Português - Instituto Martius Staden

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Português - Instituto Martius Staden
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Literatura Brasileira de Expressão Alemã
www.martiusstaden.org.br
PROJETO DE PESQUISA COLETIVA
Coordenação geral: Celeste Ribeiro de Sousa
WOLFGANG AMMON
1869-1938
(Ingrid Ani Assmann)
2015
Joãozinho Felizardo
Aventuras e vivências de um jovem brasileiro
Narrativa para jovens e para todos aqueles que conservam a
juventude
Santa Catarina
Ilustrações de Dr. Macedo (Curitiba) e Hans Nöbauer (Rio de
Janeiro)
1926
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Joãozinho Felizardo*
ÍNDICE
Introdução da tradutora ................................................................... p. 6.
Prefácio ........................................................................................ p. 12.
I. A cabana solitária. Joãozinho como sentinela. A luta com o réptil. O triunfo.
A procura pela criança desaparecida. "Valente", o inteligente cão rastreador. A tropa
de burros. A tenda de ciganos. Haverá luta? Vitória e a volta para casa
........................................................................................................... p. 13.
II. A primeira ida de Joãozinho à escola. Cana-de-açúcar, café, arroz, tabaco
e mandioca. Engenho de cana-de-açúcar. Moinho de mandioca. O monjolo. A venda
da mata. A máquina fantástica. Joãozinho é motivo de riso. A escola da mata
........................................................................................................... p. 24.
III. Mutirão para a derrubada da mata. Coleta de cipó. Um falso amigo.
Joãozinho sofre um acidente na floresta virgem. A justiça alcança o malfeitor. O
fandango. O Cruzeiro do Sul. Dois contratempos. Os mestres cantores com a viola.
Brigas e danças. Joãozinho como salvador. Anita ......................................... p. 31.
IV. Doença grave. Joãozinho corre risco de vida. O curandeiro. O pacto de
Maria com Deus. O papagaio. A convalescença de Joãozinho. A volta à escola.
Macacos e outras coisas na floresta virgem. Anita ajuda Joãozinho nas tarefas
escolares. A queimada da roça. Joãozinho no fogo dá provas de "menino felizardo".
"Estórias de Pedro Malazarte, Carlos O Grande e outros". O destocamento, preparo e
plantio da roça ........................................................................................ p. 41.
V. A preparação para a briga de galos. O sabiá e o colibri. As selvagens
abelhas melíferas. Os periquitos e os papagaios, o tatu, o lagarto e o tamanduá, o
inambu e a saracura, o bem-te-vi, o pica-pau, a araponga. A briga do galo com o
Ammon, Wolfgang. Hansel Glückspilz. Abenteuer und Erlebnisse eines jungen
Brasilianers (Joãozinho Felizardo. Aventuras e vivências de um jovem brasileiro).
Curitiba, Impressora Paranaense Max Schrappe, 1926. Trad. de Ingrid Ani Assmann.
*
3
peru. A casa do padrinho Cidral. As frutas brasileiras. Joãozinho empenha sua
liberdade. A briga de galos ....................................................................... p. 50.
VI. Joãozinho cumpre sua palavra. A despedida. A viagem para a cidade
portuária. A grandiosidade e a amplidão do Brasil. Os rebanhos de gado nos campos,
as florescentes colônias alemãs, as matas de erva-mate, as serrarias e as
plantações. O infinito mar. As gaivotas e as garças. O porto. Um animal horrível. As
locomotivas e os automóveis. O transporte de mercadorias no porto. A baía. Os
navios ................................................................................................. p. 61.
VII. A primeira viagem de trem de Joãozinho. O milagre do telégrafo. A
inexperiência de Joãozinho causa alegria aos companheiros de viagem. A Serra Geral
do Mar. A viagem para o inferno. Os túneis. A chegada em Curitiba. Os bondes. A
vida na cidade e pessoas estranhas. A hospedaria. O exército brasileiro aproxima-se.
A bandeira nacional. A catedral. A venda da cidade ...................................... p. 70.
VIII. A prova. A decepção de Joãozinho ao saber que não será doutor. A
magia: através da parede, ouve-se o chamado por alguém que entenda a língua
alemã. O telefone. A luta interior de Joãozinho: ele quer voltar para casa. O
sentimento do dever. O moinho de erva-mate. A viagem em carro de transporte
através do campo .................................................................................... p. 79.
IX. A luta. Os pinheiros e a mata de erva-mate. A venda do campo. Um
reencontro indesejável. Um inimigo oculto. Águas furtadas. Joãozinho é introduzido
na nova profissão. O marujo baiano sedento de sangue. Joãozinho quer deixar a
redondeza sinistra. Sua amarga saudade do lar ........................................... p. 87.
X. Joãozinho precisa trabalhar arduamente. Os cavalos de montaria. Através
do conhecimento da língua alemã ele consegue a colocação de empregado. O
armazém de erva-mate. A luta de Joãozinho com seu inimigo. A derrota sangrenta. A
capoeira brasileira supera a luta jiu-jitso japonesa ....................................... p. 95.
XI. De como Joãozinho imagina sua volta para casa. O inventário e o balanço
na venda. Joãozinho resiste a uma tentação. Um domingo na venda do campo. As
corridas de cavalos são combinadas. O cachola e o bacará. Dois recentes e
desagradáveis conhecidos preocupam Joãozinho: o segundo ringue ............. p. 103.
XII. A preparação para a volta ao lar. Os presentes e as economias. A
cavalgada pela floresta e montanhas. O assalto dos ladrões. Joãozinho em risco de
vida. Uma boa lembrança na hora certa. O alojamento noturno. O segundo assalto
........................................................................................................... p. 112.
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XIII. A capela da mata. Joãozinho agradece a Deus pela sua salvação
milagrosa. Avista-se o lar. O que Anita vai dizer? A alegria do professor da mata, o
júbilo da mãe e dos irmãos. A concretização de um profundo desejo da mãe.
Joãozinho vive um momento inesquecível. Jacó, o papagaio, e "Valente". O
cumprimento dos padrinhos. A alegria na terra natal .................................. p. 119.
XIV. O retorno à loja de Casa Branca. A preparação dos cavalos de corrida. A
pista. O erro de Joãozinho: ele deve pagar para outros. Ele cai em desgraça junto ao
patrão. A serraria na mata de pinheiros. O mate-chimarrão. A cuia e a bomba
........................................................................................................... p. 125.
XV. A sinistra massa intransponível da mata à noite. O inverno brasileiro nas
montanhas. Joãozinho descobre um complô e recua furtivamente. As matas de ervamate do Paraná e as matas de borracha do Pará. Como é produzido o mate bruto?
Um mate-carijo. Barbaquá, congoinha e caúna. O churrasco de paca ............ p. 132.
XVI. A perplexidade de Joãozinho numa perfídia. Os perigos. As opiniões
contrárias. A preparação para a carreira. O treinador de cavalos. Uma trapaça. O
feiticeiro. As magias e os golpes perigosos. A festa da igreja no campo. A bebida
fatídica ............................................................................................... p. 139.
XVII. A carreira no campo. Os cavaleiros adversários. A suspeita de Rodrigo.
Um acidente inesperado causa grande preocupação. Joãozinho como indivíduo
necessário. A força de vontade dá a vitória. A batalha na pista. Os mortos e feridos.
O baiano desaparece .............................................................................. p. 149.
XVIII. O ferido na maca. Joãozinho sente-se como criminoso e quer confessar
tudo. A confissão de um moribundo. O inocente é alvo de suspeita. O relógio
reencontrado. O agradecimento de Rodrigo. Um enterro ............................. p. 156.
XIX. A ascensão de Joãozinho. Ele toma conhecimento dos grandes homens
do povo português, brasileiro e alemão. Ele treina futebol. O banco de jardim sob o
cipreste. O tempo de aprendiz chega ao fim. A cavalgada para Curitiba. O Hino
Nacional. Uma bonita menina curitibana. As perspectivas de viagem ............ p. 163.
XX. Em casa. A partida para a caça. O rancho na floresta virgem. Os rastros
de anta, lontra e cateto. As histórias de caçadas com onça. O fatigante avançar na
floresta montanhosa. Os enormes troncos de imbúias, canelas, peróbas, sassafrás,
cedros, tarumãs, araçás entre outros. A caçada de cateto. O fiasco de Joãozinho
........................................................................................................... p. 171.
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XXI. O jacu. O rastro de uma onça. O sacrifício de Joãozinho. O graxaim.
Joãozinho vira motivo de chacota. A presa abatida. A febre. Margarida e Vitório
.......................................................................................................... p. 179.
XXII. A glória de Joãozinho na caçada. A partida para a região
duvidosa. A chegada na fazenda. O administrador Fabrício. Joãozinho é visto como
espião. Histórias sinistras. A angústia. A mangueira e os urubus. O cavalo
empacador. Os perigosos caminhos de cavalgada ...................................... p. 187.
XXIII. A fazenda Lavrinha. A criação de gado. A invernada. Os cochos de sal
grosso para o gado. O berne. O laço em atividade. Os bezerros marcados a ferro
quente. Os peões. Os agregados. As artimanhas do administrador. As estações de
chuva e a contabilidade .......................................................................... p. 194.
XXIV. A fazenda vizinha. A suspeita de Joãozinho em relação a Fabrício se
confirma. Ele treina arremesso de laço. O fantasma noturno. A armadilha do
fantasma. O fantasma é surrado ............................................................. p. 200.
XXV. As tentativas frustradas para uma explicação. Joãozinho tenta se furtar
da situação. Ele é alcançado. Os índios. Os bois mortos. As trilhas de bugres. O
assalto dos selvagens. O buraco do tatu. O acidente de Fabrício. Joãozinho, na
tentativa de fuga, encontra o acampamento dos bugres. Nestor .................. p. 205.
XXVI. A mão morena. O empregado Lammin revela a treta do administrador.
A fuga selvagem. A salvação frustrada. O arremesso do laço. Uma luta de box. A luta
de vida e morte. A salvação está próxima. Mãos ao alto. O principal culpado
consegue escapar. Joãozinho cai desfalecido ao chão. Emília ...................... p. 212.
XXVII. A caçada aos bugres. O juiz de paz Bueno. O administrador é
encontrado. A queda do cavalo branco. Um final de misericórdia. Um grande dia na
vida de Joãozinho. A tristeza do administrador. A viagem para o sul: colônias
florescentes dos imigrantes alemães e os campos no Rio Grande do Sul. A criação de
gado. A cidade de Curitiba. A filha do patrão. As hesitações da mãe ............. p. 218.
XXVIII. A tristeza de Anita. Aparência e Essência. Uma proposta de negócios.
Joãozinho renuncia ao seu emprego. A mudança para Casa Branca e Palmital. A
surpresa
do
professor.
O
pedido
..................................... p. 224.
de
casamento.
A
bênção
da
mãe.
Final
6
INTRODUÇÃO DA TRADUTORA
O romance Hansel Glückspilz (Joãozinho Felizardo) é de
1926 e é considerado como obra pioneira no âmbito da literatura
juvenil para leitores de língua alemã no Brasil.
A narrativa é composta de vinte e oito capítulos que se
apresentam como unidades mais ou menos independentes. Cada
capítulo expõe uma situação inicial, de equilíbrio ou desequilíbrio, e o
desenvolvimento de uma ação transcorrida e concluída no próprio
capítulo.
O elemento de ligação entre todos os capítulos é o
personagem central, Joãozinho, que o narrador molda como exemplo
para seus leitores.
A narrativa começa quando Joãozinho tem apenas 7 anos.
No
decorrer
da
mesma
são
relatadas
todas
as
aventuras
e
experiências, que o protagonista vivencia até aproximadamente vinte
e cinco anos de idade.
O cenário do romance é bastante amplo, pois Joãozinho é
conduzido através de paisagens diferentes que se estendem desde a
planície tropical até o planalto de clima mais ameno; da mata virgem
sussurrante ao campo livre e verde; do bramido do mar à mata da
erva-mate nativa; da colheita do chá à criação de gado na fazenda
solitária.
Essas idas e vindas são oportunidades de que o narrador
se vale para descrever, minuciosamente, a paisagem do sul do Brasil
e, ao mesmo tempo, mostrar o crescimento do personagem, que
aprende a conhecer diversas classes de pessoas e vivencia profissões
diferentes.
Assim, envolvida por uma paisagem real e suave, a
narrativa aproxima da terra natal os filhos de imigrantes alemães
através de um romance de leitura cativante.
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Sabemos que o tradutor exerce grande influência na
mensagem geral da obra que traduz, pois cabe a ele optar por um
certo nível de linguagem, adaptar o texto e manter uma posição
definida ante as personagens.
Por outro lado, o grau de respeito para com o original
talvez seja a mais difícil de todas as decisões a serem tomadas por um
tradutor.
No texto em questão, por se tratar de obra situada fora da
nossa época, temos que optar, inicialmente, por transformar e/ou
modernizar a sua atmosfera lingüística, trazendo-a para nós. Assim:
--o pronome de tratamento usado na narrativa no original,
Sie (o senhor, a senhora) revela um tratamento formal, de respeito. A
tradução de Sie por senhor/a na escritura do romance seria uma fato
natural na década de 20.
Atualmente, década de 90, resolvemos continuar a traduzir
o Sie por senhor/a na relação do menino com os outros personagens
mais velhos, em discurso direto. Já no discurso indireto, onde temos o
tratamento também formal com Herr, Herr Dr. optamos pela tradução
com o pronome você.
"...Der Herr Ribeiro..." ( Ribeiro...)
"...Herr Dr. Bark war früher Advokat..." (
Bark era
advogado...)
--Optamos em manter o padrão monetário da época (milréis),já que seria difícil encontrar um valor correspondente nos dias de
hoje.
"...und erhält im ersten Jahr 30 Mil-réis Monatsgehalt..." (
...e receberá no primeiro ano 30 mil-réis por mes...)
Os nomes próprios, que se encontram na narrativa em
alemão, foram traduzidos por seus correspondentes em português. Os
nomes dos irmãos,
Hansel und Gretel, principais protagonistas do
romance, foram adaptados para o português como Joãozinho e Maria.
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É importante observar que estes nomes aparecem traduzidos na obra
original como Joãozinho (Hansel), e Guida (Gretel), em várias
passagens da narrativa.
No original, a menção de Hansel und Gretel remete-nos
aos irmãos do conto de fada dos irmãos Grimm. Porém, na tradução
dada pelo narrador no romance este elo se perde. Joãozinho tem outra
irmã com o nome de Maria. Parece-nos que o autor desdobrou a
personagem feminina dos contos de fada em Gretel e Marie. Para que
a relação com a fábula - os dois irmãos se perdem na floresta e vão
parar na casa da bruxa - não se perdesse, pois o primeiro capítulo do
romance traça um paralelo com esta - a irmã desaparece na floresta e
Joãozinho sai à sua procura, encontrando-a com um bando de ciganos
- mantivemos a adaptação já existente de Joãozinho e Maria. No
entanto, Marie, do original, foi traduzido por Margarida.
No romance Hansel Glückspilz, cuja ação se desenrola
numa comunidade brasileira, Ammon coloca, entre parênteses, ao lado
da palavra portuguesa sua palavra correspondente em alemão. Ao
iniciarmos a tradução da obra, pensamos em manter, para maior
fidelidade à forma, ou melhor, ao estilo ammoniano, as palavras,
frases ou expressões que aparecem entre parênteses, mas invertidas
na tradução, ou seja, nos parênteses foram colocadas as traduções
portuguesas. Citaremos alguns exemplos para melhor esclarecer a
proposição:
"Invernada"(überwinterungsweide).
por"überwinterungsweide" (Invernada)
"Urubús" (Aasgeier)
por
"Aasgeier" (Urubús)
Todavia,
optamos
pela
montagem
de
uma
"edição
bilíngüe", onde este recurso tornou-se desnecessário à medida que o
leitor tem ambos os textos em mãos.
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No entanto, há palavras referentes à fauna e flora que, ou
por não existirem correspondentes em alemão, ou por serem pouco
usadas, são mencionadas apenas no português: Sabiá, Colibri,
Periquito, Jacú, Bicho-berne, Pinheiro, Inambú, Saracura, Bem-te-vi e
outras.
Aparecem também, não traduzidos, vocábulos que refletem
os costumes da região como Mate, Chimarrão, Cuia, Bombilha,
Churrasco, Rancho, etc.
O vocabulário português incorporado vem reforçar a
imagem do novo mundo, de cuja vida o romance em questão é um
retrato bastante fiel.
Por outro lado, encontramos grande dificuldade em traduzir
palavras como:
"Der Obercaixeiro"( O caixa chefe) cap.10 .
"Caixeiro" (caixa)
"Oberlehrling" ( Aprendiz chefe) cap.9 .
"Lehrling" (aprendiz)
Estes
substantivos
indicam
uma
graduação
na
vida
profissional dos padrões da cultura alemã e seus correspondentes
encontrados em português são:
"Der Obercaixeiro" - balconista chefe
"Caixeiro" - balconista
"Oberlehrling" - mestre de aprendiz
"Lehrling" - aprendiz
No decorrer da narrativa deparamo-nos também com a
citação de inúmeros provérbios. Como exemplo citamos, no capítulo
XI, um provérbio e sua forma correspondente, já citado por Thomas a
Kempis (1379-1471) em sua “Imitação de Cristo”.
"Der Mensch denkt und Gott lenkt! ( o homem pensa e
Deus dirige). "O homem põe e Deus dispõe!"
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São freqüentes as criações intralinguais, baseadas na
língua portuguesa e na alemã, e que aparecem no texto da seguinte
maneira, por exemplo:
venda
-
picada
Venda
-
complô
Pikade
-
Komplott
Há palavras que não foram traduzidas pelo narrador,
realçando a característica regional do vocábulo. São inseridas no
contexto
lingüístico
alemão
através
da
anteposição
do
artigo.
Vejamos: der Lasso, der Monjolo, der Fandango, der Curandeiro, die
Roça, der Mutirão, der Caixeiro, der Agregado, der Feiticeiro, die Fita,
die Bondes, der Vendist.
Na linguagem do romance aparece a composição de
palavras,
juntando
Empacador-Pferd;
um
radical
Lassowerfen;
português
Matewald;
a
um
alemão:
Das
Mateschuppen;
das
Tatuloch; der Obercaixeiro; die Maultiertropa; Mandiocamühle; die
Waldvenda; die Kampvenda; die Stadtvenda; Cipósammeln.
Na tradução para o português, o destaque dado a estes
sintagmas usados pelo narrador, no original, acaba se perdendo
parcialmente.
Recorrendo a esse processo de incorporação, a narrativa
enfocada adquire um colorido local que a torna, sob este aspecto,
bastante expressiva quanto à criação de uma determinada atmosfera
regional, a do Sul do Brasil.
Outro
problema por
nós defrontado
no
decorrer do
processo da tradução é o que se refere à precisão minuciosa com que
o narrador define as cores. Exemplo:
"...in
escura...)
dunkelgrünem
Laub..."
(
na
folhagem
verde
11
"...viele goldgelbe Orangen..."( muitas laranjas amareloouro...)
"...schwärzlich
grüne
Kaffeesträucher..."(
os
verde-
enegrecidos pés de café...)
Antes de concluirmos estas reflexões seria importante
ressaltar que este romance nos é hoje um "guia", talvez idealizado,
enquanto revelação dos hábitos daquela época. Ou seja, o que no
início era novidade para os olhos dos "alemãezinhos", hoje é novidade
para nossos olhos de leitores do fim do século. Enfim uma nova
descoberta!
Finalmente podemos dizer que apesar de pecarmos, em
parte, contra a forma literária do texto original, tentamos exprimir a
personalidade do artista criador enquanto vivencia sua obra e afirma
sua visão do mundo para si mesmo, confessando-a ao leitor.
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Prefácio
Com a publicação do presente livro esta editora abre um
caminho no campo da literatura brasileira.
Os
jornais
alemães
no
Brasil
repetidamente
vêm
lamentando que até agora não temos um número maior de obras de
literatura juvenil, que possam aproximar dos filhos brasileiros de
imigrantes o ambiente, as regiões geográficas, a terra natal, através
de uma narrativa ilustrada. Não faltam boas leituras juvenis alemãs,
que nos vêm da velha terra natal para nós, porém falta o livro da terra
para crianças mais maduras, que lhes apresente sua terra natal com
as belezas e singularidades do sul brasileiro numa excitante narrativa.
O conhecido autor Wolfgang Ammon incumbiu-se, a pedido
da editora, de escrever esse livro para os brasileiros do sul do país e
para a juventude alemã.
No índice pode-se captar a riqueza do assunto: a planície
tropical, as frias regiões montanhosas; a murmurante floresta virgem,
o verde campo livre, a vida das pessoas no interior, na cidade, nas
regiões costeiras, na fazenda solitária, na plantação de erva-mate, na
caçada nas selvas - tudo passa por nós na excitante e excêntrica
descrição da vida de um jovem e retém nossa atenção até o final.
As habilidades que "Joãozinho Felizardo" herdou da mistura
dos sangues germânico e luso-brasileiro fazem dele um homem
íntegro, ao qual não faltam sucesso nem simpatia.
As ilustrações foram feitas por artistas que se inspiraram
na natureza. Reproduzem o típico e impressionante mundo do sul do
Brasil.
O livro pode ser adquirido por livreiros na Europa através
da Firma F. Volckmar, Leipzig, e na América do Sul através da
presente editora.
Max Schrappe
"Impressora Paranaense"
Curitiba, 28 de agosto de 1926
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I
A cabana solitária. Joãozinho como sentinela. A luta com o
réptil. O triunfo. A procura pela criança desaparecida.
"Valente", o inteligente cão rastreador. A tropa de burros. A
tenda de ciganos. Haverá luta? Vitória e a volta para casa.
A cabana da pobre viúva Soares Pilz ficava na floresta. Desde a
morte de seu marido trabalhava no pequeno pedaço de terra com seus
três filhos mais velhos, Francisco, Margarida e Pedro. Os dois menores,
Joãozinho e Maria, ainda brincavam: Eram muito fracos para ajudar no
trabalho da terra.
A cabana ficava isolada na floresta. O vizinho mais
próximo, o velho Cidral, morava a uma meia hora de caminhada dali.
A casa da viúva era feita de tábuas pardas e vigas de canela e coberta
com folhas secas de palmito. Tanto na parte da frente como nos
fundos havia duas janelas e uma porta.
No quintal, ao lado do paiol e do chiqueiro de porcos, havia
lindas laranjeiras em cuja folhagen verde-escura luziam laranjas
maduras. Logo atrás rompiam abundantes pés de café verde-escuro
com grãos vermelhos. As altas bananeiras, com enormes folhas verdeamareladas, formavam um pequeno bosque ao qual se anexava uma
grande moita de bambu. Tanto em frente da casa como ao lado, além
das laranjeiras havia também mamoeiros com suas frutas amarelas
em forma de pera, bem como inúmeras goiabeiras.
Atrás do pomar estendia-se a roça com suas plantações
até a mata virgem.
Numa tarde em que a viúva precisava ir trabalhar na roça
com os três filhos mais velhos, chamou o pequeno João, menino
pequeno e encorpado de sete anos. Ele brincava ao lado da casa com a
pequena Maria que só tinha dois anos.
A mãe colocou sua enxada nas costas, Francisco segurava
sua foice enquanto Margarida e Pedro se apoiavam nos cabos de suas
enxadas. - “Joãozinho”, dizia a mãe para seu pequeno filho, “cuide
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bem de sua
irmãzinha Maria, e fique sempre de olho na casa, para
que não venha nenhum ladrão e nos roube. Você pode ser pequeno
para trabalhar, mas já pode cuidar da casa e da Maria. Assim, conto
com sua ajuda.”
Joãozinho sentia-se muito importante como senhor da casa
e seus olhos azuis brilhavam de orgulho.
Mas assim que as vozes da mãe e dos irmãos mais velhos
se foram perdendo ao longe, e seus vultos desaparecendo na
imensidão da mata, tomou consciência da solidão em que ele e sua
pequena irmã se encontravam.
Na verdade, as galinhas cacarejavam e ciscavam ao seu
redor, como antes. O galo cantava tão alto para a mata, que o eco
voltava muitas vezes. Os patos brincavam na lama perto da casa, os
porcos grunhiam na pocilga. E Valente, o cachorro, arrastava lá atrás
sua corrente em redor da casinha. Porém não se ouvia nenhuma voz
humana, além da tagarelice da pequena Maria. E ele estava totalmente
sozinho com ela.
Ele pegou sua pequena e suave mãozinha e a conduziu até
o balanço de cipó, que estava fixo entre os pés de laranja.
A delicada criança deixava-se balançar alegremente. Então
chuparam algumas laranjas. “Baança”, pedia Maria mal as tinham
chupado, e Joãozinho a balançava novamente, e ela gritava de tanta
alegria.
Contudo, a consciência da responsabilidade pela segurança
da criança e da casa afligiam a alma de Joãozinho. A solidão começava
a aterrorizá-lo. A mata não estava murmurando de uma maneira
sinistra? Que barulho era aquele lá da mata?... Eram índios que se
arrastavam?... ou uma onça?...
Joãozinho não se divertia como sempre, quando a mãe e
seus irmãos mais velhos estavam em casa. Pensava que logo
teria
que dar uma volta ao redor da casa e pelo quintal, pois a mãe tinha-o
deixado como guarda. Talvez uma janela ou uma porta tivesse ficado
aberta.
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Ele queria tirar a irmãzinha de dois anos do balanço, para
levá-la consigo na caminhada. Mas Maria se recusou chorando, não
queria sair do balanço.
Assim Joãozinho foi sozinho. Primeiramente, ao redor da
casa. Portas e janelas estavam bem fechadas, como ele pôde
constatar. Agora era a vez do quintal e do paiol. Deu uma olhada na
pocilga. Os animais grunhiam esperando comida. Então, foi até
Valente, que estava defronte de sua casinha e balançava alegremente
o rabo com sua aproximação. Brincou um pouco com o cachorro e
então dirigiu-se até o paiol. Ali o papagaio o recebeu brincando no
poleiro e gritando: “Jacó quer pão, ...pão...” Joãozinho o intimidou
com o punho e checou o interior do paiol. Tudo em ordem.
Então o homenzinho sentiu-se importante. Agora queria
voltar para brincar com Maria mas, de repente, deu um grito.
Na soleira da porta dos fundos da casa, estava
enrolada uma enorme e venenosa jararaca. Joãozinho deu um pulo
para trás. Ele nunca tinha matado uma cobra mas observara, com
frequëncia, como a mãe ou os irmãos mais velhos matavam um réptil
tão perigoso com um pedaço de pau.
A cobra não podia escapar! Ela poderia se esconder e um
dia morder a mãe ou os irmãos. Então eles poderiam morrer! “Uma
cobra venenosa a gente não deve deixar escapar...”, dizia a mãe.
“Apenas as cobras verdes vocês não devem matar, pois elas
exterminam camundongos e insetos.”
Joãozinho arrastou-se de volta para o paiol e procurou por
uma boa vara flexível. Seu coraçãozinho batia com muita força.
Lentamente, dirigiu-se de novo para a porta dos fundos da casa.
A cobra havia percebido o perigo. Desenrolou seu corpo,
brilhante com manchas pretas e amarelas, para bater em retirada.
Com a aproximação do menino levantou a cabeça triangular de víbora,
e sibilando com a venenosa língua pontuda.
Por um momento, o corajoso menino vacilou. A cobra
parecia extremamente perigosa. Porém, quando ele percebeu que ela
se preparava para se esconder debaixo da casa de madeira, reuniu
toda sua coragem e levantou o pedaço de pau bem para o alto com as
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duas mãos. Um golpe preciso...Então Joãozinho deu um salto para
trás. A cobra estava enrolada. Ela queria sair se arrastando. Então não
houve estremecimento... Em frente!
Ele
aproximou-se
rapidamente
da
cobra
furiosa
que
sibilava, golpeou-a novamente com toda a força de seu corpo e saltou
de lado outra vez.
Pelos movimentos exaustos do réptil, Joãozinho viu que
havia ferido a espinha dorsal do animal, e que ela não conseguiria
mais atacar.
Continuou a golpear a jararaca, até que ela apenas
estrebuchasse. Para maior segurança foi buscar uma enxada com a
qual bateu na cabeça da serpente até que estivesse morta.
O menino deu um grito triunfal. Tremia de preocupação.
Seu rosto queimava. Os cabelos loiros caiam desordenados na testa
suada. Contudo, seu pequeno coração batia de alegria por ter ganho a
batalha.
O que a mãe diria!... E os irmãos, bem, eles ficariam
olhando!... Ha, ha, ha! Ele ria alto de prazer.
- Maria, Maria! - ele chamava excitado pela glória, - venha
até aqui, uma cobra! Eu a matei, eu!
O cachorro arrastava a corrente atrás dele e uivava.
- Valente, fique quieto! - gritava Joãozinho e corria para
pegar Maria. - Louro, louro! - grasnava o papagaio e batia com as asas
verdes acinzentadas.
Assim que Joãozinho se aproximou do balanço de cipó, não
encontrou a menininha.
- Maria!... Mariiia!... Maria! - gritava o menino, e olhando
ansiosamente ao redor.
Apenas o murmúrio da mata, o manar da fonte, o grasnar
de um tucano eram audíveis.
- Maria, onde você está? - gritava Joãozinho chorando.
Então começou a vasculhar, com muito medo, a casa, o
paiol e o quintal, à procura da irmã. Percorreu todas as moitas ao
redor.
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Não encontrou nada que pudesse conduzi-lo a uma pista
de Maria. Apenas a bonequinha de pano, que a mãe lhe fizera, estava
ao lado do balanço vazio.
Por mais de uma hora ele procurou angustiadamente pela
pequenina, que lhe tinha sido confiada, sem encontrá-la.
E Valente, o inteligente cão, arrastava disparadamente sua
corrente e uivava, como se pudesse medir a imensa dor do pequenino,
que se atirava chorando ao chão.
- Onde será que a irmãzinha tinha ido parar? - Esta
pergunta desesperada machucava, sempre com mais intensidade, a
alma do menino.
Então ele teve uma idéia. Há meio ano, quando o irmão
Pedro se perdera na floresta, Francisco, o irmão mais velho, usou o
cachorro,amarrado com uma corda,para judá-lo na busca e, assim
encontrou Pedro.
Joãozinho então, deu um salto e dirigiu-se para a casinha
do cachorro. Valente, cão de porte médio, era um inteligente cão de
caça. Ele disparou selvagemente, passando pelo menino como se não
pudesse esperar mais para ser solto. O menino amarrou-lhe uma
corda na coleira. A outra ponta da corda ele amarrou em sua cintura.
Então, soltou a corrente da coleira do animal que gemia de alegria e
que, com um salto, derrubou o menino no chão. Imediatamente, o
inteligente animal parou e esperou até que Joãozinho tivesse se
levantado.
O menino deu a boneca de Maria que estava no balanço,
para o cachorro cheirar. O cachorro deu algumas voltas e começou a
correr com o focinho no chão seguindo o atalho que levava para a
estrada. Joãozinho teve que se esforçar para acompanhá-lo. O
cachorro arrastava-se para a frente. Muitas vezes o rapaz tropeçava,
porém o cãozinho inteligente parava e olhava para todos os lados,
para não derrubar o menino.
Os dois chegaram à estrada que, com tempo bom, também
era trafegada por carretas que iam para a cidade portuária. Ao redor
havia
palmeiras,
grandes
samambaias
com
espinhosos
marrons, amoreiras, abacaxis selvagens, capim alto
e
troncos
bambus
18
delimitando a espessa floresta verde que cercava a estrada. Uma
imensa figueira entrelaçada de trepadeiras estendia-se na bifurcação
do caminho.
Seria possível que Maria, uma criança de dois anos,
conseguisse andar tanto sozinha? Joãozinho começou a duvidar do
poder de busca do cachorro. No entanto, desde que deixara a criança
no balanço, já passara uma hora e meia provavelmente. Porém aquela
menina pequena não poderia ter caminhado tão longe sozinha. “Será
que alguém não roubou nossa Maria?” pensava enquanto corria e
lágrimas desciam pelo seu rosto vermelho. “Pessoas más ou... até
índios?” Um pavor foi tomando conta dele: “Oh! Deus, coitada da mãe!
Ah, se ficar sabendo que sua Maria desapareceu, ela morrerá de
preocupação e de tanto chorar!” E, enquanto isso, continuava correndo
atrás do cão, já quase sem fôlego.
Na trilha da mata, atrás do menino, podiam-se ouvir os
sinos de uma tropa de burros. Os cavaleiros que acompanhavam a
tropa avistaram o menino que corria e o cachorro que parecia arrastálo.
Um dos cavaleiros incitou seu cavalo, alcançando o menino
e fez com que o cachorro, que latia furiosamente, parasse.
Respondendo à pergunta do cavaleiro, Joãozinho contoulhe chorando o que lhe acontecera. Então o tropeiro colocou-o junto na
sela e deixou que o cão continuasse na busca.
Valente disparou na estrada, com o nariz colado ao chão. O
cavaleiro e Joãozinho seguiam a galope.
Não demorou muito para chegarem a uma pequena
clareira na mata, coberta por uma verde grama de campo.
Ali avistaram um acampamento de ciganos. Três barracas
pontiagudas, amareladas pelo tempo, destacavam-se do verde escuro
da densa mata.
Ao lado estavam três carros pintados de azul, junto dos
quais seis cavalos negros pastavam. Entre as barracas e os carros
crepitava o fogo vermelho do acampamento, cuja fumaça subia
azulada ao céu do entardecer. Sobre o fogo pendiam panelas pretas.
19
Os ciganos, com lenços vermelhos amarrados ao redor da
cabeça
ou
do
pescoço,
estavam
sentados,
conversando
e
se
divertindo, ao redor do fogo. Eram três homens, quatro mulheres e
algumas crianças.
Quando o cavaleiro e o menino conduzidos pelo cão, os
encontraram eles saltaram espantados.
O tropeiro soltou rapidamente a corda de Valente e este
disparou com um grito de alegria em direção de uma barraca, na qual
entrou rapidamente.
Joãozinho havia descido do cavalo e seguiu seu fiel cão,
enquanto
o
tropeiro
interrogava os ciganos acerca
da criança
desaparecida. Eles imediatamente mostraram caras ameaçadoras e
gritavam que não eram comedores de crianças, e que não sabiam
nada de uma menina roubada. O tropeiro ficou inseguro. “Quem sabe
esse menino mentiu para mim”, pensou furioso, sem saber o que
fazer.
Enquanto isso Joãozinho entrou na barraca com o cachorro
e, com um grito de alegria, foi ao encontro de sua irmãzinha, que
dormia sobre uma pele de animal, com olhos vermelhos de chorar.
Valente, o esperto cão de busca lambia suas suaves mãozinhas.
Nisto Maria acordou e já ia chorar quando viu o fiel Valente
e seu irmãozinho. Imediatamente sua expressão se iluminou.
Enquanto
isso,
o
tropeiro
que
tinha
acompanhado
Joãozinho ao acampamento encontrava-se numa difícil situação com
os ciganos. Eles estavam cada vez mais furiosos e procuravam, com
ameaças, fazer com que o tropeiro deixasse o acampamento. Este
franziu a testa, procurando com os olhos pelo menino que trouxera, e
pegou sua pistola. Os ciganos encolerizados se aproximavam dele e o
empurravam para que descesse do cavalo e fosse embora, senão eles
lhe
mostrariam
quem
era
o
senhor
do
acampamento.
Simultaneamente agitavam facas e varas diante do rosto do tropeiro,
para intimidá-lo.
Nesse momento ele ouviu o sino da tropa que se
aproximava
e
encheu-se
novamente
de
coragem.
Seus
três
companheiros viram que os ciganos o ameaçavam com palavras e
20
armas para obrigá-lo a bater em retirada. Aproximaram-se com seus
cavalos, puxaram as pistolas e avançaram sobre os ciganos.
- Afastem-se imediatamente, seus cães danados, senão
vamos abrir fogo - gritou o condutor da tropa.
Diante disso os ciganos estremeceram e recuaram para
seus carros, ainda negando o roubo da criança.
Nisso Joãozinho saiu da barraca com a irmãzinha, seguido
de Valente, e aproximou-se de seu protetor.
- Agora vocês, seus canalhas, ainda vão negar?! - gritou
este com satisfação. - Venham, crianças, eles não farão mais nada
contra vocês!
Os ciganos entreolharam-se, consternados e embaraçados,
murmurando provocações em sua língua.
Joãozinho precisou contar, novamente, onde morava com
sua mãe e irmãos, como eles se chamavam e como tudo acontecera
desde que Maria desaparecera. A menina repetia solicitamente as
palavras finais do irmão e também queria contar: - Mulhé bava,
...garrou Maria, levou mato.
- Vocês ouviram, bando de canalhas? - gritou o condutor
da tropa. -Vou denunciá-los à polícia no próximo lugarejo!
Então uma cigana aproximou-se chorando e relatou que
encontrara a criança chorando na mata onde, de tanto cansaço havia
caído,
e
ela,
por
pena,
a
havia
levantado
e
levado
para
o
acampamento. Por isso ela não poderia ser castigada pela polícia.
- A nós vocês não enganam! - gritavam os tropeiros. Agora vocês querem se justificar, sua corja! Por que vocês negaram
que haviam roubado uma criança, hem? Se a gente não tivesse vindo,
vocês nunca mais devolveriam a menina. A pobre mãe nunca mais
veria sua criança. Nós conhecemos vocês! Tomem cuidado, nós vamos
denunciá-los!
O tropeiro que levara Joãozinho até lá, colocou este e
Maria em seu cavalo, e voltou pelo mesmo caminho, em direção à casa
da viúva. O fiel Valente, latindo alegremente, ia à frente. Porém nunca
se afastava muito, como se quisesse ficar de olho nas crianças.
Entretanto, a tropa continuou seu caminho.
21
Quando o cavaleiro se aproximou da casa da viúva com as
crianças, ouviu choros e lamentações.
- Oh, Deus, onde estão minhas pobres criancinhas?
Joãozinho, Maria onde vocês estão?
Francisco e Pedro as procuravam como loucos nas moitas
ao redor.
A mãe e Margarida, a filha mais velha, já haviam
procurado pelas crianças na casa, no paiol e quintal. Encontraram a
cobra morta e não entendiam porque a casinha do cachorro estava
vazia. Apenas o papagaio respondera ao chamado deles: - Louro ...
fora, louro, Jacó, pão!
Francisco e Pedro procuravam pelas orlas da floresta
Chorando muito, a mãe se apoiava na porta e abraçava
Margarida, que também se lamentava: - Meu Deus, Meu Deus, onde
será que está minha doce e pequena Maria?
E então, irritou-se: - Joãozinho, este menino malvado!
Certamente foi com o cachorro perambular pela mata e não cuidou
nem da criança nem da casa. Antes eu não tivesse confiado tanto
nesse garoto. É claro que aconteceu alguma coisa com minha pequena
Maria... ou talvez já esteja... morta -, e choravam com amargura.
Nesse momento os irmãos viram o cavaleiro que se
aproximava com as crianças. - Mãe, mãe, alguém está trazendo as
crianças! - Gritavam com alegria. E Valente, o fiel cão, também saltava
em suas direções latindo alegremente.
A mulher virou-se como um relâmpago e olhou, ainda com
os olhos cheios de lágrimas... Deu um grito de alegria e foi correndo
ao encontro do cavaleiro.
Este parou, tirou as crianças de cima do cavalo e também
desceu.
A mãe puxou a pequena Maria de encontro ao peito e a
beijava impetuosamente. E então, em Joãozinho, que se aproximava
docilmente, deu um empurrão tão forte que este chegou a vacilar.
- Seu menino desobediente -, gritou com raiva, - você
deveria ter cuidado da criança e da casa, e foi passear e ainda levou o
22
cachorro! Mas espere, você vai levar uma sova, oh, se vai! E nunca
mais vou confiar em você, seu irresponsável!
Joãozinho ficou de lado, estarrecido. Seu coraçãozinho
batia dolorosamente. Ao invés de ser elogiado e acariciado, é rejeitado
pela mãe e ainda vai levar uma surra. Empalideceu e recuou.
Então o tropeiro começou a contar o que sabia de
Joãozinho e como o encontrara na busca de sua irmãzinha roubada.
Relatava com que coragem aquele menininho matara a cobra
venenosa para que sua mãe e seus irmãos não fossem atacados por
ela; como a irmãzinha havia desaparecido; como saíra com o cão à
sua procura, e como ele e os tropeiros salvaram a criança. Sem a
astúcia e perseverança de Joãozinho e sem o faro do cão, Maria
continuaria desaparecida para sempre.
Aí as lágrimas brotaram dos olhos da mãe, Ela colocou
Maria no chão, abriu os braços e chamou soluçando: - Venha para
perto de mim, meu menino corajoso! Eu fui injusta com você! Você foi
valente e cumpriu sua obrigação! Não chore, meu pobre menino,
porque sua mãe o repeliu!
Joãozinho, retendo corajosamente as lágrimas, atirou-se
nos braços da mãe, que o acariciava e beijava elogiando-o muito pelo
acontecido.
Valente, o fiel cão, também se aproximou e deixou-se
acariciar com palavras amigas.
Então a mãe soltou o menino, acariciou seu cabelo, deu
ainda um beijo em Maria e se aproximou do tropeiro que observava
tudo sorrindo. Ela pegou-lhe a mão, apertou-a com força e, com
lágrimas nos olhos, agradeceu-lhe por ter salvo suas crianças.
Também não permitiu que o tropeiro partisse sem antes
entrar na casa com ela e os filhos e sentar-se com eles à mesa. Ele
teve que tomar um café forte e comer o pão doce de melado.
Enquanto isso seu cavalo recebia os cuidados de Francisco, que lhe
dava milho para comer.
Porém, ele não poderia demorar muito por ali, se quisesse
alcançar a tropa de burros e seus companheiros. Assim, partiu com as
bençãos da família.
23
Contudo, à noite toda, Joãozinho teve que contar como
matara a cobra, como tudo acontecera.
Com orgulho, a mãe olhava para seu pequeno rapaz.
Assim, estavam todos sentados e conversando quando
alguém bateu palmas lá fora, anunciando visita. No quarto, a pequena
lamparina de querosene já estava acesa. Francisco, o irmão mais
velho, abriu a porta e olhou cuidadosamente na escuridão. - Oh, é o
vizinho Cidral, entre! - disse alegremente. A viúva se levantou
depressa. - Oh, compadre Cidral, comadre, vocês chegaram em boa
hora, entrem e sentem-se!
E então, quando o velho Cidral e sua bondosa e gorda
mulher se acomodaram, ouviram assustados e estupefatos, mas com
muita satisfação, o que acontecera, e como o afilhado deles,
Joãozinho, havia-se portado com cautela e valentia.
Os olhos do velho Cidral brilhavam de orgulho. Pegou seu
afilhado Joãozinho no colo e o acariciou.
Naquela noite, os amigos foram embora bem tarde.
24
II
A primeira ida de Joãozinho à escola. Cana-de-açúcar, café,
arroz, tabaco e mandioca. Engenho de cana-de-açúcar. Moinho
de mandioca. O monjolo. A venda da mata. A máquina
fantástica. Joãozinho é motivo de riso. A escola da mata.
Três anos se passaram.
Joãozinho crescera muito e já precisava capinar o jardim
com sua pequena enxada, buscar água e ajudar em muitas outras
coisas. A pequena Maria tinha cinco anos e acompanhava o irmão com
freqüência. Às vezes, os irmãos mais velhos, Francisco e Pedro,
levavam junto o irmãozinho, para a roça ou para a mata. Então, Maria
tinha que ficar em casa com a mãe, o que se tornava difícil para ela.
Sem Joãozinho ela não sabia o que fazer.
- Logo Joãozinho precisa ir à escola -, dizia a mãe - daí
Maria precisa ficar em casa!
- Maria também escola! - resmungava a pequena e franzia
o delicado rosto como quem vai chorar.
A
coisa
foi
ficando
séria.
A
mãe
conversava
freqüentemente com o compadre Cidral e com os dois filhos mais
velhos: Joãozinho deve aprender a escrever, ler e calcular. Ele precisa
ir para a escola.
Contudo, a escola mais próxima era a do velho Bento
Damásio e ficava a quase duas léguas. Para ir a pé, o menino levaria
muito tempo. Diante disso, a mãe já queria abandonar seu propósito.
Um dia o compadre Cidral veio e disse: - O menino vai à escola! Ele
vai a cavalo! - Onde vamos arrumar dinheiro para comprar um cavalo?
- disse a mãe. O velho José Cidral alisou seu cavanhaque grisalho e
disse cautelosamente: - Eu sou o padrinho de Joãozinho e dou-lhe
meu pônei (petiço).
- O Mico? - gritou Joãozinho, imóvel de espanto. - O Mico
marrom ligeiro?
25
Sorrindo, o velho Cidral acenou com a cabeça. Joãozinho
deu um pulo de alegria, gritando com prazer. Então correu ao redor da
casa e chamou os irmãos: - Eu vou ganhar o "Mico" do padrinho para
ir à escola! Viva, viva!
E Maria, que seguia apressadamente o irmão, também
gritava: Viva, viva! - sem saber que seu amado Joãozinho iria à
escola, deixando assim de ser seu companheiro nas brincadeiras.
No dia seguinte, o compadre José Cidral veio montado em
seu baio amarelo, já conduzindo o petiço marrom escuro pelo
cabresto. Petiço já vinha com um baixeiro de lã.
Joãozinho já estava pronto e tremia de contentamento.
Toda a família estava reunida em frente da porta. Sorrindo, todos
observavam com que trabalho Joãozinho tentava subir no cavalo.
Finalmente, realizou a façanha. Todavia, assim que o padrinho Cidral
passou-lhe as rédeas, o pônei disparou derrubando Joãozinho e
atirando-o na grama entre as galinhas e os patos.
Os irmãos e o velho Cidral choravam de tanto rir. Apenas a
mãe se assustou e Maria começou a chorar. Porém, Joãozinho não se
machucara. Envergonhado, levantou-se da grama e limpou a roupa da
sujeira das galinhas, enquanto seus irmãos Francisco e Pedro pegavam
o pônei.
Francisco segurou o Mico pelas rédeas e Pedro colocou o
garoto novamente no cavalo. - Afirme a coxa e as pernas! Puxe as
rédeas! Cuidado! - Assim gritavam para Joãozinho os irmãos e o velho
Cidral.
Joãozinho estava corado de vergonha e de zelo. Seus olhos
brilhavam. Estava decidido a não cair mais do cavalo. Com força,
prendeu as pernas no corpo do cavalo e segurou as rédeas curtas.
E tudo correu bem. O garoto cavalgava ligeiro, ao lado do
baio do velho Cidral, ao longo da mata. Todos pareciam alegres, mas
Maria chorava amargamente ao perceber que a vida de Joãozinho,
agora, começava a ficar séria. Os dois cavaleiros sumiram na espessa
mata. Na baixada, ao lado da grande figueira, atravessaram a larga
estrada para conduzir novamente seus cavalos para a estreita picada.
Varas de bambu arranhavam seus braços, samambaias sussurravam,
26
a
mata
erguia-se
grandiosa
de
ambos
os
lados
do
caminho.
Trepadeiras caíam de imensos cedros e canelas, orquídeas de muitas
cores brilhavam no verde da copa das árvores. Um sopro fresco saía
da mata escura. Ouvia-se o grasnar dos verdes papagaios e o assobio
dos pequenos e pretos micos.
Após algum tempo a escuridão da mata se apagou e os
dois chegaram à grande plantação de cana-de-açúcar, que pertencia
ao velho Gomes. O campo sussurrante dos pés amarelados da canade-açúcar, com suas folhas pontiagudas e estreitas, estendia-se por
todos os lados. Como pano de fundo, delineavam-se as verdes
montanhas da mata. E bem mais ao longe erguiam-se as azuladas
pontas da Serra Geral do Mar, ao encontro do céu de um azul pálido
da manhã.
Do outro lado do caminho, entre laranjeiras e bananeiras,
estava a casa branca do velho Gomes. O telhado era de telhas
côncavas de um marrom avermelhado. A propriedade era toda
cercada. Não muito longe da estrada, sob um paiol aberto, estava o
moedor de cana-de-açúcar, acionado por dois bois de canga malhados.
Alguns negros colocavam sempre mais feixes entre as lâminas de aço
da prensa, outros cuidavam do recipiente em que caía o caldo marrom
da cana. Uma carreta, com rodas de madeira a ranger, saía da
plantação com dois bois de canga. Grandes feixes de cana estavam na
carreta conduzida por um mulato.
O velho Gomes estava na beira da estrada e cumprimentou
os recém-chegados que pararam seus cavalos. Enquanto conversavam
sobre o objetivo da cavalgada, o velho Gomes enrolou dois cigarros de
palha de milho, oferecendo um ao velho Cidral. Joãozinho ganhou
alguns suculentos gomos de cana para chupar, e ele e Cidral
continuaram seu caminho e chegaram a uma plantação de mandioca.
Os pés marrons da mandioca estendiam-se em fila com suas verdes
cristas de folhas bipartidas cobrindo toda a propriedade. Junto à
estrada estavam espalhadas algumas raízes maduras
que haviam
rebentado e revelavam seu interior, branco como neve, do qual se
produz a nutritiva farinha de mandioca e a fécula.
27
Atrás da casa, que ficava na plantação, Joãozinho via o
moinho de mandioca sob um telhado. Grandes montes de bagaço
estavam nas proximidades. À beira do caminho, esbeltos coqueiros
exibiam os troncos prateados que revelavam-lhes a idade pelo número
de anéis.
Cavalgaram por um rio deixando seus cavalos matarem a
sede. Ao lado deles, na água, havia um monjolo que socava a farinha
com gritos e gemidos além de um golpe surdo. Joãozinho olhava para
tudo isso com grande curiosidade.
Cavalgaram através da espessa mata, e também por
plantações. Nosso Brasil maravilhoso é tão rico de tudo que se possa
pensar como presente da natureza!
Plantações de milho, tabaco e arroz se revezavam com
grandes cafezais e campos de banana. O padrinho Cidral explicava
para o garoto que o açúcar, o milho, a mandioca, o tabaco, o arroz e o
café são os principais produtos da planície e que a agricultura das
propriedades enriqueciam o Brasil. Por isso deveríamos honrar o
trabalhador da terra e o agricultor.
- Você está vendo lá as duas vendas? - perguntava ele ao
garoto apontando para os telhados que surgiam por detrás da mata. É para lá que levamos nossos produtos da terra. Por esses produtos
recebem-se lá todas as mercadorias necessárias e dinheiro para pagar
os juros.
Os dois apearam diante de uma das vendas. O vendeiro
Vicente Lacerda recebeu-os com um aperto de mão e ofereceu um
cigarro de palha de milho. Havia muitas pessoas reunidas ali. Sobre as
tábuas e prateleiras estavam armazenadas peças com tecidos para
roupas, caixas de chapéus, gaitas de mão. Nos pilares estavam
pendurados palas, ponchos, botas, armas, ferramentas e outras
coisas. Da viga mais baixa do teto balançavam panelas e chocolateiras
de lata e de ferro.
Porém o que mais excitava a curiosidade de Joãozinho era
uma caixa com um enorme funil, de onde ouviam-se vozes humanas e
música. Dos bancos aos cantos da venda e em frente ao balcão, os
lavradores da redondeza escutavam esses sons. Joãozinho contemplou
28
a caixa de madeira, olhou para dentro do grande funil, encostou a
orelha bem perto da caixa e pensou: - Ali dentro não pode estar
sentada a pessoa que tanto grita e faz música. Com certeza ela está
embaixo do balcão.
Com um sorriso astuto trepou sobre a mesa do balcão e
saltou para dentro del, começando a rastejar para encontrar o autor
do barulho.
As
pessoas
da
venda
haviam
observado
esse
comportamento do garoto com grandes risadas. Porém, ao surgir o
rosto desconcertado de Joãozinho por detrás do balcão, onde ele não
descobrira nenhum ser vivente, quase morreram de rir.
- Bobão! - disse o padrinho Cidral, que de tanto rir teve
que segurar a barriga, - Você nunca viu um gramofone?
Joãozinho arregalou os olhos, boquiaberto, quando o
esclareceram
sobre
aquela
máquina
esquisita.
-
Quanta
coisa
maravilhosa existia no mundo, com as quais um pobre menino do
mato nem ousava sonhar!
Sorrindo, o velho Cidral esvaziou o copo, e ambos
deixaram a venda para continuar a cavalgada.
Tornaram a entrar na mata. Porém, logo surgiu a pequena
casa de madeira, a escola do velho Bento Damásio.
O mestre estava em frente da pequena porta e os
observava cordialmente. Era alto e magro e sua cabeça reluzia com a
careca.
Também
a
barba
era
rala,
em
seu
rosto
inteligente.
Cumprimentou os recém-chegados com uma longa e engraçada
conversa. Era famoso em toda a redondeza pelos seus "discursos" e
suas piadas.
Ele sabia até de cor um dos brilantes discursos do famoso Rui
Barbosa, como tinha sido publicado no jornal. Então, convidou os
recém chegados para entrarem, o que eles fizeram imediatamente.
Na sala de aula estavam sentados no chão mais ou menos
vinte garotos entre nove e dezesseis anos. Cada grupo de quatro tinha
como mesa, um banquinho de madeira diante de si. Alguns escreviam
com giz na lousa de pedra, outros com caneta sobre papel. Na branca
parede de madeira estava pendurada uma tábua preta que servia de
29
lousa. Nela estavam escritos, com giz, letras, números e palavras.
Num canto, dois garotos ajoelhados mastigavam, olhavando para a
parede.
- Veja Joãozinho - ria o padrinho Cidral e apontava para os
dois pequenos pecadores, - isso também pode acontecer com você, se
você não tomar cuidado! - Sim, meu jovem -, disse o mestre, - e se
você se tornar atrevido e não obedecer, então você apanha com esta
vara!
-
E,
dizendo
isto,
deu-lhe
"algumas
chibatadas
como
demonstração" fazendo com que Joãozinho se retraísse. Com isso, a
turma toda da escola caiu numa grande risada. Joãozinho pensou: Ah, antes eu estivesse em casa com mamãe e brincando com Maria!
- O menino já fica aqui, hoje mesmo! - disse o padrinho
Cidral. - Eu pago lousa, giz e mensalidade. As tarefas ele deverá fazer
aqui após a aula, antes de voltar. Seu lanche está na sela. Vá buscar,
Joãozinho, e deixe o petiço no pasto.
Joãozinho fez o que lhe fora ordenado. O padrinho Cidral
voltou para casa. Joãozinho o acompanhou com os olhos cheios de
lágrimas.
O primeiro dia na escola foi uma tortura para ele. Os
outros alunos troçavam dele, porque ele não podia compreender que
aqueles riscos tortos na lousa pudessem ser letras com as quais
alguém pudesse aprender alguma coisa. Porém, após ajoelhar-se
algumas vezes no canto e levar algumas com a vara, sob as risadas
dos colegas, ele se esforçou por copiar cuidadosamente aqueles
traços.
Quando os outros garotos foram para casa, a pé ou a
cavalo, ele ainda teve que ficar e encher a lousa de letras.
Finalmente, teve permissão para pegar o pônei e ir
embora. Com que prazer subiu em seu cavalo e partiu dali! Como
estava feliz quando chegou à noite em sua casa, onde a mãe e os
irmãos já esperavam por ele na porta, perguntando-lhe como tinha
sido seu dia.
- O caminho para a escola era bonito -, disse Joãozinho
enquanto estava sentado na sala e pegava sua Maria no colo. -
30
Também a volta foi bonita. Mas eu não vou mais à escola. Eu não
gosto de lá!
Então, contou para os irmãos sobre a máquina maravilhosa
que tinha visto na venda. E todos ficaram admirados.
Porém, na manhã seguinte, apesar de suas lágrimas,
Joãozinho teve que voltar à escola. - O que o padrinho Cidral diria -,
disse a mãe -, se você não fôr à escola! E o petiço, ele tomaria de
volta. Vá e seja aplicado, até que você tenha aprendido o suficiente!
O período de aulas não foi bem aquilo que Joãozinho
esperava. Sempre a vara do mestre o ameaçava ou os outros meninos
troçavam dele. Somente depois que um dia, no recreio, ele bateu num
garoto maior que ele, deixaram em paz e tornaram-se amigos dele.
Mas lá havia um menino de quatorze anos, bem maior e mais forte
que Joãozinho, e que se chamava Salvador. Joãozinho era alvo de
muitas de suas farras. Apagava o que ele, com muito esforço,
escrevera, escondia-lhe a lousa, esmurrava-o às escondidas ou, ainda,
comia-lhe o pão. Uma vez, quando Joãozinho queria voltar para casa,
Salvador tinha soltado o petiço e Joãozinho teve que fazer aquele
longo percurso a pé.
No dia seguinte, o padrinho Cidral foi, junto com ele, à
escola e falou com o mestre sobre os delitos do malvado Salvador. Foi
possível laçar o petiço novamente.
Ao tomar ciência das malvadezas de Salvador, o mestre
Bento Damásio pegou o rapaz e deu-lhe uma surra da qual esse se
lembrou por mais três dias. Mas, secretamente, Salvador jurou se
vingar de Joãozinho pela surra.
E a oportunidade apareceu-lhe dali a alguns meses.
31
III
Mutirão para a derrubada da mata. Coleta de cipó. Um falso
amigo. Joãozinho sofre um acidente na floresta virgem. A
justiça alcança o malfeitor. O fandango. O Cruzeiro do Sul. Dois
contratempos. Os mestres cantores com a viola. Brigas e
danças. Joãozinho como salvador. Anita...
O
mestre
Bento
Damásio
anunciou
um
mutirão
ou
punxirão. Com o pouco dinheiro da escola ele levava uma vida
miserável. Já era muito velho e a escola tomava-lhe muito tempo para
poder, ele próprio, derrubar a mata e plantar. Porém, precisava de
milho, feijão, mandioca, batatas e outros víveres que poderiam ser
plantados em sua terra.
Assim, todos os anos convidava os pais e os irmãos mais
velhos de seus alunos para um trabalho comunitário. Os alunos
também precisavam ajudar, com o facão e a foice.
Logo cedinho, no dia do mutirão, reuniam-se vinte homens
e o mesmo número de rapazes para a derrubada da mata. Primeiro,
todos tomavam café na casa do professor. A mata, que deveria ser
derrubada e queimada para a plantação, estendia-se atrás da escola
até o alto das montanhas. Os homens golpeavam os troncos com
machados. Era com muito barulho que as lascas voavam.
Os rapazes, nesse meio tempo, tinham como tarefa limpar
a floresta do mato rasteiro para que os homens pudessem ter acesso
às grandes árvores. As plantas trepadeiras também deveriam ser
retiradas para não impedirem a queda perfeita das árvores.
Contudo, o cipó preto era retirado das árvores em longas
madeixas, porque esta planta trepadeira era usada para fazer redes e
cordas. O cipó era recolhido pelos alunos e enrolado em novelos.
Todos os meninos se esforçavam para conseguir o maior novelo para
entregar ao professor.
