produção de sentidos das crianças sobre um animê

Transcrição

produção de sentidos das crianças sobre um animê
PRODUÇÃO DE SENTIDOS DAS CRIANÇAS SOBRE UM ANIMÊ –
DESENHO ANIMADO JAPONÊS
CHILDREN’S PRODUCTION OF SENSE OUT OF AN ANIMÊ - THE JAPANESE
CARTOON
Adriana Hoffmann Fernandes*
Resumo
Neste texto, apresento parte da minha pesquisa de Mestrado, discutindo um pouco do que cada um de nós sente,
hoje, ao conviver com as crianças na atualidade. Realizada dentro do campo da educação em duas escolas da
cidade do Rio de Janeiro, essa pesquisa se propôs, na linha dos Estudos Culturais Latino-americanos, olhar para a
recepção dos desenhos animados a partir dos sentidos produzidos pelas crianças. Dessa forma, foram coletadas as
produções e as opiniões das crianças, ao falarem sobre seus consumos. Neste artigo, foi especialmente analisada a
relação das crianças com o animê, desenho animado japonês, que apareceu com freqüência durante a coleta de
dados.
Palavras-chave: Produção de Sentidos, Desenhos Animados, Crianças.
Abstract
This text is part of my Masters dissertation, which discusses a little of what each one of us feels nowadays while
dealing with children. Written under the aegis of the Studies in Education, looking at two schools in Rio de Janeiro,
this research is inserted in the field of Latin-American Cultural Studies, and it looks into the reception of cartoons by
children. Thus, the data collected refers to the productions and the opinions of children regarding their buying
interests. In this article, what is specifically analyzed is the relation of children with the animê, the Japanese cartoon,
which was a constant presence in the data collected..
Key words: Production of Sense, Cartoons, Children.
1 Introdução
ROCIO: Aí... A Sakura dá o báculo... Não, o báculo se transforma novamente em outra forma...
GABI: Ela dá para quem?
ROCIO: Pra Sakuyo!
PESQ.: O que é o báculo?
LAURA: O báculo é uma pomba... (risos)
GABI: Ah, você entende muito!!! Eu sei o que é mas para quem não sabe não entende!!
THIAGO: Eu não sei o que é o báculo? (fazendo aquele jeito de interrogação de que isso todo mundo sabe...)
GABI: Eu sei o que é, mas o que é isso, Thiago? Ela não sabe!
THIAGO: MAS QUEM AQUI NÃO SABE O QUE É O BÁCULO? (gritava indignado)
PESQ.: Eu!! (risos)
É assim que nos sentimos em meio a algumas conversas das crianças quando falam de programas, jogos e
outras produções culturais voltadas para a infância atual. Até descobrir o que era o báculo, passei algumas
dificuldades. O báculo é um objeto mágico, mais ou menos como a varinha de condão das fadas dos contos
tradicionais. O fato de me sentir “por fora” numa conversa entre as crianças nos faz pensar que a infância
de hoje precisa ser mais bem com-preendida. Uma das formas de buscar seu entendimento é procurar
compreender o que vivem ou, como nos diz Brougère (2001), a sua cultura infantil.
Passando os canais da TV, nós, adultos, vemos sempre, em canais abertos e fechados, alguns desenhos
animados japoneses (os animês) e logo mudamos de canal. Esse comportamento de todos nós, adultos,
mostra o quanto realmente desconhecemos o que as crianças estão vendo. Percebe-se também o quanto, na
área da educação, ainda são raros os estudos que focalizam a indústria cultural e remetem, portanto, para
questões relativas à sociedade de consumo. O campo da pesquisa em educação vê no consumo cultural a
fetichização da mercadoria e a desvalorização do sujeito que consome. Nessa ótica, olha-se para o produto
e analisa-se o produto “em si” desvinculado do sujeito que faz uso dele, sem a preocupação com o que o
sujeito faz com esse consumo. A reificação do produto leva, muitas vezes, à interpretação simplista de que
aqueles que o consomem são passiva e mecanicamente influenciados pela mensagem que é sempre
reprodutora. Não são incomuns hoje as críticas à leitura de produtos da mídia considerados, na maioria das
vezes, como pouco reflexivas e alienantes. Reconhecemos o discutível valor de alguns produtos da mídia,
mas, por outro lado, nos parece indispensável que o campo da educação se aproxime da visão que as
crianças têm desses produtos, reconhecendo-a como expressão de suas identidades.
