Sócrates e Jesus: o debate

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Sócrates e Jesus: o debate
PETER KREEFT
Sócrates e Jesus:
o debate
Tradução Ana Schaffer
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®1987, 2002, de Peter Kreeft
Título do original
Sócrates meets Jesus
Edição publicada por
INTERVARSITY PRESS
(Downers Grove, Illinois, EUA)
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
Editora Vida
PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM
BREVES CITAÇÕES , COM INDICAÇÃO DA FONTE
Todas as citações bíblicas foram extraídas da Nova
Versão Internacional (NVI), 2001, publicada por
Editora Vida, salvo indicação em contrário.
Editor geral: Solange Mônaco
Editor responsável: Sônia Lula
Assistente editorial: Ester Tarrone
Revisão de tradução: Alípio Franca
Revisão de provas: Dida Bessana e Juliana Ribeiro
Consultoria e revisão técnica: Luiz Sayao
Diagramação: Crayon Editorial
C a p a: M a r c e l o M o s c h e ta
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Kreeft, Peter
Sócrates e Jesus: o debate / Peter Kreeft ; tradução Ana Schaffer. –
São Paulo: Editora Vida, 2006.
Título original: Sócrates meets Jesus
Bibliografría.
ISBN 85-7367-895-X ISBN 978-85-7367-895-5
1. Apologética 2. Jesus Cristo - Pessoa e missão 3. Sócrates I. Título
07-9092
CDD-239
Indice para catálogo sistemático:
1. Sócrates e Jesus: Apologética : Cristianismo 239
2|Página
S u m á r io
.........................................................................................................................................................................................2
Editora Vida ...................................................................................................................................................................2
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CEP 03059-000 São Paulo, SP ......................................................................................................................................2
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Capa: Marcelo Moscheta................................................................................................................................................2
Sumário...........................................................................................................................................................................3
Nota à edição brasileira...................................................................................................................................................3
Introdução.......................................................................................................................................................................5
1.......................................................................................................................................................................................8
Da cicuta para a Universidade "Havalarde"................................................................................................................8
2.....................................................................................................................................................................................12
Como progredir na vida fugindo do "progresso"......................................................................................................12
3.....................................................................................................................................................................................21
Seria Jesus um fundamentalista?..............................................................................................................................21
4.....................................................................................................................................................................................27
Doces confissões.......................................................................................................................................................27
5.....................................................................................................................................................................................36
Os milagres podem ser provados?............................................................................................................................36
6.....................................................................................................................................................................................46
Como ter uma religião relativa.................................................................................................................................46
7.....................................................................................................................................................................................61
Jesus, o único............................................................................................................................................................61
8.....................................................................................................................................................................................71
Que estranho, Deus escolher os judeus.....................................................................................................................71
9.....................................................................................................................................................................................86
Vejam! Ele está vivo!................................................................................................................................................86
Posfácio
diretamente do Boston Glob.......................................................................................................................................105
ContraCapa.................................................................................................................................................................106
N o ta à edição b rasilei ra
A publ i caçã o brasilei ra de Sócrates e Jesus foi feita a parti r da edi ção atual i za da pelo autor e filóso f o,
Peter K RE E F T , de Sócrates meets Jesus, Do w n e r s Gro ve, IL : I N T E R V A R S I T Y P RESS , Text © 1987, Ne w
Intro d u c t i o n ©2002.
A traduçã o ficou a cargo de A N A M A R I A DE M O U R A S CH A F F E R , douto ra n da em Li n g ü í s t i ca Ap l i c a d a pela
Uni ca m p. A edição do texto foi feita por A LÍP I O C OR R E I A DE F R A N C A N ET O , doutora n d o em Teori a Literári a
pela Uni v e rsi da de de São Paulo. Lui z S A Y Â O , teólo g o, ling ü ista e mestre em Hebrai c o pela Uni v e rsi da de
de São Paulo, encarreg o u- se da consul t o r i a e revisão técni ca.
O leitor com u m e n t e se deparará com trocadi l h o s e alusões a perso nalidades e institu i ç õ es do mun d o
3|Página
conte m p o r â n e o que, aliados a persona ge ns- tipo, confere m ao texto de K RE E F T um caráter diferenc i a l.
Para tanto, fora m acrescentadas notas expl i cat i v as ao longo do texto com o objeti v o de orientar o leitor a
uma leitura plausí ve l, sem deixar de insti gar nele a curi osi da de para "ir além". As abrev ia turas a seguir
dão a indi caçã o desses crédit os.
N.
N.
N.
N.
do
do
do
do
C, para nota do consul t o r técnic o
E., para nota do coordena d o r editori a l
R., para nota do editor/revisor do texto
T., para nota do traduto r
O E DI T O R
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I n t ro d ução
A inspi ração deste livr o resulta inici al m e n te de duas fontes: a pri m e i ra, do capítul o 1 de Philosophical
Fragments1, de Soren Kier k e g aar d, no qual ele co m pa ra Jesus a Sócrates — os dois mai ores mestres da
Histór i a; a segunda, é do livr o de Atos, capí tulo 17, em que os discí p u l o s dos dois mestres interage m pela
pri meira vez.
Jesus e Sócrates são certa m e n te os dois ho m e ns mais infl ue n tes que já existi ra m, pois dão orige m aos dois
princi pa i s segm en t os da civi l i zaçã o Oci den tal: a cultura bíbl i ca (judaico- cristã) e a clássica (grecoro ma na). Assi m com o Jesus é o centro da pri m e i ra, Sócrates o é para a segunda. O que caracteri za a nossa
civi l i za çã o de for m a mais óbvi a, ou seja, o evento secular de mai o r sucesso da Histó r i a, é a tecnol o g i a.
Esta, por sua vez, é fruto da ciência, que é conseqüê n cia da filoso f i a; esta últi m a a grande herança de
Sócrates.
Sócrates e Jesus nunca escrevera m um livro nem fundara m uma escola ou viajara m pelo mun d o, não
mi l i tara m na políti ca nem tivera m algu m a ambi ção terrena. To m ás de Aq u i n o expl i c o u que Cristo nunca
ensino u por mei o da escrita porque sua doutri n a era de orde m supre m a; sua pessoa e sua vida eram uma
doutri n a perfeita e com p l e ta, que dispensa va ser incl u í d a em um livr o com palavras e ensino de segun da
mão. Em segui da, Aq u i n o acrescen ta: "à semel ha n ça de Sócrates entre os fil óso f o s" 2 .
Kier k e g aar d — que disse que cada palavra escrita por ele foi unica m e n t e sobre uma coisa: o que signi f i ca
SER um cristão [o ponto de vista de meu trabal h o com o autor] — via Sócrates com o a perfeita pedra de
toque de Jesus. Co m o poderi a algué m superar Sócrates? Haver i a alternati v a para a sua busca ardor osa e
sincera da verdade, pelo modesto métod o de questi o na m e n t o? Seria possí vel a Verda de nos alcançar em
vez de nós a ela? A Verda d e deveri a chegar até nós de fora para dentro em vez de fazê-lo de dentro para
fora? Kier k e g aar d desenv o l v e u seu "experi m e n t o mental" adotan do por m e n o r i z a d a m e n t e o ponto de vista
do filóso f o socráti c o; em segui da, com p ar o u, com min ú c i as, a doutri n a de Jesus com a de Sócrates em "A
Project of Tho u g h t" [Um projeto mental], capítu lo 1, da obra Migalhas filosóficas. É a com p ara çã o mais
esclarece dora que conheç o entre os dois mai o res hom e ns da Histó r i a e, quand o a li, pensei: "isso não
pode parar aqui, precisa dar frutos".
A outra fonte de inspi ração deste livr o relata um dos encontr os mais decisi v o s da Histór i a: o pri m e i r o
encontr o entre um discí p u l o de Jesus e os discí p u l os de Sócrates. O dra m áti c o relato daquele dia que
mud o u o mun d o pode ser encontrad o no No v o Testa m e n t o:
Enqua nt o esperava por eles em Atenas, Paul o fico u prof u n d a mente indi g na d o ao ver que a cidade estava
cheia de ídol os. Por isso, discuti a na sinago ga com judeus e com gregos tementes a Deus, bem com o na
praça princi pa l, todos os dias, com aqueles que por ali se encontra v a m . Al g u n s filóso f os epicure us e
estóic os começara m a discuti r com ele. Al g u ns pergu n ta va m : "O que está tentand o dizer este tagarela?"
Outros dizia m : "Parece que ele está anunci a n d o deuses estrangei r os", pois Paulo estava pregan d o as boas
novas a respeito de Jesus e da ressurrei çã o. Então o levara m a uma reuniã o do Are ó p a g o, onde lhe
pergu n ta ram: "Pode m o s saber que nov o ensino é esse que você está anun ciando? V o cê está nos
apresentan d o algu m as idéias estranhas, e quere m os saber o que elas signi f i c a m ". Tod os os atenienses e
es trangei r os que ali vi vi a m não se preoc u p a v a m com outra coisa senão falar ou ouvi r as últi m as
novi d a des.
Então Paul o levant o u- se na reuniã o do Aer ó p a g o e disse: "Ate nienses! Vej o que em todos os aspectos
vocês são mui t o reli gi os os, pois, andand o pela cidade, observei cuidad osa m e n te seus objetos de culto e
encontrei até um altar com esta inscri ção: A O DE U S DE S C O N H E C I D O . Ora, o que vocês adora m,
apesar de não conhecere m, eu lhes anunci o". (At 17.16- 23)
O apóstol o Paul o, no legíti m o centro da idolatr ia mun d i a l, en contra adorad o res do verdadei r o Deus e
assi m se expressa: "Ora, o que vocês adora m, apesar de não conhecere m, eu lhes anunci o". Co m o isso foi
possí ve l? Eles deve m ter sido discí p u l o s de Sócrates.
Sócrates era um lapi dár i o [esculto r] e deve ter, literal m e n t e, ental had o a inscri çã o a que Paulo se referia.
Certa m e n te, o "DE U S D E S C O N H E C I D O " era o Deus de Sócrates; na verdade, Sócra tes foi um márti r
desse Deus. Está claro na Apologi33— o mai o r discurso de Sócrates em defesa de sua vida e de sua
1
Publicado em português pela Vozes, Migalhas filosóficas, ou, Um bocadinho de filosofia, 1995 [N. do E.].
Tomás de AQUINO, Summa theologiae, 3.42.4 (publicado em português por Edições Loyola, Suma teológica) [N. do E.].
3
Publicado em português pela Ediouro, Apologia de Sócrates [N. do E.].
2
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vocação à fil o sofia — "o amor da sabedor i a" (uma vocação cuja orige m ele sempre atrib u i u a "Deus"),
quand o Atenas coloc o u sob julga m e n t o tanto ele quanto a sua vocação à fil oso f i a. Se Sócrates tivesse
sido capaz tão-somente de confessar verdadei ra e honesta m e n te o nom e de um único deus recon hec i d o
por Atenas em seu julga m e n t o, ele não teria sido executad o por ateís m o. M as ele não podia fazer isso.
Não sabia que m era o verdadei r o Deus, mas tinha conv i c çã o de que m não era. E Sócrates não trairia a
verdade mais que um cris tão temente pudesse trair a Cristo. Sabia de uma coisa: qualq ue r que fosse o
verdadei r o Deus, esse era o Deus da verdade.
Quatro sécul os depois da morte de Sócrates, vive u um ho m e m que afir m a v a ser esse o Deus verdadei r o, o
Criad o r torna- se criatura, o Fil ho pri m o g ê n i t o do Pai, a eterna Palavra (Logos, M e n te, Razão) de Deus.
Esse ho m e m , que declara va ser a Verda de (Jo 14.6), pro meteu que todos os que buscasse m encontrar i a m
(Mt 7.8; Lc 1 1. 10). Ele certa m e n te não estava faland o sobre poder, dinhei r o ou sucesso terrestre, pois
esses eram os anseios que do m i n a v a m o coração da queles que não o reconhe c i a m com o seu M essias e
Salvad o r, pois ele não os livr o u desses ini m i g o s nem dos roma n os. Quan d o ele disse que todo aquele que
busca encontra, referia- se à verdade, porque pro m e te u que "a verdade os libertaria". (Jo 8.32). Ta m b é m
estava faland o de si mes m o, porque disse: " 'Portant o, se o Fil ho os libertar, vocês de fato serão livres' "
(Jo 8.36). Se Jesus é a Ver da de e se Sócra tes busco u a verdade de todo o coração (o que, natural m e n t e, só
Deus sabe), e se a Ver da de não mente, e pro m ete u que todos os que busca m o encontrarã o, então tem os
todas as razões para acreditar que Sócrates a encontr o u. Não nos é possí vel ter certeza sobre Só crates,
mas pode m o s ter certeza sobre Cristo.
Entretant o, Sócrates não se encontr o u com Cristo neste mun do, nem mes m o ouvi m o s falar de uma
possí ve l con versa entre eles no futur o. E possí ve l imagi na r isso? Ou, em caso contrári o, pode m o s
imagi na r algo pareci d o aqui mes m o?
U m a vez que tolos e filóso f o s se aventura m em terrenos onde anjos temeri a m pôr os pés, tentei imag i n ar
essa con versa "celestial" e com ece i a escrever um diál og o imag i n ár i o. M as eu sim p l es m e n t e não podia
fazer isso, pois, segun d o Dor o t h y Sayers, é imp ossí v e l a qualq ue r escritor mortal retratar, com sucesso,
Cristo com o perso nage m literári a. Só consi g o lem b rar- me de duas tentati v as parcial mente bem- sucedi das
na literatura. U m a é a fábul a de Dosto i e vs k i, O grande inquisidor4, na qual Cristo não fala uma palav ra
sequer e reali za apenas um único ato (um beij o, com o o que Judas lhe deu no jardi m). A outra é Asla m, o
grande senhor- leão de Nárni a, de C. S. Le w i s. Entretant o, esta só foi bem- sucedi da pelo arti fí c i o de um
dupl o distanci a m e n t o: de Cristo com o hom e m para Cristo co m o leão, e do glob o terrestre para a terra
imagi ná r i a de Nárn i a. Le w i s, assi m, deito u fora os "dragões despertos" da conv i v ê n c i a e da obri gaçã o que
im pe de m nosso espírit o de reagir com o mes m o respeito e adm i raçã o naturais que todos os
conte m p o r â n e os de Cristo sentia m na sua presença. Assi m, a criança, o eu em nós, sente diante de Asla m
o que deveria sentir diante de Cristo: Asla m não é um leão manso.
Seja com o for, um sim p l es filóso f o e escrito r de ficção de segun da categor i a nem mes m o sonha com
taman h o sucesso. O diál og o imagi ná r i o entre Sócrates e Jesus, seja no céu, seja na terra, no sen tido literal
está além das mi n has forças.
Entretant o, Atos dos Ap óst o l os, capítu l o 17, deu-me uma pista. Se o apóstol o Paul o, o discí p u l o de
Cristo, encontr o u a tradiçã o de Sócrates ainda vi va entre os discí p u l os conf usos do fil óso f o, sécul os mais
tarde no Are ó p a g o, em Atenas — o centro do mun d o idólatra — por que Sócrates não poderi a ter
encontra d o alguns discí p u l o s conf us os de Cristo, sécul os mais tarde, na Escola de Teol o g i a "Havalar d e" 5 ,
na cidade que se deno m i n a "a Atenas da A m é r i c a", no centro do mun d o hetero d o x o? Os epicure us e
estóic os que Paul o menci o n a em Atos 17 consi dera v a m- se discí p u l o s de Sócrates. (Os epicureus eram
apóstatas socráti c os, mas os estóic os eram apenas socráti c os heterod o x o s). Na "Havalar d e", os teólo g os
consi dera m- se discí p u l o s de Cristo. Os teólo g os inj ustos são cristãos apóstatas, e os justos são cristãos
hetero d o x o s. E irôni c o, mas não im p ossí v e l, que Sócrates encontre o Deus verdadei r o ali, no lugar menos
pro vável do mun d o, já que Paul o encontr o u verdadei r os segui d o res de Deus no Areó pa g o, tam bé m o
lugar menos prová ve l. Tal com o ha via feito à Atenas pri m i t i v a, Sócrates não se devia dei xar infl ue n c i a r
por nossas falácias, fantasias, fraquezas e tolices, nossos discursos acadê m i c os impr o d u t i v o s, disfarces,
exibi c i o n i s m o s e conversas frí v o l as, e — ainda assi m — encontrar a Ver da de.
Se o apóstol o Paulo descob r i u os verdadei r os segui d o r es de Javé no coração da mais elevada idolatr ia,
4
Ou, Noites Brancas, Editora 34, 2005 [N. do E.].
"Have It Divinity School", em inglês. Obviamente, "Have It" (qualquer coisa como "Pegue-a") é expressão trocadilhesca, apresentando
similitude de som com Harvard, a famosa universidade americana [N. do R.].
5
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julg uei igual m e n t e pos sível que Sócrates encontrasse o Deus verdadei r o no centro da mais alta heresia.
Sócrates é com o o meni n i n h o de A roupa nova do Imperador6. A peça teatral apresentada neste livr o
concentra- se não só no mod o pelo qual Sócrates refuta as conf usões entre alunos e professores, mas
tam bé m em co m o ele se vale dessas mes m as conf usões com o estratégi a para chegar ao Deus verda deiro,
que final m e n t e encont ra — e se con verte. Só algué m ma ravi l ha d o com o amor de Deus teria persevera d o
em mei o a in díci os tão com p r o m e t e d o r es; só algué m fam i n t o pela verdade teria merg u l h a d o no entul h o
de lixo moder n o e fascinante da "Havalar d e", na esperança de encont rar algu m as migal has do que
procu ra v a.
Se eu tivesse de reescre ver o livro hoje, não teria mui t o a acres centar, pois as heresias são quase tão
perenes quanto a verdade. O Sócrates que expôs as pretensões dos sofistas certa m e n te perceber ia os
igual m e n t e presunç os os Jesus Seminar [Sem i ná r i o de Jesus] 7 e Bible Code [Códi g o da Bí b l i a] .8
Entretant o, teria Sócrates cogitad o sua passage m ao cristiani s mo? A razão hum a na é assi m tão poderosa?
Claro que não! O cristiani s m o não é o fi m de um debate fil osó f i c o, mas conseqüê n cia de um mila gre
divi n o inacred i tá v e l e total m e n t e inesperad o. É pro vá v e l, poré m, que os ecos desse milag re, embora
abafados e cor rom p i d o s, não passe m de impressões digitais sufici en tes para que esse Deus deteti ve revele
o Deus verdadei r o a parti r deles.
Apesar de tudo, a razão hu m a na, embo ra decaí da, é projetada por Deus. Não há nada de errado com essa
espada, apenas a for m a com o a empu n h a m o s, tendo em vista que foi mol da da no céu, não na
Uni v e rsi da de "Haval ar de". Faland o de mod o menos espiri- tuoso: Deus não envi o u apenas alguns profetas
especiais, com o M o i sés, para um povo especial, mas tam bé m o profeta interi o r uni versal da razão e da
consciên c i a para todos os pov os. Os hom e ns medi e v a is gostava m de dizer que Deus havia escrito dois
livr os: a natureza e as Escrit uras. U m a vez que Deus é o Aut o r, e esse mes tre nunca se contrad i z, os dois
livr os nunca se contradi ze m . Esse Deus que nunca se contradi z tam bé m nos deu dois detecto res da
verdade, a fé e a razão; concl u i- se que a fé e a razão, se empre ga das correta m e n te, nunca se contrad i ze m ;
as heresias, no entanto, são total m e n t e contrári as à razão. Em b o ra nem todas as verdades da fé possa m ser
pro va das pela razão, todos os argu m e n t os contra essas verdades pode m ser refutad os racio na l m e n t e.
Desse mod o, é possí vel que Sócrates, representante da razão natural, em sua mel h o r for m a, perceba muit o
das irraci o na l i d a d es e incoerên c i as das heresias moder nas contra a religi ão que ele nun ca conheceu. Que
encontre seu cam i n h o de volta para a verdadei ra religi ão, ao ler as Escri tu ras judai cas, sem o "auxí l i o" das
inocu l a- ções de professores cristof ó b i c o s contra a tem í ve l doença do ver dadeir o cristian is m o.
Sócrates não teve profetas para guiá-lo, exceto o profeta uni versal da razão. No entanto, os cristãos sabem
que isso não é mera m e n te um poder hum a n o, mas um fei xe de luz que emana do Filh o de Deus: "a
verdadei ra luz, que ilu m i n a todos os hom e ns" (Jo 1.9), o Logos, a lógi ca de Deus. No iníci o era a lógi ca, e
a lógi ca estava com Deus, e a lógi ca era Deus. Sócrates tinha apenas a lógi ca, no entanto ela não é um
punha d o de regras hu m a nas que se usa num a parti da com o se os concei tos fosse m fichas de pôquer, mas é
a ciência da natureza divi na. A lei da identi da de funda m e n ta- se na verdadei ra identi da de e im uta b i l i d a d e
divi nas. A lei da não-contradi ç ã o funda menta- se na integr i da d e da natureza divi na e na reali dade de que
Deus jamais se contradi z. O princ í p i o do terceir o excl uí d o 9 funda menta- se no fato de que todas as
alternati v as têm sua base no único Deus: Deus ou não-Deus, verdade ou falsida de, luz ou trevas, reali dade
ou ficção. O princí p i o da razão sufici en te funda m e n t a- se no fato de que Deus é a razão sufici en te em si, a
intel i gê n c i a infi n i ta.
A história repete-se mui tas vezes neste livro, e incl u i três está gios: (1) a razão em busca da Verda de; (2) a
surpreen de n te desco berta da Razão de que a Verda de últi m a requer Fé; (3) a feli z des coberta da Razão de
que essa Fé é mais racio na l do que qualq ue r Razão já tenha descobert o antes. Esse é o padrão das
narrati vas de todos os grandes cristãos amantes da sabedor i a. Só para citar alguns: Justino M á rt i r,
Ag osti n h o Blaise Pascal, Soren Ki er k e g aar d, John Henr y Cardi na l Ne w m a n, G. K. Chesterto n, C. S.
Le w i s. Será que Sócrates ficari a de fora?
6
Hans Christian ANDERSEN. (Martins Fontes, 2001) [N. do EJ.
Um grupo de aproximadamente cem pesquisadores em Novo Testamento, fundado em 1985 por Robert Funk e patrocinado pelo Wester
Institute. A finalidade da pesquisa — que resultou inicialmente em duas publicações: The Five Gospels: The Search for the Authentic Words of
Jesus (1993) e The Acts of Jesus: The Search for the Authentic Deeds (1998) — é determinar o que Jesus, como personalidade histórica, deve ou
não ter dito e feito sob perspectiva crítica [N. do E.].
8
Michael DROSNIN. The Bible Code. (USA Simon & Schuster, 1997) [N. do T.].
9
BAUMGARTEN (1714-62) completou o conceito aristotélico de contradição fundando o "princípio do terceiro excluído" na própria estética da lógica clássica [N. do
T].
7
7|Página
Ele foi apenas um pagão, natural m e n t e, mas Deus, de for m a generosa, prop or c i o n o u sinais em toda parte:
natureza, hom e m e Histó r i a. A alma do hom e m, concebi da e criada à image m de Deus, é dotada de três
facul da des, presentes unica m e n te no ho me m: o intelecto, a vontade moral e a imag i n açã o (idéias). Deus
dei xo u pistas, em abundân c i a, em todos os três. Co m u n i c a- se com a vontade por mei o da consciê nc i a
uni versal e de profetas inspi ra dos; com a imagi na çã o, por inter m é d i o dos (falíveis, mas às vezes mui t o
belos) mitos de cada cultura; e com o intelect o, pelos fil ó sofos gregos. O pri m e i r o fil óso f o verdadei r o,
avô de todos os fil ó sofos, é Sócrates. Todas as três pistas são indi ca d o res de Cristo. Portanto, neste livro,
Sócrates não faz outra coisa senão realizar o que Deus, basica m e n t e, design o u à razão.
1
Da cicuta para a Universidade "Havalarde "
Sócrates, em seu habitual traje grego (manto do filósofo), repousa totalmente coberto por um lençol em
uma pedra ou laje de mármore de função incerta, situada em um amplo porão, na Biblioteca
Engrandecer na Universidade "Havalarde", um renomado centro de aprendizagem, em Camp Rich,
Massachusetts, no ano de Nosso Senhor de 1987. O lençol se move; lentamente Sócrates, como que
sondando o ambiente,surpreende um visitante e aparece, com um olhar de soslaio e indagador.
Sócrates: Fédon! Fédon! V ocê ainda está aqui? Ac h o que a cicuta não está funci o n a n d o com o deveri a.
(Movimenta os pés, olha-os, então senta-se devagar. Estica os braços) Na verdade, sinto- me mais vi v o
do que nunca! (Joga o lençol.) Ou... será possí vel que estou... (Olha em volta, com mais ansiedade
ainda.) Onde estou? Críto n? Fédo n? Sí m i as? Cebes? Onde estão os meus ami g os, pessoal...! (Hesita e
olha em volta) A p o i o? (Longa pausa, totalmente imóvel, olha para o coração) O DE U S
DE S C O N H E C I D O ? (Trêmulo)
Flanagan (Entrando com uma vassoura): Ei! Que agitação é es sa e por que tanta conversa? (Vê
Sócrates) Oh!, perdão, senhor, eu não sabia que o clube de teatro estava ensaiand o aqui. E você, que m é
então?
Sócrates: Toda a mi n ha vida procure i por essa resposta.
Flanagan: A h? Foi? V ocê está louco, ho m e m? Ac ha que você está mort o?
Sócrates (Perdido dessa vez): Eu... eu, real m e n te não sei, para ser franco. (Pondera consigo mesmo)
Eu sempre acredi tei e ensinei que o eu real (a consciên c i a subjeti va interi or) era a alma, e que a alma era
im ortal; no entanto, eu, esse eu-essência, é que sou im or tal. M as eu pensava que era o meu corpo que
tinha m acabado de executar, já que bebi a taça inteira de cicuta. O carcerei r o não per miti r i a que eu
dei xasse escorrer uma gota sequer com o libação aos deuses. Ele disse que preparara m a quantia exata.
Flanagan: V o u dizer uma coisa, você é mes m o um bo m ator. Esse é o traje de ensaio?
Sócrates: Hu m ... U m a das últi m as coisas que ensinei aos meus ami gos antes de tomar o venen o foi que
o verdade i r o filóso f o vi ve a vida com o se fosse um ensaio geral com vesti m e n t as para a morte. Então,
falei- lhes que "prati car a fil oso f i a correta m e n te é um ensaio para a mor te". M as pensei que min ha noite de
estréia havia term i na d o. Já não tenho mais certeza disso. A pre n d o nova m e n te um algo já conheci d o, que a
mi n ha certeza mais certa está em saber que não estou certo. Pa rece que nunca aprende m o s a pri m e i ra
lição. M as... que lugar é este? Não se parece com as Ilhas A f o r t u n a d as 10 , ao menos não do jeito que eu
imagi na v a. M as, então, aprend o a suspeitar de todas as expectati v as e preco n cei t os, sobretu d o dos meus, e
a acolher as surpresas e esperar o inesperad o. (Olha pelo vão da porta) O que vejo aqui? Li v r o s?
Flanagan: Natural m e n t e. Há qui nhe n t os mil aqui.
Sócrates (Desconfiado): Qui n he n t os mil livros! Oh... talvez se jam as Ilhas A f o r t u n a d as, afinal. M as
onde estão os autores? Não posso conversar com um livro, pois ele sem pre dá as mes m as respos tas, não
im p o rta o que pergu nte. Certa m e n t e, alguns de seus autores chegara m às Ilhas. Ho m e r o está aqui? Espero
há mui t os anos para lhe pergu ntar centenas de coisas sobre aqueles deuses do seu...
Flanagan: A h, entendi... você ainda está representan d o seu pa pel... Tud o bem, ami g o, vam os
10
Referência à lenda clássica e céltica Isles of the Blest ou Fortunate Isles [N. do T.].t
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representar juntos. Há algu m a fala para eu ler, ou isso é, com o dize m, ad lib?
Sócrates: Ag o r a estou dupla m e n t e conf uso: não consi g o en tender sua pergu n ta, mas entend o
perfeitamente sua líng ua pri m i tiva, embo ra ela não seja mi n ha língua nati va clássica e eu nunca a tenha
estudad o. E possí vel que seja anamnésia. Eu costu m a v a en sinar que aprender real m e n te é recor dar, mas
não achava que in cluísse líng uas estrangei ras, apenas verdades uni ve rsais eternas. Hu m... (Pensa por
segundos, perplexo, faz um gesto de cabeça e se volta para Flanagan.) E você? Vo cê não se parece com
uma divi n d a de nem com um espírit o abençoad o. M a i s uma vez, preciso apren der a não ter expectati v as.
Qual é seu no m e? E, mais im p o r ta nte, qual a sua raça?
Flanagan: M e u nom e é Flanaga n, e sou o portei r o aqui. E não sou divi n d a d e nem espírit o, a menos que
um ousado escocês-irlandês vi v o seja real m e n te um espírit o abençoa d o, e ainda dupla m e n te abençoa d o,
eu imagi n o. M as, você é que é o enig m a aqui, não eu; tam bé m parece velho demais para um aprend i z... a
menos que eles maqu i e m as pessoas e as transfo r m e m em uma obra-pri m a...
Sócrates: Oh, não, nunca é tarde demais para aprender.
Flanagan: Então você está matri c u l a d o aqui?
Sócrates: Aq u i? Onde é "aqui", por favor?
Flanagan: Ora, Ha va l ar de, é claro.
Sócrates: Faz alarde? Que m está fazend o alarde?
Flanagan: Não, refir o- me à Uni v e rsi da de Hava la r de, aqui em Ca m p Rich, M assac h usetts. O coração
da acade m i a.
Sócrates: Aca de m i a! O meu discí p u l o Platão tinha planos grandi os os para algo que ele cham a v a sua
"acade m i a", no bosque de Aca de m e. Signi f i c a que a Haval ar d e real m e n te leva a isso? Es se...?
(Gesticula.)
Flanagan: Si m, pode- se dizer que... sim.
Sócrates: O que tem aqui? E o coração do Estado Ideal?
Flanagan: Não! É só a Bi b l i o te ca Engran de ce r. O que se espera que aconteça aqui é que todos
acredi te m que esses livros "engran de çam" a mente. Em b o r a eu sem pre fale que o que esse saber faz com
as pessoas é transf o r m a r os seus acessos leves de loucu ra em verda deira loucu ra. M as, você não sabe
mes m o onde está? Te m amnésia?
Sócrates: Só na mes m a prop or çã o em que todos têm, eu acho; esqueci m e n t o mes m o, esqueci m e n t o de
que m som os de verdade.
Flanagan: A h, entend o. Então, quer dizer que você já faz parte des te lugar; muit o bem, é nor m a l entre
os loucos... um filóso f o, é isso?
Sócrates: Si m, é o que sou. Al g u é m que ama a sabedor i a.
Flanagan: A g o ra você está só representan d o, não está?
Sócrates: Eu lhe assegur o que estou faland o sério. A últi m a coi sa de que me lem b r o antes de acordar
neste lugar foi de tom ar o veneno e esperar que a morte me levasse. Vo cê não é a morte, é?
Flanagan: Será que a M o r te é um portei r o?
Sócrates: M u i t o s de mi n ha fam í l i a pensava m que ela fosse um barquei r o.
Flanagan: M as então o que o levo u a tomar veneno?
Sócrates: Ah, não foi suicí d i o, eu garanto; fui executad o.
Flanagan: Executa d o, que trági co! E por que m, me diga, por favor?
Sócrates: Pelos qui nhe n t os mais um, é claro. A mão do carcerei ro que me deu a taça não estava mais
manc ha da de sangue do que a mi n ha 11 . A m b as fora m com an da das por vontade do pov o. Aq ue les
11
Provável alusão a Bloody Hand, peça heráldica pertencente à nobreza, isto é, todos (os heraldistas) são culpados [N. do T.].
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dem o c ratas ignoran tes acredita va m que "a voz do povo fosse a voz de Deus". Eu real m e n te espero que
vocês tenha m superad o essa supersti çã o aqui, onde quer que seja aqui.
Flanagan: Eu acabei de lhe falar onde é aqui. E não vá criticar os dem o c r atas. As roupas que você usa
não parece m caras o sufi ciente para um repub l i c a n o.
Sócrates: Eu não entend o... Este lugar não é a min ha cela da prisão e você não é um ateniense. Será
que fui levado ao exíl i o no últi m o mi n ut o por meus ami g os? Pedi tanto a Crito que não fizesse isso. Que
tipo de terra estrangei ra é Cabbage, M assach usetts?
Flanagan: Se você real m e n te fala sério, então deve ter tido um pesadel o e acordo u com amnésia.
Sócrates (Confuso epensativo.): M u i t as vezes, eu costu m a v a co m parar a vida a um sonho, porque a
morte sempre me pareceu um despertar. No entanto, a vida sempre me pareceu mais real que qual quer
sonho. E então acontece isso.
Flanagan: A o menos sabe seu nom e?
Sócrates: E evidente que sim. M e u nom e é Sócrates.
Flanagan: Ora, com certeza é. E o meu é Einstei n.
Sócrates: Não estou entenden d o, achei que você havia dito que era Flanagan.
Flanagan (A parte.): Que horro r, acho que o sujeiti n h o está mal u c o mes m o! (Para Sócrates.) Veja
bem, vam os tentar aco m o d á- lo de algu m jeito. Te m algu m a identi f i ca çã o com você?
Sócrates: O meu rosto bastava para qual q uer um em Atenas.
Flanagan: A h, ah! Lo g o vejo por quê. Ol ha... você tem uma cara de rã!
Sócrates: É o que as pessoas costu m a m dizer. E eu que pensei que havia sido "espetado" com o uma rã
com o dize m. M as agora... (Procura no manto e tira um cartão de matrícula)) Parece que eu tinha um
pedaço de papel com i g o, um papel colori d o. Que estra nho. Co m o rosa. O que signi f i c a isso? (Lê, balança
a cabeça e entrega o papel a Flanagan) Pode interp retar para mi m? Eu entend o as palavras, mas não o
signi f i c a d o, pois todos parece m substanti vos. Não consi g o perceber a seqüênc i a. Que gram át i ca pri m i t i v a
esquisita! Co m o é possí ve l um substanti v o mod i f i c a r outro?
Flanagan: Veja m o s... (Faz caretas, lê, relaxa.) Ah, Escola de Teo logia Ha va l ar de. Si m, aqui é a Escola
de Teol o g i a e este é o seu for m u l á r i o de matrí c u l a. Que interessante, tem até seu nom e nele e está
matri c u l a d o com o no m e de Sócrates. Ac h o que o com p u ta dor tem senso de hum o r. Em todo caso, você é
um aluno da Esco la de Teol o g i a Haval ar d e.
Sócrates: Escol a de Teol o g i a? Então isso aqui é o céu? Eu vou aprender a ser um deus?
Flanagan: V o cê está querend o me fazer rir, Sócrates?
Sócrates: Não, Einstei n, não estou.
Flanagan: Ora, deixa disso, não me cham e de Einstei n!
Sócrates: Co m o quiser, Flanagan. V o cê é o portei r o dos deuses?
Flanagan: Por Deus, você é insensato com o um meni n o!
Sócrates: Vo cê jura por Deus em vez de pelos deuses! Poucos conheci a m esse grande segredo na
mi n ha cidade. A q u i deve m ser as Ilhas A f o r t u n a d as, certa m e n te!
Flanagan: Oh, pare de menti r, hom e m! Ni n g u é m mais fala em deuses nos dias de hoje.
Sócrates: Será que estou em outra época e em outro lugar?
Flanagan: Be m, se você é Sócrates, eu diria que sim. Há alguns mi l ha res de anos, pelo menos, calcul o
eu. (Refletindo, de repente.) Ei! Te m magia negra acontecen d o aqui? Eu não tenho nada a ver com a obra
do Diab o! Se você está fing i n d o, vou entrar no seu jo go, e, se estiver doente, vou ajudá- lo, mas se estiver
envo l v i d o com magi a negra, então está doente demais para eu poder ajudá- lo.
Sócrates: Co m o eu já lhe disse, Flanaga n, não tenho idéia de com o vi m parar aqui. M as parece ser
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bo m demais para ser obra da magia negra, mas não bo m o sufi cie nte para ser o paraíso. Em b o r a eu
descon f i e da intui çã o, não há nada mais a fazer, por enquant o, e, até que haja outras evidênc i as, devo
concl u i r que prova ve l m e n t e ainda estou na terra.
Flanagan: Ora, é claro que está, hom e m. Sinta seus ossos, en tão. Isso não é espíri to, com toda a
certeza.
Sócrates: O im p o rta n te, entretanto, não é onde eu, matéri a, estou, mas por que eu, o espírito, sou o
alvo. Te m algu m a idéia de por que me colocara m aqui?
Flanagan: Nen h u m a. A não ser que esteja aqui para me ajudar a li m p ar esse chiquei r o, porque esse
pessoal joga o lixo em qual quer lugar, e este velh o portei r o tem de pôr em orde m dois dias de bagunça em
um único dia. Ac h o que há outros afazeres para você, com o a Escol a de Teol o g i a, por exe m p l o.
Sócrates: Si m, este parece ser o lugar ideal para mi m. Sou um es tudante vital í c i o; por uma razão ou por
outra, esse papel de matrí c u l a parece ser um sinal para eu conti n u ar. Sem p re acredi tei que todas as coisas,
mes m o as mais estranhas, são governa das por um plano divi n o perfeit o e nenhu m mal pode atingi r um
ho m e m de bem, seja nesta vida, seja na outra. Então devo prossegu i r nesta aventu ra que me foi enviada
por Deus, seja ela qual for. (Prepara-separa sair, olha para suas roupas e em seguida para as de
Flanagan)) Imag i n o que eu me sentiria um tanto quanto deslocad o, se todos aqui se vestisse m com o você.
Flanagan: Oh, não se preoc u p e. Não existe m leis contra togas. Te m de tudo por aqui: sonhad o res,
fem i n i stas liberais e até funda m e n t a l i stas.
Sócrates: Al g u m dia, ainda preciso expl o rar essas estranhas cria turas. Certa m e n t e há tantas pergu n tas que
quero fazer...
Flanagan: Escute, eis um consel h o, se não se imp o r ta: não per gunte demais nem faça as pergu n tas
erradas, se é que você quer ficar longe de proble m a s.
Sócrates: M e u Deus, esse consel h o me pareceu tão fam i l i a r! (Pausa) Ag o r a sei que não estou no paraíso.
Porque, com o disse em meu últi m o discurso, não adm i t i r i a que os fil óso f o s tivesse m probl e m a s aqui por
fazere m pergu ntas, com o acontecia com i g o em Atenas. Hu m... parece que tem os outra Atenas aqui. Então
a Escola de Teol o g i a não é uma escola para deuses aprend i zes.
Flanagan: Rá, rá, essa é boa! Ac h o que algu m as das persona ge ns de lá agem com o se pensasse m que
são aprendi zes de deuses, real mente, e é possí ve l que não seja m nem mes m o aprendi zes.
Sócrates: Crei o que fui enviad o para cá pelo mes m o moti v o de ter ido a Atenas e pelo mes m o Deus, com
a missão de ajudar as pessoas a se lem b ra re m de que m elas real m e n te são.
Flanagan: Veja, eu queria poder aco m p a n h a r você, porq ue já posso até prever conf usão com gente do
seu tipo e os que não acei tam que faça m gracej os das profec i as de um velh o irlandês. M as estou aqui para
arru m a r esta bagunça, e você parece ter vind o para arru m a r outro tipo de bagun ça, ou experi m e n ta r, sei
lá... algo as sim; não sei bem ao certo. Cui da d o, porque, quand o dá na veneta do profeta, ele perde o
contro l e do que faz, sabia?
Sócrates: Ac h o que sei, ami g o, e obri gad o pelo consel h o cama rada. Ac h o que gostaria de pesquisar com
você, se não se imp o r ta, depois que tentar na Escol a de Teol o g i a. Vo cê parece dar seguran ça à min ha
jornada, uma âncora na terra e o bo m senso à medi da que me aventu r o pelos mares e ares da filoso f i a.
Será que pode m o s conversar nova m e n t e mais tarde?
Flanagan: Ora, é claro, estava escrito que isso deveria aconte cer, eu acho. Ag o r a vá. Estarei por perto,
quand o precisar de mi m. Estou sempre pera m b u l a n d o para lá e para cá e às vezes você vai me ver, mas
outras, não.
Sócrates: Obri ga d o, Flanagan. Deus esteja com você. (Sai.)
Flanagan: Oh, ele está, ele está! (Olhando em direção a porta, enquanto acompanha a saída de
Sócrates) Ag o r a, por que será que ele veio parar aqui? Estou curi oso para saber.
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2.
Como progredir na vida fugindo do "prog resso "
Sócrates está na esquina de uma rua na Havalarde Square, em Camp Rich, Massachusetts, parecendo
totalmente ultrapassado. Ele se demora olhando o trânsito, tanto de veículos quanto de pessoas, com
uma sensação de encanto e desencanto, parecendo, de início, fascinado, em seguida pensativo e, então,
sentimental. Ou seja: primeiro perplexo; em seguida reflexivo; e por último piedoso. Essas três
sensações levam certo tempo para passar, como a maré, fazendo desaparecer o dilema estampado em
sua face. Assim que passa a última sensação, Bertha Broadmind [Beth Cabeça], uma estudanteda Escola
de Teologia Havalarde, reconhece-o e presta atenção nele. A princípio, ela também está perplexa; em
seguida, assume ar de reflexão e, por fim, de piedade. A medida que Sócrates começa a andar sem
destino, procurando, em vão, por um ponto de referência, Bertha alcança-o de repente.
Bertha: Sócrates! É você mes m o?
Sócrates ( Surpreso e satisfeito): Ora, sou eu! Co m o me conhe ce? M a n d a r a m- na aqui para me
encontrar? Eu espera va um men sageiro de Deus, mas me perdoe, você não parece um.
Bertha: Oh, Sócrates! V ocê é tão, tão socráti c o! É você ou não é?
Sócrates: É claro que eu sou eu, a menos que a lei da não con tradiçã o tenha sido anulada aqui. M as,
onde é aqui?.
Bertha: Sócrates, você está no centro da acade m i a, o princ i p a l cérebr o do mun d o, na Uni v e rsi da de
Haval ar d e que é conseqüê n cia da grande invençã o de seu discí p u l o Platão. E aqui onde são ensinad os
mui t os dos nossos reis da fil oso f i a ou coisas do gênero. Na verdade, vam os ver... ah... aquele cartão que
você tinha em mãos... que se parece co m um cartão de inscri çã o para a Escola de Teol o g i a Haval ar d e.
Olha, e é mes m o! Genial, você vai fazer al guns cursos com i g o. Fantásti c o! Ven ha, eu o ajudo a encontrar
o local da sua inscri çã o.
Sócrates: E, tenho im pressão de que preciso ser condu z i d o por você. Enq ua nt o estam os indo, poderi a
me expl i car algu m as dessas estranhas visões que meus cansados olhos estão vendo? Parece que não há
lem bra n ça algu m a delas na mi n ha mente.
Bertha: Seria um prazer, Sócrates. E um pri v i l é g i o para mim ensiná- lo! Falar sobre todo o progresso do
mun d o desde a sua épo ca. Deve ser extraor d i n á r i o para você ver cerca de dois mi l anos de progresso em
um dia!
Sócrates ( Parando repentinamenteno meio da rua.): Vo cê disse dois mil anosl
Bertha ( Agarrando-opor trás.): Cui da d o, Sócrates! Os táxis não para m para fil óso f o s aqui.
Sócrates: Flanagan? Nossa, que estranh o. Ac he i que tinha vis to... Dei x e para lá. A q u e l a... aquela coisa
era um "táxi"?
Bertha: As pessoas não costu m a m mais cam i n h a r longas dis tâncias, mas anda m de carro. Si m, todas
aquelas coisas são carros. Gostari a de dar uma volta em um desses?
Sócrates: Eu acho que prefi r o cam i n h a r.
Bertha: Vo cê está com medo?
Sócrates: Não, adoro cam i n h a r. As pessoas não gosta m mais de cam i n h a r? Aq ue l as coisas carro
parece m uma for m a de não se cam i n h a r mais, não são?
Sócrates: Vo cê quer dizer que as mul he res tam bé m trabal ha m?
Bertha: Geral m e n te sim!
Sócrates: Então as mul he res de sua época se acha m tão escra vizadas quanto os ho m e ns?
Bertha: Escra v i z a das?
Sócrates: Escrav i za d as pela necessi dade de trabal har em fun ções desagradá ve i s só por causa do
dinhei r o.
12 | P á g i n a
Bertha: Sócrates, tente não ser tão crític o.
Sócrates: Vo cê quer dizer, tentar não ser eu mes m o? Tarefa difí c i l!
Bertha: Eu quis dizer, tentar olhar do nosso ponto de vista.
Sócrates: Estou tentand o, mas não consi g o. Não entend o por que o rosto da mai o r i a das pessoas para
que m olho é tão triste, se vocês progred i r a m tanto? Por que todos corre m nerv osa m e n te apressados com o
escrav os preoc u pa d os em desagradar seus senhores?
Bertha: Não é tão rui m assi m, Sócrates.
Sócrates: Va m o s ver. (Ele pára um grupo de vários tipos de pessoas.) Co m licença, meus ami g os:
algué m entre vocês teria uma ou duas horas dispo n í v e i s para con versar m o s sobre as mel h o r es coisas da
vida, com o virtu de e verdade?
Transeunte 1: V o cê deve estar brincan d o!
Transeunte 2: Que m é esse excêntr i c o?
Transeunte 3: Vi rt u d e e verdade! E algu m a marca im p o rta n te?
Sócrates: Vo cê entende, Bertha? E isso que eu não consi g o entender.
Bertha: Ah, Sócrates, eles só não têm tem p o.
Sócrates: M as se as máqu i nas dão co m o d i d a d e, que m a rouba de vocês?
Bertha: Ni n g u é m .
Sócrates: Então a entrega m assi m, de graça? Isso é ainda mais surpreen de n te!
Bertha ( Puxando Sócrates de volta para o meio-fio, no momento exato.): Olhe a luz ver m e l h a! Que
coisa, você precisa prestar mais atenção por onde anda em vez de ficar com a cabeça nas nuvens, faland o
sobre virtu de e verdade!
Sócrates: Você acabou de salvar a min ha vida? Tenh o a imp ressão de ver... Be m, obri ga d o. Real m e n te,
até as calçadas são peri gosas aqui. M as você parece desviar- se da coisa mais peri gosa de todas.
Bertha: Do quê?
Sócrates: Da fil oso f i a.
Bertha: Ah, tem os fil óso f o s aqui.
Sócrates: Onde eles estão?
Bertha: No departa m e n t o de filoso f i a.
Sócrates: A fil oso f i a não é departa m e n t o.
Bertha: Só sei que tem os fil óso f os.
Sócrates: Eles são peri gosos?
Bertha: Claro que não.
Sócrates: Então eles não são fil óso f os de verdade. Di ga- me, ningué m no mun d o de vocês obedece ao
pri m e i r o manda m e n t o do deus?
Bertha: O que é isso?
Sócrates: Con hece- te a ti mes m o.
Bertha: Oh, é claro. M u i t os vão a psiqui atras e psicól o g o s...
Sócrates: Eles são fil óso f os?
Bertha: São com o médi c os da alma. As pessoas vão até eles para se libertare m de seus proble m as.
Sócrates: Neste caso, eles não são filóso f o s, pois os fil óso f os criam probl e m as.
13 | P á g i n a
Bertha: Vo cê afirmava isso, Sócrates; entretant o, hoje, nin gué m é executad o por filoso fa r.
Sócrates: Será que é porque se interessa m ou porq ue não se in teressa m por filoso f i a?
Bertha: Eu acho que a mai or i a não se interessa, pois está ente-diada com a fil oso f i a.
Sócrates: Espere, há uma palavra que não entend o. O que é estar "entediada"?
Bertha: Eu não entend o o que acontece, pois você fala tão bem portu g u ês. Co m o não entende a
palavra?
Sócrates: O portu g u ês... na verdade... M as estou aqui, sem saber com o falo sua líng ua pri m i t i v a sem
nunca tê-la aprendi d o. Contu d o, não me esqueci da mi n ha e eis uma palavra que não tem equi va l e nte
algu m nela. Tal ve z as pessoas só tenha m começa d o a empre gá- la na época de vocês. É possí vel relaci o na r
essa palavra com a adoração ao seu novo deus?
Bertha: Deus?
Sócrates: Progresso.
Bertha: O progresso não é um deus, Sócrates.
Sócrates: Se você já sabe disso, então por que o trata com o se fosse?
Bertha: Ac ha que faze m os isso? A mai or i a de nós acredi ta em um único Deus, exata m e n te co m o você.
Sócrates: Be m que eu vi! Quer dizer que meu segredo é conheci d o depois de todos esses anos? Di game, então, mais uma coisa: com o encontra sossego e mo m e n t os a sós nesse mun d o para que possa con versar com o seu Deus, com você mes m a e com seus pensa m e n t os?
Bertha: Pensand o bem, não tem os mui t o sossego ou mo m e n tos a sós em nosso mun d o.
Sócrates: E o que parece. E por quê?
Bertha: Ac h o que não gosta m o s muit o disso. Para dizer a ver dade e pensand o bem, é isso que dam os
com o castigo aos nossos cri m i n o s os mais peri gosos, o pior castigo que entende m o s.
Sócrates: Vo cê não está faland o sério? A grande dádi va dos mo ment os a sós? Aq u i l o a que os sábios
anseia m com o algo mais pre cioso que o ouro?
Bertha: Recei o que é assi m, Sócrates.
Sócrates: Co m e ç o a entender por que fui enviad o para cá. M as não vejo por que você cha m a tudo isso
de "progresso". Tod o o seu mun d o é tão abo m i n á v e l quanto este lugar?