32
Salvador, no dia anterior ao mutirão, percorrera toda a
mata e encontrara um cedro com inúmeras trepadeiras de cipó preto
no alto das montanhas, no meio da floresta. Ele subira escondido no
cedro e cortara, com uma serra manual, mais da metade do galho que
tinha mais cipó preto, para que o grande galho caísse sobre aquele
que tentasse puxar o cipó. Se esse enorme galho atingisse uma
pessoa poderia matá-la ou aleijá-la para sempre.
O grupo de rapazes percorria alegremente a mata. Os
arbustos de bambus, samambais, amoras silvestres, ananás, palmitos
e espinhos retinham os ansiosos. Todos queriam começar a puxar os
cipós. Risos e altos gracejos ecoavam através do amanhecer na mata
fresca. Os meninos trabalhavam orgulhosamente com a foice e o
facão. Atrás deles, e abaixo da montanha coberta de mata ressoavam
os golpes de machado e o estalido das canelas, perobas, cedros e
outras imensas árvores que caíam.
Nas últimas semanas, Salvador revelara-se sempre muito
simpático para com Joãozinho, de tal modo que este não suspeitava do
falso rapaz. Hoje, também, Salvador mantinha-se perto dele e
mostrava-lhe os melhores locais para colher cipó. Com muito orgulho,
Joãozinho olhava para o maior dos rolos de cipó que eles haviam
recolhido e que carregavam nos ombros.
- Venha depressa, Joãozinho
- cochichava Salvador,
baixinho, enquanto os outros garotos ficavam um pouco para trás -, ali
em cima, atrás daquela moita, há um cedro que está cheio de cipó.
Venha, antes que os outros percebam!
Joãozinho corria zelosamente atrás dele através do mato.
Chegaram ao cedro que o inescrupuloso Salvador escolhera para sua
vingança. Ele indicou sussurrante, para seu companheiro um grande
galho, ao lado da árvore, que estava cheio de cipó pendurado.
Joãozinho, imediatamente, começou a puxar com muita força a planta
trepadeira. Seu novelo, em que enrolava o cipó, ficava cada vez maior.
O garoto dava gritos de alegria. Porém, Salvador fazia - Psiu, psiu,
fique quieto, para que ninguém venha até aqui para pegar cipó dessa
árvore! - E do outro lado da árvore, olhava com um interesse irônico
para Joãozinho que, com toda força, puxava uma corda de cipó após a
33
outra. O galho semi-serrado com todo esse puxar deveria finalmente
ceder!
Nesse instante ele estremeceu. Ouviu-se um ranger no alto
do cedro. E, em seguida, ressoou de repente um terrível estalido.
Aquele galho imenso recoberto de trepadeiras e orquídeas caía ao
chão. Um grito angustiante e horrível ressoou pela mata junto com um
golpe surdo e uma queda. Joãozinho estava estirado aos pés do cedro.
Salvador queria sair dali sorrateiramente. Porém, pálido,
ao sair rastejando da mata, os outros garotos gritaram: - Onde está
Joãozinho? Não foi ele que gritou? Você estava com ele, não?
Diante disso não adiantava negar. Ele gaguejava dizendo
que um galho tinha caído em Joãozinho. Essas coisas aconteciam às
vezes na coleta de cipó. Os garotos se arrastaram para dentro da mata
onde Joãozinho estava deitado, inconsciente, no chão. Logo alguns
homens subiram o morro, entre eles os irmãos de Joãozinho e o velho
Bento Damásio.
Os meninos trouxeram água, que foi despejada no rosto do
menino desfalecido. Esfregavam sua fonte com cachaça. O chapéu de
palha, feito de um cipó branco e grosso que o menino usava durante a
queda do galho, estava agora cravado em seu rosto, e suavizara o
peso do grande galho. Assim, lentamente, ele voltava a si. Contudo,
seu ombro estava gravemente ferido e precisou ser enfaixado.
Joãozinho gemia muito enquanto o professor cuidava do ferimento.
Salvador quis aproveitar a oportunidade e apoderar-se dos
novelos de cipó. Porém, Joãozinho percebeu e lhe disse, gemendo: - O
novelo grande é meu!
O professor voltou-se. Nesse momento, seu olhar pousou
sobre o galho semi-serrado, que estava ao lado de Joãozinho. Viu o
olhar maldoso de Salvador e imediatamente percebeu o que ali se
passava.
Ele saltou sobre o rapaz: - Patife, você serrou o galho,
para se vingar do garoto! Espere!
Homens
e
rapazes
haviam,
nesse
ínterim,
ali
se
aglomerado e ouviram as palavras do professor. E que ele estava
certo, podia-se ver no rosto transtornado de Salvador. Negar agora de
34
nada lhe adiantava. Foi amarrado numa palmeira fina com o cipó que
ele próprio recolhera e ficou ali o dia inteiro, até que o trabalho
terminou. E, à noite, quando se começou a comer e a beber, foi
mandado embora e não deveria aparecer mais por ali.
Nesses mutirões (ou como também se diz, punxirões)
festejava-se à noite, depois do trabalho concluído. O professor e sua
mulher traziam a comida para todos e distribuíam as garrafas com
vinho de laranja e cachaça. Havia pirão de mandioca, feijão preto,
batatas, e carnes no espeto, a que chamavam churrasco.
Após o jantar, começava o fandango.
Os banquinhos, que serviam de mesa, eram retirados da
sala de aula. Algumas lamparinas iluminavam tremulamente o salão
de dança. As mulheres e as meninas estavam sentadas no chão ao
redor da sala. Os homens e os rapazes estavam reunidos lá fora em
frente à porta. Eles se vangloriavam de seus trabalhos e atitudes,
fumavam e cuspiam, até que o acordeão os chamasse novamente para
a dança. No céu da noite reluziam milhões de estrelas e sobre a escola
brilhavam e faiscavam as estrelas do Cruzeiro do Sul, que estão
também presentes na gloriosa bandeira brasileira.
Nas matas pairavam os incontáveis vagalumes e cantavam
milhões de grilos. Do pântano ecoava o surdo martelar dos sapos.
Morcegos deslizavam do telhado da casa e uma coruja voou,
guinchando sinistramente, sobre as altas árvores que estendiam
escuros galhos em direção ao céu.
No interior da casa Joãozinho estava sentado, com o
ombro enfaixado, ao lado do professor que tocava o acordeão. Oh,
como eram bonitos os acordes que soavam do acordeão! Até os
cachorros, que lá fora brigavam pelos ossos, começaram também a
ganir.
Aos pares, os casais infatigáveis dançavam e batiam com
os pés no chão da sala. Oh, mas a vida era bela! Alguns clamores
acompanhavam a música, quando a melodia era alegre. Entre uma
dança e outra havia uma pequena pausa. Também esvaziavam-se
muitas garrafas e o ambiente se tornava cada vez mais animado. Um
velho negro, que chegara por último, tirou uma viola de dentro de uma
35
sacola. - Olé, o velho Tomás vai tocar -, gritavam todos ao mesmo
tempo - Um fandango! Um maxixe!
Então os homens colocaram-se em fila e, à sua frente, as
mulheres, em outra fila. E o verdadeiro fandango brasileiro da roça
começou com um compassado bater de pés e um caminhar de um ao
encontro do outro. O barulho ritmado ressoava alto da sala surda para
a mata escura, acompanhado pelo vibrar e soar das cordas da viola.
Lá fora emergiam da escuridão duas figuras furtivas. Eram
parentes do
desonesto
Salvador
que
fora varrido
dali. Ambos
carregavam escondidas sob a pala fina de lã suas armas. O mais moço
era Antonio Zerino, irmão de Salvador, rapaz vesgo de mais ou menos
vinte anos, moreno e desgrenhado. O outro, Bento Quadra, um
preguiçoso e mal afamado arruaceiro, era tio de Salvador. Antonio
Zerino segurava uma viola na mão. Eles vieram para brigar e vingar
Salvador pelo ultraje sofrido ali, pois, para eles, este era inocente.
Chegaram de mansinho, sem dizer nada, pois queriam primeiro comer
e beber à vontade. E, no entanto, não tinham ajudado no trabalho de
derrubada da mata. Há parasitas desse tipo tanto entre os homens
como sob os cumes das árvores da mata. Eles se alimentam do
trabalho dos outros e os derrubam.
Os dois sujeitos entraram na sala de aula, onde se
dançava, e cumprimentaram as pessoas, modestamente, sentando-se
num canto. Assim que veio a pausa da dança, foram rodeados pelos
homens.
Ofereceram-lhes
vinho
de
laranja,
cachaça
e
doces.
Brincaram e conversaram com eles até começar uma nova dança.
Preocupado, Bento Quadra puxava sua barba rala e
vermelha e sussurrava algo para o vesgo Zerino. Ambos riam e
bebiam. Então, na pausa seguinte, o último desembrulhou sua viola e
Bento Quadra gritou para as pessoas suadas da dança: - Escutem,
Antonio Zerino quer se medir com o tocador de viola de vocês. Parem
um pouco! - Que legal, um desafio de canto, bravo! - gritavam as
pessoas animadas - Mantenha a honra, velho Passarinho!
Passarinho, o negro, sorriu ironicamente, consciente da
vitória. Os outros já haviam tentado enfrentá-lo na viola e na feitura
36
de versos e haviam perdido. O moleque vesgo, o Antonio Zerino,
deveria logo mostrar as armas.
Começou a tocar as cordas de sua viola e todos pararam
para ouvir. Uma das mãos morenas deslizava pelas cordas amarelas
de arame enquanto a outra dedilhava no cabo da viola à procura do
tom. Uma ardente, porém triste, melodia sussurrava e ressoava na
sala surda.
Agora Antonio Zerino levantou a voz e começou a cantar
uma estrofe, numa melodia queixosa, na qual provocava o outro
tocador de viola a cantar e a dizer o que tinha aprendido com a vida.
Imediatamente o negro grisalho aceitou o desafio e
respondeu. As cordas de sua viola soavam e sussurravam uma
melodia clara e trocista:
Eu gozei a vida
E ela era tão bela e tão dura
E ensinou-me a lição
Que cada um é como é
Palmas e gritos de "bravo" o elogiavam. Mas o instrumento
de Zerino já recomeçava. O vibrar e o tremular da viola estremeciam
pelos corações dos ouvintes. Finalmente, o cantor levantou a forte e
jovem voz desafiando o negro. Enquanto seus olhos vesgos se
voltavam para Joãozinho, que sentado ao lado do negro, com seu
ombro enfaixado, ouvia atentamente.
"Ah, se você fosse mais claro
Mas você é tão negro como a noite
Se cada um é como foi feito
Quem te fez tão escuro assim?"
Um riso malicioso ressoou. - Olé, Passarinho, honre seu
posto e dê-lhe uma resposta, senão você já perdeu!
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O velho negro riu meio embaraçado, meio mordido, e cantou
com o acompanhamento da viola:
Nós não éramos um só e iguais
Quando Deus nos chamou para a vida?
Por isso sua pele é amarela
Por isso seus olhos são vesgos.
Aplausos estridentes aclamaram esta resposta, que aludia
à cor amarela e suja da pele, e aos olhos vesgos do mau rapaz.
A disputa dos dois cantores e violeiros prosseguia, para o
deleite geral dos ouvintes.
Joãozinho orgulhava-se do velho
Passarinho
que ele
observava de lado.
Os ataques mútuos foram ficando cada vez mais fogosos, e
procuravam derrotar o adversário com alusões pessoais em versos
sem nenhuma arte. Antonio Zerino sentia que seus versos venenosos
arrancavam menos palmas que a engraçada canção de defesa do
negro. Seus olhos vesgos ficaram vermelhos de sangue e sua mão
tremia. E Bento Quadra o instigava baixinho. Assim, aos poucos, ele
dirigiu seus versos hostis para o mutirão desse dia e para a recolha de
cipó dos meninos. O professor recebeu sua espetada, Joãozinho e seus
irmãos foram atacados e muitos dos presentes, que tomaram parte no
castigo de Salvador, recebiam sua parte em versos fortes e picantes.
Porém, o velho Passarinho dava seus contragolpes e
repelia os ataques com muita graça. Entretanto, o ambiente ia ficando
cada vez mais hostil contra os dois perturbadores que, evidentemente,
procuravam por briga. Agora Antonio Zerino cantava, com voz
estridente, e sua viola vibrava e soava:
Todos vocês merecem as feridas
Que Salvador sofreu hoje
Aqueles que amarraram o rapaz
Irão receber com juros.
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Murmúrios rancorosos tornaram-se perceptíveis. Alguns já
cerravam os punhos. Tenso, Joãozinho aguardava os acontecimentos.
O velho Passarinho afinou sua viola novamente e com cordas sonoras
começou agora, com um sorriso nos lábios:
Salvador é um menino mau!
Ele queria tirar a vida de Joãozinho
Quem cava para os outros uma cova,
Cava geralmente.... a sua.
Gargalhadas estrondosas e muitos aplausos atestavam
para os dois penetras que a maioria dos presentes não simpatizava
com eles.
Nesse momento, Bento Quadra saltou para o centro da
sala, arrancou a pistola do cinto e atirou na parede ao lado de onde as
mulheres e crianças estavam sentadas no chão. O estalo atordoou a
audição das pessoas. O bafo de pólvora encheu a sala. As mulheres e
as mocinhas deixaram a sala de aula gritando e chorando muito, e
foram para a sala de estar da família do professor.
O
professor
avançou
sobre
Bento
Quadra
e
gritou
ordenando:
- Quem quiser briga, saia da minha casa! - Aí Antonio
Zerino saltou sobre ele, agarrou-o pelo pescoço e gritou: - Foi você,
seu patife, que deixou que amarrassem meu irmão Salvador na
árvore!
No mesmo instante alguns rapazes, entre eles também
Francisco, irmão de Joãozinho, atiraram-se sobre os dois brigões para
ajudar o professor.
Diante disso, Bento Quadra puxou da bainha de couro a
longa faca usada na mata. A lâmina brilhava sinistramente na trêmula
luz vermelha da lamparina de querosene. Apontou a ponta do facão
para o irmão de Joãozinho, um rapaz robusto de dezoito anos.
Francisco, porém, saltou de lado como um relâmpago e agarrou o
braço
do
adversário
que
segurava
o
facão.
Os
dois
lutaram
selvagemente pela posse do longo facão. - Cachorro, você deve
39
morrer! - berrava o ruivo Bento Quadra, - você faz parte dessa
parentela toda asseada que desonrou nosso Salvador!
De todos os lados procurou-se separar os dois homens que
lutavam.
Enquanto
isso
o
vesgo
Antonio
Zerino,
desapercebidamente, havia se arrastado para trás de Francisco. Com
muita força puxou o jovem para trás enquanto tirava uma faca da
bainha.
Contudo Joãozinho, que assistia à briga divertindo-se muito,
não se distraíra. Mal percebeu que seu irmão Francisco corria perigo,
procurou pelo outro irmão, Pedro. Mas Pedro fora ao rio buscar água
fresca para as mulheres, antes da briga começar. Ele não ouviria o
pedido de ajuda de seu irmão.
Assim, Joãozinho percebeu, então, que ele mesmo tinha que
ajudar o irmão, pois Antonio Zerino já pegara a faca para enfiá-la nas
costas de Francisco.
Rápido como um relâmpago, Joãozinho se atirou ao chão e
torceu a perna direita de Antonio fazendo com que este perdesse o
equilíbrio e, cambaleante, caísse ao chão.
Porém, o furioso Bento Quadra já se desvencilhara dos que
o seguravam e ele e Francisco cairam no chão. Ajoelhou-se sobre o
rapaz e levantou o braço. Em sua mão brilhava a faca que queria
enterrar no peito de Francisco.
Nesse momento, um laço de cipó prendeu o pescoço do
arruaceiro e sua cabeça foi puxada para trás. Ele revirou os olhos, e,
com a língua de fora, deixou cair a faca.
Era Joãozinho que teve a feliz idéia de fazer um laço com o
cipó que estava ali e atirá-lo por sobre a cabeça daquele que se
ajoelhava sobre seu irmão. Para puxar o brigão outros o ajudaram
imediatamente.
Puxaram com tanta violência a corda de cipó que quase
enforcaram Bento Quadra.
Ao afrouxar o laço, Bento mal conseguia respirar e levou
algum tempo até que tivesse se recuperado para poder deixar a casa,
40
apoiado em seu sobrinho.Muitas maldições e ameaças foram rogadas
aos dois pervertidos até que sumissem na escuridão da noite.
Joãozinho foi muito elogiado pelos rapazes e homens.
Contudo, não saíra sem dano da luta. O curativo havia caído do seu
ombro e estava com arranhões no rosto vermelho, mas os olhos azuis
brilhavam de felicidade pois seu irmão Francisco havia vencido.
Assim que o professor refez as ataduras de Joãozinho,
Francisco abraçou-o e disse-lhe olhando firme em seus olhos: - Você
me salvou, João, isto eu nunca vou esquecer! - e apertou-lhe a mão.
As mulheres e meninas, que nesse meio tempo, voltaram
para a sala, admiraram-se da presença de espírito e da coragem de
Joãozinho que, apesar de ferido, ajudou o irmão.
Anita, a filha do professor estendeu-lhe a mão e disse: - A
partir de hoje vou ajudá-lo com as tarefas escolares! e Bento Damásio,
sorrindo, acenou-lhe com a cabeça.
As mulheres trouxeram um café quente. E Bento Damásio
comentou depois que bebeu o café: - O cafezinho está como deve ser:
quente como o inferno, negro como o demônio e doce como o amor.
Ha, ha, ha!
Sorrindo satisfeito, ele aceitou os aplausos e os risos que
se seguiram a seu gracejo. Esta piada ele repetia em todas as
oportunidades, quando café era oferecido.
Em seguida, pegou o acordeão e tocou uma valsa. O negro
pôde descansar durante o cafezinho. Tocaram-se apenas músicas de
dança lenta, até o amanhecer. Então todos voltaram para casa. Aula
não haveria para que os alunos e a família do professor pudessem
dormir bastante.
41
IV
Doença grave. Joãozinho corre risco de vida. O curandeiro. O
pacto de Maria com Deus. O papagaio. A convalescença de
Joãozinho. A volta à escola. Macacos e outras coisas na floresta
virgem. Anita ajuda Joãozinho nas tarefas escolares. A
queimada da roça. Joãozinho no fogo dá provas de "menino
felizardo". "Estórias de Pedro Malazarte, Carlos O Grande e
outros". O destocamento, preparo e plantio da roça...
Os ferimentos no ombro de Joãozinho causados pelo galho
de cedro,
as aflições da briga e a noite sem dormir trouxeram
conseqüências sérias.
Joãozinho teve febre muito alta provocada pela infecção do
ferimento e teve que ficar muitos dias de cama.
A pequena sala onde estava deitado tinha só uma janela
minúscula. O chão era de barro pisado: não havia soalho na casa da
viúva. Para acomodar o doente, arrumou-se um “burro”, que é como
se chamava a cama de campanha. Nas paredes de tábua da salinha
estavam penduradas peças de vestuário e utensílios manuais. Junto ao
leito
havia um baú de madeira em que a mãe sentava-se enquanto
cuidava dele.
Ela recriminava os filhos mais velhos, Francisco e Pedro,
por não terem trazido o menino ferido para casa em vez de deixá-lo a
noite inteira lá na festa. Aí os filhos disseram-lhe que sem a presença
de Joãozinho no baile, Francisco poderia estar morto e deitado no
ataúde. Apenas sua ajuda impediu que a faca de Antônio Zerino ferisse
Francisco pelas costas, e sem a feliz idéia do laço de cipó Bento
Quadra teria enforcado ou apunhalado o rapaz. Agora, também, era
tarde para repreensões.
O estado de Joãozinho foi se agravando. Tinha febre alta e
não reconhecia ninguém ao redor de seu leito.
A pequena Maria teve permissão para entrar na sala e quis
fazer-lhe um carinho com a mãozinha delicada, mas o doente a
empurrou, pois nem a ela
reconhecia. Essa atitude para com a
42
pequena era inconcebível. Seu Joãozinho, seu querido companheiro
não queria saber de sua irmãzinha. Perplexa, ela começou a soluçar.
- Nosso Joãozinho vai morrer? - perguntou ela, chorando
amargamente, para a mãe que fazia compressas frias na cabeça do
irmão doente.
- Deus está conosco e ele se salvará! - disse a mãe
baixinho. Seus olhos encheram-se de lágrimas.
- Se nosso Joãozinho morrer, ele vai ficar com Deus? perguntou Maria, esfregando os olhos molhados.
A mãe acenou com a cabeça e passou a mão sobre os
olhos. Entretanto, a febre do doente subia ameaçadoramente.
O compadre Cidral e sua mulher também vieram para
aconselhar e ajudar. Algumas mulheres dos vizinhos também vinham,
apesar de suas casas ficarem a meia hora de caminhada. Traziam da
mata ervas refrescantes
e folhas de chá salutar que, como
aprenderam com suas mães, eram usadas para o tratamento de
doentes.
Ao constatar que o estado de Joãozinho não melhorava, o
velho Cidral, saindo da sala disse para Francisco: - Pegue meu baio e
vá até o curandeiro. Traga-o com você no baio. O cavalo é bem forte
para carregar dois magrelos como você e o velho Sebastião Ribeiro.
Francisco fez o que o velho Cidral lhe ordenara. Quando
apareceu com o cavalo selado diante da casa, todos saíram do quarto
do doente para dar-lhe ainda um conselhos e vê-lo sair.
Assim, Maria ficou sozinha junto ao leito de Joãozinho.
Olhava para a cabeça vermelha e febril do irmão ainda com os olhos
cheios de lágrimas. De repente ajoelhou-se, juntou suas pequenas
mãos para orar, levantando os tristes olhos azuis para a janela,
através da qual podia ver o céu nublado, e rezou em voz alta: Querido Deus, deixe o Joãozinho para mim agora, você pode levá-lo
quando fôr velho, tá!
Nesse instante as nuvens se separaram e, como por um
milagre do Pai Divino, apareceu um cantinho de céu azul bem sobre a
pequena menina ajoelhada.
43
Maria levantou-se agora calma e confiante. Estava certa
que Deus deixaria seu irmão ainda na terra.
A mãe e algumas vizinhas voltaram para o quarto. Maria
não lhe contou nada sobre seu pacto com Deus. Isso deveria ser um
segredo entre Deus e ela...
Após algumas horas, Francisco voltou com o curandeiro,
Sebastião Ribeiro. O velho, muito magro, estava sentado atrás de
Francisco, na garupa do cavalo.
Ajudaram-no a descer do cavalo. Então ele entrou no
aposento do doente segurando na mão um saquinho de ervas.
Assim que examinou o menino abanou a cabeça. Então, foi
até a cozinha onde fez uma bebida com muitas ervas e raízes.
De repente, ecoou um grito de admiração pela casa.
Joãozinho abrira os olhos, murmurando "Maria". O olhar que dirigiu
para a irmãzinha era nítido e claro. Depois fechou os olhos e
adormeceu. Então o calor desapareceu de sua cabeça e em seu rosto
brilhava o suor.
O curandeiro Sebastião, mancando, aproximou-se da cama
do doente e apalpou seu pulso. Daí sacudiu a velha cabeça cinzenta: Ele está salvo! - disse com voz grave.
A mãe, chorando, apertou o rosto entre as mãos, pois a
felicidade era muito grande. A grande tensão das últimas horas era
aliviada, agora, pelo choro. Todos estavam admirados pela repentina
melhora. Apenas Maria não se admirava. Ela sabia quem havia
ajudado
tão
depressa
e
quem
atendera
seu
pedido.
O
restabelecimento de Joãozinho caminhava a passos largos. Após
alguns dias, Maria já pode levar-lhe Jacó, seu papagaio verde
acinzentado, que aprendera a falar algumas palavras.
Joãozinho e Maria riram muito quando Jacó disse algo novo
que
aprendera nos dias em que Joãozinho estava doente. - Todos
para fora, silêncio, ele precisa descansar! - Depois ele se afastou
abanando as penas verde-acinzentadas do rabo. - Jacó quer pão! grasnou por fim!
Valente, o cachorro, também pôde visitar Joãozinho no
quarto. Margarida soltou o cachorro da corrente e este disparou para
44
dentro da casa, indo direto para o pequeno cômodo onde Joãozinho
estava. Gemendo de felicidade, apoiou as patas dianteiras na cama, ao
lado do doente. Valente abaixou a guedelhuda cabeça com a língua
vermelha para fora, tentando lamber o menino. Joãozinho rejeitava
sorrindo os carinhos do cão...
Após duas semanas Joãozinho, totalmente recuperado,
pegou seu pônei Mico e foi cavalgando para a escola. Ele não ansiava
nem um pouco por isso, pois receava a troça dos colegas por ter,
provavelmente, esquecido muito do que já aprendera. E sobretudo
tinha medo da vara do professor.
Porém a cavalgada deu-lhe grande prazer. Observava tudo
o que havia no caminho da mata. Orquídeas de muitas cores, ninhos
de pássaros, buracos nas árvores para onde abelhas melíferas
selvagens enxameavam, borboletas coloridas, colibris brilhantes como
metal, bandos de macacos e negras plantas trepadeiras no fundo da
espessa mata.
Prestava atenção ao grito monótono e sombrio dos macacosbugios que estavam na profundidade da mata escura, ao bater do
pica-pau, ao grasnar do tucano, e ao palavreado dos papagaios e
periquitos. Lentamente seu pônei avançava pelo suave caminho da
mata.
Cavalgou também pelas plantações dos lavradores e
deixou seu Mico beber água no rio junto ao monjolo. E sempre quando
via
alguém
endireitava-se
na
sela
e
deixava
o
pônei
trotear
livremente.
Ao passar pela venda, ouviu novamente o alto falar e
cantar do gramofone, e deu-lhe vontade de descer e entrar. Quanto
mais se aproximava da temida escola mais o medo e a tristeza
tomavam conta de seu ser. Mas ele não poderia hesitar, senão
chegaria atrasado. Assim, conduziu o Mico a galope e logo chegou à
casa do professor.
O pônei ficou no pasto cercado e ele entrou na sala, com o
coração disparado...
Seu medo foi em vão, como acontece muitas vezes na
vida. A acolhida foi terna e calorosa. Todos os alunos e o professor e
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sua mulher cumprimentaram Joãozinho, felizes pela sua presença.
Anita, a filha do professor, menina de oito anos, de cabelos pretos e
ondulados, foi a última a se aproximar. Estendeu-lhe a mão, seus
olhos escuros sorriam para ele e seus dentes brancos brilhavam entre
os lábios vermelhos. - Graças a Deus que você sarou -, disse ela. Agora quero ajudá-lo a estudar!
O primeiro dia de aula transcorreu bem. Joãozinho não
levou varadas nem críticas, apesar de ter-se revelado desajeitado e
bobo a princípio. Tinha esquecido quase tudo que sabia antes.
Salvador e seus parentes haviam-se mudado dali.
Quando a aula terminou e todos os alunos pegaram seus
cavalos ou foram a pé para casa, Joãozinho foi conduzido por Anita
para outra sala,
para almoçar com a família do professor. O velho
Bento Damásio tinha por Joãozinho muita afeição, que se intensificara
após o fandango, quando Joãozinho se portara como herói.
Após o almoço, Anita sentou-se com Joãozinho e ajudou-o
a fazer as tarefas. Com muita paciência, explicava-lhe as coisas novas
e como ele deveria escrever e calcular.
Ela entusiasmava-se muito, jogava para trás seus negros
cabelos encaracolados e olhava para o menino com seus olhos escuros
aveludados até que ele entendesse o que ela lhe explicara. Foi assim
que começou o gosto dele pelo estudo.
A partir desse dia, interessou-se muito em ir para a escola,
e progredia rapidamente na escrita, na leitura e no calcular.
Nesse meio tempo, as árvores e os arbustos derrubados
durante o mutirão ficaram bem ressequidos pelo sol. Assim, o
professor Bento Damásio determinou um dia para que a roça fosse
queimada.
Era um dia muito quente. O professor e seus alunos
subiram a montanha. A lenha seca encobria a encosta. Também o
vento estava propício para impelir o fogo.
Os troncos e os galhos da parte inferior da encosta eram
amontoados e de vários lados acendia-se fogo.
46
Nossa , como as ansiosas línguas de fogo devoravam a
lenha seca! Mais acima, dos lados e no meio da roça também se
deitava fogo.
O vento forte empurrava as chamas para cima e inflamava
também os troncos que estavam no chão.
Assim, em pouco tempo, toda a montanha estava em
chamas e as nuvens que se formavam eram de um azul-acinzentado e
de um amarelo enegrecido. O vale encheu-se de um crepitar e estalir
ensurdecedores, como se milhares de espingardas estivessem sendo
disparadas. Também ribombava como o choro e o estalar de granadas
que explodiam quando os canos de bambu cheios de água estouravam
nas brasas.
Um espetáculo sinistramente magnífico se apresentava
para os meninos, que haviam atiçado esse fogo imenso. Chamas
vermelhas como o sangue ardiam em grandes labaredas no ar azul. A
verde encosta realçava-se maravilhosamente nesta clareira vermelha e
ardente.
Uma onda de calor percorria a clareira, tostava os verdes
cumes das árvores na beira da roça e ressecava o rosto do professor e
dos meninos que, com galhos, acendiam o fogo em toda parte em que
ele se apagara.
Um grande fervor e uma exuberante alegria tomavam
conta de Joãozinho neste trabalho calorento. Seu rosto queimava de
tão vermelho pelo calor do fogo.
De repente, o fogo enfurecido atingiu a mata verde da
propriedade vizinha. Isto não podia acontecer, pois poderia atingir
toda a mata e causar grandes danos para o vizinho.
- Atenção -, gritou o mestre assustado, - meninos, rápido,
depressa, apaguem o fogo da beira do mato com galhos e paus!
Os
meninos
se
apressaram.
Todos
se
esforçavam,
principalmente Joãozinho. Como os meninos trabalhavam para chegar
à beira do fogaréu para apagar com paus e varas as labaredas
menores que queriam atingir a beirada da verde mata!
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Porém Joãozinho, em todo seu fervor, arriscou-se demais.
De repente, ele se viu cercado pelo fogo. Não havia nenhuma
passagem pela qual pudesse sair e se salvar.
Um grito assustado ressoou ao mesmo tempo que os gritos
de alegria dos meninos.
- Ajudem-me, eu estou queimando! - ouviram o menino
gritar. Horrorizados, todos ficaram parados.
Uma fumaça inflamada abafava o lugar onde Joãozinho
estava e ele já previa sua morte, como acontecera a muitos lavradores
no Brasil que morriam na queimada da roça.
O professor foi o primeiro a recuperar-se do susto. Menino azarado - gritou e aproximou-se do fogo. Com uma rápida
olhadela pelas proximidades examinou o local de onde Joãozinho pedia
ajuda. Acabou descobrindo um lugar onde o anel de fogo, que cercava
o menino, era menos intenso.
- Aqui! Tragam musgo molhado da mata, façam um
caminho até Joãozinho batendo com pedaços de pau! - assim ele
exortava os meninos a lutarem contra o barulhento e rápido elemento
da natureza. Os meninos atenderam-no imediatamente.
E Joãozinho, que não perdera a cabeça, com um galho
apagava, as chamas no meio da ilha de fogo, até que com um grande
salto pôde sair dali, caindo nos braços do professor.
Imediatamente apagaram as chamas que já tomavam
conta dele jogando-o ao chão, rolando-o no musgo molhado até que o
calor cessasse.
Agora Bento Damásio ria de alívio.
- Em tudo esse menino precisa estar à frente. Em toda
desgraça ele se sai como felizardo!
Todos começaram a rir, até mesmo Joãozinho que tinha
umas queimaduras no rosto e nos membros e até seus cabelos
estavam chamuscados.
A partir desse dia ele recebeu o apelido de "Joãozinho
Felizardo"(Hansel Glückspilz).
Entretanto, o fogo já se acalmara. Grossas fumaceiras
estendiam-se sobre as montanhas e os vales.
48
Tudo acontecera em apenas uma hora. Restara somente
uma esfumaçada e negra encosta com cinzas brancas que se
destacavam horrivelmente das montanhas verdes. Os troncos mais
grossos, raízes e tocos de árvores meio carbonizados ainda ardiam e
chamejavam vermelhos quando o professor e seu grupo desciam a
encosta em direção à escola, onde lhes seriam servidos café e pão-deló pela mulher do professor e por Anita.
Porém Joãozinho ainda foi alvo de muita brincadeira.
Enquanto isso, Anita dava-lhe os maiores pedaços daquele doce e
saboroso pão-de-ló.
Alguns dias mais tarde, quando a roça já esfriara, o
trabalho de destocamento da encosta precisava ser iniciado. Entre os
troncos e ramagens carbonizados era necessário abrir espaço para o
plantio e para as leiras. Mais uma vez, o professor e os meninos foram
ao trabalho. Joãozinho, mais uma vez, estava presente.
Para empurrar os troncos carbonizados para o lado e pegar
nas ramagens negras e fuliginosas valiam-se de mãos e braços. Alguns
troncos mais grossos eram divididos em pedaços. Os meninos e
rapazes trabalhavam com os membros e rostos enegrecidos e, com o
suor que caía de suas faces, mais pareciam varredores de chaminés.
Nesses dias, o professor estava sempre muito animado e
fazia brincadeiras para divertir os meninos que trabalhavam para ele.
Após o trabalho, narrava para os meninos atentos as peripécias do
famoso Pedro Malazarte ou contava as histórias de Carlos Magno e as
façanhas de seus doze cavaleiros.
Também sabia descrever muitas aventuras que lera ou
ouvira de pessoas idosas; e algumas dessas velhas histórias ficaram
para sempre na lembrança de Joãozinho. Entre elas, a história do
cachimbo salvador ou a história de Gulliver, entre outras.
Chegaram os dias de chuva. Então, colocavam-se em
ordem as tarefas escolares. Mesmo com chuva, Joãozinho sentia
prazer em ir à escola, desde que, com a ajuda de Anita, fizera muitos
progressos.
Quando o tempo melhorasse, os alunos, junto com o
professor, iriam para a roça plantar. Cada um tinha que trazer de casa
49
uma enxada para afofar a terra úmida da chuva. Entre a lenha
carbonizada, pedaço por pedaço era aberto e plantado. Plantava-se
feijão como alimento principal, milho para pão de fubá e comida de
animais, raízes de mandioca, sementes de abóbora e melão, legumes
e cebola até que toda a terra estivesse preparada para suprir as
exigências do professor.
Assim, durante a época de aula joãozinho não aprendia
apenas a escrever, ler e calcular, mas também a trabalhar com a terra
do agricultor, sustentáculo da terra natal.
Após três anos o rapaz já estava tão adiantado que, às
vezes, substituía o professor junto aos meninos menores. Bento
Damásio disse então para o velho Cidral:
- O menino pode vir a ser um professor ou talvez um
político. Ele é seu afilhado e você não tem filhos. Deixe-o freqüentar
uma escola da cidade. A viúva não tem condições para isso. Ela é
pobre, mas você é rico!
O velho Cidral sorria satisfeito alisando seu cavanhaque
grisalho e disse, pensativamente: - Eu vou pensar. Seria bom, se um
homem muito capaz saísse de nossa região.
E, sem que Joãozinho suspeitasse, essa hora se tornaria
uma baliza para sua vida. O futuro lhe traria muitas experiências
novas e brilhantes como também muitas lágrimas silenciosas.
50
V
A preparação para a briga de galos. O sabiá e o colibri. As
selvagens abelhas melíferas. Os periquitos e os papagaios, o
tatu, o lagarto e o tamanduá, o inambu e a saracura, o bem-tevi, o pica-pau, a araponga. A briga do galo com o peru. A casa
do padrinho Cidral. As frutas brasileiras. Joãozinho empenha
sua liberdade. A briga de galos...
Joãozinho
ouvira
na
escola
que
dentro
de
algumas
semanas haveria uma grande briga de galos em Palmital.
Quando contou essa novidade em sua casa, os irmãos
Francisco e Pedro entreolharam-se sorrindo. Há muito tempo sabiam
dessa disputa que acontecia anualmente. Agora Joãozinho ficou
sabendo que eles estavam se preparando para participar da briga.
Para tanto, já haviam escolhido alguns frangos ainda mal formados e
que constantemente procuravam briga com outros frangos, investindo
ferozmente sobre esses.
O galo de Francisco era de plumagem preta, tinha um bico
cortante e esporas bem afiadas. Portanto, prestava-se otimamente
para a briga de galos. Já o futuro lutador de Pedro era amarelo e
magro, mas com boa estrutura.
Quando os rapazes tinham meia hora de folga, dirigiam-se
às escondidas até seus galos para atiçá-los e provocá-los até que
investissem contra seus donos. Assim, eles tornavam os galos, já
ávidos de briga por natureza, ainda mais ferozes e bravos.
Entretanto, a mãe não gostava que se preparassem esses
pobres animais para lutar e brigar, para o ódio e a selvageria. Ela se
irritava com tal crueldade, que se tornara um hábito dos rapazes dessa
região. Para ela, não se deveria maltratar de animais, pois eles sentem
dores como os homens.
Porém a juventude era assim, a opinião da mãe não
adiantava muito. Os rapazes praticavam secretamente seu jogo.
51
Joãozinho também se interessava muito pela coisa e
alegrava-se pelo dia em que os galos de briga dos irmãos venceriam
os outros galos.
Assim
preparados
e
que
os
adestrados,
dois
galos
Francisco
estavam
e
Pedro
suficientemente
organizaram,
às
escondidas, a primeira briga de galos, e Joãozinho pôde assistí-la.
Francisco segurou seu galo preto no braço e aproximou-o
do galo amarelo de Pedro. Os animais, que nos últimos tempos tinham
sido
separados e não mais se conheciam, eriçavam a plumagem
furiosamente e esticavam o pescoço para ferir o adversário com o bico
cortante. Mas Francisco e Pedro sempre os puxavam para trás até que
eles estivessem bem furiosos. Finalmente, quando a raiva dos galos já
era incontrolável, deixaram que um avançasse sobre o outro.
Os três rapazes sentavam-se no chão e atiçavam os galos
que saltavam um sobre o outro machucando-se mutuamente com
bicadas e com golpes de esporas. Porém, quando a briga esquentava
muito, as penas começando a voar e o sangue já escorrendo da
plumagem, cada um pegava seu galo e o prendia novamente.
Essas tentativas repetiram-se nos dias seguintes para
desenvolver a agilidade e a astúcia no ataque e incentivar a coragem
dos galos.
- Eu também quero um galo de briga -, dizia Joãozinho
freqüentemente após uma luta dessas. Mas os irmãos mais velhos
eram contra e diziam que ele ainda era uma criança. As brigas de galo
eram coisa de adulto e não de criança.
Porém, Joãozinho enfiara na cabeça que ele também
precisava obter e adestrar um galo de briga.
Mas quem lhe daria um galo, de presente, e onde ele
poderia treiná-lo sem que os irmãos soubessem?
Então lembrou-se que o padrinho Cidral, há alguns dias,
lhe dissera: - Joãozinho, o professor está muito satisfeito com você. Se
você precisar de alguma coisa, venha falar comigo!
Agora o padrinho deveria arranjar uma solução e ajudá-lo.
Numa bela manhã de domingo o menino pediu permissão à
mãe para ir visitar o padrinho Cidral.
52
- Sim, vá, Joãozinho - respondeu ela, - você já deveria ter
ido lá há mais tempo. Aqui, leve esta cestinha de morangos para a
madrinha. Eles não têm morangos no pomar.
Joãozinho se aprontara e tomou o atalho, pela mata, que
levava à casa dos Cidral. Logo dobrou à direita e subiu uma verde
colina de onde ainda avistava o telhado de sua cabana. Então
submergiu na aconchegante mata verde, cujos cumes murmuravam
muito acima dele.
Oh, era uma manhã maravilhosa, e Joãozinho não tinha
medo da floresta. Conhecia o caminho, pois já o percorrera muitas
vezes sozinho. Nos arbustos da mata o sabiá - a cotovia brasileira assobiava languidamente. Sob o sol da manhã brilhavam na delicada
folhagem verde e nas pontas da grama, gotas de orvalho que mais
pareciam milhões de diamantes, e um forte perfume de raízes exalava,
refrescante, do interior da mata que amanhecia. Inúmeras borboletas
brincavam no ar ensolarado, pequenos colibris coloridos zuniam sobre
flores do mato e orquídeas. Grandes escaravelhos zumbiam e grilos
cantavam alegremente. Abelhas selvagens carregavam ativamente
mel para sua casa, cuja entrada ficava no alto de um árvore oca. As
formigas carregavam, em compridos pelotões, pequenos pedaços de
folha sobre o caminho. Nos altos ramos das imensas árvores da mata,
os papagaios verdes faziam barulho e os periquitos gritavam. Um
grande lagarto tomava sol estendido no caminho.
Com o barulho da aproximação de Joãozinho o lagarto
sumiu na mata. E um tatu enfiou-se rapidamente em seu buraco. Em
algum lugar da mata um tamanduá zumbia, e uma corça marrom
sussurrava através dos arbustos. E lá embaixo, na garganta da mata,
um inambú e uma saracura se faziam presentes.
Joãozinho prestava atenção em tudo que via e ouvia. Até
mesmo os pequenos bem-te-vis ele ouvia gorjear, o pica-pau bater, e
o som metálico da araponga, pássaro que as pessoas chamavam de
"ferreiro" da floresta.
Após meia hora de cavalgada ouviu o latido de cães e o
cacarejar de galinhas. Ao sair da mata avistou, do lado da grama
plana, o sítio do padrinho José Cidral.
53
A casa branca, de barro e madeira, era coberta com telhas
marrom-
avermelhadas
e
tinha
muitas
janelas
e
portas,
que
freqüentemente estavam abertas. À esquerda, atrás da casa, via-se
um grande paiol de troncos de palmito e coberto com folhas também
de palmito. Atrás dele, estavam os cercados para cavalos, vacas e
porcos, como também para aves.
À direita, atrás da casa, ficava o grande pomar no qual
havia, como Joãozinho sabia ,uva, laranja, banana, limão, ameixa,
goiaba, ananás, araçá, cambucá, jabuticaba, pêssego, caqui, figo e
mamão. O Padrinho Cidral era famoso ali na região pelo seu pomar. E
qual o país que tem uma gigantesca riqueza em frutas primorosas
como o Brasil ?!
No espaço vazio defronte da casa moviam-se patos,
galinhas e perus.
Quando Joãozinho se aproximou, viu um pequeno galo de
um
marrom-avermelhado
atacar
um
peru.
O
peru
gorgolejou,
desdobrou furiosamente toda sua plumagem, em forma de roda, e
dançou esticando o pescoço para lá e para cá. Seus olhos cintilavam
irados na cabeça vermelha. Com o bico, partiu sobre o galinho
insolente.
Mas este saltou violentamente para cima do peru batendo com
as asas em seus olhos e deu-lhe, com muita agilidade, algumas
bicadas. E a plumagem marrom-avermelhada
voltava sempre a
agitar-se contra o peru, ameaçando-lhe os olhos com garras e
esporas. Finalmente o peru retirou-se, gorgolejando furiosamente, e
deixou
o
campo
de
batalha
para
o
inimigo
(galo
marrom
avermelhado).
- Dará um magnífico galo de briga! - disse Joãozinho rindo
e dirigindo-se diretamente para a casa.
Dois cães bravos aproximaram-se dele latindo. Porém, o
padrinho Cidral já chamava os animais de volta, pois saíra à janela por
causa dos latidos, e Joãozinho entrou na sala.
O padrinho José Cidral estava sentado em sua cadeira de
balanço, na sala, e fumava um cigarro de palha de milho. Ouvia-se o
palrear de sua mulher com a negra na cozinha.
54
Joãozinho aproximou-se do padrinho, beijou-lhe a mão e
recebeu a bênção. Então transmitiu as saudações da mãe e levou a
cestinha com os morangos para a cozinha, onde foi cumprimentado
calorosamente pela madrinha. Após responder a todas as suas
perguntas, saiu dali para fazer o pedido a seu padrinho.
- Sente-se no sofá! - disse o padrinho sossegadamente.
Joãozinho sentou-se no sofá trançado de cipó, perto do qual estavam
algumas cadeiras também trançadas.
O menino admirava a mobília maravilhosa. Nas paredes
brancas estavam pendurados retratos coloridos de santos. E, ao lado
dos quadros, viam-se as botas de montaria e o laço do padrinho
dependurado num gancho de ferro. Também sua espingarda e facão
estavam ali. Algumas penas coloridas de pássaros estavam pregadas
na parede. No canto, havia um pequeno altar caseiro com duas portas
abertas, e uma pia de água benta. À frente queimava uma lamparina
de querosene. Uma pele crua de jaguatirica, esticada sobre hastes,
apoiava-se numa das paredes.
No centro da sala havia uma mesa redonda com uma
toalhinha de crochê. E sobre a mesa, um prato de argila colorida sob
uma moringa marrom. Nas janelas havia até cortinas amarelas, e um
bonito armário estava ao lado da porta.
Nada disso havia na casa de Joãozinho, nem mesmo
assoalho como aqui. Lá, o assoalho era de barro pisado e, quanto a
móveis, tinha-se apenas banquinhos, mesas e um baú de madeira.
Como a casa do padrinho era bonita! Havia até um
escarrador colorido, no canto. Mas o velho senhor Cidral, ao fumar,
cuspia despreocupadamente no assoalho, onde já estavam algumas
bitucas de cigarro. Ele perguntava ao menino sobre uma porção de
coisas.
O velho soprava, com manha, uma grande nuvem de
fumaça do cigarro recém enrolado e pegou no braço de Joãozinho. Venha cá! - Ele passou a mão sobre os cabelos loiros e bem penteados
e disse amigavelmente olhando nos olhos azuis:
- Joãozinho, o professor elogiou-o novamente. No começo
ele estava insatisfeito com você, pois você não queria estudar. Mas, no
55
último ano, você passou todos os seus colegas. Logo o senhor Bento
Damásio não poderá lhe ensinar mais, pois ele próprio não sabe além
do que você sabe.
Joãozinho olhou para o chão envergonhado. Porém seu
coração exultava. Se o padrinho estava tão satisfeito provavelmente
lhe daria o galo.
- Joãozinho -, começou novamente o velho Cidral, jogando
a cinza do cigarro, - você sabe que você é meu afilhado. Você não
gostaria de ser um homem capaz, estimado que honre sua família e
seu povo?
Joãozinho acenou atenciosamente com a cabeça. Precisava
concordar com tudo que o padrinho dissesse para que ele lhe
arranjasse um galo de briga. - O Bento Damásio diz que você tem uma
boa cabeça. Você pode ser alguém na vida. Estou pensando em levá-lo
para a cidade. Você deve freqüentar uma boa escola e estudar. Eu não
tenho filho, assim quero fazer de você um homem que torne famoso
nosso canto da mata. O que você acha?
Oh, como Joãozinho se assustou com isso! Ele deveria ir
para a escola da cidade, onde a pequena Anita não poderia mais
ajudá-lo a estudar. Queriam arrancá-lo do lar para ir para o frio e
inimigo mundo estranho! Seus olhos encheram-se de lágrimas.
Agora ele não poderia dizer nada contra, senão o padrinho
não lhe daria o galo. Mas poderia passar muito tempo, ainda, até que
chegasse o dia da ameaçadora despedida. Assim, forçou o rosto num
sorriso afirmativo. Agora, o que estava em jogo era o galo. Por isso
respondeu baixinho com um "sim", quando o padrinho Cidral pegou
em sua mão e perguntou: - Você quer? - E em seu fervor em ganhar o
galo nem cogitou que concordara e que um homem decente precisa
cumprir sua palavra.
- Agora vá até a cozinha e peça à madrinha para ela lhe
dar alguma coisa gostosa para comer! - disse animado o velho Cidral.
Joãozinho hesitava.
- Tem alguma coisa lhe apertando o coração? - perguntou
o velho.
56
E, então, Joãozinho contou-lhe seu grande desejo. Ele
queria o galo marrom-avermelhado como presente, e adestrá-lo aqui
no quintal do padrinho até a briga da galos. E, ninguém poderia saber
disso.
- Ha, ha, ha - ria ruidosamente o velho Cidral, segurando a
barriga. Na verdade ele era contra o segredo e contra a briga de galos.
Contudo, divertia-se quando pensava na sensação que a aparição
inesperada
de
Joãozinho,
na
briga
da
galos,
causaria.
Assim,
concordou sorrindo. Joãozinho ganhou o galo desejado e a permissão
de adestrá-lo secretamente no quintal, como aprendera com os
irmãos. Passou o domingo todo na casa dos Cidral que lhe prometeram
guardar segredo.
A mãe e os irmãos surpreenderam-se muito que Joãozinho
visitasse freqüentemente seu padrinho nas semanas que se seguiram.
Antigamente ele não ia lá todos os dias! Maria, principalmente,
irritava-se pelo fato de Joãozinho deixá-la brincando sozinha em casa
ao invés de levá-la consigo. Joãozinho agia como se não se
apercebesse de nada e treinava seu galo para a briga na casa de
Cidral.
Assim chegou o domingo em que aconteceria a grande
disputa de galos.
O lugar escolhido para a luta era Palmital, assim chamada
a região entre as duas vendas.
Jovens e velhos vinham a pé ou a cavalo para Palmital. Os
vendedores
faziam
bons
negócios.
Também
Francisco
e
Pedro
puseram-se a caminho, com seus galos. Ao perguntarem a Joãozinho
se não iria junto, disse-lhes ele: - Eu vou depois, com o padrinho
Cidral!
No espaço livre diante da primeira venda limpou-se um
grande círculo. Ao redor deste, os rapazes sentavam-se no chão. Os
apostadores tinham seus galos embaixo dos braços. Atrás deles
estavam as mulheres, crianças e velhos que observavam tensos.
Sobre eles radiava o céu azul, no qual brancas nuvenzinhas
de cordeiros desfilavam, e um vento agradável trazia frescor para o
rosto das pessoas. Da primeira venda, soavam sons do gramofone.
57
Soltavam-se apenas dois galos de cada vez para lutar no
círculo. Apostava-se dinheiro em cada um deles. Quem apostava no
galo que vencesse ganharia o dinheiro. Os galos vencedores não
precisariam mais lutar naquele dia.
A primeira disputa estava em pleno curso quando o velho
Cidral e Joãozinho chegaram, a cavalo. Apearam em seguida. Numa
cestinha trançada de junco, Joãozinho trazia o jovem galo. Sentou-se
ao lado do padrinho Cidral, no círculo, junto aos outros participantes.
Além dos dois galos dos irmãos de Joãozinho, mais quatro
galos participavam da disputa.
O galo de Pedro acabara de derrotar seu adversário.
Joãozinho alegrou-se quando o irmão guardou o dinheiro da aposta e
pôs o galo amarelo de lado para descansar. Como vencedor, seu galo
talvez pudesse se apresentar mais uma vez na luta final.
Agora era o grande galo negro de Francisco que brigava
com o cinzento galo de raça do filho do vendeiro Henrique Lacerda.
Travou-se uma luta cerrada que excitou a todos. Mas, apesar do galo
de Francisco manter-se valente, no final ele sucumbiu e foi vencido.
Francisco perdera seu dinheiro.
Por fim, apresentaram-se para a luta os dois galos
restantes. Novamente todos acompanharam os saltos alternados, as
investidas, os ataques e as defesas dos galos lutadores até que o galo
mosqueado de várias cores, de Quintino, bateu o adversário.
Agora o importante era ganhar a luta final. Três galos
foram os ganhadores, o amarelo de Pedro, o cinza de Henrique e o
mosqueado multicor de Quintino.
Quintino exigia o galo de Pedro para a luta final. Após uma
disputa acirrada o galo de Quintino venceu. Assim, Pedro perdera a
aposta com seu galo amarelo, que vencera anteriormente.
Mas, ainda restava o invencível e temido galo de raça de
Henrique, o filho do vendeiro.
- Quem quer apostar contra meu galo de raça? - gritou
Henrique. - Ninguém tem coragem? - Olhava triunfante ao redor. Alguém tem um galo. que aceite lutar com o meu? - gritou
desafiadoramente.
58
- Mostrem o galo, mesmo que ele ainda não tenha lutado
hoje! Eu aposto dez mil-réis; quem tem coragem?
O velho Cidral sorriu ironicamente, cutucou Joãozinho e
deu-lhe uma nota de dez mil-réis. O coração de Joãozinho batia
violentamente - Eu aceito a aposta! - disse ele rouco pela excitação! Então,
abriu
o
fecho
do
cesto
e
seu
pequeno
galo
marrom
avermelhado saltou no círculo.
Isto causou uma grande sensação. As pessoas que
estavam mais distantes aproximaram-se rapidamente. Os irmãos de
Joãozinho, Francisco e Pedro, e o velho Bento Damásio com a filha
aproximaram-se também.
- Não, esse Joãozinho, esse menino! - comentaram as
pessoas - onde ele arrumou um galo de briga?
- Isso aconteceu com a minha permissão! - disse o velho
Cidral, orgulhoso. Sempre mais pessoas acercavam-se dali.
- Vejam que galo pequeno! - diziam - é esse aí que quer
brigar com o galo de raça de Henrique, ha, ha, ha! Joãozinho, você vai
perder seu dinheiro! - Henrique também ria irônico: - Deixem-no! Ele
quer se livrar do dinheiro! Em dois minutos meu galo mata de bicadas
esse pintinho! Passe para cá o dinheiro, se você não tiver medo. Isso
já está perdido, ha, ha, ha!
O dinheiro de Henrique e de Joãozinho foi entregue a uma
pessoa imparcial e o primeiro foi buscar seu galo de raça.
Entretanto, o galo de Joãozinho olhava timidamente em
volta para aquela multidão no círculo e, receoso, entrou furtivamente
no cesto que ainda estava ao lado de Joãozinho. Quando as pessoas
viram isto caíram na risada e zombaram de Joãozinho. Furiosamente o
menino empurrou seu galo para o círculo onde os rapazes estavam
sentados.
Então Henrique colocou seu galo de raça de boa estrutura,
que vencera na primeira luta, no centro do círculo. A ave batia as asas
e deu um grito de guerra "Cócóricó"
- Bravo, bravo - diziam os rapazes, aplaudindo.
59
No mesmo instante o galo cinza viu o pequeno galo
marrom-avermelhado de Joãozinho. E já partiu, com o pescoço
esticado, sobre seu adversário.
Assustado, o galo de Joãozinho pôs-se em fuga várias
vezes, seguido pelo galo grande, no interior do círculo de pessoas. Ele
procurava, evidentemente, um esconderijo. Porém, as pessoas cruéis
sempre o empurravam novamente para o círculo.
Um riso clamoroso ressoou. - O galo de Joãozinho está
fugindo! hi, hi, hi! O galo de Joãozinho quer ir para o galinheiro! ha,
ha, ha! - As pessoas riam às gargalhadas.
Joãozinho olhava, muito pálido, para o padrinho Cidral e
via que este mastigava furiosamente as pontas do bigode e,
aborrecido, franzia a testa. Aí brotaram lágrimas quentes nos olhos
azuis do menino. - Que vergonha! Seu galo não se apresentou uma só
vez. E o dinheiro do padrinho tinha-se perdido!
Agora o pernudo galo de Henrique alcançara o pequeno
adversário ligeiro e deu-lhe uma forte bicada. A dor repentina agiu
como por milagre.
Como um raio, de tão rápido, o pequeno galo marrom
voltou-se como se quisesse dizer: - Agora acabou a brincadeira, agora
estou falando sério!
E fez como fizera naquela luta com o peru: revoluteou com
as asas batendo ligeiro nos olhos do galo grande, cegando-o por um
instante. Simultaneamente, deu-lhe inúmeras bicadas violentas, veloz
como um raio.
Um aplauso coletivo e gritos de “bravo” elogiavam sua
valentia. Joãozinho respirava aliviado. O velho Cidral sorria muito
satisfeito.
A partir de então travou-se uma luta acirrada entre o
grande e o pequeno galo, em que o último compensava a forte
estrutura do galo de raça com grande agilidade. Habilmente o galo
pequeno esquivava-se das bicadas do grande, e pulava sobre seu
dorso, arrepiando seu pescoço e dando-lhe esporadas. Em seguida,
recomeçou a revolutear frente aos olhos do adversário e os turvava
batendo com as asas. Ao mesmo tempo, não poupava bicadas. Suas
60
garras atingiam continuamente a cabeça do galo grande. Golpe após
golpe, bicada após bicada, sem parar até que o cinzento galo de raça
perdeu a coragem e a força caindo, humilhado, no chão. No momento
seguinte fugiu com as asas caídas e sangrando muito.
Henrique procurava inutilmente, com grande ira, induzir
novamente o galo a lutar. Empurrões, beliscões e ralhos não
adiantavam mais nada. O galo grande tinha medo do adversário, e
fugia sempre, assim que o pequeno investia sobre ele.
Agora o galo de Joãozinho bateu a asas e cheio de orgulho
cantou um estridente "Cócóricó".
Estrondosos aplausos, gritos de “bravo” e risos seguiam
esse canto de vencedor.
- Joãozinho Felizardo! - gritou o velho Bento Damásio e
correu ao encontro do menino, - você é realmente um felizardo. Afagou o ombro de Joãozinho enquanto Anita sorria para seu colega de
escola com seus lindos olhos.
Joãozinho recebeu os 20 mil-réis e os deu ao padrinho
Cidral.
Sorrindo, o velho pegou as duas notas na mão, examinouas pormenorizadamente e deu uma nota de dez mil-réis ao garoto: Tome esta nota de dez mil-réis, Joãozinho, pois foi seu galo que a
ganhou. O dinheiro é seu. Os dez mil-réis que lhe emprestei aceito de
volta!
Joãozinho dançava de alegria. Era a primeira vez na vida
que
ganhava
dinheiro.
Todos
alegraram-se
com
sua
vitória
grãos
de
milho,
principalmente seus irmãos e Anita.
Joãozinho
chamava
o
galo
com
empurrando-o delicadamente para o pequeno cesto. Então todos
ficaram na venda onde falou-se sobre as brigas ainda por muito
tempo. Ao anoitecer, voltaram para casa.
61
VI
Joãozinho cumpre sua palavra. A despedida. A viagem para a
cidade portuária. A grandiosidade e a amplidão do Brasil. Os
rebanhos de gado dos campos, as florescentes colônias alemãs,
as matas de erva-mate, as serrarias e as plantações. O infinito
mar. As gaivotas e as garças. O porto. Um animal horrível. As
locomotivas e os automóveis. O transporte de mercadorias no
porto. A baía. Os navios...
Joãozinho conseguira impor sua vontade e vencer na briga
de galos. Contudo, já no mês seguinte, chegou o momento em que se
arrependia amargamente da promessa feita ao padrinho Cidral, pois
gostaria de poder voltar atrás. O padrinho, que muitas vezes já
conversara com a mãe de Joãozinho sobre o futuro do menino, deixara
recado para que se aprontasse para ir, por uma semana, para a
grande e distante cidade de Curitiba. Lá o menino seria apresentado a
um professor e testado por ele para verificar se poderia freqüentar a
escola da cidade. Nessa viagem o velho Cidral procuraria saber do
início das aulas, condições de pagamento e custo total, aproximado,
do estudo e do alojamento de Joãozinho. A instrução escolar do
menino, com o tempo, poderia tornar-se dispendiosa para ele.
