71 Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico
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71 Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico
Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca Mayra Moreyra CARVALHO 1 RESUMO: O artigo objetiva a investigação da postura do poeta Federico García Lorca diante do fenômeno da modernidade. Elegemos a obra Poeta en Nueva York, cujo cenário urbano evidencia a natureza da experiência poética da modernidade, e alguns aspectos do problema moderno para confrontar, dentre os quais o estatuto da poesia e do poeta num mundo carente das condições de possibilidade para sua existência. Perseguimos a ideia de que, frente à conjuntura do mundo moderno, especialmente aquela das primeiras décadas do século 20, podemos reconhecer uma linhagem de poetas que encontraram na revolta uma forma de expressão, entendendo-a a partir das formulações de Albert Camus (1951). PALAVRAS-CHAVE: Poesia moderna. Federico García Lorca. Poeta en Nueva York. Revolta. Introdução Y hoy no tengo más espectáculo que una poesía amarga, pero viva, que creo podrá abrir sus ojos Federico García Lorca, na conferência sobre Poeta en Nueva York Federico García Lorca, “artista entero”, “encarnación viva del arte” (RÍO, 1972, p. 239), nasceu em 5 de julho de 1898, em Fuente Vaqueros, Granada, sul da Espanha. Os anos de 1927 a 1929 foram especialmente tumultuados em sua vida, devido à insistência em vincular sua produção a temas andaluzes e gitanos, à indisposição com dois de seus melhores amigos, Salvador Dalí e Luis Buñuel, e ao rompimento de um relacionamento duradouro com o escultor Emilio Aladrén. Por estas razões, o convite de Fernando de los Ríos para que o acompanhasse a Nova Iorque foi aceito com entusiasmo. Como descreve Gibson (1989), García Lorca deixou a Espanha em 12 de junho de 1929 e desembarcou em Nova Iorque em 26 de junho de 1929. É certo que Lorca, embora nunca tivesse saído da Espanha, possuía, como grande parte das pessoas da época, um imaginário do que fosse aquela metrópole antes de chegar lá. Certamente conheceu Diario de un poeta recién casado, de Juan Ramón 1 .Graduanda em Letras, habilitações Português e Espanhol, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. 71 Mayra Moreyra Carvalho Jiménez, por sua estreita relação com o autor. A visão que García Lorca imprimirá nos versos de Poeta en Nueva York guarda muita semelhança também com o ensaio Límite del progreso o la debida proporción, em que Jiménez (1982, p. 105-6) define a metrópole como a “ciudad representativa de nuestra época”, “monstruosa y difícil, excesiva y magnífica”. Ele observa com pesar a desnaturalização do mundo: “Yo no conozco lugar en donde se vea desaparecer más vagamente al hombre cada día, en donde la vida de tanta gente sea tan inadvertida agonía en pie” (JIMÉNEZ, 1982, p. 120). O importante é retermos que Nova Iorque era um emblema mundial do modo de vida capitalista moderno e estadunidense e García Lorca não chegara à cidade ignorante de sua realidade. Os poemas compostos a partir dessa vivência não se publicam em livro antes da morte do poeta. Somente em 1940 o livro é publicado, não sem polêmica. Os manuscritos deixados com José Bergamín desapareceram e houve duas primeiras edições, diferentes entre si: a edição bilíngue espanhol-inglês, publicada pela editora Norton em maio de 1940 em Nova York, e a edição em espanhol da editora Séneca, de Bergamín, que sai um mês depois. A obra foi diferentemente acolhida pela crítica. No entanto, é comum encontrarmos dizeres que atestam a dificuldade de tomá-la para análise. Ángel del Río (1972, p. 251) diz que se trata da “obra más extraña de Lorca y la que mayores problemas de interpretación presenta”. Para Clementa Millán (2006, p. 61), esses poemas têm “un alto grado de complejidad literaria” e “gran elaboración de su lenguaje poético”. Em Alienation in Lorca´s Poet in New York, Loughran (1978, p. 164) afirma que uma interpretação definitiva da obra permanece impossível dada a complexa elaboração de imagens surrealistas, por vezes, impenetráveis e obscuras, que fazem com que Poeta en Nueva York se conserve “infinitely difficult”. Maurer (2002) considera a obra um ponto de virada, porque foi a primeira que se inspira no ambiente urbano, a primeira em que o poeta aborda mais diretamente a questão social e aquela de maior inovação temática e formal. No esteio dessas considerações, também estão Josephs & Caballero (2009, p. 15), para quem Poeta en Nueva York é “un libro desafiantemente moderno e iconoclasta”. Neste trabalho, interessam-nos especialmente alguns aspectos que apontam para a possibilidade de refletir acerca da postura do poeta e do estatuto da poesia na modernidade. Desejamos, assim, afastar-nos das considerações de cunho autobiográfico, que entendemos como importantes, mas não determinantes para a compreensão. A dificuldade de interpretação que a obra impõe é precisamente a forma que o poeta encontrou para transfigurar esteticamente a experiência vivida na metrópole estadunidense. Como bem observa Michael 72 Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca Hamburger (2007, p. 283), “Nova Iorque e os Estados Unidos não eram nada menos do que a experiência moderna, a confrontação com tudo o que a vida espanhola e a tradição espanhola não eram. Gostasse ele ou não, Lorca tinha de haver-se com a consciência cosmopolita”. O lugar do poeta no mundo torna-se um problema estético especialmente depois que as revoluções levadas a cabo a partir de meados do século 18 na Europa alteraram radical e profundamente a organização do mundo e o modo de vida dos seres humanos. Charles Baudelaire se enfrenta com o tema da oposição do poeta em relação ao mundo em suas As Flores do Mal2. O misto de admiração e desprezo pela cidade moderna faz com que o poeta – alegoricamente representado pelo albatroz – se pergunte se é realmente possível fazer poesia na modernidade, quando os valores artísticos absolutos e universais, que se podiam reconhecer na arte clássica, apresentam-se corroídos. Franklin Leopoldo e Silva 3 debate esse impasse baudelairiano e aponta que a poesia moderna encontrou os meios para se reinventar ante a ausência do ideal, que é intrínseca e insuperável na modernidade. Esse sentido que evocamos para o termo em questão certamente remete aos precisos apontamentos de Hugo Friedrich, em Estrutura da Lírica Moderna, ao analisar a poesia de Baudelaire. O autor observa que, embora sejam recorrentes as imagens de elevação e o movimento para o alto na poética Baudelairiana, como em “Elevatión”, a chegada a um lugar elevado nunca se concretiza deveras. Permanece apenas como aspiração e possibilidade, a qual “não lhe será concedida pessoalmente”. Trata-se, portanto, de uma “idealidade vazia”, como denomina o crítico (FRIEDRICH, 1978, p. 47-48). Em linhas gerais, tanto formal quanto tematicamente, a poesia moderna nega os preceitos positivos, a representação clara e pacífica, a tradição, já que reconhece o vazio da idealização, e assume para si a instabilidade, a ausência de padrões, a crise e a tensão. Retomando Franklin Leopoldo e Silva, o filósofo constata que não se trata de uma escolha de Baudelaire por uma nova poesia – a qual ele denomina “lírica crítica” –, mas essa é a condição mesma de existência da poesia na modernidade, e assim se estabelecerá definitivamente depois dele. Com efeito, falamos de uma “lírica moderna posterior a Baudelaire” (BERARDINELLI, 2007, p. 63). Entre os mundos de Baudelaire e Lorca, interpõem-se cerca de setenta anos. No que tange à história, as primeiras décadas do século 20 trouxeram reconfigurações importantes 2 Os poemas que compõem as Flores do Mal começaram a ser publicados em 1846. A primeira edição reunida da obra se deu em 1857. [N.E]. 