23 - Insight Inteligência
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23 - Insight Inteligência
I N S I G H T INTELIGÊNCIA Corrupção: COM JEITINHO PARECE QUE VAI Alberto Almeida Cientista político “NEGOCIATA É UM BOM NEGÓCIO PARA O QUAL NÃO FOMOS CONVIDADOS” BARÃO DE ITARARÉ (ALMANAQUE PARA 1949) 20 Comissão Permanente de Defesa do Consumidor I N S I G H T ocê é a favor da corrupção? Claro que não? Você já se utilizou alguma vez na vida do jeitinho brasileiro? Sem dúvida que sim. É óbvio que nenhuma pessoa declararia publicamente ser favorável à corrupção. Nem mesmo seus principais beneficiários. Porém, há ideologias mais favoráveis à corrupção do que outras. O jeitinho brasileiro, visto por uma ótica ética anglo-saxã, a ética dos policiais norte-americanos Fucker and Sucker do Casseta & Planeta, é a ante-sala da corrupção. Em um mundo dividido entre o certo e o errado, entre a corrupção e o favor, entre o bem e o mal, todos apoiamos o que é certo, apoiamos o favor e queremos ver o bem realizado. Mas o que dizer de um mundo onde há uma “zona cinzenta” na qual nem sempre está claro o que é certo ou errado? Ou melhor, na qual o certo e o errado dependem do contexto e das circunstâncias. O jeitinho brasileiro é importante em nossa sociedade. Não apenas porque é muito utilizado, mas principalmente porque nos permite entender por que o Brasil tem tanta dificuldade em combater a corrupção. A antropologia já estudou o jeitinho brasileiro. Faltava abordá-lo com dados quantitativos. Isto foi feito pela Pesquisa Social Brasileira (PESB).1 Pela primeira vez o Brasil tem a chance de entender o Brasil. Os brasileiros têm a chance de saber por que a “cultura da corrupção” é tão bem enraizada. A PESB mostra que isto acontece porque a população a apóia, melhor dizendo, porque a população tolera e utiliza o jeitinho brasileiro. A corrupção não é obra perversa de nossos políticos e governantes. Ela é socialmente aceita, mas não com este nome e sim com o simpático nome de “jeitinho brasileiro”. A Pesquisa Social Brasileira (PESB) permitiu avaliar qual o apoio social ao jeitinho brasileiro, traço muito difundido entre a população. O jeitinho brasileiro é muito disseminado junto à população. Foram feitas três INTELIGÊNCIA perguntas em relação ao uso do jeitinho: - se alguma vez na vida o entrevistado já havia dado um jeitinho para alguém, - se alguma vez na vida o entrevistado já havia pedido para alguém dar um jeitinho em seu favor e, uma pergunta mais geral, - se alguma vez na vida o entrevistado já havia dado um jeitinho. Os resultados para as três perguntas são bastante homogêneos e coerentes, algo em torno de 2/3 de toda a população brasileira já se utilizou do jeitinho (Gráfico 1). Há ainda a possibilidade de que este percentual seja mais elevado, pois quanto mais baixa a escolaridade da população menos se sabe o que é “dar um jeitinho” (36% para os analfabetos) e por isso menos se afirma que alguma vez já deu um jeitinho (51% para os analfabetos). Note-se o fenômeno oposto: as pessoas que mais deram um jeitinho são justamente as que têm escolaridade mais elevada (70% para superior completo e 71% para segundo grau completo). São elas as que mais sabem o que significa “dar um jeitinho” (Gráfico 2). O mais provável é que as pessoas de escolaridade mais baixa utilizem na prática o jeitinho, apesar de não o conhecerem por esta terminologia. Isto significa que à medida que for aumentando a escolaridade da população brasileira, mantidas constantes outras variáveis que venham a influenciar na utilização do jeitinho, haverá aumento do percentual dos que declaram já terem dado um jeitinho alguma vez na vida2. Há uma outra indicação forte de que isto virá a acontecer: os brasileiros mais jovens utilizam mais o jeitinho do que os mais velhos. Entre a população de 18 a 24 anos 70% já deram algum jeitinho na vida ao passo que este percentual despenca para 54% entre os que têm 60 anos ou mais de idade. A escolaridade, neste caso, OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 21 I N S I G H T também tem um impacto importante, as pessoas mais jovens têm a escolaridade média mais alta do que os mais velhos. De qualquer maneira este resultado indica com clareza que o jeitinho é uma prática social muito disseminada entre todos os grupos e classes sociais e que são grandes as chances de que ele permaneça entre nós por muito tempo ainda (Gráfico 3). O QUE É O JEITINHO – A CLASSIFICAÇÃO ENTRE FAVOR, JEITINHO E CORRUPÇÃO Foram utilizados dois métodos para se avaliar o que a população brasileira considera ser o jeitinho. O primeiro foi uma simples pergunta aberta: “Na opinião do(a) Sr(a) o que é dar um jeitinho?”. O segundo método consistiu em solicitar que os entrevistados classificassem 19 situações por meio de uma das seguintes denominações: Favor / Mais favor do que jeitinho / Mais jeitinho do que favor / Jeitinho / Mais jeitinho do que corrupção / Mais corrupção do que jeitinho / Corrupção. As 19 situações foram elaboradas para que fosse possível encontrar aquelas que caracterizam o favor típico, a corrupção típica e o jeitinho3. Os resultados da pesquisa mostram que há quatro situações que caracterizam com muita clareza o que é um favor. Elas são apresentadas abaixo na ordem do que é mais para o que é menos favor: 1 - Emprestar dinheiro a um amigo (90%) 2 - Um vizinho empresta para outro vizinho uma panela ou fôrma que faltou para preparar a refeição (89%) 3 - Na fila do supermercado deixar passar na frente uma pessoa que tem poucas compras (67%) 4 - Guardar o lugar na fila para alguém que vai resolver um problema (62%) (ver Tabela 1) 22 Comissão Permanente de Defesa do Consumidor INTELIGÊNCIA Por outro lado, a população brasileira classificou sete das 19 situações apresentadas como sendo situações de corrupção: 1 - Usar um cargo no governo para enriquecer (90%) 2 - Pagar um funcionário de uma companhia de energia para fazer o relógio marcar um consumo menor (85%) 3 - Dar 20 reais para o guarda para ele não aplicar uma multa (84%) 4 - Uma pessoa consegue uma maneira de pagar menos impostos sem que o governo perceba (83%) 5 - Uma pessoa tem dois empregos, mas só vai trabalhar em um deles (78%) 6 - Fazer um gato/uma gambiarra de energia elétrica (74%) 7 - Uma pessoa tem bolsa de estudo e um emprego ao mesmo tempo. Isto é proibido, mas ela consegue esconder do governo (74%) O jeitinho foi claramente identificado em seis situações: 1 - Uma pessoa costuma dar boas gorjetas ao garçom do restaurante, para quando ele for de novo não precisar esperar na fila (59%) 2 - Uma pessoa que trabalha em um banco ajuda um conhecido que tem pressa a passar na frente da fila (56%) 3 - Uma pessoa que conhece um médico passa na frente da fila do posto de saúde (50%) 4 - Uma mãe que conhece um funcionário da escola passa na frente da fila quando vai matricular seu filho (50%) 5 - Alguém consegue um empréstimo do governo, mas que demora muito a sair. Como ela tem um parente no governo consegue liberar o empréstimo mais rápido (45%) I N S I G H T INTELIGÊNCIA Gráfico 2 O USO DO JEITINHO DE ACORDO Gráfico 1 UTILIZAÇÃO DO JEITINHO COM A FAIXA DE ESCOLARIDADE Gráfico 3 O USO DO JEITINHO DE ACORDO COM A FAIXA DE IDADE OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 23 I N S I G H T 6 - Pedir a um amigo que trabalha no serviço público para ajudar a tirar um documento mais rápido do que o normal (43%) Há uma situação extremamente ambígua — “um funcionário público recebe um presente de Natal de uma empresa que ele ajudou a ganhar um contrato do governo” — e uma outra que está entre jeitinho e corrupção: “passar uma conversa no guarda para ele não aplicar uma multa”. Tomando-se as quatro situações consideradas “favor” é possível perceber que duas delas, as que envolvem fila, são inconcebíveis em países como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. Quem já viveu nos Estados Unidos sabe que tanto guardar lugar na fila quando pedir para passar na frente porque tem poucas compras são situações inconcebíveis e injustificadas. São situações de favor que envolvem o espaço público, ao contrário das duas primeiras — empréstimo de dinheiro e de panela/fôrma — que se encerram em uma troca exclusivamente privada. Além disso, aproximadamente 30% da população as consideram “jeitinho”. ssim, no Brasil, o favor ainda é concebido pela população como sendo algo legítimo na esfera pública. É importante lembrar que no contínuo favorjeitinho-corrupção o favor é o único dos três concebido de forma exclusivamente positiva. Portanto, a lógica estabelecida pela fila — universal, geral e pública — pode ser quebrada de maneira positiva e em função do contexto (ou porque se tem um problema ou porque se tem poucas compras). A moralidade contextual está presente inclusive na concepção de favor. Considerando-se agora as sete situações classificadas como corrupção é possível notar que cinco delas não são acessíveis para a maioria das pessoas. A PESB 26 Comissão Permanente de Defesa do Consumidor INTELIGÊNCIA detectou que 64% dos brasileiros não têm carro, o que é um percentual muito elevado. Isto quer dizer que para estas pessoas dar dinheiro para o guarda perdoar uma multa é uma situação bastante distante de seu cotidiano. É interessante notar que há uma diferença da ordem de 8% entre aqueles que consideram que “passar uma conversa no guarda para ele não aplicar uma multa” é corrupção quando o dado é analisado segmentando-se quem tem e quem não tem carro. Quem não tem carro tende a achar que isto é corrupção mais do que quem tem carro (Gráfico 4). Também são situações raras para a maioria das pessoas: enriquecer por meio de cargos públicos, encontrar meios de não pagar impostos, ter dois empregos e só trabalhar em um deles e ter ao mesmo tempo bolsa de estudo e um emprego. Isto quer dizer que, estando distante da situação, a maioria da população sente-se à vontade para classificá-las como claramente negativas: elas são corrupção. Além disso, as outras duas situações que implicam em fraude da contagem do consumo de energia elétrica têm sido objeto recente de campanhas nacionais de esclarecimento, todas elas visando estigmatizar e combater tais práticas e colocando-as claramente no terreno da ilegalidade. Ao contrário do que ocorre nas situações classificadas como corrupção, as situações consideradas “jeitinho” estão ao alcance da grande maioria da população. Não é necessário ser importante, ter dinheiro, ser famoso ou conhecer pessoas poderosas para furar a fila de um posto médico ou da burocracia responsável pela emissão de documentos. Diferentemente do que afirma Lívia Barbosa, de que a passagem do favor para o jeitinho e deste para a corrupção é mais resultado do contexto em que a situação ocorre do que da natureza peculiar de cada situação, é possível perceber diferenças importantes entre as 19 situações em função da forma com que foram classifi- I N S I G H T INTELIGÊNCIA Tabela 1 FAVOR, JEITINHO OU CORRUPÇÃO? F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O 1) UMA PESSOA COSTUMA DAR BOAS GORJETAS AO GARÇOM DO RESTAURANTE, PARA QUANDO ELE FOR DE NOVO NÃO PRECISAR ESPERAR NA FILA É: 2) UMA PESSOA QUE TRABALHA EM UM BANCO AJUDA UM CONHECIDO QUE TEM PRESSA A PASSAR NA FRENTE DA FILA É: 3) UMA PESSOA QUE CONHECE UM MÉDICO PASSA NA FRENTE DA FILA DO POSTO DE SAÚDE É: 4) UMA MÃE QUE CONHECE UM FUNCIONÁRIO DA ESCOLA PASSA NA FRENTE DA FILA QUANDO VAI MATRICULAR SEU FILHO É: 5) ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO DO GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO A SAIR. COMO ELA TEM UM PARENTE NO GOVERNO CONSEGUE LIBERAR O EMPRÉSTIMO MAIS RÁPIDO É: 6) PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A TIRAR UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE O NORMAL É: 7) PASSAR UMA CONVERSA NO GUARDA PARA ELE NÃO APLICAR UMA MULTA É: 8) GUARDAR O LUGAR NA FILA PARA ALGUÉM QUE VAI RESOLVER UM PROBLEMA É: 9) NA FILA DO SUPERMERCADO DEIXAR PASSAR NA FRENTE UMA PESSOA QUE TEM POUCAS COMPRAS É: 10) UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE UM PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA QUE ELE AJUDOU A GANHAR UM CONTRATO DO GOVERNO É: 11) UMA PESSOA TEM BOLSA DE ESTUDO E UM EMPREGO AO MESMO TEMPO. ISTO É PROIBIDO, MAS ELA CONSEGUE ESCONDER DO GOVERNO É: 12) FAZER UM GATO/UMA GAMBIARRA DE ENERGIA ELÉTRICA É: 13) UMA PESSOA TEM DOIS EMPREGOS MAS SÓ VAI TRABALHAR EM UM DELES É: 14) UMA PESSOA CONSEGUE UMA MANEIRA DE PAGAR MENOS IMPOSTOS SEM QUE O GOVERNO PERCEBA É: 15) DAR 20 REAIS PARA O GUARDA PARA ELE NÃO APLICAR UMA MULTA É: 16) UM VIZINHO EMPRESTA PARA OUTRO VIZINHO UMA PANELA OU FÔRMA QUE FALTOU PARA PREPARAR A REFEIÇÃO É: 17) PAGAR UM FUNCIONÁRIO DE UMA COMPANHIA DE ENERGIA PARA FAZER O RELÓGIO MARCAR UM CONSUMO MENOR É: 18) EMPRESTAR DINHEIRO A UM AMIGO É: 19) USAR UM CARGO NO GOVERNO PARA ENRIQUECER É: 14 28 10 9 59 56 50 50 27 17 40 41 13 45 42 26 6 62 67 43 41 33 27 31 53 4 6 30 27 44 3 4 3 2 4 89 5 90 2 23 22 19 14 13 10 10 9 8 74 74 78 83 84 1 85 1 90 Gráfico 4 PASSAR UMA CONVERSA NO GUARDA PARA ELE NÃO APLICAR UMA MULTA OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 27 I N S I G H T cadas pela população brasileira, diferenças estas que não guardam relação necessária com o contexto. As situações classificadas como jeitinho envolvem algum tipo de burocracia, ainda que seja a de um restaurante, e uma pessoa conhecida ou amiga que com boa vontade ajuda a contornar um problema por meio da quebra de uma regra geral. Trata-se, portanto, da utilização de uma relação pessoal. Inversamente, em todas as situações consideradas “corrupção” não há a interferência de um conhecido ou amigo. As relações são impessoais e isto é bem caracterizado pela utilização do dinheiro em vez da boa vontade como recurso de solução de problemas. Quanto ao favor, como já demonstrado, há situações que envolvem relações pessoais e outras que envolvem impessoalidade. Nestas, é a noção de espaço público que está em jogo. Para uma grande fatia da população o espaço público é definido de uma maneira que o que seria inaceitável em um outro ambiente cultural venha a ser percebido como algo positivo no Brasil. Nas situações caracterizadas por relações pessoais e privadas 28 Comissão Permanente de Defesa do Consumidor INTELIGÊNCIA (empréstimo de dinheiro e panela/fôrma) fica clara a unanimidade: são favores. O contexto é, sem dúvida, importante para se passar do favor para o jeitinho e deste para a corrupção. Mas os dados revelam que há características peculiares a cada situação que levam a população a considerá-la mais uma coisa ou outra. O CONSENSO SOCIAL SOBRE FAVOR, JEITINHO E CORRUPÇÃO Foi constatado que há uma grande variação na avaliação que a população brasileira faz das 19 situações. Há aquelas para as quais há um grande consenso na classificação, seja como corrupção, favor ou jetinho, e aquelas para as quais a população se divide. A Tabela 2 apresenta o resultado desta análise. Os resultados evidenciam que há um enorme consenso na classificação do que é favor. Tal consenso vai diminuindo gradativamente quando se passa para as situações nas quais predomina a corrupção e diminui mais ainda quando se trata de um jeitinho. Não é por acaso que o jeitinho é o meio-termo, o meio-caminho entre os dois extremos da classificação moral das situações. É nesta zona cinzenta entre o certo e o errado que reside a dificuldade dos brasileiros de estabelecerem e concordarem acerca de critérios universais, independentemente do contexto ou grupo social, sobre o que é certo ou errado. Todos nós já tivemos que passar por situações de conflito, independentemente da existência de um árbitro ou terceira parte que decidisse sobre o resultado do contencioso, nas quais os dois lados tinham concepções diferentes sobre a situação em questão. Provavelmente todos já estiveram dos dois lados deste embate, do lado do argumento pessoal e universal que classifica a situação apenas entre certo e errado, e do lado do jeitinho que permite que consideremos o nosso ponto de vista correto por se tratar de um caso ímpar e especial. I N S I G H T INTELIGÊNCIA Tabela 2 CONSENSO E DISCORDÂNCIA DA POPULAÇÃO NA CLASSIFICAÇÃO DAS SITUAÇÕES S I T UUAA Ç Ã O CLASSIFICAÇÃO PREDOMINANTE N ÍVEL DE CONSENSO /DISCORDÂNCIA PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A TIRAR UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE O NORMAL É: JEITINHO MAIOR DISCORDÂNCIA UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE UM PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA QUE ELE AJUDOU A GANHAR UM CONTRATO DO GOVERNO É: JEITINHO ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO DO GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO A SAIR. COMO ELA TEM UM PARENTE NO GOVERNO CONSEGUE LIBERAR O EMPRÉSTIMO MAIS RÁPIDO É: JEITINHO PAGAR UM FUNCIONÁRIO DE UMA COMPANHIA DE ENERGIA PARA FAZER O RELÓGIO MARCAR UM CONSUMO MENOR É: CORRUPÇÃO DAR 20 REAIS PARA O GUARDA PARA ELE NÃO APLICAR UMA MULTA É: CORRUPÇÃO PASSAR UMA CONVERSA NO GUARDA PARA ELE NÃO APLICAR UMA MULTA É: JEITINHO/CORRUPÇÃO UMA PESSOA QUE TRABALHA EM UM BANCO AJUDA UM CONHECIDO QUE TEM PRESSA A PASSAR NA FRENTE DA FILA É: JEITINHO UMA MÃE QUE CONHECE UM FUNCIONÁRIO DA ESCOLA PASSA NA FRENTE CONSENSO E DA FILA QUANDO VAI MATRICULAR SEU FILHO É: JEITINHO DISCORDÂNCIA MÉDIA FAZER UM GATO/UMA GAMBIARRA DE ENERGIA ELÉTRICA É: CORRUPÇÃO UMA PESSOA CONSEGUE UMA MANEIRA DE PAGAR MENOS IMPOSTOS SEM QUE O GOVERNO PERCEBA É: CORRUPÇÃO USAR UM CARGO NO GOVERNO PARA ENRIQUECER É: CORRUPÇÃO UMA PESSOA COSTUMA DAR BOAS GORJETAS AO GARÇOM DO RESTAURANTE, PARA QUANDO ELE FOR DE NOVO NÃO PRECISAR ESPERAR NA FILA É: JEITINHO UMA PESSOA TEM DOIS EMPREGOS MAS SÓ VAI TRABALHAR EM UM DELES É: CORRUPÇÃO UMA PESSOA QUE CONHECE UM MÉDICO PASSA NA FRENTE DA FILA DO POSTO DE SAÚDE É: JEITINHO UMA PESSOA TEM BOLSA DE ESTUDO E UM EMPREGO AO MESMO TEMPO. ISTO É PROIBIDO, MAS ELA CONSEGUE ESCONDER DO GOVERNO É: CORRUPÇÃO GUARDAR O LUGAR NA FILA PARA ALGUÉM QUE VAI RESOLVER UM PROBLEMA É: FAVOR UM VIZINHO EMPRESTA PARA OUTRO VIZINHO UMA PANELA OU FÔRMA QUE FALTOU PARA PREPARAR A REFEIÇÃO É: FAVOR NA FILA DO SUPERMERCADO DEIXAR PASSAR NA FRENTE UMA PESSOA QUE TEM POUCAS COMPRAS É: FAVOR EMPRESTAR DINHEIRO A UM AMIGO É: FAVOR MAIOR CONSENSO Tabela 3 QUEM MORA NAS CAPITAIS TENDE A CONSIDERAR AS SITUAÇÕES MAIS COMO CORRUPÇÃO DO QUE QUEM MORA FORA DAS CAPITAIS PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A TIRAR UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE O NORMAL É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O FORA DA CAPITAL CAPITAL 28 21 42 46 30 33 UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA QUE ELE AJUDOU A GANHAR UM CONTRATO DO GOVERNO. ISTO É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O 32 25 28 24 41 51 ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO A SAIR. COMO ELE TEM UM PARENTE NO GOVERNO, CONSEGUE LIBERAR O EMPRÉSTIMO MAIS RAPIDAMENTE. ISTO É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O 14 10 43 48 43 42 OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 29 I N S I G H T O que a análise dos dados revela é que este conflito tende a ser maior quando se trata de “pedir a um amigo que trabalha no serviço público para ajudar a tirar um documento mais rápido do que o normal” e não existe para “emprestar dinheiro a um amigo”. Os dados das Tabelas 3 a 7 irão mostrar que — tomando-se apenas as três situações nas quais a discordância é maior4 — é possível perceber que o Brasil está dividido entre, de um lado, aqueles que moram em capitais, são mais jovens, têm escolaridade mais elevada e fazem parte da população economicamente ativa (PEA), e, de outro, os que moram em cidades que não são capitais, no Nordeste, são mais velhos e com escolaridade mais baixa e não fazem parte da PEA. Não foram identificadas diferenças importantes entre homens e mulheres, ou seja, as diferenças de sexo não têm relação com a classificação que as pessoas fazem das situações analisadas. O primeiro grupo tende a classificar as três situações mais para corrupção ao passo que o segundo grupo tende a considerá-las mais favor ou jeitinho (Tabela 3). As divergências entre os que residem em capitais e os que residem fora das capitais tendem a ser maior na situação na qual “um funcionário público recebe um 30 Comissão Permanente de Defesa do Consumidor INTELIGÊNCIA presente de Natal de uma empresa que ele ajudou a ganhar um contrato do governo”. A diferença na classificação corrupção é de 10%. Ainda que nas outras duas situações não haja uma diferença pronunciada, nota-se que há uma tendência de que os que moram em capitais classifiquem-as mais como corrupção ou jeitinho do que como favor (Tabela 4). Quando o mesmo dado é analisado para as faixas de idade, nota-se um fenômeno oposto ao ocorrido na análise para a população economicamente ativa. Nesta a situação do “presente de Natal” era a que apresentava a maior diferença, agora isto ocorre nas outras duas situações. Há uma variação muito acentuada na classificação como corrupção à medida que as pessoas são mais jovens: 44% das pessoas entre 18 e 24 anos acham que “pedir a um amigo que trabalha no serviço público para ajudar a tirar um documento mais rápido do que o normal” é corrupção, na faixa de idade mais velha este percentual despenca para apenas 23%. Na mesma faixa de 18 a 24 anos de idade 54% dizem que é corrupção se aproveitar de contatos pessoais para conseguir que um empréstimo do governo saia mais rápido, este mesmo percentual é muito menor para os mais velhos: 37%. á indícios, portanto, de que está em curso uma importante mudança nos padrões morais do Brasil à medida que as gerações forem sendo sucedidas. Deve ser salientado que este dado não se opõe àquele apresentado no Gráfico 3 quanto ao uso do jeitinho. Os mais jovens podem realmente se utilizar mais do jeitinho do que os mais velhos. Isso porque os mais jovens têm um número menor de oportunidades. Por essa razão, os jovens consideram que as situações estão mais para corrupção e menos para jeitinho do que as pessoas mais idosas (Tabela 5). I N S I G H T INTELIGÊNCIA Tabela 4 OS MAIS JOVENS TENDEM A CONSIDERAR AS SITUAÇÕES MAIS COMO CORRUPÇÃO DO QUE OS MAIS VELHOS PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A TIRAR UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE O NORMAL É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O 18 A 24 25 A 34 35 A 44 45 A 59 60 OU MAIS 16 19 26 31 43 40 47 45 43 34 44 34 29 26 23 UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA QUE ELE AJUDOU A GANHAR UM CONTRATO DO GOVERNO. ISTO É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O 31 28 28 31 31 31 24 26 26 28 ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO A SAIR. COMO ELE TEM UM PARENTE NO GOVERNO, CONSEGUE LIBERAR O EMPRÉSTIMO MAIS RAPIDAMENTE. ISTO É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O 39 48 46 43 40 9 9 14 14 23 36 45 50 47 40 54 46 36 38 37 Tabela 5 AS PESSOAS QUE FAZEM PARTE DA POPULAÇÃO ECONOMICAMENTE ATIVA (PEA) TENDEM A CONDIERAR AS SITUAÇÕES MAIS COMO CORRUPÇÃO DO QUE AS PESSOAS QUE NÃO FAZEM PARTE DA PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A TIRAR UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE O NORMAL É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O FORA DA PEA PEA 35 22 36 46 28 32 UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA QUE ELE AJUDOU A GANHAR UM CONTRATO DO GOVERNO. ISTO É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O 37 27 26 27 38 46 PEA ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO A SAIR. COMO ELE TEM UM PARENTE NO GOVERNO, CONSEGUE LIBERAR O EMPRÉSTIMO MAIS RAPIDAMENTE. ISTO É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O 17 11 40 46 42 43 Tabela 6 OS HABITANTES DO NORDESTE TENDEM A CONSIDERAR AS SITUAÇÕES MAIS COMO FAVOR DO QUE AS PESSOAS QUE MORAM NAS DEMAIS REGIÕES DO BRASIL PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A TIRAR UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE O NORMAL É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O NORDESTE NORTE CENTRO-OESTE SUL SUDESTE 41 20 21 21 20 36 49 40 42 47 24 31 38 36 33 UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA QUE ELE AJUDOU A GANHAR UM CONTRATO DO GOVERNO. ISTO É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O 40 30 30 27 25 29 28 24 28 25 31 42 46 45 50 ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO A SAIR. COMO ELE TEM UM PARENTE NO GOVERNO, CONSEGUE LIBERAR O EMPRÉSTIMO MAIS RAPIDAMENTE. ISTO É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O 22 15 9 11 9 43 41 46 44 46 35 45 45 45 46 OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 31 I N S I G H T Trabalhar e não-trabalhar têm impacto sobre a visão de mundo das pessoas quanto à moralidade. Os que trabalham tendem a ser mais intolerantes com o jeitinho do que os que não trabalham, e isto se depreende do uso da “corrupção” na classificação. Além disso, na análise destes dados é importante notar que há uma grande diferença, nas três situações, para o uso do “favor”. Os que não trabalham têm uma visão bem mais positiva (favor) das três situações do que os que trabalham (Tabela 6). A principal diferença regional é entre o Nordeste e as demais regiões do país. Os habitantes do Nordeste são mais tolerantes com todas as três situações. Obtendo-se uma média destas situações, 34% dos nordestinos as consideram “favor”. Esta mesma média é de 18% para quem mora no Sudeste e 21% para quem habita o Norte, sedo este o percentual mais elevado depois do alcançado pelo Nordeste. ode-se afirmar que há uma diferença importante entre o padrão ético do Nordeste face às demais regiões do Brasil. O que para um nordestino é aceitável (tomando-se como indicação o padrão de respostas para as três situações acima), para um habitante de outra região tende a ser errado ou eticamente condenável. Este padrão ético faz com que a opinião pública nordestina seja mais tolerante com acontecimentos que em outra região do Brasil tenderiam a ser considerados corrupção. A capacidade de indignação e combate da corrupção da população nordestina é menor pelo simples fato de sua concepção ética ser — na média — diferente da concepção ética do restante do Brasil (Tabela 7). As diferenças mais importantes entre os brasileiros quanto à classificação moral das situações do dia-adia ocorrem entre as faixas de escolaridade. De modo geral, à medida que a escolaridade vai aumentando 32 Comissão Permanente de Defesa do Consumidor INTELIGÊNCIA as pessoas classificam em maior proporção as três situações como corrupção. O destaque é para o caso do “presente de Natal”: a variação vai de um mínimo de 20% (para os analfabetos que disseram se tratar de corrupção) e um máximo de 72% entre as pessoas com nível superior ou mais que disseram se tratar de corrupção. Nas outras duas situações a classificação “corrupção” varia de 19% a 36% (tirar um documento mais rápido) e de 27% a 48% (obter a liberação do empréstimo com maior rapidez). Há um fenômeno interessante nestes casos. Quando se passa da faixa de escolaridade de 2o grau para superior há uma diminuição na proporção dos que afirmam se tratar de corrupção e um aumento do percentual dos que as classificam como jeitinho. As pessoas da faixa mais elevada de escolaridade se tornam moralmente mais tolerantes em relação a estas situações. Trata-se de uma clara indicação de que o fenômeno do jeitinho — que é esta zona cinzenta moral entre o certo e o errado — não será combatido simplesmente com o aumento da escolaridade de população brasileira. É evidente pelos dados que o aumento da escolaridade levará as pessoas a se oporem mais ao jeitinho. Porém, os mesmos dados mostram que há limites para isto e ele se encontra justamente na faixa mais elevada de escolaridade (Tabela 8). A variação por faixa de renda é muito interessante. Quando tomadas as duas primeiras situações, dar um jeito para tirar um documento mais rápido do que o normal e um funcionário público receber um presente de Natal, as pessoas de renda baixa consideram-nas — em sua grande maioria — um favor. Isto permite compreender, por exemplo, porque reclamar um tratamento impessoal é tão difícil no Brasil. É muito possível que algum leitor já tenha protestado contra “furar a fila” tal como é feito na primeira situação para tirar um documento mais rápido. Aquele que faz este tipo de reclamação, se for mulher, tende a ser tachada pelo público, principalmente se fo- I N S I G H T INTELIGÊNCIA Tabela 7 AS PESSOAS DE ESCOLARIDADE MAIS ALTA TENDEM A CONSIDERAR AS SITUAÇÕES MAIS COMO CORRUPÇÃO DO QUE AS PESSOAS DE ESCOLARIDADE MAIS BAIXA PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A TIRAR UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE O NORMAL É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O ANALFABETO ATÉ 4ª SÉRIE DE 5ª A 8ª SÉRIE 2º GRAU SUPERIOR OU MAIS 62 40 25 12 10 19 32 42 51 59 19 27 33 36 31 UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA QUE ELE AJUDOU A GANHAR UM CONTRATO DO GOVERNO. ISTO É: ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO A SAIR. COMO ELE TEM UM PARENTE NO GOVERNO, CONSEGUE LIBERAR O EMPRÉSTIMO MAIS RAPIDAMENTE. ISTO É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O 57 41 34 22 5 23 31 25 26 23 F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O 20 28 41 52 72 42 21 11 5 4 31 40 44 47 57 27 39 45 48 39 Tabela 8 RENDA X JEITINHO X CORRUPÇÃO PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A TIRAR UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE O NORMAL É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA QUE ELE AJUDOU A GANHAR UM CONTRATO DO GOVERNO. ISTO É: ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO A SAIR. COMO ELE TEM UM PARENTE NO GOVERNO, CONSEGUE LIBERAR O EMPRÉSTIMO MAIS RAPIDAMENTE. ISTO É: F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O SEM RENDA ATÉ R$ 200,00 DE R$ 201,00 A 600,00 DE R$ 601,00 A 1.000,00 DE R$ 1.001,00 47 50 27 28 26 22 46 49 25 34 29 18 18 25 42 32 40 42 31 35 34 37 27 36 16 40 44 18 47 35 24 24 52 9 51 41 E MAIS 11 58 31 14 23 62 5 52 43 Tabela 9 O JEITINHO É Tabela 10 OS MAIS JOVENS Tabela 11 A MAIORIA DOS NORDESTINO ACHA Tabela 12 QUANTO MAIS ELEVADA A CERTO OU ERRADO? CONSIDERAM O JEITINHO CERTO E OS MAIS VELHOS O CONSIDERAM ERRADO O JEITINHO CERTO E A MAIORIA DAS PESSOAS QUE HABITAM O SUL E O SUDESTE O CONSIDERAM ERRADO ESCOLARIDADE MENOR A TOLERÂNCIA EM RELAÇÃO AO JEITINHO SEMPRE CERTO CERTO NA MAIORIA DAS VEZES ERRADO NA MAIORIA DAS VEZES SEMPRE ERRADO 9 41 32 18 C E R T O E RRADO 18 A 24 25 A 34 35 A 44 45 A 59 60 OU MAIS 56 52 54 44 43 44 48 46 56 57 NORDESTE NORTE CENTRO-OESTE SUDESTE SUL CERTO E RRADO 57 53 50 47 46 43 47 50 53 54 C E R T O E RRADO ANALFABETO ATÉ 4ª SÉRIE DE 5ª A 8ª SÉRIE 2º GRAU SUPERIOR OU MAIS 57 51 58 48 33 43 49 42 52 67 OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 33 I N S I G H T rem pessoas de renda mais baixa, de “mal-amada”, e se for homem trata-se de um “criador de caso”. Na terceira situação, a do empréstimo junto ao governo, também são as pessoas de renda mais baixa que a consideram mais favor. A variação nas respostas “corrupção” é muito pequena quando se diversifica a renda. A grande diferença ocorre no jeitinho. As pessoas de renda mais elevada tendem a ter uma visão menos positiva simplesmente porque um percentual mais elevado a classifica como jeitinho. O JEITINHO É CERTO OU ERRADO? Os resultados da PESB para a pergunta sobre se o jeitinho é certo ou errado são impressionantes. Exatamente metade da população brasileira o considera correto e a outra metade errado. Ou seja, vivemos em um país moralmente dividido e ambíguo (Tabela 9). A diferença básica não é entre as proporções, mas na intensidade. Aqueles que acham que o jeitinho é errado são mais enfáticos quanto a isto, posto que 18% o consideram sempre errado ao passo que apenas 9% o acham sempre certo. 34 Comissão Permanente de Defesa do Consumidor INTELIGÊNCIA Na análise anterior foi mostrado que morar em capital ou fora dela, a idade, pertencer ou não à PEA, a região do país e a escolaridade estão relacionados com os padrões de moralidade aplicados às três situações que mais diferenciam a população brasileira. Porém, quando se analisa o julgamento que a população faz do jeitinho morar em capital e pertencer à PEA perdem completamente a importância. As Tabelas 10 a 12 mostram os resultados para as variáveis relevantes: idade, região e escolaridade. Fica evidente que há uma inflexão importante aos 45 anos de idade. Até esta idade predominam aqueles que acham que o jeitinho é algo certo (soma do sempre certo com certo na maioria das vezes) e a partir daí predominam os que o consideram errado. A grande diferença no julgamento que a população faz do jeitinho é entre Nordeste de um lado, e Sul e Sudeste de outro. Este resultado é importante porque indica que — na média — quem mora no Nordeste não apenas é mais tolerante com situações consideradas erradas no Sul e Sudeste, mas que mesmo quando se trata de algo ambíguo — o jeitinho — no Nordeste isto tende a ser mais positivo (certo) do que negativo (errado). Os resultados indicam com bastante clareza que as regiões Sul e Sudeste são as que menos toleram o jeitinho e a região Nordeste está no extremo oposto. Para aqueles que consideram que o jeitinho mina e solapa as bases da cidadania moderna, posto que a noção de direitos vem combinada com a clareza quanto ao que é certo e o que é errado, pode-se perceber que o Nordeste é a região do Brasil que mais tem a fazer para realizar o ideário da cidadania liberal. Os resultados da pesquisa indicam que se a sociedade brasileira continuar a expandir seu sistema educacional e a massificar o ensino superior, à medida que as gerações forem se sucedendo o jeitinho será considerado cada vez mais algo errado e condenável. Há, porém, uma ressalva importante: o principal ponto de inflexão I N S I G H T INTELIGÊNCIA do julgamento do jeitinho é no nível mais elevado de escolaridade, o nível superior. Isto revela a força e o profundo enraizamento do jeitinho na sociedade brasileira, e conseqüentemente mostra a enorme dificuldade que terão que enfrentar aqueles que o consideram um inimigo da cidadania. JEITINHO, CORRUPÇÃO E OS RESULTADOS DA PESB A Pesquisa Social Brasileira mostra que o jeitinho é muito difundido e bem enraizado na sociedade brasileira. Ficou também evidente que há divisões importantes quando se trata de utilizá-lo para classificar situações corriqueiras de nosso dia-a-dia. Os jovens pensam diferente dos mais velhos, as pessoas de escolaridade mais baixa são mais tolerantes em relação a situações menos aceitáveis para os de escolaridade mais elevada, o que os nordestinos acham mais “favor” os moradores do Sul e Sudeste consideram mais “jeitinho” ou “corrupção”. Esta combinação entre ampla disseminação do jeitinho e discordância quanto ao seu julgamento (se algo certo ou errado) e sua utilização explicam, em grande medida, boa parte dos conflitos que os brasileiros enfrentam em sua rotina diária. É comum que pessoas com diferentes visões de mundo quanto à moralidade venham a se encontrar em filas de banco e de supermercado e enfrentem situações nas quais elas têm que expor argumentos morais acerca de tais situações. Poucos são os brasileiros que nunca tiraram proveito de um jeitinho e quebraram uma regra tornando uma situação antes desfavorável em algo favorável. Da mesma forma, não há nada mais comum para nós do que reivindicar um tratamento equânime perante às regras e às leis quando outras pessoas tentam burlá-las em seu proveito. Porém, é possível ter uma visão positiva do jeitinho? Um dos argumentos favoráveis ao jeitinho é que ele funciona como uma estratégia de navegação social. Diante de um Estado muito burocratizado, que com fre- qüência opera segundo leis contraditórias e rígidas, e segundo um modelo kafkaniano de operação, o jeitinho permite que as pessoas tenham acesso a determinados direitos que de outra forma jamais alcançariam. Naturalmente, isto é apenas para aqueles que têm as habilidades e o conhecimento necessário para “dar um jeitinho”. Há também as situações nas quais tudo está previsto para funcionar, porém nada dá certo: o atendimento é ruim, as pessoas estão pouco motivadas, faltam recursos etc. O jeitinho viria em socorro das vítimas da ineficiência. Ele permitiria, da mesma maneira que no exemplo anterior, que os seus hábeis operadores tivessem acesso a determinados direitos. Por fim, um outro argumento favorável ao jeitinho é que ele permite quebrar as relações hierárquicas que caracterizam a sociedade brasileira. Como todas as pessoas conhecem e podem se utilizar dos códigos e procedimentos dele, o jeitinho possibilita que pessoas dos mais diferentes grupos sociais alcancem seus objetivos. Em situações hierárquicas apenas determinados indivíduos podem quebrar as regras gerais. O jeitinho democratiza de forma radical esta possibilidade. Em qualquer uma destas interpretações generosas do jeitinho nota-se que ele sempre será um instrumen- OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 35 I N S I G H T to que possibilita a quebra das regras. Por definição, sejam boas ou ruins, as regras são universais e se aplicam a todos os cidadãos. Se elas forem injustas ou ilegítimas devem ser mudadas. Porém, uma vez estabelecidas elas devem e precisam ser seguidas. O padrão dicotômico de moralidade, que divide o mundo entre certo e errado, permite que a cidadania — compreendida como um catálogo universal de direitos — venha a se realizar e se tornar efetiva. É certo que as leis sejam cumpridas e errado que elas sejam quebradas em favor de grupos ou pessoas. Isto é verdade por mais especial e delicada que seja a situação de quem se beneficiaria pelo não-cumprimento da lei. O jeitinho, portanto, equivale a uma “zona cinzenta moral” entre o “certo” e o “errado”. Se uma situação é classificada como jeitinho, está-se afirmando que dependendo das circunstâncias esta situação pode ser certa ou errada. Não há uma regra universal e superior que regule o mundo para além do momento. O que se tem são julgamentos caso-a-caso que podem vir a concluir que se trata de algo certo ou errado. A questão fundamental é simples: seria, neste caso, o jeitinho a ante-sala da corrupção? Pode-se afirmar que quanto maior é a aceitação do jeitinho é também maior a tolerância social à corrupção? Os resultados da PESB parecem indicar que a resposta para ambas as perguntas é sim. A moralidade brasileira admite, ao contrário da moralidade norte-americana, a existência de um meio-termo entre o certo e o errado. Quanto maior for a utilização e aceitação deste meio-termo, maiores serão as chances de que haja uma grande tolerância face à corrupção. A “zona cinzenta moral” torna difusa e imperceptível, em muitas situações, a linha divisória que marca o início daquilo que é (ou deveria ser) considerado errado. Adicionalmente, se por causa das circunstâncias e do contexto regras são quebradas para que determinadas pessoas sejam beneficiadas, qual o limite para este 36 Comissão Permanente de Defesa do Consumidor INTELIGÊNCIA procedimento? Por que ele não é tão errado quando se trata de fila de banco, mas muito errado quando se trata de dinheiro público? Nas duas situações um princípio geral foi ignorado: o da necessidade de se seguir às regras e às leis. A diferença entre ambos é de grau, mas não de conteúdo. A opinião pública brasileira reconhece e aceita, em grande proporção, que o jeitinho seja utilizado como padrão moral. Além disso, há uma divisão profunda (50% versus 50%) entre os que consideram o jeitinho certo e aqueles que o acham errado. Por isso, se de fato o jeitinho funciona como uma ante-sala da corrupção os resultados da PESB indicam que a tarefa de combate precisa ser feita junto à opinião pública e à população. Os níveis de corrupção no Brasil têm provavelmente correlato no nível de aceitação social do jeitinho. O que a PESB mostra é que se quisermos efetuar esse combate com sucesso temos um longo caminho pela frente, posto que a aceitação social do jeitinho é muito grande e bem enraizada. email: [email protected] NOTAS 1. A PESB FOI FINANCIADA PELA FUNDAÇÃO FORD, REALIZADA PELO DATAUFF E COORDENADA POR ALBERTO CARLOS ALMEIDA, COORDENADOR DO FGV OPINIÃO (FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS) E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF). A PESB-2002 CONSISTIU EM UM SURVEY, DE ABRANGÊNCIA NACIONAL COM AMOSTRA PROBABILÍSTICA DE 2.364 CASOS. 2. LÍVIA BARBOSA EM SEU LIVRO “O JEITINHO BRASILEIRO” AFIRMA, BASEADA EM SUA PESQUISA, QUE “TODAS AS PESSOAS ENTREVISTADAS CONHECEM, PRATICAM OU FAZEM USO DAS EXPRESSÕES JEITINHO BRASILEIRO OU DAR UM JEITINHO”. HÁ, PORTANTO, UMA GRANDE DIVERGÊNCIA EMPÍRICA ENTRE ESTES RESULTADOS E OS OBTIDOS PELA PESB. UMA EXPLICAÇÃO POSSÍVEL É QUE LÍVIA BARBOSA FUNDAMENTA SUAS CONCLUSÕES EM 200 ENTREVISTAS “COM OS MAIS DIFERENTES SEGMENTOS E FAIXAS ETÁRIAS DA POPULAÇÃO”, AO PASSO QUE A AMOSTRA DA PESB É PROBABILÍSTICA. 3. PARA EFEITO DE ANÁLISE FORAM SOMADAS AS RESPOSTAS “FAVOR” COM “MAIS FAVOR QUE JEITINHO”, “CORRUPÇÃO” COM “MAIS CORRUPÇÃO QUE JEITINHO”, E POR FIM “MAIS JEITINHO QUE FAVOR” COM “JEITINHO” COM “MAIS JEITINHO QUE CORRUPÇÃO”. ISTO PERMITIU TRABALHAR COM APENAS TRÊS CATEGORIAS: FAVOR, JEITINHO E CORRUPÇÃO. ESTA ESCALA FOI INSPIRADA EM LÍVIA BARBOSA, “O JEITINHO BRASILEIRO”, EDITORA CAMPUS, 1992, P.33. 