Joãozinho agarrava-se a isso como última esperança. Ele
não poderia recusar-se a ir para a cidade e tornar-se um homem
ilustre, após ter dado a palavra ao padrinho(por causa do galo).
Porém, seu jovem coração constrangia-se ao pensar na viagem e na
tão próxima despedida do lar. Quando a mãe deu-lhe o recado do
padrinho, ficou vermelho como fogo. As lágrimas brotaram em seus
olhos azuis. A mãe perguntou-lhe, então, com expressão triste: -Vai
ser difícil para você, Joãozinho?
O menino precipitou-se sobre a mãe e enterrou a cabeça
em seu colo. Um soluçar violento sacudia-lhe os ombros. Ele deveria
deixar sua mãezinha, seu lar, a Maria, os irmãos e Anita. E ninguém
estaria com ele na estranha cidade. Nem Valente, o cachorro, nem
62
Jacó, seu papagaio. Aos poucos, e soluçando muito, dizia isso para a
mãe enquanto enfiava o rosto molhado em seu colo. Ela afagava seus
cabelos loiros com a mão suave, procurando acalmá-lo.
-Eu não quero ir para a cidade! - gritava desesperado. -Eu
quero ficar aqui!
-Mas, Joãozinho, você não precisa ir embora. - disse a
mãe. - Diga ao padrinho que você não quer.
O garoto levantou sua cabeça e disse chorando: -Mas eu
prometi ao padrinho!
-Bem, nesse caso você precisa manter sua palavra - disse
a mãe. - Palavra dada não volta atrás! O que se promete, precisa ser
mantido. Ela passou delicadamente a mão sobre o cabelo do filho e
recomeçou a falar: - Veja, meu filho, seria leviandade minha se eu me
opusesse a que você fosse para uma boa escola. Você poderá
encontrar um bom emprego e ganhar muito dinheiro. Já pensou se
você, um dia, voltar para cá como um homem ilustre e nos disser: Vocês não precisam mais trabalhar tanto. Eu quero dar-lhes dinheiro
para vocês fazerem uma casa melhor e comprarem uma vaca leiteira e
cavalos. E vocês também poderão ter uma criada para que a mãe e
Margarida não precisem fazer o serviço pesado. Imagine que felicidade
seria para mim, se o meu Joãozinho puder ajudar sua velha mãe!
Joãozinho
a ouvia com interesse. Agora, encantado,
desatou a rir alto por entre as lágrimas. Sim, deveria ser maravilhoso
se ele conseguisse proporcionar uma ajuda e uma alegria dessas a sua
mãe. Nessa hora também, mostrando firmeza, quis reprimir sua dor e
não deixar que o padrinho percebesse quão triste estava.
Nos dias seguintes falava-se apenas da viagem e das
preparações que se faziam necessárias. Joãozinho, que não precisava
mais freqüentar a escola da mata, visitou a família do professor para
despedir-se. A despedida de Anita foi-lhe difícil. Ele também procurou
alguns vizinhos para despedir-se. Porém, o que mais queria era ficar
em casa nesses últimos dias antes da viagem.
No meio do bambuzal atrás do quintal havia um lugarzinho
escondido que ninguém conhecia. Ali as verdes e lisas varas de bambu
cercavam o menino por todos os lados, como uma pequena mata,
63
quando ele queria ocultar da mãe e dos irmãos a dor e as lágrimas.
Nesse lugar, às vezes se atirava ao chão e chorava. Sobre ele o vento
murmurava, misteriosamente consolador, através das copas das
árvores, e sussurrava pelas folhagens verde-douradas dos bambus. E
o sabiá cantava sua suave melodia até que o menino o ouvisse e, aos
poucos, então se acalmava. Joãozinho propôs-se não deixar a mãe
perceber nada e aparentar alegria em casa.
Porém, o difícil momento da despedida aproximava-se.
Secretamente, Joãozinho já se despedira do cachorro, do papagaio, do
gato e dos porcos. Também acariciara seu galo marrom-avermelhado
por longo tempo e escondera os brinquedos feitos por ele mesmo.
Tinha também percorrido todos os recantos ao redor da casa.
Bem cedinho, com o nascer do sol, o padrinho Cidral já
estava diante da porta, montado em seu baio. O poncho e a bolsa
estavam presos na sela. Nas longas botas de montaria estavam a
espada e a pistola. - Pronto, Joãozinho! Vamos! - disse ele animado.
Joãozinho subiu em seu pônei gordo e marrom, o "Mico".
Ao despedir-se da mãe e dos irmãos reteve as lágrimas com muito
sacrifício. Eles não deveriam perceber quão difícil isso era para ele. Ele
queria ficar rico e poder ajudá-los. Todos estavam ao lado de seu
pequeno cavalo e Joãozinho procurava sorrir alegremente. Mas, então,
viu que Maria escondia seu delicado rosto no avental e ao chorar, sua
loira trança estremecia. Daí não pôde mais se conter e de seus olhos
também as lágrimas começaram a cair.
Felizmente o padrinho começou a tocar o baio. O "Mico" o
seguiu imediatamente e os dois cavalos seguiram a trilha, animados.
Agora Maria chorava alto, escondendo o rosto em seu
aventalzinho. A mãe e Margarida também começaram a chorar. Com
os olhos molhados acenavam para Joãozinho. Francisco e Pedro
agitavam os chapéus. Eles invejavam o pequeno irmão pela sorte, mas
ao pequeno homenzinho isto não parecia ser motivo para inveja.
O velho Cidral e Joãozinho cavalgaram até a encruzilhada
perto da grande figueira. O pônei queria virar para o costumeiro
caminho que levava à escola, do outro lado da mata. Porém, o velho
Cidral conduziu seu baio pela larga estrada da mata pela qual
64
Joãozinho, há quase sete anos atrás, correra com Valente para salvar
Maria, que desaparecera. Logo alcançaram a clareira onde, naquela
época, estava a tenda de ciganos e,
após seis horas de cavalgada
chegaram ao lugarejo mais próximo.
Após
duas
horas
de
descanso,
numa
venda,
eles
prosseguiram. Quando a noite aproximou-se chegaram à casa de um
amigo do velho Cidral, onde foram recebidos cordialmente. Joãozinho
parecia estar anestesiado o dia todo e não percebeu nenhuma
maravilha. O velho Cidral também ficara muito quieto, como era seu
costume. Joãozinho, logo após o jantar, deitou-se numa cama que
improvisara, com o baixeiro e o pelego, cobrindo-se com o pequeno
poncho azul que a mãe costurara para a viagem. Durante o dia todo
sentia um peso no coração dizendo-lhe que tão logo não veria a terra
natal e talvez já precisasse ficar na cidade. Não conseguia pegar no
sono. Somente depois que chorou bastante e fez sua oração conseguiu
adormecer.
Ele sonhava que já se tinham passado muitos anos. Agora
voltava para casa a cavalo, montado numa sela prateada. Uma grande
tropa de vacas e cavalos, que lhe pertencia, ia à frente. Atrás dele
vinha a tropa de burros carregada com víveres, presentes e dinheiro.
De repente todos os velhos amigos, conhecidos, e colegas estavam ali
e Bento Damásio fazia um longo discurso sobre o famoso Joãozinho
Felizardo, que honrou sua terra natal e cuja riqueza e prestígio
deviam-se à sua própria capacidade. Joãozinho viu como sua mãe
chorava de alegria, como Maria batia palmas com suas mãozinhas e
como Anita, com os negros cabelos encaracolados, olhava para ele
admirada. Ela estendia-lhe a mão sorrindo. Mas quando quis agarrá-la,
pegou no vazio e... acordou.
Então ele percebeu que toda sua felicidade e riqueza
tinham sido apenas um sonho e que estava sozinho, numa casa
estranha, deitado no chão. As figuras amadas da mãe, dos irmãos, de
Anita e dos pais desta sumiram. Longe, bem longe deles, ele
descansava sobre os apetrechos de sua sela e não em casa, em sua
cama de cipó trançado. Sentia-se terrivelmente abandonado e infeliz
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após o sonho lindo, e as lágrimas quentes brotavam em seus olhos
cansados. Por muito tempo chorou, até o sono o envolver novamente.
No dia seguinte Cidral e Joãozinho prosseguiram a viagem.
Cavalgaram por regiões solitárias onde havia apenas algumas casas e
também por pequenos lugarejos. Ao longe erguiam-se as pontas
escuras da montanha e as escarpas da serra sob o pálido azul do céu.
Todas as novas e inúmeras impressões das coisas singulares que
Joãozinho via no caminho faziam com que, por instantes, esquecesse a
amarga saudade do lar. Curioso, olhava de cima de seu pônei para o
mundo colorido e admirava-se de como o Brasil era grande e
maravilhoso. E o padrinho Cidral, que se alegrava com o espanto do
garoto, contava-lhe orgulhosamente que, mesmo que continuassem
cavalgando por mais mil dias, não veriam mais que uma décima parte
do Brasil. Falava-lhe dos grandes campos; das estâncias e da criação
de gado do Rio Grande do Sul; das florescentes colônias teutobrasileiras dalí e de Santa Catarina; das cidades do interior do Paraná;
das fazendas de café e dos campos de algodão de São Paulo. Ele já
viajara por esses estados brasileiros.
No terceiro dia chegaram à praia.
Oh, como Joãozinho arregalou os olhos quando desciam de
um outeiro e avistaram uma superfície de água, brilhante e flutuante,
que se estendia ao longe até tocar o céu. A luz do sol brilhava sobre as
ondas que se agitavam. Coroas de espuma branca ondulavam sobre as
verdes cristas de água que bramavam selvagemente e que voltavam
em quedas rompantes numa rebentação branca como neve.
Eles desceram até a areia branca e cintilante da praia.
Como paredes de água, que pareciam vidro verde, as ondas marinhas
desciam, com um estrondo trovejante, como se quisessem engolir os
dois cavaleiros. Aproximavam-se como se fossem cavalos selvagens
gritando, sacudindo as crinas de espuma branca e atirando-se umas
sobre as outras.
Joãozinho olhava assustado para o padrinho e queria pôrse em fuga com seu cavalo. Porém, as ondas furiosas despedaçavamse e pulverizavam-se numa espuma branca, que se espalhava numa
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água rasa e branca, debruando a praia plana e clara. A água mal
molhava os cascos dos cavalos.
Mas, do outro lado, o mar se quebrava furiosammente nos
negros rochedos que, de molhados, brilhavam. Com um estrondo
ribombante as ondas batiam contra os recifes, renovando sempre os
ataques tempestuosos. E as nuvens de água e de espuma branca
cobriam continuamente os rochedos.
Ouviam-se gritos estridentes de gaivotas brancas, garças
cinzentas e outros pássaros que voavam baixo sobre as ondas verdes
e lançavam, de repente, seus bicos na água que espirrava. Eles
caçavam peixes. Bem longe navegava um navio a vapor e, na linha do
horizonte, cintilavam algumas velas brancas.
Agora, a estrada conduzia para partes elevadas recobertas
de mata. Pouco a pouco os viajantes perdiam a visão do mar. Porém
Joãozinho
durante o dia todo, admirava-se por ter descoberto a
existência de uma coisa tão grandiosa, tão esplêndida e formidável
como o imenso mar.
Os dois viajantes pararam na casa de um pescador e
surpreenderam-se pela pescaria, pelos peixes magníficos. Havia
robalos,
prejerebas,
parus,
badejos,
pescadas,
tainhas,
bagres,
linguados e muitos outros peixes.
Ao cair da noite, chegaram à cidade portuária, onde
tomariam o trem para Curitiba. O velho Cidral tinha um amigo nas
proximidades do porto. Diante de uma grande casa desceram do
cavalo. Foram acolhidos cordialmente, pois a hospitalidade é uma das
boas características do autêntico brasileiro. Desarrearam os cavalos e
os conduziram para a mangueira. Cansados, foram convidados para
comer, numa mesa muito farta, e contaram para Ribeiro, amigo do
velho Cidral o objetivo, a finalidade da viagem.
No dia seguinte, Joãozinho ficou algum tempo diante da
porta da casa. O barulho nas ruelas, o ruído dos carros na
pavimentação de pedra, o grande número de pessoas e todas as
novidades que podia ver confundiam-no. As estreitas ruas pareciamlhe pedreiras.
67
-Não- pensou arrepiado, -Como essas pessoas são dignas
de compaixão, por serem forçadas a viver toda sua vida nesses muros
de pedra, nas ruelas estreitas. Como é maravilhoso para nós
morarmos no interior, na verde mata fresca onde o vento sussurra
pelas árvores, os pássaros e os animais da mata movem-se alegres, as
fontes e os riachos murmuram, onde temos liberdade para caminhar a
largos passos e ter uma visão panorâmica para admirar!.
De
repente
estremeceu,
assustado.
Uma
gritaria
penetrante e terrível ressoou pelo ar. Joãozinho rapidamente voltou-se
para a porta salvadora. Nesse momento, o velho Cidral saía e
Joãozinho tenso encarou-o. -O que está acontecendo? perguntou ao
padrinho.
-O padrinho não está ouvindo essa gritaria assustadora?
perguntou Joãozinho receoso, -deve ser um animal medonho para
gritar tão horrivelmente.
-Bobagem!- ria o padrinho Cidral. Isto é a locomotiva, a
máquina, que puxa os vagões do trem. Amanhã ela nos levará para o
planalto, através das montanhas da Serra do Mar.
Joãozinho olhava-o pensativamente. Será que isso não era
muito arriscado?
Porém, o dia ainda trouxe centenas de novas emoções
para o menino do interior. O padrinho foi com ele ao porto. Quanta
coisa podia-se ver já no caminho! Joãozinho não sabia para onde olhar
primeiro.
Aí de repente surgiu correndo, lá do canto, um monstro
sobre quatro rodas, zunindo e ofegando terrivelmente. Gritava muito
alto quando via as pessoas. Na frente, seus grandes olhos de vidro
aregalavam-se. Sibilava, fumegava e tinha o dorso largo como um
telhado.
Joãozinho, assustado, pegou no braço do padrinho e
empurrou-o contra uma parede da casa. O monstro já se aproximava.
Percebia-se que havia gente dentro dele.
- O que tanto você olha embasbacado, e por quê me
espreme contra a casa? - gritou o velho José Cidral. - Você nunca
ouviu falar de automóveis?
68
- Mas, padrinho, veja, um carro que anda sem cavalos!
Não tem nem timão! E as pessoas atrevem-se a entrar nele!
- Pateta, isto é um auto, do qual eu lhe falei! - Uma
máquina impelida a óleo e conduzida por rodas. A condução é feita
com um volante, como no navio.
O carro passara rapidamente e já desaparecera, deixando
o cheiro de gasolina e poeira no nariz e nos olhos dos dois habitantes
da mata.
Joãozinho continuava olhando, admirado, ao longo da estrada na
qual o monstro singular desaparecera.
Para ele era inconcebível que um carro pudesse se locomover
sem uma parelha de bois, de cavalos ou burros. E tão rápido como um
relâmpago, o carro voara dali.
Chegando
ao
porto
havia
novamente
muitas
coisas
notáveis para ver. Ali estavam, numa longa fila, os transportes
marítimos com seus mastros, veleiros, barcos e, chalupas. Um bulício
de carros e de barcos coloridos rodeavam o menino e seu padrinho.
Pessoas moviam-se com cargas nas costas. Grandes pilhas de barricas
e sacos com erva-mate, pilhas de tábuas, caixas e fardos eram
carregados
e
descarregados.
O
padrinho
mostrava
ao
menino
admirado três navios a vapor, ancorados mais ao longe. Até uma
canhoneira com proa afiada e convés baixo podia-se ver! Na baía
brilhante os barcos a motor balançavam ligeiramente de um lado para
outro. Faziam "toc, toc, toc" e atiravam a água espumante para cima,
diante da proa. E, de repente, começavam a uivar estridentemente.
Atrás de si deixavam como rastro, na água, um longo risco branco.
Gaivotas voavam em grandes bandos sobre a água verde-amarelada
do porto e apanhavam bocados de comida que caíam dos navios.
Do lado de lá da baía, atrás dos navios a vapor, viam-se
verdes ilhas arborizadas e rochedos marrons. Ao redor da água
erguiam-se, sob o céu azul, montanhas de um verde escuro a cujos
pés brilhava a areia branca da praia. Por toda parte viam-se casas
claras e cabanas escuras.
Os
dois
habitantes
da
mata
eram,
muitas
vezes,
empurrados de lado por carregadores apressados e marinheiros. Sobre
69
trilhos de ferro andavam carros abertos, puxados por burros. As
pessoas
sentavam-se
nos
seus
bancos.
Carros
de
transporte
aproximavam-se com barulho. Barricas e fardos eram rolados por
pessoas apressadas. O velho Cidral e Joãozinho pulavam de um lado
para outro, para não serem atropelados ou esmagados. A cabeça lhes
zumbia com todo esse barulho e tumulto e, assim, voltaram para dar
uma olhada nos cavalos.
70
VII
A primeira viagem de trem de Joãozinho. O milagre do
telégrafo. A inexperiência de Joãozinho causa alegria aos
companheiros de viagem. A Serra Geral do Mar. A viagem para
o inferno. Os túneis. A chegada em Curitiba. Os bondes. A vida
na cidade e pessoas estranhas. A hospedaria. O exército
brasileiro aproxima-se. A bandeira nacional. A catedral. A
venda da cidade..............
Ribeiro, em cuja casa os viajantes passaram a noite, levouos pessoalmente, no dia seguinte, até a estação ferroviária. O velho
Cidral usava pala de lã sobre o terno de domingo e calçara as
empoeiradas botas de montaria. De seus ombros pendia uma sacola
azul na qual estavam suas coisas. Joãozinho vestia seu terno novo
listrado, que a mãe lhe fizera e, na cabeça, o largo chapéu de tiririca.
Não estava acostumado com sapatos, por isso estava descalço. Porém,
usava, enrolado nas costas, seu pequeno poncho azul, com o qual se
cobrira durante a noite. Nas mãos segurava o saquinho branco com
paçoca para provisão de viagem.
Ribeiro
olhava
sorrindo
para
seus
dois
hóspedes.
Providenciou-lhes as passagens no guichê e deu-lhes conselhos úteis
para a cidade grande de Curitiba. Havia muitas pessoas na plataforma
da estação. A pesada locomotiva aproximava-se arfando e soltou
novamente um grito estridente, que já assustara o menino do mato.
Atrás dela rodavam os vagões com muitas janelas.
Joãozinho pulou de lado com o espetáculo da máquina
preta que bufava selvagemente e pisou violentamente no pé do velho
Cidral. - Ai meus calos! - gritou este e levantou bruscamente o pé. Tome cuidado, moleque! E vamos! - Com isso empurrou o menino
para a entrada do vagão.
Joãozinho nem sabia como entrara no vagão e se sentara
junto à janela aberta do carro. Tudo acontecera tão depressa e com
tanto barulho! O vagão estava cheio de pessoas desconhecidas que
arrumavam suas malas e caixas.
71
Um uivo estridente assustou o menino novamente. Um
abafado rodar, sacudir e triturar começou a fazer barulho sob seus
pés. O trem saía da estação. A viagem tornava-se cada vez mais
veloz. Por fim, parecia a Joãzinho que o trem estava parado, mas lá
fora, pelas janelas abertas,
árvores, campos, matas, casas, igrejas,
carros, animais e pessoas passavam correndo.
E o que eram os arames, lá em cima, que acompanhava o trem?
Os longos arames nas barras negras com cabeças brancas de vidro? O
menino puxou o padrinho pelo braço e perguntou-lhe o que era aquilo.
- São fios do telégrafo - explicou-lhe o velho Cidral. - As
palavras correm neles como um relâmpago quando a gente quer
mandar uma notícia rápida para alguém. Andam ainda mais depressa
que o trem!
Joãozinho olhava incrédulo para o padrinho. Será que o
padrinho não queria troçar dele? Porém, José Cidral parecia muito
sério. Continuou a contar que, agora, os homens haviam progredido
tanto que podiam enviar palavras telegráficas sobre montanhas e
mares
sem
fios,
e
que
essas
palavras
eram
interceptadas
corretamente nas estações. Contudo, para ele, essa coisa ainda não
parecia muito fidedigna.
O trem parava em todos os lugarejos e Joãozinho
debruçava-se então para observar o tumulto nas estações. Um dos
passageiros fechou a janela, na saída de uma das estações, para que o
vento não entrasse com tanta força no vagão. O menino não reparou
que a janela fora fechada.
Joãozinho aceitara com fervor a sugestão do padrinho para
abrir o saquinho de paçoca, para comerem alguma coisa. Colherada
após colherada empurravam agilmente a paçoca boca adentro. Com
que delícia saboreavam a farinha de milho com os pedaços de carne de
galinha! Isto era ainda um resto da comida vinda de casa.
Assim que terminaram, e guardaram o saquinho vazio com
as colheres de lata, ressoou o estridente uivo da locomotiva. O trem
parava numa grande estação repleta de pessoas. Como um relâmpago
Joãozinho esticou a cabeça para fora da janela de vidro que, pensava
ele, estava aberta. Seguiu-se um estalar e um estilhaçar. Cacos de
72
vidro voavam para todos os lados e caíram no chão. Felizmente, a
cabeça de Joãozinho fizera um buraco bem grande no vidro, pois, ao
puxar a cabeça de volta, via-se que ele não se machucara.
As pessoas que se encontravam na estação e as que
estavam no vagão davam gargalhadas ao ver o vidro quebrado e a
cara de bobo, assustada, de Joãozinho. O padrinho Cidral também ria
muito, batendo com as mãos nos joelhos. Logo aproximou-se da
janela um funcionário da estação e explicou ao velho que o vidro que o
menino quebrara custava seis mil réis. Aí, passou a vontade de rir de
Cidral. De cara azeda puxou a bolsa com o dinheiro e deu um safanão
no menino que, assustado,cambaleou.
A viagem prosseguia. Irritados e tristes estavam José
Cidral e Joãozinho, em seus bancos. Por longo tempo não olharam
para as barras de telégrafo, para as pontes, árvores, campos e nuvens
que passavam correndo.
Porém, quando o trem chegou na serra e subia as
elevações verdes e marrons em grandes curvas, quando abriu-se a
magnífica paisagem das montanhas, encostaram suas cabeças na
janela e olharam admirados para o mundo maravilhoso de Deus. Viam
abaixo deles, perdidos na distância, rochedos monstruosos; penhascos
enormes; gargantas profundas; vales verdes e tranqüilos com animais
pastando; quintas isoladas e pequenos lugarejos. Bem para baixo, a
vista deslizava pelo monstruoso e escuro abismo e, para, cima pelas
pontas escarpadas da cordilheira. Sobre pontes vertiginosas, que
pareciam suspensas no ar, o trem ribombava. Embaixo estavam as
matas silenciosas sobre cujos cumes parecia que os viajantes
pairavam entre o céu e a terra.
Para surpresa de Joãozinho cintilaram, de repente, todas
as lâmpadas do teto do vagão. Quem as acendera, ao mesmo tempo,
como
seus
relâmpago?
O
padrinho
queria
explicar,
porém
só
conseguiu arranjar uma explicação da luz elétrica tão confusa, que
Joãozinho, agora, é que não entendia nada.
Olhando pela janela, percebeu que o trem começava a
correr contra um alto penhasco. No instante seguinte teria que se
despedaçar. Horrorizado, Joãozinho fechou os olhos e segurou-se firme
73
no assento. A fumaça penetrava no vagão. Joãozinho abriu um pouco
os olhos e viu que lá fora era noite escura. Não dava para ver nem
uma estrelinha.
Ele já queria pegar no braço do padrinho e perguntar o que
significava aquela mudança assombrosa de dia claro para noite escura,
quando clareou de novo e o trem saiu, fazendo muito ruído, do buraco
da terra. Então o padrinho esclareceu-lhe que tinham passado por um
túnel que os homens haviam perfurado na montanha.
Joãozinho preferia já estar em casa e poder contar sobre
todas aquelas maravilhas para a mãe e os irmãos. Ora, como eles
ficariam admirados! Eles o tomariam por um mentiroso. Mas o
padrinho poderia confirmar tudo.
Seguiram-se ainda muitos túneis e coisas interessantes.
Porém, com o tempo, Joãozinho se cansara de tanto olhar e
adormeceu.
Acordou, depois de um longo sono, com o uivo prolongado
da locomotiva e com violento solavanco. O trem entrara na estação de
Curitiba e, de repente, parou quieto. Um barulho atordoante e um
tumulto enorme enchiam a plataforma da estação.
Um empurrar, impelir e puxar de pessoas que desembarcavam e
se cumprimentavam confundiam os dois habitantes da mata, até que
eles, finalmente, puderam sair do vagão. Através daquele tumulto de
pessoas empurraram-se até chegarem à praça da estação.
Longas filas de coches e carros atrelados com cavalos,
automóveis, ônibus e carros de carga estacionavam ali. Sobre estreitos
trilhos havia, alguns vagões abertos, que se ligavam, com finas barras
de ferro, ao fio elétrico. O velho Cidral explicou ao menino que eram
bondes, impelidos por energia elétrica que saía dos fios. Eles subiram
num desses vagões e o bonde partiu em seguida.
De ambos os lados levantavam-se edifícios altos como
Joãozinho jamais sonhara. Quanto mais avançavam para o centro da
cidade,
mais
aumentava
o
barulho
e
o
tumulto
de
carroças,
automóveis, coches, bondes e pessoas. Todos pareciam estar com
muita pressa. Os automóveis precipitavam-se em lugares apertados,
como se quisessem derrubar tudo o que estava à frente. Às vezes,
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Joãozinho fechava os olhos assustados e acreditava que, certamente,
haveria uma terrível colisão. Parecia que os carros velozes corriam
diretamente para cima do bonde. Porém, no último instante desviavam
com habilidade. Um buzinar, uivar, gritar, tocar de campaínha,
guinchar e apitar infernais o ar. Cheirava a gasolina, a breu, a poeira.
Meninos vendiam jornais subindo no bonde e gritando para os
passageiros. Vendedores de bilhetes de loteria, de frutas e meninos de
rua, faziam barulho. Joãozinho estava como que anestesiado e cravava
os olhos no tumulto de pessoas; nos incontáveis fios que se estendiam
aos lados, nas ruas; nas grandes vitrines pelas quais o bonde passava.
Joãozinho e o padrinho desceram do bonde num ponto de
parada e entraram numa estreita ruela, onde José Cidral sabia haver
uma hospedaria para pessoas do campo e tropeiros. Logo passaram
pelo portal do grande e monótono edifício. Sobre o portal brilhava um
letreiro onde estava pintada uma cabeça de boi. O estalajadeiro
possuía também um açougue que ficava ao lado da hospedaria. Ele
usava um avental, branco manchado de sangue, e no corredor da
casa,
cumprimentou
sorrindo
os
recém-chegados,
mencionando
imediatamente o nome de José Cidral, seu velho conhecido.
O velho Cidral alegrou-se com isso. - Sim, conhecem-me
em Curitiba -, dizia orgulhoso para o menino que olhava, admirado,
para o importante homem que era conhecido mesmo na cidade grande
de Curitiba.
Como o velho Cidral queria hospedar-se sem gastar muito
dinheiro, o dono da hospedaria conduziu os dois para um pequeno
quarto que ficava no quintal.
No cômodo havia apenas uma cama, duas cadeiras e uma mesa.
Não tinha nenhuma outra mobília ou utencílios. Lavatório não era
necessário, pois no quintal havia um poço.
Os viajantes tiraram suas mochilas e o estalajadeiro
deixou-os sozinhos.
- Nessa cama tem lugar para nós dois! - acenava o velho
Cidral com a cabeça. - As pessoas da cidade são mesmo estranhas,
cobram das pessoas até para dormir. Se tivermos apenas uma cama, é
mais barato! Joãozinho observava indignado, pois as pessoas da mata
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ofereciam aos viajantes não apenas uma cama, como também comida
de graça. As pessoas da cidade eram, certamente, mesquinhas.
O velho Cidral riu disso, pois era da mesma opinião.
Eles foram até o poço, lavaram o rosto e as mãos sujos do
pó da viagem e caminharam cautelosamente, pelo corredor, até a sala
de refeições. Em numerosas mesas estavam carroceiros, trabalhadores
e pessoas do campo. José Cidral pediu um almoço e um copo de água.
Depois que saciaram a fome, saíram para a viela, pela qual
logo chegaram à rua movimentada. Novamente, Joãozinho admiravase do andar apressado das pessoas e seu vestuário estranho, que
destoava muito da moda da mata. Ali caminhavam muitos janotas,
rapazes cujas calças eram
muito justas e muito curtas, enquanto
paletós pareciam casacos de mulher, apertados na cintura e uma
abóboda no peito. Usavam sapatos de bico fino. E as senhoras finas
então! Estas usavam vestidos que, em cima e em baixo, eram muito
curtos e sem mangas. E não eram justos na cintura como a roupa dos
rapazes da cidade e das mulheres da terra natal. Os vestidos caíam
quase retos, como uma camisa. E que chapéus estranhos elas usavam
na cabeça! Em casa, na mata, essas mulheres seriam motivos de
muita risada!
Felizmente,
Joãozinho
também
via
pessoas
que
se
trajavam como ele e o velho Cidral. Isto o tranqüilizava.
Nas ruas havia novamente o louco correr e o barulho dos
automóveis, dos bondes elétricos, dos carros de carga e coches. Por
que todos tinham tanta pressa? Será que aconteceu alguma coisa em
algum lugar? Eles andavam no passeio e paravam freqüentemente
diante das ofuscantes vitrines para olhar as muitas coisas bonitas e
estranhas que estavam expostas. Porém, o velho Cidral sempre estava
com pressa, pois tinha muitas incumbências e compras para fazer.
Joãozinho admirava novamente os meninos barulhentos que
vendiam jornais; os impertinentes vendedores de bilhetes de loteria;
os muitos aleijados que pediam esmola; os monges e freiras vestidos
de preto que andavam pela multidão; os numerosos engraxates que
manejavam zelosamente os calçados nos pés dos senhores sentados
em altas cadeiras; os muitos salões de barbeiros e os cafés com
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incontáveis mesas cheias de gente.Homens com estranhos carrinhos
de mão que, na rua, vendiam sorvete e frutas; vendedores de rua que
procuravam, com um grito longo e uma mistura de instrumentos,
chamar a atenção sobre eles.
O velho Cidral caminhava cautelosamente entre esse
tumulto e respondia a cada vendedor ambulante. Estava orgulhoso
pela cortesia com que lhe ofereciam aquelas coisas. Provavelmente
viam que ele era um homem abastado e isso o alegrava! Comprou um
jornal de dois meninos, e deixou-se engabelar com um bilhete de
loteria que deveria correr no dia seguinte. Mais tarde, percebeu-se que
não poderia ler o jornal porque não trouxera seus óculos. E o bilhete
de loteria era uma sorte em branco. Porém, ele resolveu levar o jornal
e o bilhete para a mata e mostrar às pessoas de lá que tipo de homem
ele era. Daí, o velho Bento Damásio poderia ler o jornal para ele. E
talvez ainda pudesse passar-lhe o bilhete de loteria!
Os dois entraram em algumas lojas e perguntaram pelos
preços. As compras, o velho adiou para o dia seguinte. Aos poucos
queria descobrir onde se comprava mais barato. Com um piscar de
olhos Cidral explicava ao menino que o admirava secretamente pela
esperteza.
De repente ouviram um rufo e som de música.
Pararam
imediatamente
junto
à
multidão
curiosa
que
já
se
aglomerava. Então viram um longo pelotão de soldados uniformizados
que se aproximavam marchando compassadamente. À frente vinha um
oficial num belo cavalo, empunhando a espada. Em seguida, um
pelotão de soldados com a bandeira nacional.
Todas as pessoas na rua tiraram o chapéu - exemplo
seguido lentamente pelo velho Cidral. Ele também arrancou o chapéu
da cabeça do garoto, fazendo com que este olhasse indignado para o
padrinho. Então, percebeu que não só o padrinho mas todas as
pessoas estavam com as cabeças desnudas.
Agora os tocadores de tambor passavam marchando.
Seguia-se um pelotão de soldados. E então recomeçava a música
militar.
77
Oh, como o menino da mata se animava! O exército
brasileiro!
Com que orgulho e ousadia os belos rapazes vestidos com
o bonito uniforme marchavam ao som retumbante da música!
Agora, Joãozinho sabia que desnudara a cabeça diante da
bandeira da pátria, diante do símbolo sagrado da terra natal. E seu
peito jovem enchia-se de orgulho ao pensar que ele também pertencia
à grande nação brasileira e que também, algum dia, usaria o uniforme
de defensor da pátria!
Depois que o grande pelotão de soldados passara por eles,
colocaram novamente seus chapéus e atravessaram uma grande praça
ornamentada com muito verde, com canteiros de flores, e árvores de
sombra repuxos e bancos. Sentam-se admirando os jatos de água que,
dos repuxos jorravam para cima. Depois, levantaram-se e continuaram
a andar até que chegaram a uma igreja. Entraram pelo grande portal
para rezar. Joãozinho, contudo, ficou tão atônito com o esplendor da
casa de Deus que esqueceu-se de fazer sua oração. Ao deixarem a
igreja, isto pesou-lhe muito na consciência.
O velho Cidral perguntou a um guarda uniformizado onde
ficava a rua da grande venda de Bark, Pereira & Cia. O policial
mostrou-lhes um bonde elétrico que se aproximava, zunindo e
buzinando violentamente, e que parou a um seu sinal. Os dois
agradeceram e subiram rapidamente. Depois de percorrer uma boa
distância, o bonde parou e o condutor mostrou-lhes um edifício em
que estava escrito, em letras grandes, "Bark, Pereira & Cia.
Eles desceram do bonde e caminharam para o prédio. Por
uma das muitas portas, entraram no amplo espaço da venda.
Joãozinho jamais acreditara que pudessem existir no mundo vendas
tão imensas. Na parte posterior havia longas mesas e muitos
empregados
corriam
por
ali,
carregando
mercadorias
para
os
vendedores e vendedoras. O velho Cidral aproximou-se e perguntou
pelo Dr.Bark.
- Qual o nome do senhor? - perguntou apressadamente um
rapaz examinando o velho de barba grisalha, sua roupa e suas
empoeiradas botas de montaria.
78
- O senhor não me conhece? Eu sou José Cidral da região
de Palmital, um bom amigo do Dr.Bark - respondeu, um pouco
ofendido, o velho.
Uma das empregadas da loja correu para dentro. Porém,
logo retornou e conduziu os dois habitantes da mata para o escritório
particular da loja.
79
VIII
A prova. A decepção de Joãozinho ao saber que não será
doutor. A magia: através da parede, ouve-se um chamado por
alguém que entenda a língua alemã. O telefone. A luta interior
de Joãozinho: ele quer voltar para casa. O sentimento do dever.
O moinho de erva-mate. A viagem em carro de transporte
através do campo......
Dr.
Bark
tinha
sido
advogado
antigamente
e
agora
dedicava-se ao comércio. Seu sócio, Pedro Pereira, era um amigo de
juventude, e foi através dele que se tornara comerciante. Hoje estava
sozinho no escritório e revia umas cartas. Quando os dois habitantes
da mata entraram, levantou a cabeça já grisalha e olhou sorrindo para
o velho José Cidral que, há muitos anos, tinha como homem corajoso,
desde que estivera em sua casa para caçar. Levantou-se da poltrona,
abraçou
o
velho
habitante
da
mata,
estendeu
a
mão
para
cumprimentá-los e pediu-lhes que se sentassem.
- Como está passando a velha senhora, lá em casa? E
vocês? - perguntou alegre.
José
Cidral
respondeu-lhe
cordialmente
e
perguntou
também pela saúde do Dr. Bark. Conversaram assim por algum
tempo. O comerciante ofereceu ao velho amigo um charuto, que este
acendeu cerimoniosamente.
- Foi muito bom que o senhor aparecesse, novamente
amigo Cidral! - disse o comerciante. Já faz alguns anos que o senhor
não vinha para Curitiba. O que o traz aqui? Negócios? O senhor quer
nos vender ou comprar alguma coisa? Ou posso ajudá-lo de alguma
outra maneira? O senhor sabe, sou seu velho amigo.
O velho Cidral estava radiante de alegria e procurava os
olhos de Joãozinho para ver se este percebia a grande amizade e
consideração que o distinto Dr. Bark, o chefe da grande firma, lhe
devotava.
Cidral relatou então, naquela sua maneira vagarosa, que
tinha muitas coisas para resolver em Curitiba, porém o principal
80
motivo daquela longa viagem era colocar o menino numa boa escola
para, mais tarde, cursar uma universidade. O menino deveria ser um
doutor, um homem ilustre para honra de sua terra natal. Era seu
afilhado e tão inteligente que concluiria logo os estudos.
Bark o ouvia calmamente. Então voltou-se para Joãozinho:
- O que você aprendeu? - Joãozinho corou embaraçado, escorregando
na cadeira.
- Você sabe calcular e escrever bem? - Joãozinho acenou
confirmando. - Você sabe alguma coisa de gramática? - Dr. Bark
continuou
- Gram-grama-tica? - gaguejava Joãozinho e seus
pensamentos se voltaram para o capim lá da terra, que era chamado
de grama. De repente, lembrou-se da máquina falante da venda da
mata, que parecia chamar-se assim "Grama-gramo" Ele acenou
rapidamente com a cabeça e seus olhos azuis brilharam.
- Bem, então diga, o que você sabe de gramática,
perguntou Bark.
- É uma máquina falante! - disse Joãozinho, muito
orgulhoso de seu conhecimento.
- Uma máquina falante? O senhor Bark olhou perplexo e
abanou a cabeça sem compreender. - Como máquina falante? A
gramática faz muita coisa com a língua. Mas máquina falante... de
onde você tirou isso?
O velho Cidral sorriu satisfeito. - Ele não sabe nada de
gramática. Ele pensa que o senhor está se referindo a um gramofone.
Bark ria sonoramente. - Gramática e gramofone! Isto é
delicioso! - disse divertido. - E como está em Geografia e História? continuava rindo e testando.
Joãozinho olhava-o sem compreender. Devagar começava
a perceber que era um menino ignorante e que os conhecimentos que
o velho Bento Damásio lhe passara deveriam ser muito insignificantes.
Será que ele poderia voltar para casa, junto da mãe e dos irmãos? Seu
coração batia forte diante dessa maravilhosa possibilidade. Mas...
então nunca seria um ilustre homem rico, como sua mãe o imaginara!
Não poderia ajudar a querida mãe e os irmãos a saírem da pobreza,
como era seu grande sonho.
81
Bark deixou que ele lesse em voz alta um trecho do jornal
"Comércio do Paraná" e passou-lhe algumas contas fáceis para cálculo
mental. Joãozinho concentrou-se e saiu-se bem.
O comerciante balançou a cabeça! - O menino tem apenas
as noções que tinha o seu professor da mata. Mas parece que ele é
inteligente!
José Cidral disse satisfeito: - É, isso ele é mesmo!
-Como é seu nome? - Perguntou o senhor Bark, - João
Soares Pilz?
Joãozinho respondeu afirmativamente.
- Você sabe falar alemão? - continuou a perguntar o
comerciante, passando da língua nacional para a língua alemã.
Joãozinho respondia às suas perguntas num alemão entrecortado. - É
surpreendente que você não só fale a língua de sua mãe, a nossa
língua nacional, mas também a língua de seu pai! disse o comerciante.
- Ambas as nações, tanto a alemã quanto a portuguesa, cujo sangue
corre em suas veias, têm feito grandes realizações e têm revelado à
humanidade grandes homens. Ambas as nações trabalham juntas na
construção e na grandiosidade do Brasil. Você, meu jovem, diz
Norberto, Bark é brasileiro. - Honre sempre as duas línguas, pois um
homem autêntico não esquece o país e a língua de seu pai e tampouco
a de sua mãe.
Deu a mão a Joãozinho e voltou novamente a falar
português. - Também seria um prejuízo descuidar-se de uma das
línguas, pois o que você aprende brincando quando criança - noções
de uma outra língua - como adulto você não pode prescindir de gastar
muito dinheiro para aprendê-la. O conhecimento de uma língua
mundial como o alemão, sem contar sua língua materna, significa uma
inafiançável riqueza para a batalha da vida. Não jogue fora essa
riqueza, porém lute por ela!
Concordando, disse o velho Cidral: - Aí, o senhor tem
razão! Eu já teria ganho muito dinheiro se além de nossa língua
nacional eu soubesse alemão! Teria feito muitos bons negócios!
- Veja! - riu o comerciante. - Bem, o Joãozinho precisa
ainda ter muitas aulas particulares, antes que possa freqüentar as
82
primeiras séries do ginásio. Ele levará pelo menos uns catorze anos
até conseguir o título de doutor. E então, nos primeiros anos ganhará
tão pouco que, possivelmente, ainda precisará de um subsídio. O total
até ele se formar montará mais ou menos de 20 a 30 contos de reis.
- Pelo amor de Deus! - gritou o velho Cidral e caiu para
trás em sua poltrona. - Isto seria mais da metade dos meus bens!
Não, isto eu não posso! É uma pena, mesmo, mas o Joãozinho não
será doutor! Será que o senhor não está apenas brincando?
Porém, Joãozinho deixou cair sua cabeça. Agora tinha-se
acabado seu brilhante futuro!
- Não, estou falando sério! - disse Bark. - Tenho que saber,
já que eu também estudei! Mas o senhor não precisa ficar triste por
isso. O senhor não vê que pendurei meu título de doutor e advogado
na parede para tornar-me comerciante? Eu não deixo que meus filhos
sejam acadêmicos.
Um médico, um funcionário do estado, juiz e todos os doutores
têm na vida, na maioria das vezes, menos independência e bens do
que
um
comerciante
autônomo
ou
industrial.
-
Quando
"nós"
queremos viajar, não precisamos pedir férias a ninguém e não
precisamos perguntar se o dinheiro é suficiente. Um homem capaz não
precisa de um título de doutor para conseguir ser ilustre e rico. Deixe o
menino...
Levantou-se
e
foi
até
a
parede,
onde
tocava
uma
campainha estridente. - Desculpem - disse, e pegou, como Joãozinho
via para seu espanto, um objeto redondo pendurado numa caixinha e
que ele segurava junto ao ouvido. Bark ficava lá e falava para dentro
da caixinha, da qual saiam palavras humanas que pareciam com os
cantos dos grilos.
- O que é essa mágica, de novo? - pensava Joãozinho e
puxava interrogativamente o padrinho pelo braço.
- Isto é um telefone! - cochichou o velho, - com isso a
gente fala através da parede com pessoas que estão distantes, que
moram em outras partes da cidade. Através da eletricidade os fios lá
fora levam as vozes e trazem as respostas.
83
Joãozinho bateu as mãos. Algo assim existia no mundo!
Maravilhoso! Inconcebível! A partir de agora ele considerava tudo
possível. Não se admiraria se o senhor, Bark de repente, saísse dali
voando através da parede.
Porém, este pendurou o fone redondo no gancho do
telefone e disse: - Vamos acender a luz! Já está escurecendo! - Então
ele apertou um botão na parede. No mesmo instante, duas lâmpadas
brilharam. Uma luz branca e forte propagava claridade no ambiente.
Joãozinho se admirava mais. Achava que as pessoas da
cidade eram capazes de qualquer feitiçaria.
Bark sentou-se novamente. - Parece que o seu Joãozinho
tem sorte, velho amigo - disse, dando um tapinha no joelho do o velho
Cidral. - O empregado responsável pela minha filial de Casa Branca
acabou de dizer-me que está precisando de um aprendiz que saiba
falar português e alemão. - O seu Joãozinho, na verdade, mal tem
catorze anos, mas é um menino corpulento. O que o senhor acha se o
mandássemos para o comércio do mate?
Eu daria ordem a esse empregado para dar aulas para o
menino. Ele é um senhor muito culto. - Joãozinho, à noite, aprenderia
mais do que aqui na escola. Lá terá moradia e comida de graça e
receberá, no primeiro ano, 30 Mil-réis por mês. Então o que o senhor
acha?
Um peso grande caiu da alma do velho Cidral. Respirava
aliviado. Via um bom emprego surgindo para o menino sem que ele
próprio tivesse alguma despesa.
- Joãozinho, você é realmente um felizardo! - disse
alegremente. - Assim, você não precisa ficar na cidade grande e ainda
pode ser um homem ilustre e rico, se for capaz e corajoso.
- O garoto vai gostar lá do campo de Casa Branca, achava
Bark. - E se ele tiver sorte poderá um dia ser um vendedor autônomo.
Mas, ele precisa assumir o emprego já. - Nós compraremos um
vestuário melhor para ele e o senhor, amigo Cidral, poderá levá-lo
pessoalmente até Casa Branca. O senhor chegará lá, com um dos
nossos carros de carga, em dez horas.
84
- Sim, farei isso! - O que você diz disso, Joãozinho? - Você
quer voltar para casa ou quer ser um vendedor ilustre e rico?
Os olhos de Joãozinho encheram-se de lágrimas por ter
tomado consciência, de repente, do grande tempo que iria ficar
afastado de sua casa. - De vez em quando eu posso ir para casa ver
minha mãe? - perguntou com voz triste.
- Com certeza! - disse o senhor Bark tranqüilizando-o. - Se
você trabalhar direito e se seu patrão estiver satisfeito com você,
poderá ir para casa a seis meses, por três dias. Mas, depois, uma vez
por ano!
- Sim, eu vou! - sussurrou Joãozinho segurando o choro. Quero ganhar dinheiro, para poder ajudar minha mãe!
- Homenzinho corajoso! - disse Bark batendo-lhes nos
ombros. - Você dará muitas alegrias para sua mãe e a honrará muito!
Todos os pormenores foram tratados. Bark escreveu
algumas linhas para Rodrigo, patrão da loja de Casa Branca. Então, os
dois habitantes da mata despediram-se e saíram do escritório. Um
empregado acompanhou-os até a rua onde longa fila de lanternas e
lâmpadas elétricas, vitrines brilhantes e milhares de janelas iluminadas
faziam a noite virar dia.
O empregado chamou o bonde elétrico que se aproximava,
todo iluminado e tocando muito alto o seu sino através do barulho da
rua. O empregado avisou o condutor onde os dois homens do campo
deveriam descer. Estes logo se sentaram e o bonde partiu.
Para Joãozinho, tudo que vivera desde que saíra de sua
casa parecia um sonho. Neste sonho viajava pelas ruas que brilhavam,
iluminadas, num carro sem cavalos. Como cintilavam e faiscavam as
vitrines brilhantes, como luziam as deslumbrantes e iluminadas
tabuletas no alto dos telhados e cumes das casas, e as luzes dos
letreiros de propaganda que se apagavam para em seguida se
acenderem novamente em muitas cores! Como os carros, coches,
automóveis e carros de carga retumbavam e zuniam num estrondo
selvagem pelas ruas! E esta multidão nas calçadas! Este chamar,
gritar, rir e tanto falar!
85
Os dois desceram na travessa e procuraram, a pé, pela
hospedaria. Jantaram, pensativamente. Na hora do cafezinho, o velho
Cidral, já sentindo-se mais à vontade, começou a rir. - Ha, ha, ha,
você é realmente um felizardo! - Mal o senhor Bark tinha-me
dissuadido dessa estória de estudar porque a coisa iria custar muito
dinheiro, e eu já estava decidido a levá-lo comigo de volta para casa,
quando alguém fala através da parede: - Eu preciso de um aprendiz
que entenda alemão! - E, pronto, meu Joãozinho tem um emprego,
onde ele não apenas poderá continuar a estudar como também terá
moradia e comida de graça, ganhando trinta mil-réis por mês. É difícil
de acreditar. Ha, ha ,ha!
Logo eles se recolheram.
Passaram
o
dia
seguinte
fazendo
muitas
compras.
Joãozinho ganhou dois ternos novos, um bonito chapéu de feltro,
meias, roupas íntimas e um par de sapatos, além de uma mala de lata
colorida.
O velho Cidral reclamou por causa dos altos preços. E
mesmo assim, estava intimamente feliz por não ter mais que pagar o
estudo caro de Joãozinho, como havia imaginado em sua casa.
Na manhã do terceiro dia, como Bark lhes aconselhara,
dirigiram-se para o moinho de erva-mate da firma, procurando pelo
carro de carga que os levaria até Casa Branca.
Um taramelar, triturar e bater ressoava da grande moenda
de
mate
coberta
com
chapas
onduladas.
Ao
lado
erguiam-se
numerosos galpões menores. Uma alta chaminé fumegava, máquinas
sibilavam e ronronavam. No ar havia uma poeira cinza esverdeada que
cobria todos os telhados. Um cheiro suave e aromático de erva-mate
entrou-lhes pelas narinas. Todos os trabalhadores estavam cobertos
com o pó verde. Vários carros com toldos, atrelados com seis e até
oito cavalos, descarregavam a erva-mate em sacos, como vinha das
matas. Outros carregavam para os carros barris de madeira limpos e
guarnecidos com etiquetas coloridas. Nestes barris a erva triturada e
seca ia para a estação ferroviária para ser transportada dali para o
porto, de onde seria enviada, de navio, para a Argentina, Uruguai e
Chile.
86
Saindo do tumulto do átrio, os dois camponeses entraram
no moinho de erva-mate, para perguntar ao guarda sobre o carro que
procuravam. Lá dentro, em muitas repartições, os diferentes tipos de
mate eram despejados em grandes montes. Trabalhadores esvaziavam
os sacos que chegavam cheios. Avançando mais um pouco viram
grandes máquinas de peneirar, cilindros de secagem, prensas que
subiam e desciam, e enormes moedores em que o verde mate era
triturado.
Em cima, ao lado do telhado escuro e sujo do enorme pavilhão e
ao longo das paredes, corriam largas correias com pás que traziam,
ininterruptamente, novas remessas de mate. Um grande número de
rodas vibrava e estalava, correias de couro agitavam-se rapidamente
de roda em roda. Reinava um barulho ensurdecedor e a poeira verde
espalhava-se por toda parte com tal intensidade que o velho Cidral
saiu para respirar ar puro.
Nesse instante alguém gritou para eles: - O que vocês
querem aqui? Vocês não sabem ler? Lá fora tem uma tabuleta:
Entrada proibida! - Era o guarda, um homem alto e sinistro, que assim
lhes falava procurando, brutalmente, empurrá-los para fora.
Porém o velho Cidral não se deixou intimidar. Por sua vez,
berrou para o guarda: - Cuidado, seu grosseiro! Eu sou José Cidral,
amigo de seu patrão. Se você, seu malcriado, não sabe como tratar
pessoas decentes vou contar isso ao senhor Bark! Onde está a
condução que deverá levar-nos para Casa Branca?
O guarda murmurou uma desculpa e conduziu-os até o
pátio de entrada, onde um carro de transportes acabara de ser
carregado com sacos de farinha, caixotes, fardos, sacos de café e
açúcar.
- Ali, o velho Tom os levará. Vão lá e se anunciem. O
carreteiro já está informado!
Então
o
carreteiro,
já
grisalho,
acenou
para
eles.
Aproximaram-se rapidamente do carro, dispuseram a malinha de lata
e as mochilas e sentaram-se sob o toldo da carreta.
87
IX
A luta. Os pinheiros e a mata de erva-mate. A venda do campo.
Um reencontro indesejável. Um inimigo oculto. Águas furtadas.
Joãozinho é introduzido na nova profissão. O marujo baiano
sedento de sangue. Joãozinho quer deixar a redondeza sinistra.
Sua amarga saudade do lar........
Passando o carro pelo subúrbio, as casas foram, aos
poucos, desaparecendo. A poeirenta estrada conduzia-os ao campo. Cá
e lá via-se um bosque na verde paisagem da colina. Os cumes das
negras e sérias florestas de pinheiros erguiam-se sombrios no
horizonte. O céu estendia-se, cinzento e baixo, sobre o imenso campo
onde alguns cavalos e bezerros pastavam. De vez em quando os
carros de transporte, que iam um atrás do outro, passavam por
quintais isolados e por pequenos lugarejos.
Para o descanso do almoço, os carreteiros paravam num
bonito gramado, próximo a uma pequena corrente de água. Os cavalos
eram desatrelados e rolavam imediatamente, gemendo e fungando, na
poeira da estrada ou na grama. Então levantavam-se sacudindo a
poeira do pêlo e começavam a pastar nas proximidades.
Os carreteiros juntavam lenha seca e acendiam uma
fogueira na qual esquentavam o feijão, preparavam o café e fritavam a
carne. O velho Tom convidou seus passageiros a comerem com ele.
Todos sentaram-se em círculo, ao redor do fogo, e começaram a
comer.
Antes disso, os carreteiros colocaram milho e palhiço nos
cochos de madeira que estavam presos em ambos os lados de cada
carro. Com o barulho da comida caindo nos cochos, os cavalos
aproximavam-se e tomavam seus lugares para comer.
Após duas horas de descanso no campo livre, os cavalos
eram novamente atrelados e a viagem continuava.
Entretanto, o céu escurecia. Uma forte chuva caía no toldo
sob o qual viajavam José Cidral e Joãozinho. A estrada ficava cada vez
mais acidentada e confusa, e agora entravam pela mata de pinheiros
88
sob cujos troncos enormes e aprumados brilhava, na chuva, a
folhagem verde e suculenta dos pés de mate.
Já era noite quando as carretas, que andavam devagar,
subiram a última encosta. Via-se, ao pôr do sol, as casas brancas de
madeira e os galpões que pertenciam à Casa Branca. A chuva cessara.
Os fortes estalos de chicote contribuiam para que, os
carros de transporte fizessem um grande ruído no pátio em frente à
venda. Diante da comprida casa estendia-se uma grande varanda feita
de grossas vigas. À sua frente encontravam-se encaixilhados muitos
postes, nos quais se amarravam cavalos selados. Para chegar à
varanda precisava-se subir alguns degraus. Na loja, onde tropeiros e
habitantes da mata se empurravam, havia três portas duplas abertas.
A esta espaçosa loja anexavam-se os escritórios à esquerda, e as salas
à direita.
De ambos os lados do grande pátio erguiam-se os
armazéns, os galpões e os estábulos. Todos eram feitos de tábuas de
pinheiros e cobertos com ripas cinzentas também de pinheiro.
Um pouco abaixo da estrada, no pasto cercado, ficava o
rancho para os tropeiros que pernoitavam ali. Ao redor de uma
fogueira vermelha
alguns homens acocoravam-se. Eles vinham
vender seu mate e fazer compras. Atrás das construções da venda de
Casa Branca erguiam-se montanhas recobertas por flores. Do outro
lado, estendiam-se também escuras elevações arborizadas.
Quando as carretas pararam em frente da venda o patrão
da loja, Rodrigo, saiu para o terraço.
Olhou atentamente o velho e o garoto que desciam da
carreta do velho Tom, pois sabia que o novo pricipiante deveria chegar
hoje e receava que o menino da mata não se tornasse um bom
aprendiz.
José Cidral subiu ao terraço seguido por Joãozinho, e
ambos cumprimentaram Rodrigo estendendo-lhe a mão.
- O senhor é o patrão da venda? - perguntou o velho
Cidral.
89
- Sim! - replicou Rodrigo e seu rosto sério e severo
alegrou-se um pouco. - E o senhor é Cidral, o padrinho de João Soares
Pilz, meu novo aprendiz, não é?
- Tá certo! - concordou o velho Cidral contente. - Aqui está
o menino. Oxalá o senhor fique satisfeito com ele! Eu peço que o
senhor faça de meu afilhado um bom comerciante. Aqui está para o
senhor uma carta de seu patrão, o senhor Bark.
Rodrigo pegou a carta e a leu rapidamente, enquanto os
carreteiros descarregavam a carga. Então levantou sua robusta figura
e chamou com voz de comando: - Salvador, venha cá!
Um empregado solícito saiu da loja. Porém, difícil é
descrever o espanto do velho Cidral e o susto de Joãozinho, quando
reconheceram o mau colega de escola, Salvador, que outrora, na
coleta do cipó, pregara uma peça cruel em seu inimigo Joãozinho!
Após a briga no fandango Antonio Zerino, Bento Quadra,
com Salvador e seu pessoal, haviam desaparecido da região.
Agora Joãozinho encontrava-se, aqui em Casa Branca,
novamente com seu inimigo. E ele começava a sentir quão sinistra
essa região se tornaria para ele.
Salvador
também
reconhecera
imediatamente
os
conterrâneos. Porém, demonstrou tanta alegria e surpresa com o
encontro que os recém chegados sentiram que sua desconfiança
desaparecia. Talvez o rapaz, após aquela briga, tivesse se regenerado
nos últimos anos.
Ele cumprimentou os dois conterrâneos com um aperto de
mão e palavras amigas e colocou-se, atencioso, diante de seu patrão.
- Salvador, disse Rodrigo, - você agora já está meio
instruído! Conduza o novo aprendiz para o quarto no sótão e mostrelhe os afazeres que deverá desempenhar.
Salvador disse delicadamente - Sim, senhor Rodrigo! - e
voltou-se amigavelmente para Joãozinho. Conduziu o menino pela loja
e pelo depósito dos fundos até uma estreita escada de madeira que
dava no sótão. Por toda parte estavam empilhados caixotes e caixas
vazias e cheias, grandes montes de esteiras, apetrechos para sela e
sapatos. Entraram num pequeno quarto do lado esquerdo da cumeeira
90
da casa. As paredes do quartinho eram de tábuas velhas e toscas. No
canto, algumas tábuas pregadas faziam as vezes de um mesa de
parede que tinha como assento um pequeno banco de madeira. Sobre
um caixote vazio, no canto em frente, havia uma bacia de lata. Toda a
sala estava cheia de teias de aranha e parecia bem pouco confortável
e acolhedora.
Salvador dirigiu-se para a cumeeira e escancarou uma
pequena abertura, para que a luz crepuscular entrasse no recinto. Aqui eu morei por quase dois anos, pois fui seu antecessor, agora sou
um autêntico caixeiro e tenho um quarto melhor.
Sem dizer uma palavra, Joãozinho colocou sua mala de
lata no chão e sua mochila sobre o enxergão. Sentia-se terrivelmente
deprimido e triste. Na verdade, não estava acostumado a instalações
melhores, mas este quarto parecia-lhe tão abandonado e sinistro que
só com muito esforço conseguiu reprimir o choro. Sua casa, onde seus
irmãos davam vida ao quartinho simples, onde desde sua infância
conhecia cada cantinho, era um paraíso comparado a este lastimável
quarto
de
sótão.
Salvador
perguntou
desembaraçadamente
por
conhecidos da terra e contou que conseguira um bom emprego aqui
em Casa Branca, há dois anos.
Então saíram do quarto caminhando ao longo do armazém e
entraram no quarto espaçoso de Salvador, mobiliado com mais
conforto mas, que pela desordem ali reinante, também não despertava
uma impressão mais amável. - Agora, quero lhe mostrar os galpões e
os depósitos -, disse Salvador descendo a escada de madeira.
