23 - Insight Inteligência

Transcrição

23 - Insight Inteligência
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Corrupção:
COM JEITINHO PARECE QUE VAI
Alberto Almeida
Cientista político
“NEGOCIATA É UM BOM NEGÓCIO PARA O QUAL NÃO FOMOS CONVIDADOS”
BARÃO DE ITARARÉ (ALMANAQUE PARA 1949)
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Comissão Permanente de Defesa do Consumidor
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ocê é a favor da corrupção? Claro que não? Você já se utilizou
alguma vez na vida do jeitinho
brasileiro? Sem dúvida que sim.
É óbvio que nenhuma pessoa declararia publicamente ser favorável à corrupção. Nem mesmo seus principais beneficiários. Porém, há ideologias mais favoráveis à corrupção
do que outras. O jeitinho brasileiro, visto por uma ótica
ética anglo-saxã, a ética dos policiais norte-americanos
Fucker and Sucker do Casseta & Planeta, é a ante-sala
da corrupção. Em um mundo dividido entre o certo e o
errado, entre a corrupção e o favor, entre o bem e o
mal, todos apoiamos o que é certo, apoiamos o favor e
queremos ver o bem realizado. Mas o que dizer de um
mundo onde há uma “zona cinzenta” na qual nem sempre está claro o que é certo ou errado? Ou melhor, na
qual o certo e o errado dependem do contexto e das
circunstâncias.
O jeitinho brasileiro é importante em nossa sociedade. Não apenas porque é muito utilizado, mas principalmente porque nos permite entender por que o Brasil tem
tanta dificuldade em combater a corrupção. A antropologia já estudou o jeitinho brasileiro. Faltava abordá-lo
com dados quantitativos. Isto foi feito pela Pesquisa Social Brasileira (PESB).1 Pela primeira vez o Brasil tem a
chance de entender o Brasil. Os brasileiros têm a chance
de saber por que a “cultura da corrupção” é tão bem
enraizada. A PESB mostra que isto acontece porque a
população a apóia, melhor dizendo, porque a população
tolera e utiliza o jeitinho brasileiro. A corrupção não é
obra perversa de nossos políticos e governantes. Ela é socialmente aceita, mas não com este nome e sim com o
simpático nome de “jeitinho brasileiro”.
A Pesquisa Social Brasileira (PESB) permitiu avaliar
qual o apoio social ao jeitinho brasileiro, traço muito
difundido entre a população. O jeitinho brasileiro é
muito disseminado junto à população. Foram feitas três
INTELIGÊNCIA
perguntas em relação ao uso do jeitinho:
- se alguma vez na vida o entrevistado já havia dado
um jeitinho para alguém,
- se alguma vez na vida o entrevistado já havia pedido
para alguém dar um jeitinho em seu favor e, uma
pergunta mais geral,
- se alguma vez na vida o entrevistado já havia dado
um jeitinho.
Os resultados para as três perguntas são bastante
homogêneos e coerentes, algo em torno de 2/3 de toda
a população brasileira já se utilizou do jeitinho (Gráfico 1).
Há ainda a possibilidade de que este percentual seja
mais elevado, pois quanto mais baixa a escolaridade da
população menos se sabe o que é “dar um jeitinho”
(36% para os analfabetos) e por isso menos se afirma
que alguma vez já deu um jeitinho (51% para os analfabetos). Note-se o fenômeno oposto: as pessoas que mais
deram um jeitinho são justamente as que têm escolaridade mais elevada (70% para superior completo e 71%
para segundo grau completo). São elas as que mais sabem o que significa “dar um jeitinho” (Gráfico 2).
O mais provável é que as pessoas de escolaridade
mais baixa utilizem na prática o jeitinho, apesar de não
o conhecerem por esta terminologia. Isto significa que
à medida que for aumentando a escolaridade da população brasileira, mantidas constantes outras variáveis
que venham a influenciar na utilização do jeitinho, haverá aumento do percentual dos que declaram já terem dado um jeitinho alguma vez na vida2.
Há uma outra indicação forte de que isto virá a acontecer: os brasileiros mais jovens utilizam mais o jeitinho
do que os mais velhos. Entre a população de 18 a 24
anos 70% já deram algum jeitinho na vida ao passo que
este percentual despenca para 54% entre os que têm
60 anos ou mais de idade. A escolaridade, neste caso,
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também tem um impacto importante, as pessoas mais
jovens têm a escolaridade média mais alta do que os
mais velhos.
De qualquer maneira este resultado indica com clareza que o jeitinho é uma prática social muito disseminada entre todos os grupos e classes sociais e que são
grandes as chances de que ele permaneça entre nós
por muito tempo ainda (Gráfico 3).
O QUE É O JEITINHO – A CLASSIFICAÇÃO ENTRE
FAVOR, JEITINHO E CORRUPÇÃO
Foram utilizados dois métodos para se avaliar o que
a população brasileira considera ser o jeitinho. O primeiro foi uma simples pergunta aberta: “Na opinião
do(a) Sr(a) o que é dar um jeitinho?”. O segundo método consistiu em solicitar que os entrevistados classificassem 19 situações por meio de uma das seguintes denominações:
Favor / Mais favor do que jeitinho / Mais jeitinho
do que favor / Jeitinho / Mais jeitinho do que corrupção / Mais corrupção do que jeitinho / Corrupção.
As 19 situações foram elaboradas para que fosse possível encontrar aquelas que caracterizam o favor típico, a corrupção típica e o jeitinho3. Os resultados da
pesquisa mostram que há quatro situações que caracterizam com muita clareza o que é um favor. Elas são
apresentadas abaixo na ordem do que é mais para o
que é menos favor:
1 - Emprestar dinheiro a um amigo (90%)
2 - Um vizinho empresta para outro vizinho uma panela ou fôrma que faltou para preparar a refeição
(89%)
3 - Na fila do supermercado deixar passar na frente
uma pessoa que tem poucas compras (67%)
4 - Guardar o lugar na fila para alguém que vai resolver um problema (62%)
(ver Tabela 1)
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Por outro lado, a população brasileira classificou sete
das 19 situações apresentadas como sendo situações de
corrupção:
1 - Usar um cargo no governo para enriquecer (90%)
2 - Pagar um funcionário de uma companhia de energia para fazer o relógio marcar um consumo menor (85%)
3 - Dar 20 reais para o guarda para ele não aplicar
uma multa (84%)
4 - Uma pessoa consegue uma maneira de pagar menos impostos sem que o governo perceba (83%)
5 - Uma pessoa tem dois empregos, mas só vai trabalhar em um deles (78%)
6 - Fazer um gato/uma gambiarra de energia elétrica
(74%)
7 - Uma pessoa tem bolsa de estudo e um emprego ao
mesmo tempo. Isto é proibido, mas ela consegue esconder do governo (74%)
O jeitinho foi claramente identificado em seis situações:
1 - Uma pessoa costuma dar boas gorjetas ao garçom
do restaurante, para quando ele for de novo não
precisar esperar na fila (59%)
2 - Uma pessoa que trabalha em um banco ajuda um
conhecido que tem pressa a passar na frente da fila
(56%)
3 - Uma pessoa que conhece um médico passa na frente
da fila do posto de saúde (50%)
4 - Uma mãe que conhece um funcionário da escola
passa na frente da fila quando vai matricular seu
filho (50%)
5 - Alguém consegue um empréstimo do governo, mas
que demora muito a sair. Como ela tem um parente
no governo consegue liberar o empréstimo mais rápido (45%)
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Gráfico 2
O USO DO JEITINHO DE ACORDO
Gráfico 1
UTILIZAÇÃO DO JEITINHO
COM A FAIXA DE ESCOLARIDADE
Gráfico 3
O USO DO JEITINHO DE ACORDO
COM A FAIXA DE IDADE
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6 - Pedir a um amigo que trabalha no serviço público
para ajudar a tirar um documento mais rápido do
que o normal (43%)
Há uma situação extremamente ambígua — “um
funcionário público recebe um presente de Natal de
uma empresa que ele ajudou a ganhar um contrato do
governo” — e uma outra que está entre jeitinho e corrupção: “passar uma conversa no guarda para ele não
aplicar uma multa”.
Tomando-se as quatro situações consideradas “favor” é possível perceber que duas delas, as que envolvem fila, são inconcebíveis em países como os Estados
Unidos e a Grã-Bretanha. Quem já viveu nos Estados
Unidos sabe que tanto guardar lugar na fila quando
pedir para passar na frente porque tem poucas compras são situações inconcebíveis e injustificadas. São situações de favor que envolvem o espaço público, ao
contrário das duas primeiras — empréstimo de dinheiro e de panela/fôrma — que se encerram em uma troca exclusivamente privada. Além disso, aproximadamente 30% da população as consideram “jeitinho”.
ssim, no Brasil, o favor ainda é concebido pela população como sendo algo
legítimo na esfera pública. É importante lembrar que no contínuo favorjeitinho-corrupção o favor é o único
dos três concebido de forma exclusivamente positiva.
Portanto, a lógica estabelecida pela fila — universal,
geral e pública — pode ser quebrada de maneira positiva e em função do contexto (ou porque se tem um
problema ou porque se tem poucas compras). A moralidade contextual está presente inclusive na concepção
de favor.
Considerando-se agora as sete situações classificadas como corrupção é possível notar que cinco delas
não são acessíveis para a maioria das pessoas. A PESB
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detectou que 64% dos brasileiros não têm carro, o que
é um percentual muito elevado. Isto quer dizer que para
estas pessoas dar dinheiro para o guarda perdoar uma
multa é uma situação bastante distante de seu cotidiano.
É interessante notar que há uma diferença da ordem de 8% entre aqueles que consideram que “passar
uma conversa no guarda para ele não aplicar uma
multa” é corrupção quando o dado é analisado segmentando-se quem tem e quem não tem carro. Quem não
tem carro tende a achar que isto é corrupção mais do
que quem tem carro (Gráfico 4).
Também são situações raras para a maioria das pessoas: enriquecer por meio de cargos públicos, encontrar meios de não pagar impostos, ter dois empregos e
só trabalhar em um deles e ter ao mesmo tempo bolsa
de estudo e um emprego. Isto quer dizer que, estando
distante da situação, a maioria da população sente-se à
vontade para classificá-las como claramente negativas:
elas são corrupção.
Além disso, as outras duas situações que implicam
em fraude da contagem do consumo de energia elétrica têm sido objeto recente de campanhas nacionais de
esclarecimento, todas elas visando estigmatizar e combater tais práticas e colocando-as claramente no terreno da ilegalidade.
Ao contrário do que ocorre nas situações classificadas como corrupção, as situações consideradas “jeitinho” estão ao alcance da grande maioria da população. Não é necessário ser importante, ter dinheiro, ser
famoso ou conhecer pessoas poderosas para furar a fila
de um posto médico ou da burocracia responsável pela
emissão de documentos.
Diferentemente do que afirma Lívia Barbosa, de que
a passagem do favor para o jeitinho e deste para a corrupção é mais resultado do contexto em que a situação
ocorre do que da natureza peculiar de cada situação, é
possível perceber diferenças importantes entre as 19
situações em função da forma com que foram classifi-
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Tabela 1
FAVOR, JEITINHO OU CORRUPÇÃO?
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1) UMA PESSOA COSTUMA DAR BOAS GORJETAS AO GARÇOM DO RESTAURANTE,
PARA QUANDO ELE FOR DE NOVO NÃO PRECISAR ESPERAR NA FILA É:
2) UMA PESSOA QUE TRABALHA EM UM BANCO AJUDA UM CONHECIDO QUE TEM PRESSA A PASSAR NA FRENTE DA FILA É:
3) UMA PESSOA QUE CONHECE UM MÉDICO PASSA NA FRENTE DA FILA DO POSTO DE SAÚDE É:
4) UMA MÃE QUE CONHECE UM FUNCIONÁRIO DA ESCOLA PASSA NA FRENTE DA FILA QUANDO VAI MATRICULAR SEU FILHO É:
5) ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO DO GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO A SAIR.
COMO ELA TEM UM PARENTE NO GOVERNO CONSEGUE LIBERAR O EMPRÉSTIMO MAIS RÁPIDO É:
6) PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A
TIRAR UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE O NORMAL É:
7) PASSAR UMA CONVERSA NO GUARDA PARA ELE NÃO APLICAR UMA MULTA É:
8) GUARDAR O LUGAR NA FILA PARA ALGUÉM QUE VAI RESOLVER UM PROBLEMA É:
9) NA FILA DO SUPERMERCADO DEIXAR PASSAR NA FRENTE UMA PESSOA QUE TEM POUCAS COMPRAS É:
10) UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE UM PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA QUE ELE
AJUDOU A GANHAR UM CONTRATO DO GOVERNO É:
11) UMA PESSOA TEM BOLSA DE ESTUDO E UM EMPREGO AO MESMO TEMPO.
ISTO É PROIBIDO, MAS ELA CONSEGUE ESCONDER DO GOVERNO É:
12) FAZER UM GATO/UMA GAMBIARRA DE ENERGIA ELÉTRICA É:
13) UMA PESSOA TEM DOIS EMPREGOS MAS SÓ VAI TRABALHAR EM UM DELES É:
14) UMA PESSOA CONSEGUE UMA MANEIRA DE PAGAR MENOS IMPOSTOS SEM QUE O GOVERNO PERCEBA É:
15) DAR 20 REAIS PARA O GUARDA PARA ELE NÃO APLICAR UMA MULTA É:
16) UM VIZINHO EMPRESTA PARA OUTRO VIZINHO UMA PANELA OU FÔRMA QUE FALTOU PARA PREPARAR A REFEIÇÃO É:
17) PAGAR UM FUNCIONÁRIO DE UMA COMPANHIA DE ENERGIA PARA FAZER O RELÓGIO MARCAR UM CONSUMO MENOR É:
18) EMPRESTAR DINHEIRO A UM AMIGO É:
19) USAR UM CARGO NO GOVERNO PARA ENRIQUECER É:
14
28
10
9
59
56
50
50
27
17
40
41
13
45
42
26
6
62
67
43
41
33
27
31
53
4
6
30
27
44
3
4
3
2
4
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5
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2
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22
19
14
13
10
10
9
8
74
74
78
83
84
1
85
1
90
Gráfico 4
PASSAR UMA CONVERSA NO GUARDA PARA ELE
NÃO APLICAR UMA MULTA
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cadas pela população brasileira, diferenças estas que
não guardam relação necessária com o contexto.
As situações classificadas como jeitinho envolvem algum tipo de burocracia, ainda que seja a de um restaurante, e uma pessoa conhecida ou amiga que com boa
vontade ajuda a contornar um problema por meio da
quebra de uma regra geral. Trata-se, portanto, da utilização de uma relação pessoal. Inversamente, em todas
as situações consideradas “corrupção” não há a interferência de um conhecido ou amigo. As relações são
impessoais e isto é bem caracterizado pela utilização
do dinheiro em vez da boa vontade como recurso de
solução de problemas.
Quanto ao favor, como já demonstrado, há situações
que envolvem relações pessoais e outras que envolvem
impessoalidade. Nestas, é a noção de espaço público que
está em jogo. Para uma grande fatia da população o
espaço público é definido de uma maneira que o que
seria inaceitável em um outro ambiente cultural venha
a ser percebido como algo positivo no Brasil. Nas situações caracterizadas por relações pessoais e privadas
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(empréstimo de dinheiro e panela/fôrma) fica clara a
unanimidade: são favores.
O contexto é, sem dúvida, importante para se passar
do favor para o jeitinho e deste para a corrupção. Mas
os dados revelam que há características peculiares a
cada situação que levam a população a considerá-la
mais uma coisa ou outra.
O CONSENSO SOCIAL SOBRE
FAVOR, JEITINHO E CORRUPÇÃO
Foi constatado que há uma grande variação na avaliação que a população brasileira faz das 19 situações.
Há aquelas para as quais há um grande consenso na
classificação, seja como corrupção, favor ou jetinho, e
aquelas para as quais a população se divide. A Tabela 2
apresenta o resultado desta análise.
Os resultados evidenciam que há um enorme consenso na classificação do que é favor. Tal consenso vai
diminuindo gradativamente quando se passa para as
situações nas quais predomina a corrupção e diminui
mais ainda quando se trata de um jeitinho.
Não é por acaso que o jeitinho é o meio-termo, o
meio-caminho entre os dois extremos da classificação
moral das situações. É nesta zona cinzenta entre o certo
e o errado que reside a dificuldade dos brasileiros de
estabelecerem e concordarem acerca de critérios universais, independentemente do contexto ou grupo social, sobre o que é certo ou errado.
Todos nós já tivemos que passar por situações de conflito, independentemente da existência de um árbitro
ou terceira parte que decidisse sobre o resultado do contencioso, nas quais os dois lados tinham concepções diferentes sobre a situação em questão. Provavelmente
todos já estiveram dos dois lados deste embate, do lado
do argumento pessoal e universal que classifica a situação apenas entre certo e errado, e do lado do jeitinho
que permite que consideremos o nosso ponto de vista
correto por se tratar de um caso ímpar e especial.
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Tabela 2
CONSENSO E DISCORDÂNCIA DA POPULAÇÃO NA CLASSIFICAÇÃO DAS SITUAÇÕES
S I T UUAA Ç Ã O
CLASSIFICAÇÃO
PREDOMINANTE
N ÍVEL DE CONSENSO
/DISCORDÂNCIA
PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A TIRAR
UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE O NORMAL É:
JEITINHO
MAIOR DISCORDÂNCIA
UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE UM PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA
QUE ELE AJUDOU A GANHAR UM CONTRATO DO GOVERNO É:
JEITINHO
ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO DO GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO A SAIR.
COMO ELA TEM UM PARENTE NO GOVERNO CONSEGUE LIBERAR O EMPRÉSTIMO MAIS RÁPIDO É:
JEITINHO
PAGAR UM FUNCIONÁRIO DE UMA COMPANHIA DE ENERGIA PARA FAZER
O RELÓGIO MARCAR UM CONSUMO MENOR É:
CORRUPÇÃO
DAR 20 REAIS PARA O GUARDA PARA ELE NÃO APLICAR UMA MULTA É:
CORRUPÇÃO
PASSAR UMA CONVERSA NO GUARDA PARA ELE NÃO APLICAR UMA MULTA É:
JEITINHO/CORRUPÇÃO
UMA PESSOA QUE TRABALHA EM UM BANCO AJUDA UM CONHECIDO
QUE TEM PRESSA A PASSAR NA FRENTE DA FILA É:
JEITINHO
UMA MÃE QUE CONHECE UM FUNCIONÁRIO DA ESCOLA PASSA NA FRENTE
CONSENSO E
DA FILA QUANDO VAI MATRICULAR SEU FILHO É:
JEITINHO
DISCORDÂNCIA MÉDIA
FAZER UM GATO/UMA GAMBIARRA DE ENERGIA ELÉTRICA É:
CORRUPÇÃO
UMA PESSOA CONSEGUE UMA MANEIRA DE PAGAR MENOS IMPOSTOS SEM QUE O GOVERNO PERCEBA É: CORRUPÇÃO
USAR UM CARGO NO GOVERNO PARA ENRIQUECER É:
CORRUPÇÃO
UMA PESSOA COSTUMA DAR BOAS GORJETAS AO GARÇOM DO RESTAURANTE,
PARA QUANDO ELE FOR DE NOVO NÃO PRECISAR ESPERAR NA FILA É:
JEITINHO
UMA PESSOA TEM DOIS EMPREGOS MAS SÓ VAI TRABALHAR EM UM DELES É:
CORRUPÇÃO
UMA PESSOA QUE CONHECE UM MÉDICO PASSA NA FRENTE DA FILA DO POSTO DE SAÚDE É:
JEITINHO
UMA PESSOA TEM BOLSA DE ESTUDO E UM EMPREGO AO MESMO TEMPO.
ISTO É PROIBIDO, MAS ELA CONSEGUE ESCONDER DO GOVERNO É:
CORRUPÇÃO
GUARDAR O LUGAR NA FILA PARA ALGUÉM QUE VAI RESOLVER UM PROBLEMA É:
FAVOR
UM VIZINHO EMPRESTA PARA OUTRO VIZINHO UMA PANELA OU FÔRMA
QUE FALTOU PARA PREPARAR A REFEIÇÃO É:
FAVOR
NA FILA DO SUPERMERCADO DEIXAR PASSAR NA FRENTE UMA PESSOA QUE TEM POUCAS COMPRAS É:
FAVOR
EMPRESTAR DINHEIRO A UM AMIGO É:
FAVOR
MAIOR CONSENSO
Tabela 3
QUEM MORA NAS CAPITAIS TENDE A CONSIDERAR AS SITUAÇÕES
MAIS COMO CORRUPÇÃO DO QUE QUEM MORA FORA DAS CAPITAIS
PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO
SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A TIRAR
UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE
O NORMAL É:
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FORA DA CAPITAL
CAPITAL
28
21
42
46
30
33
UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE
PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA
QUE ELE AJUDOU A GANHAR
UM CONTRATO DO GOVERNO.
ISTO É:
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32
25
28
24
41
51
ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO
GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO
A SAIR. COMO ELE TEM UM PARENTE
NO GOVERNO, CONSEGUE LIBERAR O
EMPRÉSTIMO MAIS RAPIDAMENTE. ISTO É:
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14
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43
48
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O que a análise dos dados revela é que este conflito
tende a ser maior quando se trata de “pedir a um amigo que trabalha no serviço público para ajudar a tirar
um documento mais rápido do que o normal” e não
existe para “emprestar dinheiro a um amigo”.
Os dados das Tabelas 3 a 7 irão mostrar que — tomando-se apenas as três situações nas quais a discordância é maior4 — é possível perceber que o Brasil está
dividido entre, de um lado, aqueles que moram em capitais, são mais jovens, têm escolaridade mais elevada e
fazem parte da população economicamente ativa (PEA),
e, de outro, os que moram em cidades que não são capitais, no Nordeste, são mais velhos e com escolaridade mais
baixa e não fazem parte da PEA. Não foram identificadas diferenças importantes entre homens e mulheres, ou
seja, as diferenças de sexo não têm relação com a classificação que as pessoas fazem das situações analisadas.
O primeiro grupo tende a classificar as três situações mais para corrupção ao passo que o segundo grupo
tende a considerá-las mais favor ou jeitinho (Tabela 3).
As divergências entre os que residem em capitais e
os que residem fora das capitais tendem a ser maior na
situação na qual “um funcionário público recebe um
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presente de Natal de uma empresa que ele ajudou a
ganhar um contrato do governo”. A diferença na classificação corrupção é de 10%. Ainda que nas outras
duas situações não haja uma diferença pronunciada,
nota-se que há uma tendência de que os que moram
em capitais classifiquem-as mais como corrupção ou
jeitinho do que como favor (Tabela 4).
Quando o mesmo dado é analisado para as faixas de
idade, nota-se um fenômeno oposto ao ocorrido na análise para a população economicamente ativa. Nesta a
situação do “presente de Natal” era a que apresentava
a maior diferença, agora isto ocorre nas outras duas
situações.
Há uma variação muito acentuada na classificação
como corrupção à medida que as pessoas são mais jovens: 44% das pessoas entre 18 e 24 anos acham que
“pedir a um amigo que trabalha no serviço público para
ajudar a tirar um documento mais rápido do que o normal” é corrupção, na faixa de idade mais velha este
percentual despenca para apenas 23%.
Na mesma faixa de 18 a 24 anos de idade 54% dizem que é corrupção se aproveitar de contatos pessoais
para conseguir que um empréstimo do governo saia mais
rápido, este mesmo percentual é muito menor para os
mais velhos: 37%.
á indícios, portanto, de que está em
curso uma importante mudança nos
padrões morais do Brasil à medida que
as gerações forem sendo sucedidas.
Deve ser salientado que este dado não
se opõe àquele apresentado no Gráfico 3 quanto ao uso
do jeitinho. Os mais jovens podem realmente se utilizar
mais do jeitinho do que os mais velhos. Isso porque os
mais jovens têm um número menor de oportunidades.
Por essa razão, os jovens consideram que as situações
estão mais para corrupção e menos para jeitinho do que
as pessoas mais idosas (Tabela 5).
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Tabela 4
OS MAIS JOVENS TENDEM A CONSIDERAR AS SITUAÇÕES MAIS COMO CORRUPÇÃO DO QUE OS MAIS VELHOS
PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO
SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A TIRAR
UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE
O NORMAL É:
F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O
18 A 24
25 A 34
35 A 44
45 A 59
60 OU MAIS
16
19
26
31
43
40
47
45
43
34
44
34
29
26
23
UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE
PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA
QUE ELE AJUDOU A GANHAR
UM CONTRATO DO GOVERNO.
ISTO É:
F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O
31
28
28
31
31
31
24
26
26
28
ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO
GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO
A SAIR. COMO ELE TEM UM PARENTE
NO GOVERNO, CONSEGUE LIBERAR O
EMPRÉSTIMO MAIS RAPIDAMENTE. ISTO É:
F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O
39
48
46
43
40
9
9
14
14
23
36
45
50
47
40
54
46
36
38
37
Tabela 5
AS PESSOAS QUE FAZEM PARTE DA POPULAÇÃO ECONOMICAMENTE ATIVA (PEA) TENDEM A
CONDIERAR AS SITUAÇÕES MAIS COMO CORRUPÇÃO DO QUE AS PESSOAS QUE NÃO FAZEM PARTE DA
PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO
SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A TIRAR
UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE
O NORMAL É:
F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O
FORA DA PEA
PEA
35
22
36
46
28
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UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE
PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA
QUE ELE AJUDOU A GANHAR
UM CONTRATO DO GOVERNO.
ISTO É:
F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O
37
27
26
27
38
46
PEA
ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO
GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO
A SAIR. COMO ELE TEM UM PARENTE
NO GOVERNO, CONSEGUE LIBERAR O
EMPRÉSTIMO MAIS RAPIDAMENTE. ISTO É:
F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O
17
11
40
46
42
43
Tabela 6
OS HABITANTES DO NORDESTE TENDEM A CONSIDERAR AS SITUAÇÕES MAIS
COMO FAVOR DO QUE AS PESSOAS QUE MORAM NAS DEMAIS REGIÕES DO BRASIL
PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO
SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A TIRAR
UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE
O NORMAL É:
F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O
NORDESTE
NORTE
CENTRO-OESTE
SUL
SUDESTE
41
20
21
21
20
36
49
40
42
47
24
31
38
36
33
UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE
PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA
QUE ELE AJUDOU A GANHAR
UM CONTRATO DO GOVERNO.
ISTO É:
F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O
40
30
30
27
25
29
28
24
28
25
31
42
46
45
50
ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO
GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO
A SAIR. COMO ELE TEM UM PARENTE
NO GOVERNO, CONSEGUE LIBERAR O
EMPRÉSTIMO MAIS RAPIDAMENTE. ISTO É:
F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O
22
15
9
11
9
43
41
46
44
46
35
45
45
45
46
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003
31
I N S I G H T
Trabalhar e não-trabalhar têm impacto sobre a visão de mundo das pessoas quanto à moralidade. Os que
trabalham tendem a ser mais intolerantes com o jeitinho do que os que não trabalham, e isto se depreende
do uso da “corrupção” na classificação. Além disso, na
análise destes dados é importante notar que há uma
grande diferença, nas três situações, para o uso do “favor”. Os que não trabalham têm uma visão bem mais
positiva (favor) das três situações do que os que trabalham (Tabela 6).
A principal diferença regional é entre o Nordeste e
as demais regiões do país. Os habitantes do Nordeste
são mais tolerantes com todas as três situações. Obtendo-se uma média destas situações, 34% dos nordestinos
as consideram “favor”. Esta mesma média é de 18%
para quem mora no Sudeste e 21% para quem habita o
Norte, sedo este o percentual mais elevado depois do
alcançado pelo Nordeste.
ode-se afirmar que há uma diferença importante entre o padrão ético do
Nordeste face às demais regiões do
Brasil. O que para um nordestino é
aceitável (tomando-se como indicação
o padrão de respostas para as três situações acima), para
um habitante de outra região tende a ser errado ou eticamente condenável. Este padrão ético faz com que a
opinião pública nordestina seja mais tolerante com acontecimentos que em outra região do Brasil tenderiam a
ser considerados corrupção. A capacidade de indignação e combate da corrupção da população nordestina é
menor pelo simples fato de sua concepção ética ser —
na média — diferente da concepção ética do restante
do Brasil (Tabela 7).
As diferenças mais importantes entre os brasileiros
quanto à classificação moral das situações do dia-adia ocorrem entre as faixas de escolaridade. De modo
geral, à medida que a escolaridade vai aumentando
32
Comissão Permanente de Defesa do Consumidor
INTELIGÊNCIA
as pessoas classificam em maior proporção as três situações como corrupção. O destaque é para o caso do
“presente de Natal”: a variação vai de um mínimo de
20% (para os analfabetos que disseram se tratar de
corrupção) e um máximo de 72% entre as pessoas com
nível superior ou mais que disseram se tratar de corrupção.
Nas outras duas situações a classificação “corrupção” varia de 19% a 36% (tirar um documento mais
rápido) e de 27% a 48% (obter a liberação do empréstimo com maior rapidez). Há um fenômeno interessante nestes casos. Quando se passa da faixa de escolaridade de 2o grau para superior há uma diminuição na proporção dos que afirmam se tratar de corrupção e um
aumento do percentual dos que as classificam como jeitinho. As pessoas da faixa mais elevada de escolaridade
se tornam moralmente mais tolerantes em relação a estas situações. Trata-se de uma clara indicação de que o
fenômeno do jeitinho — que é esta zona cinzenta moral entre o certo e o errado — não será combatido simplesmente com o aumento da escolaridade de população brasileira. É evidente pelos dados que o aumento
da escolaridade levará as pessoas a se oporem mais ao
jeitinho. Porém, os mesmos dados mostram que há limites para isto e ele se encontra justamente na faixa
mais elevada de escolaridade (Tabela 8).
A variação por faixa de renda é muito interessante.
Quando tomadas as duas primeiras situações, dar um jeito
para tirar um documento mais rápido do que o normal e
um funcionário público receber um presente de Natal,
as pessoas de renda baixa consideram-nas — em sua
grande maioria — um favor. Isto permite compreender,
por exemplo, porque reclamar um tratamento impessoal
é tão difícil no Brasil. É muito possível que algum leitor já
tenha protestado contra “furar a fila” tal como é feito na
primeira situação para tirar um documento mais rápido.
Aquele que faz este tipo de reclamação, se for mulher,
tende a ser tachada pelo público, principalmente se fo-
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Tabela 7
AS PESSOAS DE ESCOLARIDADE MAIS ALTA TENDEM A CONSIDERAR AS SITUAÇÕES
MAIS COMO CORRUPÇÃO DO QUE AS PESSOAS DE ESCOLARIDADE MAIS BAIXA
PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO
SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A TIRAR
UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE
O NORMAL É:
F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O
ANALFABETO
ATÉ 4ª SÉRIE
DE 5ª A 8ª SÉRIE
2º GRAU
SUPERIOR OU MAIS
62
40
25
12
10
19
32
42
51
59
19
27
33
36
31
UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE
PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA
QUE ELE AJUDOU A GANHAR
UM CONTRATO DO GOVERNO.
ISTO É:
ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO
GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO
A SAIR. COMO ELE TEM UM PARENTE
NO GOVERNO, CONSEGUE LIBERAR O
EMPRÉSTIMO MAIS RAPIDAMENTE. ISTO É:
F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O
57
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22
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23
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20
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41
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72
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11
5
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48
39
Tabela 8
RENDA X JEITINHO X CORRUPÇÃO
PEDIR A UM AMIGO QUE TRABALHA NO
SERVIÇO PÚBLICO PARA AJUDAR A TIRAR
UM DOCUMENTO MAIS RÁPIDO DO QUE
O NORMAL É:
F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O
UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO RECEBE
PRESENTE DE NATAL DE UMA EMPRESA
QUE ELE AJUDOU A GANHAR
UM CONTRATO DO GOVERNO.
ISTO É:
ALGUÉM CONSEGUE UM EMPRÉSTIMO
GOVERNO, MAS QUE DEMORA MUITO
A SAIR. COMO ELE TEM UM PARENTE
NO GOVERNO, CONSEGUE LIBERAR O
EMPRÉSTIMO MAIS RAPIDAMENTE. ISTO É:
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F AV O R J E I T I N H O C O R R U P Ç Ã O
SEM RENDA
ATÉ R$ 200,00
DE R$ 201,00
A 600,00
DE R$ 601,00
A 1.000,00
DE R$ 1.001,00
47
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18
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40
44
18
47
35
24
24
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E MAIS
11
58
31
14
23
62
5
52
43
Tabela 9
O JEITINHO É
Tabela 10
OS MAIS JOVENS
Tabela 11
A MAIORIA DOS NORDESTINO ACHA
Tabela 12
QUANTO MAIS ELEVADA A
CERTO OU ERRADO?
CONSIDERAM O JEITINHO
CERTO E OS MAIS VELHOS
O CONSIDERAM ERRADO
O JEITINHO CERTO E A MAIORIA DAS
PESSOAS QUE HABITAM O SUL E O
SUDESTE O CONSIDERAM ERRADO
ESCOLARIDADE MENOR A
TOLERÂNCIA EM RELAÇÃO
AO JEITINHO
SEMPRE CERTO
CERTO NA
MAIORIA DAS VEZES
ERRADO NA
MAIORIA DAS VEZES
SEMPRE ERRADO
9
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32
18
C E R T O E RRADO
18 A 24
25 A 34
35 A 44
45 A 59
60 OU MAIS
56
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NORDESTE
NORTE
CENTRO-OESTE
SUDESTE
SUL
CERTO
E RRADO
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C E R T O E RRADO
ANALFABETO
ATÉ 4ª SÉRIE
DE 5ª A 8ª SÉRIE
2º GRAU
SUPERIOR OU MAIS
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rem pessoas de renda mais baixa, de “mal-amada”, e se
for homem trata-se de um “criador de caso”.
Na terceira situação, a do empréstimo junto ao governo, também são as pessoas de renda mais baixa que
a consideram mais favor. A variação nas respostas “corrupção” é muito pequena quando se diversifica a renda. A grande diferença ocorre no jeitinho. As pessoas
de renda mais elevada tendem a ter uma visão menos
positiva simplesmente porque um percentual mais elevado a classifica como jeitinho.
O JEITINHO É CERTO OU ERRADO?
Os resultados da PESB para a pergunta sobre se o
jeitinho é certo ou errado são impressionantes. Exatamente metade da população brasileira o considera correto e a outra metade errado. Ou seja, vivemos em um
país moralmente dividido e ambíguo (Tabela 9).
A diferença básica não é entre as proporções, mas
na intensidade. Aqueles que acham que o jeitinho é
errado são mais enfáticos quanto a isto, posto que 18% o
consideram sempre errado ao passo que apenas 9% o
acham sempre certo.
34
Comissão Permanente de Defesa do Consumidor
INTELIGÊNCIA
Na análise anterior foi mostrado que morar em capital ou fora dela, a idade, pertencer ou não à PEA, a
região do país e a escolaridade estão relacionados com
os padrões de moralidade aplicados às três situações que
mais diferenciam a população brasileira. Porém, quando
se analisa o julgamento que a população faz do jeitinho
morar em capital e pertencer à PEA perdem completamente a importância.
As Tabelas 10 a 12 mostram os resultados para as
variáveis relevantes: idade, região e escolaridade.
Fica evidente que há uma inflexão importante aos
45 anos de idade. Até esta idade predominam aqueles
que acham que o jeitinho é algo certo (soma do sempre
certo com certo na maioria das vezes) e a partir daí
predominam os que o consideram errado.
A grande diferença no julgamento que a população
faz do jeitinho é entre Nordeste de um lado, e Sul e
Sudeste de outro. Este resultado é importante porque
indica que — na média — quem mora no Nordeste não
apenas é mais tolerante com situações consideradas erradas no Sul e Sudeste, mas que mesmo quando se trata
de algo ambíguo — o jeitinho — no Nordeste isto tende
a ser mais positivo (certo) do que negativo (errado).
Os resultados indicam com bastante clareza que as
regiões Sul e Sudeste são as que menos toleram o jeitinho e a região Nordeste está no extremo oposto. Para
aqueles que consideram que o jeitinho mina e solapa as
bases da cidadania moderna, posto que a noção de direitos vem combinada com a clareza quanto ao que é
certo e o que é errado, pode-se perceber que o Nordeste é a região do Brasil que mais tem a fazer para realizar o ideário da cidadania liberal.
Os resultados da pesquisa indicam que se a sociedade brasileira continuar a expandir seu sistema educacional e a massificar o ensino superior, à medida que as
gerações forem se sucedendo o jeitinho será considerado cada vez mais algo errado e condenável. Há, porém,
uma ressalva importante: o principal ponto de inflexão
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
do julgamento do jeitinho é no nível mais elevado de
escolaridade, o nível superior. Isto revela a força e o
profundo enraizamento do jeitinho na sociedade brasileira, e conseqüentemente mostra a enorme dificuldade que terão que enfrentar aqueles que o consideram
um inimigo da cidadania.
JEITINHO, CORRUPÇÃO E OS RESULTADOS DA PESB
A Pesquisa Social Brasileira mostra que o jeitinho é
muito difundido e bem enraizado na sociedade brasileira. Ficou também evidente que há divisões importantes quando se trata de utilizá-lo para classificar situações corriqueiras de nosso dia-a-dia. Os jovens pensam diferente dos mais velhos, as pessoas de escolaridade mais baixa são mais tolerantes em relação a situações menos aceitáveis para os de escolaridade mais elevada, o que os nordestinos acham mais “favor” os moradores do Sul e Sudeste consideram mais “jeitinho” ou
“corrupção”. Esta combinação entre ampla disseminação do jeitinho e discordância quanto ao seu julgamento (se algo certo ou errado) e sua utilização explicam,
em grande medida, boa parte dos conflitos que os brasileiros enfrentam em sua rotina diária.
É comum que pessoas com diferentes visões de mundo quanto à moralidade venham a se encontrar em filas de banco e de supermercado e enfrentem situações
nas quais elas têm que expor argumentos morais acerca de tais situações. Poucos são os brasileiros que nunca
tiraram proveito de um jeitinho e quebraram uma regra tornando uma situação antes desfavorável em algo
favorável. Da mesma forma, não há nada mais comum
para nós do que reivindicar um tratamento equânime
perante às regras e às leis quando outras pessoas tentam
burlá-las em seu proveito. Porém, é possível ter uma
visão positiva do jeitinho?
Um dos argumentos favoráveis ao jeitinho é que ele
funciona como uma estratégia de navegação social. Diante de um Estado muito burocratizado, que com fre-
qüência opera segundo leis contraditórias e rígidas, e
segundo um modelo kafkaniano de operação, o jeitinho
permite que as pessoas tenham acesso a determinados
direitos que de outra forma jamais alcançariam. Naturalmente, isto é apenas para aqueles que têm as habilidades
e o conhecimento necessário para “dar um jeitinho”.
Há também as situações nas quais tudo está previsto
para funcionar, porém nada dá certo: o atendimento é
ruim, as pessoas estão pouco motivadas, faltam recursos
etc. O jeitinho viria em socorro das vítimas da ineficiência. Ele permitiria, da mesma maneira que no exemplo anterior, que os seus hábeis operadores tivessem
acesso a determinados direitos.
Por fim, um outro argumento favorável ao jeitinho é
que ele permite quebrar as relações hierárquicas que
caracterizam a sociedade brasileira. Como todas as pessoas conhecem e podem se utilizar dos códigos e procedimentos dele, o jeitinho possibilita que pessoas dos mais
diferentes grupos sociais alcancem seus objetivos. Em
situações hierárquicas apenas determinados indivíduos
podem quebrar as regras gerais. O jeitinho democratiza de forma radical esta possibilidade.
Em qualquer uma destas interpretações generosas
do jeitinho nota-se que ele sempre será um instrumen-
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003
35
I N S I G H T
to que possibilita a quebra das regras. Por definição,
sejam boas ou ruins, as regras são universais e se aplicam a todos os cidadãos. Se elas forem injustas ou ilegítimas devem ser mudadas. Porém, uma vez estabelecidas elas devem e precisam ser seguidas. O padrão dicotômico de moralidade, que divide o mundo entre certo
e errado, permite que a cidadania — compreendida
como um catálogo universal de direitos — venha a se
realizar e se tornar efetiva. É certo que as leis sejam
cumpridas e errado que elas sejam quebradas em favor de grupos ou pessoas. Isto é verdade por mais especial e delicada que seja a situação de quem se beneficiaria pelo não-cumprimento da lei.
O jeitinho, portanto, equivale a uma “zona cinzenta
moral” entre o “certo” e o “errado”. Se uma situação é
classificada como jeitinho, está-se afirmando que dependendo das circunstâncias esta situação pode ser certa
ou errada. Não há uma regra universal e superior que
regule o mundo para além do momento. O que se tem
são julgamentos caso-a-caso que podem vir a concluir
que se trata de algo certo ou errado.
A questão fundamental é simples: seria, neste caso, o
jeitinho a ante-sala da corrupção? Pode-se afirmar que
quanto maior é a aceitação do jeitinho é também maior
a tolerância social à corrupção? Os resultados da PESB
parecem indicar que a resposta para ambas as perguntas é sim. A moralidade brasileira admite, ao contrário
da moralidade norte-americana, a existência de um
meio-termo entre o certo e o errado. Quanto maior for
a utilização e aceitação deste meio-termo, maiores serão as chances de que haja uma grande tolerância face
à corrupção.
A “zona cinzenta moral” torna difusa e imperceptível, em muitas situações, a linha divisória que marca o
início daquilo que é (ou deveria ser) considerado errado. Adicionalmente, se por causa das circunstâncias e
do contexto regras são quebradas para que determinadas pessoas sejam beneficiadas, qual o limite para este
36
Comissão Permanente de Defesa do Consumidor
INTELIGÊNCIA
procedimento? Por que ele não é tão errado quando se
trata de fila de banco, mas muito errado quando se trata de dinheiro público? Nas duas situações um princípio geral foi ignorado: o da necessidade de se seguir às
regras e às leis. A diferença entre ambos é de grau, mas
não de conteúdo.
A opinião pública brasileira reconhece e aceita, em
grande proporção, que o jeitinho seja utilizado como
padrão moral. Além disso, há uma divisão profunda (50%
versus 50%) entre os que consideram o jeitinho certo e
aqueles que o acham errado. Por isso, se de fato o jeitinho funciona como uma ante-sala da corrupção os resultados da PESB indicam que a tarefa de combate precisa ser feita junto à opinião pública e à população. Os
níveis de corrupção no Brasil têm provavelmente correlato no nível de aceitação social do jeitinho. O que a
PESB mostra é que se quisermos efetuar esse combate
com sucesso temos um longo caminho pela frente, posto que a aceitação social do jeitinho é muito grande e
bem enraizada.
email: [email protected]
NOTAS
1. A PESB FOI FINANCIADA PELA FUNDAÇÃO FORD, REALIZADA PELO DATAUFF E COORDENADA POR ALBERTO CARLOS ALMEIDA, COORDENADOR DO FGV OPINIÃO (FUNDAÇÃO
GETULIO VARGAS) E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF). A
PESB-2002 CONSISTIU EM UM SURVEY, DE ABRANGÊNCIA NACIONAL COM AMOSTRA
PROBABILÍSTICA DE 2.364 CASOS.
2. LÍVIA BARBOSA EM SEU LIVRO “O JEITINHO BRASILEIRO” AFIRMA, BASEADA EM SUA
PESQUISA, QUE “TODAS AS PESSOAS ENTREVISTADAS CONHECEM, PRATICAM OU FAZEM USO
DAS EXPRESSÕES JEITINHO BRASILEIRO OU DAR UM JEITINHO”. HÁ, PORTANTO, UMA GRANDE
DIVERGÊNCIA EMPÍRICA ENTRE ESTES RESULTADOS E OS OBTIDOS PELA PESB. UMA EXPLICAÇÃO POSSÍVEL É QUE LÍVIA BARBOSA FUNDAMENTA SUAS CONCLUSÕES EM 200 ENTREVISTAS
“COM OS MAIS DIFERENTES SEGMENTOS E FAIXAS ETÁRIAS DA POPULAÇÃO”, AO
PASSO QUE A AMOSTRA DA PESB É PROBABILÍSTICA.
