Revista Camponesa

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Revista Camponesa
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Camponesa - Dezembro de 2010
www.aaccrn.org.br
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Ano 2 - Número
03 - Dezem
bro de 2
010
Min. Guilherme
Cassel
O caminho para as famílias
Jean Raboud
O caminho para as
famílias rurais
Terezinha Maria
Relação solidária é o que
garante sustentabilidade
1
Camponesa - Dezembro de 2010
ISSN 2178-8561
Esta publicação foi realizada com
apoio da Fundação Konrad Adenauer
Fortaleza. O seu conteúdo não expressa
necessariamente a opinião da Fundação
Konrad Adenauer.
Conselho editorial:
Antonia Geane Costa Bezerra
Bethânia Lima Silva
Emerson Inácio Cenzi
Ivi Aliana Carlos Dantas
Joaquim Apolinar Nóbrega Diniz
www.aaccrn.org.br
Editorial
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Textos:
Bethânia Lima Silva
Ivi Aliana Carlos Dantas
Fotografia:
Rodrigo Sena
Bethânia Lima Silva
Revisão:
Bethânia Lima Silva
Ivi Aliana Carlos Dantas
Projeto gráfico
e Diagramação:
Robson Nunes
Impressão:
Offset Gráfica
Tiragem:
3000 exemplares
Associação de Apoio às Comunidades do
Campo do RN - AACC/RN
Rua Doutor Múcio Galvão, 449, Lagoa Seca
Natal - RN - Cep: 59022-530
Telefone: 84.3211.6131/6415
E-mail: [email protected]
2
“Gostaria de parabenizar a AACC/RN
pela edição da Revista Camponesa.
É uma revista importante para os
movimentos sociais e para sociedade,
uma vez que não há o debate de temas
como a soberania alimentar, nos nossos
veículos de comunicação. Fiquei feliz
em saber que há um veículo que pauta
esses assuntos, pois se não visibilizados
o debate se perde.”
Marcelle Honorato – Comunicadora da
Diaconia/RN
“Agradeço o envio do exemplar n. 02
da Revista Camponesa, com entrevistas
que demonstram a riqueza e pluralidade
de opiniões, no que concerne ao pleno
exercício da cidadania, com enfoque
especial para as eleições 2010 e o futuro
do Brasil.”
César José de Oliveira – Diretor de
Desenvolvimento de Projetos de
Assentamento/Incra-DF
“Agradecemos o envio da edição da Revista Camponesa contendo a entrevista
com a professora Tania Bacelar, presidente do Conselho deliberativo do Centro
Celso Furtado, e outras entrevistas de grande interesse.”
Pedro de Souza - Superintendente Executivo do
Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento
Fotos capa: Rodrigo Sena
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NESTA EDIÇÃO
Entrevistas
04
Emma Siliprandi
06
Jean Raboud
10
Anja Czymmeck
13
Terezinha Maria de Oliveira
15
Fernando Bastos
20
Francisco Edilson
É necessária uma mudança de paradigmas
O caminho para as famílias rurais
Formação política é a promoção da democracia
Relação solidária é o que garante sustentabilidade
O grande desafio das ações para o rural é a democratização
Nossa missão é fortalecer a agricultura
23
Viviane Siqueira
Quando a política é boa
Reportagem
26
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Seções
02
30
31
Fale Conosco
Para Aprofundar
Notas
3
Camponesa - Dezembro de 2010
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Entrevista: Emma Siliprandi
É necessária uma mudança
de paradigmas
E
Todos tendo acesso aos mesmos direitos, inclusive,
ao direito de viver em um planeta saudável
m entrevista à Revista Camponesa, a engenheira agrônoma Emma Siliprandi fala a respeito das contribuições e questões pautadas pelas mulheres para o desenvolvimento sustentável, os olhares diferentes para a
sustentabilidade, a importância do fortalecimento da agricultura familiar para uma melhor qualidade alimentar na vida das pessoas e as perspectivas
na política agrícola brasileira.
Emma Siliprandi é formada pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, mestre em Sociologia Rural pela Universidade Federal da Paraíba
(Campina Grande) e Doutora em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. Emma sempre se envolveu com a causa das mulheres rurais, desde quando assessorava o movimento sindical na Paraíba, na década de
1980. Em 1996, quando trabalhava na ONG Capina, no Rio de Janeiro, em conjunto com a Sempreviva Organização Feminista (SOF) e vários movimentos sociais rurais, participou da organização da uma primeira Oficina Nacional sobre
Gênero e Agricultura Familiar, que marcou as discussões sobre a invisibilidade
do trabalho das mulheres na agricultura no país. Atualmente é pesquisadora
do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação (NEPA) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e continua assessorando movimentos de mulheres rurais e participa de redes feministas no país e no exterior. Ela é membro
da diretoria da Sociedad Científica Latinoamericana de Agroecología (SOCLA).
Revista Camponesa: O seu artigo “Mulheres e Ambiente em Eventos Internacionais” apresenta que as mulheres
passam a ocupar o cenário no debate
mundial sobre ambiente, a partir da
Rio-92. Nesse contexto, quais as contribuições e questões pautadas pelas
mulheres para o desenvolvimento
sustentável a partir deste momento?
Emma Siliprandi: Até então as políticas internacionais viam as mulheres, no
máximo, como um setor que precisava
ser incluído no desenvolvimento, sem
se questionar se o tipo de desenvolvimento que estava sendo proposto (baseado na industrialização, no crescimento
econômico a qualquer custo, e na urbanização acelerada) era do interesse do
conjunto das mulheres. Na Rio-92 graças
à atuação dos movimentos feministas,
pode se fazer esse duplo questionamento, sobre a participação das mulheres
nas grandes decisões mundiais (que até
então era completamente marginal) e
4
também sobre o tipo de desenvolvimento que se queria construir. Muitas
vezes há um estranhamento quando as
mulheres vêm a público manifestar-se
sobre as questões gerais que envolvem
o destino da humanidade; é como se
elas não tivessem esse direito. Os movimentos de mulheres, naquele período,
já vinham questionando o modelo
civilizatório baseado nas guerras e nas
políticas de destruição – expresso no
consumismo desenfreado, no desmatamento, na degradação ambiental, na
utilização irresponsável de energia nuclear e dos combustíveis fósseis. Todas
essas características estavam deixando
“Às vezes se dá importância
demasiada às nossas diferenças e não às nossas semelhanças quanto ao nosso
destino no Planeta Terra”
as mulheres mais pobres, e mais marginalizadas do suposto “progresso”. As mulheres camponesas, por
exemplo, estavam perdendo as áreas
tradicionalmente utilizadas para o plantio de alimentos em função das grandes
monoculturas, e com isso perdiam também o acesso à água, aos bosques, etc. As
condições de vida das mulheres urbanas
também estavam piorando, por conta
da poluição atmosférica, da contaminação dos alimentos, dos agravos à saúde.
Então, que progresso era esse? As reivindicações das mulheres não eram apenas
de serem beneficiárias daquele modelo
(uma vez que, realmente, a maioria delas estava excluída dos seus benefícios);
mas passaram a exigir que propostas
alternativas fossem consideradas. É importante lembrar que os movimentos de
mulheres não são homogêneos; há mulheres de diferentes classes, etnias, religiões, posições políticas... brancas, negras, indígenas, urbanas ou rurais. Mas o
Camponesa - Dezembro de 2010
“É necessária uma mudança
radical em nossos paradigmas produtivos, para que se
pense na humanidade como
parte da natureza, e não
como ‘dona’ dela”
que as unificava, naquele momento, era
a convicção de que havia uma opressão
de gênero que perpassava a todas indistintamente, expressa na sua exclusão
das grandes discussões, e a convicção
de que as mulheres eram capazes de
pensar um outro modelo de desenvolvimento com base nas suas experiências
concretas de cuidar da vida humana.
Não porque o ser “mulher” seja intrinsecamente distinto do ser “homem” – às
vezes se dá importância demasiada às
nossas diferenças e não às nossas semelhanças quanto ao nosso destino no Planeta Terra. As mulheres questionavam,
ao mesmo tempo, o modelo capitalista
e à sua expressão patriarcal. A Rio-92 foi
também um momento importante para
a expressão organizada das mulheres
agricultoras, indígenas, quilombolas, extrativistas, que estavam à margem das
organizações sindicais tradicionais no
meio rural.
Revista Camponesa: Desenvolvimento
sustentável tem sido uma “expressão”
usada por diversos setores: indústria,
comércio, e também pela agricultura,
seja o modelo do agronegócio, seja a
agricultura familiar camponesa. Existem olhares diferentes para essa
expressão, o quanto que é prática, o
quanto que é “marketing ambiental”?
Emma Siliprandi: Há pelo menos duas
vertentes claras no campo do ambientalismo, que interpretam a questão da
sustentabilidade de diferentes maneiras. Uma parte acredita que é possível
“esverdear” o capitalismo, melhorando
os processos produtivos de forma a criar
menos lixo, colocando filtros nas indústrias, criando as commodities “verdes”
(como o mercado de carbono), apostando em mercadorias diferenciadas (como
os produtos ecológicos, não poluentes,
etc.). Mas tudo isso mantendo a estrutura de produção e de consumo que existe
hoje, ou seja, quem quiser produtos limpos terá que pagar por eles. O mercado
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passa a ser, mais uma vez, o grande árbitro de quem vai viver bem (em um ambiente protegido, comendo alimentos limpos, andando em carros modernos que
deixam menos resíduos, etc.) e de quem
vai ficar com a pior parte da história,
como o lixo, a degradação, as doenças.
Essa corrente é chamada de “eco-tecnocrática” ou “eco-capitalista”. Outros setores do ambientalismo, apesar de concordarem com a
necessidade de novos processos produtivos e de redução das contaminações,
acham que isso é insuficiente. Que é necessária uma mudança radical em nossos paradigmas produtivos, para que se
pense na humanidade como parte da
natureza, e não como “dona” dela. Que
o ambiente não é formado apenas por
“recursos naturais” à disposição da humanidade, que devem ser preservados
somente para serem melhor explorados.
Para essa vertente alternativa, chamada
“ecossocial”, o ponto de partida é a visão
de “justiça ambiental” em que todos
tenham os mesmos direitos a um planeta saudável, ao ar, à água, à terra, aos
alimentos, às paisagens, todos tenham
condições de se realizar pessoal e socialmente, sem que, para isso, se tenha que
destruir o que nos rodeia. Na agricultura,
os modos de produzir do campesinato e
da grande produção são exemplarmente
opostos nesse sentido. Para uns, se trata
de preservar o meio que lhes fornece
a subsistência no dia a dia. Para os demais, o ambiente é apenas o substrato
físico onde desenvolvem suas atividades
econômicas. Não há compromisso com
a população local, ou com o território
onde se construiu uma cultura, uma ligação com a terra. Tudo é negócio, mesmo
que eventualmente “sustentável”. É bem
diferente o desenvolvimento produzido
por um modelo e pelo outro, onde serão
investidos os recursos, quais os critérios
“A sustentabilidade não pode
ser vista apenas no ponto
de vista ‘tecnológico’ : deve
incorporar aspectos éticos,
sociais, culturais, políticos e
econômicos, e ter em conta
também a equidade de
gênero”
para se julgar o sucesso de determinada
atividade, quem se beneficia ou se prejudica com as atividades econômicas.
A sustentabilidade não pode ser vista
apenas do ponto de vista “tecnológico”:
deve incorporar aspectos éticos, sociais,
culturais, políticos e econômicos, e ter
em conta também a equidade de gênero.
Revista Camponesa: Quando se fala
em meio ambiente, nota-se ênfase e
priorização em mudança da matriz
energética, ficando como secundária
a necessidade de mudanças de consumo, em especial a alimentar. O fortalecimento da agricultura familiar
contribui para uma melhor qualidade
alimentar na vida das pessoas e para o
meio ambiente?
Emma Siliprandi: Sim, fortalecer a agricultura familiar é fundamental para que
se obtenham alimentos de qualidade. A
agricultura familiar apresenta padrões
de ocupação dos solos muito mais vantajosos do ponto de vista ambiental, é
capaz de conservar a biodiversidade,
os mananciais hídricos, de produzir de
forma mais ecológica, democratizar a
posse das riquezas, gerar empregos, enfim, apresenta uma série de vantagens.