Conduziu o novo aprendiz pelo armazém de víveres, que confinava
com a venda, e mostrou-lhe também as altas pilhas de sacos com
farinha de trigo, mandioca, arroz, café, açúcar, feijão e milho. Numa
repartição à parte ficava o depósito de sal. Ali estava o sal grosso que
brilhava de tão branco, acumulado até o teto. Do lado, os sacos
repletos de sal, como também grandes camadas de toucinho salgado e
alguns fardos de carne seca.
Depois saíram do depósito e dirigiram-se, atravessando o
pátio, para o galpão de erva-mate. Uma tropa de burros acabara de
descarregar os cestos com a erva crua e dirigia-se para o rancho. O
91
empregado do galpão de erva-mate, um rapaz amarelo e com uma
aparência horrível, queria pôr fim ao trabalho do dia e irritou-se com a
visita indesejável. Do seu rosto, de um tom verde-acinzentado pela
poeira da erva, destacava-se um brilho no branco dos olhos pérfidos.
Os dois garotos deram uma olhada no interior do galpão, e avistaram,
no escurecer, grandes montes de chá verde, altas pilhas de cestos
cheios e muitos sacos repletos de erva mate.
- Vamos saindo! Eu quero fechar o portão! - gritou o
trabalhador furioso, enquanto ia empurrando os dois para fora. Cuidado, Jeca! Não seja atrevido! Este aqui é o novo aprendiz, a
quem, sob ordem do patrão devo mostrar o galpão de erva, - gritou
Salvador para ele.
Jeca cuspiu habilmente por cima da cabeça dos dois
garotos, virou-se e fechou o portão do galpão, rindo ironicamente. Os
dois atravessaram o pátio já quase no escuro. Na venda, brilhavam as
luzes amarelas das lamparinas de petróleo.
- Esse Jeca Baiano, nosso ensacador de erva-mate, é um
cachorro sem vergonha! - resmungou Salvador. - Você viu como ele
cuspiu sobre nossas cabeças? O sujeito era marinheiro ou policial e é o
arruaceiro mais perigoso de toda a região. Traz no bolso sua navalha
de barba, está sempre pronto a rasgar a barriga de alguém. Dizem
que ele já matou duas pessoas. Tome cuidado com ele, Joãozinho!
Joãozinho estava cada vez mais desanimado. Não, nessa
região inquietante ele não queria ficar! Já a companhia de Salvador
era-lhe suspeita, apesar de sua aparente amabilidade. E agora,
deveria ainda trabalhar e comer na mesma mesa com um assassino.
Não, isto o padrinho não poderia exigir dele. Joãozinho preferia ser
alvo de risadas em sua terra e continuar a vida inteira sendo
camponês.
Logo que visse o padrinho, iria dizer-lhe que não ficaria ali de
maneira alguma. Amanhã cedinho voltaria com seu padrinho para a
terra natal.
Os dois jovens atravessaram o grande pátio e entraram no
estábulo. Ali estavam doze cavalos puxadores que trituravam e
comiam agradavelmente o milho. Numa pequena repartição, ao lado,
92
pateavam dois maravilhosos e esbeltos cavalos de corrida. - Estes são
os dois cavalos de corrida do patrão, - disse Salvador. - O patrão
mesmo organiza corridas e, nessas ocasiões, aparecem pessoas de
todo lugar e nós fazemos bons negócios. A pista fica atrás da encosta,
ao lado da estrada.
Joãozinho mal ouvia. Em sua mente, as perguntas rolavam
incessantemente. Como vou dizer ao padrinho que quero voltar para
casa? Quem me garante que vou tornar-me um homem respeitável
aqui no meio de arruaceiros e criminosos? Será que também não
posso ganhar dinheiro na minha terra?
Eles
deixaram
o
estábulo
e
atravessaram
o
pomar
passando por pessegueiros e macieiras para chegarem numa espaçosa
cozinha. Lá fora estava escuro e seus olhos se ofuscaram um pouco
com o brilho forte de duas lamparinas dependuradas. Uma negra
gorda, chamada Luísa, trabalhava no enorme fogão.
Sob as lamparinas, estendia-se uma comprida mesa de
comida, em que sentados, em bancos de madeira, os carreteiros,
trabalhadores e rapazes jantavam. Havia um conversar e rir altos,
quebrados só por um momento, quando Salvador e Joãozinho
tomaram seus lugares junto à mesa. - Onde está o padrinho Cidral? Joãozinho perguntou, baixinho, a seu companheiro. - Provavelmente
está comendo com o patrão e nem está mais pensando em você! disse Salvador rindo. - Amanhã você terá que se virar sem ele e,
depois, para sempre!
Porém, assim que terminaram a refeição, Joãozinho foi
chamado por um empregado e conduzido à sala de refeições onde
Rodrigo os empregados e Cidral já tinham terminado o jantar. A sala
era bonita, guarnecida de móveis e cortinas e sobre a comprida mesa
havia uma toalha branca. Os três jovens funcionários saíram, um após
outro, e deixaram Rodrigo a sós com seus hóspedes.
Joãozinho aproximou-se de seu padrinho. Olhou-o com
olhos suplicantes e já abria os lábios trêmulos para dizer-lhe que não
queria ficar em Casa Branca, quando Rodrigo o chamou:
93
- Venha cá, Joãozinho! - O garoto ouvia hesitante. - Olheme bem nos olhos! - animou-o o patrão. Joãozinho fitou um par de
olhos claros e bons, em cujo castanho brilhava humanitarismo e
tristeza.
Estes
olhos
mergulharam
Joãozinho, examinando-o. O patrão,
profundamente
na
alma
de
homem jovem, de uns trinta
anos, cujas feições só se iluminavam ao falar, disse: - Como o senhor
Cidral contou-me, você quer estudar e ganhar dinheiro para tornar-se
um homem ilustre e capaz, e poder aliviar a difícil vida de sua mãe e
de seus irmãos. Isto é louvável de sua parte, meu filho! Você nunca
ficou longe de sua casa e no começo vai sofrer muito com as
saudades. - Então, cerre os dentes e mostre que você é um homem!
Não deixe que os outros percebam alguma coisa! Pense sempre que
seis meses passam depressa. Eu lhe emprestarei um cavalo e você irá
visitar sua família. Daqui até sua casa não é muito longe, como a
viagem de trem deixou transparecer. Um caminho que passa pela
campina conduz ao porto de Guaratuba através da serra. No meio do
caminho há um atalho, à esquerda, que vai para a região de Palmital.
Em dois dias de viagem intensa você poderá estar em casa. No
entanto, o amigo Cidral precisa voltar e passar por Curitiba para pegar
o trem porque deixou os cavalos na cidade do porto. - Rodrigo deu ao
velho um cigarro e acendeu um para si mesmo.
Joãozinho respirou fundo. O sangue subiu-lhe ao rosto. Ele
poderia agora envergonhar o padrinho pedindo que o levasse
novamente para casa? O que o senhor Rodrigo pensaria dele, depois
que o padrinho o elogiara tanto? Pelo menos seis meses ele teria que
ficar. Então, quando pudesse ir para casa, para uma visita, poderia
dizer à mãe que não queria mais ficar longe deles.
Rodrigo olhou para ele e disse: - O Dr. Bark deseja que
você adquira aqui mais noções escolares para, um dia, poder
preencher,
condições para empregos melhores. Você terá, portanto,
todas as noites, depois de concluído o trabalho, duas horas de aula
particular
comigo,
desde
que
você
seja
aplicado
e
estudioso.
Dependerá só de você progredir mais rapidamente que outros
aprendizes. Você quer prometer que se esforçará e que será sempre
94
aplicado, atencioso e, antes de tudo, honesto? - Estendeu-lhe a mão,
que Joãozinho segurou e murmurou: - Eu prometo!
O velho Cidral acenou com a cabeça, calmamente, como se
quisesse dizer: - O que o menino promete, ele cumpre!
- Mais uma coisa, - continuou Rodrigo. - O senhor Cidral
me contou as peças que o nosso instrutor de aprendiz, Salvador, lhe
pregou durante a época da escola. Aqui, você não tem que temê-lo,
mesmo que ele seja maior e mais forte que você e que seja ele a
ensinar-lhe o trabalho.
Você está sob minha proteção. Salvador
também não cometeu, aqui, nenhum ato que pudesse comprometê-lo
a não ser que gosta de mentir. - Rodrigo jogou a cinza do cigarro e
Joãozinho aproximou-se de seu padrinho.
- Agora, despeça-se já de seu padrinho! - disse o patrão, pois amanhã quando você se levantar, ele já estará a caminho de
Curitiba. - Ele contará para sua mãe que você estará aqui trabalhando
para ela e que prometeu tornar-se um homem corajoso. - Todo mês
você poderá escrever para ela.
Os dois se abraçaram. O velho Cidral procurou esconder
sua emoção tossindo, porém Joãozinho não conseguiu mais reprimir
seu forte soluçar. Com palavras carinhosas o velho procurou acalmar o
garoto. Joãozinho saiu dali chorando e subiu a escada de madeira em
direção do sótão, lugar que lhe causava pavor. Uma lanterna
iluminava-o com uma luz tênue e fraca que vinha do armazém.
95
X
Joãozinho precisa trabalhar árduamente. Os cavalos de
montaria. Através do conhecimento da língua alemã ele
consegue a colocação de empregado. O armazém de erva-mate.
A luta de Joãozinho com seu inimigo. A derrota sangrenta. A
capoeira brasileira supera a luta jiu-jitso japonesa...
Na manhã seguinte , Joãozinho ao ser acordado com um bater
forte na porta do quarto, não sabia bem onde se encontrava. Então,
reconheceu a voz de Salvador. - Joãozinho, levante! Para o trabalho! E de repente, com um enorme peso no coração, reconheceu que
estava sozinho e abandonado, numa casa estranha, com pessoas
estranhas... longe de seu lar. Porém Salvador não lhe deu tempo para
meditar. Abriu a porta com um empurrão e gritou impaciente: -Vamos,
lave-se e vista-se rápido! O que vai virar isso, se o aprendiz mais novo
dormir tanto tempo! O patrão irá estranhar!
Em poucos minutos Joãozinho estava pronto e desceu,
apressado, para a venda. Salvador mandou-o limpar o assoalho, que
estava todo sujo com pontas de cigarro, pedaços de papel e cascas de
fruta. Ele precisava buscar água, tirar o pó, colocar as mercadorias em
ordem e limpar a balança.
Quando os primeiros tropeiros entraram, Salvador sentouse no balcão, balançando as pernas e conversando com os fregueses
enquanto, para se fazer de senhor, dava sempre outras ordens ao
novo aprendiz.
Então, os empregados mais velhos começaram a sair da
sala de refeições e dirigiram-se para a loja. Salvador pulou rápido do
balcão e começou a trabalhar. O chefe dos caixas, Basílio, rapaz
desembaraçado de mais ou menos vinte e cinco anos, bem barbeado e
vestido, aceitou amávelmente o cumprimento de Joãozinho: - Veja só
nosso novo aprendiz! disse. - Bem, você precisa crescer bastante
ainda no ar fresco do planalto! - Então voltou-se para os fregueses.
Os outros dois empregados, Vitorino e Carlos, trajavam-se
de maneira simples e tinham aproximadamente entre dezenove e vinte
96
anos. Ambos estenderam a mão para Joãozinho e disseram-lhe
palavras amáveis. Joãozinho foi mandado para a cozinha tomar café.
Naquela manhã ainda não havia comido nada. Porém, mal sentara-se
à mesa, comera um pedaço de pão e tomara uma caneca de café,
quando Salvador já gritava para dentro da cozinha: - Ande logo! Nós
precisamos buscar os cavalos de corrida no pasto!
Joãozinho parou de tomar café e acompanhou-o ao quintal.
Luísa, a negra gorda, gritou furiosa para fora da janela da cozinha: Dê tempo para que o menino possa tomar café direito! - Salvador ria e
conduziu o garoto pelos galpões e estábulos até o pasto, onde os dois
cavalos de corrida e o cavalo de montaria dos empregados já vinham
ao encontro deles. Os animais foram levados para o estábulo.
Enquanto comiam no cocho, Joãozinho tinha que escová-los com a
brossa, e Salvador instruía-o em tom de comando, fumando um
cigarro sem ajudar no trabalho.
- Duas vezes por semana os cavalos de montaria são
levados para o bebedouro e lavados! Entendido?
Joãozinho mal acabara esse trabalho, quando Salvador já
gritava para ele: - Agora para o galpão de sal.
Mostrou-lhe
como
se
pesava o
sal, como
este
era
despejado nos sacos brancos e costurados. Então mostrou-lhe um
depósito de toucinho velho que estava cheio de bichos. Joãozinho
deveria, com uma faca e um pedaço de pau, tirar os bichos. Sentiu um
nojo terrível mas pegou o trabalho fétido com coragem. Salvador
deixou-o sozinho no depósito de sal, pois fora chamado para almoçar.
Na cozinha reuniam-se à mesa, novamente, os mesmos camaradas.
Logo após a refeição Joãozinho recebeu novas instruções
de trabalho. Foi com muito cansaço que, após esse primeiro dia de
aprendizagem, recolheu-se para dormir.
Também nos dias seguintes Joãozinho era impelido por
Salvador de um serviço para outro. O feijão, o milho ou as batatas
precisavam ser ensacados, o couro cru tinha que ser arrastado para o
celeiro; o estábulo tinha que ser lavado; o sótão arrumado e limpo. No
pomar, Salvador gostava de fazer o novo aprendiz trabalhar sob o sol
97
mais quente do dia. Ali Joãozinho tinha que cavar, capinar, adubar as
plantas. Nessas ocasiões, Salvador procurava uma sombra e fumava.
Por
isso
Joãozinho
trabalhava,
com
ódio
do
antigo
companheiro de escola. Porém, essa perseguição no trabalho era um
bom remédio para a saudade que o agitava. Assim, não tinha tempo
para refletir e remoer-se, pois à noite estava sempre tão cansado que,
freqüentemente, seus olhos se fechavam durante as aulas particulares
com Rodrigo. Então, o "professor" o mandava dormir sem ministrarlhe a aula. Joãozinho aborrecia-se com o fato de que Salvador não o
deixava entrar na venda quando havia fregueses. Tinha que fazer
apenas os serviços sujos.
Joãozinho, contudo, gostava de se demorar na venda, ali onde
era fresco, e adoraria ajudar a vender. Dos empregados, apenas
Vitorino se preocupava com o novo aprendiz e o animava com palavras
amáveis. Mas para ele, Joãozinho não queria queixar-se de Salvador.
Um
dia
apareceram
colonos
poloneses
que
queriam
estabelecer-se na região. Eles compreendiam apenas polonês ou
alemão. Como na loja todos só entendiam o português, não sabiam o
que fazer com os polacos. Então, Basílio, o chefe de pessoal, lembrouse que o novo aprendiz fora aceito sob a condição expressa de saber
falar alemão. - Mas onde que esse menino se meteu? Por que a gente
não o vê aqui na venda? - gritou.
Joãozinho foi chamado. Veio suando, do pomar. Basílio
gritou com ele: - Você deve ajudar aqui na venda, e não ficar
brincando lá fora. - Agora, mostre que você entende alemão e atenda
esses colonos!
Joãozinho
estava
muito
feliz
e
se
esforçava
para
compreender os novos fregueses e servi-los bem. Porém, quando os
colonos saíram com suas compras e Salvador o mandou de volta para
o pomar, Vitorino deu-lhe secretamente um conselho. O garoto reuniu
suas forças e entrou no escritório, onde o patrão e Basílio estavam
sentados junto à suas escrivaninhas. Ele ficou parado na porta e
admirava tanto a máquina de escrever que Rodrigo olhou e sorria com
o rosto abobalhado do menino. - Então, o que você quer aqui? perguntou. Joãozinho contou-lhe, em poucas palavras, que ele nunca
98
podia ficar na loja, que era usado apenas para fazer os serviços
pesados e que, por isso, à noite ele estava sempre cansado para as
aulas. Nas primeiras semanas ele acreditava que teria que aprender a
fazer esses serviços sujos, mas Salvador, de propósito, não o deixava
entrar na venda...
Rodrigo ouvia atentamente e mandou chamar Salvador.Escute, disse, - o novo aprendiz já conhece agora todos os serviços
com os quais sujamos as mãos. A partir de agora, ele deverá se
ocupar da venda. Os serviços engordurados o peão poderá fazer. Só
que, se na hora da necessidade faltar pessoal todos vocês terão que
ajudar.
Joãozinho pediu para continuar a cuidar dos cavalos de
montaria, o que lhe foi concedido. Também gostava de trabalhar no
pomar, quando não estava tão quente, acrescentou. O patrão
alegrava-se com isso. Os dois aprendizes deixaram então o escritório.
Quando estavam na venda, Salvador olhou ao redor
cuidadosamente. Então esfuziou furioso para Joãozinho: - Você me
difamou junto ao patrão! Espere, essa você me paga!
Pelo
conhecimento
da
língua
alemã,
a
presença
de
Joãozinho tornava-se cada vez mais imprescindível na venda. A região
estava sendo povoada por colonos que não sabiam ainda falar o
português. E, por outro lado, os carreteiros também gostavam de falar
alemão.
Salvador invejava o novo aprendiz pelas suas noções de
língua, que lhe davam preponderância sobre os outros empregados
como Vitorino e Carlos. Sua hostilidade contra o garoto era ainda
atiçada pela inveja. Esse garoto tinha, todas as noites, aulas
particulares com o patrão. Esse Joãozinho tinha que estar sempre em
seu caminho? Por que o patrão não dava aulas para ele, o instrutor de
aprendiz? Tudo isso levava a crer que Joãozinho logo teria um
emprego melhor. Salvador espumava de ódio, quando pensava que
Joãozinho poderia passar-lhe à frente e, talvez ser ainda seu superior.
Não, isto nunca mais poderia suceder! Pensou, então, em pedir
conselho a seu irmão Antônio Zerino que trabalhava com mate nas
proximidades.
99
Entretanto, procurava intimidar o rival com todos os golpes
imagináveis para prejudicá-lo no emprego. Escolhia os trabalhos mais
difíceis para Joãozinho e trabalhava junto com ele para que este não
se recusasse. Porém, por fora, mostrava-se companheiro e amável
para com ele, principalmente quando outros podiam ouvi-los.
Joãozinho não deixava que Salvador o desconcertasse.
Trabalhava de manhã à noite sem parar, não temia trabalhos pesados
e preocupava-se principalmente com a venda que trazia tão limpa a
ponto de chamar a atenção do patrão.
A partir do dia em que Joãozinho não precisou mais pegar
tanto no trabalho pesado, sentiu-se mais disposto para as aulas
particulares. Aprendia com mais facilidade e fazia progressos. Aos
poucos, reconhecia quão pouco aprendera lá na escola da mata.
Assim, passsaram-se os três primeiros meses longe de
casa e transcorreram mais depressa do que a princípio ele imaginara.
Mas, mesmo assim, contava as semanas e meses que ainda faltavam
até que pudesse fazer a visita à família, como lhe fora prometido.
Um dia o galpão de mate estava repleto, pois ultimamente,
muitas tropas trouxeram mate das matas. Agora vinham os carreteiros
em grande número, para levar o chá ensacado até Curitiba. Porém,
sem ajuda, trabalhadores do depósito não conseguiam atender as
exigências. Então, os dois aprendizes foram mandados, pelo patrão, ao
depósito de mate para auxiliar na costura dos sacos que já estavam
cheios.
Salvador andava amuado. Ele já se sentia como caixa, de
quem não se poderia mais exigir serviços poeirentos. Com o rosto
transfigurado
pela
ira
foi
até
o
depósito
onde
Joãozinho,
cuidadosamente, costurava um saco de erva mate. Quando, com
negligência, finalmente começou a ajudar na costura, entre os
trabalhadores e carreteiros no depósito empoeirado, resmungou,
maldições a meia voz. Então começou a ocupar-se de um saco de
mate que estava ao lado de Joãozinho. Este, sem querer, bateu-lhe
com o cotovelo na cabeça. Imediatamente, Salvador deu um soco tão
forte na nuca de Joãozinho, que este caiu de cabeça para baixo no
meio
do
chá
que
estava
ainda
por
ser
ensacado.
Todos
os
100
trabalhadores caíram em altas risadas. Salvador era o que mais se
divertia. Todo aquele riso irritou o orgulho de Joãozinho. Assim, saltou
rapidamente, arremessou-se contra o adversário e aplicou-lhe um soco
tão violento que Salvador, não esperando por aquela reação do
menino, caiu desastradamente com a cabeça no meio dos sacos de
mate, e as pernas agitando-se no ar.
A risada dos empoeirados companheiros era estrondosa,
principalmente a de Jeca, o baiano que se curvava de tanto prazer.
Porém, mal Salvador se levantara, já pulava, vermelho de
cólera, sobre Joãozinho, a fim de castigá-lo. Agora chegara o momento
de mostrar ao garotinho quem era o mestre ali. Contudo a coisa não
era tão simples como imaginara. Agarrou Joãozinho pela barriga. No
instante seguinte, os dois lutadores rolavam na poeira do mate.
Joãozinho defendia-se valentemente apesar de ser mais fraco que seu
adversário. Numa luta violenta de murros e socos, os dois brigavam,
enfurecidos, em cima dos
chão,
levantavam-se
e
verdes montes de erva-mate. Caíam no
atarracavam-se
de
joelhos.
Os
outros
trabalhadores acompanhavam a luta com gritos e berros animados,
pois isso os encantava. Contudo, Salvador finalmente conseguira
dominar o garoto já sem fôlego. Com olhos vermelhos e furiosos
olhava para o menino que estava debaixo dele e ajoelhou-se sobre o
peito que arfava. Com a mão esquerda apertava o pescoço de
Joãozinho enquanto, com o punho direito, batia em seu rosto que ia
inchando e pegando uma tonalidade azulada.
Quando o nariz do menino começou a sangrar, Jeca, o
baiano, aproximou-se e arrancou o furioso Salvador de cima de sua
vítima e lançou-o num canto: - Agora chega! -, gritou em tom
ameaçador, - deixe o menino em paz! Salvador, lançando um olhar
irônico para o menino que sangrava, voltou para seu trabalho.
Joãozinho
saiu
para
lavar
o
sangue
que
escorria.
Conseguiu reter as lágrimas com muito esforço. Aquele choro preso na
garganta teimava em explodir. Mas Joãozinho cerrava os dentes, como
o patrão lhe ensinara, pois queria mostrar que era homem e que não
se lamentaria por sair machucado de um briga. Os outros não
deveriam perceber quão profundamente a derrota o afligia e quão
101
vulnerável a saudade do lar o tornava. Depois de lavar seus ferimentos
no riacho, voltou para o depósito de mate e trabalhou silenciosamente
ao lado do outro. Seu rosto estava muito inchado e doía muito.
Salvador arrumou um pretexto para não se ocupar por
mais tempo com aquele serviço sujo no depósito. Uma hora antes de
terminar o dia de trabalho, deixou seu lugar e saiu. Para satisfação de
Joãozinho, ouvia que Jeca e alguns dos presentes não falavam bem de
Salvador. Contavam como o rapaz, freqüentemente, destratava os
carteiros e os trabalhadores.
Quando chegou a hora de comer, todos saíram do
depósito,com exceção de Joãozinho e Jeca Baiano, que tiveram que
varrer o lugar. De repente, Jeca guardou sua vassoura e disse para
Joãozinho: - Agora, preste atenção! Salvador vai pegar você logo,
logo, de novo. - Ele é mais forte que você. Mas, você é mais ágil. Eu
quero lhe ajudar. - Vou-lhe ensinar a lutar capoeira e pegar as
principais manhas.
Joãozinho
moreno.
olhava
desconfiado
para
o
rapaz
baixo e
Mas encontrou um olhar, que, apesar de parecer pérfido,
refletia astúcia e amabilidade para com ele. E o antigo marujo da
Bahia mostrou-lhe então, como poderia pegar um adversário, e
quando teria que desviar-se dele. Ensinou-lhe como escapar do
adversário com a cabeça abaixada, como abalroá-lo com a cabeça no
baixo-ventre, como atirar-se oportunamente no chão, ficar de cócoras
enquanto o adversário tropeça sobre a gente ou tenta inutilmente
agarrar-nos no ar. Como, também, com um rápido manejo atingimos o
jarrete do adversário, derrubando-o, ou quando colocamos uma perna
na sua frente. Ele saltava de um lado para outro diante de Joãozinho,
mostrando-lhe tudo. Então era a vez de Joãozinho tentar mostrar os
truques que o baiano lhe mostrara, aplicando-os neste. Joãozinho ,
que na época da escola já gostava de lutar com outros meninos,
mostrou-se tão hábil que o baiano, entusiasmado, deixou-o exercitar
tudo de novo. Os dois, com seus saltos e lutas, nem perceberam que
escurecera, até que ouviram a voz estridente da gorda Luísa
chamando: - Jeca, Joãozinho, onde vocês estão? Quem não vem, não
come! Você estão pensando que eu sou palhaça?
102
Também nas noites seguintes, sempre se achava uma
meia horinha que o baiano aproveitava para treinar seu aluno na arte
brasileira da capoeira. Ao mesmo tempo, instigava-o a não tolerar
nada da parte Salvador. Dizia ao garoto: - A arte brasileira de luta
supera a inglesa, a americana e a japonesa. Em São Paulo, um simples
lutador de capoeira, sem noções desportivas, derrotou três vezes um
famoso lutador francês em campeonato público. Os jornais trouxeram,
há
pouco,
notícias
entusiásticas
sobre
essa
luta,
que
causara
preocupação no mundo do esporte. Mais tarde, este mesmo lutador de
capoeira bateu, com sua arte brasileira, um lutador japonês de jiujitsu. - Ha, ha, ha, sim, nós brasileiros superamos os outros.
Dia após dia, Joãozinho ganhava em força e habilidade.
Após o dia o trabalho ia, às furtadelas, ao depósito de mate para medir
forças com o baiano na luta brasileira.
A comida forte, o ar seco e saudável do planalto, como
também os esforços diários com os cavalos de corrida, ajudavam no
fortalecimento dos músculos de Joãozinho e desenvolviam-lhe sua
agilidade.
103
XI
De como Joãozinho imagina sua volta para casa. O inventário e
o balanço na venda. Joãozinho resiste a uma tentação. Um
domingo na venda do campo. As corridas de cavalos são
combinadas. O cachola e o bacará. Dois recentes e
desagradáveis conhecidos preocupam Joãozinho: o segundo
ringue.....
Os dois aprendizes não deixavam transparecer o quanto se
odiavam. Na presença de outros eram amáveis entre si. Porém,
Joãozinho estava sempre atento a Salvador. Percebia como este, pelas
suas costas, procurava ridicularizá-lo perante os fregueses. Às vezes,
quando estava ocupado arrumando as estantes de tecido e, portanto,
de costas para os fregueses, ouvia suas altas gargalhadas. Quando se
virava rapidamente, via ainda as caretas que Salvador lhe fazia e,
então, agia como se estivesse com dor de dente. Aí, sim, é que os
fregueses davam boas risadas. Isto o irritava profundamente. Ele não
queria ser alvo de piada para outros. Mas, como poderia obrigar seu
inimigo a parar com tais maldades?
O trabalho diário, a raiva e as muitas silenciosas lágrimas
de saudade faziam passar as semanas e os meses. O dia em que
Joãozinho poderia selar o cavalo e ir para casa aproximava-se cada
vez mais. Oh, ir para casa, ver a mãe... chegava a doer-lhe o peito,
quando pensava nisso! Ver sua Maria, Margarida, Pedro e Francisco!
Oh, não dava para imaginar! Rever a bela Anita e seus pais, o
padrinho e sua bondosa mulher, Valente e o papagaio, e todos aqueles
lugares familiares em casa e no jardim... tudo se misturava numa
lembrança feliz. Como Valente saltaria sobre ele, uivando de alegria! E
como Jacó assobiaria no seu poleiro, batendo com as asas e
tagarelando: Louuco! Forraa! Pão! Quanto mais o dia se aproximava,
tanto mais os pensamentos de Joãozinho se ocupavam da viagem.
Escrevera duas cartas para casa, porém não recebera nenhuma
resposta. À noite, antes de adormecer, rezava pela mãe e pelos irmãos
e imaginava sua alegria, quando voltasse para casa. Com muita
104
economia, conseguira guardar uma quantia de mais de cem mil-réis.
Como a mãe se surpreenderia, quando Joãozinho colocasse todo esse
dinheiro em suas mãos! Ele via claramente os olhos escuros e
brilhantes de sua mãe.
Alguns dias antes da partida de Joãozinho, veio uma ordem
do Dr. Bark para Rodrigo começar o balanço desse ano imediatamente,
pois estavam previstas mudanças nos negócios. A notícia se espalhou
rapidamente entre os empregados e trabalhadores.
Salvador não conseguiu disfarçar a satisfação ao comunicar
a Joãozinho que poderia, provavelmente, esquecer sua viagem para
casa. - No balanço - disse ele - todos os empregados têm que
trabalhar dobrado. Ao lado do trabalho diário normal, como atender à
freguesia, comprar, pesar, ensacar, carregar o mate, milho, fumo, o
feijão e os couros, ainda toda a provisão de víveres tem que ser
pesada, todas as peças de tecido medidas, todos os objetos têm que
ser contados, até os botões e agulhas. Tudo é anotado certinho e
calculado. É um trabalho terrível e ainda aproveita-se para fazer um
boa limpeza em tudo. Ele espreitava o menino que empalidecera
muito, com visível tristeza.
- Você não precisa esperar pelo balanço - continuou
amavelmente. - Eu, no seu lugar diria: - Foi-me prometida uma visita
para casa após seis meses de trabalho, e eu vou. - Eles precisam
deixar você viajar, acredite nisso! Eles costumam manter a palavra.
Continue firme com a idéia e não se deixe persuadir! Certamente, sua
mãe está esperando você! - Bateu-lhe nos ombros amigavelmente e
foi para o trabalho. Joãozinho também aproximou-se do balcão para
atender
os
colonos
que
entravam.
Porém,
estava
perturbado.
Pensamentos penosos ocupavam-lhe a mente. O que deveria fazer, se
o patrão o intimasse para ficar? Abriu obstinadamente os lábios.
Queria insistir em sua viagem. Salvador tinha razão: eles tinham que
manter sua promessa! Tanto o Dr. Bark como o senhor Rodrigo
prometeram-lhe isso. Então tinham que mantê-la, pois sua mãe
esperava por ele.
Salvador, que já terminara seu trabalho, aproximou-se
dele.
105
- Não amoleça. Não se deixe convencer! Um balanço assim
pode demorar alguns meses. - E quem sabe o que poderá acontecer
então? Daí você não poderá ir de jeito nenhum!
Nessa mesma noite, quando Joãozinho estava no escritório
do patrão fazendo uma tarefa escrita, Rodrigo começou a falar com
voz séria: - Nestes dias vamos começar nosso balanço, que antes era
feito no final do ano. Para esse trabalho precisamos de todos.
Precisamos muito de você também. Nessa oportunidade você
poderá de conhecer todas as mercadorias e seus preços, treinar-se nos
cálculos e, acima de tudo, aprender uma das funções mais importantes
de um comerciante, que é o balanço de produtos. - Ele tirou um
cigarro do estojo, bateu-o nos dedos e acendeu-o.
Joãozinho olhava calado para seu caderno. Parecia que
tinham-lhe cravado uma faca no peito. Ele deveria pedir ao patrão
para adiar sua viagem para casa até o término do balanço? Mas, e a
mãe! Ela esperava por ele. E se não fosse agora, outros contratempos
poderiam surgir. E, talvez, não pudesse sair de maneira alguma. Ficar
firme, era o que Salvador lhe conselhara.
Rodrigo aproximou-se dele. - Você pode viajar e deixar-nos
aqui sozinhos com o trabalho, pois você tem minha palavra. E eu
mantenho minha palavra. Mas, se você se oferecer voluntariamente
para ficar e ajudar até o final do balanço e, só então, fazer sua
viagem, levarei isto muito em conta, pois sei o quanto será difícil para
você. Em contrapartida, prolongarei suas férias...
-
O
balanço
demora
muito?
-
perguntou
Joãozinho
hesitante. Em seu rosto sincero Rodrigo podia ler a difícil luta, entre a
obrigação e a saudade, que se travava no interior do menino.
- Pelo menos seis semanas, até que você possa viajar, respondeu Rodrigo. Então acrescentou suavemente: - Há momentos
na vida das pessoas em que se debatem entre o cumprimento do
dever e a diversão. Porém, quem negligencia a obrigação não
consegue mais sentir a verdadeira alegria, ao preferir a diversão.
Joãozinho continuava sua luta interior. Mas fora acostumado, desde
pequeno, a cumprir seu dever. Já pressentia que se fosse abandonar
106
os colegas agora e viajar, não teria muito prazer nisso. Então, era
cerrar os dentes e fazer o que era, nesse caso, sua obrigação!
- Eu só vou viajar quando o balanço estiver pronto!, disse
em voz alta.
- Você está agindo certo! - disse Rodrigo, alegre. - Você
não vai se arrepender! Escreva já uma carta para sua mãe. Pode
escrevê-la aqui mesmo na mesa. As aulas precisarão parar até sua
volta, pois durante o balanço não há tempo para mais nada.
No dia seguinte, ao comunicar sua decisão aos outros,
Salvador aproximou-se dele e disse-lhe em voz baixa: - Seu burro!
Porém, o balanço começara. Quando se estava justamente
pesando uma pilha de sacos cheios de víveres, chegavam tropeiros
que precisavam ser atendidos primeiro.
Uma interrupção atrás da outra. Os trabalhos diários e os
fregueses exigiam tempo. E, assim, o balanço estendeu-se por
semanas. Joãozinho ajudava assiduamente, quando terminava de
limpar a loja e cuidar dos cavalos de corrida.
Num domingo de manhã, no meio do trabalho, chegou um
grupo de cavaleiros diante da venda. Rodrigo saiu pessoalmente ao
terraço para cumprimentar os recém-chegados que faziam parte de
seus melhores fregueses. Eram os três irmãos Cruz, abastados
fazendeiros, que possuíam grandes rebanhos de gado e muitos
campos
de
mate.
Estavam
acompanhados
por
alguns
outros
fazendeiros e moradores vizinhos.
Todos estavam no terraço e examinavam o novo cavalo de
corrida de Joaquim da Cruz, um magnífico cavalo branco acinzentado,
quando Joãozinho se aproximou montado no cavalo negro, o melhor
cavalo de corrida de seu patrão. O cavalo estava úmido do banho e
Joãozinho cavalgava-o num trote elegante para deixá-lo secar. O pêlo
preto do nobre e fogoso animal brilhava no
sol da manhã. Todos
olharam com prazer para o cavalo ligeiro, que o menino segurava tão
bem pelas rédeas, seu vigoroso pescoço com a crina negra que caía
soberba e as pernas fortes que saracoteavam. Joaquim da Cruz sabia
que seu novo cavalo de montaria era um bom corredor, que já
ganhara muitas corridas. Ele viera com seus irmãos até Casa Branca
107
para induzir Rodrigo a uma corrida que, pensava, certamente
ganharia. - Seu cavalo morzelo está em boas condições -, disse para
Rodrigo, que secretamente se alegrava com os bons cuidados que
Joãozinho dispensava ao cavalo. - Mas contra o meu novo cavalo o
senhor não se arriscaria, hem? - No rosto sério de Rodrigo oscilava um
riso manhoso. - Isso depende! replicou. - Quais são as condições?
Começou uma conversa confusa e excitante. Entraram na
venda falando e rindo, todos ao mesmo tempo. Joaquim da Cruz pediu
cerveja para todos. Quando Joãozinho, após cuidar dos cavalos, entrou
na venda, o ambiente estava muito animado e já estavam tratando da
corrida. Depois do muito falar, foi ajustada a aposta. Pela aparência de
Rodrigo, ele a fechara com boas condições. A corrida deveria ser
dentro de dois meses, por ocasião da festa da igreja no lugarejo
vizinho. Durante estes dois meses, os cavalos de corrida poderiam ser
exercitados e treinados.
A venda vinha se enchendo, aos poucos, com os fregueses
de domingo, que vinham, parte a pé e parte a cavalo, das matas de
erva-mate
e
dos
campos
próximos.
Eles
se
misturavam
aos
fazendeiros no comprido balcão, bebendo vinho, cerveja ou pinga,
fumando, cuspindo, e ouvindo curiosamente.
Alguns davam palpite nas negociações da próxima corrida, pela
qual havia um visível interesse coletivo.
Joãozinho ajudava os outros empregados a atender os
fregueses, dos quais alguns faziam compras e outros pediam sardinha
com pão. De repente, surpreendeu-se. Daquele grupo apinhado de
pessoas, diante dele destacou-se um rosto conhecido que se debruçou
sobre o balcão sorrindo ironicamente para ele.
- Você não me conhece mais, Joãozinho?
- Bento Quadra! - disse Joãozinho, controlando seu
espanto.
- Sim, sou eu, - ria o ruivo, - e aqui está mais um
conhecido... - Antonio Zerino saiu da multidão com seu rosto terrível e
amarelo. Seu olhar vesgo e duro fixou-se em Joãozinho. Ambos
estenderam a mão sobre o balcão para cumprimentar o menino,
108
amavelmente. Parecia que se alegravam em encontrar um conterrâneo
por ali.
- Estamos aqui no planalto, com Salvador, e somos agora
quatro camponeses da planície de Palmital. Precisamos nos manter
unidos! Um precisa ajudar o outro! Então podemos conseguir muitas
coisas! - Olhava interrogativamente para Joãozinho. Este acenou
mecanicamente com a cabeça mas nem pensava sobre aquilo que
diziam. Apenas um grande mal-estar tomava conta dele, quando
olhava aqueles dois sujeitos. Já sabia há muito tempo, através de
Salvador, que eles ajudavam na colheita da erva-mate do "Major"
Silva, ali da região.
Bento Quadra aproximou-se do balcão, colocou alguns
sacos brancos sobre ele e curvou-se para falar em voz baixa com
Joãozinho.
Ele
não
queria
que
as
pessoas
que
estavam
ali
percebessem e ouvissem o que pretendia de Joãozinho. - Eu preciso de
alguns mantimentos, duas camisas, um chapéu e um par de sapatos.
Veja as coisas e anote a importância no livro. Eu pago quando tiver
dinheiro. Meu sobrinho, Antonio Zerino, também quer comprar fiado
alguma coisa.
Joãozinho coçou a cabeça. Ele só poderia vender fiado para
os fregueses que o patrão designasse. Então sussurrou: - Preciso
perguntar primeiro ao patrão.
-Besteira-
resmungou
Bento
Quadra.
-Quem
muito
pergunta tem muitas respostas. Nós somos pessoas corretas e
trabalhamos na região. Você nos conhece, Joãozinho, você sabe que
nós não vamos fugir, mas pagar tudo honestamente. - Olhou para seu
sobrinho Salvador que tinha outros fregueses para atender. Por um
instante, Salvador veio até eles. - Você pode vender fiado para meu
pessoal. Eles vão pagar dentro de duas semanas, sussurrou. - Mas eu
prefiro perguntar primeiro ao senhor Basílio, respondeu Joãozinho
embaraçado. - Não é necessário! disse Salvador irritado, - dê os
mantimentos sob minha responsabilidade. Então isso, deixou-os e
voltou a atender os fregueses que esperavam por ele.
109
Joãozinho atendeu primeiro Bento Quadra e, depois, seu
sobrinho Antonio Zerino, anotando tudo no caderno de rascunho.
Acrescentou ainda uma observação: - Pôr na conta de Salvador, com
sua ordem!
Nesse meio tempo aumentara ainda mais o tumulto na
venda. Muitas apostas tinham-se realizado. Muitos apostavam no
cavalo branco, outros no cavalo morzelo. Desafios engraçados saíam
de um grupo para outro. Um burburinho enchia o ambiente. Rodrigo
teve que convidar para o almoço os irmãos Cruz e alguns fazendeiros
vizinhos, enquanto os outros continuavam a vociferar e a beber.
Alguns jovens estavam lá fora, no pátio, brincando com pedaços de
pau e moedas que, juntos, atiravam para cima. Se a moeda caísse do
lado do brasão gritavam "Cruz!" e, caso contrário, berravam "Chapa!"
Grandes somas eram apostadas nesse jogo, chamado "Cachola". Os
grupos que jogavam cartas estavam sentados no chão, onde o barulho
e a exaltação imperavam. Freqüentemente, nesses jogos apostava-se
dinheiro, o que desencadeava brigas violentas, onde a faca e a pistola
eram
imprescindíveis.
Nesse
domingo
tudo
transcorreu
sem
derramamento de sangue. Porém, o balanço não progredira nem um
pouco.
Na
manhã
seguinte
Joãozinho
estava
no
estábulo,
escovando os cavalos de montaria, quando Salvador entrou e disse
irado: - Você escreveu naquele caderno de rascunho, junto com as
compras de meus parentes, "Com ordem e garantia de Salvador". Isso
não era necessário. Você vai apagar isso, entendeu?
- Não! - disse Joãozinho resistindo: - Vai ficar escrito! E se
você apagar eu escrevo de novo, pois você se responsabilizou.
- Mentira!, - gritou Salvador, furioso, e aproximou-se
ameaçador.
- Você é um mentiroso! - gritou Joãozinho para ele.
No mesmo instante, Salvador levantou a mão para dar-lhe
uma forte bofetada. Porém, antes que sua mão tocasse na cara de
Joãozinho, este se abaixara e a mão de Salvador bateu com toda a
110
força contra a viga. - Ai, que dor! - gritou, pulando numa perna só, e
apertando a mão na boca.
Isso provocou em Joãozinho um acesso de riso. Então
Salvador esqueceu momentaneamente sua dor e atirou-se com ódio
sobre ele. Suas mãos procuravam-lhe o pescoço e gritava ofegante: Agora vai passar sua vontade de rir, seu pilantra!... - Graças às aulas
de aprendizagem com o baiano, Joãozinho livrou-se agilmente daquele
ataque ameaçador e alcançou a porta. Pulou para fora rapidamente e
escapou pelo pátio dando longos saltos até o depósito de mate em
cuja porta Jeca Baiano aparecera.
Joãozinho, com medo daquele furioso que corria atrás dele,
procurou escapar entrando no depósito. Já sentia a respiração quente
de Salvador em sua nuca e já se via, em pensamento, atirado ao chão
e espancado.
Então percebeu, assustado, que Jeca Baiano dava-lhe um
sinal. Compreendeu imediatamente o professor e, no meio da corrida,
deixou-se cair de joelhos, ao mesmo tempo abaixando a cabeça na
terra. Nesse instante Salvador, furioso, tropeçou sobre o obstáculo
inesperado e voou sobre as costas de Joãozinho, caindo na areia.
Como um relâmpago, Joãozinho pulou nas costas de Salvador que
estava estendido e apertou seu rosto na terra, com toda a força. Você quer paz ou briga? - gritou para ele. - Salvador pediu paz,
humildemente, para poder levantar-se. Os espectadores, que estavam
na porta aberta do depósito, ficaram em profundo silêncio. Jeca Baiano
olhava triunfante para os trabalhadores.
Salvador, mal se vira livre da opressão de Joãozinho, e
novamente em pé, atirou-se furioso contra ele. Julgava poder humilhar
novamente aquele adversário fraco, como há algumas semanas no
depósito de mate. Não sabia que Joãozinho, desde aquele dia, tivera
um mestre e um tempo de treino na arte baiana, a capoeira. Daí, ele
pegar pesado e descuidadamente no adversário. Este escapou de seu
braço com uma rápida abaixada. Salvador, com as mãos estendidas
continuou cambaleando mais alguns passos. Antes que pudesse
procurar pelo adversário, este aproximou-se com a
cabeça baixa,
abalroando-o tão violentamente no ventre que prostou no chão.
111
Imediatamente o vencedor atirou-se sobre o vencido,
batendo-lhe energicamente com os punhos, para castigá-lo. Quando
Salvador gemeu pedindo misericórdia, Joãozinho soltou o rapaz, do
qual escorria sangue pelo nariz e pela boca. De longe, Salvador
ameaçava e gritava: - Nós vamos acertar as contas, seu cão danado!
Mas Jeca Baiano caiu numa grande gargalhada. - Muito
bem! Parabéns, Joãozinho! - gritou. - Agora ele vai lhe dar sossego!
Você é melhor que ele!
112
XII
A preparação para a volta ao lar. Os presentes e as economias.
A cavalgada pela floresta e montanhas. O assalto dos ladrões.
Joãozinho em risco de vida. Uma boa lembrança na hora certa.
O alojamento noturno. O segundo assalto...
Após esse duelo, por muitos dias Salvador não falou, nem
uma palavra com Joãozinho, e mostrou-lhe declaradamente o ódio que
sentia. Agora,finalmente, Joãozinho não era mais incomodado por ele
com as alusões, os trabalhos desagradáveis que lhe impunha e suas
caretas. - É melhor uma inimizade declarada do que uma falsa
amizade- pensava e dava-se por satisfeito. Contudo, quanto mais o
fim do balanço se aproximava e conseqüentemente a viagem de
Joãozinho para casa, tanto mais Salvador começava a sentir-se
satisfeito, e até parecia ter esquecido a derrota. Aos poucos tornavase novamente amável com Joãozinho e gracejava com ele.
Às vezes até comentava quão feliz a mãe e os irmãos de
Joãozinho ficariam quando ele chegasse para visitá-los. Que alvoroço
seria, quão feliz então se sentiria o visitante. Com essa conversa, o
rosto de Joãozinho resplandecia. Ele não poderia mais odiar Salvador,
pois o dia da viagem estava cada vez mais próximo. Contudo, mais
uma vez, teve que duvidar da sinceridade de Salvador. Três dias antes
do dia determinado, o rapaz pediu inesperadamente dois dias de
férias. Segundo ele, precisava, incondicionalmente, visitar seu irmão
Antônio Zerino e o tio Bento Quadra. Os dois trabalhavam numa
floresta de erva-mate, de um fazendeiro. Entretanto, prometera voltar
pontualmente para que Joãozinho pudesse viajar. Este suspeitava de
mais uma maldade de Salvador, para frustrar sua viagem ao lar.
Também seu amigo secreto, Jeca Baiano, farejava alguma perfídia do
rapaz.
Todavia, Salvador voltou depois de dois dias e Joãozinho
pôde preparar sua viagem. Na noite antes da partida, comprou
presentes na loja. Escolheu bonitos lenços para a mãe e as irmãs e
também alguns adornos e sabonetes. Para os irmãos escolhera bons
113
canivetes. Para o padrinho Cidral, levava um cachimbo de madeira
dura e escura. O cachimbo, de tubo grosso e retilíneo, tinha a forma
de uma pequena pistola. Ele sabia que, com este presente, daria uma
grande alegria ao padrinho Cidral.
Para Anita e seu mestre também escolhera algumas lembranças.
Arrumou tudo na mochila, com o coração feliz. Apenas o cachimbo
colocara no bolso da calça.
O patrão chamou-o ao escritório. Joãozinho atendeu o
chamado, pois sabia que agora receberia seu dinheiro economizado.
Quando fechou a porta de vidro atrás de si, e entrou no quarto do
patrão, Salvador plantou-se junto à porta para escutar.
Rodrigo conversou amigavelmente com Joãozinho e deulhe cento e sessenta mil-réis em muitas notas. - Veja, - disse sorrindo,
- quanto dinheiro você economizou nesses nove meses e ainda está
levando presentes para casa. O que você vai fazer com esse dinheiro?
Os olhos de Joãozinho brilharam. - Esse dinheiro é da
minha mãe. Ela poderá comprar uma vaca leiteira! - disse feliz. Oh, ele
imaginava a grande alegria da mãe quando colocasse, de uma só vez,
tanto dinheiro em suas mãos!
Rodrigo sorria: - Como cavalo de montaria você pode
pegar meu rosilho, pois sei que você cuidará bem do animal, e montar
você aprendeu aqui. - O animal é ligeiro e um pouco medroso. Agora,
para nossa corrida, você já estará de volta. Salvador deverá montar o
cavalo morzelo na corrida. Você acha que ele monta bem?
Joãozinho
respondeu
afirmativamente.
Salvador
já
montara muitas vezes em corridas. Os dois garotos, às vezes,
colocavam
o
Naturalmente,
rosilho
o
último
para
correr
sempre
contra
ganhava
o
cavalo
quando
morzelo.
montado
por
Salvador.
- Agora vá descansar e procure dormir um pouco -, disse
Rodrigo. - Mas, quero explicar-lhe mais uma vez o percurso que você
terá que fazer através de uma trilha deserta para poder chegar
direitinho em casa.
Joãozinho ouvia e gravava todas as particularidades.
Então, despediu-se e agradeceu ao patrão.
114
Assim que Salvador ouviu tudo, afastou-se do canto onde
espreitava. Joãozinho ainda despediu-se de todos os empregados e foi
para seu quarto no sótão. Em virtude da feliz agitação não conseguia
pegar no sono.
Às duas horas da madrugada, levantou-se silenciosamente
e foi buscar o rosilho no pasto para levá-lo ao estábulo. Às quatro
horas da manhã estava cavalgando pela mata adentro. A negra Luísa
dera-lhe um saquinho com passoca de carne de frango que daria para
dois dias.
Ao nascer do sol, acabara a estrada na mata e Joãozinho
começava a cavalgar na verde campina livre, cuja grama brilhava
como prata no sol da manhã. Aqui e lá levantavam-se, em pequenas
colinas verdes escuros bosquinhos que eram chamados capões.
O céu e recobria-se com um véu de nuvens brancas e leves. Um
bando de papagaios verdes voava grasnando alegremente de um
capão para outro. Rosilho andava ligeiro e Joãozinho não precisava
incitá-lo. Assim que levantava a mão com o chicote, já o animal
disparava como uma flecha. Quando passava por uma fazenda ou
alguma casa, Joãozinho deixava a rédea solta para que o cavalo
troteasse e saltasse, como os cavaleiros treinados o faziam. Sua alma
estava feliz e os pensamentos corriam à sua frente. Voltava a imaginar
os rostos felizes dos irmãos e da mãe, quando tirasse os presentes da
mochila. Colocou a mão para trás, para ver se a mochila ainda estava
lá. Então apalpou o bolso da calça onde guardava o grosso cachimbo
de madeira do padrinho Cidral. Na mochila, o cachimbo
poderia se
quebrar-se. Assim, continuou cavalgando até que o sol lhe apontasse a
hora do almoço.
Joãozinho tirou a sela do cavalo, junto à um riacho
rumorejante, e amarrou-o na corda para pastar. Esticou-se na grama
sob a sombra de uma frondosa sapupema, ao lado da água
refrescante, e fez sua refeição. Depois de uma hora de descanso,
continuou a viagem.
As colônias ficavam cada vez mais raras. Saindo da
campina livre, ele se embrenhava agora nas vegetações selvagens. O
caminho tornava-se estreito e acidentado. Grandes pedaços de rochas
115
negras saíam da terra. Troncos de árvores carbonizados e definhados
estendiam seus galhos secos no ar nebuloso.
Durante longo tempo não se passava por nenhuma casa.
Sombras escuras de montes negros surgiam, saindo da névoa.
O garoto começou a sentir medo. Mas este caminho pela
mata encurtava a distância para casa. A viagem, passando por Curitiba
e depois de trem até a planície, custaria muito dinheiro e levaria muito
tempo. O que poderia acontecer-lhe aqui nesse lugar solitário? Não se
ouviam sons humanos e provavelmente também não haveria animais
selvagens.
O atalho conduzia novamente para a densa floresta. A
neblina sumia. À frente, estendiam-se altas montanhas e ouvia-se o
barulho de água caindo. A trilha, em alguns trechos, tornava-se
acidentada e conduzia lentamente morro abaixo. O cavalo conseguia
andar
apenas
cuidadosamente.
Joãozinho
percebia
que
estava
passando pela serra.
Rodrigo dissera-lhe que só chegaria à morada do velho
Cordeiro ao cair da noite. Ali deveria pernoitar. Então o velho Cordeiro,
um freguês de Casa Branca, lhe mostraria, na manhã seguinte, o
caminho à esquerda, descendo por um barranco, que conduzia para a
planície de Palmital.
O dia findava quando Joãozinho entrou numa espessa mata
de bambu, cujos os tubos quebravam-se sob os cascos do cavalo. O
caminho estava meio escuro sob os arqueados bambus que cercavam
o cavaleiro por todos os lados.
De repente, Joãozinho avistou, para seu grande espanto,
algo deslizando à sua frente. Não seriam duas figuras suspeitas que
estavam ali se arrastando pelo bambuzal? Joãozinho sentia que o
coração parava de bater por instantes. Será que eram ladrões que
queriam roubar-lhe o dinheiro ganho com tanto sacrifício? Ou até
mesmo atentar contra sua vida? - Querido Deus, me ajude! - pedia
Joãozinho.
O cavalo espantou-se. No mesmo instante saíram do
bambuzal
duas
figuras
disfarçadas.
Seus
rostos
tinham
sido
escurecidos com ferrugem. Um deles, que tinha um pano preto
116
amarrado diante dos olhos, pulou sobre as rédeas do cavalo, fazendoo parar. O outro ficou ao lado de Joãozinho ameaçando-o com um
pedaço de pau. Disfarçando a voz, os dois resmungaram: - Passe o
dinheiro ou você morre!
O menino estava pálido de susto e tremia. - Sim, eu dou o
dinheiro a vocês, mas não me façam mal. - Eu quero ir ver minha
mãe! Uma dor indescritível cortava-lhe o coração, porque agora não
poderia mais levar o dinheiro para sua mãe comprar a vaca leiteira.
Pôs a mão no bolso onde tinha amarrado o dinheiro. Então, seus dedos
trêmulos apalparam o cachimbo e imediatamente recordou-se da
estória que o mestre da escola da mata uma vez lhe contara.
Com uma inspiração repentina, arrancou do bolso o
cachimbo, que parecia uma pistola, e debruçando-se para a frente,
apontou o cano do cachimbo no rosto daquele que segurava o cavalo e
gritou como um desesperado: - Solte! Eu atiro!
- Com mil demônios, ele tem uma pistola, - gritou o
homem saltando para o lado.
Com um rápido movimento de braços Joãozinho passou a
imitação de pistola diante dos olhos do cavalo,fazendo com que se
assustasse e disparasse deixando os dois sujeitos para trás. Tudo isso
aconteceu tão depressa que Joãozinho nem tivera tempo para pensar.
Com a rédea solta, o cavalo assustado passou por bambus e matagais,
sempre morro abaixo, até que o cavaleiro conseguiu fazê-lo parar
diante da morada do velho Cordeiro.
A humilde cabana do velho Cordeiro ficava na encruzilhada
onde, à esquerda, estava o caminho que Joãozinho deveria tomar. Já
escurecia quando desceu do trêmulo cavalo.
As pessoas da mata, que o conheciam como empregado da
venda de Casa Branca, receberam-no com hospitalidade. Porém
perceberam,
pelo
seu
modo
excitado,
que
alguma
coisa
ruim
acontecera-lhe no caminho. Depois que o jovem hóspede comera e
bebera
alguma coisa, perguntaram-lhe
pelo
ocorrido. Joãozinho
contou-lhes do assalto e como se livrara dos ladrões, com o cachimbo
que parecia uma pistola e pela rapidez de seu cavalo.
117
O velho Cordeiro e sua mulher balançavam a cabeça
espantados e, assim mesmo, riram do engano dos ladrões.
- Aqui, nesse deserto, não há nada para roubar, - disse o
homem, pensativo. - Têm que ser sujeitos que já sabiam que você
passaria com dinheiro por essa região deserta!
Eles falaram ainda por muito tempo sobre o assalto e se
divertiram com os ladrões que correram de um cachimbo.
Porém, lá fora, estavam duas figuras disfarçadas que, na
escuridão da noite, seguiram o cavaleiro. Espreitavam através das
fendas de palmito e ouviam como eram motivo de escárnio. Logo
desapareceram, morro abaixo, no barranco atrás da morada do velho
Cordeiro.
Na manhã seguinte, Joãozinho aprontou-se ao raiar do dia
e partiu. Quando agradeceu ao velho Cordeiro e sua mulher pela
hospitalidade, o velho aproximou-se com uma pequena pistola e disse:
- A pistola está carregada com chumbo. Leve-a! A gente nunca sabe o
que pode ainda lhe acontecer!
Ao passar pelo escuro barranco atrás da cabana do
Cordeiro, Joãozinho sentiu medo. Enfiou no cinto a pistola, pronta para
atirar. Atirar, aprendera ainda pequeno, quando acompanhava seus
irmãos pela floresta.
O vento da manhã sussurrava sinistramente na mata
escura. Na parte mais profunda da garganta da mata, a trilha estava
lamacenta. O cavalo caminhava lentamente. Então, a trilha conduziu
novamente morro acima. O cavalo arrebitou as orelhas e fungou.
Como que saindo da terra apareceram no caminho, de
repente, os dois sujeitos disfarçados. Como um raio, o cavalo virou-se,
tentando voltar em disparada. No mesmo momento, um dos dois
ladrões saltou e segurou pelas rédeas o animal que fungava
ferozmente. O outro aproximou-se com um salto e gritou: - Desça do
cavalo e passe o dinheiro!
Joãozinho arrancou a pequena pistola do velho Cordeiro do
cinto. Com o dedo no gatilho gritou, rouco de medo e preocupação: Solte! Vou abrir fogo!
118
Os dois sujeitos puseram-se a rir ironicamente: - O
cachimbo não vai lhe ajudar pela segunda vez, seu mocinho! Passe o
dinheiro!
Um tiro saiu da pistola. Os grãos de chumbo voaram no
rosto daquele que segurava o cavalo. Com um grito de dor, pôs-se em
fuga. O cavalo disparou a galope morro acima, na direção da cabana
do Cordeiro.
Antes que Joãozinho chegasse à cabana, encontrou o velho
Cordeiro e sua mulher que, ao ouvirem o tiro, saíram para ajudá-lo. O
homem estava armado com uma espingarda e sua mulher com uma
foice. Joãozinho, em sua companhia, cavalgou até o local do assalto.
Nesse ínterim, já a alvorada se instaurara. Encontraram no caminho
apenas um lenço ensanguentado e uma pista de sangue, que conduzia
mata
adentro.
Os
dois
velhos
aconselharam
ao
garoto,
que
continuasse sua viagem. Joãozinho deixou que lhe carregassem a
pistola novamente e despediu-se, pela segunda vez, dos dois velhos.
No caminho, meditou bastante. A voz do ladrão, que ficara a seu lado,
lembrava-lhe Bento Quadra. Será que ele ficara sabendo de sua
viagem para casa através de Salvador e combinara o assalto com
Antônio Zerino? O outro sujeito não escondera os olhos? Talvez
quisesse apenas ocultar seu olhar vesgo.
119
XIII
A capela da mata. Joãozinho agradece a Deus pela sua salvação
milagrosa. Avista-se o lar. O que Anita vai dizer? A alegria do
professor da mata, o júbilo da mãe e dos irmãos. A
concretização de um profundo desejo da mãe. Joãozinho vive
um momento inesquecível. Jacó, o papagaio, e "Valente". O
cumprimento dos padrinhos. A alegria na terra natal...
Joãozinho cavalgou durante muitas horas até chegar
novamente a uma região mais movimentada. A serra ficara atrás dele.
