TEMAS 10 – Democracia Supremo Tribunal Federal (STF)
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TEMAS 10 – Democracia Supremo Tribunal Federal (STF)
TEMAS 10 – Democracia Supremo Tribunal Federal (STF) Caso Cesare Battisti (2009 – 2011) Caso da Lei de Anistia (2010) Caso da “Lei da Ficha Limpa” (2012) GUIA DE ESTUDOS Diretores: Bruno Fleury Camila Ramos Henrique Ratton Leonardo Antonacci "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar; o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”. Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. “Eu sou juíza e não justiceira!” Ministra Carmem Lúcia, durante o julgamento do processo EXT-1047, em julho de 2012. Sumário I – Apresentações dos diretores;........................................................... 1 II – Introdução do guia de estudos;....................................................... 3 Título I: Do Supremo Tribunal Federal: ............................................... 5 Subtítulo I: Breves considerações históricas;............................. 5 Subtítulo II: Funcionamento da Corte; .......................................8 Subtítulo III: Competências da Corte. ........................................10 Título II: Do Mérito: ............................................................................. 17 Subtítulo I: Do Caso Cesare Battisti (2009 – 2011): ................. 17 1) Do histórico da questão; 2) Das perspectivas jurídicas; 3) Do processo. Subtítulo II: Do Caso da Lei de Anistia (2010): ...................... . 37 1) Do histórico da questão; 2) Das perspectivas jurídicas; 3) Do processo. Subtítulo III: Do Caso da “Lei da Ficha Limpa” (2012): ............. 49 1) Do histórico da questão; 2) Das perspectivas jurídicas; 3) Do processo. Referências ................................................................................................. 65 Apresentações Bruno Fleury: Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Historicamente, nutriu muito interesse pela área do Direito Internacional e da Política Internacional, no entanto o decurso da faculdade o fascinou pelo estudo jurídico, bem como pelo trato com a ordem pátria. Apesar de ainda apreciar muito leituras acerca de diversas áreas do conhecimento humano (como História, História Militar, Relações Internacionais, Filosofia e Economia), o Direito tornou-se seu interesse hegemônico. Uma vez que o TEMAS traz uma nascente tradição de comitês jurídicos e ele já conduziu um STF juntamente com sua co-diretora, a escolha de comitê para o TEMAS 10 foi natural. Está à disposição dos delegados e espera brindar o TEMAS com mais um dos habituais comitês de excelência. Email: [email protected] Camila Ramos: Tem 19 anos, é aluna de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e o TEMAS 10 será sua décima participação em modelos e a terceira na simulação temática. O Direito é algo que lhe interessa e envolve desde o berço e, não coincidentemente, o escolheu como curso. O debate das controvérsias jurídicas é um dos seus principais campos de interesse e identificação pessoal, bem como questões históricas, políticas, econômicas e tudo aquilo que envolve e interfere a dinâmica social do homem. O STF, como comitê, está presente em sua vida desde 2010 quando teve sua primeira experiência como delegada no modelo secundarista SiEM, em São Paulo. Além disso, o STF foi sua primeira participação temática. Por terem sido experiências interessantes e desafiadoras, desenvolveu um interesse particular tanto pelo órgão real quanto por simulá-lo. Por isso, convida e incentiva a todos aqueles interessados a 1 participarem desse comitê, bem como do TEMAS, pois, para ela, esse é sem dúvida um modelo especial, que promove continuamente seu engrandecimento pessoal e acadêmico. Email: [email protected] Henrique Ratton: É graduando em Direito pela Faculdade de Minas Gerais. Desde sempre teve paixão pelos debates seja em qual área for. Traz consigo verdadeira admiração pelo STF, pois ele traduz toda a elegância da fala e do argumento, afinal, soma a tradição da república com o poder de inovação em decisões paradigmáticas. No campo do Direito, possui profundo interesse pelas áreas do Direito Constitucional e Internacional, não obstante o seu fascínio pelo Direito Penal. A oportunidade de auxiliar um comitê jurídico no TEMAS foi recebida com grande entusiasmo, sobretudo após as repercussões do julgamento da AP-470, cuja rotina acompanhou de perto. Sempre pronto para discussões, espera que do contato com os delegados surjam diversos diálogos engrandecedores. Pretende também completar a equipe do TEMAS com entusiasmo e empenho para que esta edição, assim como as outras, seja memorável. Email: [email protected] Leonardo Antonacci: É estudante de Direito na Universidade Federal de Minas Gerais. Começou a participar de modelos ainda no ensino médio. Teve a oportunidade de fundar e organizar, por dois anos seguidos, a simulação interna de seu colégio. Ali, também, foi vice-presidente do grêmio estudantil, onde iniciou seus interesses em política e direito e que perduram até hoje. Somado a isso, apresenta interesses em economia, história e filosofia. Participa da política partidária e pode agregar habilidades e interesses. Espera utilizar todas essas experiências para o fortalecimento do TEMAS 10 e do comitê STF. 2 Introdução O interesse e a satisfação dos delegados é o que move uma boa Mesa Diretora. Assim, a disposição de cada pessoa que “comprou a ideia” desse comitê, diferenciado em muitos aspectos, é um grande combustível para os redatores deste guia. À guisa desse interesse, bem como das peculiaridades dessa iniciativa de simulação, um material igualmente diferente foi elaborado. Seus parâmetros são fruto das convicções pessoais dos diretores, que creem na autonomia e no esforço de aprendizagem como forças motrizes do conhecimento. Pautado por esses valores, este não é como os guias regulares que se vê na maioria dos modelos. Ele objetiva cumprir o mandado de sua rubrica: guiar os estudos, mas nunca exaurilos. Este material deve ser considerado um mero vestíbulo propedêutico nas matérias pertinentes ao comitê, uma vez que se faz necessário dar enfoques a temas tão vastos. Além disso, conta-se com a possibilidade da participação de delegados que não vêm da área do Direito e seria inconcebível deixá-los órfãos de um subsídio mínimo de estudos. Entretanto, não se pode esperar um artigo científico preocupado com todas as regras da ABNT e que objetive passar por todas as nuances dos assuntos sobre os quais se debruça. Em suma é necessário entender qual é o papel deste guia: fornecer algumas noções conceituais básicas, fornecer muitas fontes de ampliação das pesquisas (por isso há um bom número de referências no texto) e, acima de tudo, problematizar e levantar questões. Uma vez que uma corte tem a conclusão de seus trabalhos em um processo deliberativo, nada mais justo do que estimular a liberdade de convencimento com a reflexão. Com efeito, nos aspectos pertinents, este guia trará os principais questionamentos concernentes às ações e indicará um substrato inicial para respondê-los. Contudo, o processo só é concluído com a proatividade do delegado, que deve se empenhar em buscar as próprias respostas para formular uma opinião fundamentada. Para não se alongar em demasia, dois assuntos foram propositalmente omitidos e serão tomados como de compreensão básica presumida: (I) a hermenêutica jurídica, pois foi considerada campo de estudo muito zetético e vasto, de modo que seria de pouca utilidade abordá-la aqui. Espera-se que os delegados busquem se informar sobre a interpretação das normas, principalmente em seu ramo constitucional e suas modalidades. (II) o controle de constitucionalidade, que aparece mencionado diversas vezes, como não poderia deixar de ser. 3 Seja nas ações como o habeas corpus e o Recurso Extraordinário, a Ação Direta de Inconstitucionalidade e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ou ainda em termos como “controle abstrato” e “controle incidental” essa temática é fio condutor das atividades de uma corte constitucional. Ademais, há infindável número de trabalhos sobre a matéria, que podem ser buscados, de sorte que tratá-la da forma merecida seria desnecessário. Há alguns breves esclarecimentos no item que trata das competências do Tribunal, mas o aprofundamento nesse tema é uma das primeiras recomendações que se faz aos delegados. Porém, não há motivo para preocupação, uma vez que todos os bons manuais de Direito Constitucional perpassam ambas as matérias. Indicam-se aqueles que nortearam a redação do guia, cujos autores são Kildare Gonçalves, Gilmar Mendes/Inocêncio Coelho/Paulo Gustavo Branco, Uadi Bulos, Bernardo Gonçalves, José Afonso da Silva e Paulo Bonavides, todos devidamente citados na bibliografia. Além disso, há ótimos artigos que podem ser encontrados na internet. Com isso não se abraça apenas os estudantes que já chegam com muita experiência e conhecimento. Ao contrário, tem-se aqui uma iniciativa que objetiva estimular que todos agreguem novos fatos a seu arcabouço jurídico, social e de vida. Dessa forma, não se espera um comitê formalista, que se atenha apenas às minúcias do direito, mas sim delegados que compreendam a relevância material do poder que terão em mãos. O exercício de simular só tem sentido quando o aluno se coloca no lugar de outrem, com todas as responsabilidades e consequências de seus atos. Esse fenômeno encontra manifestação ímpar na mais alta corte do país, que toma decisões de grande concretude e tem potencial de interferir drasticamente – para bem ou para mal – nos rumos da democracia brasileira. Cabe lembrar que o guia não será um emaranhado de palavras complicadas que só turvará ainda mais o complexo mundo do direito. É do interesse de todos que a comunicação seja a mais fluida possível, por isso o texto é enxuto e objetivo em conteúdo e forma. Não por ausência de recursos, mas para realizar seus objetivos de ser “apenas” norteador da pesquisa. Por último, deve-se dizer que a equipe do comitê optou não por combater, mas sim abraçar a ideia de que este seria um material forjado a quatro mãos. Por isso, no guia de regras se assume que cada diretor possui uma especialização funcional. Com efeito, este guia foi elaborado para poder ser lido e entendido como um todo. Porém, pari passu, pode ainda ser compreendido como um conjunto de quatro artigos, que, em homenagem à peculiaridade de seus temas, receberam estruturação diferenciada quando pormenorizados. 4 Durante toda essa epopeia, os delegados não estarão sozinhos. Contarão com os mais interessados diretores, que não hesitarão em ajudá-los em sua preparação e durante o evento. Seja por email, facebook (grupo do comitê ou inbox dos diretores) ou telefone, estarão às ordens, não para poupar os delegados de seus trabalhos, mas para contribuir com o crescimento de seus Ministros e com a verdadeira oportunidade que é o TEMAS! Título I: Do Supremo Tribunal Federal Subtítulo I: Breves considerações históricas: Na década de 1530, por ordem do rei D. João III, sob o comando de Martim Afonso de Sousa, deu-se início, no Brasil, um processo de colonização e povoamento que se pretendia mais eficiente dos que os adotados até então, de sorte que a terras da colônia foram divididas nas chamadas capitanias hereditárias. A tentativa de iniciar a exploração colonial por meio da iniciativa privada obviamente não logrou êxito, pois a escassez quase completa de recursos fez com que alguns donatários não arriscassem seus bens nessa empreitada e os que o fizeram, em sua larga maioria, perderam muito – alguns até a própria vida1. Com efeito, passaram-se muitos anos de tentativas de organização da exploração da colônia por parte da metrópole portuguesa até que fosse possível instalar, no Brasil, um aparato administrativo que pudesse operar e tentar cumprir suas competências. Apenas em 1609, por alvará do rei D. Felipe III, foi fundada, em Salvador, a Relação do Brasil, primeiro órgão judicante da colônia, incipiente forma de instância superior do Poder Judiciário. Observa-se que uma estrutura tida como indispensável hodiernamente demorou mais de setenta anos para ser instalada no Brasil, ineficiência administrativa que cobraria seu preço ao longo da história do futuro país independente que o Brasil viria a ser. Em homenagem à brevidade, cabe apenas relatar que no Período Colonial, em 1763, a Relação do Brasil foi transferida para o Rio de Janeiro com o nome de Relação do Rio de 1 KOSHIBA, Luiz. PEREIRA, Denise Manzi Frayze. História do Brasil no contexto da história ocidental. 8ª edição. São Paulo: Ed. Atual, 2003. P. 44-45; 5 Janeiro e, em 1808, quando da chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil, o Tribunal passou a ser chamado de Casa de Suplicação do Brasil. Com a Independência veio a Constituição Imperial de 1824, primeira Lei Suprema do Brasil. Em seu art. 163 estava disposto: Na Capital do Império, além da Relação, que deve existir, assim como nas demais Províncias, haverá também um Tribunal com a denominação de Supremo Tribunal de Justiça, composto de Juízes letrados, tirados das Relações por suas antiguidades; e serão condecorados com o título de Conselho. Na primeira organização poderão ser empregados neste Tribunal os Ministros daqueles que se houverem de abolir. O Supremo Tribunal de Justiça, integrado por 17 juízes, foi instalado em 9 de janeiro de 1829, na Casa do Ilustríssimo Senado da Câmara, tendo subsistido até 27 de fevereiro de 1891. Suas funções se limitavam a julgar alguns recursos específicos, bem como autoridades com prerrogativa de foro. O coup d’etat que deu origem à República, também ensejou os moldes atuais de nossa Suprema Corte, o que fica evidente na Constituição de 1891, primeiro aparato normativo a trazer a denominação Supremo Tribunal Federal para a mais alta corte do país, que seria a última instância recursal do Poder Judiciário e órgão responsável pelo controle constitucional do ordenamento jurídico. A influência da doutrina jurídico-política norte-americana não ficou apenas no nome do país – Estados Unidos do Brasil –, mas sim avançou nas concepções de corte suprema e na organização do Poder Judiciário. Até uma Emenda Constitucional de 1926, é de destaque o papel legado ao habeas corpus, principalmente pela atuação de Rui Barbosa, que pregava que o remédio constitucional deveria dedicar-se à proteção de todos os direitos fundamentais previstos na Lei Maior. A chamada “Doutrina do habeas corpus” recebeu severas críticas do Ministro Pedro Lenza, mas foi adotada em julgados polêmicos do Supremo, como a decretação da inconstitucionalidade do Código Penal da Marinha. Os atritos com o Executivo, ainda no início da judicatura da nova suprema corte levaram à supracitada emenda, que determinou que a referida ação constitucional se prestava apenas à proteção da liberdade ambulatorial, como defendia Lenza. A Constituinte aventou a possibilidade de conferir ao Supremo o poder de controle abstrato, mas a ideia não prosperou. A Carta de 1934 também não apresentou ações de controle abstrato no rol de competências do Supremo, mas trouxe uma interessante inovação. Entendeu-se que decisões 6 de inconstitucionalidade do STF poderiam ter efeitos erga omnes, contudo, pelo seu efeito nas espécies normativas vigentes, o Senado foi eleito como órgão responsável pela “suspensão de execução” das leis taxadas com esse vício. O instituto que constava do antigo art. 90, IV, encontra par no art. 52, X da Constituição da República. A Constituinte de 1934 viu ser apresentado projeto de criação de uma corte constitucional nos moldes austríacos idealizados por Kelsen. Contudo, a influência do pensamento estadunidense em matéria de jurisdição constitucional era muito forte e o projeto também não foi positivado. A Constituição de 1937, apelidada de “Polaca”, estendeu seu autoritarismo também ao Pretório Excelso, uma vez que o Presidente da República tomou para si o poder de nomear o Presidente da Casa, bem como foi criada a faculdade de o Parlamento Nacional suspender decisões de inconstitucionalidade do STF. Essa competência foi exercida principalmente pelo próprio titular do Poder Executivo da União, por meio de decretos-lei. Esses atos foram justificados com a noção de que a jurisdição seria “antidemocrática” e potencialmente ofensiva aos interesses do povo. Em 1946, uma nova Lei Maior consagrou um regime democrático. Contudo, não houve grandes alterações no que tange o STF até o Estado Novo. O controle incidental foi mantido nos mesmos moldes e a suspensão de execução pelo Senado ainda era a única forma de emprestar eficácia erga omnes às decisões de inconstitucionalidade. Inovação que merece relevo foi a criação de uma espécie de ação direta, em que o Procurador Geral da República (doravante, em todo o guia, PGR) podia arguir violação a princípio constitucional sensível – constantes do art. 7º da Carta Política – e requisitar ao Supremo que determinasse representação interventiva. A ADI Interventiva foi positivada no art. 34, VII da Constituição de 1988 e segue o mesmo espírito de sua “ancestral”. Outra curiosidade interessante é o fato de que essa Constituição instituiu a composição do Tribunal Pleno com onze Ministros, número igual ao atual, segundo a disciplina do art. 101 – CR/88. O Regime Civil-Militar instaurado com o Golpe de 1964 foi marco de ingerências por parte do Executivo no Judiciário. Diversos atentados à autonomia dos Poderes foram perpetrados, mas nenhum tão gravoso como o Ato Institucional número 5, que alterou drasticamente a ordem constitucional vigente. Além de suspender as garantias constitucionais, suspendeu as garantias da magistratura e afastou três Ministros, por meio de aposentadoria compulsória. 7 A “Constituição Cidadã” de 5 de outubro de 1988 foi verdadeira “solução compromisso”. Sua disciplina para o Supremo será analisada conjuntamente com o Regimento Interno (RISTF pelo restante do guia) nas duas próximas seções. Para aqueles que se interessarem pelo aprofundamento nas leituras acerca da história do STF, aconselha-se a leitura das três fontes bibliográficas de maior importância na redação deste ponto, elencadas em hierarquia de utilização: Jurisdição Constitucional, de Gilmar Mendes. P. 24 a 402; Curso de Direito Constitucional, de Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gustavo Branco. P. 980 a 990; O Supremo Tribunal Federal, de Oscar Corrêa. P 70 e ss; Link da página do STF: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=sobreStfConhecaStfHist orico. Subtítulo II: Funcionamento da Corte: O artigo 92, §§ 1º e 2º3 da CR/88 determinam que o STF tem sede na Capital Federal, bem como jurisdição em todo o território nacional. No art. 101, a Constituição começa a tratar especificamente sobre o Supremo e disciplina o processo de escolha dos Ministros: Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal4. É interessante ressaltar que para ser Ministro da Suprema Corte Brasileira não é necessário que a pessoa seja magistrada ou mesmo bacharel em Direito. 