3. PARA EFEITO DE ANÁLISE FORAM SOMADAS AS RESPOSTAS “FAVOR” COM “MAIS FAVOR
QUE JEITINHO”, “CORRUPÇÃO” COM “MAIS CORRUPÇÃO QUE JEITINHO”, E POR FIM “MAIS
JEITINHO QUE FAVOR” COM “JEITINHO” COM “MAIS JEITINHO QUE CORRUPÇÃO”. ISTO
PERMITIU TRABALHAR COM APENAS TRÊS CATEGORIAS: FAVOR, JEITINHO E CORRUPÇÃO. ESTA
ESCALA FOI INSPIRADA EM LÍVIA BARBOSA, “O JEITINHO BRASILEIRO”, EDITORA CAMPUS,
1992, P.33.
4. ESTAS SITUAÇÕES FORAM SELECIONADAS DEPOIS DE REALIZADA UMA ANÁLISE ESTATÍSTICA QUE PERMITIU IDENTIFICAR QUAIS DAS 19 SITUAÇÕES DA BATERIA DE PERGUNTAS DO
JEITNHO ERAM AS QUE MAIS DIFERENCIAVAM A POPULAÇÃO.
I N S I G H T
40
Secretaria Especial de Furtos e Reclamações
INTELIGÊNCIA
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Keila Grinberg
HISTORIADORA
Justiça!
A INVASÃO DOS
REESCRAVIZADOS
azia muito tempo que os escravos Martha e Sabino acompanhavam a família Vaz da Silva.
Não é possível precisar bem desde quando, mas pelo menos desde que João Vaz da Silva os herdou de seu pai. João vivia com
sua esposa, seus filhos e estes seus dois escravos — já que
Conrado (“idiota”, coitado) não contava. Como cativos,
os dois permaneceram até a velhice de João, quando, por
medo da morte ou pelos bons serviços prestados à família, ele libertou Sabino e passou carta de alforria a Martha. Esta seria liberada assim que seu senhor morresse.
O que não tardou a acontecer. Mesmo antes, Sabino
e Martha não tinham dúvidas quanto à sua nova condição. Afinal, nem quando receberam suas liberdades
saíram da vista de seus antigos senhores, continuando,
como antes, “praticando com estes atos de livre arbítrio, cantando e dançando com eles” e “reinando entre
todos a igualdade de comunhão doméstica, sem distinção de condição servil”. Mas a harmonia no lar dos Vaz
da Silva só duraria até o falecimento de João. Pouco
tempo depois, Martha, que havia continuado a fazer
companhia para sua ex-senhora, não gostando da interferência desta em suas rixas com uma tal Maria Bernardina, foi-se embora.
Martha foi morar na casa de Manoel Rodrigues
Vianna. Como era continuamente procurada pelos filhos de João Vaz da Silva, que insistiam na sua volta,
mudou-se para além do Rio das Velhas. Mas um dia
voltou e, juntamente com Sabino, foi apreendida pelos
filhos (e também herdeiros) de seu benfeitor João. Isto
aconteceu em 1860, em Curvelo, Minas Gerais.1
Para justificar as apreensões, os herdeiros de João Vaz
da Silva sustentavam que este tinha mais de oitenta anos
quando passou as cartas de liberdade a Martha e Sabino,
quando já “não era mais senhor de suas faculdades”. Pediam que a Justiça as anulasse, e que os referidos escravos fossem declarados de condição servil, como nunca
deveriam ter deixado de ser. Diziam que “a velhice é
uma enfermidade gravíssima, perpétua”, que atingia a
todos os maiores de setenta anos (conforme rezava a or-
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003
41
I N S I G H T
denação filipina livro 4, título 104, parágrafo 5) incluindo, evidentemente, João, que já não podia “dispor de suas
ações por se achar incapaz de tudo, e qualquer ato cível
judicial, ou extrajudicial”, nem “exercer direitos, nem
contrair obrigações valiosas, muito principalmente dispor de todos os seus bens em prejuízo de sua mulher e
filhos”. O argumento era justamente este: as liberdades
de Sabino e Martha eram os únicos bens de João; portanto, elas não podiam ser doadas assim sem mais nem menos, deixando na miséria toda a sua família.
Não adiantaram as alegações do curador de que a
defesa de seus clientes baseava-se no “Direito social e
natural”, nem que as liberdades foram conferidas “por
pessoa competente para o fazer”, muito menos demonstrar “a ambição e a desumanidade” que motivavam as
pretensões dos autores da ação judicial. Também não
foi suficiente mencionar que, se havia imperfeição no
estado mental de João Vaz da Silva, era necessário prová-lo, o que não havia sido feito; ou que, como já haviam passado mais de seis anos desde que Sabino e Martha viviam como livres, qualquer ação de escravidão já
estaria prescrita por lei.
ada adiantou: o juiz Antonio Carlos dos
Reis entendeu que as cartas de liberdade de Sabino e Martha deviam ser
anuladas. Para ele, a doação feita por
João Vaz da Silva feria “direitos adquiridos” de seus herdeiros, e nem atestava “a fraternidade que dizem existia entre réus e autores durante a
vida de João Vaz da Silva, fraternidade que jamais pôde
prejudicar os herdeiros”. Por isso, ainda que “circunscrevendo-se em certa órbita os favores concedidos à
liberdade”, declarou Martha e Sabino cativos e, como
tais, obrigados a prestar-lhes os serviços que estes desejassem.
Pois sim, senhor: depois de tantos anos em liberdade, em pleno século das luzes — como era chamado
42
Secretaria Especial de Furtos e Reclamações
INTELIGÊNCIA
por seus contemporâneos —, eis que estes dois libertos
foram reescravizados.
Já há algum tempo, os estudos sobre escravidão no
Brasil vêm mostrando que não só muitos escravos conseguiam se libertar ao longo do século XIX, como também o faziam através da via judicial: processavam seus
senhores e, em muitos casos, provavam que tinham
direito à liberdade. Até aí, nenhuma novidade. Só que,
talvez pela indisfarçável simpatia à causa abolicionista, talvez pela surpresa que as ações de liberdade ainda causam, o fato é que pouca atenção, até hoje, foi
dada às práticas de reescravização ocorridas também
no século XIX, fosse através da revogação da alforria,
fosse através de escravização ilegal de descendentes
de indígenas, de libertos ou de africanos chegados no
Brasil após a lei de 1831, a primeira a proibir o tráfico atlântico de escravos. Afinal, assim como foram
abundantes as demandas de escravos pela liberdade
na Justiça no século XIX, também muitas foram as tentativas feitas por libertos de manter suas alforrias
quando estas lhes pareceram ameaçadas e muitos foram os casos nos quais os próprios senhores tentaram
reaver a posse sobre antigos ou supostos escravos através dos tribunais. Ao que parece, no entanto, ao longo
do século XIX estas práticas foram tornando-se cada
vez menos legítimas.
Quando estudei as 402 ações de liberdade que
chegaram à Corte de Apelação do Rio de Janeiro, há
vários anos atrás, além de analisar sua procedência
geográfica, a época que ocorreram e seus resultados,
classifiquei-as conforme o argumento que seus autores — os escravos — apresentavam para tentar obter
suas liberdades.2 Na ocasião, não atentando para as
possíveis diferenças entre os vários tipos de ações,
analisei apenas alguns dos argumentos usados por
escravos e seus curadores. Como estava interessada
em entender a dinâmica jurídica e a lógica de resolução das ações, acabei concentrando-me nos casos
I N S I G H T
mais conhecidos pela historiografia até então existente: os chamados “carta de alforria”, quando escravos argumentavam que senhores ou seus herdeiros lhes haviam concedido alforria e depois tinham
voltado atrás, “ventre livre”, geralmente usado quando famílias de escravos argumentavam serem filhos,
netos ou bisnetos de pessoas ilegalmente escravizadas, fosse por serem libertas, fosse por serem de origem indígena, e “compra de alforria”, quando escravos ou terceiros pediam arbitramento de seu valor para apresentarem pecúlio.
Não atentei para o fato de várias das ações não receberem a denominação de liberdade
liberdade, mas sim de manutenção de liberdade e de escravidão
escravidão. Para mim,
àquela época, estas ações e as de liberdade configuravam apenas um tipo de processo, já que abordavam questões semelhantes. Foi por isso que limitei-me a classificar
as ações de escravidão e manutenção de liberdade como
um “tipo” de argumento diferente (gráfico 1).
evendo, porém, a forma como classifiquei estes processos, percebi que
havia uma diferença cabal entre os
processos que havia analisado. Embora a maioria dos processos fosse efetivamente ações de liberdade, um número expressivo
de processos foi classificado, na época, como sendo de
manutenção da liberdade ou ação da escravidão. Só
agora, olhando novamente para estes processos, percebi que eram processos de natureza diferentes, que
tratavam de outro assunto: a questão da reescravização (ver gráfico 2).
À diferença das ações de liberdade, nas quais escravos — ou, ao menos, indivíduos formalmente tidos como
cativos — solicitam a homens livres que assinem petição por eles, argumentando que possuem razões suficientes para processar seus senhores e pedir suas liberdades, as ações de manutenção de liberdade são inicia-
INTELIGÊNCIA
das por libertos, que pretendem defender na Justiça o
direito de manutenção de sua condição jurídica, aparentemente ameaçada por uma possibilidade de reescravização. Da mesma forma, as ações de escravidão
são iniciadas por senhores, que pretendem reaver escravos indevidamente tidos como livres. São estes dois
tipos de ações que, embora não tenham sido batizadas
com este nome no século XIX, aqui consideramos como
sendo ações de reescravização, menos por suas carac-
GRÁFICO 1
Classificação das ações de liberdade da Corte de
Apelação do Rio de Janeiro conforme “Liberata”
FONTE: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO RIO DE JANEIRO - ARQUIVO NACIONAL RJ - TOTAL: 402 AÇÕES
GRÁFICO 2
Ações cíveis relativas à liberdade e à
reescravização do Tribunal da Relação
do Rio de Janeiro no século XIX
FONTE: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO RIO DE JANEIRO - ARQUIVO NACIONAL RJ - TOTAL: 402 AÇÕES
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43
I N S I G H T
terísticas formais e mais pelas questões que abordam.
Afinal, embora os procedimentos jurídicos sejam semelhantes, o processo aqui definido como sendo de reescravização suscita debates distintos daqueles realizados
nas ações de liberdade: além da verificação da veracidade das versões contadas por ambas as partes, como em
qualquer processo, nestes casos trata-se de discutir em
que medida é possível voltar atrás em uma doação de
liberdade, principalmente quando o indivíduo em questão já foi libertado há muito tempo. Ao invés da passagem do estado de escravidão para o estado de liberdade,
que ocorre nas ações de liberdade, aqui se trata de discutir as possibilidades e a própria legitimidade da passagem da liberdade para a escravidão.
credito ser possível demonstrar quão
instável era a situação destes libertos
que, às vezes, mesmo depois de reconhecidamente viverem como livres
por muitos anos, ainda precisavam voltar à Justiça para consolidar seus direitos. Partindo do
princípio de que aqueles que tiveram acesso à Justiça são
apenas uma parcela ínfima do número de libertos e livres ameaçados por seus antigos ou supostos senhores, é
preciso considerar a reescravização como uma prática
efetivamente realizada mesmo em fins do século XIX. Só
depois de 1870, por exemplo, chegaram ao tribunal de segunda instância do Rio de Janeiro vinte casos (gráfico 3).
Não fosse assim, Perdigão Malheiro não teria perdido seu tempo alegando em 1866, em seu A Escravidão
no Brasil, que a revogação da alforria era uma prática
contrária aos interesses da sociedade, já que
Na revogação de uma doação de bens, a desordem é
simples; é uma questão de propriedade, que afinal se
resolve em restituição ou indenização. Mas, na revogação da alforria, o mesmo não acontece. É um homem,
um cidadão, que perderia todos os seus direitos, de cidadão, de marido ou mulher, de pai de família, de pro-
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Secretaria Especial de Furtos e Reclamações
INTELIGÊNCIA
prietário, lavrador, comerciante, manufatureiro, empregado público, militar, eclesiástico, enfim toda a sua personalidade, o seu estado, família, direitos civis e mesmo
políticos para recair na odiosa e degradante condição
de escravo.
E ele terminava dizendo:
E pode-se acaso tolerar-se que isto se verifique no
nosso século, na época em que vivemos, com as tendências e louváveis aspirações, já não somente de favor à
liberdade mantida pela escravidão, mas de abolição da
própria escravidão? Parece-nos que a consciência e a
razão de cada um, mesmo juiz, está respondendo que
não; e que essa lei se deve ter por obsoleta, antiquada e
caduca, derrogada ou ab-rogada pelas leis posteriores,
pelas idéias do século e costumes da nossa época e sociedade, da nossa civilização e progresso.3
Parece que o diagnóstico de Malheiro sobre a “consciência e a razão” de cada juiz “na época em que vivemos” fazia sentido. Afinal, o número de ações que tinham a reescravização como tema aumentava à medida que o fim do século se aproximava (gráfico 4). Embora ainda fossem muitos os casos decididos a favor dos
proprietários de escravos — e assim o seriam até a década de 1880 — estes dados mostram que, pelo menos
desde a década de 1830, mais de 50% das sentenças
foram favoráveis à liberdade.
Mais do que isso: demonstrando que não eram apenas os juristas, advogados e juízes a entenderem de Direito e de direitos, o número das ações de manutenção
de liberdade teve um crescimento muito acentuado a
partir de 1850, ao passo que as ações de escravidão
seguem tendência bem diferente: embora não caiam, sua
tendência de crescimento é bem menor (gráfico 5).
A análise destes dois gráficos permite a chegada a
duas conclusões importantes: a primeira é que, desde
1850, mais escravos entram com ações de manutenção
de liberdade na Justiça do que senhores iniciam ações
de escravidão. Embora estas ocorrências atentem para
I N S I G H T
a necessidade de se levar em conta as práticas efetivas
de reescravização que certamente ocorriam então, das
quais o processo judicial é apenas uma das formas de
resistência, elas também podem demonstrar que os escravos tinham consciência de suas chances em conseguir a alforria nos tribunais.
Esta é a segunda e mais importante conclusão: apesar de ser difícil afirmar peremptoriamente, com base
apenas nestes dados, que escravos sabiam que suas possibilidades de saírem vitoriosos nas ações de escravidão
e manutenção de liberdade eram maiores do que as de
seus senhores, elas efetivamente o eram, pelo menos na
Corte de Apelação, tribunal de segunda instância. É por
isso que, se estes dados dizem muito sobre o estado das
relações entre senhores e escravos na segunda metade
do século XIX, eles informam mais ainda acerca da legitimidade jurídica das ações cíveis de escravidão e
manutenção da liberdade: eles demonstram que, paralelamente ao que então acontecia nas ruas, dentro dos
tribunais — ao menos nos tribunais de segunda instância — a legitimidade da escravidão também estava com
os dias contados.
Basta lembrar do caso dos libertos Martha e Sabino,
aqueles que foram considerados cativos pelo juiz de Curvelo em 1860. Com a apelação da sentença, ela foi parar na Corte de Apelação do Rio de Janeiro. Lá, a discussão entre Antonio Pereira Rebouças, curador dos escravos, e o advogado dos senhores Miguel Borges de
Castro Azevedo e Mello trouxe novidades quase cinematográficas à ação. Na petição dos apelantes, somos
informados que boa parte dos beneficiários da ação de
escravidão, herdeiros de João Vaz da Silva, desistiu da
pretensão de resgatar seus supostos cativos. A razão?
Não queriam mais processar Martha e Sabino, respectivamente, tia e primo de parte dos autores da ação. Eles
disseram que a liberta Martha era filha de Pedro Vaz da
Silva, sendo, portanto, irmã de João Vaz da Silva, o responsável por sua libertação. Sendo Sabino filho de Mar-
INTELIGÊNCIA
tha, ele era também sobrinho de seu senhor. Neste sentido, nada mais compreensível do que a libertação dos dois.
oi o que alegou o advogado Antonio
Pereira Rebouças, argumentando que
a sentença, além de injusta, era injurídica, por considerar os autores como
os únicos herdeiros do libertante João
Vaz da Silva e por desconsiderar o poder que as leis conferiam aos maridos de alienar todos os bens móveis e
semoventes do casal durante a “conjugal administração”.4
Esta foi justamente a questão abordada por seu opositor,
o advogado Miguel Borges de Castro Azevedo e Mello,
que perguntava: “Pode uma pessoa dispor em vida, por
doação ou alforria, de bens cujo valor excede às forças
de sua terça?” Para ele, a resposta era não:
GRÁFICO 3
Ocorrência de ações de escravidão e
manutenção de liberdade ao longo do século XIX
FONTE: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO RIO DE JANEIRO - ARQUIVO NACIONAL RJ
GRÁFICO 4
Resultados das ações de escravidão e
manutenção de liberdade no século XIX
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E a razão é porque excedendo o valor de doação as
forças da terça, essa doação traz prejuízo e grave perda aos herdeiros, que têm um direito fundado sobre as
duas partes dos bens do doador. (...) Este João Vaz da
Silva não tinha mais bens alguns além dos escravos, ora
apelantes. Tinha um outro escravo maluco ou doido, que
não valia nada. Tinha um bocadinho de terras, que nada
produziam. Os autos o dizem. Logo a alforria que ele
deu aos escravos apelantes é inoficiosa (...).
zevedo e Mello aqui usa da estratégia de considerar a alforria como uma
doação como outra qualquer, justamente a definição contrária daquela
preconizada por Perdigão Malheiro
e outros. Para Azevedo e Mello, a alforria era enquadrada como uma forma de contrato que tratava da transmissão de propriedade, como tantas diferentes havia.
Desta forma, a única diferença da doação da liberdade
para as outras doações existentes era que o beneficiado
não podia recusá-la. Mas, possivelmente só para não
deixar de rebater o argumento de a sentença ser “injusta”, ele completou dizendo que
Não é em um Tribunal de Justiça que se trata de dar
a cada um o que é seu, que cumpre mover afetos, e
clamar pelos direitos do homem, por garantias de liberdades, sacrificadas pela ambição e desumanidade.
GRÁFICO 5
Ocorrência de ações de escravidão e de
manutenção de liberdade no século XIX
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Secretaria Especial de Furtos e Reclamações
INTELIGÊNCIA
Temos fé, e à vista dela de nada valem belas teorias e
eloqüentes discussões.
O que o advogado dos proprietários devia estar tentando evitar era o julgamento da ação a partir da excepcionalidade das regras sobre escravidão e liberdade, principalmente quando elas envolviam relações familiares entre senhores e escravos. Mas não foi isso o
que aconteceu. A Corte de Apelação do Rio de Janeiro
proferiu acórdão estabelecendo que
nem os apelados apresentam sentença que houvesse
privado o falecido doador da administração de seus bens
(...), nem é certo o princípio de que aos herdeiros necessários seja devida legítima alguma carta antes da
morte das pessoas a quem devem suceder, e que por
conseguinte se realizam direitos que até então não passavam de mera esperança: ao que acresce que declarando o falecido doador serem seus parentes os doados,
e sendo esta declaração reconhecida e confirmada por
muitos outros herdeiros, seria a maior das iniqüidades
que o Juízo acompanhasse os apelados na pretensão de
escravizar seus próprios parentes (...).”
O tribunal não só reconheceu que, do ponto de vista
jurídico, os libertos apelantes estavam com a razão, mas
também enfatizou aquilo que então se chamava de “injustiça notória” cometida anteriormente pelo juiz de
Curvelo ao decidir-se pela reescravização de Martha e
Sabino: a pretensão de escravizar os próprios parentes.
Os magistrados da Corte de Apelação agiram, portanto,
no sentido de “clamar pelos direitos do homem, por
garantias de liberdades”, fazendo exatamente aquilo
que Azevedo e Mello havia tentado impedir com seus
argumentos.
O acórdão foi referendado pelo Supremo Tribunal
de Justiça, que negou o pedido de revista cível aos supostos proprietários. Pois sim, senhor: depois de páginas e
páginas de processo, eis que os herdeiros de João Vaz da
Silva foram derrotados na Justiça por dois libertos.
Ainda que antiga, uma das teses ainda comuns sobre
I N S I G H T
a Justiça brasileira no século XIX diz respeito à relação
entre seus membros e os supostos interesses da elite brasileira. “Bacharéis do açoite” é apenas uma — a mais
forte, talvez — das expressões utilizadas para descrever a forma como advogados e juízes defendiam a propriedade escrava de seus supostos companheiros de classe.5 De fato, esta é a presunção geral quando se trata da
relação entre a Justiça e a escravidão no Brasil oitocentista: a de que, mesmo que seja possível a um ou outro
escravo sair vencedor em uma ação contra seu senhor,
a lógica mandaria que a razão jurídica estivesse com o
proprietário de escravos. O Poder Judiciário não seria
uma instância de defesa dos direitos de cativos.
A análise da atitude dos escravos que recorreram à
Justiça para lutar por prerrogativas que defendiam ser
seus direitos contribui para questionar esta concepção.
Afinal, nas ações de liberdade, a responsabilidade em
encontrar um fim razoável para a contenda era delegada à Justiça, ainda que este recurso às vezes fosse, na
prática, apenas uma estratégia para pressionar senhores a libertar logo seus escravos. De qualquer forma, a
atitude destes escravos revelava que, já para estas pessoas escravizadas, o Estado era encarado como o detentor do poder de fazer valer direitos que consideravam
possuir, como o de receber a liberdade prometida às
vezes apenas verbalmente por um senhor.
No caso brasileiro, portanto, os Tribunais de Justiça
realmente exerceram um papel importante para a obtenção da alforria de escravos africanos e seus descendentes, o que pode ser percebido tanto pelo número de
ocorrências das ações de liberdade — e, mais importante, de várias sentenças favoráveis à efetiva libertação de escravos — quanto pelo resultado dos apelos
extrajudiciais feitos por africanos e seus descendentes,
que se dirigiam diretamente ao rei para que este exercesse sua compaixão para com seus súditos, livrando-os
de penas, concedendo-lhes graças especiais, ou decidindo a seu favor em contendas de liberdade, quando
INTELIGÊNCIA
já haviam esgotado todas as outras maneiras de obter
ou assegurar a alforria.
As ações de liberdade em geral, tiveram, assim, um
papel fundamental na tensão entre a permanência das
relações escravistas e o processo de modernização do
Estado brasileiro no século XIX: elas eram a expressão
da luta por direitos realizada por escravos e seus descendentes, que, através da Justiça, tornavam públicas
suas demandas, e explicitavam a necessidade de regulamentação jurídica das relações privadas civis. De certa
forma, suas ações contribuíram para a expansão da esfera pública, por solicitarem a atuação do Estado.
A ocorrência e os resultados das ações de reescravização demonstram que, a partir da década de 1860,
juízes e advogados (que, neste caso, nada tinham de
abolicionistas) foram aos poucos reconhecendo que estas práticas de reescravização, embora ainda ocorressem com muita freqüência, estavam tornando-se cada
vez menos legítimas. Os senhores que levavam suas contendas com seus escravos à Justiça não tinham, a priori,
garantia nenhuma de suas perspectivas de vitória.
Entre o início da perda de legitimidade e a perda
efetiva da legalidade, só ocorrida com a abolição da
escravidão, ainda se passariam muitos anos. Mas talvez
não seja exagerado dizer que escravos e libertos tinham
um palco onde suas reivindicações eram mais ouvidas
do que as de seus senhores: os tribunais.
email: [email protected]
NOTAS
1. PROCESSO Nº 6.229,
APELAÇÃO.
CAIXA
3.691, 1860. ARQUIVO NACIONAL. CORTE
DE
2. KEILA GRINBERG, LIBERATA: A LEI DA AMBIGÜIDADE. RJ, RELUME-DUMARÁ, 1994,
ESPECIALMENTE CAPÍTULO 2.
3. PERDIGÃO MALHEIRO, ESCRAVIDÃO NO BRASIL, 1866, VOL. 1, P. 176-7.
4. PROCESSO Nº 6.229,
APELAÇÃO.
5. A
CAIXA
EXPRESSÃO É DE JURANDIR
3.691, 1860. ARQUIVO NACIONAL. CORTE
MALERBA. OS
BRANCOS DA LEI
—
DE
LIBERALISMO,
ESCRAVIDÃO E MENTALIDADE PATRIARCAL NO IMPÉRIO DO BRASIL. MARINGÁ, EDITORA DA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ, 1994.
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INTELIGÊNCIA
BOLETIM DE
OCORRÊNCIAS I
Jorio Dauster
Embaixador
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Delegacia de Defraudações
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INTELIGÊNCIA
Entre 1940 e 1965, J.D. Salinger publicou um total
de 36 contos e um romance. Daqueles, treze foram reunidos
em volumes bem conhecidos: Nove Estórias; Franny e
Zooey; Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira
e Seymour, uma apresentação. Os vinte e dois restantes
há muito permanecem enterrados, e em larga medida ignorados (exceto por alguns poucos fãs), nas revistas em que apareceram. Esses vinte e dois contos estão reproduzidos nestes
dois volumes. Alguns imaturos, outros excelentes, são talvez a chave mestra para entender o tema religioso de Salinger em sua permanente evolução, desde os primeiros conflitos
sociais dos adolescentes de classe média, passando pelas frustrações do intelectual nos tempos de guerra, até chegar à figura místico-literária do próprio Seymour, o ápice da caminhada de Salinger em busca de seu eu mais profundo.
Por incrível que pareça, essas poucas — e instrutivas —
linhas constituem o prefácio de uma edição pirata de tudo
aquilo que Salinger se recusara a publicar sob a forma de
livro antes de mergulhar na reclusão e no mais absoluto silêncio autoral. Entre as vinte e duas peças, lá está a última
vinda a público há exatos trinta e sete anos, Hapworth
16, 1924, e que talvez ainda possa ser lançada entre capas
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INTELIGÊNCIA
duras para gáudio das hostes salingerianas em todo o mundo.
Quando saiu O apanhador no campo de centeio, em
1951, Salinger já publicara 27 contos em diversas revistas, tais como Collier´s, The Saturday Evening Post, Cosmopolitan, Story, Mademoiselle e The New Yorker. Seis
deles foram integrar o volume das Nove Estórias, publicada em 1953, mas a partir daí começaram a rarear as aparições de Salinger em pessoa e também em letra de forma:
Franny e Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira só apareceram em 1955, Zooey em 1957, Seymour, uma apresentação em 1959, até o derradeiro
Hapworth 16, 1924 em junho de 1965.
Enquanto isso, crescia de forma estupenda a fama do autor, já então objeto de verdadeiro culto, transformado em guru
de todos os adolescentes que se identificavam com Holden
Caufield na sua rejeição das falsidades da vida adulta. Quando
ficou claro que os contos não-incluídos na coletânea jamais
veriam a luz do dia com o beneplácito do autor, estabeleceuse uma verdadeira caçada às revistas que os haviam abrigado
originalmente. Para os jovens fãs incapazes de disputar os
cobiçados exemplares com colecionadores mais abonados, o
instrumento de eleição era a gilete e o campo de ação das
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Delegacia de Defraudações
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INTELIGÊNCIA
bibliotecas públicas e universitárias: nessas últimas, diz-se
que não resta incólume um único dos números visados.
Foi então, se não me engano no início dos anos 70, que
recebi de um colega diplomata lotado no exterior um artigo
do Herald Tribune sobre Salinger. Sabedor de que eu cotraduzira o Apanhador no campo de centeio e Nove
estórias (o primeiro com Álvaro Alencar e Antônio
Rocha, o segundo apenas com Álvaro) mandava-me a matéria por imaginar que eu gostaria de conhecer a luta do autor
para coibir uma edição fantasma que, certamente se valendo dos
esforços daqueles bravos cirurgiões de revistas, continha os vinte
e dois contos que ele condenara ao esquecimento. Segundo a
matéria jornalística, não havia muito que a polícia pudesse fazer: os vendedores piratas ofereciam os exemplares de livraria
em livraria, cobrando em espécie e desaparecendo a seguir; os
livreiros, por sua vez, escondiam os volumes em algum canto
bem seguro da loja e, auferindo um belo lucro, só os ofereciam a
clientes de confiança. Para mim, labutando no Planalto Central, ficava a certeza de que não teria nem mesmo a chance de
cometer o pecadilho de comprar a obra pirata.
Eis-me, alguns anos depois, caminhando pelas ruas de
Paris, para onde havia sido levado por uma reunião de
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INTELIGÊNCIA
cunho econômico. Nem me recordo por que, naquele dia,
me afastara tanto do tradicional roteiro hotel-local da conferência-embaixada-hotel que costumava palmilhar. Por
força do hábito, dou uma breve paradinha diante da vitrina
de modesta livraria, passo os olhos a galope pelos títulos
franceses e... Estranha dupla de volumes: capas brancas com
o desenho de uma mulher e uma menina, vestidas nos trinques e empoleiradas na beira de uma cama com dossel e volumosos travesseiros, conversando com um soldado sentado
diante delas numa poltrona; na parte superior, em letras
vermelhas sobre fundo rosa no melhor estilo belle époque, o
nome do autor; mais abaixo, March 1940 (mês em que
foi publicado o primeiro conto, Young Folks ); na parte
inferior, os títulos dos contos (17 no primeiro volume, 5
no segundo) e, num retângulo rosa-pálido, as palavras que
me deixaram atônito: Featuring The Complete Uncollected Short Stories!
Confesso que entrei disparado na livraria, perseguido pela
idéia insana de que lá dentro já estaria alguém finalizando a
compra daquele pequeno tesouro. Evidentemente, a loja estava
às moscas, a senhora que me atendeu sem dúvida jamais ouvira falar em J.D.Salinger, e pelo jeito ficou muito feliz quan-
52
Delegacia de Defraudações
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
do me declarei disposto a levar não só a dupla da vitrina mas
também as duas outras que dormitavam numa prateleira mal
iluminada (e com as quais presenteei meus co-tradutores).
Na época, sem pensar muito sobre o assunto, achei que
aqueles volumes eram parte da operação iniciada no outro
lado do Atlântico, quem sabe as sobras que tiveram de buscar outros mercados fugindo à repressão policial. Agora,
porém, ao escrever estas notas, olhei com mais cuidado as
publicações, que obviamente não trazem nenhuma indicação
bibliográfica, e convenci-me de que não parecem ser um produto norte-americano. Contribuem para isso o rebuscado da
capa e alguns erros de impressão no prefácio (“skelton key”,
“tracable” e “adolesents”), denunciando uma provável origem gaulesa. Mas a melhor pista, que consistia em saber se o
artigo do Herald Tribune falava ou não de dois volumes,
havia se perdido nas brumas do passado.
Fica o mistério policial, passível de ser resolvido por
algum fã mais bem informado do que eu. Mas restará para
sempre o mistério maior, a tessitura inconsútil que transformou um devotado tradutor de Salinger em cúmplice confesso
(embora impenitente) de um doce atentado à propriedade
intelectual do ermitão de New Hampshire.
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INTELIGÊNCIA
IMPASSES NO PARAÍSO:
A CRISE
NO IRAQUE
CLAUSEVITZ PODE AJUDAR A VENCER BATALHAS, MAS É
DE MUITO POUCA VALIA PARA O TRABALHO DE GENDARME.
Márcio Scalercio
Historiador
COMO VOCÊ OUSA COCHILAR À SOMBRA DA SEGURANÇA COMPLACENTE,
LEVANDO UMA VIDA TÃO FRÍVOLA QUANTO AS FLORES DO JARDIM, ENQUANTO
SEUS IRMÃOS NA SÍRIA NÃO TÊM ONDE MORAR, A NÃO SER AS SELAS DOS
CAMELOS E AS BARRIGAS DOS ABUTRES? SANGUE FOI DERRAMADO! JOVENS
BELAS FORAM ENVERGONHADAS (...). SERÁ QUE OS VALOROSOS ÁRABES
DEVEM SE RESIGNAR AO INSULTO E OS VALENTES PERSAS ACEITAR A
DESONRA(...). JAMAIS OS MUÇULMANOS FORAM TÃO HUMILHADOS.
NUNCA SUAS TERRAS FORAM TÃO SELVAGEMENTE DEVASTADAS (...).
(TRECHO DO DISCURSO DO VENERÁVEL CÁDI ABU SAAD AL-HARAWI, AO CALIFA DE BAGDÁ, ANUNCIANDO A INVASÃO
DA P RIMEIRA C RUZADA CONTRA A S ÍRIA E P ALESTINA EM 1099 D .C. E CONVOCANDO O C OMANDANTE DOS
CRENTES A REAGIR. O VENERÁVEL CÁDI EXIBIA SUA CABEÇA RASPADA, NUA POR CAUSA DO LUTO. CITADO DE ALI,
TARIQ. C ONFRONTO DE FUNDAMENTALISMOS. RIO DE J ANEIRO - SÃO PAULO, RECORD, 2002, PP. 63).
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discurso proferido pelo venerável Abu Saad, que procurava sensibilizar o califa e os muçulmanos contra a
ação dos cavaleiros cristãos invasores, se ajusta perfeitamente ao que se passa nas mentes de muitos dos
milhões de muçulmanos que habitam o mundo atual.
Este é um dos elementos mais candentes presentes nas
crises no Iraque e na Palestina. Ambas renovam a cada dia os descontentamentos e a fúria das massas islâmicas contra o Ocidente. Ambas transtornam as relações internacionais instilando discórdias entre velhos aliados (mesmo entre países ocidentais) e instabilidade no sistema entre as
nações. Além disso, contribuem para a desmoralização da ONU (Organização das Nações Unidas) revelando seus estreitos limites de influência e
capacidade de formulação de políticas concretas para solucionar conflitos e
crises graves. Finalmente e porque não ressaltar, lamentavelmente, produzem vítimas fatais e prejuízos materiais por toda parte, de Cabul a Nova
York.
A proposição deste artigo é a de apresentar ao leitor a seguinte questão: enfatizando exclusivamente o cenário da atual crise do Iraque, demonstrar que a admiravelmente bem organizada máquina de guerra norte-americana, remodelada após a Campanha do Vietnã, que obteve com
alguma facilidade a desagregação das Forças Armadas convencionais do
Iraque e obrou a ocupação dos centros mais importantes do país, não está
a altura da tarefa desejada pela liderança política dos Estados Unidos
nesse momento: a de servir de principal suporte para a reestruturação do
Estado e sociedade iraquianos que obedeça a um enquadramento entendido
como viável aos interesses das potências ocidentais. O que se vai fazer
aqui é um exercício de reflexão centrado em estudos de res militare (coisa
militar, assuntos militares), um conjunto de temas em voga desde os tempos
de antanho, cujas referências remontam aos textos greco-romanos da antigüidade clássica. A tradição que nutre a relevância de tais assuntos foi
reforçada em nossos dias, dentre muitas outras razões, pelo fenômeno da
liderança política dos EUA insistir em usar o poder militar como ferramenta fundamental de política externa.
Para que tenhamos uma idéia inicial dessa realidade, basta perceber que,
durante os 50 anos de Guerra Fria, os EUA fizeram uso de seu poder
militar no exterior por 16 vezes, enquanto que desde 1990, com a desagregação da URSS, forças norte-americanas se envolveram diretamente em
conflitos internacionais pelo menos em 46 oportunidades (incluímos nessa
contagem a Guerra do Iraque no ano de 2003)1.
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AS
AVALIAÇÕES SOBRE A GUERRA DO VIETNÃ
E A MODELAGEM DAS FORÇAS ARMADAS DOS
ESTADOS UNIDOS
A DERROTA NO VIETNÃ
É de conhecimento geral que o longo conflito do Vietnã trouxe um vasto
elenco de contrariedades para os Estados Unidos. Seus objetivos militares
foram frustrados. Em 27 de janeiro de 1973, todas as partes envolvidas no
conflito — os Estados Unidos, o Vietnã do Sul, o Vietnã do Norte e o
Comando da Guerrilha Vietcong — assinaram em Paris um acordo de paz
que implicava na retirada total da forças norte-americanas do Vietnã.
Os danos provocados ao Vietnã devido a décadas de guerra, a bombardeios maciços e a perda de vidas em todas as faixas etárias são simplesmente incalculáveis. Coube então ao povo vietnamita, contando com muito
pouca ajuda internacional, lamber as suas feridas, incinerar seus mortos e
catar seus próprios cacos. A frase que melhor sintetiza o drama do Vietnã
foi emitida com habitual crueza por um major dos marines ao comentar a
grande batalha travada pela posse da cidade de Ben Tree durante a
Ofensiva do Tet (1968): It became necessary to destroy the town in order
to save it. 2
As avaliações sobre a derrota americana no Vietnã se acumularam com o
passar dos anos. Livros, teses, filmes e até canções contaram e cantaram,
cada qual à sua maneira, detalhadas versões na tentativa de deslindar por
todos os ângulos o episódio tão sofrido. Para muitos, a retirada das forças
americanas do Vietnã não foi determinada por uma vitória militar dos
comunistas. Nem o talentoso general Vo Nguyen Giap (comandante do Exército do Vietnã do Norte) nem seus rapazes, soldados regulares e guerrilheiros eram páreo para o poderio militar esmagador do Estados Unidos. Caso o
governo norte-americano decidisse fazer uso de toda a sua panóplia de morte,
tornariam-se verdadeiras as palavras do general Curtis LeMay, ex-comandante do Comando Aéreo Estratégico dos Estados Unidos na década de 50.
Procurado pelos jornalistas em seu retiro de aposentadoria, ao ser indagado
sobre que faria com o Vietnã caso ainda estivesse no comando, o general
respondeu sem sequer se despentear: “eu bombardearia o Vietnã do Norte de
volta à Idade da Pedra”.
O fato é que não havia condições políticas para tanto, seja internamente,
seja no panorama internacional. À medida que a guerra se arrastava,
ficava cada vez mais difícil convencer o público norte-americano que os
comunistas vietnamitas eram um perigo para manutenção do american way
58
Interpol
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INTELIGÊNCIA
of life nos rincões do Kansas, ou uma ameaça ao direito das crianças saborearem seus sorvetes na Disneylândia.
Além disso, o sistema de recrutamento vigente e o modo pelo qual o pessoal
era distribuído nos vários serviços das Forças Armadas espelhavam as duras
desigualdades vigentes na sociedade norte-americana. Os ricos e os jovens da
classe média ou conseguiam furtar-se a servir graças à influência política ou
eram destinados às funções mais interessantes e nobres devido à sua melhor
escolaridade (pilotar aeronaves, serviços de inteligência e planejamento por
exemplo). Aos pobres, os “caipiras” dos estados do Sul ou os negros das
pocilgas dos grandes centros urbanos, sobrava, ou os serviços mais cansativos
e aviltantes ou o preenchimento das fileiras da “maldita infantaria”.
Diante do desconforto com essas contradições sociais, com as baixas crescentes e temendo a convocação para o serviço militar, os movimentos de
protesto e os grupos pacifistas começaram a disputar o domínio das ruas com
a polícia. No musical Hair, hipies coloridos dançavam a inutilidade daquela
guerra. Os rapazes estavam morrendo por causa de nada. Let the sunshine!
A turma mais dura e insensível a tais apelos, bem que tentou travar a luta
pelos corações e mentes na mídia, escalando o velho John Wayne para
justificar a guerra no filme “Boinas verdes”. O resultado foi que jamais
saberemos se o número de jovens que protestavam nas portas dos cinemas era
maior ou empatava com a quantidade de pessoas que pagaram o ingresso
para assistir o filme.
e internamente os tumultos antiguerra se avolumavam,
as condições externas de sustentação do conflito também
não eram nada boas. No campo militar, a URSS envidava esforços para sustentar militarmente Hanói. A
China, sempre desconfiada de tudo e de todos, fazia a
sua parte, mas não com muito entusiasmo. O eixo Moscou-Hanói ascendia na
liderança chinesa um elenco de preocupações, pois a enorme fronteira entre
China e URSS tornava-se cada vez mais coalhada de tropas exibindo cenho
franzido e muita disposição em pressionar os gatilhos3. Mesmo assim, a
despeito dos muxoxos mútuos, os dois poderes reunidos agiam de modo a impor
uma moderação forçada ao grau de intensidade dos golpes desferidos pelo
muque norte-americano contra Hanói. Forneciam armas antiaéreas, sistemas de radar e mantimentos para o Vietnã do Norte. Seus próprios arsenais
nucleares eram uma garantia de que a liderança dos EUA se manteria
distante de qualquer “exagero radioativo” e seus serviços diplomáticos açulavam o quanto podiam a reprovação internacional à guerra4.
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s bons e velhos aliados europeus ocidentais, por seu turno,
estavam longe de aceitar qualquer tipo de parceria com os
EUA na aventura vietnamita. O governo britânico (o
aliado de sempre) exibia um ânimo modorrento em relação
ao assunto Vietnã, e enquanto preparava o chá das tardes, escorava-se na adesão dos australianos e neozelandeses ao esforço americano. Ora, já que a Austrália e a Nova Zelândia haviam resolvido
participar diretamente do conflito, os americanos contavam com todo o apoio
britânico que seria possível arranjar no momento. Nas veneráveis ilhas
nebulosas, os jovens dedicavam-se a deixar crescer os cabelos e tocar um rock
cada vez mais elaborado, enquanto as tropas de Sua Majestade lidavam
com um belo atoleiro de encrencas, ali mesmo, ao lado de casa, na Irlanda do
Norte. Afinal, quem tem o IRA como vizinho não precisa cruzar os mares
para criar caso com os vietcongs.
Já entre os europeus continentais, os apelos norte-americanos também
se deparavam com ouvidos moucos. Entre os franceses, por exemplo, espalhava-se um certo “cruel divertimento” ao perceberem que mesmo com todo
o seu poder, os americanos falhariam no Vietnã, exatamente como havia
acontecido com as armas da França na década de 50. Restava saber
quanto tempo levaria para que os americanos tivessem de suportar o seu
próprio Dien Bien Phu5.
A Guerra do Vietnã, portanto, tornou-se um exemplo clássico de episódio
que despertava uma formidável impopularidade internacional. As explicações acerca do insucesso dos EUA bem que poderiam se escorar unicamente
nos contratempos provocados por tal impopularidade. Os adeptos da guerra,
patriotas, militares durões e congêneres sempre poderiam atribuir a responsabilidade do fracasso aos derrotistas, liberais, hippies, aliados vacilantes e,
naturalmente, aos comunistas que eram onipresentes. Como é de conhecimento geral, quando as coisas não caminham bem, a culpa é sempre do outro,
especialmente quando ousa pensar diferente.
AVALIAÇÕES E CONSEQÜÊNCIAS
Mas uma posição cômoda como essa não seria compartilhada por
todos aqueles que se dedicaram a tirar lições do conflito do Vietnã.
Militares americanos profissionalmente lúcidos não caíram na cilada de
atribuir exclusivamente aos civis o fracasso da campanha. Suas reflexões basearam-se na idéia de que a derrota havia também sido pautada
pelo planejamento equivocado, liderança militar deficiente e uso da força de modo inadequado. A onda pacifista só ganhou volume e intensida60
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de porque os militares, no campo de batalha, não resolveram o assunto
rápido. A retirada dos Estados Unidos do conflito do Vietnã foi algo
definido a partir do clamor das ruas, respondendo aos brados de civis
enfurecidos, mas a derrota militar foi, na verdade, construída palmo a
palmo no campo de batalha 6.
As contribuições para a análise sobre os erros da liderança militar do
Vietnã procederam dos oficiais da Força Aérea. Sua crítica pode ser sintetizada no seguinte ponto: o comando dos Estados Unidos no Vietnã deixou de
lado as lições de Clausevitz. É interessante notar que foi a partir dessa linha
de aproximação de cunho tradicional, que se preparou uma espantosa revolução na teoria da guerra aérea7.
urante a Segunda Guerra Mundial, o poder aéreo dos
Estados Unidos inspirou-se nas idéias do teórico italiano
do início do século XX Giulio Douhet e do ás norteamericano William “Billy” Mitchell. Acreditavam que
o poder aéreo se expandiria a ponto de formar uma arma
totalmente independente das demais. Douhet, em particular, imaginava que
as forças aéreas venceriam as guerras sozinhas. Para tanto era necessário
que desenvolvessem um poder de ataque devastador a ponto de se tornarem
capazes de destruir com bombas todos os centros vitais do inimigo. O adversário aterrorizado, com suas cidades em ruínas e suas fábricas transformadas em escombros fumegantes, clamaria pela rendição para evitar o total
aniquilamento.
