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ALED – 2015: Publicação comemorativa das “Atas de Puebla”’
Benemérita Universidade Autônoma de Puebla
X Congresso Internacional da ALED
28 a 31 de outubro de 2013
DIVERSIDADE CULTURAL, PROCESSOS DE HIBRIDIZAÇÃO
E MULTIMODALIDADE NO DISCURSO
GÊNERO FEMININO E IDENTIDADE – REPRESENTAÇÕES
NA MÚSICA BRASILEIRA DE NOEL E CAETANO
Maria Inês GHILARDI-LUCENA1
Resumo: Este artigo discute representações do gênero feminino no discurso de
canções de compositores brasileiros, de épocas e estilos musicais diferentes. As letras
das canções, em sua maioria, mostram modelos estereotipados de gênero, que são
condicionamentos sociais aprendidos e continuamente reforçados pelo convívio
social. Analisamos, neste momento, canções de Noel Rosa e Vadico e de Caetano
Veloso, que nos possibilitaram concluir que as representações das relações sociais
foram se transformando, ao longo das décadas. A partir de conceitos da Análise do
Discurso de Linha Francesa, sob uma perspectiva interpretativista, procuramos
compreender o processo de constituição dos sujeitos e dos sentidos, levando em conta
suas condições de produção.
Palavras-chave: discurso; gênero feminino; identidade.
Resumen: Este artículo discute las representaciones del género femenino en el
discurso de canciones de compositores brasileños de épocas y estilos musicales
distintos. Las letras de las canciones, en la mayoría, muestran modelos estereotipados
de género, que son condicionamientos sociales aprendidos y continuamente
reforzados por la convivencia social. Analizamos ahora canciones de Noel Rosa y
Vadico y de Caetano Veloso que nos posibilitaron concluir que las representaciones
de las relaciones sociales se fueron cambiando a lo largo de décadas. A partir de
conceptos del análisis del discurso de línea francesa, bajo una perspectiva
interpretativista, buscamos comprender el proceso de constitución de los sujetos y de
los sentidos, considerando sus condiciones de producción.
Palabras llaves: discurso; género femenino; identidad.
1
Doutora, docente e pesquisadora da Faculdade de Letras da PUC-Campinas, SP, Brasil. Grupo de
Pesquisa Estudos do Discurso, CNPq-Brasil.
ALED – 2015: Publicação comemorativa das “Atas de Puebla”’
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28 a 31 de outubro de 2013
DIVERSIDADE CULTURAL, PROCESSOS DE HIBRIDIZAÇÃO
E MULTIMODALIDADE NO DISCURSO
Introdução
Estudamos as intrincadas relações de gênero, na sociedade ocidental atual,
partindo do pressuposto de que é da diferenciação do mundo em dois gêneros –
masculino e feminino – que derivam as outras formas conhecidas de diferenciação,
dominação e exclusão social. Como o gênero não é da ordem da natureza, mas uma
instituição criada pela sociedade como condição básica para a sua própria existência,
os estudos de gênero merecem atenção especial para que os sujeitos possam viver
melhor, a partir da compreensão dos processos identitários que envolvem os papéis
sociais atribuídos a cada um dos sexos. O gênero se relaciona com sexualidade, corpo,
identidade, classe social, etnia, raça, geração, o que justifica as pesquisas – em
diferentes áreas do conhecimento – sobre questões que perturbam a vida em
sociedade. Trata-se, portanto, de uma categoria construída discursivamente, com
efeitos complexos e contraditórios.
A pesquisa da qual este texto é fruto analisa letras de canções brasileiras, em
que a imagem feminina se delineia de modo a mostrar aspectos que marca(ra)m as
representações das mulheres na linha do tempo, nesse tipo de discurso (líricomusical). Na comparação entre as épocas, buscamos compreender quais sentidos do
passado permanecem nas palavras que se repetem (mesmo com a produção de novos
efeitos) e quais sentidos sofreram alterações. Neste momento, optamos por analisar
duas canções, à luz das noções da Análise do Discurso (AD), que trata do domínio do
imaginário e dos efeitos de evidência produzidos pelos mecanismos ideológicos.