Ao contrário dos estudos que concebem a recepção como mera resposta ao estímulo da mensagem, temos
procurado, na linha dos Estudos Culturais Latino-americanos, olhar para a recepção a partir dos sentidos
que os sujeitos produzem sobre os produtos que consomem. Reconhecemos que, hoje, não há mais como
privar crianças do acesso aos produtos da mídia que cada vez mais fazem parte do seu cotidiano. De acordo
com essa perspectiva, interessa-nos perceber como esses sujeitos lidam com esses produtos, ou seja, o que
fazem com eles.
Martin-Barbero (2001) nos ajuda a refletir sobre a questão mostrando como no mundo acadêmico temos,
ainda, representantes que estudam apenas o lado negativo da linguagem da mídia e cita como exemplo os
que se apóiam seja em Adorno e Horkheimer que, nos fins dos anos 40, declararam que a velocidade das
imagens do cinema distanciava-se do pensamento; seja na posição de Sartori, que, na década de 90, identifica
a videocultura com o pós-pensamento dizendo ser essa época a da decadência e do fim do pensamento.
Não obstante o reconhecimento da sedução exercida pelos produtos da mídia e seu desconhecimento por
parte da maioria dos professores e pesquisadores, como ilustra nosso diálogo inicial, a leitura desse produto
é a priori concebida como prejudicial. Martin-Barbero destaca que essa maneira de encarar o consumo
cultural é um obstáculo à reflexão sobre o lugar estratégico que os meios ocupam na transformação das
sensibilidades, dos modos de perceber o espaço e o tempo e de construir imaginários e identidades. Deixar
os sujeitos falarem sobre esse consumo e sobre o que fazem a partir dele é uma forma de entendermos
melhor quem são esses sujeitos e, conseqüentemente, buscar alternativas para pensar sua formação na
contemporaneidade.
Neste texto, busco apresentar uma parte da minha pesquisa de Mestrado 1, trazendo para a discussão um
pouco do que cada um de nós sente, hoje, ao conviver com as crianças na atualidade, deixando que elas
façam isso: falem sobre seus consumos, emitam suas opiniões e construam discussões a partir do que é
visto na mídia.
A pesquisa buscou, dessa maneira, perceber as produções de sentidos das crianças sobre os desenhos e,
para sua realização, trabalhei tanto com desenhos sugeridos por mim quanto com desenhos escolhidos por
elas. A pesquisa de campo foi realizada prioritariamente por meio de oficinas em duas escolas: uma pública e
uma particular, ambas da zona sul do Rio de Janeiro, em que os grupos de crianças viam os desenhos,
opinavam sobre os mesmos e produziam ou faziam propostas de produção a partir destes. Além disso,
também trabalhei com entrevistas coletivas em duplas ou trios em que fazíamos um pequeno debate sobre
o tema, aprofundando aspectos que tinham sido polemizados pelo grupo. Os encontros foram gravados e
filmados para posterior análise.
O que trago neste texto é a discussão de apenas um dos desenhos dentre os trabalhados com os grupos de
crianças da pesquisa: Sakura, a personagem-título do desenho mencionado pelas crianças. Esse desenho se
configura como um animê e apareceu na votação dos dois grupos de crianças das duas escolas. Por essa
escolha semelhante, que não aconteceu com os demais desenhos da pesquisa, tal desenho mereceu uma
análise separada, já que a recorrência de sua escolha mostrou o quanto era significativo para esses grupos
de crianças.
2 Conceitos e Questões Orientadoras de Nosso Estudo
As questões que trago para iniciar este texto são: o que leva essas crianças a gostarem tanto desse
desenho? Que sentidos elas atribuem ao mesmo? Como se relacionam com esses desenhos que os adultos
acham “horríveis”?
O diálogo a seguir aponta que as crianças percebem que os adultos não sabem nada sobre esses desenhos
que pertencem à sua cultura e a seu modo de viver a infância hoje:
RYAN: (...) o adulto quando vê não vai saber quem é o vilão, quem é o bom, quem é o mau...
RAFAEL: É... mas eles também não sabem o nome dos personagens, os poderes... Minha mãe sempre me pergunta
se o personagem é do mal ou não.
ALAN: Meu pai vê uns desenhos comigo e entende um pouco... Mas só um pouquinho...
GABRIEL: É que os adultos só entendem dos desenhos da época deles!