3 Ciclo de aulas que compõem o curso livre “Visões da modernidade: filosofia e intuição poética”, ministrado no Centro Universitário Maria Antônia entre março e maio de 2011 e exibido posteriormente pela UnivespTV. Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. 73 Mayra Moreyra Carvalho para o mundo. A descrença na promessa moderna que já está na arte e no pensamento do século 19 só se torna constatação para a grande massa com a Primeira Grande Guerra, assinalando definitivamente o “colapso da civilização ocidental” (HOBSBAWM, 1998, p. 16). Nesse mesmo cenário de devastação, surgem os Estados Unidos como a nova Terra Prometida, cuja capital simbólica é Nova Iorque, o estado-império 4 e a primeira megalópole da história. É nesse panorama histórico, econômico e artístico complexo que desembarca Federico García Lorca e, embora seu testemunho diste cerca de setenta anos de Baudelaire, interpostas essas questões que sumariamente apontamos, consideramos o par Baudelaire-Paris paradigmático para toda a lírica moderna posterior, tanto temática quanto formalmente. Por essa razão, podemos reconhecer uma linhagem poética na modernidade. A lírica moderna a partir de Baudelaire se marca pela dessacralização (BERMAN, 2007) – um fato que se abate sobre todo poeta e se transfigura em poesia ora melancólica, ora trágica, ora ironicamente – e pela despersonalização, na medida em que estão postas em questão a inteireza e a unidade do sujeito ante o advento dos fenômenos da massa. No tocante à despersonalização, lembramos que Friedrich (1978) já apontara o termo como definidor da poesia moderna, entendendo que o abandono do lirismo confessional pôs em xeque a possibilidade de identificar-se o sujeito lírico ao sujeito empírico. Julgamos que na linhagem de poetas que pensam a modernidade nesses termos está Federico García Lorca e seu Poeta en Nueva York. Para investigarmos como essa discussão se configura na obra, recolhemos alguns poemas que julgamos representativos para a análise. Poeta en Nueva York: modernidade e revolta O poema de abertura do livro, “Vuelta de paseo”, é verdadeiramente um prólogo lírico à obra. De volta das primeiras caminhadas pela metrópole estadunidense, a voz que fala aqui já não é a de um sujeito que se reconhece existindo por inteiro. Com efeito, o contato com a realidade urbana matou qualquer possibilidade de integridade daquele sujeito andaluz afeito à vivência plena da natureza e das coisas do mundo. Não se trata de pensarmos essa voz como ingênua, mas antes como um agudíssimo observador crítico que pode intuir desde o princípio que algo muito importante na relação do homem com o mundo se perdera na avalanche de estímulos e de novas realidades moderna. 4 Empire State é o codinome do estado cuja capital é Nova York. 74 Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca VUELTA DE PASEO Asesinado por el cielo. Entre las formas que van hacia la sierpe y las formas que buscan el cristal, dejaré crecer mis cabellos. Con el árbol de muñones que no canta y el niño con el blanco rostro de huevo. Con los animalitos de cabeza rota y el agua harapienta de los pies secos. Con todo que tiene cansancio sordomudo y mariposa ahogada en el tintero. Tropezando con mi rostro distinto de cada día. ¡Asesinado por elcielo! (GARCIA LORCA, 1989, p. 414). Circularmente arquitetado, o poema se abre e se fecha com o mesmo verso: “Asesinado por elcielo”, com a diferença de que o último verso é marcado pelo uso de ponto de exclamação. Do sabor de distanciamento de uma constatação na abertura, a pontuação final sugere envolvimento de emoções dessa voz que enuncia. Inevitável vítima de uma situação que reconhece como violenta – a estrutura passiva do verso reforça esse sentimento –, o sujeito lírico declara, no entanto, que não impedirá o fluxo daquilo que nasce dele mesmo depois de aniquilada sua existência anterior. Os cabelos que continuam a crescer mesmo depois da morte são imagem de uma poesia que é ainda parte constitutiva de seu corpo; não a parte mais nobre, que para a poesia tradicional seria identificada ao coração ou à alma, mas algo que, embora exista independentemente de sua vontade, pode ser esteticamente trabalhado. Consciente de que sua conjuntura é a da impossibilidade das formas perfeitas e dos motivos poéticos íntegros, o sujeito se faz acompanhar por aquilo que seu olhar panoramicamente recolhe. Os motivos chegam desfigurados, destituídos de sua integridade, incompletos em sua forma, mimetizando o próprio sentimento do sujeito lírico anunciado no primeiro verso. Ainda desfilam no poema as mesmas coisas simples que sempre atraíram o olhar de García Lorca: elementos da natureza – árvores, animais, água –, crianças e música. Porém, todo o elenco de substantivos aparece insistentemente caracterizado por adjetivos ou locuções adjetivas negativas, que não vêm para adornar ou atribuir particularidades. Ao contrário, os Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. 75 Mayra Moreyra Carvalho qualificativos marcam ausências e impossibilidades: a única figura humana não tem expressão facial, não há música, não há sublime, não há beleza. As imagens sistematicamente encarnam o processo de contaminação da pureza e destruição da vida, reiterado em insolúveis binômios vida/morte. Dessa forma, “Blanco rostro de huevo” evoca a lividez da morte, mas insinua uma forma de vida incipiente guardada no ovo; “Mariposa ahogada en el tintero” traz o inseto como signo de vida, delicadeza e beleza subjugado por um elemento sintético fabricado pelo homem. No entanto, o tinteiro é também o lugar onde o poeta mergulha sua pena para compor os versos, o que indicia que alguma beleza é recomposta pela palavra, mas se trata de uma beleza já contaminada e impura. A repetição no início de três estrofes da conjunção “con”, que sonoramente indicia obstáculos, é prenúncio da impossível fluidez que o poeta confessa na última estrofe com o verbo “tropeçar”. No entanto, se o verbo aponta semanticamente para a dificuldade de um discurso fluido, está empregado no gerúndio, forma que assinala a insistência na continuidade. Se na realidade os motivos poéticos tradicionais – a natureza, a criança, o eu – se apresentam desfigurados, contaminados e incompletos, ele fará poesia com aquilo de que dispõe: “animalitos de cabeza rota”, “agua harapienta”. Diríamos poesia impura tal como formula Pablo Neruda5: que a poesia tenha existência tão orgânica quanto a realidade em que ela se inspira. De fato, todo e qualquer signo de pureza aparece contaminado em alguma