É ponto pacífico que os aliados testaram essa teoria durante a Segunda Guerra Mundial denominando-a “bombardeio estratégico”. A aplicação de tais idéias criou o cenário funesto das guerras do século XX. A
distinção entre a população civil e militar desapareceu. Os tapetes de
bombas cobriam cidades, matando indiscriminadamente combatentes e
não-combatentes. Por fim, o corolário lógico da prática do bombardeio
estratégico é o uso da arma nuclear. De acordo com o objetivo proposto,
o de levar a mais violenta destruição possível contra a sociedade do
inimigo, nada é mais eficiente do que a bomba nuclear.
Com o advento da Guerra Fria, a Força Aérea dos Estados Unidos
preparou-se para um confronto desta natureza contra os soviéticos. O núcleo
central era integrado por bombardeiros de médio e de longo alcances, aptos a
carregar os artefatos nucleares até o coração do território soviético. As
aeronaves representavam um dos vetores possíveis de lançamento de tais
armas. Além delas, confiava-se no uso de mísseis (de médio e longo alcances
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INTELIGÊNCIA
— intercontinentais), navios de superfície e submarinos. A resposta dos
soviéticos se estruturava segundo padrões semelhantes. O mais irônico de tudo
isso é que o tipo de guerra que ambas as Forças Aéreas se prepararam com
tanto afinco para travar jamais aconteceu.
AS MUDANÇAS
Os elementos constantes acima figuraram nas avaliações retrospectivas
dos problemas militares e de liderança de campanha dos EUA no Vietnã. A
ênfase no bombardeio estratégico baseado no tapete de bombas teria de ser
abandonada. O mais importante era aperfeiçoar a capacidade da força
aérea em apoiar os avanços das forças em terra, abrindo caminho através
da destruição dos pontos fortes adversários, ou correr em auxílio de unidades
em dificuldades bombardeando os pontos de concentração das tropas atacantes e suas linhas de suprimentos. Em última análise, tratava-se de aperfeiçoar o papel tático da força aérea, exigindo uma colaboração mais estreita
com as unidades de terra, aperfeiçoando seu papel de artilharia aérea.
Ao mesmo tempo, uma outra questão de relevo se impunha. Caberia à força
aérea o esforço no sentido de atacar com poder devastador e liquidar o “centro
de gravidade” das forças inimigas. O termo descreve o ponto exato onde o
inimigo é mais vulnerável, o ponto em que o ataque terá a melhor chance de ser
decisivo8. Quase sempre o centro de gravidade representa o lugar onde estão
situados os principais sistemas de comando e controle do adversário. Eliminar o
centro de gravidade significa deixar as forças do inimigo descoordenadas e às
cegas. Tratava-se então de refinar o velho conceito de bombardeio estratégico.
A princípio este conjunto de preocupações traduz um retorno doutrinário
às reflexões clássicas de Clausevitz. Em sua obra “Da Guerra”, o oficial
prussiano insistia em afirmar que o objetivo primordial das operações de
guerra vinculava-se à necessidade de desarmar o inimigo. Enfatizava ainda
que o meio (cenário a ser buscado) da guerra era o combate, também chamado de “recontro”. Toda a atividade visa a destruição do inimigo, ou melhor,
da sua capacidade de combater, porque é nisso que se resume o próprio
conceito de recontro. Daí que a destruição das Forças Armadas do inimigo
seja sempre o meio para atingir a finalidade do recontro.9
A aplicação adequada das idéias de Clausevitz, isto é, a concentração de
esforços na tarefa de destruir as forças militares adversárias, apelava também para uma outra reflexão emitida pelo prussiano: este afirmava que,
para defrontar a violência, a violência mune-se com as invenções das artes e
das ciências10. Em outras palavras, para cumprir o papel doutrinário que se
propunha, os militares americanos enxergaram que acima de tudo deveriam
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apostar no desenvolvimento de uma sofisticada tecnologia de precisão. As
ferramentas e mentes para tanto existiam em profusão. Dinheiro, cérebros e
laboratórios jamais faltaram. Ainda durante o conflito do Vietnã, foram
utilizados artefatos de precisão, tais como bombas guiadas até alvo com a
ajuda de sistemas de tv instalados nas aeronaves e os primeiros sistemas
utilizando orientação com raio laser. A primeira geração de armas deste tipo
dos EUA galgava seu início nos céus vietnamitas.
m seguida, ao longo da década de 80, enveredou-se por
uma mudança de ênfase na pesquisa. Boa parte da “massa cinzenta” preocupara-se em aperfeiçoar as plataformas de lançamento, isto é, os aviões. Modelos e mais
modelos, dotados de aperfeiçoamentos cada vez mais apurados se sucediam. A ação da bomba que conduziam até o alvo e lançavam
ficava por ser resolvida pelas leis da física. Os sistemas ópticos de pontaria
localizavam o alvo, a bomba era lançada e a gravidade cuidava do resto. A
idéia agora era a de buscar o aperfeiçoamento de sistemas de orientação
para as próprias bombas, desenvolvendo as precision guided munitions (PGM).
Em última análise, os dispositivos eletrônicos de alta tecnologia permitiriam
que a vontade humana interferisse na trajetória do artefato conduzindo-o
precisamente até o alvo.
Dotada de precisão, a arma aérea poderia economizar munição. Os
bombardeios de saturação, em que áreas inteiras tinham de ser devastadas
devido às precariedades dos sistemas ópticos seria abandonado. O custo em
vidas civis para a obtenção das vitórias e o ônus político provocado pelos
protestos dos movimentos pacifistas devido às chacinas que o bombardeio
pesado efetuava seriam minimizados. Durante a Guerra do Golfo de 1991,
e o último conflito no Iraque, muitos jornalistas ironizavam ou colocavam em
dúvida a veracidade do termo “Bombardeio Cirúrgico” propalado pelas autoridades do Pentágono. Porém, embora ironia seja muitas vezes imaginosa e
divertida e os militares tentem dourar as tintas de seus méritos, é inegável
que o grau de precisão do armamento moderno é verdadeiramente extraordinário (ver Tabela 1).
As informações mencionadas carecem de alguns esclarecimentos adicionais. No caso do Exército, as divisões são as “grandes unidades” da força.
Isso significa que possuem toda a estrutura necessária para operar de modo
independente — isto é, uma divisão é constituída por um setor de comando
com estado-maior completo, corpo de saúde, unidades de engenheiros, trem de
transporte, artilharia divisionária, flotilha de helicópteros de apoio etc.
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Segundo a reforma implementada durante o período Clinton, as divisões
estão distribuídas em 5 leves (light divisions) e 5 pesadas (heavy divisions).
Dentre as divisões leves destacam-se a 82ª, a 101ª aerotransportadas e a
10ª divisão de montanha de Nova York. Estas seriam, fundamentalmente, as
grandes unidades de intervenção rápida do Exército. Uma divisão pode ter
entre 10 mil e 18 mil homens, agrupados em 3 brigadas de combate. As
divisões pesadas organizam-se em torno de regimentos de tanques de batalha. O Exército conta também com unidades de menor porte, independentes
das divisões. São tropas consideras aptas para operações especiais, tais como
os Rangers, (organizados em 3 batalhões ligeiros), os Boinas Verdes (organizados em cinco grupos especiais cujos números são variados), o 160°
Regimento de Operações Especiais de Aviação (provavelmente contendo 3
batalhões) e o Destacamento Delta (também conhecido como Delta Force),
unidade sobre a qual nunca se sabe muita coisa.
s forças navais, por seu lado, dispõem em termos de embarcações de combate, de 12 porta-aviões de ataque (dentre eles, 8 nucleares), 27 cruzadores, 54 contratorpedeiros, 35 fragatas, 132 porta-helicópteros, 50 embarcações para operações anfíbias e uma frota de 54 submarinos nucleares. Os grupos de batalha da Marinha (task force) se organizam em torno dos porta-aviões (cada um deles transportando em média 70
aeronaves), sendo que os submarinos habitualmente atuam de modo independente. As brigadas dos marines estão agrupadas em 3 divisões. A maior
delas é a 1ª Divisão, que conta com 18.250 oficiais e soldados (quadros
completos). As unidades de marines possuem ainda sua própria aviação de
apoio, helicópteros de reconhecimento, transporte e combate, bem como batalhões de tanques de batalha. Os efetivos totais do US Marine Corps, perto
de 200 mil integrantes, perfaz a maior força de intervenção rápida e
projeção de poder do mundo.
Finalmente, as brigadas táticas da Força Aérea passaram a se organizar em Aerospace Expeditionary Force (AEF), cada uma delas contendo
alas de aeronaves de caça, bombardeiros (médios e pesados), aeronaves de
apoio aproximado, reconhecimento e transporte. Cada AEF inclui 15 mil
homens e por volta de 175 aviões. As aeronaves de altíssima tecnologia, os
famosos “aviões invisíveis” (isto é, dificilmente detectados pelos aparelhos de
radar) costumam integrar esquadrilhas especiais.
As reduções demonstradas nas tabelas acima, ocorreram principalmente
no decurso das duas administrações democratas do presidente Bill Clinton.
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Para termos idéia da ordem de grandeza em números absolutos, o pessoal
militar que em 1990 alcançava um efetivo de 2.070.000 caiu em 1999
para um efetivo de 1.453.000. Embora entre o fim da Guerra Fria e o
advento do 11 de setembro, tenha havido uma redução nos gastos militares
dos EUA — retomados em escala crescente após os ataques a Nova York e
Washington, a redução de efetivos pode não necessariamente significar uma
diminuição dos gastos militares correspondentes. Mesmo que no orçamento, os
gastos com pessoal tenham diminuído, as despesas com pesquisa e desenvolvimento certamente cresceram sobremaneira.
A questão é que a escolha de apostar em equipamentos de alta tecnologia
aumenta bastante a cadeia de custos. Estamos falando das verbas destinadas
às universidades e às empresas para pesquisas, desenvolvimento de protótipos, testes e tudo mais. Acrescentemos o tempo mais longo indispensável para
o treinamento do pessoal militar destinado a operar os engenhos. Finalmente,
não podemos esquecer das despesas de manutenção dos equipamentos (muitos
deles sensíveis) e a reposição de perdas por causa de acidentes ou em combate. Esse aumento de custo tecnológico é em parte compensado pela redução
das quantidades de munição usadas durante as campanhas (a maior precisão conduz, tanto a um número menor de sortidas (missões das aeronaves)
para destruir o alvo quanto uma quantidade menor de bombas), e também
economiza vidas entre os combatentes, pois o apoio de fogo aproximado mais
preciso, bem como a capacidade de “decapitar o adversário”, quer dizer,
destruir seu centro de comando e controle, diminui sua capacidade de resposta
e coordenação das forças em combate.
TABELA 1
FORÇAS ATIVAS DOS EUA – 199011
18 DIVISÕES DO EXÉRCITO
9 BRIGADAS EXPEDICIONÁRIAS DOS MARINES
15 GRUPAMENTOS DE COMBATE DE PORTA-AVIÕES DA MARINHA
22 BRIGADAS TÁTICAS DA FORÇA AÉREA
FORÇAS ATIVAS DOS EUA – 2000
10 DIVISÕES DO EXÉRCITO
5 BRIGADAS EXPEDICIONÁRIAS DOS MARINES
11 GRUPAMENTOS DE COMBATE DE PORTA-AVIÕES DA MARINHA
13 BRIGADAS AÉREAS TÁTICAS DA FORÇA AÉREA
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Nem precisamos entrar em detalhes para que o leitor se recorde que
este foi exatamente o tipo de campanha que os EUA, auxiliados pela
Grã-Bretanha, empreenderam contra o Iraque em março-abril de 2003.
Graças à formidável cobertura proporcionada pelos mísseis Tomarrock
Cruise (para ataques de média distância) e pelas aeronaves e helicópteros de combate, unidades de terra bem pouco numerosas e dotadas de
excepcional mobilidade puderam levar a cabo a campanha enfrentando
um número muito pequeno de contratempos. Em termos de número de
tropas, as forças atacantes jamais somaram mais de 160 mil homens
(acrescentemos a esse montante por volta de 22 mil britânicos). O
Exército iraquiano, por seu lado, brilhou pela ausência. O fato é que
pouco poderia fazer contra o aparato reunido pelos EUA. Suas tropas
de terra não contavam com qualquer cobertura aérea. As posições de
artilharia eram rapidamente localizadas e duramente bombardeadas.
Qualquer tentativa de concentração de unidades, seja para a defesa
estática, seja para efeito de contra-ataque estava fadada a sofrer o
mesmo destino. Finalmente, os centros de comando e controle, devidamente localizados pelo serviço de inteligência norte-americano receberam golpes demolidores logo nos primeiros dias.
Ainda não temos (pelo menos não até o presente momento) uma estimativa clara das baixas sofridas pelas unidades iraquianas durante o conflito.
Supomos que esse número seja inferior às perdas em vidas humanas ocorridas
na Guerra do Golfo de 1990/91. Também não temos como avaliar se a
resistência tênue oferecida pelas Forças Armadas do Iraque foi fruto de uma
decisão do regime em ordenar que suas tropas se dispersassem, já que um
enfrentamento encarniçado do dispositivo militar norte-americano seria simplesmente inútil. Mesmo que o Exército iraquiano, em termos de preparo e
eficiência, jamais tenha sido grande coisa (sua atuação na Guerra IrãIraque atesta este ponto), imaginamos que parcela de seus oficiais comandantes soubessem avaliar corretamente a desproporção das forças e aconselhado o regime a salvar o que fosse possível.
abe-se que durante a ofensiva anglo-americana de março
de 2003, grande quantidade de dinheiro foi sacada de
bancos iraquianos por autoridades governamentais. Providos de um “colchão protetor de dinheiro” e tendo o
cuidado de espalhar depósitos de armas e munições em
vários pontos do país, as condições para dar início a uma campanha de
fustigação contra os adversários estariam lançadas.
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IMPASSES NO PARAÍSO: OS LIMITES DO NOVO PADRÃO
MILITAR DOS EUA E A HORA E A VEZ DA POLÍTICA
O parágrafo anterior pode servir de fonte para entendermos o que anda a
acontecer agora no Iraque ocupado. Grupos de integrantes das Forças Armadas iraquianas dispersos podem estar por trás de pelo menos uma parte do
movimento de resistência contra as tropas da coalizão. As autoridades do
Pentágono têm insistido neste ponto. Na verdade, dão a entender que este
seria o centro nervoso do sistema de resistência. Daí a importância de
capturar os personagens do baralho distribuído aos soldados — as figuraschave do regime deposto. Por enquanto, o Pentágono afirma confiar na
tática do aprisionamento ou eliminação destes elementos, indicando sua crença
que uma vez neutralizados a resistência se enfraqueceria a ponto de tornar-se
irrisória.
Outros (especialmente as autoridades inglesas), alegando conhecimentos
mais amplos da História e das contradições que dividem os povos do Iraque,
se recusam a emprestar credibilidade a um quadro tão confiante e simplista.
Sunitas, grupos xiitas e líderes tribais podem perfeitamente articular a formação de unidades independentes, sem qualquer relação com os adeptos do
antigo regime, e partir para a luta por conta própria. Existem ainda dois
complicadores adicionais: o primeiro, devido ao colapso do sistema de segurança pública do país, constitui-se o cenário ideal para que se alastrassem
práticas de banditismo puro. É possível que algumas dezenas de grupos
armados estejam imbuídos unicamente do desejo de praticar pilhagens. Em
seguida, o colapso dos serviços públicos do Iraque — que na verdade desde a
Guerra do Golfo jamais voltaram a funcionar a contento — inspira grande
descontentamento entre a população, o que serve de combustível para sobressaltos, ações espontâneas e não-organizadas contra os ocupantes. Em última
análise, muita gente no Iraque entende que os causadores de suas agruras
atuais mais graves são as autoridades e as tropas de ocupação, e não o
regime deposto.
Ainda segundo os britânicos, o tipo de conduta a ser seguida no Iraque só
pode ser a da atividade de contra-insurgência. Antes de mais nada, só
mesmo um meticuloso trabalho de inteligência obraria a tarefa preliminar de
mapear a identidade e a estrutura dos grupos da resistência iraquiana. Só
que é muito difícil ser “inteligente” no Iraque. A relação entre as tropas de
ocupação e a população tem se pautado mais pela animosidade do que pela
estreita colaboração. Para muitos dos soldados da coalizão, viver no Iraque
é tão martirizante quanto passar uma temporada em outro planeta. O
estranhamento cultural é notável. Segundo o jornal britânico The Guardian,
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os líderes militares em Washington já teriam mobilizado um exército de
antropólogos, sociólogos e especialistas em cultura árabe, Islã e sociedade
iraquiana para montar algum tipo de estratégia que sirva de suporte para
melhorar as relações entre soldados e população civil. Não se sabe quanto
tempo levará para que os resultados desses estudos comecem a surtir algum
efeito nas ruas de Bagdá.
Uma outra possibilidade é a de encontrar um “Gunga Din”. Explico: o
escritor Rudyard Kipling, sempre preocupado em descrever como o homem
branco se virava para carregar seu “fardo” de “libertar os povos nativos das
trevas do arcaísmo e da ignorância”, criou um personagem, um amigável
corneteiro indiano chamado Gunga Din. Tratava-se de um cipaio — soldado
nativo treinado por europeus — que manifestava grande identificação em
relação aos sahibs britânicos. O ponto alto de sua carreira foi quando, em
campanha, ao perceber que um regimento escocês (com gaitas, saiotes e tudo
o mais) estava para ser emboscado por indianos tribais ocultos nos penhascos,
galgou um dos mais altos picos e, tocando estridentemente seu clarim, alertou
os escoceses do perigo. Os tribais irritados crivaram Gunga de tiros. Este
tombou, com a corneta nos lábios, dando a vida pelo regimento. Os líderes da
coalizão, agora, em pleno século XXI, podem perfeitamente estar à procura
no Iraque de alguns punhados de Gunga Dins, iraquianos identificados com
os projetos ocidentais para o país e com disposição de “dar a vida pelo
regimento”. Literalmente, aliás, pois os grupos de resistência demonstram
claramente que um dos alvos preferidos de seus ataques são os prováveis
Gungas, com ou sem cornetas.
esse sentido, a questão de fundo do cenário atual é que o
dispositivo militar posto em ação e que obteve uma vitória tão fácil contra as forças do ex-presidente Saddam
Hussein é ineficaz para enfrentar todo o quadro de
confusão descrito acima. A tecnologia de última geração poderá auxiliar muito pouco o trabalho de polícia exigido às forças de
ocupação nesse momento. Mas não nos enganemos em pensar que tudo se
resolveria caso centenas de milhares de policiais bem treinados pudessem ser
transferidos para o país. Isso ocorre porque nem a alta tecnologia, nem
mesmo a polícia são capazes de substituir a política.
Os Estados Unidos que derrotaram o Iraque no campo militar dificilmente
têm condições hoje de oferecer uma política viável (isto é, palatável para a
ampla maioria das forças políticas iraquianas) de reordenamento do país.
Os equilíbrios internos do Iraque, anteriormente só mantidos pelo governo de
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força de Bagdá foram embaralhados de tal forma que existe uma forte
possibilidade do Iraque transformar-se num novo Líbano das décadas da
Guerra Civil (anos 70 e 80 do último século). Não temos dúvida de que os
soldados americanos desfrutam hoje de condições muito mais amplas do que
na época da Guerra do Vietnã para se manterem no Iraque por muito
tempo. Os apressados devem lembrar-se que a retirada dos soldados americanos da Indochina só ocorreu após perto de 10 anos de intervenção. Nas
condições atuais, contando com tropas profissionais e com o auxilio de alguns
países aliados — tais como a Grã-Bretanha e a Polônia por exemplo — a
ocupação do Iraque tem tudo para se prolongar.
ontudo, ficar muito tempo por lá não implica em qualquer
certeza de se conseguir desemaranhar o nó górdio político
da região. Encontrar interlocutores entre os povos do país,
conseguir colaboração em seus projetos de state building,
essas são tarefas mais difíceis do que enfrentar 5 divisões
da Guarda Republicana de Saddam. Com quem se aliar, e quem são os
atores que se sentem inclinados a colaborar com o projeto de Washington,
portando liderança suficiente para não temer as retaliações dos grupos opositores e capazes de reunir adeptos para uma reconstrução do Iraque “conveniente”, esse é o eixo político que a ocupação tem grandes dificuldades de
concretizar. Para agravar o quadro, as forças de resistência já deixaram
bem claro por suas atitudes que estão dispostas a atacar centros de produção
importantes e a infra-estrutura do país, pois avaliam que o caos é seu dileto
aliado. Não renunciam sequer ao uso de alguma criatividade, como o mundo
pode observar através do episódio dos ataques com “burricos lança mísseis”
ocorridos no mês de novembro de 2003.
Não pensemos também que a ONU desfrutaria de imediato de um sucesso
fulgurante caso por ventura substituísse os EUA nas tarefas de administração e ocupação. O atentado contra a sede das Nações Unidas em Bagdá é
uma firme demonstração de que no entender de poderosos grupos armados
iraquianos, a ONU não passa também de mais um poder estrangeiro e que
deve igualmente ser expulso do país. Deixando um pouco as culpas de Saddam de lado, no final, para muitos iraquianos, a ONU orquestrou um
apertado boicote contra o país durante uma década inteira. Dificilmente isso
poderia ser esquecido. Em outras palavras, o sucesso em efetivar a emergência de uma situação política estável no Iraque seria uma tarefa tão árdua
para a ONU quanto vem sendo até agora para os Estados Unidos.
Desse modo, podemos estar mais uma vez diante da tática guerrilheira
70
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de, ao enfrentar um adversário formidavelmente mais poderoso, a única
forma de continuar a lutar é “atracando-se no seu pescoço”. Uma vez dentro
do Iraque, diluídos nas ruelas de Basrah, entre os becos de Bagdá, ou nas
escuras estradas entre as colinas do Curdistão, as vantagens da precisão e
da alta tecnologia estão anuladas, e o sangue do inimigo pode finalmente ser
vertido, mesmo que aos poucos.
O trabalho de gendarme sem a necessária condução política não funciona. Os Estados Unidos, seus aliados ou mesmo a ONU podem passar décadas no Iraque e, mesmo assim, falhar miseravelmente. Os analistas militares, os cientistas em seus bem montados gabinetes e a soldadesca profissional e
bem disposta, elaboraram e colocaram em prática um modo de fazer a
guerra em que qualquer adversário que se atrever a permanecer em campo
será inevitavelmente destruído. Como de hábito nos assuntos humanos, a
resposta ao desafio acaba sendo engendrada, de um modo ou de outro. A
resposta dos grupos de resistência iraquianos anda nos ensinando que, depois
da guerra, só resta a política. Fazer e assegurar a paz de modo adequado
pode ser muito mais difícil do que prevalecer no campo de batalha. Apelar
para as armas antes de se matutar satisfatoriamente todos os ângulos postos
na arena política, pode não só comprometer a vitória, como também nutrir as
bases de uma situação muito pior do que a anterior.
email: [email protected]
1. ESSA CONTAGEM É DE PHILIP BOBBIT E NÃO TEMOS RAZÃO PARA DESCONFIARMOS DA MESMA. O
CÁLCULO DO AUTOR DEIXA DE FORA A GUERRA NO I RAQUE PORQUE SEU LIVRO FOI PUBLICADO EM
2002. V ER : BOBBIT, P HILIP . A G UERRA E P AZ ENTRE AS N AÇÕES . R IO DE J ANEIRO ,
E DITORA C AMPUS, 2002, PP . 235.
2. BARNES, JEREMY. THE PICTORIAL HISTORY OF THE VIETNAM WAR. NEW YORK, GALLERY
B OOKS , 1988, PP .136.
3. JIAN, CHEN. “CHINA AND THE VIETNAM WARS”. I N: LOWE, PETER ( ED.) THE VIETNAM
W AR . L ONDON , M AC M ILLAN P RESS LTD, 1998.
4 GAIDUK, I LYA V. “DEVELOPING AN ALLIANCE ”. IN : LOWE, P ETER ( ED.) T HE V IETNAM
W AR . L ONDON , M AC M ILLAN P RESS LTD, 1998.
5. A BATALHA DE DIEN BIEN PHU, EM 1954, MARCOU A DERROTA DEFINITIVA DO COLONIALISMO
FRANCÊS NO VIETNÃ. NAQUELE ANO, MILHARES DE SOLDADOS FRANCESES CERCADOS PELO VIETMIH (O
EXÉRCITO GUERRILHEIRO DO VIETNÃ) FORAM OBRIGADOS A SE RENDER AO GENERAL VO NGUYEN GIAP,
O MESMO PERSONAGEM CONTRA QUEM OS AMERICANOS “QUEBRARAM SEUS DENTES” ANOS MAIS TARDE.
6. FRIEDMAN, G EORGE E M EREDITH . T HE FUTURE OF WAR . NEW YORK , C ROWN P UBLI SHERS , 1996.
7. WARDENT, J OHN A T HE A IR CAMPAIGN : PLANING FOR COMBAT W ASHINGTON D.C,
NATIONAL DEFENSE UNIVERSITY PRESS, 1988.
8. FRIEDMAN, OP . CIT . PP .257.
9. CLAUSEVITZ, K ARL . D A G UERRA . S ÃO P AULO , M ARTINS F ONTES , 1983. PP. 98
10. IDEM , PP . 73.
11. F ONTE PARA AS DUAS TABELAS, VER: BOBBIT, PHILIP , GUERRA E PAZ ENTRE AS NAÇÕES .
R IO DE JANEIRO , EDITORA CAMPUS, 2003, PP . 235.
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Adolpho Lutz e a História da
Medicina Tropical no Brasil: o
resgate da obra de um grande cientista
Jaime Larry Benchimol
& Magali Romero Sá
Pesquisadores
projeto Adolpho Lutz e a história da medicina tropical no Brasil, coordenado pelos autores, tem por objetivo a edição crítica e
comentada da obra do cientista (1855-1940), inclusive sua correspondência, assim como a elaboração de um estudo biográfico
sobre este personagem que ocupa lugar central na história da medicina tropical brasileira, entre as décadas de 1880 e 1940. O
acervo de Adolpho Lutz é constituído por mais de 5.000 documentos manuscritos e datilografados que se encontram sob a guarda do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Os trabalhos que publicou, muitos ainda inéditos no Brasil,
encontram-se aí sob a forma de exemplares avulsos de periódicos, separatas, cópias fotostáticas,
originais manuscritos ou datilografados, provas tipográficas revistas etc. Excetuando-se a fração de
materiais por nós incorporada ao acervo, ele foi reunido por Bertha Lutz, com a ajuda do irmão,
Gualter Adolpho Lutz, professor catedrático de medicina legal da Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro. Além de ativa militante feminista, Bertha era bióloga e dedicou-se a vida toda ao
estudo dos anfíbios anuros, uma das linhas de investigação do pai. Durante os últimos anos de vida
dele, quando, praticamente cego, não conseguia mais ler nem escrever, esteve a seu lado, continuamente, ajudando-o a redigir os derradeiros trabalhos que publicou. Em dezembro de 1955, o cente-
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nário de seu nascimento foi comemorado no Rio de
Janeiro e em São Paulo por diversas instituições
científicas, prevendo-se, então, a publicação de sua
obra, o que não aconteceu, apesar dos esforços envidados por Bertha. Após a morte do pai, empenhou-se por reunir os trabalhos e a correspondência
que se encontravam em poder de cientistas, instituições e periódicos de diversos países com os quais se
relacionara. Um dos componentes do acervo consiste, justamente, na correspondência de Bertha com
os detentores destes materiais, e com os possíveis
patrocinadores do projeto de publicação da obra de
Adolpho Lutz. Quando Bertha faleceu, em setembro de 1976, seu arquivo pessoal e o de Adolpho Lutz foram atirados ao limbo, e durante muitos
anos vagaram por corredores e laboratórios do
Museu Nacional, sujeitos a variados agravos, até
serem resgatados da destruição iminente pela equipe
do projeto Adolpho Lutz.
Há quem o considere o mais importante cientista brasileiro. Superlativos à parte, é, certamente,
um dos menos estudados entre os nomes que compõem o panteão de nossas ciências (Comissão do Centenário de Adolpho Lutz, 1956; Benchimol e Sá,
2003b). Seus pais, Gustav e Mathilde Lutz, ligados a uma das famílias mais tradicionais de Berna, chegaram à capital do império brasileiro em janeiro de 1850, no auge da epidemia de febre amarela que produziu, segundo estimativas oficiosas, 15
mil vítimas numa população de cerca de 250 mil
habitantes (Chalhoub, 1996). Aí nasceram nove
dos dez filhos do casal, inclusive Adolpho Lutz,
em 18 de dezembro de 1855 (Bertha Lutz, Lutziana).
Em sociedade com um conterrâneo, Gustav Lutz
fundou uma casa de importação e exportação e, confiante no sócio, regressou com a família para Berna
em 1857. É possível que a insalubridade do Rio de
Janeiro os tenha afugentado: além da febre amarela,
que desde então se tornou crônica nos verões, enfrentaram devastadora epidemia de cólera em 1855. As
relações entre Gustav e seu sócio deterioraram-se, e
em 1864 os Lutz regressaram à capital brasileira,
deixando, porém, em Basiléia os três meninos maiores: Adolpho, então com nove anos; seu irmão mais
velho, Gustav, de dez; e o menor, Friedrich Eugen,
nascido na Suíça, com sete ou oito anos.
educação foi o motivo
deste afastamento; ela foi
também a atividade a que
passou a se dedicar a mãe
de Adolpho Lutz no
Rio de Janeiro. No
exemplar de 1880 do
Almanak Laemmert encontra-se a primeira referência ao “Colégio de Meninas dirigido por d.
Mathilde Elena Lutz”. Chamava-se já Colégio
Suisso-Brasileiro ao se transferir em 1887 do bairro do Catete para Botafogo.
Antes de doutorar-se em medicina em Berna,
em julho de 1880, Adolpho Lutz freqüentou universidades em Leipzig, Estrasburgo e Praga e trabalhou como assistente no Hospital Cantonal de
Sankt-Gallen, publicando, então, seu primeiro artigo de medicina, sobre bronquite fibrinosa.
Já havia publicado, em 1878, dois trabalhos sobre cladóceros coletados nos arredores de Leipzig e
Berna. Popularmente conhecidos como pulgas
d’água, estes microcrustáceos ocorrem na água doce
ou no mar e fazem parte do plâncton que serve de
alimento a diferentes espécies de animais. Premiada
pela Sociedade Bernense de História Natural, a
investigação de Lutz é fruto do que aprendeu com
Karl Georg Friedrich Rudolf Leuckart (182298), titular da cadeira de zoologia da Universidade
de Leipzig, em cujos laboratórios foi adestrada toda
uma geração de médicos, de diversas nacionalidades,
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na complexa ciência do parasitismo e da biologia de seus hospedeiros (Grove, 1990). Lá Adolpho Lutz aprendeu as
novas técnicas histológicas e os métodos de fixar e corar microrganismos, métodos e técnicas que vinham permitindo grandes
avanços no estudo da embriologia, da estrutura microscópica
de tecidos e órgãos de vertebrados e invertebrados e da biologia
dos microrganismos que os parasitavam. Nos laboratórios
chefiados por Leuckart descreviam-se novas espécies, desvendavam-se complexos ciclos parasitários e faziam-se estudos taxionômicos e morfológicos para dar suporte ao darwinismo, introduzido na Alemanha após 1860.
Já doutor, Adolpho Lutz prosseguiu sua formação em
outras cidades européias: esteve em Viena; assistiu às preleções de Lister em Londres, conheceu Louis Pasteur em Paris. Antes de encerrar-se o ano de 1881, viajou para o
Brasil, juntando-se finalmente à família da qual estivera separado por 17 anos.
Sua carreira compreende, grosso modo, três períodos. De
1881 a 1892 foi, sobretudo, um clínico, mas publicou em
periódicos suíços e alemães numerosos trabalhos originais baseados nos casos que tratava ou no estudo da biologia de espécies que, de alguma forma, se relacionavam com os humanos e
suas patologias. O período caracteriza-se por muitos deslocamentos geográficos e cognitivos. Lutz percorreu diversas
regiões do Brasil, Europa, Estados Unidos e Oceania, e diversas regiões do conhecimento, deixando marcas significativas de sua presença nos estudos sobre parasitoses de animais
silvestres e domésticos, lepra, ancilostomíase, febre amarela,
tuberculose, doenças de pele e do intestino, entre outras.
Uma de suas primeiras providências ao chegar ao Brasil
foi validar o diploma na Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, e enquanto o fazia retratou o ensino e o exercício da
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Adolpho Lutz, já doutor, prosseguiu sua formação em outras cidades
européias: esteve em Viena; assistiu às preleções
de Lister em Londres,
conheceu Louis Pasteur
em Paris
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medicina no império brasileiro em interessante artigo
publicado em Correspondenz-Blatt für Scheweiz
Aerzte (1882). Estava em curso a reforma das
faculdades de Salvador e do Rio de Janeiro. Os
laboratórios então inaugurados, o ensino prático recém-introduzido representavam, na opinião de Lutz,
“gigantesco progresso” em relação à realidade anterior. Contudo, em sua opinião, os principais obstáculos não residiam nas condições externas, e sim no
caráter do brasileiro: “A pontualidade, solidez e sinceridade científica lhe são estranhas, e ele se sente
completamente satisfeito em manter as aparências.
As antipatias e simpatias pessoais freqüentemente
tomam o lugar da lei e do direito. O protecionismo e
nepotismo são quase um cancro que não se pode exterminar.”
utz tentou se estabelecer em
Petrópolis, mas acabou
optando por Limeira,
importante centro cafeeiro, canavieiro e cerealífero no interior do Estado de
São Paulo, com cerca de
quatro mil habitantes e
expressiva colônia suíço-alemã. Sediara as primeiras experiências de colonização pelo sistema de parceria, promovidas pelo senador Nicolau de Campos
Vergueiro e filhos, e fora palco de uma rebelião magistralmente retratada pelo mestre-escola Thomas
Dvatz, em Memórias de um colono no Brasil.
Em Limeira, Adolpho Lutz realizou investigações importantes tanto no domínio da clínica como
da helmintologia de animais domésticos e do homem.
Publicou, em 1885, estudo decisivo sobre a ancilostomíase na coleção de lições de clínica médica de
Volkman, editada em Leipzig. Com este trabalho,
veiculado também em O Brazil-Medico (1888,
1887) e na Gazeta Médica da Bahia, pôs a agenda
de pesquisa helmintológica inaugurada no Brasil por
Otto Wucherer, da chamada Escola Tropicalista
Bahiana, em sintonia com o arsenal teórico e metodológico mais moderno dos microbiologistas alemães,
franceses e italianos. Havia controvérsias sobre o
papel dos ancilóstomos na patologia que muitos ainda classificavam como hipoemia intropical (Edler,
1999). Lutz confirmou as verificações de Grassi,
Leuckart e outros acerca do ciclo de vida livre do
helminto, e estudou as condições que favorecem a evolução do parasita, desde a fase de ovo, eliminado com
as fezes do hospedeiro, até o verme adulto, confirmando seu hematofagismo (Deane, 1955, p. 75).
Em Limeira, Lutz estudou, também, os ciclos
evolutivos de outros parasitas, bem como as doenças
que ocasionavam no hospedeiro humano e em outros
animais, publicando no prestigioso Centralblatt für
Bakterologie, Parasitenkunde und Infektionskrankheiten diversos artigos sobre a estrongiloidíase, oxiuríase, ascaridíase, tricocefalose e outras
helmintoses.
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Um dos capítulos mais interessantes de sua obra é aquele referente à lepra, de que se tornou uma das
maiores autoridades no Brasil, e que investigaria até o fim de sua vida. Morreu convencido de que era
transmitida por mosquitos (Benchimol e Sá, 2003a). À época em que se interessou pela doença, ela
estava exposta a grandes turbulências envolvendo concepções conflitantes sobre sua etiologia, seu modo de
transmissão e sua profilaxia (Obregon, 1996; Souza Araújo, 1956). A lepra foi uma das primeiras
doenças infecciosas a ser reestruturada à luz da microbiologia. Nas células de tubérculos cutâneos, o
norueguês Gerhard Armauer Hansen (1841-1912) observou corpúsculos em forma de bastonete que
denominou Bacillus leprae. A descoberta, relatada em 1874, logo foi confirmada por Edwin Klebs
(1834-1913), Albert Neisser e outros bacteriologistas. Lutz, que vinha atendendo dezenas de leprosos em Limeira, deixou a cidade em março de 1885 para trabalhar, por cerca de um ano, na clínica
fundada em Hamburgo pelo renomado dermatologista Paul Gerson Unna (1850-1929). Ocupou-se
lá da morfologia de germes relacionados a várias doenças dermatológicas. Seu primeiro trabalho sobre a
lepra (1886) foi publicado na revista editada por Unna, von Hebra e Lassar, Monatshefte für
Praktische Dermatologie (atual Dermatologische Wochenschrift), a mais importante caixa de ressonância internacional das experiências clínicas e laboratoriais concernentes àquela especialidade médica.
Naquele trabalho, Lutz contestava o gênero Bacillus em que eram classificados os microrganismos de
Hansen e de Koch (tuberculose), e propunha que fossem classificados no gênero Coccothrix. Sua proposta foi suplantada, dez anos depois, pela de Lehmann e Neumann, que enquadraram os agentes da
lepra e tuberculose no gênero Mycobacterium.
Ao regressar ao Brasil, no primeiro semestre de 1886, Lutz instalou-se na capital paulista. Pouco
tempo depois, teve seu primeiro contato, como médico, com a febre amarela, que começava a se propagar
pelas cidades que floresciam nas zonas cafeeiras do interior do estado, contrariando a crença secular de que
era uma doença exclusiva das baixadas litorâneas. Em julho, viajou novamente para Hamburgo. Por
indicação de Unna, fora contratado pelo Conselho de Saúde do Reino do Havaí para chefiar os serviços
Lutz morreu convencido de que a lepra era transmitida por mosquitos. À época em que se interessou pela doença, ela estava
exposta a grandes turbulências envolvendo concepções conflitantes sobre sua etiologia, seu modo de transmissão e sua profilaxia
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médicos do leprosário há poucos anos instalado na
ilha de Molokai. Desembarcou em Honolulu em
15 de novembro de 1889, precisamente quando era
deposta a monarquia brasileira. Em abril de 1891,
casou-se com Amy Marie Gertrude Fowler, enfermeira inglesa que se oferecera como voluntária para
tratar dos doentes confinados no sinistro lugar que se
tornara mundialmente conhecido desde a morte por
lepra, em abril de 1889, de outro abnegado missionário, o padre Damien (Correa, 1992).
o segundo semestre de
1892, Lutz e Amy se
transferiram para San
Francisco, na Califórnia.
Quando não estava cuidando dos leprosos ou dos
doentes que freqüentavam
seu consultório particular, Lutz dedicava-se à história natural da região, à coleta de espécimes zoológicos e botânicos para cientistas e museus na Alemanha e à coleta de materiais para seus próprios
estudos sobre dermatoses, verminoses e, principalmente, sobre os enigmas da entomologia médica
(Lane, 1955), disciplina que engatinhava, e que
constituiria uma das linhas mestras de sua atuação
posterior como sanitarista. A verificação de que
plantas armazenadoras de água serviam de hábitat
para pequenos crustáceos teria, mais tarde, grande
importância ao direcionar a atenção de Lutz para a
moradia do transmissor da malária silvestre, uma de
suas descobertas mais notáveis (Lutz, 1903).
A segunda fase na trajetória de Adolpho Lutz
corresponde ao período em que esteve à frente do
Instituto Bacteriológico de São Paulo, portanto na
vanguarda dos movimentos de instituição das medicinas pasteuriana e “tropical” no Brasil (Bayet,
1986; Worboys, 1996) e de sua instrumentali-
zação em proveito da saúde pública. Nomeado diretor interino do Instituto Bacteriológico de São
Paulo em outubro de 1893, e efetivado no cargo
somente em setembro de 1895, Adolpho Lutz
exerceu-o por 15 anos, até transferir-se para o Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, em novembro de 1908. Além de estafantes rotinas laboratoriais, e de atividades como “homem público”,
Lutz dedicou-se neste período a pesquisas ‘engajadas’ nos domínios da bacteriologia, epidemiologia e
entomologia médica.
Ele foi, sem dúvida, o mais experiente e versátil
integrante de um pequeno grupo de médicos que, na
virada do século XIX para o XX, estiveram
no centro de candentes controvérsias envolvendo clínicos e outros atores sociais. Refletiam os choques entre
o paradigma microbiano que era entronizado na saúde
pública, e as práticas inspiradas nas teorias miasmáticas e ambientalistas que estes grupos sustentavam
ao se defrontarem com os graves problemas sanitários do Sudeste. Os anos 1890 estão repletos de
conflitos envolvendo a identificação e, por conseqüência, a profilaxia e o tratamento de doenças em
núcleos urbanos e zonas rurais convulsionados pela
imigração estrangeira, pela mudança de regime político, pela industrialização e pelos desdobramentos
socioeconômicos da derrocada do escravismo. Diversas unidades da federação reaparelhavam-se ou
proviam-se de serviços de higiene próprios, que previam laboratórios de análises químicas e bacteriológicas. Na prática, demorou muito tempo até que se
tornassem realidade, na maioria dos estados. No eixo
Rio de Janeiro-São Paulo, a bacteriologia cumpriu papel decisivo no enfrentamento dos problemas
sanitários, graças à atuação daquele segmento ainda
restrito de profissionais dotados da proficiência, dos
recursos técnicos e da ambição necessários para amplificar a relevância social da disciplina.
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Dentre os episódios vivenciados por Lutz, dois
foram particularmente rumorosos (Lutz e Lutz,
1943): o do cólera levou-o a estabelecer contato
com Dunbar, do Instituto de Higiene de Hamburgo, que atestou a presença do vibrião de Koch lá
onde os adversários de Lutz enxergavam apenas disenteriais causadas por fatores telúricos e alimentares locais. A controvérsia sobre a febre tifóide pôs
Lutz em relação com Carl Joseph Eberth (18351926), o descobridor do “bacilo de Eberth”, depois
chamado Salmonella typhi Eberth, que exercia, então, o cargo de diretor do Instituto Anatômico da
Universidade de Halle. Ele forneceu o seu aval às
culturas do bacteriologista brasileiro, contrariando a
suposição da maior parte dos médicos de que as febres que grassavam em São Paulo — as chamadas
febres paulistas — nada mais eram que uma modalidade nativa ou local de malária.
Entre as questões sanitárias que se impuseram à
atenção de Adolpho Lutz naquele período sobressai a febre amarela, também denominada tifo amarílico ou icteróide ou, ainda, americano. A febre que
era chamada de amarela ou icteróide em virtude da
coloração característica apresentada pelo doente tinha também o nome de “vômito-negro” — vomito, o
que trazia a primeiro plano um sintoma intestinal
característico, usado pelos clínicos para o diagnóstico diferencial. As confusões mais freqüentes se davam com as febres que vinham sendo resignificadas
pelos pasteurianos de maneira a se enquadrar nas
modalidades da infecção causada por protozoários do
gênero Plasmodium descobertos por Laveran.
Nos turbulentos anos 1890, as febres paulistas
oscilaram entre a malária e a febre tifóide até pender
de vez para este lado, por obra dos bacteriologistas
chefiados por Lutz. Algo parecido acontecia com a
febre amarela. Alguns médicos reduziam-na a uma
manifestação singular da malária, caracteristicamente
americana. Por outro lado, muitos bacteriologistas
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— o próprio Lutz, num certo momento — estabeleceram analogias entre o cólera e a febre amarela,
baseadas nas manifestações intestinais das duas doenças (Benchimol, 1999).
Quando Ross demonstrou, em 1898, que o mosquito era o hospedeiro intermediário do parasito da
malária, tornou-se inevitável a suposição de que cumprisse idêntico papel na febre amarela, cujo diagnóstico clínico confundia-se com o da malária.
s experiências realizadas
em Cuba, em 1900, formam um divisor de águas
na história da febre amarela. Se não sepultaram,
de imediato, os miasmas,
fungos e bacilos associados à doença, desativaram as controvérsias relacionadas à sua etiologia. O esclarecimento de seu modo
de transmissão viabilizou campanhas sanitárias que
se revelaram capazes, por algum tempo, de neutralizar as epidemias nos núcleos urbanos litorâneos da
América.
