livro de contos - Brigadeiro da Didi!

Transcrição

livro de contos - Brigadeiro da Didi!
PEQUENA INTRODUÇÃO
Logo após publicar meu primeiro livro, O PÁTIO DE ATENAS, e
enquanto ganhava fôlego para escrever o segundo (A FÓRMULA
ETRUSCA), comecei a escrever contos. Era uma maneira de colocar
no “papel” as histórias que me vinham à cabeça e que não teriam
corpo suficiente para gerar um romance, por serem tópicas e
fechadas em si mesmas.
Seu destino inicial, como o da maioria de meus escritos, foi alguma
“gaveta” digital, um arquivo soterrado no disco rígido do meu PC. Em
2012, entretanto, reuni coragem suficiente para criar um arremedo
de blog, que não passava de e-mails aos quais anexava essas
brincadeiras literárias e, sempre me desculpando pela ousadia,
enviava para certos abnegados amigos. Foi assim por um ano.
Em fevereiro de 2013, incentivado por algumas críticas
surpreendentemente favoráveis, resolvi assumir meu destino de
blogueiro, criando o PALAVRA ESCRITA, que agora comemora seu
primeiro aniversário.
Mas, atendendo à etiqueta desse canal virtual, fui-me restringindo a
lá colocar apenas postagens curtas, de textos com marcada
atualidade e de interesse instantâneo. E os contos voltaram a estar
em stand-by.
Mais recentemente, porém, minha filha Andrea e meu genro Ricardo
apontaram-me a possiblidade de usar o blog como veículo de ligação
para acesso a obras mais alentadas, abrindo a opção aos seus
visitantes de baixarem, para uma possível leitura posterior e com
mais vagar, de volumes maiores.
Já fiz uma primeira experiência como A FÓRMULA ETRUSCA,
disponível em versão e-book. Agora, reuni sete dos contos antes
enviados por correio eletrônico neste livro digital, dando-lhes uma
unidade literária própria. Espero muito que o apreciem.
Alcochete, Janeiro de 2014.
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O POVOADOR
Ele ouviu a badalada singela do sino da igreja. Hora sexta.
Foi até a janela e olhou para a rua que se esgueirava entre o casario
baixo, a terra manchada pela garoada da noite, o céu de má
catadura. Não gostava muito de sol pleno, nem de frente nem sobre
os ombros, parecia que os dias ensolarados cobravam seu imposto de
bom-humor, uma obrigação de alegria que não lhe era feitio. Sentiase melhor na carícia da chuva, o cantar do vento norte servindo de
embalo para sua tristeza visceral, o prenúncio do mau tempo lhe
dando refúgio.
Sentiu o estômago girar sobre si mesmo, numa cambalhota de fome.
Noite mal dormida, manhã mal comida. Não dava para ser diferente.
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Foram a véspera e a espera deste grande instante. “A vida num
momento...” Quem dissera isto?
Não fora seu pai, pois esse não dizia muito, seco como a vara de
marmelo que tantas vezes lhe aplicara ao lombo. A única frase
memorável lhe escapara no estertor do enfisema. “Meu filho, sê
bom...” Só isso.
A mãe, antes de ir, deixara mais um pouco. Sua imagem resignada,
seus longos suspiros e retalhos de conselhos impregnados de amor.
Era o que ele agora tinha de verdadeiramente seu. Mais nada.
Nem irmãos. Ele fora fruto único de uma cepa débil semeada num
útero doente que, além dele, só produzira bagas secas e
imprestáveis. Aos dez anos, já estava só no mundo, morando de
favor na casa de tios incomodados com sua presença (“mais uma
boca...”, diziam, quando sabiam que ele podia ouvir). Dos anos que
se passaram, de bom e de mal, só se lembrava da noite de inverno
em que a tia entrou de repente na dispensa úmida e cheirando a
cebola macerada onde dormia; a mão dela célere como uma cobra
matreira mergulhando no cobertor de lã rija e segurando seu
membro, que, de uns tempos para cá, ficava duro por tudo e por
nada. Das imagens fragmentadas que vieram a seguir, se lembrava
do clarão de um candeeiro de azeite explodindo a escuridão, no
mesmo instante em que ele explodia numa maré de prazer; da mão
de ferro que o garroteava e quase o fazia perder a consciência. “Eu te
mato, filho de uma puta, junto com esta cadela” foi a última frase
que ouviu do tio naquela dispensa, no tempo que levou para
desvencilhar-se do aperto mortal e escapar para o abraço frio da viela
escura. Tinha 14 anos e correu até quase desmaiar na terra gelada
prá lá de um muro de pedras afiadas que o esfolara todo. “Vou
morrer entanguido”, pensou, dentro da camisola herdada que não
crescera com ele, expondo antebraços e canelas à mordida feroz da
invernada. Então, suas lágrimas de comiseração filtraram uma outra
luz, esta mansa e salvadora. «Veja, irmã Anastácia, é um menino...»
Nos próximos quatro anos, teve de tudo.
Logo na manhã seguinte, quando acordara nu, lavado, com as
esfoladuras pensadas, debaixo de dois cobertores num pequeno
aposento de iluminação suave, um singelo crucifixo negro de ferro na
parede rude, ele descobrira sua salvação. No desnorteio da fuga, o
pavor emprestara-lhe fortaleza suficiente para correr quase duas
léguas de campo agreste e galgar os muros do Convento de Santa
Aldegundes do Monte Sião.
Leite de cabra quente logo no despertar do dia, pães de crosta
amorenada se abrindo num doce perfume de milharal, o silêncio do
largo salão de refeições, o reverencial sorver das sopas de nabiças,
as suaves orações às horas certas, mais silêncio, os lindíssimos
sopranos volteando nas arcadas da capela de pedra, os movimentos
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ascéticos e precisos, o badalar do pequeno sino nas nonas,
novamente o silêncio.
«Primeiro mandamento da Lei de Deus...», «Soletre, devagar: naque-le tem-po...»,«dois mais dois, quatro, dois mais três, cinco, dois
mais quatro, seis...» Eram dezenove freiras, mais a madre. Recebia
as aulas de manhã, depois ajudava na horta, ordenhava as cabras,
regava o pomar. De volta recebia o mimo de uma roupa nova, lençóis
sempre rescendentes a alfazema, o desbravar das letras e das
tabuadas, a mística impenetrável do catecismo. E a segurança
afiançada pelos portões de ferro do Convento, que o haviam feito
sumir para o mundo.
Duas semanas passadas, ainda encantava seu coração de menino o
delicado milagre de seu resgate mas, tornado desconfiado de
encantamentos pelo desamor sovina de sua infância, tentava
imaginar o porque de tanta sorte. A resposta veio nessa mesma
noite.
Primeiro, foi o barulho seco da madeira do trinco. Depois, o rufar
abafado das dobras do hábito derramando-se ao lado da sua cama.
Aí, já não conseguiu mais distinguir o galope de seu coração do calor
incandescente de um corpo de mulher cheirando a flor-do-campo ou
da mão que guiara sua mão para o encontro com uma pequena colina
redonda suave e rija com um grãozinho de feijão no cimo. Tudo era
um turbilhão, a rebentar numa girândola de arcos luminosos logo
depois de sentir aquela parte de si, que parecia concentrar em
centímetros de carne todo o seu universo, conduzida para dentro de
uma flor aberta, mas que era apertada, quente, molhada, céu, terra,
estrelas e sóis, ao mesmo tempo. Seu grito ecoou para dentro de
uma boca de lábios abertos que engolia a sua. «Shhh... não grite,
meu menino...». Como se o desprendesse de um encaixe que ele
queria agora eterno, ela saiu tão sorrateiramente como entrou.
No dia seguinte, procurou por um olhar cúmplice, um sorriso
travesso, denunciador da afrodite faminta que o iniciara na escuridão
total. Nada. Todas as freiras moviam-se com sua costumeira
precisão, suas negras vestes deixando ver apenas rostos impassíveis
receberem o ar fresco da matinada translúcida e mãos obedientes se
unirem na Ave-Maria.
Foi dormir inquieto, um esperar dolorido percorrendo-lhe o ventre
incandescido, a que um raio pareceu atravessar quando ouviu o
estalido do trinco. Descobriu-se apenas a tempo para receber o peso
de um corpo roliço e farto, mais afoito e que, em vez de flor-docampo, cheirava a cravo-da-Índia.
Pelos próximos dezoito dias, o pequeno quarto rescendeu a um
perfume diferente, a cada noite. Flor-de-laranjeira, água-de-rosas,
lírio-do-vale, amêndoas-doces, jasmim-manga, gardênias-azuis,
violeta-da-serra, noz-moscada, numa sucessão, até a sequência ser
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completada com horas intensas em suaves curvas maduras que
exalavam patchouly. Completada pela primeira vez, porque, na noite
seguinte, o sabor de mulher em seus lábios misturava-se mais uma
vez com o leve odor de flor-do-campo.
Percebeu a barganha. Alimento, abrigo, ensinamento e proteção
cambiados por pequenas tarefas manuais durante o dia e
atendimento carnal no anonimato da escuridão. Achou o preço justo.
E deixou-se ficar.
Com o tempo e com as narinas aguçadas, ia conseguindo combinar
cheiros e nomes. Irmã Anastácia era “sândalo-bravo”, Irmã Clara era
“limão-verde”; conseguia identificar o patchouly da Madre Superiora
até mesmo no ar fino da missa matinal. E “flor-do-campo”, a freirinha
de rosto de biscuit flamengo que o recolhera da relva molhada,
chegou a inspirar-lhe uma silenciosa paixão.
Em meses, começou a notar que o ventre de algumas de suas
visitantes noturnas o empurrava demasiado e hábitos retesados na
cintura povoavam o silêncio contrito dos corredores. A sequência
agora abria claros. Mais alguns meses e bacias de água quente,
andares apressados e choro de recém-nascidos baralhavam, de
quando em vez, a rotina segura daqueles muros. Ninguém lhe dizia
nada mas, naquele outono, o Convento de Santa Aldegundes
entregou para adoção, como antes nunca, um excepcional número de
bebês “abandonados”.
Com o fim dos resguardos, a peregrinação noturna retomou sua
regularidade e os perfumes sua ordem. Havia certos cuidados agora
pois, antes da imersão naqueles paraísos escaldantes e úmidos,
sentia seu membro envolto com carinho e maestria no que parecia
ser uma pele suplementar. Mesmo assim, de tempos em tempos, a
sofreguidão impedia o cuidado, uma barriga ganhava alento e a
sucessão de corpos falhava alguns componentes florais.
Foram-se quatro anos. E então, numa delicada madrugada de maio,
o orvalho ainda depositando pérolas cristalinas na curvatura das
folhas dos agapantos, recolheu seus parcos pertences, roupas
cerzidas com preceito e amor, uma manta de lã rija, um embornal
meio-cheio de pães de mistura, uma réstia de paio de lombo e um
úbere de água fresca. Silenciosamente, destravou o cadeado que
abraçava as grades do imenso portão e, sem olhar para trás, partiu.
Andou sem rumo, os caminhos de quatro anos atrás haviam-se
empoeirado na memória, quase nada reconheceu desse mundo que
ficara de fora dos muros do Convento. E nem foi reconhecido. Seu
rosto era menino quando ali procurara abrigo; agora, uma barba
clara emoldurava a tez rija e a boca larga, os olhos esverdeados eram
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mais profundos, os cabelos cor de cobre mais longos. Crescera,
encorpara e aprendera. Suas mestras o haviam ensinado tudo o que
havia nos livros, nas pautas de música, nos mecanismos da natureza,
no comportamento da terra e dos animais. E todas as nuances, os
meandros, os ritmos e os cheiros, as carências e os gozos desse
intrincado feixe de sensações que se conhece como corpo feminino.
Só se deu conta que estava cansado quando a sombra das árvores já
se espichava pelo caminho de pequenas pedras, enfileirado de
sobreiros em cujos galhos uma revoada de tordos se recolhia com
imenso alarido. Ia deitar-se ali mesmo, mastigar sua parca ração.
Suas narinas treinadas na escuridão, entretanto, avisaram que além,
algures, não muito longe, alguém assava um chouriço e havia pão
fresco.
Era uma pequena estalagem. A porta que recebeu suas batidas fortes
rangeu nas dobradiças cansadas quando uma mulher jovem de
semblante afogueado a abriu. O cheiro da carne assada quase o
tonteou, uma tênue fumaça volteando até o teto baixo de madeiras
encardidas, o calor gostoso do braseiro abraçando seus músculos
mordidos pelo frio da pré-noite. Não precisou explicar que tinha
fome. Foi convidado a entrar apenas com os olhos; forasteiros era o
que de mais aportava nas toscas estalagens salpicadas nas margens
dos caminhos que varavam o Monte Sião.
Quando o largo prato de barro cozido chegou com o enchido ainda
crepitando, deitado numa generosa fatia de pão caseiro, desviou a
fome e explicou-se. Falou para a mulher que não tinha dinheiro, nem
eira, nem beira e nem pouso. Também não tinha raízes nem galhos,
árvore solitária levada pelo vento. A mulher olhou com alguma pena
para aquele rosto banhado em tristeza. «Sou estalajadeira, não sou
mãe do mundo», resmungou recolhendo o prato fumegante.
«Espere...», ele atalhou. «Posso trabalhar. Sei fazer de tudo um
pouco...» Ela parou, desconfiada. Depois, deu de ombros e recolocou
o prato em cima da mesa. «Coma. Depois veremos...»
Fartou-se de comer. A caneca de vinho começava a dar-lhe um torpor
macio quando ela voltou. Junto dela, o marido, a barriga dobrada em
cima dos calções de flanela, a camisa puída e a barba por fazer. Um
hálito de vinho azedo precedeu a voz roufenha. «Sabe fazer de tudo,
é? Então comece por limpar a sujeira deste salão e a bagunça da
cozinha. Depois, vá abancar-se lá na estrebaria. Amanhã
conversamos.»
O silêncio era profundo quando ajeitou umas palhas rançosas na
escuridão e deitou-se. Tentou pensar na vida que agora tinha pela
frente, mas o cansaço roubou-lhe a vontade. Sonhou que era um
anjo, mas um anjo sexuado, cuja nudez atormentava uma freirinha
que depois se transformava numa flor, que depois o cobria com suas
pétalas, que depois...
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Acordou com uma sinfonia de zurros, relinchos, balidos, roncos e
cacarejares. A natureza acordava com o primeiro toque de luz rosa a
tingir o céu. Seus companheiros de estrebaria reclamavam comida a
plenos pulmões, deduzindo com certeza animal que o humano ali
presente só poderia ali estar àquela hora para dar-lhes de comer. E
foi isso que ele fez.
Durante o dia, fez mais. Ajudou no enchimento dos odres de vinho,
acendeu o fogo dos braseiros, recolheu os penicos dos quartos, jogou
mais palha no buraco das latrinas, novamente alimentou os animais à
tarde, descascou as batatas, cortou as hortaliças, foi buscar água na
fonte. Quando as sombras começaram a entortar para leste,
aquietou-se, olhando o sol findar mais um dia de maio maduro. A
patroa apareceu na soleira da porta. «Venha cear». Sua voz era
macia e quente.
Sentou-se à ponta da mesa. O estalajadeiro já sorvia sua sopa com
estrépito. Esperou a patroa sentar-se e, baixinho, deu graças. O
homem mirou-o com espanto e voltou a enfiar a colher de pau na
boca deixando escapar um muxoxo. A mulher olhou para ele. Só
então ele notou que seus olhos eram de um mel claro, de que
pareciam ter absorvido a doçura suave. O odor da sopa de grãos com
cebola dominava suas narinas, mas, mesmo assim, conseguiu
distinguir com nitidez um cheiro de cio urgente.
Dois meses depois, o sol abrasava o relevo da campina que se
estendia como onda remansa pelos contrafortes do Sião. Maio
extinguira suas cores no mesmo dia em que a patroa fora com ele à
fonte e, a guisa de refrescar-se, levantara as saias mais de palmo
acima dos joelhos para molhar os pés descalços. Junho trouxera
chuva intermitente e assaz tímida para poder impedir a ida diária dos
dois buscar água. Iam à sexta hora e só voltavam pouco antes do
início da primeira vigília, ele cantarolando baixinho canções que
aprendera no convento, ela com um largo sorriso nas faces rosadas.
Agora era Julho e o sol queimava a viela de arbustos acabrunhados
que levava à fonte. Esperara por ela, mas ela não aparecera. Aliás,
pensou, havia dias que a patroa interrompera a rotina diária que os
atraía como poderoso imã para a nascente. Ele pegava a carroça e as
ânforas, ela levava alguma roupa para lavar. Já no caminho, o desejo
os sufocava, doía no ventre, secava a boca. Amavam-se ao sol, à
chuva e ao vento, para além do tanque, o marulhar do fio d´água
embalando seus gemidos e sussurros. Uma rápida saciedade permitia
intervalos para cuidar das tarefas que lhes serviam de dissimulação.
Depois voltavam, ainda impregnados do fruto proibido, a cantarolar e
a sorrir.
Ela surgiu na estrebaria depois que tudo se aquietara. «Você tem de
fugir», ela falou baixinho, como a temer o som de sua própria voz.
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Ele segurou as mãos dela. Ela continuou. «Estou prenha, meu sangue
não veio este mês. Meu marido de há muito perdeu sua força, vai
descobrir logo o nosso embuste. E nos mata». As últimas três
palavras saíram espremidas pelo medo. Ele passou os dedos pelos
seus cabelos. «Vem comigo...». Ela balançou a cabeça. «Não posso.
Seria um estorvo para você. Meu marido nos seguiria até o fim do
mundo». Agarrou-se a ele. «Vou inventar que você me atacou. Vim
aqui para ver os animais, você me segurou, rasgou minhas roupas e
abusou de mim. Assim, quando a barriga aparecer, haverá um
motivo». Dito isto, ela afastou-se, deu um forte puxão nas mangas
do vestido, arrebentou as costuras do corpete, tirou a fita que
prendia suas tranças. Depois pegou com cuidado um alforje de
sarapilheira amarrado numa vara. «Aqui você tem comida, roupas e
algum dinheiro. Vai dar para alguns dias». Olhou para ele com
ternura. Segurou seu rosto, deu-lhe um longo beijo na boca. «Adeus,
meu menino...» Quando ele ganhou a estrada, o céu fervilhava de
estrelas, mas ainda não havia lua. Naquele momento não dava para
ele saber, mas este seria o seu destino daí para a frente.
Iria ser jardineiro, tratador de animais, lavrador e capataz. Iria ser
menestrel, saltimbanco, arlequim e palhaço. Iria percorrer as
estradas do Sião fazendo uso do que aprendera e aprendendo com os
novos usos. Chegava procurando trabalho, oferecendo seus muitos
préstimos. E saia sempre sorrateiro, na calada da noite, alcovitado
por uma esposa resgatada de seu abandono conjugal, uma donzela
de curiosidade satisfeita, uma castelã liberta de sua solidão. Todas
com criança.
Parecia que a natureza resolvera compensar a debilidade geradora de
seus pais, que conseguira engendrar somente ele, dando-lhe não só
um apetite voraz como um sêmen pujante, capaz de fertilizar em
abundância o ventre daquelas que se rendiam ao seu encanto
natural. E eram muitas. Seu ar de menino abandonado, seus olhos de
súplica, sua destreza na descoberta dos segredos femininos e na
decifração de seus desejos, adquirida nos quatro anos de convento e
aperfeiçoada nos caminhos do Sião, inspiravam as fantasias mais
delirantes nas mulheres que, bastando somente um ligeiro
encorajamento ou a chance de uma oportunidade, decidiam torná-las
reais.
Assim, pelos muitos anos seguintes, ele foi espalhando sua semente
pelos férteis campos da região. Foi também deixando um rastro de
ira, uma coorte de maridos traídos, amantes enganados, pais
desonrados, prometidos despeitados. Uma multidão de passados para
trás sequiosos de vingança, um enxame de marimbondos
enraivecidos por terem descoberto que alguém roubara seu mel. E
esse exército de vingadores acabou por alcançá-lo no momento em
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que, mais uma vez, ele saia furtivo pela janela da mansarda de uma
elegante senhora fidalga cuja cintura começava a arredondar-se e a
quem servira como moço de câmera, confidente e arrimo em frias
noites de inverno.
Agarraram-no, manietaram-no, amordaçaram-no. Gritos de ordem
vinham de todos os lados. «Esfolem-no!», gritavam alguns maridos
alvos de chacota. «Garroteemo-lo», sugeriam pais ciosos de sua
honra. «Afoguemo-lo», reivindicavam namorados feridos em seu
orgulho. Vieram arrastando sua presa pelas vielas, uma multidão
aumentando a cada esquina, gente das janelas agitando os braços.
Logo, a vila era um turbilhão.
Ao chegarem à Grande Praça, pararam. Um disciplinado
destacamento de guardas reais alinhava-se com garbo ao lado de um
prelado ricamente ataviado, com um longo manto de reflexos
dourados e uma reluzente mitra a confirmar sua indisputável
autoridade . Enquanto a turba silenciava, sua voz ecoou, grave. «Este
é caso para o Santo Ofício».
---------------------------------Continuou olhando para a rua de terra molhada. A janela da
minúscula cela era sua única visão do mundo exterior. Ali estivera por
seis meses, enclausurado, enquanto se preparava seu momentoso
julgamento. O libelo de acusação estava sendo montado pela
Inquisição, a partir das acusações de centenas de cidadãos
ultrajados. A notícia de seu encarceramento caminhara célere pelos
vales da região, acendendo um rastilho de denúncias, confissões e
testemunhos. E uma instigante contabilidade tivera início. A
contagem da imensa prole gerada pelo “infame monstro do Sião”,
como o rotulavam os homens, ou pelo “gentil menino”, como
murmuravam as mulheres, apenas para elas mesmas. A batida na
porta foi seca. «Está na hora».
«Quinhentos e vinte e três! Qui-nhen-tos-e-vin-te-e-três!...» Um
imenso ooohh! reverberou pela Praça. O relator da Promotoria fez
uma pausa de efeito e olhou em torno. Da armação de madeira onde
estavam ele e o réu, podia ver os rostos da multidão em volta, os
edifícios imponentes que fechavam o imenso quadrilátero, as
escadarias do prédio principal onde se instalara o Rei e sua corte,
ladeados pelo poder clerical em suas vestes púrpuras e o poder
secular com suas couraças cintilantes.
A multidão voltara ao silêncio, contrita e mesmerizada pelo
espetáculo que trazia nobreza e Igreja para tão perto, para julgar a
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sorte de um homem que se tornara uma celebridade naquela região
tão pouco afeita a coisas extraordinárias. O inquisidor prosseguiu.
«Quinhentos e vinte e três filhos semeou este abjeto sátiro, este
emissário de satanás, este cavaleiro da luxúria nos ventres inocentes
de centenas de valorosas mulheres do Sião, subjugadas
covardemente pela força iníqua deste endemoniado. Quantas puras
donzelas, flores do nosso futuro, foram arrancadas de sua inocência,
quantas esposas honestas, esteio de nossos lares, foram assaltadas
em suas próprias alcovas pelo furor priápico deste monstro, este
Baco trazido à Terra, sem dúvida nenhuma, por Lúcifer em pessoa».
E a arenga continuou, horas a fio, cada vez mais virulenta. Da
multidão, só vozes masculinas se faziam ouvir, de vez em quando. «À
fogueira!», gritavam uns. «Ao garrote vil», exigiam outros. As
mulheres se conservavam em cerrado mutismo. O céu de poucas
nuvens começava a misturar o azul fresco da tarde com as mechas
rosadas do poente quando o acusador terminou.
«O Santo Ofício aqui termina seu caso, solicitando ao Poder Real do
Monte Sião que julgue o réu culpado pelos nefandos crimes que
cometeu contra a castidade de nosso povo e o condene ao Auto de
Fé. E que, nesta mesma Praça, seja ele levado ao fogo para expiação
de seus pecados».
Um coro de vozes grossas se levantou, espantando um bando de
andorinhas que voava em círculos na altura das janelas apinhadas de
gente. «Morte! Morte ao infame!» As mulheres, novamente, ficaram
mudas.
Um clarim soou. O arauto real deu um passo à frente.
«Há alguém que queira pronunciar-se em favor do réu?»
Só o barulho das andorinhas assustadas respondeu. De resto, o
silêncio. Sem esperar muito, o arauto voltou a falar.
«De acordo com os preceitos das leis inquisitoriais, este Tribunal
agora se desfaz. Sua Majestade irá deliberar com os juízes de sua
corte e a todos fará saber de sua sentença amanhã antes da primeira
vigília. Que o réu seja novamente recolhido ao seu confinamento na
Torre da Sé. Ide em paz»
Nos aposentos da Rainha, as aias esvoaçavam em torno dela,
começando a prepará-la para a noite. No amplo quarto, além da
cama ainda envolta pelas cortinas do dossel, havia três imensas
cômodas, uma delicada penteadeira, um lavabo com dois jarros de
cristal e duas bergères, numa das quais se sentava seu médico
particular.
«Não sei mais o que fazer, Majestade»
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Ela afastou abruptamente uma das serventes e ajoelhou-se diante
dele.
«Mas, tem de haver um meio, uma saída. Pela salvação do Reino, e
de mim mesma, eu preciso dar um herdeiro ao trono! Deve existir
uma maneira para que eu possa engravidar de meu marido.»
Com ternura, ele segurou as mãos dela.
«Conheço Vossa Majestade desde que nasceu. Já fiz todos os testes
que fui capaz de aprender nestes quarenta anos de exercício da
função de curar. E posso afirmar, minha Rainha. Não há nada de
errado com Vossa Majestade. A única explicação que se me apresenta
é a de que seu marido, o Rei, é estéril»
A Rainha deixou cair os braços em desalento.
«Isto ele jamais admitirá... A culpa pela falta de um sucessor para o
trono do Sião cairá sobre mim. E eu serei rejeitada. Trocada por
outra que será trocada por outra até que a verdade apareça. Mas, aí,
eu já estarei velha, deserdada...»