(Alunos da escola pública).
Os desenhos fazem parte da cultura atual e, por mais distantes que sejam de nós, é preciso tentar, dentro
do possível, entender melhor como se dá a relação das crianças com eles para entender como se configura
a infância na atualidade, podendo estabelecer trocas efetivas com ela.
Sabemos que a infância muda e se forma de acordo com a cultura em que está inserida, e que, sendo assim,
a forma como lida com o conhecimento é cultural. A criança é produtora de cultura, é ativa e interage de
diferentes maneiras com o que vê. Tal entendimento orientou meu trabalho de pesquisa com a criança,
levando-me a focalizar as mediações culturais que a auxiliam a conferir sentidos aos desenhos animados da
TV.
O conceito de cultura eleito para fundamentar essa investigação foi o de Martin-Barbero (2001). Segundo
ele, a cultura é o espaço do qual emergem as mediações em que o sujeito se constitui. É pela cultura que se
constroem as produções de sentido dos receptores, entendida como produção social. Resgatar o lugar da
mediação é resgatar também o lugar da cultura, o lugar da identidade daquele grupo, ou melhor, o lugar
dessas crianças no mundo atual.
Percebemos como está mudando o cotidiano da criança de hoje e o quanto elas sabem sobre animês por
conviverem muito com os meios eletrônicos e, muitas vezes, não terem (ou terem pouco) contato com os
antigos espaços de produção cultural: as ruas, calçadas e praças onde, antes, todos se encontravam. Sendo
assim, a escola se configura, hoje, como um dos raros espaços de convívio social no qual as crianças podem
conviver entre si e, assim, produzir cultura. Foi esse um dos motivos que me levou à escolha da realização
da investigação em escolas.
Proponho-me apresentar resumidamente a história do animê para depois trazer as percepções das crianças
sobre o desenho. A narrativa desse animê com os temas que são abordados nela nos mostram um pouco os
temas que atraem as crianças; no entanto, é apenas no trabalho de campo com o diálogo e as produções das
crianças a partir do desenho que podemos perceber de forma mais clara a relação das crianças com esse
produto cultural.
3 Sakura – a narrativa desse animê
Na estruturação desse desenho, percebe-se que a realidade está muito presente nos cenários e nas
situações vividas pela personagem principal. Estes são relacionados ao cotidiano da maioria das crianças,
como ir à escola, fazer uma prova, visitar uma amiga, brincar ou conversar com os colegas etc. É em meio a
tais cenas do cotidiano que surgem os problemas com os quais a heroína terá que lidar sempre em
companhia da sua melhor amiga Tomoko e do mascote Kero. Os momentos de fantasia acontecem em meio
a cenas do cotidiano e são uma pausa na realidade da história, interrompendo-a até que tudo volte à
normalidade anterior.
A história se desenrola em torno das cartas Clow, cartas que eram do Mago com esse nome. Cada carta
tem uma força da natureza e poderes de modificar as coisas no mundo: clima, tempo, estações do ano, entre
outras situações. O mago era o protetor das cartas que foram soltas e podem provocar grandes catástrofes
no mundo. Sakura, personagem principal do desenho, recebe a missão de capturar as cartas soltas e que se
manifestam causando perturbações. Para capturá-las, Sakura precisa usar os poderes mágicos com a ajuda
do Báculo, espécie de chave que se transforma em bastão mágico quando ela vai capturar as cartas.
Para capturar as cartas Clow, Sakura tem que vencer certos desafios impostos a ela. O Mago Clow
(encarnado em Eliot, uma outra criança) causa dificuldades a ela para que ela realize sua missão. Cada
desafio é um motivo para fortalecê-la. O Eliot parece ser o Mestre, aquele que na cultura japonesa oferece
desafios para que, ao enfrentá-los, possa fortalecer-se. Segundo Luyten (2000), os mestres nessas histórias
são pessoas más, intransigentes e que maltratam os seus aprendizes e estes, quanto mais apanham, mais
força adquirem para continuar. Sakura pode ser considerada uma heroína aprendiz.
O desenho usa muitos elementos de linguagem cinematográfica como, por exemplo, nos momentos em que
Sakura usa magia para capturar as cartas Clow. Nessa hora, a imagem, as cores, a trilha sonora e o texto
ganham uma dimensão especial com efeitos que transformam esses momentos e demarcam o clímax da
narrativa. Nos momentos em que a heroína está em busca da carta Clow, a trilha sonora muda para indicar
suspense, susto, aflição, correria; e nos momentos de impacto, de encontro com a carta, sobressaem closes,
olhares e trilhas que juntos compõem o clima narrativo.