O esclarecimento do modo de transmissão da malária parece ter ocasionado, também, imediata reorientação dos estudos sobre febre amarela no Instituto Bacteriológico de São Paulo, e graves cisões
em sua equipe. Em 1898, Vital Brazil levantou as
primeiras objeções experimentais ao bacilo icteróide
proposto pelo bacteriologista italiano Giuseppe Sanarelli (1897), e Adolpho Lutz começou a estudar a distribuição do Stegomyia fasciata em diversas regiões do país. Em fevereiro de 1900, Artur
Vieira de Mendonça exonerou-se do Instituto por
divergir de Lutz a esse respeito. “O mosquito traz
nas suas asas o ridículo para a classe médica”, declarou aos jornais paulistas (Antunes et alii, 1992,
pp. 64, 67).
Os trabalhos da comissão norte-americana fo-
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ram apresentados oficialmente ao 3o Congresso
Pan-Americano, em Havana, em fevereiro
de 1901, ao mesmo tempo que William Gorgas dava início à campanha contra o mosquito
naquela cidade (Reed, Carrol e Agramonte,
1901). A partir de janeiro de 1901, as comissões sanitárias que atuavam em Sorocaba,
Santos e Campinas incorporaram em sua rotina a supressão das águas estagnadas com larvas de mosquitos. Em Ribeirão Preto (1903)
abandonaram-se as desinfecções, prevalecendo
a teoria de Finlay como diretriz soberana, sob
a supervisão pessoal de Emílio Ribas, diretor
do Serviço Sanitário de São Paulo. Os drs.
Émile Roux, Paul-Louis Simond e A.
Tourelli Salimbeni, do Instituto Pasteur de
Paris, foram enviados ao Rio de Janeiro, em
novembro de 1901, pelo governo da França,
que tinha grande interesse em aplicar em suas
colônias a nova estratégia profilática de modo
a acabar com as ruinosas quarentenas impostas
aos navios mercantes (Löwy, 1991). Durante os quatro anos que permaneceram na capital brasileira (Salimbeni retornou mais cedo
por motivos de saúde) fizeram numerosas experiências para conhecer melhor os hábitos e a
biologia do Stegomyia fasciata, para esclarecer aspectos controvertidos da transmissão e a
etiologia ainda obscura da febre amarela.
Em 1908, já com mais de cinqüenta anos,
Adolpho Lutz ingressou no Instituto
Oswaldo Cruz (IOC), abandonando o instituto paulista, que naufragaria algum tempo depois. Em Manguinhos começa o terceiro período de sua vida profissional, em que realiza a
aspiração de se dedicar por inteiro à pesquisa
— e não necessariamente de aplicação médica
—, o que o faz até falecer, no Rio de Janeiro,
INTELIGÊNCIA
Em Manguinhos começa o
terceiro período de sua vida
profissional, em que realiza a
aspiração de se dedicar por
inteiro à pesquisa
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Boa parte dos adversários da reforma e saneamento urbanos rendera-se à retórica triunfante
da “regeneração” do país
em 6 de outubro de 1940, poucas semanas antes de completar 85 anos. Graças à sua longevidade, esta fase,
iniciada tardiamente, foi mais longa do que as duas outras reunidas (Neiva, 1941; Comissão do Centenário,
1956; Albuquerque, 1950).
Criado em 1899 com a finalidade de produzir soro e vacina contra a peste bubônica, como o Instituto
Butantã, em São Paulo, Manguinhos achava-se, em 1908, num momento crucial da memorfose que o
tornaria, por várias décadas, o centro de gravidade da medicina experimental brasileira (Benchimol e Teixeira, 1993; Benchimol, 1990). Os caminhos de Adolpho Lutz e Oswaldo Cruz tinham convergido
década e meio antes, durante a epidemia de cólera no vale do Paraíba. Oswaldo Cruz acabara de assumir a
clínica do pai, recém-falecido, e como Francisco Fajardo, Eduardo Chapot-Prévost e outros jovens
desbravadores da bacteriologia, no Rio de Janeiro, encarava o ‘sábio fluminense’, de sólida e rígida formação germânica, como um modelo a ser seguido. A auspiciosa produção científica de Oswaldo Cruz, como
bacteriologista e entomólogo, acabou ficando à sombra de suas ações como sanitarista e administrador da
ciência. Foi graças às suas habilidades nestes terrenos, que o modesto laboratório soroterápico de Manguinhos tranformou-se no dinâmico Instituto de Patologia Experimental, logo rebatizado de Instituto Oswaldo Cruz (março de 1908). A mudança consumou-se no governo de Afonso Penna (1906-9), que
sucedeu Rodrigues Alves (1903-6) e confirmou Oswaldo Cruz no cargo de diretor-geral da Saúde
Pública. A promoção de Manguinhos deveu-se, em parte, à euforia insuflada na opinião pública pelo
êxito das campanhas contra a febre amarela e a peste bubônica no Rio de Janeiro. As novas avenidas e os
palacetes edificados às suas margens davam a impressão de que a capital do Brasil, enfim, civilizara-se.
Fora subjugada e expulsa das áreas renovadas a rude plebe que animara a revolta contra a tentativa de
tornar obrigatória a vacinação antivariólica. Boa parte dos adversários da reforma e saneamento urbanos
rendera-se à retórica triunfante da “regeneração” do país, respaldada por monumentos como o imponente
castelo mourisco edificado por Oswaldo Cruz na fazenda de Manguinhos. Mas o fator decisivo para o
êxito do projeto de transformar aquele laboratório numa instituição similar ao Instituto Pasteur de Paris foi
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a medalha de ouro conquistada do XIV Congresso
Internacional de Higiene e Demografia, e na Exposição de Higiene anexa a ele, em Berlim, em setembro de 1907. Quatro anos depois, o Instituto
Oswaldo Cruz brilharia na Exposição Internacional
de Higiene realizada em Dresden, em junho de
1911. Na primeira, a peça de resistência foi a documentação relativa à bem-sucedida campanha contra
o Stegomyia fasciata (atual Aedes aegypti) no Rio
de Janeiro. Em Dresden, contou sobretudo o trabalho sobre a doença produzida pelo Tripanossoma
cruzi, que ficaria internacionalmente conhecida como
Doença de Chagas.
bagagem extraordinária
de conhecimentos zoológicos que Adolpho Lutz
levou para Manguinhos
foi decisiva para a construção de suas coleções
biológicas e para o adestramento dos jovens médicos, todos na casa dos vinte anos, que Oswaldo Cruz recrutara para compor
o que chamava de seu “jardim de infância da ciência”. Com Lutz, aprenderam muitas das ferramentas
necessárias para investigar os complexos ciclos de
parasitos e de seus hospedeiros. A contratação de
Lutz coincide com o auge da influência alemã sobre
a vida científica de Manguinhos, que, no intervalo
entre Berlim e Dresden, acolheu também Max
Hartmann, do Instituto de Moléstias Infecciosas de Berlim, e dois professores da Escola de Medicina Tropical de Hamburgo, Stanislas von Pro-
wazek, autor de importantes trabalhos sobre os clamidozoários, e G. Giemsa, inventor do método de
coloração mais utilizado para a observação de hematozoários. Mais tarde, veio a Manguinhos
Hermann Duerck, docente de anatomia patológica da Universidade de Iena. As Memórias do
Instituto Oswaldo Cruz, inauguradas em 1909,
difundiriam os trabalhos de seus cientistas quase
sempre em português e alemão, cabendo a Adolpho Lutz a árdua, ainda que pouco reconhecida,
tarefa de traduzi-los para este idioma, hegemônico
até a Primeira Guerra Mundial.1 Seu capital de
relações com universidades, museus e institutos de
pesquisa europeus e norte-americanos certamente
contribuiu para consolidar o prestígio internacional
do Instituto Oswaldo Cruz.
Durante o terço final de sua trajetória, vivida
em Manguinhos, Adolpho Lutz produziria abundantemente sobre temas de interesse médico, como a
esquistossomose, ou de interesse puramente biológico, como os anfíbios anuros, alheio aos dilaceramentos internos e externos que marcaram a chegada à
maturidade daquela instituição. Suas idiossincrasias,
que se tornariam folclóricas, e a densidade de sua trajetória científica permitiram que chegasse mais perto
do que ninguém daquela miragem da torre de marfim
onde muito cientista sonha viver recluso.
email: j b e n @ c o c . f i o c r u z . b r
email: m a g a l i @ c o c . f i o c r u z . b r
Nota
1. A rarefação dos trabalhos publicados em alemão por Lutz e seus pares nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, a partir da
Primeira Guerra Mundial, certamente constitui um indicador importante de mudanças em curso nas relações de ascendência e
interlocução entre cientistas brasileiros e estrangeiros no âmbito da microbiologia e medicina tropical.
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I N S I G H T
86
Pró-Memória
INTELIGÊNCIA
I N S I G H T
LUIZ CESAR FARO
INTELIGÊNCIA
&
SÉRGIO COSTA
JORNALISTAS
O EVANGELHO DO
DESENVOLVIMENTO
SEGUNDO
ia 17 de novembro de 2003, quarta-feira, mesa de quatro no restaurante
D’Amici, no Leme. Antônio Barros de Castro, convidado para inaugurar um
painel de conversas sobre um iluminado caboclo maranhense esquecido nos
rincões de empoeirados livros de teoria econômica ou exilado na memória
dos cada vez mais escassos contemporâneos, cofia a barba e procura uma
definição carinhosa para o dito cujo. “Ignácio Rangel via lógica até no vôo de uma andorinha”, dispara Castro com olhar saudoso. “Eu carrego comigo uma certa culpa, um certo
remorso, por não tê-lo entendido no seu tempo. Rangel pensava com excessiva liberdade”.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003
87
I N S I G H T
ronto! Castro tinha encontrado o
fio condutor dessa nossa artimanha de revisitar o pensamento
do velho Ignácio apenas para
poder falar do sujeito; o elo de
ligação seria uma certa culpa, um certo remorso.
Rangel foi passando, passando, e assim como a
andorinha bateu asas e voou das academias, dos
órgãos de fomento, da indústria, da mídia em
geral. Com ele, ou para ser mais preciso, com a
sua geração, foi-se um sentimento de obsessão
pelo desenvolvimento, altamente em voga entre
as décadas de trinta e sessenta, que viciava mais
do que opiáceos, mas fazia bem à saúde pátria.
A ausência de Rangel não está circunscrita
apenas ao sumiço da sua presença física e vai
além de uma metáfora rasa sobre a cura pela
doença do seu vício virtuoso, a tara pelo progresso. O espírito e a obra de Rangel sumiram
mesmo. Ninguém fala ali, ninguém fala acolá, ao
contrário do que acontece com outros pensadores em economia política ou história da economia — ou economia escolástica, se quiserem
alguns —, tais como os mestres Celso Furtado e
Caio Prado Jr. Mas, antes tarde do que nunca —
já que os tempos são de um pensamento uniformizado e os seus livros continuarão lá mesmo,
nos poucos sebos ainda acessíveis — um bom
motivo para lembrar Rangel é o próximo dia 20
de fevereiro, quando começam a esquentar os
tamborins. Nada a ver as folias de Momo com o
austero professor, mas é que o caboclo completaria 90 anos de idade se não tivesse partido desta
para uma melhor.
88
Pró-Memória
INTELIGÊNCIA
Ignácio Rangel chegou a estas terras no ano
de 1914 por uma extremidade, a cidade de
Mirador, no Maranhão. Fez de uma outra extremidade seu culto político e caminhou, literalmente, sempre à esquerda — exceção feita a
barcas e trens, nos quais, em pé, o sujeito completava sua viagem — até o Rio de Janeiro, lá
pelos idos dos anos 40. Veio por dentro, antecipando em muitas décadas o tal doutorado em
problemas brasileiros que viraria anos depois
peça de marketing da campanha eleitoral para
Presidência da República de um outro caboclo.
Só que, com todo respeito ao Supremo Mandatário da Nação, Rangel lia muito desde a década de
20. “Seu pai, José Lucas Mourão Rangel, era um
magistrado esclarecido, sempre em oposição ao
governo. Em conseqüência, era nomeado para
comarcas pequenas onde, muitas vezes, não
havia escola. Isso fez dele o preceptor de seus
filhos. A tradição familiar, sua personalidade,
bem como suas leituras influenciam-no a pegar
em armas com apenas 16 anos para ajudar a
derrubar o Governo Federal”. A forja consangüínea que produziu essa liga de aço especial não o
aliviava nem mesmo em situações onde até os
mais fortes têm seu momento lacrimogêneo.
Quando pagou sua primeira detenção, narrou o
próprio Rangel, “seu pai lhe disse: se me chegar
em casa, tendo abandonado os amigos só para
não correr riscos, eu lhe fecho as portas na cara.
Se você quer mudar de opinião, espere lhe ser
devolvida a liberdade; enquanto não lhe for
devolvida, você não pode mudar de opinião”. É o
período de um Rangel nitroglicerínico, que
continha sua libido em apertar o gatilho contra a
tigrada com o esforço monástico das primeiras
leituras de Marx e tudo mais que dissesse respeito à dialética e ao materialismo histórico.
I N S I G H T
Como os hormônios e a tentação pela garrucha
ainda falavam mais alto, ainda adolescente, em
1935 se junta a operários de uma fábrica de
tecidos e, de arma na mão, tenta ocupar um
quartel do Exército. São tempos de militância
integral no PCB e da Intentona Comunista. Para
Rangel o resultado era previsível: cadeia na certa.
Cumpriu dois anos de xilindró no Rio de Janeiro e
depois ficou oito anos impedido de deixar a
capital maranhense. Não chegou a ser um campeão de permanência em casas de detenção, mas
ficou o tempo suficiente para amainar, posteriormente, o patrulhamento de uma esquerda que
fazia sua escala de medição meritocrática em
função do calvário físico ou do tempo de enclausuramento dos seus companheiros. Rangel, em
suas futuras travessuras intelectuais, iria precisar
desse waiver concedido a muito poucos.
Ainda nas memórias do cárcere, inventa uma
espécie de MBA lato sensu para detentos políticos, criando um sistema de utilização de livros
cedidos para o funcionamento de 13 cursos,
entre os quais sociologia, matemática e todos os
textos do pré-cambriano do que viria a ser
chamado de ciência econômica. A repressão
certamente achou que era melhor ter o professor
autodidata exilado lá pelas bandas de sua terra
natal do que dando aulas-showmícios dentro da
cadeia. Então, de volta ao Maranhão.
Uma versão preciosa do episódio do ataque
frustrado ao quartel do 13º Batalhão de Caçadores é dada por Dionísio Dias Carneiro, que
herdou uma quase tutela de Rangel da longa
amizade entre o pai de São Ignácio, José Lucas
Rangel, e seu tio-avô, Severino Dias Carneiro:
INTELIGÊNCIA
Ainda adolescente, em 1935
se junta a operários de uma
fábrica de tecidos e, de
arma na mão, tenta ocupar
um quartel do Exército
“Rangel já era estudante de Direito à época e
um destemido comunista. Não bastasse o flagrante da ação revolucionária, foi preso com um livro
que atestava sua culpa: um exemplar do Précis
d’Economie Politique, de Charles Gide, perigoso
economista revolucionário francês, segundo
entendeu a polícia política de Getúlio. O livro
continha uma dedicatória de meu tio-avô ao seu
pai, e lhe valeu uma ficha policial de “economista”, e tal dedicatória serviu de evidência para
que se noticiasse, no Rio de Janeiro, o envolvimento de dois juízes federais com o movimento
comunista no Nordeste! Anos depois, já formado
em Direito, Rangel gostava de dizer com orgulho, aos que perguntavam se era economista, que
havia sido diplomado pela polícia política de
Getúlio, que não só o havia fichado como tal, mas
lhe havia oferecido a oportunidade de estudar
Marx na prisão”.
o se reencontrar com as terras
marajoaras, Ignácio alterna todo
o explosivo vigor dos seus pouco
mais de um metro e meio de
altura em reuniões clandestinas e
missões do Partido e uma leitura furiosa até
mesmo para os mais renomados traças da época.
Em abril de 1945, ainda segundo Bresser Pereira, os jornais do Maranhão publicam o programa
da 1ª Conclap — Conferência das Classes Produ-
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003
89
I N S I G H T
toras, que seria realizada em Teresópolis, Rio de
Janeiro. “Rangel, além de escrever dois trabalhos
para a Conclap, é chamado para chefiar a
assessoria da Associação Comercial do Maranhão,
que representaria esse estado no evento. A
participação no encontro das classes produtoras
em Teresópolis faz o chefe de polícia de São Luís
lhe fornecer uma nova carteira de identidade e
permitir, enfim, a saída de Rangel do Maranhão.
Do Rio de Janeiro, escreve para a mulher discutindo a possibilidade de não voltar para São Luís,
recebendo dela encorajamento para começarem
uma nova fase de suas vidas na então Capital
Federal. Rangel começa a trabalhar no Rio de
Janeiro como tradutor de novelas policiais. Em
seguida, também como tradutor, trabalha para a
agência de notícias Reuters. Seus trabalhos de
tradução eram sempre de meio expediente. O
outro meio expediente era em sua casa. Quando
calculava que as despesas mensais estavam
cobertas, parava com as traduções para estudar
economia em tempo integral, até o fim do mês.
Em 1947, recebe, em um domingo, a visita de
um amigo e mostra a ele alguns artigos sobre
economia que escrevia somente para sistematizar
suas idéias. Cinco deles são selecionados e vendidos por esse amigo para a Associação Comercial
do Rio de Janeiro. A partir desse dinheiro que
Rangel ganha como economista, inicia uma
intensa produção de artigos para publicação”.
É uma missão hercúlea, para não dizer impossível, rastrear a caudalosa produção de
ensaios de Ignácio Rangel. Parece que não fez
mais nada na vida, isto se ela lhe tivesse dado uns
200 anos de idade. Para se ter uma idéia do
tamanho do oceano, os autores encontraram
somente na Folha de S. Paulo, de 1970 para cá,
cerca de 180 artigos, fora as entrevistas. Há
quem tenha escrito muito mais sobre assuntos
90
Pró-Memória
INTELIGÊNCIA
É uma missão hercúlea, para
não dizer impossível, rastrear a
caudalosa produção de ensaios
de Ignácio Rangel. Parece que
não fez mais nada na vida
variados. Sobre economia estritamente, é difícil.
A diferença é que nos idos do final dos anos 40,
em meio à febre do que viria se chamar de
desenvolvimentismo, Rangel era lido com raro
entusiasmo.
Escrevia bem, com erudição, mas de forma
meio tortuosa, digamos barroca, e invariavelmente com aquele pensamento oblíquo que o
fazia enxergar um mesmo caminho por uma
trajetória completamente distinta. Na maioria das
vezes, enxergava caminhos que ninguém viu.
Talvez por esse dom de dar características
científicas a inusitadas formas de encaminhamento e equação dos problemas, driblou a
aversão que a pecha de comunista produzia nos
senhores dos meios de produção e acabou sendo
incorporado aos mais elevados staffs mesmo com
o estigma vermelho e fama de turrão.
m 1950, segundo Bresser Pereira
e José Márcio Rego, verifica-se
um encontro de almas gêmeas,
comparável, ressalvadas as
devidas diferenças e proporções,
ao de Marx e Engels. “Rangel é apresentado a
Rômulo de Almeida, que chefiava a assessoria da
Confederação Nacional da Indústria e passa a
trabalhar com ele”. Verdade seja dita, a entidade
patronal significa para ambos a aliança matrimo-
I N S I G H T
nial com a indústria. Finalmente, da teoria à
práxis. E Rangel começa a olhar o mercado com
outros olhos, ainda turvos, mas menos impiedosos
e sempre científicos, é claro. Digamos que é
nesse momento que inaugura o “comunismo
heterodoxo”, do qual viria a ser o principal e
único expoente, passando a fazer uma interpretação original de Marx, de quem nunca foi um
leitor dogmático.
DANÇA COM LOBOS E UM “CAUDILHO”
Em 1952, o amigo e parceiro intelectual
Rômulo de Almeida sugere seu nome ao então
presidente Vargas, que convida aquele caboclo
que, por muito pouco, não mandou para o
suplício no pau-de-arara, para o seu seleto e
coeso grupo de assessores. Rangel trabalhou que
nem um cão com Vargas, mas não por Vargas,
por quem manteve até o fim da vida uma bronca
coerente com sua ideologia, princípios e maustratos recebidos. Trabalhou pelo Brasil. Aliás,
Rangel é apenas mais um no vasto time do
“pecebão” que cultivava a aliança tática temporária com o inimigo político como uma etapa
natural e necessária na trajetória da consolidação
do processo revolucionário. Um expediente de
rara disciplina e dor, que acabou encontrando
seu momento mais emblemático na alcunhada
92
Pró-Memória
INTELIGÊNCIA
“síndrome de Prestes”, forma jocosa de denominação para o apoio dado em palanque pelo
“Cavaleiro da Esperança” a Getúlio Vargas, algoz
de véspera de sua mulher, enviada à tortura e ao
extermínio em um campo de concentração
alemão. O fato é que a mais suave expressão
usada por Rangel quando se referia a Vargas era
chamá-lo de caudilho feudal. Talvez ainda
distante da classificação superlativa, uma frase
mais enfática foi a dita a um dos autores deste
ensaio: “Getúlio era um grandissíssimo filho-daputa”, rosnou.
as o método dialético onipresente e a compulsão por racionalizar até a queda de um fio
de cabelo levaram-no a encontrar uma curiosa justificativa
para engolir Vargas, pelo menos como etapa
histórica: o “conservadorismo renovador”. É
aquela história: não há mal que seja absoluto,
não há bem que seja todo bem. São, portanto,
palavras do próprio Rangel:
“É ainda incompreendido por nossos historiadores e intelectuais o papel desse nosso conservadorismo (quiçá reacionarismo) renovador (quiçá
revolucionário) que fez o príncipe herdeiro da
Coroa de Portugal proclamar nossa independência; a princesa herdeira da Coroa imperial
proclamar a República, que estava implícita na
Lei Áurea; que fez do caudilho feudal Getúlio
Vargas o patrono da indústria brasileira, ao
adotar uma legislação trabalhista de inspiração
I N S I G H T
sabidamente fascista, isto é, “mussoliniana”
(Carta del Lavoro), e, conseqüentemente, fomentar as bases de uma expansão industrial poucas
vezes conhecida no mundo capitalista”.
Uma outra forma de ilustrar essa siderúrgica
disposição de renúncia ao desamor em nome da
paixão pelo serviço público numa relação cheia
de afeto (tático) e ódio alternados no tempo,
encontra-se na crônica escrita por Carlos Gaspar,
substituto da cadeira 26 que Rangel ocupava na
Academia Maranhense de Letras, sede da Casa
de Antônio Lobo. Diz o emocionado Gaspar em
sua homenagem ao mestre, por ocasião de sua
herança de um título de imortalidade na versão
marajoara:
“Acerca do seu relacionamento com Getúlio
Vargas, dois episódios exigem menção. O primeiro
encontro, quando foi convidado para integrar a
equipe do então presidente, que desta maneira se
manifestou: “Dr. Rangel, eu conheço o seu currículo. Quero correr o risco de integrá-lo em minha
equipe. Não careço de aduladores, mas de homens que, como o senhor, tenham a coragem de
dizer-me que estou errado”. O segundo traduz
seu conceito sobre Vargas: “Sinto-me na obrigação de dizer que durante muitos anos trabalhei
para o presidente, mas era opositor. O meu
neogetulismo começa hoje, porque eu fui getulista
em 1930, quando ele foi comandante, mas isso
faz muito tempo; depois estive contra, fui preso
etc., e agora eu começo a perceber o getulismo,
porque seu suicídio significa que levava a sério
aquilo que me mandava fazer. Portanto, eu levo a
sério, eu agora me declaro getulista, e podem ter
certeza que milhões de brasileiros estão, neste
momento, tomando a mesma decisão”.
INTELIGÊNCIA
omo se vê, Rangel não fugiu à
saga de gato e rato entre o velho
PCB e a oligarquia dominante,
num movimento que se repetiu
por anos e anos, amém, com os
mesmos três distintos capítulos de uma recorrente novela: a luta declarada, a conveniente aliança e, posteriormente, a sofrida autocrítica. No
caso de Vargas, talvez somente neste breve
necrológio, o compromisso de adesão tenha
fugido à cautela verborrágica de praxe, revelando uma emoção incomum no marmóreo Rangel.
Mas Vargas merece um desconto, é um enigma
difícil de ser decifrado.
O OBOÉ E O VIOLINO
A alvorada do segundo qüinqüênio dos anos
50 são tempos de um nacionalismo exacerbado,
são os tempos do Instituto Brasileiro de Economia,
Sociologia e Política (IBESP), que viria a ser o
embrião do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), nascente e estuário de uma das
principais obras acadêmicas de Rangel, “A
Dualidade Básica da Economia Brasileira”,
iniciada em 1953, ainda na assessoria de Vargas,
e publicada em 1957. Guerreiro Ramos, figura
de proa do ISEB e mestre da sociologia brasileira,
deixa registrado no prefácio do livro, que este “é
um marco na história das idéias do nosso país”.
Nesse período, Rangel participa de uma
espécie de dream team da intelectualidade
brasileira da época. Fazem parte desse ninho de
cérebros que era o ISEB os cientistas políticos
Hélio Jaguaribe e Cândido Mendes de Almeida, o
historiador Nelson Werneck Sodré (igualmente
pertencente ao Partido Comunista) e os filósofos
Álvaro Vieira Pinto e Roland Corbusier, responsáveis pela produção de um dos mais vigorosos e
originais pensamentos sobre a evolução social e
econômica do Brasil. É no ISEB que o desenvolvimentismo ganha, finalmente, o seu melhor
arcabouço teórico-conceitual, construindo as
bases de um projeto nacional de industrialização.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003
93
I N S I G H T
Rangel foi o grand penseur entre os economistas que passaram pelo ISEB. Para variar,
produziu toneladas de estudos inovadores e
provocativos, entre os quais a tese sobre os
“Recursos Ociosos na Economia Brasileira”.
Segundo Arthur Candal, que o conheceu no
início da década de sessenta, “a teoria da dualidade antecipou Os Dois Brasis, um livro menor
de um sociólogo francês, Jacques Lambert, que
fez um enorme sucesso na época. Só que o livro
do Rangel era pioneiro e muito, mas muito mais
profundo”. Mas, mesmo com toda essa performance encefalina, o caboclo não conseguiu
escapar da sua sina: ir aos poucos sendo esquecido, esquecido... No livro mais significativo sobre
o instituto, ISEB: fábrica de ideologias, de Caio
Navarro de Toledo, publicado originalmente em
1978 (Editora da Unicamp), os textos de Rangel
não são sequer analisados. O argumento do autor
é que esses textos tiveram uma quase “inteira
autonomia no conjunto da produção intelectual
isebiana”. O cientista político Alexsandro Eugênio Pereira (Universidade de São Paulo) derruba
a justificativa, afirmando em sua A Crítica e a
Polêmica em torno do ISEB, “que os textos foram
fundamentais sim e não tiveram essa tal de quase
autonomia dentro da produção intelectual do
instituto”. O caso é que Ignácio Rangel tinha
mesmo um pensamento muito diferenciado.
ão palavras do mesmo Eugênio
Pereira: “A produção intelectual
do ISEB deve ser analisada a
partir das suas duas dimensões
fundamentais: a elaboração de
ideologias e a análise econômica. Entre essas
duas dimensões há uma complementaridade
necessária à medida que a análise econômica
sustenta, do ponto de vista concreto, a elaboração
94
Pró-Memória
INTELIGÊNCIA
Talvez a melhor definição de
Rangel em relação aos
desenvolvimentistas seria a
de “companheiro de viagem”
de “ideologias”. Em vários textos, a análise de
situações concretas empreendida por economistas e intelectuais ligados ao ISEB como Ignácio
Rangel, Gilberto Paim, Ewaldo Correia Lima,
Jesus Soares Pereira e outros, revela que o ISEB
tinha uma concepção própria a respeito do papel
do Estado e do capital estrangeiro no desenvolvimento econômico, do aproveitamento da capacidade ociosa existente na economia brasileira e
da necessidade de se proceder algumas reformas
tanto políticas como econômicas — como a
reforma agrária, a reforma da estrutura do
Estado e a reforma política — para que as políticas de desenvolvimento significassem, de fato, a
incorporação de uma parcela da população até
então excluída da participação nos resultados do
desenvolvimento econômico”.
Talvez a melhor definição de Rangel em
relação aos desenvolvimentistas seria a de “companheiro de viagem”, algo assim como o oboé e o
violino em uma orquestra sinfônica. Rangel, é
claro, era o oboé. Os violinos abundavam. Ricardo Bielschowsky, na provavelmente mais completa obra sobre o assunto, O Pensamento Econômico Brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo 1930/1964, cria um artifício engenhoso para classificar a produção do velho
mestre: “Pensamento Independente”. O único
membro dessa seletíssima corrente é Santo
Ignácio.
I N S I G H T
O DUPLO INEXORÁVEL
Segundo Bielschowsky, Ignácio Rangel foi o
mais criativo e original analista do desenvolvimento econômico brasileiro. Sua obra está
repleta de insight, criatividade e provocação. Um
desses momentos épicos é a sua teoria da dualidade, uma espécie de yin e yang do desenvolvimentismo. É um negócio complicado, ainda mais
explicado pelo criador. Para não reinventar a
roda, nos utilizamos da definição apresentada
pelo mesmo Bielschowsky:
“A dinâmica brasileira distingue-se dos casos
clássicos porque os processos sociais, econômicos
e políticos não decorrem apenas da interação do
desenvolvimento das forças produtivas e das
relações de produção internas ao país, mas
também da evolução das relações que o país
mantém com as economias centrais. As “relações
externas” são determinantes do desenvolvimento
das forças produtivas internas e, conseqüentemente, também das relações de produção internas. Essa dupla determinação, causada pela
evolução das relações internas e das relações
externas, teria como conseqüência fundamental
não só a dualidade de todas as instituições econômicas brasileiras — o latifúndio, as empresas
industriais e comerciais —, mas também a
dualidade da economia brasileira como um
todo”.
A dualidade, conforme anunciou São Ignácio,
aparecia expressa em dois pólos: um interno,
onde estavam as relações de produção dominantes e a correspondente classe dominante, que
INTELIGÊNCIA
Rangel chamou de “sócio maior”; e o externo,
onde se alinhavam as relações de produção
emergentes e o correspondente “sócio menor”,
que na dualidade seguinte ganharia um upgrade, passando a ser a força dominante. “Meus
estudos levaram-me à conclusão de que nossa
peculiaridade por excelência é a dualidade, no
sentido que atribuo a esse termo, isto é, o fato de
que todos os nossos institutos, todas as nossas
categorias — os latifúndios, a indústria, o comércio, o capital, o trabalho e a nossa própria economia nacional — são mistas, têm dupla natureza,
e se nos afiguram coisas diversas, se vistas do
interior ou do exterior, respectivamente”, são
palavras do mestre.
Segundo Bielschowsky, a tese da dualidade é
apresentada como a lei fundamental da economia brasileira. A História do país a partir do
início do século XIX é representada como uma
sucessão de três etapas. A primeira, entre 1815 e
1870, tendo como pólo principal o escravismo; a
segunda, entre 1870 e 1920, pelo feudalismo; e
a terceira, de 1920 a 1973, onde o pólo principal é o capitalismo mercantil, tendo como lado
externo — e, conseqüentemente, como sucessor
em uma nova etapa — o capitalismo industrial.
Para Rangel, a dualidade brasileira tinha um
fim. A última fase seria representada pelo que
ele chamou de “paralela conversão do capitalismo privado em capitalismo de Estado”, como
exigência do desenvolvimento econômico. E,
finalmente, uma transição para o socialismo.
Amém.
próprio Rangel relata, em
texto assinado como prefácio
do livro Ciclo, Tecnologia e
Crescimento (Civilização
Brasileira, 1982) que, mesmo
somente tendo escrito sua tese sobre a dualidade
básica em 1953, já tinha sua arquitetura desenvolvida desde 1937, quando só tinha 23 anos.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003
95
I N S I G H T
“Lembro-me de ter lido algures (em Schumpeter, provavelmente) que os economistas que
deixaram sua marca na história de nossa ciência
já tinham, aos 25 anos, concebido o vigamentomestre do seu ideário, mas seriam necessários
tantos anos quantos lhes tocasse ainda viver — e
nem sempre com êxito — para precisar e dar
forma inteligível para os outros, a essas idéias.
Sem pretender deixar a tal marca na história do
pensamento econômico — coisa pouco provável
para quem teve minhas condições para trabalhar
e língua portuguesa no qual escrever —, deixo
consignado aqui que era mais que um adolescente quando, em 1935/37 coube-me o privilégio de conviver, em diversas prisões da ditadura
de então, com alguns dos melhores homens que o
Brasil havia produzido. As idéias que então
germinaram em meu espírito teriam longa
trajetória a desenvolver, mas são as mesmas
idéias, essas que agora estou tentando passar...
Outros homens, como Ahumadã, Guerreiro
Ramos, J. Soares Pereira, os colegas do ISEB e do
BNDE deixaram sua contribuição, mas as idéias
são as mesmas, nascidas no isolamento ou nas
discussões intermináveis nas prisões da ditadura.”
m 1962, Rangel pensou no que
seria a contrapartida política da
dinâmica da dualidade, antevendo a cenografia no anfiteatro da
política brasileira no século XXI:
“O poder político não é nunca exercido por uma
só classe dirigente, mas por uma frente unida de
duas classes dirigentes, solidárias, mas ao mesmo
tempo em conflito. Noutros países, coligações
desse tipo surgem em certos momentos críticos,
para se dissolverem tão prontamente quanto
cessa a emergência. Não no Brasil, onde a
exclusão do proscênio político de uma das classes
representativas da dualidade não tem lugar
senão para suscitar o aparecimento de outra
coligação, representativa da nova dualidade
Nessas condições, a transição de um regime para
96
Pró-Memória
INTELIGÊNCIA
outro não envolve — ou envolveu até nossos dias
— a conquista do poder por classes não-componentes da coalizão dominante, com a conseqüente derrubada desta. A transição se faz por
cooptação, isto é, pela exclusão, pelo próprio
grupo dirigente, dos elementos mais arcaicos, e
sua substituição por outros, representativo das
novas forças sociais em ascensão”.
Se São Ignácio estivesse entre nós, certamente
estaria discutindo com Luís Werneck Vianna e
Francisco de Oliveira o nó dado pelo PT na
dinâmica da dualidade. Segundo Chico de
Oliveira, “a vanguarda do proletariado se tornou
dona da banca e passou a constituir uma nova
classe social. Eles não são burgueses propriamente porque eles não têm a propriedade, nem eles
são gestores das empresas privadas. Eles estão no
ponto crucial, onde o capital privado busca
recursos para acumular. Esse ponto são os fundos
estatais, de um lado, e os fundos institucionais, de
outro.” Freud explica. E Rangel, nesse caso,
muito mais.
A REINVENÇÃO DO CIPOAL CEPALINO
Até então, a formação acadêmica de Rangel
na verdade se limitava ao diploma de Direito na
Universidade do Maranhão. Depois de escrever
a tese da dualidade básica passou oito meses no
Chile, em 1954, fazendo um curso de pósgraduação na Comissão Econômica para a América Latina, a Cepal. A convivência com Raúl
Prebisch foi mais do que cordial, mas não resultou, ao contrário de vários contemporâneos seus,
na assimilação incondicional das teses do pensamento cepalino. De acordo com Antônio Barros
de Castro, foi a Cepal que fez a cabeça de Rangel, não devido a assimilação das teorias cepalinas, mas em função da conquista de um novo
instrumental básico para suas análises: a idéia de
I N S I G H T
projeto. “Rangel fica fascinado com essa nova
perspectiva, e passa de um marxismo nãolapidado, para uma visão pragmática que produz
uma verdadeira guinada em sua contribuição
intelectual”.
Responsável pela indicação de Rangel para o
curso na Cepal, Celso Furtado revelou, em 1997,
em depoimento ao jornal do Conselho Regional
de Economia do Rio (Corecon-RJ), uma recepção
um tanto fria em Santiago do Chile. “No começo
estavam contra, pela idade que ele já tinha. Mas
eu disse: ‘esse é um camarada excepcional, é
preciso investir nele’”. Ele foi avançando e saiu
deixando algumas contribuições maiores. Mas
confesso que é difícil dizer hoje em dia o que ele
pensava na época. Depois escreveu-se muito
sobre isso. O que é original não se sabe logo, não.
Demora um tempo para se compreender”.
É na volta da Cepal que Rangel encasqueta
com o comércio exterior e começa a colocar a
primeira costela no esqueleto completo, que,
segundo Arthur Candal, na ausência de uma
definição melhor, Maria da Conceição Tavares
viria depois denominar de “modelo de substituição de importações”. Candal insiste — e
Bielschowsky concorda — que a tese estava mais
ou menos embrionária em Prebisch e vagamente
apresentada nos trabalhos da Cepal, mas que
ganha forma com o vigor intelectual de São
Ignácio. Candal rememora: “Eu estava chegando
no Rio. Éramos cinco gaúchos. Além de mim, o
Pratini de Moraes, Pilotto, Guilherme Vilella e o
“Gordo Campos”, que eu não me lembro do
nome, mas todo mundo o chamava assim. Ficamos logo amigos, eu e o Rangel. Primeiro, porque
ele tinha uma enorme paciência e disposição
INTELIGÊNCIA
para debater com nossa fúria juvenil, e, segundo,
porque nossos pais eram desembargadores, que era
um cargo de status nobiliárquico. O Rangel era uma
coisa diferente, era um marxista nordestino, e essa
combinação deve ter influenciado no seu metabolismo, pois ninguém pensou como ele. Acho que eu
tenho uma certa nostalgia, talvez um certo remorso
de não ter entendido melhor suas idéias à época”.
omo diz Bielschowsky, lá pelos idos
de 1959/60, por ocasião da elaboração de um segundo Plano de Metas,
Rangel já não escondia que ele e a
Cepal não eram duas faces da mesma moeda. “Ele considerava que a Cepal estava, sem
dar conta, endossando posições reacionárias, não
obstante o sentido geral progressista e nacionalista
de sua atuação. Chegou mesmo a afirmar que,
retirado o suposto da plena capacidade, “os postulados — palavras do próprio Rangel — perdem sua
validade, revelando o caráter pouco científico,
antiprogressista, antinacional e antipopular de tal
construção”. Essencialmente, pensava Rangel, “os
primeiros ensaios da programação põem demasiada
ênfase na formação do capital como meio de elevar
a capacidade produtiva; dessa forma, acabam por
exigir da nação, alternativa ou concomitantemente,
duas coisas: “a compressão do consumo e/ou sacrifício de atributos de soberania, na intenção de obter
por certo período uma entrada líquida de recursos”.
E isto corresponde “a matar o entusiasmo popular
pelo desenvolvimento econômico do país, apresentando-o como contraditório com as coisas que mais
queridas são ao povo”. Nada mais atual, como se vê.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003
97
I N S I G H T
Um dos raros contemporâneos de mesa de
trabalho, o economista João Paulo de Almeida
Magalhães recorda que era difícil acompanhar a
lógica de Rangel, pois seu pensamento nunca
vinha em linha reta. João Paulo conta um instigante episódio do período João Goulart para
mostrar que Rangel era um quebra-cabeça
difícil de desmontar até mesmo quando errava:
“Estávamos no governo Jango e o Walther
Moreira Salles tinha sido nomeado ministro da
Fazenda. Ele era de direita, mas não era de fato,
pois vivia na Europa, renegociando a dívida
externa. O ministro mesmo ficou sendo Miguel
Calmon. Pois bem, eu era assessor informal junto
com Eduardo Gomes, que era o maior especialista na época em teoria monetária. Nós montamos
um modelo para fazer a contenção dos gastos
fiscais e não cortar os investimentos. Era um
negócio para ser aplicado ao orçamento e conter
a inflação sem obstruir o desenvolvimento. Aliás,
naquela época não pensar em desenvolvimento
era crime de lesa-pátria. Eu me lembro bem que
era uma sexta-feira à noite, tinha saído com os
amigos e ido a uma boate. Cheguei lá pelas 3
horas da madrugada e tinha um recado do
Juvenal Osório lá em casa: tinha de ir para
Brasília às pressas, no dia seguinte, porque o
Rangel tinha descoberto um erro no modelo, e
haveria uma reunião no Palácio do Planalto às 7
horas. Não dormi nem nada. Fui para o aeroporto
e peguei um daqueles aviões da FAB, cheio de
pára-quedistas e desembarquei em Brasília. Lá
nos reunimos, eu, o Juvenal, o Eduardo Gomes, o
Rangel e depois chegou o Celso Furtado. Éramos
nós quatro discutindo, vendo e revendo, e nada
de descobrir o erro achado pelo Rangel, que
repetia a sua demonstração, de uma lógica
cristalina, mas esbarrava no modelo, que era
uma coisa recentíssima, de última geração. Lá
98
Pró-Memória
INTELIGÊNCIA
pelas tantas, eu descobri o erro, era uma dupla
contagem. O próprio Rangel reconheceu o
equívoco. Mas o genial é que ele montou um
sistema tão concatenado, que ninguém achava o
diabo do erro. Saímos dali e fomos para o almoço
na Granja do Torto com o Jango. Fomos todos, o
Rangel, o Juvenal, eu e o Furtado, que já estava
lá. Só que nós esquecemos de contar para o
Furtado que tínhamos identificado o vacilo do
Rangel. Resultado, o Furtado chamou o Rangel
para descrever ao presidente a sua descoberta e
a correção que propunha no modelo. O Rangel
constrangidíssimo, para não dizer que o Furtado
não sabia da história, foi lá e fez aquela apresentação complicadíssima do negócio que ele já
tinha reconhecido que estava errado. E sabe que
ele quase nos conseguiu convencer de novo que
estava certo?”.
ntuição, genialidade, liberdade
absoluta. Essas são as palavraschave, na visão de João Paulo, para
explicar o inexplicável: as tais
mediúnicas compreensões de
Rangel. Um outro episódio, vivenciado pelo
professor, dá bem uma idéia dessa rara capacidade. Conta o mesmo João Paulo: “Estávamos nós
dois andando no Viaduto do Chá, em São Paulo, à
noitinha, na maior discussão. Debatíamos os
primeiros cálculos sobre contabilidade social,
I N S I G H T
aquela coisa do PIB global e per capita. E a China
estava lá embaixo, no final do ranking. O Rangel,
comuna daquele jeito, estava chateado e não
aceitava os números. Então ele começou a fazer
suas objeções à metodologia do cálculo. Foi desfiando o seu raciocínio, todo vermelho, entusiasmado. Foi aí que eu verifiquei que o raciocínio do
Rangel era o mesmo do Simon Kuznets, que era
um economista avançadíssimo para a época e que
tinha refeito toda aquela calculeira. Eu perguntei:
péra aí, Rangel, você leu o Kuznets? Quando ele
me disse que não, eu quase caí no chão e fui
atropelado. Ele tinha descoberto sozinho, de uma
outra maneira, a mesma metodologia. Uma coisa
impressionante. Só mesmo aquele sujeito para
fazer aquilo”.
BNDE: UM CASAMENTO
PARA A VIDA TODA
Existem poucas simbioses na História do Brasil
iguais à de Ignácio Rangel e o BNDE. A sigla, na
extrovertida gestão de Carlos Lessa, deveria até
ganhar um “R” em homenagem a Rangel e
desagravo pelo tímido reconhecimento da sua
gigantesca obra. Antes que alguém faça o reparo,
justiça seja feita, o BNDE(S) ainda é o ambiente
onde flutua o espírito do velho mestre. Foi no
banco que Rangel mandou bala, no sentido
metafórico da palavra, em projetos fundamentais
à industrialização brasileira. Formou gregos e
troianos, com um catecismo de rigidez teórica e
formação de esquerda, sem perder a ternura
jamais. Foi gente de todo o tipo e credo ideológico, já que São Ignácio não expurgava nenhum
“estrangeiro” do seu périplo pela conversão dos
ímpios em desenvolvimento. Para se ter idéia, no
INTELIGÊNCIA
mesmo BNDE se encontravam a época José
Clemente de Oliveira (um benedense purosangue), Luiz Oswaldo Aranha (que viria a ser
anos depois presidente da Light), Gilberto Prado
(que depois se envolveria em um controverso
caso no Manufacturers Hanover) e Roberto
Saturnino (que quebraria a Prefeitura do Rio de
Janeiro). Um clube bastante eclético, como se vê.