4. ESTAS SITUAÇÕES FORAM SELECIONADAS DEPOIS DE REALIZADA UMA ANÁLISE ESTATÍSTICA QUE PERMITIU IDENTIFICAR QUAIS DAS 19 SITUAÇÕES DA BATERIA DE PERGUNTAS DO JEITNHO ERAM AS QUE MAIS DIFERENCIAVAM A POPULAÇÃO. I N S I G H T 40 Secretaria Especial de Furtos e Reclamações INTELIGÊNCIA I N S I G H T INTELIGÊNCIA Keila Grinberg HISTORIADORA Justiça! A INVASÃO DOS REESCRAVIZADOS azia muito tempo que os escravos Martha e Sabino acompanhavam a família Vaz da Silva. Não é possível precisar bem desde quando, mas pelo menos desde que João Vaz da Silva os herdou de seu pai. João vivia com sua esposa, seus filhos e estes seus dois escravos — já que Conrado (“idiota”, coitado) não contava. Como cativos, os dois permaneceram até a velhice de João, quando, por medo da morte ou pelos bons serviços prestados à família, ele libertou Sabino e passou carta de alforria a Martha. Esta seria liberada assim que seu senhor morresse. O que não tardou a acontecer. Mesmo antes, Sabino e Martha não tinham dúvidas quanto à sua nova condição. Afinal, nem quando receberam suas liberdades saíram da vista de seus antigos senhores, continuando, como antes, “praticando com estes atos de livre arbítrio, cantando e dançando com eles” e “reinando entre todos a igualdade de comunhão doméstica, sem distinção de condição servil”. Mas a harmonia no lar dos Vaz da Silva só duraria até o falecimento de João. Pouco tempo depois, Martha, que havia continuado a fazer companhia para sua ex-senhora, não gostando da interferência desta em suas rixas com uma tal Maria Bernardina, foi-se embora. Martha foi morar na casa de Manoel Rodrigues Vianna. Como era continuamente procurada pelos filhos de João Vaz da Silva, que insistiam na sua volta, mudou-se para além do Rio das Velhas. Mas um dia voltou e, juntamente com Sabino, foi apreendida pelos filhos (e também herdeiros) de seu benfeitor João. Isto aconteceu em 1860, em Curvelo, Minas Gerais.1 Para justificar as apreensões, os herdeiros de João Vaz da Silva sustentavam que este tinha mais de oitenta anos quando passou as cartas de liberdade a Martha e Sabino, quando já “não era mais senhor de suas faculdades”. Pediam que a Justiça as anulasse, e que os referidos escravos fossem declarados de condição servil, como nunca deveriam ter deixado de ser. Diziam que “a velhice é uma enfermidade gravíssima, perpétua”, que atingia a todos os maiores de setenta anos (conforme rezava a or- OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 41 I N S I G H T denação filipina livro 4, título 104, parágrafo 5) incluindo, evidentemente, João, que já não podia “dispor de suas ações por se achar incapaz de tudo, e qualquer ato cível judicial, ou extrajudicial”, nem “exercer direitos, nem contrair obrigações valiosas, muito principalmente dispor de todos os seus bens em prejuízo de sua mulher e filhos”. O argumento era justamente este: as liberdades de Sabino e Martha eram os únicos bens de João; portanto, elas não podiam ser doadas assim sem mais nem menos, deixando na miséria toda a sua família. Não adiantaram as alegações do curador de que a defesa de seus clientes baseava-se no “Direito social e natural”, nem que as liberdades foram conferidas “por pessoa competente para o fazer”, muito menos demonstrar “a ambição e a desumanidade” que motivavam as pretensões dos autores da ação judicial. Também não foi suficiente mencionar que, se havia imperfeição no estado mental de João Vaz da Silva, era necessário prová-lo, o que não havia sido feito; ou que, como já haviam passado mais de seis anos desde que Sabino e Martha viviam como livres, qualquer ação de escravidão já estaria prescrita por lei. ada adiantou: o juiz Antonio Carlos dos Reis entendeu que as cartas de liberdade de Sabino e Martha deviam ser anuladas. Para ele, a doação feita por João Vaz da Silva feria “direitos adquiridos” de seus herdeiros, e nem atestava “a fraternidade que dizem existia entre réus e autores durante a vida de João Vaz da Silva, fraternidade que jamais pôde prejudicar os herdeiros”. Por isso, ainda que “circunscrevendo-se em certa órbita os favores concedidos à liberdade”, declarou Martha e Sabino cativos e, como tais, obrigados a prestar-lhes os serviços que estes desejassem. Pois sim, senhor: depois de tantos anos em liberdade, em pleno século das luzes — como era chamado 42 Secretaria Especial de Furtos e Reclamações INTELIGÊNCIA por seus contemporâneos —, eis que estes dois libertos foram reescravizados. Já há algum tempo, os estudos sobre escravidão no Brasil vêm mostrando que não só muitos escravos conseguiam se libertar ao longo do século XIX, como também o faziam através da via judicial: processavam seus senhores e, em muitos casos, provavam que tinham direito à liberdade. Até aí, nenhuma novidade. Só que, talvez pela indisfarçável simpatia à causa abolicionista, talvez pela surpresa que as ações de liberdade ainda causam, o fato é que pouca atenção, até hoje, foi dada às práticas de reescravização ocorridas também no século XIX, fosse através da revogação da alforria, fosse através de escravização ilegal de descendentes de indígenas, de libertos ou de africanos chegados no Brasil após a lei de 1831, a primeira a proibir o tráfico atlântico de escravos. Afinal, assim como foram abundantes as demandas de escravos pela liberdade na Justiça no século XIX, também muitas foram as tentativas feitas por libertos de manter suas alforrias quando estas lhes pareceram ameaçadas e muitos foram os casos nos quais os próprios senhores tentaram reaver a posse sobre antigos ou supostos escravos através dos tribunais. Ao que parece, no entanto, ao longo do século XIX estas práticas foram tornando-se cada vez menos legítimas. Quando estudei as 402 ações de liberdade que chegaram à Corte de Apelação do Rio de Janeiro, há vários anos atrás, além de analisar sua procedência geográfica, a época que ocorreram e seus resultados, classifiquei-as conforme o argumento que seus autores — os escravos — apresentavam para tentar obter suas liberdades.2 Na ocasião, não atentando para as possíveis diferenças entre os vários tipos de ações, analisei apenas alguns dos argumentos usados por escravos e seus curadores. Como estava interessada em entender a dinâmica jurídica e a lógica de resolução das ações, acabei concentrando-me nos casos I N S I G H T mais conhecidos pela historiografia até então existente: os chamados “carta de alforria”, quando escravos argumentavam que senhores ou seus herdeiros lhes haviam concedido alforria e depois tinham voltado atrás, “ventre livre”, geralmente usado quando famílias de escravos argumentavam serem filhos, netos ou bisnetos de pessoas ilegalmente escravizadas, fosse por serem libertas, fosse por serem de origem indígena, e “compra de alforria”, quando escravos ou terceiros pediam arbitramento de seu valor para apresentarem pecúlio. Não atentei para o fato de várias das ações não receberem a denominação de liberdade liberdade, mas sim de manutenção de liberdade e de escravidão escravidão. Para mim, àquela época, estas ações e as de liberdade configuravam apenas um tipo de processo, já que abordavam questões semelhantes. Foi por isso que limitei-me a classificar as ações de escravidão e manutenção de liberdade como um “tipo” de argumento diferente (gráfico 1). evendo, porém, a forma como classifiquei estes processos, percebi que havia uma diferença cabal entre os processos que havia analisado. Embora a maioria dos processos fosse efetivamente ações de liberdade, um número expressivo de processos foi classificado, na época, como sendo de manutenção da liberdade ou ação da escravidão. Só agora, olhando novamente para estes processos, percebi que eram processos de natureza diferentes, que tratavam de outro assunto: a questão da reescravização (ver gráfico 2). À diferença das ações de liberdade, nas quais escravos — ou, ao menos, indivíduos formalmente tidos como cativos — solicitam a homens livres que assinem petição por eles, argumentando que possuem razões suficientes para processar seus senhores e pedir suas liberdades, as ações de manutenção de liberdade são inicia- INTELIGÊNCIA das por libertos, que pretendem defender na Justiça o direito de manutenção de sua condição jurídica, aparentemente ameaçada por uma possibilidade de reescravização. Da mesma forma, as ações de escravidão são iniciadas por senhores, que pretendem reaver escravos indevidamente tidos como livres. São estes dois tipos de ações que, embora não tenham sido batizadas com este nome no século XIX, aqui consideramos como sendo ações de reescravização, menos por suas carac- GRÁFICO 1 Classificação das ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro conforme “Liberata” FONTE: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO RIO DE JANEIRO - ARQUIVO NACIONAL RJ - TOTAL: 402 AÇÕES GRÁFICO 2 Ações cíveis relativas à liberdade e à reescravização do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro no século XIX FONTE: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO RIO DE JANEIRO - ARQUIVO NACIONAL RJ - TOTAL: 402 AÇÕES OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 43 I N S I G H T terísticas formais e mais pelas questões que abordam. Afinal, embora os procedimentos jurídicos sejam semelhantes, o processo aqui definido como sendo de reescravização suscita debates distintos daqueles realizados nas ações de liberdade: além da verificação da veracidade das versões contadas por ambas as partes, como em qualquer processo, nestes casos trata-se de discutir em que medida é possível voltar atrás em uma doação de liberdade, principalmente quando o indivíduo em questão já foi libertado há muito tempo. Ao invés da passagem do estado de escravidão para o estado de liberdade, que ocorre nas ações de liberdade, aqui se trata de discutir as possibilidades e a própria legitimidade da passagem da liberdade para a escravidão. credito ser possível demonstrar quão instável era a situação destes libertos que, às vezes, mesmo depois de reconhecidamente viverem como livres por muitos anos, ainda precisavam voltar à Justiça para consolidar seus direitos. Partindo do princípio de que aqueles que tiveram acesso à Justiça são apenas uma parcela ínfima do número de libertos e livres ameaçados por seus antigos ou supostos senhores, é preciso considerar a reescravização como uma prática efetivamente realizada mesmo em fins do século XIX. Só depois de 1870, por exemplo, chegaram ao tribunal de segunda instância do Rio de Janeiro vinte casos (gráfico 3). Não fosse assim, Perdigão Malheiro não teria perdido seu tempo alegando em 1866, em seu A Escravidão no Brasil, que a revogação da alforria era uma prática contrária aos interesses da sociedade, já que Na revogação de uma doação de bens, a desordem é simples; é uma questão de propriedade, que afinal se resolve em restituição ou indenização. Mas, na revogação da alforria, o mesmo não acontece. É um homem, um cidadão, que perderia todos os seus direitos, de cidadão, de marido ou mulher, de pai de família, de pro- 44 Secretaria Especial de Furtos e Reclamações INTELIGÊNCIA prietário, lavrador, comerciante, manufatureiro, empregado público, militar, eclesiástico, enfim toda a sua personalidade, o seu estado, família, direitos civis e mesmo políticos para recair na odiosa e degradante condição de escravo. E ele terminava dizendo: E pode-se acaso tolerar-se que isto se verifique no nosso século, na época em que vivemos, com as tendências e louváveis aspirações, já não somente de favor à liberdade mantida pela escravidão, mas de abolição da própria escravidão? Parece-nos que a consciência e a razão de cada um, mesmo juiz, está respondendo que não; e que essa lei se deve ter por obsoleta, antiquada e caduca, derrogada ou ab-rogada pelas leis posteriores, pelas idéias do século e costumes da nossa época e sociedade, da nossa civilização e progresso.3 Parece que o diagnóstico de Malheiro sobre a “consciência e a razão” de cada juiz “na época em que vivemos” fazia sentido. Afinal, o número de ações que tinham a reescravização como tema aumentava à medida que o fim do século se aproximava (gráfico 4). Embora ainda fossem muitos os casos decididos a favor dos proprietários de escravos — e assim o seriam até a década de 1880 — estes dados mostram que, pelo menos desde a década de 1830, mais de 50% das sentenças foram favoráveis à liberdade. Mais do que isso: demonstrando que não eram apenas os juristas, advogados e juízes a entenderem de Direito e de direitos, o número das ações de manutenção de liberdade teve um crescimento muito acentuado a partir de 1850, ao passo que as ações de escravidão seguem tendência bem diferente: embora não caiam, sua tendência de crescimento é bem menor (gráfico 5). A análise destes dois gráficos permite a chegada a duas conclusões importantes: a primeira é que, desde 1850, mais escravos entram com ações de manutenção de liberdade na Justiça do que senhores iniciam ações de escravidão. Embora estas ocorrências atentem para I N S I G H T a necessidade de se levar em conta as práticas efetivas de reescravização que certamente ocorriam então, das quais o processo judicial é apenas uma das formas de resistência, elas também podem demonstrar que os escravos tinham consciência de suas chances em conseguir a alforria nos tribunais. Esta é a segunda e mais importante conclusão: apesar de ser difícil afirmar peremptoriamente, com base apenas nestes dados, que escravos sabiam que suas possibilidades de saírem vitoriosos nas ações de escravidão e manutenção de liberdade eram maiores do que as de seus senhores, elas efetivamente o eram, pelo menos na Corte de Apelação, tribunal de segunda instância. É por isso que, se estes dados dizem muito sobre o estado das relações entre senhores e escravos na segunda metade do século XIX, eles informam mais ainda acerca da legitimidade jurídica das ações cíveis de escravidão e manutenção da liberdade: eles demonstram que, paralelamente ao que então acontecia nas ruas, dentro dos tribunais — ao menos nos tribunais de segunda instância — a legitimidade da escravidão também estava com os dias contados. Basta lembrar do caso dos libertos Martha e Sabino, aqueles que foram considerados cativos pelo juiz de Curvelo em 1860. Com a apelação da sentença, ela foi parar na Corte de Apelação do Rio de Janeiro. Lá, a discussão entre Antonio Pereira Rebouças, curador dos escravos, e o advogado dos senhores Miguel Borges de Castro Azevedo e Mello trouxe novidades quase cinematográficas à ação. Na petição dos apelantes, somos informados que boa parte dos beneficiários da ação de escravidão, herdeiros de João Vaz da Silva, desistiu da pretensão de resgatar seus supostos cativos. A razão? Não queriam mais processar Martha e Sabino, respectivamente, tia e primo de parte dos autores da ação. Eles disseram que a liberta Martha era filha de Pedro Vaz da Silva, sendo, portanto, irmã de João Vaz da Silva, o responsável por sua libertação. Sendo Sabino filho de Mar- INTELIGÊNCIA tha, ele era também sobrinho de seu senhor. Neste sentido, nada mais compreensível do que a libertação dos dois. oi o que alegou o advogado Antonio Pereira Rebouças, argumentando que a sentença, além de injusta, era injurídica, por considerar os autores como os únicos herdeiros do libertante João Vaz da Silva e por desconsiderar o poder que as leis conferiam aos maridos de alienar todos os bens móveis e semoventes do casal durante a “conjugal administração”.4 Esta foi justamente a questão abordada por seu opositor, o advogado Miguel Borges de Castro Azevedo e Mello, que perguntava: “Pode uma pessoa dispor em vida, por doação ou alforria, de bens cujo valor excede às forças de sua terça?” Para ele, a resposta era não: GRÁFICO 3 Ocorrência de ações de escravidão e manutenção de liberdade ao longo do século XIX FONTE: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO RIO DE JANEIRO - ARQUIVO NACIONAL RJ GRÁFICO 4 Resultados das ações de escravidão e manutenção de liberdade no século XIX OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 45 I N S I G H T E a razão é porque excedendo o valor de doação as forças da terça, essa doação traz prejuízo e grave perda aos herdeiros, que têm um direito fundado sobre as duas partes dos bens do doador. (...) Este João Vaz da Silva não tinha mais bens alguns além dos escravos, ora apelantes. Tinha um outro escravo maluco ou doido, que não valia nada. Tinha um bocadinho de terras, que nada produziam. Os autos o dizem. Logo a alforria que ele deu aos escravos apelantes é inoficiosa (...). zevedo e Mello aqui usa da estratégia de considerar a alforria como uma doação como outra qualquer, justamente a definição contrária daquela preconizada por Perdigão Malheiro e outros. Para Azevedo e Mello, a alforria era enquadrada como uma forma de contrato que tratava da transmissão de propriedade, como tantas diferentes havia. Desta forma, a única diferença da doação da liberdade para as outras doações existentes era que o beneficiado não podia recusá-la. Mas, possivelmente só para não deixar de rebater o argumento de a sentença ser “injusta”, ele completou dizendo que Não é em um Tribunal de Justiça que se trata de dar a cada um o que é seu, que cumpre mover afetos, e clamar pelos direitos do homem, por garantias de liberdades, sacrificadas pela ambição e desumanidade. GRÁFICO 5 Ocorrência de ações de escravidão e de manutenção de liberdade no século XIX 46 Secretaria Especial de Furtos e Reclamações INTELIGÊNCIA Temos fé, e à vista dela de nada valem belas teorias e eloqüentes discussões. O que o advogado dos proprietários devia estar tentando evitar era o julgamento da ação a partir da excepcionalidade das regras sobre escravidão e liberdade, principalmente quando elas envolviam relações familiares entre senhores e escravos. Mas não foi isso o que aconteceu. A Corte de Apelação do Rio de Janeiro proferiu acórdão estabelecendo que nem os apelados apresentam sentença que houvesse privado o falecido doador da administração de seus bens (...), nem é certo o princípio de que aos herdeiros necessários seja devida legítima alguma carta antes da morte das pessoas a quem devem suceder, e que por conseguinte se realizam direitos que até então não passavam de mera esperança: ao que acresce que declarando o falecido doador serem seus parentes os doados, e sendo esta declaração reconhecida e confirmada por muitos outros herdeiros, seria a maior das iniqüidades que o Juízo acompanhasse os apelados na pretensão de escravizar seus próprios parentes (...).” O tribunal não só reconheceu que, do ponto de vista jurídico, os libertos apelantes estavam com a razão, mas também enfatizou aquilo que então se chamava de “injustiça notória” cometida anteriormente pelo juiz de Curvelo ao decidir-se pela reescravização de Martha e Sabino: a pretensão de escravizar os próprios parentes. Os magistrados da Corte de Apelação agiram, portanto, no sentido de “clamar pelos direitos do homem, por garantias de liberdades”, fazendo exatamente aquilo que Azevedo e Mello havia tentado impedir com seus argumentos. O acórdão foi referendado pelo Supremo Tribunal de Justiça, que negou o pedido de revista cível aos supostos proprietários. Pois sim, senhor: depois de páginas e páginas de processo, eis que os herdeiros de João Vaz da Silva foram derrotados na Justiça por dois libertos. Ainda que antiga, uma das teses ainda comuns sobre I N S I G H T a Justiça brasileira no século XIX diz respeito à relação entre seus membros e os supostos interesses da elite brasileira. “Bacharéis do açoite” é apenas uma — a mais forte, talvez — das expressões utilizadas para descrever a forma como advogados e juízes defendiam a propriedade escrava de seus supostos companheiros de classe.5 De fato, esta é a presunção geral quando se trata da relação entre a Justiça e a escravidão no Brasil oitocentista: a de que, mesmo que seja possível a um ou outro escravo sair vencedor em uma ação contra seu senhor, a lógica mandaria que a razão jurídica estivesse com o proprietário de escravos. O Poder Judiciário não seria uma instância de defesa dos direitos de cativos. A análise da atitude dos escravos que recorreram à Justiça para lutar por prerrogativas que defendiam ser seus direitos contribui para questionar esta concepção. Afinal, nas ações de liberdade, a responsabilidade em encontrar um fim razoável para a contenda era delegada à Justiça, ainda que este recurso às vezes fosse, na prática, apenas uma estratégia para pressionar senhores a libertar logo seus escravos. De qualquer forma, a atitude destes escravos revelava que, já para estas pessoas escravizadas, o Estado era encarado como o detentor do poder de fazer valer direitos que consideravam possuir, como o de receber a liberdade prometida às vezes apenas verbalmente por um senhor. No caso brasileiro, portanto, os Tribunais de Justiça realmente exerceram um papel importante para a obtenção da alforria de escravos africanos e seus descendentes, o que pode ser percebido tanto pelo número de ocorrências das ações de liberdade — e, mais importante, de várias sentenças favoráveis à efetiva libertação de escravos — quanto pelo resultado dos apelos extrajudiciais feitos por africanos e seus descendentes, que se dirigiam diretamente ao rei para que este exercesse sua compaixão para com seus súditos, livrando-os de penas, concedendo-lhes graças especiais, ou decidindo a seu favor em contendas de liberdade, quando INTELIGÊNCIA já haviam esgotado todas as outras maneiras de obter ou assegurar a alforria. As ações de liberdade em geral, tiveram, assim, um papel fundamental na tensão entre a permanência das relações escravistas e o processo de modernização do Estado brasileiro no século XIX: elas eram a expressão da luta por direitos realizada por escravos e seus descendentes, que, através da Justiça, tornavam públicas suas demandas, e explicitavam a necessidade de regulamentação jurídica das relações privadas civis. De certa forma, suas ações contribuíram para a expansão da esfera pública, por solicitarem a atuação do Estado. A ocorrência e os resultados das ações de reescravização demonstram que, a partir da década de 1860, juízes e advogados (que, neste caso, nada tinham de abolicionistas) foram aos poucos reconhecendo que estas práticas de reescravização, embora ainda ocorressem com muita freqüência, estavam tornando-se cada vez menos legítimas. Os senhores que levavam suas contendas com seus escravos à Justiça não tinham, a priori, garantia nenhuma de suas perspectivas de vitória. Entre o início da perda de legitimidade e a perda efetiva da legalidade, só ocorrida com a abolição da escravidão, ainda se passariam muitos anos. Mas talvez não seja exagerado dizer que escravos e libertos tinham um palco onde suas reivindicações eram mais ouvidas do que as de seus senhores: os tribunais. email: [email protected] NOTAS 1. PROCESSO Nº 6.229, APELAÇÃO. CAIXA 3.691, 1860. ARQUIVO NACIONAL. CORTE DE 2. KEILA GRINBERG, LIBERATA: A LEI DA AMBIGÜIDADE. RJ, RELUME-DUMARÁ, 1994, ESPECIALMENTE CAPÍTULO 2. 3. PERDIGÃO MALHEIRO, ESCRAVIDÃO NO BRASIL, 1866, VOL. 1, P. 176-7. 4. PROCESSO Nº 6.229, APELAÇÃO. 5. A CAIXA EXPRESSÃO É DE JURANDIR 3.691, 1860. ARQUIVO NACIONAL. CORTE MALERBA. OS BRANCOS DA LEI — DE LIBERALISMO, ESCRAVIDÃO E MENTALIDADE PATRIARCAL NO IMPÉRIO DO BRASIL. MARINGÁ, EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ, 1994. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 47 I N S I G H T INTELIGÊNCIA BOLETIM DE OCORRÊNCIAS I Jorio Dauster Embaixador 48 Delegacia de Defraudações I N S I G H T INTELIGÊNCIA Entre 1940 e 1965, J.D. Salinger publicou um total de 36 contos e um romance. Daqueles, treze foram reunidos em volumes bem conhecidos: Nove Estórias; Franny e Zooey; Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira e Seymour, uma apresentação. Os vinte e dois restantes há muito permanecem enterrados, e em larga medida ignorados (exceto por alguns poucos fãs), nas revistas em que apareceram. Esses vinte e dois contos estão reproduzidos nestes dois volumes. Alguns imaturos, outros excelentes, são talvez a chave mestra para entender o tema religioso de Salinger em sua permanente evolução, desde os primeiros conflitos sociais dos adolescentes de classe média, passando pelas frustrações do intelectual nos tempos de guerra, até chegar à figura místico-literária do próprio Seymour, o ápice da caminhada de Salinger em busca de seu eu mais profundo. Por incrível que pareça, essas poucas — e instrutivas — linhas constituem o prefácio de uma edição pirata de tudo aquilo que Salinger se recusara a publicar sob a forma de livro antes de mergulhar na reclusão e no mais absoluto silêncio autoral. Entre as vinte e duas peças, lá está a última vinda a público há exatos trinta e sete anos, Hapworth 16, 1924, e que talvez ainda possa ser lançada entre capas OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 49 I N S I G H T INTELIGÊNCIA duras para gáudio das hostes salingerianas em todo o mundo. Quando saiu O apanhador no campo de centeio, em 1951, Salinger já publicara 27 contos em diversas revistas, tais como Collier´s, The Saturday Evening Post, Cosmopolitan, Story, Mademoiselle e The New Yorker. Seis deles foram integrar o volume das Nove Estórias, publicada em 1953, mas a partir daí começaram a rarear as aparições de Salinger em pessoa e também em letra de forma: Franny e Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira só apareceram em 1955, Zooey em 1957, Seymour, uma apresentação em 1959, até o derradeiro Hapworth 16, 1924 em junho de 1965. Enquanto isso, crescia de forma estupenda a fama do autor, já então objeto de verdadeiro culto, transformado em guru de todos os adolescentes que se identificavam com Holden Caufield na sua rejeição das falsidades da vida adulta. Quando ficou claro que os contos não-incluídos na coletânea jamais veriam a luz do dia com o beneplácito do autor, estabeleceuse uma verdadeira caçada às revistas que os haviam abrigado originalmente. Para os jovens fãs incapazes de disputar os cobiçados exemplares com colecionadores mais abonados, o instrumento de eleição era a gilete e o campo de ação das 50 Delegacia de Defraudações I N S I G H T INTELIGÊNCIA bibliotecas públicas e universitárias: nessas últimas, diz-se que não resta incólume um único dos números visados. Foi então, se não me engano no início dos anos 70, que recebi de um colega diplomata lotado no exterior um artigo do Herald Tribune sobre Salinger. Sabedor de que eu cotraduzira o Apanhador no campo de centeio e Nove estórias (o primeiro com Álvaro Alencar e Antônio Rocha, o segundo apenas com Álvaro) mandava-me a matéria por imaginar que eu gostaria de conhecer a luta do autor para coibir uma edição fantasma que, certamente se valendo dos esforços daqueles bravos cirurgiões de revistas, continha os vinte e dois contos que ele condenara ao esquecimento. Segundo a matéria jornalística, não havia muito que a polícia pudesse fazer: os vendedores piratas ofereciam os exemplares de livraria em livraria, cobrando em espécie e desaparecendo a seguir; os livreiros, por sua vez, escondiam os volumes em algum canto bem seguro da loja e, auferindo um belo lucro, só os ofereciam a clientes de confiança. Para mim, labutando no Planalto Central, ficava a certeza de que não teria nem mesmo a chance de cometer o pecadilho de comprar a obra pirata. Eis-me, alguns anos depois, caminhando pelas ruas de Paris, para onde havia sido levado por uma reunião de OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 51 I N S I G H T INTELIGÊNCIA cunho econômico. Nem me recordo por que, naquele dia, me afastara tanto do tradicional roteiro hotel-local da conferência-embaixada-hotel que costumava palmilhar. Por força do hábito, dou uma breve paradinha diante da vitrina de modesta livraria, passo os olhos a galope pelos títulos franceses e... Estranha dupla de volumes: capas brancas com o desenho de uma mulher e uma menina, vestidas nos trinques e empoleiradas na beira de uma cama com dossel e volumosos travesseiros, conversando com um soldado sentado diante delas numa poltrona; na parte superior, em letras vermelhas sobre fundo rosa no melhor estilo belle époque, o nome do autor; mais abaixo, March 1940 (mês em que foi publicado o primeiro conto, Young Folks ); na parte inferior, os títulos dos contos (17 no primeiro volume, 5 no segundo) e, num retângulo rosa-pálido, as palavras que me deixaram atônito: Featuring The Complete Uncollected Short Stories! Confesso que entrei disparado na livraria, perseguido pela idéia insana de que lá dentro já estaria alguém finalizando a compra daquele pequeno tesouro. Evidentemente, a loja estava às moscas, a senhora que me atendeu sem dúvida jamais ouvira falar em J.D.Salinger, e pelo jeito ficou muito feliz quan- 52 Delegacia de Defraudações I N S I G H T INTELIGÊNCIA do me declarei disposto a levar não só a dupla da vitrina mas também as duas outras que dormitavam numa prateleira mal iluminada (e com as quais presenteei meus co-tradutores). Na época, sem pensar muito sobre o assunto, achei que aqueles volumes eram parte da operação iniciada no outro lado do Atlântico, quem sabe as sobras que tiveram de buscar outros mercados fugindo à repressão policial. Agora, porém, ao escrever estas notas, olhei com mais cuidado as publicações, que obviamente não trazem nenhuma indicação bibliográfica, e convenci-me de que não parecem ser um produto norte-americano. Contribuem para isso o rebuscado da capa e alguns erros de impressão no prefácio (“skelton key”, “tracable” e “adolesents”), denunciando uma provável origem gaulesa. Mas a melhor pista, que consistia em saber se o artigo do Herald Tribune falava ou não de dois volumes, havia se perdido nas brumas do passado. Fica o mistério policial, passível de ser resolvido por algum fã mais bem informado do que eu. Mas restará para sempre o mistério maior, a tessitura inconsútil que transformou um devotado tradutor de Salinger em cúmplice confesso (embora impenitente) de um doce atentado à propriedade intelectual do ermitão de New Hampshire. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 53 I N S I G H T INTELIGÊNCIA IMPASSES NO PARAÍSO: A CRISE NO IRAQUE CLAUSEVITZ PODE AJUDAR A VENCER BATALHAS, MAS É DE MUITO POUCA VALIA PARA O TRABALHO DE GENDARME. Márcio Scalercio Historiador COMO VOCÊ OUSA COCHILAR À SOMBRA DA SEGURANÇA COMPLACENTE, LEVANDO UMA VIDA TÃO FRÍVOLA QUANTO AS FLORES DO JARDIM, ENQUANTO SEUS IRMÃOS NA SÍRIA NÃO TÊM ONDE MORAR, A NÃO SER AS SELAS DOS CAMELOS E AS BARRIGAS DOS ABUTRES? SANGUE FOI DERRAMADO! JOVENS BELAS FORAM ENVERGONHADAS (...). SERÁ QUE OS VALOROSOS ÁRABES DEVEM SE RESIGNAR AO INSULTO E OS VALENTES PERSAS ACEITAR A DESONRA(...). JAMAIS OS MUÇULMANOS FORAM TÃO HUMILHADOS. NUNCA SUAS TERRAS FORAM TÃO SELVAGEMENTE DEVASTADAS (...). (TRECHO DO DISCURSO DO VENERÁVEL CÁDI ABU SAAD AL-HARAWI, AO CALIFA DE BAGDÁ, ANUNCIANDO A INVASÃO DA P RIMEIRA C RUZADA CONTRA A S ÍRIA E P ALESTINA EM 1099 D .C. E CONVOCANDO O C OMANDANTE DOS CRENTES A REAGIR. O VENERÁVEL CÁDI EXIBIA SUA CABEÇA RASPADA, NUA POR CAUSA DO LUTO. CITADO DE ALI, TARIQ. C ONFRONTO DE FUNDAMENTALISMOS. RIO DE J ANEIRO - SÃO PAULO, RECORD, 2002, PP. 63). 54 Interpol I N S I G H T INTELIGÊNCIA discurso proferido pelo venerável Abu Saad, que procurava sensibilizar o califa e os muçulmanos contra a ação dos cavaleiros cristãos invasores, se ajusta perfeitamente ao que se passa nas mentes de muitos dos milhões de muçulmanos que habitam o mundo atual. Este é um dos elementos mais candentes presentes nas crises no Iraque e na Palestina. Ambas renovam a cada dia os descontentamentos e a fúria das massas islâmicas contra o Ocidente. Ambas transtornam as relações internacionais instilando discórdias entre velhos aliados (mesmo entre países ocidentais) e instabilidade no sistema entre as nações. Além disso, contribuem para a desmoralização da ONU (Organização das Nações Unidas) revelando seus estreitos limites de influência e capacidade de formulação de políticas concretas para solucionar conflitos e crises graves. Finalmente e porque não ressaltar, lamentavelmente, produzem vítimas fatais e prejuízos materiais por toda parte, de Cabul a Nova York. A proposição deste artigo é a de apresentar ao leitor a seguinte questão: enfatizando exclusivamente o cenário da atual crise do Iraque, demonstrar que a admiravelmente bem organizada máquina de guerra norte-americana, remodelada após a Campanha do Vietnã, que obteve com alguma facilidade a desagregação das Forças Armadas convencionais do Iraque e obrou a ocupação dos centros mais importantes do país, não está a altura da tarefa desejada pela liderança política dos Estados Unidos nesse momento: a de servir de principal suporte para a reestruturação do Estado e sociedade iraquianos que obedeça a um enquadramento entendido como viável aos interesses das potências ocidentais. O que se vai fazer aqui é um exercício de reflexão centrado em estudos de res militare (coisa militar, assuntos militares), um conjunto de temas em voga desde os tempos de antanho, cujas referências remontam aos textos greco-romanos da antigüidade clássica. A tradição que nutre a relevância de tais assuntos foi reforçada em nossos dias, dentre muitas outras razões, pelo fenômeno da liderança política dos EUA insistir em usar o poder militar como ferramenta fundamental de política externa. Para que tenhamos uma idéia inicial dessa realidade, basta perceber que, durante os 50 anos de Guerra Fria, os EUA fizeram uso de seu poder militar no exterior por 16 vezes, enquanto que desde 1990, com a desagregação da URSS, forças norte-americanas se envolveram diretamente em conflitos internacionais pelo menos em 46 oportunidades (incluímos nessa contagem a Guerra do Iraque no ano de 2003)1. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 55 I N S I G H T INTELIGÊNCIA AS AVALIAÇÕES SOBRE A GUERRA DO VIETNÃ E A MODELAGEM DAS FORÇAS ARMADAS DOS ESTADOS UNIDOS A DERROTA NO VIETNÃ É de conhecimento geral que o longo conflito do Vietnã trouxe um vasto elenco de contrariedades para os Estados Unidos. Seus objetivos militares foram frustrados. Em 27 de janeiro de 1973, todas as partes envolvidas no conflito — os Estados Unidos, o Vietnã do Sul, o Vietnã do Norte e o Comando da Guerrilha Vietcong — assinaram em Paris um acordo de paz que implicava na retirada total da forças norte-americanas do Vietnã. Os danos provocados ao Vietnã devido a décadas de guerra, a bombardeios maciços e a perda de vidas em todas as faixas etárias são simplesmente incalculáveis. Coube então ao povo vietnamita, contando com muito pouca ajuda internacional, lamber as suas feridas, incinerar seus mortos e catar seus próprios cacos. A frase que melhor sintetiza o drama do Vietnã foi emitida com habitual crueza por um major dos marines ao comentar a grande batalha travada pela posse da cidade de Ben Tree durante a Ofensiva do Tet (1968): It became necessary to destroy the town in order to save it. 2 As avaliações sobre a derrota americana no Vietnã se acumularam com o passar dos anos. Livros, teses, filmes e até canções contaram e cantaram, cada qual à sua maneira, detalhadas versões na tentativa de deslindar por todos os ângulos o episódio tão sofrido. Para muitos, a retirada das forças americanas do Vietnã não foi determinada por uma vitória militar dos comunistas. Nem o talentoso general Vo Nguyen Giap (comandante do Exército do Vietnã do Norte) nem seus rapazes, soldados regulares e guerrilheiros eram páreo para o poderio militar esmagador do Estados Unidos. Caso o governo norte-americano decidisse fazer uso de toda a sua panóplia de morte, tornariam-se verdadeiras as palavras do general Curtis LeMay, ex-comandante do Comando Aéreo Estratégico dos Estados Unidos na década de 50. Procurado pelos jornalistas em seu retiro de aposentadoria, ao ser indagado sobre que faria com o Vietnã caso ainda estivesse no comando, o general respondeu sem sequer se despentear: “eu bombardearia o Vietnã do Norte de volta à Idade da Pedra”. O fato é que não havia condições políticas para tanto, seja internamente, seja no panorama internacional. À medida que a guerra se arrastava, ficava cada vez mais difícil convencer o público norte-americano que os comunistas vietnamitas eram um perigo para manutenção do american way 58 Interpol I N S I G H T INTELIGÊNCIA of life nos rincões do Kansas, ou uma ameaça ao direito das crianças saborearem seus sorvetes na Disneylândia. Além disso, o sistema de recrutamento vigente e o modo pelo qual o pessoal era distribuído nos vários serviços das Forças Armadas espelhavam as duras desigualdades vigentes na sociedade norte-americana. Os ricos e os jovens da classe média ou conseguiam furtar-se a servir graças à influência política ou eram destinados às funções mais interessantes e nobres devido à sua melhor escolaridade (pilotar aeronaves, serviços de inteligência e planejamento por exemplo). Aos pobres, os “caipiras” dos estados do Sul ou os negros das pocilgas dos grandes centros urbanos, sobrava, ou os serviços mais cansativos e aviltantes ou o preenchimento das fileiras da “maldita infantaria”. Diante do desconforto com essas contradições sociais, com as baixas crescentes e temendo a convocação para o serviço militar, os movimentos de protesto e os grupos pacifistas começaram a disputar o domínio das ruas com a polícia. No musical Hair, hipies coloridos dançavam a inutilidade daquela guerra. Os rapazes estavam morrendo por causa de nada. Let the sunshine! A turma mais dura e insensível a tais apelos, bem que tentou travar a luta pelos corações e mentes na mídia, escalando o velho John Wayne para justificar a guerra no filme “Boinas verdes”. O resultado foi que jamais saberemos se o número de jovens que protestavam nas portas dos cinemas era maior ou empatava com a quantidade de pessoas que pagaram o ingresso para assistir o filme. e internamente os tumultos antiguerra se avolumavam, as condições externas de sustentação do conflito também não eram nada boas. No campo militar, a URSS envidava esforços para sustentar militarmente Hanói. A China, sempre desconfiada de tudo e de todos, fazia a sua parte, mas não com muito entusiasmo. O eixo Moscou-Hanói ascendia na liderança chinesa um elenco de preocupações, pois a enorme fronteira entre China e URSS tornava-se cada vez mais coalhada de tropas exibindo cenho franzido e muita disposição em pressionar os gatilhos3. Mesmo assim, a despeito dos muxoxos mútuos, os dois poderes reunidos agiam de modo a impor uma moderação forçada ao grau de intensidade dos golpes desferidos pelo muque norte-americano contra Hanói. Forneciam armas antiaéreas, sistemas de radar e mantimentos para o Vietnã do Norte. Seus próprios arsenais nucleares eram uma garantia de que a liderança dos EUA se manteria distante de qualquer “exagero radioativo” e seus serviços diplomáticos açulavam o quanto podiam a reprovação internacional à guerra4. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 59 I N S I G H T INTELIGÊNCIA s bons e velhos aliados europeus ocidentais, por seu turno, estavam longe de aceitar qualquer tipo de parceria com os EUA na aventura vietnamita. O governo britânico (o aliado de sempre) exibia um ânimo modorrento em relação ao assunto Vietnã, e enquanto preparava o chá das tardes, escorava-se na adesão dos australianos e neozelandeses ao esforço americano. Ora, já que a Austrália e a Nova Zelândia haviam resolvido participar diretamente do conflito, os americanos contavam com todo o apoio britânico que seria possível arranjar no momento. Nas veneráveis ilhas nebulosas, os jovens dedicavam-se a deixar crescer os cabelos e tocar um rock cada vez mais elaborado, enquanto as tropas de Sua Majestade lidavam com um belo atoleiro de encrencas, ali mesmo, ao lado de casa, na Irlanda do Norte. Afinal, quem tem o IRA como vizinho não precisa cruzar os mares para criar caso com os vietcongs. Já entre os europeus continentais, os apelos norte-americanos também se deparavam com ouvidos moucos. Entre os franceses, por exemplo, espalhava-se um certo “cruel divertimento” ao perceberem que mesmo com todo o seu poder, os americanos falhariam no Vietnã, exatamente como havia acontecido com as armas da França na década de 50. Restava saber quanto tempo levaria para que os americanos tivessem de suportar o seu próprio Dien Bien Phu5. A Guerra do Vietnã, portanto, tornou-se um exemplo clássico de episódio que despertava uma formidável impopularidade internacional. As explicações acerca do insucesso dos EUA bem que poderiam se escorar unicamente nos contratempos provocados por tal impopularidade. Os adeptos da guerra, patriotas, militares durões e congêneres sempre poderiam atribuir a responsabilidade do fracasso aos derrotistas, liberais, hippies, aliados vacilantes e, naturalmente, aos comunistas que eram onipresentes. Como é de conhecimento geral, quando as coisas não caminham bem, a culpa é sempre do outro, especialmente quando ousa pensar diferente. AVALIAÇÕES E CONSEQÜÊNCIAS Mas uma posição cômoda como essa não seria compartilhada por todos aqueles que se dedicaram a tirar lições do conflito do Vietnã. Militares americanos profissionalmente lúcidos não caíram na cilada de atribuir exclusivamente aos civis o fracasso da campanha. Suas reflexões basearam-se na idéia de que a derrota havia também sido pautada pelo planejamento equivocado, liderança militar deficiente e uso da força de modo inadequado. A onda pacifista só ganhou volume e intensida60 Interpol I N S I G H T INTELIGÊNCIA de porque os militares, no campo de batalha, não resolveram o assunto rápido. A retirada dos Estados Unidos do conflito do Vietnã foi algo definido a partir do clamor das ruas, respondendo aos brados de civis enfurecidos, mas a derrota militar foi, na verdade, construída palmo a palmo no campo de batalha 6. As contribuições para a análise sobre os erros da liderança militar do Vietnã procederam dos oficiais da Força Aérea. Sua crítica pode ser sintetizada no seguinte ponto: o comando dos Estados Unidos no Vietnã deixou de lado as lições de Clausevitz. É interessante notar que foi a partir dessa linha de aproximação de cunho tradicional, que se preparou uma espantosa revolução na teoria da guerra aérea7. urante a Segunda Guerra Mundial, o poder aéreo dos Estados Unidos inspirou-se nas idéias do teórico italiano do início do século XX Giulio Douhet e do ás norteamericano William “Billy” Mitchell. Acreditavam que o poder aéreo se expandiria a ponto de formar uma arma totalmente independente das demais. Douhet, em particular, imaginava que as forças aéreas venceriam as guerras sozinhas. Para tanto era necessário que desenvolvessem um poder de ataque devastador a ponto de se tornarem capazes de destruir com bombas todos os centros vitais do inimigo. O adversário aterrorizado, com suas cidades em ruínas e suas fábricas transformadas em escombros fumegantes, clamaria pela rendição para evitar o total aniquilamento. É ponto pacífico que os aliados testaram essa teoria durante a Segunda Guerra Mundial denominando-a “bombardeio estratégico”. A aplicação de tais idéias criou o cenário funesto das guerras do século XX. A distinção entre a população civil e militar desapareceu. Os tapetes de bombas cobriam cidades, matando indiscriminadamente combatentes e não-combatentes. Por fim, o corolário lógico da prática do bombardeio estratégico é o uso da arma nuclear. De acordo com o objetivo proposto, o de levar a mais violenta destruição possível contra a sociedade do inimigo, nada é mais eficiente do que a bomba nuclear. Com o advento da Guerra Fria, a Força Aérea dos Estados Unidos preparou-se para um confronto desta natureza contra os soviéticos. O núcleo central era integrado por bombardeiros de médio e de longo alcances, aptos a carregar os artefatos nucleares até o coração do território soviético. As aeronaves representavam um dos vetores possíveis de lançamento de tais armas. Além delas, confiava-se no uso de mísseis (de médio e longo alcances OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 61 I N S I G H T INTELIGÊNCIA — intercontinentais), navios de superfície e submarinos. A resposta dos soviéticos se estruturava segundo padrões semelhantes. O mais irônico de tudo isso é que o tipo de guerra que ambas as Forças Aéreas se prepararam com tanto afinco para travar jamais aconteceu. AS MUDANÇAS Os elementos constantes acima figuraram nas avaliações retrospectivas dos problemas militares e de liderança de campanha dos EUA no Vietnã. A ênfase no bombardeio estratégico baseado no tapete de bombas teria de ser abandonada. O mais importante era aperfeiçoar a capacidade da força aérea em apoiar os avanços das forças em terra, abrindo caminho através da destruição dos pontos fortes adversários, ou correr em auxílio de unidades em dificuldades bombardeando os pontos de concentração das tropas atacantes e suas linhas de suprimentos. Em última análise, tratava-se de aperfeiçoar o papel tático da força aérea, exigindo uma colaboração mais estreita com as unidades de terra, aperfeiçoando seu papel de artilharia aérea. Ao mesmo tempo, uma outra questão de relevo se impunha. Caberia à força aérea o esforço no sentido de atacar com poder devastador e liquidar o “centro de gravidade” das forças inimigas. O termo descreve o ponto exato onde o inimigo é mais vulnerável, o ponto em que o ataque terá a melhor chance de ser decisivo8. Quase sempre o centro de gravidade representa o lugar onde estão situados os principais sistemas de comando e controle do adversário. Eliminar o centro de gravidade significa deixar as forças do inimigo descoordenadas e às cegas. Tratava-se então de refinar o velho conceito de bombardeio estratégico. A princípio este conjunto de preocupações traduz um retorno doutrinário às reflexões clássicas de Clausevitz. Em sua obra “Da Guerra”, o oficial prussiano insistia em afirmar que o objetivo primordial das operações de guerra vinculava-se à necessidade de desarmar o inimigo. Enfatizava ainda que o meio (cenário a ser buscado) da guerra era o combate, também chamado de “recontro”. Toda a atividade visa a destruição do inimigo, ou melhor, da sua capacidade de combater, porque é nisso que se resume o próprio conceito de recontro. Daí que a destruição das Forças Armadas do inimigo seja sempre o meio para atingir a finalidade do recontro.9 A aplicação adequada das idéias de Clausevitz, isto é, a concentração de esforços na tarefa de destruir as forças militares adversárias, apelava também para uma outra reflexão emitida pelo prussiano: este afirmava que, para defrontar a violência, a violência mune-se com as invenções das artes e das ciências10. Em outras palavras, para cumprir o papel doutrinário que se propunha, os militares americanos enxergaram que acima de tudo deveriam 62 Interpol I N S I G H T INTELIGÊNCIA apostar no desenvolvimento de uma sofisticada tecnologia de precisão. As ferramentas e mentes para tanto existiam em profusão. Dinheiro, cérebros e laboratórios jamais faltaram. Ainda durante o conflito do Vietnã, foram utilizados artefatos de precisão, tais como bombas guiadas até alvo com a ajuda de sistemas de tv instalados nas aeronaves e os primeiros sistemas utilizando orientação com raio laser. A primeira geração de armas deste tipo dos EUA galgava seu início nos céus vietnamitas. m seguida, ao longo da década de 80, enveredou-se por uma mudança de ênfase na pesquisa. Boa parte da “massa cinzenta” preocupara-se em aperfeiçoar as plataformas de lançamento, isto é, os aviões. Modelos e mais modelos, dotados de aperfeiçoamentos cada vez mais apurados se sucediam. A ação da bomba que conduziam até o alvo e lançavam ficava por ser resolvida pelas leis da física. Os sistemas ópticos de pontaria localizavam o alvo, a bomba era lançada e a gravidade cuidava do resto. A idéia agora era a de buscar o aperfeiçoamento de sistemas de orientação para as próprias bombas, desenvolvendo as precision guided munitions (PGM). Em última análise, os dispositivos eletrônicos de alta tecnologia permitiriam que a vontade humana interferisse na trajetória do artefato conduzindo-o precisamente até o alvo. Dotada de precisão, a arma aérea poderia economizar munição. Os bombardeios de saturação, em que áreas inteiras tinham de ser devastadas devido às precariedades dos sistemas ópticos seria abandonado. O custo em vidas civis para a obtenção das vitórias e o ônus político provocado pelos protestos dos movimentos pacifistas devido às chacinas que o bombardeio pesado efetuava seriam minimizados. Durante a Guerra do Golfo de 1991, e o último conflito no Iraque, muitos jornalistas ironizavam ou colocavam em dúvida a veracidade do termo “Bombardeio Cirúrgico” propalado pelas autoridades do Pentágono. Porém, embora ironia seja muitas vezes imaginosa e divertida e os militares tentem dourar as tintas de seus méritos, é inegável que o grau de precisão do armamento moderno é verdadeiramente extraordinário (ver Tabela 1). As informações mencionadas carecem de alguns esclarecimentos adicionais. No caso do Exército, as divisões são as “grandes unidades” da força. Isso significa que possuem toda a estrutura necessária para operar de modo independente — isto é, uma divisão é constituída por um setor de comando com estado-maior completo, corpo de saúde, unidades de engenheiros, trem de transporte, artilharia divisionária, flotilha de helicópteros de apoio etc. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 63 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Segundo a reforma implementada durante o período Clinton, as divisões estão distribuídas em 5 leves (light divisions) e 5 pesadas (heavy divisions). Dentre as divisões leves destacam-se a 82ª, a 101ª aerotransportadas e a 10ª divisão de montanha de Nova York. Estas seriam, fundamentalmente, as grandes unidades de intervenção rápida do Exército. Uma divisão pode ter entre 10 mil e 18 mil homens, agrupados em 3 brigadas de combate. As divisões pesadas organizam-se em torno de regimentos de tanques de batalha. O Exército conta também com unidades de menor porte, independentes das divisões. São tropas consideras aptas para operações especiais, tais como os Rangers, (organizados em 3 batalhões ligeiros), os Boinas Verdes (organizados em cinco grupos especiais cujos números são variados), o 160° Regimento de Operações Especiais de Aviação (provavelmente contendo 3 batalhões) e o Destacamento Delta (também conhecido como Delta Force), unidade sobre a qual nunca se sabe muita coisa. s forças navais, por seu lado, dispõem em termos de embarcações de combate, de 12 porta-aviões de ataque (dentre eles, 8 nucleares), 27 cruzadores, 54 contratorpedeiros, 35 fragatas, 132 porta-helicópteros, 50 embarcações para operações anfíbias e uma frota de 54 submarinos nucleares. Os grupos de batalha da Marinha (task force) se organizam em torno dos porta-aviões (cada um deles transportando em média 70 aeronaves), sendo que os submarinos habitualmente atuam de modo independente. As brigadas dos marines estão agrupadas em 3 divisões. A maior delas é a 1ª Divisão, que conta com 18.250 oficiais e soldados (quadros completos). As unidades de marines possuem ainda sua própria aviação de apoio, helicópteros de reconhecimento, transporte e combate, bem como batalhões de tanques de batalha. Os efetivos totais do US Marine Corps, perto de 200 mil integrantes, perfaz a maior força de intervenção rápida e projeção de poder do mundo. Finalmente, as brigadas táticas da Força Aérea passaram a se organizar em Aerospace Expeditionary Force (AEF), cada uma delas contendo alas de aeronaves de caça, bombardeiros (médios e pesados), aeronaves de apoio aproximado, reconhecimento e transporte. Cada AEF inclui 15 mil homens e por volta de 175 aviões. As aeronaves de altíssima tecnologia, os famosos “aviões invisíveis” (isto é, dificilmente detectados pelos aparelhos de radar) costumam integrar esquadrilhas especiais. As reduções demonstradas nas tabelas acima, ocorreram principalmente no decurso das duas administrações democratas do presidente Bill Clinton. 64 Interpol I N S I G H T INTELIGÊNCIA Para termos idéia da ordem de grandeza em números absolutos, o pessoal militar que em 1990 alcançava um efetivo de 2.070.000 caiu em 1999 para um efetivo de 1.453.000. Embora entre o fim da Guerra Fria e o advento do 11 de setembro, tenha havido uma redução nos gastos militares dos EUA — retomados em escala crescente após os ataques a Nova York e Washington, a redução de efetivos pode não necessariamente significar uma diminuição dos gastos militares correspondentes. Mesmo que no orçamento, os gastos com pessoal tenham diminuído, as despesas com pesquisa e desenvolvimento certamente cresceram sobremaneira. A questão é que a escolha de apostar em equipamentos de alta tecnologia aumenta bastante a cadeia de custos. Estamos falando das verbas destinadas às universidades e às empresas para pesquisas, desenvolvimento de protótipos, testes e tudo mais. Acrescentemos o tempo mais longo indispensável para o treinamento do pessoal militar destinado a operar os engenhos. Finalmente, não podemos esquecer das despesas de manutenção dos equipamentos (muitos deles sensíveis) e a reposição de perdas por causa de acidentes ou em combate. Esse aumento de custo tecnológico é em parte compensado pela redução das quantidades de munição usadas durante as campanhas (a maior precisão conduz, tanto a um número menor de sortidas (missões das aeronaves) para destruir o alvo quanto uma quantidade menor de bombas), e também economiza vidas entre os combatentes, pois o apoio de fogo aproximado mais preciso, bem como a capacidade de “decapitar o adversário”, quer dizer, destruir seu centro de comando e controle, diminui sua capacidade de resposta e coordenação das forças em combate. TABELA 1 FORÇAS ATIVAS DOS EUA – 199011 18 DIVISÕES DO EXÉRCITO 9 BRIGADAS EXPEDICIONÁRIAS DOS MARINES 15 GRUPAMENTOS DE COMBATE DE PORTA-AVIÕES DA MARINHA 22 BRIGADAS TÁTICAS DA FORÇA AÉREA FORÇAS ATIVAS DOS EUA – 2000 10 DIVISÕES DO EXÉRCITO 5 BRIGADAS EXPEDICIONÁRIAS DOS MARINES 11 GRUPAMENTOS DE COMBATE DE PORTA-AVIÕES DA MARINHA 13 BRIGADAS AÉREAS TÁTICAS DA FORÇA AÉREA OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 65 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Nem precisamos entrar em detalhes para que o leitor se recorde que este foi exatamente o tipo de campanha que os EUA, auxiliados pela Grã-Bretanha, empreenderam contra o Iraque em março-abril de 2003. Graças à formidável cobertura proporcionada pelos mísseis Tomarrock Cruise (para ataques de média distância) e pelas aeronaves e helicópteros de combate, unidades de terra bem pouco numerosas e dotadas de excepcional mobilidade puderam levar a cabo a campanha enfrentando um número muito pequeno de contratempos. Em termos de número de tropas, as forças atacantes jamais somaram mais de 160 mil homens (acrescentemos a esse montante por volta de 22 mil britânicos). O Exército iraquiano, por seu lado, brilhou pela ausência. O fato é que pouco poderia fazer contra o aparato reunido pelos EUA. Suas tropas de terra não contavam com qualquer cobertura aérea. As posições de artilharia eram rapidamente localizadas e duramente bombardeadas. Qualquer tentativa de concentração de unidades, seja para a defesa estática, seja para efeito de contra-ataque estava fadada a sofrer o mesmo destino. Finalmente, os centros de comando e controle, devidamente localizados pelo serviço de inteligência norte-americano receberam golpes demolidores logo nos primeiros dias. Ainda não temos (pelo menos não até o presente momento) uma estimativa clara das baixas sofridas pelas unidades iraquianas durante o conflito. Supomos que esse número seja inferior às perdas em vidas humanas ocorridas na Guerra do Golfo de 1990/91. Também não temos como avaliar se a resistência tênue oferecida pelas Forças Armadas do Iraque foi fruto de uma decisão do regime em ordenar que suas tropas se dispersassem, já que um enfrentamento encarniçado do dispositivo militar norte-americano seria simplesmente inútil. Mesmo que o Exército iraquiano, em termos de preparo e eficiência, jamais tenha sido grande coisa (sua atuação na Guerra IrãIraque atesta este ponto), imaginamos que parcela de seus oficiais comandantes soubessem avaliar corretamente a desproporção das forças e aconselhado o regime a salvar o que fosse possível. abe-se que durante a ofensiva anglo-americana de março de 2003, grande quantidade de dinheiro foi sacada de bancos iraquianos por autoridades governamentais. Providos de um “colchão protetor de dinheiro” e tendo o cuidado de espalhar depósitos de armas e munições em vários pontos do país, as condições para dar início a uma campanha de fustigação contra os adversários estariam lançadas. 66 Interpol I N S I G H T INTELIGÊNCIA IMPASSES NO PARAÍSO: OS LIMITES DO NOVO PADRÃO MILITAR DOS EUA E A HORA E A VEZ DA POLÍTICA O parágrafo anterior pode servir de fonte para entendermos o que anda a acontecer agora no Iraque ocupado. Grupos de integrantes das Forças Armadas iraquianas dispersos podem estar por trás de pelo menos uma parte do movimento de resistência contra as tropas da coalizão. As autoridades do Pentágono têm insistido neste ponto. Na verdade, dão a entender que este seria o centro nervoso do sistema de resistência. Daí a importância de capturar os personagens do baralho distribuído aos soldados — as figuraschave do regime deposto. Por enquanto, o Pentágono afirma confiar na tática do aprisionamento ou eliminação destes elementos, indicando sua crença que uma vez neutralizados a resistência se enfraqueceria a ponto de tornar-se irrisória. Outros (especialmente as autoridades inglesas), alegando conhecimentos mais amplos da História e das contradições que dividem os povos do Iraque, se recusam a emprestar credibilidade a um quadro tão confiante e simplista. Sunitas, grupos xiitas e líderes tribais podem perfeitamente articular a formação de unidades independentes, sem qualquer relação com os adeptos do antigo regime, e partir para a luta por conta própria. Existem ainda dois complicadores adicionais: o primeiro, devido ao colapso do sistema de segurança pública do país, constitui-se o cenário ideal para que se alastrassem práticas de banditismo puro. É possível que algumas dezenas de grupos armados estejam imbuídos unicamente do desejo de praticar pilhagens. Em seguida, o colapso dos serviços públicos do Iraque — que na verdade desde a Guerra do Golfo jamais voltaram a funcionar a contento — inspira grande descontentamento entre a população, o que serve de combustível para sobressaltos, ações espontâneas e não-organizadas contra os ocupantes. Em última análise, muita gente no Iraque entende que os causadores de suas agruras atuais mais graves são as autoridades e as tropas de ocupação, e não o regime deposto. Ainda segundo os britânicos, o tipo de conduta a ser seguida no Iraque só pode ser a da atividade de contra-insurgência. Antes de mais nada, só mesmo um meticuloso trabalho de inteligência obraria a tarefa preliminar de mapear a identidade e a estrutura dos grupos da resistência iraquiana. Só que é muito difícil ser “inteligente” no Iraque. A relação entre as tropas de ocupação e a população tem se pautado mais pela animosidade do que pela estreita colaboração. Para muitos dos soldados da coalizão, viver no Iraque é tão martirizante quanto passar uma temporada em outro planeta. O estranhamento cultural é notável. Segundo o jornal britânico The Guardian, OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 67 I N S I G H T INTELIGÊNCIA os líderes militares em Washington já teriam mobilizado um exército de antropólogos, sociólogos e especialistas em cultura árabe, Islã e sociedade iraquiana para montar algum tipo de estratégia que sirva de suporte para melhorar as relações entre soldados e população civil. Não se sabe quanto tempo levará para que os resultados desses estudos comecem a surtir algum efeito nas ruas de Bagdá. Uma outra possibilidade é a de encontrar um “Gunga Din”. Explico: o escritor Rudyard Kipling, sempre preocupado em descrever como o homem branco se virava para carregar seu “fardo” de “libertar os povos nativos das trevas do arcaísmo e da ignorância”, criou um personagem, um amigável corneteiro indiano chamado Gunga Din. Tratava-se de um cipaio — soldado nativo treinado por europeus — que manifestava grande identificação em relação aos sahibs britânicos. O ponto alto de sua carreira foi quando, em campanha, ao perceber que um regimento escocês (com gaitas, saiotes e tudo o mais) estava para ser emboscado por indianos tribais ocultos nos penhascos, galgou um dos mais altos picos e, tocando estridentemente seu clarim, alertou os escoceses do perigo. Os tribais irritados crivaram Gunga de tiros. Este tombou, com a corneta nos lábios, dando a vida pelo regimento. Os líderes da coalizão, agora, em pleno século XXI, podem perfeitamente estar à procura no Iraque de alguns punhados de Gunga Dins, iraquianos identificados com os projetos ocidentais para o país e com disposição de “dar a vida pelo regimento”. Literalmente, aliás, pois os grupos de resistência demonstram claramente que um dos alvos preferidos de seus ataques são os prováveis Gungas, com ou sem cornetas. esse sentido, a questão de fundo do cenário atual é que o dispositivo militar posto em ação e que obteve uma vitória tão fácil contra as forças do ex-presidente Saddam Hussein é ineficaz para enfrentar todo o quadro de confusão descrito acima. A tecnologia de última geração poderá auxiliar muito pouco o trabalho de polícia exigido às forças de ocupação nesse momento. Mas não nos enganemos em pensar que tudo se resolveria caso centenas de milhares de policiais bem treinados pudessem ser transferidos para o país. Isso ocorre porque nem a alta tecnologia, nem mesmo a polícia são capazes de substituir a política. Os Estados Unidos que derrotaram o Iraque no campo militar dificilmente têm condições hoje de oferecer uma política viável (isto é, palatável para a ampla maioria das forças políticas iraquianas) de reordenamento do país. Os equilíbrios internos do Iraque, anteriormente só mantidos pelo governo de 68 Interpol I N S I G H T INTELIGÊNCIA força de Bagdá foram embaralhados de tal forma que existe uma forte possibilidade do Iraque transformar-se num novo Líbano das décadas da Guerra Civil (anos 70 e 80 do último século). Não temos dúvida de que os soldados americanos desfrutam hoje de condições muito mais amplas do que na época da Guerra do Vietnã para se manterem no Iraque por muito tempo. Os apressados devem lembrar-se que a retirada dos soldados americanos da Indochina só ocorreu após perto de 10 anos de intervenção. Nas condições atuais, contando com tropas profissionais e com o auxilio de alguns países aliados — tais como a Grã-Bretanha e a Polônia por exemplo — a ocupação do Iraque tem tudo para se prolongar. ontudo, ficar muito tempo por lá não implica em qualquer certeza de se conseguir desemaranhar o nó górdio político da região. Encontrar interlocutores entre os povos do país, conseguir colaboração em seus projetos de state building, essas são tarefas mais difíceis do que enfrentar 5 divisões da Guarda Republicana de Saddam. Com quem se aliar, e quem são os atores que se sentem inclinados a colaborar com o projeto de Washington, portando liderança suficiente para não temer as retaliações dos grupos opositores e capazes de reunir adeptos para uma reconstrução do Iraque “conveniente”, esse é o eixo político que a ocupação tem grandes dificuldades de concretizar. Para agravar o quadro, as forças de resistência já deixaram bem claro por suas atitudes que estão dispostas a atacar centros de produção importantes e a infra-estrutura do país, pois avaliam que o caos é seu dileto aliado. Não renunciam sequer ao uso de alguma criatividade, como o mundo pode observar através do episódio dos ataques com “burricos lança mísseis” ocorridos no mês de novembro de 2003. Não pensemos também que a ONU desfrutaria de imediato de um sucesso fulgurante caso por ventura substituísse os EUA nas tarefas de administração e ocupação. O atentado contra a sede das Nações Unidas em Bagdá é uma firme demonstração de que no entender de poderosos grupos armados iraquianos, a ONU não passa também de mais um poder estrangeiro e que deve igualmente ser expulso do país. Deixando um pouco as culpas de Saddam de lado, no final, para muitos iraquianos, a ONU orquestrou um apertado boicote contra o país durante uma década inteira. Dificilmente isso poderia ser esquecido. Em outras palavras, o sucesso em efetivar a emergência de uma situação política estável no Iraque seria uma tarefa tão árdua para a ONU quanto vem sendo até agora para os Estados Unidos. Desse modo, podemos estar mais uma vez diante da tática guerrilheira 70 Interpol I N S I G H T INTELIGÊNCIA de, ao enfrentar um adversário formidavelmente mais poderoso, a única forma de continuar a lutar é “atracando-se no seu pescoço”. Uma vez dentro do Iraque, diluídos nas ruelas de Basrah, entre os becos de Bagdá, ou nas escuras estradas entre as colinas do Curdistão, as vantagens da precisão e da alta tecnologia estão anuladas, e o sangue do inimigo pode finalmente ser vertido, mesmo que aos poucos. O trabalho de gendarme sem a necessária condução política não funciona. Os Estados Unidos, seus aliados ou mesmo a ONU podem passar décadas no Iraque e, mesmo assim, falhar miseravelmente. Os analistas militares, os cientistas em seus bem montados gabinetes e a soldadesca profissional e bem disposta, elaboraram e colocaram em prática um modo de fazer a guerra em que qualquer adversário que se atrever a permanecer em campo será inevitavelmente destruído. Como de hábito nos assuntos humanos, a resposta ao desafio acaba sendo engendrada, de um modo ou de outro. A resposta dos grupos de resistência iraquianos anda nos ensinando que, depois da guerra, só resta a política. Fazer e assegurar a paz de modo adequado pode ser muito mais difícil do que prevalecer no campo de batalha. Apelar para as armas antes de se matutar satisfatoriamente todos os ângulos postos na arena política, pode não só comprometer a vitória, como também nutrir as bases de uma situação muito pior do que a anterior. email: [email protected] 1. ESSA CONTAGEM É DE PHILIP BOBBIT E NÃO TEMOS RAZÃO PARA DESCONFIARMOS DA MESMA. O CÁLCULO DO AUTOR DEIXA DE FORA A GUERRA NO I RAQUE PORQUE SEU LIVRO FOI PUBLICADO EM 2002. V ER : BOBBIT, P HILIP . A G UERRA E P AZ ENTRE AS N AÇÕES . R IO DE J ANEIRO , E DITORA C AMPUS, 2002, PP . 235. 2. BARNES, JEREMY. THE PICTORIAL HISTORY OF THE VIETNAM WAR. NEW YORK, GALLERY B OOKS , 1988, PP .136. 3. JIAN, CHEN. “CHINA AND THE VIETNAM WARS”. I N: LOWE, PETER ( ED.) THE VIETNAM W AR . L ONDON , M AC M ILLAN P RESS LTD, 1998. 4 GAIDUK, I LYA V. “DEVELOPING AN ALLIANCE ”. IN : LOWE, P ETER ( ED.) T HE V IETNAM W AR . L ONDON , M AC M ILLAN P RESS LTD, 1998. 5. A BATALHA DE DIEN BIEN PHU, EM 1954, MARCOU A DERROTA DEFINITIVA DO COLONIALISMO FRANCÊS NO VIETNÃ. NAQUELE ANO, MILHARES DE SOLDADOS FRANCESES CERCADOS PELO VIETMIH (O EXÉRCITO GUERRILHEIRO DO VIETNÃ) FORAM OBRIGADOS A SE RENDER AO GENERAL VO NGUYEN GIAP, O MESMO PERSONAGEM CONTRA QUEM OS AMERICANOS “QUEBRARAM SEUS DENTES” ANOS MAIS TARDE. 6. FRIEDMAN, G EORGE E M EREDITH . T HE FUTURE OF WAR . NEW YORK , C ROWN P UBLI SHERS , 1996. 7. WARDENT, J OHN A T HE A IR CAMPAIGN : PLANING FOR COMBAT W ASHINGTON D.C, NATIONAL DEFENSE UNIVERSITY PRESS, 1988. 8. FRIEDMAN, OP . CIT . PP .257. 9. CLAUSEVITZ, K ARL . D A G UERRA . S ÃO P AULO , M ARTINS F ONTES , 1983. PP. 98 10. IDEM , PP . 73. 11. F ONTE PARA AS DUAS TABELAS, VER: BOBBIT, PHILIP , GUERRA E PAZ ENTRE AS NAÇÕES . R IO DE JANEIRO , EDITORA CAMPUS, 2003, PP . 235. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 71 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Adolpho Lutz e a História da Medicina Tropical no Brasil: o resgate da obra de um grande cientista Jaime Larry Benchimol & Magali Romero Sá Pesquisadores projeto Adolpho Lutz e a história da medicina tropical no Brasil, coordenado pelos autores, tem por objetivo a edição crítica e comentada da obra do cientista (1855-1940), inclusive sua correspondência, assim como a elaboração de um estudo biográfico sobre este personagem que ocupa lugar central na história da medicina tropical brasileira, entre as décadas de 1880 e 1940. O acervo de Adolpho Lutz é constituído por mais de 5.000 documentos manuscritos e datilografados que se encontram sob a guarda do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os trabalhos que publicou, muitos ainda inéditos no Brasil, encontram-se aí sob a forma de exemplares avulsos de periódicos, separatas, cópias fotostáticas, originais manuscritos ou datilografados, provas tipográficas revistas etc. Excetuando-se a fração de materiais por nós incorporada ao acervo, ele foi reunido por Bertha Lutz, com a ajuda do irmão, Gualter Adolpho Lutz, professor catedrático de medicina legal da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Além de ativa militante feminista, Bertha era bióloga e dedicou-se a vida toda ao estudo dos anfíbios anuros, uma das linhas de investigação do pai. Durante os últimos anos de vida dele, quando, praticamente cego, não conseguia mais ler nem escrever, esteve a seu lado, continuamente, ajudando-o a redigir os derradeiros trabalhos que publicou. Em dezembro de 1955, o cente- 74 Instituto Nacional de Marcas e Patentes I N S I G H T INTELIGÊNCIA nário de seu nascimento foi comemorado no Rio de Janeiro e em São Paulo por diversas instituições científicas, prevendo-se, então, a publicação de sua obra, o que não aconteceu, apesar dos esforços envidados por Bertha. Após a morte do pai, empenhou-se por reunir os trabalhos e a correspondência que se encontravam em poder de cientistas, instituições e periódicos de diversos países com os quais se relacionara. Um dos componentes do acervo consiste, justamente, na correspondência de Bertha com os detentores destes materiais, e com os possíveis patrocinadores do projeto de publicação da obra de Adolpho Lutz. Quando Bertha faleceu, em setembro de 1976, seu arquivo pessoal e o de Adolpho Lutz foram atirados ao limbo, e durante muitos anos vagaram por corredores e laboratórios do Museu Nacional, sujeitos a variados agravos, até serem resgatados da destruição iminente pela equipe do projeto Adolpho Lutz. Há quem o considere o mais importante cientista brasileiro. Superlativos à parte, é, certamente, um dos menos estudados entre os nomes que compõem o panteão de nossas ciências (Comissão do Centenário de Adolpho Lutz, 1956; Benchimol e Sá, 2003b). Seus pais, Gustav e Mathilde Lutz, ligados a uma das famílias mais tradicionais de Berna, chegaram à capital do império brasileiro em janeiro de 1850, no auge da epidemia de febre amarela que produziu, segundo estimativas oficiosas, 15 mil vítimas numa população de cerca de 250 mil habitantes (Chalhoub, 1996). Aí nasceram nove dos dez filhos do casal, inclusive Adolpho Lutz, em 18 de dezembro de 1855 (Bertha Lutz, Lutziana). Em sociedade com um conterrâneo, Gustav Lutz fundou uma casa de importação e exportação e, confiante no sócio, regressou com a família para Berna em 1857. É possível que a insalubridade do Rio de Janeiro os tenha afugentado: além da febre amarela, que desde então se tornou crônica nos verões, enfrentaram devastadora epidemia de cólera em 1855. As relações entre Gustav e seu sócio deterioraram-se, e em 1864 os Lutz regressaram à capital brasileira, deixando, porém, em Basiléia os três meninos maiores: Adolpho, então com nove anos; seu irmão mais velho, Gustav, de dez; e o menor, Friedrich Eugen, nascido na Suíça, com sete ou oito anos. educação foi o motivo deste afastamento; ela foi também a atividade a que passou a se dedicar a mãe de Adolpho Lutz no Rio de Janeiro. No exemplar de 1880 do Almanak Laemmert encontra-se a primeira referência ao “Colégio de Meninas dirigido por d. Mathilde Elena Lutz”. Chamava-se já Colégio Suisso-Brasileiro ao se transferir em 1887 do bairro do Catete para Botafogo. Antes de doutorar-se em medicina em Berna, em julho de 1880, Adolpho Lutz freqüentou universidades em Leipzig, Estrasburgo e Praga e trabalhou como assistente no Hospital Cantonal de Sankt-Gallen, publicando, então, seu primeiro artigo de medicina, sobre bronquite fibrinosa. Já havia publicado, em 1878, dois trabalhos sobre cladóceros coletados nos arredores de Leipzig e Berna. Popularmente conhecidos como pulgas d’água, estes microcrustáceos ocorrem na água doce ou no mar e fazem parte do plâncton que serve de alimento a diferentes espécies de animais. Premiada pela Sociedade Bernense de História Natural, a investigação de Lutz é fruto do que aprendeu com Karl Georg Friedrich Rudolf Leuckart (182298), titular da cadeira de zoologia da Universidade de Leipzig, em cujos laboratórios foi adestrada toda uma geração de médicos, de diversas nacionalidades, OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 75 I N S I G H T na complexa ciência do parasitismo e da biologia de seus hospedeiros (Grove, 1990). Lá Adolpho Lutz aprendeu as novas técnicas histológicas e os métodos de fixar e corar microrganismos, métodos e técnicas que vinham permitindo grandes avanços no estudo da embriologia, da estrutura microscópica de tecidos e órgãos de vertebrados e invertebrados e da biologia dos microrganismos que os parasitavam. Nos laboratórios chefiados por Leuckart descreviam-se novas espécies, desvendavam-se complexos ciclos parasitários e faziam-se estudos taxionômicos e morfológicos para dar suporte ao darwinismo, introduzido na Alemanha após 1860. Já doutor, Adolpho Lutz prosseguiu sua formação em outras cidades européias: esteve em Viena; assistiu às preleções de Lister em Londres, conheceu Louis Pasteur em Paris. Antes de encerrar-se o ano de 1881, viajou para o Brasil, juntando-se finalmente à família da qual estivera separado por 17 anos. Sua carreira compreende, grosso modo, três períodos. De 1881 a 1892 foi, sobretudo, um clínico, mas publicou em periódicos suíços e alemães numerosos trabalhos originais baseados nos casos que tratava ou no estudo da biologia de espécies que, de alguma forma, se relacionavam com os humanos e suas patologias. O período caracteriza-se por muitos deslocamentos geográficos e cognitivos. Lutz percorreu diversas regiões do Brasil, Europa, Estados Unidos e Oceania, e diversas regiões do conhecimento, deixando marcas significativas de sua presença nos estudos sobre parasitoses de animais silvestres e domésticos, lepra, ancilostomíase, febre amarela, tuberculose, doenças de pele e do intestino, entre outras. Uma de suas primeiras providências ao chegar ao Brasil foi validar o diploma na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e enquanto o fazia retratou o ensino e o exercício da 76 Instituto Nacional de Marcas e Patentes INTELIGÊNCIA Adolpho Lutz, já doutor, prosseguiu sua formação em outras cidades européias: esteve em Viena; assistiu às preleções de Lister em Londres, conheceu Louis Pasteur em Paris I N S I G H T INTELIGÊNCIA medicina no império brasileiro em interessante artigo publicado em Correspondenz-Blatt für Scheweiz Aerzte (1882). Estava em curso a reforma das faculdades de Salvador e do Rio de Janeiro. Os laboratórios então inaugurados, o ensino prático recém-introduzido representavam, na opinião de Lutz, “gigantesco progresso” em relação à realidade anterior. Contudo, em sua opinião, os principais obstáculos não residiam nas condições externas, e sim no caráter do brasileiro: “A pontualidade, solidez e sinceridade científica lhe são estranhas, e ele se sente completamente satisfeito em manter as aparências. As antipatias e simpatias pessoais freqüentemente tomam o lugar da lei e do direito. O protecionismo e nepotismo são quase um cancro que não se pode exterminar.” utz tentou se estabelecer em Petrópolis, mas acabou optando por Limeira, importante centro cafeeiro, canavieiro e cerealífero no interior do Estado de São Paulo, com cerca de quatro mil habitantes e expressiva colônia suíço-alemã. Sediara as primeiras experiências de colonização pelo sistema de parceria, promovidas pelo senador Nicolau de Campos Vergueiro e filhos, e fora palco de uma rebelião magistralmente retratada pelo mestre-escola Thomas Dvatz, em Memórias de um colono no Brasil. Em Limeira, Adolpho Lutz realizou investigações importantes tanto no domínio da clínica como da helmintologia de animais domésticos e do homem. Publicou, em 1885, estudo decisivo sobre a ancilostomíase na coleção de lições de clínica médica de Volkman, editada em Leipzig. Com este trabalho, veiculado também em O Brazil-Medico (1888, 1887) e na Gazeta Médica da Bahia, pôs a agenda de pesquisa helmintológica inaugurada no Brasil por Otto Wucherer, da chamada Escola Tropicalista Bahiana, em sintonia com o arsenal teórico e metodológico mais moderno dos microbiologistas alemães, franceses e italianos. Havia controvérsias sobre o papel dos ancilóstomos na patologia que muitos ainda classificavam como hipoemia intropical (Edler, 1999). Lutz confirmou as verificações de Grassi, Leuckart e outros acerca do ciclo de vida livre do helminto, e estudou as condições que favorecem a evolução do parasita, desde a fase de ovo, eliminado com as fezes do hospedeiro, até o verme adulto, confirmando seu hematofagismo (Deane, 1955, p. 75). Em Limeira, Lutz estudou, também, os ciclos evolutivos de outros parasitas, bem como as doenças que ocasionavam no hospedeiro humano e em outros animais, publicando no prestigioso Centralblatt für Bakterologie, Parasitenkunde und Infektionskrankheiten diversos artigos sobre a estrongiloidíase, oxiuríase, ascaridíase, tricocefalose e outras helmintoses. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 77 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Um dos capítulos mais interessantes de sua obra é aquele referente à lepra, de que se tornou uma das maiores autoridades no Brasil, e que investigaria até o fim de sua vida. Morreu convencido de que era transmitida por mosquitos (Benchimol e Sá, 2003a). À época em que se interessou pela doença, ela estava exposta a grandes turbulências envolvendo concepções conflitantes sobre sua etiologia, seu modo de transmissão e sua profilaxia (Obregon, 1996; Souza Araújo, 1956). A lepra foi uma das primeiras doenças infecciosas a ser reestruturada à luz da microbiologia. Nas células de tubérculos cutâneos, o norueguês Gerhard Armauer Hansen (1841-1912) observou corpúsculos em forma de bastonete que denominou Bacillus leprae. A descoberta, relatada em 1874, logo foi confirmada por Edwin Klebs (1834-1913), Albert Neisser e outros bacteriologistas. Lutz, que vinha atendendo dezenas de leprosos em Limeira, deixou a cidade em março de 1885 para trabalhar, por cerca de um ano, na clínica fundada em Hamburgo pelo renomado dermatologista Paul Gerson Unna (1850-1929). Ocupou-se lá da morfologia de germes relacionados a várias doenças dermatológicas. Seu primeiro trabalho sobre a lepra (1886) foi publicado na revista editada por Unna, von Hebra e Lassar, Monatshefte für Praktische Dermatologie (atual Dermatologische Wochenschrift), a mais importante caixa de ressonância internacional das experiências clínicas e laboratoriais concernentes àquela especialidade médica. Naquele trabalho, Lutz contestava o gênero Bacillus em que eram classificados os microrganismos de Hansen e de Koch (tuberculose), e propunha que fossem classificados no gênero Coccothrix. Sua proposta foi suplantada, dez anos depois, pela de Lehmann e Neumann, que enquadraram os agentes da lepra e tuberculose no gênero Mycobacterium. Ao regressar ao Brasil, no primeiro semestre de 1886, Lutz instalou-se na capital paulista. Pouco tempo depois, teve seu primeiro contato, como médico, com a febre amarela, que começava a se propagar pelas cidades que floresciam nas zonas cafeeiras do interior do estado, contrariando a crença secular de que era uma doença exclusiva das baixadas litorâneas. Em julho, viajou novamente para Hamburgo. Por indicação de Unna, fora contratado pelo Conselho de Saúde do Reino do Havaí para chefiar os serviços Lutz morreu convencido de que a lepra era transmitida por mosquitos. À época em que se interessou pela doença, ela estava exposta a grandes turbulências envolvendo concepções conflitantes sobre sua etiologia, seu modo de transmissão e sua profilaxia 78 Instituto Nacional de Marcas e Patentes I N S I G H T INTELIGÊNCIA médicos do leprosário há poucos anos instalado na ilha de Molokai. Desembarcou em Honolulu em 15 de novembro de 1889, precisamente quando era deposta a monarquia brasileira. Em abril de 1891, casou-se com Amy Marie Gertrude Fowler, enfermeira inglesa que se oferecera como voluntária para tratar dos doentes confinados no sinistro lugar que se tornara mundialmente conhecido desde a morte por lepra, em abril de 1889, de outro abnegado missionário, o padre Damien (Correa, 1992). o segundo semestre de 1892, Lutz e Amy se transferiram para San Francisco, na Califórnia. Quando não estava cuidando dos leprosos ou dos doentes que freqüentavam seu consultório particular, Lutz dedicava-se à história natural da região, à coleta de espécimes zoológicos e botânicos para cientistas e museus na Alemanha e à coleta de materiais para seus próprios estudos sobre dermatoses, verminoses e, principalmente, sobre os enigmas da entomologia médica (Lane, 1955), disciplina que engatinhava, e que constituiria uma das linhas mestras de sua atuação posterior como sanitarista. A verificação de que plantas armazenadoras de água serviam de hábitat para pequenos crustáceos teria, mais tarde, grande importância ao direcionar a atenção de Lutz para a moradia do transmissor da malária silvestre, uma de suas descobertas mais notáveis (Lutz, 1903). A segunda fase na trajetória de Adolpho Lutz corresponde ao período em que esteve à frente do Instituto Bacteriológico de São Paulo, portanto na vanguarda dos movimentos de instituição das medicinas pasteuriana e “tropical” no Brasil (Bayet, 1986; Worboys, 1996) e de sua instrumentali- zação em proveito da saúde pública. Nomeado diretor interino do Instituto Bacteriológico de São Paulo em outubro de 1893, e efetivado no cargo somente em setembro de 1895, Adolpho Lutz exerceu-o por 15 anos, até transferir-se para o Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, em novembro de 1908. Além de estafantes rotinas laboratoriais, e de atividades como “homem público”, Lutz dedicou-se neste período a pesquisas ‘engajadas’ nos domínios da bacteriologia, epidemiologia e entomologia médica. Ele foi, sem dúvida, o mais experiente e versátil integrante de um pequeno grupo de médicos que, na virada do século XIX para o XX, estiveram no centro de candentes controvérsias envolvendo clínicos e outros atores sociais. Refletiam os choques entre o paradigma microbiano que era entronizado na saúde pública, e as práticas inspiradas nas teorias miasmáticas e ambientalistas que estes grupos sustentavam ao se defrontarem com os graves problemas sanitários do Sudeste. Os anos 1890 estão repletos de conflitos envolvendo a identificação e, por conseqüência, a profilaxia e o tratamento de doenças em núcleos urbanos e zonas rurais convulsionados pela imigração estrangeira, pela mudança de regime político, pela industrialização e pelos desdobramentos socioeconômicos da derrocada do escravismo. Diversas unidades da federação reaparelhavam-se ou proviam-se de serviços de higiene próprios, que previam laboratórios de análises químicas e bacteriológicas. Na prática, demorou muito tempo até que se tornassem realidade, na maioria dos estados. No eixo Rio de Janeiro-São Paulo, a bacteriologia cumpriu papel decisivo no enfrentamento dos problemas sanitários, graças à atuação daquele segmento ainda restrito de profissionais dotados da proficiência, dos recursos técnicos e da ambição necessários para amplificar a relevância social da disciplina. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 79 I N S I G H T Dentre os episódios vivenciados por Lutz, dois foram particularmente rumorosos (Lutz e Lutz, 1943): o do cólera levou-o a estabelecer contato com Dunbar, do Instituto de Higiene de Hamburgo, que atestou a presença do vibrião de Koch lá onde os adversários de Lutz enxergavam apenas disenteriais causadas por fatores telúricos e alimentares locais. A controvérsia sobre a febre tifóide pôs Lutz em relação com Carl Joseph Eberth (18351926), o descobridor do “bacilo de Eberth”, depois chamado Salmonella typhi Eberth, que exercia, então, o cargo de diretor do Instituto Anatômico da Universidade de Halle. Ele forneceu o seu aval às culturas do bacteriologista brasileiro, contrariando a suposição da maior parte dos médicos de que as febres que grassavam em São Paulo — as chamadas febres paulistas — nada mais eram que uma modalidade nativa ou local de malária. Entre as questões sanitárias que se impuseram à atenção de Adolpho Lutz naquele período sobressai a febre amarela, também denominada tifo amarílico ou icteróide ou, ainda, americano. A febre que era chamada de amarela ou icteróide em virtude da coloração característica apresentada pelo doente tinha também o nome de “vômito-negro” — vomito, o que trazia a primeiro plano um sintoma intestinal característico, usado pelos clínicos para o diagnóstico diferencial. As confusões mais freqüentes se davam com as febres que vinham sendo resignificadas pelos pasteurianos de maneira a se enquadrar nas modalidades da infecção causada por protozoários do gênero Plasmodium descobertos por Laveran. Nos turbulentos anos 1890, as febres paulistas oscilaram entre a malária e a febre tifóide até pender de vez para este lado, por obra dos bacteriologistas chefiados por Lutz. Algo parecido acontecia com a febre amarela. Alguns médicos reduziam-na a uma manifestação singular da malária, caracteristicamente americana. Por outro lado, muitos bacteriologistas 80 Instituto Nacional de Marcas e Patentes INTELIGÊNCIA — o próprio Lutz, num certo momento — estabeleceram analogias entre o cólera e a febre amarela, baseadas nas manifestações intestinais das duas doenças (Benchimol, 1999). Quando Ross demonstrou, em 1898, que o mosquito era o hospedeiro intermediário do parasito da malária, tornou-se inevitável a suposição de que cumprisse idêntico papel na febre amarela, cujo diagnóstico clínico confundia-se com o da malária. s experiências realizadas em Cuba, em 1900, formam um divisor de águas na história da febre amarela. Se não sepultaram, de imediato, os miasmas, fungos e bacilos associados à doença, desativaram as controvérsias relacionadas à sua etiologia. O esclarecimento de seu modo de transmissão viabilizou campanhas sanitárias que se revelaram capazes, por algum tempo, de neutralizar as epidemias nos núcleos urbanos litorâneos da América. O esclarecimento do modo de transmissão da malária parece ter ocasionado, também, imediata reorientação dos estudos sobre febre amarela no Instituto Bacteriológico de São Paulo, e graves cisões em sua equipe. Em 1898, Vital Brazil levantou as primeiras objeções experimentais ao bacilo icteróide proposto pelo bacteriologista italiano Giuseppe Sanarelli (1897), e Adolpho Lutz começou a estudar a distribuição do Stegomyia fasciata em diversas regiões do país. Em fevereiro de 1900, Artur Vieira de Mendonça exonerou-se do Instituto por divergir de Lutz a esse respeito. “O mosquito traz nas suas asas o ridículo para a classe médica”, declarou aos jornais paulistas (Antunes et alii, 1992, pp. 64, 67). Os trabalhos da comissão norte-americana fo- I N S I G H T ram apresentados oficialmente ao 3o Congresso Pan-Americano, em Havana, em fevereiro de 1901, ao mesmo tempo que William Gorgas dava início à campanha contra o mosquito naquela cidade (Reed, Carrol e Agramonte, 1901). A partir de janeiro de 1901, as comissões sanitárias que atuavam em Sorocaba, Santos e Campinas incorporaram em sua rotina a supressão das águas estagnadas com larvas de mosquitos. Em Ribeirão Preto (1903) abandonaram-se as desinfecções, prevalecendo a teoria de Finlay como diretriz soberana, sob a supervisão pessoal de Emílio Ribas, diretor do Serviço Sanitário de São Paulo. Os drs. Émile Roux, Paul-Louis Simond e A. Tourelli Salimbeni, do Instituto Pasteur de Paris, foram enviados ao Rio de Janeiro, em novembro de 1901, pelo governo da França, que tinha grande interesse em aplicar em suas colônias a nova estratégia profilática de modo a acabar com as ruinosas quarentenas impostas aos navios mercantes (Löwy, 1991). Durante os quatro anos que permaneceram na capital brasileira (Salimbeni retornou mais cedo por motivos de saúde) fizeram numerosas experiências para conhecer melhor os hábitos e a biologia do Stegomyia fasciata, para esclarecer aspectos controvertidos da transmissão e a etiologia ainda obscura da febre amarela. Em 1908, já com mais de cinqüenta anos, Adolpho Lutz ingressou no Instituto Oswaldo Cruz (IOC), abandonando o instituto paulista, que naufragaria algum tempo depois. Em Manguinhos começa o terceiro período de sua vida profissional, em que realiza a aspiração de se dedicar por inteiro à pesquisa — e não necessariamente de aplicação médica —, o que o faz até falecer, no Rio de Janeiro, INTELIGÊNCIA Em Manguinhos começa o terceiro período de sua vida profissional, em que realiza a aspiração de se dedicar por inteiro à pesquisa OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 81 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Boa parte dos adversários da reforma e saneamento urbanos rendera-se à retórica triunfante da “regeneração” do país em 6 de outubro de 1940, poucas semanas antes de completar 85 anos. Graças à sua longevidade, esta fase, iniciada tardiamente, foi mais longa do que as duas outras reunidas (Neiva, 1941; Comissão do Centenário, 1956; Albuquerque, 1950). Criado em 1899 com a finalidade de produzir soro e vacina contra a peste bubônica, como o Instituto Butantã, em São Paulo, Manguinhos achava-se, em 1908, num momento crucial da memorfose que o tornaria, por várias décadas, o centro de gravidade da medicina experimental brasileira (Benchimol e Teixeira, 1993; Benchimol, 1990). Os caminhos de Adolpho Lutz e Oswaldo Cruz tinham convergido década e meio antes, durante a epidemia de cólera no vale do Paraíba. Oswaldo Cruz acabara de assumir a clínica do pai, recém-falecido, e como Francisco Fajardo, Eduardo Chapot-Prévost e outros jovens desbravadores da bacteriologia, no Rio de Janeiro, encarava o ‘sábio fluminense’, de sólida e rígida formação germânica, como um modelo a ser seguido. A auspiciosa produção científica de Oswaldo Cruz, como bacteriologista e entomólogo, acabou ficando à sombra de suas ações como sanitarista e administrador da ciência. Foi graças às suas habilidades nestes terrenos, que o modesto laboratório soroterápico de Manguinhos tranformou-se no dinâmico Instituto de Patologia Experimental, logo rebatizado de Instituto Oswaldo Cruz (março de 1908). A mudança consumou-se no governo de Afonso Penna (1906-9), que sucedeu Rodrigues Alves (1903-6) e confirmou Oswaldo Cruz no cargo de diretor-geral da Saúde Pública. A promoção de Manguinhos deveu-se, em parte, à euforia insuflada na opinião pública pelo êxito das campanhas contra a febre amarela e a peste bubônica no Rio de Janeiro. As novas avenidas e os palacetes edificados às suas margens davam a impressão de que a capital do Brasil, enfim, civilizara-se. Fora subjugada e expulsa das áreas renovadas a rude plebe que animara a revolta contra a tentativa de tornar obrigatória a vacinação antivariólica. Boa parte dos adversários da reforma e saneamento urbanos rendera-se à retórica triunfante da “regeneração” do país, respaldada por monumentos como o imponente castelo mourisco edificado por Oswaldo Cruz na fazenda de Manguinhos. Mas o fator decisivo para o êxito do projeto de transformar aquele laboratório numa instituição similar ao Instituto Pasteur de Paris foi 82 Instituto Nacional de Marcas e Patentes I N S I G H T INTELIGÊNCIA a medalha de ouro conquistada do XIV Congresso Internacional de Higiene e Demografia, e na Exposição de Higiene anexa a ele, em Berlim, em setembro de 1907. Quatro anos depois, o Instituto Oswaldo Cruz brilharia na Exposição Internacional de Higiene realizada em Dresden, em junho de 1911. Na primeira, a peça de resistência foi a documentação relativa à bem-sucedida campanha contra o Stegomyia fasciata (atual Aedes aegypti) no Rio de Janeiro. Em Dresden, contou sobretudo o trabalho sobre a doença produzida pelo Tripanossoma cruzi, que ficaria internacionalmente conhecida como Doença de Chagas. bagagem extraordinária de conhecimentos zoológicos que Adolpho Lutz levou para Manguinhos foi decisiva para a construção de suas coleções biológicas e para o adestramento dos jovens médicos, todos na casa dos vinte anos, que Oswaldo Cruz recrutara para compor o que chamava de seu “jardim de infância da ciência”. Com Lutz, aprenderam muitas das ferramentas necessárias para investigar os complexos ciclos de parasitos e de seus hospedeiros. A contratação de Lutz coincide com o auge da influência alemã sobre a vida científica de Manguinhos, que, no intervalo entre Berlim e Dresden, acolheu também Max Hartmann, do Instituto de Moléstias Infecciosas de Berlim, e dois professores da Escola de Medicina Tropical de Hamburgo, Stanislas von Pro- wazek, autor de importantes trabalhos sobre os clamidozoários, e G. Giemsa, inventor do método de coloração mais utilizado para a observação de hematozoários. Mais tarde, veio a Manguinhos Hermann Duerck, docente de anatomia patológica da Universidade de Iena. As Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, inauguradas em 1909, difundiriam os trabalhos de seus cientistas quase sempre em português e alemão, cabendo a Adolpho Lutz a árdua, ainda que pouco reconhecida, tarefa de traduzi-los para este idioma, hegemônico até a Primeira Guerra Mundial.1 Seu capital de relações com universidades, museus e institutos de pesquisa europeus e norte-americanos certamente contribuiu para consolidar o prestígio internacional do Instituto Oswaldo Cruz. Durante o terço final de sua trajetória, vivida em Manguinhos, Adolpho Lutz produziria abundantemente sobre temas de interesse médico, como a esquistossomose, ou de interesse puramente biológico, como os anfíbios anuros, alheio aos dilaceramentos internos e externos que marcaram a chegada à maturidade daquela instituição. Suas idiossincrasias, que se tornariam folclóricas, e a densidade de sua trajetória científica permitiram que chegasse mais perto do que ninguém daquela miragem da torre de marfim onde muito cientista sonha viver recluso. email: j b e n @ c o c . f i o c r u z . b r email: m a g a l i @ c o c . f i o c r u z . b r Nota 1. A rarefação dos trabalhos publicados em alemão por Lutz e seus pares nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, a partir da Primeira Guerra Mundial, certamente constitui um indicador importante de mudanças em curso nas relações de ascendência e interlocução entre cientistas brasileiros e estrangeiros no âmbito da microbiologia e medicina tropical. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 83 I N S I G H T Referências bibliográficas Albuquerque, Maria S. de. ‘Dr. Adolpho Lutz’, Revista do Instituto Adolfo Lutz, São Paulo, vol. 10, pp. 9-33, número único, 1950 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro (1844-1889) ou Almanak Laemmert. 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Antônio Barros de Castro, convidado para inaugurar um painel de conversas sobre um iluminado caboclo maranhense esquecido nos rincões de empoeirados livros de teoria econômica ou exilado na memória dos cada vez mais escassos contemporâneos, cofia a barba e procura uma definição carinhosa para o dito cujo. “Ignácio Rangel via lógica até no vôo de uma andorinha”, dispara Castro com olhar saudoso. “Eu carrego comigo uma certa culpa, um certo remorso, por não tê-lo entendido no seu tempo. Rangel pensava com excessiva liberdade”. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 87 I N S I G H T ronto! Castro tinha encontrado o fio condutor dessa nossa artimanha de revisitar o pensamento do velho Ignácio apenas para poder falar do sujeito; o elo de ligação seria uma certa culpa, um certo remorso. Rangel foi passando, passando, e assim como a andorinha bateu asas e voou das academias, dos órgãos de fomento, da indústria, da mídia em geral. Com ele, ou para ser mais preciso, com a sua geração, foi-se um sentimento de obsessão pelo desenvolvimento, altamente em voga entre as décadas de trinta e sessenta, que viciava mais do que opiáceos, mas fazia bem à saúde pátria. A ausência de Rangel não está circunscrita apenas ao sumiço da sua presença física e vai além de uma metáfora rasa sobre a cura pela doença do seu vício virtuoso, a tara pelo progresso. O espírito e a obra de Rangel sumiram mesmo. Ninguém fala ali, ninguém fala acolá, ao contrário do que acontece com outros pensadores em economia política ou história da economia — ou economia escolástica, se quiserem alguns —, tais como os mestres Celso Furtado e Caio Prado Jr. Mas, antes tarde do que nunca — já que os tempos são de um pensamento uniformizado e os seus livros continuarão lá mesmo, nos poucos sebos ainda acessíveis — um bom motivo para lembrar Rangel é o próximo dia 20 de fevereiro, quando começam a esquentar os tamborins. Nada a ver as folias de Momo com o austero professor, mas é que o caboclo completaria 90 anos de idade se não tivesse partido desta para uma melhor. 88 Pró-Memória INTELIGÊNCIA Ignácio Rangel chegou a estas terras no ano de 1914 por uma extremidade, a cidade de Mirador, no Maranhão. Fez de uma outra extremidade seu culto político e caminhou, literalmente, sempre à esquerda — exceção feita a barcas e trens, nos quais, em pé, o sujeito completava sua viagem — até o Rio de Janeiro, lá pelos idos dos anos 40. Veio por dentro, antecipando em muitas décadas o tal doutorado em problemas brasileiros que viraria anos depois peça de marketing da campanha eleitoral para Presidência da República de um outro caboclo. Só que, com todo respeito ao Supremo Mandatário da Nação, Rangel lia muito desde a década de 20. “Seu pai, José Lucas Mourão Rangel, era um magistrado esclarecido, sempre em oposição ao governo. Em conseqüência, era nomeado para comarcas pequenas onde, muitas vezes, não havia escola. Isso fez dele o preceptor de seus filhos. A tradição familiar, sua personalidade, bem como suas leituras influenciam-no a pegar em armas com apenas 16 anos para ajudar a derrubar o Governo Federal”. A forja consangüínea que produziu essa liga de aço especial não o aliviava nem mesmo em situações onde até os mais fortes têm seu momento lacrimogêneo. Quando pagou sua primeira detenção, narrou o próprio Rangel, “seu pai lhe disse: se me chegar em casa, tendo abandonado os amigos só para não correr riscos, eu lhe fecho as portas na cara. Se você quer mudar de opinião, espere lhe ser devolvida a liberdade; enquanto não lhe for devolvida, você não pode mudar de opinião”. É o período de um Rangel nitroglicerínico, que continha sua libido em apertar o gatilho contra a tigrada com o esforço monástico das primeiras leituras de Marx e tudo mais que dissesse respeito à dialética e ao materialismo histórico. I N S I G H T Como os hormônios e a tentação pela garrucha ainda falavam mais alto, ainda adolescente, em 1935 se junta a operários de uma fábrica de tecidos e, de arma na mão, tenta ocupar um quartel do Exército. São tempos de militância integral no PCB e da Intentona Comunista. Para Rangel o resultado era previsível: cadeia na certa. Cumpriu dois anos de xilindró no Rio de Janeiro e depois ficou oito anos impedido de deixar a capital maranhense. Não chegou a ser um campeão de permanência em casas de detenção, mas ficou o tempo suficiente para amainar, posteriormente, o patrulhamento de uma esquerda que fazia sua escala de medição meritocrática em função do calvário físico ou do tempo de enclausuramento dos seus companheiros. Rangel, em suas futuras travessuras intelectuais, iria precisar desse waiver concedido a muito poucos. Ainda nas memórias do cárcere, inventa uma espécie de MBA lato sensu para detentos políticos, criando um sistema de utilização de livros cedidos para o funcionamento de 13 cursos, entre os quais sociologia, matemática e todos os textos do pré-cambriano do que viria a ser chamado de ciência econômica. A repressão certamente achou que era melhor ter o professor autodidata exilado lá pelas bandas de sua terra natal do que dando aulas-showmícios dentro da cadeia. Então, de volta ao Maranhão. Uma versão preciosa do episódio do ataque frustrado ao quartel do 13º Batalhão de Caçadores é dada por Dionísio Dias Carneiro, que herdou uma quase tutela de Rangel da longa amizade entre o pai de São Ignácio, José Lucas Rangel, e seu tio-avô, Severino Dias Carneiro: INTELIGÊNCIA Ainda adolescente, em 1935 se junta a operários de uma fábrica de tecidos e, de arma na mão, tenta ocupar um quartel do Exército “Rangel já era estudante de Direito à época e um destemido comunista. Não bastasse o flagrante da ação revolucionária, foi preso com um livro que atestava sua culpa: um exemplar do Précis d’Economie Politique, de Charles Gide, perigoso economista revolucionário francês, segundo entendeu a polícia política de Getúlio. O livro continha uma dedicatória de meu tio-avô ao seu pai, e lhe valeu uma ficha policial de “economista”, e tal dedicatória serviu de evidência para que se noticiasse, no Rio de Janeiro, o envolvimento de dois juízes federais com o movimento comunista no Nordeste! Anos depois, já formado em Direito, Rangel gostava de dizer com orgulho, aos que perguntavam se era economista, que havia sido diplomado pela polícia política de Getúlio, que não só o havia fichado como tal, mas lhe havia oferecido a oportunidade de estudar Marx na prisão”. o se reencontrar com as terras marajoaras, Ignácio alterna todo o explosivo vigor dos seus pouco mais de um metro e meio de altura em reuniões clandestinas e missões do Partido e uma leitura furiosa até mesmo para os mais renomados traças da época. Em abril de 1945, ainda segundo Bresser Pereira, os jornais do Maranhão publicam o programa da 1ª Conclap — Conferência das Classes Produ- OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 89 I N S I G H T toras, que seria realizada em Teresópolis, Rio de Janeiro. “Rangel, além de escrever dois trabalhos para a Conclap, é chamado para chefiar a assessoria da Associação Comercial do Maranhão, que representaria esse estado no evento. A participação no encontro das classes produtoras em Teresópolis faz o chefe de polícia de São Luís lhe fornecer uma nova carteira de identidade e permitir, enfim, a saída de Rangel do Maranhão. Do Rio de Janeiro, escreve para a mulher discutindo a possibilidade de não voltar para São Luís, recebendo dela encorajamento para começarem uma nova fase de suas vidas na então Capital Federal. Rangel começa a trabalhar no Rio de Janeiro como tradutor de novelas policiais. Em seguida, também como tradutor, trabalha para a agência de notícias Reuters. Seus trabalhos de tradução eram sempre de meio expediente. O outro meio expediente era em sua casa. Quando calculava que as despesas mensais estavam cobertas, parava com as traduções para estudar economia em tempo integral, até o fim do mês. Em 1947, recebe, em um domingo, a visita de um amigo e mostra a ele alguns artigos sobre economia que escrevia somente para sistematizar suas idéias. Cinco deles são selecionados e vendidos por esse amigo para a Associação Comercial do Rio de Janeiro. A partir desse dinheiro que Rangel ganha como economista, inicia uma intensa produção de artigos para publicação”. É uma missão hercúlea, para não dizer impossível, rastrear a caudalosa produção de ensaios de Ignácio Rangel. Parece que não fez mais nada na vida, isto se ela lhe tivesse dado uns 200 anos de idade. Para se ter uma idéia do tamanho do oceano, os autores encontraram somente na Folha de S. Paulo, de 1970 para cá, cerca de 180 artigos, fora as entrevistas. Há quem tenha escrito muito mais sobre assuntos 90 Pró-Memória INTELIGÊNCIA É uma missão hercúlea, para não dizer impossível, rastrear a caudalosa produção de ensaios de Ignácio Rangel. Parece que não fez mais nada na vida variados. Sobre economia estritamente, é difícil. A diferença é que nos idos do final dos anos 40, em meio à febre do que viria se chamar de desenvolvimentismo, Rangel era lido com raro entusiasmo. Escrevia bem, com erudição, mas de forma meio tortuosa, digamos barroca, e invariavelmente com aquele pensamento oblíquo que o fazia enxergar um mesmo caminho por uma trajetória completamente distinta. Na maioria das vezes, enxergava caminhos que ninguém viu. Talvez por esse dom de dar características científicas a inusitadas formas de encaminhamento e equação dos problemas, driblou a aversão que a pecha de comunista produzia nos senhores dos meios de produção e acabou sendo incorporado aos mais elevados staffs mesmo com o estigma vermelho e fama de turrão. m 1950, segundo Bresser Pereira e José Márcio Rego, verifica-se um encontro de almas gêmeas, comparável, ressalvadas as devidas diferenças e proporções, ao de Marx e Engels. “Rangel é apresentado a Rômulo de Almeida, que chefiava a assessoria da Confederação Nacional da Indústria e passa a trabalhar com ele”. Verdade seja dita, a entidade patronal significa para ambos a aliança matrimo- I N S I G H T nial com a indústria. Finalmente, da teoria à práxis. E Rangel começa a olhar o mercado com outros olhos, ainda turvos, mas menos impiedosos e sempre científicos, é claro. Digamos que é nesse momento que inaugura o “comunismo heterodoxo”, do qual viria a ser o principal e único expoente, passando a fazer uma interpretação original de Marx, de quem nunca foi um leitor dogmático. DANÇA COM LOBOS E UM “CAUDILHO” Em 1952, o amigo e parceiro intelectual Rômulo de Almeida sugere seu nome ao então presidente Vargas, que convida aquele caboclo que, por muito pouco, não mandou para o suplício no pau-de-arara, para o seu seleto e coeso grupo de assessores. Rangel trabalhou que nem um cão com Vargas, mas não por Vargas, por quem manteve até o fim da vida uma bronca coerente com sua ideologia, princípios e maustratos recebidos. Trabalhou pelo Brasil. Aliás, Rangel é apenas mais um no vasto time do “pecebão” que cultivava a aliança tática temporária com o inimigo político como uma etapa natural e necessária na trajetória da consolidação do processo revolucionário. Um expediente de rara disciplina e dor, que acabou encontrando seu momento mais emblemático na alcunhada 92 Pró-Memória INTELIGÊNCIA “síndrome de Prestes”, forma jocosa de denominação para o apoio dado em palanque pelo “Cavaleiro da Esperança” a Getúlio Vargas, algoz de véspera de sua mulher, enviada à tortura e ao extermínio em um campo de concentração alemão. O fato é que a mais suave expressão usada por Rangel quando se referia a Vargas era chamá-lo de caudilho feudal. Talvez ainda distante da classificação superlativa, uma frase mais enfática foi a dita a um dos autores deste ensaio: “Getúlio era um grandissíssimo filho-daputa”, rosnou. as o método dialético onipresente e a compulsão por racionalizar até a queda de um fio de cabelo levaram-no a encontrar uma curiosa justificativa para engolir Vargas, pelo menos como etapa histórica: o “conservadorismo renovador”. É aquela história: não há mal que seja absoluto, não há bem que seja todo bem. São, portanto, palavras do próprio Rangel: “É ainda incompreendido por nossos historiadores e intelectuais o papel desse nosso conservadorismo (quiçá reacionarismo) renovador (quiçá revolucionário) que fez o príncipe herdeiro da Coroa de Portugal proclamar nossa independência; a princesa herdeira da Coroa imperial proclamar a República, que estava implícita na Lei Áurea; que fez do caudilho feudal Getúlio Vargas o patrono da indústria brasileira, ao adotar uma legislação trabalhista de inspiração I N S I G H T sabidamente fascista, isto é, “mussoliniana” (Carta del Lavoro), e, conseqüentemente, fomentar as bases de uma expansão industrial poucas vezes conhecida no mundo capitalista”. Uma outra forma de ilustrar essa siderúrgica disposição de renúncia ao desamor em nome da paixão pelo serviço público numa relação cheia de afeto (tático) e ódio alternados no tempo, encontra-se na crônica escrita por Carlos Gaspar, substituto da cadeira 26 que Rangel ocupava na Academia Maranhense de Letras, sede da Casa de Antônio Lobo. Diz o emocionado Gaspar em sua homenagem ao mestre, por ocasião de sua herança de um título de imortalidade na versão marajoara: “Acerca do seu relacionamento com Getúlio Vargas, dois episódios exigem menção. O primeiro encontro, quando foi convidado para integrar a equipe do então presidente, que desta maneira se manifestou: “Dr. Rangel, eu conheço o seu currículo. Quero correr o risco de integrá-lo em minha equipe. Não careço de aduladores, mas de homens que, como o senhor, tenham a coragem de dizer-me que estou errado”. O segundo traduz seu conceito sobre Vargas: “Sinto-me na obrigação de dizer que durante muitos anos trabalhei para o presidente, mas era opositor. O meu neogetulismo começa hoje, porque eu fui getulista em 1930, quando ele foi comandante, mas isso faz muito tempo; depois estive contra, fui preso etc., e agora eu começo a perceber o getulismo, porque seu suicídio significa que levava a sério aquilo que me mandava fazer. Portanto, eu levo a sério, eu agora me declaro getulista, e podem ter certeza que milhões de brasileiros estão, neste momento, tomando a mesma decisão”. INTELIGÊNCIA omo se vê, Rangel não fugiu à saga de gato e rato entre o velho PCB e a oligarquia dominante, num movimento que se repetiu por anos e anos, amém, com os mesmos três distintos capítulos de uma recorrente novela: a luta declarada, a conveniente aliança e, posteriormente, a sofrida autocrítica. No caso de Vargas, talvez somente neste breve necrológio, o compromisso de adesão tenha fugido à cautela verborrágica de praxe, revelando uma emoção incomum no marmóreo Rangel. Mas Vargas merece um desconto, é um enigma difícil de ser decifrado. O OBOÉ E O VIOLINO A alvorada do segundo qüinqüênio dos anos 50 são tempos de um nacionalismo exacerbado, são os tempos do Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP), que viria a ser o embrião do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), nascente e estuário de uma das principais obras acadêmicas de Rangel, “A Dualidade Básica da Economia Brasileira”, iniciada em 1953, ainda na assessoria de Vargas, e publicada em 1957. Guerreiro Ramos, figura de proa do ISEB e mestre da sociologia brasileira, deixa registrado no prefácio do livro, que este “é um marco na história das idéias do nosso país”. Nesse período, Rangel participa de uma espécie de dream team da intelectualidade brasileira da época. Fazem parte desse ninho de cérebros que era o ISEB os cientistas políticos Hélio Jaguaribe e Cândido Mendes de Almeida, o historiador Nelson Werneck Sodré (igualmente pertencente ao Partido Comunista) e os filósofos Álvaro Vieira Pinto e Roland Corbusier, responsáveis pela produção de um dos mais vigorosos e originais pensamentos sobre a evolução social e econômica do Brasil. É no ISEB que o desenvolvimentismo ganha, finalmente, o seu melhor arcabouço teórico-conceitual, construindo as bases de um projeto nacional de industrialização. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 93 I N S I G H T Rangel foi o grand penseur entre os economistas que passaram pelo ISEB. Para variar, produziu toneladas de estudos inovadores e provocativos, entre os quais a tese sobre os “Recursos Ociosos na Economia Brasileira”. Segundo Arthur Candal, que o conheceu no início da década de sessenta, “a teoria da dualidade antecipou Os Dois Brasis, um livro menor de um sociólogo francês, Jacques Lambert, que fez um enorme sucesso na época. Só que o livro do Rangel era pioneiro e muito, mas muito mais profundo”. Mas, mesmo com toda essa performance encefalina, o caboclo não conseguiu escapar da sua sina: ir aos poucos sendo esquecido, esquecido... No livro mais significativo sobre o instituto, ISEB: fábrica de ideologias, de Caio Navarro de Toledo, publicado originalmente em 1978 (Editora da Unicamp), os textos de Rangel não são sequer analisados. O argumento do autor é que esses textos tiveram uma quase “inteira autonomia no conjunto da produção intelectual isebiana”. O cientista político Alexsandro Eugênio Pereira (Universidade de São Paulo) derruba a justificativa, afirmando em sua A Crítica e a Polêmica em torno do ISEB, “que os textos foram fundamentais sim e não tiveram essa tal de quase autonomia dentro da produção intelectual do instituto”. O caso é que Ignácio Rangel tinha mesmo um pensamento muito diferenciado. ão palavras do mesmo Eugênio Pereira: “A produção intelectual do ISEB deve ser analisada a partir das suas duas dimensões fundamentais: a elaboração de ideologias e a análise econômica. Entre essas duas dimensões há uma complementaridade necessária à medida que a análise econômica sustenta, do ponto de vista concreto, a elaboração 94 Pró-Memória INTELIGÊNCIA Talvez a melhor definição de Rangel em relação aos desenvolvimentistas seria a de “companheiro de viagem” de “ideologias”. Em vários textos, a análise de situações concretas empreendida por economistas e intelectuais ligados ao ISEB como Ignácio Rangel, Gilberto Paim, Ewaldo Correia Lima, Jesus Soares Pereira e outros, revela que o ISEB tinha uma concepção própria a respeito do papel do Estado e do capital estrangeiro no desenvolvimento econômico, do aproveitamento da capacidade ociosa existente na economia brasileira e da necessidade de se proceder algumas reformas tanto políticas como econômicas — como a reforma agrária, a reforma da estrutura do Estado e a reforma política — para que as políticas de desenvolvimento significassem, de fato, a incorporação de uma parcela da população até então excluída da participação nos resultados do desenvolvimento econômico”. Talvez a melhor definição de Rangel em relação aos desenvolvimentistas seria a de “companheiro de viagem”, algo assim como o oboé e o violino em uma orquestra sinfônica. Rangel, é claro, era o oboé. Os violinos abundavam. Ricardo Bielschowsky, na provavelmente mais completa obra sobre o assunto, O Pensamento Econômico Brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo 1930/1964, cria um artifício engenhoso para classificar a produção do velho mestre: “Pensamento Independente”. O único membro dessa seletíssima corrente é Santo Ignácio. I N S I G H T O DUPLO INEXORÁVEL Segundo Bielschowsky, Ignácio Rangel foi o mais criativo e original analista do desenvolvimento econômico brasileiro. Sua obra está repleta de insight, criatividade e provocação. Um desses momentos épicos é a sua teoria da dualidade, uma espécie de yin e yang do desenvolvimentismo. É um negócio complicado, ainda mais explicado pelo criador. Para não reinventar a roda, nos utilizamos da definição apresentada pelo mesmo Bielschowsky: “A dinâmica brasileira distingue-se dos casos clássicos porque os processos sociais, econômicos e políticos não decorrem apenas da interação do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção internas ao país, mas também da evolução das relações que o país mantém com as economias centrais. As “relações externas” são determinantes do desenvolvimento das forças produtivas internas e, conseqüentemente, também das relações de produção internas. Essa dupla determinação, causada pela evolução das relações internas e das relações externas, teria como conseqüência fundamental não só a dualidade de todas as instituições econômicas brasileiras — o latifúndio, as empresas industriais e comerciais —, mas também a dualidade da economia brasileira como um todo”. A dualidade, conforme anunciou São Ignácio, aparecia expressa em dois pólos: um interno, onde estavam as relações de produção dominantes e a correspondente classe dominante, que INTELIGÊNCIA Rangel chamou de “sócio maior”; e o externo, onde se alinhavam as relações de produção emergentes e o correspondente “sócio menor”, que na dualidade seguinte ganharia um upgrade, passando a ser a força dominante. “Meus estudos levaram-me à conclusão de que nossa peculiaridade por excelência é a dualidade, no sentido que atribuo a esse termo, isto é, o fato de que todos os nossos institutos, todas as nossas categorias — os latifúndios, a indústria, o comércio, o capital, o trabalho e a nossa própria economia nacional — são mistas, têm dupla natureza, e se nos afiguram coisas diversas, se vistas do interior ou do exterior, respectivamente”, são palavras do mestre. Segundo Bielschowsky, a tese da dualidade é apresentada como a lei fundamental da economia brasileira. A História do país a partir do início do século XIX é representada como uma sucessão de três etapas. A primeira, entre 1815 e 1870, tendo como pólo principal o escravismo; a segunda, entre 1870 e 1920, pelo feudalismo; e a terceira, de 1920 a 1973, onde o pólo principal é o capitalismo mercantil, tendo como lado externo — e, conseqüentemente, como sucessor em uma nova etapa — o capitalismo industrial. Para Rangel, a dualidade brasileira tinha um fim. A última fase seria representada pelo que ele chamou de “paralela conversão do capitalismo privado em capitalismo de Estado”, como exigência do desenvolvimento econômico. E, finalmente, uma transição para o socialismo. Amém. próprio Rangel relata, em texto assinado como prefácio do livro Ciclo, Tecnologia e Crescimento (Civilização Brasileira, 1982) que, mesmo somente tendo escrito sua tese sobre a dualidade básica em 1953, já tinha sua arquitetura desenvolvida desde 1937, quando só tinha 23 anos. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 95 I N S I G H T “Lembro-me de ter lido algures (em Schumpeter, provavelmente) que os economistas que deixaram sua marca na história de nossa ciência já tinham, aos 25 anos, concebido o vigamentomestre do seu ideário, mas seriam necessários tantos anos quantos lhes tocasse ainda viver — e nem sempre com êxito — para precisar e dar forma inteligível para os outros, a essas idéias. Sem pretender deixar a tal marca na história do pensamento econômico — coisa pouco provável para quem teve minhas condições para trabalhar e língua portuguesa no qual escrever —, deixo consignado aqui que era mais que um adolescente quando, em 1935/37 coube-me o privilégio de conviver, em diversas prisões da ditadura de então, com alguns dos melhores homens que o Brasil havia produzido. As idéias que então germinaram em meu espírito teriam longa trajetória a desenvolver, mas são as mesmas idéias, essas que agora estou tentando passar... Outros homens, como Ahumadã, Guerreiro Ramos, J. Soares Pereira, os colegas do ISEB e do BNDE deixaram sua contribuição, mas as idéias são as mesmas, nascidas no isolamento ou nas discussões intermináveis nas prisões da ditadura.” m 1962, Rangel pensou no que seria a contrapartida política da dinâmica da dualidade, antevendo a cenografia no anfiteatro da política brasileira no século XXI: “O poder político não é nunca exercido por uma só classe dirigente, mas por uma frente unida de duas classes dirigentes, solidárias, mas ao mesmo tempo em conflito. Noutros países, coligações desse tipo surgem em certos momentos críticos, para se dissolverem tão prontamente quanto cessa a emergência. Não no Brasil, onde a exclusão do proscênio político de uma das classes representativas da dualidade não tem lugar senão para suscitar o aparecimento de outra coligação, representativa da nova dualidade Nessas condições, a transição de um regime para 96 Pró-Memória INTELIGÊNCIA outro não envolve — ou envolveu até nossos dias — a conquista do poder por classes não-componentes da coalizão dominante, com a conseqüente derrubada desta. A transição se faz por cooptação, isto é, pela exclusão, pelo próprio grupo dirigente, dos elementos mais arcaicos, e sua substituição por outros, representativo das novas forças sociais em ascensão”. Se São Ignácio estivesse entre nós, certamente estaria discutindo com Luís Werneck Vianna e Francisco de Oliveira o nó dado pelo PT na dinâmica da dualidade. Segundo Chico de Oliveira, “a vanguarda do proletariado se tornou dona da banca e passou a constituir uma nova classe social. Eles não são burgueses propriamente porque eles não têm a propriedade, nem eles são gestores das empresas privadas. Eles estão no ponto crucial, onde o capital privado busca recursos para acumular. Esse ponto são os fundos estatais, de um lado, e os fundos institucionais, de outro.” Freud explica. E Rangel, nesse caso, muito mais. A REINVENÇÃO DO CIPOAL CEPALINO Até então, a formação acadêmica de Rangel na verdade se limitava ao diploma de Direito na Universidade do Maranhão. Depois de escrever a tese da dualidade básica passou oito meses no Chile, em 1954, fazendo um curso de pósgraduação na Comissão Econômica para a América Latina, a Cepal. A convivência com Raúl Prebisch foi mais do que cordial, mas não resultou, ao contrário de vários contemporâneos seus, na assimilação incondicional das teses do pensamento cepalino. De acordo com Antônio Barros de Castro, foi a Cepal que fez a cabeça de Rangel, não devido a assimilação das teorias cepalinas, mas em função da conquista de um novo instrumental básico para suas análises: a idéia de I N S I G H T projeto. “Rangel fica fascinado com essa nova perspectiva, e passa de um marxismo nãolapidado, para uma visão pragmática que produz uma verdadeira guinada em sua contribuição intelectual”. Responsável pela indicação de Rangel para o curso na Cepal, Celso Furtado revelou, em 1997, em depoimento ao jornal do Conselho Regional de Economia do Rio (Corecon-RJ), uma recepção um tanto fria em Santiago do Chile. “No começo estavam contra, pela idade que ele já tinha. Mas eu disse: ‘esse é um camarada excepcional, é preciso investir nele’”. Ele foi avançando e saiu deixando algumas contribuições maiores. Mas confesso que é difícil dizer hoje em dia o que ele pensava na época. Depois escreveu-se muito sobre isso. O que é original não se sabe logo, não. Demora um tempo para se compreender”. É na volta da Cepal que Rangel encasqueta com o comércio exterior e começa a colocar a primeira costela no esqueleto completo, que, segundo Arthur Candal, na ausência de uma definição melhor, Maria da Conceição Tavares viria depois denominar de “modelo de substituição de importações”. Candal insiste — e Bielschowsky concorda — que a tese estava mais ou menos embrionária em Prebisch e vagamente apresentada nos trabalhos da Cepal, mas que ganha forma com o vigor intelectual de São Ignácio. Candal rememora: “Eu estava chegando no Rio. Éramos cinco gaúchos. Além de mim, o Pratini de Moraes, Pilotto, Guilherme Vilella e o “Gordo Campos”, que eu não me lembro do nome, mas todo mundo o chamava assim. Ficamos logo amigos, eu e o Rangel. Primeiro, porque ele tinha uma enorme paciência e disposição INTELIGÊNCIA para debater com nossa fúria juvenil, e, segundo, porque nossos pais eram desembargadores, que era um cargo de status nobiliárquico. O Rangel era uma coisa diferente, era um marxista nordestino, e essa combinação deve ter influenciado no seu metabolismo, pois ninguém pensou como ele. Acho que eu tenho uma certa nostalgia, talvez um certo remorso de não ter entendido melhor suas idéias à época”. omo diz Bielschowsky, lá pelos idos de 1959/60, por ocasião da elaboração de um segundo Plano de Metas, Rangel já não escondia que ele e a Cepal não eram duas faces da mesma moeda. “Ele considerava que a Cepal estava, sem dar conta, endossando posições reacionárias, não obstante o sentido geral progressista e nacionalista de sua atuação. Chegou mesmo a afirmar que, retirado o suposto da plena capacidade, “os postulados — palavras do próprio Rangel — perdem sua validade, revelando o caráter pouco científico, antiprogressista, antinacional e antipopular de tal construção”. Essencialmente, pensava Rangel, “os primeiros ensaios da programação põem demasiada ênfase na formação do capital como meio de elevar a capacidade produtiva; dessa forma, acabam por exigir da nação, alternativa ou concomitantemente, duas coisas: “a compressão do consumo e/ou sacrifício de atributos de soberania, na intenção de obter por certo período uma entrada líquida de recursos”. E isto corresponde “a matar o entusiasmo popular pelo desenvolvimento econômico do país, apresentando-o como contraditório com as coisas que mais queridas são ao povo”. Nada mais atual, como se vê. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 97 I N S I G H T Um dos raros contemporâneos de mesa de trabalho, o economista João Paulo de Almeida Magalhães recorda que era difícil acompanhar a lógica de Rangel, pois seu pensamento nunca vinha em linha reta. João Paulo conta um instigante episódio do período João Goulart para mostrar que Rangel era um quebra-cabeça difícil de desmontar até mesmo quando errava: “Estávamos no governo Jango e o Walther Moreira Salles tinha sido nomeado ministro da Fazenda. Ele era de direita, mas não era de fato, pois vivia na Europa, renegociando a dívida externa. O ministro mesmo ficou sendo Miguel Calmon. Pois bem, eu era assessor informal junto com Eduardo Gomes, que era o maior especialista na época em teoria monetária. Nós montamos um modelo para fazer a contenção dos gastos fiscais e não cortar os investimentos. Era um negócio para ser aplicado ao orçamento e conter a inflação sem obstruir o desenvolvimento. Aliás, naquela época não pensar em desenvolvimento era crime de lesa-pátria. Eu me lembro bem que era uma sexta-feira à noite, tinha saído com os amigos e ido a uma boate. Cheguei lá pelas 3 horas da madrugada e tinha um recado do Juvenal Osório lá em casa: tinha de ir para Brasília às pressas, no dia seguinte, porque o Rangel tinha descoberto um erro no modelo, e haveria uma reunião no Palácio do Planalto às 7 horas. Não dormi nem nada. Fui para o aeroporto e peguei um daqueles aviões da FAB, cheio de pára-quedistas e desembarquei em Brasília. Lá nos reunimos, eu, o Juvenal, o Eduardo Gomes, o Rangel e depois chegou o Celso Furtado. Éramos nós quatro discutindo, vendo e revendo, e nada de descobrir o erro achado pelo Rangel, que repetia a sua demonstração, de uma lógica cristalina, mas esbarrava no modelo, que era uma coisa recentíssima, de última geração. Lá 98 Pró-Memória INTELIGÊNCIA pelas tantas, eu descobri o erro, era uma dupla contagem. O próprio Rangel reconheceu o equívoco. Mas o genial é que ele montou um sistema tão concatenado, que ninguém achava o diabo do erro. Saímos dali e fomos para o almoço na Granja do Torto com o Jango. Fomos todos, o Rangel, o Juvenal, eu e o Furtado, que já estava lá. Só que nós esquecemos de contar para o Furtado que tínhamos identificado o vacilo do Rangel. Resultado, o Furtado chamou o Rangel para descrever ao presidente a sua descoberta e a correção que propunha no modelo. O Rangel constrangidíssimo, para não dizer que o Furtado não sabia da história, foi lá e fez aquela apresentação complicadíssima do negócio que ele já tinha reconhecido que estava errado. E sabe que ele quase nos conseguiu convencer de novo que estava certo?”