Carla Costa Dias Programa de Pós-graduação em Artes

Transcrição

Carla Costa Dias Programa de Pós-graduação em Artes
Carla Costa Dias
Programa de Pós-graduação em Artes Visuais
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Av. Pedro Calmon, 550 – Cidade Universitária
Tel. 055-21-3938-1997
[email protected]
La tradición reinventada y sus formas artísticas
Jongo, patrimônio, memoria, espetáculo, cultura afro-brasileira, favela
A discussão em torno da idéia de tradição permeia os estudos sobre patrimônio
cultural. Ela fixa sua atenção em um aspecto da cultura, "os valores tradicionais",
cujo resgate e conservação considera fundamentais, frente à aceleração
crescente da globalização e o desenvolvimento dos meios de comunicação. O
termo "tradicional" em contraponto ao moderno, marca a existência de tempos
distintos. O reinventado jongo da comunidade da Serrinha se distanciou ao longo
do tempo do jongo de outras localidades, especialmente daquelas mais rurais
existentes no Rio de Janeiro, localizadas nos municípios de Valença, Barra do
Pirai, Pinheiral e Parati.
Este trabalho traz alguns apontamentos a respeito da reinventada tradição
artístico-cultural afro-brasileira do jongo na comunidade da Serrinha, situada no
bairro de Madureira, zona norte do Rio de Janeiro1.
O grupo Jongo da Serrinha é uma referência da cultura carioca tradicional e seu
trabalho artístico fez o ritmo ser conhecido por todo país. O grupo atua a partir de
1
O trabalho foi realizado a partir da inserção da autora enquanto coordenadora do Projeto de
Extensão Universitária ‘Preservando e Construindo a Memória do Jongo da Serrinha’. As
atividades de campo estão baseadas no registro da memória da comunidade por meio de
entrevistas com célebres moradores da Serrinha; a organização dos registros documentais já
existentes da vida da comunidade, principalmente aqueles relacionados ao jongo e ao samba; a
colaboração com a construção de um Centro de Memória na comunidade; a realização de oficinas
educativas que trazem temas como memória, cultura, identidade, dentre outras.
diversas parcerias, pesquisando e criando produtos culturais (livros, filmes,
espetáculos, discos, exposições) para divulgar o jongo e assim fortalecer a
comunidade reunida em torno desta manifestação cultural, a família Jongueira. O
grupo também atua na formação de crianças e jovens, como forma de inserção
social, no espaço sede do grupo, a Escola de Jongo, onde são ministradas aulas
de
canto,
percussão
e
dança.
Em Outubro 2013 o grupo lançou seu segundo CD: Vida ao Jongo. Dedicado a tia
Maria do Jongo em seus 92 anos, o repertório conta com pontos de jongo tirados
do seu “caderninho” onde ela anota suas memórias. Em maio de 2014, o grupo se
apresentou, com apoio da prefeitura, em praças da cidade do Rio de Janeiro com
um novo espetáculo, desenvolvido para encenação publica.
A partir da parceria estabelecida com o grupo no projeto de Extensão universitária,
pretendemos neste trabalho apresentar e discutir as novas formas de encenação
de uma expressão cultural tradicional no contexto urbano contemporâneo. Os
discursos, conflitos e sonoridades invocadas nos modos de praticar e transmitir o
Jongo, patrimônio reconhecido e assumido.
O Jongo da Serrinha, de Madureira, do Rio de Janeiro
O Morro da Serrinha, fundado por volta de 1900, aos pés da grande fazenda de
Lourenço Madureira, que posteriormente veio a dar o nome ao bairro, foi sendo
povoado por migrantes da área rural é uma destas favelas centenárias da cidade
do Rio e o único núcleo tradicional de jongo da cidade.
O jongo praticado por grupos na região sudeste do Brasil, tem sua origem nas
fazendas de café da região do Vale do Paraíba. Alguns pesquisadores falam dos
versos, nem sempre associados a dança, cantados pelos negros escravizados,
africanos ou descendentes, provenientes da região do Congo-Angola, vinculados
ao tronco linguístico Banto. Com a decadência do ciclo cafeeiro, muitos
trabalhadores recém-libertos, migraram para a então capital do país, o Rio de
Janeiro. O jongo praticado no contexto rural de trabalho coletivo, onde a
sociabilidade é conduzida por laços que precisam ser criados no meio da dureza
do trabalho e como afirmação de uma identidade roubada e transformada. O jongo
que era uma forma de comunicação dos escravizados entre si na esquematização
de fugas, na narrativa do cotidiano e no contato com a ancestralidade, quase
desaparece na migração para os centros urbanos.
