas sim, de uma disposição, um conhecimento informe ou implícito: um hábito inconsciente. “quando a memória se converte em ato reflexivo, descobre, então, esta íntima presença e, assim, a memória se converte em medium quo para a presença” (CAMPELO, 2013, p. 90). Sendo a memória, portanto, este “meio pelo qual” a alma se coloca em presença de si. Isto é o mesmo que dizer que na filosofia de Agostinho a memória é, além de uma faculdade da mens, um recurso ontológico que possibilita ao ser do homem existir na temporalidade, pois o liga ao aqui-agora do devir. A memória é este elo de experiência do ser. Quando falamos a respeito da memoria sui, na verdade já a pressupomos implicitamente no discurso.Na verdade, então, saber que temos um conhecimento habitual de nós mesmo é produto direto de um conhecimento reflexivo, objetivo. Ele sempre acontece em um segundo momento. Enfim, a memoria sui é uma presença, é um estar-em. Esta presença a si mesmo, que constitui o ser espiritual, caracteriza a conhecimento de si. Não cessa de estar presente a si mesma, por que é espiritual, e o espírito não cessa de se conhecer (BERMON, 2001, p. 87)152. Das Enéadas de Plotino (sobretudo V, 3, §1; 5) Agostinho herdou os elementos argumentativos necessários para formar sua noética. Pois ele “[…] estabelece, como Plotino havia feito antes dele, que o conhecimento de si deve acompanhar todas as outras formas de conhecimento” (BERMON, 2001, p. 89)153. Para Plotino, porém, esta é uma condição do espírito para a ‘contemplação’, tal como ele a concebe. Em Agostinho, porém, trata-se de uma questão de investigação (AGAESSE; MOINGT, 1997, p. 603). Se pudessmos dar um título à natureza da memoria sui, dariamos o de “matriz de todos os conhecimentos”, pois ela é o plano de fundo, a fonte informe de todos os outros conhecimentos possíveis, e quem possibilita sua ocorrência: “Por isso é estabelecido que o espírito deve se conhecer a si mesmo antes de poder conhecer os outros espíritos tal como eles são, pois encontrouse uma outra origem a todo conhecimento que é o espirito de si mesmo.” (BERMON, 2001, p. 87).154 Isto reforça a certeza de Agostinho que o conhecimento de si é implicado no conhecimento de qualquer outra coisa. São condições inseparáveis. Mas ao identificar o conhecimento de si com o ato próprio de conhecer, passa a ser descartada por completa a hipótese de separar na alma uma 152 Esta presença da alma a si rende a ela um conhecimento dela por ela mesma. As argumentações feitas por Agostinho a respeito do conhecimento que a alma tem de si, a partir dela mesmo, aparecem neste livro X nas seções III, 5 e IV, 6, principalmente. 153 Tradução livre de: “Augustin établit donc, comme Plotin avant lui, que la connaissance de soi doit accompagner toutes les connaissances.” 154 Tradução livre de: “Puisqu’il il est clairement établi que l’esprit doit se connître lui-même avant de pouvoir connaître les autres esprits comme esprits, il faut trouver une autre origine à la connaissance qu’a l’esprit de luimême”. 50 parte cognoscente e uma conhecida. É a alma toda que, conhecendo a si mesma, tudo conhece. Ou seja, tudo aquilo que se coloca à disposição a ser conhecido, é realizado pela alma toda nesciente de si, e não apenas de uma parte da alma. Esta posição radical que Agostinho assume em sua gnoseologia determinará muitos aspectos de sua psicologia e irá compor um quadro argumentativo peculiar (AGAESSE; MOINGT, 1997, p. 603). Há grande originalidade em Plotino e Agostinho, que propõem o conhecimento do espírito por ele mesmo, e não mais a divisão entre ente cognoscente e coisa conhecida: Ao invés, o conhecimento em geral e, em particular o conhecimento de si, é considerado como um processo unitivo, onde se cojugam, de modo interativo, as funções da mente, e jamais como um movimento onde se separam elementos externos e faculdades internas (SILVA, 2012, p. 182). Portanto se encerra na psicologia de Agostinho a possibilidade de separação definitiva entre objeto conhecido e ente cognoscente. O que faz de sua filosofia fenomenológica, já no quarto século da era cristã. Na seção seguinte do texto, afirma Agostinho: “Mas é absurdo dizer que não é toda ela que sabe aquilo que sabe. Eu não digo: ‘sabe tudo’, mas sim: ‘aquilo que sabe, toda ela o sabe’.”155 Com essas palavras Agostinho parece mostrar a identidade própria da mens, da qual a memória é partícipe e constituinte. Obviamente, a mens não é capaz de conhecer tudo; nem mesmo conhece tudo sobre si mesma. Mas o que ela conhece, é ela inteira que conhece: Para Agostinho, isso significa que todo conhecimento pressupõe um sujeito cognoscente, que conserva sua identidade na variação dos conteúdos do saber. Em toda a variação das representações, é contudo sempre o mesmo eu que as tem. Com a constatação de que tudo o que a mente conhece é ela toda que o conhece, Agostinho tem em vista a identidade estável da mens, que se funda no autoconhecimento do se nosse (BRACHTENDORF, 2012, p. 221). Além desta estabilidade que a mens assume em Agostinho, também cada uma de suas faculdades se contêm a si mesma, sobretudo a memória, inteligência e vontade. Agostinho passa a problematizar de forma mais explícita esta questão a partir desta etapa do texto156. Contudo, como recorda constantemente, a subsistência da mens e da sua unidade dependem da relação que estabelece com o ser supremo, que é Deus: Agostinho afirma a reflexividade de cada uma das funções da mente. Tal facto significa que cada uma delas se contém a si mesma, sendo esse o ato próprio mais radical que cada uma realiza, o qual se manifesta, respetivamente, pela recordação de si, pelo conhecimento de si e pelo amor de si […] Ora, a reflexividade inerente ás funções da mente é precisamente expressão do alcance imanente do próprio ser de que ela depende, e que imprime nela um dinamismo intrínseco, autónomo relativamente á eventual atuação extrínseca de cada função sobre as representações dos objetos disponíveis no universo corpóreo (SILVA, 2012, p. 182). 155 DT., X, 4.6. Como vimos, no início de seu livro X Agostinho já havia insinuado o aparecimento da analogia trinitária presente na mens, formada pela memória, inteligência e vontade. 156 51 Essa identidade estável é manifesta pela sua autoconsciência, isto é, de uma posição impertubável da mens, que se antecipa a si mesmo a todos os seus atos. Somente em Agostinho é possivel definir com tranquilidade a idéia de consciência, pois seu quadro argumentativo favorece isso: “Todo ato espiritual pode ser acompanhado de uma consciência de sua execussão. Nessa consciência o eu experencia a realidade do espírito como executor de seus atos” (BRACHTENDORF, 2012, p. 221). A realidade do espírito e a consciência são estados distintos da mens: este parece ser o diferencial de Agostinho. Embora tenha deixado de lado a idéia de ente-cognoscente e coisaconhecida, Agostinho não abandonou a idéia de espírito e consciência do espírito. Este é um dos aspectos mais importantes que se pode conferir á consciência agostiniana, pois ela tem seu desenvolvimento no seio da memória mas transcende totalmente a ela: a memória ocupa o espaço da realidade do espírito que, em sentido último, é a própria memória. Porém, não há em Agostinho identificação plena entre espírito e memória. E isto parece poder ser explicado em virtude desta identidade da mens. Em outras palavras, a realidade do espírito é trazida à luz da consciência por meio da memória. É por esta razão que nos parece haver muita confusão e identificação do conceito de memória com o de consciência em Agostinho. São realidade, de fato, completamente inseparáveis e interdependentes, mas no recorte do texto de Agostinho que abordamos, não parece haver nada que viabilize a interpretação de serem uma só coisa. Contudo o mérito desta operação não é propriamente da memória, mas sim da temporalidade da qual o homem é partícipe157. Esta “co-consciência” que é memória, é descontínua, uma vez que seu surgimento requer a execusão de algum ato. Poderiamos parar aqui e encontrar uma lacuna no pensamento de Agostinho, que pareceu fundamentar um estado pré-reflexivo de forma excepcional, mas que na verdade é incompleto e inconstante. Mas, […] a descida ao palácio da memória encaminha o ser humano para a descoberta, no âmago da mente, do modo de relação que nela própria se estabelece entre o princípio supremo de ser e de verdade, independentemente do conhecimento ou da consciência que cada ser humano possua desse facto. Tal relação caracteriza-se por três factores elementares: estar redicada no domínio do ser, ter caráter permanente e não ter origem no ser humano. Desta forma, pode afirmar-se que esta relação subsiste para lá da consciência que dela possua aquela forma de ser que por ela subsiste como mente racional (SILVA, 2012, p. 179). O princípio de ser, não tem seu fundamento na mens e menos ainda na sua consciência: em Agostinho ele pertence somente a Deus (GILSON, 2006, pp. 53-113). E é por esta razão que a atuação da memória se dá de maneira descontínua. 157 A respeito da qual já falamos, mas que será também abordada mais adiante ainda neste trabalho. 