Dessa forma, é em meio à trama da história de cada episódio que aparece um tema recorrente: a
transformação, a mudança de forma, a evolução. Tal “evolução” é interna e expressa o crescimento da
personagem. Pelas falas de outras personagens, como Kero ou Eliot, transparece o fato de Sakura estar
ficando mais forte, mais poderosa, ao conseguir dominar o medo e enfrentar os desafios da captura das
cartas com mais determinação. Chamam a atenção no desenho frases como “a carta Clow pode ser forte
ou não, isso depende do pensamento do dono” e “as pessoas com grandes poderes podem sentir a energia
das outras”.2
O desenho trabalha com temas recorrentes nos contos populares ou contos de fadas: a cidade dormir por
toda a eternidade, a Sakura ficar pequenina, voltar no tempo, a escuridão invadir a cidade, mudanças das
estações do ano, o tempo parar ou voltar atrás, entre outras situações. Os temas estão relacionados às
Cartas Clow que a personagem Sakura tem que capturar, mas, em todos os episódios, sentimentos como
amizade, coragem, força e confiança são reforçados pelas atitudes das personagens e pelo modo de se
relacionarem. Chamam a atenção frases como “para vencer tem que confiar em si mesmo” ou “o poder dela
(Sakura) é forte porque ela acredita em si mesma”.
Assim como afirma Luyten (2000), os heróis circulam num espaço mítico, pois nem sempre têm uma relação
direta com a realidade, a atualidade, mas representam a cristalização de necessidades e tendências como
fantasmas de uma determinada época. Luyten afirma que o individualismo não é bem visto no Japão e o
herói japonês é sempre alguém que não perturba a paz social. Tal herói não tem semelhanças com os heróis
ocidentais vistos como justiceiros, invencíveis, superpoderosos. A autora afirma que o herói dos desenhos
japoneses não é alguém que se sobressai na sociedade, mas que se destaca por sua perseverança ao tentar
obstinadamente chegar à meta estabelecida. Os heróis são retratados como pessoas comuns que desejam
tornar-se melhores naquilo que estão empreendendo.
4 Animês – enredos que enredam os leitores/receptores das narrativas da TV
Os animês são sempre histórias em capítulos, episódios que se sucedem e que fazem alusões a episódios
anteriores. Assim, a história do desenho tem sempre uma continuação num capítulo seguinte. Isso
aparentemente favorece a criação de um vínculo mais forte com o desenho, como é, hoje, o vínculo das
pessoas com a telenovela. A diferença é que cada episódio tem um fecho temporário que se reinicia no
episódio seguinte à maneira dos contos das Mil e uma noites, criando uma certa expectativa, como se pode
perceber na fala desse menino da escola particular:
BRUNO: A primeira vez que eu vi Sakura eu achei que fosse uma coisa louca e meio infantil mas depois que eu fui
vendo os outros episódios eu achei mais interessante de se ver. A cada vez que a gente vê um episódio tem
vontade de ver outro e depois a gente vê outro e vê outro e mais outro...
Um encanto à la Sherazade que os faz querer ver mais e de novo o desenho, demonstrando uma certa
semelhança da relação das crianças com os contos de fadas. Capparelli, Meurer e Kasprzak (2003) apontam
que as narrativas sempre tiveram uma função fundamental na história da humanidade, pois dialogavam com
os problemas humanos e as verdades da existência. Por meio dos mitos presentes nessas narrativas, assim
como nas diferentes instâncias da cultura como nos brinquedos, nos contos de fadas e, mais recentemente,
nos desenhos animados, as crianças dão significado ao que vivem.
Martin-Barbero (2001), ao falar do folhetim, aponta aspectos que também podem ser atribuídos a esses
desenhos japoneses e que o autor denomina de “dispositivos de sedução”. Para ele, um desses dispositivos é
a organização por episódios. A organização da narrativa em episódios trabalha com a duração e o suspense.