Neste instante, após uma suave batida na porta do quarto, a
camareira-mor entrou.
«Perdoe-me, Majestade. Eu tentei demovê-las, dizendo que a hora
era totalmente imprópria, afinal já estão para soar as badaladas da
segunda vigília, mas elas imploraram que querem falar com Vossa
Majestade. Dizem que é um assunto de vida ou de morte»
A Rainha levantou-se.
«Quem são elas?»
A camareira falou em tom baixo.
«São cinco. Conheço apenas duas. A fidalga D. Joanna do Lago e a
Madre Superiora do Convento de Santa Aldegundes do Monte Sião»
«E o que querem?»
«Não sei bem, mas acho que tem algo a ver com o julgamento do
Santo Ofício desta tarde e dizem que representam centenas de outras
mulheres...»
O sol brilhava com a força de cem fornalhas no céu quando soou a
hora terceira. Um fulgor, que parecia querer cozinhar os miolos e
incendiar as amendoeiras que acompanhavam o desenho redondo do
amplo Largo, castigava a multidão que se espraiava a partir dos
portões do Palácio. Sua mensagem era clara. Se sua impiedosa
canícula açoitava assim a Terra nestes últimos dias de primavera, o
que dizer do verão que se aproximava.
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Mas o povaréu, ali espremido e silencioso, parecia não se importar
com esse aviso. Como estivera no dia anterior na Grande Praça para
assistir ao espetáculo do Santo Ofício, agora ali estava para ouvir o
veredito régio. De repente, as andorinhas, que ontem esvoaçavam ao
som das vozes acusadoras e que se haviam transferido hoje para as
proximidades do Palácio, revoaram num círculo frenético, quando as
doze trombetas da Guarda Real anunciaram que era chegada a hora
da sentença. O arauto encaminhou-se garboso e solene para o
imponente arco que marcava a entrada do imenso castelo e,
desenrolando um comprido pergaminho, iniciou a leitura.
À medida que sua voz clara ia despejando o intrincado fraseado do
édito real, o povo ia percebendo que, embora as primeiras palavras
tecessem loas à sólida argumentação do Inquisidor, algo havia sido
informado ao Rei, algo que não estava evidente nem explícito na
construção da sentença, mas que havia determinado um giro de
cento e oitenta graus na orientação original.
Já se ouvia um certo espanto nas exclamações surdas e graves que
escapavam para o ar quente da tarde quando, terminados os
considerandos, a leitura chegou ao real veredito.
«Assim eu, Galgano I, Rei de Monte Sião pela graça de Deus e de
Todos os Santos, verificando que as nefandas ações imputadas em
boa-fé pelo representante do Santo Ofício ao réu não foram, à luz de
testemunhos dados sob a proteção de sigilo inviolável à Rainha por
pessoas de santa idoneidade e submetidas a juramento sagrado,
eivadas de abuso cruel ou de coerção de vontade alheia e, sim,
solicitadas por volição própria das complacentes vítimas e atendidas
de acordo pelo réu e considerando que, em eficaz e viril cumprimento
dessas solicitações, o réu proporcionou um salutar aumento da
população de Monte Sião, DECLARO o réu não só absolvido das
imputações a ele cometidas como o NOMEIO Eminente Vassalo da
Casa Real, com a incumbência de cuidar das cavalariças reais e ao
mesmo CONCEDO o título de Povoador do Reino. Registre-se nos
Anais e CUMPRA-SE»
Se se apurassem bem os ouvidos, ouvir-se-ia o zumbido de um
zangão que rodeava o fulgurante nariz do arauto. No mais, só o
silêncio, pesado nos homens como o martelo escaldante do sol a
pino, mas fresco como uma brisa primaveril no coração das
mulheres.
Dez meses depois, o mesmo Largo em frente ao Palácio apinhava-se
novamente. Desta vez, os sons mais vibrantes, os risos, os aplausos,
os votos de felicidade gritados e cantados a várias vozes, as
girândolas de fogos a espocar subiam no ar fino de uma clara manhã
de março. Da sacada, o Rei segurava nos braços, para que todo o
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Reino o visse, seu filho recém-nascido, herdeiro e futuro monarca. Ao
lado, ainda em resguardo, a Rainha sorria em triunfo.
Naquele mesmo instante, por via das dúvidas, o Eminente Vassalo,
carregando alguns poucos pertences em duas sacolas de couro forte,
esgueirava-se pela cancela das cavalariças e partia rumo à costa.
Dois dias depois, embarcava como ajudante de marinheiro num
galeão que partia rumo ao Novo Mundo.
Dizem que na Igreja Matriz da pequena aldeia de Los Niños, perdida
em algum lugar da América Central, atrás do singelo altar existe um
relicário. Lá dentro, protegidos por um vidro embaçado, se podem ver
um pênis e um par de testículos, enegrecidos pelo tempo. Ninguém
sabe dizer ao certo a quem pertenceram, mas corre a lenda que as
relíquias são de um ajudante de marinheiro que, vindo de além-mar
num galeão, ajudou na construção da vila e ali viveu por muitos
anos. E que todos os habitantes atuais dali e de algumas vilas
vizinhas dele descendem. Seu nome desapareceu na poeira, mas até
hoje se fala no El Gran Poblador de Los Niños y Cercanias...
Oswaldo Pereira
Novembro 2011
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CONVERSA NO THEATRO
Eu juro que é verdade.
Era o ano mágico de 2000. O mês era maio e eu resolvera dar uma
guinada em minha vida. Afinal, o ano ia quase à meio, e nada
acontecera. E eu não aceitava isso de bom grado – o ano era 2000,
poxa.
Desde pequeno, o número cabalístico incendiara minha imaginação:
“… 2000 passará, 2001 não passará…”. Seria o último ano da
humanidade, os derradeiros doze meses antes do Apocalipse e do
Juízo Final, a antessala temporal do encontro com o Criador. Tudo
teria de ser diferente nestes dias de despedida, de fim do mundo.
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Mesmo para quem não acreditasse mais nessa profecia, anunciada
por tias beatas e confirmada pelas empregadas que vinham de Minas,
como eu em minha incipiente adolescência, 2000 era o ano referência
da ficção científica que me chegava pelas histórias em quadrinhos.
Era o marco zero para as aventuras de Flash Gordon, de Brick
Bradford, para o advento da pistola de raios paralisantes, dos
automóveis voadores e dos edifícios de mil andares. Tudo seria
possível a partir dele, como tudo seria possível para mim no futuro
que eu pensava poder ver.
Vencida a adolescência, passou a ser o ano de fabricação de H.A.L., o
computador assassino imaginado por Arthur Clark e parido por
Stanley Kubrik. E o destino do trem expresso de Gilberto Gil, partindo
da zona norte carioca… E eu ainda achava que poderia ser até
astronauta, se assim o quisesse.
Aos poucos, foi deixando de ser tudo isto, seu sabor de mistério
perdendo o gosto na inapetência de meus anos maduros, sua
aproximação no horizonte revelando que sua fantasia não era tão rica
e deslumbrante e que seus adereços estavam mais para auxiliar de
harmonia do que para destaque de carro alegórico.
Mas dentro, cá dentro, eu ainda conservava a chama da crença. No
fundo, eu ainda cria na magia do número cheio, com três zeros, final
de século e de milênio, divisor de águas e de destinos. E cria, ou
queria crer, que a energia despertada à zero hora do dia primeiro de
janeiro de 2000, além de dar “pau” nos computadores de toda a
Terra, me apanharia com sua força magnética e mudaria para sempre
a rotina estúpida de minha existência medíocre.
As goelas dos imensos alto-falantes vomitaram a contagem
regressiva, os fogos da Avenida Atlântica espocaram, rodopiaram,
assobiaram, explodiram, dançaram sua coreografia candente e
colorida, a maré branca que inundava a areia confundiu-se num único
e grande abraço… e eu ali, sozinho no meio da festa planetária, fiquei
esperando o sinal da fortuna, a fisgada do inesperado, o choque
elétrico da revelação. Nada. Só o silêncio da decepção no meio da
alegria ensurdecedora de três milhões de pessoas. Dois mil nascera –
e nada mudara.
Passados cento e vinte dias, nascidos e morridos iguais, eu chegara
finalmente à conclusão de que se eu não ajudasse, o ano do número
mágico não conseguiria fazer nada por mim. “Quem procura, sempre
acha”, “ter sorte dá trabalho”, etc., etc…. Os adágios, os provérbios e
ditados, sumo concentrado da sabedoria do povo, empurravam sua
verdade: para que a sorte tocasse alguém, era preciso que esse
alguém criasse as condições mínimas para que isso acontecesse, que
se tornasse um campo arado, amainado, pronto para as sementes e a
chuva, um rádio receptor sintonizado na frequência correta para
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receber a transmissão da mensagem. Então, resolvi mudar minha
vida.
A primeira mudança foi importante: larguei o emprego. A rigor, já o
largara de coração, qualquer resquício de ambição ou interesse
soterrado há anos pelo peso burocrático da rotina emburrecedora de
preparar, dia após dia, relatórios de vendas, de conferir despesas de
viagem dos vendedores, preparar e arquivar correspondência
administrativa e aturar o mau humor constante do dono da pequena
empresa de venda de cosméticos que me pagava um salário de fome.
Só não o mandei àquele lugar porque não quis arriscar uma justa
causa.
A segunda foi ainda mais importante: acabei o meu “relacionamento”
com Valéria. Relacionamento entre aspas, mesmo. Nunca fora um
primor. Tínhamos “ficado” numa festa de amigos mútuos, depois de
nos conhecermos por anos. Mais até por insistência deles, que nos
achavam “feitos um para o outro”,” almas gêmeas” e outras
armadilhas que amigos costumam plantar nos terrenos escorregadios
das baladas e das mesas de bar. Nem no começo fomos consumidos
pelo ardor da paixão – foi um tesão que se espraiou depois de alguns
meses num marulhar calmo de uma amizade descolorida. Passamos a
morar juntos mais por economia de tempo gasto nos deslocamentos
para nos encontrarmos (ela morava no Cosme Velho, eu em
Botafogo) e de dinheiro nas saídas para comer. Alugamos uma sala e
quarto em Copacabana, Posto Três, quadra da praia. Com o passar
do tempo, o hábito e a rotina da vida a dois encobriu com seu musgo
macio qualquer iniciativa de mudar o roteiro. Filhos, nem pensar.
Assim, poucas dores de parte a parte foram sentidas no momento da
separação: uma simples e cansada partilha dos parcos bens comuns,
um olhar de enfado e um beijinho de “te cuida, tá?” na soleira da
porta que dava para o corredor cheirando a lixo.
Voltei para Botafogo sentindo-me novo, zerado, folha em branco no
livro da vida aberto para as primeiras letras de uma nova era, pauta
virgem para as primeiras notas da sinfonia intrigante do ano mágico.
Passei os primeiros dias limpando a mente do passado, fazendo dieta,
ouvindo música clássica, acordando com o nascer do sol, fumando
um baseado ao poente, lendo Nostradamus e Dan Brown, em pura
concentração a la bicho grilo. Agora, tinha de ser: junho entrara,
2000 chegava à metade.
Acho que foi no caderno “Boa Chance”. Um pequeno artigo expunha
as oportunidades de trabalho ligadas à área de viagens e tecia
algumas considerações sobre cursos de guia de turismo. Comecei a
ler desatento, mas o texto era agradável e tentava convencer das
reais possibilidades de uma carreira que estabelecia como
precondições um pouco de disposição e cultura, uma boa dose de
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gregarismo e uma fidelidade suíça aos horários – a técnica,
proclamava o jornal, viria das aulas, ministradas em programas de
frequência diária que se estenderiam por cinco meses. Avaliei-me em
relação aos requisitos; pelo menos em um deles, a pontualidade, eu
me considerei enquadrado. Nos outros, batia na trave. Mas a minha
quase fluência em Inglês, considerada um indiscutível plus pela
matéria paga, me convenceu. Uma semana depois, me matriculei. No
final de julho, já tomara gosto pelo assunto. Era talvez o aluno mais
interessado de meu grupo, sempre cumprindo com esmero as
tarefas, tirando boas notas, sempre presente às aulas. Tenho a
impressão que foi como prêmio de incentivo que me indicaram para
um estágio no Theatro Municipal, como guia para visitantes.
Desde pequeno, eu amava o velho teatro. Havia subido os
imponentes degraus da entrada ainda menino, com seis ou sete anos,
pelas mãos de meu pai, que adorava ópera. Lembrava-me da
imensidão das grandes portas, a profusão dos mármores, o
encantamento das luminárias, o “chique” das gentes, tudo
aumentado pelo meu enfeitiçado olhar de criança. Nunca mais voltara
a entrar ali, meu pai morrera logo após a minha primeira temporada.
Mas as imagens tinham ficado gravadas no seio de minhas
lembranças mais queridas, como um tesouro de luz e sons – toda vez
que passava pela Cinelândia, fazia uma reverência mental à sua
fachada. Topei logo o convite, e foi com um respeito beirando a
veneração que me apresentei para o primeiro dia de treinamento.
A administradora do Teatro veio em pessoa nos dar as boas-vindas.
Ela queria profissionalizar o serviço de visitas guiadas, por isso abrira
este programa de estágio para os melhores alunos dos cursos de
turismo. Durante a primeira semana iríamos conhecer profundamente
a casa, aprender sua história, percorrer todas as suas entranhas,
estudar sua arquitetura, memorizar todos os seus detalhes
decorativos, saber na ponta da língua o nome dos autores e os estilos
de todas as suas obras de arte. Eu estava deliciado; era como
reencontrar um velho e querido amigo, sentar com ele numa mesa de
bar para ouvir de sua vida, de seu passado, de seus amores.
E assim, foi com fervor religioso que desci até onde as 1.184 estacas
de madeira seguram a estrutura do prédio desde o alvor do século
vinte, ainda semi mergulhadas no lençol freático que por ali corre e
subi até onde a harpia acobreada abre suas asas de metal sobre a Rio
Branco e a Cinelândia. E que pisei no palco escuro e histórico, andei
por cima e por baixo dele, desvendei as técnicas de mise-en-scène da
monumental caixa cênica, apoiadas em pontes, elevadores e varas de
cenários, vindos da Inglaterra em 1904; que percorri os camarins, as
salas de ensaio, a plateia, os balcões, os camarotes; que palmilhei o
mármore do vestíbulo e fui inundado pela luminosidade colorida dos
vitrais do foyer.
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Munido da apostila que nos haviam distribuído, fui identificando,
durante a semana do treinamento, as sutis características de cada
pormenor, tentando ligá-los a referências históricas, procurando
entendê-los dentro de uma perspectiva temporal que cobria um
século. Tentei ver o hall de entrada no dia da inauguração, em julho
de 1909, as carruagens se misturando com alguns automóveis, o frufru das saias longas e rodadas, os chapéus imensos das mulheres, as
barbas e as cartolas dos gentlemen, entregando com gestos
superiores seus ingressos aos porteiros de libré. Fiquei por mais de
uma hora, sentado sozinho na penumbra da plateia, imaginando o
pano de boca sendo levantado para revelar Caruso no palco vestido
de Duque de Mântua; Toscanini virando-se para o público que o afoga
no fragor das palmas; Eliseu Visconti olhando para cima e
supervisionando a colocação de suas pinturas no teto.
No último dia do treinamento, fizemos a prova de visita simulada. Eu
sabia tudo: que o Teatro custara dez vezes mais que o estimado, que
haviam sido empregadas mais de mil e quinhentas toneladas de
mármore e que o ônix verde estava extinto, que o foyer e o vestíbulo
reuniam um dos mais completos exemplos ainda preservados de puro
estilo art-nouveau, que Olavo Bilac discursara na noite inaugural, que
o lustre central pesava 500kg, que as pinturas das rotundas eram de
Henrique Bernardelli e de Rodolfo Amoedo, que a caixa de ventilação
ainda era a original, que o Restaurante Assírius estava
lamentavelmente fechado, que o prédio passara por sete reformas e
que sim, era verdade, havia fantasmas no Teatro…
Na segunda-feira seguinte, às 11 da manhã, ali já estava eu, no
saguão da entrada da Rua Manuel de Carvalho, vestindo orgulhoso e
excitado a minha t-shirt azul-marinho, com o emblema dourado no
peito, o T e o M entrelaçados, cercados por folhas de acanto. As
primeiras visitas foram duas senhoras de Minas. Embora o tempo
estimado do tour completo fosse de quarenta minutos, uma hora
depois eu ainda as inundava de informações, demorando na descrição
de como era feita a limpeza anual do lustre central, com suas cem
lâmpadas, promovendo uma competição entre as duas para ver quem
era capaz de identificar mais personagens no pano de boca, contando
histórias como a do dia em que Sarah Bernardt quebrou a perna
numa queda desamparada no último ato da Tosca. Ao saírem, as
mineiras foram rasgar elogios com a coordenadora do estágio. Um
sucesso.
Entusiasmado, fui refinando minha técnica. Mal podia esperar para ir
trabalhar; embora a escala de guias me alocasse as segundas,
quartas e sextas, passei a ir também às terças e quintas. Decidi-me
aprofundar cada vez mais nos detalhes artísticos, nos pequenos fatos
saborosos que procurava garimpar sobre o Municipal, recolhidos em
conversas com os mais antigos empregados da casa, num comentário
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publicado em alguma revista antiga e os usava, com boa dose de
interpretação própria, nas minhas “apresentações” aos visitantes.
Sim, porque minha atuação como guia já há muito deixara de ser
uma simples visita guiada e transfigurara-se numa verdadeira
encenação, temperada de toques teatrais, dissertações comoventes e
cheias de drama. Dependendo do tamanho, do interesse e até da
nacionalidade do grupo que acompanhava, eu avivava alguns
pormenores, subtraia outros, estendia-me mais aqui ou ali nos
esclarecimentos. Montara um pequeno dicionário particular, para
saber de cor que corrimão, em inglês, era bannister, que lustre, em
espanhol, era araña, que, em francês, pano de boca era panneau de
scène e em italiano claraboia era occhio di luce. Aos poucos, fui
ficando conhecido pelas agências de viagens; a visita ao Theatro,
guiada por mim, passou a ser um item do pacote turístico da ida ao
centro histórico do Rio. Era a fama; pequena, mas era. E assim,
pensei eu, o ano mágico, finalmente, dera-me seus presentes: um
texto dramático, um palco e uma plateia. Mas a verdadeira magia
acabaria acontecendo numa noite chuvosa do início de setembro.
Desde o mês anterior, eu já fora convidado pela Coordenação para
trabalhar nas soirées. Dependendo da natureza do espetáculo concertos, recitais de canto, apresentações da Sinfônica – eu deveria
estar sempre a postos para fornecer informações sobre a função da
noite e, evidentemente, sobre o teatro, a quem as solicitasse.
Normalmente, isto era feito nos momentos que antecediam o início
da sessão. Eu me postava próximo aos primeiros degraus da escada
principal e ali respondia aos mais interessados, geralmente as
velhinhas das vans, como os outros empregados as chamavam. Eu as
adorava; era mais uma oportunidade de mostrar minha insuperável
didática e meus dotes de entertainer. Quando as luzes do saguão
começavam a diminuir e a campainha para o descerrar das cortinas
do palco soava, eu me despedia e ia embora.
Nessa noite, entretanto, eu resolvera ficar. Era a primeira récita da
Traviata. Desde que meu pai falecera, há cerca de quarenta anos, eu
nunca mais assistira a uma ópera ao vivo. Mas o encantamento que
ele me repassara, o fervor reverencial com que se preparava para
assisti-las, a degustação de olhos fechados que fazia ao escutar
contrito e deliciado as arias de sua preferência me tinham marcado
para sempre. A vida e outros interesses me haviam desviado desse
fervor musical. Mas, nessa terça-feira enfarruscada, o Municipal me
oferecia de graça a oportunidade do reencontro – eu não podia
perdê-la.
Conforme permitido pela Direção do teatro, assim que a iluminação
da plateia começou a diminuir, escolhi uma poltrona vazia no lado
direito do balcão simples e deixei o frisson das primeiras notas da
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orquestra, flutuando no escuro etéreo da sala, eriçar de leve os
cabelos da minha nuca.
A abertura da Traviata tem início só com os violinos, lentos,
plangentes, como a chorar por alguém; depois, levantam o tom,
talvez numa procura e, suportados pelos compassos das outras
cordas e das madeiras, prenunciam a trama de amor oscilante entre
a frivolidade e a honra que irá começar quando o pano subir. Quando
ele subiu, eu estava nos salões de Violetta Valéry, em plena Paris de
1850 e todo o meu fascínio pelo mundo encantado do bel canto
voltara.
Foi com a respiração suspensa, olhos e ouvidos abertos, sem me
mexer na poltrona, como se estivesse ao lado de algum convidado da
festa mundana que se desenrolava lá embaixo no palco, que vivi o
primeiro ato, sentindo quase que na pele a revelação avassaladora do
amor, “croce e delizia al cor”, cruz e delícia ao coração, que explode
espontâneo entre a cortesã e Alfredo Germont. Nos dois atos
seguintes, fui mantido na mesma contrição pelo pedido angustiado de
Giorgio Germont, suplicando em segredo para que Violetta
abandonasse o filho, a decadência física e financeira dela, o ciúme
irracional de Alfredo, a descoberta final do desencontro e do sacrifício
em nome de um amor impossível, a sua celebração terminal no
momento da morte da heroína, “o mio dolor”, que todos cantam
enquanto o pano desce.
Continuei, estático, sentado na poltrona, ouvindo as palmas, os gritos
de bravo! bravissimi!, as curvaturas dos cantores, as corbeilles
entregues à soprano, o maestro convidando, num gesto elegante, os
músicos a levantarem-se para receber a homenagem do público.
Como eu amava tudo isto; por que me privara disto durante tantos
anos?… Permaneci no meu lugar, incapaz de me mover, fechando os
olhos, tentando preservar as imagens do espetáculo, guardar os
maravilhosos sons que ouvira, conviver mais um pouquinho com eles,
saboreá-los, degustá-los…
E foi assim que adormeci.
Quando acordei, ainda levei segundos pensando que dormia
encolhido num sofá velho que tinha em Botafogo; mas aí, me dei
conta de onde estava – o silêncio profundo, a escuridão quase
absoluta, o cheiro de tecido velho, o frio me confirmaram: eu havia
ficado no Municipal! Levantei com cuidado e, procurando não tropeçar
no negror quase total, fui-me orientando e tentando organizar meus
pensamentos. Não era difícil compreender porque me haviam deixado
ali – o Silveira, que era o encarregado de acompanhar o
esvaziamento da sala, se me viu sentado na poltrona, deve ter
imaginado que eu depois me retiraria antes do fechamento do teatro.
Não deve ter percebido que eu adormecera.
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E agora? Nessa época, aparelhos celulares eram caros e eu não
pudera ainda comprar um. De qualquer maneira, sabia que havia
telefones fixos na sala da administração, na portaria dos fundos, na
cantina. Mas, ligar para quem? Acordar alguém no meio da noite para
pedir que me viesse resgatar era demais para meu amor-próprio,
além de arranhar para sempre meu conceito de guia modelo; eu não
me exporia de maneira nenhuma a esta vergonha. O jeito era
aguentar até o amanhecer e, quando as primeiras empregadas da
limpeza começassem seu trabalho matinal, esgueirar-me sem ser
visto e sair.
O problema era o que fazer até lá. Fui caminhando com cuidado pelo
estreito vão entre as poltronas; subi o intervalo da escada e tentei
abrir a porta que dava para o corredor de circulação do balcão
simples. Como eu esperara, ela estava só encostada. Empurrei-a e
ganhei o corredor, que também estava um breu.
Não sentia medo. Por mais que um centenário teatro vazio, à noite e
na escuridão, possa encerrar de tenebroso, e o Municipal já inspirara
dezenas de relatos de assombrações e acontecimentos sobrenaturais,
eu estava tranquilo. Desde jovem, eu descobrira que minha
capacidade para ver fantasmas era nula. Um espírita amigo meu me
classificara como um receptor desligado para almas do outro mundo,
uma antena fora de serviço para captar manifestações paranormais.
Eu até fizera a prova disso, uma vez em Minas, ao ir, com um primo,
passar a noite numa casa abandonada, tida como mal-assombrada.
Depois de ficar até o sol raiar jogando cartas, fumando e bebendo
cerveja, saímos sem que uma única visão, um único estalido suspeito
nos molestasse. Desta maneira, era totalmente improvável que me
fosse dado ver o maestro Villa-Lobos sentado no camarote 02 do
segundo piso, Getúlio Vargas e seu charuto entrando na saleta de
espera do elevador privativo ou a ninfa branca das Oreadas descendo
a flutuar do teto.
O que sentia, mesmo, era fome. Fui caminhando pelo corredor, me
lembrando de que, debaixo da escada principal, lá no nível da plateia,
ficava a bombonière do “seu” Ailton, na qual ele vendia, sempre com
um bom humor impecável, as caixinhas de bolinhas de passas
cobertas de chocolate, as jujubas, os amendoins crocantes e demais
delícias que eram uma das marcas registradas do teatro. Meu
estômago deu uma volta de ansiedade. Apertando o passo na
velocidade que o escuro me permitia e o conhecimento que tinha dos
caminhos me franqueava, desci as escadas laterais que ficam junto
do elevador com a boca enchendo de água. E aí, ouvi vozes.
Parecia um sussurro, mas, distintamente, eu ouvira vozes femininas.
“Será que já são as faxineiras?”, pensei. Mas, tão cedo. Resolvi
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esquecer a vergonha de ser descoberto. Chamei: «Alôo… Tem alguém
aí?...» E, nitidamente, escutei: «Chuut!... il y a quelq´un…»
A voz vinha do saguão de entrada. Eu já estava nos últimos degraus
do lance que dava para o corredor ao lado da escada principal.