. ntuição, genialidade, liberdade absoluta. Essas são as palavraschave, na visão de João Paulo, para explicar o inexplicável: as tais mediúnicas compreensões de Rangel. Um outro episódio, vivenciado pelo professor, dá bem uma idéia dessa rara capacidade. Conta o mesmo João Paulo: “Estávamos nós dois andando no Viaduto do Chá, em São Paulo, à noitinha, na maior discussão. Debatíamos os primeiros cálculos sobre contabilidade social, I N S I G H T aquela coisa do PIB global e per capita. E a China estava lá embaixo, no final do ranking. O Rangel, comuna daquele jeito, estava chateado e não aceitava os números. Então ele começou a fazer suas objeções à metodologia do cálculo. Foi desfiando o seu raciocínio, todo vermelho, entusiasmado. Foi aí que eu verifiquei que o raciocínio do Rangel era o mesmo do Simon Kuznets, que era um economista avançadíssimo para a época e que tinha refeito toda aquela calculeira. Eu perguntei: péra aí, Rangel, você leu o Kuznets? Quando ele me disse que não, eu quase caí no chão e fui atropelado. Ele tinha descoberto sozinho, de uma outra maneira, a mesma metodologia. Uma coisa impressionante. Só mesmo aquele sujeito para fazer aquilo”. BNDE: UM CASAMENTO PARA A VIDA TODA Existem poucas simbioses na História do Brasil iguais à de Ignácio Rangel e o BNDE. A sigla, na extrovertida gestão de Carlos Lessa, deveria até ganhar um “R” em homenagem a Rangel e desagravo pelo tímido reconhecimento da sua gigantesca obra. Antes que alguém faça o reparo, justiça seja feita, o BNDE(S) ainda é o ambiente onde flutua o espírito do velho mestre. Foi no banco que Rangel mandou bala, no sentido metafórico da palavra, em projetos fundamentais à industrialização brasileira. Formou gregos e troianos, com um catecismo de rigidez teórica e formação de esquerda, sem perder a ternura jamais. Foi gente de todo o tipo e credo ideológico, já que São Ignácio não expurgava nenhum “estrangeiro” do seu périplo pela conversão dos ímpios em desenvolvimento. Para se ter idéia, no INTELIGÊNCIA mesmo BNDE se encontravam a época José Clemente de Oliveira (um benedense purosangue), Luiz Oswaldo Aranha (que viria a ser anos depois presidente da Light), Gilberto Prado (que depois se envolveria em um controverso caso no Manufacturers Hanover) e Roberto Saturnino (que quebraria a Prefeitura do Rio de Janeiro). Um clube bastante eclético, como se vê. O matrimônio com o BNDE começa em 1955, quando Rangel é aprovado em concurso como qualquer outro postulante. Inicia nesse ponto uma das mais instigantes crônicas de convivências entre extremos da História das Terras de Vera Cruz: Rangel, à esquerda; e Roberto Campos, à direita — é bem verdade que, na época, nem tão à direita. Logo após São Ignácio prestar os exames, o então superintendente do órgão de fomento, Roberto Campos — depois autodenominado de Bob Fields ou Robertchov, dependendo da circunstância do gracejo — recebeu do DOPS a ficha do concursado, qualificando-o de comunista e inimigo da ordem social. Campos, em seu despacho, respondendo à informação, devolveu que “não se deve usar contra candidatos inteligentes os critérios policiais de julgamento ideológico de pessoas”. Em depoimento dado a um dos autores deste limitado ensaio, Campos, que foi um entusiasta de primeira hora de Insight-Inteligência, comentou sobre nosso herói: “Era um sujeitinho danado. Tinha aquelas manias dele, os tais ciclos, mas sempre vinha com umas idéias diferentes. Muito criativo. Apesar daquele esquerdismo fanático, não tinha nada a ver com o Juvenal Osório, Saturnino ou, mesmo depois, a Conceição Tavares, que eu acho que foi ele que levou para o banco. Ele era diferente”. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 99 I N S I G H T fato é que Rangel sempre tentou transformar em secundária as diferenças ideológicas colossais entre inteligências graúdas quando o prioritário era o interesse nacional. É antológica a sua carta de conciliação aos inconciliáveis Roberto Campos e Conceição Tavares, publicada na Folha de S. Paulo. Esse papel de alcoviteiro entre opostos não tinha nada de suave. Rangel era duro na cobrança. Achava, contudo, que a picuinha entre esquerda e direita tinha que ter um limite. Para que entendessem que ele estava fora dessa chacrinha, deixou para a posteridade a seguinte pérola: “Os problemas do Brasil são a desfaçatez da direita, a imbecilidade da esquerda e o balanço de pagamentos”. Que Deus o tenha! No período 1961/63, dividido entre o BNDE e o Conselho de Desenvolvimento da Presidência da República, cutuca duas casas de marimbondo, publicando um texto polêmico sobre “A Questão Agrária Brasileira” e o clássico “A Inflação Brasileira”. Apanha de tudo quanto é lado com ambos. No caso da questão agrícola, colecionou críticos até o fim dos seus dias. Ele entendia que a característica feudal da atividade no campo não era sinônimo de entrave ao desenvolvimento. E que esse mesmo desenvolvimento, formando uma moderna economia industrial, se encarregaria de eliminar a estrutura produtiva rural tão criticada pela esquerda. Rangel admitia a existência de grandes desequilíbrios de mão-de-obra e produção no campo, mas dizia que se tratava 100 Pró-Memória INTELIGÊNCIA apenas de um “problema agrícola”, por não exigir mudanças profundas na estrutura fundiária, e sim apoio aos agricultores via crédito e assistência técnica. Em meio ao debate emocional que incandescia o tema, no início dos anos 60, e posicionando-se literalmente na alça de mira de movimentos como o das Ligas Camponesas, sustentava que a solução para a crise econômica não passava pela reforma agrária, como prioridade, mas sim a criação de um sistema financeiro nacional. Tempos depois, em carta aberta a D. Helder Câmara, Rangel pede um pouco de bom senso e meditação ao grande paladino religioso. Em especial que ele reflita sobre duas precauções: “Privilegiar, para efeito de desapropriação, as áreas convulsionadas por conflitos, é o mesmo que promover novas invasões, expulsões e conflitos; de um modo geral, privilegiar certas áreas para efeito de desapropriação é, do ponto de vista do eventual comprador-desapropriador, pouco menos do que um suicídio, porque limita a oferta de terras, potenciando o processo de encarecimento”. Pena Rangel não ter podido esperar um pouco mais por essas plagas terrenas, para, mesmo não assistindo ao espetáculo do crescimento, deliciar-se, em pleno governo do Partido dos Trabalhadores, com o parto sem dor de uma “Reforma Agrária Privada”. Isso mesmo, é assim que se chama o projeto de produção de biodiesel a partir da mamona no Estado do Piauí, com a bênção de Lula, Dirceu, Dilma e Cia. Uma empresa privada compra a terra, assenta os colonos, cria as cidades ou núcleos, dá sementes, ensino, tecnologia e o escambau. Os colonos fazem sua agricultura de subsistência, mas têm também de plantar a mamona. Em 10 anos, recebem a terra e continuam com o plantio e a garantia da compra de toda a mamona. Quem diria! I N S I G H T O tratamento dado por São Ignácio à inflação e suas causas não foi menos explosivo. Rompeu com estruturalistas e monetaristas. E romperia também com os inercialistas se por acaso eles existissem naquela época, conforme veio a fazer depois. Para Rangel a ociosidade era não só o termômetro, mas também o problema. E era possível sim, crescimento econômico com controle da inflação. Segundo Bresser Pereira, “Rangel não estava fazendo apologia da inflação. A luta dele era pela liquidação de equívocos do processo inflacionário de então”. O debate emocional da época deixou passar praticamente desapercebido um trecho do livro que, como destaca Bresser, sinaliza para um fenômeno que anos mais tarde seria conhecido como “estagflação”. angel não suportava essa mania tupiniquim de pacotes, planos e outras mirabolâncias. Gostava de citar um amigo seu, um economista argentino, Ricardo Cibotti: “Vocês brasileiros entram na recessão e saem dela, ao passo que nós argentinos, ficamos morando dentro dela”. Mas citava de forma crítica, pois chamava de pausa para suspiros esses interregnos entre uma crise e outra, supostamente debeladas pelos tais planos. “É um elogio da incompetência”, dizia. O negócio de Rangel era identificar e capturar as poupanças potenciais e meter o pé no acelerador da produção. Portanto, que viesse o capital estrangeiro, privatização, o diabo. O que não poderia ficar era o desemprego, pois significava, vade retrum, a intolerável capacidade ociosa. Se estivesse hoje por aí, pegaria a foice ou o martelo para partir para cima do governo, já que nas principais regiões metropolitanas o desemprego é alarmante. A título de ilustração, o desemprego total (que INTELIGÊNCIA inclui o subemprego, o emprego precário e o desemprego por desalento) alcança 18% da População Economicamente Ativa em Porto Alegre, 20% em São Paulo, 21% em Belo Horizonte, 24% no Distrito Federal, 24% em Recife e 28% em Salvador, conforme os números mais frescos deste mês de dezembro de 2003. Em 1964, após a saída de Carvalho Pinto, é convidado pelo presidente João Goulart para ser ministro da Fazenda, convite que recusa. O golpe de Estado é uma bomba na cabeça e no coração de Rangel. Em 1965, é acometido de um enfarte e se licencia do BNDE. Sofre que nem um desesperado, pois lhe é proibida a produção de textos nesse período. Somente em 1968 é que volta a escrever normalmente. Logo após, retorna também ao BNDE, mas em condições especiais, porque os médicos nunca lhe deram alta. O caboclo raçudo dispensa as opiniões médicas e continua no BNDE até a véspera do Governo Collor, mesmo tendo se aposentado em 1976. Era o BNDE ou a morte. NICOLAI NOSTRADAMUS, O MARXISTA MÍTICO Quando todos achavam que Rangel simplesmente antecipara sua aposentadoria, eis que ele reaparece em 1972, em uma reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em São Paulo. O Brasil estava em plena euforia do chamado “milagre econômico”. E vai Ignácio desafinar o coro dos contentes: divulga um artigo prevendo uma grande crise mundial em breve. Um ano depois, estoura o primeiro choque do petróleo, e nunca mais a economia do planeta seria a mesma. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 101 I N S I G H T É nesse período em que Rangel desenvolve uma intrincada meta-teoria a partir de uma espécie de fixação no pensamento do economista marxista russo, Nicolai Kondratieff, uma espécie de Nostradamus materialista, que construía a partir de fatos passados um puzzle de etapas históricas, situações limites e prazos de duração. Kondratieff começou seu móbile em 1926, dividindo em ciclos a dinâmica do capitalismo a partir de 1780. O russo determina uns tais ciclos longos, que duram 55 anos. E a História é engessada nesses intervalos. Rangel concluiria que depois de 1963 já estavam sendo emitidos sinais do fim do período de bonança pós-Segunda Guerra Mundial. E que o mundo estava prestes a voltar a um ciclo semelhante ao verificado em um período, no início do século, que incluiu o crack da Bolsa de Nova York e a recessão mundial. ais recentemente, lá pelos idos de 1979, estipulou que faltavam 15 anos para o Brasil sair de um ciclo ascendente e entrar numa fria. Sabe-se lá se por cientificidade do tal método ou coincidência, o fato é que acertou de novo. Sobre a tara kondratiffiniana de Rangel, viria a falar muitos anos depois o economista Delfim Netto: “Não concordava com algumas de suas idéias, tais como a extravagância dos ciclos de Kondratieff. Acho que esse negócio tem um pouco de ilusão de ótica, de artefato estatístico. Mas eu respeito o Rangel como um belíssimo profissional”. 102 Pró-Memória INTELIGÊNCIA Delfim e outros tantos economistas oficiais do pós-64 nunca fizeram menção a Rangel. Só lembraram do caboclo para fazer média em seu necrológio Delfim e outros tantos economistas oficiais do pós-64, conforme recorda Bresser Pereira, nunca fizeram menção a Rangel. Só lembraram do caboclo para fazer média em seu necrológio. “Eles jamais reconheceram em público o valor do pensamento de Rangel — diz Bresser. Lembro-me que, em 1964, seu livro ora reeditado era criticado em um seminário do professor Delfim Netto, do qual participei. E, no entanto, assim que assumiu o Ministério da Fazenda (em 1967) a primeira coisa que fez, seguindo a orientação de Rangel, foi diagnosticar a inflação brasileira como de custos, afrouxar os controles de crédito, permitir um aumento moderado dos salários e passar a controlar os preços através do Conselho Interministerial de Preços. Como o ajuste fiscal fora completado entre 1964 e 1967, os resultados em termos de redução da inflação e retomada do desenvolvimento foram imediatos”. UM COMUNISTA PRIVATISTA A combinação de disparada dos juros internacionais, alta nos preços do petróleo e recuo nos investimentos estrangeiros, nos anos seguintes, foi fatal para a capacidade de investimento do Estado no Brasil. Rangel percebeu, em 1978, que o país estava mergulhando em uma crise ainda mais profunda. É dessa fase uma das suas mais provocativas teses, que viria a ser, para variar, premonitória, mas que irritaria, como nunca, direita (notadamente aquela locupletada nos governos militares), esquerda, centro e extraterrestres. I N S I G H T “Temporariamente, o influxo de recursos externos e o crescimento dos recursos fiscais (e parafiscais) permitiram fazer alguma coisa para promover a expansão dessas atividades, mas é claro que esse tempo passou, porque os recursos externos começaram a escassear, o mesmo acontecendo com os recursos fiscais, dado que o sistema começa a não funcionar tão bem quanto antes”, escreveu, no posfácio da terceira edição de A Inflação Brasileira. A surpreendente (na época) proposta de Rangel era que o Governo recorresse a uma lei de concessões para garantir os recursos necessários aos investimentos em infra-estrutura e serviços públicos. Com isto, acreditava, o Estado incentivaria um novo ciclo de expansão, já que o setor privado se via às voltas com a falta de oportunidades e imensos recursos para investir. A idéia era uma heresia, ainda mais vindo de um dos idealizadores, no segundo Governo Vargas, de projetos que resultaram na criação da Petrobras e da Eletrobrás. ra uma espécie de privatização do “B”, antes mesmo de existir a privatização do “A”. Rangel só não abria mão do controle do Estado, permitindo a exploração de tudo quanto fosse serviço público pelo setor privado por um prazo acordado em contrato. Era a antevisão do que mais tarde, no governo da Sra. Margaret Thatcher viria a ser o papel desempenhado pelas golden share. “A concessão de serviços públicos, que no início dos anos 90 se tornou ordem do dia da economia brasileira, conjuntamente com a privatização, é a solução antevista por Rangel já em 1978. Sua extraordinária argúcia e inventividade mais uma vez se comprovavam”, comentou Bresser Pereira. INTELIGÊNCIA “Ele passou a defender a privatização de empresas estatais com um argumento interessante: o único meio de se obter financiamento seria dar em garantia patrimônio físico. Enquanto essas empresas ficassem sob gestão governamental, o patrimônio físico não estava sujeito à cessão. O único jeito de viabilizar garantias satisfatórias para a comunidade financeira internacional seria privatizá-las pelo regime de concessão, tese absolutamente moderna. Hoje já não se usa mais essa justificativa de garantia. Usam-se outras justificativas: a escassez de investimentos, a necessidade de maior eficiência, a necessidade de o governo se concentrar em suas funções fundamentais etc.”, tirou sua casquinha o kryptoadversário Roberto Campos, em depoimento ao jornal do Corecon-RJ, em 1997. Raphael de Almeida Magalhães, que participou lá pelo início dos anos 80 de um seminário na Unicamp com Rangel, no qual estavam presentes Maria da Conceição Tavares e o ainda engajado sociólogo Fernando Henrique Cardoso, lembra que o novo ideário privatizante do caboclo constrangeu a todos. “Ele veio com uma idéia curiosa, que misturava o fanatismo de Bulhões pelo mercado de ações, a obsessão privatista do Campos e uma rentrée do Estado em novos setores, deixando de lado aqueles já consolidados. Tinha uma certa lógica. O Estado saía das áreas já em pleno funcionamento. Vendia tudo em bolsas de valores, pulverizando a propriedade, e pegava o dinheiro e aplicava tudo de novo em setores dinâmicos nos quais era necessário sua participação. O Estado saía, para entrar de novo”. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 103 I N S I G H T Arthur Candal assinala que, com sua nova fúria privatista, Rangel acabou sendo congelado por todos. Escreveu anos sobre o assunto antes que alguém manifestasse uma palavra sobre a questão. Depois, a febre da desmobilização de ativos pelo Estado tornou-se internacional, e, vindo de fora, todos se esqueceram que foi dele a semente. “Romper com a hegemonia do Estado — diz Candal — era romper com a doutrina. A privatização era romper com a doutrina. O Rangel teve uma bruta coragem. Entre a verdade e a justiça, ele era daqueles que ficava com a verdade”. É mais provável que Rangel tenha rompido com a doutrina, mas é impossível imaginar que tivesse intenções sequer subreptícias de romper com o Estado. Duro de roer, Rangel não conseguia enxergar desenvolvimento sem um Estado forte. Perguntado sobre a coragem do caboclo ao mudar de posição em favor da privatização, Delfim Netto dá a noção exata do problemão que era mexer com os brios do velho mestre. “Vocês não sabem o que significa essa posição do Rangel, porque vocês não conheceram o Rangel quando ele era o Rangel com “R” maiúsculo”. O que São Ignácio certamente queria, era sim reinventar as condições de inserção do Estado na produção. Aliás, a palavra produção deve ter sido a primeira a ser pronunciada por um Ignácio criança. É seu primeiro e inegociável mandamento. Antônio Barros de Castro lembra uma estereotípica história vivida junto com o caboclo: “Logo depois que o Rangel foi conhecer a União Soviética, eu fui almoçar com ele. Lembro-me que fomos comer lá no Adegão Português, em São Cristóvão. Ele tinha ficado uma parte do tempo na Polônia. Estava encanta- 104 Pró-Memória INTELIGÊNCIA do com o planejamento, os métodos, a produção, mas os poloneses só queriam mostrar coisas medievais, como arte, arquitetura, coisas que para o Rangel não tinham importância. Ele contou então que propuseram mostrar a ele a Cracóvia, que é um dos tesouros da Humanidade. E o Rangel: que Cracóvia que nada, eu quero é ver a siderurgia”. São Ignácio não levaria o susto que Jean Paul Sartre tomou ao chegar na Polônia e ver os cartazes do velho realismo-soviético afirmando: “A tuberculose prejudica a produção”. Rangel, certamente, assinaria embaixo. om a entrada nos anos 90, Rangel foi perdendo cada vez mais espaço, e sumindo, sumindo, ficando igualzinho aquela sua voz de taquara-rachada, meio assobiada e quase inaudível. Dava orgulho vê-lo, nessa época, em pé, na rua das Laranjeiras, esperando o ônibus, para participar de debates nas entidades associativas dos economistas com garotos que mal sabiam quem ele era. Rangel em pé, velhinho, esperando o ônibus era a própria essência da integridade do servidor público. Merecia uma estátua no local. Sua biotipia lembrava algo assim como uma mistura de Cantinflas com o mestre Ioda, de George Lucas, em Guerra nas Estrelas, que Rangel não chegou a ver. Nenhum charme, nenhum glamour. Não gostava de eventos sociais, festas, agitos. Tinha um apartamento completamente desorganizado, abarrotado de livros, onde dedicava-se, espartanamente, a ler, ler, ler. Nunca freqüentou a esquerda ipanemense, nem mesas de bares, até porque não bebia. Ou aliás, segundo Barros de Castro, bebia sim, “mas somente as forças produtivas”. Viveu para aquilo, daquilo, somente pela motivação daquilo: o desenvolvimento do Brasil. I N S I G H T alvez por não ter feito do espetáculo o ápice da sua contribuição, achar Rangel por aí, virou uma saga, um épico. No Dicionário Histórico-Bibliográfico Brasileiro, compêndio monumental da Fundação Getúlio Vargas, não se encontra nos verbetes de Ignácio, nem Rangel, muito menos Mourão. Simplesmente não está lá. Os tempos explicam. É uma era saárica, desértica de paixão, imune a utopias e que relegou o desenvolvimento a uma lembrança jurássica de um tempo de escolásticos cheios de esperança. Mas ninguém melhor para explicar Rangel do que o próprio Rangel, que fecha esses alfarrábios mostrando o porquê do contradito, a liberdade de pensamento e a ousadia de mudar de opinião são sempre uma vitória contra os fundamentalistas em eterna prontidão: “Estes setores (ligados ao grande capital) conseguiram... a inesperada adesão do economista Ignácio Rangel, no tocante à privatização dos serviços públicos. (Voz da Unidade, 25-31/ 05/85) Primeiramente, Voz da Unidade não faria nenhum favor se acrescentasse que Ignácio Rangel é um economista marxista. Mas está no seu direito, ao omitir este detalhe. Num ponto, porém, se equivoca: quanto ao inesperado, novedio, da “adesão”. Eu não faço, nem nunca fiz, dúvidas quanto ao regime, ou melhor, a formação socioeconômica brasileira atual e ainda para futuro que meus já provectos anos me permitirão esgotar: o Brasil é uma dualidade, na qual o capitalismo representa o pólo avançado, porque o feudalismo — não como sobrevivência, mas como pólo ainda hegemônico — aí está presente. E presente, inclusive, em certas instituições estatais, carregadas de significado précapitalista. INTELIGÊNCIA Como internacionalista — sem prejuízo do meu patriotismo brasileiro — sinto-me solidário com o socialismo, à medida que este é o grande propugnador da paz. E quero que o capitalismo brasileiro — na iminência de tomar ao latifúndio feudal a hegemonia sobre a sociedade brasileira, o único significado inteligível dessa “Nova República” — seja próspero, porque isso o interessará na paz. Ou é mesmo verdade, segundo a tradição leninista, que a luta pela paz é o caminho forçoso do socialismo, ou este não me interessa, porque, fora da paz, não há futuro, nem socialista, nem qualquer outro. O futuro é, afinal, tempo do homem. E os netos que continuam a chegar, assim como os bisnetos que não devem tardar, exigem que a nação onde eles deverão viver seja uma nação próspera. Não uma nação utópica, postergada para futuro imprevisível, mas sua nação concreta, que é o desdobramento da nossa”. email: f a r o @ i n s i g h t n e t . c o m . b r email: [email protected] REFERÊNCIAS BIELSCHOWSKY, RICARDO. PENSAMENTO ECONÔMICO BRASILEIRO O CICLO IDEOLÓGICO DESENVOLVIMENTISTA. EDITORA CONTRAPONTO, 3ª EDIÇÃO, 1996. BRESSER PEREIRA, LUIZ CARLOS; REGO, JOSÉ MÁRCIO; UM MESTRE DA ECONOMIA BRASILEIRA: IGNÁCIO RANGEL. REVISTA DE ECONOMIA POLÍTICA , N 13, MARÇO 1993. BRESSER PEREIRA, LUIZ CARLOS; ARTIGO NA FOLHA DE S. PAULO, 7 DE MARÇO DE 1994. CANO, WILSON. PREFÁCIO DE CICLO, TECNOLOGIA E CRESCIMENTO (EDITORA HUCITEC, 1980). FOLHA DE SÃO PAULO, ENTREVISTA COM FRANCISCO DE OLIVEIRA, 22 DE SETEMBRO DE 2003. FOLHA DE S. PAULO, ARTIGOS DE IGNACIO RANGEL, 1979/1987. GASPAR, CARLOS. IGNÁCIO RANGEL, UM GRANDE BRASILEIRO, CRÔNICA DE 20.02.2000. INFORME CORECON (RJ), EDIÇÕES DE OUT-NOV 1990, DEZ-JAN/ 1991, MAR/1994 E DEZ/1997. RANGEL, IGNACIO. CICLO, TECNOLOGIA E CRESCIMENTO (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 1982). RANGEL, IGNACIO. A INFLAÇÃO BRASILEIRA (EDITORA TEMPO BRASILEIRO 1963; BRASILIENSE, 1978; BIENAL, 1986). RANGEL, IGNACIO. A QUESTÃO AGRÁRIA BRASILEIRA. (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, CONSELHO DE DESENVOLVIMENTO, 1962). RANGEL, IGNACIO. A DUALIDADE BÁSICA DA ECONOMIA BRASILEIRA (ISEB, 1957). OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 105 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Preâmbulo aos poemas de Antonio Porto Gonçalves Com todo respeito, mas inquérito relâmpagoooooou confirmoOOOU: a opinião, pública ou privada, não importa, desde o samba-desespero “atrás da porta”, (adorooooooou) que oPToooooou por suspiros (poéticos) mais do que por modelos ECONOMÉTRICOS 106 Poemas I N S I G H T INTELIGÊNCIA SUPER HOMEM (Um momento de imortalidade arrogante) Aquele caminhão de areia, cheio até o topo, desgovernou-se e me esmagou contra o muro. Bateu fortíssimo, tão forte que o muro caiu, morreu o chofer e amarrotou a minha roupa. Você pensa que me destrói, vai embora, atropela, dói. Não, nunca, nada vai atingir só a roupa, e vou me despir. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 107 I N S I G H T INTELIGÊNCIA CONSULTANDO DICIONÁRIOS No Aurélio, paixão: s. f., desejo mui louco por alguém que se conhece pouco. No Aurélio, amar: v. t., ser cúmplice todo de alguém que se conhece muito. No inglês, love é nome além de verbo. Passion e love, nomes, são it, nem masculinos nem femininos. Neutros! Mas o porta-aviões é she! Ou navio de guerra será he? Língua estranha, vontade de rir! 108 Poemas I N S I G H T INTELIGÊNCIA A RAZÃO CORRIGIDA (Os “admiráveis” racionalistas. A lógica é útil se houver sido testada; senão é utópica). Um litro de água ferve a 100º. Logo, meio litro a 50º e dois fervem a 200º. Eis a regra de três, que conta admirável, tão simples, confiável! Esta matemática, idéia platônica, gera o inexistente bem logicamente. Penso, logo existo? Pois bem! Sinto, logo existo! Só a sensação faz a correção: meio litro a 100º, e dois a 100º também! OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 109 I N S I G H T INTELIGÊNCIA COMO ÉS? (A pergunta de sempre e uma boa resposta) Há os que desejam o mudar do vento, os que se queixam quando o vento muda, os que se opõem à mudança do vento, os que convivem co’ o vento mutante, e os que provocam mutações no vento, vendavais e calmarias. Vida é vento, vento é vida. Diga então como és, querida; de um a cinco, qual serias? Um a cinco? Nenhum, diria. Ou melhor, todos, pensaria. A pessoa unidimensional é bem próxima do animal. 2ª voz (feminina) O radical escolhe um só. Eu? Ah... eu provoco e desejo, me oponho, convivo e me queixo. De tudo um pouco, pouquin’ só. 110 Poemas I N S I G H T INTELIGÊNCIA SUADOURO (Melancolia e saudades nas praias de Salvador) O mar joga várias coisas nas praias; madeiras, latas, garrafas se espraiam, aqui e ali, alguns cascos destruídos, ou mesmo um grande barco carcomido. Mas muito, muito mais do que ejetar, o mar se especializa em afundar; enormes navios de aço, titânicos, repousam nas abissais oceânicas. O humano coração é feito o mar, afunda as dores, não é de expulsar. E quando a emoção louca foi esquecida, as águas turvas substituídas pela clareza, pela certeza, um súbito encontro, tórrido evento, agita, ativa mil correntezas. Então volta à tona, das profundezas, o amor, este imortal sentimento. Vivendo, cicatrizes vão acumulando. Doendo, com o tempo sempre mudando. No fim só há dor — suadouro. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 111 I N S I G H T INTELIGÊNCIA FAZER E SONHAR (Verbos básicos, para momentos diferentes) Os governos fazem o que é possível. As oposições sonham o impossível. Logo, quando trocam de posição, é incrível, mudam de opinião. Não, nunca é possível o impossível. Mas já delirei ser mosca espiã em local proibido, inacessível, estava escondido atrás da maçã. Fazer e sonhar tem seus tempos certos. Um e o outro também, se for o momento. Você eu faço, amo quando estou perto. E se não puder tocar, ouvir, vê-la, então sonharei; distante no tempo, no espaço, só assim em mim posso tê-la. 112 Poemas I N S I G H T 114 Escritório Nacional de Achados e Perdidos INTELIGÊNCIA I N S I G H T INTELIGÊNCIA Da promessa integradora à insegurança socioeconômica ADALBERTO MOREIRA CARDOSO SOCIÓLOGO Em certos meios ainda há alguma controvérsia sobre o caráter (em sentido macunaímico) da última década do século passado no Brasil. Mas analisando as coisas sob a ótica dos trabalhadores e das instituições que os representam, eu não tenho dúvidas. Vivemos uma década neoliberal pontuada por breve recaída desenvolvimentista no período Itamar Franco. Mas Itamar, como se sabe, legou-nos sua antítese, o governo de Fernando Henrique Cardoso. O espírito da época foi neoliberal. o ponto de vista dos trabalhadores, neoliberalismo quer dizer insegurança socioeconômica. Insegurança quanto às perspectivas de manutenção do emprego, para começar. Taxas elevadas de desemprego e alta rotatividade são uma combinação explosiva para as classes que vivem do trabalho. O medo de perder o emprego reduz sua disposição para a ação coletiva, afetando o poder dos sindicatos. O desemprego aumenta a competição entre os próprios trabalhadores pelos postos de trabalho existentes, o que tem efeitos imediatos sobre os salários. E então temos a insegurança quanto às chances de obtenção de renda de qualquer tipo, por causa do desemprego, da informalidade e do aumento das ocupações precárias. Mas também por causa das novas relações de trabalho no mundo globalizado. A Petrobras, por exemplo, terceirizou atividades de funcionamento de suas plataformas marítimas, desde a limpeza até a manutenção de equipamentos. A Petrobras contratava empreiteiras que contratavam trabalhadores num mercado potencialmente qualificado. Os homens (e eram homens em sua esmagadora maioria) embarcavam em helicópteros ou lanchas, passavam dezoito dias ou mais nas plataformas e, quando voltavam, muitas vezes a empresa que os contratara já não existia. Desaparecera sem deixar vestígios, ficando os trabalhadores sem seu salário. A Petrobras tomaria algumas medidas para evitar esse tipo de falOUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 115 I N S I G H T 116 Escritório Nacional de Achados e Perdidos INTELIGÊNCIA I N S I G H T catrua, mas relações de desconfiança e insegurança como essa se tornaram corriqueiras mesmo no mercado de trabalho dito “formal”. insegurança se estende às chances de uma vida digna no futuro. Sem emprego e sem renda o trabalhador não poupa. Sem emprego formal ele não contribui para a previdência. A velhice é uma zona cinzenta, insegura. E há também a insegurança quanto à representação de interesses. Os sindicatos estão mais fracos do que nunca no Brasil. Estão mais pobres, tiveram que negociar perdas de conquistas contratuais arrancadas a fórceps nos anos 1980, viram suas bases de apoio reduzirem-se brutalmente em razão do crescimento da informalidade e do desemprego. E perderam legitimidade junto aos seus representados. A década neoliberal, ao gerar insegurança socioeconômica, acertou em cheio o poder sindical, trazendo-o a uma encruzilhada de novo caráter no Brasil. Essa encruzilhada pode ser resumida em três enunciados: I. Em primeiro lugar, pela primeira vez desde a intensificação do processo de urbanização e industrialização que, em 50 anos a partir de 1940, mudou a face da sociedade brasileira de agrária (em que a agricultura ocupava 70% da força de trabalho) para urbana (em que as cidades passaram a acolher essa mesma proporção de trabalhadores), o setor industrial perdeu seu papel de segmento gerador de empregos, passando a desempregar de forma contínua e sustentada. O sonho desenvolvimentista dos anos 1950 a 1970, que reservava às cidades a função de acolher os egressos do campo, sujeito ele mesmo a revoluções tecnológicas de processo e produto, sonho posto entre parênteses nos anos 1980 em razão da crise geral, tornou-se um pesadelo nos anos 1990. A indústria passou a desempregar intensamente, mas os demais setores urbanos não geraram empregos suficientes para acolher os redundantes da reestruturação industrial, simplesmente porque a economia parou de crescer, ou fê-lo a taxas inferiores INTELIGÊNCIA ao que seria preciso para gerar os empregos necessários tanto aos novos entrantes no mercado de trabalho quanto aos excluídos da reestruturação econômica. Por outras palavras, a década de 90 rompeu com algo que poderíamos denominar a “promessa integradora” do mercado formal de trabalho. 1 Segundo essa promessa, presente no discurso desenvolvimentista desde sempre,2 a economia em crescimento constante incluiria, com o tempo, todos os assalariados em relações de emprego reguladas pelo poder público, garantindo assim não apenas direitos trabalhistas, mas também direito à representação de interesses em negociações coletivas, já que os sindicatos representam os trabalhadores na base territorial, mesmo contra sua vontade. Havia razões objetivas para a crença na promessa integradora do mercado formal urbano. Em 1976 os trabalhadores titulares de direitos, porque ocupantes de empregos registrados em carteira, eram 61% da força de trabalho no país3. Esse foi o ápice do processo de inclusão pelo assalariamento regulado cujo crescimento, processo que pode ser rastreado, com alguma dificuldade, é certo, pelo número de carteiras profissionais emitidas pelo Ministério do Trabalho ao longo das décadas. Seu crescimento é exponencial a cada ano. Para que se tenha uma idéia dos montantes portentosos desse processo, em 1940 a População Econômica Ativa (PEA, ou trabalhadores de dez anos ou mais que estavam empregados ou procurando emprego) era de quase 15 milhões de pessoas. Até ali, o Ministério do Trabalho tinha emitido não mais do que um milhão de carteiras de trabalho. Em 1950 a PEA montava a 17 milhões, mas o número de carteiras emitidas já estava em 3,5 milhões. Ou seja: para um crescimento de 16% na PEA, o número de trabalhadores documentados aumentou mais de 300%. É claro que a documentação não quer dizer que as pessoas estivessem empregadas. Mas o importante para o argumento é que os trabalhadores aderiram à promessa integradora representada pela carteira. Isso seguiu assim pelas décadas, até que, em 1976, o total de carteiras emitidas ultrapassou os 40 milhões de unidades, para uma PEA de 39 milhões de pessoas. O Gráfico 1 mostra os dados. Note-se que, a partir de 1960, as curvas do acumulado na emissão de carteiras e da evolução da PEA vão encurtando a distância com os anos, OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 117 I N S I G H T até que uma (carteiras) suplanta a outra. Havia, efetivamente, uma promessa integradora associada ao trabalho regulado, e essa promessa, e também as expectativas que ela gerou entre os trabalhadores urbanos, ficou gravada no fato de que os assalariados procuraram o registro profissional de forma crescente, em proporção superior ao crescimento da PEA. Além da promessa integradora, o emprego registrado no Brasil representou, para parcelas crescentes dos trabalhadores urbanos (e, a partir da década de 70, também para os trabalhadores rurais), um ponto de referência normativo para a estruturação das expectativas individuais e coletivas quanto aos padrões do que se poderia denominar “mínimos civilizatórios”, aquém dos quais o mercado de trabalho não poderia operar de forma legítima. Refiro-me ao salário mínimo, ao direito a férias regulares, ao descanso semanal remunerado, a um abono de Natal (igual ou próximo ao salário percebido), em suma, padrões que mimetizavam de algum modo os direitos legais do mercado formal e que passaram a operar, também, em segmentos do mercado assalariado informal, como uma espécie de acordo tácito entre empregadores informais e assalariados sem carteira, acordo que tomava esses direitos como justos. Mesmo que nunca se tenha universalizado, o mercado formal estruturava um conjunto de relações sociais e econômicas que ocorriam ao seu largo, pela razão mes- INTELIGÊNCIA ma de que os assalariados urbanos esperavam, cedo ou tarde, integrar-se a ele. Em suma: os trabalhadores acreditavam que o mercado formal os acolheria em algum momento, e esse é o aspecto importante a se reter: os anos 1990 romperam definitivamente a promessa, ao desestruturar o mercado formal de trabalho e tornar minoritário o emprego registrado. Com isso, este perdeu força como organizador do mercado informal, minguando seu papel de parâmetro para a articulação das expectativas dos trabalhadores quanto às chances de melhoria de vida. II. Em segundo lugar, o Estado brasileiro deu uma virada de 180 graus em suas relações com a economia. E não se está falando aqui apenas do fato de que ele se desfez de propriedades. Sem exageros, o que se deu foi um processo mais geral de despolitização das relações econômicas e da sociabilidade capitalista. Elemento certamente central desse processo tem a ver com a desobrigação do Estado brasileiro em relação a aspectos da vida social antes pensados como de sua responsabilidade. O desenvolvimentismo como razão de Estado, sob Vargas e sob os militares mais fortemente, mas também sob Juscelino ou Sarney, implicou no recorte das relações econômicas enquanto intrinsecamente politizadas, em diversos sentidos: (i) o desenvolvimento dos capitais pri- GRÁFICO 1 Evolução da PEA e do número de carteiras de trabalho expedidas pelo Ministério do Trabalho: Brasil, 1940-1976 F ON T E: IBGE: E S TA TÍSTICAS D O S É C U L O XX, SEÇÃO “TRABALHO E SINDICALISMO” DO CD-ROM. 118 Escritório Nacional de Achados e Perdidos R IO DE J ANEIRO , IBGE, 2002. I N S I G H T vados deu-se por acesso direto ao fundo público que, por escasso, não tinha como servir a interesses universais (Oliveira, 1988). Em conseqüência, a sobrevivência mesma da grande empresa capitalista nacional dependia fortemente da capacidade das burguesias angariarem benesses em sistemas relativamente clientelistas de acesso àquele fundo (Salum Jr., 1996). Essas relações de simbiose entre burguesias nacionais e círculos burocráticos estatais, é bom lembrar, foram estudadas pelo então sociólogo Fernando Henrique Cardoso sob a rubrica dos “anéis burocráticos”, onde a gestão da coisa pública confundia-se com os interesses privados. Estado e economia, como dito antes, apareciam em conexão causal, e não havia como pensar a configuração econômica da nação fazer referência direta às externalidades impostas pela intervenção do Estado; (ii) o Estado empreendedor cumpriu a tarefa de dar condições infra-estruturais ao movimento dos capitais privados, tanto no sistema financeiro quanto no setor produtivo, urbano ou rural. Os grandes investimentos em serviços de transporte e comunicação, na indústria pesada e na geração e distribuição de energia a preços subsidiados são exemplos salientes. Foi fundamental, também, o papel dos bancos estatais no financiamento do empreendimento privado, nos âmbitos federal e estadual igualmente, e incidindo sobre a agricultura, o comércio, os serviços e a indústria. A dívida externa federal, que estrangulou o desenvolvimento na década de 80, como é sabido, tem sua origem mais conspícua na “compra”, pelos militares, da dívida privada num momento em que as taxas de juros internacionais cresciam exponencialmente (Appy, 1993). O desenvolvimento como razão de Estado imiscuiu de tal modo os interesses privados com o Estado, que se tornou difícil distinguir “bem público” de “acumulação capitalista”; (iii) mais do que externalidades em sentido econômico, o papel do Estado na regulação das relações de classe adquiriu peso considerável na história moderna do país. O corporativismo varguista será, talvez, sua expressão mais saliente.4 Não apenas os parâmetros dos encontros entre capital e trabalho no mercado, dando-se no interior das estruturas normativas estatais, mas sobretudo a regulação do mercado de trabalho, conferiram a marca específica à politização das relações de classe no INTELIGÊNCIA Brasil. Para dizer de outro modo, a CLT desmercantilizou a força de trabalho (no sentido de Offe, 1984), e juridificou as relações de classe (no sentido de Habermas, 1987), ao mesmo tempo em que encarava como razão de Estado a intermediação do conflito de interesse. Esses elementos vigoraram com maior ou menor intensidade até o governo Itamar Franco, e as câmaras setoriais talvez tenham sido o último suspiro, na década de 1990, de uma certa concepção de Estado como aquele que assume como seus os riscos da acumulação e da regulação das relações de classe. década neoliberal reverteu, um a um, todos esses vetores de politização da economia. Em lugar de imposição de externalidades a setores econômicos específicos, de patrocínio da acumulação via subsídios de toda sorte, o que se viu foi a abertura comercial desregrada, sem políticas industriais de preservação do que se havia acumulado ao longo de décadas (o chamado “choque competitivo” que encheu os olhos dos economistas dos dois governos tucanos). Em lugar de investimentos em infra-estrutura, privatização das empresas antes patrocinadas pelo desenvolvimentismo, repassadas a preços subsidiados aos capitais internacionais, porém com financiamento público do BNDES. O Brasil, como disse Maria da Conceição Tavares em um programa de televisão, foi vendido na bacia das almas. E em lugar de intermediação do conflito de interesses, transferência dos embates para o âmbito das relações privadas. Isso remete ao último enunciado. III. Em terceiro lugar, o Estado liberou as amarras que atavam a ele o sindicalismo, impedindo que operassem, na prática, os mecanismos que tornavam a organização sindical dependente dos humores da política. Refiro-me à revogação dos preceitos legais que davam ao Ministério do Trabalho o poder de registrar e reconhecer os sindicatos, de regular seus estatutos, fiscalizar suas contas e intervir nas eleições sindicais, mecanismos utilizados sem peias nos mais diferentes momentos da vida política brasileira até OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 119 I N S I G H T 120 Escritório Nacional de Achados e Perdidos INTELIGÊNCIA I N S I G H T 1988. Ora, a liberação do controle político deu-se paralelamente à manutenção do poder dos sindicatos arrecadarem impostos como se fossem agências estatais, e dispor desses impostos sem prestar contas de qualquer natureza a qualquer poder público, ou mesmo a seus representados. O que se fez foi, precisamente, desregular a competição entre elites sindicais e lideranças trabalhistas, liberadas para fundar sindicatos a seu livre arbítrio aproveitando-se dos interstícios e silêncios da CLT, e tendo para tal o poder de taxar aqueles que supostamente representam. A conseqüência foi a fragmentação sem precedentes do sindicalismo no país, que chegou ao final da década de 90 com mais de 16 mil instituições reconhecidas e outros milhares em processo de reconhecimento. Ou seja, a estrutura sindical corporativa, que garantiu a rápida reestruturação do sindicalismo em nível nacional nos anos 1980, revelou-se um Frankenstein incontrolável na década seguinte, já que permitiu a fragmentação de bases sindicais antes solidamente protegidas por lei. O que é importante para o argumento aqui desenvolvido, porém, é que os sindicatos não puderam recorrer ao poder público para que regulasse esse processo, impedindo a fragmentação, porque o Estado brasileiro, sob Fernando Henrique Cardoso, abdicou inteiramente de seu papel de regulador da instituição sindical, encarada como da ordem das relações privadas entre capital e trabalho, porém e paradoxalmente, com direitos de poder público, já que cobra impostos. sta é, por si mesma, uma reversão decisiva na natureza das relações de classe em nosso país. O caráter liberal das políticas públicas na década neoliberal trouxe de volta a mercantilização da força de trabalho, ou a reprivatização das relações de classe. Isso se deu, porém, não exatamente pela flexibilização do código do trabalho existente, a CLT, mas sim pela extensão dos contratos ilegais de trabalho a áreas antes imunes a relações informais de emprego, como a indústria e os serviços modernos. A remercantilização das relações de trabalho significa, também, que o Estado não é mais o intermediário no INTELIGÊNCIA conflito de interesses entre capital e trabalho. Ele passa a ser, apenas, um intermediário de grande importância nos conflitos individuais de direito, crescentes num ambiente de aumento do desrespeito à lei pelos empregadores e de aumento, entre os trabalhadores, da sensação de que os patrões estão flexibilizando a legislação a “sangue-frio”, simplesmente deixando de pagar direitos trabalhistas durante a vigência dos contratos. O resultado, como pude demonstrar em outro lugar5, é a explosão de demandas na Justiça do Trabalho, que chegaram a dois milhões de processos no ano 2000. Ora, a juridificação das relações de classe é algo muito diferente de sua politização. O Judiciário individualiza as demandas trabalhistas, mesmo quando impetradas por grupos de trabalhadores. A associação, que nesse caso ocorre é em torno de um advogado que, por expertise profissional, domina os meios de acesso ao trâmite processual e, nesse sentido, é tecnicizada, liberta de qualquer veia política. Esse tipo de associação não constitui identidades coletivas, mas apenas um grupo efêmero que, tendo seus direitos conquistados ou perdidos, desfaz-se nas agruras do desemprego, da informalidade ou da atomização do mercado de trabalho. O Estado ainda é o avalista do direito que se busca, mas apenas à medida que é o guardião em geral de direitos civis ou de cidadania. Relações de classe juridificadas são relações de classe despolitizadas. Estes três enunciados emolduram o ambiente da crise de representação do sindicalismo brasileiro. Para dizer numa palavra, os sindicatos deixaram o centro da cena política. Seu papel de articuladores de identidades coletivas foi fortemente eclipsado pela avalanche neoliberal, a ponto mesmo do sindicalismo perder um de seus capitais mais preciosos, acumulado ao longo dos anos 1980: o de ser uma instituição confiável para a maioria dos brasileiros. Em 1990, auge da organização sindical dos trabalhadores, quase 60% dos eleitores nacionais consideravam os sindicatos instituições confiáveis, segundo pesquisa do Datafolha. Em 2001 esse percentual tinha caído para 27% nas regiões metropolitanas pesquisadas pelo People’s Security Survey, da OIT6. Todas as instituições sociais e políticas foram afeOUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 121 I N S I G H T 122 Escritório Nacional de Achados e Perdidos INTELIGÊNCIA I N S I G H T tadas, mas os sindicatos estão entre as que mais perderam legitimidade, o que ocorreu também entre seus adeptos, já que apenas 37% dos filiados confiavam em sua instituição de representação em 2001. o âmbito do mercado de trabalho as coisas não andaram bem tampouco. Apesar da capacidade de mobilização de algumas categorias importantes, pesquisas do Dieese mostram que negociações coletivas na segunda metade da década de 90 foram, com exceção da indústria, em geral desfavoráveis aos trabalhadores, no sentido de que uma proporção considerável dos sindicatos não conseguiu repor a inflação passada. Os segmentos de melhor desempenho foram os serviços e a agricultura, com 51% e 67% de ganhos superiores à variação do INPC em 1997, proporção que recuou a 48% e 36% respectivamente em 1998. 