Por meio desses dispositivos, o/a leitor/a, a audiência, pode penetrar na narração, interferindo nos
acontecimentos narrados, reconhecendo-se neles, sentindo-se mais participante da história. O suspense é o
que mantém a narrativa em episódios e busca-se que o final de cada episódio contenha informação
suficiente para satisfazer o leitor (audiência) mas traga, também, uma certa quantidade de interrogações que
disparem o desejo de ver o próximo episódio. Martin-Barbero enfatiza que o suspense é o efeito da
narração que é voltada justamente para sua capacidade de comunicar para fora do texto, de um contar a
outro, elementos próprios da narração popular, pelos quais a história não termina na escrita do próprio
texto.
THIAGO: Eu gosto de ver Sakura justamente porque eu não acho enjoativo... Posso ver várias vezes que eu não
enjôo... posso ver mil vezes!!! Não é como os episódios nos outros desenhos que eu enjôo (Aluno da escola
particular).
Outro dispositivo apontado por Martin-Barbero a respeito do folhetim e que também pode ser usado para
comparar com o animê aponta como essa interação com o episódio não se esgota no próprio texto do
desenho, mas vai além dele. É a estrutura “aberta” que mostra seus efeitos na narrativa pelo dispositivo da
dialética entre a escritura e a leitura. Assim, os leitores-audiência fazem uma leitura viva da narrativa e, a
partir dessa experiência, mandam cartas, sugerem finais, criam novas situações para serem vividas pela
personagem. Percebe-se que esse gênero narrativo transmitido em episódios não pode mais ser
compreendido fora da sua relação com essa dialética entre o que se escreve e se transmite e o que os
leitores lêem e como reescrevem e sugerem possíveis continuações. É um gênero que se funda na troca
constante das posições de leitor e de escritor. Em nossa breve busca nas comunidades da Internet, foi
possível termos contato com sites de animês variados em que encontramos cartas de pedidos e sugestão de
episódios que os leitores-audiência enviavam para o site sobre o seu animê preferido.
Cada qual à sua maneira percebe as diferenças que nesse desenho o tornam atraente. Cada animê tem suas
características e as crianças dizem por que gostam mais de um ou de outro. Na escola pública, as crianças
do sexo feminino justificaram sua preferência pela Sakura em contraposição ao Dragon Ball, desenho visto
pela maioria dos meninos. Eis aí alguns dos argumentos femininos com os contra-argumentos masculinos:
ISABELLA: A Sakura é divertida e Dragon Ball é enjoado. Nenhuma menina aqui gosta de Dragon Ball. O enjoado
é a luta que eu detesto.
ALAN: A diferença da Sakura para o Dragon Ball é que a Sakura é coisa de menina, muito sem graça e o Dragon
Ball tem graça, é legal... A Sakura fica com aquela varinhazinha tacando nos monstros...
A presença ou ausência de luta é vista pelos meninos e meninas da escola pública de forma diferente.
RYAN: A Sakura é meio sem ação e o Dragon Ball tem mais ação. Ação é aventura, luta e na Sakura não tem luta.
Ou na Sakura a luta é fraca e isso não é legal.
A luta é identificada pelos meninos como “ação” ou “aventura”, um desenho sem luta é sem graça porque
não tem “ação”. Os meninos em alguns momentos falam da luta e da morte, já esperando a reação feminina
que eles sabem que virá. As meninas entendem essa “ação” de outra forma, vendo a luta de que os meninos
gostam como violência e desaprovando os argumentos destes:
GABRIELA: É que na aventura/ação não se mata pessoas (como acontece no Dragon Ball). Não é aventura ficar
matando uma pessoa...
Na escola particular, na discussão acerca do desenho, não apareceu essa diferença marcante entre o que é
desenho para menina e o que é desenho para menino. Ambos, meninos e meninas, diziam ver o desenho e
gostar do mesmo.
5 A Repetição como Estratégia para Construção dos Significados do Animê
Parte da riqueza desse desenho, pelo que percebemos, a partir mesmo dos depoimentos das crianças, está
justamente em descobrir os sentidos que as diferentes expressões visuais das personagens transmitem e
que podem passar despercebidos ou não ter sentido para uma audiência não habituada a “decodificar” tal
linguagem. A heroína é retratada como tímida e, assim, o olho grande e expressivo variando para indicar
diferentes emoções contrabalança a ação da narrativa quando ela mostra o que sente por meio dos olhos e
não da fala.