Bertha: Cal m a, Sócrates! Vo cê vai ofender os nati v os, pois este lugar é a Haval ar d e Square, um dos
lugares mais popu l ares para morar. As pessoas paga m o dobro para morar aqui em vez da zona rural
(campo).
Sócrates: Oh, então vocês ainda têm zona rural tam bé m?
Bertha: Si m.
Sócrates: Onde há gram a verde, árvores que faze m bem à saú de e ar com cheiro de ar?
Bertha: Si m, ainda há abundân c i a de áreas não devastadas.
Sócrates: M as, se vocês prefere m vi ver em lugares com o este, por que qual i f i ca m a região cam pestre
de "não devastada"? E por que escol he m viver em lugares que classif i ca m com o "devastad os"?
Bertha: Não sei. Imagi n o que seja por achar m o s o cam p o entediante.
Sócrates (Com um suspiro.): Eis esta palavra de nov o! U m a in venção de vocês que eu acho que não
conhecí a m o s.
Bertha: As pessoas nunca ficara m entediadas em sua Ate nas, Sócrates?
Sócrates: Ac h o que não, pois, se tivesse m ficad o, teria m inven tado uma palavra para isto. Nós, gregos,
éram os mui t o bons nisso, você entende, na invençã o de palavras.
14 | P á g i n a
Bertha: M as você vi veu na cidade em vez de no cam p o, não foi?
Sócrates: E que Atenas era uma cidade boni ta. (Outro suspiro.) Imagi n o que tudo tenha se acabad o.
Bertha: Não, as ruínas ainda estão de pé e a mai or parte do Parteno n tam bé m ; é um ponto turísti c o
mui t o popu la r.
Sócrates: Oh! Eu amaria visitá- la a qual q uer preço! A que dis tância está? Pode m o s ir andand o até lá?
Bertha ( Sorrindo.): Não, Sócrates, são mi l ha res de quil ô m e t r o s adiante, do outro lado do oceano. V ocê
precisari a voar até lá.
Sócrates: Ac h o que você está conf u n d i n d o a mi n ha identi da de: o no m e é Sócrates, não Ícaro.
Bertha (Sorrindo mais ainda.): Não, eu quero dizer, em um avião, um pássaro mecâni c o que voa
quil ô m e t r o s em uma hora.
Sócrates: Co m o se fosse um deus! (Refletidamente.)E de mod o tão diferente! M as me diga, por que os
turistas ainda visita m as ruínas da velha Atenas?
Bertha: Ora, porque eram mui t o boni tas, natural m e n t e.
Sócrates: Eu não entend o, então! Se você adm i te que Atenas é mais boni ta que Ca m p Rich,
M assac h usetts, então por que não constróe m cidades com o Atenas em vez de co m o Ca m p Rich? Es quecera m- se de com o se faz ou perdera m a prática?
Bertha: Não.
Sócrates: Co m o, "não"?
Bertha: Si m p l es m e n te, porq ue não pode m o s voltar no tem po, Sócrates.
Sócrates: Não só pode m com o deveria m voltar, caso o presen te se torne insustentá ve l, com o parece ser
o caso do mun d o em que vocês estão viven d o.
Bertha: Isso é mui t o sagaz, Sócrates.
Sócrates: Não, não é sagaz, mas é sim pl es e sério. Por que não é? Porque não foi uma questão retóri ca,
mas uma objeção em favo r de uma resposta.
Bertha: E porque não se pode desfazer o progresso, é claro.
Sócrates: Oh, sim, eu tinha esqueci d o. O deus destruti v o de vocês está muit o exigente e mui t o
ciu m e n t o.
Bertha: O progresso não é um deus; ele nos serve, não nós a ele.
Sócrates: Ah, é assi m? Então ele os torno u mais feli zes?
Bertha: Eu... Eu acho que não sei.
Sócrates: E acha que deveria?
Bertha: Eu penso que sim.
Sócrates: Va m o s ver se pode m o s mel h o ra r seu conhec i m e n to de uma suposi çã o para uma certeza, ao
encontrar m o s uma evidên c i a. Se um senhor se serve do trabal h o de um escrav o, es se senhor espera se
tornar mais feliz, sob certo aspecto, por esse trabal h o?
Bertha: Natura l m e n t e. Do contrári o ele não teria um escrav o.
Sócrates: E o progresso, você diria que é escrav o em vez de mes tre em sua época?
Bertha: Si m.
Sócrates: Então vocês espera m que ele os faça mais felizes?
Bertha: Prossi ga...
Sócrates: A pró x i m a pergu n ta, então, é se o progresso fez isso por vocês. As pessoas em sua época
estão mais feli zes do que eram antes de o progresso chegar?
15 | P á g i n a
Bertha: Não sei.
Sócrates: Se vocês não sabem se os fez mais feli zes ou não, en tão por que optara m por ele?
Bertha: Eu creio que ele, de fato, nos faz mais felizes hoje. M as não sei com o você falaria isso; com o
será possí vel co m pa rar duas culturas diferentes?
Sócrates: Ora, indo em busca de pistas. E parece haver muitas: por exem p l o, há menos
desconte nta m e n t o expresso na literatu ra da época? M e n o s agitação e revol u çã o políti ca? M e n os
mudan ças agita das no mun d o? Poucas guerras e sem muit o alcance? Poucos mu dando de vida, de
empre g o, de casa, de esposa ou de mari d o, por insatisfação? M e n o s alienação mental? Poucos cri m es?
Poucos es tupros, abuso infant i l, infanti c í d i o, abortos? M e n os medo da morte por causa dos indi v í d u o s e
da sociedade? M e n o s incerteza se a vida vale a pena ser vi vi da?
Bertha (Suspirando.): Não, Sócrates. Há muit o mais!
Sócrates: M a is do quê?
Bertha: De todas estas coisas. Sócrates (Sem acreditar.): M a i s de todas estas coisas?
Bertha: Si m.
Sócrates (Ainda incrédulo.): Todas?
Bertha: Si m, todas!
Sócrates: U m a coisa, então, ao menos, parece bastante clara: as pessoas da sua sociedade estão mais
infel i zes que as da mi n ha.
Bertha: Penso que preciso adm i t i r isto.
Sócrates: E você, apesar disso, ainda acredi ta no progresso?
Bertha: E claro que acredit o.
Sócrates: Que grande fé você tem em seu deus.
Bertha: Isto não é fé, Sócrates.
Sócrates: Be m, na certa, não é razão nem evidên c i a.
Bertha: Estou total m e n te conf usa. Preste atenção, nós estam os na aveni da Di v i n d a d e. Lá está o hall da
Escol a, logo abai x o.
Sócrates: Não tem ar de um local que lem b re coisas divi nas. A q u e l a é a Escola de Teol o g i a?
Bertha: Não, ela fica na aveni da Francisca n o.
Sócrates: Pode m o s ir por esse cam i n h o da aveni da Di v i n d a d e? Será que vam os encontrar alguns
deuses?
Bertha: Não, a aveni da Di v i n d a d e não tem saída.
Sócrates: Eu já devia ter-lhe dito isso.
Bertha: O quê?
Sócrates: Quero dizer que a ambi çã o de ser uma divi n d a d e não é muit o pro m i sso ra.
Bertha: A mi n ha única ambi çã o neste mo m e n t o é voltar para uma rua que tenha saída.
Sócrates: M as penso que você está tentand o se transfo r m a r em um deus, em seu novo deus progresso.
Parece que você já se torno u semel ha n te a seu deus, sem pre mudan d o, nunca pensand o. Ah, exis te
tam bé m um banco. V o cê se lem b ra se agi m o s contra a natureza de seu deus, por um mo m e n t o sequer?
Quero dizer, se para m os e pen samos? Va m o s nos sentar aqui e term i n a r nossa conversa antes de
alcançar m o s outro exe m p l o de progresso cha m a d o "matrí c u l a".
Bertha: Tud o bem. Eu gostaria de chegar ao fund o dessa coisa de progresso.
Sócrates: Sorte sua. Ora, isso que eu cham o de progresso.
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Bertha: Vo cê falou que o progresso é nosso senhor, não nosso escrav o; no entanto, não é assi m, pois
som os os senhores do Uni verso, subj u ga m o s a natureza. Progresso é isso, e pelo menos isto você não
pode negar.
Sócrates: Tal ve z negar não, mas pode m o s investi gar?
Bertha: Certa m e n te.
Sócrates: Vo cê me disse que vocês contr o l a m a natureza agora?
Bertha: Si m, mui t o mais que no passado, em todos os aspectos.
Sócrates: Di ga- me, o que você com en tar i a sobre este caso: imag i n e uma carruage m puxada por quatro
caval os tei m os os. Supo nha que você tam bé m possa empregar uma daquelas coisas-carro de vocês, com o
exem p l o. A g o ra, imagi ne uma crianc i n h a com as rédeas, no contr o l e. A o mais leve toque da criança, os
caval os obe dece m; a criança contro l a os caval os e os caval os, a carruage m . M as o que tem o contr o l e da
criança? Pense que a criança seja tão cega e tão tei m osa quanto os caval os; então imag i n e que ela não
contro l a a si mes m a, nem o própr i o contr o l e. V ocê diria que essa criança está sob o contr o l e da
carruage m?
Bertha: Vo cê está queren d o dizer que isso é a image m do nos so mun d o?
Sócrates: Eu é que pergu nt o: vocês do m i n a m
autoco n t r o l e?
o contr o l e? Cos tuma m
ser pessoas de grande
Bertha: Não. Ac h o que som os pessoas muit o viole ntas.
Sócrates: Neste caso, a carruage m da sociedade em que vocês vi ve m está em perig o.
Bertha: V o cê não sabe nem da metade, Sócrates: bem neste mo m e n t o, duas nações rivais têm armas
cham a das bo m b as nuclea res, que pode m destrui r cada único ser vivente na Terra, basica mente por
suspeitare m um do outro.
Sócrates: Por Zeus! U m a criança desobed i e nte com uma arma gigantesca! Que com b i n a çã o peri gosa!
Bertha: Ta m b é m parece que estam os preoc u pa d os co m o nos so contr o l e, porque uma das nossas
histórias mais popul ares é so bre um doutor Fran ke nstei n, que cria um monstr o mecân i c o, com fúria
assassina.
Sócrates: Oh, eu não vi as máqu i nas com fúria assassina funci o nando. Parece que vocês as estão
contro l a n d o mui t o bem. M as dão a impressão de estare m preoc u p a d os com vocês mes m os; por exe m p l o,
sobre se serão im pr u d e n t es o bastante para usar essas armas terrí ve is.
Bertha: Eu não acho que sejam os tão imp r u d e n t es, Sócrates.
Sócrates: Então, por que não se livra m de todas essas armas? Assi m, ambas as partes respirarão
alivi adas e ficarão mais feli zes.
Bertha: Possi vel m e n t e somos esses tais tolos, Sócrates. O que você diz é perfeita m e n t e lógi c o, mas não
agi m os assi m.
Sócrates: E mes m o que vocês não fosse m tão im pr u d e n t es quan to ao uso dessas armas, as máqu i n as
não parece m estar fazend o vo cês felizes, nem trabal ha n d o com o seus escrav os; são, por isso, um indí c i o
defic ie n te de progresso e poder.
Bertha: Tor na ra m- nos mais sábios, em todo caso; sabem os mui t o mais que vocês, os gregos pri m i t i v o s,
sabia m.
Sócrates: V o cê quer dizer que o conhec i m e n t o sozin h o faz de você um sábio? Conhe c i m e n t o é a
mes m a coisa que sabedor i a?
Bertha: Não, mas nós, pelo menos, tem os mais conhec i m e n t o.
Sócrates: Qual é mais vali oso, o conheci m e n t o ou a sabedor i a?
Bertha: A sabedor i a.
Sócrates: Então, onde está sua sabedor i a moder na?
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Bertha: Na verdade, fala m o s, em geral, de "sabedor i a antiga" e "conheci m e n t o moder n o", em vez de
falar m o s o contrári o.
Sócrates: Desse mod o, você conco r d a que os povos da Ant i g ü i d a d e eram mais sábios, enquant o os
moder n os têm mais conheci m e n t o?
Bertha: Ac h o que sim.
Sócrates: E você sabe que essa sabedor i a é a mais vali osa?
Bertha: Si m.
Sócrates: Então por que vocês substituí ra m a coisa mais vali o sa pela menos vali osa? E por que
cham a m isso de "progresso"?
Bertha: Be m, pelo menos sabe m os mais. Evol u í m o s nessa área, de algu m a for m a.
Sócrates: Vo cês conhece m coisas com o: nascer e morrer; amar e odiar; vida e Deus, mais do que nós?
Bertha: Certa m e n te. Sabe m os mi l hares de coisas sobre estes que você nunca soube.
Sócrates: Vo cês pode m até conhecer mais sobre elas, mas vocês as conhece m mais?
Bertha: Não entend o a distin çã o que você está fazend o.
Sócrates: Por exe m p l o, vocês deve m saber qual é a tem peratu ra de amanhã de mod o bem mais exato
que nós, eu suspeito.
Bertha: Si m.
Sócrates: M as vocês pensa m que conhece m o cli m a em si me lhor que um mari n h e i r o ou um
fazende i r o que conv i v e m com o cli m a, com pa n h i a constante de toda a vida?
Bertha: Oh, eu entend o. Be m, de certa for m a não, mas de outra sim. Pode m os contro l á- lo mais. Por
causa do nosso conhec i m e n t o, pode m o s contr o l ar mui tas forças da natureza que você nunca so nhou
contro l a r. Fo m os capazes de voar até a Lua, por exe m p l o...
Sócrates: Real m e n te incrí ve l! E é um lugar gostoso de se viver?
Bertha: Não, não há vida lá. E im p ossí v e l vi ver lá.
Sócrates: Então, por que foi bo m ir até lá?
Bertha: Vo cê precisa questi o nar tudo?
Sócrates: Si m.
Bertha: Obser ve algo mais: pode m o s nos com u n i c a r co m al gué m a dez mi l quil ô m e t r o s de distânci a
em um instante, mais rá pido que o mensagei r o dos deuses. Co m certeza, isto é progresso.
Sócrates: Si m. V ocê tem mais algu m a coisa que valha a pena dixer?
Bertha: Pode m os culti va r o ali m e n t o com dez vezes mais eficiên c i a.
Sócrates: E assi m vocês acabara m com a fo m e?
Bertha: Be m, não... M as pode m o s curar mi l hares de doenças.
Sócrates: Não sabia que existiam mil hares de doenças. V o cês já inventara m algu m a nova?
Bertha: Eu... eu mal posso acredi tar no que estou ouvi n d o, Só crates. Sem pre pensei que você fosse um
progressista.
Sócrates: O que é um progressista?
Bertha: Al g u é m que está à frente de sua época.
Sócrates: Co m o algué m pode estar à frente de sua época? É possí vel viajar mais rápid o para o futur o
que o tem p o?
Bertha: Signi f i c a à frente de outras pessoas de seu tem p o. Por exem p l o, você não se mani f esto u em
18 | P á g i n a
favor da liberdade de expressão dos direitos do ho m e m e da sacrali da de da opi niã o de todo hom e m em
sua Apologia, no últi m o discurso antes de o tribu na l condená- lo à morte?
Sócrates: Se Platão registro u o meu discurso correta m e n t e, vo cês não vão encontrar sequer uma idéia
dessas lá. Tal ve z vocês te nha m interpreta d o de mod o equi v o c a d o.
Bertha: O quê? Vo cê nega aquelas idéias?
Sócrates: Eu não disse aquil o. De ve r í a m o s investi gá- las.
Bertha: Não, agora não. Não há tem p o.
Sócrates: Na mi n ha época, teria tem p o, mas vocês vi ve m em
mei o a tanto progresso...
Bertha: No que acredita, Sócrates, se não crê naquelas coisas ou no progresso?
Sócrates: Co m o eu disse em meu jul ga m e n t o, acredit o no deus, embora não possa no m ea- lo.
Bertha: M as um deus é imutá ve l, não é?
Sócrates: Si m. Esta foi uma das razões pelas quais eu não dei nom e ao deus Zeus ou mes m o a A p o l o.
Os deuses nos quais meus com p a n h e i r os atenienses acredi ta v a m eram tão inco nstantes com o o vento ou
com o um daqueles semáf o r os de vocês.
Bertha: M as, se o seu deus é imutá ve l, você vi ve em um mun do estático; logo, não há possibi l i d a de de
progresso.
Sócrates: Eu consi der o exata m e n te o contrári o.
Bertha: O quê?
Sócrates: Só pode m o s progred i r se o deus não alcançar o progresso. Bertha: Co m o imag i n a isto?
Sócrates: Vo cê não defi ni u progresso com o uma muda n ça pa ra mel h o r?
Bertha: Si m.
Sócrates: E "melh o r" signi f i ca "o mais perto do máxi m o "?
Bertha: Si m.
Sócrates: E o deus é o mel h o r?
Bertha: Si m.
Sócrates: Bo m. Ta m b é m acredi to nisso. M e us com p atr i o t as acredi ta v a m em deuses que eram algu m a
coisa inferi o r ao que é o mel h o r. Be m, então, se o progresso signi f i c a mudan ça para me lhor, e se o deus é
o mel h o r, nesse caso o progresso signi f i ca mudar em relação ao deus.
Bertha: E daí?
Sócrates: O deus, portant o, é o objeti v o do progresso.
Bertha: Eu ainda não entend o qual é a questão básica de tudo isso.
Sócrates: Supo n h a que o deus, o objeti v o do progresso, esteja mudan d o; portant o, o progresso torna- se
im p ossí v e l. Co m o avan çar na direção de um objeti v o que se mani festa em retrocesso? Se ria possí vel um
atleta evol u i r até a linha de chegada, se algué m fi casse mo v i m e n t a n d o a linha enquant o ele corre?
Bertha: Não.
Sócrates: Então, se o deus avança, você não pode avançar, por que deus é o seu objeti v o. Sem uma
meta im utá v e l, não se pode julgar qual q uer muda n ça com o progresso. Assi m você não pode ter nenhu m a
esperança.
Bertha: É claro que tem os esperança.
Sócrates: Qual é a sua esperança?
19 | P á g i n a
Bertha: U m mun d o mel h o r.
Sócrates: M as o que é um mun d o mel h o r? Co m o pode saber que mun d o é mel h o r sem o mel h o r com o
padrão?
Bertha: Vi v e m o s apenas de esperanças.
Sócrates: E sem defi n i r seu objeto?
Bertha: Si m, sem defi n i r o objeto, pois isso o li m i tar i a. Ati n g i r uma extre m i d a d e pode ser entediante,
pois é o percurso para che gar lá que é bo m. "A viage m é mel h o r que a chegada."
Sócrates: Oh, não, não pode ser.
Bertha: Por que não?
Sócrates: Se você não tem esperança de chegar, então com o pode viajar esperanç osa m e n te? Não há
nada pelo que esperar.
Bertha: M a is esperança é o que espera m o s. U m dos nossos sá bios ho m e ns disse: "Não há nada a temer
senão o tem o r em si mes m o". A esperança tam bé m é assi m, pois não há nada pelo que esperar, senão a
esperança em si.
Sócrates: M as com o esperar na própri a esperança? Esperan ça na esperança? Esperança de quê?
Imagi n o que você tam bé m esteja apai x o na da pelo amor, e não por algué m? Vo cê tem fé na fé em vez de
fé no deus?
Bertha: O que há de errado com isso?
Sócrates: E com o um salão de espel hos, que não tem nada fo ra dele para aparecer neles. Co m o
Narc iso, você vê apenas o pró prio refle x o.
Bertha: Sócrates, estou real m e n te decepci o n a d a com você. Pensei que você fosse mais atuali zad o que
isso. Sócrates: Atua l i za d o? Bertha: É 1987.
Sócrates: E estou aqui, portanto estou bem atuali zad o. Bertha: M as você não acredita em 1987.
Sócrates: Claro que não. Co m o se pode acredi tar em um núm e r o? Bertha: Quis dizer que você não
acredi ta em progresso. Sócrates: Estou tentand o lhe dizer isso por mui t o tem p o, mas sem muit o
sucesso. Não, eu não. Eu não acredi ta v a nos deuses moder n os e atuais, em que meus com p atr i o tas
acredi ta v a m tam bém, e fui executad o por isso. Di ga- me, as pessoas ainda acredi tam em Zeus hoje?
Bertha: Não. Ni n g u é m mais.
Sócrates: Be m, então você não percebe? As crenças mais atuais do meu mun d o eram aquelas que
fora m datadas logo, e a mes m a coisa vai acontecer com as suas, eu lhe asseguro, incl u i n d o este nov o deus
progresso. E quand o isso acontece, aí será progresso verdadei r o.
Bertha: Oh, preste atenção, chega m o s à Escola de Teol o g i a. Lá está a fila de matrí c u l a. Ol he, preciso
me matri c u l a r no segun d o andar. Ac ha que pode ficar só por alguns mi n u t os, sem probl e m as? Eu creio
que não. Aq u i está um jornal; por que não vai lendo en quanto espera na fila? Ele vai lhe dar algu m a idéia
ainda do que está acontecen d o com nosso mun d o.
Sócrates: O New Yuck Times?
Bertha: Si m, este é o no m e do nosso mai or jornal.
Sócrates: Prefi r o ler as eterni da des. Eu não imagi na v a que vo cês tivesse m taman ha publ i ca çã o aqui.
Bertha: Gosta m o s de nos manter atual i za d os aqui na Escola de Teol o g i a.
Sócrates: Imagi na v a que fosse tem p o demais para esperar, mas eu esperava real m e n te que a "Escola
de Teol o g i a" teria algo a fazer com as eterni da des. Os deuses de vocês não são eternos?
Bertha: Esta é outra coisa sobre a qual discuti m o s aqui.
Sócrates ( Animado.): É mes m o? Então talvez este seja o lugar certo para mi m, depois de tudo.
20 | P á g i n a
3
Seria Jesus um fundamentalista?
Bertha Broadmind percebe Sócrates andando, de modo confuso, de um lado a outro durante o processo
de matrícula na Escola de Teologia Havalarde. Sócrates parece meio perdido, então Bertha abre
caminho em meio à multidão e o alcança.
Bertha: Já term i n o u de fazer a matrí c u l a, Sócrates?
Sócrates: Ac h o que sim. M e u cartão de identi f i ca çã o já está com os meus cursos listados, portanto
deduz i que seja que m for que pro videnc i o u para que eu esti vesse aqui tam bé m o fez para os meus cursos.
Ai n d a não tenho idéia de que m seja. Pelo jeito, só um deus poderia infl ue n c i a r pessoas em um mo m e n t o
com o este, assi m o mel h o r que tenho a fazer é seguir a sua direção, seja que m for. E pro vável que eu
tenha sido enviad o para cá a fi m de descob r i r algo; ou, que m sabe, descobr i r que m sou eu ou as duas
coisas. De algu m mo do, essas duas questões parece m interl i ga r- se de mod o inexp l i c á v e l.
Bertha: Dei x e- me ver em que cursos você está matri c u l a d o, Sócra tes. Hu m... Ciênc i as da Reli g i ã o,
Reli g i õ es Co m p a ra das, Funda m e n tos da Des m i t i f i c a çã o... Que bom! Fare m os alguns cursos juntos.
Sócrates: O que, pelo amor de Deus, é "desm i t i f i c a çã o"?
Bertha: E uma saída para o funda m e n t a l i s m o. Os funda m e n tos da desm i t i f i c a çã o
desm i t i f i c a r o funda m e n t a l i s m o.
pretende m
Sócrates: M as o que é funda m e n ta l i s m o?
Bertha: Funda m e n t a l i s m o é basica m e n t e uma estreiteza de vi são que passa a consi derar tudo a parti r de
categor i as rígi das, li m i ta das e preco nce b i d as.
Sócrates: E uma daquelas máqu i n as pensantes que vocês têm, os com p u t a d o r es? Então um
com p u t a d o r é um funda m e n t a l i sta?
Bertha: Oh, acho que preciso tornar a mi n ha defi n i çã o um pouc o mais especí f i c a.
Sócrates: Quer dizer que um pensa m e n t o li m i ta d o transf o r m a a pessoa em funda m e n t a l i sta?
Bertha: Não sei se levo você a sério ou não. Não, o funda m e n talis m o não signi f i c a apenas ter um
pensa m e n t o li m i ta d o, mas é um term o reli gi os o. U m funda m e n t a l i sta obri ga a tudo e a todos a aceitare m
suas categor i as religi osas li m i ta das e insufi c i e n tes.
Sócrates: Que categor i as são essas?
Bertha: A salvação e a condenaçã o, princi pa l m e n t e. O dis curso deles é que, se você não nascer de novo
com o eles, irá para o infer n o.
Sócrates: A meu ver, esta idéia, indepen d e n te m e n t e do que signi f i q u e, é repulsi va para você. É isso
mes m o?
Bertha: É claro que é. É a atitude mais anticristã.
Sócrates: O que é ser cristão? Pelo que percebo você é cristã?
Bertha: Estou tendo aulas de Estud os Reli g i os os aqui.
Sócrates: Não foi esta a min ha pergu n ta!
Bertha: É possí vel até que eu seja ordenada com o obreira.
Sócrates: Vo cê ainda não respon de u à mi n ha pergu n ta.
Bertha: Tud o bem. Só não posso acreditar que, se você não nas cer de nov o, irá para o infer n o.
Sócrates: Ac h o que você não quer respon de r a min ha pergu n ta. Be m, vam os tentar outra. Supon h o que
você tenha razões para acreditar e não acreditar, não tem?
Bertha: Claro.
21 | P á g i n a
Sócrates: Então?
Bertha: O que quer dizer com então? A h, entend o. Vo cê quer saber por que não acredit o no
funda m e n ta l i s m o. Ora, porque é uma li m i taçã o mal d i ta.
Sócrates: Ac hei que você disse que eles se consi dera v a m os sal vos e, por isso, a atitude deles era
mesqu i n h a demais. Assi m, se ria m "salvos egoístas" e não "conde na d os egoístas", não seria m?
Bertha: Hei n?
Sócrates: Por favor, só me diga por que acredita que o funda mental is m o não é verdade?
Bertha: Oh, bem, porque, se fosse, a mai o r i a do mun d o estaria no infern o, e só uma elite reduzi da e
seleta estaria no céu.
Sócrates: Si m, mas com o sabe isso?
Bertha: Ora, porque é a lógi ca, claro. V o cê não percebe?
Sócrates: Perceber ia, se eu observasse. Va m o s obser var. Essa concl usã o é fruto de que pre m i ssa?
Bertha: E tão sim pl es, Sócrates. Se só os nasci d os de novo es tão salvos e apenas alguns nascera m de
nov o, logo, somente alguns estão salvos. Vo cê não parte sempre da lógi ca?
Sócrates: Partir dela? Eu a dei ao mun d o.
Bertha: Oh, descul pe. Esquec i.
Sócrates: Certo, mas vam os observar o seu silog is m o, se você não se im p o rta. Certa m e n te ele parece
irrepreensí v e l, mas eu gos taria de tangenc i a r o irrepreensí v e l, se possí ve l. O seu argu m e n t o real m e n te é
reductio ad absurdurn12, com o se diz. V o cê nega a pre missa funda m e n ta l i sta de que só os nascid os de
nov o estão salvos porq ue ela logi ca m e n t e im p õe a concl usão absurda de que apenas alguns estão salvos.
Não está certo?
Bertha: Si m.
Sócrates: Então, a mi n ha pergu nta é: com o sabe que a concl u são é absurda?
Bertha: E você não acha que seja?
Sócrates: Não estam os consi dera n d o o que eu penso, mas o que você pensa. Eu não sei nada sobre essa
coisa nova e estranha cha m a da funda m e n ta l i s m o, mas você sabe. V o cê está me ensi nando, lem b ra?
Assi m, por favor, faça isso por mi m e conti n ue me ensinan d o.
Bertha: O que quer saber?
Sócrates: O que já pergu n tei duas vezes e não foi respon d i d o, ou seja: com o sabe que a concl usã o de
que só alguns estão salvos é falsa?
Bertha: Não posso acredi tar nisso, sim p l es m e n t e; isso é tudo. E um absurd o.
Sócrates: Vo cês não têm justi f i cat i v a algu m a para essa crença?
Bertha: Será que preciso justi f i ca r tudo em que acredi to?
Sócrates: Se concor da que a vida sem questi o na m e n t o não vale a pena ser vi vi da, então precisa
real m e n te justi fi c ar. "Esteja m sem pre preparad os para respon der a qualq ue r pessoa que lhes pedir a razão
da esperança que há em vocês." 13
Bertha: Be m que eu vi! V o cê acabou de revelar o seu disfarce, "Sócrates". De onde tirou essa citação?
Sócrates: Sobre ávida sem questi o na m e n t o? Ora, eu a inven tei há mil hares de anos, em mi n ha canção
do cisne, na Apologia. Eu sei que ainda está por aí porq ue acabei de ver uma cópia naquela estante lá. O
que quer dizer com "acabo u de revelar o seu disfarce"?
Bertha: Refi r o- me à outra citação, sobre dar uma justi fi c ati v a a tudo; é bíbl i c o. Quan d o foi que leu a
12
13
Expressão latina que significa redução ao absurdo.
1 Pedro 3.15.
22 | P á g i n a
Bí b l i a?
Sócrates: Eu não a li. E o que eu disse não era citação; só falei porque pensava ser verdade.
Bertha: Signi f i c a que você disse exata m e n te a mes m a coisa que o apóstol o Paul o?
Sócrates: Eu não sei que m é ele, mas não seria bastante surpreen dente se a verdade fosse a mes m a na
for m a de dizer de duas pes soas diferentes?
Bertha: Eu diria que você é quase tão inteli ge nte quanto ele. Vej a bem, se você já term i n o u tudo
referente à matrí c u l a, é mel h o r dar m os isso por encerrad o! Vej o você na aula.
Sócrates: Eu não entend o por que você não quer term i na r a nos sa investi ga çã o. Nós só come ça m o s. E
com o ouvi r uma canção pela metade; você não quer ficar e cantar a outra metade para mi m, por mi m, se
não for por você? Eu ainda não tenho sequer uma idéia do que real m e n te seja essa coisa terrí ve l cha m a da
funda m e n ta l i s m o.
Bertha: Certo, tudo bem. Onde estáva m o s?
Sócrates: O argu m e n t o era que o funda m e n t a l i s m o deve ser falso porq ue diz que somente os nascid os
de nov o são salvos e se somente alguns são nasci d os de novo, então apenas alguns serão salvos, caso o
funda m e n ta l i s m o esteja certo. M as você achou esta concl usão absurda, sem dar nenhu m a razão para isso.
Ag o r a, já que você não vai apresentar uma razão para isso, vou tentar outra abertura na câmara interna do
entend i m e n t o que está ligada a esse argu m e n t o. A segun da prem i ssa pode ser uma porta. Pode m os dis cutir se você quiser. Co m o sabe que só alguns são nascid os de no vo, indepe n de n te m e n t e do que isso
signi f i q u e?
Bertha: As pesquisas todas dize m isso.
Sócrates: Essa coisa de nascer de nov o, se dá por dentro ou por fora de nós?
Bertha: Por dentro de nós; isto é, no coração ou na alma.
Sócrates: E as pesquisas avalia m o coração ou a alma?
Bertha: Não.
Sócrates: Então com o pode m saber quantos real m e n te nasce ram de nov o?
Bertha: Eles não pode m, eu acho. M as ainda discor d o da estrei- teza dos funda m e n ta l i stas. Este é o
princí p i o básico. Que m eles pensa m que são para dizer que vão para o céu?
Sócrates: Esta parece ser uma pergu nta extre m a m e n t e im p o r tante, em qual que r caso, não parece?
Co m o ir para o céu? Co m o ter uma eterni da de feli z?
Bertha: Sim...
Sócrates: Por isso, deve m o s tentar encontrar a verdadei ra res posta para isto, talvez antes de todas as
outras.
Bertha: Ag o r a você está come ça n d o a falar com o um deles.
Sócrates: Se é isto que signi f i c a eles — isto é, as pessoas que fizera m aquela pergu n ta — então parece
que elas são racio nai s; já os que não a fizera m são tolos e li m i ta d os.
Bertha: Não. Va m o s fazer a pergu n ta. Eu sou tolerante; por isso, adm i ti r i a qualq ue r pergu nta.
Sócrates: Que bo m. Ora, com o podería m o s encontrar a res posta a uma pergu n ta desse tipo? V ocê já
esteve no céu?
Bertha: E óbvi o que não.
Sócrates: Quer dizer que isso ainda não faz parte da sua experi ên c i a?
Bertha: Não.
Sócrates: Quan d o quere m os descobr i r a verdade sobre uma questão que não faz parte de nossa
experiê nc i a, o que faze m os?
23 | P á g i n a
Bertha: Não sei o que você quer dizer.
Sócrates: Quan d o quere m os descobr i r o que se sente quand o se é rico, o que faze m o s?
Bertha: Pergun ta m o s a algué m que é rico, é lógi c o.
Sócrates: E não a seus colegas estudantes daqui? *
Bertha: Não.
Sócrates: E quand o quere m o s descob r i r com o se faz um gran de poe m a, o que faze m os?
Bertha: Pergun ta m o s a um grande poeta.
Sócrates: E não a este New Yuck Times que tenho debai x o do braço?
Bertha: Não, porq ue isso não é poesia.
Sócrates: E quand o quere m o s descob r i r com o viajar pelo Egi to, a que m pergu n ta m o s?
Bertha: A um egípci o.
Sócrates: E não às pesquisas?
Bertha: Não, seria tolice. Por que está fazend o estas pergu ntas?
Sócrates: Para encontrar um princí p i o. V ocê entende isso?
Bertha: Imag i n o que você queira dizer que, quand o quere m os conhecer a verdade sobre algo que não
faça parte de nossa experiê n cia, pergu n ta m o s a um especial ista, o único que real m e n te conhe ce por
experiê nc i a.
Sócrates: Exata m e n t e. Be m, então, quand o você quiser saber co m o ir para céu, há algué m a que m
pergu n tar?
Bertha: Não sei.
Sócrates: Que pena! Que tema você disse que estuda aqui?
Bertha: Cristian is m o.
Sócrates: E o que é isso?
Bertha: Cristian is m o é a nossa religi ão.
Sócrates: Por que é cham a d o "cristiani s m o "?
Bertha: Porque funda m e n ta- se em Jesus, que é tam bé m cha mado "Cristo".
Sócrates: Este Jesus, você diria que ele foi um funda m e n t a l i sta?
Bertha: Certa m e n te não!
Sócrates: Ele é o seu especial ista em céu e em com o chegar lá?
Bertha: Se existe algué m que pode ser, esse algué m é ele.
Sócrates: M a is que as pesquisas, o Times ou os seus colegas estudantes?
Bertha: Co m certeza.
Sócrates: Assi m, se houvesse diferença de opini ão sobre esse assunto, Jesus seria a autori da d e mais
conf i á v e l?
Bertha: Be m, sim...
Sócrates: Ora, qual a resposta de Jesus para a nossa pergu nta de com o chegar ao céu?
Bertha: Oh, mas essa é uma questão mui t o contro v e rsa. Há mui tas escolas teoló g i cas cujas opini õ es
são diferentes, deno m i n a ções e igrejas diferentes e não há sequer uma sim p l es resposta com a qual todos
conco r d e m . E uma questão de interpretação; por isso, acredi to que devería m o s ser tão im parc i a is e
tolerantes quanto pos sível: liberdade de interpretaçã o, é nisso que insisto. O que Jesus quis dizer está
24 | P á g i n a
longe de ser sim pl es, e cada um precisa interpretá- lo a própr i a manei ra.
Sócrates: Oh, então esse Jesus não era um ho m e m com u m , um hom e m do povo, que falava com
pessoas sim p l es e para elas?
Bertha: Si m, era o que ele mais fazia.
Sócrates: Então ele não era um bo m professor?
Bertha: Si m, era tam bé m . Por que a pergu nta?
Sócrates: U m bom professor é aquele que verdadei ra m e n t e sa be se com u n i c a r, você não diria?
Al g u é m que se faça entender?
Bertha: Si m.
Sócrates: Be m, aparente m e n te, esse tal Jesus não era um pro fessor mui t o eficiente, já que os discí p u l o s
dele, da atuali da de, discor da m tanto sobre o eleme nt o mais imp o r ta nte da sua doutri na: com o ir para o
céu.
Bertha: Co m o eu disse, é uma questão de interp retaçã o.
Sócrates: M as certa m e n te há uma questão anteri or: o que ele dis se? Antes de interpretar m o s um
enunc ia d o, deve m o s conhecê- lo. Di ga-me, então: Jesus falou que havia mui tas manei ras de chegar ao céu
ou só uma? Falou que essa manei ra era uma entre muitas ou a única?
Bertha: Ah! Be m, ele disse: "Eu sou o cam i n h o, a verdade e a vida; ningué m vem ao Pai, a não ser por
mi m ". M as o que ele quis dizer com isto, eu acho que era...
Sócrates: Será que inicial m e n t e pode m o s entender o que ele disse, antes de investi gar m o s o que ele
pôde ter tido a intençã o de dizer?
Bertha: Que vantage m tería m o s se não entendêsse m o s? Por que repetir as suas palavras com o
papagai os, se não sabe m os interpretá- las correta m e n te? E assi m que os funda m e n ta l i stas faze m.
Sócrates: Di ga- me, você acha que devía m o s agir cienti f i ca m e n te por mei o de nossas atitudes, diante
de sua Escrit u ra?
Bertha: Oh, com certeza, porque são os funda m e n ta l i stas que não agem com cienti f i c i d a d e, além de
descon f i a re m da ciência, princi pa l m e n t e quand o aplicadas à Escri tu ra. Por que tem os de ouvi r as coisas
horrí v e i s que dize m sobre a crítica superi or...
Sócrates: U m a coisa de cada vez, por favor. Não estam os nem mes m o aci m a da baixa críti ca ainda,
apenas agrupa n d o dados. Pode m o s abordar os dados mais à frente? Esse tal Jesus disse que o cam i n h o
para o céu era largo e fáci l, e que mui t os o encontrar i a m?
Bertha: Na verdade, ele disse o contrári o. M as isso não quer dizer que...
Sócrates: Descu l p e- me por interro m p ê- la outra vez, mas po dem os reuni r os nossos dados pri m e i r o,
antes de interp retá- los? Tal ve z você esteja prestes a falar algu m a verdade, mes m o uma ver dade essencial;
entretanto, a verdade tam bé m tem uma estrutura e uma orde m, não tem? Não devería m o s conhecer a
coisa interpre tada antes de conhecer m o s a interp retaçã o?
Bertha: Exato.
Sócrates: Ag o r a, Jesus falou da questão defend i d a pelos funda mental istas, isto é, de nascer de novo?
Bertha: Sim.
Sócrates: O que exata m e n te ele disse sobre isso, no que se re fere a entrar no céu?
Bertha: Be m, ele disse: "Ni n g u é m pode ver o Rein o de Deus, se não nascer de novo".
Sócrates: Entend o, eu acho. Este "ver" aqui signi f i c a "entrar"?
Bertha: Ac h o que sim.
Sócrates: E "o Rei no de Deus" é a mes m a coisa que céu?
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Bertha: Ta m b é m imag i n o que sim.
Sócrates: Então Jesus e os funda m e n t a l i stas parece m dizer a mes m a coisa com referên c i a a esta
pergu n ta mais im p o rta n te. V ocê aparente m e n te não concor da com nenhu m a delas. O que você diz, em
vez disso?
Bertha: Eu digo que todo aquele que é sincero é aceito por Deus. O meu Deus não é um juiz, um
discri m i n a d o r.
Sócrates: E Jesus? O Deus no qual ele acredi ta é juiz? Ele faz discri m i nação entre salvos e
condenad os, de acordo com as doutri nas de Jesus?
Bertha: Be m, Jesus conto u mui tas parábo l as sobre o Julga m e n to Final, sim, mas... mas não tem com o
Jesus ter sido um funda m e n t a l i sta. Isso é certo!
Sócrates: Esta parece ser a sua prem i ssa inquesti o ná v e l e in contestá vel. Tud o bem, então, vam os
resu m i r a questão toda. Pa rece que tem os três prop osi ç õ es aqui, e uma delas, ao menos, deve ser falsa.
Pri m e i ra, que Jesus não é um funda m e n ta l i sta; segun da, que Jesus ensino u que é preciso nascer de nov o
para ir ao céu; e tercei ra, que o funda m e n t a l i s m o é a doutri n a que prega a necessi dade de um novo
nasci m e n t o para se poder ir ao céu. V ocê conse gue perceber que uma dessas proposi ç ões deve ser falsa?
Bertha: Si m.
Sócrates: Ag o r a, qual delas? Há três saídas deste trile m a: a sua, a que parece ser a dos
funda m e n ta l i stas e a mi n ha.
Bertha: Quais são elas?
Sócrates: Eis a sua saída, se não estou enganad o: você adm i te, pri meir o, que Jesus possi ve l m e n t e não
pode ser um funda m e n ta l i sta...
Bertha: Si m...
Sócrates: Em segun d o lugar, você disse que o funda m e n ta l i s mo ensina que é preciso nascer de novo
para ir ao céu.
Bertha: Si m.
Sócrates: Assi m, a sua concl usã o deve ser a negação de que Jesus ensino u esta doutri n a.
Bertha: Na verdade, você está certo. Eu real m e n te questi o n o a autenti c i d a d e do Quart o Evan ge l h o.
Sócrates: Eu não vou pergu ntar o que signi f i c a isso neste exato mo m e n t o. A segun da saída do trile m a
é a dos funda m e n t a l i sta, se não estou enganad o. Isto é, adm i t i r, pri m e i r o, que Jesus de fato ensino u a
doutri n a de que é preciso nascer de nov o para ir ao céu; e, segund o, que essa doutri n a é o
funda m e n ta l i s m o, daí a concl u são de que Jesus é um funda m e n t a l i sta.
Bertha: Certo. Qual é a terceira saída, a sua?
Sócrates: Eu não tenho razão algu m a para discorda r, seja das mi n has duas fontes, seja de você mes m a,
seja da sua Escrit u ra, já que não tenho a pretensão de conhecer mais que você ou mais que eles. Então,
aceito a min ha pri m e i ra pre m i ssa que é sua, que Jesus não é um funda m e n t a l i sta; a mi n ha segunda
prem i ssa é a da sua Escrit ura, que diz que Jesus ensino u a doutri na do "novo nasci m e n t o"; portan to,
concl u o que a doutri n a do "nov o nasci m e n t o" não é a mes m a do funda m e n t a l i s m o. Desse mod o, parece
que não fo m os bem- sucedi d os em defi ni r o term o que nos propuse m o s a defi n i r.
Bertha: Eh!
Sócrates: Por favor, você gostaria, então, de com eçar nova m e n te e fazer uma tentati va de defi n i r o
term o para mi m?
Bertha: Não.
Sócrates: Não?
Bertha: Não, eu não estou disposta a ter uma dor de cabeça, e sinto que uma se aprox i m a. Vo u para
casa tomar uma aspiri na, pois você deix o u min ha cabeça rodan d o com o um pião.
26 | P á g i n a
Sócrates: M e u Deus, a mes m a e velha história. Outra vez estou decepci o n a d o de amor.
Bertha ( Aguçando os ouvidos.): A m o r?
Sócrates: O amor à sabedor i a: a fil oso f i a. Vo cê deveria experi mentá- la uma vez. Pode funci o n a r
mel h o r que a aspiri na. M as prepare- se para decepções, pois acho que você não está. A coisa amada é
mui t o ilusóri a. Entretant o, assi m é o Deus, com o sem pre acredi tei. Espero estar aqui para aprender mais
sobre a busca desse Deus secreto.
Bertha: De algu m mod o, me sinto ofendi da.
Sócrates: Eu estava tentand o ajudar a nós dois.
Bertha: Be m, você não me ajudo u. M i n h as idéias estava m evo luin d o muit o bem até que você se
aprox i m o u e me conf u n d i u. V o cê me faz regredi r mais do que evol u i r.
Sócrates: Ora, a regressão pode signi f i ca r progresso.
Bertha: Co m o pode ser?
Sócrates: Quan d o estam os em um cam i n h o errado. E não há tantos cam i n h os errados na mente quantos
fore m os cam i n h os er rados para o corpo, no mun d o?
Bertha: M as para onde você se volta quand o fica perple x o?
Sócrates: Se posso dar uma sugestão: não seria uma boa idéia se você voltasse a consul tar o seu
especial ista?
Bertha: Jesus, você quer dizer?
Sócrates: Si m, estou interessado em saber mais sobre ele, se ele, de fato, é o especial ista. Não seria
possí ve l que ele estivesse certo sobre o cam i n h o do céu em vez das pesquisas, do Times ou de seus
colegas de aula? É apenas uma suposi ção, você entende, mas pare ce racio nal, ao menos, consi derá- la, não
parece? Pelo menos se vo cê é tão tolerante quanto afir m a ser?
Bertha: Em outro mo m e n t o, Sócrates.
Sócrates: Vo u ter que aceitar seu adia m e n t o, então, Bertha. Só espero que term i ne m o s nosso jogo
real m e n te sério algu m tem p o antes que eu seja afastado daqui, para o meu própr i o bem, e algu m tem p o
antes que você saia daqui, para o seu própri o bem.
Bertha: Sair daqui?
Sócrates: Para onde os nossos cam i n h os nos leva m após a mor te, eu não sei. Pensei que soubesse onde
o meu me levaria, mas acabo u que eu estava bem errado. Espero que isso não aconteça com você ou algo
até pior. Antes de nos arriscar m o s em um cam i nho descon he c i d o, seria prudente apenas consultar um
mapa, e, se esse Jesus de que m você fala declara que oferece esse mapa, eu quero muit o vê-lo. Poderia
me falar mais sobre ele, em breve?
Bertha: Tal ve z amanhã, Sócrates.
4
Doces confissões
Sócrates e Bertha Broadmind encontram-se nos corredores da Escola de Teologia Havalarde.
Bertha: Be m, Sócrates, aqui estam os, pront os para a sua pri meira aula na Escola de Teol o g i a
Haval ar d e. Está nervoso?
Sócrates: Diante da expectati v a de aprender? Si m, natural m e n te, com o sem pre estou; à semel ha n ça de
um ho m e m fam i n t o diante da possi bi l i d a de de com er.
Bertha: Se você é mes m o Sócrates, então está longe de se sentir fam i n t o, pois é tido com o um dos
ho m e ns mais sábios do mun d o.
Sócrates: Si m p l es m e n te porque sei que estou fam i n t o. Se me conhece, então deve saber o enig m a do
27 | P á g i n a
orácul o que me torno u o que sou. Le m b r a?
Bertha: É claro que me lem br o. O orácul o declaro u- o com o o ho m e m mais sábio do mun d o porque
você, por si mes m o, reco nheceu que nada sabia.
Sócrates: Não, não é bem assi m....
Bertha: M as é o que Platão diz na Apologia.
Sócrates: Não, não é. Eu li o relato. E claro que está um pouco enfeitad o, mas ele é mais preciso que o
mod o com o você o coloca.
Bertha: Co m o?
Sócrates: Por quatro razões: (1) eu não recebi a mensage m do orácul o, mas sim o meu ami g o
Quero f o n t e. Ele consul t o u o orácu lo a meu respeito e eu recebi a mensage m por inter m é d i o dele. Ac h o
que foi a manei ra de a divi n d a d e testar a min ha conf i a n ça no meu ami g o, bem com o nela mes m a, ao
menos essa é a min ha su posição; (2) o orácul o não revel o u que eu era mais sábio que qual quer um,
apenas que ning ué m mais era mais sábio do que eu. In terpretei isso da segui nte for m a: qual q uer pessoa no
mun d o tam bé m podia alcançar uma sabedor i a igual a mi n ha, sim p l es mente ao aprender a única lição que
eu havia aprendi d o: que eu não sou sábio; (3) o orácul o não revel o u a causa, a razão, mas dei xou que eu a
descobr i sse, com o um enig m a. Co m o poderi a um hom e m com nenhu m a sabedor i a ser o mais sábio?
Passei o restan te da min ha vida à procu ra de um ho m e m sábio e, com o conseq üê n cia, desen v o l v i o assi m
cham a d o méto d o socráti c o. O enig m a do orácul o foi em si mes m o o própri o méto d o socráti c o: uma per gunta sem resposta. Eu tive que encont rar a resposta. Desse mod o, foi, de fato, o orácul o ou a divi n da de
do orácul o a orige m do que se cha m a fil oso f i a, e pelo cri m e de ser um filóso f o fui executad o com o um
ateu; (4) mi n ha resposta não foi que eu recon hec i a que não tinha conhec i m e n t o, mas que eu não possuía
sabedor i a algu ma, pois todos nós tem os certo conhec i m e n t o; a sabedor i a, no entanto, é um atrib ut o
divi n o. Só Deus é sábio, e ele deu ao ho me m a tarefa de ir em busca da sabedor i a — a fil oso f i a.
Bertha: M a g n í f i c o! Foi real m e n te um bocad o, Sócrates. Eu es tava errada nos quatro aspectos! A h,
faland o em bocad os, preciso com p r ar uma barra de choco l ate 14 antes da aula. Ve m cá, vou mos trar uma
coisa que aposto você nunca viu antes. Obser ve: eu colo co dinhei r o nessa máqu i n a e sai doçura!
Sócrates: Pode-se co m p r ar com dinhei r o a For m a da Doç u ra?
Bertha: Vo cê sabe o que eu quero dizer. A g o ra, pro ve isso!
Sócrates (Provando.): É real m e n te delici os o. Tal ve z eu passe a acredi tar em progresso, apesar de tudo.
Não tínha m o s nada igual na mi n ha época.
Bertha: O único proble m a é que eles são trem en da m e n t e en-gordantes e nós dois devería m o s di m i n u i r.
Sócrates: E por quê?
Bertha: Ora, porque estam os gordos, natural m e n t e.
Sócrates: M u i t o gord os relati v a m e n t e a que e para quê?
Bertha: Ora, para serm os consi dera d os bonit os, supon h o!