O matrimônio com o BNDE começa em 1955,
quando Rangel é aprovado em concurso como
qualquer outro postulante. Inicia nesse ponto
uma das mais instigantes crônicas de convivências entre extremos da História das Terras de
Vera Cruz: Rangel, à esquerda; e Roberto Campos, à direita — é bem verdade que, na época,
nem tão à direita. Logo após São Ignácio prestar
os exames, o então superintendente do órgão de
fomento, Roberto Campos — depois autodenominado de Bob Fields ou Robertchov, dependendo
da circunstância do gracejo — recebeu do DOPS
a ficha do concursado, qualificando-o de comunista e inimigo da ordem social. Campos, em seu
despacho, respondendo à informação, devolveu
que “não se deve usar contra candidatos inteligentes os critérios policiais de julgamento ideológico de pessoas”.
Em depoimento dado a um dos autores deste
limitado ensaio, Campos, que foi um entusiasta
de primeira hora de Insight-Inteligência, comentou sobre nosso herói: “Era um sujeitinho danado. Tinha aquelas manias dele, os tais ciclos, mas
sempre vinha com umas idéias diferentes. Muito
criativo. Apesar daquele esquerdismo fanático,
não tinha nada a ver com o Juvenal Osório,
Saturnino ou, mesmo depois, a Conceição Tavares, que eu acho que foi ele que levou para o
banco. Ele era diferente”.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003
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I N S I G H T
fato é que Rangel sempre tentou
transformar em secundária as
diferenças ideológicas colossais
entre inteligências graúdas
quando o prioritário era o
interesse nacional. É antológica a sua carta de
conciliação aos inconciliáveis Roberto Campos e
Conceição Tavares, publicada na Folha de S.
Paulo. Esse papel de alcoviteiro entre opostos não
tinha nada de suave. Rangel era duro na cobrança. Achava, contudo, que a picuinha entre
esquerda e direita tinha que ter um limite. Para
que entendessem que ele estava fora dessa
chacrinha, deixou para a posteridade a seguinte
pérola: “Os problemas do Brasil são a desfaçatez
da direita, a imbecilidade da esquerda e o
balanço de pagamentos”. Que Deus o tenha!
No período 1961/63, dividido entre o BNDE
e o Conselho de Desenvolvimento da Presidência
da República, cutuca duas casas de marimbondo,
publicando um texto polêmico sobre “A Questão
Agrária Brasileira” e o clássico “A Inflação
Brasileira”. Apanha de tudo quanto é lado com
ambos. No caso da questão agrícola, colecionou
críticos até o fim dos seus dias. Ele entendia que
a característica feudal da atividade no campo
não era sinônimo de entrave ao desenvolvimento.
E que esse mesmo desenvolvimento, formando
uma moderna economia industrial, se encarregaria de eliminar a estrutura produtiva rural tão
criticada pela esquerda. Rangel admitia a existência de grandes desequilíbrios de mão-de-obra
e produção no campo, mas dizia que se tratava
100 Pró-Memória
INTELIGÊNCIA
apenas de um “problema agrícola”, por não
exigir mudanças profundas na estrutura fundiária, e sim apoio aos agricultores via crédito e
assistência técnica.
Em meio ao debate emocional que incandescia o tema, no início dos anos 60, e posicionando-se literalmente na alça de mira de movimentos como o das Ligas Camponesas, sustentava que
a solução para a crise econômica não passava
pela reforma agrária, como prioridade, mas sim
a criação de um sistema financeiro nacional.
Tempos depois, em carta aberta a D. Helder
Câmara, Rangel pede um pouco de bom senso e
meditação ao grande paladino religioso. Em
especial que ele reflita sobre duas precauções:
“Privilegiar, para efeito de desapropriação, as
áreas convulsionadas por conflitos, é o mesmo
que promover novas invasões, expulsões e conflitos; de um modo geral, privilegiar certas áreas
para efeito de desapropriação é, do ponto de
vista do eventual comprador-desapropriador,
pouco menos do que um suicídio, porque limita a
oferta de terras, potenciando o processo de
encarecimento”. Pena Rangel não ter podido
esperar um pouco mais por essas plagas terrenas,
para, mesmo não assistindo ao espetáculo do
crescimento, deliciar-se, em pleno governo do
Partido dos Trabalhadores, com o parto sem dor
de uma “Reforma Agrária Privada”. Isso mesmo,
é assim que se chama o projeto de produção de
biodiesel a partir da mamona no Estado do Piauí,
com a bênção de Lula, Dirceu, Dilma e Cia.
Uma empresa privada compra a terra, assenta os
colonos, cria as cidades ou núcleos, dá sementes,
ensino, tecnologia e o escambau. Os colonos
fazem sua agricultura de subsistência, mas têm
também de plantar a mamona. Em 10 anos,
recebem a terra e continuam com o plantio e a
garantia da compra de toda a mamona. Quem
diria!
I N S I G H T
O tratamento dado por São Ignácio à inflação e suas causas não foi menos explosivo.
Rompeu com estruturalistas e monetaristas. E
romperia também com os inercialistas se por
acaso eles existissem naquela época, conforme
veio a fazer depois. Para Rangel a ociosidade
era não só o termômetro, mas também o problema. E era possível sim, crescimento econômico
com controle da inflação. Segundo Bresser
Pereira, “Rangel não estava fazendo apologia da
inflação. A luta dele era pela liquidação de
equívocos do processo inflacionário de então”.
O debate emocional da época deixou passar
praticamente desapercebido um trecho do livro
que, como destaca Bresser, sinaliza para um
fenômeno que anos mais tarde seria conhecido
como “estagflação”.
angel não suportava essa mania
tupiniquim de pacotes, planos e
outras mirabolâncias. Gostava de
citar um amigo seu, um economista argentino, Ricardo Cibotti:
“Vocês brasileiros entram na recessão e saem
dela, ao passo que nós argentinos, ficamos
morando dentro dela”. Mas citava de forma
crítica, pois chamava de pausa para suspiros
esses interregnos entre uma crise e outra, supostamente debeladas pelos tais planos. “É um elogio
da incompetência”, dizia. O negócio de Rangel
era identificar e capturar as poupanças potenciais e meter o pé no acelerador da produção.
Portanto, que viesse o capital estrangeiro, privatização, o diabo. O que não poderia ficar era o
desemprego, pois significava, vade retrum, a
intolerável capacidade ociosa. Se estivesse hoje
por aí, pegaria a foice ou o martelo para partir
para cima do governo, já que nas principais
regiões metropolitanas o desemprego é alarmante. A título de ilustração, o desemprego total (que
INTELIGÊNCIA
inclui o subemprego, o emprego precário e o
desemprego por desalento) alcança 18% da
População Economicamente Ativa em Porto
Alegre, 20% em São Paulo, 21% em Belo Horizonte, 24% no Distrito Federal, 24% em Recife e
28% em Salvador, conforme os números mais
frescos deste mês de dezembro de 2003.
Em 1964, após a saída de Carvalho Pinto, é
convidado pelo presidente João Goulart para ser
ministro da Fazenda, convite que recusa. O
golpe de Estado é uma bomba na cabeça e no
coração de Rangel. Em 1965, é acometido de um
enfarte e se licencia do BNDE. Sofre que nem
um desesperado, pois lhe é proibida a produção
de textos nesse período. Somente em 1968 é que
volta a escrever normalmente. Logo após, retorna
também ao BNDE, mas em condições especiais,
porque os médicos nunca lhe deram alta. O
caboclo raçudo dispensa as opiniões médicas e
continua no BNDE até a véspera do Governo
Collor, mesmo tendo se aposentado em 1976. Era
o BNDE ou a morte.
NICOLAI NOSTRADAMUS,
O MARXISTA MÍTICO
Quando todos achavam que Rangel simplesmente antecipara sua aposentadoria, eis que ele
reaparece em 1972, em uma reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC), em São Paulo. O Brasil estava em plena
euforia do chamado “milagre econômico”. E vai
Ignácio desafinar o coro dos contentes: divulga
um artigo prevendo uma grande crise mundial
em breve. Um ano depois, estoura o primeiro
choque do petróleo, e nunca mais a economia do
planeta seria a mesma.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 101
I N S I G H T
É nesse período em que Rangel desenvolve
uma intrincada meta-teoria a partir de uma
espécie de fixação no pensamento do economista marxista russo, Nicolai Kondratieff, uma
espécie de Nostradamus materialista, que
construía a partir de fatos passados um puzzle
de etapas históricas, situações limites e prazos
de duração. Kondratieff começou seu móbile
em 1926, dividindo em ciclos a dinâmica do
capitalismo a partir de 1780. O russo determina
uns tais ciclos longos, que duram 55 anos. E a
História é engessada nesses intervalos. Rangel
concluiria que depois de 1963 já estavam sendo
emitidos sinais do fim do período de bonança
pós-Segunda Guerra Mundial. E que o mundo
estava prestes a voltar a um ciclo semelhante ao
verificado em um período, no início do século,
que incluiu o crack da Bolsa de Nova York e a
recessão mundial.
ais recentemente, lá pelos idos
de 1979, estipulou que faltavam 15 anos para o Brasil sair
de um ciclo ascendente e
entrar numa fria. Sabe-se lá se
por cientificidade do tal método ou coincidência,
o fato é que acertou de novo. Sobre a tara kondratiffiniana de Rangel, viria a falar muitos anos
depois o economista Delfim Netto: “Não concordava com algumas de suas idéias, tais como a
extravagância dos ciclos de Kondratieff. Acho
que esse negócio tem um pouco de ilusão de
ótica, de artefato estatístico. Mas eu respeito o
Rangel como um belíssimo profissional”.
102 Pró-Memória
INTELIGÊNCIA
Delfim e outros tantos
economistas oficiais do pós-64
nunca fizeram menção a Rangel.
Só lembraram do caboclo para
fazer média em seu necrológio
Delfim e outros tantos economistas oficiais do
pós-64, conforme recorda Bresser Pereira,
nunca fizeram menção a Rangel. Só lembraram
do caboclo para fazer média em seu necrológio.
“Eles jamais reconheceram em público o valor
do pensamento de Rangel — diz Bresser. Lembro-me que, em 1964, seu livro ora reeditado
era criticado em um seminário do professor
Delfim Netto, do qual participei. E, no entanto,
assim que assumiu o Ministério da Fazenda (em
1967) a primeira coisa que fez, seguindo a
orientação de Rangel, foi diagnosticar a inflação
brasileira como de custos, afrouxar os controles
de crédito, permitir um aumento moderado dos
salários e passar a controlar os preços através do
Conselho Interministerial de Preços. Como o
ajuste fiscal fora completado entre 1964 e 1967,
os resultados em termos de redução da inflação e
retomada do desenvolvimento foram imediatos”.
UM COMUNISTA PRIVATISTA
A combinação de disparada dos juros internacionais, alta nos preços do petróleo e recuo nos
investimentos estrangeiros, nos anos seguintes, foi
fatal para a capacidade de investimento do Estado
no Brasil. Rangel percebeu, em 1978, que o país
estava mergulhando em uma crise ainda mais
profunda. É dessa fase uma das suas mais provocativas teses, que viria a ser, para variar, premonitória, mas que irritaria, como nunca, direita
(notadamente aquela locupletada nos governos
militares), esquerda, centro e extraterrestres.
I N S I G H T
“Temporariamente, o influxo de recursos
externos e o crescimento dos recursos fiscais (e
parafiscais) permitiram fazer alguma coisa para
promover a expansão dessas atividades, mas é
claro que esse tempo passou, porque os recursos
externos começaram a escassear, o mesmo
acontecendo com os recursos fiscais, dado que o
sistema começa a não funcionar tão bem quanto
antes”, escreveu, no posfácio da terceira edição
de A Inflação Brasileira.
A surpreendente (na época) proposta de
Rangel era que o Governo recorresse a uma lei
de concessões para garantir os recursos necessários aos investimentos em infra-estrutura e
serviços públicos. Com isto, acreditava, o Estado
incentivaria um novo ciclo de expansão, já que o
setor privado se via às voltas com a falta de
oportunidades e imensos recursos para investir. A
idéia era uma heresia, ainda mais vindo de um
dos idealizadores, no segundo Governo Vargas,
de projetos que resultaram na criação da Petrobras e da Eletrobrás.
ra uma espécie de privatização
do “B”, antes mesmo de existir a
privatização do “A”. Rangel só
não abria mão do controle do
Estado, permitindo a exploração
de tudo quanto fosse serviço público pelo setor
privado por um prazo acordado em contrato. Era
a antevisão do que mais tarde, no governo da
Sra. Margaret Thatcher viria a ser o papel
desempenhado pelas golden share. “A concessão
de serviços públicos, que no início dos anos 90 se
tornou ordem do dia da economia brasileira,
conjuntamente com a privatização, é a solução
antevista por Rangel já em 1978. Sua extraordinária argúcia e inventividade mais uma vez se
comprovavam”, comentou Bresser Pereira.
INTELIGÊNCIA
“Ele passou a defender a privatização de
empresas estatais com um argumento interessante:
o único meio de se obter financiamento seria dar
em garantia patrimônio físico. Enquanto essas
empresas ficassem sob gestão governamental, o
patrimônio físico não estava sujeito à cessão. O
único jeito de viabilizar garantias satisfatórias
para a comunidade financeira internacional seria
privatizá-las pelo regime de concessão, tese
absolutamente moderna. Hoje já não se usa mais
essa justificativa de garantia. Usam-se outras
justificativas: a escassez de investimentos, a necessidade de maior eficiência, a necessidade de o
governo se concentrar em suas funções fundamentais etc.”, tirou sua casquinha o kryptoadversário Roberto Campos, em depoimento ao
jornal do Corecon-RJ, em 1997.
Raphael de Almeida Magalhães, que participou lá pelo início dos anos 80 de um seminário
na Unicamp com Rangel, no qual estavam
presentes Maria da Conceição Tavares e o ainda
engajado sociólogo Fernando Henrique Cardoso,
lembra que o novo ideário privatizante do
caboclo constrangeu a todos. “Ele veio com uma
idéia curiosa, que misturava o fanatismo de
Bulhões pelo mercado de ações, a obsessão
privatista do Campos e uma rentrée do Estado em
novos setores, deixando de lado aqueles já
consolidados. Tinha uma certa lógica. O Estado
saía das áreas já em pleno funcionamento.
Vendia tudo em bolsas de valores, pulverizando a
propriedade, e pegava o dinheiro e aplicava tudo
de novo em setores dinâmicos nos quais era
necessário sua participação. O Estado saía, para
entrar de novo”.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 103
I N S I G H T
Arthur Candal assinala que, com sua nova
fúria privatista, Rangel acabou sendo congelado
por todos. Escreveu anos sobre o assunto antes
que alguém manifestasse uma palavra sobre a
questão. Depois, a febre da desmobilização de
ativos pelo Estado tornou-se internacional, e,
vindo de fora, todos se esqueceram que foi dele
a semente. “Romper com a hegemonia do Estado
— diz Candal — era romper com a doutrina. A
privatização era romper com a doutrina. O
Rangel teve uma bruta coragem. Entre a verdade
e a justiça, ele era daqueles que ficava com a
verdade”.
É mais provável que Rangel tenha rompido
com a doutrina, mas é impossível imaginar que
tivesse intenções sequer subreptícias de romper
com o Estado. Duro de roer, Rangel não conseguia enxergar desenvolvimento sem um Estado
forte. Perguntado sobre a coragem do caboclo ao
mudar de posição em favor da privatização,
Delfim Netto dá a noção exata do problemão que
era mexer com os brios do velho mestre. “Vocês
não sabem o que significa essa posição do Rangel, porque vocês não conheceram o Rangel
quando ele era o Rangel com “R” maiúsculo”. O
que São Ignácio certamente queria, era sim
reinventar as condições de inserção do Estado na
produção. Aliás, a palavra produção deve ter
sido a primeira a ser pronunciada por um
Ignácio criança. É seu primeiro e inegociável
mandamento. Antônio Barros de Castro lembra
uma estereotípica história vivida junto com o
caboclo: “Logo depois que o Rangel foi conhecer
a União Soviética, eu fui almoçar com ele.
Lembro-me que fomos comer lá no Adegão
Português, em São Cristóvão. Ele tinha ficado
uma parte do tempo na Polônia. Estava encanta-
104 Pró-Memória
INTELIGÊNCIA
do com o planejamento, os métodos, a produção,
mas os poloneses só queriam mostrar coisas
medievais, como arte, arquitetura, coisas que para
o Rangel não tinham importância. Ele contou
então que propuseram mostrar a ele a Cracóvia,
que é um dos tesouros da Humanidade. E o
Rangel: que Cracóvia que nada, eu quero é ver a
siderurgia”. São Ignácio não levaria o susto que
Jean Paul Sartre tomou ao chegar na Polônia e ver
os cartazes do velho realismo-soviético afirmando:
“A tuberculose prejudica a produção”. Rangel,
certamente, assinaria embaixo.
om a entrada nos anos 90,
Rangel foi perdendo cada vez
mais espaço, e sumindo, sumindo, ficando igualzinho aquela
sua voz de taquara-rachada,
meio assobiada e quase inaudível. Dava orgulho
vê-lo, nessa época, em pé, na rua das Laranjeiras, esperando o ônibus, para participar de
debates nas entidades associativas dos economistas com garotos que mal sabiam quem ele era.
Rangel em pé, velhinho, esperando o ônibus era
a própria essência da integridade do servidor
público. Merecia uma estátua no local.
Sua biotipia lembrava algo assim como uma
mistura de Cantinflas com o mestre Ioda, de
George Lucas, em Guerra nas Estrelas, que Rangel
não chegou a ver. Nenhum charme, nenhum
glamour. Não gostava de eventos sociais, festas,
agitos. Tinha um apartamento completamente
desorganizado, abarrotado de livros, onde dedicava-se, espartanamente, a ler, ler, ler. Nunca
freqüentou a esquerda ipanemense, nem mesas
de bares, até porque não bebia. Ou aliás, segundo
Barros de Castro, bebia sim, “mas somente as
forças produtivas”. Viveu para aquilo, daquilo,
somente pela motivação daquilo: o desenvolvimento do Brasil.
I N S I G H T
alvez por não ter feito do espetáculo o ápice da sua contribuição, achar Rangel por aí, virou
uma saga, um épico. No Dicionário Histórico-Bibliográfico
Brasileiro, compêndio monumental da Fundação
Getúlio Vargas, não se encontra nos verbetes de
Ignácio, nem Rangel, muito menos Mourão.
Simplesmente não está lá. Os tempos explicam. É
uma era saárica, desértica de paixão, imune a
utopias e que relegou o desenvolvimento a uma
lembrança jurássica de um tempo de escolásticos
cheios de esperança. Mas ninguém melhor para
explicar Rangel do que o próprio Rangel, que
fecha esses alfarrábios mostrando o porquê do
contradito, a liberdade de pensamento e a
ousadia de mudar de opinião são sempre uma
vitória contra os fundamentalistas em eterna
prontidão:
“Estes setores (ligados ao grande capital)
conseguiram... a inesperada adesão do economista Ignácio Rangel, no tocante à privatização
dos serviços públicos. (Voz da Unidade, 25-31/
05/85)
Primeiramente, Voz da Unidade não faria
nenhum favor se acrescentasse que Ignácio
Rangel é um economista marxista. Mas está no
seu direito, ao omitir este detalhe. Num ponto,
porém, se equivoca: quanto ao inesperado,
novedio, da “adesão”. Eu não faço, nem nunca
fiz, dúvidas quanto ao regime, ou melhor, a
formação socioeconômica brasileira atual e
ainda para futuro que meus já provectos anos me
permitirão esgotar: o Brasil é uma dualidade, na
qual o capitalismo representa o pólo avançado,
porque o feudalismo — não como sobrevivência,
mas como pólo ainda hegemônico — aí está
presente. E presente, inclusive, em certas instituições estatais, carregadas de significado précapitalista.
INTELIGÊNCIA
Como internacionalista — sem prejuízo do
meu patriotismo brasileiro — sinto-me solidário
com o socialismo, à medida que este é o grande
propugnador da paz. E quero que o capitalismo
brasileiro — na iminência de tomar ao latifúndio
feudal a hegemonia sobre a sociedade brasileira,
o único significado inteligível dessa “Nova
República” — seja próspero, porque isso o
interessará na paz. Ou é mesmo verdade, segundo a tradição leninista, que a luta pela paz é o
caminho forçoso do socialismo, ou este não me
interessa, porque, fora da paz, não há futuro,
nem socialista, nem qualquer outro. O futuro é,
afinal, tempo do homem. E os netos que continuam a chegar, assim como os bisnetos que não
devem tardar, exigem que a nação onde eles
deverão viver seja uma nação próspera. Não
uma nação utópica, postergada para futuro
imprevisível, mas sua nação concreta, que é o
desdobramento da nossa”.
email: f a r o @ i n s i g h t n e t . c o m . b r
email: [email protected]
REFERÊNCIAS
BIELSCHOWSKY, RICARDO. PENSAMENTO ECONÔMICO BRASILEIRO O CICLO IDEOLÓGICO DESENVOLVIMENTISTA. EDITORA CONTRAPONTO, 3ª EDIÇÃO, 1996.
BRESSER PEREIRA, LUIZ CARLOS; REGO, JOSÉ MÁRCIO; UM MESTRE
DA ECONOMIA BRASILEIRA: IGNÁCIO RANGEL. REVISTA DE ECONOMIA POLÍTICA , N 13, MARÇO 1993.
BRESSER PEREIRA, LUIZ CARLOS; ARTIGO NA FOLHA DE S. PAULO, 7
DE MARÇO DE 1994.
CANO, WILSON. PREFÁCIO DE CICLO, TECNOLOGIA E CRESCIMENTO (EDITORA HUCITEC, 1980).
FOLHA DE SÃO PAULO, ENTREVISTA COM FRANCISCO DE OLIVEIRA,
22 DE SETEMBRO DE 2003.
FOLHA DE S. PAULO, ARTIGOS DE IGNACIO RANGEL, 1979/1987.
GASPAR, CARLOS. IGNÁCIO RANGEL, UM GRANDE BRASILEIRO,
CRÔNICA DE 20.02.2000.
INFORME CORECON (RJ), EDIÇÕES DE OUT-NOV 1990, DEZ-JAN/
1991, MAR/1994 E DEZ/1997.
RANGEL, IGNACIO. CICLO, TECNOLOGIA E CRESCIMENTO (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 1982).
RANGEL, IGNACIO. A INFLAÇÃO BRASILEIRA (EDITORA TEMPO
BRASILEIRO 1963; BRASILIENSE, 1978; BIENAL, 1986).
RANGEL, IGNACIO. A QUESTÃO AGRÁRIA BRASILEIRA. (PRESIDÊNCIA
DA REPÚBLICA, CONSELHO DE DESENVOLVIMENTO, 1962).
RANGEL, IGNACIO. A DUALIDADE BÁSICA DA ECONOMIA BRASILEIRA
(ISEB, 1957).
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 105
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Preâmbulo aos poemas de
Antonio Porto Gonçalves
Com todo respeito,
mas inquérito relâmpagoooooou
confirmoOOOU:
a opinião,
pública ou privada, não
importa,
desde o samba-desespero
“atrás da porta”,
(adorooooooou)
que oPToooooou
por suspiros (poéticos)
mais do que por modelos ECONOMÉTRICOS
106 Poemas
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
SUPER HOMEM
(Um momento de imortalidade arrogante)
Aquele caminhão de areia,
cheio até o topo,
desgovernou-se
e me esmagou contra o muro.
Bateu fortíssimo, tão forte
que o muro caiu,
morreu o chofer
e amarrotou a minha roupa.
Você pensa que me destrói,
vai embora, atropela, dói.
Não, nunca, nada vai atingir
só a roupa, e vou me despir.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 107
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
CONSULTANDO DICIONÁRIOS
No Aurélio, paixão: s. f.,
desejo mui louco
por alguém que se conhece pouco.
No Aurélio, amar: v. t.,
ser cúmplice todo
de alguém que se conhece muito.
No inglês, love é nome além de verbo.
Passion e love, nomes, são it,
nem masculinos nem femininos.
Neutros! Mas o porta-aviões é she!
Ou navio de guerra será he?
Língua estranha, vontade de rir!
108 Poemas
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
A RAZÃO CORRIGIDA
(Os “admiráveis” racionalistas. A lógica é útil
se houver sido testada; senão é utópica).
Um litro de água ferve a 100º.
Logo, meio litro a 50º
e dois fervem a 200º.
Eis a regra de três,
que conta admirável,
tão simples, confiável!
Esta matemática,
idéia platônica,
gera o inexistente
bem logicamente.
Penso, logo existo?
Pois bem!
Sinto, logo existo!
Só a sensação
faz a correção:
meio litro a 100º,
e dois a 100º
também!
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 109
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
COMO ÉS?
(A pergunta de sempre e uma boa resposta)
Há os que desejam o mudar do vento,
os que se queixam quando o vento muda,
os que se opõem à mudança do vento,
os que convivem co’ o vento mutante,
e os que provocam mutações no vento,
vendavais e calmarias.
Vida é vento, vento é vida.
Diga então como és, querida;
de um a cinco, qual serias?
Um a cinco? Nenhum, diria.
Ou melhor, todos, pensaria.
A pessoa unidimensional
é bem próxima do animal.
2ª voz (feminina)
O radical escolhe um só.
Eu? Ah... eu provoco e desejo,
me oponho, convivo e me queixo.
De tudo um pouco, pouquin’ só.
110 Poemas
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
SUADOURO
(Melancolia e saudades nas praias de Salvador)
O mar joga várias coisas nas praias;
madeiras, latas, garrafas se espraiam,
aqui e ali, alguns cascos destruídos,
ou mesmo um grande barco carcomido.
Mas muito, muito mais do que ejetar,
o mar se especializa em afundar;
enormes navios de aço, titânicos,
repousam nas abissais oceânicas.
O humano coração é feito o mar,
afunda as dores, não é de expulsar.
E quando a emoção louca foi esquecida,
as águas turvas substituídas
pela clareza,
pela certeza,
um súbito encontro, tórrido evento,
agita, ativa mil correntezas.
Então volta à tona, das profundezas,
o amor, este imortal sentimento.
Vivendo,
cicatrizes vão acumulando.
Doendo,
com o tempo sempre mudando.
No fim só há dor — suadouro.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 111
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
FAZER E SONHAR
(Verbos básicos, para momentos diferentes)
Os governos fazem o que é possível.
As oposições sonham o impossível.
Logo, quando trocam de posição,
é incrível, mudam de opinião.
Não, nunca é possível o impossível.
Mas já delirei ser mosca espiã
em local proibido, inacessível,
estava escondido atrás da maçã.
Fazer e sonhar tem seus tempos certos.
Um e o outro também, se for o momento.
Você eu faço, amo quando estou perto.
E se não puder tocar, ouvir, vê-la,
então sonharei; distante no tempo,
no espaço, só assim em mim posso tê-la.
112 Poemas
I N S I G H T
114 Escritório Nacional de Achados e Perdidos
INTELIGÊNCIA
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Da promessa integradora
à insegurança
socioeconômica
ADALBERTO MOREIRA CARDOSO
SOCIÓLOGO
Em certos meios ainda há alguma controvérsia sobre o caráter (em sentido macunaímico) da última década do século passado no Brasil. Mas analisando as coisas
sob a ótica dos trabalhadores e das instituições que os representam, eu não tenho
dúvidas. Vivemos uma década neoliberal pontuada por breve recaída desenvolvimentista no período Itamar Franco. Mas Itamar, como se sabe, legou-nos sua antítese, o governo de Fernando Henrique Cardoso. O espírito da época foi neoliberal.
o ponto de vista dos trabalhadores, neoliberalismo quer dizer insegurança socioeconômica. Insegurança quanto às perspectivas de
manutenção do emprego, para começar. Taxas elevadas de desemprego e alta rotatividade são uma
combinação explosiva para as classes que vivem do trabalho. O medo de perder o emprego reduz sua disposição para a ação coletiva, afetando o poder dos sindicatos. O desemprego aumenta a competição entre os próprios trabalhadores pelos postos de trabalho existentes,
o que tem efeitos imediatos sobre os salários. E então
temos a insegurança quanto às chances de obtenção de
renda de qualquer tipo, por causa do desemprego, da
informalidade e do aumento das ocupações precárias.
Mas também por causa das novas relações de trabalho
no mundo globalizado.
A Petrobras, por exemplo, terceirizou atividades de
funcionamento de suas plataformas marítimas, desde
a limpeza até a manutenção de equipamentos. A Petrobras contratava empreiteiras que contratavam trabalhadores num mercado potencialmente qualificado. Os homens (e eram homens em sua esmagadora
maioria) embarcavam em helicópteros ou lanchas,
passavam dezoito dias ou mais nas plataformas e, quando voltavam, muitas vezes a empresa que os contratara já não existia. Desaparecera sem deixar vestígios,
ficando os trabalhadores sem seu salário. A Petrobras
tomaria algumas medidas para evitar esse tipo de falOUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 115
I N S I G H T
116 Escritório Nacional de Achados e Perdidos
INTELIGÊNCIA
I N S I G H T
catrua, mas relações de desconfiança e insegurança
como essa se tornaram corriqueiras mesmo no mercado de trabalho dito “formal”.
insegurança se estende às chances de uma vida digna no futuro.
Sem emprego e sem renda o trabalhador não poupa. Sem emprego formal ele não contribui para
a previdência. A velhice é uma
zona cinzenta, insegura. E há também a insegurança quanto à representação de interesses. Os sindicatos estão mais fracos do que nunca no
Brasil. Estão mais pobres, tiveram que negociar perdas
de conquistas contratuais arrancadas a fórceps nos anos
1980, viram suas bases de apoio reduzirem-se brutalmente em razão do crescimento da informalidade e do
desemprego. E perderam legitimidade junto aos seus
representados. A década neoliberal, ao gerar insegurança socioeconômica, acertou em cheio o poder sindical, trazendo-o a uma encruzilhada de novo caráter no
Brasil. Essa encruzilhada pode ser resumida em três
enunciados:
I. Em primeiro lugar, pela primeira vez desde
a intensificação do processo de urbanização e industrialização que, em 50 anos a partir de 1940,
mudou a face da sociedade brasileira de agrária
(em que a agricultura ocupava 70% da força de
trabalho) para urbana (em que as cidades passaram a acolher essa mesma proporção de trabalhadores), o setor industrial perdeu seu papel de
segmento gerador de empregos, passando a desempregar de forma contínua e sustentada. O sonho desenvolvimentista dos anos 1950 a 1970, que reservava às cidades a função de acolher os egressos do
campo, sujeito ele mesmo a revoluções tecnológicas de
processo e produto, sonho posto entre parênteses nos
anos 1980 em razão da crise geral, tornou-se um pesadelo nos anos 1990. A indústria passou a desempregar
intensamente, mas os demais setores urbanos não geraram empregos suficientes para acolher os redundantes
da reestruturação industrial, simplesmente porque a
economia parou de crescer, ou fê-lo a taxas inferiores
INTELIGÊNCIA
ao que seria preciso para gerar os empregos necessários tanto aos novos entrantes no mercado de trabalho
quanto aos excluídos da reestruturação econômica. Por
outras palavras, a década de 90 rompeu com algo que
poderíamos denominar a “promessa integradora” do
mercado formal de trabalho. 1 Segundo essa promessa,
presente no discurso desenvolvimentista desde sempre,2
a economia em crescimento constante incluiria, com o
tempo, todos os assalariados em relações de emprego
reguladas pelo poder público, garantindo assim não
apenas direitos trabalhistas, mas também direito à representação de interesses em negociações coletivas, já
que os sindicatos representam os trabalhadores na base
territorial, mesmo contra sua vontade.
Havia razões objetivas para a crença na promessa
integradora do mercado formal urbano. Em 1976 os
trabalhadores titulares de direitos, porque ocupantes de
empregos registrados em carteira, eram 61% da força
de trabalho no país3. Esse foi o ápice do processo de
inclusão pelo assalariamento regulado cujo crescimento, processo que pode ser rastreado, com alguma dificuldade, é certo, pelo número de carteiras profissionais
emitidas pelo Ministério do Trabalho ao longo das décadas. Seu crescimento é exponencial a cada ano. Para
que se tenha uma idéia dos montantes portentosos desse
processo, em 1940 a População Econômica Ativa (PEA,
ou trabalhadores de dez anos ou mais que estavam
empregados ou procurando emprego) era de quase 15
milhões de pessoas. Até ali, o Ministério do Trabalho
tinha emitido não mais do que um milhão de carteiras
de trabalho. Em 1950 a PEA montava a 17 milhões, mas
o número de carteiras emitidas já estava em 3,5 milhões. Ou seja: para um crescimento de 16% na PEA, o
número de trabalhadores documentados aumentou mais
de 300%. É claro que a documentação não quer dizer
que as pessoas estivessem empregadas. Mas o importante para o argumento é que os trabalhadores aderiram à promessa integradora representada pela carteira. Isso seguiu assim pelas décadas, até que, em 1976, o
total de carteiras emitidas ultrapassou os 40 milhões de
unidades, para uma PEA de 39 milhões de pessoas. O
Gráfico 1 mostra os dados. Note-se que, a partir de 1960,
as curvas do acumulado na emissão de carteiras e da
evolução da PEA vão encurtando a distância com os anos,
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 117
I N S I G H T
até que uma (carteiras) suplanta a outra. Havia, efetivamente, uma promessa integradora associada ao trabalho regulado, e essa promessa, e também as expectativas que ela gerou entre os trabalhadores urbanos, ficou gravada no fato de que os assalariados procuraram
o registro profissional de forma crescente, em proporção superior ao crescimento da PEA.
Além da promessa integradora, o emprego registrado no Brasil representou, para parcelas crescentes dos
trabalhadores urbanos (e, a partir da década de 70,
também para os trabalhadores rurais), um ponto de referência normativo para a estruturação das expectativas individuais e coletivas quanto aos padrões do que se
poderia denominar “mínimos civilizatórios”, aquém dos
quais o mercado de trabalho não poderia operar de forma legítima. Refiro-me ao salário mínimo, ao direito a
férias regulares, ao descanso semanal remunerado, a
um abono de Natal (igual ou próximo ao salário percebido), em suma, padrões que mimetizavam de algum
modo os direitos legais do mercado formal e que passaram a operar, também, em segmentos do mercado assalariado informal, como uma espécie de acordo tácito
entre empregadores informais e assalariados sem carteira, acordo que tomava esses direitos como justos.
Mesmo que nunca se tenha universalizado, o mercado
formal estruturava um conjunto de relações sociais e
econômicas que ocorriam ao seu largo, pela razão mes-
INTELIGÊNCIA
ma de que os assalariados urbanos esperavam, cedo ou
tarde, integrar-se a ele.
Em suma: os trabalhadores acreditavam que o mercado formal os acolheria em algum momento, e esse é o
aspecto importante a se reter: os anos 1990 romperam
definitivamente a promessa, ao desestruturar o mercado formal de trabalho e tornar minoritário o emprego
registrado. Com isso, este perdeu força como organizador do mercado informal, minguando seu papel de parâmetro para a articulação das expectativas dos trabalhadores quanto às chances de melhoria de vida.
II. Em segundo lugar, o Estado brasileiro
deu uma virada de 180 graus em suas relações
com a economia. E não se está falando aqui apenas do fato de que ele se desfez de propriedades.
Sem exageros, o que se deu foi um processo mais
geral de despolitização das relações econômicas e
da sociabilidade capitalista. Elemento certamente
central desse processo tem a ver com a desobrigação do
Estado brasileiro em relação a aspectos da vida social
antes pensados como de sua responsabilidade. O desenvolvimentismo como razão de Estado, sob Vargas e
sob os militares mais fortemente, mas também sob Juscelino ou Sarney, implicou no recorte das relações econômicas enquanto intrinsecamente politizadas, em diversos sentidos: (i) o desenvolvimento dos capitais pri-
GRÁFICO 1
Evolução da PEA e do número de carteiras de trabalho
expedidas pelo Ministério do Trabalho: Brasil, 1940-1976
F ON T E: IBGE: E S TA TÍSTICAS D O S É C U L O XX,
SEÇÃO “TRABALHO E SINDICALISMO” DO CD-ROM.
118 Escritório Nacional de Achados e Perdidos
R IO
DE
J ANEIRO , IBGE,
2002.
I N S I G H T
vados deu-se por acesso direto ao fundo público que,
por escasso, não tinha como servir a interesses universais (Oliveira, 1988). Em conseqüência, a sobrevivência mesma da grande empresa capitalista nacional dependia fortemente da capacidade das burguesias angariarem benesses em sistemas relativamente clientelistas de acesso àquele fundo (Salum Jr., 1996). Essas
relações de simbiose entre burguesias nacionais e círculos burocráticos estatais, é bom lembrar, foram estudadas pelo então sociólogo Fernando Henrique Cardoso
sob a rubrica dos “anéis burocráticos”, onde a gestão
da coisa pública confundia-se com os interesses privados. Estado e economia, como dito antes, apareciam em
conexão causal, e não havia como pensar a configuração econômica da nação fazer referência direta às externalidades impostas pela intervenção do Estado; (ii) o
Estado empreendedor cumpriu a tarefa de dar condições infra-estruturais ao movimento dos capitais privados, tanto no sistema financeiro quanto no setor produtivo, urbano ou rural. Os grandes investimentos em serviços de transporte e comunicação, na indústria pesada
e na geração e distribuição de energia a preços subsidiados são exemplos salientes. Foi fundamental, também, o papel dos bancos estatais no financiamento do
empreendimento privado, nos âmbitos federal e estadual igualmente, e incidindo sobre a agricultura, o comércio, os serviços e a indústria. A dívida externa federal, que estrangulou o desenvolvimento na década de
80, como é sabido, tem sua origem mais conspícua na
“compra”, pelos militares, da dívida privada num momento em que as taxas de juros internacionais cresciam exponencialmente (Appy, 1993). O desenvolvimento como razão de Estado imiscuiu de tal modo os
interesses privados com o Estado, que se tornou difícil
distinguir “bem público” de “acumulação capitalista”;
(iii) mais do que externalidades em sentido econômico,
o papel do Estado na regulação das relações de classe
adquiriu peso considerável na história moderna do país.
O corporativismo varguista será, talvez, sua expressão
mais saliente.4 Não apenas os parâmetros dos encontros
entre capital e trabalho no mercado, dando-se no interior das estruturas normativas estatais, mas sobretudo a
regulação do mercado de trabalho, conferiram a marca específica à politização das relações de classe no
INTELIGÊNCIA
Brasil. Para dizer de outro modo, a CLT desmercantilizou a força de trabalho (no sentido de Offe, 1984), e
juridificou as relações de classe (no sentido de Habermas, 1987), ao mesmo tempo em que encarava como
razão de Estado a intermediação do conflito de interesse. Esses elementos vigoraram com maior ou menor intensidade até o governo Itamar Franco, e as câmaras
setoriais talvez tenham sido o último suspiro, na década
de 1990, de uma certa concepção de Estado como aquele que assume como seus os riscos da acumulação e da
regulação das relações de classe.
década neoliberal reverteu, um a
um, todos esses vetores de politização da economia. Em lugar de
imposição de externalidades a setores econômicos específicos, de
patrocínio da acumulação via subsídios de toda sorte, o que se viu
foi a abertura comercial desregrada, sem políticas industriais de preservação do que se havia acumulado ao
longo de décadas (o chamado “choque competitivo”
que encheu os olhos dos economistas dos dois governos
tucanos). Em lugar de investimentos em infra-estrutura, privatização das empresas antes patrocinadas pelo
desenvolvimentismo, repassadas a preços subsidiados aos
capitais internacionais, porém com financiamento público do BNDES. O Brasil, como disse Maria da Conceição Tavares em um programa de televisão, foi vendido
na bacia das almas. E em lugar de intermediação do
conflito de interesses, transferência dos embates para o
âmbito das relações privadas. Isso remete ao último
enunciado.
III. Em terceiro lugar, o Estado liberou as
amarras que atavam a ele o sindicalismo, impedindo que operassem, na prática, os mecanismos
que tornavam a organização sindical dependente
dos humores da política. Refiro-me à revogação dos
preceitos legais que davam ao Ministério do Trabalho o
poder de registrar e reconhecer os sindicatos, de regular seus estatutos, fiscalizar suas contas e intervir nas
eleições sindicais, mecanismos utilizados sem peias nos
mais diferentes momentos da vida política brasileira até
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 119
I N S I G H T
120 Escritório Nacional de Achados e Perdidos
INTELIGÊNCIA
I N S I G H T
1988. Ora, a liberação do controle político deu-se paralelamente à manutenção do poder dos sindicatos arrecadarem impostos como se fossem agências estatais, e
dispor desses impostos sem prestar contas de qualquer
natureza a qualquer poder público, ou mesmo a seus
representados. O que se fez foi, precisamente, desregular a competição entre elites sindicais e lideranças
trabalhistas, liberadas para fundar sindicatos a seu livre arbítrio aproveitando-se dos interstícios e silêncios
da CLT, e tendo para tal o poder de taxar aqueles que
supostamente representam. A conseqüência foi a fragmentação sem precedentes do sindicalismo no país, que
chegou ao final da década de 90 com mais de 16 mil
instituições reconhecidas e outros milhares em processo de reconhecimento. Ou seja, a estrutura sindical corporativa, que garantiu a rápida reestruturação do sindicalismo em nível nacional nos anos 1980, revelou-se
um Frankenstein incontrolável na década seguinte, já
que permitiu a fragmentação de bases sindicais antes
solidamente protegidas por lei. O que é importante para
o argumento aqui desenvolvido, porém, é que os sindicatos não puderam recorrer ao poder público para que
regulasse esse processo, impedindo a fragmentação,
porque o Estado brasileiro, sob Fernando Henrique Cardoso, abdicou inteiramente de seu papel de regulador
da instituição sindical, encarada como da ordem das
relações privadas entre capital e trabalho, porém e paradoxalmente, com direitos de poder público, já que
cobra impostos.
sta é, por si mesma, uma reversão
decisiva na natureza das relações
de classe em nosso país. O caráter
liberal das políticas públicas na
década neoliberal trouxe de volta a mercantilização da força de
trabalho, ou a reprivatização das
relações de classe. Isso se deu, porém, não exatamente
pela flexibilização do código do trabalho existente, a
CLT, mas sim pela extensão dos contratos ilegais de trabalho a áreas antes imunes a relações informais de
emprego, como a indústria e os serviços modernos. A
remercantilização das relações de trabalho significa,
também, que o Estado não é mais o intermediário no
INTELIGÊNCIA
conflito de interesses entre capital e trabalho. Ele passa
a ser, apenas, um intermediário de grande importância
nos conflitos individuais de direito, crescentes num
ambiente de aumento do desrespeito à lei pelos empregadores e de aumento, entre os trabalhadores, da sensação de que os patrões estão flexibilizando a legislação
a “sangue-frio”, simplesmente deixando de pagar direitos trabalhistas durante a vigência dos contratos. O
resultado, como pude demonstrar em outro lugar5, é a
explosão de demandas na Justiça do Trabalho, que chegaram a dois milhões de processos no ano 2000.
Ora, a juridificação das relações de classe é algo
muito diferente de sua politização. O Judiciário individualiza as demandas trabalhistas, mesmo quando impetradas por grupos de trabalhadores. A associação, que
nesse caso ocorre é em torno de um advogado que, por
expertise profissional, domina os meios de acesso ao trâmite processual e, nesse sentido, é tecnicizada, liberta
de qualquer veia política. Esse tipo de associação não
constitui identidades coletivas, mas apenas um grupo
efêmero que, tendo seus direitos conquistados ou perdidos, desfaz-se nas agruras do desemprego, da informalidade ou da atomização do mercado de trabalho. O
Estado ainda é o avalista do direito que se busca, mas
apenas à medida que é o guardião em geral de direitos
civis ou de cidadania. Relações de classe juridificadas
são relações de classe despolitizadas.