Os pensamentos interiores da Sakura e do Kero, personagens principais, em determinadas situações,
aparecem numa voz baixa com uma sonorização semelhante à de um eco interior. Outros momentos da
história em que se quer dar ênfase às ações da personagem (correr, cair ou pensar etc.) ou aos seus
sentimentos (vergonha, amor, amizade e saudades etc.) são marcados por uma mudança de cores
envolvendo a personagem e por sinais como uma gotinha que aparece no canto do rosto para demonstrar
que estão em apuros ou agoniados, uma cruzinha na testa quando estão com raiva, a diminuição ou
aumento do tamanho dos olhos ou seu formato caracol, ou do formato da boca para indicar sentimentos
como susto, surpresa ou medo. Todos esses detalhes que acompanham o desenho precisam ser “decifrados”
e são aprendidos à medida que se vêem os diferentes episódios.
As crianças reconhecem essa necessidade de entendimento do desenho e apontam uma das estratégias que
utilizam para que isso ocorra:
JOÃO VICTOR: É bom ver de novo porque eu discuto os detalhes, fico prestando atenção na história e vejo todos
os detalhes.
PEDRO: Ver de novo é legal porque se você ver os personagens várias vezes você entende mais o desenho
(Alunos da escola pública).
A repetição do desenho é um ingrediente para a percepção dos detalhes e para um maior conhecimento
das personagens. No diálogo a seguir, um dos meninos da escola particular tenta recontar para a turma um
episódio do desenho Sakura, um animê visto na oficina anterior. O diálogo aponta como a repetição aparece
relacionada aos desenhos japoneses (animês):
GUSTAVO: Quando começa... eles estão num corredorzinho... e aí eles entram numa porta e um carinha lá fala...
OUTRO: Que porta? Fala, né?
GUSTAVO: É eles entram na porta...
ROCIO: É!! E encontram um carinha lá... Que “carinha”?
GUSTAVO: Eu não sei o nome do “carinha”!! Eu não vejo isso todo dia!! (responde irritado)
ROCIO: É Eliot!!
GUSTAVO: Como é que eu vou saber?! (mais irritado)
O menino justifica que “não vê isso todo dia” e reitera, dessa forma, que o ver repetido, todo dia, é
constitutivo do saber esses detalhes do desenho. Pelo que se viu, a repetição tem, para tais crianças, um
sentido relacionado à construção do significado do desenho visto. As que vêem de novo entendem melhor
do que trata o desenho. A repetição, como diz Coelho (2000), torna-se um fator importante na construção
da significação. É a forma como buscam entender melhor alguns dos temas complexos tratados no desenho.
Essa situação surge de forma semelhante na escola pública e provoca opiniões diferentes sobre a
necessidade ou não do ver repetido, relacionadas aos desenhos japoneses entre meninos e meninas.
Enquanto os primeiros dizem que não precisam ver vários episódios para entender a história, as segundas
ressaltam que precisam. Tais diferenças de opinião entre meninos e meninas parecem estar mais
relacionadas à experiência deles com os desenhos. As meninas dessa turma demonstraram ter um contato
menor com os desenhos e sentem essa defasagem quando assistem a um episódio depois de ter assistido a
outro há certo tempo. Já os meninos, como assistem com mais freqüência, sentem até dificuldade de
perceber como essa “não-freqüência” atrapalha o entendimento do próprio desenho.
Numa conversa em outro dia, um dos meninos reiterou tal posicionamento falando sobre outro desenho
japonês: disse que dava para entender melhor o desenho quando via os episódios “desde o início”,
apontando que havia começado a ver um desenho já nos episódios finais e que agora estava podendo
entender melhor por que estavam passando de novo e ele estava vendo em seqüência.
Nos dois casos anteriormente relatados, o entendimento do desenho relaciona-se não ao fato de,
necessariamente, verem os episódios dos desenhos na ordem, mas de vê-los com freqüência. Se assistirem
ao desenho várias vezes, mesmo fora de ordem, acabam entendendo o seu contexto, percebendo as
referências que um episódio faz ao outro. Fica, no entanto, mais difícil entender o desenho se o virem pouco
ou quase não o virem. Dessa forma, a freqüência da audiência faz parte da construção do significado desses
desenhos. A repetição estabelece uma identidade grupal, uma forma de reconhecer o seu pertencimento a
esse grupo social de amigos. Pode-se dizer que fazem parte de uma determinada comunidade interpretativa
os que assistem a um determinado desenho (quase) todo dia, pois a audiência comum marca de alguma
forma a identidade desse grupo.