Mas do ponto de vista apontado pela
pergunta (modelo de consumo) é preciso que se avance muito mais em outros aspectos, para além da produção. O
padrão de alimentação nas grandes cidades, por exemplo, (e hoje o Brasil é um
país essencialmente urbano), não é uma
livre escolha das pessoas, é dado pelas
condições estruturais de acesso aos alimentos. Redes de distribuição, acesso à
renda, possibilidade de comprar produtos com trabalho incorporado (por exemplo, legumes e verduras pré-lavados
e cortados) são exemplos de questões
fundamentais que definem as condições
necessárias para que as pessoas se alimentem bem. Além disso, a alimentação
continua sendo uma tarefa feminina –
uma das marcas da opressão de gênero
que conhecemos tão bem – e enquanto
não houver uma melhor divisão do trabalho doméstico e apoio público às tarefas ligadas à alimentação, as mulheres
continuarão sobrecarregadas, e procurarão formas de aliviar essa carga. Sejam
ricas, de classe média ou pobres, hoje as
mulheres procuram, de todas as formas,
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Camponesa - Dezembro de 2010
“Não existiria a agricultura
familiar se não houvesse o
trabalho das mulheres, e
o seu envolvimento com a
produção de alimentos é
essencial para a continuidade
da produção familiar
no meio rural”
diminuir o seu trabalho com a preparação da alimentação da família. Conforme
as suas condições de classe, serão mais
ou menos bem sucedidas nessas tarefas. As pobres ficarão, evidentemente,
com a pior parte, tendo que consumir
alimentos de má qualidade, pobres em
nutrientes, com cardápios monótonos,
muitas vezes contaminados. Então a
grande questão é como estimular que
as pessoas se alimentem de forma mais
saudável (com verduras e legumes frescos e sem contaminações, por exemplo,
e com alimentos mais balanceados) se,
por um lado, muitas pessoas não têm
recursos para comprá-los, e, por outro,
não se pode mais contar com a exploração infinita da mão de obra das donas de casa para prepará-los? É preciso
investir em equipamentos públicos que
socializem parte das tarefas relacionadas com a alimentação, que hoje estão
sobre os ombros das mulheres, para
que todos possam se alimentar melhor
e sem prejuízo de ninguém. Além de
questionar a divisão sexual do trabalho,
o que vem sendo feito pelas feministas
há décadas.
Revista Camponesa: Qual a força da
agricultura familiar no Brasil para a
produção de alimentos, e qual a participação das mulheres nesse cenário?
Emma Siliprandi: Os últimos dados do
Censo Agropecuário divulgados pelo
IBGE (dados de 2006) mostram um crescimento fenomenal da agricultura familiar
na produção de alimentos no Brasil, fruto de muitas políticas públicas de apoio
a esse segmento produtivo, executadas
nos últimos 10 anos. A agricultura familiar brasileira é constituída por 4,3 milhões de estabelecimentos rurais (84,4%
do total nacional), que ocupam 24,3% da
área, são responsáveis por 38% do valor
bruto da produção agropecuária, por
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74,4% do total das ocupações rurais, e respondem pela maior parte da produção
dos principais alimentos consumidos no
país (feijão, milho, hortaliças, frutas, frangos, ovos, leite e muitos outros produtos). As mulheres participam de todas
as etapas dessa produção, embora em
muitos lugares se considere que apenas
“ajudem” os maridos. Elas trabalham no
preparo do solo, das mudas, no plantio,
nos tratos culturais, na colheita, na preparação dos produtos para a comercialização (embalagem, secagem, encaixotamento). Além disso, são responsáveis
pela transformação dos produtos nas
propriedades (fabricação de doces, pães,
queijos, etc.). Muitas vezes elas também
são as responsáveis pelas atividades extrativas (por exemplo, no coco babaçu,
nas frutas tropicais) além de se ocuparem com muitas atividades de pesca
e de mariscagem, que também são
atividades da agricultura familiar. Além
de serem responsáveis, como todas as
mulheres, pelo preparo da alimentação
da família. Não existiria a agricultura familiar se não houvesse o trabalho das
mulheres, e o seu envolvimento com a
produção de alimentos é essencial para
a continuidade da produção familiar no
meio rural. É preciso que as instituições
que trabalham com agricultura no Brasil
dêem valor a essa participação e vejam
as mulheres como verdadeiros sujeitos
da agricultura familiar.
Revista Camponesa: A agroecologia se
apresenta como uma estratégia para a
agricultura, especialmente para a agricultura familiar, por se estruturar no
tripé social, econômico e ambiental
respectivamente justo, viável e sustentável que são os aspectos tratados
pelo desenvolvimento sustentável.
Como a agroecologia vem sendo desenvolvida pela agricultura familiar?
Emma Siliprandi: Nos últimos trinta
anos as experiências agroecológicas
cresceram muito no Brasil, e também
em todo o mundo. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) tem feito
vários levantamentos que mostram esse
crescimento, que vem sendo reconhecido também pela EMBRAPA1, pelo sistema de assistência técnica oficial, pelos
Ministérios do Desenvolvimento Agrário
e também da Agricultura. Mesmo assim, ainda não são hegemônicas como
“As mulheres rurais não
estão preocupadas somente
com as suas próprias reivindicações, há muitos anos
têm se preocupado com
questões gerais que dizem
respeito a toda a sociedade
brasileira”
modo de produção agrícola, mesmo na
agricultura familiar, que ainda está estruturada com base no sistema convencional, baseado em monocultivos, com uso
intensivo de adubos sintéticos e venenos, e cujo objetivo maior é a venda no
mercado. Nas experiências agroecológicas também se busca obter renda para
os produtores e produtoras, mas não a
qualquer custo.
Se aposta em mercados solidários, em aproximações com os consumidores, em diversificar a produção para
aproveitar todo o potencial dos agroecossistemas, preservando ao máximo
e até melhorando as condições naturais
locais. Mas não é fácil enfrentar décadas
de Revolução Verde, que impuseram
uma estrutura produtiva totalmente
distorcida, em que os produtos têm que
apresentar determinadas características
em aparência (e não em qualidade nutricional), em que os intermediários dão as
regras para os agricultores e agricultoras,
em que a infraestrutura pública não é
capaz de apoiar efetivamente a pequena
produção. Como reverter décadas de assistência técnica viciada, mal preparada,
acostumada a ver na agricultura familiar
um setor atrasado, avesso à modernização (na verdade, avesso àquela modernização imposta!)?
pecuária.
1 EMBRAPA - Empresa Brasileira de Pesquisa Agro-
Revista Camponesa: Qual o papel da
agricultura familiar na política agrícola brasileira? E qual são as perspectivas para os próximos anos?
Emma Siliprandi: Nos últimos anos vimos mudanças significativas nas políticas agrícolas no sentido de favorecer a
produção familiar, com os créditos do
PRONAF2, programas de comercialização como o Programa de Aquisição de
Alimentos (PAA), políticas para as mul-
Camponesa - Dezembro de 2010
heres, para os indígenas, pescadores,
quilombolas, assentados. Assistimos às
tentativas de reestruturação da assistência técnica, as políticas territoriais. Mas
ainda há necessidade de muitos investimentos públicos, como por exemplo, em
pesquisa agrícola, que deve ser feita em
conjunto com os agricultores e agricultoras, principais interessados nos seus
resultados e que precisam ser reconhecidos também como geradores de conhecimento, obtidos em suas trajetórias
de vida de anos e anos dedicados à agricultura.
2 PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar.
Revista Camponesa: A chegada de
Dilma Rousseff, como a primeira mulher a assumir a presidência do Brasil,
trará mudanças à vida das mulheres
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brasileiras, especialmente as mulheres rurais? Em quais aspectos?
Emma Siliprandi: Essa é a expectativa geral. Tudo vai depender da capacidade dos movimentos sociais rurais de
mostrar sua presença na cena política
nacional exigindo a continuidade e o
aprofundamento das políticas anteriores. Em agosto de 2011 teremos uma
nova Marcha das Margaridas, organizada pela Comissão Nacional de Mulheres
da CONTAG3 em conjunto com vários
movimentos de mulheres, e a expectativa é de que sejam mobilizadas mais
de 100 mil mulheres. As mulheres da Via
Campesina também estão preparando
grandes manifestações no próximo 8 de
março. Todas essas mobilizações são importantes para mostrar que as mulheres
agricultoras estão presentes na política
brasileira e que têm propostas concre-
tas para melhorar as condições de vida
no campo brasileiro. As mulheres rurais
não estão preocupadas somente com as
suas próprias reivindicações, há muitos
anos têm se preocupado com questões
gerais que dizem respeito a toda a sociedade brasileira, e tudo indica que não
será diferente no Governo Dilma. Em seu
discurso como presidenta eleita ela afirmou que mostrará que uma mulher no
poder pode fazer a diferença. Trata-se de
concretizar agora essas afirmações com
ações políticas efetivas.
3 CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura.
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Camponesa - Dezembro de 2010
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Entrevista: Jean Raboud
O caminho para as famílias rurais
A prática dos valores de solidariedade e justiça
no seio das comunidades é o desafio
J
ean Raboud é um suíço com alma e coração brasileiros. Um homem que
entrelaça raízes bucólicas e cosmopolitas, e semeia cidadania por onde
anda. Ao chegar ao Brasil, no ano de 1974, primeiramente no estado de
São Paulo, Jean passou pela experiência de trabalhar em uma financeira.
Ao chegar ao Rio Grande do Norte, trabalhou com essências e após sete anos
no ramo das essências, passou a acompanhar e desenvolver seu trabalho em
Serra de Mel.
Em 1985, Jean Raboud foi o responsável pela fundação da Associação
de Apoio às Comunidades do Campo do RN - AACC/RN, e por muito tempo
acompanhou as ações institucionais desenvolvidas. Atualmente, morando na
Suíça, Jean concedeu uma entrevista a Revista Camponesa e resgatou um pouco da história vivida em Serra do Mel, o processo de criação da AACC/RN e a
importância do cooperativismo para a agricultura familiar.
Revista Camponesa: Em recente visita
a Serra do Mel, foi nítida a forma como
o senhor é especialmente lembrado
pela dedicação e trabalho desenvolvido por lá, que se iniciou mesmo antes
da fundação da AACC/RN. O que motivou a sua ação em um dos maiores,
e mais antigos projetos de reforma
agrária?
Jean Raboud: Conheci a Serra do Mel
no início dos anos 80, era castigada
pela seca que assolou o Nordeste entre
1979 e 1983. Abandonado desde 1975,
após o desmoronamento do “milagre
econômico” brasileiro (crise do petróleo
de 1973/74), o projeto não tinha mais
condição de ser tocado, no espírito paternalista em que foi lançado nos primeiros anos da década de 70, como sendo
de “colonização rural” (sob a ditadura
militar, a reforma agrária era uma palavra
proibida, “comunista”!).
Numa situação de carestia, sem
produção, os colonos esperavam tudo
do governo, não tinham organização
própria. O sistema de abastecimento de
água potável era em colapso.
A passividade de dentro e de
fora, de um lado, o sofrimento da população (taxa alta de mortandade infantil,
etc.) de outro lado, me empurraram a tomar a decisão de empreender algo. Para
isso, deixei a empresa agroindustrial, em
que trabalhava.
Tentei mostrar para as famílias
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“Tentei mostrar para as famílias da Serra que o início das
soluções passava por elas”
da Serra que o início das soluções passava por elas. Com a ajuda do ex-governador Cortez Pereira, o idealizador do
projeto, eu consegui a adesão do governo estadual a uma reorientação dos
trabalhos sob minha coordenação, se
eu tinha feito o primeiro passo, era também muito consciente de que precisava
de colaboradores e de garantia de continuidade a longo prazo. Assim surgiu a
AACC/RN e um programa de orientação
socioeconômico, com a criação de associações em cada vila: básico era a participação das pessoas da Serra, homens,
mulheres e jovens.
Foi necessário encontrar fundos
no exterior, para viabilizar as primeiras
medidas a serem tomadas pelos colonos e despertar o interesse do governo.