52 O se nosse permanece oculto, implícito, como que adormecido na memória. “a alma sabe sem saber que ela sabe” (AGAESSE; MOINGT, 1997, p. 606). Ou ainda nas palavras de Agostinho: “Mas quanto ás coisas em que não pensamos durante muito tempo e áquelas que não somos capazes de pensar sem sermos incitados, não sei de que modo maravilhoso, se assim se pode dizer, não sabemos que as sabemos”158. Bem como todas as outras formas de conhecimentos: “aquilo que conhece está contido na sua memória”159. Quando a mens se coloca em movimento no simples ato de pensar, já temos implicada a presença desse novi. Agostinho associa radicalmente a percepção de si, que também pode ser entendida como autoconsciência, com um conhecimento implícito de si – o se nosse. Sendo assim, a mens não se procura de forma alguma. Não há procura, pois há uma certeza a priori. A memória é na mens a área consultada para esta descoberta. Além disso, Agostinho parece atribuir à memória uma potência donativa, isto é, a memória dá a certeza do ser. Trata-se de uma certeza racional. Lembro que sou e, sabendo isso, lembro que sempre fui: talvez havia me esquecido de mim, pois não pensava sobre isso, ou melhor, não pensava a respeito de mim. Agaesse e Moingt (1997) ao investigaram o próprio De Trinitate, capítulo XIV, vão mais além em suas análises e afirmam haver relação entre a memória e a notitia, mas dizem que ambas são uma e mesma coisa: Mas o que dizer deste conhecimento implícito da alma por ela mesma, onde a notitia não é somente um conteúdo da memória mas ela própria: ‘Noverit se tanquam ipsa sit sibi memoria sui’ (conhece-se a si mesma como ela é para si própria na memória de si mesma) (XIV, 6, 8). (AGAESSE; MOINGT, 1997, p. 606).160 A seguir, complementa Agostinho ao fazer clara referência às Enéadas de Plotino (V, 3, 1.5), onde busca inspiração para afirmar que o conhecimento que a mens tem de si é total: Totam se novit: “Portanto, quando sabe sobre si alguma coisa que não pode saber senão ela toda, sabe-se a si toda”161. Este conhecer-se em sua totalidade, próprio da mente humana, é devido ao fato dela saber não só que é mente, mas que vive. Portanto, o caráter totalizante da memória nos faz capaz afirmar que ela não têm apenas uma aspecto constitutivo no conhecimento pré-reflexivo e a priori que é a notitia, mas sim esta última é a própria memória. Outro ponto importante que Agostinho volta a tocar, e que não deixa sair de cena é a questão do verbum mentis: “Ora, se se conhece em parte, e em parte ainda se procura, não se procura a si, 158 DT., XIV, 7.9. DT., XIV, 7.9, que no original lê-se: “Ea quae novit, ejus memoria continentur” 160 Tradução livre de: “Mais, lorsqu’il s’agit de cette connaissance implicite de l’âme par elle-même, la notitia n’est plus seulement contenue dans la mémoire, elle est la mémoire même: ‘Noverit se tanquam ipsa sit sibi memoria sui’ 161 DT., X, 4.6. 159 53 mas uma parte de si; na verdade, quando ela própria é dita, é dita toda”162. Com estas palavras Agostinho resolve a questão de a mente se conhecer a si toda imediamente, em função deste verbo mental. Pois, quando ela é dita (dicitur) é dita toda. O verbo mental, que é um pressuposto necessário de todo conhecimento, não pode ser meio-verbo, isto é, meia-palavra, ou se referir a uma coisa por incompleto: ou se refere a algo, ou não. O termo “dicitur” em latim se refere à passagem do livro IX, onde Agostinho afirma: “De facto, ninguém faz deliberadamente nada que não tenha dito antes em seu coração”163 164. “Dixerit” é a mesma palavra que “dicitur” no latim, que significa “dizer”. A diferença é que elas se encontram em tempo verbais distintos: a primeira está no perfeito do subjuntivo e esta última, presente do indicativo. Ambos termos compõe a realidade do verbum mentis, enquanto palavras que são ditas pelo interior do homem, e que no coração deste permanece. Há na continuidade do texto, ainda na seção 4.6, um outro argumento que irá apoiar a sua certeza a respeito do se nosse. Trata-se de uma análise da seguinte passagem: E, assim, procura o que falta, do mesmo modo que nós costumamos procurar que nos venha á mente aquilo que se nos escapou, mas não escapou completamente porque pode ser reconhecido como aquilo que se procurava quando vier á mente. Mas como há-de a mente vir á mente, como se a mente pudesse não estar na mente? Chega-se a isto porque, se uma parte está encontrada, não se procura a si toda, mas toda ela se procura. Portanto, toda ela está á sua disposição, e não há nada mais a procurar; de facto, o que falta é aquilo que se procura, não aquela que procura165. Agostinho faz uma interessante comparação desta suposta procura que a mente faz de si mesma, com relação à conhecida ação da memória no momento em que quer se recordar daquilo que esqueceu. Ora, pode acontecer que ela tente recordar algo e simplesmente não consiga. Para Agostinho, esta lembrança está perdida, não se encontra mais no espírito. Mas caso ela se lembre, como haveria de reconhecer que aquilo que acabou de lembrar é exatamente aquilo que procurava? Isto só poderia ser possível, caso nunca houvesse um esquecimento de fato de nada: A mulher, que havia perdido a dracma e a procurava com lanterna acessa, não a teria encontrado se dela não se lembrasse. Tendo-a depois achado, como saberia se era aquela, se dela não se recordasse?166 Se assim não fosse, não seria possível re-conhecer aquele suposto “esquecido” caso o objeto reapareça aos olhos interiores da memória. O ponto é este: se a memória é totalmente capaz, nem que seja de uma única lembrança, de re-conhecer aquilo que lembrou como sendo exatamente o que ela havia se esquecido, então podemos afirmar que não há no espírito um esquecimento total, mas sim, um esquecimento temporário e ocasional. 162 DT., X, 4.6. DT., IX, 7.12 164 Do latim: “nemo enim aliquid volens facit quod non in corde suo prius dixerit”. 165 DT., X, 4.6 166 AGOSTINHO, A. Confissões. X,18, 27. 163 54 Aqui é importante recordarmos o cerne da reflexão de Agostinho: desde o começo de seu livro X ele está buscando afirmar a sua tese de que “não é possível amar àquilo que é de todo desconhecido”. O esquecimento aqui se insere neste contexto, pois, no pensamento agostiniano aquilo que escapou (excidit) não o escapou totalmente, se não não seria possivel ser recordado (recognosci) em um dado momento167. A dracma perdida da mulher do Evangelho (cf. Lc, 15, 8) só pode ser reencontrada porque nunca foi totalmente esquecida: E, assim, procura o que falta, do mesmo modo que nós costumamos procurar que nos venha à mente aquilo que se nos escapou mas não escapou completamente porque pode ser reconhecido como aquilo que se procurava quando vier à mente.168169 Enfim, a mente toda está potencialmente disponível a si. Esta disponibilidade é habitual, não apenas atual. Na verdade houve no espírito uma redescoberta de algo que está como que escondido em algum lugar no espírito. A memória, à luz da razão (representada pela lanterna do Evangelho) fez, na verdade, um caminho introspectivo que possibilitou este re-encontro. O mesmo acontece com o se nosse. Ao se perceber procurante, sabe-se ao menos um coisa: que procura. Ora, este algo que procura, nada mais é do que si mesmo. Então, a partir daí, re-conhece que se conhece, e se conhece a si toda totalmente. Assim sendo, podemos dizer que o se nosse nada mais é do que uma lembrança que mens tem de si e que, por alguma razão, parece temporariamente oculta. Ao se econtrar com a lembrança de si, na verdade, se encontra consigo mesmo. A lembrança de si (memoria sui), se é que podemos denominar assim, é diferente de todas as demais. Não se trata de uma atividade mnemônica qualquer da memória, pois esta em particular implica em um encontro com a totalidade de si. Este conhecimento total de si é sempre tríplice: sabe a mente que conhece, que é e que vive. “Quem exerce o pensamento deve viver e existir. O pensamento pressupõe a vida e o existir; portanto, é fora de dúvida que a inteligência é alguma coisa superior à vida e ao existir” (MORESCHINI, 2008, p. 443). Esta expressão que se apresenta aqui no De Trinitate, na verdade é uma retomada do mesmo pensamento que Agostinho havia feito já no De libero arbitrio (II, 3,7) e que posteriormente faria na Cidade de Deus (XI, 26). (MORESCHINI, 2008). Ora, surge aqui um problema. De que forma é possivel à alma, que se conhece de forma a priori e jamais pode senão ter a certeza de si, se ignorar de forma a se unir a uma substância corporal? Em outras palavras, como a alma é capaz de se esquecer de si? Agostinho parece solucionar este problema, em seu texto, fazendo a distinção entre nosse e cogitare. Não parece na demonstração de Agostinho haver qualquer possibilidade de uma substância 167 Os termos “excidit” e “recognosci” são do próprio Agostinho, como podemos ver na citação do trecho em latim a seguir. 168 DT., X, 4.6. 169 Do latim: “atque ita quaerit quod deest quemadmodum solemus quaerere ut ueniat in mentem quod excidit, nec tamen penitus excidit quia potest recognosci cum uenerit hoc esse quod quaerebatur”. 55 corporal se infiltrar na alma, de forma a afetar a notitia. Afinal de contas isto seria totalmente impossível, uma vez que a própria notitia, diferente do conhecimento de um objeto corpóreo qualquer, “não se trata de um conhecimento que vem do exterior, mas de um conhecimento segundo qual a alma se atém imediatamente” (AGAESSE; MOINGT, 1997, p. 604)170. A palavra imediata deve ser entendida no sentido mesmo de não-mediada, ou seja, não há qualquer divisão no espírito no momento da notitia. Ele é um conhecimento implícito, da qual a alma toma ciência imediatamente. A memória portanto, neste caso, não se trata de uma faculdade do espírito intermediária, da qual a presença ou não desta faculdade poderia ser optada. Muito pelo contrário: em Agostinho, ao falar de mens, isto é, da parte mais nobre da alma, não é possivel sem dizer ao mesmo tempo memória, inteligência e vontade. Agostinho confirma isso separando radicalmente a notitia da cogitatio: […] mas, quando não se pensa a si mesma, resta certamente que não está no seu próprio olhar, nem dela é formado o seu olhar, mas no entanto conhecese a si mesma como ela é para si própria na memória de si mesma.171172 2.2 O SE COGITARE: PENSAR A RESPEITO DE SI A primeira aparição da distinção direta entre nosse e cogitare que Agostinho faz acontece no §7 do livro X. Este tema sera retomado mais adiante por ele no próprio De Trinitate, nos livros XIV (§8; 9) e XV (§25), de onde tomaremos alguns elementos173. A frase que inicía este novo episódio na discussão de Agostinho é o de abertura da seção 5.7: “Assim, sendo uma coisa não se conhecer e outra não se pensar a si mesma”174 175. Agostinho passa agora a explicar em que sentido, então, que a mens deve conhecer a si mesma. Ou em outras palavras: qual deve ser o verdadeiro entedimento da expressão “conhece-te a ti mesmo”. Como vimos, a mente já se conhece de forma apriorística. Então não deve-se dizer “conhecer a si mesma”, mas sim, “pensar a respeito de si”: isto é, “se cogitet”. Agostinho usou a palavra “recognosci”176 para se referir ao momento em que a mente 170 Tradução livre de: “[…] ce n’est pas un savoir qui vient de l’extérieur, mais un savoir dans laquel l’âme s’atteint immédiatement”. 171 DT., XIV, 6.8. 172 No original lê-se: “cum vero non se cogitat, non sit quidem in cospectu suo nec de illa suus formetur obtutus, sed tamen noverit se tamquam ipsa sibi sit memoria sui.” 173 Fazer esta distinção entre o nosse e cogitare junto com Agostinho e bem compreendê-la é necessária na discussão sobre a memória porque esta última está implicada em ambas situações. 