No final da tarde, reconheceu a capela da colina, que não ficava muito
longe da casa do professor da mata. Cavalgou morro acima, desceu do
cavalo e entrou naquele recinto sagrado para agradecer a Deus por
ter-se salvado da tocaia. Naquela região, o pastor ia apenas duas
vezes ao ano para realizar o culto na pequena capela de madeira. Por
isso, Joãozinho viera poucas vezes à igreja, quando pequeno.
Logo Joãozinho prosseguiu a viagem. Aos poucos, o
caminho conduzia ao trecho conhecido que levava para sua casa.
Cavalgava pelo trecho em que passara quando partira. Agora via o
telhado da escola e seu coração começou a bater com muita força.
Será que Bento Damásio se alegraria ao vê-lo? O que Anita diria?
Ao aproximar-se, ouviu o som monótono dos alunos que
liam o alfabeto em voz alta. Ressoava como o canto uniforme dos
macacos da floresta. Num rápido galope, avançou até a porta aberta
da escola.
O barulho da leitura monótona cessou de repente. Porém,
no momento seguinte já se ouvia um zumbido como de um enxame de
abelhas. Todos os alunos levantarando e empurravam o professor até
a porta.
O velho Bento Damásio arregalou os olhos ao ver seu
antigo aluno: - Olá, é o Joãozinho, ou eu não estou enxergando
direito? De onde você vem, assim tão de repente? - Há muito tempo
que sua mãe espera por você. Mas, desça e deixe-me dar-lhe um
abraço!- Bento Damásio sorria mas, ao mesmo tempo, estava tão
emocionado que parecia querer chorar. Para disfarçar sua comoção
120
dirigiu-se para a porta interna da casa e chamou: - Oh, mãe, Anita!
Venham ver quem chegou!
Joãozinho descera do cavalo e abraçou seu velho professor
diante da porta.
Então Anita apareceu, e Joãozinho foi depressa ao seu
encontro.
Como
ela
estava
bonita
com
seus
cabelos
pretos
encaracolados! Sorria para ele, e ambos estenderam as mãos olhandose nos olhos, cheios de contentamento. Ela achou que ele crescera
muito e que estava com uma aparência sadia.
- Isso é o ar saudável do planalto, - disse Bento Damásio.
Como seus alunos estavam todos de pé ali, ele aproveitou para
explicar que o Brasil era um país feliz, pois possuía diversos climas,
um perto do outro. Assim, com um dia de viagem poderia sair-se de
um clima tropical para um mais temperado, isto é, da planície para a
serra.
Então mandou os alunos, que olhavam embasbacados, de
volta para a sala e passou-lhes atividades afim de entretê-los.
Joãozinho foi levado para a sala de estar, onde foi servido de comida e
bebida. Durante a refeição perguntou pela mãe e pelos irmãos,
recebendo uma resposta satisfatória, pois todos estavam bem de
saúde. Joãozinho teve que contar todas as novidades, respondendo a
muitas perguntas. Até sobre o assalto que sofrera no caminho, e o
cachimbo que fizera as vezes de uma pistola, teve que relatar para seu
antigo mestre. Ao ouvir essa estória, Bento Damásio ria muito e
lembrou-se de, uma vez, ter lido uma estória parecida
para
Joãozinho. E no momento do perigo Joãozinho, inconscientemente, se
recordara da estória, o que salvou. - Pra você, tudo sempre acaba
bem. Você continua sendo ainda o Joãozinho Felizardo! - disse rindo o
professor.
Depois de descansar uma hora, o garoto montou seu
imponente cavalo e saiu dali, admirado pelos alunos da escola. Antes
de partir, dera os pequenos presentes à Anita e a seus pais, que
agradeceram muito pela lembrança. Seu coração batia forte e feliz por
estar cavalgando pelo velho caminho que levava à escola, caminho
que fizera diariamente durante quatro anos, com o Mico. Cada
121
arbusto, cada riacho, cada árvore, as casas e as montanhas, as
encruzilhadas, tudo parecia dizer-lhe: -Você está novamente em sua
terra! Pedestres e cavaleiros que encontrava cumprimentavam-no
como a um velho conhecido. A alguns teve que apertar a mão. Todos
olhavam para ele admirando sua boa roupa e o belo cavalo. Joãozinho
sentia-se muito importante. Finalmente, seu cavalo cruzou a grande
figueira da estrada, pela qual passara há nove meses, com o padrinho,
em direção a um mundo desconhecido. Agora, eram apenas alguns
passos até a casa da mãe. Assim, soltou as rédeas do cavalo.
Já
estava
escuro
quando
viu
o
frontão
do
telhado
escurecido pela plantação. Desceu silenciosamente do cavalo e o
conduziu pelas rédeas. Ele queria aproximar-se secretamente para
surpreender sua família.
O coração batia violentamente de felicidade. Quando
estava mais perto da casa, ouviu vozes e viu um clarão de luz que saía
da cozinha.
Joãozinho amarrou o cavalo no tronco de uma laranjeira e
arrastou-se, no escuro, ao longo da parede da casa até chegar à da
cozinha, de onde pôde espreitar o interior através dos troncos de
palmito.
Então, o cachorro fez um grande barulho na cozinha e
começou a uivar. Francisco e Pedro saíram do paiol e tentaram
acalmá-lo, pois acharam que o cachorro tivesse farejado um animal
selvagem.
Joãozinho via a mãe lá dentro, iluminada pela chama do
fogão. Ele achava que ela ouviria o bater de seu coração pela parede
de palmito. A mãe levantara a cabeça, com o barulho e o uivar de
Valente, olhando para Margarida que trabalhava a seu lado.
- Toda vez que o cachorro faz esse barulho, eu tenho que
me lembrar do meu Joãozinho. Ah, se esse menino voltasse para
casa...
Lá fora, junto à parede da cozinha ressoou um grito
inarticulado, meio de choro, meio de alegria.
- Joãozinho! - gritou estridentemente a mulher, indo para
fora. Logo, mãe e filho abraçavam-se fortemente. Margarida e Maria,
122
com gritos de alegria, seguiram a mãe, no escuro, para poder abraçar
o
irmão.
Francisco
e
Pedro
juntaram-se
a
elas,
gritando
de
contentamento. E Valente arrastava sua corrente uivando e latindo
como louco.
Joãozinho foi conduzido jubiloso para a cozinha, abraçado
por todos. A mãe derramou lágrimas silenciosas de felicidade e Maria
não queria mais soltar o irmão que voltara.
Finalmente, os irmãos saíram para desencilhar e tratar do
rosilho. Podiam ouvir-se as palavras de admiração deles pela sela e
pelo cavalo. Margarida tinha que servir a refeição.
Durante o jantar, Joãozinho quase não teve descanso, pois
precisava responder às intermináveis perguntas. - Deixem-no comer
primeiro! - interrompia a mãe e olhava para seu filho mais novo com
olhos brilhantes. Ele estava sentado à mesa como um rei que voltava,
vitorioso, de uma batalha. Os olhos de seus familiares brilhavam
durante seu relato. Após a refeição, buscou a mochila e distribuiu os
presentes. Todos alegraram-se tanto que seria impossível descrever! A
mãe olhava com olhos cintilantes para o filho que presenteava a todos
tão ricamente. No meio do regozijo, Joãozinho perguntou de repente: Vocês já conseguiram uma vaca leiteira? Vocês sempre falavam disso
antigamente.
Pedro e Francisco riram e fizeram um movimento com os
dedos, de quem está contando dinheiro, dizendo: - Ainda falta muito
disso! - E Margarida disse amargamente: - Nós nunca vamos
conseguir reunir tanto dinheiro, pois sempre surgem outras despesas.
- Uma boa vaca leiteira custa pelo menos cento e cinqüenta mil-réis.
A mãe balançava a cabeça e suspirou: - Sim, eu desejo há
muito tempo uma boa vaca leiteira. Mas, o dinheiro nunca é suficiente!
Joãozinho pôs a mão no bolso da calça, tirou o lenço onde
embrulhara o dinheiro e tirou-o. Aproximou-se rapidamente da mãe,
ajoelhou-se diante dela e colocou três belas notas de cinqüenta milréis em seu colo. Sua voz quase sumiu: - Aqui, você tem o dinheiro
para comprar a vaca, minha mãezinha!
123
Fez-se um grande silêncio. Por um momento, pôde-se
ouvir nitidamente o cantar de milhares de grilos lá fora, na mata.
Todos ficaram pasmos de espanto e felicidade.
A mãe colocou as mãos no rosto e chorou. Há muito tempo
que nutria esse sonho, agora realizado por Joãozinho. Os irmãos
davam gritos de prazer. Todos acercaram-se da mãe e expressaram
sua felicidade. Maria, por exemplo, dançava ao redor da sala e
cantarolava: - Uma vaca, uma vaquinha colorida, uma vaquinha de
leite!
A mãe acabou rindo por entre lágrimas, e colocou a mão
sobre a cabeça de Joãozinho. De seus olhos caíram lágrimas de
contentamento e perguntou: - Você ganhou todo esse dinheiro nesses
nove meses e de maneira honesta?
Joãozinho respondeu com voz um pouco presa: - Sim,
mãe! Eu sempre economizei para que pudesse lhe dar esta alegria.
Então, a mãe puxou aquele menino crescido para seu colo,
como fazia quando Joãozinho era pequeno, e apertou-o junto ao peito
beijando-o. Este foi o momento mais belo na vida de Joãozinho, e toda
a saudade, o árduo trabalho, suas preocupações desvaneceram-se
diante desse momento feliz.
Confuso, desceu do colo da mãe e saiu para ver o fiel
Valente que uivava. Com um grande salto, Valente foi ao seu
encontro, e comportando-se como louco quando Joãozinho começou a
falar e a acariciá-lo. Ele pulava em Joãozinho e tentava lamber-lhe o
rosto e as mãos, uivando e latindo muito. Sua felicidade não tinha
limites, mas chamaram Joãozinho para dentro. O padrinho Cidral e sua
mulher tinham vindo visitá-lo.
Eles souberam de sua chegada por vizinhos que o encontraram
no caminho, e queriam vê-lo. Joãozinho entrou e abraçou seu padrinho
que, orgulhoso, olhava para o rapaz.
Então
começaram
as
perguntas
que
Joãozinho
ia
respondendo, até que presenteou a madrinha com o lenço de pescoço
e o padrinho com o cachimbo. Os dois velhos estavam emocionados e
alegraram-se sinceramente com a atenção de Joãozinho. Agora
Joãozinho contou a estória do assalto e de sua salvação pelo cachimbo
124
que parecia uma pistola. Também falou de sua suspeita sobre
Salvador e seus parentes Bento Quadra e Antonio Zerino.
Então, a mãe ficou com medo. Assustada, pousou os olhos
no menino que escapara, por milagre, do grande perigo. Um arrepio
percorria-lhe o corpo, quando pensava na viagem de volta de seu filho.
Ela pediu ao padrinho Cidral que acompanhasse o filho até Casa
Branca, com o que este, após refletir um pouco, concordou.
Então, radiante de felicidade mostrou-lhe o dinheiro que
Joãozinho economizara para que ela pudesse comprar a vaca leiteira.
O velho arregalou os olhos: - Vejam! Isto realmente me alegra! Vocês
estão
vendo
como
foi
bom
levar
o
menino
para
a
região
montanhosa?... Um dia ainda ele vai me agradecer quando for homem
adulto! - Olhava orgulhosamente para sua mulher. O menino podia
alegrar-se em ter um padrinho assim.
Ficaram todos conversando por muito tempo e separaramse só depois da meia-noite.
Estar em casa! Como os dias passaram depressa para
Joãozinho. A mãe preparava seus pratos prediletos e o mimava Maria
não saía de seu lado o dia todo, e todos procuravam fazer-lhe um
agrado. Ele brincava com o papagaio, com o Valente e com o gato. Foi
ver os porcos, o quintal e todos os seus lugares preferidos na mata e
atrás da casa. Foi passear com o Mico e visitou o mestre da escola e
sua família. Também conversava por longas horas com Anita.
Enquanto isso, os irmãos compraram, do rico senhor
Gomes, uma excelente vaca leiteira. Foi uma gritaria e risadas quando
a vaca malhada entrou no quintal com seu bezerrinho. Todos ficaram
ao redor da mãe, quando ela começou a tirar o leite da vaca que
comia vagarosamente o capim que Pedro e Francisco trouxeram.
Depois que a mãe enchera um grande balde de leite espumante,
deixaram que o bezerro mamasse, pois ele também deveria ter sua
parte.
A vaca leiteira revelou-se logo um animal lucrativo, pois
dava tanto leite que podiam vender manteiga e queijo na venda. Além
disso, o estrume do estábulo servia como esterco para a plantação
que, assim, produzia mais.
125
XIV
O retorno à loja de Casa Branca. A preparação dos cavalos de
corrida. A pista. O erro de Joãozinho: ele deve pagar para
outros. Ele cai em desgraça junto ao patrão. A serraria na mata
de pinheiros. O mate-chimarrão. A cuia e a bomba...
Joãozinho retornara à Casa Branca em companhia do
padrinho. Todos o cumprimentaram amavelmente; até Salvador veio
ao seu encontro, tão alegre e despreocupado que Joãozinho chegou a
duvidar se não fora injusto em sua suspeita. Porém, não comentou
nada sobre o assalto.
Contudo, o velho Cidral relatou a Rodrigo o perigo pelo
qual Joãozinho passara e sua suspeita em relação aos dois parentes de
Salvador. Rodrigo balançou a cabeça, pois acreditava que os dois
ladrões disfarçados poderiam ser quaisquer vagabundos, como há
tantos por aí, em toda parte. Para ele, não se deveria desconfiar dos
parentes de Salvador sem saber algo de mais concreto.
Na manhã seguinte o velho Cidral voltou para casa.
Joãozinho procurava lutar contra a saudade, aprofundando-se no
trabalho.
Na loja, entre os empregados, o assunto principal era a
corrida de cavalos que se aproximava. Também não se falava de outra
coisa que não fosse o carreiramento, durante as refeições, nos
depósitos, no estábulo ou no trabalho.
Rodrigo chamou o conhecido treinador de cavalos João das
Neves, e seu filho, para prepararem seu cavalo para a corrida. Com
uma alimentação apropriada, um massagear diário dos músculos,
banhos pontuais, fricções e cavalgadas, os músculos e os tendões do
cavalo eram fortalecidos. A água e a gordura desnecessárias eram
retiradas do corpo dos animais através desse processo e sua força e
agilidade aumentavam dia após dia. Os dois treinadores guardavam os
animais a eles confiados, dia e noite, tanto no estábulo como no pasto.
Segundo eles, há pessoas maldosas que, por terem apostado seu
126
dinheiro no cavalo adversário, poderiam, então, colocar alguma coisa
na comida do cavalo morzelo de Rodrigo para enfraquecê-lo.
Como cavaleiro da corrida Rodrigo escolhera o robusto e
flexível Salvador, no qual depositava absoluta confiança nessa arte.
Diariamente, em horas pré determinadas, ele ia ter com o cavalo, e
levava-o sem sela até a pista, para deixá-lo galopar ali muitas vezes.
Após algum tempo, Joãozinho recebeu do patrão o encargo
de participar da galopada com o rosilho, a fim de estimular a rivalidade
entre os cavalos. Isto era um grande divertimento para os rapazes. Os
cavalos saíam do estábulo saracoteando e dirigiam-se para o livre e
amplo gramado, que ficava atrás da venda, do outro lado da estrada.
Rodrigo e o treinador João das Neves seguiam a pé, pois a pista não
era muito longe dali.
Lá em cima, no começo da pista de terra negra encravada
entre o campo verde, os dois rapazes conseguiam, com muito
sacrifício, refrear seus fungantes e fogosos animais. Deixavam que os
animais dessem o arranque de saída para, depois de alguns saltos,
fazê-los retornar. Com isso, os animais se tornariam flexíveis e prontos
para a partida, pois devido à pequena extensão da pista, o que
importava era o salto de partida do cavalo. Após repetir muitas vezes
o exercício, João das Neves soltou um grito estridente, que era o sinal
para os dois cavaleiros deixarem seus cavalos disparar. Ouviam-se
gritos e barulho de chicotadas no ar para acelerar o percurso dos
animais na pista. As coxas comprimiam-se no corpo esbelto do cavalo,
os cabelos da crina voavam ao vento, com os saltos os flancos dos
animais sem ferradura, eram secretamente incitados. Lá em baixo, no
final
da
pista,
os cavalos
passavam correndo
muito
além da
demarcação, até que os rapazes quisessem fazê-los parar. Nestes
ensaios, o cavalo morzelo revelou-se muito superior ao rosilho, que
também era cavalo de corrida. Com isso, Rodrigo estava muito seguro
da vitória e aceitava qualquer aposta.
Quanto mais o dia da corrida se aproximava, mais nervoso
ficava a comunidade da região. Ali não havia nenhuma pessoa, por
mais pobre que fosse, que não apostara, provavelmente, quase dois
mil-réis em seu cavalo preferido. E Salvador, como os outros
127
empregados, apostara suas economias no fogoso cavalo morzelo, pois
a vitória deste era quase certa. A agitação tornou-se, no final, tão
visível, que o trabalho foi deixado de lado. Rodrigo julgou necessário
advertir seus empregados a não abandonarem suas obrigações por
causa da corrida
Uma tarde Joãozinho foi chamado ao escritório. Rodrigo
colocou diante dele o caderno de rascunho com um gesto violento e
uma expressão sombria, remungando: - Você vendeu fiado a dois
fregueses, sem perguntar a mim ou ao senhor Basílio, como era sua
obrigação. - Por que você menospreza minhas ordens? -Como você
pôde vender fiado para vagabundos como Bento Quadra e Antonio
Zerino?
Joãozinho
gaguejou
uma
explicação
e
referiu-se
a
Salvador. Rodrigo não deixou nem que ele terminasse e acrescentou
furioso: - Quem entregou a mercadoria? - Quem anotou a importância
no caderno de rascunho, você ou Salvador?...Não empurre sempre a
culpa para os outros, isto não é papel de homem. - Eu proíbo você,
pela última vez, de vender fiado sem minha autorização. Se a dívida
dos dois não fôr paga até o final do mês; então será descontado de
seu ordenado. Entendido?... Agora volte ao trabalho!
A porta do escritório bateu com força atrás de Joãozinho. O
rapaz entrou na loja profundamente abatido, e Salvador, novamente
trabalhando perto da porta, esforçou-se para dissimular sua alegria
maliciosa!
Joãozinho não se afligia apenas com o possível prejuízo de
dinheiro mas, muito mais, com a maneira dura com que o patrão o
tratara. Será que alguém o difamara para o patrão?
Aproximou-se irritado de Salvador: - Quando o seu pessoal
vai pagar o que está devendo aqui? - Agora eu que vou ter que
assumir o que você endossou!
- Não tenha medo! - disse Salvador rindo maliciosamente.
- Eles vão fazer a colheita do mate para os colonos poloneses, que não
entendem nada de mate. Em alguns dias, a erva estará pronta. Eles
virão aqui para pegar a sacaria. Quando a erva estiver aqui, você
desconta a dívida.
128
Joãozinho respirou aliviado.
Realmente, após alguns dias, Bento Quadra e Antonio
Zerino apareceram na loja. Quando Joãozinho olhou para seus rostos
sinistros, lembrou-se imediatamente do assalto. Todavia, os dois
sujeitos pareciam muito despreocupados e cumprimentaram-no como
sempre. Bento Quadra tinha, na verdade, algumas cicatrizes e
manchas vermelhas no rosto escuro. Joãozinho perguntou sobre isso
e recebeu como resposta que ele tivera varíola, daí as manchas no
rosto. Também desculpou-se pela longa ausência, culpando a doença.
Disse que Antônio cuidou dele mais de um mês até que pudesse voltar
ao trabalho. Porém Joãozinho pensava: as cicatrizes são resultado dos
grãos de chumbo, e durante esse mês, Bento Quadra devia estar
fazendo curativos!
Hoje, os dois queriam levar vinte sacos grandes e bons
para colocar o mate que trariam, no domingo, para vender em Casa
Branca. A dívida poderia ser então descontada.
Antes que Joãozinho lhes desse os sacos vazios, foi ao
escritório e pediu autorização a Basílio. Este pensou por um instante e
disse: - Esses sujeitos provavelmente venderão a erva-mate em outra
venda.
Mas Salvador é parente deles e eles, possivelmente, trarão a
erva. Dê-lhes os sacos, mas pergunte-lhes quando a erva estará
pronta, pois podemos emprestar os sacos apenas por alguns dias.
Joãozinho conversou com os dois que lhe explicaram, com
detalhes, onde trabalhavam na mata e quando pensavam em trazer a
erva mate. Então partiram com dois grandes pacotes de sacos novos.
Joãozinho via-os partir com o coração pesado.
À noitinha, Joãozinho foi ao depósito de mate, onde
trabalhava seu amigo Jeca Baiano. Este, assobiando varria o depósito
e seu rosto amarelo-escuro estava verde acinzentado do pó de mate.
Os olhos negros destacavam-se sinistramente do rosto escuro. Quando
Joãozinho entrou no depósito, jogou longe a vassoura e, ao mesmo
tempo, estendeu uma perna na frente do rapaz para que este
tropeçasse. Imediatamente Joãozinho parou o ataque com um salto de
lado, com o qual atingiu o baiano nas costas. Ambos riram. Mas
129
Joãozinho não estava disposto a lutar. Contou ao baiano sua
preocupação e receio de que os dois vigaristas não pagassem a dívida
e também não troxessem de volta os sacos de mate. Ele teria todo o
prejuízo e, ainda por cima, a ira do patrão contra si.
Jeca Baiano limpou a poeira verde do rosto amarelado com
mão peluda, cuspiu longe, pensativamente, e mascou um pedaço de
fumo de corda.
- Quando eles pretendem estar prontos com o mate? perguntou depois que deu uma boa cuspida.
Joãozinho contou que queriam trazer o mate domingo. A
tropa do velho Silva transportaria o carregamento.
Jeca Baiano refletiu por um tempo e disse: - Você tem que
ficar de olho neles até domingo. Vá ao senhor Basílio e explique-lhe
que você gostaria de buscar pessoalmente o mate, que está em nossa
sacaria, porque você não
confia naqueles sujeitos. Você pede
permissão para ir até lá, já na sexta-feira de tarde. Eu vou sábado à
tarde com nossos dez burros e um ajudante. E no domingo de manhã
nós traremos a erva para cá.
Joãozinho hesitou: - Os sujeitos poderiam ficar furiosos e
fazer-me algum mal?
- Não tenha medo - tranqüilizou-o o baiano. - Se você for
com ordem do patrão e explicar-lhes que você gostaria de conhecer a
produção de mate na mata e, assim, aproveitar para acompanhar a
erva até nosso depósito, eles não poderão arrumar nenhuma desculpa.
E também não lhe farão nenhum mal pois teriam que se ver com o
patrão, que é comissário de polícia aqui.
Joãozinho
seguiu
o
conselho
do
baiano
e
recebeu
permissão de Basílio para, já na sexta-feira, pôr-se a caminho da
fazenda de poloneses. Basílio dizia para os outros empregados que
Joãozinho fora à fazenda dos Lima executar uma ordem.
Joãozinho cavalgou pelo campo de grama amarelada pela
última geada e onde passavam também as carretas. Aqui, nas
montanhas, sentia-se mais o inverno do que na quente planície. Pela
manhã campo estava, freqüentemente, coberto de geada, cujos
cristais de gelo cintilavam ao sol matutino. As copas das árvores
130
estavam sem cor. Algumas derrubavam todas as folhas como a
macieira, o pessegueiro, a pereira e a ameixeira.
A trilha entrava agora numa sombria floresta de pinheiros,
tão aprumados para o céu que pareciam sublimes colunas de um
templo. As copas rasas, em forma de guarda-chuva, erguiam-se no ar,
sérias e festivas, com suas pontiagudas cristas verde-escuro. Um
sussurrar parecido com o de um órgão ressoava pela floresta. Nos
íngremes troncos dos pinheiros pululavam brotos de samambaias
imensas com seus troncos felpudos, samambaias menores, taquaras,
amoreiras, cactos, abacaxis selvagens, araçás e outros rebentos. Cá e
lá havia um cedro nodoso, uma enorme imbuia, uma tarumã ou
canela. Porém, por toda parte, vislumbravam-se os finos troncos
cinzentos dos pés de mate, cuja folhagem verde suculenta parece-se
com a da laranjeira.
A noite aproximava-se, quando Joãozinho chegou à casa
do velho Lima. O velho estava sentado na varanda de madeira e
sugava mate quente de um recipiente em forma de abóbora. Ele
insistiu muito até que Joãozinho desceu do cavalo e aceitou um
chimarrão. O velho despejava água fervente da chaleira na cuia cheia
de folhinhas do chá verde. Para experimentar, ele deu algumas
puxadas pelo caninho prateado, a bombilha, e passou, então, a cuia e
a bombilha para Joãozinho. Este bebia cuidadosamente aquela
estimulante bebida quente e amarga. Depois que esvaziou algumas
cuias, o velho Lima mostrou-lhe o caminho que o levaria à serraria dos
colonos poloneses e, dali, para a plantação de mate.
Após meia hora de cavalgada, Joãozinho ouviu o rumorejar
do rio do moinho e um sibilar e ofegar apressados da serra. Cavalgou
até o galpão aberto, onde funcionava a serraria. A grande roda de
madeira girava rangendo sob o choque do grande volume d'água.
Ligada a essa roda d'água, girava, lá dentro, uma roda motriz que
mantinha a serra em movimento.
Um tronco de pinheiro descascado, de quatro metros,
movia-se sobre a armação, em direção aos rápidos dentes da serra
onde era cortado em forma de tábuas. Havia grandes pilhas de tábuas
e pranchões por toda parte. Muitas pessoas trabalhavam por ali, e
131
uma carreta puxada por quatro animais trazia uma nova remessa de
pinheiros. Joãozinho teve que descer do cavalo e gritar alto para que
pudesse ser entendido no meio daquele barulho.
O polonês ficou desconfiado quando soube dos propósitos
de Joãozinho. Mas, mesmo assim, explicou o caminho que deveria
tomar para chegar à plantação de mate-carijo.
Seguindo o conselho, Joãozinho desencilhou o cavalo e
levou-o ao pasto, pois na mata o animal poderia escapar-lhe. Seria
melhor que fizesse a pé o trecho que restava.
132
XV
A sinistra massa intransponível da mata à noite. O inverno
brasileiro nas montanhas. Joãozinho descobre um complô e
recua furtivamente. As matas de erva-mate do Paraná e as
matas de borracha do Pará. Como é produzido o mate bruto?
Um mate-carijo. Barbaquá, congoinha e caúna. O churrasco de
paca...
Entretanto já era quase escuro.
Joãozinho caminhava com muito medo para dentro da
sombria mata. Estava mais propenso a dar meia volta e pedir pousada
ao polonês do que prosseguir, porém dizia para si mesmo que isto
seria covardia e, ainda por cima, uma negligência de sua obrigação. Se
não vigiasse aqueles dois fregueses suspeitos durante a noite, eles
poderiam carregar o mate já pronto e levá-lo para uma outra venda, e
ele teria o prejuízo e o escárnio dos colegas. Em conseqüência, seu
patrão ainda questionaria muito seu talento para negócios. Portanto,
adiante! O caminho conduzia-o através de um sinistro taquaral
sussurrante. O rapaz assustava-se com cada rangido ou estalido do
bambu que se quebrava. Um galho que estava dependurado gemia
com o vento. Uma coruja saiu voando de seu esconderijo, com um
grito dissonante. Aos poucos ia esfriando e escurecendo na mata. As
estrelas cintilavam sobre a folhagem da mata como se também
estivessem tremendo de frio. Morcegos deslizavam ao redor da cabeça
do
rapaz,
que
mal
enxergava
vestígios
do
estreito
caminho.
Caminhando, aos poucos ia novamente se aquecendo. Procurava, com
pensamentos positivos, estimular sua coragem que esmorecera. O que
poderia acontecer-lhe? Ele viera, como empregado da firma, para
cumprir uma tarefa. Eles não poderiam fazê-lo desaparecer sem deixar
pistas, pois todo mundo sabia que tinha vindo ao encontro dos dois
apanhadores de erva no carijo. Exigir-se-ia que prestassem contas, se
atentassem contra a vida dele. E finalmente... esticou seus jovens
braços musculosos... ele era um homem e não um covarde! Em frente!
133
Joãozinho logo avistou as chamas vermelhas de uma
fogueira dentro da mata. Ficou parado por um instante para reunir
todas as forças antes de surpreender os trabalhadores suspeitos, ali no
carijo.
Ouviu, de repente, altas vozes de uma conversa perto de
onde estava. Os dois homens deviam estar ali, ao lado dele, na mata.
Não estavam na claridade da fogueira e agora não perceberam a
aproximação de Joãozinho. Também não suspeitavam que, ainda ao
cair da noite, aparecesse um visitante.
Conversavam sem nenhum cuidado. Joãozinho queria anunciar
sua presença com um cumprimento, quando uma frase perceptível da
conversa deles fez com que se calasse. Agora, ouvia assustado o que
os dois homes discutiam, protegidos no escuro da mata de bambus.
- Mas Salvador é realmente capaz de reter, aos poucos, o
morzelo na corrida, sem causar suspeita?
A voz do interrogador soava conhecida ao rapaz.
- Lógico que ele consegue - dizia a voz de Bento Quadra,
que Joãozinho reconheceu claramente. - Ele mesmo apostou quarenta
mil-réis no morzelo e exige trezentos mil-réis se tiver que fazê-lo
perder. - A metade disso ele quer adiantado, para que ainda tenha
tempo de apostar o dinheiro no cavalo de Joaquim da Cruz. O
restante, o senhor poderá pagar no final da corrida.
A outra voz começou a regatear, pois não queria pagar
tanto assim. Bento Quadra esclareceu ao desconhecido que ele e seu
pessoal poderiam, assim, apostar mais dinheiro no cavalo de Joaquim
da Cruz, reembolsando todas as despesas e poderiam ainda ganhar
muitos milhões, sem perigo de perder, nessa corrida com Salvador.
Porém, o desconhecido considerou que ainda poderia haver algum
contratempo e, além do mais, não sabia se poderia confiar plenamente
em Salvador. Bento Quadra acalmou-o quanto a isso e fecharam o
acordo em duzentos e quarenta mil-réis.
Joãozinho estava mudo e imóvel, sem se mostrar. Parecia
que estavam tão próximos dele, que receava pudessem ouvir o bater
rápido de seu coração. Ele não poderia deixar que percebessem sua
presença, senão sua vida correria perigo.
134
Os dois sujeitos saíram do bambuzal para a claridade da
fogueira, onde Antonio Zerino mexia com uma panela.
Joãozinho, trêmulo e cauteloso, espreitava-os através da
mata, e reconheceu no desconhecido o velho Mendes, sogro de
Joaquim da Cruz. Os dois homens se aproximaram de Antonio Zerino e
começaram a conversar. Joãozinho viu quando o velho Mendes
entregou o dinheiro. Então os três trapaceiros congratularam-se e o
velho Mendes levantou-se para ir embora.
Joãozinho escondeu-se na escuridão do taquaral e ouviu
ainda quando Mendes, voltando a cabeça, gritou para os dois: - Nem
pensem em traição ou fraude, senão vocês vão conhecer o velho
Mendes! Adeus! Então, tomou o caminho que ia para a mata. Aos
poucos o som de seus passos foi desaparecendo no ruidoso bambuzal.
Um forte tremor percorreu o corpo de Joãozinho, parte
pelo frio, parte pela terrível aflição. A invisível mão da Providência
colocara o rapaz na pista de uma infame traição. Como ele contaria a
seu patrão o plano daquele moleque covarde? Rodrigo confiava muito
em Salvador, e consideraria a informação de Joãozinho uma denúncia
indecente. Salvador arranjaria uma desculpa e acusaria o denunciante
da mentira como invejoso. Ele avisaria, a tempo, seus companheiros
que tudo fora descoberto e deixaria, então, naturalmente, o morzelo
ganhar a corrida. Porém ao denunciante caberia o desprezo geral por
parte das pessoas decentes e, por parte dos trapaceiros, um ódio
terrível. E se Joãozinho deixasse tudo correr como se não tivesse
ouvido nada, os pilantras ganhariam imensas quantias de dinheiro
graças à sua tramóia. Mas, se o morzelo não ganhasse seu patrão e os
amigos deste perderiam grandes somas.
Este raciocínio percorria a mente de Joãozinho como
relâmpago, enquanto seus dentes batiam.
Agora,
os
sujeitos
não
poderiam
sequer
saber,
ou
suspeitar, que ele ouvira sua insidiosa conversa. Com muito cuidado e
bem devagar, começou a andar pé ante pé. Arrastou-se dali como um
gato, sem ser percebido . Não precisava recear que aqueles sujeitos
levassem o mate durante a noite, pois haviam planejado uma perfídia
bem maior. Ele só resolveu voltar depois que estava fora do alcance da
135
voz daqueles homens. Até chegar ao moinho, já se esquentara com a
corrida. Ao serrador do moinho aos seus empregados disse que não
conseguira encontrar o caminho e gostaria, assim, de pernoitar ali no
moinho para procurar o carijo na manhã seguinte.
- Na luz do dia a gente é outra pessoa! - pensava
Joãozinho no dia seguinte, quando iniciou o caminho em direção ao
carijo, pela segunda vez, no sol dourado da manhã. Durante toda a
noite pensou sobre o acontecido sem chegar a nenhuma resolução.
Agora, deixava de lado, tudo o que o afligira ontem, pois queria
executar sua missão de coração leve. Somente depois que a ervamate fosse entregue, é que ele veria o que fazer para impedir o infame
plano.
Bento Quadra e Antonio Zerino olharam surpresos quando
viram Joãozinho saindo da mata, atravessando o livre campo em sua
direção! Eles estavam sentados junto ao fogo para se aquecerem, pois
geara novamente durante a noite. A grama cintilava, branca. Porém,
onde o sol da manhã batia, brilhavam e reluziam muitas cores como
milhares de diamantes. O céu estava claro e azul. Um bando de
chupins pretos voavam gorjeando de árvore em árvore.
Joãozinho
dirigiu-se
aos
dois,
cumprimentou-os
amavelmente e foi convidado a sentar-se junto ao fogo. Comunicou
então sua missão e acrescentou que ele próprio gostaria de conhecer a
produção da erva-mate crua na floresta.
O vesgo Antonio Zerino espreitava-o e trocou um olhar
com Bento Quadra. Ambos apressaram-se em dar-lhe as boas vindas.
Antonio ofereceu-lhe uma caneca de café quente e Joãozinho dividiu
com eles o pão que trouxera.
Após o café, Antonio Zerino e Joãozinho embrenharam-se
na floresta para colher a erva dos últimos pés de mate, enquanto
Bento Quadra colocava no fogo do carijo a erva colhida no dia anterior,
para secar. Joãozinho estava ansioso para ajudar na colheita e na
preparação do mate cru.
As florestas de erva-mate e de pinheiros pertencem às
riquezas que a benigna natureza despejou fartamente sobre o Brasil.
Assim como as florestas de seringueiras dos estados do norte esperam
136
apenas pela mão humana para a colheita, sem até então ter
necessidade disso, assim também cresciam selvagens as ricas florestas
de mate aguardando o homem para entregar-lhe sua riqueza. A árvore
da erva-mate cresce em grande quantidade no planalto do Paraná, em
Santa Catarina e Mato Grosso do Sul. O principal estado de exportação
é o Paraná. Na cidade portuária, Joãozinho já admirara os colossais
depósitos de milhares de barris e sacos de erva-mate que aguardavam
o navio cargueiro para levá-la para o exterior.
Os
felizes
proprietários
das
florestas
de
erva-mate
precisavam apenas tirar as plantas daninhas e os pequenos arbustos
das proximidades do pé da erva e manter limpo o bosque. Com pouco
trabalho de quatro em quatro anos podiam-se apanhar suas folhas
para a preparação do verde chá.
A época da colheita é nos meses de inverno, de junho a
setembro. Escolhe-se também a fase da lua minguante como melhor
época para o corte.
Joãozinho logo galgava, com a mesma facilidade que
Antonio Zerino, uma árvore de erva-mate após outra. Com o facão,
cortavam-se os galhos verdes, cheios de folhas, até o cepo do pé e
deixava-se apenas no cume um tufo de folhas verdes. Nus e
desfolhados estavam ali os pés de erva-mate. Os ramos cortados eram
carregados nas costas para o depósito central onde, atrás de um
parapeito de troncos de árvores, crepitava uma fogueira. Neste fogo,
as pontas dos ramos eram chamuscadas por alguns instantes, para
preservar as folhas de uma fermentação rápida. Este processo chamase "sapecar". Os verdes ramos chamuscados eram empilhados uns
sobre os outros, formando grandes montes que eram colocados sob
um teto ou uma lona para protegê-los da umidade.
Então, os ramos de mate já secos eram retirados daquela
armação de secagem, o assim chamado carijo, e os chamuscados
eram arrumados ali. Essa armação, o carijo, que os trabalhadores da
mata utilizavam, era feita de finos troncos de árvores, de mais ou
menos de dois metros de altura e largura, e três metros de
comprimento, aproximadamente. Debaixo desta armação, ardia um
fogo, em brasa, de ramos de pinheiros, para que a folhagem do mate,
137
que descansava sobre a armação, fosse secando aos poucos com o
calor que emanava dali. Era necessário tomar muito cuidado, a fim de
que o mate seco não pegasse fogo.
Os ramos já secos eram espalhados sobre um pedaço de
terra, batida e bem limpa, e a folhagem picada era molhada com
pedaços de pau até que sobrasse apenas um monte verde de galhos e
pedaços de folha sobre o chão. Este monte era peneirado para retirarse os pedaços maiores de madeira e, então o chá-cru de erva-mate
estava pronto para ser ensacado.
No entanto, os grandes produtores de mate de outras
regiões já haviam trocado essa maneira primitiva de preparação do
mate por uma mais moderna. Possuíam, em suas coberturas para
mate, instalações práticas com as quais era-lhes possível entregar um
chá de melhor qualidade. Havia galpões cobertos para secagem;
fornos próprios para tal finalidade (os assim chamados fornos de
barbaquá) nos quais o mate ficava completamente livre de fumaça;
debulhadoras
com
noras
e
máquinas
de
peneirar
acionadas
juntamente com construções apropriadas. Assim, estavam eles em
condições de produzir uma qualidade de chá melhor do que a dos
pobres habitantes da mata.
Joãozinho trabalhou o dia todo com os parentes de
Salvador na mata de erva-mate. Tudo era novidade para ele que,
trabalhando, quase esquecera a conversa que ouvira na noite anterior.
Os dois sujeitos estavam muito cordiais para com ele. A todo
momento, sentavam-se junto ao fogo e bebiam um chimarrão. Enchiase a pequena cuia redonda de folhas de mate, sobre as quais
despejava-se água fervente, colocava-se o caninho de sugar, ou
bombilha, e chupava-se com prazer aquela bebida amarga e quente.
Isto era sempre seguido de um cigarro de palha de milho. Joãozinho
também experimentou fumar. Na hora do almoço e do jantar fazia-se
um delicioso churrasco de uma paca que Bento Quadra matara e
colocara para assar no espeto sobre o fogo.
Os dois habitantes da mata mostravam-lhe também a
erva-mate de má qualidade com que os compradores de mate eram
comumente enganados.
138
Faziam parte desse gênero de erva a congoinha de folhas
estreitas e sabor amargo; a caúna com suas folhas largas; a orelha de
Mico; o pêssego bravo; o pasto de anta e outras árvores cuja folhagem
é parecida com a do mate, mas cuja ingestão é prejudicial à saúde.
Ao escurecer, aproximou-se a tropa de burros de Casa
Branca. À frente, na égua de guia, vinha o madrinheiro, um menino de
porte médio. Os burros, munidos de cangalha, seguiam, enfileirados, o
sino da égua de guia. Para evitar que os burros fujam durante a noite,
é suficiente que se amarre a égua de guia no laço, para pastar, ou que
se prenda suas patas dianteiras nas manilhas. Enquanto a égua estiver
ali os burros não vão embora.
Atrás da tropa vinha Jeca Baiano, estalando seu curto
chicote. Quando viu que Joãozinho estava bem e que sentava-se junto
ao fogo, sorriu com ironia e cuspiu atrevidamente em grande curva
sobre a cabeça de seu animal.
Os burros foram soltos, a égua foi amarrada no laço, e
todos ficaram acocorados até tarde ao redor da fogueira. Ali, a
próxima corrida de cavalos, o preço da erva-mate e a colheita do milho
eram assunto para as conversas. Sob o telhado de folhas, junto ao
quente carijo, os cinco homens passaram essa noite de inverno clara e
fria.
Na manhã seguinte, o chá ensacado foi colocado nos
burros para ser levado até a venda de Casa Branca. Atrás da tropa,
junto com Joãozinho e Jeca Baiano, cavalgava o polonês, que queria
assegurar-se de sua parte do mate. Bento Quadra e Antonio Zerino
iam a pé. Com as calças arregaçadas, revelando suas pernas morenas
e musculosas, caminhavam mais depressa que a tropa com sua carga.
Chegaram bem antes desta em Casa Branca e tiveram tempo para
combinar seus planos sinistros com Salvador.
Joãozinho ficou feliz quando o chá foi descarregado,
pesado, revisto e calculado. Agora, poderia riscar do livro a dívida de
Bento Quadra e Zerino, pela qual era responsável. Nunca mais
venderia alguma coisa fiado para um freguês sem antes perguntar ao
patrão.
139
XVI
A perplexidade de Joãozinho numa perfídia. Os perigos. As
opiniões contrárias. A preparação para a carreira. O treinador
de cavalos. Uma trapaça. O feiticeiro. As magias e os golpes
perigosos. A festa da igreja no campo. A bebida fatídica...
Assim
que
os
parentes
de
Salvador
e
os
outros
compradores partiram e aquele final de domingo ainda pudesse trazer
um pouco de tranqüilidade para os empregados, aflitos pensamentos
assaltaram novamente a mente de Joãozinho. O que deveria fazer?
Será que, para ele, calar não seria melhor? Já refletira muito sobre
isso e sabia que, assim que levasse ao conhecimento do patrão a
traição planejada, este pediria explicações a Salvador. O rapaz, então,
simplesmente negaria tudo e daria um sinal para seus companheiros
para que a perfídia não se realizasse.
Ninguém poderia provar nada contra ele e Joãozinho seria
o único prejudicado. Seu patrão que, mesmo sem isso, já parecia estar
do lado de Salvador e contra Joãozinho, provavelmente o colocaria
para fora de casa pela pretensa calúnia e Salvador triunfaria.
Joãozinho precisava de uma pessoa, a quem pudesse
confiar seus pensamentos. Ele não tinha ninguém em Casa Branca, a
não ser Jeca Baiano, com quem gostaria de aconselhar-se numa
situação tão difícil. Hesitante, procurou pelo baiano em seu quarto.
Felizmente o moreno rapaz estava sozinho. Estava deitado no catre
com uma roupa limpa de domingo, e tinha ao lado uma pequena
chaleira de água quente, com a qual, imediatamente, preparou o
chimarrão para Joãozinho.
Assim que o rapaz sugou, devagarinho, a bebida quente
pelo caninho de metal, seu coração tornou-se mais leve, pois o prazer
do mate dá coragem. Devolveu a cuia ao baiano, que, por sua vez,
saboreou a quente infusão. Joãozinho aproveitou o silêncio para,
sussurando, relatar ao companheiro a conversa que, ouvira, entre
Bento Quadra e o velho Mendes. O baiano ouvia excitado. Parecia que
seus olhos negros como azeviche piscavam depois da narração.
Joãozinho acrescentou também à narração os motivos pelos quais não
140
se dirigia simplesmente a Rodrigo e levava-lhe ao conhecimento a
pretensa traição de Salvador.
O baiano deixou que a bombilha afundasse devagar na cuia
vazia e colocou-a de lado.
Pensativamente, cortou, para mascar, um pedaço de tabaco do
rolo negro brilhante, e empurrou-o silenciosamente para a boca. Alí
dentro, o tabaco mudava de um canto para outro. Por isso o rapaz
cuspia violentamente em todas as direções, e Joãozinho, cuidadoso, ás
vezes precisava escorregar de lado para se proteger.
- Nós precisamos neutralizar Salvador na hora da corrida, disse finalmente o baiano com cara sinistra.
- Pelo amor de Deus, sem ato de violência, pediu
Joãozinho, preocupado. - Hm, sem violência provavelmente não vai
ser possível, respondeu o baiano. A gente poderia atrai-lo até aqui,
amarrá-lo e amordaçá-lo...Porém, como não temos provas das suas
maldosas intenções, isto pegaria mal.E depois da corrida teríamos que
soltá-lo novamente.
- Não, não - disse Joãozinho balançando a cabeça.
- E quem vai montar o morzelo para a corrida, se nós
neutralizarmos Salvador? - Após essa pergunta fundamental, o baiano
cuspiu, em grande escala, num canto do quarto.
Ambos entreolharam-se indecisos.
Finalmente Joãozinho disse: -O patrão encontrará para
Salvador, nos dias de corrida, um substituto... em caso de necessidade
eu me ofereço.
- Você se atreve a cavalgar e a ganhar? perguntou o
baiano, cético.
Joãozinho acenou com a cabeça consciente de si. Ele
montara o morzelo, na pista de corrida, naqueles dois dias em que
Salvador fora visitar os parentes na floresta...
- Então eu sei o que vou fazer! - resmungou o baiano
decidido.
- O que você vai fazer? - gritou Joãozinho assustado.
- De vez em quando, vou convidar Salvador para um
quentão de cachaça, para conseguir sua confiança. Você pode
141
participar também. No inverno, essa bebida esquenta o estômago. No
dia da corrida, eu o convido duas horas antes dela e coloco um pó
baiano em sua caneca.
- Mas não é veneno? - gritou Joãozinho horrorizado,
lembrando-se que Salvador lhe contara que o baiano era um matador.
- Psiu! - ria o rapaz moreno e balançava negativamente a
cabeça de
negros cabelos crespos, - É apenas um terrível laxante,
eficaz. -Assim que Salvador engolir o pó, e duas horas se passarem,
ele precisará correr e depois de novo... e não poderá participar da
corrida nem realizar a traição.
Os dois riram muito. Imaginavam o caso tão claramente,
com todos os detalhes, que não podiam mais parar de rir, até que
foram chamados para o jantar.
Já na noite seguinte, o ensacador de mate convidou os dois
aprendizes para o quentão em seu quarto. Estava muito frio. Um forte
vento nebuloso soprava sobre o campo. Assim, esse convite era bem
vindo aos dois rapazes. Salvador sentia-se muito lisonjeado em ser
aceito
como
terceiro
elemento
nessa
relação
de
amizade
que
observara freqüentemente.
Dois dias depois apareceu mais uma possibilidade para
Joãozinho montar o morzelo. Salvador, que caíra nas graças do patrão,
pediu-lhe permissão, na quarta-feira, para visitar seu irmão Antonio
Zerino. Prometeu, contudo, estar de volta ainda no mesmo dia. Assim,
obteve permissão para ir.
Porém, como a preparação do cavalo de corrida não podia
ser dispensada nem um dia, Joãozinho foi incumbido de fazer os
exercícios com o morzelo, saindo do ponto de partida e descendo
galopando a pista de corrida. Como adversário, Carlos, o filho do
treinador, montaria o rosilho.
Rodrigo só permitiu de má vontade que Joãozinho fosse o
substituto. Desde a volta de Joãozinho da visita à sua casa, alguém
deve ter-lhe dito alguma coisa que, em seu julgamento, prejudicava o
rapaz. Ele e João das Neves observavam como Joãozinho, habilmente,
virava o morzelo que, ao ouvir seu grito disparava na pista. Carlos,
142
com o rosilho, seguia o morzelo com a diferença de um cavalo de
comprimento.
- O jovem monta bem! - disse João das Neves, apontando
para Joãozinho que saia em disparada.
Rodrigo balançou a cabeça sombrio: -Salvador monta bem
melhor, ele domina melhor o cavalo na largada.
Dito isso, dirigiu-se para casa. No caminho, pensou quão
grande desapontamento esse rapaz lhe causara. Da sua sala de estar
sumira, após a viagem de Joãozinho, o velho relógio de prata que
herdara de seu pai. O relógio não era de muito valor, mas era de
grande estima. Estava pendurado na parede, junto à sua escrivaninha.
Desde que o rapaz partira
para visitar seus familiares, o relógio
sumira da parede. Rodrigo procurou por toda parte, e perguntou por
ele aos rapazes e a Salvador. Este último esclareceu-lhe, depois de
muito relutar, que parecia recordar-se vagamente que Joãozinho
dissera-lhe, uma vez, que ficaria bem se aparecesse em casa com um
relógio de bolso. Seus antigos colegas de escola admirar-se-iam muito
com isto.
Talvez
Joãozinho
tivesse
levado
o
relógio
apenas
para
vangloriar-se, e depois o trouxesse de volta. Ele, Salvador, era seu
amigo de infância e precisava confessar que o rapaz sempre gostou de
ostentação. Joãozinho também lhe revelara que Rodrigo dissera que
ele, Joãozinho, logo dominaria os outros empregados. Porém, Rodrigo
não poderia deixar que Joãozinho soubesse que, Salvador, lhe contara
essas coisas, pois só o fizera por gratidão.
Rodrigo
sorriu,
então,
amargurado.
Então,
Joãozinho
retornara à Casa Branca! Contudo, o relógio prateado continuava
sumido. Dia após dia, Rodrigo esperava pela confissão de Joãozinho e,
também todos os dias decidia pedir explicações ao rapaz desonesto.
Porém, continuava a esperar e a observar o rapaz para surpreendê-lo
em alguma deslealdade e tocá-lo dali. Não gostava mais do rapaz e o
tratava, a partir de então, com rudeza. Por isso ficou contrariado no
dia em que Joãozinho teve que montar o morzelo, no treino, no lugar
de Salvador.
143
Chegou à Casa Branca irritado. Seu primeiro olhar foi para
a parede. Porém, o relógio de bolso não estava pendurado no gancho.
Ele cerrou os punhos com raiva.
Salvador voltara à noite de sua viagem e poderia, na
quinta-feira,
reassumir
o
treino
do
morzelo,
o
que
era
uma
tranqüilidade para Rodrigo.
O sábado, véspera da corrida, trouxera uma verdadeira
migração para Casa Branca, como também para o pátio da igreja que
ficava uma meia hora distante dali, num lugarejo. Todos os galpões de
Casa Branca e as poucas casas agrupadas ao redor da capela estavam
ocupados, pois a festa da igreja, associada à sensacional carreira,
atraía pessoas de longe.
Quase todos os partidários de Rodrigo, que apostaram no
morzelo, pernoitaram em Casa Branca, enquanto os amigos de
Joaquim da Cruz armaram suas barracas claras no campo. As
fogueiras vermelhas chamejavam ao findar do sábado. Por todo lugar
havia pessoas nervosas reunidas, sentadas ou de pé, e falando da
grande corrida do dia seguinte.
Rodrigo fazia esplêndidos negócios. Na venda de Casa
Branca havia um tumulto terrível. As pessoas apertavam-se e se
empurravam diante do longo balcão. A maioria dos recém-chegados
aproveitava a oportunidade para providenciar suas compras para um
longo período de tempo. Rodrigo, Basílio, Vitorino, Carlos e os dois
aprendizes corriam atrás do balcão para satisfazer todos os fregueses.
Salvador e Joãozinho corriam de um armazém para outro, a fim
de buscar novas mercadorias. Grandes pilhas de gêneros, caixas de
chapéu, sapatos, pratos de lata, panelas de ferro, ferramentas e armas
estavam espalhadas sobre o tampo do balcão. Salvador e Joãozinho
eram chamados constantemente para dar uma rápida ordem nas
coisas. Bento Quadra e Antonio Zerino também encontravam-se entre
a multidão. Procuravam chamar a atenção de Rodrigo e do povo com
altas palavras de elogio para o morzelo. - Todo meu dinheiro apostei
no morzelo de Rodrigo, - gritou Bento Quadra agindo como se não
soubesse que Rodrigo o ouvia. - Esse cavalo vai passar pelo nariz do
cavalo branco de Joaquim da Cruz logo no primeiro salto, ha, ha, ha!
144
As pessoas que apostaram no cavalo branco já perderam seu dinheiro!
Vocês vão ver só!
Joãozinho contorcia-se de raiva ao ouvir esses falsos
alardes, pois sabia que todo esse falatório dos dois malandros era
apenas espalhafato, ou, como se dizia, "fita" ou "para inglês ver", para
assegurar o logro de seus comparsas. Na realidade, Bento Quadra e
seus dois honrados sobrinhos apostaram todo o seu dinheiro no cavalo
branco, que, pela traição de Salvador, teria que ganhar.
De repente, o coração de Joãozinho parou. Não ouvira ele
a voz clara de seu velho mestre da floresta no meio da multidão? Os
recém-chegados já abriam passagem entre aquele tumulto e quem
poderia descrever a felicidade de Joãozinho...
Felizes, seu padrinho Cidral, seus irmãos Francisco e Pedro
e o velho Bento Damásio estavam diante do balcão estendendo-lhe as
mãos.
- Sim, você está pasmo e perdeu a fala, - disse Bento
Damásio rindo e engasgando com o riso comovido. Você não esperava
por nós hoje. Agradeça ao seu padrinho! Ele é que nos contou da
grande corrida. E como queríamos conhecer uma festa de igreja e uma
corrida aqui do planalto, viemos. Seu padrinho providenciou-nos
montaria. Hoje é a segunda noite que não estou com minha velha e
com Anita. Mas o essencial, o principal motivo pelo qual viemos, qual
será, hem? Sorrindo feliz, ele olhou para seu antigo aluno, de quem
sempre tivera muito orgulho.
- O motivo é você, meu Joãozinho, nosso Joãozinho
Felizardo, ha, ha, ha! - Ele passou as mãos furtivamente sobre os
olhos, pois via lágrimas de alegria brilharem nos olhos de Joãozinho.
Assim, apesar do tumulto e barulho, trocaram rápidamente algumas
palavras. Joãozinho perguntou de sua família e seus irmãos contaramlhe, radiantes, do rico rendimento de leite da vaca.
Então Joãozinho passou novamente a atender os fregueses da
venda. Porém, assim que teve um tempo livre, arrumou um lugar no
chão do depósito para seus hóspedes pernoitarem. Apenas para os
dois velhos ofereceu sua própria cama. Estes discutiram, pois não
145
queriam tirar Joãozinho da cama, até que Bento Damásio aceitou,
satisfeito, o oferecimento.
Domingo, o dia da corrida, amanheceu maravilhosamente
claro, nesse inverno.
Os
dois
concorrentes,
Joaquim
da
Cruz
e
Rodrigo,
mandaram examinar e limpar a pista de corrida. Por toda parte,
pessoas trabalhavam erguendo as barracas, e abrindo as cabanas de
folhas para ventilá-las.
De repente, todos correram para a pista. - Os feiticeiros,
os mágicos, estão chegando para a corrida! - gritavam indo a seu
encontro. Cada um dos dois partidos tinha encomendado feiticeiro da
floresta. Rodrigo também não poderia privar-se desse velho costume,
pois tanto seu dinheiro como o de seus partidários tinha sido apostado
no morzelo. Se, por acaso, seu cavalo fosse derrotado, poderiam
culpar seu feiticeiro por não ter feito nada contra a magia do
adversário.
Primeiro veio o feiticeiro do partido do cavalo branco. Era
um negro muito velho de melenas brancas. Dizem que ele já era
crescido quando o raptaram na África e o trouxeram para o Brasil. Por
isso, entendia das verdadeiras mágicas africanas.
Devagar e solene, desceu pelo lado esquerdo da pista onde
o cavalo branco deveria correr. O negro ancião ornara a velha cabeça
enrugada com ramos e brotos de árvore de um verde-acinzentado. No
pescoço trazia amuletos sagrados como correntes de dente de onça,
sementes brancas chamadas de “pérolas de bugre” e outras coisas
misteriosas. Murmurava para si fórmulas sinistras de juramento, e
continuava caminhando pé ante pé. Com um bastão branco, que
segurava na mão direita, espetava aqui e acolá a negra terra do
campo para ver se os adversários
não fizeram ali covas secretas.
Talvez eles também tivessem enterrado um sapo ou três caracóis. Daí
o cavalo tropeçaria ou ficaria impossibilitado de correr. De repente, o
feiticeiro jogou-se ao chão e, sob o calar respeitoso dos espectadores,
fez suas pantomimas. No local de largada dos cavalos fez sinais
misteriosos, deitou-se no chão e, ali parecia ouvir algo. Então, tocou o
chão com seus amuletos e finalmente caminhou, seguido de seus
146
admiradores,
até
o
estábulo
do
cavalo
branco
para
ali,
sem
espectadores, "fechar" para a vitória o cavalo de corrida de Joaquim
Cruz.
Agora, era a vez do outro feiticeiro, aliciado por Rodrigo,
demonstrar suas atividades na pista. Era um mulato velho com um
rosto esperto, que franzia seriamente. Quando iniciou sua charlatanice,
no lado direito da pista, Rodrigo teve que conter a custo um riso de
escárnio. Ele não era supersticioso e sabia que nenhum homem era
capaz de uma magia verdadeira. Estes mágicos da floresta eram
embusteiros, ou talves eles próprios acreditassem em suas mágicas
bobas. A propósito, recebiam uma quantia razoável em dinheiro e
comida de graça por suas artes de feitiçaria. A metade do dinheiro,
pediam adiantado. Se o cavalo por eles "fechado"pela mágica,
perdesse, então era sumir na mata o mais depressa possível senão
apanhariam.
Após as bruxarias dos feiticeiros, ficavam sempre alguns
guardas junto à pista, até a hora do início da corrida.
O resto do povo deslocava-se agora, em grandes grupos a
pé ou a cavalo, até a igreja do lugarejo próximo. No alto da capela os
foguetes sibilavam no ar e as bombas estouravam uma após outra.
Levantavam-se altos mastros com bandeiras brancas, sobre os quais
era colocado o espírito sagrado na figura de uma pomba. Bandeiras
coloridas e flâmulas balançavam ao vento da manhã. O pátio e o
interior da capela estavam enfeitados com guirlandas de folhagem
verde, flores de papel, troncos pequenos de palmeiras com lampiões
coloridos, folhas de samambaia e correntes de papel. A multidão
aglomerava-se no interior e no pátio da igreja.
Os seis músicos, trazidos da cidade, tocavam uma solene
marcha fúnebre, quando o festeiro e a festeira entraram na igreja
atrás do sacerdote, saindo da sacristia. Estes festeiros, aos quais cabia
a preparação e as despesas da festa, eram hoje as pessoas mais
importantes. Todo ano, eram escolhidos ou sorteados pelo padre entre
as famílias mais ilustres.
Reinava um grande silêncio quando começou o serviço
religioso. A voz do sacerdote chegava até o pátio.