Sócrates: Na mi n ha época, as pessoas recho n c h u d as eram con sideradas as mais bonitas. Era m moti v o
de inveja, porq ue só os ri cos podia m se dar ao lux o de com i d as que engorda v a m . Co m o os padrões de
beleza muda m!
Bertha: A h, isso tam bé m é progresso, Sócrates, não só muda n ça de costu m es. Sabe m os por inter m é d i o
da medi c i n a moder na que a obesida de muitas vezes causa morte pre m at u ra, princi pa l m e n t e de vido a
doenças cardíacas. Não é saudá ve l ser gord o demais.
Sócrates: Eu não sabia disso. Vo cê real m e n te tem evol u í d o. As regras de saúde, ao contrári o dos
costu m es, não muda m, e você, me parece, deu um grande passo, ao aprendê- las. Por isso, não de vería m o s
comer chocol ate, se ele engorda, mas prati car a virtu de da moderaçã o, da tem peran ça e do autoco n t r o l e...
14
No original, candy Bar (ou vending machine), além de barra/tablete de chocolate, também designa a máquina que fornece bebidas, doces,
cigarros, selos etc, quando nela é colocada uma moeda de valor correspondente [N. do T.].
28 | P á g i n a
A questão é que não há uma boa tradução para sophrosyne15 em sua língua.
Bertha: Eu entend o, mas só hoje vam os esquecer as virtu des e com er, embo ra saiba m os que não
devêsse m os. Ven h a, está quase na hora de começar a aula.
Sócrates: M as a aula já começ o u para mi m, aqui mes m o. O seu últi m o co me ntár i o é mais doce até do
que a delici osa barra de choco l ate, porque pro m ete com i da para a alma se apenas o expe ri m en tar m o s.
Vo cê falou algo que sempre acredi tei ser im p ossí v e l, e adoraria investi gar isso para ver se é possí ve l,
apesar de tudo.
Bertha: M as perdere m o s a aula...
Sócrates: Se entrar m o s naquela salinha com os outros e assis tir m os a uma aula, aí sim perdere m o s
aula; ou seja, esta, que já es tam os tendo. V ocê não conhece o ditado que mais vale um pássaro na mão
que dois voand o?
Bertha: Si m, de certo mod o, acho que você é um educad o r mais interessante que o professor Nuan ce,
em todos os aspectos. M u i t o bem, o que deseja discuti r?
Sócrates: Eu sem pre acreditei e ensinei que todo o mal é resul tado da ignorâ n c i a, que é im p ossí v e l
conhecer de verdade o que é o bem e o que é o mal e, mes m o assi m, escol her o mal em vez do bem.
Entretant o, você afir m o u saber que o choco l ate não era sau dável para você, mas o escol heu, apesar disso.
Por isso, parece que você acabou de fazer o im p ossí v e l.
Bertha: Vo cê não acredi ta no mal, Sócrates?
Sócrates: E claro que acredit o. A palavra não existir i a se não signi f i casse algu m a coisa.
Bertha: Então, com o você expl i ca o mal? Por que o escol he m o s?
Sócrates: Quan d o acha m o s que ele real m e n te é bo m.
Bertha: Co m o a barra de choco l ate?
Sócrates: Si m. V ocê a escol he u porque era doce, e a doçura é boa ou parece boa, não é?
Bertha: Si m.
Sócrates: M as parecer e ser não são a mes m a coisa, são?
Bertha: Não.
Sócrates: E com o se cham a a facul da d e por mei o da qual faze mos distin çã o entre essas duas; isto é,
entre parecer e ser?
Bertha: Con hec i m e n t o, discerni m e n t o.
Sócrates: Então é a sua falta de conhec i m e n t o, que só consi de rou o que parece ser e não o que é de
fato, que respon de pela esco lha desse mal, por essa coisa que é prej ud i c i a l a você.
Bertha: Não, não está certo. Eu tinha plena consciên c i a de que o choco l ate não era saudável. Apesar
disso, o escol h i.
Sócrates: É o que parece. Va m o s analisar esse mistéri o: por que acha que fez o que disse que sabia não
ser correto?
Bertha: Sou apenas hum a na, Sócrates.
Sócrates: Eu deveri a ter imag i n a d o isso. V o cê não parece uma divi n d a d e, de jeito nenhu m .
Bertha: Então, sou im per fe i ta.
Sócrates: Esta é a sua expl i ca çã o por escol her o mal? A im per feição se iguala ao mal?
Bertha: Ac h o que sim.
15
Sophrosyne é uma palavra encontradiça nos escritos da Grécia antiga, principalmente nos de Platão. A palavra, em geral, é traduzida por
"moderação" ou "temperança"; busca de equilíbrio na vida diária. No Novo Testamento, a palavra aparece três vezes e tem o sentido de "bom
senso" (lTm 2.15) [N. do C.].
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Sócrates: Va m o s testar seu pensa m e n t o. Por exem p l o: essa arvorez i n h a aqui nesse vaso, você diria que
ela é im per fe i ta?
Bertha: Si m, porq ue ela é pequena e mirra da.
Sócrates: Vo cê diria que ela é daninha?.
Bertha: Não, ela só tem muit o para crescer.
Sócrates: Então, im per f e i çã o não é a mes m a coisa que mal.
Bertha: Não.
Sócrates: Então, qual é o eleme nt o que estam os omi ti n d o, se não é a ignorân c i a nem a im per fe i ç ã o? O
que expl i ca o mal? O que deve estar presente para que o mal tam bé m esteja? Qual é a causa do mal?
Bertha: É uma pergu nta mui t o difí c i l, Sócrates. Eu não sei.
Sócrates: Ac h o que você acabou de respon de r a esta pergu n ta difí c i l.
Bertha: O que quer dizer?
Sócrates: Quan d o você disse: "Eu não sei". A causa do mal é esta: a ignorân c i a.
Bertha: M as eu sabia que o chocol ate não era saudável para mi m.
Sócrates: Então por que o come u?
Bertha: Eu lhe disse: era doce.
Sócrates: M as a doçura é saudável, não preju d i c i a l.
Bertha: Si m.
Sócrates: Então você o com e u com o se fosse um bem aparente.
Bertha: M as eu tam bé m sabia que era de fato um mal para mi m. Eu tinha conheci m e n t o. Conhe ç o a
medi c i na moder na.
Sócrates: Isso é real m e n te um mistéri o.
Bertha: Eu até sabia que Deus não queria que eu fizesse isso, mas ainda assi m eu fiz. E prová ve l que
isso tenha sido pecado.
Sócrates: Ora, estam os analisan d o um mistéri o por mei o do outro. Esta palavra pecado, agora, creio
que não entend o.
Bertha: Ah, nem eu. Para dizer a verdade, prova v e l m e n t e ela seja um mito.
Sócrates: O pecado com o um mito?
Bertha: Eu penso que sim.
Sócrates: M as o que signi f i ca? Até mes m o os mitos têm signi f i ca d o.
Bertha: Signi f i c a desobedecer a Deus de mod o intenci o n a l.
Sócrates: E você acredi ta em Deus?
Bertha: Em algu m tipo de Deus, sim.
Sócrates: E você acha que esse Deus deseja que você cuide de seu corpo?
Bertha: Si m.
Sócrates: Então, para você, comer com i das gordu r osas é deso bedecer à vontade desse Deus, não é?
Bertha: É.
Sócrates: Ta m b é m é um pecado. Assi m, o pecado não é um mito; ele existe, e acaba m os de ver um.
Bertha: Foi só um pecadi n h o, entretant o.
30 | P á g i n a
Sócrates: Essa arvorez i n h a é bem pequena, mas ainda é uma árvore, não é?
Bertha: Si m.
Sócrates: Por isso, um pecadi n h o ainda é um pecado e nada mais.
Bertha: É verdade.
Sócrates: M as você disse que o pecado era um mito.
Bertha: Eu acho que eu quis dizer que Deus era perdoa d o r. Eu creio que Deus me aceita com o sou. E
por isso que me aceito co mo sou tam bé m.
Sócrates: Quer dizer que ele não deseja que se torne mais sábia ou mel h o r?
Bertha: Não, eu não disse isso.
Sócrates: Então o que quer dizer?
Bertha: Que Deus nos ama a todos.
Sócrates: M as o que isso tem a ver com a concl usã o de que o pecado é um mito?
Bertha: O amor perdoa.
Sócrates: Oh, mas se eu digo "Eu lhe perdô o", é porque há al gu m a coisa para ser perdoada, não é?
Bertha: Certa m e n te.
Sócrates: Então o perdão pressupõe que o pecado é uma reali dade e não um mito.
Bertha: Eu pensei que você não acreditasse em pecado.
Sócrates: Eu disse que não pensava que com p r ee n d i a o seu signi f i cado. Co m o eu poderia descrer de
algo que eu não entendi a? A g o ra, se por acaso eu entendesse algo mais sobre o Deus no qual você crê, eu
poderi a com p r ee n de r algu m a coisa sobre o pecado no qual você não crê. Ac ha que seja assi m? Deve m o s
segui r esta linha de investi gaçã o?
Bertha: Si m.
Sócrates: Bo m, então esse seu Deus é perdoa d o r, você conf i r m a?
Bertha: Si m.
Sócrates: Ele perdoa pecados?
Bertha: Perdoa.
Sócrates: E os pecados são afrontas à sua vontade? Desobe d i ê n c i a?
Bertha: Si m. V ocê, apesar de tudo, co m p r ee n de o pecado.
Sócrates: Não, eu com p ree n d o o conceit o, mas acho que não entend o a reali da de.
Bertha: Ne m eu. Não com p r ee n d o, princ i p a l m e n t e, com o mui t os cristãos acredi ta m no castig o divi n o,
no infer n o e no julga m e n t o. Vo cê tem sorte de estar aqui na Haval ar d e, em vez de em outro lugar, com o
na Escola Bí b l i c a Bob b y Jo 16 , sabe, onde ainda ensina m esse tipo de coisa.
Sócrates: Por quê?
Bertha: Ora, porque é uma idéia horrí v e l, medo n h a; esta é a razão.
Sócrates: M as é verdadei ra?
Bertha: O quê?
Sócrates: Eu disse: é verdadei ra? Por que a surpresa? E uma pergu nta sim pl es.
Bertha: Não é com u m as pessoas daqui fazere m pergu n tas sim ples com o esta, Sócrates.
Sócrates: Então, é possí vel que eu esti vesse em mel h o r situação na Escola Bí bl i ca Bob b y Jo, apesar de
16
Referência à ultraconservadora Bob Jones University [N. do C.].
31 | P á g i n a
tudo. Ou talvez eu tenha sido enviad o com o um tipo de missi o nár i o para este lugar a fi m de ensiná- la a
fazer pergu ntas sim p l es com o esta.
Bertha: Tud o bem, Sócrates, vou respon d er a sua pergu n ta sim ples: não, ela não é verdadei ra.
Sócrates: Obri ga d o. E com o sabe?
Bertha: Porque eu creio que Deus é amor oso e perdoad o r.
Sócrates: E, portant o, ele tam bé m não é justo e puni d o r?
Bertha: Si m. Quer o dizer, não. Be m, eu não sei sobre o portanto. Sei o que você ia dizer: que, pela
lógi ca, isso não resulta da mi sericór d i a de Deus, que ele não é justo tam bé m. Sócrates: E então você ia
respon de r que...?
Bertha: Se conti n ua r m o s por esse cam i n h o, a conversa será em uma única direção: só com i g o;
portanto, não precisarei mais de você.
Sócrates: A mi n ha função é exata m e n te esta: tornar- me dispensáve l.
Bertha: Eu não sei mais o que ia dizer. Só sei que Deus é amoro so e isso basta.
Sócrates: Va m o s tentar outro cam i n h o, então. Co m o sabe que Deus é amor os o?
Bertha: Esta é a questão mais imp o r ta nte do cristiani s m o, de Cristo.
Sócrates: E com o você sabe a respeito desse Cristo?
Bertha: Pela Bí b l i a.
Sócrates: Então você acredita na Bí bl i a.
Bertha: Be m, na verdade, acho que na mai o r i a das vezes ela é mito.
Sócrates: Co m o o pecado.
Bertha: Si m. M as a Bí bl i a tem grandes lições morais, assi m co mo a sua mito l o g i a grega.
Sócrates: E sobre esse Jesus, a Bí b l i a conta o que ele disse?
Bertha: Si m.
Sócrates: E ele disse que Deus é amoroso e perdoad o r?
Bertha: Si m, disse.
Sócrates: Por que você não acha que isso é só mitol o g i a.
Bertha: Hu m! Não sei. Nu n ca pensei sobre isso, acho. Eu acre dito e pronto; isso é tudo! Eu concor d o
com ela nesse ponto.
Sócrates: Quer dizer que você concor da com a Bí bl i a quand o ela conco r d a com você, mas do
contrári o, não.
Bertha: Eu não discor d o da Bí b l i a, apenas interpret o algu m as partes com o mito.
Sócrates: As partes com as quais você não concor da.
Bertha: V o cê faz que isso pareça desonesto. Eu apenas a inter preto à luz das min has conv i c ç õ es
honestas.
Sócrates: M as você não poderia interp retar qual q uer livro e quaisq uer palavras de outro à luz das
conv i c ç õ es deles em vez das suas? Quan d o está interpreta n d o, você tem interesse em saber no que eles
acredi ta m, não tem? Então decide se acredita nisso ou não. M as, se você não sabe o que é isso, nem no
que a outra pessoa acre dita, com o pode saber se conco r d a ou discorda dela?
Bertha: Vo cê quer dizer que nós não deve m o s interpretar um livro à luz de nossas crenças?
Sócrates: E claro que não! Isso mistura duas coisas: interp reta ção e crença.
Bertha: Ah...
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Sócrates: Alé m disso, se você faz isso, por que então precisa da Bí bl i a?
Bertha: O que quer dizer?
Sócrates: Se ela concor da com você, é desnecessária; se não con corda, está errada. Por que ler um
livr o que ou é desnecessári o ou está errado? Para falar a verdade, por que ler ou ouvi r algué m? To dos
deve m ser ou desnecessári os ou errados.
Bertha: Isso é ridíc u l o.
Sócrates: E exata m e n te o que penso.
Bertha: Quero dizer, é ridí cu l o achar que eu estava fazend o isso.
Sócrates: M as se você interpreta as palavras de outra pessoa à luz das própri as crenças, é exata m e n te
isso que você está fazend o.
Bertha: Estou conf usa. O ponto princ i p a l é que Deus é perdoa d o r.
Sócrates: M as por que você acredi ta nisso?
Bertha: Se eu falar na Bí bl i a nova m e n t e, estare m os de volta ao nosso círcul o.
Sócrates: Be m, há algu m a outra razão? V o cê acha que é possí vel provar isso pela razão, sem a Bí b l i a
ou sem Jesus?
Bertha: Hu m . Há muit os argu m e n t os favorá v e i s à existênci a de Deus...
Sócrates: Al g u m deles pro va que Deus é perdoad o r?
Bertha: Va m o s ver. Há os argu m e n t os cosm o l ó g i c o s e os argu ment os da natureza. M as a natureza é
irreco n c i l i á v e l; assi m, estes argu m e n t os não consegue m provar que Deus perdoa, apenas que ele existe,
planeja e é a razão da natureza. E a história da Histó r i a é tão irreco n c i l i á v e l quanto a natureza, imag i n o.
Cri m e e castigo. Oh, o que dizer do argu m e n t o moral, o argu m e n t o da consciên cia? Este prova mais:
pro va que Deus é bom.
Sócrates: M as a consciê nc i a é tão imp i e d osa quanto a nature za, não é? Ela prova que Deus perdoa?
Bertha: Eu imag i n o que não.
Sócrates: Vo cê tem algu m argu m e n t o que pro ve que Deus perdoa?
Bertha: Não.
Sócrates: Então a única manei ra de saber que Deus perdoa é por mei o de Jesus Cristo e da Bí b l i a.
Bertha: Si m.
Sócrates: E essas duas fontes dize m algu m a coisa sobre o casti go de Deus, a justiça, o julga m e n t o e o
infer n o?
Bertha: Di ze m.
Sócrates: Todas as três coisas são ensinadas na Bí b l i a?
Bertha: Si m.
Sócrates: Jesus ensino u todas as três tam bé m?
Bertha: Be m, sim, em parábo l as, mas eu as interpret o com o...
Sócrates: M i t o?
Bertha: Si m.
Sócrates: Então, por que não interp reta os ensina m e n t os de Jesus, de que Deus é bond oso e perdoad o r,
com o mito tam bé m?
Bertha: Eu sim p l es m e n te não posso acredi tar que Deus se ja rancor os o.
Sócrates: Eu sei no que você acredi ta, o que não sei é por que acredita. Até agora, tudo o que imag i n o
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é que exata m e n te a mes m a autori da de, sua única base para acredi tar no perdão de Deus, tam bém mostra o
julga m e n t o divi n o. Não é verdade?
Bertha: Si m, mas...
Sócrates: M as você aceita a miseri c ó r d i a divi na e rejeita o jul gament o, por interpretar o segund o com o
mito.
Bertha: Si m.
Sócrates: Entant o, a única razão por que faz isso, deve- se ao fato de o julga m e n t o literal divi n o
contradi ze r suas crenças.
Bertha: É verdade.
Sócrates: E eu ainda não sei por que você acredi ta no que acredita.
Bertha: Eu sim p l es m e n te acredi to, e isso basta. E possí ve l que seja irraci o n a l, é possí vel que
escol ha m o s fazer coisas e acredi tar nelas por outras razões que não as raci ona is. V ocê nunca pen sou
nisso?
Sócrates: Co m o, por exe m p l o, comer aquela barra de choco l ate?
Bertha: Si m. Penso que você está errado ao ensinar que o mal é apenas conseqüên c i a da ignorân c i a.
Isso é racio nal i s m o, o qual pres supõe que a razão sempre governa, e não é assi m. Ela, mui tas vezes, se
encontra li m i ta da pelos desejos e pelas vontades.
Sócrates: Ac h o que você está me con ve n ce n d o exata m e n te dis so. Para falar a verdade, acho que vi
dois exem p l o s, bem esta ma nhã, exe m p l o s de algo de que eu duvi da v a até agora.
Bertha: Dois exe m p l o s?
Sócrates: Si m. A barra de choco l ate e as suas crenças. V ocê optou pelas duas não porque fosse m
saudá ve is ou verdadei ras, mas porque eram doces. A sua crença de que Deus perdoa, mas não julga, mais
se parece com uma barra de chocol ate, não é? É um pensa m e n t o agradá ve l, a idéia de que tem os apenas
metade da jus tiça para enfrentar ao nos relaci o na r m o s com Deus, que Deus re com pe nsa a bondade, mas
não pune o mal. Não é um pensa m e n to doce e agradá vel? E você não se sente atraída por ele do mes m o
jeito que se sentia pela barra de chocol ate?
Bertha: Sócrates, você é um verdadei r o irmã o, sabe? Pri m e i r o, vo cê me tirou da mi n ha aula, uma
sessão agradá ve l e conf o rtá v e l ouvi n d o o professor Nuan ce. Então me fez sentir mal com relação a com er
aquela barra de chocol ate, e agora você leva embora a mi n ha certeza e, talvez, algu m as das mi n has
crenças tam bé m? Vo cê não deu nada, Só crates, nada a não ser probl e m as; você só leva as coisas embo ra.
Sócrates: Si m, isso é verdade. M as isso tam bé m pode ser uma vantage m, quand o você precisa de
dietas em vez de com er, não pode? É possí vel que sua mente esteja repleta de crenças conf o r tá v e i s, assi m
com o seu corpo está repleto de com i d as gostosas. Neste caso, vou pres tar a você um servi ç o mais
im p o rta n te, tirand o suas gordu ras.
Bertha: Pensei que havia falado que as pessoas tinha m invej a dos gord os, em sua época.
Sócrates: As pessoas da mi n ha época não eram mais sábias que as do seu tem p o, Bertha. Tal vez
menos ainda, e pode ser que seja por isso que eu estou aqui. M as ainda não alcancei mui ta sabedor i a, e
acho que é hora de eu com eçar a estudar o seu ho me m sábio, Jesus.
Bertha: Se nos apressar m o s, pode m o s chegar à próx i m a aula em tem p o. V ocê vai ouvi r sobre Jesus lá.
Sócrates: Ele é o único que nos assegura que Deus é perdoad o r?
Bertha: Si m.
Sócrates: E é o mes m o que tam bé m fala da justiça divi na e do julga m e n t o?
Bertha: Si m, julga m e n t o sobre o pecado.
Sócrates: Preciso ouvi r sobre essa coisa que é o pecado. Eu acho que devo ter negli ge n c i a d o algu m a
coisa muit o im p o rta n te quand o relaci o ne i o mal com a ignorân c i a. Tal vez a verdade não seja que a
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ignorân c i a é a causa do mal, mas que o mal é a causa da ignorân c i a, por obsti na da m e n t e ignorar a
verdade- verdadei ra, co mo a evidên c i a médi ca sobre as barras de chocol ate, e a bíbl i ca so bre o castigo
divi n o.
Bertha: Vo cê está dizend o que não acha que Deus é perdoa d o r?
Sócrates: Certa m e n te não. Co m o poderi a saber isso? Eu não me declaro conhece d o r desse Deus de
vocês. Estou aqui para apren der, não para ensinar.
Bertha: Bo m, dei xe- me ensinar uma coisa, Sócrates, uma coisa da qual tenho certeza: Deus é amor,
não julga m e n t o. Sua voz é tranqü i l a e macia, não um terre m o t o.
Sócrates: Eu não vou lhe pergu ntar agora com o sabe disso, mas ainda quero saber: por que Deus não
pode ser tanto um quan to o outro?
Bertha: Co m o assi m?
Sócrates: O amor não executa os própri os julga m e n t os? O amor não tem olhos? O amor não parece um
terre m o t o, bem co mo uma voz tranqü i l a e leve? Para falar a verdade, o amor não é o mai or dos
terre m o t os?
Bertha: Eu não sei em que Deus você acredi ta, mas prefi r o um Deus de paz.
Sócrates: Oh, mas com certeza a pri m e i ra pergu nta não é o que você prefere, mas o que é a verdade?
Bertha: A pergu n ta é: que Deus eu escol h o para conf i ar.
Sócrates: M as você escol he suas crenças com o escol he sua bar ra de chocol ate?
Bertha ( Confusa.): Não, claro que não... Eu nem sei mais...
Sócrates: Ah, as palavras mági cas!
Bertha: M as estou certa de que perde m o s nossa aula.
Sócrates: M as não perde m o s todo o prop ósi t o de uma aula: aprender. Eu, pelo menos, aprendi algo
sobre a relação entre o mal e a ignorâ n c i a que eu não sabia antes. E acho que talvez você tam bém tenha
aprendi d o algu m a coisa que não sabia antes sobre a relação entre crença e o Deus no qual você confi a?
Ou, pelo me nos, sobre não saber o que você achava que sabia?
Bertha: Dev o adm i t i r que aprend i isso, a sua antiga e boa lição nú m er o um nova m e n t e. Obri ga da pela
aula gratui ta.
Sócrates: Oh, não foi de graça; ela nunca é de graça. Sem pre que aprende m o s algo nov o, paga m o s
com algo antig o.
Bertha: O que você quer dizer co m isto?
Sócrates: Deve m o s abando na r a ignorân c i a, o preco n cei t o e a falsidade se quiser m o s alcançar a
verdade. Para acrescentar m o s uma nova idéia na mente, é necessári o deixar de lado uma anti ga. Assi m,
todo conheci m e n t o é, a um só tem p o, subtraí d o e acrescen tado, perecí v e l e reno vá v e l. Obser ve, a mente
parece mais co m um hotel e eu sou apenas o seu portei r o, não um hóspede. A mi n ha tarefa li m i ta- se a
ajudar a li m p ar as salas para os hóspedes se aco modare m. A h, por falar em portei r o, lá está o meu ami g o
Flanagan outra vez! E lá vem ele nova m e n t e tão rápid o quanto antes. Con hece aquele ho m e m , Bertha?
Bertha: Que ho m e m?
Sócrates: Vo cê não viu aquele portei r o alto e grisal h o? Ele pas sou bem na sua frente.
Bertha: Não, Sócrates, eu acho que você está vendo coisas.
Sócrates: É claro que estou vend o coisas. Não sou cego.
Bertha: Opa! Ol ha a hora. Se eu não for agora, chegarei atrasa da para a pró x i m a aula tam bé m .
Sócrates, nos vem os amanhã, na aula de Reli g i õ es Co m p a r a das, do professor Shi ft [Evasi v us]. Ao n de
você vai agora?
Sócrates: Para um curso cham a d o Ciênci as da Reli g i ã o.
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Bertha: Oh, que bo m. M e u ami g o Tho m a s Kepti c [Ceticus] faz esse curso. Procure por ele sem falta e
diga- lhe olá por mi m. Vo cê vai gostar dele, Sócrates. Ele faz quase tantas pergu ntas quanto você. Tchau!
Até amanhã.
5
Os milagres podem ser provados?
Sócrates e Thomas Keptic estão saindo da primeira aula do professor Flatland [Tábua Rasa], do curso
de Ciências da Religião.
Thomas: E então, Sócrates, o que achou da aula? Foi bril ha nte, não foi?
Sócrates: Si m, real m e n te foi!
Thomas: Então, por que parece tão desaponta d o?
Sócrates: Au l as bril ha ntes quase sem pre me frustra m, não por serem bril ha ntes, mas por serem aulas.
Thomas: A h, acho que entend o. V o cê preferi r i a o métod o socráti c o, exato?
Sócrates: Si m, porq ue perco a oportu n i d a d e de pergu ntar ao professor algu m as questões que me tira m
a paz.
Thomas: E por que não fez nenhu m a pergu nta?
Sócrates: Ac hei que não seria aprop r i a d o interr o m p e r uma aula tão bril han te.
Thomas: V o cê está ironi za n d o?
Sócrates: De jeito nenhu m! A aula me ajudo u a entender um aspecto im p o rta n te dos 2.386 anos de
história do pensa m e n t o hu mano que perdi. Ac he i excelente ouvi- lo discorrer com bril han t is mo por
sécul os com o esses. Oh, gostei demais da aula dele, tudo certo, mas fiquei decepci o n a d o porque a questão
mais imp o r ta nte referente à relação entre ciênci a e reli giã o nem sequer foi tocada.
Thomas: Co m o pode dizer isso? V ocê não sabe coisa algu m a do que aconteceu nesses 2.386 anos. O
professor Flatlan d abor dou todos os desenv o l v i m e n t o s imp o r ta ntes.
Sócrates: Pode ser que sim, mas a questão de que senti falta não tem a ver com desenv o l v i m e n t o.
Refi r o- me à verdade. Certa mente, é mais im p o rta n te saber se o que algué m diz é verdadei r o ou falso, que
saber quand o ou para que m disse.
Thomas: Tenh o certeza de que o professor estaria disposto a discuti r qual q uer questão com você,
Sócrates. Tal ve z, mais tarde, no decorrer do curso.
Sócrates: Espero que sim.
Thomas: V o cê não parece muit o esperanç os o.
Sócrates: Para ser franc o, acho pouc o prová ve l que mi n ha ex pectati v a se cum p r a.
Thomas: Por quê?
Sócrates: Porque essa expectati v a depende de dois aconteci ment os pouco prová v e i s: o professor
mudar o méto d o de aula, de expositi v a para discursi v a, e perm i t i r que eu per m a ne ça na sala até que ele
queira.
Thomas: Perm i t i r? Não entend o. Que m...?
Sócrates: Ora, o professor está lá agora! Será que ele me perm i t i r i a abordá- lo com mi n has indagaç ões
agora? Isso não é proi b i d o aqui, é?
Thomas: E certo que não!
Sócrates: Eu espero que não. Co m o poderi a ser proi b i d o pedir ajuda para encontrar a verdade? Ah,
professor Flatlan d!
Flatland: Si m?
36 | P á g i n a
Sócrates: A d m i r e i a exposi ção que você acabou de fazer sobre a história das opini õ es concerne n tes à
relação entre ciência e reli gião. M as tenho uma pergu n ta intri ga n te, e espero que você possa me ajudar a
respon dê- la.
Flatland: Terei prazer em tentar. Olá, Tho m a s!
Thomas: Olá, professor. Gostari a que você conhecesse meu ami g o, Sócrates.
Flatland: Que belo traje! Olá, "Sócrates".
Sócrates: Olá!
Thomas: Sócrates, o professor Flatlan d já respon de u a mais pergu n tas min has do que de qualq ue r outra
pessoa. Estou certo de que será capaz de respon d er às suas.
Flatland: Este é um elogi o e tanto, Tho m as, mas, na verdade, na situação atual, penso que mi n ha
funçã o é mais fazer que res ponder a pergu n tas.
Thomas: Isso é verdade, professor. Antes de fazer seu curso, eu era ingên u o e acredita va em todo tipo
de coisas, até em mi lagres.
Sócrates: M i n h a pergu n ta é exata m e n te sobre isto, professor: mila gres. Crei o ser esta uma questão até
mais im p o rta n te que qual q uer uma das mui tas que você abord o u em sua exposi çã o, com p l eta com o foi.
Os milag res acontece m mes m o? E com o saber se eles de fato aconte cem ou não? Co m o é possí vel
encontrar a verdade sobre este assunto?
Flatland: Obser va ç õ es muit o boas, Sócrates. Toda v i a, penso que já abordei quase com p l eta m e n t e as
questões levantadas com a palestra de hoje.
Sócrates: Então, não entend i, porque não achei que ela tenha respon d i d o. A meu ver, sua exposi çã o
abord o u apenas a história das opi ni ões referentes à reli giã o e à ciênci a.
Flatland: Si m, e tam bé m sobre os mi lagres e o sobrenatu ral. Eu tentei mostrar com o a crença em
mi lagres sem pre surge em eras pré-cientí f i c as, desaparecen d o em eras cientí f i cas com o a nos sa. Pensei
que a questão fosse bem sim pl es e óbvi a.
Sócrates: M e u Deus, receio que você tenha um verdadei r o tolo nas mãos, professor, porq ue não vejo
com o concl u i r, pela lógi ca, que mui t os, hoje, não acredi ta m mais em mi lag res e que milag res nunca
acontece m.
Flatland: Não foi isso que eu disse.
Sócrates: Ah, bem. Pensei que havia entendi d o mal.
Flatland: Por quê?
Sócrates: Porque este argu m e n t o parte do pressupost o de que sem pre que a mai o r i a das pessoas dei xa
de acredi tar em algo, é por que nunca existi u — de fato uma suposi çã o mui t o estranha, porque signi f i ca r i a
que pode m o s mudar o mun d o apenas mudan d o nossas crenças e que pode m o s, com isso, até mes m o
mudar o passado.
Flatland: M u d a r o passado?
Sócrates: Si m, caso você afir m e que os mi lagres nunca aconte cera m no passado porq ue aqueles que
crêe m na ciência, no presen te, deixara m de acredi tar neles.
Thomas: Sócrates, que indel i ca de za. V ocê está fazend o que os argu m e n t o s do professor pareça m sem
senti d o.
Sócrates: Eu pretend i a fazer o contrári o: afastá-lo nitida m e n te da insensatez, sem envo l v ê- lo nisso.
Flatland: Obri ga d o, Sócrates. Não, este não é argu m e n t o meu, é da ciênci a. Não é só a mudan ça de
opi ni ões que tem desacred i ta do os mi lagres, mas o progresso na ciênci a; ela lida com fatos, não com
opi ni ões.
Sócrates: Entend o. Então a ciênci a não confi r m a os milag res?
Flatland: Não, não confi r m a!
37 | P á g i n a
Sócrates: Que ciênci a?
Flatland: Ah n?
Sócrates: Que ciênci a não conf i r m a os mi lagres? E com o? Por mei o de que experiê n c i a, descoberta ou
pro va? Que cientista fez essa descoberta e quand o?
Flatland: Oh, na verdade é quase uma mult i d ã o de pergu ntas.
Sócrates: Si m, e então?
Flatland: M as é claro que não pode m o s apontar uma única descoberta cientí f i ca que desapro v e os
mi lagres...
Sócrates: Então, você não consegue apontar uma única desco berta cientí f i ca que desapro v e os
mi lagres e mes m o assi m diz que a ciênci a não conf i r m a os mi lag res?
Flatland: E mais que uma descoberta qualq ue r. E a atitude cientí f i c a com o um todo, o ambi ente
cientí f i c o de opini ão...
Sócrates: Pensei que esti vésse m os aci m a de uma sim pl es mu dança nas opi ni ões. Nós não estam os
agora regredi n d o ao raci ocí nio ilógi c o que você rejeito u? Eu imagi na v a que a ciência lidasse com fatos,
pro vas, experiê n c i as e descobertas especí f i c as.
Flatland: E lida.
Sócrates: Então, por favor, diga- me quais delas desapro v a m os mi lag res. Para começar, que ciênci a
desapro v a?
Flatland: A ciênci a em si.
Sócrates: Co m C mai úsc u l o?
Flatland: Si m, se você preferi r.
Sócrates: Não é uma questão de preferênc i a, porque me parece mais religi ão que ciência.
Flatland: Sócrates, per m i ta- me tentar expl i car: as pessoas costu m a vam acredi tar em mi lag res
sim pl es m e n te porque não conheci a m as verdadei ras expl i caç õ es cientí f i cas dos fatos naturais. Ag o r a que
as co nhece m os, não há mais necessidade de se acreditar em milag res. Por exem p l o, as pessoas de sua
cultura cria m em uma divi n d a d e enrai ve c i da a que m cha m a v a m Zeus, que fazia descer raios do céu, não
cria m?
Sócrates: Si m, algu m as.
Flatland: E tudo porq ue não conhec ia m energia elétri ca. Ag o ra que já se sabe o que real m e n te pro v o c a
o raio, ningué m mais acredita em Zeus. As pessoas costu m a v a m pensar que as doenças eram prov o ca das
pelos dem ô n i o s, até que descob r i ra m os ger m es; costu m a v a m pensar que o Sol fosse uma divi n d a d e, até
que a astro nom i a descobr i u que era um corpo gasoso.
Sócrates: Conseq üe nte m e n t e, ning ué m mais acredi ta em deuses?
Fladand: Não naqueles deuses, os deuses dos fenô m e n o s naturais.
Sócrates: Não entend o por quê. Ta m b é m não entend o por que a sua ciênci a os tem refutad o; por que
alguns não pode m acredi tar tan to em sua ciência com o em nossos deuses. To m e m o s, por exem p l o, Zeus:
se eu fosse Zeus, eu bem poderia usar a energia elétrica para atrair meus raios e trov ões. E se eu fosse um
dem ô n i o, poderi a mui t o bem usar os ger m es para pro v o c a r as doenças. E quanto ao Sol...
Flatland: Vo cê está faland o sério?
Sócrates: É claro que estou. Por que não?
Flatland: E ridí cu l o, princi pa l m e n t e para você, que é consi de rado um filóso f o da razão.
Sócrates: Por quê?
Flatland: Nós já não precisa m o s mais de deuses para expl i car a natureza.
38 | P á g i n a
Sócrates: E por isso os deuses não existe m? Não consi g o enten der com o isso se dá, pela lógi ca.
Flatland: Veja bem. To m e m o s, por exem p l o, A p o i o. A p o i o era um antig o sím b o l o para o Sol. Não
precisa m o s mais desse sím b o lo; faze m o s referênc i a direta ao Sol.
Sócrates: Te m certeza de que não era o contrári o, isto é, que o hom e m pri m i t i v o não via o Sol com o
um sím b o l o de A p o i o?
Flatland: M as nós sabe m os o que é o Sol: ele não é uma divi n dade; é um corpo gasoso; uma bola de
fogo.
Sócrates: E pro vá v e l que o Sol seja composto de gás. M as o que ele é agora é outra questão, não é? Se
o Sol fosse uma divi n d a d e, será que seu corpo não poderia ser com p o st o tam bé m de gás ou de fogo? Pode
ser que aqui l o que vem os não seja o Ap o i o em si, mas o seu corpo ou sua carruage m .
Flatland: Entend o. V o cê está usand o a disti nçã o aristotél i ca entre causas for m a i s e materi ais.
Sócrates: Cha m e isso do que você quiser, mas a disti nção é necessária, não é? U m poe m a, por
exem p l o, pode ser com p ost o de palavras, mas é transf o r m a d o em um poe m a, é um poe m a, e não apenas
palavras, não é? E você, professor, é feito de carne e ossos ou é carne e ossos?
Flatland: V o cê acredi ta mes m o que o Sol seja uma divi n da de cha m a da Ap o i o? Que dog m át i c o!
Quanta ingen u i d a d e! Que... metafísi c o!
Sócrates: Eu não sei se o Sol é ou não um deus, mas parece que você sabe. Log o, é você que é
dog m á t i c o. Ta m b é m é você o metaf ísi c o, porq ue afir m a saber qual é a verdadei ra essência do Sol: gás;
eu, no entanto, não sei.
Flatland: Não estou me declaran d o conhece d o r da metafí si ca, mas só da ciênci a. A ciência torno u os
deuses desnecessári os.
Sócrates: E por isso eles não existe m? Co m o pode saber isso, a menos que saiba tam bé m que qual q uer
coisa desnecessária não existe? Certa m e n te, não se trata apenas de uma coisa que não se pode saber, mas
é tam bé m algo que não é verdade. Existe m mui tas coisas desnecessárias, com o graça, beleza,
generosi da de, excesso de pêlos na face ou talvez este argu m e n t o.
Flatland: V o cê tem razão, Sócrates. Pode ser que a ciência não tenha refutad o os deuses, mas
certa m e n te ela tem dado expl i ca ções bastante apropr i a das da natureza sem eles. A q u i l o que vocês, povos
pri m i t i v o s, consi dera v a m sobrenat ura l, com o os trov ões e os raios, nós expl i ca m o s com o naturais.
Sócrates: M as nós não acháva m o s que os trov ões fosse m mais sobrenatu rai s que as tem pestades.
Flatland: M as acredi ta v a m em mi lagres, não acredita va m?
Sócrates: Si m, mui t os acredita va m .
Flatland: Co m o...?
Thomas: Oh, vam os passar para os milag res que real m e n te nos interessa m. Quand o as pessoas
discute m sobre se milag res real mente acontecera m, elas não pensa m em Ap o i o, mas em Jesus. Fale m o s
de coisas com o o nasci m e n t o envo l v e n d o uma virge m, a ressurrei çã o e o milag re da mul ti p l i c a çã o dos
pães.
Sócrates: Tud o bem! Eles certa m e n te me parece m mi lagres. En tão, professor, com o a sua ciência tem
expl i cad o estas coisas com o meros fenô m e n o s naturais?
Flatland: Ela ainda não chego u lá! E não conseg u i u expl i car todas as coisas tidas por mui t os com o
mi lagre, mas está chegan d o lá. A ciênci a ainda está na infân c i a e, no próx i m o mi lên i o, que m sabe o que
ela será capaz de expl i car?
Sócrates: Eu, certa m e n te, não sei. E você?
Flatland (Surpreso com a pergunta.): Ah... não, mas é certo que a ciência do futur o será a ciência do
presente, com o a ciênci a do presente é a do passado.
Sócrates: E com o sabe disso?
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Flatland: Ora, todo o mo v i m e n t o da ciência cam i n h a nessa direção, isto é, para o fi m dos milag res.
Sócrates: E você sabe que esse mo v i m e n t o vai conti n ua r na mes m a direção, ou seja, a erradi caçã o total
dos milag res.
Flatland: Be m, natural m e n t e não pode m o s saber ao certo o que nos reserva o amanhã...
Sócrates: Ora, pode m o s apoiar um argu m e n t o cientí f i c o sobre algo que não sabem os?
Flatland: Não.
Sócrates: Então a sua fé na futura erradi caçã o cientí f i ca dos mi lagres não é cientí f i c a em si, mas se
parece mais co m algo religi os o.
Flatland (Animado diante de uma nova linha de ação?}'. De cer ta for m a, você tem razão, Sócrates. Eu
acredi to, em term os reli gi o sos, em mui tas coisas: na ciênci a, em pri m e i r o lugar, mas tam bé m em
mi lagres. Surpreso? Ac re d i t o em mi lagres autênti c os e a ciência com o tal é um mi lagre. O verdadei r o
signi f i c a d o de milagre é "as som b r o", algo que pro v o c a senti m e n t o de espanto e de adm i ra çã o. Nesse
senti d o, o mun d o está repleto de milag res dos quais não nos dam os conta, mas aceita m o- los com o
naturais. Não precisa m o s que uma virge m dê à luz para term os um milag re, pois todo nas ci me nt o natural
já é um milag re.
Sócrates: Co m p r e e n d o. M as agora você está faland o de outra coisa; está mudan d o o sentid o da
palavra.
Flatland: E isso o inco m o d a?
Sócrates: Claro que me inco m o d a, porq ue acho muit o imp o r ta n te conhecer o signi f i c a d o de uma
palavra, o qual não se mod i f i c a, as sim com o acho im p o rta n te identi f i c a r os lugares em um mapa, saben do
que per m a nece m inalterad os. Co m o é possí vel usar um mapa cujos no m es e locali da des se altera m e se
mod i f i c a m a todo mo m e n t o?
Flatland: Então, vam os usar apenas aquela defi n i çã o de mi la gres que eu acabei de lhe dar.
Sócrates: M as não é isso que as pessoas entende m com o mila gre.
Flatland: É o que eu entend o e você está con versan d o com i g o e não com os outros.
Sócrates: Tud o bem, mas acho que há uma boa razão pela qual as outras pessoas não percebe m o
senti d o que você empresta aqui à palavra.
Flatland: Qual?
Sócrates: Vo cê confer i u a ela tal ampl i t u d e que a esvazi o u de sig nifi cad o. Pela sua defi n i çã o, tudo
pode ser mi lag re. No entanto, se tudo pode ser visto com o mi lagre, então nada é mi lag re. Não há nada
que contraste com milag re. A meu ver, ele se torna um sinôni m o de tudo e não um tópi co sobre o qual se
pode dizer algo interessante.
Flatland: M as você não entende, Sócrates? Tod o nasci m e n t o é um milag re, cada coisa é um milag re;
entretanto, a fam i l i ar i d a d e com as coisas nos cega. Se todo nasci m e n t o envol v esse uma vir gem, nós
cham a r í a m o s os nasci m e n t os envo l v e n d o não-virge ns de miracu l o s os. Se os rios fosse m de sangue em
vez de água, diría m o s que um rio de água é miracu l o s o. Vo cê não entende o meu ponto de vista, não vê o
que eu vejo, o que estou tentand o mostrar?
Sócrates: Na verdade, eu entend o e até concor d o. O que não aceito é a for m a com o você empre ga a
palavra. Todas as coisas são mara v i l h o sas, mas nem todas são mi lagres.
Flatland: Pode m o s empre ga r as palavras do jeito que quiser mos. A ling ua ge m é nossa serva, não
nosso mestre.
Sócrates: A h, eu não penso assi m. M as, de qualq uer jeito, não deverí a m o s, pelo menos, usar as nossas
palavras com o mes m o sen tido que os outros, se quiser m o s que eles nos entenda m?
Flatland: É claro que sim.
Sócrates: Então, deverí a m o s usar a palav ra milagre com o os outros a usam tam bé m. E, para eles, ela
não signi f i c a um mi lagre natural, mas sobrenatu ral.
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Flatland: M u i t o bem, imag i n e que eu adm i ta isso apenas para conco r d ar com você. No senti do popu l ar
de milag re, acho que na da é mila gre. M as, no meu mod o de ver, tudo é mi lagre.
Sócrates: Então você não acredi ta que milag res acontece m. Flatland: No sentid o popu la r, não. M as,
do mod o com o en tendo milag res, eles acontece m a todo mo m e n t o. E por isso que quero usar o meu
senti d o; a questão que desejo enfati zar é basica mente positi v a; isto é, que os milag res realmente
acontece m. Por que não nos concentrar m o s nisso, no meu sentid o positi v o?
Sócrates: Porque a mai or i a das pessoas conco r d a r i a com o seu sentid o positi v o, mas não com o
negati v o, aquele em que os mi la gres, em term os popul ares, não acontece m. Flatland: E então?
Sócrates: Deve- se ensinar às pessoas o que elas já sabe m ou o que ainda não sabe m?
Flatland: O que elas não sabe m.
Sócrates: E elas já sabe m o sentid o positi v o, mas não o aspecto negati v o que você enfati za.
Flatland: Exato.
Sócrates: E por essa razão que há necessi dade de ensinar- lhes o senti d o negati v o, e não o positi v o com
o qual concor da m .
Flatland: Não estou certo de que conco r d a m co m o meu sen tido positi v o. Ac h o que poucos real m e n te
o com p ree n de m .
Sócrates: V o cê acha que a mai o r i a das pessoas discor da r i a dele, a ponto de dizer "nós não nos
mara v i l h a m o s diante de nasci m e n t os com u ns", por exe m p l o?
Flatland: Não, mas as pessoas não prati ca m o que prega m. Elas poderiam dizer que se sente m
mara v i l h a d as, mas não dize m.
Sócrates: Então vam os fazê-las pensar nisso, usando todos os mei os. M as vam os tam bé m esclarecêlas, caso não saiba m, sobre o outro lado; isto é, que não há mi lag res sobrenatu rai s.
Flatland: Óti m o, vam os. M as eu pensei que você esti vesse defende n d o os mi lagres, os deuses e as
expl i caç ões sobrenatu rai s. E por isso que eu estava tão surpreso; você, com o a mai o r i a, defen dendo
crendi ces.
Sócrates: Só estou defende n d o o questi o na m e n t o. Ta m bé m não estou afir m a n d o saber se os mi lag res
acontece m ou não. Só questi o nei e conti n u o questi o na n d o sua certeza de que eles não acontece m.
Flatland: Já falei a razão; isto é, que era fáci l acreditar em milag res antes do surgi m e n t o da visão
cientí f i c a do mun d o. No mo m e n t o em que descobr i m o s que o mun d o pode- se expl i car natural m e n te por si
mes m o, que tem suas própri as leis racio nai s, que para m o s de vê-lo com o um conj u n t o de fases incertas
cujo mo v i m e n t o segue o desejo de deuses arbitrári os e im pre v i s í v e i s, dei xa m o s de acreditar em mila gres.
E exata m e n te este o curso da Histór i a.
Sócrates: Oh, agora acho que entend o. Vo cê acha que não há milag res porque o mun d o tem suas
própri as leis naturais intrí nse cas que a ciênci a se encarrega de desven dar. Flatland: Si m. Sócrates:
Não.
Flatland: O que signi f i c a "não"?
Sócrates: Que o contrár i o é verdade; isto é, que as leis naturais coopera m para que os milag res
aconteça m mais do que os im pe de m. Flatland: E com o consegue chegar a isso? Sócrates: Só pode
haver objeções a essas leis ou a esses mi lagres se houve r a crença em um mun d o que se sustenta por si
mes m o, em um mun d o de leis naturais inerentes. O sim pl es conceit o de uma obje ção à lei natural já
pressup õe o concei to de lei natural. Em não ha vend o leis naturais, não há objeções sobrenat ura is, não há
mi lagres.
Flatland: Assi m, panteístas e ateístas não pode m acredi tar em mi lagres, então.
Sócrates: Exata m e n t e. Os ateístas, porque, para eles, não há sobrenatu ral; os panteístas, porq ue não há
natureza. Para os ateus, não há Deus fora da natureza; já, para os panteístas, não há natu reza fora de Deus.
E o conceit o de mila gre envo l v e o conceit o de um Deus de fora, intro m e t e n d o- se na natureza.
Flatland: Eu entend o. Toda v i a, não sou ateu, nem panteísta e ainda assi m não acredi to em milag res.
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Acre d i t o na orde m natural das coisas, que a crença pode reconhecer os mi lagres, com o você diz, mas ela
não os induz.
Sócrates: É verdade. M as eu ainda não sei por que você não acredi ta em milag res, princ i p a l m e n t e
porque sua crença na natu reza, pelo menos, os concebe.
Flatland: Eles contradi ze m a ciência.
Sócrates: É isso que quero saber: com o contradi ze m a ciência?
Flatland: Ora, a ciência nos diz que coisas com o nasci m e n t os envol v e n d o virgens sim pl es m e n te não
acontece m.
Sócrates: E ela nos diz o que sempre acontece ou o que acon tece só às vezes?
Flatland: O que quer dizer?
Sócrates: As leis da sua ciência infor m a m o que de fato acon tece ou o que pode acontecer?
Flatland: Não tenho certeza se entend o a pergu n ta.
Sócrates: As leis de sua ciênci a são com o as leis da M ate m á t i c a? Elas são necessárias ou são
descri ç ões de com o as coisas acontece m no mun d o físico?
Flatland: A últi m a.
Sócrates: E as coisas nunca pode m ser diferentes na M ate m á tica, pode m? Dois mais dois pode m vir a
ser cinco amanhã?
Flatland: Não.
Sócrates: M as o que acontece no mun d o físico pode ser dife rente, não pode? O Sol pode parar de
bril har amanhã, ou expl o d i r, ou você pode morrer.
Flatland: Sim.
Sócrates: Então pode haver exceções às leis da ciência, os milag res.
Flatland: Não, os milag res são ilógi c os.
Sócrates: Eu achei que tínha m o s acabad o de fazer a diferença entre as leis da lógi ca e da M ate m á t i ca e
as leis da natureza.
Flatland: Tal ve z não tenha m o s entend i d o um ao outro.
Sócrates: Va m o s tentar de outra for m a. Vo cê não pode nem mes m o imag i n ar uma exceção às leis da
lógi ca ou da M ate m á t i ca, mas pode conceber exceções para as leis da natureza.
Flatland: Co m o assi m? Dê um exe m p l o.
Sócrates: M u i t o bem. E im p ossí v e l imagi na r um hom e m atra vessar uma parede e não atravessá-la ao
mes m o tem p o, não é?
Flatland: É.
Sócrates: M as pode- se imag i n a r um hom e m atravessan d o uma parede, não se pode?
Flatland: E claro que não. Não se pode atravessar paredes.