174 DT., X, 5.7. 175 No original lê-se: “ita cum aliud sit non se nosse, aliud non se cogitare.” 176 DT., X, 4.6. 56 reconhece haver encontrado aquilo que procurava, isto é, ao que parece estar “esquecido”. O mesmo acontece quando a mente pensa a respeito de si: ela pensa sobre algo que parecia haver esquecido, mas que, na verdade, apenas não era lembrado. Em uma tradução grosseira, podemos dizer que não se era “cogitado”. Mas esta forma de “cogitação” que diz Agostinho, parece muito com a sua idéia de lembrança. É aí que a memória entra em cena outra vez. Frente a este panorama, a interessante conclusão que Agostinho tem é a seguinte: da mesma forma que a mente é capaz de se lembrar de algo que parece ter esquecido mas que, ao se recordar, sabe que jamais se esqueceu, também a si mesmo, ou seja, à sua própria natureza e essência, a memória deve lembrar de si para, a partir de então, pensar a respeito de si (se cogitet). Ter como objeto do pensamento a si mesmo, ou seja, da quiidade da alma, implica necessariamente haver uma lembrança de si. Este pensar a respeito de si trata-se da conhecida conversão incorpórea ou movimento incorpóreo (incoporea conversione), no qual a alma volta sobre si mesma, numa atitude reflexiva177. A interioridade pode ser produto dela, mas o movimento que a alma faz é o da reflexão: a mens, “[…] quando se pensa a si mesma, se volta para si, não através de um espaço, mas por meio de um movimento incorpóreo”178. Aqui não podemos mais falar de uma totalidade da mente. No ato de pensar, a mente está sujeita a se perder e a se confundir. Pois o objeto de pensamento no qual o espírito se fixa, irá determinar sua natureza: No nível da cogitatio, o conhecimento do espírito sobre si mesmo continua fragmentário; precisamente o fato de que ele não pode sondar a si mesmo totalmente é um signo de sua finitude. Mas no nível do se nosse o possuir-asi-mesmo deve ser total, pois só assim é possível um eu que é idêntico em todos os seus atos discursivos, ainda que limitados. A identidade que se constitui no se nosse garante a unidade da consciência no sentido de que todo seu saber, não importa quão pouco ou muito ele possa conter, é meu (BRACHTENDORF, 2012, p. 221). De acordo com Varron, Agostinho faz derivar a palavra cogito do étimo cogo, como agito e ago. Que traz a idéia de agrupar, reunir. Desta forma cogitare veio a “[…] designar o ato pelo qual a alma junta os conhecimentos nebulosos e latentes na memória para colocá-los de alguma forma visíveis e trazê-los assim à luz da consciência (cf. Conf. X, 11, 18)” (AGAESSE, 1997, p. 606)179. Na nota n˚ 7 do livro XI do De Trinitate, Rosa (2007) explica como Agostinho chegou à palavra cogito, e em que sentido ele deve ser compreendido: “O verbo cogito, ‘pensar’, é formado do verbo ago, ‘levar’, do qual deriva o verbo coagere> cogere, ‘juntar’, e o substantivo coactus, 177 Por ser em uma atitude reflexiva a conversão incorpórea, então ela pode ser dita apenas para o se cogitare e nunca para o se nosse. 178 DT., XIV, 6. 8. 179 Tradução livre de: “[…] désigner l’acte par lequel l’âme rassemble les connaissances éparses et latentes dans la mémoire pour les poser en quelque sorte sous son propre regard et les amener ainsi á la conscience claire”. 57 resultado da acção de juntar: ‘reunião’. Daí a associação conceptual que Agostinho estabelece entre pensamente e reunião”180. Pensar, portanto, é re-unir: elementos que estavam des-unidos e que voltam a se encontrar, no interior da mens, formando o pensamento. Mas afinal quais seriam estes elementos que se reunem? Explica Agostinho: é assim que, da memória, e da visão interior, e da vontade que as une a ambas se forma aquela trindade; o reunirem-se estas três coisas numa só, chama-se ‘pensamento’ a partir de reunião181. A questão da memória reaparece nesse contexto como propriedade importante do pensamento. É por isso que, veremos, a memória parecerá também um problema quando associada a imagens que poderiam, de alguma maneira, causar algum tipo de confusão do pensamento e se tornando obstáculo no caminho de salvação da alma. Agaesse e Moingt (1997) dizem que ao tratarmos do cogitare, não estamos falando de um conhecimento, mas de uma atividade sintética entre o verbum mentis e o amor182. Ao citar a retomada do tema no texto de Agostinho, no livro XIV, Agaesse e Moingt demonstram que entre a notitia e a cogitatio há o verbum mentis que os diferenciam. Ao pensar, há necessariamente a geração de um verbo que nada mais é do que o que a mente diz: […] e se ela se reconhece em seu verbo, então ela não só reflete a respeito de si, mas tambem possui a si: este ‘reconhecimento’ é também geração: ‘Mens igitur quando cogitatione se conspicit, intelligit se et recognoscit: gignit ergo hunc intellectum et cognitionem suam’ (AGAESSE; MOINGT, 1997, p. 607). Contudo muitos são os impecilhos criados pela própria memória no desempenho desta tarefa. Da mesma forma que ela é a precursora e protagonista da ação do intelecto reflexivo, é também a grande responsável pelo insucesso deste: “Então porque”, pergunta Agostinho, […] se lhe preceitua que se conheça a si mesma? Em minha opinião, para que pense em si e viva segundo a sua natureza, isto é, para que anseie ocupar a ordem que lhe cabe segundo a sua natureza, ou seja, debaixo daquele a quem deve estar submetida, e acima das coisas a que deve antepor-se; debaixo daquele por quem deve ser governada, acima das coisas que deve governar183. Por haver estado submetida a um esquecimento de si muito grande, ou seja, por não haver pensado a respeito de si mesma, a alma “faz muitas coisas levada por uma ambição desregrada”184. E em que consiste esta ambição, segundo Agostinho? Em pretender ser Deus. Contudo, ser semelhante a Deus, não por obra dele, […] mas por si própria, ao pretender ser aquilo que ele é, afasta-se dele, 180 DT., XI, 3.6. DT., XI, 3.6 182 É importante notarmos o reaparecimento reitarado do conceito de verbum mentis em todo o contexto do livro décimo. 183 DT., X, 5.7 184 DT., X, 5.7 181 58 desvia-se e cai no menos e no menos que julga ser o mais e o mais, porque nem ela se basta a si, nem nada basta a quem se aparta daquele que é o único que basta185. Ao ver coisas belas na natureza de Deus, que lhe é superior, a alma ao invez de fruí-las, erra querendo atribuir a si aquilo que é próprio de Deus. A ação débil da memória pode ser ocasião de falta moral grave, a que Agostinho parece equiparar à soberba: a de preteder ser semelhante a Deus, sem o auxilio dEle. Ora, Agostinho jamais colocaria esta questão como possível, se de fato não houvesse uma intimidade ontológica entre Deus e o homem. A presença de Deus no interior da mens, como foi discutido ao falarmos da memora Dei, é real e intensa a ponto do homem ser capaz de se considerar semelhante a Deus. Não abordaremos sua indigência mas sim a dificuldade que a alma tem de se estabelecer na ordem que lhe cabe segundo sua natureza, como havia dito Agostinho na citação anterior. O que move a alma ao erro, segundo ele, está no desejo dela de adquirir conhecimento das coisas exteriores. Este desejo se estabelece em função do amor que está direcionado àquilo que lhe é exterior. Mas como “não pode levar consigo esses mesmos corpos para o seu íntimo, como que para uma região de natureza incorpórea, enrola e leva consigo as imagens deles criadas em si mesma e a partir de si mesma. De facto, ao formá-las, comunica-lhes algo da sua substância”186. Para se compreender que espécie de comunicação é esta que a alma dá de si mesma, lembremos o que Agostinho entende por conhecimento sensível: “A sensação é certamente toda reação no corpo que não se oculta à alma”187. Então, para ele, o processo de produção do conhecimento sensível só é possível em função da vigilância constante que a alma exerce sobre o corpo, de uma forma tal que qualquer modificação sofrida neste, a alma não deixará passar despercebido. Como um espelho imediato da ação sofrida no corpo. Contudo, de forma alguma o corpo exercerá na alma quaisqueres ações para que esta sensação sensorial ocorra, pois quem sente é a alma. Assim sendo, a alma por meio de uma atividade própria extrai de sua substância uma imagem semelhante ao objeto: É necessário que a tire de si mesma e também, consequentemente, que dê algo de sua própria substância para formar a sensação. Não obstante, ainda que a alma só se submeta à ação de si mesma, quando sente, é necessário que ela faça uso de si mesma e que, de certo modo, ela consome a si mesma em benefício de seu corpo para acomodar-se a ela e velar por ele (GILSON, 2007, p. 134). Pois então ainda a questão se mantém: Como poderia a alma se afeccionar a uma substância corporal e, de certa forma, deixar de se conhecer? A isto Agostinho reitera que, na verdade a alma 185 DT., X, 5.7 DT., X, 5.7 187 AGOSTINHO, A. A grandeza da alma, XXV, 48. 186 59 jamais esqueceu-se de si. Apenas deixou de pensar sobre si (se cogitare), o que é algo totalmente distinto. No texto, ao querer se comparar com os animais, Agostinho diz que no conhecimento sensível, embora haja uso da própria substância da alma, há uma parte na mens que permanece preservada: a inteligência racional, que é designada para realizar o julgamento da natureza das imagens que são recebidas no interior da alma, sejam elas exteriores ou interiores. Esta capacidade de julgar e, de certa maneira, submeter um conhecimento sensível a um conhecimento racional, é capacidade exclusiva humana. Aos animais isso não lhes é concedido, em sua natureza. Esta parte do homem está livre de ser transformada em imagem, de qualquer coisa que seja: […] mas preserva alguma coisa com que livremente ajuíze da natureza dessas imagens. E isso é propriamente a mente, isto é, a inteligência racional que é guardada para julgar. Pois nós sentimos que temos em comum até com os animais aquelas partes da alma que recebem a forma das imagens dos corpos188. Mais adiante Agostinho vai dizer que estas mesmas imagens (imagines eorum): […] são uma espécie de vestígios de múltiplas atenções. Estes vestígios como que se imprimem na memória quando as coisas corpóreas, que estão fora, são percebidas pelos sentidos de modo que, mesmo quando estão ausentes, estejam as suas imagens disponíveis para aqueles que nelas pensam189. Com estas palavras Agostinho mostra a posição da memória com relação a estas imagens sensíveis. E parecem ser duas as operações realizadas pela memória diante deste estímulo: 1- a de reter a lembrança delas no espírito, mais exatamente em sua mens (onde se encontram também a inteligência e a vontade) para que, caso estas coisas das quais temos as imagens impressas se encontrem ausentes dos sentidos, a memória pode trazer à luz do espírito estas lembranças e recordar. Trata-se, portanto, da capacidade mnemônica da memória aqui colocada em ação; 2- e a outra atividade parece ser a de direcionar a atenção do espírito, tal como ordena a alma com relação ao corpo o qual governa, para o objeto exterior. O direcionamento da atenção a um objeto envolve uma ação cooperada entre a memória e a vontade. Esta atenção do espírito, nada mais é que a amoris affectum, ou seja, a afeição da alma. E é este mesmo afeto que Agostinho sugere para o apaixonado pela exterioridade, dirigir a si mesmo, ou seja, voltar para si por meio de uma conversio incorporea e se amar: Conheça-se, pois, a si mesma e não se procure a si mesma como ausente, mas fixe em si a atenção da vontade com que vagueava pelas outras coisas e pense em si mesma.190 188 DT., X, 5.7. DT., X, 8.11. 