medida. O poema anuncia o compromisso dessa poética (daí ser o primeiro do conjunto), que se reconhece privada do lirismo tradicional, marcada pela morte, mas que acontecerá, extraindo do real o lirismo possível. A aparente frieza da constatação de morte inicial se transfigura, à medida que o poema – e o poeta – caminha(m), e deixa(m) entrever, pelo emprego da pontuação exclamativa no último verso, que uma subjetividade resiste. Permanece a consciência crítica assinalada pelo acréscimo de uma exclamação à constatação, elemento que atesta o movimento irônico daquele que é capaz de voltar-se à reflexão do próprio infortúnio. À impessoalidade do mundo, ele responde com a resistência do olhar, um elemento que se faz cada vez mais importante na afirmação da subjetividade ao longo da obra, como uma instância que resiste à massificação alienante. Embora o sujeito lírico esteja envolto pela 5 A dicção de Poeta en Nueva York também é tributária das ideias da “poesíasin pureza” de Pablo Neruda, as quais, embora tenham vindo à luz em 1935 no periódico Caballo verde para la poesía, circulavam no âmbito artístico espanhol e eram compartilhadas por Lorca, como anota Millán (2006, p. 90). Os textos que veiculam os pressupostos da poesia impura, “Sobre una poesíasin pureza” e “Conducta y poesía”, estão em Lechner (2008, p. 449-50). 76 Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca realidade nova-iorquina, nunca se abstém de considerá-la criticamente. No entanto, se seu olhar não comunga do que vê, o fato de que insiste em voltar-se à observação indica que o sujeito lírico não é indiferente. O poema “Paisaje de la multitud que vomita” é central para essa questão de uma poética do olhar. Depois de manifestar três vezes o sentimento doloroso e aflito com relação a sua própria condição – “¡Ay de mí! ¡Ay de mí! ¡Ay de mí!” –, o sujeito lírico dá a conhecer a complexidade da constituição de seu novo olhar: “Esta mirada mia fuemía, pero ya no esmía”. Se o olhar poético sobre a realidade um dia foi só do indivíduo, a experiência da modernidade na metrópole tornou-o inviável, pois desde o primeiro contato o sujeito já sabe aniquilada sua integridade. Ele não existe integralmente dado esse contato com o outro radicalmente distinto de si, que o força a reconfigurar-se, esforço a que se dedica desde o primeiro poema, “Vuelta de paseo”. Desse processo resulta que o olhar continua sendo seu, mas o é mais verdadeiramente à medida que incorpora a realidade de outrem. Esse é o trabalho do poeta, ofício confesso do sujeito lírico desse poema. O que ele verte em palavras é a apreensão poética da realidade que seu olhar recolhe, “uma transformação desse real pela imaginação e pela criação artística” (COLI, 2005, p. 302), a que García Lorca (1976) denomina “reacción lírica” na conferência sobre Poeta en Nueva York. PAISAJE DE LA MULTITUD QUE VOMITA (ANOCHECER DE CONEY ISLAND) La mujer gorda venía delante arrancando las raíces y mojando el pergamino de los tambores; la mujer gorda, que vuelve del revés los pulpos agonizantes. La mujer gorda, enemiga de la luna, corría por las calles y los pisos deshabitados y dejaba por los rincones pequeñas calaveras de paloma y levantaba las furias de los banquetes de los siglos últimos y llamaba al demonio del pan por la Colinas del cielo barrido y filtraba un ansia de luz en las circulaciones subterráneas. Son los cementerios. Lo sé. Son los cementerios y el dolor de las cocinas enterradas bajo la arena. Son los muertos, los faisanes y las manzanas de otra hora los que nos empujan en la garganta. Llegaban los rumores de la selva del vómito con las mujeres vacías, con niños de cera caliente con árboles fermentados y camareros incansables que sirven platos de sal bajo las arpas de la saliva. Sin remedio, hijo mío, ¡vomita! No hay remedio. Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. 77 Mayra Moreyra Carvalho No es el vómito de los húsares sobre los pechos de la prostituta, ni el vómito del gato que se tragó la rana por descuido. Son los muertos que arañan con sus manos de tierra las puertas de pedernal donde se pudren nublos y postres. La mujer gorda venía delante con las gentes de los barcos, de las tabernas y de los jardines. El vómito agitaba delicadamente sus tambores entre algunas niñas de sangre que pedían protección a la luna. ¡Ay de mí! ¡Ay de mí! ¡Ay de mí! Esta mirada mía fue mía, pero ya no es mía. Esta mirada que tiembla desnuda por el alcohol y despide barcos increíbles por las anémonas de los muelles. Me defiendo con esta mirada que mana de las ondas por donde el alba no se atreve. Yo, poeta sin brazos, perdido entre la multitud que vomita, sin caballo efusivo que corte los espesos musgos de mis sienes. Pero la mujer gorda seguía delante y la gente buscaba las farmacias donde el amargo trópico se fija. Sólo cuando izaron la bandera y llegaron los primeros canes la ciudad entera se agolpó en las barandillas del embarcadero. (GARCIA LORCA, 1989, p. 438). A personagem da mulher que abre os versos e o caminho dessa multidão é a desconstrução da imagem lírica do feminino. Ela é verdadeiramente grotesca, capaz de atos destruidores e impiedosos que se sucedem ininterruptamente na primeira estrofe. A repetição da conjunção aditiva “y” em quatro versos consecutivos – “y dejaba/ y levantaba/ y llamaba/ y filtraba” – denota que suas ações se somam umas às outras mecanicamente, já que não há uma relação lógica de causa e efeito entre elas. A mera adição das ações violentas atesta a banalização e naturalização com que esses fatos são apreendidos pela multidão, que não os contesta, não se manifesta porque é inconsciente. Com efeito, as pessoas que compõem a multidão anunciada no título não aparecem no poema, indício de que sua existência autêntica está posta em xeque. “La mujer gorda venía delante” é um verso que se repete três vezes ao longo do poema e, quando aparece pela última vez, vem significativamente alterado: “Pero la mujer gorda seguia delante”. A despeito da atmosfera de morte e alienação que causa incômodo a ponto de provocar ânsia – adversidade marcada na conjunção –, a mulher segue seu itinerário indiferente e violento, ou seja, as ações 78 Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca grotescas do início tendem a permanecer. Essa ideia de permanência, alcançada pelo emprego dos verbos no gerúndio e pretérito imperfeito, pela adição mecânica das ações, pela repetição dos versos em momentos distintos do poema e pelo verbo “seguir” na última vez em que o verso é retomado, permite-nos pensar que o movimento da mulher se torna, por sua constância e repetição, sem sentido. Se pensarmos em termos de Física, encontramos nos conceitos newtonianos um interessante apoio. A primeira lei de Newton enuncia que quando as forças atuantes em um corpo se anulam, ele permanecerá em repouso ou em movimento retilíneo uniforme. Em última instância, o equilíbrio dinâmico – o movimento uniforme – e o equilíbrio estático – o repouso – têm em comum o fato de que em ambos os casos as forças que atuam sobre o corpo se anulam, razão pela qual um dado estado permanece. Ora, o movimento sem sentido da mulher gorda, que tende a repetir-se