Sócrates: Não, mas pode m o s imagi na r isso, não pode m o s? Pode mos escrever sobre isso. Pode m os ter
vontade de atravessar paredes.
Flatland: Si m. M as não mais que dois mais dois são igual a cinco.
Sócrates: Não faze m os isso por causa das leis físicas e não de vido às leis da mate m á t i ca ou da lógi ca,
não está certo?
Flatland: Si m.
Sócrates: M as a razão pela qual pode m o s ou não atravessar uma parede, justi fi c a- se pelas leis da
lógi ca. É a mes m a razão pela qual não é possí ve l atravessar e não atravessar ao mes m o tem p o uma porta
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aberta.
Flatland: Oh, eu entend o. Tud o bem, e daí?
Sócrates: Os mi lagres contrad i ze m as leis da física, mas não as da lógi ca. Se um ho m e m ali m e n ta 5
mi l pessoas com cinco pães, ele não ali m e n ta, ao mes m o tem p o, 5 mi l pessoas com 55 pães. M es m o os
mi lagres deve m obedecer às leis da lógi ca.
Flatland: Ai n d a não entend o a im p o rtâ n c i a da distin çã o.
Sócrates: Ela torna os mi lagres possí ve is em vez de im p ossí v e i s. Imag i n e, eu ainda não sei se eles
acontece m ou não. M as se eles fosse m contrári os às leis da lógi ca, se fosse m tão ilógi c os quanto você
parece pensar, então podería m o s estar certos, já de antem ã o, que eles nunca aconteceri a m.
Flatland: Ai n d a assi m, contradi ze m as leis físicas.
Sócrates: M es m o isso não é com p l eta m e n t e certo, eu acho.
Flatland: Por quê?
Sócrates: Porque recon he ce m o s que as leis da física eram ape nas declarações sobre com o as coisas de
fato acontece m nor m a l mente, não recon he ce m o s?
Flatland: Si m.
Sócrates: Neste caso, os mi lagres seria m aqui l o que é extraor dinári o, inco m u m .
Flatland: Não, mais que isso: orquí d eas negras são inco m u n s, mas orquí deas que fala m são um
mi lagre.
Sócrates: Boa distinçã o. Tud o bem, supon d o que fosse assi m, um mi lagre seria com o um dinhei r o
extra que aparece em um extrato de com p r o v a n t e bancári o. Este não seria diferente do sal do, mas apenas
se somari a a ele. Ou com o ali m e nt o extra colo cado em um aquári o de pei xe- dourad o ou com o o perdão
do rei a um prisi o nei r o que foi condena d o pela corte real. As leis da corte, as leis da vida no aquári o, as
leis da contabi l i d a d e não se contra dize m pelo acrésci m o, apenas se soma m. Co m os milag res seria do
mes m o jeito, não seria? Sem di m i n u i ç õ es das leis naturais, mas acrésci m o s.
Flatland: Não, eles seria m di m i n u i ç õ es.
Sócrates: Por quê?
Flatland: Porque os mi lagres avilta m a integri d a d e da natureza. U m a natureza que Deus precisa estar
consertan d o e modi f i c a n d o não é tão magn í f i c a e perfei ta quanto uma na qual ele não interfere.
Sócrates: Entend o. Quer dizer então que a natureza, para ser magn í f i c a, glori osa e perfei ta, precisa ser
auto- sufici en te?
Flatland: Para ser ela mes m a, ter sua própri a identi da de, sim!
Sócrates: Vo cê diria que um mari d o intenta contra sua esposa ao ter relações sexuais com ela?
Flatland: É claro que não.
Sócrates: M as não são milag res com o o Pai Deus fecun da n d o a M ãe Natureza com a própr i a vida?
Co m o eles poderi a m então pre judi car a natureza? Para dizer a verdade, isso não a com p l etar i a?
Flatland: Eu não acho que a analog i a se sustente. Os hom e ns pode m valori za r e amar as mul he res,
todav i a os sobrenatu ral i stas não conseg ue m real m e n te amar e valor i zar a natureza; unica m e n te os
natural istas consegue m.
Sócrates: Ac h o que é exata m e n te o contrári o; para mi m, somen te os sobrenatu ral i stas consegue m amar
e dar valor à natureza.
Flatland: Quê? Por que razão?
Sócrates: Pela mes m a razão que unica m e n t e aqueles que co nhece m outra líng ua além da sua, ou outro
país além do seu sa bem valor i zar o que é seu, ao contrár i o; e pela mes m a razão que somente os que
enfrenta m a morte sabem dar valor à vida.
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Flatland: Vo cê conti n ua fazend o analog i as. Não acho que elas tenha m sentid o.
Sócrates: O que dá senti do às analog i as é o princí p i o do con traste. Só se dá valor a uma coisa pelo
contraste. Esse princ í p i o não é verdadei r o?
Flatland: É claro que é.
Sócrates: Be m, então, se natureza quer dizer sim p l es m e n t e "tudo o que existe" — bem, tudo o que
existe é apenas um tópi co pelo qual pode m o s sentir mui t o amor ou pai xão, certo? Signi f i ca sim p l es m e n t e
"tudo" e esse "tudo" não tem indi v i d u a l i d a d e, não tem personal i da de.
Flatland: E claro que o tudo tem indi v i d u a l i d a d e.
Sócrates: Si m, cada coisa tem. Cada única coisa. Cada pedra, porque existe m outras pedras, mas não
natureza, caso não haja o sobrenat ura l.
Flatland: Veja bem, penso que estam os nos desvian d o de ques tões real m e n te im p o rta n tes.
Sócrates: Eu tinha esperanças de que esti vésse m os nos vol ve n do a elas. M as quais são as questões
sobre mi lagres que você real mente acha im p o rta n tes? Pensei que a questão im p o rta n te fosse se eles eram
verdadei r os, se eram reais.
Flatland: Tal ve z sim, mas insisto em que os mi lagres não são a essência da religi ã o.
Sócrates: De que reli giã o?
Flatland: De qualq uer reli giã o.
Sócrates: A sua, por exem p l o?
Flatland: Si m.
Sócrates: E a sua é o cristian is m o?
Flatland: Si m.
Sócrates: Sua religi ão fala em milag res?
Flatland: Si m.
Sócrates: M as
per m a ne cer i a m?
você
acha que eles pode m
ser eli m i n a d o s
e todos
os funda m e n t os
ainda
Flatland: Si m.
Sócrates: Que mi lagres são esses?
Flatland: Ora, a Encar na çã o, a Expi açã o e a Ressurrei çã o, por exe m p l o.
Sócrates: O que signi f i c a m estas palavras?
Flatland: Oh, entend o. Sócrates não sabia disso, sabia? Tud o bem, é um bo m exercí c i o. Signi f i c a que
o supre m o Deus se torno u hom e m, morreu e ressuscit o u para nos salvar do pecado, da morte e do infern o.
Sócrates: E você acha que isso não é im p o rta n te? Se isso acon teceu, se real m e n te aconteceu, com o
pode sim p l es m e n t e ser deixa do de lado, com o uma peça de roupa a mais? O que resta?
Flatland: As verdades eternas: com o viver; o amor.
Sócrates: Ah, mas todos já as conhece m. Se a sua reli giã o só se im p o r ta com as grandes tri vi al i d a d es,
por que se inco m o d a r com isso? Por que ser um cristão e não qual que r outra coisa?
Flatland: Ac h o que esta é uma questão que você teria que dis cutir com o professor Shift, no curso de
Reli g i õ es Co m p a ra das.
Sócrates: Eu queria discuti r isso com você, de preferên c i a, já que afir m o u ser um cristão. Eu ainda não
sei bem o que isso signi f i c a.
Flatland: E possí vel que nem eu saiba. Conti n u o pesquisan do... Ac he i que você apoiaria isso.
Sócrates: Si m, apói o, mas estou curi oso para conhecer as histó rias de mi lagres nos livros sagrados de
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sua crença. Obv i a m e n t e, parece mui t o im p o rta n te saber se elas são verdadei ras ou falsas.
Flatland: Ac h o que prova v e l m e n t e fora m mitos acrescentad os mais tarde ao texto.
Sócrates: A sua ciência pode pro var isso? Vo cês têm conheci ment o sufi cie nte de história e do assunto
para provar tal coisa?
Flatland: Ai n d a não muit o, mas estam os pesquisan d o. Contu d o parece mui t o prová ve l, porq ue foi o
que aconteceu na escritura da mai o r i a das outras reli gi ões: os mitos e os milag res fora m acrescen tados
mais tarde. Por exe m p l o, a históri a de M a o m é voand o para a Lua em um caval o mági c o foi clara m e n te
um acrésci m o que veio depois, porq ue o livr o sagrado origi na l do isla m i s m o, o Al c o r ã o, diz que há
apenas um mi lagre nessa religi ão: o própri o Al c o rã o. Já os milag res nas histórias secundár i as dos santos
budistas contrad i ze m a própr i a doutri n a de Buda, que nenhu m verdadei r o discí p u l o seu reali zar ia
mi lagres, porque isso rati fi ca r i a a crença na reali dade auto- sufi cie nte da natureza, que, segund o Buda, era
uma ilusão.
Sócrates: Então os milag res no livro sagrado do cristian is m o tam bé m são assi m? Eles contrad i ze m
mais algu m a coisa?
Flatland: Be m, na verdade, não; eles não.
Sócrates: Hu m . E mes m o assi m você diz que eles pode m ter sido acrescentad os mais tarde.
Flatland: Si m.
Sócrates: E por quê?
Flatland: Sócrates, todos nós deve m o s interpretar um livro, mes m o um livr o sagrado, à luz de nossas
crenças defen d i das com sinceri da de. Se não acredita m o s em mi lag res, então a expl i caçã o mais tolerante
das histórias milag r osas da Bí b l i a seria aceitá-las co mo mitos e sím b o l o s, e não rejeitá- las com o menti ras.
Sócrates: Pode ser que seja a interpretação mais tolerante, mas não é certa m e n te a mais clara e
honesta. E se não é honesta, tam bém não vejo com o pode ser, de fato, tolerante.
Flatland: Por que diz que ela não é clara e honesta?
Sócrates: Porque acho que você está conf u n d i n d o crença com interpretação.
Flatland: Não, só estou dizen d o que deve m os interp retar um livr o à luz de nossas crenças.
Sócrates: E eu estou dizend o que não deve m os fazer isso.
Flatland: E por que não?
Sócrates: Se você escrevesse um livro para contar aos outros quais eram suas crenças, e eu o lesse e o
interp retasse segund o as mi n has crenças, que seria m diferentes das suas, ficari a feli z?
Flatland: Se você discor dasse de mi m, por que não? Vo cê é li vre para tom ar as própri as decisões.
Sócrates: Não, eu disse que interpretei o livro segund o as mi nhas crenças. Por exe m p l o, se você
escrevesse um livr o contra os milag res e eu acreditasse em mi lag res e interp retasse o seu livr o com o uma
defesa dos mi lagres, você ficaria feliz?
Flatland: É claro que não, porq ue seria uma interpretação errada.
Sócrates: M es m o que fosse a mi n ha sincera crença?
Flatland: Oh, com p ree n d o. Então tem os de interpretar um li vro segun d o as crenças do autor e criticálo segund o as nossas.
Sócrates: Exata m e n te. Do contrár i o, estaría m o s imp o n d o nossa visão ao outro, e isso, com certeza, não
é tolerânc i a, mas arrogâ nc i a.
Fladand: Portanto, você está dizen d o que deve m o s interpretar as históri as de milag res nas Escri tu ras,
de mod o literal e não sim b ó l i c o?
Sócrates: Não sei. Eu ainda não as li.
Flatland: O que você está dizend o então?
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Sócrates: Que não pode m o s decid i r co m o interpretar os mi lagres consi deran d o as própr i as crenças,
mas unica m e n t e analisand o- os.
Flatland: Entend o. Nesse caso, nossa discussão de hoje sobre mila gres real m e n te não pode deci di r
nada, caso você não os tenha lido ainda.
Sócrates: Ela tem condi ç ões de deci di r se os mi lagres podem acontecer, mas não se eles, de fato,
acontecem. Pode deci di r se eles contrad i ze m as leis da natureza, as leis da lógi ca e se pode m o s ou não
deci di r se os mi lagres acontece m, sem olhar m o s as evidên c i as e lerm os os textos. E a resposta a estas
pergu n tas parece ser não. Assi m, acho que fize m os algu m progresso, embo ra não tenha m o s descobert o se
os milag res, de fato, acontece m ou não.
Flatland: Eu ainda conti n u o descrente.
Sócrates: Ah, eu tam bé m , princ i p a l m e n t e se um descrente for algué m que não sabe e nem mes m o sabe
se pode ou não saber. Por outro lado, se um descrente for algué m que acha que sabe, quand o na verdade
não sabe, se for algué m que acha que sabe que não sabe, então eu não sou um descrente. Porque esse tipo
de ceticis m o é dog m á t i c o demais para mi m.
Flatland: E você acha que este é o meu caso?
Sócrates: Não sei, professor. Se o chapéu servi u, ponha- o. Se não, jogue- o fora. Eu me apresento ao
professor não com o profes sor, mas unica m e n t e com o coletor intelect ual de suas suposi ç ões.
6
Como ter uma religião relativa
Sócrates e Bertha Broadmind estão saindo da primeira aula, no curso de Religião Comparada do
professor Shift, na Escola de Teologia Havalarde. Sócrates parece resignado. Preocupada, Bertha
dirige-se a ele.
Bertha: Qual é o probl e m a, Sócrates? Por que não fez nenhu ma pergu n ta, pois tenho certeza de que
estava chei o de dúvi das, com o de costu m e. Por que não falou nada? Obser ve i você e, no iníci o, parecia
interessado, mas, em segui da, se calou. O que acon teceu com suas fam osas pergu n tas?
Sócrates: Elas conti n u a m co m i g o, eu lhe asseguro. Eu estava esperan d o o mo m e n t o certo de me livrar
de alguns dos meus far dos, mas esse mo m e n t o nunca chego u.
Bertha: Não entend o. Por que você pensa assi m?
Sócrates: Porque, para mi m, o mo m e n t o de fazer uma pergu n ta é aquele em que existe algu m a
esperança de se encontrar uma resposta ou de se encontrar algué m que possa achar uma resposta. A f i n a l
de contas, o que mais é uma pergu n ta se não uma esperança expl í c i ta de resposta?
Bertha: M as o professor Shift é um dos mais célebres pesquisa dores do mun d o em religi õ es
com pa ra das. Se há algué m capaz de respon de r a suas pergu ntas, esse algué m é ele; no entanto, você es perou demais, e a aula acabou.
Sócrates: Disco r d o, Bertha. Eu prefi r o pensar que há mais espe rança de que você possa respon de r a
mi n has pergu ntas e que a mi nha aula não chego u ao fi m, mas está apenas começa n d o.
Bertha (Chocada.): Eu, Sócrates?
Sócrates: Si m, Bertha, você! V ocê ou outro aluno dessa aula.
Bertha: M as havia cerca de quarenta alunos! V ocê está dizen d o que qual q uer um de nós poderia
ensiná- lo mel h o r do que o professor Shift?
Sócrates: Ac h o mais prová v e l que sim.
Bertha: Pelo amor de Deus, por quê?
Sócrates: Pelo sentid o da palavra educação. Educam, cond uz i r para fora, fora da caverna, do
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precon cei t o e da ilusão. E a pri m e i r a e mais desastrosa ilusão, que sem pre pensei ser a mai o r ini m i g a da
edu cação, é a ilusão de que sabem os, quand o, na verdade, não sabem os.
Bertha: Oh, a sua lição mais im p o rta n te, a fam osa "douta ig norânc i a". Vo cê acha que Shi ft não
aprende u esta lição?
Sócrates: A mi m me parece que sim.
Bertha: Por quê?
Sócrates: Porque, para aprender m o s esta lição, precisa m o s atraves sar um portão estreito e, para fazer
isso, tem os de nos abai xar. Fazend o um trocadi l h o não muit o bom, aquele que não se abai xa se rebai xa.
M as o professor Shift não se rebai x o u; ao contrári o, ele se exalto u. Ele tinha tantas respostas que me
parecia não ouvi r as pergu ntas.
Bertha: Eu não acho que seja justo. Por que você pensa que ele, de fato, não ouvia as pergu ntas?
Sócrates: Vo cê ouvi u o que ele fez com as poucas pergu n tas que lhe fora m feitas?
Bertha: Ora, é claro que ouvi; achei que ele as respon de u de mod o bril han te.
Sócrates: Bri l ha n te em demasia, eu diria.
Bertha: Co m o pode algué m ser bril ha nte demais?
Sócrates: Ac h o que posso expl i car. Vo cê concor da que, para dar a que m pergu n ta a resposta esperada,
pri m e i r o é preciso ouvi r a pergu n ta?
Bertha: Natura l m e n t e.
Sócrates: E ouvi- la co m o coração e com os ouvi d os?
Bertha: O que você quer dizer co m "ouvi r com o coração"?
Sócrates: E preciso com p r ee n de r o caráter questionável da per gunta; isto é, a dúvi d a do questi o na d o r.
Bertha: Conc o r d o com o seu princ í p i o, mas você não acha que o professor Shi ft entende a incerteza?
Ele indu b i ta v e l m e n t e se de clara contrári o a todo dog m a t i s m o, sectaris m o e prov i n c i a n i s m o.
Sócrates: Si m, com certeza. Ele me faz lem bra r mui t o antig os conhec i d os meus: os sofistas. Eles
estava m quase certos de que não há certeza.
Bertha: Vo cê consi dera Shift um sofista? M as ele prega a im parcial i da de, e esse é seu tema favo r i t o em
toda aula.
Sócrates: Si m, mas ele tem uma visão bem li m i ta da quanto a ter uma visão ampl a, não tem? O ideal
não seria ter uma visão mais ampla sobre ter visão ampl a sobre tudo, tanto no que se refere a ter uma
visão ampla como no que diz respeito a ter uma li m i ta da? Isto é, ter uma visão ampl a tanto relati v a m e n t e
àqueles que conco r d a m com ele quanto aos que discor da m dele com referênc i a a dog m as, certezas e tudo
o mais?
Bertha: Ele está aberto a todas as religi õ es do mun d o!
Sócrates: À exceção daqueles crentes da própr i a reli giã o que discor da m do seu dog m a de que não há
dog m a, aos quais ele cha ma de "funda m e n t a l i stas". Ele de fato nunca fez oposição àquele indi v í d u o a
que m ele sem pre olha va com desprezo, você sabe. Tu do o que fazia era ofender, e essa atitude era um
apelo à ira, ao preco nce i t o e ao pro v i n c i a n i s m o, não à razão.
Bertha: Que indi v í d u o? Oh, você quer dizer, o Jerry Fall o u t [Falha]? 17
Sócrates: Si m, Shift diz que devería m o s ouvi r as outras reli giões em vez de criti cá- las, mas parecia
estar critica n d o esse tal de Fall o u t sem ouvi- lo.
Bertha: Be m, mes m o que ele não prati q ue total m e n t e o que prega, afinal que m o faz? Entretant o, você
tem de conco r d ar com o que ele prega, de todo o jeito.
Sócrates: Co m o posso conco r d ar com uma declaração contrad i t ó r i a?
17
Referência ao controvertido reverendo Jerry Falwell [N. do C].
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Bertha: Que declaração contrad i t ó r i a?
Sócrates: Ele prega que nós não devería m o s pregar. V o cê ouvi u as coisas desagradá v e i s que ele disse
sobre pregar a sua reli giã o às pessoas? Tud o me pareceu bastante enfado n h o.
Bertha: Be m, eu sinto que você não gostou do Shi ft.
Sócrates: M as eu não disse que não gostei dele. O que eu disse é que não tenho mui ta esperança de
que ele possa respon d er a mi nhas pergu n tas da for m a com o espero que você respon d a.
Bertha: Por que eu sei muit o menos que ele?
Sócrates: Não, porq ue você tem mais consciên c i a de que você não sabe. Ta m b é m porque você não vê
as pergu n tas com o oportu nidades de mostrar o quanto você sabe, com o ele fez.
Bertha: Eu quase não posso acredi tar que você ache o Shift re trógra d o. Ele é consi derad o um dos
professores mais liberais daqui.
Sócrates: O que você entende por liberal?
Bertha: Bo m, em reli gi ões com pa ra das, signi f i ca encarar todas as reli gi ões com o análogas.
Sócrates: E isso o torna liberal?
Bertha: Si m.
Sócrates: Não consi g o ver a relação.
Bertha: M as é tão sim p l es, Sócrates. Se você acredi ta que ape nas uma religi ão é verdade i ra, então crê
que todas as outras contrá rias a ela são falsas. Vo cê não entende isso?
Sócrates: Claro, entend o muit o bem, embo ra me pergu nte se o professor Shi ft entende. M as não vejo
com o o fato de algué m achar que uma idéia seja falsa signi f i q u e não ter visão ampl a a respeito. Co mo
conceber que algué m possa ter bons argu m e n t os para concl u i r que deter m i n a d a idéia seja falsa, a menos
que a escute pri m e i r o? E ouvi r uma idéia, mas ouvi- la de fato, não seria ter visão ampla?
Bertha: Si m, mas no mo m e n t o em que você concl u i que a idéia é falsa, não só dei xa de ter uma visão
ampla com o já deci di u rejeitá- la.
Sócrates: E você acha que isso não é bom?
Bertha: E claro. Toda li m i taçã o de concep ç ões é preju d i c i a l.
Sócrates: Tanto no final de uma investi gaçã o quanto no iníci o?
Bertha: Penso que sem pre devería m o s ter uma visão ampla das coisas.
Sócrates: E ter uma visão ampla signi f i c a busca constante?
Bertha: Si m.
Sócrates: Log o, tudo o que você busca é sem pre buscar mais, de preferênc i a a só encontrar. E que
você não deseja se pri var de uma visão ampla e, para isso, é preciso busca constante. No entan to, se você
não busca com o objeti v o de encontrar, não está bus cando de fato, está? Não haveria nada para buscar!
Bertha: Vo cê está me dei xan d o conf usa.
Sócrates: V o u dizer diferente m e n t e: Qual é a vantage m de uma visão ampla, o seu propósi t o ou a sua
final i da d e?
Bertha: Imagi n o que seja im pe d i r a estreiteza de visão.
Sócrates: E o mes m o que dizer que o prop ósi t o da vida é furtar- se da morte, ou que o do fri o é fugi r do
calor. Vo cê não me respon deu por que busca ter uma visão ampla e não uma li m i ta da.
Bertha: M as eu pensei que você soubesse mui t o bem por que, Sócrates. Sem pre consi derei você uma
das pessoas de mente mais aberta que já existira m.
Sócrates: E possí vel que eu não saiba muit o bem, com o você diz; entretant o, não sei se você conhece
bem a razão. A min ha per gunta tinha o prop ósi t o de descobr i- la. Qual é o propósi t o de se ter uma visão
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ampla para você?
Bertha: Supo n h o nunca ter dado muita atenção a isso, mas tenho certeza de que concor d o com você,
Sócrates, quanto à ques tão. E com o você respon de r i a a essa pergu nta?
Sócrates: M u i t o bem, vou dar min ha resposta, já que você não me dará a sua, sim pl es m e n te com o um
auxí l i o para que descubra a própri a. Vo cê, no entanto, precisa dizer se conco r d a ou não. O propósi t o de
uma visão ampl a é ter conheci m e n t o.
Bertha: M u i t o bom, Sócrates! Eu conco r d o, com certeza.
Sócrates: Então lhe pergu n t o: ter conhec i m e n t o de quê ?
Bertha: De tudo.
Sócrates: Da verdade, da falsi dade, das duas ou de nada?
Bertha: Das duas. De tudo!
Sócrates: Con hecer a falsi dade com o falsidade ou erronea m e n te acreditar que a falsi dade seja
verdade?
Bertha: Con hecer a falsi dade com o falsidade.
Sócrates: Em outras palavras, conhecer a verdade sobre a falsidade.
Bertha: Si m.
Sócrates: Então a única coisa que você deseja conhecer é a ver dade; a verdade sobre a verdade e a
verdade sobre a falsida de, mas não a falsi da de sobre as duas. Não está certo?
Bertha: Si m, está.
Sócrates: Vej o que tem os a mes m a defi n i çã o do que seja ter uma visão ampl a e do seu propósi t o.
Assi m com o uma boca aberta é um mei o cujo fi m é se fechar com bo m ali m e n t o e não com venen o, e
uma porta aberta é um mei o cujo fi m é per m i t i r que um hóspede desejado entre, e não um ladrão, da
mes m a for m a, uma visão ampl a das coisas é um mei o cujo fi m é conhecer a verdade sobre tudo e não a
falsidade.
Bertha: Não posso refutá- lo, Sócrates.
Sócrates: De preferênc i a, diga ser imp ossí v e l refutar a verdade. O Sócrates, você pode e deve refutar,
sem pre que eu não falar a verdade. E quand o eu proferi- la, não é o orador, mas sim o discur so que será
irrefutá ve l. Be m, agora que estam os de acord o sobre ter uma visão ampla, veja m o s se tam bé m
conco r d a m o s com o que é a verdade. Portanto, o que é a verdade, Bertha?
Bertha: Oh, obri gada, Sócrates, pela pergu n ta precisa e fácil.
Sócrates: Disp o n h a sempre.
Bertha: Eu estava brinca n d o.
Sócrates: M as eu não!
Bertha: Vo cê achou a pergu n ta fácil?
Sócrates: Eu conheç o poucas mais fáceis do que esta.
Bertha: Be m, então me diga, por favor, o que você acha que é a verdade, e eu digo se concor d o ou não.
Sócrates: M u i t o bem. Verda de é sim pl es m e n te dizer o que é. Se você me diz o que é, me diz a
verdade. O que poderia ser mais sim pl es do que isso?
Bertha: O que é falsi da de, então?
Sócrates: Se você me diz o que não é e diz que é, falou uma falsidade.
Bertha: E a mes m a coisa que uma menti ra, exato?
Sócrates: U m a menti ra é uma falsi da de intenc i o n a l. Eu tam bé m poderi a falar algo falso não
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deli berada m e n t e, mas por ignorân c i a.
Bertha: Certo, eu conco r d o. E daí?
Sócrates: Então, a verdade e a falsi dade se contradi z e m , não se contrad i ze m?
Bertha: E claro.
Sócrates: Portant o, se é verdade, por exem p l o, que há apenas um Deus e não mui t os, então é falso que
há mui t os deuses e não apenas um, não é assi m?
Bertha: Isso é lógi c o, eu supon h o. As contradi ç õ es não pode m ser ao mes m o tem p o verdade.
Sócrates: M as as reli gi ões se contrad i ze m umas às outras, não se contrad i ze m?
Bertha: E aqui que eu não sei se concor d o com você, Sócrates.
Sócrates: M as, com certeza, no exem p l o que acabei de dar, elas se contradi ze m . O mon o teí s m o e o
politeís m o se opõe m e, por essa razão, um deles pelo menos deve ser falso, não deve?
Bertha: Pode ser. M as todas as grandes reli gi ões do mun d o são mon o te ístas hoje. Pelo menos elas não
se contradi z e m .
Sócrates: Toda v i a não é verdade que algu m as dessas religi õ es acredi tam que esse Deus é uma pessoa,
um Eu, que tem uma vontade, en quanto outras não acredi ta m nisso? Foi isso que o professor Shift disse.
Bertha: É verdade que as reli gi ões orientais imag i n a m um Deus im pessoal, ao passo que as ocidentais
o concebe m com o uma pes soa; mas, com o disse tam bé m o professor Shi ft, essa é apenas uma diferen ça
em nossas idéias, mode l os, image ns mentais das palav ras. Todas essas image ns mentais são insufi c i e n tes,
você não concor da?
Sócrates: Eu conco r d o que todos os nossos pensa m e n t os são inco m p l e t o s para Deus, mas não acho que
todos seja m image ns mentais. Al g u ns são concei tos. Por exem p l o, pode m o s for m a r uma image m mental
de Zeus quand o dize m os que "Zeus é Deus"; en tretanto, não conseg u i m o s for m a r uma image m mental de
"uno" quand o dize m os que "Deus é uno".
Bertha: Sócrates, você já ouvi u a fábula dos cegos e do elefante?
Sócrates: Não.
Bertha: Be m, ela consiste em quatro cegos que nunca tinha m vis to um elefante e que se aprox i m a m de
um para senti- lo. O pri m e i r o tocou o rabo e disse: "U m elefante é com o uma min h o c a"; o segund o senti u
a parte lateral e disse: "Não, um elefante é com o uma parede"; o terceir o tateou as pernas e disse: "Não,
um elefante é com o uma árvore"; e o quarto pôs a mão na tro m b a e disse: "Tod os estão errados: um
elefante é com o uma grande serpente". Os quatro discuti ra m isso o dia todo. Co m as religi õ es do mun d o,
acontece o mes m o: elas dis cute m sobre Deus — o elefante. Sabe m o s tanto sobre Deus quanto sabia m os
quatro cegos sobre o elefante. Ac ha uma boa analog i a?
Sócrates: Não, eu não acho.
Bertha: Por que não?
Sócrates: Não acho que ela seja bem apropr i a d a à situação. Deus pode, na verdade, ser mui tas coisas
diferentes, co m o o elefante para os cegos, e é prová ve l que conheça m o s apenas uma delas por vez. Pode
ser tam bé m que conheça m o s apenas image ns ou analog i as das dife rentes coisas que Deus é, ou mes m o de
tudo o que Deus é, assi m com o os cegos usara m quatro analog i as diferentes para o elefante, sem perceber
que eram apenas analog i as. M as a questão sobre a qual falá vam os era se Deus tem ou não uma vontade. E
com o dois dos cegos discuti n d o sobre se o elefante tem ou não uma tro m b a. Quer cha me m isso de
tro m b a, quer de cobra, o elefante tem e não tem isso.
Bertha: As diferen ças entre as reli gi ões são da mes m a orde m para você?
Sócrates: Al g u m a s, sem dúvi da, parece m ser. Pri m e i ra, no caso de haver ou não algu m Deus: se os
ateus estivere m certos, todas as reli gi ões estão erradas. Segun da, caso o ateís m o esteja errado e haja
apenas um Deus ou mui t os: se os politeístas esti vere m certos, todos os mon o teístas estão errados.
Tercei ra, caso os politeístas esteja m errados e Deus tenha ou não um querer: se ele não tem, então todas
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as reli gi ões ocidentais que dize m que ele tem estão erradas. Quarta, sobre esse tal Jesus: no meu mod o de
entender, duas das três reli giões no mun d o ocidental que acredita m que Deus tem um querer, isto é, o
isla m i s m o e o judaís m o, não acredita m que Jesus é o M es sias ou o Fil ho de Deus, por mais que isso
signi f i q u e, mas a tercei ra acredita, e esta é a sua religi ão, o cristian is m o, eu acho. Desse mod o, parece
haver contradi ç õ es básicas entre a sua religi ão e o isla m i s m o, o judaís m o, as religi õ es orientais, o
politeís m o e o ateísm o. No caso de a sua religi ão estar certa, todas essas outras estarão erradas. É muit o
sim pl es. Não entend o com o você não consegue ver isso.
Bertha: Pode parecer sim p l es para você, mas a verdade não po de ser assi m tão sim p l es.
Sócrates: E por que não?
Bertha: Porque se é, então você deve ser um elitista e as reli giões são injustas.
Sócrates: E a sua prem i ssa é que não pode ser dessa for m a?
Bertha: Si m.
Sócrates: Posso lhe pergu ntar se há razões para isso ou se é sim plesm e n te uma questão de fé para
você, para a sua verdadei ra reli gião, oculta sob a fachada de outra?
Bertha: Si m, eu tenho razões. Todas as coisas hum a nas são basica mente iguais, Sócrates, por serem
todas finitas e im per f e i tas, misturas do bem e do mal: as for m as de arte, por exe m p l o, que tolice discuti r
qual é a mel h o r! Ou os sistem as políti c os — qualq ue r que funci o n e em um dado tem p o ou para uma
deter m i n a d a pessoa é consi derad o o mel h o r. E imp ossí ve l dizer que sim p l es m e n t e um seja mel h o r.
Sócrates: Enten d o. V o cê parece estar lidand o com um daque les siste m as políti c os, isto é, a
dem o c ra c i a, com o a verdade e a mel h o r, não no cam p o políti c o, mas no cam p o da religi ão. M as acho que
com p r ee n d o o que quer dizer sobre todas as coisas hum a nas serem basica m e n te iguais e relati v as.
Bertha: Bo m, então você tem a mes m a opi niã o?
Sócrates: Si m, exceto por dois detal hes: pri m e i r o, a reli giã o é da mes m a orde m da arte e da políti ca —
uma coisa hum a na?
Bertha: É claro que é uma coisa hum a na; é o centro da vida hu m a na. O que mais poderi a ser?
Sócrates: Por certo, o seu lugar de habitação é hu m a n o, mas e quanto a sua orige m, seria hu m a na ou
divi na? Ela foi inventada pelos seres hum a n os?
Bertha: Natura l m e n t e.
Sócrates: Pelo menos três religi õ es afir m a m tere m sido inven tadas por Deus, não afir m a m? O
isla m i s m o, o judaís m o e o cris tianis m o não se declara m com o revelaç ões divi nas?
Bertha: Vo cê já leu o livr o- texto do curso, não leu?
Sócrates: Si m. Estou certo?
Bertha: Está.
Sócrates: Então você discor da do que essas reli gi ões afir m a m?
Bertha: De serem revelaç ões divi nas em vez de hum a nas? Su ponh o que sim.
Sócrates: Então, por que você se declara uma cristã?
Bertha: Estou surpresa com você, Sócrates, curvan d o- se a in sultos pessoais!
Sócrates: Eu é que estou surpreso com você; nada de insult o, só quis ter certeza. Por que tom o u isso
com o insulto?
Bertha: Esqueça (Zangada.). Nu n ca pensei que você pudesse se tornar um funda m e n ta l i sta!
Sócrates: Eu ainda preciso descob r i r o que essa palavra signi f i ca. Neste lugar, só a tenho ouvi d o com o
repreensão. Ta m b é m pre ciso descobr i r o que signi f i ca a palavra cristão, pois você parece empre gá- la
apenas com o exaltação. Não vejo essa for m a de uso perti ne nte, isto é, usar as palavras não para descrever
o que as coi sas são de fato, mas para expressar com o se sente no tocante a elas. Preciso encont rar palavras
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que descreva m , antes de poder usá-las para exaltar ou repreende r.
Bertha: Sócrates, você está ficand o mui t o lógi c o. Pode m os vol tar ao ponto em que você discor d o u de
mi m? Vo cê disse que havia duas coisas, exato? A pri m e i r a, que via o cristiani s m o co m o uma revelação
divi na e não uma inven çã o hum a na.
Sócrates: Não foi o que eu disse. Eu nem mes m o sei o que o cristian is m o é. Só afir m e i que ele se
declara uma revelação divi na, mas você o consi dera uma inven çã o hum a na, por achar que outras
reli gi ões são iguais a ele, por serem tam bé m sim pl es invenç ões hu manas. É isso mes m o?
Bertha: Si m. M as qual era o segund o aspecto do qual você discord o u de mi m?
Sócrates: Que aparente m e n te você vê as religi õ es apenas com o coisas práti cas e não teóri cas.
Bertha: O que quer dizer com isso?
Sócrates: Que você emprega arte e políti ca com o analog i as em vez de fil oso f i a e ciência. A arte e a
políti ca estão para a excelênc i a, a beleza, a vantage m e a felici d a de, todas co m final i d a des práti cas. To davia a ciênci a e a fil oso f i a estão para a verdade, cujo fi m é teóric o.
Bertha: Certo, esta distin çã o já é com u m para mi m.
Sócrates: M as não é verdade que as suas três religi õ es ociden tais afir m a m ensinar a verdade e não
apenas fazê-la feliz?
Bertha: Si m.
Sócrates: Então, por que ignorar esse aspecto delas?
Bertha: Co m o eu o ignor o?
Sócrates: Vo cê não disse que todas as reli gi ões são iguais?
Bertha: Si m, eu disse.
Sócrates: M as idéias teóri cas não são iguais; idéias verdadei ras não são iguais às falsas.
Bertha: Oh, entend o. As coisas práti cas são iguais e relati v as, de mod o que se com p l e m e n t a m ,
enquant o as teorias se contradi ze m .
Sócrates: Si m, mas não acho que toda reli giã o se deno m i n a r i a uma teoria, uma hipótese. E teoria no
senti d o de desti nar- se tam bém à verdade e não só à felici da d e.
Bertha: Corret o.
Sócrates: Nessas circu nstân c i as, você ainda insiste que todas as religi õ es são iguais?
Bertha: Si m.
Sócrates: M as você percebe o quanto as suas doutri nas são dife rentes. Então você deve estar ignoran d o
ou sendo indi fe re nte à ques tão doutri ná r i a dessas religi õ es, ao exam i n a r somente seus aspectos práti cos. É
isso? Vo cê vê as doutri nas com o algo sem imp o r tâ n c i a? V o cê acha que a reli giã o tem outro interesse que
não seja a verdade?
Bertha: Eu penso algu m a coisa diferente do que você consi dera verdade, Sócrates.
Sócrates: M i n h a defi ni çã o de verdade não lhe agrado u?
Bertha: Não.
Sócrates: Por quê?
Bertha: Há uma verdade mui t o mais prof u n d a, uma verdade supre m a, mais misteri osa do que você
conseg ue saber a respeito.
Sócrates: Pode ser que sim. M as não há tam bé m a verdade que eu conheç o, essa verdade com u m e
mon ó t o n a, um tipo de verdade do bom senso, dizend o o que é?
Bertha: Supo n h o que sim, mas por que isso é tão imp o r ta nte para você?
52 | P á g i n a
Sócrates: Porque, sem isso, com o pode algué m dizer o que é sobre algu m a coisa, mes m o sobre essa
sua verdade supre m a? Para falar a verdade sobre a sua supre m a verdade, você precisa falar a min ha
verdade insign i f i c a n t e.
Bertha: Certo, assi m a sua verdade existe, Sócrates, mas não é a essência da religi ão. Tud o bem, eu sei
a sua próx i m a pergu n ta, Sócrates, nem precisa me falar. Já aprendi com o funci o n a sua men te, nesse mei o
tem p o.
Sócrates: Bo m, estou esperand o...
Bertha: Qual é a essência da reli giã o? Be m, com o toda essên cia, ela deve ser o que todas têm em
com u m , o eleme nt o uni versal em todas as religi õ es, o mí ni m o deno m i n a d o r com u m e o máx i mo: é a
reli giã o em si. Há uma resposta da qual, com certeza, você vai gostar: a essência da religi ão é a própr i a
reli giã o.
Sócrates: Eu ainda estou esperan d o você me dizer o que é isso.
Bertha: Oh, isso não pode ser feito de uma manei ra sim pl i sta, abstrata, apriori.
Sócrates: Então, faça m os de mod o com p l e x o, concreto e a posteriori.
Bertha: Co m o?
Sócrates: Pode m os começar não com a essência com u m , mas com os exem p l os.
Bertha: M u i t o bem.
Sócrates: A essência da religi ão é ampla o sufici en te para in cluir a religi ão do budis m o? O budis m o é
uma reli giã o, não é?
Bertha: Certa m e n te.
Sócrates: E o conf u c i o n i s m o?
Bertha: Si m.
Sócrates: M as o budis m o e o conf u c i o n i s m o não acredi ta m em Deus. Eles nunca fala m em Deus, não é
verdade?
Bertha: Si m.
Sócrates: Então a crença em um Deus, a adoração, o amor de Deus ou a fé em Deus não pode servi r de
essência da religi ão.
Bertha: E verdade. Reli g i ã o não é só adoração a Deus. E todo interesse supre m o, todo valor absol ut o,
todo bem mai o r ou o mais sim p l es prop ósi t o de vida.
Sócrates: Ag o r a parece que tem os algo que você disse não po der apresentar antes: uma defi n i çã o.
Va m o s testá-la. M e u discí p u l o Platão não acredi ta v a nos deuses, mas certa m e n te acredi ta va em valores
absol ut os, em um bem mai or e nos interesses e prop ósi t os mais sim p l es da vida. Vo cê diria que o
platon i s m o é uma reli giã o?
Bertha: Crei o que o argu m e n t o me leva a dizer que sim. M as não, o platon i s m o é uma filoso f i a, não
uma reli giã o.
Sócrates: E o que dizer dessas estranhas fil oso f i as das quais te nho ouvi d o que prov o ca ra m tantas
guerras em seu sécul o, entre elas o fascis m o e o com u n i s m o; são reli gi ões?
Bertha: Não, são filoso f i as anti-reli gi osas. O co m u n i s m o é ateísta.
Sócrates: M as elas não são os prop ósi t os e os interesses básicos da vida de seus adeptos?
Bertha: Si m, são.
Sócrates: Então a essência da reli giã o não pode ser nenhu m a dessas coisas, nada sufi cie nte m e n t e
ampl o que im pl i q u e tanto a descrença quanto a reli giã o. Pois, com o uma coisa poderi a conter a própri a
oposiçã o? Co m o poderi a religi ão envol v e r descrença?
Bertha: As pessoas pode m ser reli gi osas conf o r m e sua falta de reli giã o.
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Sócrates: Isso se parece com uma contrad i çã o, mas talvez não seja. O que você quer dizer com isso?
Bertha: Sere m fanáti cas.
Sócrates: Be m, então a essência da religi ão é o fanatis m o? Só os fanáti c os são reli gi os os?
Bertha: Não, não, isso é li m i ta d o demais. Nada de fanatis m o nem de senti m e n ta l i s m o. O fanatis m o é
um senti m e n t o prej ud i cial. Já o senti m e n t o reli gi os o pode ser bom.
Sócrates: Assi m, a essência da reli giã o então é o senti m e n t o?
Bertha: Si m.
Sócrates: Lu x ú r i a é reli giã o?
Bertha: Em um sentid o, sim!
Sócrates: Ac h o que começ o a entender o que este "senti d o" seu quer dizer. Vo cê entende por
"reli gi ã o" um tipo de atitude, não é? Não uma crença ou uma doutri n a que afir m a ser a verdade, mas uma
quali da de de senti m e n t o, não é isso?
Bertha: Imagi n o que seja.
Sócrates: No entanto, as suas três religi õ es ocidentais defi ne m religião de outra for m a, não defi ne m?
Todas apresenta m livros que afir m a m ensinar as palavras fiéis de Deus, a verdade divi na e a reve lação
divi na. Será que só as religi õ es orientais defi ne m religião com o certo estado de senti m e n t o, de
experiê nc i a ou de consciê nc i a?
Bertha: Si m.
Sócrates: Então você é mais hind u í sta, budista ou taoísta que cristã.
Bertha: Eu não sei o que sou, Sócrates.
Sócrates: Oh, nem eu. M as pensava que você soubesse, pelo me nos, no que acredi ta v a.
Bertha: É possí vel que eu não consi ga defi ni r de mod o sufi ciente m e n t e ampl o a essência da religi ão
para acol her o budis m o, nem li m i ta d o o sufici en te para excl ui r o co m u n i s m o.
Sócrates: Tal vez não seja culpa sua. Pode ser que ningué m con siga defi ni r essa essência, esse mí ni m o
deno m i n a d o r com u m , por uma razão muit o sim pl es: é pro vá v e l que ela não exista.
Bertha: Oh, mas existe sim, Sócrates. Pode- se ver isso refleti d o nas diferentes religi õ es do mun d o. Se
com pa rar m o s o Ser m ã o do M o n te de Jesus, o Dhammapada de Buda, o Tao Te Ching de Lao Tsé, os
Analectos de Con f ú c i o, os Provér b i o s de Salo m ã o, a Lei de M o i sés, o Bhagavad-Gita e o Diál o g o de
Platão, vere m o s uma sur preende nte unidade. Si m, Sócrates, vejo você com sua boca aberta outra vez para
fazer a pergu nta óbvi a: o que é esta unidade? Então, veja bem: vou mostrar algo bastante surpreen de n te.
Há três níveis de pensa m e n t o sobre com o vi ver. A mai or i a vi ve no nível mais baix o, por instint o,
indi v i d u a l i s m o e prag m at i s m o. E há grandes fil óso f os, com o M a q u i a v e l, Ho b b es e Freud, que defen de m
esse mod o de vida, dizen d o que é o mais alto nível que algué m atin ge, visto que som os apenas ani m a is.
Outros alcança m mais alto e vive m pela justiça, integri d a de, retidão imparc i a l e virtu de; vi ve m pelo que
deve m ser, mais do que por algo de que necessita m ou têm vontade. E a mai or i a dos filóso f o s apoia esse
mod o de vida; para Pla tão, por exem p l o, é a justiça. Final m e n te, muit o poucos vi ve m por algo ainda mais
elevad o: a cari dade, o com p r o m e t i m e n t o; estão aci ma da justiça. E os pensadores que acabei de
menc i o n a r escreve m a respeito disso. Esses atinge m o terceir o nível; eis a essência da reli gião! Aí está,
caso você queira uma doutri na, Sócrates, uma co m u m a M o i sés, Salo m ã o, Jesus, Buda, Con f ú c i o e a Lao
Tsé: morrer para o eu, o mistéri o da caridade. Ac h o que mes m o Platão o alcanç o u, não alcanç o u? De fato,
eu apostaria que você teve infl uê n c i a nisso. Vo cê deve saber do que eu estou faland o, não sabe?
Sócrates: Eu real m e n te sei, Bertha, e de fato infl ue n c i e i a fil o sofia de Platão. Entretant o, isso ainda é
fil oso f i a, não reli giã o. É aquela divisão da filoso f i a cha m a da ética, isto é, aquela parte da ética que lida
com a questão do summum bonum, ou o bem supre mo. Assi m é a ética: uma for m a de vida.
Bertha: M u i t o bem.
Sócrates: Então a ética é a essência da religi ã o.
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Bertha: Se você quiser.
Sócrates: Não, se você quiser.
Bertha: Si m, aceito. Eu falo sério.
Sócrates: E você diz que a religi ão é esse tercei ro nível?
Bertha: Si m.
Sócrates: E que nem todos o alcança m, com p ree n de m ou acre dita m nele?
Bertha: Exato.
Sócrates: Assi m, nem todo mun d o é religi os o, então.
Bertha: Não nesse senti do.
Sócrates: U m ateu não é um crente religi os o, é?
Bertha: Não.
Sócrates: Tod os os ateus são pagãos?
Bertha: Certa m e n te que não. Con heç o alguns ateus mais dig nos de conf i a n ça que muit os cristãos.
Sócrates: Então, um ateu pode ser uma pessoa mui t o decente?
Bertha: Si m.
Sócrates: Al tr u í sta?
Bertha: Si m.
Sócrates: A essência da religi ão, por/conseg u i n te, não pode ser a ética, já que os ateus pode m ser
éticos, mas não reli gi os os.
Bertha: Oh, mas isso não tem lógi ca, tem?
Sócrates: Co m isso estam os de volta aonde come ça m o s. O que é, então, essa tal essência da religi ão?
Bertha: Eu não sei, Sócrates.
Sócrates: Ag o r a sim estam os fazend o progresso!
Bertha: M as só sei que, indepen d e n te m e n t e do que ela seja, as religi õ es são iguais.
Sócrates: Co m que faci l i da d e nós dei xa m o s nosso progresso de lado! Co m que rapi dez a gravi da d e
nos faz descer das alturas; ou mel h o r, com que rapidez a inconstânc i a do orgul h o nos arranca da
gravi da d e da modéstia!
Bertha: M as, Sócrates, você não concor da que a reli giã o é com o uma montan ha com diferentes
cam i n h o s que leva m ao topo? E por isso que é tão difí ci l defi n i r; com o é possí vel defi n i r uma monta nha?
Dentr o, tudo é escuro, enig m á t i c o e denso, mas a superfí c i e é visí ve l, e é possí ve l ver mui t os cam i n h o s de
diferentes lados e pon tos de parti das; todos leva m ao cum e. Que toli ce debater para ver qual é o mel h o r
cam i n h o, o lado verdadei r o! É com o discuti r se a montan ha está ensolarada ou nebul osa, quente ou fria:
as duas coi sas; todas as coisas. Que estreiteza de espíri to negar a vali dade de outros cam i n h os e só avaliar
o pessoal! V o cê não percebe o meu mod o de ver, Sócrates? Isso não é orgul h o, e sim hu m i l d a d e. Seria
orgul h o negá-lo, tornar absol ut o um único cam i n h o.
Sócrates: Não entend o nada até que eu veja. Então, vam os ver o que signi f i ca a sua metáf o ra da
montan ha. Seria m as várias reli giões cam i n h os que sobe m a monta n h a da vida na direção de Deus, que
está no topo?
Bertha: Si m, Deus ou coisa algu m a que você deno m i n e; ele, ela ou algu m a outra coisa.
Sócrates: Os cam i n h os são iguais, por começare m no mes m o nível, na parte inferi o r, e por alcançare m
o topo?
Bertha: Si m.
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Sócrates: Co m o sabe que todos atinge m o topo?
Bertha: Co m o sabe que não atinge m?
Sócrates: Eu não sei. Ne m digo que sei. V ocê, entretant o, pa rece estar afir m a n d o que sabe que
atinge m. A d m i r o- me de com o você pode saber isso, a não ser que esteja no topo.
Bertha: Não, não estou no topo e não aspiro a isso.
Sócrates: Eis outra coisa que você supõe, eu acho: que sabe que todas as reli gi ões são arti fi c i a is,
cam i n h o s do hom e m para Deus em vez de serem o cam i n h o de Deus na direção do ho m e m . É as sim que
você consi dera a religi ão, não é?
Bertha: Si m.
Sócrates: A d m i r o- me de com o você sabe isso. Co m o sabe que ela não é o cam i n h o oposto, conf o r m e
afir m a a sua própri a reli gião, a sua Escrit u ra; em suma, Deus em busca do hom e m, e não o hom e m em
busca de Deus?
Bertha: Eu não sei. Honesta m e n te, que diferen ça isso faz?