Famílias vieram a ocupar aquela região que se encontrava afastadas do centro da
cidade do Rio de Janeiro, devido às modificações urbanas que obrigaram a
população moradora das favelas e cortiços das áreas centrais a procurar abrigo
nos subúrbios cariocas. A Serrinha, diferentemente de como é hoje, ainda
preservava parte original da Mata Atlântica. A população inicial era constituída de
pessoas que precisavam de um local para morar, que apesar das dificuldades de
infraestrutura, encontraram lá um refúgio para suas famílias. A ida desse
contingente populacional para as periferias fez com que seus costumes também
se reunissem nesses locais.
Esse movimento fez da Serrinha um espaço sincrético assim como as
manifestações que ali se desenvolveram. Apesar dos novos contornos, após uma
série de influências e a própria mudança do contexto histórico, As festas, os cultos
e a tradição que permanece viva, pode-se dizer que encontrou nas periferias o seu
reduto, que não deixa ser esquecido por se tratar da história de seus moradores.
Dessa forma, reviver a memória do jongo, também é reviver a trajetória de uma
coletividade.
Na ocupação dos morros cariocas, o jongo, considerado como o ritmo “pai do
samba”, perdeu espaço nos agrupamentos urbanos e quase foi extinto durante o
século passado. No bairro de Madureira, precisamente na Serrinha, nasceu a
Escola de Samba Império Serrano, fundada em 1947. Desta forma, a comunidade
carrega a particularidade de ser a casa de dois importantes ritmos e,
inevitavelmente, de várias personalidades jongueiras e sambistas.
“Aqui na Serrinha tinha jongo na casa do Seu Nascimento. O jongo já
era na nossa época naquela velharada. No nosso tempo o jongo era
na casa, da Dona Líbia, ali embaixo. Na Dona Marta. Na Dona
Florinda. Aqui no alto do Morro, no seu Nascimento. O Seu
Nascimento era o sogo do Hélio. O Hélio é casado com a Líbia. Ele
tinha um terreiro de barro que ele fazia uma loucura assim, a gente
sentada e ninguém dançava jongo... o jongo pra gente. Entenderam?
Não era igual o jongo deles. Eles se benziam, tinha aquele negócio
de copo d’agua com vela, fazia aquelas coisas toda, aqueles velhos
antigos. E ninguém dançava jongo de roupa branca nada, nem sem
camisa. De terno, de saia bonitona, bem rodada. Mas sempre com
uma calça por baixo. E elas... as mulheres bonitas, com um laçarote
bonito. Ninguém dançava jongo meio pelado não. Como eu vi agora
um retrato de sutiã e roupa fina. Mas não tinha jongo certo. Que ela
que tinha que abrir o jongo na casa de todo mundo com um negócio
de ladainha”. (Tia Ira, entrevista 2012)
Assim Tia Ira, nascida na Serrinha em 1937 e fundadora do Império do Futuro,
primeira escola de samba mirim, relembra os tempos passados, onde o jongo era
praticado nos quintais.
Na história do jongo da Serrinha, Mestre Darcy 2 é um nome de extrema
importância. Ele ficou conhecido por levar as rodas de jongo até as universidades
na década de 1980/90.
Segundo ela, foi em 1982 que Darcy e sua mãe, vovó Maria Joana, mãe de Santo
conhecida na região, que começam a fazer o Jongo. Darcy era musico e fez o
jongo para Clara Nunes, cantora conhecida com vários discos gravados, quando
esta esteve na Serrinha, em visita a Mae de Santo. Este pode ter sido o “motivo” e
o “incentivo”, para que Darcy, com apoio de sua mãe, formasse o grupo artístico.
Este foi o primeiro passo para divulgar o jongo fora do contexto dos quintais, dos
velhos, da Serrinha. Darcy e sua mãe começaram a ensinar jongo as crianças, o
que antes não se fazia.