indefinidamente, assemelha-se a uma situação estática. Não por acaso, o poeta intitula o poema como “paisaje”, que é de fato uma representação estática de um cenário. Toda vez que olhamos para a paisagem descrita ou pintada, vemos o mesmo quadro. Segundo essa perspectiva, as ações atribuídas à mulher estão destituídas daquilo que as constitui e justifica. Agir implica a existência de um sujeito, “operação de uma agente”, na definição dicionarizada. Portanto, a ação exige que um sujeito efetivamente se mova, exerça uma força, envolva-se. A subjetividade implicada em qualquer ação está ausente na mulher gorda, que, como vimos, as repete mecânica e inconscientemente. A multidão que o poeta “sin brazos” observa também não exerce efetivamente qualquer ação. Na verdade, o poema se ocupa não da ação da multidão, mas da falta dela. O vômito, que caracteriza a multidão desde o título, não é propriamente uma ação sobre a qual se tenha controle. Trata-se de um ato elementar, que traz implicada a existência de um incômodo desde dentro e que precisa ser expelido. De fato, ele se configura no poema como um desconforto profundo resultado da supressão de uma vida autêntica, dado que os signos de natureza e vitalidade aparecem subjugados. “Las cocinas”, imagem daquilo que produz alimento, estão enterradas, assim como os elementos naturais faisões e maçãs, fazendo prevalecer uma atmosfera de morte que os homens são forçosamente obrigados a tragar. Ademais, ocupam a cena os cemitérios, campos que acumulam mortes, cuja organização e funcionamento remetem à ideia de descenso, aniquilação e irrecuperabilidade, categorias que contaminam essa poesia. Essas mortes impostas provocam o incômodo – “Son los muertos que arañan con sus manos de tierra” – até que ele se adense e seja expelido como vômito, a única solução para o desconforto. Essa única ação que a multidão observada pelo sujeito lírico Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. 79 Mayra Moreyra Carvalho pratica, mesmo sendo um traço humano remanescente, ainda não a livra da inconsciência, dado que o vômito, como dissemos, não é uma ação completamente voluntária que esteja sob o controle do indivíduo. É interessante notarmos quem é essa massa de pessoas a qual o sujeito lírico analisa. O subtítulo do poema – “Anochecer de Coney Island” – indica um lugar importante para os nova-iorquinos na primeira metade do século 20. Desde meados do século 19, essa área de praias banhadas pelo oceano Atlântico ao sul da cidade foi um destino turístico para os habitantes, mas era um território acessível somente àqueles que detinham alto poder aquisitivo. No início do século 20, as praias deixaram de ser privativas e foram construídos acessos por trem ou metrô partindo de vários pontos da cidade que levavam grande parte da população até Coney Island por cinco centavos de dólar. Nas décadas de 1920 e 1930, o lugar passou a ser conhecido então por Nickel Empire, já que se tratava de uma diversão barata e acessível para a massa. Cabe observar que denominação encarna em si uma ironia, já que se trata de um império, vocábulo que remete a poder e grandiosidade, feito de um signo que é o contrário disto, uma vez que níquel lembra pobreza e poucos recursos. Esse é um império que se constitui do seu contrário e também imagem paradoxal da própria ideia que se tinha de Nova Ioque, cujo apodo Empire State pretendia dar a medida do poderio dessa metrópole. Além das praias, que ficavam completamente tomadas, havia os grandiosos parques de diversões, com gigantescas montanhas-russas e rodas-gigantes, e comida barata, razões pelas quais o lugar se converte em um complexo de entretenimento popular, que, nos verões, chegou a receber cerca de um milhão de pessoas por dia. Esses dados sobre o local onde o poeta situa sua paisagem revelam que não só ele está incorporando a sua poética a multidão como um fenômeno moderno, como se trata de uma dada multidão, aquela composta pela massa trabalhadora da Nova Iorque dos anos 1920 e 1930, que marcha nos fins de semana e férias a um lugar de diversão barata. Segundo apreende o sujeito lírico, o entretenimento fácil proporcionado a essa população encobre uma realidade de opressão e dor, a artificialidade da vida metropolitana que aniquilou a existência autêntica. Contudo, mesmo protagonista dessa complexa situação, a multidão segue como massa amorfa, sem impor-se subjetivamente. Quanto ao sujeito lírico, ele está na multidão, mas, como observador crítico, toma o olhar como mecanismo de defesa, portanto, instância de resistência da subjetividade: “Me defendo con esta mirada”. Essa reação não significa indiferença, já que a fuga dessa condição amarga não se apresenta como opção: “sin caballo efusivo que corte/ los espesos musgos de 80 Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca mis sienes”. O poeta se sabe um ser completamente estranho à paisagem que pinta, porém sua escrita não só censura e critica a alienação da massa, mas atesta que ele se importa, e é positiva nesse sentido. É na tensão permanente entre a negatividade daquele que constata que “no hay remedio” e a positividade característica daquele que insiste na palavra poética que se constrói o sujeito lírico de “Paisaje de la multitud que vomita”, o “poeta sin brazos”. Nesse sentido, entendemos que a reação lírica de García Lorca à experiência da modernidade em Nova Iorque configura-se como um movimento de revolta, pensando nas reflexões de Albert Camus (1951) em O Homem Revoltado. A objetiva definição camusiana esclarece a aproximação que aqui propomos: “Que é um homem revoltado? Um homem que diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento” (CAMUS, 2010, p. 25). Essas formulações aparecem como contraponto das obras anteriores, que compunham o que Camus denominou Ciclo do Absurdo (O Estrangeiro, O mito de Sísifo, Calígula). O Ciclo da Revolta, composto pela tríade A Peste, O Homem Revoltado e Os Justos, questiona a perspectiva niilista absoluta. É precisamente na criação artística verdadeira que Albert Camus vê a máxima expressão da revolta, é o terreno onde ela se completa e perpetua, já que, tal como a revolta, a arte é, a um só tempo, exaltação e negação da realidade: o artista recolhe do real os elementos, as impressões, os motivos e os transfigura por meio de uma linguagem artística própria. Camus estabelece um princípio relacional entre revolta e arte porque ambas se constroem nesse campo tenso de recusa e aceitação do mundo. Segundo essa perspectiva, Poeta en Nova York apresenta-se para nós em vários níveis como uma poética da revolta. É, como o próprio poeta nos diz, a sua reação lírica à experiência na metrópole estadunidense, reação esta que se faz por meio da linguagem. Formalmente, as imagens desconcertantes e surpreendentes, o ritmo caudaloso e intenso, tudo empregado excessiva e repetidamente para garantir o sentido de acumulação, dão corpo ao sentimento revoltado porque já são resultado da distorção do olhar do sujeito lírico. Os procedimentos evidenciam o que a experiência cotidiana repetitiva não deixa ver: a dor, a desumanização, a corrosão da subjetividade, a massificação, a alienação. Por fim, no nível do discurso, o próprio sujeito lírico se constitui e enuncia a partir de um lugar de revolta. Essa constituição tensa do ser poético observamos em “Paisaje de la multitud que orina”: Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. 