Sócrates: Se for inven çã o de Deus em vez de nossa, e isso é você que m está dizend o, porque eu não
sei se é ou não, então faria senti d o haver apenas um único cam i n h o, feito por Deus. Se, ao contrári o, a
reli giã o for arti fi c i a l (elaborada hum a na m e n t e), então seria justi f i cá v e l que hou vesse muit os cam i n h os,
por haver mui t os povos, nações e cul turas. E se ela for mes m o fruto da invençã o hum a na, então se
poderi a aceitar que todas as reli gi ões tivesse m funda m e n ta l m e n t e as mes m as característi cas por serem
hu m a nas, fini tas e uma com p os i ç ã o do bem e do mal. Toda v i a, se a reli giã o for divi na, seria aceitá ve l que
outras reli gi ões, as hu m a nas, não fosse m iguais àquela feita por Deus, porque as coisas feitas por ho m e ns
não estão à altura das coisas divi nas.
Bertha: Eu nunca havia pensado sobre isso dessa for m a, antes.
Sócrates: Ac h o que já. V o cê só não tinha expl i c i ta d o a sua su posição. É tudo o que eu faço co m você.
Eu não digo o que você não sabe, só o que sabe, mas que não sabe que sabe.
Bertha: Que suposi ção?
Sócrates: Que você achava arroga nte afir m a r que apenas uma reli giã o detém a verdade, a verdade
absol uta e somente a verdade, uma vez que todas as coisas hum a nas são, na sua essência, iguais. Não era
este o seu argu m e n t o?
Bertha: Si m.
Sócrates: A deduçã o só resulta de deter m i n a d a prem i ssa se você pressup õe outra prem i ssa, a de que a
reli giã o é hu m a na. O seu ar gum e n t o então foi que as coisas feitas por hom e ns são iguais e a religi ão é
algo feito pelo hom e m ; logo, as reli gi ões são iguais. Ag o ra eu lhe pergu n t o: Co m o sabe a sua segun da
prem i ssa, que a reli giã o é obra dos ho m e ns?
Bertha: Ora, eu não sei. Eu só quis evitar a arrogâ n c i a.
Sócrates: E um bo m propósi t o, certa m e n te. M as, será que bas tam bons prop ósi t os, sem conhec i m e n t o?
Bertha: Que conhec i m e n t o?
Sócrates: O conheci m e n t o que lhe falta, que a levou à arrogâ n cia, exata m e n te o contrári o de sua
intençã o de evitá- la.
Bertha: Quê? Co m o assi m?
Sócrates: O seu descon hec i m e n t o sobre se foi Deus ou o ho me m que fez o cam i n h o. Porque, se Deus o
fez e só fez um, então não é arrogân c i a, mas hum i l d a d e aceitar esse único cam i n h o feito por ele e
acredi tar nele; entretant o, não é hum i l d a de, mas arrogân cia insistir que os cam i n h os feitos por mão
hu m a na sejam exata m e n te tão bons quanto o de Deus. E não seria tam bé m arrogan te pres supor que
sabem os ser imp ossí v e l Deus ter feito um cam i n h o?
Bertha: Imagi n o que sim.
56 | P á g i n a
Sócrates: Eu acho que você é mais sábia que o professor Shi ft; ele achava que era hum i l d e quand o, na
verdade, era arroga nte. V o cê pelo menos adm i te arrogâ nc i a e isso é hu m i l d a d e.
Bertha: Shi ft parecia absol uta m e n te certo de que o cam i n h o não poderi a ser feito por mãos divi nas.
Sócrates: E pro vá v e l que esta seja a razão por que ele parou de procu rá- lo; estava certo de que não
existia.
Bertha: O que você acha, Sócrates?
Sócrates: Eu? Oh, ainda estou em busca desse cam i n h o, em bora eu não saiba se ele existe ou não.
Bertha: Então foi por isso que se matri c u l o u na aula de Cristol o g i a?
Sócrates: Não tenho certeza.
Bertha: Va m o s, está quase na hora dessa aula. Te m os de atraves sar o cam p us. Vo u mostrar o cam i n h o.
Sócrates: E exata m e n te isso que você está fazend o.
Bertha: Enqua n t o prossegu i m o s, tenho outra pergu nta que está me inco m o d a n d o. Vo cê não conco r d a
com o princ í p i o: "Pelos seus frutos os conhecereis"?
Sócrates: Isso parece o princí p i o de racioc í n i o do efeito para a causa. Si m, conco r d o.
Bertha: Então, você não percebe que os funda m e n t a l i stas não pode m estar certos, em razão das
terrí ve is conseqüê n c i as de acre ditare m no que acredi ta m?
Sócrates: Que conseq üê n c i as?
Bertha: O im per i al i s m o religi os o, a do m i n a çã o, meu cam i n h o é mel h o r que o seu, meu cam i n h o é o
único, eu estou certa e vocês todos estão errados; você conhece a atitude a que me refir o.
Sócrates: E claro que conheç o, mas não vejo com o algué m que acredita que certa reli giã o foi revelada
por Deus possa ter tal atitude. De ver i a acreditar na sua reli giã o, não por ser sua, mas por ser de Deus, não
porque ele a criou ou quer condenar outros, mas porque Deus a revel o u. Não deveria?
Bertha: Dever i a sim, sem pre.
Sócrates: E então, ser fiel ao que Deus disse seria hu m i l d a d e e não arrogâ n c i a, mas seria arrogâ nc i a e
não hum i l d a d e tentar con sertar isso, não seria?
Bertha: Si m, com o antes.
Sócrates: Ac h o que tem os outra vez uma suposição oculta na sua preocu p a çã o sobre o im per i al i s m o ;
isto é, que pode m o s fazer religi ão com o nós quere m os, que a religi ão é obra hu m a na, com o antes. E
conti n u o sem saber com o você sabe disso.
Bertha: M as existe m muit os cristãos imperi a l istas e arrogan tes!
Sócrates: Essa sua religi ão, o cristian is m o, foi ensinada por Cristo, não foi?
Bertha: Si m.
Sócrates: Cristo foi um tipo de pessoa arroga nte e dom i n a d o r a?
Bertha: Oh, não. Exata m e n te o contrári o. Nada o deixa va mais irritad o que a arrogâ nc i a e a
intolerâ n c i a dos líderes religi os os. Ja mais algu m hom e m na Histór i a foi mais miseri c o r d i o s o, hum i l d e e
piedoso com todos.
Sócrates: Por acaso ele ensino u que a sua religi ão era o úni co cam i n h o?
Bertha: Na verdade, de acord o com os textos, sim. Ele afir m a va ser "o cam i n h o, a verdade e a vida".
Sócrates: Isso, de fato, parece uma afir m a ç ã o arrogante.
Bertha: Si m. E por isso que é preciso duvi d ar de que os textos seja m histori ca m e n te exatos. Não há
for m a de harm o n i z a r as duas direções dos textos: as hu m i l d es e as arrogantes.
Sócrates: Espero que possa m os aprender mais sobre isso em nossa aula de cristol o g i a. O que você diz
57 | P á g i n a
parece ser verdade... ex ceto, é claro, sem objeções, que é imag i n ár i o demais.
Bertha: O que é isso?
Sócrates: Arr o g â n c i a signi f i c a dizer mais sobre si mes m o do que é verdade, não é?
Bertha: Si m.
Sócrates: Se algué m afir m asse ser a única verdade e o seu cam i nho, o único verdadei r o, o único
cam i n h o, estaria dizen d o mais do que algué m tem o direito de dizer na reali da de, não estaria?
Bertha: Isso mes m o.
Sócrates: E, portant o, seria arroga nte.
Bertha: Si m. V ocê está com eça n d o a entender meu mod o de ver, Sócrates.
Sócrates: Toda v i a, se um deus falou essas palavras... não, o pen samento é imagi ná r i o demais para se
levar adiante e teria de esperar até a nossa próx i m a aula, de todo jeito. Já estam os quase chegand o?
Bertha: Eu acho que você está, apesar de tudo. (Continuam caminhando.)
Sócrates: Hu m . Fale-me, quanto tem p o tem essa sua religi ão?
Bertha: Cerca de dois mil anos.
Sócrates: Extra or d i n á r i o! E vocês, cristãos, segue m de for m a coerente o professor de vocês, sendo
com passi v os co m o ele?
Bertha: M e u Deus, não, Sócrates! Até houve um tem p o em que grandes líderes cristãos quei m a r a m
viv os os herétic os, pessoas que não cria m no que eles cria m. A isso dera m o nom e de Inqu isi çã o.
Sócrates: Que contrad i çã o asso m b r osa!
Bertha: E verdade. A g o ra você vai entender por que pessoas com o o professor Shift teme m o
funda m e n ta l i s m o. Ele quer se manter bem longe de tudo o que se assemel he a isso.
Sócrates: Os funda m e n t a l i stas quere m quei m a r os herétic os?
Bertha: Não, mas eles não vêem a tolerân c i a ou a igual da de religi osa com o os liberais.
Sócrates: Ao que tudo indi ca, essa tal de Inqui si çã o falho u em disti n g u i r heresia de heréti co.
Bertha: O que você quer dizer?
Sócrates: Eles tentara m destrui r a heresia quei m a n d o o heréti co, não foi isso?
Bertha: Real m e n te. Não foi um erro absurd o?
Sócrates: De ve ras! Ai n d a gostaria de saber se o seu com passi v o professor não está cometen d o o
mes m o erro.
Bertha (Muito chocada, detendo-se em seu discurso.): Quê? Co mo pode dizer isso?
Sócrates: Ele deseja amar, aceitar e tolerar a todos igual m e n te, não deseja?
Bertha: Certo. Então, com o pode com pa rá- lo à Inqu isi çã o?
Sócrates: Eu não fiz isso. Eu disse que ele pode estar comete n d o o mes mo erro que a Inqui si çã o, que
não fez disti nçã o entre heresia e heréti co.
Bertha: Co m o?
Sócrates: V o cê conco r d a que os herétic os merece m aceitação, amor e com p a i x ã o com o todos os
ho m e ns?
Bertha: E claro que sim.
Sócrates: E as heresias? Os erros? As falsidades? Eles merece m aceitação ou rejeição? Faze m o s o bem
a nós mes m o s e aos outros ao acreditar em falsi da des ou ao rejeitá- las?
Bertha: Vo cê quer dizer que Shift é um herétic o?
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Sócrates: Não. Ac h o que ele tem medo de discor dar de todos, exceto de um funda m e n t a l i sta; ou de
deno m i n a r toda idéia reli giosa herética ou falsa, porq ue ele está lidand o com as heresias co mo se elas
fosse m heréticas, do mes m o jeito que a Inqui si çã o tra tava os heréti cos: com o se eles fosse m heresias.
Bertha: M as ele não deseja matar ningué m.
Sócrates: Ele mataria algu m a idéia?
Bertha: Só uma funda m e n t a l i sta. Ele crê que o cristian is m o é a reli giã o do amor, só do amor.
Sócrates: E da verdade tam bé m, não é?
Bertha: Não, da verdade sem amor, não.
Sócrates: M as do amor sem a verdade? Co m o pode isso ser ver dadeir o amor? Co m o esses dois
atrib ut os divi n os pode m se sepa rar? Não deverí a m o s sempre falar a verdade com amor?
Bertha: "Antes, segui n d o a verdade em amor" 18 ; é uma citação do apóstol o Paul o. Então você leu o
No v o Testa m e n t o?
Sócrates: Ai n d a não.
Bertha: Então com o conhece a citação?
Sócrates: Eu não sabia que era uma citação. Eu conhec i a porq ue e era uma verdade.
Bertha ( Surpresa.): M as acho que tudo o que Deus sempre esta de nós é amor e sinceri da d e.
Sócrates: Co m o sabe o que Deus espera?
Bertha: Bo m, o que acha que Deus espera se não isso?
Sócrates: Eu não sei. É por isso que estou aqui, para descobr i r.
Bertha: Be m, se eu fosse Deus, é tudo o que pedi ria.
Sócrates: E óbvi o...
Bertha: Si m, eu sei.
Sócrates: É sério, Bertha. Imagi ne que a sinceri da de não fosse sufici en te?
Bertha: O que mais poderia ser tão im p o rta n te quanto a sinceri da de?
Sócrates: A verdade. Em toda e qual q uer esfera da vida, preci sam os da verdade, não precisa m o s?
Bertha: Por exe m p l o?
Sócrates: Basta só a sinceri da de para um cirurg i ã o? Para um expl o ra d o r? Não precisa m o s dos mapas
verdadei r os para encon trar nosso cam i n h o?
Bertha: É por isso que tem os coisas fora de nós, com o um cor po ou a terra, para nos cond u z i r.
Sócrates: Vo cê acha que não tem os nada fora de nós na reli gião para nos condu z i r? Ac ha que Deus
está em algu m lugar den tro de você e não fora? Ou acha que a única coisa do lado de fora é matéri a?
Bertha: Ac h o que eu estava supon d o isso.
Sócrates: Co m isso você estava adm i t i n d o o material is m o e, por conseg u i n t e, o ateís m o.
Bertha: M as a religi ão é diferente de uma cirur g i a ou de uma expl o raçã o.
Sócrates: Isso é o que eu gostaria de saber. M as religi ã o não é um tipo de cirur g i a da alma e uma
expl ora çã o acerca de Deus?
Bertha: É uma questão do espíri to e não do corpo.
Sócrates: De fato. M as o espírit o não tem cam i n h os quase tão objeti v o s quanto os cam i n h o s do corpo?
Bertha: O que você quer dizer?
18
Efésios 4.15.
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Sócrates: Assi m com o dois cam i n h os físicos diversos leva m a duas cidades diferentes e dois cam i n h os
racio nais diversos a duas diferentes concl us ões, tam bé m dois cam i n h o s espirit uai s diferen tes leva m a dois
destin os diversos: a Deus ou a outro desti no; se, natural m e n te, Deus real m e n te estiver lá. V o cê não é
ateísta, é?
Bertha: Não, mas ainda acho que a sinceri da de e a honesti da de são as coisas mais imp o r ta ntes. E
preferí v e l estar sincera m e n t e er rada em vez de falsa m e n te certa. Vo cê não acha?
Sócrates: Não. Se eu for um cirur g i ã o ou um expl o ra d o r, não! Parece-me que a verdadei ra sinceri da de
deseja conhecer a verdade, e a verdadei ra honesti da de deseja acredi tar em uma coisa por uma única razão
apenas: porq ue é verdadei ra. Vo cê não conco r d a?
Bertha: M as se é assi m, então os pagãos sinceros, mas engana dos, nunca irão para o céu, nem
encontrarã o a Deus?
Sócrates: Isso eu não sei. Ac h o que você tem à sua frente um caso e tanto; um pagão sincero, mas
enganad o, que pelo menos está procurando encontrar a Deus. Eu não acho que um Deus justo pu niria
algué m por não saber o que deveria saber, ou por desobedecer a um conhec i m e n t o que não tem. Toda v i a,
um Deus justo avaliará todos os responsá ve i s pelo conheci m e n t o que poderiam ter tido e por
desobedecere m a esse conhec i m e n t o. Esta é a situação na qual eu pareço estar, bem com o a mai or i a dos
ho m e ns, imagi n o. Se não conhecesse a verdade pelo menos o sufici en te para saber que peco contra ela
mui tas vezes, por que ainda estaria buscand o?
Bertha: M as Sócrates, pensei que você fosse tão bom!
Sócrates: V o cê nunca ouvi u a históri a do sofista fisi og n o m o n i s t a que tentou me analisar pela mi n ha
face?
Bertha: Não. Conte- me!
Sócrates: O sofista veio de outra cidade e não sabia nada a meu respeito nem da mi n ha reputação. Ele
vangl o r i a v a- se de poder ler o caráter de um ho m e m pela sua face. Os meus discí p u l o s, mais por zelo que
por conhec i m e n t o, tinha m certeza de que o ho m e m erraria no meu caso. Assi m, pedi ra m para que o
ho m e m lesse o meu caráter. Ele me fitou, cha m a n d o- me de liberti n o, de grossei ro, de pregui ç os o e de
brigão. Tod o mun d o riu, menos eu, porque eles não me conhec ia m bem com o você tam bé m não. Eu pedi
que eles parasse m de rir e contei- lhes que a arte do sofista não era a falsi f i caçã o, porq ue aquelas eram
exata m e n te as tentações contra as quais eu tinha de lutar diaria m e n te.
Bertha: Seja bem- vind o à raça hu m a na, Sócrates! M as segura mente há uma partíc u l a de coisas boas em
nossa pior parte, e uma de coisas ruins na mel h o r. O bem e o mal estão em todos os luga res, entre as
pessoas de todas as reli gi ões.
Sócrates: Si m. E qual é a conseqüê n c i a disso?
Bertha: Que todas as religi õ es são iguais, não é?
Sócrates: Não entend o com o.
Bertha: Eu... acho que nem eu mais. Vo cê me conf u n d e, Só crates. O que eu pensava que sabia de
manei ra tão sim pl es e sóli da torna- se obscur o e se dissipa de repente.
Sócrates: Isso é progresso, de fato.
Bertha: Certa m e n te isso não parece progresso.
Sócrates: Se constru i r m o s castelos nas nuvens, eles se sustenta m?
Bertha: Não.
Sócrates: Não seria progresso, então, aband o n ar certos alicer ces instáveis e procurar alicerces mais
sólid os?
Bertha: Si m, eu acho que seria. Portanto, nós progred i m o s, apesar de tudo. Pelo menos avança m o s para
a nossa próx i m a aula. Aq u i estam os na aula de Cristo l o g i a do professor Fesser.
Sócrates: Que m será que vou encontrar aqui? Estou curi oso para saber.
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7
Jesus, o único
Sócrates e Bertha Broadmind estão em um hall lotado da Escola de Teologia Havalarde, no intervalo da
aula.
Bertha: E então, Sócrates, está pronto para a sua pri m e i ra aula de Cristo l o g i a?
Sócrates: Eu sem pre estou pront o para conhecer.
Bertha: O que espera conhecer?
Sócrates: Duas coisas, imagi n o: que m é esse Jesus e por que a prov i dê n c i a divi na me trou xe aqui para
saber a respeito dele.
Bertha: Be m, se há algué m que pode ensiná- lo sobre o assunto, é o professor Fesser. Ele é um
especial ista em Cristo l o g i a, de reno me mun d i a l.
Sócrates: Nós certa m e n te estam os em lados opostos da hierar quia, porque eu mal sei o que é
Cristol o g i a. A julgar pelo no m e, deduzo que seja a ciênci a de Cristo, o estudo raci onal da pessoa de Jesus,
que é cham a d o Cristo.
Bertha: Vo cê tem razão. Ei... (Entrando na sala, vendo uma mesa redonda com cinco estudantes ao
redor.) Vai ser... vai ser em for m a de semi ná r i o; você vai gostar, Sócrates, porq ue vai ter a oportu n i dade
de fazer muitas pergu ntas.
Sócrates: Eu espero que sim. E há algu m a outra for m a de apren der? As suas outras aulas não são
assi m?
Bertha: Não, a mai or i a é aula exposi ti v a.
Sócrates (Muito chocado.): A h, sei... M e u métod o então não se popul ar i z o u, mes m o. Be m, então
imagi n o que grande parte das leituras seja de livros em vez de pessoas.
Bertha: O que você quer dizer co m "ler pessoas"?
Sócrates: Diál o g o, é claro!
Bertha: Oh. Be m, tam bé m tem os diálo g o, mas acho que a lei tura de livr os predo m i n a aqui. O que há de
errado com os livr os?
Sócrates: Oh, nada de errado; pelo contrári o, são uma inven çã o mara v i l h o sa. Entretant o, tenho duas
restri ções a eles.
Bertha: Quais?
Sócrates: U m a delas, eu aprend i com as lendas egípci as sobre o deus Thot, que inspi r o u o faraó a
inventar a escrita. O faraó fi cou ili m i t a da m e n t e agradeci d o, mas Thot adverti u que aquil o que ele dava
com uma das mãos, tirava com a outra.
Bertha: O que isso signi f i c a?
Sócrates: Que quanto mai or for a nossa me m ó r i a externa em livr os, meno r será a me m ó r i a interna da
alma! Pois os livr os facil m e n t e se torna m semel ha ntes a parasitas, que vi ve m do san gue de seu
hospedei r o, a mente. E a segunda restri ção é que eles são com o cadáveres em vez de vi ventes; dão
conti n u a m e n t e a mes m a resposta sem pre que os interr o ga m o s. Eu sempre preferi dialo gar com os vi v os,
cujas respostas são im pre v i s í v e i s, a dial o gar com os mortos.
Bertha: Be m, terá o que prefere aqui em um instante. Tod os es tes estudantes parece m estar viv os. (Aos
seis alunos sentados.) Olá!
Alunos: Olá!
Professor Fesser: (Entrando.): Bo m dia! Be m- vind os ao meu semi nár i o em Cristol o g i a. Sou o
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professor Fesser e gostaria de que esta aula fosse o mais info r m a l possí vel, já que todos, imagi n o eu, são
alunos adiantad os. Parece que tem os um grupo bem pequen o de... vam os ver... sete alunos, e com o há
mui tas diferen ças entre vocês, acredit o, cada um poderá contri b u i r com algo só seu. Gosto de me
consi derar mais um faci l i ta d o r que um professor, pois a aula é de vocês, não min ha. Portant o, agora que
já me apresentei, gos taria de iniciar pedi n d o a cada um que se apresente, diga seu nom e e algu m a coisa
que julgue im p o rta n te ou útil saber m os sobre si mes m o, com o por que escol heu este curso, por que está
na Escola de Teol o g i a, de onde veio... Tud o bem?
Classe: Tud o bem! (Alguns sorriem aliviados, outros parecem desconfiados.)
Fesser: Va m o s com eçar aqui à mi n ha direita e seguir rodean d o a mesa.
Molly: Sou M o l l y M o o n e y [Tonta] e estou aqui para estudar o ho m e m consi derad o o princí p i o
uni f i ca d o r do Uni v e rs o. Jesus nos mostr o u o Ca m i n h o, o cam i n h o da união, do amor e da uni dade e este é
o segredo da vida, segund o todos os grandes pensa dores. Por exe m p l o...
Fesser: Descu l p e- me, M o l l y, mas as apresentações deve m ser curtas, tudo bem? Ha verá tem p o de sobra
para todos... uh... par tici pare m com algu m a coisa, sem pressa, mais tarde. Certo?
Molly ( Levementesorrindo.): Certo.
Fesser (Justificando-se.): Eu não tive a intenção de interro m p e r ou cortar você. Lo n g e disso...
Molly ( Sorrindo.): Tud o bem, professor, concor d o com sua atitude e respeito a opi niã o de todos. Acei t o
suas descul pas e a de todos aqui. A m o todo mun d o. Co m o você vê, eu vi v o segund o o princ í p i o...
Fesser (Pacienteporém nervoso.): Si m, obri ga d o, M o l l y. O pró xi m o, pode m o s ouvi r?
Sophia ( Com um sotaque britânico refinado da índia Oriental): Sou Sophia Sikh e acho que estou aqui
porque eu, na verdade, não sei de onde venho. M i n h a mãe era batista e meu pai hindu, mas fui educada
por meu tio em Ox f o r d, que é ateu. Enqua n t o estava em Ox f o r d, experi m e n t e i o que mi n ha mãe cham a
um quádru p l o lapso de boa cond uta: tornei- me episcopa l, então unitarista, ateísta e, por últi m o, soci ól o g a.
(Turma solta uma exclamação de espanto debochado.)
Fesser: Que experiê n c i a interessante!
Sophia: E o que todos dize m. Sincera m e n t e, queria que algué m dissesse algo mais, algu m a coisa mais
interessante que um sim p l es: "Que interessante".
Fesser (Levemente corado e exaltado.): Be m, Sophia, acho que em uma classe tão disti nta co m o esta é
prati ca m e n t e certo que você vai encontrar algu m a coisa interessante. E tenho certeza de que você tem
mui t o para dar, mas tam bé m mui t o para descob r i r.
Sophia: O que você quer dizer co m isso, é possí ve l expl i car?
Fesser: Que tenho certeza de que você tem mui t o para ensinar aos outros, mas tam bé m para aprender
com eles.
Sophia: Co m o pode ter certeza, professor, você nem me conhece?
Fesser: Ora, todos têm algu m a coisa para dar, Sophi a, não im porta que m seja.
Sophia: Isso não é o que se costu m a dizer às pessoas tolas, mas nunca às intel i ge n tes?
Fesser (Surpreso.): Ora, é claro que não. Por que a pergu n ta?
Sophia: Al g u é m , por acaso, falou algo assi m para Einstei n?
Fesser (Sorrindo e esquivando-se): A g o ra estou com p ree n de n d o. Eu penso que não. Descul pe, não tive
a intenção de falar assi m, Sophia.
Sophia: E eu não queria deixá- lo constran g i d o, professor. M u i tas vezes as pessoas me dize m que sou
franca demais ao se tratar dos meus interesses.
Fesser: Oh, por favor, sinta-se à vontade aqui, diga o que qui ser, o que vier à mente. Esta é uma sala de
aula livre. A única regra na qual eu gostaria de insistir é que não sinta m os necessida de de nos prender a
regra algu m a. Tud o bem?
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Sophia: Co m o quiser, professor!
Fesser: O próx i m o, por favor?
Thomas: M e u nom e é Tho m as Kept i c. Sou jogado r prof issi o nal de xadrez; portanto, pobre, embora
meu rating seja 2.400. Eu era cristão, penso, então me tornei mar x i sta e hoje sou um desilu d i do com
todos e com tudo mais ao redor. Eu costu m a v a desenv o l ver soft w a res para cursos de filoso f i a eletrô n i c os,
mas me cansei. Passei o últi m o ano no Institut o de Estud os A va n ç a d o s, tentand o infor m a t i za r a aplicação
da Prova de Goedel à estrutura da crença de cada uma das princi pa i s reli gi ões do mun d o. Estou aqui para
ver a possi bi l i d a d e de fazer a mes m a aplicação às diversas cristol o g i as presentes no cristiani s m o, com o
infra- estrutu ras em uma gra de uni versal sólida e isenta de valores.
Fesser: Que abordage m interessante! (Sophia vira-se para ele com movimento ríspido e ele, de
imediato, lhe sorri, sem graça?}: Ou mel h o r, esta pode perfeita m e n t e ser uma nova e próspera aborda gem
do mistéri o de Cristo. Espero poder ouvi r mais de sua abor dage m e de suas... ah... concep ç ões. O
pró x i m o, por favor?
Salomão (Lenta e calmamente): M e u nom e é Salo m ã o Etude [Erudi t us]. Estou aqui para ouvi r, pensar
e aprender.
Fesser: E tudo que tem a dizer?
Salomão: Si m, creio que seja sufi cie nte por ora. Quan d o eu tiver algo dign o de ser dito, vou dizer.
Fesser: Obri ga d o, Salo m ã o. Próxi m o?
Ah men: M e u nom e é Ah m e n Al i Lou i ea [Ali Lui a]. Vi m até aqui conseg u i r o meu dipl o m a para me
tornar um missi o nár i o or denado e ensinar meu povo sobre Jesus, o Salvad o r.
Fesser: Obri ga d o, Ah m e n. Há aborda ge ns diversas relaci o na das ao mistéri o de Cristo, você sabe, não
é?
Ah men: V o cê quer dizer, do Salvad o r.
Fesser: Si m, mas a palavra que você emprega tam bé m carrega uma grande carga interpretati v a, espero
que perceba.
Ah men: E o seu "mistéri o de Cristo" não?
Fesser: Supõe- se ser neutro.
Ah men: M as "mistéri o de Cristo" não é o seu no m e, é in venção sua. Jesus, por sua vez, não é invençã o
mi n ha, mas o no me dele.
Fesser: A h... bo m, pode m o s discuti r a questão de orde m ling ü ísti c o- heurísti c o- herm e n ê u t i c ae m um
outro mo m e n t o. (Sócrates franze as sobrancelhas) Que m é o pró x i m o, por favor?
Bertha: Sou Bertha Broad m i n d e estou aqui para pesquisar so bre Jesus, por ser um dos meus heróis de
generosi da de e amor, de todos os tem p os.
Fesser: Obri ga d o, Bertha. E por últi m o, mas não menos im portante, que m é o senhor, e por que está
aqui?
Sócrates: M e u no m e é Sócrates. E estou aqui porq ue a pro v i dência divi na o quis; para que fi m
supre m o eu não sei. (Turma sorri de modo paciente)
Fesser: Enten d o. Hu m .......Tal ve z para desem pe n h a r algu m papel. Poderia ser um bo m prop ósi t o.
Gostari a que cham ásse m os você de Sócrates?
Sócrates: Co m certeza. Sem pre tive uma forte incli na çã o para cha m ar as coisas pelos seus própr i os
no m es. (A turma ri baixinho)
Fesser: Óti m o. Ac h o que vocês for m a m um grup o notavel mente variad o e espero que cada um de vocês
partici p e no semi ná rio. Neste mo m e n t o, acho que devería m o s planejar o curso para que, à medi da que
for m o s segui n d o, eu não tenha de imp o r esque mas rígi d os por mi n ha conta. O que acha m da idéia?
Thomas: E se não for o que quere m os? Não estaria você im pond o o seu esque m a rígi d o de falta de
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rigi dez a nós, tam bé m?
Fesser ( Surpreso e confuso): O restante da tur m a tam bé m pensa assi m? (Poucos sacudiram a cabeça
negativamente)
Thomas: Não é uma questão de pensar assi m, professor; é uma questão de lógi ca e coerênci a.
Bertha: Eu gosto de discussão livre.
Molly: Eu tam bé m .
Ah men: M as não pode m o s sim p l es m e n t e falar de tudo.
Fesser: Ac h o que o único planeja m e n t o necessári o é que cen tralize m o s nossa atenção no mistéri o de
Cristo.
Ah men: O que quer dizer, por favor?
Fesser: Que sim p l es m e n t e aborde m o s os princi pa i s tópic os de Cristo l o g i a, com o a Heilsgeschichte19,
supre m a Cristol o g i a versus pri m e i r a cristol o g i a, desm i t i f i c a çã o, fé na ressurrei ção, her m e nê u tica...
(Percebe a mão de Sócrates levantada.) Pois não, Sócrates?
Sócrates: Posso pedi r algu m as defi n i ç õ es de term os?
Fesser: Si m. E exata m e n te o que esperáva m o s de vocês. Entre tanto, eu tam bé m esperava que alunos no
nível de vocês, já tivesse m alcançad o um mí n i m o de conheci m e n t o sobre estes conceit os.
Sócrates: Tal ve z eu não deva estar aqui, então.
Fesser: Que cursos você fez?
Sócrates: Nen h u m , a não ser o da vida. Vej a bem, morr i mui tos anos antes de esses concei tos serem
inventad os.
Fesser: A h, claro, eu com p r ee n d o. Be m, na verdade, o curso de veria ser apenas orientações bastante
pro ve i t osas para seguir m o s. Co mo expl i car í a m o s o mistéri o de Cristo a um ho m e m que morre u em 399
a.C, há mais de dois mil anos? Vej a m o s, de 399 a.C. até 2005 d.C. ou A. D., tem os... hum... 2.404 anos
mais tarde.
Sócrates: Perdão, mas que signi f i ca m a.C. e d.C. ou. A.D?.
Fesser: Oh, é claro que Sócrates não poderia entender esses concei tos, poderia?
Sócrates: Eu não entend o por que você falou no futur o do pretérit o, mas o fato é que não entend o esses
concei tos. V o cê po deria me expl i car, por favor?
Fesser: E então, tur m a?
Bertha: Be m, a.C. signi f i c a "antes de Cristo", d.C, "depois de Cristo". A.D. é a for m a antiga "anno
Domini", que signi f i c a "no ano de nosso Senhor", a qual tem sido substitu í da por d.C, for m a mais
moder na.
Sócrates: Cristo é nosso Senho r?
Bertha ( Desconcertada.): E só uma expressão.
Sócrates: Oh! Então Cristo não é o seu Senhor? (Ahmen e Thomas riem)
Bertha: A questão não é esta.
Ah men: Te m certeza?
Sócrates: O que quero saber é por que toda a história rem o n ta a esse ho m e m . Imag i n o que você deve
consi derá- lo o ho m e m mais im p o rta n te da história, exato?
Bertha: Si m.
Sócrates: E por quê?
19
A palavra Heilsgeschichte significa "história da salvação", nome de uma escola teológica que enfatiza a obra redentora divina ao longo da
História [N. do T.].
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Fesser: Pergun ta excelente para se com eçar. A gra d eç o pelo belo trabal h o desenv o l v i d o com essa
abordage m socráti ca, senhor.
Sócrates: Obri ga d o pelo elogi o, embora não seja bem um elo gio felici tar um triâng u l o por ser
triang u l a r. M as eu gostaria de ter uma resposta, em vez disso.
Fesser: Be m, tur m a?
Molly: Jesus nos ensino u a viver. (Diz "viver" com entusiasmo.)
Sócrates: Então ele era um fil óso f o?
Molly: Oh, sim.
Sócrates: Di ga- me: quantos grandes filóso f o s existira m no mun d o desde a mi n ha época?
Molly: Oh, centenas. Incon tá v e i s, se for o caso.
Sócrates: Então, é porque Jesus foi tão mel h o r que os outros que toda a Histó r i a refere- se a ele?
Molly: Eu acabei de dizer por que: ele nos ensino u a vi ver.
Sócrates: Tud o bem. Então você já deve estar imag i n a n d o a mi n ha próx i m a pergu nta.
Molly: V o cê quer dizer: o que ele ensino u?
Sócrates: Si m.
Molly: A união.
Bertha: O amor.
Ah men: A salvação.
Bertha: A libertaçã o!
Thomas: A supersti ção!
Sócrates: Pelo jeito, parece haver tantos cristos quanto cristãos. Há algu m fato com o qual todos
conco r d a m?
Bertha: O amor.
Os demais: Exato. E o amor.
Bertha: Esta é a nossa resposta. Ele nos ensino u o cam i n h o do amor.
Sócrates: Si m...?
Bertha: O que você quer dizer co m sim..?
Sócrates: Quis dizer que, segura m e n t e, há algo mais além disso.
Bertha: Alé m do amor? Não, o amor é o elemen t o mais im p o r tante no mun d o.
Sócrates: E claro que é. Eu não estou buscand o algu m a coisa superi or ao amor, mas um pouco mais de
sabedor i a que isso. (Sophia faz que sim com a cabeça) Eu parti do pressup osto de que qualq ue r um com
um mí ni m o de sabedor i a conhece a grandeza do amor. E com u m hom e ns sábios pregare m sobre a
grandeza do ódi o? Vo cês conhece m muit os fil óso f o s que dize m: "Que possa mos ouvi r para odiar"?
Bertha: Não...
Sócrates: Então, o que torna esse tal de Jesus diferente dos outros mestres do amor?
Bertha: Ele foi mais radical que qual q uer um. (Os colegas fizeram que sim, exceto Ahmen, Sophia e
Thomas.)
Sócrates: De que for m a?
Bertha: Na for m a do amor.
Sócrates: Quero dizer: em que senti do ele foi mais radical?
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Bertha: Eu acabei de falar. Ele foi mais radical no que se refere ao amor.
Sócrates: M as eu não sei o que você entende por radical.
Bertha: Ah. Be m, ele ensino u que se deveria amar até mes m o os ini m i g o s.
Sócrates: Eu tam bé m.
Molly: Ele foi morto por causa das doutri n as que pregava.
Sócrates: Eu tam bé m fui.
Bertha: Ele tinha mil hares de discí p u l os.
Molly: Ele vi vi a o que pregava.
Sócrates: Eu tam bé m.
Bertha: Ele liberto u o povo da ignorân c i a, da supersti ção, do precon ce i t o e da discri m i n a ç ã o de gênero.
Sócrates: Eu tam bé m.
Bertha: Ele ensino u um mon o teí s m o supre m o.
Sócrates: Eu tam bé m.
Molly: E ideal is m o ético...
Sócrates: Eu tam bé m.
Molly: M as foi cosm o p o l i t a, uni versal ista e uni f i ca d o r...
Sócrates: Eu tam bé m.
Bertha: Falou da vida após a morte ao povo.
Sócrates: Eu tam bé m.
Molly: Foi um profeta e um servo de Deus.
Sócrates: Eu tam bé m fui.
Bertha: Vo cê está dizend o que é tão grande quanto ele, é isso?
Sócrates: Não, não, ao contrári o. Estou supon d o exata m e n te o oposto! Que absurd o pensar que toda a
Histór i a se rem o n tar i a a mi m! Não, eu pergu nt o por que ele teria sido mui t o mai o r que eu ou que algué m
outro.
Bertha: Nós já fala m o s.
Sócrates: Não, não falara m. Tud o o que vocês dissera m até ago ra se aplica a mi m tam bé m. Então,
com o ele foi mai or?
Thomas: Sócrates, mui t os acredita m em supersti ç ões estranhas a respeito dele. Acre d i ta m que ele...
Sócrates: M as e você, no que acredi ta? Di ga- me, por favor, no que você acredi ta antes de falar no que
os outros crêe m. Já tenho probl e m a de sobra para com p r ee n d e r o pri m e i r o ponto antes de partir para o
segund o.
Fesser: Cal m a, devagar! Va m o s recapi tu l ar e ver o que descob r i mos até agora. Sócrates, o que
aprende u na aula por enquant o?
Sócrates: Os colegas me falara m duas coisas: a pri m e i r a é que Jesus foi o mai o r ho m e m da Histó r i a e
que, por isso, os anos re monta m a ele; a segun da, é que o moti v o de sua grandeza deve- se ao fato de ele
ter pregad o uma filoso f i a radical de amor.
Todos: Exato!
Sócrates: A questão é que mui t os outros tam bé m pregara m es sa filoso f i a. O que torna Jesus diferente?
Bertha: E por que ele tem de ser diferente? Tal vez a razão por que nos identi f i ca m o s com ele seja por
não ser diferente. Ele era cada pessoa, não só cada hom e m. O substanti v o mascul i n o é pro va do
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chauv i n i s m o cultural.
Sócrates: É sério que não se pode falar assi m? Seria chauv i n i s mo referi r- me a mi m com o ele em vez
de ela? Ou você faz questão de usar as duas for m as conco m i t a n te m e n t e?
Bertha: Se Jesus fosse apenas ele, apenas metade do mun d o se identi f i c a r i a co m ele; as mul heres
estaria m fora.
Sócrates: Não sei o que você quer dizer por "se identi f i ca r i a m co m ele", mas certa m e n te, se ele existi u,
deve ter sido ou ho m e m ou mul he r. Ou será que ele era de um terceir o sexo que não conheço?
Bertha: Esta é uma atitude sexista, Sócrates.
Sócrates: E claro que é! Ela diz respeito ao sexo de Jesus. E proi bido fazer esse tipo de come n tár i o?
Eu não consi g o entender.
Fesser: Parece que estam os nos desvian d o do assunto. Bertha, você acredita ou não que o moti v o pelo
qual o mun d o rem o n ta sua Histó r i a a Jesus seja a andro g i n i a? A f i n a l de contas, esta foi a pergu nta com a
qual começa m o s e ainda não a respon de m o s.
Sócrates (Surpreso e satisfeito): Ora, obri gad o, professor, por pros segui r m o s no alvo. Espero
ansiosa m e n te sua resposta, Bertha.
Thomas: É claro que a razão não é esta, Sócrates!
Sócrates: Então, por que a Histó r i a rem o n ta a ele?
Thomas: E só uma tradiçã o.
Sócrates: A tradi ção tem base racio nal?
Thomas: Def i n a "base racio nal".
Sócrates: Jesus era digno de taman ha atenção?
Thomas: Eu não acho.
Molly: Be m, eu acho que sim.
Sócrates: E por que, M o l l y?
Molly ( Percebendo que se excedeu?): Uh... bem... Eu não te nho certeza.
Sócrates: Então, talvez seja hora de se distanci ar do que você acredi ta v a sobre ele para o que os outros
acredi ta m, o que eu relu tei em fazer antes.
Bertha: Vo cê está queren d o dizer que talvez os outros dêem uma resposta mel h o r?
Sócrates: É isso.
Thomas ( Fala sem pensar.): As pessoas dize m que ele era Deus.
Sócrates ( Pensando ter ouvido errado.): Descul pe?
Thomas: M u i t os acredi ta v a m que ele era Deus.
Sócrates: Uma divi n da de, você quer dizer.
Thomas: Não, o Deus, o supre m o Deus. O Deus e único Deus.
Sócrates: É claro que o que você entende da palav ra deus é algo mui to diferente do que eu entend o, em
especial, quand o usada no singu l ar.
Thomas: Não, Sócrates! De certa for m a, o Deus do qual eles fala m é até mais divi n o, mais exaltado e
mais perfei to que o Deus sobre o qual você fala.
Sócrates: E eles dize m que Jesus, o ho m e m , o ser hu m a n o era esse Deus supre m o?
Thomas: Si m, é isso que eles dize m.
Sócrates: Que m? Que m acredita nisso... nessas coisas?
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Thomas: Os cristãos.
Sócrates: Tod os os cristãos?
Thomas: M u i t os deles, em suma.
Sócrates: A mai o r i a?
Thomas: Ac h o que sim.
Sócrates: E uma visão recente esta? A seita for m a da por esses cristãos tem algu m a infl uê n c i a?
Thomas: Não, esta é a visão tradi ci o n a l.
Sócrates: Por quanto tem p o?
Thomas: Desde os tem p os de Jesus.
Sócrates: Extrao r d i n á r i o! Be m, mudan d o de quanti da de para qual i da de, e quanto aos filóso f os e
teólo gas de vocês? O mais sábio deles acredi ta nisso?
Thomas: Até pouc o tem p o, a mai or i a dos filóso f o s e teól og os cristãos acredita va.
Sócrates: M a is notável ainda! E quanto aos ho m e ns e mul he res santos?
Thomas: Os santos? Eles são ainda mais unâni m e s na crença.
Sócrates: Esta é a doutri na ofici al?
Thomas: Si m! Tod os os credos a ensina m.
Sócrates: Credos?
Thomas: E a declaração oficia l de crença.
Sócrates: Há mais de uma?
Thomas: Si m.
Sócrates: E todas dize m isso?
Thomas: Si m, de manei ras diversas.
Sócrates: E quanto aos discí p u l o s mais pró x i m o s de Jesus, aque les que o conheci a m pessoal m e n t e,
acredi ta v a m que ele era Deus?
Thomas: Si m. Vej a bem, Sócrates, uma crendi ce torna- se mui to poderosa uma vez que com eça...
Sócrates: E... parece mes m o! E que m come ç o u isso?
Thomas: Be m, segun d o os relatos, foi o própr i o Jesus, e a blas fêm i a foi a causa de o terem cruci f i c a d o.
Sócrates: Ele mes m o afir m a v a ser Deus?
Thomas: Si m.
Sócrates: Ele afir m o u isso mes m o?
Thomas: De acord o com os únicos relatos dos quatro evange lhos, ele afir m o u.
Sócrates: Em uma única ocasião?
Thomas: Não, muitas vezes e de mui tas manei ras.
Sócrates: Co m o? De que manei ras?
Thomas: Cha m a v a a si mes m o de Filh o de Deus. A f i r m a v a que não tinha pecado, que perdoa va os
pecados do mun d o e viria no fi m dos tem p os para julgar o mun d o. Ta m b é m afir m o u: "Eu e o Pai som os
um", "Que m me vê, vê o Pai" e "Antes de Ab raã o nas cer, Eu Sou".
Sócrates: Vo cê não acredi ta nisso, acredi ta, Tho m a s?
Thomas: Não, Sócrates, é co m p l eta m e n t e irraci o na l.
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Sócrates: E o que parece. E vocês, os demais, em que acredi tam sobre esse tal de Jesus?
Bertha (Olhando com afronta para Thomas.)'. M a i s que ele, em todo caso.
Sócrates: Vo cê acredi ta que ele era Deus?
Bertha: Não.
Sophia: Eu não acho que fosse.
Sócrates: Então, por que estuda sobre ele?
Bertha: Ora, porque foi um grande filóso f o, um ho m e m sábio.
Sócrates: Ah, não, isso, de qualq ue r for m a, não pode ser.
Bertha (Surpresa, enquanto os demais também,de repente,levantam os olhos?): O quê? Por que não?
Sócrates: Ac h o que posso mostrar isso de mod o mui t o fácil. Tho m as, você acha que ele era um grande
fil óso f o? Em que você acredita sobre ele?
Thomas: Eu não acredit o em nada. Eu, com certeza, não acre dito que ele era Deus.
Sócrates: E acredi ta que ele era um grande fil óso f o?
Thomas: Não. Eu acredi to que ele era um grande farsante. Pen so que foi ele que m com eç o u as mai ores
crendi ces do mun d o.
Sócrates: Obri ga d o. Al g u é m de vocês acredi ta que ele era Deus?
Ah men: Eu acredit o.
Sócrates: Eu entend o. Então apenas você, A h m e n, tem o direi to de acreditar que ele era um grande
fil óso f o.
Os outros: Quê? Por quê?
Sócrates: Ora, é muit o
certo. M as se não é, então
pode ser um hom e m sábio.
seja quer não que m afir m a
ambos os casos.
sim p l es. O hom e m afir m a v a ser Deus. Se ele é Deus, então só A h m e n está
apenas o Tho m a s está, porq ue um hom e m com u m que afir m a ser Deus não
Para dizer a verdade, parece seria m e n te ter falta de bom senso. Assi m, q u er ele
ser, é possí ve l que só um de vocês esteja certo, estan do a mai or i a errada em
Bertha: M as ele, com certeza, era um hom e m sábio. Leia os Evan ge l h o s e com p r o v a r á.
Sócrates: Isso não é possí vel!
Bertha: Co m o sabe? V ocê nunca os leu.
Sócrates: Vo cês não percebe m? Não pode ser, a menos que um triâng u l o possa ter quatro lados. U m
sim pl es hom e m que afir ma ser Deus não pode ser um hom e m sábio, e um Deus que afir m a ser Deus
tam p o u c o é um mero hom e m sábio. O pri m e i r o é um tolo e o segund o é Deus. Jesus deve ser ou um tolo
ou Deus. A única coisa que talvez ele não possa ser é um sim p l es ho me m sábio.
Bertha: Então, por que mui t os acha m que era sim pl es m e n te isso que ele era?
Sócrates: E exata m e n te a min ha pergu nta e eu a faço agora, não às mui tas pessoas que estão ausentes,
mas a vocês aqui. Por que escol he m a possibi l i d a d e mais ilógi ca, a única que, por natu reza, se contrad i z?
Vo cês conhece m a lógi ca, por certo.
Bertha: Professor, pode me ajudar a sair dessa?
Fesser: Tenh o dúvi d as de que a mi n ha função com o professor seja esta.
Sócrates: Oh, eu ficari a mui t o grato se fosse professor. Isso me libertari a de situações difí ceis. V ocê,
por certo, concor da com o meu racioc í n i o.
Fesser: Não sei se posso afir m a r que conco r d o, Sócrates.
Sócrates: Percebe algu m probl e m a nele?
69 | P á g i n a
Fesser: Não é isso.
Sócrates: Real m e n te, você não acredi ta que esse ho m e m era Deus?
Fesser: Não, não no senti do em que eu acho que você acredi ta; claro que não. M as você me parece
mei o infle x í v e l e dema siado lógi c o, Sócrates, um pouc o ingênu o, exata m e n te com o o Sócrates históri c o.
Sócrates: Há um bo m moti v o para isto: uma coisa, com u m e n te, se parece com ela mes m a. (A turma ri
baixinho.)
Thomas: Eu discor d o, professor. Eu não vejo com o algué m pode ser lógi c o demais. Vo cê quer que
cometa m o s alguns erros lógi c os de vez em quand o? Quer que sejam os incoere ntes dois por cento do
tem p o, diga m o s, unica m e n t e quanto estiver m o s discu tindo a respeito de Jesus?
Fesser: Não.
Sócrates: Será que todos vocês não consegue m perceber que esse hom e m deve ter perdi d o a razão?
Thomas: Sócrates, todos são víti m as da crendi ce cultura l nú mero um: não ousa m questi o na r o assunto.
(Dirige-se aos colegas.) Sabe m, todos vocês são mais loucos que um louco para respeitar tanto um louco
a ponto de rem o n ta r a Histó r i a a ele.
Fesser: Não é bem assi m, preto no branco, Tho m as. Jesus pode ter pretend i d o dizer coisas mui t o
diferentes com suas declaraç ões de divi n d a d e, se, de fato, foi ele que m disse.
Sophia: Pode ter sido qualq ue r outro com o mes m o no m e.
Fesser: Não foi o que eu quis dizer, natural m e n te...
Sócrates: M as o que ele quis dizer? Esta deve ser a pri m e i r a pergu n ta, sem dúvi d a. O que ele quis
dizer com a palavra Deus?
Fesser: Excel ente pergu nta. Va m o s discuti- la no próx i m o perí o do. O tem p o está quase acaband o. O que
Jesus quis dizer com a palav ra Deus?
Thomas: E fáci l. Ele era um judeu faland o com judeus. Ele quis dizer o Deus dos judeus, Jeová ou
Yah w e h; referia- se ao Deus da sua cultura. Tod os os nossos conceit os estão condi c i o n a d o s pela cultura,
exceto os da Ló g i ca e os da M ate m á t i c a. E por isso que precisa m o s delas, para elevar nossa cultura
partic u l a r e acond i c i o n á- la à uni versal.
Sócrates: V o cê acha que não há princ í p i o s uni versais mais ele vados que os da Ló g i c a e os da
M ate m á t i c a?
Fesser: Por favor, não vam os mudar de ru m o. A pergu n ta é: o que Jesus quis dizer com a palavra
Deus?
Sócrates: Em outras palavras, que tipo de Deus era o Deus dos judeus?
Fesser: E verdade.
Thomas: E necessári o lerm os as Escrit u ras dos judeus para en contrar m o s resposta a essa pergu nta, não
é?
Sócrates: Então faça m o s exata m e n te isso!