147
Junto ao portal da igreja estavam os conterrâneos de
Joãozinho e seus irmãos. Bento Damásio e José Cidral
escutavam
atentamente o teor da santa missa. Ao lado deles estavam Bento
Quadra, Antonio Zerino e Salvador. Estes cumprimentaram seus
conterrâneos com alegria, apesar de o mestre da floresta mostrar-lhes
claramente sua antipatia. Porém, os trapaceiros agiam como se o
mestre e Cidral fossem seus grandes amigos.
Após a missa, a forte voz do padre elevou-se um pouco,
para o sermão. Salvador olhou para o sacerdote e estremeceu, pois
sua consciência pesada não lhe dava paz. Parecia-lhe que os olhos do
padre olhavam para ele, transpassando-o.
Após o culto havia ainda uma procissão, que se estendia ao
redor do lugarejo. As crianças pequenas vestidas de branco e ornadas
com asas como "anjos", iam à frente. Seguiam-se as "virgens", as
mocinhas vestidas de branco.Então vinha a banda de música e, sob o
baldaquim, caminhava solenemente o sacerdote seguido de seus
acólitos. Carregavam-se bandeiras e imagens de santos. A multidão
caminhava devagar, rezando.
Já era quase hora do almoço quando a festa sagrada
terminou. A multidão dirigiu-se para as casas e barracas.
Salvador apressou-se para almoçar em Casa Branca, pois
às duas horas começaria a corrida. Passou pela porta aberta do quarto
do baiano que preparava, lá dentro, sossegadamente, um "quentão".
O aroma gostoso de gengibre e cachaça entrou-lhe pelo nariz. Jeca
Baiano sorriu-lhe convidativamente: - Então, você tambem aceita um
pequeno gole antes do almoço? A comida fica ainda mais saborosa.
Salvador entrou hesitante. Quanto mais se aproximava a
hora da traição, mais seu coração batia cheio de medo. Assim, veio-lhe
a esperança de que, com o quentão do baiano, se sentisse melhor.
- Mas eu posso ficar só um instante, - disse sentando-se no
banquinho, e olhando para o Baiano que segurava um pedaço de brasa
sobre a pinga.
- Já está pronto! - disse este, - mas veja se vem vindo
alguém.
148
Salvador levantou-se e olhou apressadamente para fora.
Nos últimos tempos, vivia com medo.
O Baiano, bem depressa, aproveitou para colocar um pó na
caneca de Salvador. Agitou um pouco o líquido até que Salvador voltou
e sentou-se novamente.
Ambos pegaram as canecas fumegantes. - Saúde! - sorriu
ironicamente o moreno baiano, e saudando seu hóspede. Então,
esvaziaram as canecas e dirigiram-se, juntos, para almoçar.
149
XVII
A carreira no campo. Os cavaleiros adversários. A suspeita de
Rodrigo. Um acidente inesperado causa grande preocupação.
Joãozinho como indivíduo necessário. A força de vontade dá a
vitória. A batalha na pista. Os mortos e feridos. O baiano
desaparece...
Já eram duas horas. As pessoas, excitadas e em trajes de
festa, esperavam com interesse, aglomeradas no gramado ao lado da
pista. A qualquer momento, os dois corredores principais do dia
deveriam aparecer. Todos procuravam bons lugares para poderem
assistir à corrida. Dos dois lados da pista, a multidão apinhava-se.
Todos os homens, desde garotos a partir de dez anos, carregavam
suas armas habituais, a pistola e a faca. Ninguém estranhava esse
costume. Um homem tem que saber defender-se e, para tanto,
exercitar-se com as armas.
Atrás dos homens estavam as mulheres e as crianças,
sentadas ou de pé no gramado. Nas cabanas de folhagens, algumas
mulheres preparavam churrasco, frango assado, pão de trigo, doces e
bebidas. Nas barracas havia comida e bebida para vender. Ali, e junto
à pista, as apostas ainda continuavam. Os abonos dos torcedores eram
entregues a um homem de confiança que passaria o montante, depois
da corrida, ao vencedor. Alguns homens subiam e desciam a pista
agitando no ar de dinheiro em notas para desafiar pessoas a
apostarem.
Na beira do bosque que circundava o grande gramado,
centenas de cavalos estavam amarrados aos troncos. Dentre esses,
encontravam-se animais que disputariam, ainda hoje, com outros
cavalos, depois da corrida principal.
Finalmente, ouviram-se sons retumbantes. Os seis músicos
conduziam os juízes e os dois competidores, Joaquim da Cruz e
Rodrigo,
que
amigavelmente.
se
aproximavam
devagarzinho,
conversando
150
Assim que os músicos chegaram à parte superior da pista,
cessou a música.
Em voz alta, o árbitro fez a leitura do contrato escrito,
ajustado entre Joaquim da Cruz e Rodrigo, o vendeiro. Assim, os dois
cavalos com seus cavaleiros teriam que chegar, pontualmente às duas
horas da tarde, e colocar-se na cabeceira da raia para começar a
corrida dentro de vinte minutos.
O árbitro/juiz daria o sinal quando os dois cavalos
estivessem em posição, isto é, com os rabos voltados para o ponto da
chegada da raia. Então os cavaleiros teriam que virar seus animais
com as cabeças voltadas em direção do ponto de chegada e disparar
pela pista.
O contrato estabelecia que apenas impedimentos de força
maior seriam motivos para não haver corrida. Perderia quem não
estivesse presente e quem não disparasse ao sinal do gritador.
Mal acabara o aviso, já se ouvia uma gritaria louca que
revelava a chegada dos cavalos de corrida. Cada torcedor, dos dois
partidos, procurava gritar mais alto que o outro. - Viva o cavalo preto!
- gritava o pessoal de Rodrigo. - Viva o tordilho! - desafiava o pessoal
de Joaquim Cruz.
Os magníficos cavalos, seguros em rédeas curtas por seus
jovens cavaleiros, aproximavam-se marchando orgulhosamente. As
fortes crinas balançavam soberbamente do pescoço curvado. As
pequenas orelhas voltavam-se, excitadas, em todas as direções. Os
brilhantes olhos saltados faíscavam. Os cavalos espumavam no freio.
Lado a lado, os dois cavaleiros dirigiam-se para o ponto de
largada da raia. Traziam seus cabelos amarrados com um lenço
colorido. O extremo inferior da calça era amarrado sobre a barriga da
perna e dos pés. Os dois rapazes estavam sentados sobre os esbeltos
e lisos dorsos dos cavalos, sem sela.
O árbitro olhou para o relógio. Eram exatamente duas
horas. O gritador tomou seu lugar. O juíz estava no local da chegada,
que fora demarcado com bandeirinhas de papel.
Joãozinho, muito preocupado, estava parado ao lado do
velho Cidral e do mestre, e observava o rosto vermelho de Salvador
151
cujos olhos inquietos dirigiam-se de um lado para outro. -Será que o
pó não fez efeito? - pensava com medo. - Os dois já irão disparar e a
perfídia triunfará. O senhor Rodrigo e todos os seus amigos perderão o
dinheiro!
Enquanto
isso,
os
dois
competidores
deixavam
seus
cavalos dar uma arrancada e os traziam de volta para o começo da
pista, no meio do galope. Os saltos dos animais fogosos tornavam-se
cada vez mais furiosos. Os cavaleiros mal conseguiam segurá-los.
Os gritos e o barulho da multidão, de ambos os lados,
circundavam
os
cavaleiros,
que
se
observavam
mutuamente,
prestando atenção ao gritador para não perderam o sinal de largada.
O alinhamento dos dois cavalos ainda não estava certo. O
gritador não queria favorecer a nenhum dos animais. Joãozinho viu
que o rosto de Salvador mudara de um vermelho escuro para um cinza
pálido. A qualquer instante soaria o grito de largada. O coração do
rapaz batia violentamente. O relógio marcava duas horas e quinze
minutos. Agora parecia que os dois cavalos estavam alinhados... Será
que a maldade venceria?
O gritador abriu a boca para dar o sinal de largada. Porém,
fechou-a, em seguida, com olhos escancarados. Todos esticaram os
pescoços para ver o que estava acontecendo.
Repentinamente, Salvador se deitara sobre o pescoço de
seu cavalo e gemia horrivelmente. Seu corpo curvado confrangia-se.
Com a rapidez de um relâmpago, desceu do cavalo e, antes que
alguém pudesse impedi-lo, correu precipitadamente para dentro da
floresta.
As pessoas presentes ficaram, a princípio, mudas. Em
seguida, começaram a gritar furiosas. O árbitro procurou, em vão,
estalelecer a ordem.
Joãozinho, ao ver Salvador descer do cavalo, enfiou-se
habilmente pela multidão e segurou o cavalo negro pelo freio. Rodrigo
e
João
das
ameaçadoramente
selvagemente.
Neves
pela
entreolharam-se
multidão
que
perplexos,
gritava
e
cercados
gesticulava
152
Porém,
Rodrigo
não
prestava
atenção
aos
gritos
ameaçadores de seus próprios partidários. Com muita estranheza,
observou a conduta selvagem e incompreensível de seu adversário, o
velho Mendes. O velho homem arrancava os cabelos e gritava como
que possuído pelo demônio: - Salvador, Salvador! O que significa isto?
O que esse moleque traiçoeiro está fazendo? Deus, oh Deus! Salvador,
volte! Você precisa montar o cavalo preto! Trapaceiros! Vocês três são!
Onde está Bento Quadra, o patife? Salvador deve montar! Está em
cima da hora! Olhem, ali estão correndo os ladrões que me
enganaram!
Realmente,
Bento
Quadra
e
Antonio
Zerino
corriam
rapidamente atrás de seu parente que sumira na floresta.
Uma suspeita terrível tomou conta de Rodrigo. Por que
justamente o sogro de seu adversário desesperava-se com a fuga de
Salvador? O que o velho Mendes tinha a ver com o seu cavaleiro? Os
adversários não deveriam estar alegres, pelo fato de seu cavaleiro ter
abandonado a corrida no último instante?
Ou seus adversários, o velho Mendes e família Cruz,
tinham subornado Salvador?... Será que eles seriam tão perversos?...
Rodrigo estava desconcertado. Desencantado, olhou para o velho
Mendes que se lamentava e que procurava, em vão, acalmar seu
pessoal.
Porém, o árbitro aproximou-se rapidamente e segurou o
relógio diante de Rodrigo -Senhor Rodrigo, dentro de três minutos
vence a hora estabelecida no contrato. Então o gritador dará o sinal de
largada. O cavalo branco correrá sozinho na pista e ganhará a corrida.
Então, apresse-se! Eleja um novo cavaleiro!
Rodrigo olhou furioso para o círculo de conhecidos. Todos
gritavam para ele. Todos eram lentos e robustos, muito mais pesados
que Salvador ou o cavaleiro adversário. Dentre eles, não poderia
escolher nenhum para montar o cavalo negro.
João das Neves disse em seu ouvido: - Deixe Joãozinho
montar!
Rodrigo deu um passo para trás e olhou, sinistro e
desconfiado, para o rapaz que parecia pedir-lhe com os olhos que o
153
deixasse tentar. Mas, será que deveria confiar no rapaz que odiava
desde esse que voltara da sua visita à família? Esse "fanfarrão", como
Salvador o descrevera, esse rapaz mal agradecido, que lhe roubara o
relógio de bolso prateado? Provavelmente esse "Joãozinho fanfarrão" o
ridicularizaria ou o trairia.
Porém, não era hora para hesitações. Precisava arriscar-se
com ele, pois na emergência não havia nenhum outro montador
disponível com tão pouco peso. Então, ele fez um sinal afirmativo para
o rapaz.
No instante seguinte, Joãozinho já estava sobre o dorso
liso do brilhante cavalo preto, que se empinava, com o pouco peso do
montador. Assim que Joãozinho virou o animal para que se alinhasse,
cauda com cauda, freio com freio, ressou o brado, o sinal do gritador
para a largada.
Rápidos como relâmpagos, os dois rapazes puxaram seus
cavalos para fazerem a volta até a posição de largada. Com saltos
violentos, o cavalo branco tomou a dianteira e corria, quase à distância
de um cavalo, à frente de morzelo, que não tinha largado tão bem.
Com olhar sinistro, Rodrigo acompanhava seu cavaleiro desajeitado.
O
pessoal
de
Joaquim
da
Cruz
vibrava
gritando
alucinadamente, estimulando o cavaleiro do cavalo branco : - Viva o
tordilho! - Ele está vencendo, ele está vencendo, hiu, hiu! O velho
Mendes dançava como um louco, batia as mãos nos joelhos, chorava e
ria de alegria.
Joãozinho, com ódio contido, via o cavalo branco tomando
a liderança. Porém, ele tinha uma férrea força de vontade. O morzelo
precisava alcançar o cavalo branco! Mais deitado do que sentado no
dorso do animal, gritava palavras vibrantes no ouvido do cavalo e
trabalhava, como louco, com seus calcanhares e o chicotenos flancos e
coxas do animal.
Mas a vantagem que o cavalo branco havia conseguido na
largada, era agora recuperada pelo morzelo, aos poucos, apesar de
curta distância. Era como se a forte vontade de vencer do rapaz
contaminasse o fiel animal, que, assim, dava tudo de si. A uma
distância de mais ou menos duzentos metros, o morzelo alcançou o
154
cavalo branco, correndo agora lado a lado com este, na direção do
ponto de chegada. Os partidários de Rodrigo rejubilavam-se, de todos
os lados gritando palavras de estímulo para Joãozinho e o morzelo,
enquanto os partidários de Joaquim da Cruz ameaçavam, com os
punhos e palavras de provocação, o cavaleiro do cavalo branco. O
velho Mendes saiu, de repente, de seu delírio de vitória para encolherse, imóvel. - Isto não vale, isto é contra o contrato! - gritou. - O
menino não poderia montar. Fraude, traição! Onde está Salvador?
Onde se enfiou Bento Quadra?
Porém todo o seu resmungar, e todos os rostos furiosos e
decididos do partido do cavalo branco, não ajudaram este a vencer. O
morzelo o ultrapassou numa rápida carreira e, com a diferença de
mais que meio cavalo de comprimento, foi o primeiro colocado no
ponto de chegada.
Alguns
torcedores
do
cavalo
derrotado
gritaram:
-
Empatou, empatou! - como se ambos os cavalos tivessem passado,
simultaneamente, pelo ponto de chegada. Porém, não havia nenhuma
possibilidade de encobrir a vitória do morzelo. O juíz decidiu, e os
torcedores do cavalo branco perderam todo o dinheiro apostado.
Joãozinho cavalgou mais um longo trecho no campo até
conseguir acalmar o cavalo enfurecido e trazê-lo de volta para a linha
de chegada. Cabisbaixo o, cavaleiro do cavalo branco foi-se embora
dali.
Joãozinho e o morzelo vencedor foram acolhidos com júbilo
pelos partidários do cavalo e pelos empregados de Casa Branca. João
das Neves, o treinador do morzelo, acenou-lhe gritando palavras de
entusiasmo. - Viva o cavalo preto, viva Joãozinho! - gritavam os
amigos de Rodrigo. O olhar de Joãozinho procurava o patrão. Então,
viu que este o olhava com mais amabilidade do que nos últimos
tempos. Porém, ainda permanecia aquela reserva nos olhos dele.
Bento Damásio, o velho Cidral e os irmãos de Joãozinho
apertavam-se por entre a multidão para chegarem junto ao morzelo
onde, orgulhoso, Joãozinho estava. Com voz clara, Bento Damásio
gritou radiante para Joãozinho, sua voz ressoando através do tumulto:
- Joãozinho Felizardo!
155
- O velho Cidral alisou a barba grisalha, sorrindo para Joãozinho.
Ele apostara cem mil-réis no morzelo e passara um medo enorme de
perder seu dinheiro. Agora guardava no bolso o dinheiro ganho com a
aposta, sorrindo satisfeito. Francisco e Pedro olhavam admirados para
o "irmãozinho" que, aqui, desempenhava um papel importante.
Os olhos de Joãozinho brilhavam, úmidos de alegria. A
perfídia de Salvador fora evitada, e assegurada a vitória do patrão.
Seus
lábios
murmuravam
uma
curta
oração
de
agradecimento
enquanto olhava para o céu azul.
Nesse momento alguém bateu-lhe na perna. Era Jeca
baiano, que lhe sorria ironicamente, dizendo: - O pó baiano foi bom,
não? Você viu como o sujeito correu para dentro da mata? - Uma
grande alegria tomava conta do baiano. Porém, já era empurrado pela
multidão que queria se aproximar de Joãozinho.
O tumulto e a gritaria aumentaram sensivelmente. Os
ânimos estavam muito alterados e ouviam-se gritos provocadores.
Muitos partidários do cavalo branco protestavam contra a decisão do
juíz. As palavras que lançavam uns contra outros, tornavam-se cada
vez mais ásperas, e a multidão que se aglomerava estava cada vez
mais excitada. De repente, ouviu-se o forte estalido de um tiro e uma
gritaria estridente, seguida de outros tiros. Fumaça de pólvora
emanava das armas e seu cheiro era muito forte. Desenvolveu-se um
autêntico combate em que a pistola e o facão desempenhavam papel
importante. A gritaria das mulheres e crianças que fugiam abafava o
barulho da luta.
João das Neves pulou, atrás de Joãozinho, na garupa do
morzelo que se assustara com o estouro das pistolas. Joãozinho, a seu
pedido, conduziu o cavalo para fora da multidão a fim de levá-lo para
um lugar seguro. Assim que o morzelo se viu em campo livre disparou,
a galope, para o estábulo. Atrás deles, ressoava o barulho da luta na
pista de corrida.
156
XVIII
O ferido na maca. Joãozinho sente-se como criminoso e quer
confessar tudo. A confissão de um moribundo. O inocente é
alvo de suspeita. O relógio reencontrado. O agradecimento de
Rodrigo. Um enterro...
Após terem colocado o cavalo de corrida em lugar seguro,
os dois puseram-se a caminho o mais depressa possível, para buscar o
rosilho que ficara amarrado num tronco de árvore. No meio do
caminho encontraram uma multidão onde alguém carregava uma
maca, na qual descansava o corpo de um homem, morto com tiro
pelas costas.
Joãozinho olhou timidamente para a maca e pulou para
trás horrorizado. A vítima era Bento Quadra. Estava deitado, com
palidez mortal, de olhos fechados, e não emitia mais nenhum som.
Joãozinho
parou
um
conhecido
para
saber
como
acontecera a desgraça. Imediatamente, formou-se um grupo de
pessoas a seu redor, o vencedor da corrida. Todos procuravam relatarlhe os acontecimentos desse curto espaço de tempo, mais ou menos
há meia hora. Porém, todos falavam ao mesmo tempo e Joãozinho
acabou compreendendo apenas os atos mais violentos. Bento Quadra
fora atingido mortalmente. Suspeitava-se que fora o velho Mendes
quem dera o tiro enquanto Bento Quadra se ocupava do moribundo
Salvador. Joãozinho sentiu um calafrio ao ouvir essa notícia. Bento
Quadra, um defunto, e Salvador, agonizante. Deus, se o
doente
morrer com o pó do baiano! Talvez houvesse veneno naquele laxante.
Então, ele seria cúmplice dessa morte!
Como
que
perseguido
pelas
Fúrias,
Joãozinho
saiu
correndo. João das Neves ficou para trás, para saber de tudo. Além de
Bento Quadra, havia mais duas pessoas muito feridas que caíram no
campo de combate, e inúmeras pessoas com ferimentos leves.
Enquanto isso, Joãozinho corria, com olhar fixo para
diante, até a pista de corrida onde, em um tronco de árvore, o rosilho
estava amarrado. Então, encontrou os irmãos Francisco e Pedro e o
mestre da escola, que cuidaram do cavalo para ele.
157
Para seu tormento, contaram-lhe da secreta doença que
tomara conta de Salvador. Antonio Zerino, o irmão de Salvador, havia
gritado para todos que seu irmão fora envenenado.
Logo após o almoço. Salvador começou a sentir náuseas, porém
continuara valente, até que uma terrível dor abdominal o tirara de
cima do cavalo e o fizera correr para dentro da mata. O assassino de
seu irmão estava em Casa Branca. Porém, ele deixaria que tudo se
esclarecesse diante do tribunal. Bento Damásio e os irmãos de
Joãozinho narravam isso ao pálido rapaz. Todos saíram juntos da área
da corrida, onde podia-se ouvir o gemer dos feridos em algumas
barracas. Grupos de pessoas conversavam, excitadas, por toda a parte
do vasto gramado em que se desenrolara a luta.
De volta à venda, Joãozinho foi logo muito requisitado
pelos fregueses e não pôde ocupar-se de seus irmãos e hóspedes. As
pessoas apertavam-se junto ao balcão e pediam
bebidas, pão,
lingüiça e sardinhas. Todos os empregados tinham tanto trabalho que
não tinham nem uma pausa para descanso.
De repente, instaurou-se um grande silêncio na venda.
Todos olharam para fora. No silêncio, ouviu-se uma voz que dizia: Eles estão trazendo o moribundo, o Salvador. - Ele quer morrer em
sua cama. O padre vem atrás. - Ele deverá dar ao moribundo a
extrema-unção.
Joãozinho
parecia
prestes
a
desmaiar.
Com
olhos
arregalados, apoiou-se no balcão.
- O que você tem, Joãozinho? - gritou o padrinho Cidral,
que se aproximara e observava o rapaz. - Você está doente?
Responda!
Joãozinho indicou a porta com um frágil movimento.
Ali aglomerava-se, respeitosamente, uma multidão.
Os homens que carregavam o doente faziam barulho para
entrar na venda. Sobre duas varas estenderam uma lona, a ali,
Salvador estava deitado. Com uma expressão sinistra, seu irmão
Antonio
Zerino
o
acompanhava.
Seu
olhar
vesgo
pousou
ameaçadoramente em Joãozinho, que estava pronto para precipitar-se
à frente e declarar-se assassino. Os homens que carregavam o doente
158
atravessaram a venda e o depósito, subindo, com sua carga, a
rangente escada de madeira que levava para ao quarto de Salvador.
Logo após, chegou o sacerdote que fizera o culto na
capela, com seus acólitos. Eram seguidos por mulheres rezando e
todos subiam a escada para onde o doente estava sendo levado.
Do
lado
de
fora,
onde
numerosos
cavalos
estavam
amarrados junto ao terraço, novas pessoas continuavam a entrar na
venda. Procurava-se fazer com que elas não fizessem muito barulho.
Porém, pediam pão e bebida. Joãozinho foi arrancado violentamente
de seu entorpecimento, pois precisava atender os fregueses.
De repente, alguém desceu as escadas, alarmado e
apressado, entrando na venda: - Onde está o senhor Rodrigo?
Salvador está morrendo e quer dizer ainda algo para o patrão -.
Joãozinho deixou cair o metro e a tesoura, recostou-se na prateleira e
caiu num choro desconcertado, acompanhado pelas mulheres e
crianças presentes.
Porém, agora o choro de Joãozinho era desesperado, pois
tornara-se um assassino e nunca mais teria um momento de paz em
sua vida. Era cúmplice do que estava acontecendo a Salvador. Queria
subir as escadas e pedir perdão ao moribundo. Já estava voltando as
costas para a venda, para ir ao depósito e subir as escadas, quando
Rodrigo, que passava apressadamente, o chamou de volta. - Agora
que a venda está cheia de gente, você quer sair, seu irresponsável!
Volte ao trabalho imediatamente! Os fregueses estão esperando! Dizendo isto, subiu rapidamente a escada de madeira. Antonio Zerino,
o vesgo, passou por ele violentamente, descendo as escadas. Rodrigo
olhou, mal humorado, para aquele que descia, furioso, ao seu lado.
Lá em cima, no quarto de Salvador, o padre sussurrou a
Rodrigo que o doente já se confessara. Antes que ele, como sacerdote,
pudesse dar-lhe a absolvição, o moribundo deveria reparar a falta, da
qual se arrependera, junto ao patrão, a quem prejudicara. O próprio
doente assim o desejou.
Rodrigo aproximou-se, profundamente comovido, da cama
de Salvador. O doente estava pálido e frouxo, sobre travesseiros.
159
Rodrigo segurou sua mão. - Você tem alguma coisa para me dizer,
pobre coitado? Crie coragem...
Salvador abriu os olhos e seu rosto parecia ainda mais
pálido. Abriu os lábios secos e sem cor e começou a sussurrar
precipitadamente: - Eu disse mentiras ao patrão sobre Joãozinho. O
relógio prateado fui eu mesmo que tirei do gancho e escondi atrás do
guarda-roupa. Eu não o roubei. Eu só queria prejudicar o meu
inimigo... - Salvador parou, pois viu que a expressão de Rodrigo
tornou-se tremendamente sinistra e sentiu que ele soltava sua mão.
Rodrigo queria sair dali. O sacerdote aproximou-se da cama do doente.
Então, este continuou a falar apressadamente: - Eu fui persuadido pelo
meu tio para que hoje segurasse o morzelo na corrida, para que o
cavalo perdesse. O velho Mendes subornou-nos com dinheiro... Eu não
queria, certamente que não... eu me recusei... acredite em mim,
senhor Rodrigo! Não, eu resisti ao máximo!
Aí, meu tio, Bento Quadra, ameaçou que me mataria... e meu
irmão convenceu-me que não haveria inconveniente nenhum, pois
coisas assim aconteciam freqüentemente nas carreiras... então eu
cedi! Salvador começou a choramingar, - Eu me arrependo meu
patrão, o senhor sempre foi tão bom comigo!... mas agora eu tenho
que morrer!... o senhor pode me perdoar? Deus castigou-me! Alguém
deu veneno para mim... Antonio disse... O meu patrão vai me
perdoar?
O sacerdote aproximou-se e colocou a mão sobre a testa
do doente que respirava com dificuldade. Então, olhou seriamente
para o sombrio Rodrigo. Este aproximou-se novamente da cama,
pegou na mão de Salvador e disse com voz triste: - Salvador, eu lhe
perdôo, em meu nome e em nome de Joãozinho a quem você
prejudicou! Eu lhe perdôo como imploro o perdão divino para mim!
- Amém -, disse o sacerdote, e deu a absolvição ao doente.
Rodrigo saiu silenciosamente do quarto.
No depósito, encontrou o curandeiro Sebastião Ribeiro, que
casualmente também viera para a corrida, e que fora mandado por
Antonio Zerino para cuidar do doente.
160
Rodrigo passou calado por ele e desceu as escadas
pensativamente. Na venda, chamou Joãozinho. E quando este se
aproximou trêmulo, disse-lhe: - Venha comigo para o escritório!" -.
Olhou em volta, onde poucos fregueses ainda circulavam e dirigiu-se
para a porta de vidro de seus aposentos.
Joãozinho pensou: - Agora está tudo perdido! O patrão
pensa que sou cúmplice na morte de Salvador. Preciso confessar-lhe
tudo! Então, uma grande paz tomou conta dele. Hesitante, entrou no
quarto em que, antes de sua viagem para casa, tinha aulas noturnas
com Rodrigo. Ao entrar no escritório, viu Rodrigo que estava atrás do
guarda-roupa, afastado da parede, segurando na mão e, comovido,
observando um relógio de bolso prateado. A corrente do relógio,
pendurada, tremia numa oscilação excitante. Rodrigo estava muito
comovido. Agora, pendurava novamente aquele relógio simples no
gancho, de onde sentira, por muito tempo, sua falta. Joãozinho
aproximou-se dele, olhou-o timidamente nos olhos e disse: - Preciso
confessar-lhe que sou culpado do triste fim de Salvador.
Rodrigo recuou perplexo. Seus olhos sombrios olharam
fixos para o rapaz, que continuou gaguejando: - Salvador queria
cometer uma fraude na corrida de hoje. Ele foi subornado pelo velho
Mendes. O morzelo deveria perder. Eu ouvi, casualmente, o complô
entre Bento Quadra e o velho Mendes. E para impedir a perfídia, não
sabia o que fazer. Assim eu aceitei o plano que Jeca Baiano propôs.
Ele queria dar ao Salvador um forte laxante baiano, para que ele
não pudesse cavalgar. Eu... eu... - nesse momento, o sentimento de
culpa dominou o rapaz que continuou a falar chorando: - eu tive medo
que o baiano colocasse veneno no pó... ele deu sua palavra que não
faria isso!
Rodrigo ouviu com grande espanto o relato de Joãozinho e
admirou, em silêncio, a cautela e lealdade do rapaz. Os olhos desse
homem sério umedeceram-se quando se lembrou do quanto fora
injusto para com aquele rapaz honrado que, pela calúnia de Salvador,
quase o mandara embora dali.
Ele colocou o braço sobre os ombros do rapaz soluçante e
consolou-o: - Não chore! Você fez sua obrigação! Talvez a poção do
161
baiano fosse muito forte... você não tem culpa e não é responsável
pelas conseqüências.
Joãozinho sentiu que se livrava de um grande peso.
Enxugou os olhos e olhou aliviado para Rodrigo, que se curvava sobre
ele. - Dê-me sua mão, meu rapaz corajoso! Você evitou pela sua
fidelidade um pérfido golpe do meu adversário... e conseguiu com isso
uma brilhante vitória para o meu morzelo! Então, tirou seu relógio de
ouro do bolso da calça, desatou a corrente dourada e colocou o relógio
e a corrente na mão do consternado e feliz rapaz. - Dou-lhe este
relógio de ouro de presente, para que você se recorde deste ato
honrado. O presente deverá demonstrar-lhe apenas minha gratidão
exterior, pois minha gratidão verdadeira e profunda consistirá em
nunca mais duvidar de sua fidelidade e sinceridade.
Joãozinho estava tão comovido que não reparou no sentido
das últimas palavras. Rodrigo não contou-lhe a calúnia de Salvador e a
suspeita contra ele. Abraçou mais uma vez seu aprendiz e disse: - A
partir de amanhã vou dar-lhe novamente aula noturna, que há tempo
não temos mais.
Então mandou chamar os irmãos de Joãozinho, o velho
Cidral e o mestre de escola, Bento Damásio, para contar-lhes, com
todos os detalhes, com que esperteza e fidelidade Joãozinho agira para
proteger seu patrão dos prejuízos. Para concluir, disse-lhes: - Quando
vocês chegarem em casa deverão contar tudo à mãe de Joãozinho e
dizer-lhe, de minha parte,que ela pode orgulhar-se de seu filho!
No dia seguinte, foi o enterro de Bento Quadra no pequeno
cemitério ao lado da capela. Apenas poucas pessoas acompanhavam o
funeral, pois a maioria dos participantes da corrida e da festa já
voltara para casa. Nem mesmo os dois sobrinhos do arruaceiro
assassinado estavam presentes, pois Salvador não morrera, mas
estava muito fraco para levantar-se.
Recuperava-se lentamente, com o tratamento do curandeiro.
Seu irmão, Antonio Zerino, sumira da região desde a confissão de
Salvador que o expunha como ladrão. Provavelmente receava também
encontrar-se com o velho Mendes.
162
Mas, Jeca Baiano também sumira, desde a corrida. Será
que ele ficara com medo pelo fato de Salvador quase ter morrido? Ou
será que tomara parte no tiroteio? Falava-se muita coisa sobre ele
mas, mesmo, livrou-se da investigação judicial.
Joaquim da Cruz veio, logo após a corrida, para explicar
solenemente a Rodrigo que não tomara parte na patifaria de seu
sogro, o velho Mendes. Ele ficara sabendo dessa perfídia há apenas
alguns dias e, imediatamente, pediu explicações ao sogro. Após uma
cena violenta, tocara-o de sua casa e não queria mais ter ligações com
um sujeito tão infame. Rodrigo ouvia o relato com satisfação. Disse a
seu adversário que se alegrava em poder continuar a vê-lo como
amigo e homem de bem, a quem sempre estimara. Os dois homens se
abraçaram e continuaram amigos.
O velho Mendes tornou-se, antes do júri, o presumível
assassino de Bento Quadra. Porém, por falta de provas, foi absolvido.
Contudo, a partir daí sua reputação caíra, e precisou vender sua casa e
terras para procurar a felicidade em terra estranha.
Salvador também foi embora, assim que recuperou um
pouco suas forças. Deixou, voluntariamente, seu emprego em Casa
Branca, onde todos os dias seria lembrado por sua traição. Ninguém
mais confiava nele.
Todavia, o desaparecimento de Jeca Baiano sensibilizou
muito Joãozinho. Sentia falta, com freqüência, de seu mestre de lutas
e conselheiro.
163
XIX
A ascensão de Joãozinho. Ele toma conhecimento dos grandes
homens do povo português, brasileiro e alemão. Ele treina
futebol. O banco de jardim sob o cipreste. O tempo de aprendiz
chega ao fim. A cavalgada para Curitiba. O Hino Nacional. Uma
bonita menina curitibana. As perspectivas de viagem.......
Após esses acontecimentos, o prestígio de Joãozinho na
venda de Casa Branca estava assegurado para sempre. Rodrigo não
relatou apenas aos empregados, Basílio, Vitorino, Carlos e aos demais,
a fidelidade e a cautela de Joãozinho, mas também a seu patrão, Dr.
Bark, e a seus funcionários, em Curitiba.
Um novo aprendiz veio para a venda e Joãozinho foi
promovido a instrutor de aprendizes, com salário dobrado. Porém,
continuava, apesar da boa sorte, o menino modesto e sensato.
A partir de então começou, sob ordem expressa do patrão,
a tomar as refeições em companhia de Rodrigo e dos empregados, ao
invés de tomá-las na cozinha entre aprendizes, carreteiros e peões. Na
sala de refeições do patrão, a mesa era posta e ele sentava-se entre
Carlos e Vitorino, enquanto Basílio
e Rodrigo sentavam-se na
extremidade superior. Eles tratavam o atual instrutor de aprendizes
com igual idade, e isto fez com que Joãozinho, aos poucos, tivesse
comportamento espontâneo, não forçado. Logo ligou-se muito a
Vitorino, apesar deste ser cinco anos mais velho do que ele.
Graças às conversas durante as refeições, e às aulas
noturnas que Rodrigo lhe dava regularmente, no decorrer dos dois
anos que se seguiram Joãozinho adquiriu bons conhecimentos. Agora,
também tinha que trabalhar com a contabilidade da firma para que
quando os quatro anos de aprendizado terminassem, fosse um jovem
e educado e um bom comerciante.
No tempo das aulas particulares que tivera com Rodrigo,
Joãozinho
conheceu
nomes
significativos
da
cultura
do
povo
português, cujo sangue corria em suas veias, e também da cultura
brasileira. Eles liam sobre os grandes descobridores como, Bartolomeu
164
Dias, Vasco da Gama, e Pedro Álvares Cabral, elevavam-se com a
leitura de os "Lusíadas" de Luíz de Camões, estudavam as obras do
escritor e poeta Almeida Garrett, de Guerra Junqueiro, de Eça de
Queirós e estudavam a História de Portugal.
Após essa visão retrospectiva dos grandes homens e da
História de Portugal, Rodrigo disse uma vez:
- É lamentável que nós, brasileiros, quando vamos para a Europa
visitemos Paris, em vez de procurar descanso e instrução no país dos
nossos gloriosos antepassados. Será que o povo brasileiro ama mais
os franceses do que seu próprio povo de origem? A história do Brasil
mostra que os franceses não são amigos sinceros, pois muitas vezes
comportaram-se como inimigos do Brasil. Hóspedes franceses são
homenageados no Brasil e aqui, proferem discursos aduladores. Mas,
assim que voltam para a França, difamam nosso povo e nosso país ou
ridicularizam-nos.
Rodrigo falou-lhe também sobre grandes brasileiros como
Sílvio Romero, José de Alencar, Gonçalves Dias, Tobias Barreto, Rui
Barbosa, Olavo Bilac, Clóvis Bevilácqua, Barão do Rio Branco, e o
Imperador Dom Pedro; sobre heróis da guerra do Paraguai como o
Duque de Caxias e Floriano Peixoto, o "Marechal de Ferro", e
personalidades brasileiras de renome internacional como Carlos Gomes
e Santos Dummont.
O professor também ensinava a seu aluno os grandes
nomes da cultura alemã, do povo cujo sangue corre nas veias de
muitos brasileiros de valor e de muitos descendentes desse povo
honrado que trabalhou para o crescimento e o florescer do Brasil.
Assim, Joãozinho
tomou conhecimento de Berthold Schwarz, o
inventor da pólvora; Johann Gutenberg, o inventor da arte de
imprimir; o herói de guerra Frederico, o Grande; o rei dos filósofos,
Emanuel Kant; o rei dos poetas e gênio mundial Wolfgang Goethe; o
notável escritor Schiller; os gênios alemães da música, famosos no
mundo todo, Beethoven e Wagner; Zeppelin, o inventor do balão
dirigível que leva seu nome; e muitos outros grandes alemães. Rodrigo
provava, com dados estatísticos, que o povo alemão era mais culto do
165
mundo, pois na Alemanha não havia analfabetos e em língua alemã
era impresso o dobro de livros que na Inglaterra e na França juntas.
Joãozinho
também
praticava
habilidades
desportivas.
Corria a cavalo, lutava boxe com Vitorino, jogava futebol e praticava
tiro ao alvo com os empregados, aos domingos, quando não havia
ninguém na venda. Às vezes, Rodrigo convidava-o para caçar perdizes.
Falava-se também no plano de uma grande caçada nas montanhas,
onde havia antas e javalis e onde podiam ainda encontrar-se onças.
Contudo, as atividades comerciais não permitiam muitos dias livres,
como uma verdadeira caçada exigia.
Nos dois últimos anos, Joãozinho fora apenas uma vez
visitar a família na planície. Lá, a mãe ainda trabalhava com os filhos
no cultivo da terra. Com os rendimentos do leite e da manteiga, a
família já economizara tanto que pensava em comprar uma segunda
vaca leiteira. A garrotada crescera e dentro de um ano talvez seria
também uma vaca leiteira. Um segundo bezerro já corria atrás da vaca
comprada por Joãozinho. Tudo isso Joãozinho ficava sabendo pelas
cartas que recebia de sua casa. Preocupava-se freqüentemente com
sua família que, apesar de trabalhar duro, progredia tão pouco. Ele
gostaria de ajudá-la com suas economias, mas dava razão a seu
patrão que o aconselhava a guardar seu dinheiro para que, ele próprio,
pudesse ter um negócio. Então, estaria em condições de ajudar toda a
família. Com pequenas quantias de dinheiro dadas como presente não
conseguiria muito. A partir daí, Joãozinho economizava ainda mais em
suas despesas e deixava seu ordenado na venda, onde rendia-lhe
juros.
A saudade da mãe e dos irmãos, de Anita e seus pais e do
padrinho Cidral ainda não se apagara nele, mesmo que não mais o
consunisse como nos primeiros tempos. Ainda havia momentos em
que seu coração se apertava de saudade dos seus.
No jardim havia um cipreste, ao lado de um pinheiro novo,
guarnecido do chão até o cume com largas folhas pontiagudas. Ali,
Joãozinho colocara um banco e à noite, quando não havia mais
ninguém
no
jardim,
sentava-se
neste
banco
entre
as
duas
sussurrantes àrvores. Então escutava a misteriosa canção que o vento
166
tocava nas murmurantes agulhas do pinheiro e nos sussurrantes
galhos do cipreste, a eterna canção da separação... até que seus olhos
se enchiam de lágrimas. Aí parecia-lhe, às vezes, que estava sentado
em seu lugarzinho escondido no bambuzal e conseguia ouvir as vozes
da mãe e dos irmãos nas proximidades. E então, de repente,
recuperava os sentidos - Eles se encontravam longe, muito longe de
você... e talvez você nunca mais os veja!
Porém, toda vez que tinha esses pensamentos pessimistas
reagia com grande força de vontade. Chamava a si sedutoras imagens
do futuro, de como poderia ajudar sua família quando tivesse sua
própria venda. A mãe e Maria morariam com ele, Margarida talvez se
casasse e Francisco e Pedro poderiam ajudar na venda e com as
carretas, e todos estariam novamente juntos, como no tempo de sua
infância.
Quando Joãozinho terminou seu período de aprendizagem,
o patrão promoveu em sua honra uma pequena festa. Todos os
empregados e serviçais participaram e o cumprimentaram. O rapaz
sentia-se muito feliz por galgar a escada que conduzia ao êxito e a
riqueza que, agora, estavam à sua frente.
Nessa noite, antes de deitar-se, pediu permissão ao patrão
para visitar sua família. Rodrigo deu-lhe consentimento, porém
Joãozinho deveria primeiro ir a Curitiba para apresentar-se ao Dr. Bark
como o mais novo funcionário. E, também, deveria trazer de lá grande
quantia de dinheiro para a compra de mate.
Vitorino ainda veio até o quarto de Joãozinho, aquele que
fora de Salvador, enquanto o seu, no sotão, era agora de Paulo, o
novo aprendiz. O quarto tinha uma cama, guarda-roupa, mesa,
estante, duas cadeiras e lavatório. Era limpo e convidativo, com
cortinas nas janelas e, sobre a mesa, uma lamparina de querosene
que iluminava confortavelmente o ambiente.
Os dois rapazes, que agora trabalhavam num mesmo nível,
já eram, há muito tempo, grandes amigos, e estavam sentados junto à
mesa falando da viagem de Joãozinho. Vitorino alisou seu negro
bigode, pelo qual Joãozinho o invejava secretamente, pois ele próprio
ainda não tinha barba. - Eu gostaria de ir com você para sua casa e
167
conhecer seus familiares - disse Vitorio naquela sua maneira calma mas acho que você prefere ir sozinho... eu só atrapalharia.
Joãozinho
acatou
a
idéia
com
entusiasmo
e
tentou
persuadir seu amigo a fazer a viagem com ele. Após muita conversa,
Vitorino prometeu pedir permissão ao patrão.
Dois dias mais tarde Joãozinho, como novo funcionário aos
dezoito anos, foi para Curitiba. Já fizera essa viagem duas vezes
nesses
quatro
anos,
mas
mesmo
assim
conhecia
apenas
superficialmente os moradores da estrada.
Quando entrou na cidade viu que muitas casas estavam
com bandeira hasteada. Então lembrou-se esse dia era feriado
republicano e que deveria procurar seu patrão em casa, pois todas as
lojas estavam fechadas. Foi para a pousada onde pernoitara pela
primeira vez com o padrinho Cidral, entregou seu cavalo ao serviçal e
trocou de roupa em seu quarto. Após lanchar, caminhou pelas ruas,
encontrando muitas pessoas em trajes de festa.
A caminho da casa de Bark, chegou a uma grande e bonita
praça onde enorme multidão estava aglomerada. Já ia dobrando uma
esquina, quando parou de repente. A banda militar, parada no meio da
praça, começou a tocar o Hino Nacional brasileiro.
Oh! Como os sons retumbantes e imperiosos do suntuoso
hino eletrizavam o jovem brasileiro! "Ta- ta- ta- ra- ra..." Ele arrancou
o chapéu da cabeça como todas as pessoas e, emocionado ouvia os
acordes. Seus olhos encheram-se de lágrimas e a pele de sua testa
começou a arder. Os sons retumbates penetravam seu coração e
satisfaziam-no com um orgulho indomável por ser filho deste país
maravilhoso que é o Brasil. Os imponentes sons vinham a seu
encontro,
enquanto
as
verde-amarelas
bandeiras
balançavam
triunfantes nos mastros. As estrelas prateadas na esfera azul da
bandeira representavam os vinte e dois poderosos estados do Brasil
país que se estende desde o Amazonas até a Argentina, na América do
Sul.
Com forte brilho em seus olhos azuis, após os últimos
acordes do hino Joãozinho continuou seu caminho até chegar à casa
do rico doutor Bark. Intrépito, apertou o botão da campainha elétrica.
168
Uma bela mocinha de aproximadamente catorze anos,
após alguns instantes abriu, a porta da casa e perguntou-lhe o que
desejava. Ele respondeu que precisava falar com o patrão e disse seu
nome: João Soares Pilz.
Aí, a jovem atrevida de brilhantes, olhos cinzentos olhou
para ele e disse: - Ah! talvez você seja o "Joãozinho feliz"...não... o
"Joãozinho Felizardo" do qual papai já falou tanto? Aproxime-se por
favor... Não,... como me alegro... eu já estava tão curiosa em
conhecer o Jo... não... você.
Ela estendeu-lhe a mão, mas a recolheu rapidamente,
sacudiu seus cabelos loiros e seguiu pelo corredor a dentro.
- Que menina bonita - pensou Joãozinho admirado,
enquanto pousava agradavelmente seus olhos sobre a esbelta figura
que andava à sua frente. E, mesmo sem querer, comparava-a com a
pequena Anita de olhos escuros.
Então ela abriu a porta da direita e deixou-o passar, bem
por perto dela, para entrar no grande aposento do pai. Olhou-o
sorrindo com os espertos olhos cinzentos e seus olhares encontraramse. Então, ela se retraiu.
- Ah, o nosso recém-feito caixeiro! - disse Bark, divertido,
de sua poltrona onde lia o jornal. Estendeu a mão para o jovem
funcionário, que corava muito.
Joãozinho teve que sentar-se a seu lado, e falar-lhe de negócios,
responder a centenas de perguntas, até que começaram a conversar
sobre coisas sérias. O velho senhor admirava, em silêncio, os
conhecimentos do jovem. Lembrou-se quando Joãozinho viera um dia,
há quatro anos e, verdadeiro matuto sentara-se à sua frente e
arrazando a gramática como quem corta uma espécie de grama.
Depois de uma hora, a menina loira enfiou a cabeça pela porta aberta
e chamou-os para o café. Bark levantou-se, pegou seu jovem hóspede
pelo braço e levou-o para a sala de refeições, onde a senhora Bark
com a filha Emília e o filho mais novo, Mário, já os esperavam. Havia
um bolo maravilhoso que Joãozinho adorou. Logo os donos da casa,
ofereceram-lhe mais um pedaço de bolo mas ele esclareceu, sorrindo,
que não aguentaria comer mais nada.
169
Durante o café, e depois também, Joãozinho teve que
responder a muitas perguntas que a senhora Bark e a filha lhe faziam.
Quantos anos tinha, onde morava sua mãe, como se chamavam seus
irmãos, onde passara sua infância e outras perguntas do gênero.
Joãozinho respondia com tanta vivacidade e graça que, por
mais de uma vez, ecoaram altas risadas.
Então o patrão voltou com ele para o escritório e disse-lhe
que o escolhera para ir, nos próximos dias, para sua fazenda Lavrinha,
que ficava numa região duvidosa de Rio Preto. O administrador da
fazenda, um sujeito rude e resmungão de nome Fabrício, há muito
tempo não dava notícias. Segundo os cálculos de Bark, ele já deveria
ter trazido para Curitiba, há quatro meses, um rebanho de gado de
corte para vender. Porém, Fabrício não mandar nem gado, nem
dinheiro e nem notícia. Por isso, uma pessoa inteligente e de confiança
precisava passar algum tempo na fazenda, colocar em ordem a
contabilidade e prestar bastante atenção se Fabrício agia corretamente
para com seu patrão.
Joãozinho deveria, logo após voltar da visita a seus
familiares, viajar com um peão para a região duvidosa de Santa
Catarina, com plenos poderes como se o próprio Bark estivesse com
ele.
Ambos trataram de todos os pormenores até que a noite
chegou. Na despedida, Bark deu ao jovem funcionário o pacote com o
dinheiro para a compra do mate. A procuração da viagem para a
fazenda seria enviada para Casa Branca, quando Joãozinho tivesse
voltado da visita ao lar. O rapaz, despediu-se, com um aperto de mão,
de seu patrão. Na porta da sala encontrou Emília que lhe abriu o
portão, estendeu-lhe a mão e disse, sorrindo prometedoramente.
Tomara que, a gente o veja logo de novo. Joãozinho corou de alegria,
mas respondeu: - Tão breve não estarei de volta das duas viagens que
farei.
- Ah, você vai viajar? - disse ela, desapontada. - Que pena!
Bem, boa sorte e um feliz regresso! Não nos esqueça!
- Não, Emília, certamente que não! - gaguejou, muito feliz
interiormente com sua familiaridade, e saiu. Contudo, quando chegou
170
na esquina claramente iluminada pela luz elétrica, voltou-se e viu que
ela o seguia com o olhar.
Em seu pequeno quarto na hospedaria, ficou deitado por
muito tempo e sonhou acordado com a bela tarde e com os olhos
cinzas e vivos de Emília.
No dia seguinte, à noite, chegou são e salvo à Casa
Branca, fez um relatório a Rodrigo e entregou-lhe o pacote com o
dinheiro.
Vitorino fora ao seu encontro no terraço, antes que
pudesse descer do cavalo, para informá-lo, radiante de felicidade, que
o patrão dera-lhe permissão para acompanhá-lo em sua viagem, já
que no verão, não havia muito movimento na venda.
Dois dias mais tarde, os dois amigos partiram antes do
raiar do dia e trilharam o mesmo caminho que Joãozinho conhecia
desde sua primeira viagem. Ambos estavam felizes com a viagem e
quando deixaram o bosque para cavalgar no verde campo livre, a luz
dourada do sol brilhava sobre a grama inerte formando ali uma onda
suave. Os dois jovens começaram a cantar uma alegre canção, ao ar
fresco da manhã. Seus cavalos deitavam as orelhas para trás,
escutando, e relinchavam alto na dourada manhã acelerando o passo
como se quisessem compartinhar da alegria de viver dos dois
cavaleiros.
Na hora do almoço, os dois descansaram sob a frondosa
sapopema, ao lado do riacho, enquanto os cavalos pastavam. Então
cavalgaram por muitas horas até chegarem à solidão das montanhas
selvagens. Ao atravessar o denso bambuzal seco, Joãozinho mostrou
ao amigo o local onde fora assaltado, pelos ladrões disfarçados. Eles
se lembraram do assassinato de Bento Quadra e dos dois irmãos
foragidos, Antonio Zerino e Salvador. Pernoitaram na cabana do velho
Cordeiro e no dia seguinte, à tarde, chegaram à capela que ficava no
alto da colina. Dali avistaram a escola que ficava mais adiante, no
vale.
171
XX
Em casa. A partida para a caça. O rancho na floresta virgem. Os
rastros de anta, lontra e cateto. As estórias de caçadas com
onça. O fatigante avançar na floresta montanhosa. Os enormes
troncos de imbúias, canelas, perobas, sassafrás, cedros,
tarumãs, araçás entre outros. A caçada de cateto. O fiasco de
Joãozinho.
Joãozinho foi recebido com muita alegria por Bento
Damásio e sua mulher, como das outras vezes. Então Anita veio...
seus grandes olhos escuros brilhavam como jóias, repletos de alegria.
Os negros e encaracolados cabelos ainda caíam-lhe livres sobre os
ombros arredondados. Vestia um avental branco que acentuava sua
graciosa silhueta. Pela expressão luminosa do seu olhar constatava-se
que Joãozinho ainda ocupava um espaço muito especial em seu jovem
coração.
Ele apresentou a todos seu amigo Vitorino, porém viu, para
sua satisfação que Anita só tinha olhos para ele. Então a figura da bela
Emília, que nos últimos dias ocupava seus pensamentos, desvaneceuse.
Ao prosseguirem a viagem, Joãozinho orgulhava-se quando
Vitorino elogiava a beleza de Anita, ao falar da família do mestre. Em
seu contentamento começou a contar ao amigo sobre seu tempo de
escola e de como Anita despertara nele a vontade de aprender a ler e
escrever. Relatou também particularidades de suas idas a cavalo para
a escola. -Aqui eu cavalgava uma vez com meu Mico quando ele se
espantou com um tamanduá que zumbia na moita-. Continuou a falar
da sua infância, alegrando-se com o interesse de Vitorino, até que
avistaram, ao cair da tarde, o telhado cinzento da casa de sua família.
Francisco e Pedro os viram de longe e começaram a gritar por eles até
que toda a família estava diante da porta da casa.
Gritos de alegria, risadas, choro, e todos falando ao
mesmo tempo. Os cavaleiros quase foram arrancados de seus animais
para serem abraçados. A mãe não se cansava, entre soluços, de
abraçar e acariciar seu filho. Maria colocou-se suavemente entre seus
172
braços, os irmãos falavam sorrindo com ele, e Margarida acariciava
seus ombros. Vitorino ficou parado, sorrindo, alisando seu negro
bigode e, com admiração inconsciente, olhava para o rosto suave e
corado da altiva Margarida.
Ela tinha os mesmos olhos azuis de Joãozinho, mas ao redor de
seu rosto oval caíam abundantes cabelos negros, brilhantes, que
herdara da mãe.
- Vocês chegaram em boa hora - disse Francisco mais
tarde, quando estavam jantando. - Depois de amanhã vai haver uma
grande caçada. Todos os filhos dos vizinhos irão participar. Nós
queremos ir para as montanhas, onde um caçador viu rastros de uma
onça. De qualquer maneira abateremos uma anta e alguns catetos.
- Ora, ora! - objetou Margarida duvidando. Todos riram. Vocês vão participar, não? - disse Pedro entusiasmado. - Em três dias
estaremos de volta.
A mãe e as irmãs de Joãozinho protestaram, apreensivas.
Elas não queriam abreviar ainda mais a curta estadia de Joãozinho no
lar por causa de uma caçada. Contudo, Pedro e Francisco sabiam
descrever de maneira tão atraente a futura caçada, que via-se
claramente a vontade de participar, principalmente em Vitorino. Então
a mãe cedeu. - Se isso fizer Joãozinho feliz nós não queremos segurálo! Amanhã teremos o dia inteiro para ficar com ele... e ainda o dia
depois da caçada!
O dia seguinte passou muito depressa. Joãozinho mostrou
a seu amigo a plantação, os estábulos e todos os lugares preferidos de
sua infância. Apresentou-o ao fiel Valente, ao resmungão "Jacob",
levou-o até a vaca e os bezerros, à pocilga, e mostrou-lhe o balanço,
de onde uma vez, a pequena Maria desaparecera. Margarida e Maria
os
acompanhavam,
enquanto
contavam
muitas
travessuras
de
Joãozinho. Joãozinho observava, satisfeito, como Vitorino gostava de
olhar para os olhos azuis de Margarida, e sorria com seus botões.
À tarde, visitaram o velho Cidral e sua esposa. Os dois
velhos alegraram-se imensamente e não queriam depois nem deixar
os jovens irem embora. Joãozinho ainda tinha que lhes pedir
173
emprestados animais de montaria para Francisco e Pedro para que
eles não precisassem ir a pé para as montanhas.
Enquanto isso, os irmãos estavam em casa ocupando-se
dos preparativos da caçada. Gritaram de alegria ao verem Vitorino e
Joãozinho voltando com os animais de montaria. Certamente a eles o
velho Cidral não os teria emprestado.
No dia seguinte, antes do raiar do dia, os quatro caçadores
partiram. "Valente", o cão de caça que ainda continuava muito capaz,
corria feliz à frente dos cavalos que fungavam. Na encruzilhada, junto
à grande figueira, reuniam-se os homens e rapazes que iriam
participar da caçada.
Uma matilha de cães de caça acompanhava os caçadores
munidos de espingarda e facão. Uma mula, com albarda para
transportar para casa o animal selvagem caçado acompanhava o
grupo. Não faltavam também víveres, utencílios de lata, ponchos e
cobertores.
Assim cavalgaram ao alvorecer, por caminhos ruins em
direção da cadeia de montanhas. Ao pé da serra , nas proximidades de
uma cachoeira, morava o último habitante. Ali deixaram os cavalos, os
burros, as selas, e colocaram-se em fila indiana marchando para a
selva. Atravessaram montanhas de mata cerrada, gargantas frias e
sinistras, solo pantanoso e matas espessas, espinheiros e brenhas,
íngremes rochedos, para adentrar as montanhas.
Vitorino e Joãozinho, acostumados ao suave ar das
montanhas, eram mais sensíveis que os outros caçadores ao calor
sufocante da planície baixa. Se não estivessem acostumados a
esforços físicos graças ao futebol, talvez tivessem que desistir e
agüentar a troça. Sem descanso, prosseguiram avançando para dentro
da espessa e solitária mata. À frente, iam os abridores de picadas que,
a golpes de foice e facão, tinham que abrir uma trilha. Todos
carregavam nas costas os víveres, armas, ponchos e utensílios para
cozinha. Joãozinho sentia, cada vez mais, o peso da carga e sentiu-se
aliviado quando chegou a hora do lanche e de um descanso, logo
acima de um riacho sussurrante.
174
A caçada deveria começar a partir desse lugar. Alguns
jovens colocaram-se já à procura de rastros de animais selvagens e
sumiram com seus cachorros na densa floresta, enquanto os outros
caçadores recolhiam lenha seca para acender o fogo e preparar a única
refeição do dia. Outros começaram a fazer um rancho com galhos de
árvores e palmitos, que serviria para o pernoite e para protegê-los de
uma possível tempestade. Na hora do almoço, os rastreadores
voltaram,
com
seus
cães,
para
o
acampamento.
Sentaram-se
cansados junto ao fogo e almoçaram. Durante o almoço, narraram
cuidadosamente os resultados da investigação feita na floresta. Um
vira pegadas recentes de catetos, outro descobrira rastros e fezes de
uma anta, e um outro vira o lugar onde as corças e pacas bebiam
água e onde encontrara também pegadas de uma lontra. Todos
elogiavam o faro de seus cachorros. Eles ainda se vangloriavam
quando Francisco e Pedro voltaram, com Valente, e relataram que,
atrás das pegadas de um rebanho de javalis, encontraram rastros
meio apagados de uma onça. Parecia não ser animal muito grande,
considerando os sinais da pata.
Todos
ficaram
muito
animados
com
os
resultados
favoráveis da exploração que prometia uma caçada rica. Vitorino e
Joãozinho, principalmente, estavam muito entusiasmados imaginandose já voltando como caçadores de onça. Então escutaram as estórias
de Belarmino, que há dois anos participara de uma caçada de onças.
Aquela vez, os caçadores perseguiram inutilmente a onça por muitos
dias, até que conseguiram retê-la auxiliados por seus cachorros e
também por Joaquim da Rocha, o mais experiente caçador de onça,
antes que o animal morresse com um tiro certeiro. A maravilhosa pele
foi dada a Joaquim da Rocha, e até hoje ocupa um lugar de honra em
sua sala. Mal Belarmino acabara de falar dessa caçada, já outras
estórias de caçadas de onça eram narradas. O velho José Cidral
também conseguira uma bela pele de onça quando ainda era mais
jovem. Todos reiteravam que a onça afastava-se dos homens, porém
se fosse perseguida seria um adversário terrível. Seguiram-se estórias
de pumas. Esta fera era mais freqüente do que a onça. A caça do
puma era freqüentemente mais perigosa, principalmente se o animal
175
atacado não encontrasse saída para fugir. Havia pumas velhos que até
tomavam a ofensiva.
Após a refeição, iniciou-se a partida para a caçada. Os
caçadores, com seus cachorros, dividiram-se em dois grupos. O
primeiro grupo, sob o comando do caçador de onça Belarmino, subiu a
colina da floresta ao longo do riacho murmurante. Eles queriam
atravessar a água na parte de cima e então atravessar a espessa mata
até o "castelo dos bugres", um penhasco visível bem ao longe.
O outro grupo, onde Joãozinho e Vitorino estavam, deveria
descer a garganta, atravessar o riacho em algum lugar e também
escalar o "castelo de bugres". Assim, mantinha-se a água como base
ou princípio, e caçavam-se os animais selvagens que se encontravam
dentro deste triângulo.