Estes três enunciados emolduram o ambiente
da crise de representação do sindicalismo brasileiro. Para dizer numa palavra, os sindicatos deixaram o centro da cena política. Seu papel de
articuladores de identidades coletivas foi fortemente eclipsado pela avalanche neoliberal, a ponto mesmo do sindicalismo perder um de seus capitais mais preciosos, acumulado ao longo dos
anos 1980: o de ser uma instituição confiável para
a maioria dos brasileiros. Em 1990, auge da organização sindical dos trabalhadores, quase 60% dos eleitores nacionais consideravam os sindicatos instituições
confiáveis, segundo pesquisa do Datafolha. Em 2001 esse
percentual tinha caído para 27% nas regiões metropolitanas pesquisadas pelo People’s Security Survey, da
OIT6. Todas as instituições sociais e políticas foram afeOUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 121
I N S I G H T
122 Escritório Nacional de Achados e Perdidos
INTELIGÊNCIA
I N S I G H T
tadas, mas os sindicatos estão entre as que mais perderam legitimidade, o que ocorreu também entre seus
adeptos, já que apenas 37% dos filiados confiavam em
sua instituição de representação em 2001.
o âmbito do mercado de trabalho
as coisas não andaram bem tampouco. Apesar da capacidade de
mobilização de algumas categorias
importantes, pesquisas do Dieese
mostram que negociações coletivas na segunda metade da década
de 90 foram, com exceção da indústria, em geral desfavoráveis aos trabalhadores, no sentido de que uma
proporção considerável dos sindicatos não conseguiu
repor a inflação passada. Os segmentos de melhor desempenho foram os serviços e a agricultura, com 51% e
67% de ganhos superiores à variação do INPC em 1997,
proporção que recuou a 48% e 36% respectivamente
em 1998. 7 E na indústria a situação foi pior: as perdas
salariais ocorreram em 50% das negociações de 1998 e
em 60% das de 1997. Do mesmo modo, se em 1995 e
1996 a grande maioria dos sindicatos de algumas categorias constantes do banco de dados do Dieese conseguiu reajustes reais dos pisos salariais pagos, em 1997
52% tiveram que ceder novamente nas negociações,
perdendo parte do que se conseguira antes. 8
Além disso, aumentou muito a proporção variável
na renda dos trabalhadores. Em lugar de aumentos salariais, as empresas passaram a preferir a concessão de
participação nos lucros e resultados, o que não repercute nos direitos trabalhistas como décimo terceiro, FGTS
e contribuição previdenciária. Esse é outro aspecto saliente da insegurança de renda.
Tamanho abalo na instituição sindical, atingida em sua capacidade de representar eficazmente
interesses e de galvanizar identidades coletivas,
não parece decorrer apenas do que se poderia denominar “forças cegas” da globalização que, aportando entre nós pela desregulação neoliberal, corroeu as condições que antes lhe davam sustento.
Parece-me que as lideranças sindicais se acomodaram
complacentemente à estrutura sindical frankensteinia-
INTELIGÊNCIA
na que emergiu da Constituinte de 1988, preferindo
postergar as pressões por reforma nos regulamentos para
um período menos conturbado na economia e na política. Essa decisão estratégica, sobretudo dos sindicalistas da CUT, mostrou-se uma arapuca bem pesada. A
luta frenética por manutenção dos “aparelhos” em que
muitas entidades sindicais foram transformadas, fonte
de recursos cada vez mais escassos, porém ainda assegurados por lei, pôs os interesses de auto-preservação
(material) das lideranças muito adiante dos interesses
propriamente coletivos das categorias formalmente representadas. Parte importante da perda de legitimidade dos sindicatos, mesmo entre seus representados, decorrerá desse fato preciso: no salve-se quem puder do
desemprego, da precariedade das condições de vida e
da insegurança socioeconômica, uma proporção considerável de sindicalistas decidiu salvar-se primeiro.
lém da perda de eficácia propriamente representativa, expressa
nas perdas salariais crescentes em
negociações coletivas, outro resultado importante foi o esvaziamento das centrais sindicais como pólos de aglutinação de correntes
ideológicas e de definição de planos de ação estratégica. As centrais também se renderam ao canto de
sereia da ordem legal existente e, premidas pela crise
financeira que se abateu sobre seus sindicatos filiados,
tornaram-se agenciadoras de qualificação profissional para fazer jus a recursos do Fundo de Amparo ao
Trabalhador, o FAT. CUT, Força Sindical e Social Democracia Sindical receberam perto de 100 milhões
de reais do Governo Federal no âmbito do Planfor, o
Plano Nacional de Educação Profissional, para financiar cursos de qualificação e agências de intermediação de mão-de-obra.9 As duas centrais mais importantes, CUT e Força, tiveram que constituir burocracias específicas para isso, desviando parte considerável de sua energia institucional para o sustento dos
programas de formação, em prejuízo das atividades
propriamente organizativas e de articulação política.
Isso também contribuiu para despolitizar a ação sindical centralizada.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 123
I N S I G H T
124 Escritório Nacional de Achados e Perdidos
INTELIGÊNCIA
I N S I G H T
A crise é profunda. Ela combina efeitos estruturais
com opções estratégicas das lideranças sindicais para
produzir um quadro de aparente falência de um modelo de representação de interesses que vigiu, sem grandes mudanças, por mais de 60 anos. O paradoxo é gritante: temos cerca de 16 mil sindicatos hoje, segundo o
último censo sindical do IBGE, mas eles representam
proporcionalmente menos gente, já que o mercado formal de trabalho murchou. Principalmente, representam mal. O temor dos sindicalistas no que respeita a
uma reforma da estrutura sindical, que extinguisse o
imposto sindical e, com ele, a unicidade sindical, impediu que pressões nessa direção chegassem ao Parlamento, resultando em brutal fragmentação da estrutura representativa.
É claro que esse cenário é grosseiro. Um olhar mais
atento encontrará fogo sob as cinzas, como a ainda importante presença dos sindicatos de metalúrgicos do
INTELIGÊNCIA
ABC, de petroleiros Brasil afora, de professores de São
Paulo. O problema relevante é saber se, passada a tormenta neoliberal (ou seja, retomado o crescimento econômico, reposta a economia nos trilhos da formalidade
e da industrialização, renascidos os empregos de que
necessitamos para dar comida aos nossos filhos, enfim,
se tivermos mesmo uma política de crescimento sustentado não subserviente às finanças internacionais, como
continua prometendo o governo Lula), as lideranças sindicais também retomarão seu ânimo reformador pré1994, e que fiz questão de louvar com entusiasmo em
livro anterior (Cardoso, 1999). Espero que seja esse o
caso. Nossa sociabilidade não pode prescindir de mecanismos eficazes de representação de interesses, e cabe
às lideranças dos trabalhadores lutar contra a letargia
que se abateu sobre a instituição sindical e, com isso,
fazer renascer, quem sabe, a promessa integradora do
trabalho registrado.
email: [email protected]
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NOTAS
1. TOMO DE EMPRÉSTIMO A GENTILI (1998) A EXPRESSÃO ENTRE ASPAS, EMBORA COM
OUTRO SENTIDO. ESSE AUTOR REFERE -SE À EDUCAÇÃO EM SUA RELAÇÃO COM O EMPREGO /
DESEMPREGO .
2. VER,
POR EXEMPLO,
B IELSCHOWSKI (1996) PARA UM
50 E 60.
APANHADO COMPREENSIVO
DESSE DISCURSO AO LONGO DAS DÉCADAS DE
3. D ADO EXTRAÍDO DO NOTÁVEL ESTATÍSTICAS DO SÉCULO XX, RECENTEMENTE EDITADO
PELO IBGE.
4. A LITERATURA SOBRE ISSO É VASTA, E O INTERESSE NO PERÍODO VARGAS É CRESCENTE.
EXEMPLOS RECENTES SÃO L EVINE (1998), WILLIAMS (2001) E FRENCH (2001).
5. ADALBERTO CARDOSO: A DÉCADA NEOLIBERAL E A CRISE DOS SINDICATOS NO B RASIL .
SÃO PAULO, B OITEMPO, 2003.
GENTILI (1998). PABLO GENTILI: “EDUCARPARA O DESEMPREGO : A DESINTEGRAÇÃO DA
PROMESSA INTEGRADORA ”, IN FRIGOTTO, GAUDÊNCIO (ORG). E DUCAÇÃO E CRISE DO
TRABALHO : PERSPECTIVAS DE FINAL DE SÉCULO. P ETRÓPOLIS , VOZES , PP. 76-99.
6. ESSES DADOS FORAM ANALISADOS EM CARDOSO (2003).
HABERMAS (1987). JÜRGEN HABERMAS: THE THEORY OF COMMUNICATIVE ACTION.
L IFEWORLD AND SYSTEM: A CRITIQUE OF FUNCTIONALIST REASON. B OSTON, BEACON
PRESS.
NÃO DIVULGOU ESSES ESTUDOS, PORÉM.
OFFE (1984). CLAUS OFFE : CONTRADICTIONS OF THE WELFARE STATE (EDITED BY J OHN
KEANE ). CHICAGO , MIT PRESS.
OLIVEIRA (1988). FRANCISCO DE OLIVEIRA : O SURGIMENTO
ESTUDOS (22) S ÃO PAULO, CEBRAP, OUTUBRO .
DO ANTIVALOR.
NOVOS
NOVA R EPÚBLICA. SÃO
7. É
POSSÍVEL ESPERAR QUE OCORREU RECUO AINDA MAIOR EM
1999, EM RAZÃO DA
O D IEESE AINDA
RECESSÃO DESATADA PELA CRISE CAMBIAL DO INÍCIO DO MESMO ANO .
OS DADOS MENCIONADOS FORAM CAPTURADOS
EM WWW .DIEESE .ORG.BR/BOL/ESP /ESTMAR98. HTML E WWW .DIEESE.ORG.BR/BOL/ESP /
ESTJAN99. HTML.
8. D ADOS EM HTTP://WWW.DIEESE.ORG.BR/BOL/ESP/ESTJAN98.HTML.
9. N O MOMENTO EM QUE ESCREVO, O M INISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO INVESTIGA AS
CONTAS DA FORÇA SINDICAL, QUE FEZ JUS A 37 MILHÕES DE REAIS DO FAT E TEVE SUAS
CONTAS REJEITADAS PELA O UVIDORIA DA UNIÃO.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 125
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Chernoviz
e a medicina
no Império
FLAVIO COELHO EDLER
HISTORIADOR
MARIA REGINA COTRIM GUIMARÃES
MÉDICA
ANGIN
A
NGINA
NO PEITO
–
ANGINA NERVOSA, STRENALGIA, CATANHO
SUFFOCANTE. APERTO DOLOROSO DO PEITO QUE VEM POR ACESSOS –
ADMINISTRAR 10 A 15 GOTTAS DE ETHER SULFURICO EM MEIA XÍCARA
D’ÁGUA FRIA COM ASSUCAR, CHÁ DE FOLHAS DE LARANJEIRA OU DE HERVA
CIDREIRA. DAR A RESPIRAR ETHER, VINAGRE, CHLORIFORMIO. APPLICAR
SINAPISMOS NAS PERNAS E UM CATAPLASMA DE LINHAÇA MUITO QUENTE NAS
COSTAS; DAR UM CLYSTER D’ÁGUA MORNA COM 20 GOTTAS DE LAUDANO.
BANHO MORNO GERAL. CAUSTICO NO PEITO. CAFÉ. FUMIGAÇÕES COM
INFUSÃO DE ESTRAMONIO, MEIMENDRO, BELLADONA. PARA PREVENIR AS
CRISES COSTUMÃO EMPREGAR OS MEDICAMENTOS TÔNICOS 632. QUINA,
PREPARAÇÕES DE FERRO, BANHOS DE MAR. PURGANTES 629.
128 Comitê Olímpico Brasileiro
I N S I G H T
U
m dos aspectos ainda
pouco conhecido do
processo de institucionalização da cultura
médica acadêmica no Brasil oitocentista refere-se ao papel desempenhado pelos compêndios de medicina popular. Muito mais que a educação
médica regular e o contato com os médicos, eles foram o principal instrumento de penetração de saberes e
práticas sancionados pelas instituições
médicas oficiais no quotidiano da
maioria daquela população.
Para se compreender o alcance
deste tipo de difusão informal do saber médico acadêmico é preciso levar em conta a carência de médicos
nas vastas regiões rurais por onde se
dispersava o grosso da população brasileira. É sabido que, até finais do século XIX, a reduzida corporação médica se concentrava na Corte do Rio
de Janeiro e em Salvador, com expressão secundária nas capitais de
algumas províncias como Recife, Porto
Alegre, Ouro Preto e São Paulo1. Desde o fim da censura imposta aos livros pela Coroa portuguesa, houve
um aumento substancial do número
de livrarias e de impressoras e o co-
INTELIGÊNCIA
mércio de obras de medicina para
leigos conquistara um mercado considerável2. Os livros de medicina autoinstrutivos satisfaziam, assim, os interesses dos donos de escravos, que pretendiam manter a saúde de sua força
de trabalho com o mínimo de despesas, e os poucos letrados, que em variadas circunstâncias exerciam diferentes ofícios de cura voltados para o
enorme contingente de pobres desamparados. Nesses dois casos, como veremos adiante, os conhecimentos veiculados por tais manuais seriam reinterpretados e mesclados com as tradições empíricas consolidadas pelas
demais artes de cura, resultando num
amálgama entre elementos de folk
medicine e medicina acadêmica.
A
o contrário do ocorrido nos
Estados Unidos, onde esses
manuais eram a expressão de
um movimento de afirmação de setores da medicina popular contra os
privilégios reivindicados pela profissão médica3, no Brasil esse tipo de literatura era produzida por médicos
com a chancela da Academia Imperial de Medicina (AIM). Lembremos
que a organização profissional e re-
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 129
I N S I G H T
gulamentação do ensino médico no
Brasil, como atividade diversa da praticada por barbeiros, sangradores, algebristas, práticos curiosos, herbaristas, comadres e curandeiros, começou apenas no início do século XIX,
motivada pela súbita fuga da Corte
portuguesa, ameaçada pelas tropas
francesas, para a cidade do Rio de
Janeiro. Naquela ocasião, o Príncipe
Regente D. João inicia uma série de
reformas de cunho liberal, criando
os primeiros estabelecimentos de caráter cultural. No tocante à medicina, instalou dois cursos de cirurgia e
anatomia nos hospitais militares de
Salvador e Rio de Janeiro (1808), pondo término à era dos físicos e cirurgiões formados na Europa. Iniciavase, assim, uma forte tradição clínica
marcada pela figura do médico-defamília que atuava, ora como clínico, ora como cirurgião, ora como
conselheiro higienista. Embora a influência francesa tenha marcado
amplamente o saber e as instituições
médicas oficiais da época, convém
não esquecer que o ambiente médico vigente era herdeiro de uma multiplicidade de práticas, conceitos e
métodos reproduzidos de modo ar-
130 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
tesanal pelas diferentes etnias que
aqui interagiam4.
C
ircunscrita aos centros urbanos de apenas algumas províncias, e relativamente cara,
a assistência médica oficial era inacessível para quem se encontrava à
margem das confrarias religiosas ou
das redes de clientelismo promovidas
pelos membros da classe senhorial. Até
1841, ano em que foi publicada a
primeira edição do Formulário e Guia
Médico de Pedro Luís Napoleão Chernoviz (1812-1881), que obteve imediatamente imensa popularidade, os
brasileiros pobres podiam recorrer a
quaisquer das variações polimorfas
das tradições de cura e práticas artesanais que resultaram da longa experiência colonial, dentre as quais se
achava o livro de William Buchan,
Domestic Medicine, de 1769, traduzido por Manoel Henriques de Paiva.
Não se sabe a repercussão alcançada
pelos compêndios de Jean-BaptistaAlban Imbert, médico de Montpellier e membro-titular da AIM, Manual do Fazendeiro ou tratado doméstico sobre as doenças dos negros
(1834) e Guia Médico para as Mães
I N S I G H T
de Família (1843), nem do sucesso
obtido pelo O Médico e o Cirurgião
da Roça ou Tratado completo de medicina e cirurgia domésticas, adaptado à inteligência de todas as classes
do povo (1875) de Louis-Francois
Bonjean (1808-1892), nascido em
Chamberry, formado em Turim e
membro honorário da AIM5.
O certo é que Chernoviz, como
ficou conhecido, tornou-se um bestseller, tendo alcançado dezenove edições até 1924. Um ano após o lançamento da primeira edição do Formulário e Guia Médico (FGM), isto é, em
1842, aparecia a primeira das seis
edições de outro livro, o Dicionário
de Medicina Popular e Ciências Acessórias (DMPCA), desse polonês formado em Montpellier, que aqui viera, a exemplo de outros médicos estrangeiros, para tentar a sorte.
N
este artigo, pretendemos tecer alguns comentários sobre dois aspectos da obra do
formidável médico polonês: por um
lado, vamos avaliar seu escopo, enquanto empreendimento cultural, segundo a perspectiva do próprio autor e seu grupo de referência, a me-
INTELIGÊNCIA
dicina acadêmica de meados do século XIX; por outro lado, vamos decifrar alguns dos significados que lhe
foram sendo agregados por setores das
culturas erudita e popular, no longo
itinerário em que foi perdendo o conceito de obra científica e ilustrada,
reverenciada pela República das Letras, até o momento em que passou a
ser tomada como expressão de genuína crendice popular. Recorrendo à
literatura ficcional brasileira, crônicas jornalísticas e relatos biográficos,
faremos alguns apontamentos sobre
a razão de tal metamorfose.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 131
I N S I G H T
Um médico na
República das Letras
Piotr Czerniewicz nasceu em
Lukov, na Polônia, no dia 11 de setembro de 1812. Em 1830, após participar da malograda Revolta de Novembro, quando os poloneses se sublevaram contra a ocupação russa,
teve que se refugiar na França. Em
Montpellier, onde obteria seu diploma de médico, criou a Organização
de Democratas Poloneses, da qual foi
presidente. Aparentemente, pouco
antes de se formar, em 1837, abandonou as fileiras da organização, onde
entrara com a patente de coronel do
exército polonês. Embarcou para o Rio
de Janeiro em 1840 e nesse mesmo
ano passou a clinicar, após ter validado seu diploma junto à Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro. Ainda
em 1840 tornou-se membro-titular
da Academia Imperial de Medicina
(AIM), com uma memória sobre O
uso do nitrato de prata nas doenças
das vias urinárias. O parecer positivo
foi elaborado por Faivre, membro titular da AIM e médico oficial da embaixada francesa. Em 1844, casouse com Júlia Bernard, nascida no Rio
de Janeiro, com quem teria seis filhos.
132 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
Em 1855, mudou-se definitivamente
para Paris, de onde continuou a editar sua obra, sempre em português6.
O editor e sua obra
Em seu monumental estudo sobre
a história do livro no Brasil, Hallewell
afirma que a iniciativa de publicarse o DMPCA partira dos famosos editores Eduardo e Henrique Laemmert,
que percebiam a boa acolhida que
teria um livro de medicina auto-instrutivo. A confiança dos proprietários
da famosa loja de livros da Rua da
Quitanda era tal, que imprimiram
três mil exemplares, uma tiragem
quase sem precedentes na época,
principalmente para uma obra em
dois volumes, ao custo de 9$000. O
acerto do investimento pode ser medido pela segunda edição, de 1851,
ampliada para três volumes in quarto (com 1.620 páginas e 5 pranchas
com ilustrações), ao preço de
15$0007. Entretanto, essa versão sobre o faro empresarial dos Laemmert
precisa ser revista, tendo em vista o
relato do próprio Chernoviz contido
num conjunto de correspondências
pessoais que ele manteve com um
amigo após sua chegada ao Brasil.
I N S I G H T
Graças a essas cartas8, depreende-se
que a produção dos dois manuais, escritos por ele diretamente em português, já fazia parte de um antigo plano de carreira traçado ainda na França. Outras iniciativas semelhantes
devem ser vistas como inscritas na
mesma estratégia de visibilidade e
notoriedade: a redação de artigos
para a Revista Médica Fluminense;
sua eleição, cuidadosamente preparada, para membro da AIM; a participação em almoços, bailes e saraus
nas boas casas; a dedicatória ao Imperador Pedro II, impressa na primeira página — o que lhe rendeu o cobiçado título de Cavaleiro da Ordem
de Cristo.
D
e todos esses passos concatenados, a edição do FGM
foi o mais ousado e o que
encontrou maior incompreensão da
parte justamente dos editores. Um, a
quem Chernoviz propôs que comprasse os originais, aconselhou-o a
ocupar-se de seus clientes e esquecer um trabalho que não teria saída.
Outro, provavelmente Leuzinger ou
o próprio Eduardo Laemmert9, respondeu-lhe que para obras que tais
INTELIGÊNCIA
era mais fácil encontrar autores que
a escrevessem do que leitores. Apesar do forte obstáculo, assumiu o risco pela empreitada, arcando com os
custos. Vendeu todos os seus instrumentos cirúrgicos e contou com o
auxílio financeiro de um médico
amigo. O sucesso alcançado foi estrondoso, pois nos três primeiros dias
foram vendidos 300 exemplares.
Além da impressão, o médico, que
então contava com 30 anos, cuidou
pessoalmente da distribuição, enviando exemplares para Bahia, Pernambuco e Portugal10. Os Laemmert imprimiram as três edições seguintes, as
de 1846, 1852 e 1856, além das duas
primeiras impressões do DMPCA, em
1842 e 1851. Ao estabelecer-se em
Paris, em 1855, Chernoviz continuou
editando seus manuais em sua própria residência — Casa do Autor —
na rua Raynouard, atual Chernoviz,
em Passy.
Dividido em várias seções, o Formulário e Guia Médico continha a
descrição dos medicamentos, suas
propriedades, suas doses, as moléstias
em que deviam ser empregados; as
plantas medicinais indígenas, e as
águas minerais do Brasil; a arte de
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 133
I N S I G H T
formular, a escolha das melhores fórmulas, além de muitas receitas úteis
nas artes e na economia doméstica.
Ao lado dos medicamentos chamados officinaes (xaropes, vinhos,
extratos, tinturas, conservas, emplastos e ungüentos), cujas fórmulas achavam-se nos códigos farmacêuticos
sancionados pelas leis e encontrados
já prontos nas boticas e cujo prestígio
variava em cada época, os doentes
também podiam dispor das receitas
magistraes. Estas últimas eram preparadas de acordo com as fórmulas de
cada médico, segundo as necessidades específicas do paciente. Eram
poções, cozimentos, colírios, pílulas,
emulsões, linimentos, cataplasmas...
Chernoviz propunha-se a reunir esse
amplo conjunto. Destarte, iniciava
apresentando, pedagogicamente, algumas considerações sobre a arte de
formular. Distinguia, nas fórmulas, a
base , isto é, o agente principal do
medicamento que conteria o princípio ativo; o adjuvante, que serviria
para aumentar as propriedades ou
virtudes da base; o corretivo, cuja finalidade era enfraquecer o sabor ou
o cheiro, podendo também reduzir a
atividade ou a ação corrosiva; o exci-
134 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
piente, substância que serviria de veículo às outras três e, por fim, o intermédio, que servia para tornar o medicamento miscível em água ou outro excipiente. Assim, por exemplo,
na Mistura Balsâmica de Fuller (copaíba: 2 onças; gemas de ovo: 2; xarope de bálsamo de Tolu: 2 onças;
vinho branco: 6 onças).
A copaíba seria a base, o xarope, o corretivo, as gemas de ovo, o
intermediário e o vinho branco, o
excipiente .
E
m outra seção eram descritas
as formas farmacêuticas dos
medicamentos, então classificados em bálsamos, cataplasmas, cáusticos, clisteres, elixires, emplastos,
emulsões, espíritos, extratos, sangrias,
sanguessugas, sinapismos, vesicatórios e ventosas. Deste arsenal, utilizado no período denominado de terapêutica heróica pela historiografia
médica11, o FGM nos oferece uma detalhada descrição. As informações técnicas sobre sua variada composição,
formas de emprego e de manutenção
são verdadeiras relíquias sobre as artes médicas da época. Folheando as
páginas desta seção, ficamos sabendo
I N S I G H T
que as cataplasmas, medicamentos
externos em forma de papas, eram
geralmente elaboradas com farinha
de linhaça, féculas de batata ou miolo de pão. Nos vesicatórios ou cáusticos, aplicados como emplastos ou cataplasmas em afecções gangrenosas
ou mordedura de animais peçonhentos, visando produzir uma secreção
serosa e empolar a pele, além de
mostarda e trovisco, empregava-se
freqüentemente uma papa elaborada a partir da maceração de um pequeno inseto, a cantárida. No DMPCM, ficamos sabendo que dentre os
tipos de ventosas, pequenos vasos des-
INTELIGÊNCIA
tinados a fazer vácuo na superfície
da pele, com o fim de atrair sangue
ao lugar em que se aplica, um recomendado era fabricado com chifre
perfurado no ápice, por cujo furo se
operava com a boca a sucção do ar,
sendo, em seguida, tapado com cera
quando estivesse aderente à pele.
Aplicadas com o mesmo fim que as
sangrias, as sanguessugas, ou bichas,
como eram popularmente conhecidas, deviam ser aderidas a qualquer
parte do corpo, à exceção das plantas
dos pés e das palmas das mãos. Nas
mulheres recomendava-se não aplicar nas partes visíveis do corpo (pescoço, parte superior do peito, antebraço e costas da mão). Os lugares
indicados eram as membranas mucosas facilmente acessíveis como a
gengiva, a vagina e o colo do útero.
Uma sanguessuga vigorosa retirava
em torno de meia onça (15 grs.) de
sangue. Também em relação a essa
curiosa criatura, ficamos sabendo que
nem todas eram importadas da Europa, pois já havia lugares de criação
no Rio de Janeiro. As sanguessugas,
facilmente encontradas nas lojas dos
barbeiros, eram conservadas em vasos de vidro, contendo água até 2/3
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 135
I N S I G H T
de sua capacidade e 3 litros serviam
para 30 delas, ou em caixas com barro úmido.
N
outra classificação, os medicamentos trazem referência à sua ação terapêutica. É de se notar, neste caso, que até
a vitória da concepção ontológica da
doença, isto é, aquela que associa o
ser doença à ação uma entidade específica, a medicina acadêmica tendia a conceber a doença como manifestação de múltiplas circunstâncias,
de caráter externo (agentes físicos ou
químicos) ou interno (constituição física, temperamento, idade, sexo, atividade ocupacional). Nesse caso, os
terapêuticos eram distinguidos entre
21 tipos, conforme sua ação específica voltada a restabelecer a harmonia
ou equilíbrio fisiológico: adstringentes, antiperiódicos, antiphlogísticos,
antiescorbúticos, antissépticos, antispasmódicos, antissifilíticos, calmantes,
diaforéticos, diuréticos , eméticos ,
emolientes, estimulantes, febrífugos,
narcóticos, purgativos, sudoríferos,
tônicos, temperantes, vermífugos, e
vomitivos. A arte de purgar, tão complexa e tão amplamente empregada
136 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
quanto a de sangrar, exigia que o praticante soubesse diferenciar plenamente os purgantes, segundo sua intensidade, entre a ampla variedade
de substâncias laxantes, catárticas ou
drásticas — estas últimas as mais intensas.
Esta última classificação encontrase na parte do formulário propriamente dito. Mas em que ele consiste?
Trata-se da descrição em ordem alfabética, de todas as substâncias então empregadas pela medicina acadêmica. Ao referir-se a cada medicamento, Chernoviz indicava sua sinonímia, a significação em francês, o
nome botânico em latim (se o medicamento fosse uma planta), suas características físicas, suas propriedades, as moléstias em que deviam ser
empregadas, as doses e pesos usuais e
os riscos de eventuais associações.
U
ma seção aparentemente
inusitada para um guia
médico, mas que se coaduna perfeitamente com o ideal iluminista e civilizatório de que se investia
a elite médica, intitulava-se Receitas
Diversas. Reuniam-se, aqui, várias
receitas “úteis nas artes e economia
I N S I G H T
doméstica”, tais como: água-de-colônia, tintas de escrever, venenos para
a destruição de animais daninhos...
Eram fornecidas também as composições de diversas preparações vendidas como segredo: pomadas de tingir cabelos, água para tirar nódoas
de tinta de escrever, e coisas que tais.
Com igual intuito, no DMPCA aparece o desenho e a descrição completa
de uma caixa de botica contendo o
que se considerava, então, como material terapêutico básico.
Inovação e
progresso científico
Como notou uma historiadora, havia em Chernoviz uma preocupação
constante com a atualização de seus
manuais12. Assim, ao contrário do
anátema de repositório de crendices
populares, que lhe lançaram posteriormente, as edições de seus livros
eram constantemente revistas e até
mesmo novas seções eram incorporadas. Com o Dicionário de Medicina Popular e Ciências Acessórias, o
autor se coloca decididamente do lado
das luzes e sua ação pode ser entendida dentro do ideal pedagógico do
iluminismo racionalista. Carregando
INTELIGÊNCIA
o pesado fardo da civilização, ele pretendia, com sua obra, “difundir os
bons preceitos de saúde, precaver o
público contra o charlatanismo, destruir os erros populares a respeito da
medicina, inculcar o que se deve fazer nos acidentes súbitos, e ensinar os
tratamentos de várias moléstias que
podiam ser realizados na ausência de
um médico”. Constantemente revisto
e ampliado, até a sexta e última edição de1890, o DMPCA não apenas se
apresenta como uma espécie de vade
mecum do saber médico estabelecido, como tem uma postura pioneira,
sancionando algumas inovações pouco consensuais para a época. Assim,
antecipando-se à adoção do Sistema
Métrico Internacional (1875) pelo
governo imperial, Chernoviz já introduzira na edição de 1862 a equivalência de pesos e medidas usados nas
farmácias do Brasil — libras, onças,
oitavas, escrópulos, grãos — aos pesos decimais. Na edição de 1874, na
seção “Noções Preliminares”, apresenta uma tábua de conversão, acompanhada da descrição de instrumentos, como o areômetro, o densímetro
e o termômetro médico (esse, verdadeira revolução na classificação das
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 137
I N S I G H T
febres). Da mesma forma, foi um dos
primeiros autores a sancionar, já na
edição de 1878, no verbete opilação
ou hipoemia intertropical — o que
hoje conhecemos como ancilostomose — a tese de sua etiologia parasitária. Opinião essa que permaneceu
sub judice e contrariava a posição da
maioria dos membros das congregações das faculdades de medicina, da
Academia Imperial de Medicina e
mesmo da Academia de Medicina de
Paris – instituição médica mais prestigiosa da época.
138 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
No FGM, o zelo pela atualização
científica explica o enorme sucesso
alcançado entre os boticários. A terceira edição, de 1852, já recomendava a retirada, nas receitas, das
abreviações e sinais referentes às dosagens, conforme regulamento da Junta Central de Higiene Pública, decretado em 1851. Ao obrigar os facultativos a escreverem suas receitas por
extenso, em português, a autoridade
pública contribuía de certa forma
para apagar alguns traços simbólicos
que ainda ligavam os médicos oitocentistas aos físicos fidalgos do século
XVIII, cuja erudição se media pelo
uso do latim e adoção de sinais alquímicos inacessíveis aos leigos.
A oitava edição de 1868 foi um
marco editorial, sendo também a primeira a ser impressa em Paris por tipógrafos portugueses sob inspeção do
autor. Ela se antecipou à iniciativa da
Junta de Higiene Pública ao adotar o
novo código farmacêutico francês de
1866. Outra novidade da mesma edição foi a ampliação da descrição das
plantas indígenas do Brasil, que nas
edições anteriores correspondia a
pouco mais de cinqüenta e nessa excedia a duzentas. A partir de então,
I N S I G H T
além de suas próprias observações,
feitas quando de sua estada no Rio de
Janeiro, Chernoviz passou a publicar
os trabalhos dos naturalistas Auguste
Saint-Hilaire, Von Martius, Weddel e
dos médicos e farmacêuticos brasileiros Francisco Freire Allemão, Nicolau Joaquim Moreira, Francisco da Silva Castro, Joaquim Correia de Mello
e Theodoro Peckolt, dentre outros ren o m a d o s.
A
sexta e última edição do
DMPCA, de 1890, aparecia
alguns anos após a morte do
autor, sob a responsabilidade da livraria e editora Roger e F. Chernoviz.
Nela já se informava sobre os novos
métodos de soroterapia, segundo as
teorias de Pasteur e de Roux. De acordo com Carlos da Silva Araújo, na 16ª
edição do FGM, datada de 1897, descrevia-se a técnica sobre “os raios X
ou as fotografias através dos corpos
opacos.” O mesmo empenho em seguir as últimas novidades das ciências médicas foi perseguido até a última edição de 1924. Somente em
1926 aparecia a Farmacopéia Brasileira, o que explica por que até essa
data, nos regulamentos sanitários,
INTELIGÊNCIA
Chernoviz — feito substantivo comum por antonomásia — era citado
como um livro obrigatório nas farmácias13.
Antes de nos aventurarmos na decifração do enigma de sua metamorfose, convém chamar a atenção para
algo que, porventura, está deixando
o leitor perplexo: temos nos referindo indistintamente ora ao Formulário
ora ao Dicionário como “o” Chernoviz. Eis uma confusão insolúvel. Como
ficará claro em seguida, a imprecisão tornou-se difusa no espaço e no
tempo.
Chernoviz, oráculo
da medicina popular?
Qual a influência de Chernoviz na
intimidade doméstica dos lares urbanos e rurais? Em que medida contaminou as referências simbólicas dos
diferentes saberes de cura mantidos
pela tradição oral? Como foi lido, interpretado e apropriado por curiosos
e pelos porta-vozes das culturas subalternas? Respostas satisfatórias a
estas perguntas ainda merecem uma
investigação aprofundada, mas tentaremos aqui uma primeira aproximação.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 139
I N S I G H T
Em princípios do século passado,
o famoso higienista e escritor Afrânio Peixoto, através de um personagem, afirmou que no Brasil havia
maior número de volumes do Chernoviz que da Bíblia espalhados pelo
país14. Seu personagem, coronel João
Batista Pinheiro, orgulhoso de seu
Chernoviz, repetia “Pedro Luiz Napoleão Chernoviz! (...) convencido
que recitava um verso”, e bradava
“um homem destes é um benfeitor
da humanidade... ”. Em meados do
século, sua popularidade ainda seria
assombrosa na impressão do poeta (e
farmacêutico) Carlos Drummond de
Andrade. No poema Dr. Mágico ele
assevera: Dr. Pedro Luís Napoleão
Chernoviz/ Tem a maior clientela da
cidade./ Não atende a domicílio/
Nem tem escritório./Ninguém lhe vê
a cara./Misterioso doutor capa preta.../15. E, com saudades de seu tempo de ajudante de farmácia, Rubem
Braga conclui que “ Chernoviz era
um sábio”16.
S
eria de tal monta a estima do famoso manual? É possível. As referências aos manuais de medicina popular, em espe-
140 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
cial ao próprio Chernoviz, são encontradas em muitos romances e crônicas desde o século XIX. Em Dom Casmurro, de Machado de Assis, o protagonista recorda-se de como o agregado José Dias apareceu pela primeira
vez na fazenda de Itaguaí, “vendendo-se por médico homeopata.” Levava consigo “um Manual e uma botica” e curou um feitor e uma escrava
de umas “febres” que ali se instalaram. Ao recusar um ordenado, dizia
que “era justo levar saúde à casa de
sapé do pobre.”17
No romance Inocência, Visconde
de Taunay constrói um personagem
que à semelhança de José Dias, recorreria ao famoso manual como alternativa ao distante, dispendioso e
longo curso de medicina. Cirino, servente de botica numa localidade pequena onde “de simples boticário a
médico não há mais que um passo,”
foi, aos poucos “e com o tempo, criando tal ou qual prática de receitar
e, agarrando-se a um Chernoviz, já
seboso de tanto uso, entrou a percorrer, com alguns medicamentos no
bolso e na mala da garupa, as vizinhanças da cidade à procura de
quem se utilizasse dos seus serviços”.
I N S I G H T
Logo receberia o tratamento de doutor. (...) “Toda a sua ciência assentava alicerces no tal Chernoviz”.(...)
“Noite e dia o manuseava; noite e dia
o consultava à sombra das árvores
ou junto ao leito dos enfermos”. De
acordo com o narrador, apesar de
conter “muitos erros, muita lacuna,
muita coisa inútil e até disparatada”,
(...) “no interior do Brasil é obra que
incontestavelmente presta bons serviços, e cujas indicações têm força
de evangelho”18.
O
utro personagem, o Bento do
conto O lobisomem, de Raymundo Magalhães19, retrata bem o perfil semelhante. Além de
negociante de gêneros alimentícios,
seu Bento “era muito entendido em
assuntos de medicina caseira. Como
na terra não havia médico nem boticário, ele desempenhava o papel de
curioso: com o auxílio do seu bojudo
Chernoviz, aconselhava remédios a
quantos recorriam à sua experiência, e dizia-se que estava só para tratar das doenças do mundo... Jalapa
para estes, batata para aqueles outros, eram os seus remédios prediletos. Se não fizessem bem, não podiam
INTELIGÊNCIA
fazer mal. Custavam pouco, mas esse
pouco bastava para ir vivendo folgadamente, em meio à sua vasta
clientela.”
Nestes exemplos, o uso do manual, embora transcendendo os limites da auto-ajuda e fazendo-se
instrumento de comércio, permanece dentro do escopo imaginado
pelo autor. Como bem delimita seu
Bento , o exercício de sua arte restringia-se às doenças do mundo .
Mas não é difícil de imaginar as
apropriações heterodoxas que resultaram em combinações ecléticas
incorporando o receituário científico às concepções mágicas e holistas presentes no saber médico
popular.
O personagem de Taunay, por
exemplo, indiferente à fronteira traçada pelo médico polonês, transita
impunemente entre a medicina erudita e o universo da magia, usando
como salvo-conduto justamente o
Chernoviz. Assim, “num dia de capricho”, Cirino (...) “começou a viajar pelos sertões povoados a medicar, sangrar e retalhar, unindo a alguns conhecimentos de valor positivo, outros que a experiência lhe ia
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 141
I N S I G H T
indicando ou que a voz do povo e a
superstição lhe ministravam ”. No
poema de Drummond, supracitado,
outros versos revelam um deslocamento similar sofrido pelo Chernoviz, aqui subsumido ao campo semântico da medicina folclórica:
“Esse que cura todas as moléstias/
(De preferência as incuráveis)/ Socorre os afogados/ Asfixiados / Assombrados de raio/ Sem desprezar
defluxo, catapora, /Sapinho, panariz, cobreiro/ Bicho do pé, andaço,
carnegão.../”. Em Urupês, Monteiro
Lobato, ao retratar o Jeca — arquétipo da ignorância e preconceito do
habitante do mundo rural brasileiro, cujo “mobiliário cerebral” repleto
de superstições, se constitui de um
banquinho de três pernas para receber os hóspedes, pois “três pernas
permitem o equilíbrio; inútil, portanto, meter a quarta, o que ainda o
obrigaria a nivelar o chão”, trata sua
medicina de “ritual bizantino”, “noite cerebral ”, da qual “ pirilampejam-lhe apozemas, cerotos, arrobes
e eletuários escapos à sagacidade
cômica de Mark Twain”, e compara-a a um “ Chernoviz não escrito,
monumento de galhofa onde não há
142 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
rir, lúgubre que é o epílogo”. (...)
“Quem aplica as mezinhas é o “curador”, um Euzébio Macário de pé
no chão e cérebro trançado como
moita de taquaruçu. O veículo usual
das drogas é sempre a pinga – meio
honesto de render homenagem à
deusa Cachaça, divindade que entre eles ainda não encontrou heréticos.”20
Despojado de seu fundamento científico e racionalista, o receituário
terapêutico é visto aqui, como integrando aos sistemas mágicos e religiosos predominantes no universo popular de cura.
P
orém, autênticos personagens da História do Brasil,
líderes políticos, militares ou
religiosos de expressão regional, também tiveram seu prestígio construído com o apoio do velho manual. José
Joaquim Ferreira, fundador e patriarca da vila de Campo Grande, atual
capital do Mato Grosso do Sul, era
mezinheiro, cujo preparo técnico
desenvolveu com o apoio de um
Chernoviz. Na verdade, até pouco
antes de sua morte, em 1900, esse
mineiro de São João Del-Rey era
I N S I G H T
também conhecido como exímio
benzedor. Não poucas vezes as mães
levavam seus bebês acometidos de
quebranto para serem por ele benzidos21. O famoso líder messiânico
nordestino, padre Cícero, patriarca
de Juazeiro, fazia uso continuado do
Formulário e Guia Médico, no atendimento dos milhares de analfabetos que o procuravam se queixando
de todo tipo de doenças22. De expressão menor, mas igualmente paradigmático, é o caso de Ramiro Ildefonso de Araújo Castro, personalidade importante na região de Ilhéus,
em fins do século XIX. Tendo apenas o primário, chegou a coronelmédico da Guarda Nacional, com o
direito de exercer o lugar de farmacêutico, praticando também a
medicina que aprendera de cor no
Chernoviz23.
Tal como encontramos na literatura ficcional, a menção aos três curiosos personagens e ao papel que
exerceram como agentes populares
de cura ratifica e amplia as descrições dos usos que se fizeram dos livros de medicina auto-instrutivos. Finalizaremos estes breves comentários sobre o papel da obra de Cher-
INTELIGÊNCIA
noviz na medicina brasileira, com
uma última consideração.
A
lguns estudiosos da medicina
imperial têm apresentado o
saber médico oficial e seus
porta-vozes, em especial a Higiene e
os higienistas, como poderosos instrumentos disciplinares empregados
na afirmação do poder centralizador do Estado em oposição às regras
de sociabilidade vigentes no mundo
rural, onde imperava o patriarca no
comando de grandes famílias, seus
agregados e dependentes24. Entretanto, face ao êxito editorial dessa medicina de cabeceira parece-nos necessário assumir uma posição mais
dialética. Afinal, o sinhozinho que
retorna à fazenda após anos de ausência, com seu anel de esmeralda e
o título de doutor teria mesmo afrontado o saber secular de sua mãe —
como afirma Gilberto Freire 25 —
usurpando-lhe o amplo domínio sobre a arte de curar? Não teria ele
encontrado certa receptividade, com
seu saber parcialmente legitimado e
reinterpretado à luz de uma medicina doméstica contaminada de noções acadêmicas?
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 143
I N S I G H T
S
em dúvida, a recepção do
Chernoviz na intimidade
dos lares urbanos e rurais
revela algumas modalidades, nada
rígidas, de interpretação e utilização
do estimado manual. Diante da escassez da mão-de-obra escrava,
muitas sinhás e sinhôs de terras e de
engenhos demonstraram uma genuína preocupação com o cuidado da
escravaria capacitada para os pesados serviços da lavoura, e creditavam até uma certa nobreza e humanização à prática de suas medicinas.
Deste modo, embora tenham sido
concebidos como instrumento de filantropia leiga, por reformistas europeus impregnados dos ideais civilizatórios, os manuais de medicina
popular terminavam por fortalecer
os interesses bem entendidos dos escravocratas26, ensinavam os senhores a tratar as doenças dos escravos
para aumentar o seu capital e respondiam aos problemas graves de
saúde pública, que atingiam, também, a classe senhorial.
É fácil imaginar, também, que os
livros auto-instrutivos vieram a reforçar a legitimidade dos inúmeros
agentes de cura que concorriam com
144 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
o saber médico oficial. Enquanto os
esculápios eram quase sempre inacessíveis, e manipulavam um saber
hermético e estranho aos extratos populares, os curandeiros, por eles denunciados como charlatães, produziram diversas sínteses, aproximando sincreticamente elementos da medicina científica à linguagem compartilhada pelos diferentes grupos
subalternos. A constituição de um
monopólio legítimo sobre o território da cura, teve, como visto aqui,
mais percalços do que supõem os
adeptos da tese de uma medicalização homogênea e ubíqua da sociedade brasileira.
O
Chernoviz, na intimidade
dos lares urbanos e rurais,
ajudou a criar uma cultura
médica especial, à medida que contaminou as referências simbólicas dos
diversos saberes de cura, até então
mantidos pela tradição oral. Foi lido,
interpretado e apropriado por curiosos de todos os tipos e pelos porta-vozes das culturas populares.
email: [email protected]
email: [email protected]
I N S I G H T
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OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 145
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
NOTAS
13. ARAUJO, Carlos da Silva, op. cit. P. 235
1. PIMENTA, Tânia Salgado. Ofícios de Cura
no Brasil do começo do século XIX, dissertação
de mestrado, FFCH, Unicamp, 1996.
