Dez cachoeiras e uma nevada no caminho

Transcrição

Dez cachoeiras e uma nevada no caminho
OTTO HASSLER, DIVULGAÇÃO
N
a estrada
JULIO CESAR FAVIA, DIVULGAÇÃO
SC
Rio Pelotas
Rio Pelotinhas
Lajes
Vacaria
Rio Cerquinha
Bom Jesus
RS
São José
dos Ausentes
FOTOS MÍRIAM PROCHNON, DIVULGAÇÃO
São Joaquim
Quem estava lá
● Rede de ONGs da Mata Atlântica
do Rio Grande
Expedição de barco com 15 ambientalistas enfrenta granizo,
neve e corredeiras nos cânions que formam o Rio Pelotas
HUMBERTO TREZZI
O Rio Grande selvagem das tropeadas, do
gado franqueiro de chifres longos e dos campos sem fim de cima da serra nasce com
águas translúcidas e geladas, em meio a cânions com beleza de tirar o fôlego.
É o que comprovaram 15 aventureiros, vários deles
especializados em ambiente, ao percorrer de barco 80
quilômetros pelas raízes do Rio Pelotas. Ele separa os
territórios catarinense e gaúcho, dando origem à
maior bacia hidrográfica do Rio Grande do Sul, a do
Rio Uruguai. O objetivo era verificar o nível de preservação ambiental da região.
A aventura deixou calos e memórias perenes nos
participantes. A expedição pelo Pelotas foi realizada
no início deste mês abaixo de granizo, neve e temporais. Zero Hora teve acesso exclusivo ao material foto-
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Zero Hora – Porto Alegre, quinta-feira, 28 de setembro de 2006
gráfico produzido pelo grupo, que pode virar exposição. As águas transparentes do Pelotas e seus afluentes
escorrem por gargantas de pedra margeadas
de mata ciliar e araucárias (pinheiros nativos), em uma zona de transição vegetal
intocada pelo homem.
– Em quase cem quilômetros de
barco pelo rio encontramos apenas
uma pessoa, que passeava a cavalo pelas margens. Não existem cidades, vilas
ou moradias neste trecho – comenta a
pedagoga Míriam Prochnow, especializada
em Ecologia e uma das participantes da expedição.
A expedição percorreu a divisa de Santa Catarina
com o Rio Grande do Sul. Começou no limite dos municípios gaúchos de São José dos Ausentes e Bom Jesus
com os municípios catarinenses de São Joaquim e La-
percorreu 12
quilômetros entre os
municípios de São
José dos Ausentes e
Bom Jesus. Suportou
uma tempestade de granizo.
Acampou na foz do Rio Cerquinha
jes. Os ambientalistas desceram o Rio Pelotas, de leste
a oeste, usando dois botes de borracha especiais para
rafting (descida de corredeiras) movidos a remo.
A escolha do Rio Pelotas se deu justamente por ser
um dos locais mais selvagens do sul do país. As suas
matas ciliares fazem parte dos últimos remanescentes
florestais da região nordeste do Rio Grande do Sul, cujas árvores foram devastadas nas últimas décadas por
empresas madeireiras e cujos campos sofrem ainda
hoje com ação sistemática das queimadas.
Os ambientalistas se preocuparam em conferir a diversidade desse corredor ecológico. A conclusão é de
que, até por ser afastado dos centros urbanos, o ambiente em torno do Pelotas está intocado. As câmeras
fotográficas documentaram uma exuberante proliferação de bromélias, flores do campo, araucárias e butiazeiros nas escarpas que adornam o leito do Pelotas. Os
participantes da expedição também tiveram encontros
memoráveis com a fauna silvestre, como veados, que
visitaram o acampamento, e lontras – extremamente
raras no Sul –, que seguiam, curiosas, os barcos pela água.
– Uma capivara quase pulou para dentro de um dos barcos – recorda Míriam.