81 Mayra Moreyra Carvalho PAISAJE DE LA MULTITUD QUE ORINA (NOCTURNO DE BATTERY PLACE) Se quedaron solos: Aguardaban la velocidad de las últimas bicicletas. Se quedaron solas: Esperaban la muerte de un niño en el velero japonés. Se quedaron solos y solas, soñando con los picos abiertos de los pájaros agonizantes, con el agudo quitasol que pincha al sapo recién aplastado, bajo un silencio con mil orejas y diminutas bocas de agua en los desfiladeros que resisten el ataque violento de la luna. Lloraba el niño del velero y se quebraban los corazones angustiados por el testigo y la vigilia de todas las cosas y porque todavía en el suelo celeste de negras huellas gritaban nombres oscuros, salivas y radios de níquel. No importa que el niño calle cuando le claven el último alfiler. No importa la derrota de la brisa en la corola del algodón. Porque hay un mundo de la muerte con marineros definitivos que se asomarán a los arcos y os helarán por detrás de los árboles. Es inútil buscar el recodo donde la noche olvida su viaje y acechar un silencio que no tenga trajes rotos y cáscaras y llanto, porque tan sólo el diminuto banquete de la araña basta para romper el equilibrio de todo el cielo. No hay remedio para el gemido del velero japonés, ni para estas gentes ocultas que tropiezan con la esquinas. El campo se muerde la cola para unir las raíces en un punto y el ovillo busca por la grama su ansia de longitud insatisfecha. ¡La luna! ¡Los policías! ¡Las sirenas de los transatlánticos! Fachadas de orín, de humo, anemonas, guantes de goma. Todo está roto por la noche, abierta de piernas sobre las terrazas. Todo está roto por los tibios caños de una terrible fuente silenciosa. ¡Oh gentes! ¡Oh mujercillas! ¡Oh soldados! Será preciso viajar por los ojos de los idiotas, campos libres donde silban las mansas cobras deslumbradas, paisajes llenos de sepulcros que producen fresquísimas manzanas, para que venga la luz desmedida que temen los ricos detrás de sus lupas, el olor de un solo cuerpo con la doble vertiente de lis y rata y para que se quemen estas gentes que pueden orinar alrededor de un [gemido o en los cristales donde se comprenden las olas nunca repetidas. (GARCIA LORCA, 1989, p. 440-42). 82 Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca Se em “Paisaje de la multitud que vomita” vimos que não chegam a se configurar os contornos humanos dos seres que fazem parte da multidão justamente para dar o sentido da alienação em que esse fenômeno tipicamente moderno implica, nessa outra paisagem, insinuam-se traços de humanidade ainda que as subjetividades não cheguem a impor-se efetivamente. O sentimento de impossibilidade geral que está em toda a obra permanece aqui, acentuado pelas expressões negativas reiteradas: “No importa”, “Es inútil buscar el recodo”, “No hay remedio”, “Todo está roto”, e também pela situação dolorosa apresentada logo no início, a iminência da morte de uma criança, que chora e é velada por uma multidão. Ao aglomerado de pessoas, só é possível um sonho que reproduz a realidade de morte, aqui representada por elementos naturais subjugados. Paradoxalmente, a situação de vigília, se decreta a impossibilidade do sonho, indicia que ainda há gentes que se compadecem da dor do outro, traço até então ausente das percepções do sujeito lírico: “Lloraba el niño del velero y se quebraban los corazones/ angustiados por el testigo y la vigilia de todas las cosas”. Nessas gentes, ele reconhece corações, angústia e testemunho, esboços de uma humanidade que ele ainda não havia vislumbrado e, embora passivos e silenciosos, consegue vê-los em certa medida como indivíduos, já que a condição de solidão aparece lexicalmente individualizada: “Se quedaron solos y solas”. A paisagem apresenta verdadeiramente um “mundo de la muerte” em que se sobrepõem os signos negativos: uma noite eterna, porque “olvida su viaje”, um silêncio imposto que encobre dor e choro, a fragilidade da organização do mundo, capaz de ser abalada pelo movimento diminuto de uma aranha, o poder institucional e violento (policías), a poluição (humo), a artificialidade e insipidez da vida moderna (guantes de goma). A dor e tristeza também estão no subtítulo, já que noturno designa uma composição musical cujo tom representa esses sentimentos. No entanto, a melodia não só reforça a negatividade do poema, mas sutilmente aponta para o resquício de humanidade que o olhar do sujeito lírico conseguirá resgatar na paisagem que contempla. Ainda que melancólica, é uma musicalidade possível, que se opõe ao “definitivo silencio del corcho” instaurado em um poema anterior, “1910 (Intermedio)”. Oportunamente, convém mencionarmos que o “intermedio” do título também guarda relação com o universo musical. Em uma de suas acepções, o vocábulo indica o espaço de tempo que marca o intervalo entre a execução dos atos de uma ópera ou concerto. Assinala, portanto, um período de silêncio, mas que é destinado a ter fim e vai dar lugar a uma nova melodia. Para o sujeito lírico, o noturno é a melodia possível que se pode compor nesse cenário do qual não podemos escapar. A musicalidade traz à tona a dor sem pretender que ela Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. 83 Mayra Moreyra Carvalho possa ser deglutida, pois já sabemos que a dor forçosamente esquecida vai se insinuar, cedo ou tarde, como o vômito que acometeu a outra multidão. A tensão entre constatar o “mundo de la muerte” e vislumbrar um resquício de humanidade possível, o que promoveria um movimento de aproximação por parte do sujeito lírico, adensa-se nos versos: “No hay remedio para el gemido del velero japonés,/ ni para estas gentes ocultas que tropiezan con las esquinas”. Novamente, está posta a impossibilidade e patente a despersonalização, pois o gemido, que seria expressão humana, passa por operação metonímica a um objeto inanimado. No entanto, o sujeito lírico se encontra no meio da multidão – ou, ao menos, é assim que ele se sente – pelo emprego do pronome demonstrativo “estas”. Ademais, as pessoas sobre as quais ele fala agora tropeçam nas esquinas, perfazendo uma ação que anteriormente fora desse sujeito lírico, lembrando os versos de “Vuelta de paseo” (Tropezandocon mi rostro distinto de cada día) e “1910 (Intermedio)” (En el sitio donde el sueño tropezaba com surealidad). O verbo “tropezar” indicava o sentimento da impossível fluidez e inteireza que o sujeito lírico experimentava na realidade diversa e confusa da metrópole. Ora, dessa feita, esse sentimento é atribuído aos componentes da multidão – eles são os que tropeçam com a arquitetura da cidade que se impõe sobre os seres humanos indiferente as suas necessidades e verdadeira natureza. Ao atribuir aos outros uma ação que já fora sua, e muito significativa, o sujeito lírico está de fato se aproximando da multidão. Essa identificação é um pressuposto da atitude revoltada, já que a revolta não tem que partir necessariamente daquele que