190 DT., X, 8.11. 189 60 A união feita entre alma e imagem, nada mais é que uma identificação intuitiva no interior da mens. Esta identificação é tamanha, que chega ao ponto da alma se considerar ser também da mesma natureza que estas coisas. Agostinho faz um importante apontamento: “Recebe (a mens) de certo modo a mesma forma que elas, não sendo isso, mas pensando-o, não porque se pense como imagem, mas porque se pensa precisamente como aquilo cuja imagem tem consigo”191. Isto significa dizer que a mens não pensa a si como um imagem qualquer, mas como esta ou aquela imagem interiorizada a qual se assemelhou. Portanto não se trata abandonar todos os tipos de imagens que pode formar a respeito de si, mas sim de imagem cuja origem provém dos orgãos do sentido e são de coisas corpóreas. Afinal, quando saudável, a mens pensa a si mesma como imagem e semelhança Deus, a qual foi formada originariamente. E pensar a si como sendo esta imagem, nada lhe deprecia, muito pelo contrário, faz com que ela se assemelhe àquele que lhe imprimiu esta imagem, ou seja, Deus. A solução deste impasse, nos dá Agostinho a seguir: “Quando, pois, lhe é ordenado que se conheça a si mesma, não se deve procurar como se fosse separada de si, mas deve separar de si aquilo que a si acrescentou”192. Esta solução Agostinho partilha de Cícero, em suas Tusculanas (I, 16, 38): o hábito às coisas sensíveis, prejudica a mente à analisar-se a si própria. Antes de prosseguirmos o caminho traçado por Agostinho, cabe situar a posição que o problema da confusão da mens com uma imagem corporal ocupa. Acima de tudo Agostinho já nos revelou a terapia primeira que a alma deve fazer: pensar a respeito de si. O pensar sobre si mesmo é como que o fundamento primeiro da cura da alma, habituada às coisas sensíveis. Pela forma como Agostinho coloca este problema, como que associado diretamente ao conhecimento sensível, não deve haver uma alma se quer que escape deste estado de esquecimento de si: oblita sui.193 A memória portanto se torna a resposta neste projeto traçado por Agostinho, que visa demonstrar a maneira como a alma deve se comportar quando realiza uma conversio incorporea194. Não só no sentido de se conhecer a si mesma, pensando sobre si mesma, mas agora a fim de fugir de um estado perigoso para a sua salvação de desordem interior. Realmente a união da alma à imagem sensível, culminando em um hábito a esta, faz com que a alma não se situe de maneira correta, segundo a ordem estabelecida por Deus para todas as coisas: […] e assim, pelo desejo de adquirir conhecimentos das coisas exteriores, 191 DT., X, 6.8. DT., X, 8.11. 193 cf. DT., X, 5.7, onde lemos em latim: “multa enim per cupiditatem prauam tamquam sui sit oblita sic agit”. 194 Toda a discussão a respeito desta confusão entre alma e imagens corporais vieram a calhar em Agostinho devido ao movimento incorpóreo, que faria a alma pensar a respeito de si. Agostinho só entra nestas questões na medida em que elas trariam obstáculos para uma verdadeira conversão incorpórea. O movimento da alma de se cogitet continua sendo o horizonte de toda a discussão aqui. 192 61 cujo género, conhecido já, ama, e sente que podem ser perdidas se não forem guardadas com grande esforço, perde a segurança e pensa tanto menos em si quanto mais segura está de que não pode perder-se195. É como que o erro cometido pela mente neste estado a convencesse de que ela estará segura, caso se esforçe por reter as imagens corpóreas em sua memória. O empenho que exercerá para retêlas traria a ela uma falsa sensação de segurança, e na verdade a faria mais perdida do que nunca. Mas Agostinho encontra uma saída: A mente (mens), porém, está mais dentro de si que as imagens dos objetos sensíveis. Ou seja, é como se para Agostinho houvesse na alma camadas de impressões, das quais as impressões sensíveis ocupam a parte mais periférica. A mente haveria de possuir, portanto, um atalho privilegiado para se chegar a si mesmo em virtude desta presença. Há um “si mesmo” da mens que permanece preservado e que pode se relacionar com esta presença. Embora Agostinho demonstre que a mens permaneça preservada destas fusões mentais, nem por isso signifique que elas não a atrapalhariam: “[…] mas preserva alguma coisa com que livremente ajuíze da natureza dessas imagens. E isso é propriamente a mente, isto é, a inteligência racional que é guardada para julgar”196 197. E estar dentro de si consiste em exatamente o quê então, para Agostinho? “Assim, não procure ver-se como ausente, mas cuide de distinguir-se como presente”198. Ou até mesmo: “Mas quando se diz à mente: ‘conhece-te a ti mesma’, a si mesma se conhece, e por nenhuma outra razão que não seja o facto de estar presente a si mesma”199. O conhecimento de si, e com isso o amor de si e a memória de si são diferente de todas as outras espécies de relações travadas entre o espírito e algum objeto exterior ou interior: trata-se, na verdade, de uma certeza presente, ou ainda, de uma presença presente. Mas todas as mentes humanas sabem também que recordam “[…] e sabem, ao mesmo tempo, que ninguém se recordaria se não fosse e não vivesse, mas referimos também essa mesma memória a qualquer coisa que por meio dela recordamos”200. Como sei ser capaz de recordar, se não houvesse acima da instância da memória uma outra capaz de julgá-la? A questão parece entrar em um impasse se se quiser atribuir à Agostinho o pensamento de que a memória é, dentre todas as outras atividades da alma, a que possui primazia. Ele parece atribuir à intelligentia esta capacidade de julgar, própria do homem, e que o colocaria em uma posição compreensiva com relação a suas outras atividades psicológicas201. 195 DT., X, 5.7. DT., X, 5.7. 197 Do latim: “seruat autem aliquid quo libere de specie talium imaginum iudicet, et hoc est magins mens, id est nationalis intellegentia quae seruatur ut iudicet.” 198 DT., X, 9.12. 199 DT., X, 9.12. 200 DT., X, 10.13. 201 cf. DT., X, 8.11. 196 62 Mas logo em seguida afirma que “em duas destas três coisas, pois, na memória e na inteligência, estão contidos o conhecimento e a ciência de muita coisa”202. O que começa a aparecer no texto de Agostinho é uma certa união entre três coisas que na verdade estão sempre juntas. Na memória está contida a notitia e na inteligência, a ciência. A vontade juntamente com a memória e a inteligência, formam uma trilogia na mens. A vontade assume o papel de fazer uso ou de fruir destas outras duas atividades da mens: Efectivamente, fruímos das coisas conhecidas, nas quais repousa a vontade, deleitando-se nelas em razão de si mesma; mas usamos daquelas que referimos a outra coisa de que devemos fruir. Não há vida humana viciosa e culpável senão a que usa mal e frui mal: não é esta a ocasião nem este o lugar para tratar dessa matéria203 204 . Agostinho propõe agora, no item 10.14, a retomada de sua sentença: “todas as mentes têm conhecimento de si mesmas e estão certas disso”. E passa a relacionar esta verdade, a qual já tratou o suficiente nas seções passadas, com a trindade analógica que agora encontrou claramente no interior da mens: memória, inteligência e vontade. Dizendo: Haverá, porém, alguém que duvide de que vive, e recorda, e compreende, e quer, e pensa, e sabe, e ajuíza? Pois se duvida, vive; se duvida, recorda-se de onde provém a sua dúvida; se duvida, compreende que duvida; se duvida, quer ter a certeza; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, ajuíza que lhe não convém dar irreflectidamente o seu consentimento. Quem, pois, duvida seja do que for não deve duvidar de todas estas coisas, porque, se elas não existissem, não poderia duvidar de nenhuma delas205. A outra certeza que Agostinho destaca possuir a mente que tem conhecimento de si, é a certeza que tem de sua substância206: “Por isso é que, conhecendo-se a si, a mente conhece a sua substância e, quando tem a certeza de si, tem a certeza da sua substância” 207 208. Contudo, explica Agostinho, “[…] de nenhum modo seria possível que pensasse aquilo que ela própria é da mesma maneira que pensa aquilo que ela própria não é”209. Portanto a sua substância, por mais difícil que seja descobrir qual é, é alguma que certamente se tem certeza de ser. E pensar nela não consiste em um movimento do espírito semelhante ao de conhecer uma outra 202 DT., X, 10.13 DT., X, 10.13. 204 Optei por fazer a citação inteira, pois o tema do uso e fruição é de suma importância no projeto filosófico e teológico de Agostinho, e não poderia omitir a presença que ele indica haver nesta matéria da trindade formada pela memória, inteligência e vontade. Mas adiante, ainda neste livro décimo, Agostinho voltará a falar sobre o tema. 205 DT., X, 10.14 206 Não pretendo aqui entrar em detalhes se o termo “substância” utilizado por Agostinho é adequado ou não, nem se ele pode ser comparado com o termo “substância” que Aristóteles utiliza, por exemplo. Optei por colocar a citação latina em rodapé a fim de que fique claro que esta foi a palavra utilizada por Agostinho. Embora esta discussão a respeito da mens enquanto substância ou essência parece de grande relevância, não é este o nosso objetivo neste trabalho. 207 DT., X, 10.16 208 Do latim: “quapropter dum se mens nouit substantiam suam nouit, et cum de se certa est de substantia sua certa est.” 209 DT., X, 10.16. 