O ritmo, segundo relatam antigos moradores da Serrinha, era restrito aos
“cabeças brancas”3, sendo, portanto, uma dança restrita aos mais velhos. Com a
entrada dos jovens no jongo o conhecimento de suas raízes são transmitidas tal
2
Darcy Monteiro, o Mestre Darcy do Jongo, nasceu em 1932 no Morro da Serrinha, em Madureira,
filho de Vovó Maria Joanna e Pedro Monteiro. Ingressou na carreira de músico aos 16 anos,
acompanhando diversos músicos de destaque na Rádio Nacional e no Cassino da Urca nas
décadas de 40 e 50, além de ter integrado a turnê brasileira do jazzista Dizzy Gillespie. Fundou o
Jongo da Serrinha, no final da década de 90, inovando ao criar arranjos para o jongo com cordas,
coro com diversas vozes e introduzindo crianças nas rodas, até então permitida apenas para os
mais velhos.
3 Expressão extraída de uma entrevista realizada em outubro de 2012 com Tia Ira, importante
figura da comunidade da Serrinha.
como nas tradições orais da África, onde os griots4 são preparados para serem
narradores da história e da memória coletiva a fim de que essas sejam
transmitidas para as novas gerações. Legitimado por meio de laços de parentesco
a ‘casta de griot’, existente no continente africano, na comunidade da Serrinha fazse a partir do paralelo com os laços que unem os moradores em torno de um
objetivo comum: a preservação do Jongo na Serrinha.
Grande visionário, Mestre Darcy também foi quem transformou a sonoridade do
ritmo ao inserir inventivamente o instrumento de corda no jongo. A medida que a
prática deixa de ser algo isolado no tempo-espaço com uma finalidade préestabelecida, a incorporação de influências que antes não eram presentes,
passam a fazer parte como desdobramento do original ritmo. Caxambu,
candongueiro e angoma-puita se misturam ao som do violão, bandolim e
cavaquinho, a percussão também incrementa as vozes que emitem os pontos
cheios de metáforas e magias da tradição jongueira.
Sendo assim, não é absurdo dizer que o jongo dos ancestrais tem hoje status de
arte. O jongo da Serrinha a que se assiste hoje é ancestral e religioso e, não
contraditoriamente, artístico, lúdico e educativo. A própria inserção das crianças
na roda de jongo certamente é um dos elementos que levam em consideração
essas transformações do tradicional ritmo afro-brasileiro.
O grupo se apresentava em casas noturnas e Darcy, professor de musica,
começou a frequentar as Universidades para tocar seu tambor e divulgar o jongo
entre os estudantes. Nesse movimento atraiu um estudante de jornalismo (Marcos
André), que se juntou ao grupo, que passou a ser chamado Jongo da Serrinha. A
mudança na formação do grupo gerou mudanças na musicalidade e vice-versa.
Em 2001, o Grupo artístico que antes se apresentava com Mestre Darcy, por
influencia de Marcos Andre e Dyonne Boy, estudantes de jornalismo que passam
a frequentar e fazer parte do grupo, decide por se tornar “pessoa jurídica” através
do registro como ONG (organização não governamental), um modelo de produção
cultural possível para a atuação desses grupos.
4
Citação extraída do seguinte endereço eletrônico: http://blogdoacra.blogspot.com.br/2009/08/ogriot-doudou-coumba-rose-visita-o.html. Acesso no dia 24 de novembro de 2012.
A ONG Centro Cultural Jongo da Serrinha (CCJS) tem como objetivo “fortalecer
essa manifestação da cultura local, o jongo 5 . Dyonne Boy, fundadora e atual
diretora da ONG, fala da criação traçando um vinculo com praticas cotidianas
envolvendo os personagens envolvidos nessa genealogia.
“nossa ONG na Serrinha seria antes uma continuidade das ações já
desenvolvidas por Vovó Maria Joanna, Mestre Darcy e Tia Maria por
mais de quarenta anos na comunidade. Com seu terreiro Tenda
Espírita Cabana de Xangô, Vovó prestava informalmente serviços de
assistência social, como alias é típico dos terreiros de candomblé e
umbanda. Já Mestre Darcy, ganhou notoriedade em toda a cidade
contando histórias sobre o jongo e a Serrinha e ensinado uma legião
de músicos seus toques, ritmos, e sua dança e seu canto. Tia Maria,
que hoje é a presidente da ONG, promovia em seu quintal festas e
reuniões, sempre com muitas crianças, o que ajudava a manter a
coesão dos laços em torno do jongo”. (Boy, Dyonne. 2006).