2 As páginas tem como referência a edição citada na bibliografia; 3 Com redação dada pela EC – 45/2004, conhecida como “Reforma do Judiciário”; 4 Constituição da República disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm; 8 A Constituição ainda reconhece ao Tribunal iniciativa exclusiva em projeto de lei sobre o Estatuto da Magistratura, que regulamenta o ofício judicante no país. As determinações constitucionais abstratas são complementadas pelo RISTF5, que teve força de lei garantida pela Constituição de 1967. Contudo, a EC – 7/77 obrigou revisão completa do antigo regimento. O resultado é o dispositivo atual, que data de 1980. A Carta de 1988 não autorizou o Supremo a editar normas regimentais sobre processo6 e decisão. No entanto, até que lei seja editada sobre essas matérias, o regimento deve aplicar-se segundo entendimento majoritário na Corte. As demais questões mantêm a previsão regimental. O RISTF tem importância fundamental na condução dos trabalhos da Corte: ele trata das competências do Presidente (inclusive com menção a sua atuação no Conselho Nacional de Justiça – art. 103-B, I – CR/88), das Turmas (art. 4, §4º e art. 66 do RISTF, e.g.), de quórum (oito dos onze Ministros), de número de votos que compõem maioria (seis votos) e da exclusão de Ministros em caso de impedimento ou suspeição (art. 277 – RISTF). Vale notar que desde 1985, o Supremo consolidou entendimento no sentido da inadmissibilidade de exclusão de Ministros em ações de controle abstrato. O regimento é muito extenso e trata de diversos formalismos que não são o foco do comitê. Nos momentos em que ele se fizer importante o guia lhe dará algum destaque. Aconselha-se, no entanto, que os delegados o tenham a mão, pois sua consulta no decorrer dos processos pode ser valiosa7. Finalmente, cabe tratar de um tema relevante para o STF e para o comitê. O Supremo não delibera apenas com base em questões de tecnicismos jurídicos e exegéticos. Seus Ministros também se amparam em questões de fato, na concretude da realidade sociopolítica e econômica para emitir suas sentenças. Sua Excelência, o Eminente Ministro Gilmar Mendes cunhou o termo prognoses para se referir a esses elementos que embasam as decisões do 5 Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF_Maio_2013_versao_eletronica.pdf; 6 Historicamente o processo no Supremo foi regulamentado pelo Código de Processo Civil em paralelo com o RISTF. Contudo, a nova ordem constitucional criou dilemas processuais complexos. Exemplo de grande valia foi a polêmica acerca dos embargos infringentes na Ação Penal 470, em setembro de 2013. O Plenário dividiu-se acerca da aplicação do Regimento ou da Lei Número 8.038/90. Uma vez que o foco dos debates deve ser a matéria e não o processo civil em si (salvo em algumas preliminares de mérito), espera-se que as questões processuais tenham relevância menor no comitê, para otimizar a fluência e profundidade das discussões; 7 http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF_Maio_2013_versao_eletronica.pdf 9 Tribunal8. Para tanto, o STF conta com os chamados amici curiae, termo em latim – plural de amicus curiae – que pode ser traduzido literalmente como “amigos da corte”. Esse termo designa pessoas que vão falar na tribuna do Plenário ou das Turmas ou enviam parecer escrito e têm a função de representar instituições relevantes para o processo ou mesmo de fornecer informações técnicas, caso o conhecimento dos Ministros seja insuficiente9. Um amicus curiae costuma ser um advogado, seja de pessoa ou instituição. Caberia ao Ministro Relator despacho irrecorrível para que amici curiae sejam arrolados. No entanto, assim como no caso da Presidência, esse poder de convocação será transferido à Mesa Diretora da simulação. Cabe ainda ressaltar que exemplo de previsão da convocação de “amigos da corte” são disciplinados pela lei nº. 9868/99, em seu art. 7º, §2º, no tocante a ADIs e ADCs. Subtítulo III: Competências da Corte: Cabe abrir essa seção com um esclarecimento sobre o desenvolvimento de seu texto. Como bem já adiantou a Introdução do guia, não será esmiuçada a teoria do controle de constitucionalidade. Apesar de ser matéria que, comumente, se encontra ao final dos cursos de direito do Brasil, não seria pertinente a um guia que se objetiva simples aventar tudo o que há sobre a matéria. Assim, será dada notícia, apenas para que termos que já tenham sido usados ou que ainda o serão possam ter compreensão facilitada. Além disso, o estudo de cada um dos casos que serão discutidos pelo comitê trará considerações sobre o tipo da ação ajuizada, o que também ajudará nos estudos do tema. Entender o controle de constitucionalidade é fundamental para se entender a atividade do Supremo, portanto, mais uma vez, aconselha-se que esse seja um dos primeiros pontos de aprofundamento dos estudos. Adentrando as competências do STF, a doutrina divide-as em basicamente duas espécies: a competência recursal (art. 102, II e III – CR/1988) e a originária (art. 102, I – CR/1988). A questão é tão simples como os nomes fazem parecer: na primeira, o Tribunal recebe recurso (ordinário ou extraordinário) de decisão de uma instância inferior e faz papel de nível superior do Poder Judiciário; na segunda, trata-se de ações que podem ser ajuizadas 8 NARANJO, Leonardo. VARGAS, Henrique Mendes de. CERIZZE, Mariana. TEMAS 8 Minorias 2012; Supremo Tribunal Federal: União Estável Homoafetiva e Direitos Fundamentais das Minorias; 9 Audiências públicas realizadas pelo STF também podem ter a função de agregar conhecimento técnico e de fazer ouvir a visão da sociedade civil sobre uma ação; 10 diretamente na Suprema Corte, como as ações de controle abstrato, remédios constitucionais com polos passivo e ativo específicos, extradições e ações penais com réus detentores de prerrogativa de foro, e.g. Comparativamente a suas antecessoras, a Constituição de 1988 expandiu largamente o rol de competências do STF. Principalmente as competências originárias, uma vez que trouxe previsão para ações diretas controle, como a ADI, ADC (Ação Direta de Constitucionalidade) e ADPF, bem como algumas inovações, como o controle das omissões legislativas no Mandado de Injunção e a possibilidade de obtenção de informações pessoais que o Estado detenha, por meio do habeas data. Em lugar de analisar cada competência, convém deixar a Lei das Leis falar por si: Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual; a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993) b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República; c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente; c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 1999) d) o "habeas-corpus", sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas alíneas anteriores; o mandado de segurança e o "habeas-data" contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal; e) o litígio entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Território; f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta; g) a extradição solicitada por Estado estrangeiro; h) a homologação das sentenças estrangeiras e a concessão do "exequatur" às cartas rogatórias, que podem ser conferidas pelo regimento interno a seu Presidente; (Revogado pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) 11 i) o "habeas-corpus", quando o coator ou o paciente for tribunal, autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância; i) o habeas corpus, quando o coator for Tribunal Superior ou quando o coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 22, de 1999) j) a revisão criminal e a ação rescisória de seus julgados; l) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões; m) a execução de sentença nas causas de sua competência originária, facultada a delegação de atribuições para a prática de atos processuais; n) a ação em que todos os membros da magistratura sejam direta ou indiretamente interessados, e aquela em que mais da metade dos membros do tribunal de origem estejam impedidos ou sejam direta ou indiretamente interessados; o) os conflitos de competência entre o Superior Tribunal de Justiça e quaisquer tribunais, entre Tribunais Superiores, ou entre estes e qualquer outro tribunal; p) o pedido de medida cautelar das ações diretas de inconstitucionalidade; q) o mandado de injunção, quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal; r) as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacional do Ministério Público; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) II - julgar, em recurso ordinário: a) o "habeas-corpus", o mandado de segurança, o "habeas-data" e o mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão; b) o crime político; III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) Parágrafo único. A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. § 1.º A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. (Transformado em § 1º pela Emenda Constitucional nº 3, de 17/03/93) § 2.º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo. (Incluído em § 1º pela Emenda Constitucional nº 3, de 17/03/93) 12 § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) § 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) Cada uma das supracitadas ações tem disciplina, legislação e doutrina próprias. Contudo, como já foi dito, as ações pertinentes ao comitê serão tratadas em cada caso específico, com conceituação, histórico e pontos de importância para os debates. Mais uma vez aconselha-se algum aprofundamento neste item (os cinco tipos de ação que serão apregoadas), para que os delegados tenham noção (jurídica e não só fática) do que estão julgando e de seus efeitos no ordenamento pátrio. Entre as mudanças feitas pelo Constituinte Originário, merece destaque a aproximação do modelo austríaco de corte constitucional, por meio de ações diretas de controle concentrado com efeitos erga omnes (art. 102, §2º - CR/1988). A ADI e a ADC encontram-se previstas no art. 102, I, a – CR/1988 e, apesar de possuírem lei que as discipline (Lei número 9.868/1999), também constam do art. 103 da Carta Política: Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV a Mesa V - o Governador de Estado; de Assembléia Legislativa; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. 13 § 1º - O Procurador-Geral da República deverá ser previamente ouvido nas ações de inconstitucionalidade e em todos os processos de competência do Supremo Tribunal Federal. § 2º - Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias. § 3º - Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado. A ADPF encontra-se nos mesmos moldes, prevista no art. 102, §1º da Constituição e disciplinada na Lei número 9882/1999. Todas essas ações foram verdadeiro avanço no papel dúplice do STF como mais alta instância do Poder Judiciário e Corte Constitucional. O controle concentrado ou abstrato se define a partir de um órgão com competência exclusiva para decidir sobre a constitucionalidade de um dispositivo normativo ou ato do poder público e emprestar efeito vinculante a seu veredito, em toda a sua jurisdição. No caso da Carta de 1988, tem-se o Supremo, e para as Constituições Estaduais, os Tribunais de Justiça de cada Estado-membro da Federação e o Tribunal de Justiça do Distrito Federal. A autorizada doutrina do Professor Canotilho (2009) postula que não há lide entre dois polos nos processos de controle abstrato, mas sim um verdadeiro esforço das partes e da Corte para proteger a Constituição. Pari passu, tem-se o controle difuso ou incidental de constitucionalidade, aquele historicamente exercido pela Suprema Corte por meio de recursos extraordinários (RE). A mesma atribuição foi legada à Corte pelo art. 102, III, a, b, c – CR/88. Contudo, os efeitos da decisão do Plenário ou das duas Turmas possui efeitos inter partes e não erga omnes, como na via concentrada. Assim, apenas as partes da lide são vinculadas pela sentença, bem como a inconstitucionalidade só se verifica nos limites do pedido. Por essa razão, foi mantido o instituto da suspensão da execução, de modo que o Senado Federal ainda pode ungir com a oponibilidade contra todas as decisões do Supremo em sede de RE (art. 52, X – CR/1988). Vale salientar que todas as instâncias da Justiça Brasileira, por meio de seus órgãos competentes, têm poder para proferir esse juízo de fiscalização constitucional (daí o caráter difuso do controle), mas no caso dos TJs, deve-se recorrer às Assembleias Legislativas e não ao Senado, para se proceder com a suspensão. Recorrer ao Poder Legislativo ainda é a única forma de ser retirar formalmente uma lei do ordenamento jurídico. Em outras palavras, as 14 decisões fruto do controle abstrato ou incidental10 não revogam a norma declarada inconstitucional, apenas afastam sua aplicação. Estudo da mais alta qualidade é realizado pelo professor Kildare Gonçalves em seu manual (2009) página 361 à 588 da edição citada na bibliografia. Precedentes como a Denúncia número 103/1951, Rel. Min. Luiz Galotti e a Reclamação número 2138/DF, julgada em 2003 sob a relatoria do Min. Carlos Velloso, asseveram a existência de competências implícitas do Tribunal, mesmo em um sistema de constituição analítica, como o Brasileiro. Mais uma vez, relembrar o magistério de Gomes Canotilho (2002) se faz mister. O ilustre professor português mostra que a força normativa constitucional é incompatível com a adoção de competências não explícitas para um tribunal. A essa regra geral, coloca duas exceções que são complementares às competências positivadas: o aprofundamento necessário da competência (por exemplo, o tribunal que decide é competente para deliberar acerca de forma da decisão) e o preenchimento de lacunas por meio de raciocínio analógico. Nessa seara, tem-se como exemplos a competência do Supremo para julgar mandado de segurança contra ato de Comissão Parlamentar de Inquérito, bem como para julgar habeas corpus contra a Interpol em face de mandado de prisão emitido por magistrado estrangeiro. Outros dois assuntos que merecem ser trazidos à baila também foram adventos da EC45/2004, a “Reforma do Judiciário”. Primeiramente, tem-se a súmula vinculante (SV para este guia), prevista no art. 103-A da Carta Magna e regulamentada pela Lei número 11.417/2006: Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Vide Lei nº 11.417, de 2006). § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) 10 É importante ressaltar que o juízo de constitucionalidade pode se fundar em aspectos materiais (o conteúdo do dispositivo normativo ou o ato do Poder Público) e formais (o processo de elaboração da norma ou formalidades que são requisitos do ato). Em ambos os casos, mantêm-se o âmbito dos efeitos do tipo de controle em questão; 15 § 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) Desde os tempos de Casa de Suplicação, o STF edita súmulas como forma de consolidação densificada de sua jurisprudência. No entanto, a ideia de um precedente vinculante (o binding precedent do sistema de Common Law) só foi normatizada em 2004. A criação do instituto da súmula vinculante tinha como fim tornar mais célere a tramitação de processos na morosa justiça brasileira e, para evitar o prolongamento da lide com infindáveis recursos, deu poder para o Supremo editar normas obrigatórias gerais. Segundo o Min. Gilmar Mendes (2009), o fito material desse instrumento é sanar controvérsias atinentes à validade, eficácia e interpretação de normas ante a Constituição. Assim garante-se uniformização na jurisprudência de todo o país em alguns casos mais “cinzentos” e consequente aumento da segurança jurídica. A edição de SVs possui requisitos constitucionais: a aprovação de dois terços dos Ministros (para edição, revisão ou cancelamento) e a fundamentação em reiteradas decisões da Corte. Veda-se assim a súmula que deite raízes em julgados isolados. É necessária a convergência de precedentes que sejam fruto de debates maturados no Plenário ou nas Turmas. Além disso, o próprio Supremo Tribunal vincula-se ao entendimento contido na súmula vinculante e dele só pode se afastar mediante ato formal que expresse a revogação daquele entendimento e, consequentemente, do dispositivo. Trata-se de instituto que foi e é alvo das mais diversas críticas doutrinárias, uma vez que confere a um órgão judicante o poder de editar aparato equivalente a uma lei. Argumentase que em sistemas de tradição romanistas a tripartição dos Poderes erige-se a partir de um órgão criador do direito e outro aplicador. Os questionamentos são contundentes e impõem ao tribunal tato ao tratar dessa temática. Em segundo, tem-se a repercussão geral, previsto no art. 102, §3º – CR/1988: § 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o 16 Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) Esse instituto é verdadeiro filtro para que o Tribunal selecione as ações cujo recurso extraordinário (portanto, trata-se de tópico relevante para o controle incidental) é admissível e assim limite-se a julgar os casos de maior relevância e que influenciarão nos julgamentos de outras ações na Justiça. Sua regulamentação processual encontra-se na Lei número 11.418/2006, que foi acompanhada por mudanças regimentais em 2007. Como mostra o supracitado parágrafo, o requerente deve demonstrar à Corte Excelsa que seu pedido merece atenção como controvérsia constitucional por tratar de “questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa”, nos termo do art. 543-A, §1º, adicionados ao Código de Processo Civil pela lei que pormenoriza a repercussão geral. Tem-se repercussão geral presumida se a temática foi reconhecida antes, bem como se o recurso impugna decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante no STF. A decisão de inadmissibilidade do recurso extraordinário se dá com o voto de oito Ministros e é irrecorrível. Quando o Tribunal negar repercussão geral a um processo, todos os recursos que tratem de matéria idêntica devem ser indeferidos liminarmente. Resta claro que, apesar das dificuldades de se balizar critérios precisos para a admissibilidade, esse instituto auxilia na redução do número de processos que chegam ao Pretório Excelso. TÍTULO II: Do Mérito Subtítulo I: Do caso Cesare Battisti: 1. Do histórico da questão: Os anos entre 1968 e 1980, conhecidos como “Anos de Chumbo”, foram, para a República Italiana, um período de muita instabilidade e fragilidade política, decorrentes dos não superados estragos causados pela Segunda Guerra Mundial às estruturas sociais, políticas 17 e econômicas italianas. Esse abalo era perceptível, pois, nesse período, os governos italianos não conseguiam se estabelecer por muito tempo, alternavam-se com uma constância típica de um quadro de crise institucional, além de serem marcados por fortes traços de autoritarismo (GOYOS, 2009, p.1). Desse cenário decorreu o surgimento de grupos revolucionários de extrema esquerda e extrema direita pelo país. O confronto interno de ideologias era mais acirrado devido ao confronto ideológico pelo qual o mundo passava: a chamada Guerra Fria. Com o aparecimento e expansão desses grupos, o governo italiano tornou-se ainda mais rígido e controlador, de modo a suspender muitas das liberdades constitucionais, bem como tornar as forças policiais mais efetivas e repressivas. Foi esse contexto que surgiu o Proletariado Armado pelo Comunismo (PAC), por volta de 1976, como um grupo revolucionário de extrema esquerda, formado por dissidentes das Brigadas Vermelhas. Seu objetivo consistia na substituição do regime em que se encontrava a Itália, pelo regime socialista, de modo a combater a manutenção do governo italiano nos moldes em que estava (JUNIOR, 2010, p.2-3). Para tanto, o PAC escolheu como método a luta armada, uma decisão muito comum à época em países que sofriam momentos políticos conturbados, em que liberdades eram duramente cerceadas (LUNGARZO, 2011, p.1-2). A seguir, far-se-á uma breve cronologia dos fatos concernentes ao caso da Extradição nº1085 que envolveram Cesare Battisti, narrados pelo advogado Luiz Roberto Barroso durante sua sustentação oral no julgamento da referida extradição11. Em 1977, o jovem Cesare Battisti aderiu ao PAC, bem como a suas práticas de furtos, assaltos para angariar fundos para o movimento e confrontos armados, muito embora, segundo declarações de Battisti. ele jamais fez parte de práticas que envolvessem violências extremas contra pessoas. Em 1979, Cesare foi preso em Milão como parte da investigação do assassinato de um joalheiro, Pierluigi Torregiani, em fevereiro do mesmo ano, atribuído ao PAC. Esse ourives era também conhecido por fazer parte de uma espécie de “esquadrão da morte” que executava pequenos ladrões, mendigos e militantes de esquerda (LUNGARZO, 2011, p.2-3). Contudo, 11 Sustentação Oral de Luiz Roberto Barroso. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=ALaRB5OaUlk&list=PL34C2360FC271DBF7&index=8 . Acesso 21 de novembro de 2013; 18 em 1981, quando de seu julgamento, Cesare Battisti, foi condenado a 12 anos e 10 meses por participação em grupo armado (PAC) e ocultação de armas, sem nenhuma referência ao assassinato do joalheiro. A audiência aconteceu no dia 27 de maio de 1981, no Tribunal do Júri de Milão. Foram julgados 23 membros do PAC, embora alguns estivessem foragidos. Os acusados pelo homicídio foram: Sebastiano Marsala, Pietro Mutti, Gabrieli Grimaldi e Sante Fatone. Battisti não estava entre os acusados pelo referido crime, de forma que, contra ele, havia acusações de participação em grupo armado, ocultação de armas, tentativa de subversão do sistema político e econômico, recrutamento de ativistas, consumação de roubos e furtos e declaração de identidade falsa12. Battisti, todavia, fugiu da prisão em Roma e se refugiou na França. Logo em seguida, em 1982, fugiu novamente, dessa vez para o México. Em 1985, o então Presidente francês François Mitterand anunciou que se comprometeria a não extraditar ex-ativistas de extrema esquerda italianos, desde que esses rompessem com seu passado. Diante disso, em 1990, Battisti que já havia se declarado exmembro do PAC desde 1978, regressou à França e lá se tornou autor de romances policiais. Em 1993, a Corte de Apelações de Milão julgou Battisti sem sua presença e o condenou à prisão perpétua por quatro homicídios agravados, supostamente por ele praticados, entre os anos de 1978 e 1979, contra um guarda carcereiro, um agente de polícia, um militante de extrema direita e o joalheiro de Milão13. Essa condenação foi fruto do testemunho de Pietro Mutti, ex-membro do PAC, que, em 1982, ganhou o benefício da delação premiada14 por citar os nomes de seus companheiros que teriam participado do crime. Porém, Cesare jamais assumiu a autoria desses homicídios, além de afirmar constantemente que sofria perseguição política. 12 Sentença do Tribunal de Apelação de Milão, 1981. Disponível em: https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxsdW5nYXJiYXR0aXN0aX xneDo0YWU0YzRhN2JkMDg3YmRm. Acesso: 21 novembro de 2013; 13 Sentença do Tribunal de Apelação de Milão, 1988. Disponível em: https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxsdW5nYXJiYXR0aXN0aX xneDo0YjJmMzYxYzZhMjczZGM0. Acesso: 21 de novembro de 2013; 14 Segundo Adalberto Aranha e José Queiroz Telles Camargo (1999), a delação premiada é o instituto jurídico em que uma afirmação é feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido na polícia, pela qual, além de confessar a autoria de um fato, igualmente atribui a um terceiro a participação na atividade criminosa. A justiça entende isso como uma forma de colaboração e, por isso, beneficia o réu que a fizer; 19 Em 2001, o ex-ativista requereu o pedido de naturalização francesa, confirmado em julho de 2003 que foi anulado logo em seguida, em 2004. Nesse mesmo ano, após inúmeros pedidos de extradição, Battisti, a pedido da Justiça Italiana, foi detido em Paris, entretanto, logo em seguida, foi libertado e mantido em vigilância pelo governo francês. Em junho de 2004, a Justiça francesa se posicionou favorável à extradição de Cesare Battisti, que recorreu da decisão. Contudo, a partir de agosto, por não mais cumprir a exigência do sistema de vigilância judicial francesa de se apresentar regularmente à polícia, Battisti tornou-se clandestino, o que fez com que justiça francesa confirmasse definitivamente a extradição do ex-ativista italiano. Em março de 2007, Cesare Battisti foi detido na praia de Copacabana, Rio de Janeiro, Brasil e, posteriormente, transferido para Brasília. No ano seguinte, seu pedido de concessão de status de refugiado foi negado pelo Comitê Nacional para Refugiados – CONARE. Diante disso, seus advogados recorreram ao Ministro da Justiça à época, Tarso Genro, para que esse concedesse o pretendido status a Battisti, de modo a garantir-lhe o direito de viver e trabalhar em liberdade no Brasil. Em janeiro de 2009, o Ministro da Justiça, sob as justificativas de temor de perseguição no país de origem, contrariou a decisão do CONARE e concedeu o status de refugiado a Cesare Battisti. 2. Da perspectiva jurídica: 2.1 Conceito de extradição O atual cenário mundial é marcado pela globalização, isto é, um intenso e generalizado fluxo de informações, serviços, produtos e pessoas por todos os países. Como consequência dessa aproximação internacional, surgiu a necessidade de estabelecimento de vínculos entre os países, a fim de criar mecanismos de cooperação recíproca em todos os âmbitos. É nesse cenário que o instituto da extradição tornou-se relevante, pois se por um lado houve a positiva facilitação do trânsito de pessoas, serviços, informações e produtos entre os países, por outro lado a evasão de criminosos, também, tornou-se mais comum. Por isso, mecanismos de cooperação jurídica internacional, como a extradição, buscam a convergência de esforços interestatais para o combate à prática criminosa e à impunidade. 20 Segundo o clássico internacionalista brasileiro, Hidelbrando Accioly, extradição é o ato mediante o qual um Estado entrega a outro indivíduo acusado de haver cometido crime de certa gravidade ou que já se ache condenado por aquele, após haver-se certificado de que os direitos humanos do extraditando sejam garantidos (ACCIOLY, 1956, p.422) . Em outras palavras, mas em convergência com essa conceituação, o celebrado jurista José Francisco Rezek versa que extradição é a entrega, por um Estado a outro, a pedido deste, de pessoa que em seu território deva responder a processo penal ou cumprir pena (...). A extradição pressupõe sempre um processo penal: ela não serve para a recuperação forçada do devedor relapso ou do chefe de família que emigra para desertar dos seus deveres de sustento da prole (REZEK,2002, p.189). Em síntese, extradição é um instituto jurídico de cooperação internacional, pelo qual um país entrega a outro um indivíduo, lá condenado ou acusado de um crime, para que possa ser punido ou julgado na devida forma, com respeito aos direitos humanos. A extradição é fundamentada por meio de um tratado celebrado entre os países envolvidos, em que estabelecem um conjunto de requisitos bilaterais para os seus procedimentos. Em caso de inexistência desse acordo formal, o pedido de extradição poderá ser concedido a partir de uma promessa de reciprocidade de tratamento para casos semelhantes, entres os dois Estados envolvidos, via nota diplomática15. Além disso, o direito extradicional é amparado por dois princípios: o Princípio da Identidade e o Princípio da Especialidade. Neemias Carvalho Miranda explica: Identidade significa que o fato motivador do pedido extradicional seja considerado crime tanto no país requerente como no requerido, sendo por isso também como princípio da dupla incriminação. Não se exige, entretanto, a mesma descrição legal do fato, ou seja, idêntica tipicidade, nem o mesmo apenamento. Tão-somente que aquele fato esteja capitulado no ordenamento dos dois países. [...] O princípio da especialidade é uma exigência de que, uma vez entregue o indivíduo solicitado, só poderá ser ele apenado por aqueles crimes que instituíram o pedido de extradição. [...] É um corolário do princípio da reserva legal que informa o direito 15 Manual de Extradição do Ministério da Justiça. Brasília, 2012; 21 penal: a lei que institui o crime e a pena só é aplicada a fatos posteriores; a sua aplicação depende de um processo legal específico (MIRANDA, 2010, p.17-18). Ao lado da extradição, existem ainda outros mecanismos em que um governo promove a saída compulsória de estrangeiro de seu país, como a expulsão e a deportação. Como explica Rezek, a deportação é uma forma de exclusão, do território nacional, daquele estrangeiro que aqui se encontre após uma entrada irregular – geralmente clandestina, ou cuja estada tenha-se tornado irregular – quase sempre por excesso de prazo, ou por exercício de trabalho remunerado, no caso de turista. Cuida-se de exclusão por iniciativa das autoridades locais, sem envolvimento da cúpula do governo: no Brasil, agentes policiais federais tem a competência para promover a deportação de estrangeiros, quando entendam que não é o caso de regularizar sua documentação. A medida não é exatamente punitiva, nem deixa sequelas. O deportado pode retornar ao país desde o momento em que se tenha provido de documentação regular para o ingresso (REZEK, 2002, p.187). A previsão legal no Brasil para a deportação encontra-se entre os Art.57 e Art.64 da Lei 6.815/80, o conhecido Estatuto do Estrangeiro. A expulsão, por sua vez, disposta entre os Art.65 e Art.75 do Estatuto do Estrangeiro, também é uma forma de exclusão do estrangeiro de um país por meio de iniciativa de autoridades locais, sem destinação pré-determinada. Contudo, as causas de expulsão são mais graves, bem como suas consequências, pois ao expulso, em princípio, não será mais permitido retornar ao país que o expulsou. A expulsão é aplicada ao estrangeiro considerado nocivo ou indesejado ao país, devido ao seu comportamento. Diferentemente da deportação, a expulsão envolve a cúpula do governo, pois pressupõe um inquérito que tem curso no âmbito do Ministério da Justiça, e ao longo do qual se assegura ao estrangeiro o direito de defesa. Ao presidente da República incumbe decidir, afinal, sobre a expulsão, e materializá-la por meio de decreto (REZEK,2002, p.188). Francisco Guimarães, ex-Corregedor-Geral da União, resume a diferença entre os três institutos – extradição, expulsão e deportação – da seguinte forma: enquanto a deportação se dirige às hipóteses de entrada e ou estada irregular, a expulsão se volta contra o estrangeiro nocivo ou indesejável ao convívio social, sendo a extradição a forma processual admitida, de colaboração internacional, para fazer com que o um infrator da lei penal, refugiado em um país, se apresente ao juízo competente de outro país onde o crime foi cometido (GUIMARÃES,2002, p.77). 22 Cabe ainda diferenciar a extradição da transferência de pessoas condenadas. Segundo o Manual de Extradição do Ministério da Justiça (2012, p.20), a Transferência de Pessoas Condenadas diz respeito a uma prática que visa à reintegração de pessoas condenadas ao meio social de que são originárias, na medida em que possibilita o cumprimento, junto a seus familiares e compatriotas, do restante da pena aplicada pelo Poder Judiciário do país do qual não é nacional. Ao passo que na extradição a pessoa é reclamada por um país para que possa responder a processo ou para execução de pena. 2.2 Extradição no Brasil A extradição no direito brasileiro é separada em duas espécies: a ativa e a passiva. A primeira é aquela requerida pelo Brasil a outro Estado, quando um indivíduo que lá se encontra praticou crime no Brasil. A passiva, por sua vez, é aquela em que os demais Estados requerem ao Brasil extraditar um indivíduo que aqui se encontra, pois praticou crime no Estado requerente (FERNANDES, 2011, p.501). Dentro dessas espécies há, ainda, duas classificações: a executória e a instrutória. A classificação executória diz respeito àquela extradição pedida para o cumprimento de pena pelo indivíduo requisitado, ao passo que a instrutória se destina a fins de instrução processual, isto é, julgamento (MIRANDA, 2010, p. 16). A Constituição Federal incumbiu-se de prever hipóteses restritivas à extradição passiva, como a impossibilidade de extraditar brasileiro nato. Essas hipóteses estão dispostas no Art.5º, LI e LII: Art5º LI – nenhum brasileiro será extraditado, salvo naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei; LII – não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião (BRASIL, 1988). Posto isso, percebe-se que a Constituição brasileira estipula, basicamente, duas regras para a concessão de extradição. A primeira regra refere-se aos brasileiros: não poderão ser extraditados. Para os brasileiros natos, essa regra é absoluta, de forma a não admitir exceção. Em relação aos brasileiros naturalizados, no entanto, essa regra é relativa, de modo que se 23 admite duas exceções: (a) a exceção em relação à espécie do crime, isto é, só se extraditará brasileiro naturalizado, quando comprovada a sua participação em tráfico ilícito de entorpecentes e; (b) exceção em relação ao momento da prática do crime, isto é, quando em caso de crime comum, o brasileiro naturalizado só poderá ser extraditado, se o crime tiver sido praticado anteriormente a sua naturalização (MORAES, 2005, p.82-83). A segunda regra trata dos estrangeiros: diversamente dos brasileiros, a exceção refere-se às hipóteses em que o estrangeiro não poderá ser extraditado: em caso de crime político ou de opinião. Existem, ainda, outros dispositivos infraconstitucionais que pormenorizam os requisitos formais para a extradição, quais sejam: o Estatuto do Estrangeiro - Lei 6.815/80, Lei Federal 6.964/81 e o Regimento Interno do STF em seus artigos 207 a 214. De forma resumida, Bernardo Gonçalves Fernandes (2011, p. 504-507) reúne os seguintes requisitos formais como os principais, segundo a doutrina majoritária: 1º) Deve haver entre Brasil e o Estado estrangeiro um tratado internacional ou promessa de reciprocidade de tratamento em relação ao Brasil. 2º) A competência para o julgamento do indivíduo estrangeiro tem que ser exclusiva da justiça estrangeira do país requerente. 3º) Deve haver de título penal condenatório no país ou no mandado de prisão emanado de juiz ou autoridade competente no país estrangeiro. 4º) Deve haver dupla tipicidade (o ato pelo qual o indivíduo foi condenado deve ser crime tanto no país estrangeiro quanto no Brasil). Se for crime no Estado requerente da extradição e apenas contravenção penal no Brasil, ou mesmos fato atípico, não será possível a concessão da extradição.16 5º) Não pode haver prescrição da pretensão punitiva ou executória, seja na legislação do país estrangeiro, seja na legislação brasileira. 6º) Não sujeição do extraditando a julgamento por tribunal ou juízo de exceção (que não esteja previamente positivado na legislação ou Constituição do país). Incluímos, também, a necessidade da observância dos parâmetros do devido processo legal e do respeito aos direitos humanos. 7º) A infração atribuída ao extraditando não pode ter caráter político, visto que o Brasil não concede extradição por crime político. 