Triptico de horror e misterio – Adauto Villela

Transcrição

Triptico de horror e misterio – Adauto Villela
Tríptico de horror e mistério
Contos traduzidos
Seleção e tradução:
Adauto Villela
Juiz de Fora, 2014
[2]
2014 © Adauto Villela
Organização: Adauto Villela
Ilustrações: Alessandro Corrêa
Revisão: Ana Paula de Aguiar
Produção editorial: Laura Assis
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
T835
Tríptico de horror e mistério: contos / Organização e tradução Adauto
Lúcio Caetano Villela; Ilustração Alessandro Ribeiro Correa. – Juiz de
Fora: Aquela Editora, 2014.
110 p.
ISBN: 978-85-65179-07-2
1. Literatura americana – Ficção 2. Literatura francesa – Ficção
3. Literatura inglesa – Ficção I. Villela, Adauto Lúcio Caetano
(Organizador)
II. Correa, Alessandro Ribeiro (Ilustrador) III. Mérimée, Prosper
IV. Lovecraft, Howard Phillip V. Doyle, Arthur Conan.
CDD 813
Bibliotecária responsável: Nara Vasconcelos CRB-7/6383
[3]
Sumário
Apresentação .................................................................................. 5
A música de Erich Zann, Howard Phillips Lovecraft ............... 7
A Vênus de Illa, Prosper Merimée............................................. 21
A aventura do pé do diabo, Sir Arthur Conan Doyle ............. 63
Posfácio ....................................................................................... 102
Sobre o tradutor ......................................................................... 109
[4]
Apresentação
Os três contos escolhidos para este livro, apresentados
aqui em traduções inéditas, foram escritos por autores
diferentes em épocas e países diferentes, porém, têm muito
em comum. Primeiramente por serem narrativas instigantes,
daquelas que prendem nossa atenção com histórias muito
bem conduzidas. Em segundo lugar, todos eles possuem um
componente fantástico, misterioso ou estranho que excita a
imaginação, colocando em dúvida os limites entre o real e o
sobrenatural. Trazem ainda em comum uma estrangeiridade,
seja geográfica ou linguístico-cultural, que nos leva, junto
com os narradores, a cenários tão pitorescos quanto
distantes.
A música de Erich Zann tem como cenário a
enigmática Rue d’Auseil, numa cidade que, na opinião de
muitos, seria Paris. A nacionalidade do narrador, um
estudante de metafísica, não é explicitada, mas o leitor
perceberá claramente que não se trata de um parisiense; já
Erich Zann é o músico alemão que executa estranhas
melodias. Seu autor, o norte-americano Howard Phillip
Lovecraft (1890 - 1937), renovou o gênero do terror ao
acrescentar nele elementos extraterrestres e de ficção
científica, criando o subgênero conhecido como horror
cósmico, do qual ―O Chamado de Cthulhu‖, conto posterior ao
escolhido para este livro, é considerado paradigmático. Tendo
Edgar Allan Poe como seu grande mestre e inspirando-se
também em Robert W. Chambers, Lovecraft influenciou
autores como Stephen King e, entre nós, Carlos Orsi.
Em A Vênus de Illa, o narrador é um arqueólogo
parisiense em viagem aos Pirineus Orientais, mais
[5]
especificamente à região do Rosselló (Roussillon, em
francês), antigo principado da Catalunha, região na qual
ainda o catalão é falado. É nesse cenário que se passa um caso
muito misterioso envolvendo uma estátua antiga, a família
catalã que a encontrou e um casamento. Prosper Merimée
(1803 – 1870) é conhecido principalmente por sua obra
Carmem, transformada em ópera por Georges Bizet em 1875
e adaptada para o cinema por diretores como Luis Buñuel,
Jean-Luc Godard e Carlos Saura. A história escolhida é
considerada a mais perfeita entre toda sua safra de contos
fantásticos ou de terror maravilhoso, entre os quais se
encontram também Visão de Carlo XI, Il Viccolo di Madama
Lucrezia e Loki.
O terceiro conto deste livro, A aventura do pé do
diabo, tem lugar na Cornualha (Cornwall, em inglês), atual
condado da Inglaterra em que viveu o povo córnico, uma das
seis Nações Celtas. Embora o idioma córnico não seja hoje
predominante na região, muitos sobrenomes e nomes do
conto marcam sua presença histórica. E qual seria a relação
entre o ―pé do diabo‖ e o ―horror da Cornualha‖? É esse o
mistério que o leitor acompanhará nesse conto, um dos
preferidos de seu autor. Sir Athur Conan Doyle é
mundialmente famoso pelas dezenas de histórias vividas pelo
detetive Sherlock Holmes, personagem que se tornou icônico
para o gênero de mistério investigativo e criminal. Como não
poderia deixar de ser, é seu caro amigo Dr. Watson quem nos
narra esse intrigante caso em que atua o sobrenatural.
[6]
A música de Erich Zann
Howard Phillips Lovecraft (1922)
[7]
Já examinei mapas da cidade com o maior cuidado,
porém, jamais reencontrei a Rue d’Auseil. Tais mapas
não foram só os modernos, pois sei que os nomes
mudam. Investiguei, pelo contrário, todos os mapas
antigos da área e explorei pessoalmente cada região,
independente do nome, que pudesse responder pela rua
que conheci como Rue d’Auseil. Mas, apesar de tudo o
que fiz, resta o fato humilhante de que não consigo
encontrar a casa, a rua ou mesmo a localidade onde, nos
últimos meses de minha depauperada vida de estudante
de metafísica, ouvi a música de Erich Zann.
Que minhas memórias estejam em pedaços não me
espanta, pois minha saúde física e mental esteve
gravemente perturbada durante todo o período em que
residi na Rue d’Auseil, e me lembro de não ter levado
nenhum de meus conhecidos até lá. Porém, não
conseguir encontrar o lugar novamente é tão singular
quanto desconcertante, pois ficava só a meia hora de
caminhada da universidade e distinguia-se por
peculiaridades que dificilmente seriam esquecidas por
qualquer um que lá estivera. Nunca encontrei ninguém
que tenha visto a Rue d’Auseil.
A Rue d’Auseil ficava do outro lado de um rio
sombrio, margeado por íngremes armazéns de janelas
turvas e atravessado por uma pesada e escura ponte de
pedra. Havia sombras constantes ao longo desse rio,
como se a fumaça das fábricas vizinhas tapasse o sol ad
perpetuum. Dele também exalavam cheiros nefastos que
eu nunca sentira alhures e que, um dia, talvez me
ajudem a encontrá-lo, já que devo reconhecê-los
[8]
imediatamente. Para além da ponte havia ruas estreitas
calçadas de pedras e com trilhos. Então vinha a subida, a
princípio gradual, depois incrivelmente escarpada ao
chegar à Rue d’Auseil.
Nunca vi uma rua tão estreita e tão íngreme como a
Rue d’Auseil. Era quase um penhasco, fechada para
veículos, com escadarias em vários lugares, terminando
lá em cima num muro imponente todo coberto de hera.
A pavimentação era bem irregular: às vezes lájeas de
pedra, às vezes paralelepípedos, às vezes chão batido
com renitente vegetação cinza-esverdeada. As casas
eram altas, com telhados pontudos, incrivelmente
velhas, inclinando-se como loucas para trás, para diante
e para os lados. De quando em quando pares opostos,
ambos pendendo para frente, quase se encontravam,
cruzando a rua como um arco e impedindo que a maior
parte da luz chegasse ao solo. Havia também algumas
pontes suspensas, cruzando a rua de casa a casa.
Os habitantes daquela rua causavam-me impressão
peculiar. De início, pensei que fosse por serem todos
silentes e reticentes; mas, depois, concluí que era por
serem todos muito velhos. Nem sei como fui morar
numa rua assim; só sei que eu não estava bem quando
me mudei pra lá. Andei morando em muitos lugares
pobres, sempre despejado por falta de dinheiro, até que,
enfim, deparei-me com aquela casa cambaleante na Rue
d’Auseil, administrada pelo paralítico Blandot. Terceira
casa a partir do alto da rua e, de longe, a mais alta de
todas.
Meu quarto ficava no quinto andar, o único ali
[9]
habitado, já que o prédio estava quase vazio. Na noite
em que cheguei, ouvi uma música estranha vindo de
cima, do sótão, e, no dia seguinte, perguntei ao velho
Blandot sobre ela. Ele me disse tratar-se de um violista
alemão, um velho taciturno e estranho que assinava o
nome de Erich Zann e tocava à noite numa orquestra
teatral ordinária. Acrescentou que foi o desejo
manifestado por Zann de tocar depois do teatro a razão
de pegar esse quarto isolado no sótão, cuja solitária
janela de frontão triangular era o único ponto de onde se
via a declividade e o panorama por cima e além do muro
no fim da rua.
Daí em diante, ouvi Zann todas as noites e, embora
tirasse meu sono, assombrava-me a estranheza de sua
música. Mesmo sendo pouco conhecedor da arte, estava
certo de que nenhuma daquelas harmonias tinha relação
com as músicas que eu ouvira antes, concluindo ser ele
um compositor de gênio altamente original. Quanto
mais ouvia, mais fascinado ficava, até que, após uma
semana, resolvi conhecer o velho.
Certa noite, quando Zann voltava do trabalho,
interceptei-o no saguão e disse que gostaria de conhecêlo e de vê-lo tocar. Ele era pequeno, magro, encurvado,
com roupas surradas, olhos azuis, face grotesca como a
de um sátiro e quase careca. Ao ouvir minhas primeiras
palavras, aparentou simultaneamente raiva e medo.
Minha óbvia cordialidade, contudo, derreteu-lhe por fim
a resistência e, de má vontade, fez um gesto para que eu
o seguisse pela escura, crepitante e precária escada até o
ático.
[10]
Só havia dois quartos lá em cima, o dele ficava no
lado oeste, voltado para o muro que fechava o alto da
rua. Era bem grande, e dava impressão de ser ainda
maior por estar extraordinariamente vazio e mal
cuidado. Em termos de móveis, tinha só um estrado de
ferro, um lavatório encardido, uma mesinha, uma ampla
estante de livros, um suporte de música e três cadeiras
antiquadas.
No
chão,
partituras
empilhadas
desordenadamente por todo lado. As paredes eram de
tábua nua e, provavelmente, nunca conheceram reboco,
enquanto a abundância de poeira e de teias de aranha
fazia o lugar parecer mais deserto que habitado.
Evidentemente, o mundo de beleza de Erich Zann jazia
em algum cosmos distante da imaginação.
Fazendo sinal para eu me sentar, o mudo fechou a
porta, girou a tramela de madeira e acendeu uma vela
para aumentar a luz da que trouxera com ele. Removeu
imediatamente a viola de sua capa surrada e,
empunhando-a,
sentou-se
na
cadeira
menos
desconfortável dali. Não usou o suporte de música, mas,
sem oferecer escolha e tocando de memória, encantoume por mais de uma hora com melodias que eu nunca
ouvira antes, melodias que deviam ser criações dele
próprio. Descrever sua exata natureza é algo impossível
para alguém pouco versado em música. Soavam como
um tipo de fuga, com recorrentes passagens da mais
cativante qualidade, mas, para mim, eram notáveis pela
ausência de qualquer das estranhas notas entreouvidas
do meu quarto noutras ocasiões.
Daquelas notas assombrosas eu lembrava, pois
[11]
muitas vezes as murmurara e assoviara imprecisamente
para mim mesmo. Então, quando o violista descansou
seu arco, pedi que tocasse algumas delas. Quando
comecei tal pedido, seu vincado rosto de sátiro perdeu a
morna placidez que tinha durante as execuções e exibiu
aquela mesma peculiar mistura de raiva e medo que
percebi da primeira vez que o interpelei. Por um
momento, estive inclinado tentar persuadi-lo, dando
pouca atenção aos caprichos da senilidade. Procurei até
despertar o estranhíssimo humor de meu anfitrião
assoviando algumas melodias escutadas na noite
anterior. Mas não prossegui nesse rumo por mais que
um instante, pois, ao reconhecer a ária assoviada, o
rosto do mudo contorceu-se de repente numa expressão
que ultrapassa qualquer análise, e sua longa, fria e
ossuda mão direita esticou-se para calar minha boca e
silenciar a grotesca imitação. Enquanto fazia isso,
demonstrava ainda mais sua excentricidade lançando
um olhar assustado em direção à solitária janela
acortinada, como se temesse algum invasor. Um olhar
duplamente absurdo, visto que o sótão ficava bem alto e
inacessível acima dos telhados adjacentes, sendo aquela
janela, como dissera o concierge, o único ponto do qual
se podia avistar por cima do muro no auge da rua.
O olhar do velho trouxe a observação de Blandot de
volta à minha memória e, de repente, senti vontade de
olhar para fora sobre o amplo e vertiginoso panorama de
telhados iluminados pela lua e as luzes da cidade além
do topo da colina que, entre todos os moradores da Rue
d’Auseil, apenas este amargurado músico podia ver.
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Fui em direção à janela e quase abri as cortinas
quando, com uma cólera amedrontada maior do que
antes, o mudo se lançou outra vez sobre mim, agora
fazendo sinais com a cabeça em direção à porta
enquanto lutava nervosamente para me arrastar até lá
com ambas as mãos. Indignadíssimo com meu anfitrião,
mandei que me soltasse e falei que sairia
imediatamente. Suas mãos relaxaram e, quando viu meu
asco e desgosto, sua própria raiva pareceu diminuir.
Voltou a apertar as mãos, desta vez mais
amigavelmente, compelindo-me até uma cadeira. Então,
com ar pensativo, foi até a mesa onde, com um lápis,
escreveu muitas palavras no francês forçado de um
estrangeiro.
A nota que enfim me entregou era uma súplica por
tolerância e perdão. Zann dizia ser velho, solitário e
torturado por estranhos medos e distúrbios nervosos
ligados à sua música e outras coisas. Gostou que eu
escutasse sua música, queria que eu voltasse outra vez e
não me importasse com suas excentricidades, mas não
podia tocar para outrem suas estranhas harmonias, nem
podia suportar ouvi-las de outrem, nem que nada em
seu quarto fosse tocado por outrem. Até nossa conversa
no saguão, não sabia que eu podia ouvi-lo tocando do
meu quarto; agora me perguntava se eu não combinaria
com Blandot para pegar um quarto mais abaixo, onde
não pudesse ouvi-lo à noite. Ele iria, escreveu, pagar a
diferença no aluguel.
Enquanto me sentava decifrando aquele francês
execrável, senti-me mais indulgente com o velho. Ele era
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vítima de sofrimento físico e nervoso, assim como eu, e
meus estudos metafísicos me ensinaram gentileza. No
silêncio da noite, veio um leve som da janela. Suas abas
devem ter se agitado com o vento e, por alguma razão,
tive um sobressalto quase tão intenso quanto o de Zann.
Quando terminei de ler, apertei sua mão e parti como
amigo.
No dia seguinte, Blandot me deu um quarto mais
caro no terceiro andar, entre o apartamento de um velho
agiota e o de um respeitável estofador. Não havia
ninguém no quarto andar.
Logo descobri que o entusiasmo de Zann por
minha companhia não era tão grande quanto parecera
enquanto me persuadia a mudar do quinto andar. Ele
não me pediu para visitá-lo e, quando visitei, parecia
inquieto e tocava displicentemente. Isso sempre de
noite; de dia, ficava dormindo e não recebia ninguém.
Meu apreço por ele não aumentou, embora o quarto do
ático e a estranha música exercessem sobre mim uma
bizarra fascinação. Eu tinha também um desejo curioso
de olhar por aquela janela, por cima do muro, para ver
os telhados e pináculos reluzentes que deviam se
espalhar pela nunca vista ladeira lá embaixo. Certa vez
subi ao sótão na hora do teatro, quando Zann estava
fora, mas a porta estava trancada.
O que logrei fazer foi entreouvir o velho mudo
tocando noite adentro. De início, ia na ponta dos pés até
meu antigo quinto andar. Depois fiquei ousado o
bastante para subir o último e crepitante lance de escada
até o sótão. Lá, no estreito corredor, atrás da porta
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trancada e do buraco da fechadura coberto, sempre
ouvia sons que me enchiam de um pavor indefinível: o
pavor do vago assombro e do mistério sinistro. Não que
os sons fossem pavorosos, pois não eram, mas possuíam
vibrações que não sugeriam nada deste mundo e, em
determinados intervalos, assumiam uma qualidade
sinfônica que eu mal conseguia imaginar produzida por
um só músico. Com certeza, Erich Zann era dotado de
uma genialidade extraordinária. À medida que as
semanas passavam, as execuções ficavam mais ferozes.
Já o velho adquiria um aspecto cada vez mais fatigado e
dissimulado que dava pena contemplar. Agora,
independente do horário, recusava-se a me receber e me
evitava sempre que nos encontrávamos na escada.
Então, certa noite, enquanto escutava à porta, ouvi
a esganiçante viola chegar num crescendo a uma caótica
babel de sons. Um pandemônio que me levaria a duvidar
de minha própria sanidade, não emanasse lá de dentro
uma prova lastimável de que o horror era real: o grito
pavoroso e inarticulado que só um mudo pode emitir, e
que só irrompe em momentos do mais terrível pavor ou
agonia. Bati à porta repetidas vezes, mas não obtive
resposta. Esperei no corredor escuro, tremendo de medo
e de frio, até que ouvi o pobre músico esforçando-se
debilmente para levantar do chão com a ajuda de uma
cadeira. Acreditando-o cônscio e recobrado de um
desmaio, voltei a bater à porta, gritando meu nome para
tranquilizá-lo. Ouvi Zann cambalear até a janela e fechar
tanto suas abas quanto o caixilho móvel. Depois, ouvi-o
cambalear até a porta que, hesitante, abriu para me
[15]
receber. Desta vez, sua satisfação com minha presença
mostrou-se real, pois aquela face distorcida brilhou de
alívio quando agarrou meu casaco feito criança que
agarra a saia da mãe.
Tremendo pateticamente, o velho levou-me à força
até uma cadeira, afundando-se em outra, ao lado da qual
jaziam negligentemente sua viola e o arco. Por algum
tempo ficou sentado, inerte, acenando a cabeça de modo
estranho, mas sugerindo paradoxalmente uma escuta
intensa e amedrontada. Em seguida, pareceu satisfeito e,
passando a uma cadeira perto da mesa, redigiu uma
breve nota, entregou-a a mim e voltou à mesa, onde
começou a escrever de forma rápida e incessante. A nota
me implorava – em nome da compaixão e para o bem da
minha própria curiosidade – que eu esperasse onde
estava enquanto ele preparava um relato completo, em
alemão, de todos os prodígios e terrores que o
assaltavam. Esperei, e o lápis do mudo voou.
Talvez uma hora depois – eu ainda esperava, e a
pilha de folhas febrilmente escritas continuava a crescer
– vi Zann estancar, como que prenunciando um choque
horrível. Olhava para a janela atrás da cortina, escutava
e tremia. Então julguei ter eu próprio ouvido um som;
não um som horrível, mas uma nota musical lindamente
grave e infinitamente distante, sugerindo um músico
tocando numa das casas vizinhas ou em alguma morada
pra lá do elevado muro por sobre o qual nunca
conseguira olhar. Em Zann o efeito foi terrível: soltando
o lápis, levantou-se subitamente, apanhou sua viola e
começou a rasgar a noite com a execução mais feroz que
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jamais ouvi do seu arco, nem quando escutava à porta
trancada.