Neste período o grupo, sob a coordenação executiva de Marco Andre, encena um
grande espetáculo musical em um grande teatro da cidade. Tia Maria como
representante mais velha da comunidade, integrante do grupo desde os tempos
de Darcy, sua sobrinha neta Lazir Sinval, Deli Monteiro sobrinha de Darcy e neta
de Vovó Maria Joana, representa a linhagem da “nobreza” do Jongo (ainda hoje).
Um grupo de músicos percussionistas e dançarinos ocupam um palco com figurino
e sonoridade que situam o grupo no panorama artístico da cidade.
A estratégia de Mestre Darcy para a preservação e transmissão do jongo foi muito
criticada por vários segmentos. Além dos jongueiros da Serrinha e de outras
localidades, Darcy vai sofrer duras criticas daqueles que “se apresentam como os
verdadeiros guardiões de uma sensibilidade cultural particular das tradições
africanas” (Simonard, 2005:75).
Patrimônio nacional em processo
5
O grupo nesses anos de existência recebeu diversos prêmios, entre eles, o Itaú-Unicef e a
Medalha de Ordem ao Mérito Cultural do Ministério da Cultura. O GCJS tem duas missões
institucionais: educar e capacitar crianças e jovens e preservar o jongo como Patrimônio Imaterial.
Como estratégia, desenvolve atividades de arte-educação e cria produtos artísticos.
O processo de construção identitária é múltiplo, variado e bastante rico,
especialmente em contextos de grandes metrópoles e no qual processos de
patrimonialização tem um papel fundamental. Entretanto, muitas vezes ele tende a
ser reduzido a algumas imagens que afirmam determinadas características e, por
consequência, escondem outras, fazendo com que grupos inteiros sejam
excluídos, parcial ou integralmente dessa construção. As ações visam registrar a
memória da comunidade com o objetivo organizar os registros documentais da
vida dessa comunidade, principalmente aqueles relacionados ao Jongo e ao
Samba, guardados nas lembranças individuais, mas compondo um acervo de
memória coletiva ao alcance do cidadão. Discutir as relações entre memória e
cidadania é mais um ato de colocar a comunidade diante de ações acerca do
patrimônio cultural e as responsabilidades que esses bens têm com o seu público.
No Rio de Janeiro, o processo de marginalização espacial da grande parte da
população também levou a uma marginalização das identidades dessas
populações dentro do modelo que se construiu do ser carioca. Suas
manifestações culturais e artísticas, formas de expressão foram durante muito
tempo excluídas do ser / viver a cidade. Mais recentemente, a partir de demandas
dessa mesma população, algumas políticas públicas têm procurado a valorização
e inclusão dessas identidades, mas ainda há um grande percurso a ser seguido
para o reconhecimento e exercício pleno da cidadania.
Vivemos na última década um movimento de ampliação da noção de patrimônio e,
como consequência, de renovação nas políticas públicas voltadas a essa área
bastante expressivo. No Brasil, os anos 2000 começam com a criação do registro
do patrimônio imaterial que permitiu o reconhecimento por parte do Estado de toda
uma série de manifestações que antes não encontravam espaço nas limitações do
instrumento de proteção mais expressivo até então, o tombamento.
Uma vez que a referência cultural diz respeito a sujeitos para os quais essas
referências façam sentidos, a necessidade de ouvi-los torna-se fundamental. Um
aspecto importante da abordagem que se inicia com a ideia de referência cultural
é que, para os inventários que se apoiam nela, o sujeito não deveria ser
simplesmente o informante, mas também seu intérprete. Nesse sentido, a tarefa
de seleção, valorização e promoção dos bens patrimonializáveis passaria por
outros critérios que não aquele do olhar do técnico. Este se transformaria agora
num mediador entre aquilo que a população reconhece como seu patrimônio e o
Estado.
Nesse sentido, funcionando de maneira mais eficaz como um catalizador de
identidades, a incorporação da população em todo o processo promove também
uma preservação mais eficaz, uma vez que, ao reconhecer de fato o bem como
seu patrimônio e ver nele desenhados sua identidade e pertencimento, a própria
população passa a ser um agente fundamental na preservação e, não mais, algo
contra qual o patrimônio se deveria proteger.