Fesser: M u i t o bem. Eis o que prop o n h o: segui r a linha de in vestigação aberta pelo nosso ami g o
Sócrates aqui e investi ga r o background judai c o de Jesus, o concei to judai c o de Deus, do M es sias de
Deus, o Pro m e t i d o, o qual Jesus tam bé m afir m o u ser.
Sócrates: Está fican d o mais com p l i c a d o.
Fesser: Eis uma lista de leitura sobre o assunto. (Passa adiante os artigos. A turma sussurra com pouco
interesse.)
Sócrates (Lendo a lista.): M as os livr os são todos atuais.
Fesser: Si m, os erudi t os mais moder n o s.
Sócrates: M as não deverí a m o s reforçar os nossos alicerces an tes de edifi car m o s o edifí c i o? Col her os
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nossos dados antes de in terpretá- los?
Fesser: Qual é a sua proposta, Sócrates?
Sócrates: Eu gostaria de ler a Escri tu ra judai ca. Nu n ca fiz isso, com o vocês parece m já ter feito. Ac h o
que a mi n ha desvanta ge m pode ser uma vantage m tam bé m, se o que Tho m as fala for verdade, sobre o
quanto é difí c i l escapar do condi c i o n a m e n t o da nossa cul tura. Eu não tenho condi c i o n a m e n t o cultural no
cristian is m o para superar. Ac h o tam bé m que o meu exe m p l o pode servi r de mode l o para vocês: não seria
uma experiê n c i a marav i l h o sa para todos nós, ler m os as Escri tu ras judai cas com o se fosse pela pri m e i r a
vez, com o eu? É claro que não vencerí a m o s por com p l e t o os nossos preco n ceitos, nem escaparía m o s do
condi c i o n a m e n t o, mas não deverí a mos, pelo menos, tentar fazer isso, tanto quanto possí ve l?
Fesser: E uma excelente sugestão. A classe encontra- se nova mente daqui a uma semana. Por que cada
um de vocês não lê aqui lo que julgar im p o rta n te da lista de leitura, das Escrit u ras judai cas ou de ambas?
Sócrates: Não seria bo m que lêssem os toda a Escrit u ra judai ca?
Fesser: Seria o ideal, natural m e n t e, mas acho que não tem os tem p o para isso.
Sócrates: Qual o vol u m e de leitura e qual o tem p o gasto?
Fesser: Incrí v e l, Sócrates, você real m e n te se com p o r ta com o se não soubesse.
Sócrates: Claro que sim, pois eu não sei mes m o.
Fesser: São cerca de duas mi l pági nas...
Sócrates: Em uma semana? Dá menos de trezentas pági nas por dia. Vo u lê-la toda, a qual q uer custo.
Fesser: Leia o que quiser. Sua tarefa é se preparar para discuti r o background judai c o de Jesus,
princi pa l m e n t e o concei to judai c o de Deus, para a pró x i m a aula. Espero encontrar todos aqui, nova m e n te,
na próx i m a semana. Obri ga d o a todos! Obri ga d o, Sócrates!
Sócrates: Eu é que devo agradecer depois de dizer obri ga d o a Deus por me enviar para cá a fi m de
aprender sobre ele com você.
8
Que estranho, Deus escolher os judeus
A cena é o segundo encontro da turma no seminário de Cristologia do professor Fesser, na Escola de
Teologia Havalarde. Sócrates, Bertha Broadmind, Thomas Keptic, Molly Mooney, Ahmen Ali Louiea e
Salomão Etude estão sentados ao redor da mesa. Sophia Sikh está ausente.O professor Fesser entra.
Fesser: Olá, que bom ver quase todos de volta. Al g u é m sabe se a Sophia desisti u do curso?
Ah men: A Sophia sofre de mon o n u c l e ose infecci osa, mas vai tentar ficar.
Fesser: M u i t o bem! Em todo caso, é bom ver os demais de volta. Tenh o certeza de que todos se
lem bra m da tarefa da semana passada que havia sido sugestão de... uh... Sócrates, aqui, de fazer algu m a
leitura e pesquisa livre sobre o background judai c o de Jesus, princi pa l m e n t e no que se refere ao conceit o
judai c o de Deus. A sugestão era que vocês lessem quaisquer fontes de infor m a ç ã o que jul gasse m
pro ve i t osas. Passei uma lista de leitura para os de mais, porque Sócrates falou que pretend i a ler a Escrit ura
hebrai ca toda em uma semana. Não foi isso, Sócrates?
Sócrates: Isso mes m o.
Fesser: Be m, então vam os com eçar co m você. Conseg u i u ter minar todo o A nt i g o Testa m e n t o?
Sócrates: Si m.
Fesser: O que aprende u com a leitura, então, Sócrates? Pri m e i r o, diga- nos o que estava procu ra n d o, e
então se encontr o u, por favor.
Sócrates: Eu estava em busca do que Jesus quis dizer quand o usou o term o Deus.
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Fesser: Bo m... talvez devêsse m os recapit u l a r com o surgi u esse questi o na m e n t o.
Sócrates: M u i t o bem, estáva m o s todos conf usos — eu, pelo menos, estava — com a declaraçã o de
Jesus de ser ele esse Deus, de algu m a for m a, indepen d e n te m e n t e do que isso pudesse signi f i c a r. Assi m,
me ocorreu esta sucessão de idéias, a que me pareceu raci o nal dar curso: a fi m de com p ree n d e r a grande
infl uê n c i a de Jesus na Histór i a, que foi a pergu n ta com a qual com ece i, eu precisava co nhecer Jesus,
natural m e n te. E para isso, eu tam bé m precisava com preender o seu conceit o de si mes m o, que m ele
afir m a v a ser. U m a vez que ele declara va ser o Deus dos judeus, era preciso ainda en tender o concei to
judai c o de Deus. Então, para chegar a isso eu tive de ler as Escri tu ras judai cas. Foi exata m e n te o que fiz.
Fesser: Be m, o que você descob r i u?
Sócrates: Vár ias coisas bastante surpreen de n tes. Não tenho certeza de que você gostaria de ouvi- las?
Fesser: Segura m e n te. E por que não?
Sócrates: Vo cê está bem fam i l i a r i za d o com todas elas, acho, mas eu não. Na verdade, eu deveri a estar
aprende n d o e você ensinan d o, em vez de o contrár i o, não é assi m? Te m certeza de que você quer ouvi r
todas essas coisas já tão antigas, embo ra novas para mi m?
Fesser: Não faz parte do méto d o socráti c o um tipo de inversão de papéis entre aluno e professor, de
mod o que um aprende enquant o en sina e o outro ensina enquant o aprende? Vo cê fez um trabal h o tão bo m
ao representar o papel de Sócrates até agora que acho que pode conti n u ar hoje a ser o nosso professor. E
assi m que vai aprender, tudo bem?
Sócrates: Eu garanto a você que não estou representan d o papel algu m; isso é absol uta m e n t e sério.
Turma (Menos Bertha.): Certo, Sócrates (Com zelo.).
Sócrates: M as real m e n te não é nada disso. O Deus é bo m por ter-me trazi d o a um lugar tão favorá v e l
com pessoas tão amáveis. M as, professor, tem certeza de que os outros alunos conco r d a m com esse
méto d o?
Fesser: Va m o s pergu nta r a eles: — O que vocês têm a dizer, tur m a? Pode m o s testar os conhec i m e n t o s
do Sócrates, hoje?
Turma: Si m, sim!
Fesser: Então está deci di d o. Ag o r a nos fale o que aprende u das Escri tu ras judai cas, Sócrates.
Sócrates: Eu li tudo, desde históri a, profec i as e crôni cas, e sem pre com um prop ósi t o fil osó f i c o em
mente: o conceit o de Deus. E descob r i coisas extraor d i n á r i as para as quais os meus concei tos an teriores
de Deus não me havia m preparad o.
Thomas: Isso se deve a sempre olhar m o s as coisas tendo com o referên c i a precon cei t os do passado, as
própri as categor i as condi cionadas pela sociedade na qual vi ve m o s. Não se pode fugi r à cor das própri as
lentes.
Sócrates: E claro que se pode, Tho m a s, quand o você as tira e olha, em vez de olhar através delas.
Thomas: Não dá para fazer isso, porque não se é real m e n te objeti v o.
Sócrates: E por que não?
Thomas: Porque os pensa m e n t os são deter m i n a d o s pela socie dade na qual se vi ve.
Sócrates: Oh, mas Tho m as, esta opini ão parece a daquele ho me m serrand o o galho da árvore sobre o
qual está assentand o; ela se contrad i z.
Thomas: Co m o?
Sócrates: Se todo pensa m e n t o for total m e n t e deter m i n a d o pelo condi c i o n a m e n t o social e não pelo
mod o com o as coisas de fato tecere m, indepen d e n te m e n t e desse condi c i o n a m e n t o, então tal pensa m e n t o
tam bé m é for m a d o apenas pela opi niã o social, e não pelo que as coisas real m e n te são. Por essa razão, é
menos pro vá v e l ser verdade que o seu oposto, o qual você diz ser verdade. V o cê percebe que isso não
dei xa base algu m a na qual se fir m a r para fazer exata m e n te o que, penso, você quer mui t o fazer, Tho m a s,
e que eu tam bé m quero, que é criti car, avaliar e entender a nossa sociedade? E se nunca pode m o s saber
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com o as coisas de fato são fora do pro cesso de condi c i o n a m e n t o da nossa sociedade, então não se concl u i
que nunca pode m o s criti car tal condi c i o n a m e n t o e sociedade, e nos torna m o s meros conser va d o res do
status quo?
Thomas: Eu não, Sócrates. Ni n g u é m jamais me acusou de ser conser va d o r.
Sócrates: V o cê deve ser ou conser va d o r ou menti r os o ou incoe rente, Tho m a s, porq ue, se você fala a
verdade sobre sua pri m e i r a crença, aquela sobre condi c i o n a m e n t o, e se é coerente o sufici en te para tirar
as concl usões necessárias dessa crença, então deve ser um conser va d o r. Assi m, faça a sua escol ha. O que
você é? U m conta dor de menti ras, trapacei r o ou conser va d o r?
Thomas: Por favor, espere um instante!
Sócrates: Co m prazer!
Thomas: Eu sou um cético radical; é isso que sou.
Sócrates: Se é radical, então deve ter tirado as suas idéias radi cais e anti-sociais de algu m a outra fonte
e não da sociedade com suas tradi ções.
Thomas: Possi ve l m e n t e eu as tirei de outras fontes.
Sócrates: E mes m o?
Fesser: Perdoe m- me, mas acho que não deve m o s nos distan ciar demais para esse atalho agora. Essa
questão de deter m i n i s m o e condi c i o n a m e n t o social é fasci na nte, mas precisa m o s reto m a r o nosso
princi pa l ponto de discussão, que é o conceit o judai c o que Jesus tem de Deus. Na verdade, não tem os
tem p o nesta aula para expl o rar todas estas questões com prof u n d i d a d e.
Sócrates: E por que não?
Fesser ( Surpreso): Porque... porq ue o horári o das aulas é mui t o justo, natural m e n te.
Sócrates: Signi f i c a que a procura da verdade está condi c i o n a d a ao cron o g r a m a social?
Fesser: Ac h o que se poderi a dizer desta for m a, Sócrates.
Sócrates: Enten d o. Tho m as, talvez você esteja um pouc o mais perto da verdade do que eu imag i n a v a.
M as volte m o s a nossa prin cipal questão. Eu queria falar que o meu antig o conceit o do term o Deus foi
prof u n d a m e n t e abalado quand o li as Escri tu ras de vocês. Pois nelas encontrei um conceit o de um Deus
que eu nunca havia encontra d o antes, seja na mente dos meus com pa n h e i r os de Atenas, que acredita va m
nos deuses em que o estado acredita va, seja em quaisq ue r mentes que acredi ta v a m em outros deuses,
com o os egípci os ou os de Orfe u, seja em mi n ha mente.
Fesser: Co m o você contrastaria o Deus dos judeus com os deu ses pagãos, Sócrates?
Sócrates: V o cê usa a palavra pagão nu m senti do mais ampl o, eu acho, porque os três concei tos de
Deus que acabei de menci o nar são muit o diferentes. Ac h o que você tam bé m empre ga a pala vra com o
uma espécie de insult o, não?
Ah men: Não concor d o. Chesterto n afir m a que o paganis m o foi a coisa mais imp o r ta nte no mun d o e o
cristian is m o foi a mai or; tudo mais desde então, tem sido com p arat i v a m e n t e pequen o.
Fesser (Ignorando Ahmen.)'. Sócrates, qual era o seu conceit o de Deus? No que ele era o mes m o e no
que diferia dos conceit os de seus conte m p o r â n e os a respeito de Deus?
Sócrates: Va m o s organi za r o assunto. O mais im p o rta n te, acho, é sim p l es m e n t e a crença de que há
deuses, ou um deus de algu m a espécie. Isso se encai xa com o que você cham a de paganis m o, so mado a
todas as outras religi õ es do mun d o que se opõe m ao ateís mo, ao secularis m o, ao hu m a n i s m o ou a tudo
que você cha m e de sua nova visão de mi n o r i as.
Thomas: Não é uma visão min o r i tár i a entre os grandes círcu los de erudit os hoje, Sócrates.
Sócrates: M as de todos os que já vivera m, a grande mai or i a acredita va em algu m deus.
Thomas: Os antepassados, talvez. M as eles estão mortos.
Sócrates: A mai o r i a das pessoas está morta, você sabe.
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Thomas (Surpreso): O quê?
Sócrates: Só não quero discri m i n a r os mort os.
Ah men: Chesterto n deno m i n o u isso "a dem o c ra c i a dos mor tos". Ele a defi ni a com o uma extensão da
concessão para além da oligarq u i a insign i f i c a n te e arrogante da vida, abrange n d o aqueles que tinha m sido
pri va d os dos seus direitos, não por acidente de nascença, mas em decorrê n c i a da morte por acidente.
Fesser ( Aborrecido com Chesterton.); Esta m os nos desvian d o no vame n te. O que mais tem para nos
dizer sobre o seu concei to de Deus, Sócrates?
Sócrates: Be m, em segund o lugar, a mai or i a das pessoas do meu tem p o achava que havia mui t os
deuses; todav i a, imag i n a v a m fir m e m e n te que todos esses eram apenas máscaras diversas para um único
Deus.
Molly: E qual era esse Deus, Sócrates?
Sócrates: Eu não daria nom e a ele.
Molly: Por que não?
Sócrates: Porque, honesta m e n t e, eu não poderia.
Molly: Essa honesti da de lhe custou a vida, não foi, Sócrates?
Sócrates: Que quer dizer com isso?
Molly: Na Apologia de Platão. Se tivesse dito apenas: "Eu acre dito em Zeus", ou no m ea d o qual q uer um
dos outros deuses do Estado, eles teria m dei xad o você partir.
Sócrates: E bem pro vá v e l que sim, M o l l y. Eu real m e n te não sei como tudo teria terminado, apenas sei
como tudo, de fato, terminou. M as eu jamais poderi a afir m a r saber algo que eu não sabia, princ i pal m e n te
sobre o Deus. Seria im pi e da d e, porq ue eu creio que a mi n ha vocação para a fil oso f i a foi do m de Deus.
Molly: Do orácul o de Del f os, você quer dizer?
Sócrates: Si m. Parece que ele me escol heu entre todos os ate nienses. Ai n d a disse a meu ami g o
Quero f o n t e não haver no mun do intei ro hom e m mais sábio do que eu, por causa da min ha ig norânci a, ou
mel h o r, da mi n ha conv i c ç ã o dessa ignorâ n c i a. Foi isso, aliado a meu desejo de deci frar o orácul o, que me
torno u um fil óso f o, além da mi n ha conv i c çã o de que aqueles que afir m a v a m saber mais, na verdade, nada
sabia m, especial m e n t e sobre os deuses. Entretant o, quand o tentava conscienti z á- los a respeito disso,
passa vam a me odiar.
Thomas: Imag i n e, nós não o odiá m o s, Sócrates. Som os todos de mente aberta aqui.
Sócrates: Óti m o! E a sua mente está aberta a que, Tho m as? À Verda de? Ac ha que há Ver da de e que
poderá encontrá- la algu m dia? É a essa hóspede que a porta de sua mente está aberta?
Thomas: Verda de! V ocê a pron u n c i a com a letra V mai úscu l a. Isso me soa a dog m a t i s m o, Sócrates.
Ah men: Chesterto n diz que uma mente aberta é semel ha n te a uma boca aberta: só é útil se hou ver
algu m a coisa sólida para masti gar.
Fesser: Será que podería m o s voltar vinte e dois sécul os, de Ches terton a Sócrates? O que mais você
pensava sobre Deus, Sócrates?
Sócrates: Outra característi ca da mi n ha crença era algo direta mente ligado ao ceticis m o do Tho m as, eu
acho; isto é, não conhe cem os de fato a natureza e os propósi t os de Deus; entretanto, eu espera va descob r ilos. Eu era um fil óso f o precisa m e n te porque não era um dog m á t i c o nem um cético. Pois é tarefa do
fil óso f o investi gar, e, para investi ga r m o s, tanto deve m o s crer que a verdade existe e deve ser conheci da
quanto que não a conhece m o s ainda. O cético não crê na verdade, tam p o u c o que ela pode ser conheci da;
já o dog m át i c o não acredi ta que precisa m o s dela. Tanto um quanto o outro, a meu ver, não pode m ser
fil óso f os. M as, no que se refere aos dois, estou mais próx i m o do cético que do dog m át i c o quand o se trata
do conhec i m e n t o de Deus.
Fesser: Está certo, neste caso, a existênci a, a uni dade e o desco nheci m e n t o de Deus. O que mais,
Sócrates?
74 | P á g i n a
Sócrates: Não seja m os apressados demais. É possí ve l que a na tureza de Deus não seja totalmente
descon hec i d a. Te m os, por cer to, infor m a ç õ es das quais pode m o s sensata m e n te esperar descob r i r certo
conheci m e n t o de Deus; quero dizer: de nós mes m o s e de nosso mun d o. Pareceu- me racio nal, bem com o à
mai o r i a dos ho mens, pensar que Deus tinha algu m a coisa a ver com a for m a ç ã o e o planeja m e n t o do
Uni v e rs o. Se há uma prov i dê n c i a divi na, se tudo no Uni v e rs o é governa d o por Deus, então, quand o
percebe mos o Uni v e rs o inteiro exibi n d o certas característi cas, parece racio nal concl u i r que Deus tem algo
semel ha n te a essas característi cas, assi m com o o artista se torna conheci d o por sua arte, e o escritor por
seus escritos.
Fesser: E quais característi cas percebeu no Uni v e rs o que o le vara m a concl u i r algo sobre a natureza de
Deus?
Sócrates: Não foi o que a mai or i a concl u i u. As pessoas via m este mun d o com o uma mistu ra de bem e
mal, e, por essa razão, concl u í ra m que os deuses eram uma mistura entre o bem e o mal, que havia deuses
bons e deuses maus e que cada deus era em parte bom, em parte mau.
Fesser: E você não conco r d o u com essa for m a de pensar?
Sócrates: Não. A mi n ha con v i c ç ã o, registrada por Platão em sua obra A República, era de que Deus
tinha de ser total m e n te bom, que o verdadei r o Deus era verdadei ra m e n t e bo m e era tam bé m a orige m não
de todas as coisas, mas apenas das boas.
Fesser: Então você acha que as pessoas de seu tem p o eram politeístas em virtu de do proble m a do mal?
Era-lhes im p ossí v e l acre ditar em um Deus único, Tod o- poder oso e de grande bonda de, por causa da
presença do mal?
Sócrates: Se você prefere expressar isso desta for m a. Segura m e n te, parece raci onal pensar que, se
hou vesse um único Deus que fosse tanto de grande bondade (que deseja somente o bem) quanto Tod opoder oso (capaz de fazer tudo o que deseja), o resultad o seria a ausência do mal em qual q uer lugar do
Uni v e rs o, se, de fato, o Uni v e rs o inteir o fosse diri gi d o por esse Deus. Fesser: Co m o você expl i car i a o
mal, Sócrates?
Sócrates: Parece haver apenas quatro manei ras possí veis: (1) que esse Deus não é Tod o- poder oso; (2)
que ele não se preoc u p a em contro l a r este mun d o; (3) que ele não é de grande bondade; e (4) que não há
Deus, de for m a algu m a.
Fesser: E você concor da com algu m a dessas idéias? Sócrates: Crei o que eu pensava em Deus com o
algo menor que Tod o- poderos o. Nu n ca me ocorre u a idéia de um Deus Tod o- poderos o, não mais do que
ocorreu a meus com p a n h e i r o s de Ate nas. M es m o ao conceber a noção de que Deus era um, eu não
conseg u i a conceber a noção de que ele criara o mun d o do nada. Essa foi uma das surpresas que eu
descobr i nas Escrit u ras judai cas. M as nós estam os nos adiantan d o em nossa históri a. A ntes de con tar o
que me surpreen de u no concei to judai c o de Deus, creio que preciso contar qual era o meu conceit o
anteri or. A mi n ha resposta ao proble m a do mal que você quer saber com p õ e- se de duas par tes:
im pl i c i ta m e n t e, que o Deus não era Tod o- poderos o; expl i c i ta mente, que o mal não era, de mod o algu m,
uma reali dade, mas uma ilusão prov o ca da pela nossa própr i a ignorân c i a.
Molly: Exato. A ignorân c i a tem a ver com idéias parciais; já a verdade, com total i da de.
Ah men: Vo cês dois estão dizen d o que o mal não existe? Que... Fesser (De imediato.): Não vam os
segui r por esse lado agora, tudo bem? E bastante extenso o proble m a do mal. Pri m e i r o, quere m os che gar
ao fi m de outros dois cam i n h os: o concei to que Sócrates tem de Deus e o concei to judai c o de Deus que
Jesus tinha. Sócrates, há mais algu m a coisa que pensava sobre Deus?
Sócrates: Eu pensava que ele devia ter muita sabedor i a e for mosura, pois ve m os essas duas qual i da des
refleti das de for m a tão com o v e n t e na natureza.
Fesser: A h, é verdade. Pessoas de todas as eras se impressi o na m com isso.
Sócrates: M as acho que as pessoas da sua época perdera m mui to a força desse senti do.
Fesser: Por que diz isso, Sócrates?
Sócrates: Há alguns entre vocês forte m e n te tentados a adora rem as estrelas, o Sol ou a Terra?
75 | P á g i n a
Fesser: O judaís m o e o cristiani s m o acabara m com isso.
Sócrates: M as o que acabo u co m a tentação de fazer isso?
Thomas: So m os a geração dem i t o l o g i z a d a, Sócrates. Te m os mui ta cautela com o mito.
Sócrates: Parecia não haver mais nada para desm i t i f i c a r, por que prati ca m e n t e não há mais mitos na
cultura que necessite m ser dem i t o l o g i z a d os. Toda v i a, a constante cautela de vocês quanto aos mitos se
parece com o medo de um ani m a l em exti nçã o ou com a obsessão de um hom e m que conti n ua lavand o as
mãos, depois que cada partí cu l a de sujeira já se foi.
Thomas: Ah, mas Sócrates, as pessoas ainda são ator m e n ta d as por todo tipo de crendi ces e
propaga n das.
Sócrates: Propagan da? É um dos seus mitos? Dei xe- me adi vi n h a r! E o mito do Proper Gander20, que
se recusou a parti ci pa r de uma caça da de gansos selvagens 21 à procu ra do grande pássaro da Verda de?
Thomas: Péssi m a hipótese, Sócrates!
Fesser: E um péssi m o trocad i l h o. Ac he i que você estivesse aci ma desse tipo de coisa.
Sócrates: Ar istó f a n es me coloc o u em um cesto suspenso aci m a da terra, nas nuvens. Eu assegur o que
isso é menti ra! Posso descer ao mais prof u n d o abis m o da degradaçã o da palavra. M as, de volta à
pergu n ta: é possí ve l que você não tenha mitos naturais porq ue tem os hu m a n os em vez disso; talvez eles
apenas tenha m- se desloca do de fora para dentro. M as acho que essa é outra história, um outro desvi o para
um outro dia.
Fesser: Certo! Há algo mais que queira dizer sobre Deus, Sócrates? Sócrates: Não sobre Deus, mas
sobre o que se deve a ele. As pessoas da min ha época geral m e n t e acredi ta v a m que a devoçã o devi da a
Deus consistia em sacri f í c i o s e ceri m o n i a i s, embo ra eu sempre pensasse que o verdadei r o sacri f í c i o
estava em aband o n ar os víci os, e que o verdadei r o ceri m o n i a l fosse uma har m o n i o sa ati vidade da alma. A
sociedade da mi n ha época tinha a tendênc i a de separar o que se cha m a v a reli giã o e ética, o Deus e o bem;
eu tentei uni-las. Na verdade, Platão cha m a v a o supre m o Deus sim pl es m e n te de "o Be m ". Eu acredi ta v a
que a oferta que Deus real m e n te desejava não era uma ovel ha perfeita, mas uma alma perfeita; por isso
identi f i q u e i devoçã o com justiça ou com a saúde da alma.
Fesser: Va m o s resu m i r as concl us ões de Sócrates sobre Deus, antes que leia m o s as Escri tu ras Judaicas.
(1) Deus existe; (2) Deus é único; (3) Deus é descon hec i d o com o um todo; (4) Deus é de grande bondade,
por isso o mal é uma ilusão; (5) Deus é grande em sabedor i a e for m o s u ra, as quais se mani f esta m na
natureza e; (6) Deus quer justiça e perfei çã o da alma. E isso, Sócrates? Sócrates: Basta, por enquant o.
Fesser: Tal vez devêsse m o s pergu ntar mais uma coisa: co m o che gou a essas concl us ões tão-diferentes
das de seus conte m p o r â n e o s? Sócrates: Pela razão, natural m e n te!
Fesser: Então, poderí a m o s acrescentar um séti m o ponto: a ra zão, em vez da tradi ção ou do mito, é o
cam i n h o para se conhecer a Deus. Correto?
Sócrates: Si m. Era isso que eu pensava. Fesser: E o que descobr i u sobre Deus nas Escri tu ras
judai cas? Sócrates: Desco b r i muit o e de muitas manei ras. De algu m as das coisas que encontre i, eu já
suspeita va. Por exem p l o: que há apenas um Deus e que ele é perfei ta m e n te bo m. Ai n d a sobre isso, fiquei
sur preso com a intensi da de com que foi proi b i d a a adoração a outros deuses. A questão de se mul ti p l i c a r
máscaras para Deus, isto é, ter outros deuses, que eu imagi na v a ser um mero erro por ignorâ n c i a e
inocên c i a, foi tom ad o com o adoração a falsos deuses ou mes m o a espírit os do mal, dem ô n i os autênti c os.
O que eu entendi a ser tenta tivas conf usas em busca do verdadei r o Deus, as Escri tu ras com u m e n te
tomara m com o rebel ião e afasta m e n t o dele. Ta m b é m descobr i que esse Deus único era o Deus de toda a
Terra. Em b o r a um povo afir masse ser o escol h i d o — os únicos que verdadei ra m e n t e o conhec ia m porque
ele havia falado com eles — ainda assi m declara v a que ele não era só Deus dos judeus, mas de todos os
pov os. Em relação a isso, surpreen d i- me com o as Escri tu ras judaicas, de algu m mod o, com b i nara m dois
senti d os diferentes, no qual Deus é único: por um lado, que há um único Deus verdadei r o e não mui t os,
de mod o que Deus parece ser especí f i c o; por outro lado, que esse Deus é uni ve rsal, o Deus de toda a
20
21
Alusão à fábula acerca do mito da propaganda: The Very Proper Gander, de James Thurber.
Em inglês, " wild goose-chase" é expressão idiomática que designa a procura vã por algo inatingível, ou uma tentativa infrutífera [N. do T.].
76 | P á g i n a
Terra e toda a bonda de habita nele, inco n d i c i o n a l mente. Eu sem pre havia pensado que o único uni versal
verdadei r o era uma qual i da de em vez de uma entidade, justiça em vez de Zeus, for m os u r a em vez de
A f r o d i t e, verdade em vez de Ap o i o...
Fesser: Al g u m a coisa abstrata em vez de concreta.
Sócrates: Si m. Nun ca conseg u i chegar a uma concl usão clara so bre que tipo de uni dade o verdadei r o
Deus tinha. Fiquei oscilan d o entre um tipo de ling ua ge m e outro, abstrata e concreta. Nas Escrit u ras
judai cas eu encont re i um Deus que é concreto, não no sentid o de que ele seja materi al, é claro, mas no
senti d o de que ele é pecul i ar, uma enti dade verdade i ra, uma Pessoa, com uma natureza defi n i d a, um
caráter e uma vontade. E tam bé m é dito que esse Deus é o Deus de todas as for m as, tanto das uni versais
com o de qual que r uma das de Platão. Eu acho que a idéia que per m i t i u esses livros falare m de Deus co m o
tendo ambos os tipos de uni dade, tanto a de um Deus especí f i co quanto a de um uni versal, foi a idéia da
criação, aquela de que Deus criou tudo o que existe, menos a si mes m o. Esta resol ve o segui nte dile m a:
se, por um lado, Deus é só uma parte de tudo que existe, então ele não pode ser verdadei ra m e n t e
uni versal; se, por outro, Deus é só o Todo de tudo o que existe, então ele não pode ser especí f i c o.
Entretant o, nesse mo m e n t o, eu deparei com a idéia de que ele é o criador de tudo o que existe. E eis uma
segunda coisa que a doutri na da criação me ensino u: esclareceu- me com o Deus poderia ser Tod o- poderoso; deus algu m que é só uma parte do Uni v e rs o todo pode ter poder sobre o todo. Toda v i a, o criado r do
todo teria poder sobre o todo, as sim com o o contado r de histórias tem poder sobre a Histór i a toda.
Fesser: E você não havia encont ra d o o conceit o da criação em sua tradi ção?
Sócrates: Não. Nossos deuses só for m a ra m um mun d o. Eles fazia m parte do Uni v e rs o, do todo
ordenad o. O conceit o de que Deus criara o Uni v e rs o todo sem absol uta m e n t e nada é sim p l es m e n te
inacred i tá ve l. Ac h o que ningué m poderi a ter pensand o nisso por acaso, a não ser por insani da de ou
revelaçã o divi na. Eu ainda não cheguei à concl usã o por qual das duas foi.
Fesser: O que mais você descobr i u sobre o Deus dos judeus? Sócrates: Justiça. Eu sem pre achava
que Deus era perfeita m e n t e bo m. No entanto, essa bonda de de Deus parece ter uma relação pecul iar com
a bondade das obras justas que esse Deus nos ordena que prati q ue m o s. A relação parece ser: "Seja m
santos porque eu, o S EN H O R , O Deus de vocês, sou santo" 22 .
Fesser: E o que você vê de imp o r ta nte nesse ponto? Sócrates: Que Euti f r o estava errado quand o
disse que uma coi sa só é boa porque os deuses assi m deseja m; mel h o r, Deus quer uma coisa porq ue ela é
boa. Aí eu estava certo, ao contrári o de Euti f r o. M as esqueci de dizer, ou mel h o r, não percebi que a razão
por que uma coisa é boa em si mes m a, em parte, é porq ue de al gu m mod o ela se parece com Deus.
Fesser: Poderia expl i car de mod o mais sim p l es?
Sócrates: Em outras palavras, a natureza de Deus com o bon dade é o funda m e n t o da bonda de de tudo o
que faz parte dessa natureza, em qualq ue r aspecto.
Ah men: Esse aspeto não ficou bem claro para mi m ainda, Sócrates, e é mui t o imp o r ta nte. Por favor,
você poderi a expl i car nova m e n t e?
Sócrates: Vo cê algu m a vez já leu a conversa que eu tive com Euti f r o, a qual Platão escreve u?
Bertha: Quer dizer que real m e n te teve essa conversa?
Sócrates: Si m. Por que tanta surpresa?
Bertha: Porque quase todos os erudit os acha m que grande par te dela foi inven çã o de Platão.
Sócrates: Hu m! Erud i t os! E será que acha m que eu tam bé m sou mera inven çã o de Platão? Não
im p o rta que m diz a verdade, apenas a verdade que é dita, menos para um erudit o, que está mais
interessado com o pri m e i r o aspecto do que com o segund o. Per mita m- me, entretant o, tentar expl i car meu
ponto de vista para A h m e n com um pouco mais de clareza. Eu pergu n tei o segui nte a Euti f r o: uma coisa é
boa porque os deuses a ama m ou os deuses a ama m porque ela é boa. Substit ua Deus por deuses e você
tem a pergu n ta que acabei de fazer agora. Ah m e n, você acredi ta que esse Deus descrit o na sua Escri tu ra
existe mes m o, ou não; isto é, um Deus que é Tod o- poder oso e só quer o bem?
Ah men: Si m.
22
Levítico 19.2.
77 | P á g i n a
Sócrates: A mi n ha pergu nta, então, diz respeito à relação entre a vontade desse seu Deus e a bondade
de qual q uer obra feita: você afir m a que uma obra feita é boa porq ue Deus quer que seja? Ahmen: Si m.
Sócrates: Então o seu Deus parece arbitrári o. Já pensou se ele pedis se para cortar a orel ha de seu
vizi n h o amanhã? Seria uma boa ação?
Ah men: Se Deus quisesse, seria. M as... isso parece estranh o, não parece?
Sócrates: Então, a opção é que Deus deseja que tal coisa seja feita porque ela parece boa em si.
Ah men: Parece mel h o r essa opção.
Sócrates: E mes m o? Vo cê gostaria que o seu Deus se curvasse, por assi m dizer, a uma lei mais elevada
do que ele mes m o?
Ah men: Não. Co m o seria isso?
Sócrates: Se a razão pela qual Deus deseja fazer algo estiver fora dele, isto é, na natureza da ação em
si, então é porque Deus ajusta a sua vontade ao fato de a ação ser boa, em vez de deter m i nar o benefí c i o
da ação pela sua vontade.
Fesser: E não é exata m e n te isso que você ensina va, Sócrates?
Sócrates: E. Tenh o a im pressão de que eu estava enganad o, porque eu só consegu i a imag i n a r o tal
Deus segund o o parâ m et r o dos mui t os deuses: com o o mai o r e o mais perfei to entre mui t os, o qual não
ne cessita va dos outros deuses, mas necessita va, apesar disso, de uma lei fora de si mes m o. Porque o Deus
das mi n has concep ç õ es não criara o uni vers o, mas era parte dele e sujeito a suas leis. Entretant o, o Deus
da Bí bl i a de vocês é o senhor do Uni v e rs o e tam bé m das suas leis.
Fesser: V o cê então se volta à pri m e i r a opção, aquela que a von tade de Deus é a fonte de toda bonda de,
não se volta? Esta opção não tornari a Deus arbitrár i o?
Sócrates: Não, porq ue é a natureza deste Deus, a razão e o funda m e n t o da bondade, tanto da bondade
de sua vontade quan to da de seus feitos.
Fesser: Oh. Então você está dizen d o, em outras palav ras, que a vontade de Deus e a bonda de inerente
de certas obras não se rela ciona m eficaz m e n t e entre si com o causa e efeito, em nenhu m a das duas for m as
possí ve is, quer segun d o Euti f r o, em que a bondade da ação é o efeito da vontade de Deus; quer segund o
você, em que a vontade de Deus é o efeito da bondade da ação. M e l h o r que isso, que ambas são efeitos da
mes m a causa com u m , a natureza própr i a de Deus? É isso que você diz, Sócrates?
Sócrates: Exata m e n t e isso. Estou feli z em ver que os mecan is mos concei tua is dos filóso f o s são claros
e usados aqui na acade m i a de mod o tão com p l e t o.
Fesser (Ruborizando.)'. É uma solução bem conhec i da para o seu dile m a, Sócrates. M u i t os dos grandes
teólo g os da nossa tradi ção têm ensinad o isso. O que mais descob r i u nas Escri tu ras que não sabia antes?
Sócrates: Outr o atribut o do Deus dos judeus, que se encontra no conceit o da criação, eu supon h o, diz
respeito a sua onisciên c i a — Deus todo- sabedor i a. O Deus dos judeus não com ete erros e não é ignora nte
acerca de nada referente ao passado, presente ou até do futur o, porque ele parece estar em outra di me nsão
do tem po, fora dele; ele não espera, não muda. "Para o Senhor um dia é com o mi l anos, e mi l anos com o
um dia" 23 .
Fesser: Co m o isto se relaci o n a ao concei to de Deus que você tinha antes?
Sócrates: Os únicos deuses que eu e
que nós, com o som os um pouco mais
do m i n a r com sua sabedor i a porções do
governa o Uni v e rs o intei ro, porq ue ele
criou o todo.
min ha sociedade podía mos conceber eram um pouco mais sábios
sábios que as crianças. Tud o o que eram capazes de fazer era
Uni v e rs o mai o res do que nós podía m o s. Toda v i a, este seu Deus
tem sabedor i a a respeito de tudo, e ele a tem porque planej o u e
Fesser: Enten d o. M u i t o interessante! Eu não havia relaci o na d o de for m a expl í c i ta a doutri n a da
onisciênc i a com a da criação an tes. Há mais algu m a surpresa, Sócrates?
23
2Pedro 3.8.
78 | P á g i n a
Sócrates: A mai o r delas ainda está por vir.
Fesser: E qual é?
Sócrates: O que Deus quer, ou mel h o r, o porquê do seu querer. Perm i ta- me tentar expl i car. Que Deus
devia ter uma vontade e uma lei para os ho m e ns, não foi surpresa nenhu m a para mi m, já que os deuses da
mi n ha época tam bé m tinha m. M as que esse seu Deus supre m a m e n t e perfeit o, o Deus que, de mod o
diferente dos deuses da mi n ha sociedade, não tem absol uta m e n t e necessi dade algu m a de nós, de nossa
adoração, de nossa obediên c i a ou mes m o da própri a existênci a do Uni v e rs o que ele criou, que este Deus,
apesar de tudo, deveria dar leis para nós e se preoc u p ar de mod o tão cuidad os o para que nós
obedecêsse m os a essas leis, tais atitudes não poderi a m ter senão um moti v o possí vel, e eu constante m e n te
en contra va- o em sua Bí b l i a, geral m e n t e im p l í c i t o, mas de vez em quand o expl í c i t o.
Fesser: Que moti v o é esse?
Sócrates: Se não é para si mes m o que ele deseja, uma vez que de nada tem falta, então nós deve m o s
ser a razão de seu querer. Em outras palavras, um amor pura m e n te desinteressad o, um tipo de amor cuja
di m e nsã o eu duvi d o que seja possí vel para nós mortais alcançar m o s por serm os criaturas com p l e ta m e n te
carentes e de pendentes do tem p o. De algu m a for m a, precisa m o s ter esperanças, perspecti v as; e somente
um Deus que é indepen de n te de tem p o e de mudan ças não tem necessi dade algu m a.
Fesser: Alé m disso, o princ i p a l manda m e n t o é que ame m os esse Deus de todo o nosso coração, de toda
a nossa alma, de todo o nosso entendi m e n t o e nossa força e ao nosso próx i m o com o a nós mes m os. V ocê
encontr o u esse manda m e n t o na Bí bl i a tam bé m , não é mes m o?
Sócrates: Si m, encont re i, mas o grande mistéri o é com o obede cer-lhe. Será possí vel? Se o amor que
nos é ordenad o nele é um amor desinteressad o, com o uma pessoa pode amar desinteressada m e n te? Co m o
é possí vel uma criatura finita "ser santa com o Eu, o Senhor seu Deus, sou santo"? Isso parece um mistéri o
indeci f r á v e l.
Fesser: Vê uma possi bi l i d a d e de solução para esse enig m a no con ceito que vam os discuti r em segui da,
que diz respeito à declaração do No v o Testa m e n t o de que esse Deus se torno u hom e m em Jesus?
Sócrates: Oh! Eu com p ree n d o! Quanta insensatez! M as, de que manei ra nós — quer dizer, o poder de
Deus — bastaria para assum i r a for m a hu m a na, mas certa m e n te o poder hum a n o não seria sufici en te para
assum i r a divi n d a d e. Lo g o, se Jesus era esse Deus que se torno u um ho m e m , então ele seria capaz de pôr
em práti ca esse amor divi n o tanto no tem p o quanto na Histó r i a; mas e nós com o pode m o s fazer isso?
Fesser: Ac h o que terem os de adiar essa pergu n ta para mais tar de, depois da leitura do No v o
Testa m e n t o. Ag o ra vam os reto m a r o nosso tópic o referente à natureza do Deus do Ant i g o Testa m e n to,
certo?
Sócrates: A ntes de prossegu i r m o s co m o tópi co, devo dizer que tive uma sensação muit o estranha
quand o li as Escri tu ras de vocês, princ i p a l m e n t e ao deparar com conceit os bastante inco m u n s e sur preende ntes, com o esse de amor desinteressad o. O que mais cha m a a atenção é que essas mes m as
singu l ar i d a d es dava m a im pressão de serem, por algu m a razão, mais com u ns, mais nor m a i s e mais soli da mente centradas em algo do que qualq ue r outra coisa. É difí c i l expl i car. E mui t o mais uma percepçã o,
uma sensação do que algo que eu consi ga defi n i r. Vej a m o s desta for m a: eu, por interesse própr i o, sem pre
esti ve em busca do verdade i r o Deus e pensava que, se o encon trasse, iria recon hecê- lo com o algo
fam i l i a r. De certo mod o, isso me aconteceu quand o descob r i o Deus dos judeus; o contrári o, poré m,
tam bé m aconteceu ao mes m o tem p o. Fiquei abalado e surpreso: min has expectati v as não se tinha m
cum p r i d o; entretanto, acho que, de mod o diferente e mais prof u n d o, elas tam bé m tinha m. Foi com o se
algu m a coisa em mi m mes m o que fosse mais sensata do que eu, o meu dáimon24, eu acho, que sem pre
cond uz i u a mi n ha busca e sem pre soube exata m e n te para onde me levar e não me levar, com o se esse
dáimon estivesse me mostran d o a sua própri a casa.
Ah men: E isso! Sócrates, o seu dáimon era o Espí ri t o Santo!
Sócrates: Que m?
24
Junito BRANDÃO. In: A morte de Sócrates: monólogo filosófico, de Zeferino ROCHA, Escuta, 2001, p. 157, diz que, "etimologicamente, o termo
dáimon está ligado ao verbo daíesthai, que significa 'repartir', 'dividir'. O dáimon seria, portanto, a força e o poder que dividem e repartem a sorte
dos indivíduos. Nesse sentido, ele pode ser considerado tanto uma divindade quanto a força do destino" [N. do T.].
79 | P á g i n a
Ah men: Co m p r ee n d o.
Sócrates: O que ainda não entend o bem é com o um Deus imutá ve l pôde prov o ca r conseqüên c i as
tem p o ra i s inconstantes que são...
Fesser: Ac h o que essa questão é um tanto fil osó f i ca e técni ca demais para entrar m o s nela agora, se não
se im p o r ta, Sócrates. E mais um assunto para outro dia.
Sócrates: Espero que me seja concedi d o mais tem p o extra para exa m i n a r m o s todos esses assuntos que
tem os dei xad o à marge m. Pois bem, vam os voltar à via princ i p a l. Eu ainda não falei sobre a mi n ha mai o r
descoberta, min ha mai o r surpresa e meu mai or mis tério ao ler as Escri tu ras judai cas.
Todos: E qual é, Sócrates?
Sócrates: O no m e de Deus.
Bertha: O no m e de Deus? O que há em um no m e?
Sócrates: Tud o. Penso que as coisas estão conti das em seus ver dadeir os no m es?
Bertha: Eu não entend o, pois os nom es são apenas rótul os.
Sócrates: Eu acho que não. Os rótul os são apenas coisas. Vo cê pensa nos no m es com o coisas, mas eu
penso nas coisas com o no mes. Vo cê pensa nos nom es com o coisas em um mun d o de coi sas, coisas
cercadas de outras coisas. Eu penso nas coisas com o no m es, cercados por no m es verdade i r os. M as esse é
mais um ata lho. Per m i ta m- me expl i car o quanto me im pressi o ne i com o no me de Deus.
Fesser: Há mui t os no m es para Deus nas Escrit uras. V o cê ainda não os conhec ia a parti r da própri a
cultura grega?
Sócrates: Já conheci a. M as todos eram nom es nossos dados a ele. Não fiquei surpreso com os no m es
que os hom e ns na Escri tu ra judai ca dera m para Deus, mas pelo no m e que Deus deu a si mes m o. Tod os os
nossos nom es para ele, não nom e i a m , de fato, o que ele é em si, mas apenas o que ele é em relação a
nós...
Ah men: Por que é assi m, Sócrates?
Sócrates: Obser ve os no m es: Deus, Senhor, Criad o r, Legisl a dor, Juiz e Salvad o r. Ele não é seu própr i o
Deus, Criad o r ou Sal vador, mas o nosso Deus.
Ah men: Enten d o.
Sócrates: Co m o estava dizend o, descobr i nas Escrit u ras judai cas algo que não encontrei em nenhu m a
outra parte e nunca nem mes m o imagi ne i: o verdadei r o nom e de Deus, o no m e que expres sa a essência de
seu própr i o ser, do que ele é em si mes m o. A o me nos, parece ser o que ele disse ao falar a M o i sés na
sarça ardente, cha m a n d o a si mes m o não só pelo no m e referente, "o Deus de Ab raão, o Deus de Isaque, o
Deus de Jacó", mas tam bé m pelo no me absol ut o, "E U SO U " ou "E U SOU QUEM EU SOU". Esse nom e
parecia absol uta m e n t e especial.
Fesser: Vo cê tem razão, Sócrates. Esse é o Tetragrammaton25 sa grado, o nom e que judeu algu m jamais
pronu n c i a. M as qual foi o mistéri o que você descobr i u nele?
Sócrates: Eu é o nom e para um sujeito que pensa ou que tem vontade, não é?
Fesser: E.
Sócrates: O que me dei xa perple x o é de que manei ra pode m o s investi ga r um sim pl es objeto Deus, cuja
verdadei ra essência é ser su jeito? Co m o pode m o s nós ainda conhecer m o s esse Deus por com pleto? Co m o
é possí ve l o nós ser os EUs que transfo r m a m Deus em nosso objeto, nosso Você, se, pela própr i a natureza
de sua essência, ele sem pre é EU, sem pre sujeito? É-nos im p ossí v e l conhecê- lo ver dadei ra m e n t e. Alé m
disso, parece que, ao pronu n c i a r m o s seu verda deiro nom e, o estamos conhece n d o verdadei ra m e n t e.
Fesser: É uma discussão bastante sofisti ca da, Sócrates. Co m o pode m o s conhecer E U SO U?
Ah men: Penso que essa é uma pergu nta bem sim p l es.
25
Quatro letras que expressam o nome divino: YHWH [N. do E.].
80 | P á g i n a
Ah men: Co m p r ee n d o.
Sócrates: O que ainda não entend o bem é com o um Deus imutá ve l pôde prov o ca r conseqüên c i as
tem p o ra i s inconstantes que são...
Fesser: Ac h o que essa questão é um tanto fil osó f i ca e técni ca demais para entrar m o s nela agora, se não
se im p o r ta, Sócrates. E mais um assunto para outro dia.
Sócrates: Espero que me seja concedi d o mais tem p o extra para exa m i n a r m o s todos esses assuntos que
tem os dei xad o à marge m. Pois bem, vam os voltar à via princ i p a l. Eu ainda não falei sobre a mi n ha mai o r
descoberta, min ha mai o r surpresa e meu mai or mistéri o ao ler as Escri tu ras judai cas.
Todos: E qual é, Sócrates?
Sócrates: O no m e de Deus.
Bertha: O no m e de Deus? O que há em um no m e?
Sócrates: Tud o. Penso que as coisas estão conti das em seus ver dadeir os no m es?
Bertha: Eu não entend o, pois os nom es são apenas rótul os.
Sócrates: Eu acho que não. Os rótul os são apenas coisas. Vo cê pensa nos no m es com o coisas, mas eu
penso nas coisas com o no mes. Vo cê pensa nos nom es com o coisas em um mun d o de coi sas, coisas
cercadas de outras coisas. Eu penso nas coisas com o no m es, cercados por no m es verdade i r os. M as esse é
mais um ata lho. Per m i ta m- me expl i car o quanto me im pressi o ne i com o no me de Deus.
Fesser: Há mui t os no m es para Deus nas Escrit uras. V o cê ainda não os conhec ia a parti r da própri a
cultura grega?
Sócrates: Já conheci a. M as todos eram nom es nossos dados a ele. Não fiquei surpreso com os no m es
que os hom e ns na Escri tu ra judai ca dera m para Deus, mas pelo no m e que Deus deu a si mes m o. Tod os os
nossos nom es para ele, não nom e i a m , de fato, o que ele é em si, mas apenas o que ele é em relação a
nós...
Ah men: Por que é assi m, Sócrates?
Sócrates: Obser ve os no m es: Deus, Senhor, Criad o r, Legisl a dor, Juiz e Salvad o r. Ele não é seu própr i o
Deus, Criad o r ou Sal vador, mas o nosso Deus.
Ah men: Enten d o.
Sócrates: Co m o estava dizend o, descobr i nas Escrit u ras judai cas algo que não encontrei em nenhu m a
outra parte e nunca nem mes m o imagi ne i: o verdadei r o nom e de Deus, o no m e que expres sa a essência de
seu própr i o ser, do que ele é em si mes m o. A o me nos, parece ser o que ele disse ao falar a M o i sés na
sarça ardente, cha m a n d o a si mes m o não só pelo no m e referente, "o Deus de Ab raão, o Deus de Isaque, o
Deus de Jacó", mas tam bé m pelo no me absoluto, "EU SOU" ou "EU SOU QUEM EU SOU". Esse nom e
parecia absol uta m e n t e especial.
Fesser: Vo cê tem razão, Sócrates. Esse é o Tetmgrammaton26 sagrado, o no m e que judeu algu m jamais
pronu n c i a. M as qual foi o mistéri o que você descobr i u nele?
Sócrates: Eu é o nom e para um sujeito que pensa ou que tem vontade, não é?
