“PRINCESAS”: GÊNERO, PROSTITUIÇÃO E XENOFOBIA NUMA
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“PRINCESAS”: GÊNERO, PROSTITUIÇÃO E XENOFOBIA NUMA
1 GT. Nº 04: DESENVOLVIMENTO, GÊNERO E GERAÇÃO “PRINCESAS”: GÊNERO, PROSTITUIÇÃO E XENOFOBIA NUMA LEITURA QUEER DE CINEMA BARROS, Sulivan Charles1 [email protected] RESUMO As narrativas cinematográficas exercem grande poder sobre o público visto que elas veiculam e constroem relações de gênero e sexualidades o que torna de extrema relevância a investigação dos discursos/práticas/efeitos do cinema na constituição de valores e representações sociais que contribuem para delimitar os papéis dicotômicos entre homem/mulher, masculino/feminino, hetero/homo, prostituta/cliente bem como investigar abordagens que problematizem as sexualidades e as práticas de prostituição de forma interseccional. E é neste sentido, que se constitui o presente trabalho. Pretende-se analisar o filme “Princesas” de Fernando Léon de Aranoa, visto que o mesmo é marcado pela experiência da prostituição a partir de suas personagens principais, a prostituta espanhola Caye e a prostituta dominicana Zulema. A história narrada pelo filme, sob a ótica de uma leitura queer de cinema, contribui a uma crítica dos valores patriarcais, machistas, sexistas e xenófobos propiciando outros sentidos para a compreensão do imaginário social sobre a prostituição feminina na Espanha, demonstrando as diversas rivalidades entre as prostitutas nacionais e as imigrantes visto que as espanholas temem perder seu lugar no mercado do sexo local. Palavras-Chave: Gênero, Prostituição; Xenofobia, Cinema Queer. ABSTRACT Cinematographic narratives exert great power over the audience since they convey and construct gender relations and sexualities which makes extremely relevant research discourses / practices / effects movie in the formation of values and social representations that contribute to delimit the dichotomous roles male / female, male / female, hetero / homo prostitute / client and to investigate approaches that problematize sexualities and practices of prostitution of intersectional way. And in this sense, it is the present work. It is intended to analyze the movie "Princess" Fernando Léon de Aranoa, since that is marked by the experience of prostitution from its main characters, the Spanish prostitute Caye and Zulema Dominican prostitute. The story told by the film, from the perspective of a queer reading of cinema, contributes to a critique of the patriarchal, macho, sexist and xenophobic values providing other senses to understand the social imaginary of female prostitution in Spain, demonstrating various rivalries national and immigrant prostitutes since the Spanish fear losing their place in the local sex trade. Keywords: Gender, Prostitution; Xenophobia, Queer Cinema. 1 Pós-Doutor em Estudos Culturais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Pós-Doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília – UnB. Pós-Doutorando em História pela Universidade de Brasília – UnB. Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília – UnB. Professor do Departamento de História e Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás – UFG/Regional Catalão e Professor Colaborador do Mestrado Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás – UFG/Goiânia. 1 2 Introdução As narrativas cinematográficas exercem grande poder sobre o público visto que elas veiculam e constroem relações de gênero e sexualidades o que torna de extrema relevância a investigação dos discursos/práticas/efeitos do cinema na constituição de valores e representações sociais que contribuem para delimitar os papéis dicotômicos entre homem/mulher, masculino/feminino, hetero/homo, ativo/passivo, bem como investigar abordagens que problematizem as sexualidades de forma interseccional. Um debate recorrente no campo do cinema hoje é se existe ou não um cinema gay ou um cinema queer que implique a diferença de perspectiva pela qual estes filmes são realizados. Muitos deles se intitulam ou são intitulados como queer. Estas películas que se intitulam ou são denominadas como queer se colocam em que perspectiva discursiva? Quais seriam/são as justificativas utilizadas por diretores/roteiristas e críticos de cinema para apresentarem e/ou denominarem estas produções como queer? A simples presença de personagens gays, lésbicas, travestis e transexuais que discursam sobre a mobilidade do feminino e do masculino independente do sexo biológico podem definir estas obras como queer? Ou torna-se necessário que nestas produções as personagens apresentem-se em performances desestabilizadoras da heteronormatividade? Parto de antemão, que nem todo olhar queer empreendido no cinema desconstrói totalmente o binário sexual, a heterossexualidade compulsória e o modelo heteronormativo regulatório da sexualidade humana ou faça a oposição ao Estado patriarcal ou até mesmo chegaria a uma montagem totalmente isenta de sentidos “masculinistas”, sexistas e heteronormativos. E é neste sentido, que se constitui o presente trabalho. Pretende-se analisar o filme “Princesa” de Henrique Goldman, visto que o mesmo é marcado pela experiência da prostituição a partir de sua personagem principal, a travesti Fernanda. A história narrada pelo filme, sob a ótica de uma leitura queer de cinema, contribui a uma crítica dos valores patriarcais, machistas, sexistas e heteronormativos propiciando outros sentidos para o imaginário