O jongo foi reconhecido em 2005 como patrimônio imaterial, inventariado pelo
CNFCP/IPHAN6 junto de outros elementos relacionados às expressões de origem
africana. Esse trabalho teve início em 2001, ancorado a uma metodologia de
trabalho de campo antropológico e de pesquisa de fontes. Entre os envolvidos
neste processo estiveram pesquisadores da área, antropólogos, lideranças
comunitárias jongueiras, o Grupo Cultural Jongo da Serrinha, dentre outros. O
inventário considerou uma relação de elementos que dialogassem entre algumas
heranças da cultura de matriz africana e a cultura dos negros escravizados na
região Sudeste. No conjunto desses elementos constam: a dança de roda, os
tambores, os pontos cantados, os símbolos.
O Ponto de Cultura Jongo da Serrinha foi criado com o objetivo de dar
continuidade aos trabalhos de preservação do patrimônio histórico do jongo e
assistência social desenvolvido há mais de 40 anos por Vovó Maria Joana
Rezadeira e Mestre Darcy do Jongo. As ações do grupo tomaram, desde o
principio, a direção de incluir jovens e crianças na roda do jongo, visando à
preservação e a revitalização da memória dessa expressão cultural. Da mesma
forma, Mestre Darcy buscou abrir o jongo para pessoas de fora da comunidade,
fazendo apresentações, contando historias, propondo oficinas para jovens
universitários.
6
Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/ Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional.
Encenação em cena
Em maio de 2014 o grupo promoveu uma serie de 5 shows em Praças publicas na
cidade do Rio de Janeiro: Cinelândia, Praça Tiradentes, Largo da Prainha,
Arpoador e Parque Madureira. O espetáculo, reunindo “tradição popular e
elementos da cena contemporânea” é um espetáculo “livremente inspirado na
cultura cigana”. Este espetáculo teve uma grande repercussão nas redes sociais,
tendo inclusive sido questionado por lideranças ciganas que se sentiram, no
primeiro momento, usurpadas. A concepção do espetáculo foi de Dyonne Boy,
segundo ela, inspirada no “nomadismo” cigano e na devoção de uma das
integrantes do grupo a Santa Sara, santa identificada com o povo cigano.
Este espetáculo foi divulgado nas redes sociais e teve uma repercussão não
planejada. No primeiro momento, o rápido volume de “curtidas” foi apontado como
sinal de alcance, de acerto, de na polemica que se colocou a partir do mesmo,
com referencia a tradição, herança, legitimidade, usurpação, entre outros. O
primeiro a se manifestar, questionando o uso do termo que identifica um grupo
social e étnico, os ciganos.
“ O que se questiona aqui – sendo bem franco e direto – é a urdidura
desta farsa pretensamente etnológica de forjar, deliberadamente um
caráter de tradicionalidade para o ‘jongo do Darcy’(...) O Jongo do
Darcy nunca foi, há muito não era mais desde os anos 70 ‘cultura
tradicional’ no sentido em que os protocolos de tombamento e
registro de bens imateriais preconizavam. Isto, enfatize-se, ser
‘folclore’ nunca foi, absolutamente a intenção de Darcy. Nunca fingirse de ‘jongo folclórico’ para obter vantagens do Estado. Jamais.
O jongo ao ser inventariado e registrado como tradicional (...) nunca
seria o recriado, este reinventado.” 7
Reinventado, recriado, forjado... o caráter de tradicionalidade. O grupo Jongo da
Serrinha é “acusado” de reinventar uma tradição. Aceita-se agora a invenção de
Darcy, mas transformar o feito do Mestre em uma tradição é “deliberadamente
7
Trecho retirado das postagens feitas pelo grupo para divulgação do espetáculo Jongo Cigano.
Os comentários s na rede social motivados pelo espetáculo renderam longas discussões e vários
‘jongueiros’ se posicionaram. Autor Spirito Santo.
golpismo”. A discussão sobre tradição x modernidade estrutura a critica. Não
reconhece e o autor situa os sujeitos que hoje encenam o jongo como
‘oportunistas’. A discussão chegou o ter um tom agressivo na rede social, onde
diferentes atores dialogam, uma critica contundente ao grupo, tanto pela
“apropriação” de elementos da cultura cigana (ou seus estereótipos), como pela
própria existência do grupo com sua encenação midiática.
O registro do Jongo elaborado pelo IPHAN foi fundamental para a continuidade do
grupo. A inclusão no dossiê de registro possibilita o acesso a recursos por meio
dos editais elaborados no âmbito municipal, estadual, federal e pela iniciativa
privada através das leis de incentivo fiscal voltadas para a produção cultural.