203 63 coisa ou substância qualquer210. Roga Agostinho: mas que a mens “tenha a certeza de não ser nenhuma dessas coisas em relação às quais não tenha certeza, e que tenha a certeza de ser apenas aquilo que tem a certeza apenas de ser”211. Ao discutir qual seja a real substância da mens, Agostinho diz que por meio da representação imaginária, onde a memória teria também um papel ativo, seria somente possível ao ente obter a certeza a repeito de imagens obtidas sensorialmente. A representação imaginária, produto da memória, seria o recurso utilizado para isso. Mas no caso de uma conhecimento ontológico, isto é, aquele que discute o que seja o ser, se o homem tivesse como substância uma dessas coisas corpóreas, Agostinho afirma que: Ora, se fosse alguma destas coisas, haveria de pensar nela de modo diferente das outras, isto é, não pelo recurso á representação imaginária (imaginale figmentum), como são pensadas as coisas ausentes que são alcançadas pelos sentidos do corpo, trata-se delas mesmas ou de outras do mesmo género, mas por meio de uma presença interior212, não simulada, mas real (uera presentia) – nada, de facto, lhe é mais presente do que ela própria – do mesmo modo que pensa que vive, e recorda, e compreende, e quer. Conhece estas coisas de facto em si, e não as imagina como se as tocasse fora de si pelos sentidos, como se tocam quaisquer objectos corpóreos213 . A presença interior ao qual Agostinho cita aqui, é a mesma que apresentamos anteriormente, quando procuramos explicar o acesso privilegiado que a mens possui a si mesma, mesmo diante de uma confusão com imagens corpóreas que a prejudicam. Esta presença interior real é um tema recorrente nesta obra, devido sua importância. Por isso ele irá retomar mais a diante no De Trinitate, dizendo: Estando, pois, presente a si, de nenhum modo se recordaria de si se a memória não pertencesse também às realidades presentes. Portanto, assim como nas realidades passadas se denomina memória aquela que faz com que elas possam ser retomadas e recordadas, assim na realidade presente, coisa que é para si a mente, sem cair no absurdo deve dizer-se memória aquela que permite à mente poder compreender com o seu pensamento e unir com o amor de si ambas as coisas214 . Há uma íntima união no espírito entre a presença de si mesmo e as realidades presentes. Como já foi dito o conhecimento de qualquer coisa pressupõe necessáriamente o conhecimento de si, por esta razão aquilo que está atual na alma, isto é, presente nela, será sempre acompanhado desta notitia. Percebemos uma evolução no pensamento de Agostinho: ele próprio se refere à memória como relacionada não só as coisas passadas, como também às coisas presentes. É neste ensejo que 210 Até aqui Agostinho ainda não apresentou qual a substância própria da mens, mas apenas disse o que com certeza ela não é. 211 DT., X, 10.16. 212 Os grifos são meus. 213 DT., X, 10.16 214 DT., XIV, 11.14 64 se aproxima a última investigação feita neste livro X que contemplará problemas a cerca do tempo e da eternidade, e da relação destas com a memória. Esta última passa a ter na psicologia agostiniana um caráter presente e constante, e não mais somente mnemônico. 3. TERCEIRO CAPITULO: MEMÓRIA, INTELLIGENTIA, VOLUNTAS É no sentido de consolidar finalmente estas últimas discussões que Agostinho abre em seu texto espaço para um novo episódio. No início da seção 11.17, diz ele: “Pondo de lado por algum tempo as outras coisas que a mente tem a certeza, reflictamos especialmente sobre estas três: memória, inteligência e vontade”215 216. Ao sugerir então de início uma análise a respeito da índole (indolem) de uma criança, ou seja, daquilo que entende por personalidade, Agostinho diz que deve ser observado estas três coisas que ele propõe a investigar: memória, inteligência e vontade. A proposta inicial de Agostinho abre o espaço que ele precisa para colocar agora como objeto de investigação estas que a princípio são apenas operações da mens. O que deve ser observado nas crianças é mais exatamente o que ela se recorda e o que ela compreende. Não só isso, mas também o que ela quer, isto é qual o objeto da sua vontade. Estas três coisas dizem muito a respeito da índole de uma pessoa, segundo Agostinho217. E o ponto que chama atenção é que o que determinaria esta suposta “personalidade” trata-se do objeto que estaria em questão. Esta indicação reitera a importância da memória enquanto meio de captação de imagens, interiores e exteriores. Sendo a memória o pressuposto necessário para se haver encontro entre objeto-sujeito. Ela, então, tal como concebida por Agostinho, é a base e o fundamento anímico do sujeito fenomenológico (MARION, 2008). Portanto até aqui temos o seguinte: estas três atividades da mens são a base formativa da personalidade um criança; o objeto a qual elas se dirigem determinam em enorme medida seu desempenho; e é necessária haver uma cura delas a fim de que o homem possua a respeito de si um conhecimento mais puro e um pensamento mais ordenado. Ultrapassando isso, Agostinho equipara ainda nesta seção 11. 17 a memória, inteligência e vontade respectivamente ao engenho, saber e uso (ingenium, doctrina, usus): Quando, pois, estas três coisas: ‘engenho, saber e uso’, são referidas, considera-se em relação à primeira, no conjunto das três, qual é a capacidade 215 DT., X, 11.17. Agostinho parte para a consumação de sua reflexão filosófica tendo como base Cícero, no De Inuentione 2, 53, 160 (cf. ROSA, 2007). 217 DT., X, 11.17. 216 65 de cada um em memória, em inteligência, em vontade. Em relação à segunda, considera-se o que cada um possui em memória e inteligência, e até onde pode ir com uma vontade empenhada. A terceiro, o uso, consiste na vontade que trata cuidadosamente as coisas que estão contidas na memória e na inteligência, quer as reporte a outra coisa, quer repouse, deleitada, com a finalidade delas218. Engenho, saber e uso estarão na ação do homem sempre em função destas três atividades da alma e presente em cada uma delas. Agostinho explica que usar é colocar uma coisa à disposição da vontade. Fruir é uma maneira também de usar, mas só que com alegria: busca-se na fruição o deleite como finalidade219. 3.1 A TRINDADE ANALÓGICA Prosseguindo no texto de Agostinho, ao querer encontrar uma analogia da Trindade na alma, mais exatamente, em sua mens, o pensador africano diz que: “Dado que estas três coisas, memória, inteligência e vontade, não são três vidas, mas uma única vida, nem três mentes, mas uma única mente, segue-se que não são três substâncias, mas uma única substância”220 221 . Quando dita em si mesmo, a memória é vida, é mente, é substância: cada uma destas coisas e todas elas. O mesmo acontece com as duas demais atividades da mens. Isto é muito diferente do que dizer que memória é a vida, é a mente, é a substância da mens. Este aspecto de unidade e identidade entre os termos é fator determinante não só no entendimento propriamente dito daquilo que Agostinho quer chamar de “trindade analógica”, mas também da constiuição da mens enquanto parte mais excelente da alma. A identidade de cada um dos termos é destacada com a frase: “[…] e qualquer outra coisa que seja dita cada uma delas em relação a si mesma, é dita também conjuntamente, não no plural, mas no singular”222. Cada uma destas três atividades é portanto todas estas coisas sozinhas, e com identidade própria. Todas são tudo e não há entre elas nenhuma que se sobressaia enquanto substância da mens. Sobre a memória neste contexto, a discussão de Agostinho não se refere mais ao caráter relativo dela, mas sim, objetivo, isto é, o que seria a memória em si enquanto propriedade da mens. 218 DT., X, 11.17. Aqui o tema uso e fruição volta a aparecer devido à estreita relação que estas duas coisas têm com a memória, inteligência e vontade. (vide seção 10.3 do livro X). Se fossemos resumir a idéia de homem no mundo segundo Agostinho, seria a de alguém dotado daquelas três capacidades que são interdependentes e que devem ser bem ordenadas para usar e fruir adequadamente das coisas do mundo e de Deus. 220 DT., X, 11.18. 221 Do latim: “haec igitur tria, memoria, intellegentia, uoluntas, quoniam non sunt tres uite sed una uita, nec tres mentes sed una mens, consequenter utique nec tres substantiae sunt sed una substantia” 222 DT., X, 11.18. 219 66 Além disso Agostinho acrescenta: E não só é contida cada uma delas em cada uma das outras, mas todas por cada uma delas. De facto eu recordo-me de que tenho memória, e inteligência e vontade; e compreendo que compreendo, e quero, e recordo; e quero querer, e recordar, e compreender; e recordo ao mesmo tempo toda a minha memória, e inteligência, e vontade223. Para Agostinho, aquilo que eu não recordo da minha memória não está na minha memória224. E ao colocá-la como objeto de recordação, recordo-a toda, pois “nada está tanto na memória como a própria memória”225. Não só me lembro daquilo que sei, como sei somente aquilo que lembro, pois: “[…] a totalidade de cada uma é igual á totalidade de cada uma das outras, e a totalidade de cada uma é simultaneamente igual à totalidade de todas, e as três constituem uma só coisa, uma só vida, uma só mente, uma só essência”226. Há aqui uma insitência de que todo conhecimento é memória, tanto que, se uma consciência é sempre um traço, não pode ser, primariamente, um suposto “reflexo” de um mundo exterior, mas é constituída como um “desdobramento” de um processo extra pessoal: Existe, enfim, um fundamento fenomenológico para a mens: Para Agostinho, cada aspecto da alma, memória, compreensão e amor, é radicalmente intencional e, de fato, em trin. 10, 5-15, passagem em que ele enuncia um cogito, Agostinho nega que a alma é uma ‘essência’ no sentido usual, e, em vez disso, declara que aquilo de que não podemos duvidar é de sua relacionalidade; a alma é conhecimento porque é conhecimento de alguma coisa [assim como é memória de e amor por alguma coisa]. Portanto, deveríamos tomar a relacionalidade - conhecimento intencional – como sua essência (MILBANK, 2013, p. 145). Este aspecto relacional da alma, se não podermos chamar de sua essência, ao menos vale dizer que é essencial considerar a sua importância. Agostinho vê na mens estas três grandes atividades como essencialmente relacionais: memória, inteligência e vontade são sempre de alguma coisa. Como dissemos, Agostinho deixou de lado esta proposta por um instante, para descutir o que estas coisas são em si. O que Milbank (2013) chama atenção é que, mesmo que consideremos a unidade e identidade de cada uma destas atividades da mens, o fato delas serem relacionais continuará sendo o mais fundamental. A relacionalidade entendida também como intencionalidade, é a base da fenomenologia: havemos encontrado, então, uma fenomenologia do espírito em Agostinho. Ao falar do espírito humano, Brachtendorf (2012) completa: No ser do espírito estão incluídos o conhecer-se e o querer-se; o conhecer dirige-se ao ser e ao querer próprios; e o querer ao ser e ao conhecer […] O 223 DT., X, 11.18. cf. DT., X, 11.18. 