Revista Camponesa: Surgiram quase
na mesma época, a Serra do Mel projeto de reforma agrária e a MAISA – latifúndio para o agronegócio.
Passados mais de 25 anos, a Serra do
Mel cresceu, passou a ser município,
produz e exporta castanha, além de
contar com uma agricultura diversificada. A MAISA faliu, deixando desemprego e degradação ambiental. Como
o senhor avalia estas duas situações?
Jean Raboud: Visitei a MAISA, em 1978.
Era óbvia sua inviabilidade, a não ser um
funcionamento artificial, graças a subvenções e isenções injustas, sem falar
da degradação ambiental. Era impossível a viabilidade econômica de áreas
tão extensas, se tivesse que mobilizar o
pessoal necessário, nas diversas fases de
produção, pagando o salário mínimo e
os encargos.
A produção em unidades familiares tem como evitar esses problemas,
desde que haja uma organização satisfatória entre elas, na produção, no beneficiamento e na comercialização. Daí a
importância de uma assistência técnicosocial competente e duradoura.
Revista Camponesa: A AACC/RN em
2010 completa 25 anos. Ao fundá-la
em setembro de 1985 iniciou o trabalho na Serra do Mel em continuidade
às ações já desenvolvidas pelo senhor.
Ao longo dos anos suas ações foram se
expandindo a outras regiões do estado. Neste sentido, passados 25 anos,
qual o papel da AACC/RN na história
da agricultura familiar no estado do
Rio Grande do Norte?
Jean Raboud: A AACC/RN foi uma alavanca para tornar acessível às famílias
rurais, com quem atua, organização e
conhecimentos. Isto as leva se tornarem
menos dependentes dos atravessadores
Camponesa - Dezembro de 2010
e do mercado tradicional.
Por outro, o desafio permanece
constante no que diz respeito à prática
dos valores de solidariedade e justiça no
seio das comunidades assim fortalecidas
e da própria AACC: a força do exemplo!
Revista Camponesa: Um dos maiores
legados que o senhor deixou para o
RN foi à colaboração na constituição
da COOPERCAJU, na Serra do Mel, que
hoje exporta para Europa e tem um
mercado crescente no Brasil. Qual o
poder do cooperativismo para a agricultura familiar?
Jean Raboud: O cooperativismo (ou
outra forma de associativismo, dependendo das circunstâncias) é a fórmula adequada, para que os pequenos
produtores possam ter uma influência à
altura de seu papel fundamental na alimentação do povo brasileiro. Se não for
submetida a interesses políticos ou de
grupos, no seio dela, a cooperativa tem
como ganhar força no mercado nacional e internacional, e desenvolver suas
competências. O problema da gestão
permanecerá, por bastante tempo, um
de seus principais desafios.
Revista Camponesa: Desenvolvimento sustentável é um dos temas mais
falados do momento no mundo todo,
por diversos setores. Até que ponto é
modismo e até que ponto está sendo
www.aaccrn.org.br
“A AACC/RN foi uma
alavanca para tornar acessível às famílias rurais, com
quem atua, organização e
conhecimentos”
desenvolvidas ações práticas que
realmente se estruturam no tripé economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente sustentável?
Jean Raboud: Se foi modismo, não podia assim permanecer por muito tempo.
Hoje é o caminho obrigatório da nossa
sobrevivência. O convencimento me
parece bastante generalizado, mas não
a vontade política de aceitar, com a firmeza que a situação requer, as consequências imediatas das mudanças exigidas.
Revista Camponesa: O senhor recebeu
o título de Cidadão Natalense pouco
antes de retornar à Suíça por suas
ações desenvolvidas ao longo dos
anos em que esteve no Brasil. Qual o
significado desse reconhecimento? O
senhor percebe avanços no Brasil e na
agricultura desde a sua chegada?
Jean Raboud: Os progressos são inegáveis. Na exigência de mais rapidez nas
reformas, pessoas esquecem o enorme
atraso acumulado no passado, o legado
colonial ainda presente no funciona-
mento de certas instituições, apesar
do quadro formal democrático (o Congresso Nacional!). A formação cívica nas
escolas deveria provocar um amadurecimento do povo na sua maneira de exercer o voto.
Na agricultura, houve muitos tropeços na evolução da pequena
produção, para chegar hoje a um nível
melhor, e com um trend positivo na sua
evolução.
A agricultura industrial me parece mais consciente de suas obrigações
de justiça como empregador e de respeito ao meio ambiente como produtor.
O estado tem que se mostrar
mais enérgico na coibição de muitas
práticas ainda contrárias a essas exigências.
Revista Camponesa: Quais os maiores
desafios para a agricultura familiar, na
construção de uma sociedade sustentável?
Jean Raboud: Melhorar permanentemente sua organização associativista,
sair do exemplo dos esquemas políticos
em que evolui, praticar uma verdadeira
solidariedade entre seus integrantes,
buscar a interação com os outros grupos de produção e comércio, procurar
aumentar e manter atualizados seus
conhecimentos profissionais, em relação
com a evolução dos mercados.
9
Camponesa - Dezembro de 2010
www.aaccrn.org.br
Entrevista: Anja Czymmeck
Formação política é a promoção
da democracia
T
Anja Czymmeck fala a respeito do fortalecimento da sociedade civil
e da participação política como pontos importantes para
o desenvolvimento sustentável
rabalhar em prol dos direitos humanos, da democracia representativa, do Estado de Direito,
da economia social de mercado, da justiça social e do desenvolvimento sustentável; com
esse objetivo a Fundação alemã Konrad Adenauer Stiftung - Kas, tem atuado no plano internacional mundial.
No Brasil, a Fundação Kas realiza seu programa de cooperação por meio de um Centro de
Estudos no Rio de Janeiro e de um escritório em Fortaleza, sempre em conjunto com parceiros locais. A Revista Camponesa conversou com a representante da Fundação para as Regiões Nordeste
e Norte do Brasil, Anja Czymmeck. Mestra em inglês, italiano e geografia, Anja trabalhou como
assessora política na Alemanha e no Parlamento Europeu, em Bruxelas. No ano de 1998, iniciou
seu trabalho na Fundação Kas como colaboradora científica no departamento da cooperação europeia e international. Entre 2001 e 2003 trabalhou como representante da Kas na Venezuela.
Desde 2007, Anja acompanha o trabalho nas Regiões Norte e Nordeste e relata um pouco as ações desenvolvidas e fortalecidas pela Fundação junto as suas parcerias, destacando ainda
vários outros assuntos de importância nacional e internacional.
Revista Camponesa: A Fundação Konrad Adenauer, desenvolve ações no
Brasil há mais de 40 anos e seu programa está orientado no desenvolvimento sustentável. Como o processo
de formação política para o desenvolvimento sustentável vem sendo
desenvolvido pela KAS?
Anja Czymmeck: O engajamento no
âmbito do trabalho de formação política
e de promoção de democracia, com ênfase especial no fortalecimento da sociedade civil e da participação política, sobretudo dos setores menos favorecidos,
é um objetivo do escritório regional da
Fundação Konrad Adenauer, em Fortaleza. Ao longo dos anos a Fundação Konrad
Adenauer desenvolveu processos de formação política com diferentes parceiros,
tanto na promoção de debates sobre
temas relacionados à sustentabilidade
do desenvolvimento, como também em
cursos destinados às lideranças políticas
e comunitárias, jovens, mulheres e ultimamente também oferecemos cursos
para a formação de vereadores e gestores. Procuramos incentivar e fortalecer
a cidadania de forma que as pessoas sejam informadas e possam participar ativamente dentro das estruturas do sistema democrático do Brasil, e que possam
10
assumir uma função de controle social,
ao mesmo tempo em que se fortalece
a cooperação entre sociedade civil, entidades governamentais e gestores municipais.
Revista Camponesa: A convivência
com o semiárido é uma ação de enfrentamento ao “combate à seca”
muito difundida por uma política
assistencialista desenvolvida por
muitos anos no Nordeste. Qual a importância de uma formação política
para a convivência com o semiárido?
Anja Czymmeck: Nos vinte anos de existência do escritório regional em Fortaleza, essa importância pode ser mais
bem auferida por meio das atividades
e do trabalho de formação política da
Fundação e de seus parceiros. Destaco
aqui a parceria institucional com a As-
“Procuramos incentivar e fortalecer a cidadania de forma
que as pessoas sejam informadas e possam participar
ativamente dentro das estruturas do sistema democrático
do Brasil”
sociação de Apoio às Comunidades do
Campo do RN (AACC/RN), no Estado do
Rio Grande do Norte, iniciada em 1991.
A contribuição da AACC/RN tem priorizado programas de apoio aos movimentos sociais e ao fortalecimento de redes
das comunidades desfavorecidas no
âmbito rural. O tema da água tem sido
recorrente, em virtude de seu significado
existencial para a sobrevivência no semiárido nordestino. O apoio da Fundação à
rede brasileira Articulação no Semiárido
Brasileiro (ASA), por meio de ações de
capacitação voltadas para a organização
de um processo democrático de formação de vontade política nos municípios
e comunidades em que são construídas
as cisternas, reforça a importância para
a convivência no semiárido, a partir da
atenção ao tema da cidadania ativa e
da participação cidadã no processo de
gestão das políticas públicas.
Revista Camponesa: Quais os desafios
para o desenvolvimento de uma política ambiental pautada na construção
de uma sociedade sustentável?
Anja Czymmeck: O maior desafio certamente é colocar a legislação ambiental
em prática, sendo esta uma das legislações mais avançadas em nível mundial.
Camponesa - Dezembro de 2010
“Infelizmente vemos ainda
muitos crimes ambientais no
dia a dia, que não são punidos e falta um policiamento
mais rigoroso, mas também
precisa maiores investimentos na educação ambiental e
conscientização”
Nesse processo é importante também a
formação política, informando sobre as
leis existentes e capacitando as pessoas
para que elas possam reivindicar os seus
direitos em relação aos recursos naturais. A Fundação Konrad Adenauer também tem promovido cursos de gestão
ambiental, aprofundando este debate
e formando gestores, que possam colocar esta legislação em prática nos seus
municípios ou mesmo no estado. Infelizmente vemos ainda muitos crimes
ambientais no dia a dia, que não são
punidos e falta um policiamento mais
rigoroso, mas também precisa maiores
investimentos na educação ambiental e
conscientização, que é tarefa da escola e
dos governos.
Revista Camponesa: O termo desenvolvimento sustentável tem sido muito
utilizado em diversos contextos, como
fazer para que essa necessidade eminente da sociedade não se banalize?
Anja Czymmeck: Na verdade o conceito
da sustentabilidade já é bastante usado
de uma forma, que justifica modelos de
um desenvolvimento, que não pode ser
sustentável em médio e longo prazo.
Dessa maneira, precisa-se de um debate
mais aprofundado sobre as tendências
desse desenvolvimento, que ameaça às
futuras gerações especialmente pelas
mudanças climáticas, a previsível falta
de água e de outros recursos necessários. Houve avanços durante os últimos
anos, quando o termo desenvolvimento
sustentável foi lançado como meta para
o novo milênio, mas faltaram metas e indicadores mais concretos, que se tentam
hoje definir nas Conferências sobre as
Mudanças Climáticas e outras conferências internacionais sobre temas específicos, a exemplo da biodiversidade.
Revista Camponesa: Como a senhora
observa a nova conjuntura política
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para as questões ambientais no Brasil?
Anja Czymmeck: Os votos na candidata
à Presidência Marina Silva deram um sinal “verde” para os demais candidatos,
que se forçaram a colocar o tema no segundo turno das eleições. Certamente
nenhum governo pode hoje em dia passar por cima das questões ambientais.
O Brasil ainda teria tempo para dar um
sinal ao mundo, tomando com mais seriedade, a preservação dos seus recursos naturais – especialmente também
da Amazônia – e freando o avanço da
fronteira agrícola para preservar ecossistemas como a Caatinga e o Cerrado.
Estes ecossistemas podem gerar maiores
riquezas com um manejo sustentável,
mas infelizmente os interesses em curto
prazo ainda prevalecem em muitos casos. Por isso, a conjuntura política pode
ser favorável, mas precisamos ver agora,
como esta será colocada em prática pelo
novo governo.