8º) Não prever a legislação brasileira ao crime pena igual ou inferior a um ano. Além dos supracitados requisitos formais, há, ainda, compromissos mediante os quais o Estado requerente deve assumir oficialmente com o Brasil para que a extradição seja 16 Em relação a esse requisito cabe exemplo, como a EXT nº 1135, 2009. Nessa o STF indeferiu unanimemente o pedido da Justiça Alemã, pois requeriam a extradição de Timur Turhan, condenado à dois anos de reclusão por extorsão grave. Contudo, à época do cometimento do crime, Turhan era menor de 18 anos, logo inimputável pela legislação penal brasileira; 24 concedida. São eles: a) não processar ou prender o extraditando por fatos anteriores ao pedido, (b) efetuar a detração penal, isto é, levar em consideração o tempo em que o extraditando ficou preso no Brasil, de forma a subtrai-lo da pena que ainda tem a cumprir no país requerente, (c) comutar a pena de morte e a prisão perpétua em pena máxima de 30 anos, (d) não agravar a pena do extraditando por fundamentação política e, por fim, (e) não conceder a chamada “reextraditação”, isto é, entregar o extraditando a outro país, sem prévia autorização da justiça brasileira. Os requisitos formais acima apontados são o núcleo central de análise do Supremo Tribunal Federal, de forma que, uma vez preenchidos, o deferimento da extradição se impõe, salvo nos casos de vedação constitucional. O procedimento da extradição passiva possui dois âmbitos: o administrativo e o judicial, divididos em três fases. A primeira fase está no escopo administrativo e ocorre quando, por meio de nota diplomática, o Estado requerente envia ao Presidente da República o pedido de extradição. Uma vez recebido o pedido, a Presidência o encaminha para o Supremo Tribunal Federal, órgão responsável por se pronunciar sobre a legalidade 17 do pedido. Nesse momento, o processo adentra a esfera judicial e alcança a segunda fase. Durante a fase judicial, o extraditando deverá ser mantido em prisão preventiva para a extradição até o julgamento final do Supremo18. Nessa fase, em princípio, cabe ao STF somente uma fiscalização concernente aos requisitos citados anteriormente e às vedações constitucionais. Portanto, a Corte não rejulgará o extraditando, isto é, o chamado sistema de contenciosidade limitada. Salienta-se, contudo, que, para contemplar a análise formal, é indispensável abordar aspectos materiais: o mérito da ação, a questão da dupla tipicidade, de ser ou não crime político ou de opinião e se houve ou não a prescrição do crime, como já consolidado pelo STF no julgamento da Extradição nº 703-3 em que decidiu: no sistema belga – ao qual é filiada a lei extradicional brasileira, não afetada pelo Tratado com a Itália – o papel da autoridade judiciária do Estado requerido se limita a um juízo de legalidade extrínseca do pedido, sem penetrar no exame do mérito sobre a procedência, à luz das provas, da acusação formulada no Estado requerente contra extraditando: a rara e eventual deliberação acerca da substância da imputação 17 Lei 6.815/80: Art.83 – Nenhuma extradição será concedida sem prévio pronunciamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre sua legalidade e procedência, não cabendo recurso da decisão; 18 Lei 6.815/80: Art.81 – O Ministério das Relações Exteriores remeterá o pedido ao Ministério da Justiça, que ordenará a prisão do extraditando colocando-o à disposição do Supremo Tribunal Federal; Art.84, Parágrafo Único – A prisão perdurará até o julgamento final do Supremo Tribunal Federal, não sendo admitidas a liberdade vigiada, a prisão domiciliar, nem a prisão albergue; 25 faz-se na estrita necessidade de decisão de questões como a dúplice incriminação, da qualificação política do crime ou de prescrição, sempre, porém, a partir da versão dos fatos escolhidos, no Estado requerente, conforme a peça de acusação ou a decisão judicial que suportar o pedido (STF – Pleno – Extradição nº 703-3 – Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Fev. 1998). Finda essa análise, o Supremo pronuncia-se favorável ou contrário à extradição, quando atendidos os requisitos ou quando não o são, respectivamente. Na hipótese de improcedência do pedido, o procedimento extradicional se encerra, isto é, está definitivamente decidido que não ocorrerá a extradição, de modo que não se retorna ao Presidente para decidir sobre ele. Todavia, caso se decida pela procedência do pedido, iniciase a terceira e última fase, que acontece no seio administrativo. Na terceira fase, é encaminhada a decisão do Plenário para o Presidente da República que decretará ou não a extradição. Essa questão, isto é, a decretação ou não, pelo presidente, da extradição tem sido constantemente debatida no mundo jurídico, pois a corrente majoritária dos juristas entende que a extradição é um direito inerente à soberania e, por isso, fica a cargo do Presidente da República deliberar, em última instância, sobre ela. Logo, caso o Supremo decida pela procedência do pedido, o chefe do executivo não estaria vinculado a essa decisão. Entretanto, há uma corrente minoritária da doutrina internacional e constitucional que defende a necessária vinculação do Presidente à decisão do STF, uma vez que a legislação brasileira prevê que o Pretório Excelso é órgão competente para analisar, jurídico-formalmente, o pedido extradicional. A seguir, uma síntese esquemática do procedimento da extradição: FIGURA 1 – Síntese esquemática do procedimento da extradição no direito brasileiro. 26 2.3 Tratado de Extradição entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana Como já abordado neste guia, um dos requisitos para a concessão de extradição é a existência de um tratado acerca da temática extradicional entre o Estado requerente e o Estado requerido, ou ao menos uma promessa de reciprocidade19. No caso alvo de análise deste guia, a Extradição nº 1.085, em que o Estado requerente é a Itália e o requerido o Brasil, observa-se a existência de um acordo formal celebrado entre as partes em 17 de outubro de 1989. Nesse tratado, Brasil e Itália se comprometeram a colaborar reciprocamente em matéria de extradição, como consta em seu artigo I: Artigo I Cada uma das partes obriga-se a entregar à outra, mediante solicitação, segundo as normas e condições estabelecidas no presente tratado, as pessoas que se encontrem em seu território e que sejam procuradas pelas autoridades judiciais da parte requerente, para serem submetidas a processo penal ou para a execução de uma pena restritiva de liberdade pessoal. Em seus artigos II e III são expostas as hipóteses em que se autoriza e se recusa a extradição entre as partes, respectivamente: Artigo II Casos que autorizam a Extradição 1. Será concedida a extradição por fatos que, segundo a lei de ambas as partes, constituírem crimes puníveis com uma pena privativa de liberdade pessoal cuja duração máxima prevista for superior a um ano, ou mais grave. 2. Ademais, se a extradição for solicitada para execução de uma pena, será necessário que o período da pena ainda por cumprir seja superior a nove meses. 3. Quando o pedido de extradição referir-se a mais de um crime e algum ou alguns deles não atenderem às condições previstas no primeiro parágrafo, a extradição, se concedida por um crime que preencha tais condições, poderá ser estendida também para os demais. Ademais, quando a extradição for solicitada para a execução de penas privativas de liberdade pessoal e aplicada por crimes diversos, será concedida se o total de penas ainda por cumprir for superior a 9 meses. 4. Em matéria de taxas, impostos, alfândega e câmbio, a extradição não poderá ser negada pelo fato da lei da parte requerida não prever o mesmo tipo de tributo ou obrigação, ou não contemplar a mesma disciplina em matéria fiscal, alfandegária ou cambial que a lei da parte requerente. Artigo III 19 Lei 6.815/80: Art.76 – A extradição poderá ser concedida quando o governo requerente se fundamentar em tratado, ou quando prometer ao Brasil a reciprocidade; 27 Casos de recusa da Extradição 1. A Extradição não será concedida: a) se, pelo mesmo fato, a pessoa reclamada estiver sendo submetida a processo penal, ou já tiver sido julgada pelas autoridades judiciárias da parte requerida; b) se, na ocasião do recebimento do pedido, segundo a lei de uma das partes, houver ocorrido prescrição do crime ou da pena; c) se o fato pelo qual é pedida tiver sido objeto de anistia na parte requerida, e estiver sob a jurisdição penal desta; d) se a pessoa reclamada tiver sido ou vier a ser submetida a julgamento por um tribunal de exceção na parte requerente; e) se o fato pelo qual é pedida for considerado, pela parte requerida, crime político; f) se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados; g) se o fato pelo qual é pedida constituir, segundo a lei da parte requerida, crime exclusivamente militar. Para fins deste tratado, consideram-se exclusivamente militares os crimes previstos e puníveis pela lei militar, que não constituam crimes de direito comum. 20 Ao ler os supracitados artigos, nota-se que o tratado em questão não traz cláusulas substancialmente inovadoras no tocante a hipóteses de autorização da extradição; pelo contrário, reforça os requisitos já dispostos na legislação brasileira como os da dupla tipicidade, a exceção do crime político, entre outros. Ressalta-se, contudo, a alínea f do Artigo III, que prevê a hipótese de recusa de extradição quando o Estado requerido possuir “razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação”. Essa possibilidade, por sua vez, não está disposta no ordenamento brasileiro, embora seja presumível dados princípios constitucionais democráticos brasileiros. Dessa maneira, torna-se uma peculiaridade do procedimento extradicional ítalo-brasileiro. 2.4 Crime Político Como já exposto neste guia, a legislação brasileira e o Tratado de Extradição entre Brasil e Itália elencam como uma das hipóteses de não concessão de extradição quando o crime pelo qual o extraditando foi acusado ou condenado possuir natureza política. A conceituação de crime político é, per se, um debate a parte, isso, pois não existe um consenso quanto à sua delimitação, tampouco no Brasil, legislação que defina o que é ou não infração política. 20 Tratado de Extradição entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana. Disponível em http://www.conjur.com.br/dl/tratado-extradicao-brasil-italia.pdf . Acesso: 29 de novembro de 2013; 28 Segundo Cezar Roberto Bitencourt, quando se trata da conceituação de crime político a doutrina apresenta três teorias: a objetiva, a subjetiva e a mista. De acordo com a primeira, o que importa é a natureza do bem jurídico (v.g., organização político-jurídica do Estado). Para a teoria subjetiva, o decisivo é o fim perseguido pelo autor, qualquer que seja a natureza dos bens lesados [v.g., quando o autor do crime, por motivação política, atinge um objeto de natureza privada, como na hipótese de um assalto a banco com objetivo de arrecadar fundos para um grupo, associação política opositora – colchete dos autores do guia]. A teoria mista – combinação das anteriores – requer que tanto o bem jurídico atacado como o objetivo do agente sejam de caráter político [v.g., quando o autor, por motivação política, atinge também uma organização político-jurídica do Estado] – colchetes dos autores do guia. (BITENCOURT, 2012, p.238) Desses entendimentos iniciais decorrem duas novas classificações conceituais: crime político puro e crime político relativo ou complexo. Como coloca Neemias Carvalho Miranda, o conceito de crime político puro é o que segue: o indivíduo que, agindo sem violência, exterioriza ideias e pratica atos tendentes a abolir, destruir, desfazer no todo ou em parte, a estrutura político-jurídica do Estado, a forma de governo, o regime político, depor e destruir autoridades, desmembrar o território do Estado ou afetar a sua soberania, incluindo-se entre aqueles atos a traição e a espionagem (MIRANDA,2010, p.54-55). Portanto, o crime político puro é aquele que possui a motivação política e objeto atingido também possui natureza política, isto é, os elementos subjetivos e objetivos são de ordem política, e sua prática não envolve violência. O chamado crime político complexo ou relativo, por sua vez, é aquele em que se unem elementos de um crime comum, como a violência, com elementos do crime político puro, com a motivação política. Nas palavras de Neemias Carvalho Miranda [...]os crimes políticos complexos são os que lesionam ao mesmo tempo a ordem política e o direito comum como a vida e o patrimônio. Quando um indivíduo pratica um crime comum visando a alcançar um resultado político, ele terá praticado um crime político complexo (MIRANDA, 2010, p.56). Todavia, como já dito, não existe na legislação brasileira um apontamento conceitual do que seria um crime político. Apenas consta no Art.77, §2º, lei 6.815, a exclusividade de competência do Supremo Tribunal Federal para definir qual é a natureza da infração, isto é, 29 cabe somente ao Pretório Excelso dizer se trata de crime comum ou político21. Dessa maneira, o conceito de crime político é algo que tem sido construído jurisprudencialmente. A Jurisprudência do STF, até 2008, demonstrou-se pacífica quanto ao entendimento de que o crime político disposto na Constituição e no Estatuto do Estrangeiro não se limita ao crime político puro, de modo que é admissível o crime político complexo, isto é, a associação de crimes políticos puros a crimes comuns. A partir da admissibilidade da junção de crimes comuns a crimes políticos puros, a Corte consagrou que só seria considerado crime político complexo aquele em que houvesse prevalência da motivação política, o chamado Princípio da Preponderância e; ausência violência extremada, conhecido como Princípio da Atrocidade dos Meios. Sobre isso sintetizou o Ministro Ricardo Lewandowski, durante o julgamento da Extradição nº 885, em 2004: Como se vê, o Supremo Tribunal Federal vem fazendo uma clara distinção entre crimes políticos típicos, identificáveis ictu oculi, praticados, verbi gratia, contra a integridade territorial de um país, a pessoa de seus governantes, a soberania nacional, o regime representativo e democrático ou o estado de Direito, e crimes políticos relativos, que a doutrina estrangeira chama de hard cases, com relação aos quais, para caracterizá-los ou descartá-los, cumpre fazer uma abordagem caso a caso (case by case approach). Essa abordagem, na jurisprudência, deve guiar-se por dois critérios, a saber: (i) o da preponderância e (ii) o da atrocidade dos meios (STFPleno – Extradição nº 855 – CHILE. Rel. Ministro Celso de Mello. Ago. 2004). Cabe ressaltar que essa construção jurisprudencial não é isolada ou totalmente inovadora, pois o Princípio da Preponderância nada mais é do que um desdobramento do disposto no Art.77, §1º na Lei 6.815: Art.77 §1º A exceção do item VII não impedirá a extradição quando o fato constituir, principalmente, infração da lei penal comum, ou quando o crime comum, conexo ao delito político, constituir o fato principal. Portanto, evidencia-se a não existência de um modelo pronto e hermético de aplicação do conceito de crime político no direito extradicional, de forma que se torna necessária a avalição do caso concreto, a fim de balizar o contexto fático, histórico e político com a 21 Lei 6.815/80: Art. 77, §2º - Caberá, exclusivamente, ao Supremo Tribunal Federal, a apreciação do caráter da infração; 30 conduta do agente, para assim deliberar sobre o caráter da infração, é como explica o Ministro Cezar Peluso: (...) toca a esta Corte sopesar, caso a caso, o contexto fático, histórico, político e social em que tenha sido praticada a conduta delituosa imputada ao extraditando, para daí apurar o fato de caráter preponderante no crime complexo (STF – Pleno – Extradição nº 1085 – ITÁLIA. Rel. Ministro Cezar Peluso. Dez. 2009). 2.5 Refúgio Segundo o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), refúgio é um instituto jurídico-político internacional que tem por objetivo a proteção de qualquer cidadão estrangeiro que se encontre ameaçado por motivos religiosos, raciais, de opiniões políticas, nacionalidade ou em virtude de graves violações aos direitos humanos em seu país de origem. Sua regulamentação no Direito Internacional se encontra na Convenção de Genebra sobre o Estatuto do Refugiado, de 1951. Cabe, aqui, breve diferenciação do refúgio de asilo político. Asilo político, segundo José Francisco Rezek é o acolhimento, pelo Estado, de estrangeiro perseguido alhures – geralmente, mas não necessariamente, em seu próprio país patrial – por causa de dissidência política, ou por crimes que, relacionados com a segurança do Estado, não configuram quebra de direito penal comum (REZEK,2002, p.207). O Secretário-executivo do Ministério da Justiça, Luiz Paulo Barreto, sintetiza a diferença entre asilo político e refúgio da seguinte forma: A principal diferença entre os institutos jurídicos do asilo e do refúgio reside no fato de que o primeiro constitui exercício de um ato soberano do Estado, sendo decisão política cujo cumprimento não se sujeita a nenhum organismo internacional. Já o segundo, sendo uma instituição convencional de caráter universal, aplica-se de maneira apolítica, visando a proteção de pessoas com fundado temor de perseguição. Uma diferença prática que se pode perceber é que o asilo normalmente é empregado em casos de perseguição política individualizada. Já o refúgio vem sendo aplicado a casos em que a necessidade de proteção atinge a um número elevado de pessoas, onde a perseguição tem aspecto mais generalizado (BARRETO, 2009, p.3). 31 Na legislação brasileira, o refúgio está regulamentado pela Lei 9.474/97, o Estatuto dos Refugiados, que em seu artigo 1º conceitua refugiado: Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país. Define ainda, no mesmo dispositivo legal, que será da competência do CONARE a análise e deliberação de pedidos de concessão do refúgio: Art. 12. Compete ao CONARE, em consonância com a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, com o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967 e com as demais fontes de direito internacional dos refugiados: I - analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em primeira instância, da condição de refugiado; II - decidir a cessação, em primeira instância, ex officio ou mediante requerimento das autoridades competentes, da condição de refugiado; III - determinar a perda, em primeira instância, da condição de refugiado; IV - orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados; V - aprovar instruções normativas esclarecedoras à execução desta Lei. A decisão do CONARE, segundo a Art. 26 da presente lei, deverá ser notificada e devidamente fundamentada. Destaca-se, entretanto, que em caso de negativa da concessão do refúgio, pode o solicitante buscar o Ministério da Justiça em sede recursal, em que caberá ao Ministro de Estado da Justiça analisar e decidir sobre o pedido. Esse recurso está regulamentado no Capítulo V da Lei 9474/96: CAPÍTULO V Do Recurso Art. 29. No caso de decisão negativa, esta deverá ser fundamentada na notificação ao solicitante, cabendo direito de recurso ao Ministro de Estado da Justiça, no prazo de quinze dias, contados do recebimento da notificação. Art. 30. Durante a avaliação do recurso, será permitido ao solicitante de refúgio e aos seus familiares permanecer no território nacional, sendo observado o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 21 desta Lei. 32 Art. 31. A decisão do Ministro de Estado da Justiça não será passível de recurso, devendo ser notificada ao CONARE, para ciência do solicitante, e ao Departamento de Polícia Federal, para as providências devidas. Art. 32. No caso de recusa definitiva de refúgio, ficará o solicitante sujeito à legislação de estrangeiros, não devendo ocorrer sua transferência para o seu país de nacionalidade ou de residência habitual, enquanto permanecerem as circunstâncias que põem em risco sua vida, integridade física e liberdade, salvo nas situações determinadas nos incisos III e IV do art. 3º desta Lei. O refúgio e a extradição possuem uma relação próxima no direito brasileiro. O Art.33 do Estatuto dos Refugiados versa: Art. 33. O reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio. Desse artigo, depreende-se que, uma vez concedido status de refugiado a um indivíduo, esse não poderá sofrer processo de extradição, caso os fatos pelos quais o refúgio foi concedido convirjam com os fatos pelos quais se pleiteia sua extradição. Nesse sentido, decidiu o STF na Extradição nº 493: De acordo com o art. 33, da L. 9474/97, o reconhecimento administrativo da condição de refugiado, enquanto dure, é elisivo, por definição, da extradição que tenha implicações com os motivos do seu deferimento. (STF – Pleno – Extradição nº 493 – ARGENTINA. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Out. 1989) Entretanto, a partir da Extradição nº 1008-5, conhecida como Caso Medina, houve uma proposta de mudança jurisprudencial no Supremo, encabeçada pelo então Ministro Relator Gilmar Mendes, no sentido de se passar a entender que o processo de extradição deve ser apreciado pelo STF, independentemente da concessão de refúgio pelo Estado brasileiro. Isso porque, de acordo com Mendes, é atribuição constitucional exclusiva do Supremo a apreciação legal de processo de extradição, assim como a definição de crime político, de forma que uma decisão administrativa, seja ela tomada pelo CONARE ou Ministro da Justiça, não poderia obsta-lo. 33 2.6 Breves questionamentos acerca do caso Battisti A Extradição nº 1085 trata do pedido do governo italiano ao brasileiro da entrega de Cesare Battisti à justiça italiana, para que lá cumpra a pena à qual foi condenado pelo assassinato de quatro pessoas. Como já narrado, Battisti era membro de um grupo ativista italiano na década de 1970, que, em meio aos chamados “Anos de Chumbo”, aderiu à luta armada em prol da implantação do modelo socialista na Itália. Entre os anos de 1979 e 1981, foi preso e condenado por participação em grupo armado e ocultação de armas. Todavia, alguns anos após sua primeira condenação, enquanto se encontrava foragido, foi novamente julgado e condenado à prisão perpétua pelo assassinato de quatros pessoas, ocorridos no período durante o qual participou do Proletariados Armados pelo Comunismo – PAC. Após passar por uma série de fugas, Cesare Battisti foi detido, por fim, no Rio de Janeiro, em 2007. Teve seu pedido de concessão de status de refugiado negado pelo CONARE, contudo o conseguiu junto ao Ministro da Justiça à época, Tarso Genro. Diante desses fatos, é inevitável que diversos debates se abram sobre o processo da Extradição nº 1085, advindo do pedido de extradição da República Italiana ao Brasil. Debates esses que não se restringem a uma pura observação formal da letra da lei, pois trata-se de um caso mais complexo do que a mera observação de critérios técnico-formais. O primeiro questionamento seria sobre a natureza das infrações supostamente cometidas por Battisti, pois são atribuídas a um grupo de ativistas de extrema esquerda, o Proletariados Armados pelo Comunismo, existente na Itália durante a década de 1970, isto é, nos “Anos de Chumbo”. Em face disso, poder-se-ia atribuir caráter político aos delitos, dado o contexto em que ocorreram. Contudo, a discussão torna-se mais densa, na medida em que o objeto material atingido, isto é, as vítimas dos homicídios, à primeira vista, não parecem ter nexo direto com a temática política. Outro questionamento refere-se ao possível desrespeito aos direitos fundamentais de ordem processual que Cesare Battisti sofreu em seu julgamento, uma vez que foi condenado a prisão perpétua na sua ausência, à revelia. Isso pode significar cerceamento ao seu direito à ampla defesa. Ressalta-se, no entanto, que segundo o Tratado de Extradição entre a República 34 Federativa do Brasil e a República Italiana a mera condenação à revelia não é suficiente para a recusa de extradição22. Como decorrência da reflexão anterior, levanta-se a seguinte indagação: poderia Battisti estar sofrendo perseguição política? Pois em seu primeiro julgamento, em 1981, Cesare Battisti foi condenado por participação em grupo armado e ocultação de armas, mesmo após fazer parte da investigação da morte do joalheiro de Milão. Entretanto, alguns anos depois, após o testemunho de outro ex-membro do PAC, Pietro Mutti, que recebeu o benefício da delação premiada, Battisti, por meio de uma condenação em que não esteve presente, tornou-se não somente responsável pela morte do joalheiro, como também por outras três mortes. Isso poderia levar à insinuação de uma perseguição política por ele ter participado de um grupo ativista de extrema esquerda, PAC, no final da década de 1970. E, segundo o Tratado de Extradição entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana, perseguição política é uma hipótese de recusa da extradição23. Por fim, levanta-se o questionamento em relação ao sobrestamento da ação de extradição devido à concessão do status de refugiado à Battisti, em janeiro de 2009, por Tarso Genro. Isso, pois, segundo a Lei 9.474/97, a concessão de refúgio obsta qualquer processo de extradição, desde que os fatos de ambos coincidam. Esse foi o caso de Cesare. Todavia, podese retomar a tese defendida pelo Ministro Gilmar Mendes em extradições anteriores. e que a concessão do status de refugiado, medida administrativa, não implica o impedimento do julgamento de uma extradição, medida judicial. Essas foram algumas das ponderações relevantes à Extradição 1.085. Tendo em vista que nessa seção pretendeu-se levantar alguns dos importantes questionamentos de maneira relacionada com os conceitos anteriormente apresentados, frisa-se que não foi realizada uma enumeração exaustiva de todos os pontos relevantes ao caso Battisti. Portanto, cabe ao delegado usar o conteúdo apresentado como norte para seu estudo. 22 Tratado de Extradição entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana: Artigo V – A Extradição tampouco será concedida: a) se, pelo fato qual for solicitada, a pessoa reclamada tiver sido ou vier a ser submetida a um procedimento que não assegure os direitos mínimos de defesa. A circunstância de que a condenação tenha ocorrido à revelia não constitui, por si só, motivo para recusa de extradição. [Grifo dos autores do guia]; 23 Tratado de Extradição entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana: Artigo III – 1. A Extradição não será concedida: f) se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados; 35 3. Do processo: O Supremo Tribunal Federal recebeu o pedido de Extradição nº 1085, bem como acolheu o Mandado de Segurança 27.875 e decidiu por julgá-los conjuntamente, de modo que o Mando de Segurança foi tratado como preliminar da Extradição, pois a discussão de seu mérito influi diretamente no julgamento da extradição. Afinal, se não concedida a segurança, isto é, considerado legal o ato do Ministro da Justiça, abre-se a discussão sobre o impedimento ou não do julgamento da extradição em face do status de refugiado do extraditando. a) Extradição nº 1.085 A ação de extradição em espécie já foi tratada no tópico “1. Extradição no Brasil”. No caso em análise, trata-se de Extradição Passiva e Executória, de número 1.085. Figurando como Estado requerente está a República Italiana, a República Federativa do Brasil como Estado requerido e; como extraditando Cesare Battisti. O pedido de extradição foi protocolado no Supremo Tribunal Federal em 04 de maio de 2007. Pede-se a entrega de Cesare Battisti, ex-ativista italiano, foragido da justiça italiana e condenado à prisão perpétua pelo cometimento de quatro assassinatos. A República Italiana fundamenta seu pedido no Tratado de Extradição entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana, por meio do qual, ambos se comprometeram a “desenvolver cooperação na área judiciária em matéria de extradição” 24. b) Mandado de Segurança 27.875 Segundo Bernardo Gonçalves Fernandes, mandado de segurança é uma ação constitucional que visa proteger direito líquido e certo lesionado ou ameaçado de lesão, não amparado por habeas corpus ou habeas data, em virtude de ilegalidade ou abuso de poder praticado por autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições públicas. (FERNANDES, 2011, p.355). 24 Tratado de Extradição entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana; 36 Regulamentado pela Lei 12.016/09, o mandado de segurança possui como requisitos o ato comissivo ou omissivo de autoridade pública ou agente público no exercício das atribuições públicas; a ilegalidade ou abuso de poder; lesão ou ameaça de lesão ao direito líquido e certo. (Para maiores detalhamentos sobre o Mandado de Segurança, aconselha-se a leitura de FERNANDES, 2011). O mandado de segurança em questão, de número 27.875, foi interposto pela República Italiana, em fevereiro de 2009, a fim de questionar o status de refugiado concedido a Cesare Battisti pelo Ministro Tarso Genro, uma vez que a impetrante encontrava-se temerosa com os possíveis prejuízos que essa concessão causaria ao processo extradicional. Em seu pedido liminar requer que sejam suspensos os efeitos do ato do Ministro da Justiça, uma vez que isso poderia prejudicar o processo de extradição. Pede ainda o pronunciamento do Ministro da Justiça, do extraditando e do Procurador-Geral da República sobre o mandado impetrado. Por fim, quanto ao mérito, requer que se conceda o mandado de segurança, a final, para declarar-se insubsistente ou anular-se a decisão com que a autoridade coatora, contra legem e contra constitutionem (bem como contra a Convenção de 1951 e a Declaração Universal dos Direitos do Homem), concedeu a condição de refugiado a Cesare Battisti, nos termos da fundamentação retro expendida. (mandado de segurança interposto pela República Italiana. Bulhões & Jaccud Advocacia S/S, 2009). Subtítulo II: Do Caso da Lei de Anistia (2010): 1. Do histórico da questão: O coup d’État de 1º de abril de 1964 inaugurou um período de exceção em que direitos e garantias fundamentais foram aos poucos sendo anulados. Os governos militares que se sucederam ao golpe, progressivamente, centralizaram o poder na condução da nação. O ápice da supressão de direitos aconteceu com a promulgação do Ato Institucional nº 5 em 1968. Esse decreto terminou por abolir todas as liberdades individuais, inclusive suspendeu o direito ao habeas corpus. Nesse diapasão, a tortura era praticada deliberadamente e 37 manifestantes políticos eram presos em massa. Muitos foram os que jamais saíram das cadeias e tampouco tiveram seus corpos enterrados. Outro fato histórico que merece especial atenção é o conjunto de leis outorgado pelo então Presidente da República Ernesto Geisel, em 1977, que ficou conhecido como Pacote de Abril. Dentre as muitas medidas contidas nesse conjunto, uma merece destaque devido a sua pertinência com a matéria tratada: a criação de senadores biônicos. Um terço dos senadores passou, a partir dessa decisão, a ser nomeado pelo Presidente. Isso foi reflexo do temor por parte do governo da perda de poder durante a abertura política. Com o agravamento da crise econômica e a subsequente crise política, o governo Geisel iniciou o processo de abertura política, que pretendia ser lento e gradual. Nas palavras de Ronaldo Costa Couto (1999), “Ernesto Geisel governou com a abertura em uma das mãos e com o AI-5 na outra. A flor e o chicote” 25. Nesse contexto surgiram os Comitês Brasileiros de Anistia que atuaram politicamente por meio de manifestações, cartazes, comícios, entre outros artifícios, mesmo sob o regime de exceção ainda em vigor26. Em 1978, realizou-se o 1ª Congresso Nacional de Anistia, em que surgiu o lema “anistia ampla, geral e irrestrita”. Diante da pressão popular, o presidente João Figueiredo encaminhou o projeto da Lei de Anistia ao Congresso. O projeto inicial era tão fraco, no sentido de não atender às demandas sociais, que recebeu, no Congresso, 305 emendas. Após nove horas de debate e votação, sob um clima de tensão, ele foi aprovado por 206 votos a favor, e 201 contra27. 2. Da perspectiva jurídica: 2.1 Conceito de Anistia A punição para um crime é a consequência imputada pela realização de ato típico, ilícito e culpável. Entretanto há certas situações em que o Estado abre mão do seu ius puniendi e deixa de aplicar a sanção prevista. São as chamadas formas de extinção de 25 COUTO, Ronaldo Costa. O golpe de 1968, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1412200809.htm; 26 27 Folha de São Paulo. Disponível em: Mais informações em: http://www.abcdeluta.org.br/materia.asp?id_CON=89; Mais informações disponíveis em: http://jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=9833; 38 punibilidade. A ação não se extingue, apenas não há, por parte do Estado, o exercício do seu direito de punir. A anistia é uma das formas de extinção da punibilidade.28 A palavra vem do grego amnestía, que significa esquecimento. Na lição de Bitencourt (2012, p.865): “A anistia (...) é o esquecimento jurídico e tem por objeto fatos (e não pessoas) definidos como crimes”. Destarte, há a criação de uma ficção jurídica, como se as condutas nunca tivessem existido. Via de regra, é aplicada a crimes políticos em situações em que o Estado tem por objetivo apaziguar paixões coletivas perturbadoras da ordem. Ela não é novidade no Brasil. No início do século XX, Rui Barbosa já dissertava sobre esse instituto, ao pedir anistia para os que foram punidos pelo então Presidente Floriano Peixoto pela Revolta da Vacina. O célebre jurista asseverou: O perdão, sim, pela sua natureza, pressupõe o arrependimento do criminoso, o abandono das armas de luta. A anistia, pelo contrário, é um ato político pelo qual se faz esquecer o delito cometido contra a ordem, o atentado contra as leis e as instituições nacionais. (...) A anistia, que é o olvido, a extinção, o cancelamento do passado criminal, não se retrata. Concedida, é irretirável, como é irrenunciável. Quem a recebeu, não a pode enjeitar, como quem a liberalizou, não a pode subtrair. É definitiva, perpétua, irreformável. Passou da esfera dos fatos alteráveis pelo arbítrio humano para a dos resultados soberanos e imutáveis, que ultimam uma série de relações liquidadas, e abrem uma cadeia de relações novas. De todos os direitos adquiridos este seria, por assim dizer, o tipo supremo, a expressão perfeita, a fórmula ideal: seria, por excelência, o direito adquirido. Ninguém concebe que se desanistie amanhã o indivíduo anistiado ontem. Não há poder, que possa reconsiderar a anistia, desde que o poder competente uma vez a fez lei (BARBOSA) 29. Ela é responsável por extinguir todos os efeitos penais, inclusive o pressuposto de reincidência30. Subsidiariamente, ela extingue o processo judicial que porventura tenha se iniciado, bem como impede a sua instauração. Entretanto, a obrigação de indenizar, que é do campo civil, permanece. Há, ainda, a anistia tributária e previdenciária. 28 29 Código Penal – art. 107; BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa http://www.casaruibarbosa.gov.br/rbonline/; Acesso: 21 de novembro de 2013; Disponível em: 30 De acordo com o Código Penal em vigor, ocorre reincidência quando um crime for cometido pelo mesmo agente posteriormente ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Esse é chamado pressuposto de reincidência, isto é, o critério necessário para que haja o enquadramento da situação de reincidência. A seu turno, a anistia desfaz essa situação ao criar uma ficção jurídica que não considera crime a conduta que outrora se enquadrava na situação ilícita. Logo a conduta criminosa não pode ser considerada na dosimetria de pena para crimes posteriormente cometidos; 39 A concessão da anistia é de competência exclusiva do Congresso Nacional, de acordo com o art. 48, inciso VIII, da Constituição da República em vigor. Ela é feita por meio de lei específica e abrange uma coletividade, por se direcionar a um fato; é um perdão geral. Aquele que recebe anistia não pode recusá-la. Além disso, seus efeitos são irrevogáveis. 2.2 Graça e Indulto De acordo com Damásio de Jesus (2013, p. 606), as principais diferenças da anistia para a graça e o indulto são as seguintes: - A anistia, em regra, atinge crimes políticos; a graça e o indulto, crimes comuns. -A anistia é concedida pelo Congresso Nacional, a graça e o indulto são competências exclusivas do Presidente da República. - A anistia pode ser concedida antes da sentença, já a graça e o indulto pressupõem o trânsito em julgado da sentença condenatória. - A anistia é a mais ampla de todas e atinge uma coletividade. O indulto por sua vez atinge certos grupos de pessoas. Já a graça é de concessão individual. 2.3 Anistia no Brasil Em 1979, foi promulgada a lei de número 6.683, que preceituava, em seu artigo 1º: É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. Resta claro que a anistia concedida pela lei brasileira no presente caso é bastante ampla e abarca uma grande quantidade de pessoas que participaram direta ou indiretamente da luta contra o regime ditatorial brasileiro. Todavia, a interpretação da lei traz consigo um grave problema: a possibilidade de anistia aos torturadores do regime. Essa possibilidade é cerne do questionamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (doravante ADPF) de número 153. 