social sobre a prostituição e a travestilidade. O Cinema Queer O termo queer funciona de múltiplas maneiras: a) como prática de leitura sobre um corpus para descrever uma identidade particular, para circunscrever um campo de estudos, como sinônimo de lésbica ou gay, como noção “guarda-chuva” no qual se agrupam várias identidades não heteronormativas (gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, intersexos, 2 3 etc) e b) como campo teórico e discursivo sobre identidades, desejos, representações sociais e imaginários que identificam a sexualidade como dispositivo histórico de poder e que se constroem a partir de diversos campos do conhecimento e dos diálogos produzidos entre diversas disciplinas tais como história, sociologia, antropologia, psicologia. Por outro lado, os filmes, por exemplo, são objetos privilegiados nos estudos queer: “oriundos predominantemente dos estudos culturais, os teóricos queer deram maior atenção à análise de obras fílmicas, artísticas e midiáticas em geral” (Miskolci, 2009, p. 155). Entretanto, a maior parte destas produções que são definidas como queer seja pelos cineastas/roteiristas e/ou pelos críticos de cinema e público em geral, é realizada distante das perspectivas históricas feministas e queer, ignorando o problema da identidade política e a questão da experiência na construção da subjetividade e na significação do real. Não trazem em sua essência a possibilidade de uma crítica sobre a heteronormatividade como a ordem sexual do presente na qual todo mundo é criado para ser heterossexual ou mesmo que não venha a se relacionar com pessoas do sexo oposto para que adote o modelo da heterossexualidade compulsória em suas vidas. “Gays e lésbicas normalizados, que aderem a um padrão heterossexual, também podem ser agentes da heteronormatividade” (Miskolci, 2012, p. 15). Ao relacionar cinema e teoria queer, busco perceber possíveis comunicabilidades entre alguns filmes dirigidos/roteirizados por homens de nacionalidades distintas e em contextos temporais diferentes, atentando para as estéticas, poéticas e para as representações sociais destes diretores, que podem ser lidas como críticas ao patriarcado, a heterossexualidade compulsória e ao modelo heteronormativo e suas dinâmicas de poder. Nesse percurso, é imprescindível considerar ainda a pluralidade das perspectivas queer, cujas práticas e discursos variam dependendo do olhar e das condições de produção de quem os opera. A construção não se separa do filme, é o filme mesmo; outra construção do mesmo relato daria outro filme. O tipo de utilização do material fílmico, o tempo, uma relação com o mundo circundante e a uma tomada de posição frente ao público, e é aqui mais uma escolha das estórias (sic), que podemos interrogar ao cinema como expressão ideológica. Não pode haver estudo fílmico que não seja uma investigação da construção (Solin, P. apud Silva, 2008, p. 264). O cinema, ao longo de sua história, instituiu valores e representações que contribuíram para definir a rigidez dos papéis binários entre homem/mulher, masculino/feminino, hetero/homo, reapropriando-se das relações do poder sexista, machista, falocêntrico, patriarcal e heteronormativo. 3 4 O cinema narrativo clássico, sobretudo, o hollywoodiano, reforçou na sua trajetória, dispositivos semióticos dos modelos dos heróis, bravos, guerreiros, tidos como lugar dos machos e, as frágeis, doces, sensíveis e sonhadoras, para as mocinhas-fêmeas. Um cinema que negou às diferenças sexuais e o lugar das mulheres, dos homossexuais e de outras identidades de gênero e sexuais como sujeitos do desejo, do poder ou do saber. Segundo Nepomuceno (2009, p. 3), a transgressão das identidades no cinema foi construída imageticamente por fissuras na tela, por onde ocorriam meta-linguagens e outros sentidos não ditos, parafraseados em circunstâncias que ora levava o deboche e a comédia ou ora vista como um drama a ser revelado, uma questão a ser descoberta. As sexualidades variáveis, quando permitidas, detinham uma narrativa ideológica que marcava a diferença e a exclusão da norma, da ordem, do instituído. Um caminho traçado sempre às paralelas, sendo definido e definindo-se como algo proibido, culpabilizado, ou ainda, na vertente do riso e do escracho, onde as linhas do eu e do outro ficam mais fortemente separadas pelo que não conheço em mim. Filmes se relacionam a uma larga escala de experiência estética e discursiva, eles têm um importante papel na formação das representações em gênero e sexualidades, - assim, como raciais, étnicas, religiosas, geracionais, de classe, entre outras -, e podem, do mesmo modo, facilitar, particularmente bem, a comunicação e o entendimento de temas difíceis e tabus. Além disso, o filme torna-se um espaço que dá voz aqueles que não poderiam ser ouvidos de outra maneira. Falar em um cinema gay, homoerótico ou queer é abordar mais que a expressão cultural-artística de uma identidade homossexual ou queer única e indivisível; trata-se de um meio de representação de uma pluralidade de identidades e performances que se perpassam e misturam, sem que haja uma fronteira entre elas. São gays, lésbicas, transexuais, travestis, intersexos e tantos outros sujeitos possíveis que “saíram do armário” e ousaram se assumir no gênero e na sua sexualidade; eles transitam entre suas diversas identidades, sendo aceitos ou não. Foucault (1997) nos ensina que há coisas e há indivíduos que são impensáveis porque não se enquadram