7 E na indústria a situação foi pior: as perdas salariais ocorreram em 50% das negociações de 1998 e em 60% das de 1997. Do mesmo modo, se em 1995 e 1996 a grande maioria dos sindicatos de algumas categorias constantes do banco de dados do Dieese conseguiu reajustes reais dos pisos salariais pagos, em 1997 52% tiveram que ceder novamente nas negociações, perdendo parte do que se conseguira antes. 8 Além disso, aumentou muito a proporção variável na renda dos trabalhadores. Em lugar de aumentos salariais, as empresas passaram a preferir a concessão de participação nos lucros e resultados, o que não repercute nos direitos trabalhistas como décimo terceiro, FGTS e contribuição previdenciária. Esse é outro aspecto saliente da insegurança de renda. Tamanho abalo na instituição sindical, atingida em sua capacidade de representar eficazmente interesses e de galvanizar identidades coletivas, não parece decorrer apenas do que se poderia denominar “forças cegas” da globalização que, aportando entre nós pela desregulação neoliberal, corroeu as condições que antes lhe davam sustento. Parece-me que as lideranças sindicais se acomodaram complacentemente à estrutura sindical frankensteinia- INTELIGÊNCIA na que emergiu da Constituinte de 1988, preferindo postergar as pressões por reforma nos regulamentos para um período menos conturbado na economia e na política. Essa decisão estratégica, sobretudo dos sindicalistas da CUT, mostrou-se uma arapuca bem pesada. A luta frenética por manutenção dos “aparelhos” em que muitas entidades sindicais foram transformadas, fonte de recursos cada vez mais escassos, porém ainda assegurados por lei, pôs os interesses de auto-preservação (material) das lideranças muito adiante dos interesses propriamente coletivos das categorias formalmente representadas. Parte importante da perda de legitimidade dos sindicatos, mesmo entre seus representados, decorrerá desse fato preciso: no salve-se quem puder do desemprego, da precariedade das condições de vida e da insegurança socioeconômica, uma proporção considerável de sindicalistas decidiu salvar-se primeiro. lém da perda de eficácia propriamente representativa, expressa nas perdas salariais crescentes em negociações coletivas, outro resultado importante foi o esvaziamento das centrais sindicais como pólos de aglutinação de correntes ideológicas e de definição de planos de ação estratégica. As centrais também se renderam ao canto de sereia da ordem legal existente e, premidas pela crise financeira que se abateu sobre seus sindicatos filiados, tornaram-se agenciadoras de qualificação profissional para fazer jus a recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, o FAT. CUT, Força Sindical e Social Democracia Sindical receberam perto de 100 milhões de reais do Governo Federal no âmbito do Planfor, o Plano Nacional de Educação Profissional, para financiar cursos de qualificação e agências de intermediação de mão-de-obra.9 As duas centrais mais importantes, CUT e Força, tiveram que constituir burocracias específicas para isso, desviando parte considerável de sua energia institucional para o sustento dos programas de formação, em prejuízo das atividades propriamente organizativas e de articulação política. Isso também contribuiu para despolitizar a ação sindical centralizada. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 123 I N S I G H T 124 Escritório Nacional de Achados e Perdidos INTELIGÊNCIA I N S I G H T A crise é profunda. Ela combina efeitos estruturais com opções estratégicas das lideranças sindicais para produzir um quadro de aparente falência de um modelo de representação de interesses que vigiu, sem grandes mudanças, por mais de 60 anos. O paradoxo é gritante: temos cerca de 16 mil sindicatos hoje, segundo o último censo sindical do IBGE, mas eles representam proporcionalmente menos gente, já que o mercado formal de trabalho murchou. Principalmente, representam mal. O temor dos sindicalistas no que respeita a uma reforma da estrutura sindical, que extinguisse o imposto sindical e, com ele, a unicidade sindical, impediu que pressões nessa direção chegassem ao Parlamento, resultando em brutal fragmentação da estrutura representativa. É claro que esse cenário é grosseiro. Um olhar mais atento encontrará fogo sob as cinzas, como a ainda importante presença dos sindicatos de metalúrgicos do INTELIGÊNCIA ABC, de petroleiros Brasil afora, de professores de São Paulo. O problema relevante é saber se, passada a tormenta neoliberal (ou seja, retomado o crescimento econômico, reposta a economia nos trilhos da formalidade e da industrialização, renascidos os empregos de que necessitamos para dar comida aos nossos filhos, enfim, se tivermos mesmo uma política de crescimento sustentado não subserviente às finanças internacionais, como continua prometendo o governo Lula), as lideranças sindicais também retomarão seu ânimo reformador pré1994, e que fiz questão de louvar com entusiasmo em livro anterior (Cardoso, 1999). Espero que seja esse o caso. Nossa sociabilidade não pode prescindir de mecanismos eficazes de representação de interesses, e cabe às lideranças dos trabalhadores lutar contra a letargia que se abateu sobre a instituição sindical e, com isso, fazer renascer, quem sabe, a promessa integradora do trabalho registrado. email: [email protected] REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPY (1993). BERNARD APPY: “QUESTÃO FISCAL: CRISE E CONCENTRAÇÃO DE RENDA” IN B ERNARD APPY ET ALLI. CRISE BRASILEIRA , ANOS OITENTA E GOVERNO COLLOR. SÃO PAULO, DESEP/CUT, PP. 7-82. B IELSCHOWSKY (1996). R ICARDO B IELSCHOWSKY: PENSAMENTO ECONÔMICO BRASILEIRO : O CICLO IDEOLÓGICO DO DESENVOLVIMENTISMO. R IO DE J ANEIRO , CONTRAPONTO (3ª EDIÇÃO). CARDOSO (1999). ADALBERTO M. CARDOSO: SINDICATOS, TRABALHADORES E COQUELUCHE NEOLIBERAL: A ERA VARGAS ACABOU? R IO DE J ANEIRO , FGV EDITORA . A CARDOSO (2003). ADALBERTO M OREIRA CARDOSO: OS SINDICATOS E A INSEGURANÇA SOCIOECONÔMICA NO B RASIL . I N J OSÉ R ICARDO R AMALHO E M ARCO AURÉLIO SANTANA, ORGS : TRABALHADORES, SINDICATOS E A NOVA QUESTÃO SOCIAL. SÃO P AULO, B OITEMPO. FRENCH (2001). J OHN FRENCH: AFOGADOS EM LEIS : A CLT E A CULTURA POLÍTICA DOS TRABALHADORES BRASILEIROS. SÃO P AULO, E DITORA FUNDAÇÃO P ERSEU ABRAMO. L EVINE (1998) R OBERT M. LEVINE : FATHER OF THE BRIDGE UNIVERSITY P RESS. POOR? VARGAS AND HIS ERA . CAMBRIDGE : CAM- SALLUM J R. (1996). BRASÍLIO SALLUM J R: D OS GENERAIS PAULO: HUCITEC. À W ILLIAMS (2001). D ARYLE W ILLIAMS: CULTURE WARS IN B RAZIL . THE FIRST VARGAS REGIME, 1930-1945. D UKE: D UKE UNIVERSITY P RESS. NOTAS 1. TOMO DE EMPRÉSTIMO A GENTILI (1998) A EXPRESSÃO ENTRE ASPAS, EMBORA COM OUTRO SENTIDO. ESSE AUTOR REFERE -SE À EDUCAÇÃO EM SUA RELAÇÃO COM O EMPREGO / DESEMPREGO . 2. VER, POR EXEMPLO, B IELSCHOWSKI (1996) PARA UM 50 E 60. APANHADO COMPREENSIVO DESSE DISCURSO AO LONGO DAS DÉCADAS DE 3. D ADO EXTRAÍDO DO NOTÁVEL ESTATÍSTICAS DO SÉCULO XX, RECENTEMENTE EDITADO PELO IBGE. 4. A LITERATURA SOBRE ISSO É VASTA, E O INTERESSE NO PERÍODO VARGAS É CRESCENTE. EXEMPLOS RECENTES SÃO L EVINE (1998), WILLIAMS (2001) E FRENCH (2001). 5. ADALBERTO CARDOSO: A DÉCADA NEOLIBERAL E A CRISE DOS SINDICATOS NO B RASIL . SÃO PAULO, B OITEMPO, 2003. GENTILI (1998). PABLO GENTILI: “EDUCARPARA O DESEMPREGO : A DESINTEGRAÇÃO DA PROMESSA INTEGRADORA ”, IN FRIGOTTO, GAUDÊNCIO (ORG). E DUCAÇÃO E CRISE DO TRABALHO : PERSPECTIVAS DE FINAL DE SÉCULO. P ETRÓPOLIS , VOZES , PP. 76-99. 6. ESSES DADOS FORAM ANALISADOS EM CARDOSO (2003). HABERMAS (1987). JÜRGEN HABERMAS: THE THEORY OF COMMUNICATIVE ACTION. L IFEWORLD AND SYSTEM: A CRITIQUE OF FUNCTIONALIST REASON. B OSTON, BEACON PRESS. NÃO DIVULGOU ESSES ESTUDOS, PORÉM. OFFE (1984). CLAUS OFFE : CONTRADICTIONS OF THE WELFARE STATE (EDITED BY J OHN KEANE ). CHICAGO , MIT PRESS. OLIVEIRA (1988). FRANCISCO DE OLIVEIRA : O SURGIMENTO ESTUDOS (22) S ÃO PAULO, CEBRAP, OUTUBRO . DO ANTIVALOR. NOVOS NOVA R EPÚBLICA. SÃO 7. É POSSÍVEL ESPERAR QUE OCORREU RECUO AINDA MAIOR EM 1999, EM RAZÃO DA O D IEESE AINDA RECESSÃO DESATADA PELA CRISE CAMBIAL DO INÍCIO DO MESMO ANO . OS DADOS MENCIONADOS FORAM CAPTURADOS EM WWW .DIEESE .ORG.BR/BOL/ESP /ESTMAR98. HTML E WWW .DIEESE.ORG.BR/BOL/ESP / ESTJAN99. HTML. 8. D ADOS EM HTTP://WWW.DIEESE.ORG.BR/BOL/ESP/ESTJAN98.HTML. 9. N O MOMENTO EM QUE ESCREVO, O M INISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO INVESTIGA AS CONTAS DA FORÇA SINDICAL, QUE FEZ JUS A 37 MILHÕES DE REAIS DO FAT E TEVE SUAS CONTAS REJEITADAS PELA O UVIDORIA DA UNIÃO. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 125 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Chernoviz e a medicina no Império FLAVIO COELHO EDLER HISTORIADOR MARIA REGINA COTRIM GUIMARÃES MÉDICA ANGIN A NGINA NO PEITO – ANGINA NERVOSA, STRENALGIA, CATANHO SUFFOCANTE. APERTO DOLOROSO DO PEITO QUE VEM POR ACESSOS – ADMINISTRAR 10 A 15 GOTTAS DE ETHER SULFURICO EM MEIA XÍCARA D’ÁGUA FRIA COM ASSUCAR, CHÁ DE FOLHAS DE LARANJEIRA OU DE HERVA CIDREIRA. DAR A RESPIRAR ETHER, VINAGRE, CHLORIFORMIO. APPLICAR SINAPISMOS NAS PERNAS E UM CATAPLASMA DE LINHAÇA MUITO QUENTE NAS COSTAS; DAR UM CLYSTER D’ÁGUA MORNA COM 20 GOTTAS DE LAUDANO. BANHO MORNO GERAL. CAUSTICO NO PEITO. CAFÉ. FUMIGAÇÕES COM INFUSÃO DE ESTRAMONIO, MEIMENDRO, BELLADONA. PARA PREVENIR AS CRISES COSTUMÃO EMPREGAR OS MEDICAMENTOS TÔNICOS 632. QUINA, PREPARAÇÕES DE FERRO, BANHOS DE MAR. PURGANTES 629. 128 Comitê Olímpico Brasileiro I N S I G H T U m dos aspectos ainda pouco conhecido do processo de institucionalização da cultura médica acadêmica no Brasil oitocentista refere-se ao papel desempenhado pelos compêndios de medicina popular. Muito mais que a educação médica regular e o contato com os médicos, eles foram o principal instrumento de penetração de saberes e práticas sancionados pelas instituições médicas oficiais no quotidiano da maioria daquela população. Para se compreender o alcance deste tipo de difusão informal do saber médico acadêmico é preciso levar em conta a carência de médicos nas vastas regiões rurais por onde se dispersava o grosso da população brasileira. É sabido que, até finais do século XIX, a reduzida corporação médica se concentrava na Corte do Rio de Janeiro e em Salvador, com expressão secundária nas capitais de algumas províncias como Recife, Porto Alegre, Ouro Preto e São Paulo1. Desde o fim da censura imposta aos livros pela Coroa portuguesa, houve um aumento substancial do número de livrarias e de impressoras e o co- INTELIGÊNCIA mércio de obras de medicina para leigos conquistara um mercado considerável2. Os livros de medicina autoinstrutivos satisfaziam, assim, os interesses dos donos de escravos, que pretendiam manter a saúde de sua força de trabalho com o mínimo de despesas, e os poucos letrados, que em variadas circunstâncias exerciam diferentes ofícios de cura voltados para o enorme contingente de pobres desamparados. Nesses dois casos, como veremos adiante, os conhecimentos veiculados por tais manuais seriam reinterpretados e mesclados com as tradições empíricas consolidadas pelas demais artes de cura, resultando num amálgama entre elementos de folk medicine e medicina acadêmica. A o contrário do ocorrido nos Estados Unidos, onde esses manuais eram a expressão de um movimento de afirmação de setores da medicina popular contra os privilégios reivindicados pela profissão médica3, no Brasil esse tipo de literatura era produzida por médicos com a chancela da Academia Imperial de Medicina (AIM). Lembremos que a organização profissional e re- OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 129 I N S I G H T gulamentação do ensino médico no Brasil, como atividade diversa da praticada por barbeiros, sangradores, algebristas, práticos curiosos, herbaristas, comadres e curandeiros, começou apenas no início do século XIX, motivada pela súbita fuga da Corte portuguesa, ameaçada pelas tropas francesas, para a cidade do Rio de Janeiro. Naquela ocasião, o Príncipe Regente D. João inicia uma série de reformas de cunho liberal, criando os primeiros estabelecimentos de caráter cultural. No tocante à medicina, instalou dois cursos de cirurgia e anatomia nos hospitais militares de Salvador e Rio de Janeiro (1808), pondo término à era dos físicos e cirurgiões formados na Europa. Iniciavase, assim, uma forte tradição clínica marcada pela figura do médico-defamília que atuava, ora como clínico, ora como cirurgião, ora como conselheiro higienista. Embora a influência francesa tenha marcado amplamente o saber e as instituições médicas oficiais da época, convém não esquecer que o ambiente médico vigente era herdeiro de uma multiplicidade de práticas, conceitos e métodos reproduzidos de modo ar- 130 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA tesanal pelas diferentes etnias que aqui interagiam4. C ircunscrita aos centros urbanos de apenas algumas províncias, e relativamente cara, a assistência médica oficial era inacessível para quem se encontrava à margem das confrarias religiosas ou das redes de clientelismo promovidas pelos membros da classe senhorial. Até 1841, ano em que foi publicada a primeira edição do Formulário e Guia Médico de Pedro Luís Napoleão Chernoviz (1812-1881), que obteve imediatamente imensa popularidade, os brasileiros pobres podiam recorrer a quaisquer das variações polimorfas das tradições de cura e práticas artesanais que resultaram da longa experiência colonial, dentre as quais se achava o livro de William Buchan, Domestic Medicine, de 1769, traduzido por Manoel Henriques de Paiva. Não se sabe a repercussão alcançada pelos compêndios de Jean-BaptistaAlban Imbert, médico de Montpellier e membro-titular da AIM, Manual do Fazendeiro ou tratado doméstico sobre as doenças dos negros (1834) e Guia Médico para as Mães I N S I G H T de Família (1843), nem do sucesso obtido pelo O Médico e o Cirurgião da Roça ou Tratado completo de medicina e cirurgia domésticas, adaptado à inteligência de todas as classes do povo (1875) de Louis-Francois Bonjean (1808-1892), nascido em Chamberry, formado em Turim e membro honorário da AIM5. O certo é que Chernoviz, como ficou conhecido, tornou-se um bestseller, tendo alcançado dezenove edições até 1924. Um ano após o lançamento da primeira edição do Formulário e Guia Médico (FGM), isto é, em 1842, aparecia a primeira das seis edições de outro livro, o Dicionário de Medicina Popular e Ciências Acessórias (DMPCA), desse polonês formado em Montpellier, que aqui viera, a exemplo de outros médicos estrangeiros, para tentar a sorte. N este artigo, pretendemos tecer alguns comentários sobre dois aspectos da obra do formidável médico polonês: por um lado, vamos avaliar seu escopo, enquanto empreendimento cultural, segundo a perspectiva do próprio autor e seu grupo de referência, a me- INTELIGÊNCIA dicina acadêmica de meados do século XIX; por outro lado, vamos decifrar alguns dos significados que lhe foram sendo agregados por setores das culturas erudita e popular, no longo itinerário em que foi perdendo o conceito de obra científica e ilustrada, reverenciada pela República das Letras, até o momento em que passou a ser tomada como expressão de genuína crendice popular. Recorrendo à literatura ficcional brasileira, crônicas jornalísticas e relatos biográficos, faremos alguns apontamentos sobre a razão de tal metamorfose. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 131 I N S I G H T Um médico na República das Letras Piotr Czerniewicz nasceu em Lukov, na Polônia, no dia 11 de setembro de 1812. Em 1830, após participar da malograda Revolta de Novembro, quando os poloneses se sublevaram contra a ocupação russa, teve que se refugiar na França. Em Montpellier, onde obteria seu diploma de médico, criou a Organização de Democratas Poloneses, da qual foi presidente. Aparentemente, pouco antes de se formar, em 1837, abandonou as fileiras da organização, onde entrara com a patente de coronel do exército polonês. Embarcou para o Rio de Janeiro em 1840 e nesse mesmo ano passou a clinicar, após ter validado seu diploma junto à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Ainda em 1840 tornou-se membro-titular da Academia Imperial de Medicina (AIM), com uma memória sobre O uso do nitrato de prata nas doenças das vias urinárias. O parecer positivo foi elaborado por Faivre, membro titular da AIM e médico oficial da embaixada francesa. Em 1844, casouse com Júlia Bernard, nascida no Rio de Janeiro, com quem teria seis filhos. 132 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA Em 1855, mudou-se definitivamente para Paris, de onde continuou a editar sua obra, sempre em português6. O editor e sua obra Em seu monumental estudo sobre a história do livro no Brasil, Hallewell afirma que a iniciativa de publicarse o DMPCA partira dos famosos editores Eduardo e Henrique Laemmert, que percebiam a boa acolhida que teria um livro de medicina auto-instrutivo. A confiança dos proprietários da famosa loja de livros da Rua da Quitanda era tal, que imprimiram três mil exemplares, uma tiragem quase sem precedentes na época, principalmente para uma obra em dois volumes, ao custo de 9$000. O acerto do investimento pode ser medido pela segunda edição, de 1851, ampliada para três volumes in quarto (com 1.620 páginas e 5 pranchas com ilustrações), ao preço de 15$0007. Entretanto, essa versão sobre o faro empresarial dos Laemmert precisa ser revista, tendo em vista o relato do próprio Chernoviz contido num conjunto de correspondências pessoais que ele manteve com um amigo após sua chegada ao Brasil. I N S I G H T Graças a essas cartas8, depreende-se que a produção dos dois manuais, escritos por ele diretamente em português, já fazia parte de um antigo plano de carreira traçado ainda na França. Outras iniciativas semelhantes devem ser vistas como inscritas na mesma estratégia de visibilidade e notoriedade: a redação de artigos para a Revista Médica Fluminense; sua eleição, cuidadosamente preparada, para membro da AIM; a participação em almoços, bailes e saraus nas boas casas; a dedicatória ao Imperador Pedro II, impressa na primeira página — o que lhe rendeu o cobiçado título de Cavaleiro da Ordem de Cristo. D e todos esses passos concatenados, a edição do FGM foi o mais ousado e o que encontrou maior incompreensão da parte justamente dos editores. Um, a quem Chernoviz propôs que comprasse os originais, aconselhou-o a ocupar-se de seus clientes e esquecer um trabalho que não teria saída. Outro, provavelmente Leuzinger ou o próprio Eduardo Laemmert9, respondeu-lhe que para obras que tais INTELIGÊNCIA era mais fácil encontrar autores que a escrevessem do que leitores. Apesar do forte obstáculo, assumiu o risco pela empreitada, arcando com os custos. Vendeu todos os seus instrumentos cirúrgicos e contou com o auxílio financeiro de um médico amigo. O sucesso alcançado foi estrondoso, pois nos três primeiros dias foram vendidos 300 exemplares. Além da impressão, o médico, que então contava com 30 anos, cuidou pessoalmente da distribuição, enviando exemplares para Bahia, Pernambuco e Portugal10. Os Laemmert imprimiram as três edições seguintes, as de 1846, 1852 e 1856, além das duas primeiras impressões do DMPCA, em 1842 e 1851. Ao estabelecer-se em Paris, em 1855, Chernoviz continuou editando seus manuais em sua própria residência — Casa do Autor — na rua Raynouard, atual Chernoviz, em Passy. Dividido em várias seções, o Formulário e Guia Médico continha a descrição dos medicamentos, suas propriedades, suas doses, as moléstias em que deviam ser empregados; as plantas medicinais indígenas, e as águas minerais do Brasil; a arte de OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 133 I N S I G H T formular, a escolha das melhores fórmulas, além de muitas receitas úteis nas artes e na economia doméstica. Ao lado dos medicamentos chamados officinaes (xaropes, vinhos, extratos, tinturas, conservas, emplastos e ungüentos), cujas fórmulas achavam-se nos códigos farmacêuticos sancionados pelas leis e encontrados já prontos nas boticas e cujo prestígio variava em cada época, os doentes também podiam dispor das receitas magistraes. Estas últimas eram preparadas de acordo com as fórmulas de cada médico, segundo as necessidades específicas do paciente. Eram poções, cozimentos, colírios, pílulas, emulsões, linimentos, cataplasmas... Chernoviz propunha-se a reunir esse amplo conjunto. Destarte, iniciava apresentando, pedagogicamente, algumas considerações sobre a arte de formular. Distinguia, nas fórmulas, a base , isto é, o agente principal do medicamento que conteria o princípio ativo; o adjuvante, que serviria para aumentar as propriedades ou virtudes da base; o corretivo, cuja finalidade era enfraquecer o sabor ou o cheiro, podendo também reduzir a atividade ou a ação corrosiva; o exci- 134 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA piente, substância que serviria de veículo às outras três e, por fim, o intermédio, que servia para tornar o medicamento miscível em água ou outro excipiente. Assim, por exemplo, na Mistura Balsâmica de Fuller (copaíba: 2 onças; gemas de ovo: 2; xarope de bálsamo de Tolu: 2 onças; vinho branco: 6 onças). A copaíba seria a base, o xarope, o corretivo, as gemas de ovo, o intermediário e o vinho branco, o excipiente . E m outra seção eram descritas as formas farmacêuticas dos medicamentos, então classificados em bálsamos, cataplasmas, cáusticos, clisteres, elixires, emplastos, emulsões, espíritos, extratos, sangrias, sanguessugas, sinapismos, vesicatórios e ventosas. Deste arsenal, utilizado no período denominado de terapêutica heróica pela historiografia médica11, o FGM nos oferece uma detalhada descrição. As informações técnicas sobre sua variada composição, formas de emprego e de manutenção são verdadeiras relíquias sobre as artes médicas da época. Folheando as páginas desta seção, ficamos sabendo I N S I G H T que as cataplasmas, medicamentos externos em forma de papas, eram geralmente elaboradas com farinha de linhaça, féculas de batata ou miolo de pão. Nos vesicatórios ou cáusticos, aplicados como emplastos ou cataplasmas em afecções gangrenosas ou mordedura de animais peçonhentos, visando produzir uma secreção serosa e empolar a pele, além de mostarda e trovisco, empregava-se freqüentemente uma papa elaborada a partir da maceração de um pequeno inseto, a cantárida. No DMPCM, ficamos sabendo que dentre os tipos de ventosas, pequenos vasos des- INTELIGÊNCIA tinados a fazer vácuo na superfície da pele, com o fim de atrair sangue ao lugar em que se aplica, um recomendado era fabricado com chifre perfurado no ápice, por cujo furo se operava com a boca a sucção do ar, sendo, em seguida, tapado com cera quando estivesse aderente à pele. Aplicadas com o mesmo fim que as sangrias, as sanguessugas, ou bichas, como eram popularmente conhecidas, deviam ser aderidas a qualquer parte do corpo, à exceção das plantas dos pés e das palmas das mãos. Nas mulheres recomendava-se não aplicar nas partes visíveis do corpo (pescoço, parte superior do peito, antebraço e costas da mão). Os lugares indicados eram as membranas mucosas facilmente acessíveis como a gengiva, a vagina e o colo do útero. Uma sanguessuga vigorosa retirava em torno de meia onça (15 grs.) de sangue. Também em relação a essa curiosa criatura, ficamos sabendo que nem todas eram importadas da Europa, pois já havia lugares de criação no Rio de Janeiro. As sanguessugas, facilmente encontradas nas lojas dos barbeiros, eram conservadas em vasos de vidro, contendo água até 2/3 OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 135 I N S I G H T de sua capacidade e 3 litros serviam para 30 delas, ou em caixas com barro úmido. N outra classificação, os medicamentos trazem referência à sua ação terapêutica. É de se notar, neste caso, que até a vitória da concepção ontológica da doença, isto é, aquela que associa o ser doença à ação uma entidade específica, a medicina acadêmica tendia a conceber a doença como manifestação de múltiplas circunstâncias, de caráter externo (agentes físicos ou químicos) ou interno (constituição física, temperamento, idade, sexo, atividade ocupacional). Nesse caso, os terapêuticos eram distinguidos entre 21 tipos, conforme sua ação específica voltada a restabelecer a harmonia ou equilíbrio fisiológico: adstringentes, antiperiódicos, antiphlogísticos, antiescorbúticos, antissépticos, antispasmódicos, antissifilíticos, calmantes, diaforéticos, diuréticos , eméticos , emolientes, estimulantes, febrífugos, narcóticos, purgativos, sudoríferos, tônicos, temperantes, vermífugos, e vomitivos. A arte de purgar, tão complexa e tão amplamente empregada 136 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA quanto a de sangrar, exigia que o praticante soubesse diferenciar plenamente os purgantes, segundo sua intensidade, entre a ampla variedade de substâncias laxantes, catárticas ou drásticas — estas últimas as mais intensas. Esta última classificação encontrase na parte do formulário propriamente dito. Mas em que ele consiste? Trata-se da descrição em ordem alfabética, de todas as substâncias então empregadas pela medicina acadêmica. Ao referir-se a cada medicamento, Chernoviz indicava sua sinonímia, a significação em francês, o nome botânico em latim (se o medicamento fosse uma planta), suas características físicas, suas propriedades, as moléstias em que deviam ser empregadas, as doses e pesos usuais e os riscos de eventuais associações. U ma seção aparentemente inusitada para um guia médico, mas que se coaduna perfeitamente com o ideal iluminista e civilizatório de que se investia a elite médica, intitulava-se Receitas Diversas. Reuniam-se, aqui, várias receitas “úteis nas artes e economia I N S I G H T doméstica”, tais como: água-de-colônia, tintas de escrever, venenos para a destruição de animais daninhos... Eram fornecidas também as composições de diversas preparações vendidas como segredo: pomadas de tingir cabelos, água para tirar nódoas de tinta de escrever, e coisas que tais. Com igual intuito, no DMPCA aparece o desenho e a descrição completa de uma caixa de botica contendo o que se considerava, então, como material terapêutico básico. Inovação e progresso científico Como notou uma historiadora, havia em Chernoviz uma preocupação constante com a atualização de seus manuais12. Assim, ao contrário do anátema de repositório de crendices populares, que lhe lançaram posteriormente, as edições de seus livros eram constantemente revistas e até mesmo novas seções eram incorporadas. Com o Dicionário de Medicina Popular e Ciências Acessórias, o autor se coloca decididamente do lado das luzes e sua ação pode ser entendida dentro do ideal pedagógico do iluminismo racionalista. Carregando INTELIGÊNCIA o pesado fardo da civilização, ele pretendia, com sua obra, “difundir os bons preceitos de saúde, precaver o público contra o charlatanismo, destruir os erros populares a respeito da medicina, inculcar o que se deve fazer nos acidentes súbitos, e ensinar os tratamentos de várias moléstias que podiam ser realizados na ausência de um médico”. Constantemente revisto e ampliado, até a sexta e última edição de1890, o DMPCA não apenas se apresenta como uma espécie de vade mecum do saber médico estabelecido, como tem uma postura pioneira, sancionando algumas inovações pouco consensuais para a época. Assim, antecipando-se à adoção do Sistema Métrico Internacional (1875) pelo governo imperial, Chernoviz já introduzira na edição de 1862 a equivalência de pesos e medidas usados nas farmácias do Brasil — libras, onças, oitavas, escrópulos, grãos — aos pesos decimais. Na edição de 1874, na seção “Noções Preliminares”, apresenta uma tábua de conversão, acompanhada da descrição de instrumentos, como o areômetro, o densímetro e o termômetro médico (esse, verdadeira revolução na classificação das OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 137 I N S I G H T febres). Da mesma forma, foi um dos primeiros autores a sancionar, já na edição de 1878, no verbete opilação ou hipoemia intertropical — o que hoje conhecemos como ancilostomose — a tese de sua etiologia parasitária. Opinião essa que permaneceu sub judice e contrariava a posição da maioria dos membros das congregações das faculdades de medicina, da Academia Imperial de Medicina e mesmo da Academia de Medicina de Paris – instituição médica mais prestigiosa da época. 138 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA No FGM, o zelo pela atualização científica explica o enorme sucesso alcançado entre os boticários. A terceira edição, de 1852, já recomendava a retirada, nas receitas, das abreviações e sinais referentes às dosagens, conforme regulamento da Junta Central de Higiene Pública, decretado em 1851. Ao obrigar os facultativos a escreverem suas receitas por extenso, em português, a autoridade pública contribuía de certa forma para apagar alguns traços simbólicos que ainda ligavam os médicos oitocentistas aos físicos fidalgos do século XVIII, cuja erudição se media pelo uso do latim e adoção de sinais alquímicos inacessíveis aos leigos. A oitava edição de 1868 foi um marco editorial, sendo também a primeira a ser impressa em Paris por tipógrafos portugueses sob inspeção do autor. Ela se antecipou à iniciativa da Junta de Higiene Pública ao adotar o novo código farmacêutico francês de 1866. Outra novidade da mesma edição foi a ampliação da descrição das plantas indígenas do Brasil, que nas edições anteriores correspondia a pouco mais de cinqüenta e nessa excedia a duzentas. A partir de então, I N S I G H T além de suas próprias observações, feitas quando de sua estada no Rio de Janeiro, Chernoviz passou a publicar os trabalhos dos naturalistas Auguste Saint-Hilaire, Von Martius, Weddel e dos médicos e farmacêuticos brasileiros Francisco Freire Allemão, Nicolau Joaquim Moreira, Francisco da Silva Castro, Joaquim Correia de Mello e Theodoro Peckolt, dentre outros ren o m a d o s. A sexta e última edição do DMPCA, de 1890, aparecia alguns anos após a morte do autor, sob a responsabilidade da livraria e editora Roger e F. Chernoviz. Nela já se informava sobre os novos métodos de soroterapia, segundo as teorias de Pasteur e de Roux. De acordo com Carlos da Silva Araújo, na 16ª edição do FGM, datada de 1897, descrevia-se a técnica sobre “os raios X ou as fotografias através dos corpos opacos.” O mesmo empenho em seguir as últimas novidades das ciências médicas foi perseguido até a última edição de 1924. Somente em 1926 aparecia a Farmacopéia Brasileira, o que explica por que até essa data, nos regulamentos sanitários, INTELIGÊNCIA Chernoviz — feito substantivo comum por antonomásia — era citado como um livro obrigatório nas farmácias13. Antes de nos aventurarmos na decifração do enigma de sua metamorfose, convém chamar a atenção para algo que, porventura, está deixando o leitor perplexo: temos nos referindo indistintamente ora ao Formulário ora ao Dicionário como “o” Chernoviz. Eis uma confusão insolúvel. Como ficará claro em seguida, a imprecisão tornou-se difusa no espaço e no tempo. Chernoviz, oráculo da medicina popular? Qual a influência de Chernoviz na intimidade doméstica dos lares urbanos e rurais? Em que medida contaminou as referências simbólicas dos diferentes saberes de cura mantidos pela tradição oral? Como foi lido, interpretado e apropriado por curiosos e pelos porta-vozes das culturas subalternas? Respostas satisfatórias a estas perguntas ainda merecem uma investigação aprofundada, mas tentaremos aqui uma primeira aproximação. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 139 I N S I G H T Em princípios do século passado, o famoso higienista e escritor Afrânio Peixoto, através de um personagem, afirmou que no Brasil havia maior número de volumes do Chernoviz que da Bíblia espalhados pelo país14. Seu personagem, coronel João Batista Pinheiro, orgulhoso de seu Chernoviz, repetia “Pedro Luiz Napoleão Chernoviz! (...) convencido que recitava um verso”, e bradava “um homem destes é um benfeitor da humanidade... ”. Em meados do século, sua popularidade ainda seria assombrosa na impressão do poeta (e farmacêutico) Carlos Drummond de Andrade. No poema Dr. Mágico ele assevera: Dr. Pedro Luís Napoleão Chernoviz/ Tem a maior clientela da cidade./ Não atende a domicílio/ Nem tem escritório./Ninguém lhe vê a cara./Misterioso doutor capa preta.../15. E, com saudades de seu tempo de ajudante de farmácia, Rubem Braga conclui que “ Chernoviz era um sábio”16. S eria de tal monta a estima do famoso manual? É possível. As referências aos manuais de medicina popular, em espe- 140 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA cial ao próprio Chernoviz, são encontradas em muitos romances e crônicas desde o século XIX. Em Dom Casmurro, de Machado de Assis, o protagonista recorda-se de como o agregado José Dias apareceu pela primeira vez na fazenda de Itaguaí, “vendendo-se por médico homeopata.” Levava consigo “um Manual e uma botica” e curou um feitor e uma escrava de umas “febres” que ali se instalaram. Ao recusar um ordenado, dizia que “era justo levar saúde à casa de sapé do pobre.”17 No romance Inocência, Visconde de Taunay constrói um personagem que à semelhança de José Dias, recorreria ao famoso manual como alternativa ao distante, dispendioso e longo curso de medicina. Cirino, servente de botica numa localidade pequena onde “de simples boticário a médico não há mais que um passo,” foi, aos poucos “e com o tempo, criando tal ou qual prática de receitar e, agarrando-se a um Chernoviz, já seboso de tanto uso, entrou a percorrer, com alguns medicamentos no bolso e na mala da garupa, as vizinhanças da cidade à procura de quem se utilizasse dos seus serviços”. I N S I G H T Logo receberia o tratamento de doutor. (...) “Toda a sua ciência assentava alicerces no tal Chernoviz”.(...) “Noite e dia o manuseava; noite e dia o consultava à sombra das árvores ou junto ao leito dos enfermos”. De acordo com o narrador, apesar de conter “muitos erros, muita lacuna, muita coisa inútil e até disparatada”, (...) “no interior do Brasil é obra que incontestavelmente presta bons serviços, e cujas indicações têm força de evangelho”18. O utro personagem, o Bento do conto O lobisomem, de Raymundo Magalhães19, retrata bem o perfil semelhante. Além de negociante de gêneros alimentícios, seu Bento “era muito entendido em assuntos de medicina caseira. Como na terra não havia médico nem boticário, ele desempenhava o papel de curioso: com o auxílio do seu bojudo Chernoviz, aconselhava remédios a quantos recorriam à sua experiência, e dizia-se que estava só para tratar das doenças do mundo... Jalapa para estes, batata para aqueles outros, eram os seus remédios prediletos. Se não fizessem bem, não podiam INTELIGÊNCIA fazer mal. Custavam pouco, mas esse pouco bastava para ir vivendo folgadamente, em meio à sua vasta clientela.” Nestes exemplos, o uso do manual, embora transcendendo os limites da auto-ajuda e fazendo-se instrumento de comércio, permanece dentro do escopo imaginado pelo autor. Como bem delimita seu Bento , o exercício de sua arte restringia-se às doenças do mundo . Mas não é difícil de imaginar as apropriações heterodoxas que resultaram em combinações ecléticas incorporando o receituário científico às concepções mágicas e holistas presentes no saber médico popular. O personagem de Taunay, por exemplo, indiferente à fronteira traçada pelo médico polonês, transita impunemente entre a medicina erudita e o universo da magia, usando como salvo-conduto justamente o Chernoviz. Assim, “num dia de capricho”, Cirino (...) “começou a viajar pelos sertões povoados a medicar, sangrar e retalhar, unindo a alguns conhecimentos de valor positivo, outros que a experiência lhe ia OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 141 I N S I G H T indicando ou que a voz do povo e a superstição lhe ministravam ”. No poema de Drummond, supracitado, outros versos revelam um deslocamento similar sofrido pelo Chernoviz, aqui subsumido ao campo semântico da medicina folclórica: “Esse que cura todas as moléstias/ (De preferência as incuráveis)/ Socorre os afogados/ Asfixiados / Assombrados de raio/ Sem desprezar defluxo, catapora, /Sapinho, panariz, cobreiro/ Bicho do pé, andaço, carnegão.../”. Em Urupês, Monteiro Lobato, ao retratar o Jeca — arquétipo da ignorância e preconceito do habitante do mundo rural brasileiro, cujo “mobiliário cerebral” repleto de superstições, se constitui de um banquinho de três pernas para receber os hóspedes, pois “três pernas permitem o equilíbrio; inútil, portanto, meter a quarta, o que ainda o obrigaria a nivelar o chão”, trata sua medicina de “ritual bizantino”, “noite cerebral ”, da qual “ pirilampejam-lhe apozemas, cerotos, arrobes e eletuários escapos à sagacidade cômica de Mark Twain”, e compara-a a um “ Chernoviz não escrito, monumento de galhofa onde não há 142 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA rir, lúgubre que é o epílogo”. (...) “Quem aplica as mezinhas é o “curador”, um Euzébio Macário de pé no chão e cérebro trançado como moita de taquaruçu. O veículo usual das drogas é sempre a pinga – meio honesto de render homenagem à deusa Cachaça, divindade que entre eles ainda não encontrou heréticos.”20 Despojado de seu fundamento científico e racionalista, o receituário terapêutico é visto aqui, como integrando aos sistemas mágicos e religiosos predominantes no universo popular de cura. P orém, autênticos personagens da História do Brasil, líderes políticos, militares ou religiosos de expressão regional, também tiveram seu prestígio construído com o apoio do velho manual. José Joaquim Ferreira, fundador e patriarca da vila de Campo Grande, atual capital do Mato Grosso do Sul, era mezinheiro, cujo preparo técnico desenvolveu com o apoio de um Chernoviz. Na verdade, até pouco antes de sua morte, em 1900, esse mineiro de São João Del-Rey era I N S I G H T também conhecido como exímio benzedor. Não poucas vezes as mães levavam seus bebês acometidos de quebranto para serem por ele benzidos21. O famoso líder messiânico nordestino, padre Cícero, patriarca de Juazeiro, fazia uso continuado do Formulário e Guia Médico, no atendimento dos milhares de analfabetos que o procuravam se queixando de todo tipo de doenças22. De expressão menor, mas igualmente paradigmático, é o caso de Ramiro Ildefonso de Araújo Castro, personalidade importante na região de Ilhéus, em fins do século XIX. Tendo apenas o primário, chegou a coronelmédico da Guarda Nacional, com o direito de exercer o lugar de farmacêutico, praticando também a medicina que aprendera de cor no Chernoviz23. Tal como encontramos na literatura ficcional, a menção aos três curiosos personagens e ao papel que exerceram como agentes populares de cura ratifica e amplia as descrições dos usos que se fizeram dos livros de medicina auto-instrutivos. Finalizaremos estes breves comentários sobre o papel da obra de Cher- INTELIGÊNCIA noviz na medicina brasileira, com uma última consideração. A lguns estudiosos da medicina imperial têm apresentado o saber médico oficial e seus porta-vozes, em especial a Higiene e os higienistas, como poderosos instrumentos disciplinares empregados na afirmação do poder centralizador do Estado em oposição às regras de sociabilidade vigentes no mundo rural, onde imperava o patriarca no comando de grandes famílias, seus agregados e dependentes24. Entretanto, face ao êxito editorial dessa medicina de cabeceira parece-nos necessário assumir uma posição mais dialética. Afinal, o sinhozinho que retorna à fazenda após anos de ausência, com seu anel de esmeralda e o título de doutor teria mesmo afrontado o saber secular de sua mãe — como afirma Gilberto Freire 25 — usurpando-lhe o amplo domínio sobre a arte de curar? Não teria ele encontrado certa receptividade, com seu saber parcialmente legitimado e reinterpretado à luz de uma medicina doméstica contaminada de noções acadêmicas? OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 143 I N S I G H T S em dúvida, a recepção do Chernoviz na intimidade dos lares urbanos e rurais revela algumas modalidades, nada rígidas, de interpretação e utilização do estimado manual. Diante da escassez da mão-de-obra escrava, muitas sinhás e sinhôs de terras e de engenhos demonstraram uma genuína preocupação com o cuidado da escravaria capacitada para os pesados serviços da lavoura, e creditavam até uma certa nobreza e humanização à prática de suas medicinas. Deste modo, embora tenham sido concebidos como instrumento de filantropia leiga, por reformistas europeus impregnados dos ideais civilizatórios, os manuais de medicina popular terminavam por fortalecer os interesses bem entendidos dos escravocratas26, ensinavam os senhores a tratar as doenças dos escravos para aumentar o seu capital e respondiam aos problemas graves de saúde pública, que atingiam, também, a classe senhorial. É fácil imaginar, também, que os livros auto-instrutivos vieram a reforçar a legitimidade dos inúmeros agentes de cura que concorriam com 144 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA o saber médico oficial. Enquanto os esculápios eram quase sempre inacessíveis, e manipulavam um saber hermético e estranho aos extratos populares, os curandeiros, por eles denunciados como charlatães, produziram diversas sínteses, aproximando sincreticamente elementos da medicina científica à linguagem compartilhada pelos diferentes grupos subalternos. A constituição de um monopólio legítimo sobre o território da cura, teve, como visto aqui, mais percalços do que supõem os adeptos da tese de uma medicalização homogênea e ubíqua da sociedade brasileira. O Chernoviz, na intimidade dos lares urbanos e rurais, ajudou a criar uma cultura médica especial, à medida que contaminou as referências simbólicas dos diversos saberes de cura, até então mantidos pela tradição oral. Foi lido, interpretado e apropriado por curiosos de todos os tipos e pelos porta-vozes das culturas populares. email: [email protected] email: [email protected] I N S I G H T BIBLIOGRAFIA ALENCASTRO, Luís Felipe. Vida Privada e Ordem Privada no Império. In: NOVAIS_F. A. História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. vol. 2: 67-78.1997. ANDRADE, Carlos Drummond de. Doutor Mágico. In Boitempo I. 6a ed. Rio de Janeiro: Record. 