14. PEIXOTO, Afrânio. Sinhazinha. In: ______.
Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Nova
Aguilar.1962, ver também ARAUJO, Carlos da
Silva, op. cit. P. 234
2. HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil:
sua história, São Paulo, Edusp, 1985. p.167-8.
3. STARR, Paul. La transformación social de la
medicina en los Estados Unidos de América,
Biblioteca de la salud, México, Fondo de Cultura
Econônica, 1991.p 63-71
4. SANTOS FILHO, Lycurgo. História Geral da
Medicina Brasileira, Segundo Volume, São
Paulo, HUCITEC, Edusp, 1991.
5. SANTOS FILHO, op.cit. p. 436-42.
6. ARAUJO, Carlos da Silva. Fatos e personagens
da história da medicina e da farmácia no Brasil,
Rio de Janeiro, Editora Continente, 1979.
p.229-31
7. HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil:
sua história, São Paulo, Edusp, 1985. p.167-8
8. HERSON, Bella. Cristãos-novos e seus
descendentes na medicina brasileira (15001850), São Paulo, Edusp, 1996.p.388-408
9. GUIMARÃES, Maria Regina C. Civilizando
as artes de curar: Chernoviz e os manuais de
medicina popular no Império, dissertação de
mestrado, Pós-graduação em História das
Ciências da Saúde, COC/FIOCRUZ, 2003. p.
66.
10. HERSON, Bella, op. Cit. 405
11. SAYDE, Jane D. Mediar, medicar, remediar.
Terapêutica na medicina contemporânea: o
pensamento médico brasileiro, Rio de Janeiro,
Tese de Doutorado, IMS/Uerj, 1995.
12. FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves, “O
doutor Capa Preta: Chernoviz e a medicina no
Brasil do século XIX”. Estudos, I(1) 95-109,
Maio 2001.
146 Comitê Olímpico Brasileiro
15. ANDRADE, Carlos Drummond de. Doutor
Mágico. In:______ Boitempo I. 6a ed. Rio de
Janeiro: Record. 2001. Apud FUIGUEIREDO,
Betânia, Gonçalves, op. cit, p.1
16 BRAGA, Rubem. Memórias de um ajudante
de farmácia. In:______ As Boas Coisas da Vida.
6a ed. Rio de Janeiro: Record. 2003. p.20.
17. ASSIS, Machado de. Obras completas, Rio
de Janeiro, Nova Aguilar, 8ªed., 1992. p.814
18. TAUNAY, Visconde de. Inocência, 19ª ed. ,
São Paulo, Ática, 1991cap. 1.
19. MAGALHÃES, Raymundo. “O lobisomem”
in MONTEIRO, Jerônimo. Panorama do conto
Brasileiro, vol. 8, Ed. Civilização Brasileira,
1959, p.34-51
20. LOBATO, Monteiro. Urupês, São Paulo,
Brasiliense, 1972, p.151.
21. MENDONÇA, Rubens de. História de Mato
Grosso, Cuiabá, IHGB, 1967.
22. SOBREIRA, Azarias. O Patriarca de
Juazeiro, Petrópolis, Vozes, 1969, p. 174.
23. BERBERT, José Augusto. “Poeta Amante
do Cinema”, A Tarde on line, 22/02/97.
24. MACHADO, Roberto et. al. Danação da
Norma: medicina social e constituição da
Psiquiatria no Brasil, Rio de Janeiro, Graal,
1979.
25. Gilberto Freire – Sobrados e Mocambos.
Vol. 2, Rio de Janeiro, José Olympio, 5a Ed.
1977, p. 573.
26. ALENCASTRO, Luís Felipe. Vida Privada e
Ordem Privada no Império. In: NOVAIS_FA.
História da Vida Privada no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras. vol. 2: 67-78.1997.
I N S I G H T
148 Museu do Imaginário Indígena
INTELIGÊNCIA
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
O tísico
José de
Alencar
E AS PORRADAS
LITERÁRIAS
Rita de Cássia Elias
professora
alvez nenhum grande nome da literatura
brasileira esteja tão assinalado pela fama de
polemista quanto o de José de Alencar. A
reputação não é, de fato, gratuita: justificamna as páginas de contendas obstinadas, que se
tornaram públicas em artigos jornalísticos
regulares. Alencar não discutia apenas com seus pares: dirigia-se
aos profissionais da imprensa, aos representantes do poder público,
aos historiadores, filólogos e — se bem que em tom mais diplomático e conciliatório — dirigia-se também ao público. A imprensa
diária não seria o veículo exclusivo para as controvérsias.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 149
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Alencar deixou registrada sua vocação
para o debate num conjunto de escritos,
publicados como apensos aos romances, de
prólogos, notas esclarecedoras, advertências
aos leitores, cartas cujas mensagens se
desviavam sutilmente dos destinatários
patentes para atingirem um público mais
amplo. Mas as respostas às objeções podiam
também se expressar sob a forma literária,
num jogo com o leitor, na “ficcionalização”
da crítica, como veremos. Tal vocação, além
de original — talvez não haja no século XIX
nenhum escritor tão empenhado no debate
público —, também demonstra a diligência
de Alencar em esclarecer o leitor, categoria
que começava a se formar, fato que, talvez,
possa explicar o didatismo do narrador
alencariano. Diria, até mesmo, que o conjunto extenso de notas de alguns dos romances, como O guarani, Iracema, Ubirajara e O
gaúcho, teria como função elucidar para o
leitor um universo cultural e lingüístico que
lhe era estranho.
Com a publicação “aos pedaços” de O
guarani, no Diário do Rio de Janeiro, de
fevereiro a abril de 1857, José de Alencar
Espécie de escriba
decaído, o escritor se
adaptará, com
alguma resistência, a
condições que o
ultrapassam e sobre
as quais não detém
nenhum controle
150 Museu do Imaginário Indígena
conquistaria o prestígio do reduzido público
leitor da época1, embora não fosse um
estreante nos expedientes do mundo jornalístico. Seu acesso ao leitor fluminense já
estava garantido pelo Correio Mercantil, em
que escreve de setembro de 1854 a julho de
1885, e pelo Diário do Rio de Janeiro, entre
outubro e novembro de 1855, periódicos nos
quais o autor, recém-formado em Direito,
ensaiava sua pena de futuro romancista e
iniciava sua vocação para a reflexão do
fenômeno literário. Embora no século XIX a
imprensa brasileira pudesse ser caracterizada
como “literária”2, as gazetas e revistas, cada
vez mais presentes no cotidiano da vida da
Corte, deveriam atender a um público de
interesses heterogêneos, ainda que nascido
de um mesmo segmento social — se considerarmos que a burguesia se associava às
classes senhoriais —, segmento que buscava
entretenimento e informação, conselhos
úteis, erudição, discussão política. Os
periódicos deveriam conquistar, especialmente, o público feminino e os estudantes,
um mercado incipiente, mas promissor e fiel,
que começava, na metade do século XIX, a
sofrer os impactos dos primeiros programas
de modernização.
Se considerarmos o teor dos folhetins de
José de Alencar, concluiremos que o autor
já conhecia o funcionamento dos periódicos
e de seu valor na vida da Corte e percebia a
importância do consórcio entre literatura e
imprensa. Em seus escritos de iniciante já se
insinua a percepção do lugar ocupado pelo
escritor profissional em uma sociedade em
transformação, sua relação com o público
leitor e a compreensão do significado da
noção de mercado.
Seu primeiro folhetim, de 3 de setembro
de 1854, se inicia com uma pequena estória
— “um conto fantástico” —, aparentemente
despretensiosa e ingênua, mas que justifica,
alegoricamente, o título da seção “Ao correr
I N S I G H T
da pena”: um rodapé com textos para serem
lidos “ao correr dos olhos”3, segundo a
recomendação expressa de seu autor. Na
abertura, Alencar dirige-se ao leitor numa
comunicação direta e explicita-lhe a natureza daquela escrita, ligeira, mecânica,
destituída de inspiração. O escritor, sem
musa, ou, por outra, dominado pela “musa
industrial”4, não passaria de um autômato,
de um escrevinhador. Espécie de escriba
decaído, o escritor se adaptará, com alguma
resistência, a condições que o ultrapassam e
sobre as quais não detém nenhum controle.
Ao correr da pena, portanto, Alencar, por
dever de ofício, passará em revista assuntos
diversificados, característicos dos rodapés
dos jornais. Deverá falar de forma bemhumorada e leve a respeito de tudo, exibindo alguma propriedade ao comentar os
assuntos mais diversos: de questões relativas
à política internacional à limpeza da cidade,
de problemas econômicos e financeiros a
assuntos dos mais prosaicos, como as indumentárias femininas nas festas e espetáculos
teatrais; deverá, em uma seção, transitar
sutilmente de assuntos amenos a graves para
não cansar o leitor. Como folhetinista,
Alencar não sustentará nenhuma polêmica,
a não ser algumas repreensões ao avaliar o
cotidiano da cidade, com suas transformações e mazelas, e os rumos da política e da
economia do país.
erá em 1856, antes da
publicação do romancefolhetim O guarani, que
Alencar fará sua entrada
na arena propriamente
literária. Sob o codinome de Ig, pseudônimo que, como afirma o
próprio Alencar, “fez quebrar a cabeça de
muita gente”5, o autor ficcionaliza um leitor,
um senhor reservado e afastado da bulha da
Corte, que enviará cartas destinadas a “um
INTELIGÊNCIA
amigo”, a quem pede desculpas pelo tom
familiar e a quem concede o direito de
publicá-las, desde que mantido o caráter
epistolar, em vez do tom de artigo, que
exigiria certa dose de gravidade e erudição6.
Com efeito, trata-se de um jogo com o leitor
e, sobretudo, com seu verdadeiro interlocutor. Afinal, José de Alencar era o próprio
redator-chefe do Diário do Rio de Janeiro,
gazeta em que serão publicadas as “Cartas”.
O destinatário oblíquo, portanto, longe de
ser “um amigo”, um suposto editor, seria o
próprio autor do poema A confederação dos
Tamoios, o escritor Domingos Gonçalves de
Magalhães, um dos idealizadores do romantismo.
A ousadia seria sem precedentes. Além
de marcar os pródromos do romantismo no
Brasil com a edição, na França, em 1836, da
Revista Niterói e do poema Suspiros poéticos e
saudades, Gonçalves de Magalhães, nome já
consagrado e respeitado, era protegido por
Dom Pedro II, que arcaria com os custos da
segunda edição do poema. Gonçalves de
Magalhães evita a contenda, mas seus
paladinos — Araújo Porto-Alegre, MonteAlverne e o próprio imperador, além de
outros anônimos, cujas identidades não
foram descobertas — preparam, dois meses
depois de publicadas as primeiras cartas de
Ig, a defesa do poeta no Correio da Tarde e
no Jornal do Commercio. Alencar conta com
o apoio de um tal senhor Ômega, provavelmente Pinheiro Guimarães, segundo hipótese de José Aderaldo Castelo7.
A confederação dos Tamoios inspira-se
num episódio histórico, a reunião de várias
tribos para a primeira reação organizada dos
autóctones contra a ocupação portuguesa. É
muito provável que os franceses tenham sido
grandes colaboradores na tentativa de
expulsão dos colonizadores. Sob a intervenção dos jesuítas, firma-se um tratado de paz,
que não é cumprido pelos portugueses, o
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 151
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
que resulta num dos grandes massacres da
história da colonização européia nos trópicos.
Brito Broca considera possível que as
investidas de Alencar contra o poema de
Gonçalves de Magalhães tenham sido a
expressão de uma “vaidade ofendida”. Com
as Cartas, Alencar teria respondido à
exclusão de seu nome da relação de convidados para a leitura do poema no Palácio de
São Cristóvão. Ainda segundo o crítico,
Alencar teria se sentido “roubado” no seu
propósito de escrever sobre o indianismo8. A
apreciação de Brito Broca é discutível, em
primeiro lugar porque reduz a importante
iniciativa, que Alencar levará a sério, de se
fazer a crítica da produção contemporânea,
uma “crítica viva”9, a questões de ressentimentos; em segundo, porque, sob a perspectiva de uma disputa pessoal, Brito Broca
desqualifica um conjunto de reflexões em
que estarão em jogo a análise estilística do
poema de Gonçalves de Magalhães e também uma teoria da mímesis, da verossimilhança, da construção do personagem, do
enredo, dos gêneros e do estatuto da criação
na composição da obra de arte, estando em
questão, também, a formulação do indianismo, das propostas nativistas e da afirmação
do antilusitanismo.
Ig inicia sua primeira carta afirmando
que, por não possuir habilitações para uma
análise, não pretende fazer um juízo crítico
sobre o poema, mas tão-somente registrar as
impressões de uma leitura pessoal, de um
leitor comum10. Ao contrário do que diz o
pseudônimo Ig, contudo, Alencar promove
uma análise minuciosa da obra, a partir dos
padrões analíticos da época: uma crítica
que, hoje, chamaríamos de impressionista,
mas que revela perspicácia na reflexão
teórica.
José de Alencar convoca bom número de
autores, de Homero a Gonçalves Dias, não a
título de demonstrar erudição, mas a fim de
152 Museu do Imaginário Indígena
estimular um debate sobre a constituição da
literatura brasileira em relação à “estrangeira”. Alencar recorre à tradição literária
ocidental para apontar como nossa literatura
pode, a partir de suas especificidades e
particularidades, se submeter aos cânones,
sem perder, contudo, a originalidade ou a
ambição de um projeto próprio. Por isso, a
crítica ao poema é contundente tanto a
respeito da linguagem empregada por
Gonçalves de Magalhães, que, afetado pelo
“estudo da poesia estrangeira”, teria perdido
o gosto apurado e a suavidade e cadência
do verso português”11, como a propósito da
construção épica do poema. Segundo
Alencar, os enredos das grandes obras no
gênero possuem como “causa, ou um grande
infortúnio, ou um sentimento poderoso como
a nacionalidade e a religião, ou um acontecimento importante como a descoberta de
um novo mundo”12. O poema de Magalhães,
porém, se serviria “da vingança, mas uma
vingança motivada por um fato trivial, um
fato bem comum, como era a morte de um
índio”, (...no) “tempo de hostilidades
constantes entre os invasores e os indígenas”13. Antecipando sua capacidade para a
montagem de grandes cenas, Alencar
anuncia que, tivesse sido o autor do poema,
teria iniciado pelo conselho dos chefes
Tamoios e, a partir daí, explicaria a razão da
confederação, para fazer “valer o sentimento
nacional, a liberdade e o cativeiro dos
índios”14. No entanto, seguindo Alencar, no
poema de Magalhães,
Não é pelo ódio instintivo da cor, não é
pelo opróbrio e a vergonha de homens livres
reduzidos à escravidão, não é pelo seu belo
país, dominados por filhos de terras estranhas; não é para vingar as cinzas de seus
pais, não é por nenhum desses incentivos
nobres, que os Tamoios se confederam; é
unicamente para acabar com os ataques
reiterados dos Lusos.15
I N S I G H T
Araújo Porto-Alegre será o primeiro
“amigo do poeta” a refutar as críticas de IgAlencar. Exatamente como amigo do poeta,
tenta descaracterizar os argumentos e
imprimir-lhes a marca de uma ofensa pessoal. Além disso, distorce o raciocínio do
debatedor e, lançando mão de argumentos
ad hominem, transforma as proposições de Ig
em “provas” que desqualificariam suas
idéias. Segundo Porto-Alegre, ao recorrer à
tradição literária ocidental, Ig criticaria a
obra por não seguir os cânones, promovendo
uma comparação inadequada, em que a
literatura brasileira estaria marcada pela
falta. Resumindo, Ig não valorizaria a
originalidade de nossa produção estética e
tampouco trataria com respeito a “pátria” e
o zelo daqueles que cantaram sua liberdade.
grande princípio, o
pensamento edificador
que preside ao todo
desta obra nacional,
não pode ser avaliado
por homens cujo
coração está vazio; e a quem não importa o
futuro daquela grande entidade que denominamos PÁTRIA, enquanto podem viver
nos gozos materiais, e refocilar-se nas frioleiras de uma nunca interrompida infância.16
E continua “o amigo do poeta”:
Se um brasileiro escreve aqui uma
tragédia, é logo comparada com todos os
primores conhecidos (...); se escreve um
poema, é lançado no barato porque não
escureceu Homero (...); e no entanto
queremos já, vaidosos madraços, falar em
literatura brasileira, e nos nossos grandes
homens da época atual, que se parecerão
todos no futuro com estátuas mutiladas e
remendadas, tais foram as pedradas que
levaram da mão daqueles que os deviam
acolher e venerar, e circundá-lo de uma
bem merecida estima.
INTELIGÊNCIA
Araújo Porto-Alegre
será o primeiro “amigo
do poeta” a refutar as
críticas de Ig-Alencar.
Exatamente como
amigo do poeta, tenta
descaracterizar os
argumentos e imprimirlhes a marca de uma
ofensa pessoal
Na quinta carta, Alencar-Ig, decepcionado com o “debate” na imprensa, despede-se
do suposto amigo-editor, sem dar muita
atenção aos contra-argumentos dos debatedores, quando aparecem no Jornal do Commercio as reflexões a propósito das cartas
sobre “A confederação dos Tamoios”, assinadas por um “outro amigo do poeta”, na
verdade, Dom Pedro II. Reagindo a essas
“reflexões”, Ig volta à cena porque reconhece nelas uma polêmica literária, “que tem
sempre a vantagem de estimular os espíritos
a produzirem alguma coisa de novo e de
bom”17. De fato, o “outro amigo do poeta”
não se arma com o objetivo de “travar uma
luta mesquinha e baixa”18, mas, ao contrário,
propõe uma discussão fundamentada e,
sobretudo, polida, a respeito das objeções de
Ig ao poema de Magalhães, tal como se pode
verificar na abertura de suas reflexões:
Ocupava-me tranqüilamente com as
minhas obrigações quando me fizeram ler as
Cartas sobre a confederação dos Tamoios,
assinadas por Ig. Não desgostei do seu estilo,
e as censuras me abalaram; mas não deparando senão com um ou outro louvor a
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 153
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
certas passagens do poema, assaltou-me a
curiosidade de examinar se os Suspiros
Poéticos, que tanto me agradam, tinham sido
os últimos do poeta. Procurei o poema,
obtive-o enfim, com algum custo, pois
só há pronta a edição imperial, e, estudando-os, assim como a crítica, julguei dever
apresentar estas reflexões, ainda que escritas com pena mal aparada: sigo a ordem das
censuras.19
Alencar dará continuidade à discussão
com a publicação de mais três cartas.
As Cartas sobre a confederação dos
Tamoios não podem ser reduzidas a uma
vindita. Trata-se de uma reflexão que
repercutirá em toda a obra de Alencar,
especialmente nos romances indianistas, nos
quais ele recusa o nativismo, o antilusitanismo, característicos dos primeiros românticos.
Para alguns críticos, a obra de Alencar
ocultaria uma história de extermínio.
Contudo, a lógica da fundação da nacionalidade nos romances de Alencar não comportaria o herói indígena decaído, embora
ele não negasse as atrocidades cometidas
contra os nativos. Essa era a história, mas o
As Cartas sobre a
confederação dos
Tamoios não podem
ser reduzidas a uma
vindita. Trata-se de
uma reflexão que
repercutirá em toda a
obra de Alencar
154 Museu do Imaginário Indígena
escritor pretendia, utopicamente, criar uma
“nova nacionalidade”20, na qual não poderiam faltar os elementos europeu e o autóctone. Note-se que, com as Cartas sobre a
confederação dos Tamoios”, a questão indianista ganhará nuanças, que estarão presentes em O guarani, Iracema e Ubirajara. Ou
seja: a proposta indianista de Alencar difere
da de seus antecessores. Por mais que
pareça estranho, nos romances indianistas se
insinuarão, simbolicamente, os traços do
ideário liberal. A liberdade do autóctone
não é um mero lugar-comum romântico, mas
o ideal de um mundo destituído de hierarquias, subordinações e relações de dependência, como é o universo, por exemplo, da
família Mariz, cujo líder, um fidalgo, é a
expressão de uma suposta vontade coletiva.
A recuperação do passado e do mundo
medievo são redimensionados na obra de
Alencar. Não é por acaso que o solar dos
Mariz implode, e Ceci e Peri, solitários,
sobre a copa de uma palmeira, desaparecem
no horizonte após o dilúvio.
Em 1871, Alencar, àquela altura um
romancista já popular, é o alvo de uma
polêmica no periódico fluminense Questões
do dia, dirigido pelo escritor português José
Feliciano de Castilho e custeado pelo
imperador. O objetivo inicial do periódico,
promover um ataque sistemático ao Alencar
político, é logo desviado para as questões
literárias com a entrada em cena de Franklin Távora. Sob o pseudônimo de Semprônio
e Cincinato, Távora e Castilho, respectivamente, trocam correspondências a respeito
da obra de Alencar, especialmente O gaúcho
e Iracema. Anônimos também participam da
polêmica, seja para defender ou atacar
Alencar. Embora o nível dos ataques seja
rasteiro, superficial e bastante contraditório,
sua importância está no fato de a literatura
permanecer na ordem do dia através das
gazetas, através, portanto, de veículo acessí-
I N S I G H T
vel a um conjunto expressivo de leitores. Tal
polêmica expressa uma fase intermediária
entre o romantismo, já decadente, e os
primeiros sinais dos influxos das novas
concepções estéticas, isto é, o realismo e o
naturalismo. Segundo Távora, a “renovação
faz-se pela observação”21. Note-se que nas
Questões do dia a prosa de Alencar, que a
partir de 1870 passa a usar o pseudônimo de
Sênio, é desqualificada por não ser um
retrato fiel do objeto abordado.
(...) Sênio tem a pretensão de conhecer a
natureza, os costumes dos povos (todas essas
variadas particularidades, que só bem
apanhamos em contato com elas) sem dar
um só passo fora do seu gabinete. Isto o faz
cair em freqüentes inexatidões, quer se
proponha a reproduzir, quer a divagar na
tela22
Alencar é criticado por ser um escritor
de gabinete, que além de não fazer observações in loco, não se afiançava no discurso
dos historiadores e filólogos: a “imaginação
atrofiada nas cidades só pode procriar a
mentira, a falsidade (...). É preciso (...)
experimentar verdadeiramente todas as
sensações da inspiração não fictícia, mas
real”23. Ainda segundo Távora, “mais razão
tinha Balzac: não fundava ação nenhuma
em lugar que não conhecesse”24. O que está
em questão é, mais uma vez, a verossimilhança e o estatuto da ficção.
Desconhecem-se registros de respostas
de Alencar nas folhas a essas objeções25. As
críticas, contudo, produzem grande efeito.
Em Bênção paterna, prefácio ao romance
Sonhos d’ouro, de 1872, Alencar revida
obliquamente as críticas, mas, sobretudo,
apresenta um texto no qual se expressa a
consciência do autor quanto à situação da
literatura num país colonizado, às condições
adversas que tem de enfrentar o escritor
para viver de seu ofício, à condição dos
leitores e à inépcia da crítica. Além disso,
INTELIGÊNCIA
sistematiza seu programa literário e reflete
sobre as fases da literatura brasileira. Távora
e Castilho criticaram-lhe também o uso da
língua e a adaptação de palavras estrangeiras à morfologia portuguesa; Alencar torna
patente sua visão sobre as diferenças entre a
língua falada pelos portugueses e a falada
pelos brasileiros, antecipando as questões
levantadas por Mário de Andrade.
Os ventos da modernidade, do progresso
e das influências estrangeiras são também
avaliados como fenômenos inevitáveis, dos
quais o homem de letras não pode escapar.
Vale a pena transcrever alguns trechos do
prefácio.
Palheta, onde o pintor deita laivos de
cores diferentes, que juntas e mescladas
entre si, dão uma nova tinta de tons mais
delicados, tal é a nossa sociedade atualmente. Notam-se aí, através do gênio brasileiro,
umas vezes embebendo-se dele, outras
invadindo-o, traços de várias nacionalidades adventícias; é a inglesa, a italiana, a
espanhola, a americana, porém especialmente a portuguesa e francesa, que todas
flutuam, e a pouco e pouco vão diluindo-se
para infundir-se n’alma da pátria adotiva, e
formar a nova e grande nacionalidade
brasileira.26
Ainda segundo o autor, os críticos, em
vez de se preocuparem com os neologismos
— e nesse caso a reflexão é visivelmente
endereçada a Távora e a Castilho deveriam
se ocupar em “joeirar o trigo do joio, censurando o mau, como seja o arremedo grosseiro, mas aplaudindo a aclimatação da flor
mimosa, embora planta exótica, trazida de
remotas plagas.27”
E a conclusão de seu ensaio não poderia
ser mais irônica: “O povo que chupa o caju,
a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode
falar uma língua com igual pronúncia e o
mesmo espírito do povo que sorve o figo, a
pêra, o damasco e a nêspera?”28
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 155
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Segundo Antônio Cândido29, o romance
Ubirajara, por sua preocupação etnográfica,
seria também uma resposta aos ataques de
Távora e Castilho. De fato, a retomada do
indianismo se faz de forma distinta das
produções anteriores. O romance refere-se a
um mundo pré-cabralino e é repleto de
notas explicativas, que legitimam o universo
cultural do indígena, inclusive a prática da
antropofagia. Se Alencar fora acusado de não
se fundamentar no discurso dos cronistas e
historiadores, nas notas de Ubirajara ele trava
um diálogo com o discurso autorizado, não
para aceitá-lo, mas para questioná-lo30.
As refutações às críticas não estacionam
aí. Dentre tantas outras, destaca-se a
polêmica com Joaquim Nabuco. A contenda, publicada em O Globo, estende-se de 22
de setembro de 1875 a 21 de novembro de
1875. Alencar escreve às quintas e Nabuco
aos domingos. Não teria se transformado em
polêmica, não fosse o melindre de Alencar a
propósito de um artigo, curiosamente favorável ao escritor, de Joaquim Nabuco. O
objeto da questão era o drama O jesuíta,
cuja encenação contou com o descaso do
público fluminense. “O teatro São Luís
tinha menos de meia casa”31, segundo
Nabuco. Ora, para uma sociedade cujo lazer
principal era o espetáculo teatral, a ausência da platéia significava um fracasso retumbante. Nabuco publica uma crítica respeitosa em que reverencia o grande nome da
literatura brasileira, apresenta os méritos da
peça, mas aponta também algumas deficiências, o que já é o bastante para Alencar
propor uma contenda com a publicação de
quatro artigos. Nabuco aceita a provocação
e, de defensor do escritor, passa a acusá-lo, o
que renderá réplicas e tréplicas, a ponto de
Alencar invocar o respeito à sensibilidade
do público, que não deveria mais ser incomodado com as “murmurações de uma
crítica cediça”. A discussão, então, ultrapas156 Museu do Imaginário Indígena
sa o drama e envolve a obra de Alencar.
As páginas de réplicas e tréplicas, ainda
que fruto de ressentimentos e de intolerâncias recíprocas, constituem documentos que
iluminam a concepção estética, histórica,
filológica e sociológica de Alencar num
momento em que o romantismo declina para
dar lugar a uma arte naturalista e realista,
inspirada nas novas correntes de pensamento: no positivismo, no determinismo e no
evolucionismo. Talvez na polêmica com
Nabuco, o debate mais interessante se dê
em torno do romance Lucíola (1862). Nabuco elenca um conjunto de deslizes da
cortesã fluminense: seus pecados estariam
na falta de originalidade e de moralidade,
na linguagem impudente, na incoerência da
construção da protagonista, cindida e
contraditória, e do personagem-narrador. Em
nome de um suposto realismo, Nabuco
condena a obra. Além disso, segundo ele, se
a existência das cortesãs era um fato, não
caberia ao escritor expor as “máculas” da
sociedade. Estranho realismo de Nabuco,
que estará sempre tentando ocultar as
“mazelas” sociais e, sob uma perspectiva
antiescravocrata, contudo europeizante e
aristocrática, condena a encenação dos
dramas alencarianos que expõe a público a
escravidão, porque essa “nódoa” afronta a
sociedade que se quer civilizada. Do mesmo
modo, os romances indianistas são censurados: segundo Nabuco, Alencar “quis desacreditar a sociedade brasileira, a vida
civilizada do nosso país, os elementos de
poesia que podem ter em si a raça européia
que o povoou”32. A contra-argumentação de
Alencar já perde em força e vitalidade: cai
nas armadilhas de Nabuco e não consegue,
de fato, refletir de forma aguda, como fizera
antes, sobre o que poderíamos chamar de
uma teoria literária. As críticas que Alencar
não conseguiu responder de forma eficientes
podem ser, hoje, um manancial para a
I N S I G H T
recuperação de sua obra. Em Lucíola, por
exemplo, as faltas enunciadas por Nabuco
podem ser lidas como méritos da obra.
Lucíola é especial porque nele o perfil da
personagem Lúcia/Maria da Glória é construído aos olhos do leitor mediatizado pelo
relato de Paulo, personagem-narrador, cujo
discurso se estrutura gradualmente, obedecendo ao movimento de percepção de uma
realidade cambiante, na qual, no tempo do
enunciado, o personagem está submerso. A
heroína é bifronte — ela é a cortesã despudorada e a moça casta — e Paulo, um
provinciano na Corte, cujos códigos não
domina, problematiza a experiência vivida.
Em Lucíola, as dicotomias ganham relevo e
dimensão conflitiva, tanto no que diz
respeito à consciência da personagem,
quanto à esfera da interpretação do real. Em
primeiro lugar, porque em Lúcia coexistem
dois princípios, duas faces, duas essências.
Em segundo lugar, porque, na convivência
com Lúcia, Paulo experimenta um mundo
fracionado. Ao tentar compreendê-lo e,
assim, restituir-lhe a integridade, revela suas
fissuras. Pode-se dizer que, com Lucíola,
Alencar antecipa uma tendência que se
consagrará no romance moderno, isto é, a
narrativa em primeira pessoa, de um personagem que, protagonista na trama, problematiza o ato de narrar.
esmo que desavenças
particulares tenham de
fato estimulado Alencar em algumas das
disputas, elas perdem a
dimensão doméstica,
uma vez que, no espaço público, as questões
suscitadas e discutidas — que, em alguns
casos, rendem réplicas e tréplicas — expressam as reflexões que correlacionam aspectos
literários a temas integrantes da ordem do
dia da sociedade do Segundo Reinado.
INTELIGÊNCIA
A heroína de Lucíola
não é uma leitora
frívola. Elege os livros
como paradigmas de
sua própria história —
paradigmas a serem
adotados ou refutados
Alencar não exercita, portanto, a “crítica de
esquina”, expressão empregada por ele para
designar “as pequenas intrigas”, refugiadas
em círculos restritos, às quais não se poderia
conceder sequer o estatuto de “crítica”.
Consciente do significado do debate público, Alencar rejeita a resposta pessoal por
tratar-se de um desrespeito com o interlocutor e com o conjunto de leitores participantes da “pequena palestra”33.
Assim, com sua disposição para enfrentar
e suscitar controvérsias, Alencar despertará
reações, mobilizará opiniões e provocará
uma atmosfera de debates talvez sem precedentes em nossas letras. Note-se que Alencar ficcionaliza um leitor crítico, reflexivo e
criterioso. A heroína de Lucíola não é uma
leitora frívola. Elege os livros como paradigmas de sua própria história — paradigmas a
serem adotados ou refutados. Com isso, ela
constrói seu próprio enredo e decide sobre
seu destino. G.M., a fiel depositária das
cartas escritas pelo personagem-narrador, é
também uma leitora, que organiza, seleciona, interpreta, atribui significados, formaliza suas conclusões, antes de editar o
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 157
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
material que lhe fora confiado. Apensas ao
romance Senhora (1875), publicam-se uma
“Nota” esclarecedora e uma “Carta” assinada por Elisa do Vale, dirigida a Paula de
Almeida. Alencar urde uma polêmica
entre leitoras a propósito da fisiologia dos
personagens que compõem o romance e da
verossimilhança da narrativa, debate que,
fictício, teria sido travado na seção do
folhetim do Jornal do Commercio. Note-se
que a personagem Elisa do Vale não se
propõe a defender o autor, mas o desenvolvimento dramático da obra. A importância
atribuída por Alencar ao estatuto da
atividade crítica, à formação de leitores à
opinião pública é tamanha que se expressa
no interior mesmo de sua obra ficcional.
NOTAS
13. ID.
1. SEGUNDO RELATO DE TAUNAY, EM SUAS REMINISCÊNCIAS, OS
FASCÍCULOS DE O GUARANI ERAM AVIDAMENTE ESPERADOS E
CONSUMIDOS NA CORTE E EM SÃO PAULO E TERIAM DESPERTADO
UM EXTRAORDINÁRIO ENTUSIASMO, “UMA VERDADEIRA NOVIDADE
EMOCIONAL, NESTA CIDADE TÃO ENTREGUE ÀS PREOCUPAÇÕES DO
COMÉRCIO E DA BOLSA”, SOBRETUDO NOS “CÍRCULOS FEMININOS E
NO SEIO DA MOCIDADE, ENTÃO MUITO MAIS SUJEITA AO INFLUXO
DA LITERATURA”. VISCONDE DE TUANAY, REMINISCÊNCIAS, APUD
NELSON WERNECK SODRÉ, A POSIÇÃO DE ALENCAR (PREFÁCIO),
IN JOSÉ DE ALENCAR, SONHOS D’OURO, RIO DE JANEIRO, JOSÉ
OLYMPIO, 1955, P. 12.
14. ID.
email: [email protected]
15. JOSÉ DE ALENCAR, CARTAS SOBRE “A CONFEDERAÇÃO DOS
TAMOIOS”, IN OBRAS COMPLETAS, P. 870, V.4
16. ARAÚJO PORTO-ALEGRE, BREVE RESPOSTA ÀS CARTAS DO SR.
IG..., IN JOSÉ ADERALDO CASTELO, OP.CIT, P. 69.
17. JOSÉ DE ALENCAR, CARTAS SOBRE A CONFEDERAÇÃO DOS
TAMOIOS, IN OBRAS COMPLETAS, RIO DE JANEIRO, AGUILAR, P.
896, V. 4
18. IBID., P. 897.
2. V. ISABEL TRAVANCAS, O LIVRO NO JORNAL, SÃO PAULO,
ATELIÊ EDITORIAL, 2001, P.25-26.
19. DOM PEDRO II, REFLEXÕES ÀS CARTAS SOBRE A CONFEDERAÇÃO
DOS TAMOIOS, IN JOSÉ ADERALDO CASTELO, OP. CIT., P. 93.
3. JOSÉ DE ALENCAR, AO CORRER DA PENA, IN: OBRAS COMPLETAS,
RIO DE JANEIRO, AGUILAR, 1960, P. 639-640, V.4.
20. V. JOSÉ DE ALENCAR, BÊNÇÃO PATERNA, IN SONHOS D’OURO,
IN JOSÉ DE ALENCAR, OBRAS COMPLETAS.
4. USADA POR ALENCAR EM “BÊNÇÃO PATERNA” (PREFÁCIO A
SONHOS D’OURO), A EXPRESSÃO “MUSA INDUSTRIAL” DEVE SER
UMA REFERÊNCIA À EXPRESSÃO “LA LITTÉRATURE INDUSTRIELLE”,
21. SEMPRÔNIO, CARTAS A CINCINATO, PERNAMBUCO, W. DE
MEDEIROS; PARIS, AILLAUD E GUILLARD, 1872, P. 16
EMPREGADA COM SENTIDO PEJORATIVO PELOS CRÍTICOS FRANCESES
AO ROMANCE-FOLHETIM. SOBRE O ASSUNTO, V. MARLYSE MEYER,
FOLHETIM — UMA HISTÓRIA, SÃO PAULO, COMPANHIA DAS
LETRAS, 1996.
5. JOSÉ DE ALENCAR, CARTAS À “CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS”,
IN OBRAS COMPLETAS, RIO DE JANEIRO, AGUILAR, 1960, P. 863,
V.4.
6. IBID., P. 864-868.
7. J OSÉ A DERALDO C ASTELO , A POLÊMICA SOBRE “A
CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS”, SÃO PAULO, FACULDADE DE
FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO,
1953.
8. B RITO B ROCA, O RIGENS DA CRÍTICA NO B RASIL , IN
ROMÂNTICOS, PRÉ-ROMÂNTICOS E ULTRA-ROMÂNTICOS, SÃO
PAULO, POLIS; BRASÍLIA, INL, 1979, P. 73-75.
9. ANTÔNIO CÂNDIDO USA A EXPRESSÃO PARA DISTINGUÍ-LA DE
OUTRAS PRÁTICAS INTELECTUAIS SURGIDAS COM O ROMANTISMO,
TAIS COMO A ELABORAÇÃO DE ANTOLOGIAS, A INVESTIGAÇÃO
BIBLIOGRÁFICA E A COMPOSIÇÃO DE HISTÓRIAS LITERÁRIAS. V.
ANTÔNIO CÂNDIDO, OP.CIT., P. 348-369, V. 2.
10. JOSÉ DE ALENCAR, CARTAS SOBRE “A CONFEDERAÇÃO DOS
TAMOIOS”, IN OBRAS COMPLETAS, RIO DE JANEIRO, JOSÉ
OLYMPIO, 1960, P. 864, V.4.
11. JOSÉ DE ALENCAR, IBID., P. 867.
12. ID.
158 Museu do Imaginário Indígena
22. IBID., P.15.
23. IBID., P. 16.
24. IBID., P. 16.
25. O V. 4 DAS OBRAS COMPLETAS DA AGUILAR TRAZ UM ENSAIO
INTITULADO “O VATE BRAGANTINO”, CUJO OBJETO É DISCUTIR A
PRODUÇÃO POÉTICA E OS TRABALHOS DE TRADUÇÃO DE CASTILHO.
AO QUE PARECE, ALENCAR NÃO CHEGOU A CONCLUIR E A PUBLICAR
TAL ENSAIO.
26. JOSÉ DE ALENCAR, BÊNÇÃO PATERNA , IN SONHOS D’OURO,
RIO DE JANEIRO, JOSÉ OLYMPIO, 1950, P.35.
27. IBID., P. 36.
28. IBID., P. 38.
29. ANTÔNIO CÂNDIDO, OP. CIT., P. 222, V. 2
30. V. JOSÉ DE ALENCAR, UBIRAJARA, RIO DE JANEIRO, JOSÉ
OLYMPIO, 1957.
31. JOAQUIM NABUCO, O JESUÍTA, IN AFRANIO COUTINHO
(ORG.), A POLÊMICA ALENCAR–NABUCO, RIO DE JANEIRO, TEMPO
BRASILEIRO; BRASÍLIA, UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, 1978, P.
16.
32. JOAQUIM NABUCO, AOS DOMINGOS, IN AFRÂNIO COUTINHO,
OP. CIT., P. 113-114.
33. JOSÉ
DE
ALENCAR, “A
COMÉDIA BRASILEIRA”, IN
COMPLETA, VOL. IV, P. 42-46.
OBRA
I N S I G H T
160 Entrevista
INTELIGÊNCIA
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
A
idéia de uma entrevista com Gillo Pontecorvo
surgiu a partir de um bate-papo com amigos cinéfilos,
da percepção da grande atualidade dos filmes do
veterano diretor italiano, há muito sumido das telas.
P
ara os que desconhecem, Gillo dirigiu alguns dos
filmes de carga política mais marcantes do cinema
italiano e mundial. Quem assistiu Queimada ou
Batalha de Argel sabe do que eu estou falando. Hoje, é
um homem combativo na defesa da sobrevivência de um
cinema não-americano, batalha difícil mas não
inglória. Os EUA dominam 85% do mercado mundial de
cinema, sufocam a possibilidade de exibição do produto
médio dos demais países e impõem a “Pax Americana”
não só pelas armas mas também – e muito – pelo
entertainment.
G
illo é, portanto, um guerreiro. Um velho guerreiro
de grande lucidez e combatividade.
A
entrevista, por telefone, não foi fácil. As barreiras
lingüísticas, sempre presentes, encaradas por Gillo com
um bom-humor nem sempre presente, geraram alguns
momentos de tensão interatlântica. O produto final,
julguem agora.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 161
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
L U I Z A N T O N I O V I A N A : A unilateralidade
do poder mundial, expressa de forma espetacular na recente guerra que o Império
anglo-saxão travou com o Iraque, ameaça
com tempos de dominação e conformismo.
O cinema sempre reservou um espaço para
o seu próprio bunker de resistência. Vem aí
um novo filme de auspiciosa bravura ou chegamos mesmo ao “fim da História”? Afinal,
os americanos detêm 85% do mercado mundial.
PONTECOR
VO: O cinema foi edificado em cima
NTECORV
da esperança. Portanto, seus alicerces são sólidos. Acho que o tempo de reclamação está superado. Todos sabemos da hegemonia da produção audiovisual americana no mundo. Não
creio que o sucesso do cinema americano se
deva à sua superioridade qualitativa. Mas em
organização e marketing eles estão anos-luz à
nossa frente. E não adianta ficar lamentando.
Precisamos nos mexer. Levando em conta que
existem cerca de 650 milhões de possíveis consumidores de nossas imagens no mundo, a saída é tentar se organizar melhor, imitar os americanos que estão à nossa frente. O desafio é
dar início a uma série de ações afetivas como
os prêmios que distribuímos nos grandes festivais europeus — Cannes, Veneza e Berlim. Pretendemos estender essas premiações a outros
festivais.
LAV: Alguns países, e a França é um exemplo notório, têm sido reativos a essa nova colonização, adotando um sistema de reserva de
mercado. Qual a sua opinião sobre essa estratégia de sobrevivência?
PONTECOR
VO: Considero a reserva de mercaNTECORV
do uma alternativa razoável para ser adotada a
curto prazo, mas é uma situação que não deve
persistir indefinidamente. Em princípio, poderia possibilitar a distribuição e exibição inclusive de filmes feitos em países do Terceiro Mundo. Acredito que essa poderia ser uma boa alternativa para vocês.
162 Entrevista
LAV: O senhor considera que o fenômeno
Silvio Berlusconi deve ser analisado sob a ótica
do nascimento de um neopopulismo? É possível
antever o antagonismo Berlusconi versus cinema italiano?
PONTECOR
VO: Creio que Berlusconi e o berNTECORV
luconismo representam um grande perigo tanto para a nossa cultura quanto para o cinema. É
uma ameaça que está posta e que pode crescer
de forma assustadora. Ainda não é algo que
poderíamos chamar de ditatorial, mas, evidentemente, caminha nessa direção.
LAV: Não existe mais o cinema italiano como
havia na época de Fellini, de Monicelli, de Scola e de Sica. Isso é saudosismo nosso ou existe
mesmo um declínio? Qual a razão que o senhor atribui para tal mudança?
P O NTECOR
VO : O senhor quer dizer que o
NTECORV
cinema italiano atual não é tão grande como
foi antes, não é? Bem, eu não dramatizaria tanto assim, pois em todas as formas de expressão
artística, como na música, nas artes plásticas,
na literatura de todos os países, há altos e baixos. É certo que nos últimos sete ou oito anos o
cinema italiano não produziu obras muito boas.
Mas tenho a impressão de que estamos retomando a produção. E não creio que esteja sendo otimista ao dizer que estamos apenas começando... Essa retomada toma diferentes aspectos, tais como, por exemplo, uma nova vontade nos autores jovens, mas não somente nos
tão jovens, de se interessar pelo que está à nossa
volta, em vez de se limitarem aos minimalismos (o que certamente não era tão positivo e
que foi a característica do cinema italiano dos
últimos anos). É preciso investir em co-produções, distribuição e campanhas publicitárias
para fazer nosso cinema voltar a um status superior. E como sempre, é preciso mergulhar
em humanismo.
LAV: Na sua opinião, recentemente, qual é
o melhor filme italiano?
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
PONTECOR
VO: É difícil eleger o melhor. TeNTECORV
nho visto filmes de autores jovens e seus primeiros e segundos filmes dão claramente a sensação dessa retomada. Vou citar somente um
que vi por acaso. Insisto: foi por acaso mesmo.
O filme é Domenica, de Wilma Labarte, que
dá a sensação de alguém que é jovem e que
tem tudo para se tornar uma ótima diretora.
Poderia citar outros cinco ou seis, mas menciono esse porque foi o último a que assisti. Por
acaso, já passou no Brasil?
LAV: Infelizmente, acho que não.