Tomamos Pêcheux (1990) como base para pensar as relações entre a língua e a
ideologia e para observar os modos de construção do imaginário necessário na
produção dos sentidos.
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DIVERSIDADE CULTURAL, PROCESSOS DE HIBRIDIZAÇÃO
E MULTIMODALIDADE NO DISCURSO
Ler é compreender a historicidade do texto e buscar seus sentidos, e não o
fazemos sem interpretar. Por essa razão, há diferentes leituras possíveis de um texto e
a que propomos é apenas uma delas.
As canções operam diferentes sistemas semióticos que, juntos, produzem
efeitos de sentido específicos frutos do encontro entre língua, musicalidade e poesia.
Música é arte, como a palavra poética, é cultura, é história e faz parte de nossa relação
com o mundo. Segundo Castro (2011), há o aprender a música, o aprender sobre a
música e, mais importante, o aprender com a música, que é aprender a pensar.
Os problemas decorrentes da desigualdade de gênero envolvem questões de
poder, de preconceito e de exclusão social. As questões de gênero social são questões
de identidade do ser humano e esta é afetada pelas estruturas sociais como trabalho,
religião, família, dentre outras. A identidade é construída ao longo da existência dos
sujeitos e se transforma de acordo com as alterações tecnológicas, políticas,
econômicas, culturais e sociais. Atualmente, os conflitos identitários localizam-se,
fundamentalmente, no interior das transformações sociais.
Duas letras de canções brasileiras
Cinco décadas separam duas letras de canções brasileiras (Ver Anexo)
compostas por Noel Rosa e Vadico, em 1934 – Pra que mentir? –, e Caetano Veloso,
em 1982 – Dom de Iludir.
A intertextualidade produzida propositadamente por Caetano revela a crítica à
desigualdade existente nas relações de gênero nas primeiras décadas do século XX,
quando as mulheres eram marcadas pela submissão aos companheiros – maridos ou
não –, sua voz era sufocada pelo preconceito sexista (contra o feminino) e sua
imagem vinculada à obrigatória (e unilateral) fidelidade. O texto de Caetano
incorpora o dos compositores da década de trinta e, por meio da voz feminina,
responde às acusações do outro. Tal resposta somente se torna possível, na década de
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oitenta, porque, no decorrer dos cinquenta anos que separam as duas composições, as
mulheres conquistaram o poder da palavra, dentre outras vitórias. O eu lírico da
primeira peça musical é masculino e o da segunda, feminino.
A canção Pra que mentir?, obviamente sem a intenção de denunciar a
desigualdade, revela um dos argumentos do discurso “machista”, cristalizado no
imaginário coletivo, não somente dos homens, mas também das mulheres, o de que
trair é da natureza masculina, mas não da feminina. Ou, ao menos, sem discutir se aos
homens era permitido trair suas companheiras, indica que às mulheres tal
comportamento não era permitido.
Para Foucault (1996), as formas de controle social, exercidas a partir de uma
espécie de contrato entre os interlocutores, são exercidas, dentre outras, sob a forma
de um princípio de exclusão social. Uma delas, um tipo de separação ou rejeição do
sujeito, classificada pelo autor de (razão e) loucura, explica o discurso feminino da
canção em estudo. Em Pra que mentir? a voz masculina – de um homem
supostamente traído por sua amada – impõe sua versão que a denuncia como traidora,
num típico discurso masculino da década em questão, em que a voz feminina não
tinha espaço na sociedade:
De acordo com Foucault (1996, p. 10), “o louco é aquele cujo discurso não
pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e
não seja acolhida”, como na canção citada, em que o homem coloca-se na posição de
locutor detentor da “verdade” e não dá oportunidade de defesa à mulher que,
supostamente, o traiu. Nesse discurso de dominação, é/era como se ela não existisse
ou não pudesse se manifestar. Está aí a importância da escuta desse silêncio, pois
a palavra do louco (...) nos leva à espreita; que nós aí buscamos um
sentido, ou o esboço ou as ruínas de uma obra; e que chegamos a
surpreendê-la, essa palavra do louco, naquilo que nós mesmos articulamos,
no distúrbio minúsculo por onde aquilo que dizemos nos escapa
(FOUCAULT, 1996, p. 12).