Sentindo a contragosto um calafrio em ondas bulindo com as minhas
costelas, fui avançando junto da grande mesa onde ficava a maquete
do teatro e, quase tropeçando na passadeira que desce para o
vestíbulo, passei entre as duas luminárias de Raoul Verlet e fui para a
rotunda do lado esquerdo. Nada. Ninguém. Tateando, procurei um
interruptor que sabia ficar perto do aparelho de TV, ali colocado para
transmitir as imagens do palco para os retardatários. Acendi. As luzes
das estátuas de Verlet, de Kipli Moreau, das rosetas centrais do teto e
das cúpulas em vidro “manga rosa” se iluminaram.
Lentamente, passo a passo pelo hall de entrada, olhei em volta.
Nada. Ninguém. Tudo estava imóvel, como convém a estátuas,
luminárias, pinturas e demais inanimados que se prezem. Tudo no
lugar: as dançarinas ebúrneas, as deusas marmóreas, as flores
metálicas. Tudo como sempre havia estado, como as formosas
cabeças em bronze, encaixadas no mármore verde das volutas do
arremate da escada principal, cada uma olhando para um la…
Não estavam! Fechei os olhos e os abri de novo, querendo apagar o
improvável. Mas, o improvável continuava existindo: as cabeças não
estavam, como sempre, olhando cada uma para um lado do saguão –
elas estavam olhando UMA PARA A OUTRA!
O calafrio havia-se transformado num tiritar de inverno, a nuca e a
espinha acariciadas por uma enorme pedra de gelo. Só por um
comando poderoso do cérebro, consegui despregar os pés do mosaico
veneziano do chão e fui-me aproximando. Devagarinho, as pernas
ainda meio bambas, me dirigi para a cabeça que ficava à esquerda. A
luminosidade do vestíbulo chegava abatida ao pé da escada principal,
mas dava para examinar o rosto forte, e ao mesmo tempo delicado, o
nariz clássico, a boca de lábios cheios, o pescoço firme, os cabelos
apanhados e encimados por um enfeite distintamente art-nouveau
como convinha a uma mulher jovem do fin de siècle, eternizados no
bronze. Desde meus primeiros dias no Municipal, estas duas figuras,
idênticas e engastadas nas rebuscadas volutas esverdeadas, tinhamme atraído por sua beleza serena; quando me postava ao lado do
corrimão para atender às indagações das velhinhas das vans, tinha a
sensação que elas prestavam atenção ao que eu dizia e, imaginação
minha, pareciam aprovar o que ouviam. Devaneios, pensava então.
Mas, seriam?...
Aproximei-me mais um pouco, rezando por uma explicação lógica,
algum indício de que elas poderiam ter sido giradas por alguém de
extraordinária força, um serviço de manutenção que as tivesse
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deslocado de seu encaixe. Mas não; chegando bem perto, conferi que
o engaste no mármore estava perfeito. Então, uma voz melodiosa e
quente soou atrás de mim:
«Por favor, não conte isto para ninguém…»
Com o coração embaralhando várias batidas e sentindo as pernas se
recusarem a segurar o resto do corpo, virei-me. O rosto gêmeo do
outro lado me olhava. Me olhava, sim! Em lugar do amarelo metálico
das córneas, duas íris, azuis como águas marinhas me fitavam,
curiosas.
«Desculpe, não queremos assustá-lo. Mas é que também nós
estamos assustadas. É a primeira vez que alguém nos surpreende…»
Tentei falar alguma coisa, mas nada saía. Fiquei ali, tartamudeando a
procura da minha voz, abrindo e fechando a boca como um boneco
articulado cujo ventríloquo ficou mudo. A cabeça continuou:
«Por favor, não tenha medo. Precisamos todos acalmarmo-nos…» E
respirou fundo.
«C´est le garçon qui fait le guide…», a outra figura falou.
A que me olhava girou o rosto na direção dela:
«Chloris!...», e virando-se para mim: «Perdoe minha irmã. Está há
quase cem anos no Brasil e ainda tem esta mania de falar francês…»
E acrescentou, inclinando o pescoço para me ver melhor: «É
verdade… você é o rapaz que dá aulas sobre o teatro aqui na
entrada. Gostamos muito de ouvi-lo…»
Finalmente, minha voz voltava:
«C-como é possível?...», balbuciei.
A cabeça voltou a suspirar:
«Bem… é uma longa história. Mas, se você tem tempo… Sente-se…»
Obedeci, agradecido por poder dispensar minhas pernas da arriscada
missão de me manterem em precário equilíbrio, e me acomodei no
terceiro degrau da escada, bem no meio, de modo a poder ver bem
os dois rostos que agora se voltavam para mim com nítido interesse.
A cabeça do lado esquerdo, a que primeiro examinara e que agora
sabia atender pelo nome de Chloris, também tinha adquirido “olhos”,
verdes como esmeraldas. O meu medo começava a ser substituído
por uma imensa curiosidade; um suave bem-estar me invadiu, como
nos momentos que antecedem a ouverture de uma ópera. A “irmã”
de Chloris prosseguiu:
23
«Em primeiro lugar, permita que me apresente: meu nome é Flidais,
que é o nome de uma ninfa dos bosques. Minha irmã é Chloris, ninfa
das flores. Nomes ultrapassados, sem dúvida; no início do século,
entretanto, eram grande moda em Paris. Por isso, talvez, os tenham
escolhido para nos batizar. “Nascemos”, por assim dizer, há exatos
cem anos.»
A voz de Flidais era extremamente agradável, um contralto
modulado, elegante. Sua boca movia-se naturalmente, dando a
perceber dentes brancos como marfins por entre o bronze dos lábios.
«O escultor que nos criou era um rapaz pobre, mas extremamente
talentoso. Saíra muito jovem de Saint-Benoît, uma vila perto de
Poitiers, e viera para Paris. Seu pai o expulsara de casa, ao descobrir
que o filho se recusava a aprender o métier de sapateiro, que por
gerações distinguia sua família, e teimava em ser artista. Seu nome
era Antoine LeSoulier. Na Cidade Luz, para sobreviver, varreu ruas,
vendeu verduras no Les Halles, serviu em bares. Mas Paris, no final
do século XIX, era um epicentro de criação, com centenas de
gabinetes de pintura, escolas de música, teatros experimentais,
ateliês de escultura, pelos quais um enxame de aspirantes e
aprendizes revoava em busca da glória. As margens do Sena, as
esplanadas da Île de la Cité, as vielas de Montmartre, as praças de
Montparnasse eram salas de exposição a céu aberto, uma exaltação
permanente de todas as formas de arte. Logo, logo, LeSoulier
encontrou abrigo para seu talento, num pequeno galpão semi
escondido entre velhas mansardas da Avenida Clichy. Ali, numa
decrépita meia-água, habitava um obscuro mestre conhecido
Martignac-le-Vieux. O velho Martignac morava com a filha no sótão e,
no rés do chão havia montado um modesto ateliê, onde trabalhava e
dava aulas de escultura a estudantes pobres. Naquele Outono ríspido
de 1899, Martignac estava preocupado. Depois de meses sem receber
uma única encomenda, e tentando sobreviver apenas com a miséria
que ganhava com as aulas e os trocados que sua filha recolhia
posando nua para pintores iniciantes, enfim um pedido lhe havia sido
feito: a confecção de duas cabeças em bronze para o salão de festas
de um nouveau riche americano. Sua preocupação advinha da
recente constatação que fizera: a impiedosa artrose com a qual
passara a conviver desde os quarenta anos o havia finalmente
aleijado – não era mais capaz de dar vida à argila, de cinzelar o
mármore, de talhar madeiras. Mas o comissionamento das peças
vinha de Albert Guilbert, que há algum tempo fora seu aluno e era
agora dono de um renomado bureau d´art, e representava dinheiro
bastante a garantir lenha, comida e alguns cobertores novos para
arrostar o inverno que se prenunciava.»
Flidais fez uma pausa.
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«Estou falando demais, não?...» Chloris aproveitou para arrematar:
«Précisement… Você sempre fala demais… Desculpe minha irmã,
monsieur…»
Eu estava simplesmente extasiado. O medo desaparecera
completamente; e, junto com ele, também o estranhamento de estar
conversando com duas cabeças de bronze num teatro às escuras.
«Não… por favor, continue…»
Flidais deu um meio sorriso de agradecimento e prosseguiu:
«Então foi que o jovem LeSoulier apareceu. Quase suplicando, pediu
a Martignac que o aceitasse como aluno, em troca de qualquer
serviço que pudesse prestar, desde limpar o rés do chão no final do
dia a levar recados, fazer compras, remendar coisas. Deve ter sido
seu olhar intenso, seu rosto marcado pela fome, a urgência de seu
discurso que convenceu o velho professor.
Rapidamente, seu talento foi surgindo. Martignac, entusiasmado com
a rapidez com que seu novo pupilo absorvia tudo o que lhe era
ensinado, resolveu dedicar-se a lhe transmitir tudo o que sabia; ele
seria a sua energia, que a idade havia escamoteado, as suas mãos,
cuja magia a doença roubara. E, com o Outono já desnudando as
árvores com seu vento cruel, decidiu encarregá-lo da encomenda que
recebera de Guilbert. LeSoulier passou dias desenhando esboços para
o rosto feminino que iria esculpir. Pesquisou quadros antigos,
litografias de revistas mundanas, andou pela cidade à procura de um
modelo inspirador. Nada parecia impressiona-lo o suficiente para
compor a figura de sua primeira obra. Então, ele viu Sophie. A filha
de Martignac saía de casa para mais uma sessão de pose; LeSoulier
voltava de suas perambulações pelas ruas. Era a primeira vez que se
encontravam; suas rotinas diversas os haviam mantido ignorantes da
presença de ambos na meia-água da Avenida Clichy. A beleza da
moça abalou o jovem aprendiz. Ficou ali, parado, enquanto ela se
afastava, sem olhar para ele. Era ela! Era aquele o rosto de que
precisava para criar suas peças. Esperou-a chegar à noite. E com o
mesmo fervor febril que impressionara Martignac ao suplicar uma
vaga no ateliê, conseguiu convencer Sophie a posar para ele. Durante
quase quinze dias, LeSoulier trabalhou a argila, em adoração ao seu
modelo, correndo os dedos pelo barro e imaginando que os estava
deslizando na pele de sua amada, totalmente dominado por uma
paixão avassaladora. Sophie sentia-se lisonjeada por saber que seria
perpetuada no bronze; seu pai maravilhava-se com a perfeição do
trabalho. Quando o molde ficou pronto, num momento em que
estavam sós, LeSoulier aproximou-se dela e falou do vendaval de
amor que lhe fustigava o peito. Um pouco indecisa, mas frívola e
coquette, Sophie permitiu-lhe os primeiros avanços. Na semana
25
seguinte, ele desdobrou-se em sua obra, fez uma primeira cópia em
gesso, corrigiu alguns detalhes, fez outra cópia. Quando achou que
estava pronto, aplicou com cuidado a cera na face interna do molde e
preparou-o para a fundição. O raio de esperança que julgara ver nos
sorrisos ligeiros dela, nos apertos de mão, no beijo furtivo que já
roubara acendia mais ainda o fogo de seu amor alucinado. Ele mesmo
atravessou meia Paris para levar o molde ao fondeur. E lá ficou, um
dia inteiro, até que as duas cabeças, cópias perfeitas do rosto mais
lindo que já vira, reluzissem com seu brilho metálico. Quando as
trouxe de volta para o ateliê, era noite. Noite de Natal. Martignac,
encantado com a qualidade do serviço e imensamente agradecido ao
seu jovem aluno, resolveu comemorar. Abriu algumas garrafas de
vinho, enquanto Sophie preparava a ceia. A bebida levou logo o velho
escultor para a cama. Os dois mais jovens ficaram sós. LeSoulier
acercou-se dela, agarrou-a com força e pediu-a em casamento. Mas
Sophie tinha outros planos para sua vida, que certamente não
incluíam viver ao lado de um aprendiz pobre. A recusa desnorteou
LeSoulier. Nos dias a seguir, destilava sua amargura silenciosamente,
dando os retoques finais na obra, enlouquecendo aos poucos toda vez
que ela saia para ir posar, sem lhe dirigir palavra. Em sua mente
retorcida pelo despeito, foi-se avolumando o desejo sinistro de que
ela teria de ser sua – ou de mais ninguém.»
Flidais suspirou novamente, seus olhos pareciam tristes.
«Todo o mundo sabe como estas histórias acabam. Na véspera do
Ano Novo, Sophie mais uma vez saiu, ignorando LeSoulier. Ele
seguiu-a até um pequeno sobrado de Montmartre. Ficou do outro
lado da rua, remoendo seu desgosto na noite gelada, esperando ela
sair. Iria fazer sua investida final – não suportava mais a ferroada da
solidão, a tortura do desprezo. Meia-noite chegou; era 1900. Sons de
música e risos filtraram pelas janelas do prédio e chegaram até ele;
Paris inteira parecia cantar e rir. Não aguentou mais. Atravessou a
rua, forçou porta e entrou. Era um estúdio, com telas, banquetas,
cavaletes espalhados numa grande sala. No centro, rodeada por uma
meia dúzia de homens bem vestidos que a acompanhavam com
palmas, assobios e olhares lascivos, Sophie dançava completamente
nua. Quando ele deu por si, os homens o agarravam, tentando tirarlhe a faca rubra de sangue, enquanto ele olhava o corpo desfalecido
dela, a brancura da pele pintada de carmim desde os seios até o
ventre. Com a força do desespero, desvencilhou-se e fugiu noite
adentro. O redemoinho veloz que agitava sua mente ordenava-lhe
agora que voltasse à Avenida Clichy e destruísse as cabeças. Já
matara a musa que as inspirara; agora queria eliminar seus traços,
sua memória. No rés do chão, encontrou Martignac. Pressentindo a
tragédia, o velho mestre tentou impedi-lo; LeSoulier, ensandecido,
esfaqueou-o. Ouviu gritos que vinham de fora e anunciavam a
chegada iminente de seus perseguidores. Sem muito tempo para
26
agir, derrubou o fogareiro aceso e foi ateando fogo à casa. Com as
labaredas começando a consumir os toscos móveis, as bancadas de
trabalho e se aproximando da pequena dispensa onde guardara as
peças, ensopou o corpo com meia lata de diluente e deixou-se
imolar.»
Fez-se um breve silêncio. Eu estava comovido:
«Que coisa horrível…», comentei.
Foi Chloris quem retomou a narrativa. Sua voz não tinha a melodia
de Flidais; era mais seca, carregada nos erres como cabe ao sotaque
francês:
«Foi então que algo mágico ocorreu: nós ganhamos vida! De dentro
da dispensa, começamos a gritar a plenos pulmões. Os primeirros a
entrrar no prrédio em chamas correram para lá, pensando tratar-se
de pessoas em perrigo. Não devem ter entendido nada ao
depararrem-se com duas efígies inanimadas – nós já havíamos
retornado ao nosso mutismo de brronze. De qualquer maneira,
resgatarram-nos e nos levarram para o bureau de M. Albert Guilbert.
Guilbert guardou-nos em seu depósito; o milionárrio amerricano
desistirra da compra, ao saber da desventurra de Martignac.
Enquanto lá estivemos, a centelha de vida que brilharra na horra do
incêndio não se manifestou outra vez. Passarram-se alguns anos.
Quando abrimos os olhos novamente, já estávamos aqui, engastadas
nestas volutas de mármorre verde. Era a noite de treze de julho de
1909 – vésperra da inaugurração do teatro. Desde então, vimos
administrando esta rotina: enquanto há gente por perto, mantemos
nossa pose de estátuas, olhando cada uma para seu lado, emborra
possamos ver e ouvir o que se passa em torno; à noite, quando não
há vivalma no teatro, readquirrimos nossos movimentos.»
Eu continuava estupefato; isto não podia estar acontecendo – mas,
estava! Queria saber mais, muito mais:
«Mas, como é que vocês explicam isto?... este fenômeno, milagre, ou
qualquer outra denominação que queiram dar?»
Flidais respondeu:
«Já discutimos muito sobre este assunto. Talvez a morte tão trágica
do nosso criador tenha alguma coisa a ver com isso, pois foi no exato
momento em que ele se consumia nas chamas que a energia da vida
entrou em nós; talvez a circunstância da proximidade de nossa
própria destruição pelo fogo tenha captado esta energia. Pode ter
sido também o sortilégio dos anos cheios que tenha operado esta
magia.»
A menção me pegou de surpresa:
27
«Sortilégio dos anos cheios?...»
Flidais continuou:
«Sim! Todos os anos que têm mais de um zero carregam em si um
enorme poder transformador, uma força de mudar destinos, de iniciar
e por fim a ciclos, de realizar profecias; são os grandes anos dos
bruxos, dos magos, dos profetas. Quando LeSoulier provocou o
incêndio, nascia o ano de 1900.»
Fiquei olhando para ela. O que havia acabado de dizer batera fundo;
eu passara os últimos nove meses tentando captar os eflúvios
magnéticos do ano 2000, procurando desesperadamente crer que
eles poderiam, e deveriam, mudar minha vida. Chloris perguntou,
séria:
«Pourquoi? Você não acrredita?»
Como não acreditar? Aqui estava eu, em pleno colóquio com dois
legítimos fantasmas, achando normal, e imensamente agradável,
ouvir histórias da boca de duas alegorias fundidas há mais de um
século em Paris. Expus-lhes, então, todas as minhas angústias, as
minhas esperanças, o meu passado, o meu presente, o que sonhava
como meu futuro. Abri meu coração, como talvez jamais antes fizera
com seres reais.
Foi Flidais quem falou:
«Meu caro rapaz. Como você pode ver, não temos corpo. Portanto,
não temos coração. Certamente por isso, não temos ansiedades, nem
esperanças ou desesperanças, tristezas ou depressões. Do contrário,
ser-nos-ia impossível conviver com realidade de estarmos
eternamente presas aqui. Mas, apesar de sermos só cabeça, temos a
capacidade de entender sentimentos nobres – como o amor. Afinal,
foi ele, numa de suas formas mais violentas, que desencadeou todo
este drama.»
Seus olhos começaram a brilhar mais; as águas marinhas agora
cintilavam.
«Procure o amor. Use a energia deste ano cheio para achá-lo. O amor
puro é que é verdadeiramente o grande sortilégio, o grande
modificador, a grande magia.»
Eu ia perguntar mais, mas os primeiros raios de luz do dia nascente
começaram a filtrar pelos vitrais do foyer. Quase que imediatamente,
o barulho de chaves abrindo as portas da entrada dos fundos
anunciou a chegada da equipe de limpeza.
Flidais ainda me disse:
28
«Volte uma noite, se puder. E conte-nos se o encontrou.»
Levantei-me e desci os degraus. Quando olhei novamente para Flidais
e Chloris, elas já estavam, mudas e inteiramente metalizadas,
olhando cada uma para seu lado. Escondi-me debaixo da escada,
esperei que as faxineiras passassem sem me ver e, com cuidado,
escapei para a rua.
A Cinelândia me esperava banhada pela claridade da manhã. O ar
estava leve, lavado pela chuva da véspera. Enchi os pulmões. Estava
feliz e pronto para a grande procura.
Não durou muito. O ano cheio afinal ajudou e, logo no início de
outubro, uma nova guia veio juntar-se ao grupo. Foi amor à primeira
vista. E, no dia em que a levei pelo teatro para ensinar-lhe as
técnicas da visita guiada, demos o primeiro beijo. Foi na escada
principal. Quando a apertei contra mim e apoiei a cabeça em seu
ombro, vi que Flidais me contemplava, sorrindo. E piscou-me o olho.
Eu juro que é verdade.
Oswaldo Pereira
Setembro 2010
29
H
á uma quinta dimensão além daquelas conhecidas pelo Homem. É
uma dimensão tão vasta quanto o espaço e tão desprovida de tempo
quanto o infinito. É o espaço intermediário entre a luz e a sombra,
entre a ciência e a superstição; e se encontra entre o abismo dos
temores do Homem e o cume dos seus conhecimentos. É a dimensão da
fantasia. Uma região Além da Imaginação. Dizeres da vinheta de apresentação
da série THE TWILIGHT ZONE, apresentada pela cadeia de TV americana CBS entre
1959 e 1964.
QUINTA
DIMENSÃO
Era para ser uma noite calma, sem saída noturna, um jantar em casa
sozinho, uma taça só de um merlot que sobrara do fim de semana. E,
depois, seu programa favorito na TV: uma série sobre grandes
acontecimentos do século XX no canal História. E, nesta noite, um
capítulo imperdível – o assassinato de John Kennedy.
Poucos eventos da crônica humana podiam rivalizar-se com este em
termos de impacto global, planetário; eventos que mexiam com a
30
vida de todos, que marcavam para sempre a memória dos que
estavam vivos naquele dia, que, não importasse quanto tempo
decorresse, fariam todos se lembrarem do estavam fazendo na hora
em que a notícia os havia apanhado. No mesmo século, apenas dois
outros podiam reter primazia semelhante: o naufrágio do Titanic, em
abril de 1912 e o ataque japonês a Pearl Harbor, em 7 de dezembro
de 1941.
Mas, para ele, a tragédia de Dallas era muito mais especial, pois o dia
22 de novembro de 1963 mudara sua vida. Nunca se cansava de
contar para amigos, conhecidos e colegas de trabalho a sensação de
encruzilhada do destino que aquele dia representara. Fora ali que
toda sua vida futura se definira, o momento a partir do qual, não
fosse aquele acontecimento ter reverberado pelo mundo, sua
existência teria tomado rumos completamente diversos.
-----------------------------------------Era uma sexta-feira e ele tinha 18 anos. Dia de sol em Copacabana,
promessa de um fim de semana de praia. Mas, era também o último
dia de inscrição para o vestibular, na PUC. Levantou cedo, tomou
banho, um café ligeiro, conferiu os documentos que teria de
apresentar, despediu-se da mãe e foi para a Gávea.
Engenharia. Sim, a escolha estava feita. Gostava de números,
sempre se saíra bem no Científico em Matemática, Física, até em
Química, que achava meio chato. Engenheiro de Telecomunicações –
era isso que queria ser. Mesmo?
“Como posso ter certeza?”, pensou, enquanto fazia sinal para o
Leme-Gávea na Barata Ribeiro. O pai era contra, achava que a
melhor opção seria Economia, a profissão da moda, base para, quem
sabe, uma carreira de administrador público, talvez na Política. Ou,
numa empresa privada de grande porte, uma multinacional
importante, com grandes salários.
Enquanto o lotação sacolejava driblando o trânsito emperrado, foi
descobrindo quão pouco fundamentada era a sua primeira escolha. E
se tivesse tido o cuidado de fazer testes vocacionais, conversado com
orientadores profissionais, examinado melhor o futuro do mercado de
trabalho... Agora, era tarde. Uma carreira decidida na base do
instinto. Era isto a que se propunha?
31
Tão absorto estava que só percebeu que o veículo estava parado há
já vários minutos quando todos os passageiros começaram a descer.
O chofer já estava fora do carro, ao lado do capô levantado,
vociferando contra alguns que haviam pedido o dinheiro da passagem
de volta. O lotação enguiçara em plena rua Jardim Botânico, muito,
muito longe da Universidade.
Quando conseguiu chegar à Marques de São Vicente, depois de ver
passar três lotações cheios e de finalmente pegar um ônibus que o
deixou na Praça do Jockey para cumprir o resto do percurso a pé, já
eram 11 e 45 - o horário para inscrições terminara às 11 e meia.
Depois de pedir, implorar, suplicar, inventar histórias, confessar que
o pai iria matá-lo se soubesse que havia perdido o prazo para o
vestibular, conseguiu de um impassível funcionário a vaga promessa
de levá-lo ao gerente administrativo da faculdade para ouvir o seu
caso. «Você sabe», o empregado falou, com marcada superioridade,
«não podemos abrir precedentes. O máximo que posso fazer é pedir
que ele o ouça. Vou logo adiantando que sou contra. Mas, a decisão
final será dele. De qualquer maneira, ele só poderá atender às 4 da
tarde. Terá de esperar até lá.»
Seriam quase quatro horas de espera. Saiu andando pelos pilotis com
a alma pesada. Na cantina pediu um queijo quente e um guaraná.
Ficou olhando o movimento, os grupos de estudantes barulhentos, as
pernas das meninas da Filosofia, a alegria do fim de semana que já
começava para alguns. Como gostaria de estar participando disto no
ano seguinte! A escolha pela Engenharia lhe parecia agora clara,
definitiva, indiscutível. Resolveu lutar pelo que queria. Iria convencer
o tal gerente a aceitar sua inscrição. Que precedente droga nenhuma!
Começou a preparar sua estratégia: iria inventar um pai doente;
melhor ainda, uma mãe doente. Terminal, câncer, poucos meses de
vida; sonho maternal, ele, filho único, finalmente na faculdade, vida
encaminhada, morrer em paz...
Eram 15 para as quatro quando o tal funcionário antipático o
encontrou perto da escada do Direito.
«Vamos? Já conversei com o gerente sobre você. Contra todas as
minhas expectativas, ele demonstrou boa vontade com teu caso.
32
Disse que se você tiver um bom motivo, vai ajudar. Você é um cara
de sorte.»
Entraram numa pequena antessala. Não havia ninguém.
funcionário ainda falou, antes de deixá-lo ali e ir embora:
O
«Espere um pouquinho; a secretária vai atendê-lo já, já. Boa sorte.»
Dois minutos depois, ouviu passos apressados, uma porta lateral se
abriu e uma moça alta, de óculos e com a bolsa a tiracolo entrou
dizendo:
«Oi, boa tarde, eu sei que você queria falar com o Dr. Álvaro, mas foi
tudo cancelado.»
«Ué, cancelado, mas como? O cara da inscrição me disse que ele me
receberia às quatro. Olha, moça, é muito importante, eu...»
«Desculpe, mas estamos encerrando o expediente. O Dr. Álvaro já foi
até embora. Você ainda não soube?»
«Do que?...»
«Acabou de dar no rádio. O Presidente Kennedy foi assassinado nos
Estados Unidos.»