PONTECOR
VO: Então se movimentem, através
NTECORV
dessa publicação e de outras, para que ele chegue ao Brasil. É um grande filme.
LAV: Muitos acreditam que estamos órfãos
de utopias. O senhor acredita que o cinema também sofre desta perda?
PONTECOR
VO: Considero que esse é um dos
NTECORV
elementos mais importantes, mas não o dominante. Essa utopia está à espreita e pode ser
vislumbrada nas tentativas de alguns cineastas
que tentam romper com um circuito apenas
comercial. Mas, não resta dúvida que cineastas políticos parecem ter cada vez menos lugar num mundo indiferente. Não é que as contradições tenham deixado de existir. Muito
pelo contrário: basta abrir os jornais e ler. É
que essas contradições deixaram de ser apresentadas no mundo dos espetáculos, do cinema em particular.
o declínio do cinema político pode ser uma
decorrência do desinteresse geral pela política. Qualquer pesquisa de opinião junto às diversas camadas da população revela hoje uma
série de interesses dominantes ou instituições
mais críveis do que a política tradicional. Não
sei se sempre foi assim, porque essas medições antes não existiam. Talvez as condições
históricas sejam menos propícias ao surgimento de energias transformadoras ou transgressoras. Mas tenho esperança de que a participação política da população recrudesça e leve
o cinema de volta nessa direção.
LAV: O chamado cinema político, de engajamento ideológico, estaria vivendo uma espécie de crepúsculo?
PO NTECOR
VO: Tudo está sempre muito inNTECORV
terligado, dependendo da situação geral. O interesse político momentaneamente diminuiu
nos últimos anos. Insisto em dizer que é momentaneamente. Naturalmente o cinema se
ressente disso. Como o considero um instrumento de crítica e interpretação da realidade,
L AV: O excesso de informação fragmentada, nas mais diversas mídias, é uma espécie de refrator da reflexão mais aprofundada e do tempo mais vagaroso para as imagens cinematográficas. Será que temos um
novo dilema do tipo informação commoditizada versus cinema de autor ou cinema de
pensamento?
PO NTECOR
VO : Há uma influência negativa
NTECORV
por parte da divulgação dessa linguagem e esse
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 163
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
é certamente um perigo contra o qual os autores devem lutar. Não acredito no cinema apenas como diversão, acho que se trata de uma
estética política. Em Batalha de Argel , por
exemplo, trabalhei com o que chamo de “ditadura da verdade”. Tudo que parecia verdadeiro era imediatamente descartado. Quando
terminei o filme sugeriram que eu deveria pôr
um aviso dizendo que não utilizara uma única cena extraída de cinejornais. Foi o maior
elogio que recebi. Queria cenas de cinejornal, granuladas, mas não medíocres como elas
costumam ser. Os autores, portanto, devem lutar contra esse tipo de informação fragmentada, porque do contrário, isso determinará uma
decadência, uma fase mesquinha na cultura e
no conhecimento geral.
LAV: O senhor acredita que a TV a cabo, a
Internet e outros tipos de mídias modernos poderão ser aliados ou inimigos do cinema? Ou
são os vírus de última geração de uma cultura
cinematográfica independente?
PO NTECOR
VO : De um lado eles podem ser
NTECORV
bons porque vão ajudar os meios de distribuição e ainda podem permitir uma maior
divulgação de um certo tipo de cinema de
autor. Acho que existem as duas possibilidades de tanto serem aliados como inimigos. É
preciso lutar para que a possibilidade positiva prevaleça.
L AV: No Brasil o governo do presidente
Lula tem demonstrado a intenção de submeter o conteúdo da produção artística a ditames da política de Estado. Já vimos este filme
e o resultado não foi bom. Gostaria de ouvir
suas considerações em relação aos limites da
intromissão do Estado. Por outro lado, como
sobreviver, notadamente nos países do Terceiro Mundo, sem o patrocínio do Estado? O
senhor tem assistido a filmes brasileiros?
PONTECOR
VO: Vou começar pela última perNTECORV
gunta. Tenho um grande amor pelo Brasil, onde
estive duas ou três vezes. Gostaria que na Itália
circulassem mais filmes brasileiros, mas também seria necessário que os distribuidores italianos procurassem promover essa possibilidade para o cinema brasileiro. Quanto à política
do presidente Lula, não a conheço o bastante,
mas tenho a impressão de que Lula é uma pessoa sábia e que, portanto, saberá colocar limites à intervenção — ou intrusão — do Estado
na criação artística.
LAV: No final, sempre voltamos ao dilema
de mais ou menos Estado.
PONTECOR
VO: O senhor tem razão: o Estado
NTECORV
é quem investe e pode investir. E deve aplicar o
dinheiro em tudo que eleva a cultura nacional.
Mas é preciso que todos tomem cuidado para
que esse investimento não signifique intrusão.
Porque no mundo inteiro onde houve essa interferência, ocorreram desastres de grandes
proporções, trazendo prejuízos irreparáveis à
cultura nacional.
L AV: Como é a colaboração entre TV italiana e o cinema? A RAI fez muito pelo cinema?
PONTECOR
VO: Sim, a televisão e a RAI fazem
NTECORV
muito. Na Itália eu diria que a televisão é muito
mais ágil, o que foi positivo para o cinema. Mas
devemos sempre resistir para que isso não signifique padronização. Pode representar uma
ajuda no plano econômico, tão necessária como
o pão, mas é preciso ter cuidado quando querem se intrometer na criação.
LAV: O senhor tem algo a dizer a nossos leitores do Brasil?
PONTECOR
VO: Que está em meus planos reNTECORV
tornar, em breve, ao Brasil que considero um
país maravilhoso e cheio de fascinação.
email: [email protected]
164 Entrevista
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
BOLETIM DE
OCORRÊNCIAS II
Eloí Calage
Jornalista
Alô!
Um bando de macacos-guariba salta sobre uma jaca
madura que acabaram de colher, sacudindo os galhos da
árvore. Quando fazem silêncio, quem aparece é a jandaia,
que encontrei vivendo com a prole no telhado do meu escritório. Me disseram que enchem tudo de piolho. Estou
disposta a despejar a família e, para isso, contratei um especialista em bichos, o carpinteiro Zacarias.
— O senhor sabe aninhar elas noutro lugar?
— Fosse eu não lutava contra jandaia, não. Dê abrigo. Não é de fincar paragem, quando avoarem a senhora
fecha o buraquinho do telheiro... na volta elas procura outro paradeiro.
126 Delegacia de Costumes
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Jandais não são os únicos invasores que encontrei na
chácara. Há outros, mais temidos.
— E a coral?
— Tem três ano que não benze as quatro ponta do terreno, Dona-menina. Desse jeito, não tem oração velha
que agüente. É só encomendá a reza e elas se vão pra mata,
igualzin que nem inhantes.
Pois não é que a coral que fixara residência — também
na companhia de filhotes — na caixa de fiação do telefone
(seria uma coral-araponga?) sumiu depois da reza?
Como vês, a chácara Jandaia é um condomínio e tanto.
Sem falar no cachorro, galinhas, borboletas, miles de insetos de tudo quanto é jeito, lagartos...
O duro é o domingão do faustão e este silêncio todo...
Graças a deus, amanhã é segunda e tenho uma reunião
de trabalho às oito e meia da matina.
Ganhar o pão com o suor do rosto, tudo bem. Duro é
ganhar o pão no silêncio da mata!
Diz aí, Rio de Janeiro!
email: [email protected]
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 127
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Chernoviz
e a medicina
no Império
FLAVIO COELHO EDLER
HISTORIADOR
MARIA REGINA COTRIM GUIMARÃES
MÉDICA
ANGIN
A
NGINA
NO PEITO
–
ANGINA NERVOSA, STRENALGIA, CATANHO
SUFFOCANTE. APERTO DOLOROSO DO PEITO QUE VEM POR ACESSOS –
ADMINISTRAR 10 A 15 GOTTAS DE ETHER SULFURICO EM MEIA XÍCARA
D’ÁGUA FRIA COM ASSUCAR, CHÁ DE FOLHAS DE LARANJEIRA OU DE HERVA
CIDREIRA. DAR A RESPIRAR ETHER, VINAGRE, CHLORIFORMIO. APPLICAR
SINAPISMOS NAS PERNAS E UM CATAPLASMA DE LINHAÇA MUITO QUENTE NAS
COSTAS; DAR UM CLYSTER D’ÁGUA MORNA COM 20 GOTTAS DE LAUDANO.
BANHO MORNO GERAL. CAUSTICO NO PEITO. CAFÉ. FUMIGAÇÕES COM
INFUSÃO DE ESTRAMONIO, MEIMENDRO, BELLADONA. PARA PREVENIR AS
CRISES COSTUMÃO EMPREGAR OS MEDICAMENTOS TÔNICOS 632. QUINA,
PREPARAÇÕES DE FERRO, BANHOS DE MAR. PURGANTES 629.
128 Comitê Olímpico Brasileiro
I N S I G H T
U
m dos aspectos ainda
pouco conhecido do
processo de institucionalização da cultura
médica acadêmica no Brasil oitocentista refere-se ao papel desempenhado pelos compêndios de medicina popular. Muito mais que a educação
médica regular e o contato com os médicos, eles foram o principal instrumento de penetração de saberes e
práticas sancionados pelas instituições
médicas oficiais no quotidiano da
maioria daquela população.
Para se compreender o alcance
deste tipo de difusão informal do saber médico acadêmico é preciso levar em conta a carência de médicos
nas vastas regiões rurais por onde se
dispersava o grosso da população brasileira. É sabido que, até finais do século XIX, a reduzida corporação médica se concentrava na Corte do Rio
de Janeiro e em Salvador, com expressão secundária nas capitais de
algumas províncias como Recife, Porto
Alegre, Ouro Preto e São Paulo1. Desde o fim da censura imposta aos livros pela Coroa portuguesa, houve
um aumento substancial do número
de livrarias e de impressoras e o co-
INTELIGÊNCIA
mércio de obras de medicina para
leigos conquistara um mercado considerável2. Os livros de medicina autoinstrutivos satisfaziam, assim, os interesses dos donos de escravos, que pretendiam manter a saúde de sua força
de trabalho com o mínimo de despesas, e os poucos letrados, que em variadas circunstâncias exerciam diferentes ofícios de cura voltados para o
enorme contingente de pobres desamparados. Nesses dois casos, como veremos adiante, os conhecimentos veiculados por tais manuais seriam reinterpretados e mesclados com as tradições empíricas consolidadas pelas
demais artes de cura, resultando num
amálgama entre elementos de folk
medicine e medicina acadêmica.
A
o contrário do ocorrido nos
Estados Unidos, onde esses
manuais eram a expressão de
um movimento de afirmação de setores da medicina popular contra os
privilégios reivindicados pela profissão médica3, no Brasil esse tipo de literatura era produzida por médicos
com a chancela da Academia Imperial de Medicina (AIM). Lembremos
que a organização profissional e re-
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 129
I N S I G H T
gulamentação do ensino médico no
Brasil, como atividade diversa da praticada por barbeiros, sangradores, algebristas, práticos curiosos, herbaristas, comadres e curandeiros, começou apenas no início do século XIX,
motivada pela súbita fuga da Corte
portuguesa, ameaçada pelas tropas
francesas, para a cidade do Rio de
Janeiro. Naquela ocasião, o Príncipe
Regente D. João inicia uma série de
reformas de cunho liberal, criando
os primeiros estabelecimentos de caráter cultural. No tocante à medicina, instalou dois cursos de cirurgia e
anatomia nos hospitais militares de
Salvador e Rio de Janeiro (1808), pondo término à era dos físicos e cirurgiões formados na Europa. Iniciavase, assim, uma forte tradição clínica
marcada pela figura do médico-defamília que atuava, ora como clínico, ora como cirurgião, ora como
conselheiro higienista. Embora a influência francesa tenha marcado
amplamente o saber e as instituições
médicas oficiais da época, convém
não esquecer que o ambiente médico vigente era herdeiro de uma multiplicidade de práticas, conceitos e
métodos reproduzidos de modo ar-
130 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
tesanal pelas diferentes etnias que
aqui interagiam4.
C
ircunscrita aos centros urbanos de apenas algumas províncias, e relativamente cara,
a assistência médica oficial era inacessível para quem se encontrava à
margem das confrarias religiosas ou
das redes de clientelismo promovidas
pelos membros da classe senhorial. Até
1841, ano em que foi publicada a
primeira edição do Formulário e Guia
Médico de Pedro Luís Napoleão Chernoviz (1812-1881), que obteve imediatamente imensa popularidade, os
brasileiros pobres podiam recorrer a
quaisquer das variações polimorfas
das tradições de cura e práticas artesanais que resultaram da longa experiência colonial, dentre as quais se
achava o livro de William Buchan,
Domestic Medicine, de 1769, traduzido por Manoel Henriques de Paiva.
Não se sabe a repercussão alcançada
pelos compêndios de Jean-BaptistaAlban Imbert, médico de Montpellier e membro-titular da AIM, Manual do Fazendeiro ou tratado doméstico sobre as doenças dos negros
(1834) e Guia Médico para as Mães
I N S I G H T
de Família (1843), nem do sucesso
obtido pelo O Médico e o Cirurgião
da Roça ou Tratado completo de medicina e cirurgia domésticas, adaptado à inteligência de todas as classes
do povo (1875) de Louis-Francois
Bonjean (1808-1892), nascido em
Chamberry, formado em Turim e
membro honorário da AIM5.
O certo é que Chernoviz, como
ficou conhecido, tornou-se um bestseller, tendo alcançado dezenove edições até 1924. Um ano após o lançamento da primeira edição do Formulário e Guia Médico (FGM), isto é, em
1842, aparecia a primeira das seis
edições de outro livro, o Dicionário
de Medicina Popular e Ciências Acessórias (DMPCA), desse polonês formado em Montpellier, que aqui viera, a exemplo de outros médicos estrangeiros, para tentar a sorte.
N
este artigo, pretendemos tecer alguns comentários sobre dois aspectos da obra do
formidável médico polonês: por um
lado, vamos avaliar seu escopo, enquanto empreendimento cultural, segundo a perspectiva do próprio autor e seu grupo de referência, a me-
INTELIGÊNCIA
dicina acadêmica de meados do século XIX; por outro lado, vamos decifrar alguns dos significados que lhe
foram sendo agregados por setores das
culturas erudita e popular, no longo
itinerário em que foi perdendo o conceito de obra científica e ilustrada,
reverenciada pela República das Letras, até o momento em que passou a
ser tomada como expressão de genuína crendice popular. Recorrendo à
literatura ficcional brasileira, crônicas jornalísticas e relatos biográficos,
faremos alguns apontamentos sobre
a razão de tal metamorfose.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 131
I N S I G H T
Um médico na
República das Letras
Piotr Czerniewicz nasceu em
Lukov, na Polônia, no dia 11 de setembro de 1812. Em 1830, após participar da malograda Revolta de Novembro, quando os poloneses se sublevaram contra a ocupação russa,
teve que se refugiar na França. Em
Montpellier, onde obteria seu diploma de médico, criou a Organização
de Democratas Poloneses, da qual foi
presidente. Aparentemente, pouco
antes de se formar, em 1837, abandonou as fileiras da organização, onde
entrara com a patente de coronel do
exército polonês. Embarcou para o Rio
de Janeiro em 1840 e nesse mesmo
ano passou a clinicar, após ter validado seu diploma junto à Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro. Ainda
em 1840 tornou-se membro-titular
da Academia Imperial de Medicina
(AIM), com uma memória sobre O
uso do nitrato de prata nas doenças
das vias urinárias. O parecer positivo
foi elaborado por Faivre, membro titular da AIM e médico oficial da embaixada francesa. Em 1844, casouse com Júlia Bernard, nascida no Rio
de Janeiro, com quem teria seis filhos.
132 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
Em 1855, mudou-se definitivamente
para Paris, de onde continuou a editar sua obra, sempre em português6.
O editor e sua obra
Em seu monumental estudo sobre
a história do livro no Brasil, Hallewell
afirma que a iniciativa de publicarse o DMPCA partira dos famosos editores Eduardo e Henrique Laemmert,
que percebiam a boa acolhida que
teria um livro de medicina auto-instrutivo. A confiança dos proprietários
da famosa loja de livros da Rua da
Quitanda era tal, que imprimiram
três mil exemplares, uma tiragem
quase sem precedentes na época,
principalmente para uma obra em
dois volumes, ao custo de 9$000. O
acerto do investimento pode ser medido pela segunda edição, de 1851,
ampliada para três volumes in quarto (com 1.620 páginas e 5 pranchas
com ilustrações), ao preço de
15$0007. Entretanto, essa versão sobre o faro empresarial dos Laemmert
precisa ser revista, tendo em vista o
relato do próprio Chernoviz contido
num conjunto de correspondências
pessoais que ele manteve com um
amigo após sua chegada ao Brasil.
I N S I G H T
Graças a essas cartas8, depreende-se
que a produção dos dois manuais, escritos por ele diretamente em português, já fazia parte de um antigo plano de carreira traçado ainda na França. Outras iniciativas semelhantes
devem ser vistas como inscritas na
mesma estratégia de visibilidade e
notoriedade: a redação de artigos
para a Revista Médica Fluminense;
sua eleição, cuidadosamente preparada, para membro da AIM; a participação em almoços, bailes e saraus
nas boas casas; a dedicatória ao Imperador Pedro II, impressa na primeira página — o que lhe rendeu o cobiçado título de Cavaleiro da Ordem
de Cristo.
D
e todos esses passos concatenados, a edição do FGM
foi o mais ousado e o que
encontrou maior incompreensão da
parte justamente dos editores. Um, a
quem Chernoviz propôs que comprasse os originais, aconselhou-o a
ocupar-se de seus clientes e esquecer um trabalho que não teria saída.
Outro, provavelmente Leuzinger ou
o próprio Eduardo Laemmert9, respondeu-lhe que para obras que tais
INTELIGÊNCIA
era mais fácil encontrar autores que
a escrevessem do que leitores. Apesar do forte obstáculo, assumiu o risco pela empreitada, arcando com os
custos. Vendeu todos os seus instrumentos cirúrgicos e contou com o
auxílio financeiro de um médico
amigo. O sucesso alcançado foi estrondoso, pois nos três primeiros dias
foram vendidos 300 exemplares.
Além da impressão, o médico, que
então contava com 30 anos, cuidou
pessoalmente da distribuição, enviando exemplares para Bahia, Pernambuco e Portugal10. Os Laemmert imprimiram as três edições seguintes, as
de 1846, 1852 e 1856, além das duas
primeiras impressões do DMPCA, em
1842 e 1851. Ao estabelecer-se em
Paris, em 1855, Chernoviz continuou
editando seus manuais em sua própria residência — Casa do Autor —
na rua Raynouard, atual Chernoviz,
em Passy.
Dividido em várias seções, o Formulário e Guia Médico continha a
descrição dos medicamentos, suas
propriedades, suas doses, as moléstias
em que deviam ser empregados; as
plantas medicinais indígenas, e as
águas minerais do Brasil; a arte de
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 133
I N S I G H T
formular, a escolha das melhores fórmulas, além de muitas receitas úteis
nas artes e na economia doméstica.
Ao lado dos medicamentos chamados officinaes (xaropes, vinhos,
extratos, tinturas, conservas, emplastos e ungüentos), cujas fórmulas achavam-se nos códigos farmacêuticos
sancionados pelas leis e encontrados
já prontos nas boticas e cujo prestígio
variava em cada época, os doentes
também podiam dispor das receitas
magistraes. Estas últimas eram preparadas de acordo com as fórmulas de
cada médico, segundo as necessidades específicas do paciente. Eram
poções, cozimentos, colírios, pílulas,
emulsões, linimentos, cataplasmas...
Chernoviz propunha-se a reunir esse
amplo conjunto. Destarte, iniciava
apresentando, pedagogicamente, algumas considerações sobre a arte de
formular. Distinguia, nas fórmulas, a
base , isto é, o agente principal do
medicamento que conteria o princípio ativo; o adjuvante, que serviria
para aumentar as propriedades ou
virtudes da base; o corretivo, cuja finalidade era enfraquecer o sabor ou
o cheiro, podendo também reduzir a
atividade ou a ação corrosiva; o exci-
134 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
piente, substância que serviria de veículo às outras três e, por fim, o intermédio, que servia para tornar o medicamento miscível em água ou outro excipiente. Assim, por exemplo,
na Mistura Balsâmica de Fuller (copaíba: 2 onças; gemas de ovo: 2; xarope de bálsamo de Tolu: 2 onças;
vinho branco: 6 onças).
A copaíba seria a base, o xarope, o corretivo, as gemas de ovo, o
intermediário e o vinho branco, o
excipiente .
E
m outra seção eram descritas
as formas farmacêuticas dos
medicamentos, então classificados em bálsamos, cataplasmas, cáusticos, clisteres, elixires, emplastos,
emulsões, espíritos, extratos, sangrias,
sanguessugas, sinapismos, vesicatórios e ventosas. Deste arsenal, utilizado no período denominado de terapêutica heróica pela historiografia
médica11, o FGM nos oferece uma detalhada descrição. As informações técnicas sobre sua variada composição,
formas de emprego e de manutenção
são verdadeiras relíquias sobre as artes médicas da época. Folheando as
páginas desta seção, ficamos sabendo
I N S I G H T
que as cataplasmas, medicamentos
externos em forma de papas, eram
geralmente elaboradas com farinha
de linhaça, féculas de batata ou miolo de pão. Nos vesicatórios ou cáusticos, aplicados como emplastos ou cataplasmas em afecções gangrenosas
ou mordedura de animais peçonhentos, visando produzir uma secreção
serosa e empolar a pele, além de
mostarda e trovisco, empregava-se
freqüentemente uma papa elaborada a partir da maceração de um pequeno inseto, a cantárida. No DMPCM, ficamos sabendo que dentre os
tipos de ventosas, pequenos vasos des-
INTELIGÊNCIA
tinados a fazer vácuo na superfície
da pele, com o fim de atrair sangue
ao lugar em que se aplica, um recomendado era fabricado com chifre
perfurado no ápice, por cujo furo se
operava com a boca a sucção do ar,
sendo, em seguida, tapado com cera
quando estivesse aderente à pele.
Aplicadas com o mesmo fim que as
sangrias, as sanguessugas, ou bichas,
como eram popularmente conhecidas, deviam ser aderidas a qualquer
parte do corpo, à exceção das plantas
dos pés e das palmas das mãos. Nas
mulheres recomendava-se não aplicar nas partes visíveis do corpo (pescoço, parte superior do peito, antebraço e costas da mão). Os lugares
indicados eram as membranas mucosas facilmente acessíveis como a
gengiva, a vagina e o colo do útero.
Uma sanguessuga vigorosa retirava
em torno de meia onça (15 grs.) de
sangue. Também em relação a essa
curiosa criatura, ficamos sabendo que
nem todas eram importadas da Europa, pois já havia lugares de criação
no Rio de Janeiro. As sanguessugas,
facilmente encontradas nas lojas dos
barbeiros, eram conservadas em vasos de vidro, contendo água até 2/3
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 135
I N S I G H T
de sua capacidade e 3 litros serviam
para 30 delas, ou em caixas com barro úmido.
N
outra classificação, os medicamentos trazem referência à sua ação terapêutica. É de se notar, neste caso, que até
a vitória da concepção ontológica da
doença, isto é, aquela que associa o
ser doença à ação uma entidade específica, a medicina acadêmica tendia a conceber a doença como manifestação de múltiplas circunstâncias,
de caráter externo (agentes físicos ou
químicos) ou interno (constituição física, temperamento, idade, sexo, atividade ocupacional). Nesse caso, os
terapêuticos eram distinguidos entre
21 tipos, conforme sua ação específica voltada a restabelecer a harmonia
ou equilíbrio fisiológico: adstringentes, antiperiódicos, antiphlogísticos,
antiescorbúticos, antissépticos, antispasmódicos, antissifilíticos, calmantes,
diaforéticos, diuréticos , eméticos ,
emolientes, estimulantes, febrífugos,
narcóticos, purgativos, sudoríferos,
tônicos, temperantes, vermífugos, e
vomitivos. A arte de purgar, tão complexa e tão amplamente empregada
136 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
quanto a de sangrar, exigia que o praticante soubesse diferenciar plenamente os purgantes, segundo sua intensidade, entre a ampla variedade
de substâncias laxantes, catárticas ou
drásticas — estas últimas as mais intensas.
Esta última classificação encontrase na parte do formulário propriamente dito. Mas em que ele consiste?
Trata-se da descrição em ordem alfabética, de todas as substâncias então empregadas pela medicina acadêmica. Ao referir-se a cada medicamento, Chernoviz indicava sua sinonímia, a significação em francês, o
nome botânico em latim (se o medicamento fosse uma planta), suas características físicas, suas propriedades, as moléstias em que deviam ser
empregadas, as doses e pesos usuais e
os riscos de eventuais associações.
U
ma seção aparentemente
inusitada para um guia
médico, mas que se coaduna perfeitamente com o ideal iluminista e civilizatório de que se investia
a elite médica, intitulava-se Receitas
Diversas. Reuniam-se, aqui, várias
receitas “úteis nas artes e economia
I N S I G H T
doméstica”, tais como: água-de-colônia, tintas de escrever, venenos para
a destruição de animais daninhos...
Eram fornecidas também as composições de diversas preparações vendidas como segredo: pomadas de tingir cabelos, água para tirar nódoas
de tinta de escrever, e coisas que tais.
Com igual intuito, no DMPCA aparece o desenho e a descrição completa
de uma caixa de botica contendo o
que se considerava, então, como material terapêutico básico.
Inovação e
progresso científico
Como notou uma historiadora, havia em Chernoviz uma preocupação
constante com a atualização de seus
manuais12. Assim, ao contrário do
anátema de repositório de crendices
populares, que lhe lançaram posteriormente, as edições de seus livros
eram constantemente revistas e até
mesmo novas seções eram incorporadas. Com o Dicionário de Medicina Popular e Ciências Acessórias, o
autor se coloca decididamente do lado
das luzes e sua ação pode ser entendida dentro do ideal pedagógico do
iluminismo racionalista. Carregando
INTELIGÊNCIA
o pesado fardo da civilização, ele pretendia, com sua obra, “difundir os
bons preceitos de saúde, precaver o
público contra o charlatanismo, destruir os erros populares a respeito da
medicina, inculcar o que se deve fazer nos acidentes súbitos, e ensinar os
tratamentos de várias moléstias que
podiam ser realizados na ausência de
um médico”. Constantemente revisto
e ampliado, até a sexta e última edição de1890, o DMPCA não apenas se
apresenta como uma espécie de vade
mecum do saber médico estabelecido, como tem uma postura pioneira,
sancionando algumas inovações pouco consensuais para a época. Assim,
antecipando-se à adoção do Sistema
Métrico Internacional (1875) pelo
governo imperial, Chernoviz já introduzira na edição de 1862 a equivalência de pesos e medidas usados nas
farmácias do Brasil — libras, onças,
oitavas, escrópulos, grãos — aos pesos decimais. Na edição de 1874, na
seção “Noções Preliminares”, apresenta uma tábua de conversão, acompanhada da descrição de instrumentos, como o areômetro, o densímetro
e o termômetro médico (esse, verdadeira revolução na classificação das
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 137
I N S I G H T
febres). Da mesma forma, foi um dos
primeiros autores a sancionar, já na
edição de 1878, no verbete opilação
ou hipoemia intertropical — o que
hoje conhecemos como ancilostomose — a tese de sua etiologia parasitária. Opinião essa que permaneceu
sub judice e contrariava a posição da
maioria dos membros das congregações das faculdades de medicina, da
Academia Imperial de Medicina e
mesmo da Academia de Medicina de
Paris – instituição médica mais prestigiosa da época.
138 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
No FGM, o zelo pela atualização
científica explica o enorme sucesso
alcançado entre os boticários. A terceira edição, de 1852, já recomendava a retirada, nas receitas, das
abreviações e sinais referentes às dosagens, conforme regulamento da Junta Central de Higiene Pública, decretado em 1851. Ao obrigar os facultativos a escreverem suas receitas por
extenso, em português, a autoridade
pública contribuía de certa forma
para apagar alguns traços simbólicos
que ainda ligavam os médicos oitocentistas aos físicos fidalgos do século
XVIII, cuja erudição se media pelo
uso do latim e adoção de sinais alquímicos inacessíveis aos leigos.
A oitava edição de 1868 foi um
marco editorial, sendo também a primeira a ser impressa em Paris por tipógrafos portugueses sob inspeção do
autor. Ela se antecipou à iniciativa da
Junta de Higiene Pública ao adotar o
novo código farmacêutico francês de
1866. Outra novidade da mesma edição foi a ampliação da descrição das
plantas indígenas do Brasil, que nas
edições anteriores correspondia a
pouco mais de cinqüenta e nessa excedia a duzentas. A partir de então,
I N S I G H T
além de suas próprias observações,
feitas quando de sua estada no Rio de
Janeiro, Chernoviz passou a publicar
os trabalhos dos naturalistas Auguste
Saint-Hilaire, Von Martius, Weddel e
dos médicos e farmacêuticos brasileiros Francisco Freire Allemão, Nicolau Joaquim Moreira, Francisco da Silva Castro, Joaquim Correia de Mello
e Theodoro Peckolt, dentre outros ren o m a d o s.
A
sexta e última edição do
DMPCA, de 1890, aparecia
alguns anos após a morte do
autor, sob a responsabilidade da livraria e editora Roger e F. Chernoviz.
Nela já se informava sobre os novos
métodos de soroterapia, segundo as
teorias de Pasteur e de Roux. De acordo com Carlos da Silva Araújo, na 16ª
edição do FGM, datada de 1897, descrevia-se a técnica sobre “os raios X
ou as fotografias através dos corpos
opacos.” O mesmo empenho em seguir as últimas novidades das ciências médicas foi perseguido até a última edição de 1924. Somente em
1926 aparecia a Farmacopéia Brasileira, o que explica por que até essa
data, nos regulamentos sanitários,
INTELIGÊNCIA
Chernoviz — feito substantivo comum por antonomásia — era citado
como um livro obrigatório nas farmácias13.
Antes de nos aventurarmos na decifração do enigma de sua metamorfose, convém chamar a atenção para
algo que, porventura, está deixando
o leitor perplexo: temos nos referindo indistintamente ora ao Formulário
ora ao Dicionário como “o” Chernoviz. Eis uma confusão insolúvel. Como
ficará claro em seguida, a imprecisão tornou-se difusa no espaço e no
tempo.
Chernoviz, oráculo
da medicina popular?
Qual a influência de Chernoviz na
intimidade doméstica dos lares urbanos e rurais? Em que medida contaminou as referências simbólicas dos
diferentes saberes de cura mantidos
pela tradição oral? Como foi lido, interpretado e apropriado por curiosos
e pelos porta-vozes das culturas subalternas? Respostas satisfatórias a
estas perguntas ainda merecem uma
investigação aprofundada, mas tentaremos aqui uma primeira aproximação.
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 139
I N S I G H T
Em princípios do século passado,
o famoso higienista e escritor Afrânio Peixoto, através de um personagem, afirmou que no Brasil havia
maior número de volumes do Chernoviz que da Bíblia espalhados pelo
país14. Seu personagem, coronel João
Batista Pinheiro, orgulhoso de seu
Chernoviz, repetia “Pedro Luiz Napoleão Chernoviz! (...) convencido
que recitava um verso”, e bradava
“um homem destes é um benfeitor
da humanidade... ”. Em meados do
século, sua popularidade ainda seria
assombrosa na impressão do poeta (e
farmacêutico) Carlos Drummond de
Andrade. No poema Dr. Mágico ele
assevera: Dr. Pedro Luís Napoleão
Chernoviz/ Tem a maior clientela da
cidade./ Não atende a domicílio/
Nem tem escritório./Ninguém lhe vê
a cara./Misterioso doutor capa preta.../15. E, com saudades de seu tempo de ajudante de farmácia, Rubem
Braga conclui que “ Chernoviz era
um sábio”16.
S
eria de tal monta a estima do famoso manual? É possível. As referências aos manuais de medicina popular, em espe-
140 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
cial ao próprio Chernoviz, são encontradas em muitos romances e crônicas desde o século XIX. Em Dom Casmurro, de Machado de Assis, o protagonista recorda-se de como o agregado José Dias apareceu pela primeira
vez na fazenda de Itaguaí, “vendendo-se por médico homeopata.” Levava consigo “um Manual e uma botica” e curou um feitor e uma escrava
de umas “febres” que ali se instalaram. Ao recusar um ordenado, dizia
que “era justo levar saúde à casa de
sapé do pobre.”17
No romance Inocência, Visconde
de Taunay constrói um personagem
que à semelhança de José Dias, recorreria ao famoso manual como alternativa ao distante, dispendioso e
longo curso de medicina. Cirino, servente de botica numa localidade pequena onde “de simples boticário a
médico não há mais que um passo,”
foi, aos poucos “e com o tempo, criando tal ou qual prática de receitar
e, agarrando-se a um Chernoviz, já
seboso de tanto uso, entrou a percorrer, com alguns medicamentos no
bolso e na mala da garupa, as vizinhanças da cidade à procura de
quem se utilizasse dos seus serviços”.
I N S I G H T
Logo receberia o tratamento de doutor. (...) “Toda a sua ciência assentava alicerces no tal Chernoviz”.(...)
“Noite e dia o manuseava; noite e dia
o consultava à sombra das árvores
ou junto ao leito dos enfermos”. De
acordo com o narrador, apesar de
conter “muitos erros, muita lacuna,
muita coisa inútil e até disparatada”,
(...) “no interior do Brasil é obra que
incontestavelmente presta bons serviços, e cujas indicações têm força
de evangelho”18.
O
utro personagem, o Bento do
conto O lobisomem, de Raymundo Magalhães19, retrata bem o perfil semelhante. Além de
negociante de gêneros alimentícios,
seu Bento “era muito entendido em
assuntos de medicina caseira. Como
na terra não havia médico nem boticário, ele desempenhava o papel de
curioso: com o auxílio do seu bojudo
Chernoviz, aconselhava remédios a
quantos recorriam à sua experiência, e dizia-se que estava só para tratar das doenças do mundo... Jalapa
para estes, batata para aqueles outros, eram os seus remédios prediletos. Se não fizessem bem, não podiam
INTELIGÊNCIA
fazer mal. Custavam pouco, mas esse
pouco bastava para ir vivendo folgadamente, em meio à sua vasta
clientela.”
Nestes exemplos, o uso do manual, embora transcendendo os limites da auto-ajuda e fazendo-se
instrumento de comércio, permanece dentro do escopo imaginado
pelo autor. Como bem delimita seu
Bento , o exercício de sua arte restringia-se às doenças do mundo .
Mas não é difícil de imaginar as
apropriações heterodoxas que resultaram em combinações ecléticas
incorporando o receituário científico às concepções mágicas e holistas presentes no saber médico
popular.
O personagem de Taunay, por
exemplo, indiferente à fronteira traçada pelo médico polonês, transita
impunemente entre a medicina erudita e o universo da magia, usando
como salvo-conduto justamente o
Chernoviz. Assim, “num dia de capricho”, Cirino (...) “começou a viajar pelos sertões povoados a medicar, sangrar e retalhar, unindo a alguns conhecimentos de valor positivo, outros que a experiência lhe ia
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 141
I N S I G H T
indicando ou que a voz do povo e a
superstição lhe ministravam ”. No
poema de Drummond, supracitado,
outros versos revelam um deslocamento similar sofrido pelo Chernoviz, aqui subsumido ao campo semântico da medicina folclórica:
“Esse que cura todas as moléstias/
(De preferência as incuráveis)/ Socorre os afogados/ Asfixiados / Assombrados de raio/ Sem desprezar
defluxo, catapora, /Sapinho, panariz, cobreiro/ Bicho do pé, andaço,
carnegão.../”. Em Urupês, Monteiro
Lobato, ao retratar o Jeca — arquétipo da ignorância e preconceito do
habitante do mundo rural brasileiro, cujo “mobiliário cerebral” repleto
de superstições, se constitui de um
banquinho de três pernas para receber os hóspedes, pois “três pernas
permitem o equilíbrio; inútil, portanto, meter a quarta, o que ainda o
obrigaria a nivelar o chão”, trata sua
medicina de “ritual bizantino”, “noite cerebral ”, da qual “ pirilampejam-lhe apozemas, cerotos, arrobes
e eletuários escapos à sagacidade
cômica de Mark Twain”, e compara-a a um “ Chernoviz não escrito,
monumento de galhofa onde não há
142 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
rir, lúgubre que é o epílogo”. (...)
“Quem aplica as mezinhas é o “curador”, um Euzébio Macário de pé
no chão e cérebro trançado como
moita de taquaruçu. O veículo usual
das drogas é sempre a pinga – meio
honesto de render homenagem à
deusa Cachaça, divindade que entre eles ainda não encontrou heréticos.”20
Despojado de seu fundamento científico e racionalista, o receituário
terapêutico é visto aqui, como integrando aos sistemas mágicos e religiosos predominantes no universo popular de cura.
P
orém, autênticos personagens da História do Brasil,
líderes políticos, militares ou
religiosos de expressão regional, também tiveram seu prestígio construído com o apoio do velho manual. José
Joaquim Ferreira, fundador e patriarca da vila de Campo Grande, atual
capital do Mato Grosso do Sul, era
mezinheiro, cujo preparo técnico
desenvolveu com o apoio de um
Chernoviz. Na verdade, até pouco
antes de sua morte, em 1900, esse
mineiro de São João Del-Rey era
I N S I G H T
também conhecido como exímio
benzedor. Não poucas vezes as mães
levavam seus bebês acometidos de
quebranto para serem por ele benzidos21. O famoso líder messiânico
nordestino, padre Cícero, patriarca
de Juazeiro, fazia uso continuado do
Formulário e Guia Médico, no atendimento dos milhares de analfabetos que o procuravam se queixando
de todo tipo de doenças22. De expressão menor, mas igualmente paradigmático, é o caso de Ramiro Ildefonso de Araújo Castro, personalidade importante na região de Ilhéus,
em fins do século XIX. Tendo apenas o primário, chegou a coronelmédico da Guarda Nacional, com o
direito de exercer o lugar de farmacêutico, praticando também a
medicina que aprendera de cor no
Chernoviz23.
Tal como encontramos na literatura ficcional, a menção aos três curiosos personagens e ao papel que
exerceram como agentes populares
de cura ratifica e amplia as descrições dos usos que se fizeram dos livros de medicina auto-instrutivos. Finalizaremos estes breves comentários sobre o papel da obra de Cher-
INTELIGÊNCIA
noviz na medicina brasileira, com
uma última consideração.
A
lguns estudiosos da medicina
imperial têm apresentado o
saber médico oficial e seus
porta-vozes, em especial a Higiene e
os higienistas, como poderosos instrumentos disciplinares empregados
na afirmação do poder centralizador do Estado em oposição às regras
de sociabilidade vigentes no mundo
rural, onde imperava o patriarca no
comando de grandes famílias, seus
agregados e dependentes24. Entretanto, face ao êxito editorial dessa medicina de cabeceira parece-nos necessário assumir uma posição mais
dialética. Afinal, o sinhozinho que
retorna à fazenda após anos de ausência, com seu anel de esmeralda e
o título de doutor teria mesmo afrontado o saber secular de sua mãe —
como afirma Gilberto Freire 25 —
usurpando-lhe o amplo domínio sobre a arte de curar? Não teria ele
encontrado certa receptividade, com
seu saber parcialmente legitimado e
reinterpretado à luz de uma medicina doméstica contaminada de noções acadêmicas?
OUTUBRO • NOVEMBRO • DEZEMBRO 2003 143
I N S I G H T
S
em dúvida, a recepção do
Chernoviz na intimidade
dos lares urbanos e rurais
revela algumas modalidades, nada
rígidas, de interpretação e utilização
do estimado manual. Diante da escassez da mão-de-obra escrava,
muitas sinhás e sinhôs de terras e de
engenhos demonstraram uma genuína preocupação com o cuidado da
escravaria capacitada para os pesados serviços da lavoura, e creditavam até uma certa nobreza e humanização à prática de suas medicinas.
Deste modo, embora tenham sido
concebidos como instrumento de filantropia leiga, por reformistas europeus impregnados dos ideais civilizatórios, os manuais de medicina
popular terminavam por fortalecer
os interesses bem entendidos dos escravocratas26, ensinavam os senhores a tratar as doenças dos escravos
para aumentar o seu capital e respondiam aos problemas graves de
saúde pública, que atingiam, também, a classe senhorial.
É fácil imaginar, também, que os
livros auto-instrutivos vieram a reforçar a legitimidade dos inúmeros
agentes de cura que concorriam com
144 Comitê Olímpico Brasileiro
INTELIGÊNCIA
o saber médico oficial. Enquanto os
esculápios eram quase sempre inacessíveis, e manipulavam um saber
hermético e estranho aos extratos populares, os curandeiros, por eles denunciados como charlatães, produziram diversas sínteses, aproximando sincreticamente elementos da medicina científica à linguagem compartilhada pelos diferentes grupos
subalternos. A constituição de um
monopólio legítimo sobre o território da cura, teve, como visto aqui,
mais percalços do que supõem os
adeptos da tese de uma medicalização homogênea e ubíqua da sociedade brasileira.
O
Chernoviz, na intimidade
dos lares urbanos e rurais,
ajudou a criar uma cultura
médica especial, à medida que contaminou as referências simbólicas dos
diversos saberes de cura, até então
mantidos pela tradição oral. Foi lido,
interpretado e apropriado por curiosos de todos os tipos e pelos porta-vozes das culturas populares.
email: [email protected]
email: [email protected]
I N S I G H T
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NOTAS
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1. PIMENTA, Tânia Salgado. Ofícios de Cura
no Brasil do começo do século XIX, dissertação
de mestrado, FFCH, Unicamp, 1996.
14. PEIXOTO, Afrânio. Sinhazinha. In: ______.
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Aguilar.1962, ver também ARAUJO, Carlos da
Silva, op. cit. P. 234
2. HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil:
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3. STARR, Paul. La transformación social de la
medicina en los Estados Unidos de América,
Biblioteca de la salud, México, Fondo de Cultura
Econônica, 1991.p 63-71
4. SANTOS FILHO, Lycurgo. História Geral da
Medicina Brasileira, Segundo Volume, São
Paulo, HUCITEC, Edusp, 1991.
5. SANTOS FILHO, op.cit. p. 436-42.
6. ARAUJO, Carlos da Silva. Fatos e personagens
da história da medicina e da farmácia no Brasil,
Rio de Janeiro, Editora Continente, 1979.
p.229-31
7. HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil:
sua história, São Paulo, Edusp, 1985. p.167-8
8. HERSON, Bella. Cristãos-novos e seus
descendentes na medicina brasileira (15001850), São Paulo, Edusp, 1996.p.388-408
9. GUIMARÃES, Maria Regina C. Civilizando
as artes de curar: Chernoviz e os manuais de
medicina popular no Império, dissertação de
mestrado, Pós-graduação em História das
Ciências da Saúde, COC/FIOCRUZ, 2003. p.
66.
10. HERSON, Bella, op. Cit. 405
11. SAYDE, Jane D. Mediar, medicar, remediar.
Terapêutica na medicina contemporânea: o
pensamento médico brasileiro, Rio de Janeiro,
Tese de Doutorado, IMS/Uerj, 1995.
12. FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves, “O
doutor Capa Preta: Chernoviz e a medicina no
Brasil do século XIX”. Estudos, I(1) 95-109,
Maio 2001.
146 Comitê Olímpico Brasileiro
15. ANDRADE, Carlos Drummond de. Doutor
Mágico. In:______ Boitempo I. 6a ed. Rio de
Janeiro: Record. 2001. Apud FUIGUEIREDO,
Betânia, Gonçalves, op. cit, p.1
16 BRAGA, Rubem. Memórias de um ajudante
de farmácia. In:______ As Boas Coisas da Vida.
6a ed. Rio de Janeiro: Record. 2003. p.20.
17. ASSIS, Machado de. Obras completas, Rio
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18. TAUNAY, Visconde de. Inocência, 19ª ed. ,
São Paulo, Ática, 1991cap. 1.
19. MAGALHÃES, Raymundo. “O lobisomem”
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20. LOBATO, Monteiro. Urupês, São Paulo,
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25. Gilberto Freire – Sobrados e Mocambos.
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26. ALENCASTRO, Luís Felipe. Vida Privada e
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