é oprimido. Ela exige antes a tomada de consciência, “podendo também nascer do espetáculo da opressão cuja vítima é o outro”. O homem revoltado “luta pela integridade de uma parte de seu ser”, que em Poeta en Nueva York se dá como a resistência do olhar (“Me defendo con esta mirada”), ao mesmo tempo em que está compelido “à defesa de uma dignidade comum a todos os homens” (CAMUS, 2010, p. 29-31). Ao contrário da experiência do absurdo, existe aqui a consciência de que o sofrimento é coletivo, sentimento que vemos apoderar-se do sujeito lírico. Entre a “Paisaje de la multitud que vomita” e a “Paisaje de la multitud que orina”, notamos que o “poeta sin brazos” caminhou sutilmente, pelo reconhecimento de traços de humanidade na massa de pessoas, a um movimento de aproximação e identificação com o outro. As ações que diferem nos dois títulos acompanham essa mudança de perspectiva, pois parte da ação menos voluntária, a única possível que ele encontrou para a multidão inconsciente, para uma ação mais voluntária. Como em poemas anteriores, os versos finais de 84 Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca “Paisaje de la multitud que orina” trazem exclamações que mostram um grau de envolvimento do sujeito lírico. Aqui, ao exclamar “¡Oh gentes! ¡Oh mujercillas! ¡Oh soldados!”, encontramos seu lamento compadecido diante da situação de dor, morte, impossibilidade, angústia, silêncio e solidão. Mas esse grito permite a projeção futura de uma “solução”. É necessário que passemos a pensar a partir de outra lógica e o sujeito lírico eleja a liberdade de pensamento e a imaginação prodigiosa dos loucos para descrever esse caminho. Mais do que uma nova lógica, é preciso assumir o olhar dos loucos, apreender o mundo com os olhos daqueles que estão à margem daquilo que é socialmente organizado e aceito. Segundo esse olhar, é possível que o “mundo de la muerte”, paisagem terrível pintada no poema, seja capaz de produzir “fresquísimas manzanas”, ou seja, de alguma forma podemos entrever uma fecundidade na morte, já que está inserido em seu terreno o fruto que alude ao conhecimento e ao desejo 6. Trata-se de outro sentido da morte que não o da aniquilação total e irreversível. Esse novo olhar também é o da liberdade, em que o signo do natural e selvagem se amansa porque não está tolhido, mas em plenitude. O pensamento livre e produtivo é capaz de proporcionar “la luz desmedida”, a existência de um corpo que incorpore o belo e o feio, e o fogo que pode consumir aqueles que são indiferentes à dor e à beleza. Em outras palavras, a “saída” proposta é a de um olhar não convencional que permita incorporar as ambiguidades, dê lugar à expressão da subjetividade, à desmesura. Um olhar que humanize. Essa proposta de humanização não deve ser entendida como tornar mais humano, no sentido de compadecimento ou da afabilidade. Tampouco significa aqui imprimir um toque pessoal. Sujeito empírico e sujeito poético estão irremediavelmente cindidos na poesia moderna, como já mencionamos que é observado por Friedrich (1978) e Berman (2007). Assim também acontece em Poeta en Nueva York. Trata-se, na verdade, de defendermos uma humanização autêntica: que recusa a convenção e a arbitrariedade; que não se dá ao maniqueísmo ou às soluções simples, justamente porque questiona, critica e convoca para si tudo o que é genuinamente humano, a saber, contradições, incertezas, imperfeições; que se opõe ao espírito positivista, prático e maquinal que o sujeito lírico sabe que impera na metrópole. Nesse sentido, é possível humanizar-se pela poesia. No entanto, a projeção futura que o sujeito lírico propõe não deve ser entendida como crença ingênua numa alternativa que tudo resolverá. O olhar poético não pretende dar 6 Aludimos aqui às representações da história humana: narrativa de Adão e Eva e sua relação com a serpente, a maçã como fruto proibido, que, uma vez acessado, condenou o homem à expulsão do paraíso, à dor e ao trabalho, mas também assinalou a possibilidade de conhecimento, a consciência e a realização do desejo. Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. 85 Mayra Moreyra Carvalho respostas, “resolver” problemas e apaziguar tensões, mesmo porque a poesia é re-criação da realidade por meio da linguagem e não explicação dela. Com efeito, o olhar que o sujeito lírico propõe instaura a tensão permanente, porque é eminentemente crítico, e oferece o poder da expressão pela linguagem e a experiência da liberdade de observar e pensar criticamente. Expressar-se pela linguagem poética também revela a atitude revoltada na proposta desse sujeito lírico precisamente porque a revolta não cala. “Falar repara” (CAMUS, 2010, p. 19). “Calar-se é deixar que acreditem que não se julga nem se deseja nada [...] Mas, a partir do momento em que fala, mesmo dizendo não, ele deseja e julga” (CAMUS, 2010, p. 26). A subjetividade resiste à alienação imposta pelo fenômeno das paisagens das multidões e o faz pela linguagem. “Nueva York (Oficina y denuncia)”, que abre a seção “Vuelta a la ciudad”, quando o poeta retorna a Nova Iorque depois de uma temporada no interior dos Estados Unidos, pode ser pensado como uma composição que concentra as questões que perseguimos até aqui. Trata-se de um poema em que as impressões de choque do primeiro contato já decantaram, assim como se consolidou a opção pela instância do olhar observador como mecanismo de resistência. O sujeito lírico deixou a dicção de surpresa diante de uma experiência nova e fala com a voz daquele que conhece essa realidade, o que significa que percebe o fenômeno e fala dele com propriedade. O poema plasma esse processo: o movimento anunciado no título implica assumir o lugar do fazer poético ( OFICINA – oficcium, facere = fazer) com toda a carga pessimista, apocalíptica e agônica desse cenário e trazer à tona, por meio da palavra poética, aquilo que está encoberto (DENÚNCIA – nuntius = o mensageiro): NUEVA YORK (OFICINA Y DENUNCIA) A Fernando Vela Debajo de las multiplicaciones hay una gota de sangre de pato; debajo de las divisiones hay una gota de sangre de marinero; debajo de las sumas, un río de sangre tierna. Un río que viene cantando por los dormitorios de los arrabales, y es plata, cemento o briso en el alba mentida de New York. Existen las montañas. Lo sé. Y los anteojos para la sabiduría. Lo sé. Pero yo no he venido a ver el cielo. He venido para ver la turbia sangre, la sangre que lleva las máquinas a las cataratas 86 Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca y el espíritu a la lengua de la cobra. Todos los días se matan en New York cuatro millones de patos, cinco millones de cerdos, dos mil palomas para el gusto de los agonizantes, un millón de vacas, un millón de corderos y dos millones de gallos que dejan los cielos hechos añicos. Más vale sollozar afilando la navaja o asesinar a los perros en las alucinantes cacerías, que resistir en la madrugada los interminables trenes de leche los interminables trenes de sangre y los trenes de rosas maniatadas por los comerciantes de perfumes. Los patos y las palomas y los cerdos y los corderos ponen sus gotas de sangre debajo de las multiplicaciones, y los terribles