---------------------------------Ficou mastigando um pedaço do rosbife frio e se lembrando; a notícia
o deixara desnorteado. Kennedy era seu ídolo: jovem, rico,
inteligente, poderoso, inovador, herói de guerra; o mais jovem
Presidente dos Estados Unidos, líder de um clã que estava o mais
próximo daquilo que os americanos poderiam considerar uma
“Família Real”. A imprensa bajuladora já estabelecia romanceadas
coincidências do período kennediano com o apogeu lendário de
Camelot.
O mundo inteiro cobriu-se de luto. Foi para casa sem pensar mais no
vestibular, na inscrição perdida, na derradeira oportunidade
interrompida pela tremenda notícia. No sábado, onde quer que fosse,
o assunto era o mesmo. Os jornais abriam grandes manchetes,
centralizando a famosa foto a bordo do avião presidencial, com
Lyndon Johnson (quem era esse cara?) jurando sobre a Bíblia,
33
Jacqueline amargurada ao lado e as horríveis manchas escuras de
sangue em seu vestido, que era cinza na fotografia em preto e
branco. No domingo, outra bomba: o assassino do Presidente, Lee
Oswald, fora também assassinado, nas barbas dos policiais de Dallas.
A humanidade estava em choque – eram acontecimentos
extraordinários, viscerais, implantados para sempre na medula do
tempo.
Na semana seguinte, inscreveu-se para os exames da Universidade
Nacional; rendeu-se à argumentação do pai e foi fazer Economia. No
segundo ano, começou um namoro tórrido com uma colega cujos
olhos castanho-escuros o haviam enfeitiçado desde os primeiros dias
de aula. Era 1965 e a Revolução do ano anterior mudara a face
política do país. Na Faculdade, ao tempo ainda em que a repressão
não mostrara sua face mais violenta, era legal ser de esquerda,
fumar marijuana e usar flores nos cabelos. Sua namorada o
introduziu nisto tudo. Em 67, resolveram “casar” no melhor estilo
hippie, junto a uma fonte na floresta da Tijuca, um suposto guru
lendo palavras cabalísticas, todo mundo nu cantando músicas dos
Beatles e dos Moody Blues.
Separaram-se dois anos depois, sem filhos e sem muito que recordar
da união, além das brigas, das discussões sem fim, da
incompatibilidade total.
Depois, reconciliou-se com o pai e foi fazer carreira no BNDES, até
aposentar-se, há três anos, em 2002. Casara-se, de verdade, mais
duas vezes; foram relações estéreis e de curta duração. Concluiu que
não era bom de relacionamentos longos. Aos 50 anos, após a morte
dos pais, fora morar sozinho no apartamento deles em Copacabana e
viver uma vida semi ermitã. Havia amigos; eram poucos, porém fiéis
e serviam para suavizar sua solidão.
Olhou para o relógio: 9 e 45. O clarão de um relâmpago reverberou
no vidro da janela que dava para o Posto Seis. “Lá vem ela...”,
pensou, lembrando-se da previsão de frente fria que lera no jornal da
manhã.
Ligou a TV, certificou-se de que estava no canal certo e foi para a
cozinha colocar a louça na máquina. Quando voltou para a sala, a tela
já mostrava a vinheta de entrada do programa. THE XX CENTURY:
Fateful Moments, em letras douradas sobre um turbilhão de imagens
34
e com a Fanfare for the Common Man, de Aaron Copeland, como
música de fundo. E aí, mais um relâmpago lá fora, e a luz apagou.
Escuro total. Faltava energia em toda a cidade. «Merda! Logo
agora...», esbravejou sozinho na sala. Sentou-se no sofá; nada a
fazer, senão esperar.
Deve ter cochilado, pois foi sacudido pelo som da televisão, pela
gritaria na rua e pelas luzes que tinham voltado a brilhar. Consultou o
relógio: dez e dez. Na tela, as imagens de Kennedy chegando ao
aeroporto de Dallas, o largo sorriso no rosto irlandês irradiando
confiança, Jacqueline, de tailleur cor-de-rosa, deslumbrante ao seu
lado, o frenesi dos fotógrafos. “Puxa, ainda bem que não perdi
muito...”, refletiu com satisfação.
A sequência principal ia ainda começar: a famosa filmagem em Super
8 de Abraham Zapruder, o alucinante registro do impacto assassino
das balas disparadas por Lee Oswald, o torso do Presidente jogado
para frente e para trás, sua cabeça explodindo, Jackie galgando o
banco traseiro para recolher pedaços do cérebro esfrangalhado do
marido, as pessoas na beira da calçada levando as mãos à cabeça,
outros se deitando no chão – 26 segundos do mais puro horror,
eternizados e indeléveis.
Ajeitou-se no sofá. A carreata com os dois Lincolns Continental pretos
à frente dobrava a esquina da rua Elm e flanqueava o prédio do
depósito de livros da Texas School. Prendeu a respiração. Era agora.
O filme continuou rodando. Os batedores avançavam. Os automóveis
também. John Kennedy, no assento traseiro, e John Connaly, no
banco da frente da limusine, acenavam para as pessoas na calçada.
Estranho. A hora do primeiro disparo havia passado. A comitiva
seguia avançando pela rua. Passaram em frente à câmera. Nenhum
tiro. Toda gente aplaudia o cortejo. No último segundo da filmagem,
Zapruder acionou o zoom para pegar a última tomada dos carros
desparecendo de seu campo de visão. A cena seguinte, de um
newsreel da CBS, mostrava o Presidente, sempre de sorriso largo,
sendo recebido pelo prefeito de Dallas na City Hall e fazendo um
memorável discurso sobre o papel dos Estados Unidos como
fomentador da paz mundial e sobre sua intenção de disponibilizar
imensos recursos federais para erradicar a pobreza e a fome.
“Que diabos...”, pensou, imóvel em frente à TV, enquanto uma série
de documentários mostrava a campanha da reeleição de Kennedy em
35
1964, sua luta no segundo mandato contra um Congresso de maioria
Republicana, sua firme intenção de manter a América fora de
qualquer envolvimento no Extremo Oriente, veladas histórias de suas
aventuras amorosas, a preparação de seu irmão Robert para sucedêlo; ele com os filhos, em Hyannis Port, com Jackie no Natal de 65, na
Casa Branca e em viagens pelo mundo. Depois, noticiários antigos
com as primeiras informações sobre o câncer de estômago que iria
matá-lo em meses, suas derradeiras imagens, já debilitado pela
doença. E seu funeral, em maio de 1966.
«Como assim?», falou baixinho para si mesmo. Ficou esperando a
aparição dos créditos, uma menção sobre os caras que haviam criado
esta versão imaginária. “Muito bem bolada, diga-se de passagem”,
admitiu. Mas, nada. O programa encerrava como todos os outros
testemunhos da história que faziam parte da série: fatos verídicos
que tinham moldado a face do Século Vinte.
Decidiu mudar de canal. Ao esticar o braço para pegar o controle
remoto foi que percebeu. A poltrona, que ficava ao lado do sofá,
estava do outro lado da sala, perto da janela. E não era só. Todos os
móveis, à exceção do sofá onde estava, haviam mudado de lugar! A
iluminação era outra, quadros que nunca vira enchiam as paredes,
um perfume de incenso flutuava. Levantou-se. Abriu e fechou os
olhos duas vezes. A nova decoração mantinha-se. Um pouco trêmulo,
foi-se encaminhando para o corredor que ficava no fundo da sala e
dava para os quartos. A passadeira vermelha que vinha do tempo dos
pais havia desparecido, deixando à mostra os tacos de tábua corrida
e seu sinteco brilhante. De relance, viu que as paredes estavam
pintadas de um vermelho tijolo em vez do branco velho já encardido
pelo tempo.
O coração agora galopava. Aproximou-se da porta do seu quarto.
Estava entreaberta. Empurrou-a levemente. Na luz de um abajur que
jamais vira, percebeu que sua cama de solteiro fora substituída por
uma de casal, king-size, coberta com um edredom de cor ligeira,
encimada por duas enormes almofadas. A ondulação das cobertas
não deixava dúvidas: na cama havia alguém! Não conseguiu reprimir
o grito. Imediatamente, o corpo na cama soergueu-se. Era uma
mulher. Ficou olhando, petrificado, tentando resolver o mistério,
encontrar uma explicação concreta, palpável, que, além de todo o
resto, lhe informasse claramente como uma mulher desconhecida
poderia ter entrado em seu apartamento e pudesse estar dormindo
36
em sua cama. Tinha vindo para casa sozinho. Vivia sozinho. Mesmo
as namoradas que tivera após o segundo divórcio, agora cada vez
mais escassas, nunca haviam estado em seu apartamento (meu
casulo, defendia-se). Continuou imóvel, na entrada da porta. A
mulher acendeu o outro abajur. Tinha cabelos pintados de louro,
meia-idade, um rosto bonito, olhos claros.
«O que foi? Tá sentindo alguma coisa?», falou num tom suave.
Ele tentou falar. A voz não saiu.
Ela soergueu-se mais.
«O que houve, querido?»
Num esforço supremo, com a garganta bloqueada, ele gaguejou:
«Quem...quem é você?»
Ela abriu mais os olhos.
«Hein? Quem sou eu?...», deu um risinho. «Qual é a brincadeira?»
Ele sentiu as pernas perderem as forças. Sentou-se na beira da
cama. Ela esticou o braço esquerdo para tocá-lo. Ele, instintivamente,
recuou.
«Tazinho, qual é o problema?», perguntou ela, séria.
“Tazinho? Quem é Tazinho?”, pensou ele, continuando a olhar para
ela com uma expressão branca.
Ela tentou acercar-se novamente. Ele recuou ainda mais. Ela insistiu,
a voz alterada:
«Que é que tá havendo, Gustavo?».
“Ela sabe meu nome!...”, espantou-se.
«Como você sabe meu nome?», perguntou.
Ela saiu da cama. Vestia só uma camiseta.
«Gustavo, você está-me assustando!».
Ele ficou olhando para as pernas dela; eram firmes, bem desenhadas.
“Quem é essa mulher, meu Deus do céu?!”
37
Ela chegou mais perto. Um doce perfume chegou junto. Ele levantouse. Ainda na penumbra dos dois abajures, viu que o quarto também
mudara. Havia uma penteadeira de estilo, uma cômoda com grandes
gavetas, duas pequenas poltronas. Sentiu novamente a voz travar.
Ela segurou as suas mãos, que estavam frias, inertes; as dela eram
macias, quentes. Ela repetiu:
«Que é que tá havendo, amor?»
Com o pigarro apertando as palavras, ele também repetiu:
«Quem é você?».
Ela afastou-se, assustada. Ficou olhando intensamente para ele. “São
verdes”, verificou ele, “ela tem olhos verdes...”
«Vou ligar para o Dr. Alberto», ela falou, agitada. «Você tem tomado
o remédio para a pressão, não tem?».
Sem esperar a resposta, ela foi à mesa de cabeceira e pegou o
celular.
Ele virou-se e deu com um espelho grande, pendurado na parede. E
era ele quem estava ali, na imagem refletida. O mesmo rosto fino, os
cabelos ralos e brancos, a barba por fazer, o corpo esguio com uma
barriga projetada. Pelo menos isso: ele não mudara.
Ficou ouvindo-a conversar com o médico.
«Boa noite, doutor...é Célia Vieira...desculpe ligar esta hora...é sobre
o Gustavo...não está bem...Não, não sei o que é, está aéreo, não fala
coisa com coisa...Febre?... acho que não...Sim, ele consegue falar,
mas diz coisas sem sentido...Sorrir?...Pedir para sorrir? Espere...».
Voltou-se para ele.
«Tazinho, você consegue sorrir?».
Ele não tirava os olhos das pernas dela. Ao curvar-se para pegar o
celular, a camiseta revelara metade das nádegas nuas. Ele já estava
sorrindo.
«Olha
doutor,
ele
está
sorrindo,
mas
é
um
sorriso
estranho...desculpe, mas eu estou muito nervosa...AVC?...pelo amor
de Deus, doutor...o senhor vem?...OK...meia hora...obrigado, doutor,
até já».
38
Ela obrigou-o a deitar-se. Segurava nele como se conhecesse toda a
geografia de seu corpo, sua cadência, seu jeito. Ele resolver deixar
que ela o cobrisse, passasse a mão em seu rosto, enquanto
murmurava «Ô Tazinho, não faz isso com a tua Ceinha...». Ele estava
atordoado, uma ligeira dor na nuca. Ela saiu do quarto, não sem
antes recomendar:
«Fica deitado quietinho, amor. Vou ao banheiro. Qualquer coisa,
chama, viu?».
Célia...Célia Vieira. Vieira era o seu próprio sobrenome. Gustavo da
Silva Vieira. Coincidência? “O que é isso? Alucinação?” perguntou-se.
Nunca sentira isso antes, nem quando fumava seus baseados nas
festinhas hippies dos anos sessenta. Cocaína, LSD, nunca tentara. Há
uns cinco anos resolvera disciplinar seus hábitos de bebida, uma dose
de uísque no fim de semana, um vinho de vez em quando. Teria sido
a taça de merlot? Mas, já tomara da mesma garrafa no dia anterior e
nada acontecera de extraordinário.
Viu o celular em cima do criado-mudo. Tinha de fazer alguma coisa,
buscar uma salvação deste pesadelo. Segurou o aparelho, escolheu o
ícone da “Agenda”, foi apertando a tecla até encontrar:
Bernardo Casa 22267527 Celular 99825522
Era o seu melhor amigo, aquele de infância, quase irmãos,
companheiro de todos os momentos. O número dele estava lá, e era
o mesmo que ele guardava na memória. “Nada está perdido”,
suspirou.
«Alô, Bernardo?»
«Gustavo? Que é que há, tudo bem?»
«Tá. Escuta. O Presidente Kennedy morreu assassinado, não foi?»
«Peraí. Cê tá me ligando a esta hora da noite para me perguntar se o
Kennedy foi assassinado? Tá de porre, cara?»
«Responde, pelo amor de Deus, Bernardo».
Silêncio.
39
«OK. Deve ser alguma pegadinha. Mas, vá lá. O Presidente Kennedy
morreu assassinado. Qual é a piada?»
Um longo suspiro de alívio.
«Não tem piada, cara. É que eu estava-me lembrando daquele dia
em que perdi a inscrição para o vestibular da PUC...»
«Perdeu o vestibular para a PUC? Do que você está falando?»
«Então, no dia em que John Kennedy foi morto, e que eu não
consegui me inscrever e depois acabei indo para a Nacional».
Mais silêncio.
«Gustavo, realmente não estou entendendo nada. Qual é a piada,
cara?»
«Como assim, piada?»
«Que papo
Nacional...»
é
esse,
malandro?
Perdeu
o
vestibular
da
PUC,
«Bernardo, por favor, você mesmo me confirmou que o Kennedy foi
assassinado. No dia 22 de novembro de 63. No dia em que eu ia me
inscrever na PUC!»
Uma respiração impaciente do outro lado da linha.
«Bom, cara, chega de sacanagem. Você deve ter tomado todas. O
Kennedy morreu de câncer em 1966. Você fez PUC comigo, eu na
Faculdade de Direito e você na Engenharia. Quem foi assassinado foi
o Presidente Robert Kennedy, em 1968, logo após sua reeleição.
Porra, você não se lembra? Foi no mesmo dia em que você e a Célia
começaram o namoro! Gustavo...alô...Gustavo».
O celular caíra no chão. Quando Célia voltou do banheiro, Gustavo
tremia na cama.
Dr. Alberto deu-lhe um sedativo para dormir, depois de examiná-lo,
auscultá-lo, medir a pressão, ouvi-lo balbuciar uma história sem nexo
balançando a cabeça. No dia seguinte, como um sonâmbulo, Gustavo
foi levado para uma série de exames: tomografia do cérebro,
ultrassonografia do crâneo, angiocoronáriografia, ressonância
magnética da cabeça. Viraram-no pelo avesso. A seguir, consultas
com neurologistas, otorrinos, cardiologistas, endocrinologistas. No
40
terceiro dia, psiquiatras e psicólogos. Célia sempre junto,
confortando-o, amparando-o, meiga, preocupada, amiga, presente.
E, junto dela, uma moça alta, elegante, que parecia ter os seus olhos
e a sua boca, que acenava para ele através do vidro da sala fria do
hospital enquanto os aparelhos zumbiam e giravam em torno de seu
corpo e que, logo que pode, veio abraçá-lo com ternura, murmurando
carinhosamente:
«Pô, paizinho, que susto você me deu. Cê tá bem, não tá?»
Que sonho louco era esse? Como, de repente, fora sugado para
dentro deste universo desconhecido, para esta vida que não era a
sua, esta família que surgira do nada, mulher, filha? Será que estava
perdendo a razão? Lembrou-se das histórias guardadas a sete chaves
por seus pais sobre um tio-avô que morrera louco. Não, não podia ser
isso! Ele continuava raciocinando com clareza, continuava lembrandose perfeitamente de quem era até sábado passado, de seu mundo
vazio de relacionamentos, seu apartamento estéril e sem calor, seus
dias repetidos no vácuo da solidão.
No quarto dia, o médico chamou Gustavo e Célia ao consultório.
«Tudo indica», falou pausadamente, procurando não assumir
plenamente a paternidade do diagnóstico, «que pode tratar-se de um
episódio de amnésia psicogênica retrógrada. Todos os meus colegas
concordam. O que não sabemos é a causa, porque o Gustavo não
apresentou nenhuma patologia nos exames que fizemos. Até a sua
pressão, que costuma ser alta, está normal. O problema é que, como
não sabemos a causa, não podemos prever a duração do fenômeno e
nem temos como receitar um tratamento, além de um ansiolítico
leve».
Ao saírem, Célia segurou-lhe as mãos com firmeza, deu-lhe um beijo
apaixonado na boca, e disse:
«Estou contigo, agora mais do que nunca nesses 32 maravilhosos
anos que estamos casados. Eu te amo. E vou cuidar de você com
toda a dedicação que uma mulher pode dedicar a seu homem».
Naquela noite, quando viu Célia saindo nua do chuveiro, a confusão
mental de Gustavo não conseguiu impedir o desejo intenso que já lhe
despontara desde a primeira vez que a vira em seu quarto. Agarrou-a
ainda molhada, apertou-a contra si, um braço abarcando a cintura, a
outra mão descendo à procura. Ela tentou resistir, surpresa:
41
«Tazinho, você não pode...Tazinho!»
A mão dele achara seu caminho.
De madrugada, Célia acordou. Gustavo ressonava baixinho. Ficou
admirando o marido, sorrindo com ternura, sentindo um torpor
gostoso de cio atendido depois de um longo jejum. «Bendita
amnésia», sussurrou, feliz.
As semanas seguintes foram de aprendizado. Reaprender quem era,
reestudar outra história de vida, descobrir amigos, conhecer
memórias, importar lembranças. Passava horas vendo fotografias,
retratos, filmes caseiros, registros de viagens. Célia e a filha
ajudavam.
«Lembra-se deste dia?...olha, esta foi tirada no dia em que
comemoramos 20 anos de casamento...esta você tirou na
maternidade, vê como a Diana parece-se com você desde que
nasceu?...»
É claro que não se lembrava. Como poderia? Dentro de si sabia que
não vivera isso. E, por isso mesmo, tudo fascinava-o. Logo verificou
que, até o dia 22 de novembro de 1963, era capaz de identificar
perfeitamente os acontecimentos, as fotos, as cartas, os mementos
guardados, as menções a amigos de ginásio, livros do científico. A
partir daí, o caminho tomado exatamente naquela encruzilhada do
tempo, que tanto o havia marcado, tinha sido outro. O vetor histórico
fundamental, a morte de John Kennedy, não ocorrera ali; ele
conseguira obter do gerente da PUC a permissão para se inscrever no
vestibular, formara-se em Engenharia. De Telecomunicações, como
desejara. Fizera uma carreira brilhante, ganhara dinheiro, viajara
pelo mundo a trabalho e a lazer, conquistara o respeito e a amizade
de inúmeras pessoas. E conhecera Célia, a mulher de sua vida.
Casara-se e fora pai. O arquivo familiar testemunhava a trajetória de
uma família feliz, unida, amorosa que agora, inexplicavelmente, era
sua.
O diagnóstico de perda de memória ajudava. Todos queriam
colaborar na recomposição da sua história, fornecendo pedaços que
Gustavo foi encaixando no quebra-cabeça de sua nova existência, um
imenso puzzle de cores vibrantes e desenhos intrincados, que
contrastava frontalmente com a pintura esmaecida de paisagens
secas de sua “vida” anterior paralela.
42
Seis meses depois, ele já assumira perfeitamente seu papel no novo
script que o destino, com insondáveis propósitos, lhe entregara. Era
capaz de reconhecer todos, entender comentários, participar das
conversas sobre o passado, rir de anedotas antigas. E,
principalmente, se rendera a um amor apaixonado por Célia, que,
quase toda madrugada, continuava a bendizer os efeitos
extraordinários da amnésia retrógrada.
Mais seis meses, numa noite, estavam os dois sozinhos em casa. Era
um domingo. Diana viera almoçar com eles para combinar os
detalhes de seu casamento com Rodrigo, um rapaz que já conheciam
e aprovavam inteiramente. Estavam felizes com a felicidade da filha,
com o acerto da escolha, com a possibilidade de se tornarem avós
um dia, com o presente, com o passado, com o futuro.
Cansada, Célia foi dormir. Ele ficou só, na penumbra da sala,
saboreando o silêncio, a paz reinante na casa, um resto do perfume
da mulher, os sons longínquos da rua, o momento, a vida. Em cima
da mesa de jantar, havia uma garrafa de vinho quase no fim. Pegou
uma taça no bar e a encheu com o resto que sobrara. Era um merlot.
Aí, lembrou-se. Hoje fazia exatamente um ano. Um ano daquela
outra noite. A noite em que entrara num universo paralelo, num
destino alternativo, em que uma vida inteira sumira no ralo do tempo
e outra brotara. Foi caminhando para a janela e viu as nuvens
negras, lá para os lados de Ipanema. Ao longe, um relâmpago
rabiscou o céu escuro. Um pouco inquieto, resolveu sentar-se no sofá
e ligar a TV. Ficou zapeando os canais. Futebol, Faustão, um outro
programa de auditório, os filmes dos HBOs, comentários esportivos
nos ESPNs. Caiu sem querer no canal História, o tempo suficiente
para vislumbrar claramente a vinheta - THE XX CENTURY: Fateful
Moments. As trompas da música de Copeland feriram seus ouvidos.
Sentiu-se estranho, trêmulo. Mais ficou quando o título do capítulo
deslizou na tela: O Assassinato de Kennedy. Precisamente nesse
instante, outro raio brilhou na vidraça.
E as luzes apagaram-se.
Oswaldo Pereira
Outubro 2010
43
MANGUIQUE
A ilha ficava no meio do Oceano, no exato ponto onde a Corrente
Brumosa de Von Hindenlerb tangenciava as águas quentes dos
Termais Molinésios, o que assegurava àquele pedaço de terra perdido
no mar uma repetição estável e rigorosamente pontual das estações,
um regime de chuva e sol pelo qual se podiam combinar encontros e
um completo e anônimo isolamento, providenciado pelo anel de
nebulosidade espessa que permanentemente o circundava.
Os habitantes da ilha nasciam e morriam tendo como horizonte
aquela parede esbranquiçada e imutável que nascia junto às ondas e
se elevava a uns dez quilômetros de altura, e a uma distância
máxima de qualquer de suas praias não superior a dois dias de
viagem num bom bote de doze remos. Jamais a haviam ultrapassado,
44
tolhidos pelo medo do desconhecido e pelos presságios desfiados
pelos mais velhos em apavorantes histórias de monstros das
profundezas e correntezas assassinas, certamente encontráveis do
outro lado.
Ninguém sabia precisar ao certo quando a ilha se formara. Quem
sabe no momento em que a Pangeia se desintegrara, ao tempo que a
Terra ainda estava molhada nas espumas de seu nascimento; ou no
fragor de uma gigantesca erupção de um vulcão marinho submerso,
que trouxera à tona, no seio de uma onda imensa, aquele pedaço de
rocha e lava com a aparência de uma forma de sapato feminino. A
extremidade leste era uma península plana de ponta arredondada e
graciosa, entrando pelo mar, derramando para oeste uma planície
rasa; a partir do meio da ilha, entretanto, a terra começava a subir,
atingindo, ao chegar ao ponto mais ocidental, mais de mil e
quinhentos metros de altitude, onde um platô em suave aclive
antecipava uma sucessão de cumes alcantilados e vales vertiginosos.
Fosse qual fosse a origem, entretanto, a sua beleza natural
evidenciava que, aos poucos e com o passar dos milênios,
abençoados pela rigorosa pontualidade das mudanças climáticas das
estações, o solo vulcânico foi-se sedimentando e tornando-se fértil,
as areias pristinamente brancas das praias do leste foram-se
cercando pelo vai e vem do marulho verde do oceano e pelo vem e
vai das curvas gentis dos coqueiros, a verdura das campinas cobrindo
extensões de terra dadivosa, os bosques amenos encerrando sua
magia perfumada; mesmo na parte mais alta, no altiplano do
ocidente, onde rios nascidos nas montanhas eternamente cobertas de
neve desciam cascateando dos desfiladeiros, atravessando pinhais
seculares e tundras enevoadas, as cores do outono e do inverno
teciam paisagens de insuperável beleza.
E assim era também porque, por um capricho dos céus, apenas estas
duas estações aconteciam nos altos ocidentais, enquanto que na
parte mais baixa, somente primavera e verão perduravam. Com esta
dicotomia climatérica e miríades de microclimas, e envolta pelo
casulo brumoso que a escondia no fim do mundo, a ilha tinha
evoluído desde o início dos tempos, desde quando as engrenagens da
vida ainda permaneciam adormecidas entre as bactérias simples que
boiavam na superfície de algum lago.