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E MULTIMODALIDADE NO DISCURSO
Para haver o discurso classificado como louco, é preciso haver o poder e o
desejo de quem assim o classifica. O poder masculino das sociedades patriarcais
permitiu colocar o discurso feminino (de submissão) num patamar de inferioridade
durante longo tempo. O desejo dos homens de manter sua hegemonia alimentou a
permanência de seu status de seres superiores e repletos de direitos.
A voz feminina sufocada pela masculina e pela sociedade da época, se ouvida,
poderá mostrar sentidos ocult(ad)os por um tipo de censura: “aquilo que é proibido
dizer em uma certa conjuntura” (ORLANDI, 1995, p. 24). O silêncio gera o
movimento de sentidos próprio do discurso, em que se coloca a ideologia em sua
relação com a linguagem. Há o deslocamento de palavras em presença e em ausência,
e que faz parte da forma de significar. Ser dito em palavras ou em formas de silêncio
são modos diferentes de significar. Daí a possibilidade de, na canção Pra que mentir?,
estarmos diante do silêncio feminino tão significativo, pois remete à ideologia da
sociedade que veicula tal discurso (o da canção e o do silêncio) e o relaciona à
história dos sentidos ali presentes.
Caminhar por entre os espaços em que a mulher – interlocutora – não pode
responder às acusações que lhe faz o homem – locutor – em Pra que mentir? pode
nos revelar a sua face de oprimida e silenciada, na sociedade da época.
O homem, apesar de se considerar traído, parece tolerante com ela, mantém
seu amor por ela e praticamente implora o amor da amada, ou seu retorno à vida
amorosa partilhada. Esse possível fingimento pode ser a forma de ele iludi-la,
denunciado na canção de Caetano, Dom de iludir. Relativizamos, sempre, nossas
considerações, visto que, levando em conta a formação discursiva em questão – letra
de música – e a não-transparência da linguagem, somos conscientes de que “há uma
dimensão do silêncio que remete ao caráter de incompletude da linguagem: todo dizer
é uma relação fundamental com o não-dizer” (ORLANDI, 1995, p. 12). Não estamos
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em busca, portanto, de um sentido para os textos que analisamos, mas das relações
entre seus múltiplos sentidos e dos discursos que o constroem. Buscamos, aqui,
interpretar o silêncio feminino por meio da materialidade linguística, da voz
masculina.
O protagonista dessa história de amor, em Pra que mentir?, acusa a mulher de
tê-lo traído e, bem de acordo coma ideologia da sociedade, na época, acusa todas as
mulheres com o pressuposto de que elas têm a malícia de saberem mentir aos homens:
“Pra que mentir / Se tu ainda não tens / A malícia de toda mulher?” Além disso,
coloca a voz do “outro”, por quem ela estaria apaixonada, como verdade, informando
que este não a quer, ou seja, diz que ela gosta de alguém que a despreza, enquanto ele,
o locutor, a ama: “Pra que mentir, se eu sei / Que gostas de outro / Que te diz que não
te quer?”
A voz da mulher foi silenciada e como, segundo Orlandi (1995, p. 12), “há um
sentido no silêncio”, podemos buscá-lo na relação que o liga à história e à ideologia.
Assim é que, na escuta da mulher interlocutora do homem de Pra que mentir?,
percebemos seus problemas de viver em uma sociedade que a menospreza, despreza,
não aceita a igualdade de gêneros e não lhe permite exercer direitos, apenas deveres.
A aparente interrogação – Pra que mentir? – que se repete ao longo da canção contém
implícita uma negação – tu não deves mentir –, que é uma espécie de norma vigente
na sociedade, e, também, uma grande acusação – tu mentes.
Na década de 1930, as mulheres foram silenciadas em vários aspectos da vida
social, nos relacionamentos amorosos, nas decisões familiares ou no campo do
trabalho. As letras de música da época revelam, em sua materialidade linguística, as
formas de sufocar seus anseios, seus sonhos e sua vida fora do lar. Além do aspecto
mostrado em Pra que mentir?, das relações amorosas, há outros em diversas canções
que acompanham a história da vida feminina.