Revista Camponesa: A AACC/RN em
2010 completa 25 anos, destes, mais
da metade contou com a sólida parceria da Fundação Konrad Adenauer.
Qual o reflexo dessa longa parceria na
construção das ações afirmativas de
formação política para o Nordeste do
Brasil e mais especificamente para o
Rio Grande do Norte?
Anja Czymmeck: Acreditamos que a
parceria deu muitos frutos ao longo dos
anos, inclusive com a formação política dos próprios técnicos da AACC/RN,
dos quais alguns estão hoje inseridos
no Governo Federal. No Rio Grande do
Norte surgiram algumas organizações
não governamentais nos territórios, incentivadas pelas atividades da AACC/
RN junto à Fundação Konrad Adenauer,
que hoje formam a Rede Pardal e conseguiram apoio pela União Europeia.
Outro resultado foi a formação da Rede
Xique Xique, que trabalha a comercial-
“Houve amplo processo de
formação política de mulheres e jovens nas comunidades, que hoje estão contribuindo de diferentes formas
na construção do sistema
democrático”
“Existe também uma grande
demanda por produtos
saudáveis, sem agrotóxicos,
o que é uma grande oportunidade para a agricultura
familiar”
ização no Estado. Houve amplo processo
de formação política de mulheres e jovens nas comunidades, que hoje estão
contribuindo de diferentes formas na
construção do sistema democrático e
na melhoria de vida nas comunidades
rurais. Foi um longo processo de aprendizagem também para a Fundação
Konrad Adenauer, que ampliou muitas
dessas experiências para outros estados
junto aos seus diferentes parceiros. Foi
uma parceria frutífera pela qual estamos
muito agradecidos.
Revista Camponesa: A produção de
alimentos consiste num dos pontos
de maior debate na pauta ambiental.
Neste contexto, a agricultura familiar
se processa com maior eficiência energética, menor demanda de insumos
externos e maior empregabilidade.
Como a senhora avalia a importância
socioeconômica e ambiental da agricultura familiar para a construção de
um modelo de desenvolvimento sustentável?
Anja Czymmeck: Segundo os dados do
IBGE, a agricultura familiar tem uma participação de cerca de 80% na produção
dos alimentos básicos, portanto tem
uma grande importância econômica e
social. Existe também uma grande demanda por produtos saudáveis, sem
agrotóxicos, o que é uma grande oportunidade para a agricultura familiar, já
que os agricultores estão se conscientizando cada vez mais sobre as vantagens
de produzir de forma orgânica, também
para melhorar a saúde das suas famílias.
A importância da agricultura familiar foi
reconhecida pela Fundação Konrad Adenauer e incentivou o Projeto Agricultura
Familiar, Agroecologia e Mercado, realizado com apoio da União Europeia durante cinco anos de 2006 a 2010. Nesse
âmbito procuramos corresponder aos
Objetivos do Milênio e incentivamos a
transição agroecológica e a organização
dos(das) agricultores(as) para acessar
melhor os mercados.
11
Camponesa - Dezembro de 2010
www.aaccrn.org.br
Entrevista: Terezinha Maria de Oliveira
Relação solidária é o que garante
sustentabilidade
U
O que mantém a cooperativa viva é a certeza que são as forças
somadas que dá o resultado
ma história sustentável do cooperativismo no Rio Grande
do Norte, e mais do que isso, uma base da agricultura familiar que se mantém como símbolo da autonomia dos
agricultores e agricultoras que constituem o município de
Serra do Mel.
A expansão de um trabalho realizado pela Coopercaju há
quase 20 anos, reforça a importância das parcerias e o crescimento
de um mercado interno, que segundo Terezinha Maria de Oliveira,
Engenheira Agrônoma, presidente da Coopercaju, só tem se ampliado. Em entrevista concedida à Revista Camponesa, Terezinha
fala sobre cooperativismo, comércio solidário, gestão, a importância
da participação nas redes e os riscos ambientais atuais para os(as)
agricultores(as) familiares.
Revista Camponesa: Como foi sua
chegada a Serra do Mel?
Terezinha Maria: Cheguei em 1983,
e vim como parte do Movimento dos
Agrônomos Desempregados, nós éramos 36. Concluímos a universidade e
era um período terrível, muito difícil e
não tinha trabalho na região. Os poucos
que conseguiam trabalhar tinham que ir
embora para região Norte, tinham que
ir para Amazônia aí começamos a nos
reunir em Mossoró e constituímos um
movimento, que era o Movimento dos
Agrônomos Desempregados.
Nós nos reuníamos toda semana
para buscar alternativas de trabalho na
nossa região, por meio de mobilização,
audiência com governador, para dizer
que queríamos trabalhar, não queríamos
ir para a região Norte, queríamos trabalhar aqui no Nordeste. Determinado dia
o governador disse de brincadeira “ah o
que eu tenho a oferecer para vocês é um
lote na Serra do Mel”, achava que a gente
não ia levar a sério, não ia querer, aí na
hora a comissão que tinha ido falar com
ele disse “queremos”.
Nós topamos, eles achavam
que era brincadeira, nós começamos
a juntar e organizar um ônibus para vir
para Serra e conhecer, e nos animamos.
Para falar a verdade, tinham três vilas
12
“Tem poucas mulheres associadas, agora tem esse
lado bom, muitas mulheres é
que fazem o negócio porque
participam”
que estavam desocupadas, que ainda
não tinham sido colonizadas, tinha um
documento com um levantamento de
solos feito pela ESAM e Universidade de
Minas Gerais e a gente viu que das três,
a do melhor solo era a Vila Amazonas e
por felicidade e coincidência, era a mais
próxima da praia também. Assumimos
essa experiência, foi muito interessante
e foi dessa forma que eu vim parar na
Serra do Mel, por meio do Movimento
dos Agrônomos Desempregados. Alguns de nós ficamos aqui, e ao invés
de irmos dar assistência técnica, nós fomos cultivar a terra, e todos nós nos envolvemos em atividades aqui. A maioria
de nós foi para a educação e ainda hoje
boa parte de nós trabalhamos na educação, porque tinha um vazio de professores e fomos nos fixando, então foi assim
que eu vim parar na Serra do Mel.
1 Esam - Escola Superior de Agronomia de Mossoró.
Revista Camponesa: Como foi o surgimento da Coopercaju?
Terezinha Maria: Antes de a Coopercaju
surgir, se passaram muitas histórias, assim, quando nós chegamos aqui não
tinha associação nas comunidades; aí, é
onde está a ligação da Serra com a AACC/
RN. Na época, o fundador da AACC, Senhor Jean Raboud, tinha um trabalho aqui
na Serra, um trabalho de animação das
comunidades e as primeiras associações
que nasceram na Serra do Mel, foram
frutos desse trabalho. Primeiro vieram
as associações, foi quando as comunidades perceberam a importância de ter
uma associação para organizar a vida da
comunidade; a Coopercaju nasceu um
pouquinho depois. O trabalho de Jean
aqui é bem antigo, quando cheguei na
Serra em 83, ele já estava aqui, e a Cooperativa veio nascer em 1991. Então, com
essa experiência das associações que organizavam os trabalhos comunitários, a
Coopercaju nasceu de uma forma bem
interessante; primeiro os produtores daqui vendiam a castanha in natura por um
preço bem barato para indústria, a gente
era meio que escravo das grandes indústrias, porque elas compravam do preço
que queriam do jeito que queriam, e a
gente não tinha resultado. Nós trabalhávamos, a terra era nossa, o produto era
nosso, mas quem dava o preço eram elas.
No 1º momento nós fizemos um movi-
Camponesa - Dezembro de 2010
“Uma coisa que para nós é
muito caro, no sentido de
precioso, é a nossa participação nas redes”
mento para tentar subir o preço, foi o
primeiro movimento que a gente fez
com castanha, ainda ninguém falava
nem em Coopercaju. Porque nós seguramos quase um mês, sem vender a castanha para o atravessador, e dessa forma
vimos que era possível, já que o preço
subiu a gente foi se animando. No ano
seguinte, elas se juntaram e colocaram
um comprador de castanha in natura
em cada comunidade, aí perdemos a
força do movimento, a gente se deu
bem em um ano, no outro eles acharam
uma estratégia para voltar ao que era
antes. Então ficava triste porque perdia
o dinheiro, vendia muito barato e os empresários desrespeitavam muito a gente,
porque diziam que éramos os apanhadores de castanha deles.
Começou essa vontade, e
pensar, como é que a gente vai fazer?
Começamos a experimentar o beneficiamento da castanha em casa, no começo
parecia uma coisa de doido, porque só
se beneficiava em grande indústria com
toda a estrutura, esse processo se iniciou
com o apoio de dois técnicos, que trabalhavam a serviço da AACC/RN, mesmo
sendo um da EMATER e outro da AACC/
RN mesmo. Então, a AACC/RN começou
oferecendo assistência técnica para esses produtores que experimentaram e
foram desenvolvendo esse sistema de
beneficiamento artesanal. Se você pega
os registros de todos os livros, o começo
de tudo foi a assistência técnica iniciada pela AACC/RN. Depois com vários
projetos, a AACC/RN ajudou a montar
unidades experimentais de beneficiamento, com apoios que vieram da Suíça,
e as primeiras unidades foram montadas
pela instituição.
Até aí, não se falava em Coopercaju (88, 89), as pessoas estavam experimentando e conseguindo ter uma
amêndoa de excelente qualidade. Com
essa qualidade, é que Jean faz uma viagem a Suíça e leva uma amostra, nesse
momento, a castanha que era produzida
aqui na Serra não conseguia mais vender
nas praias daqui; as primeiras pessoas
iam vender na praia, como a quantidade
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foi aumentando, já não conseguiam
vender tudo na praia. Jean levou essa
amostra para a Suíça e o pessoal viu que
a qualidade era boa, ele não levou para
qualquer lugar, ele levou para uma organização que praticava e pratica Comércio Justo na Europa, essa foi a diferença
para a gente. Na época que ele levou, a
cooperativa acabava de nascer, ele levou
em 1992 e a cooperativa foi fundada em
1991, de 1988 até 1991, foi o período de
tentar tecnologias, jeito de fazer, para
consolidar, em 25 de julho de 1991 se
criou a cooperativa, que nasceu literalmente na sombra de uma cajueiro, que
até hoje está de pé para contar a história.
Com a criação da Coopercaju em 1991,
Jean foi para Suíça em 1992, e em 93 foi
a 1ª exportação de 3.500Kg de castanha
de boa qualidade e essa história, vem
dando continuidade e aumentando até
hoje. Em 2006 mandamos 60 mil Kg para
o mesmo cliente, que mudou de nome,
mas é o mesmo grupo, na época chamava-se OF3 – Organização Social para
o 3º Mundo e hoje é a Claro Fair Trade,
uma organização da Suíça, que funciona
como distribuidora.
Ainda hoje, a gente chama o
Senhor Jean, mesmo que ele não seja
mais da direção da AACC/RN, ele ainda
é aquela figura que começou tudo, e é
meio embaixador da Serra do Mel na
Suíça.
Revista Camponesa: Quanto sócios e
“Isso aqui corre o risco
de se transformar numa
fazenda de vento, em vez de
ser uma área de produção de
alimentos”
sócias a Coopercaju tem hoje, e como
ela se organiza em sua gestão?
Terezinha Maria: Ela nasceu com 30 sócios, 29 homens e uma mulher, isso em
1991. E hoje nós temos um quadro social com 176 sócios, mas ele vai ser enxugado e depois ampliado, porque nesse
meio, recentemente tem algumas pessoas que faleceram, e tem várias pessoas
que saíram da atividade. Então, hoje trabalhando com a cooperativa nós temos
106 associados, só que desses 106, tem
várias famílias, que tem o pai e mais dois
filhos que já constituíram a família deles
e já tem a própria unidade, e que a castanha entra como se fosse do pai.
Então desses 176 vai reduzir, só
que tem outros para entrar, então talvez
até aumente. Continua com um maior
número de homens, agora vem mais
mulheres para reunião, do que o número
de associadas porque muitos homens
ficam em casa e as mulheres vêm para
reunião. Mas assim, hoje nós temos 19
associadas mulheres.