Seria inútil descrever como Erich Zann tocava
naquela noite atroz. Era mais horrível do que tudo que eu
entreouvira porque, agora, dava pra ver a expressão em
seu rosto e perceber que desta vez o motivo era um medo
absoluto. Ele tentava fazer barulho para espantar ou
abafar alguma coisa que eu não podia imaginar, embora
sentisse que devia ser apavorante. A execução ficou cada
vez mais fantástica, delirante e histérica, porém, manteve
até o fim a genialidade suprema que eu sabia possuir
aquele estranho velho. Reconheci a ária: uma frenética
dança húngara, muito popular nos teatros e, refleti por
um instante, essa foi a primeira vez que ouvi Zann tocar
algo de outro compositor.
Mais e mais altos, mais e mais ferozes, elevavam-se
o esganiçar e o ganir da desesperada viola. O músico
pingava um funesto suor e contorcia-se como um
macaco, sempre olhando freneticamente para a janela
atrás da cortina. No frenesi de suas melodias, eu quase
podia ver sombrios sátiros e bacantes dançando e
girando insanamente por efervescentes abismos de
nuvem e fumaça e relâmpagos. Foi aí que, então, pensei
ter ouvido uma nota mais aguda e constante que não
saía da viola; uma nota calma, deliberada e
intencionalmente zombeteira, vinda de muito longe a
oeste.
Nesse momento, as abas da janela começaram a
vibrar com a ventania que surgiu lá fora, como em
resposta à louca execução lá dentro. A plangente viola de
[17]
Zann se sobrepujou emitindo sons que nunca pensei que
uma viola pudesse emitir. As abas da janela vibraram
mais alto, soltaram-se e começaram a se chocar com
força contra o batente. Então os vidros se despedaçaram
com os persistentes impactos, e o vento gélido correu
para dentro, fazendo crepitarem as velas e farfalharem
as folhas na mesa em que Zann começara a redigir seu
horrível segredo. Olhei para ele e vi que ultrapassava a
observação consciente. Seus olhos azuis saltavam
inchados, vítreos e incapazes de ver, e a frenética
execução transformara-se numa orgia cega, mecânica,
irreconhecível, que nenhuma pena conseguiria sequer
sugerir.
Uma rajada súbita, mais forte que as outras,
apanhou o manuscrito e o impeliu rumo à janela. Segui
desesperado as folhas voantes, mas, antes que eu
chegasse à vidraça destruída, tinham-se ido. Lembreime então de meu antigo desejo de olhar por aquela
janela, a única na Rue d’Auseil da qual dava para ver a
ladeira além do muro com a cidade espalhada lá
embaixo. Estava muito escuro, mas as luzes da cidade
sempre ardiam, e eu esperava vê-las ali entre a chuva e o
vento. Porém, quando olhei daquela mais alta de todas
as janelas, enquanto as velas crepitavam e a insana viola
uivava com o vento noturno, não vi cidade alguma
espalhada lá embaixo, nem luz alguma cintilando
amistosa em ruas conhecidas: apenas a escuridão do
espaço infinito, espaço nunca imaginado, cheio de
movimento e música, sem nenhuma semelhança com
nada na terra. Enquanto achava-me ali contemplando
[18]
aterrorizado, o vento apagou ambas as velas daquele
velho sótão, deixando-me em cruel e impenetrável
escuridão, com caos e pandemônio à minha frente, e a
loucura demoníaca daquela viola grasnando às minhas
costas.
Cambaleei de volta no escuro, sem meios de
acender uma luz, esbarrando na mesa, derrubando uma
cadeira e, enfim, tateando até o lugar em que a escuridão
gritava com aquela música odiosa. Salvar a mim e a
Erich Zann eu podia ao menos tentar, fossem quais
forças que a mim se opunham. Pensei ter sido tocado
por algo gelado, então gritei, mas meu grito foi abafado
por aquela horrenda viola. De repente, de dentro da
escuridão, o louco arco-serrote me atingiu, e percebi que
estava próximo do músico. Tateei para frente, toquei a
parte de trás da cadeira de Zann e, então, encontrei e
sacudi seu ombro tentando trazê-lo de volta à razão.
Ele não respondeu, mas a viola continuava a ganir
sem cessar. Levei minha mão à sua cabeça, cujo acenar
mecânico consegui interromper, e gritei em seu ouvido
que tínhamos de fugir das incógnitas da noite. Mas ele
não me respondeu, nem moderou o furor de sua música
inexprimível, enquanto por todo o sótão estranhas
correntes de vento pareciam dançar em trevas e babel.
Quando minha mão tocou sua orelha estremeci, embora
não soubesse o porquê até sentir sua face estática;
aquela face fria como o gelo, endurecida, sem
respiração, cujos olhos sem vida inchavam-se
inutilmente para o vazio. E então, por algum milagre,
encontrando a porta e a trava de madeira, escapei
[19]
ferozmente no escuro daquela coisa de olhos vítreos e do
uivo repulsivo da amaldiçoada viola cuja fúria
aumentava mesmo enquanto eu fugia.
Pular, flutuar, voar escada abaixo naquela casa
lúgubre; correr descuidadamente para a rua estreita,
íngreme e antiga com seus degraus e casas
cambaleantes; passar estrepitosamente pelas escadarias
e pedregulhos até as ruas mais baixas e o pútrido rio de
paredes de cânion; ofegar ao atravessar a ponte escura
até as ruas e bulevares mais amplos e salubres que
conhecemos; são todas essas as terríveis impressões que
sobrevivem em mim. E recordo que não havia vento
algum, e que a lua estava alta, e que cintilava toda a luz
da cidade.
A despeito de minhas buscas e investigações mais
cuidadosas, nunca mais consegui encontrar a Rue
d’Auseil. Mas não estou de todo pesaroso, nem por isso
nem pela perda, nos abismos insonháveis, das folhas
escritas em segredo que, sozinhas, teriam explicado a
música de Erich Zann.
*
[20]
A Vênus de Illa
Prosper Merimée (1837)
[21]
Eu descia a última ladeira do Canigó e, ainda que o
sol estivesse posto, distinguia na planície as casas da
cidadezinha de Illa, à qual me dirigia.
— Você tem certeza — perguntei ao catalão que me
guiava desde a véspera — que sabe onde mora o Sr. de
Pèira Horada?
— Se sei? Conheço sua casa como se fosse minha.
Se não estivesse tão escuro, mostrava pro senhor. É a
mais bela de Illa! Ele tem dinheiro, sim, o Sr. de
Pèira Horada, e está casando o filho com uma mais rica
ainda que ele.
— Esse casamento é em breve? — perguntei.
— Em breve? Os violinos já devem estar
encomendados pra festa. Esta noite, talvez amanhã,
depois de amanhã, algo assim. É em Puygarrig que vai
acontecer, pois é com a Srta. de Puygarrig que ele vai se
casar. Vai ser bonito, ah se vai!
Eu havia sido recomendado ao Sr. de Pèira Horada
por meu amigo, Sr. de P. Segundo este, tratava-se de um
antiquário muito instruído, de uma gentileza sem par,
que teria grande prazer em me mostrar todas as ruínas
em dez localidades das redondezas. Ora, eu contava com
ele para visitar os arredores de Illa, pois sabia serem
ricos em monumentos da Idade Média. Aquele
casamento, do qual ouvia pela primeira vez, atrapalhava
todos os meus planos. ―Vou ser um estraga-festas‖,
pensei. Mas, uma vez anunciado pelo Sr. de P., eu era
esperado e precisava me apresentar.
— Aposto — disse meu guia —, como já estamos na
planície, aposto um charuto com o senhor que adivinho
[22]
o que vai fazer na casa dos Pèira Horada.
— Mas — respondi, estendendo-lhe um charuto —
não é muito difícil de adivinhar. Pelo horário, depois de
passar por seis localidades do Canigó, o grande negócio
é jantar.
— Sim, mas amanhã?… Escute, aposto que o
senhor veio a Illa para ver o ídolo. Adivinhei isso ao vêlo tirar retrato dos santos em Serrabona.
— Ídolo? Que ídolo? — a palavra excitou minha
curiosidade.
— Como?! Não lhe contaram em Perpinyà que o
Sr. de Pèira Horada achou um ídolo enterr...?
— Você quer dizer: uma estátua em terracota, de
argila?
— Não... Sim, quer dizer, enterrado, mas é de
cobre, e dá pra fazer um bom dinheiro ali. Ela pesa igual
a um sino de igreja. Foi bem no pé de uma oliveira, foi,
que achamos ela.
— Então você estava lá na descoberta?
— Sim. O Sr. de Pèira Horada pediu, tem uns
quinze dias, pra mim e o Jan Coll arrancar uma oliveira
que tinha congelado no ano anterior, um ano ruim,
como o senhor sabe. Então, trabalhando o Jan Coll com
toda vontade, ele dá uma picaretada, e eu escuto um
bimm… como se tivesse batido num sino. ―Que isso?‖
perguntei. Continuamos cavando, cavando, então
apareceu uma mão preta, igual à mão de um morto
saindo da terra. Morri de medo. Fui até o patrão e disse:
―Mortos, patró, debaixo da oliveira! Tem que chamar o
padre!‖. ―Que mortos?‖, perguntou. Ele veio e, mal viu a
[23]
mão, gritou: ―Uma antiguidade! Uma antiguidade!‖
Parecia que tinha encontrado um tesouro. E então, com
a picareta, com as mãos, pelejou e trabalhou quase tanto
quanto nós dois.
— E, enfim, o que encontraram?
— Uma mulher grande e preta, todinha de cobre,
mais da metade pelada, com todo o respeito. O Sr. de
Pèira Horada disse que era um ídolo do tempo dos
pagãos… do tempo de Carlemany!
— Vejo que se trata… de alguma Santa Virgem em
bronze, de algum convento destruído.
— Santa Virgem? Ah, não!… Eu teria reconhecido,
se fosse uma Santa Virgem. É um ídolo, garanto, dá pra
ver no jeito dela. Ela fixa aqueles olhões brancos na
gente… Como se tivesse encarando você. Baixamos os
olhos, sim, quando olhamos pra ela.
— Olhos brancos? Sem dúvida, incrustados no
bronze. Talvez uma estátua romana.
— Romana, isso! O Sr. de Pèira Horada disse que é
romana. Ah, bem vejo que o senhor é sabido que nem
ele!
— Ela está inteira, bem conservada?
— Oh, meu senhor, não falta nada! É ainda mais
bela e bem acabada que o busto de Lluís Felip, que fica
na prefeitura, em gesso pintado. Mas, mesmo assim, a
cara desse ídolo não me agrada nadinha. Ela tem um ar
malvado… ela também é.
— Malvada? Que mal ela fez a você?
— Não a mim exatamente, mas, o senhor vai ver.
Tivemos um trabalhão danado pra colocar ela de pé. O
[24]
Sr. de Pèira Horada também puxava a corda, e ele não é
mais forte que um frango, coitado. Com muito custo
pusemos ela de pé, daí fui pegar um pedaço de telha pro
calço e: cabum! A danada caiu pra trás com todo o peso.
Gritei: sai debaixo! Só que, não rápido o bastante, não
deu tempo pro Jan Coll puxar a perna…
— Ele se machucou?
— Quebrou como uma vara, a pobre da perna!
Coitado! Quando vi aquilo, fiquei furioso. Queria
arrebentar o ídolo na picareta, mas o Sr. de
Pèira Horada não deixou. Ele deu dinheiro pro Jan Coll,
que ainda está de cama, faz quinze dias, e o médico disse
que nunca mais vai andar com aquela perna como anda
com a outra. É uma pena, ele era nosso melhor corredor
e, depois do filho do patrão, o mais sagaz jogador de
palmell*1. Foi por isso que o Sr. Alfons de Pèira Horada
ficou triste, era o Jan Coll que preparava a partida dele.
Era bonito de ver como mandavam as bolas um pro
outro. Paf! Paf! Elas nunca tocavam a terra.
Conversando ao acaso, entramos em Illa, e logo já
me encontrava na presença do Sr. de Pèira Horada. Era
um velhote ainda vigoroso e cheio de disposição,
empoado, nariz vermelho, ar jovial e brincalhão. Antes
de abrir a carta do Sr. de P., instalou-me diante de uma
mesa bem servida e me apresentou à mulher e ao filho
como o arqueólogo ilustre que devia tirar a região de
Rosselló do esquecimento em que a indiferença dos
As notas de rodapé deste conto são todas Notas do Tradutor.
Jogo considerado precursor do tênis, praticado geralmente em
dupla.
*
1
[25]
sábios a deixara.
Enquanto comia com grande apetite, pois nada me
deixa mais bem disposto que o ar vivo das montanhas,
fiquei examinando meus anfitriões. Já falei um pouco
sobre o Sr. de Pèira Horada, mas devo acrescentar que
era a vivacidade em pessoa. Ele falava, comia, se
levantava, corria até a biblioteca, me trazia livros,
mostrava estampas, me servia bebidas, nunca ficava dois
minutos parado. Sua mulher, um pouco gorda demais,
como a maioria das catalãs que já passaram dos
quarenta, me pareceu uma provinciana reforçada,
ocupada exclusivamente com os afazeres domésticos.
Embora o jantar fosse suficiente para seis pessoas no
mínimo, correu à cozinha, mandou matar uns pombos e
fritar bolinhos de milho, abriu não sei quantas compotas
de doce. Num instante a mesa estava coberta de pratos e
garrafas, e eu certamente teria morrido de indigestão se
tivesse só degustado de tudo que me ofereciam.
Entretanto, a cada prato que eu recusava, vinham novas
desculpas. Temiam que eu não ficasse à vontade em Illa,
afinal ―na província tem-se menos recursos, e os
parisienses são tão difíceis!‖
Em meio às idas e vindas dos seus pais, o Sr. Alfons
de Pèira Horada não se mexia mais que um busto de
pedra. Era um jovem grande de vinte e seis anos, de
fisionomia bela e regular, mas faltava-lhe expressão. Seu
tamanho e suas formas atléticas bem justificavam a
reputação de infatigável jogador de palmell que tinha na
região. Nessa noite, vestia-se com elegância, exatamente
como a gravura do último número do Jornal da Moda.
[26]
Mas parecia apertado naquela roupa, rígido como uma
estaca dentro do colarinho de veludo, e só se virava de
corpo inteiro. As mãos grandes e bronzeadas, as unhas
curtas, tudo contrastava com seu traje: eram as mãos de
um camponês saindo das mangas de um dândi. Aliás,
embora tenha me olhado de cima embaixo cheio de
curiosidade por eu ser parisiense, só me dirigiu a palavra
uma única vez, a noite toda, para me perguntar onde eu
tinha comprado a corrente do meu relógio.
— É isso, meu caro hóspede! — disse-me o Sr. de
Pèira Horada, quando o jantar chegava ao fim. —Você
me pertence, está em minha casa, não largo mais você, a
não ser quando tiver visto tudo que temos de curioso em
nossas montanhas. É preciso que aprenda a conhecer
nossa Rosselló e que lhe dê o devido valor. Você nem
imagina o que temos pra lhe mostrar: monumentos
fenícios, celtas, romanos, árabes, bizantinos, você verá
tudo, ―do cedro ao hissopo‖. Conduzirei você por todo
lado e não lhe pouparei sequer de um tijolo.
Um acesso de tosse o obrigou a parar. Aproveitei
para dizer que ficaria desolado se lhe importunasse
numa circunstância tão importante para sua família. Se
me aconselhasse sobre as excursões a fazer, eu poderia ir
sozinho, sem lhe dar o trabalho de me acompanhar…
— Ah! Você diz isso por causa do casamento
daquele rapaz lá — exclamou me interrompendo. —
Bobagem! Será só depois de amanhã. Você festejará as
núpcias conosco, em família, pois a futura esposa está de
luto por uma tia de quem é herdeira. Assim, nada de
festa, nada de baile… É uma pena… Você teria visto
[27]
dançar nossas catalãs… Elas são tão bonitas, e talvez a
inveja o animasse a imitar meu Alfons. Um casamento,
como dizem, leva a outros… Sábado, os jovens bem
casados, estarei livre, e pegaremos a estrada. Perdoe-me
por lhe aborrecer com um casamento de província. Para
um parisiense cansado de festas… e núpcias, ainda por
cima, sem baile! Todavia, verá uma noiva… uma noiva…
depois você me conta… Mas você é um homem sério e
não observa mais as mulheres. Tenho algo melhor que
isso para lhe mostrar. Farei você ver uma coisa!… Estou
reservando uma tremenda surpresa para amanhã.
— Meu Deus! — falei —, é difícil ter um tesouro em
sua casa sem que o público fique sabendo. Acho que
adivinho a surpresa que você está preparando. Mas, se é
da sua estátua que se trata, a descrição do meu guia só
serviu para excitar minha curiosidade e me predispor à
admiração.
— Ah! Ele falou do ídolo, pois é assim que chamam
minha bela Vênus Tur… Mas não quero lhe dizer nada.
Amanhã, com o dia claro, você a verá e me dirá se tenho
ou não razão de considerá-la uma obra prima. Por Deus!
Você não poderia chegar em hora mais oportuna! Há
nela umas inscrições que eu, pobre ignorante, explico à
minha maneira… mas um sábio de Paris!… Pode ser que
caçoe de minha interpretação… pois fiz um
memorando… eu que vos fala… velho antiquário de
província, eu me lancei… Quero fazer a imprensa
gritar… Se você se dignar a ler e corrigir, eu poderia
esperar… Por exemplo, estou bem curioso para saber
como traduziria aquela inscrição no pedestal: CAVE…
[28]
Mas não quero pedir-lhe nada ainda! Até amanhã, até
amanhã! Nem uma palavra sobre a Vênus hoje!
— Tens razão Pèira — disse a esposa— em deixar
quieto o teu ídolo. Deverias perceber que impedes o
cavalheiro de comer. Ora, ele já viu em Paris estátuas
bem mais bonitas que a tua. Nos jardins das Tulherias
há dezenas delas, e de bronze também.
— Eis aí a ignorância, a santa ignorância da
província! — interrompeu o Sr. de Pèira Horada. —
Comparar uma antiguidade admirável às figuras banais
de Coustou! ―Com que irreverência fala dos deuses
minha patroa!‖2. Sabia que minha mulher queria que eu
fundisse a estátua para fazer um sino pra nossa igreja? É
que ela seria a madrinha. Uma obra prima de Míron,
cavalheiro!
— Obra prima! Obra prima! Bela obra prima ela
fez! Quebrar a perna de um homem!
— Mulher, vês aqui? — disse o Sr. de Pèira Horada
em tom resoluto, esticando para ela sua perna direita
calçada com uma meia de seda colorida. — Se minha
Vênus tivesse quebrado esta perna aqui, eu nem
lamentaria.
— Meu Deus, Pèira, como podes dizer isso?!
Felizmente o rapaz está melhor… Mesmo assim, não
consigo nem olhar para uma estátua que provoca
desgraças como essa. Pobre Jan Coll!
— Ferido pela Vênus, cavalheiro — disse o Sr. de
Citação, ligeiramente modificada pelo autor, da peça Anfitrião
(1668) de Molière.
2
[29]
Pèira Horada soltando uma grande risada —, ferido pela
Vênus, e o maroto ainda se queixa. ―Veneris nec
praemia noris.‖3 Quem não foi ferido por Vênus?
O Sr. Alfons, que entendia francês melhor do que
latim, piscou com um ar inteligente e me olhou como a
perguntar: ―E você, parisiense, entendeu?‖
O jantar acabou. Já fazia uma hora que eu não
comia mais. Eu estava cansado e não conseguia esconder
os frequentes bocejos que me escapavam. A Sra. de
Pèira Horada foi a primeira a perceber e ponderar que
estava na hora de dormir. Começaram então novas
desculpas quanto à precariedade do meu aposento: eu
não estaria como em Paris; ―na província hospeda-se tão
mal!‖; era preciso ser indulgente com os rosselloneses...