alaridos de las vacas estrujadas llenan de dolor el valle donde el Hudson se emborracha con aceite. Yo denuncio a toda la gente que ignora la otra mitad la mitad irredimible que levanta sus montes de cemento donde laten los corazones de los animalitos que se olvidan y donde caeremos todos en la última fiesta de los taladros. Os escupo en la cara. La otra mitad escucha devorando, orinando, volando en su pureza como los niños de las porterías que llevan frágiles palitos a los huecos donde se oxidan las antenas de los insectos. No es el infierno, es la calle. No es la muerte. Es la tienda de frutas. Hay un mundo de ríos quebrados y distancias inasibles en la patita de ese gato quebrada por un automóvil, y yo oigo el canto de la lombriz en el corazón de muchas niñas. Óxido, fermento, tierra estremecida. Tierra tú mismo que nadas por los números de la oficina. ¿Qué voy a hacer? ¿Ordenar los paisajes? ¿Ordenar los amores que luego son fotografías, que luego son pedazos de maderas y bocanadas de sangre? No, no; yo denuncio. Yo denuncio la conjura de estas desiertas oficinas Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. 87 Mayra Moreyra Carvalho que no radian las agonías que borran los programas de la selva, y me ofrezco a ser comido por las vacas estrujadas cuando sus gritos llenan el valle donde el Hudson se emborracha con aceite. (GARCIA LORCA, 1989, p. 476-80). Os versos iniciais do poema nos dizem das mortes encobertas por três operações matemáticas, precisamente aquelas de que a lógica do capitalismo se serve para garantir seu preceito mais importante que é o da acumulação do capital. Para sobreviver, o sistema visa à multiplicação do mercado consumidor e à soma de bens e riquezas. A divisão fica para a força de trabalho, já que a produção em série e a compartimentação de tarefas garantem a oferta de produtos de forma mais barata e capaz de atender à demanda de consumo. O que não está previsto e permanece encoberto são as vidas subtraídas para que esse processo continue funcionando perfeitamente. A subtração é propositalmente extraída do poema para dizer que o sistema está organizado para ignorar um modo de vida autêntico e pleno. Mas, como a ausência é marca de presença, Lorca dá conta de que as gotas de sangue das vidas subtraídas pela lógica do capital se agrupem para ganhar uma nova existência e se fazer notar, e forja a forte imagem do “río de sangre tierna”, que congrega de maneira indissolúvel elementos de vida e morte. Um rio de sangue não é imagem nova na poesia lorquiana. Já no poema de abertura de Poema del cante jondo, “Baladilla de los tres ríos”, podemos encontrá-la: “El río Guadalquivir/ tiene las barbas granates./ Los dos ríos de Granada, /uno llanto y otro sangre”. A visão dos elementos naturais nunca foi simples e pacífica, mas sempre complexa. Passa-nos que o sangue do rio espanhol é signo de outro sentido de morte, um sentido que a concebe como parte da vida e constitutiva do ser andaluz. O também poeta espanhol Pedro Salinas 7 argumenta que o “sentir a morte” não é algo que García Lorca teve que inventar, pois se trata mesmo de uma cultura secular do povo espanhol, a que ele denomina “cultura de lamuerte”, que fica clara em manifestações populares como as festas de touros ou as encenações da Paixão de Cristo. Em contrapartida, o sangue que forma o rio nova-iorquino é antes índice da artificialidade da vida na metrópole, porque está contaminado e desfigurado pela modernidade urbana, que subjuga, haja vista a reincidência do advérbio “debajo”, e é aqui representada 7 No ensaio “García Lorca y la cultura de lamuerte” a que fazem referencia Caballero & Josephs (2009, p. 47) na introdução a Poema del Cante Jondo/RomanceroGitano. 88 Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca pela “plata” e “cemento” e os elementos contaminados, “el alba mentida” e o rio Hudson que “se emborracha con aceite”. Novamente, como já enumerara no prólogo lírico “Vuelta de paseo”, os motivos de poesia estão desfigurados e destituídos de uma existência íntegra e figuram nos versos invariavelmente contaminados por impurezas de toda ordem. Mas o sujeito lírico declara que não veio para exercer a contemplação, cabe-lhe precisamente enfrentar-se com a realidade, o que ele faz sempre pela via do olhar crítico: “He venido para ver”. E o que ele vê aparece caudalosamente enumerado no poema, num procedimento repetitivo que dá o sentido da acumulação sem precedentes em que se funda e fortalece o capitalismo. O mecanismo lembra a famosa formulação a que Leo Spitzer (1945) chegou analisando Walt Whitman; trata-se da “enumeração caótica”8. Exposto à gama quase infinita de estímulos da metrópole nova-iorquina e sensível à acumulação do capital, o sujeito lírico encontra nesse procedimento a melhor forma para plasmar suas impressões. Assim aparecem enumerados em uma dicção que testa o fôlego: perros, interminables trenes de leche, interminables trenes de sangre, rosas maniatadas, perfume, montes de cemento, animalitos, taladros, niños, palitos, insectos, ríos, gato, automóvil, óxido, fermento, tierra, amores, fotografias, oficinas; elementos de mundos diversos, aparentemente distantes, mas que o olhar do poeta consegue reconhecer convivendo na profusa existência da metrópole. De fato, Lorca não só enumera caoticamente, mas sofistica o procedimento, pintando-o com tons surrealistas, quando se dispõe a relacionar elementos surpreendentes, sobretudo nas comparações e nas adjetivações. A essa abundância de objetos e seres, somam-se os animais domesticados pelo homem e mortos aos milhões: cuatro millones de patos, /cinco millones de cerdos, /dos mil palomas para el gusto de los agonizantes,/um millón de vacas, /um millón de corderos/ y dos millones de galos. A sequência alude ao processo de industrialização de carne9, que começa a se consolidar nessa época como uma iniciativa para garantir a expansão do mercado, viabilizando a chegada da carne à maior quantidade de consumidores possível. Também nessa sequência reforça-se o controle do humano sobre o natural, subjugado para dar lugar à artificialidade. Desse processo, igualmente representativa 8 “Si puede decirse que Walt Whitman introduce la enumeración en que se mezclan las cosas materiales y las abstracciones, hay que decir también que el “estilo bazar”, donde se confunden toda clase de objetos o seres pertenecientes a un mismo orden de ideas, se había inventado ya en Europa. En Balzac, este procedimiento continúa espontáneamente la enumeración a lo Rabelais”. SPITZER (1945, p. 27-8). 9 Como explica o economista Robert Hessen no verbete “Capitalism”, da The concise encyclopedia of economics, sobre as iniciativas agressivas e inovadoras dos industriais norte-americanos para aumentar o lucro e cortar custos, citando o caso de Gustavus Swift, pioneiro no processamento de carne. Disponível em: <http://www.econlib.org/library/Enc/Capitalism.html>. Acesso em: 17 abr. 2012. Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. 