Inicialmente o costume era assim, associava o homem, e a mulher só
ia ser sócia quando o homem morria,
13
Camponesa - Dezembro de 2010
mulher com marido sendo sócia, só tem
eu e a primeira sócia fundadora também
tinha marido. Porque as outras ou ficaram viúvas ou eram as próprias chefes
de família, então tem poucas mulheres
associadas, agora tem esse lado bom,
muitas mulheres é que fazem o negócio
porque participam.
A cada quatro anos temos
eleição, o último presidente tirou 12
anos de mandato, porque era um vice
que assumiu um mandato, e ainda foi
eleito duas vezes. Agora sou a primeira
mulher presidente da cooperativa, com
uma eleição onde 87 sócios votaram
em mim. O trabalho que a gente faz é
esse, a gente vem lutando para construir
uma gestão democrática, nos últimos
4 anos a gente já trabalhou muito isso,
com o exercício das pessoas decidirem,
diminuindo aquele hábito de “presidencialismo”, presidente decide, presidente
fala. A gente tem trabalhado no sentido
de ter uma gestão participativa.
Revista Camponesa: Hoje qual o mercado da Coopercaju, com quem a cooperativa se relaciona?
Terezinha Maria: Nós trabalhamos na
Europa com a Suíça, com essa distribuidora que está desde o começo, que
só mudou de nome, que é a Claro Fair
Trade. Ela não é só uma compradora, é
uma parceira que nós temos a tempo,
são 17 anos de história e ela compra da
Coopercaju, ficando uma parte nas lojas
dela de Comércio Justo na Europa, e outra parte é repassada para Áustria e para
Itália CTM.
Há 3 anos nós conquistamos
outra parceria de comércio justo, que é a
Cooperativa Chico Mendes na Itália, que
nasceu inspirada no trabalho de Chico
Mendes, é uma cooperativa Italiana, que
faz o trabalho de vender os produtos
do Brasil, principalmente da Amazônia,
dos seringueiros do Acre e da Bolívia, e
a filha de Chico Mendes e uma das sócias. A Coopercaju se integrou à Chico
Mendes, porque conhecemos um dos
diretores da APEBE que é uma cooperativa do Acre que trabalha com castanha
do Brasil, nos conhecemos numa feira no
Rio de Janeiro e quando a Chico Mendes
falou em expandir seus produtos para
a castanha de caju, como produto da
floresta da caatinga eles avisaram que
conheciam a gente e nos encontraram
14
www.aaccrn.org.br
“O consumo de castanha de
caju aumentou muito nos últimos quatro a cinco anos no
mercado nacional e acredito
que se deve ao aumento de
renda das pessoas, hoje os
supermercados e as lojas
estão vendendo muito”
na Internet, e assim hoje nós fazemos
parte, nós vendemos a nossa castanha
na marca Amazônia, mas como uma parceria por sermos uma floresta tropical
que é a caatinga. É uma parceria nova
de três anos, começou comprando pouquinho, mas ano passado já vendemos
uma quantidade razoável que foi 15.000
Kg, e todos os anos eles vem nos visitar.
Revista Camponesa: Além dos países
da Europa, existe um outro mercado?
Terezinha Maria: O mercado interno
a gente busca cada vez mais, porque
precisamos trabalhar o ano todo, e tem
um período que não dá para trabalhar
com exportação, e tem outro tipo de
castanha que ela não vai para exportação, ela fica no mercado interno, então
estamos aumentando. Na safra anterior,
acho que tinha sido só 10% para o mercado interno e na última safra acho que
30% para o mercado interno e a gente
está aumentando, estamos localizando
bons parceiros comerciais aqui no Brasil
porque se não tiver esse cuidado, infelizmente no Brasil hoje tem muita gente
que não honra com os compromissos de
pagar direitinho, então agora nós temos
uma política no mercado interno onde
só vendemos adiantado. Porque nós não
temos capital de giro, então essa é uma
ação necessária.
Revista Camponesa: A castanha quando chega a Europa é comercializada
com a marca Coopercaju?
Terezinha Maria: Não. Ela é comercializada com a marca deles, mas com
o nome, a referência e a história da
Coopercaju.
Revista Camponesa: Mesmo existindo
a Cooperativa, constituída de sócios,
ainda assim a pressão do mercado faz
com que muitas vezes os próprios só-
cios deixem de fazer o negócio com a
cooperativa e faça com os atravessadores?
Terezinha Maria: Acontece, nós temos
uma parte dos sócios (as) que são fiéis,
são os que mantêm a cooperativa funcionando, quando a gente faz um contrato assumem, mas existem aqueles
que num momento especial, como esse
em que o preço da castanha no Brasil
disparou, caem na tentação, mas uma
boa parte, mantém o compromisso com
a cooperativa. O consumo de castanha
de caju aumentou muito nos últimos
quatro a cinco anos no mercado nacional e acredito que se deve ao aumento
de renda das pessoas, hoje os supermercados e as lojas estão vendendo muito,
e acredito que as pessoas devem estar
ganhando mais dinheiro, porque tem
muita gente consumindo.
Revista Camponesa: Mesmo a Coopercaju se relacionando com o mercado
europeu, e tendo essa capacidade de
se articular de forma muito maior,
ela está presente nas articulações de
base, em nível estadual?
Terezinha Maria: Nós não podemos
pensar que exportar e estar nesses espaços garante sustentabilidade. O que
vai garantir a sustentabilidade da Cooperativa são as relações solidárias que se
travam. Se a gente pensar que porque
exportamos estamos ricos, a gente fecha
as portas, temos que ser sempre presentes. A certeza de que somos da agricultura familiar, beneficiamento artesanal
e cultivamos os laços de solidariedade,
sabendo que precisamos dos outros,
nenhum de nós consegue fazer negócio
sozinho, nós precisamos uns dos outros
para fecharmos um contêiner. O que
mantém a cooperativa viva é a certeza
que são as forças somadas que dá o resultado, e uma coisa a gente tem procurado muito, é assim manter parcerias
com outros, ensinar o que a gente aprendeu.
Hoje nós temos o maior orgulho
de dizer que na Bahia tem uma cooperativa que aprendeu tudo com a gente, a
maior felicidade de dizer e de mostrar a
castanha Mãos Crioulas lá de Ingazeira
(PE). Assim, aqui no RN, quando precisa
também estamos sempre à disposição,
até na África, em Guiné Bissau, já foi gente
nossa ensinar o nosso jeito de beneficiar.
Camponesa - Dezembro de 2010
Temos esse compromisso porque temos
a certeza de que somos da agricultura
familiar, camponeses mesmo, e não adianta a gente achar que é rico porque um
dia a gente está bem, no outro vem uma
seca, como veio agora, e a gente fica segurando, você não imagina o sacrifício e
a fragilidade que temos para mantermos
as portas abertas, num período desses.
Uma coisa que para nós é muito caro, no
sentido de precioso, é a nossa participação nas redes, nós fazemos parte aqui no
estado da Rede Xique Xique, sediamos
um Núcleo da Rede Xique Xique, em
Serra do Mel. O fortalecimento dos grupos de mulheres para nós é fundamental
porque faz a diferença, então fazer parte
da Rede Xique Xique é fundamental. Nós
fazemos parte de outra rede nacional,
que é a Rede Ecojus que é das organizações do comércio justo aqui no Brasil,
desde 2004 quando nasceu essa história,
e estamos embarcando em uma nova
que é uma Associação Internacional de
Agricultores Orgânicos da Agricultura
Familiar.
www.aaccrn.org.br
pessoas estão desmatando para plantar
cajueiro, em área que não era para desmatar, e agora tem uma preocupação
nova, que é boa para o Brasil, é legal e
bacana, que é a geração de energia eólica. É tida como maravilhosa, agora para
nós e para a agricultura familiar na Serra
do Mel é complicado, porque o que tem
de empresas internacionais fazendo arrendamento de terra de comunidades
inteiras para implantar parque eólico
não é brincadeira, e parque eólico costuma ser feito em áreas de dunas, em área
não agrícola.
Na comunidade onde tenho
minha terra, acho que fui eu e mais uns
5 que não aceitaram assinar um documento de arrendamento por 30 anos
para uma empresa francesa, a maioria
assinou, empresas internacionais contratam advogados, eles vêem fazem uma
conversa com os agricultores e prometem royalties de 1.500 a 3.000 reais
por mês. Os agricultores estão caindo
na conversa, e isso tem me preocupado
muito porque isso aqui corre o risco de
se transformar numa fazenda de vento
em vez de ser uma área de produção de
alimentos. Isso é preocupante, tenho até
medo de ter resistido a isso porque na
minha comunidade acho que só ficaram
umas 10 pessoas dos 59 proprietários,
sem assinar esse documento e sabemos
que vai vir muita pressão porque são
empresas poderosas, nacionais e internacionais que estão loteando a Serra
Revista Camponesa: Tem se falado
muito e está sempre na mídia, todo
dia com informações diferentes com
relação às alterações climáticas e as
mudanças no nosso ambiente, na
nossa caatinga. O que essas mudanças podem representar para a Serra
do Mel ou mesmo para a produção de
castanha, e para a vida das pessoas
que vivem da agricultura aqui na nossa região?
Terezinha Maria: Essa é uma preocupação muito grande nossa porque esse é
um ambiente muito frágil, a nossa caatinga é muito frágil. Então tem as mudanças climáticas que nos preocupam, antes
a gente sabia se o ano ia ser normal de
inverno, então já sabíamos os meses;
hoje não sabemos mais isso, porque hoje
chove em períodos diferentes. Hoje eu já
vejo uma mudança climática muito forte.
Aliado a essa mudança climática que
está acontecendo, a preservação dos recursos naturais hoje é uma coisa muito
importante, aqui tem uma área próxima
às dunas, essa é uma região única no
mundo onde a caatinga encosta no mar,
e se os agricultores desmatarem uma
faixa de terra vizinha ao mar, as dunas se
deslocam em direção a área agricultável
das nossas terras. Outra coisa é que as
15
Camponesa - Dezembro de 2010
novamente com essa história de energia
eólica, onde instala aqueles aerogeradores, ali não dá para produzir alimento,
quando as pessoas “caírem em si” vai ser
muito tarde, porque tem pessoas que
permitiram instalar aero geradores de
teste.
Revista Camponesa: Qual é o diferencial da castanha beneficiada artesanalmente da Coopercaju?
Terezinha Maria: A castanha beneficiada artesanalmente, que nasceu da
Coopercaju e hoje está se espalhando,
a gente tem muita vontade que venha
a ser a castanha beneficiada pela agricultura familiar inicialmente na Serra do
Mel, e se espalhe no RN e Nordeste, te-
16
www.aaccrn.org.br
mos muita vontade que essa qualidade
não seja uma qualidade só da Coopercaju, hoje é uma “qualidade Serra do
Mel”. O grande diferencial da castanha
comercializada pela agricultura familiar é que há tratamento uma por uma,
ela é beneficiada em todas as etapas,
manualmente e cuidadosamente, e isso
gera o quê? Uma qualidade superior,
primeiramente, um maior percentual
de castanhas inteiras, branquinhas, com
qualidade, sem rasuras, quebra menos e
como não passa por um corte mecânico,
com todo aquele tratamento mecânico
que passa na grande indústria, ela tem
um sabor diferente, todo mundo acha
que é uma castanha especial pela forma
como ela é feita.
E outro fator especial é que ao
ser beneficiamento manual significa
mão de obra familiar e conseqüentemente geração de renda. Já a beneficiada na indústria, quando ela vem empregar uma quantidade pequena de
mulheres pagando um salário baixo que
é o salário mínimo. A qualidade especial garante um preço superior, hoje nós
temos o melhor preço de castanha do
mundo, hoje ninguém vende com um
preço melhor que o nosso. Então se você
visita a Serra e visita outros municípios
do RN, você vê a diferença na qualidade
de vida das pessoas, não só com relação
aos bens, as casas são melhores, mas
também ao esforço que os pais fazem
para os filhos estudarem.