Fesser: E.
Sócrates: O que me dei xa perple x o é de que manei ra pode m o s investi ga r um sim pl es objeto Deus, cuja
verdadei ra essência é ser su jeito? Co m o pode m o s nós ainda conhecer m o s esse Deus por com p l et o? Co m o
é possí ve l o nós ser os EUs que transfo r m a m Deus em nosso objeto, nosso Você, se, pela própr i a natureza
de sua essência, ele sem pre é EU, sem pre sujeito? É-nos im p ossí v e l conhecê- lo ver dadei ra m e n t e. Alé m
disso, parece que, ao pronu n c i a r m o s seu verda deiro nom e, o estamos conhece n d o verdadei ra m e n t e.
Fesser: É uma discussão bastante sofisti ca da, Sócrates. Co m o pode m o s conhecer E U SO U?
Ah men: Penso que essa é uma pergu nta bem sim p l es.
26
Quatro letras que expressam o nome divino: YHWH [N. do E.].
81 | P á g i n a
Fesser: E você tem uma resposta bem sim pl es, imagi n o?
Ah men: Si m! Deus fala, nós ouvi m o s: revelaçã o divi na.
Fesser: Sócrates, foi isso que encontr o u lá?
Sócrates: Si m. Em todas as religi õ es que eu já tenho visto é o ho m e m que tem buscado a Deus. M as
aqui parece ser a históri a de Deus em busca do hom e m. E é por isso que consi der o o milag re do Deus
habitante da eterni da de indo em busca do ho m e m no deserto do tem p o algo muit o im p o rta n te. Se ele não
o tivesse fei to, não vejo com o podería m o s tê-lo conheci d o co m o ele é.
Fesser: Por que você acha que ningué m mais além de M o i sés consegu i u alcançar esse concei to de
Deus?
Sócrates: V o cê não leu as Escrit u ras? M o i sés não consegu i u; ele corresp o n d e u a ele. Pois não era o
concei to de M o i sés, mas de Deus.
Fesser (Um pouco aborrecido, surpreso e perturbado ao mesmo tempo.): Oh... bem... quer seja assi m,
quer não, por que acha que nem você, nem qualq ue r outro pensador jamais teria alcançad o esse concei to,
esse no m e?
Sócrates: Porque eu tentei e fracassei durante toda a min ha vida. Passei mui tas noites acordad o,
pensand o sobre o probl e m a do verdadei r o no m e e natureza de Deus; tudo que já alcancei foi a mi n ha
própri a ignorâ n c i a.
Bertha: Platão não nos falou de todas essas noites, Sócrates. Por quê?
Sócrates: Eu nunca falei delas, nem para ele.
Bertha: Por quê?
Sócrates: Por três razões: (1) eu não queria abalar a fé dos que acredita va m quand o eu estava em
dúvi d as; (2) porq ue esse é um mistéri o sagrado que não deveria ser assunto de falatóri o públ i c o. Para
dizer a verdade, estou um tanto surpreso que o meu dáimon interi o r não me tenha proi b i d o de falar sobre
isso com vocês; (3) devi d o à tendênc i a de Platão e da juvent u de em geral, de transf or mar tudo em dog m as
e siste m as. Eu não queria fundar uma teolo gia socráti ca sobre a própr i a ignorâ n c i a.
Fesser: Então, o que fez?
Sócrates: Pensei, pensei, sonhei, sonhei, e orei, orei para que eu pudesse conhecer o no m e de Deus e
sua natureza, pois o verda deiro nom e fala da natureza; tudo em vão! Foi exata m e n te com o bater contra
uma parede: eu, uma força irresistí v e l, e a parede, um objeto imó v e l.
Fesser: Be m, nesse caso o objeto venceu.
Sócrates: Até agora, sim. Parecia que eu não podia fazer pro gresso contra o vento. Ag o r a eu sei por
quê. O vento vinha de Deus e eu precisa va andar a favor dele.
Fesser: Eu não entend o bem sua metáf o ra.
Sócrates: Eu precisava sim p l es m e n t e ouvi r com o o fizera m Jó e M o i sés. Eu tinha de receber a verdade
com o uma dádi va, um do m.
Fesser: E Deus não lha deu?
Sócrates: Até agora não. Ele não deu esse segredo a nenhu m de nós gregos e eu não sei por quê. Que
estranh o, Deus ter escol h i d o os judeus!
Ah men: Foi isso que Ewer disse! V o cê já o leu?
Sócrates: Não. Quand o dois ho m e ns fala m a verdade, não se deve imagi na r que tenha m copiad o um do
outro, mas da verdade em si.
Molly: Esta é uma questão real m e n te interessante, eu acho: Será que Deus escol heu mes m o os judeus?
Co m o o Deus do Uni verso pôde ser tão pro v i n c i a n o?
Fesser: E outro atalho interessante, M o l l y.
82 | P á g i n a
Sócrates: Perceba m com o deve m o s ser fir m es contra nós mes mos e contra a nossa tendênc i a natural de
nos assentar m o s à beira do cam i n h o ou de nos desviar m o s para os cam p os a fi m de sentir o perfu m e das
flores, quand o quere m o s, em vez disso, chegar em casa! A im pressão é que deve m o s nos opor com
seriedade, não só a toda ignorân c i a, mas tam bé m a todo conhec i m e n t o, caso este nos leve a outro lugar
que não o que procura m o s. Co m o é difí c i l nos concentrar m o s em um único cam i n h o de cada vez!
Bertha: Por que você acha que é difí c i l, Sócrates?
Fesser: Este é mais um desvi o, a mes m a pergu n ta — por que é tão difí c i l fugi r dos atalhos?
Sócrates: Si m, mas me per m i ta discuti- lo rapi da m e n te, caso seja possí ve l. Eu imag i n o fir m e m e n t e que,
com Deus, as coisas se jam bem diferentes e ele sabe tudo ao mes m o tem p o. Toda v i a, não som os Deus. Eu
penso, conseqüe n te m e n t e, que é o desejo de ser Deus e talvez o ressenti m e n t o por não sê-lo que nos leva
a tentar mos ser com o Deus para saber m o s tudo ao mes m o tem p o.
Fesser: Interessante psicanál i se. Entretant o, não co m p r ee n d o por que foi tão difí c i l para você encontrar
o E U SO U ou mes m o se surpreen de r quand o o descobr i u. É possí ve l expl i car para nós?
Sócrates: Vo u tentar, embo ra precise usar as palavras com o um oleiro usa o barro. Eu não conseg u i a
ver Deus com o EU SO U por que não consegu i a entender co m o a condição do eu27e a condição do sou28
podia m ser um. Quero dizer, por mei o da condição do eu e da condição do sou, a essência da condi çã o da
pessoa e da perfei çã o, e tam bé m o caráter da condi çã o de sujeito, o da condi çã o de objeto ou a
singu l ar i d a d e da. pessoa, bem com o a do Ser uni versal.
Fesser: Isso se parece com o dual is m o de Sartre entre ser por si (objeto) e ser em si (consciênc i a,
sujeito).
Sócrates: Eu não conheç o esse Sartre, mas, de qualq ue r for m a, eis o que signi f i c a: pri m e i r o consi dere
a condi çã o do eu; é o mod o de ser de um sujeito, algué m que conhece e tem vontades, uma pessoa. U m a
pessoa, ao menos uma pessoa com uma vontade, pareceri a estar no tem p o. A g o ra consi dere a condição
do SOU, não um ser apenas, mas um Ser supre m o infi n i t o e imutá ve l. Esse Deus deve ser im utá v e l
porque ele é perfeit o. M u d a r signi f i ca r i a adqui r i r uma perfei ção nova, perder um pouco da perfei ção
antiga, ou as duas coisas. Os três tipos de mudan ça são inco m p a t í v e i s com a perfei ção absol uta, a qual, se
não estou enganad o, é dito que esse Deus tem. Assi m, chega- se a isto: Eu não conseg u i a entender com o
Deus podia estar presente no tem p o e na eterni da de ao mes m o tem p o, que me perdoe m a expressão.
Bertha: Por favor, não va m os tom ar mais atalhos. Eu já estou expl o d i n d o com uma dor de cabeça
tem p o ra l e infi n i ta.
Fesser: Eu penso que isso não é um atalho, Bertha. Sócrates, não é verdade que Platão tom o u o parti d o
da condi çã o do SO U, e a mai o r i a das pessoas antes dele, a condi çã o do eu? Isto é, Platão substitu i u a
justiça por Zeus e assi m com os outros deuses.
Sócrates: Si m. Essas parecia m ser as únicas duas opções. Eu não fui tão rápi d o quanto Platão em
abando na r o Eu do Deus por que isso signi f i ca v a que, embo ra fosse possí vel conhecer o Deus, este não
podia conhecer o hom e m, ou mes m o que de algu m a for ma ele pudesse, ele não poderi a amar, uma vez
que eu pensava que o amor fosse um processo tem p o r a l e im per fe i t o. Eu não entend i a com o um Ser
Etern o poderia me amar. Se Deus me ama, então ele não é um ser eterno. Co m o pode Deus, ele mes m o,
ou Ser em Si ter preoc u p açã o, vontade, desejo?
Bertha: E agora entende?
Sócrates: Oh, ainda não. Ape nas vislu m b r o uma luz fraca no horiz o n t e, uma vaga possi bi l i d a d e, ou
talvez as duas coisas. O Deus das Escri tu ras judai cas é plena m e n t e infi n i t o, perfei to e inalterad o por nós,
além de uni versal. Ele é o criado r do tem p o e, por isso, transcen de a tem p o r a l i d a d e; mas ainda mais claro
na sua Escrit u ra é o fato de que ele ama, cuida, age e fala.
Bertha: Já não estam os nos afastand o demais daqui l o que se imagi na v a ser o nosso princ i p a l foco —
Jesus?
27
O conceito de I-ness, particularmente na terminologia de Thomas Ogden, designa o indivíduo em sua capacidade de gerar um sentido; uma
espécie de eu-idade. REVISTA DE PSICOL. USE O inconsciente e a constituição de significados na vida mental, São Paulo, vol.10, 1999 [N. doT.].
28
Ser, a continuação do ser. As emoções, o conhecimento natural de si mesmo [N. do T.]
83 | P á g i n a
Sócrates: E possí vel que não, porque um Deus assi m co m o eu estou co meça n d o a com p ree n de r podia
até se tornar ho m e m se quisesse.
Bertha: Não com p ree n d o isso. Qual é a relação lógi ca?
Sócrates: A uni dade da condi çã o do SO U e da condi çã o do eu em Deus que lhe possi bi l i ta agir no
tem p o, ao dar uma lei, inspirar os profetas e reali zar mi lagres, tam bé m pode lhe conferi r poder para
assum i r a for m a corpó rea no tem p o, revestir- se de tem p o r a l i d a d e, sem perder, de mod o algu m, a sua
infi n i t u d e... é possí ve l. Eu não sei se isso é assi m ou se não é, ao certo, nem de que maneira é assi m se de
fato é. M as a idéia que eu tinha na semana passada com o total m e n t e absurda e im p ossí v e l, o conceit o de
que um ser hu m a n o cha m a d o Jesus podia ser o Deus supre m o e eterno que criou todo o Uni v e rs o, agora
me parece possí ve l, talvez possí ve l, quase possí vel ou talvez quase possí vel.
Thomas: De va ga r, Sócrates, eu não com p ree n d o. V ocê disse que descobr i u a transcen dê n c i a e a
distin g u i b i l i d a d e do Deus dos judeus na Escrit u ra deles, a manei ra pela qual esse Deus transcen de, não só
as im per f e i ç õ es dos concei tos idólatras dos deuses, mas tam bé m o Uni v e rs o inteir o por ser o seu criador.
Sou levad o a pen sar que esta nova idéia, a da transcen dê n c i a de Deus, tornaria mui t o mais difí ci l, e não
mais fáci l, para você refleti r sobre a pos sibil i da de da encarnaçã o deste Deus. U m Deus mais próx i m o da
natureza poderia se tornar mais facil m e n t e parte dessa natureza, mas um Deus até agora distante, com o
poderi a?
Sócrates: Eu entend o sua difi c u l d a d e, Tho m as, mas ela é resul tado de se pensar o espíri to e suas
possi bi l i d a des à luz das leis restri tas e li m i ta das da matéri a. Seria mais difí c i l ir do Egito para Atenas que
de Esparta para Atenas; por isso, seria mais difí ci l sair do pa raíso para a terra que descer do fir m a m e n t o
para baix o. Não é isso? M as há analog i as até mes m o no mun d o material para a verdade que eu acho que
com p r ee n d o: que a transcen dê n c i a torna a imanên c i a mais possí vel e não menos. To m e m o s, por exem p l o,
a luz: ela não tem cor e transcen de a todas as cores. Não é assi m?
Thomas: Si m. Co m o...?
Sócrates: Não é precisa m e n t e por essa razão que ela pode ser imanente a todas as cores e não apenas a
uma? Se a luz fosse amarela, não poderi a tam bé m ser azul. M as porq ue ela não é nem amarela nem azul,
pode ser tanto uma quanto a outra. Ou consi dere um exe m p l o ainda mel h o r: ela não tem for m a, não é
verde, quadrada, ani m a l ou mi neral. Não é isso?
Thomas: E verdade.
Sócrates: E não é exata m e n te por esse moti v o que ela pode assu m i r todas as for m as do mun d o, que
pode se identi f i c a r com o verde, azul, quadrad o, triâng u l o, ani m a l e o mineral?
Thomas: O bom senso diria que sim. M as penso que a ciência daria outra expl i ca çã o: é mera m e n te
bioq u í m i c a cerebral.
Sócrates: O pensa m e n t o é só bioqu í m i c a?
Thomas: Si m.
Sócrates: Então a diferença entre um concei to verdadei r o e um fal so é a diferença entre um concei to
com uma grande, pequena ou dupla carga elétrica e outro com algu m tipo diferente de carga elétrica?
Fesser: M a is um desvi o, caval he i r o. De volta ao cam i n h o prin cipal, por favor, pois tem os pouc os
mi n ut os.
Sócrates: Co m o parece contrári o às leis da natureza curvar- se ao Te m p o e não à Ver da de. M as parece
que é necessári o. M u i t o bem. Então, min ha questão, Tho m a s, é que Deus está mais para racioc í n i o que
para coisas. Some n te um Deus que não é apenas parte li m i ta da do todo poderia assu m i r esse todo de fora,
por as sim dizer — mais uma metáf o ra relati va ao espaço — e se tornar parte da própri a criação.
Thomas: Por que de fora é uma metáf o ra?
Sócrates: Ora, porque, de outra for m a, podía m o s voar até ele, se voásse m os o bastante.
Thomas (Risos.): M as com o o Deus do todo poderi a se tornar apenas parte? A luz apresenta- se em
todas as cores e o conheci m e n to em todas as for m as naturais, mas esse Deus, de acordo com os cristãos,
torno u- se um ser hu m a n o especí f i c o.
84 | P á g i n a
Sócrates: É possí vel que seja com o o autor de uma história o qual se coloca na própr i a históri a com o
uma das suas personage ns, no devi d o tem p o, diga m os, no terceir o capítu l o. Ele então seria tanto uma
parte da Histó r i a, li m i ta d o no espaço e no tem p o com o qualq ue r outra personage m, com o tam bé m estaria
fora da Histó ria, sem qual q uer li m i ta çã o por ser o criado r de toda a Histó r i a.
Thomas: Isso não seria mi lagre, e a Encarnação é um milag re.
Sócrates: A pe nas para nós, não para Deus. O fato de o autor se colocar na Histó r i a não é mila gre para
ele, mas aceitá ve l do ponto de vista de seus poderes naturais. No entanto, é um mila gre para as outras
persona ge ns na históri a.
Thomas: Co m p r ee n d o... desse mod o, você defi n i r i a um mila gre com o algo semel ha n te a isto: neste
caso, um artista inseri n d o traços de pincel na sua pintu ra os quais não dava m conti n u i d a d e aos demais; ou
com o um músi c o acrescentan d o notas em uma sin fonia que não aco m p a n h a v a m a seqüênci a das
antecedentes e cujas notas não podia m ser previstas por elas?
Sócrates: Ap r o x i m a d a m e n t e isso.
Fesser: Outr o atalho — milag res. Caval hei r os, a cam pa i n h a está prestes a tocar. Va m o s term i na r, por
favor. A o n d e você acha que devería m o s ir depois disso, Sócrates? Consi dera n d o a natureza do Deus dos
judeus, você agora acha que o mistéri o de Cristo é bastante prová v e l?
Sócrates: Oh, não, eu não disse isso, porq ue ainda causaria mui to im pact o. De acord o com os registros
de vocês, isso não choco u os judeus?
Ah men: Eu diria que sim!
Sócrates: Eu pensei que só estáva m o s
torno u um ho m e m , ou mes m o se é possí ve l
tona quand o refleti m o s sobre sua natureza
Estáva m o s ape nas investi ga n d o o conceit o,
consi dera n d o a natureza desse Deus e não se ele de fato se
para ele se tornar um hom e m — embo ra este assunto venha à
— nem mes mo se semel ha nte Deus real m e n te existe ou não.
a essência.
Fesser: E o que essa essência lhe ensino u, Sócrates, se é possí ve l resu m i r em um mi n u t o?
Sócrates: Vej o que pode ser útil estar sob a pressão do tem p o e não despreoc u p a d o com ele. Hu m!
Be m, em resu m o, duas coisas: (1) levo u- me a adm i t i r, embo ra leve m e n t e, a possibi l i d a d e desse mistéri o
que você cha m a a Encarnaçã o do Deus; (2) ensino u- me algu m a coisa sobre o que Jesus deve ter tido a
intençã o de dizer quand o empreg o u a palavra Deus e afir m o u ser esse Deus.
Fesser: E, pela lógi ca, aonde vam os chegar, Sócrates?
Sócrates: A duas coisas, eu acho: (1) se, além de possí ve l, a Encar na çã o é real; (2) que m foi esse tal
Jesus. Por ambos os moti vos, agora eu gostaria de ler o No v o Testa m e n t o judai c o.
Fesser: Óti m a sugestão, além de ser uma seqüênc i a lógi ca, vo cês não conco r d a m , pessoal?
Turma: Si m.
Bertha: De volta à base. O No v o Testa m e n t o na aula de Cristol o g i a! M a g n í f i c o!
Fesser: Be m, eu penso que o teól og o deveria ser cientí f i c o e o bo m cientista sempre com eça com seus
dados, não começa? Va mos todos ler os Evan gel h os, pelo menos, para a semana que vem. Tenh o uma
lista de leituras aqui tam bé m para que m quiser. (Passa a lista.). Leia m tudo que vocês acha m que seja
im p o rta n te para a pró x i m a vez. Na pró x i m a aula, vam os discuti r as duas questões com as quais Sócrates
term i n o u. Tud o bem?
Turma: Tud o bem.
Fesser: Descul pe m por não term os conseg u i d o ouvi r mais dos outros hoje, mas acho que o Sócrates
aqui resu m i u muit o bem o que um pagão acharia no Ant i g o Testa m e n t o se o lesse pela pri meira vez,
vocês não acha m?
Turma: Si m. M u i t o bom, Sócrates! Excele nte atuação.
Fesser: Então, é hora de ir embo ra. Até a próx i m a semana.
85 | P á g i n a
9
Vejam! Ele está vivo!
A cena é o terceiro encontro da turma do curso de Cristologia do professor Fesser, na Escola de
Teologia Havalarde. Sócrates senta-se atento, pensativo, quieto e sereno. Bertha, Molly, Ahmen,
Salomão e Thomas estão presentes, conversando. Sophia está ausente.
Fesser (Entra inesperadamente)'. M u i t o bem, muit o bem, to dos aqui.
Bertha: Não, Sophia foi embora. Ela aband o n o u o curso.
Fesser: Oh, que pena. Be m, vam os nos aprof u n d a r no assunto hoje, aqui. Nós conco r d a m o s em segui r a
sugestão de nosso ami g o Sócrates (Dá um sorriso de aprovação para Sócrates) e rever desta vez os
textos do No v o Testa m e n t o à luz de nossas últi m as leituras do Ant i g o Testa m e n t o. Sócrates ia tentar lêlos com o se fosse pela pri m e i r a vez. Ac h o que deve ser uma experiê n c i a fasci na nte imag i nar o que um
fil óso f o grego da Ant i g ü i d a d e entenderi a do No v o Testa m e n t o se o lesse.
Sócrates (Fez que não com a cabeça.): Não é preciso imag i n ar. Isso foi real.
Fesser: Certa m e n t e. Então, Sócrates, o que você conseg u i u en tender do No v o Testa m e n t o?
Sócrates: M u i t o mais do que eu esperava.
Fesser: Fale-nos sobre isso. O que você sabe agora que não sabia antes?
Sócrates: Ag o r a sei por que fui trazi d o de volta à vida, nessa época; foi para conhecer algué m que
nasceu quatrocen t os anos de pois que eu morri.
Fesser: Jesus de Nazaré, é claro...
Sócrates: Si m.
Fesser: E você encont r o u o verdadei r o Jesus, assi m com o nós estam os diante do verdadei r o Sócrates?
Sócrates: Si m, encont re i.
Fesser: Ac h o surpreen de nte o efeito que uma pitadi n ha de psicod ra m a pode causar. U m pouc o de
fantasia bem trabal ha da pode de fato ser instruti v o.
Sócrates: Consi de r o ainda mais notável o efeito que uma pes soa de verdade, vi va, pode pro v o c a r. Eu
não estou representan d o, tam p o u c o ele o está.
Fesser: A h, mas a identi da d e de vocês dois certa m e n te está em questão.
Sócrates: Para você, talvez, para mi m, não.
Fesser: O que você quis dizer quand o afir m o u que o conheceu?
Sócrates: Que eu conheci mais que um pretenso Jesus, assi m co mo vocês estão conhece n d o agora mais
que um pretenso Sócrates.
Fesser: Assi m com o... oh, entend o. Si m. M u i t o esperto, Sócrates.
Sócrates: Vo cê está enganad o em ambas as consi deraç ões.
Fesser: O que você quer dizer?
Sócrates: Vo cê não entende, e eu não sou tão esperto.
Fesser: Signi f i c a que você acredi ta de fato na existênci a real de Jesus e de Sócrates?
Sócrates: Si m, você pode colocar deste mod o.
Fesser: V o cê afir m a ter vi vi d o uma experiên c i a místi ca?
Sócrates: A f i r m o ter conhec i d o uma pessoa. Isso é uma expe riência místi ca? Então, nesse senti d o,
posso dizer que sim.
Fesser: Pela pri m e i ra vez você parece não fazer tanto senti do para mi m, Sócrates.
86 | P á g i n a
Ah men: Be m, ele faz senti do para mi m, mais do que costu m a va fazer antes. Ele até parece diferente
hoje. E todav i a — com o posso dizer? — Sócrates, você me parece mais você mes m o hoje do que nunca;
mais socráti c o, de algu m mod o.
Sócrates (Firmemente.): Não estam os aqui para falar de mi m, mas sim para olhar para ele, tanto neste
curso quanto neste mun d o.
Fesser: Então faça m os exata m e n te isso. Sócrates, conte- nos, vo cê recebeu Jesus diferente m e n t e dos
judeus? Se você respon d e u sim, acredi ta ser devi d o à sua diferen ça cultural, à sua herança grega?
Sócrates: Esta ainda é uma pergu n ta sobre mim, não sobre ele. M as para respon de r a isso, tom o por
verdadei ra uma das citações neste livr o, mais ou menos assi m: "Para Cristo não há diferença entre judeus
e gregos" 29 . Não está certo?
Fesser: Si m, é do apóstol o Paulo. Poderia nos expl i car o que isto signi f i ca?
Sócrates: Que Jesus prov o ca em cada um as mes m as reações básicas, acredit o. Por exem p l o,
com p r ee n d i total m e n te a reação dos judeus para com ele, embo ra eu seja grego.
Fesser: Que judeus? Que reação?
Sócrates: Boa pergu nta. Ha v i a diferentes grup os e diferentes reações. Ac h o que com p ree n d o todos
eles. Pri m e i r o, os erudit os, os escri bas, os fil óso f os judeus. Eles ficara m sim p l es m e n t e atôni tos.
"Ni n g u é m jamais falou da manei ra co m o esse hom e m fala" 30 era a reação deles. Entend o por quê. Ha v i a
algo a mais que o mai o r filóso f o do mun d o ali. Ele dissipa va as dúvi das deles com o o sol que dissipa uma
espessa névoa.
Fesser: E quanto aos outros grupos?
Sócrates: Dois deles eram os me m b r os do Sinédri o e os
grupo políti c o que estava no poder com o rei Hero des. Em
reli gi osas. A m b as se sentia m prof u n d a m e n t e ameaçadas
consi dera va m ameaçad os até mes mo por mi m, então posso
sentia m ameaçad os por ele.
herod i a n os que, pelo que percebo, eram o
outras palav ras, as autori da des políti cas e
por este ho m e m . Em Atenas, eles se
certa m e n te com p r ee n d e r o quanto eles se
Bertha: M as por que tanto medo? Nu n ca com p ree n d i bem isso.
Sócrates: Então você nunca o com p r ee n de u. A autori da de é perspi caz, com o um ani m a l que possui
instint os para identi f i c a r seus ini m i g o s naturais, ou com o um corpo que rejeita organis m o s estranh os. Eles
eram com o a água e ele era com o o fogo; se não acabasse m com ele, ele os consu m i r i a. Co m freqüê n c i a
falava de suas ino vaç õ es extre m as ao dizer, por exe m p l o, que não "se põe vi nho nov o em vasil ha de
couro velha" 31 .
Fesser: E havia um quarto grupo?
Sócrates: Si m, o pov o, as massas que o adorava m em uma se mana e cla m a va m por sua cruci f i c a çã o na
outra. A mul ti dã o instá vel — tudo me parecia mui t o fam i l i a r, com o se Jerusalé m fosse uma dem o c ra c i a
exata m e n te com o Atenas.
Bertha: Vo cê está nos dizen d o que a dem o c rac i a é preju d i c i a l?
Fesser: Perdão, Bertha, mas não vam os nos desviar da questão, certo? Sócrates, você percebeu qualq uer
outra reação por parte de algu m outro grup o?
Sócrates: Tal ve z de um qui nt o grupo, de reli gi os os judeus, que estava m sufi cie nte m e n t e lúci d os para
perceber que teria m de ado rá-lo, se ele fosse o Deus que afir m a v a ser, ou cruci f i c á- lo, caso não fosse.
Pois M o i sés havia ordenad o pena de morte por blasfê m i a, e, se ele não fosse Deus, era então o mai or dos
blasfe m a d o r es. M as os judeus não tinha m certeza de qual dos dois Jesus era. Então eles o ouvi ra m, o
observara m e esperara m interro g at i v a m e n t e.
Fesser: E creio que você se encai xa neste grup o, Sócrates? Dos questi o na d o r es, investi ga d o res,
agnósti c os?
29
Colossenses 3.11.
João 7.46.
31
Mateus 9.17
30
87 | P á g i n a
Sócrates: Em princ í p i o, sim. Co m o Ni c o d e m o s.
Ah men: E por que não ao sexto grup o, Sócrates, o dos discí p u l os?
Sócrates: Em princ í p i o pensei que este seria o grup o com o qual haveri a menos possibi l i d a de de me
identi f i ca r, devi d o à imen sa im pr o b a b i l i d a d e de sua princ i p a l crença que via aquele hom e m com o o
própri o Deus em carne.
Ah men: Por que isso parecia tão im pr o v á v e l?
Sócrates: Vo cê não entende? E com o dizer que um quadrad o é ao mes m o tem p o um círcul o. Co m o
pode a natureza divi na coexisti r com a natureza hu m a na? Co m o pode o mes m o ho me m ser ao mes m o
tem p o eterno e tem p o r a l, imortal e mortal, divi n o e hum a n o? Essa certa m e n te parece uma contrad i çã o
mui to grande e mui t o óbvia para qual que r um que tenha um pouc o de lógi ca.
Thomas: Dentr o, Sócrates!
Sócrates: Não, Tho m a s, fora. Fora do ponto princi pa l. Porque o que encontrei quand o li este livr o não
foi uma essência ou um conceit o ou uma natureza, mas uma pessoa.
Thomas (Chocado.): Então você perdeu a razão?
Sócrates (Com firmeza.): E certo que não! M as não parece que a razão por si mes m a deve recon he cer
algo além dela?
Thomas: Não. Por quê?
Sócrates: Por um moti v o: as coisas têm de ter razão, não têm?
Thomas: O que você quer dizer? Que coisas?
Sócrates: Nós raci oci na m o s porque som os pessoas, não é isso? Coisas de uma natureza racio nal?
Thomas: Si m.
Sócrates: M as o possui d o r não é o objeto possuí d o, é?
Thomas: Não estou certo do que você quer dizer.
Sócrates: O sujeito não é o objeto.
Thomas: Ai n d a não sei se entend i aonde você quer chegar.
Sócrates: Isso não é razão que conté m razão; isso som os nós.
Thomas: Oh, certo. E daí?
Sócrates: Então, por mais perfei to e elevad o que você construa o tem p l o da razão, é necessári o que
haja algo debai x o dele, algo com o o solo. E é necessári o ter um construt o r, uma pessoa.
Thomas: Sócrates, isso não parece vir de você.
Sócrates: Não estou dei xan d o para trás nada de mi n ha antiga fil oso f i a, creio eu; apenas estou me
tornan d o mais esclareci d o a respeito. Tud o o que estou dizend o é que uma pessoa é mais que somente
uma natureza, uma essência. U m a pessoa tem natureza ou essência.
Thomas: Tud o bem. Acei t o a distinçã o. E daí?
Sócrates: O que encontrei neste livr o não foi a defi n i çã o de uma essência, mas de uma pessoa; uma
pessoa que obvi a m e n te tinha a essência hu m a na e afir m a v a tam bé m possui r a essên cia divi na.
Thomas: Certo; então você conheceu uma pessoa. M as a afir mação dela é ridí cu l a.
Sócrates: E certa m e n te muit o chocante e parece, diante disso, ridíc u l a. M as você sabe qual min ha
atitude diante das aparênc i as.
Thomas: M as com o algué m pode ter duas naturezas? Isso não é possí ve l.
Sócrates: Essa possi bi l i d a d e ou im p ossi b i l i d a d e tem de ser exa minada, sem dúvi d a. M as há algo mais
que deve ser exa m i n a d o tam bé m, e foi o que fiz. Anal i sei algo verdadei r o, e não apenas su posto. Quer
88 | P á g i n a
dizer, a pessoa de Jesus.
Então pensei que deveria olhar pri m e i r o para ele, e depois para as duas essências um pouco mais, embora
já houvesse observa d o na semana passada a essência divi na de acord o com o Ant i g o Tes tament o de
vocês, e tenha obser va d o a essência hum a na durante toda a mi n ha vida. O pri m e i r o e mai or manda m e n t o
para mi m era "Con hece- te a ti mes m o".
Fesser: Sócrates, acho que esse discurso de "ho m e m " e "nature za", o seu conheci m e n t o da história da
teolo g i a cristã e dos credos estão levan d o você a cometer alguns anacro n i s m o s. V o cê real m e n te acha que
o verdadei r o Sócrates se teria apro x i m a d o da fór m u l a niceno- calced o n i a na 32 para chegar ao enig m a
cristol ó g i c o?
Sócrates: Descul pe, mas não tenho a meno r idéia do que você está faland o. Tud o o que sei é que
encontrei uma pessoa...
Thomas: Ac h o que você perdeu a razão.
Sócrates: E preciso perder a razão para conhecer algué m?
Thomas: O que fez então com sua razão?
Sócrates: Fui levado pelo rio da razão para o oceano da nature za hu m a na, para algo que é mais que a
razão e não menos que ela.
Thomas: E uma vez que você foi arrastad o para o oceano, seus pés deixara m o solo e você foi levado
pelas ondas?
Sócrates: A metáf o ra parece adequada.
Thomas: Então você perdeu a razão, os pés.
Sócrates: Na verdade, não. Os nadadores perde m os pés? Pelo contrári o, eles os utili za m tam bé m
enquant o nada m.
Thomas: V o cê quer dizer que ainda está racioc i n a n d o mes m o depois de dar o passo da fé?
Sócrates: Al g o assi m. E mes m o um passo precisa com eçar com os pés. E quand o você term i n a um
passo e cai, é preciso cair sobre os pés nova m e n te.
Thomas: Esta analog i a signi f i c a que você consi dera que havia moti v o s e expl i caç õ es raci ona is para sua
crença, subseqüe nte m e n te?
Sócrates: Si m, é isso.
Thomas: Isso eu quero ver!
Sócrates: Si m, e você verá.
Fesser: Sócrates, você descreve u sua experiên c i a com o sendo arrastado para o mar. Não entend o; você
quer dizer que teve uma experiê n c i a místi ca? Ou apenas se tratava de sentar e pen sar raci onal m e n t e?
Sócrates: Não vejo por que você cha m a conhecer algué m de experiê nc i a místi ca. V ocê está tendo uma
experiê nc i a assi m agora?
Fesser: M as eu estou conhece n d o uma pessoa real. Vo cê apenas leu um livro.
Sócrates: Não, o que fiz não foi somente ler um livr o. Eu co nheci uma pessoa, de verdade. O livr o não
era o alvo de mi n ha experiê nc i a, mas o veícul o, ou a razão.
Ah men: Ou o sacra m e n t o, talvez?
Sócrates: O que é isso, por favor?
Ah men: A defi n i çã o oficia l é "sinal que trans m i t e o que representa".
Sócrates: Be m colocad o. As palavras eram sinais que represen tava m, mas tam bé m ajuda va m de algu m
mod o a tornar presente o hom e m ali representad o, agind o com o um catalisad o r em uma reação quí m i c a.
32
Ver Tese de Ari Luís do Vale RIBEIRO, A cristologia do Concilio de Calcedônia. (Consulte: http://www.teologiaassuncao.br/cursos/2psgr_teologia/teses/Teses_alunos2003/ Ari.doc. Acesso em 12/12/05) [N. doT].
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Fesser: E você acredita no que essa pessoa diz?
Sócrates: Si m, acredit o que ele é que m diz ser. E falarei por que em um min u t o.
Bertha: Então, Sócrates, você se torno u cristão. Que interessante!
Sócrates: Interessante? Vo cê fala disso com o se eu hou vesse apenas mudad o mi n ha fil oso f i a...
Bertha: E não foi o que fez?
Sócrates: Nascer é mudar de filoso f i a? Se é, supon h o que po deria dizer que somente mudei mi n ha
fil oso f i a.
Bertha: Nascer?
Sócrates: Esta é a mais precisa de todas as image ns. Ac h o que é por isso que ele a empreg o u ao falar
aos fil óso f os judeus e aos segui dores de Ni c o de m o s. E uma image m precisa, porque só nascer é uma
mudan ça tão radical quanto esta — uma mudan ça não só no mod o de pensar, mas no mod o de agir de
algué m, e uma muda n ça não apenas de ser menos para ser mais, mas do não-ser para o ser. Al g o novo
nasceu em mi m. Ele mes m o nasceu em mi m, com o o livr o diz.
Bertha: Não com p ree n d o. (Franze o cenho, com expressão interessada)
Sócrates: Eu sei que não. Al g u m de vocês com p r ee n d e? (Supli-cante.) Professor?
Fesser: Há mui tas for m as de com p ree n de r qual q uer image m, Sócrates. Vo cê certa m e n te sabe disso.
Sócrates: Certa m e n t e o sei. M as eu não falava de com p r ee n d e r o sím b o l o, mas de com p ree n de r o que
ele sim b o l i za.
Fesser: A coisa que ele sim b o l i z a?
Sócrates: O que quer dizer?
Fesser: V o cê supõe existir apenas um nível, uma di me nsão da reali dade?
Sócrates: Nun ca pensei que deixar i a passar a oport u n i d a d e de pescar um peixe metaf ísi c o, com o esta
pergu n ta. M as é exata m e n te o que estou prestes a fazer. Porque encontre i uma baleia, e mes m o os
aparatos de pesca da metafí si ca são inadequa d o s para capturar essa baleia. Penso que tem os persegui d o
nossos questi o na m e n t os com propósi t os adm i ra v e l m e n t e deci di d o s até agora, mui tas vezes nos recusand o
desvi os encantad os e long os em atalhos im p o r ta ntes e fasci na ntes. M es m o esta questão é com o atalho,
acredi to. Quer o dizer a questão sobre o que signi f i ca realidade, e se pode m o s ou não falar de algo com o a
reali dade. A ntes, devo fazer outra pergu nta. Te m o que seja mal- interpreta da e cause embaraç o, então
tenha m paciênc i a com i g o e se esforce m muit o para não entendere m erro neam en te os moti v o s que me
leva m a pergu nta r.
Classe: E claro, Sócrates. (Favorável, aberta e com olhar convidativo.)
Bertha ( Impaciente,interessada.): Qual é a pergu nta?
Sócrates: Onde estão os cristãos? (Toda a classe parece chocada e embaraçada.)
Bertha: O que quer dizer com isso? Eles estão em todos os lugares.
Sócrates: Aq u i neste lugar?
Bertha: Claro que estão aqui — e em mui t os outros luga res tam bé m.
Sócrates: Então há algo que não entend o.
Bertha: O quê?
Sócrates: Se vocês são todos cristãos, se mui t os de vocês são cris tãos, se alguns de vocês sãos cristãos,
com o poderia a vida de vocês ser a mes m a? Co m o poderia m parecer os mes m os, falar as mes m as coisas,
pensar do mes m o mod o? Co m o seria possí ve l a criança nas cida parecer- se tanto com aquela que ainda
não nasceu? Co m o po deria a vida de vocês ser tão... tão im pert u r b á v e l, se esta coisa inacre ditável é
verdadei ra?
Molly: Sócrates, você está nos condena n d o?
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Sócrates: Ai de mi m, era isso o que eu tem ia que pensasse m. É por isso que a pergu nta é tão
embaraç osa. Vej a m bem, certa m e n te não sou nenhu m perito nesta coisa de cristiani s m o; apenas o des cobri nesses últi m o s dias, então longe de mi m querer falar a qual quer um o que tudo isso real m e n te
signi f i c a. M as este livro de vo cês conta- nos, a todos nós, a mi m, bem co m o a vocês, o que signi f i c a isso
tudo. E se tudo o que está neste livro é verdade, então o seu signi f i ca d o diante de qualq ue r outra coisa que
já vi é com o uma baleia com p ara da a peix i n h os.
Fesser: É bo m que você leve o No v o Testa m e n t o tão a sério, Sócrates, mas...
Sócrates: Bo m? V ocê disse bom?
Molly: Oh, Sócrates, não seja tão negati v o. Esta m os todos fe lizes por você ter encontra d o a felici d a de.
Sócrates: M es m o da feli ci da d e quase nunca é falado neste livr o, mas antes da alegria. Al g u m de vocês
com p r ee n d e esta distinçã o? (To-dos lançam um olhar vago) Be m, todos lera m o No v o Testa m e n t o?
Todos: Claro!
Sócrates: Tal vez vocês não tenha m "'clareado" bem isso. Pois não é o que signi f i c a "deixar claro"
algu m a coisa.
Fesser (Aborrecido, mas ainda interessado): Exata m e n t e, o que vo cê descob r i u que falta, Sócrates?
Sócrates: Tud o!
Fesser: Estou certo de que você, entre todos, poderi a expl i car um pouco mais clara m e n te.
Sócrates: Dev o tentar, certa m e n te. Obser v e bem, se com p ree n do este livro, ele afir m a que o supre m o
Deus- Criad o r torno u- se um ho m e m e então ho m e ns e mul he res poderia m se tornar deuses e deusas,
"parti ci p a n tes da natureza divi na" 33 . Co m o poderi a qual q uer coisa ser a mes m a depois disso, se isso
ocorre de fato?
Fesser: Oh, bem, agora, isso é algo com o o po m o da discór d i a. Dever í a m o s interp retar a metáf o ra de
partici p a çã o da natureza di vina para nos referi r m o s a um aconteci m e n t o históri c o e literal ou essa é, em
vez disso, uma expressão mito l ó g i c a que não deve ser tom ada literal m e n te?
Sócrates: U m mito? V o cê crê que isso é um mito?
Fesser: Al g u ns crêe m, outros não.
Sócrates: E você? O que acha?
Fesser (Desconfortável.): Não é isso que está em questão aqui. Esta é uma sala de aula uni versi tári a,
não um encont r o de classe. (Algumas risadinhas.)
Bertha (Tentando desviar a atenção de Fesser.): Sócrates, você está pergu nta n d o por que não som os
todos santos?
Sócrates: Não; não se for no sentid o de heróis da perfei çã o. As pessoas na sua Bí bl i a não eram santas.
Todas tinha m falhas, diferen temente dos heróis e das heroí nas de mi n ha cultura. A propósi t o, esta é uma
das razões que faz o livro parecer tão real. Não, estou per guntan d o algo mais, algo difí c i l de defi n i r, mas
fáci l de reconhe cer, acredi to, embora o único lugar em que recon hec i isso até agora foi nesse livr o.
Dei x e- me dizer de outro mod o. Quand o li sobre esse hom e m Jesus, sobre seus discí p u l o s e sobre seus
"con v o ca d os" 34 (é o que signi f i ca a igreja, não é?) — quand o li isto, percebi algo tão óbvi o, tão distint o,
tão poder oso e chei o de vida e júbi l o, com o o sol do mei o- dia. Se todas essas coisas real m e n te
acontecera m, então não é difí c i l imag i n ar que todo o mun d o tenha virad o de cabeça para baix o, conf o r m e
diz o livro de vocês, mes m o o cruel mun d o roma no. Não é surpresa imagi na r as pessoas que conhecera m
Cristo, adoran d o- o ou cruci f i ca n d o- o. Ta m p o u c o é surpresa imag i n ar as pessoas que conhecera m seus
discí p u l o s, acredi tara m neles e as ado rara m; ou as que não acredi tara m neles e os persegui ra m por lhes
contar esta menti ra abo m i n á v e l, insana. Foi tudo ou nada, um ou outro.
Fesser: V o cê está defen de n d o o fanatis m o, Sócrates?
33
2Pedro 1.4.
A palavra grega traduzida por "igreja" significa, literalmente, "chamado para fora". Assim, a referência, no caso, é feita a um grupo de pessoas
que foram chamadas para sair do pecado no mundo e servir ao Senhor [N. do T.].
34
91 | P á g i n a
Sócrates: Não.
Fesser: O que então?
Sócrates: Al g o mais pareci d o com um casam en t o. Paixão.
Fidel i d a de.
Fesser: E o que você acha que vê à sua volta em vez disso?
Sócrates: Erudi çã o. Professores e alunos jogand o, com o crian ças jogan d o safári enquant o há um leão
de verdade escond i d o em seu qui ntal. V ocês acha m que estão estudan d o um ho m e m mort o, não acha m?
U m hom e m com o eu o era até poucos dias atrás, em vez de um hom e m viv o, presente e ativo com o sou
agora. Não é o que vêe m?
Bertha: M as Sócrates, Jesus não está aqui com o você está.
Sócrates: O livr o diz que ele está. Os discí p u l o s dele acredi ta vam e agia m com o se ele estivesse. Ele
mes m o pro m e te u estar. Se isso não é um mito, se ele real m e n te ressurgi u dos mortos, então ele não está
mort o, mas vi v o; com o um ani m a l, ao menos tão vi v o quanto um ani m a l. M as vocês parece m estudá- lo
com o se ele fosse uma pintu ra ou uma saliênc i a sobre um tronco. V ocês já se senta ram sobre uma
saliênc i a assi m e percebera m que se tratava de uma rã? Ou talvez o tronc o todo fosse um croco d i l o?
"Esteja m alertas! Ele está viv o!", vocês dize m. Não tenho ouvi d o ningué m dizer na da pareci d o aqui.
Bertha: E foi isso que acontece u com você? O croco d i l o esta va viv o?
Sócrates: Si m. E... para você não?
Bertha ( Evasiva, mas interessada.): Be m, no senti do que...
Sócrates: Vo cê acredi ta ou não que ele real m e n te ressurg i u dos mort os?
Bertha: No senti d o que...
Sócrates: Em que senti do?
Bertha: Tud o ressurge dos mortos. Ele é o arquéti p o, não? Certa m e n te você, mais que todos,
com p r ee n d e os arquéti p os, idéias platôn i cas.
Sócrates: Real m e n te com p r ee n d o, e tão bem, que acho que pos so recon hece r o que é um arquéti p o e o
que é um aconteci m e n t o ou um ente parti cu l ar. Penso que posso distin g u i r Vi da de ani m a l, Justiça de
legislad o r ou a Guerra de uma guerra em partic u l a r. E a afir m a çã o clara das Escrit uras é que o
nasci m e n t o, e a vida, e a mor te, e a ressurrei ção, e a ascensão desse ho m e m Jesus, que dizia ser Deus,
acontecera m um dia na Histó r i a. M as um arquéti p o não acontece. Ele sim p l es m e n t e é. Essa é uma
verdade infi n i ta, um signi f i ca do uni versal, uma possi bi l i d a d e eterna.
Fesser: Ac h o que devería m o s todos ter certeza de que percebe mos essa diferen ça, Sócrates, porque ela
parece ser uma diferença funda m e n ta l entre o referenc i al dos judeus e o dos gregos.
Sócrates: Não sei nada sobre isso, sobre esses referenc i ai s. M e u proble m a agora é, antes de tudo,
com p r ee n d e r esse hom e m.
Fesser: M as você fez uma disti nção entre arquéti p o e aconteci ment o para isso.
Sócrates: Som en te porq ue Bertha o fez. Ela interpret o u Jesus com o um arquéti p o.
Fesser: Be m, uma vez que a distin çã o não se sustento u, poderi a nos dar uma razão mais clara para tudo
isso?
Sócrates: Facil m e n t e. Di ga m o s que as regras da trigo n o m e t r i a são um arquéti p o, enquant o a Gran de
Pirâ m i d e é históri ca. Ou que o Sol é históri c o, enquant o Ap o i o é um arquéti p o, um sím b o lo míti c o para a
ilu m i n a çã o espirit ual, que é sim b o l i z a d o pelo aspecto físico ou pela luz do Sol.
Fesser: E você está negand o que Jesus é um arquéti p o?
Sócrates: Não, estou dizend o que ele é históri c o. Tal vez ele seja tam bé m um arquéti p o.
Fesser: Co m o poderi a ser as duas coisas? Vo cê acaba de fazer uma distinçã o clara entre ambos.
92 | P á g i n a
Sócrates: Não é este o ponto princ i p a l da Encar na çã o? Que a eterni da de se torne tem p o ra l, que Deus
se torne hu m a n o e o mito se torne históri c o?
Fesser: Então ele é um arquéti p o.
Sócrates: Si m, aparente m e n t e. M as, sem dúvi da nenhu m a, é tam bé m históri c o ou os textos são
total m e n te menti r os os.
Bertha: M as Sócrates, você não percebe? O que real m e n te im porta é o arquéti p o. Jesus levanta- se para
a Vi da e a Vi da é o que real m e n te im p o rta. É por isso que celebra m o s a Páscoa, quand o a terra desperta
para uma nova vida. E por isso que tem os ovos e coel hos da Páscoa — sím b o l o s de uma nova vida.
Sócrates: Se bem entend o este livr o, o que você diz é exata mente o oposto.
Bertha: O oposto? Co m o assi m?
Sócrates: Dessa perspecti v a, é a nova vida que se dá na Páscoa, e não o contrári o.
Bertha: Não entend o, Sócrates.
Sócrates: A nova vida na Terra sim b o l i z a a nova vida do céu. M as você parece ter inverti d o o
sim b o l i s m o, fazend o o céu sim b o lizar a Terra, com o se Jesus fosse apenas outro coelh o da Páscoa.
Fesser: M as obvia m e n t e, Sócrates, você entende o prof u n d o valor sim b ó l i c o da ressurrei çã o? Por certo,
você não quer reduzi- lo a um aconteci m e n t o irraci o n a l? Sem dúvi d a, a insistênc i a na histori c i d a de literal
está deixa n d o escapar o essencial.
Sócrates: Que essencial? O que estou perden d o, que é essencial?
Fesser; A própr i a vida.
Sócrates: O arquéti p o?
Fesser: Si m.
Sócrates: M as eu o defen d o. A f i r m o que o arquéti p o por si mes m o, de algu m mod o, torno u- se
históri c o, material i z o u- se. O meu probl e m a não é, me parece, que eu esteja perden d o algo, que vejo
apenas a metade da pintura, mas que tenho mui tas metades, muitas... Não consi g o entender com o os dois
pode m ser um; co mo pode um ho m e m ser ao mes m o tem p o divi n o e hum a n o. M as certa m e n te é isso o
que o livr o diz. Ac h o que vocês lera m algu m outro livr o em vez deste.
Fesser: (Firmemente.): Consu m i min ha carrei ra neste livro e há muitas for m as diferentes de interpretálo. V o cê só está sendo ingê nuo, em term os de her m e nê u t i c a.
Sócrates: Posso então fazer- lhe uma pergu nta ingên ua?
Fesser: E possí ve l.
Sócrates: Acre d i ta que Jesus real m e n te ressurg i u da tum ba ou não?
Fesser: Sócrates, penso sincera m e n t e que você está deixa n d o escapar a questão.
Sócrates: Professor, você não está respon de n d o a mi n ha pergu nta.
Fesser: Isso não é tão sim pl es quanto você faz parecer.
Sócrates: Não vejo por que não. Quer ele tenha ressurgi d o da tum ba, quer não.
Fesser: Ah, mas você está se esquecen d o de toda a di m e nsã o do signi f i ca d o e da interpretaçã o. O que
significa a ressurrei çã o?
Sócrates: Clara m e n te, por mais que possa ter outro signi f i c a do, ela quer dizer que um ho m e m que
estava morto volto u nova mente à vida. Qual o sentid o disso para você? Coel h os?