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Na década de 1980, entretanto, após o movimento feminista iniciado nos anos
sessenta, especialmente uma (boa) resposta foi dada, no interior do mesmo gênero
discursivo, por uma locutora ousada – o eu-lírico feminino –, na canção Dom de
iludir, de Caetano Veloso. Como quem puxa a conversa interrompida ou sufocada há
cinquenta anos, a mulher agora protagoniza a continuação da história: “Não me venha
falar / Na malícia de toda mulher”.
A intertextualidade provocada pelo texto de Caetano, confirmada pelo uso do
termo “malícia”, mostra a extemporaneidade do vocábulo, o que justamente remete à
década de trinta. “Não me venha falar” pressupõe que alguém falava de algo que não
poderia ser aceito, inconveniente: a “malícia de toda mulher”. Quem é/era ele para
falar daquilo que não lhe diz/dizia respeito ou que ele não entende/entendia? Dos
sentimentos e das razões femininas... O título também tem origem nos versos da outra
canção: “Se tu ainda não tens / esse dom de saber iludir”.
Assim, a mulher, que tem voz na sociedade de oitenta, pode gritar a homens e
mulheres que conquistou seu lugar ou, ao menos, deu um grande passo para falar o
que ficou abafado durante muito tempo: “Cada um sabe a dor / E a delicia / De ser o
que é...”
Houve sofrimento, sim, mas o silêncio de outrora pode ser rompido. Está
pressuposta, na canção, a acusação feita pelos homens de que ela fosse uma bandida
ou uma prostituta – “Não me olhe como se a polícia andasse atrás de mim” –, como
era comum, na época passada, ocorrer nos casos de suposta traição feminina.
Os verbos no imperativo denotam a força das mulheres nos anos de 1980 –
“Cale a boca, e não cale na boca notícia ruim” – ao dirigir-se aos homens. Aquele que
a acusou, na década de 1930, agora é acusado de ser um fingidor, de ser o dono da
verdade, de ser e fazer o que bem entender, de querer e poder, de ser o centro das
atenções (pela repetição de “você”): “Você sabe explicar/ Você sabe entender, tudo
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bem/ Você está/ Você é/ Você faz/ Você quer/ Você tem.../ Você diz a verdade/ E a
verdade é o seu dom de iludir”.
O senso crítico presente no jogo de palavras da letra de Caetano permite-nos
perceber a denúncia em Dom de iludir dos problemas da desigualdade de gênero. O
homem da década de 1930 – eu lírico em Pra que mentir? – é desmascarado pela voz
feminina, assim como seus possíveis seguidores da década de 1980: “Você diz a
verdade/ A verdade é o seu dom/ De iludir/ Como pode querer/ Que a mulher/ Vá
viver sem mentir...”
Considerando-se o contexto de enunciação dessa canção, notamos que as
mulheres ocupam um espaço bastante singular nas sociedades ocidentais, pósemancipação feminina iniciada nos anos de 1960, em que sua voz pode ser ouvida ao
denunciar a dissimulação masculina do locutor de Pra que mentir? Nos versos finais
– “como pode querer que a mulher vá viver sem mentir” –, há marcas da
(reivindicação da) igualdade de gêneros, nas inferências possíveis: se os homens
iludem as mulheres, mentem, enganam, por que as mulheres também não poderiam
fazê-lo? Até um “cale a boca” pode ser ouvido em tom de imposição e sugestão de
reversão de papéis sociais. O grito feminino em Dom de iludir tem a força da resposta
às acusações sofridas em décadas passadas: “Não me olhe/ Como se a polícia/
Andasse atrás de mim/ Cale a boca/ E não cale na boca/ Notícia ruim...”
A mulher, agora, desqualifica o homem do passado por sua visão machista e
contesta o que a ideologia daquela sociedade lhe impunha – em alguns casos, ainda
impõe a ela(s). O texto polifônico dá voz, não somente à mulher locutora, mas
também às suas contemporâneas, bem como àquelas mulheres de décadas passadas
que se mantiveram caladas.