numa lógica ou num quadro admissíveis aquela cultura e/ou naquele momento. Essas práticas e esses sujeitos são estranhos, excêntricos, bizarros, talvez se possam dizer simplesmente queer, enfim, “eles transgridem a imaginação, são incompreensíveis ou impensáveis e então são recusados, ignorados” (Louro, 2004, p. 28). O cinema queer, como prática discursiva, contesta o controle institucional de gênero e das sexualidades. Questões de representação e de identidades oferecem oportunidades para 4 5 que possamos explorar as forças e os limites de diversos problemas sociais 2. Neste sentido, parto da perspectiva de que a análise e interpretação de discursos fílmicos pode ser um caminho profícuo para rompermos com entendimentos “normalizados”, dos agentes políticos, institucionais e educacionais sobre a produção e circulação de representações queer na cultura visual. Dias ao discutir o campo da educação em cultura visual e a relação com o cinema queer, nos afirma que ensinar usando o cinema queer pode ser intrinsecamente subversivo, porque ele questiona noções de identidade, subjetividade e desejo e, por meio de suas características intertextuais, incorpora investigações mais amplas da esfera pública sobre cidadania, raça, classe, entre outras (Dias, 2007, p. 718). Se por um lado o cinema clássico reafirma valores e representações que contribuem para definir a rigidez dos papéis binários, por outro lado, o cinema queer constitui um território que vem abrindo novos cenários de visibilidade para que os/as personagens queers possam encenar suas performances de identidades múltiplas por meio de corpos-devir. Dos guetos, das sombras e dos “armários” para as telas cinematográficas. Nas telas, além de homens e mulheres homossexuais protagonizam os enredos uma gama de variabilidade de gênero e sexualidades, como os/as bissexuais, os/as transexuais, os/as travestis, os/as intersexuais, entre outros infinitos arranjos identitários. A presença dos queers como significante desta outra alternativa de se fazer cinema para além dos modelos heteronormativos apresenta-se também como espetáculo midiático, produzido pela indústria de cultura de massa. Nesta construção, para além de qualquer conceituação ou discurso determinante sobre uma nova compreensão de gênero, corpos, sexualidades e desejos, o cinema queer representa um lócus mutante onde ficção e realidades reinventam suas narrativas, propondo um campo visual outro sobre as diferenças que nos constitui como humanos bem como outras formas de contestação. “Princesas”: Gênero, Prostituição e Xenofobia Princesas é um filme de 2005 do diretor espanhol Fernando León de Aranoa. É a história de duas mulheres prostitutas. Uma delas é Cayetana, mais conhecida como Caye (com a mesma pronúncia de Calle que no espanhol é rua). Ela é espanhola, de uma família de classe média que ignora a sua vida como prostituta e está nessa profissão, temporariamente, 2 Segundo Dias (2007) aparentemente, no cinema queer, os discursos que focalizam questões de gênero e de sexualidades têm predileção especial pelas representações de subjetividades de queer-gêneros, isto é, sujeitos que estão fora dos padrões normatizados que definem a heterossexualidade como a única forma de manifestação natural do desejo. 5 6 enquanto arrecada dinheiro para fazer um implante de silicone nos seios. A outra é Zulema, da República Dominicana que usa o dinheiro conseguido nas ruas para sustentar o filho, que continua em sua terra natal. Um dia, Caye encontra Zulema espancada e a leva ao hospital. A partir desse encontro nasce uma amizade. “Se a vida te dá, mais de cinco razões para seguir/ Se a vida te dá mais de cinco esquinas para dormir/ Se a vida te dá mais de cinco milhões para morrer/ Aguente firme de noite e de dia, aguente firme de noite e de dia/ Se a vida te dá mais de cinco bastardos para aguentar/ Se a vida te dá mais de cinco lições para não seguir/ Aguente firme de noite e de dia, aguente firme de noite e de dia...” É com esta música que dá-se o início do filme Princesas. E é com Caye, jovem sonhadora e, em certo sentido ingênua, que somos levados inicialmente a conhecer o universo da prostituição feminina na Espanha, as opressões sexuais em que estas mulheres estão assujeitadas, os conflitos entre as prostitutas “nativas” (espanholas) e as prostitutas latinoamericanas e africanas, bem como o desafio do encontro com a alteridade naquilo que se tem de mais necessário e paradoxalmente mais impedido, que é a sua possibilidade de domínio e auto-gestão da própria presença. Ao termos acesso a intimidade de Caye (a intimidade de seus espaços, seu quarto no apartamento onde vive sozinha, a casa de sua mãe Pilar, o salão de beleza que frequenta e que encontra-se com suas amigas prostitutas) e de suas reflexões (por meio dos diálogos com seus familiares e suas amigas, além de seus monólogos compartilhados em voz alta com nós espectadores) somos levados também ao seu mundo subjetivo, seus sonhos, seus desejos e a prostituição como a maneira que ela tem de ser/estar no mundo e que na sua leitura de mundo é uma condição transitória. Estamos na casa de Caye, ela está dormindo e seu celular toca. Ela sabe que é um cliente, ela atende. Ela passa a arrumar a casa, lavar as louças. Ela conta o dinheiro que está numa lata no armário da cozinha, dinheiro este que ela guarda para a sua operação de implante de silicone nos seios. Ela volta a lavar roupas e neste momento ela olha para o varal