2001. ARAUJO, Carlos da Silva. Fatos e personagens da história da medicina e da farmácia no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Continente, 1979. ASSIS, Machado de. Obras completas, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 8ªed., 1992. BERBERT, José Augusto. “Poeta Amante do Cinema”, A Tarde on line, 22/02/97. BRAGA, Rubem. Memórias de um ajudante de farmácia. In:______As Boas Coisas da Vida. 6a ed. Rio de Janeiro: Record. 2003. INTELIGÊNCIA LOBATO, Monteiro. Urupês, São Paulo, Brasiliense, 1972. MACHADO, Roberto et. al. 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Ofícios de Cura no Brasil do começo do século XIX, dissertação de mestrado, FFCH, Unicamp, 1996. 14. PEIXOTO, Afrânio. Sinhazinha. In: ______. Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar.1962, ver também ARAUJO, Carlos da Silva, op. cit. P. 234 2. HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história, São Paulo, Edusp, 1985. p.167-8. 3. STARR, Paul. La transformación social de la medicina en los Estados Unidos de América, Biblioteca de la salud, México, Fondo de Cultura Econônica, 1991.p 63-71 4. SANTOS FILHO, Lycurgo. História Geral da Medicina Brasileira, Segundo Volume, São Paulo, HUCITEC, Edusp, 1991. 5. SANTOS FILHO, op.cit. p. 436-42. 6. ARAUJO, Carlos da Silva. Fatos e personagens da história da medicina e da farmácia no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Continente, 1979. p.229-31 7. HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história, São Paulo, Edusp, 1985. p.167-8 8. HERSON, Bella. Cristãos-novos e seus descendentes na medicina brasileira (15001850), São Paulo, Edusp, 1996.p.388-408 9. GUIMARÃES, Maria Regina C. Civilizando as artes de curar: Chernoviz e os manuais de medicina popular no Império, dissertação de mestrado, Pós-graduação em História das Ciências da Saúde, COC/FIOCRUZ, 2003. p. 66. 10. HERSON, Bella, op. Cit. 405 11. SAYDE, Jane D. Mediar, medicar, remediar. Terapêutica na medicina contemporânea: o pensamento médico brasileiro, Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, IMS/Uerj, 1995. 12. FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves, “O doutor Capa Preta: Chernoviz e a medicina no Brasil do século XIX”. Estudos, I(1) 95-109, Maio 2001. 146 Comitê Olímpico Brasileiro 15. ANDRADE, Carlos Drummond de. Doutor Mágico. In:______ Boitempo I. 6a ed. Rio de Janeiro: Record. 2001. Apud FUIGUEIREDO, Betânia, Gonçalves, op. cit, p.1 16 BRAGA, Rubem. Memórias de um ajudante de farmácia. In:______ As Boas Coisas da Vida. 6a ed. Rio de Janeiro: Record. 2003. p.20. 17. ASSIS, Machado de. Obras completas, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 8ªed., 1992. p.814 18. TAUNAY, Visconde de. Inocência, 19ª ed. , São Paulo, Ática, 1991cap. 1. 19. MAGALHÃES, Raymundo. “O lobisomem” in MONTEIRO, Jerônimo. Panorama do conto Brasileiro, vol. 8, Ed. Civilização Brasileira, 1959, p.34-51 20. LOBATO, Monteiro. Urupês, São Paulo, Brasiliense, 1972, p.151. 21. MENDONÇA, Rubens de. História de Mato Grosso, Cuiabá, IHGB, 1967. 22. SOBREIRA, Azarias. O Patriarca de Juazeiro, Petrópolis, Vozes, 1969, p. 174. 23. BERBERT, José Augusto. “Poeta Amante do Cinema”, A Tarde on line, 22/02/97. 24. MACHADO, Roberto et. al. Danação da Norma: medicina social e constituição da Psiquiatria no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1979. 25. Gilberto Freire – Sobrados e Mocambos. Vol. 2, Rio de Janeiro, José Olympio, 5a Ed. 1977, p. 573. 26. ALENCASTRO, Luís Felipe. Vida Privada e Ordem Privada no Império. In: NOVAIS_FA. História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. vol. 2: 67-78.1997. I N S I G H T 148 Museu do Imaginário Indígena INTELIGÊNCIA I N S I G H T INTELIGÊNCIA O tísico José de Alencar E AS PORRADAS LITERÁRIAS Rita de Cássia Elias professora alvez nenhum grande nome da literatura brasileira esteja tão assinalado pela fama de polemista quanto o de José de Alencar. A reputação não é, de fato, gratuita: justificamna as páginas de contendas obstinadas, que se tornaram públicas em artigos jornalísticos regulares. Alencar não discutia apenas com seus pares: dirigia-se aos profissionais da imprensa, aos representantes do poder público, aos historiadores, filólogos e — se bem que em tom mais diplomático e conciliatório — dirigia-se também ao público. A imprensa diária não seria o veículo exclusivo para as controvérsias. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 149 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Alencar deixou registrada sua vocação para o debate num conjunto de escritos, publicados como apensos aos romances, de prólogos, notas esclarecedoras, advertências aos leitores, cartas cujas mensagens se desviavam sutilmente dos destinatários patentes para atingirem um público mais amplo. Mas as respostas às objeções podiam também se expressar sob a forma literária, num jogo com o leitor, na “ficcionalização” da crítica, como veremos. Tal vocação, além de original — talvez não haja no século XIX nenhum escritor tão empenhado no debate público —, também demonstra a diligência de Alencar em esclarecer o leitor, categoria que começava a se formar, fato que, talvez, possa explicar o didatismo do narrador alencariano. Diria, até mesmo, que o conjunto extenso de notas de alguns dos romances, como O guarani, Iracema, Ubirajara e O gaúcho, teria como função elucidar para o leitor um universo cultural e lingüístico que lhe era estranho. Com a publicação “aos pedaços” de O guarani, no Diário do Rio de Janeiro, de fevereiro a abril de 1857, José de Alencar Espécie de escriba decaído, o escritor se adaptará, com alguma resistência, a condições que o ultrapassam e sobre as quais não detém nenhum controle 150 Museu do Imaginário Indígena conquistaria o prestígio do reduzido público leitor da época1, embora não fosse um estreante nos expedientes do mundo jornalístico. Seu acesso ao leitor fluminense já estava garantido pelo Correio Mercantil, em que escreve de setembro de 1854 a julho de 1885, e pelo Diário do Rio de Janeiro, entre outubro e novembro de 1855, periódicos nos quais o autor, recém-formado em Direito, ensaiava sua pena de futuro romancista e iniciava sua vocação para a reflexão do fenômeno literário. Embora no século XIX a imprensa brasileira pudesse ser caracterizada como “literária”2, as gazetas e revistas, cada vez mais presentes no cotidiano da vida da Corte, deveriam atender a um público de interesses heterogêneos, ainda que nascido de um mesmo segmento social — se considerarmos que a burguesia se associava às classes senhoriais —, segmento que buscava entretenimento e informação, conselhos úteis, erudição, discussão política. Os periódicos deveriam conquistar, especialmente, o público feminino e os estudantes, um mercado incipiente, mas promissor e fiel, que começava, na metade do século XIX, a sofrer os impactos dos primeiros programas de modernização. Se considerarmos o teor dos folhetins de José de Alencar, concluiremos que o autor já conhecia o funcionamento dos periódicos e de seu valor na vida da Corte e percebia a importância do consórcio entre literatura e imprensa. Em seus escritos de iniciante já se insinua a percepção do lugar ocupado pelo escritor profissional em uma sociedade em transformação, sua relação com o público leitor e a compreensão do significado da noção de mercado. Seu primeiro folhetim, de 3 de setembro de 1854, se inicia com uma pequena estória — “um conto fantástico” —, aparentemente despretensiosa e ingênua, mas que justifica, alegoricamente, o título da seção “Ao correr I N S I G H T da pena”: um rodapé com textos para serem lidos “ao correr dos olhos”3, segundo a recomendação expressa de seu autor. Na abertura, Alencar dirige-se ao leitor numa comunicação direta e explicita-lhe a natureza daquela escrita, ligeira, mecânica, destituída de inspiração. O escritor, sem musa, ou, por outra, dominado pela “musa industrial”4, não passaria de um autômato, de um escrevinhador. Espécie de escriba decaído, o escritor se adaptará, com alguma resistência, a condições que o ultrapassam e sobre as quais não detém nenhum controle. Ao correr da pena, portanto, Alencar, por dever de ofício, passará em revista assuntos diversificados, característicos dos rodapés dos jornais. Deverá falar de forma bemhumorada e leve a respeito de tudo, exibindo alguma propriedade ao comentar os assuntos mais diversos: de questões relativas à política internacional à limpeza da cidade, de problemas econômicos e financeiros a assuntos dos mais prosaicos, como as indumentárias femininas nas festas e espetáculos teatrais; deverá, em uma seção, transitar sutilmente de assuntos amenos a graves para não cansar o leitor. Como folhetinista, Alencar não sustentará nenhuma polêmica, a não ser algumas repreensões ao avaliar o cotidiano da cidade, com suas transformações e mazelas, e os rumos da política e da economia do país. erá em 1856, antes da publicação do romancefolhetim O guarani, que Alencar fará sua entrada na arena propriamente literária. Sob o codinome de Ig, pseudônimo que, como afirma o próprio Alencar, “fez quebrar a cabeça de muita gente”5, o autor ficcionaliza um leitor, um senhor reservado e afastado da bulha da Corte, que enviará cartas destinadas a “um INTELIGÊNCIA amigo”, a quem pede desculpas pelo tom familiar e a quem concede o direito de publicá-las, desde que mantido o caráter epistolar, em vez do tom de artigo, que exigiria certa dose de gravidade e erudição6. Com efeito, trata-se de um jogo com o leitor e, sobretudo, com seu verdadeiro interlocutor. Afinal, José de Alencar era o próprio redator-chefe do Diário do Rio de Janeiro, gazeta em que serão publicadas as “Cartas”. O destinatário oblíquo, portanto, longe de ser “um amigo”, um suposto editor, seria o próprio autor do poema A confederação dos Tamoios, o escritor Domingos Gonçalves de Magalhães, um dos idealizadores do romantismo. A ousadia seria sem precedentes. Além de marcar os pródromos do romantismo no Brasil com a edição, na França, em 1836, da Revista Niterói e do poema Suspiros poéticos e saudades, Gonçalves de Magalhães, nome já consagrado e respeitado, era protegido por Dom Pedro II, que arcaria com os custos da segunda edição do poema. Gonçalves de Magalhães evita a contenda, mas seus paladinos — Araújo Porto-Alegre, MonteAlverne e o próprio imperador, além de outros anônimos, cujas identidades não foram descobertas — preparam, dois meses depois de publicadas as primeiras cartas de Ig, a defesa do poeta no Correio da Tarde e no Jornal do Commercio. Alencar conta com o apoio de um tal senhor Ômega, provavelmente Pinheiro Guimarães, segundo hipótese de José Aderaldo Castelo7. A confederação dos Tamoios inspira-se num episódio histórico, a reunião de várias tribos para a primeira reação organizada dos autóctones contra a ocupação portuguesa. É muito provável que os franceses tenham sido grandes colaboradores na tentativa de expulsão dos colonizadores. Sob a intervenção dos jesuítas, firma-se um tratado de paz, que não é cumprido pelos portugueses, o OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 151 I N S I G H T INTELIGÊNCIA que resulta num dos grandes massacres da história da colonização européia nos trópicos. Brito Broca considera possível que as investidas de Alencar contra o poema de Gonçalves de Magalhães tenham sido a expressão de uma “vaidade ofendida”. Com as Cartas, Alencar teria respondido à exclusão de seu nome da relação de convidados para a leitura do poema no Palácio de São Cristóvão. Ainda segundo o crítico, Alencar teria se sentido “roubado” no seu propósito de escrever sobre o indianismo8. A apreciação de Brito Broca é discutível, em primeiro lugar porque reduz a importante iniciativa, que Alencar levará a sério, de se fazer a crítica da produção contemporânea, uma “crítica viva”9, a questões de ressentimentos; em segundo, porque, sob a perspectiva de uma disputa pessoal, Brito Broca desqualifica um conjunto de reflexões em que estarão em jogo a análise estilística do poema de Gonçalves de Magalhães e também uma teoria da mímesis, da verossimilhança, da construção do personagem, do enredo, dos gêneros e do estatuto da criação na composição da obra de arte, estando em questão, também, a formulação do indianismo, das propostas nativistas e da afirmação do antilusitanismo. Ig inicia sua primeira carta afirmando que, por não possuir habilitações para uma análise, não pretende fazer um juízo crítico sobre o poema, mas tão-somente registrar as impressões de uma leitura pessoal, de um leitor comum10. Ao contrário do que diz o pseudônimo Ig, contudo, Alencar promove uma análise minuciosa da obra, a partir dos padrões analíticos da época: uma crítica que, hoje, chamaríamos de impressionista, mas que revela perspicácia na reflexão teórica. José de Alencar convoca bom número de autores, de Homero a Gonçalves Dias, não a título de demonstrar erudição, mas a fim de 152 Museu do Imaginário Indígena estimular um debate sobre a constituição da literatura brasileira em relação à “estrangeira”. Alencar recorre à tradição literária ocidental para apontar como nossa literatura pode, a partir de suas especificidades e particularidades, se submeter aos cânones, sem perder, contudo, a originalidade ou a ambição de um projeto próprio. Por isso, a crítica ao poema é contundente tanto a respeito da linguagem empregada por Gonçalves de Magalhães, que, afetado pelo “estudo da poesia estrangeira”, teria perdido o gosto apurado e a suavidade e cadência do verso português”11, como a propósito da construção épica do poema. Segundo Alencar, os enredos das grandes obras no gênero possuem como “causa, ou um grande infortúnio, ou um sentimento poderoso como a nacionalidade e a religião, ou um acontecimento importante como a descoberta de um novo mundo”12. O poema de Magalhães, porém, se serviria “da vingança, mas uma vingança motivada por um fato trivial, um fato bem comum, como era a morte de um índio”, (...no) “tempo de hostilidades constantes entre os invasores e os indígenas”13. Antecipando sua capacidade para a montagem de grandes cenas, Alencar anuncia que, tivesse sido o autor do poema, teria iniciado pelo conselho dos chefes Tamoios e, a partir daí, explicaria a razão da confederação, para fazer “valer o sentimento nacional, a liberdade e o cativeiro dos índios”14. No entanto, seguindo Alencar, no poema de Magalhães, Não é pelo ódio instintivo da cor, não é pelo opróbrio e a vergonha de homens livres reduzidos à escravidão, não é pelo seu belo país, dominados por filhos de terras estranhas; não é para vingar as cinzas de seus pais, não é por nenhum desses incentivos nobres, que os Tamoios se confederam; é unicamente para acabar com os ataques reiterados dos Lusos.15 I N S I G H T Araújo Porto-Alegre será o primeiro “amigo do poeta” a refutar as críticas de IgAlencar. Exatamente como amigo do poeta, tenta descaracterizar os argumentos e imprimir-lhes a marca de uma ofensa pessoal. Além disso, distorce o raciocínio do debatedor e, lançando mão de argumentos ad hominem, transforma as proposições de Ig em “provas” que desqualificariam suas idéias. Segundo Porto-Alegre, ao recorrer à tradição literária ocidental, Ig criticaria a obra por não seguir os cânones, promovendo uma comparação inadequada, em que a literatura brasileira estaria marcada pela falta. Resumindo, Ig não valorizaria a originalidade de nossa produção estética e tampouco trataria com respeito a “pátria” e o zelo daqueles que cantaram sua liberdade. grande princípio, o pensamento edificador que preside ao todo desta obra nacional, não pode ser avaliado por homens cujo coração está vazio; e a quem não importa o futuro daquela grande entidade que denominamos PÁTRIA, enquanto podem viver nos gozos materiais, e refocilar-se nas frioleiras de uma nunca interrompida infância.16 E continua “o amigo do poeta”: Se um brasileiro escreve aqui uma tragédia, é logo comparada com todos os primores conhecidos (...); se escreve um poema, é lançado no barato porque não escureceu Homero (...); e no entanto queremos já, vaidosos madraços, falar em literatura brasileira, e nos nossos grandes homens da época atual, que se parecerão todos no futuro com estátuas mutiladas e remendadas, tais foram as pedradas que levaram da mão daqueles que os deviam acolher e venerar, e circundá-lo de uma bem merecida estima. INTELIGÊNCIA Araújo Porto-Alegre será o primeiro “amigo do poeta” a refutar as críticas de Ig-Alencar. Exatamente como amigo do poeta, tenta descaracterizar os argumentos e imprimirlhes a marca de uma ofensa pessoal Na quinta carta, Alencar-Ig, decepcionado com o “debate” na imprensa, despede-se do suposto amigo-editor, sem dar muita atenção aos contra-argumentos dos debatedores, quando aparecem no Jornal do Commercio as reflexões a propósito das cartas sobre “A confederação dos Tamoios”, assinadas por um “outro amigo do poeta”, na verdade, Dom Pedro II. Reagindo a essas “reflexões”, Ig volta à cena porque reconhece nelas uma polêmica literária, “que tem sempre a vantagem de estimular os espíritos a produzirem alguma coisa de novo e de bom”17. De fato, o “outro amigo do poeta” não se arma com o objetivo de “travar uma luta mesquinha e baixa”18, mas, ao contrário, propõe uma discussão fundamentada e, sobretudo, polida, a respeito das objeções de Ig ao poema de Magalhães, tal como se pode verificar na abertura de suas reflexões: Ocupava-me tranqüilamente com as minhas obrigações quando me fizeram ler as Cartas sobre a confederação dos Tamoios, assinadas por Ig. Não desgostei do seu estilo, e as censuras me abalaram; mas não deparando senão com um ou outro louvor a OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 153 I N S I G H T INTELIGÊNCIA certas passagens do poema, assaltou-me a curiosidade de examinar se os Suspiros Poéticos, que tanto me agradam, tinham sido os últimos do poeta. Procurei o poema, obtive-o enfim, com algum custo, pois só há pronta a edição imperial, e, estudando-os, assim como a crítica, julguei dever apresentar estas reflexões, ainda que escritas com pena mal aparada: sigo a ordem das censuras.19 Alencar dará continuidade à discussão com a publicação de mais três cartas. As Cartas sobre a confederação dos Tamoios não podem ser reduzidas a uma vindita. Trata-se de uma reflexão que repercutirá em toda a obra de Alencar, especialmente nos romances indianistas, nos quais ele recusa o nativismo, o antilusitanismo, característicos dos primeiros românticos. Para alguns críticos, a obra de Alencar ocultaria uma história de extermínio. Contudo, a lógica da fundação da nacionalidade nos romances de Alencar não comportaria o herói indígena decaído, embora ele não negasse as atrocidades cometidas contra os nativos. Essa era a história, mas o As Cartas sobre a confederação dos Tamoios não podem ser reduzidas a uma vindita. Trata-se de uma reflexão que repercutirá em toda a obra de Alencar 154 Museu do Imaginário Indígena escritor pretendia, utopicamente, criar uma “nova nacionalidade”20, na qual não poderiam faltar os elementos europeu e o autóctone. Note-se que, com as Cartas sobre a confederação dos Tamoios”, a questão indianista ganhará nuanças, que estarão presentes em O guarani, Iracema e Ubirajara. Ou seja: a proposta indianista de Alencar difere da de seus antecessores. Por mais que pareça estranho, nos romances indianistas se insinuarão, simbolicamente, os traços do ideário liberal. A liberdade do autóctone não é um mero lugar-comum romântico, mas o ideal de um mundo destituído de hierarquias, subordinações e relações de dependência, como é o universo, por exemplo, da família Mariz, cujo líder, um fidalgo, é a expressão de uma suposta vontade coletiva. A recuperação do passado e do mundo medievo são redimensionados na obra de Alencar. Não é por acaso que o solar dos Mariz implode, e Ceci e Peri, solitários, sobre a copa de uma palmeira, desaparecem no horizonte após o dilúvio. Em 1871, Alencar, àquela altura um romancista já popular, é o alvo de uma polêmica no periódico fluminense Questões do dia, dirigido pelo escritor português José Feliciano de Castilho e custeado pelo imperador. O objetivo inicial do periódico, promover um ataque sistemático ao Alencar político, é logo desviado para as questões literárias com a entrada em cena de Franklin Távora. Sob o pseudônimo de Semprônio e Cincinato, Távora e Castilho, respectivamente, trocam correspondências a respeito da obra de Alencar, especialmente O gaúcho e Iracema. Anônimos também participam da polêmica, seja para defender ou atacar Alencar. Embora o nível dos ataques seja rasteiro, superficial e bastante contraditório, sua importância está no fato de a literatura permanecer na ordem do dia através das gazetas, através, portanto, de veículo acessí- I N S I G H T vel a um conjunto expressivo de leitores. Tal polêmica expressa uma fase intermediária entre o romantismo, já decadente, e os primeiros sinais dos influxos das novas concepções estéticas, isto é, o realismo e o naturalismo. Segundo Távora, a “renovação faz-se pela observação”21. Note-se que nas Questões do dia a prosa de Alencar, que a partir de 1870 passa a usar o pseudônimo de Sênio, é desqualificada por não ser um retrato fiel do objeto abordado. (...) Sênio tem a pretensão de conhecer a natureza, os costumes dos povos (todas essas variadas particularidades, que só bem apanhamos em contato com elas) sem dar um só passo fora do seu gabinete. Isto o faz cair em freqüentes inexatidões, quer se proponha a reproduzir, quer a divagar na tela22 Alencar é criticado por ser um escritor de gabinete, que além de não fazer observações in loco, não se afiançava no discurso dos historiadores e filólogos: a “imaginação atrofiada nas cidades só pode procriar a mentira, a falsidade (...). É preciso (...) experimentar verdadeiramente todas as sensações da inspiração não fictícia, mas real”23. Ainda segundo Távora, “mais razão tinha Balzac: não fundava ação nenhuma em lugar que não conhecesse”24. O que está em questão é, mais uma vez, a verossimilhança e o estatuto da ficção. Desconhecem-se registros de respostas de Alencar nas folhas a essas objeções25. As críticas, contudo, produzem grande efeito. Em Bênção paterna, prefácio ao romance Sonhos d’ouro, de 1872, Alencar revida obliquamente as críticas, mas, sobretudo, apresenta um texto no qual se expressa a consciência do autor quanto à situação da literatura num país colonizado, às condições adversas que tem de enfrentar o escritor para viver de seu ofício, à condição dos leitores e à inépcia da crítica. Além disso, INTELIGÊNCIA sistematiza seu programa literário e reflete sobre as fases da literatura brasileira. Távora e Castilho criticaram-lhe também o uso da língua e a adaptação de palavras estrangeiras à morfologia portuguesa; Alencar torna patente sua visão sobre as diferenças entre a língua falada pelos portugueses e a falada pelos brasileiros, antecipando as questões levantadas por Mário de Andrade. Os ventos da modernidade, do progresso e das influências estrangeiras são também avaliados como fenômenos inevitáveis, dos quais o homem de letras não pode escapar. Vale a pena transcrever alguns trechos do prefácio. Palheta, onde o pintor deita laivos de cores diferentes, que juntas e mescladas entre si, dão uma nova tinta de tons mais delicados, tal é a nossa sociedade atualmente. Notam-se aí, através do gênio brasileiro, umas vezes embebendo-se dele, outras invadindo-o, traços de várias nacionalidades adventícias; é a inglesa, a italiana, a espanhola, a americana, porém especialmente a portuguesa e francesa, que todas flutuam, e a pouco e pouco vão diluindo-se para infundir-se n’alma da pátria adotiva, e formar a nova e grande nacionalidade brasileira.26 Ainda segundo o autor, os críticos, em vez de se preocuparem com os neologismos — e nesse caso a reflexão é visivelmente endereçada a Távora e a Castilho deveriam se ocupar em “joeirar o trigo do joio, censurando o mau, como seja o arremedo grosseiro, mas aplaudindo a aclimatação da flor mimosa, embora planta exótica, trazida de remotas plagas.27” E a conclusão de seu ensaio não poderia ser mais irônica: “O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?”28 OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 155 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Segundo Antônio Cândido29, o romance Ubirajara, por sua preocupação etnográfica, seria também uma resposta aos ataques de Távora e Castilho. De fato, a retomada do indianismo se faz de forma distinta das produções anteriores. O romance refere-se a um mundo pré-cabralino e é repleto de notas explicativas, que legitimam o universo cultural do indígena, inclusive a prática da antropofagia. Se Alencar fora acusado de não se fundamentar no discurso dos cronistas e historiadores, nas notas de Ubirajara ele trava um diálogo com o discurso autorizado, não para aceitá-lo, mas para questioná-lo30. As refutações às críticas não estacionam aí. Dentre tantas outras, destaca-se a polêmica com Joaquim Nabuco. A contenda, publicada em O Globo, estende-se de 22 de setembro de 1875 a 21 de novembro de 1875. Alencar escreve às quintas e Nabuco aos domingos. Não teria se transformado em polêmica, não fosse o melindre de Alencar a propósito de um artigo, curiosamente favorável ao escritor, de Joaquim Nabuco. O objeto da questão era o drama O jesuíta, cuja encenação contou com o descaso do público fluminense. “O teatro São Luís tinha menos de meia casa”31, segundo Nabuco. Ora, para uma sociedade cujo lazer principal era o espetáculo teatral, a ausência da platéia significava um fracasso retumbante. Nabuco publica uma crítica respeitosa em que reverencia o grande nome da literatura brasileira, apresenta os méritos da peça, mas aponta também algumas deficiências, o que já é o bastante para Alencar propor uma contenda com a publicação de quatro artigos. Nabuco aceita a provocação e, de defensor do escritor, passa a acusá-lo, o que renderá réplicas e tréplicas, a ponto de Alencar invocar o respeito à sensibilidade do público, que não deveria mais ser incomodado com as “murmurações de uma crítica cediça”. A discussão, então, ultrapas156 Museu do Imaginário Indígena sa o drama e envolve a obra de Alencar. As páginas de réplicas e tréplicas, ainda que fruto de ressentimentos e de intolerâncias recíprocas, constituem documentos que iluminam a concepção estética, histórica, filológica e sociológica de Alencar num momento em que o romantismo declina para dar lugar a uma arte naturalista e realista, inspirada nas novas correntes de pensamento: no positivismo, no determinismo e no evolucionismo. Talvez na polêmica com Nabuco, o debate mais interessante se dê em torno do romance Lucíola (1862). Nabuco elenca um conjunto de deslizes da cortesã fluminense: seus pecados estariam na falta de originalidade e de moralidade, na linguagem impudente, na incoerência da construção da protagonista, cindida e contraditória, e do personagem-narrador. Em nome de um suposto realismo, Nabuco condena a obra. Além disso, segundo ele, se a existência das cortesãs era um fato, não caberia ao escritor expor as “máculas” da sociedade. Estranho realismo de Nabuco, que estará sempre tentando ocultar as “mazelas” sociais e, sob uma perspectiva antiescravocrata, contudo europeizante e aristocrática, condena a encenação dos dramas alencarianos que expõe a público a escravidão, porque essa “nódoa” afronta a sociedade que se quer civilizada. Do mesmo modo, os romances indianistas são censurados: segundo Nabuco, Alencar “quis desacreditar a sociedade brasileira, a vida civilizada do nosso país, os elementos de poesia que podem ter em si a raça européia que o povoou”32. A contra-argumentação de Alencar já perde em força e vitalidade: cai nas armadilhas de Nabuco e não consegue, de fato, refletir de forma aguda, como fizera antes, sobre o que poderíamos chamar de uma teoria literária. As críticas que Alencar não conseguiu responder de forma eficientes podem ser, hoje, um manancial para a I N S I G H T recuperação de sua obra. Em Lucíola, por exemplo, as faltas enunciadas por Nabuco podem ser lidas como méritos da obra. Lucíola é especial porque nele o perfil da personagem Lúcia/Maria da Glória é construído aos olhos do leitor mediatizado pelo relato de Paulo, personagem-narrador, cujo discurso se estrutura gradualmente, obedecendo ao movimento de percepção de uma realidade cambiante, na qual, no tempo do enunciado, o personagem está submerso. A heroína é bifronte — ela é a cortesã despudorada e a moça casta — e Paulo, um provinciano na Corte, cujos códigos não domina, problematiza a experiência vivida. Em Lucíola, as dicotomias ganham relevo e dimensão conflitiva, tanto no que diz respeito à consciência da personagem, quanto à esfera da interpretação do real. Em primeiro lugar, porque em Lúcia coexistem dois princípios, duas faces, duas essências. Em segundo lugar, porque, na convivência com Lúcia, Paulo experimenta um mundo fracionado. Ao tentar compreendê-lo e, assim, restituir-lhe a integridade, revela suas fissuras. Pode-se dizer que, com Lucíola, Alencar antecipa uma tendência que se consagrará no romance moderno, isto é, a narrativa em primeira pessoa, de um personagem que, protagonista na trama, problematiza o ato de narrar. esmo que desavenças particulares tenham de fato estimulado Alencar em algumas das disputas, elas perdem a dimensão doméstica, uma vez que, no espaço público, as questões suscitadas e discutidas — que, em alguns casos, rendem réplicas e tréplicas — expressam as reflexões que correlacionam aspectos literários a temas integrantes da ordem do dia da sociedade do Segundo Reinado. INTELIGÊNCIA A heroína de Lucíola não é uma leitora frívola. Elege os livros como paradigmas de sua própria história — paradigmas a serem adotados ou refutados Alencar não exercita, portanto, a “crítica de esquina”, expressão empregada por ele para designar “as pequenas intrigas”, refugiadas em círculos restritos, às quais não se poderia conceder sequer o estatuto de “crítica”. Consciente do significado do debate público, Alencar rejeita a resposta pessoal por tratar-se de um desrespeito com o interlocutor e com o conjunto de leitores participantes da “pequena palestra”33. Assim, com sua disposição para enfrentar e suscitar controvérsias, Alencar despertará reações, mobilizará opiniões e provocará uma atmosfera de debates talvez sem precedentes em nossas letras. Note-se que Alencar ficcionaliza um leitor crítico, reflexivo e criterioso. A heroína de Lucíola não é uma leitora frívola. Elege os livros como paradigmas de sua própria história — paradigmas a serem adotados ou refutados. Com isso, ela constrói seu próprio enredo e decide sobre seu destino. G.M., a fiel depositária das cartas escritas pelo personagem-narrador, é também uma leitora, que organiza, seleciona, interpreta, atribui significados, formaliza suas conclusões, antes de editar o OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 157 I N S I G H T INTELIGÊNCIA material que lhe fora confiado. Apensas ao romance Senhora (1875), publicam-se uma “Nota” esclarecedora e uma “Carta” assinada por Elisa do Vale, dirigida a Paula de Almeida. Alencar urde uma polêmica entre leitoras a propósito da fisiologia dos personagens que compõem o romance e da verossimilhança da narrativa, debate que, fictício, teria sido travado na seção do folhetim do Jornal do Commercio. Note-se que a personagem Elisa do Vale não se propõe a defender o autor, mas o desenvolvimento dramático da obra. A importância atribuída por Alencar ao estatuto da atividade crítica, à formação de leitores à opinião pública é tamanha que se expressa no interior mesmo de sua obra ficcional. NOTAS 13. ID. 1. SEGUNDO RELATO DE TAUNAY, EM SUAS REMINISCÊNCIAS, OS FASCÍCULOS DE O GUARANI ERAM AVIDAMENTE ESPERADOS E CONSUMIDOS NA CORTE E EM SÃO PAULO E TERIAM DESPERTADO UM EXTRAORDINÁRIO ENTUSIASMO, “UMA VERDADEIRA NOVIDADE EMOCIONAL, NESTA CIDADE TÃO ENTREGUE ÀS PREOCUPAÇÕES DO COMÉRCIO E DA BOLSA”, SOBRETUDO NOS “CÍRCULOS FEMININOS E NO SEIO DA MOCIDADE, ENTÃO MUITO MAIS SUJEITA AO INFLUXO DA LITERATURA”. VISCONDE DE TUANAY, REMINISCÊNCIAS, APUD NELSON WERNECK SODRÉ, A POSIÇÃO DE ALENCAR (PREFÁCIO), IN JOSÉ DE ALENCAR, SONHOS D’OURO, RIO DE JANEIRO, JOSÉ OLYMPIO, 1955, P. 12. 14. ID. email: [email protected] 15. JOSÉ DE ALENCAR, CARTAS SOBRE “A CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS”, IN OBRAS COMPLETAS, P. 870, V.4 16. ARAÚJO PORTO-ALEGRE, BREVE RESPOSTA ÀS CARTAS DO SR. IG..., IN JOSÉ ADERALDO CASTELO, OP.CIT, P. 69. 17. JOSÉ DE ALENCAR, CARTAS SOBRE A CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS, IN OBRAS COMPLETAS, RIO DE JANEIRO, AGUILAR, P. 896, V. 4 18. IBID., P. 897. 2. V. ISABEL TRAVANCAS, O LIVRO NO JORNAL, SÃO PAULO, ATELIÊ EDITORIAL, 2001, P.25-26. 19. DOM PEDRO II, REFLEXÕES ÀS CARTAS SOBRE A CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS, IN JOSÉ ADERALDO CASTELO, OP. CIT., P. 93. 3. JOSÉ DE ALENCAR, AO CORRER DA PENA, IN: OBRAS COMPLETAS, RIO DE JANEIRO, AGUILAR, 1960, P. 639-640, V.4. 20. V. JOSÉ DE ALENCAR, BÊNÇÃO PATERNA, IN SONHOS D’OURO, IN JOSÉ DE ALENCAR, OBRAS COMPLETAS. 4. USADA POR ALENCAR EM “BÊNÇÃO PATERNA” (PREFÁCIO A SONHOS D’OURO), A EXPRESSÃO “MUSA INDUSTRIAL” DEVE SER UMA REFERÊNCIA À EXPRESSÃO “LA LITTÉRATURE INDUSTRIELLE”, 21. SEMPRÔNIO, CARTAS A CINCINATO, PERNAMBUCO, W. DE MEDEIROS; PARIS, AILLAUD E GUILLARD, 1872, P. 16 EMPREGADA COM SENTIDO PEJORATIVO PELOS CRÍTICOS FRANCESES AO ROMANCE-FOLHETIM. SOBRE O ASSUNTO, V. MARLYSE MEYER, FOLHETIM — UMA HISTÓRIA, SÃO PAULO, COMPANHIA DAS LETRAS, 1996. 5. JOSÉ DE ALENCAR, CARTAS À “CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS”, IN OBRAS COMPLETAS, RIO DE JANEIRO, AGUILAR, 1960, P. 863, V.4. 6. IBID., P. 864-868. 7. J OSÉ A DERALDO C ASTELO , A POLÊMICA SOBRE “A CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS”, SÃO PAULO, FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1953. 8. B RITO B ROCA, O RIGENS DA CRÍTICA NO B RASIL , IN ROMÂNTICOS, PRÉ-ROMÂNTICOS E ULTRA-ROMÂNTICOS, SÃO PAULO, POLIS; BRASÍLIA, INL, 1979, P. 73-75. 9. ANTÔNIO CÂNDIDO USA A EXPRESSÃO PARA DISTINGUÍ-LA DE OUTRAS PRÁTICAS INTELECTUAIS SURGIDAS COM O ROMANTISMO, TAIS COMO A ELABORAÇÃO DE ANTOLOGIAS, A INVESTIGAÇÃO BIBLIOGRÁFICA E A COMPOSIÇÃO DE HISTÓRIAS LITERÁRIAS. V. ANTÔNIO CÂNDIDO, OP.CIT., P. 348-369, V. 2. 10. JOSÉ DE ALENCAR, CARTAS SOBRE “A CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS”, IN OBRAS COMPLETAS, RIO DE JANEIRO, JOSÉ OLYMPIO, 1960, P. 864, V.4. 11. JOSÉ DE ALENCAR, IBID., P. 867. 12. ID. 158 Museu do Imaginário Indígena 22. IBID., P.15. 23. IBID., P. 16. 24. IBID., P. 16. 25. O V. 4 DAS OBRAS COMPLETAS DA AGUILAR TRAZ UM ENSAIO INTITULADO “O VATE BRAGANTINO”, CUJO OBJETO É DISCUTIR A PRODUÇÃO POÉTICA E OS TRABALHOS DE TRADUÇÃO DE CASTILHO. AO QUE PARECE, ALENCAR NÃO CHEGOU A CONCLUIR E A PUBLICAR TAL ENSAIO. 26. JOSÉ DE ALENCAR, BÊNÇÃO PATERNA , IN SONHOS D’OURO, RIO DE JANEIRO, JOSÉ OLYMPIO, 1950, P.35. 27. IBID., P. 36. 28. IBID., P. 38. 29. ANTÔNIO CÂNDIDO, OP. CIT., P. 222, V. 2 30. V. JOSÉ DE ALENCAR, UBIRAJARA, RIO DE JANEIRO, JOSÉ OLYMPIO, 1957. 31. JOAQUIM NABUCO, O JESUÍTA, IN AFRANIO COUTINHO (ORG.), A POLÊMICA ALENCAR–NABUCO, RIO DE JANEIRO, TEMPO BRASILEIRO; BRASÍLIA, UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, 1978, P. 16. 32. JOAQUIM NABUCO, AOS DOMINGOS, IN AFRÂNIO COUTINHO, OP. CIT., P. 113-114. 33. JOSÉ DE ALENCAR, “A COMÉDIA BRASILEIRA”, IN COMPLETA, VOL. IV, P. 42-46. OBRA I N S I G H T 160 Entrevista INTELIGÊNCIA I N S I G H T INTELIGÊNCIA A idéia de uma entrevista com Gillo Pontecorvo surgiu a partir de um bate-papo com amigos cinéfilos, da percepção da grande atualidade dos filmes do veterano diretor italiano, há muito sumido das telas. P ara os que desconhecem, Gillo dirigiu alguns dos filmes de carga política mais marcantes do cinema italiano e mundial. Quem assistiu Queimada ou Batalha de Argel sabe do que eu estou falando. Hoje, é um homem combativo na defesa da sobrevivência de um cinema não-americano, batalha difícil mas não inglória. Os EUA dominam 85% do mercado mundial de cinema, sufocam a possibilidade de exibição do produto médio dos demais países e impõem a “Pax Americana” não só pelas armas mas também – e muito – pelo entertainment. G illo é, portanto, um guerreiro. Um velho guerreiro de grande lucidez e combatividade. A entrevista, por telefone, não foi fácil. As barreiras lingüísticas, sempre presentes, encaradas por Gillo com um bom-humor nem sempre presente, geraram alguns momentos de tensão interatlântica. O produto final, julguem agora. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 161 I N S I G H T INTELIGÊNCIA L U I Z A N T O N I O V I A N A : A unilateralidade do poder mundial, expressa de forma espetacular na recente guerra que o Império anglo-saxão travou com o Iraque, ameaça com tempos de dominação e conformismo. O cinema sempre reservou um espaço para o seu próprio bunker de resistência. Vem aí um novo filme de auspiciosa bravura ou chegamos mesmo ao “fim da História”? Afinal, os americanos detêm 85% do mercado mundial. PONTECOR VO: O cinema foi edificado em cima NTECORV da esperança. Portanto, seus alicerces são sólidos. Acho que o tempo de reclamação está superado. Todos sabemos da hegemonia da produção audiovisual americana no mundo. Não creio que o sucesso do cinema americano se deva à sua superioridade qualitativa. Mas em organização e marketing eles estão anos-luz à nossa frente. E não adianta ficar lamentando. Precisamos nos mexer. Levando em conta que existem cerca de 650 milhões de possíveis consumidores de nossas imagens no mundo, a saída é tentar se organizar melhor, imitar os americanos que estão à nossa frente. O desafio é dar início a uma série de ações afetivas como os prêmios que distribuímos nos grandes festivais europeus — Cannes, Veneza e Berlim. Pretendemos estender essas premiações a outros festivais. LAV: Alguns países, e a França é um exemplo notório, têm sido reativos a essa nova colonização, adotando um sistema de reserva de mercado. Qual a sua opinião sobre essa estratégia de sobrevivência? PONTECOR VO: Considero a reserva de mercaNTECORV do uma alternativa razoável para ser adotada a curto prazo, mas é uma situação que não deve persistir indefinidamente. Em princípio, poderia possibilitar a distribuição e exibição inclusive de filmes feitos em países do Terceiro Mundo. Acredito que essa poderia ser uma boa alternativa para vocês. 