Eu protestei que, após uma viagem pelas montanhas,
um feixe de palha seria um colchão delicioso, mas
continuaram pedindo que eu perdoasse aqueles pobres
camponeses se não me tratassem tão bem quanto teriam
desejado.
Subi enfim até o quarto que me destinaram,
acompanhado pelo Sr. de Pèira Horada. A escada, cujos
degraus superiores eram de madeira, terminava no meio
de um corredor que ligava vários quartos.
— À direita — disse meu anfitrião — ficam os
aposentos reservados à futura Sra. Alfons. O seu quarto
fica na extremidade oposta do corredor. Bem se percebe
— acrescentou com um ar pretensamente refinado —
Citação da peça Eneida (séc. I a.C) de Virgílio, trad. ―Não
conhecerás os favores de Vênus‖.
3
[30]
que é preciso isolar os recém-casados. Você fica numa
ponta da casa, eles, na outra.
Entramos num quarto bem mobiliado, onde o
primeiro objeto que avistei foi um leito com mais de dois
metros de comprimento, quase dois metros de largura e
tão alto que era preciso uma escada de mão para subir
nele. Meu anfitrião, tendo indicado a posição da
campainha, verificou se o açucareiro estava cheio e se os
frascos de água-de-colônia estavam devidamente
colocados no banheiro e, depois de me perguntar várias
vezes se nada me faltava, me desejou boa noite e me
deixou só.
As janelas estavam fechadas. Antes de me despir,
abri uma delas para respirar o ar fresco da noite,
delicioso após um longo jantar. Bem de frente estava o
Canigó, de um aspecto admirável desde sempre, mas
que, naquela noite, me pareceu a mais bela montanha do
mundo, iluminado que estava por uma lua
resplandecente. Fiquei alguns minutos contemplando
sua silhueta maravilhosa e já ia fechar a janela quando,
baixando os olhos, percebi a estátua sobre um pedestal a
uns quarenta metros da casa. Estava no canto de uma
cerca viva que separava um pequeno jardim de um vasto
quadrado perfeitamente plano que, fiquei sabendo mais
tarde, era a quadra de palmell da cidade. Esse terreno,
propriedade do Sr. de Pèira Horada, foi cedido por ele à
comunidade sob insistentes solicitações de seu filho.
Da distância em que eu estava, era difícil distinguir
a atitude da estátua. Eu só podia julgar sua altura, que
me pareceu ser de um metro e oitenta mais ou menos.
[31]
Nesse momento, dois garotos da cidade passavam pela
quadra de palmell, bem perto da cerca, assoviando a
bela ária do Rosselló, Muntanyes regalades. Pararam
para ver a estátua, e um deles lhe deu uma bronca em
voz bem alta. Falava catalão, mas eu estava no Rosselló
tempo o bastante para compreender aproximadamente
o que dizia.
— Você aí, sua bandida! (o termo catalão era mais
enérgico.) Você aí! — dizia. — Então é você que quebrou
a perna do Jan Coll! Se fosse minha, eu te quebraria o
pescoço.
— Bah! Com o quê? — perguntou o outro. — Ela é
de cobre, e tão duro que a lima do Esteve quebrou
embaixo tentando cortá-lo. É cobre do tempo dos
pagãos, mais duro do que não sei o quê.
— Se eu tivesse meu cinzel a frio (parecia que era
aprendiz de serralheiro), arrancava logo seus olhões
brancos, como se tirasse uma amêndoa da casca. Fariam
mais de cem soldos de prata.
Deram alguns passos se afastando.
— Preciso desejar boa noite ao ídolo — disse o
maior dos aprendizes, parando de repente.
Ele se abaixou e, provavelmente, pegou uma pedra.
Vi que esticou o braço, lançou alguma coisa e,
imediatamente, um golpe sonoro retiniu no bronze. No
mesmo instante, o aprendiz levou a mão à cabeça
soltando um grito de dor.
— Ela jogou de volta! — exclamou.
E os danados fugiram em disparada. Era evidente
que a pedra tinha quicado no metal e punido o moleque
[32]
pelo ultraje à deusa. Fechei a janela rindo a valer. ―Mais
um vândalo punido pela Vênus! Quem dera todos os
depredadores de nossos velhos monumentos tivessem a
cabeça rachada assim!‖ Com tal anseio humanitário,
adormeci.
Era dia claro quando despertei. Perto de meu leito
estava, de um lado, o Sr. de Pèira Horada, de roupão; do
outro, um criado enviado por sua mulher, com uma
xícara de chocolate na mão.
— Vamos, parisiense, de pé! Eis meus preguiçosos
da capital! — disse o anfitrião enquanto eu me vestia às
pressas. — Oito horas e ainda na cama! Estou de pé
desde as seis. Já é a terceira vez que subo aqui. Cheguei
à sua porta na ponta dos pés: nada, nenhum sinal de
vida. Faz mal dormir tanto na sua idade, sabia? E minha
Vênus que você não viu ainda? Vamos, tome logo essa
xícara de chocolate de Barcelona… Verdadeiro
contrabando… Chocolate como não se tem em Paris.
Ganhe forças, pois quando estiver diante de minha
Vênus, ninguém vai conseguir tirar você de lá.
Em cinco minutos eu estava pronto, quer dizer,
semibarbeado, mal abotoado e queimado pelo chocolate
que engoli quentíssimo. Desci até o jardim e me vi
diante de uma estátua admirável. Era realmente uma
Vênus, e de uma beleza maravilhosa. Tinha o alto do
corpo nu, como os Antigos costumavam representar as
grandes divindades. A mão direita, levantada à altura do
seio, ficava virada com a palma para dentro; o polegar e
os dois primeiros dedos estendidos, os dois outros
levemente dobrados. A outra mão, aproximada do
[33]
quadril, segurava o tecido que cobria a parte inferior do
corpo. A atitude dessa estátua lembrava aquela do
Jogador de Morra, conhecido, não sei bem por que, pelo
nome de Germanicus. Talvez tenham desejado
representar a deusa jogando morra4.
O que quer que seja, era impossível ver algo mais
perfeito do que o corpo daquela Vênus. Nada mais
suave, mais voluptuoso que seus contornos; nada mais
elegante e mais nobre que suas vestes. Esperava alguma
obra do Baixo Império, via uma obra prima do melhor
período da estatuária. O que me surpreendia, acima de
tudo, era a extraordinária veracidade das formas,
tamanha que seria possível crê-las moldadas na
natureza, se a natureza produzisse modelos tão
perfeitos.
Os cabelos, levantados na testa, pareciam ter sido
anteriormente dourados. A cabeça, pequena como a de
quase todas as estátuas gregas, ficava ligeiramente
inclinada para frente. Quanto ao rosto, nunca
conseguirei exprimir seu caráter estranho, cujo tipo não
se aproximava de nenhuma estátua antiga de que me
lembrasse. Não era de forma alguma aquela beleza
calma e severa dos escultores gregos que,
sistematicamente, conferiam a todos os traços uma
majestosa imobilidade. Aqui, ao contrário, eu observava
com surpresa a intenção clara do artista de transmitir
uma malícia quase beirando à maldade. Todos os traços
Jogo tradicional na Itália, de princípio semelhante ao par ou
ímpar.
4
[34]
eram ligeiramente contraídos: os olhos um pouco
oblíquos, a boca levantada nos cantos, as narinas um
pouco dilatadas. Liam-se, naquele rosto de beleza
incrível, desdém, ironia, crueldade. Na verdade, quanto
mais a gente olhava aquela admirável estátua, mais
experimentava o sentimento aflitivo de que uma beleza
tão maravilhosa pudesse aliar-se à total ausência de
sensibilidade.
— O modelo nunca existiu — comentei com o Sr. de
Pèira Horada — e duvido que os céus tenham jamais
produzido uma mulher assim. Que pena de seus
amantes! Ela devia se comprazer em fazê-los morrer de
desespero. Há em sua expressão algo de feroz e, no
entanto, nunca vi nada tão belo.
— ―É Vênus, toda inteira, agarrada à sua presa‖!5 —
exclamou o Sr. de Pèira Horada, satisfeito com meu
entusiasmo.
Aquela expressão de ironia infernal era ampliada
talvez pelo contraste entre os olhos muito brilhantes de
prata incrustada e a pátina verde-escuro que o tempo
conferiu a toda a estátua. Aqueles olhos brilhantes
produziam uma certa ilusão que lembrava a realidade, a
vida. Lembrei-me do que disse o guia: que ela fazia
quem a mirava baixar os olhos. Isso era quase verdade, e
não pude evitar um impulso de cólera contra mim
mesmo ao sentir-me pouco à vontade diante daquela
figura de bronze.
— Agora que já admirou tudo detalhadamente,
5
Citação da peça Fedra (1677) de Racine.
[35]
meu caro colega de antiquariato, abramos, por favor,
uma conferência científica. O que me diz desta inscrição,
à qual você ainda não prestou atenção?
Ele mostrava o pedestal da estátua, onde li as
palavras:
CAVE AMANTEM
— Quid dicis, doctissime? — perguntou esfregando
as mãos. — Vejamos se concordaremos sobre o sentido
desse cave amantem!
— Mas — respondi — há dois sentidos. Podemos
traduzir como: ―Cuidado com quem te ama, desconfie
dos amantes.‖ Mas, nesse sentido, não sei se cave
amantem estaria em bom latim. Vendo a expressão
diabólica dessa dama, eu acreditaria sobretudo que o
artista quis colocar o espectador de sobreaviso contra
essa terrível beleza. Eu traduziria então como: ―Cuidado
se ela te amar.‖
— Humf! — disse o Sr. de Pèira Horada. — Sim, é
um sentido admirável. Mas, não fique chateado, eu
prefiro a primeira tradução, que eu desenvolveria,
entretanto. Você conhece o amante de Vênus?
— São vários.
— Sim. Mas o primeiro é Vulcano. Não quereria
você dizer: ―Apesar de toda tua beleza, teu ar
desdenhoso, terás um ferreiro, um camponês manco por
amante!‖ Lição profunda, cavalheiro, para as faceiras!
Não pude deixar de sorrir, de tão forçada que me
pareceu a explicação.
[36]
— É uma língua terrível o latim com sua concisão
— observei para evitar contradizer formalmente meu
antiquário, e recuei alguns passos para contemplar
melhor a estátua.
— Um instante, colega! — disse o Sr. de
Pèira Horada me segurando pelo braço. — Você não viu
tudo. Existe outra inscrição. Suba no pedestal e observe
o braço direito.
Assim falando, me ajudou a subir.
Dependurei sem muita cerimônia no pescoço da
Vênus, com a qual já começava a me familiarizar.
Encarei-a por um instante e, de perto, achei-a ainda
mais malvada e mais bela. Depois identifiquei que havia,
gravados no braço, alguns caracteres de escrita cursiva
antiga, assim me pareceu. Exigindo o máximo dos
óculos, soletrei o que segue e, enquanto isso, o Sr. de
Pèira Horada repetia cada palavra que eu pronunciava,
aprovando gestual e vocalmente. Li então:
VENERI TVRBVL… EVTYCHES MYRO IMPERIO FECIT
Após a palavra TVRBVL da primeira linha,
pareceu-me que havia algumas letras apagadas, mas
TVRBVL estava perfeitamente legível.
— Que quer dizer? — perguntou meu anfitrião
radiante e sorrindo com malícia, pois pensava que eu
não me safaria facilmente com aquele TVRBVL.
— Tem uma palavra que não consigo explicar ainda
— respondi. —Todo o restante é fácil: ―Eutiques Míron
fez esta oferenda a Vênus por sua encomenda‖.
[37]
— Muito bem. Mas TVRBVL, como você entende?
O que é TVRBVL?
— TVRBVL me confunde bastante. Procuro em vão
um epíteto conhecido de Vênus que possa me ajudar. O
que você diria de TVRBVLENTA? Vênus que turva, que
agita, perturba… Percebe que penso em sua expressão
malvada? TVRBVLENTA, não é um mau epíteto para
Vênus — acrescentei em tom modesto, pois eu próprio
não estava muito satisfeito com minha explicação.
— Vênus turbulenta! Vênus, a extravagante! Ah!
Você acha então que minha Vênus é uma Vênus de
cabaré? De forma alguma, cavalheiro, é uma Vênus bem
educada! Mas vou explicar-lhe esse TVRBVL… Só
prometa não divulgar minha descoberta antes da
impressão de meu memorando. É que, você verá, essa
descoberta me trará glória… Vocês precisam deixar
algumas espigas para nós colhermos, pobres diabos da
província. Vocês são tão ricos, oh sábios cavalheiros de
Paris!
Do alto do pedestal, onde ainda estava
empoleirado, prometi-lhe solenemente que nunca teria a
falta de dignidade de roubar sua descoberta.
— TVRBVL…, cavalheiro — disse ele se
aproximando e baixando a voz de medo que alguém
mais ouvisse —, se lê TVRBVLNERAE.
— Ainda não compreendo.
— Escute bem. Num lugar aqui, ao pé da
[38]
montanha, tem uma cidade chamada Bulternera6. Tratase de uma corruptela da palavra latina TVRBVLNERA.
Nada mais comum que essas inversões. Bulternera,
cavalheiro, foi uma cidade romana. Eu sempre duvidei,
mas nunca havia encontrado provas. A prova, aí está.
Essa Vênus era a divindade protetora da cidade de
Bulternera. E essa palavra, Bulternera, cuja origem
antiga acabo de demonstrar, prova uma coisa bem mais
curiosa: que Bulternera, antes de ser uma cidade
romana, era uma cidade fenícia!
Ele parou um momento para respirar e saborear
minha surpresa. Cheguei a conter uma forte vontade de
rir.
— Na verdade — prosseguiu ele —, TVRBVLNERA
é puro fenício, TVR, pronuncia-se TUR… TUR e SUR,
mesma palavra, não é mesmo? SUR é o nome fenício de
Tyr, e não preciso lembrar-lhe o sentido. BVL, é Baal,
Bâl, Bel, Bul, ligeiras diferenças de pronúncia. Quanto a
NERA, essa me deu um pouco de trabalho. Fico tentado
a crer, não encontrando uma palavra fenícia, que essa aí
vem do grego néros: úmido, pantanoso. Tratar-se-ia
então de uma palavra híbrida. Para justificar néros, vou
mostrar-lhe em Bulternera como os riachos da
montanha formam lá charcos infectos. Por outro lado, a
terminação NERA poderia ter sido acrescentada mais
tarde em homenagem a Nera Pivesúvia, esposa de
Tétricus, que teria feito algum bem à cidade de Turbul.
A grafia atual em catalão é Bulaternera e, em francês,
Bouleternère.
6
[39]
Mas, por causa dos charcos, eu prefiro a etimologia
néros.
Deu uma tragada em seu tabaco com ar satisfeito.
— Mas, deixemos os fenícios e voltemos à
inscrição. Eu a traduzo, portanto, como: ―À Vênus de
Bulternera Míron dedica por sua ordem esta estátua,
obra sua‖.
Eu bem evitei criticar sua etimologia, mas queria,
por minha vez, dar provas de sagacidade e lhe disse:
— Alto lá, cavalheiro. Míron consagrou alguma
coisa, mas não vejo de forma alguma que seja a estátua.
— Como! — se espantou ele. — Mas não era Míron
um famoso escultor grego? O talento se perpetuaria em
sua família: um dos seus descendentes teria feito essa
estátua. Não há nada mais seguro que isso.
— Mas — repliquei —, vejo um buraco no braço.
Penso que tenha servido para fixar alguma coisa, um
bracelete, por exemplo, que Míron deu à Vênus como
oferenda expiatória. Míron era um amante infeliz. Vênus
estava irritada com ele, e ele a acalmou consagrando-lhe
um bracelete de ouro. Perceba que fecit muito
frequentemente se liga a consecravit. São termos
sinônimos. Eu lhe mostraria mais de um exemplo se
tivesse em mãos o Gruter ou mesmo o Orelli. É natural
que um apaixonado veja Vênus em sonho, que a imagine
ordenando um bracelete de ouro para sua estátua. Míron
consagrou-lhe um bracelete… Depois os bárbaros ou
mesmo algum ladrão sacrílego…
— Ah! Vê-se bem que você sabe romancear! —
exclamou meu anfitrião dando-me a mão para descer. —
[40]
Não, cavalheiro, essa é uma obra da escola de Míron.
Apenas observe o trabalho e você ficará convencido.
Tendo-me erigido em lei nunca contradizer
exageradamente antiquários teimosos, baixei a cabeça
com ar convencido e disse:
— É uma peça admirável.
— Ah, meu Deus! — exclamou o Sr. de
Pèira Horada. — Mais um traço de vandalismo! Jogaram
pedra na minha estátua!
Ele acabara de perceber uma marca branca um
pouco abaixo do seio da Vênus. Reparei um vestígio
parecido nos dedos da mão direita que, supunha então,
tinham sido tocados no trajeto da pedra, ou talvez um
fragmento tenha se soltado dela após o choque e
ricocheteado na mão. Contei ao meu anfitrião o insulto
que tinha testemunhado e a pronta punição que se
seguiu. Ele riu muito e, comparando o aprendiz a
Diomedes, desejou que ele visse, como o herói grego,
todos os seus companheiros transformados em aves
brancas.
O sino do almoço interrompeu essa conversa
clássica e, tal como na véspera, fui obrigado a comer por
quatro. Depois chegaram os lavradores do Sr. de
Pèira Horada. Enquanto ele os recebia, seu filho me
levou para ver uma caleche que tinha comprado em
Toulouse para sua noiva, e o quanto fiquei admirado,
nem preciso dizer. Em seguida, entrei com ele na
estrebaria onde me deteve por meia hora contando
vantagens sobre seus cavalos, descrevendo suas
genealogias, enumerando os prêmios que tinham
[41]
ganhado nas corridas do município. Por fim, veio a falar
da futura esposa, na sequência da alusão a uma égua
cinzenta que lhe destinava.
— Nós a veremos hoje — disse ele. — Não sei se
você a achará bonita. Vocês de Paris são difíceis. Mas
todo mundo aqui em Perpinyà a considera encantadora.
O bom é que é bem rica. Sua tia de Prada deixou uma
herança. Oh! Serei muito feliz.
Fiquei profundamente chocado por ver um jovem
aparentemente mais sensibilizado pelo dote do que
pelos belos olhos da sua futura esposa.
— Você já viu uma joia como esta aqui? —
continuou o Sr. Alfons. — Esta é a aliança que darei a ela
amanhã.
Assim falando, tirou da primeira falange de seu
dedo mínimo um grosso anel adornado com diamantes e
formado por duas mãos entrelaçadas, alusão que me
pareceu infinitamente poética. Era um trabalho antigo,
mas julguei que havia sido retocado para cravejar os
diamantes. No seu interior, liam-se estas palavras em
letras góticas: Sempr'ab ti, quer dizer, sempre contigo.
— É uma bela aliança — comentei —, mas esses
diamantes acrescentados tiraram um pouco do seu
caráter.
— Oh! Ela é bem mais linda assim — respondeu
sorrindo. — Aqui tem uns mil e duzentos francos em
diamantes. Minha mãe que me deu. Era uma aliança de
família, muito antiga… do tempo da cavalaria. Foi usada
por minha avó, que a ganhou da sua. Deus sabe quando
foi feita.
[42]
— O costume em Paris — disse-lhe eu — é dar um
anel bem simples, normalmente de dois metais
diferentes, como ouro e platina. Veja, este outro anel,
neste seu dedo, seria bastante conveniente. Esse aí, com
os diamantes e as mãos em relevo, é tão grosso que nem
daria para calçar uma luva por cima.
— Oh! A Sra. Alfons se arranjará como quiser.