do condomínio de apartamentos em que vive e lá está uma blusa estendida com os dizeres “69 Sexy Girl”. Caye fica pensativa. Caye sai de casa, passa por uma farmácia para comprar algo e se depara com uma menina subindo numa balança e comenta: “Zero Quilo. Que leve. Quer dizer que é um anjo”. A mãe da menina olha para ela e diz: “tem que colocar moeda para funcionar”. Caye não dá atenção e vai almoçar na casa de sua mãe, na presença de seu irmão e cunhada. Enquanto 6 7 almoça, seu celular toca. Sua mãe incomodada pede para que ela atenda o telefone e ela não dá atenção. Sua mãe recebe flores encaminhadas por ela própria e justifica que devem ter sido encaminhadas pelo pai de Caye. Mas ele já é falecido a mais de 3 anos. Isso incomoda Caye. Sua mãe sempre lhe diz: “Existimos porque alguém pensa em nós, e não o contrário”. Caye, mais uma vez, fica pensativa. Caye vai ao salão de beleza, uma espécie de microcosmo de encontro entre um grupo de prostitutas espanholas e a cabeleleira Glória. Ali se constitui como um espaço de socialibidade entre as prostitutas “nativas” e também como espaço de proteção destas em relação as prostitutas estrangeiras que encontram-se do lado de fora, na praça. A janela do salão é uma espécie de fronteira que separa as “nativas” das estrangeiras, mas também constitui-se como refúgio, espaço de proteção à ameaça exterior e é claro, como ponto de observação. É neste ambiente, que produz-se conversas sobre o “problema” da imigração que sintetizam o acervo de estereótipos e representações mentais do outro (no caso das “outras”) como ameaça constante: elas são selvagens, “topam tudo” por muito pouco, produzem concorrência desleal... Segue o diálogo, entre Caren, Angela (prostitutas espanholas), Glória (cabeleleira), sua assistente e Caye: Caren: “As piores, Glória. Desde que chegaram, virou uma selva. Elas transam por 20 euros. Algumas até por 15. Boquetes por 10, como viciadas”. Glória: Mas os caras gostam delas. Deve ser pela novidade. Caren: Glória, trabalho a metade desde que elas chegaram. Glória: Coitadas. Precisam fazer algo. Não tem trabalho no país delas. Caren: Lá eles não transam? Elas aprenderam em algum lugar. Caye: Também não é assim, Glória. Se abrissem um salão aqui, você não as defenderia. Assistente de Cabeleleira: Vocês são racistas! Caren: Não é isso. Está enganada. Não é racismo, querida. Tem a ver com o mercado, com as leis e as coisas de mercado. Não é o mercado da esquina. É o da demanda e concorrência. Mas não há demanda para todas, nem concorrência. O Ministro da economia disse na TV. Elas vêm para cá fazer merda, fazem o que querem. Caye: O Ministro da economia disse isso? Caren: Ele não disse ‘merda’, mas deve ter pensado. Ele é o ministro. Deve saber do que está falando. Você entende de boquetes, Caye. Mas de economia, o ministro da economia. É o que eu acho (...) E a polícia para que serve? Elas nem sabem o que são documentos de trabalho. Glória: Não seja má, Caren. Acredite. Se essas putas fossem advogadas... [Caren continua a olhar pela janela e vê uma prostituta negra andando e continua em seus comentários] Caren: Olha como ela anda, com a bunda arrebitada. Angela: É o que ensinam a elas desde pequena. Colocam coisas nos sapatos por isso andam assim. Assistente de Cabeleleiro: Fala sério! 7 8 Angela: Eu vi na TV. Elas têm um cheiro diferente por causa dos hormônios. O cheiro forte atrai os homens. Caren: Elas não tomam banho. Pela cultura, pela religião... Interessante notar neste diálogo que a fronteira se mostra a nós espectadores do interior do salão de beleza de Glória, incluindo o ponto de vista de Caye e suas amigas em relação as prostitutas estrangeiras. Neste sentido, somos espectadores do transcurso de fatos e como tais somos situados nessa distância que é ao mesmo tempo físico e simbólico onde o outro é sempre identificado como “estranho”, “inferior”, “selvagem”. Vale ressaltar que este é o espaço da ignorância, da incerteza, espaço aberto a todo tipo de elaborações mentais sobre esse outro que se apresenta como efetivamente o “outro”. Caye que, neste momento, está “fazendo as unhas” pergunta a Glória se ela vai demorar pois tem ela tem um encontro com um cliente às 17h. Glória diz que não e que o cliente que espere. Caye chega às 17h10 no local marcado. O cliente está na mesa acompanhado por Zulema. Caye chega ao cliente e pergunta: Caye: Marcou com Lima? Cliente: Ás 17h. Já são 17h10. Caye: Eu me atrasei. [O cliente levanta da Mesa] Caye: Vamos. Cliente: Você chegou tarde. Caye: Dez Minutos? Não pode esperar? Vim de longe. Então vai pagar meu taxi? Cliente: Não vou pagar nada. O cliente vai em direção a porta. Caye volta-se para Zulema e diz: E você? Quem é? Não ouviu o Ministro? Não sabe falar ou o que? Temos regras aqui. Isto não é uma selva. Vocês vêm para este país e fazem merda. Zulema permaneceu o tempo todo calada e ao ser indagada por Caye abaixa a cabeça e vai em direção ao cliente. Caye observa que Zulema veste a blusa “69 Sexy Girl”. Caye está em sua casa. Ela passa a olhar revistas pornôs com mulheres em poses sensuais e com os seios de fora e passar a colar sua foto de rosto no corpo destas mulheres para ver como ela ficaria com silicone. Ela olha para o varal e não vê mais extendida a blusa “69 Sexy Girl”. Toca a campanhia de seu apertamento e qual Caye vai atender, vê um envolpe com dinheiro deixado por Zulema e com o valor que seria a quantia do taxi que ela havia pedido ao cliente. Voltamos