225 DT., X, 11.18. 226 DT., X, 11.18. 224 67 mesmo se aplica ao Deus trino, segundo Agostinho, pois este é um único Deus em três Pessoas, e cada Pessoa individual é ao mesmo tempo o Deus todo. O espírito humano exibe, portanto, uma estrutura que pode ser entendida como paralela à Trindade de Deus (BRACHTENDORF, 2012, p. 289). Temos então, em Agostinho, uma estrutura do espírito cujo fundamento é o de ser também imagem da Trindade. Agostinho chega a esta conclusão pela seguinte construção racional: o homem, por ser Imagem e Semelhança de Deus, é também, por isso, da sua Trindade. Então, por ser imagem da Trindade, pode ser que haja em seu espírito uma outra trindade que corresponderia, de certa forma à Trindade Divina (AYOUB, 2011). Agostinho descobre que de fato há. Então, ao pensar no espírito humano, ele não só descobre a trindade formada pela memória, inteligência e vontade, mas também para o fato dele ser imagem-semelhança de Deus: temos portanto um espírito tripartidário. É uma psicologia que se confunde com ontologia em alguns aspectos: ao estudar a Trindade, estuda-se também o espírito humano, de forma análoga, indiretamente. E o mesmo acontece em sentido contrário. Quando a memória e a inteligência estão como que fundidas com as coisas corpóreas das quais lembra e conhece, há uma grande dificuldade em distiguir a memória de si mesmo, isto é, deste eu mais íntimo, e o mesmo tambem acontece com a inteligência: Quando, por isso, a mente se vê a si mesma com o pensamento, compreendese e reconhece-se; isso gera então este compreender-se e reconhecer-se; isso gera então este compreender-se e este conhecer-se a si mesma […] Não é assim que a mente gera este conhecimento de si mesma, quando, pelo pensamento, se entende e se vê a si própria como se antes fosse desconhecida de si mesma, mas não era conhecida para si como são conhecidas as outras coisas que estão contidas na memória, embora não sejam pensadas227. Com estas palavras Agostinho demonstra que, no caso da notitia, a memória parece assumir um papel mais exclusivo na produção desta forma de conhecimento, em caráter pré-reflexivo. Já em um segundo momento, em caráter totalmente reflexivo, isto é, a partir da cogitatio há sempre a tríade formada entre memória, inteligência e vontade. A memória não deixou de ser importante neste quesito, mas o papel dela é equivalente às demais substâncias que constituem a mens. Então, enquanto parte da mens humana, a memória muitas vezes se confunde com o próprio espírito em função de sua abrangência. Como podemos perceber, sobretudo com relação à temporalidade: a memória imprime o caráter “distensivo” da alma228. Não pode haver no homem, como há nas criaturas angelicais, ausência da temporalidade na formação de uma vontade ou na aquisição de um conhecimento. Nos anjos, estas duas realidades são sempre atuais e plenas. Contudo, uma ou a outra faculdade são imediatas uma a outra, não precedendo 227 228 DT., XIV, 6.8. A denominada distensio animi, em latim. 68 temporalmente nenhuma. Ao amor, é mais dificil ainda se dizer, tendo em vista que sempre que presente a coisa amada ele sempre também estará: O amor fundamentalmente tem função unitiva entre dois elementos. São três faculdades - a saber - memória, inteligência e vontade, que são igualmente significantes na constituição da mens. Ao falar dessa trindade evidente, Agostinho ressalta que o mesmo não pode ser dito a respeito do cogitare, isto é, do pensar a respeito de si: “embora não compreendêssemos que ela se pensa sempre distinta das coisas que não são o que ela própria é”229 230. Isto significa que a imagem da Trindade, da qual pode-se encontrar de acordo com Agostinho, na mens humana, isto é, na memoria sui, inteligentia sui e amor, não pode ser chamada de análoga à pura capacidade de memória, inteligência e vontade. Pois, quando estas não são voltadas para si (sui), não podem ser comparadas analogamente à Santíssima Trindade uma vez que, embora sejam imperfeitas tanto quanto as outras, não são evidentes por poder a memória estar impregnada de imagens que não são si mesmo. Se a mens é aquela que procura e é ao mesmo tempo a procurada, ente e objeto se identificam. E com vimos, é extamente isso que acontece: na alma não há divisão entre o ente e o objeto conhecido, eles se identificam. Já foi este um problema levantado por Agostinho anteriormente neste livro X. No caso do se cogitare, isto é, o pensar a respeito si, memoria sui e intelligentia sui não são a mesma coisa, pois haveria entre elas essa separação criada em função de uma memória impregnada de imagens corpóreas que a torna-se turva. Ao contrário na notitia: […] dificilmente se distingue nela a memória de si mesma e a inteligência de si mesma. Que estas não são como que duas, mas uma só coisa que se designa com dois vocábulos, deixa-se ver nesta situação em que estão absolutamente unidas e uma não precede a outra nem um instante231 . 3.2 A TEMPORALITER: A EXPRESSAO TEMPORAL DA MENS Ao témino de seu livro X, Agostinho parece finalmente realizar um fechamento inesperado. Em certo sentido, é como se ele dissesse: “Agora, a partir do fim, releia tudo sob este novo prisma”. Dentre todas as atividades da alma por ele investigada, com suas peculiaridades seja da memória da inteligência ou da vontade, a memória toma um novo vigor no conjunto desta sua filosofia antropológica feita até então. 229 DT., X, 12.19. No orginal lê-se: “quamuis non semper se cogitare discretam ab eis quae non sunt quod ipsa est” 231 DT., X, 12.19. 230 69 Agostinho insere o homem, em toda sua totalidade, no mundo do aqui-agora: as atividades que sua mens realiza está submetida ao jugo da existência, e dela não pode escapar. O encontro com Deus faz com que, sobretudo estas três atividades232 da mens, transbordem suas delimitações, expandindo-se todas e cada uma delas. De fato elas são imagem analógica da Santíssima Trindade e que Agostinho conseguiu encontrar no interior da mens de todos os homens. Desta maneira, para ele ficou mais fácil dizer ao leitor o tamanho da complexidade e grandiosidade que circunscreve tanto a realidade da mens quanto da Trindade Santa: mas uma não deixa de ser a Criadora de todas as coisas e a outra, apenas uma criatura. Esta parece ser a principal preocupação no fechamento do livro décimo do De Trinitate: “Devemos porventura elevar-nos desde já com as forças da nossa atenção, quaisquer que elas sejam, para aquela suprema e sublime essência de que a mente humana é imagem imperfeita, mas, contudo, imagem”233. A elevação que Agostinho propõe ao fim do livro é a Deus, supremo e sublime, acima de tudo o que criou. Embora a mens seja ainda apenas uma imagem, ela é contudo a imagem por exelência do mistério da Santíssima Trindade e por isso não deixa de ser também objeto de admiração daquele que a contempla. Agostinho coloca em sua última sentença primoroza do livro décimo, as três faculdades, a saber, memória, inteligência e vontade, como que submetidas à temporalidade (temporaliter)234. Diz ele que é no decurso do tempo que estas atividades da alma se manifestam: Por isso, podem estas coisas ser claras mesmo para os mais ineptos, tratando-se de coisas que sobrevêm à alma no decurso do tempo e que no tempo lhe acontecem quando recorda aquilo de que antes se não recordava, e quando vê o que antes não via, e quando ama o que antes não amava235 236 . Desta frase de Agostinho podemos tirar duas conclusões, ao menos. Dentre elas, haveremos de encontrar com a derradeira função vital da memória na constituição da mens. A primeira referese à evidência da conclusão que ele chega, tanto a respeito da imagem análoga que há na mens quanto a que não se compara, pois até mesmo os mais ineptos são capazes de chegar. O que chama atenção no seu comentário é o fato que Agostinho acreditou ter realizado neste livro um longo raciocínio, de forma que qualquer um fosse capaz de acompanhar. Não só isso, deve-se ao fato de 232 Memoria, intellegentia et voluntas, nas palavras de Agostinho. DT., X, 12.19 234 Palavra que foi traduzida pela idéia de “transitoriedade” também, nesta mesma seção 12.19: “onde transitoriamente se imprime” e que em latim aparece como “ubi temporaliter imprimitur”. Esta questão não perturba em nada a nossa interpretação dada à expressão “temporaliter” que Agostinho usará mais adiante nesta mesma seção, muito pelo contrário: reforça que o conceito de temporalidade nada mais é do que a transitoriedade do espírito humano e de todas as coisas criadas por Deus. O tempo é também, neste sentido, uma transitoriedade necessária para a nossa existência e mistério da Criação. 235 DT., X, 12.19 236 No orginal lê-se: “Quapropter etiam tardioribus dilucescere haec posunt dum ea tractantur quae ad animum tempore accedunt et quae illi temporaliter accidunt cum meminit quod antea non meminerat et cum uidet quod antea non uidebat et cum amat quod antea non amabat.” 