89 Mayra Moreyra Carvalho é a imagem das “rosas maniatadas/ por los comerciantes de perfumes” e toda a cadeia de vocábulos que remetem ao esmagamento: estrujar, cielos hechos añicos, taladros. Diante do cenário em que se acumulam os signos de morte, chegando ao extremo de constatar que vivemos em um inferno sobre a terra, dado que a morte e a destruição se dão onipresentemente até nos elementos mais cotidianos e banais – “No es el infierno, es la calle./ No es la muerte. Es la tienda de frutas” – o sujeito lírico elege o poder da palavra de trazer à tona e fazer saber. É o momento em que enuncia com todas as letras: “Yo denuncio”. Em meio à realidade urbana em que podemos experimentar o inferno e a morte, ele consegue recolher um valor de vida numa cena absolutamente banal do atropelamento de um gato: “Hay un mundo de ríos quebrados y distancias inasibles /em la patita de ese gato quebrada por um automóvil”, o que revela um amor a tudo, pois entende que tudo está em cada coisa e cada coisa contém o tudo. Nas palavras de Martínez Nadal (1970 apud Caballeros & Josephs, 2009, p. 44), García Lorca se move por um “verdadero sentido panteísta”10 expresso no tratamento amoroso que dispensa a tudo que convoca para sua poesia. Esse sentimento o poeta compartilha com Walt Whitman, não por acaso lhe dedica uma Ode em Poeta en Nueva York. Em “Leaves of Grass”, encontramos o sentido panteísta que toma Lorca em um verso como “I believe a leaf of grass is no less than the journey-work of the stars”. Se o sujeito lírico chegou à expressão máxima do ódio com o gesto escatológico de cuspir, isso não contradiz um valor de vida, ainda que incipiente, que ele é capaz de detectar no cenário mais adverso. Por essa razão, seu derradeiro ato não pode ser o cuspe. Ao se perguntar como quem gritasse pelo caminho possível a tomar diante da paisagem de impossibilidade e morte – “¿Qué voy a hacer? ¿Ordenar los paisajes? /¿Ordenar los amores que luego son fotografías, /que luego son pedazos de maderas y bocanadas de sangre?”– a resposta é sonoramente negativa. A única opção é o enfrentamento. O que se impõe é a via da denúncia, ato cuja etimologia pressente a responsabilidade do mensageiro que deve fazer saber. Esse ser que encarna o desprezo pelo real, expresso pelo ato de cuspir, e a adesão a esse mesmo real, que o leva a denunciar um estado de coisas, tem precisamente o caráter do homem revoltado: Exige-se que seja levado em conta aquilo que, no homem, não pode ficar limitado a uma ideia, esta parte ardorosa que não serve para nada a não ser para existir. [...] Aparentemente negativa, já que nada cria, a 10 NADAL, Michel. El público. Amor, teatro y caballos en la obra de Federico García Lorca. Oxford: The Dolphin Book Co. Ltd., 1970. 90 Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca revolta é profundamente positiva porque revela aquilo que no homem sempre deve ser defendido. (CAMUS, 2010, p. 31-2). O sujeito lírico se propõe a trazer à tona aquilo que está encoberto por uma opção de organização social que se oferece aparentemente harmoniosa, saudável e feliz e sua maneira de fazê-lo é pela via da palavra poética. No contexto da modernidade, em que, como vimos, estão ausentes as condições de possibilidade para a existência do poeta, a escolha por essa atitude implica um verdadeiro sacrifício: “me ofrezco a ser comido por las vacas estrujadas”. Longe de assinalar o fim da questão, esse gesto de sacrifício instaura outra tensão. Ele não soluciona a situação de inconsciência, desumanização e impossibilidade, mas dá mostras da permanência da consciência crítica e da sobrevivência da poesia. A lírica que nasce nos tempos adversos da modernidade só pode ser aquela que, servindo-se dos elementos do real que despreza e reprova, erige-se como campo possível da expressão da subjetividade, fazendo-a ainda bela e dolorosa como sempre coube ao lirismo. É reduto da consciência e do sujeito num mundo fadado à alienação e à destruição e se constrói desconstruindo as bases em que esse mundo se funda. Considerações finais Foi possível constatar que as relações propostas ao longo do trabalho se revelaram pertinentes e profícuas. Ao contrário do que certo tipo de crítica pode considerar, a confusão, a desorientação, a violência, o sentimento de impossibilidade que povoam Poeta en Nueva York não são reflexo de uma fase conturbada na vida pessoal do poeta ou simples reação de um homem acostumado ao peculiar cenário andaluz. Os versos desse poemario verdadeiramente recompõem uma visão lúcida e crítica da modernidade histórica, entendendo-a aqui como o período que corresponde às primeiras décadas do século 20. Ademais, e sobretudo, esses poemas nos dizem da natureza mesma do trabalho da poesia enquanto corpo feito de linguagem. Assim, as características formais da composição evidenciam o encontro-confronto de García Lorca com a modernidade na metrópole nova-iorquina. Todos os elementos estão engendrados de maneira rigorosíssima por esse poeta que é sabidamente sofisticado, exigente Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. 91 Mayra Moreyra Carvalho e consciente do trabalho que está realizando. Como indica o próprio título da obra, Poeta en Nova York problematiza a posição do poeta nesse cenário urbano. É belíssimo constatarmos que a poesia se apresenta mesmo como resistência, forjada a partir de um olhar que consciente e criticamente não cessa de observar a realidade que o circunda. Também constatamos que a expressão pela palavra se conserva como instância poderosa de reposição de algo que, por vezes, parece desaparecido. Dir-se-ia que tal sentimento é exacerbado ou utópico. Porém a experiência autêntica da poesia desmente a reticência. A existência mesma da poesia afirma seu poder de recusa, seu lugar de revolta. RESUMEN: El artículo investiga la postura del poeta Federico García Lorca frente al fenómeno de la modernidad. Elegimos confrontar la obra Poeta en Nueva York, por su escenario urbano que pone en evidencia la experiencia poética de la modernidad, a algunos aspectos del problema moderno, como el lugar de la poesía y del poeta en un mundo que carece de las condiciones de posibilidad para su existencia. En relación al mundo moderno de las primeras décadas del siglo XX, creemos que se puede reconocer un linaje de poetas que buscan en la rebeldía una forma de expresión, entendiéndola según el pensamiento de Albert Camus (1951) PALABRAS-CLAVE: Poesía moderna. Federico García Lorca. Poeta en Nueva York. Rebeldía. Referências BERARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. Trad. de Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2007. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Trad. de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria Ioratti. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007. CABALLERO, Juan; JOSEPHS, Allen. Breve panorama de la poesía lorquiana. In: GARCÍA LORCA, Federico. Poema del Cante Jondo/ Romancero Gitano. Barcelona: Cátedra, 2009. CAMUS, Albert. O homem revoltado. Trad. De Valerie Rumjanek. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. 92 Nome – Revista de Letras, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 71-93, jan.-jun. 2013. Modernidade e revolta em Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca COLI, Jorge. 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