Fesser: Sócrates, havia um teólo g o cha m a d o Bult m a n n que di zia que mes m o que os ossos do Jesus
mort o fosse m encontra d os aman hã, em uma tum ba na Palesti na, todos os princ í p i os básicos do
cristian is m o ainda, per m a nece r i a m inalterad os. Penso que você está ignora n d o esses princí p i o s.
93 | P á g i n a
Sócrates: Isso pode ser o que Bult m a n n disse, mas certa m e n te não é o que esse livro de vocês diz: "E,
se Cristo não ressusci to u, inúti l é a fé que vocês têm" 35 . Isso não me parece com o "todos os princ í p i os
básicos inalterad os".
Fesser: Sócrates, eu só queria dizer algu m a coisa para que você veja o que faz diante disso. E uma
interp retaçã o da ressurrei ção, certo? Va m o s com pa rá- la à fil oso f i a de Platão. O magnun opus de Platão, a
sua República, centra- se na tese de que filóso f o s deve m se tornar reis; e reis, filóso f os, de mod o que o
poder políti c o, a sabe doria filosó f i c a e a bondade se tornasse m um. Esta é a receita básica para a utopi a
ou, pelo menos, para uma sociedade saudá ve l, justa e boa. Exato?
Sócrates: O que tem isso com a ressurrei çã o de Jesus?
Fesser: A ressurrei çã o marca o mes m o ponto de um mod o dife rente. O ponto é a união entre o poder e a
bonda de. Jesus é o ho me m im peca v e l m e n t e bo m, ideal, sábio e moral. A ressurrei ção é poder, o poder da
bonda de, a união de poder com bonda de. A mor te representa fraqueza e derrota; a vida representa poder e
vitór i a. O probl e m a da vida hu m a na, na verdade o princi pa l proble m a do ser hum a n o, é que a bonda de
parece fraca e é derrotada. Bons garotos são espezi n ha d o s pelos maus. A ressurrei çã o reverte esse quadr o.
Ela sim b o l i z a a força, o poder da bondade moral sobre o mal, pelo po der da vida de Jesus sobre os
mort os. A ressurrei çã o é a união das duas mai ores forças do Uni v e rs o: o poder e a bondade.
Molly: Oh, gosto disso... união!
Sócrates (Ignorando Molly.): M as, professor, se isso não aconte ceu de verdade, então a união de poder
e bonda de não aconteceu de fato, acontece u?
Fesser: Isso não precisa acontecer para que o signi f i c a d o fique intacto. U m arquéti p o não precisa estar
encarnad o para ser um arquéti p o. O signi f i ca d o é a coisa, a coisa que real m e n te imp o r ta, não o literal is m o
históri c o.
Sócrates: Pode m os exam i n a r essa interpretação?
Fesser: Por favor.
Sócrates: O signi f i ca d o da ressurrei çã o, você diz, é a união da bondade com o poder?
Fesser: Si m.
Sócrates: Não apenas bondade, mas bonda de ligada a poder?
Fesser: Si m. E não somente poder, mas poder unid o a bonda de. O poder da bondade.
Sócrates: E você diz que a ressurrei çã o não aconteceu de fato?
Fesser: Não, eu não disse isso. E disse que não é necessári o in terpretar literal m e n t e.
Sócrates: Interp retar literal m e n te. E para confi r m a r a crença de que tudo real m e n te aconteceu, na
Histór i a, na Terra, física e biol o g i ca m e n t e, no corpo de Jesus, e não só na cabeça das pes soas, correto?
Fesser: Si m.
Sócrates: E você afir m a que o signi f i c a d o da ressurrei ção per m a neceria o mes m o se o aconteci m e n t o
históri c o fosse desacredi ta d o?
Fesser: O aconteci m e n t o literal, biol ó g i c o e históri c o, sim.
Sócrates: Ah, mas se não aconteceu na Histór i a, então é apenas um mito, um arquéti p o.
Fesser: Si m.
Sócrates: U m lindo conto de fadas.
Fesser: Cha m e do jeito que você quiser.
Sócrates: Jesus, o ser históri c o, não teve o poder de ressurg i r dos mortos, mas Jesus, o mito, tem esse
poder.
Fesser: Si m.
35
1 Coríntios 15.17
94 | P á g i n a
Sócrates: E ressurg i r dos mortos signi f i ca poder?
Fesser: Si m.
Sócrates: E Jesus representa a bondade?
Fesser: Si m.
Sócrates: Então, se Jesus real m e n te não supero u a morte, isso leva a crer que a bonda de de fato não
tem poder. Neste caso, o sig nifi ca d o não está intacto, está? Porque, se a ressurrei çã o de fato aconteceu, o
signi f i c a d o é que bonda de é poder, e, se não aconte ceu de fato, então a bondade não tem poder. Não é
isso o que po dem os deduz i r?
Fesser: Não, Sócrates. Não precisa ser histori ca m e n t e verda deiro, apenas miti ca m e n t e verdadei r o —
um conto de fadas, com o você disse. V o cê não espera que um conto de fadas seja histori ca mente preciso.
Sócrates: A h, mas este conto de fadas é, mes m o com o conto, diferente de todos os outros contos de
fadas, de acord o co m a sua interpretaçã o; é por isso que não é somente sobre bondade, mas sobre a união
de bonda de e poder. O signi f i c a d o dos outros contos de fada é im utá v e l, quer os contos tenha m quer não,
o poder da Histó r i a, mas o signi f i ca d o deste conto de fadas é a união do ar quéti p o com a Histór i a, do mito
com o fato, da bondade com o poder. Então, com o pode seu signi f i ca d o sobrev i v e r à perda da me tade de
seu signi f i c a d o, isto é, sua históri a, seu poder?
Fesser: Hu m. Parece haver uma incoerê nc i a auto-referenc i a l em min ha her m e nê u t i c a.
Sócrates: Crei o que isto seja o mais pró x i m o a que um profes sor consegue chegar para "arrepen der- se
e acreditar"?
Fesser (Com sorriso polido.): O que você acha, Sócrates? O que tem a dizer? Por que acha que a
ressurrei ção tem de ser literal?
Sócrates: Eu? Co m respeito a isso, sei apenas o que dize m suas Escri tu ras. M i n h a resposta a essa
questão não é nada origi na l, além de bem óbvia.
Fesser: Sincera m e n t e, isso não é óbvi o para mi m.
Sócrates: Então você não deve ter lido o livro.
Fesser: Não seja arroga nte, Sócrates. Para dizer a verdade, li o livro pelo menos cem vezes, escrevi uma
dúzia de livros e centenas de artigos sobre ele.
Sócrates: Então você certa m e n te deve saber a resposta que ele dá à sua pergu nta.
Fesser: Ai n d a assi m gostaria de ouvi r sua resposta, Sócrates.
Sócrates: Tud o bem, mas mi n ha resposta não é mi n ha, mas das Escrit u ras. Suas respostas, no entanto,
parece m não ser das Escrit u ras, mas suas. E uma vez que todos lem os o livro e conhece m o s a resposta,
não devería m o s ouvi r o que ela acrescenta em lugar de repeti- la?
Fesser ( Deliberadamenteforçando um sorriso.): Gostaria de ou vir sua resposta, Sócrates.
Sócrates: M u i t o bem. A questão é por que a ressurrei çã o deve ser literal, correto?
Fesser: Correto.
Sócrates: Pri m e i r o, porq ue ela pro va a afir m a ç ã o de Jesus com respeito à própri a divi n d a d e: somente
um Deus pode vencer a morte; segund o, porq ue essa é a reali zaçã o de sua tarefa, de seu propósi t o, a razão
pela qual ele se torno u hom e m : salvar o ho m e m da morte e da orige m da morte, o pecado. E isso que diz
o No v o Testa m e n t o. Não digo que co m p r ee n d o tudo o que está escrito; apenas co m o funci o n a, com o a
obra da vida, da morte e da ressur reição de Jesus nos salva do pecado e da morte. M as certa m e n te o que
eu disse é o que o livr o diz.
Fesser: Há outras interpretaç ões, que enfati za m outros aspectos de Jesus...
Sócrates: Em vez deste?
Fesser: Si m.
95 | P á g i n a
Sócrates: Não entend o. O que acabei de dizer está em cada pági na do No v o Testa m e n t o. Até uma
criança pode ver.
Ah men: Tal vez somente uma criança.
Fesser (Com um olhar destruidor para Ahmen.): Sócrates, fran camente, estou surpreso com você.
Pensei que, com toda a riqueza da cultura míti ca que você nos trou xe, você fosse nos apresentar uma
abordage m mais ampl a, sofisti cada, mais literária com respei to à ressurrei çã o. Vo cê parece ter-se tornad o
um funda m e n ta l i sta.
Sócrates: Eis o ter m o espantoso, nova m e n t e. Isso signi f i c a ne gligenc i ar a di me nsão sim b ó l i c a?
Fesser: Si m, entre outras coisas.
Sócrates: Então não quero ser um funda m e n t a l i sta, porq ue cer tamente não quero fazer isso.
Fesser: O que você pensa sobre seus mitos gregos, Sócrates?
Sócrates: Eles me parece m ser com o os profetas judai c os sobre os quais li na últi m a semana no A nt i g o
Testa m e n t o, por um lado. Eles aponta va m para Jesus.
Fesser: Co m o assi m?
Sócrates: M u i t o s deles falava m sobre um deus mortal que as cendeu. Al g u ns até dizia m que, pela
morte e ressurrei çã o, o deus, de algu m mod o, conqu i st o u a vida para o mun d o.
Fesser ( Animado.): Oh, para mi m, o mistéri o de Cristo não é algo tão único, afinal, mas é um arquéti p o
míti c o e uni versal.
Sócrates: De fato é; mas tam bé m parece único.
Fesser: Por favor, conte- nos de que manei ra.
Sócrates: É tão sim p l es que seria necessári o um bo m tem p o para expl i car.
Fesser: Prossiga.
Sócrates: É verdade. Ac o n t ece u. Pode ser um mito, mas um mito que se torno u fato. Pode ser um
arquéti p o, mas encarno u- se na Histó r i a. Veja você, eu já conheci a os contor n o s básicos de um mito. Por
um lado, não aprend i nada de nov o com o No v o Testa m e n t o; por outro, tudo foi nov o. Ac o n t ece u em um
lugar diferente, na Terra, em vez de no céu de verdade arquetí p i c a e eterna. Era com o se a história que
sem pre ouvi em sussurr os va gos, repenti na m e n t e tomasse a for m a sólida e com p l e ta m e n t e clara de
acontecimento. M i t os não acontecem; eles sim p l es m e n t e são. Tente imag i n ar o que sentiria se, de fato,
visse em seu mun do um dos seus contos de fadas tornar- se reali da de, exata m e n te; não, muit o mais
exata m e n te que no conto. Foi o que encontre i quand o li esse livro.
Fesser: Então você vê agora um de seus mitos com o proféti c o de Cristo?
Sócrates: Tod os os mitos parece m apontar para ele de um mod o ou de outro. Ac h o que com p ree n d i
meus própri os mitos pela pri m e i r a vez quand o li o No v o Testa m e n t o, antes com o aque le que iria entender
pela pri m e i ra vez o signi f i ca d o de um sonho conf uso, para encontrar no mun d o real, quand o acordasse,
mui t o daqui l o que sonho u.
Fesser: Co m o você entend i a seus mitos anteri o r m e n t e, Sócrates?
Sócrates: Erro nea m e n t e. M e u mod o racio nal de pensar os des cartava com o sim pl es fábul as. Pensava
poder espre m e r suas verda des morais com o se espre m e um suco ou uma fruta e expressar essas verdades
com o filoso f i a, deixa n d o para trás a casca endure cida do mito. No entanto, mes m o enquant o fazia isso,
algo me adverti a contra isso, co m o se eu esti vesse perden d o algo, algo até mais preci oso na casca que no
suco. A g o ra entend o o que era: não um isto, mas um ele.
Fesser: Vo cê parece dizer que encontr o u profetas fora de Israel, em sua tradi ção paga, tam bé m. Está
correto?
Sócrates: Si m.
Fesser: Então você crê que todas as reli gi ões são cam i n h os vá lidos para Deus?
96 | P á g i n a
Sócrates: Não com p ree n d o o que quer dizer com "váli d os".
Fesser: "Ver da de até certo ponto".
Sócrates: Não expressaria dessa for m a. Jesus não disse: "A ver dade até certo ponto os fará livres até
certo ponto".
Fesser: M as todas as religi õ es têm algo de valor nelas, de algu ma for m a, você não acha?
Sócrates: Não conheç o todas as religi õ es, somente algu m as.
Fesser: E as poucas que você conhece? O que acha delas?
Sócrates: Parece- me que todas contê m certa verdade, se é isso o que está pergu nta n d o.
Fesser: Si m, é o que estou pergu n ta n d o.
Sócrates: M as isso soa um tanto com u m . É mui t o difí c i l falar muit o sem dizer verdade algu m a, afinal.
Fesser: V o cê não acha que os mitos abri ga m algu m as verdades bastante prof u n d as?
Sócrates: Si m, embo ra freqüe nte m e n t e misturad os a erros to los e obscura m e n t e expressos.
Fesser: Então os mitos eram profetas fora de Israel.
Sócrates: Segura m e n t e. As Escri tu ras não dize m outro tanto? "Eu testem u n h o acerca de mi m
mes m o" 36 , ou algo assi m.
Fesser: E quanto aos filóso f os? Acre d i ta que eram proféti cos tam bé m?
Sócrates: U m filóso f o é um amante da sabedor i a, por defi n i ção. E toda sabedor i a encont ra- se na mente
de Deus, não está cer to? Então, ao buscar a sabedor i a, o fil óso f o busca Deus, esteja ou não consciente
disso.
Fesser: E você acha que algu m fil óso f o encontr o u o Deus que procu ra va?
Sócrates: Ac h o que encontrara m algu m as verdades im p o r ta n tes sobre ele.
Fesser: Portant o, você via os profetas hebreus, os fil óso f os gre gos e os criadores de mitos do mun d o
intei ro, todos apontan d o para Deus?
Sócrates: Si m.
Fesser: Eles são bastante pareci d os, então.
Molly: Eu sabia. Sócrates descob re o princ í p i o, a uni dade!
Sócrates: Eles parecia m ter o objeti v o divi n o em com u m , mas tam bé m tinha m diferen ças im p o rta n tes.
Quant o à pureza de esti lo, por exe m p l o, os profetas parece m ser os mais claros, segui d os pelos fil óso f os
e, por últi m o, os criadores de mitos. Em matéri a de adequação, por outro lado, nova m e n te os profetas
parece m nos falar o máxi m o de Deus. E talvez aqui os fil óso f os fique m por úl ti m o. Sem pre pensei que os
fil óso f os sabia m mais de Deus que os criadores de mitos, mas agora não estou mais tão certo. Tal vez nos sas máxi m as fosse m claras, mas ralas com o sopa, enquant o os mi tos eram obscur os, mas espessos com o
guisad o ou sangue.
Fesser: Vo cê poderi a dizer que essas três tradi ções eram com o três rios que corre m todos para o mes m o
mar?
Sócrates: Si m, de três direções diferentes, que seria m as três par tes da alma. O rio da filoso f i a nasceria
nas montan has da alma, o intelecto. O rio dos profetas, dos moral i stas, nasceria da parte cen tral da alma,
do coração ou do desejo. E com o as correntes de água que desce m. E o rio dos mitos nasceria nos
pântanos e nas planí c i es enfu m a ça d os da alma, onde habita toda for m a de vida, boa e má.
Fesser: M as qual q uer um desses três rios pode, então, levar você para o mes m o destin o, o mar divi n o?
Sócrates: Não sei ao certo. Tal vez o rio da filoso f i a seja mui t o gelado, rochoso ou raso para se velejar
com sucesso. Tal ve z o rio do mito seja mui t o turv o, pantan os o, para que os velejad o res despren dam- se
36
João 8.18
97 | P á g i n a
dos obstácu l os e alcance m o mar. Tal ve z apenas o rio dos profetas seja puro, claro, prof u n d o, direto e
seguro para a viage m.
Fesser: Está dizen d o que não se pode chegar a Deus por essas outras rotas?
Sócrates: Não sei ao certo. Con hec i as Escri tu ras há pouc o tem p o. Co m o poderia resol ver o probl e m a
das reli gi ões com p ara das, com o você diz, quand o sou apenas iniciante em uma das coi sas com pa ra das?
Fesser: Certo, não vam os nos distrair com esse probl e m a. Só crates, quand o lhe pergu nte i o que pensava
acerca de a ressurrei ção ser literal, você respon d e u que ela pro va v a o caráter divi n o de Jesus, não está
certo?
Sócrates: Si m.
Fesser: Se o entend o bem, você está interpreta n d o ressurrei çã o e divi n d a d e literal m e n t e, não está?
Sócrates: Si m.
Fesser: Te m consciênc i a de que existe m muit os bons pensado res cristãos que não o faze m literal m e n te?
Si m, e com boas justi fi cati vas, eu acho. U m a das razões que pode interessar, Sócrates, é esta: que a alma
é mais im p o rta n te que o corpo e, conseqüe nte m e n te, é um tanto sim pl i sta, grosseiro, rude e até mes m o
vul gar insis tir em aspectos físicos da ressurrei çã o, com o se signi f i c asse a reuni ficação biol ó g i ca das
moléc u l as no corpo de Jesus. Vo cê não acha que seu ponto de vista merece ser ouvi d o?
Sócrates: Tod os merece m ser ouvi d o s, pelo menos uma vez. Se me rece m uma segunda, vai depender
da pri m e i ra. Deve m o s investi gar?
Fesser: Si m. Sócrates, pesquise.
Sócrates: Be m, então se Jesus não ressurg i u literal m e n te da morte, o que aconteceu?
Fesser: Não entend o. Por que é imp resc i n d í v e l que haja o que ressurgi u literal m e n te da morte?
Sócrates: Por que empregar o term o ressurreição se nada aconteceu?
Fesser: Oh, algo aconteceu, certo. A verdadei ra ressurrei çã o tom o u lugar no coração, na mente e na
vida dos discí p u l os de Je sus. Dei x ara m de ser pessoas amedr o n t a das e conf usas para se tor nare m
conf i a ntes e deter m i n a d as, pessoas que espiri tua l m e n t e ven cera m o mun d o.
Sócrates: O que as transf or m o u?
Fesser: A ressurrei çã o da fé pascal.
Sócrates: M as, se a Páscoa não existi u mes m o, então a fé pascal dos cristãos foi uma ilusão. Pode uma
ilusão vencer o mun d o?
Fesser: Não, a fé pascal é à mensage m de Jesus e o cam i n h o da vida, e não uma ilusão. Esta vi ve para
sem pre, mes m o se esse corpo estiver mort o.
Sócrates: E a mensage m de Jesus é ter fé, vi ver pela fé?
Fesser: Si m, agora você entende u.
Sócrates: Eu entend o, mas não há isto para entender. É com o uma sala de espelh os; aquil o que você
fala de sua fé a parti r dela. É com o estar apai x o n a d o pelo amor em vez de por uma pessoa real, não é?
Certa m e n te não é a mes m a coisa. Se não há ressurrei çã o, onde está o objeto da fé pascal? E, sem objeto,
com o pode haver fé?
Fesser: Tal ve z haja uma difi c u l d a d e lógi ca aqui. Penso que meu colega no departa m e n t o de filoso f i a
poderi a tratar disso por mei o da sua teoria dos níveis da lingua ge m. E um probl e m a de questões de
pri m e i r a orde m versus questões de segun da orde m.
Sócrates: A questão, com certeza, parece dizer respeito a se um corpo mortal ressuscit o u. Quão
notável e facil m e n t e isto se torna apenas uma questão de lingua ge m!
Fesser: É uma questão de crença e de interpretação.
Sócrates: M as de fato existe m três tipos de questões? Isto é, pri m e i r o, questões sobre o que acontece
98 | P á g i n a
ou acontece u no mun d o real; segun d o, sobre o que acontece na mente das pessoas, o que pensa m ou
acredi ta m sobre o mun d o; e tercei ro, questões de lin guage m, a com u n i c a ç ã o dessas crenças e
pensa m e n t os. Não deve ría m os tratar de todas as três?
Fesser: Exato. M as você parece se concentrar apenas na pri m e i ra, ignora n d o as outras, especial m e n te a
segunda, que aborda a mente, o coração e a vida. É aqui que o verdadei r o dra m a aconte ce, aqui l o que
mais nos preoc u p a.
Sócrates: Eu não pretend o deixar de lado essa questão, mas apenas relaci o ná- la à pri m e i r a. Será que é
possí ve l relaci o na r as duas questões? Não estaría m o s tentand o apenas relaci o na r aquil o em que
acredi ta m o s ao mun d o real?
Fesser: É claro.
Sócrates: Então vam os fazer o segui nte: relaci o n ar as duas questões ao que de fato aconteceu no
mun d o real e ao que se acre ditava ter aconteci d o. Tud o bem?
Fesser: Tud o bem.
Sócrates: Cada questão tem duas respostas possí veis: sim e não. Há duas possibi l i d a des no mun d o
real: ou Jesus real m e n te ressusci tou ou não. Há duas possibi l i d a des na mente dos discí p u l o s: ou
acredi ta v a m que Jesus ressusci to u ou não. Assi m, há quatro com b i nações possí vei s. Primeiro, que ele
ressuscit o u e eles acredi ta v a m que ele ressusci to u. E o que sua Escri tu ra diz. Segundo, que ele ressusci tou, mas eles não acreditara m nisso. Nesse caso, menti ra m ao escre vere m os Evan gel h os, por dizere m que
acredi ta v a m quand o na ver dade não acredi ta v a m . Terceiro, que Jesus não ressuscit o u e não acredita va m
que ele tivesse ressuscitad o. Nesse caso, menti ra m outra vez, tanto no que se refere aos fatos quanto às
suas crenças. Quarto, que Jesus não ressusci to u, mas os discí p u l os pensava m que ele tinha ressusci tad o,
que é o que você diz que eu penso. Nesse caso, nova mente eles não falara m a verdade, embo ra não fosse
uma menti ra delibera da, mas sim p l es m e n t e crendi ce e ignorâ n c i a.
Fesser: O que é im p o r ta nte nesta análise, Sócrates?
Sócrates: Que, em três dos quatro casos, é uma falsidade que transfo r m a vidas e vence o mun d o; em
dois dos três casos, uma falsidade delibera da. Eu não entend o com o uma falsi dade pôde ter conseq üê n c i as
tão nobres.
Fesser: Os mitos, muitas vezes têm grande sucesso, Sócrates.
Sócrates: Eu não estava pensand o em sucesso, mas em alegria, sabedor i a e poder moral. Co m o uma
menti ra pode transfo r m a r um pecado r em um santo?
Fesser: E com o é possí ve l ter certeza do que real m e n te aconte ceu dois mil anos atrás, em uma tum ba?
Sócrates: Vo cê respon de a uma pergu nta com outra pergu nta. Esta é uma for m a intel i ge n te de fugi r de
uma pergu n ta. M as se eu tentar lhes respon d er, vocês tentarão respon de r às min has dúvi das?
Fesser ( Incomodado.): E óbvi o que sim.
Sócrates: Be m, então, não pode m o s saber o que aconteceu na tum ba, mas sabem os o que aconteceu
fora dela. Essa fé em Jesus e a ressurrei çã o vencera m o mun d o. Parece quase certo que, se Jesus
ressuscit o u ou não, os seus discí p u l o s, por sua vez, acreditara m que sim. O que mais lhes deu corage m em
face da persegui çã o, sofri m e n t o e morte? Se soubesse m que a ressurrei çã o era uma menti ra, o que lhes
teria dado corage m para morrer por uma menti ra? Se não lhes tivesse sido assegurad o pela ressurrei çã o de
Jesus que não mais precisa va m temer a morte, o que os teria deixa d o tão des temi d os diante da morte?
Fesser: Foi o exe m p l o de Jesus, sua nova e radical for m a de vida.
Sócrates: Suas doutri nas éticas?
Fesser: Si m.
Sócrates: Não as vejo assi m tão radical m e n t e novas. Eu já ha via encont ra d o a mai o r i a nos profetas
judai c os e outras em mi n ha mente e em mi n ha própr i a filoso f i a.
99 | P á g i n a
Fesser: Real m e n te, muitas das consi deraç õ es presentes nas doutri nas éticas de Jesus podia m ser
encontra das nas profeci as e nas tradi ções pagãs. Jesus, entretant o, vi veu suas doutri n as, plena m e n te. "Ele
andou por toda parte fazend o o bem" 37 , faland o de mod o sim pl es.
Sócrates: Que bem ele realiz o u? M i l a g res, curas, ressurrei ç õ es. Os Evan ge l h o s nos conta m um pouc o
mais do que ele reali za va.
Fesser: Eu recon he ç o que o relato, se é que acredita m o s nele, des creve uma ressurrei ção literal, bem
com o discí p u l os que acredita m em uma ressurrei ção literal. M as você não pode pro var que real m e n te
aconteceu só com isto. Al é m do mais, os discí p u l o s eram pessoas co muns, não fil óso f o s. Não há
necessi dade de estar m o s tão preocu p a d o s com o material e o literal com o eles aparente m e n t e estava m,
você não acha? Si m, você e todos os demais, Sócrates? Vo cê que tão enfati ca mente afir m o u a
superi or i d a d e da alma sobre o corpo?
Sócrates: É possí vel que eu esteja aprenden d o algo que não sabia antes. M as, para respon de r à sua
pergu n ta, eu penso que tenho sim, pelo menos, uma boa razão para estar tão preocu p a d o com o material.
Fesser (Surpreso.): E qual é?
Sócrates: A morte é um probl e m a não discuti d o, inci p i e nte e material?
Fesser: Não tenho bem certeza do que você quer dizer...
Sócrates: U m cadáver cheira mal?
Fesser (Um leve sorriso.): Ac h o que entendi o que você quer dizer... M as eu esperava que você, um
fil óso f o, buscasse um enten di m e nt o mais filosó f i c o da ressurrei ção que isso.
Sócrates: U m filóso f o deve ser lógi c o, não deve?
Fesser: Si m.
Sócrates: E ser lógi c o é ser coerente?
Fesser: Si m.
Sócrates: E ser coerente é procu rar uma solução que seja ade quada ao probl e m a?
Fesser: Si m.
Sócrates: E a morte é um proble m a para o ho m e m?
Fesser: Certa m e n t e.
Sócrates: E a morte é um fato literal e material, não é? Al g o que se pode cham a r com u m , inci p i e nte e
banal?
Fesser: Si m.
Sócrates: Então, a solução do proble m a, se for filosó f i c a, deve ser com u m , inci pi e n te, banal e material,
à semel ha n ça da verda deira ressurrei çã o.
Fesser: Oh, este é um argu m e n t o intel i ge n te a priori, Sócrates. M as tem os de observar os dados, os
fatos, o mun d o real.
Sócrates: Exata m e n te o que pensei estar fazend o.
Fesser: M as cienti f i ca m e n t e faland o, você não acha que uma expl i cação não mirac u l osa parece pelo
menos muit o mais prová ve l que uma ressurrei ção miracu l o sa?
Sócrates: Não, eu não acho.
Fesser: Por que não?
Sócrates: Se não hou ve ressurrei çã o do corpo de Jesus, parece haver três questões que são
extre m a m e n t e difí ce is de respon de r sem absurd os. Pri m e i r a, que m rem o v e u a pedra? Segun da, que m
pegou o corpo? Tercei ra, por que os discí p u l o s teria m inventa d o essa menti ra?
37
Atos 10.38.
100 | P á g i n a
Fesser: Para respon der a sua pri m e i r a pergu nta, diria que os discí p u l os podia m ter mo v i d o a pedra, não
podia m? Não é muit o mais adm issí v e l que pensar em um anjo fazend o isso? Se você visse que uma pedra
enor m e no seu qui ntal foi rem o v i d a durante a noi te, acharia que foi um anjo?
Sócrates: Não. Ac o n te ce que o meu qui ntal não é vigiad o por soldad os rom a n os.
Fesser: Os soldad os poderi a m ter sido suborna d os ou drogad os.
Sócrates: Se os discí p u l o s tivesse m rem o v i d o a pedra, o que te riam feito co m o corpo de Jesus?
Fesser: Escon d i d o ou enterrad o, imag i n o.
Sócrates: Então forjara m tudo.
Fesser: Consi dera n d o essa hipótese, sim. Consi dere que não estou dog m a t i z a n d o. Eu só acho que
deve m o s consi derar cada hi pótese e não per m i t i r que crenças tradic i o n a i s nos im peça m de ter uma visão
ampla sobre o assunto; na verdade, sobre todos os as suntos. Conc o r d a com esta for m a de abordar?
Sócrates: Conc o r d o. Tud o deve ser consi dera d o. M as algu m as coi sas precisa m ser rejeitadas depois de
serem consi deradas, não acha?
Fesser: Eu nunca me senti à vontade com as atitudes negati vas e persegu i ç õ es heréticas.
Sócrates: Quer dizer então que idéia algu m a deve ser negada? Então, com o afir m a r uma deter m i n a d a
idéia? Se X não é falso, com o pode o que não é X ser verdadei r o?
Fesser: A h, não estou debaten d o as leis da lógi ca...
Sócrates: Eu espero que não!
Fesser: Só estou insisti n d o que haja uma visão ampla em todos os mo m e n t o s. E o que você acha?
Sócrates: Não acho que deva m o s ter uma visão ampla em to dos os mo m e n t o s.
Fesser (Chocado.): Sócrates! Co m o pode?
Sócrates: Para variar a metáf o ra de A h m e n, citada pelo senhor Chesterto n, uma visão aberta não se
assemel ha a uma porta aberta? Dever i a estar aberta a todos os visitantes. M as, uma vez que eles chega m,
você precisa deci di r qual deles fica e qual deve sair. V o cê gostaria que ladrões e seqüestrad o r es ficasse m
em sua casa? Vo cê gostaria que menti ras pov oasse m sua mente?
Fesser: Si m, agora com p ree n d o. Penso que você pensa que eu penso que a ressurrei çã o foi uma
mentira. É isto?
Sócrates: Per m i ta- me organi za r todos estes pensos... Eu não sei o que eu penso sobre o que você
pensa. M as o que você pensa sobre a ressurreição? Ela real m e n te aconteceu?
Fesser: Si m! M as não no mun d o material. No mun d o espirit ual, no coração e na vida dos discí p u l o s.
Sócrates: Se digo que algu m a coisa real m e n te aconteceu no mun d o, quand o não aconteceu, não estou
dizend o uma menti ra?
Fesser: Não, você pode estar faland o de um mito.
Sócrates: E as pessoas que acredi tara m no mito sabia m tratar- se de uma verdade ou de um mito?
Fesser: A mai or i a acredi ta v a ser literal m e n t e verdade.
Sócrates: Então a mai o r i a dos mi l h ões de cristãos no decorrer da Histó r i a acredita va que Jesus
literal m e n te ressuscit o u da morte?
Fesser: Si m.
Sócrates: E os pri m e i r o s discí p u l os de Jesus não acredita va m? Eles deve m ter acredi tad o caso tenha m
rem o v i d o a pedra e rouba do o corpo.
Fesser: Tal vez.
Sócrates: Eis a pergu nta que me parece sem resposta: o que esses discí p u l os ganharia m com essa
menti ra? Quand o algué m trai outra pessoa, o traido r é sempre moti v a d o pela pro m essa de algu m a vanta 101 | P á g i n a
gem. Qual teria sido a vantage m dos discí p u l os por tal conspi raçã o?
Ah men: Eu vou respon de r a esta pergu n ta por você, Sócrates. Vo u lhes contar qual foi a parte deles:
fora m ridi cu l ar i za d os, odia dos, zo m ba d o s, escarneci d os, exilad os, pri vad os de suas propr i e da des, de sua
reputação e dos direitos civis; fora m presos, chicotead os, tritura d os, tortura d os, apedreja d os, decapi ta d os,
serrados, fervi d os em óleo, cruci f i c a d o s, com i d o s por leões e estraçal ha d os por gladia dores. Foi isso que
eles recebera m com o prêm i o.
Sócrates: E verdade, professor?
Fesser: M u i t os dos cristãos pri m i t i v o s fora m márti res, sim.
Sócrates: E, sob tortura, não confessara m ser tudo uma menti ra, um mito, uma falsi f i caçã o?
Fesser: Não.
Sócrates: Isto é surpreen de n te! O coração hum a n o é excessi vam e nte instável, não é? Especial m e n t e o
coração de um men tiroso? Não entend o o que os moti v o u a perseverar diante de tantas torturas, senão a
certeza deles de que Jesus real m e n te res suscito u e de que eles tam bé m ressusci tar ia m . Se não acredita vam
na ressurrei çã o, por que desistiri a m em vão da única vida que sabia m ser real?
Fesser: Esta é uma boa pergu n ta, mas não pro va que a ressur reição literal m e n te aconteceu.
Sócrates: Parece pro var, pelo menos, que, se o milag re da res surreiçã o real m e n te não aconteceu, então
um mi lagre ainda mais incrí ve l deve ter aconteci d o.
Fesser: O que você quer dizer?
Sócrates: Que doze judeus sim p l es inventara m a mais fantásti ca e bem- sucedi da menti ra do mun d o,
em troca de nada, e morrera m espontânea e alegre m e n te por ela com o márti res, à semel ha n ça de mil h õ es
de outros.
Fesser: E sobre isso que tenho tentado lhe falar, Sócrates. O verdadei r o milag re está no vi ver, na
existênci a, não em moléc u l as.
Sócrates: M as o que
uma causa, pelo menos
causado esse mila gre de
tido taman h o po der, mas
moti v o u o milag re na vida dessas pessoas? U m efeito que deve ter prov o ca d o
tão grande quanto a própri a vida, não é verdade? Não vejo o que po deria ter
vidas transf or m a d as, exceto um milag re ainda mai or. A ressurrei çã o poderia ter
uma menti ra teria taman h o poder?
Fesser: U m a menti ra não, mas um mito.
Sócrates: M i t o real m e n te! Parece- me mui t o mais aceitá ve l, profes sor, que sua idéia seja o mito e que o
mi lagre seja um fato racio na l.
Fesser: ( Irritado.): Tho m a s, o que você acha dos argu m e n t os de Sócrates? Ele consegu i u conve n cê- lo?
E, se não, por quê?
Thomas (Surpreso por ter sido escolhido para ajudar Fesser): Eu? Uh... bem, honesta m e n te,
professor, o argu m e n t o dele faz mais senti d o do que eu pensava. Preciso refleti r mais sobre este assunto.
Fesser: Surpreen d e- me ouvi r isto de você, Tho m a s.
Thomas: Eu não tive sem pre uma visão ampla das coisas?
Fesser: Claro, é exata m e n te o que você sempre foi — daí a min ha surpresa ao ouvi r você dizer coisas
tão bonitas sobre o funda m e n t a l i s m o.
Thomas: Funda m e n ta l i s m o? Pensei que estivésse m o s discuti n do a ressurrei çã o.
Bertha: Oh!
Fesser: Que é isso, Bertha?
Bertha: Só constatei algo, acho eu, pela pri m e i r a vez! Tal ve z a questão da ressurrei ção deva ser
separada e não fazer parte dos in teresses do funda m e n t a l i s m o. Quero dizer que não se pode deci di r se a
ressurrei ção aconteceu mes m o ou não, sim pl es m e n te com base em pesquisas sobre o que as pessoas
acredi ta m hoje. Pois des cobri m o s que as mes m as pessoas que acredita m na ressurrei ção tam bé m
102 | P á g i n a
acredi ta m em tudo o que envol v e o arcabo u ç o funda m e n ta l i sta: chau v i n i s m o, literal is m o, tradi ci o n a l i s m o,
conser va doris m o, mi l i tar is m o, capital is m o e mui t os outros ismos, terrí ve is e opressi v os; e as mes m as
pessoas que acredi ta m que a ressurrei çã o de fato não aconteceu tam bé m acredita m na igual da de, na
justiça, na paz, na com p a i x ã o, na ecol o g i a e...
Fesser: Então aonde você quer chegar, Bertha?
Bertha: Qual q u er que seja a com b i n a çã o de crenças que os funda m e n t a l i stas do sécul o X X invente m,
esta não pode ser a ver dadei ra causa para o que aconteceu há dois mil anos em Israel. Em pri m e i r o lugar,
signi f i c a que a causal i da de não pode funci o n a r de mod o inverso. Em segun d o, a crença das pessoas não
faz que algo aconteça ou não. Ou a coisa acontece u ou não aconteceu, e não se pode descob r i r isso com
base em resultad os ideol ó g i c o s de pesqui sa Gal l u p.
Fesser: Si m, co m certeza. M as certa m e n te existe m im pl i c a ç õ es ideol ó g i c as relevantes que precisa m ser
exam i n a das. As im p l i ca ç õ es...
Bertha: Vo cê quer dizer que estou errada?
Fesser: Não, não...
Bertha: Então, estou certa.
Fesser: Está com eça n d o a parecer com Sócrates.
Bertha: Estou começa n d o a me pergu n ta r se é tão rui m assi m.
Salomão: Posso fazer uma pergu nta, professor?
Professor ( Surpreso ao ouvir alguém sempre calado falando))'. Cer tamente.
Salomão: Os historia d o res pesquisa m as tum bas dos santos e dos sábios, não pesquisa m? A tum ba de
São Pedro, de M a o m é e as sim por diante?
Fesser: Si m.
Salomão: E estas outras tum bas estão todas ocupadas, não estão?
Fesser: Ocu pa das?
Salomão: Si m, os santos e os sábios estão todos mort os e seus ossos, em suas tum bas.
Fesser: Si m, o lugar está ocupad o, de qual q uer manei ra.
Salomão: E a tum ba de Jesus está lá, em Jerusalé m, não é?
Fesser: Si m.
Salomão: E está vazia.
Fesser [Incomodado de novo): Si m... está...
Salomão: Onde está o corpo?
Fesser: Esta era uma das pergu ntas de Sócrates.
Salomão: Não, quero dizer que eu desejo saber, de verdade. Onde está o corpo? O que acontece u com
ele?
Sócrates: Se eu co m p r ee n d o bem o No v o Testa m e n t o, ele aqui está.
Fesser (Assustado, como se tivesse visto um fantasma): O quê?
Sócrates: O corpo de Cristo está aqui. Está vi v o. Ele ressusci to u!
Fesser: M as pressupõe- se que ele ascendeu ao céu.
Sócrates: Naque l e corpo, sim. M as ele tem outro corpo que está aqui na Terra. Pelo menos o No v o
Testa m e n t o fala sobre isso.
Fesser: Oh, você quer dizer a igreja.
103 | P á g i n a
Sócrates: Si m, mas, do jeito que você fala, parece referi r- se "somente à igreja". No No v o Testa m e n t o,
a igreja parece ser algo mai or que uma com u n i d a d e hu m a na que se reúne para se lem b rar de um hom e m
mort o e suas doutri nas. Parece ser mais um organis m o viv o, com o a rã no tronco da árvore em vez da
saliênc i a do tronc o. Não é isso? Será que entend i as Escrit u ras judai cas correta m e n te?
Ah men: Enten de u, Sócrates.
Sócrates: E um organis m o viv o tem uma alma vi va, um espírit o. Ele não pro m ete u enviar esse
Espí ri t o? Tal vez seja o ingredi e n te que me falta e pelo qual procu rei: algo que encont re i no No v o
Testa m e n t o, mas não aqui. Estou no cam i n h o certo ou não? Al g ué m , por favor?
Ah men: V o cê acertou em chei o, Sócrates.
Fesser: Be m, ora, isto é uma questão de opini ão e de diferenças deno m i n a c i o n a i s, é claro...
Ah man: Não, não é. É uma questão de ver o que diz No v o Testa m e n t o.
Fesser (Contendo-se): Be m... Sem pre fico feli z em ver um am plo leque de opi ni ões representadas.
Entend o a sua orige m, A h men; só que não com pa rt i l h o o seu ponto de vista.
Ah men: Ac h o que você não entende de onde eu venho, profes sor. Porque o proble m a não é onde, mas
quem.
Fesser (Constrangido): Já passou da hora de sair m os. Será que Só crates está satisfei to? A sua pergu nta
inici al foi respon d i d a, Sócrates?
Sócrates: M a i s que respon d i d a. Co m e ce i com uma pergu nta aparente m e n t e inofe nsi v a — por que a
Histór i a de vocês rem o n ta a esse hom e m Jesus — e fui levad o pela pesquisa ao encontr o com ele com o a
algo que excede o hum a n o. Ao long o do cam i n h o encontrei respostas inequí v o c as para a mi n ha pergu nta,
claras em todas as di m e ns ões.
Fesser: E que respostas claras fora m essas, Sócrates?
Sócrates: Que os anos são demarca d os por esse hom e m porq ue ele é o aconteci m e n t o mais imp o r ta nte
de que se tem notí cia. Pense m nisto! Deus se transfo r m a n d o em ho m e m , morren d o e ressuscitan d o; ora, é
obvi a m e n te o mai or fato imagi ná v e l, mai o r do que se pode supor, talvez. E este, acho, é o moti v o pelo
qual eu acredit o nisso.
Thomas: O quê? Signi f i c a que você acredi ta nisso porq ue é inco m u m ? E uma loucura, especial m e n t e
para você, Sócrates.
Sócrates: Não, penso que é racio nal, pois teria de ter um espí rito inco m p a ra v e l m e n t e mai or e mais
intel i ge n te do que o seu e o meu para criar uma história dessa di me nsão.
Thomas: Por quê?
Sócrates: Vo cê adm i te o princí p i o da causal i da de, não adm i te? Que o efeito não pode ser mai o r que a
causa?
Thomas: Si m.
Sócrates: E que o mito é efeito do seu criador?
Thomas: Si m.
Sócrates: Então o poder espiri tua l do mito não pode exceder o poder espiri tua l de que m o cria?
Thomas: Prossiga...
Sócrates: Se, por consegu i n t e, o cristiani s m o é um mito, que m é o criador desse mito?
Thomas: Não sei.
Sócrates: Só conheç o um que possi ve l m e n t e poderi a ter inven tado uma históri a tão extraor d i n á r i a.
Thomas: Signi f i c a que...
Sócrates: Si m.
104 | P á g i n a
Fesser: Fui levad o pela narração de volta ao Narrad o r, que, imag i n o, trou xe- me aqui para conhecê- lo
por mei o do conheci ment o da sua narração.
Bertha: Para onde você vai daqui, Sócrates?
Sócrates: Ele é que m sabe! (A campainha toca para aproxima aula)
Bertha: Não, não é, Sócrates. E o terceir o andar. Eis a cam pai nha! Esta m os atrasados para a nossa aula
de Reli g i õ es Co m p a r a das. (A turma sorri e sai)
Fesser: Oh, não esqueça m, aqui está a lista de leitura para a pró x i m a aula. (Aporta, passa a lista) Por
favor, não deixe m de lado as responsab i l i d a d es acadê m i c as por diversões. A f i n a l de contas, isto é uma
uni versi d a de...
Bertha (Saindo e sussurrando com Sócrates): Às vezes eu acho a uni versi da d e um necrotéri o.
Sócrates: Ou uma tum ba.
Bertha: M as o professor é um ho m e m mui t o sábio. Vo cê viu o taman h o da lista de leitura dele?
Sócrates: "Eles faze m seus filactér i os bem largos..." 38
Bertha: O quê?
Sócrates: Só para citar a Escrit ura. Ac h o que não posso insul tar a acade m i a, pois, afinal de contas, ela
foi invençã o do meu aluno predi l et o (Platão). M as, quand o ela faz referênc i a à videi ra, eu me pergu nt o
por que o suco é extraí d o e a videi ra, podada.
Posfácio
d i re ta m e n te d o B o s t o n G l o b
Boston Glob, 30 de setem b r o de 1987 — Polí ci a investi ga o miste rioso desapareci m e n t o de dois hom e ns,
há dois dias, da Bi b l i o te ca En grandecer, na Uni v e rs i d a d e Haval a r de. U m deles, conheci d o sim ples m e nte
por Flanagan, trabal ha va com o zelado r na bibl i o teca. O outro, um aluno da Escola de Teol o g i a
Haval ar d e, estava matri c u l a d o com o nom e de Sócrates. A políc ia não encontr o u nenhu m a pista quanto à
identi da d e ou residênc i a dos desapareci d os.
De acordo com a senhori ta Bertha Broad m i n d, ami ga e colega de aula de Sócrates, os dois indi v í d u o s
desaparecera m de repente en quanto os três e mais cinco estudantes da Escola de Teol o g i a discu tiam entre
as estantes da bibl i o teca.
Em sua visita, o rev. Bob b i e Ap o l o g é t i c o, da Escola Bí b l i c a Bob b y Jo, onde lecio na Defesa da Fé dos
Bito l a d os 39 , confi r m o u a versão da senhori ta Broad m i n d e declaro u: "Os dois desaparecera m, sum i ra m.
Ag o r a, preste m bem atenção... eu não estou surpreso, porque este lugar aqui é o própri o territór i o do
diabo. Eu juro, eles fora m possuí dos pelo poder do mal".
Nerê Esias 40 , graduad o pelo Oni o n Theo l o g i c a l Ce m eter y 41 , e fazen do pós-graduaçã o na Uni v e rsi da de
Haval ar d e, apresento u outra ver são do caso. "Ilusão das massas em pequena escala", insisti u ele. Freud já
dizia isso e mui t o mais há mui t o tem p o. M as M o r t o Do x o 42 , for m a do pela Escola Teol ó g i c a Nebu l osa 43 ,
discor d o u dizen d o: "Tud o depen de das suas suposiç ões her m e nê u t i c as, dispensaci o n a l i stas, escatol ó g i c as,
episte m o l ó g i c as e psico- socioc u l t u ra i s".
A quarta tesme m u n h a, o padre Sabe-Tud o, SJ., 44 em licença da Uni v e rs i d a d e Gregari o u s Le v i t i c us, 45
insistia em que o caso parecia atender aos critéri os de um legíti m o milag re. M a n i f est o u- se interes sado em
38
Mateus 23.5
"Southern Fried Apologetics", em inglês [N. do C.].
40
"Harry Tick", em inglês. Expressão trocadilhesca, expressando similitude de som com heretic [N. do C.].
41
Provável referência ao Union Theological Seminary [N. do C.].
42
"Arthur Doxie", em inglês. Expressão trocadilhesca, expressando similitude de som com orthodox [N. do C.].
43
"Dullest Divinity School", em inglês. Provável referência à Duke Divinity School[N. doC.].
44
"Father I. Noitall, SJ", em inglês. Expressão trocadilhesca, expressando similitude de som com know-it-all [N. do E.].
45
"Gregarious University in Levitican", em inglês. Provável referência à Gregorian University, de Roma [N. do C.].
39
105 | P á g i n a
inici ar o processo de uma possí vel canoni za çã o de Sócrates.
U m qui nt o observa d o r, o cineasta Stevie Lo b os 46 , declaro u ter fil mado o aconteci m e n t o, mas, quand o
rodara m o fil m e, a image m de Flanagan estava total m e n t e invisí v e l. Não houve expl i caçã o algu m a para o
fenô m e n o.
Todas as testem u n h as conco r d a ra m com os detal hes a seguir. Por volta das três horas da tarde,
Broa d m i n d, rev. Bob b i e, Nerê Esias, M o r t o Do x o, padre Sabe-Tud o e Lo b os estava m com Sócrates, entre
as estantes da Bi b l i o te ca Engran de ce r, discuti n d o questões referentes ao enig m a teoló g i c o, que alguns
dizia m ser a Tri n d a d e e outros, a divi n d a d e de Cristo (Nota do Editor: Dois dog m as pri m i t i v o s fre qüente m e n te defend i d o s pelos ultraco nser v a d o r es.). Os sete fora m surpreen d i d o s pelo apareci m e n t o
repenti n o de Flanagan, o portei r o do prédi o, que se aprox i m o u de Sócrates, ignora n d o os outros e disse:
"É hora de ir". Quan d o os outros quisera m saber que m ele era, respon deu ter diferentes nom es, em
diferentes épocas, e menc i o n o u um nú mero, dentre os quais estava m Raphael, Ol ori n 47 e Gandal f.
No mo m e n t o em que Flanagan tocou Sócrates, os dois começa ram a desaparecer da vista dos
observa d o res. A últi m a coisa que as teste m u n h as ouvi ra m foi a pergu n ta de Sócrates: "Mas por que eu te nho de ir agora?", e a resposta de Flanaga n: "Precisa m de você do ou tro lado do rio". Al g u ns
interp retara m a declaração sim b o l i c a m e n t e, outros de mod o literal. Os literal istas dissera m que esperava m
que Sócrates aparecesse logo no Bussed- In Col l ege, do outro lado do rio.
C o nt ra Ca pa
O que aconteceri a se o fil óso f o Sócrates surgisse hoje no cam p us da Uni v e rsi da de de Har va r d e se
matri c u l asse no curso de Teol o g i a? O que ele diria a respeito do progresso hum a n o, com pa ra d o à sua
época? Co m o reagi ria aos nossos valores? À nossa cultura? O que o ateniense sapientíssi m o diria de
Jesus?
Fil óso f o cristão e adm i ra d o r do Sócrates históri c o, Peter Kreef t com p ôs nesta obra um diálo g o de idéias
intri ga n te sobre os dois hom e ns mais infl ue ntes que já existira m - Sócrates e Jesus - e, conseqüe nte m e n t e,
entre os dois princi pa i s segm en t os da civi l i z açã o Oci de nta l: a cultura bíbl i ca (judaico- cristã) e a clássica
(greco-rom a na).
Co m maestria, o autor foi bem- sucedi d o na representaçã o pictór i ca da razão em busca da verdade. O final
é surpreen de nte!
***
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46
"Steppen Wolfe", em inglês. Provável referência ao cruzamento entre: a produção cinematográfica Dança com Lobos [Dance with Wolves], de
Kevin Costner, e Stevie Wonder [N. do E.].
47
Olorin é um dos nomes de Gandalf [personagem de O Senhor dos Anéis, J. R. R. Tolkien], o que significa que ele, no contexto judaico e
cristão, talvez pudesse assumir o nome de Rafael e a função de um anjo [N. do E.].
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