A escolha de barcos infláveis e não
de madeira se revelou mais do que
apropriada. O rio é repleto de rochas
entremeadas por forte correnteza. O
guia da expedição e dono dos botes, Otto
Hassler, atuou como guia numa empresa
semelhante na África e não tem dúvidas em
comparar o desafio enfrentado com as corredeiras
do Rio Zambezi, um dos mais famosos do mundo para prática de rafting.
➧ [email protected]
2 de Setembro – Os aventureiros percorreram 34
quilômetros, entre a foz do Rio Cerquinha e o Passo de
Santa Vitória, em Bom Jesus, onde foi montado
acampamento. Enfrentaram ventos de até 60 km/h
3 de Setembro – O grupo percorreu cerca de 40 quilômetros
entre o Passo de Santa Vitória e a foz do Rio Pelotinhas, no
município de Vacaria. Montou acampamento ali
● Departamento de Botânica da
Universidade Federal de Santa
Catarina (www.ufsc.br)
EDEGOLD SCHATTER, DIVULGAÇÃO
Anasvenascentes
ntura
● Diretoria de Áreas Protegidas do
Ministério do Meio Ambiente
(www.mma.gov.br)
1º de Setembro
– O grupo
Por mera casualidade do calendário, os ambientalistas acabaram realizando rafting pelo Rio Pelotas no período climático mais difícil deste ano.
A expedição ocorreu entre 1º e 4 de setembro,
justo quando uma frente fria carregada de vento e
umidade foi sucedida por uma massa de ar polar,
que fez os indicadores de temperatura despencarem. O resultado é que, no primeiro dia de acampamento, as equipes enfrentaram rajadas com velocidade de até 60 km/h no rumo contrário da correnteza. A ventania era tamanha que os barcos não
saíam do lugar. De tal forma que conseguiram percorrer apenas 12 quilômetros rio abaixo.
No segundo dia, uma tempestade de granizo
(pedras de gelo) castigou os remadores. Em função do frio, muitos deles só suportaram a temperatura da água com proteção de trajes de borracha
especiais para mergulho.
Durante o dia, a temperatura, próxima de 0°C,
era suportável porque o sol estava descoberto. Mas
à noite, os aventureiros só conseguiram agüentar
congelantes -5°C com grandes fogueiras acesas à
margem do rio. Pelo menos, o frio espantou os
mosquitos.
– O almoço consistia em sanduíches frios improvisados na barranca do rio. Comida quente só à
noite, no fogareiro improvisado à beira das barracas – descreve Miriam.
Mesmo que quisessem, os ambientalistas não tinham onde buscar comida durante o dia, já que os
barcos trafegavam entre fendas e longe de qualquer aglomeração humana. O acampamento era
montado por uma equipe de apoio que seguia em
dois jipes por estradas empedradas situadas entre
● Fundação do Meio Ambiente de
Santa Catarina
(www.fatma.sc.gov.br)
● Polícia Ambiental de Santa
Catarina
● Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (www.ibama.gov.br)
4 de Setembro – Eles passaram por trechos próximos do Rio
Pelotinhas e encerraram a expedição. Na madrugada, nevou
Dez cachoeiras e uma
nevada no caminho
● Associação de Preservação do
Meio Ambiente do Alto Vale do
Itajaí (www.apremavi.com.br)
São José dos Ausentes, Bom
Jesus e Vacaria.
Os remadores, dos quais
apenas dois são profissionais,
enfrentaram uma maratona.
Remavam das 8h às
17h30min, com pequenas
pausas, até o limite da exaustão. A conseqüência não se fez
esperar: bolhas, calos, pequenos cortes provocados pelas
rochas e muita dor nos braços. Cruzaram no caminho
por cinco riachos e 10 cachoeiras.
O pior momento climático,
apesar de belo, foi a neve que se abateu sobre os
cânions no dia 4 de setembro. O frio e o cansaço
foram intensos. Por pura sorte, os remadores só
pegaram a neve quando estavam em terra firme,
ao amanhecer. A friagem trouxe um efeito colateral: dor de garganta para alguns integrantes do
grupo. Nada que a paisagem deslumbrante não
compense.
Zero Hora – Porto Alegre, quinta-feira, 28 de setembro de 2006
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