No entanto, o “ver de novo” não pode ser entendido como algo que vira um hábito impensado, mas tem, de
acordo com as crianças dos dois grupos, um limite. Depois de um certo período de tempo, o “ver de novo”
se torna enjoativo e a repetição acaba fazendo com que digam que não gostam mais daquele desenho no
qual a repetição já não traz mais qualquer prazer.
ALINE: Parei de ver porque passa muito repetido, aí só vejo se tiver episódio novo.
6 Animê e Mangá: uma relação de circularidade na produção de sentidos – as “trocas
alternadas”
Para algumas crianças, falar de animê é falar também de mangá. As crianças que costumam ver muitos animês
também são as que lêem mangás (revistas de histórias em quadrinhos japoneses) quando podem. Assim,
durante as nossas conversas, era impossível não surgir o paralelo animê/mangá. As crianças da escola
particular, as únicas que comentaram sobre a leitura de mangás, expressaram assim como vêem essas
diferenças:
EDUARDO: O animê é mais completo. Tem uma parte que só dá para expressar no animê e não no mangá
TODOS: É... É mesmo...
ROCIO: É... Um dia eu estava lendo uma revistinha da Sakura e eu não entendi o que queria dizer uma das falas
mas quando eu vi esse episódio aí deu para entender mais.
JULIA: Éhh!! Uma vez tinha uma fala assim “Ai, ai, ai Yukito...” E eu pensei que ela estava brigando com ele, só
entendi quando vi o animê. (percebeu que ela estava suspirando por ele)
OUTROS RIRAM E CONCORDARAM: É mesmo!
Assim, segundo elas, o animê (desenho japonês) é mais completo por causa da entonação das falas que os
ajudam a entender certas frases que nos quadrinhos dos mangás podem dar margem à dupla interpretação
e que no desenho animado ficam claras. O consumo de outros produtos associados aos desenhos, como
sendo parte do entendimento ou conhecimento que as crianças adquiriam sobre o desenho, apareceu com
certa freqüência. Outras falas podem nos mostrar o alcance dessa circularidade na produção dos sentidos:
RONIELLI: Eu leio a revistinha Recreio que tem a história do desenho aí eu fico sabendo.
GABRIEL: É bom ter a revista porque se eu não puder ver nada na TV aí eu vejo (leio) na revista.
PHILLIPE: ... Algumas vezes eu estou passando os canais para procurar um programa e vejo ali o que eu estava
lendo. E a reportagem da TV dizia para você ler mais na revista. ... são trocas alternadas... (Alunos da escola
pública).
As “trocas alternadas” de que Phillipe nos fala nomeiam essa relação de circularidade que aparece mais
claramente relacionando animê e mangá mas que também é percebida na relação com outros produtos que
trazem notícias ou informações a respeito dos animês e mangás. A circularidade do consumo é então elemento
de informação sobre o desenho. Lazar (1987) traz dados de uma pesquisa realizada por Hassenforder e
Chesnot que mostram que as crianças gostam de ler a produção relacionada à mídia e que, muitas vezes, as
crianças gostam de ler o livro ou revista correspondente ao programa visto na TV. Nesse sentido, concordo
com essa autora quando diz que as crianças são “exploradoras” da imagem, descobrindo nelas sempre
novas possibilidades. Esse consumo “explorador” da criança é o que possibilita a construção do seu espaço
de cidadania infantil de que fala Canclini (1999), um espaço de construção de saber sobre o desenho
construído em grupo, buscado pelo grupo e admirado pelo grupo.
Animê e mangá se complementam e fazem parte da produção de sentidos das crianças sobre os animês,
desenhos japoneses. Luyten (2000) nos mostra o motivo dessa complementaridade e também dessa relação
entre o consumo dos dois produtos. Segundo ela, o desenho do animê assemelha-se muito à técnica de
quadrinização dos mangás. O estilo cinematográfico é muito utilizado nos dois para dar ênfase aos detalhes
de uma ação, de um gesto e até de um olhar. O desenho flui pela ação ininterrupta de imagens sobrepostas
e muitos closes segmentam o momento exato do sentimento e da emoção. Luyten destaca que os animês, na
maioria das vezes, surgem de mangás bem-sucedidos que são transformados em desenhos animados e que
acabam estimulando a venda de mais revistas de mangá. Ao mesmo tempo, o mangá ganhou maior
expressão e ficou mais conhecido depois da difusão dos animês que chegaram aos canais de TV de todo o
mundo e passaram a ser traduzidos para outras línguas.