45
Aí, outro mistério: como a vida aparecera em Manguique? Os trisavôs
dos mais velhos haviam passado a mesma história que tinham
recebido de seus trisavôs, e estes dos trisavôs deles, numa cadeia
oral que se perdia no rosário de gerações cuja ponta inicial se
esfumaçava no tempo. Essa história, com forte sabor de lenda,
contava que um galeão típico das naus do século das descobertas
perdera seu rumo, portando a bordo vinte famílias de um reino
amaldiçoado do norte europeu, fugidas do destino cruel nas mãos de
um imperador enlouquecido. Haviam vagado por meses em mares
bravios, em meio a montanhas de gelo suspensas no oceano,
arrostando tormentas e cavalgando vagas do tamanho de
cordilheiras, até que chegaram, quase desfalecidos de fome e
desesperança, ao espesso nevoeiro que cercava Manguique.
Exaustos, deixaram o barco atravessar languidamente a névoa,
deitados exangues no tombadilho, sem nada enxergar.
No fim do terceiro dia, uma luminosidade difusa foi adelgaçando o
manto branco e úmido. A luz foi aumentando de intensidade e, de
repente, um céu azul e imenso se abriu, águas cor de esmeralda
começaram a bater de encontro ao casco e, como numa abençoada
miragem, viram a portentosa ilha, luxuriante, banhada pelo sol
fulgurante de um meio-dia tropical, pousada bem no meio do imenso
círculo limitado pela bruma que haviam transposto.
Assim que a nave encalhou nos baixios da ponta leste, os tripulantes
e os malogrados passageiros atiraram-se nas águas rasas e
dirigiram-se velozmente para a brancura da praia, desfalecendo meio
mortos na areia macia e na sombra dos coqueiros.
Dormiram até o dia seguinte. Quando acordaram para o frescor da
manhã ensolarada, verificaram que o galeão desaparecera,
provavelmente resgatado pela maré e levado à deriva para lá da
névoa, já que, na sofreguidão do contato com a terra firme, ninguém
se lembrara de lançar âncora. O destino fizera sua escolha por eles: a
ilha era o final da viagem, sua única opção de sobrevivência, seu
novo país.
Nos primeiros dias, minuciosas incursões pela vegetação verdejante
que se estendia para além das praias revelaram que aquelas terras
nunca haviam sido pisadas por pés humanos: era pura e núbil,
intocada e virgem. Mas, se inabitada era de gente, suas florestas
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reuniam todas as espécies de árvores frondosas e frutíferas, de vários
tamanhos e feitios, de rijos troncos ou delgadas ramas, de plantas
aromáticas e medicinais, cujas flores misturavam matizes de muitas
cores; os rios que desaguavam no mar em delicadas enseadas eram
cristalinos e povoados de peixes, do mesmo modo que as baías
distribuídas pela costa abrigavam alvoroçados cardumes de uma
fauna marinha inesgotável. Aves eram abundantes – havia-as de
todas as plumagens, de todos os sons canoros, de todos os gêneros
permitidos pela Criação.
Após semanas, o instinto de sobrevivência aliado à energia própria
daqueles que escapam da morte certa, e somado ao celeiro de
alimentos, água e matéria-prima ofertado de bom grado pela
natureza, fez aflorar nos novos habitante da ilha habilidades e
proficiências até então insuspeitadas e que os ajudaram a construir
os primórdios de um aglomerado social autossuficiente. Quase um
ano depois, uma pequena vila já se encaixava, com suas casas e
quintais, numa grande clareira próxima da embocadura do rio mais
caudaloso, de frente para o Sul.
Foi aí que aconteceu a separação.
Desde o começo de sua vida na ilha, o grupo convivia com uma
liderança bipartida: a coordenação dos trabalhos de construção das
cabanas, de cultivo e colheita de alimentos, de caça e de
armazenamento de água era exercida pelo capitão do galeão perdido,
um lobo do mar curtido pelo sal dos oceanos que havia navegado,
embalado pelas canções dos portos que conhecera, sanguíneo,
expansivo e alegre; a guarda dos princípios morais da comunidade, o
exercício da justiça e a função de juiz eram preenchidos pelo escrivão
de bordo, um homem magro, alto e ascético, de olhos duros e frios e
pouco falar. Ambos detinham inquestionável influência sobre demais
habitantes - mas não cumulativa. Ou seja, enquanto uma metade
admirava profundamente o marinheiro, a outra seguia cegamente a
figura do escriba.
E foi ele quem convenceu as dez famílias que o apoiavam a partir em
direção a oeste. Já nos primeiros dias da chegada à praia, o
empertigado notário argumentava que uma excursão mais profunda
deveria pesquisar toda a extensão daquele pedaço de terra, até o alto
das montanhas que azulavam ao longe, a muitas e muitas léguas
dali, com seus cumes brancos, acenando com a promessa de
temperaturas hibernais, ares finos e noites profundas. Este,
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doutrinava ele, seria o ambiente ideal para o estabelecimento da
nova vila, protegida pelos pinhais e dedicada ao recolhimento
espiritual inspirado pelo frio e pelo silêncio.
O vibrante Capitão defendia exatamente o contrário. O lugar ideal
para a aldeia era perto do mar, abençoado pelo calor e pela luz
perene do sol, embalado pelo vento doce nas palmas e pelo marulho
das ondas, tangido pela alegria de viver. Apesar de acaloradas
discussões, ninguém mudou sua opinião.
Quando faltava uma semana para o primeiro aniversário da
descoberta de Manguique, o escrivão e seus seguidores juntaram
seus pertences e rumaram para o ocidente, em demanda das terras
altas. Levaram mais de dois meses para chegar ao altiplano, tendo
sido especialmente penoso atravessar o desfiladeiro que cortava a
ilha de lado a lado mesmo na sua metade, pouco antes das altitudes
se elevarem. O esforço e o sacrifício de vencerem o íngreme paredão
de granito os fizeram sentir a separação; era como se tivessem
cortado o cordão umbilical que os ligava aos que tinham ficado no
leste. Eram agora outro povo.
Os dias foram passando e se somando em meses, depois em anos; e
os anos em décadas. O povo da praia nunca mais ouvira falar dos que
haviam partido para as montanhas – e vice-versa. Assim, separadas
pela distância, pelo desfiladeiro e pela escolha que haviam feito, as
duas sociedades evoluíram dentro da única forma de governo que
conheciam e fundaram-se dois reinos: o de Lakbak, nas terras altas
do ocidente, e o de Limbaringo, junto aos mares do levante.
Em Lakbak, o pálido notário se tinha auto proclamado primeiro rei,
escolhendo sua consorte entre as pudicas e louras jovens que com
ele haviam migrado, e iniciado uma dinastia de filhos únicos, quase
sempre machos, que foram perpetuando as características físicas e os
preceitos austeros do grupo que subira para as montanhas. Eram
quase todos alvos de pele, claros de olhos, finos de corpo,
silenciosos, recatados, trabalhadores e sérios. Os dias em Lakbak
eram curtos, oscilando entre o cinzento hibernal e a melancolia do
outono, propícios ao decoro e à oração, e invariavelmente dedicados
ao recolhimento espiritual. Música não havia, além de alguns cânticos
guturais e soturnos, entoados nos funerais; sexo havia, mas era feito
quase como obrigação, praticado somente em alcovas conjugais,
acobertado pelos lençóis grossos e no escuro.
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Em Limbaringo, a festa era permanente. No dia seguinte à separação
dos grupos, o capitão tomara uma grande bebedeira, esvaziando o
último barril de rum que havia trazido do galeão. Foi acordado, em
pleno estupor da ressaca, pelas famílias que haviam permanecido na
praia. Traziam uma coroa feita de palha de coqueiro e a colocaram
em sua cabeça. Ele olhou em torno. Escolheu três graciosas jovens,
cujas roupas esfrangalhadas pelo uso contínuo no lufa-lufa diário
deixavam expostas ao sol benfazejo generosas partes de coxas
morenas e seios redondos, e foi constituir sua descendência.
Definia-se, com isto, a filosofia de vida das gentes de Limbaringo: a
adoração à luz e ao amor, o amor à música e à alegria, a alegria de
viver o frenesi do verão, a explosão da primavera; o gosto pela arte,
pela cor, pelo riso. Os longos dias ensolarados amorenaram a tez de
suas gerações, a seminudez das roupas encheu de curvas sensuais o
corpo de suas mulheres, a magia da beira-mar nas noites estreladas
deu forma ao misticismo preguiçoso de seu povo.
E as décadas continuaram filtrando lentas pelas horas e pelos dias
exíguos do oeste e pelas tardes intermináveis do oriente, sem que os
habitantes dos dois reinos jamais se voltassem a ver. Aos poucos, a
memória foi-se apagando, ganhando contornos de fábula, recitada
para as crianças como histórias infantis. Tanto nas montanhas como
nas praias, a lembrança diluiu-se nas brumas da distância e do
tempo, ao final restando apenas uma lenda esmaecida, que falava de
um outro povo esquecido, cuja existência era apenas presumida. Foi
só quinhentos anos depois da separação que se deu o primeiro
encontro.
Ambos os países haviam avançado suas terras de caça e cultivo
paulatinamente em direção ao desfiladeiro. As populações cresciam,
necessário se tornava plantar mais e mais, abater mais e mais aves.
Certo dia, duas famílias de agricultores de Lakbak começavam a
lançar suas sementes num eito arado junto à margem do paredão de
pedra quando ouviram vozes lá embaixo. Ao assomarem à beira,
quase desfaleceram de espanto: um animado grupo de umas dez
pessoas, trigueiras, de longos cabelos negros e parcamente vestidas
olhavam para cima, em igual espavento. A reação nos dois lados foi
imediata: para os que tinham vindo das montanhas, o escândalo
daqueles corpos morenos e descobertos era um atentado brutal ao
seu pudor e desencadeou uma sucessão de tapar de olhos e gestos
49
de repúdio; para os da praia, o espetáculo daquelas figuras vestidas
até o pescoço, de chapéus altos e semblante macilento, benzendo-se
e ajoelhando-se, carregava uma irresistível comicidade – começaram
a rir às gargalhadas. O cacarejar do riso aberto que vinha lá de baixo
desnorteou ainda mais os indignados ocidentais, para quem ser
objeto da diversão alheia era um insulto mortal.
A balbúrdia continuou por algum tempo. A pálida referência que
tinham sobre a existência de outro povo no extremo oposto da ilha
corporificava-se nas figuras estranhas com que se deparavam, de
ambos os lados. Passada a surpresa inicial, um certo medo do
desconhecido apoderou-se dos dois bandos. Resolveram voltar
correndo para suas casas.
A notícia do encontro espalhou-se. A comoção nos dois reinos foi
indescritível. No dia seguinte, delegações de ambos confrontaram-se
nos dois lados do desfiladeiro. Os reis vieram e o silêncio fez-se. O rei
de Limbaringo, roliço e reluzente em seu traje de gala saudou o rei
de Lakbak, lá em cima, esguio e enfiado em seu manto opaco. Apesar
da distância e dos cinquenta metros de altura da muralha de granito,
ouviam-se perfeitamente. Mas, o problema era que não se
entendiam: com o tempo, os dois povos haviam transformado a
língua comum original em dois dialetos absolutamente ininteligíveis
entre si. Após algumas inúteis tentativas de entendimento, a
balbúrdia voltou a dominar os espíritos. Os de cima gritavam
impropérios e gesticulavam sua desaprovação; os de baixo riam
incontrolavelmente. Durante quase uma hora, assim foi, até que,
cansados e reconhecendo a inutilidade da coisa, cada um dos povos
resolveu voltar para casa.
Os dias passaram-se em nervosa intranquilidade dos dois lados. A
formidável experiência do encontro agitava as mentes e exagerava os
comentários; em pouco tempo, as diferenças entre os habitantes dos
dois reinos, já profundas por si sós, foram sendo aumentadas nas
conversas e nas discussões e, rapidamente, passaram de mero
estranhamento para aversão, preconceito, repudia e, após semanas,
a ódio. Tornou-se um exercício público para os moradores de Lakbak
e Limbaringo irem até o desfiladeiro e trocar insultos e gestos
agressivos; logo, começaram a atirar paus e pedras nos adversários.
Incontrolavelmente, o conflito ganhava corpo, e o espectro de uma
inevitável guerra abriu suas negras asas sobre os horizontes da
outrora abençoada ilha.
50
Os meses seguintes foram de frenética agitação. Como o exercício
bélico havia sido esquecido nos séculos de tranquilidade vividos sem
interrupção no isolamento, lakbaquianos e limbaringuenses tiveram
de reinventar tudo o que se referia a artes marciais, desde a
fabricação de toscas armas até táticas de manobras militares, que
incluíam pouco mais do que técnicas de luta corporal e gritos de
guerra.
Tão absortos estavam em seus preparativos guerreiros que quase
não notaram uma série de sutis mudanças nos hábitos da natureza.
Em Limbaringo, a surpresa foi a chuva: fina, fria e carregada por um
vento enjoado que castigou, durante duas semanas de um antes
secular verão, os seus habitantes. No sagrado dia do solstício, que
sempre se repetia no fulgor de um sol brilhante dourando um céu
sem nuvens, caiu granizo. No oeste, o espanto nasceu no degelo fora
de época e na enxurrada que desceu das montanhas, arrastando
algumas casas cuja localização era tão antiga quanto o tempo. E a
perda das uvas, ressequidas por lufadas de ar quente jamais
conhecido em dias de outono. Logo, os indícios de que algo acontecia
com os desígnios do tempo permearam a percepção de todos. Ao
alarme da guerra começou a sobrepujar-se o alarme dos céus e dos
mares. Marés assassinas passaram a engolir as cristalinas praias da
ponta leste; geleiras dos cumes do oeste partiram-se e derreteramse. A natureza parecia ter declarado sua própria guerra contra a ilha.
Mas o que os dois povos de Manguique não sabiam, e não tinham a
menor condição de saber, era que as extraordinárias mudanças que
os aterrorizavam tinham sua origem no descaso de um mundo que
desconheciam e que ficava para além do muro de névoa que cercava
a ilha, um mundo de nações poderosas e descuidadas, cuja
inconsciência havia agredido de forma irremediável o chão, as águas
e os ares. Um século e meio de desvairada busca por progresso e
riqueza, com total desrespeito aos cuidados básicos com um delicado
balanço planetário, havia destruído o tênue invólucro que as cercava.
A atenção difusa com que tinham recebido os avisos e as
premonições, o afã ganancioso com que as fizera descartar as
palavras de ordem de profetas atentos e os sinais cada vez mais
eloquentes
de
algo
estava
acontecendo
condenou-as
ao
desaparecimento nos desertos da sede, no espectro da fome e nos
abismos dos desastres naturais. Depois de ter abatido a vida no resto
do globo, o anátema chegava a Manguique.
51
Apesar de pressentirem que uma catástrofe parecia iminente, os
habitantes dos dois reinos resolveram ultimar os preparativos para a
batalha. Num dia em que uma violenta canícula reverberava nos
tetos pontiagudos de Lakbak e a primeira nevasca enregelava os
corpos morenos de Limbaringo, decidiram partir para o desfiladeiro e
para o definitivo confronto.
Era ainda cedo quando os dois exércitos, formados pela totalidade
dos habitantes de ambos os reinos, pararam frente a frente, num
profundo silêncio. Esperavam-se os gritos de guerra, que os
lançariam ao combate. Mas o que cortou o ar foi um gemido de
espanto, de alguém que apontava para o mar. E o que viram gelou
corações e imobilizou mentes. Lá, distante das praias de Manguique a
uma distância não superior a dois dias de viagem num bom bote de
doze remos, o imenso manto de névoa que a circundava desde o
início dos tempos começou a desfazer-se como uma grande cortina
que se abre, soprada pelo vento. Uma linha do horizonte começou a
delinear-se, e sobre ela, um céu cor de chumbo fumaça não prometia
nada além da maldição que varrera o resto da humanidade.
Petrificados pela revelação, baixaram as armas. E se olharam. Do alto
da parede de granito, um menino magro e pálido acenou; na planície
abaixo, uma menina de cabelos e olhos negros sorriu. Foi o gesto.
Com dificuldade, uns subiram o muro de pedra, outros desceram. As
palavras sem tradução foram lentamente sendo substituídas por
toques de mãos, braços abertos, lágrimas de redenção que lavaram
preconceitos e afogaram intolerâncias. Estavam novamente unidos,
como seus antepassados no galeão. E, também, assim como estes
haviam enfrentado as tormentas para chegar a Manguique, eles iriam
resistir ao apocalipse legado por gentes de terras que ignoravam. E,
quem sabe, como uma nova Arca, reiniciar o ciclo de vida um dia
gerado nas espumas da Pangeia.
Oswaldo Pereira
Julho 2008
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ONDE ESTÁ OSAMA?
«Bin Laden».
«Quem?!».
«Bin Laden. Osama Bin Laden.»
«Como é que é? Está querendo me dizer que você conheceu o Osama
Bin Laden? Em pessoa? Tá de sacanagem, né?»
«Não. Eu estou dizendo que estive com o Bin Laden, ao vivo, na
mansão de Abbottabad».
----------------------------------------------
Era uma conversa de bar, entre três amigos. Dois encontravam-se
sempre, tinham mantido o contato permanente desde a faculdade,
terminada vinte anos antes. O terceiro surgira do nada, depois de
todos aqueles anos. Uma pesquisa fortuita no facebook o havia
resgatado das sombras do passado, iniciando uma troca de noticias
(e aí cara o q tens feito?/por aí.../lembra do Francisco, a gente
sempre se encontra.../legal, gostaria de participar.../fica com o meu
celular...). Encontro marcado.
Os dois chegaram mais cedo. Queriam preparar-se para a surpresa
de rever um colega perdido para o tempo. «Como será que ele tá?».
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«Ué, mais velho, feito nós». «Não disse muito no facebook. O perfil
está praticamente zerado...». «Vai ver, não é muito chegado a
computador. Tem gente assim...»
Pediram dois chopes. Quando iam pedir a segunda rodada, o relógio
na parede marcava quatro em ponto. «Francisco? José?». Eles nem o
tinham visto entrar. «Cara, quanto tempo!...» Abraçaram-se com
efusão. Com uma ponta de inveja, Francisco e José constataram: ele
estava praticamente igual a vinte anos atrás. Mesma cara, mesmo
corpo. «Pô, conta aí que água você bebe, companheiro. Você não
mudou nada...». «Bondade sua...»
Francisco começou por falar da vida profissional. Contou dos dez anos
numa firma de engenharia que depois fechara, do convite de José
para ir trabalhar na concessionária do pai dele, da sua promoção a
sócio quando se casara com a irmã do amigo. José pegou daí e falou
da mulher, que conhecera numa viagem a Bariloche, e de seus filhos.
O outro, quieto. Para a pergunta de “e você, está trabalhando
aonde?”, havia respondido com um evasivo “por aí...”. E só foi
depois de Francisco, entusiasmado após o quinto copo, autointitularse o fornecedor de carro dos famosos e listar, com ar de desafio, os
nomes das estrelas a quem vendera automóveis, que o amigo
redescoberto abriu-se. «Eu também conheci gente importante...»,
falou, quase num sussurro. Com ar de superioridade inflada de
cerveja, Francisco lançou o repto: «É mesmo? Então diz aí...»
--------------------------------------José interveio.
«Abbottabad? Afeganistão, não é?»
O outro corrigiu.
«Paquistão. Eu era uma toupeira infiltrada na seção de serviços da Al
Qaeda, quando tentei convencer o Emir, que era como o chamava, a
abandonar a casa de Abbottabad. Mas a essa altura, já não havia
muita saída».
Francisco quase engasgou com o gole gelado que lhe descia pela
garganta.
«Toupeira? Cara, que brincadeira é essa?»
O outro pousou o copo.
«Desculpem. É uma gíria, um jargão nos serviços secretos
portugueses. O nome original é mole, na CIA. É o que eu fui, durante
dois anos».
A boca de Francisco ficara entreaberta; a de José reprimia um sorriso
irônico.
«Vocês acham que estou brincando, não? Se quiserem, eu paro de
contar...»
«Não, não...», falou o garçom, que ficara em pé junto da mesa dos
três quando ouvira o nome do Bin Laden.
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Ele olhou para a pequena audiência. Via-se claramente que não era
de seu estilo falar muito. Tinha uma voz mansa, pausada, às vezes
quase inaudível. Limpou a garganta, deu mais um gole.
«Bem... do começo. Em novembro de 2007, eu fui recrutado pela
CIA. Ou o que eu julgava na época ser a CIA. Naquele tempo, eu
estava terminando o curso de adestramento de guerra na selva, no
CIGS em Manaus. Já estivera nos Estados Unidos por dois anos e me
graduara como seal. Um treinamento super puxado, mas que me
valera para obter a cidadania americana. Queria morar lá. Minha
paixão era por esportes radicais e lá era a Meca, o centro do mundo
para esse tipo de atividade. Ganhei várias competições em rock
climbing e em parkour. Se é que vocês entendem de que eu estou
falando...»
Olhou para as três expressões mudas.
«Ok. Rock climbing é aquilo que o Tom Cruise faz no início do Missão
Impossível 2, ou seja, subir um paredão rochoso só com a ajuda das
mãos e dos pés. E de um pouco de giz... Parkour é vencer obstáculos
urbanos, inclusive escalando prédios altíssimos».
Espetou o palito no quadradinho de provolone à milanesa.
«Mas, voltando... Em abril de 2007, um agente americano apareceu
no quartel do CIGS. Vinha com ordens expressas para me levar para
a “fazenda”, na Virginia. É o nome carinhoso que dão às instalações
de treinamento de Camp Peary. Logo na primeira entrevista,
informaram que eu participaria de uma missão crucial e hiper
secreta. Nesse dia estavam na sala um coronel dos Marines, dois
caras de terno com ares de burocratas dedicados e um sujeito de
barba escura e espessa. Tenho certeza que era árabe. E outra pessoa
de quem vi apenas os sapatos, pois estava sentado numa poltrona
virada de costas para mim. Só o coronel falou. Pouco. Nunca mais me
encontrei com qualquer deles».
O cliente da mesa do lado cansou de fazer sinais para o garçom e
acabou juntando-se ao grupo, agora em silêncio sepulcral.
«Fiquei ali trinta meses. Enquanto estudava árabe, urdu e pashto, era
treinado para sobreviver em condições de extrema penúria num
cenário totalmente hostil, e aprendia tudo sobre os hábitos e a rotina
diária de um habitante das montanhas do Waziristão, ia
gradativamente recebendo o detalhamento do plano, sempre por um
agente diferente. Percebi que assim era porque nenhum deveria ter o
conhecimento total dele».
Só o som da TV interferia agora. No bar, toda outra falação parara.
Alguém pediu. «Desliga essa merda aí...» A plateia era toda dele.
«Numa madrugada gelada de maio de 2010, um helicóptero do
exército paquistanês me deixou a uns dez quilômetros de Khisora, no
Waziristão do Sul. No meio da manhã, cumprindo os primeiros passos
da missão, apresentei-me a um dos guardas de Sheik Saeed, o mais
eficiente treinador de terroristas da Al Qaeda. Eu era um afegão de
classe média, trazia vinte mil dólares para a organização e queria
ardentemente ser um mujahedin, um valoroso soldado da Jihad.
Passei por várias etapas de verificação. A organização já fora
invadida por espiões que haviam colocado localizadores metálicos
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para guiar mísseis Hellfire contra instalações preciosas. Mas, meu
disfarce era à prova de tudo e eu fui aprovado. Estava infiltrado. A
primeira parte da missão estava cumprida. Começava a parte mais
difícil».
Agora o grupinho já somava o restante da clientela. Um casal de
meia idade, um coronel da reserva e dois estudantes universitários.
Ele olhou em torno. E continuou.
«Para que vocês compreendam melhor, o negócio era o seguinte. No
final da década de noventa, antes, portanto, do atentado ao World
Trade Center, o prestígio da Al Qaeda estava em queda. A liderança
do Bin Laden estava sendo posta em xeque. A rigor, sempre existira
uma certa resistência a ele nos meios mais tradicionais da luta
armada islâmica. Osama era filho de um pai bilionário, ligado por
interesses econômicos aos príncipes sauditas e, através deles, a
grandes magnatas europeus e americanos. Passara grande parte da
infância e adolescência na Inglaterra e se “ocidentalizara” demasiado,
na visão de alguns comandantes talibãs. E à sua pequena
organização, pouco se podia creditar em termos de ações
contundentes contra o ocidente em geral e o judaísmo internacional
em particular. Os recursos escasseavam. Mesmo da imensa fortuna
da família, Osama não conseguira trazer nem um cêntimo».
O celular de um dos estudantes começou a tocar. O “shhiuuu” foi
geral.
«Foi exatamente por essa época que a Al Qaeda recebeu uma
importante adesão. Era um californiano do sul, chamado Adam
Gadahn. Havia-se convertido ao islã ainda nos Estados Unidos,
adquirira profundos conhecimentos da cultura e da doutrina
muçulmanas e era fluente em árabe. Rapidamente, subiu na
hierarquia. Em poucos meses, chegara a Bin Laden e tornara-se chefe
das operações de relações públicas da organização, como consultor
de mídia, tradutor, intérprete cultural e porta-voz. Ninguém
suspeitava é que Adam Gadahn, agora conhecido em todo mundo
como Azzam al-Amriki, ou Azzam o Americano, era o portador de
uma crucial proposta para Osama».
Um casal de namorados assomou à porta do bar. Achou estranho o
silêncio e o fato de todos os presentes rodearem uma mesa onde
alguém parecia discursar baixinho. Pensaram que poderia ser alguma
pregação religiosa e bateram em retirada. Ninguém deu por eles.
«A Operação Tempestade do Deserto, terminada dez anos antes,
havia sido, para um poderoso grupo de industriais americanos, um
desastre. Para eles, a guerra havia parado justamente quando
deveria começar, pela invasão de Iraque e a eliminação de Sadam
Hussein. Eram os donos de gigantescos interesses em petróleo, na
fabricação de armamentos, para os quais o controle do país pelo
ditador sunita significava uma ameaça incômoda aos seus planos de
exploração. Possuíam tentáculos políticos e imensos recursos
financeiros. Não perdoaram George Bush, pai. Ele não se reelegeu.