Acredito que ficará bem contente em ganhá-lo. Mil e
duzentos francos no dedo, é bem agradável. Este
anelzinho aqui — acrescentou olhando com ar de
satisfação o anel todo liso que usava na mão — foi uma
garota de Paris que me deu numa terça de carnaval. Ah,
como me entreguei quando estava em Paris há dois
anos! É lá que a gente se diverte!… — E suspirou de
saudade.
Naquele dia, devíamos jantar em Puygarrig, na
casa dos parentes da futura Sra. Alfons. Subimos na
caleche e partimos para o castelo que ficava cerca de dez
quilômetros de Illa. Fui apresentado e recebido como
amigo da família. Não falarei do jantar nem da conversa
que o seguiu, da qual pouco participei. O Sr. Alfons,
sentado ao lado da noiva, dizia-lhe algo ao pé do ouvido
a cada quinze minutos. Por sua vez, ela não levantava os
olhos, e sempre que seu pretendente lhe dirigia a
palavra, enrubescia de modéstia, mas respondia sem
embaraço.
A Srta. de Puygarrig tinha dezoito anos, e seu porte
flexível e delicado contrastava com as formas ossudas do
robusto noivo. Ela não era apenas bela, mas sedutora.
Eu admirava a perfeita naturalidade de todas as suas
[43]
respostas, e seu ar de bondade, não isento, entretanto,
de um leve matiz de malícia, lembrava-me
involuntariamente a Vênus de meu anfitrião. Nessa
comparação que fiz para mim mesmo, perguntava-me se
a superioridade da beleza que era preciso conceder à
estátua não se devia, em grande parte, à sua expressão
de tigresa, pois a energia, mesmo nas más paixões,
excita sempre em nós um assombro e uma espécie de
admiração involuntária.
―Que pena‖, pensei ao deixar Puygarrig, ―que uma
pessoa tão amável seja rica, e que seu dote a faça
procurar por um homem indigno dela!‖
Voltando a Illa, e não sabendo bem o que dizer à
Sra. de Pèira Horada, a quem acreditava conveniente
dirigir às vezes a palavra:
— Vocês têm o espírito forte em Rosselló! —
exclamei. — Como, senhora, fazem um casamento na
sexta-feira! Em Paris seríamos mais supersticiosos,
ninguém ousaria tomar uma esposa em tal dia.
— Meu Deus! Nem me fale — replicou ela. — Se
dependesse de mim, com certeza teríamos escolhido
outro dia. Mas Pèira quis assim, e foi preciso ceder. Isso
me desgostou, no entanto. E se acontecer alguma
desgraça? Deve haver uma razão, pois, enfim, por que
todo mundo tem medo da sexta-feira?
— Sexta-feira — exclamou seu marido — é o dia de
Vênus! Um bom dia para casamento! Você vê, meu caro
colega, que só penso em minha Vênus. Palavra de honra!
Foi por causa dela que escolhi a sexta-feira. Amanhã
antes das núpcias, se você quiser, ofereceremos um
[44]
pequeno sacrifício. Sacrificaremos duas pombas, e se eu
soubesse onde encontrar incenso…
— Para com isso, Pèira! — interrompeu sua mulher
escandalizada com o último ponto. — Ascender incenso
para um ídolo! Seria abominável! Que diriam de nós na
região?
— Tu ao menos permitirias — perguntou o Sr. de
Pèira Horada — colocar na cabeça dela uma coroa de
rosas e lírios? ―Manibus date lilia plenis.‖7 Como vê,
cavalheiro, a constituição é letra morta. Não temos
liberdade de culto!
Os arranjos para o dia seguinte foram assim
estabelecidos: todo mundo deveria estar pronto e
elegante às dez horas em ponto. O chocolate tomado,
iríamos de carruagem até Puygarrig. O casamento civil
seria na prefeitura da cidade, e a cerimônia religiosa, na
capela do castelo. Viria em seguida o almoço. Depois do
almoço, passaríamos o tempo como pudéssemos até às
sete horas. Às sete, retornaríamos a Illa, para a casa do
Sr. de Pèira Horada, onde as duas famílias ceariam
reunidas. O restante seguiria naturalmente. Não
podendo dançar, comer-se-ia o máximo possível.
Desde oito horas eu estava sentado diante da
Vênus, lápis na mão, recomeçando pela vigésima vez a
cabeça da estátua, sem conseguir captar-lhe a expressão.
O Sr. de Pèira Horada ia e vinha à minha volta, dando
conselhos, repetindo suas etimologias fenícias. Depois
Citação da peça Eneida (séc. I a.C) de Virgílio, trad. ―Doe lírios às
mancheias‖.
7
[45]
colocava rosas de Bengala no pedestal da estátua e, num
tom tragicômico, endereçava-lhe votos pelo casal que
iria viver sob seu teto. Perto de nove horas, entrou para
cuidar de sua roupa e, ao mesmo tempo, apareceu o
Sr. Alfons, bem alinhado num fraque novo, com luvas
brancas, sapatos envernizados, botões entalhados, uma
rosa na lapela.
— Você fará o retrato de minha esposa? —
perguntou-me se debruçando sobre meu desenho. — Ela
também é bonita.
Nesse momento, na quadra de palmell da qual
falei, começou uma partida que, de imediato, chamou a
atenção do Sr. Alfons. E eu, cansado e já me
desesperando para reproduzir aquela figura diabólica,
logo abandonei meu desenho para assistir aos jogadores.
Havia entre eles alguns muladeiros espanhóis que
chegaram na véspera. Eram aragoneses e navarros,
quase todos de uma destreza admirável. Por isso os
illenses, ainda que encorajados pela presença e os
conselhos do Sr. Alfons, foram rapidamente derrotados
pelos novos campeões. Os espectadores locais ficaram
consternados. Alfons olhou o relógio: eram ainda nove e
meia. Sua mãe nem estava penteada. Não hesitou mais:
tirou o fraque, pediu uma jaqueta e desafiou os
espanhóis. Olhei-o sorrindo e um pouco surpreso.
— É preciso defender a honra da região —
justificou ele.
Achei-o então verdadeiramente belo. Ele estava
entusiasmado. Sua aparência, que lhe preocupara tanto
até então, já não importava mais. Alguns minutos antes,
[46]
tinha medo de virar a cabeça para não atrapalhar a
gravata, agora não pensava mais em seus cabelos
frisados nem no peitilho tão bem plissado. E sua
noiva?… Com certeza, se fosse necessário, acredito que
mandaria adiar o casamento. Eu o vi calçar
precipitadamente um par de sandálias, dobrar as
mangas e, com um ar decidido, colocar-se na liderança
do time vencido, como César reunindo seus soldados em
Dirráquio. Saltei a cerca e acomodei-me à sombra de
uma árvore, de modo a ver bem ambos os campos.
Contra a expectativa geral, o Sr. Alfons perdeu a
primeira bola. É verdade que ela veio rasante e foi
lançada com uma força surpreendente pelo aragonês
que parecia ser o líder dos espanhóis. Era um homem de
uns quarenta anos, seco e nervoso, um metro e oitenta
de altura, e sua pele azeitonada tinha uma tonalidade
tão escura quanto o bronze da Vênus. O Sr. Alfons jogou
sua raquete no chão com furor.
— É essa maldita aliança — gritou ele — que me
aperta o dedo e me faz perder uma bola certa!
Não sem esforço, tirou a aliança de diamantes.
Aproximei-me para pegá-la, mas ele me impediu, correu
até a Vênus, colocou-a no seu dedo anular e retomou sua
posição na liderança dos illenses. Estava pálido, mas
calmo e resoluto. Daí em diante, não cometeu uma só
falta, e os espanhóis foram completamente derrotados.
Foi um belo espetáculo o entusiasmo dos espectadores:
uns gritavam de alegria e jogavam os bonés para o ar,
outros apertavam as mãos dele, chamando-o de orgulho
da região. Tivesse ele rechaçado uma invasão, duvido
[47]
que recebesse felicitações mais vivas e sinceras. O pesar
dos vencidos aumentava o brilho da vitória.
— Jogaremos outras partidas, meu bravo — disse
ao aragonês em tom de superioridade —, mas te darei
uns pontos.
Queria que o Sr. Alfons tivesse sido mais modesto,
e quase tive pena da humilhação de seu rival. O gigante
espanhol ficou profundamente ressentido com aquele
insulto. Vi que empalideceu debaixo de sua pele
bronzeada. Olhava para a raquete com ar sombrio
enquanto serrava os dentes. Depois, com uma voz
sufocada, disse baixinho: ―Me lo pagarás‖.
A voz do Sr. de Pèira Horada atrapalhou o triunfo
do filho. Meu anfitrião, muito espantando de não o
encontrar preparando a caleche nova, ficou muito mais
ainda ao vê-lo todo suado e com a raquete na mão.
Alfons correu até a casa, lavou o rosto e as mãos, vestiu
novamente o fraque novo, os sapatos envernizados e,
cinco minutos depois, estávamos a toda velocidade na
estrada para Puygarrig. Todos os jogadores de palmell
da cidade e grande número de espectadores nos
seguiram com gritos de alegria. Os vigorosos cavalos que
nos puxavam mal conseguiam manter a dianteira sobre
aqueles intrépidos catalães.
Já estávamos em Puygarrig, e o cortejo ia partir
para a prefeitura, quando o Sr. Alfons, dando um tapa
na testa, me disse baixinho:
— Que mancada! Esqueci a aliança! Estava no dedo
da Vênus, que o diabo me leve! Não diga a mamãe, sim?
Pode ser que ela não perceba nada.
[48]
— Você poderia enviar alguém — sugeri eu.
— Bah! Meu criado ficou em Illa. Os daqui, não
confio neles. Duzentos francos de diamantes! Podia
tentar mais de um. Além disso, que pensariam da minha
distração? Zombariam demais de mim. Me chamariam
de ―marido da estátua‖… Tomara que não a roubem!
Felizmente o ídolo mete medo nesses malandros. Não
ousam se aproximar dele mais que um braço. Bah! Isso
não é nada, tenho outro anel.
As duas cerimônias, a civil e a religiosa,
transcorreram com a devida pompa, e a Srta. de
Puygarrig recebeu o anel de uma modista de Paris, sem
suspeitar que seu noivo lhe sacrificava uma prova de
amor. Depois, sentamo-nos à mesa, onde bebemos,
comemos e até cantamos, tudo bem demoradamente.
Tinha dó da noiva pelo tosco contentamento que
explodia à sua volta. No entanto, ela mantinha mais
compostura do que eu esperava, e seu embaraço não era
nem falta de jeito nem afetação. Talvez a coragem venha
com as situações difíceis.
O almoço terminou quando Deus quis, às quatro
horas. Os homens foram passear no parque, por sinal,
magnífico, ou ver as camponesas de Puygarrig dançar na
relva do castelo, lindas em seus vestidos de festa. Assim
passaram-se algumas horas. Enquanto isso, as mulheres
rodeavam solícitas a noiva, que lhes fazia admirar seus
presentes. Depois trocou de roupa, e notei que cobriu os
belos cabelos com uma coifa e um chapéu de plumas,
pois não há nada que as mulheres se apressem mais a
fazer, logo que podem, do que usar os adereços que lhes
[49]
são proibidos antes do casamento.
Eram quase oito horas quando se falou em partir
para Illa. Mas, antes, houve uma cena patética. A tia da
Srta. de Puygarrig, que lhe servia de mãe, mulher bem
idosa e muito devota, não iria conosco até a cidade, por
isso, na partida, fez à sobrinha um sermão tocante sobre
os deveres da esposa, sermão do qual resultou uma
torrente de lágrimas e abraços sem fim. O Sr. de
Pèira Horada comparou tal separação ao rapto das
Sabinas. Partimos, porém, e, durante o caminho, cada
um se esforçava para distrair a noiva e fazê-la rir, mas
tudo em vão.
Em Illa, a ceia nos aguardava, e que ceia! Se o tosco
contentamento da tarde havia me chocado, fiquei ainda
mais pelos equívocos e gracejos que o noivo e,
sobretudo, a noiva tiveram que aguentar. O noivo, que
tinha desaparecido pouco antes de sentar-se à mesa,
estava pálido e glacialmente sério. Bebia a cada instante
do velho vinho de Cotlliure, quase tão forte quanto
aguardente. Eu estava a seu lado e achei que tinha
obrigação de lhe prevenir:
— Cuidado! Dizem que o vinho…
Não sei que disparate falei em seguida para me
colocar em uníssono com os convivas. Ele puxou meu
joelho e, bem baixinho, me disse:
— Quando sairmos da mesa…, que eu possa lhe
dizer duas palavras.
Seu tom solene me surpreendeu. Observei-o mais
atentamente e reparei a estranha alteração dos seus
traços.
[50]
— Você está indisposto? — perguntei.
— Não.
E voltou a beber.
Enquanto isso, em meio a gritos e palmas, um
garoto de onze anos, que havia deslizado por baixo da
mesa, mostrava aos assistentes uma bela fita branca e
rosa que acabara de desamarrar do tornozelo da noiva.
Chamam a essa fita de jarreteira. Ela foi logo cortada e
os pedaços distribuídos aos jovens, que os colocaram nas
lapelas, seguindo um antigo costume ainda conservado
em algumas famílias patriarcais. Foi uma ocasião para a
noiva enrubescer até o branco dos olhos. Mas sua
inquietação chegou ao cúmulo quando o Sr. de
Pèira Horada, tendo pedido silêncio, recitou-lhe alguns
versos em catalão, ―de improviso‖, dizia. Eis o sentido,
se bem o compreendi:
— O que é isto então, meus amigos? O vinho que
bebi me faz ver em dobro? Há duas Vênus aqui…
O noivo virou a cabeça bruscamente, com ar
perturbado, fazendo todo mundo rir.
— Sim, prosseguiu o Sr. de Pèira Horada, há duas
Vênus sob o meu teto. Uma, encontrei na terra como
uma trufa lisa; a outra, caída do céu, acaba de repartir
sua cinta-liga.
Ele queria dizer jarreteira.
— Meu filho, escolha, entre a Vênus romana ou a
catalã, a que preferir. O velhaco fica com a catalã, e seu
quinhão é de aplaudir. A romana é negra, a catalã,
branquinha. A romana é fria, a catalã inflama quem se
aproxima.
[51]
Esse final excitou um hurra tão grande, aplausos
tão barulhentos e risos tão sonoros, que achei que o teto
ia desabar em nossas cabeças. Ao redor da mesa,
somente três rostos sérios: os dos noivos e o meu. Sentia
uma forte enxaqueca. Aliás, não sei por que, casamentos
sempre me entristecem. Esse então, além disso, me
desgostava um pouco.
As últimas estrofes tendo sido declamadas pelo
adjunto do prefeito, e eram muito inconvenientes por
sinal, passamos ao salão para ver a partida da noiva, que
em breve seria conduzida a seu quarto, pois já era quase
meia-noite.
O Sr. Alfons me puxou até o vão de uma janela e
me disse desviando os olhos:
— Você vai rir de mim… Mas, não sei o que tenho…
estou enfeitiçado! O diabo me leve!
O primeiro pensamento que me veio foi de que ele
se sentia ameaçado por alguma desgraça do gênero das
que falam Montaigne e Madame de Sévigné: ―Todo
império amoroso é cheio de histórias trágicas‖, etc.
―Achava que esse tipo de acidente só acontecia com
gente de espírito‖, pensei comigo.
— Você bebeu vinho de Cotlliure demais, meu caro
Alfons — ponderei. — Eu preveni você.
— Sim, pode ser. Mas é algo bem mais terrível.
Ele tinha a voz entrecortada. Achei que estava
totalmente bêbado.
— Sabe minha aliança? — prosseguiu após um
silêncio.
— Ora! Pegaram ela?
[52]
— Não.
— Nesse caso, está com você?
— Não… eu… Não consigo tirar do dedo daquela
diaba de Vênus.
— Bom, não deve ter puxado forte o bastante.
— Puxei sim… Mas a Vênus… ela fechou o dedo.
Ele me olhava fixamente com um ar apavorado,
apoiando-se na janela para não cair.
— Que história! — exclamei. — Você enfiou demais
a aliança. Amanhã você tira com um alicate. Mas
cuidado para não estragar a estátua.
— Não, eu sei o que digo. O dedo da Vênus se
mexeu, contraiu. Ela fechou a mão, entende?… É minha
mulher, parece, porque dei meu anel pra ela… Não quer
mais devolver.
Senti um estremecimento súbito e logo fiquei
arrepiado. Depois, um grande suspiro que ele soltou me
lançou uma baforada de vinho, e toda emoção
desapareceu. ―O coitado está completamente bêbado‖,
pensei.
— Você é antiquário, senhor — acrescentou o noivo
num tom lamentável — conhece estátuas… Talvez haja
algum recurso, algum sortilégio que eu não conheço… Se
pudesse ir ver?
— Com prazer — respondi. — Venha comigo.
— Não, prefiro que vá sozinho.
Saí do salão.
O tempo tinha mudado durante a ceia, e a chuva
começava a cair com força. Ia pedir um guarda-chuva
quando uma reflexão me deteve. ―Eu seria um grande
[53]
imbecil‖, pensei, ―se fosse conferir o que me disse um
homem bêbado!‖ Talvez, aliás, ele quisesse fazer alguma
brincadeira maldosa comigo para divertir aqueles
honestos provincianos. E o mínimo que podia me
acontecer é ficar molhado até os ossos e pegar um bom
resfriado. Da porta, lancei um olhar para a estátua
ensopada de água e subi para o meu quarto sem entrar
no salão.
Deitei, mas o sono custou a vir. Todas as cenas do
dia se reapresentaram ao meu espírito. Pensava naquela
garota tão bela e tão pura abandonada a um beberrão
brutal. ―Que coisa odiosa‖, eu me dizia, ―é um casamento
de conveniência! Um prefeito coloca uma faixa tricolor,
o padre uma estola, e lá vai a moça mais honesta do
mundo ser entregue ao Minotauro! Dois seres que não
se amam, o que podem dizer um ao outro num momento
assim? O que dois amantes comprariam ao preço de sua
existência? Pode uma mulher amar um homem que ela
viu ser grosseiro uma vez? As primeiras impressões não
se apagam, e tenho certeza de que o Sr. Alfons bem
mereceria ser odiado…‖
Durante meu monólogo, que resumi bastante,
escutei fortes idas e vindas na casa, portas se abrindo e
fechando, carros partindo. Depois, pareceu que ouvi
passos leves de mulheres na escada, indo para o outro
lado do corredor, na direção oposta ao meu quarto.
Devia ser o cortejo da noiva até o leito. Em seguida,
desceram novamente a escada. A porta da Sra. de
Pèira Horada se fechou. ―Como aquela pobre moça‖,
pensei, ―deve estar atormentada e pouco à vontade!‖ Eu
[54]
revirava na cama de mau humor. Um rapaz representa
um papel estúpido numa casa onde ocorre um
casamento.
O silêncio reinava havia algum tempo quando foi
rompido por passos pesados escada acima. Os degraus
de madeira estalaram fortemente.
―Que mal educado!‖, exclamei para mim mesmo.
―Aposto que vai cair na escada.‖
Tudo ficou tranquilo de novo. Peguei um livro para
mudar o curso de minhas ideias. Era uma estatística do
departamento, ornada com um memorando do Sr. de
Pèira Horada sobre os monumentos druídicos dos
arredores de Prada. Peguei no sono na terceira página.
Dormi mal e acordei várias vezes. Estava acordado
havia mais de vinte minutos quando o galo cantou.