Apenas
fatigante
era
agora
avançar
Joãozinho
nessa
e
solidão
Vitorino
das
percebiam
montanhas.
Os
quão
dois
principiantes ficaram atrás dos companheiros. Por hora não se poderia
mais pensar em caminhar a passos largos e rápidos. Arrastava-se de
barriga ou de costas, segurava-se com a mão no capim baixo ou nas
raízes, e descia-se com muito sacrifício a escura garganta. Assim, era
preciso segurar a arma e passar por espinhos e brenhas.
Aqui e alí um escorregava, outro pisava num ninho de formigas
brancas, e um terceiro caía e ficava com os pés para cima, procurando
um lugar seguro. Não era possível ver onde se pisava, ora em cima de
serpentes venenosas ou aranhas do mato, escorpiões ou espinhos.
Assim, os caçadores entraram aos poucos no coração da floresta.
Vitorino e Joãozinho chegaram ao riacho bem depois dos
outros, arranhados e esfolados. Felizmente usavam roupas velhas,
emprestadas por Francisco e Pedro, para a caçada. De rostos
vermelhos, arranhados e machucados estavam ali em farrapos, um
diante do outro, dando altas risadas.
- Se a gente aparecesse assim em Casa Branca! - Vitorino
contorcia-se de tanto rir ao pensar nisso. - Ou ir para Curitiba à casa
do doutor Bark, - dizia Joãozinho rindo muito, vestido com essa roupa
suja e remendada. Porém, eles tinham que prosseguir, pois podia-se
ouvir o murmurar dos outros na espessa floresta do outro lado da
176
água. Seguiram os galhos quebrados pelos homens da frente, as
marcas de seus pés encontraram um vau onde podia-se atravessar o
rumorejante riacho com mais facilidade.
Segundo
instruções
do
guia,
Joãozinho
ficou
nas
proximidades da água para cuidar dos animais selvagens que se
aproximassem. Vitorino teve que avançar mais para dentro da mata e
os outros a adentravam cada vez mais.
Logo Joãozinho estava sozinho na verde floresta deserta.
Ouvia ao longe, aqui e ali, o grito de algum caçador, um breve latido
de cão, até que tudo que lembrava a caçada desapareceu. Ele ficou
parado, para ouvir o barulho de dentro da mata que o cercava de
todos os lados. Ouvia o bramar do riacho, que escondia suas águas
sob a espessa folhagem, e deixava a água correr sobre cascalhos,
misturando-se ao sussurrar majestoso da mata como uma canção
fantástica. Enormes troncos de cedros, imbuias, canelas, sassafrás,
perobas, araçás, tarumãs, e outras plantas cobertas de orquídeas e
trepadeiras,
estendem
suas
verdes
copas
sobre
palmeiras,
samambaias, abacaxis silvestres, cactos, amoreiras, plantas raras de
folhas largas e outras mais.
Joãozinho começou a percorrer sua área a fim de procurar
rastros de animais selvagens nas proximidades. Sentia-se muito
importante, como um verdadeiro procurador de trilhas e caçador de
mata virgem. Contudo, um grande cansaço dominou-o, e acabou
deitando-se sob uma árvore cujos galhos quase tocavam o chão,
quase roçando sua cabeça. Sim, ali na sombra estava agradável!
Ele ficaria bem quieto, à espera, e atiraria no animal selvagem
que tentasse passar furtivamente por ali. Ouvia, lá da floresta, o
assobio dos pequenos macacos pretos, os micos, a gralhada alegre dos
papagaios verdes e o zumbido dos metálicos colibris cintilantes, tão
pequenos como besouros, que mergulhavam seus finíssimos bicos nas
flores
perfumadas
das
orquídeas.
Ao
redor
de
sua
cabeça,
escaravelhos e mosquitos zumbiam, borboletas coloridas voavam sob
os galhos e tudo era tão tranqüilo e sossegado ali na sombra...
A partida de casa na madrugada, logo depois da meia
noite, a longa cavalgada ao alvorecer e a fatigante caminhada pela
177
intransitável montanha, faziam sentir-se agora. Joãozinho acreditava
que estava acordado, mas cochilava encostado na árvore...
Assim passaram-se provavelmente algumas horas e o sol
da tarde já enviava diagonalmente seus raios vermelhos pelos troncos
da floresta, quando Joãozinho acordou com um barulho que se
aproximava:
-uik-uik-ai-au-au...
gurr-rrr-pum-pum.
Um
grunhido
selvagem, latidos roucos de cães, vozes humanas alteradas e alguns
tiros...
Joãozinho
deu
um
pulo,
assustado.
A
louca
caçada
desenrolava-se justamente no seu lugar de descanso. Ele ainda não
acordara direito, os olhos ainda miravam inseguros e, nesse momento,
saiu do capim baixo um rebanho de porcos selvagens. Na frente arfava
um cachaço eriçado, com presas enormes, cujos pequenos olhos
brilhantes procuravam como alvo o inesperado inimigo. Com um
grunhido furioso, focinho aberto de onde a espuma babava, disparou
furioso sobre o atônito Joãozinho.
O rapaz agarrou instintivamente os galhos que tocavam
sua cabeça e subiu, rápido como um raio, na árvore. A espingarda
caíra no chão e o valente caçador balançava as pernas meio metro
acima do focinho aberto que procurava por seus pés. Finalmente
conseguiu colocar-se em segurança, enquanto o eriçado animal mordia
furiosamente com as presas a casca da árvore como se quisesse subir
nela para esmagar o inimigo fujão.
Porém, os latidos roucos e os gemidos da matilha já se
aproximavam, juntamente com os gritos furiosos dos caçadores que
vinham atrás.
Os javalis correram dali grunhindo e sumiram espesso
capim, em direção da água. No instante seguinte, Joãozinho viu os
cães com as línguas de fora correndo atrás dos animais e, em seguida,
como loucos, um após outro, os quatro exaltados caçadores.
Joãozinho, cuidadosamente, de cima da árvore, mostravalhes a direção tomada pelos javalis. Então eles pararam e olharam
furiosos para ele, por não ter sido atento e nem ter atirado. Pensaram
que Joãozinho escolhera a árvore propositalmente para ter uma visão
melhor para atirar.
178
Continuando
a
correr,
descobriram
a
espingarda
de
Joãozinho no chão e caíram na gargalhada. - Vejam o fino homem de
colarinho, o homem de gravata - diziam rindo - que atira a arma no
chão e foge do animal selvagem. Rindo muito e xingando, sumiram na
espessa mata.
Joãozinho desceu da árvore muito envergonhado, apanhou
sua espingarda e seguiu-os, furioso. Ele se autocensurava. - Se eu
tivesse ficado acordado, teria ouvido a tempo a aproximação da
caçada e me teria ocultado atrás da árvore para poder mirar e atirar
nos javalis
com
toda a calma.
-
Agora,
irritava-se
com sua
prevaricação que levara seus companheiros a julgarem-no covarde. Ele
sabia que não teria fugido se não o tivessem surpreendido dormindo.
Mas ele não deveria dormir! No esporte e no jogo também precisavase ser leal. Tinham-lhe confiado o lugar próximo da água e era sua
obrigação e dever combater o sono e ficar atento.
Assim, ralhando consigo mesmo, tropeçava atrás dos
outros e prometia a si mesmo agir de modo correto. Porém estava
sem sorte e não teve oportunidade de dar nenhum tiro.
Quando
escureceu,
arrastou-se
desolado
até
o
acampamento onde foi recebido com chuvas de piadas, gracejos,
censuras e risadas. No chão estavam quatro catetos gordos, além de
outras caças. Todos trouxeram alguma presa. Até Vitorino, que
participava de uma caçada pela primeira vez, abatera um gordo jacu e
dois urus.
A noite toda, até a hora de dormir, Joãozinho teve que
suportar a troça dos caçadores. Até mesmo seus irmãos, Francisco e
Pedro, troçavam dele. Apenas Vitorino, a quem relatara exatamente o
que acontecera, procurava defendê-lo.
179
XXI
O jacu. O rastro de uma onça. O sacrifício de Joãozinho. O
graxaim. Joãozinho vira motivo de chacota. A presa abatida. A
febre. Margarida e Vitório.........
Na
manhã
do
segundo
dia
de
caçada,
Joãozinho
acompanhava os outros caçadores com firmes propósitos de que faria
o que fosse possível para voltar com mais glória e alguma caça.
Novamente ficou sozinho na floresta, depois que os outros
prosseguiram.
Avançava
devagarzinho
na
direção
determinada,
sempre atento para descobrir sons e pistas de algum animal selvagem.
As copas das velhas árvores sussurravam baixinho, o bambuzal
murmurava, e um pica-pau martelava a casca de uma peroba
próxima. Da profundeza da mata ressoava o bater metálico de uma
araponga, uma pomba que as pessoas chamam de "ferreiro da mata",
enquanto que, da água, ouvia-se o chamar de um inambu. Além disso,
reinava um silêncio profundo na floresta ensolarada e sentia-se a
fragrância do mel, da baunilha e do heliotrópio. Joãozinho estava
tentado a deixar-se levar pela magia da mata, porém lembrou-se do
escárnio dos colegas e renunciou ao sono. Procurou ouvir atentamente
os sons da floresta, até que uma rajada de vento trouxe-lhe o fraco
estalido de um tiro de espingarda, revelando onde os outros se
encontravam. Tomou a direção do tiro e, de repente, estremeceu. Bem
próximo de sua cabeça ouviu um bater de asas. Um grande pássaro,
parecido com o faisão, voou dali. Feliz, Joãozinho pensou, um “jacu”!
Que bom se eu levasse isso para ser assado no acampamento! E
arrastou-se cuidadosamente, mata adentro, para onde vira que o jacu
pousara. Espiando para cima, descobriu o grande pássaro negro sobre
o galho de um araticum. Não perdeu tempo, apontou, mirou e atirou.
Porém, com um grasnar forte o jacu voou dali. Parecia um riso
sardônico de uma rouca garganta humana. - Com mil raios! - gritou
Joãozinho, furioso, e perseguiu o pássaro que parecia debochar dele.
Quando
o
avistou
novamente,
pousado
numa
árvore
frutífera,
Joãozinho se acalmou e conseguiu derrubar o jacu com um tiro
180
certeiro. Em seguida atirou em mais algumas pombas. Por volta do
meio dia, seus colegas perseguiam ainda uma corça, na qual ele não
conseguiu atirar.
Junto com outros caçadores, percorreu a intransitável
floresta virgem até o rancho, onde os demais participantes da caçada
chegavam aos poucos. A caça ainda era pouca e assim o jacu de
Joãozinho não causou má impressão, uma vez que os outros não
tinham mais que ele. Porém, esperava-se caçar algo maior até a noite.
Após um pequeno descanso, todos voltaram para a
misteriosa escuridão da mata virgem. Os últimos eram, como sempre,
Joãozinho e Vitorino. Contudo, eles também tinham que se separar
para manter a direção prescrita. Através de cerco e de um lento
avançar, o animal deveria ser descoberto.
Joãozinho escalou, de joelhos, uma escarpa na densa
mata. Estava tomado por uma febre de caça e pressentia que hoje
pegaria
um
grande
animal
selvagem.
Andava
cuidadosamente,
examinando o chão. A elevação havia sido vencida, porém agora
estendia-se à sua frente uma abrupta descida, fechada com bambu e
arbustos. De repente, parou. Ali, no chão, num lugar sem folhas viu,
atrás de recentes pegadas de corça, fracos sinais de patas de um
jaguar (onça). Parou estarrecido e cravou
o olhar no chão para
certificar-se de que seus olhos não o estavam enganando. Não, não
havia engano, uma corça passara por ali e uma onça a perseguia.
Instintivamente olhou para todos os lados, para ver se a fera não
estava por ali, estava pronta a saltar sobre ele. Uma grande agitação
apossou-se dele e imediatamente examinou o rifle de dois canos que o
padrinho Cidral lhe emprestara para a caçada. Um dos canos estava
carregado com escumilha e, o outro, com bala.
Empunhou
o
facão,
para
a
frente,
e
continuou
se
arrastando com muito cuidado através do mato. Agora podia ouvir, da
profundeza da mata, o latido distante dos cães. Talvez eles estivessem
tocando a onça em sua direção. Apesar da ambição de ter uma
gloriosa aventura com a fera e superar todos os caçadores, nesse
instante desejava ardentemente que um de seus experientes irmãos
181
caçadores estivesse com ele. Com o coração batendo violentamente,
procurava ouvir melhor o barulho que vinha de dentro da mata.
Ali,
onde
estava,
um
quebrar
e
um
barulho
eram
perceptíveis. Alguma coisa escura movia-se no solo sob o bambuzal.
Rapidamente, Joãozinho colocou a arma à altura da face, mirou o
melhor que as mãos trêmulas lhe permitiam e disparou. O tiro ressoou
pela mata como um trovão. Mas, o que era isto? Um grito de dor, de
voz humana, atingiu o ouvido do espantado Joãozinho envolto na
fumaça de pólvora. Paralisado de susto, olhou para onde havia atirado.
- Joãozinho,...você me acertou, - gemia Vitorino.
Imediatamente, Joãozinho correu para aquele que estava
caído e se atirou a seu lado, no meio do bambuzal. Ele não chorava
mas seu coração parecia despedaçado. Vitorino gemia de dor, no chão,
e procurava apertar o quadril esquerdo de onde o sangue escorria.
Trêmulo, Joãozinho arrancou-lhe a roupa. Será que ele
matara o amigo? De medo e desespero seus dentes batiam e, sem
consciência disso, começou a gemer.
Assim que a parte atingida do corpo de Vitorio foi
desnudada, os dois jovens puderam constatar, com grande alívio, que
a bala apenas arranhara o quadril e não estava ali encravada.
Joãozinho esforçava-se para deter o sangue e pedia quase chorando: Vitorino, você não está zangado comigo, está? Eu pensei que fosse um
jaguar...
Então Vitorino caiu na risada, apesar de sua dor - Eu, um
jaguar! - Joãozinho o olhava perplexo, o que provocava ainda mais o
riso do ferido. Isto acalmou Joãozinho, pois quem poderia rir assim
não deveria estar muito ferido.
Logo,
arrastando-se
aproximaram-se
pelo
mato,
pois
dois
ouviram
companheiros
o
tiro.
de
caça,
Imediatamente
procuraram na floresta ervas refrescantes que pudessem estancar o
sangue, com as quais fizeram um curativo. Apoiado em seus ombros,
Vitorino conseguiu caminhar, mancando, até o rancho.
Novamente Joãozinho foi alvo de muitas risadas com sua
"caçada de onça". Cada um queria superar o outro com sua piada e
Joãozinho teve que suportar tudo isso. Mas ele estava feliz por não ter
182
matado seu amigo, e também ria das piadas que faziam às suas
custas.
Seus companheiros de caça tiveram mais sorte nessa
tarde. Conseguiram pegar uma anta, que era a caça principal.
Contavam que Valente perseguira o animal e o tocara para o rio, junto
com os outros cachorros. Ali conseguiram detê-la até que os caçadores
se aproximaram e puderam atirar. Além dessa presa, conseguiram
pegar uma corça, uma paca, uma lontra, inúmeros pássaros grandes,
e um graxaim.
Durante
muito
tempo
ressoavam,
nessa
noite,
as
gargalhadas do rancho da floresta. Cada um procurava imitar como
Joãozinho perseguira e atirara na onça.
À noite Joãozinho custou a pegar no sono. Rolava
preocupado sobre o leito de folhas de palmito e o cobertor da sela,
enquanto ouvia o silencioso crepitar do fogo que se apagava. Trêmulo,
imaginava como se sentiria se, ao invés do ferido Vitorino, estivesse
seu cadáver no acampamento. Fervorosamente juntou as mãos em
oração e agradeceu a Deus que o livrara de tornar-se um assassino.
Nunca
mais
contratempos
atiraria
durante
num
a
objeto
caçada,
incerto.
e
as
Por
causa
constantes
de
troças
seus
dos
companheiros, ele já perdera toda a vontade de caçar. Recordava-se
do apelido, "Joãozinho Felizardo", que Bento Damásio lhe dera.
Sorrindo amargurado ele se chamava agora de "João Caipora" e
pensava em apresentar-se com este apelido a seu velho mestre.
Na manhã seguinte os caçadores, antes do nascer do sol,
já estavam acocorados ao redor do fogo e preparavam a refeição
matinal. Antes que clareasse o dia, todos estavam de pé para caçar
até a hora do almoço, pois logo após o meio dia deveriam pôr-se a
caminho de casa.
Joãozinho,
desanimado
com
suas
contrariedades,
esclarecia que, para ele, não adiantava ir à caçada junto com os
outros. Porém Vitorino, que se sentia recuperado, e o irmão Pedro o
persuadiram zelosamente.
- Hoje você vai compensar tudo, Joãozinho! - dizia
Vitorino, que estava novamente bem disposto. Você precisa fazer o
183
possível! Você não pode perder esta última grande chance... senão
você irá se desgostar durante meses com seu fiasco! Hoje nós vamos
com Pedro e Francisco... eles vão
levar o Valente, e preste
atenção!...hoje você terá mais sorte!
Estas palavras reanimaram o espírito empreendedor de
Joãozinho, que acabou saindo para a casa com seus irmãos e Vitorino.
Conduziam o esperto Valente pela corda, e Joãozinho tinha que ir à
frente para procurar o lugar onde vira as pegadas da onça e onde
atirara no amigo. Após muito errar de cá para lá, os astutos olhos de
caçador de Francisco descobriram um rastro de onça. Vitorino logo
ficou para trás, pois o ferimento doía. Joãozinho acompanhava o
rápido avançar dos irmãos que colocaram o cachorro na pista da onça.
Porém, logo Joãozinho estava sem fôlego e começou a diminuir o
passo. Agora, novamente o latido nervoso de Valente o incentivava a
acelerar o passo, pois talvez este e o animal selvagem estivessem no
encalço. Novamente instalou-se o silêncio... Joãozinho parou para
espreitar... Então ouviu à esquerda o murmurar do riacho e deu-lhe,
de repente, uma sede violenta pela refrescante água da montanha.
Através de bambus e arbustos baixos ele desceu a escarpa
se arrastando-se até chegar à margem daquele riacho pantanoso, cuja
água parecia muito escura por causa da sombra das árvores.
Joãozinho deitou-se no chão para beber, depois de encontrar um
lugar seco na beira do riacho. Em grandes goles engoliu aquela água
fresca e, então, pegou a espingarda que estava a seu lado e colocou-a
sobre o joelho direito. - “Como era escuro e frio aqui” -, pensou
olhando ao redor, - “é como num porão!” - Ele queria levantar-se
quando percebeu um leve estalar e um ruído do outro lado da espessa
mata.
Cuidadosamente
levantou
o
rifle,
colocando-o
silenciosamente à altura da face e cravou os olhos na direção onde
ouvira o leve estalar.
E quase não acreditava no que seus olhos viam. Lá do
outro lado do riacho movia-se, entre as plantas aquáticas, o esbelto
corpo manchado de uma onça de porte médio. Felizmente o vento
vinha da direção da onça e, também, Joãozinho estava escondido
184
entre o bambuzal de modo que a fera não poderia farejá-lo, nem
tampouco observá-lo. Silenciosamente, a fera arrastou-se até a
água...
Não havia dúvida, era um jaguar!...
Para fugir dos cães e dos caçadores ele procurara a água,
para
dissimular seu rastro e refrescar-se. Joãozinho via, através de
uma pequena abertura dos arbustos, como o jaguar levantava o
focinho de gato com barbichas, para farejar.
Joãozinho apontava o cano do rifle na direção da onça,
com muito cuidado, através dos pequenos espaços da folhagem densa,
enquanto esta visivelmente contrariada, andava no leito do riacho.
A aparição inesperada da fera foi tão repentina que
Joãozinho nem teve tempo de ficar nervoso.
Porém seu coração quase parou quando, vagarosamente,
moveu o dedo para apertar o gatilho. Viu-se uma faísca e o barulho do
tiro provocou um eco trovejante nas montanhas verdes... Todavia,
Joãozinho ouvira apenas o terrível grito do jaguar atingido. No instante
seguinte, viu que alguma coisa escura saltava sobre ele vinda da água.
Então sentiu uma forte dor no ombro, gritou e caiu desfalecido no
chão.
Alguns minutos mais tarde surgiu Valente, que estava na
pista da onça. Latia através do mato baixo saltando sobre o riacho
para atirar-se uivando sobre o jaguar morto que estava ao lado de
Joãozinho no bambuzal.
Francisco e Pedro também já desciam a densa escarpa,
saltaram a água e afugentaram o furioso cão de cima da fera morta.
Muito espantados, chamavam pelo irmão que parecia morto e cujo
ombro direito sangrava muito, dilacerado pelo último golpe do jaguar.
Pedro foi buscar água e umidecia o rosto pálido de Joãozinho
enquanto Francisco rasgava a camisa do ferido.
Logo ele abriu os olhos. - Eu acertei a onça? - murmurou
com voz fraca. Eles lhe mostraram o corpo do animal estirado a seu
lado. Joãozinho queria levantar-se, mas teve que desistir, pois através
do movimento a dor tornou-se quase insuportável. Porém, seu olhar
percebera a pele manchada da fera morta e um sorriso de orgulho
185
espalhou-se sobre suas feições pálidas. Então, sobreveio um novo
desmaio.
Francisco foi buscar ervas medicinais na floresta, e os
irmãos se ocuparam do ferido. Ele voltou novamente a si, a ferida
estava enfaixada, e deram-lhe um gole de vinho para fortificá-lo.
Quando Vitorino e alguns companheiros chegaram, ele já conseguia
sorrir e aceitar as palavras de elogio e reconhecimento. Eles ajeitaram
uma maca, com galhos, e carregaram Joãozinho até o acampamento,
apesar de sua resistência.
Ali recuperou-se, depois de um reforçado lanche, e pôde
então gozar da admiração de todos como era direito de um jovem
caçador de onças. Francisco e Pedro iniciaram logo o trabalho de
depelar a onça, a bela pele manchada, esticando-a sobre varas para
secar. Não era uma onça muito grande mas, mesmo assim, a pele
esticada media do focinho até o começo da cauda, um metro e quinze
centímetros e até a ponta do rabo mais de um metro e meio. (Agora
está enfeitando o assoalho do escritório de Joãozinho. Quem quiser ver
a pele pode ir até lá para ter certeza).
Uma parte dos caçadores partiu ainda no mesmo dia.
Porém, Vitorino, Pedro, Francisco e Belarmino ficaram com Joãozinho,
cujo ferimento requeria uma noite de descanso. Somente na manhã
seguinte puseram-se a caminhar das montanhas até a planície. Essa
caminhada e a cavalgada até o lar foram uma tortura para Joãozinho.
Mas, quando parecia sucumbir de dor, para que sua
resistência crescesse bastava olhar para Vitorino, a quem ele ferira, e
depois para a pele da onça, que carregava pendurada na sela como
troféu.
Ele e Vitorino foram recebidos pela mãe e irmãs com muita
festa e alegria, pois os caçadores que voltaram no dia anterior já
haviam relatado todos os acontecimentos. Joãozinho foi colocado
imediatamente na cama e chamaram o curandeiro Sebastião Ribeiro
que, preocupado, examinava o ferimento. Fez logo um novo curativo e
esclareceu que precisaria ficar ali, pois o ferimento parecia perigoso.
186
Vitorino ficou mais um dia apenas, pois as férias tinham
acabado. Na despedida, apertou a mão de Margarida, que estava
também no quarto de Joãozinho, e olhou-a longamente nos olhos azuis
escuros que brilhavam tão singularmente sob os negros cabelos da
testa e perguntou-lhe: - Posso voltar e perguntar-lhe uma coisa?
Quando Margarida, corada, respondeu-lhe que sim, deu um
grito saltando sobre o cavalo e, agitando o chapéu, partiu em
disparada.
Joãozinho
caíra
em
febre
alta.
Portanto,
precisava
permanecer algumas semanas em casa e recuperar-se aos poucos,
com os cuidados da mãe e a ajuda do curandeiro. Todos os vizinhos
vinham visitá-lo e admiravam a pele da onça que estava pendurada na
cabeceira da cama. Bento Damásio veio com Anita e ficou dois dias
com Joãozinho. Contudo, chegara finalmente a hora da despedida e
Joãozinho partiu para o planalto, totalmente recuperado.
187
XXII
A glória de Joãozinho na caçada. A partida para uma região
duvidosa. A chegada na fazenda. O administrador Fabrício.
Joãozinho é visto como espião. Estórias sinistras. A angústia. A
mangueira e os urubus. O cavalo empacador. Os perigosos
caminhos de cavalgada...
Joãozinho logo acostumou-se, novamente, com a vida em
Casa Branca. Vitorino narrara aos colegas de trabalho as aventuras
vividas por ele e Joãozinho durante a caçada. Todos riram muito,
porém invejavam Joãozinho pela bela pele de onça e pela glória.
Então chegou uma carta de Bark, na qual ordenava a
viagem imediata do jovem empregado. Havia também uma carta para
o administrador e diversos outros documentos que davam uma visão
geral do rebanho de gado e da administração, até o presente
momento, da Fazenda Lavrinha.
Para acompanhá-lo na viagem fora indicado Miguel, um
peão da Casa Branca, que conhecia o caminho para Rio Preto e que
também sabia lidar com gado. Tinha trinta e cinco anos, pele morena,
lábios escuros, cavanhaque, e tido como pessoa de confiança.
Antes da partida, Rodrigo chamou Joãozinho amigo em seu
escritório e disse-lhe: - O administrador é uma raposa. Eu não confio
nele. Ele deverá ter muita coisa para encobrir. Não se aproxime dele
dando ordens, mas sim modesto e submisso. Faça até de conta que
você é um pouco bobo. Mas mantenha olhos e ouvidos bem abertos!
Provoque pequenas irregularidades, amigavelmente, porém se você
descobrir falcatruas, antes de relatar ao Dr. Bark providencie as
provas!
Os dois viajantes cavalgaram por grandes campos, por
sombrias matas escuras, pernoitaram em casa de moradores da mata
e chegaram à fazenda Lavrinha na noite do terceiro dia de viagem. A
fazenda ficava numa solitária e escura região, que antigamente era
motivo de lutas entre Santa Catarina e Paraná. A neblina da noite
encobria a região. Melancolicamente chegavam aos dois os mugidos
188
lamentosos do gado, que se empurrava próximo de um cercado onde
havia uma poça de sangue de um animal há pouco abatido.
Joãozinho teve um pressentimento inquietante de desgraça
quando chegou, com seu companheiro, ao primeiro grande curral de
gado. A segunda cerca separava o gado das casas da fazenda. Miguel
desceu do cavalo e abriu a porteira da mangueira, fechando-a logo
depois que passaram, para que o gado que ali estava não escapasse.
Porém, um dos touros ficou enlouquecido, atirando longe a terra
com suas patas e colocando-se em posição de ataque com seus
imensos chifres.
Assim que passaram pela segunda porteira veio-lhes ao
encontro uma matilha de cães ferozes, latindo muito como se
quisessem arrancar os dois estranhos de cima de seus cavalos e
estraçalhá-los.
Uma voz forte, vinda da escuridão da grande casa,
ordenou aos cães que parassem. Em seguida, a voz dura perguntou
desconfiada: - Quem é? - Os dois recém-chegados responderam: Paz! Amigos! e Miguel disse: - Senhor Fabrício, nós somos de Casa
Branca!
Aproximaram-se da casa, ao lado da qual avistava-se um
pomar quase deserto com apenas alguns pés de pêssego e marmelo, e
desceram do cavalo sob a áspera ordem do administrador. Este os
convidou para entrar e
sentar, olhando-os cheio de suspeita. Gritou
para que lhe trouxessem luz e, imediatamente, veio um negrinho da
cozinha lá de fora trazendo uma lamparina de querosene, acesa, que
colocou sobre a mesa. Agora Joãozinho pôde ver que naquele grande
cômodo, além da mesa, havia apenas dois bancos de madeira, uma
cadeira de balanço e um pequeno armário. Nas paredes pintadas de
branco estavam pendurados muitos retratos de santos em uma das
paredes havia um laço enrolado e um par de botas de montaria, em
outra, diversos arcos e flechas de índios, armas, e penas de pássaros.
Enquanto os hóspedes tomavam o chimarrão, que logo
fora oferecido, o administrador Fabrício lia a carta de seu patrão, sob a
fraca luz do lampião.
189
Joãozinho observava como as rugas da testa e as
sobrancelhas do administrador se franziam ameaçadoramente e como
sua grosseira mão cabeluda amassava a carta, atirando-a sobre a
mesa. Inquieto, seus dedos grossos puxavam a fina barba ruiva e os
duros olhos negros pareciam perfurar a carta do patrão, que lia mais
uma vez. Então levantou a cabeça para examinar os dois intrusos, que
chamara, secretamente, de espiões, enquanto ria com ironia.
- No jovem e elegante empregadinho eu dou um jeito,
pensou O que ele entende de criação de gado? Esse eu espanto logo
daqui, depois que lográ-lo. E o outro é apenas um peão que não
manda nada.
Fabrício reprimiu seu ódio e procurou fazer uma cara mais
cortês. Com palavras amáveis, colocou a casa, os criados, sua pessoa
e família à disposição do "jovem senhor".
Com fisionomia muito alegre, chamou o negrinho e ordenou-lhe
que
providenciasse
água
quente
para
o
banho
dos hóspedes,
arrumasse o quarto para o jovem senhor e recomendasse à cozinheira
que preparasse um bom jantar. - Miguel, talvez prefira dormir com os
outros peões, não? - disse confidencialmente para o acompanhante de
Joãozinho.
Miguel
concordou
satisfeito.
Para
Joãozinho
era
desagradável ter que dormir sozinho naquela casa tão estranha e
inimiga, porém não queria mostrar-se medroso, já que não havia
motivo nenhum para receio.
Logo o jantar foi servido. O administrador fez companhia a
seu hóspede, enquanto Miguel comia junto dos outros peões, onde se
sentia mais à vontade. Após a refeição, Fabrício ofereceu a cadeira de
balanço, o lugar de honra para o jovem. Mas, Joãozinho recusou
humildemente e disse, com delicadeza, que o lugar de honra pertencia
ao
dono
da
casa,
que
o
superava
em
idade,
experiência
e
conhecimento. Ele era, apenas, um simples empregado.
Depois dessa atitude despretensiosa de Joãozinho, Fabrício
sentiu-se mais confiante. Começou, então, a falar da vida na fazenda,
ressaltando o trabalho pesado, os inúmeros perigos e privações que se
apresentavam ao administrador de uma fazenda desse tipo. Ele se
190
esforçava claramente para retratar a vida solitária daquela região o
mais terrível possível, para que o jovem hóspede não tivesse prazer de
estar ali. Para tanto, relatou-lhe como um touro bravo, no ano
passado, atingira um peão com os chifres e lhe furara as entranhas;
falou dos arruaceiros violentos da região que usavam qualquer
oportunidade para uma briga sangrenta, e de alguns companheiros
que odiavam e provocavam qualquer "senhor da cidade". Antes de se
separarem, contou-lhe
ainda de
um horripilante
homicídio
que
ocorrera numa das fazendas vizinhas, e do ataque de índios que
ocorrera recentemente.
Depois que ficou a noite toda relatando, propositadamente,
acontecimentos horríveis, conduziu o jovem hóspede por um corredor
coberto até uma pequena casa isolada, que ficava nas imediações de
sua casa. A casinha tinha apenas dois cômodos: um era o escritório e,
o outro, o quarto. As janelas eram de madeira e fechadas com
tramelas.
O administrador acendeu uma vela que estava sobre a
mesa e disse, observando o quarto: - Há dois anos o nosso patrão, Dr.
Bark, morou aqui. Depois disso ele não veio mais para Lavrinha.
Naquela vez, construiu-se esta casa especialmente para ele. Agora
serve como quarto de hóspedes.
Tossiu um pouco e acrescentou, hesitante: - Alguns dos
hóspedes afirmaram que aqui apareciam fantasmas. Quem vai
acreditar nisso, não é mesmo? Bem, boa noite! - Dizendo isto, saiu da
pequena casa e dirigiu-se para a área externa que levava ao corredor.
Joãozinho pegou o lampiãozinho e examinou os dois
cômodos, a porta de saída e as duas janelas. Verificou também se sua
bolsa, com os livros, os documentos e as roupas, já estava ali. Tirou o
revólver da bolsa e colocou-o embaixo do travesseiro. Só então deitouse na fria cama de armação de ferro. Estava muito cansado e mal
humorado, pois sentia-se abandonado e ameaçado aqui nesta fazenda
solitária. Sentiu saudade de seu quarto acolhedor em Casa Branca, e
também uma profunda falta de sua mãe. Por um instante pensou ouvir
um barulho, o que o fez ficar à espreita, olhando ao redor. No entanto,
191
era apenas o mugido melancólico do gado que ecoava em seu quarto,
provocando-lhe vontade de chorar.
Porém, reuniu suas forças e pensou: - Você não é um
covarde e nem um traidor! Coragem, tudo vai dar certo!- Então
esforçou-se em afugentar os pensamentos tenebrosos e trocá-los por
outros alegres, e luminosos, para que pudesse vencer essa batalha,
como aprendera com Rodrigo. Antes de dormir, fez sua oração,
pedindo a Deus que lhe desse força e coragem para enfrentar essa
situação difícil. Ficou acordado ainda por muito tempo nesta noite, mas
acordou bem disposto pela manhã.
Levantou, lavou-se, e enquanto se vestia olhava pela
janela aberta. Na mangueira, ao lado da casa, alguns peões
seguravam três vacas leiteiras no laço, enquanto a mulher e a filha do
administrador, agachadas, numa posição desconfortável, ordenhavam
as vacas. Joãozinho pensou consigo: - Que dificuldade! Eles não
poderiam acostumar as vacas na cocheira com comida e as duas
mulheres sentarem-se num banquinho enquanto tiram o leite, como lá
em casa? - Nas cumeeiras do telhado pousaram alguns urubus
esperando por uma presa. As galinhas cacarejavam e uma pequena
vara de porcos se acercava do negrinho que aparecera com o milho.
Joãozinho dirigiu-se para a casa principal onde Fabrício o
cumprimentou com gracejos, antes de, juntos, tomarem o café da
manhã. Quando as mulheres entraram com o leite, Fabrício apresentou
sua mulher, Rosa, e as duas filhas, Miloca, de quatorze, e Adelaide de
dezesseis anos. Os filhos, Sérgio e Nestor, estavam, segundo ele, já
há muito tempo com os peões no campo para reunir o gado.
Joãozinho trocou algumas palavras amáveis com a gorda e
morena Rosa e também com suas belas filhas bem mais claras que a
mãe.
Em seguida, um dos peões apareceu diante da porta com
dois cavalos selados. - O jovem senhor deverá ver tudo! - disse
Fabrício rindo. - Quero lhe mostrar a fazenda toda, pedaço por pedaço,
como o patrão ordena em sua carta. Então você poderá relatar ao Dr.
Bark que encontrou tudo na mais perfeita ordem e que o velho Fabrício
ainda está em forma.
192
Dizendo isto, saiu e saltou sobre o grande cavalo branco. A
Joãozinho coube o bonito alazão. Contudo, mal encostara o salto da
bota no flanco do animal para que seguisse o cavalo branco, quando o
alazão levantou as pernas da frente, ficando em pé nas traseiras, e
começando a girar.
Se Joãozinho não fosse um cavaleiro treinado, teria caído
do animal, com sela e tudo, e seria alvo de muitas risadas.
Escolheram-lhe
o
cavalo
empacador
intencionalmente
para
que
perdesse a vontade de cavalgar para vistoriar a fazenda.
As mulheres estavam na porta rindo e esperando pelo
espetáculo que deveria acontecer.
Em Casa Branca, Joãozinho teria dado um jeito num animal
teimoso assim, mas aqui, numa região estranha, onde ele era visto
como inimigo, julgava uma grande perda de tempo tentar fazer o
animal mudar de idéia. Sabia, por experiência, que seria quase
impossível fazer um animal empacador moderar-se.
Assim, acariciou calmamente o gordo pescoço do alazão,
desceu e disse para o irônico Fabrício: - Dê-me, por favor, um cavalo
de montaria que não tenha maus costumes, senão vou com meu
próprio cavalo ou a pé!
- Sim, claro, eu pensei que você fosse um bom cavaleiro -,
disse o administrador com raiva. Então gritou para o negrinho, que
sorria ironicamente: - Traga o cavalo de dona Adelaide! O cavalo de
uma mulher deve ser suficientemente manso para o jovem senhor,
não?
O negrinho trouxe o cavalo e Joãozinho colocou-lhe a sela
e subiu mal humorado no animal. Porém o cavalo andava num bom
passo.
O administrador foi à frente e cruzou a verde campina,
tomando o caminho que levava às altas montanhas limítrofes. Havia
alguns trechos em que era extremamente perigoso cavalgar. Subiam e
desciam escarpas íngremes no meio da densa mata, cavalgavam por
áreas pantanosas, por escorregadios rochedos, sobre raízes nodosas e
troncos caídos. Algumas vezes, o cavalo chegava a tropeçar, ficar
preso na lama, ou até se enrolar nas plantas trepadeiras e raízes.
193
Joãozinho, que percebera imediatamente que a intenção do
administrador era fazê-lo desistir, diante dos perigos e da fadiga, disse
com raiva que iria alertar o Dr. Bark sobre os terríveis caminhos de
sua fazenda.
- Mas eu queria lhe mostrar as divisas, - desculpou-se
Fabrício e desviou agora em direção ao campo, onde era mais fácil
cavalgar.
Ali, no capim alto, o belo gado pastava por toda parte.
Então avistaram pequenos grupos de cavalos.
- Veja tudo muito bem! - gritou o administrador, - e tome
nota direitinho de quanto gado existe!
-
Mande
todo
dia
tocar
alguns
rebanhos
para
as
mangueiras, - sugeriu Joãozinho. Só então eu vou poder avaliar
quanto gado há.
Fabrício, enfurecido, começou a mastigar as pontas do
bigode ruivo, calando-se. Porém, depois que se acalmara, disse rindo:
- Mas é uma trabalheira o que o jovem senhor exige, mas será feito!
Dr. Bark ficará satisfeito com seu velho e fiel administrador.
194
XXIII
A Fazenda Lavrinha. A criação de gado. A invernada. Os cochos
de sal grosso para o gado. O berne. O laço em atividade. Os
bezerros marcados a ferro quente. Os peões. Os agregados. As
artimanhas do administrador. As estações de chuva e a
contabilidade...
Enquanto o tempo continuava bom, eles cavalgavam todos
os dias pela fazenda. Fabrício relatava que a Fazenda Lavrinha tinha
uma área de doze mil hectares. Pastavam nos campos mais de mil
cabeças de gado bovino e mais de duzentas cabeças de cavalos e
burros.
No inverno, quando a grama secava no planalto devido às
geadas, o gado era levado para as invernadas, uma pastagens
cercadas. Nestas pastagens havia, mesmo no inverno, criciúma ou
caracá, suculenta graminácea e colmo, onde o gado pode saciar sua
fome. Nos dias ensolarados de inverno, punha-se fogo no campo seco
que rebrotava logo nos primeiros dias de primavera até que todo o
campo estivesse verdinho. Então, retirava-se o gado da invernada e
soltava-se novamente no campo.
Cada rês trazia na anca a marca de seu proprietário, sinal
de reconhecimento, pois às vezes alguma cabeça atravessava para a
fazenda vizinha, perdendo-se ou não aparecendo por muito tempo.
Com as marcas, era possível reconhecer um animal mesmo depois de
anos, o que era muito importante quando havia roubo de gado.
Joãozinho verificava se realmente os cavalos, bois, vacas e
mulas tinham a marca NB, que eram as iniciais de Norberto Bark.
Todos os dias passavam pelos bretes, espalhados pelos
cercados da fazenda, rebanhos inteiros de gado. Os peões, munidos de
laços, com os
chapéus de aba larga atirados na nuca, corriam
montados em seus cavalos, perseguindo os animais, tocados pelos
cães, e que não queriam entrar no cercado. Em grandes troncos
escavados e colocados sobre cavaletes estava o cobiçado sal para o
195
gado lamber. Com essa atitude os rebanhos foram, aos poucos, se
acostumando com as mangueiras.
Algumas vacas e bois tinham uma aparência horrível, pois
seu
pêlo
apresentava
sangrentas
feridas
com
vermes.
Estes
originavam-se de uma mosca de cujos ovos nasce o berne que entra
na pele do animal. O animal poderá mover-se esses ferimentos, que
parecem formigar de vermes não forem tratados com Lysol, mercúrio
ou algum remédio parecido.
Os animais atacados pelo berne eram laçados e atirados
cuidadosamente no chão, segurados por vários peões, até que a ferida
fosse limpa e tratada. Isto era feito nas mangueiras.
Da mesma forma, o gado era reunido nas mangueiras,
para que os bezerros fossem marcados ao passarem pelo brete.
As iniciais feitas de ferro, fixadas num cabo de madeira,
eram aquecidas até ficarem em brasa, para então marcar-se a traseira
do animal que se estrebuchava no chão. Então, no local queimado
colocava-se sebo ou esterco de vaca soltando, em seguida, o trêmulo
animal que, num salto, se misturava ao rebanho. Os rudes peões de
gado afirmavam que essa queimadura não doía muito no gado.
Joãozinho
prestava
atenção.
Procurava
guardar
exatamente o número de animais marcados ali, a cor, a aparência e o
número de animais reunidos nas mangueiras. Logo percebeu que o
administrador Fabrício apresentava alguns rebanhos duas, e até três
vezes, em cercados diferentes, para fazê-lo acreditar que eram sempre
outros rebanhos. Assim, o jovem empregado veria um número de
gado que na realidade não existia.
Na presença de Fabrício, Joãozinho não anotava nada, e
também não fazia nenhuma crítica, pois recordava-se das palavras de
Rodrigo quando disse que o administrador era uma raposa. Somente à
noite em seu quarto, depois que fechava a porta e as janelas, anotava
o que observara e o número real de gado jovem e velho. Também
calculava e comparava suas anotações com os documentos que
recebera do patrão. Convencia-se, aos poucos, de que o administrador
lograra seu patrão em centenas de cabeças de gado. Mas onde estava
o gado que faltava? Não poderia aparecer ainda, no final? Fabrício não
196
poderia esconder essas cabeças intencionalmente e, depois que ele
entregasse seu relatório ao patrão, fazê-las surgir novamente para
retratá-lo como mentiroso ao patrão? Isto dificilmente aconteceria.
Mas, então, que coisa suspeita estava acontecendo ali?
Assim, uma semana já se passara e o administrador se
irritava secretamente, pois não havia "bisbilhotado" e "espionado" o
suficiente. Será que o "Jovem infante" não iria mais embora?
Joãozinho, ao contrário, parecia ter tomado gosto pela vida
da fazenda. Observava os peões quando enrolavam e atiravam o laço
e procurava imitá-los. Ficava atento quando os peões, a galope,
perseguiam um touro com os laços, prendendo-o pelos chifres, e então
virando o cavalo para que se encostasse contra o laço fazendo com
que o animal parasse, sem cair. Joãozinho também ajudava os peões
nos demais serviços, quando tinha tempo. Os filhos do administrador
viam com má vontade como os peões gostavam do jovem empregado.
Nunca se permitia que o "espião", como chamavam
Joãozinho, perambulasse sozinho pela fazenda. Como Joãozinho
gostaria de estar sozinho às vezes, sem a maçante companhia, para se
deitar na relva e poder ouvir o sussurrar do vento nos pinheiros, ou
caminhar a pé pela floresta. Ele percebia que não queriam dar-lhe
oportunidade de falar a sós com os peões e agregados.
Nas vistorias pela fazenda, Fabrício e o jovem empregado
paravam algumas vezes na casa de algum agregado para descansar.
Os agregados moravam em miseráveis cabanas espalhadas pela
fazenda e cada um deveria tomar conta de uma área de pasto com
gado. Alguns eram casados e tinham filhos. Ganhavam pouco e todos
tinham, perto da casa, uma pequena plantação da qual viviam.
Uma tarde, Fabrício e seu acompanhante pararam na
choupana de um agregado que se chamava Candido Borges. O
administrador cumprimentou o subordinado de maneira muito mais
amigável do que fizera com os outros agregados. Joãozinho admiravase como Fabrício agia confiantemente com este simples habitante da
mata, chamando-o de amigo e brincando com seus filhos. Já ontem,
tratara de modo rude e repulsivo o agregado Felesbino Lammin, que
197
parecia muito inteligente, chegando mesmo a ameaçá-lo com o
chicote.
Entraram na cabana. Fabrício foi logo deitando com as
botas sujas na rede que também não parecia limpa. Joãozinho sentouse num banquinho de madeira.
O submisso Candido Borges ofereceu a seus hóspedes
cigarros de palha de milho, chimarrão e, por último, um cafezinho
forte com bolo de milho.
Joãozinho arrastou seu banquinho até perto da rede, onde
estava o banco que servia de mesa, e comeu com prazer o que lhe
ofereceram. Nesse instante, percebeu casualmente quando Fabrício
piscou para o dono da casa. Em seguida, ambos deixaram a choupana
pela porta de trás para ali ficarem cochichando.
Quando entraram novamente, Fabrício despediu-se com
familiaridade do pobre agregado. No caminho para casa explicou a seu
acompanhante que o agregado o chamara de lado para pedir-lhe um
dinheiro adiantado.
Joãozinho não disse nada, mas crescia sua suspeita em
relação ao administrador.
Na
manhã
seguinte
chovia
forte.
Tudo
brilhava
de
molhado, e dos telhados de ripa a água caía como uma cachoeira
sussurrante. Os filhos e os peões de Fabrício não podiam trabalhar
num tempo desses. Assim, jogavam baralho, fumavam e contavam
piadas ao redor do fogo do paiol. Miguel, o companheiro de viagem de
Joãozinho, que há muito fizera amizade com eles, também estava ali.
Joãozinho ouvia-lhes as altas risadas.
Após o café da manhã, pediu ao administrador os livros de
contabilidade da fazenda.
- Os livros?...- bradou Fabrício, - eu só tenho um livro...,
no qual eu anoto tudo quanto foi vendido, o que morreu e o que foi
roubado pelos bugres. Anotar mais do que isto não é necessário. Então,
levantou a voz, alterado: - Você inspecionou todo o gado
pessoalmente, o que pode haver nos livros para ser bisbilhotado, hem?
Eu não aconselharia isso a ninguém, meu amigo, senão...- Aproximou-
198
se ameaçador do jovem e olhou-o com grande ódio. Este desculpou-se
humildemente, porém só estava seguindo as ordens do patrão.
- Por mim! Nem ligo resmungou Fabrício e entrou no
quarto.
- Tome... pegue o livro! - disse saindo novamente do
quarto, e estendeu ao rapaz um livro sujo, de capas rasgadas.
Joãozinho recolheu-se a seu quarto e passou o dia inteiro
comparando os registros de Fabrício com suas anotações. Ficou ali,
calculando e anotando, tudo com a cabeça quente.
Quanto mais se aprofundava no trabalho, mais claro ia-lhe
ficando que Fabrício enganara seu patrão de maneira vergonhosa. A
seguir, começou a fazer um relatório preciso de sua atuação e
observações durante o tempo que estava ali. Terminou o trabalho de
madrugada, depois de queimar as duas velas que estavam sobre a
mesa.
Durante toda a noite, a chuva caíra sobre o telhado de
ripas de sua casinha. Porém, na manhã seguinte, o sol brilhava
novamente sobre os telhados molhados e as poças d'água do quintal.
Os urubus formavam uma longa fileira no telhado, esticando suas asas
para secar.
Joãozinho, antes de tomar café, chamou seu companheiro
Miguel e pediu-lhe que selasse o cavalo para despachar a carta com o
relatório escrito durante a noite, para o Dr. Bark, em Curitiba.
Joãozinho preferia ir junto com Miguel, mas alguma coisa o
retinha ali. Não sabia se era apenas seu senso de responsabilidade ou
uma ânsia secreta em descobrir a artimanha do administrador. De
qualquer maneira, queria aguardar a resposta da carta e eventuais
novas ordens de seu patrão, antes que desse seu trabalho por
encerrado.
Assim que Miguel estava pronto para partir, Joãozinho
selou seu cavalo também. O administrador aproximou-se rapidamente
e perguntou um pouco alegre, um pouco surpreso: - O que significa
isso? Vocês querem voltar para casa hoje, sem que a gente tivesse
feito uma despedida para vocês?
199
- Não - disse Joãozinho rindo - Miguel vai sozinho. Ele tem
muito mais trabalho lá do que aqui. E também não vai demorar muito,
até que eu também vá embora para cuidar dos meus afazeres
costumeiros. Agora, quero acompanhar Miguel por um trecho do
caminho. Ele está levando um pedaço do churrasco de ontem para a
viagem. E, também, no caminho tem muitos conhecidos e poderá
comer nas casa deles.
- Espere um pouco - disse o administrador. - Eu vou
acompanhá-los. Joãozinho, contrariado, teve que esperar com Miguel
até que Fabrício selasse seu cavalo. Assim, os três cavalgaram em
direção ao campo livre que se estendia após os cercados da fazenda.
200
XXIV
A fazenda vizinha. A suspeita de Joãozinho em relação a
Fabrício se confirma. Ele treina arremesso de laço. O fantasma
noturno. A armadilha do fantasma. O fantasma é surrado...
Os
dois
acompanharam
Miguel
através
do
úmido
e
cintilante campo verde, do bosquinho gotejante da água da chuva, da
colina verde, passando pelos bretes das mangueiras até chegarem à
estrada principal, ao lado da fazenda vizinha, que pertencia ao velho
Bueno.
No verde gramado pastavam cavalos e vacas. Ao fundo
levantava-se, sério e majestoso, um bosque de pinheiros.
Fabrício tentou por diversas vezes fazer com que seu
jovem
hóspede
retornasse,
e
Joãozinho
compreendeu
que
o
administrador não iria deixá-lo, nem um instante, sozinho com Miguel.
Assim, parou e despediu-se do companheiro.
Joãozinho e Fabrício pararam seus cavalos bem diante da
casa da fazenda vizinha. O velho Bueno, um homem alto de quase
setenta anos, estava de pé, de chinelos, na entrada da porteira. Sob
seu chapéu de aba larga destacavam-se espessas sobrancelhas, e um
par de olhos inteligentes brilhavam. Quando viu Miguel se afastar,
chamou os dois acompanhantes: - Olá, vocês não vão passar, sem ao
menos tomar um chimarrão comigo, hem?
Fabricio queria um pretexto para continuar a cavalgada,
porém Joãozinho desceu do cavalo, aproximou-se e estendeu a mão
ao velho homem. Assim, Fabrício teve que seguir seu exemplo,
sorrindo.
Conversando, eles aproximaram-se da casa e subiram os
degraus que levavam à varanda. Sentaram-se num banco de madeira
e, a um chamado de Bueno, um jovem trouxe a chaleira com água
quente, a cuia com o verde mate e a bombilha prateada. Todos, um
após o outro, sorveram satisfeitos aquela bebida quente e amarga.
O velho fazendeiro perguntou a Joãozinho pelo Dr. Bark,
que não via há dois anos. Enquanto conversavam, saiu da casa
Tibério, o filho do velho Bueno, que cumprimentou os hóspedes e disse
201
a Fabrício: - Que bom que eu o encontrei. Preciso falar um instante
com você, a sós. Vamos até a sala!
- Não podemos conversar aqui? - replicou Fabrício.
- Não, não, venha! É só por alguns minutos! - disse
Tibério, e pegou o administrador pelo braço levando-o consigo.
Mal a porta se fechara atrás dos dois, o velho Bueno
curvou-se sobre o jovem hóspede e cochichou-lhe ao ouvido: - Muita
coisa não está certa lá na fazenda, hem? - Joãozinho balançou a
cabeça, sombrio.
- Eu já esperava por isso - disse o velho Bueno. - Eu já
teria escrito uma carta, há muito tempo, para meu vizinho, o Dr. Bark,
para dizer-lhe como seu administrador está agindo. Porém com as
coisas escritas a gente deve tomar muito cuidado! Eu estava
esperando que o vizinho viesse, pessoalmente, de Curitiba.
- O senhor sabe alguma coisa da administração de
Fabrício? - perguntou Joãozinho baixinho, olhando assustado para a
porta que permanecia fechada.
- Bem, eu aposto que Fabrício não anotou em seu caderno
de registro as duas boiadas de gado que levou, no ano passado e
neste, para as colônias alemãs de São Bento e Joinville. Passou com as
boiadas aqui à noite. E também não deve ter registrado os cavalos e
mulas que vendeu para São Paulo, passando aqui por Rio Negro. O
velho cuspiu fortemente e prosseguiu: - Seus condutores de gado são
os filhos, mas o mediador dos negócios é seu agregado Cândido
Borges... Converse com o outro agregado Felesbino Lammin... psiu!
A porta se abriu. Fabrício entrou na varanda, seguido de
Tibério, lançando um olhar indagador para o velho Bueno que,
inocentemente, se preocupava agora em despejar água quente na
cuia.
- Vamos, vamos! - disse Fabrício pegando seu jovem
acompanhante pelo braço e conduzindo-o para a saída.
Para
não
levantar
suspeitas,
Joãozinho
levantou-se,
despediu-se do pai e do filho e dirigiu-se até seu cavalo. Então, voltou
com o administrador para a fazenda.
202
Durante o dia acabou ajudando a reunir o gado, treinou o
arremesso de laço e assistiu ao abate de uma gorda cabeça de gado.
À noite dirigiu-se, cansado, para seu quarto, onde logo se
deitou.
Não sabia ao certo quanto tempo dormira, quando foi
despertado por um ruído estranho. Parecia que alguém empurrava de
fora as janelas de madeira. Então ouviu um gemido horrível.
- Talvez sejam gatos - pensou Joãozinho, e deitou-se
novamente. Contudo, sentiu-se envergonhado ao constatar que seu
coração disparara. De repente, ouviu três batidas surdas em sua
porta: - Toc, toc, toc!
Joãozinho levantou-se devagarzinho, pegou o revólver e foi
até a porta. Então, ouviu as batidas bem de perto: - Toc, toc, toc! e
um gemido terrível.
O
jovem
lembrou-se
rapidamente
das
estórias
de
assombração que o administrador lhe contara. E, apesar de não
acreditar em fantasmas, sentia que isso o assustava. O que deveria
fazer? Ele se atreveria a abrir a porta e sair para verificar? Seu coração
parecia querer saltar do peito. E, novamente, ressoaram os passos e o
gemido seguido de três batidas solenes na porta, como se uma pobre
alma não pudesse encontrar a paz eterna.
- Mas que besteira! - murmurou Joãozinho, com raiva de
seu pavor, afastando-se da porta. Ele precisava pegar o fantasma,
custasse o que custasse, pois do contrário não teria paz! Com muito
cuidado, apoiou o pé na porta, que abria para dentro, empurrou a
tramela devagarzinho, abrindo um pouco a porta e olhou, através da
pequena abertura, lá para fora. Porém, rápido como um raio, fechou
novamente a porta, pois lá fora flutuava um fantasma vestindo
mortalha, em cuja caveira de dentes arreganhados, brilhava uma
pequena luz mágica.
O jovem estava assustado, atrás da porta de seu quarto
escuro, tremendo dos pés à cabeça.
Todavia, logo reagiu e disse a si mesmo: Para pessoa
corajosa não existem fantasmas! E então veio-lhe a suspeita de que a
assombração era planejada por um ser vivo para assustá-lo. Este
203
pensamento sobrepôs-se ao medo e despertou nele uma raiva
silenciosa.
Muniu-se de coragem, segurou o revólver pronto para
disparar à sua frente e abriu a porta com um empurrão...
O corredor ao lado, por onde o fantasma flutuara, estava
vazio. Com a luz das estrelas, Joãozinho viu a parede da casa do
administrador, do outro lado, e sussurrou para si: - Meu Deus, se eu
tivesse atirado no fantasma!... A bala atravessaria a parede de
madeira do quarto da família do administrador... E o que poderia ter
acontecido!...
Fechou novamente a porta e deitou-se. Ficou acordado por
muito tempo antes de adormecer.
No dia seguinte, não disse nada do que lhe acontecera a
ninguém, pois não confiava em ninguém aqui e sentia-se como se
estivesse entre inimigos.
Então começou novamente a chover forte e todos tiveram
que ficar dentro das casas ou galpões.
Joãozinho passou a maior parte do dia deitado em seu
quarto, inquieto e pensativo. Tentava arrumar um jeito de pegar o
autor do fantasma.
Após o jantar com Fabrício e os filhos, foi até seu quarto
pelo corredor lateral que era aberto e recoberto de ripas. Então teve
uma idéia. Aguardou em seu quarto, sem luz, por umas duas horas,
até que tudo estava em silêncio e no escuro, tanto na casa do
administrador quanto nos ranchos. Então saiu sorrateiramente para o
corredor, onde estendeu um laço, na altura de uns 30 centímetros,
amarrando-o num dos postes que sustentavam o telhado do estreito
corredor. Assim, o laço estava armado
acima do assoalho e na
escuridão da noite representava um obstáculo, sobre o qual alguém
que se aproximasse desprevenido tropeçaria e, fatalmente, cairia.
Depois que esticara o laço e prendera firmemente suas pontas, dirigiuse para seu quarto, onde pegou o relho, que tinha um cabo grosso de
madeira, e pôs-se a espreitar através da fresta da porta...
Por volta da meia-noite, ouviu um ruído... Então seu
coração começou a bater com mais força. Porém, forçou os olhos sob a
204
luz das estrelas e viu que o mesmo fantasma da noite anterior, se
aproximava. A mortalha brilhava com uma fraca luz vinda de dentro da
caveira... Com horror, Joãozinho viu quando a figura branca parou e,
após um pequeno titubear, dirigiu-se pelo corredor até a porta de seu
quarto. A horrível aparição se aproximava deslizando... e daí... pum!...
um tropeçar sobre o laço que estava bem esticado... a caveira
iluminada caiu ao chão fazendo barulho e a figura fantasmagórica
agitava os braços procurando alguma coisa em que se segurar
enquanto caia desajeitadamente no chão. Ouviu-se então um gemido e
um praguejar reprimido.
No instante seguinte, Joãozinho já estava do lado de fora e
batia com seu relho na figura que se debatia e que tentava,
inutilmente, levantar-se.
Os fortes golpes fizeram com que a assustadora figura
começasse a gemer alto. Joãozinho arrancou o lençol branco do
fantasma que se retorcia no chão e reconheceu, sob a pálida luz das
estrelas, o rosto magro de Nestor, o filho do administrador.
-Pare senhor Joãozinho! - gemia ele, tentando desviar-se
dos golpes com os braços, - era apenas uma brincadeira!
Joãozinho deixou que ele se levantasse e tocou-o dali com
mais dois golpes. Levantou a caveira, que parecia ser de um índio
morto, mas a pequena vela que estava no interior tinha-se apagado.