162 Entrevista LAV: O senhor considera que o fenômeno Silvio Berlusconi deve ser analisado sob a ótica do nascimento de um neopopulismo? É possível antever o antagonismo Berlusconi versus cinema italiano? PONTECOR VO: Creio que Berlusconi e o berNTECORV luconismo representam um grande perigo tanto para a nossa cultura quanto para o cinema. É uma ameaça que está posta e que pode crescer de forma assustadora. Ainda não é algo que poderíamos chamar de ditatorial, mas, evidentemente, caminha nessa direção. LAV: Não existe mais o cinema italiano como havia na época de Fellini, de Monicelli, de Scola e de Sica. Isso é saudosismo nosso ou existe mesmo um declínio? Qual a razão que o senhor atribui para tal mudança? P O NTECOR VO : O senhor quer dizer que o NTECORV cinema italiano atual não é tão grande como foi antes, não é? Bem, eu não dramatizaria tanto assim, pois em todas as formas de expressão artística, como na música, nas artes plásticas, na literatura de todos os países, há altos e baixos. É certo que nos últimos sete ou oito anos o cinema italiano não produziu obras muito boas. Mas tenho a impressão de que estamos retomando a produção. E não creio que esteja sendo otimista ao dizer que estamos apenas começando... Essa retomada toma diferentes aspectos, tais como, por exemplo, uma nova vontade nos autores jovens, mas não somente nos tão jovens, de se interessar pelo que está à nossa volta, em vez de se limitarem aos minimalismos (o que certamente não era tão positivo e que foi a característica do cinema italiano dos últimos anos). É preciso investir em co-produções, distribuição e campanhas publicitárias para fazer nosso cinema voltar a um status superior. E como sempre, é preciso mergulhar em humanismo. LAV: Na sua opinião, recentemente, qual é o melhor filme italiano? I N S I G H T INTELIGÊNCIA PONTECOR VO: É difícil eleger o melhor. TeNTECORV nho visto filmes de autores jovens e seus primeiros e segundos filmes dão claramente a sensação dessa retomada. Vou citar somente um que vi por acaso. Insisto: foi por acaso mesmo. O filme é Domenica, de Wilma Labarte, que dá a sensação de alguém que é jovem e que tem tudo para se tornar uma ótima diretora. Poderia citar outros cinco ou seis, mas menciono esse porque foi o último a que assisti. Por acaso, já passou no Brasil? LAV: Infelizmente, acho que não. PONTECOR VO: Então se movimentem, através NTECORV dessa publicação e de outras, para que ele chegue ao Brasil. É um grande filme. LAV: Muitos acreditam que estamos órfãos de utopias. O senhor acredita que o cinema também sofre desta perda? PONTECOR VO: Considero que esse é um dos NTECORV elementos mais importantes, mas não o dominante. Essa utopia está à espreita e pode ser vislumbrada nas tentativas de alguns cineastas que tentam romper com um circuito apenas comercial. Mas, não resta dúvida que cineastas políticos parecem ter cada vez menos lugar num mundo indiferente. Não é que as contradições tenham deixado de existir. Muito pelo contrário: basta abrir os jornais e ler. É que essas contradições deixaram de ser apresentadas no mundo dos espetáculos, do cinema em particular. o declínio do cinema político pode ser uma decorrência do desinteresse geral pela política. Qualquer pesquisa de opinião junto às diversas camadas da população revela hoje uma série de interesses dominantes ou instituições mais críveis do que a política tradicional. Não sei se sempre foi assim, porque essas medições antes não existiam. Talvez as condições históricas sejam menos propícias ao surgimento de energias transformadoras ou transgressoras. Mas tenho esperança de que a participação política da população recrudesça e leve o cinema de volta nessa direção. LAV: O chamado cinema político, de engajamento ideológico, estaria vivendo uma espécie de crepúsculo? PO NTECOR VO: Tudo está sempre muito inNTECORV terligado, dependendo da situação geral. O interesse político momentaneamente diminuiu nos últimos anos. Insisto em dizer que é momentaneamente. Naturalmente o cinema se ressente disso. Como o considero um instrumento de crítica e interpretação da realidade, L AV: O excesso de informação fragmentada, nas mais diversas mídias, é uma espécie de refrator da reflexão mais aprofundada e do tempo mais vagaroso para as imagens cinematográficas. Será que temos um novo dilema do tipo informação commoditizada versus cinema de autor ou cinema de pensamento? PO NTECOR VO : Há uma influência negativa NTECORV por parte da divulgação dessa linguagem e esse OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 163 I N S I G H T INTELIGÊNCIA é certamente um perigo contra o qual os autores devem lutar. Não acredito no cinema apenas como diversão, acho que se trata de uma estética política. Em Batalha de Argel , por exemplo, trabalhei com o que chamo de “ditadura da verdade”. Tudo que parecia verdadeiro era imediatamente descartado. Quando terminei o filme sugeriram que eu deveria pôr um aviso dizendo que não utilizara uma única cena extraída de cinejornais. Foi o maior elogio que recebi. Queria cenas de cinejornal, granuladas, mas não medíocres como elas costumam ser. Os autores, portanto, devem lutar contra esse tipo de informação fragmentada, porque do contrário, isso determinará uma decadência, uma fase mesquinha na cultura e no conhecimento geral. LAV: O senhor acredita que a TV a cabo, a Internet e outros tipos de mídias modernos poderão ser aliados ou inimigos do cinema? Ou são os vírus de última geração de uma cultura cinematográfica independente? PO NTECOR VO : De um lado eles podem ser NTECORV bons porque vão ajudar os meios de distribuição e ainda podem permitir uma maior divulgação de um certo tipo de cinema de autor. Acho que existem as duas possibilidades de tanto serem aliados como inimigos. É preciso lutar para que a possibilidade positiva prevaleça. L AV: No Brasil o governo do presidente Lula tem demonstrado a intenção de submeter o conteúdo da produção artística a ditames da política de Estado. Já vimos este filme e o resultado não foi bom. Gostaria de ouvir suas considerações em relação aos limites da intromissão do Estado. Por outro lado, como sobreviver, notadamente nos países do Terceiro Mundo, sem o patrocínio do Estado? O senhor tem assistido a filmes brasileiros? PONTECOR VO: Vou começar pela última perNTECORV gunta. Tenho um grande amor pelo Brasil, onde estive duas ou três vezes. Gostaria que na Itália circulassem mais filmes brasileiros, mas também seria necessário que os distribuidores italianos procurassem promover essa possibilidade para o cinema brasileiro. Quanto à política do presidente Lula, não a conheço o bastante, mas tenho a impressão de que Lula é uma pessoa sábia e que, portanto, saberá colocar limites à intervenção — ou intrusão — do Estado na criação artística. LAV: No final, sempre voltamos ao dilema de mais ou menos Estado. PONTECOR VO: O senhor tem razão: o Estado NTECORV é quem investe e pode investir. E deve aplicar o dinheiro em tudo que eleva a cultura nacional. Mas é preciso que todos tomem cuidado para que esse investimento não signifique intrusão. Porque no mundo inteiro onde houve essa interferência, ocorreram desastres de grandes proporções, trazendo prejuízos irreparáveis à cultura nacional. L AV: Como é a colaboração entre TV italiana e o cinema? A RAI fez muito pelo cinema? PONTECOR VO: Sim, a televisão e a RAI fazem NTECORV muito. Na Itália eu diria que a televisão é muito mais ágil, o que foi positivo para o cinema. Mas devemos sempre resistir para que isso não signifique padronização. Pode representar uma ajuda no plano econômico, tão necessária como o pão, mas é preciso ter cuidado quando querem se intrometer na criação. LAV: O senhor tem algo a dizer a nossos leitores do Brasil? PONTECOR VO: Que está em meus planos reNTECORV tornar, em breve, ao Brasil que considero um país maravilhoso e cheio de fascinação. email: [email protected] 164 Entrevista I N S I G H T INTELIGÊNCIA BOLETIM DE OCORRÊNCIAS II Eloí Calage Jornalista Alô! Um bando de macacos-guariba salta sobre uma jaca madura que acabaram de colher, sacudindo os galhos da árvore. Quando fazem silêncio, quem aparece é a jandaia, que encontrei vivendo com a prole no telhado do meu escritório. Me disseram que enchem tudo de piolho. Estou disposta a despejar a família e, para isso, contratei um especialista em bichos, o carpinteiro Zacarias. — O senhor sabe aninhar elas noutro lugar? — Fosse eu não lutava contra jandaia, não. Dê abrigo. Não é de fincar paragem, quando avoarem a senhora fecha o buraquinho do telheiro... na volta elas procura outro paradeiro. 126 Delegacia de Costumes I N S I G H T INTELIGÊNCIA Jandais não são os únicos invasores que encontrei na chácara. Há outros, mais temidos. — E a coral? — Tem três ano que não benze as quatro ponta do terreno, Dona-menina. Desse jeito, não tem oração velha que agüente. É só encomendá a reza e elas se vão pra mata, igualzin que nem inhantes. Pois não é que a coral que fixara residência — também na companhia de filhotes — na caixa de fiação do telefone (seria uma coral-araponga?) sumiu depois da reza? Como vês, a chácara Jandaia é um condomínio e tanto. Sem falar no cachorro, galinhas, borboletas, miles de insetos de tudo quanto é jeito, lagartos... O duro é o domingão do faustão e este silêncio todo... Graças a deus, amanhã é segunda e tenho uma reunião de trabalho às oito e meia da matina. Ganhar o pão com o suor do rosto, tudo bem. Duro é ganhar o pão no silêncio da mata! Diz aí, Rio de Janeiro! email: [email protected] OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 127 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Chernoviz e a medicina no Império FLAVIO COELHO EDLER HISTORIADOR MARIA REGINA COTRIM GUIMARÃES MÉDICA ANGIN A NGINA NO PEITO – ANGINA NERVOSA, STRENALGIA, CATANHO SUFFOCANTE. APERTO DOLOROSO DO PEITO QUE VEM POR ACESSOS – ADMINISTRAR 10 A 15 GOTTAS DE ETHER SULFURICO EM MEIA XÍCARA D’ÁGUA FRIA COM ASSUCAR, CHÁ DE FOLHAS DE LARANJEIRA OU DE HERVA CIDREIRA. DAR A RESPIRAR ETHER, VINAGRE, CHLORIFORMIO. APPLICAR SINAPISMOS NAS PERNAS E UM CATAPLASMA DE LINHAÇA MUITO QUENTE NAS COSTAS; DAR UM CLYSTER D’ÁGUA MORNA COM 20 GOTTAS DE LAUDANO. BANHO MORNO GERAL. CAUSTICO NO PEITO. CAFÉ. FUMIGAÇÕES COM INFUSÃO DE ESTRAMONIO, MEIMENDRO, BELLADONA. PARA PREVENIR AS CRISES COSTUMÃO EMPREGAR OS MEDICAMENTOS TÔNICOS 632. QUINA, PREPARAÇÕES DE FERRO, BANHOS DE MAR. PURGANTES 629. 128 Comitê Olímpico Brasileiro I N S I G H T U m dos aspectos ainda pouco conhecido do processo de institucionalização da cultura médica acadêmica no Brasil oitocentista refere-se ao papel desempenhado pelos compêndios de medicina popular. Muito mais que a educação médica regular e o contato com os médicos, eles foram o principal instrumento de penetração de saberes e práticas sancionados pelas instituições médicas oficiais no quotidiano da maioria daquela população. Para se compreender o alcance deste tipo de difusão informal do saber médico acadêmico é preciso levar em conta a carência de médicos nas vastas regiões rurais por onde se dispersava o grosso da população brasileira. É sabido que, até finais do século XIX, a reduzida corporação médica se concentrava na Corte do Rio de Janeiro e em Salvador, com expressão secundária nas capitais de algumas províncias como Recife, Porto Alegre, Ouro Preto e São Paulo1. Desde o fim da censura imposta aos livros pela Coroa portuguesa, houve um aumento substancial do número de livrarias e de impressoras e o co- INTELIGÊNCIA mércio de obras de medicina para leigos conquistara um mercado considerável2. Os livros de medicina autoinstrutivos satisfaziam, assim, os interesses dos donos de escravos, que pretendiam manter a saúde de sua força de trabalho com o mínimo de despesas, e os poucos letrados, que em variadas circunstâncias exerciam diferentes ofícios de cura voltados para o enorme contingente de pobres desamparados. Nesses dois casos, como veremos adiante, os conhecimentos veiculados por tais manuais seriam reinterpretados e mesclados com as tradições empíricas consolidadas pelas demais artes de cura, resultando num amálgama entre elementos de folk medicine e medicina acadêmica. A o contrário do ocorrido nos Estados Unidos, onde esses manuais eram a expressão de um movimento de afirmação de setores da medicina popular contra os privilégios reivindicados pela profissão médica3, no Brasil esse tipo de literatura era produzida por médicos com a chancela da Academia Imperial de Medicina (AIM). Lembremos que a organização profissional e re- OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 129 I N S I G H T gulamentação do ensino médico no Brasil, como atividade diversa da praticada por barbeiros, sangradores, algebristas, práticos curiosos, herbaristas, comadres e curandeiros, começou apenas no início do século XIX, motivada pela súbita fuga da Corte portuguesa, ameaçada pelas tropas francesas, para a cidade do Rio de Janeiro. Naquela ocasião, o Príncipe Regente D. João inicia uma série de reformas de cunho liberal, criando os primeiros estabelecimentos de caráter cultural. No tocante à medicina, instalou dois cursos de cirurgia e anatomia nos hospitais militares de Salvador e Rio de Janeiro (1808), pondo término à era dos físicos e cirurgiões formados na Europa. Iniciavase, assim, uma forte tradição clínica marcada pela figura do médico-defamília que atuava, ora como clínico, ora como cirurgião, ora como conselheiro higienista. Embora a influência francesa tenha marcado amplamente o saber e as instituições médicas oficiais da época, convém não esquecer que o ambiente médico vigente era herdeiro de uma multiplicidade de práticas, conceitos e métodos reproduzidos de modo ar- 130 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA tesanal pelas diferentes etnias que aqui interagiam4. C ircunscrita aos centros urbanos de apenas algumas províncias, e relativamente cara, a assistência médica oficial era inacessível para quem se encontrava à margem das confrarias religiosas ou das redes de clientelismo promovidas pelos membros da classe senhorial. Até 1841, ano em que foi publicada a primeira edição do Formulário e Guia Médico de Pedro Luís Napoleão Chernoviz (1812-1881), que obteve imediatamente imensa popularidade, os brasileiros pobres podiam recorrer a quaisquer das variações polimorfas das tradições de cura e práticas artesanais que resultaram da longa experiência colonial, dentre as quais se achava o livro de William Buchan, Domestic Medicine, de 1769, traduzido por Manoel Henriques de Paiva. Não se sabe a repercussão alcançada pelos compêndios de Jean-BaptistaAlban Imbert, médico de Montpellier e membro-titular da AIM, Manual do Fazendeiro ou tratado doméstico sobre as doenças dos negros (1834) e Guia Médico para as Mães I N S I G H T de Família (1843), nem do sucesso obtido pelo O Médico e o Cirurgião da Roça ou Tratado completo de medicina e cirurgia domésticas, adaptado à inteligência de todas as classes do povo (1875) de Louis-Francois Bonjean (1808-1892), nascido em Chamberry, formado em Turim e membro honorário da AIM5. O certo é que Chernoviz, como ficou conhecido, tornou-se um bestseller, tendo alcançado dezenove edições até 1924. Um ano após o lançamento da primeira edição do Formulário e Guia Médico (FGM), isto é, em 1842, aparecia a primeira das seis edições de outro livro, o Dicionário de Medicina Popular e Ciências Acessórias (DMPCA), desse polonês formado em Montpellier, que aqui viera, a exemplo de outros médicos estrangeiros, para tentar a sorte. N este artigo, pretendemos tecer alguns comentários sobre dois aspectos da obra do formidável médico polonês: por um lado, vamos avaliar seu escopo, enquanto empreendimento cultural, segundo a perspectiva do próprio autor e seu grupo de referência, a me- INTELIGÊNCIA dicina acadêmica de meados do século XIX; por outro lado, vamos decifrar alguns dos significados que lhe foram sendo agregados por setores das culturas erudita e popular, no longo itinerário em que foi perdendo o conceito de obra científica e ilustrada, reverenciada pela República das Letras, até o momento em que passou a ser tomada como expressão de genuína crendice popular. Recorrendo à literatura ficcional brasileira, crônicas jornalísticas e relatos biográficos, faremos alguns apontamentos sobre a razão de tal metamorfose. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 131 I N S I G H T Um médico na República das Letras Piotr Czerniewicz nasceu em Lukov, na Polônia, no dia 11 de setembro de 1812. Em 1830, após participar da malograda Revolta de Novembro, quando os poloneses se sublevaram contra a ocupação russa, teve que se refugiar na França. Em Montpellier, onde obteria seu diploma de médico, criou a Organização de Democratas Poloneses, da qual foi presidente. Aparentemente, pouco antes de se formar, em 1837, abandonou as fileiras da organização, onde entrara com a patente de coronel do exército polonês. Embarcou para o Rio de Janeiro em 1840 e nesse mesmo ano passou a clinicar, após ter validado seu diploma junto à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Ainda em 1840 tornou-se membro-titular da Academia Imperial de Medicina (AIM), com uma memória sobre O uso do nitrato de prata nas doenças das vias urinárias. O parecer positivo foi elaborado por Faivre, membro titular da AIM e médico oficial da embaixada francesa. Em 1844, casouse com Júlia Bernard, nascida no Rio de Janeiro, com quem teria seis filhos. 132 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA Em 1855, mudou-se definitivamente para Paris, de onde continuou a editar sua obra, sempre em português6. O editor e sua obra Em seu monumental estudo sobre a história do livro no Brasil, Hallewell afirma que a iniciativa de publicarse o DMPCA partira dos famosos editores Eduardo e Henrique Laemmert, que percebiam a boa acolhida que teria um livro de medicina auto-instrutivo. A confiança dos proprietários da famosa loja de livros da Rua da Quitanda era tal, que imprimiram três mil exemplares, uma tiragem quase sem precedentes na época, principalmente para uma obra em dois volumes, ao custo de 9$000. O acerto do investimento pode ser medido pela segunda edição, de 1851, ampliada para três volumes in quarto (com 1.620 páginas e 5 pranchas com ilustrações), ao preço de 15$0007. Entretanto, essa versão sobre o faro empresarial dos Laemmert precisa ser revista, tendo em vista o relato do próprio Chernoviz contido num conjunto de correspondências pessoais que ele manteve com um amigo após sua chegada ao Brasil. I N S I G H T Graças a essas cartas8, depreende-se que a produção dos dois manuais, escritos por ele diretamente em português, já fazia parte de um antigo plano de carreira traçado ainda na França. Outras iniciativas semelhantes devem ser vistas como inscritas na mesma estratégia de visibilidade e notoriedade: a redação de artigos para a Revista Médica Fluminense; sua eleição, cuidadosamente preparada, para membro da AIM; a participação em almoços, bailes e saraus nas boas casas; a dedicatória ao Imperador Pedro II, impressa na primeira página — o que lhe rendeu o cobiçado título de Cavaleiro da Ordem de Cristo. D e todos esses passos concatenados, a edição do FGM foi o mais ousado e o que encontrou maior incompreensão da parte justamente dos editores. Um, a quem Chernoviz propôs que comprasse os originais, aconselhou-o a ocupar-se de seus clientes e esquecer um trabalho que não teria saída. Outro, provavelmente Leuzinger ou o próprio Eduardo Laemmert9, respondeu-lhe que para obras que tais INTELIGÊNCIA era mais fácil encontrar autores que a escrevessem do que leitores. Apesar do forte obstáculo, assumiu o risco pela empreitada, arcando com os custos. Vendeu todos os seus instrumentos cirúrgicos e contou com o auxílio financeiro de um médico amigo. O sucesso alcançado foi estrondoso, pois nos três primeiros dias foram vendidos 300 exemplares. Além da impressão, o médico, que então contava com 30 anos, cuidou pessoalmente da distribuição, enviando exemplares para Bahia, Pernambuco e Portugal10. Os Laemmert imprimiram as três edições seguintes, as de 1846, 1852 e 1856, além das duas primeiras impressões do DMPCA, em 1842 e 1851. Ao estabelecer-se em Paris, em 1855, Chernoviz continuou editando seus manuais em sua própria residência — Casa do Autor — na rua Raynouard, atual Chernoviz, em Passy. Dividido em várias seções, o Formulário e Guia Médico continha a descrição dos medicamentos, suas propriedades, suas doses, as moléstias em que deviam ser empregados; as plantas medicinais indígenas, e as águas minerais do Brasil; a arte de OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 133 I N S I G H T formular, a escolha das melhores fórmulas, além de muitas receitas úteis nas artes e na economia doméstica. Ao lado dos medicamentos chamados officinaes (xaropes, vinhos, extratos, tinturas, conservas, emplastos e ungüentos), cujas fórmulas achavam-se nos códigos farmacêuticos sancionados pelas leis e encontrados já prontos nas boticas e cujo prestígio variava em cada época, os doentes também podiam dispor das receitas magistraes. Estas últimas eram preparadas de acordo com as fórmulas de cada médico, segundo as necessidades específicas do paciente. Eram poções, cozimentos, colírios, pílulas, emulsões, linimentos, cataplasmas... Chernoviz propunha-se a reunir esse amplo conjunto. Destarte, iniciava apresentando, pedagogicamente, algumas considerações sobre a arte de formular. Distinguia, nas fórmulas, a base , isto é, o agente principal do medicamento que conteria o princípio ativo; o adjuvante, que serviria para aumentar as propriedades ou virtudes da base; o corretivo, cuja finalidade era enfraquecer o sabor ou o cheiro, podendo também reduzir a atividade ou a ação corrosiva; o exci- 134 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA piente, substância que serviria de veículo às outras três e, por fim, o intermédio, que servia para tornar o medicamento miscível em água ou outro excipiente. Assim, por exemplo, na Mistura Balsâmica de Fuller (copaíba: 2 onças; gemas de ovo: 2; xarope de bálsamo de Tolu: 2 onças; vinho branco: 6 onças). A copaíba seria a base, o xarope, o corretivo, as gemas de ovo, o intermediário e o vinho branco, o excipiente . E m outra seção eram descritas as formas farmacêuticas dos medicamentos, então classificados em bálsamos, cataplasmas, cáusticos, clisteres, elixires, emplastos, emulsões, espíritos, extratos, sangrias, sanguessugas, sinapismos, vesicatórios e ventosas. Deste arsenal, utilizado no período denominado de terapêutica heróica pela historiografia médica11, o FGM nos oferece uma detalhada descrição. As informações técnicas sobre sua variada composição, formas de emprego e de manutenção são verdadeiras relíquias sobre as artes médicas da época. Folheando as páginas desta seção, ficamos sabendo I N S I G H T que as cataplasmas, medicamentos externos em forma de papas, eram geralmente elaboradas com farinha de linhaça, féculas de batata ou miolo de pão. Nos vesicatórios ou cáusticos, aplicados como emplastos ou cataplasmas em afecções gangrenosas ou mordedura de animais peçonhentos, visando produzir uma secreção serosa e empolar a pele, além de mostarda e trovisco, empregava-se freqüentemente uma papa elaborada a partir da maceração de um pequeno inseto, a cantárida. No DMPCM, ficamos sabendo que dentre os tipos de ventosas, pequenos vasos des- INTELIGÊNCIA tinados a fazer vácuo na superfície da pele, com o fim de atrair sangue ao lugar em que se aplica, um recomendado era fabricado com chifre perfurado no ápice, por cujo furo se operava com a boca a sucção do ar, sendo, em seguida, tapado com cera quando estivesse aderente à pele. Aplicadas com o mesmo fim que as sangrias, as sanguessugas, ou bichas, como eram popularmente conhecidas, deviam ser aderidas a qualquer parte do corpo, à exceção das plantas dos pés e das palmas das mãos. Nas mulheres recomendava-se não aplicar nas partes visíveis do corpo (pescoço, parte superior do peito, antebraço e costas da mão). Os lugares indicados eram as membranas mucosas facilmente acessíveis como a gengiva, a vagina e o colo do útero. Uma sanguessuga vigorosa retirava em torno de meia onça (15 grs.) de sangue. Também em relação a essa curiosa criatura, ficamos sabendo que nem todas eram importadas da Europa, pois já havia lugares de criação no Rio de Janeiro. As sanguessugas, facilmente encontradas nas lojas dos barbeiros, eram conservadas em vasos de vidro, contendo água até 2/3 OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 135 I N S I G H T de sua capacidade e 3 litros serviam para 30 delas, ou em caixas com barro úmido. N outra classificação, os medicamentos trazem referência à sua ação terapêutica. É de se notar, neste caso, que até a vitória da concepção ontológica da doença, isto é, aquela que associa o ser doença à ação uma entidade específica, a medicina acadêmica tendia a conceber a doença como manifestação de múltiplas circunstâncias, de caráter externo (agentes físicos ou químicos) ou interno (constituição física, temperamento, idade, sexo, atividade ocupacional). Nesse caso, os terapêuticos eram distinguidos entre 21 tipos, conforme sua ação específica voltada a restabelecer a harmonia ou equilíbrio fisiológico: adstringentes, antiperiódicos, antiphlogísticos, antiescorbúticos, antissépticos, antispasmódicos, antissifilíticos, calmantes, diaforéticos, diuréticos , eméticos , emolientes, estimulantes, febrífugos, narcóticos, purgativos, sudoríferos, tônicos, temperantes, vermífugos, e vomitivos. A arte de purgar, tão complexa e tão amplamente empregada 136 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA quanto a de sangrar, exigia que o praticante soubesse diferenciar plenamente os purgantes, segundo sua intensidade, entre a ampla variedade de substâncias laxantes, catárticas ou drásticas — estas últimas as mais intensas. Esta última classificação encontrase na parte do formulário propriamente dito. Mas em que ele consiste? Trata-se da descrição em ordem alfabética, de todas as substâncias então empregadas pela medicina acadêmica. Ao referir-se a cada medicamento, Chernoviz indicava sua sinonímia, a significação em francês, o nome botânico em latim (se o medicamento fosse uma planta), suas características físicas, suas propriedades, as moléstias em que deviam ser empregadas, as doses e pesos usuais e os riscos de eventuais associações. U ma seção aparentemente inusitada para um guia médico, mas que se coaduna perfeitamente com o ideal iluminista e civilizatório de que se investia a elite médica, intitulava-se Receitas Diversas. Reuniam-se, aqui, várias receitas “úteis nas artes e economia I N S I G H T doméstica”, tais como: água-de-colônia, tintas de escrever, venenos para a destruição de animais daninhos... Eram fornecidas também as composições de diversas preparações vendidas como segredo: pomadas de tingir cabelos, água para tirar nódoas de tinta de escrever, e coisas que tais. Com igual intuito, no DMPCA aparece o desenho e a descrição completa de uma caixa de botica contendo o que se considerava, então, como material terapêutico básico. Inovação e progresso científico Como notou uma historiadora, havia em Chernoviz uma preocupação constante com a atualização de seus manuais12. Assim, ao contrário do anátema de repositório de crendices populares, que lhe lançaram posteriormente, as edições de seus livros eram constantemente revistas e até mesmo novas seções eram incorporadas. Com o Dicionário de Medicina Popular e Ciências Acessórias, o autor se coloca decididamente do lado das luzes e sua ação pode ser entendida dentro do ideal pedagógico do iluminismo racionalista. Carregando INTELIGÊNCIA o pesado fardo da civilização, ele pretendia, com sua obra, “difundir os bons preceitos de saúde, precaver o público contra o charlatanismo, destruir os erros populares a respeito da medicina, inculcar o que se deve fazer nos acidentes súbitos, e ensinar os tratamentos de várias moléstias que podiam ser realizados na ausência de um médico”. Constantemente revisto e ampliado, até a sexta e última edição de1890, o DMPCA não apenas se apresenta como uma espécie de vade mecum do saber médico estabelecido, como tem uma postura pioneira, sancionando algumas inovações pouco consensuais para a época. Assim, antecipando-se à adoção do Sistema Métrico Internacional (1875) pelo governo imperial, Chernoviz já introduzira na edição de 1862 a equivalência de pesos e medidas usados nas farmácias do Brasil — libras, onças, oitavas, escrópulos, grãos — aos pesos decimais. Na edição de 1874, na seção “Noções Preliminares”, apresenta uma tábua de conversão, acompanhada da descrição de instrumentos, como o areômetro, o densímetro e o termômetro médico (esse, verdadeira revolução na classificação das OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 137 I N S I G H T febres). Da mesma forma, foi um dos primeiros autores a sancionar, já na edição de 1878, no verbete opilação ou hipoemia intertropical — o que hoje conhecemos como ancilostomose — a tese de sua etiologia parasitária. Opinião essa que permaneceu sub judice e contrariava a posição da maioria dos membros das congregações das faculdades de medicina, da Academia Imperial de Medicina e mesmo da Academia de Medicina de Paris – instituição médica mais prestigiosa da época. 138 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA No FGM, o zelo pela atualização científica explica o enorme sucesso alcançado entre os boticários. A terceira edição, de 1852, já recomendava a retirada, nas receitas, das abreviações e sinais referentes às dosagens, conforme regulamento da Junta Central de Higiene Pública, decretado em 1851. Ao obrigar os facultativos a escreverem suas receitas por extenso, em português, a autoridade pública contribuía de certa forma para apagar alguns traços simbólicos que ainda ligavam os médicos oitocentistas aos físicos fidalgos do século XVIII, cuja erudição se media pelo uso do latim e adoção de sinais alquímicos inacessíveis aos leigos. A oitava edição de 1868 foi um marco editorial, sendo também a primeira a ser impressa em Paris por tipógrafos portugueses sob inspeção do autor. Ela se antecipou à iniciativa da Junta de Higiene Pública ao adotar o novo código farmacêutico francês de 1866. Outra novidade da mesma edição foi a ampliação da descrição das plantas indígenas do Brasil, que nas edições anteriores correspondia a pouco mais de cinqüenta e nessa excedia a duzentas. A partir de então, I N S I G H T além de suas próprias observações, feitas quando de sua estada no Rio de Janeiro, Chernoviz passou a publicar os trabalhos dos naturalistas Auguste Saint-Hilaire, Von Martius, Weddel e dos médicos e farmacêuticos brasileiros Francisco Freire Allemão, Nicolau Joaquim Moreira, Francisco da Silva Castro, Joaquim Correia de Mello e Theodoro Peckolt, dentre outros ren o m a d o s. A sexta e última edição do DMPCA, de 1890, aparecia alguns anos após a morte do autor, sob a responsabilidade da livraria e editora Roger e F. Chernoviz. Nela já se informava sobre os novos métodos de soroterapia, segundo as teorias de Pasteur e de Roux. De acordo com Carlos da Silva Araújo, na 16ª edição do FGM, datada de 1897, descrevia-se a técnica sobre “os raios X ou as fotografias através dos corpos opacos.” O mesmo empenho em seguir as últimas novidades das ciências médicas foi perseguido até a última edição de 1924. Somente em 1926 aparecia a Farmacopéia Brasileira, o que explica por que até essa data, nos regulamentos sanitários, INTELIGÊNCIA Chernoviz — feito substantivo comum por antonomásia — era citado como um livro obrigatório nas farmácias13. Antes de nos aventurarmos na decifração do enigma de sua metamorfose, convém chamar a atenção para algo que, porventura, está deixando o leitor perplexo: temos nos referindo indistintamente ora ao Formulário ora ao Dicionário como “o” Chernoviz. Eis uma confusão insolúvel. Como ficará claro em seguida, a imprecisão tornou-se difusa no espaço e no tempo. Chernoviz, oráculo da medicina popular? Qual a influência de Chernoviz na intimidade doméstica dos lares urbanos e rurais? Em que medida contaminou as referências simbólicas dos diferentes saberes de cura mantidos pela tradição oral? Como foi lido, interpretado e apropriado por curiosos e pelos porta-vozes das culturas subalternas? Respostas satisfatórias a estas perguntas ainda merecem uma investigação aprofundada, mas tentaremos aqui uma primeira aproximação. OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 139 I N S I G H T Em princípios do século passado, o famoso higienista e escritor Afrânio Peixoto, através de um personagem, afirmou que no Brasil havia maior número de volumes do Chernoviz que da Bíblia espalhados pelo país14. Seu personagem, coronel João Batista Pinheiro, orgulhoso de seu Chernoviz, repetia “Pedro Luiz Napoleão Chernoviz! (...) convencido que recitava um verso”, e bradava “um homem destes é um benfeitor da humanidade... ”. Em meados do século, sua popularidade ainda seria assombrosa na impressão do poeta (e farmacêutico) Carlos Drummond de Andrade. No poema Dr. Mágico ele assevera: Dr. Pedro Luís Napoleão Chernoviz/ Tem a maior clientela da cidade./ Não atende a domicílio/ Nem tem escritório./Ninguém lhe vê a cara./Misterioso doutor capa preta.../15. E, com saudades de seu tempo de ajudante de farmácia, Rubem Braga conclui que “ Chernoviz era um sábio”16. S eria de tal monta a estima do famoso manual? É possível. As referências aos manuais de medicina popular, em espe- 140 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA cial ao próprio Chernoviz, são encontradas em muitos romances e crônicas desde o século XIX. Em Dom Casmurro, de Machado de Assis, o protagonista recorda-se de como o agregado José Dias apareceu pela primeira vez na fazenda de Itaguaí, “vendendo-se por médico homeopata.” Levava consigo “um Manual e uma botica” e curou um feitor e uma escrava de umas “febres” que ali se instalaram. Ao recusar um ordenado, dizia que “era justo levar saúde à casa de sapé do pobre.”17 No romance Inocência, Visconde de Taunay constrói um personagem que à semelhança de José Dias, recorreria ao famoso manual como alternativa ao distante, dispendioso e longo curso de medicina. Cirino, servente de botica numa localidade pequena onde “de simples boticário a médico não há mais que um passo,” foi, aos poucos “e com o tempo, criando tal ou qual prática de receitar e, agarrando-se a um Chernoviz, já seboso de tanto uso, entrou a percorrer, com alguns medicamentos no bolso e na mala da garupa, as vizinhanças da cidade à procura de quem se utilizasse dos seus serviços”. I N S I G H T Logo receberia o tratamento de doutor. (...) “Toda a sua ciência assentava alicerces no tal Chernoviz”.(...) “Noite e dia o manuseava; noite e dia o consultava à sombra das árvores ou junto ao leito dos enfermos”. De acordo com o narrador, apesar de conter “muitos erros, muita lacuna, muita coisa inútil e até disparatada”, (...) “no interior do Brasil é obra que incontestavelmente presta bons serviços, e cujas indicações têm força de evangelho”18. O utro personagem, o Bento do conto O lobisomem, de Raymundo Magalhães19, retrata bem o perfil semelhante. Além de negociante de gêneros alimentícios, seu Bento “era muito entendido em assuntos de medicina caseira. Como na terra não havia médico nem boticário, ele desempenhava o papel de curioso: com o auxílio do seu bojudo Chernoviz, aconselhava remédios a quantos recorriam à sua experiência, e dizia-se que estava só para tratar das doenças do mundo... Jalapa para estes, batata para aqueles outros, eram os seus remédios prediletos. Se não fizessem bem, não podiam INTELIGÊNCIA fazer mal. Custavam pouco, mas esse pouco bastava para ir vivendo folgadamente, em meio à sua vasta clientela.” Nestes exemplos, o uso do manual, embora transcendendo os limites da auto-ajuda e fazendo-se instrumento de comércio, permanece dentro do escopo imaginado pelo autor. Como bem delimita seu Bento , o exercício de sua arte restringia-se às doenças do mundo . Mas não é difícil de imaginar as apropriações heterodoxas que resultaram em combinações ecléticas incorporando o receituário científico às concepções mágicas e holistas presentes no saber médico popular. O personagem de Taunay, por exemplo, indiferente à fronteira traçada pelo médico polonês, transita impunemente entre a medicina erudita e o universo da magia, usando como salvo-conduto justamente o Chernoviz. Assim, “num dia de capricho”, Cirino (...) “começou a viajar pelos sertões povoados a medicar, sangrar e retalhar, unindo a alguns conhecimentos de valor positivo, outros que a experiência lhe ia OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 141 I N S I G H T indicando ou que a voz do povo e a superstição lhe ministravam ”. No poema de Drummond, supracitado, outros versos revelam um deslocamento similar sofrido pelo Chernoviz, aqui subsumido ao campo semântico da medicina folclórica: “Esse que cura todas as moléstias/ (De preferência as incuráveis)/ Socorre os afogados/ Asfixiados / Assombrados de raio/ Sem desprezar defluxo, catapora, /Sapinho, panariz, cobreiro/ Bicho do pé, andaço, carnegão.../”. Em Urupês, Monteiro Lobato, ao retratar o Jeca — arquétipo da ignorância e preconceito do habitante do mundo rural brasileiro, cujo “mobiliário cerebral” repleto de superstições, se constitui de um banquinho de três pernas para receber os hóspedes, pois “três pernas permitem o equilíbrio; inútil, portanto, meter a quarta, o que ainda o obrigaria a nivelar o chão”, trata sua medicina de “ritual bizantino”, “noite cerebral ”, da qual “ pirilampejam-lhe apozemas, cerotos, arrobes e eletuários escapos à sagacidade cômica de Mark Twain”, e compara-a a um “ Chernoviz não escrito, monumento de galhofa onde não há 142 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA rir, lúgubre que é o epílogo”. (...) “Quem aplica as mezinhas é o “curador”, um Euzébio Macário de pé no chão e cérebro trançado como moita de taquaruçu. O veículo usual das drogas é sempre a pinga – meio honesto de render homenagem à deusa Cachaça, divindade que entre eles ainda não encontrou heréticos.”20 Despojado de seu fundamento científico e racionalista, o receituário terapêutico é visto aqui, como integrando aos sistemas mágicos e religiosos predominantes no universo popular de cura. P orém, autênticos personagens da História do Brasil, líderes políticos, militares ou religiosos de expressão regional, também tiveram seu prestígio construído com o apoio do velho manual. José Joaquim Ferreira, fundador e patriarca da vila de Campo Grande, atual capital do Mato Grosso do Sul, era mezinheiro, cujo preparo técnico desenvolveu com o apoio de um Chernoviz. Na verdade, até pouco antes de sua morte, em 1900, esse mineiro de São João Del-Rey era I N S I G H T também conhecido como exímio benzedor. Não poucas vezes as mães levavam seus bebês acometidos de quebranto para serem por ele benzidos21. O famoso líder messiânico nordestino, padre Cícero, patriarca de Juazeiro, fazia uso continuado do Formulário e Guia Médico, no atendimento dos milhares de analfabetos que o procuravam se queixando de todo tipo de doenças22. De expressão menor, mas igualmente paradigmático, é o caso de Ramiro Ildefonso de Araújo Castro, personalidade importante na região de Ilhéus, em fins do século XIX. Tendo apenas o primário, chegou a coronelmédico da Guarda Nacional, com o direito de exercer o lugar de farmacêutico, praticando também a medicina que aprendera de cor no Chernoviz23. Tal como encontramos na literatura ficcional, a menção aos três curiosos personagens e ao papel que exerceram como agentes populares de cura ratifica e amplia as descrições dos usos que se fizeram dos livros de medicina auto-instrutivos. Finalizaremos estes breves comentários sobre o papel da obra de Cher- INTELIGÊNCIA noviz na medicina brasileira, com uma última consideração. A lguns estudiosos da medicina imperial têm apresentado o saber médico oficial e seus porta-vozes, em especial a Higiene e os higienistas, como poderosos instrumentos disciplinares empregados na afirmação do poder centralizador do Estado em oposição às regras de sociabilidade vigentes no mundo rural, onde imperava o patriarca no comando de grandes famílias, seus agregados e dependentes24. Entretanto, face ao êxito editorial dessa medicina de cabeceira parece-nos necessário assumir uma posição mais dialética. Afinal, o sinhozinho que retorna à fazenda após anos de ausência, com seu anel de esmeralda e o título de doutor teria mesmo afrontado o saber secular de sua mãe — como afirma Gilberto Freire 25 — usurpando-lhe o amplo domínio sobre a arte de curar? Não teria ele encontrado certa receptividade, com seu saber parcialmente legitimado e reinterpretado à luz de uma medicina doméstica contaminada de noções acadêmicas? OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 143 I N S I G H T S em dúvida, a recepção do Chernoviz na intimidade dos lares urbanos e rurais revela algumas modalidades, nada rígidas, de interpretação e utilização do estimado manual. Diante da escassez da mão-de-obra escrava, muitas sinhás e sinhôs de terras e de engenhos demonstraram uma genuína preocupação com o cuidado da escravaria capacitada para os pesados serviços da lavoura, e creditavam até uma certa nobreza e humanização à prática de suas medicinas. Deste modo, embora tenham sido concebidos como instrumento de filantropia leiga, por reformistas europeus impregnados dos ideais civilizatórios, os manuais de medicina popular terminavam por fortalecer os interesses bem entendidos dos escravocratas26, ensinavam os senhores a tratar as doenças dos escravos para aumentar o seu capital e respondiam aos problemas graves de saúde pública, que atingiam, também, a classe senhorial. É fácil imaginar, também, que os livros auto-instrutivos vieram a reforçar a legitimidade dos inúmeros agentes de cura que concorriam com 144 Comitê Olímpico Brasileiro INTELIGÊNCIA o saber médico oficial. Enquanto os esculápios eram quase sempre inacessíveis, e manipulavam um saber hermético e estranho aos extratos populares, os curandeiros, por eles denunciados como charlatães, produziram diversas sínteses, aproximando sincreticamente elementos da medicina científica à linguagem compartilhada pelos diferentes grupos subalternos. A constituição de um monopólio legítimo sobre o território da cura, teve, como visto aqui, mais percalços do que supõem os adeptos da tese de uma medicalização homogênea e ubíqua da sociedade brasileira. O Chernoviz, na intimidade dos lares urbanos e rurais, ajudou a criar uma cultura médica especial, à medida que contaminou as referências simbólicas dos diversos saberes de cura, até então mantidos pela tradição oral. Foi lido, interpretado e apropriado por curiosos de todos os tipos e pelos porta-vozes das culturas populares. email: [email protected] email: [email protected] I N S I G H T BIBLIOGRAFIA ALENCASTRO, Luís Felipe. Vida Privada e Ordem Privada no Império. In: NOVAIS_F. A. História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. vol. 2: 67-78.1997. ANDRADE, Carlos Drummond de. Doutor Mágico. In Boitempo I. 6a ed. Rio de Janeiro: Record. 2001. ARAUJO, Carlos da Silva. Fatos e personagens da história da medicina e da farmácia no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Continente, 1979. ASSIS, Machado de. Obras completas, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 8ªed., 1992. BERBERT, José Augusto. “Poeta Amante do Cinema”, A Tarde on line, 22/02/97. BRAGA, Rubem. Memórias de um ajudante de farmácia. In:______As Boas Coisas da Vida. 6a ed. Rio de Janeiro: Record. 2003. INTELIGÊNCIA LOBATO, Monteiro. Urupês, São Paulo, Brasiliense, 1972. MACHADO, Roberto et. al. 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