Mas, usando os mesmos expedientes tortuosos, elegeram seu filho,
no ano 2000. George W. Bush era da patota. E sabia que a eles devia
sua apertada vitória nas urnas».
Pela primeira vez, alguém verificou que alguns copos de chope
estavam vazios. «Ô Manel, traz mais um...» O garçom retrucou.
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«Trago porra nenhuma. Só depois que esse cara acabar a história, tá
legal?...»
Ele continuou.
«Mas, a essa altura, invadir o Iraque sem mais nem menos era
impossível. A questão do Kuwait fora resolvida há tempos, o Conselho
de Segurança da ONU não autorizaria a montagem de mais uma
coligação de forças e os governos muçulmanos, mesmo detestando
Sadam, se rebelariam. Era preciso um motivo, e um motivo forte. No
início de junho de 2001, o plano, cercado das mais extraordinárias
medidas de confidencialidade e sigilo de que se tem notícia, pousou
na mesa de um importante assessor do Presidente. Era o mais
terrível conjunto de ações que a inteligentsia americana jamais
concebera, e envolvia agentes da CIA, do FBI, do Departamento de
Estado, da Secretaria de Defesa e de serviços especiais de sabotagem
e contra terrorismo. Seu objetivo era maquiavelicamente simples.
Desencadear uma série de atentados espetaculares contra alvos
ícones dos Estados Unidos e atribuir sua autoria ao terrorismo
islâmico, gerando uma reação nacional e internacional fulminante
contra o mundo árabe».
Só o dono do bar, limpando mecanicamente o balcão, ainda exercia
alguma movimentação. Todos os outros estavam imóveis, procurando
nem piscar.
«De acordo com as diretrizes do plano, entretanto, apenas travestir
os executores das ações com roupas, aparência e identidade do
médio oriente não seria suficiente para assegurar a revolta do
ocidente. Era imprescindível que uma organização terrorista fosse
convencida a assumir publicamente a responsabilidade. E era esta a
proposta que Adam Gadahn, ou Azzam al-Amriki, apresentou a Bin
Laden, no início de agosto de 2001. Em troca do recebimento de
trinta toneladas de ouro em barras, da promessa de proteção para si
e para os seus correligionários diretos e o prestígio que ganharia no
seio do Jihad, Osama selou o acordo. Em 11 de setembro, o mundo
mudou».
O comentário partiu do militar da reserva. «É a velha e boa teoria da
conspiração...» Houve um suspense digno de um filme de
espionagem. A pequena plateia prendeu a respiração. Como reagiria
ele a esse aparte inoportuno e impertinente? Ele deu apenas um
risinho condescendente e, com paciência de professor primário e na
mesma voz calma e quase sussurrante, prosseguiu.
«Parece, não é mesmo? Eu sei que há várias teorias mirabolantes a
respeito do 11 de setembro, mas vamos ver se vocês conseguem me
explicar o seguinte. Por que as torres gêmeas, que conseguiram
suportar o impacto dos aviões suicidas e não desabaram logo no
momento das explosões, de repente, uma atrás da outra, se
desmantelaram como um castelo de cartas, dentro da melhor técnica
de implosão de edifícios? Por que até hoje nenhum pedaço sequer de
aeronave foi encontrada nos destroços da ala oeste do Pentágono,
supostamente atingida por um terceiro avião? Por que, numa área
que deve estar monitorada 24 horas por câmeras de vigilância, que
são as proximidades do centro nevrálgico das forças armadas
americanas, até hoje nenhum filme foi obtido mostrando
inequivocamente o impacto desse suposto avião? Como Bin Laden,
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tendo assumido a autoria de um atentado tão terrível, e se tornado o
mais procurado homem da história, conseguiu permanecer fora do
alcance dos melhores serviços secretos do planeta por dez anos? Por
que, morando desde 2005 a menos de 100 quilômetros da capital do
Paquistão, só em 2010 foi encontrado, sabendo-se que pelo menos os
Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a Rússia possuem satélites espiões
cuja tecnologia lhes permite ver qualquer região do globo com
enorme aproximação e em tempo real?»
Deu mais um gole no chope. O coronel não achava uma resposta.
Nem os demais.
«E mais. O esconderijo de Osama foi identificado em setembro de
2010. Por que só em março de 2011, o Barak Obama ordenou a
captura dele? E como é possível que uma das tropas mais bem
treinadas do mundo falhou tão deploravelmente, acabando por matar
aquele que teria de aprisionar? E como pode ser admissível que, em
vez de trazer o cadáver do terrorista mais importante de todos os
tempos, tenham decidido dar fim ao corpo longe das vistas? Alguém
minimamente sensato pode acreditar na historieta infantil do “ritual
islâmico”? Por que a foto que apresentaram à imprensa dele morto é
uma nítida montagem? E, finalmente, como explicar que todos os
seals que participaram da malfadada operação viriam a morrer
menos de seis meses depois, na queda de dois helicópteros no
Afeganistão?»
O silêncio agora era tão espesso que se uma mosca resolvesse voar
nesse momento, o bater de suas asas teria a amplitude sonora da
voz do Pavarotti. E mais soturno ficou quando ele disse.
«Bem, para estas seis últimas perguntas, eu sei a resposta.
Simplesmente, porque eu estava lá.»
Mais uma ligeira pausa. “Agora vem a grande revelação”, pensaram
todos.
«Como disse no início, eu tinha uma missão quase impossível. E essa
missão era salvar Osama bin Laden. Entendam o seguinte. Depois do
11 de setembro, os mandantes do atentado cumpriram o combinado.
Com agentes infiltrados nos principais serviços de inteligência e
conexões ultra-secretas nos governos do Afeganistão e do Paquistão,
conseguiram manter Bin Laden a salvo da intensa procura que órgãos
como a CIA, o FBI, o Mossad, o M16 e até o GRU russo
desencadearam desde a queda das torres e a apresentação da AlQaeda como executora do golpe. Sabiam antecipadamente das
operações e proporcionavam os meios para que Bin Laden escapasse.
Isto durou até 2005. Nesse ano, operou-se uma completa
reorganização dos serviços de espionagem americanos, com a CIA
perdendo a sua hegemonia histórica e o controle passando para o
recém-criado DNI. E nessa nova organização, os mentores do 11 de
setembro não puderam plantar seus espiões. Mas, tinham um trunfo.
George W. Bush ainda estava na presidência do país.»
Um mosquito resolveu mesmo voar, e foi abatido por um violento
tapa do garçom. Seu zumbido era barulho demais para um momento
tão solene.
«Em 2007, com o sucesso eleitoral de uma candidatura democrata
cada vez mais provável, eles resolveram montar uma operação para
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proteger o Emir. Bin Laden era um arquivo. Sabiam que o líder da Al
Qaeda se preparara e, no caso de sua captura ou assassinato, um
grupo de fiéis seguidores seus derramaria uma torrente de
informações, expondo os verdadeiros nomes dos responsáveis pelo
11 de setembro na imprensa mundial. Sem possuir mais o controle
da CIA, com suas conexões interrompidas junto aos outros serviços
secretos no mundo, haviam perdido a capacidade de prevenir a caça
ao terrorista mais procurado do mundo. Estavam até desconfiados de
que, dentro da Al Qaeda, já havia dissidentes de peso prontos a
entregar Osama em troca de dinheiro. Decidiram agir, então por
conta própria. E foi aí que eu entrei no processo.»
Mais uma pausa. "O cara sabe como criar suspense…quem diria…",
pensou Francisco. O outro prosseguiu.
«Como eu já disse, em maio de 2010, disfarçado como um autêntico
mujahedin, eu estava infiltrado na Al-Qaeda. Era crucial que ninguém
dentro da organização soubesse o que estava fazendo ali. A não ser o
meu contato, Azzam, o Americano. Com muita cautela, ele foi
promovendo minha ascensão pelos postos hierárquicos do grupo, até
que, em outubro, eu conseguira ser destacado como auxiliar de
segurança da mansão de Abbottabad. Estava posicionado. Por essa
altura, desconfiava-se que uma operação para invadir a residência e
sequestrar o Emir estava sendo montada. Mas, não se sabia nem
quando nem como. Em janeiro de 2011, eu, Azzam e Bin Laden, as
únicas três pessoas que sabiam o inteiro teor da minha missão,
aperfeiçoamos os detalhes finais. A seguir, selecionamos
cuidadosamente um outro mujahedin de total confiança e pronto para
morrer pela causa. E que era fisicamente parecido com Osama. E
esperamos.»
José oscilava entre a dúvida e a admiração. Enquanto o ex-colega
falava, ficara tentando lembrar-se dele na faculdade. Quase nada
digno de nota. Perfil baixo, silencioso, independente, sempre sério.
Não aparecia nas festinhas, nenhuma namorada… Antipático?… não,
também não era. Imperceptível. Sim, era isso. Parecia possuir o dom
de desaparecer na paisagem. "Será que ele está falando a verdade?…
parece tudo tão real…"
«Eram dez para a meia-noite do dia primeiro de maio, quando
ouvimos o bater cavernoso das hélices dos helicópteros. Pelo som,
pude reconhecer. Dois Black Hawks se aproximando, voando rente ao
solo. Isso queria dizer seals descendo em rappel, por cima dos
muros, nos terrenos da mansão e talvez pelo telhado do terceiro
andar. Havíamos antecipado essa possibilidade. Rapidamente, vesti
meu equipamento. A seguir, acionei as turbinas de ar quente que
tínhamos instalado junto aos muros que circundavam o maior dos
terrenos, onde um dos Black Hawks certamente tentaria pousar. Os
helicópteros já estavam em cima da casa. De repente, um deles,
atingido pelas rajadas de vento aquecido, começou a girar, inclinouse uns quarenta e cinco graus e caiu com um estrondo infernal. Não
precisei ver mais. Sabia que isto retardaria a ação dos comandos,
mas não iria impedir a missão. O outro helicóptero estava
aterrissando perto do portão principal. Corri para dentro. O Emir já
estava pronto. Quase não o reconheci sem barba. Ele fez um sinal e
desapareceu pela porta do alçapão. Os seals já estavam entrando na
casa. Joguei quatro granadas fumígenas e esperei. Assim que o
primeiro entrou, apareci a seu lado, vestindo um uniforme igual,
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agindo de acordo com o mesmo treinamento, fazendo os mesmos
gestos. No meio da fumaça, achou que eu fazia parte do team.
Indiquei a escada. Ele entendeu e prosseguiu. Dois mais apareceram.
Mandei-os seguir o primeiro. Nesse momento, rajadas de AK-47 e
disparos de carabinas H&K 416 começaram a ecoar pela casa. Do
terceiro andar, vieram três detonações abafadas. Haviam encontrado
o mujahedin. Mordido a isca. Verifiquei que não havia ninguém por
perto, abri o alçapão e entrei no túnel.»
E aí, ele fez uma coisa que ninguém esperava. Olhou para o relógio e
disse.
«Puxa, são quase seis. Tenho de ir embora. Desculpem pela
falação…»
E saiu, deixando o bar em completo silêncio, os componentes da
plateia mudos como estátuas.
Estátuas. Foi o que Raimundo, o auxiliar de garçom viu quando
entrou no bar, segundos depois.
«Ué…», disse ele, espantado com a cena. «Faltou chope?…»
Saindo do torpor, Francisco levantou-se e correu para a porta. Nada.
O ex-colega havia desaparecido. Voltou. Os outros olharam para ele.
«Sumiu…» E, voltando-se para Raimundo. «E aí, cara, você não viu
um sujeito saindo do bar quando você entrou?… Baixinho, de calça
jeans, camisa polo…»
Raimundo coçou a cabeça.
«É… vi… quer dizer, vi que alguém entrou num big carro preto que
estava aqui na frente… Achei até meio estranho, um puta carro de
rico por aqui…»
Deu um meio sorriso.
«O mais esquisito é que tinha um cara sentado no banco de trás. A
janela estava aberta e eu consegui ver a cara dele. Parecia muito
aquele terrorista que a televisão tanto fala… um tal de Bin Laden…
Mas, ele tá morto, né?»
Oswaldo Pereira
Abril 2012
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JOÃO PENHA
«Ahê João Penha, cadê teus assados?...»
A frase, na voz modulada e grave de meu tio, ecoava pelas paredes
da cozinha modesta, fogão a lenha, linguiças penduradas numa corda
encardida, a defumarem em cima do carvão, uma mesa tosca coberta
com um plástico colorido, um armário de pinho e os quatro bancos
onde ele, eu e meus dois primos sentávamos. Noite de inverno. Lá
fora, promessa de geada, o vento cantando no silêncio, e, para além
do quintal da casa, as ruas irregulares e enlameadas da pequena
cidade do interior mineiro.
Eu devia ter uns dez anos. Nas férias, de verão ou as do meio do ano,
vinha sempre para Minas. Para mim, era a vida real, a que gostava
de viver, na liberdade dos banhos de rio, nas caçadas de passarinho,
nas peladas de futebol nos terreiros, no café da manhã com o leite
ainda quente do úbere de onde fora tirado, do cheiro de bosta no
pasto e de sassafrás nos bosques, e de lenha queimada, que
dominava a vila na hora da janta.
Meus dois primos, regulando comigo de idade, eram os irmãos que
meus pais não me haviam dado e compensavam, nestes meses sem
aulas, a solidão de filho único confinado num apartamento da cidade
grande. Os tios eram especiais: ela, irmã de meu pai, um desvelo
imenso com a casa, com o marido e com os dois meninos; desvelo
que se estendia naturalmente a mim quando chegava do Rio. Ele,
uma figura inesquecível. Parecia um samurai caboclo, as feições
decididamente orientais esculpidas por uma descendência que devia
alicerçar-se em fortes doses de sangue índio, com traços delineados
do branco português e umas pitadas suaves de influência do negro
africano. Era relojoeiro de ofício, pescador por gosto, habilidoso de
mãos, faz-tudo honorário. E um grande contador de histórias.
Não sei de onde as tirava. Provavelmente, juntava um pouco do que
lera, do que ouvira, de relatos entremeados de lendas, de irmãos
Grimm temperados com folclore brasileiro, Hans Christian Andersen
posto num liquidificador juntamente com Monteiro Lobato, tudo
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evidentemente regado com o sumo potente de sua própria
imaginação. Eram muitas. Batalhas, assombrações, viagens
fantásticas, cavaleiros alados, reis poderosos. Mas, especialmente
para as noites de inverno, guardava as mais eletrizantes.
Como essa, com ares de Idade Média, que falava de um ser cruel e
sanguinário cuja aparição numa floresta havia apavorado as gentes
das fazendas que a margeavam. Eram criadores de gado que, num
dado momento, tinham começado a notar o desaparecimento de suas
rezes, apanhadas por alguém na calada da noite. Depois de
confirmarem que nenhum deles roubava o vizinho, decidiram entrar
na floresta, à procura do ladrão. Depois de caminharem por horas,
finalmente chegaram a uma clareira… da qual saíram o mais depressa
que puderam, com o coração gelado de pavor. Não havia naquele
momento ali ninguém, mas a altura da palhoça situada no meio do
terreiro, o tamanho dos utensílios ali encontrados, as marcas
deixadas no chão por um calçado enorme, o imenso fosso cavado na
terra, onde os ossos calcinados de dezenas de animais largavam um
cheiro pestilento, os haviam convencido: o ladrão das rezes era
alguém de extraordinária força e estatura descomunal. Um gigante. O
pavor dominou a região. Não tinham com que confrontar o inimigo;
eram gente pacata, sem armas, sem apoio militar – e sem coragem
para resolver o problema. As rezes continuavam desaparecendo à
noite, enquanto todos se trancavam em casa, procurando não ouvir o
mugido apavorado do gado e o estalar das madeiras sendo quebradas
nos currais. E quando o rebanho acabasse? Será que o gigante os
atacaria? Os donos das fazendas reuniram-se e decidiram procurar
ajuda. Foram às vilas vizinhas, distantes muitas léguas; foram ao
pároco de uma igreja a dois dias de viagem; foram ao burgomestre
do condado, ao capitão da guarda. Todos estavam longe, e pouco
interessados em ajudar - o problema, afinal, não era deles.
Entretanto, em um dos lugarejos a que haviam recorrido sem êxito,
alguém comentou sobre a existência de um homem cuja valentia era
sobejamente conhecida. Segundo o relato, esse homem já lutara
com, e vencera, adversários tremendos, criaturas demoníacas,
animais selvagens e peçonhentos e, afirmavam, também alguns
gigantes… Além disso, diziam, era exímio assador de carnes, um
mestre na preparação de churrascos, profundo entendedor da arte de
selecionar e grelhar bons cortes de bois, porcos, javalis, veados e
demais bichos de caça. Seu nome era João Penha. Obviamente, os
fazendeiros logo se interessaram. Mandaram mensagens a quem
pudesse encontrar esse herói, informando que desejavam contratálo. E, num dia antes da hora do almoço, ele chegou. Os fazendeiros
contaram-lhe o que estava acontecendo, descreveram o que tinham
visto no meio da mata. João Penha nem pestanejou. Pediu apenas
que lhe dessem uma boa rês e embrenhou-se na floresta, levando o
animal. A meia distância da clareira, matou a rês, acendeu o fogo e
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começou a assar a carne. Sabia que o cheiro iria atrair o gigante. Não
demorou muito. Logo começou a ouvir os estalidos de árvores sendo
quebradas com a passagem de algo muito grande e pesado e, então,
a voz que parecia um trovão ecoando pelos ares: «Ahê João Penha,
cadê teus assados?» Pelos vistos, a fama do destemido caçador de
monstros já chegara aos enormes ouvidos do gigante. João Penha
gritou de volta: «Tá aqui; vem buscar!» Passado um momento, o
gigante chegou. Não viu o adversário, mas o cheiro delicioso da carne
bem assada sobre o braseiro foi mais forte que a prudência. Lançouse na direção do espeto colocado em cima do fogo disposto a devorar
aquela maravilha de almoço, nem percebendo que nesta hora, João
Penha, que estrategicamente se escondera numa árvore bem em
cima do churrasco, estava saltando-lhe sobre o dorso e passando-lhe
uma corda em torno ao pescoço. Foi uma luta incrível. O gigante tudo
fez: pulou, corcoveou, balançou, para ver se tirava o corajoso
caçador de cima de si. Mas, não conseguiu. Aos poucos, o arrocho da
corda foi-lhe tirando o fôlego. Mais alguns minutos de esforço
supremo, e o gigante desabou em cima do fogaréu e morreu. A
celebração entre os fazendeiros foi grande. Deram ao fantástico
lutador que os livrara do perigo algumas moedas de ouro e várias
cabeças de gado. E ele partiu, rumo a novas aventuras, não sem
antes preparar um churrasco de despedida, cujo sabor ficou para
sempre na memória daquele povo.
Durante aquele inverno, João Penha ainda protagonizou mais umas
duas histórias, sempre vencendo seus inimigos. E estaria
definitivamente entronizado na minha galeria de heróis não fosse o
estranhamento que me causava seu nome. Os grandes paladinos da
época tinham nomes superlativos: Superhomem, Capitão Marvel,
Flash Gordon, Brick Bradford, Kit Carson, nomes que pareciam com
os dos artistas de cinema, adequados às tremendas missões em que
se engajavam. Mas, João Penha!?
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Trinta e cinco anos depois, eu estava em Portugal. O vendaval da
vida e seus redemoinhos me haviam transportado do Brasil para
vários países, vários cursos, vários empregos. Há dez, viera eu para
este adorável país, de povo gentil e natureza doce, cujo charme
quinhentista ainda perdura nos castelos de uma era de poder e
conquista e o amor à terra dita lições de sabedoria popular, levada
por seus emigrantes para os sertões de Minas onde fora eu criado.
Assim, logo me identifiquei com o jeito das gentes, sua cadência
franca, que soa às vezes rude a alguns ouvidos, mas que traduz uma
honestidade de crença raramente vista nos outros muitos lugares por
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onde passara. Fui reencontrar provérbios que ouvira de meus avós,
redescobrir comidas cujo nome havia atravessado o oceano e cuja
receita se adaptara ao celeiro do Novo Mundo, reconhecer antigas
canções de ninar, a mim cantadas nas noites tropicais com outro
sotaque.
Fiz o curso de Regente Agrícola em Santarém. Bem diferente das
ocupações financeiras exercidas anteriormente, mas o meu amor pelo
campo, germinado ainda no Brasil, finalmente se sobrepusera às
escolhas sem vocação que fizera ao longo da vida e, finalmente, me
apontara um sentido para minha vida profissional. E fui trabalhar
numa pequena comunidade agrícola no distrito do Porto, perto de um
vilarejo chamado Corvos.
Nesse meio tempo, Portugal também passara por seu vendaval, uma
tempestade política cujos ventos precursores já se anunciavam
mesmo antes da incapacitação, e depois morte, de Salazar. O breve
Governo de Marcelo Caetano apenas se aguentara enquanto o
momento inercial das décadas salazaristas o fizera flutuar uns poucos
anos sobre a boca de um vulcão com prazo de erupção marcado. Não
foi necessariamente uma surpresa para ninguém quando, em Abril de
1974, a caldera explodiu. Foi o turbilhão que se seguiu, as ondas
partidárias se movimentando como loucas, o pêndulo do poder levado
a extremos que transportaram a vida portuguesa a um nível de
paixões e sobressaltos inédito há mais de meio século. Mas, depois
de beber com sofreguidão os cálices da liberdade subitamente
escancarada, e de sofrer a ressaca do porre libertário, o país deixou o
clamor arrefecer e tropegamente de início, mas decidido depois,
caminhou para a calmaria de um governo representativo de viés
centro-socialista.
Em 1986, ano em que se passa o que vou a seguir narrar, o país se
modernizava rapidamente, alimentado pelo dinheiro que fluía dos
mananciais dos grandes financiadores externos e se preparava para
entrar no Mercado Comum Europeu. Estava deixando de ser uma
nação eternamente virada para o mar do poente e para o norte da
África, em que jogara seu destino nos oito séculos precedentes, e se
tornava parte do seleto clube formado por seus vizinhos. Para a
grande maioria dos portugueses, esta virada, que significava a
abertura total das fronteiras, o intercâmbio franco com o resto da
Europa, a abolição de restrições trabalhistas e negociais, a construção
de novas estradas, a melhoria dos serviços de comunicação, o
reaparelhamento da indústria turística e, porque não dizer, um
refinamento de gostos e de posturas, era uma mudança mais do que
bem-vinda. Para outros, entretanto, não.
Naquele ano, eu já estava há quase cinco na pequena comunidade
agrícola. Eram cerca de doze produtores de tomate, que estavam
64
juntos por várias gerações perpetuando seus métodos ancestrais de
plantio e de vida. Com suas famílias, somavam pouco mais de cem
pessoas, simples, quase rudes, profundamente religiosas e devotadas
de corpo e alma àqueles pedaços de terra derramados por uma
encosta suave, fertilizados com o suor e a esperança de seus pais,
avós e bisavós. Eu viera em Abril de 1981. Os tomateiros estavam
sendo atacados por vários tipos de pragas e doenças, cuja virulência
derrotava os antigos métodos de combate. O anúncio estava em um
jornal do Porto e era lacônico como quem o colocara. Só quando lá
cheguei, me apresentaram as condições. Não podiam pagar muito,
nem havia qualquer conforto ou benesse no lugar de trabalho e o
horário era de sol a sol e mais um pouco… Mas eu resolvi aceitar.
Algo no olhar determinado daquela gente de poucas falas e no
desafio que me propunham vibrou uma corda dentro de mim, como a
voz de uma predestinação. Vencemos o míldio, a podridão cinzenta, o
lagarto, a mosca branca. E eu fui ficando. Vinha cedo de Póvoa de
Varzim, onde me instalara, e voltava tarde. Decidi comprar uma casa
ali mesmo. E conheci uma moça dali. E me casei.
E então, no ano em que Portugal se filiava ao Euromercado e grande
parte da população saudava o evento como uma redenção, uma
grande ameaça assombrou a pequena comunidade agrícola da qual
eu já era parte pelo casamento e pela vontade. Uma das mudanças
operadas pela nova situação foi a transformação do conceito de
comércio varejista e o aparecimento das grandes superfícies, que é
como os portugueses denominam os mega shopping centers e os
hipermercados. Logo, uma grande cadeia internacional identificou a
região como ideal para plantar uma imensa unidade, cuja área de
estacionamento engoliria totalmente as terras dos tomateiros. À
primeira investida, que oferecia preços irrisórios pelas propriedades,
os fazendeiros reagiram com indignação; à segunda, com valores um
pouco aumentados, responderam com indiferença e a clara indicação
de que seus terrenos não estavam à venda. As portas para
negociação foram fechadas. Mas os compradores não desistiram.
Começaram, a partir daí, a exercer, com extrema competência, todo
tipo de pressão junto ao poder público das cidades vizinhas e do
distrito, junto às associações sociais, junto aos grêmios religiosos e
desportivos, para que os tomateiros entregassem os pontos e suas
terras. Era uma batalha inglória. Horrorizados, ainda verificamos que
nenhum dos fazendeiros possuía título legal de suas propriedades,
que haviam sido passadas de pai para filho há gerações, sem
qualquer preocupação legal de registrá-las. Estávamos sós.
Certo dia, entretanto, um amigo meu da Póvoa indicou um advogado
do Porto. Era, segundo ele, um profissional de rara eficiência, que
havia ganho causas dadas como perdidas e confrontado com sucesso
famosos escritórios de advocacia nacionais e estrangeiros. Seu nome
era Dr. Arthur de Medeiros.
65
Fui procurá-lo, com poucas esperanças de êxito em contratá-lo, pois
não era muito o que podíamos pagar e, no estágio em que as coisas
estavam, menos ainda eram as possibilidades de sucesso. Tínhamos
contra nós não só a falta de uma base documental que
fundamentasse a nossa posse, como um poderoso inimigo cujo
representante legal era, nada mais, nada menos, do que uma das
mais tradicionais e conceituadas firmas de advocacia da Península
Ibérica. “Anões contra um gigante”, foi a metáfora que usei ao
apresentar, com toda a honestidade, nossa causa ao Dr. Medeiros.