Há um jogo de verdade e mentira na relação palavra e silêncio, no confronto
de duas épocas distintas, que marcam dois momentos na história das mulheres. Esses
momentos, ligados por um tempo contínuo de transformações, não são estanques, não
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são tão evidentes, não representam transformações homogêneas, pois dependem de
lugares, setores sociais, domínio cultural e poder econômico. Na materialidade das
duas letras de música aqui discutidas são distintos e marcantes. Denunciam uma
história de opressão e liberdade tão bem conhecida pelas mulheres.
Daí a complexidade da análise do discurso, em que ora nos colocamos na
escuta do silêncio, ora tentamos interpretar a palavra.
Considerações finais
As letras das canções que analisamos mostram modelos estereotipados de
gênero, que são condicionamentos sociais aprendidos, presentes na memória coletiva,
e continuamente reforçados pelo convívio social. Ora temos a mulher submissa,
representada em Pra que mentir?, companheira do homem machista, ora a mulher
emancipada, dona de si e crítica do machismo de outrora (outrora?), em Dom de
Iludir. A reflexão sobre as canções de Noel Rosa e Vadico e de Caetano Veloso nos
possibilitou concluir que, ao longo das décadas, as relações sociais foram se
transformando e produzindo mudanças nos papéis sociais de homens e mulheres, nas
sociedades ocidentais, neste caso, no Brasil.
Em cinquenta anos, a sociedade brasileira transformou-se, dando voz às
mulheres, ou melhor, elas conquistaram o poder de voz, a liberdade de expressar-se
contra a submissão ao gênero masculino e à falta de oportunidades no mercado de
trabalho, nos lugares culturais e sociais, resquícios da sociedade patriarcal do passado.
Nessas canções, a mudança do eu lírico de masculino para feminino ao tratar do
mesmo tema – o relacionamento amoroso – aponta para marcas da modernidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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E MULTIMODALIDADE NO DISCURSO
CASTRO, Manuel Antônio de. Musicalidade: o penhor de aprender e ensinar.
TERCEIRA MARGEM: Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Literatura. UFRJ, ano XV, n. 25, jul.-dez. 2011, p. 93-125.
FOUCAULT, Michel. [1971] A ordem do discurso. Tradução: Laura Fraga de
Almeida Sampaio. 3. ed., São Paulo: Edições Loyola, 1996.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 3. ed.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995.
PÊCHEUX, Michel. Por uma análise automática do discurso. Campinas, SP: Editora
da UNICAMP, 1990.
ANEXO: Letras das canções analisadas
PARA QUE MENTIR? 2
Vadico e Noel Rosa, 1934
DOM DE ILUDIR 3
Caetano Veloso, 1982
Para que mentir
Se tu ainda não tens
Esse dom de saber iludir?
Pra quê? Pra que mentir,
Se não há necessidade
De me trair?
Não me venha falar
Na malícia de toda mulher
Cada um sabe a dor
E a delícia
De ser o que é...
Não me olhe
Como se a polícia
Andasse atrás de mim
Cale a boca
E não cale na boca
Notícia ruim...
Pra que mentir
Se tu ainda não tens
A malícia de toda mulher?
Pra que mentir, se eu sei
Que gostas de outro
Que te diz que não te quer?
Pra que mentir tanto assim
Se tu sabes que eu sei
Que tu não gostas de mim?
Se tu sabes que eu te quero
Apesar de ser traído
Pelo teu ódio sincero
Ou por teu amor fingido?
2
3
Você sabe explicar
Você sabe entender, tudo bem
Você está
Você é
Você faz
Você quer
Você tem...
Você diz a verdade
E a verdade é o seu dom de iludir
Como pode querer que a mulher
Vá viver sem mentir...
Disponível em: ˂http://letras.mus.br/noel-rosa-musicas/125753/˃ Acesso em 28 Jul. 2012.
Disponível em: ˂http://letras.mus.br/caetano-veloso/44719/˃ Acesso em 28 Jul. 2012.

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