Camponesa - Dezembro de 2010
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Entrevista: Fernando Bastos
O grande desafio das ações para
o rural é a democratização
F
O acesso às políticas públicas, para que o agricultor possa inovar
suas práticas na unidade familiar é uma grande questão
ernando Bastos é formado em Economia pela Universidade Federal de Alagoas,
tem mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal de Alagoas e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (2005), com área de concentração em desenvolvimento
regional. Atualmente é professor adjunto do Departamento Interdisciplinar de Políticas Públicas; do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGSC) e do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA), ambos
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Fernando ainda é membro da Base
de estudo Estado e Políticas Públicas e tem experiência nas áreas rural e em turismo,
atuando principalmente nos temas: desenvolvimento sustentável, políticas públicas
para o meio rural, desenvolvimento regional e desenvolvimento rural sustentável. O
livro Ambiente institucional no financiamento da agricultura familiar, foi lançado em
2006, pela Editora Polis; e em 2008, foi um dos organizadores do livro Financiamento
Rural: dos Objetivos às Escolhas Efetivas, lançado pela Editora Sulina.
Em entrevista à Revista Camponesa, Fernando Bastos aborda a relação dos
movimentos sociais com a agricultura familiar, a relevância das políticas públicas para
o meio rural e a influência das mudanças climáticas na agricultura.
Revista Camponesa: Qual o peso da
mobilização social na construção da
reforma agrária e fortalecimento da
agricultura familiar?
Fernando Bastos: Creio ser público que
o jogo de forças que orienta as agendas
no Brasil não permite mudanças mais
significativas nas condições de desigualdade que imperam no campo e fora dele.
O que tem sido feito é fruto da mobilização social e particularmente na reforma
agrária, onde as atitudes do poder público são mais um reflexo dessas ações
por parte dos movimentos sociais. O
fortalecimento da agricultura familiar
tem sido também uma consequência da
ação desses movimentos e de entidades
representativas dos agricultores familiares, desde a pressão para concepção
do PRONAF – seu aperfeiçoamento burocrático e novas modalidades, o que
tem proporcionado certo rearranjo institucional e facilitado o acesso a crédito
para muitas famílias, mesmo que ainda
limitadas por suas condições estruturais.
Idem para o PAA, que apesar de representar ainda muito pouco esforço de
inversão pública, tem sido considerado
pelos beneficiários e mediadores fun-
damental para seus beneficiados. Este
programa vem sendo objeto de mobilização por parte dos agricultores familiares para que se transforme em política
de Estado e não se constitua apenas de
um programa de governo, submetido
às injunções de toda ordem quando da
aplicação de recursos.
Revista Camponesa: O que caracteriza a agricultura familiar no Brasil
hoje? Por que historicamente diferentes terminologias foram empregadas para referir-se a agricultura de
base familiar?
Fernando Bastos: O que chamamos
hoje de agricultura familiar é uma expressão mais genérica para um sujeito
“A agricultura familiar é a
forma mais significativa
de expressão dos trabalhadores no campo, principalmente por sua incorporação
no ‘discurso’ do estado para
dar significado às suas
intervenções”
político que outrora teve várias denominações, às vezes apropriando-se de outra
denominação, tal qual a de campesinato,
e outras vezes assumindo a própria expressão de sua luta, como são os barrageiros, os agricultores de vazantes, os
seringueiros, etc. Em algum momento a
própria academia se apropria dessas expressões como uma categoria de análise
nas suas investigações. Nesse sentido, o
campesinato, pela sua história no contexto da Europa, principalmente, é sem
dúvida a mais representativa. No Brasil,
atualmente, a agricultura familiar é a
forma mais significativa de expressão
dos trabalhadores no campo, principalmente por sua incorporação no ‘discurso’
do estado para dar significado às suas
intervenções.
Revista Camponesa: O IBGE tem apresentado a agricultura familiar como
responsável por cerca de 75% da
produção dos alimentos que compõe
a cesta básica brasileira. As políticas
públicas para o meio rural desenvolvidas nos últimos anos foram significativas para esse novo cenário?
Fernando Bastos: Claro que as políticas
17
Camponesa - Dezembro de 2010
“Temos um grupo maior
de agricultores familiares,
localizados em sua maioria
no Nordeste, que detêm um
controle precário ou nenhum
sobre os meios de produção,
portanto, com inserção
sempre limitada às políticas
públicas”
públicas foram importantes, mas devemos investigar que grupo de agricultores familiares foi responsável por essa
produção. Isso leva a outra questão para
reflexão: quando estamos falando de agricultores familiares de quem estamos
falando? Isso para que não se conclua
que agora está tudo maravilhoso, hajam
vistas as políticas atuais. Não se deve
olvidar que existe um grupo significativo
de agricultores familiares que controla
adequadamente os meios de produção
e isso os torna “privilegiado” no uso das
políticas de crédito, de comercialização,
etc.
O problema é que temos um
grupo maior de agricultores familiares,
localizados em sua maioria no Nordeste,
que detêm um controle precário ou nenhum sobre os meios de produção, portanto, com inserção sempre limitada às
políticas públicas que induzam sua autonomia. Assim, são os minifundiários, os
que só conseguem cultivar a terra sob
condição, e até mesmo àqueles que sobrevivem plantando a margem das estradas. Situação que se agrava quando
estão submetidos às injunções da natureza.
Claro que os dados do IBGE
demonstram a importância da agricultura familiar, no entanto pode mascarar
essa realidade de exclusão se não for
convenientemente analisado.
Revista Camponesa: Quais os desafios
atuais das políticas públicas para o
meio rural?
Fernando Bastos: No meu entender o
grande desafio das ações para o rural é
democratizar o acesso a essas políticas
públicas, para que o agricultor possa inovar suas práticas dentro e fora da unidade familiar. Para isso, o acesso a terra,
em condições apropriadas, surge como
18
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uma condição sine qua non1, sem dispensar naturalmente as ações que facilitem
a compra/beneficiamento da produção
e as relativas à segurança alimentar e
nutricional, que aproximem os produtos
dos consumidores, dentro e fora do rural.
1 Sine qua non - indispensável , sem o qual não pode ser.
Revista Camponesa: A produção de
biocombustíveis vem sendo colocada
como caminho para a substituição de
fontes poluentes de energia, e implementada como uma política pública.
Que impactos socio econômicos e ambientais a mudança dessa matriz energética a partir da agricultura familiar
pode gerar?
Fernando Bastos: O mundo passa por
um dilema: com a extrema dificuldade
de promover mudanças significativas
nos hábitos de vida e de consumo, que
impõem irreversíveis limites para o uso
dos recursos naturais, e na indecisão
quanto à adoção de energias limpas para
substituir os de origem fósseis, vem assumindo mais relevância a necessidade de
recorrer à produção de biocombustíveis.
Aí, como sempre estamos frente às escolhas: se por um lado, no nível micro,
isso possa representar uma alternativa
de sobrevivência para muitas famílias,
dependendo da alternativa de cultivo,
por outro, um risco, considerando os
custos de substituição para o agricultor
frente à sua tradicional policultura.
Se a opção da sociedade é para
manter um padrão de vida com base no
uso de veículos individuais, deve pagar
por isso! Dessa forma, a produção de alimentos teria que ser tratada de fato tal
qual uma falha de mercado e o incentivo
à sua produção, com preços compensadores, teria que ser pago naturalmente
pelos usuários desse tipo de transporte,
maiores demandantes de biocombustíveis. Em resumo, a decisão entre
deixar de fazer policultura ou produzir
biocombustíveis não deve ser regulada
somente pelo mercado, penalizando por
consequência os que permaneçam produzindo alimentos.
Revista Camponesa: Como as mudanças climáticas podem afetar a agricultura de base familiar?
Fernando Bastos: Sem dúvida que,
quanto mais pobre seja o agricultor familiar e por consequência dependa do
“Aí está a raiz do problema,
expressado na apropriação
inadequada e oportunista da
expressão sustentabilidade,
no discurso politicamente
correto e muito distante da
trajetória que percorrem seus
locutores”
que plantar diretamente para sobreviver, mais está à mercê dessa redução
de fornecimento dos serviços de ecossistema no seu cotidiano de sobrevida.
Como vêm denunciando os cientistas no
mundo inteiro, a produção de alimentos
tem um vínculo imediato com os demais
serviços de ecossistemas responsáveis
pela estabilização do clima, de cadeias alimentares, do ciclo hidrológico,
produção de solos, controle natural de
crescimento desordenado das várias espécies vivas etc. Os períodos prolongados de secas e as chuvas intensas, precipitadas em curto espaço de tempo,
comprovam esse risco crescente.
Revista Camponesa: Que caminhos
para o desenvolvimento sustentável
o Brasil está tomando? Estamos vivendo experiências práticas, ou ainda estamos no campo do discurso e pouca
ação?
Fernando Bastos: Enquanto um encaminhamento mais geral de ações
públicas e privadas, a sustentabilidade
ainda é uma miragem, por mais que o
sonho de certo equilíbrio mecanicista na
relação sociedade/natureza permaneça
nas mentes das pessoas em geral e de
alguns estudiosos em particular. Nessa
discussão, temos um problema central
que é o tratamento dado à dimensão
político-institucional. Sim, aí está a raiz
do problema, expressado na apropriação inadequada e oportunista da expressão sustentabilidade, no discurso
politicamente correto e muito distante
da trajetória que percorrem seus locutores; na visão imediatista dos diversos
atores, alguns justificáveis, outros não; e
no próprio significado da relevância dessa prática para a maioria de atores que
possam ser mais ou menos relevantes
para influir em decisões dessa ordem.
Camponesa - Dezembro de 2010
www.aaccrn.org.br
Entrevista: Francisco Edilson
Nossa missão é fortalecer
a agricultura
A
Cada liderança sindical precisa falar, mas também precisa fazer
experiência
sindical
e
a
realidade
dos(as)
trabalhadores(as) da agricultura familiar no município
de Apodi, relatada pela ótica de Francisco Edilson Neto,
presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Edilson é agricultor natural da Comunidade Água Fria, mas reside em
Santa Rosa II, em Apodi.
Há 12 anos como presidente do sindicato, Edilson fala
dos trabalhos de organização e participação e ainda as conquistas
para os(as) agricultores(as), o resgate e a importância das sementes também é ressaltado por ele, que diz ter como um sonho a
criação da Rede de Sementes do estado.
Revista Camponesa: O que motivou
o seu envolvimento nos trabalhos de
organização dos agricultores no município de Apodi?
Francisco Edilson: Minha história é
um pouco longa, mais ou menos em
1982 e 1983 morava na Comunidade
de Água Fria e lá aconteciam as frentes
de emergência, e o que o exército fazia
era um absurdo, eles chegavam 12 horas
do dia, mandavam o povo ficar de joelhos, se deitar. E nós percebemos que
era necessário ter alguém que pudesse
se contrapor a aquele modelo, que era
necessário ter alguma “luz” para o campo, porque não tinha mais cabimento
acontecer aquelas coisas absurdas com
gente, porque a gente era gente, mas
estávamos sendo tratados pior do que
animais.
Nesse momento, começamos
a reunir as comunidades e vimos que
era importante lutar por algo, e uma
das maiores necessidades naquele momento era a água, na nossa comunidade
tinha uma caixa d´água que era limitada,
e cada família só podia pegar um galão
d`água por dia, e iniciamos uma luta por
água, para as comunidades principalmente terem água para beber. Procuramos apoio, da Diocese de Mossoró que
implantou pequenos projetos alternativos comunitários e começamos a montar
5 bombas manuais em 5 comunidades,
começou por Água Fria, Lagoa Rasa, Santa Rosa, Sorroroca e Queimada, com isso
resolvemos parte do problema d´água
e as pessoas não precisavam mais ficar
sujeitas só a água do exército que era
distribuída através de carro pipa.
Depois percebemos que havia outro problema, que era a necessidade de semente para plantar, foi nessa
época que constituímos a primeira associação na comunidade de Água Fria
e nesse processo de organização não
tínhamos somente a necessidade de
semente, mas também de terra, pois
éramos 100 associados e somente 35
tinham terra, o restante trabalhava de
“meia”. Vimos que só ter sementes, e se
as pessoas não adquirissem terra, estava
sendo escravo, porque plantava, mas a
“meia”1 era do patrão. E com o apoio da
Comissão Pastoral da Terra - CPT e da
Paróquia de Apodi, iniciamos um trabalho de base nas outras comunidades
e vimos que era necessário que tivéssemos um sindicato pelo menos para
ter um apoio moral. Iniciamos os primeiros encontros, e com o apoio da AACC/
RN e da KAS os primeiros seminários de
formação começaram a acontecer.