Para meu espanto, ele, sem sequer pestanejar, aceitou patrociná-la.
O que seguiu foram três anos de uma guerra sem quartel, na qual
todos os argumentos, truques jurídicos, filigranas legais, petições,
agravos e recursos foram postos e interpostos. A luta desdobrou-se
por várias instâncias e era admirável ver como que destemor e
maestria o nosso advogado rebatia o ataque adversário, como
escapava das armadilhas processuais da outra parte e como se
sobrepunha com elegância e precisão às estratégias dos seus
oponentes. Por fim, numa magistral defesa junto ao Tribunal Judicial
do Porto, em que colocou os juízes ante a crucial decisão de ferir de
morte uma comunidade que incorporava os ideais lusos de amor à
terra, a Deus e à família ou dar a ela o reconhecimento de mais de
um século de labuta e sacrifício, ele conseguiu convencer o plenário.
Ganhamos a causa e o direito de mantermos nossas casas e os
nossos tomateiros.
Dias depois da homologação da sentença, fui ao Porto levar o nosso
agradecimento e os honorários ao Dr. Medeiros. Por escolha dele, a
reunião foi em sua casa, uma bonita residência perto da foz do
Douro, onde ele morava com a mulher e dois filhos adolescentes. Fui
recebido com a mesma alegria franca que parecia sempre
acompanhá-lo nos muitos meses em que havíamos convivido. Minha
gratidão era imensa e fiz tudo para que ela transparecesse de
maneira natural e amiga. Sabia que, por nossa causa, ele granjeara
resistências importantes no meio empresarial e uma plêiade de
inimigos. Se tinha consciência disso, não demonstrava.
Era verão e a casa estava cheia de casais amigos. Pelo cheiro
delicioso que vinha do quintal, percebi que preparavam uma grande
sardinhada. Ele segurou-me pelo braço e disse jovialmente: «Venha,
venha provar da minha especialidade. Sem modéstia alguma, possolhe dizer que sou um mestre com braseiros. E estas sardinhas, fui eu
mesmo comprá-las lá na Ribeira.»
Há muito não passava uma tarde tão agradável. Ao despedir-me, o
Dr. Medeiros acompanhou-me até a porta. Abraçamo-nos
fraternalmente. E ele falou:
66
«Bem, vou arranjar tempo para ir visitá-los lá em Corvos. De
qualquer maneira, fique com um cartão meu, caso precise de mais
alguma coisa.» Olhei com interesse para o pequeno retângulo de
papel. Além do endereço e do telefone do escritório, ele havia
adicionado à mão o número residencial. Mas o que me chamou mais
atenção foi o nome, impresso em relevo:
J. ARTHUR DE MEDEIROS P.
ADVOGADO
Ele deve ter percebido a minha curiosidade.
«Pois é, o nome pelo qual eu deveria ser conhecido não é Arthur de
Medeiros, mas desde o Liceu, acho que por ter maior sonoridade,
esses nomes do meio se sobrepujaram aos do início e do fim. Tanto é
que acabei suprimindo-os. Meu nome completo é João Arthur de
Medeiros Penha. Eu deveria ser conhecido mesmo era como João
Penha…»
Finalmente, mais um nome se entronizava na minha galeria de
heróis.
Oswaldo Pereira
Fevereiro 2010
67
ANTECEDENTES
Em 1961, dois guardas florestais do IBDF, então uma autarquia do
Ministério da Agricultura, exploravam uma trilha no recéminaugurado PARQUE NACIONAL DO MONTE PASCOAL, quando, num
barranco escavado pelas abundantes chuvas que haviam caído na
semana precedente, uma coisa chamou-lhes a atenção. O ângulo
superior do que parecia ser um recipiente de metal escurecido
projetava-se para fora da escarpa de terra vermelha, e ainda
ensopada, que margeava a trilha, incrustado no barro e
provavelmente tornado visível pela ação da água que erodira boa
parte do caminho. Levaram algum tempo para extraí-lo do barranco.
Quando finalmente o libertaram do abraço da terra, enlameados pela
empreitada sob a garoa fina, viram que se tratava de uma caixa
68
retangular de ferro, com cinquenta centímetros por trinta de
superfície e uns vinte de altura. Uma língua torneada saia da tampa
e unia-se a uma argola na parte inferior, na qual um suposto
cadeado, que já não mais existia, devia trancar a caixa. Era,
portanto, um cofre. E tinha aspecto de ser antigo, muito antigo.
Ao abri-lo, com algum esforço, visto que a oxidação do tempo quase
soldara a tampa em seu encaixe, descobriram que o cofre continha
um maço de papéis amarelados, escritos à mão em caligrafia
desenhada, uma pena quase toda desfiada e um botão em ouro
maciço, com o relevo de um escudete, a “quina de cinco besantes”,
símbolo nacional português desde os tempos de Afonso Henriques.
Além de ser antigo, concluíram, o achado deveria ter algum valor
histórico.
A partir daí, o achado sofreu uma trajetória tortuosa, absolutamente
inglória e nada condizente com sua origem e seu propósito.
Animados pela perspectiva de realizar algum dinheiro com a venda
dos objetos, mesmo sem terem condições de avaliá-los corretamente,
os dois funcionários procuraram seu chefe, um engenheiro que
desprezava as chamadas ciências humanas e considerava tudo o que
não fosse participante do terreno das realidades matemáticas uma
deplorável perda de tempo. Ele olhou com certa repugnância para a
caixa enferrujada e suja de terra em cima de sua mesa e resumiu,
curto:
«Esta velharia não deve valer nada. Estou farto desta mania de se
ligar para o passado. O que este país precisa é de futuro, não de
passado. Vejam o que foi feito nos últimos cinco anos pelo Juscelino.
Nova capital, novo país. Livrem-se disto.»
Desapontados, os dois guardas levaram a caixa para um galpão
velho, onde ficava um almoxarifado de coisas à espera de conserto
ou abandonadas. Não sem antes um deles, sub-repticiamente e às
escondidas do outro, pegar o botão dourado e guardá-lo no bolso.
“Isto não é passado”, pensou. “É ouro e vale grana.”
E ali, por vinte e oito anos, o cofre ficou, empoeirando-se nas
sombras do galpão. Até 1989. Nesse ano, houve uma mudança geral.
O IBDF foi extinto, criou-se o IBAMA. O almoxarifado foi demolido.
Praticamente tudo o que lá estava dentro foi destinado ao lixo. Os
empregados encarregados de esvaziar o edifício limitaram-se a
carregar seu conteúdo em grandes caminhões-caçamba, meio
contrafeitos por estarem cumprindo tarefas de gari. Nada iria sobrar.
Mas o destino, às vezes, traça linhas estranhas.
Um dos empregados procurava há tempos uma caixa de metal, onde
pudesse guardar suas ferramentas. Ao se deparar com o recipiente
oxidado em cima de uma prateleira arqueada, quase soltou um grito
de alegria: era exatamente o que precisava! Segurou-o, examinou-o,
estimou o trabalho que teria para limpá-lo, lixá-lo, oleá-lo. E então,
abriu-o. As folhas de papel amarelecido e a pena desfiada caíram ao
chão. Ia-se retirando com o cofre sem ligar para o conteúdo
espalhado no assoalho, quando um colega comentou:
«Vai deixar esta papelada aí?»
Ele retrucou:
69
«Qual é o problema? Quando a gente acabar, o pessoal da limpeza
vem fazer a faxina.»
«Não é por isso», o outro falou. «É que pode ser alguma
documentação importante…»
«Aqui neste lixo?!»
«Ué…, sei lá. Esses caras novos do IBAMA parecem ligar para tudo o
que é papel. Estão a fim de levantar tudo o que foi feito no tempo do
IBDF. Vou pegar uns envelopes e entregar isso lá pro Jonas, da
Administração.»
E assim, as folhas, acondicionadas em dois envelopes pardos,
tamanho A1, foram parar nos escritórios da empresa de mudanças
com sede em Salvador. A pena de ganso, desfiada e quebradiça,
permaneceu no chão do almoxarifado em desmonte até ser varrida
para o interior de um imenso saco de plástico preto, desaparecendo
para sempre.
Dez anos depois, os envelopes já haviam passado por duas vendas de
empresa, três mudanças de cidade, várias reorganizações funcionais
e inúmeros armários, escaninhos, gavetas e arquivos. Sem jamais
terem sido abertos.
Então, em um dia de 1999, o gerente administrativo de uma firma
em rápida expansão teve um inesperado encontro com a História.
Sua empresa havia adquirido o controle de um grande escritório de
engenharia e iniciava as providências de absorção de seus arquivos e
seus controles e de integração das suas rotinas administrativas. Ele
era o homem “chave” do processo. Vinha com autoridade suficiente
para abrir todos os livros contábeis e societários, conhecer e,
eventualmente, modificar seus princípios de organização e métodos,
sua política de recursos humanos, sua gestão de caixa. Tinham-no
sugerido vir com uma equipe. Mas ele gostava de trabalhar sozinho;
trouxera apenas sua secretária, que estava consigo há anos.
E foi ela quem lhe apareceu, logo de manhã, com dois grandes
envelopes pardos, comentando sem emoção:
«Achei isto naquela sala vazia do fundo do corredor, onde, dizem,
guardavam o arquivo morto. Estava na última prateleira de um
armário embutido, no alto, quase invisível. Quer que eu dê uma
olhada ou o senhor mesmo quer examinar?»
Quando puxou com cuidado as folhas do interior do primeiro
envelope, o gerente levou apenas alguns segundos para entender do
que se tratava. Na mesma manhã, telefonou para a Bibliotheca
Nacional, de onde vieram dois pesquisadores. Depois de vencidos
vários entraves burocráticos, as folhas, agora passando por inúmeros
processos de recuperação e preservação, foram apresentadas a
diretores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No ano
seguinte, com pouquíssima cobertura da imprensa, elas foram
incluídas num acordo de troca de bens culturais entre Brasil e
Portugal. Hoje, sem nunca terem sido divulgadas, repousam no
Instituto dos Arquivos Nacionais em Lisboa – mais conhecidos como a
Torre do Tombo, mais precisamente no Armário 6, maço no. 3. Não
estão disponíveis para consulta pela Internet.
70
Oeste
40
Norte
20
0
1° Trim 2° Trim 3° Trim 4° Trim
DESCRIÇÃO
São trinta e seis folhas de papel de linho, escritas a pena de ganso
apontada e biselada à direita (o que permite um traço fino e
uniforme), em tinta preta (provavelmente confeccionada à base de
cinza de carvão e goma), e de tamanho correspondente ao atual
almaço. Foram guardadas sem dobrar, o que preveniu a existência de
sulcos e deformações. A caligrafia pode ser classificada como semicursiva humanística e, como todos os escritos da época, revela
características pessoais do escrevente, indicando tratar-se de pessoa
de cultura e posição social de pouca tradição, mas esmerada.
Seu atual estado, levando em consideração as circunstâncias em que
foram encontradas, sua manipulação, e a inexistência de preservação
adequada ao longo do tempo, confirma com absoluta certeza que são
autênticas e condizem com as datas de sua escrita, constantes do
texto, isto é, entre março e setembro de 1500. São seis cartas,
dirigidas ao então Rei de Portugal, D. Manuel I e estão assinadas por
D.° dabreu.
HISTÓRIA
Até a descoberta das cartas, nada se sabia sobre Diogo de Abreu.
Especula-se que qualquer menção à sua existência tenha-se perdido
no incêndio que devorou os documentos da Torre do Tombo, em
seguida ao terremoto de 1755. Mesmo depois do exame e da leitura
das folhas encontradas na Bahia, apenas referências cruzadas foram
capazes de revelar algo sobre ele, ainda assim permeado de dúvidas
e mistérios. O que não chega a surpreender.
Se for realmente verdade o que se pode hoje deduzir, Diogo de Abreu
era uma figura das sombras, designado por El-Rei para uma missão
confidencial, cujo sucesso dependia de ter de viajar incógnito e agir
silenciosamente. Diogo de Abreu era, assim, a versão quinhentista do
que atualmente se conhece por agente secreto - um espião a serviço
de Sua Majestade.
Uma das poucas indicações que se tem sobre ele o liga à figura de
outro personagem histórico da época dos descobrimentos: o capitão
Gaspar de Lemos, cuja identidade também tem suscitado
controvérsias e para a qual existem duas versões. Uma o descreve
como fidalgo descendente de uma família morgada, originária do
reino de Leão, que viera para Portugal durante o reinado de Afonso
IV (1325-1357). Outra conta que Gaspar de Lemos era, na realidade,
Gaspar da Gama, um aventureiro judeu, recolhido na Índia por Vasco
da Gama, que lhe deu nome cristão e apadrinhou-o com o seu
sobrenome. Esta fonte afirma que ele nascera na Polônia por volta de
1445 e que sua família fugira para a Itália em 1450 por não querer
renegar a fé judaica. Daí, teria peregrinado pela Terra Santa, pelas
Arábias e pelo Egito. Anos depois, já homem feito, chegara a Goa,
onde ganhara prestígio e, graças aos conhecimentos náuticos
adquiridos em suas muitas andanças, o posto de capitão-mor da
armada do sultão de Bijapur, Adil Kahn, dono da ilha de Angediva,
onde os navios de Vasco da Gama, de regresso a Portugal,
71
fundearam em Setembro de 1498. Apresentando-se ao descobridor
português como um cristão que fora feito prisioneiro de Adil Kahn, a
intenção do capitão mercenário era recolher informações sobre a
frota, para depois atacá-la. O ardil não convenceu o navegador
lusitano, que mandou prendê-lo e açoitá-lo, até confessar a verdade.
Mas, ao fim e ao cabo, Vasco da Gama apiedou-se. Afinal, era um
europeu, entendia de navegação e sabia falar várias línguas, inclusive
alguns dialetos indianos; podia ser útil no futuro. Resolveu levá-lo.
Desta forma, em Setembro de 1499, Gaspar da Gama chegou a
Lisboa.
Os países da península ibérica estavam no auge de seu poderio e de
sua expansão. Portugal ainda mais, pois saíra na frente de seus
vizinhos, na corrida para quebrar o monopólio dos venezianos no
comércio das especiarias. A descoberta do caminho marítimo para as
Índias pelos portugueses fora um duro golpe nas pretensões
espanholas, que haviam resolvido apostar tudo no projeto de
Colombo. Um projeto, diga-se de passagem, que fora apresentado
primeiramente pelo genovês à Coroa portuguesa, tendo sido rejeitado
por conter erros primários no que dizia respeito aos cálculos de
distância e ao tamanho da circunferência terrestre. O fato era que os
portugueses estavam tecnologicamente, principalmente com relação
à capacidade de navegação no Mar Oceano, muito mais avançados
que qualquer outro país. Já há mais de um século haviam vindo a
absorver e adaptar conhecimentos desenvolvidos por matemáticos,
astrônomos, geógrafos e cartógrafos estrangeiros, que eram
convidados a morar em Portugal e a trabalhar como conselheiros dos
reis portugueses e dos membros da corte. Enquanto Castela
expulsara os judeus de seu território, D. João II havia reunido alguns
de seus melhores sábios na arte de navegar, para ajudar no
desenvolvimento das técnicas náuticas. Já em 1420, o Infante D.
Henrique trouxera, de Maiorca para Sagres, Jehuda Cresques, depois
conhecido como o “Judeu da Bússola”, que ensinara aos portugueses
o uso do instrumento. Outra fundamental contribuição desse grupo
de conselheiros, que incluía ainda grandes nomes como o médico e
cientista José Vizinho e o astrólogo Abraham Zacuto, foi a
simplificação do uso do astrolábio, que veio substituir, com enormes
vantagens, o quadrante, tornando-o, no linguajar de hoje, user
friendly,
tanto
para
capitães-mores
como
para
marujos.
Adicionalmente, a indústria naval portuguesa desenvolvera novos
modelos de navios, como as caravelas, barcos ágeis e velozes, de
velas pequenas e fáceis de manobrar. Assim, neste final do século
XV, Portugal, aonde agora aportava Gaspar da Gama, era a maior
potência marítima do planeta.
A efervescência era enorme. O feito de Vasco da Gama começava a
se espalhar pelo reino e pelas vizinhanças. A corte de D. Manuel era
um magneto que atraía navegadores de todas as partes,
exploradores ansiosos para se lançarem à “Carreira das Índias”, atrás
de aventura, fama e fortuna. Para o Rei, o importante era consolidar
a conquista: o caminho estava aberto; agora era preciso pavimentálo com uma nova expedição que assegurasse as linhas de comércio,
sustentasse a administração dos entrepostos criados no Oriente,
consolidasse os pactos e tratados estabelecidos com os potentados
indianos, especialmente com Samudri Rajah, o Samorim de Calicute e
plantasse uma feitoria no coração do país das especiarias. Na opinião
do Rei e de seus conselheiros, era mister o comissionamento de uma
72
esquadra de respeito, grande e forte o suficiente para transportar
boas quantidades de mercadorias e subjugar eventuais obstáculos.
Paralelamente, enquanto uma parte das atenções reais se ocupava do
oriente, rumores sobre a existência de largas porções de terra a
oeste esvoaçavam insistentemente pelos corredores palacianos. Toda
a gente, talvez à exceção só do próprio Colombo, já sabia que o
genovês não chegara à China, muito menos às Índias. Mas, chegara a
algum lugar. Qual a extensão deste lugar? E que tesouros guardaria?
Felizmente para Portugal, o Tratado de Capitulação de Partição do
Mar Oceano, assinado cinco anos antes em Tordesilhas, conferia aos
lusos a posse de qualquer terra descoberta até 370 léguas a oeste de
Cabo Verde. Esse Tratado fora uma fantástica vitória diplomática de
D. João II, antecessor de D. Manuel. Combinando habilmente
ameaças, pressões e tráfico de influências, e acenando com o Tratado
de Alcaçóvas, que dividia o mundo numa linha horizontal pela qual as
novas terras descobertas por Colombo seriam portuguesas,
conseguira trazer os espanhóis para a mesa de negociações e
estender o limite da linha vertical de 100 léguas fixado pelo Papa
Alexandre VI. Com certa ajuda de Colombo, que informara aos reis
de Castela não ser provável a existência de terras entre os dois
limites…
Os ouvidos de D. Manuel estavam, portanto, atentos aos tais
rumores. Tanto assim era, que, ao mesmo tempo em que mandava
Vasco da Gama costear a África, enviou, em 1498, Duarte Pacheco
Pereira para sudoeste. Este geógrafo, navegador, cosmógrafo,
astrônomo e hábil negociador era homem de inteira confiança do Rei,
assim como havia sido de D. João II. Ele próprio assinara,
representando a coroa portuguesa, o tratado em Tordesilhas.
O resultado da missão foi revelador. Duarte Pacheco encontrou terras
ao sul do equador, “passando além da grandeza do Mar Oceano, onde é
achada e navegada uma tam grande terra firme, com muitas e grandes ilhas
adjacentes e ela e é grandemente povoada. Tanto se dilata sua grandeza e
corre com muita largura, que de uma arte nem da outra não foi visto nem
sabido o fim e o cabo dela. É achado nela muito e fino brasil com muitas
outras cousas de que os navios nestes Reinos veem grandemente povoados” ,
como consta de seu relatório, mantido em segredo pelo Rei. É que
estas terras, correspondentes atualmente à costa do Maranhão e do
Pará, estavam além do limite das 370 léguas – e pertenceriam a
Castela…
Mas eram animadores no que indicavam: havia mais para ser
descoberto.
Nesse meio tempo, Gaspar da Gama, convertido ao cristianismo e
agora se fazendo chamar Gaspar de Lemos, usando seu forte
magnetismo pessoal de aventureiro, conseguira progredir na corte
lisboeta, tornando-se famoso por sua cultura de outros povos, seus
dotes de poliglota e sua destreza náutica. Acabou por captar a
atenção de D. Manuel, que achou por bem aproximá-lo de Duarte
Pacheco e, aos poucos, introduzi-lo no segredo do suposto continente
que se anunciava a oeste. Os dois conseguiram, então, convencer o
Rei a aproveitar a viagem da nova esquadra às Índias e desviar seu
curso até 300 léguas para ocidente, na esperança de encontrar as
terras de cuja existência estavam mais do que convencidos.
73
Por esta altura, a nova expedição portuguesa já estava praticamente
definida. Seriam 10 naus e três caravelas, mais de 1.500 homens,
entre grumetes, marujos, funcionários, soldados, artilheiros,
escrivães, religiosos. Os capitães dos navios já estavam quase todos
escolhidos; inclusive o capitão-mor da armada, que seria um fidalgo
de 33 anos, segundo filho do governador da Beira, chamado Pedro
Álvares Cabral. Cabral era um homem seco, de pouco humor e
opiniático: “antes quebrar que torcer” era seu lema pessoal. Logo de
início, manifestou-se contrário à proposta de Duarte Pacheco e de
Gaspar de Lemos. Desviar o curso das costas africanas na procura de
hipotéticas descobertas, aumentando consideravelmente o tempo e o
esforço da viagem, parecia-lhe uma renomada estupidez. Só mesmo
depois que D. Manuel o ordenou a cumprir o trajeto dilatado, ele
aceitou a rota imposta. Mesmo assim, muito a contragosto.
Preocupado com a má vontade do capitão-mor e desconfiado de que
talvez Cabral, teimoso como era, descumprisse a ordem e velejasse
direto para as Índias, o Rei resolveu jogar pelo seguro: nomeou
Gaspar de Lemos capitão da naveta de mantimentos, da qual,
obviamente, a esquadra não poderia prescindir. Gaspar de Lemos,
com instruções expressas de rumar para oeste, seria então o fiel da
balança – aonde seu navio fosse, a armada teria de seguir.
Mas, outro assunto bulia com as preocupações reais. Cristóvão
Colombo já fizera três travessias. Embora nada de concreto ou
substancial em termos de riqueza resultara das feitorias de Hispaniola
e Isabela, havia cochichos sobre fantásticas histórias nativas de
tesouros em ouro e pedras preciosas. A cada retorno das expedições,
os rumores aumentavam de intensidade. O próprio Duarte Pacheco
não confirmava nem tampouco contestava esses rumores, apenas
dizendo que vários de seus marinheiros afirmavam ter visto alguns
dos homens pardos com os quais se haviam deparado nas praias do
ocidente usando colares que “rebrilhavam ao sol”.
D. Manuel não era homem de deixar oportunidades passarem ao
largo, assim como também era desconfiado e sagaz. Se tais tesouros
realmente existissem, teriam de ser encontrados ao tempo certo e
cercados de todo o sigilo. Ouro era vendaval, perdição, um deus
fomentador de ódios e de traições. Fez uma lista mental dos homens
que iriam comandar os navios e liderar as expedições. Nenhum lhe
pareceu inspirar ilimitada confiança. Nem Gaspar de Lemos, a quem
incumbira de tarefa tão crucial. Era cristão-novo, vivera entre os
muçulmanos, tentara enganar Vasco da Gama. Não. A missão de
verificar se eram reais as histórias dos nativos e dos marinheiros teria
de recair em alguém de extraordinária lealdade, alguém que fosse
capaz de cumpri-la em silêncio, sem chamar a atenção e de reportar
os resultados apenas e exclusivamente ao Rei.
D. Manuel, então, mandou chamar Diogo de Abreu.
Isto é o que se presume. Como também tudo o que se relata a
seguir, pois, além das cartas, nada a respeito da incumbência real
está documentado em qualquer outro lugar.
Não se sabe bem porque D. Manuel o escolheu; possivelmente por
tratar-se de alguém com perfil discreto, à margem do carrossel de
intrigas e do jogo de poder que frequentemente agitava a alta
nobreza. Especula-se que possa ele ter sido um moço de câmara, ou
74
filho de alguma casa morgada de cujo serviço o Rei se tenha valido
em alguma ocasião; há também outra versão, menos acreditada, que
o descreve como filho bastardo do Rei.
De acordo com o plano, Diogo de Abreu viajaria no barco de Gaspar
de Lemos, na condição de degredado. Isto justificaria sua
permanência nas terras descobertas, a cumprir pena de desterro.
Dois marinheiros, recrutados nas galés, também se engajariam na
tripulação da naveta de mantimentos e comporiam secretamente a
equipe, em troca do perdão real e sob juramento de sigilo total. Em
terra firme, desertariam. Caso se rebelassem, Diogo tinha ordem de
eliminá-los no ato.
Quando a frota retomasse seu caminho para Calicute, o enviado
secreto de El-Rei e seus dois auxiliares deveriam travar conhecimento
com os indígenas, aprender sua língua e seus costumes, e, objetivo
supremo da missão, descobrir a existência dos supostos tesouros. Um
ano depois, outra expedição viria recolhê-los. Diogo levaria então
para D. Manuel todas as informações relativas à localização,
quantidade e natureza do eldorado nativo.
AS CARTAS
O que se vai ler a seguir são os originais das cartas escritas por Diogo
de Abreu, duas ainda no mar e quatro ao longo do período que vai de
maio e setembro de 1500, em pleno cumprimento da missão.
Procurou-se, ao mesmo tempo em que se preservou a fidelidade ao
texto escrito, adotar a grafia moderna da língua portuguesa, como
por exemplo, substituindo pera a glorya d´ElRey nosso Senñor por pela
gloria de El-Rei nosso Senhor, e suavizar a prosa quinhentista para
melhor entendimento dos leitores. No mais, a maioria dos termos, os
nomes originais dos lugares, certas construções de frases e
expressões de época foram mantidos em quase toda sua extensão.