ao ambiente do salão de Glória e Caren ao olhar pela janela, vê policiais fazendo ronda entre as prostitutas estrangeiras e diz: Olha, não vão fazer nada. Mudam de 8 9 funcionários a cada 3 dias. Hoje é a vez desse. E Angela responde: Se tirarem elas daqui, eu mesma os chupo. Caye que está no salão, olha pela pela janela e vê Zulema carregando uma sacola de compras. Caye está em casa ouve um som de TV lem último volume. Ela vai até o apartamento do qual vem o som. A porta está aberta, ela vai em direção a sala e abaixa o som da TV, ouve um barulho e vai em direção ao banheiro onde vê Zulema chorando e bastante machucada. Caye leva-a para o hospital. No hospital, Zulema e Caye conversam, segue o diálogo: Zulema: Não tenho documentos. Caye: Não vão pedir. Se pedirem, diga que os deixou em casa. Estão acostumados. Zulema: Tenho que pagar? Caye: É gratuíto. Você o conhece? (pergunta sobre o agressor). Zulema: Sim. De outras vezes. Ele vai me arrumar um visto de trabalho. Caye: É um cliente? Zulema: Transo com ele de graça. Adiantamento pelos documentos. Caye: O que aconteceu hoje? Zulema: Eu disse que não. Da última vez, aconteceu o mesmo. Tive que transar para ele ir embora. Caye: Ele é policial? Zulema: Uma amiga disse que é, mas eu não sei. Caye: Essa amiga que apresentou você? A enfermeira chama Zulema. A partir deste momento, uma série de sequencias que alternam fundo musical (Manu Chao) e conversas animadas ou intimistas nos mostram Caye e Zulema conversando, compartilhando experiências, conhecendo-se. O mercado, o rincão latino, sua moradia, são os espaços que Zulema abre para Caye; Sua moradia, sua família, seus desejos e esperanças, por sua parte, são os espaços que, Caye abre para Zulema. Segue alguns destes diálogos: Caye: Onde compra suas roupas? Zulema: Um dia mostro para você. Caye: É um filho da mãe. Não pode bater em você, nem em ninguém. Denuncie. Temos direitos. Não sou em quem digo, ouvi na TV. Zulema: Sem documentos não posso. Caye: Há quanto tempo está aqui? Zulema: Há dez meses. Pedi residência mas não saiu. Caye: Está na praça? Zulema: Foi lá que me deram o contato para o apartamento. Marga, a colombiana. Conhece? Caye: Não. Zulema: Quero me mudar. É caro. Tenho um filho que mora com minha mãe. E eu mando dinheiro. Quero economizar e trazê-lo para cá, assim ele cuidará de mim. [Zulema mostra a foto do filho para Caye] Caye: Que lindo. Parece um macaquinho. Zulema: Edward. Eduarcito. Caye: Eles sabem o que você faz? 9 10 Zulema: Minha mãe morreria. Digo que trabalho num bar. E sua família? Caye: Também não sabe. É temporário. Também ando economizando para comprar uns peitos como os seus. [Zulema olha para Caye e começa a rir. Caye começa a rir também] É interessante nesta narrativa a condição de como prostitutas entendem e se relacionam com a prostituição. Partindo dos argumentos de Pelúcio (2005) 3 é possível identificarmos que a prostituição apresenta-se, primeiramente, como uma atividade desprestigiosa, com a qual só se envolveriam por necessidade, saindo dela assim que possível (é o caso de Zulema); segundo, como uma forma de ascender socialmente e ter conquistas materiais e simbólicas (Caye e Zulema); e terceiro, como um trabalho, sendo, portanto, geradora de renda e criadora de um ambiente de sociabilidade. Em outra situação, ao apresentar seus amigos latinos para Caye, Zulema pergunta para Caye o que ela achou de um deles. Zulema: O que achou do negro? Caye: Esqueça. Não gosto. Para transar, quero dizer. Se for trabalho, tanto faz. Mas, de graça, não gosto. Prefiro os brancos. Zulema: Mas é igual. Caye: Não é, não. Como vai ser igual? Há diferenças de pigmentos e outras coisas que não dá para falar aqui, mas eu vi em documentários. Zulema: No começo, eu pensava assim. Era estranho, tão branquinho... Caye: Você faz de tudo? Zulema: Quase. Caye: Eu também. Menos engolir, dá nojo. E no cu também não aguento. Zulema: Eu também não. Caye: Eu ponho os vídeos para eles gozarem logo. Lébicas, gozadas, de tudo. Eles piram com os vídeos. Zulema: Eu digo coisas. Caye: Como o que? Zulema: De tudo. Safadezas. Mete Tudo. Enfia. Me enche de leite. Caye: Me enche de leite? Zulema: Juro. Eles adoram. Não sei porque. É como uma palavra mágica. Caye: Vou tentar, como é? Zulema: Me enche de leite. [Caye começa a repetir e continua a conversa] Caye: Sempre com camisinha ou nada feito. Você faz exames? Zulema: Nas termas, faziam toda semana. Agora, não. Estou bem. Tem trabalho hoje? Caye: Vou sair. (...) Fica com saudade? Zulema: De que? Caye: De tudo. Da comida. Zulema: Um pouco. 3 Vale ressaltar que estas não são posições estanques e definitivas, mas pontos de vista e percepções que se entrecruzam e dialogam. 