233 70 ser compreensível justamente por que trata-se de uma verdade e, também, evidente. A definição de mens, que parece ser um objetivo indireto de seu livro décimo, é em certa medida “auto-evidente” a partir destas faculdades que o constituem. Agostinho parece usar de ironía ao se referir à maneira como devemos abordar este assunto, dizendo: […] ou porventura devemos mais uma vez, por meio das coisas que percepcionamos exteriormente com os sentidos do corpo, onde a transitoriamente se imprime o conhecimento das coisas corpóreas, tornar mais claramente conhecidas essas três faculdades na alma?237 Isto parece porque, assim como os leitores, ele também percebe há uma certa teimosia da alma ferida pelo Pecado Original e pelas imagens das coisas corpóreas em querer, “mais uma vez”, se apoiar naqueles conhecimentos temporários e superficiais dos quais a alma é capaz de realizar, embora não seja esta a sua maior qualidade. Uma segunda conclusão a respeito de sua idéia de tempo: O “decurso no tempo”, do qual Agostinho fala, é o que ele passa a identificar definitivamente com esta definição de temporalidade. O conceito de tempo em Agostinho é algo totalmente fundamental para compreender a sua psicologia e ontologia. Contudo, o livro décimo do De Trinitate de Agostinho não é o momento mais privilegiado desta discussão, pois nele a idéia de tempo, temporalidade e eternidade estão apenas implícitas. Acreditamos como Netto (2002) que nas Confessiones de Agostinho (sobretudo o livro XI) é a obra mais recomendada para tartar este problema: Em verdade a reflexão que Agostinho desenvolve nas Confissões a respeito do tempo é, de todas as suas abordagens desse tema, a mais completa. Podemos dizer, sem exagero, que encontramos nela tudo que há nas demais passagens de sua obra a respeito do tema (NETTO, 2002, p. 10). Assim sendo, nossa análise com relação ao conceito de tempo fica muito restrita se permanecemos apenas no De Trinitate. Mas é importante frisar que Agostinho não só não esqueceu desta fundamental importância que o tempo tem na relação com a mens e o modo de ser do homem, como também se preocupou em citar esta questão. Primeiramente, cabe-se ressaltar que Agostinho considera que a memória é a condição de possibilidade da apreensão, pelo ser humano, das três dimensões da temporalidade – passado, presente e futuro. Este é um ponto chave dado ao conceito de memória em Agostinho. Qualquer outra faculdade da alma, por mais fundamental que seja, deverá recorrer à memória em virtude desta sujeição necessária do homem às dimensões da temporalidade. A respeito do que Agostinho entende por temporalidade, parece nos dizer muito bem Silva (2012) que, em certo sentido, até mesmo Deus se submete a ela para se manifestar. E a manifestação de Deus no porvir do espírito humano, que é temporal, o faz capaz de apreender este 237 DT., X, 12.19 71 fato: Desde esta perspectiva, o ser supremo – mantendo a sua inefabilidade e sem anular a radical diferença entre a sua essência e a das criaturas – por um lado entra em comunhão com a dinâmica tridimensional do tempo, e, por outro, manifesta-se e realiza-se, de alguma forma, no tempo (SILVA, 2012, p. 180). Agostinho parece herdar da tradição neoplatônica a certeza de que em Deus há eternidade e por isso, “falta de extensão”, pois: “[...] a eternidade é o único tempo que não foi e não será, mas está na plenitude do ser, é sempre.” (MORESCHINI, 2008, p. 479). Ao contrário, “extensão” em um entendimento de Plotino da qual Agostinho partilha é próprio da vida, portanto, do tempo cósmico do qual o homem é partícipe. Há no encontro entre Deus e o homem, um encontro entre a extensão temporal e a falta dela: eis outro paradoxo que chama de Agostinho. Deus se relaciona com as coisas sempre na condição de Criador. E o tempo é uma criatura de Dele, assim como o homem. Ao analisar o livro XI das Confissões de Agostinho, Netto (2002) destaca que: Com efeito, criado com o céu e a terra não pode ter havido um tempo no qual Deus nada fazia, pois o tempo nõ podia ainda passar, porque Deus ainda não o fizera e porque não pode ser o operador dos tempos a não ser aquele que é anterior aos tempos (NETTO, 2002, p. 14). Mas o homem, ao querer apreender a essência de Deus, isto é, “tocá-lo” com a sua inteligência, o faz por meio da temporalidade da qual participa. A apreensão intelectual, bem como qualquer outra ação do homem, acontecem no “decurso do tempo”, como dissemos, e este fato não deve ser deixado de lado. Sendo assim, Deus e o homem haveriam de se encontrar nesta mesma dimensão: a dimensão temporal. Na tentativa de apreender este tempo tridimensional, a memória que a vivência simultaneamente tenta medi-lo enquanto ele acontece em seu interior. Esta é uma complicada discussão, mas que Agostinho chegará à conclusão que, ao medir o tempo na tentativa de apreendêlo, a alma mede a si mesma: […] meço o movimento pelo tempo, mas para medi-lo, meço o próprio tempo, meço o tempo com o tempo, o mais longo com o mais breve, mas a brevidade ou longitude de um verso eu a meço a partir do tempo. Então o tempo aparece-me dotado de uma distensão, ‘distensio’, mas de que coisa, quiçá da própria alma? (NETTO, 2002, p. 25). É a própria alma que se distende. O tema da distensio animi é provavelmente de origem neoplatônica: talvez Agostinho o tenha tirado do tratado sobre o tempo e a eternidade, de Plotino. (MORESCHINI, 2008, p. 479). Mesmo sem reportar ao certo a origem questão do tempo na filosofia Agostiniana, o que devemos considerar é a sua importância com relação à memória, e certo singularidade que só ele encontrou: é a memória que se distende, a ponto de possibilitar à mens a 72 vivência daquilo que demos o nome de temporalidade. O problema então da distensio animi, como vimos, envolve a questão de como poderia ser possível medir o tempo. Sei que o passado já não é, pois passou; o futuro ainda não aconteceu, pois não chegou; e o presente me parece impossível de ser capturado: Trata-se do modo, aquele modo segundo o qual e pelo qual o tempo é tempo, e o ‘modus’ na linguagem agostiniana não é algo que se acrescenta à essência de certo ente, que se acrescenta ao ser de algo, é a perfeição deste nele próprio. Não uma perfeição de acréscimo, mas a perfeição que lhe cabe por sua própria forma (NETTO, 2002, p. 24). O modo de ser do tempo é a sua perfeição. Tentar medi-lo ou apreendê-lo, é somente vivenciando-o. O tempo é uma virtude do modo próprio que o hoje é: Esta é uma grande diferença entre Agostinho e seus antecessores, Aristóteles, Plotino e Porfírio. Além disso, Agostinho parece atribuir à memória, enquanto capaz de distender toda a alma, uma capacidade de projeção: um poder laçar-se para o futuro. Não só o modo de ser no mundo, isto é, seu porvir, mas também a sua expectatio: Para Agostinho, a memória não é uma função voltada exclusivamente para a recordação do passado. Com efeito, ela integra a experiência passada numa vivência presente e, a partir de ambas, unificando-as numa mesma mente humana, torna possível a projeção de futuro […] Agostinho comprova que toda a projeção de futuro tem como ponto de partida a realidade vivenciada no presente, sem prescindir da experiência passada, mais ainda, assentando nela (SILVA, 2012, p. 178). Neste sentido, Agostinho rompe drasticamente com sua filiação platônica, a qual considera a memória como função preponderantemente regressiva, isto é, voltada para o passado. Para o próprio Platão haveria uma necessidade do homem de conversão numa espécie de purificação noética, no qual a alma deveria regredir a um estado de perfeição perdido que havia no princípio. Muito diferente do que pretende Agostinho: Para Agostinho é característica essencial da mente humana a capacidade projetiva que, em Confessiones, atribui à própria memória, entendida como função que armazena a experiência humana e se torna condição de possibilidade do exercício da intencionalidade que caracteriza o ser humano […] A dimensão mais radical da intencionalidade, na memória como em cada uma das demais funções da mente, desvelar-se-á na condição reflexa delas. No caso da memória, tal facto significa a presença desta função da mente a si mesma (SILVA, 2012, p. 179). A realização do homem não está em retornar a um estado passado do espírito, embora Agostinho acredite haver uma perfeição no paraíso que foi perdida, mas sim, na sua realização do porvir, como homem lançado no mundo e projetado no futuro, onde haverá sua beatitude. Não obstante o aparente paradoxo, a concepção agostiniana de memória desenha uma compreensão do mundo onde o ser se realiza projetivamente, numa dinâmica que supera a dimensão cronológica do 73 tempo. A memória então teria este papel importante na realização do ser-do-homem. Embora a memória assuma aspectos fudamentais nos modos de ser do homem, cabe recordar que a ela se equivale a inteligência e a vontade quando tratamos da substancialidade da mens. Por isso mesmo, o tempo, tal como vivido pelo o homem, transpassa igualmente estas três atividades da alma e não reserva a nenhuma delas uma condição privilegiada. O tempo não de desdobra somente na memória ou na razão do homem, mas sim em todo o seu ser: Pode-se, de fato, argumentar que não é, como costuma ser alegado, que Agostinho descobre que a essência do tempo é psíquica (alegação obviamente incompatível com sua clara crença no tempo real, literalmente criado); mas, ao contrário, ele vê o caráter absorto, dobrado sobre si mesmo, rastreado e projetado do tempo como a condição para a vida psíquica, que é o tempo consciente de si mesmo. é essa temporalização radical da alma que garante que é a alma toda que toca Deus, nenhuma parte da alma está hermeticamente selada sob um modo de governo espacial (MILBANK, 2013, pp. 134-135). Como foi mostrado no livro X, é evidente haver no homem interior um vestígio da Trindade: aquele que acontece no interior da mens, entre memória, inteligência e vontade. Porém é importante destacar que: Agostinho não subordina nosso acesso à Trindade imanente ou eterna pela manifestação dessa Trindade na economia histórica – isto é, a Encarnação do Filho e a doação do Espírito para a Igreja – em favor de uma especulação pseudo-ontológica sobre a alma. Pelo contrário, Agostinho começa radicalizando a importância de somente termos acesso participativo ao eterno permanecendo dentro das estruturas de espaço, tempo e linguagem humana (MILBANK, 2013, p. 132). Dessa maneira, é permanecendo no tempo que se presta homenagem à inefabilidade e, também, à plenitude da eternidade. Além disso, Agostinho deixa claro que esta trindade que ele encontrou na mens se desenvolve no curso do tempo, como já mostramos anteriormente: Os atos internos não são ativos numa sucessao temporal, tal como, por exemplo, no processo de aprendizado a intelligentia e a memoria externas entram em jogo uma após a outra; trata-se, antes, de uma triplicidade simultânea, em si imutável, da única autorrelação. (BRACHTENDORF, 2012, p. 222). Ela está presente em todos atos que são de ordem intelectiva, mnemônica, voluntário e noética: ou seja, constitui praticamente toda a ação do homem no mundo. Diz respeito ao relacionamento que o homem tem com ele mesmo, com seu Criador e com os outros homens. Não há