Seriam umas cinco da manhã, o dia já ia raiar. Então
ouvi claramente os mesmos passos pesados, o mesmo
estalar da escada que eu tinha ouvido antes de
adormecer. Aquilo me pareceu singular. Enquanto
bocejava, tentei adivinhar por que o Sr. Alfons se
levantara tão cedo assim. Não conseguia imaginar nada
verossímil. Ia fechar os olhos outra vez quando minha
atenção foi de novo atraída por estranhos ruídos de
passos, aos quais logo se misturaram o tilintar de
campainhas e o barulho de portas se abrindo
estrondosamente. Depois distingui gritos confusos.
―Aquele beberrão deve ter posto fogo em algum
lugar!‖ pensava eu saindo pela parte de baixo do meu
leito.
Vesti-me rapidamente e entrei no corredor. Da
[55]
extremidade oposta partiam gritos e lamentações, e uma
voz dilacerante sobrepujava todas as outras: ―Meu filho!
Meu filho!‖ Era evidente que tinha acontecido alguma
desgraça com o Sr. Alfons. Corri ao quarto nupcial:
estava cheio de gente. A primeira cena que vi foi o jovem
semivestido, estendido transversalmente no leito cuja
armação tinha sido quebrada. Estava lívido, sem
movimento. Sua mãe chorava e gritava a seu lado. O
Sr. de Pèira Horada se agitava, esfregava-lhe a testa com
água de Colônia ou colocava sais sob o nariz do filho.
Infelizmente, estava morto havia muito tempo. Num
canapé, do outro lado do quarto, avistei a noiva, tomada
por horríveis convulsões. Ela soltava gritos
inarticulados, e dois robustos criados se esforçavam
como loucos para contê-la.
— Meu Deus! — exclamei. — O que aconteceu aqui?
Aproximei-me do leito e suspendi o corpo do
infeliz, que já estava rígido e frio. Os dentes serrados e o
rosto enegrecido exprimiam as angústias mais
pavorosas. Parecia que sua morte tinha sido violenta e
sua agonia, terrível. Nenhum traço de sangue, todavia,
na roupa. Abri sua camisa e vi, no peito, uma marca
lívida que se prolongava pelos lados e pelas costas. Dirse-ia que fora apertado num círculo de ferro. Meu pé
pousou em alguma coisa dura no tapete. Abaixei e vi a
aliança de diamantes.
Conduzi o Sr. de Pèira Horada e sua esposa até o
quarto deles, depois pedi que levassem a noiva até lá.
— Vocês ainda têm uma filha — falei —, devem a
ela seus cuidados.
[56]
Então os deixei sozinhos.
Não me parecia nada duvidoso que o Sr. Alfons
tivesse sido vítima de um assassinato cujos autores
tivessem encontrado um meio de se introduzir à noite no
quarto do recém-casado. Aquelas contusões no peito e
sua direção circular, entretanto, me inquietavam muito,
pois um bastão ou uma barra circular não poderiam
produzi-las. De repente lembrei-me de ouvir dizer que,
em Valença, os bravos usavam longos sacos de couro
cheios de areia fina para espancar pessoas juradas de
morte. Logo me veio à memória o muladeiro aragonês e
sua ameaça, mas eu mal ousava pensar que ele vingaria
uma brincadeirinha leve com ato tão terrível.
Andei pela casa toda procurando vestígios de
arrombamento, sem os encontrar em lugar nenhum.
Desci até o jardim para ver se os assassinos poderiam ter
entrado daquele lado, mas não achei nenhum indício
seguro. A chuva da véspera, aliás, tinha diluído tanto o
solo que ele não poderia reter uma pegada bem nítida.
Observei, não obstante, alguns passos profundamente
impressos na terra: havia deles em duas direções
contrárias, mas sobre uma mesma linha, partindo do
ângulo da cerca contígua à quadra de palmell e
terminando na porta da casa. Poderiam ser os passos do
Sr. Alfons quando foi procurar sua aliança no dedo da
estátua. De um outro lado, no mesmo local, a cerca
estava menos forrada, devendo com certeza ter sido
naquele ponto que os assassinos a atravessaram.
Passando e repassando diante da estátua, parei um
instante para considerá-la. Desta vez, devo confessar,
[57]
não consegui contemplar sem pavor sua expressão de
irônica maldade e, com a cabeça cheia das cenas
horríveis que acabara de testemunhar, parecia-me ver
uma divindade infernal aplaudindo a infelicidade que
atingia aquela casa.
Voltei a meu quarto e ali fiquei até meio-dia. Então
saí e pedi notícias a meus anfitriões. Estavam um pouco
mais calmos. A Srta. de Puygarrig, eu deveria dizer, a
viúva do Sr. Alfons, havia recuperado a consciência.
Tinha até mesmo conversado com o Procurador do Rei
de Perpinyà, então em visita a Illa, e tal magistrado
havia colhido seu depoimento. Solicitou então o meu.
Contei a ele o que sabia, e não escondi sequer minhas
suspeitas contra o muladeiro aragonês. Ele ordenou que
o detivessem de imediato.
— Ficou sabendo algo da Sra. Alfons? — perguntei
ao Procurador do Rei, enquanto meu depoimento era
escrito e assinado.
— Aquela jovem infeliz ficou louca — respondeu
ele, sorrindo tristemente. — Louca! Louquinha de tudo.
Eis o que me contou:
―Que estava deitada, disse ela, havia alguns
minutos, as cortinas puxadas, quando a porta de seu
quarto se abriu e alguém entrou. A Sra. Alfons estava
então no canto entre o leito e a parede, a face voltada
para a parede. Ela não fez nenhum movimento,
persuadida de que se tratava de seu marido. Ao fim de
um instante, o leito rangeu como se sobrecarregado por
um peso enorme. Teve grande medo, mas não ousou
virar a cabeça. Cinco, talvez dez minutos passaram-se
[58]
dessa maneira… ela não consegue se dar conta do
tempo. Depois fez um movimento involuntário, ou então
a pessoa que estava no leito o fez, e sentiu o contato com
algo frio como o gelo, tais foram suas expressões. Ela se
enfiou mais no canto, tremendo de cima a baixo. Pouco
depois, a porta se abriu uma segunda vez, alguém entrou
e disse: ―Boa noite, querida esposa‖. Pouco depois
puxaram as cortinas. Ela ouviu um grito abafado. A
pessoa que estava no leito, ao lado dela, se assentou e
pareceu estender os braços para a frente. Ela virou a
cabeça então… e viu, disse ela, seu marido de joelhos
perto do leito, a cabeça na altura da almofada, entre os
braços de uma espécie de gigante esverdeado que o
apertava com força. Ela disse e me repetiu vinte vezes,
pobre mulher!… Disse que a reconheceu… adivinha
quem? A Vênus de bronze! A estátua do Sr. de
Pèira Horada… Desde que chegou à região, todos
sonham com ela. Mas, voltemos à narrativa da infeliz
demente. Diante de tal cena, ela perdeu a consciência e,
provavelmente, alguns instantes depois, perdeu a razão.
Não consegue de forma alguma dizer quanto tempo
permaneceu desmaiada. De volta a si, viu outra vez o
fantasma, ou a estátua, como sempre diz, imóvel, as
pernas e a parte inferior do corpo no leito, o busto e os
braços estendidos à frente e, entre os braços, seu
marido, sem movimento. Um galo cantou. Então a
estátua saiu do leito, deixou cair o cadáver e partiu. A
Sra. Alfons inclinou-se até a campainha, e o resto, o
senhor já sabe.‖
Trouxeram o espanhol. Estava calmo e se defendeu
[59]
com bastante sangue-frio e presença de espírito. De
resto, não negou a intenção que eu havia escutado, mas
se explicou afirmando só ter pretendido dizer que, no
dia seguinte, descansado, ganharia uma partida de
palmell de seu vencedor. Lembro-me que acrescentou:
— Um aragonês, quando é ultrajado, não espera o
dia seguinte para se vingar. Se eu tivesse achado que o
Sr. Alfons queria me insultar, cravava-lhe a faca no
bucho na mesma hora.
Seus sapatos foram comparados com as pegadas do
jardim, mas eram bem maiores.
Por fim, o hoteleiro em cujo estabelecimento
aquele homem estava hospedado garantiu que ele
passara a noite toda esfregando e medicando uma mula
adoentada. Além disso, o aragonês era homem de boa
fama, bem conhecido na região, à qual vinha todos os
anos para praticar seu comércio. Soltaram-no, pois, com
pedidos de desculpas.
Já ia esquecendo o depoimento de um criado, o
último a ver o Sr. Alfons vivo. Foi no momento em que
este subia para o quarto da esposa e, chamando-o,
perguntou com ar de inquietude se ele sabia onde eu
estava. O criado respondeu que não tinha me visto.
Então o Sr. Alfons suspirou, ficou mais de um minuto
sem falar, depois disse: ―Vamos! O diabo o terá levado
também!‖
Perguntei-lhe se o Sr. Alfons estava com o anel de
diamantes ao falar com ele. O criado hesitou para
responder. Enfim, disse achar que não, que não tinha
prestado atenção naquilo. ―Se ele estivesse com o anel
[60]
no dedo‖, acrescentou se retificando, ―eu teria percebido
com certeza, pois achei que ele tinha sido dado para a
Sra. Alfons‖.
Ao questionar aquele homem, senti novamente um
pouco do terror supersticioso que o depoimento da Sra.
Alfons havia espalhado por toda a casa. O Procurador do
Rei me olhou sorrindo, e abstive-me de insistir.
Algumas horas depois dos funerais do Sr. Alfons,
me dispus a deixar Illa. A carruagem do Sr. de
Pèira Horada devia me conduzir a Perpinyà. Apesar do
seu estado de fraqueza, o pobre ancião me acompanhou
até a porta do jardim. Nós o atravessamos em silêncio,
ele se arrastando penosamente, apoiado no meu braço.
No momento de nos separarmos, lancei um último olhar
à Vênus. Eu previa que meu anfitrião, embora não
compartilhasse dos terrores e ódios que ela inspirava em
parte de sua família, iria querer se desfazer de um objeto
que lembrava sem cessar um infortúnio horrendo.
Minha intenção era convencer-lhe a colocá-la num
museu. Eu hesitava em tocar no assunto quando o Sr. de
Pèira Horada virou maquinalmente a cabeça para o lado
em que me viu olhar fixamente. Percebeu a estátua e,
imediatamente, derreteu-se em lágrimas. Eu o abracei e,
sem ousar proferir uma só palavra, subi na carruagem.
Depois de minha partida, não fiquei sabendo de
nenhuma nova perspectiva que viesse a esclarecer
aquela misteriosa catástrofe.
O Sr. de Pèira Horada morreu alguns meses depois
do filho. Em seu testamento, legou a mim seus
manuscritos, que publicarei talvez um dia. Nada
[61]
encontrei do memorando sobre as inscrições da Vênus.
P. S. Meu amigo, Sr. de P., acaba de me escrever
dizendo que a estátua não existe mais. Após a morte do
marido, a primeiro preocupação da Sra. de Pèira Horada
foi mandar fundi-la para fazer um sino e, sob essa nova
forma, ela serve à igreja de Illa. Mas, acrescenta o Sr. de
P., parece que uma má sorte acompanha os que possuem
aquele bronze. Desde que tal sino começou a tocar em
Illa, as vinhas já congelaram duas vezes.
[62]
A aventura do pé do diabo
Sir Arthur Conan Doyle (1910)
[63]
Ao registrar de tempos em tempos algumas das
curiosas experiências e interessantes recordações que
associo à minha longa e profunda amizade com Sherlock
Holmes, deparo-me continuamente com as dificuldades
causadas por sua aversão à publicidade. Seu espírito
grave e crítico sempre abominou o aplauso popular, e
nada lhe divertia mais do que, ao final de um caso bem
sucedido, delegar a verdadeira revelação a alguma
autoridade ortodoxa e ouvir, com um sorriso
zombeteiro, o coro geral das felicitações à pessoa errada.
Foi tal atitude da parte de meu amigo e não uma falta de
material interessante que, nos últimos anos, fizeram-me
trazer a público pouquíssimos de meus registros. Minha
participação em algumas de suas aventuras sempre foi
um privilégio que impunha a mim discrição e reserva.
Foi então que, para minha surpresa, recebi um
telegrama de Holmes na terça passada (nunca foi de seu
feitio escrever telegramas) nos seguintes termos:
QUE TAL CONTAR-LHES O HORROR DA CORNUALHA? –
CASO MAIS ESTRANHO QUE INVESTIGUEI.
Não faço ideia de qual impulso recordatório
trouxe-lhe o caso de volta à memória, nem de qual
excentricidade inspirou-lhe o desejo de o recontar. Mas,
antes que chegue outro telegrama cancelando, apressome em reunir as anotações que registram os detalhes
exatos e em apresentar a narrativa a meus leitores.
Foi na primavera de 1897 que a saúde de ferro de
Holmes apresentou sinais de piora em consequência do
[64]
seu trabalho constantemente pesado e do tipo mais
exaustivo, situação agravada, talvez, por ocasionais
indiscrições de sua parte. Em março daquele ano, o
Dr. Moore Agar, da Rua Harley, cuja surpreendente
apresentação a Holmes talvez eu conte um dia,
recomendou enfaticamente que o famoso detetive
particular, se quisesse evitar um colapso absoluto,
abandonasse todos os casos e guardasse completo
repouso. Seu estado de saúde não era assunto que lhe
causasse o menor interesse, pois seu desapego mental
era absoluto, mas, enfim, foi induzido, sob a ameaça de
tornar-se permanentemente inapto ao trabalho, a
entregar-se a uma completa mudança de cenário e de
ares. Foi assim que, no início da primavera daquele ano,
encontramo-nos juntos num pequeno chalé próximo à
Baía Poldhu, na extremidade mais afastada da península
da Cornualha.
Era um local singular, peculiarmente apropriado
ao temperamento austero de meu paciente. Das janelas
de nosso chalé, que ficava bem no alto de um
promontório coberto por grama, víamos todo o sinistro
semicírculo da Baía Mounts, aquela velha armadilha
mortal para barcos à vela, com sua orla de penhascos
negros e corais varridos pelas ondas em que inúmeros
marujos sucumbiram. Com a brisa do norte, permanece
plácida e protegida, convidando as naus abaladas por
tempestades a buscarem lá descanso e proteção. Eis que
surge então o súbito redemoinho de vento, a furiosa
ventania do sudoeste, a âncora que se arrasta, o litoral a
sota-vento e a derradeira batalha na espumante
[65]
arrebentação. O marinheiro experiente fica longe
daquele lugar malévolo.
Em terra, nosso ambiente era tão sombrio quanto
no mar. Tratava-se de uma região de colinas ondulantes,
solitárias e pardacentas, com uma torre de igreja aqui e
ali para marcar o local de algum vilarejo do mundo
antigo. Em todas as direções dessas colinas, viam-se
traços de alguma raça perdida que desaparecera por
completo, deixando como único registro estranhos
monumentos de pedra, montículos irregulares com as
cinzas dos mortos e curiosas fortificações que sugeriam
contendas pré-históricas. O glamour e o mistério do
lugar, com sua atmosfera sinistra de esquecidas nações,
atraíram a imaginação de meu amigo, que passou a
empregar a maior parte de seu tempo em longas
caminhadas e solitárias meditações na colina. A antiga
língua córnica também chamou sua atenção, e ele, bem
me lembro, concebeu a ideia de que se assemelhava ao
caldeu e provinha, em grande parte, dos mercadores
fenícios de estanho.
Holmes acabara de receber uma encomenda de
livros de filologia e já se preparava para desenvolver sua
tese quando, de repente – para minha aflição e seu
genuíno deleite, mesmo naquela terra onírica–, vimonos mergulhados bem à nossa porta num problema mais
intenso, mais cativante e infinitamente mais misterioso
do que qualquer outro daqueles que já nos tirara de
Londres. Nossa vidinha simples com sua rotina pacata e
saudável foi violentamente interrompida, e fomos
lançados em meio a uma série de eventos que causaram
[66]
o maior alvoroço não apenas na Cornualha, mas em todo
o oeste da Inglaterra. Muitos de meus leitores devem
guardar alguma lembrança do que foi chamado à época
"O horror da Cornualha", embora um relato muitíssimo
imperfeito do caso tenha alcançado a imprensa londrina.
Agora, treze anos depois, trarei a público os verdadeiros
detalhes desse acontecimento inconcebível.
Como eu disse, torres esparsas marcavam os
vilarejos que pontuavam tal parte da Cornualha. O mais
próximo deles era o pequeno vilarejo de Tredannick
Wollas, onde as casas de algumas centenas de habitantes
se amontoavam ao redor de uma igreja antiga e coberta
de musgo. O pastor da paróquia, Rev. Roundhay, era um
pouco arqueólogo, e foi como tal que Holmes o
conheceu. Tratava-se de um homem de meia idade,
corpulento e afável, com um cabedal notável de
conhecimento local. Convidados por ele, tomamos chá
em sua casa e viemos a conhecer também o Sr. Mortimer
Tregennis, um cavalheiro independente que aumentava
os escassos recursos do clérigo alugando quartos em sua
grande e espaçosa casa. O pastor, sendo solteiro, estava
contente com esse acordo, embora tivesse pouco em
comum com seu inquilino, que era um homem magro,
sombrio e de óculos, com uma curvatura a lhe conferir
impressão de uma verdadeira deformidade física.
Lembro-me que, durante nossa curta visita, achamos o
pastor muito loquaz, mas seu inquilino, estranhamente
reticente, um homem introspectivo de fisionomia triste,
que ficava sentado com olhos esquivos, remoendo
aparentemente seus próprios assuntos.
[67]
Foram esses os dois homens que entraram
abruptamente em nossa pequena sala de estar na terçafeira, 16 de março, pouco depois do nosso café da
manhã, enquanto fumávamos juntos antes de nossa
excursão diária pelas colinas.
— Sr. Holmes — começou o pastor com uma voz
agitada —, o caso mais extraordinário e trágico
aconteceu noite passada. O fato mais inaudito. Só
podemos considerar uma providência muito especial ter
o senhor aqui neste momento, pois, em toda a
Inglaterra, é exatamente de quem precisamos.
Encarei aquele pastor inoportuno com olhos não
muito amigáveis. Mas Holmes tirou o cachimbo da boca
e aprumou-se na cadeira, como um velho cão de caça
que ouve gritarem "raposa à vista!". Então indicou o
sofá, e nossa palpitante visita e seu agitado companheiro
assentaram lado a lado. Mortimer Tregennis era mais
retraído do que o clérigo, mas as contrações de suas
mãos magras e o brilho de seus olhos escuros
demonstravam uma emoção em comum.
— Falo eu ou você? — perguntou ao pastor.
— Bem — atalhou Holmes—, como parece ter sido
você a fazer a descoberta, seja qual for, conhecendo-a o
pastor apenas indiretamente, talvez seja melhor você
mesmo falar.
Olhei para o clérigo vestido às pressas, com aquele
inquilino em trajes formais ao seu lado, e me diverti com
a surpresa que a simples dedução de Holmes imprimiu
em suas faces.
— Talvez seja melhor eu dizer algumas palavras
[68]
primeiro — ponderou o pastor —, depois o senhor decide
se deseja ouvir os detalhes do Sr. Tregennis ou se
correremos de uma vez até a cena desse caso misterioso.