10 11 Caye: É estranho, não é? A saudade. A saudade em si não é ruim. Significa que houve coisas boas e sentimos falta. Eu, por exemplo, não tenho saudade de nada. Nunca me aconteceu nada de tão bom para sentir falta. Isso é uma merda. [Zulema fica calada e Caye continua] Caye: Dá para sentir saudade de algo que não aconteceu? Às vezes acontece isso. Imagino como serão as coisas. Com os homens, por exemplo ou com a vida em geral. Fico triste quando lembro de coisas que poderiam acontecer, porque seriam maravilhosas, realmente maravilhosas. Quando penso nisso, fico com saudade. Porque iam ser tão bonitas. Quando vejo que talvez nunca irão acontecer, fico muito triste. [Zulema começa a lacrimejar os olhos] Caye: Muito triste. Mas é uma tristeza por conta. Como um depósito, quando se aluga uma casa, mas com tristeza. Deposita porque no fundo sabe que vai acabar usando. Outra dúvida que tenho. Desde crianças põem algo nos sapatos para andarem com a bunda arrebitada? Zulema: Quem? Caye: Não sei. Alguém. Qualquer um. [Zulema começa a rir] Atendente: Leite? Caye: Sim, por favor, leite. Como se diz? (e olha em direção a Zulema) Zulema: Me enche de leite. Caye: Me enche de leite. Nos enche de leite. Nos enche de leite, por favor. Enquanto Zulema vive com a angústia da saudade real, Caye se aferra na ilusão de uma saudade futura. Zulema se converte progressivamente em uma espécie de espelho invertido de Caye: a relação entre as duas abrem portas para outras realidades que vão abrindo os olhos das duas para que possam enfrentar a imediatez concreta e terrivel da existência de ambas. A amizade entre as duas compensam as carências de ambas e estabelecem uma relação mais frontal, direta e autêntica com seu entorno. Caye conhece Manuel numa balada enquanto ele tenta entrar na boate dizendo que estava acompanhado de dois amigos, Caye do lado de fora se intromente na conversa dele e do segurança que não o deixa entrar. Manuel é ríspido com Caye, mas ao final ele aceita o convite dela para sair e vão a uma lanchonete. Ele acha ela estranha e ao perguntar o que ela fazia ela responde: Sou puta. E ele começa a rir, achando-a engraçada. Caye vai a casa de Zulema. Mas ao chegar lá é um homem que a atende com a esposa e filho e diz que ela não está e que procure-a pela manhã. Ao conversar depois com Zulema, Caye descobre que Zulema aluga o apartamento pelo turno da manhã pois com este casal que fica durante a noite. Assim o aluguel fica mais barato para ela. Ao conversar sobre Manuel, Zulema pergunta se ela contou para ele que é prostituta. Segue o diálogo: Caye: Contei, mas ele não acredita. Zulema: Pelo menos, já contou. Caye: Se eu dissesse que sou outra coisa, caixa ou o que for ele teria acreditado. Sabe o que mais me deixa triste? Que eles não possam buscar no trabalho. Era o que eu mais queria. 11 12 Trabalhar num escritório. No que fosse, desde que pudessem me buscar. Já imaginou? Vê-lo esperando pela janela. Que fosse muito gato e deixasse todas com inveja. Já pensou? Só de pensar, me dá gosto. “Vem me buscar”. O amor é isso, não é? Alguém buscá-la no trabalho. O resto é uma merda. Nem flores nem anéis. Por mim, pode enfiar tudo no cu. Mas quero que me busquem no trabalho. No seu país é assim? Alguém já foi buscar você na saída do trabalho? Zulema: Algumas vezes. Caye: Que sorte. Em outra conversa: Caye: Fiz um curso de maquiagem para o cinema. E outro de modelo. Mas abandonei porque não tinha equilíbrio. Você tem equilíbrio? Zulema: Normal. Caye: Eu nunca tive. Quando era pequena, caía a toa. Um dia, caí sete vezes. Minha mãe enchia meus bolsos para ficar pesada e não caír. Como eu ia andar numa passarela? Por isso eu gosto tanto dos equilibristas. Deveria me casar com um para compensar. Seu país tem equilibristas? Zulema: Dez milhões. Caye: Como as princesas são tão sensíveis que sentem a rotação da Terra. Por isso ficam enjoadas. Você sabia? São tão sensíveis que longe do reino, ficam doentes. Podem até morrer de tristeza. Zulema: Pronto. Caye: Posso olhar? (Ela vai em direção ao espelho) Caye: Será que o Manuel vai gostar? Ele não é equilibrista, mas gosto muito dele. Pode ser ele. Já imaginou? O homem da minha vida. Adoraria ser a mulher da vida dele também. Mesmo que só por um dia. Quero pedir um favor, Zule. É muito importante para mim. Caye vai ao encontro com Manuel. Ela está com a blusa emprestada por Zulema “69 Sexy Girl”. O celular de Caye, ela não atende. Um ex-cliente que está na mesa ao lado não pàra de olhar para ela. Manuel pergunta para Caye qual seria o outro nome dela pois no primeiro encontro entre eles, ela havia dito que teriam dois nomes, Caye e o outro seria secreto. Segue a conversa: Manuel: E seu outro nome? Você tinha dois. Caye: Não posso dizer. Manuel: Por quê? Caye: Porque é minha identidade secreta. Ninguém pode saber. Manuel: Como o Super-Homem? Caye: Parecido. Manuel: Você é um Super-Herói? Caye: Super heroína. Manuel: Qual? Caye: É perigoso. Ninguem pode saber, pois me fariam mal e a você também. Na verdade estou protegendo você. Manuel: Muito obrigado. Caye: É o meu trabalho. Manuel: E muda de roupa nas cabines, como o Super-Homem? Caye com lágrimas nos olhos responde: As vezes. Manuel: Tem superpoderes? Caye responde com a cabeça que sim. 12 13 Manuel: Você voa? Caye: Melhor... faço voar. Manuel, você iria me buscar? Manuel: Onde? Caye: Na saída do meu trabalho. Manuel: Claro. Onde? Caye: Onde quer que seja. Você iria? Manuel: Claro. O que houve? Caye vai ao banheiro. O ex-cliente que estava na mesa ao lado a segue. Ele entra no banheiro e começa a agarrá-la e lhe oferece dinheiro para que ela o chupe. Caye pede que não naquele dia. Ele oferece duzentos dólares e diz que será bem rápido até que ela cede e passa a chupá-lo enquanto ela pega com o dinheiro que está na pia do banheiro. Enquanto isso, ele dá tapas na cara dela. Caye volta à mesa chorando. Ela toma um gole de vinho. Segue o diálogo: Manuel: Eu sei de tudo. Caye fica assustada. Manuel: Você não foi ao banheiro. Foi salvar o mundo. Parar um trem que ia descarrilhar. Não foi? Foi salvar todo mundo e já voltou. Não é? Está tudo bem? Caye: Pede a conta, por favor? [O celular de Caye volta a tocar] Zulema recebe um telefonema