“Uma das maiores necessidades naquele momento
era a água, na nossa comunidade tinha uma caixa d´água
que era limitada, e cada família só podia pegar um galão
d`água por dia”
1 Relação que ocorre quando um agricultor trabalha
em terras que pertencem a outra pessoa. Em geral o meeiro (agricultor que trabalha nessa condição) ocupa-se de todo o trabalho, e
reparte com o dono da terra o resultado da produção.
Revista Camponesa: Como se deu a
sua participação à frente do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais de Apodi?
Francisco Edilson: Depois desses processos de mobilização e organização
iniciados, as pessoas foram acreditando
cada vez mais, e percebemos que um
passo importante era o sindicato, ter
um sindicato a serviço da causa. A partir daí participamos de quatro eleições,
e somente na quinta tentativa que conseguimos assumir. Na primeira gestão
como vice, eu assumi o sindicato, após
a morte do presidente. Estou no terceiro mandato com uma sequência de
12 anos à frente do sindicato, e demos
um salto de qualidade, juntamente com
a CPT, com o apoio da AACC/RN, e quero
sempre ressaltar que mesmo sendo um
apoio limite, mas para aquele momento
foi importante, e com outras entidades
que foram se incorporando, nós conseguimos chegar onde a gente está hoje.
Revista Camponesa: Percebe-se que
ao longo dos últimos anos, o sindicato
de Apodi cresceu estruturalmente, em
organização e participação política,
sendo referência para outros municípios. Então como se dá esse trabalho de garantir o crescimento do sindicato sem deixar as discussões políticas
19
Camponesa - Dezembro de 2010
“Meu sonho é a construção
da Rede de Sementes do Rio
Grande do Norte”
que realmente são importantes para a
agricultura familiar de Apodi?
Francisco Edilson: Foi uma luta cheia
de altos e baixos, nós temos o sindicato
do tamanho que temos, mas também
temos problemas e conflitos, e se tem, é
porque entendemos que é nos conflitos
que a gente cresce e aprende muito com
isso. Acho que avançamos na estrutura,
porque percebemos que era importante
ter uma estrutura mínima para que os
trabalhadores pudessem chegar aqui e
se sentir a vontade. E na base era também
interessante que a gente conseguisse
estar lá, acompanhando as associações
e construindo nossas lutas. Quando assumimos, o sindicato tinha 100 pessoas
em dia, hoje nós temos 3000. Mas tem
3000 por quê? Porque o povo entendeu
que o dinheiro do sindicato não é meu
e nem é da diretoria, é da luta. Hoje temos muitas divergências, mas o que a
gente construiu são coisas importantes,
criamos a COOAFAP - Cooperativa da
Agricultura Familiar de Apodi - aqui dentro, iniciamos a Cooperativa de Crédito
sendo a 1ª aqui no estado e iniciamos
muitas outras lutas.
Revista Camponesa: O senhor falou
que está chegando o momento de diminuir as atividades pelo sindicato,
retomar uma vida mais sua, mas mesmo estando no sindicato suas atividades como agricultor nunca foram
deixadas/abandonadas?
Francisco Edilson: Gosto muito de trabalhar com horta, gosto muito de viver no
www.aaccrn.org.br
sítio e de trabalhar, acordo 4 da manhã,
caminho até 4h 30min, depois tiro o leite
de duas vacas, coloco a alimentação delas, vou pra casa e de 8 horas saio para
o sindicato. Quando termino minhas
atividades no sindicato volto para casa,
e estou pensando em reestruturar minha
horta agora reestruturar de uma maneira
diferente, cuidar só dela. Mas também
não vou fugir, não vou deixar, abandonar
tudo, mas vou tentar ir deixando porque
tudo tem seu tempo. O campo hoje é a
saída, eu não tenho dúvida que posso
tirar três salários, sem precisar morrer
de trabalhar e ter uma vida digna no
campo. Agora preciso me organizar, preciso ter um pedacinho de terra, preciso
saber quantos pés de alface vou plantar
por semana, quantos molhos de coentro,
quanto de cebolinha, pimentão, ter um
planejamento e é isso. Agora tem gente
que pensa que o sindicato é só o sindicato e que vai viver disso, você não vive,
principalmente porque o seu tempo passa. Então cada liderança sindical, cada
companheiro que está a frente, é preciso
falar, mas você também precisa fazer. Só
falar não basta, você precisa mostrar que
dá. Só o arroz esse ano, em uma parceria com meu companheiro vamos colher
200 alqueires. Para mim não tenho nem
dúvida hoje, conhecendo meus filhos
que criei todos da agricultura, Edjarles,
que hoje produz hortaliças e João Paulo
e Edinho que vendem, todos se dedicaram mais a essa história de trabalhar mesmo, e esse é o caminho, é a saída. Porque
o que me dói mais é ver filho de agricultor, mendigando em porta de prefeitura
para ganhar um salário mínimo, e além
de virar puxa-saco. Então acho que cada
um de nós tem a sua missão, e a nossa
missão é essa de fortalecer a agricultura
VISITE O SITE DA
FUNDAÇÃO KONRAD ADENAUER:
www.kas.de/brasil
20
“Ou temos isso como meta
nossa, ou morremos politicamente, não podemos viver
na escravidão das sementes
transgênicas”
e o movimento sindical.
Revista Camponesa: Uma ação muito
forte que tem sido desenvolvida em
Apodi é o resgate das sementes crioulas. Por que o despertar para essa
ação e como tem sido?
Francisco Edilson: É um trabalho muito
difícil, para mim é o trabalho mais importante que temos hoje, mesmo sendo
ainda uma ação pequena, porque é nas
sementes que está a nossa origem. Lá
no roçado estamos testando novas sementes, por entender a necessidade de
resgatar essa questão da semente. Meu
sonho é a construção da Rede de Sementes do RN, mas infelizmente é pouca
a disposição de muita gente, hoje nós
encontramos muitas pessoas no campo
mesmo, aqui nas comunidades, que diz:
Edilson a gente vai plantar aquele milho,
mas só dá se for adubado. Então, esse é
um trabalho que vai se concretizar está
se concretizando, mas não é um trabalho
fácil. Só que ou temos isso como meta
nossa, ou morremos politicamente, não
podemos viver na escravidão das sementes transgênicas. Temos um grupo
de 50 pessoas que vem se reunindo,
plantamos em uma área coletiva, com
um planejamento de plantar dez tarefas2
esse ano em cada comunidade.
2 Unidade de medida de área muito utilizada por agricultores, principalmente no NE. Onde 3,6 tarefas correspondem a
1 hectare.
Camponesa - Dezembro de 2010
www.aaccrn.org.br
Agricultura Familiar
e Desenvolvimento
Sustentável
Xxxxxxxxxxxx xxxxxxxx xxxxxxxx xxx xxxxxxx
xxxxxxxxx xxxxxxxxxxxx xxxxxx xxxxxxxx xxxxxx
xxxxxxxxxxxxxxx xxxxx xxxxxxx xxxxxxxxx
Por Bethânia Lima
21
Camponesa - Dezembro de 2010
F
ormação, participação e equilíbrio. Uma tríade mínima para
pensarmos e discutirmos o desenvolvimento sustentável. Parece simples, mas não é; ainda que se
pense nesse tripé, é necessário pensar
que o ser humano está envolvido e vivendo considerando muitos aspectos –
sociais, culturais, ambientais, econômicos e tantos outros.
Não adianta relacionar desenvolvimento ao crescimento econômico,
não basta, é pensar de forma muito reducionista. Para considerar que a sociedade está inserida em um processo de
desenvolvimento há que se considerar a
soma de vários “pilares”, não é somente
Hildemar Peixoto - Assessor Fetraf/RN
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o poder econômico que garante qualidade de vida para as pessoas, independente do meio onde se está inserido.
Desconsiderar também o poder
de atuação e interação de cada pessoa
junto ao meio, ainda é limitante. Se as
pessoas não participam e não se reconhecem enquanto responsáveis pelo
desenvolvimento local, é muito mais
complicado. Não basta somente a vontade para agir, é preciso interagir com as
forças locais.
“Um elemento fundamental
para o desenvolvimento é preparar as
pessoas, torná-las aptas para gerir esse
desenvolvimento nos seus municípios”,
defende Hildemar Peixoto, Engenheiro
de Produção, e assessor da Fetraf/RN. É
preciso pensar na formação e na ação,
para “alimentar” nas pessoas, o poder
de diagnosticar, questionar, conceber
e interceder pelo que se quer para o
desenvolvimento sustentável da sua
comunidade. “A comunidade tem que
ser pensada como ‘global’ e é preciso
fomentar gestores locais pensando o
que quer para a sociedade, não é só o
técnico que tem que pensar isso”, afirma
Hildemar.
Espaços participativos que
buscam fortalecer a democracia e a autonomia da sociedade civil existem, e
através deles as conquistas chegam e
nutrem as pessoas de esclarecimentos
para que várias causas sejam debatidas.
Os fóruns populares de políticas públicas funcionam em vários municípios do
Rio Grande do Norte, e possibilitam que
mudanças aconteçam. Paula Francisca
do Nascimento, de Taipu, município a
49 km da capital, destaca que o fórum
existe na cidade desde 2006 e tem o
lema A serviço da verdade e da justiça.
“O nosso fórum é muito atuante e luta
por uma melhor qualidade de vida do
povo, mostrando os direitos e deveres
da população e intervindo nas políticas
públicas”, afirma Paula.
Em Pureza, município distante
68 km de Natal, desde 2005 também existe um fórum de políticas públicas funcionando e a cada reunião mensal, cerca
de 60 pessoas participam. “O povo discute no fórum a merenda escolar, falta
d’água, falta de compromisso do poder
público e é aberto a toda a população
do município”, conta Maria José, uma
das representantes do fórum.
O Fórum de Participação Popular nas Políticas Públicas (Fopp) de São
Miguel do Gostoso, tem 10 anos de atuação, sendo um dos mais antigos do território Mato Grande no Rio Grande do
Norte, e ainda apresenta fragilidades
para o seu funcionamento, porém a
união das parcerias (associações, sindicatos e Ong´s) faz com que o Fopp se
mantenha atuante , e amenize as dificuldades. Projetos relacionados à agricultura familiar, educação, recursos hídricos e outras áreas já foram executados
pelo Fopp.
A experiência ao longo dos
anos mostra que o amadurecimento da
Camponesa - Dezembro de 2010
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sociedade civil ao discutir melhorias de
condições de vida, reforça a importância de trabalhar por um modelo de desenvolvimento voltado para as necessidades humanas. “Os espaços populares
são interessantes, e viabilizam o surgimento das lideranças, mas não cabe ser
liderança só no discurso é preciso mais”,
afirma Hildemar.
Para desenvolver: mulheres e
jovens precisam aparecer
Ao estimular e pensar o desenvolvimento é preciso estar atento
às relações humanas de forma igualitária, e reconhecer que o sistema patriarcal e machista vigora na sociedade é
necessário. Para conter essa limitação,
nada mais coerente do que estimular
e trabalhar numa perspectiva de igualdade de gênero entre homens e mulheres, estando cientes também que a
juventude é um grande grupo que precisa estar inserido nesse processo.
As mulheres e a juventude tendem, devido às condições desiguais
em relação aos homens, estarem em
situações desfavoráveis na sociedade;
algo que podemos observar através
da pequena participação das mulheres
e jovens nos espaços de decisões e no
acesso aos recursos, de forma que tenham renda. Reconhecer essa desigual
relação humana e de poder, e buscar
mudanças é o ideal para o alcance de
relações sustentáveis. “Em 200, eu tinha
17 anos, e tive a oportunidade de ingressar em um projeto que incentivava
a juventude rural a ser protagonista em
várias ações locais. Participei de cursos,
capacitações, eventos e pude repassar
para a comunidade o que aprendi”, diz
Francimário Gomes, da comunidade de
Angico de Fora, em São Miguel do Gostoso.