Essas politicas, implementadas através de editais de patrocínio cultural, forjam,
em algumas situações, produções “encomendadas” num formato que nem sempre
pode ser elaborado no tempo do grupo. O tempo da produção não é uma
dimensão considerada.
De certa maneira o registro contribuiu para a profissionalização do grupo. Na
medida em que o grupo conseguiu participar do processo de inventario realizado
pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), se inseriu e
ocupou seu lugar na “tradição do jongo”, um lugar agora legitimo, porque
reconhecido institucionalmente. num mundo em que não cabe mais a vinculação a
uma única identidade, sendo esta múltipla, variada e em constante processo de
produção (HALL, 2006). A cidade é múltipla, assim como também devem ser seus
múltiplos pertencimentos. A exclusão de grande parte da população desse
processo de construção identitário, faz parte também do processo que os excluiu
social e economicamente, tornando-os, durante muito tempo, invisíveis e/ou
indesejáveis. O apagamento de sua memória, de suas manifestações culturais e
de sua paisagem é, ao mesmo, reflexo e condicionante desse processo.
A arte tem sido uma possibilidade de existência. Desde os anos 1980, quando
Darcy Monteiro organizou a primeira formação do grupo artístico que o espaço
tem sido ocupado e reinventado. O jongo cigano foi pensado como um produto,
com inspiração “cigana”, ou na imagem fixada de forma estereotipada relativa a
estas populações, na verdade a imagem é referida a uma estética mística,
presente nos terreiros de Umbanda e objeto de culto.
A consciência do papel, em que um novo mundo interioriza-se na consciência (e
se projeta em repetições futuras), a inserção social e a legitimação fruto do
processo de institucionalização incorporavam novos significados. Elaboram
intensamente o seu lugar de herdeiras de uma tradição ancestral. As criticas foram
lidas, registradas e geraram um questionamento por parte de alguns membros,
sobre a forma que esta herança não esta sendo encenada.
A busca por uma autenticidade relativa diz respeito as origens, a um lugar dado
pela família. O jongo Vista Forte composto por Lazir Sinval conta uma historia, traz
para cena personagens que habitaram a Serrinha e compõe esse panteão do
jongo. Ao traze-los, a compositora constrói sua genealogia e legitima seu lugar
nesta “tradição”. Desde modo, construir a genealogia é uma forma de se incluir
num grande ramo, como fruto.
Hoje, o "Centro Cultural Jongo da Serrinha" realiza atividades de ensino e exibição
do jongo. O projeto tem como base pedagógica a cultura afro-brasileira e as
tradições e memória da Serrinha. Oficinas de jongo, cultura popular, dança afro,
canto, teatro, vídeo, fotografia, as oficinas com os griôs, estão permanentemente
estimulando nos jovens a possibilidade da expressão e da identidade através da
arte, buscando na dinâmica das manifestações populares uma resignificação de
suas praticas.
O jongo passa a ser mais que um importante ritual de culto a ancestralidade e de
ligação com o transcendental, com a espiritualidade e com a religiosidade. Ele
torna-se também um grande espetáculo da cultura de matriz afro-brasileira, e
nesse movimento de espetacularização, enquanto manifestação cultural, é
conquistado o seu espaço de pleito, luta e resistência artístico-cultural.
Vista Forte (Lazir Sinval)
Jongueiro Vai, Jongueiro Vem
Jongueiro Está Aqui Agora
Quem É Jongueiro Da Serrinha
Finca Tenda E Está Aqui Agora...
Angoma-Puita e Tambú
Oi Saravá Meu Caxambú
Introdução
Que Eu Louvo Agora
Digo Adeus Ao Cativeiro
Firmo Ponto No Cruzeiro
Salve Nossa Senhora
Eu Vejo,Nêgo Véio Tirando Vinho
Da Bananeira E Lá Mata
E Plantando Cana
E No Terreiro Eu Sinto O Cheiro
Do Cachimbo De Vovó
Maria Joana
...