do homem que a chantagia e vai ao encontro dele. Elae leva uma faca de cozinha que coloca em sua bolsa. Ela passeia pelas ruas olhando as vitrines das lojas. Quando passa uma patrulha policial, ela se esquiva. Ela liga para a família. Ao chegar ao local programado, ela senta-se na mesa deste cara e chantagei-a novamente. Ela pede os documentos. Ele mente dizendo que está com eles e diz que ela deve sair com ele. Neste momento, Caye liga para Zulema e diz que está no restaurante do bar. O homem começa a agredi-la. Caye senta-se à mesa e ele vai embora. Voltamos ao salão de beleza de Glória e lá estão Caye, Angela e outras mulheres. Angela observa pela janelas, as prostitutas estrangeiras que estão do lado de fora diz que irá dar um susto nelas e que chamará a polícia. Ao ligar para a polícia, ela se identifica como da vizinhança e que está observando negras prostitutas brigando na praça. Neste momento, Caye pede que uma das prostitutas vá a praça para chamar Zulema para que ela não seja identificada pelos policiais. Zulema fica chateada com Caye pois ela se esquivou e não foi ela mesma que a chamou por receio de que as prostitutas espanholas percebecem que Caye tinha como amiga uma estrangeira. Caye tenta justificar a atitude de Angela visto que ela não está mais trabalhando como antes e que é por causa da concorrência das estrangeiras. Zulema volta a ser contactada pelo homem que a chantageia, mas ela não sabe. Ela pensa que seria um novo cliente. Ao chegar ao hotel ela descobre que é o chantageador. Ele 13 14 liga o som da TV no último volume e começa a espancá-la mais uma vez. Na manhã seguinte, ele vai embora e Zulema que está bastante machucada é expulsa do hotel pelos funcionários que a proíbem de retornar ao estabelecimento. Zulema vai para o hospital e é machucada. Caye passa a procurá-la por vários lugares até que descobre que ela está hospitalizada. Caye vai visitá-la e passa a noite com ela. Caye recebe um telefonema para um programa com dois homens. Ao chegar ao local marcado para a surpresa de Caye, ela encontra Manuel. Ele também está surpreso. Caye pergunta se ele trabalha por alí. Ele diz que sim. Manuel apresenta Caye a dois colegas de trabalho. Ele pergunta como ela está, ela responde que está bem, normal. E diz que marcou com um amigo. O colega de trabalho de Manuel diz para ele que irá para fora do restaurante e passa a ligar para o celular de Caye. Caye não atende. O colega de Manuel faz sinal para ele de que o celular não atende. Caye e Manuel descobrem que foi com ela que eles marcaram o programa. Caye está bastante reflexiva. Segue sua voz em off: Um dia, você vai ver. Um dia incrível. Nesse dia, tudo é bom. Você vê quem quer ver. Come a comida que você mais gosta. E, nesse dia, acontece tudo o que você quer que aconteça. Se ligar o rádio, sua música favorita está tocando. Se for a um concurso de TV, ganhará tudo. Dinheiro, viagens, tudo. Preste muita atenção: Tudo acontece uma vez na vida, por isso precisa estar atenta para não deixar passar. É como um desvio como quando está na estrada e há uma saída, mas você está falando no celular, discutindo ou pensando, seja o que for. Não se dá conta e perde a saída. E se dá mal, porque não pode voltar. Esse dia é igual. Uma saída. Você pode escolher como tudo vai acontecer. Pode escolher um caminho bom ou não. Por isos temos que ficar muito atentas, Zule. Muito atentas. Porque há pouquíssimas coisas boas. Se sentimos falta porque estamos distraídas, seria uma merda. Uma merda completa. Elas saem para se divertirem. Em uma boate ela conhece dois rapazes. Caye pergunta para Zulemase era irá cobrar do parceiro dela. Zulema responde que não, pois naquela noite elas não são putas, mas princesas. Para se redimir, Caye leva a amiga ao salão de beleza de Górias, para que as outras a conheçam. Segue o diálogo entre Caye, Zulema e Caren. Caren: Precisa a nos ensinar a andar como vocês. Para ver se trabalhamos mais. Zulema: Tem um método. Mas precisa aprender desde pequena. Caren: Ficou com medo na balsa? Caye: Ela entende muito bem, Caren, não precisa fazer sinais. As pessoas vêm de avião da América. Zulema: Eu entrei pela Holanda. E, de lá, desci. Zulema retorna ao hospital para fazer exames. Ela conta isso para Caye. Elas conversam. Caye: Sabia que o mar aqui é muito importante? Zulema: Aqui não tem mar. 14 15 Caye: Por isso mesmo. É onde mais se pensa nele. As coisas não são importantes porque existem. São importantes se pensarmos nelas. Como seu filho. Não está aqui, mas pensa nele todo dia. Por isso existe. Porque pensa nele. Minha mãe sempre diz isso. Existimos porque alguém pensa em nós, e não o contário. Disse que alguém disse isso. Mas acho que ela inventa. Inventa quando é conveniente para ela (Caye está chorando). Na verdade, eu não acredito muito em Deus. Nem sou muito religiosa nem nada. Minha mãe é, mas eu não. O único ... Andei pensando e acho que... Bom, que o pior não seria se não houvesse nada depois da morte. O pior seria se houvesse outra vida que fosse como esta. [Zulema pega na mão de Caye]. Zulema vai ao hospital para pegar os resultados de seus exames e descobre que está com AIDS pelo fato de não proteger-se em suas relações sexuais, obrigadas às suas condições de trabalho. Zulema se vinga de seu malfeitor tende relações sexuais sem proteção para transmitir-lho o vírus HIV. Zulema decide voltar para o seu país. Caye fala para Glória que ela precisa deixar Zulema linda para que todos