Garantir que a juventude e as
mulheres possam estar juntos, para que
recebam e participem de reuniões e
capacitações é importante para se sentirem preparados a ocuparem os espaços
de decisões. “Considero que as etapas
enfrentadas de participação e formação
provocaram um nível de politização nas
pessoas muito importante, esse foi um
compromisso sério para a juventude do
município. Atualmente, percebe-se na
cidade a quantidade de jovens que es-
Francimário Horácio
tão inseridos nos espaços de decisões
buscando as melhorias locais”, comenta
Francimário.
“Nós” que fazem a diferença
articulação política”, comenta Bayle.
Desenvolvendo projetos com
parcerias em mais de um estado do Nordeste, a AVSF no Rio Grande do Norte já
executou um projeto junto com a Rede
Pardal, e atualmente, está envolvida no
Balaio da Economia Solidária, projeto
que busca fortalecer a agricultura familiar e as ações de economia solidária. As
parcerias agora estão ampliadas entre
Rede Pardal, Rede Xique Xique e Centro
Feminista 8 de março. “Temos princípios
em comum, e o nosso papel é pensar em
soluções sustentáveis econômicas e sociais para a agricultura familiar”, salienta
Bayle.
Sustentabilidade no campo
“Se o que buscamos é um desenvolvimento que atenda, sobretudo,
as questões relativas à preservação
dos recursos naturais, a promoção da
igualdade social, a produção de alimentos saudáveis, e a autonomia de
agricultores(as) familiares, então estamos falando de um desenvolvimento
que busca a sustentabilidade”, defende
a Engenheira Agrônoma, Ana Paula
“Somos interdependentes, é
importante se articular e estabelecer
os ‘nós’”, defende Hildemar. Para ele, a
ideia do trabalho em rede, e com parcerias é o que reforça a possibilidade
de melhorias para a
sociedade.
Para Emmanuel Bayle, representante da Ong francesa
Agrônomos e Veterinários Sem Fronteiras
– AVSF, a busca da sinergia entre instituições
parceiras é o que há de
pertinente para a execução de ações que
buscam a construção
de “mudanças”. Atuando em 20 países (África, Ásia, América do
Sul e Caribe), a AVSF
busca apoiar os(as)
agricultores(as) familiares através da garantia da alimentação e
da geração de renda.
“Segurança alimentar,
geração de renda e a
gestão dos recursos
naturais são alguns
dos nossos eixos trabalhados no campo,
valorizando ainda a Emmanuel Bayle - AVSF
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Camponesa - Dezembro de 2010
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Cavalheiro, Professora do Curso Técnico
em Agroecologia do Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia do
Paraná (IFPR).
Tendo um papel fundamental
na sociedade, as famílias rurais da agricultura familiar assumem o papel de
vital importância para a segurança alimentar, e conseguem construir relações
viáveis e de respeito com o meio ambiente. “É importante compreender que o
desenvolvimento com sustentabilidade,
só pode ser construído a partir de uma
agricultura de base ecológica, e isto só
é possível de ser alcançado através de
uma agricultura familiar que tenha na
terra a sua fonte de vida e (re)produção”,
diz Ana Paula.
Para garantir a integração ao
meio ambiente, e a responsabilidade
em todos os níveis de desempenho, é
cada vez maior a “adesão” ao modelo
agroecológico de agricultura. Pensado
e discutido enquanto um resgate das
práticas sustentáveis entre as pessoas e
o meio ambiente, e de forma mais ética;
a agroecologia consegue repassar e nutrir o que há de mais rico e sustentável
para as pessoas.
Reforçar e acreditar na agroecologia é apostar e garantir a segurança
alimentar das famílias rurais e urbanas,
possibilitar uma maior riqueza dos recursos naturais, reforçando ainda a construção de laços mais humanos para as
pessoas.
“Não há agricultura familiar sustentável sem relação com o poder local,
é preciso ter equilíbrio”, defende Hildemar Peixoto, Engenheiro de produção, e
assessor da Fetraf/RN.
Ana Paula Cavalheiro - Engenheira Agrônoma
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Camponesa - Dezembro de 2010
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Artigo
A participação das mulheres no
desenvolvimento sustentável e no
fortalecimento da agricultura familiar
Por Marialda Moura
A
té 1996, a AACC/RN realizou
atividades envolvendo mulheres, de forma bastante pontual, em alguns momentos
contando com a assessoria do Centro
Feminista 08 de Março, através de oficinas sobre temas específicos como saúde,
violência contra a mulher e formas de
organização. As atividades realizadas
pela AACC/RN no campo da gestão e
organização dos assentamentos, era basicamente composta por homens, visto
que as mulheres assumiam a responsabilidade com as refeições e cuidado
com o ambiente, a maioria das vezes,
ficavam assistindo a reunião no portão
dos galpões.
A AACC/RN inclui nos seus eixos
programáticos e de forma sistemática o
trabalho com mulheres, a partir de 1997
com o apoio e fortalecimento à organização de grupos de mulheres com vistas a sua auto-organização. Inclui nessa
agenda uma série de atividades de formação voltadas para o protagonismo
das mulheres, especialmente relacionadas ao desenvolvimento sustentável e
fortalecimento da agricultura familiar,
prolongando-se até os dias atuais. Para
isso, foram iniciados projetos articulados com a linha da sustentabilidade
ambiental (agroecologia, agricultura
orgânica, gestão de recursos hídricos),
economia solidária (consumo ético, comercialização, apoio a grupos coletivos)
e democratização do poder (políticas
públicas, gênero, juventude, gestão de
organizações associativas) como eixos
programáticos institucionais. Desse processo surge o projeto institucional “Mulheres Transformadoras” contribuindo
para a ampliação da participação das
mulheres nos espaços coletivos (STTR,
Fóruns municipais, associações, movimento feminista, Rede Xique Xique).
26
A assessoria técnica em atividades e projetos produtivos com mulheres tem orientado para a realização de
experiências agroecológicas, autogestionadas tendo como perspectiva a autodeterminação das mulheres. À medida
que as experiências vão sendo desenvolvidas, é possível se observar mudanças significativas na vida das mulheres,
principalmente no acesso às políticas
públicas, situação econômica, na tomada de decisões, no diálogo com a família
e nos espaços coletivos de participação
política.
Nesse sentido, a participação das mulheres na construção da
gestão e da organização da Rede Xique
Xique através dos núcleos de economia
solidária, a participação e construção da
Marcha Mundial das Mulheres através da
formação política e nas ações de mobilização tem impactado sobre a vida das
mulheres, a relação estabelecida com a
família e nos espaços coletivos.
No entanto, podemos observar
várias questões no tocante a vida das
Camponesa - Dezembro de 2010
mulheres rurais. A primeira está no cerne,
no conjunto das relações socialmente
construídas e de como as mulheres e homens se posicionam nessa sociedade e
que tem a ver com a naturalização dos
papéis sociais ditos, femininos e masculinos que estruturam e reproduzem a
divisão sexual do trabalho e as desigualdades de gênero.
A perspectiva apontada pode
ser encontrada em vários estudos sobre a
construção social das relações de gênero
em que pese, a definição sobre os papéis
sociais que determinam o que é ser feminino e masculino na sociedade ocidental.
No que tange essa análise na realidade
do meio rural, a casa e o quintal se constituem como o espaço das mulheres ou
que caracterizam atividades ditas femininas e o trabalho do homem, caracterizado pelas atividades ditas masculinas.
Nesse contexto, o trabalho doméstico e
do cuidado recai sob a responsabilidade
das mulheres, impedindo muitas vezes a
mulher agricultora de participar dos espaços coletivos e de tomada de decisão,
efetivamente, dificultando a busca pela
sua autonomia.
Outra questão a ser considerada
nesse processo diz respeito a situação de
violência sexista, vivenciada pelas mulheres no meio rural. O fortalecimento da
luta das mulheres contra a violência sexista e uma ação que busca a construção
de valores que tem como princípios
básicos, o respeito às mulheres, a valorização do trabalho e a igualdade entre
mulheres e homens se constitui um alicerce da práxis-feminista em que a intervenção tem sido desenvolvida.
A política de organização dos
grupos de mulheres tem sido uma alternativa para o enfrentamento à violência
contra as mulheres. Ao que tudo indica,
os grupos de mulheres parecem se construir como possibilidades históricas e
estratégias de busca pela superação das
desigualdades, espaços de socialização
e de solidariedade entre as mulheres
rurais, bem como da busca pela autonomia.
Nessa perspectiva, há de se considerar a política de auto-organização
dos grupos de mulheres, que em dado
momento da história do feminismo,
foram considerados como espaço de
luta pela autonomia das mulheres quando surgem os grupos específicos como
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mola propulsora para a autoconsciência
das mulheres em face da dominação
masculina. Acredito que ainda hoje se
constrói como possibilidades históricas
e estratégias de busca pela superação
das desigualdades sendo também os
grupos de mulheres, espaços de socialização e de solidariedade entre as mulheres rurais.
A formação das mulheres em
agroecologia, economia solidária e feminismo, através da realização de oficinas,
cursos e seminários, tem sido uma contribuição interessante para a realização
das experiências em agroecologia. À
medida que as experiências vão sendo
desenvolvidas tem garantido a soberania alimentar das famílias.
Ao participar de experiências
agroecológicas, as mulheres assumem
diretamente uma responsabilidade e o
compromisso com a proposta de desenvolvimento de uma agricultura familiar
sustentável e que pode garantir a soberania alimentar, cujo significado está na garantia do próprio sustento, na produção
de alimentos saudáveis através do cultivo de hortas agroecológicas, criação
de pequenos animais (cabras, galinhas,
abelhas), quando guardam e preservam
as sementes ou reutilizam e armazenam
a água de chuva em cisternas.
São perceptíveis os efeitos e
mudanças na realidade das mulheres,
dentre estas a participação das mulheres
em cargos e instâncias de decisão das
associações, fóruns locais e grupos; a
presença das mulheres rurais nas ações
de articulação e mobilização tanto no Estado como no Brasil, tem se destacado.
Por uma lado, há maior compreensão das famílias em relação a importância da participação das mulheres
nos espaços, o que se configura uma
conquista para as agricultoras.
No âmbito da assessoria à autoorganização das mulheres, temos nos
apoiado através de uma metodologia
de formação que tem fundamento no
método construtivista e nos princípios
da pesquisa-ação, na reflexão problematizadora da realidade, levantando problemas e elaborando estratégias e alternativas de superação.
Marialda Moura militante da Marcha Mundial das Mulheres, e coordenadora do
Projeto Brasil Local NE 1 executado pela
AACC/RN.
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Camponesa - Dezembro de 2010
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TEM POESIA NA TERRA
Tem poesia guardada
Na tapera sem ninguém
Nos trilhos velhos do trem
Na estação já fechada.
Na caraubeira florada
Coberta de amarelo
Tem poesia no velho
Juazeiro frondeado
Na manga velha do gado
No galope e no martelo.
Tem poesia no tempero
Da cozinha sertaneja
Também nas grandes pelejas
Das duplas de violeiros.
Na flor alva do pereiro
Perfumando o meu sertão
Tem poesia no fogão
Na fumaça do bueiro
No aboio do vaqueiro
Trazendo a rês pro mourão.
Tem poesia na lama
Do aguaceiro de inverno
Tem poesia no berro
Da temida gaspiana
Na flor branca da chanana
No fruto do canapú
No gosto acre do umbu
No cantar da seriema
No espinho da jurema
E no voar do nambu.
Tem poesia em tudo
Que o meu sertão pronuncia
No sol quente, na água fria,
E até num dia sisudo.
No domingo de entrudo
No forró de pé-de-serra
No cabrito, quando berra,
Perto da casa da gente
E quando nasce a semente
Que a gente planta na terra.
“Tem poesia na terra” é de autoria de Francisco Morais, nascido em Parelhas/RN, o poeta viveu até os 21 anos no sítio
Olho d´Água, no município. Licenciado em Letras, é mestre
em Estudos da Linguagem e professor de Língua Portuguesa,
na rede pública estadual de Ensino.
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