PRIMEIRA CARTA
“Senhor,
É hoje sábado, e são catorze dias do mês de Março. Há
cinco zarpamos, como bem sabe Vossa Alteza, da ribeira
de Belém, pela manhã. Da missa rezada por Sua Graça o
Bispo de Ceuta na Ermida de São Jerónimo no dia
anterior, do cortejo real, da bênção ao pendão da Ordem
de Cristo, que até agora são comentados a bordo, nada
pude eu ver, pois, na condição de condenado, na faina
estive de ajudar a carregar esta pequena nau com os
75
mantimentos que nos abastecerão nesta viagem, e que de
espaço para movimento pouco nos deixam. Só mesmo me
foi dado ver a procissão das tochas, ao som das flautas e
tambores com as relíquias e as cruzes, até o batel da nau
capitania. Tudo tenho feito para manter as aparências
de um criminoso que busca o perdão real nas penas do
desterro e julgo que não há desconfianças entre a
tripulação. Pouco tenho visto o Capitão, que passa o
maior tempo em seus aposentos, mas já pressenti que se
interessa pela minha condição, embora nada tenha feito
para minorar a dura labuta a que a minha miserável
condição me confina. Não vai aqui nenhum lamento
dirigido a Vossa Alteza, pois foi de bom grado que
aceitei servir a El-Rei nessa honrosa empreitada. A vida
a bordo, como de outra maneira não se devia esperar, é
regrada por preceitos de rígida natureza. Uma caneca
de vinho na comida da manhã e outra à ceia, mesma
partida de pão, pescado cozido e figos passados na
refeição do dia e sopa com biscoitos na hora das
vésperas. Muito não é, mas é o que se manda. Também
estão proibidos jogos e algazarras. Desculpe-me Vossa
Alteza de tanto descrever de minha sina, mas é minha
primeira vez ao mar e tudo me assombra. Hoje, na
primeira luz do dia, houvemos vista de tão grande ilha e
por ela passamos à vista de outras mais, obra de umas
quatro léguas, e me foi dito que são as Canárias.
Hoje é domingo e o serviço da santa missa foi celebrado
por frei Francisco que está em nosso navio. O céu está
limpo e o mar chão. Deus haja que esta fortuna nos
acompanhe. O Capitão está de boa índole e após o santo
serviço nos fez receber uma porção a mais de biscoitos.
Tenho para mim que ele continua intrigado com minha
sina, mas nem a respeito dela nem de outro qualquer
assunto ainda deu-me a atenção de qualquer prosa. As
Canárias estão desaparecendo ao norte, enquanto
76
continuamos virados para o sul. Os espíritos estão
elevados e, mesmo entre a marujada, o convívio é manso
e tranquilo; mesmo no que importa os dous condenados
que me seguirão nesta sorte. As conversas são poucas e
se fala muito do que se deixou em terras de Portugal, das
mulheres e filhos que ficaram para trás, mas não tanto
que se agite tristeza maior nas almas. Trouxe comigo um
cofre em que estou guardando as folhas que escrevo e
meus apetrechos de escrita. Estou tomando todos os
preceitos para que o teor destas cartas jamais seja
conhecido por alguém mais que Vossa Alteza. Como
quase ninguém a bordo sabe ler, considero a
circunstância de fácil empreitada.
Escrita a bordo da nau “São Jorge” aos quinze dias do
mês de Março de 1500.
Feitura e servidor de Vossa Alteza
D.° dabreu”
77
SEGUNDA CARTA
“Senhor,
Não me ditava qualquer tenção de escrever outra carta
a Vossa Alteza até que notícia tivéssemos das terras a
oeste, mas esta manhã, que é da terça-feira, vinte e
quatro de Março, a “Anunciada”, caravela do Capitão
Nuno da Cunha, que nos estava atrás e a bombordo,
emparelhou-se conosco fazendo sinais para que
tomássemos o norte, pois o resto da frota o havia feito.
Como é do conhecimento de Vossa Alteza, a nossa
pequena nau, por ser a mais leve, vai à frente da
esquadra, o que tenho conhecimento, por mercê de
confiança de Vossa Alteza, ser do interesse do nosso
Capitão quando chegar a hora de tomarmos barlavento
em frente à costa da Guiné. Havia bruma ligeira e só foi
ao cabo de três quartos de hora que nos juntamos às
naus. Por esta altura, a infausta notícia já chegara a nós
do desaparecimento da “Vitria”, a grande nau de Vasco
de Ataíde.
Enquanto escrevo é hora das vésperas, o sol já desce e a
ordem já foi dada para retomarmos curso, sem que da
“Vitria” se tenha tido qualquer sinal. Não há
madeirame, cousas ou vidas no mar que pudessem ser
vistas pelos homens das gáveas nas diligências que nosso
navio e o resto da frota empreenderam durante todo o
dia. Não apareceu mais, e não pode ser causa de tempo
forte, pois os ventos continuam gerais de nordeste e o
mar chão. Há silêncio a bordo e temo que entre os
mareantes caia temor dos perigos de mar que me escuso
de aqui citar. Ainda no domingo havíamos tido vista da
ilha de São Nicolau do Cabo Verde e que segundo dito do
78
piloto era a derradeira porção de terra firme que
iríamos ver até chegarmos às terras de oeste.
Hoje, quarta-feira, vinte e cinco dias do dito mês, pelas
oito horas, o Capitão fez-nos reunir a todos e disse-nos
para não fazermos conta de perigos da imaginação e que
assim seguiríamos até chegarmos ao destino e que
muitas lidas ainda nos esperavam antes que
amainássemos em alguma costa, mas que seriam lidas
que nosso valor saberia cumprir. Depois de terminada
sua fala, que nos fez muita comoção, e dispersada a
marujada, veio o Capitão a mim. E indagou-me sobre
minha pena e sobre meu crime, tendo eu falado pouco e
só adiantado ter sido moço de câmara de um morgado
do Alentejo e que, certa feita, fora apanhado a jogar com
dados chumbados e causar prejuízo que montavam a 38
cruzados a dois fidalgos, um dos quais da Casa Real, o
que, certamente, agravara minha sentença. Pareceu
apiedar-se. Tanto que deu ordens para que me fossem
retiradas as argolas dos pés, o que muito me propiciou
alívio. Creio que de nada desconfia ele da nobre missão
que por bem houve Vossa Alteza em me designar.
Escrita a bordo da nau “São Jorge” aos vinte e cinco dias
do mês de Março de 1500.
Feitura e servidor de Vossa Alteza,
D° dabreu”
79
TERCEIRA CARTA
“Senhor,
Hoje, que é domingo, terceiro dia do mês de Maio, tenho
a relatar que de manhã fui pela praia observar as velas
da nossa esquadra desaparecerem no Mar Oceano em
demanda das terras de Calecute. Ontem, dous deste mês,
partiu o Capitão Gaspar de Lemos com a naveta em que
vivi os dias de mar, levando notícias do descobrimento
desta Ilha de Vera Cruz para Vossa Alteza. Peço,
Senhor, que me perdoe, mas a vista da partida de nossa
gente fez-me a alma cheia das penas da saudade e
somente a fé dá-me as forças de que necessito para o leal
cumprimento desta real missão.
Não sei quanto às notícias levadas a Vossa Alteza
contam da chegada a esta Ilha e dos prodígios aqui
encontrados. Foi nas oitavas de Páscoa que topamos com
sinais de terra, com muita quantidade de botelhos no
mar, que levaram o Capitão e o piloto dizer ser obra de
não mais de 10 léguas. No dia seguinte, vinte e dous de
Abril, pela manhã, vimos aves a que chamam furabuchos e, na hora das vésperas, houvemos vista de um
monte alto e redondo e de mais terras chãs. O Capitão
mandou lançar âncoras em 19 braças e ali ficamos pela
noite. À quinta-feira, logo à manhã, toda a esquadra fez
vela e fomos direito à terra, surgindo âncora à boca de
um rio, de onde houvemos vista d´homens que andavam
pela praia, obra de menos de dez, todos pardos de
maneira avermelhados e todos nus, sem que nada lhes
cobrisse as vergonhas, portando arcos e setas, sendo que
um mancebo levava na cabeça um sombreiro de penas
d´aves mui coloridas e compridas. Vimos que da nau de
Nicolau Coelho foi lançado um batel com o próprio
80
Capitão e dois grumetes e dirigiu-se à terra, indo
encontrar-se com os homens pardos, que agora já eram
obra de uns vinte, havendo troca do sombreiro de penas
pelo barrete vermelho do Capitão não havendo fala que
se aproveitasse. Mais tarde soubemos que o Capitão-Mor
havia chamado à terra de Ilha de Vera Cruz e ao monte
redondo de Monte Pascoal. À sexta, pela manhã, a
esquadra fez novamente vela. A nossa naveta seguiu de
longo da costa para norte e obra de 10 léguas de onde
havíamos levantado âncora, achamos um porto mui bom
e seguro com larga entrada ao redor de um arrecife. E
aí, no sábado, amainou toda a esquadra.
Perdoe-me Vossa Alteza se muito me alonguei neste
relato daquilo que Vossa Alteza terá decerto sabido
sobejamente pelas cartas do escrivão Pero Vaz e de
Mestre João Faras que lhe foram mandadas pela naveta
do Capitão Gaspar de Lemos, mas as maravilhas desta
terra e desta gente são de tal natureza e de tão bons ares
que em mim não consegue vingar o preceito de por pelo
miúdo o que escrevo. Para não mais maçar Vossa Alteza
seguirei escrevendo sobre esta terra e suas gentes em
outras folhas, dando conta a Vossa Alteza nestas cartas
somente dos feitos da real incumbência que aqui me
trouxe.
E tenho a dizer que foi somente no sábado, vinte e cinco
de Abril, que desci a terra pela primeira vez. Por ordem
do Capitão-Mor, levaram-me num esquife ao encontro
dos Capitães Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias, que já se
encontravam na praia com muitos homens pardos, obra
de uns duzentos, e com muitos dos nossos e com os dous
homens deles que haviam sido levados para a Nau
Capitania na noite anterior. E então pude ver de perto
os habitantes destas terras. São fortes, de pele de
maneira avermelhada e rija, alguns com tinturas pretas
a fazer desenhos quartejados e em escaques nas pernas,
81
na barriga e nas costas. Nada têm que lhes cubra as
vergonhas, que não são fanadas e que as têm mostradas
com tanta inocência como de mostrar o rosto. Muitos
têm o beiço de baixo furado com um osso metido ali e
parece que isto não lhes estorva a fala e nem a comer. Os
cabelos são negros e corridos, de tosquia alta acima das
orelhas. São alegres e parecem amistosos, pois puseram
os arcos e as flechas assim que chegaram.
E então mandou-nos Nicolau Coelho, a mim e ao outro
degredado que viera em seu barco e que soube chamar-se
Afonso Ribeyro, a seguir com eles levando uma bacia
pequena e três carapuças vermelhas para andar lá com
eles e dá-las ao seu senhor, se lá houvesse. Fomos assim
por através de um rio de muita água até umas moitas de
palmas onde nos fizeram parar. E ali havia senão umas
choupaninhas de rama verde e fetos, o que nos fez
presumir que não existem moradias em que se acolham.
E ali também estavam três mulheres moças, também
assim nuas, com suas vergonhas altas e rapadas tão
descobertas e com tanta inocência que de nenhum mal se
pôde pensar. Dali nos levaram de novo para a praia,
não consentindo que progredíssemos mais para o
interior.
No dia seguinte, domingo da Pascoela, rezou-se missa no
ilhéu que fica à entrada da enseada. Eu fui mantido no
navio, ajudando nas faina da lavagem. E foi à tarde que
chegou-me a mim o Capitão Gaspar de Lemos a dizer que
o Capitão-Mor decidira deixar aqui dous degredados
pelo par de homens daqui que pretendia mandar a Vossa
Alteza. Assim, tomei conhecimento que o criado de João
Telo, Afonso Ribeyro, aqui comigo ficaria. Confesso que
não me agradei da notícia e receio que isso possa
estorvar a régia missão de que Vossa Alteza me
incumbiu.
82
À segunda-feira, chamou-me de novo o Capitão para que
fosse a terra. E lá, o Capitão Nicolau Coelho mandou a
mim e ao outro degredado que, junto com o almoxarife
Diogo Dias, fossemos à procura da aldeia deles, o que
fizemos, na companhia de um punhado deles, obra de
uns quarenta, homens e mulheres. Assim fomos e
andamos entre eles e bem de mais de uma légua da praia
demos em uma povoação de casas, nove ou dez, de
madeira, tábuas e cobertas de palhas, de altura razoada
e tão compridas como uma nau das nossas. Não tinham
repartimento e dentro estavam muitas redes e onde
faziam seus fogos para se aquentarem. E vimos que ali
comem umas quarenta pessoas e que a vianda que têm é
inhame e outras sementes. Quando se fez tarde não mais
consentiram que ali estivéssemos e nos fizeram voltar e
nos deram papagaios vermelhos mui grandes e
carapuças de penas verdes.
No dia seguinte, por ordem do Capitão-Mor, voltamos à
aldeia. E ao andarmos pela mata pudemos ver muitos
papagaios, de várias cores, voando entre o arvoredo, que
é tão basto e tamanho e de tão diversas maneiras que
não se pode dele haver vista de seu cabo e fim. Há
também palmas e muito bom palmito.
À quarta-feira, vinte e nove de Abril, não fui a terra,
pois que foi o dia em que fizemos a transferência dos
mantimentos desta naveta para as outras naus, posto
que a “São Jorge” irá voltar para Lisboa levando a nova
do descobrimento. E foi neste dia que o Capitão Gaspar
de Lemos me confidenciou ter recebido, antes de partir
de Portugal, instruções de El-Rei de que, se terra
achássemos e eu em cá ficando, aqui retornaria em um
ano com o fito de resgatar-me. Não mais me adiantou,
nem eu perguntei.
Na sexta-feira, primeiro de Maio, foi dita missa pelo frei
Henrique acima do rio, onde na quinta-feira se chantara
83
uma tão grande cruz de madeira com as armas e as
divisas de Vossa Alteza. Uns cinquenta deles estiveram
conosco, assentados assim como nós, até acabada a
comunhão, e mesmo depois de lido o Evangelho e da
pregação, o que nos causou mais devoção. O Capitão-Mor
estava bem vestido com um colar d´ouro mui grande ao
pescoço. Ao terminar a missa, um deles, que trazia à
cabeça uma maneira de cabeleira de penas amarelas pôs
olho no colar e pôs-se a acenar para o colar e para a
terra. Os que perto estavam entenderam que ele queria o
colar para si, mas para mim, que de longe pude assistir à
cena, ficou a impressão de outra coisa que procurarei
averiguar.
E, no dia seguinte, ou seja, ontem, partiram as naus e
todos nelas. Os dous marinheiros que estão comigo nesta
missão houveram por bem não aparecer para embarque
na “São Jorge” e hoje pela manhã cedo reapareceram e a
mim se apresentaram. Assim, aqui nestas terras
permanecemos apenas nós. E Afonso Ribeyro.
Escrita nesta Ilha de Vera Cruz aos três dias do mês de
Maio de 1500.
Feitura & servidor de Vossa Alteza,
D° dabreu”
84
QUARTA CARTA
“Senhor,
Hoje é sexta-feira, derradeiro de Julho e três meses já se
passaram desde que escrevi a última carta. Há dias
venta sueste forte com chuvaceiros abundantes e há
águas por todos os lados. Estou abrigado numa das ocas,
que é como se chama por casa na língua que se fala
nestas terras e de que já consigo entender e falar o
bastante para perceber que são gente simples, sem
nenhuma crença e que vivem da terra e do que ela dá,
não lavram nem criam, nem possuem alimária que viva
entre eles e que lhes possa servir de vianda. Estou
aprendendo a viver como eles, e eles assim me aceitam
que até me chamam de abaré, que é o nome que têm
para amigo. Não consegui ir muito além desta aldeia de
doze casas, onde vivem todos eles. Desde o dia em que o
colar de ouro do nosso Capitão-Mor causou viva atenção
entre eles tenho determinação de conseguir mais notícias
deles, mormente do que porta uma carapuça de penas
amarelas mui compridas e que tomei conhecimento ser
uma espécie de Capitão entre eles e Bispo também, pois
demanda deles profundo respeito e que eles chamam de
Mboruixa. E este Mboruixa é mui ladino e arisco e
pouco tem havido fala entre nós, mas outro deles, a que
chamam Yavaragua, por assim dizer falou-me sobre um
lugar chamado peguy, que parece ficar ao pé do monte
redondo de que houvemos vista ao cá aportarmos.
Calculo a distância em obra de umas doze ou quinze
léguas. E disse-me que este lugar é morada de nhanderu
abaçay, um ente ao feitio de um demo, no linguajar
deles. E que este demo ali guarda imenso tesouro, muitas
vezes mais que o colar de nosso Capitão-Mor. Não
consigo estimar quanta verdade existe na fala dele, mas
sua história fica mais viva depois de beber uma água
85
parda, à maneira de um caldo fermentado a que
chamam cauim e que parece bulir com os sentidos deles
como umas boas canecas de vinho a nós fariam. Confesso
que tentei dela provar, mas sabe a leite azedo. E assim
que cessar o chuvaceiro e o tempo melhorar, tenho
tenção de embrenhar-me no arvoredo em demanda do
Monte com este que me contou esta história a servir-me
de guia e com os dous marujos que comigo cá estão e que
têm comportamento mui diverso. O Martim Mendes, que
é da Beira, parece-me quieto e religioso, mas não
aprendeu a cá viver, pois de tudo tem estranhamento. O
outro, Pero Fernandes, que é algarvio, é matreiro e,
junto com o outro degredado, vive a folgar entre eles e
vive a correr atrás das raparigas, causando-me o receio
de que os homens daqui possam querer ir-lhe ao pescoço.
O que mais me causa cuidado é Afonso Ribeyro. Sei que
ele desconfia de algo e sua amizade com o Pero
Fernandes deve ser uma ribaldaria para descobrir a
verdadeira razão de nossa permanência aqui.
No mais, é o tamanho desta terra que me parece mui
longa e mui grande para ser apenas uma ilha. De ponta
a ponta há praia, que é muito chã e formosa e os ares são
temperados, como os d´Entre Douro e Minho. Continuo
escrevendo sobre o que vejo nas folhas separadas que
também pretendo levar a Vossa Alteza quando o
Capitão Gaspar de Lemos houver por bem vir-me buscar.
Escrita nesta Ilha de Vera Cruz aos trinta e um dias do
mês de Julho de 1500.
Feitura e servidor de Vossa Alteza,
D° dabreu”
86
QUINTA CARTA
“Senhor,
Muitos percalços e algumas desditas já nos acometeram
desde que encetamos nosso caminho em demanda do
Monte Pascoal. Foi no dia cinco de Setembro que
partimos. Íamos cinco. Eu, os dous marujos, o mancebo a
que chamam Yavaragua e um cachopo de uns quinze
anos para ajudar a carregar a tralha. O coração me
pesava de preocupações e cuidados, pois, na véspera,
percebera uma grande conversa entre Pero Fernandes e
Afonso Ribeyro e pude sentir traição no ar. E até este
momento em que escrevo, sinto que os meus receios
podem ter fundamento.
Por dois dias, seguimos o rio, estimando termos andado
obra de umas duas léguas e meia. E foi no terceiro dia,
sete do dito mês, que, logo ao findar a manhã, enquanto
seguíamos arvoredo adentro num lugar onde o mesmo é
bastante denso, com Yavaragua à frente, eu e Pero
Fernandes a seguir, com Martim Mendes e o cachopo
bem atrás, que este veio a correr gritando mboi, mboi,
que é como eles chamam à cobra. Acorremos ao marujo
beirão para encontrá-lo já no estertor da morte, com os
olhos vidrados e uma espuma branca a escapar-lhe pela
boca, tal é a força da peçonha. Assim perdemos Martim
Mendes.
E então o caminho tornou-se cada vez mais difícil de
vencer, sendo que nosso andar cada dia não lograva ser
mais do que meia légua se tanto. Logo, a vianda que
levávamos acabou e passamos a comer sementes e
inhame e o que Yavaragua e o cachopo conseguiam
caçar e que eram não mais que aves pequenas, embora o
mancebo me tenha dito que seu nome quer dizer caçador
de yavara, que parece ser um animal de maneira de um
87
leopardo como os que em África existem e com que
ainda não topamos. E foi somente ontem, dia quinze do
mês dito, que pelo meio da tarde, chegamos ao sopé do
Monte.
E aí, toda esta missão começou a caminhar pelo torto.
Ao iniciarmos o caminho morro acima, um súbito e
tremendo chuvaceiro com seus raios e trovões desabou
sobre nós, com um fragor tão intenso que mal podíamos
enxergar a mais de dois palmos. Então, Yavaragua e o
cachopo pareceram tomados de repentina sezão, com os
olhos a querer sair da cara, e agitavam os braços e
gritavam nhanderu, nhanderu. Depois que a chuva
amainou a mim vieram os dous a fazer sinais de que
iam embora, dando a entender que o demónio que
guardava estas terras não permitia a nossa entrada
nelas. A muito custo, antes que partisse em grã carreira,
Yavaragua disse que o lugar chamado peguy era uma
caverna mui grande e que ficava a um dia de subida na
encosta do lado sul, que era a nossa.
Agora que escrevo, é manhã cedo e cai água fina. Pero
Fernandes dorme, ou faz conta de dormir a umas cinco
varas de onde estou. Sei que pretende algo, agora que
esta missão se aproxima de seu ápice. Temo que sua vida
de desregramentos e sua amizade com o ladino Afonso
Ribeyro o tenham descaminhado de nossa missão. Nesta
manhã, dei por falta das folhas que escrevi em separado
sobre estas terras e suas gentes e somente Pero
Fernandes as pode ter tirado.
Estou encharcado desta chuva fina e fria e sinto-me
febril. Mas, custe o que custar, servirei a El-Rei até o
fim.
Feitura e servidor de Vossa Alteza,
D° dabreu”
88
SEXTA CARTA
(Obs. a escrita desta sexta carta não possui a mesma característica elegante da
caligrafia observada nas demais e termina abruptamente. Em muitas de suas
linhas, as palavras são de difícil entendimento, algumas rasuradas e pouco legíveis.
O que demonstra que Diogo de Abreu a escreveu presa de intensa emoção, ditada,
como veremos na leitura da mesma, pela aproximação da morte.).
“Senhor,
Sei que vou morrer. Sim, El-Rei meu Senhor, vou morrer
e meu assassino é o traidor Pero Fernandes, que
sangrou-me covardemente há algumas duas horas
enfiando-me uma adaga pelas costas que ainda cá está a
fazer-me esvair a vida. Apanhou-me logo depois de ter
eu escrito a carta, enquanto a guardava ..... tentei
levantar-me para enfrentá-lo mas um grã torpor tiroume o movimento às pernas, enquanto eu o via subir
morro acima. Sei que (ilegível)...... tesouro e que quererá
apoderar-se dele não para El-Rei mas para (ilegível)......
com o outro traidor Afonso Ribeyro.
Estou morrendo, meu Senhor, mas antes que desfaleça,
vou guardar esta derradeira carta neste meu cofre que
(ilegível) ..... também o último botão de minha roupa
(ilegível)...... frangalhos, para que se algum dia o
encontrarem saibam que muito servi pela glória de ElRei nosso Senhor e ao Senhor Deus entrego a mi
(ilegível).......”
INFORMAÇÕES FINAIS
Pero Fernandes não achou tesouro algum. Aparentemente, as
riquezas de que os índios falavam não eram propriamente ouro ou
pedras, mas a própria fartura da terra, seus rios e florestas, sua
fauna e sua pujança natural, cujo manancial até hoje, quinhentos
anos depois, ainda jorra sem cessar.
89
O assassino de Diogo de Abreu conseguiu retornar à praia e
reencontrar-se com seu comparsa Afonso Ribeiro. Mal teve tempo de
relatar o insucesso da procura, morrendo a seguir de desnutrição e
desidratação. A única coisa que trazia consigo eram as folhas
escritas, à parte das cartas a El-Rei, por Diogo de Abreu, nas quais
ele relatava as maravilhas das terras e das gentes recémdescobertas. Não se sabe bem porque, mas Afonso Ribeiro,
decepcionado com o fracasso de sua traição, resolveu guardar as
folhas. Estava agora só entre os índios. O texto em sua língua talvez
servisse para amenizar as penas da solidão.
E era ele quem estava na
Gaspar de Lemos retornou
Abreu. E embarcou no lugar
meses fugira com uma índia
praia, em Novembro de 1501, quando
a Porto Seguro para recolher Diogo de
do enviado do Rei, dizendo que Abreu há
e nunca mais fora visto.
A expedição de Gaspar de Lemos desceu a costa, até à ilha de São
Vicente, não sem antes passar, no dia primeiro de Janeiro do ano
seguinte, pelo que se julgou ser uma foz de rio extremamente bela.
Depois, retornou a Portugal.
Afonso Ribeiro seguiu com a expedição no navio de Gaspar de Lemos,
cujo piloto era um florentino chamado Américo Vespúcio. Ficaram
amigos. Durante a viagem, Ribeiro desdobrou-se em contar floreadas
histórias sobre as novas terras e acabou por entregar ao piloto as
folhas escritas por Diogo de Abreu. Em 1503, Vespúcio publicou, com
seu nome, uma tradução italiana das folhas, que obteve enorme
divulgação na época. E, por causa disto, passou a ser referência no
assunto e eram ele, e sua “obra”, constantemente citados toda vez
que se falasse sobre o “Novo Mundo”.
Em 1507, o cartógrafo alemão Martin Waldseemüller confeccionou o
primeiro planisfério em que apareciam estas terras, com uma
introdução denominada “Cosmographiae Introductio”, em que se
justificava porque passariam a ter elas o nome de Terras de Américo,
ou simplesmente, como se consagrava no mapa, de AMÉRICA.
Esclarecimentos finais:
Para que alguém não perca seu tempo procurando pelas cartas na Torre do Tombo,
adianto que este conto é uma obra de ficção. Diogo de Abreu e seus dois malfadados
comparsas de aventura são imaginários. Evidentemente, também são as cartas e as
folhas hipoteticamente apropriadas por Américo Vespúcio. Para criar toda esta
história, baseei-me em correspondências da época dos descobrimentos,
principalmente na carta, verdadeira essa, escrita por Pero Vaz de Caminha e que é,
mui justamente, considerada como a certidão de nascimento do Brasil.
Oswaldo Pereira
Janeiro 2010
90

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