caiam de joelhos quando a virem em seu retorno. Caye diz pra Zulema que as princesas não podem viver longe dos seus reinos visto que elas são tão sensíveis que morrem de saudade. Caye passa todo o dinheiro que economizou para a operação de implante de silicone para Zulema e pede que a amiga não a esqueça nunca e pense nela sempre para que ela continue existindo. Caye leva Zulema ao aeroporto. Elas se abraçam e se despedem. Caye está com a blusa “69 Sexy Girl” dada como presente por Zulema. Ela pare se aproxima de dois seguranças do aeroporto e diz para eles: É minha amiga. Vai embora porque quer. Um deles não entende o que ela está dizendo e ela continua: “Está indo porque quer. Não foi mandada embora. Vai ficar com o filho”. O segurança diz: “Ótimo” e ela responde: “Era só isso” e vai embora. Caye vai almoçar na casa da mãe. Ela mexe em seu celular. O irmão de Caye pergunta sobre Zulema. Caye diz que Zulema foi embora “pois não aguentava mais. Não aguentava mais. Ela era puta. Era puta, e não aguentava mais. E um cara andava atrás dela todos os dias. Um filho da puta que a enganou. Por isso foi embora. Queria ficar com a família”. O irmão pergunta como ela a conheceu e ela diz que foi quando levou-a para o hospital pois o cara tinha batido nela e batia até hoje. Caye se retira da sala e vai para a cozinha. Seu celular começa a tocar. Sua mãe que está na sala, grita “Caye, seu telefone, Caye”. Caye responde: “Atende você, Mamãe”. A mãe atende e Caye morde os lábios, os olhos humidecidos e mira o vazio. 15 16 Considerações Finais A despeito do fato do cinema ser um dos maiores entretenimentos do mundo contemporâneo, a prática que o envolve como uma ferramenta crítica para a desconstrução de estereótipos, preconceitos, formas de intolerância e discriminação é pouco presente. Sendo assim, os estudiosos das áreas das artes visuais e de outros campos do saber como a literatura e as ciências humanas e sociais, necessitam, inicialmente, estudar criticamente os discursos dos filmes e do cinema como um todo conexo, adotar conceitos de cultura que incluam uma análise constante e contextualizada de suas relações de poder e conhecimento, e considerar a interlocução entre estas várias disciplinas e campos epistemológicos, entre elas a teoria queer, a fim de combater as restrições, interdições e censuras que prevalecem em nossa sociedade. No meu entendimento, as representações fílmicas queer, podem ser instrumentos altamente eficazes para romper com perspectivas tradicionais e enfatizar entre-lugares de tradução no qual o conhecimento dos sujeitos, seus locais, espaços e tempos subalternos podem ser representados e ouvidos. Em seus discursos, o político define representações de gênero e sexualidades dissidentes, essencialmente, como uma exigência pedagógica para ler textos diferentes, dá proeminência à ambigüidade discursiva, reconhece modalidades incomuns de produzir e consumir significados e desestabiliza a harmonia da heteronormatividade. Princesas é um filme significativo disposto a retratar os espaços polifônicos, internos e marginalizados da cidade de Madri, avançando ao configurar a realidade da visibilização de prostitutas espanholas e estrangeiras bem como a opressão sexual em que estas mulheres, independente da nacionalidade, estão submetidas. Esta película propõe uma visão de mundo onde triunfariam valores universais e igualitários entre prostitutas que, segunda uma lógica globalizadora e além das diferenças culturais, sociais e nacionais, aspiram ou tem o direito a aspirar o mesmo. Caye conta sua própria história pela história de Zulema. Sendo assim, Princesas constitui-se, também, um chamamento à tolerância, a hospitalidade entendida como o primeiro ato de acolhida, de aceitação do “outro”. Para concluir, é possível afirmarmos que é essa capacidade do cinema queer em visualizar as experiências culturais como uma transversalidade de práticas e enunciados que permite a construção de novos parâmetros de análise nos quais as identidades de gênero e as diversas sexualidades aliado ao cinema sejam percebidos como uma complexidade conceitual 16 17 que comporta em si mesma as noções de contemporaneidade, transgressão, arte e estética, poesia, subalternidade, sem que ninguém se choque ou reprima; um universo em que os discursos e as práticas sejam reinventados o tempo todo, refletindo-se nas produções culturais e fílmicas em todas as suas nuances – imagéticas, audiovisuais, literárias, poéticas e sociológicas. Independente de o cineasta identificar sua produção como queer ou não, parto do pressuposto de que existe um espectro mais amplo das práticas culturais que esteja ainda que inconsciente presentes na narrativa imagética do filme “Princesas”, o não-dito, carregada de representações, simbolismos e códigos próprios que se propõe minimamente a quebra de paradigmas das fronteiras entre o “eu” e o “outro”, sobre as várias facetas da prostituição, as relações entre clientes e prostitutas, entre prostitutas de nacionalidades diversas e a xenofobia como manifestação social da intolerância. Referências Bibliográficas DIAS, Belidson. (2011), O I/Mundo da Educação em Cultura Visual. Brasília, Editora da PósGraduação em Artes da Universidade de Brasília. FOUCAULT, Michel. (1997), Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária. MISKOLCI, Richard. (2009) “A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização” In. 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