Posso explicar, então, que nosso amigo aqui passou a
noite de ontem em companhia de seus dois irmãos,
Owen e George, e de sua irmã Brenda, na casa deles de
Tredannick Wartha, que é perto da antiga cruz de pedra
na colina. Ele os deixou, pouco depois das dez, jogando
cartas à mesa da sala de jantar, em excelente estado de
saúde e de espírito. Hoje de manhã, sendo madrugador,
caminhava naquela direção antes do café quando foi
alcançado pela carruagem do Dr. Richards. Este
explicou que tinha sido chamado para uma visita
urgentíssima a Tredannick Wartha. Mortimer
Tregennis, naturalmente, foi com ele. Chegando lá,
deparou-se com uma situação extraordinária. Seus dois
irmãos e sua irmã estavam sentados à mesa, exatamente
como eles os deixara, as cartas ainda espalhadas diante
deles e as velas queimadas até o fim. A irmã estava
recostada na cadeira, morta e dura como pedra, e os
irmãos, sentados, um de cada lado, gargalhando,
gritando e cantando, claramente foras de si. Todos os
três, a morta e os dois dementes, tinham no rosto uma
expressão de extremo horror: uma convulsão de terror
pavorosa de se ver. Não havia sinal da presença de
ninguém na casa, exceto pela Srta. Porter, a velha
cozinheira e governanta, que declarou ter dormido
profundamente sem ouvir nenhum som durante a noite.
Nada tinha sido roubado nem desarranjado, e não havia
absolutamente nenhuma explicação para o horror que
[69]
pode ter matado uma mulher e enlouquecido dois
homens de susto. Eis resumidamente, Sr. Holmes, a
situação. Se puder ajudar-nos a esclarecê-la, terá feito
um trabalho notável.
Esperava conseguir, de algum modo, convencer
meu companheiro a voltar à quietude que tinha
motivado nossa jornada, mas só de olhar aquele rosto
sério de sobrancelhas contraídas vi o quanto minha
expectativa era vã. Ficamos um tempinho em silêncio,
absortos no estranho drama que invadira nossa paz.
— Vou examinar o assunto — disse Holmes por
fim. — Ao que parece, trata-se de um caso de natureza
muito excepcional. O senhor esteve lá, Rev. Roundhay?
— Não, Sr. Holmes. O Sr. Tregennis voltou à minha
casa para contar e, imediatamente, corri com ele para
consultá-lo.
— Qual a distância até a casa em que ocorreu essa
tragédia singular?
— Cerca de uma milha rumo ao interior.
— Então caminharemos juntos até lá. Mas, antes
de partirmos, preciso fazer-lhe algumas perguntas,
Sr. Mortimer Tregennis.
O outro permanecera calado o tempo todo, mas
notei que sua agitação mais controlada era ainda maior
que a emoção obstrutiva do clérigo. Ficou sentado, o
rosto lívido e abatido, olhar ansioso fixado em Holmes,
as mãos magras se apertando convulsivamente. Seus
lábios pálidos tremiam enquanto escutava a terrível
experiência acontecida com sua família, e os olhos
negros pareciam refletir algo do horror da cena.
[70]
— Pergunte o que quiser, Sr. Holmes — consentiu
avidamente. — É um assunto dolorido, mas lhe
responderei a verdade.
— Conte-me sobre a noite de ontem.
— Bem, Sr. Holmes, jantei lá, como o pastor disse,
e George, meu irmão mais velho, propôs um jogo de
whist logo depois do jantar. Sentamos por volta de nove
horas. Era dez e quinze quando falei em ir embora.
Deixei-os à mesa, mais alegres impossível.
— Quem acompanhou você até a saída?
— A Sra. Porter tinha ido dormir, então saí
sozinho. Fechei a porta do corredor ao passar. A janela
da sala estava fechada, a persiana, não. Nada tinha
mudado hoje de manhã, e não há por que supor que
algum estranho tenha entrado na casa. Mas ainda
estavam sentados lá, enlouquecidos pelo terror, e
Brenda estirada, morta de medo, com a cabeça
pendendo no braço da cadeira. Nunca esquecerei o que
vi naquela sala enquanto viver.
— Os fatos, como você apresenta, são com certeza
notabilíssimos — comentou Holmes. — Acredito que o
senhor não tenha uma teoria que possa esclarecê-los de
alguma forma, certo?
— É diabólico, Sr. Holmes, diabólico! — gritou
Mortimer Tregennis. — Não é deste mundo. Alguma
coisa entrou naquela sala e arrancou-lhes a luz da razão.
Que ardil humano faria isso?
— Eu temo — respondeu Holmes — que se o
assunto estiver além do alcance humano, certamente
estará além de mim. No entanto, devemos esgotar todas
[71]
as explicações naturais antes de recorrer a uma teoria
como essa. Mas, Sr. Tregennis, acredito que havia algum
tipo de divisão na sua família, já que eles viviam juntos e
você tinha aposentos separados, não é mesmo?
— Isso mesmo, Sr. Holmes, embora sejam águas
passadas. Éramos uma família de mineradores de
estanho em Redruth, mas vendemos nosso
empreendimento para uma empresa, e então
aposentamos com o suficiente para nos manter. Não vou
negar que a divisão do dinheiro gerou algum rancor, e
isso se interpôs entre nós por um tempo, mas nos
reconciliamos e, juntos, éramos grandes amigos.
— Rememorando o período que vocês passaram
juntos, haveria algo que lance qualquer luz sobre a
tragédia? Pense com cuidado, Sr. Tregennis, alguma
pista que possa me ajudar?
— Não, absolutamente nada.
— O estado de espírito dos seus era o de sempre?
— Melhor que nunca.
— Eles eram pessoas nervosas? Mostraram alguma
vez apreensão por algum perigo iminente?
— Nada do tipo.
— O senhor não tem nada a acrescentar, então, que
possa me ajudar?
Mortimer Tregennis refletiu seriamente por um
instante.
— Uma coisa me ocorre — respondeu enfim. —
Quando estávamos à mesa, fiquei de costas pra janela, e
George, sendo meu parceiro nas cartas, estava de frente
pra ela. Uma vez percebi que olhava fixamente por cima
[72]
do meu ombro, então virei e olhei também. A persiana
estava levantada e a janela, fechada, mas dava para
distinguir bem os arbustos lá fora. Por um momento,
pareceu que vi algo se movendo entre eles. Não poderia
dizer se era homem ou animal, só pensei que havia
alguma coisa lá. Quando perguntei o que estava
olhando, meu irmão falou que teve a mesma sensação. É
tudo que posso dizer.
— Você não investigou?
— Não, o assunto passou como irrelevante.
— Você os deixou, então, sem nenhum mau
pressentimento?
— Nenhum.
— Como mesmo você ficou sabendo da notícia tão
cedo?
— Sou madrugador e geralmente faço uma
caminhada antes do café. Hoje de manhã, eu mal tinha
começado quando a carruagem do médico me alcançou.
Ele disse que a velha Sra. Porter tinha enviado um
garoto com uma mensagem urgente. Pulei pro seu lado e
seguimos caminho. Chegando lá, vimos aquela cena
pavorosa. As velas e a lareira deviam ter acabado de
queimar horas antes, e eles ficaram sentados no escuro
até romper o dia. O doutor disse que Brenda devia estar
morta havia pelo menos seis horas. Não tinha sinais de
violência, ela só estava lá, deitada no braço da cadeira,
com aquela expressão no rosto. George e Owen
cantavam trechos de músicas e emitiam sons confusos
como dois gorilas. Nossa, era terrível de ver! Eu não
podia suportar, e o médico estava mais branco que um
[73]
lençol. Daí caiu numa cadeira como se desmaiasse;
quase tivemos que cuidar dele também.
— Notável, notabilíssimo! — exclamou Holmes
levantando e pegando o chapéu. — Penso que é melhor
irmos até Tredannick Wartha sem demora. Confesso que
poucas vezes tive notícia de um caso que à primeira vista
apresentasse problema mais singular.
*
Nossos trabalhos naquela primeira manhã
contribuíram pouco para a investigação. Esta, porém, foi
marcada logo de início por um incidente que deixou a
mais sinistra impressão em meu espírito. O acesso até o
local da tragédia se dava por uma estrada de terra
estreita e sinuosa. Enquanto avançávamos, ouvimos o
estrépito de uma carruagem vindo em nossa direção e
saímos do caminho, deixando-a passar por nós. Foi
quando vi, encarando-nos pela janela fechada, um rosto
horrivelmente contorcido num sorriso escancarado.
Aqueles olhos fixos e dentes rangentes passaram por nós
como uma visão medonha.
— Meus irmãos! — gritou Mortimer Tregennis,
branco até os lábios. — Estão sendo levados para
Helston!
Acompanhamos com horror a carruagem negra se
arrastando pela estrada. Depois, seguimos para a casa
mal agourada onde aqueles dois tinham encontrado seu
estranho destino. Era uma casa grande e clara, mais
uma vila que um chalé, com um jardim considerável
[74]
que, naquela atmosfera da Cornualha, já estava cheio de
flores. Para esse jardim dava frente a janela da sala e,
dela, segundo Mortimer Tregennis, deve ter vindo a
coisa maléfica que, por puro horror e num só instante,
destruiu suas faculdades mentais. Holmes andou lenta e
pensativamente entre os potes de flores e pela aleia
antes de cruzarmos o pórtico. Estava tão absorto em
seus pensamentos que, bem me lembro, tropeçou num
balde d'água, derramando seu conteúdo e encharcando
nossos pés e a aleia do jardim. Dentro da casa fomos
recebidos pela idosa governanta córnica, Sra. Porter,
que, com a ajuda de uma jovem, cuidava das
necessidades da família. Ela respondeu prontamente às
perguntas de Holmes. Não tinha escutado nada naquela
noite. Seus patrões estavam todos em excelente estado
de espírito ultimamente, e nunca os vira mais animados
e prósperos. Ela desmaiou de horror ao entrar na sala
pela manhã e ver aquele grupo espantoso em volta da
mesa. Quando se recuperou, abriu bem a janela para
deixar entrar o ar da manhã, depois correu ladeira
abaixo e mandou um garoto procurar o médico. A
falecida estava em sua cama no andar de cima, caso
desejássemos vê-la. Foram precisos quatro homens
fortes para por os irmãos na carruagem do hospício. Ela
própria não ficaria na casa nem mais um dia e partiria
naquela mesma tarde para reencontrar a família em
St. Ives.
Subimos a escada e vimos o corpo. A senhorita
Brenda Tregennis tinha sido uma moça muito bonita,
embora beirasse agora a meia-idade. Seu rosto moreno e
[75]
bem talhado era bonito, mesmo morta, mas ainda
pairava sobre ele algo daquela convulsão de horror que
foi sua última emoção humana. Do seu quarto,
descemos para a sala onde a estranha tragédia
realmente aconteceu. As cinzas carbonizadas durante a
noite jaziam na lareira. Sobre a mesa havia cartas
espalhadas e quatro velas derretidas, queimadas até o
fim. As cadeiras foram encostadas nas paredes, mas todo
o resto estava como na noite anterior. Holmes andou a
passos leves e rápidos pela sala, sentou nas várias
cadeiras, levantando-as e reconstituindo suas posições.
Conferiu o quanto o jardim era visível, examinou o
assoalho, o teto e a lareira, mas nem uma só vez percebi
aquele brilho súbito em seus olhos, aquele apertar de
lábios que indicariam ter visto algum raio de luz naquela
absoluta escuridão.
— Por que a lareira? — indagou de repente. —
Sempre a usavam nesta salinha em noites de primavera?
Mortimer Tregennis explicou que a noite estava
fria e úmida. Por isso, após sua chegada, acenderam a
lareira.
— O que fará agora, Sr. Holmes? — perguntou ele.
Meu amigo sorriu e pousou sua mão no meu braço.
— Estou achando, Watson, que vou retomar aquele
curso de envenenamento por tabaco que você sempre e
tão justamente condena — disse ele. — Com sua
permissão, cavalheiros, voltaremos agora para nosso
chalé, pois não creio que possamos registrar nada de
novo aqui. Vou avaliar os fatos por todos os lados,
Sr. Tregennis, e caso algo me ocorra, certamente
[76]
comunicarei a você e ao pastor. Enquanto isso, desejolhes um bom dia.
Só muito tempo depois de voltarmos ao nosso
chalé em Poldhu foi que Holmes quebrou seu completo e
absorto silêncio. Sentou-se encolhido na poltrona, a
face, abatida e ascética, quase invisível entre a espiral de
fumaça azul do tabaco, as sobrancelhas negras
abaixadas, testa contraída, olhar vago e distante. Por
fim, guardou o cachimbo e ficou de pé.
— Ah, não adianta, Watson! — exclamou com uma
risada. — Vamos passear perto dos penhascos e procurar
flechas de pedra. É mais provável encontrarmos algumas
do que pistas para esse problema. Deixar o cérebro
trabalhar sem material suficiente é como forçar demais
o motor: ele funde. Brisa marinha, luz do sol e paciência,
Watson! Todo o resto virá.
Enquanto margeávamos os penhascos, continuou:
— Agora, com calma, vamos definir nossa posição.
Vamos tentar compreender bem o pouco que realmente
sabemos. Assim, surgindo novos fatos, estaremos
prontos para encaixá-los em seus devidos lugares.
Acredito, em primeiro lugar, que nenhum de nós está
preparado para admitir intromissões diabólicas nos
assuntos dos homens. Comecemos por riscar isso
completamente de nossas mentes. Muito bem. Restam
então três pessoas cruelmente vitimadas por alguma
ação humana consciente ou inconsciente. Disso temos
certeza. Agora, quando ocorreu? Evidentemente,
pressupondo que a história do Sr. Tregennis seja
verdadeira, foi logo depois que ele saiu da sala. Esse é
[77]
um ponto muito importante. O pressuposto é que o
ocorrido se deu poucos minutos depois. As cartas
continuavam sobre a mesa e já havia passado do horário
em que costumam dormir, contudo, não mudaram de
posição nem afastaram suas cadeiras. Repito, então, que
o ocorrido se deu imediatamente após a partida dele e
antes das onze horas da noite passada.
―Nosso próximo e óbvio passo é verificar, até onde
pudermos, as ações desse Mortimer Tregennis após sair
da sala. Nisso não há dificuldade, e elas parecem acima
de qualquer suspeita. Conhecendo meus métodos como
você conhece, Watson, há de ter percebido, é claro, o
expediente meio desajeitado que empreguei de derrubar
o balde d'água para obter uma impressão mais clara das
pegadas dele, o que talvez fosse impossível de outra
forma. A aleia molhada e arenosa registrou-as
admiravelmente. Noite passada, ela também estava
molhada, lembra? E não foi difícil, tendo obtido uma
pegada de amostra, identificar seu rastro entre outros e
seguir seus movimentos. Parece que ele saiu
rapidamente em direção à casa do pastor.
―Agora, se Mortimer Tregennis desapareceu da
cena e alguém de fora afetou os jogadores, como
podemos reconstituir essa pessoa e como foi transmitida
aquela impressão de horror? A Sra. Porter pode ser
descartada. Ela é claramente inofensiva. Temos algum
indício de que alguém subiu sorrateiramente na janela
do jardim e de alguma forma produziu efeito tão terrível
a ponto de ensandecer os que o viram? A única sugestão
nesse sentido vem do próprio Mortimer, segundo o qual
[78]
seu irmão falou de algum movimento no jardim. Isso é,
certamente, notável, já que a noite estava chuvosa,
nublada e escura. Qualquer um que tivesse o propósito
de assustar aquelas pessoas seria obrigado a colar a face
no vidro para ser visto. Existe um canteiro de flores de
quase um metro fora dessa janela, porém, nenhum
indício de pegada. É difícil imaginar, então, como um
intruso poderia ter causado impressão tão terrível no
grupo, nem encontramos qualquer motivo possível para
um atentando tão estranho e elaborado. Percebe nossas
dificuldades, Watson?‖
— Estão mais do que claras — respondi com
convicção.
— No entanto, com um pouco mais de material,
poderemos comprovar que não são insuperáveis —
ponderou Holmes. — Imagino que em nossos vastos
arquivos, Watson, você talvez encontre algumas
dificuldades quase tão obscuras. Enquanto isso,
devemos deixar o caso de lado até termos dados mais
precisos e devotar o resto de nossa manhã à busca do
homem neolítico.
Devo ter comentado a capacidade de desapego
mental de meu amigo, mas nunca me espantei tanto
com ela como naquela manhã de verão na Cornualha.
Por duas horas, conversamos sobre celtas, pontas de
flecha e cacos diversos, de forma tão leve como se
nenhum mistério sinistro aguardasse solução. Só de
tarde, depois de voltar ao chalé e encontrar um visitante
à nossa espera, foi que nossa atenção retornou ao
assunto. Não era preciso ninguém dizer quem era aquele
[79]
visitante. O corpo imenso, o rosto enrugado com linhas
profundas, olhos ameaçadores e nariz aquilino, o cabelo
grisalho quase varrendo o teto de nosso chalé, a barba –
dourada nas extremidades e branca perto dos lábios, a
não ser pela mancha de nicotina de seu perpétuo
charuto – tudo isso era tão bem conhecido em Londres
quanto na África, e só podia ser associado à
extraordinária personalidade do Dr. Leon Sterndale, o
grande explorador e caçador de leões.
Ouvíramos falar da sua presença no distrito e, uma
ou duas vezes, avistamos aquela alta figura nas estradas
das colinas. Ele não se dirigiu a nós, contudo, nem
sonharíamos em nos dirigir a ele, pois era notório que
amava manter-se recluso, fato o que o levou a passar a
maior parte dos intervalos entre suas jornadas num
pequeno bangalô enterrado no solitário bosque de
Beauchamp Arriance. Ali, entre seus livros e mapas,
vivia uma vida absolutamente solitária e simples,
suprindo suas próprias necessidades e prestando pouca
atenção aos assuntos dos vizinhos. Foi uma surpresa
para mim ouvi-lo perguntar a Holmes com a voz ansiosa
se ele havia feito algum progresso na reconstrução desse
misterioso episódio.
— A polícia do condado está totalmente perdida —
disse ele —, mas talvez você, com sua experiência mais
ampla, tenha concebido alguma explicação. Só peço que
confie em mim porque, durante minhas várias estadias
aqui, vim a conhecer a família Tregennis muito bem –
com efeito, do lado córnico de minha mãe, eu poderia
chamá-los de primos – e seu estranho destino foi
[80]
naturalmente um grande choque para mim. Cheguei a
me deslocar até Plymouth em meu caminho para a
África, mas as notícias me alcançaram nesta manhã e
voltei imediatamente para ajudar na investigação.
Holmes mostrou espanto.
— O senhor perdeu seu barco por causa disso?
— Embarcarei no próximo.
— Meu Deus! Isso é que é amizade!
— Como eu disse, eram parentes.
— Ah, sim, primos da sua mãe. A sua bagagem já
estava no navio?
— Alguma, mas a maior parte está no hotel.
— Entendo. Mas, com certeza, esse evento não
chegou a ser publicado nos matutinos de Plymouth.
— Não, não. Recebi um telegrama.
— Eu poderia perguntar de quem?
Passou uma sombra pela face ossuda do
explorador.
— Você é muito curioso, Sr. Holmes.
— Essa é a minha profissão.
Com algum esforço, o Dr. Sterndale recuperou sua
perturbada compostura.
— Não tenho nenhuma objeção em contar-lhe —
disse ele. — Quem enviou o telegrama que me trouxe de
volta foi o Rev. Roundhay.
— Obrigado — disse Holmes. — Respondendo à sua
pergunta original, ainda não estou certo de todo quanto
a este caso, mas tenho total esperança de chegar a
alguma conclusão. Seria prematuro dizer mais do que
isso.
[81]
— Talvez não se importe em me contar: suas
suspeitas apontam em alguma direção específica?
— Não, ainda não tenho essa resposta.
— Então perdi meu tempo e não preciso prolongar
minha visita.
O famoso médico saiu de nosso chalé a passos
largos e consideravelmente mal-humorado. Daí a cinco
minutos, Holmes o seguiu. Não o vi mais até à tardinha,
quando voltou com passos lentos e uma face cansada, e
tive certeza de não ter progredido muito em sua
investigação. Leu um telegrama que o aguardava e
lançou-o na lareira.