Na manhã seguinte, o administrador disse-lhe que ouvira
falar da brincadeira que Nestor fizera com ele. Ele não achava justo
esse tipo de brincadeira com os hóspedes, mas Joãozinho também não
precisaria ter batido com tanta força.
O jovem hóspede calou-se mal humorado. Ele sabia muito
bem que Nestor tramara a estória do fantasma com aprovação do pai,
a fim de afugentar da região o "bisbilhoteiro" desprezado. Porém, por
mais que se sentisse inquieto, resistiria até que seu patrão o
dispensasse daquele serviço horrível.
Nestor, entretanto, não deu as caras por alguns dias, pois
estava todo roxo das pancadas e seu rosto estava muito inchado.
205
XXV
As tentativas frustradas para uma explicação. Joãozinho tenta
se furtar da situação. Ele é alcançado. Os índios. Os bois
mortos. As trilhas de bugres. O assalto dos selvagens. O buraco
do tatu. O acidente de Fabrício. Joãozinho, na tentativa de fuga,
encontra o acampamento dos bugres. Nestor...
Mais três dias se passaram e Joãozinho continuava, aflito,
na
fazenda.
Duas
vezes
tentou
se
afastar
secretamente
dali,
arrastando-se pelo campo até a estrada, pois gostaria muito de
conversar mais uma vez com o velho Bueno. Contudo, todas as
tentativas para ser bem sucedido em seu empreendimento se
frustravam, pois Fabrício, que esperava impaciente a partida do
espião, não permitia que este se encontrasse com outras pessoas.
Agora Joãozinho queria tentar encontrar o agregado
Felesbino Lammin e falar-lhe em particular. O velho Bueno chamara
sua atenção justamente para este agregado e Joãozinho percebera,
pessoalmente, que Felesbino era um estorvo na vida do administrador.
Provavelmente o inteligente agregado sabia mais do que convinha ao
administrador. Na mangueira perto da casa, geralmente o ambiente
era muito silencioso na hora da sesta, após o almoço. O administrador
costumava então fazer uma curta pausa para evitar o sol mais quente
do dia. Joãozinho aproveitou justamente aquela hora, quente e
silenciosa do sexto dia após a partida de Miguel, para escapulir pela
parte de trás de sua casa. Sem ser visto, chegou ao campo livre sobre
o qual o calor do meio dia cintilava. Caminhou a passos largos com o
revólver e faca no cinto, esperançoso de agora alcançar seu objetivo.
Já percorrera metade do caminho que levava à cabana de Lammin,
sempre atento para ver se não estava sendo seguido, quando viu o
administrador surgir, a galope, por detrás de uns arbustos.
- Diabos! - murmurou o furioso jovem, enquanto enxugava
o suor do rosto. Parou, esperando que o cavaleiro se aproximasse,
pois sua tentativa agora seria inútil.
206
Logo o administrador parou o cavalo branco ao lado de
Joãozinho e falou-lhe preocupado: - O senhor sabe o perigo que está
correndo, seu João, andando sozinho, e ainda a pé, aí pelo campo!
Joãozinho olhou-o interrogativamente e Fabrício continuou
enquanto enxugava o suor do rosto: - Eu não queria lhe dizer, para
não assustá-lo, mas o senhor está me forçando... os bugres estão aí
de novo.
Joãozinho estremeceu levemente e deu uma olhada na
região erma em que se encontrava. Porém, lembrou-se das estórias de
fantasmas e sorriu, gozador. Na certa o administrador queria afastá-lo
dali definitivamente com esse novo plano apavorante.
- Não ria - disse Fabrício muito sério.- Provavelmente sua
vontade de rir passaria bem depressa! Esta noite, os índios cercaram e
atacaram a cabana do agregado Cândido Borges. Bombardearam o
telhado e as paredes com pedras e pedaços de madeira. Felizmente,
Cândido Borges estava em casa e ele e sua mulher deram alguns tiros
nos selvagens, fazendo com que fossem embora.
- Hoje de manhã mandei percorrer a área. Encontramos
restos de dois bois gordos, que
foram abatidos pelos índios.
Acompanhe-me que lhe mostrarei o local, pois não estamos longe
dele!
Ainda duvidando, Joãozinho seguiu o administrador, que
tomou o caminho da direita. Passaram por um pequeno capão de mata
e chegaram ao campo livre.
Ali estava a carcaça de um boi, que tinha apenas alguns
restos de carne na barriga e no pescoço. No couro cheio de sangue do
pescoço estava fincada uma flecha de índios, de um metro e meio
mais ou menos. O índios levaram, certamente, a maior parte da carne
deixando o resto para ser disputado entre os negros urubus e os
cachorros. Joãozinho observava tudo em silêncio.
- Agora olhe ali! - gritou o administrador e mostrou, com o
chicote, um pedaço de terra sem grama. - O senhor está vendo as
pegadas dos bugres? Os dedos grandes dos pés com os quais os índios
armam o arco. Nisto, reconhece-se imediatamente o rastro dos
bugres.
207
Joãozinho ficou sério e agachou-se no chão. Realmente,
eram pegadas de índios! A flecha também era verdadeira. Não, desta
vez o administrador não estava fingindo! O perigo que um ataque de
índios significava era assustador. Joãozinho lera nos jornais, e ouvira
conhecidos contarem, que os bugres preferiam atacar ao raiar do dia
ou na hora quente e silenciosa após o almoço.
Assim,
Joãozinho
gostou
que
Fabrício
lhe
fizesse
companhia, a cavalo, até a cabana de Cândido Borges. Enquanto
caminhavam, olhavam para todos os lados, para se assegurarem de
que os bugres não os estavam espreitando escondidos no capim alto.
Encontraram o agregado e sua mulher muito preocupados
e pediram que lhes contassem mais uma vez como ocorrera o ataque
da noite anterior. Cândido Borges descrevia tudo gesticulando muito, e
Joãozinho o acompanhava com olhos arregalados.
Fabrício bateu-lhe nos ombros. - O senhor não deverá
permanecer por mais tempo na fazenda, seu João! - disse preocupado.
- Eu não posso permitir que um empregado de meu patrão, tão capaz,
corra risco de ser morto pelos índios!
Joãozinho olhou para o chão e não sabia o que dizer.
Fabrício continuou dizendo: - E, de qualquer modo, alguém
precisa ir imediatamente para Curitiba, a fim de informar o patrão que
bugres invadiram suas terras e que estão roubando gado e ameaçando
vidas humanas. Alguém precisa lhe contar o prejuízo que os bugres
causaram nos últimos dois anos. Isto não está anotado no meu livro
de registro mas o senhor foi testemunha... Quem eu poderia mandar
agora para lá, já que preciso de todos os homens que sabem atirar
para defender a fazenda e resistir aos ataques, hem? Seu João, o
senhor precisa ser o mensageiro...
Nesse momento, lá fora, dois cachorros começaram a uivar
alto, sem motivo aparente, e entraram na cozinha correndo, trêmulos
e de cauda encolhida. O cavalo do administrador fungava tão nervoso
que acabou se soltando e saindo dali em disparada.
Em seguida, ouviu-se um horrível uivo indescritível vindo
da mata próxima, fazendo com que todos estremecessem. Joãozinho
ficou pálido de susto.
208
- Os bugres! Os bugres! - gritavam Fabrício e Cândido,
levantando-se rapidamente e pegando suas armas. - Eles deram seu
grito de guerra! Agora é uma questão de vida ou morte!
E já voava uma chuva de pedras e de paus sobre o telhado
de ripas e sobre as tábuas da cabana, seguida do mesmo grito
horripilante que a todos apavorava.
Fabrício
viu
como
tremia
o
revólver
que
Joãozinho
segurava na mão e disse-lhe: - Tome a espingarda! Com ela você
poderá mirar melhor, já que sua mão está tremendo! Me dê o
revólver! - Dizendo isso empurrou a espingarda de um cano só nas
mãos do jovem e arrancou-lhe o revólver. Cândido Borges e sua
mulher também estavam armados, e as crianças estavam trancadas
no quarto.
- Ali, ali, o senhor está vendo? - gritava o administrador
com os olhos esbugalhados indicando uma fresta nas tábuas, por onde
Joãozinho podia ver um bando de bugres nus dançando, armados, a
dança de guerra. - Atire! Depressa! Depressa! - e já o revólver de
Joãozinho que estava em suas mãos disparava.
Joãozinho mirou, não muito seguro, um índio gordo e forte
que se aproximava mais e disparou. Porém sua espingarda falhou.
Ouviu-se apenas o estalar do gatilho. Contudo, o índio percebera o
perigo e recuara.
Agora ecoavam também os tiros que Cândido Borges e sua
mulher disparavam contra os índios. Duas figuras nuas caíram no chão
e, com um uivo horrível, os índios arrastaram consigo, os dois feridos.
- Que sorte que os senhores vieram bem na hora! - disse
Cândido Borges para seus hóspedes e respirou aliviado: - Assim
pudemos defender a casa pelos quatro cantos. Os bugres perceberam,
na hora, que agora havia mais que um protetor na cabana. Por hoje,
vamos ter paz dessa corja covarde.
- Só espero que o bando não se dirija agora para minha
casa!- disse o administrador com as sobrancelhas franzidas. - O que
vamos fazer? Meu cavalo escapou... Se voltarmos agora a pé, vamos
cair nas mãos dos índios... e se ficarmos aqui, então os selvagens irão
assassinar minha família que não foi avisada a tempo.
209
- Nós precisamos tentar passar por eles. Talvez a pé seja
melhor que a cavalo, - sugeriu Joãozinho que já estava, novamente,
cheio de coragem após a fuga rápida dos selvagens, causada pelos
tiros.
- Também não há outro jeito - concordou Fabrício e fincou
o revólver de Joãozinho em seu cinto.
- Dê-me meu revólver! - disse Joãozinho - Agora minha
mão não vai tremer mais. O aspecto e o uivo dos bugres era, antes,
algo estranho para mim...
Fabrício
e
Cândido
trocaram
um
olhar
e
então
o
administrador e Joãozinho se despediram, não sem antes verificar
cuidadosamente suas armas. Saíram, atentos, pela porta dos fundos
em direção ao capim alto.
Os cães da casa estavam calmamente deitados em seus
lugares, ao lado da cabana, o que era um sinal que os índios não
estavam mais nas proximidades.
Apressados e curvados, os dois se arrastaram pelo campo.
O administrador tomou a direção de sua casa. A pé, levariam
provavelmente mais que uma hora até chegar lá.
Mas, como tinham que ter muito cuidado para não serem
descobertos pelos bugres, a caminhada se prolongaria ainda mais.
Começaram a caminhar rapidamente. Em regiões cobertas
pela
mata,
aguardavam
um
pouco
antes
de
prosseguirem.
O
administrador suava e praguejava. Há anos estava acostumado a
percorrer,a cavalo, mesmo uma distância pequena. Assim, seus pés
não estavam mais acostumados com uma caminhada dessas. E, além
disso, as altas botas de montaria apertavam e o sol do meio dia
queimava sem piedade.
De repente, deu um grito de dor e caiu murmurando
injúrias. Ele pisara com a bota num buraco de tatu e torcera o pé.
Mesmo mancando, tentava continuar a caminhada, mas não havia
jeito, pois seu pé inchava e doía cada vez mais. Sentou-se gemendo
na grama e Joãozinho ajudou-o a tirar a bota. Agora não havia outra
alternativa, Joãozinho teria que tentar chegar ao destino sem o
210
administrador. Porém, teve que prometer-lhe que traria, o mais rápido
possível, seu filho Sérgio com um cavalo selado para levá-lo para casa.
Joãozinho
prometeu
e
saiu,
com
muito
cuidado,
arrastando-se dali sozinho.
Caminhou através de depressões recobertas de mato,
verdes colinas e atravessou alguns riachos e capões de mato. Depois
de muito caminhar, julgou que, a qualquer momento, avistaria a
mangueira da fazenda.
Depois que passou por mais um capão de mato baixo e não
conseguiu ainda avistar os telhados das casas, percebeu que se
perdera e que tomara uma direção errada. Não se podia ver, de lado
algum, nem um telhado de ripas e nem uma mangueira. O gado
pastava calmamente por toda parte, como se não existissem índios
sanguinários.
Assustado e cansado, Joãozinho sentou-se na relva e olhou
para o sol a fim de se orientar e procurar a direção certa que o levaria
até a casa. Pela posição das sombras dos arbustos, pensou que
precisava andar para a esquerda.
Levantou-se e tomou essa direção e, como até agora não
percebera nada suspeito, deixou os cuidados de lado e começou a
correr em direção a um capão distante onde cumes de árvores
brilhavam escuros, no fundo do vale.
Na proximidade do capão de mato, abaixou-se novamente
e arrastou-se cuidadosamente pela depressão recoberta de mata.
Não se sabia se os índios estavam ali espreitando! E quando
alcançou os primeiros arbustos na sombra ouviu um murmurar de
vozes humanas. - Talvez sejam os peões de Fabrício que o estão
procurando! - pensou e aproximou-se de um arbusto que ficava na
beira do vale.
Porém, mal passara pela folhagem assustou-se tanto que
caiu para trás. Não dava para acreditar! Ele tinha que olhar de novo.
Suas pernas tremiam, suas mãos suavam geladas e da testa pingava,
apesar do calor, um suor gelado. Todavia, arrastou-se novamente sem
ser percebido e olhou trêmulo para o vale. Incrível!
211
Ali, os bugres selvagens estavam sentados ao redor de um
porco abatido e o grande e forte índio, no qual Joãozinho atirara,
estava justamente acendendo o fogo para assar o porco.
Para surpresa de Joãozinho, os dois índios feridos por
Fabrício e Cândido também estavam ali, bem dispostos, e carregavam
lenha seca para a fogueira.
- Se eles o descobrirem aqui, você está perdido! - pensou,
e imaginou as torturas que fariam com ele. - Antes eu nunca tivesse
vindo para essa região maldita! - gemia para si mesmo com medo, e
olhava
como
que
hipnotizado
para
os
inimigos
sanguinários.
Lembrava, assim, o pobre pássaro, que imobilizado pelo olhar da
serpente não mais encontra forças para voar.
Depois, viu entre as figuras nuas, uma vestida e armada
com espingarda, que até agora não percebera. - Meu Deus, é o Nestor!
- murmurou olhando atentamente. - O que significa isso? - Sem saber
o que dizer, tão assustado com essa inesperada descoberta, quase
soltou um alto grito.
212
XXVI
A mão morena. O empregado Lammin revela a treta do
administrador. A fuga selvagem. A salvação frustrada. O
arremesso de laço. Uma luta de boxe. A luta de vida e morte. A
salvação se aproxima. Mãos ao alto. O principal culpado
consegue escapar. Joãozinho cai desfalecido ao chão. Emília...
Então uma mão morena, não muito cheirosa, caiu sobre
sua boca. Ele estremeceu, muito assustado, e olhou horrorizado para o
lado, pois acreditava que um espião dos índios o pegara. Então, viu
Felesbino Lammin deitado a seu lado na grama, o agregado que ele
queria procurar. Com o dedo sobre a boca e as sobrancelhas franzidas,
este o fazia compreender que não deveria fazer nenhum ruído. Ao
mesmo tempo, puxou Joãozinho consigo pela grama, até que ficarem
sob os arbustos.
- Venha! - sussurrou Felisbino - os bugres vão assar e
comer a carne agora e não nos seguirão.
- Mas Nestor? - cochichou Joãozinho endireitando um
pouco o corpo para depois continuar se arrastando, agachado ao lado
do agregado, pelo capim do campo.
Um sorriso sombrio tomou conta do rosto inteligente do
agregado. - Os bugres não irão lhe fazer nada. Mas nós temos que
correr. Se o administrador e seus filhos perceberem que descobrimos o
acordo de Nestor com os bugres, então nossa vida estará em jogo.
Seu filho Sérgio já está a caminho para levá-lo para casa. Então,
adiante!
Ambos começaram a correr até que Joãozinho parou
debaixo de um frondoso ingá, para respirar e aquietar um pouco o
coração que parecia querer sair do peito.
Felesbino Lammin aproveitou esse momento de descanso
para relatar rapidamente, a seu companheiro, que o administrador
Fabrício ficara sabendo que um pequeno grupo de índios meio mansos
estavam aprontando das suas em Moema. Esses bugres não eram
guerreiros, pediam esmola e roubavam apenas o que precisavam para
viver. Através de seu filho Nestor tinha mandado trazer os meio-
213
selvagens para a fazenda e simulado um ataque na cabana de Cândido
Borges em troca de dois porcos e de um boi gordo.
Dessa
maneira,
queria
espantar
da
região
o
inoportuno
empregado do Dr. Bark, ou seja, Joãozinho. Ao mesmo tempo, este
serviria de testemunha ocular junto ao Dr. Bark para comprovar que o
gado que Fabrício desfalcara nesses dois anos havia sido roubado
pelos índios.
Durante esse relato precipitado, Felesbino olhava inquieto
para todos os lados e disse finalmente: - Precisamos nos apressar para
sair dos limites da fazenda, pois o administrador logo suspeitará que
descobrimos suas artimanhas! Ele mandará nos matar, para que o
patrão, o Dr. Bark, nunca fique sabendo nada do seu crime. Os bugres
é que serão responsabilizados pela nossa morte! Ele já tem, há tempo,
raiva de mim, porque percebi algumas coisas. Se suspeitar, agora, que
estamos
fugindo
juntos,
ficará
claro
para
ele
que
seu
jogo
terminou.Ele precisa acabar conosco senão ele próprio estará perdido!
Felesbino pronunciara as últimas palavras já correndo
novamente.Os dois corriam em direção da estrada, pois tinham que
chegar à fazenda vizinha, do velho Bueno, para se salvarem. O velho
exercia o cargo de juiz, na região, e não tinha nada de bom para falar
a respeito de Fabrício.
Eles já estavam avistando os postes da cerca de arame e o
portão de saída a apenas algumas centenas de metros de distância,
quando Felesbino se virou e gritou: - Estamos perdidos! Eles estão
vindo e irão nos alcançar!
Mesmo assim, corriam o quanto suas pernas e pulmões
agüentavam em direção ao portão.
Porém, os inimigos se aproximavam rapidamente em seus
velozes cavalos. Seus chicotes ressoavam ameaçadores atrás dos
fugitivos, ordenando que parassem. Então um laço passou sibilando
pelo ar, estalando sobre a cabeça de Felesbino arremessando-o, com
os braços presos ao corpo,no chão.
Joãozinho virou-se e olhou, furioso, para os perseguidores.
Parou ofegante, pois os quatro cavaleiros já haviam obstruído o
caminho que levava ao portão e apontavam-lhe suas armas. O
214
administrador e seus filhos olhavam severamente para ele. O
agregado Cândido Borges, que os acompanhava, mantinha um olhar
submisso, porém nem por isso deixava de apontar-lhe o cano da
espingarda, ameaçadoramente.
- O espião também precisa ser preso no laço - disse Nestor
apontando furioso para Joãozinho.
O administrador concordou sombrio. Seus negros olhos
perfuravam sinistramente os olhos azuis de Joãozinho. Permaneceu
sobre o cavalo, devido ao inchaço de seu pé, enquanto os outros três
desmontaram, sem perder do alcance de suas armas o jovem
empregado.
Joãozinho pôs a mão no revólver, mas recordou-se que o
administrador acabara com sua munição ao atirar contra o simulado
ataque dos índios. Uma expressão amarga pela humilhação sofrida
tomou conta de seu rosto suado. Como ele pôde deixar-se enganar por
esse trapaceiro!
O administrador viu o movimento de Joãozinho buscando o
revólver e deu uma gargalhada sarcástica. - Andem logo! - gritou para
seu pessoal. -Peguem os dois traidores no laço e os amarrem atrás
dos cavalos a galope até que fiquem com a língua de fora. Nós
estamos muito perto da estrada!
O agregado Felesbino Lammin mexeu-se furioso no chão e
levou um pontapé de Nestor que lhe amordaçara os pés e os braços no
laço.
Enquanto isso, Sérgio rodava seu laço pronto para o
arremesso sobre a cabeça de Joãozinho. Sibilante, o cordão trançado
de couro voava sobre o corpo do jovem. Mas o cordão não prendeu a
presa com seu laço, porque Joãozinho, seguindo seu instinto, atirarase, repentinamente, no chão e o laço bateu sobre seu corpo sem
prendê-lo.
Sérgio pulou sobre ele para segurá-lo no chão. Contudo,
não contava com a arte de auto-defesa que Joãozinho aprendera com
Jeca Baiano. Mal Sérgio se debruçara sobre o jovem, este já estava se
levantando e acertando-o com um forte golpe no abdómen, que jogou-
215
o de costas ao chão fazendo com que gemesse terrivelmente.
Joãozinho saltou para trás puxando sua faca.
Este ato de bravura não lhe teria salvo a vida , pois
uivando de ódio, Nestor e Cândido saltaram sobre ele com suas facas,
enquanto Fabrício roxo de raiva apontou a pistola para ele e gritou: Eu vou dar um fim nesse cão raivoso...
Mas...agora, um grito retumbante vindo do portão fez com
que os homens que estavam lutando e que não perceberam o
aproximar da tropa, levantassem os olhos e ficassem imóveis...
A rápida luta de Joãozinho fora observada, da estrada,
pelos cavaleiros que agora atravessavam o portão da fazenda e se
aproximavam deles.
E, no instante em que a vida de Joãozinho estava por um
fio, a voz do condutor da tropa ressoou forte: - Parem! Quem relar um
dedo no meu empregado João Soares Pilz, vai se ver comigo, o Dr.
Bark!
Assustados, os três agressores de Joãozinho recuaram.
Este, porém, assim que ouviu a voz salvadora de seu patrão, virou-se
como um raio. E parecia que se livrava de um fardo terrível.
Como que através de uma névoa sangrenta, viu ao lado de
seu patrão, sua bela filha Emília, o velho fazendeiro Bueno, seu
companheiro Miguel e quatro cavaleiros desconhecidos. Ele queria se
aproximar de seus salvadores... porém seus membros fraquejaram... e
caiu no chão sem emitir nenhum som. A tensão e o grande esforço das
últimas horas foram demais para ele.
Com um grito, Emília saltou do cavalo e, em dois passos,
estava ao lado do rapaz desfalecido. Os outros cavaleiros também
desmontaram para ver Joãozinho. Dois deles soltaram Felesbino
Lammin do laço.
O administrador, reconhecendo que seu jogo terminara,
aproveitou esse momento para pregar as esporas em seu cavalo
fazendo com que disparasse numa fuga selvagem.
Sérgio queria segui-lo, mas estava ainda sentindo as dores
do golpe de Joãozinho e, assim, só conseguiu se arrastar até seu
cavalo. Cândido Borges e Nestor, assim que viram seu chefe fugir,
216
correram para perto de seus cavalos para se salvarem também.
Porém, foram imediatamente cercados pelos cavaleiros, e todas as
pistolas estavam apontadas para eles.
- Mãos ao alto! - ordenou o velho Bueno. - Em nome da lei,
vocês estão presos!
Antes que se dessem conta, os três malfeitores já estavam
amarrados com seus próprios laços e foram levados até o cercado da
casa do administrador. A mãe e as irmãs dos dois filhos do
administrador, ao verem aquilo, começaram a gritar e a gemer.
Quando Joãozinho voltou a si, estava deitado na cama, em
seu quarto, e o patrão olhava para ele enquanto a filha Emília e
Felesbino cuidavam dele. Esfregavam suas fontes e o coração com
essências de ervas revigorantes enquanto lhe davam vinho e água
para beber, chamando-o pelo nome. Todos ficaram felizes quando
abriu os olhos. Depois que tomou um pouco de sopa quente, fechou os
olhos e pegou no sono.
No dia seguinte, acordou saudável e bem disposto. Apenas
a fraqueza ainda não passara totalmente.
Quando Bark entrou com sua filha no quarto de Joãozinho,
este sentou-se envergonhado e queria se levantar da cama. Porém,
seu patrão o empurrou delicadamente de volta para os travesseiros.
Emília o olhava admirada, e seus olhos brilhavam.
- Fique deitado, jovem amigo- disse Bark e usou, sem se
dar conta, um tratamento íntimo em sua conversa. - Você agora
precisa descansar e francamente mereceu isto. Seu relatório sobre o
administrador abriu-me os olhos e mostrou-me o perigo que você e eu
estávamos correndo com esse homem desleal. Quase cheguei tarde
demais. Eu não suspeitava que Fabrício seria capaz de matar suas
testemunhas indesejáveis.
Bark pegou a mão do rapaz entre as suas e a apertou.
Com um semblante comovido, disse olhando carinhosamente para o
jovem: - João, você cumpriu a tarefa que lhe atribuí como a um
homem adulto, apesar de sua juventude. Quando meu sócio Pereira
me relatou seu espanto pelo fato de eu enviar um rapaz tão jovem
para uma missão tão espinhosa, eu lhe disse: - João Soares Pilz é de
217
confiança e prudente. Ainda criança, como o velho Cidral me contou,
cuidava da casa e da irmãzinha e sabia ser corajoso e astuto diante do
perigo. Do mesmo modo, mostrou-se um homem inteligente e
discreto, quando na corrida de cavalos, queriam atraiçoar seu patrão
tirando-lhe dinheiro.
O rapaz estava deitado em sua cama, de olhos baixos e
com o peito arfando. Seu rosto bronzeado de sol estava rubro de
vergonha e orgulho. Endireitou-se como se quisesse levantar-se.
- Fique deitado - disse Bark -eu só estou contando o que
os outros pensam de você. Já seu patrão de Casa Branca, Seu
Rodrigo, assegurou-me com estas palavras quando perguntei sobre
você: - O senhor não poderia escolher uma pessoa melhor para
mandar para Lavrinha para descobrir as artimanhas do administrador.
É jovem e a gente não vê do que ele é capaz... Bark limpou os olhos e
sorriu repentinamente: - O administrador acreditou que poderia dar
um jeito em você. Mas você o superou... bem, agora eu sei o que devo
fazer!
Apertou mais uma vez a mão de Joãozinho, deu um sinal
para a filha e deixou o quarto. Antes que saísse, Emília aproximou-se
rapidamente da cama de Joãozinho, colocou sua mão fina e macia na
mão bronzeada do rapaz e, fixou seus olhos cinzas e brilhantes em
Joãozinho, fazendo-o estremecer. No momento seguinte já estava do
lado de fora.
218
XXVII
A caçada aos bugres. O juiz de paz Bueno. O administrador é
encontrado. A queda do cavalo branco. Um final de
misericórdia. Um grande dia na vida de Joãozinho. A tristeza do
administrador. A viagem para o sul. Colônias florescentes dos
imigrantes alemães e campos no Rio Grande do Sul. A criação
de gado. A cidade de Curitiba. A filha do patrão. As hesitações
da mãe...
Entretanto
continuava
a
busca
pelo
desaparecido
administrador Fabrício e pelos seus aliados menos violentos.
Já no dia seguinte os peões de Lavrinha, reunidos com os
da fazenda vizinha e sob o comando de Tibério, filho de Bueno,
descobriram na mata o esconderijo dos bugres e os levaram,
juntamente com mulheres e crianças, até a mangueira próxima da
casa.
O chefe dos bugres, que falava algumas palavras em
português, foi interrogado e confirmou as declarações de Felesbino
Lammin.
Realmente,
o
filho
do
administrador
os
conduzira
secretamente para Lavrinha e combinara com eles um ataque fictício.
Após esse inquérito, que fora dirigido pelo juiz de paz
Bueno e protocolado pelo escrivão, os índios foram conduzidos até a
estrada e acompanhados por algumas horas pelos peões. Foram
embora pedindo esmolas e roubando até chegarem a Curitiba, onde
causaram sensação e puderam ser vistos por alguns dos leitores mais
velhos desta narração.
O agregado Cândido Borges, para se salvar, fez uma
declaração abrangente. Assim, todas as fraudes de Fabrício vieram à
tona e Norberto Bark recebeu ainda uma parte do dinheiro do gado
que fora vendido às escondidas.
No outro dia, os peões encontraram o administrador
Fabrício num barranco, na mata, sob seu cavalo ferido. O animal, ao
cair, quebrara a perna esquerda da frente e na correria da fuga caíra
sobre o cavaleiro. A luxação e o inchaço do pé não permitiram que o
219
administrador saltasse do animal a tempo. Assim, o cavalo caiu, com
todo o seu peso, sobre o corpo de Fabrício, causando-lhe graves
ferimentos internos. Ele deve ter suportado dores terríveis até que o
encontraram e o tiraram de baixo do animal. O cavalo branco recebeu
um tiro de misericórdia para se aliviar das dores.
O administrador, que não conseguia falar, foi carregado numa
maca improvisada com galhos de árvore, até sua casa. Devido aos
graves ferimentos internos, faleceu no dia seguinte e foi enterrado no
pequeno cemitério da região.
Cândido Borges e os filhos do administrador, segundo
determinação do juiz, deveriam ser presos no lugarejo mais próximo.
Contudo, com pena das mulheres e das crianças, Bark deixou-os
livres. Eles juntaram seus haveres e saíram da fazenda Lavrinha com
destino ao interior do estado.
Que grande dia se aproximava para Joãozinho! Que
sensacional surpresa foi para ele quando Norberto Bark, um pouco
antes de partir, mandou chamá-lo e, na presença da filha Emília e do
vizinho Bueno, participou-lhe que após muito refletir decidira nomeá-lo
administrador da fazenda, apesar da pouca idade. Para auxiliá-lo na
tarefa teria o experiente Felesbino Lammin, que moraria agora na
pequena casa ao lado da construção principal. O velho Bueno e seu
filho
Tibério
também
prometeram
estar
ao
lado
do
jovem
administrador para o que precisasse.
No primeiro instante, Joãozinho perdeu a fala. Sensações
antagônicas perpassavam seu coração. Preferiria retomar seu lugar em
Casa Branca, onde estava mais perto de seu lar. A vida na solitária
fazenda Lavrinha parecia-lhe muito sem graça, quase sinistra, e
receava também, de grande responsabilidade. Por outro lado, o cargo
de administrador era mais conceituado e financeiramente mais
prometedor do que o emprego de caixa na loja de Casa Branca. Com o
dinheiro que ganharia como administrador, logo poderia ajudar
bastante sua mãe e irmãos, melhorando-lhes as condições de vida.
Foi muita sorte isso ter-lhe acontecido. O patrão confiava
nele e, assim, teria que justificar essa confiança e levantar a fazenda
com a ajuda do experiente Felesbino e dos peões.
220
Aceitou o cargo agradecendo muito, depois de, hesitante,
expor suas objeções. Bark, Emília e o velho Bueno apertaram-lhe a
mão. Os poucos peões e agregados, que continuaram no emprego,
foram reunidos por Felesbino Lammin. Bark apresentou-lhes o novo
administrador, que seria o patrão agora e ao qual deveriam obediência
absoluta.
Durante a estadia do patrão na fazenda, Joãozinho fazia as
refeições junto com ele e a filha. Ele e o patrão passaram o tempo
todo verificando os inúmeros assuntos relativos à fazenda. Após alguns
dias, os patrões e seus acompanhantes deixaram a fazenda, já com o
novo administrador.
Com o coração pesado Joãozinho, no portão da mangueira,
acompanhava-os com os olhos. Emília se voltou mais uma vez, para
um aceno. Quando voltou para a grande e deserta casa, onde agora
moraria com seu auxiliar Miguel, sentiu-se infeliz e triste, devido à
grande responsabilidade que apertava duramente seu coração. Ele se
admirava, em silêncio, de que uma situação reconhecida como feliz e
prometedora, poderia tornar-se tão desencorajadora e infeliz. Então
disse para si mesmo: - Apenas o trabalho sério e grandes deveres
ajudam
a
superar
pensamentos
deprimentes-
e
meteu-se
imediatamente no trabalho.
Depois de oito dias, recebeu de Casa Branca a mala que
seu amigo Vitorino lhe enviara. Ao desembrulhar seus livros, sua
lamparina de querosene e todos os seus pertences, sentiu já alguma
satisfação.
Aos poucos adaptou-se à vida e ao trabalho da fazenda.
Mantinha freqüentes contatos com as fazendas vizinhas e começou a
sentir um pouco de felicidade, apesar da saudade do lar e de Casa
Branca que, às vezes, o deprimia.
Após o primeiro ano de trabalho na fazenda, enviou, junto
com o relatório anual detalhado, uma carta para Bark, na qual sugeria
ao patrão que lhe permitisse fazer uma viagem para o interior e para o
sul a fim de comprar gado e cavalos para a fazenda. O gado poderia
engordar nas invernadas da fazenda e ser vendido por um bom preço
em Curitiba. Também pedia autorização para tomar parte nesse
221
negócio com seu pequeno capital. Para substituí-lo como administrador
durante os meses de sua ausência, indicara seu amigo Vitorino.
Bark achou primoroso o plano de Joãozinho. Deu-lhe até
mesmo metade do lucro do negócio, e mandou Vitorino imediatamente
para a deserta Lavrinha. Assim, Vitorino tornou-se um subordinado do
amigo Joãozinho, cinco anos mais novo que ele e alegrou-se, mesmo
assim, por poder estar alguns meses ao lado do irmão da bela
Margarida.
Em intervalos regulares, Joãozinho fazia, ano após ano,
grandes viagens para o interior e o sul do país e trazia grandes
rebanhos de gado, cavalos e burros, com os quais sempre obtinha
bons lucros. Assim, seus bens e prestígio aumentavam ano após ano.
Nessas viagens aproveitava também para conhecer melhor
sua maravilhosa terra natal, o Brasil. Admirava limpeza de centenas de
aldeias e as lindas cidades, o orgulho do catarinense e do riograndense
que, juntamente com os corajosos imigrantes e seus descendentes,
conseguiram desbravar aquela região selvagem dentro de algumas
décadas. Conheceu também as indústrias pelas quais lutaram e se
sacrificaram durante muito tempo. Percorria os vastos campos de
gaúchos, cujo manejado laço e boleadeiras estavam sempre em sua
sela. Via, na planície, as belas plantações de tabaco, cana de açúcar,
mandioca e algodão e, no planalto, os campos de centeio, trigo,
batata, a plantação de árvores frutíferas bem como as vinhas, as
milhares de serrarias e centenas de moinhos de erva-mate. Observava
a construção de novas ferrovias que levariam ao interior dos estados
sulinos brasileiros e, os ligariam, com os estados vizinhos e com a
capital federal. Foi também para São Paulo e admirou o avanço da
cultura, a moderna metrópole e, nessa grande cidade de São Paulo, a
vasta ramificação de linhas ferroviárias. No interior paulista pôde
observar
as
múltiplas
culturas
agrícolas
como
as
gigantescas
plantações de café, de algodão e outras mais.
Entretanto
estados
brasileiros
gostaria de
para
empreendimentos inusitados.
percorrer, mais tarde, outros
edificar-se
com
suas
belezas
e
222
Ao final de cada uma de suas rentáveis viagens precisava,
todos os anos, passar alguns dias em Curitiba para fazer as contas e
discutir os negócios com o patrão e sócio. Eram sempre dias
maravilhosos que passava com a família Bark, e os grandes olhos
cinzentos da bela Emília se fixavam nele cada vez de maneira mais
confiante. A mãe e os irmãos de Emília tratavam-no como pessoa da
família.
Após esses dias admiráveis visitava, na planície, a mãe e
os irmãos. Alguns dias eram sempre destinados à velha e querida terra
natal e eram os mais lindos de sua vida. Mimado pela mãe a admirado
pelos irmãos e pelo padrinho Cidral, Joãozinho desfrutava com prazer
a
amizade
dos
conterrâneos
e
sentia-se
como
um
verdadeiro
"felizardo".
Com o passar dos anos, ajudou sua mãe a construir uma
casa melhor, pois a velha choupana já estava caindo. Emprestou
dinheiro para seus irmãos comprarem uma carreta,
cavalos e um
pedaço de terra. Sua região natal desenvolvera-se; a estrada fora
alargada e tornou-se trafegável até a cidade portuária; o trânsito
aumentou e sua família ganhara, com sua ajuda, prestígio e bens
materiais.
É claro que Joãozinho também não se esquecera da família
do mestre da mata. Dedicava, cada vez que visitava o lar, muitas
horas ao velho Bento Damásio e família. O magro e alto mestre
recebia o antigo aluno com uma conversa alegre e nunca se esquecia
de apresentá-lo como modelo aos alunos atuais.
Os alegres e interrogativos os olhos negros da bela Anita
pousavam sempre sobre ele. Passava horas conversando com sua
amiga de infância, porém quando falava de Curitiba, aqueles olhos
ficavam ainda mais escuros pela dor que procuravam secretamente
ocultar.
Também em casa, quando Joãozinho falava da família Bark
e da bela Emília, o rosto da mãe se entristecia. Suas descrições
entusiasmadas da fina casa, da vida elegante e das distrações da
cidade, revelavam-lhe que seu filho preferido estava, aos poucos,
deixando a vida simples da terra. E ela achava que um filho de colono
223
nunca se sentiria realmente feliz e satisfeito em meio a uma família de
fino trato e na vida da cidade. Pensava também nos olhos tristes de
Anita, quando Joãozinho mencionava com freqüência em suas cartas a
loura Emília. Anita, nos últimos anos, recusou muitos pretendentes
importantes da região, para desgosto de seus pais e estranheza de
vizinhos
e
parentes.
Provavelmente
ela
sempre
esperou
por
Joãozinho... e agora reconhecia, como a mãe de Joãozinho, que o
antigo menino da mata se tornara sempre mais rico e mais fino,
desviando-se da vida simples da mata... Assim desfazia-se um bonito
sonho de adolescência numa névoa cinzenta de um futuro triste.
Quando Joãozinho retornava para a fazenda de uma de
suas
longas
viagens
de
negócios
e
assumia
novamente
a
administração do movimento da mesma, Vitorino pedia férias para
visitar sua noiva, Margarida, irmã de Joãozinho, com a qual se
comprometera outrora em meio-segredo. Mas a mãe deu seu
consentimento com grande alegria.
Joãozinho já era administrador da fazenda há três anos,
quando Vitorino, com autorização de Bark, trouxe a jovem esposa para
a fazenda, onde Margarida atuava como a dona da casa, trazendo
mais aconchego e alegria àquela solitária casa de solteiros. O
casamento foi simples e realizado na casa da mãe.
Joãozinho não pôde assistir o casamento porque não poderia
deixar a fazenda. No mesmo ano, o irmão Francisco casou-se com a
filha do rico Gomes e mudou-se para as terras do sogro, deixando a
mãe, Pedro e Maria para sozinhos, cuidarem da terra.
224
XXVIII
A tristeza de Anita. Aparência e Essência. Uma proposta de
negócios. Joãozinho renuncia ao seu emprego. A mudança para
Casa Branca e Palmital. A surpresa do professor. O pedido de
casamento. A bênção da mãe. Final...
Seis anos se passaram desde que Joãozinho viera para a
Fazenda Lavrinha. Durante esse período, fez muitas viagens, viveu
muitas aventuras que seriam dignas de serem narradas, ganhou muito
dinheiro e também adquiriu muitos conhecimentos e experiências de
vida.
Mais uma vez, estivera fazendo uma visita à família, na
planície, e preparava-se para voltar ao planalto.
Uma tarde, depois de despedir-se da família de Bento
Damásio, percorreu a cavalo o velho caminho que fizera durante
quatro anos, diariamente, quando estudava na escola da mata,
montando o pônei Mico, que ganhara do padrinho Cidral.
O olhar profundo dos belos olhos negros de Anita, ao
estender-lhe a mão na despedida, deixaram-no pensativo. Seu cavalo
começou a andar lentamente, e Joãozinho absorveu-se em profunda
meditação. Será que seu coração não tinha abandonado, às vezes, sua
amiga de infância que o ajudara a entender melhor as letras do
alfabeto e os números, desde que conhecera a loira Emília em
Curitiba? Qual das duas moças amava realmente... qual delas gostaria
de ter como mulher por toda a vida?... Ele mesmo não tinha que
reconhecer que a loira e alegre Emília, que passava os dias jogando
tênis, andando a cavalo, pintando e tocando piano, não combinaria
com ele, filho de lavradores, e nem com a vida livre do campo?...
Distinguir a aparência da essência, unir-se ou não com uma pessoa do
mesmo nível não seria uma das primeiras condições para alcançarmos
a felicidade?
Um
"-
Olá!
Senhor
João!"...
arrancou-o
desses
pensamentos.
O chamado era do velho Vicente Lacerda, o proprietário da
venda em que Joãozinho, quando criança, admirara a "máquina que
225
falava". Ele
aproximou-se do dono da venda e o cumprimentou. O
comerciante pediu-lhe que descesse de seu cavalo, pois há muito
tempo gostaria de conversar com ele.
Joãozinho desceu e seguiu o velho comerciante até o
escritório, passando pela loja onde dois balconistas atendiam os
fregueses. No escritório, o velho mostrou-lhe os livros de contabilidade
e ofereceu-se para vender-lhe o negócio .
Contou-lhe que seu filho mais novo, Henrique, (o mesmo que
outrora perdera uma aposta para Joãozinho com seu galo de briga),
morrera num acidente de caça. Já seu filho mais velho possuía um
negócio próspero na cidade de Ponta Grossa. Era casado, tinha filhos,
e não gostaria de voltar para a planície. Portanto, o velho Vicente
resolvera mudar-se com sua mulher para Ponta Grossa, para viver o
resto de seus dias perto da família e livre de preocupações com
negócios.
Como Joãozinho pôde verificar através dos livros, o
negócio em Palmital ia bem e poderia ser ampliado. Também o
comércio de gado poderia, devido a seus bons relacionamentos, ter
continuidade ali.
Joãozinho ficou muitas horas conversando com o velho. Já
escurecera quando finalmente, levantou-se para sair. Prometeu ao
velho Vicente pensar na oferta e pediu-lhe, por enquanto, mantivesse
o assunto em sigilo. Na realidade, o capital do rapaz não era suficiente
para comprar o negócio e pagar à vista. Porém, o comerciante gostaria
de ficar com uma pequena parte do negócio e Joãozinho esperava que
Dr. Bark o ajudasse.
Pensativamente, montou seu cavalo e foi para casa sob o
brilho das estrelas. Se ele comprasse a venda... a coisa martelava em
seu cérebro... então Vitorino poderia assumir a administração da
fazenda e melhorar a própria renda. E ele poderia se casar e viver
perto da mãe e dos irmãos. Atraentes e sedutores projetos futuros
tomavam conta dele...
`
Em casa, não comentou com ninguém sobre seus novos
planos. Por que deveria dar esperança de sonhos que talvez não se
realizassem?...
226
No dia seguinte, despediu-se da família e foi para Curitiba.
Lá, expôs seu desejo ao Dr. Bark. O patrão ficou muito surpreso. Ele
concordava muito com João em passar o cargo de administrador para
o cunhado Vitorino. Mas, aos poucos, consentiu e disse que gostaria de
fazer uma tentativa com o novo administrador.
Porém procurou dissuadi-lo, a todo custo, do plano de
comprar a venda do velho Vicente. Ofereceu-lhe um bom cargo em
sua grande loja em Curitiba, onde o rapaz ganharia mais que em
qualquer venda da mata e onde se tornaria uma pessoa conceituada.
Contudo Joãozinho, que já vivia intensamente esse novo
plano, ficou irredutível. Pensava como o grande romano Júlio César:
“Melhor ser o primeiro e não ter um senhor em sua aldeia natal do que
ser um entre muitos na cidade!”
Seu bom senso também lhe dizia que não conseguiria viver na
cidade. Assim, Dr. Bark acabou cedendo e assegurou-lhe até mesmo
seu total apoio.
Imediatamente Joãozinho pôs-se a fazer sua última viagem
para a Fazenda Lavrinha como administrador. Após três dias chegou
ao seu destino e surpreendeu o cunhado Vitorino e Margarida com a
grande novidade. A tristeza em saber que Joãozinho iria embora foi
compensada pela alegria do emprego melhor que Vitorino assumiria, a
partir de então, como administrador.
Após solucionar todas as questões urgentes, Joãozinho
partiu da fazenda onde vivera por mais de cinco anos.
Então voltou para Curitiba, com um rebanho de gado, para
acertar as contas com o patrão e sócio que lhe remeteria então seu
dinheiro. Dr. Bark deu-lhe crédito para compras em sua grande loja e
abriu-lhe um crédito no banco.
Assim, Joãozinho fez muitas compras para a venda em
Palmital, que iria assumir, e comprou grandes tropas de burros.
Gostaria de ver seu sonho de menino realizado. Voltar para sua terra
natal como um homem rico, com um grande rebanho de gado,
acompanhado
de
muitos
peões
e
tropeiros,
e
muitos
animais
carregados de provisões. Havia um pouco de exibição neste seu
desejo, mas sabia que com essa entrada pomposa faria uma surpresa
227
maravilhosa à sua mãe, seus irmãos, à família do professor e ao
padrinho Cidral.
Depois de despedir-se calorosamente da família do Dr.
Bark, que lhe prometera uma visita para breve, partiu para casa com
uma imensa tropa de sessenta burros carregados, umas cinqüenta
cabeças de gado e cavalos, passando por Casa Branca. Por todo lugar
onde passava a grande tropa, com seus tinidos e os gritos dos muitos
peões,
despertava
olhares
significativos.
Como
dono
dessas
maravilhas, Joãozinho cavalgava atrás do tumulto poeirento, montado
em um magnífico cavalo com sela prateada. De toda parte vinham
pessoas para ver o grande senhor.
Joãozinho foi recebido cordialmente em Casa Branca pelo
antigo patrão e mestre, Rodrigo. Porém, precisou agüentar as troças
amigáveis pela sua conduta pomposa.- O hábito faz o monge - riu
Joãozinho, corando um pouco de vergonha.
Permaneceu dois dias, com seu pessoal e os animais, em
Casa Branca e passou o tempo todo na companhia animada de Rodrigo
e de seus colegas, convidando-os para irem visitá-lo em Palmital.
Então partiu, com muito alvoroço e barulho, levantando poeira pelos
campos e pastos, por pinheirais e matas de erva em direção da serra.
Uma tropa dessas não viaja tão rapidamente como um cavaleiro
sozinho. Assim, apenas no segundo dia Joãozinho chegou com sua
comitiva, à serra solitária e pernoitou, como outrora, na choupana do
velho Cordeiro. O humilde casal alegrou-se muito quando reconheceu
Joãozinho. E o velho Cordeiro narrou para os ouvintes, junto à
fogueira, o assalto outrora sofrido por Joãozinho e como este se livrara
dos ladrões pela presença de espírito e pelo cachimbo.
No quarto dia, por volta da hora do almoço, a tropa saía da
floresta montanhosa e chegava à planície de Palmital. Da capela da
colina podia-se ver a escola e, mais ao longe, as duas vendas. A tropa,
com o trotear dos burros, o barulho dos sinos, o gado que mugia e
levantava poeira, passava fazendo grande alvoroço. Joãozinho desceu
do cavalo e entrou na capela que estava aberta. Tirou o chapéu de aba
larga e benzeu-se, fazendo com que as esporas prateadas tilintassem
nos ladrilhos. Com a cabeça curvada e de mãos postas agradecia a
228
Deus, senhor do mundo e do destino dos homens, pelo misericordioso
amparo durante todos os perigos sofridos, pelo sucesso de sua jovem
vida e pela feliz viagem de volta à terra natal. Implorava a Deus que
continuasse a abençoá-lo e, se ele tivesse que passar por dores e
sofrimentos, que Deus o tornasse forte e corajoso para enfrentá-los.
Depois que terminou a oração saiu da capela, colocou o
chapéu e subiu no cavalo. A escola da mata ficava logo ali na
baixada... e os alunos já corriam para a porta, pois a estupenda tropa
se aproximava da casa.
Joãozinho cavalgou colina abaixo, e esticou o pescoço
procurando ver algo especial. Será que Bento Damásio e Anita não
apareceriam? Seu peito enchia-se de esperança, e o coração começou
a bater com mais força. Assim que desceu o morro, viu que as pessoas
das casas vizinhas corriam e olhavam para a enorme tropa e os muitos
tropeiros. Como o coração de Joãozinho se regozijava!
Agora, ele se aproximava da escola e via os meninos, que
o professor não mais conseguia reter, correrem atrás da tropa.
Bento Damásio seguia-os com o olhar perplexo, porém já
era quase hora do almoço e ele próprio estava admirado com todo
aquele barulho. Sua mulher também saiu para ver o que estava
acontecendo.
Ambos
olhavam
para
o
dono
da
tropa
que
se
aproximava, orgulhoso, no maravilhoso cavalo com sela prateada.
Não, realmente, eles não o estavam reconhecendo. O
antigo pequeno protegido, que Bento Damásio outrora apelidara de
"Joãozinho Felizardo", não estava sendo identificado.
Dispensavam um olhar, respeitoso e alheio, para aquele senhor
imponente que se aproximava. Nada lhes era mais distante que pensar
em Joãozinho que, há menos de um mês, se despedira deles e da filha
para ficar afastado por longo tempo. A filha Anita, após a despedida,
não fizera outra coisa que chorar por dias seguidos.
Mas onde está a moça? Ah! Ela está ali, olhando pela
janela!
Ela
aproximava
reconhecera
em
sua
sela
imediatamente
brilhante
e
o
cavaleiro
ficou
muito
que
se
pálida.
Involuntariamente, seu olhar procurava pela elegante Emília, de
229
Curitiba, que provavelmente viera junto para receber a bênção da mãe
de Joãozinho. Oh! Depois desta entrada suntuosa do distinto e rico
senhor João, a pobre filha do professor poderia perder qualquer
esperança que o amigo de infância ainda gostasse dela e a quisesse
como esposa, não é?!
Próximo do mestre, Joãozinho parou o cavalo e saltou.
Então o velho casal o reconheceu e ambos ficaram muito perplexos.
Joãozinho abraçou-os e perguntou: - Onde está Anita? - E seu coração
quase parou de tanta excitação.
- Ela está ali na janela! - disse Bento Damásio rindo. - Está
admirando a grande tropa! Entre e a cumprimente.
Batendo com as esporas no chão, Joãozinho passou pela
vazia sala de aula e entrou na sala de estar ao lado onde Anita, muito
trêmula,
sentara-se numa cadeira perto da janela. Olhou-o e com
seus olhos escuros, resignada.
- Anitazinha! - chamou-a Joãozinho com voz tão suave que
a jovem levantou-se, espantada e feliz. Seus belos olhos aveludados
brilharam de repente, cheios de esperança, e voltaram-se para o rosto
radiante de Joãozinho. E ela viu em sua expressão, em seus brilhantes
olhos azuis, tanto amor, tanta confiança, que as lágrimas lhe vieram
aos olhos. - Joãozinho! - disse ela vibrante... e então os amigos de
infância estavam um nos braços do outro...
O grande espanto dos pais que entravam, seu primeiro
olhar e sua emoção... quem poderia descrever isto? O velho Bento
Damásio limpava continuamente os olhos úmidos com a manga da
camisa e o casal de velhos abraçava, sem parar, ora a filha, ora o
novo filho.
Finalmente, Joãozinho se refez e foi para fora. Um de seus
peões ficara para trás e a tropa já havia sumido na curva da estrada.
Deu algumas ordens ao peão e, depois de uma meia hora, havia dois
belos cavalos ao lado do de Joãozinho. Um deles trazia uma novinha
sela para mulher.
230
- Pai Damásio, Anita, vocês precisam ir comigo até minha
mãe! - disse Joãozinho. Aí estão os dois cavalos. O cavalo com a sela
feminina eu trouxe para Anita. O animal é um marchador!
- Oh, que cavalo lindo! E que sela maravilhosa! - exultava
Anita. Joãozinho, esse cavalo é meu?! - Ela mais uma vez abraço-o e
o beijou.
Os três cavalgaram felizes, ao longo da velha e conhecida
estrada, até chegarem ao campo livre onde ficavam as duas vendas.
As pessoas que cruzavam com eles arregalavam os olhos e esticavam
os pescoços curiosos.
Os tropeiros e os peões de Joãozinho começaram a
descarregar os burros e a levar o gado para o pasto cercado. O velho
vendeiro Vicente estava parado na varanda, entre seus embasbacados
fregueses, e observava tudo sorrindo muito satisfeito.
Através das cartas de Joãozinho e de uma entrada em
dinheiro que o banco de Curitiba remetera, o negócio estava fechado.
Agora só faltava fazer o balanço na presença do comprador, e acertar
mais alguns detalhes para que João Soares Pilz assumisse sua nova
propriedade.
Os três recém-chegados desceram dos cavalos e Joãozinho
ajudou a radiante Anita. O velho Vicente foi-lhes ao encontro e os
cumprimentou. Em seguida, atravessaram a varanda e entraram na
loja. O mestre da escola da mata, radiante, contou ao vendeiro que
sua Anita era, a partir de hoje, a noiva de seu antigo aluno preferido, o
"felizardo". O vendeiro expressou seus votos de felicidades ao jovem
casal e ao velho.
À
venda
chegavam
sempre
mais
curiosos.
Os
dois
balconistas tinham muito trabalho para contentar todos os fregueses.
Nisso aproximou-se alguém, numa carroça com dois
cavalos, e parou defronte a varanda, onde o barulho dos tropeiros e
dos burros era muito grande.
Bento Damásio e Anita, que olhavam pela janela da loja,
viram que era a carroça de Pedro, irmão de João, com a mãe e a irmã
231
Maria
lá
sentadas.
Eles,
provavelmente,
vieram
vender
alguns
produtos e aproveitar para fazer suas compras.
- São pessoas da família de Joãozinho! - disse alegre o
mestre. Vocês se escondam! Vamos fazer-lhes uma grande surpresa!
- E já empurrava empurrando Anita e Joãozinho para dentro do
escritório da loja. O velho Vicente percebeu logo do que se tratava e
os seguiu, sorrindo, para o escritório, fechando a porta atrás de si.
Depois que combinaram o que iriam fazer, Vicente entrou
na loja, cumprimentou a viúva e a filha Maria, que se tornara uma bela
moça. Pedro ainda estava lá fora com os cavalos.
- Minha prezada senhora - começou o vendeiro - preciso
comunicar-lhe que vendi minha venda para um jovem senhor de
Curitiba e vou-me mudar, com minha mulher, para Ponta Grossa para
junto com meus filhos e netos...
- Oh, que pena - lamentou a viúva - nós sempre nos
demos tão bem com o senhor, Seu Vicente. - Quem garante que o
novo vendeiro seja uma pessoa simpática...
- Ah, ele lhe será muito mais simpático - ria o velho... A
senhora o conhece desde que nasceu... - e abrindo um pouco a porta
do escritório, puxou Joãozinho, pelo braço...
- Joãozinho, você?... de onde você vem?...- gritou Maria,
enquanto a mãe olhava seu filho, incrédula.
No momento seguinte mãe e filho se abraçavam e Maria
também abraçou o amado irmão.
- Mas me diga, o que significa tudo isso? - perguntou a
mãe, atônita, enquanto passava a mão na testa, como se quisesse
despertar de um sonho.
- Você não deixou a gente perceber que voltaria tão
depressa para casa. Como foi isso?
- Joãozinho comprou minha venda, - exclamou o velho
vendeiro. - Ele se calou até que nosso negócio estivesse concluído. A
meu pedido, ele não pôde dizer nada a ninguém.
- Não, não - murmurou a viúva, e sentou-se agitada no
banco. Feliz e calada olhava para o filho... para o Joãozinho que
conseguira fazer tal negócio!.
232
Todos os que estavam na loja acercaram-se do grupo e
escutavam boquiabertos.
- Quer dizer que não é um sonho? - perguntou a mãe
baixinho, passando a mão pela testa. - Meu Joãozinho é um vendeiro
independente na terra onde nasceu... meu filho! ...meu filho! Levantou-se do banco e abraçou novamente o filho, em cujos olhos
azuis surgia um brilho intenso.
- João comprou a venda!... Será possível?! - balbuciou
Maria, e correu, feliz, ao encontro do jovem Quintino que acabara de
entrar na loja. Quintino era aquele rapaz que ganhara a briga de galos
do irmão de Joãozinho. Os dois jovens olharam-se nos olhos e
Joãozinho percebeu, rapidamente, que Maria e Quintino se amavam já
há tempo.
Quintino só não se declarara antes, porque era muito pobre para
construir um lar. Agora que Joãozinho comprara a venda, Maria via
que Joãozinho também a ajudaria a realizar seu sonho.
O velho Vicente pegou a viúva pela mão e levou-a para
fora: - Esta grande tropa, e todo o gado bonito que a senhora está
vendo, foi seu filho que trouxe.
- Oh, Deus, Oh Deus! - dizia a mãe balançando a cabeça
admirada e olhava, orgulhosa, para seu filho mais novo que conseguira
tudo aquilo.
- Sim, senhora - continuou Vicente - e ele trouxe também
uma bela noiva e quer se casar dentro de quatro semanas. - A senhora
abençoará o jovem casal, não é?... Entre no meu escritório. A noiva de
Joãozinho está lá...
Então
as
pernas
da
viúva
se
recusaram
a
andar.
Acontecera muita coisa e a pobre mulher estava muito emocionada. E
agora vinha a notícia temida, há tempo, em silêncio. Joãozinho ficara
noivo da rica Emília... pois, do contrário, não era possível que
Joãozinho, tão de repente, passasse de administrador de uma fazenda
para comerciante, para dono... de uma venda... O dinheiro da noiva
rica de Curitiba devia estar por trás... Era isso! Novamente caiu
trêmula sobre o banco e empalideceu muito. - Pobre Anita, pobre Anita
- murmurava. E já antevia como seu Joãozinho seria infeliz ao lado da
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elegante moça da cidade, aqui na mata. Mas ela não poderia mudar
isso! Assim, respirou fundo e aceitou a mão que o velho vendeiro lhe
oferecia e seguiu-o até o escritório para onde Joãozinho já se dirigira.
Maria chamara o irmão Pedro e foi com Quintino atrás da mãe.
Quando a viúva, com expressão muito preocupada, entrou
no escritório, avistou Joãozinho abraçado com Anita. Atrás do radiante
casal estava o velho mestre, que sorria feliz e dizia:
- Viva! Sogra!
Isto foi demais para a velha senhora. Caiu de joelhos
chorando, e com as mãos sobre os olhos.
Seus filhos a levantaram do chão. Ela não conseguia ver
nada, pois as lágrimas turvavam-lhe o olhar. Anita e Maria colocaram
as mãos sobre seus ombros e a conduziram suavemente até a poltrona
que estava ao lado da escrivaninha.
Então o jovem casal ajoelhou-se diante da mulher que
chorava, para receber sua bênção. A mãe procurava se acalmar.
- Meu filho - disse então, com rosto radiante do qual caíam
lágrimas cristalinas - com a escolha de sua esposa, você me mostrou
que sabe distinguir da falsa, a verdadeira felicidade!
- Viva o Joãozinho Felizardo! - gritava Bento Damásio
batendo com os pés no chão para esconder sua emoção. Todas as
pessoas que se espremiam pela abertura da porta, batiam palmas para
acompanhá-lo.
Aqui termina nossa narrativa.
Como continuou a vida de Joãozinho - se ele foi sempre
um "Joãozinho Felizardo" ou se, mais tarde, se tornou-se um "João
Azarado"- isto nós ficaremos sabendo, talvez, numa outra estória...

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