Para esse grupo de crianças da escola particular, falar do animê Sakura é também falar dos mangás
relacionados a ele, enquanto que, na escola pública, as opiniões remetiam sempre a outros animês em geral,
já que pareciam não ter acesso ao mangá.
7 Considerações Finais
Neste artigo, procurei trazer brevemente os aspectos coletados em minha pesquisa de Mestrado referentes
ao animê Sakura, que teve votação expressiva das crianças no decorrer da pesquisa. Pudemos perceber que
a relação cotidiana das crianças com esse desenho é algo que não é compartilhado com os adultos na
maioria das vezes e que os elementos de troca ficam restritos, quase sempre, aos pares de amigos.
Como demonstrado, a narrativa do desenho e seus aspectos visuais encantam as crianças que viajam em
suas histórias e estabelecem formas de recepção que possibilitam um maior entendimento dos detalhes da
narrativa: o ver repetido, o consumo de outros produtos relacionados ao desenho e a troca com os colegas
como forma de apropriação do significado.
O contato que tivemos com as crianças neste estudo no momento das oficinas com a audiência, a discussão
e a produção acerca desse desenho escolhido por eles nos fez perceber o quanto as crianças estabelecem
elementos de apreciação do desenho em relação aos diferentes produtos culturais a que têm acesso. Os
usos culturais da TV e as interações com os colegas da escola foram mediadores valiosos na produção de
sentidos sobre os desenhos animados. Isso nos permite dizer que as crianças não estão à mercê dos animês,
mas criam formas de entendimento próprias do grupo do qual participam e dos elementos da cultura a que
têm acesso.
Foi, portanto, pelas mediações e, conseqüentemente, nas relações sociais que as crianças se constituíram
como sujeitos produtores de cultura. O que pude perceber é que elas, dentro do seu repertório, produzem
sentidos legítimos para os animês, não percebidos pelos adultos.
Compreendo o papel hegemônico da TV, entendo seu poder e presença no cotidiano das crianças, mas foi
possível perceber neste estudo que é um equívoco prejulgar que a relação entre TV/infância ocorre
necessariamente no sentido da dominação da primeira sobre a segunda.
Trabalhar com a idéia de criança receptora implica, nessa perspectiva, tomar como elementos orientadores
do olhar que se lança à relação criança/TV o conceito de cultura, como modo de produção social, e o de
mediação, como interação que se constitui na e pela cultura. Diante disso, o desafio da escola é o de refletir
acerca dessas novas formas de texto como mais um elemento de leitura e discussão dentre a variedade de
textos disponíveis e que também são elementos de formação da criança na atualidade.
Notas
A dissertação de Mestrado, intitulada As mediações na produção de sentidos das crianças sobre os desenhos animados, foi defendida na
PUC-Rio em 2003.
1
2
Observações sobre a narrativa do desenho foram feitas por mim e surgiram da análise de cinco episódios do desenho Sakura.
Referências
BROUGÈRE, Gilles. Brinquedo e cultura. São Paulo: Cortez, 2001.
CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais na globalização. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1999.
CAPPARELLI, Sérgio; MEURER, Flávio Roberto; KASPRZAK, Roselene Gurski. As narrativas televisivas, sua dimensão mítica e sua
importância
na
subjetivação
infantil.
NET,
Rio
de
Janeiro,
2003.
Disponível
em:
<http://www.Ilea.ufrgs.Br/ppgcom/professores/núcleos/conesul>. Acesso em: 10 fev. 2003.
COELHO, Luis Antonio. A repetição na cultura. In: SOUZA, Solange Jobim. Mosaico: Imagens do conhecimento. Rio de Janeiro: Rios
Ambiciosos, 2000.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1998.
LAZAR, Judith. Escola, comunicação e televisão. Portugal: RES Editora, 1987.
LUYTEN, Sonia Bibe. Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Hedra, 2000.
MARTIN-BARBERO, J. Dos meios às mediações – comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2001.
*Dados da autora:
Adriana Hoffmann Fernandes
Doutoranda em Educação – UERJ
Endereço para contato:
Universidade do Etado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Departamento de Estudos Específicos em Educação
Rua São Francisco Xavier, 524, 12º andar, sala 12023
Maracanã
20550-013 – Rio de Janeiro, RJ - Brasil
Endereço eletrônico: [email protected]
Data de recebimento: 19 jan. 2007
Data de aprovação: 30 maio 2007