40 Desde sua aprovação, considera-se que a Lei de Anistia concedeu também anistia aos torturados do regime. Isso, pois, o parágrafo primeiro da referida lei permitiu esse entendimento: “§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.” Esse é, pois, o objeto de controvérsia constitucional requerido na petição inicial do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (doravante OAB): A interpretação, segundo a qual a norma questionada concedeu anistia a vários agentes público responsáveis, entre outras violências, pela prática de homicídio, desaparecimento forçado, tortura e abusos sexuais contra opositores políticos viola frontalmente diversos preceitos fundamentais da Constituição, conforme será demonstrado abaixo. A dita petição inicial apresentada pela OAB elencou uma série de princípios que supostamente foram violados pela interpretação por ela questionada. O primeiro princípio questionado é o da isonomia em matéria de segurança. O princípio da isonomia, ou da igualdade, pode ser resumido na clássica frase: “todos são iguais perante a lei”. Ele está compreendido no caput do artigo 5º da Lei Maior brasileira em vigor desde 1988: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...) De modo resumido, questiona-se a violação da isonomia relacionada à segurança. O princípio da legalidade, conexo ao da isonomia, em segurança aduz que: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. A partir desse princípio, o arguente traça uma linha argumentativa em que pelo fato de a anistia se referir a crimes objetivamente definidos em lei, e não a pessoas, ela viola o princípio supracitado ao ampliar a anistia a “classes absolutamente indefinidas de crimes”. Ao estender a anistia a “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política” (opt. cit), o arguente defende, portanto, que a Lei violou o princípio da segurança jurídica, uma vez que anistia crimes que sequer constam em lei. O pensamento ainda progride ao 41 argumentar que caberá, então, ao Judiciário definir e classificar os crimes em lugar do legislador. Dessa forma, ocorre a violação do princípio da isonomia, pois nos dizeres da petição inicial (ADPF-153: Petição Inicial, p. 18): Em suma, ao admitir-se a interpretação questionada da Lei nº 6683, de 1979, nem todos são iguais perante a lei em matéria de anistia criminal. Há os que praticaram crimes políticos, necessariamente definidos em lei, e foram processados e condenados. Mas há, também, os que cometeram delitos, cuja classificação e reconhecimento não foram feitos pelo legislador, e sim deixados à discrição do Poder Judiciário, conforme a orientação política de cada magistrado. Em síntese, essa é a pedra clave do primeiro argumento contra a interpretação da lei. Cabe aqui ao ministro, refletir se o parágrafo primeiro inaugura, ou não, uma classe de crimes não definidos previamente em lei. A análise do conceito de crime conexo se faz muito importante no caso e será explanada mais abaixo. Cabe, também, estudo do conceito de crime político, para assim poder se estabelecer a eventual conexão. Para isso sugere-se a pesquisa em jurisprudências do Supremo Tribunal Federal sobre extradição, como a Ext. 700; Ext. 994. Passa-se então ao questionamento de possível violação por parte do poder público do preceito fundamental de não ocultar a verdade. O direito à verdade e à memória é consagrado em todo Estado Democrático de Direito. Nos dizeres de Paulo Abrão31 a um dos diretores deste comitê: “a memória e a verdade são as melhores armas humanas contra a barbárie”. A argumentação da inicial gira em torno do fato de que ao conceder anistia aos torturadores, cuja participação do corpo estatal é evidente, a lei em debate suplantou o direito do povo brasileiro de identificar aqueles que exerciam funções públicas e foram os algozes de muitos cidadãos, já que as identidades desses torturadores ficariam ocultas. A Carta de 1988 declara em seu artigo 5º, inciso XXXIII que: Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. 31 Dedicatória escrita pelo autor em: ABRÃO, Paulo, GENRO, Tarso. Os direitos da transição e a democracia no Brasil: estudos sobre Justiça de Transição e teoria da democracia.- 1ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012; 42 Com isso, o princípio da publicidade merece especial atenção no caso. Efetivado no Estado Democrático de Direito, ele representa uma arma da própria população contra qualquer irregularidade que possa vir a ser cometida por um ente estatal. Ele permite a responsabilidade daqueles que se desvirtuaram no cumprimento de sua função pública. Cabe ao delegado, analisar se a concessão de anistia aos torturados pode impedir que a verdade seja contada. Resta como incitação ao pensamento que, se por um lado a ocultação dos agentes do regime pode acontecer por meio da anistia e da impunidade, como argumenta a petição inicial, por outro, não é só por meio da condenação que se conhecerá a verdade. Muitos são os meios em que se podem obter fatos, como os documentos da época, depoimentos de sobreviventes entre outros. Consideram-se também desrespeitados os princípios democrático e republicano. Esses princípios que supostamente estão em conflito com a lei estão presentes no primeiro artigo da Lei Maior brasileira: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. A argumentação nesse caso é pautada na ideia democrática de que o povo é o verdadeiro soberano, de modo que apenas o exercício do poder é feito pelos representantes; e da república em que o “bem comum do povo está sempre acima de qualquer interesse particular”. Destarte, o fato da Lei de Anistia ter sido aprovada em um Congresso autoritário, que como visto acima detinha grande parcela de senadores biônicos, e não ter sido legitimada pelo órgão legislativo oriundo de eleições livres pós-ditadura, por si só, segundo a inicial, feriria a legitimidade democrática. Além disso, considera-se que em um regime republicano, os governantes não têm o poder de anistiar aqueles que cometeram crimes sob as suas ordens, isto é, considera-se uma autoanistia32. Importante frisar que ainda que a anistia seja 32 É possível encontrar diversas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos que trabalham o tema autoanistia na página 24 da petição inicial; 43 proveniente do Congresso Nacional, o chefe do Executivo pode sancionar ou vetar a lei que a defina. O ministro deve refletir acerca das condições em que a lei foi aprovada e se ela viola ou não o sistema republicano democrático brasileiro. Para aguçar o raciocínio lógico, sugerese que ele pense acerca da estrutura da norma e seus métodos de aprovação, bem como nos princípios essenciais do Estado Democrático de Direito. Por fim, o autor da inicial considera que a dignidade da pessoa humana e do povo brasileiro são inegociáveis, de sorte que a Lei questionada disporia acerca desses princípios de maneira equivocada. O mesmo artigo descrito no tópico anterior é utilizado como argumento, de acordo com o seu inciso III: “a dignidade da pessoa humana”. Considera-se que houve um acordo político para a transição do regime militar para o Estado de Direito. Entretanto, as partes desse acordo, segundo o arguente, não representavam os anseios de grande parcela da população que sofreu as atrocidades do regime. A partir disso depreende-se que a transição para o Estado Democrático de Direito foi feita por meio de uma barganha política em que as vítimas foram usadas como pretexto para se garantir a efetiva transição e a impunidade dos torturadores. O substrato argumentativo é baseado em Kant, cuja doutrina prega que o homem não pode ser usado como meio, apenas como fim. Nesse espectro então, o princípio da dignidade humana, foi, a priori, aviltado. Além disso, é assinalado nesse ponto que a tortura figura na Constituição de 1988 como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Isso também ocorre na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Assim, a lei em estudo não poderia ser incorporada à Constituição Cidadã, isto é, recepcionada pelo atual ordenamento jurídico brasileiro. Outro conceito interessante a ser trabalhado é o do ato jurídico perfeito. O parágrafo primeiro do artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro considera como perfeito, o ato jurídico “já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”. Nesse sentido, preenchidos todos os requisitos formais necessários à realização da plenitude dos seus efeitos, um ato jurídico pode ser considerado perfeito, pois cumpriu todas as etapas necessárias para entrar em vigor e gerou os seus efeitos aos seus destinatários. A classificação de um ato jurídico como perfeito gera de pronto a irretroatividade de novas leis aos atos anteriores. Há, entretanto, muitas opiniões diversas acerca do enquadramento desse conceito. Savigny (1860) leciona que existem classes diferentes de normas: 44 A primeira, concernente à aquisição de direitos, estava submetida ao princípio da irretroatividade, ou seja, à manutenção dos direitos adquiridos. A segunda classe de normas, que agora serão tratadas, relacionam-se à existência de direitos, onde o princípio da irretroatividade não se aplica. As normas sobre a existência de direitos são, primeiramente, aquelas relativas ao contraste entre a existência ou não existência de um instituto de direito: assim, as leis que extinguem completamente uma instituição e, ainda, aquelas que, sem suprimir completamente um instituto modificam essencialmente sua natureza, levam, desde então, no contraste, dois modos de existência diferentes. Dizemos que todas essas leis não poderiam estar submetidas ao princípio da manutenção dos direitos adquiridos (a irretroatividade); pois, se assim fosse, as leis mais importantes dessa espécie perderiam todo o sentido (SAVIGNY, 1860, p. 503-504). É interessante questionar se uma recomendação de órgão internacional pode influir na construção normativa nacional, levando-se em consideração a importância dos critérios para incorporação de normas à Constituição e o peso das deliberações desse órgão. Ainda é necessário considerar a legitimidade da criação de uma lei que viole um princípio fundamental como a dignidade da pessoa humana. Para isso, deve-se também analisar se os princípios abordados até o momento já estavam em vigor à época da promulgação da lei e se a concessão da anistia configura um ato jurídico perfeito irretroativo ou se ele pode ser modificado. Ademais, outro fato merece ser levado em conta: a Constituinte iniciada a 1º de Fevereiro de 1987 foi convocada por meio da Emenda Constitucional nº 26 em 1985. Essa mesma emenda previa em seu artigo 4º e subsequentes parágrafos, a concessão de anistia: Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares. § 1º É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais. § 2º A anistia abrange os que foram punidos ou processados pelos atos imputáveis previstos no "caput" deste artigo, praticados no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. [...] Cumpre ao ministro, então, fazer a análise minuciosa de todos esses pormenores e chegar à conclusão se a Lei de Anistia pôde efetivamente ser recepcionada pela nova Constituição. 2.4 Crimes Conexos 45 Não raras vezes, entre dois ou mais fatos de relevância penal, pode haver um liame, uma ligação entre eles. Essa ligação pode ser tanto subjetiva, no campo das intenções, bem como objetiva, no campo das circunstancias de fato. Em outras palavras, pode haver uma conexão, estabelecendo um ponto de afinidade entre os fatos e/ou pessoas. A doutrina processual penal classifica esses tipos de conexão em: material; probatória; e intersubjetiva, que por sua vez se divide em: por simultaneidade, por concurso e por reciprocidade. Para fins de praticidade, a característica que coincide com o caso é a da reciprocidade. As palavras de Pacelli (2012) são suficientes para ilustrar tal classificação: Por fim, a última modalidade de conexão do art. 76, I – “ou por várias pessoas, umas contra as outras” parece identificar como ponto de afinidade entre os fatos também a motivação de seu cometimento. (...) É o que a doutrina chama de conexão intersubjetiva por reciprocidade.” (OLIVEIRA, 2012, p. 284). Apesar de importante, a explicação doutrinária tem apenas o condão propedêutico da matéria. As questões suscitadas acerca do crime conexo possuem outras características que vão além da mera classificação. 2.4.1 O objeto de discussão O primeiro conceito principal já foi discutido na seção acerca do caso Battisti. É o conceito de crime político. Cabe, dessa maneira, analisar se há realmente a conexão entre os crimes ditos políticos e os crimes comuns cometidos pelos agentes da ditadura. Seus atos não são considerados políticos, pois a ideia de crime político envolve a intenção de se atingir a ordem política vigente. Uma vez que esses agentes fazem parte dessa ordem, eles jamais atentariam contra ela. Afastada essa hipótese, faz-se importante analisar se ainda é possível estabelecer a conexão entre os crimes políticos e comuns. Dessa forma, o ministro terá que pensar acerca de algumas perguntas. São elas: há um liame entre as ações consideradas crimes políticos e os crimes comuns cometidos por agentes do Estado? Os crimes cometidos por esses agentes podem ser vistos como resposta aos outros crimes? Constitui a lei de Anistia situação sui generis em que a vontade do legislador deve ser interpretada de forma constitutiva no tempo e no espaço, isto é, pode proceder-se a análise da lei com os olhos voltados para o contexto em que ela foi elaborada? Deve-se levar em conta a interpretação adotada tacitamente durante os 46 mais de 30 anos da lei, como forma de propugnar o contexto histórico de pacificação da época, para o qual não somente a lei como essa leitura teriam sido necessárias? 3. Do processo a) Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Objeto e efeitos Fruto de previsão constitucional do parágrafo primeiro do artigo 102 da Constituição da República, a ADPF é regulada pela lei nº 9.882/99. Esse tipo de controle concentrado de constitucionalidade33 pretende nas palavras da lei: “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público”. A dúvida pertinente à questão está relacionada ao caráter do preceito fundamental constante na referida lei. A corrente majoritária, adotada inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, acredita que apesar da Constituição se configurar como uma norma fundamental, isto é, ser fundamento de validade para as outras normas do ordenamento brasileiro, ainda existem em seu conteúdo preceitos fundamentais que se diferenciam das demais normas. Os mais notórios são os elencados pelo art. 5º da Carta, entretanto existem outros como o pacto federativo constante do art. 1º. Dessa forma, são esses artigos considerados fundamentais dentro de uma norma fundamental que são parâmetros para o eventual confronto com atos do poder público, objetos da ADPF. Importante ainda frisar o efeito pretendido por essa ação. Em caso de o ato ser posterior à Constituição de 1988, ocorre a declaração de inconstitucionalidade desse ato. Se o ato, porém for anterior à Carta de 1988, o STF limita-se tão somente a reconhecer a recepção ou não desse ato normativo em face da normatividade constitucional superveniente. Uma decisão de ADPF acarreta outros efeitos mais abrangentes uma vez que permite à Corte Suprema estabelecer um modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental presente na Constituição. Além disso, a decisão da ADPF possui efeito erga omnes e ex tunc. Neste 33 Para mais informações ver: MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Controle Concentrado de Constitucionalidade. – 3ª Ed. São Paulo: Saraiva. 2009; 47 ultimo efeito é importante frisar que a lei faculta ao Supremo a declaração de efeito ex nunc de modo a preservar a segurança jurídica ou excepcional interesse social: Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado (Lei nº 9.882/99). Por fim, existem dois tipos de ADPF: autônoma e incidental. A primeira é aplicada contra ato do Poder Público (administrativo ou judicial). A segunda é cabível contra ato normativo (decretos, leis ordinárias e complementares, medidas provisórias, entre outros) (FERNANDES, p.992-994, 2008). Legitimidade Podem propor uma ADPF os mesmos que podem propor uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. São eles, segundo o art. 103 da Constituição da República: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. Requisitos e Admissibilidade O artigo 3º da lei nº 9.882 de 3 de dezembro de 1999 estabelece os requisitos básicos da petição inicial de uma ADPF Art. 3o A petição inicial deverá conter: I - a indicação do preceito fundamental que se considera violado; II - a indicação do ato questionado; III - a prova da violação do preceito fundamental; 48 IV - o pedido, com suas especificações; V - se for o caso, a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado. Esses requisitos se apresentam de maneira autoexplicativa, por isso não haverá uma pormenorização. Acaso queira-se aprofundar no tema, sugere-se a leitura de Mendes 2011. Utilização subsidiária da ADPF (Princípio da Subsidiariedade) O artigo 4º, §1º da Lei n. 9882/99, impõe que somente será admitida uma ADPF caso não haja outro meio eficaz de sanar a lesividade. Uma análise imediata revela a literalidade do que o artigo impõe, o que leva ao pensamento de que a ação somente poderia ser proposta caso se houvesse verificado a exaustão de todos os meios eficazes de afastar a lesão no âmbito judicial. Entretanto, a opinião do Ministro Gilmar Mendes pode servir como um guia na resolução da rigidez da lei. Cabe ainda lembrar, que trata-se de uma opinião de Mendes, e que o ministro pode plenamente discordar e aplicar a lei strictu sensu. Afigura-se igualmente legítimo cogitar a utilização da arguição de descumprimento nas controvérsias relacionadas com o princípio da legalidade (lei e regulamento), uma vez que, assim como assente na jurisprudência, tal hipótese não pode ser veiculada em sede de controle direto de constitucionalidade. A própria aplicação do princípio da subsidiariedade está a indicar que arguição de descumprimento há de ser aceita nos casos que envolvam a aplicação direta da Constituição – alegação de contrariedade à Constituição decorrente de decisão judicial ou controvérsia sobre interpretação adotada pelo Judiciário que não cuide de simples aplicação de lei ou normativo infraconstitucional (MENDES, 2011, p.183). Além disso, a suposta inépcia das partes que não entraram com pedidos em vias ordinárias de forma a tentar uma condenação de um torturador, também pode ser explicada: Ademais, a ausência de definição de controvérsia – ou a própria decisão prolatada pelas instâncias judiciais – poderá ser a concretização da lesão a preceito fundamental. Em um sistema dotado de órgão de cúpula que tem a missão de guarda da Constituição, a multiplicidade ou a diversidade de soluções pode constituir-se, por si só, em uma ameaça ao princípio constitucional da segurança jurídica e, por conseguinte, em uma autêntica lesão a preceito fundamental (MENDES, 2011, p.185). ADPF-153 49 A APDF-153 tem como arguente o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, representado pelos advogados Fábio Konder Comparato e Rafael Barbosa de Castilho. São arguidos o Presidente da República, representado pelo Advogado Geral da União, e o Congresso Nacional. O processo teve início a partir do protocolo do Conselho Federal da OAB em 21 de outubro de 2008. Com base em todos os argumentos já expostos, o pedido pretendido pelo arguente traduz-se na pretensão de uma nova interpretação da Lei nº 6683/79 (Lei de Anistia) à luz dos princípios constitucionais vigentes a partir da Carta de 1988. Nesse sentido, entende-se que não deve mais ser estendido o conceito de crime conexo aos atos praticados pelos militares no poder. Eis a sua íntegra: (...) a precedência do pedido de mérito, para que esse Colendo Tribunal dê à Lei nº 6683/79, uma interpretação conforme à Constituição, de modo a declarar, à luz dos seus preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar (1964/1985) [grifo dos autores do guia]. Subtítulo III: Do Caso da “Lei da Ficha Limpa” (2012): 1. Do histórico da questão: A Lei Complementar número 135 foi apresentada por iniciativa popular em 29 de setembro de 2009, fruto de campanha de arrecadação de assinaturas encabeçada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) e pelo juiz federal Marlon Reis. Alcançadas 1,6 milhões de assinaturas, o projeto contou com forte apoio popular e das mídias que exaltaram as suas qualidades e sua urgência no sistema eleitoral brasileiro, dando ainda mais força para a campanha. Sem dúvidas, a intensa campanha e o próprio conteúdo da lei são reflexos do descrédito de que padecia, e padece, a política brasileira, de modo a conceder ao dispositivo alto valor político no sentido de atribuir maior moralidade aos cargos públicos e a seus ocupantes, de modo a resgatar legitimidade e crédito dos políticos perante seus eleitores. 