como pensar em um homem, a partir de qualquer ato isolado seu no mundo, e não ter qualquer uma destas três coisas: memória, inteligência e vontade. E caso tenha alguma delas, terá também elas todas. É isso que Agostinho quer provar, acima de tudo: 74 [...] não posso não entender tudo aquilo que é inteligível, a não ser aquilo que eu ignoro. Ora, nem recordo nem quero aquilo que eu ignoro. O que quer que eu não entenda do que é inteligível, logicamente tambem não o recordo, nem quero238 . É assim que Agostinho ilustra esta relação intrinseca que há entre os termos desta trindade. Pois, [...] quando todas as coisas e cada uma delas na sua totalidade são abarcadas reciprocamente por cada uma, a totalidade de cada uma é igual à totalidade de cada uma das outras, e a totalidade de cada uma é simultaneamente igual à totalidade de todas, e os três constituem uma só coisa, uma só vida, uma só mente, uma só essência239. No tocante à relação o homem agostiniano e Deus, inseridos nesta condição temporal, ao final, o problem não parece completamente resolvido. Só Cristo, que é o tempo e está for a dele pode compreendê-lo. Nós de condição humana submetidos à temporalidade, podemos entendê-lo apenas de forma ética, embora seja ainda grande a dificuldade para isso: o tempo é mistério da possibilidade de caridade. O tempo é tempo da cura, do cuidado, como Heidegger irá defender posteriormente a Agostinho240. E o argumento que sustenta esta idéia é o seguinte: se o tempo é psíquico, a psyche também é temporal e, desse modo, enredada, “perdida” nas aporias do tempo. Por essa razão, devemos deixar a distensão no tempo pela intenção de Deus. Devemos fazer o salto extático para dentro da eternidade. No entanto, Agostinho parece insistir em permanecer no tempo para chegar a Deus. Intenção e distensão parecem ser resolvidas cristologicamente. Somente se intenta Deus via Cristo; assim, se a resposta para o que é o tempo sou “eu”, então a resposta para “o que é o eu” não é simplesmente dispersão ou intenção, mas, ao contrário, o receber de volta nosso verdadeiro eu de Cristo via Igreja. Desse modo, Cristo restaurou o verdadeiro processo do tempo, Cristo é o tempo; e, ao receber Cristo, não resolvemos a aporia, porque somente Deus em eternidade, fora do tempo, literalmente compreende o tempo, e o tempo é, por assim dizer, a evidência de a finitude ser de si mesma (um vazio), mas descobrimos que estamos por “compreender” o tempo como o mistério da possibilidade de caridade, de doação e de co-inerência. Assim, o único significado compreensível do tempo é um significado ético; o tempo é o tempo da cura (cuidado), como Heidegger tentará repetir. (cf. MILBANK, 2013, pp.147-148). 238 DT., X, 11.18. DT., X, 11.18. 240 Ver também a este respeito em Brachtendorf (2012) pp. 230-238 e ainda, pp. 239-268. 239 75 CONCLUSÃO Três são os grandes pontos de destaque do recorte que fizemos do texto de Agostinho, relacionados à sua idéia de memória: o primeiro refere-se à memória enquanto base na estrutura da linguagem humana; o segundo com relação ao pensamento, na forma de conhecimento de si e das coisas em geral; e o terceiro com relação à estrutura trinitária da mens, que insere a discussão no campo da psicologia agostiniana. Agostinho ao tratar da linguagem humana, faz referência à capacidade de significância que ela tem, diferentemente de outros tipos e formas de comunição dos animais. Esta capacidade que é própria do homem é possivel, dentre outras razões, em virtude da existência real da Verdade, que é Deus, e uma verdade que se forma no interior da alma. Uma está sempre associada à outra, afinal de contas, segundo Agostinho, é Deus quem ilumina o intelecto do homem afim de que ele conheça. A própria maneira pela qual se manifesta a linguagem no homem, reflete a importância da doutrina da iluminação de Agostinho e, nesta, a faculdade da memória. Isto acontece em função do papel fundamental que a memória tem de reter em si mesma imagens apreendida pelos sentidos. Agostinho mostra que há um verbo mental, uma espécie de palavra da mente, que se associa às verdades eternas, daí então “temos em nós o verdadeiro conhecimento das realidades como, uma palavra que, dizendo-a, geramos dentro de nós, e não se separa de nós, nascendo.”241 Conhecer é dizer interiormente o que se sabe. Não pode haver conhecimento sem verbo, na noética agostiniana. A impressão dos verbos mentais no interior da memória, possibilita a mente a se unir à imagem e de certa maneira se assemelhe a ela. Daí a importância que Agostinho dá àquilo que procuramos conhecer o perceber com os nossos sentidos, pois nos tornamos semelhantes às estas coisas por ser esta plasticidade a maneira pela qual a memória engendra o conhecimento da mens. Temos então na linguagem a gênese da noética agostiniana. É ela quem faz a ponte entre a mens e Deus. Pois Deus se utiliza deste verbo (logos) para comunicar a si mesmo, fonte de todas as verdades, ao homem. Da mesma maneira como fez historicamente para se comunicar a si mesmo a nós homem em seu Verbo, Cristo-Jesus. É esta é a correlação íntima da qual parte Agostinho no que se refere à linguagem. Toda espécie de conhecimento está condicionada a esta dinâmica. Até mesmo uma espécie de conhecimento especial, que Agostinho designa como notitia, está vinculada ao verbo mental. A notitia se refere ao conhecimento que a mens tem de si mesma. Ora, ela não poderia admitir que não sabe algo se não partir da certeza que sabe ao menos que é. Mas é o que? Que é mente. Então o pressuposto necessário da noética agostiniana está centrado na certeza que a mente de si a todo 241 DT., IX, 7.12. 76 momento, isto é, de seu autoconhecimento. Este conhecimento, contudo, é implícito. Esta certeza é um a priori, mas para acessa-la, partimos de um verbo mental. O conhecimento que a mente tem de si nada mais é do que a uma memória de si. A memória portanto exerce um papel central no conhecimento imediato que a mente tem de si e tambem no mediato. É o que ele explica ao falar do se cogitare. Ao pensar a respeito de si, o pensamento como que “recolhe” imagens e verbos mentais que tem a respeito de si, e que estão dispersos, no interior da memória. Esta re-união é ato mesmo de pensar. Agostinho nota que a estrutura da mens, aonde aparecem as faculdades do intelecto e da vontade, estão estas sempre unidas à da memória e que não é possivel isolar herméticamente nenhuma delas. Há no interior da mens uma unidade trinitária formada por estas faculdades: memória, inteligência e vontade. Esta conclusão de Agostinho dá uma nova configuração á sua psicologia. Em um corte vertical de cada ato humano teremos sempre esta tríplice presença, tanto da memória quanto do intelecto e da vontade. Isto significa dizer que quando se pretende uma cura da alma, no sentido de resignificar e transformar um comportamento qualquer, no prisma agostiniano teremos sempre que atuar em três camadas distintas da alma. Embora tenham elas a mesma substância, cada uma das faculdades responde por si. Agostinho amarra o conhecimento sensivel ao conhecimento intelectual, atribuindo á alma a capacidade de sentir. Mais do que isso: é a substância mesma da alma que torna a sensação. Há um uso que a alma faz de si. Se usada de forma errada, isto quer dizer na concepção de Agostinho a vivência do “homem exterior” em oposição do “interior”, a alma se enfraquece se torna turva para si mesma. A mens, ao debruçar sobre si mesma, em um movimento incorpóreo, tem a impressão de ver a si mas se confunde com as imagens que formou a respeito de si. Ou seja, as imagens obtidas por meio de conhecimento sensível e intelectual, podem fazer uma falsa representação da alma e a confunde. Esta é a razão pela qual a alma para Agostinho sempre precisa de uma purificada, no sentido de se desprender destas imagens exteriores de coisas corpóreas que adentraram o seu interior. A cura da alma é pressuposto necessário para que aconteça, não o autoconhecimento da notitia, mas sim a reflexão a respeito de si: o se cogitare. Ainda nesta llinha, ao traçarmos um corte horizontal no ato humano, seja ele interior ou exterior, haveremos de nos depararmos com a questão do tempo. A temporalidade é um pressuposto importante considerado por Agostinho ainda neste livro X de sua obra. E o tempo, tal como comprende Agostinho, e a memória são realidades tão intimas que quase se identificam. Contudo Agostinho não se contraria a si mesmo, pois acredita que ambas, memória e tempo são criaturas de Deus. E por serem criaturas distintas jamais se identificariam. Porem, quando se 77 refere à vivência da temporalidade e realidade interior, Agostinho tem que concordar que está diante de um grande mistério. A distensão da alma a faz capaz de ser-no-tempo. Portanto ela pode ser aqui, ali, mas sempre agora. E essa flexibilidade dada á alma é admnistrada pela faculdade de memória, local onde o presente, passado e futuro se unem e se confudem. A sucessão temporal, tal como a vivemos, requer de nós uma percepção daquilo que acabou de ser; do que agora esta sendo; e do que há de vir. Ora, não poderiamos saber nada disso se não recordassemos daquilo que vivemos; se não estivessemos presentes a nós mesmo, e se não houvesse expectativa de algo que ainda anseio por viver. Ou tenho o anseio de re-viver algo incrível e que eu me recordo, ou anseio por viver algo que imagino. Em todos os casos a memória é a propulsora das sensações. A antropologia filosófica de Agostinho é enriquecida em toda a sua extensão por Deus e no homem, tem grande parte do seu misterio devido à grandiosidade da memória. É muito o que ela abarca e impressionante o que a ultrapassa. O problema da memória na filosofia de Agostinho passa a ser parte do problema ontológico, noético e psicológico que ele procura entender. 78 REFERÊNCIAS AGAESSE, P.; MOINGT, J. La trinité. Livres VIII-XV. 2ª édition. Oevres de Saint Augustin,16. Paris: Institut D'étude Augustiniennes, 1997. AGOSTINHO, A. De Trinitate/Trindade. Edição bilingue. Coimbra: Paulinas, 2007. AGOSTINHO, A. A gradeza da alma. Trad. Agustinho Belmonte. (col. “Patrística”, vol. 24). São Paulo: Paulus, 2008. AGUSTINHO, A. Confissões. 21ª ed. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 2009. AGOSTINHO, A. Solilóquios. 4ª edição. Trad. Adaury Fiorotti. (col. “Patrística”, vol. 11). São Paulo: Paulus, 2010. AGUSTIN, A. 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