— Do hotel de Plymouth, Watson — comentou ele.
— Consegui o nome com o pastor e enviei um telegrama
para ter certeza de que o relato do Dr. Leon Sterndale
era verdadeiro. Parece que, de fato, ele passou a noite de
ontem lá e, enquanto retornava para presenciar esta
investigação, despachou algumas malas para a África. O
que você acha disso, Watson?
— Que ele está profundamente interessado.
— Profundamente interessado, sim... Existe um fio
aqui que ainda não pegamos e que pode nos guiar por
essa meada. Anime-se, Watson, pois estou certíssimo de
que nosso material ainda não apareceu. Quando
aparecer, nossas dificuldades talvez fiquem logo para
trás.
Nunca imaginei que as palavras de Holmes se
tornariam realidade tão rápido, nem que uma estranha e
sinistra novidade abriria uma linha de investigação
completamente nova. Estava me barbeando à janela pela
[82]
manhã quando escutei o som de cascos e, levantando os
olhos, vi um cabriolé chegando a galope pela estrada.
Estacionou à nossa porta e nosso amigo, o pastor, saltou
dele e veio correndo pela aleia do jardim. Holmes, que já
estava vestido, desceu apressado para encontrá-lo.
Nosso visitante estava tão agitado que mal
conseguia articular palavra, mas, entre arquejos e
engasgos, revelou sua trágica história.
— O diabo nos persegue, Sr. Holmes! Minha pobre
paróquia está sendo perseguida pelo diabo! — bradou
ele. — Satã em pessoa anda solto por aqui! Estamos em
suas mãos!
Muito agitado, girava pra lá e pra cá, e seria até
engraçado não fosse pela face pálida e o olhar assustado.
Por fim, gritou a terrível notícia:
— Mortimer Tregennis morreu! Ontem à noite, e
exatamente com os mesmos sintomas do resto de sua
família.
Holmes se levantou num instante, com toda
energia.
— Pode levar nós dois no seu cabriolé?
— Sim.
— Então, Watson, adiaremos nosso café da manhã.
Rev. Roundhay, estamos à sua total disposição. Rápido,
rápido, antes que mexam nas coisas.
Na casa do pastor, o inquilino ocupava dois
cômodos que ficavam isolados em um canto, um acima
do outro. O debaixo era uma ampla sala de estar, o de
cima, o quarto de dormir. Eles davam para um campo de
croquet que chegava até as janelas. Tínhamos chegado
[83]
antes do médico e da polícia, então, absolutamente nada
fora mexido. Deixe-me descrever exatamente a cena que
vimos naquela manhã nublada de março, uma
impressão que nunca poderei esquecer.
A atmosfera do quarto era de um abafamento
horrível e deprimente. A criada, que entrou antes, abriu
bem a janela, senão estaria mais intolerável ainda.
Talvez, em parte, pelo fato de haver uma lamparina
acesa e fumegante na mesa de centro. Perto dela, o
homem morto, sentado, pendendo para trás na cadeira,
óculos puxados para a testa e seu magro rosto moreno
voltado para a janela, contorcido, com a mesma e
marcante expressão de terror de sua falecida irmã. Seus
membros estavam convulsionados, e seus dedos,
retorcidos, como se tivesse morrido num grande
paroxismo de medo. Embora estivesse totalmente
vestido, havia sinais de que se vestira às pressas. Já
tínhamos ficado sabendo que sua cama estava
desarrumada e que esse final trágico lhe chegou no
início da manhã.
Quanto a Holmes, a súbita alteração sobrevinda ao
entrar naquele apartamento fatal traía a energia
abrasadora por baixo do seu exterior fleumático. Num
instante, ficou tenso e alerta, olhos brilhando, face
imóvel, membros agitando-se em sôfrega atividade. Saiu
para o campo de croquet, entrou pela janela, andou em
volta da sala, subiu até o quarto, exatamente como um
enérgico cão seguindo o rastro de sua caça. No quarto de
dormir, fez uma busca rápida e acabou abrindo a janela.
Isso lhe deu algum novo estímulo, pois se debruçou para
[84]
fora com sonoras exclamações de satisfação e interesse.
Depois desceu correndo a escada, passou pela janela
aberta, jogou-se de cara na grama, levantou num salto e,
mais uma vez, entrou para a sala, tudo com a energia de
um caçador no encalço da presa. A lamparina, de um
tipo comum, examinou com minuciosíssimo cuidado,
tomando medidas da parte arredondada. Esquadrinhou
cuidadosamente com sua lente o guarda-pó que cobria a
parte superior da chaminé e raspou algumas cinzas
daquela superfície, colocando um pouco num envelope,
o qual depositou em sua carteira. Por fim, quando o
médico e o policial apareceram, chamou o pastor com
um gesto, e nós três saímos para o gramado.
— Tenho o prazer de anunciar que minha
investigação não foi de todo improdutiva — observou
ele. — Não posso ficar para discutir o assunto com a
polícia, mas agradeceria extremamente, Rev. Roundhay,
se o senhor pudesse transmitir ao inspetor meus
cumprimentos e direcionar sua atenção para a janela do
quarto e para a lamparina da sala. Cada qual traz
alguma indicação e, juntas, são quase conclusivas. Se a
polícia quiser mais informações, recebê-la-ei com prazer
em casa. E agora, Watson, penso que seremos mais úteis
noutro lugar.
Talvez a polícia tenha ficado ofendida com a
intromissão de um amador ou encontrado alguma linha
promissora de investigação, o certo é que não ouvimos
notícia dela nos dois dias seguintes. Nesse período,
Holmes passou um pouco do seu tempo fumando e
divagando no chalé, porém, uma parcela maior dele
[85]
gastou em caminhadas solitárias pelo campo, das quais
voltava muitas horas depois sem comentar onde
estivera.
Um experimento serviu para me mostrar a linha de
sua investigação. Ele comprou uma lamparina idêntica
àquela que queimava na sala de Mortimer Tregennis na
manhã da tragédia. Encheu-a com o mesmo óleo que era
usado na casa do pastor e, cuidadosamente, marcou o
tempo que levava para se exaurir. Um outro
experimento foi de natureza bem mais desagradável,
uma experiência da qual provavelmente nunca me
esquecerei.
— Você se lembrará, Watson — observou certa
tarde —, que há um único ponto em comum entre os
diversos relatos que ouvimos. Tal ponto diz respeito ao
efeito causado pela atmosfera da sala, em cada caso,
sobre aqueles que nela entraram primeiro. Lembra que
Mortimer Tregennis, descrevendo o episódio de sua
última visita à casa dos irmãos, notou que o médico caiu
numa cadeira ao entrar na sala? Tinha esquecido? Bem,
posso lhe garantir que foi assim. Agora, você se
recordará também que a Sra. Porter, a governanta, disse
ter ela própria desmaiado ao entrar na sala e que, em
seguida, abriu a janela. No segundo caso, o de Mortimer
Tregennis, você não pode ter esquecido o horrível
abafamento quando chegamos, embora a criada já
tivesse aberto a janela da sala. Aquela criada, descobri
ao investigar, ficou tão mal que se acamou. Você
admitirá, Watson, que tais fatos são bem sugestivos. Em
cada caso há evidência de uma atmosfera venenosa. Em
[86]
cada caso há, também, uma combustão acontecendo na
sala: num deles, uma lareira, no outro, uma lamparina.
A lareira era necessária, mas a lamparina foi acesa,
como mostra uma comparação do consumo de óleo, bem
depois do dia claro. Por quê? Certamente porque existe
alguma conexão entre as três coisas: a queima, a
atmosfera sufocante e, por fim, a loucura ou morte
daqueles desafortunados. Está claro, não?
— Parece que sim.
— Ao menos podemos aceitar isso como uma
hipótese de trabalho. Iremos supor, então, que, em cada
caso, algo foi queimado e produziu uma atmosfera
causadora de estranhos efeitos tóxicos. Muito bem. No
primeiro caso, o da família Tregennis, tal substância foi
colocada na lareira. A janela estava fechada, mas a
lareira, naturalmente, levaria ao menos parte da fumaça
pela chaminé. Portanto, era de se esperar que os efeitos
do veneno fossem menores do que no segundo caso, no
qual havia menos saída para a fumaça. O resultado
parece indicar que foi assim, já que, no primeiro caso,
somente a mulher, que supostamente tem um
organismo mais sensível, morreu, os outros exibindo
aquela loucura temporária ou permanente que, por
certo, é o primeiro efeito da droga. No segundo caso, o
resultado foi completo. Os fatos, portanto, parecem
sustentar a teoria de um veneno que funciona mediante
combustão.
―Com essa linha de raciocínio em mente, eu
vasculhei a sala de Mortimer Tregennis para encontrar
algum resquício da substância. O lugar óbvio era o prato
[87]
da lamparina. Ali, como esperado, percebi algumas
cinzas escamosas e, em volta das bordas, uma orla de pó
marrom que não tinha sido devorado pelo fogo ainda.
Peguei metade dele, como você viu, e coloquei num
envelope.
— Por que metade, Holmes?
— Não cabia a mim, meu caro Watson, ficar no
caminho da força policial. Deixei para eles toda a prova
que encontrei. O veneno permanecia ainda no prato,
caso tivessem a perspicácia de encontrá-lo. Agora,
Watson, vamos acender nossa lamparina. Tomaremos o
cuidado, porém, de abrir nossa janela para evitar a
morte prematura de dois louváveis membros da
sociedade, e você se sentará na poltrona perto daquela
janela, a menos que, como homem sensato, decida não
participar do experimento. Ah, vai até o fim? Tinha
certeza que conhecia meu Watson. Colocarei esta
cadeira de frente pra sua, para ficarmos à mesma
distância do veneno e cara a cara. A porta, deixarei
entreaberta. Agora cada um está em posição de observar
o outro e de interromper o experimento se os sintomas
parecerem alarmantes. Tudo claro? Bem, então, pego
aqui nosso pó – ou o que sobrou dele – deste envelope e
jogo sobre a chama da lamparina. Assim. Agora,
Watson, vamos ficar sentados e esperar os resultados.
Eles não tardariam a chegar. Mal tinha me
acomodado na cadeira quando dei conta de um cheiro
denso e almiscarado, sutil e nauseabundo. Logo à
primeira aspirada meu cérebro e minha imaginação
fugiram totalmente ao meu controle. Uma nuvem negra
[88]
e espessa subiu girando diante dos meus olhos, e minha
mente me disse que nessa nuvem – nunca vista antes,
mas prestes a saltar sobre meus sentidos aterrorizados –
, residia tudo que era vagamente horrível, monstruoso e
inconcebivelmente pernicioso do universo. Formas
vagas giravam e flutuavam em meio à nuvem de fumaça
negra, cada uma ameaçando e avisando que ali vinha
algo, a chegada de algum habitante terrível à soleira,
cuja própria sombra destruiria minha alma. Um horror
glacial tomou conta de mim. Senti que meu cabelo se
arrepiava, os olhos saíam pra fora, que minha boca
estava aberta e a língua qual couro. A confusão no meu
cérebro era tanta que algo devia certamente se romper.
Tentei gritar e só percebi um cochicho, minha própria
voz, mas distante e separada de mim. Na mesma hora,
numa tentativa de fuga, rompi aquela nuvem de
desespero e consegui vislumbrar o rosto de Holmes,
branco, rígido e contorcido de horror – o mesmo aspecto
que vi no rosto do morto. Aquela visão me proporcionou
um instante de sanidade e de força. Lancei-me de minha
cadeira, joguei os braços em volta de Holmes e, juntos,
saímos cambaleando pela porta. Pouco depois,
estávamos jogados no gramado, deitados lado a lado,
conscientes apenas do glorioso brilho do sol que abria
caminho pela nuvem infernal de terror que nos cingira.
Lentamente, ela se desgarrou de nossas almas, como a
névoa de uma campina, até que a paz e a razão
retornaram, e estávamos sentados na grama, enxugando
nossas testas frias e úmidas, olhando com apreensão um
pro outro para observar os últimos vestígios daquela
[89]
experiência terrífica pela qual passamos.
— Que foi isso, Watson?! — indagou Holmes enfim,
a voz vacilante. — Devo a você gratidão e desculpas. Foi
um experimento injustificável até para fazer sozinho,
quanto mais com um amigo. Sinto muito mesmo.
— Olha — respondi, um tanto emocionado, pois
nunca tinha visto Holmes abrir tanto seu coração antes
—, fico feliz pelo privilégio de ajudar você.
Imediatamente, ele retomou o estado de espírito
meio cômico, meio cínico que lhe era habitual com seus
próximos.
— Seria supérfluo enlouquecermos, meu caro
Watson — comentou. — Um cândido observador diria
que já estávamos loucos antes de embarcar num
experimento tão absurdo. Confesso que nunca imaginei
que o efeito pudesse ser tão súbito e tão severo.
Correu até a casa e, reaparecendo com a lamparina
acesa na ponta do braço esticado, lançou-a no meio de
um arbusto cheio de espinhos.
— Devemos esperar a sala arejar. Acredito,
Watson, que não reste a menor sombra de dúvida sobre
como as tragédias foram produzidas, certo?
— Nem uma sequer.
— Mas, como antes, a causa continua obscura.
Venha até esta árvore aqui para discutirmos isso. Parece
que aquela coisa abominável ainda está na minha
garganta. Acho que devemos admitir que todas as
evidências apontam para aquele homem, Mortimer
Tregennis, como o responsável pela primeira tragédia,
embora tenha sido vítima na segunda. Temos que
[90]
lembrar, primeiro, que existe uma história de briga
familiar, seguida de uma reconciliação. O quanto a briga
foi feia ou o quanto a reconciliação foi falsa, não
podemos dizer. Quando penso em Mortimer Tregennis,
com aquela cara de raposa e olhinhos astutos por trás
dos óculos, não vejo um homem particularmente
inclinado ao perdão. Bem, em segundo lugar, a ideia de
alguém se movendo no jardim, que desviou
momentaneamente nossa atenção da verdadeira causa
da tragédia, partiu dele, lembra? Ele tinha um motivo
para nos induzir ao erro. Por fim, se não foi ele quem
jogou a substância na lareira antes de sair da sala, quem
foi? O incidente aconteceu logo depois que ele partiu. Se
alguém mais tivesse chegado, a família certamente teria
se levantado da mesa. Além disso, na pacífica
Cornualha, visitantes não chegam depois das dez.
Podemos admitir, então, que todas as evidências
apontam para Mortimer Tregennis como culpado.
— Então, sua própria morte foi suicídio?
— Bem, Watson, aparentemente essa não é uma
suposição impossível. Alguém com a alma atormentada
pela culpa de ter provocado um destino daqueles à
própria família poderia bem ser levado a infligir-se tal
fim por remorso. Há, contudo, fortes razões contra isso.
Infelizmente, só existe um homem na Inglaterra que
conhece todos os detalhes, e tomei providências para
que ouçamos os fatos de seus próprios lábios hoje à
tarde. Ah!, aí está ele, um pouco adiantado. Faça a
gentileza de vir por aqui, Dr. Leon Sterndale.
Conduzimos um experimento químico lá dentro que
[91]
deixou nossa pequena sala inapropriada para receber
tão distinto visitante.
Eu ouvira um estalido no portão do jardim, e agora
a majestosa figura do grande explorador da África surgia
pelo caminho. Ele se voltou meio surpreso para a rústica
árvore em que estávamos.
— O senhor mandou me chamar, Sr. Holmes?
Recebi seu bilhete há cerca de uma hora e vim, embora
não saiba realmente por que deveria atender ao seu
chamado.
— Talvez possamos esclarecê-lo antes de nos
separarmos — respondeu Holmes. — Enquanto isso,
estou muito agradecido por sua amável anuência. O
senhor há de desculpar esta recepção informal a céu
aberto, mas meu amigo Watson e eu quase fornecemos
um capítulo extra àquilo que os jornais chamam ―o
horror da Cornualha‖ e, no momento, preferimos uma
atmosfera limpa. Já que os assuntos que temos para
discutir vão afetar o senhor de modo muito íntimo,
talvez seja bom conversarmos onde ninguém possa nos
escutar.
O explorador tirou o charuto dos lábios e lançou
um olhar duro para meu companheiro.
— Estou sem saber — retrucou ele — o que o
senhor tem a dizer que me afete de modo muito íntimo.
— O assassinato de Mortimer Tregennis — revelou
Holmes.
Por um momento, desejei estar armado. A face
ameaçadora de Sterndale ficou vermelha e sombria, seus
olhos brilharam, veias nodosas de ira estufaram em sua
[92]
testa enquanto saltava com as mãos cerradas em direção
a meu companheiro. Então parou e, com um esforço
violento, retomou a calma rígida e fria que, talvez, fosse
mais indicativa de perigo do que sua explosão de ira.
— Vivi por tanto tempo entre selvagens e fora da lei
— disse ele — que passei a ser a lei para mim mesmo.
Seria bom, Sr. Holmes, não esquecer disso, pois não lhe
desejo fazer mal.
— Nem eu lhe desejo mal, Dr. Sterndale. Decerto a
prova mais clara disso é que, sabendo o que sei, mandei
chamar o senhor e não a polícia.
Sterndale assentou-se soltando um suspiro, pela
primeira vez intimidado, talvez, em sua vida de
aventuras. Havia uma calma afirmação de força na
conduta de Holmes à qual não era possível se opor.
Nosso visitante gaguejou por um momento, suas mãos
enormes abrindo e fechando agitadamente.
— O que quer dizer? — perguntou enfim. — Se isso
for um blefe, Sr. Holmes, você escolheu a pessoa errada
para seu experimento. Vamos deixar de rodeios. Do que
se trata?
— Já vou falar — disse Holmes —, e farei isso
porque espero que franqueza gere franqueza. Meu
próximo passo depende inteiramente do caráter da sua
defesa.
— Minha defesa?
— Sim, senhor.
— Minha defesa contra o quê?
— Contra a acusação de matar Mortimer
Tregennis.
[93]
Sterndale secou a testa com o lenço.
— Falando sério, você está me irritando — rosnou
ele. — Será que todas as suas conclusões se baseiam
nesse prodigioso pó de blefe?
— O blefe — redarguiu Holmes com ar severo —
está do seu lado, Dr. Leon Sterndale, não do meu. Como
prova, vou lhe contar alguns dos fatos que fundamentam
minhas conclusões. Sobre sua volta de Plymouth,
deixando que a maioria de suas posses seguisse para a
África, não direi nada, apenas que isso me informou que
o senhor era um dos fatores a serem considerados ao
reconstruir esse drama...
— Eu voltei...
— Já ouvi suas razões e as considero pouco
convincentes e inadequadas. Pularemos isso. O senhor
veio até aqui me perguntar de quem eu suspeitava.
Recusei responder-lhe. O senhor foi à casa do pastor,
esperou de fora por algum tempo e, por fim, voltou à sua
cabana.
— Como o senhor sabe disso?
— Eu o segui.
— Não vi ninguém.
— É isso que se pode esperar quando sigo alguém.
O senhor passou uma noite agitada em sua cabana e
formulou certos planos que, de manhã bem cedo, foi
colocar em ação. Saindo logo que o dia raiava, o senhor
encheu o bolso com pedras avermelhadas de uma pilha
que estava ao lado do seu portão.
Sterndale teve um forte sobressalto e olhou
espantado para Holmes.
[94]
— O senhor percorreu rapidamente a milha que o
separava da casa do pastor. Calçava, posso notar, o
mesmo par de tênis que se encontra agora nos seus pés.