Entrar A Louvação
Vovó Líbia, Veja Seu Antenor
Óia Benzendo O Tambor
O Candongueiro
Tia Eva, Firma Toco, No Terreiro
Pras Almas Do Cativeiro
Aniceto Puxando Um Ponto
Gungunando E Versando No Improviso
Dona Florinda, Seu Gabriel
Com Seu Chapéu E Djanira
Esbanjando O Seu Sorriso
...Entrar A Louvação
Eu Vejo Mestre Darcy
Mestre Fuleiro
Entrando No Terreiro, Sem Demora
Vovó Tereza, Que Beleza
Como Siruga Saia
Até O Romper Da Aurora
Zé Nascimento, Tia Eulália
Com Suas Lindas Flores
No Chão Do Terreiro
Se Mano Elói Chegar Pra Frente
Abre A Roda Minha Gente
É Festa De Jongueiro
Tia Eunice ,Bate Pauó
E Olha A Sua Umbigada
Não Me Engana
Dona Marta Dançando Jongo,
Em Seu Terreiro
No Dia De Santana
Ai Meu Zirimão, estendo A Mão
Boto Os Meus Pés No Chão
...Entrar A Louvação
Dái-me Licença
A Serrinha É Um Quilombo
E Pra Tia Maria Do Jongo
Eu Peço À Benção
...Entrar A Louvação
Referências Bibliográficas
ABREU, Regina; CHAGAS, Mario (2003).Memoria e Patrimônio - ensaios
contemporâneos. Rio de Janeiro: Editora DP&A:FAPERJ,
BARBOZA, Marília T.. (1981) Silas de Oliveira : Do jongo ao samba-enredo. Rio
de Janeiro: FUNARTE.
BOY, Dyonne Chaves (2006). A Construção do Centro de Memória da Serrinha.
Rio
de
Janeiro,
Disponível
em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/2139/CPDOC2006Dyo
nneChavesBoy.pdf?sequence=1 Acesso no dia 24 de novembro de 2014.
CANCLINI, Nestor Garcia. (2006) Culturas Hibridas: estratégias para entrar e sair
da modernidade. São Paulo: EDUSP,.
CARNEIRO, Edison. (1961). Samba de Umbigada. Rio de Janeiro: MEC
CONFETE, Rubens. Jongo: a morte de uma raiz popular. In: Tribuna da Imprensa:
Rio de Janeiro, 14/06/1975
DIAS, Carla da Costa (2011) .Preservando e Construindo a memória do Jongo da
Serrinha. Formulário-Síntese da Proposta – SIGProj Edital PROEXT 2011.
Ministério da Educação. Rio de Janeiro,
DIAS, Carla e Cortes, Carlos André. (2011) Cantos e Contos. Rio de Janeiro, EBA
editor..
HALL, Stuart. "Notas sobre a desconstrução do popular". In: Da
diáspora. Identidades e mediações culturais. Pp 247 -264.
IPHAN - CENTRO NACIONAL DE FOLCLORE E CULTURA POPULAR.. Jongo,
patrimônio
imaterial
brasileiro.
Disponível
em:
www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&ved=
0CDIQFjAA&url=http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=517&ei=J5zUPPDLYOu8QS0tIC4CA&usg=AFQjCNHUKBoaKRRmHft6_5WoFzflpHGSuw&si
g2=-fWhTAymyErwy57K_o1CLg Acesso no dia 20 de setembro de 2015.
GANDRA, Edir. Jongo da Serrinha: do terreiro aos palcos (1995). Rio de Janeiro:
GGE,.
GEERTZ, Clifford. (1973). A interpretação das Culturas. Zahar. Rio de Janeiro,.
HALBWACHS, M. (1990).A Memória Coletiva. São Paulo; Vértice,
SIMONARD, Pedro. (2005). A Construção da tradição no Jongo da Serrinha: Uma
etnografia visual do seu processo de espetacularização. Tese de doutorado
apresentada ao Programa de Pós graduação em Ciências sociais da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro / UERJ.
VALENÇA, Rachel e Suetônio. (1981) Serra, Serrano, Serrinha: O império do
samba. Rio de Janeiro: José Olympio,.

Documentos relacionados

Coletânea - Pontão de cultura do Jongo

Coletânea - Pontão de cultura do Jongo incessante no sentido de garantir o desenvolvimento de ações de salvaguarda do Jongo/Caxambu. Às Superintendências do IPHAN também deixamos registrado o nosso agradecimento pelo apoio e pela parce ...

Leia mais

a construção da tradição no jongo da serrinha: uma etnografia

a construção da tradição no jongo da serrinha: uma etnografia particularmente, para o morro da Serrinha. Outros temas igualmente importantes aqui discutidos são o início da ocupação desse espaço geográfico e as primeiras famílias que lá se instalaram, tendo o...

Leia mais