50 Com forte pressão e apoio dos parlamentares, o Senado Federal aprovou a lei34, que foi sancionada em 4 de junho de 2010. Como é típico de sua espécie, as leis complementares portam objetivo de regular com maior especialidade certas matérias predeterminadas pelo Constituinte Originário, de forma a respeitaras balizas estabelecidas por ele. E, assim, a Lei da Ficha Limpa, como instrui o artigo 14§9 da CR/88, estabelece casos de inelegibilidade a “fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato”. A Lei Complementar 135 trouxe alterações na antiga Lei das Inelegibilidades, a Lei Complementar número 64, que podem ser assim resumidas: a) aumento e uniformização dos prazos de inelegibilidade, que antes variavam entre três e cinco anos, passaram todos para oito anos; b) criação de novas causas de inelegibilidade em observância às balizas da probidade administrativa e da vida pregressa dos candidatos; c) esclarecimento das controvérsias da inelegibilidade decorrentes da rejeição de contas públicas, para afirmar que os chefes do Poder Executivo, quando ordenadores de despesas, seriam julgados diretamente pelos tribunais de contas, e não apenas pelas câmaras/assembleias; d) a dispensa da necessidade de trânsito em julgado para as condenações eleitorais, por atos de improbidade ou criminais que possam causar inelegibilidade. Antes mesmo de ser sancionada e publicada, a Lei da Ficha Limpa causou controvérsias judiciais no tocante à sua aplicação na eleição de 2010. Instado, o TSE respondeu a duas consultas dizendo que a LC 135 seria sim aplicável na eleição daquele ano. Na consulta n°114709 afirmou que “incidência da nova lei a casos pretéritos não diz respeito à retroatividade de norma eleitoral, mas, sim, à sua aplicação aos pedidos de registro de candidatura futuros, posteriores à entrada em vigor”, conforme voto do ministro Arnaldo Versiani, que prevaleceu no plenário. Mesmo diante da controvérsia, o primeiro processo envolvendo essa lei só chegou ao Supremo às vésperas da data do escrutínio. Tratava-se de recurso interposto pelo candidato Joaquim Roriz, que teve candidatura recusada pelo TSE. O STF encontrava-se deficitário de um ministro, uma vez que o excelentíssimo Ministro Eros Grau havia se aposentado e o sucessor não havia sido indicado. Após duas longas sessões de debates, o plenário ficou em impasse e terminou empatado, sem proclamar resultado final35. 34 http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/senado-aprova-ficha-limpa; 35 http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/ficha-limpa-aniversario-com-pendencia-judicial; 51 Passadas as eleições e após a chegada de mais um ministro, o Pretório Excelso se debruçou mais uma vez sobre a questão da aplicabilidade de 2010 e resolveu que a Lei da Ficha Limpa não poderia ser aplicada naquele ano (RE 633.703). Somente depois disso desembarcaram no STF três ações envolvendo a constitucionalidade da LC 135: Ação Direta de Constitucionalidade 29, ADC 30 e ADI 4578, sob relatoria do Ministro Luiz Fux. Os aspectos processuais e jurídicos discutidos nessas ações serão trabalhados nos próximos dois itens deste guia. 2. Da Perspectiva Jurídica: 2.1 Inelegibilidade: As inelegibilidades no direito brasileiro são tratadas, principalmente, por duas fontes: o artigo 14 da Constituição e a LC 64, chamada Lei de Inelegibilidades. O artigo 14 da CR, ao tratar dos direitos políticos, indica como inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos. A saber, são inalistáveis os estrangeiros e os conscritos, durante o exercício militar. Por ordenação lógica, também são inelegíveis os que não cumprem com requisitos de elegibilidade36como o gozo de direitos políticos, a filiação partidária e a idade mínima relativa a cada cargo. Já a Lei de Inelegibilidades aparece como um complemento, a mando do §9° do art. 14, especificando e criando novas hipóteses de inelegibilidade a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico. Dito isso, é mister entendermos a inelegibilidade por si própria, seu conceito, sua natureza jurídica e suas categorias aqui relevantes. O conceito de inelegibilidade seria: (...) A inelegibilidade importa no impedimento temporário da capacidade eleitoral passiva do cidadão, que consiste na restrição de ser votado, não atingindo, portanto, os demais direitos políticos, como, por exemplo, votar e participar de partidos políticos. (...) (TSE- Agravo Regimental nº 4.598. Rel. Min. Fernando Neves. Jun. 2004) 36 No caso de requisitos de elegibilidade (cujo descumprimento ensejariam a inelegibilidade nata, que será discutida logo abaixo) a prova de seu cumprimento é feita de forma negativa pela Justiça Eleitoral. Por seu turno, na inelegibilidade em si, própria ou cominada, tem-se a necessidade de prova positiva pelo candidato de que ele não se enquadra em nenhum dos casos. Assim, apesar de ter-se a mesma consequência lógica, há peculiaridades procedimentais em cada uma das situações; 52 A elegibilidade, isto é, a capacidade eleitoral passiva, é parte integrante dos direitos políticos e, como posto pelo trecho do acórdão acima, a inelegibilidade não interfere nas demais esferas dos direitos políticos, de sorte que o inelegível pode até mesmo filiar-se a um partido político e votar (TSE – Recurso Especial Eleitoral nº 25.074. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. Set. 2005). O conceito em questão não é alvo de disputas doutrinárias, uma vez que apresenta o mesmo núcleo em manuais de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral. Da mesma forma, as múltiplas classificações não são, em sua maioria, objeto de discussão, apesar de se fazerem mais ou menos presentes ao gosto do autor. O eleitoralista Marcos Ramayana apresenta em seu manual de Direito Eleitoral as classificações de Inelegibilidades: constitucionais, infraconstitucionais (decerto que aqui se encontram as da LC 135), absolutas, relativas, nacionais, estaduais, municipais, reflexas, inatas e cominadas. Fica a critério do delegado o estudo das classificações, porque este guia se aprofundará somente nas duas últimas (inatas e cominadas), visto que as consequências dessas classificações importam divergências quanto a natureza jurídica das inelegibilidades. (a)Inelegibilidade inata é aquela causada pela ausência de condições de elegibilidade, dispostas no artigo 14, §3° da Constituição. Como preleciona professor Kildare Gonçalves “ocorrem independentemente da prática de qualquer conduta por parte do cidadão”(CARVALHO, 2009). Faz-se presente quando “há uma descrição normativa que se molda a um fato jurídico, forcejando a consequência de um impedimento”(AGRA, 2011, p.29-52).Aqui se encontra discordância doutrinária, uma vez que se equipara as condições de elegibilidade às de inelegibilidades. Para maiores aprofundamentos nesta discordância, veja as lições de Adriano Soares da Costa, no livro Teoria da Inelegibilidade e o Direito Processual Eleitoral (1998).Há proposição doutrinária que afirma que esta classificação se trata de inelegibilidade imprópria, posto que, na verdade, ocorre uma incompatibilidade para a elegibilidade, e não de uma inelegibilidade em si (CUNHA, 2012, p. 65-79). (b) Inelegibilidade cominada “é a sanção imposta pelo ordenamento jurídico em virtude da prática de algum ato ilícito eleitoral” (COSTA, 1998, p.153). Esse conceito é assim apresentado, via de regra, pacificamente na doutrina, mas são seus acessórios ou desdobramentos que geram discordâncias. A questão ganha volume para divergências quando se enfrenta o problema da natureza jurídica das inelegibilidades relacionada às classificações acima expostas. A interpretação das 53 inelegibilidades fica a cargo de duas correntes doutrinárias, que as preveem como sanção jurídica, ou como critério jurídico-político para que se declare a elegibilidade. Cada uma dessas correntes causa implicações nos julgamentos tratados (ADC 29 e 30 e ADI 4578), principalmente no tocante à irretroatividade. A corrente que identifica o caráter sancionatório das inelegibilidades expõe que a norma jurídica entrelaça um substrato fático a uma consequência normativa, de forma que essa consequência não existe por uma causalidade natural, mas por uma imputação normativa. A sanção, portanto, seria uma reprimenda atestada pela desaprovação da conduta realizada. Assim, inelegibilidades seriam apenas aquelas decorrentes de ilícitos, isto é, as cominadas. As decorrentes de fatos lícitos, e.g. caso dos analfabetos, seriam incompatibilidades e portariam da mesma nomenclatura apenas por imperativo jurídicopositivo(CUNHA, 2012, p.69). Portanto, para os doutrinadores desta corrente, a incidência da Lei da Ficha Limpa só poderia incidir em casos ulteriores de sua edição dada imposição de nova sanção. Isso, tendo em vista o respeito ao princípio da irretroatividade legal. Essa corrente encontra alguma correspondência na jurisprudência, vide exemplo: a moderna doutrina do direito eleitoral vem apregoando que as inelegibilidades se classificam, quanto à origem, em inelegibilidades inatas e inelegibilidades sanção ou cominada. As primeiras ocorrem independentemente da prática de qualquer conduta por parte do cidadão ou de terceiros em seu benefício e a segunda decorre da prática de alguma conduta ilícita praticada pelo candidato. Nesse sentido são as lições de Adriano Soares da Costa (in:Instituições de Direito Eleitoral, 8ª ed., Rio de Janeiro, júris lúmen, 2009, pg 149); José Jairo Gomes (in: Direito Eleitoral. 4ª ed. Belo Horizonte, delrey, 2010, pg 144/145); e Edson Resende Castro (in: Teoria e Prática do Direito Eleitoral, 5ª ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2010, pg 132/135) (TRE-MA – Registro de Candidatura nº 3398-21.210.6.10.0000. Rel. Juiz Magno Linhares. Jul. 2010) (...) A decretação de inelegibilidade constitui sanção prevista no art. 22, XIV, da LC nº 64/90, sendo perfeitamente cabível quando a causa de pedir reside na prática de abuso do poder político, não ficando caracterizado, in casu, o julgamento extra petita (...)(TSE - Recurso Especial Eleitoral n° 35.980. Rel. Min. Marcelo Ribeiro. Mar. 2010). Cabe, ainda, ressaltar que a concepção sancionatória de inelegibilidades em muito se parece com a ideia de pena e, por isso, se faz necessário confrontá-las. Como já dito, essa acepção expressa inelegibilidade como uma consequência jurídica com objetivo de reprimir a conduta apresentada. Entretanto, a jurisprudência tem reiterado que inelegibilidade não 54 constitui pena e, pari passu, disseram as petições iniciais das ADC 29 e 30. Algumas ementas que materializam esse posicionamento: CONSTITUCIONAL. ELEITORAL. INELEGIBILIDADE. CONTAS DO ADMINISTRADOR PÚBLICO: REJEIÇÃO. Lei Complementar n. 64, de 1990, art. 1., I, g. I. - Inclusão em lista para remessa ao órgão da Justiça Eleitoral do nome do administrador público que teve suas contas rejeitadas pelo T.C.U., além de lhe ser aplicada a pena de multa. Inocorrência de dupla punição, dado que a inclusão do nome do administrador público na lista não configura punição. II. - Inelegibilidade não constitui pena. Possibilidade, portanto, de aplicação da lei de inelegibilidade, Lei Compl. n. 64/90, a fatos ocorridos anteriormente a sua vigência. (STF –PLENO – Mandato de Segurança nº 22087.Rel. Min. Carlos Velloso. Mar.1996); [Grifo dos autores do guia]. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÕES 2010. DEPUTADO ESTADUAL. CONDENAÇÃO POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA PROFERIDA POR ÓRGÃO COLEGIADO. ART. 1º, I, l, DA LC Nº 64/90, COM REDAÇÃO DA LC Nº 135/2010. CONSTITUCIONALIDADE.INELEGIBILIDADE NÃO CONSTITUI PENA.[...].2. A inelegibilidade não constitui pena, mas sim requisito a ser aferido pela Justiça Eleitoral no momento do pedido de registro de candidatura. Precedente. Como consequência de tal premissa, não se aplicam à inelegibilidade os princípios constitucionais atinentes à eficácia da lei penal no tempo, tampouco ocorre antecipação da sanção de suspensão dos direitos políticos, prevista para a condenação com trânsito em julgado pela prática de ato de improbidade administrativa (TSE – Agravo Regimental nº499541. Rel. Min. Aldir Guimarães. Out.2010.) [Grifo dos autores do guia]. Outro viés doutrinário é trazido pelo Juiz Marlon Reis, um dos criadores da Lei da Ficha Limpa, em seu livro Ficha Limpa: Lei complementar n° 135 de 4 de junho de 2010 interpretada por juristas e responsáveis pela iniciativa popular. Para o magistrado, “inelegibilidade é um critério jurídico-político objetivo (abstrato) previsto em lei para definir o perfil esperado dos exercentes de mandato eletivo.” (REIS, 2010, p.31). Os adeptos dessa tese argumentam que a inelegibilidade não pode consistir em sanção, visto que existem inelegibilidades que não dependem de nenhuma conduta por parte do agente. Dessa forma, a inelegibilidade é uma maneira de se proteger a coletividade contra abusos e desequilíbrios no sistema eleitoral, de modo a garantir sua moralidade e legitimidade. Em contraponto à corrente anterior, a defendida por Marlon Reis não vê obstáculo para a aplicação da LC 135 para fatos anteriores a sua edição. Há também acórdãos nesse sentido. Como exemplo, temse: (...) Ao contrário do que afirmado no voto condutor, a norma ínsita na LC n 64/1990, não tem caráter de norma penal, e sim, se reveste de norma de caráter de proteção à coletividade. Ela não retroage para punir, mas sim busca colocar ao seu jugo os desmandos e malbaratações de bens e erário públicocometidos por 55 administradores. Não tem o caráter de apená-los por tais, já que na esfera competente e própria é que responderão pelos mesmos; mas sim, resguardar o interesse público de ser, novamente submetido ao comando daquele que demonstrou anteriormente não ser a melhor indicação para o exercício do cargo(TSE – Consulta nº 1147-09.2010.6.00.0000. Rel. Ministro Arnaldo Versiani. Out. 2010). 2.1.1 Inelegibilidade e os princípios constitucionais: Feitas essas explanações acerca da inelegibilidade de per se, seu conceito e natureza jurídica, tratar-se-á da inelegibilidade integrada dentro de um sistema principiológicoconstitucional, a fim de analisar a compatibilidade da LC 135 com a Constituição, isto é, sua constitucionalidade. Como já dito na introdução deste guia, não haverá aqui um exame exaustivo e contemplador de todas as nuances dos temas, mas um sintético olhar sobre o que é essencial e que possa nortear os estudos. Posto isso, parte-se para o exame da (a) irretroatividade no Direito Brasileiro. A aplicação da lei no tempo é um dos temas mais controversos no estudo do Direito atualmente, já que de um lado há uma ideia central de segurança jurídica que é uma das expressões máximas do Estado de Direito e de outro, a possibilidade e necessidade de mudança (João Batista Machado apud MENDES, 2009). Conceitua-se retroatividade como a qualidade de certas leis que, promulgadas, exercem eficácia mesmo a respeito dos atos passados, regulando-os e submetendo-os a seu regime (SILVA, p. 1231, 2013). Com maior rigor técnico tem-se a conceituação de José Eduardo Cardozo, atual ministro da Justiça: Poderíamos assim dizer que retroativa é toda norma legal que valorativamente invade e altera o período de tempo anterior ao início da sua própria vigência, seja por descrever na sua hipótese, isoladamente ou não, elemento fático realizado no passado, seja por definir preceito que implique modificação jurídica da realidade pretérita (CARDOZO, 1995, p. 276). Ao recorrer-se ao ordenamento jurídico pátrio, encontram-se três normas de relevância sobre irretroatividade: os incisos XL e XXXVI do artigo 5° da CR e o artigo 6° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Decreto-Lei 4657/42. Por didática, será tratado o inciso XL, separadamente, e o restante reunido. No campo do Direito Penal, a Constituição é categórica ao preceituar que a lei só retroagirá em benefício do réu, como se lê no inciso XL do Art.5º. Frisa-se, ainda, que o inciso se dirige única e especificamente à lei penal. Os princípios da Legalidade e da 56 Irretroatividade da lei penal são, portanto, consagrados e a retroatividade da lei benéfica é a exceção. Os demais dispositivos concernentes à temática da retroatividade são, in verbis: XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; Artigo 5°, XXXVI, CR/88. Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Decreto-lei 4657/42. Ao contrário do que se possa pensar de antemão, a Constituição não é taxativa quanto a irretroatividade da lei (Celso Ribeiro Bastos apud CARDOZO, 1995). A Magna Carta não veda expressamente a retroatividade das leis. Impede apenas que as lei novas apliquem-se a determinados atos passados (direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada) (CARVALHO, 2009, p.810). Nesse mesmo sentido, Cardozo: O respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, como se pode deduzir pelo que já disse acima, não apresenta em si mesmo uma incompatibilidade com a retroatividade ou mesmo com a ação retroativa admitida como princípio (1995). Da mesma forma acontece com o artigo supracitado da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, pois se exige respeito aos três “elementos-barreira” à ação da lei, mas sem taxar ou impedir a retroação dela. Em sentido oposto, a Professora Mariá Brochado(2012, p.166) preleciona que o (...) princípio que rege a dimensão temporal da eficácia no Direito brasileiro é o da irretroatividade das leis. [...] A lei só prejudicaria tais situações se retroagisse, e retroagir significa estender a eficácia da lei nova às circunstancias jurídicas consolidadas sob a égide de lei anterior. Em outras palavras, o princípio da irretroatividade vale, justamente, porque se retroagisse, atingiria os “elementos-barreira” e isso sim a Constituição veda. Portanto, mesmo a 57 Constituição não sendo explícita, o princípio da irretroatividade é que reina em nosso ordenamento. Assim também pensa o STF, como exposto na súmula 65437. A Carta Maior acrescenta ainda mais dificuldades ao debate do Direito Intertemporal, haja vista que ela cita, mas não define os institutos de direito adquirido, coisa julgada e ato jurídico perfeito. Fica a cargo do legislador infraconstitucional dar conteúdo a esses elementos, bem como o fez na LINDB. Esse diploma legal traz em seu Art. 6° §§1° a 3° as conceituações de ato jurídico perfeito, direitos adquiridos e coisa julgada, respectivamente. Para os fins das ações tratadas aqui, focar-se-á na coisa julgada (§3°) e no direito adquirido (§2°). A dita lei coloca coisa julgada como a decisão judicial de que já não cabe mais recurso, seja porque houve preclusão ou porque esgotaram-se as instâncias recursais, de forma a não haver maiores discordâncias quanto a esse conceito. O questionamento que aparece no tema da Lei da Ficha Limpa é se o aumento das hipóteses de inelegibilidade e o aumento do tempo inelegível de um condenado altera a coisa julgada. Todos os questionamentos e controvérsias tratados até o momento devem fazer-se presentes nos debates do julgamento. Nos termos da LINDB, “consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo préfixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”. Apesar dessa conceituação jurídico-positiva, a doutrina não se apresenta pacífica e existem inúmeras conceituações, estrangeiras e brasileiras. Entre os brasileiros, Pontes Miranda (In CARVALHO, 2009, p.811)versa sobre direito adquirido, definindo-o como “o direito irradiado de fato jurídico, quando a lei não o concebeu como atingível pela lei nova”. Já Clovis Beviláqua pensa que “os direitos adquiridos, que as leis devem respeitar, são vantagens individuais, ainda que ligadas ao exercício de funções públicas”. A discussão toma outro rumo quando o italiano Gabba acrescenta que tão somente direitos de caráter patrimonial poderiam ser entendidos como adquiridos: 37 “A garantia da irretroatividade da lei, prevista no art 5º, XXXVI, da CF, não é invocável pela entidade estatal que a tenha editado.” Súmula 654. [Grifo dos autores do guia]; 58 adquirido é todo direito que resultante de um fato capaz de produzi-lo segundo a lei em vigor ao tempo em que este fato se verificou; embora a ocasião de fazê-lo valer se não haja apresentado antes da atuação de uma lei nova sobre o mesmo direito; direito este que, de conformidade com a lei sob a qual aquele fato foi prejudicado, passou, imediatamente, a pertencer a patrimônio de quem o adquiriu (In CARVALHO, 2009, p.811). Cada corrente doutrinária apresenta argumentos favoráveis e críticas, de modo a não haver um viés definitivo e hegemônico. Este guia não optará por uma e fica a cargo dos delegados a busca e o aprofundamento no tema. Sugere-se o livro Da Irretroatividade da Lei, já aqui citado, em especial seu capítulo III em que o autor arrola uma lista de doutrinadores e seus pensamentos sobre retroatividade da lei e direito adquirido. De forma mais pacífica, os autores diferenciam direito adquirido de expectativa de direito, que é verificada quando há esperança de se gozar de um direito em virtude de um fato passado ou de estado atual das coisas, embora ele ainda não tenha se constituído. Varia de autor para autor a graduação valorativa da proteção dessa esperança. Blondeau, por exemplo, diz que deve haver proteção da esperança, mas a ideia não deve ser levada aos extremos, de modo que a utilidade social pode justificar a destruição de certas esperanças. Entretanto, no ordenamento pátrio, o que se protege é o direito adquirido e não o direito em potência: não se pode falar em direito adquirido de adquirir direito (CARVALHO, 2009, p.811). Se for aplicado esse entendimento às ações em questão, surge o questionamento se haveria uma expectativa legítima de um pré-candidato condenado a se candidatar nas próximas eleições até o advento da LC 135, quando perde essa possibilidade seja por criação de novas hipóteses, seja por extensão do prazo. Ao analisar a relação entre elegibilidade e direito adquirido, torna-se mister acrescentar a informação do momento em que ela se constitui. Para tanto, observa-se a jurisprudência e percebe-se que o momento de aferição das condições de elegibilidade e sua constituição ocorre no registro de candidatura: Registro. Inelegibilidade. Rejeição de contas. - A jurisprudência deste Tribunal é firme, no sentido de que as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade são aferidas no momento do pedido de registro [...](TSE – Agravo em Recurso Especial nº 33.038. Rel. Min. Arnaldo Versiani.Nov. 2008) [Grifo dos autores do guia]. (...) Registro de candidatura. Deputada estadual. Rejeição de contas (art. 1 o, I, g, da LC no 64/90). Indeferimento (...) 5. As causas de inelegibilidade devem ser verificadas no momento do requerimento do registro, conforme remansosa jurisprudência do TSE (...)(TSE – Ação Rescisória nº 258. Rel. Min. Marcelo Ribeiro. Nov. 2007.) [Grifo dos autores do guia]. 59 Dessa forma, o direito de “se eleger”, da capacidade eleitoral passiva, só pode nascer no momento em que se propõe formalmente o registro da candidatura. É nesse momento que a Justiça Eleitoral avalia se o candidato porta todas as condições para a elegibilidade e, se não, torna-o inelegível. Constituído esse direito, ele não pode ser desconstruído por fatos ocorridos após o registro da candidatura. Assim ocorre, por exemplo, com sentenças criminais que tiveram o acórdão publicado posteriormente ao registro da candidatura. Nesse sentido a jurisprudência também é firme: Agravo regimental. Recurso ordinário. Registro de candidatura. (...). Deputado estadual. Inelegibilidade. Art. 1º, I, e, da Lei Complementar nº 64/90. Condenação criminal. Publicação posterior ao pedido de registro. Causa superveniente que acarreta inelegibilidade. Art. 11, § 10, da Lei nº 9.504/97. Não provimento. 1. A inelegibilidade prevista no art. 1º, I, e, da Lei Complementar nº 64/90 com redação conferida pela Lei Complementar nº 135/2010 somente pode incidir após a publicação do acórdão condenatório. A existência jurídica do acórdão tem início apenas com sua publicação, independentemente da data do julgamento e do conhecimento das partes acerca do conteúdo da decisão colegiada (TSE PLENÁRIO - Agravo Regimental nº 68417. Rel. Min. Aldir Passarinho Junior. Out. 2010.). [Grifo dos autores do guia.] O que pode ocorrer são casos de inelegibilidade superveniente nas quais as condições que geraram-na haviam ocorrido em momento anterior ao registro. No sentido do aqui exposto, o direito de elegibilidade só pode se “incorporar” ao indivíduo em momento posterior ao registro da candidatura. Por conseguinte, também, só pode ser reclamado depois disso, visto que antes se quer existia. Outro princípio que permeia o julgamento das ADC 30 e 29 é o (b) princípio da nãoculpabilidade ou presunção de inocência, artigo 5°, LVII da CR. Tido, também, ao lado da segurança jurídica, como um dos princípios basilares do Estado de Direito, como garantia oponível ao Estado, a presunção de inocência força a condenação penal a estar condicionada à atividade probatória, de forma que se inexistirem provas, não pode existir pena. A questão nesse julgamento é a extensão da presunção de inocência ao Direito Eleitoral e, se for possível essa extensão, qual seria sua aplicabilidade frente às hipóteses de inelegibilidade decorrentes de sentenças penais. De certo que a presunção de inocência nasce da esfera penal, como fica claro no inciso constitucional supramencionado (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”- grifo dos autores do guia) e pela origem 60 histórica do instituto adotado na Declaração de Direitos do Homem de 1789. Para alguns autores, a extensão deste instituto para o Direito Eleitoral decorre da premissa de que inelegibilidade é uma pena e, nesse sentido, não pode ser imputada sem o trânsito em julgado da ação penal. Contudo, há parte da doutrina que defende que a presunção da inocência fica restrita à esfera penal, porém enquanto não houver sentença definitiva, nenhuma consequência jurídica pode advir do processo penal. Segundo esse entendimento, não se trata de aferir a culpabilidade para se aplicar a pena da inelegibilidade. Trata-se de aferi-la para se aplicar a sanção penal e, então, as repercussões da condenação. Portanto, não seria necessário determinar a natureza jurídica da inelegibilidade. Entretanto, pode-se concluir de forma diversa (por mais que se aceite a extensão do princípio), quando se contrasta o princípio da presunção de inocência com o princípio da moralidade da administração pública, no sentido de sopesar os dois princípios, coordenados pelo princípio da razoabilidade (BARROSO, 209, p.333). Assim, como nenhum dos dois princípios é absoluto, o caminho é adequá-los no caso em julgamento para atestar, ou não, constitucionalidade às normas que criam hipóteses de inelegibilidade sem o trânsito em julgado. Cabe aos delegados mais esse exercício de compreensão e raciocínio jurídico, na tentativa de conciliar as normas relevantes. 3. Do Processo: a) Ação Declaratória de Constitucionalidade Na linha da doutrina de Kildare Gonçalves (2009) e Sylvio da Motta (2002), a Ação Declaratória de Constitucionalidade é uma ação constitucional objetiva de controle concentrado que tem por objetivo declarar a constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, questionado na instância ordinária. A Emenda Constitucional de n° 3/93 foi responsável por introduzir no Direito Brasileiro a ADC. Essa emenda firmou a competência do STF para julgar a constitucionalidade de leis federais, cuja decisão vincula demais órgãos do Executivo e Judiciário. Posteriormente, em 2004, a EC-45 aumentou os entes legitimados a agir no 61 processo: igualou a ADC às Ações Diretas de Inconstitucionalidade, porém manteve o seu objeto. É a Lei n° 9868/99 que disciplina a ação, mais especificamente nos artigos 13 ao 21, juntamente com o artigo 103 da Constituição. O diploma legal postula que são legitimados para propor ADC: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. É de competência originária do STF o conhecimento e o julgamento dessa ação, posto que tem-se controle concentrado de constitucionalidade (art. 102, I, CR). Por se tratar de um processo objetivo, inexistem, em sede de Ação Declaratória, partes, réus ou requeridos, por mais que existam os requerentes. Nesse sentido, os processos podem ser instaurados sem demonstração de interesses jurídicos específicos, de forma que os eventuais requerentes atuam pelo interesse da segurança jurídica, mas não por interesses próprios (MENDES, 2012, p.467). A ADC deve ter por objeto lei ou ato normativo federal sobre o qual deve existir relevante controvérsia judicial que deverá ser apontada pela petição inicial. Há de se configurar, portanto, situação hábil a afetar a presunção de constitucionalidade (MENDES, 2012, p.484), que é tida sobre todas as leis. Isso pode ocorrer em caso de pronunciamentos contraditórios da jurisdição ordinária sobre a constitucionalidade de determinada posição. Entretanto – e isso é certo na jurisprudência do Pretório Excelso –uma controvérsia doutrinária jamais será suficiente para a sustentação de uma ADC, por mais que a doutrina embase as decisões judiciais (MENDES, 2012, p.485). A petição inicial de Ação Declaratória de Constitucionalidade pode também trazer pedido de medida cautelar, que consiste na determinação para que juízes e Tribunais 62 suspendam julgamentos que envolvam o diploma legal questionado, até que a ADC seja julgada e decidia no STF. Julgado o mérito da ADC, o Egrégio Tribunal deve se pronunciar pela maioria absoluta de seus membros e a decisão prolatada é irrecorrível e goza de efeitos erga omnes. O Tribunal, por maioria qualificada de membros, pode modular o alcance temporal da inconstitucionalidade de forma que, a fim de garantir a segurança jurídica, restrinja os efeitos daquela declaração, ou decida que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado (Art. 27, Lei 9868/99). Entretanto, esta modulação não ocorre em caso de decisão pela procedência da ADC quando os efeitos da constitucionalidade do objeto serão ex tunc. As ADC 29 e 30 (julgamento conjunto): Primeiramente, a ADC 29. Proposta pelo Partido Popular Socialista (PPS), legitimado pelo VIII do artigo 103/CR, pede a constitucionalidade da aplicação da LC 135 de 2010 a “atos e fatos jurídicos anteriores ao advento do referido diploma legal”, argumentando que isso não causa qualquer prejuízo ao princípio da irretroatividade das leis e da segurança jurídica. À folha 6, demonstra a controvérsia judicial, cumprindo o requisito formal para admissão da Ação. Assim, expõe dois acórdãos (um de Sergipe e outro de Minas Gerais) que decidem, de forma contrária, sobre a aplicação da Lei da Ficha Limpa. Enquanto o TRE/SE entende que a aplicação a fatos anteriores constitui ofensa a irretroatividade da Lei, o TRE/MG prolata que a LC 135 se aplica a condenações anteriores, sem maiores empecilhos. Ainda nesse sentido, coloca o posicionamento do TSE na Consulta 1147-09, que se filia ao mesmo entendimento do que o tribunal mineiro. Mais à frente, a petição fundamenta o pedido de constitucionalidade, de modo a firmar que inelegibilidade não constitui pena e, nesse sentido, a aplicação da LC para sentenças anteriores a sua publicação não ofende o princípio da irretroatividade da lei penal. E que, em caso de não aplicação, “não haveria qualquer sentido a consideração sobre a vida pregressa”, do §9 do artigo 14/CR. Por fim, pede a concessão de medida cautelar com eficácia erga omnes para suspensão dos efeitos de todas as decisões judiciais que neguem aplicação da LC 135. Na petição inicial da ADC 30, o Conselho Federal da OAB (também legitimado para propositura, como já dito) pede pela declaração de constitucionalidade da aplicação da LC 135 em condenações proferidas antes de sua publicação e para que a lei seja aplicada já nas 63 eleições de 2010. Seguindo a preliminar formal de demonstrar a controvérsia judicial, o proponente relata a mesma discussão entre o TRE/SE, TRE/MG e o TSE. Seguindo a mesma linha argumentativa que da petição do PPS, a OAB mostra como que a aplicação da LC 135 a fatos ocorridos antes de sua publicação não influi em ofensa a irretroatividade da Lei nem ao princípio da proporcionalidade. Ademais, argumenta que, como inelegibilidade não é pena, não se pode invocar a presunção de inocência. Prossegue no argumento de forma a abranger o sopesamento de princípios entre a presunção de inocência, a moralidade da administração pública e os dispositivos da LC 135/10. Diferentemente do PPS, não solicita medida cautelar. b) Ação Direita de Inconstitucionalidade: Ação Direta de Inconstitucionalidade é uma ação judicial objetiva de possíveis consequências legislativas, quando o Supremo pode vir a agir como legislador negativo. Também disciplinada pela Lei 9869/99, a ADI tem por objeto leis ou atos normativos federais e estaduais promulgados posteriormente à Constituição, posto que a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental será responsável por declarar a não recepção do direito pré-constitucional (MENDES, 2012, p. 126-127). São legitimados para propor Ação de Inconstitucionalidade os mesmos entes já observados no tópico sobre a ADC. Em especial, há o caso das confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional. Como anota Gilmar Mendes (2012, p.104), (...) a existência de diferentes organizações destinadas à representação de determinadas profissões ou atividades, e a não existência de disciplina legal sobre o assunto tornam indispensável que se examine, em cada caso, a legitimação dessas diferentes organizações. No caso das confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional, é necessário que se avalie o conceito de “confederações sindicais” e “entidades de classe”, o seu âmbito nacional e sua relação de pertinência temática com o objeto da ADI. As Ações Diretas de Inconstitucionalidade são de competência do STF, quando se alega inconstitucionalidade frente à Constituição da República, ou de competência dos Tribunais de Justiça quando a inconstitucionalidade é frente à Constituição estadual (FILHO, 2002, p.79). 64 Assim como na ADC, as medidas cautelares têm efeito de suspender processos em curso que apliquem a lei objeto da ADI. As decisões em sede cautelar têm eficácia erga omnes e, via de regra, ex nunc, a não ser por determinação expressa do tribunal para dar-lhe efeitos retroativos (artigo 11, §1°, Lei 9868/99). Posteriormente, a decisão definitiva sobre o objeto da ADI gozará de efeitos ex tunc, ou então o Tribunal pode restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade a partir do trânsito em julgado ou outro momento que seja fixado, conforme artigo 27 da Lei 9868. A ADI 4578: Sobre a Lei da Ficha Limpa recai a ADI 4578, proposta pela Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL). Au debut da petição, a CNPL trata de se apresentar como portadora de legitimidade ativa para propor a ação, demonstrando outra situação em que foi reconhecida como tanto e demonstrando a pertinência temática entre a norma impugnada e a sua área de representação. Ao alegar inconstitucionalidade no alínea “m” do artigo 2° da Lei Complementar 135, a CNPL argumenta que o transbordo de sanções de entidades de classe para o âmbito eleitoral é dar, para estas entidades, “competência em matéria eleitoral porquanto, de suas decisões, pode decorrer a inelegibilidade de um cidadão”. Assim, pode até se “cogitar inconstitucionalidade formal porquanto, da ação do fiscalizador profissional, emerge uma sanção de caráter eleitoral. Se organismos têm poderes para disciplinar o campo eleitoral, são o Executivo, Legislativo e o Judiciário”. Prossegue no argumento dizendo que não se pode comparar o processo judicial com o processo administrativo tendo em vista o devido processo legal e o direito de ampla defesa. Alega, também, falta de razoabilidade entre a interdição para o exercício profissional e a inelegibilidade para cargos de representação pública. Ao final da petição, pede por deferimento de medida cautelar que suspenda a eficácia de norma até o final do julgamento. REFERÊNCIAS: ABRÃO, Paulo, GENRO, Tarso. Os direitos da transição e a democracia no Brasil: estudos sobre Justiça de Transição e teoria da democracia. - 1ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012; ACCIOLY, Hildebrando. Tratado de Direito Internacional Pública. 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