Chegando lá, passou pelo pomar e pela cerca lateral,
saindo embaixo da janela do inquilino Tregennis. Então
já era dia, mas o movimento da casa ainda não
começara. O senhor tirou algumas pedras do bolso e
jogou na janela do andar de cima.
Sterndale ficou de pé num pulo.
— O senhor é o diabo em pessoa! — gritou.
Holmes sorriu com o elogio.
— Foram precisos dois, talvez três punhados até
que o inquilino chegasse à janela. O senhor acenou para
que ele descesse. Ele se vestiu às pressas e desceu até a
sala de estar. O senhor entrou pela janela e conversou
com ele brevemente enquanto caminhava para cima e
para baixo na sala. Depois saiu e fechou a janela, ficou
de fora fumando um charuto e assistindo ao que
acontecia. Por fim, após a morte de Tregennis, retirou-se
como havia chegado. Agora, Dr. Sterndale, como o
senhor justifica tal conduta e quais foram os motivos das
suas ações? Se mentir ou brincar comigo, garanto-lhe
que o assunto deixará minhas mãos para sempre.
A face de nosso visitante ia ficando cinza pálido à
medida que ouvia as palavras do seu acusador.
Permaneceu sentado por algum tempo, pensativo, o
rosto afundado entre as mãos. Então, com um súbito
gesto impulsivo, tirou uma foto do bolso interno do seu
paletó e jogou-a sobre a mesa rústica à nossa frente.
— Aqui está o motivo.
[95]
A foto mostrava o busto e a face de uma mulher
muito bonita. Holmes se inclinou sobre ela.
— Brenda Tregennis — disse então.
— Sim, Brenda Tregennis — repetiu nosso
visitante. — Por anos eu a amei. Por anos ela me amou.
Eis o segredo daquela reclusão na Cornualha que as
pessoas tanto estranhavam. Só assim ficava próximo da
única pessoa que amei neste mundo. Eu não podia me
casar com ela, pois tenho uma esposa que me largou há
anos e de quem, no entanto, segundo as deploráveis leis
da Inglaterra, não pude me divorciar. Durante anos
Brenda esperou. Eu, durante anos, esperei. E era isso
que esperávamos.
Um soluço terrível abalou sua grande estrutura, e
ele apertou sua garganta por baixo da barba grisalha.
Então, com algum esforço, controlou-se e continuou a
falar:
— O pastor sabia. Era de nossa confiança. Dizia
que ela era um anjo na terra. Foi por isso que me
telegrafou e eu voltei. O que era a bagagem ou a África
para mim ao saber que tal destino ceifara minha amada?
Aí está a pista que faltava para minha ação, Sr. Holmes.
— Prossiga — disse meu amigo.
O Dr. Sterndale tirou um pacote de papel do bolso
e colocou sobre a mesa. No exterior estava escrito, acima
de um símbolo vermelho de veneno, "Radix pedis
diaboli". Ele o empurrou em minha direção.
— Sei que você é médico. Já ouviu falar deste
preparo?
— Raiz do pé do diabo... Não, nunca ouvi falar.
[96]
— Não tem repercussão no seu meio profissional —
comentou —, pois acredito que, exceto por uma amostra
de um laboratório em Budapeste, não existe qualquer
outro espécime na Europa. Não entrou ainda para a
farmacopeia nem para a literatura toxicológica. Essa raiz
tem a forma de um pé, meio humano, meio de bode, daí
o nome imaginoso dado por um missionário botânico. É
usada como veneno de suplício pelos curandeiros de
algumas regiões da África Ocidental e mantida em
segredo entre eles. Esse espécime em particular, obtive
em circunstâncias bem extraordinárias, na bacia do
Ubangi.
Enquanto falava ele abriu o papel e mostrou um
punhado de pó marrom avermelhado, parecido com
rapé.
— E então, senhor? — perguntou Holmes com
firmeza.
— Estou prestes a contar tudo que aconteceu de
fato, pois você, Sr. Holmes, já sabe tanto que é vantajoso
para mim que saiba tudo. Já expliquei a relação que
mantinha com a família Tregennis. Por causa da irmã,
eu era cordial com os irmãos. Houve um entrevero
familiar envolvendo dinheiro que distanciou aquele
Mortimer, mas, supunha-se, estava tudo resolvido e,
posteriormente, passei a me encontrar com ele e
também com os outros. Era um homem cheio de
malícia, misterioso, maquinador, e vários fatos surgiram
que me fizeram suspeitar dele, mas eu não tinha motivo
para nenhuma rixa efetiva.
―Um dia, há somente algumas semanas, ele veio até
[97]
minha cabana e mostrei-lhe minhas curiosidades da
África. Entre outras coisas, mostrei esse pó e falei sobre
suas estranhas propriedades, como estimula os centros
cerebrais que controlam a emoção do medo e como a
loucura ou a morte é o destino dos infelizes nativos
submetidos ao seu suplício pelo sacerdote tribal. Conteilhe também o quanto a ciência europeia era incapaz de
detectá-lo. Não saberia dizer como ele pegou o pó, pois
jamais saí da sala, mas não há dúvidas de que fez isso
enquanto eu abria os gabinetes e me abaixava até as
caixas, deve ter sido então que conseguiu surrupiar um
pouco da raiz do pé do diabo. Lembro-me bem como me
entupiu de perguntas sobre a quantidade e o tempo
necessários para seu efeito, mas nem sonhava que tinha
um motivo pessoal para perguntar.
―Não pensei mais no assunto até que, em
Plymouth, recebi o telegrama do pastor. O patife do
assassino pensou que eu estaria no mar antes que a
notícia me alcançasse e que passaria anos perdido na
África. Mas voltei na mesma hora. É claro, ao ouvir os
detalhes, tive certeza de que meu veneno foi usado.
Voltei para consultar o senhor sobre a chance de alguma
outra explicação ter-se-lhe afigurado. Mas só poderia
haver uma. Eu estava convencido de que Mortimer
Tregennis era o assassino; de que ele, por causa do
dinheiro e pensando talvez que seria o único curador dos
bens comuns se os outros membros da família
enlouquecessem, tinha usado o pé do diabo contra os
irmãos, deixando dois deles fora de órbita e matando
Brenda, o único ser humano que já amei e que já me
[98]
amou. Lá estava seu crime, qual deveria ser o seu
castigo?
―Deveria eu recorrer à lei? Quais seriam minhas
provas? Eu sabia que os fatos eram verdadeiros, mas
conseguiria fazer um júri de camponeses acreditar numa
história tão fantástica? Talvez sim, talvez não. Contudo,
não podia correr o risco de falhar. Minha alma clamava
vingança. Já lhe disse antes, Sr. Holmes, que passei a
maior parte de minha vida fora da lei e que acabei sendo
a lei para mim mesmo. Assim era e continua sendo.
Decidi que o destino que dera aos outros deveria ser
compartilhado por ele próprio. Era isso ou fazer-lhe
justiça com minhas próprias mãos. Em toda a Inglaterra,
não pode haver ninguém que dê menos valor à sua
própria vida do que eu neste exato momento.
―Agora já disse tudo. Você mesmo completou o
resto. De fato, como você afirma, saí cedo de casa após
uma noite agitada. Previ a dificuldade de acordá-lo,
então apanhei algumas pedras na pilha que você
mencionou e usei-as para jogar em sua vidraça. Ele
desceu e me deixou entrar pela janela da sala. Expus-lhe
seu crime. Disse que eu tinha vindo como juiz e algoz. O
desgraçado afundou numa cadeira, paralisado ao ver
meu revólver. Acendi uma lamparina, coloquei o pó
sobre ela e fiquei do lado de fora, pronto para executar
minha ameaça de atirar nele pela janela se tentasse sair.
Em cinco minutos estava morto. Meu Deus, como ele
morreu! Mas meu coração era qual pedra, pois o cretino
não chegou a sofrer nada que minha amada não tivesse
sofrido antes. Eis a minha história, Sr. Holmes. Talvez,
[99]
se o senhor amasse uma mulher, teria feito o mesmo que
eu. De todo modo, estou em suas mãos. Você pode
tomar as providências que quiser. Como eu disse, não há
nenhum homem vivo que tema a morte menos do que
eu.‖
Holmes ficou um tempo em silêncio.
— Quais são os seus planos? — perguntou enfim.
— Pensei em me isolar na África Central. Meu
trabalho lá está só pela metade.
— Então vá e termine a outra metade — disse
Holmes. — Eu, pelo menos, não estou preparado para
impedi-lo.
O Dr. Sterndale levantou sua figura gigantesca, fez
uma reverência e saiu andando para longe da árvore.
Holmes acendeu o cachimbo e me entregou seu estojo.
— Uma fumaça que não seja venenosa seria uma
mudança bem-vinda — comentou. — Penso que você
concordará, Watson, que esse não é um caso em que
devamos interferir. Nossa investigação foi independente,
e assim também será nossa ação. Você não denunciaria o
sujeito, denunciaria?
— Certamente que não — respondi.
— Eu nunca amei, Watson, mas se amasse e minha
amada tivesse tal fim, eu até poderia agir como agiu
nosso caçador de leão sem lei. Quem sabe? Bem,
Watson, não ofenderei sua inteligência explicando o
óbvio. As pedras no peitoril da janela foram, claro, o
ponto de partida da minha pesquisa. Eram diferentes
que tudo no jardim da casa do pastor. Só quando minha
atenção foi atraída para o Dr. Sterndale e sua casa é que
[100]
encontrei pedras semelhantes. A lamparina ardendo em
plena luz do dia e os resquícios de pó no anteparo foram
elos sucessivos numa corrente bastante óbvia. E agora,
meu caro Watson, acho que podemos descartar o
assunto de nossas mentes e voltar com a consciência
limpa para o estudo daquelas raízes caldeias que
certamente podem ser identificadas no ramo córnico da
grande língua celta.
[101]
Posfácio
As traduções que compõem este livro envolveram
algumas decisões bem interessantes de caráter estético e
cultural. Este posfácio destaca algumas delas, pela
possibilidade de constituírem leitura proveitosa a todos
que se interessam pela tradução literária.
No conto de H.P. Lovecraft, The Music of Erich
Zann, por exemplo, aconteceu uma situação bem
ilustrativa do cuidado estilístico que inspira o texto de
chegada, tendo em vista a fidelidade ao texto de partida.
Aproximadamente na metade da história, quando o
narrador menciona a mudança de atitude do músico
quanto à sua presença, lemos, em inglês:
"He did not ask me to call on him, and when I did
call he appeared uneasy and played listlessly. This
was always at night—in the day he slept and
would admit no one".
A tradução da primeira frase – "Ele não me pediu
para visitá-lo e, quando visitei, parecia inquieto e tocava
displicentemente." – não ofereceu problemas, embora o
verbo frasal "to call on" (visitar) tenha confundido um
outro tradutor desse mesmo conto, cuja versão se
encontra disponível na Internet. Mas a parte destacada
em itálico da segunda frase gerou um problema
[102]
estilístico em português que não existia no original, o
vício de linguagem conhecido como eco:
"... de dia ele dormia e não recebia ninguém."
Notem que, em inglês, as palavras day, slept e
admit, de sonoridades tão diferentes, formam, no estilo
conciso e denso de Lovecraft, uma sequência
heterogênea e equilibrada, sem nenhum eco ou rima
interna. Como manter a tradução mais próxima possível
do original eliminando esse defeito surgido no
português? Das várias possibilidades, decidi trocar a
forma verbal "dormia" por "ficava dormindo", pois,
assim, mantinha-se a ideia de ação recorrente no
passado (indicada também pelo verbo modal would
junto a admit) e quebrava-se a sequência de três
palavras terminadas em "ia". O resultado para "in the
day he slept and would admit no one" foi então:
"... de dia, ficava dormindo e não recebia
ninguém."
O leitor deve ter notado que, além desse ajuste no
verbo, também introduzi uma vírgula após o adjunto
adverbial "de dia", conforme permite e até mesmo
recomenda a gramática do português, para aumentar a
distância, por meio da pausa representada pela vírgula,
entre as palavras terminadas em "ia" que
permaneceram. Trata-se de uma minúcia, com certeza,
[103]
mas, como dizia Paulo Rónai, "a tradução é o mundo das
minúcias"8.
Num plano mais amplo, o conto de Lovecraft
levou-me a realizar um "estudo sobre vocabulário de
medo". Durante a primeira leitura integral da tradução,
após uma primeira revisão comparativa feita no
rascunho inicial, percebi em A música de Erich Zann
que o vocabulário ligado às sensações do medo precisava
ser todo reavaliado pelo seguinte motivo: a língua
inglesa, como se sabe, possui palavras de raiz anglo-saxã
e palavras de raiz latina, estas provenientes do próprio
latim ou do francês. Por exemplo, a palavra "hideous",
de raiz anglo-saxã, e "terrible", de raiz latina, podem ser
igualmente traduzidas por "terrível", assim como
"dread" e "horror" podem ser traduzidas por "horror".
Em termos de sentido, não haveria problema tendo em
vista a sinonímia, mas, em termos de escolhas lexicais
do autor, um dos componentes de seu estilo, poderia
haver a eliminação da variedade existente no original e o
surgimento de repetições indesejadas. Por isso, uma vez
que procurei usar palavras portuguesas próximas às
inglesas de origem latina escolhidas pelo autor, era
preciso um cuidado especial com a tradução das de
origem anglo-saxã. O estudo vocabular que empreendi
consistiu em separar as frases contendo palavras ligadas
ao medo e, avaliando o contexto de ocorrência de cada
uma, encontrar traduções para as palavras de origem
A tradução vivida, 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. p.
72.
8
[104]
anglo-saxã que preservassem a variedade vocabular
existente no original. Assim, se no original inglês temos
palavras como anguish, awful, dread, dreadful, fear,
fearful, fright, haunt, haunted, hideous, horror,
horrible, start, startle e terror, terrible, em português,
encontramos
agonia,
amedrontado,
assombro,
assombrado, assombroso, atroz, horrendo, horror,
horrível, medo, pavor, pavoroso, sobressalto, temer e
terror, aterrorizado, terrível.
The Adventure of the Devil's Foot, embora tenha
sido incluído como terceiro na sequência dos contos
deste livro, foi o segundo a ser traduzido e apresentou a
questão de como lidar com a tradução dos diálogos, em
especial no que diz respeito à "idade" percebida de cada
história. Se, por um lado, a tradução de contos antigos
não pode eliminar de todo as referências que inserem as
narrativas na época em que se passam – por exemplo,
atualizando menções a itens tecnológicos ou costumes –
por outro, seria artificial que, como tradutor, eu tentasse
emular o modo de falar brasileiro daquelas épocas, pois
minha vivência do idioma iniciou-se bem depois. Essa
foi uma questão que surgiu, em especial, com a tradução
do conto de Doyle e se repetiu, em certa medida, no de
Mérimée, porque a questão do "modo de falar" fica
muito mais patente nos diálogos do que nos trechos
propriamente narrativos, sendo que o conto de Lovecraft
não inclui nenhum diálogo, apenas a voz do narrador e
seus relatos do que outros personagens falaram.
Em A aventura do pé do diabo, portanto, uma
decisão que se impôs foi o modo de traduzir o pronome
[105]
you em suas diversas ocorrências. Não bastasse poder
ser traduzido como "você" ou "vocês", tendo em vista a
época em que se passa, os personagens poderiam bem
utilizar "tu" e "vós" em português. Levando em conta a
intenção de evitar artificialidades, e estando essa
história um pouco mais próxima de nosso tempo, preferi
usar apenas "você", "vocês", "o senhor" ou "os senhores",
optando por um ou outro com base no contexto em que
surgiam. Já em A vênus de Illa, a situação foi um pouco
diferente, pois o francês, como o português, possui
pronomes separados para a segunda pessoa no singular
e no plural, havendo uma diferenciação, no caso do
plural para uma só pessoa (ao chamar alguém por vous
em lugar de tu), como forma de indicar maior ou menor
intimidade, relação parental ou social. Assim como no
conto de Doyle, evitei usar o "vós" para fugir da
artificialidade, mas, em uma situação específica – os
momentos em que o Sr. e a Sra. de Pèira Horada se
dirigiam um ao outro –, empreguei o "tu" seguindo o
original, pois me pareceu natural e legítimo, também
por serem personagens catalães e, em catalão, o seu uso
é corrente até hoje, assim como em algumas regiões do
Brasil.
Mas, sobre La Vénus d’Ille, de Prosper Mérimée,
uma decisão mais interessante envolveu os nomes
próprios catalães do texto: nomes de localidades,
acidentes
geográficos,
personagens
fictícios
e
personagens históricos. Estudiosos da tradução, como
Maria Clara Castellões de Oliveira, destacam a
importância cultural da representação da alteridade
[106]
proporcionada na literatura, sendo desejável que a
tradução, em especial, reconheça nos originais "as vozes
representativas de soberanias de várias ordens
(ideológicas, religiosas, econômicas, políticas, culturais,
linguísticas e de gênero...)" para que "[não] percam sua
identidade‖9. O conto de Mérimée, como mencionado na
apresentação, tem um narrador francês que vive uma
aventura numa região, de certa forma, estrangeira, pois,
ainda que dentro dos limites geográficos da França,
possui uma identidade nitidamente catalã. A região dos
Pirineus Orientais, até a segunda metade do século
XVII, pertencia à Espanha, mais especificamente, fazia
parte da Catalunha, sendo o catalão a língua falada pelos
habitantes da região em que se passa o conto, conforme
destaca diversas vezes o autor. Assim, para exacerbar
essa estrangeiridade catalã, decidi usar nomes catalães
para os lugares, personagens e outras referências
culturais específicas que aparecem de forma afrancesada
no texto original. A decisão de assim proceder veio ao
pesquisar sobre a primeira referência culturalmente
marcada no conto, um maciço montanhoso, e descobrir
que, por decisão oficial do governo francês, esse local
passou a adotar seu nome original catalão, Canigó, em
2012. Meu raciocínio foi que, uma vez que o autor
destaca a todo momento a estrangeiridade do ambiente
narrativo, caso ele fosse escrever o conto hoje,
OLIVEIRA, Maria Clara Castellões de. Ética na tradução, fruto de
posturas estéticas e políticas. Sentidos dos Lugares – Encontro
Regional da Associação Brasileira de Literatura Comparada. Rio de
Janeiro : ABRALIC, 2005. CD-ROM.
9
[107]
possivelmente empregaria esses estrangeirismos.
Estendendo a pesquisa, encontrei os equivalentes
catalães para todas as referências culturais no texto,
incluindo o próprio nome do local em que se passa a
história, Illa, da região administrativa em que se
encontra, o Roselló, e até mesmo o nome da ária
mencionada no conto, Muntanyes regalades.
Para encerrar este posfácio com uma observação
que me pareceu muito interessante, descobri que a ária
citada acima realmente existe. Ela pode ser encontrada
com esse título em catalão, Muntanyes regalades (não
com sua tradução para o francês como registrada pelo
autor), em versões em áudio na Internet, estando a mais
bela delas disponível no Youtube na voz da soprano
espanhola Victoria de los Angeles.
[108]
Sobre o tradutor
Adauto Villela nasceu em Barbacena, Minas Gerais,
em 1971. Formado em Direito, começou a traduzir
profissionalmente em 1996 quando ainda advogava.
Depois de um mestrado em Linguística Aplicada à
Teoria da Tradução na Unicamp (2001), passou a se
dedicar exclusivamente à prática e ao ensino da
tradução. Sua paixão e entendimento do ramo literário
da tradução foram aprofundados com o Doutorado em
Letras: Estudos Literários, no qual defendeu uma tese
sobre Paulo Rónai e a antologia de contos ―Mar de
Histórias‖ (UFJF, 2012).
[109]
www.aquelaeditora.com.br
[110]

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